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MOIRA STEIN
CORPO E PALAVRA:
ORGANICIDADE E RITUALIZAÇÃO DA FALA
EM PRÁTICAS FORMATIVAS DO ATOR CONTEMPORÂNEO
FLORIANÓPOLIS, SC
2006
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1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC
CENTRO DE ARTES CEART
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO PPGT
MOIRA STEIN
CORPO E PALAVRA:
ORGANICIDADE E RITUALIZAÇÃO DA FALA
EM PRÁTICAS FORMATIVAS DO ATOR CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado
em Teatro da Universidade do Estado de
Santa Catarina, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Teatro.
Orientador:
Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Jr.
FLORIANÓPOLIS, SC
2006
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MOIRA STEIN
CORPO E PALAVRA:
ORGANICIDADE E RITUALIZAÇÃO DA FALA
EM PRÁTICAS FORMATIVAS DO ATOR CONTEMPORÂNEO
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre, no curso de Pós-
graduação em Teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Banca Examinadora
Orientador: ___________________________________________
Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Jr.
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
Membro: ___________________________________________
Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
Membro: ___________________________________________
Profa. Dra. Marta Isaacsson
Universidade Federal do Rio Grande do Sul -UFRGS
Florianópolis, 15/12/2006
3
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Milton, pela atenção cuidadosa, pela indicação de direções, e por, em alguns momentos,
desestabilizar as estruturas, como que testando as bases, e as minhas convicções.
À Profa. Marta Isaacsson, pelo constante incentivo e pela generosidade.
Ao Prof. José Faleiro, pela exigência e pelo exemplo de dedicação e envolvimento.
Ao Prof. Antônio Vargas, pela disponibilidade e pela contribuição, e aos Professores
André Carreira, Valmor Beltrame e Edélcio Mostaço, pelo contato e pelo aprendizado.
Minha gratidão especial a Carlos Simioni e a Sonya Prazeres, por suas vozes.
Ao Simi, pela presença impressionante e pela luz!
À Sonya, pela emoção e pela total aceitação e descoberta!
Ao Grupo Beleza, por existirmos juntos, naqueles momentos de fluidez e espanto.
Ao Grupo do Vibrato Crescente, por tudo que foi compartilhado, com coragem.
Ao Grupo Corpo da Voz: Laura, Maurício, Marisa, Ângela e Laco, pela prática e pela quietude.
Aos ressoantes sobreviventes dos Cantos Sagrados: Célia, Fábio, Suzi, Cleuza, Ana, Andréia e
Lenoar, pelos muitos harmônicos e pelos vazios tão plenos.
A Cia Stravaganza, por renovar o contato com Simioni.
À grande amiga Vera, cujo apoio foi fundamental. Pelas idas e vindas na ilha, pelas conversas
dispersas e pelas leituras atentas. Obrigada Vera! E às amigas Neusinha, Tatiana e Luciana.
À Carina, minha filha, por todos os paradoxos do amor, pelo impulso da fala, e por ser tão única,
linda, inteligente, amorosa e independente!
Ao Ernildo, meu pai, e à Suzana, minha mãe, por tudo! Demais para nomear aqui.
À minha família: Marília, Sofia, Guilherme, Geraldo, Adriano, Carlos, Elissa, Ernesto e Érico, de
filósofos, músicos, professores, estudantes e crianças, pela proximidade e inspiração.
Ao Grupo Nômade, por revelarmos forças inconscientes de forma tão concreta, difícil e bela. Em
especial ao Zé, nosso eterno Merlin, pelas encantações incompreensíveis.
Ao Cassiano, pelas vozes em montanhas e cavernas.
Ao Marcos, pela voz poderosa, que me faz ser toda ouvidos.
4
RESUMO
Esta dissertação reflete sobre a relação corpo-palavra no trabalho do ator contemporâneo,
enfocando a procura da organicidade da fala e o papel que a ritualização desempenha em tal
busca. Na primeira parte da dissertação, é desenvolvido um estudo teórico sobre as idéias e as
pesquisas de Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e Peter Brook, no âmbito da voz, da fala e da
linguagem verbal, considerando que tais autores têm influência significativa sobre o teatro
contemporâneo, no que concerne ao aprofundamento do trabalho do ator e à procura da
ritualização do ato teatral. Os três autores citados desenvolveram experiências práticas,
mergulhando na experimentação da voz humana, na sua manifestação não-verbal e aprofundando
o conhecimento concreto de um território vocal que integra também a palavra falada: a
linguagem verbal é resgatada em seu aspecto sonoro, concreto, bem como em sua origem ligada
ao sagrado e ao mítico. Inspirando-se em culturas tradicionais, chegam à proposição de uma fala
teatral mais próxima de sua origem antropológica, ritual e cerimonial. A análise desenvolvida
nesta primeira parte da dissertação procura elucidar alguns processos de integração orgânica entre
a linguagem verbal e o corpo do ator. Na segunda parte da dissertação, enfocam-se duas
experiências atuais e brasileiras na prática da experimentação vocal nas quais identificamos
prolongamentos das abordagens dos autores estudados. Procura-se dar ênfase à prática formativa,
com um estudo do trabalho do ator e diretor Carlos Simioni sobre a ação vocal, no âmbito das
pesquisas do Grupo Lume de Campinas (SP), e dos diferentes processos da voz-terapia
trabalhada por Sonya Prazeres. Serão descritas e analisadas as práticas vocais oferecidas por eles.
A criação de um método de estruturação física para a voz, como um recurso para canalizá-la
através dos ressonadores, trabalhando a sua vibração em diferentes regiões do corpo, é o foco das
oficinas de Simioni. Aliado às pesquisas desenvolvidas pelo Lume, com as matrizes vocais e a
montagem, oferece uma forma prática de integrar corpo e voz. O Vibrato Crescente da voz-
terapia, com a abordagem dos ressonadores da voz através dos arquétipos, desenvolvido por
Prazeres, visa à abertura da expressão pessoal, útil ao trabalho do ator, nos seus processos
criativos. Ambos os trabalhos se aproximam de uma visão do transcendente, na qual a noção de
vibração alia corpo, voz e fala do ator.
PALAVRAS-CHAVE: ator – voz – fala – organicidade - ritualização.
5
ABSTRACT
This thesis develops the reflection about the relationship body-and-words in the work of the
contemporaneous actor, searching for the organic character of speech and the function that the
ritualistic aspect performs in this searching. In the first part of the thesis is developed a theoretical
study about ideas and researches of Antonin Artaud, Jerzy Grotowski and Peter Brook, in the
space of voice, speech and verbal language, considering that such authors have had a significant
influence over the contemporaneous theatre, concerning to the deepening work of actors and to
the searching of ritualistic aspect of the theatrical act. The three named authors have developed
practical experiences, going deep in the experiment of human voice, in his non-verbal
manifestation and also getting deep into the concrete knowledge of a vocal territory that will
include the spoken word: the verbal language is rescued in its sound aspect, concrete, as well as
in its origin, related to sacred and to mythic. Getting inspiration in traditional cultures, they arrive
to the proposition of a theatrical speech nearer to its anthropological, ritual and ceremonial origin.
The analysis developed in the first part of this thesis looks for the comprehension of some
processes of organic integration between verbal language and the body of the actor. In the second
part of this thesis, we focalize two actual Brazilian experiences in the practice of vocal
experiment in which it is to identify certain continuity of the contribution of the former studied
authors. The emphasis is given to the formative practice, with a study of the work of the actor and
director Carlos Simioni on vocal action, in the space of the researches of the Lume Group of
Campinas (SP), and of the different processes of voice-therapy worked by Sonya Prazeres. The
vocal practices offered by each one of them will be submitted to description and analysis. The
creation of a methode of physical structuration for the voice, as a resource for canalizing it
through the resounders, working the vibration of voice in different regions of the body, is the
central point of Simioni workshops. Allied to the researches developed by the Lume group, with
the vocal matrixes and the putting-on together, it is offered a practical form of integration of body
and voice. The Vibrato Crescente of the voice-therapy, with the approaching of the resounders of
the voice through the archetypes, developed by Prazeres, aims to the openness of the personal
expression, useful to the actors work, in its creative processes. Both these works get near to a
vision of transcendence, in which the notion of vibration allies actors body, voice and speech.
KEY-WORDS: actor - voice - speech - organicity - ritualization.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
PARTE IA BUSCA DA ORGANICIDADE DA FALA NO TEATRO DO SÉCULO XX 17
I.1. A RELAÇÃO ENTRE CORPO E LINGUAGEM VERBAL NO TEATRO DO SÉCULO XX 17
I.1.1. Stanislavski e a lógica da ação na palavra 17
I.1.2. A busca da teatralidade no corpo e na fala 20
I.1.3. A escrita do corpo e o corpo da palavra 25
I.1.4. O corpo e a fala no Teatro Sagrado 28
I.1.4.1. A palavra enquanto mito 29
I.1.4.2. O ator no Teatro da Crueldade de Artaud 32
I.1.4.3. As pesquisas de Grotowski 37
I.2. A VOZ DO ATOR EM ANTONIN ARTAUD, JERZY GROTOWSKI E PETER BROOK 42
I.2.1. A respiração e o fluxo orgânico 43
I.2.2. A voz no nível não-verbal 49
I.2.3. A pesquisa dos ressonadores da voz 55
I.2.4. A voz cantada e a encantação 59
TRANSIÇÃO - A VERTICALIDADE NA INTEGRAÇÃO CORPO-PALAVRA 66
PARTE II – EXEMPLOS DE TRABALHOS VOCAIS NA FORMAÇÃO DO
ATOR CONTEMPORÂNEO 72
II. 1. CARLOS SIMIONI E A PESQUISA DA AÇÃO VOCAL 72
II.1.1. A voz nas pesquisas do Lume 73
II.1.1.1. As matrizes vocais e os ressonadores 76
II.1.1.2. A montagem e a não-interpretação 80
II.1.2. As oficinas de ação vocal 83
II.1.2.1. A estrutura física para a voz 84
II.1.3. O aspecto transcendente no trabalho do ator 88
7
II.2. SONYA PRAZERES, A VOZ-TERAPIA E O TRABALHO DO ATOR 93
II.2.1. A origem da voz-terapia e sua repercussão em pesquisas teatrais 95
II.2.2. Princípios para a abordagem da voz 100
II.2.3. As maratonas do Vibrato Crescente 106
II.2.3.1. Os ressonadores e os arquétipos 107
II.2.3.2. Os cantos sagrados e a conexão com o transcendente 116
CONCLUSÃO 120
BIBLIOGRAFIA 125
ANEXO 1 – Entrevista com Carlos Simioni – outubro de 2004 130
ANEXO 2 – Entrevista com Carlos Simioni – agosto de 2006 141
8
INTRODUÇÃO
O trabalho do ator, que abrange a consciência dos seus meios expressivos e elabora a
codificação da linguagem corporal e vocal na procura constante dos impulsos vitais associados a
ela, é um dos grandes focos das pesquisas teatrais da atualidade. Grande ênfase é dada à
consciência e à expressividade corporais como chaves para a presença e a verdade do ator em
cena. As emoções, os impulsos, as vontades, que farão parte da vida do ator em cena, são
acessadas através da sua manifestação física, corporal. O texto é, então, apenas mais um elemento
com o qual o ator deverá se relacionar, não mais exclusivamente a partir de uma análise racional,
mas também a partir de uma exploração sonora das possibilidades vocais associadas a ele. Pensar
e estudar a respeito da relação corpo e palavra, corpo e fala, assim como experimentar na prática
um aprofundamento dessa relação, é a meu ver essencial para o trabalho do ator.
Penso que esta pesquisa possa situar-se no movimento de retomada da palavra pelo teatro
contemporâneo. Retomada de uma palavra questionada e destronada no início do século passado.
Palavra que precedentemente, na tradição literária do teatro do século XIX, se encontrava no
centro da representação cênica: a encenação no teatro burguês oitocentista acontecia em função
do texto, que era também sempre o ponto de partida para a montagem; texto este interpretado
pelos grandes atores, conforme o seu dom natural, talento pessoal e inspiração. Como reação a
esse teatro, desenvolve-se o realismo e o naturalismo característicos da virada ao século XX.
Constantin Stanislavski (1863-1939) é o maior representante do realismo e busca a
verossimilhança no interior da pesquisa de novos caminhos para a formação do ator e para o
desenvolvimento de um treinamento psicofísico específico. Por outro lado, indo contra o
realismo, surge no decorrer do século XX uma busca contínua de reteatralização, que procura a
essência do ato teatral e aproxima-se de antigas técnicas codificadas, como a Commedia dell’arte
e o Teatro Oriental. A arte teatral reivindica sua autonomia nas mãos do diretor, que não deve se
submeter às vontades do ator ou do dramaturgo e assumir a coordenação de toda a encenação.
Esses diretores e encenadores são também os que acabam se ocupando, como diretores-
pedagogos, em desenvolver a formação de um novo ator.
A partir das pesquisas de Stanislavski, cria-se toda uma tradição de abordagem do texto
como expressão de uma vida psicológica da personagem. A aproximação em relação a esse texto
se pela análise da personagem, de suas relações, de seu contexto social, de seus objetivos. É
9
procurada uma lógica no comportamento das personagens, que define sua linha de ação, e através
desta clareza busca-se a verossimilhança em cena.
Stanislavski, dentro da sua concepção realista do teatro, também busca a verdade em cena,
e para isso propõe a improvisação das situações do texto como uma forma de chegar até as
palavras, mesmo que num primeiro momento não seja trabalhado o texto original. Ele acredita
que se tudo for analisado e compreendido, através da ação, da vivência exata da situação, dos
objetivos e das reações adequadas, as palavras exatas começarão a aparecer. O texto será então
incorporado como parte das ações das personagens, ações cotidianas e verossímeis.
na concepção de Bertolt Brecht (1898-1956), encontra-se outro ponto de vista, marcado
pela teoria marxista. No seu teatro dialético, ele propõe o distanciamento em relação às ações das
personagens. Neste sentido, o texto é visto como parte de um Gestus social e não de um impulso
individual. Ele instiga a platéia a dar-se conta das muitas possibilidades que na verdade existem
em termos de ações e reações possíveis e críveis. As forças sociais e os papéis que elas
determinam são fortes, impõe aos indivíduos as suas atitudes e as suas palavras, os seus
discursos.
Nas primeiras décadas do século XX, temos um contexto histórico em que novas idéias e
acontecimentos vêm transformando a visão do homem. As idéias de Sigmund Freud (1856-1939)
sobre o inconsciente e o subconsciente são alguns marcos da época, abrindo à arte um novo
universo de imagens e simbologias. As evoluções tecnológicas trazem um contexto no qual a
máquina e sua eficácia estão supervalorizadas. As teorias marxistas ressaltam a responsabilidade
e a capacidade do homem de ser o agente da história. A primeira guerra mundial é um
acontecimento histórico que deixa um rastro de desilusão e pessimismo. Este contexto de
transformações também encontra sua expressão na arte moderna, englobando os inúmeros
movimentos da vanguarda artística do início do século. O simbolismo é uma das tendências da
época, retratando o universo onírico ligado ao inconsciente. No teatro aparecem personagens
arquetípicas, e temas como a morte, a solidão, o vazio. O silêncio é valorizado. Nos textos
predomina o aspecto poético, de expressão de um universo interno, através de imagens
simbólicas. O expressionismo busca romper os limites da linguagem falada, trabalhando a sua
concretude, a sua sonoridade, num espírito de revolta, que reflete novamente os acontecimentos
históricos da época.
10
Neste contexto de reteatralização, podemos destacar as idéias de Antonin Artaud (1896-
1948) e a sua concepção de Teatro da Crueldade. Artaud defende a criação de um novo teatro, um
teatro que aja sobre o espectador de uma forma forte e eficaz, no sentido de transformação dos
valores da sociedade. Um teatro “cruel” no sentido de provocar uma tomada de consciência da
condição humana. Um teatro para fazer surgir, reavivar, aquelas forças primitivas do ser humano
que a sociedade nega e reprime, deixando aflorar o lado trágico inerente à própria existência, uma
linguagem teatral que seja uma linguagem concreta para agir sobre os sentidos do espectador. O
espaço deve ser preenchido com imagens, trazendo a força dos sonhos, não dependendo de um
texto escrito. Um espaço não convencional, não frontal, deve envolver o espectador por todos os
lados.
A exemplo do Teatro Oriental ou das manifestações rituais, como as de Bali, de sabida
influência sobre Artaud, o ator será um criador de signos, precisamente codificados, ao mesmo
tempo em que entrará num estado de transe e deverá agir sobre o espectador como um
“encantador de serpentes”. O ator precisa redescobrir o aspecto mágico da palavra. Todo e
qualquer discurso racional e “seco” deverá ser abolido. Artaud sugere a idéia de “encantação”
para definir essa nova palavra, que terá uma força concreta, na sua sonoridade, na sua vibração e
na sua capacidade de evocação.
A procura de um teatro ritual inspirado nas idéias de Artaud, um teatro que busque
conexões com o invisível, o mistério, o sagrado, um teatro em que o ator mergulhe no seu
inconsciente, nas suas memórias pessoais, que o liguem ao universal, às energias arquetípicas que
o habitam, um teatro em que o ator trabalhe uma linguagem energética viva, utilizando seu corpo,
físico e vocal, criando formas surpreendentes e codificadas, nos leva a procurar uma palavra
associada a essa linguagem ritual, uma palavra ritualizada conectada com o invisível, com o
transcendente. Essa busca suscita inúmeras questões, algumas das quais tentarei desenvolver
neste trabalho, olhando para as pesquisas desenvolvidas neste sentido por Artaud e pelos
encenadores Jerzy Grotowski (1933-1999) e Peter Brook (1925- ).
Penso que um estudo de seus trabalhos seja significativo para entender os rumos do teatro
contemporâneo nesta linha de pesquisa. Em Artaud, nos concentramos na articulação de suas
idéias e concepções teóricas, embora ele tenha também muito particularmente vivenciado e
praticado a sua busca de transcendência da própria linguagem, corporal, vocal e verbal.
11
Em Grotowski, sem dúvida, temos um percurso enorme e riquíssimo de pesquisas do
trabalho do ator sobre si mesmo, de treinamento corporal e vocal, buscando sempre ampliar as
possibilidades de abertura do ator, da sua sensibilidade e da sua consciência, chegando ao seu
desvendamento perante o espectador, num ato de auto-sacrifício e transcendência, um ritual de
auto-revelação. Nas diferentes fases de seu trabalho, cria diferentes tipos de rituais, propondo
sempre relações diferenciadas com a platéia, até o momento em que abre mão dos espectadores e
concentra-se no ritual particular do ator consigo mesmo. Tais trabalhos se aprofundam também
na experimentação vocal livre e desembocam nos cantos de tradição como eixo das pesquisas.
Brook, um dos grandes encenadores da atualidade, ainda vivo e ativo, desenvolveu
pesquisas a partir das idéias de Artaud, e também cria formas particulares de ritualização do
espetáculo. Seus trabalhos se direcionam para uma verdadeira comunicação com o público. O
teatro, como o lugar em que nos comunicamos, em que uma história é contada, da melhor forma
possível, superando as fronteiras da linguagem falada, para o público presente, é o grande foco do
seu trabalho com os atores. Brook utiliza o termo Teatro Sagrado em seu livro O teatro e seu
espaço (1970) para designar esse teatro que pode “tornar visível o invisível”:
...o conceito de que um palco é um lugar onde o invisível pode aparecer tem um grande
poder sobre os nossos pensamentos. Todos sabemos que a maior parte da vida escapa aos nossos
sentidos: a mais poderosa explicação das várias artes é que elas falam de temas que podemos
começar a reconhecer quando se manifestam em ritmos ou em formas. (BROOK, 1970, p.39)
Tentarei responder, através de pesquisa teórica dos escritos dos autores citados, bem como
de escritos de colaboradores e sobre seus trabalhos, como eles trabalham a palavra, como se o
aprofundamento do trabalho com a voz, e mais especificamente com o texto, em uma linguagem
que engloba estados de extrema abertura, sensibilidade e entrega por parte do ator. Sobre
Grotowski conto com os escritos de Thomas Richards
1
, seu assistente, que descreve aspectos
importantes do trabalho que desenvolveram juntos e traz a experiência com os cantos de tradição,
fundamentais num dos períodos de pesquisa do grupo. Um trabalho que busca, através do
aprendizado desses cantos de tradição relacionados com a memória ancestral do ator, o alcance
1
RICHARDS, Thomas. Travailler avec Grotowski sur les actions physiques. Paris: Actes Sud, 1995. RICHARDS,
Thomas. The edge-point of performance. Pontedera: Documentation Series of the Workcenter of Jerzy Grotowski,
1997.
12
de um estado energético mediante a vibração sonora da voz, que promoveria um processo interno
e a criação de ações orgânicas reveladoras.
Brook, enquanto pesquisador e encenador, também se ocupou com a procura da
organicidade do ator, de uma conexão com forças internas do ator, forças pessoais, psicológicas,
individuais, mas que acabam chegando ao universal. O processo de criação de Orghast in
Persépolis (1971), um dos primeiros trabalhos do CIRT
2
, centro de pesquisas que Brook
coordena até hoje, partiu de questionamentos sobre a voz e a palavra. Ele transcreve estas
perguntas no seu livro O Ponto de Mudança:
Qual é a relação entre o teatro verbal e o não-verbal? O que acontece quando gesto e som
tornam-se palavra? Qual é o lugar exato da palavra na expressão teatral? Como vibração?
Conceito? Música? Existe alguma revelação oculta na estrutura sonora de certas linguagens
arcaicas? (BROOK, 1994, p.152)
A busca das tradições orientais, do aspecto ritual, das forças primitivas e originais
associadas à linguagem verbal, das emoções arquetípicas que nos constituem, marca o teatro
contemporâneo. São desenvolvidas pesquisas vocais e sonoras, de exploração vocal livre, no
treinamento e na prática do ator. É necessária a abertura do ator a essas forças inconscientes e
ancestrais, que vão também se materializar na voz e na palavra: um desbloqueio dos
condicionamentos psicofísicos impostos pela sociedade, para o qual a voz pode ser justamente o
caminho, pois denuncia o que não flui. Andrei Serban, diretor de origem romena que já trabalhou
com Brook, em entrevista a George Banu, fala sobre este exercício:
Os exercícios são momentos que podemos definir pela palavra liberdade: liberdade da voz
em ocorrência. De onde ela sai, qual é a relação entre a voz, o corpo e aquele que escuta? Do ponto
de vista do som, o que é mais importante: produzi-lo ou escutá-lo? [...] Por que é necessário escutar
e como ficar sensível à escuta? (Apud BANU, 1995, p.56)
O ator, em sua formação e experiência, por um lado, se desafiado a buscar a integração
psicofísica. Por outro lado, ele mergulha em paradoxos inerentes ao seu trabalho, como, por
2
CIRT Centre International de Recherches Théâtrales, centro de pesquisas teatrais criado em 1968, em Paris,
coordenado por Brook, do qual participam atores de diversas nacionalidades.
13
exemplo, entre o fluxo vital espontâneo e a precisão da forma, aprendendo a aliar a artificialidade
de suas ações a um resgate constante da vida.
A linguagem verbal está associada aos processos de socialização, o que pode significar
também a contenção de impulsos vitais individuais. A voz enquanto expressão do indivíduo e de
suas emoções, como instrumento de comunicação e socialização, sofre, de uma forma ou de
outra, os resultados dos processos de codificação e de assimilação das regras sociais da
linguagem verbal. Emoções contidas, não expressadas, podem criar bloqueios psicofísicos
facilmente detectáveis na voz, nas sonoridades, na respiração, enfim, no corpo. Para o ator,
buscar então re-conectar a fala com o corpo, com a sua organicidade, com a sua emoção, significa
liberá-la do controle excessivo do racional, que também tem sua expressão em bloqueios
corporais, abrindo passagem para fluxos de emoções e impressões traduzidos em sonoridades,
que serão integrados à linguagem articulada.
A organicidade é a qualidade daquilo que é orgânico, ou seja, que diz respeito a um
organismo, um todo cujas partes funcionam de uma forma integrada, assegurando sua unidade.
Contrária à visão mecanicista, na qual o corpo é instrumento da alma, ou da mente, o paradigma
vitalista parte da visão integrada do organismo e sua energia vital
3
. Uma fala orgânica pode ser
concebida como uma fala que mantém um vínculo interno com outros processos e ações do ator,
sendo ela própria expressão do todo.
Temos aqui dois níveis de experiência, ambos essenciais ao ator. Além do processo de
integração psicofísica, que passa pelo exercício, pela escuta e pela liberação da voz, o ator precisa
exercitar o resgate desta organicidade na linguagem da cena. Ele deverá explorar e ampliar seus
recursos vocais e encontrar formas de abordar a palavra, mantendo os fluxos orgânicos
associados.
Propondo uma análise da relação do corpo com a linguagem verbal para revelar e
identificar princípios psicofísicos inerentes à organicidade da fala do ator, este estudo levanta
algumas questões no âmbito da teoria e da formação teatral: no contexto do treinamento corporal
e vocal do ator, que muitas vezes separa esses dois aspectos, e no seu trabalho de composição
cênica, que passa a integrar organicamente corpo e fala, como fazer essa incorporação da
palavra? Quais os caminhos mais adequados? Que aproximações em relação ao texto são
3
Cf. NUNES, 2006, p. 45.
14
interessantes? A forma de se aproximar de um texto e de como fisicalizá-lo é determinante do
grau de organicidade que ele terá? Para o ator que lida com um repertório pessoal de movimentos
e energias não cotidianas, como estes contagiam a voz e a palavra? Num teatro não
necessariamente realista, mas codificado em outros estilos, como reencontrar a palavra para a
cena, fazendo com que o espectador “acredite” nela, seja contagiado por ela?
Procuro dar ênfase nesta pesquisa não aos autores estudados, e no modo como estes
respondem a tais questões, num segundo momento, parto também para a análise de duas práticas
de experimentação vocal, num contexto atual, no Brasil. Trabalhos pedagógicos, que visam à
formação do ator, repercutem estes caminhos observados nas pesquisas de Artaud, Grotowski e
Brook, e absorvendo ainda outras influências, revelam o exercício desse caráter ritual no uso da
voz e da palavra através de novas possibilidades técnicas de abertura vocal orgânica.
Nesse sentido, reportando-se à contemporaneidade do teatro de pesquisa brasileiro, as
práticas e a produção teórica de Luis Otávio Burnier e Renato Ferracini, no âmbito da pesquisa
do grupo Lume (Campinas, SP), e em particular as práticas do ator e diretor Carlos Simioni, são
uma referência importante. Suas pesquisas direcionam-se para o desenvolvimento de recursos do
ator, aplicados também na criação do estilo do clown e no trabalho a partir da “mimese
corpórea”. Parte da pesquisa que desenvolvem engloba ainda o treinamento vocal do ator. A
noção de estrutura física para a voz, criada no corpo, com um domínio da energia corporal e dos
impulsos, aliada à exploração da vibração da voz dentro dessa estrutura, é a abordagem
desenvolvida pelo grupo. A experimentação de diferentes vozes associadas aos diferentes
ressonadores também está presente.
Uma outra referência brasileira em termos de trabalho vocal é o desenvolvido por Sonya
Prazeres com a voz-terapia, que, apesar de dirigir-se a fins terapêuticos, tem também aplicação no
trabalho do ator, na busca de uma exploração vocal livre. Ela também trabalha com os diferentes
ressonadores, associados agora a diferentes arquétipos, energias psíquicas, que devem ser
acessadas. Trabalha a partir do canto ritual, do cantar para compartilhar, celebrar. Segundo Sonya
Prazeres, o trabalho com cantos de diferentes etnias que revelam sonoridades e polifonias que não
estamos habituados a escutar é uma possibilidade de abrirmos os horizontes em termos de uso de
potencialidades da voz. Aproximamo-nos assim, através da escuta e da prática do canto, de vozes
primitivas, “viscerais”, que nos colocam em contato com forças vitais, resgatando novamente as
origens orgânicas da voz.
15
Outro aspecto enfatizado por Sonya Prazeres, nos seus laboratórios, e que encontro
também nas pesquisas de Demetrio Stratos
4
, é a questão da colonização da nossa voz, da nossa
auto-limitação, da nossa perda de capacidade de escuta mais abrangente e livre, o que de alguma
forma está associado aos mecanismos de socialização da linguagem verbal. No livro Demetrio
Stratos, em busca da voz-música (2002), Janete El Haouli desenvolve o conceito de “voz
nômade”, ou seja, aquela que não se prende a padrões pré-estabelecidos, e fala na escuta
sacrificial, conectando-nos a sons primitivos e a imagens que aprofundam a idéia de voz-música,
que se aproxima da encantação, da voz encantatória, ritual.
As pesquisas de Carlos Simioni e de Sonya Prazeres são exemplos de trabalhos práticos
nos quais podemos identificar aspectos levantados na pesquisa teórica. Apresentam diferentes
processos de busca da organicidade no trabalho vocal que, de forma diferente, se aproximam de
um caráter ritual e conectado com forças espirituais ou universais. Apresento aqui uma descrição
e análise do trabalho desenvolvido por eles, levando em conta suas influências, como a
Antropologia Teatral, de Eugenio Barba, no trabalho de Simioni, e do Roy Hart Théâtre, no
trabalho de Sonya Prazeres. Com Barba identificamos o trabalho com os diferentes ressonadores
e a idéia de montagem do ator e do diretor, a partir do material criado pelo ator, no qual a noção
de não-interpretação guia o trabalho de integração corpo-palavra. Já a voz-terapia, criada e
desenvolvida por Alfred Wolfsohn (1896–1962), é a base do trabalho no Roy Hart Théâtre,
fundado por Roy Hart (1926-1975), ex-aluno de Wolfsohn, que alia os processos da voz-terapia
com trabalhos formativos e criativos para o teatro. Sonya Prazeres utiliza ainda pesquisa sobre
diferentes cantos rituais ligados a diferentes tradições culturais.
Além da pesquisa dessas influências e fundamentações dos seus trabalhos, faço uso de
entrevistas. Elas foram elaboradas a partir das questões que aqui me proponho discutir, buscando
complementar a experiência prática que vivenciei. Sobre o trabalho de Simioni, junto ao Lume,
encontro também material teórico, mas sobre o trabalho de Sonya Prazeres, não ainda nada
publicado. Contarei na análise desses trabalhos também com minha experiência pessoal em
trabalhos práticos conduzidos por eles, inclusive um processo aprofundado no Vibrato Crescente
da voz-terapia.
4
Demetrio Stratos (1945-1979), músico da década de 70, além de participar do grupo Area, importante grupo de
rock da Itália, desenvolveu pesquisas de experimentação vocal reconhecidas pela busca de uma vocalidade livre e
visceral.
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Sabemos que teoria e prática encontram-se entrelaçadas nos processos vividos no teatro.
O estudo teórico da primeira parte debruça-se não sobre concepções e idéias relativas ao
teatro, mas principalmente sobre o relato de experiências vividas na prática. na segunda parte
faço uma descrição e análise de duas experiências que pude vivenciar na prática e que dialogam
com os conteúdos da primeira análise teórica. Estruturo assim este estudo teórico, dando voz a
esses praticantes de pesquisas vocais, exercitando a elaboração de um discurso próprio, e sem
dúvida preparando novamente o terreno para a prática. Afino-me, portanto, com a idéia de
revezamento, desenvolvida por Gilles Deleuze, entre teoria e prática, sem pretender uma relação
aplicativa ou totalizadora entre elas:
A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um revezamento
de uma prática a outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e
é preciso a prática para atravessar o muro. (DELEUZE Apud. FOUCAULT, 1972, p. 1)
17
PARTE I – A BUSCA DA ORGANICIDADE DA FALA NO TEATRO DO SÉCULO XX
I.1 – A RELAÇÃO ENTRE CORPO E LINGUAGEM VERBAL NO TEATRO DO SÉCULO XX
I.1.1. Stanislavski e a lógica da ação na palavra
A busca da verossimilhança é o objetivo principal das pesquisas de Stanislavski. Para ele,
contagiar o espectador é fazê-lo acreditar naquilo que está sendo vivido pelo ator, numa ilusão de
realidade. É claro que nesse processo, dentro do treinamento do ator, ele enfatizará que este não
deve expressar-se com seus hábitos, e sim construir a personagem diferenciando-a da sua
dimensão pessoal. No entanto, é através da memória afetiva, da memória pessoal do ator, que este
vai encontrar as emoções da personagem. Para Stanislavski, o ator deve ser realmente capaz de
despertar e vivenciar emoções genuínas em cena, para sensibilizar o público e expressar a vida do
espírito humano.
Toda a concepção cênica do realismo busca essa aproximação fiel à realidade, nos
figurinos, nos cenários e nos objetos cênicos. Esse contexto deve facilitar a nas circunstâncias
da personagem para que o ator chegue à verdade cênica. É através de situações que espelham a
realidade cotidiana das personagens que a verdade humana se revelará. Com os objetivos, ações e
conflitos das personagens o ator construirá suas ações físicas e vocais.
O processo que Stanislavski propõe, num primeiro momento, é a análise exaustiva das
circunstâncias da vida da personagem, das suas características psicológicas e do seu
comportamento nas situações propostas. A análise minuciosa dará material ao ator para encontrar
as ações e as diferentes emoções pelas quais passa a personagem. Colocando-se em determinada
situação, através da definição de seus objetivos, dos obstáculos a serem superados, dos diferentes
fatores que interferem, das relações com as outras personagens, o ator buscará reagir como a
personagem. Para tal, ele buscará na sua memória pessoal as vivências, as experiências similares,
pelas quais ele passou, e assim despertará novamente o fluxo de vontades e emoções vivas que
emprestará para a personagem.
O foco o está no corpo e nem somente em como o texto é dito, o foco está
fundamentalmente em encontrar as motivações certas para o texto:
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É preciso saber como estudar essas unidades, objetivos e momentos, em função do traçado
estabelecido de uma paixão, que lhes serve de guia. Deve-se ainda saber como dar a esses
momentos, tirados do texto do autor, uma base viva e motivação interior. Em suma, deve-se
subordinar o texto do papel não ao traçado externo, mas ao traçado interno do desenvolvimento da
paixão determinada, tem-se de encontrar o lugar certo no encadeamento de paixões - para cada
instante do papel... (STANISLAVSKI, 1984, p. 89)
Stanislavski se propõe a ser fiel ao autor. Para ele o texto traz uma verdade única a ser
descoberta e retratada em cena pelo diretor e pelos atores. É um processo de análise e,
posteriormente, um processo psicológico de identificação que farão o ator encontrar a forma de
dar verdade ao texto, passando pelo despertar da imaginação do ator.
Stanislavski foi um dos primeiros diretores-pedagogos que defendiam e propiciavam um
treinamento integral para os atores. Perseguia não somente as qualidades técnicas da
interpretação, mas também princípios éticos aliados à disciplina, uma dedicação total à sua arte,
por parte do ator. A maturidade e a riqueza interior em termos de experiência pessoal seriam
grandes aliadas do ator, abrindo possibilidades maiores de atuação. Nessa formação do ator, é
desenvolvida também a expressão corporal e vocal, num sentido de tornar mais expressivo o
corpo e a voz do ator, aumentando a sua sensibilidade aos gestos e entonações. Tal trabalho
servirá também ao ator para desenvolver o tempo-ritmo nas ações e no texto. Andamentos,
pausas, inflexões serão valorizadas. Este enfoque da parte formal do texto, de seu aspecto sonoro,
se dará, no entanto, apenas em função das intenções almejadas, para dar vida às motivações da
personagem. Os impulsos que estão por trás das ações e do texto serão sempre as intenções, os
objetivos da personagem.
Nas encenações dos textos de Anton Tchekhov (1860-1904), parceria marcante de grande
etapa de seu trabalho, Stanislavski desenvolve a noção de subtexto. Os textos de Tchekhov
parecem revelar mais sentido nas suas entrelinhas, do que no próprio texto literalmente escrito.
Na procura desse sentido oculto, Stanislavski sugere aos atores que criem seus subtextos para tais
momentos. Estes subtextos serão parte do fluxo interno de impulsos e motivações do ator que por
sua parte dará origem às palavras. Podemos ver um desdobramento da verdade do ator em
cena e da verdade da personagem, que passa a ter mais de um nível de expressão. Na realidade da
cena, as palavras não são necessariamente reveladoras do mundo interno das personagens: podem
até ser contraditórias em relação ao que se passa internamente, que estaria associado ao subtexto.
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É interessante observar que a realidade interna, os impulsos interiores, assume aqui a forma de
pensamentos, nos subtextos, enquanto em abordagens posteriores, não realistas, esses impulsos
internos terão outras formas, como, por exemplo, impulsos físicos e energéticos.
Na última etapa das pesquisas de Stanislavski, quando desenvolve o Método das Ações
Físicas, o trabalho de composição das ações das personagens passará a ter também um sentido
inverso. Não as motivações serão o impulso para a ação, mas as ações físicas executadas vão
fazer surgir no ator determinada motivação ou emoção. A experimentação física de ações nas
circunstâncias propostas, retiradas ainda do que o texto propõe, será uma forma de fazer emergir
o universo interno das personagens. A memória emotiva aparece agora vinculada à memória
sensorial do ator. Através das ações físicas e pela memória sensorial são evocadas sensações
corporais, que trarão consigo também emoções e reações. Tanto as ações físicas quanto as vocais
serão experimentadas dentro do que o texto propõe, em termos de situações. O texto surgirá vivo
e crível se toda a ação do ator assim o for. Para isto ele deverá reagir “sinceramente” ao que é
proposto, mesmo que agora parta de ações mais concretas para ir recheando-as com os impulsos e
as reações internas:
Essa lei de interdependência da psique e do físico do homem foi colocada por Stanislavski
como alicerce para o seu “Método de Ações Físicas” que, por sua vez, originou o “Método de
Análise Ativa”. (KUSNET, 1971, p. 24)
A abordagem dos textos sofre também transformações. Stanislavski desenvolve a
chamada Análise Ativa, processo de aproximação em relação ao texto que se não pela
análise racional, mas pela improvisação de situações para a compreensão “em ação” da cena:
Em que consiste o “Método da Análise Ativa?” Como diz o próprio termo, é uma maneira
de analisar o material dramatúrgico: analisá-lo em ação, ou seja, procurar compreender a obra
dramática através da ação praticada pelos intérpretes na base de conhecimentos superficiais da
peça, e não na base de longos estudos cerebrais. (KUSNET, 1971, p. 21)
Assim o ator, a partir da experimentação de ações, de situações propostas, vai
encontrando as motivações, as relações, as emoções, aproximando-se do texto. Num primeiro
momento, o texto não é memorizado, ele servirá apenas como definidor da situação. O diretor é
quem deve ter a análise completa do texto dando elementos aos atores para improvisarem
20
utilizando palavras próprias. Essa análise ativa deverá ir se aprofundando na medida em que mais
e mais ações forem sendo vivenciadas, corporificadas, detalhadas e compreendidas. Nesse
processo de repetição e detalhamento da ação, também o texto deverá surgir cada vez mais
próximo do texto original, até que assuma a sua forma definitiva, com as palavras do autor.
Resumindo: o “Método de Ações Físicas” é baseado no axioma que fixa a ligação
permanente entre as ações físicas e as psíquicas, sendo portanto, que não há ação física real que não
envolva a psique. Por isso, exercendo a ação física do personagem, podemos descobrir os mínimos
detalhes da sua ação mental.
Já que os dois métodos, o de “Ações Físicas” e o de “Análise Ativa” baseiam-se no
mesmo princípio de estudo da ação física do personagem, em que consiste a diferença entre os dois,
e por que o segundo substituiu o primeiro?
A diferença entre os dois consiste apenas nos detalhes cnicos de seu uso no trabalho.
Poder-se-ia dizer que não houve substituição de um pelo outro e sim que a “Análise Ativa”
englobou o “Método de Ações Físicas”. (KUSNET, 1971, p. 27)
Temos aqui ainda um processo ligado a um texto que definirá os rumos da composição
das ações. Mesmo que seja procurada toda uma vida interior anterior à fala das personagens, é o
texto do autor que dará os elementos para tal, e o objetivo é fundamentalmente chegar a ele da
melhor forma possível, da forma “correta”. Cada vez mais, porém, o ator deve trazer o seu
universo interno no processo de composição cênica. Num primeiro momento, esse universo é
acessado de uma forma mental e psicológica, também através do estímulo à imaginação criadora
do ator. Esse universo interno se traduz tanto no corpo quanto na fala da personagem.
Gradativamente o universo interno é acessado de forma mais física, mais experimental, vivencial,
mais vinculada ao corpo.
I.1.2. A busca da teatralidade no corpo e na fala
Na busca da reteatralização do teatro europeu, nas primeiras décadas do século XX, como
reação ao naturalismo, surgem inúmeras pesquisas de encenação e caminhos de formação do ator,
que retomam técnicas ligadas a diferentes tradições teatrais. O contato com as civilizações
orientais torna-se um estímulo grande através das suas manifestações culturais. O Teatro
21
Oriental, mais especificamente o teatro japonês, com o e o Kabuki, o teatro chinês, com a
Ópera de Pequim, e o teatro de Bali, marcam as estéticas de diferentes encenadores. Assim
também se o resgate de técnicas de atuação como as da Commedia dell’arte. Em termos do
trabalho do ator, isso significou um foco no domínio corporal, no aprendizado de técnicas
corporais, codificações dos movimentos do ator em cena, possibilitando outro tipo de jogo e de
atuação, diferente da realista. O teatro assume a sua essência, de representação artificial e
construída da realidade, na qual o contato com o público não se através da ilusão de realidade
e sim através de outras formas de envolvimento, pelo aspecto plástico, rítmico, poético e lúdico,
do jogo do ator e de toda a encenação.
A noção de “teatralidade” pode ser definida como uma qualidade que evidencia a
presença do teatro, ou seja, que assume e revela o caráter de representação do espetáculo teatral.
Patrice Pavis, no seu Dicionário de Teatro, cita uma definição do “funcionamento teatral”, de
Alain Rey:
É precisamente na relação entre o real tangível de corpos atuantes e falantes, sendo esse
real produzido por uma construção espetacular e uma ficção assim representada, que reside o
próprio do fenômeno teatral. (REY, Apud. PAVIS, 1999, p. 373)
Quanto à abordagem do trabalho corporal e da sua relação com a palavra, podemos
identificar um caminho de codificação e estilização de ambos, corpo e palavra. A atuação liberta
do domínio do texto escrito significará outros processos de criação das ações e de integração com
a fala. Diferentes encenadores vão propor formas bem específicas de trabalho vocal associado ao
trabalho corporal do ator, com diferentes estímulos para a criação.
As tradições teatrais que estão sendo resgatadas apresentam, nas mais diversas acepções,
uma estilização corporal e vocal, na qual o aspecto plástico e sonoro, do corpo e da voz, é
carregado de significados. Formas do Teatro Oriental, como o Teatro e o Kabuki, além de
serem um exemplo de um trabalho altamente técnico e preciso em termos de entonações, de
composição corporal das personagens, por si só consistem em uma experiência original de
contato com algo misterioso e completamente novo. O aspecto sonoro, em detrimento do
significado, fica destacado nesse encontro de diferentes culturas tão spares, entre Ocidente e
Oriente. O aspecto cerimonial que estas manifestações teatrais apresentam também será
marcante, incluindo o caráter ritualístico da ação dos atores.
22
Na busca de novas teatralidades, há no decorrer do século XX um aprofundamento
gradual da codificação corporal a partir do desenvolvimento de modelos de análise de
movimentos do corpo humano. Do século XIX, temos as codificações de François Delsarte
(1811-1871) e, no início do século XX, as pesquisas de Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950),
da Euritmia, na qual todo trabalho sonoro e musical pode estar integrado com o movimento
corporal, ligando definitivamente movimento e música, som, produção sonora, ritmo e corpo. As
pesquisas de Rudolf Laban (1879-1958) se destacam na construção de elementos de análise do
movimento humano, a partir de sua observação. Ele desenvolveu um sistema de leitura dos
movimentos corporais, na sua relação com o espaço, o tempo, o peso e a fluência. Esses
elementos diferentemente combinados definem diferentes esforços, diferentes qualidades de
movimento.
A análise que Laban propõe não se detém unicamente no aspecto físico das ações. Esses
diferentes esforços estarão associados também a diferentes estados psicofísicos. O movimento
nunca é visto dissociado da totalidade humana e seu universo interno. Ele acredita que o corpo e
sua expressão através do movimento são o meio pelo qual o homem consegue melhor expressar o
seu universo interno. O movimento, segundo Laban, é capaz de expressar o intangível, o que a
palavra não conseguiria. Sua análise pode, no entanto, ter repercussão na observação da voz
humana. Os diferentes esforços e as qualidades das ações são também observáveis na voz. A
execução de determinado esforço, ou movimento, pode estender-se para a voz e a utilização da
palavra. Ou seja, esta codificação para leitura dos movimentos humanos permite também um
paralelo na observação da voz humana, sendo assim enfatizados os aspectos sonoros, rítmicos,
plásticos e sensoriais da própria voz e da linguagem verbal.
Vsevolod E. Meierhold (1874-1940) foi um dos encenadores que perseguiu tal
reteatralização e vai utilizar referências como a Commedia dell’arte, o teatro popular e as
técnicas circenses como material para o trabalho do ator. Ele desenvolveu a biomecânica como
treinamento corporal para os atores, definindo determinados princípios plásticos e psicofísicos.
Ator e colaborador de Stanislavski, por um longo período, acabou por divergir do enfoque
naturalista e desenvolveu pesquisas em outras direções. A importância dada ao caráter musical da
atuação, na qual o ritmo tem importância fundamental, propõe outra abordagem da palavra, da
relação movimento e palavra.
23
Segundo Mateo Bonfitto, no seu livro O ator compositor (2002), Meierhold propõe um
duplo sentido no percurso entre a ação e a palavra.
5
Se em Stanislavski primeiramente trabalhava-
se o sentido que parte do texto para chegar à criação das ações, na sua última etapa, a do método
das ações físicas, procurava-se também a partir das ações chegar ao texto; portanto, nele também
haveria esses dois percursos entre a ação e a palavra. O que Meierhold propôs foi não se deter
no aspecto lingüístico das palavras, e sim trabalhar a sua materialidade, seu aspecto musical, na
busca de uma nova dimensão semântica. Vemos também a utilização da palavra como estímulo
ao trabalho criativo dos atores, sem um conhecimento ou uma análise prévia do texto, servindo
como fonte de estímulos sonoros, musicais, concretos, no momento de ouvi-la ou enunciá-la, sem
um contato anterior.
Jacques Copeau (1879-1949) foi outro diretor-pedagogo a criar uma escola de atores,
perseguindo uma nova arte do ator. Nas suas buscas estão também as práticas corporais em
contato com as técnicas antigas como a Commedia dell’arte e o Teatro Oriental. Defendeu uma
entrega total à vida de ator, enfatizando também, como Stanislavski, a ética e a disciplina
necessárias para esse ofício. Podemos ver em seus princípios uma despersonalização do ator.
Cada vez mais, ele deve se desvencilhar de seus hábitos e condicionamentos pessoais para
entregar-se à vida das personagens. Copeau utilizou exercícios com máscaras com as quais
conseguiu desviar a atenção do rosto para o corpo do ator.
Étienne Decroux (1898-1991) fez disto o seu caminho, o caminho da mímica corporal. É
através de um treinamento árduo e do domínio total do corpo e do movimento, compreendido na
sua estrutura e em seus componentes, que ele construiu sua arte. Diferentemente de Copeau, com
o qual iniciou sua formação, não trabalhou em função do texto. Copeau manteve o objetivo da
encenação de textos dramáticos, preocupou-se muito com a fidelidade em relação ao autor. Todo
o trabalho do ator deveria ser desenvolvido no sentido de não fugir daquilo que o autor diz. Com
simplicidade e sensibilidade, mas com o domínio da palavra, ele deve ser capaz de dar vida ao
texto.
Decroux aprofundou-se no trabalho corporal, na definição de princípios básicos que
regem o corpo do ator em cena, como o foco na posição do tronco, da coluna, o equilíbrio
precário e o esforço criado por oposições internas. É retirado o foco do rosto do ator e a
expressividade passa toda para o corpo. Qualquer atuação psicológica torna-se impossível. O
5
Cf. BONFITTO, 2002, p. 39.
24
corpo é dilatado e será capaz de reter a atenção do espectador pelo trabalho com tensões internas.
Temos aqui um corpo silencioso, preciso, que abre mão da palavra, expressa-se melhor no
silêncio.
Nessa busca de uma nova teatralidade, nesse momento de procura de codificações, de
resgate e desenvolvimento de técnicas para o ator, com grande ênfase no domínio corporal e
numa atitude ética no trabalho do ator, podemos destacar ainda algumas características
particulares de diferentes movimentos da vanguarda artística no teatro. Através desses
movimentos é possível observar mais especificamente o lugar da palavra e que tipos de texto são
agora trazidos para a cena. Temos no simbolismo textos nos quais o conteúdo poético é o
essencial. Temas universais são traduzidos em imagens simbólicas e o aspecto sonoro é
fundamental. A neutralidade que é desenvolvida agora no ator através de seu treinamento
corporal lhe serve de base e deve também estar presente no trabalho com o texto.
Temos no teatro dialético de Brecht um outro exemplo bem específico dessa teatralidade
procurada e do trabalho em relação ao texto. Ele propôs o distanciamento, a não identificação,
cabendo ao ator conhecer e questionar o comportamento e as palavras das personagens. Aqui
estamos novamente num teatro que parte de um texto, mas propõe, tanto no corpo como na voz e
nas palavras, um distanciamento crítico. O ator assume a postura de narrador, que conta uma
história e se posiciona em relação a ela, instigando também o público a tomar uma posição. Esta
postura de narrador aparece mais explicitamente no uso das canções-comentário, que
interrompem a ação das personagens, e definem uma relação bem particular do ator com o
público. É como se ele dialogasse constantemente com os espectadores. O ator não deixa de estar
presente, comentando as atitudes das personagens e suas palavras.
Outro caminho percorrido pelas vanguardas artísticas, com um caráter marcadamente
questionador dos valores da sociedade vigente, foi o do resgate das origens do teatro no seu
aspecto ritual, do primitivismo e da valorização do inconsciente, do onírico, em detrimento do
social e do racional. Nesse movimento, que podemos identificar com as idéias de Artaud, e que
Brook define como Teatro Sagrado, busca-se um contato direto com o espectador, integrando-o
na encenação, atingindo-o e contagiando-o como ocorre nos rituais, de forma subliminar, através
de sua sensibilidade e de seu inconsciente.
25
I.1.3. A escrita do corpo e o corpo da palavra
No momento de aproximar texto, linguagem escrita, da voz e do corpo, temos também
que conhecer o território da escrita. Mesmo que muitas encenações passem a criar textos durante
o processo criativo, a linguagem escrita ainda é na maioria das vezes a forma com que nos
aproximamos da palavra. Assim, para pensar a relação corpo-palavra torna-se necessário também
entender a palavra enquanto escrita. Podemos, então, explorar o território literário, no sentido de
compreender o corpo que se encontra no impulso criativo da palavra. As tendências mais
contemporâneas retratam justamente o momento de ruptura corpo-palavra, de desintegração do
próprio corpo do texto, de explosão da palavra. Essa ruptura, essa desintegração do texto,
começou com as vanguardas da metade do século XX, para as quais a linguagem das palavras
não mais exprimia a realidade física e espiritual do homem. Temos no expressionismo uma
poesia na qual o sujeito poético quer expressar-se, mas precisa romper com a própria palavra para
retratar as forças interiores que o habitam. As metáforas, os sons exclamatórios, no limite da
linguagem, marcam um espírito de revolta, de sofrimento, que podemos identificar com as idéias
de Artaud.
A poesia criada pelos diferentes movimentos, como o formalismo russo, o simbolismo, o
futurismo, o dadaísmo, trata de explorar, de brincar com as palavras na sua concretude, visual e
sonora. No teatro isso leva a experimentações variadas da oralidade e a criações dramatúrgicas
nas quais a palavra é elemento de jogo sonoro e de esvaziamento do seu significado.
Não nos aprofundaremos aqui nas diferentes vertentes da literatura dramática que surgem
a partir desse esvaziamento da palavra. É possível um estudo aprofundado sobre o tipo de relação
do corpo com a palavra que elas propõem nas suas dramaturgias. Temos, por exemplo, o Teatro
do Absurdo, que vai abrir uma relação particular com a palavra, embasada na ruptura de
significados narrativos. Caberá aos diretores concretizar em cena tais relações, propondo
diferentes caminhos ao ator. Aqui nos deteremos na tentativa de reencontrar uma palavra que
expresse conteúdos internos e que estes se revelem na sua sonoridade.
No seu livro O prazer do texto (1974), Roland Barthes menciona a possibilidade de uma
escrita em voz alta, que seria a que Artaud almejaria:
A escrita em voz alta não é expressiva; deixa a expressão para o feno-texto, para o digo
regular da comunicação; ela por seu lado pertence ao geno-texto, à significância; é transportada,
26
não pelas inflexões dramáticas, pelas entoações maliciosas, pelos acentos complacentes, mas pelo
grão da voz, que é um misto erótico de timbre e de linguagem, e que portanto, tal como a dicção,
também pode ser a matéria de uma arte: a arte de conduzir o próprio corpo. [...] Em atenção aos
sons da língua, a escrita em voz alta não é fonológica, mas fonética; o seu objetivo não é a clareza
das mensagens, o teatro das emoções: o que ela procura são os incidentes pulsionais, a linguagem
revestida de pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a tina das consoantes, a
voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da
língua, e não a do sentido, da linguagem. (BARTHES, 1974, p. 115)
Barthes destaca aqui o caráter sensual da linguagem verbal, uma escrita que é uma fala,
cuja articulação envolve e mobiliza sensações corporais, não sendo restrita a uma emissão de
significados compreensíveis. Essa articulação sonora e sensual envolve aquele que escreve e
aquele que lê, como que criando um elo entre autor e leitor, que passa pelo sensível, não apenas
pela imaginação ou pela compreensão de idéias.
Zumthor trata da questão da leitura como performance, como ativadora de um imaginário
e de sensações que se dão no corpo:
Ora, a leitura do texto poético é escuta de uma voz. O leitor, nessa e por essa escuta, refaz
em corpo e em espírito o percurso traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que
lhe é dado, aqui, sobre a página. (ZUMTHOR, 2000, p. 102)
A escrita traz o corpo do sujeito da palavra. A escrita poética é definida por Zumthor por
esse critério, pela possibilidade do leitor em criar um laço com o autor, receber o texto com
prazer. Ele amplia o conceito de performance para todo fenômeno dirigido para a recepção, para
a percepção sensorial, que promova um engajamento do corpo.
Isso nos faz pensar sobre a aproximação em relação ao texto, própria do trabalho do ator.
Como abordar o texto será definitivo para a relação que o corpo vai estabelecer com ele, ao
memorizá-lo, ao incorporá-lo para a cena. O teor poético dos textos também fará muita diferença
em termos de mobilização do receptor, ou seja, do ator. Entro aqui numa questão bem específica
do trabalho do ator, que passará pelas diferentes funções, de leitor, de “falador”, até incorporar o
texto. O ator não é o autor, mas ele retoma este fluxo criativo que está no texto do autor. Este
engajamento corporal que existe no texto poético deverá ser reativado no corpo do ator, pelo
próprio texto, pelos sons, pelas imagens.
27
Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo que, segundo Luis Garagalza, “se lança no
concreto” afastando-se das interpretações racionalistas e positivistas, trabalha com a potência
poética das imagens. O imaginário se confunde com o “dinamismo criador, com a amplificação
poética de cada imagem concreta”; os símbolos se encadeiam pelas “ressonâncias”, o homem é
um “sonhador de palavras”:
Sou, com efeito um sonhador de palavras, um sonhador de palavras escritas. Acredito estar
lendo. Uma palavra me interrompe. Abandono a página. As sílabas da palavra começam a se agitar.
Acentos tônicos começam a inverter-se. A palavra abandona seu sentido, como uma sobrecarga
demasiado pesada que impede o sonhar. As palavras assumem então outros significados, como se
tivéssemos o direito de ser jovens. E as palavras se vão, buscando, nas brenhas do vocabulário,
novas companhias, más companhias. Quantos conflitos menores não é necessário resolver quando
se passa do devaneio erradio ao vocabulário racional! (BACHELARD, 1988, p.17)
Esta escrita poética, simbólica, vai sugerir também aos encenadores outras formas para o
ator aproximar-se das palavras. Experimentações livres sem um conhecimento a priori do texto
tornam-se práticas no treinamento e nos processos criativos. Memorizações livres, sem a
preocupação com a análise ou a interpretação dos textos, com o objetivo único de exploração
sonora desse material pelo ator, dando voz e corpo ao texto, são procedimentos freqüentemente
utilizados. Os significados serão depois organizados pelo encenador, compostos juntamente com
as ações físicas dos atores, revelando associações inusitadas e não necessitando da
“interpretação” por parte do ator, que estará envolvido com a produção sonora do texto.
Aprofundaremos estas reflexões no decorrer do trabalho. Concluo este capítulo com uma
nova citação de Bachelard:
Sim, antes da cultura o homem sonhou muito. Os mitos saíam da Terra, abriam a Terra
para que, com o olho dos seus lagos, ela contemplasse o u. Um destino de alturas subia dos
abismos. Os mitos encontravam assim, imediatamente, vozes de homem, a voz do homem que
sonha o mundo dos seus sonhos. O homem exprimia a terra, o u, as águas. O homem era a
palavra desse macroântropos que é o corpo monstruoso da terra. Nos devaneios cósmicos
primitivos, o mundo é corpo humano, olhar humano, sopro humano, voz humana. (BACHELARD,
1988, p. 180)
28
Podemos ver simbolicamente a relação corpo-palavra, uma relação que envolve um
apropriar-se da linguagem verbal, da fala, pelo corpo, e um expressar-se através dela. Na verdade
corpo e fala estão vinculados na sua origem e na sua essência, se acreditarmos na sua natureza
simbólica e mítica.
I.1.4. O corpo e a fala no Teatro Sagrado
Peter Brook denominou de Teatro Sagrado esse teatro que se aproxima das idéias de
Artaud, um teatro que busca tornar visível o invisível. Ele mesmo faz inúmeras experiências de
espetáculos que resgatam esse caráter ritual, inspirando-se concretamente nas idéias de Artaud.
Seu foco é a comunicação verdadeira com o público, com uma linguagem que ultrapasse as
fronteiras culturais. A sensibilidade e a atenção parecem ser um foco importante do seu trabalho
com os atores, como a maneira de se conectar com o outro e com o sagrado:
A qualidade reside no detalhe. A presença do ator, aquilo que qualidade ao seu ato de
escutar ou de olhar, é uma coisa misteriosa, mas não indecifrável. Não é algo que esteja
inteiramente acima de suas capacidades conscientes e voluntárias. Ele pode descobrir essa presença
num certo silêncio em seu íntimo. O que podemos denominar de “teatro sagrado”, o teatro no qual
o invisível aparece, tem por base esse silêncio, a partir do qual podem surgir todos os tipos de
gestos, conhecidos e desconhecidos. (BROOK, 1999, p. 63)
O Teatro Sagrado é apresentado por Innes, no seu livro El teatro sagrado: el ritual y la
vanguardia (1992), nas suas inúmeras formas, através de encenações, diretores, grupos e
dramaturgos que se afinam na busca do inconsciente, do onírico, traduzido em imagens
arquetípicas e pelas formas rituais e primitivas que estão na origem do teatro. Como vimos
anteriormente, essas concepções vão definir um trabalho específico para o ator, na composição de
suas ações físicas e vocais, integradas a esse universo simbólico.
29
I.1.4.1. A palavra enquanto mito
Podemos identificar na base desse Teatro Sagrado a crença na eficácia de uma linguagem
simbólica. A palavra, neste contexto, readquire seu valor de símbolo. Gilbert Durand define a
noção de mbolo como aquilo no qual o simbolizante identifica-se com o simbolizado e que
engloba um sentido transcendente, uma estrutura aberta não abarcável pelo pensamento racional
6
.
uma grande tradição positivista que tenta negar o simbólico, o inconsciente, defendendo a
superioridade do logos, do pensamento racional, objetivo, que reduz a noção de símbolo à de
signo, chegando ao conceito, no qual o significado está separado do significante. A imaginação é
vista como algo inferior e não confiável.
Segundo a teoria de Carl Gustav Jung (1875-1961), a espécie humana possui um
inconsciente coletivo comum, formado por estruturas que são os arquétipos, como que formas
pictóricas, ou formas dinâmicas, que organizam as imagens. O motor do arquétipo é a energia
psíquica da libido. A função simbólica é o lugar de passagem, de reunião de contrários, mantendo
unidos também o sentido consciente e o que emana do inconsciente. Esse simbolismo, unificador
de pares opostos, é constitutivo do processo de “individuação” do ser humano. O arquétipo do
self, da integralidade, simboliza a meta de equilíbrio psíquico, é a nossa meta de vida, a
integração das diferentes energias complementares.
Segundo Jung, a doença se instala não só quando o domínio do conteúdo inconsciente não
se encontra com o consciente, não consegue tomar forma, mas também quando o consciente, o
significante, não corresponde mais a um significado instaurador. Neste caso, o símbolo se apaga
em signo convencional, em “casca vazia”. Perdemos, assim, o processo de mediação através do
conhecimento concreto e experimental e a presença da transcendência característica do símbolo:
Um símbolo tem de ser distinguido de um signo, tendo este último um significado
semiótico, isto é, um signo designa algo que é conhecido. Um símbolo, por outro lado, “é a melhor
formulação possível de uma coisa relativamente desconhecida”. (PALMER, 2001, p. 167)
Mircea Eliade, cujas idéias podem situar-se na história das religiões, pelo mergulho que
faz no estudo dos diversos símbolos e mitos da humanidade, define a função do símbolo:
6
Cf. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.
30
[...] a função do símbolo é justamente revelar uma realidade total, inacessível aos outros
meios de conhecimento: a coincidência dos opostos, por exemplo, tão abundantemente e
simplesmente expressada pelos símbolos, não é visível em nenhum lugar do Cosmos e não é
acessível à experiência imediata do homem, nem ao pensamento discursivo. (ELIADE, 1991,
p.177)
No seu livro O sagrado e o profano (1999), Eliade desenvolve uma concepção sobre a
maneira pela qual o homem religioso se percebe num universo sagrado, incluindo o homem
primitivo para o qual toda a realidade possui essa sacralidade, esse poder, diferentemente do
homem “não-religioso” das sociedades modernas, cujo universo está dessacralizado:
A dessacralização incessante do homem moderno alterou o conteúdo da sua vida
espiritual; ela não rompeu com as matrizes da sua imaginação: todo um refugo mitológico
sobrevive nas zonas mal controladas. Toda essa porção essencial e imprescritível do homem que
se chama imaginação está imersa em pleno simbolismo e continua a viver dos mitos e das
teologias arcaicas. (ELIADE, 1995, p. 14)
A linguagem caracteriza o homem como tal, “animal cultural por natureza”. A linguagem
é que faz essa mediação do natural ao cultural através de um “trajeto antropológico”. A
interpretação da linguagem se através do modelo do símbolo, da identificação entre imagem e
sentido, entre visível e invisível. A linguagem configura um mundo no qual subjetividade e
objetividade estão co-implicadas.
O mito está na origem da linguagem, é um relato de uma ação primeira, num tempo
originário, illo tempore, narrativa que conta uma história sagrada, segundo Eliade, que revela ao
homem o que verdadeiramente tem sentido. O mito é uma realidade viva, de conteúdo simbólico,
que não faz parte apenas do passado e sim pode ser presentificada, fazendo parte da condição
humana.
O Teatro Sagrado busca nos mitos esse material simbólico, e a palavra falada será uma
das formas de presentificá-lo. A procura de Artaud pela encantação é a crença de uma eficácia
também através da palavra. Pressupõe uma visão da realidade como intrinsecamente conectada.
Gestos, sons e palavras podem provocar transformações reais pela invocação através do símbolo,
pela relação entre as energias no aqui e agora. É o pensamento mágico-religioso, assim descrito
31
pelos antropólogos, de que estamos ligados todos por uma realidade simbólica e de que nossas
ações repercutem umas nas outras. Assim o teatro, como ritual, agirá sobre o espectador.
Artaud quer recriar os mitos, fazer surgir, aqui e agora, as forças escondidas e
regeneradoras:
Esses deuses ou heróis, esses monstros, essas forças naturais e cósmicas serão
interpretadas segundo as imagens dos textos sagrados mais antigos e das velhas cosmogonias. [...]
Além disso, [...] pediremos que a encenação e não o texto se encarregue de materializar e
especialmente atualizar esses velhos conflitos. (ARTAUD, 1984, p. 155)
Segundo ele, os mitos possuem este poder dinâmico que possibilita que sua vertente seja
encontrada numa recriação ou re-atualização. O mito representa aquilo sobre o qual a
humanidade pode se apoiar. Exerce uma ação universal e liberadora. Através deles
reencontramos em nós essas energias. Eles contêm um princípio metafísico e ativo ao mesmo
tempo. Os mitos, temas universais, e não textos dramáticos, deverão ser o ponto de partida para
as encenações. Serão personagens ticas, e poderão ser extraídas de textos dramáticos, mas
abordadas fora de seu contexto. O ator terá a função exemplar do herói mítico.
Monique Borie, em seu livro Antonin Artaud: le théâtre et le retour aux sources (1989),
faz um estudo aprofundado do Teatro de Crueldade de Artaud através do olhar da antropologia
i
.
Tal aproximação se deve à constatação da importância dessa procura das raízes rituais que marca
as experiências teatrais da década de 60, como as de Grotowski, Barba, Brook e do Living
Theatre. uma aproximação em direção às culturas nas quais os mitos ainda estão vivos, como
nas culturas orientais, que são foco da antropologia:
Como compreender este movimento de “retorno às fontes”, e captar seu conteúdo e suas
estratégias, sem a ajuda da antropologia? Esta não toma precisamente por objeto de estudos estas
culturas nas quais o pensamento mítico e a prática ritual constituem a base da vida individual e
coletiva? (BORIE, 1989, p. 22)
Fica claro que a visão de Artaud pressupõe uma outra visão da realidade e do homem,
definida pelo pensamento mágico-religioso, identificado pelos antropólogos nestas outras
culturas. Estas servem de modelo para essa concepção da realidade e do teatro como ritual, que
terá um poder criador, através dessa linguagem original.
i
A tradução das citações, de obras em francês e em espanhol, aqui apresentadas, são de nossa autoria.
32
E o teatro deve poder, segundo Artaud, elaborar sua linguagem a partir destes grandes
princípios de formalização que, nas práticas simbólicas, organizam tanto o espaço, o tempo, a
materialidade dos objetos, como os movimentos do corpo e o uso das palavras. (BORIE, 1989, p.
24)
A encantação será então a formalização da palavra nessa linguagem simbólica. Será
abordada pelo seu conteúdo sonoro, musical, e carregada da energia da ação vocal do ator. Como
se dará o processo criativo das ações físicas e vocais do ator e sua relação com o texto, fica, no
entanto, uma incógnita. Sabe-se que os contrastes são defendidos por Artaud, no sentido de que o
gesto, a voz e a palavra podem não convergir nos seus significados e criarem assim símbolos
mais complexos, como os hieróglifos, expressando assim as inúmeras contradições inerentes ao
espírito humano, mas nem por isso menos verdadeiras, das quais Artaud é um símbolo vivo,
símbolo dessa luta do corpo com o espírito, e deste com as palavras. Tais conflitos parecem ser a
sua fonte de energia, a qual ele quer reavivar no espectador, através do ritual organizado e do
caos.
I.1.4.2. O ator no Teatro da Crueldade de Artaud
Artaud nos apresenta os fundamentos do seu Teatro da Crueldade no livro O Teatro e seu
Duplo (1984), no qual desenvolve a noção de crueldade. Não se refere à crueldade física ou
moral. Trata-se de uma crueldade essencialmente metafísica, mas que pode ocasionalmente
tornar-se sangrenta ou sádica. Há uma visão trágica do homem e do universo na sua concepção de
teatro. Trata-se de um mal ontológico, um mal que é a lei permanente. Todo bem que existe vem
de um esforço, que também é exercício de uma crueldade. É esse mal que se reflete no mal
infligido ao corpo ou ao espírito. A tortura e o suplício representam um pequeno lado da questão
da crueldade:
A crueldade é a expressão do conflito primordial e incessante que dilacera o homem e o
mundo.[...] A crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação
irreversível, absoluta. (ARTAUD, 1984, p. 132)
33
O Teatro é o duplo da vida, daquela força vital, inconsciente, instintiva, que não tem lugar
na vida cotidiana. Portanto, trata-se de dois níveis de realidade, e o nível mais profundo será
atingido por meio do seu duplo, por meio desse novo teatro. Em O Teatro de Séraphin, publicado
no final de O teatro e seu duplo (1984), Artaud afirma que o duplo é o grito, que “é mais do que
um eco, é a lembrança de uma linguagem cujo segredo o teatro perdeu”.
7
Nossa realidade física é
apenas uma ponta de uma realidade maior.
O teatro é visto como um meio de mudar, através da magia e da catarse, os indivíduos e,
assim, a sociedade. Esse teatro metafísico e mágico deve ser capaz de fazer o espectador entrar
em um transe, provocando uma alteração na sua percepção, uma experiência alucinatória. A
linguagem deve ser encantatória, agir sobre o espectador como as vibrações do som agem sobre a
serpente.
Nesta linguagem, o texto literário é apenas mais um elemento e as palavras terão que
encontrar sua concretude metafísica através do ator. O ator não é o elemento primordial do Teatro
da Crueldade como o é em Stanislavski e Grotowski. O corpo do ator faz parte, está inserido
nesse espaço concreto, físico, que deve ser preenchido: “façamos falar sua linguagem concreta”
8
.
No entanto, o corpo humano é um dos instrumentos privilegiados dessa linguagem, pois ocupa o
espaço através do gesto e do som, pela dança e pelo grito. Ambos, dança e grito, têm papel chave
na visão de Artaud, pois vêm da respiração. Artaud sonha com um ator bailarino que saiba
explorar suas capacidades energéticas.
No capítulo “O atletismo afetivo”, de O Teatro e seu Duplo (1984), Artaud ressalta a
questão da consciência corporal, ou mais precisamente, da consciência da respiração, como uma
ponte para o emocional. O corpo é apoiado pela respiração. Se a respiração acompanha o esforço,
ela fará nascer uma qualidade correspondente de esforço e, assim, ela reacende a vida, provoca
uma reaparição espontânea da vida. Nisso encontramos o “aspecto científico e mágico” do
trabalho do ator. Ele, como um acupunturista, deve conhecer o corpo, para captar e irradiar certas
forças que têm trajeto material nos órgãos. Através da respiração ele conhecerá o segredo dos
tempos das paixões. O ator deve saber como tocar o corpo do espectador – “saber quais pontos do
corpo é preciso tocar significa jogar o espectador em transes mágicos”
9
:
7
ARTAUD, 1984, p. 185.
8
ARTAUD, op. cit., p. 51.
9
ARTAUD, op. cit., p. 171.
34
Isto, parece-me, é que é uma verdade básica, mais que qualquer outra: é que o teatro, arte
independente e autônoma, para ressuscitar ou simplesmente viver deve acentuar aquilo que o
distingue do texto, da palavra pura, da literatura e de todos os outros meios escritos e fixos.
(ARTAUD, 1984, p. 136)
Artaud, inúmeras vezes, se refere à palavra, mas para tirá-la do lugar preponderante da
cena. Afirmando sempre que a linguagem do teatro é outra. Portanto, ele identifica a palavra com
um discurso racional ou psicológico. que o teatro deve ser o lugar onde acontece a
identificação total do concreto e do abstrato. Portanto, também a palavra deverá encontrar essa
identidade, na sua totalidade. Artaud quer reencontrar um aspecto mágico da palavra, não apenas
intelectual e portadora de um significado ou uma lógica racional. Ele a possibilidade da
palavra, assim como aparece nas culturas orientais, ser portadora de uma força viva. Seu aspecto
sonoro justaposto ao seu sentido pode provocar associações e analogias que ultrapassam o
entendimento racional. Isso a tornaria portadora de um poder mágico, provocador. Assim, ela
poderia integrar-se à proposta de encenação ritual e metafísica do teatro, manipulada como um
objeto sólido, na sua concretude, no seu aspecto sonoro e mágico.
A palavra escrita está morta, e ela é viva no momento em que é pronunciada; e essa
consciência se afina com a concepção do teatro como um ritual, vivo, mágico, uma experiência
vital. No capítulo “O Teatro da Crueldade e o fechamento da representação” do seu livro A
escritura e a diferença (1967), Jacques Derrida desenvolve essa questão de o Teatro da
Crueldade ser a própria vida, naquilo que ela tem de não representável. Assim, chega-se a um
paradoxo, pois o teatro, enquanto representação, exige a forma, que seria estática, fixada, sem
vida. No entanto a vida é resgatada pela diferença que é a vivência daquele momento. Portanto
estaria a contradição, o trágico, a crueldade da necessidade de representação.
Não que a palavra e a sua pronúncia não tenham que ser fixadas. Elas são fixadas e
meticulosamente trabalhadas para alcançar o efeito desejado no espectador, a exemplo do que
ocorre no Teatro Oriental. Mas o ato de pronunciar a palavra deve readquirir a força que possui
nos rituais, como numa evocação de forças espirituais. O ponto de partida é o fato de que as
palavras também são elementos sonoros e são capazes de criar música conforme são
pronunciadas e independentemente de seu sentido. Mas o som também deve significar, deve
provocar uma significação que podemos chamar de mágica.
35
A “música da palavra” teria a capacidade de falar diretamente ao inconsciente. Pode ir
contra o sentido e “criar sob a linguagem uma corrente subterrânea de impressões, de
correspondências, de analogias”
10
. Essa corrente deve ser produzida no espectador. O objetivo
não é apenas o prazer estético provocado, mas sim um efeito maior e mais forte sobre o
espectador. Artaud o exemplo da serpente que reage às vibrações sonoras ao longo de todo o
seu corpo levantando-se ao som da flauta. Assim também o ator deve atingir o espectador, com
sua voz, pela vibração, pela entonação, pela qualidade sonora e rítmica da pronúncia. Agir sobre
a sensibilidade do espectador, sobre os sentidos. A linguagem das palavras terá valor se causar
esse efeito físico. Elas devem realmente manifestar alguma coisa, ter o poder de “rasgar”,
“dilacerar”. A poesia ou música que surgirá deverá agir, assim como todo o espetáculo, sobre o
espectador como os sonhos. Ele deverá sentir a “liberdade mágica dos sonhos”; deverá ser
possível que ele realmente acredite que é um sonho. Essa sensação será alcançada se houver o
terror, a crueldade e a violência necessária.
Da encantação Artaud chega ao grito, forma mais imediata de tocar a sensibilidade do
público. O grito é energia sonora, é ação. Ele faz parte dessa linguagem cruel que Artaud propõe,
impactante sobre os sentidos. Critica os atores ocidentais que perderam a capacidade de gritar:
“só sabem falar!No Teatro de Séraphin, Artaud escava a fundo a idéia do grito: “o grito da
revolta sufocada”, “um feminino terrível”, “a terra grita”, “o buraco do abismo que grita”. Ele
trabalha, como sempre, com imagens. E elas remetem a diferentes momentos e qualidades da
respiração. Ele faz um mergulho nas sensações físicas que dão origem ao grito que deverá sair
com a força de uma catarata. Podemos identificar o grito sufocado, aquele grito que existe em
possibilidade, mas que não se concretiza. Mas ele deverá também se concretizar em cena e,
quando surgir, terá a força necessária, por se conhecer a sua origem nas sensações do corpo.
A respiração é a raiz, a chave, para o ator acessar certas forças, emoções. Tudo procede da
respiração humana, é ela que o ator precisa dominar para exercer uma ação “eficaz”. A respiração
não é a raiz do gesto e da fala, mas ela por si é ação e pode produzir sons. Suspiros,
soluços, choro, risos, gemidos, etc, são sons ligados diretamente à respiração. E por fim, os gritos
também, eles têm dinâmicas diferentes, que podem, acrescentando-se à palavra, carregá-la de
energia sonora.
10
ARTAUD, 1984, p. 52.
36
A respiração está na base de tudo, do movimento, do gesto, do grito e também da fala, da
encantação. Mas existem caminhos de ida e de volta. Assim como no “atletismo afetivo”,
podemos para cada emoção encontrar uma respiração correspondente que será a porta para
alcançarmos novamente tal emoção; podemos através de um gesto ou movimento reencontrar a
respiração que está na sua origem. Portanto, é essencial que o ator tenha consciência e controle de
sua respiração. Mas isso se dá através do corpo:
A gramática dessa nova linguagem ainda deve ser encontrada. O gesto é sua matéria e sua
cabeça e, se quiserem, seu alfa e ômega. Ela parte da NECESSIDADE da fala mais do que da fala
formada. Mas encontrando na palavra um impasse, ela volta ao gesto de modo espontâneo.
(ARTAUD, 1984, p. 141)
Enfim, trata-se de dar corpo à palavra, encontrar o lugar da voz, da fala, no corpo.
Impossível uma abordagem intelectual, mental, pois será fria, ressecada, sem corpo. O ator deve
tomar consciência dessas pontes no seu próprio corpo e juntar a isso ainda os significados
criados. E mais: provocar um processo vivo, que atinja o espectador também pelo corpo,
sentidos, emoções e também pelo intelecto, e algo mais, superior, espiritual e mágico. Trata-se de
abrir esse canal, essas pontes, essa consciência, da própria vida.
Na mesma direção das idéias de Artaud estão inúmeras manifestações teatrais de
vanguarda que vão caracterizar-se como Teatro Sagrado. Este, dentro do mesmo movimento de
volta às origens, de retomada de manifestações teatrais antigas e tradicionais, volta-se para a
origem ritual do teatro. Busca-se recriar o caráter de cerimônia dionisíaca, na qual estão sendo
revolvidas forças vitais. A busca pela atmosfera onírica, pelo irracional, pelas imagens do
inconsciente, vai marcar encenações e também o trabalho do ator. A palavra lugar ao
predomínio visual, espacial, sonoro, e à criação de atmosferas. Como vimos, são explorados o
aspecto concreto da palavra e seu teor poético. A palavra é resgatada enquanto símbolo e
enquanto mito, e se integra ao universo simbólico das imagens visuais criadas na cena e no corpo
do ator.
37
I.1.4.3. As pesquisas de Grotowski
Grotowski é uma das figuras mais importantes nas pesquisas teatrais do século XX,
caracterizando-se como um dos diretores-pedagogos que marcaram a época. Interessado não
na direção teatral, mas principalmente na formação de um novo ator, para um novo teatro, ele se
aproxima dos outros grandes nomes como Copeau, Meyerhold, Edward Gordon Craig (1872 -
1966) e Artaud.
Grotowski teve uma vida dedicada à prática, à pesquisa da arte do teatro, centrada no ator,
e para além do teatro. Marco De Marinis ressalta que é preciso ver o trabalho de Grotowski por
dois ângulos, dois pontos de vista
11
. Por um lado, temos seu trabalho teatral, pesquisas que
procuravam desenvolver um treinamento técnico do ator, exigindo entrega e precisão, e que
resultavam também em espetáculos. Buscavam um teatro ritual no qual o ator deveria expor-se ao
máximo e assim tocar o espectador, que será uma testemunha do seu desvendamento. Por outro
lado, essa busca vai “além do teatro”, tendo como motivação o encontro consigo mesmo e com o
outro, uma busca de integração espiritual. Esse aspecto acaba prevalecendo nos últimos anos,
quando em princípio não mais se exibia o trabalho em representações públicas.
Grotowski reconhece a importância de Stanislavski e a grande influência de suas
pesquisas na direção de uma formação do ator. Considera seu trabalho uma seqüência das
pesquisas do mestre, que criou as bases para o trabalho do ator. Grotowski, no entanto, não busca
o realismo e as ações cotidianas, ele uma realidade além do cotidiano. A verdade do ator
estaria nesse encontro com tais forças subjacentes à realidade imediata, como na visão de Artaud.
Busca então um teatro codificado que resgate o fluxo vital no ator, através da sua memória
corporal, além do cotidiano: uma memória ancestral, pessoal e universal. Estende e aprofunda o
Método das Ações Físicas de Stanislavski através do corpo, da criação pela memória corporal e
emocional, resgatando e codificando ações físicas.
Na sua trajetória de quarenta anos de pesquisas teatrais são identificadas diferentes fases
do seu trabalho. De Marinis as divide em seis momentos diferentes: o período da direção (1959-
1962), o Teatro Pobre (1962-1969), as experiências parateatrais (1970-1979), o Teatro das Fontes
(1979-1982), o drama objetivo (1983-1985) e a arte como veículo (1986-1999)
12
. Nessas
11
DE MARINIS, Marco. La parábola de Grotowski: el secreto del “novecento” teatral. Buenos Aires: Galerna,
2004.
12
Cf. DE MARINIS, 2004.
38
diferentes fases, a ritualização é uma constante, mesmo que em cada uma se manifeste em
elementos distintos do evento teatral ou do trabalho do ator.
O marco de transição da primeira para a segunda fase é o espetáculo Akropolis (1962).
Até então os espetáculos criados buscavam recriar um ritual que atingisse o coletivo, através dos
mitos. Após este trabalho o aspecto ritual é centrado no “ato total” vivido pelo ator, até que, a
partir de 1970, não acontecem mais apresentações ao público.
Na primeira fase, na busca de contato com outra realidade, não cotidiana, Grotowski opta
por confrontar-se com os mitos, buscando o significado ritual do teatro. Sabendo que na
sociedade contemporânea não mais a possibilidade de reviver os mitos, pois ela se encontra
por demais fragmentada e laicizada, carecendo de um sentido comunitário, é preciso recriar um
sentido ritual para o teatro. Perdeu-se a dimensão sagrada da vida, mesmo que a realidade
simbólica ainda e sempre esteja presente. Assim, os mitos são retomados para serem
questionados. Os mitos ligados à tradição católica, tão marcantes na cultura polonesa, são
resgatados de uma forma viva, mas colocados em xeque. O ator aproxima-se desses personagens
arquetípicos, experimentando um mergulho sincero no confronto com as narrativas míticas.
Nessa abordagem dos mitos, Grotowski recria o significado ritual que está nas origens do
teatro. Segundo ele, o teatro perde ao se afastar do ritual. Ambos possuem uma dose de
artificialidade e de organicidade, que o teatro tende demais para a artificialidade. No ritual,
esta artificialidade é inseparável da organicidade e de um sentido transcendente da realidade. É
preciso então recriar um teatro que mantenha viva esta outra dimensão e faça uso da
artificialidade, sem perder as conexões internas do ator e deste com o espectador.
Na segunda etapa de suas pesquisas, na impossibilidade da criação de um ritual coletivo, a
proposta é que o espectador se envolva em uma espécie de ritual de comunhão e saia
transformado através do “ato total” vivido pelo ator. Isto vai demandar a pesquisa de uma
linguagem concreta, artificial, através da qual o ator se exponha totalmente, se revele, no
confronto com os mitos da sociedade.
Nesta segunda fase do seu trabalho, surge a procura do que denominou um Teatro Pobre,
um teatro que busca o essencial, que tenta desfazer-se de todo elemento superficial e
desnecessário. O ator, único elemento essencial ao encontro teatral, será também criador do
universo sonoro e visual do espetáculo. Através do domínio do próprio corpo e dos processos
39
internos, o ator ocupa o lugar central do evento teatral, que essencialmente será este encontro
transformador entre ator e espectador.
É desenvolvido um treinamento para o ator, visando a ampliar suas potencialidades
expressivas. Trabalha-se com duas espécies de exercícios, os exercícios plásticos e os exercícios
físicos. Os primeiros visam à experimentação das possibilidades de movimento do corpo, nas
suas diferentes partes e no todo integrado, trabalhando o impulso como a base da ação. Tendo
consciência das possibilidades de movimentação e composição corporal o ator deve ser capaz de
criar partituras de ações detalhadas e fixadas, e repeti-las precisamente, mantendo o fluxo de
impulsos internos inerentes a essas ações.
Esse processo de abertura do ator e resgate de sua memória corporal começa cada vez
mais a libertar-se do vínculo com a encenação, com a representação teatral. O ator cria a partir
de sua memória corporal independente da relação com personagem ou narrativa. É o diretor
depois que fará uso do material codificado pelo ator para compor a cena. Segundo De Marinis,
este é um ponto fundamental da trajetória de Grotowski, a gradativa liberação dos vínculos com a
encenação, até que, a partir de 1970, o espetáculo será realmente abolido, trazendo o foco
definitivamente para o processo interno do ator. A preocupação com o espectador, com a relação
entre ator e espectador, será substituída pela atenção ao processo interno do próprio ator, que será
o único foco.
A partir de 1970, as pesquisas passam por um período de experimentação de rituais
coletivos, experiências para-teatrais, nas quais um grupo grande de pessoas é convidado a
participar das ações dos atores, e todos se tornam atuantes, numa busca de maior comunhão. A
busca era pelo contato com a natureza, para estes rituais, como que descobrindo que a integração
passa pela comunhão com os outros e com a natureza. Foram experiências que envolveram até
centenas de pessoas participantes.
Depois desse período, as pesquisas voltam-se novamente para um trabalho mais
individual do ator consigo mesmo e caracteriza uma fase que Grotowski chama de Teatro das
Fontes. São integradas nos trabalhos pessoas de diferentes etnias e culturas. Grotowski busca com
essa troca não apenas referências interculturais, mas sim chegar a um fundo comum das
diferentes técnicas rituais tradicionais. Eugenio Barba busca encontrar os princípios em comum
das diferentes artes performativas de diversas culturas enquanto Grotowski estaria interessado em
chegar à “técnica das técnicas”, buscando um fundo em comum, por debaixo das referências
40
culturais, através do estudo de diferentes técnicas rituais tradicionais, como as artes marciais, o
vudu e os cantos vibratórios.
Mantendo a ênfase do grupo no trabalho do ator sobre si mesmo, este agora irá buscar o
seu rito pessoal, a sua integração total no ato criativo, utilizando as diversas técnicas apreendidas.
Podemos ver agora todas as técnicas desenvolvidas servindo para esse processo interno do ator.
Grotowski deixa claro desde o início que não existe “o método”, uma receita para o trabalho do
ator, sendo mais produtivo partir da pergunta “o que não devo fazer” para ir alcançando a total
sinceridade e abertura. As técnicas, portanto, servem sempre para aproximar-se desse estado de
presença e integração.
Chegamos aqui ao auge do que Ferdinando Taviani chama de a ioga do ator
13
. Segundo
ele, Grotowski persegue isso desde o início e sem dúvida a admiração pela cultura oriental e
principalmente indiana se faz presente. A ioga do ator é, segundo Taviani, um fio condutor das
pesquisas de Grotowski, a busca de uma reintegração, união, corpo-mente-espírito, consigo
mesmo, com os outros e com o universo.
Taviani define essa ioga do ator por quatro características básicas, presentes na prática da
ioga. São elas:
1) Se trata de uma disciplina que conjuga a prática física com a mental; 2) Se trata de uma
disciplina que tende à superação da condição individual para ir mais além do próprio eu; 3) Se trata
de uma disciplina baseada em partituras detalhadas e definidas, em estruturas técnicas e exercícios
que nos permitem sair da mecanicidade, da repetição da vida cotidiana, e reencontrar o fluxo vital
no aqui e agora, na “experiência do presente no presente” [...]; 4) Se trata de uma disciplina que nos
provê, nos seus estágios intermediários, de certos instrumentos e de certa competência técnica, que
poderão ser utilizados com fins profissionais no caso do ator, por exemplo ou com fins
pessoais, na própria vida. (DE MARINIS, 2004, p. 25)
A ioga do ator é a prática do ator, seu treinamento, visando esse processo de
desenvolvimento espiritual. As técnicas aprendidas e desenvolvidas são utilizadas para essa busca
pessoal e não mais a necessidade do espetáculo e do espectador. Temos a arte como veículo,
que tem como objetivo o processo interno do ator, do atuante, o alcance de um estado de conexão
interna e com o todo. É um ritual individual, do ator consigo mesmo, resgatando o sentido
transcendente e sagrado das ações executadas, abrindo-se a algo superior.
13
TAVIANI, Apud. DE MARINIS, 2004.
41
Chegamos assim na etapa de trabalho com os cantos de tradição, que Thomas Richards
descreve. Através do trabalho com cantos de origem afro–caribenha, ligados a sua ascendência,
ele mergulha num trabalho de busca de suas memórias ancestrais. Segundo Grotowski, estes
cantos vem de uma origem mais distante, egípcia, e assim teriam sua raiz no berço da civilização
mediterrânea.
Temos aqui novamente, e mais fortemente, um trabalho vocal fazendo parte e
encabeçando as pesquisas dos processos do ator. Assim como as pesquisas com os ressonadores,
que denunciavam e serviam de chave para desvendar os bloqueios a serem superados, temos o
trabalho com os cantos de tradição como a chave deste último período de pesquisas, como um
meio de chegar a um nível energético mais refinado.
Estes cantos são como que cantos-corpos, promovem uma integração psicofísica, uma
fusão total corpo-mente. São interpretados com todo o corpo, não havendo distinção entre o canto
e a dança. Podemos dizer que “dançamos o canto” e “cantamos a dança”, dois lados de uma
mesma realidade. A antigüidade dos cantos permite também que se acesse uma dimensão
originária, as fontes dos rituais, do teatro e das artes performáticas. Eles estão entre as técnicas
que permitem chegar a uma eficácia transcultural.
Podemos concluir, então, que esses cantos provocam a sensibilidade além da percepção
cotidiana, trazendo uma nova e mais ampla consciência de si e do universo. Podemos observar
esse uso da voz em inúmeras culturas tradicionais, uma voz que está indissociável de um caráter
ritualístico e que desencadeia um processo interno, meditativo, acompanhado de uma
transformação de energia e de percepção.
42
I. 2. A VOZ DO ATOR EM ANTONIN ARTAUD, JERZY GROTOWSKI E PETER BROOK
A voz é o elo entre corpo e linguagem verbal, é a sua investigação que vai propiciar que
se encontre um fluxo orgânico na fala. Aprofundaremos aqui as idéias e as pesquisas sobre a voz,
em Artaud, Grotowski e Brook. Não pretendemos fazer um estudo completo de suas pesquisas,
mas recolher informações quanto ao trabalho com a voz, nas suas concepções teatrais. O
território vocal do ator passa a ser explorado como o caminho para redescobrir a organicidade da
fala. Em um teatro que busca se aproximar novamente de suas origens rituais, criar uma fala que
venha de um fluxo vital ligado ao corpo exige do ator um aprofundamento das pesquisas vocais.
Os três autores e encenadores aqui enfocados aproximam-se em determinadas abordagens da voz
e apresentam também características bem diferentes e próprias nas suas idéias e experiências no
que tange a experimentação vocal do ator. O ponto em comum podemos dizer que é a integração
da voz no trabalho corporal de abertura do ator, a voz como extensão do corpo. Grotowski define
o que é a voz para ele:
A voz é um prolongamento do nosso corpo, no mesmo sentido que nossos olhos, que
nossos ouvidos, que nossas mãos: é um órgão nosso que nos prolonga em direção ao exterior e que
é no fundo uma espécie de órgão material com o qual podemos tocar. (GROTOWSKI, 1971, p.
126)
A pesquisa da voz e de suas qualidades orgânicas, como extensão do corpo do ator, pode
ser observada em alguns aspectos bem definidos. O vínculo com a respiração exige que se
trabalhe sobre a consciência ou a ampliação desta, para liberar a voz. As manifestações não
verbais da voz vão ser usadas como uma forma de se liberar do controle racional que a linguagem
verbal desencadeia. O canto e a produção de sons inusitados servirão para resgatar a música da
voz que, além de se manter conectada com os fluxos internos do ator, agirá sobre o espectador
pela sensibilidade, sem a preocupação com os significados. É o caminho para que finalmente a
fala aconteça a favor desse fluxo orgânico.
43
I.2.1. A respiração e o fluxo orgânico
O processo da emissão da voz está intrinsecamente ligado ao da respiração. Mas muito
além de apenas dizer respeito à voz, a respiração esta diretamente ligada aos fluxos orgânicos,
vitais, energéticos e emocionais que acontecem no corpo do ator. Nas propostas que aqui
abordamos, a respiração abre possibilidades expressivas, de consciência e resgate de diferentes
estados e expressões, como também denuncia bloqueios a serem enfrentados pelo ator. O fato é
que a consciência da respiração é um caminho a ser percorrido pelo ator, que está ligado à
conquista das possibilidades vocais:
A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável à profissão do ator. Saber
que uma paixão é matéria, que ela es sujeita às flutuações plásticas da matéria, sobre as
paixões uma ascendência que amplia nossa soberania. (ARTAUD, 1984, p.164)
É do mundo afetivo que o ator deve tomar consciência, e este comporta um sentido
material. Para Artaud, a consciência da respiração, e sua ligação com as emoções e com os
movimentos corporais, será o meio pelo qual o ator poderá criar sua linguagem simbólica,
corporal e vocal, que expresse as paixões intensas, carregadas de crueldade e lucidez.
Através da respiração o ator acessará as emoções, os sons e os gestos. Uma utilização
metódica, rigorosa, controlada da respiração permite ao ator jogar com seu corpo como um
instrumento. Ele aprenderá a reter ou a lançar a voz pelo conhecimento dos princípios que regem
o domínio da respiração.
Artaud utiliza-se dos ensinamentos da Cabala para conceber o domínio da respiração.
Cada emoção tem sua respiração específica. A respiração acompanha a emoção, ou o sentimento,
e chegaremos ao sentimento pela respiração. O ator deve ser capaz de usar diferentes respirações
que o conduzirão a diferentes “sentimentos e movimentos do espírito”.
A Cabala e a filosofia oriental, que servem de base para Artaud, lidam com a noção da
dualidade, yin e yang, masculino e feminino, cheio e vazio. Estes princípios estarão presentes ao
se trabalhar as emoções, cujo movimento é percebido no corpo, associado a determinadas partes
ou órgãos. O heroísmo está ligado ao plexo solar. O medo, à região dos rins. Quando a raiva
avança, a culpa recua. A passividade, ou vazio, está na origem do movimento agressivo,
masculino. Dois opostos que se completam e que, levados ao extremo, caem um no outro.
44
Na respiração, estes princípios aparecem nos três movimentos que a compõe: a inspiração,
a retenção e a expiração. Movimentos associados ao feminino, neutro e masculino,
respectivamente. Tendo consciência destes momentos respiratórios e conseguindo lidar com eles,
controlá-los, também através de movimentos corporais apropriados, será possível ao ator
desencadear organicamente determinado estado e emoção a ele associada:
O tempo teatral que se apóia na respiração ora se precipita numa vontade de expiração
maior, ora se retrai e se ameniza numa inspiração feminina e prolongada. [...] E o teatro é
exatamente o lugar onde essa respiração mágica se reproduz à vontade. (ARTAUD, 1984, p. 143)
A emissão da voz nos seus aspectos inusitados, defendida por Artaud, que no grito a
expressão máxima da crueldade que ele persegue, também será regida por esses princípios. Antes
da emissão aliada à expiração, vem a consciência do vazio, do grito contido, podemos dizer do
impulso, que vai depois se concretizar e tomar forma no espaço, através da expiração.
No final da vida, Artaud repudia os ensinamentos da Cabala. Ela teria sido apenas uma
solução provisória para a sua exigência de precisão calculada e de domínio absoluto do corpo,
exigência que ele mantém até o fim:
Se a fixação de um gesto maior exige a sua volta uma respiração precipitada e múltipla,
esta mesma respiração aumentada pode desencadear suas ondas lentamente ao redor de um gesto
fixo. (ARTAUD, 1984, p. 143)
Apesar de defender a conexão existente entre respiração, voz, emoção e movimento,
Artaud sugere que contrastes são essenciais e podem nascer da combinação de movimentos e
ritmos respiratórios que tenham qualidades opostas. Assim também vozes e diferentes emoções
em contraste com os movimentos corporais. Portanto, a respiração é um acesso a determinados
estados emocionais, e é possível estimulá-la em determinada direção através de movimentos
corporais, mas estes não podem reter o fluxo espontâneo da vida. Ao contrário, devem reacender
esta vida e torná-la mais evidente, brilhante, inclusive através de paradoxos e contrastes
perceptíveis, dando também profundidade aos significados e símbolos criados pelo ator.
Para Artaud, é preciso, no entanto, ir além da simples anatomia humana. A respiração
abre no corpo e na voz acesso às forças mágicas: “A matéria não vale a não ser animada e
45
vivificada por aquilo que a transcende e ao qual ela visa se identificar”.
14
Assim, o objetivo deste
controle desenvolvido pelo ator, sendo capaz de dar forma a estados extremos de emoção através
da respiração associada às ações corporais e vocais, é chegar a alterar a percepção do espectador,
desencadear um processo de transformação de energias.
No treinamento do ator desenvolvido por Grotowski, na busca do fluxo vital, é exigido
um controle da energia corporal. Buscam-se os impulsos internos que estão na origem das ações
do ator. Neste trabalho com ações não cotidianas, a motivação estará na base do movimento e o
impulso partirá sempre do centro do corpo. É procurada uma ação interior que ative uma
transformação energética, ou diferentes qualidades de energia. Assim, será conquistada a
organicidade, segundo Grotowski, ”uma corrente quase biológica de impulsos”, num corpo
liberado, que pode vivenciar sua plenitude não cotidiana. A voz também deverá surgir ligada a
essa corrente de impulsos internos e isso estará ligado a um fluxo orgânico da respiração.
O texto La voix (1969), de Grotowski, uma conferência dada por ele na França, nos
fornece importantes informações sobre suas experiências com a voz. Relata pesquisas que vão se
transformando, abordagens que vão sendo substituídas por outras, sempre com o foco na
manutenção dos fluxos vitais do ator. As idéias que detalharemos a seguir, neste capítulo,
referem-se a esse texto bem como a textos de Richards sobre seus trabalhos com Grotowski.
ii
Grotowski, ao falar da respiração do ator, esclarece alguns mal-entendidos. Para ele, trata-
se sempre de conseguir alcançar um fluxo orgânico, o que não se através de padrões de
respiração. É importante desenvolver a respiração total, não se limitar à respiração abdominal,
nem à superior, peitoral ou sub-clavicular. Trata-se de ampliar a respiração para que flua
organicamente, não se restringindo a padrões estabelecidos, tendo em vista que características
da respiração que são individuais e que se alteram conforme as atividades corporais nas quais o
ator se vê envolvido.
Grotowski ressalta que o fato de observar e controlar demais a respiração agirá no sentido
contrário ao desejado, causando tensões, apenas pelo fato de a atenção estar voltada para o que
acontece no corpo. Trata-se mais de não interferir, de deixar acontecer o processo orgânico e
involuntário da respiração. O importante será observar e identificar se existem bloqueios e, neste
14
ARTAUD, 1984.
ii
As traduções do francês, das citações relativas a esses textos, são de nossa autoria.
46
caso, interferir no sentido de desbloquear, de livrar-se das resistências. Deixar a coluna participar
do movimento da respiração seria uma maneira de reencontrar um fluxo mais espontâneo. Mas é
através da exaustão que ele acredita que realmente as barreiras podem ser removidas. Quando não
estamos mais no controle consciente, deixamos os impulsos vitais nos guiarem e reencontramos
um fluxo orgânico e involuntário da respiração.
Ele enfatiza a capacidade do trabalho com a exaustão de desbloquear determinadas
tensões, pois age no sentido de desfazer controles excessivos. Isso se no processo do ator,
processo de abertura para os fluxos criativos e orgânicos. Mas cada ator vai solicitar um trabalho
específico para que este fluxo orgânico respiratório se faça.
No final das contas, não receitas. Devemos reencontrar para cada um as causas que
incomodam, que impedem, e então criar a situação na qual essas causas que impedem de respirar
normalmente, podem ser destruídas. O processo se liberará. (GROTOWSKI, 1971, p. 95)
Em relação ao uso da voz, Grotowski destaca algumas percepções que podem ser úteis,
como a respiração intercostal, para as laterais e para as costas, propiciando que se mantenha um
certo tônus no abdômem, que será essencial para a emissão do som no espaço. Assim também a
percepção da abertura da laringe, fundamental para a emissão sonora encorpada. Alguns
exercícios respiratórios na verdade solicitam o parcial fechamento da laringe e isso bloqueia e
causa tensões, segundo ele, desnecessárias. Um exemplo dos exercícios que ele considera
errôneos é o exercício da economia de ar na expiração. Da mesma forma, exercitar-se utilizando
as consoantes e a ênfase na articulação. Ele afirma que é necessário juntar as vogais na emissão e
não pensar em economizar ar. As palavras devem estar circundadas de ar, bastando que o ator
tenha sua capacidade respiratória ampliada.
Deixar a respiração encontrar seu ritmo orgânico não significa que ela deva acompanhar o
ritmo dos movimentos. Segundo Grotowski, se exigirmos um ritmo respiratório que acompanhe
determinado ritmo acelerado de movimentos, ele será artificial, forçado. Os movimentos
corporais, mais lentos ou mais rápidos, irão interferir no ritmo da respiração, mas haverá um
ritmo respiratório próprio que não deve ser alterado, conduzido. Ele irá fazer-se por conta
própria.
Apesar do seu respeito pelas tradições orientais e seu contato com os exercícios da Hatha
Yoga, Grotowski vê um direcionamento completamente diferente no trabalho respiratório. No seu
47
livro Em busca de um teatro pobre (1992), ainda recomenda, por exemplo, o exercício da
respiração alternada, pelas duas narinas. Mas reforça que a ioga visa, através do controle da
respiração e de seus diferentes momentos, inspiração, retenção e expiração, ampliar o tempo de
retenção e diminuir consideravelmente o ritmo respiratório. O trabalho do ator, no entanto, não é
desenvolvido neste sentido, e sim no sentido oposto, de se conectar com impulsos internos vitais
que se expressarão também através da respiração, e do seu ritmo, e não dentro de determinados
padrões. Por mais que sua capacidade respiratória deva ser ampliada, deve manter-se conectada
com os impulsos internos e será integrada às ações físicas executadas pelo ator.
Nas primeiras experiências de Peter Brook, marcadas intensamente pelas idéias de Artaud,
ele trabalha com a respiração inclusive na criação de linguagem para a cena. Ou seja, não só ela é
um meio para o ator controlar e ativar determinada energia como ela por si é uma ação que
carrega e provoca sensações. Pode ser usada em cena como elemento da linguagem criada, aliada,
por exemplo, a uma movimentação muito econômica, acompanhando a busca constante de Brook
pelos meios essenciais à arte do ator.
Sobre a respiração temos os escritos de Yoshi Oida, ator de Peter Brook, no seu livro O
ator invisível (2001). Segundo Oida, a respiração do ator deve ser ampliada e isso será alcançado
através de exercícios, oriundos de diferentes tradições. Sendo a respiração um processo
inconsciente podemos, no entanto, influenciá-la conscientemente e, ao fazermos isto, estamos nos
conectando com outras atividades inconscientes:
Conforme alteramos a relação entre a fala e a respiração, veremos que sentimentos
diferentes surgirão de maneira completamente natural. A respiração está estreitamente ligada à
emoção, e mudar o padrão de respiração irá alterar a reação emocional. (OIDA, 2001, p. 129)
Através da respiração acessamos diferentes sensações e emoções. Isto se através da
consciência dos tempos da respiração: tempo de inspiração, expiração e contenção. Se
executarmos uma mesma ação associando momentos diferentes da respiração, teremos sensações
diferentes e emoções diferentes serão ativadas. Devemos fazer experiência nesta integração da
respiração às diferentes ações do ator e muitas vezes veremos que a ação exige uma determinada
respiração. Existiria assim uma respiração mais adequada, mais organicamente ligada a
determinada ação.
48
A respiração está associada à captação de energia do ambiente, é uma interação do interior
com o exterior através da qual o ator capta energia. Os exercícios que ele propõe partem desse
princípio e trabalham com diferentes imagens. Respirar imaginando o ar entrando por diferentes
partes do corpo, tomando determinados percursos. Trabalhar com a imagem do ar entrando pelo
centro de energia hara é associado à respiração dos sábios, dos que praticam meditação. Imaginar
o ar entrando pelas pernas nos conecta com a energia da terra. Oida mostra, na sua abordagem,
toda a carga simbólica que é inerente a sua cultura. O uso das imagens, a conexão com o espaço,
através das diferentes partes do corpo, demonstra toda uma linguagem simbólica, e uma visão
simbólica na qual toda ação humana parece estar inserida.
Sugere também exercícios respiratórios já utilizando sons. Alguns momentos apenas
imaginando determinados sons junto à inspiração e, em outros, realmente emitindo sons junto
com a expiração. Imaginando também percursos corporais para esses sons. Observar as diferentes
repercussões e sensações criadas em cada uma das diferentes possibilidades. A imagem é uma
forma de concentrar o foco na respiração.
Nesta troca com o ambiente e captação de energia, ele sugere que se use, nas indicações
para o trabalho, palavras que sugiram a passividade do ato de respirar. Receber, deixar entrar
será mais adequado do que pensar em captar, em pegar o ar. Melhor para deixar acontecer o
processo. Assim como Grotowski, ele ressalta que esse cuidado na linguagem utilizada faz muita
diferença no trabalho prático.
Assim também, em determinados momentos, salientar a observação do processo da
respiração, sem interferir. Sugere que, em alguns exercícios, se fechem os olhos. É um detalhe,
que, no entanto, vale a pena ser examinado. Para ele, é interessante para o ator esse momento de
apenas se conectar consigo mesmo, não se distraindo com o exterior. Sugere também alguns
exercícios com posições diferentes dos braços ou da coluna, que alteram também a respiração.
Podemos ver que ele não passa, como Grotowski, um receio em relação a esses exercícios
respiratórios, e que considera a consciência destes trajetos e ritmos favorável ao ator. Segundo
ele, há ainda mais um ponto a favor de trabalhar o controle e ampliação da respiração: ela ajuda a
lidar com o medo. Ele defende que o medo tem um papel importante para o ator, é equivalente a
uma determinada excitação que acompanha os momentos de representação, e que pode ser
inclusive estimulante para a imaginação e para as reações corporais do ator. Através da respiração
49
será possível acalmar-se, lidar positivamente com o medo, transformá-lo nesta excitação positiva,
desafiadora.
Podemos concluir que a consciência da respiração faz parte do treinamento do ator, que a
respiração deve ser acessada, observada, conscientizada, ampliada e liberada. Desse processo fará
parte uma limpeza de padrões limitantes associados a tensões musculares. Uma vez libertada e
fluindo organicamente, a respiração poderá ser usada como via de acesso a sensações e a
emoções, tomando–se o cuidado de saber que nossas ações que surgiram nos processos criativos,
por si só pedem determinado ritmo respiratório e este deverá ser respeitado.
A voz deverá surgir nesse fluxo orgânico, no qual a respiração está incluída, não devendo
causar tensões desnecessárias e ampliando mais ainda a gama de possibilidades expressivas do
ator.
I.2.2. A voz no nível não-verbal
Ao falarmos das idéias de Artaud sobre abordagens da voz, estamos nos referindo a como
ele concebia o uso da voz na sua concepção do Teatro da Crueldade e não necessariamente a
exercícios ou práticas que ele tenha chegado a desenvolver. Mas sabemos também que ele
próprio fez muitas pesquisas em si próprio, ainda que durante suas internações nos diferentes
hospitais psiquiátricos.
Dentro de sua concepção do espetáculo teatral como ritual mágico e concreto, a voz do
ator deve se inserir, afastando-se de uma linguagem apenas baseada no significado das palavras.
O objetivo será a concretude da linguagem verbal, a sonoridade trabalhada pelo ator e as
repercussões sobre a sensibilidade do espectador. Assim também a voz deve poder expressar toda
a crueldade e dor que ele propõe serem acessadas e purgadas.
Artaud no grito e em outros sons de puras expressões sensoriais, como gemidos,
suspiros, lamentos, uivos, grunhidos, as formas adequadas de provocar o efeito desejado no
espectador. O ator deverá experimentar a liberdade vocal para soltar tais sons e ser capaz de
conscientizar o percurso de sensações físicas que ele precisa resgatar para acionar a sua emissão
com toda a carga energética ou emocional que os sons carregam.
50
Na sua linguagem metafórica, Artaud nos traz duas qualidades de gritos: o feminino (o
gemido, a dor, sufocado, dolorido, denso) e o masculino (agressivo, forte, ligado à raiva e à
revolta exteriorizadas). Esse grito surgirá junto com a respiração. A consciência desse grito anda
junto com a consciência respiratória e seus tempos de retenção, expiração e inspiração. “Se
refazemos poeticamente o trajeto que levou a criação da linguagem descobrimos que a raiz
primeira do gesto como do grito se encontra na respiração”.
15
Temos o exemplo de Para acabar com o julgamento de Deus (1947), do qual Odette
Aslan descreve uma gravação para rádio, cinco minutos de um diálogo de gritos e urros animais.
É o lado animal, visceral e instintivo do homem se expressando. São as paixões desesperadas, a
dor, o sofrimento, o ódio e a violência, que precisam ser integradas.
Em etapas posteriores, Artaud aprofundará suas idéias dessa exploração vocal, indo além
do grito, mas querendo chamar a atenção para as infinitas possibilidades de uso da voz. Ele
propõe a Xilofonia, o uso da voz como instrumento musical, com suas possibilidades percussivas,
rítmicas e melódicas, bem como a produção de sons inusitados. Pelo seu contato com as
manifestações rituais, como o Teatro de Bali, ele defende esse uso de qualidades musicais e
encantatórias pelo ator. Trabalhar com o ritmo e a força da emissão vocal, no sentido de agir
sobre o espectador, provocando diferentes sensações físicas, concretas, despertando sentidos e
percepções adormecidas.
O trabalho de Demetrio Stratos é um exemplo que pode ser identificado em alguns
aspectos a esta busca de Artaud. Ele explora a fundo o inusitado na sua voz. Na sua experiência
de músico, herdeiro de diferentes culturas e das sonoridades de diferentes línguas, busca algo
além, anterior às linguagens, com uma carga sensorial muito grande. Sons que fogem a um
contexto determinado, o que Janete El Haouli
16
chama de “voz nômade”, sons que, pelo seu grau
de intimidade e desvelamento, provocam também um desnudamento de quem ouve, numa
“escuta sacrificial”.
Grotowski itambém pesquisar essa busca de ampliação e desvendamento da voz. No
processo de desbloqueio do ator, ele acessará emoções que podem ser acompanhadas de sons. No
entanto, Grotowski esclarece que não se trata de usar a voz indiscriminadamente e fazer do grito
15
ARTAUD, op. cit., p. 141.
16
HAOULI, Janete El. Demetrio Sratos: em busca da voz-música. Londrina: J.E. Haouli, 2002.
51
uma solução fácil. Ele, como sempre, aprofunda suas observações e experiências e vai buscar
exercícios que englobam o uso de sons não verbais, cantos e textos, e utiliza a exploração dos
diferentes ressonadores por ele observados em outras culturas que não a dele.
Experimentar sons inusitados, ou utilizar imagens para chegar a determinados sons, são
algumas das práticas desenvolvidas:
O ator deve aprender a enriquecer suas faculdades vocais proferindo sons inusitados. Um
exercício extremamente útil neste sentido consiste em imitar os sons naturais e os ruídos
mecânicos: uma queda d’água, o canto dos pássaros, o som de um motor, etc., primeiro é
necessário imitar estes sons e depois colo-los num texto falado de tal forma que despertem a
associação com o som produzido. (GROTOWSKI, 1992, p. 132)
Sua orientação é a via negativa, a partir dos exercícios e da constatação das dificuldades,
fazer os desbloqueios necessários. Aqui também ele considera, assim como no trabalho da
respiração, que o problema muitas vezes surge quando o ator coloca sua atenção sobre o aparelho
vocal, portanto sugere exercícios em que a atenção não esteja voltada para o processo físico
envolvido na emissão vocal e sim que envolvam o ator em ações corporais.
Mesmo no exercício dos animais, de buscar sons produzidos por animais, é buscado o
movimento, a energia, que façam aflorar a voz, para conseguir maior espontaneidade. Estes
grunhidos deverão surgir a partir dos impulsos instintivos destes animais. A voz deverá sempre
surgir a partir de uma reação corporal. Primeiro vem a resposta física a algum estímulo ou
sensação e depois ela pode também se expressar pela voz.
Ele afirma que não se deve fazer exercícios vocais, nem exercícios respiratórios, mas que
se deve procurar exercícios nos quais o corpo-memória possa se prolongar pelo corpo e pela voz.
Ou simplesmente cantar, usar a voz enquanto fazem outros tipos de atividades, sem que sua
atenção esteja em como o fazem:
Eles devem cantar, eles devem se comportar como os camponeses que cantam. Quando
eles fazem faxina, eles devem cantar, quando eles fazem algo que os diverte, eles devem cantar.
Eles devem também brincar com diferentes sons, eles devem buscar como criar diferentes espaços
através de seu canto, como criar uma catedral, um corredor, um deserto, uma floresta. Eles devem
prolongar seu ser pela voz, sem premeditações técnicas. (GROTOWSKI, 1971, p.127)
52
Ele comenta que os camponeses não têm dificuldades de falar, gritar ou cantar, quer esteja
frio ou quente, que sua respiração flui e a laringe está aberta, relaxada, simplesmente por que não
estão preocupados com o processo em si. Mas isto não é suficiente, pois, por exemplo, os
professores, que fazem uso intenso da voz, e não estão propriamente conscientes do processo
envolvido, nem por isso utilizam sua voz de forma adequada. Segundo ele, seria pelo fato de a
voz, neste caso, ser expressão apenas de uma linguagem cerebral, distanciada do corpo. Buscam
um distanciamento, um controle e uma serenidade artificial, através do racional, que, no entanto,
bloqueia o fluxo de outras qualidades vocais. No caso dos camponeses, uma integração corpo
e voz, e eles expressam-se em ação, em atividade.
Esta dissociação interna, com reflexo sobre a voz também está presente em outras
atividades. Ele cita as dificuldades das mulheres em fugir do seu padrão habitual de voz feminina
e suave. Por outro lado, o exemplo das prostitutas, que na maioria dos casos revelam através
da rouquidão e do mau uso da voz outros distúrbios, como a sua baixa auto-estima e desprezo por
si próprias. Alguns homens podem também apresentar dificuldade em encontrar a sua voz mais
natural por terem de seguir algum padrão masculino de voz grave.
É preciso reencontrar sua qualidade própria vocal, orgânica, o que ele chama de base
vocal. É preciso conhecer esta sua voz própria de base, o que não quer dizer limitar-se a ela. A
partir desta base será possível então ampliar as possibilidades da voz:
Não quero dizer que o ator deva somente utilizar sua voz no nível de sua base. Sobre a
base de sua voz orgânica, natural, ele pode usar todas as vozes, as mais altas e as mais baixas, mas
se apoiando nesta base e não contra ela. [...] Mas ele tem de ter como ponto de partida e para a
vida sua própria voz, com o nível de base natural, orgânico. (GROTOWSKI, 1971, p. 106)
Explorar a voz no nível não verbal será integrá-la ao corpo, a seu aspecto ligado às
emoções e às sensações, e não dominado por padrões, comportamentos e crenças, ou dominação
puramente racional. E, assim, o ator poderá reencontrar também na voz os fluxos orgânicos,
criativos e que traduzem seu corpo-memória.
Isto quer dizer que não devemos fazer exercícios vocais, mas que devemos utilizar a voz
em exercícios que mobilizam todo nosso ser e nos quais a voz vai se liberar por si própria. Talvez
se deva trabalhar falando, cantando, mas não devemos trabalhar sobre a voz, devemos trabalhar
com todo nosso ser, todo nosso corpo. (GROTOWSKI, 1971, p.125)
53
Thomas Richards descreve um exercício proposto por Ryszard Cieslac, no qual ele
solicita que alguém tente imitar o choro de um recém-nascido.
17
Ocorrem algumas tentativas e
depois ele mesmo executa o exercício. Ele reencontra exatamente o som do choro a partir do
comportamento corporal, e dos impulsos associados, que vão terminar na emissão do choro. É
necessária uma entrega total para que a voz reencontre um fluxo orgânico muito anterior a
qualquer linguagem falada.
os exercícios propostos por Oida vão noutra direção. Novamente pela sua herança
cultural pode-se identificar um trabalho com a voz que, mesmo em um nível não verbal, de
exploração de sons, se aproxima de um aspecto simbólico ligado ao próprio som. Para ele o
som carrega consigo determinada energia inerente a ele. Um simples exercício de pronunciar uma
vogal, como a vogal a, supõe que é um som que nos conecta com o céu. Ele propõe, por
exemplo, um exercício em pé, e a posição é um estar conectado com a terra e com o céu.
Não como não estar inserido nesse contexto simbólico maior. Iniciando com o som mmmm,
puro e ingênuo como uma criança, abrimos para o som aahh, soltando a cabeça para trás, e nos
conectamos com o céu. Assim também o som iiiihh nos liga ao centro da terra.
Quando digo sentir, estou me referindo à sensação do corpo, e não simplesmente à
emoção. Toda sonoridade que é emitida tem seu sabor próprio e distinto, e esse sabor não é o
mesmo que emoção ou psicologia. É o eco interno do que o corpo está fazendo. E cada vez que o
corpo muda o que está fazendo, o sabor interior também muda. (OIDA, 2001, p. 142)
Nessa visão, os sons nos ativam determinadas energias e nos ligam de determinada forma
ao contexto externo. Assim, se experimentamos determinada ação associando um som, ele pode
ser favorável ou não, estar integrado ou não. Ele propõe que o ator exercite sua sensibilidade e ao
pronunciar determinado som, deixe-se contagiar e execute pequenas ações sob o estímulo desse
som específico. Observar, assim, que repercussão o som cria, que movimento ou ação ele está
sugerindo. É através dessa abordagem que ele sugere também que se perceba o texto,
primeiramente pelo seu aspecto sonoro, pelas escolhas do autor que incluem, não o sentido e a
lógica das palavras, mas sua sonoridade.
17
Cf. RICHARDS, 1993.
54
Brook, ao se questionar sobre a linguagem falada, seu papel no teatro, formula uma
questão que acaba por nortear as suas pesquisas. Busca encontrar aquilo que verdadeiramente
comunica, aquilo que é possível ser transmitido do ator para o espectador, sem necessariamente
estar ligado aos signos conhecidos de determinada cultura. Assim como Artaud, ele que os
significados muitas vezes limitam, quando estão ligados ao puramente racional:
Nosso trabalho se fundamenta no fato de que alguns dos aspectos mais profundos da
experiência humana podem se revelar por meio dos sons e movimentos do corpo humano em
uma forma que faz vibrar uma corda idêntica em qualquer observador seja qual for seu
condicionamento cultural ou racial. E, portanto, podemos trabalhar sem raízes, porque o corpo,
como tal, se converte em fonte de trabalho. (BROOK, Apud. INNES, 1992, p. 151)
Para desenvolver essa questão, Brook opta por trabalhar com atores de inúmeras
nacionalidades e culturas díspares, no sentido de buscar a comunicação mais essencial que
depassa a língua própria de um povo e tradição cultural. Segundo Cristopher Innes, abolindo todo
significado compreensível, corremos o risco de ficar no individual, no privado, que não é
comunicável. Brook, no entanto, acredita que, por trás do individual, existirá, sim, uma origem
arquetípica que fará a conexão com a coletividade. Através dos sons deverá haver uma vibração
específica capaz de acionar uma vibração análoga no espectador ou no companheiro de cena.
Sob este enfoque ele trabalha com experimentações não verbais, comunicação pelos sons
puros, pela invenção de línguas ou simplesmente pela comunicação possível entre atores, cujas
línguas são apreendidas apenas em sua sonoridade, pois completamente desconhecidas.
Aproxima-se assim de nguas arcaicas, línguas mortas, cuja sonoridade e vibração são o
essencial.
Um exemplo deste enfoque é a encenação de Orghast (1971), ponto culminante do teatro
ritual de Brook, para a qual foi criada uma língua própria, inventada a partir de suas pesquisas, e
formalizada por Ted Hughes. Uma língua que carregasse consigo a essência do som que é
compreensível pelo homem de qualquer cultura:
A intenção não era criar uma linguagem conceitual que descrevesse uma situação, mas
compor blocos de sons que teriam a categoria da ação física e que fossem indecifráveis em
qualquer análise intelectual. No entanto, na prática, todas as mais de duas mil palavras criadas
55
tiveram conteúdo semântico e podiam ser traduzidas a outros idiomas. [...] Estas coincidências
foram ingenuamente tomadas como prova de que voltando às raízes da linguagem estavam
redescobrindo as fontes universais e orgânicas do significado. (INNES, 1992, p. 154)
É uma passagem do não verbal, da experimentação de sons, a partir de impulsos
orgânicos, mas incluindo uma resposta a esses sons, uma reação física. Esses sons vão então
simbolizar determinadas forças até chegar à construção de uma língua de caráter universal. Foi
esse o objetivo das pesquisas, como que refazendo o trajeto de construção da linguagem. Eles
haviam tido contato com outras línguas antigas, como o avesta, língua criada apenas para
determinada prática ritual, na qual os sons eram o essencial e carregavam em si os significados.
I.2.3. A pesquisa dos ressonadores da voz
A exploração da tríade da respiração, proposta por Artaud, aproveitando os tempos de
inspiração, expiração e retenção, na emissão da voz, já sugeria um trabalho com diferentes
dinâmicas vocais. Esslin, em seu livro Artaud (1976), esclarece que Artaud trabalhava também
com a noção de diferentes zonas de ressonância. Trabalhou também com três regiões: a cabeça, o
peito e o diafragma. A sua proposta era combinar essas três regiões de colocação da voz com os
três movimentos da respiração, gerando nove possibilidades de vozes diferentes. Em cada região,
trabalhando a emissão da voz associada a cada um dos tempos da respiração, definimos três
qualidades vocais. Pressupõe, então, a emissão de sons inclusive nos momentos de retenção e de
inspiração do ar.
Segundo Esslin, uma concepção desta possível técnica, sugerida por Artaud, foi
desenvolvida por Jean-Luis Barrault
18
. Ele teria experimentado na prática essas possíveis
combinações e a criação de diferentes vozes associadas a elas. Juntando ainda as noções de yin e
yang, a associação da respiração ao masculino, feminino e neutro, e os pontos da medicina
chinesa, usados na acupuntura, Artaud concebe inúmeras possibilidades de combinação.
No capítulo “O Teatro de Séraphin”, de O teatro e seu duplo (1984), são descritos trajetos
e pontos no corpo que poderão concentrar determinada emoção. Podemos conceber também a
voz tomando esses trajetos dentro do corpo. No momento em que identificamos a respiração com
18
Cf. ESSLIN, 1978, p.81.
56
os fluxos de energia, de emoção, a voz estará incluída nesses fluxos internos. A linguagem
simbólica de Artaud permite, então, que se compreenda que a voz também poderá ser canalizada
para estas diferentes zonas, através do corpo.
Grotowski desenvolveu, em suas pesquisas com a voz, a técnica dos ressonadores, que
possibilitavam uma ampliação da qualidade vibratória da voz bem como um alargamento dos
registros e aumento das possibilidades de variações de timbres, alcançados pela voz do ator.
Os ressonadores são diferentes espaços do corpo para onde é direcionada a vibração do
som, dando qualidades diferentes para a voz. Nessa exploração expressiva da voz é fundamental
o trabalho com a respiração. O objetivo será conseguir uma coluna de ar livre, apoiada na
musculatura da pélvis e do abdômen, que servirá de apoio para a voz, e que então poderá ser
direcionada para os diferentes pontos. Essa pesquisa vocal também utiliza imagens, como, por
exemplo, de animais, ou outros sons da natureza. Não está dissociada de um processo interno de
autodescoberta, desvelamento e abertura do ator, para estas diferentes vozes, imagens e energias
arquetípicas.
Segundo Grotowski, a descoberta desses ressonadores deu-se a partir da observação do
uso da voz em diferentes culturas. Segundo Carlos Simioni, em entrevista dada para este trabalho,
foi Barba quem teria observado a utilização de diferentes ressonadores pelos artistas indianos e
levado esse tipo de pesquisa para o grupo de Grotowski, quando trabalhou com ele. Diferentes
observações, de Barba e de Grotowski, estariam indo nessa direção, da constatação de
diferentes zonas de ressonância do som dentro do corpo humano.
A correta denominação dos ressonadores seria vibradores
iii
, pois são regiões do corpo nas
quais podemos perceber a vibração do som emitido e não são necessariamente caixas de
ressonância. A vibração vai se concentrar sobre um ponto, embora repercuta em outros ou até no
corpo todo. O ator pode desenvolver esta percepção e acessar esses ressonadores trabalhando o
direcionamento da voz para esses pontos, para isto ele deve pressionar a coluna de ar naquela
direção determinada.
Grotowski enumera alguns dos principais ressonadores, mas salienta que é possível
ampliar o seu número apenas pesquisando amplamente as possibilidades. Um dos mais utilizados
pelos atores ocidentais seria o ressonador da cabeça, da fronte, região frontal da cabeça, que
normalmente está associado a emissões de sons mais agudos. Uma segunda possibilidade de
iii
Vibrateurs é a expressão usada por Grotowski.
57
ressonador na cabeça seria o ocipital, observado nos chineses. O som vibra na região superior e
posterior da cabeça. Ainda na cabeça, mais precisamente na face, temos como vibrar mais na
boca ou no nariz, constituindo mais dois ressonadores possíveis. Normalmente o nasalado é
evitado e a vibração na boca muito utilizada, mas nada impede que ressoar na região do nariz
possa servir na composição de determinada voz, utilizando as qualidades próprias do som ali
emitido.
Descendo para a região do tronco, temos o ressonador peitoral, na região do peito, que
estará associado a emissões mais graves. É possível jogar com o som entre os dois ressonadores,
da cabeça e do peito, experimentando diferentes alturas, identificando quando o som está presente
em ambos e que alturas de som podemos concentrar em cada um deles.
Menos utilizado e de mais difícil acesso, porém bem identificável em algumas vozes, é o
ressonador abdominal. As vozes muito graves como dos cantores de Jazz se utilizam deste
ressonador. Podem também ser identificadas com rugidos de animais selvagens, e é através deste
estímulo que Grotowski propõe que se chegue a elas.
Outras possibilidades são os ressonadores das costas. É possível tentar fazer o som vibrar
por toda a coluna vertebral ou localizá-lo em diferentes alturas da mesma, como na região entre
as escápulas, na região lombar, ou ainda mais abaixo, no osso sacro. Algumas posições corporais
parecem ajudar a levar a vibração para essas diferentes partes, pelo menos no processo de
descoberta isto será importante. Há ainda a possibilidade de vibrar o corpo todo, o que Grotowski
chama de ressonador total, quando o som é enviado em todas as direções, saindo do centro do
corpo do ator.
Nesta exploração dos diferentes ressonadores, utilizando sons, cantos e textos, Grotowski
identifica que o trabalho pode se tornar mecânico, artificial, e vai procurar como reencontrar a
organicidade:
Antes nós observávamos o aparelho vocal, agora nós estávamos observando o corpo todo,
ou certas regiões do corpo, e por esta razão a voz estava muito mais forte. Não eram somente os
vibradores que tinham desencadeado os diferentes tipos de vozes, era igualmente o fato de que
havíamos cessado a observação, o controle do aparelho vocal. O controle do corpo é mais natural,
mas era mesmo assim uma auto-observação. (GROTOWSKI, 1971, p. 118)
58
É novamente tirando a atenção do ator sobre o próprio corpo, sobre o processo envolvido,
que Grotowski soluciona. Começam, então, a exercitar o direcionamento destes sons, através dos
ressonadores, para direções diferentes do espaço.
Na cabeça, a imagem será falar para o teto, buscar contato com o teto, mais para frente ou
mais para trás, como que numa diagonal. Tentar sentir o eco do som emitido e projetado nesta
direção, imaginando mesmo que temos uma boca localizada nesse ponto determinado. Assim
também direcionar o som para a parede, através do peito, falando pelo peito, irá ativar este
ressonador correspondente. Igualmente pelo nariz, pela boca e pela laringe propriamente dita. E,
finalmente, direcionar o som para a parede atrás de si, significa acionar os ressonadores
distribuídos pela coluna vertebral.
São também sugeridos outros recursos para trazer o som, a vibração, para os diferentes
ressonadores, como, por exemplo, imagens diferentes, memória de sensações leves em cada
ponto, ou ainda o estímulo real, com o toque nos diferentes pontos. Desde o início da pesquisa, a
vibração pode ser identificada com as mãos sobre a região, o que é, no entanto, um pouco
diferente do próprio toque ou imagem trazer a vibração para aquele ponto.
O trabalho com os ressonadores pressupõe que a respiração esteja se fazendo no seu fluxo
orgânico, que o ator seja capaz de sentir essa coluna de ar apoiada pela bacia e pelo abdômen, e
assim possa ter uma base sólida para comprimir o ar nas diversas direções, direcionando a
vibração sonora para este ponto. Esta base pode ser encontrada de diferentes maneiras e deverá se
ter o cuidado de não tencionar excessivamente nenhuma musculatura para que esta tensão não
passe para a laringe. Esta deverá estar aberta e relaxada para que o som circule livremente.
Desviar a atenção, usando imagens, sensações e memórias, será um recurso para que o processo
se dê organicamente e seja então conscientizado e resgatado.
É interessante observar que em nenhum momento Grotowski adota o ponto de vista de
Oida, que sempre uma simbologia no trabalho vocal. na posição em assumida pelo ator,
e pelo homem, uma relação com o universo, uma posição entre as forças do céu e da terra.
Pela forma de sugerir os exercícios respiratórios, e depois as emissões e experimentações
sonoras, associadas a movimentos corporais, certamente Oida não separaria o ato de direcionar a
voz para o teto, do fato de estar direcionando para o céu, assim como falar para o chão significa
conectar-se e direcionar a vibração para a terra, e com tudo o que está implícito nessas relações e
nesses movimentos.
59
I.2.4. A voz cantada e a encantação
Acrescento à linguagem falada uma outra linguagem e tento tornar mágica sua velha
eficácia, sua eficácia encantadora, integrante da linguagem da palavra cujas misteriosas
possibilidades esquecemos. (ARTAUD, 1984, p. 142)
Odette Virmaux
19
afirma: “a única maneira conveniente de utilizar a linguagem falada no
teatro de Artaud é a encantação”. Estariam aí, na encantação, as possibilidades misteriosas da
palavra, enquanto elemento mágico, sonoro e concreto.
Artaud descreve, do Teatro de Bali, a utilização simultânea ou oscilante da voz e de
instrumentos musicais, um prolongando o outro, instrumento e cordas vocais, de forma que é
impossível identificar um e outro. O Teatro Oriental é capaz de revelar essa música da palavra.
Artaud reivindica a vibração, a trepitação, a repetição, de ritmos musicais ou frases faladas, “uma
ação dissociativa e vibratória sobre a sensibilidade”
Odette Aslan, em O ator no século XX (1994), descreve o poder dessa repetição de sílabas
ou frases como “escavação, coagulação, dissolução, volatização, a intenção de perfurar”. Artaud
ainda usa os verbos “exaltar, exacerbar, encantar, deter a sensibilidade,... através de ritmos
repetidos apaixonadamente”.
Temos aqui o exemplo da ação vocal do ator sobre o espectador, sobre sua sensibilidade.
O ator age vocalmente sobre ele, provocando concretamente o transe, a alucinação. Deverá fazer
uso de ritmos encantatórios, e seu poder de evocação, também os aliando a qualidades musicais
de movimentos corporais.
Essa forma de utilização da palavra, poética e ativa, tem o objetivo de reencontrar a
“acepção religiosa e mística” do teatro. Essas “conseqüências vibratórias” não seriam sentidas
apenas no plano físico, mas em todos os planos do espírito:
Repetições rítmicas de sílabas, modulações particulares da voz envolvendo o sentido exato
das palavras, precipitam um maior número de imagens no cérebro, em favor de um estado mais ou
menos alucinatório e impõe à sensibilidade e ao espírito uma maneira de alteração orgânica que
contribui para retirar da poesia escrita a gratuidade que normalmente a caracteriza. (ARTAUD,
1984, p. 53)
19
Cf. VIRMAUX, 1975.
60
Artaud lembra que a eficácia de manifestações do Teatro Oriental, como o Teatro de Bali,
com uma atuação direta e imaginária, deve-se ao fato de apoiarem-se em tradições milenares.
Este teatro conservou intactos os segredos de utilização dos gestos, das entonações, da
harmonia, em relação aos sentidos e em todos os planos possíveis”.
Para Artaud, o Teatro Oriental tem o poder de sugestão sobre o espírito. Artaud destaca a
minúcia e a consciência enlouquecedoras desse teatro. Ele possui a qualidade de um verdadeiro
cerimonial religioso, trata-se de um rito sagrado, um rito comprovado. Como um exorcismo ele
acontece em plena vida, matéria, realidade, e provoca o terror do público diante daqueles seres
“ditados por inteligências superiores”. O objetivo desses ritos e de suas qualidades de magia é
colocar a sensibilidade num estado de percepção mais aprofundada e apurada.
Convida-se essa linguagem a dirigir-se não apenas ao espírito, mas também aos sentidos, a
atingir regiões ainda mais ricas e fecundas da sensibilidade em pleno movimento. (ARTAUD,
1984, p.151)
Podemos aqui exemplificar o uso da voz nas proximidades do canto, com o trabalho
desenvolvido por Grotowski para o espetáculo Akropolis (1962). Um espetáculo no qual os atores
criam todo e qualquer som através de seus recursos corporais e vocais. Criam um ambiente
sonoro que, utilizando também sons não verbais, como murmúrios, gritos, gemidos, se aproxima
do canto e da música. A proximidade física dos espectadores e o distanciamento que, no entanto,
os atores sustentam, faz com que esses se transportem para uma espécie de transe. Assim também
o texto carrega-se desse ritmo encantatório, exemplificando a procura de Artaud.
Ludwig Flaszen, um dos atores de Grotowski, que trabalhou em Akropolis, comenta a esse
respeito, em entrevista concedida a Georges Banu, e coletada no seu livro Da palavra ao canto:
Em Akrópolis, não divisão entre voz falada e voz cantada por que se trata antes de uma
voz integral que transforma tudo em ação acústica. Ninguém trabalhou com músicos e o próprio
Grotowski não tem uma formação vocal particular, pois se tratava de abordar a voz como uma
manifestação desprovida de toda perspectiva musical imediata. Mas isto se torna música no
momento em que o ator chega a um desbloqueio corporal completo que lhe permite seguir o
processo sonoro nos seus mínimos movimentos. [...] A ligação entre a palavra e os cantos acontecia
graças ao engajamento total do corpo humano. (BANU, 1995, p. 43)
61
Grotowski utiliza também o canto como um exercício que possibilita ao ator uma
experimentação dos recursos vocais, como os ressonadores, e como uma forma de se conectar
com seu corpo-memória. O uso de uma canção que seja relacionada com a memória ancestral do
ator será um estímulo para a criação de uma seqüência de ações. Grotowski salienta que, nessa
espécie de etnodrama, temos que ter o cuidado de não ficar na superfície. A partir das ações
criadas, fazer um trabalho de seleção, de aperfeiçoamento dessa seqüência, através da qual
muitos desafios são propostos ao ator. Será necessário escolher alguns momentos mais vivos e
fazer a nova ligação entre eles trabalhando a transição através de algum impulso e depois ainda
sobrepor novamente a música da forma mais adequada, pois os momentos da ação agora serão
diferentes.
Será na última etapa de suas pesquisas que Grotowski se debruçará mais demoradamente
sobre o canto, explorando cantos de antigas tradições, que carregam em si toda uma memória
ancestral ligada à história daquele determinado povo.
De Marinis encerra o livro La parábola de Grotowski: el secreto del novecento”
teatral
20
com a seguinte citação, de Mario Biagini
21
:
Para mim é como se esse senhor polaco nos tivesse deixado um desafio: cantem, pode
acontecer algo”. Através desse senhor e destes cantos descobrimos uma possibilidade, talvez
pequena, sabemos que através do trabalho sobre estes cantos algo pode acontecer, algo como uma
prisão que se abre por um momento, e nesse momento algo funciona de novo, e de novo pode-se
dizer: “é um milagre, este mundo é leve e eu sou parte de tudo isso”, e depois talvez “este mundo é
um milagre e eu não sou mais parte de tudo isso”. E depois esta percepção termina e às vezes
permanece em nós uma espécie de ressonância, e não se é melhor que antes, que se tenta, quase
desesperadamente, voltar para casa. Me perguntam qual o objetivo, o sentido de tudo isto. O
objetivo não está à vista, o objetivo é secreto. (BIAGINI, Apud DE MARINIS, 2004, p. 92)
Retomo aqui esta citação, referente à última etapa das pesquisas de Grotowski, nomeada
por Peter Brook de arte como veículo, durante a qual o trabalho com os cantos de tradição foi
fundamental. Segundo De Marinis, foram nove anos dedicados à pesquisa com estes cantos,
utilizados como ponto de partida e como meio de alcançar a construção de partituras físicas
20
Transcrição de uma conferência de Marco De Marinis, proferida em 2001, em Buenos Aires.
21
Mario Biagini foi um dos colaboradores de Grotowski, nos últimos anos do Teatro Laboratório, ao lado de
Thomas Richards.
62
orgânicas, bem como visando a uma integração total, psicofísica e espiritual, nas ações
executadas.
Os cantos entrarão nesta busca como um meio de acessar essa energia vital, ancestral, este
corpo-memória, entendido como forma, ações específicas articuladas, e como energia. Eles
trazem consigo um corpo ancestral, uma corporeidade antiga, uma dança que lhes é indissociável.
Trazem uma corporeidade de quem os cantou, sua genealogia, e assim incorporam técnicas
performativas antigas:
[...] cantos que, diferentemente daqueles da tradição ocidental, possuem qualidade
vibratória, capacidade de vibrar e produzir vibrações, desatar os nós da expressividade, tocar
centros energéticos e liberá-los, ativando a energia, tocar os “chacras”, certos pontos nos quais
supostamente se concentra a energia. (DE MARINIS, 2004, p. 73)
Temos aqui a voz como um meio de trabalhar o fluxo da energia vital no ator, que
agora ela é o próprio meio de restabelecer esse fluxo, não apenas denunciando bloqueios, mas
sendo o próprio instrumento de liberação e integração.
O trabalho com os cantos passa a ser utilizado como ponto de partida para a criação de
partituras corporais, buscando, através deles, essa memória corporal que eles ativam. Além de
servirem como estímulo criativo, eles mantêm e propiciam um aprofundamento do contato do
ator consigo mesmo:
[...] os cantos são parte de um processo vital de ativação e de estimulação dos centros
energéticos e, portanto, um processo que produz tanto efeitos visíveis uma partitura que se pode
fixar como invisíveis a ação interior, ou seja, transformações energéticas ou alterações de
consciência e de percepção de si mesmo e do mundo -. (DE MARINIS, 2004, p. 68)
Thomas Richards descreve, no seu livro The edge-point of performance (1997), como se
o processo de construção das Actions, sequências de ações criadas a partir dos cantos. Estes
devem ser aprendidos tecnicamente, ou seja, é preciso saber cantá-los, afinadamente,
precisamente, então eles poderão servir de estímulo para a criação. A partir do cantar
começam a ser executadas ações, pelos impulsos sugeridos pelos cantos, pelas memórias e
associações suscitadas. Por exemplo, um canto fúnebre poderá trazer da memória alguma
imagem associada à morte de alguém ou a algum antepassado, e o ator vai improvisando,
63
seguindo os impulsos internos despertados. A partir dessas improvisações, que podem ser
individuais ou em grupo, cada ator começa a fixar a sua partitura de ações, relativas àquele canto,
até ter uma estrutura bem definida. Esta estrutura é retomada mantendo-se simultaneamente o
canto. Agora o canto poderá aprofundar mais ainda o envolvimento com as ações, sugerindo
transformações sutis de energia. Esta estrutura fixada, detalhada, será repetida e acompanhada
por um processo interno do ator, um processo espiritual de entrega, abandono e integração:
Os cantos podem ser os instrumentos adequados para realizar um trabalho sobre si mesmo,
que substancialmente é um trabalho de transformação de energias. (DE MARINIS, 2004, p. 78)
Fica claro que o trabalho do ator é um processo de dinamização de diferentes energias e
que os cantos de tradição são um estímulo altamente revelador e com um grande potencial
criativo, ao despertarem energias ancestrais no ator. Eles atuam favoravelmente na transformação
de energias pesadas, densas, em energia sutil, leve.
Estas estruturas performativas criadas, chamadas de Actions, não são pensadas para serem
assistidas por espectadores: o foco delas é unicamente o processo de contato interno do próprio
ator. Elas são estruturas fixas, com um comportamento repetido, caracterizando um ritual
individual do ator, e têm como objetivo alcançar este estado interno de integração, que podemos
aproximar dos estados alterados de consciência, como o transe ou a possessão. Este processo
interno do ator é chamado de Inner-action, é a ação interna que acompanha a partitura de ações
físicas.
Apesar de, nessa etapa de trabalho, o objetivo não ser levar a público as estruturas
performativas, eventualmente outros grupos de atores eram convidados e presenciar o trabalho,
havendo assim momentos em que pessoas assistiam. As Actions eram apresentadas como
performances, a esse público determinado, convidado para testemunhar o trabalho. Mesmo que o
foco não fosse a recepção, é claro que as pessoas que estavam presentes recebiam, ou percebiam,
de determinada forma essas partituras, e as transformações e estados pelos quais passava o ator
de alguma forma poderiam repercutir em quem observava. É como se esta conexão do ator
consigo mesmo alcançasse um nível de estabilidade que pode atingir os outros sem, no entanto,
prejudicar o contato interno com as ações executadas. Então, mesmo que essas pesquisas com os
cantos de tradição se direcionassem para o trabalho do ator consigo mesmo, podemos ver que
64
ainda assim pode ser criada, a partir do estado alcançado, uma relação profunda com quem
observa ou testemunha tais ações.
Este trabalho com os cantos pode nos parecer um tanto distante, mas basta buscarmos
referências em nossa própria cultura afro-brasileira para que seja algo mais palpável. Como
Richards mesmo menciona, a cultura brasileira com seus cantos do Candomblé também carrega
essa força ancestral, à semelhança dos cantos afro-caribenhos por eles incorporados. São também
cantos associados a rituais que derivam de uma tradição originária da África. É sabido que esses
cantos são trabalhados para se alcançar determinados estados de consciência, ou transes, nos
quais o atuante incorpora determinada energia, reconhecida como uma divindade específica.
Peter Brook, em sua encenação A tragédia de Carmen (1981), dirige atores cantores,
querendo aproximar a ópera e o teatro. Trabalha com cantores líricos, com os quais tenta se
aproximar de uma atuação teatral, aliando-a então ao canto. É um exercício oposto ao da
utilização do canto para o ator de teatro, que visa a experimentar mais o lado sonoro da palavra:
É, sobretudo, a Tragédia de Carmen que seduziu pela intimidade constantemente
preservada entre as palavras e a sica, percebidas não como duas vertentes distintas, mas como
dois momentos ligados a um mesmo processo vocal. Brook não indicava constantemente o mesmo
conselho: “palavras, palavras, e em seguida, lentamente, para a música”, como se esta devesse
eclodir no final de um percurso ativado a partir de sua fonte verdadeira. (BANU, 1995, p. 46)
Georges Banu afirma que o uso do canto, no teatro de vanguarda do século XX, é a
procura de ultrapassar a limitação do texto, no sentido de poder acessar emoções mais extremas,
mais intensas, que trazem a voz para um registro mais próximo da voz cantada, como é o caso de
Akropolis de Grotowski.
Ao dirigir cantores, Brook faz o trajeto contrário, com aqueles que estão acostumados a
utilizar a palavra cantada, enfatizando as qualidades melódicas e harmônicas do som, e não se
envolvendo necessariamente com o significado do que está sendo dito. Brook solicita então que
primeiro venha o contato com as palavras, carregando-as de sentido, de vontade, de ação, para
depois torná-las sons e chegar novamente ao canto. Aqui, cantores que habitualmente trabalham
pela sonoridade, pela música, precisam chegar em outro registro, estando mais abertos aos
65
estímulos que o texto propõe para depois chegar ao canto carregado agora dos impulsos da
personagem.
no processo das Actions, de Grotowski, o canto é escolhido de forma que carregue
toda esta conexão entre sonoridade e significado, pela sua origem ligada a uma cultura
tradicional, o que é bem diferente do caso da ópera, que retrata um estilo e uma técnica a ele
associada, não necessariamente com uma ligação orgânica com a vida. Outra grande diferença é
que no caso da ópera se trata de diálogos e monólogos cantados, e é a história que vai nortear a
criação das ações dos atores, e não uma criação pessoal e uma referência íntima do ator. São
abordagens completamente diferentes que, no entanto, comparadas, nos esclarecem as possíveis
relações entre a voz falada, a voz cantada e os diferentes envolvimentos do ator com suas ações
vocais.
66
TRANSIÇÃO – A VERTICALIDADE NA INTEGRAÇÃO CORPO-PALAVRA
Nas pesquisas de Grotowski podemos ver mais de perto a questão da abordagem da
palavra na prática. Estas pesquisas, que levam à abertura total do ator e assim visam a provocar
este mesmo desvelamento no espectador, vão buscar textos de caráter mítico, nos quais esse
processo de abertura seja aproveitado, possa estar presente e dialogue com o texto. O foco do ator
será manter as ações por ele criadas, que revelam suas associações mais íntimas. Esta atitude
poderá servir para a abordagem de determinados textos, que deverão oferecer uma situação na
qual o destino da personagem a obrigue a entregar-se em sua totalidade.
Os textos devem ser inspiradores para o ator e o diretor, mas não é buscada a interpretação
do texto, mas sim um diálogo com ele. Grotowski afirma que os textos que interessam são
aqueles que mantêm verdades que ainda repercutem em nós, pelo seu conteúdo mítico:
O essencial é o encontro. O texto é uma realidade artística que existe em um sentido
objetivo, agora, se o texto é suficientemente velho e conservou toda sua força até agora, em outras
palavras, se o texto contém essa concentração de experiência humana, de representações, ilusões,
mitos e verdades que ainda são atuais para nós, então o texto se converte em uma mensagem que
podemos receber de gerações anteriores. (GROTOWSKI, Apud LLAGOSTERAS, 2005, p. 18)
Esses textos, no entanto, são abordados de maneiras diferentes. Grotowski sugere que se
faça uma espécie de colagem, retirando dos textos aquilo que interessa a cada um. Para ele é uma
possibilidade de confronto que estes textos oferecem. Ele dialoga com os textos, vindos de
determinada tradição bem específica, confrontando as experiências e crenças das gerações
passadas com as atuais, e consigo mesmo. O ator também deve vivenciar esse diálogo com o
texto, com o autor. Sugere um exercício de trabalhar o texto internamente, em silêncio,
procurando as repercussões que ele pode gerar no ator, no seu corpo-memória.
Assim é trabalhado o confronto com os mitos, recriando formas rituais para as
encenações, nas quais o ator se ofereça em sacrifício, através de sua entrega e exposição total e
deixe aparecer ainda sua relação com o texto, com o mito em questão, que na verdade, está sendo
questionado pela montagem do diretor. É este que definirá os significados que o espectador
conseguirá ler. Este será tocado pelo ato do ator e, ao mesmo tempo, pela releitura dos mitos, e
pela forma ritual como estão sendo vivenciados. O que se passa internamente com o ator não diz
67
respeito diretamente aos conteúdos dos textos, dos mitos, mas sua atitude fará com que aconteça
o encontro, com o texto e com o espectador, e o confronto com o mito.
No processo de criação de Apocalypsis cum Figuris (1968), os próprios atores buscaram
textos que os inspiravam, depois de ter suas partituras de ações criadas e definidas. Foram
escolhidos textos que provocariam alguma resposta interna neles, nas suas ações existentes. A
estrutura da encenação se constrói a partir desses fragmentos e desses universos pessoais dos
atores:
Durante quase todo o período de elaboração não havia nada semelhante a um livreto: a
ação era improvisada e também a linguagem, quando era absolutamente indispensável. Somente
quando a ação já se havia cristalizado, os atores deviam iniciar uma busca pessoal e individual
através da literatura, para encontrar textos frente aos quais eles e sua criação poderiam responder.
(GROTOWSKI, Apud LLAGOSTERAS, 2005, p. 20)
Serge Ouaknine, que colaborou e acompanhou determinado período das pesquisas de
Grotowski, afirma que não se trata de definir ou traduzir o contexto que determinado texto
possui, não se trata de compreender o que está sendo dito ou narrado, mas sim de acreditar, de
crer na ação do ator. A criação e construção da partitura do ator independe do contexto. O público
será tocado quando acreditar nas ações do ator. Compreender ou não é outra questão, é algo a
mais que pode acontecer e dependerá do diretor e não do ator:
O objetivo da arte não é se fazer compreender; isto é uma parte, se se compreende, melhor,
mas não é este o objetivo. O trabalho real ocorre dentro dos elementos da compreensão e é a
natureza da presença, é aí que se começa a acreditar. Quando vocês se emocionaram com o
trabalho orgânico que fiz com os atores, deixaram de querer entender e se sentiram surpreendidos
por acreditar. Cada vez que vocês aplaudiram, o que aplaudiram foi um momento de verdade, e
esse momento de verdade é orgânico. Pouco importa a significação do gesto, é a verdade da voz ou
destes elementos postos em jogo. (OUAKNINE, 2005, p. 56)
Sobre o caráter dos textos a serem trabalhados, Ouaknine afirma que, como o objetivo não
é incorporar o texto intelectualmente e sim organicamente, é preciso estar aberto ao que o texto
propõe e cada texto vai criar suas condições. Os textos clássicos, como as tragédias gregas, lidam
com verdades universais, no aqui e agora, são não-psicológicos. Neles o homem existe enquanto
68
paradigma aos deuses e tratam do encontro da verdade humana com os deuses. Não como
fugir, é preciso estar aberto a esta presença divina, não é uma resposta pessoal que o texto pede.
Segundo Ouaknine, os clássicos são textos que passam do ter ao ser, de uma
horizontalidade da ação das personagens envolvidas com o ter a uma verticalidade da expressão
do ser. A ação do herói trágico também revela essa passagem do ter, vivido pelas outras
personagens, ao ser, a esse mergulho em questões da verdade, como o amor, a honra, que
ultrapassam a expressão social. Isso permitirá a verticalidade da ação do ator, o mergulho no
momento presente, através da abertura e do vazio, encontrando o ser da organicidade e não o ter
do pensamento:
É um paradoxo que o ser não seja um aparecer, é o ser da presença orgânica, e a
verticalidade é a consciência da transcendência que está presente nessa organicidade. É por isso
que é difícil ser ator, porque se tem de estar na história emocional pessoal e, ao mesmo tempo, nu,
vazio, morto, dentro e fora. (OUAKNINE, 2005, p. 58)
Brook, no seu texto sobre Grotowski A arte como veículo, deixa claro que vê nas
pesquisas de Grotowski uma atualização de um aspecto da arte dramática que existiu sempre,
durante séculos, e que parecia estar esquecido. Este aspecto é o fato de todos os tipos de arte
dramática serem uma forma de conhecimento que permite ao homem acessar outros níveis de
realidade e servir de veículo para a criação de um universo mais justo. Essa busca é, sem dúvida,
uma busca espiritual.
A busca dessa transcendência do momento presente, dessa verticalidade, está também
exemplificada no trabalho com as Actions. Através dessa estrutura de ações físicas, o ator
aprofunda a conexão interna e o estado de presença, totalmente aberto ao momento. É nesse
estado que acontece a integração com os cantos e também com textos, que são incorporados às
ações em algumas experiências.
Grotowski define essa verticalidade:
Quando eu falo da imagem de um elevador primordial, e então, da arte como veículo, eu
me refiro à verticalidade. Verticalidade o fenômeno é de ordem energética: energias pesadas, mas
orgânicas (ligadas às forças vitais, aos instintos, à sensualidade) e outras energias, mais sutis. A
questão da verticalidade significa passar de um nível, digamos grosseiro de uma certa forma
69
podemos dizer “cotidiano” , a um nível energético mais sutil, ou mesmo a uma conexão superior.
(GROTOWSKI, Apud. RICHARDS, 1995, p. 188)
Ele esclarece ainda que não se trata de suprimir estas energias mais densas, que são
orgânicas, mas de alcançá-las com a energia mais sutil, superior, estabelecendo uma conexão
entre o baixo, o que está “abaixo de nossos pés”, com o que está “acima de nossas cabeças”. Uma
linha vertical que liga a organicidade a uma espécie de consciência superior, awareness, uma
consciência que não está ligada ao pensamento, à mente, mas sim à presença, ao ser.
Nos trabalhos com os cantos de tradição, nos Actions, é buscada esta verticalidade através
das memórias que eles despertam. O ator pode iniciar relacionando a canção escolhida com
memórias familiares, mas deverá ser capaz de ir além, mais atrás, na origem desta canção, na sua
ligação com a cultura e o povo que a criou. Este diálogo com os cantos, esta escuta, integração,
será alcançada pela sua sonoridade. Temos aqui o aspecto sonoro e musical da linguagem, o que
realmente a caracteriza como mito, como presentificação de energias, através dos sons, da
linguagem que é som e sentido:
Dizemos: é o povo que a cantou. Mas neste povo houve alguém que começou. Tu tens a
canção, tu deves te perguntar onde esta canção começou. Talvez fosse o momento de alimentar o
fogo sobre a montanha, onde alguém guardava animais. E para se esquentar neste fogo, alguém
começou a repetir as primeiras palavras. Ainda não era a canção, era a encantação. Uma encantação
primária que alguém repetiu. (GROTOWSKI, Apud. RICHARDS, 1995, p. 84)
Neste processo da memória despertado pelos cantos, o ator irá se conectar com suas
bagagens culturais e se identificar como sendo “filho de alguém”: tu es le fils de quelqu’un”.
Para Grotowski isso é essencial, senão será uma ação estéril, sem conexões com o universal. É
preciso acessar a paisagem, o contexto, no qual se formou determinado canto. Podemos chamar
este canto de mítico. A palavra aqui é música, está conectada à sua origem mítica e ritual.
No trabalho com os textos, nesta busca pela verticalidade, também a palavra falada
reencontra a sua origem mítica. É abordada e incorporada em seu aspecto sonoro. O ator torna-se
um canal através do qual os deuses falam, verdades universais tomam forma. Nas Actions houve
também a experiência de integração de textos. Foram utilizados textos da tradição judaico-cristã.
No entanto, não se trata nunca de aceitar determinada verdade, mas de dialogar com ela. Há como
que uma batalha, um questionamento sobre a verdade do que está sendo dito. Uma vontade de
70
saber, de conhecer, além do que está estabelecido, através da relação com o texto,
reencontrando e atualizando o que está escrito.
A organicidade e a objetividade alternam-se em diferentes momentos do processo
criativo. A organicidade é o ponto de partida e a ela queremos retornar, mas passamos por
momentos em que é preciso um trabalho minucioso e técnico, ou seja, objetivo, sobre o material
que está sendo construído. Na integração da palavra com o corpo, quer seja com os cantos ou
com textos, é preciso escolher, em determinado momento, o que conduz, se é a voz ou se é o
corpo. Grotowski usa a imagem de um barco em um rio. É preciso decidir o que é o barco e o que
é o rio. a possibilidade de o canto ser o rio e assim o corpo, as ações, devem ser criadas e
elaboradas de forma que possam seguir o fluxo do rio, do som, das palavras. Mas é possível
também o contrário: as ações, o corpo, serem o rio, e definir o fluxo da voz e da palavra, das
sonoridades da voz.
Brook também vai trabalhar com temas e textos de caráter mítico. O ponto alto de suas
experiências com o teatro ritual foi o espetáculo Orghast in Persepolis, no qual é encenado,
segundo Innes, um mito da criação. Espetáculo que ocorreu no deserto de Persépolis, durante o
festival que acontecia, durando uma noite inteira, desde o pôr-do-sol até o amanhecer. Todo
esse contexto, espacial e temporal, favoreceu a encenação ritual, que utilizou por foco central o
mito de Prometeu acorrentado. O mito de criação coincide então com a entrega do fogo do saber
aos homens, símbolo que integra também a origem da linguagem falada e da cultura.
Os textos do espetáculo, além da língua orghast especialmente criada para a encenação,
conforme falamos acima, integrava idiomas arcaicos como o avesta, língua de uso
exclusivamente ritual e cerimonial, o latim e o grego. Textos originais de tragédias gregas foram
trabalhados pelos atores, que os assimilaram através de sua sonoridade, trabalhando a
musicalidade e a essência ritual que está na origem desses idiomas, e que eles carregam consigo.
Innes afirma que essa abordagem do texto atinge o espectador pelo aspecto arcaico e
ritualizado, aliando-se ao impacto do espaço e tempo da encenação, em detrimento da leitura que
poderia ser feita dos personagens e acontecimentos. Como se trata de idiomas arcaicos e o
objetivo foi resgatá-los pelo seu aspecto sonoro, a comunicação não se através dos
significados da linguagem, e sim por outra via. Essa espécie de comunicação possível era
71
justamente o foco das pesquisas de Brook: o que é possível ser comunicado ao espectador sem
que haja a referência cultural de um idioma compreensível?
Segundo Oida, ator presente na maioria das encenações de Brook, inclusive em Orghast,
cada idioma traz consigo qualidades específicas, mesmo quando se trata de um mesmo texto dito
em dois idiomas diferentes. As sonoridades de determinado idioma vão sugerir alterações nas
sensações e emoções experimentadas pelo ator ao pronunciá-lo. O ator atento deverá aproveitar
aquilo que a musicalidade do idioma em questão lhe oferece.
Segundo Walter Otto
22
no seu texto O mito e a palavra (1987), o mito é a palavra
verdadeira, enquanto experiência original que se torna manifesta. Ele traz o transcendente, o
sagrado, na própria musicalidade das palavras. É como se o divino se revelasse através da voz das
musas. A língua carrega em si esse conteúdo sagrado, enquanto mito, na sua musicalidade.
Podemos identificar isto mais claramente em línguas antigas, culturas antigas que carregam
consigo essa origem mítica, e sua ligação com os rituais. Inúmeras experiências teatrais acabam
se aproximando dessa compreensão da palavra enquanto mito, e enquanto música, justamente na
busca da organicidade da palavra.
22
OTTO, 1987, p. 37.
72
PARTE II – EXEMPLOS DE TRABALHOS VOCAIS NA FORMAÇÃO DO ATOR CONTEMPORÂNEO
Desenvolveremos a seguir uma descrição e análise de duas abordagens contemporâneas
de trabalho vocal, no Brasil: o trabalho de Carlos Simioni, do grupo Lume, e suas Oficinas de
Ação Vocal, e a voz-terapia, desenvolvida por Sonya Prazeres. A descrição dos trabalhos será
feita a partir da experiência prática em oficinas e maratonas conduzidas por eles. No caso das
oficinas de Simioni, houve também a observação do trabalho e entrevistas gravadas, com o
intuito de complementar com informações sobre as pesquisas vocais que ele desenvolve e sua
aplicação em montagens de espetáculos. Contamos ainda com as publicações sobre o trabalho do
Lume. Já a análise do trabalho desenvolvido por Sonya conta com bibliografia sobre as origens
da voz-terapia e pesquisas teatrais que dela surgiram.
II. 1. CARLOS SIMIONI E A PESQUISA DA AÇÃO VOCAL
No âmbito da pesquisa sobre o trabalho do ator, no Brasil, podemos destacar o trabalho do
Lume
23
. vinte anos, o grupo desenvolve pesquisas práticas de construção de um treinamento
para o ator e de técnicas de representação, que tomam forma em diferentes linhas de trabalho,
como a Dança Pessoal, o Clown e a Mimese Corpórea, dos quais falaremos mais adiante.
Carlos Simioni
24
, ator fundador do Lume, juntamente com Luis Otávio Burnier
25
,
desenvolve atualmente, além de suas pesquisas como ator, a estruturação de um treinamento
vocal e de oficinas de Voz e Ação Vocal, que visam a transmitir os princípios básicos para a
construção de uma estrutura física para a voz.
O Lume alcançou um reconhecimento nacional e internacional pelo trabalho
desenvolvido. É um exemplo raro no Brasil de um grupo que possui o apoio da Universidade para
aprofundar suas pesquisas, com atores pesquisadores que se dedicam única e exclusivamente às
23
Lume Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, ligado à Universidade de Campinas, criado em 1985, por
Luís Otávio Burnier e Carlos Simioni.
24
Carlos Simioni (1959 -) iniciou os trabalhos do Lume como ator, sob a coordenação de Burnier, e, vinte anos,
mantém suas pesquisas junto ao Lume. Foi responsável por transmitir, junto com Ricardo Pucetti, os treinamentos já
criados na época, para os novos atores que se integravam ao trabalho, em 1993.
25
Luís Otávio Burnier (1957-1995) foi o idealizador e criador do Lume, trazendo sua experiência junto a Étienne
Decroux, Grotowski e Barba, para desenvolver um trabalho de pesquisa sobre a cnica do ator. Atuou como
coordenador do trabalho, ator e diretor, durante dez anos.
73
suas atividades. Esta estrutura possibilita que além de suas pesquisas e encenações eles também
transmitam os seus trabalhos através de inúmeras oficinas por todo o país e no estrangeiro, assim
como na própria sede do Lume, que se tornou um centro de intercâmbio de pesquisas teatrais.
Ao abordar o trabalho de Simioni sobre a ação vocal, entramos em contato com toda a sua
bagagem de experiências junto ao Lume. Assim, enfocaremos aqui, além da estrutura das oficinas
ministradas por ele, também as formas de abordagem da voz no trabalho de treinamento do Lume
e nos trabalhos desenvolvidos para as montagens, observando a relação criada com o texto e com
a palavra, através do repertório vocal do ator. Temos, então como exemplo o trabalho vocal e a
abordagem do texto desenvolvido para a montagem de Kelbelin, o Cão da Divindade (1988), de
Simioni, dirigido por Burnier, a partir de sua dança pessoal, e o trabalho com a mimese corpórea,
que inclui o de mimese vocal.
II.1.1. A voz nas pesquisas do Lume
O Lume tem na sua origem, através das experiências trazidas por Burnier, a influência de
Grotowski e depois da Antropologia Teatral de Barba. O ponto de partida foi o mergulho interno
defendido por Grotowski no intuito de trazer à tona os conteúdos internos adormecidos do ator e
despertar suas potencialidades criativas. Através de um trabalho físico intenso que visa a
exaustão, e assim ultrapassar os limites do ator, é procurado o desbloqueio necessário ao ator para
aflorar sua sensibilidade além do cotidiano. Desse primeiro foco, foi sendo criado um
treinamento energético que deve fazer parte do trabalho do ator.
Além desta pesquisa pessoal, foram aprendidas técnicas de representação, exercícios
técnicos, que visam a instrumentalizar o ator para dar forma aos conteúdos acessados. Através do
contato com a Antropologia Teatral, do estudo dos “princípios que retornam”, observados nas
inúmeras técnicas de representação cênica pelo mundo, estes foram sendo integrados e
absorvidos pela prática do grupo. Como os seus integrantes se propunham a constituir um
grupo de investigação, sempre que novas técnicas ou princípios eram incorporados ao trabalho,
eles eram revistos, muitas vezes adaptados, transformados, dentro do universo de pesquisas
elaboradas pelo grupo.
74
Simioni afirma que, pelo fato de eles terem partido do trabalho de busca pessoal e
orgânica, mesmo ao aprenderem determinada técnica sempre mantêm este foco na organicidade,
na busca de conexões internas do ator. Neste aspecto, ele identifica o trabalho mais com a
abordagem de Grotowski do que com a de Barba, que partiria da técnica para finalmente alcançar
a organicidade depois de ter assimilado a técnica:
Nosso trabalho é bem mais Grotowski, ele parte do caótico, do buscar de dentro de
você, a vida, o orgânico, e depois, dentro desse orgânico, encontrar a técnica. Já Eugenio Barba faz
o contrário, ele parte da técnica. Ele pega uma técnica, uma sequência de exercícios, uma sequência
de ações, os princípios do teatro Nô, como o “koshi”, e do Étienne Decroux, o “fora do equilíbrio”
ou “equilíbrio de luxo”, e faz com que o ator memorize tecnicamente, repetindo fortemente a
estrutura física até encontrar o orgânico, o corpo em-vida. (SIMIONI, anexo 1 deste trabalho,
p.129)
Estruturam-se assim dois treinamentos que se complementam: um treinamento energético,
sempre na busca de acessar e manter vivas as energias potenciais do ator, e um treinamento
técnico, incorporando exercícios e princípios para a construção de corporeidades cênicas. A
imagem de um pêndulo é usada para traduzir a busca de equilíbrio entre esses dois aspectos do
trabalho. Em cada um dos treinamentos o outro aspecto também está presente. O trabalho técnico
vai permitindo cada vez mais que os materiais orgânicos criados tomem forma, se enriqueçam e
se aperfeiçoem, assim como o trabalho constante de integração orgânica e de dilatação energética
permite que a técnica seja incorporada de uma forma também integrada, não distanciada, não
puramente formal, sempre buscando a integridade psicofísica do ator.
Nos dois livros que temos sobre o trabalho do Lume, de Burnier
26
e de Ferracini
27
, é
enfatizado que a “arte de ator”
28
é uma arte da presença, uma arte não interpretativa. O ator “re-
presenta”, através de suas ações, conteúdos internos que serão recebidos pelo espectador
conforme suas percepções e suas compreensões. Ator e diretor não interpretam determinada idéia
para o espectador. Esta visão da arte de ator como representativa, pautada no bios cênico,
coincide com a distância tomada em relação à literalidade do texto dramático. Não um autor a
26
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Unicamp, 2001.
27
FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas: Unicamp, 2001.
28
Burnier cita a definição de Decroux para “a arte de ator”: <uma arte que emana do ator, algo que lhe é ontológico,
próprio de sua pessoa-artista, do “ser-ator”>. (BURNIER, 2001, p. 18)
75
ser interpretado literalmente para o espectador. Para que o ator se expresse em sua plenitude não
deve se deter na tradução de determinada idéia anterior.
Todo o trabalho desenvolvido pelos atores será o material para as montagens, para se
chegar à representação. O treinamento energético permite ao ator estar vivo, com a energia
dilatada, em cena, e criar um repertório próprio de energias e corporeidades, chamadas de
matrizes pessoais, com as quais será feita a montagem. É criada uma técnica pessoal de
representação a partir desse repertório pessoal de matrizes. Não é uma técnica específica de
representação, como, por exemplo, a mímica, mas uma técnica pessoal, codificações corporais e
vocais individuais. Esta técnica pessoal também dialoga com outras técnicas, como, por exemplo,
a pesquisa da linguagem do Clown ou do Butoh, conforme o foco do trabalho.
Quanto à voz, nesse trabalho de construção de técnica de representação, esta é trabalhada
como uma extensão do corpo, como um órgão que pode agir sobre o exterior. A ação vocal é uma
ação física que prolonga o corpo do ator no espaço. Assim como acontece o trabalho de criação
de matrizes corporais, também com a voz será desenvolvida a pesquisa pessoal de vozes, dentro
da busca de energias pessoais e da experimentação da técnica dos ressonadores, desenvolvida por
Barba e Grotowski.
No treinamento energético, num primeiro momento, a voz não é usada. Simioni relata que
no início de seu trabalho com Burnier, quando era o único ator, não utilizou a voz durante um ano
e meio de trabalho. Sempre que vinha a vontade, o impulso, ele era contido, canalizado para
dentro. Só depois deste tempo é que lhe foi permitido deixar sair o som. O processo que os outros
integrantes tiveram foi diferente, foi transmitido por Simioni e Ricardo Pucetti, mesmo assim, foi
gradativo o uso da voz. Segundo Ferracini:
A voz deve ser usada com parcimônia e somente em momentos precisos e definidos pelo
coordenador do trabalho, pois o objetivo é “diminuir o tempo entre o impulso e ação física” e,
nesse caso, a voz pode, até de uma forma inconsciente, funcionar como válvula de escape para
essas energias potenciais que devem se transformar em corpo. (FERRACINI, 2001, p. 139)
Há então um período em que são acessados conteúdos internos do corpo do ator sem que a
voz participe, com o objetivo de canalizar as sensações ou os impulsos internos, direcionar a
energia, para que se manifeste no corpo. Aos poucos a voz participa desses laboratórios.
Segundo Burnier é necessário observar quando aparecem bloqueios que devem ser rompidos, e
76
nesse caso interferir, para que a voz também encontre um fluxo orgânico. Sua intensidade e sua
musicalidade são correspondentes aos movimentos das ações físicas. E, assim como nas ações
físicas um centro, do qual parte o impulso para a ação, na ação vocal haverá também um foco,
um centro vibratório, um lugar preciso onde se localiza o coração da voz.
As coisas já existem, que você precisa tomar consciência. Você precisa saber como
ativá-las. Você entende? Então a voz já é corpo, é gico. Mas é preciso ativá-la, é preciso ter
consciência, é preciso saber o mecanismo dela dentro do seu corpo. (SIMIONI, anexo 1 deste
trabalho, p.133)
II.1.1.1. As matrizes vocais e os ressonadores
Os ressonadores vêm das pesquisas de Grotowski e Barba, e no Lume são explorados
paralelamente ao trabalho energético de resgate de potenciais criativos. Assim, como enfatiza
Simioni, os trabalhos se complementam e o trabalho técnico é sempre recheado do orgânico.
Desta forma, os ressonadores, conforme serão definidos adiante, são explorados sempre dentro de
um corpo dilatado e trabalhando com impulsos internos que direcionam a vibração da voz para
cada um dos pontos do corpo. Desse modo, os atores constroem não só a estrutura física para
acionar os ressonadores, como descobrem as diferentes vozes associadas a eles.
O Lume desenvolveu esse trabalho técnico vocal, com a pesquisa dos ressonadores,
paralelamente à pesquisa pessoal dos potenciais criativos, com a qual trabalharam na construção
do que chamam de matrizes corporais e vocais. Estas matrizes são acessadas através dos
trabalhos intensos, de mergulhos em energias pessoais não cotidianas, e posterior codificação
destas energias traduzidas em corporeidades.
Segundo Simioni, estas matrizes corporais definem muitas vezes também uma voz, que
surge junto com determinado corpo, com determinado comportamento ou qualidade de
movimento. Estas vozes conseguem ser identificadas e resgatadas devido ao trabalho técnico com
os ressonadores. Elas são reconhecidas dentro do corpo, vibram em determinada região, e depois
são acessadas novamente. São matrizes vocais, energéticas, com uma corporeidade, e
possibilitam que as vozes sejam resgatadas, conscientizadas e retomadas dentro da técnica. Assim
os atores criaram um repertório pessoal de vozes.
77
Suas matrizes pessoais corporais são o que chamam de dança pessoal. Junto com as
matrizes vocais, ela define a técnica pessoal de cada um, seu material criativo. Corpo e voz
podem surgir juntos, ligados, numa única matriz, o que não impede que sejam trabalhados
independentemente. Parece não haver nenhum impedimento em fazer este processo de
dissociação. Por mais que elas tenham se originado de determinada energia comum, que cria
determinada corporeidade, depois desta corporeidade ser registrada nos músculos, tanto nos
movimentos, quanto na voz, elas podem ser resgatadas separadamente. Ou seja, não é preciso,
talvez apenas num primeiro momento, resgatar o corpo para acessar a voz. A voz pode tomar
forma sozinha e até ser inserida em outra matriz corporal.
Há, portanto, uma energia anterior, que é ativada pelo ator no resgate das matrizes, que
não define uma matriz ou outra, mas que pode preencher uma matriz corporal e simultaneamente
uma outra matriz vocal diferente. Assim são inúmeras as possibilidades, e mais ricas as
combinações possíveis, não excluindo a utilização de corpo e voz contrastantes.
Burnier adverte que pode ser necessário associar a ação vocal a uma ação física para
resgatá-la:
A voz é algo imaterial para o ator: ele não pode pegá-la. Isso o leva a uma sensação de
maior dificuldade no modelar a voz do que no modelar o corpo. No entanto, como voz é resultado
da expiração, que é propulsionada pelo corpo, por suas musculaturas, que se tensionam
diferentemente, de acordo com distintas posições do corpo, este deve ser a base para o trabalho
vocal do ator. (BURNIER, 2001, p. 133)
Por isso num momento inicial é interessante vincular a voz a determinada ação física.
Burnier sugere que para cada ressonador, para cada voz trabalhada, o ator crie uma determinada
ação física e assim componha uma partitura que o ajudará a resgatar todas as vozes. Esta partitura
pode depois ser trabalhada com qualidades diferentes, trabalhando então nuanças diferentes em
cada voz, suas matizes.
Segundo Simioni, depois das vozes realmente estarem incorporadas, é possível dissociá-
las da ação física que antes ajudava a acessá-las. Nas montagens a partir da dança pessoal, serão
então combinadas matrizes corporais e vocais de formas variadas, não se detendo nas
combinações originais.
Quanto à emoção que muitas vezes acompanha a voz no momento criativo, quando as
matrizes estão vindo à tona, elas são realmente vivenciadas e conscientizadas, e depois resgatadas
78
na sua corporeidade. São emoções muito fortes, surpreendentes e muito próximas da voz. A voz
vem muito ligada à emoção. O que acontece, segundo Simioni, é que o momento em que elas
surgem é único. A emoção é única, existe naquele momento, não se repetirá igualmente nunca
mais. Ela é acessada e sua corporeidade é registrada. Cria assim uma memória corporal e é
através desta memória corporal, desta corporeidade, que ela será resgatada, na voz e no corpo. Na
verdade, não é a emoção primeira, mas a memória da emoção traduzida na musculatura,
preenchida com energia. Deve assim ser capaz de despertar no espectador a sensação da emoção
ou talvez deixar ela passar, como que criado um canal através do qual a emoção será canalizada e
atingirá o espectador e não mais o ator.
A organicidade aqui se encontra então no fluxo energético do ator, que se faz
intensamente, e o mantém vivo e presente. Este fluxo é canalizado pela corporeidade, recriada
através da musculatura, acionada pelas ações físicas e vocais codificadas. Estas ações trazem
também a memória das emoções. Elas podem ser combinadas livremente, a emoção estará sendo
acionada, canalizada pela memória corporal, através da voz ou do corpo. Parece não haver a
necessidade de uma coerência entre corpo e voz, não são necessariamente convergentes, podem
ser contrastantes, ainda assim a ação será recebida como orgânica e a emoção canalizada, se o
fluxo energético se mantiver livre, fluindo.
Matrizes vocais são criadas também através da mimese e codificadas através dos
ressonadores. Aqui teremos também, a princípio, uma integração do corpo e da voz. É imitada a
corporeidade da pessoa observada e também sua voz. Junto com a imitação da voz, a pessoa
também é sempre percebida em termos de vibração. É possível observar onde a voz ressoa, que
carga emocional ela traz, se está ligada a determinada emoção ou se transita entre muitas.
Será também possível separar corpo e voz, mesmo que ao se imitar determinada pessoa se
busque a sua totalidade (corpo, voz e emoção), e que o ator normalmente escolha esta pessoa
porque de alguma forma ele se identificou de forma intensa, gerando uma abertura. A voz pode
ser depois utilizada em outro contexto, sobreposta a outra matriz corporal, utilizada para outro
tipo de montagem, não somente a partir da mimese. As vozes passam a fazer parte do repertório
do ator e, assim, enriquecem enormemente as suas possibilidades, pois o ator não se limita às
suas vozes, que, por mais variadas que sejam, acabam mantendo determinadas características
pessoais. A mimese, portanto, amplia as possibilidades do ator, corporais e vocais.
79
Os ressonadores, a exemplo do trabalho de Grotowski, são explorados utilizando-se
canções, o grammelot e também fragmentos de textos. O grammelot possibilita que o ator crie
suas línguas pessoais, formas de articular os sons que definem sonoridades específicas. Quando é
trabalhado o texto, parece não fazer realmente nenhuma diferença quanto a que tipo de texto se
utiliza nesses exercícios, bastando que o texto esteja completamente memorizado pelo ator, que
não deve preocupar-se com os sentidos:
O texto era tomado como um conjunto de sons e de sonoridades vocais que deveriam ser
ditos com aquela voz precisa. Utilizamos por muito tempo o texto do Pai nosso. As sonoridades
dessa oração são extremamente interessantes, pois trabalham com sons abertos depois de
consoantes explosivas com uma tal dinâmica musical que facilita a projeção da voz. O importante,
no entanto, é que o texto seja sabido de memória, que o ator não tenha de pensá-lo, mas
simplesmente dizê-lo, pois neste trabalho não importa o que será dito, mas como. Importa testar se
uma determinada voz funciona ou não com palavras e que nuanças elas trazem para essa voz.
(BURNIER, 2001, p.103)
É interessante observar, se nos aproximamos da visão desenvolvida na primeira parte
deste trabalho sobre a palavra enquanto mito, que aqui não se está considerando que os sons e as
sonoridades possam carregar em si os sentidos. São totalmente separados o que e o como. Parece
que o sentido semântico pode ser completamente esquecido. Ao lembrarmos das pesquisas de
Brook, com as línguas arcaicas, com a procura do sentido que os sons carregam em sua origem,
fica impossível separar o som do sentido. A visão que Oida propõe também, de sentir a
repercussão do som nas sensações corporais e mesmo o trabalho com os cantos de tradição,
desenvolvido por Grotowski, parece que lidam com outra abordagem da fala.
É citado o trabalho com o som do Pai nosso, e observado o efeito que sua sonoridade
permite trabalhar. Apesar de ser uma oração e, portanto, poder carregar o sentido simbólico e
sagrado da palavra, como é o caso dos mantras, aqui o sentido parece que precisa ser esquecido.
Ferracini também reforça este procedimento:
O trabalho inicia-se com a escolha de um texto qualquer que permita ao ator,
simplesmente, repeti-lo mecanicamente, sem pensar nele. Portanto, deve ser um texto muito bem
decorado e fluido, para que o ator não precise fazer qualquer esforço mental para dizê-lo. A partir
do texto, sem interpretá-lo e esquecendo todo seu caráter semântico, o ator tenta descobrir, um a
um, todos os vibradores. (FERRACINI, 2001, p. 184)
80
II.1.1.2. A montagem e a não-interpretação
O treinamento energético do ator, no qual este acessa as energias e as corporeidades,
permeadas e também resgatadas pelos recursos técnicos desenvolvidos e assimilados, define para
cada ator o seu treinamento pessoal. A partir deste treinamento é criada então a dança pessoal. A
dança pessoal será a exploração destas diferentes corporeidades, mas agora também mais
lentamente, mergulhando ainda mais neste contato interno, de modo diverso do treinamento
energético no qual muitas vezes se acessam as matrizes num estado alterado, perto da exaustão,
num ritmo intenso. Agora são experimentadas variações e associações pessoais, aprofundando-se
o trabalho, aperfeiçoando-se as corporeidades, que vão gerar as ações, as fisicidades
29
:
A dança pessoal, tal como vem sendo delineada, é um trabalho que busca as mesmas
qualidades de energia e de vibrações encontradas no energético, os mesmos códigos aprimorados
no treinamento pessoal, mas com dinâmica completamente diversa. O energético trabalha em ritmo
acelerado visando ultrapassar o esgotamento físico, uma relação ação-reação imediata, quase por
reflexo instintivo; o treinamento pessoal trabalha as ações recorrentes, codificando-as e
aprimorando-as. Já a dança pessoal trabalha com essas ações recorrentes segundo diversas
qualidades de energia, usando de diferentes dinâmicas muitas vezes lentas e vagarosas, em que o
tópico é ouvir-se, buscar e explorar formas de articular, por meio do corpo, as energias potenciais
que estão sendo dinamizadas, de ser fazendo e no fazer, de dar forma à vida. (BURNIER, 2001,
p.140)
Esta dança pessoal foi o ponto de partida para a montagem de um espetáculo, para passar
da técnica à representação. Na experiência de Simioni, iniciou-se esse processo em direção à
montagem, depois de três anos de trabalho. Burnier descreve o processo de criação do espetáculo
Kelbelin, o cão da divindade
30
, em seu livro A arte de ator (2001). Retomo aqui alguns elementos
do processo, para situar então a abordagem do texto, da palavra, neste trabalho vocal que integra
a montagem a partir da dança pessoal.
O processo iniciou com um simples exercício que foi levado a público. Burnier definia
uma seqüência de matrizes, ia ditando e Simioni executava. Chamaram esse exercício de
29
Burnier distingue a corporeidade de uma matriz, que é o registro de uma energia potencial na musculatura do ator,
da fisicidade, que “é o aspecto puramente físico e mecânico da ação física” (BURNIER, 2001, p.55)
30
Kelbelin, o cão da divindade foi criado em 1988, por Carlos Simioni, Luís Otávio Burnier e Denise Garcia, e é
apresentado até hoje.
81
Precipitado de sonhos. As matrizes eram executadas com toda a intensidade original e ainda não
tinham propriamente uma fisicidade completamente definida
Estes precipitados incluíam diferentes vozes associadas a matrizes corporais, originais
ou não. No entanto, ainda sem a utilização de texto, apenas com sons ou com o grammelot. Ao
serem apresentados ao público foram aparecendo as diferentes leituras que inevitavelmente o
espectador vai fazendo. Foram surgindo, então, muitas questões relativas à construção de uma
montagem que permitisse pelo menos a leitura em determinada direção, situando um tema ou
algum contexto definido.
Neste processo, aconteceram quatro versões diferentes apresentadas a público. A partir da
definição da partitura de ações físicas do ator, da sua seqüência de ações, agora mais precisa,
foram procurados uma personagem e um contexto, que pudessem acrescentar, dialogar com o
trabalho de Simioni. Foram as características de seu trabalho, que transitava entre ações
grotescas, intensas, e momentos de muita suavidade e elevação, que sugeriram este conflito entre
o carnal e o espiritual, o que foi encontrado na figura e trajetória de Santo Agostinho. Foram
então acrescentados elementos que trariam este contexto, da conversão de Santo Agostinho ao
catolicismo, sua luta interna, do espiritual tentando sobrepor-se aos prazeres mundanos.
A música teve papel importante, trazendo um canto específico da época, e acabou
definindo também o espaço cênico. Foi procurado um espaço que trouxesse a sensação para o
público de estar testemunhando e participando de um ato proibido de fé. Neste espaço, a música
vinha, em diferentes momentos, de diferentes espaços ao redor da cena, por onde o grupo de
cantores transitava sem ser visto.
Foi surgindo também a necessidade de trabalhar as transições, as ligações entre as ações,
para trazer um relaxamento entre elas, que eram todas executadas com alto grau de tensão e
intensidade.
Houve então uma versão já com estes elementos, que, no entanto, ainda não incluía textos.
Era usado somente o grammelot, dentro da partitura de ações físicas, que se mantinha a mesma.
Primeiro foram introduzidos textos em latim e, mais adiante, foram finalmente escolhidos textos
em português, de Hilda Hilst, buscando a comunicação agora também pela linguagem verbal
propriamente dita. Foi reconhecida a importância da palavra na relação que o público consegue
criar com a montagem, mas sempre surgindo em função de identificações com o trabalho do ator.
82
O texto é, então, memorizado e explorado em sua musicalidade, experimentando também
ritmos diferentes. existem as vozes e ações vocais em grammelot, sendo agora sobreposto o
texto. Trechos do texto substituem o grammelot, nas vozes e nas ações já codificadas, fazendo
apenas as adequações necessárias, mas mantendo a seqüência já existente.
Nesta última etapa, as ações estavam mais firmemente incorporadas e cada vez se
refinava o trabalho. Na procura das ligações necessárias entre as ações, com variações de tensão,
e na inserção do texto houve então um trabalho com Denise Garcia, diretora musical do trabalho,
que propôs elementos musicais para definir o ritmo da seqüência. Foi trabalhado o dinamoritmo
31
da partitura de ações de Simioni, criando-se assim um “canto das ações”, segundo Burnier
32
.
Assim, o caráter musical encontra-se não só no trabalho das ações vocais, mas em todas as ações
do ator. Abordagem que também enfatiza todo o aspecto ritual da montagem, que já se constitui
do desnudamento do ator, é contextualizada pelo momento de conversão de Santo Agostinho,
uma ação ritual, e ainda propõe uma relação de testemunho e envolvimento com os espectadores,
através do espaço e da música.
Simioni apresenta o espetáculo Kelbelin dezoito anos, e comenta que a técnica se
tornou tão incorporada que não esforço, ele simplesmente se deixa levar. Por outro lado, é
uma técnica antiga, de outra fase sua, o que exige que ele novamente se aproxime dela, mesmo
que suas pesquisas atuais andem noutra direção e novas técnicas estejam sendo criadas.
Quanto ao texto, este amadurecimento do trabalho parece ir liberando outro tipo de
diálogo com o próprio texto, sem que isto altere em nada o trabalho técnico e orgânico
desenvolvido:
Claro que depois, todo esse trabalho vai se juntando, se condensando, se transformando
naquilo que você está dizendo, de uma forma tão natural, tão orgânica, que você até o absorve
como texto e você pode até interpretar. Mas eu acredito que eu não teria condições de criar uma
maneira de dizer este texto de uma forma tão criativa, ou tão diferente, se eu não fizesse esse
processo invertidamente, começando pela interpretação do texto falado. (SIMIONI, anexo 1 deste
trabalho, p. 135)
É como se esta abordagem não interpretativa da montagem, e a abertura aos significados
que vão sendo criados, enriquecesse o trabalho, ao integrar o corpo, a voz, as palavras, sem
31
Dinamoritmo é um termo criado por Decroux para designar, segundo Burnier, “a interação da força, quantidade,
duração e intensidade”, ou simplesmente “é a musicalidade ou a densidade musical do movimento”. (BURNIER,
2001, p. 46)
32
BURNIER, 2001, p. 240.
83
sublinhar significados entre si. No momento em que o ator vai absorvendo isto, depois de
simplesmente aceitar, e até surpreender-se, ele está cada vez mais consciente. Mas trata-se
daquela consciência, awareness, o estado desperto.
II.1.2. As oficinas de ação vocal
A partir do aprofundamento do treinamento vocal, do trabalho com os ressonadores aliado
ao treinamento energético, Simioni estruturou as suas oficinas de ação vocal, na qual trabalha a
construção da estrutura física para a voz. É um momento rápido de contato com esta técnica
desenvolvida, que será aprofundada se houver continuidade. Deverá também servir para que cada
ator ou grupo, que tiver contato com ela, desenvolva-se conforme seus objetivos, adequando-a ao
seu trabalho, às suas buscas.
Nas oficinas de ação vocal, Simioni trabalha a construção do que chama de estrutura física
para a voz. Após anos de treinamento físico e vocal, foi estruturada, a partir de uma
sistematização do trabalho, uma forma de oficina que permita, mesmo com um contato rápido,
em média uma semana de trabalho, passar a base do trabalho vocal desenvolvido no Lume.
Nas oficinas é passada a base do trabalho com os ressonadores, é um trabalho técnico,
orgânico, integrado, enraizado totalmente no corpo. Não se caracteriza, no entanto, por um
trabalho criativo, não o tempo suficiente para o ator entrar em contato com potenciais
adormecidos. Eles podem até estar sendo mexidos, acessados, mas se deixa passar, não se busca o
contato, a definição dessas diferentes energias. A voz muitas vezes vem com determinada
emoção, que é percebida, aceita, e deixa-se passar.
Mesmo que o trabalho seja técnico, e não chegue a ser desenvolvido nenhum processo
criativo, é procurado o acesso a um estado energético alterado e dilatado, como base de trabalho.
No Lume, o trabalho físico é totalmente enraizado com a pessoa, com a afetividade do
ator; portanto, a voz também sai com esta característica, voz-corpo-pessoa, voz-corpo-emoção,
voz-corpo com os sentimentos, voz-corpo com a sua história. (SIMIONI, anexo 1 deste trabalho, p.
133)
84
O trabalho desenvolvido na oficina é um momento de transmitir e de assimilar uma
técnica, mas que está enraizada no corpo, portanto inclui uma técnica de acionar esse corpo
energético do ator e alcançar um estado dilatado e integrado. No entanto, este trabalho é
distinguido de um processo de despertar de potenciais criativos do ator, nos quais energias,
emoções e corporeidades são descobertas. É solicitado aos atores participantes que estejam
totalmente engajados e o trabalho físico intenso leva a isto. No entanto, as emoções e os estados
que vão sendo despertados são apenas percebidos e canalizados, avançando no trabalho técnico
proposto.
A oficina tem a duração de uns quatro ou cinco dias, quatro horas diárias de trabalho.
Cada dia vai se avançando mais no trabalho e retomando de maneira mais rápida os estágios
anteriores. Isto vai preparando o resgate do trabalho através da memória corporal, vislumbrando
uma forma de dar continuidade mesmo com menor tempo de trabalho. Simioni destaca que as
estruturas das oficinas possibilitam que se assimile um trabalho que levou muito tempo para
tomar forma, em um tempo bem menor.
II.1.2.1. A estrutura física para a voz
Podemos dizer que a estrutura física para a voz é construída a partir do acionar e
conscientizar diferentes corpos: (1) o corpo energético que é despertado, é a energia criada no
corpo todo através do movimento; (2) o corpo vibratório, de impulsos internos, que tomam
trajeto no corpo e podem realmente ser registrados na musculatura interna; (3) o fantasma, que é
um corpo dilatado, além do corpo físico, que amplia o corpo energético do ator no espaço,
trabalhado também através dos impulsos, agora sendo lançados no espaço, além do corpo; (4) o
santo, no qual estes impulsos são canalizados para diferentes partes do corpo, que se mantém
irradiando estes impulsos através de determinados focos, que corresponderão aos ressonadores,
nos quais a voz irá vibrar e ser projetada.
A voz entra gradativamente neste trabalho, partindo apenas de sua vibração, a vibração da
voz, sem emitir som, com a boca fechada. Esta vibração deve ser sobreposta ao corpo energético,
vibrar no corpo, ser percebido no corpo, junto com a energia que está circulando. Passa-se então à
voz-vibração, já com a emissão de som, mas mantendo-se uma proximidade ao corpo, sem pensar
em projetar. A voz-vibração deve se sobrepor ao corpo vibratório e ao fantasma, alimentado
85
pelos impulsos internos, que partem do centro para o exterior do corpo, em diferentes direções.
Sentir sempre a vibração da voz no corpo, e ultrapassar os seus limites, em camadas. No santo,
será a voz propriamente dita, que agora será canalizada através destes impulsos internos,
conscientizados na musculatura, aos diferentes focos do corpo, os ressonadores.
Detalhando um pouco mais o trabalho, podemos listar alguns princípios que são
enfatizados para o seu desenvolvimento. Após alguns minutos de aquecimento individual, nos
quais cada um se alonga ou faz aquilo que acha que seu corpo está necessitando, inicia-se o
trabalho de construção de energia. No chão, a partir de um espreguiçar-se, a musculatura é
gradativamente chamada à ação. Espreguiçar todo corpo, toda musculatura com o objetivo de
gerar energia, de despertar o corpo, colocando-o em movimento. Em etapas, vai-se chegando a
posição de e acelerando cada vez mais os movimentos, até se chegar ao máximo de
velocidade. Em determinados momentos se pára o movimento e sustenta-se a energia criada.
Nessas pausas, deve-se acalmar a respiração, observar a energia que começa a circular e
achar uma posição de equilíbrio precário, ou desequilíbrio, para que esta energia se mantenha. O
movimento é então reiniciado, em vários ciclos até o máximo de intensidade. É pelo quadril que
o movimento deve começar, engajando então toda a coluna vertebral. Braços sustentados para
não perder o tônus e a energia pelas extremidades. Todo corpo sempre participando e buscando a
tridimensionalidade dos movimentos e das posições no espaço. A base deve ser larga e o centro
do corpo um pouco baixo para dar estabilidade. Deslocar-se pelo espaço também podendo usar
saltos e trabalhando a leveza e mudanças de níveis.
É estimulada a entrega total do ator, deixando-se claro que ele é o responsável pela sua
evolução, por ir sempre um pouco além do que ele julga possível e ultrapassar os seus limites.
Este processo de construção de energia vai sendo registrado no corpo e em outros momentos é
acessado mais rapidamente fazendo uso da memória corporal. Aqui o objetivo é alcançar um
estado com a energia fluindo pelo corpo todo e tornar-se consciente desse corpo energético,
partindo a movimentar-se com ele, sem perdê-lo.
O momento de movimento máximo do corpo é retomado e, no entanto, retido, mantendo o
movimento internamente. É assim que se começa a trabalhar o corpo vibratório, que serão
esses impulsos que podem ser retidos no centro, ou podem ser canalizados em determinada
direção, repercutindo em um movimento, ou podem ainda tomar conta do corpo todo. Estes
impulsos podem também ser mandados em diferentes direções sem, no entanto, haver movimento
86
perceptível, somente internamente. Assim, eles abrem canais, são registrados na musculatura
interna, repercutem em determinada parte, somente como impulso, como energia, não como
movimento. São os canais pelos quais a voz também será canalizada. Nesse nível a voz é
trabalhada apenas na vibração, sentindo a vibração interna com um som “hmmmm”, sem deixar
sair mais som, sem abrir a boca, direcionando esta vibração para diferentes partes através dos
impulsos.
Num terceiro momento, este corpo vibratório é ampliado, agora com o objetivo de alarga-
lo, ir além dos limites do corpo físico. São trabalhados então movimentos de abertura e
fechamento do corpo, como que explosões que lançam estes impulsos no espaço. Lançamentos
sempre a partir de um movimento contrário, preparatório, e depois direcionados para diferentes
direções e através de diferentes partes do corpo. Depois estes lançamentos são também retidos e
trabalhados internamente. Lançamentos de energia, nestes canais internos, memória corporal que
foi sendo construída. Com este trabalho o corpo energético é ampliado, percebe-se uma camada
externa de energia, que é chamada aqui de fantasma. Deve-se, então, experimentar mover-se com
o fantasma, sendo conduzido por ele, alimentando-o com os impulsos internos, sempre que julgar
necessário. Deixar este corpo energético ampliado conduzir, e em outro momento fazer ações e
tentar não perder o fantasma.
No fantasma se trabalhará com a voz-vibração, emitindo sons, sempre iniciando apenas
com a vibração. Através dos impulsos, também direcionar a voz para diferentes focos, agora
permitindo que ele se expanda em camadas a partir do centro do corpo, preenchendo o fantasma.
Tentar sentir a voz-vibração pelo corpo todo, também se movimentando, sem perder. Aqui se
exploram um pouco os ressonadores, sem, no entanto, projetar a voz.
Sempre que se passa ao trabalho com a voz também alguns princípios que são
repassados. Primeiro começa-se com a postura do bebê, sentindo a vibração na cabeça. Vai-se
subindo aos poucos a coluna e depois com uma perna à frente, sobe-se da posição de joelho,
lentamente, para sentir acionado o abdômen. Depois se retoma a partir daqui, de pé, vibrando,
sentindo na cabeça e acionando o tônus no abdômen. Para isso é também trabalhado o
desequilíbrio, a sensação de jogar-se em desequilíbrio e recuperar, acionando cada vez
novamente o abdômen. A respiração é abdominal, expandindo o abdômen, mas sentindo e
mantendo o tônus também. Sons em stacatto, com pequenos impulsos, a partir do centro do
abdômen, são também emitidos, para sentir bem essa ligação do centro com os impulsos e com a
87
voz. Ao emitir um som constante também se procura a economia de ar, para que saia mais som
que ar, assim o som emitido vibra mais e não se perde junto com o ar.
O último trabalho dentro ainda da construção da estrutura física para a voz, é o trabalho
com os potes. São imaginados potes, no quadril, na cintura, no peito e na cabeça. Estes potes
estão cheios e os impulsos podem ser direcionados para eles em diferentes direções, como que os
virando, despejando a energia em determinada direção. Primeiro para frente, para trás, direita e
esquerda, depois aos poucos em todas direções ao mesmo tempo, fazendo o pote transbordar. A
idéia é fazer o corpo fantasma ampliar-se ainda mais, construindo o chamado corpo do santo. O
santo é apenas uma imagem para descrever aquilo que está sendo construído. O santo inclui a
coroa, que seriam os impulsos saindo pela cabeça, o farol, os braços do cristo e as asas, que
seriam os impulsos do pote do peito, saindo pela frente, pelos lados e por trás. Temos ainda a
cintura e o quadril que formariam a saia, do santo, energia que se expande e desce até os pés.
O santo seria então o corpo energético ampliado e projetando energia, impulsos, nestas
partes específicas. Esses impulsos são num primeiro momento bem grandes e visíveis e depois
vão sendo contidos e passam a ser lançados interiormente. Aqui os ressonadores serão então
experimentados, com a voz propriamente dita, projetada para cada um deles. Os ressonadores são
os mesmo trabalhados por Grotowski, mas sempre será possível descobrir outros através da
pesquisa pessoal.
A memória corporal que está sendo criada é constantemente solicitada para alimentar este
corpo energético, que deve manter-se desperto. Em alguns momentos, quando é trabalhada a voz,
pode-se perdê-lo um pouco e deve-se então refazer algum percurso e ativá-lo novamente.
Passando sempre pela vibração, tônus no abdômen, e impulsos direcionando a voz. Quando são
experimentados os ressonadores com voz, usa-se também a imagem de uma pedra no lago, para
descrever o impulso que parte do centro do corpo e que repercute em determinado pote, em
determinado ressonador, se propagando em ondas, não em uma direção, mas para aquela
região.
Com a voz são experimentadas canções em grupo, desde o segundo dia, mesmo ainda
sem se chegar no fantasma ou no santo. São memorizadas e cantadas em grupo, em roda, num
primeiro momento sem buscar projetar, sentindo só vibrarem no corpo, são cantadas também sem
emissão de som, vibração, só “hmhmhm”. À medida que o trabalho avança, a voz vai
88
ganhando mais e mais corpo, no fantasma se propaga mais, sempre com o foco de manter a
vibração no corpo, manter o corpo vibratório alimentando o fantasma.
Com o santo, antes de cantar, são então experimentadas as diferentes vozes,
impulsionando o som para os diferentes ressonadores: na cabeça, no rosto (nariz ou boca), no
peito, no abdômen (ou estômago), e nas costas (nuca, entre as escápulas e região lombar). Cada
um deles vai solicitar uma determinada altura do som, mais agudo ou mais grave, que deve ser
explorada em cada um deles, achando sua especificidade.
O som aqui é explorado usando-se o grammelot, ou língua inventada, apenas de
articulação livre de sons, e num segundo momento com algum texto que se tenha de memória.
Pela duração das oficinas geralmente este trabalho com o texto não chega a ser muito
desenvolvido, é uma amostra do que é possível descobrir com a voz nos ressonadores, mas deve
ser aprofundado. O canto coletivo com o santo é o momento máximo, clímax da oficina, quando
todos cantam em roda, com toda a voz, preenchendo o corpo todo, o santo total, o ressonador
total. É realmente surpreendente o grau de vibração que é alcançado. O grau de integração,
afinação e emoção, que acompanham a vibração da voz. Tanto para quem participa como para
quem observa é uma energia muito intensa alcançada, no corpo, na voz e no grupo como um
todo.
II.1.3. O aspecto transcendente no trabalho do ator
O trabalho desenvolvido pelo Lume tem um caráter científico, de pesquisa sobre a técnica
do ator, sobre a “arte de ator”. Busca a sistematização de técnicas que possam delimitar o
material e os procedimentos com os quais o ator precisa aprender a lidar para criar a sua arte. É,
portanto, um trabalho que busca a técnica, que inclui o mergulho interno nas energias do ator, e
que também exige uma dedicação integral e constante dos atores-pesquisadores. A influência de
Grotowski e de Barba, assim como as circunstâncias nas quais eles conseguem desenvolver o seu
trabalho, que possibilitam um aprofundamento, vai aproximando o trabalho de aspectos rituais, e
de conexão com o transcendente, sem que haja, no entanto, nenhum aspecto ou crença em uma
realidade maior, pelo menos não como ponto de partida, ou de referência, como na visão de
Artaud.
89
Da busca das energias adormecidas e desse resgate sempre orgânico das corporeidades
descobertas, acaba por surgir o que Grotowski chama de verticalidade. O contato com seu
universo interior, um desvendar profundo de suas possibilidades energéticas, conduz o ator a um
estado dilatado de energia, também em termos de consciência ampliada, no qual ele alcança uma
conexão com algo maior que ele. Simioni descreve:
Eu parava de avançar, por exemplo, me centrava, me segurava dentro daquele estado, e
percebia que estava bem mais além daquilo que eu era. Eu estava conectado... Com a sala...
Puramente conectado. Bem ligado com a energia da sala. Mais ainda, como se eu fosse, como se eu
fizesse parte do passarinho que estava cantando fora, você entende? Ao mesmo tempo uma
conexão com o todo. Com o todo... eu pensei: mas então é impossível. É impossível. Não tem
jeito. O trabalho do ator leva a isto. Porque eu não busquei isto. Mas eu estou chegando a isto...
(SIMIONI, anexo 1 deste trabalho, p.131)
Assim como Grotowski mergulha cada vez mais nessa verticalidade, neste encontro do
ator consigo mesmo, num ritual individual, de integração, o trabalho do Lume também parece ir
nessa direção. Não no sentido de abdicar do público, mas de, num primeiro momento, estar mais
ocupado em codificar técnicas, assim como o trabalho da Antropologia Teatral, e aos poucos,
através desta técnica, encontrar um aspecto transcendente.
A dedicação e respeito pelo trabalho também criam uma atitude ritualística. O respeito
total ao ambiente de trabalho, aos horários, de não deixar nenhuma outra energia interferir nos
processos criativos. Conseguir deixar de lado todo e qualquer conteúdo cotidiano no momento do
trabalho cria um espaço e tempo alterado, diferenciado, e sagrado. É nesse espaço e nesse tempo
que eles procuram se aprofundar no seu trabalho, e criam, superam limites, se transformam, em
uma atitude ritual.
Burnier comenta que o teatro é uma vivência a ser compartilhada, afinando-se com a visão
de Grotowski. É um encontro que visa tocar o espectador, transformar, contagiar. Portanto, as
montagens carregam também esta procura ritual no contato com o espectador:
E com certeza, o espectador sente. Às vezes, algum sente até dormindo, outros sentindo
algo forte no estômago, ou no peito. Outros recebem pela pele, arrepios. Outros nem percebem,
mas se transformam. (SIMIONI, anexo 1 deste trabalho, p. 132)
90
É curioso observar a nomenclatura utilizada nas oficinas de ação vocal. A associação a
imagens como fantasma, como santo, dadas aos corpos alcançados e dinamizados, não pretende,
no entanto, nenhum sentido de transcendência. Assim também os potes, perfeitos cálices, e os
ressonadores, identificáveis com os chacras, porque se constituem nestes pontos de concentração
de energia. Essas associações são, no entanto, evitadas. Simioni ressalta que estas imagens não
são estímulos anteriores, são nomes dados a estruturas, construídas e percebidas, no corpo do
ator. Estas imagens, no entanto, carregam uma simbologia. Os impulsos que se projetam nas
diferentes partes do corpo, definindo os ressonadores, são ainda nomeados: na cabeça, a coroa;
no peito, temos o farol, os braços de cristo e as asas; no quadril, a saia ou fonte, cachoeira. Estas
imagens, mesmo sem esta intenção, reforçam a ligação com o invisível, com esta energia sutil,
que nos liga ao transcendente, pois são imagens simbólicas.
O santo é um corpo que projeta energia em todos os ressonadores, mesmo antes de
colocar a voz, ele está totalmente aberto e emitindo pura energia. E o estado do ator, concentrado
nesta emissão, é de total integração consigo próprio, com o espaço e com os outros. A voz,
sobreposta a este corpo do santo, participa da relação criada com o público, ela é também uma
forma de energia que estará sendo emitida pelo ator. Segundo Simioni, a voz é uma poderosa
forma de chegar no espectador:
Para mim, a voz é a mais poderosa de todas as energias do ator, ela pode realmente
perfurar o espectador completamente. Eu te dou um exemplo A Iben faz uma demonstração técnica
- chamada Branca como Jasmim, que é o percurso dela, com a voz, durante estes anos todos de
Odin Teatret. E ela vai falando, mostrando as vozes de seus personagens, suas qualidades. E de
repente você, como espectador, sente que a voz dela entrou em você e, como uma bruxa, ela
começa a te limpar. E você começa a chorar. Uns começam a chorar, outros se sentem aliviados.
Cada um tem a sua experiência, depende do seu momento, mas é a voz que tem mais chance de
entrar no espectador, chance de entrar no espectador e de limpá-lo. (SIMIONI, anexo 1 deste
trabalho, p. 134)
Não podemos deixar de lembrar Artaud quando Simioni fala em atingir o espectador
assim de forma tão direta e concreta, que ele saia transformado. A voz com sua vibração, junto da
vibração total do ator, chega ao espectador, a sua sensibilidade, e algo acontece. Nas oficinas,
este acontecimento é experimentado pelos alunos, a surpresa com a vibração da voz, com a
qualidade da vibração no corpo, provoca emoções, ou estas são realmente limpas, acionadas e
91
canalizadas através desta vibração intensa da voz no corpo. O canto em grupo é também um
momento muito intenso, a vibração que se sintoniza com a dos outros, as vozes que criam um
corpo vibracional no grupo todo.
Nas demonstrações técnicas, mesmo não sendo centradas na voz, Simioni chega a este
estado dilatado e integrado que atinge o espectador. Este se tornou o seu mais recente foco de
pesquisa, do qual surgiu o espetáculo Sopro (2005). É uma energia cada vez mais sutil que é
alcançada. Como todo foco de pesquisa, este trabalho é aprofundado até ser sistematizado através
de uma técnica que permite resga-lo.
Em 2004, Simioni formou um grupo de atores em Porto Alegre, no momento em que
estava estruturando esta técnica, de conseguir chegar sempre novamente a este estado. Simioni
relata que o ator realmente tem uma técnica estruturada no momento em que consegue passá-la
aos outros. Isso foi alcançado nestes encontros. O processo de dilatação energética, trabalhado
nas oficinas de ação vocal, foi ultrapassado, criando o que ele chamou primeiramente de a técnica
da árvore, e depois a técnica do sopro, pois assim ficou associada ao espetáculo criado a partir
dela.
Nos encontros em que ele sistematizava a técnica foi alcançado um estado em que o corpo
é percebido como não tendo fronteiras. Eram assim os depoimentos: “tudo é fluído”, “não
divisões internas”, “o corpo todo é energia”, “sou espírito”, etc... Neste estado, a interação
entre dois atores é um encontro muito revelador, como que um encontro de essências. O simples
contemplar de uma árvore é sintonizar-se com sua energia, respondendo internamente aos seus
movimentos. É um estado de integração com o todo, de receptividade total, expansão no tempo e
no espaço. Podemos identificá-lo com a verticalidade almejada por Grotowski. Momento de
contato também com tua memória mais remota. Passado e futuro reunidos no presente, com “se
nesse momento fosse construída toda uma vida”.
33
Podemos identificar elementos do Butoh, com o qual o Lume tem feito experiências de
intercâmbio, com diretores e bailarinos. Arte que também propõe ao ator, ou bailarino, a ser este
receptáculo vazio que irá receber determinadas energias, trabalhando também com o desfazer os
limites entre a vida e a morte.
33
É uma das descrições, usadas por Simioni, para a sinopse do espetáculo Sopro (2005): “O que seria do ser? Se
nesse momento fosse construída toda uma vida, todas as ações de uma vida, sem ruídos e sem interferências, sem
mácula, somente através do estado puro da existência?”
92
Quanto ao uso da voz, Simioni constatou durante seu processo de pesquisas, e junto com
o grupo, que a voz não cabe nesse estado, ela é densa demais. Passa-se pelo santo, no qual é
retomado o canto, vibrando no corpo todo. Segue-se refinando mais e mais a energia até chegar
no estado da árvore, ou do sopro, e a voz não tem espaço, ela quebraria algo que é mais sutil.
No espetáculo Sopro, Simioni não usa texto algum. um som, um som muito agudo, que é
emitido logo no início, e as pessoas dizem que aquele som parece já colocá-las no prumo, como
que as preparando para receber, centrando-as.
A constatação dessa direção que o trabalho do ator toma, de refinar cada vez mais a
energia, conectando-se com isto que parece ser algo maior, transcendente, além desta dimensão,
segundo Simioni, enfatiza que o teatro é uma forma de pensar e de criar o ser humano. Para ele, o
ser humano “não está acabado, não pode ser só isto”:
Acredito que, mesmo sem encarar como algo ritual, o teatro é ritual e é sagrado. Nós
temos esta oportunidade de vasculhar, de desenvolver as qualidades do ser humano, suas novas
potencialidades. Isso também é função do ator. Não descobrir novas cnicas, para o teatro, mas
entender que o ser humano não é final. o está pronto. Está evoluindo. (SIMIONI, anexo 1 deste
trabalho, p. 132)
93
II. 2. SONYA PRAZERES, A VOZ-TERAPIA E O TRABALHO DO ATOR
Abordaremos aqui o trabalho desenvolvido por Sonya Prazeres
34
, com a voz-terapia,
considerando que sua abordagem da voz possui princípios e procedimentos próximos e úteis ao
trabalho do ator, mesmo se tratando de um trabalho terapêutico. É também um trabalho único,
aqui no Brasil, a desenvolver este enfoque, de liberar a criatividade e auto-expressão através do
desbloqueio da voz, ampliando suas possibilidades expressivas, também através de experiências
sonoras variadas. Tem sido procurada por atores e cantores como uma oportunidade rara de
experimentação livre da voz.
A School for Voice and Movement Therapy
35
, de Londres, na qual Prazeres fez sua
formação, amplia a abordagem de Wolfsohn
36
da voz-terapia, alia outras terapias corporais em
desenvolvimento e integra a abordagem de outras manifestações artísticas nos processos de cura.
A voz, o canto, o movimento, a dança e as dramatizações são parte integrante dos processos
terapêuticos desenvolvidos, em busca do desenvolvimento das potencialidades criativas do ser
humano.
A voz-terapia visa a ampliar a capacidade expressiva dos indivíduos através da voz.
Trabalha a partir da identificação de sons que, pela visão tradicional do canto no Ocidente, são
considerados impuros, mas que revelam emoções que precisam ser liberadas. Parte do
pressuposto de que todo ser humano nasce com uma possibilidade enorme de expressão através
da voz e que, no entanto, na sua formação, se restringido e limitado por padrões e bloqueios
psicofísicos. É criado, então, um espaço para essa liberação vocal aliada à emoção. Essa liberação
atua no sentido da descoberta da própria voz, favorecendo o fluxo da criatividade e da
originalidade da expressão individual.
O trabalho de Prazeres dirige-se a pessoas em geral que se consideram deficientes em
termos de voz, que queiram cantar e descobrir que podem “soar bem”, e a músicos, atores e
outros profissionais que utilizam a voz em seus trabalhos. Profissionais que queiram ampliar seus
34
Sonya Prazeres (1953) une sua formação na School for Voice and Movement Therapy e sua experiência como
cantora e violonista, e desenvolve uma abordagem particular da voz-terapia, desenvolvida por Alfred Wolfsohn, e
uma pesquisa sobre a relação entre a música e a religião de diferentes povos.
35
School for Voice and Movement Therapy, de Londres, dirigida por Paul Newham, une formação em voz-terapia
com outras terapias corporais e arte-terapias.
36
Alfred Wolfsohn (1896 - 1962), judeu alemão, radicado em Londres após a segunda guerra, foi quem iniciou as
pesquisas que deram origem à voz-terapia.
94
conhecimentos, melhorar a sua prática vocal, bem como resolver problemas relacionados ao mau
uso da voz, ou à superação de limites. É um trabalho terapêutico que pode ser procurado por
qualquer pessoa que busque o auto-conhecimento, no entanto, concentra-se na expressão, no
resgate da auto-expressão. Busca a organicidade e o fluir da voz permitindo a intensidade das
emoções associadas a ela e a vivência de diferentes vozes, muitas vezes negadas e esquecidas.
Aproxima-se assim, por um lado, de trabalhos de arte-terapia e, por outro, de pesquisas teatrais
em relação ao treinamento e à formação de atores. Prazeres desenvolve também uma forma de
oficina direcionada a atores, mais curta e com menor enfoque terapêutico, na qual ênfase às
dramatizações e jogos corporais, sempre partindo do uso intenso da voz.
Podemos observar a ligação estreita entre os processos terapêuticos que buscam este auto-
conhecimento, alargando as possibilidades expressivas dos indivíduos, com processos
importantes na formação do ator. A diferença é que nos processos terapêuticos haverá espaço
para questões pessoais a serem esclarecidas, enquanto que na criação teatral todo conteúdo
pessoal deve servir à arte. Além disso, o ator terá que lidar com o resgate, com a retomada e
composição deste material físico, energético, emocional. No entanto, ele precisa da vivência dos
momentos de liberação e acesso a estas forças, com o risco de limitar-se a determinados padrões
pessoais de comportamentos físicos e vocais.
Na voz-terapia, o processo catártico de liberação de emoções associado a esta exploração
vocal acaba também por criar uma familiaridade com emoções mais intensas. Uma vez
permitidas e integradas estas emoções arquetípicas, oriundas das memórias e das vivências
pessoais do ator, essas passam a ser acessadas de uma forma mais impessoal, mais ligada à
consciência coletiva associada a elas e à sua expressão estética. São muitas vezes acessadas
através dos cantos.
Neste contexto, no entanto, não são trabalhadas composições cênicas nem abordados
textos, ficamos na experimentação vocal de improviso, com sons e línguas inventadas, ou nos
cantos. A composição caracteriza um outro momento, que faz parte especificamente do trabalho
do ator, mas que pode utilizar os conteúdos aflorados. Portanto, o processo aproxima-se de
laboratórios criativos, ou pesquisa de potenciais adormecidos, como no treinamento energético
desenvolvido pelo Lume.
Sobre a relação entre teatro e processos terapêuticos, em contextos nos quais se usa o
teatro como ferramenta de cura e auto-conhecimento, no psicodrama e nas dramatizações, ou nos
95
processos criativos desenvolvidos a partir de pesquisas de auto-desvendamento e abertura do ator,
Prazeres cada vez mais uma procura de proximidade. Para ela, quanto mais o ator se
aprofunda no seu auto-desenvolvimento como pessoa, mais “iluminada” será sua performance.
Fala em “performance iluminada” e em “performance vazia”, quando esta fica na superfície e não
vai além. Quando sua expressão se encontra limitada, o brilho diminui.
A atuação com a qual estamos acostumados, por exemplo, presente no modelo de ator de
televisão ou de cinema, é uma atuação com a “máscara grudada”. Na opinião de Prazeres, isto
acontece muito no teatro ainda. O ator usa sua própria personalidade para seus personagens, não
distinção entre ator, sua máscara social, sua personalidade, e seus personagens. Quando o ator
se aprofunda no seu trabalho, que equivaleria também a um processo de auto-conhecimento, de
desvendamento das máscaras, ele tem a capacidade de se transformar. Identificando o que seria a
persona, segundo Jung, a máscara socialmente assumida, ele pode distanciar-se e assumir
também outros lados seus, sua sombra, e alcançar conexão com outras forças arquetípicas.
Distancia-se assim do cotidiano de sua personalidade e é capaz, ao mesmo tempo, de alcançar
outras energias e identificar-se profundamente com elas.
É interessante esta visão da necessidade de “desgrudar a máscara”. Já desde o Paradoxo
de Diderot esta questão da ambigüidade do trabalho do ator é foco de discussões. Sabe-se que é
esta a essência do trabalho do ator, esta duplicidade, de criar um certo distanciamento em relação
às suas ações e emoções e assim poder recuperá-las, e também a busca sempre constante da vida
nestas ações, da organicidade das ações vitais expressadas.
II.2.1. A origem da voz-terapia e sua repercussão nas pesquisas teatrais
Alfred Wolfsohn, criador da voz-terapia, iniciou suas pesquisas procurando sua própria
cura. Havia estado na guerra como médico e ficara com a chamada “neurose de guerra”. Sons de
extremo sofrimento, gritos, gemidos, ficaram na sua memória e o atormentavam. Foi
experimentando reencontrar estas vozes em si mesmo, exorcizando-as, dando forma a elas,
expressando vozes extremas, que alcançou sua cura. A partir desse processo, iniciou suas
pesquisas, convicto de que o ser humano é capaz de alcançar uma amplitude muito maior em
termos de voz do que é tradicionalmente aceito. Basta que as emoções tomem parte. Wolfsohn
96
busca então nas falhas, nos ruídos, nas imperfeições da voz, a ligação com a emoção que se
encontra escondida. Uma visão mais tradicional considera que a voz, quando aparecem essas
interferências, não está mais num registro cômodo. Para Wolfsohn é sinal de que é necessário
desbloquear o fluxo orgânico associado à voz e permitir que ela se amplie.
Wolfsohn trabalhava com cantores, que passavam a ter um registro vocal muito mais
amplo, de até sete ou oito oitavas. Através de pesquisas comprovadas, foi constatado que seus
aparelhos fonadores, mais especificamente suas laringes e cordas vocais, não estavam
prejudicadas ou danificadas; pelo contrário, se encontravam em melhor estado do que antes. A
tensão associada ao bloqueio vocal e emocional seria a responsável por um possível dano.
Quando ela é removida isso desaparece.
Se Sigmund Freud foi o precursor da psicoterapia, com a psicanálise, tendo acordado para
o fato de a expressão verbal humana ser reveladora de um universo inconsciente, foi Carl Gustav
Jung que ampliou este contato com este universo não através das palavras, mas também
através de outras expressões artísticas. Através, por exemplo, de pinturas, todo um universo
onírico pode ser descoberto, acessando imagens ligadas ao inconsciente, revelando conteúdos a
serem assimilados e integrados. Jung não abordou propriamente a voz, nas suas sonoridades e
timbres, associados à fala, como forma de revelação do inconsciente, de emoções e energias
reprimidas, mas abriu espaço para esta pluralidade de energias que constituem o ser humano na
busca de sua individualidade original, que vão também poder ser identificadas na voz.
A psicoterapia vai tomando uma veia mais corporal com as pesquisas de Wilhelm Reich
(1897-1957), segundo as quais as repressões estariam também enraizadas no corpo, através de
couraças musculares que impedem o fluxo vital da energia. Energia esta, que ele chamou de
orgon, energia vital orgânica, energia de natureza essencialmente sexual, que está na base
instintiva e orgânica de todo comportamento humano. A repressão do fluxo livre dessa energia,
do não direcionamento harmônico dela, -se à custa de tensões musculares crônicas, associadas
a bloqueios respiratórios e padrões neuróticos de comportamento.
A voz-terapia também integra princípios e práticas da Bioenergética desenvolvida por
Alexandre Lowen, a partir das pesquisas e concepções de Reich. Lowen desenvolve então o
aspecto corporal da psicoterapia. O processo terapêutico passa a incluir exercícios respiratórios,
pressões, posturas ou movimentos para a liberação do fluxo energético do corpo. As couraças
musculares devem ser desmanchadas quando bloqueiam o fluxo de emoções e sensações
97
orgânicas. Lowen é o primeiro a dar atenção também à voz para identificar determinadas
emoções bloqueadas e direcionar o trabalho para esta liberação. A respiração, aliada aos
movimentos, soltando também os sons não verbais associados, vai ser trabalhada para a
ampliação da circulação energética no organismo e assim libertá-lo de padrões psicofísicos
limitantes.
Paul Moses é ainda outra referência entre os precursores do trabalho da voz-terapia.
Profissional da fonoaudiologia, estudioso da voz humana, é o primeiro a identificar na voz
distúrbios associados a causas psicológicas e emocionais, e a conceber um trabalho terapêutico
através do processo de abertura vocal. Ele soube das pesquisas de Wolfsohn e o considerava um
grande conhecedor dos processos associados à voz humana.
Estudioso de Jung, Wolfsohn utiliza os fundamentos de sua psicologia. Considera que
essas vozes, que é preciso acessar, são parte da sombra, daquela parte da personalidade que não é
aceita, não é assumida socialmente. Assim, diferentes arquétipos vão poder se manifestar na voz
para que a pessoa amplie sua capacidade vital de auto-expressão, de expressão do seu self, pelo
auto-conhecimento e pela liberação de seu poder criativo original. A noção de anima e animus,
para o homem e a mulher respectivamente, também nortearão a busca dessa amplidão vocal.
Constatar este outro lado, na maioria das vezes projetado no outro, será também se abrir para essa
outra voz, com qualidades mais femininas, suaves, acolhedoras, ou masculinas, graves, diretas,
descobrindo e aceitando também as contradições existentes em cada um, como característica
pessoal e humana, por natureza.
Roy Hart
37
abandonou seus estudos de teatro quando entrou em contato com o trabalho de
Wolfsohn, descobrindo uma outra via de trabalho vocal que privilegiava o som e não a palavra.
Tornou-se impossível conciliá-la com uma educação teatral em que a técnica e a interpretação se
sobrepunham a uma procura de organicidade e de fluxo vital no ator. Com a morte de Wolfsohn,
trabalhando com ele quinze anos, Roy Hart assume o desenvolvimento de suas pesquisas.
Mantém alunos e atividades e ao mesmo tempo desenvolve uma marca pessoal para o trabalho.
Inicia na linha terapêutica, através do canto e de diferentes manifestações criativas, e acaba por
assumir o enfoque teatral ao abrir o trabalho em performances para espectadores. Instalou-se,
37
Roy Hart
37
(1926 1975), nascido na África do Sul, também de origem judaica, foi um dos alunos de Wolfsohn, e
levou adiante seus ensinamentos.
98
depois de alguns anos, na França, abrindo o Roy Hart Théâtre, tendo, no entanto, falecido um ano
depois em acidente de carro. Seu grupo levou adiante o trabalho, com cursos, conferências,
encontros e montagem de espetáculos. Funcionou como Companhia Teatral até recentemente, e
foi de onde surgiram inúmeras gerações de professores que seguem o seu método, embasado
principalmente nas pesquisas de Wolfsohn. Atualmente o Roy Hart Centre, antiga sede da
companhia, funciona apenas como um espaço para cursos e oficinas. A companhia desfez-se,
com alguns professores formando seu próprio grupo, escola e linha de trabalho.
No livro Voix de l’inoui, Marianne Ginsbourger fala a respeito do trabalho desenvolvido
pelo Roy Hart Théâtre. Ligado ao teatro, Roy Hart desenvolve atividades direcionadas para a
criação teatral, mas mantém a linha de descoberta e auto-desenvolvimento de Wolfsohn. Alia
canto e voz com mergulho interior e expressão corporal, sempre em busca da intensidade da
emoção e de sua expressão.
As idéias de Jung continuam a nortear o trabalho. Assim, procuram-se personagens
arquetípicas e são resgatados mitos para os trabalhos criativos. O primeiro foco, no canto e na
descoberta dos sons não verbais, sons de animais e sons da natureza, abre então lugar também
para a palavra e para os mitos. A idéia de que através da voz são acessadas forças originais do
homem, forças primitivas que o acompanham na sua evolução, desde tempos remotos, encontra
também eco nas pesquisas com os mitos e personagens arquetípicas. Atingir alturas e
profundidades amplas com a voz significa acessar as forças, as energias, os sentimentos e as
emoções que estão associadas a estas vozes extremas. Encontram, assim, expressão outras
dimensões humanas, muitas vezes inconscientes, e que integradas possibilitam um espectro maior
de qualidades expressivas.
Peter Brook teve contato com o trabalho desenvolvido por Roy Hart na Inglaterra e isto de
alguma forma o teria influenciado em alguns aspectos de suas pesquisas como encenador.
Através dele, Grotowski também teve contato com as pesquisas de Roy Hart e o trabalho de
Wolfsohn
38
. Segundo Ginsbourger, Roy Hart decide não continuar contribuindo com o trabalho
de Grotowski por entender que em relação a algumas situações vitais divergem
significativamente.
38
Cf. GINSBOURGER, 1996, p. 25.
99
Enrique Pardo, um dos alunos de Roy Hart, com quem Prazeres também estudou, na
França, criou o Panthéâtre, escola e linha de trabalho que também usa a voz como foco das
pesquisas, e busca aprofundar-se no teatro ligado aos mitos. Vindo das artes plásticas e tendo se
aproximado do trabalho de Wolfsohn com o intuito de refletir sobre a relação entre criação
artística e psique, acaba desenvolvendo sua própria pesquisa, sobre a relação entre movimento e
voz, dança e canto, explorando sempre o universo dos mitos.
Desenvolve o teatro coreográfico que, segundo ele, não é propriamente um teatro
coreografado, como a dança, mas literalmente como um teatro no qual o coro é a imagem que
norteia. Corpo, voz e emoções fazem parte do material do ator, que deve estar consciente daquilo
que sua ação cria em relação ao todo. Um teatro de atitudes e de imagens coletivas, de sons
individuais interferindo no som grupal.
Suas criações exploram a relação entre o corpo, a voz e a linguagem verbal. Na
composição e entrelaçamento entre eles é evitada a ilustração, ou a ênfase, e procurados o
paradoxo e a contradição. Ele propõe um questionamento sobre o predomínio do texto,
considerando-o apenas mais um dos elementos cênicos. O ator deve estar aberto às contradições
que surgirem através de sua voz, contrapondo movimento, voz e palavra. Sugere focos de
trabalho para fugir da submissão ao conteúdo dos textos: a dissociação, a contradição, a escuta
negativa, a distração, entre outros. A voz liberada em toda a sua força e extensão acessa emoções
trágicas, em plena expressão da contradição humana, na relação paradoxal com o texto. O ator
confronta-se com sua emoção estética e não somente pessoal.
No trabalho de Pardo, é buscada esta dissociação entre texto, significado, voz e
movimento. Ele desenvolve diferentes estratégias de trabalho para evitar o uso da ilustração, da
ênfase, da tendência associada à expressão verbal de reforçar sentidos através de entonações e de
gestos. Os extremos da voz, como gritos, ou emoções intensas, e movimentos também não
realistas, ligados a estas diferentes energias, buscam deixar espaço para as contradições. Nos
personagens trágicos isto é imaginável: que essas contradições espelhem os conflitos inerentes,
pelos quais passa o homem em situações limites. Mesmo buscando contraposições, o teor do
texto está sendo considerado, mas não deve prevalecer. Podemos identificar esta visão com uma
das idéias de Artaud: a busca pelos contrastes, oposições, que criariam significados novos e mais
complexos, inusitados, pela combinação dos diferentes níveis de significação através do ator.
100
Em relação à questão da contradição, dos contrastes entre energia vocal e significado, por
exemplo, para Prazeres, que teve contato com o trabalho de Enrique Pardo, o discurso não
importa. O movimento e a voz podem ir numa direção, que não tem relação direta com o que está
sendo dito, com o texto em si. Uma questão chave sobre relação corpo e palavra, ou mesmo a
relação entre voz e corpo e voz e palavra.
No trabalho de Prazeres, que foca principalmente a conexão com a emoção, a palavra
aparece, num primeiro momento, nos cantos, nas canções onde podemos observar que a palavra
está junto com a emoção evocada, junto com a sonoridade, não como separar som e
significado. Nas músicas, nos mantras ou canções em outras línguas, das quais não conhecemos
os significados, o som carrega em si o significado, a imagem. Conheçamos ou não o seu sentido,
estaremos nos conectando com aquela energia, ativada por aquelas palavras, por aqueles sons.
Aqui não importa que estejamos conscientes ou não do significado, mas ele está ali, torna-se
presente pelos sons das palavras.
Outro momento é quando usamos mesmo a linguagem verbal, a palavra, quando falamos,
quer em depoimentos ou comentários, quer em exercícios com dramatizações ou simples
verbalizações de atitudes. Temos aqui sempre um reforço, um sublinhar. A emoção e a atitude
buscada é afirmada também através do discurso. Aqui não é enfocada ou buscada a contradição.
Aqui voz é ação junto com o corpo, prolongamento, inclusive no discurso.
No momento em que são observados vozes e discursos individuais, pessoais, podem ser
percebidas contradições sim. Quando o que se diz é denunciado pela voz, quando a voz diz mais,
diz o contrário, ou contradiz o que é falado. que neste caso, esta disjunção é trabalhada no
sentido de harmonização. É procurado o desbloqueio da emoção que está escondida, que não está
tendo espaço para se expressar. E ela sai, quando liberada, também manifesta em palavras.
Busca-se a integração da emoção com a voz e com a palavra, no momento em que a expressão
deve fluir, deve ser orgânica, viva, conectada com o mundo interno de cada um.
II.2.2. Princípios para a abordagem da voz
Um pressuposto da voz-terapia é que o foco do trabalho deve ser direcionado para o
sistema límbico, para nossos fluxos internos, que estão associados aos instintos, aos humores e às
101
emoções. O sistema límbico manifesta-se nos sons não verbais, sons ligados às sensações, de
prazer ou de dor, presentes desde o recém-nascido, e na criança antes do aprendizado da fala.
Estão ligadas ao sistema límbico todas as manifestações de emoções como raiva, medo, tristeza e
alegria.
Quando a participação da fala, da linguagem verbal, muitas vezes estes fluxos são
alterados, bloqueados. A linguagem verbal exige a participação de outra área cerebral, que de
alguma forma controla o fluxo. Por isso, a atenção é dada ao não-verbal, com exercícios que
envolvem línguas inventadas e que têm por objetivo desnortear, romper com o controle do
racional associado ao verbal. Nos movimentos corporais também se busca este fluxo através do
ritmo. É preciso reencontrar uma harmonia e uma integração do corpo inteiro nos movimentos.
Usando ritmos que quebram com um padrão binário, buscando o equilíbrio entre o lado direito e
o esquerdo, quebra-se também com um controle excessivo dos movimentos e da voz.
A anatomia envolvida na fala envolve um processo mais complexo que os sons não
verbais. A articulação de sons solicita um número muito maior de músculos e um controle maior
do cérebro. Assim, o processo de aprendizado da fala inclui o controle de determinados impulsos.
A expressão através da fala faz parte de um processo de socialização que muitas vezes pode não
ser bem assimilado, ou menos equilibrado, criando bloqueios na expressão pessoal.
A linguagem verbal estaria associada a um “fechamento”. Ao definir nomes e conceitos,
idéias são fixadas, definidas, enquanto os sons puramente não-verbais deixam em aberto, podem
significar inúmeras coisas. A linguagem não-verbal não fecha, abre possibilidades, o
desconhecido.
Outro princípio básico é o uso constante e intensivo da voz. A voz está sempre presente,
não um momento de aquecimento corporal ou de concentração sobre posturas corporais ou
respiração sem que a voz esteja presente. Mesmo em jogos corporais como o dos animais, a
proposta é estar sempre vocalizando, sempre usando a voz. Para alguns, isto pode parecer
cansativo, surge o medo de estar prejudicando ou cansando a voz. No entanto, o pressuposto é de
que só aparecerão problemas se houver tensão em demasia, bloqueio, e estes serão identificados e
trabalhados. A rouquidão, por exemplo, preocupa, quando aparece no decorrer de um trabalho
intensivo, de alguns dias seguidos, durante uma semana. Prazeres sempre reforça que o uso
ampliado da voz, sua solicitação maior do que estamos habituados, não será nunca prejudicial,
desde que estejamos deixando fluir junto a emoção e a auto-expressão. O uso mais intenso é
102
necessário para que realmente acordemos nossa voz e todo o aparelho respiratório, fonador,
muscular e afetivo ligado a ela.
alguns pequenos exercícios que são retomados de tanto em tanto para relaxar a laringe
e descansar as cordas vocais. A voz deve ficar cada vez mais clara e encorpada, de acordo com as
características pessoais de cada participante, e não ao contrário. A liberação de tensões deve
favorecer uma maior irrigação e todo o processo orgânico envolvido no uso da voz. O medo de
machucar-se, de não estar fazendo adequadamente os exercícios, normalmente está associado a
preocupações racionais, a limitações impostas por crenças incorporadas. Não acreditar na
possibilidade de afinar, projetar ou apoiar adequadamente é uma limitação imposta pelo racional.
Portanto, os exercícios que envolvem corpo e voz visam também deixar o racional de lado,
silenciar a mente e propiciar o envolvimento na ação executada, nos movimentos, nos sons e na
emoção que está sendo acessada.
No sentido de silenciar a mente, todo o engajamento corporal proposto é também
essencial. Através do ritmo musical e de movimentos repetitivos que muitas vezes exigem uma
coordenação corporal diferenciada, a mente pretende ser silenciada. Para que não haja o controle
racional, são feitas solicitações mais relacionadas com o movimento e a percepção corporal.
Corpo e voz estão sempre juntos, músicas cantadas sempre envolvem também o corpo. Este deve
participar, algumas vezes apenas fluindo junto com os sons e a voz, em outras com movimentos
bem precisos ligados a diferentes atividades ou rituais, associados às origens das músicas. Mesmo
em dramatizações ou jogos corporais, como a abordagem dos diferentes animais, o corpo é
também intensamente exigido.
O papel que a música desempenha é fundamental, e faz parte do trabalho tanto o exercício
de escuta de músicas gravadas, como o canto coletivo do grupo. Músicas variadas, em diferentes
línguas, exemplificando também diferentes registros e timbres, servem de estímulo à liberdade
vocal que é procurada. São também exemplificadas, através da escuta, vozes que exprimem as
diferentes qualidades ligadas aos diferentes ressonadores, às diferentes zonas de emissão e
ressonância que são trabalhadas. Os cantos são ensinados ao grupo e grande parte do tempo é
dedicada ao cantar. Em grupos variados, às vezes vozes masculinas separadas das femininas, o
canto em várias vozes e em cânone é muito utilizado. Sons simultâneos criando inúmeras
possibilidades de sobreposições sonoras.
103
O canto é um dos recursos usados no trabalho com a voz por aliar a linguagem verbal de
uma forma fluida, ainda em contato com o sistema límbico, com os fluxos e os ritmos corporais.
O canto é considerado a melhor forma de unir corpo e palavra. Nele a palavra assume uma forma
sonora, é pura sonoridade, som, música, encontrando-se assim com os impulsos corporais. É
quando aparece a conexão, a integração da emoção com a palavra. A utilização do canto é
intensa, reencontrando-se uma aptidão natural do ser humano para a expressão através da voz.
Prazeres reforça que “fomos feitos para cantar” e perdemos esta capacidade por falta de prática,
falta de espaços e ocasiões em que possamos exercitar esta atividade.
O canto é visto como um louvor, uma atividade ritual. Canta-se para compartilhar com os
outros, para agradecer, para pedir. O canto acessa energias, estados, memórias, emoções, e pode
servir para reverenciar, para nos re-conectar com a natureza e para nos curar.
O uso de músicas de diferentes tradições culturais e religiosas faz com que revivamos a
origem ritual do canto. Lembrando da história dos povos em questão, do seu contexto geográfico
e cultural, os significados associados ao canto aparecem e enriquecem o envolvimento e a
expressão. Estas músicas estão ligadas em sua origem a diferentes atividades e rituais, sugerindo
também uma energia e movimentação específicas que reforçam o seu conteúdo.
O cantar por cantar, por prazer, sem a expectativa de uma platéia. Não devemos pensar
que precisamos cantar bem, que alguém está nos ouvindo e nos julgando. Não deve haver esta
expectativa de reconhecimento pela voz, pois assim perderia a razão primeira, de ser uma ação
ritual de re-conexão consigo e com o sagrado. É o cantar junto, cantar para compartilhar. A
afinação vem deste exercício, do escutar, do imitar e da prática do cantar.
Lembramos aqui da opção de Grotowski, que gradativamente vai retirando sua platéia. No
teatro estamos lidando com representações, se pensamos em espetáculos, mas se os julgamentos
que estão associados ao trabalho do ator forem mais importantes, acabam tirando o foco dele
sobre si mesmo. Grotowski direciona cada vez mais o foco para o processo interno do ator, o que
passa a importar é o ator consigo mesmo e assim com algo maior. Aproxima-se assim deste
caráter ritual do canto coletivo aqui utilizado.
Esta abordagem do canto foge do enfoque tradicional do canto lírico, no qual a
performance, o virtuosismo, o domínio da técnica é o foco. Os registros musicais e as escalas
sonoras procuradas também são outras. A tradição musical ocidental, segundo Prazeres, está
limitada através dos padrões sonoros permitidos e aceitos. Já desde a Idade Média, através da
104
Igreja Católica, haveria o controle e a sujeição aos padrões admitidos como puros. Nosso ouvido
acabou sendo treinado para escutar determinados sons, dentro desta escala, e tornou-se
insensível a outros sons existente. Na voz, esses sons acabam sendo detectados como ruídos. São
na verdade manifestações de outras emoções, outras memórias, outras percepções.
Prazeres o exemplo de Demetrio Stratos, cantor e compositor de origem egípcia, grega
e italiana, como um artista que desenvolve sua pesquisa em busca de outros padrões musicais,
certamente relacionados com as sonoridades de sua herança cultural. Ele explora as
possibilidades completamente inusitadas de sua voz, em uma pesquisa realmente séria e
profunda. Seu trabalho nos instiga a ouvir outros sons, a ousar escutar algo estranho, sintonizar
com o inusitado, o incomum.
Normalmente não é enfocada a respiração para estes cantos. Deve acontecer naturalmente,
deixando fluir o simples ato de cantar, por prazer, por compartilhar, tentando afinar também
espontaneamente. A respiração em alguns momentos é estimulada, buscando a respiração
completa ou mais intensa, principalmente quando estão sendo buscadas determinadas emoções,
ou estados energéticos.
Um aspecto importantíssimo e determinante do grau de envolvimento na técnica
terapêutica é o espaço dado à emoção. Penso que este seja um ponto fundamental em relação ao
trabalho do ator. Deixar a técnica ser mais importante que a emoção, e pensar que esta traz
desordem e falta de controle, é deixar de lado o essencial. O ator lida com a vida do ser humano,
através das personagens, e, portanto, o universo das emoções pessoais e humanas deve estar ao
seu alcance. A diferença em relação ao processo terapêutico é que o ator deve desenvolver um
acesso a estas emoções de forma mais elaborada. Não se esquecendo, no entanto, que é
necessário haver momentos e trabalhos que permitam o contato com conteúdos adormecidos,
com emoções pessoais, e trabalhos que permitam a elaboração e o resgate deste material.
A emoção é o veículo da auto-expressão, sem estar em contato com ela não estaríamos
nos expressando completamente em toda a nossa riqueza pessoal. Portanto, ela deve participar e
aparecer na maioria dos exercícios. Mesmo no canto, de forma mais ou menos sutil, a emoção
toma parte. A música na verdade é uma forma de acessar a emoção. Se nos conectamos, ela toca
nas sensações, nas memórias, e conduz a determinado estado. Músicas que traduzem alegria,
tristeza, amor, ternura, ou ligadas a memórias ancestrais de diferentes povos, são capazes de nos
105
transportar por universos de imagens e memórias, e propiciar a expressão dessas imagens e
emoções associadas.
Prazeres comenta que no teatro parece que sempre o corpo vem antes, ou vem separado, a
voz muitas vezes é trabalhada num segundo momento. Realmente podemos constatar isto, tanto
no trabalho de formação e treinamento do ator, como nos processos de composição cênica. Raras
vezes essa integração acontece de forma mais aprofundada, principalmente em trabalhos em que
a pesquisa corporal é intensa, com buscas de linguagens corporais não realistas.
Para Prazeres, a voz deve estar sempre presente, desde o começo. Ela está intrinsecamente
ligada à emoção. Não como separar. O corpo seria mais fácil de separar da emoção. Trabalhar
o corpo sem dar total abertura à emoção será possível. Trabalhos mais técnicos, associados a
diferentes técnicas de consciência corporal ou de composição de movimentos, ou mesmo técnicas
próprias do teatro como o mimo corporal, não estariam tão proximamente ligadas à emoção. A
voz, para Prazeres, é emoção; portanto, toda emissão sonora carrega emoção, mais sutil ou mais
intensa.
Na verdade, trata-se da discussão do resgate dos impulsos internos associados às ações,
sejam ações físicas corporais ou vocais. Pela visão da voz-terapia, na voz estaria mais perceptível
este vínculo com os impulsos internos, com a emoção, com aquilo que move o ator internamente.
É claro que esta deve ser uma escuta treinada, experiente. Uma escuta que aprendeu a distinguir o
que de vivo, de fluido, de criativo, ou de rígido, de bloqueado, de não aceito, na voz de cada
um. Uma escuta que podemos considerar necessária não aos atores, mas também, e
principalmente, aos professores, formadores de atores e diretores teatrais.
Parece que hoje temos um momento em que o trabalho em busca de técnicas para o ator,
em busca de uma técnica de atuação condizente a determinado estilo de representação, tomou a
dianteira nas pesquisas teatrais. Comparando este movimento com o trabalho de Prazeres, que
busca a emoção, fazemos inúmeras relações. Essa busca tem caminhos em comum com os
processos mais intensos de desvendamento propostos aos atores, por exemplo, na linha de
trabalho proposta por Grotowski, na qual o ator busca um estado total de abertura e entrega, para
atingir e transformar também o espectador. Com a voz sendo o fio condutor, parece
imprescindível deixar a emoção fluir. Se no desvendamento corporal a energia é ativada, se são
descobertas diferentes energias, diferentes estados, com a voz se garante o espaço para a emoção.
106
E com o resgate constante desta emoção, destes impulsos, é mais difícil uma abordagem
puramente técnica.
A questão do resgate de ações, movimentos ou sonoridades aliadas a estas emoções, para
um trabalho de criação e composição cênica a partir deste processo, é ainda algo a ser
pesquisado. Creio que através das atitudes corporais e energias arquetípicas é possível, utilizando
este processo de abertura, acessá-las de uma forma orgânica e ao mesmo tempo artística, estética.
A partir da experiência, do contato, da consciência, elas passam a fazer parte dos conteúdos e
possibilidades de expressão do ator, se direcionadas para isso.
II.2.3. As maratonas do Vibrato Crescente
Prazeres apresenta seu trabalho em uma série de diferentes formatos de oficinas e
maratonas. São formatos de trabalho com durações e enfoques diferentes, também dirigidos a
públicos diversos. A coluna dorsal do trabalho é o Vibrato Crescente, trabalho terapêutico de
maior duração, que acontece durante o período de uns quatro meses, com encontros mensais
intensivos de dois dias, e com algumas tarefas entre os encontros. Cada encontro é direcionado ao
trabalho com um dos arquétipos, associado a um dos ressonadores da voz.
Entre outros formatos, direcionados para públicos específicos, Prazeres oferece o
Laboratório de Expressão Vocal (LEV), direcionado para atores e cantores, profissionais que
fazem uso da voz em seus trabalhos. No LEV também é feito um percurso pelos diferentes
ressonadores e arquétipos, que serão apresentados aqui. É, no entanto, uma oficina de curta
duração, uma semana, quatro horas por dia, com um enfoque menos terapêutico. Os ressonadores
são abordados aqui de uma maneira mais lúdica, dando maior ênfase à voz como instrumento e
possibilidade de relação e jogo, sem nunca abrir mão da conexão voz e emoção. São propostas
dramatizações de diferentes situações e relações, a partir das personagens arquetípicas
exercitadas, também centradas principalmente no nível não verbal. Sempre norteado pelo
princípio de que são dois os estágios da fonação, o não-verbal, fazendo parte do sistema límbico,
associado aos instintos, e o verbal, ligado ao córtex cerebral, no qual a estrutura lingüística é vista
como função de controle. A cantoria está sempre presente e alguns exercícios respiratórios
intensos, como aquecimento, disponibilização de energias e saída do racional.
107
Detenho-me aqui no Vibrato Crescente, por ser onde realmente são aprofundadas as
diferentes energias arquetípicas. É um trabalho com enfoque terapêutico, que visa a ampliar a
capacidade expressiva e criativa dos participantes removendo bloqueios e abrindo espaço e
permissão para o contato com emoções e energias represadas, que impedem um
autodesenvolvimento sadio, integrando corpo, emoção, mente e espírito; a identificar a persona
através da voz, e a integrar a sombra, aquele lado obscuro e não aceito na personalidade, assim
como identificar qualidades da anima e animus, abrindo possibilidades novas em termos de
energias e vozes. Entra-se em contato com os arquétipos da criança, do amante, do guerreiro e
da mãe, que se manifestam em nós de formas particulares.
Cada um dos encontros, uma maratona de dois dias, aborda um dos diferentes arquétipos,
associados a diferentes ressonadores, período no qual esta energia arquetípica é buscada através
de músicas, abordagens corporais, jogos e dramatizações, removendo-se o que impede a sua
expressão. O encontro é intenso corporal, vocal e emocionalmente, para que também através do
cansaço os obstáculos e bloqueios existentes sejam superados e dissolvidos. Entre um encontro e
outro são sugeridas atividades, como, por exemplo, assistir filmes, anotar sonhos, tentando
mobilizar o arquétipo que será trabalhado, bem como observar e integrar as repercussões que o
processo está ocasionando.
II.2.3.1. Os ressonadores e os arquétipos
Detalharei a seguir o trabalho com cada um dos ressonadores. Há, no entanto, abordagens
em comum que podemos ainda enumerar aqui. Cada um dos ressonadores é associado a um
arquétipo que é acessado através de abordagens variadas. Através de exercícios corporais que
despertam determinadas memórias, da proposta de relações que mobilizam determinadas atitudes
e energias, são reencontradas sensações e emoções de cada arquétipo, que devem se expressar
também através da voz. O uso da voz é constante em todos os exercícios, que acabam
direcionando-a para alguma região específica. A expressão corporal do arquétipo em questão
através do jogo de determinado animal, e vocalizando sons, que ativam também uma região
determinada de ressonância, é outro recurso utilizado.
108
Além destes jogos corporais e dramatizações, temos o canto. A escuta de canções com
vozes que exemplificam determinada qualidade vocal, associada ao ressonador trabalhado, bem
como mobilizam a emoção arquetípica em questão, é exercitada e usada como estímulo ao
trabalho. O canto coletivo de canções que trazem determinada qualidade de energia e
envolvimento é também abundantemente exercitado, na maioria das vezes associado a
movimentações específicas. Estes enfoques são alternados durante os encontros conforme
planejamento prévio e desenvolvimento do trabalho.
Cada encontro visa então acessar determinado arquétipo, abrindo passagem para o contato
com esta energia, experimentando sua manifestação através da voz, com suas particularidades
definidas. Estas diferentes vozes são descritas pelos nomes de instrumentos musicais, são
definidas não pela região onde ressoam, ou seja, pelo ressonador, como também pela região de
sua emissão, que também varia. Descrevemos a seguir particularidades do trabalho com cada um
dos ressonadores.
Violino:
- região de emissão: alto palato/nariz;
- região de ressonância: cabeça;
- arquétipos: a criança/ a bruxa/ a velha;
- expressão corporal: os felinos.
A voz de violino é basicamente associada ao arquétipo da criança. Através de um
exercício simples com um som haah, suave e agudo, e a abertura do peito aliada ao relaxamento
da musculatura do pescoço, visando perder o controle, chega-se à abertura total da criança recém-
nascida. Em duplas trabalha-se, então, a entrega total do corpo à manipulação do colega, de
caminhando ou sentados um no colo do outro, sempre produzindo sons, que agora são pura
expressão de sensações de prazer, agrado ou desagrado, em relação ao contato com o outro.
também um processo mais elaborado de vivenciar como que um renascimento através
das sensações de entrega total e descoberta do meio. Recebem-se diferentes estímulos sensoriais,
e aos poucos se experimenta não a oralidade como meio de conhecer o meio ambiente, mas
como forma de produzir sons, brincando com a boca, com as mãos, se escutando,
experimentando, com total permissão. A partir da sensação de falta, surge também a voz como
109
chamado, como queixa, solicitação de atenção, muitas vezes sendo aflorado o choro. É
desencadeado um processo de experimentação, resgatando este impulso de contato através da
voz, do movimento, deitados no chão, rolando, se arrastando, e buscando alcançar aquilo que vai
aconchegar, dar segurança, ou por simples curiosidade, descoberta.
A partir desse despertar do bebê, sempre com voz, sendo acionado o ressonador da
cabeça, vai se passando gradativamente para a criança maior, tentando subir também nos
movimentos, buscando alcançar os adultos, pai e mãe, chamando a atenção e usando a voz para
pedir. A voz aqui é trabalhada em registros mais agudos, principalmente com o tom choroso, mas
sempre conectado com os impulsos internos, e emoções que vão sendo mobilizadas.
Estas crianças vão depois se relacionar, em brincadeiras, conflitos, determinando também
características bem particulares de cada um. Estas diferentes personalidades identificadas poderão
esclarecer determinados comportamentos, medos, necessidades não atendidas, ou emoções
represadas, ou que simplesmente retornam. É constante o uso da voz, agora em “blablações” -
outro nome dado ao grammelot -, sem utilizar ainda a linguagem verbal. São expressões que
possuem uma qualidade intensa, um tanto eufórica, oscilando entre a tristeza e a alegria.
É exercitada a narração de histórias em línguas inventadas, histórias tristes e alegres,
trazidas da memória pessoal de cada um e contadas em pequenos grupos. É usada a língua do a,
do e, do i, etc, para contá-las. A linguagem verbal está presente, mas ela é desestruturada com
o uso de apenas uma vogal, para que o conteúdo esteja de alguma forma agindo em quem conta,
mas que o significado não seja o principal foco. Não uma compreensão literal, alguns
significados são passados, mas muito se através da carga afetiva que a narração carrega. São
também definidas determinadas vogais para as histórias alegres – a, e - e para as histórias tristes –
o, u e i.
O animal trabalhado é o felino, principalmente o gato, sempre miando muito. Aqui
também fica bem localizada a região de ressonância na cabeça, e nos sons agudos. Trabalham-se
sempre as qualidades particulares de cada gato, através da relação com os outros, dos acordos e
conflitos que surgem. Pode-se passar a um felino maior, um gato selvagem, trabalhando mais a
ação agressiva, através do movimento e da voz. Essa ação agressiva pode ser direcionada também
aos mais dóceis e mais passivos, no sentido de estimular uma reação de defesa, e a
experimentação também da força, do movimento agressivo.
110
São também, eventualmente, trabalhados os arquétipos da bruxa e da velha, sempre com a
voz ressoando na região da cabeça e usando a “blablação” ou também, num segundo momento, a
linguagem verbal. Aqui Prazeres ressalta que não se deve ter receio de que estejamos partindo de
uma forma estereotipada desses personagens, pois através do estereótipo pode-se estimular a
energia adequada e acessar o arquétipo, em profundidade, desde que se permita realmente entrar
em contato interno com o conteúdo que é muitas vezes criticado ou não aceito. O feio, o cruel, a
ironia, o deboche, o poder de ver, de manipular, são conteúdos associados à bruxa, que muitas
vezes é vista como a incorporação do mal. Experimentar este mergulho, mesmo que partindo de
uma forma estereotipada, permite aproximar-se de uma outra visão deste lado obscuro, mas pleno
de poder, poder de transformação, que enfrenta os limites entre a vida e a morte. Assim como se
aproximar da sabedoria e da experiência do velho, de sua força espiritual, que pode aparecer
aliada à sua fragilidade ou debilidade física.
A emoção de tristeza aqui trabalhada pode ser explorada mais a fundo através da ação de
pedir, implorar. O choro que começa através da sua vocalização acaba sendo realmente
provocado e pode aflorar espontaneamente, contagiando uns aos outros. A necessidade ou não de
pedir, a capacidade de se deixar, se abandonar, e simplesmente receber, são possíveis atitudes que
são descobertas.
As músicas aqui trabalhadas se utilizam também da ressonância na cabeça e dos sons
agudos. São recolhidas de culturas específicas e carregam uma origem associada a determinada
atividade. Vozes femininas de mulheres trabalhando, como, por exemplo, uma música associada
a movimentos das leiteiras que carregam tonéis pelo campo, enquanto cantam, complementam o
trabalho.
A região de ressonância, do alto da cabeça, passando pela fronte e região superior da face,
nas cavidades nasais, fica muito estimulada através da vibração que é ali concentrada. Algumas
pessoas sentem dores de cabeça, ou congestionamento, ou simplesmente ouvem estalos, pois a
vibração mexe internamente, como que abrindo esses canais por onde o som agora pode circular.
Flauta:
- região de emissão: segmento frontal da cavidade bucal;
- região de ressonância: laringe/ alto peitoral;
111
- arquétipos: o príncipe/ o amante/ o encantador/ os elementais
39
;
- expressão corporal: os pássaros.
Neste segundo módulo, o trabalho é todo centrado no arquétipo do amante, do amor
apaixonado, e do sentimento de amor aliado à responsabilidade e ao poder, como o do soberano,
amoroso em relação aos seus súditos. Assim, além do arquétipo do amante, e da mulher
apaixonada, aparece o da rainha, e do rei, ou príncipe, aquele que serve de exemplo e dá
segurança.
O canto apaixonado, em tom intenso, deve ressoar no alto do peito. Exercícios de relação,
nos quais um faz uma declaração de amor apaixonada ao outro, em tom operístico, são aqui
experimentados. Pedir amor, amparo, à espera de retorno ao nosso sentimento. São formuladas
perguntas: Quando nos sentimos frágeis? Quando precisamos de amparo? Que tipos de reações
nos provocam esses pedidos do outro? Vontade de amparar, frieza ou repulsa, são algumas das
emoções experimentadas.
Aqui o animal trabalhado é o pássaro. O pio, como forma de emitir o som e fazer ressoar
na região superior do peito, é aliado a ação de pedir alimento, chamar. É exercitado com os
movimentos do pássaro recém-nascido no ninho. É intenso o trabalho de engajamento corporal.
De cócoras, com o bater das asas, sempre piando, aos poucos, o pássaro se liberta e alça vôo.
São explorados os sons das vogais, associados a diferentes movimentos corporais. Aqui se
faz a ligação do i com o alto. O e, com uma direção frontal bem definida, um foco. O som a é
associado à abertura, ao enfrentamento do mundo exterior. O som o é aliado a um gesto e uma
sensação de envolvimento com o outro, de integração. E o u é a ligação com a terra, com o
inconsciente, consigo mesmo. uma diferença em relação aos exercícios de Oida, nos quais os
sons eram também associados a gestos e a uma relação simbólica com o espaço, com o universo,
ou com o outro. São, no entanto, outros sons, outras referências. Em Oida, o i conectava com a
terra e o a era a abertura para o alto. Em ambos, podemos identificar o i com a verticalidade e o a
com a abertura, mas em cada caso numa direção diferente.
A partir da escolha pessoal de determinadas vogais, estas são usadas para buscar amor,
pedir amparo. É trabalhada esta relação, a partir da exposição de sua fragilidade, de sua
necessidade de amparo, e das atitudes particulares que as ações de pedir ou oferecer, de aceitar ou
39
As energias associadas aos elementos da natureza: fogo, terra, ar e água.
112
dar, desencadeiam em cada um. Acolher a fragilidade do outro também através do som, da
vocalização, do canto.
Clarinete:
- região de emissão: segmento mediano da cavidade bucal;
- região de ressonância: peito médio;
- arquétipo: o guerreiro;
- expressão corporal: os caninos/lobos.
Aqui o arquétipo abordado é o de guerreiro, acessado através de movimentos e ritmos
fortes, trabalhando muito a relação com o chão, com a base. A percussão é predominante nas
músicas, bem como cantos tribais que possuem estas qualidades, que acessam esta energia
guerreira, de força individual e coletiva, para encarar obstáculos e desafios. O grito é aqui a
expressão verbal principal, o grito de guerra, grito que demonstra força, invoca forças, quer
contagiar ou amedrontar o outro com a força expressada.
A atitude de desbravador é procurada. um exercício em que se imaginam obstáculos,
por exemplo, entrar em uma floresta, e ao mesmo tempo estar atento aos perigos, reagir a
qualquer sinal de ameaça, e mostrar prontidão para defender-se. O guerreiro de cada um é então
apresentado a partir da criação de movimentos específicos associados a sons. Apresentar-se
através desses movimentos e gritos, afirmando esta energia aos demais, e ver-se também refletido
quando os outros repetem os movimentos, são formas de canalizar e familiarizar-se com esta
energia, esta força.
Cada um cria, através de improvisação de movimentos e sons, toda a sua trajetória de
guerreiro, desde o dia do nascimento até o dia de hoje, tentando expressar as lutas que
enfrentou, atitudes tomadas a partir de desafios, ações e reações, todas acompanhadas de
vocalizações na energia do guerreiro. Ao chegar no momento atual, cada um deve chamar os seus
aliados, conquistados durante o caminho, e ter em vista o seu horizonte, a trajetória que pela
frente, e terminar o exercício no impulso da continuação da luta. É criada assim a expressão de
sua trajetória de vida através da trajetória e corpo do guerreiro.
Trata-se de uma energia ativa que é acessada e a voz aqui ressoa no peito, na região mais
baixa do peito, com relação muito clara com o apoio que é necessário para esta emissão. A base
113
larga e o centro do corpo baixo contribuem para dar o apoio necessário à emissão destes sons
fortes. Aqui o sentimento mais procurado é a raiva. A raiva que pode ser uma defesa, uma forma
de se manter inteiro, protegido de qualquer ameaça. Esta raiva é acessada mexendo muito com a
musculatura na altura do estômago. Prazeres provoca essa consciência através de diferentes
estímulos, a pressão forte no ponto específico na altura do estômago, próximo ao diafragma, que
também está sendo despertado, e jogos corporais de barrigadas, com música e em relação com
algum colega.
O animal aqui trabalhado é o lobo, presentificado principalmente através de seus uivos e
do rosnar. Também a postura e o movimento do pescoço para o alto é acionado com o som. O
uivo como forma de chamar os aliados, o bando, como sinal de contato e de apoio. Jogos entre
guerreiros e lobos, na floresta, ou depois coletivamente em uma arena, na qual ficam os
guerreiros no centro e os lobos em volta, são formas de provocar mais esta energia de força e de
defesa.
Estes jogos provocam realmente um movimento bastante agressivo que pode ocasionar
reações variadas. Uma reação possível é, ao sentir-se agredido, desmanchar, chorar, não ser capaz
de sustentar a raiva que defende, a força, e isso se com um relaxamento da musculatura
abdominal. Prazeres provoca esta musculatura no sentido de se manter o tônus e assim a atitude
de força e de defesa. Outra reação possível é de realmente defender-se. Mas junto vem o medo de
ser agressivo, de machucar o outro. É então o momento de afirmar: “eu tenho a minha força”,
“você não vai me machucar”. E assim conseguir abrir-se para uma reação saudável, em
determinadas situações que exigem essa energia de enfrentamento. Conseguir olhar para os
outros ou para aquele que provocou a raiva e afirmar a força pessoal é um desafio que deve ser
sustentado até o fim e servir de exemplo, contagiando também os outros. Assim como cada
guerreiro mostra suas particularidades, cada um mostra suas atitudes habituais em relação ao seu
guerreiro, muitas vezes recorrentes, e tenta modificar padrões, permitir o contato com esta
energia adormecida.
Saxofone:
- região de emissão: segmento posterior da cavidade bucal;
- região de ressonância: baixo ventre;
- arquétipos: a mãe/ o mar/ o inconsciente;
114
- expressão corporal: os primatas/macacos.
A voz de saxofone corresponde aqui à voz mais grave, que ressoa na região do abdômen e
está associada ao arquétipo da mãe. Através de músicas com vozes que trabalham nesse registro
ou que despertam sensações de integração, fluência, associadas ao inconsciente, ao mergulho, é
mobilizada essa energia.
Nas dramatizações, é trabalhada a figura da mãe em pequenos grupos, nos quais os
integrantes contam determinada situação característica do padrão de comportamento de sua
família, incluindo a mãe. Esta situação é dramatizada por uns enquanto outros observam.
depois alteração de papéis, outras versões possíveis para as atitudes e reações identificadas, sendo
então debatidas pelo grupo no final. Um pequeno psicodrama familiar, porém, mais lúdico.
Estas relações familiares são trabalhadas também através do macaco. Neles podemos
observar determinados comportamentos na vida em grupo, comportamentos instintivos, que
podem ser identificados também nos humanos. A formação de um grupo familiar inicia com uma
fêmea, que primeiro cria o ambiente, escolhe o lugar, para depois chamar o macho e procriarem.
O macho, chefe da família, trabalha trazendo alimento para seus filhotes. Ele possui sua
autoridade, mas pode ser desafiado por algum outro macho. A voz é trazida para o registro mais
grave, da voz dos macacos grandes, dos gorilas.
Ao dramatizar essas relações, agora sempre vocalizando o som dos macacos e
corporalmente buscando sua movimentação, cada participante escolhe seu papel na família. Ser
pai, mãe, filhote de determinada idade, jovem fêmea, ou jovem macho, são possibilidades entre
as quais cada um deve escolher o seu papel. Define-se um território para cada grupo, se houver
mais de um, e as relações familiares. Nada impede que estas famílias se transformem, quando
determinado macho enfrenta outro, na luta pelo território ou pela fêmea.
Neste jogo, são mobilizadas e observadas as relações e atitudes escolhidas por cada um,
no sentido sempre de identificar padrões, e se limitantes, tentar alterá-los, buscando sempre
experimentar também atitudes diferentes, que expressem o desejo de realização e transformação
em relação aos antigos padrões.
Canções que se aproximam de um lamento coletivo trazem emoções intensas, diferentes
do choro infantil, são choros carregados de sofrimento, que refletem dores femininas, trazem
imagens de abandono e dor. O consolo aparece através da identificação e do apoio mútuo. Um
115
grande colo é vivenciado, envolvendo todo grupo, um colo coletivo, onde todos são embalados,
alterando-se quem dá e quem recebe colo, para que todos passem pelas duas posições.
Uma sensação de muito conforto e de grande centramento é gerada por este trabalho, com
a voz neste registro mais grave, ressoando nesta região mais baixa. Gera como que uma conexão
com uma força interior muito diferente da do guerreiro. Uma força que é amorosa, generosa, que
recebe, acolhe e dá amor, proteção.
Para encerrar este trabalho é proposta a ação de desfazer couraças, fazer movimentos de
retirar, rasgar, romper, tentando eliminar as tensões musculares crônicas, que determinam os
padrões de comportamento identificados. É usada uma música específica que vai aos poucos se
intensificando. Trabalho intenso fisicamente que pode ser acompanhado ainda por emoções
intensas. Tensões na face são “rasgadas” como que se desvencilhando de máscaras grudadas por
muito tempo, renovando as expressões presentes.
Após este desmanchar das tensões um momento mais tranqüilo de assimilar esta nova
liberdade em termos de movimento. Tal libertação de padrões é agora tecida também através de
gestos, uma rede de luz ao redor do corpo, como que criando uma proteção luminosa, e
integrando as diferentes energias despertadas.
Este trabalho com os ressonadores, através das energias arquetípicas, difere muito de uma
abordagem mais técnica de trabalho exclusivamente vocal. Difere também da abordagem técnica,
corporal e energética desenvolvida pelo Lume. Aqui, a exploração das vozes e dos ressonadores
está intrinsecamente ligada à abertura a estas energias muitas vezes escondidas e negadas por
comportamentos padrões.
Além de serem experimentadas estas diferentes possibilidades de uso da voz, vemos que
gradativamente a voz torna-se mais densa, mais encorpada. Este termo mesmo é usado por
Simioni quando descreve a qualidade criada na voz quando sobreposta ao corpo vibratório. A voz
torna-se mais tranqüila, com seu timbre pessoal mais definido, enquanto que determinados
padrões são dissolvidos e conflitos identificáveis são muitas vezes apaziguados.
Vemos que inúmeros jogos e exercícios são extremamente úteis e próximos de algumas
propostas experimentadas nos trabalhos com atores, como, por exemplo, trabalhar com
determinados verbos, incorporar diferentes animais, utilizar as línguas inventadas. A diferença é
116
que aqui o enfoque terapêutico garante um envolvimento em profundidade sempre tocando
conteúdos internos das pessoas. Se pensarmos em um direcionamento para o teatro, este
envolvimento não deve ser evitado. Mesmo que não se tanto espaço para problemas pessoais,
em um nível interno e de processo auto-expressivo, deve haver, sim, envolvimento e
profundidade. Creio que podemos fazer um paralelo deste trabalho com os processos de busca de
potenciais criativos adormecidos, que são trabalhados pelo Lume. A diferença é que aqui
determinada energia é estimulada, todos trabalham numa mesma direção. É diferente de um
processo no qual surgem materiais corpóreos diversos e não pré-determinados, a partir do
trabalho físico intenso. Acredito que, no entanto, os conteúdos, energias, atitudes corporais
acessadas, carregam consigo particularidades de cada participante, e são reais potenciais criativos
despertados.
Outra questão seria a de como resgatar estes conteúdos e forma. No entanto, isto poderia
se constituir em um outro momento quando desenvolvido por atores e com este objetivo. De
qualquer maneira, as energias foram mobilizadas, despertadas, as emoções experimentadas, e
sempre através de uma constante participação corporal e vocal com características e qualidades
bem identificáveis, memorizáveis e resgatáveis.
II.2.3.2. Os cantos sagrados e a conexão com o transcendente
O Vibrato Crescente culmina com os Cantos Sagrados de Cura, que têm por objetivo
harmonizar as emoções trabalhadas, buscando a tranqüilidade e a integração, deixando agir o
trabalho de abertura que antes foi desencadeado. Os Cantos acontecem em regime de imersão.
Um retiro de dois dias, em algum lugar que ofereça estadia, tranqüilidade e contato com a
natureza, no qual os participantes possam ficar retirados do envolvimento com suas vidas
cotidianas por aquele período.
São exercitados então alternadamente cantos de diferentes tradições que, segundo
Prazeres, são os sons do coração:
O coração tem uma voz. O nome de Deus tem muitos sons. Na tradição hindu o chakra
cardíaco é uma flor de lótus vermelha de 12 pétalas. Cada pétala é um caminho que leva ao centro:
o pequeno lótus, ou o som interior. Na tradição sufi, os místicos são "homens do coração": aqueles
117
que escutam o som interior. No Tibete, os monges cantam para se afinar com o "zumbido smico
do Universo". (PRAZERES, 2005)
Os “sons do coração” são cantos sagrados de diferentes tradições culturais, como, por
exemplo, os mantras, da cultura hindu, os cantos sufis, e os cantos da antiga tradição judaico-
cristã, com poderoso efeito harmonizador das pessoas. Os mantras são bastante utilizados durante
o encontro. Mantras da tradição hindu e da tradição budista são usados com objetivos
específicos. São frases repetidas, faladas ou cantadas, cuja sonoridade em si já carrega seu
significado e seu efeito sobre quem pronuncia. Podem ser entoados com alguma intenção: de
agradecimento, de pedido, para desfazer algum determinado comportamento, ou saudando ao
semelhante ou a alguma divindade, e induzem determinado estado ou emoção no praticante.
É interessante observar que estas tradições foram importantes para os autores e
encenadores estudados na primeira parte deste trabalho. Artaud aproxima-se num primeiro
momento da Cabala da tradição judaica, e depois vai buscar contato com outras práticas rituais.
Grotowski estuda e se aproxima da tradição hindu, da qual, por algum tempo, também procura
extrair exercícios como os da ioga para adequá-los ao trabalho do ator. Assim também Brook tem
sua busca espiritual, através do contato com a tradição sufi, que certamente se faz presente em
suas pesquisas teatrais.
Nos Cantos Sagrados, grande parte do tempo é dedicada ao aprendizado da técnica do
Overtone Chanting ou Canto Difônico. Este último, originário da Mongólia, consiste em um
canto em que diferentes harmônicos são produzidos simultaneamente pela voz. Era praticado pelo
homem simples do campo que ainda era capaz de escutar os infinitos sons emitidos pela natureza.
Canto Difônico, pois são dois sons ou mais que são emitidos, fragmentando-se o som em mais de
um harmônico. Estes cantos foram retomados pelos monges tibetanos, que desenvolveram o
Overtone Chanting, como técnica de meditação, mantendo a emissão de um tom grave constante
enquanto outros sons mais agudos são produzidos.
A emissão desses sons é capaz de produzir uma harmonização nos chacras, um
realinhamento dos mesmos, equilibrando a circulação de energia. Através desta harmonização
estaríamos nos alinhando mais rapidamente com a direção de nossa evolução. Esta ação sobre os
chacras acontece através da vibração destes cantos. Assim também estaríamos nos sintonizando
com o “zumbido cósmico”, uma ressonância sonora do universo, um som constante que existe e
que perdemos a capacidade de escutar.
118
É uma técnica simples que pode ser aperfeiçoada pela prática mais constante. A idéia
básica é encontrar regiões de emissão do som no qual ele se fragmenta e outros harmônicos são
ouvidos. Em exercícios usando as vogais o, u, i, emitindo-as com exagerado uso da musculatura
labial envolvida, e passando de uma vogal a outra bem gradativamente, começamos a identificar
esta bifurcação do som. Um som mais grave se mantém, criando uma base, e notas mais agudas
são também identificáveis. também outros exercícios como movimentar a ponta da ngua,
rente à raiz dos dentes incisivos superiores, para frente e para trás, experimentando também as
alterações nos sons. Usar também sons mais nasalados passando do u ao é, e ao u novamente,
dizendo uel, é outra possibilidade. Aos poucos o nosso ouvido parece sintonizar-se com estes
sons que estão numa freqüência superior.
Os cantos são exercitados em grande grupo e é a partir da junção destes sons dos
diferentes harmônicos que começamos a escutar as sinfonias celestiais. São como que
“badaladas” de sinos, ou “cantos de anjos”. Inúmeros outros sons e melodias começam a ser
produzidas, a partir dos sons constantes emitidos. Exercitando individualmente podemos ser
capazes de emitir estas escalas de harmônicos sozinhos. É necessário treino, também para o
ouvido. O som grupal, no entanto, é realmente mais impressionante e, segundo Prazeres, quanto
maior o número de pessoas participando, melhor.
À medida que praticamos, é criado um estado de integração e centramento, no qual a
mente é tranqüilizada. É como se fossemos nos sintonizando com estes outros sons, nesta outra
freqüência e isto nos equilibrasse, corpo, emoções e mente. É feito também um exercício no qual
uma pessoa deita no centro de uma mandala criada pelos outros participantes e apenas ouve e
recebe a vibração do som. É a mandala de cura, na qual o poder de re-equilíbrio energético atua
fortemente. A pessoa que recebe está completamente entregue e pode sentir a vibração da energia
com todo seu corpo. São vibrações que se sobrepõem, e a energia do corpo vai sendo trabalhada
pela vibração do som. descrições como, por exemplo, de ser puxado pelo som, para o alto,
havendo comoção e como que uma limpeza de emoções.
Podemos identificar aqui, assim como em toda a abordagem desenvolvida por Prazeres
com a voz-terapia, uma visão holística do ser humano, e da vida como um todo. A noção de que
somos um todo, sem divisões, no qual se integra corpo, emoção, mente e espírito. E que somos
parte integrante de um todo maior que é o universo assim como somos conectados entre nós,
119
seres humanos. Estas noções aparecem bem claramente e como que se confirmam pela prática
exercitada.
O resgate destas tradições espirituais faz parte da busca holística do nosso tempo.
Segundo Pierre Weil, em seu livro Nova linguagem holística (1987), esta visão holística está
refletida na arte e na cultura, através da aproximação Oriente-Ocidente. Podemos identificar este
movimento nas buscas do teatro contemporâneo. Neste trabalho dos cantos é trabalhada mais
especificamente a conexão alcançada com o cosmos, com este som do universo e, ao mesmo
tempo, significa um centramento, um contato com o som do coração, com o centro interior de
cada um, reafirmando a unidade interior-exterior, indivíduo e cosmos.
Podemos aqui fazer um paralelo com as últimas pesquisas de Grotowski, e pensar que a
harmonia e o equilíbrio buscados no trabalho com os cantos sagrados aproximam-se do estado de
integração e “benção” buscado por Grotowski, com os cantos de tradição. Aproxima-se também
pelo fato deste último trabalho não ser mais destinado a apresentações para público aberto.
Assim, por um lado, ambos vão ao encontro do ritual e buscam uma emoção mais sutil, a
sensação de elevação, de conexão com o todo, com a vibração cósmica. Corpo e voz conectados
através da sintonia com essa vibração, esses impulsos, agora mais sutis. Por outro lado, é claro
que no trabalho de Grotowski a codificação é muito mais rigorosa. Como trabalham para a
fixação de uma seqüência de ações, também o canto é minuciosamente aprendido e executado.
Temos, então, que a organicidade da fala aqui experimentada está associada a uma
integração do ator com um vel transcendente, que podemos dizer espiritual. A organicidade
aqui ultrapassa o individual, uma verdade particular, um fluxo pessoal de movimentos ou
impulsos internos, mas é uma organicidade que se estende a um fluxo entre ator e espectador,
entre os atores ou participantes e mesmo com o espaço e tempo presente. É um estado de
presença total, que contagia.
120
CONCLUSÃO
Termino aqui o percurso deste trabalho, um percurso de questionamentos, pesquisas
práticas e teóricas, e reflexões sobre a relação corpo e palavra no trabalho do ator, sem pretender
esgotar inúmeros caminhos que se abrem a partir dele. Importantes idéias e experiências sobre o
uso da voz e da fala pelo ator nos trazem algumas respostas, reflexões, e nos sugerem novas
questões e focos para uma possível pesquisa prática.
Retomo aqui alguns níveis de reflexão que se definiram e que podem ser aprofundados em
futuras pesquisas, bem como algumas conclusões que este trabalho permitiu, sobre a busca da
organicidade da fala do ator.
A relação corpo e fala pode ser amplamente analisada fora do contexto do teatro. No
campo da psicologia, certamente este tema seria desdobrado em muitas abordagens. A voz como
expressão do indivíduo, de sua personalidade, de sua memória, de seu meio social, de seus
conflitos, de suas idéias, é um campo vasto, que não nos cabe aqui esgotar. Gostaria de destacar,
no entanto, a visão da carga afetiva que a voz carrega. O afeto que se concretiza pela voz, em
todas as suas qualidades, supera os significados das mensagens enunciadas. A emoção e a
sonoridade são componentes orgânicas dessa afetividade da voz. Através das idéias de Jung nos
detivemos aqui nas emoções ligadas a arquétipos simbólicos e pudemos entender que elas
constituem elos energéticos entre o ator e o espectador.
No trabalho de Sonya Prazeres, por caracterizar-se como um trabalho terapêutico, é a voz
pessoal e única que é revelada e resgatada, nas suas possibilidades de relação e na descoberta de
sua amplitude. Para o ator, este processo de conhecimento vocal e de ampliação expressiva da
voz será fundamental. A voz-terapia parece oferecer esta oportunidade, trabalhando sempre os
vínculos internos da voz e da fala, com as sensações corporais e as emoções acessadas.
No trabalho de Simioni, especificamente no território do ator, já vemos um possível
caminho de resgate dessas diferentes vozes que vão sendo reveladas e conscientizadas: um
trabalho técnico que possibilita que se identifiquem e recuperem organicamente, através da
memória corporal, as vozes descobertas. Estamos aqui já na especificidade do trabalho do ator, de
recuperação do material expressivo criado no seu corpo e na sua voz, e do trabalho de
composição que é feito com ele.
121
São dois trabalhos com focos diferentes, que parecem ser essenciais na formação do ator
contemporâneo. Dois contextos de aprendizagem nem sempre possíveis em cursos formativos ou
processos criativos de espetáculos. Um deles acessando os potenciais criativos próprios do ator e
outro exercitando um caminho técnico, corporal, que abre uma abordagem física para a voz.
Podemos pensar que esses trabalhos nos direcionam para um enfoque específico de
trabalho vocal, aliado à ritualização da fala, afinando-se com as encenações rituais, na linha dos
trabalhos enfocados aqui. No entanto, não são limitantes, pois não definem um estilo específico,
mas abrem ao ator o seu universo vocal, afetivo e energético, oferecendo recursos para resgatá-lo.
Esta consciência poderá ser aproveitada em inúmeras concepções teatrais servindo de bagagem
vivencial e expressiva para o ator.
Os diferentes textos literários, que poderão servir de material para a cena, são um outro
campo de pesquisa riquíssimo. O quanto o teor poético de um texto influencia o tipo de
envolvimento do ator e a qualidade de sua fala é uma questão ainda a ser aprofundada. Nas
pesquisas analisadas aqui, o conteúdo mítico contido nos textos literários abordados, pode
propiciar um contato orgânico com a ação ritual do ator que mergulha na sua memória corporal.
As diferentes aproximações em relação ao texto: a análise racional, o estímulo à
imaginação, o despertar de emoções transmitidas pelo autor, pela musicalidade e pelos conteúdos
míticos e simbólicos, são caminhos a serem desvendados e podem ser focos de futura pesquisa
prática no âmbito da voz e da fala. No âmbito deste trabalho, é a palavra enquanto mito que
mobiliza os fluxos vitais no ator e cria um vínculo interno com o seu corpo-memória.
Cada ator deve revelar uma relação específica com seu corpo e com sua voz, definindo
também diferentes elos orgânicos entre sua corporeidade e sua expressão verbal. Assim também
determinado grupo, diretor ou processo, pode sugerir uma abordagem particular da fala e da voz.
A busca da ritualização parece ser, no entanto, uma abordagem marcante dos novos caminhos do
ator.
Podemos identificar esta vertente com uma visão holística do ser humano que parece
emergir no ápice do desenvolvimento de uma sociedade fragmentada e laicizada. Vemos no
trabalho do ator, aqui abordado, uma busca de profundidade e integração, chegando assim a um
caminho espiritual, de re-conexão com o todo. É através deste princípio holístico que acontecerá
a interação com o público.
122
Vemos que estes grandes homens do teatro que aqui estudamos, Artaud, Grotowski e
Brook, vão aproximar-se de tradições espirituais, nas suas buscas, que acabam por ultrapassar o
território do teatro. Artaud com a Cabala da tradição judaica, depois com suas vivências com os
rituais primitivos no México. Grotowski aproxima-se da cultura hindu, dos princípios da Ioga, e
mais adiante de outra técnicas rituais, que buscam o contato com outras realidades. E Brook
descobre na tradição Sufi um caminho espiritual.
Na comunicação com o público, esta busca espiritual também vivenciada pelo ator, se
traduzirá no trabalho cada vez mais com criações pessoais, não necessariamente a serviço de uma
composição de personagens, ou de determinado contexto narrativo. No momento em que o ator
abre-se para diversas energias arquetípicas, a comunicação com o público se dará também nesse
nível simbólico.
A voz, na integração entre o corpo e a palavra, na direção do desvendamento do ator,
parece incluir este aspecto transcendente. Uma “fala orgânica”, vinculada ao corpo, pressupõe
uma dimensão espiritual que habita este corpo, e que se expressa pela voz e pelas palavras. A
organicidade da fala passaria, então, por incluir nesse organismo, que é o corpo humano, um
aspecto transcendente. Temos aqui a necessidade de uma nova visão, uma visão holística que se
torna necessária para compreender o ser humano como um todo que inclui um aspecto espiritual e
que está conectado também com o todo de uma realidade maior. Podemos afirmar que é uma
realidade energética que integrará corpo e fala.
Pela observação e vivência das práticas aqui relatadas, reafirmo as experiências dos
encenadores estudados, em muitos aspectos, e chego à conclusão de que esta procura
aprofundada das energias potenciais do ator, inclusive na voz, leva a uma abertura de inúmeras
possibilidades de vozes, e também de sobreposição de significados e leituras. O ator não se limita
à criação de uma coerência da personagem, ou à tradução de idéias. Abre-se não para os
paradoxos, como para as multiplicidades expressivas e significantes, através da voz, do corpo, da
fala, re-criando a emoção, os desejos, as idéias, aceitando uma “polifonia” própria do ser
humano.
Podemos aqui associar simbolicamente, a palavra, a linguagem verbal e a fala, com a
energia masculina, criadora, o sopro inspirador. E o corpo, com a energia feminina, ligada à
vivência do sensorial, da receptividade e da geração de vida. É um ponto de vista que não nos
123
propusemos a abordar no âmbito deste trabalho, que, no entanto, de forma simbólica, sintetiza os
processos envolvidos nas pesquisas aqui enfocadas sobre a organicidade da fala.
Borie identifica nas idéias de Artaud um ator que incorpora o feminino e o masculino, um
deus que é homem e é mulher:
O ator de Artaud, que integra o masculino e o feminino, carrega de uma vez a in-
diferenciação e as diferenças, assim como o herói fundador da ordem cultural que a antropologia
analisa. [...] O herói cultural, se ele conserva algo da in-diferenciação primeira, participa também
do divino com o qual começa a marcar sua ruptura. Sua ambivalência, sua in-diferenciação são as
da natureza, mas também as dos deuses. É o privilégio que ele partilha com eles, e que ele
reconstitui, de certa forma, em benefício dos homens. (BORIE, 1989, p.24)
Artaud descreve os rituais dos Tarahumara, nos quais o xamã incorpora também esta
totalidade feminina e masculina:
Vi, sobretudo, os sacerdotes do peyote, no momento de executar esse rito por natureza
macho e fêmea, atirar ao solo seu chapéu europeu e colocar a fita de duas pontas, como se
quisessem mostrar através desse gesto que entravam no círculo da Natureza de pólos imantados.
[...] é porque são feitos do mesmo tecido que a Natureza e porque, como todas as manifestações
autênticas da Natureza, nasceram de uma mescla primeira. (ARTAUD, 1998, p.90)
Temos nesse teatro ritual a criação de um novo corpo, um corpo pagão, em transformação
através do ritual do teatro. Um corpo que é fluxo vital, emoção e memória, que inspira o ar, o
sopro, a palavra, recebendo seus conteúdos e gerando, nesse encontro, a voz, o som e a fala. Num
processo ativo e passivo, receptivo e criativo. Numa relação do corpo do ator com o autor, com
os mitos, com a sonoridade e com o ritmo. Na integração das polaridades, dos opostos, o ator é
um símbolo vivo de completude.
Bachelard, em A poética do devaneio (2001), voz à sua anima, e resgata essa fonte de
palavras, fonte de imagens, que é a própria matéria e sua memória, e cria uma linguagem verbal
vinculada ao corpo, aos símbolos e aos mitos que nos habitam. É encontrando em si estas vozes,
ao mesmo tempo masculinas e femininas, bem como outras energias arquetípicas, que o ator
organicidade à fala.
Além destas reflexões, as abordagens da prática das pesquisas vocais aqui analisadas nos
oferecem princípios e exercícios claros e ricos a serem experimentados. As práticas de Simioni e
124
Prazeres se complementam quando identificamos que os trabalhos partem de diferentes pontos. O
trabalho energético e a construção da estrutura física para a voz, desenvolvidos por Simioni,
partem do corpo, sem incluir a voz num primeiro momento. Assim, abrem passagem, canais,
preparam o terreno, para a experimentação vocal, criando uma voz que será sempre encorpada,
será parte do corpo. No sentido oposto, o trabalho de Sonya usa a voz como ponto de partida.
Através da expressão das emoções e da ativação de energias específicas por meio da voz desperta
também o corpo do ator, ampliando suas possibilidades expressivas e criativas.
Temos ainda, a partir da análise desenvolvida, também na primeira parte, que a
organicidade da fala surgirá dentro de um estado alcançado pelo ator, um estado de conexão com
o momento presente, de verticalidade. Essa verticalidade parece ser a resposta para a integração
de diferentes elementos de expressão do ator, de diferentes energias, da mais densa à mais sutil,
na qual o ator experimenta uma consciência abrangente. A voz simplesmente não deve tirar o ator
desse estado; ao contrário, deve favorecer o seu alcance, para que a vontade excessiva ou a
intenção propositada não interfiram no fluxo das energias ativadas. As ações corporais e vocais
vão canalizar essas energias após um período de conquista de abertura expressiva e de
desenvolvimento técnico para que essas expressões sejam resgatadas.
Assim, o trabalho do ator, como diz Simioni, é uma forma de pesquisar e desenvolver o
ser humano, descobri-lo, transformá-lo, recriá-lo nos seus aspectos corporal, orgânico,
energético, emocional, mental e espiritual. Revelando como que outras dimensões da existência,
que vão da energia material, densa, do lado animal do homem, a uma energia imaterial, sutil,
espiritual do ser humano, que o liga ao cosmos, segundo a visão holística do mundo.
No estudo aqui desenvolvido, chegamos à compreensão de que corpo e palavra vão se
identificar pela energia do ator, que move ambos, e se traduz ainda em vibração, ritmo, ondas,
impulsos, que são como que canalizados pelo corpo e pelas palavras, definindo os símbolos,
integradores, com os quais nos comunicaremos e nos recriaremos através do ritual do teatro.
Consigo, assim, responder muitas das questões de pesquisa que me propunha no início deste
trabalho e oferecer outras, como um convite ao diálogo e à prática.
125
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130
ANEXO 1 Entrevista com CARLOS SIMIONI outubro de 2004
Estas questões foram elaboradas no início do processo da pesquisa desta dissertação,
com o objetivo de esclarecer pontos sobre o trabalho vocal no Lume, suas influências e
repercussões. A entrevista foi gravada e transcrita literalmente, e foi corrigida e
aprovada pelo entrevistado. A segunda parte da entrevista foi elaborada durante o
processo mais avançado da dissertação, para complementar determinadas questões.
Moira Stein A gente no trabalho do Lume influência da antropologia teatral,
do trabalho de Eugenio Barba, no sentido de pesquisa de técnicas para o ator e
da construção de um treinamento. Conhecendo também a influência de Grotowski
nas pesquisas do teatro contemporâneo, nesse trabalho de desvendamento do
ator, na procura de conteúdos mais profundos, o que tu consideras que tem de
Grotowski no trabalho de vocês, do Lume?
Carlos Simioni - Na realidade, o trabalho do Grotowski tem muito mais influência para o
Lume, do que o do Eugenio Barba. Quando o Lume começou, nós, atores, o
conhecíamos o trabalho do Eugenio Barba. O Burnier havia trabalhado com os atores
de Grotowski. Nos nossos dois primeiros anos de pesquisas, fizemos uma busca,
mergulho interno, baseado no trabalho de Grotowski, mergulho dentro do próprio corpo.
Vasculhar aquilo que está adormecido, trazer à tona, através do corpo, e a partir d
criar os próprios movimentos. Ou então criar novas vozes, tudo de impulsos vindo do
corpo. O treinamento energético e o esgotamento físico, que fazíamos no início, eram
Grotowski. Logo depois conhecemos mais profundamente a antropologia teatral de
Eugenio Barba e começamos então a pesquisar. Eugenio Barba tinha pesquisado
todos os elementos básicos da antropologia teatral, o que significa, tanto os princípios
técnicos dos atores ocidentais como dos atores orientais. Nós fomos verificando que em
nosso trabalho, existiam os elementos básicos. Nosso trabalho é bem mais
Grotowski, ele parte do caótico, do buscar de dentro de você, a vida, o orgânico, e
depois, dentro desse orgânico, encontrar a técnica. Eugenio Barba faz o contrário,
131
ele parte da técnica. Ele pega uma cnica, uma seqüência de exercícios, uma
seqüência de ações, os princípios do teatro Nô, como o “koshi”, e do Étienne Decroux,
o “fora do equilíbrio” ou “equilíbrio de luxo”, e faz com que o ator memorize
tecnicamente, repetindo fortemente a estrutura física até encontrar o orgânico, o corpo
em-vida.
Nos primeiros anos do Odin Teatret, os atores trabalhavam muitas vezes junto com os
atores de Grotowski. Acredito que tem uma mescla dos trabalhos. Os atores do Odin
conseguem chegar à plenitude, ao estado de espírito, o estado de ator pleno. Eu jamais
conseguiria fazer um exercício técnico, puramente cnico. Utilizo a cnica, executo
seqüências físicas com organicidade, isso é decorrente do trabalho do Lume. Conheço
vários grupos de teatro, fora do Brasil, que seguem a linha do Odin, se apropriam dos
exercícios e reproduzem para seus próprios grupos. Nós começamos com o intuito de
pesquisar e encontrar novos treinamentos, novas técnicas, por isso quando
conhecíamos os treinos do Odin, além de usá-los, transformávamos e adaptávamos ao
nosso interesse. O próprio Barba sugere que os grupos inicialmente copiem outros, mas
que isso sirva somente para que encontrem sua própria identidade Eu trabalho desde
1989 com Iben Nagel Rasmussen, atriz do Odin Teatret, em seu grupo “Ponte dos
Ventos”. Lembro que no primeiro dia de trabalho, ela pediu para que cada ator
mostrasse o que sabia fazer. Uma atriz mostrou um exercício que aprendeu do ator
Cieslak, do Grotowski. Era um passo que pulava e saltava e depois saltava e... E ali,
nesse passo, a Iben começou a desenvolver algo novo, junto conosco. Um tinha uma
idéia, outro tinha outra idéia, e foi dque surgiu a “dança dos ventos”. A Iben também
é uma pesquisadora. Ela não se contenta em somente aprender um passo e reproduzir,
mas vê no que pode ser transformado.
Moira Stein Como estou tentando definir o que é o “teatro ritual”, vou te fazer
uma pergunta quanto a este aspecto “sagrado” ou “ritual” do trabalho do ator,
que teria desenvolvido Grotowski. No sentido de estar totalmente presente, não
na busca do ator consigo mesmo, mas também na relação com o espectador.
Esta busca de uma conexão consigo mesmo, com o outro e com algo que
132
transcende, algo transcendente. Isto existe também no trabalho de vocês no
Lume?
Carlos Simioni Na verdade, existe sim, hoje existe. Surgiu e não foi nossa vontade.
Nós não falamos sobre isso. Eu lembro que alguns anos atrás, eram três ou quatro
anos de Lume, uma etapa em que desenvolvíamos os treinamentos, o ator se
desnudava, mergulhava em si mesmo, dilatava o seu corpo, criava energia, dilatava
energia extra-cotidiana. Esses primeiros anos foram única e exclusivamente para criar
técnica, cnicas de ator. Eu estava em treino. Eram seis horas seguidas de treino.
Depois de seis horas chega-se em determinado estado de plenitude. Eu pensava: mas
e daí? E daí? E daí? Eu cheguei neste estado. E daí? O quê acontece agora? Por que
chegar aqui? Por que chegar aqui neste estado? Eu nunca estive neste estado? O que
é este estado? Eu parava de avançar, por exemplo, me centrava, me segurava dentro
daquele estado, e percebia que estava bem mais além daquilo que eu era. Eu estava
conectado... Com a sala... Puramente conectado. Bem ligado com a energia da sala.
Mais ainda, como se eu fosse, como se eu fizesse parte do passarinho que estava
cantando fora, você entende? Ao mesmo tempo uma conexão com o todo. Com o
todo... Aí eu pensei: mas então é impossível. É impossível. Não tem jeito. O trabalho do
ator leva a isto. Porque eu o busquei isto. Mas eu estou chegando a isto... O que é
isto? Ritual? Mas eu não faço ritual nenhum!... Mas eu faço um ritual. Porque sempre
nesta sala o procedimento é o mesmo. Eu entro e me despojo, me desnudo, me
entrego, tenho esse trabalho como sagrado, é o meu ofício, eu respeito, eu sempre
procuro ir além, sempre procuro limpar o que está impreciso. Sempre procuro
aprofundar, sempre procuro mergulhar, sempre procuro buscar algo novo, sempre
procuro fazer isto para o bem do teatro. O teatro em si é uma energia, uma
sabedoria, uma entidade, uma “religião”. E eu descobrindo todas essas coisas... Eu
nunca vou falar para ninguém sobre isto, mas vou desenvolver, ir adiante, vou ver até
onde vai dar. Mesmo que as pessoas o percebam, que não saibam que eu estou
fazendo teatro “que gera uma espiritualidade em mim”. Sou completamente descrente,
não acredito em Deus. Mas é impossível o perceber algo maior, algo mais forte,
porque eu sinto no meu corpo. Eu sinto em mim. Então por isso é sagrado, é ritual. É
133
por isso que sempre quando dou cursos, eu faço com que nosso espaço, a sala de
trabalho, seja sagrado, e que não entre nada que suje o trabalho. Isso mexe com as
pessoas. Ontem, alguns depoimentos dos atores que estão fazendo o curso mostraram
isso. Acredito que, mesmo sem encarar como algo ritual, o teatro é ritual e é sagrado.
Nós temos esta oportunidade de vasculhar, de desenvolver as qualidades do ser
humano, suas novas potencialidades. Isso também é função do ator. Não descobrir
novas cnicas, para o teatro, mas entender que o ser humano não é final. Não está
pronto. Está evoluindo.
Moira Stein Artaud utiliza a metáfora da alquimia para o teatro. Tu também
identificas no teatro este processo de transformação? Do próprio ator consigo
mesmo, da sua matéria, energia, e do grupo e das relações nos processo
criativos?
Carlos Simioni - E também do espectador. A transformação maior tem de ser do
espectador. É lógico, porque trabalhamos com algo que é concreto, que é energia, que
se move dentro de nós, que tecnicamente construímos e depois expulsamos, lançamos
- como a fazemos no exercício do “santo”: você lança, expande mais, mais, mais. E é
justamente para atingir a atmosfera com essa magia, essa energia. E com certeza, o
espectador sente. Às vezes, alguém sente até dormindo, outros sentem algo forte no
estômago, ou no peito. Outros recebem pela pele, arrepios. Outros nem percebem, mas
se transformam. Assim é também no xamanismo, você faz trabalho xamânico e às
vezes não percebe mudanças de imediato. A transformação é lenta. Eu acredito muito
nessa alquimia. Para mim não teria graça fazer teatro se não fosse assim. Eu não sou
ator que gosta de se exibir, de mostrar somente seu talento. Não teria graça se eu o
provocasse algo nas outras pessoas.
Moira Stein - Vou te perguntar agora mais especificamente sobre a questão da
voz, sobre o trabalho com a voz. Tu terias alguns princípios, alguns elementos
básicos do trabalho, de como vocês trabalham esta relação do corpo com a voz,
do corpo com o som?
134
Carlos Simioni Não para separar. Nós temos visto na oficina, que existe o corpo
físico, o corpo energético, o corpo vibratório, o corpo “santo”. Eu diria para você que
tem o corpo vocal. É outra qualidade de energia, porque é vocal, mas é um corpo. É um
corpo que nasce de dentro do corpo físico e que tem a possibilidade de se expandir -
por causa do som, pois o som se expande, rapidamente -, mas vem do corpo, não tem
como separar. Mas se voz é corpo e se corpo é voz, por quê quando os atores que
trabalham o corpo e abrem a boca para falar, parece que a voz é zero e o corpo é
quinhentos, água e vinho? Nesse sentido, eu acho que é por causa do mesmo
problema que estamos vivenciando em nosso curso aqui. As coisas existem, que
você precisa tomar consciência. Você precisa saber como ativá-las. Você entende?
Então a voz é corpo, é lógico. Mas é preciso ativá-la, é preciso ter consciência, é
preciso saber o mecanismo dela dentro do seu corpo, e mais, assim como você chega a
um “fantasmapor que passa pelo “energético”, e passa pelo “vibratório”, você chega
numa voz incorporada, por que ela passa também pelo “energético”, pelo “vibratório” e
pelo “fantasma”. E é por isso que ela sai orgânica, mas isso nós descobrimos há pouco
tempo.
No Lume, o primeiro trabalho de voz que fizemos foi tecnicamente. Burnier contava que
quando morava em Quito e ía trabalhar voz nas montanhas, descobriu, percebeu os
ressonadores. Não sabia nada desse assunto e começou a descobrir voz de peito, voz
de nuca, etc. Quando encontrou o Odin e viu a Iben fazendo a demonstração técnica
dos ressonadores vocais, Burnier ficou feliz, pois tinha descoberto à sua maneira,
através de pesquisas corporais. No início dos trabalhos de Grotowski, Eugenio Barba,
que era seu assistente, foi para a Índia estudar os cantores indianos, que utilizavam os
ressonadores vocais, e trouxe para os atores do Grotowski, que colocaram em seu
treinamento. No Lume, o trabalho físico é totalmente enraizado com a pessoa, com a
afetividade do ator, portanto a voz também sai com esta característica, voz-corpo-
pessoa, voz-corpo-emoção, voz-corpo com os sentimentos, voz-corpo com a sua
história. A técnica ou a maneira de operacionar vai ajudá-lo a descobrir mil ou mil e
quinhentas possibilidades de vozes, diferentes qualidades de energias vocais, que
servirão para o seu treinamento, para abrir canais, mais canais, mais canais.
135
Para mim, a voz é a mais poderosa de todas as energias do ator. Ela pode realmente
perfurar o espectador completamente. Eu te dou um exemplo: a Iben faz uma
demonstração técnica chamada Branca como Jasmim, que é o percurso dela com a voz
durante esses anos todos de Odin Teatret. E ela vai falando, mostrando as vozes de
seus personagens, suas qualidades, e de repente você, como espectador, sente que a
voz dela entrou em você e, como uma bruxa, ela começa a te limpar. E você começa a
chorar. Uns começam a chorar, outros se sentem aliviados. Cada um tem a sua
experiência, depende do seu momento, mas é a voz que tem mais chance de entrar no
espectador, chance de entrar no espectador e de limpá-lo.
O trabalho vocal corporal, de voz-corpo, é fundamental porque expande o ator, ajuda a
dilatá-lo. Dentro do trabalho que fazemos constantemente nos treinos, de reduzir um
movimento ou uma ação para 50%, para 10%, para 1%, eu posso estar em cena, ativar
uma voz, do meu corpo e fazê-la a 0%, a musculatura da voz. Ajuda a estar mais
dilatado. Quando vou trabalhar um personagem, vou escolher vozes, inflexões, alturas,
tons, projeções, qualidades de energias, desenho, etc., mas o mais importante é que
essa voz seja carregada de espírito, de alma, de afetuosidade. Que seja diretamente
ligada com o meu ser.
Moira Stein - E no momento em que entra o texto, a palavra? Como é que vocês
se relacionam com a palavra? Quero dizer, a voz permite experimentos nos quais
tu a usas sem ter necessariamente texto e palavra, nessa procura das vozes,
numa exploração vocal. Quando é direcionado para uma composição cênica já,
quando um texto, como é que é? Enfim, tenho em mente também de se falar
em uma atuação não interpretativa, ou seja, uma abordagem do texto em que não
se procura a interpretação. Isto significa que tu te distancias daquilo que está
sendo dito? Ou não? Ou simplesmente não é uma coisa pré-concebida,
racional?
Carlos Simioni - Quanto a isso fizemos algumas experiências que deram certo, uma
diferente da outra. Uma delas, a primeira, é: você explora o universo de vozes, de sons,
no teu corpo. O passo seguinte é desenvolver esses sons transformando-os em
136
“grammelot”, que são palavras inventadas, várias palavras inventadas. A primeira
experiência que nós fizemos com texto foi assim: nós pegávamos um texto e
colocávamos o texto dentro daquela melodia que você tinha encontrado no trabalho
corporal e colocado nas palavras inventadas. Não tinha ligação nenhuma com aquilo
que estava dizendo, a princípio não tinha ligação nenhuma. Isso é necessário para que
se crie um estranhamento. Mas é preciso esclarecer que não interpretamos o texto, ou
seja, não tentamos colocar na fala exatamente as emoções que estão sendo ditas. Por
exemplo, a voz do espetáculo do Kelbilim, o cão da divindade”, do Lume. Como
usamos o texto? A voz: [exemplifica um tipo de voz]. Depois colocamos “grammelot”: [a
mesma voz com sons mais articulados]. Aí transpassávamos para um texto meu,
corriqueiro, texto de treino: [um texto com aquela voz]. Mas dito linearmente, sem
nuanças e interpretações. Depois pegávamos o texto do espetáculo: [trecho do texto
com a mesma voz]. E para fazer isso às vezes o Burnier me dava um ritmo. Ele dizia:
“você vai fazer esse texto como se você fosse tocar um bumbo”: [mesmo trecho do
texto marcando o ritmo sugerido]. Mais tarde pode mudar experimentando outros
ritmos. Depois nós construíamos o texto falado, utilizando tudo o que tínhamos
descoberto. É apenas um processo do trabalho do texto falado, não interpretativo.
Claro que depois, todo esse trabalho vai se juntando, se condensando, se
transformando naquilo que você está dizendo, de uma forma tão natural, tão orgânica,
que você até o absorve como texto e você pode ainterpretá-lo. Mas eu acredito que
eu não teria condições de criar uma maneira de dizer este texto de uma forma tão
criativa, ou tão diferente, se eu não fizesse esse processo invertidamente, começando
pela interpretação do texto falado.
Assim, eu estou chamando-o de “Chacal do medo! Olha me na cara! Não vês que dia a
dia estou secando!” [com a voz anterior]. E eu como ator, apesar de ter iniciado
tecnicamente, sem interpretar, e como eu já sei que isso está tudo memorizado no meu
corpo, eu me deleito em dizer aquilo... Porque é uma cena em que Santo Agostinho diz
isto para Deus, diretamente para Deus. Então eu me deleito em dizer aquilo para Deus.
Você entende? Eu não vou mudar a intenção, não vou mudar nada, porque já está. Isso
é novo e difícil de entender. Novo e velho. Velho porque você está sendo sincero, você
está dizendo para Deus mesmo. Isso é uma forma.
137
A outra forma se dá no Café com queijo. É a imitação, a mimese corpórea. Você imita a
pessoa. Você olha a pessoa, copia a corporalidade, a gestualidade, a energia da
pessoa, a voz da pessoa, a sonoridade da pessoa, a maneira como ela fala, a
musicalidade, o grave, o agudo, as pausas, tudo isso. Vograva em seu corpo-voz.
Eu vou fazer uma coisa pra você ter uma idéia. Um personagem que não é meu. É
do Renato Ferracini. Ele tem a voz gravada da pessoa a ser imitada e no trabalho em
sala fica repetindo: “eu já teve”. Escuta, desliga, escuta de novo, repete: “eu já teve três
acidentes”. Desliga, volta, repete: “eu teve”. o, não está: “eu...eu...”. E fica
tentando colocar: “eu...eu...”. Como ele tem trabalho vocal preparado anteriormente,
ele vai buscando essa voz, igual a que ele está ouvindo, do camarada que ele gravou, a
melodia, que o é do Renato, não é do ator. O que é quase o mesmo processo
anterior de que eu te falei. que no primeiro, sai de dentro pra fora. Neste processo
aqui, você pega de fora e tenta colocar em você, nas tuas caixas, nos teus
ressonadores. Então, no primeiro momento, o ator não está representando, porque ele
está tentando tecnicamente encontrar todos os encaixes da voz do outro, está imitando.
Porém, quando ele encontra, ele de novo se liberta. E pode, então, na cena, se
preocupar com a plenitude, e não mais em procurar a voz, em encaixar a voz, porque já
está. Acredito que ele possa até viver aquilo que ele está falando, interpretar.
Moira Stein Podemos considerar que uma determinada cnica está associada
ou define um determinado estilo, uma determinada poética de cena, ou é criada
especificamente para um determinado trabalho, um determinado estilo. Na
verdade, vocês têm um trabalho, uma pesquisa, que é de um trabalho
preparatório do ator, de treinamento, e depois se direcionam para vários outros
caminhos, para as composições cênicas. Vocês acham que esse treinamento,
essa coisa anterior às poéticas, define uma coisa própria, um estilo próprio? O
quê se mantém, que pode ser identificado em todos esses trabalhos?
Carlos Simioni - Na realidade não, porque em cada espetáculo do Lume a poética, ou a
estética mesmo, é diferente, totalmente diferente. O que tem em comum, em todas elas,
é a qualidade de energia. Inclusive não sou eu que falo, são as pessoas que falam.
138
Assim: “é impressionante quando você vai ver um espetáculo do Lume” - é o que eu
ouço. Existe uma atmosfera criada que impregna quem está assistindo, seja de clown,
dança pessoal, de mimeses corpórea, ou mesmo a Parada de Rua. O que é forte é a
presença do ator, isso é forte. Nós como Lume, enquanto atores do Lume, geralmente
não queremos repetir, achamos que não devemos repetir. Cada peça é o resultado de
uma pesquisa. Então, quando acabamos de construir uma peça, sabemos que não
vamos fazer outra peça igual. Não tem mais como fazer igual. Não queremos mais fazer
igual. Aquela ali é aquela ali. Também porque vai durar enquanto o Lume durar. O
Kelbilim tem 18 anos de idade. paramos de representar uma peça quando o ator
morre que é o caso do Valef Ormoso, quando Luis Otávio faleceu. E a cnica vai se
transformando. Por exemplo, para fazer o Kelbilim hoje, com uma técnica inventada
20 anos atrás, é um desgaste maior para mim porque eu tenho que voltar à técnica
antiga. Ela se desenvolveu tanto, tanto, tanto, que Kelbilim é uma coisa antiga para
mim, o expressa mais aquilo que sou, está expressando aquilo que eu era há 18
anos atrás. E continua vivo, e é o que eu faço. Mas no último espetáculo que
realizamos, o Shi-zen, a maneira como eu utilizo o corpo ou a energia é completamente
diferente. Por isso que muda tudo. Mesmo o clown. O Carolino tem 15 anos. O
espetáculo tem 10, mas o clown tem 15. Para eu segurar este clown 10 anos, 15 anos,
é um esforço bastante grande porque eu já tenho um outro clown, uma outra energia de
clown, que eu poderia usar.
Moira Stein - Uma última pergunta sobre o como tu vês a influência do Lume no
teatro contemporâneo do Brasil. muito tempo vocês têm essas pesquisas e
muito tempo que vocês viajam e dão oficinas, e enfim, o trabalho repercute.
Existem grupos específicos que vocês vêem que têm claramente a influência
deste trabalho de vocês? Ou é uma coisa que realmente toma outros rumos? Tem
algum outro grupo que vocês consideram que tem uma influência também assim
grande nesta questão do treinamento do ator? É isto, como vocês situam esta
influência do Lume?
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Carlos Simioni - Você sabe que é uma pergunta bastante difícil de responder. Nós
sempre fazemos esta pergunta. Penso que alguma coisa está errada. Porque são vinte
anos que o Lume está transmitindo, transmitindo, transmitindo, e eu fico pensando:
cadê? Cao resultado específico? O resultado preciso, o resultado que consiga ser
observado em outros grupos. O Lume vinte anos, viaja pelas cidades, pelo Brasil
todo. Quando chegamos, mostramos o que temos, os espetáculos, as demonstrações
técnicas e o treinamento através de cursos. Os atores ficam encantados, se
transformam, se comprometem a continuar. Desde sempre, desde sempre. E eu
pergunto assim: mas o quê o nosso trabalho tem mudado no teatro? Às vezes, eu me
revolto. Mas por quê estamos transmitindo? Para quem estamos transmitindo?
Nesse aspecto tivemos um grande adaptar-se no Lume, porque no início tivemos uma
prepotência, um erro, uma ingenuidade, a de transmitir de uma maneira bastante
arrogante. Nos primeiros anos dizíamos: treinamento de ator, oito horas por dia! O ator
tem que se dedicar ao trabalho porque o bailarino se dedica, o músico se dedica, o
operário se dedica. que os atores não tinham como sobreviver, e era impossível
dedicarem oito horas de treino por dia. Então eles olhavam nosso trabalho: “É lindo! É
bom, mexe comigo, mas só mexeu comigo”. Nesse sentido, então, começamos e
desenvolver um outro lado. Deve existir uma maneira. Nós fazemos oito horas porque
lutamos muito para conseguir. Até que descobrimos uma maneira de transmitir que o
ator possa fazer o seu treinamento em duas horas por dia. O que é absolutamente
normal hoje, e funciona. Por outro lado, vejo que muitos grupos começam... O Lume sai
da cidade e, com certeza, dos vinte que fizeram o curso, cinco resolvem se juntar e
continuar. Descobri que em muitos desses grupos o que não funcionava, na
continuidade, é, em primeiro lugar, que eles partiam logo para uma montagem. Vem o
diretor e diz: nada disso, vai por ali, faz por aqui. E como eles o são suficientemente
fortes para dizer: não, s queremos seguir. E como o trabalho também não é algo
enraizado neles, ele vai desaparecendo. Muitos atores utilizam o treinamento do Lume
para colocar no seu próprio trabalho, então o treinamento serve como um aquecimento.
Isso tem ajudado muitos grupos a se aquecerem, a estarem mais energéticos no palco.
Outra coisa, uma contribuição do Lume, por incrível que pareça, é o aguçar o desejo
dos atores formarem grupos. E muitos grupos se formam. Hoje muitos grupos, no
140
Brasil todo, que fazem teatro, que vivem de teatro e que querem viver de teatro. o
conseguem fazer o treinamento e viver dos espetáculos, também dão aulas, etc.,
mas espelhados no Lume constroem seus grupos. São grupos de teatro, estão fora do
eixo comercial, e tem o Lume como base. Isso eu acho importante.
Nós mudamos um pouco a nossa tática. O Lume não quer transmitir um modelo. Em
nossos workshops você encontra um trabalho de ator que pode ser desenvolvido
depois, a seu jeito, a sua maneira. Nós não queremos “método Lume”. Fomos muito
cuidadosos com isso. Não queremos aprisionar as pessoas. Semeamos e não sabemos
como vai ser. Queremos que utilizem o que transmitimos, mas para que cresçam e o
transformem em seu universo.
Outro dado importante, sobre a influência do Lume, é que vários atores saíram do Brasil
para ir buscar novas técnicas. Muita gente saiu das grandes cidades e voltou para sua
cidade para encontrar um grupo, para criar um grupo. Em Barão Geraldo, que é onde o
Lume mora, um vilarejo de 40 mil pessoas, existem 11 grupos de teatro e sete espaços
teatrais, e estes sete espaços são as sedes dos grupos. Existe uma troca muito grande
com estes grupos. Existe, por exemplo, o mês de fevereiro, que é o mês em que o
Lume workshops e são seiscentas pessoas, em dia, que se inscrevem.
Normalmente além do Brasil, pessoas de oito a dez países. Cada vez mais grupos de
fora do Brasil, convidam o Lume - por exemplo, neste momento, o Ricardo Puccetti está
nos Estados Unidos, está dando um curso de quinze dias. Nesse sentido, eu vejo que
o Lume está se tornando um modelo, e um exemplo de continuidade, que força a
outros grupos.
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ANEXO 2 Entrevista com Carlos Simioni - agosto de 2006
Esta segunda entrevista foi elaborada durante o processo mais avançado da
dissertação, para complementar determinadas questões que foram se definindo no
decorrer do trabalho. Também foi gravada e posteriormente transcrita.
Moira Stein - Vocês trabalham, no Lume, com a criação de matrizes corporais. Eu
queria perguntar se isto existe na voz também, se são matrizes vocais. Ou seja,
como vocês trabalham essas diferentes vozes, particulares de cada ator? Como
se essa pesquisa, essa criação? É a partir da exploração dos ressonadores ou
tem algum outro processo?
Carlos Simioni - É bastante vasto o trabalho de voz lá no Lume. Vasto por que são sete
atores, e sete atores que utilizam o trabalho a sua maneira, e outras vezes é comum.
Existe um pré-trabalho vocal, que é praticamente o que é dado nas oficinas. Esta base,
de você estar encontrando dentro do seu corpo, na estrutura física, o que é realmente a
sua voz, o que são os ressonadores. Então isto a gente chama de a base vocal. Desta
base, você tira todas as outras vozes, todas as matrizes. Isto é um ponto. Sobre isto
pra se falar bastante, que é todo o curso de voz, toda a introdução básica da estrutura
física da voz. Agora, tem vários outros tópicos.
Existe a matriz corporal da dança pessoal. As matrizes que vão aparecendo no trabalho
energético, no trabalho de busca das suas potencialidades, da busca de si mesmo, de
gestualidades, são o que a gente chama de dança pessoal. Se você tem esta base
vocal estruturada fisicamente, quando você aciona o seu corpo para encontrar matrizes
ou para mergulhar e trazer à tona o que está adormecido, com certeza vêm vozes junto,
sons e vozes.
Existe uma diferença entre som e voz, som do corpo e voz. Muitas vezes é som do
próprio corpo em movimento, som da respiração, som do respiro. Se você solta o seu
corpo em movimento e não se preocupa em segurar a voz, tem vários sons que saem
do corpo. A gente chama de som do corpo. Outra coisa são as vozes que saem da
dança pessoal, que a gente chama de matrizes. Você está num estado da dança
142
pessoal, numa matriz da dança pessoal, que primeiramente é encontrada sem voz,
pelo corpo, e, incrivelmente, existe uma necessidade do próprio corpo, de também se
expressar em voz. São vozes, tonalidades, que você nem imagina que é capaz de
fazer. Ou você não imagina que esse tipo de voz vai sair dessa matriz. Então você
mesmo se espanta, se surpreende com as vozes que vão saindo. Assim como você se
surpreende também com a gestualidade ou com a qualidade energética de uma matriz,
você se surpreende também com a voz, com a voz matriz. O fato de você está
totalmente inteiro no trabalho, pleno, e com um conhecimento prévio da voz corporal,
você consegue identificar uma matriz, a nova voz que sai. Você consegue identificar ela
dentro do corpo, onde que ela está localizada. Ou onde que ela ressoa. Ou onde que
ela vibra. Ou até de onde ela sai. Ou até mesmo com que carga emotiva ela sai. Aliás, é
importantíssimo você descobrir vozes. Quando você está em um trabalho de plenitude
de matrizes, ou de dança pessoal, porque elas vêm completamente carregadas de
emoções. Você consegue identificar e localizar ela no corpo. Neste aspecto, são muito
interessantes as matrizes, porque elas vão ser uma outra base para vários tipos de
vozes, que saem delas. Mas é preciso localizá-las no corpo, para que você consiga
repetir. No caso, você repete ali mesmo, no mesmo momento que ela sai, você fica um
tempo somente com essa voz matriz, voz matriz primeira, vamos assim dizer, para que
você identifique, pra que você memorize no teu corpo, pra que quando, no dia seguinte,
você quiser retomar, você pode retomá-la, porque ela está memorizada, você se
conscientizou disso.
Isso acontece em estado bruto. É quase impossível ainda você retomar as matrizes
sem a matriz corporal. Você não pode ficar sentado, ou parado, a princípio. Isso daí é a
descoberta das matrizes. depois, como é que se desenvolvem as matrizes? Quando
você está mais consolidado, acostumado com essas matrizes no corpo, daí você
coloca texto, brinca com palavras, brinca com grammelot, brinca com texto, brinca com
canções, brinca com volumes, baixo, alto, expansão, recolhimento, dessa voz. É
importantíssimo fazer isso com a voz, pra você ter domínio dela, por que ela vai ser o
porta-voz, olha que engraçado, ela vai ser o porta-voz do seu estado emocional. Por
que ela vai estar carregada de emoção.
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Como que você, depois de acostumado com essa matriz, trabalha ela em textos
prévios, quando tem texto, quando vai montar um espetáculo? A idéia é que você
deixa essa voz guardada, você deixa a matriz guardada, e trabalha o texto
primeiramente, a musicalidade desse texto, os tons. Você tem que decorar: acaba no
alto, acaba embaixo. Então, por exemplo, vou pegar exemplos prontos do Kelbelin,
um espetáculo que está pronto, pra adiantar. A sonoridade é: “cuidai-vos,
adolescentes machos, fêmeas...”. Então, você trabalha o ritmo, a variação, a
densidade, dessa fala. Quando você tem tudo isso mais ou menos trabalhado, você
pode colocar a matriz em cima dessas vozes, aí você vai construindo o texto. Isso é um
trabalho artesanal, porque você vai ver o que fica bom. Isto eu estou dizendo pra
trabalhar determinado tipo de texto, uma determinada maneira de falar o texto. A
maneira primeira que o Lume trabalhou, que é você planejar, você estudar, você criar
pensando, você elaborar, conforme a musicalidade do teu texto. E aí depois de pronto
isto, você grava, você escuta, você corrige. E então você vai colocar as matrizes que
você acha importante. Que você quer colocar. Então, por exemplo, no “cuidai-vos”, eu
digo com uma matriz sussurrando: “cuidai-vos”. pega uma outra matriz:
“adolescentes”. Aí eu pego a matriz voz de garganta, por exemplo, que pode ser:
“machos”..., Assim encaixo essas matrizes naquilo que eu quero. Aí depois de tudo isso
tem todo um trabalho de podar, de recorte. Está demais aqui, a densidade está forte, ou
está muito baixo, tudo isso. Certo?
Então essa é a primeira maneira de trabalhar a voz, que a gente codificou no Lume, e
que é usada até hoje nos trabalhos. Porque daí os atores m, no caso do Lume,
têm essa matriz enraizada, e quando surgem improvisações, saem vozes, e eles podem
limpar essa matriz. Sempre saem novas matrizes. Mas eles podem incluir a matriz
que eles já têm, em improvisações. Você faz uma improvisação com texto, por exemplo,
ou sai um texto, sai uma matriz. Isso é impressionante por que depois de um tempão
de trabalho, as matrizes elas vêm. Sempre vêm matrizes. Aí, é de você trabalhar
limpando tudo isso. Limpando, acrescentando, tirando. Aí é um trabalho artesanal
mesmo. Bom, isto é um ponto.
O outro ponto de voz é: eu tenho essas vozes, eu tenho essas matrizes, eu tenho o
conhecimento vocal do meu corpo, e vou fazer imitações, imitações de outras vozes, o
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que é muito interessante. Por que eu pego vozes de pessoas, ou vozes de animais, ou
vozes de canto e tudo mais. O quê que eu vou fazer? Se eu imito uma pessoa, então
eu vou gravar essa voz. Eu gravo essa voz. Eu chego em casa, eu chego do trabalho,
escuto a fita e tento reproduzir exatamente como eu ouvi, como eu estou ouvindo na
fita, ou como eu ouvi a pessoa. Por que eu estou ouvindo na fita a musicalidade, o tom
da voz, mas eu ouvi essa pessoa ao vivo. Eu tenho coisas memorizadas no meu
ouvido, e tento reproduzir exatamente igual, isso é um trabalho de formiguinha.
Exatamente igual, ali sentado mesmo, reproduzir aqui na caixa vocálica, vamos assim
dizer. Sem pensar em ressonância nada, é reproduzir a voz da pessoa como ela é e
ponto. Aí, o segundo trabalho é ver onde que essa voz que eu estou reproduzindo,
copiando, imitando, onde que ela começa a ressoar no corpo. Tem vozes que são mais
para baixo, tem voz que é na cabeça, que são agudas, têm vozes que são contidas.
Com a minha facilidade que eu tenho de reconhecer as vozes no meu corpo, isso é
muito fácil fazer. Feito isso, esse segundo tipo de voz, eu vou colocar as emoções da
pessoa que eu imitei. E o que significa “as emoções da pessoa que eu imitei”?
Emoções da voz. Se eu vou imitar uma pessoa. Quando eu falo imitar uma pessoa,
você sabe que é da mimeses corpórea, uma linha do Lume. Se eu escolhi essa pessoa,
com certeza essa pessoa tem algo que me afeta, se eu escolhi é por que em algo eu
me identifiquei. Então quando eu vou imitar essa pessoa, eu fico em estado dilatado,
sem essa pessoa perceber. Tudo aquilo que você percebe no curso, que você tem todo
um mecanismo de dilatar o corpo, mas também de esconder. Então quando eu estou
imitando, eu acendo o meu corpo, pra que as minhas energias alcancem a energia da
pessoa que eu estou imitando, alcancem a aura dela, alcancem a pessoa dela, a
vibração dela. Por que no estado dilatado, você fica muito mais poderoso, e mais
aguçado, e mais perceptivo, então você percebe o que está emanando, onde que dela
emana para o meu corpo. Se emana no meu peito, se emana na minha voz, na minha
garganta. Se emana no meu rosto, se emana no meu estômago, às vezes, emana no
sexo, nem sempre, mas têm pessoas que o sensuais. Então eu anoto tudo isso.
eu vou tentar, depois que eu reproduzi a voz, eu vou tentar no corpo dilatado, passar
a voz por essas regiões, que emanaram dela, para que eu traga a emoção na voz.
Você entende? Por que está no corpo. E como falei hoje na oficina mesmo. As
145
emoções estão na musculatura, então se você vibra, ela vem com emoção. Então essa
é uma outra maneira que a gente trabalha a voz.
A outra é simplesmente você se colocar em situação de improvisação e não pensar na
voz, porque quando você se coloca em situação de improvisação, para construir novas
cenas, você está dilatado. Você se aquece, você amplia os seus horizontes e tudo
mais, e você começa a deixar sair, vozes, palavras, ou então improvisações, mesmo
com texto, como se faz, com teu colega, e você começa a perceber que este tipo de voz
você não conhece, este tipo de voz eu quero reproduzir. Está aonde? Ah, está aqui!
Certo? Então é um estado avançado. Depois que você identifica, você trabalha nela:
“aqui está pegando na garganta. Ah, como que eu vou tirar da garganta? Aqui estou
usando muita força, como que eu consigo a mesma intensidade diminuindo a força, do
meu impulso, do meu envio de respiração. Aqui estou usando pouco ar, etc... “
Outro exemplo é você pegar a tua voz, absolutamente natural, como eu estou falando
agora, isso para teatro naturalista, para teatro realista. A gente está fazendo umas
primeiras experiências no Lume. Que é de você falar com sua voz normal. Depois que
está com sua voz normal, em sala de trabalho, em improvisação, tentar colocar tudo
que tem prévio: corpo, ressonância, vibração, intensidade, forte, fraco, firme, ... Mas
dentro do limite do naturalismo. Texto natural, sem variações. O que é um trabalho
inverso. Eu acho que todos os atores deveriam ter isso. Ter um trabalho de voz. E olha
que tem dado resultados fascinantes. Porque carrega a voz. Mas não de impostação,
carrega a voz de sentimento. É um pouco minucioso, é mais difícil, mas é bastante
interessante. Outro tipo de trabalho vocal que a gente faz é falar pra dentro. Você tem
todo um texto e você fala tentando projetar para dentro, para que essa voz ressoe ao
contrário, nãopra fora, mas vá pra dentro. Todo o texto normal, o texto naturalista, o
texto o naturalista, o texto do Kelbelin, falar tudo pra dentro, para ver onde que as
palavras...
Porque agora são as palavras! Agora a voz na palavra, ela se desdobra, as palavras se
desdobram na ressonância dentro de você. Se você tem uma ressonância de peito, por
exemplo, ela é um global peito, mas se você começa a falar palavras e frases. Esse
global peito tem uma frase que é:” ...eu estou aqui...”, por exemplo, “eu estou aqui...”.
“Eu estou...”, ela ressoa num canto do peito, e o “aqui” é no lado direito diagonal, por
146
exemplo. Então é quase que um mosaico. E isso já é bastante interessante também,
você descobrir as palavras, aonde que elas ressoam.
Outro tipo de voz que a gente trabalha é com a voz emoção, em improvisações, quando
você está com extremas emoções. Mas aí são extremas, não é a emoção mais
rarefeita, que é uma emoção do teu corpo normal, que você vai se mexendo e vai
pondo as ressonâncias e vão brotando emoções que não têm nomes. Estas são
emoções porque o teu corpo está em movimento, e emoção é em-moção, em
movimento, então, você está sempre emotivamente falando. Agora emoções mais
grotescas, tipo o ódio, o amor, choro, risadas, se você provocar isto no seu corpo, para
que você chore. Você pode chorar provocando o corpo mesmo, é respiração aguçada.
Você vai, vai, vai, e começa a chorar. E trabalhar a voz com estas emoções fortíssimas
faz com que você descubra outros ressonadores, que você nem... Isto aqui é muito
novo, não posso falar muito. Mas eu vou falar só isto: que você descobre que quando a
emoção é muito forte, o ódio, o choro, principalmente, ou a risada, ela ressoa até quase
que fora do corpo. A emoção sai, e a voz ressoa aqui junto da boca, e aqui fora da
boca, no choro, por exemplo. Isso é muito interessante.
Moira Stein - deu pra ver que os ressonadores fazem parte do treinamento de
vocês, para conhecerem essas possibilidades, mas que existem outros muitos
estímulos. E aí tu já entraste em várias outras questões que eu tinha...
Mas uma, é a questão então das matrizes, por exemplo. Vocês trabalham uma
matriz corporal, que é uma figura em movimento ou uma personagem, e a voz
vem junto. Na verdade, isso é uma coisa que eu não tinha claro, se vocês
deixavam vir a voz, se era uma coisa corpo e voz integrados, ou se vocês
trabalhavam separado. No momento em que vocês retomam essas vozes, elas se
“independizam”? Isso eu gostaria de esclarecer ainda: elas se tornam
independentes desse corpo, que também fazia parte delas? Ela, a voz, pode ser
trabalhada com outra figura corporal? Vocês jogam com isso, contrastando e tal,
ou ela exige que esse corpo venha junto?
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Carlos Simioni No princípio você tem que retomar esta voz com o corpo. Por que ela
veio dessa figura, dessa postura e desse corpo. Mas depois “independiza”. Depois, ela
fica solta. E é muito legal isso porque dse usa em outras partituras. É claro que, às
vezes, você tem que moldar um pouco. Porque, às vezes, a postura corporal de onde
ela nasceu exige um esforço, ou um desdobramento, ou uma preensão muscular, que
se você quiser usar numa outra que não tem uma prensa muscular, em determinado
momento, por exemplo, talvez ela não saia. Então, você tem que adaptar um pouco.
Algumas. Mas, geralmente, você pode usar ela depois em qualquer outra ação. Se não
seria muito pobre, não é? Seria muito pobre. Você pode usar ela em qualquer outra
ação. Ela independe sim.
Moira Stein Eu vou entrar agora nas questões que foram surgindo. No processo
da mimeses, da imitação, de imitar o som também. Tem a imitação corporal, a
mimeses corpórea, e aí, a voz estambém associada a toda essa característica
corporal da pessoa. Mas também pode dissociar? Também pode jogar?
Carlos Simioni Sim, pode. Claro. É interessante quando, por exemplo, você coloca a
voz da pessoa imitada junto com a corporeidade imitada, é muito legal por que a voz vai
diretamente na ressonância onde a pessoa vibra, onde vibra a pessoa que você imitou.
Então é um completo, você está imitando um completo. E é bom que você
primeiramente faça isso. Para você ver a carga dessa voz, a carga emotiva dessa voz.
Agora, é possível sim colocar essa voz imitada - inclusive m atores do Lume que
fazem isso -, colocar em outro personagem, que eu mesmo criei. E isso é muito rico pro
ator. Porque se a gente deixar que a improvisação seja o nosso “cabidal” de voz, é
pobre. Você acaba rodeando, rodeando, e caindo nas mesmas vozes. O fato de você
imitar é muito rico, porque quantas milhões de pessoas existem, e com vozes
completamente diferentes umas das outras. Então, você vai aumentando seu repertório.
É muito mais dinâmico, muito mais rico, você criar personagens depois, e pegar as
vozes que você tem. Porque não são vozes. o matizes. A gente chama de
matizes da voz, a sonoridade, o canto, o canto da voz do personagem. Porque se você
improvisar, fica monocórdio. E ali, de um imitado, são variações grandes. Nesse
148
sentido, é bastante rica a imitação. Até pra atores que já vão criar coisas. Pode ser feito
antes, ou pode ser feito depois. Antes, você tem as imitações de vozes para você ter
um repertório, para quando você vai improvisar, daí sair. Ou então depois de
improvisar, você vai imitar outras coisas, e utiliza as imitações nas coisas que já saíram
na improvisação. Ou quando você está decorando o texto. Pense bem, quando você
está decorando um texto é fantástico você ter vozes. Daí é um trabalho artesanal.
Eu estou dizendo tudo isso porque eu não acredito mais em trabalho de ator que
improvisou é aquilo que saiu, e podemos ficar nisso, e basta ensaio. Improvisou,
saiu. Pra improvisar tem que ter um trabalho prévio. Improvisou, saiu. que vem o
trabalho mesmo. O quê eu arrumo desta improvisação? O quê eu ganhei dessa
improvisação? Como que eu vou melhorar tudo isso? Como que eu vou fixar tudo isso?
Como que eu vou enriquecer tudo isso?
Moira Stein - Acho que ainda para esclarecer a questão de juntar, por exemplo,
corpo e voz, diferentes. Enfim, como juntar a voz com um corpo que não
necessariamente estava lá, na origem da criação desta qualidade, desta voz. Tem
alguma coisa que é integrada, no momento em que tu juntas? Estou pensando,
por exemplo, num processo que é trabalhar a partir de vozes associadas a
determinadas energias, ou arquétipos. Eu imagino que se aproxime dessa
questão das matrizes, de se trabalhar uma energia que um corpo, e que
uma voz também. No momento em que tu jogas dissociar, trazer essa matriz e
colocar outra voz, não tem nada que impede que jogues com duas energias, por
exemplo, contrastantes? Não tem uma energia que é única, no momento? Que é
uma vibração, que é uma só?
Carlos Simioni Não, nada impede, pode dissociar. É isso mesmo, pode sim. Não tem
problema nenhum, pode tirar, pode trocar matriz com matriz. Por que a energia não é
uma coisa única, e não é uma coisa que você fixa. Você o tem como fixar, assim: é
essa! A energia ela é. Você faz a coisa, e ela vem. Ela gera coisas. Energia gera
movimentos. Energia gera ações. Energia gera matrizes. Com essa geração, surgem as
vozes. Surgindo a voz, ela sai da energia, por exemplo, ela sai do contexto, ela
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entra num contexto outro, que é o da corporeidade, que não é mais a energia só,
bruta. A energia gerou a voz, ela entrou na corporeidade, e entrando na
corporeidade, entrou na musculatura, e você consegue pegar e retomar pela
musculatura a tal voz.
Você está dizendo que a matriz tem a mesma energia. Vamos diferenciar um pouco
aqui. A matriz ela é gerada por uma energia, que então se torna corpo, e daí é matriz.
Ao se tornar corpo, ela é independente. É claro que daí, pra retomar, eu tenho que
provocar energeticamente, mas ela sai do plano energético, e se torna corpo. Não
significa que fica vazia, e nem que fica sem energia. A energia está sendo canalizada,
mas pro corpo agora, para a corporeidade. Então, eu uso essa voz, que eu descobri,
que saiu pro corpo também, e que eu descobri onde que ela está na musculatura, e
coloco numa outra partitura, numa outra matriz, que está corporificada, que está no
corpo.
O que não pode, por exemplo, é você estar em estado de matriz bruto, gerando matriz,
e... Não sei se não pode. Por que eu nunca fiz está experiência, nunca fiz isto. Estar
gerando uma matriz e aí alguém diz: “coloque a voz da matriz x!”. Acho que daí daria
um piri-paque. Não sei, preciso testar. Acho que daí não dá certo. Mas isto é no
momento de gerar. Porque matriz pronta já é autônoma.
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