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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
ELISABETH DE FÁTIMA DA S. LOPES
A formação das professoras enfermeiras da Escola Técnica
de Enfermagem do Hospital de Clinicas de Porto Alegre e suas
práticas educativas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª Drª. Carmen Lucia Bezerra
Machado.
Porto Alegre
2007
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2
ELISABETH DE FÁTIMA DA S. LOPES
A formação das professoras enfermeiras da Escola Técnica
de Enfermagem do Hospital de Clinicas de Porto Alegre e suas
práticas educativas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª Drª. Carmen Lucia Bezerra
Machado.
__________________________________________________________________
Profª Drª. Carmen Lucia Bezerra Machado – Orientadora UFRGS
Profª Drª. Marlene Ribeiro – PPGEDU/ UFRGS
__________________________________________________________________
Profª Drª. Simone Valdete dos Santos – FACED/ UFRGS
Profª Drª Jussara Gue Martini - UFSC
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3
Ao meu pai que me fez acreditar que é
possível uma sociedade de homens
verdadeiramente livres.
À minha mãe que, com sua sabedoria e
amor incomensurável, sempre amparou a
nossa família em seu coração.
Aos meus irmãos e irmãs, cunhadas e
cunhados, sobrinhos e sobrinhas, amigos e
amigas especiais, que sempre me incentivaram
nos projetos de minha vida.
À minha avó materna por sua doce
lembran
ç
a.
4
À minha querida orientadora, por sua
humanidade, afetividade e sensibilidade, pelas
oportunidades de crescimento pessoal e
profissional, em cada momento de orientação, pelo
respeito ao meu tempo de compreensão e de leitura
acadêmica, as minhas limitações, e, sobretudo, pelo
exemplo de coerência entre o que diz e o que vive.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Triviños, pela preocupação generosa e enérgica que tem com
seus alunos e alunas, quanto à compreensão teórica e prática, que sustenta o
nosso modo de vida e de trabalho.
À Professora Marlene Ribeiro, por sua amorosidade, por seu testemunho de
vida e luta por uma ética emancipatória, por sua dedicação generosa e incansável
com seus alunos e alunas. Aproveito para agradecer, também, ao seu
companheiro, meu querido mestre, Professor Alceu Ferraro, que no início de minha
juventude, nas salas de aula da FACED, me fez enxergar as questões sócio-
políticas, além das aparências.
À professora Ana Petersen pelo exemplo de solidariedade com os alunos e
alunas que não são seus, mas que ela adota na intenção de estar com eles, de
apoiá-los em todos os momentos possíveis e, sobretudo, nos de preocupação com
a pesquisa.
À professora Simone Valdete dos Santos, por sua orientação ao meu projeto
e por sua disponibilidade e oferecimento de ajuda, cada vez que nos
encontrávamos nos ambientes da FACED.
À professora Jussara Gue Martini por sua orientação ao meu projeto, pela
contribuição especial por meio de seu saber em enfermagem, na construção dessa
pesquisa.
Ao professor Jorge Alberto Rosa Ribeiro pelas reflexões realizadas na
disciplina sobre o Modo de Vida e de trabalho: Mateo Alaluf.
6
Às professoras Dora Correa Leidens Oliveira, Liliam Córdova do Espírito
Santo, diretora e vice-diretora da ETE/HCPA, à secretária Jane Nogueira pelo
incentivo e apoio, à bolsista Camila Leidens Silvello pelo carinho e, em especial, as
minhas queridas colegas professoras-enfermeiras, sujeitos de minha pesquisa,
pelo cuidado que tiveram comigo, não só no momento da entrevista, mas em todo
o período de construção dessa dissertação.
Às professoras enfermeiras da Escola de Enfermagem da UFRGS e
coordenadoras de Serviços de Enfermagem no HCPA, Christine Wetzel, Maria
Henriqueta Luce Kruse e Miriam Abreu pelo diálogo enriquecedor, pelo incentivo e
apoio na busca de informações sobre a história da enfermagem.
Ao Presidente da ABEn.RS, pela disponibilidade e pela excelente entrevista
que me concedeu, contribuindo, sobremaneira, na compreensão que fui
construindo sobre o meu fenômeno de pesquisa.
À Carmem Lisiane, amiga, irmã, que na ocasião em que comecei a pensar
em voltar para academia, depois de anos de trabalho pedagógico nas escolas de
ensino fundamental e médio e por último na ETE, alimentou esse desejo,
acreditando que tinha muita coisa a dizer, a partir de minha experiência de vida e
de trabalho.
Ao meu amigo do coração Marion, é assim que eu costumo chamá-lo, por
sua humanidade, pela coerência entre o seu saber e seu ser, pelo seu apoio
integral, quando tinha dúvidas teóricas e práticas, quando estava ansiosa pelo
pouco tempo que tinha para desenvolver a pesquisa.
Aos colegas do GEMMTE - Grupo de Estudo Marxista em Movimentos
Sociais, Trabalho e Educação, criado por um grupo de alunos que não acreditam
no determinismo, na exploração, na mais valia e sim, numa sociedade
verdadeiramente humana e justa em sua materialidade.
7
Aos colegas Minasi, Elen Machado, Paola Purin, Walter Lippold, Thiago
Ingrassia, Clenir Fanck, Jane, Jaqueline, Mara, Vera, Bety, Sônia Ribas, Dircenara
pelo acolhimento, pela ajuda com indicações bibliográficas, empréstimo de notas
de aula, textos. Este apoio fez a diferença.
Às colegas Cátia, Leoneia, Camila, Kétia, Sônia Pedroso, bolsistas, quando
eu comecei o mestrado, hoje pedagogas, alunas da especialização e mestrado,
que sempre me receberam na sala da linha de pesquisa, com muito carinho, me
orientando em assuntos de informática, detalhes burocráticos da academia, dos
quais eu estava distante.
À Ana Maria, amiga e irmã adotiva, pela amizade e carinho, pelos chás de
camomila, nos intervalos para relaxar.
À professora enfermeira Denise Zocche, amiga querida, colega parceira,
pelo incentivo e pelo apoio recebidos.
Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS,
pela atenção, apoio e cordialidade.
A todos e todas, que não foram citados pelo nome, mas que contribuíram
diretamente, ou não, ao longo de minha vida, a ser o que sou, a acreditar na
possibilidade de mudança e na esperança da transformação da realidade social em
que vivemos.
8
RESUMO
Esta Dissertação de Mestrado é um estudo de caso de natureza qualitativa. Faz
uma análise das contradições presentes na formação das professoras enfermeiras
da Escola Técnica de Enfermagem (ETE) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
(HCPA) e de suas manifestações nas práticas educativas. Objetiva ainda contribuir
para análise crítica e reflexiva das práticas educativas em enfermagem. A
metodologia da história oral sustentou as entrevistas semi-estruturadas
aprofundadas, com sujeitos (bacharéis e licenciados em enfermagem) e
representante dos movimentos sociais, e, a análise dos documentos (ETE/HCPA).
A historicidade da Formação Profissional nas suas condições, constituição e
materialidade do e no Ensino de Enfermagem, no mundo e no Brasil, é examinada
das origens até às Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso. Ao apresentar as
Professoras Enfermeiras da ETE, as razões de suas escolhas, os espaços
educativos, e as concepções dos sujeitos de pesquisa, o texto analisa a dialética
das células do organismo da formação graduanda em enfermagem de tipo
tecnicista, desvela o concreto aparente que se mostra como ético-humanista, para
chegar ao concreto pensado no movimento entre a rigidez/flexibilidade, o
idealismo/realidade, o controle/emancipação. Na prática educativa as contradições
se manifestam na formação técnica das/os alunas/os, na materialidade da
Educação em Serviço dos trabalhadores em enfermagem, como práxis
transmissiva/problematizadora, diretiva/dialógica, controladora/emancipatória. A
correlação de forças, a defesa de interesses hegemônicos no campo estrutural e
conjuntural diminuem a potência do que foi sonhado nos movimentos sociais, nas
reformas educativas e sanitária e, ornitorrincamente, pressionam a tentativa de
síntese entre a formação dos profissionais da saúde e a realidade onde exercem
suas práticas, no inacabamento entre trabalho na educação e na enfermagem,
enquanto sujeitos de pesquisa, que são Enfermeiras Professoras ou Professoras
Enfermeiras.
Palavras Chaves:
Formação de professores, prática educativa, educação e saúde, ideologia
hegemonia, enfermagem.
9
RESUMEN
Esta disertación de “Maestrazgo” es un estudio de caso de naturaleza cualitativa.
Hace un análisis de las contradicciones presentes en la formación de las profesoras
enfermeras de la Escuela Técnica de Enfermería (ETE) del Hospital de Clínicas de
Porto Alegre (HCPA) y de sus manifestaciones en las prácticas educativas.Objetiva
todavía contribuir para análisis critico y reflexivo de las prácticas educativas en
enfermería. La metodología de la historia oral sustentó las entrevistas semi
estructuradas profundadas, con sujetos (bachilleres y licenciados en enfermería) y
representante de los movimientos sociales, y, el análisis de los documentos
(ETE/HCPA). La historicidad de la Formación Profesional en sus condiciones,
constitución y materialidad de y en la Enseñanza de Enfermería, en el mundo y en
Brasil, es examinada desde los orígenes hasta las Directrices Curriculares
Nacionales del Curso. Al presentar a las profesoras Enfermeras de la ETE, las
razones de sus elecciones, los espacios educativos, y las concepciones de los
sujetos de pesquisa, el texto analiza la dialéctica de las células del organismo de la
formación graduanda en enfermería de tipo técnico, desvela el concreto aparente
que se muestra como ético humanista, para llegar al concreto pensado en el
movimiento entre la rigidez / flexibilidad, el idealismo / realidad, el control /
emancipación. En la practica educativa las contradicciones se manifiestan en la
formación técnica de las /los alumnas/os, en la materialidad de la Educación a
Servicio de los Trabajadores en enfermería, como praxis transmisora / problemática,
directiva / dialógica, controladora /emancipación. La correlación de fuerzas, la
defensa de intereses hegemónicos en el campo estructural y coyuntural disminuyen
la potencia de lo que fue soñado en los movimientos sociales, en las reformas
educativas y sanitaria y,ornitorricamente, presionan la tentativa de síntesis entre la
formación de los profesionales de la salud y la realidad donde ejercen sus prácticas,
en el no acabamiento entre trabajo en la educación y en la enfermería, mientras
sujetos de pesquisa, que son Enfermeras Profesoras o Profesoras Enfermeras.
Palabras llave:
Formación de Profesores, práctica educativa, educación y salud, ideología,
hegemonía, enfermería.
10
LISTA DE SIGLAS
ABEn – Associação Brasileira de Enfermagem
ABEn.RS – Associação Brasileira de Enfermagem do Rio Grande do Sul
BIREME – Biblioteca Virtual em Saúde
CC – Centro Cirúrgico
CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CPDOC-FG – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil da Fundação Getúlio Vargas
CTI /HCPA – Centro de Tratamento Intensivo
DNSP – Departamento Nacional de Saúde Pública
ETE – Escola Técnica de Enfermagem
ENADE – Exame Nacional de Desempenho de Estudantes
FACED – Faculdade de Educação
FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FNEPAS – Fórum Nacional de Educação das Profissões na Área de Saúde
GENF – Grupo de Enfermagem
GM/MS – Gabinete do Ministro/ Ministério da Saúde
HCPA – Hospital de Clínicas de Porto Alegre
INAMPS – Instituto Nacional de Previdência Médica da Previdência Social
INPS – Instituto Nacional de Previdência Social
LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
PEC – Programa de Educação Continuada
SEMTEC – Secretaria de Educação Média e Tecnológica
SENADEn – Seminário Nacional de Diretrizes para a Educação em Enfermagem
SESu – Secretaria de Educação Superior
SciELO – Scientific Electronic Library Online
SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social
SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
SR – Sala de Recuperação
11
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
USP – Universidade de São Paulo
UTI – Unidade de Tratamento Intensivo
UTIP – Unidade de Tratamento Intensivo Pediátrico
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
15
CAPÍTULO I – O Caminho Percorrido
22
1 – O Referencial da Pesquisa Qualitativa
22
1.1 – Estudo de Caso, utilizando o método da história oral temática
23
1.2 – Entrevista Semi-Estruturada e Aprofundada
24
1.3 – Observação Participante
26
1.4 – Diário de Campo
28
1.5 – Análise de Documentos
29
2 – O Referencial da História Oral Temática
29
3 – As categorias de Análise
33
CAPÍTULO II – A Historicidade da Formação Profissional e do Ensino
de Enfermagem
36
1 – Do passado ao presente: Um panorama da Enfermagem
Profissional no Mundo e no Brasil
36
2 – Os Contornos do Ensino de Enfermagem no Brasil, das origens
até às Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em
Enfermagem
52
CAPÍTULO III – Concepções Teórico - Práticas na Formação das
Professoras Enfermeiras da ETE/HCPA
78
1 – Apresentando as Professoras Enfermeiras
78
2 – Os espaços Educativos das Professoras Enfermeiras
2.1 – A Formação Hospitalar das Professoras Enfermeiras
82
2.2 – O Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA
82
2.3 – A Escola Técnica de Enfermagem – ETE
91
3 – A Dialética das Células do Organismo da Formação Graduanda
em Enfermagem: Desvelando o Concreto Aparente do Fenômeno
102
13
para chegar ao Concreto Pensado
3.1 – Da Idealização na Formação à Realidade
102
3.2 – Da Abordagem Tecnicista à Abordagem Ético-Humanista
112
3.3 – Da Formação Fragmentada à Formação Contextualizada
134
3.4 – Da Rigidez na Formação à Flexibilidade
145
3.5 – Da Avaliação como Mecanismo de Controle à Avaliação
Emancipatória
148
4 – A formação no Curso de Licenciatura em Enfermagem
152
5 – Professoras Enfermeiras – Enfermeiras Professoras
167
CAPÍTULO IV - No caminho de uma Práxis Emancipatória
176
1 – Os Movimentos da Prática Educativa – suas contradições em
busca de sínteses para uma práxis emancipatória
176
1.1 – A Concretude do Novo Plano de Ensino: entre o formal e o real
176
1.2 – Movimentos Político-Pedagógicos na ETE: a entrada de novas
professoras e da pedagoga para a instituição
179
1.3 – A Prática Educativa: entre a sala de aula, as unidades de
internação – alunas/os, professoras enfermeiras – enfermeiras/os,
trabalhadores e pacientes/ usuários
192
1.4 – Os Movimentos na Prática Avaliativa das Professoras
Enfermeiras
213
2 – Educação em Serviço - Em busca de uma nova prática educativa
para os trabalhadores em enfermagem
223
CONSIDERAÇÕES FINAIS
236
REFERÊNCIAS
244
APÊNDICES
255
APÊNDICE A
256
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – A
256
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – B
258
APÊNDICE B 260
14
Roteiro de Entrevista - A
260
Roteiro de Entrevista - B
263
ANEXOS
264
Anexo 1 – Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação
em Enfermagem
265
Anexo 1 - Fotos do HCPA e da ETE
271
15
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa trata do tema da formação
1
das professoras
enfermeiras da Escola Técnica de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre e suas práticas educativas, a partir de um estudo de caso realizado nessa
escola.
Estudar a formação graduanda em enfermagem, em geral, tem sido uma
preocupação freqüente. Para realizar a revisão de literatura sobre esse tema fiz
buscas no acervo das bibliotecas da Faculdade de Educação e da Escola de
Enfermagem da UFRGS, em bancos virtuais da SciELO –FAPESP-BIREME –
Scientific Eletronic Library Online e CNPQ. Pude observar que existe uma enorme
produção literária elaborada, sobretudo, de profissionais da área que querem
compreender melhor como a enfermagem vem se constituindo na prática. No
entanto, estudos sobre as contradições
2
da formação em enfermagem e da
formação em licenciatura e a manifestação dessas contradições na prática
educativa
3
, realizados por profissionais que trabalham em espaços de saúde e que
não são da área, ainda é pouco encontrado.
As motivações para a realização deste estudo começaram a se delinear, a
partir de 2002, quando comecei a trabalhar num hospital – escola, onde passei a -
conviver num cotidiano pedagógico com características próprias, com docentes e
1
Entendo por formação profissional a materialização de uma construção social que possibilite, além
da satisfação das necessidades humanas materiais e espirituais, uma formação científica, artística e
técnica, numa perspectiva interdisciplinar, de unidade teórico-prática, a partir de um ensino que
viabilize o processo pesquisa (TRIVIÑOS, 2003).
2
Entendo por contradição a luta dos contrários. Constitui a fonte genuína do movimento, da
transformação dos fenômenos. Os contrários não podem existir um sem o outro, isso constitui a
unidade dos contrários. Tanto na unidade dos contrários, como na luta haverá o movimento. Na
medida em que há a passagem dos contrários de um para o outro, a contradição se resolve
(TRIVIÑOS,1987).
3
Entendo a prática educativa como a que se "dá através do diálogo, oferece-nos uma oportunidade
ímpar: o contato com a cultura viva que nos identifica, o conhecimento comum trazido para a sala de
aula, os mitos, os tabus, ou mesmo os desejos profundos que nos projetam para o futuro,
constituindo-se por si só, em espaço social onde a ciência se manifesta e se constrói". (Machado,
1996, p.31)
16
discentes que não encerram suas relações no processo educativo, apenas na sala
de aula ou em um laboratório, estendem-nas a um ambiente pedagógico e de
saúde, onde há a presença de outros seres humanos que receberão, em cuidados,
a resposta da prática educativa que se desenvolve nesse ambiente.
Fazer uma análise das contradições do espaço de tais práticas e dos
problemas que os sujeitos dessa relação vivenciam no seu cotidiano da educação
e saúde, nas relações em equipe, na divisão processual do trabalho em saúde
constituiu, para mim, um desafio epistemológico.
Nos movimentos de minha vida, a partir de 2004, movida pela minha
inquietude pedagógica, diante do meu novo modo de vida e de trabalho, lancei-me
no desafio de participar da seleção para a linha de pesquisa Trabalho Movimentos
Sociais e Educação do mestrado na FACED/UFRGS, junto ao Núcleo de Estudos,
Experiências e Pesquisas em Trabalho, Movimentos Sociais e Educação–
TRAMSE, com o fim de pesquisar sobre a formação dos docentes em enfermagem,
num espaço de atenção à saúde e desenvolvimento de educação, a Escola
Técnica de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que além de
formar técnicos em enfermagem, realiza educação em serviço para os funcionários
(auxiliares, técnicos de enfermagem, enfermeiros e enfermeiras) que atuam na
assistência ao paciente.
Pesquisar nos inquieta, nos faz romper com paradigmas, nos move da rotina
para um terreno de turbulências não só profissionais, como pessoais. Deparei-me,
nessa efervescência, ora movida pelo desejo intenso dessa busca, ora limitada
pela escassez do tempo que tive para realização deste estudo. Na condição de
trabalhadora e pesquisadora numa sociedade sob o modo de produção capitalista
é árduo romper, mas não é impossível, com as limitações que essa condição nos
impõe para que possamos exercer, ao mesmo tempo em que nos tornamos
mercadoria, a nossa condição de sujeitos reflexivos com possibilidades de criação,
de ação política, social e cultural.
Para o estudo desse fenômeno foi necessário estabelecer limites no tempo e
no espaço, perscrutando, simultaneamente, as contradições que o constituem.
De acordo com Frigotto:
17
Trata-se de entender que a singularidade, a particularidade e a universalidade se
produzem numa mesma totalidade histórica a ser reconstruída no processo de
investigação. Esse esforço, em termos do método dialético do legado de Marx e
Engels, não é senão o desafio de ascender do “empírico ponto de partida ao
concreto pensado”, sendo esse sempre síntese de múltiplas determinações que
têm que ser apreendidas minuciosamente no plano da pesquisa e ordenadas
analiticamente no processo de exposição (FRIGOTTO e CIAVATTA, 2006, p.6).
Este estudo, a partir de uma concepção materialista histórica do
conhecimento, procurou percorrer os aspectos estruturais e conjunturais que
configuram o fenômeno em pesquisa, a materialidade dos processos históricos em
que a formação em enfermagem das professoras da ETE/HCPA foi se delineando,
bem como as relações de poder e de classe que condicionam as práticas
educativas dessas professoras.
Por meio da análise das origens históricas da enfermagem, das diretrizes
curriculares que orientaram a formação de cada professora enfermeira, do estudo
dos movimentos desencadeados pelos profissionais da enfermagem, de suas
histórias orais, do desvelamento do contexto onde exercem suas práticas
educativas, busquei compreender o fenômeno pesquisado como uma questão
social amparada num enfoque teórico-metodológico que desse conta da superação
da visão fatual e positivista tão comum no tratamento dos assuntos ligados à área
da saúde.
As questões que me orientaram neste estudo foram:
Quais as contradições na formação em enfermagem e na licenciatura e
como essas se manifestam nas práticas educativas das professoras enfermeiras
da ETE/HCPA?
Que contribuições, a partir do conhecimento, descrição e interpretação do
fenômeno social estudado, podem ser mencionadas para uma análise dialética e
reflexiva das práticas educativas das professoras e professores em enfermagem?
A fim de que pudesse evoluir em meu propósito, além da compreensão da
história da enfermagem no mundo e no Brasil, a partir de uma análise dialética que
confrontasse o presente e o passado, chegando a explicações para os contornos
atuais do fenômeno, tive que percorrer a complexidade da configuração da
18
sociedade brasileira por onde perpassaram as políticas públicas educacionais e de
saúde que definiram os currículos em que se formaram esses educadores. O que
refletem em sua essência. Que força e consensos estão por trás de suas
formações. Que relações pedagógicas inspiram a formação dos educadores em
enfermagem. Nessa perspectiva, entendo o currículo, enquanto uma construção
histórico-social.
Além desses questionamentos iniciais inspirei-me na indagação quanto à
identidade profissional das professoras
4
, sujeitos de minha pesquisa. Seriam elas,
professoras enfermeiras ou enfermeiras professoras?
Segundo Marx (1867): “a primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa
trivial e que se compreende por si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo
contrário, é uma coisa muito complexa, cheia de subtilezas metafísicas e de
argúcias teológicas”. Seria essa dicotomia um fetiche? Por que essas
trabalhadoras em educação em enfermagem não reconhecem seu status, em
primeira mão, como professoras, preferindo ser reconhecidas antes de tudo como
Enfermeiras? O que está por trás disso?
Essa dicotomia constituiu um dos pontos que me levaram a caminhos
reveladores do que vinha constatando em minhas observações sobre essas
profissionais, tendo em vista a minha prática pedagógica desenvolvida na interação
com os sujeitos da pesquisa por trabalhar lado a lado com eles. A partir destes
questionamentos iniciais, inspirados nos referenciais teóricos do materialismo
histórico dialético formulei o seguinte problema de pesquisa:
Quais são as contradições na formação das professoras enfermeiras da
Escola Técnica de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e como
essas contradições se manifestam em suas práticas educativas, na ETE e na
Educação em Serviço realizada com os trabalhadores do Grupo de Enfermagem do
HCPA, no período de 2002 a 2006.
Em busca de elementos que elucidassem os aspetos levantados nos
questionamentos iniciais e problema acima propus os seguintes objetivos:
4
Por identidade profissional entendo a forma pela qual as entrevistadas se reconhecem e gostam de
ser chamadas entre si e pelos demais profissionais com os quais compartilham os espaços
educativos.
19
Conhecer, descrever e interpretar as contradições na formação em
enfermagem e na licenciatura e como essas se manifestam nas práticas educativas
das professoras enfermeiras da ETE/ HCPA.
Contribuir, a partir do estudo, para uma análise dialética e reflexiva das
práticas educativas dos professores e professoras em enfermagem.
Tendo como categorias a priori, de análise: a historicidade da formação das
professoras enfermeiras de ETE/HCPA, as contradições dessa formação e suas
práticas educativas, integradas pelas categorias empíricas que apareceram com
maior incidência na busca de informações: Idealização/realidade, abordagem
tecnicista/ abordagem ético-humanista, fragmentação/ contextualização, rigidez/
flexibilidade, avaliação como mecanismo de controle /avaliação emancipadora a
pesquisa adentra nos processos complexos que traduzem a materialidade do
fenômeno social, conhecendo os cenários que os estruturaram.
Além das motivações mencionadas, outras razões impulsionaram-me para a
realização deste estudo. Para tanto, é necessário contar um pouco de minha
história vida, da minha maneira de ser para que as pessoas possam reconhecer,
neste trabalho, as entrelinhas de meu texto, um pouco do que sou, da minha
intencionalidade ao priorizar determinados caminhos e não outros.
Nasci numa cidade do interior do Rio Grande do Sul, Bagé, onde morei por
algum tempo, até meu pai ser transferido para outras cidades (pai militar) e,
finalmente, para Porto Alegre, onde me formei em pedagogia e direito.
A opção pela pedagogia foi uma decorrência da busca de um caminho de
formação que me propiciasse um melhor entendimento da materialidade da
sociedade e como esta se expressa no ato educativo. Sempre acreditei na
possibilidade de fazer de minha práxis
5
uma opção política de luta e a educação
pareceu-me um dos terrenos férteis para o meu propósito.
Mais tarde fui descobrindo o caminho da advocacia, movida por um desejo
antigo de defender a não violação dos direitos. Desde criança convivi com as falas
preocupadas e reflexivas de meus pais sobre o contexto social que os circundava.
5
O indivíduo ao produzir sua existência material, por sua práxis, transforma a natureza,
transformando-se a si próprio.
20
Vivia entre livros e falas a favor de uma democracia, de um estado social que
assegurasse os direitos humanos.
Durante a ditadura militar vivenciei um momento desolador promovido pela
arrogância desse período. Assisti ao meu pai enterrando seus livros, de conteúdo
subversivo para a época, com todo o cuidado possível para que não sofressem
nenhum dano em seu hábitat de exceção. Buscava, com essa medida, defendê-los
da insensatez humana que determinou aquela busca e apreensão. Essa lembrança
está impregnada em minha história de vida. A impressão daquelas imagens é
irreversível, a voz de meu pai expressando que enterrava seus livros, mas não
sepultava seus ideais democráticos faz parte das minhas memórias de infância e
me impulsionaram a não me conformar com atitudes prepotentes e opressoras por
parte de qualquer poder ilegitimamente instalado. Aprendi, desde cedo, o valor
daquelas idéias, a lutar por uma sociedade melhor. Os livros foram salvos e seus
conteúdos estão cada vez mais vivos dentro de nós.
Depois dessa breve catarse, dessa purgação, espero que as pessoas, ao
lerem este trabalho, possam compreender melhor os sentidos de minha pesquisa,
das minhas palavras, do meu modo de interpretar, do que realmente quero dizer.
Revelar esse breve lapso de minha vida é justificar que, além das razões de
natureza acadêmica, existiram outros motivos que me moveram a despender parte
das horas, dos dias e de dois anos e meio de minha vida na realização de um
estudo que contribua para uma análise dialética e reflexiva das práticas educativas
das professoras e professores em enfermagem. A realização deste estudo é uma
das maneiras que encontrei para expressar o meu compromisso como educadora,
como sujeito, diante de minha opção política de interpretação da realidade material
que considera os indivíduos como seres históricos e sociais.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento deste estudo, além desta introdução
abrangeu quatro capítulos e considerações finais. O capítulo I trata do Caminho
percorrido, do paradigma teórico-metodológico escolhido para perguntar à
realidade sobre o fenômeno pesquisado e, a partir das possibilidades e limitações
das minhas condições materiais de existência como pesquisadora, ao encontrar
respostas, poder contribuir para uma análise dialética e reflexiva das práticas
educativas das professoras e professores em enfermagem.
21
O Capítulo II trata da - Historicidade da Formação Profissional e do Ensino
de Enfermagem em que apresento - Um panorama sobre a enfermagem
profissional no mundo e no Brasil e, após, abordo - Os contornos do Ensino de
Enfermagem no Brasil das origens até às Diretrizes Curriculares Nacionais do
Curso de Graduação em Enfermagem. Assinalo as condições históricas da
constituição da enfermagem profissional como prática social educativa, articulando
esses aspectos à materialidade da formação das professoras enfermeiras e aos
movimentos da Associação Brasileira de Enfermagem.
No Capítulo III reflito sobre - As concepções teórico -práticas na formação
das Professoras Enfermeiras da ETE/HCPA. Para tanto, apresento as Professoras
Enfermeiras, as razões da escolha pela formação. Contextualizo os espaços
educativos onde exercem suas práticas educativas, enfocando a historicidade
desses espaços, articulada com as concepções das entrevistadas. Continuo minha
análise trabalhando - a Dialética das células do organismo da formação graduanda
em enfermagem, no sentido de desvelar o concreto aparente do fenômeno para
chegar ao concreto pensado. Analiso a materialidade da Formação no Curso de
Licenciatura das Professoras Enfermeiras e, ao final desse capítulo, respondo
provisoriamente à indagação que fiz na introdução desse trabalho, se os sujeitos
de pesquisa são Enfermeiras Professoras ou Professoras Enfermeiras.
No Capítulo IV percorro o Caminho de uma práxis emancipatória, realizando
análises críticas sobre - Os movimentos da prática educativa - suas contradições
em busca de sínteses para uma práxis emancipatória. Enfoco a materialidade da
Educação em Serviço em busca de uma nova prática educativa para os
trabalhadores em saúde. Nas Considerações Finais retomo as questões, o
problema e objetivos de pesquisa, as contradições da formação das professoras
enfermeiras e a manifestação dessas em suas práticas educativas, na Escola
Técnica de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, apontando
algumas inferências encontradas que possam contribuir na compreensão do
fenômeno pesquisado, apresentando, ao final, as possibilidades e limites desse
estudo, tanto do ponto de vista da materialidade dessa pesquisa, como de meus
limites, enquanto, pesquisadora.
22
CAPÍTULO I – O Caminho Percorrido
1- O Referencial da Pesquisa Qualitativa
Partindo do entendimento de que a realidade é um processo dinâmico que
vai assumindo nuances contraditórias ao longo dos movimentos que realiza e de
que o pesquisador estabelecerá uma relação dialógica com o fenômeno social que
constituirá o cenário da pesquisa, optei pelo caminho do método dialético.
Marx e Engels, na obra A ideologia alemã, afirmam que:
Contrariamente à filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui parte-se da
terra para atingir o céu. Isto significa que não daquilo que os homens dizem,
imaginam ou pensam nem daquilo que são palavras, no pensamento, na
imaginação e na representação de outrem para chegar aos homens em carne e
osso; parte-se dos homens, da sua atividade real (MARX e ENGELS, 1980,
p.26).
O método dialético é, portanto, um procedimento de análise da realidade que
parte do concreto-empírico e através da abstração chega ao concreto-pensado,
reconstituindo a realidade no pensamento. Neste contexto, o processo de
abstração assume importância fundamental.
Para chegar à essência da formação das professoras enfermeiras,
desvelando as manifestações das contradições dessa formação em suas práticas
educativas, apóio-me nas concepções de Marx, Gramsci e em outros pensadores
que os sucederam e advogam que os conceitos centrais do método dialético estão
cada vez mais vivos e imprescindíveis na análise da materialidade dos fenômenos
sociais. É por acreditar que homens e mulheres, ao produzirem a realidade material
de suas existências se produzem e na centralidade do trabalho vão transformando
essa mesma realidade é certo dizer que a prática social da enfermagem no ensino
médio, em sua historicidade, demonstra como os indivíduos em suas ações e
interações, no modo de produção capitalista, produzem a transformação da
natureza, dos outros indivíduos e a si mesmos.
23
Partilho do entendimento de que para analisar a realidade material e
desvendar suas contradições é necessário nos inspirarmos no principio da
totalidade, conforme a reflexão gramsciana sobre os processos sociais.
Nessa perspectiva, para a compreensão das determinações sociais e
políticas da realidade, que produzem a formação em enfermagem, é necessário
dialogar com alguns conceitos, pensados por Gramsci, a partir de uma abordagem
dialética.
É mister entender a historicidade da cultura onde se forjou e se forja a
formação graduanda de enfermagem e da licenciatura que possibilita o exercício da
docência nos cursos de formação média em enfermagem, as mediações das
ideologias que influenciaram a produção intelectual que gerou as diretrizes
curriculares e as práticas destas, das articulações políticas, das correlações de
força e constituições de hegemonias que configuram os profissionais tal como se
apresentam na materialidade de sua prática social, tanto como enfermeiras e
enfermeiros da assistência à saúde, como no campo do exercício da docência.
Neste sentido, as possibilidades da análise e resultados foi construída por
meio da realização de entrevistas semi-estruturadas e aprofundadas, observação
participante, diários de campo e análise de documentos.
1.1 - Estudo de Caso – utilizando o método da história oral temática
Escolhi o estudo de caso de natureza qualitativa, com enfoque dialético
materialista, por partilhar do entendimento de que é “uma categoria de pesquisa
cujo objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente” (Triviños, 1987,
p.133). Caracteriza-se pela abrangência da unidade, por sua complexidade e pela
determinação de referenciais teóricos que nutrem o trabalho do pesquisador.
24
1.2 - Entrevista Semi-Estruturada e Aprofundada
Tendo como método a história oral, utilizei a entrevista semi-estruturada
aprofundada.
Segundo Triviños (2001) a entrevista semi-estruturada constitui uma das
"ferramentas" utilizadas pela pesquisa qualitativa para atingir seus objetivos.
A entrevista semi-estruturada é uma técnica de obtenção de informações,
que se caracteriza pelo estabelecimento de uma interação social entre o
entrevistador e o entrevistado. Deve partir de alguns questionamentos básicos,
fundamentados no referencial teórico que orienta a pesquisa, bem como de toda a
informação que o pesquisador já tenha obtido sobre o fenômeno social em estudo.
A partir da entrevista novas questões poderão surgir, além das previamente
estabelecidas pelo pesquisador em razão das informações oferecidas pelo
entrevistado.
Triviños menciona que:
[...] a entrevista semi-estruturada se transforma num diálogo vivo do qual
participam duas pessoas, com objetivos diferentes, mas que podem se tornar
convergentes. Ambos, entrevistado e pesquisador, procuram construir um
conhecimento relativamente comum para determinada realidade pessoal e
coletiva (TRIVIÑOS, 2001, p. 86).
No método da história oral temática a entrevista tem que ser aprofundada,
porque cada pergunta fundamental pode transformar-se em vários temas
importantes que deverão ser explorados. Foi exatamente assim que aconteceu
com as minhas entrevistadas. Uma pergunta levava a outro questionamento, à
medida que a entrevistada, ao responder às perguntas, acrescentava novos
elementos, além do que havia sido perguntado no encadeamento da recuperação
da história de sua formação. Para complementar minhas informações, após a
entrevista registrava os gestos, as expressões de emoção e até de irritação,
quando o relato estava difícil de ser lembrado, ou causava uma lembrança tensa.
Após ter realizado a primeira entrevista, com um dos sujeitos da pesquisa fui
aprimorando minhas perguntas, uma vez que este me proporcionou informações
25
com sua história que enriqueceu a próxima entrevista e assim por diante. O tempo
de entrevista em média durou uma hora, duas professoras enfermeiras excederam,
pois referiram terem gostado muito de relatarem a historia de sua formação. As
entrevistas transcorreram num clima agradável e descontraído. As professoras
enfermeiras se sentiram à vontade no transcorrer da entrevista, emocionaram-se e
me emocionaram ao recuperarem o passado. Avaliaram ter gostado da
experiência. Não foi necessária a realização de mais de um encontro.
Outro aspecto a ressaltar é quanto à transcrição das falas, oriundas da
gravação para o texto escrito. Alguns estudiosos da história oral advogam a
transcrição absoluta das falas. Para Meihy “este posicionamento, contudo, tem sido
contestado por aqueles que prezam a história oral e o seu compromisso com o
público” (MEIHY, 1996, p.57). Preferi realizar uma transcrição omitindo os cortes da
fala, repetições de palavras, vícios de linguagem, pois assim como o pesquisador,
ao escrever seu texto, faz as revisões devidas em razão de uma comunicação mais
precisa de acordo com os ditames da língua portuguesa, não considerei justa a
transcrição absoluta das falas, na pureza da linguagem falada e das expressões
usuais de um diálogo vivo que contém emoção, lágrimas, euforia, recordações de
bons e maus momentos. Essa medida, no entanto, não obscureceu o sentido
intencional dado pela entrevistada na construção de suas idéias. Procurei manter
algumas expressões, reticências, por exemplo, cujo significado estava além das
possibilidades de uma correção que pudesse prejudicar o sentido da arquitetura do
raciocínio da narradora.
Quanto ao registro das narrativas, é importante referir que foram omitidos,
por meio de reticências: nomes, setores, departamentos, locais de estágio,
instituições ou qualquer palavra que possa identificar as entrevistadas.
Convém assinalar, que os sujeitos da pesquisa, as professoras enfermeiras
da ETE, não serão identificadas pelos seus respectivos nomes, mas pelas
consignas: Profª Enfª - 1, Profª Enfª - 2, Profª Enfª - 3 e assim por diante.
Por sugestão da banca, no sentindo de enriquecer a análise, foi realizada
uma entrevista semi-estruturada com o presidente da ABEn.RS, Sr. Enfermeiro
Joel Rolim Mancia, instituição que tem um significado histórico na construção dos
caminhos curriculares e vem contribuindo, decisivamente, na formação dos
enfermeiros e enfermeiras no Brasil. Esta entrevista durou uma hora e quinze
26
minutos. Foi uma entrevista densa, em informações, sobre o desenvolvimento da
enfermagem e a influência da ABEn nos movimentos dessa prática social. Para
diferenciá-la das demais entrevistas, a transcrição das falas foi grafada em itálico,
também sublinhei trechos das narrativas, no sentido de destacar aspectos que dei
ênfase em minha análise.
1.3 - Observação Participante
Como pedagoga da Instituição de onde fazem parte os sujeitos da pesquisa
– professoras enfermeiras da ETE/HCPA e por me relacionar com elas nos
processos de trabalho, tanto da formação de alunas/os no curso técnico de
enfermagem, como da educação em serviço para as trabalhadoras e trabalhadores
do Grupo de Enfermagem (equipe de enfermagem), na condição de orientadora
pedagógica, pude ter o privilégio da observação participante diária. Este fato
constituiu um elemento facilitador na obtenção de informações. No entanto, tive
que estar atenta ao distanciamento que necessitava manter entre o meu fazer
educativo do dia-a-dia nessa relação dialógica com as professoras enfermeiras
entrevistadas, e o objeto de pesquisa.
Cumpre salientar, que o avanço na análise dialética do fenômeno
pesquisado qualificou as minhas intervenções pedagógicas. O olhar da
pesquisadora, além do trabalho da pedagoga contribuiu para uma visão ampliada
do ambiente da educação em saúde.
Segundo Triviños (2001) a observação participante constitui uma das
principais técnicas utilizadas pela pesquisa com enfoque qualitativo.
Ao mesmo tempo em que fazer parte do contexto da pesquisa me facilitou
um contato pessoal e mais estreito com o fenômeno pesquisado, tive que exercitar
outro olhar, o da pesquisadora que queria chegar à essência do fenômeno que
estava sendo pesquisado.
Como refere Lüdke (1986) o que selecionamos para ver depende muito de
nossa história pessoal e, sobretudo, de nossa bagagem cultural. As experiências e
27
a trajetória de cada pessoa farão com que sua atenção se volte para determinados
aspectos e não a outros. Determinada no desvelamento das contradições das
práticas educativas das professoras enfermeiras procurei me deter, sobretudo, nos
discursos do planejamento, no relato da prática educativa na observação do ensino
e da avaliação do ensino juntos aos alunos e alunas e na educação em serviço
junto às/os trabalhadoras/es.
Havia momentos que ficava bastante difícil separar a pesquisadora da
colega. A profissional-pesquisadora que tem por atribuições pedagógicas orientar
as entrevistadas, ao longo de suas práticas educativas. Fiquei constrangida em
alguns momentos por estar desempenhando os dois papéis. Aos poucos fui me
sentindo à vontade. Isso ocorreu, sobretudo, depois das entrevistas em que ficou
mais explícito para as colegas-sujeitos de pesquisa o que estava realizando e o
sentido de contribuição da pesquisa, que estava realizando, para a escola.
Durante a observação participante foquei a minha atenção prioritariamente
sobre as situações que pudessem desvelar o concreto aparente em concreto real.
Detive-me em alguns pontos que considerei relevantes para o estudo: observei o
modo como a formação das professoras enfermeiras se concretiza em suas
práticas educativas em sala de aula, em campos de estágio e na educação em
serviço, como as professoras enfermeiras, os discentes e trabalhadoras/es agiam,
que interação se estabelecia entre eles, o que propunha a metodologia, que
movimentos pedagógicos realizavam, diálogos, falas importantes. Como eram
concebidos os planejamentos das práticas educativas, quais os referenciais
teóricos pedagógicos que utilizavam para fundamentarem suas ações em
educação, como concebem a avaliação do ensino, a relação aluno-paciente,
professor–aluno em situação de estágio, trabalhadora/or e educadora em serviço,
entre outros.
É importante ressaltar que foi fácil observar as ações de educação em
serviço, pois além de orientá-las, assessorei pedagogicamente as enfermeiras
professoras tanto na concepção, como na execução. Inicialmente, participaria
apenas da fase do planejamento, pelo entendimento de que seria uma atribuição
apenas das Educadoras em Serviço com a formação em enfermagem. Com o
passar do tempo e, a partir de argumentos pedagógicos convincentes, a chefia
entendeu que a minha participação, na execução das ações educativas juntos aos
28
trabalhadores dos serviços de enfermagem, acrescentaria um caráter
interdisciplinar ao trabalho. A presença da Pedagoga estaria afinada com o próprio
referencial de educação permanente, que preconiza ações educativas
interdisciplinares. Esta empreitada pedagógica foi mais um ganho significativo no
entendimento, por parte das professoras enfermeiras, da legitimidade do
conhecimento pedagógico, para além das paredes da escola. A conquista desse
espaço, nas unidades de assistência do hospital, por parte da pedagogia, acabou
sendo imprescindível na opinião das equipes de enfermagem. Pela primeira vez,
uma pedagoga reunia-se junto com a equipe de enfermagem para acompanhá-la
na reflexão dos nós críticos em seus processos de trabalho. Ficou claro o quanto
eu poderia contribuir nesse trabalho, já que a metodologia empregada tinha tudo a
ver com a minha formação como pedagoga.
6
Volto a essa situação relatada acima, no Capítulo IV, item 1, em que trato
dos movimentos da prática educativa, a partir de suas contradições em busca de
sínteses que resultem em uma práxis emancipatória.
1.4 - Diários de Campo
Usei a minha agenda, onde anoto os compromissos diários para registrar as
situações que poderiam contribuir para a análise das informações. Limitei-me
anotar itens que depois, conforme a necessidade poderia aprofundá-los ou não,
com o recurso da memória. Essas anotações me auxiliaram muito na compreensão
dos movimentos das professoras enfermeiras, no decorrer de suas atividades na
ETE e em educação em serviço nas unidades assistenciais do HCPA.
6
A metodologia empregada na educação em serviço foi escolhida, a partir do referencial que inspira
as práticas de educação permanente para os trabalhadores do SUS. Utilizamos o Método da Roda
de Gastão Wagner de Souza Campos e pedagogia da problematização de Paulo Freire.
29
1.5 – Análise de Documentos
Tendo em vista as minhas atribuições pedagógicas na ETE, estou em
contato diário com os documentos que dizem respeito ao planejamento, planos de
ensino, de trabalho, avaliações. A análise desses documentos me proporcionou
uma riqueza na dialética das informações obtidas, durante a pesquisa.
2 – O Referencial da História Oral Temática
Partindo do entendimento de que o homem é um ser histórico social, de que
a constituição da formação em enfermagem é um processo histórico que se
materializa numa prática social que está em contínua mudança, recuperei por meio
do método da história oral da formação dos sujeitos da pesquisa, o passado como
algo que continua se constituindo atualmente e cujo processo histórico não está
terminado (MEIHY, 1996).
Verena Alberti define a história oral como:
um método de pesquisa ( histórica, antropológica, sociológica etc.) que privilegia
a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou
testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de
se aproximar do objeto de estudo. [...] Trata-se de estudar acontecimentos
históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos,
conjunturas etc. à luz de depoimento de pessoas que deles participaram ou os
testemunharam (ALBERTI, 2001, p.18).
Existem alguns requisitos para a utilização da história oral como método de
pesquisa, tais como:
Esse método só pode ser empregado em pesquisas sobre temas recentes,
pois pressupõe o estudo de acontecimentos ocorridos num lapso de tempo
de até 50 anos.
30
A realização das entrevistas deve estar atrelada a um projeto de pesquisa
previamente estabelecida, com o problema, objetivos e uma orientação
teórica definida.
A participação direta do pesquisador na realização do documento de história
oral facilitará sua interpretação pela possibilidade da constante avaliação,
enquanto durar o processo de entrevistas. O/A pesquisadora/or pode
perceber as reações do entrevistado, durante a entrevista, caso esse tenha
omitido alguma informação, distorcido o passado em função de sua visão
particular, ou tenha evitado se pronunciar sobre determinados assuntos.
O emprego da história oral gera a possibilidade da recuperação de
informações que não se encontram em documentos, tais como: experiências
pessoais, concepções, vivências de um acontecimento na prática.
Meihy aponta a história oral temática como uma modalidade da história oral
e argumenta que ela busca “a verdade de quem presenciou um acontecimento ou
pelo menos dele tenha alguma versão que seja discutível ou contestatória”
(MEIHY, 1996, p.41).
A utilização do método da história oral temática deveu-se à natureza da
realização do estudo qualitativo e sua escolha se justifica pelo objetivo principal da
pesquisa que era de: Conhecer, descrever e interpretar as contradições na
formação em enfermagem e na licenciatura e como essas se manifestam nas
práticas educativas das professoras enfermeiras da ETE/ HCPA.
Para dar conta desse objetivo necessitava ouvir dos próprios sujeitos da
pesquisa o vivido em suas formações, a recuperação de suas histórias orais sobre
o tema - formação, por isso histórias orais temáticas. Como já havia mencionado
no projeto dessa dissertação, somente os relatos orais, ou seja, a recuperação de
suas histórias orais de formação não bastaria para a análise. Estas só abrangeriam
o propósito de um estudo de caso qualitativo, se fossem acrescidas de uma gama
de informações, provenientes de outras fontes, já mencionadas anteriormente, e
analisadas, a partir de uma interpretação dialética. Foi o que fiz no decorrer do
dispositivo teórico-analítico. Para chegar à resposta do problema da pesquisa e
reconstituir, no pensamento, a realidade concreta realizei esse caminho.
31
Segundo Alberti:
Sendo um método de pesquisa a história oral não é um fim em si mesma, e sim
um meio de conhecimento. Seu emprego de história oral só se justifica no
contexto de uma investigação científica, o que pressupõe sua articulação com
um projeto de pesquisa previamente definido (ALBERTI, 2001).
O significado das experiências das professoras enfermeiras da ETE, durante
a realização da formação na graduação e na licenciatura, me proporcionaram
informações significativas, complementadas pelas demais fontes utilizadas neste
estudo, para a análise das contradições em suas formações e como essas
contradições se manifestam em suas práticas educativas.
Alberti assegura que uma das principais especificidades da história oral é:
proveniente de toda uma postura com relação à história e às configurações
sócio-culturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por
quem viveu (ALBERTI, 2001, p.23).
Por meio dos relatos orais, pude recuperar parte do passado de suas
formações ampliando o conhecimento sobre a concretização das propostas
curriculares que permearam os períodos em que os sujeitos da pesquisa
realizaram a graduação e a licenciatura. Essa possibilidade contribuiu para uma
melhor compreensão dos movimentos que produziram as mudanças no ensino da
enfermagem. Cada entrevistada, ao narrar sua formação, recuperou a
materialidade de sua existência, circundada pelos mais variados contextos sociais,
como diz Cunha ao referir que:
O entrevistado, ao narrar sua vida passada, procura retomar os mais diversos
espaços sociais de sua existência. E aponta para os processos sociais no qual
esteve inserido, possibilitando conhecer as estratégias e os mecanismos
estabelecidos entre ele e as instituições sociais. Processos esses que, em última
instância, deram formas e conteúdos ao seu comportamento, a sua prática social
e as suas crenças de mundo (CUNHA, 2003, p. 115-130).
Além da retomada dos vários espaços de existência das entrevistadas, pude
recuperar as expectativas que tinham antes de sua formação, as concepções que
tinham sobre saúde e educação antes da chegada ao curso de enfermagem e as
32
que passaram a ter após o curso, os aspectos facilitadores e dificultadores de suas
formações, considerações sobre a formação que receberam para o exercício da
docência, a percepção sobre os aspectos pedagógicas dessa formação,
referenciais teóricos que amparam suas práticas educativas. No dizer de Alberti
seria “compreender a sociedade através do individuo que nela viveu: de
estabelecer relações entre o geral e o particular através da analise comparativa de
diferentes testemunhos” (ALBERTI, 2001).
Ao se referir às origens históricas da história oral, Verena Alberti (2001)
menciona que Heródoto e Tucídides a utilizavam por meio de relatos e
depoimentos com o fim de comporem suas narrativas históricas sobre os
acontecimentos do passado. Assinala que durante a idade Média também eram
utilizados os relatos e depoimentos para a reconstituição dos fatos e das
conjunturas. O relato oral tem sido ao longo dos séculos, “a maior fonte humana de
conservação e difusão do saber, o que equivale dizer, fora a maior fonte de dados
para as ciências em geral” (SIMSON, 1988, p.16). No século XIX, porém, com o
advento e prevalência da história positivista e a demasiada relevância no
documento escrito, a prática da coleta de informações por depoimentos ficou
esquecida, por entenderem que o depoimento não tinha valor de prova documental,
por ser subjetivo, parcial e sujeito a falhas de memória.
Thompson apud Ribeiro (2005) refere que:
Marx e Engels, em seus textos diretamente políticos, em geral recorreram
consideravelmente tanto a sua própria experiência direta, quanto a relatórios
escritos e orais, provindos de seus inúmeros correspondentes e visitantes.
Contudo, para sua análise teórica mais elevada, Marx apoiou-se em fontes
publicadas. O Capital é solidamente documentado mediante bibliografia e notas
de rodapé (RIBEIRO, 2005).
Somente por volta da segunda metade do século XX é que a história oral
passa a ser valorizada como um método de estudo dos acontecimentos e
conjunturas sociais. Atribui-se esse fato à insatisfação dos pesquisadores com os
métodos quantitativos, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial, em que
métodos qualitativos de pesquisa começam a ser creditados.
A utilização de um gravador permitia guardar o depoimento, conferindo a
possibilidade de um acervo de fonte para outras pesquisas. Nesse contexto de
valorização, as entrevistas passaram a ter valor de documento sem, no entanto,
33
assumir um cunho positivista. A propósito disso, Alberti refere que a entrevista
passa a ser um documento não com a conotação que tinha na prática da pesquisa
positivista, pois os acontecimentos recuperados não são, simplesmente, fatos
relatados do passado “e sim as formas como é aprendido e interpretado” ( 2001).
Joutard (2001) aponta que a primeira geração de historiadores orais surgiu
nos Estados Unidos durante os anos 50, com a finalidade de reunir material para
futuros historiadores. Já na Itália, a pesquisa oral foi utilizada para recompor a
cultura popular. Os pesquisadores partidários dessa abordagem fazem parte da
segunda geração de historiadores orais.
A adesão de vários estudiosos, a esse último enfoque da história oral, entre
eles, Paul Thompson na Inglaterra, Danièle Hanet na França e Mercedes Vilanova
na Espanha o fizeram prosperar. A partir do XIV Congresso Internacional de
Ciências Históricas em San Francisco em 1975 e do primeiro Colóquio
Internacional de História Oral ocorrido na Bolonha se estabelece a terceira geração
de historiadores orais.
A expansão do emprego deste método no início dos anos setenta, nos
Estados Unidos e Europa, teve como resultado o surgimento de vários programas e
de pesquisas com tal abordagem metodológica. Nesse período começam a ser
realizadas as primeiras entrevistas no Programa de História Oral do Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação
Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), implantado em 1975.
A história oral no Brasil e demais países da América Latina, que passaram
por regimes de governo ditatoriais, teve sua implantação relacionada ao processo
de redemocratização. Esse dado a diferencia da metodologia de história oral
adotada nos Estados Unidos e na Europa.
3 – As Categorias de Análise
Todo o estudo de um fenômeno é bastante complexo se pretendermos
desvelar seu concreto aparente. “Todo o começo é bastante difícil em qualquer
ciência” (Marx, 2006, p.15). Estudar a manifestação das contradições da formação
em enfermagem na prática educativa das enfermeiras da ETE /HCPA, penetrando
34
em suas minúcias, através do exame das categorias empíricas que foram se
manifestando em suas histórias orais foi me absorvendo a ponto de, inicialmente,
me levar, como pesquisadora, a vários questionamentos acerca da realidade
material que reveste e envolve suas células. É como lançar mão do microscópio,
ferramenta utilizada para a observação das minúcias de uma estrutura viva ou
morta. A que examino encontra-se viva com todas as suas contradições. Como diz
Marx ao se referir à análise da mercadoria:
[...] é mais fácil estudar o organismo, como um todo, do que suas células. Além
disso, na análise das formas econômicas não se pode utilizar nem microscópio
nem reagentes químicos. A capacidade de abstração supre esses meios. A
célula econômica da sociedade burguesa é a forma mercadoria. Sua análise
parece, ao profano, pura maquinação de minuciosidades, mas análogas àquelas
da anatomia microscópica (Marx, 2006, p.16).
Poderá parecer, como revela o autor da filosofia de práxis, pura maquinação
de minuciosidades a minha análise, na realidade procuro estudar as células -
categorias da formação dos sujeitos da pesquisa e as células - categorias que
configuram a manifestação de sua prática na relação dialética de ambas, para
chegar ao que é fundante no fenômeno em pesquisa. Quando me refiro às células
– categorias - formação e prática tenho presente a compreensão de Kosik sobre a
totalidade:
[...] significa conhecer a realidade em suas contradições, o todo vivo e em
movimento na relação com um sujeito histórico real, num processo práxico que é
geral e particular ( KOSIK, 2002, p. 60-61).
Ao ouvirmos as narrativas dos caminhos da formação em enfermagem,
trilhados pelas professoras enfermeiras, a partir de suas percepções do passado,
formações que assumem dimensões marcadas, ora pela distância de um tempo
que passou, mas que ainda é muito presente em suas vidas, ora pelo significado
que esse trilhar teve, me deparo com o que diz Meihy sobre a história oral:
Como pressuposto, a história oral implica uma percepção do passado como algo
que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado (MEIHY,
1996, p. 10).
35
Para tirar os véus que envolvem as contradições da formação das
professoras enfermeiras, cujas histórias orais não se cristalizam em nenhuma
documentação, por serem trilhas de caminhos que estavam aparentemente em
silêncio, mas eloqüentes em suas práticas educativas, fui à busca, como já referi
neste capitulo, do registro da expressão oral de suas formações que talvez
ficassem intocáveis se não fossem gravadas e transcritas para uma análise do não
explícito ou até mesmo do indizível. (SIMSON, 1988).
Para responder às questões de pesquisa e atender o objetivo proposto de
conhecer, descrever e interpretar as contradições da formação das professoras
enfermeiras da ETE/HCPA e como essas contradições se manifestam em suas
práticas educativas optei por deter minha análise em três categorias gerais: a
historicidade da formação das professoras enfermeiras da ETE/HCPA, as
contradições dessa formação e de suas práticas educativas integradas de
subcategorias, encontradas no recorte da história oral de suas formações:
Idealização / realidade, abordagem tecnicista / abordagem ético-humanista,
fragmentação / contextualização, rigidez / flexibilidade, avaliação como mecanismo
de controle / avaliação emancipadora, prática educativa transmissiva/
problematizadora, diretiva/ dialógica, controladora/ emancipatória.
36
CAPÍTULO II – A Historicidade da Formação Profissional e do Ensino de
Enfermagem
1 – Do Passado ao Presente: Um panorama da Enfermagem Profissional no
Mundo e no Brasil
Para entender as concepções que inspiraram a formação das professoras
enfermeiras da ETE/HCPA foi imprescindível mergulhar na historicidade que a foi
constituindo.
Para desnudar o fenômeno de pesquisa, em análise, precisei ter uma
atitude, que no dizer de Kosik, supera a de “um abstrato sujeito cognoscente” que
contempla a realidade sentindo-se fora dela (2002, p.13). Por ser um indivíduo
histórico e social, por também ter vivido nos contextos políticos, econômicos,
sociais e culturais que alimentaram não só a formação dos sujeitos dessa pesquisa
entre outros, bem como, as formações que realizei em pedagogia e em direito, por
ter sofrido, na pele, as agruras de um período de repressão política e, ao final da
formação em direito, ter vivido os sinais da chamada “abertura dos anos oitenta”,
não me fazem uma pesquisadora que especta a realidade, mas um ser que vive,
que sentiu a concretude desse contexto pulsar dentro de si, com todas as suas
contradições. Essa condição de agir com a minha prática na relação com a
natureza e com os outros seres é que me faz ser o que sou. Nessa materialidade é
que busco investigar a formação das professoras enfermeiras nas dimensões
possíveis, dentro de várias limitações que o pesquisador ou a pesquisadora
passam no esforço de compreender, dialeticamente, um fenômeno.
Gramsci ao se referir à concepção dialética da história menciona que:
No sentido mais imediato e determinado, não podemos ser filósofos, isto é, ter
uma concepção de mundo criticamente coerente sem a consciência da nossa
historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que
ela está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras
concepções (GRAMSCI, 1987, p. 13).
Portanto, para apreender as contradições que compõem o contexto da
formação das professoras enfermeiras da ETE/HCPA foi necessário percorrer a
37
história da constituição e desenvolvimento da enfermagem profissional no mundo e
no Brasil, de seu ensino e de sua prática, articulando esses elementos à
historicidade das sociedades e das políticas públicas no âmbito da saúde e
educação.
Conforme já apresentado no projeto que dá origem a essa dissertação, ao
refazer os caminhos que produziram a prática social da enfermagem, numa breve
retomada, percebi que em grande parte das obras consultadas sobre a história da
enfermagem, há uma predominância de enfoques estanques, de análises
descritivas, localizadas, e referentes especificamente à profissão. Esse estilo linear
da produção literária desse saber, a falta de uma análise dialética das relações
históricas que foi estabelecendo, ao longo de seu desenvolvimento com outras
profissões na área da saúde, informou alguns indícios da própria formação de
quem a produziu.
A história da enfermagem profissional moderna iniciou na Inglaterra na
segunda metade do século XIX com Florence Nightingale, que realizando cuidados
de enfermagem em organização de hospitais militares, no decorrer da guerra da
Criméia, reduziu sensivelmente o número de combatentes mortos. A partir desse
trabalho ficou nacionalmente conhecida e reverenciada no mundo todo.
A Escola Nightingale surgiu junto ao Hospital St. Thomas, localizado em
Londres e Florence foi a grande articuladora da criação de uma escola de
enfermagem que tinha por objetivo preparar profissionais para uma prática social
dentro de novos padrões pedagógicos. Passou a ser exemplo para outras
instituições, tanto nacional como internacionalmente.
O presidente da ABEn.RS, Enfermeiro Joel Rolim Mancia, ao recuperar os
movimentos dessa instituição ao longo da história da enfermagem profissional,
mencionou que:
O modelo Nightingale vai para os Estados Unidos no final do século XIX, lá se
implantando. Conhecido como
Modelo Anglo-americano, se adaptou muito bem
ao território americano com alunas vindas,
direto da Escola de Florence na
Inglaterra
. Chega ao Brasil na década de XX, embora já existisse, no país, o
Hospital Samaritano de São Paulo que já reproduzia o modelo nightingale de
enfermagem por ser um hospital inglês para estrangeiros. Este hospital existe
até hoje.
38
A proposta pedagógica da Escola Nightingale era de formar mulheres, as
nurses, para o exercício de atividades de conteúdo menos complexo de
enfermagem hospitalar e domiciliar, bem como mulheres que exerceriam atividades
que exigiam uma qualificação mais complexa de administração, supervisão e
ensino, as lady-nurses.
As lady-nurses eram provenientes da burguesia inglesa, e as nurses eram
oriundas do proletariado. Esta divisão social do trabalho, estruturada na
organização da sociedade capitalista, favoreceu, desde já, a exploração dos
trabalhadores e trabalhadoras que realizam tarefas menos valorizadas socialmente.
Nesse caminho, a Escola Nightingale estava perfeitamente conectada ao mercado,
atendendo às exigências do modo de produção capitalista.
Florence Nightingale “foi considerada a enfermeira pioneira ao introduzir a
administração no ambiente hospitalar, consolidando, precocemente, o princípio da
divisão do trabalho na enfermagem, ou seja, as ladies nurses deveriam pensar e
administrar o trabalho e as nurses deveriam executá-lo” (SPAGNOL, 2005 p.119-
127).
Esses dois tipos de formação a das nurses e de lady-nurses revelam a
dualidade do trabalho, o intelectual e o manual, observada até os dias de hoje.
No período da criação da Escola Nightingale, na segunda metade do século
XIX, a enfermagem era uma ocupação desqualificada, realizada, comumente, por
pessoas das classes menos favorecidas, principalmente por empregadas
domésticas. O exercício das atividades de enfermagem não estava revestido de
uma preparação qualificada. Tendo em vista essa situação de precariedade, as
enfermeiras, ladies nurses, egressas da Escola Nightingale e representantes da
aristocracia inglesa, se incumbiram de abrir outras instituições de ensino de
enfermagem, com base nos princípios filosóficos preconizados pela referida escola.
As professoras enfermeiras da ETE, desde alunas da graduação, foram se
constituindo na dualidade, foram aprendendo que o exercício do papel de liderança
que lhes caberia junto à equipe de enfermagem, demandaria atribuições
intelectuais, que resultariam no distintivo de sua classe. Em recente trabalho de
educação em serviço, que a ETE vem desenvolvendo junto às equipes de
enfermagem e do qual participo, é recorrente a minha observação, acerca da falta
de valorização das falas dos funcionários subalternos (funcionários que ocupam
39
cargos de nível médio na enfermagem, como auxiliares e técnicos), sobre o
processo de trabalho realizado no cotidiano de suas atividades laborais.
Problemas, inclusive os mais simples, que poderiam ser equacionados com maior
resolutividade nas unidades de internação, se arrastam pela materialidade presente
da divisão dual do trabalho, entre os que existem para pensar e os que existem
para executar. Essa impossibilidade tácita da fala dos subalternos vem se
reproduzindo historicamente, na medida em que é reforçada por vários
mecanismos, entre os quais, o da própria formação, tanto no nível superior, quanto
no nível técnico.
Apesar da perspectiva ético-humanista, presente nos dois níveis da
formação, veicular a idéia de que todo o ato de trabalho, por mais simples que seja,
demanda processos de raciocínios que resultarão numa decisão que poderá ter
repercussões mediatas e até mesmo imediatas na vida dos pacientes e que o
trabalho, supostamente repetitivo, no senso comum da materialidade das
atividades de enfermagem, está revestido de uma complexidade peculiar em
relação a outras formas de trabalho, pois trata-se da realização de procedimentos
em seres vivos, esse reconhecimento discursivo não se realiza na prática do
ensino, nem tão pouco no cotidiano das relações estabelecidas no processo de
trabalho. É a desqualificação da atividade de base no cuidado, realizada pelos
auxiliares e técnicos, enquanto relação social de produção de valor. Na avaliação
de Kuenser: “decorre da divisão do trabalho, que separa capital e trabalho, trabalho
intelectual e trabalho instrumental, dirigente e trabalhador (2004, p.109).
Neste sentido, a fala da professora, a despeito da disposição discursiva
sobre o valor do trabalho em si, é reveladora:
Profª Enfª 3 - O trabalho em equipe não é muito valorizado na formação, parece
que a gente vai trabalhar sozinha, não é assim, pelo contrário, depende de um
muitas pessoas. Parece que a gente é uma deusa ali naquele setor, não tem
auxiliar de enfermagem, não tem técnico de enfermagem.
A formação em enfermagem, ao longo de sua historicidade, vai produzir e
reproduzir a divisão técnica e social do trabalho nos detalhes mais sutis, que a fala
acima expressa. A onipotência da figura da enfermeira, vista como deusa, num
trabalho solitário, parece traduzir bem essa questão.
40
A narrativa abaixo, acerca de uma experiência num dos campos de estágio,
parece bastante elucidativa quanto ao modo de organização, na perspectiva da
divisão do trabalho intelectual e manual:
Profª Enfª 4 - A briga por cores, na atividade de registro, era uma coisa muito
interessante, porque o auxiliar tinha que escrever com caneta cor rosa e a
enfermeira tinha que escrever com caneta de cor verde, e elas escreviam em um
papel separado dos médicos.
A diferenciação na cor da caneta, na atividade dos registros pode,
aparentemente, parecer um aspecto facilitador na identificação dos cuidados que
foram realizados pela/o enfermeira/o e dos que foram realizados pelas/os auxiliares
ou técnicas/os, porém o que está por trás dessa intenção, é bastante eloqüente. E
mais, além da diferença nas cores entre os membros da equipe de enfermagem,
havia a diferença entre as/os trabalhadoras/es de acordo com a categoria. As
enfermeiras “escreviam em papel separado dos médicos”.
A par de tudo isso, há experiências que contrariam os efeitos da formação
no sentido acima analisado, como a da Profª Enfª 4:
Normalmente o funcionário tem receio de ser avaliado e de dizer alguma coisa
que daqui a pouco possa ser levado para chefia de enfermagem e a chefia não
gostar. Eu sinto isso e acho que essa situação deveria acabar. Eu nunca fui de
fazer isso. Sempre tentei ser muito próxima, sabendo até onde vão os limites
deles, mostrando para eles até aqui você vai, mas não impondo o meu saber,
como sendo o limite. Gostava de estar próxima, de sair com eles. A gente saía
para almoçar junto.
Essa professora ao longo da narrativa de sua história oral sobre a formação,
expressou que: “O jeito de eu fazer enfermagem se deve ao meu jeito de ser,
independente da formação. Também, a partir de outras experiências que eu
busquei, além da graduação. Se dependesse apenas dessa, acho que seria mais
acadêmica, mais tecnicista, fazendo as coisas sem perguntar o porquê, como é
feito” (Profª Enfª 4).
Voltando às origens da formação da prática social de enfermagem é
importante referir que a Escola Nightingale funcionava em regime de internato, com
um sistema disciplinar rígido. Tinha por princípio pedagógico a formação de um
perfil profissional com o cultivo de traços de caráter, tais como: honestidade,
moderação, correção, lealdade, pontualidade, tranqüilidade, organização e
41
distinção de porte. SILVA aponta que: “As Escolas Inglesas Nightingale estavam
assentadas em princípios que revelavam uma notada preocupação com a postura
pessoal das alunas quanto a formas de vestir e de se portar” (1986, p. 53).
A Profª Enfª -1 referindo-se ao relacionamento estabelecido entre os
docentes e discentes, no período dos estágios, asseverou que a atitude das
professoras durante a graduação era positivista.
A maioria dos docentes sempre teve uma atitude positivista. Positiva no seguinte
sentido, na época, a gente tinha a questão do uniforme, a questão da
circunferência do brinco, não podia usar o brinco pendurado, não podia usar o
esmalte vermelho. Essas coisas assim da tal da postura. O uniforme sempre foi
uma coisa muito rígida nesse sentido. A questão do tom de voz.
A fala acima denota o quanto essa herança anglo-americana do estilo
padrão nightingale, apontada por Silva (1986), ainda é forte, há mais de seis
décadas depois, guardando, evidentemente, a necessidade justificada por uma
questão de assepsia, do devido cuidado com os uniformes e com outros adereços
na vestimenta que os trabalhadores e trabalhadoras precisam observar, em razão
de se preservarem e de preservar os pacientes de qualquer risco de contaminação.
Ressalto a minuciosidade nas exigências quanto à postura, interferindo até mesmo
no tom de voz, no esmalte da unha. Ainda é bastante freqüente, a observação de
algumas regras levadas, ao pé da letra, nesse sentido. Logo que comecei a
trabalhar na ETE fui percebendo o quanto essa questão era valorizada junto aos
discentes, inclusive motivando algumas orientações individuais aos alunos e alunas
que saíam do padrão.
A valorização da classe, quanto à aparência asséptica, do branco alvo, do
cuidado com os mínimos detalhes, é motivo de comentários até mesmo entre as
professoras enfermeiras. Algumas delas quebraram, de certo modo, esse
paradigma, sobretudo as que tiveram alguma prática fora dos muros do HCPA, isto
é, as que trabalharam nos postos de saúde, ou que já tinham passado por hospitais
públicos, mais carentes em recursos financeiros. Aprenderam, por conta da própria
experiência, a mudarem os seus rígidos padrões de exigência. Três das
professoras enfermeiras, formadas no padrão HCPA, desde a graduação, duas
vindas do interior, mas trabalhando há mais de quinze anos na instituição, e duas
mais jovens, oriundas de hospitais privados renomados, uma delas ainda, com
42
alguma experiência em um hospital público mais modesto, vão aos poucos
rompendo, em parte, com algumas exigências determinadas, historicamente,
quanto ao perfil profissional. No entanto, pelo fato de trabalharem no HCPA, que
apesar de ser público, vive uma situação privilegiada em termos de aporte
financeiro, por ser um hospital-escola, por receber incentivos, tanto do Ministério da
Saúde, quanto do Ministério da Educação, por sustentar uma imagem
mercadológica de um hospital-empresa de sucesso e de competitividade no
“ranking” de “negócios”
7
desse ramo, ainda é bastante lembrado o zelo impecável
com a aparência dos uniformes, com as posturas que destacaram e destacam a
instituição, também, nesse sentido, configurando no contexto atual, um diferencial
no padrão de imagem conquistado pelo hospital. Para exemplificar, em diversas
edições do prêmio Top Of Mind
8
, o HCPA, tem aparecido, com freqüência, como
um dos hospitais mais lembrado pela comunidade.
. Nessa fase de análise consigo perceber, com maior precisão, as razões da
permanência de alguns costumes na enfermagem que, além de estarem
relacionados, em sua origem, com a preocupação de divulgação de uma imagem
ilibada e moralmente elevada, influenciada pelo severo puritanismo da chamada
era Vitoriana e pela preocupação com o fortalecimento de um perfil profissional
irreparável, no sentido de marcar território frente à hegemonia médica, no período
atual, estão vinculadas a razões justificadas pelos adereços considerados
importantes e que produzem um diferencial no padrão de qualidade dos serviços
prestados pelas ‘organizações - negócios- empresas- hospitais- marcas’ mais
7
Utilizei o sinal de pontuação, aspas, em “ranking e negócios” , porque são palavras utilizadas pela
linguagem administrativa do HCPA na divulgação pública de suas atividades e em alguns manuais
sobre o funcionamento da instituição entregue aos funcionários, por ocasião da admissão como
empregado na empresa (Manual do colaborador do HCPA, 1998). A palavra “ranking” é largamente
utilizada no vocabulário de economia. Origina-se da palavra inglesa “rank” que é traduzida como
categoria, posto, graduação, classificar alguém, algo (Dicionário Oxford).
8
O prêmio Top Of Mind é o maior prêmio que homenageia as empresas mais lembradas pelos
profissionais de Recursos Humanos. Sua proposta é conhecer os graus de lembrança das marcas
organizacionais que prestam serviços e/ou vendem produtos para os profissionais que atuam nas
áreas de Recursos Humanos das organizações. Tem por finalidade potencializar a marca da
organização dentro do mercado de Recursos Humanos, criando uma maior identidade com seu
Público, auxiliando a estabelecer o vínculo e fidelidade à marca. (Acessado em:
http://www.rhcentral.com.br/top/historico.asp,22 jun. 2007, 20 h)
43
lembradas. A busca pela conquista de prêmios, valorizados no mundo dos
negócios, vai legitimando o terreno da competitividade alicerçado na ampliação do
capital. As organizações, inseridas nessa ciranda, passam a necessitar da
veiculação, cada vez maior, de uma imagem de sucesso, para que possam “vender
seu produto” e ter condições de disputar mais fatias no ranking com as demais
instituições. É a “lógica da mercadoria”, como refere Kuenzer:
Aos enfermeiros como aos professores, restaria a esperança de trabalhar nos
espaços públicos, onde, em tese, a relação entre custos e benefícios seria regida
por outra lógica – a do direito a um serviço público de qualidade - e não pela
realização da lógica da mercadoria. [...] Esta mesma lógica submete a prestação
do serviço público ao compartilhamento com a prestação dos serviços privados,
o que impõe que as instituições públicas também sejam regidas pelas leis de
mercado (KUENSER, 2004, p. 112).
Outro aspecto importante, no caminho percorrido pelas primeiras escolas de
enfermagem seguidoras do padrão nightingale, apontado por Silva é que: “Existia
também a indicação de que as escolas fossem dirigidas por enfermeiras e não por
médicos e estivessem voltadas para um ensino teórico revestido de autonomia
pedagógica e financeira” (1986, p. 53). Essa determinação acena para a
preocupação de defesa do espaço ocupado pela categoria que já se protegia da
ingerência da hegemonia médica em sua administração. A presença de um
princípio visando a determinação da busca de um referencial teórico sistematizado
e autônomo do conteúdo de enfermagem remete a intenção de legitimação de um
conhecimento específico da enfermagem, num contexto positivista, de supremacia
do saber científico, do avanço das ciências naturais, principalmente das ciências
biológicas e fisiológicas que marcaram o século XIX.
Atualizando essa determinação de ocupação de espaços importantes para o
fortalecimento da profissão, é importante referir que a enfermagem, mesmo com
essa determinação histórica de organizar seu saber de forma independente e
autônoma, não surgiu para fazer frente à hegemonia médica (PIRES, 1989) no
serviço de saúde. Todavia, é marcante ao longo da construção desse caminho
profissional, o quanto a enfermagem vem buscando a ocupação de fatias
estratégicas nas instituições de saúde e o quanto tem conquistado posições na luta
contra a hegemonia médica. No HCPA, que é o exemplo mais próximo que tenho
observado, a enfermagem vem confirmando sua base de luta, vem conquistando
44
nichos estratégicos na valorização de sua profissão, tais como, a criação da
Associação de Enfermeiros do HCPA, a conquista recente de ambientes físico
estruturados para o desenvolvimento de pesquisas científicas, que até então eram
ocupados apenas pela classe médica.
Outro exemplo é o status da chefia da coordenação do GENF. Embora essa
estrutura hierárquica de poder, ainda não esteja assegurada, de direito, no
planejamento estratégico da administração central da instituição, já se configura, de
fato, no mesmo patamar e poder de decisão das vice-presidências, médica e
administrativa.
Outra característica relevante na construção do caminho profissional da
enfermagem é a predominância das mulheres na atividade, o que traduz a divisão
historicamente construída de funções entre homens e mulheres, no mercado de
trabalho, agregada à diferenças salariais. As tarefas, tradicionalmente exercidas
pelas mulheres no decorrer dos tempos, foram tendo uma menor valorização do
que as exercidas, costumeiramente, pelos homens (SILVA,1986, p. 55-56).
A constituição da enfermagem, como profissão, vem demonstrando, desde
suas origens, uma forte divisão do trabalho, acarretando nessa lógica, valorizações
sociais diferenciadas das atividades exercidas. Por outro lado, reproduz a divisão
sexual do trabalho, como mote da organização capitalista, se definindo como uma
profissão feminina.
Segundo Lopes e Leal:
A marca das ordens religiosas impõe à enfermagem, por longo período, seu
exercício institucional exclusivo e ou majoritariamente feminino e caritativo. O
tardio processo de profissionalização atesta essas características e reproduz as
relações de trabalho sob o peso hegemônico da medicina “masculina”. Assim, a
seletividade sexual, assentada em valores ideológicos religiosos, associa-se à
seleção de grupos sociais a serem incorporados aos sistemas organizados de
saúde em expansão, a partir dos avanços técnicos e tecnológicos do campo
científico e da organização capitalista do trabalho (LOPES e LEAL, 2005, p. 105-
125).
Sobre essa questão de gênero, o Presidente da ABEn.RS menciona que: “
no primeiro vestibular unificado vão entrar pessoas do sexo masculino na
enfermagem. Até então, na Escola da USP, já ingressavam homens, mas na
Escola Ana Neri, por exemplo,não entrava o elemento masculino”.
45
A atividade de enfermagem, desde então, como um complemento
imprescindível ao ato médico vem fazendo parte do sistema produtivo, quase que,
tão somente, sob o regime de salariado.
No modo de produção capitalista um dos aspectos do processo de trabalho
passa a ser a produção de valor de troca, que vai se auto-estendendo com o fim de
acumular riqueza, por meio da produção de trabalho excedente a ser apropriado
pelo detentor do capital.
Nessa ótica, a desqualificação da/o trabalhadora/or, como o resultado do
trabalho concebido, enquanto relação social de produção de valor,
decorre da divisão do trabalho, que separa capital e trabalho, trabalho intelectual
e trabalho instrumental, dirigente e trabalhador. Marx ao longo de sua obra,vai
construindo a compreensão desta dupla face do trabalho em função de sua
dupla finalidade: produzir valores de uso e valores de troca.[...] o autor vai
mostrar que, no processo de produção de valor, se o trabalho é a negação do
humano ao produzir relações sociais alienantes, esse trabalho produz, ao
mesmo tempo, o próprio homem, afirmando-o enquanto indivíduo e enquanto
categoria (KUENZER, 2004, p.109).
Como vendedoras/es de sua força de trabalho, as/os profissionais da
enfermagem, diante da mercantilização dos serviços da saúde vão buscando a sua
afirmação como categoria, nessa dupla face do trabalho, que ao mesmo tempo que
nega as suas condições como humanos, potencializa a humanidade que os afirma
como seres que pensam, sentem e agem.
Na mudança da estrutura pré-capitalista para o capitalismo, é observada uma
maior intervenção do estado nas questões da saúde, bem como na organização
das instituições assistenciais que passam a seguir o modelo das estruturas
empresariais. É neste contexto, em meados do século XIX, como já foi
mencionado, que a enfermagem se apropria de parte dos conhecimentos e da
prática de saúde e se institucionaliza como uma profissão, detentora de um campo
específico do saber de saúde, responsabilizando-se por parte do ato de saúde
delegada pelos médicos que desenvolvem o papel de coordenadores do ato
assistencial.
9
O exercício de gerenciamento do ato assistencial pelos médicos foi se
forjando ao longo de séculos, legitimada pelas concepções sobre saúde-doença
9
Ato assistencial e ato de saúde não se referem aqui às discussões recentes que vem sendo travadas
quanto ao que caracteriza o ato médico.
46
que foram se constituindo de um período capitalista a outro. No liberalismo
econômico, a medicina vai se afirmando como meio de manutenção e reprodução
da força de trabalho necessária a seu prosseguimento e no capitalismo
monopolista essa posição da medicina se acentua. O setor da saúde passa a ser
chamariz, enquanto consumidor de bens e equipamentos sofisticados, bem como
incentivador do consumo de medicamentos. Torna-se um filé mignon, como fonte
geradora de benefícios, constituindo com esse fenômeno a mais valia. Nesse
contexto de medicalização, a medicina se insere com força e poder. A saúde passa
a ser encarada como um bem de consumo e a fazer parte do mercado.
A história da construção científica da enfermagem e sua normatização foi
fortemente influenciada pela prática social da medicina, já consagrada,
historicamente, por sua autonomia e instituição nos variados modos de produção
Quando a enfermagem se estabelece como profissão, a medicina já se constituía
num campo profissional milenarmente determinado.
A constituição da enfermagem estruturada como uma prática social
específica foi estimulada, também, pelas mudanças científicas e tecnológicas
realizadas no campo da medicina por ocasião da segunda revolução industrial. Há
um sensível desenvolvimento das metodologias terapêuticas, acarretando notáveis
modificações na constituição das organizações hospitalares.
A assistência de saúde passa a ser produzida por meio de um trabalho
coletivo, realizado quase que totalmente nos ambientes hospitalares com a direção
e controle do corpo médico que delegava atividades, segundo afirma Denise Pires
(1998). Tais transformações provocadas no interior dos hospitais, com a criação de
enfermarias específicas para o atendimento dos diversos casos começam a
demandar uma formação qualificada para o exercício de atividades inerentes a
terapêutica dos pacientes, uma vez que, o sucesso dos tratamentos não estava
mais sujeitos apenas à emissão de um diagnóstico preciso e sim, sobretudo de um
cuidado adequado e eficaz como indica SILVA (1986).
Todo esse reordenamento tanto do segmento profissional médico, como da
profissão de enfermagem, pautados na divisão técnica do trabalho, reproduz uma
melhoria na produção de bens e serviços, bem como o desenvolvimento de uma
lógica de trabalho coletivo. Mas, a par disso, esse avanço se constitui, sobretudo,
47
pela via privada, determinando que as especializações se orientem pela ótica do
capital em prejuízo dos princípios gerais que asseguram, verdadeiramente, o direito
à saúde da população. Outro aspecto a ser considerado na perspectiva da
especialização é a fragmentação do conhecimento e a conseqüente assistência
fracionada ao paciente. Conforme refere Machado:
O aumento das especialidades retoma o idiotismo da profissão, que analisados
no plano abstrato parecem uma grande vantagem, acabam não se manifestando
desta forma no dia a dia dos “operadores da empresa”. A questão não é linear no
sentido do acima afirmado. O problema é o uso capitalista deste novo
instrumental. Ele agrava a situação dos próprios trabalhadores da saúde
(MACHADO, 2005, p. 18).
Nesses movimentos de desenvolvimento da saúde que guardam, em sua
essência, as múltiplas contradições dos avanços da medicina e enfermagem,
encontramos na sociedade brasileira, uma história profissional que vai se
apresentando por meio de um traçado hegemônico da medicina alimentado por um
contexto social de um capitalismo dependente.
Rizzotto em seu estudo sobre a História da Enfermagem e sua relação com
a Saúde Pública refere que, a “produção historiográfica brasileira” indica que a
constituição da enfermagem se origina, concretamente, em torno das décadas de
20 e 30 pela presença das grandes epidemias, que demandavam a formação de
trabalhadores especializados para atuarem como combatentes frente às doenças
infecto-contagiosas, sendo assim, a atuação da enfermagem visava
predominantemente o âmbito da Saúde Pública, compreendida aqui como as
práticas de saúde preventivas e de atenção primária, realizadas fora do campo
hospitalar (RIZZOTTO, 1999 p.1).
Essa interpretação quase massiva por parte dos historiadores da
Enfermagem Profissional, como adverte Rizzotto, atribuindo sua origem no terreno
da saúde pública vai perdendo fôlego à medida que, em outros estudos, foram
realizadas análises aprofundadas que não se limitaram a uma análise linear da
realidade onde a enfermagem foi se constituindo e se desenvolvendo como campo
específico de conhecimento e de prática profissional no contexto brasileiro.
SILVA conclui que:
48
O surgimento efetivo da enfermagem profissional no Brasil foi marcado por
paradoxos. Em primeiro lugar buscou-se atingir o objetivo de atender a
problemas imediatos de saúde pública de país pobre implantando-se um modelo
de escolarização de país rico. Em segundo lugar, como já disse, o escopo
primordial da fundação das primeiras escolas de enfermagem dos Estados
Unidos foi o atendimento, a baixo custo, da demanda de mãos-de-obra de
instituições hospitalares privadas, enquanto que no Brasil a sua finalidade básica
foi responder a interesses governamentais. Finalmente, estando caracterizados
estes como sendo, sobretudo, a resolução de problemas de saúde pública,
afigura-se paradoxal o tempo despendido pelas alunas no estágio hospitalar
(SILVA, 1986, p. 78).
Esse paradoxo na formação de enfermagem, apontado por Silva, reforça as
idéias de Rizzotto que aponta o equivoco dos historiadores, quanto à origem da
Enfermagem Profissional na saúde pública. Para ela essa interpretação se baseia
nos discursos oficiais do período que tinham a intenção de justificar, de maneira
oficial, a criação da primeira Escola de Enfermagem no Brasil, a Escola de
Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (RIZZOTTO, 1999, p. 3).
A origem oficial, no âmbito do discurso governamental, bem como a
referendada pelos historiadores, contudo, não se configurou com a extensão
propalada. Essas escolas estavam voltadas quase que exclusivamente para
assistência hospitalar, que abrigava um contingente populacional mais favorecido
economicamente. A própria organização curricular da primeira Escola de
Enfermagem do Departamento Nacional de Saúde acena para a confirmação
dessa contradição.
A respeito dessa contradição a fala do Presidente da ABEn.RS, na
entrevista, também reforça as considerações de Silva e Rizzotto:
Hoje, passados quase cem anos, têm-se colocado que, provavelmente, não
tenha sido a saúde pública, a intenção da criação da Escola Ana Nery. Na
verdade, a criação dessa instituição foi para qualificar pessoal para atender a
classe média emergente, bem como os próprios exportadores. Tanto é verdade
que muitas das primeiras enfermeiras, que se formaram na Escola Ana Néri,
foram trabalhar em domicílios
. A formação era toda hospitalar, em função do
próprio currículo. A escola Ana Néri tinha um internato, um pavilhão de aulas e
um hospital escola, onde as aulas práticas eram desenvolvidas, o que ainda
existe, até hoje.
Então, na verdade, se questiona muito se a formação era para a
saúde pública. No entanto, havia o serviço de enfermeiras de saúde pública,
dentro do Departamento Nacional de Saúde, que era o DNSP.
Em todo país
havia um departamento de enfermagem, que era o Departamento de
Enfermeiras em Saúde Pública, Superintendência, uns nomes parecidos, e que
teve muita força.
49
Ao datarmos e situarmos a origem da Enfermagem Profissional no Brasil, o
ano de 1922 é apontado como o do início da Enfermagem brasileira. Neste ano foi
criada a Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública,
denominada hoje como Escola de Enfermagem Anna Nery. É um período de
grande ebulição política, econômica, cultural e social. O país experimentava
mudanças institucionais, com a proclamação da república. No mundo eclodia a
Primeira Guerra Mundial, conflito de forças pela disputa da hegemonia econômica
e política no mundo. Neste período o país vive uma expressiva aceleração no
processo industrial, acompanhada de uma acelerada urbanização, acrescida
também por movimento imigratório. Esses fatores vão produzir conseqüências no
campo da saúde.
Neste contexto, as condições humanas miseráveis em que vivia a maioria da
população brasileira, constituíram o cenário ideal para a proliferação de doenças
infecto-contagiosas. Esse quadro de saúde acrescido às epidemias engrossava as
justificativas para a tomada de decisões governamentais no sentido de
investimentos em saúde (RIZZOTO, 1999, p.16).
A Saúde Pública passa a ser uma das preocupações do governo no sentido
de minimizar a repercussão que essa situação vinha tendo no exterior, bem como
para dar cabo dos princípios liberais que preconizavam a universalização da saúde
e da educação.
A enfermagem profissional brasileira, originada num projeto sanitarista, vai
assumindo cada vez mais os contornos do modelo biomédico assentado “nos
avanços da biologia, da patologia clínica, da fisiologia, da microbiologia e da
genética” (RIZZOTO, 1999, p. 29). Este paradigma de entendimento do processo
saúde-doença acaba influenciando as ações no campo da saúde pública. A
Medicina Clínica, de cunho individualista e curativo demandava mais profissionais
da enfermagem para dar conta do trabalho desenvolvido nos hospitais. Nessa
perspectiva, a Escola Anna Nery, amparada na orientação da Fundação Rockfeller,
que enviou um grupo de enfermeiras americanas para auxiliar na implantação e
organização do projeto político pedagógico que sustentaria suas ações educativas.
A respeito desse grupo de enfermeiras, o presidente da ABEn.RS
acrescentou que:
50
Para implementar esse primeiro modelo de enfermagem (modelo nightingale) no
Brasil, onde nós não tínhamos enfermeiras formadas sobre esse paradigma,
Carlos Chagas contratou, ou seja, veio junto com a Fundação Rockfeller, o que
chamamos de ‘
Missão Parsons, ou A missão de cooperação técnica americana’.
Parsons era a enfermeira que comandou esse grupo. Ela ficou de 1921 a 1931
no Brasil. É a grande responsável por muitas coisas na nossa profissão. O grupo
de cooperação técnica, além de ser composto pelas enfermeiras norte-
americanas, era integrado por enfermeiras canadenses, da Noruega, da
Inglaterra e da França. O grupo era formado, a principio, de oito países, mas a
maioria de seus integrantes eram americanas.
Essa missão técnica de cooperação norte-americana Ethel Parsons
10
,
portanto, foi constituindo seu plano de curso fundamentado numa estrutura
curricular voltada, sobretudo, para uma atuação em ambientes hospitalares.
Por outro lado, durante os anos 20 do século passado, o modelo
assistencial, realizado em hospitais, se fortalece como resultado dos movimentos
desencadeados pelas/os trabalhadoras/es em busca do oferecimento, por parte do
estado, de melhores condições de atendimento individual à saúde (RIZZOTTO,
1999, p29).
Denise Pires ao analisar a ideologia da enfermagem profissional e sua
articulação de classe refere que esse segmento profissional foi se estruturando
como a medicina, arraigada profundamente à proposta da classe que detinha o
poder político e econômico do país. “Os valores e a ideologia dominante foram
absorvidos como sendo os valores e a ideologia da enfermagem”. A enfermagem,
constituída profissionalmente, atenderia o objetivo internacional das nações
desenvolvidas, representadas, nesse sentido, pela Fundação Rockefeller, que era
o da criação de um ambiente, no Brasil, favorável ao desenvolvimento do modo de
produção capitalista (PIRES, 1989, p. 134).
A respeito dessa articulação do saber de enfermagem profissional, que se
instalava no Brasil, a partir do paradigma nightingale, o presidente da ABEn.RS
10
A Missão Técnica de Cooperação norte-americana Ethel Parsons foi solicitada por Carlos Chagas,
diretor do DNSP (Departamento Nacional de Saúde Pública) em maio de 1921, junto à International
Health Board (IHB) da Fundação Rockefeller, nos Estados Unidos da América (EUA). Tinha como
objetivo o desenvolvimento de um serviço de enfermagem articulado com o DNSP. A referida missão,
citada por muitos autores e profissionais da enfermagem, como “Missão Parsons, por ter sido
chefiada pela enfermeira norte-americana Ethel Parsons, chegou ao Brasil em setembro de 1921 e
tinha como objetivo avaliar a situação existente para a organização de uma escola ou cursos de
treinamento de enfermeiras, bem como para o desenvolvimento de um serviço público de
enfermagem no Brasil. Parsons veio acompanhada por sete enfermeiras dos EUA. Em 1922 começou
a chefiar o Serviço de Enfermagem, criado por Carlos Chagas em 1922 (Dicionário Histórico-
Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930),2007).
51
apontou que: “As enfermeiras americanas implementaram no Brasil, a Escola de
Enfermagem Ana Neri, o Serviço de Enfermeiras de Saúde Pública e criaram a
Associação Brasileira de Enfermagem. Seguiram o modelo americano,
organizando-se em torno de objetivos comuns” . Segundo Joel Rolim:
Essa escola entrou para a história, formou a primeira turma de enfermeiras no
padrão Ana Neri. Essa turma constituía-se de quinze enfermeiras. Oito dessas
profissionais foram para os Estados Unidos para estudarem. As sete, que
ficaram, fundaram a Associação Brasileira de Enfermagem.
Então, isso tudo está
dentro de uma receita, de um script americano, planejado pelas americanas que
era criar a Escola, criar a Associação, e elas tinham, ainda, outro objetivo que
mais tarde se concretizaria, que era a criação de uma Revista.. (Enfº Joel Rolim
Mancia )
Outro aspecto importante a destacar, no nascimento da enfermagem
profissional, é que a presença dessa nova categoria na equipe de saúde não
ameaçava a hegemonia médica. O saber médico e sua posição primordial na
assistência à saúde estavam garantidos ( PIRES, 1989, p.134).
Gramsci refere que: “A realização de um aparato hegemônico, enquanto cria
um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos
métodos de conhecimento” (GRAMSCI, 1987, p. 52 ).
A enfermagem profissional surge submissa aos ditames do poder médico e
aos auspícios da ideologia dominante. Conforme enfatiza Denise Pires (1989,
p.145), a hegemonia médica foi sendo forjada numa sucessão de “múltipla
determinação” que foi se traduzindo pela ligação orgânica da classe médica às
conveniências das classes dominantes ao longo dos diversos contextos históricos,
pelo controle exercido no processo de profissionalização das demais práticas
sociais da saúde, pela direção dos processos “administrativos e gerenciais das
instituições de saúde a serviço dos interesses hegemônicos e da manutenção do
status quo”, e, ainda, pela interferência, como categoria, “no próprio aparelho do
estado”.
52
2.2 - Os contornos do Ensino de Enfermagem no Brasil, das origens até às
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem
Formamos-nos como sujeitos sociais e culturais
situados, colocados a um lugar, a um espaço e um
tempo, a práticas concretas. Toda a formação e
aprendizagem é culturalmente situada (ARROYO,
2002, p.112).
O ensino da enfermagem no Brasil, organizado por meio de um projeto
político pedagógico estruturado, existe há menos de um século. O que havia,
anteriormente, eram iniciativas para o atendimento de necessidades pontuais que
se orientavam por propostas de formação não sistematizadas.
No início do século vinte, a economia brasileira, baseada no modelo agro-
exportador, necessitava uma política de saneamento que viabilizasse a salubridade
dos espaços onde ocorriam as transações comerciais. A difícil situação, onde as
epidemias significavam o entrave para o projeto político e econômico do país, as
demandas por profissionais de enfermagem e a busca de estruturação de novos
conhecimentos necessários às políticas sociais emergentes, promovem a criação,
por parte do governo, de órgãos de saúde no país e nos estados, bem como
instituições de formação. É criado Departamento Nacional de Saúde Pública que
mais tarde vai dar origem à Escola de Enfermagem Ana Nery.
Quanto aos acontecimentos que ensejaram a origem da Escola Ana Nery, o
presidente da ABEn.RS refere que:
A enfermagem moderna, implantada por Florence, começa a tomar forma no
Brasil no início da década de XX, no século passado, quando da Reforma Carlos
Chagas no Sistema de Saúde do país. Esta reforma ocorreu em função da
necessidade da realização de exportações. Nós tínhamos um sistema de saúde
péssimo, nossos portos assustavam os estrangeiros. O governo brasileiro
precisava melhorar as condições para as exportações. O sanitarista Carlos
Chagas, estando por um período nos Estados Unidos, influenciou-se pelo
modelo de saúde pública de lá, o que acabou implantando no Brasil, sobretudo,
por pressões internacionais. Por meio de um
convênio com a Fundação
Rockfeller, além de criar o novo sistema de saúde, implementa a enfermagem
moderna no Brasil.
Em 1923 é criada, portanto, a Escola de Enfermagem Ana
Neri que passou a ser a escola padrão.
53
Nas primeiras décadas do século XX, a quebra dos investimentos na cultura
agro-exportadora cafeeira, provocada por uma crise do capitalismo mundial, vai
constituir o pano de fundo para a economia brasileira mergulhar, de vez, nos
ditames do capital. Esse período é marcado por movimentos encabeçados pela
população em geral e pelos trabalhadores que reivindicavam, entre outras coisas, a
melhoria do atendimento em saúde. Os investimentos em políticas públicas de
saúde, providenciados pelo governo, além de atenderem às pressões dos
movimentos sociais, tinham como um dos principais objetivos contribuir para a
manutenção das boas condições da força de trabalho que sustentaria a viabilização
do plano de crescimento econômico vislumbrado pelo estado. Neste período, as
caixas de aposentadorias e Pensões são estatizadas por meio da Lei Eloy Chaves,
surgindo, com essa medida, o embrião para a criação da Previdência Social.
A Escola Ana Nery, considerada pelo Decreto Federal Nº 20.109, de 15 de
junho de 1931
11
como Escola Padrão, nesse contexto político, econômico, social e
culturalmente situado, torna-se o referencial no ensino da enfermagem profissional
no Brasil. Seguindo o modelo nathingale expresso no exercício de seu currículo,
atrelada a uma concepção americana de educação em enfermagem vai formando
enfermeiras com um saber-fazer subordinado à concepção de mundo veiculada
pelo saber médico articulado e construído a partir da sociedade capitalista liberal.
Um modelo de medicina que se desenvolveu no seio da sociedade industrial,
priorizando a tecnificação da assistência, pautada numa ótica racional e
individualista de atendimento curativo do paciente. Neste aspecto, Gramsci refere
que:
Pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado
grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de um
mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo,
somos sempre homens-massa ou homens coletivos (GRAMSCI, 1987, p.12).
A orientação curricular atendia, sobretudo, ao avanço da medicina
hospitalar, erigida como ambiente para prática médica no modo de produção
capitalista. Havia uma ênfase numa proposta de ensino “organicista e
individualista”, conforme destaca Rizzotto (1999).
11
Esse Decreto Regula o exercício da Enfermagem no Brasil e fixa as condições para a equiparação
das Escolas de Enfermagem.
54
A proposta pedagógica e a metodologia utilizada, nas aulas, estavam
fundamentadas numa pedagogia tecnicista, racional, centrada na transmissão e
assimilação do conhecimento passado de forma fragmentada, capacitando as
alunas para o atendimento das necessidades do mercado de trabalho vislumbrado
pela categoria médica e pelo governo. Conforme informa Rizzotto (1999) mais de
60% do conteúdo teórico era ministrado por médicos, “reforçando o modelo
biomédico” na prática do currículo.
Guardando algumas peculiaridades, o plano curricular da Escola de
Enfermagem Ana Nery não se distanciava, como já referi, do programa de ensino
veiculado nas escolas de enfermagem dos EUA. Era centrado na doença, na cura
e na atividade hospitalar. Rizzotto (1999) ressalta que havia uma nítida e
intencional inclinação “medicalizante e hospitalocêntrica”.
A recuperação desse caminho me faz compreender a materialidade acima
ainda presente na fala da Profª Enfª - 4, acerca de sua formação, mais de sessenta
anos depois: “Durante a faculdade a gente é muito voltada para a questão da
saúde, assim de que tu tens que cuidar do paciente, de que tu tens que dar
medicação. [...] Nos primeiros anos de faculdade a concepção de saúde era: curar,
curar e curar, bem medicalizante”.
Outra característica desse currículo era a ênfase na preparação da
profissional para atuação no desenvolvimento das capacidades e diferenças
individuais em conformidade com o modelo biomédico que tem como alicerce o
individualismo. Essa tendência observada na prática curricular do ensino em
enfermagem, produzida na conjuntura social, política e econômica, pós crise
mundial de 1929, respondia à implantação de um novo modelo de saúde pelo
Ministério da Educação e Saúde do Governo Vargas, que tinha como prioridade a
atenção médica individualizada. As ações de saúde pública, que haviam provocado
a criação da Escola Ana Nery, passaram para um segundo plano. O projeto de
saúde para o país passa a incentivar a medicina curativa e hospitalar tendo como
apoio os equipamentos hospitalares oriundos do processo de industrialização.
Gramsci ao analisar o capitalismo dos Estados Unidos da América (EUA),
em notas, produzidas durante a sua prisão, reunidas tematicamente em 1934 sobre
a nomenclatura de “Americanismo e Fordismo”, expressa que: “A americanização
55
exige um determinado ambiente, uma determinada estrutura social (ou a decidida
vontade de criá-la) e um determinado tipo de estado” (GRAMSCI, 2001, p.258-
259).
A importação do modelo das escolas de enfermagem e do serviço de saúde
estadunidenses, para o Brasil, gera a necessidade de um ambiente afinado com as
exigências do capital internacional. Para Gramsci, as propostas de produção e de
organização do trabalho segundo a racionalidade do método Ford
12
, cobravam do
capital a formação de um outro tipo de trabalhador que se adequasse a essas
novas propostas. “Na América, a racionalização determinou a necessidade de
elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabalho e de processo
produtivo” (2001, p. 248).
Neste contexto, a criação da Revista de Enfermagem na década de trinta,
como veículo formador de opinião e divulgador das idéias de seus associados,
sobretudo da ideologia da classe que detinha o poder na prática social da
enfermagem, constituiu um elemento importante, aliado à arquitetura americana
estruturada pela Missão Parsons na organização da enfermagem profissional no
Brasil.
A fala do Presidente da ABEn.RS reforça os argumentos acima:
Na década de trinta do século passado, foi criada a Revista Brasileira de
Enfermagem, que é o nosso mais antigo periódico existente até hoje. Essa
revista é muito forte, ainda,
e teve um papel fundamental ao direcionar tanto da
educação, quanto o posicionamento político, as idéias. Tudo da nossa profissão
passou pelo “olhar” da revista. A revista foi realmente o canal, não só de ideação
científica, mas política. Consolidou a profissão mesmo, no meu olhar.
O estilo americano de fazer enfermagem, o caráter ideológico, político e
cultural impresso no currículo pensado e concretizado para a Escola Ana Neri,
propositadamente, “treina” representantes, que tem como missão conservar e
divulgar a ideologia dominante na enfermagem. No estilo nightingale de
doutrinação, em sua hábil articulação sócio-política, prepara os profissionais que os
sucederão, no intuito de perpetuarem seu modo de organização.
Neste sentido, o Presidente da ABEn.RS informa que:
12
O processo de produção fordista ancora-se na linha de montagem relacionada à esteira rolante que
impede o deslocamento dos operários e mantém um curso contínuo e gradual das peças e partes,
permitindo a diminuição dos tempos mortos, e, portanto, da porosidade (ALVES, 2007).
56
Em 1931 o grupo de americanas, que vieram para a missão técnica, vai embora,
deixando, no Brasil, aquelas pessoas que elas treinaram, que elas viram como
possíveis seguidoras daquele modelo que elas, aqui, implantaram. Muitas de
nossas enfermeiras foram, inclusive, preparadas nos Estados Unidos para
ocupar esses cargos que as americanas deixaram vagos depois que saíram.
A Missão Parsons inspirada no mais refinado estilo da cultura estadunidense
cercou-se de todas as garantias possíveis no sentido do enraizamento institucional,
a partir de seus princípios, de suas ideologias, mandamentos estruturais, na
sociedade brasileira a ponto de assegurarem a perenidade do modelo norte-
americano de enfermagem mesmo no afastamento do controle direto de sua
missão. A propósito desse arranjo, Rizzotto informa que: “as enfermeiras
americanas tiveram ainda a preocupação de garantir, através de legislações, a
continuidade da estrutura do Serviço de Enfermagem implantada, seu
funcionamento, assim como o seu modelo de formação” (1999, p.59).O Decreto de
Nº 20.109 de 06/06/1931, já mencionado, é resultado dessa articulação.
Em Gramsci, o Estado em seu papel de educador:
como elemento da cultura ativa, deve servir para determinar a vontade de
construir, no invólucro da sociedade política, uma complexa e bem articulada
sociedade civil em que o indivíduo particular se governe por si sem que, por isto,
este seu autogoverno entre em conflito com a sociedade política, tornando-se ao
contrário, sua normal continuação seu complemento orgânico (2000, p.279).
Nesse prisma, Neves refere que ao longo do século XX: “O Estado
capitalista, mundialmente, vem redefinindo suas diretrizes e práticas, com o intuito
de reajustar suas práticas educativas às necessidades de adaptação do homem
individual e coletivo aos novos requerimentos do capitalismo monopolista” (NEVES,
2005, p.26 ) .
A enfermagem brasileira seguindo, meticulosamente, o ideário americano de
constituição e ganhando terreno na adesão orgânica ao projeto da classe
detentora, do poder político-social no Brasil, não descuida de seu script habilmente
pensado. A propósito disso, convém salientar, a fala do Sr. Joel Rolim Mancia:
57
Com a saída das americanas do Brasil, em 1931, estas tiveram que deixar uma
substituta na direção da Escola Ana Neri. Foi nomeada para assumir o cargo,
uma enfermeira brasileira, que era formada em enfermagem na França. Essa
enfermeira brasileira ficou dois anos nos Estados Unidos sendo preparada para
assumir a direção da Escola. Essa pessoa morreu, pouco tempo depois, e em
vez de ser substituída, novamente retornou uma americana, por questões não
muito claras, parece que ainda era muito forte o poder do convênio que se tinha
com a Fundação Rockfeller, para ficar no Brasil.
Embora o Brasil tenha iniciado a enfermagem profissional, a partir do ideário
nightingale, juntamente com os aportes de um americanismo e fordismo impressos
em sua essência, aos poucos, à medida que o número de brasileiras formadas na
Escola Ana Neri, aumentava, as egressas, com base nessa organização e em suas
idéias, começavam a imprimir alterações, tipicamente tupiniquim
13
na estrutura
política e administrativa da instituição. A Escola Ana Neri começava, dessa forma,
a dar sinais de abrasileiramento.
Quanto a esse aspecto, o Presidente da ABen. RS expressa que:
Mesmo com a morte da primeira diretora brasileira
14
, as enfermeiras brasileiras
já tinham uma liderança importante. Haviam criado a Associação Brasileira de
Enfermagem e essa já tinha um determinado papel, um deles é o de 31, quando
da criação do decreto
Nº 20.109, no governo Getúlio Vargas que foi a primeira
lei de enfermagem no Brasil. Vai disciplinar diversas coisas da educação em
enfermagem, do
exercício da profissão e estabelece que a Escola Ana Neri,
seria a escola de enfermagem padrão no Brasil.
A pesar do processo de constituição da enfermagem profissional no Brasil
estar assentado num ideário hegemônico americano, politicamente monitorado e
controlado para que tudo seguisse uma organização pré-determinada, no embate
dialético das relações desse organismo vivo e repleto de contradições, iniciou-se
um movimento contra-hegemônico, alimentado pela brasilidade de nossa cultura,
do jeito de ser das alunas da terra, das configurações políticas, econômicas e
sociais nativas. Aos poucos foi se formando uma consciência corporativa, mesmo
que inspirada num projeto de enfermagem anglo-americano. Essa consciência
insipiente, por parte das enfermeiras brasileiras formadas na Escola Ana Néri, à
medida que vai se transformando até formar uma consciência de grupo na
13
A palavra tupiniquim foi empregada neste texto para dizer “ próprio do Brasil; nacional, brasileiro”
(FERREIRA,1986, p.1727).
14
A primeira diretora brasileira da Escola Ana Néri foi Rachel Haddock Lobo. Esta realizou sua
formação na França, tendo permanecido nos EUA, durante dois anos, para assumir o cargo de
diretora da escola. (RIZZOTTO, 1999, p.59)
58
condição de representante de um ideário não mais, puramente, americano, fez
surgir as condições que serviram de base para a construção de uma contra-
hegemonia. Passando de uma condição de passividade, as brasileiras, partem para
atitudes além da reprodução do modelo imposto, mesmo que de forma tímida, lenta
e gradual.
Neste sentido, o Presidente da ABEn. RS referindo-se às enfermeiras
brasileiras, formadas pela Escola Ana Néri, expressa que essas: lutaram muito
contra a hegemonia das americanas dentro da escola. Eram subordinadas às
americanas, ganhavam menos em termos de salários e tinham cargos menores”.
Outra situação que dificultava a imposição do modelo nightingale na Escola
Ana Néri tinha a ver com o perfil que era exigido das candidatas para o ingresso na
escola: “a primeira turma alterou alguma coisa em relação ao ‘perfil Florence’. No
Brasil, grande parte das alunas, era oriunda do nordeste. Tinham um perfil mais
pobre, de classe média” (Joel Rolim Mancia).
Neste aspecto, a cultura local opera sobre a importação do modelo anglo-
americano. O princípio de elitização americanizado, baseado em princípios
seletivos nightingaleanos, quanto ao status da candidata à Escola, sucumbe diante
das condições materiais de existência das melhores candidatas brasileiras.
Em junho de 1931, o decreto de Nº 20.109 regulamenta o exercício
profissional da enfermagem no Brasil e torna a Escola Ana Neri, referência
nacional, ou seja, escola padrão (PIRES, 1989). As instituições de ensino que
pretendessem formar enfermeiras diplomadas deveriam, a partir desse
mandamento legal, a se constituírem pelo modelo pedagógico da referida Escola.
Nesse período já é forte a influência da ABEn e das enfermeiras brasileiras
nos rumos do ensino de enfermagem no País.
Esse decreto é resultado da influência das enfermeiras brasileiras. São elas que
vão fazer parte das comissões que vão avaliar as escolas. Imagine o poder de
estar prescrevendo um modo de ser, um modelo de enfermagem no país. Os
currículos tinham que ser de acordo com a Escola Ana Neri.
A influência da
ABEn é bem presente na enunciação desse decreto. Há um artigo nele, parece
que é o 3º, que determina que a enfermeira que viesse do exterior teria que
revalidar seu diploma no Brasil. Era obrigatório passar por uma
comissão de
avaliação que era constituída por duas professoras da Escola Ana Neri, pela
presidente da ABEn, e mais dois professores de duas universidades, um
enfermeiro e outro médico, mas que fossem indicado pela Associação Brasileira
de Enfermagem.
59
A idéia de Gramsci de que “o homem “devém”, transforma-se
continuamente com as transformações das relações sociais” (2004, p. 245) me
reporta aos espaços que circundaram a construção da enfermagem profissional. A
proximidade da Escola Ana Neri com a elite da sociedade política, que tinha o
governo instalado no Rio de Janeiro, contribuía para as articulações políticas, mas
ao mesmo tempo facilitava a ingerência direta do governo no rumo das ações
político-pedagógicas dessa instituição. Desde seus primórdios, a Escola Ana Neri,
como uma determinação política, atendendo aos interesses do Estado diante do
capitalismo internacional, vai se insurgindo nessa trama. Suas representantes, à
medida que avançam como classe, se aliam ao poder, e nesse movimento vão
configurando, suas ideologias, vão construindo organicamente suas relações de
forças, necessárias para se estabelecerem no mundo da saúde. A respeito das
ideologias necessárias historicamente, Gramsci refere que elas: “têm uma validade
que é a validade “psicológica”: elas “organizam” as massas humanas, formam o
terreno, no qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição,
lutam. (GRAMSCI, 2004, p. 237). Sobre o aspecto das relações sociais que as
enfermeiras dirigentes da escola e as egressas, formadas por esta, é oportuno
referir a fala do Presidente da ABEn. RS: “Nesse mundo muito pequeno, na
década de 30, com a capital do Brasil no Rio de Janeiro, nas formaturas da Escola
Ana Neri, era comum ter a presença da mulher do presidente da república e dos
ministros”.
Além dessas considerações, sobre a proximidade estratégica da Escola do
DNSP à corte do governo federal, o Sr. Joel Rolim Mancia enriquece em detalhes
eloqüentes os aspectos, quanto às forças materiais de existência da Escola e suas
ideologias:
Ao longo da história da enfermagem, na capital do país, nas décadas de
40, 50, é impressionante o significado do poder das enfermeiras da ABEn .
Tinham o poder de estar intervindo, diante dos governos, influenciando a
tomada de decisões. É comum a gente ver descrito nos documentos
histórico
s,hora marcada com Gustavo Capanema, que era ministro da
educação e saúde e com outros representantes da política. Era quase uma
conversa corriqueira. Em 40, elas criaram a Semana Brasileira de
Enfermagem, que existe até hoje. Esta não deixava de ser uma cerimônia
religiosa, tinham várias autoridades. Dom Hélder Câmara rezou a missa.
60
As relações sempre foram muito próximas ao estado, ao poder, coisa que
permanece.
Além do nascimento da enfermagem profissional, no Brasil, estar atrelado ao
paradigma americano de gestão política das instituições e, portanto, perfeitamente
relacionado às estratégias do capitalismo no gerenciamento dos assuntos de saúde
e educação, esse saber arrasta consigo suas origens, baseadas na herança de
puritanismo inglês, associado ao exercício da atividade, como um trabalho
caritativo e religioso. Pires informa que a ABEn, até os anos 80, teve um papel
divulgador do perfil da enfermagem como:” submissa”, “obediente”, “caridosa” e
“humilde”. (Pires, 1989, p.116). Valores cristãos, condizentes com a ideologia da
igreja que, ainda neste período, exercia um razoável poder sobre a enfermagem. O
espírito caritativo veiculado pelo cristianismo é valorizado de forma imprescindível
pela Florence Nightingale, ”como um princípio educativo”, e usado como peça
ideológica na sociedade capitalista, onde Alves aponta que: ”mais importante do
que a salvação da alma, é a salvação dos corpos necessários ao sistema
produtivo” (ALVES, 1997, p.86).
A nova demanda de serviços de saúde, por volta dos anos quarenta do
século vinte, resulta na proliferação de mais cursos de enfermagem baseados em
uma proposta pedagógica que privilegiava um currículo voltado para o modelo
técnico-científico inspirado na teoria taylorista de administração. Nas primeiras
décadas do século passado, com o aumento da demanda por atendimento
hospitalar, a divisão social do trabalho se acentua nas profissões da saúde.
Os hospitais, para atenderem a demanda, iniciam um processo de absorção
da racionalidade científica do trabalho usada no modo de produção capitalista.
Conforme Almeida: “os estudos de tempo e movimento, usados para
estabelecer padrões de realização nas fábricas, foram aplicados na enfermagem
(1989, p.55).
Outra conseqüência dessa lógica é o aprimoramento e evolução das
técnicas de enfermagem com o objetivo de uma melhor sistematização do cuidado
ao paciente. Para Almeida (1989) as técnicas não vêm atender a enfermagem em
si, mas ao acréscimo do número de pacientes e de algumas atividades manuais
que deixaram de ser executadas pelos médicos. Os profissionais da medicina
61
passaram a se dedicar às questões mais complexas, ficando as tarefas mais
simples para as/os trabalhadoras/es responsáveis pelo cuidado e
acompanhamento direto ao paciente.
No conjunto das relações de produção vai sendo dimensionada a
hierarquização dos saberes. A organização dos serviços de saúde, no âmbito da
cientificidade, da especialização do conhecimento vai produzindo a superioridade
do saber médico em detrimento aos demais saberes. A hegemonia médica se
constitui, a partir desses referenciais e tem sido, ainda, extremamente expressiva
nos serviços de saúde, conforme narrou o Presidente da ABEn.RS: A hegemonia
médica é cada vez maior, quanto mais tempo a gente está na profissão mais forte a
gente vê isso”.
Mesmo com o esforço da enfermagem na conquista de uma posição de
relevância na equipe de saúde, na medida em que começa a desenvolver saberes
hegemonicamente valorizados no campo científico, ainda é onerada com o poder
médico em pelo século vinte e um. A respeito dessa luta por um espaço valorizado,
o Presidente da ABEn.RS refere: “Embora a profissão tenha se aliado à medicina
para poder ter um saber mais reconhecido, foi a via que ela achou, digamos, lá
pela década de 70 ela dá um salto, que é quando a enfermagem vai para a pós-
graduação”.
Nessa perspectiva, nem a produção científica, buscada, desde a chamada
fase de intelectualização da enfermagem, está sendo suficiente para a ruptura da
hegemonia médica. Neste processo de múltipla determinação, a medicina
envolvida organicamente com as classes que detém o poder econômico e político,
foi produzindo e reproduzindo os interesses capitalistas, garantindo com isso, cada
vez mais, sua posição de superioridade, de gerência da equipe de saúde. (PIRES,
1989, p.145).
Para Marx: ”Na produção social da sua existência, os homens estabelecem
relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das
forças produtivas” (1983, p.24).
O modo de produção da vida material vai influir no desenvolvimento dos
aspectos sociais, políticos e intelectuais da vida social.
62
Por outro lado, a produção de técnicas na enfermagem também contribuiu
para que os hospitais se inserissem como instituições de serviço competitivas no
mercado. Precisavam, desde já, assegurar suas condições de custos e benefícios,
utilizando meios que otimizassem, cada vez mais, a produtividade com eficiência e
lucratividade.
Nas primeiras décadas, após a criação da Escola Ana Néri, a literatura de
enfermagem ainda era muito escassa. Haviam pouquíssimos livros estrangeiros
traduzidos para o português. Mediante a necessidade de uma normatização de
procedimentos técnicos que pudessem racionalizar o trabalho na enfermagem no
sentido de uma administração do cuidado mais eficiente e em menor tempo, devido
ao aumento no número de atendimentos, algumas enfermeiras tiveram a iniciativa
de escrever um livro sobre técnicas. O Presidente da ABEn. RS informou que:
“Neste livro tinham técnicas de ataduras, técnicas de curativos, dentre outras. Esta
produção foi publicada e divulgada pela Revista Brasileira de Enfermagem”.
Nessa perspectiva, Gramsci ao estudar a racionalização da produção e do
trabalho, refere algumas considerações que explicitam perfeitamente a
materialidade dos movimentos político-sociais, econômicos e culturais
mencionados acima:
Taylor expressa com brutal cinismo o objetivo da sociedade americana:
“desenvolver em seu grau máximo, no trabalhador, os comportamentos
maquinais e automáticos, quebrar a velha conexão psicofísica do trabalho
profissional qualificado, que exigia uma participação ativa da inteligência, da
fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas
ao aspecto físico maquinal (GRAMSCI, 2001, p.266).
É a partir dessa racionalidade que a equipe técnica americana introduz, no
Brasil, um modelo de enfermagem que atende perfeitamente aos interesses do
capital. Nesta perspectiva é observada a supremacia da dualidade, do controle e
da rigidez hierárquica nos processos de trabalho, ficando a/o enfermeira/o com as
atribuições intelectuais de administração e de educação e os demais participantes
da equipe de enfermagem com a assistência.
A formação das professoras enfermeiras demonstra a força dessa
racionalidade:
63
Profª Enfª 1 - Na formação, nessa época, ainda tinha aquela visão de que o
enfermeiro era o pensador e o auxiliar e o atendente era o executor.
Destacando o trecho, na formação dessa época, percebo que a professora
fala de sua concepção individual sobre a questão da dualidade. No
acompanhamento pedagógico que realizo sobre as ações educativas realizadas
nos espaços da enfermagem na instituição, percebo o quanto essa dualidade ainda
é um mecanismo de reforço da hierarquia entre os funcionários de nível superior e
os ditos, funcionários subalternos, das categorias de nível médio. Tenho ouvido,
com certa freqüência, as enfermeiras antigas e as/os recém-formadas/os, ao se
referirem a sua equipe de trabalho, designarem seus colegas auxiliares e
técnicas/os de enfermagem (uniformes da cor de rosa e da cor azul,
respectivamente), como funcionárias/os e seus colegas de formação graduanda
(uniforme branco), como as/os enfermeiras/os. Esse modo de identificação das/os
trabalhadoras/es dessa instituição, pelo menos no grupo de enfermagem, no qual
também trabalho, é apenas um das pontas sutis do bloco de gelo que ainda não
derreteu a ideologia da superioridade dos considerados intelectuais em detrimento
dos que são considerados não intelectuais. As/Os enfermeiras/os não são
funcionárias/os, não se enquadram como tais, pois são seres pensantes, como
poderão ser chamadas como os demais, assim como as/os estudantes de medicina
são chamadas/os de doutoras/es sem terem sequer concluído a graduação. Nesse
sentido, “não é a consciência dos homens que determina seu ser; é o seu ser
social que, inversamente, determina a sua consciência” (MARX, 1983, p. 24). E na
perspectiva gramsciana, quando se denomina os indivíduos como intelectuais e
não intelectuais, esta distinção está relacionada especificamente à “imediata
função social da categoria profissional dos intelectuais” e acrescenta: “Não há
atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se
pode separar o homo faber, do homo sapiens” (GRAMSCI, 2001, p.52-53).
A narrativa abaixo traz mais uma situação de divisão social no trabalho,
percebida na instituição, até nos momentos de intervalo para o lanche. O que
poderia ser aproveitado para o estabelecimento de um maior entrosamento da
equipe, torna-se uma experiência difícil:
64
Profª Enfª 5 - Algumas equipes têm bastante dificuldade de relacionamento e
inclusive das pessoas verbalizarem o fato de auxiliares estarem na sala do
lanche e ao chegarem os enfermeiros, eles saírem, da não valorização do ser
humano como igual, discriminando por categorias de trabalho. Isso existe muito.
Infelizmente, têm pessoas que acham que, porque desempenham um papel
social no trabalho, se acham superiores. Eu acho que isso está melhorando.
Outro aspecto da formação dos sujeitos da pesquisa que reservou uma
consistência bem pronunciada da prática social de enfermagem taylorista, é a
ênfase administrativa no papel da enfermeira, em detrimento da atividade de
assistência. A respeito disso a Profª Enfª 1 - pronuncia:
A ênfase do curso era muito administrativa, do enfermeiro como administrador,
como o detentor do conhecimento. O enfermeiro como chefe da equipe. Essa era
a formação. Eu creio que ainda persiste muito disso. Pelas próprias coisas que a
gente ouve. O conhecimento, o enfermeiro detinha e ele passava para não se
sentir ameaçado. Eu sempre achei isso muito estranho. Eu aprendi tanto com os
auxiliares e com os atendentes.
Na oralidade acima, já é observada a crença de que a questão da dualidade
ainda persiste, como expressa a professora, embora em sua fala anterior tenha
colocado essa questão como de um passado, talvez, já superado. Recentemente,
por meio de minha observação participante pude perceber várias nuances do peso
desses aspectos. Nas ações de educação em serviço desenvolvidas pelas
professoras enfermeiras junto às equipes de enfermagem, em que são analisados
os processos de trabalho, fica visível, em alguns casos, as discussões serem
focadas, prioritariamente, nos aspectos técnicos dos procedimentos de
enfermagem e nas normas e rotinas. A abordagem de conteúdos de cunho
relacional, da dinâmica do trabalho em equipe, quando há rumores de que não
andam bem, é afastada da análise em razão da não exposição da chefia, de sua
liderança diante dos funcionários subalternos. De que maneira podem ser
resolvidos os nós críticos do funcionamento de uma equipe, se não há a
possibilidade de discutirem, coletivamente, suas dificuldades? Por que deixar nas
mãos da chefia a resolução de um problema que é da equipe?
Apesar do discurso, apregoado pelas chefias, seja da horizontalidade das
relações entre as enfermeiras, auxiliares e técnicos, ainda tenho observado uma
expressiva contradição a esse princípio.
65
Encontrei numa análise realizada por Pires, sobre um hospital público, uma
consideração que me faz recordar uma frase do dia-a-dia da mídia ‘qualquer
semelhança, com a instituição pública em que trabalho, é mera coincidência’.
Nesse caso não é, tendo em vista que, a nossa consciência é determinada pelo
nosso ser social, pela materialidade do modo de produção do qual todos fazemos
parte.
Entre os profissionais de nível superior, da mesma categoria profissional, ocorre
um relacionamento mais democrático, mais horizontal de discussão entre os
pares, mas a relação dos profissionais de nível superior, com os de nível médio,
ou elementar, é de subordinação e exclusão do processo decisório ( 1998,
p.126).
Vale ressaltar, no entanto, que há sinais promissores de quebra do
paradigma da centralização das decisões e encaminhamentos de problemas da
equipe, recairem comumente nas mãos dos trabalhadores de nível superior. O
projeto piloto de Educação em Serviço, iniciado em 2006 pela ETE, mesmo com
suas contradições, parece estar abrindo brechas para a democratização das
relações nos espaços da enfermagem do hospital. Em algumas unidades, onde já
havia uma disposição maior para a tomada de decisões de forma coletiva, a
proposta fluiu da forma pretendida, considerando também a formação dos
educadores em serviço que as conduziram. Nesse sentido, as professoras
enfermeiras que, de certo modo, vem superando as barreiras da formação de uma
linha mais taylorista para abordagens crítico-reflexivas, emancipadora, parecem ter
chegado mais próximo do que tínhamos em mente como ideário da proposta.
Prosseguindo a recuperação dos contornos do ensino da enfermagem
profissional no Brasil e sua política de expansão, Neves refere que a pedagogia da
hegemonia, consubstanciada nos pressupostos teóricos keynesianos foi se
desenvolvendo no sentido da ampliação dos direitos sociais da saúde e da
educação entre outros. Acrescenta, que no período marcado pelo fordismo e
“americanismo”, a cidadania político-social foi sendo trabalhada com a finalidade
precípua de impedir que o grau de consciência e de organização das classes
dominadas pudessem “ultrapassar o segundo momento econômico- corporativo
das relações de força política” ( 2005, p. 31).
Neste sentido, as ideologias das classes dominantes por meio dos aparelhos
de hegemonia política e cultural, assim denominado por Neves, vão operando,
66
principalmente na sociedade civil, suas funções educativas no sentido da
ampliação do capital (NEVES, 2005).
A partir do entendimento gramsciano de que a escola é um dos mais
importantes aparelho materializador da hegemonia da classe dominante, na
compreensão dos contextos sociais que configuraram a formação da enfermagem
profissional em sua constituição no país, é conveniente destacar, as origens de
algumas escolas de enfermagem, desde a implementação da Escola Ana Néri. O
Presidente da ABEn.RS traz uma contribuição a esse respeito, ao se referir à
fundação da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo.
Edith Fraenkel a primeira enfermeira brasileira formada nos EUA, primeira
Presidente da ABEn, permanecendo nesse cargo durante dez anos e chefe do
departamento de enfermagem do Ministério da Saúde, quando sai do Rio de
Janeiro e vai para São Paulo,
funda a Escola de Enfermagem da USP em torno
de 42 .
Antes disso, retorna aos Estados Unidos, para ser treinada para o cargo
de direção. Permaneceu como diretora, de 42 à 1955, quase quinze anos. Essa
escola da USP foi modelo difusor de enfermagem no país.
No arcabouço da relação orgânica entre o fordismo e o keynesianismo,
estava a necessidade de qualificação dos trabalhadores devido ao
redimensionamento das forças produtivas. Nos anos 40 e 50 do século passado o
setor de serviços cresce muito devido à industrialização e a conseqüente
urbanização. Tornam-se necessários grandes investimentos na saúde dos
trabalhadores e na formação em saúde, que dêem conta da política previdenciária e
sanitarista diretamente relacionadas com as necessidades emergentes dos setores
produtivos (SILVA, 1986, p. 74).
Ao final da década de quarenta do século passado, é instituída a Lei Federal
nº 775/49, que regulamentou o ensino de enfermagem, que passa a fazer parte do
sistema educacional brasileiro. Esse documento legal torna obrigatória a criação de
cursos de enfermagem em todas as Faculdades de Medicina e coloca como
requisito para curso de enfermagem, a/o candidata/o ter concluído o curso
secundário. É mérito dessa lei, também, a criação do primeiro curso para auxiliares
de enfermagem no Brasil.
Neste contexto de expansão da hegemonia política do saber de
enfermagem, a partir da agenda norte-americana para o Brasil, proposta pela
Fundação Rockfeller, o modelo instituído pela USP vai se disseminar em vários
67
cantos do país, inclusive em Porto Alegre, conforme recuperado pelo Sr. Joel
Mancia:
Por extensão, na década de 50, Edith Fraenkel enviou um grupo de enfermeiras,
cinco ou seis,
em convênio com o Serviço Especial de Saúde Pública e com a
Fundação Rockfeller, para Porto Alegre com a finalidade de criar a Escola de
Enfermagem da UFRGS, que por extensão é um modelo USP. A Escola de
enfermagem da UFRGS foi a primeira, da região Sul, e, por sua vez,
as alunas
daqui foram para o Paraná e Santa Catarina e criaram as Escolas de
Enfermagem de Florianópolis e Paraná.
Nessa construção, a Escola de Enfermagem da UFRGS surge em 1950,
mediante o aporte de recursos financeiros oriundos do Ministério e Educação e
Cultura e do Serviço Especial de Saúde Pública, ora custeado pela Fundação
Rockfeller
15
. Este serviço, além de participar do pagamento de docentes, contribuiu
na concessão de bolsas de estudos às alunas.
Alinhada a essa arquitetura, a ABEn vai ter um papel estratégico, como
aparelho divulgador do pensamento hegemônico no ensino de enfermagem. Vai
exercer uma forte influência na produção acadêmica desse saber e na construção
dos currículos das escolas criadas, até então. Essa contribuição da associação nos
rumos político-educacionais da enfermagem já havia sido pensada, desde os
primórdios da introdução da enfermagem profissional no país, via ação da sociedade
política em acordo com a pauta internacional protagonizada pelo EUA. Na entrevista
com o Presidente da ABEn. RS é ressaltado por ele esse aspecto:
A Associação Brasileira de Enfermagem cria, em 1938 algo que permanece
forte ainda hoje, que é o que chamavam, na época, divisão de educação ou
comissão de educação. Já havia uma tentativa de
estar dentro das escolas de
enfermagem para obtenção de consenso de currículo
, para ter um controle. Nos
anos quarenta a diretora de educação da associação se reunia com as escolas
de enfermagem em que ficava bem definida
a forte influência da ABEn na
educação. A ABEn participa da criação da lei 775/49 que disciplina o ensino de
enfermagem no Brasil, reconhece a graduação e cria o nível auxiliar
.
Na década de cinqüenta do século vinte, as instituições de ensino de
enfermagem e a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) viveram um período
15
Essas informações estão à disposição, no site: http://www.ufrgs.br/eenf/escola/centro-de-
memoria.htm
, acessado em 02 jul. 2007, 15 horas.
68
de grandes discussões e proposição de mudanças nos currículos. Trazem à roda
de pretensões, também, a definição do código de ética da classe. Nessa iniciativa,
é percebida uma preocupação de organização da classe quanto às atribuições
legais cabíveis à enfermagem e uma conseqüente demarcação de terreno com
relação às demais profissões,defesas de interesses, reservas de mercado.
Nesse horizonte político, a Revista de Enfermagem vai representar o
aparelho ideológico da profissão, formador de opinião e coadjuvante não só das
proposições curriculares, mas dos mandamentos legais que consolidam as
diretrizes da enfermagem. Atuando como articuladora de consenso vai traçando os
rumos do saber em enfermagem. Neste sentido, o Presidente da ABEn.RS
pronuncia que:
A Revista Brasileira de Enfermagem da ABEn direcionava o que se ensinar, o
que se aprender. Era um currículo que mostrava o que as enfermeiras tinham
que saber ou não saber.Sua influência é muito forte por ser única na época.
Haviam poucos livros, algumas traduções americanas. A revista
vai dizer qual é
o curso que tem que ser feito, vai direcionar muito. A revista se torna um marco.
Hoje já não tem esse papel, em função da existência de outros meios. Na
década de 40 a ABEN vai estar muito envolvida com a Revista, tendo-a como um
veículo de divulgação também de seu próprio trabalho.
É importante na
consolidação da profissão, no seu reconhecimento.
Nos anos sessenta, surge o Parecer 271/62
16
do Conselho Federal de
Educação que trata da inclusão da administração e exclusão das ciências sociais.
Mais uma vez é sentido o distanciamento da formação dos temas de saúde pública.
A ênfase na administração vem atender o papel da enfermeira como
administradora, vem elitizar sua função na equipe. O cuidado direto ao paciente
fica ao encargo, sobretudo, dos demais profissionais da equipe de enfermagem,
representados pelas/os atendentes, auxiliares e técnicas/os. Esse currículo era
voltado para um modelo de assistência curativa e hospitalar.
Essas modificações traduzem o contexto da época, de uma economia
marcada pela concentração de renda, com a tendência à privatização da
assistência médica e o incentivo às especializações. Eliminando as ciências
sociais, são afastadas as possibilidades de uma abrangência do currículo no
16
Parecer N.º271/62, de 19 de outubro de 1962. Conselho Federal de Educação fixa o currículo
mínimo do Curso de Enfermagem. Publicado em Documenta Nº10 dezembro de 1962.
69
entorno das questões sociais e, sobretudo, do tema saúde pública que passa a ser
contemplado em nível de especialização. Para responder aos avanços tecnológicos
na assistência curativa, a formação em enfermagem vai cultivando, também, o
terreno das especializações, como resposta às exigências do mercado de trabalho.
Nos anos setenta, do século passado, chega ao Conselho Federal de
Educação o Anteprojeto do novo Currículo Mínimo, construído pelos docentes da
Universidade de São Paulo, encaminhado pela Associação Brasileira de
Enfermagem. A tramitação desse projeto vai resultar na emissão do Parecer
163/72 do Conselho Federal de Educação que resgata a presença das disciplinas
de Sociologia e Pedagogia no currículo e cria as habilitações optativas em
Enfermagem Médico-cirúrgica, Saúde Pública e Obstetrícia. Galleguillos refere que
este parecer vai ao encontro do consumo intenso de medicamentos e da indústria
de equipamentos médico-cirúrgicos, imprescindíveis aos serviços de saúde (2001).
Esse novo projeto curricular, contudo, não representou uma preparação
mais ampliada, do enfermeiro e da enfermeira, no conhecimento das questões
básicas da saúde. O Presidente da ABEn.RS ao se reportar ao contexto de criação
desse parecer ressalta a participação dessa instituição na elaboração do texto
desse documento:
Na década de 70 é implementado um modelo de saúde mais voltado para a
tecnologia, voltado para o hospital, onde se entendia que tudo era resolvido
dentro dos hospitais, a nossa profissão vai seguir rigorosamente o modelo
biomédico, hospitalocêntrico. Foi uma batalha difícil da ABEn implementar a
saúde pública dentro do currículo de 72. Esse currículo saiu das visões
intelectuais da associação, da cabeça das intelectuais da ABEn.
A ABEn até esse parecer produzia e reproduzia as políticas educativas do
Estado brasileiro, indo ao encontro dos interesses das classes dominantes. Essa
instituição, como aparelho ideológico da prática social da enfermagem foi, ao longo
dos anos, reafirmadora das políticas públicas de educação e saúde implementadas
pelo governo (GALLEGUILLOS, 2001). No entanto, já começa a manifestar um
movimento contra-hegemônico, quando preocupa-se em levar para o currículo a
saúde pública, tema tão esquecido nos projetos anteriores. O consenso dentro da
própria associação começava a demonstrar sinais de mudança, embora o lócus de
concentração das enfermeiras fosse no hospital. Silva menciona que o hospital
70
passa a ser um lugar privilegiado para trabalhar a atenção médica em detrimento da
política sanitarista (1986, p.87).
Nesse período, a formação em enfermagem, estava circundada por um
contexto marcado por uma expressiva crise financeira do governo, provocada pelo
custo do crescimento de uma economia alicerçada em empréstimos externos. Essa
situação provocou o endividamento do país e agravou a crise do sistema
previdenciário, bem como dos níveis de assistência básica à saúde.
Observa-se na América Latina algumas tentativas de superação do
paradigma flexneriano
17
, de retorno à medicina simplificada, aliado a esse
movimento, a política educacional de integração docente- assistencial tentava
aproximar os discentes da realidade em saúde pública.
No plano internacional, começam a se intensificar as políticas de saúde. Em
1972, é aprovado pelos ministros da saúde da região das Américas, em Santiago
do Chile, o 2º Plano Decenal de Saúde das Américas que tinha como princípio,
entre outros, a saúde como um direito da pessoa e das comunidades. Na mesma
linha de princípios, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de
Saúde, reunida em Alma-Ata em 12/09/1978, expressava a necessidade de ação
urgente de todos os governos, de todos os que trabalhavam nos campos da saúde
e do desenvolvimento e da comunidade mundial de promoverem a saúde de todos
os povos do mundo. Nesta conferência foi formulada a chamada Declaração de
ALMA-ATA, contendo os princípios que deveriam orientar as ações em saúde para
todos os povos do mundo.
Esses movimentos de mobilização em torno da saúde vão influenciando as
políticas públicas de educação na área. É proposto pelo Ministério de Educação e
Cultura do Brasil, por meio do Departamento de Assuntos Universitários, o
aumento do contingente de cursos de formação de profissionais da enfermagem.
Seguindo, nessa breve exposição, dos movimentos que a formação do
enfermeiro e da enfermeira foram assumindo ao longo dos diversos contextos,
convém destacar que desde os anos setenta começa a surgir um processo de
intelectualização da enfermagem, proveniente não só da divisão social do trabalho,
mas da afirmação desse saber como ciência. Os currículos dos cursos de formação
17
O paradigma Flexneriano, como ficou conhecido no meio acadêmico, provém de um trabalho
realizado pelo Professor americano Abraham Flexner para a Fundação Carnigie de Educação Médica
71
de enfermeiros e enfermeiras passaram a priorizar os aspectos teóricos da
assistência, em detrimento dos aspectos práticos (ALMEIDA, 1989).
Nessa perspectiva, os enfermeiros vão cristalizando suas posições como
trabalhadores intelectuais, que têm como incumbência a supervisão e controle dos
processos de trabalho referentes a sua área de atuação. Segundo Almeida, no
currículo da Escola Ana Néri até o de 1972, do século passado, com relação à
quantidade de carga-horária teórica e prática, há um aumento progressivo da carga
horária teórica em detrimento da carga horária prática, confirmando o processo de
intelectualização na enfermagem. Esse aspecto além de ressignificar a profissão
diante da equipe de saúde, vai conferir à enfermeira uma posição de superioridade
em relação aos profissionais da enfermagem de nível médio. (ALMEIDA,
p.85,1989).
Essa medida de diminuição da carga horária prática, no entanto, pode ser
uma das razões que tem acarretado dificuldades no desempenho profissional do
recém-formado. À medida que os currículos de formação em enfermagem foram
aumentando a carga horária teórica, os discentes passaram a ter um tempo menor
para as aprendizagens de campo, de contato com a realidade, com o dia-a-dia dos
serviços de saúde. Na formação em enfermagem o saber fazer técnico é
indispensável, para tal, o discente necessita de um relativo período de tempo para
desenvolver suas habilidades, devido à minuciosidades de passos que devem
seguir até a conclusão do ato técnico, mas isso não basta. A sua abordagem junto
ao paciente só será adequada se aliar, ao saber fazer, outros conhecimentos e
atitudes. Durante o período de formação, o discente vai necessitar desenvolver
uma boa dose de compreensão de sua práxis, até conseguir ter uma visão de
totalidade no seu ato de cuidar. O seu papel não se resume à realização da técnica
em si, é bem mais complexo, pois está cuidando de um ser social como ele. A
situação narrada abaixo constitui um exemplo:
Profª Enfª 7 - Eu me formei muito jovem. Imagine uma enfermeira com pouca
idade, num local novo, com auxiliares de enfermagem experientes, é um inferno.
No início, as pessoas te tratam como se tu não soubesses nada. Nos primeiros
dois, três meses eu padeci. Quando comecei a trabalhar na Neonatologia e tinha
que puncionar um prematuro, que não tem veia, todos auxiliares ficavam me
olhando, como se estivessem me testando. Eu só ganhei o respeito dos
que enfatizava os pressupostos ideológicos mecanicista e biologicista, na tecnificação da ação
médica, nas especialização médica e na medicina curativa.
72
médicos, quando eles começaram a ver que eu conseguia fazer a técnica. Eu
levei uns dois meses para conseguir. Eles me criticavam e quantas vezes eu
saia de lá chorando, porque eu não era valorizada pelo o que eu fazia, porque eu
não conseguia puncionar. Apesar de tudo, acho que foi um momento para mim
de muita experiência, habilidade, aprendi muito a questão técnica, o que não tive
oportunidade de aprender na faculdade, ali eu consegui.
As dificuldades evidenciadas na realização de alguns procedimentos mais
complexos, pelos profissionais recém formados, podem ser atribuídas ao pouco
tempo que tiveram na faculdade para aprendizagem dos mesmos numa condição,
no mínimo razoável. Na experiência acima, o maior tempo teórico da formação não
produziu a distinção de superioridade da enfermeira em relação aos seus
subalternos, ao contrário, trouxe-lhe constrangimentos e sofrimento no trabalho.
Tenho observado que essa situação, relatada pela entrevistada, tem
ocorrido com freqüência no hospital onde trabalho. Nas atividades de educação em
serviço da ETE, em que realizamos reflexões sobre os processos de trabalho com
as equipes de enfermagem, essa situação vem sempre à tona, quando a equipe
está recebendo alguém recém formado. Uma boa parte das/os trabalhadoras/es,
nessa condição, passa por situações semelhantes à narrada acima.
Prosseguindo a historicidade do desenvolvimento do ensino de enfermagem
no Brasil, é importante destacar que as mudanças mais recentes foram fortemente
influenciadas pelo movimento sanitarista. Desde a década de setenta, num
ambiente de luta pela redemocratização do país e construção de uma sociedade
mais justa e solidária, um número expressivo de educadores, intelectuais e
militantes políticos engajaram-se no objetivo de “construir uma crítica ao então
sistema nacional de saúde, às instituições de saúde e às práticas de saúde então
hegemônicas”. (MATTOS, 2005)
O contexto que antecedeu a substituição do currículo de enfermagem de 1972
para uma nova proposta curricular, concretizada nos anos noventa, foi circundado,
como já referi, por uma série de mudanças sócio-políticas na sociedade brasileira.
Nesse espaço fértil vai se gerando uma nova lógica de compreensão da saúde, a
partir da teoria marxista, do materialismo dialético e do materialismo histórico, que
entende que a doença está socialmente determinada
18
. A atmosfera desse período
vai contribuir, também, para algumas cisões nas instituições de representação de
18
Essa informação está disponível no site: http://bvsarouca.cict.fiocruz.br/sanitarista05.html,
acessado em 05 jul de 2007, 10 h.
73
classe que, até então, vinham reproduzindo as indicações político-pedagógicas que
atendiam a ampliação do capital. A esse respeito, o presidente da ABEn expressou:
O Currículo de 72 foi se desatualizando. Na década de 80 a gente estava em
uma época de redemocratização, as idéias de esquerda muito fortes, isso teve
influência significativa dentro das organizações.
A Associação, por sua vez, teve
um movimento forte de adesão aos outros movimentos sociais da época.
Tínhamos tido em 78
a Assembléia Mundial de Saúde de Alma Ata – “Saúde
para todos em 2000” que mobilizou o setor de saúde, tivemos em 88 a nova
Constituição, tivemos o Movimento Sanitarista,
a Conferência de 86,a 8º
Conferência é um marco para a esquerda, para nós, que é o olhar que se tem
hoje. Na época se considerou um avanço, muito tempo depois foi se concretizar
algumas coisas de lá e ainda estamos em busca. A Associação engajou-se
nesse movimento e ela
teve reformas internas, disputa de grupos, que queriam
fazer valer o seu poder, ou até por ser uma sociedade envelhecida, que estava
com um movimento mais jovem dentro. Foi criado no início da década de oitenta
o que chamamos Encontro de Docentes de Introdução e Fundamentos de
Enfermagem -
ENDIFE, que foram seminários nacionais para discutir os
currículos, teve cinco seminários regionais grandes e depois dois em Brasília que
se transformou em um
modelo de currículo que nós encaminhamos para várias
instâncias, até chegar no Conselho Federal de Educação da época, hoje o
Conselho Nacional.
Então em 1994 sai aprovado o currículo quase igual o que a
gente queria e foi uma grande vitória para a enfermagem brasileira.
A fala do Sr.Joel Rolim Mancia indica algumas mudanças ideológicas na
ABEn, como resultado do contexto efervescente de movimentos contra-
hegemônicos aos quais essa associação foi se aliando e também agindo, no
cumprimento de seu dever de casa, frente a uma sociedade esgotada pela ditadura
e por um capitalismo predador. A ABEn muda a rota de reprodução das políticas
públicas de saúde e educação pensadas pela burguesia para influir nas políticas
geradas com base um referencial crítico que se contrapunha ao pensamento
hegemônico dominante.
Alguns anos após os movimentos da reforma sanitária, o Parecer do MEC
de Nº 314/94 trouxe contribuições para a formação em enfermagem, por meio da
introdução do currículo mínimo para os cursos de enfermagem. Esse parecer
determinou o retorno dos conteúdos de Saúde Pública, agora denominados de
Saúde Coletiva e que os currículos plenos dos cursos de formação graduanda em
enfermagem deveriam dispor de disciplinas relacionadas às Ciências Biológicas e
Humanas e quatro áreas temáticas, como: Bases Biológicas e Sociais da
Enfermagem, Fundamentos da Enfermagem, Assistência de Enfermagem e
Administração em Enfermagem. Embora essas modificações, foi mantida a
subdivisão em especialidades médicas na área temática referente à assistência de
74
enfermagem, demonstrando a manutenção da base flexneriana (GALLEGUILLOS,
2001). Apesar disso, resultou de um longo período de discussões em seminários e
debates da categoria, constituindo-se num projeto que respondia aos desejos
coletivos das mudanças curriculares reclamadas pela enfermagem brasileira
naquele contexto e tinha, segundo lto “a educação como possibilidade de
transformação, centrada no desenvolvimento da consciência crítica, levando o
enfermeiro à reflexão sobre a prática profissional e ao compromisso com a
sociedade” (2006, p. 571).
Na década de noventa, do século passado, fica nítida a influência dos
organismos internacionais nos assuntos educacionais da América Latina. As
propostas da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO), influenciadas pela ótica neoliberal do Fundo Monetário Internacional
(FMI) e do Banco Mundial (BM), vão permeando ideologicamente as reformas
educativas ( MELO, 2004).
O ensino de enfermagem, em meio a um contexto de influências
internacionais, foi buscar fundamentação, para construção das Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Enfermagem, nos princípios
da Reforma Sanitária Brasileira e do Sistema Único de Saúde (SUS).
Neste momento, diante do terreno das contradições da formação dos
enfermeiros e enfermeiras, em nosso país, influenciadas por movimentos que
provocaram mudanças no ensino de enfermagem e por outro lado num contexto
produzido pela mundialização do capital, são construídas as Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem/2001, que atendendo a
determinação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394, de
dezembro de 1996, que garante ao ensino de 3º grau maior flexibilidade na
estruturação curricular dos cursos, assegura ao formando egresso/profissional um
perfil com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva.
Dentro da perspectiva ideológica do currículo, ressalta PEREIRA que:
Trata-se de entender o currículo como um campo ideológico, de reprodução e,
ao mesmo tempo, de resistência, em que o entendimento sobre ‘o que ensinar’
está definitivamente atrelado às relações de poder e à luta por um certo tipo de
sociedade. Não há, portanto, idealização possível na leitura sobre a relação
entre poder e currículo, ou sobre a hierarquização de conhecimentos nos planos
pedagógicos curriculares, traduzidas no cotidiano dos processos de formação
profissional ( 2004, p.125).
75
Na proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação
em Enfermagem, bem como da reestruturação do curso de licenciatura em
enfermagem, visando adequá-lo às atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Formação de Professores presentes no PARECER do CNE/CP 009/2001, fica
visível a marca das políticas de saúde e de educação, resultantes das relações de
poder e dos embates das forças contraditórias presentes na sociedade brasileira.
Os novos contornos dos currículos que estão alimentando os diversos
cursos de formação em enfermagem respondem avidamente à atual conjuntura
política, econômica, social e cultural do país. Essa conjuntura é datada e situada e
na efervescência de seus movimentos vai formando o enfermeiro e a enfermeira,
do mesmo modo como se forma o professor e a professora, como “sujeitos sociais
e culturais situados, colocados a um lugar, a um espaço e um tempo, a práticas
concretas”. (ARROYO, 2002, p.112).
A propósito da Diretrizes Curriculares de 2001, o presidente da ABEn refere
que:
A ABEn foi uma batalhadora incansável para implementar o que se chamou de
Diretrizes Curriculares Nacionais para Enfermagem. Essas trouxeram uma
mudança de paradigma para todas as profissões. Na enfermagem já temos as
primeiras turmas se formando com essa nova forma de ensinar a profissão.
A
única forma de aprender as práticas do SUS é nos postos, vilas. É fazendo
consultas de enfermagem,
acho que mudou bastante, porque isso me parece
que vem pelo entendimento de contexto, não é só a Escola que vai proporcionar
isso.
No entendimento de Ito, se a proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais
for bem trabalhada poderá trazer resultados positivos à formação que atendam às
reais necessidades dos problemas de saúde. No entanto, a autora adverte que há,
ainda, muitas contradições que impedem uma mudança efetiva na formação,
algumas delas produzidas pelos próprios docentes, tais como: “a pouca reflexão
sobre a docência, o distanciamento dos serviços de saúde com o reforço à clássica
dicotomia entre o pensar e o fazer, além do autoritarismo, fragmentação e
tecnicismo” (ITO, 2006, p. 574).
As reflexões do Presidente da ABEn destacando o incansável trabalho da
associação na produção das diretrizes, confirmam mais uma vez o papel histórico
dessa instituição como orientadora da formação e produtora de consenso, ora no
sentido da consolidação do projeto hegemônico e ora, num caminho de
76
possibilidades de uma outra hegemonia que realmente enfrente os problemas da
saúde, o que em sua avaliação está sendo proporcionado pelas diretrizes.
Apóio-me nas falas de duas professoras enfermeiras, que vão ao encontro
das considerações de Ito, quanto às contradições ainda existentes no tocante aos
resultados práticos das diretrizes. Essas professoras, ao refletirem durante as
entrevistas, sobre o currículo que as formou, referem em suas narrativas as
experiências que tiveram ao lecionarem, recentemente, numa universidade pública,
numa realidade curricular abrigada pelas novas diretrizes:
Profª Enfª 1 - Eu vejo, agora que eu dei aula na graduação, que os primeiros
semestres são muito teóricos. Então, eles têm uma carga muito grande, de
teoria, de anatomia. Por exemplo, a gente dava Educação e Saúde no segundo
semestre. Então, têm alunos que vão ser mobilizados em algumas coisas, mas
isso que tu mobilizas lá, não tem continuidade, muitas vezes. Porque um
professor não sabe o que o outro está dando no mesmo semestre. Isso que eu
acho complicado.
Profª Enfª 3 - Penso que o currículo tinha que ser mais integrado, ter uma
seqüência mais lógica, e os professores terem um comprometimento maior e eu
não vejo isso. Na experiência que eu tive a pouco de substituta na academia, na
questão do ensino, ninguém sabia o que eu estava ensinando, não me foi dado
nenhum roteiro, era assim: “dá aula sobre determinado assunto”. Eu podia dar o
que eu quisesse, a gente não tinha grandes discussões. Eu achei muito, muito
fragmentado, eu tava dando aula em uma disciplina, de repente eu fui ajudar
noutra surgiu, eu nem sabia, me comunicaram de um dia para outro.
Estas duas oralidades sobre que vem acontecendo na formação graduanda,
abrigada pelas diretrizes curriculares nacionais me levam a um forte
questionamento: De que forma os alunos e alunas dos cursos de graduação
poderão ser capacitados para a integralidade da atenção, se seus docentes, no
currículo que os forma, não integram a teoria e a prática, nem sequer conversam
entre si para saberem, pelo menos, o que o seu colega de cátedra está
trabalhando. Será que isso acontece só com os docentes substitutos, se for assim
acredito ser mais grave ainda. Como referiu Ito, há ainda muitas contradições.
Nesse impasse tomo a liberdade de invocar novamente a metáfora do
ornitorrinco, criada por Oliveira, pelo menos para o entendimento provisório dessa
realidade.
Frente a essas circunstâncias resta-me o desafio de prosseguir, nos
próximos capítulos desse estudo, na tentativa de compreender as determinações
77
histórico-sociais da formação em enfermagem que foram constituindo as práticas
educativas das enfermeiras da ETE/HCPA.
78
CAPÍTULO III – Concepções Teórico- Práticas na Formação das
Enfermeiras da ETE/HCPA
1 - Apresentando as Professoras Enfermeiras
A ETE possui um corpo docente composto por sete professoras enfermeiras.
Das sete professoras, uma delas não acompanha os alunos em estágio, ficando
com atividades de estudos de recuperação, aulas teóricas em sala de aula, teórico-
práticas em laboratório para os alunos do curso técnico e educação em serviço
para as/os trabalhadoras/es do GENF. As demais professoras assumem tanto as
aulas teóricas em sala de aula, teórico-práticas em laboratório, como supervisão
em estágios e a educação em serviço.
A entrada de cinco professoras enfermeiras para ETE foi feita por uma
seleção interna, pois estas já faziam parte do quadro de funcionárias/os do HCPA,
por meio de seleção pública para o cargo de Enfermeira da Assistência. Duas
vieram da CTI, duas do CC e uma da assessoria do GENF. Das cinco professoras
enfermeiras, três integram o corpo docente da ETE, desde que esta instituição só
formava auxiliares de enfermagem, em média há 17 anos e duas estão há 9 e 4
anos, respectivamente. As demais fizeram seleção pública, no HCPA, para o cargo
de Enfermeira, mas com lotação na ETE e estão exercendo a docência há 3 e 2
anos, respectivamente. Antes de prestarem a seleção para o HCPA/ETE
trabalharam em hospitais privados e em Escolas Técnicas privadas.
No plano de cargos e salários, as professoras enfermeiras da ETE não estão
enquadradas como professoras e sim como enfermeiras. Neste plano não existe o
cargo de professora para ETE
19
. A seleção, portanto, é feita para cargo de
enfermeira com lotação na ETE, como já referi acima.
As três enfermeiras mais antigas foram as que iniciaram as atividades
docentes na instituição por meio do Curso Supletivo de Qualificação Profissional de
19
Ver o item de nº 5 – “Enfermeiras Professoras ou Professoras Enfermeiras”, em que escrevo
algumas considerações, quanto à indagação que fiz, se os sujeitos de pesquisa seriam, professoras
enfermeiras ou enfermeiras professoras.
79
Auxiliar de Enfermagem do HCPA. Além da docência, auxiliavam a direção da
escola nas atividades pedagógicas, uma vez que a escola não contava com o
trabalho de uma Pedagoga nesse período.
Das sete professoras enfermeiras, cinco delas estão na faixa etária dos 40
aos 50 anos e duas na faixa dos 25 aos 35 anos.
A busca pela formação graduanda em enfermagem foi a primeira opção para
três sujeitos de pesquisa. Para os demais, inicialmente, a busca destinava-se para
uma profissão na área da saúde, mas acabaram escolhendo a enfermagem.
Recupero, nessa caracterização, a própria fala das entrevistadas:
Profª Enfª 1 - Eu fiz Enfermagem e na época que eu fiz vestibular, eu nem sabia
direito o porquê. Na verdade eu fiz por uma questão, também, de ascensão
social. Era um curso que tinha mercado de trabalho. Eu vim de uma família que
para se formar e estudar era complicado pela falta de dinheiro. Então, eu fiz em
função disso também. Fiz vestibular. Estudei e passei na primeira vez.
Profª Enfª 2 - Eu fiz o técnico de enfermagem em [...] e vim para [...] para fazer o
cursinho pré-vestibular. Quando eu completei os 18 anos, eu comecei a
trabalhar, trabalhar já em CTI, que era uma área que eu gostava bastante e daí
no turno contrário eu fazia o cursinho pré-vestibular. Então assim, eu entrei
sabendo um pouco mais o que era enfermagem.
Profª Enfª 3 - Eu não tinha certeza de que queria enfermagem, o que queria era
algo na área da saúde. Eu fiz o vestibular primeiro para psicologia, ai, eu não
passei e junto nessa época eu fiz também para medicina. Depois fui fazer
cursinho e fiquei mais por dentro do curso de enfermagem e fiz o vestibular e
passei, mas sem ter muita certeza. Eu gostava da área da saúde, de biologia, de
gente, quanto a isso sabia que eu ia gostar. Comecei o curso, mas durante o
curso, no primeiro ano mesmo, eu não gostei de algumas coisas, eu não tinha
certeza. Eu me lembro que eu e algumas colegas, a gente pensou em fazer
outra faculdade... Mas depois deu uma melhorada, ficou mais agradável e fui
adiante.
Profª Enfª 4 - Eu saí do interior para vir fazer faculdade, eu sempre quis fazer
enfermagem. Fiz no tempo previsto.
Profª Enfª 5 - Eu queria ser engenheira química, mas tentei fazer vestibular para
Engenharia Química e não passei. Aí, fui fazer Enfermagem. Não sei o porquê.
Não me lembro porque optei, mas no momento que eu escolhi, fui fazer um
estágio voluntário antes de ingressar na faculdade, com um amigo meu que era
da Medicina. Identifiquei-me imediatamente e vi que era aquilo que eu queria.
Profª Enfª 6 - Essa questão do cuidado, eu sempre pensava. Daí, como eu não
passei no vestibular para Medicina, eu comecei a ver algumas coisas sobre
Enfermagem e a conversar com as pessoas sobre isso. Então, eu resolvi fazer o
vestibular. Eu passei. Fui muito bem classificada e comecei a cursar. Nesse
80
período, eu continuei fazendo o pré-vestibular, mas eu me apaixonei pela
Enfermagem. No terceiro semestre, eu não quis mais tentar fazer o vestibular.
Eu cheguei em casa e disse que não ia mais investir em cursinho e que ia
continuar na Enfermagem.
Profª Enfª 7 - Eu sempre pensei em medicina, mas nem tentei medicina, aí
pensei em veterinária, eu queria alguma coisa da área da saúde, não sabia o
que. Sabia que odontologia nem pensar. Eu tenho pavor de mexer na boca das
pessoas... psicologia também não, não sou boa pra discutir casos, essas coisas.
Eu pensei medicina, medicina veterinária e enfermagem. Ai fiz o primeiro
vestibular para enfermagem e não passei na universidade federal e passei numa
particular. Comecei a fazer para saber como era o curso, porque eu não tinha
noção de como e acabei gostando. Desde o primeiro semestre eu achei bom o
curso. Olhando a grade curricular vi que me interessava e fiquei.
As falas acima, com raras exceções, indicam algumas dificuldades, quanto
às escolhas profissionais. Num universo de sete pessoas, duas pretendiam,
inicialmente, realizar o curso de medicina, uma delas engenharia. Uma das
professoras fez a escolha, sem ter muita convicção, pois preferia a graduação em
psicologia ou medicina. Essas informações fornecem alguns indícios, já bastante
comuns nas escolhas de cursos de graduação, como a busca de profissões que
garantam a possibilidade de uma maior ascensão social e de colocação no
mercado, como a Profª Enfª -1 referiu. A preferência pelas formações em medicina
e engenharia, manifestada por quatro das sete enfermeiras, é justificada pela razão
de serem cursos que possuem uma maior valorização social e econômica, que
possibilitam, tanto o acesso ao emprego, como chances do exercício da profissão
de forma liberal.
Consultando o perfil da/o estudante de enfermagem no ENADE- 2004
(BRASIL, 2006), verifiquei a confirmação de algumas características recorrentes na
história da profissão, uma delas é a questão do gênero, a maioria das/os
ingressantes são do sexo feminino, a outra é a escolha pela profissão em busca de
ascensão profissional que é, ainda, muito expressiva. Outra informação
interessante, trazida por esse perfil e que vai ao encontro das oralidades acima, é a
“relação historicamente construída entre a mulher e o cuidar” (BRASIL, 2006). As
professoras enfermeiras permaneceram no curso, mesmo sem este ter sido a sua
primeira opção no vestibular.
Sobre a relação histórica com o cuidar, Pires refere que: “as mulheres
aparecem na saúde desenvolvendo ações de cuidado ao doente no trabalho
81
caritativo das religiosas, como parteiras leigas e como voluntárias para assistências
aos doentes” (1989, p. 58).
A herança histórica de uma profissão feminina vem se mantendo, embora já
haja um visível crescimento da procura de pessoas do sexo masculino pela
profissão.
Na consulta a um site da internet
20
sobre guias de profissões de nível
superior, obtive a informação que vem crescendo a oferta de vagas para
enfermeiras/os na área de saúde pública. Esse sinal do mercado de trabalho
demonstra a carência da área, pois historicamente, a concentração maior de
número de vagas ocorria em hospitais. Vieira, analisando mercado de trabalho em
saúde na região sudeste, aponta que os empregos públicos, privados e
hospitalares “para os enfermeiros, já é uma característica histórica, ou seja, desde
a década de 70” (2004, p.136).
Em relação à formação em enfermagem, três estudaram em uma
universidade pública capital do estado do RS, três em universidades particulares do
interior do estado do RS e uma delas em uma universidade particular da capital do
estado do RS. Quanto à formação em licenciatura, as sete enfermeiras realizaram
o curso nas mesmas universidades de suas formações em enfermagem. Com
relação ao período em que realizaram o curso de enfermagem, cinco delas em
meados dos anos setenta e oitenta e duas delas em meados dos anos noventa ao
ano dois mil.
As sete professoras enfermeiras fizeram o pós-graduação nas
especializações de metodologia do ensino superior, administração hospitalar,
assistência de enfermagem ao adulto crítico, neonatologia e obstetrícia. Uma delas
tem mestrado em enfermagem concluído e duas estão fazendo, também, em
enfermagem.
Com relação ao tempo de experiência em assistência em enfermagem, cinco
delas possuem de vinte a vinte e sete anos, uma possui oito anos e a outra possui
quatro anos.
Em relação ao tempo de experiência como docentes na ETE/HCPA, entre as
professoras enfermeiras formadas até meados dos anos oitenta, três possuem
20
Essa informação consta no site: http://www.universiabrasil.net/preuniversitario/profissoes_saud.jsp,
acessado em 22 de jun 2007, 22 horas.
82
dezesseis anos, uma delas possui nove anos e a outra dois anos. As demais
possuem quatro e dois anos de experiência, respectivamente.
Das sete professoras, três já exerceram a docência na graduação em
enfermagem, como professoras substitutas, uma está exercendo no momento. Seis
professoras deram aulas em cursos técnicos antes de passar a integrar a equipe
docente da ETE.
A caracterização dos sujeitos de pesquisa será retomada ao longo desta
dissertação, à medida que o diálogo entre essas informações e a análise for
imprescindível para o desvelamento do fenômeno.
2 – Os Espaços Educativos das Professoras Enfermeiras
2.1 – A Formação Hospitalar das Professoras Enfermeiras
Ao apresentar o contexto institucional onde as professoras enfermeiras
exercem sua práxis educativa é importante referir a ênfase hospitalar de suas
formações em enfermagem. Das sete entrevistadas, três tiveram o HCPA como
espaço educativo
21
para a realização dos estágios curriculares e as demais outros
hospitais.
As narrativas, ao longo da caracterização dos espaços de atuação das
professoras enfermeiras, confirmam a formação hospitalocêntrica, permitindo a
realização de outras conexões importantes para a compreensão do significado dos
ambientes que constituíram os cenários da formação:
Profª Enfª 3 - A minha formação foi na realidade hospitalar, algumas nuances de
outros espaços fora daqui, mas o enfoque era o Hospital de Clínicas e a
impressão que eu tinha era a que só existia o Hospital de Clínicas, e que nos
outros hospitais a realidade era meio parecida. E não era assim, não é assim até
hoje. A gente tem uma valorização aqui dentro que fora muitas vezes não se
tem. Não tivemos outra vivência. A formação era muito fantasiosa, a enfermeira
parecia que era uma deusa no hospital. A crítica é que não nos preparavam para
21
Entendo por espaço educativo o lugar onde os profissionais da educação exercem as suas práticas
educativas.
83
enfrentar a realidade, então eu cheguei achando que... não é bem assim, tem
várias conquistas a serem feitas, tem que estudar, tem que ir atrás.
A oralidade da professora me possibilita inferir sobre as condições ideais em
que fez sua formação. O HCPA, como hospital de grande porte, encontra-se numa
situação privilegiada por ser um hospital universitário e ter um aporte financeiro que
o diferencia das demais instituições hospitalares. O período de formação da
professora, por volta da primeira metade dos anos oitenta, caracteriza uma fase de
grandes investimentos nos hospitais universitários por parte do governo, atendendo
aos interesses hegemônicos do mercado da saúde e a crescente incorporação da
atenção médica à previdência social (SILVA, 1986). Aliado a esses fatores, a
triangulação entre assistência, ensino e pesquisa fez e ainda faz da instituição um
centro de excelência no atendimento, na formação e nas pesquisas de
desenvolvimento da saúde e educação, daí a afirmação da professora quanto a ser
um espaço que oferece uma experiência diferenciada, uma valorização do
profissional que não acontece em outros espaços. Embora todas essas condições
favoráveis para formação, a entrevistada alegou não ter sido preparada para o
enfrentamento da verdadeira face da maioria das instituições do setor de saúde,
que operam em situação de precariedade pela falta de profissionais e de recursos.
As narrativas a seguir apontam para as realidades no âmbito da formação
hospitalar das professoras enfermeiras:
Profª Enfª 5 - A maioria das minhas professoras atuavam em hospitais e os
estágios e vínculos vieram em turmas de trabalho delas. Então, ficava muito
complicado e sobrecarregado. Inclusive o meu primeiro estágio foi dentro de uma
UTI. Imagina eu, sem noção nenhuma, com pacientes graves. Isso foi importante
para a minha formação, mas foi muito complicado. Além de tudo, a carência de
profissionais de Enfermagem, sobrecarga de trabalho e, ainda, o professor com
aluno em uma UTI. Então, isso era muito complicado. Tanto para ela quanto para
nós, porque, às vezes, eu sentia que a gente ficava um pouco sozinhos sem
muita supervisão. Eu sempre fui uma pessoa muito consciente e com medo de
fazer as coisas. Eu sentia um pouco de falta nesse sentido, mas eram pessoas
muito esforçadas que tentavam dar o máximo de si. Isso foi bom, porque eu acho
muito importante para um professor ter tido esse tipo de experiência profissional.
E isso as professoras tinham porque elas atuavam na área. Isso eu achava muito
importante.
A oralidade acima me possibilita inferir que ao contrário do HCPA, no
hospital mencionado pela entrevistada, as docentes aproveitavam seus espaços de
trabalho como profissionais de enfermagem para realizarem os estágios
84
curriculares de seus discentes. E o que é mais alarmante, iniciavam a primeira
etapa dos estágios curriculares numa área fechada de alta complexidade em vários
sentidos, não só tecnológico, mas em relação ao próprio cuidado dos pacientes.
Além disso, a sobrecarga e subjugação dos docentes no exercício simultâneo de
dois papéis, da enfermeira ou enfermeiro assistencial e do docente e a
conseqüente submissão do discente a uma situação de aprendizagem difícil e
temerária no que se refere aos resultados. Discentes inseguros pela falta de uma
base teórico-prática que assegurasse um melhor enfrentamento no cuidado
realizado numa UTI, desassistidos de uma supervisão adequada e o que é pior,
com a possibilidade da prática de erro na realização do cuidado junto ao paciente.
Essa é a realidade de algumas indústrias de ensino orientadas pela concepção
econômica da prática educativa, voltadas para o lucro, para o trabalho não pago, o
que resulta na produção da mais valia.
No movimento da situação dos docentes mencionados, Marx explicita:
Só é produtivo o trabalhador que produz mais valia para o capitalista, servindo
assim a à auto-expansão do capital. Utilizando um exemplo fora da esfera de
produção material: um mestre-escola é um trabalhador produtivo quando
trabalha não só para desenvolver a menta das crianças, mas também para
enriquecer o dono da escola. Que este invista seu capital numa fábrica de
ensinar, em vez de numa de fazer salsicha, em nada modifica a situação (2005,
p. 578)
Na produção imaterial da saúde e do ensino, o mesmo trabalho pode
assumir a condição, de um lado, de produtivo e, de outro, a de improdutivo. Os
docentes em relação ao dono do hospital e dono do empreendimento de ensino
assumem a condição de trabalhadores produtivos. Os empresários da saúde e do
ensino se abastecem economicamente do resultado da permuta de seus capitais,
pelas forças de trabalho dos docentes. A narrativa abaixo pode ser aderida
perfeitamente a esse argumento. A formação hospitalar, o excesso de estagiários,
o trabalho não pago, a formação questionada pela aluna, o cuidado precário ao
paciente, o compromisso social de elevada qualificação da triangulação
assistência, ensino e pesquisa caem por terra em meio aos arranjos da formação
do profissional de enfermagem e seus condicionantes econômicos determinantes.
85
Profª Enfª 6 - A abordagem do curso foi para o cuidado hospitalar. Para técnica
em si. Para como ser uma boa enfermeira. Para proporcionar o acesso, mas
nem tanto, porque as oportunidades não são tão oferecidas quanto se pensa
dentro das Unidades. São muitos estagiários dentro de uma Unidade de cuidado.
Não são só estagiários de Enfermagem, existem estagiários da Medicina e de
outros cursos. Quando você passa nas Unidades, têm alguns procedimentos que
não são oferecidos pela inabilidade do estagiário e, às vezes, pela professora
assistente não dominar aquela situação e o próprio paciente que fica exposto.
Sete alunos em uma Unidade Clínica, o paciente já é manuseado por tanta
gente, mais os alunos.
A estreiteza da visão da saúde em sua totalidade, a visão tecnicista, o
distanciamento da realidade social vão produzindo uma formação desconectada da
vida. As professoras enfermeiras sentem essa lacuna na formação e esse aspecto
se reflete em suas práticas educativas, como será visto no último capítulo desse
estudo. Em sua fala, a Profª Enfª 2 reconhece a contribuição da formação em
enfermagem, no último ano em que começou a realizar práticas em saúde pública.
Ainda que tímida a abordagem, serviu para a discente repensar a concepção
limitada de saúde que o curso de enfermagem lhe permitira construir até então.
Profª Enfª 2 - A minha concepção de saúde já no último ano de educação mudou
bastante, porque dai eu comecei a fazer as minhas práticas na saúde pública,
então eu comecei a ter uma visão um pouquinho maior do que era saúde, que
ela não era só curativo lá dentro do hospital, porque os três primeiros anos da
faculdade foram especificamente dentro do hospital, e daí o último ano a gente
teve saúde coletiva.
2.2 – O Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA
Feito o esboço de algumas análises sobre a formação hospitalar das
professoras enfermeiras, inicio a contextualização do espaço onde elas exercem
sua prática educativa, a partir das origens históricas do HCPA. Reporto-me, para
tanto, à década de setenta do século XX. Nessa década a universidade pública
brasileira se via pressionada a atrelar-se ao modelo de desenvolvimento projetado
pela política econômica vigente em meio a um contexto configurado por um
capitalismo dependente. O terceiro grau de ensino foi se ampliando pelas
demandas da economia quanto à formação de uma mão de obra especializada.
86
Em meio a essa realidade, começa a funcionar o Hospital de Clínicas de
Porto Alegre instituído pela Lei Federal 5.604/70. A construção e o início do
funcionamento do HCPA foram a concretização de um antigo desejo da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, que desde 1930 idealizava a
implantação de um hospital universitário, no qual os estudantes dos cursos da área
da saúde pudessem aprender, na prática, suas futuras profissões. Atualmente, o
hospital recebe estudantes de graduação de oito unidades da UFRGS: ciências
biológicas, enfermagem, farmácia, medicina, nutrição, odontologia, pedagogia e
psicologia.
Melo analisando a realidade brasileira dos anos setenta refere que:
Neste período, as agências de bem-estar-social públicas ampliam sua cobertura
nos países dependentes, fortalecendo instâncias diversas da burocracia estatal,
que se instrumentalizou cada vez mais para prestar estes serviços de assistência
e seguridade social (MELO, 2004, p. 90).
O HCPA, como empresa pública, com patrimônio próprio e autonomia
administrativa, vinculada à supervisão direta do Ministério de Educação e Cultura
atendia perfeitamente aos interesses do modelo econômico desenvolvimentista.
Oliveira referindo-se ao período da ditadura militar de 1964 a 1984 menciona
o aumento do número de empresas estatais “numa proporção com que nenhum
nacionalista do período anterior havia sonhado” (2003, p.132). O Hospital surge
num período de grande repressão política e de intensa coerção estatal. A
acentuada multinacionalização acelerada pelos efeitos do desenvolvimentismo, é
irrigada por uma vasta cobertura na saúde e na educação. No entanto, nesta
época, a desigualdade e a pobreza demonstravam, cada vez mais, a diminuição
dos índices de qualidade de vida. A economia mundial passava por uma forte crise,
constituindo-se num cenário ideal para justificar a hegemonia do pensamento
neoliberal, que tem como princípio sustentador a maximização do lucro econômico
em detrimento da satisfação das necessidades sociais. A realidade brasileira foi se
determinando, desde suas origens, como ”uma gradativa constituição de uma
formação sócio-econômica capitalista ‘periférica’, no interior do sistema capitalista
internacional” (PEREIRA, 1970, p. 125).
O HCPA inaugura suas atividades na fase do milagre econômico que se
estendeu de 1968 a aproximadamente 1973, seguida de uma crise que resultou no
87
aumento do endividamento externo do país, do desemprego, e da queda dos
setores produtivos.
Nesse período muitas mudanças sociais, políticas e econômicas culminaram
em providências na área da saúde, tais como reformas previdenciárias, criação do
Ministério de Previdência e Assistência Social. Estas medidas tendo como objetivo
diminuir despesas com a atenção médica acabaram, também, por favorecer a
iniciativa privada nos serviços de saúde, marcadamente nas áreas urbanas, onde a
industrialização era expressiva. Verifica-se nesse contexto uma retração da saúde
pública que vai perdendo campo para a medicina previdenciária.
O impulso científico das indústrias farmacêuticas, de agentes mecânicos e
equipamentos médico-hospitalares aliado aos interesses do modo de produção
capitalista constitui o elenco de condições que irão escoar na intensiva
medicalização da população, no aumento do número de especializações e na
tecnicidade do ato médico e dos demais trabalhadores da saúde (SILVA, 1986,
p.83).
Com a previdência social institucionalizada expande-se a atenção médica a
um maior número da população, mas marcada por uma desigualdade de acesso. O
modelo curativo, de atendimento individualizado e hospitalar começa a entrar em
crise, acontecendo mudanças de ordem estruturais na previdência, tais como a
criação do SINPAS (Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social),
INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência social), SUDS
(Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde), (PIRES, 1998).
O HCPA, respondendo ao contexto em que surgiu e atingindo um maior
contingente populacional, vai atendendo, com suas especialidades múltiplas, a uma
ótica que privilegiava a medicina de especialidades, a tecnicidade do ato médico.
Observa-se nesta fase, a substituição do atendimento do médico que detinha seu
próprio empreendimento e meios de produção, por um atendimento massivo dos
médicos assalariados das instituições de saúde públicas e privadas.
De acordo com o artigo dois da Lei 5.604/70 o HCPA tem como objetivos:
Administrar executar serviços de assistência médico-hospitalar; prestar serviços
à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a outras instituições e à
comunidade, mediante as condições que foram fixadas pelo Estatuto; servir
como área hospitalar para as atividades da Faculdade de Medicina da
Universidade do Rio Grande do Sul; cooperar na execução dos planos de ensino
das demais unidades da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cuja
88
vinculação com problemas de saúde ou com outros aspectos da atividade do
hospital torne desejável esta colaboração; promover a realização de pesquisas
científicas e tecnológicas (Manual do Colaborador / HCPA,1998).
O HCPA tem como missão:
Formar Recursos Humanos, gerar conhecimentos, prestar assistência de
excelência e referência através da maximização do aproveitamento da infra-
estrutura instalada, transpor seus objetivos próprios, atuando decisivamente na
transformação de realidades e no desenvolvimento pleno da cidadania,
qualificando-se, desta forma, como Hospital Universitário de Atenção Múltipla
(Manual do Colaborador / HCPA, 1998).
Após essa apresentação, tentando situar o espaço de trabalho das
professoras enfermeiras de uma forma mais geral, torna-se necessário apresentar
a Instituição a partir dos olhares das próprias trabalhadoras.
Partindo do entendimento de que é, no espaço de trabalho, em que o ser
humano por sua consciência, esculpe previamente os contornos e configuração
que quer dar ao objeto do seu trabalho e, nesse movimento, ao mesmo tempo em
que transforma a natureza externa, transforma a si mesmo (MARX, 2006, p.211), o
HCPA, nas concepções de suas trabalhadoras assume os seguintes significados:
Profª Enfª 1 - O hospital é a representação de todo sistema de saúde, de tudo. É
um hospital extremamente cartesiano dentro de uma medicina fragmentada, do
corpo em partes, das especialidades.
A professora em poucas palavras define a realidade cartesiana da
instituição, o entendimento do corpo do em partes, a forma como se constitui o
HCPA no sistema de saúde. Nessa perspectiva realizou sua formação e de certo
modo reproduziu as contradições de tudo isso como enfermeira nas unidades em
que atuou e em sua prática como professora no ensino técnico e na educação em
serviço. O HCPA, como não poderia deixar de ser, segue a lógica de organização
dos serviços. Esse mesmo meio fechado politicamente, conforme refere a Profª
Enfª 2 , instiga ações profissionais de luta pela conquista de espaços e de poder. A
hierarquia se estabelece pelo nível de conhecimento. Os ditos “mais qualificados”
são os que detêm maior poder de decisão numa mesma categoria profissional.
89
Profª Enfª 2 - É um hospital bem diferente, até em questão de crescimento, de
como anda a saúde no país. Ele é um hospital mais fechado politicamente. A
gente luta muito para abrir espaços aqui dentro. Eu já lutava muito para abrir
espaços de enfermagem como enfermeira do ..... Eu acredito muito e isso eu
trouxe da faculdade, porque detectei, que a gente abre caminho pelo
conhecimento e, se tu te dedicas e, se tu consegues te colocar dentro de uma
equipe pelo conhecimento, pelo que tu estudas, pelo teu comprometimento, pela
tua dedicação, tu consegues espaço e eu considero que lá no...., quando eu
trabalhava lá, eu tinha um bom espaço de trabalho, que muitas pessoas não
tinham, mas acho que a gente conquista isso, é até com idealismo, bem com
idealismo.
Em meio às contradições de uma empresa- pública -hospital-escola que tem
como missão, entre outras coisas, prestar assistência de excelência, vislumbra-se
a necessidade de uma maior atenção à saúde física dos trabalhadores nas
palavras da Profª Enfª 3. Quanto a esse aspecto, a instituição ofereceu,
recentemente, um plano de saúde privado para as/os trabalhadoras/es. O trabalho
apontado pela Profª Enfª 4 é extenuante, sobretudo, para a enfermagem que
acompanha vinte e quatro horas a evolução dos pacientes. O número de
profissionais da equipe é bastante desproporcional em relação ao número de
pacientes. Essa sobrecarga de trabalho produz uma fadiga maior dos
trabalhadores e trabalhadoras, sofrimento no trabalho, jornadas desgastantes em
razão dos baixos salários. É comum os profissionais da enfermagem, trabalhadores
e trabalhadoras assalariados, manter mais de um emprego.
Profª Enfª 3 - O Hospital de Clínicas é uma empresa muito grande. Nesse último
ano está se tentando melhorar algumas coisas, mas sinto falta de uma
preocupação maior da empresa com relação à saúde mental dos trabalhadores.
Considero isso muito importante e que não está desvinculado da saúde física
das pessoas. Vejo, de modo geral, as pessoas com as quais eu convivo mais,
precisando de ajuda.
Profª Enfª 4 - Eu vejo esse hospital dividido em quatro partes: o administrativo,
as unidades SUS, digamos assim, o ambulatório e os serviços de apoio. O
hospital, agora, está se preocupando com o paciente não SUS. As unidades
SUS só querem dar vaga, não pensam na qualidade. Falam na qualidade junto
ao cliente, ao paciente, só que trabalhar com 46 pacientes e 7funcionários é
impossível dar, realmente, qualidade para eles. Há uma preocupação em
oferecer várias vagas para o SUS, mas não dão qualidade para o SUS. Esta
situação está mudando um pouco. Agora temos mais um funcionário por
unidade. Antes, no turno da noite, eu trabalhava com 45 pacientes e 4
auxiliares. O hospital precisa ganhar dinheiro, mas não sabe ganhar dinheiro. O
HC possui unidades que poderiam ser melhor investidas. Pode haver mais
investimentos nos funcionários, para que eles possam dar um tratamento de
qualidade para os pacientes de convênio, a fim de esses pacientes queiram
voltar para cá. O paciente SUS sempre se acha gratificado por estar aqui dentro.
Acha que só por estar no HC é uma benção. Já, o que vem por convênio, traz
90
outras solicitações, porque ele já passou por outros hospitais e ele já viu qual é o
tipo de hotelaria esperada. Agora o hospital está se preocupando com isso.
A qualidade do serviço oferecido cai por terra, a excelência e a humanidade
do discurso formal vai se corrompendo, à medida que as contradições são
desnudadas pela materialidade da instituição, pelo processo multideterminado de
sua existência. A oralidade abaixo é transparente nesse sentido.
Profª Enfª 5 - Eu gosto muito do Hospital de Clínicas. O meu sonho sempre foi
trabalhar aqui. Eu acho que é um lugar excelente para se trabalhar. Só que eu
acho que a gente poderia trabalhar melhor. Têm-se condições, temos recursos
para trabalhar melhor, mas eu acho que a gente está buscando um caminho.
Fala-se tanto em cuidado, humanidade e excelência, mas eu acho que falta
muito. Perdemos muito, as questões do cuidado e falta muito para se atingir a
excelência. Acredito que, se cada um fizer a sua parte, a gente vai melhorar e eu
estou pensando em fazer a minha.
Embora as dificuldades, por ser um hospital universitário, o HCPA, é um
espaço fértil de ensino e aprendizagem, como expressa a professora abaixo. A
interligação das dimensões da assistência, do ensino e pesquisa propiciam
produção de conhecimentos, o aproveitamento de experiências dos docentes,
discentes, pesquisadores, ao mesmo tempo em que indicam caminhos de ruptura
com o modelo hegemônico lembrado pela Profª Enfª - 1.
Profª Enfª 6 - Eu vejo o Hospital de Clínicas como uma referência no cuidado.
Acredito que ele propicia um espaço muito fértil de aprender, ensinar e
compreender. Oportuniza inúmeras situações de aprendizado, não só nos cursos
formais, mas no momento que a gente vai até às unidades, no momento da
educação em serviço. Torna-se muito fértil nesse sentido. E a gente tem que
estar aberta para essas coisas. Depois que eu vim para o hospital, a questão,
assim, da iniciação científica, de participar, de inovar acredito que, nesse
sentido, ele desperta e propicia.
As narrativas dão uma idéia do significado da instituição para as professoras
enfermeiras que, a pesar das contradições e mazelas apontadas, é um ambiente
que proporciona melhores condições de trabalho em comparação com outros
hospitais em que as entrevistadas já tiveram oportunidade de trabalho ou de
experiência em situação de estágio.
91
Profª Enfª 7 - Eu acho o hospital muito bom. Comparando com os outros
hospitais, em que eu trabalhava antes, o Hospital de Clínicas é muito bom, não
dá para se queixar aqui.
2.3 – A Escola Técnica de Enfermagem – ETE
Após dezoito anos de fundação do HCPA foi criado o Curso Supletivo de
Qualificação Profissional de Auxiliar de Enfermagem, para a formação de
auxiliares.
Em 1996 surge a Escola Técnica de Enfermagem, voltada à formação de
técnicos. Localiza-se, fisicamente, no subsolo do HCPA. Para situá-la, convém que
se faça um breve relato dos movimentos que geraram sua criação.
A partir da década de 80, o mundo do trabalho sofre uma modificação
estrutural, criando novas formas de organização e gestão. A presença de uma nova
base econômica e produtiva, com adoção de tecnologias complexas, adicionadas à
produção e à prestação de serviços e, ainda, a internacionalização das relações
econômicas passam a exigir um novo referencial educacional que assegurasse
educação geral para todos os trabalhadores, uma educão profissional básica aos
que possuíam uma qualificação não adequada às exigências do atual mercado de
trabalho, a qualificação profissional de técnicos, a educação em serviço e outras
modalidades de educação continuada.
Os avanços do conhecimento na área da saúde, a sofisticação cada vez
maior do aparato tecnológico que envolve as ações de assistência ao paciente,
provocaram a necessidade de qualificação dos trabalhadores. A maioria dos
profissionais de enfermagem encarregados do cuidado direto ao paciente pertencia
à categoria de atendentes.
O HCPA, mergulhado nessa realidade e como órgão formador de recursos
humanos na área da saúde, passa a oferecer o curso de auxiliar de enfermagem.
Esta medida devia-se à preocupação com a qualidade da assistência de
enfermagem que era realizada, em grande parte, por atendentes e por uma
92
exigência legal, preconizada pelo artigo 23 da Lei da Lei 7498/86
22
, que dispõe
sobre a regulamentação do exercício da enfermagem. O parágrafo único desse
dispositivo legal determinava um prazo de 10 anos, a contar de sua promulgação,
para a formação específica do pessoal que executava atividades de enfermagem,
sem a devida qualificação. Existiam poucos profissionais de enfermagem com nível
médio nas instituições de saúde da capital e do interior.
A Direção do Curso Supletivo de Qualificação Profissional de Auxiliar de
Enfermagem era realizada por duas professoras enfermeiras da Escola de
Enfermagem da UFRGS, nomeadas pela Coordenação do GENF. O corpo docente
era composto por 22 enfermeiras, funcionárias do HCPA que, além de trabalharem
na assistência de enfermagem, lecionavam em regime de horas extras no referido
curso. Essa situação perdurou até 1996. O planejamento era centralizado pela
direção do curso e pelas enfermeiras horistas. Até maio de 1998, a equipe não
dispôs da presença de uma Pedagoga para o trabalho de orientação pedagógica e
educacional junto aos docentes e discentes.
No início dos anos noventa, num contexto definido pelas perspectivas da
globalização, da reestruturação produtiva, do neoliberalismo, o HCPA alinhado a
uma nova ótica de mercado inicia um processo de aperfeiçoamento dos
profissionais de nível médio, através da criação em 18/10/1996, do Curso Técnico
em Enfermagem, vinculado ao Ministério de Educação e Secretaria de Educação
Média e Tecnológica. Com essa medida, a ETE passa por uma mudança em sua
estrutura organizacional e pedagógica. Até então, o processo educativo era
fortemente fragmentado, baseado na lógica do treinamento. As enfermeiras com ou
sem a formação de licenciatura davam suas horas-aula e retornavam para
assistência. Não existia um vinculo pedagógico entre os docentes, discentes e
equipe diretiva que sustentasse uma concepção de educação coletiva, conforme a
narrativa seguinte:
Profª Enfª 4 - Há muitos anos atrás, as pessoas davam aulas aqui, ficavam
algumas horas, mas não tinham nenhum vínculo com a escola, o vínculo era
com a unidade. Quando dispunham de tempo vinham aqui, davam suas aulas e
22
A Lei Nº 7.498, de 25 de junho de 1986 dispõe sobre a regulamentão do exercício da
enfermagem, e dá outras providências. O texto dessa lei está disponível no site:
http://www.redece.org/enfer.htm. Acessado em: 06 jul, 18h.
93
voltavam para unidade. A prioridade era a unidade. Hoje é diferente, os
professores não são mais horistas. Há comprometimento com a escola.
A criação do Curso Técnico de Enfermagem promoveu várias mudanças na
ETE, entre elas, a criação do quadro de docentes da escola. Foram estipuladas
seis vagas fixas para docentes, com regime de dedicação exclusiva e exigência da
formação em licenciatura. Essas vagas foram preenchidas por um processo de
seletivo interno. As aprovadas na seleção foram remanejadas para ETE, saindo da
assistência. Foi criada, também, uma vaga para o cargo pedagoga(o) com regime
de 20 horas semanais. O preenchimento desse cargo aconteceu em junho de 1998
por processo seletivo público. A presença de um profissional com uma formação
diferenciada do restante do grupo contribuiu muito para o estabelecimento de
novos sentidos nos rumos do planejamento, do ensino e da avaliação.
Alguns anos após, o quadro de docentes sofreu alterações pela saída de
três professoras enfermeiras. Foi feita nova seleção interna. A partir de 1998, a
instituição resolveu realizar processo seletivo público para admissão de novos
docentes. Essa mudança na política de admissão representou um ganho para ETE,
na medida que passou a contar com profissionais oriundas de outros espaços de
saúde, fora do HCPA. A propósito disso, a Profª Enfª – 3 expressa que:
O grupo mudou, entraram outras pessoas. Aconteceu um choque de idéias. Eu
me lembro que eu entrei, a colega .... entrou e a colega .... e a gente fez o
enfrentamento. Existiam posições muito pesadas, pois entramos num grupo que
já estava formado, tanto em termos de chefia como de colegas.
A entrada de pessoas oriundas de outros ambientes de trabalho movimentou
as relações no processo educativo da escola. As concepções de educação e saúde
começam a ser questionadas, o choque de idéias, referido pela professora e o
enfrentamento estabelecem algumas mudanças sensíveis nos caminhos
pedagógicos trilhados pela ETE. As posições pesadas do grupo, que já existia, são
questionadas. A entrada de uma pedagoga na equipe propiciou a integração de
saberes em torno da saúde e educação. A perspectiva de um outro olhar sobre a
materialidade do processo educativo, na percepção das professoras enfermeiras foi
produzindo novos contornos no cotidiano pedagógico da ETE.
94
A partir de 2002, o regime de horário da Pedagoga foi estendido de 20 para
40 horas semanais. A ampliação na carga horária foi solicitada pelos docentes e
direção da escola pelo significado que a presença de um profissional com uma
formação em pedagogia foi assumindo no cotidiano do processo de trabalho da
ETE
Em 2005, a ETE recebeu mais uma docente. As sete professoras
enfermeiras cumprem uma carga horária de 36 horas semanais. As práxis das
professoras e pedagoga da ETE estão distribuídas nas aulas do Curso Técnico de
Enfermagem, nos cursos de extensão para comunidade interna e externa, nas
ações educação em serviço e nas diversas comissões de educação e pesquisa na
área da enfermagem e em outras áreas afins.
A escola conta, ainda, com uma secretária com regime de 40 horas
semanais com atribuições de planejar e dirigir, avaliar e controlar as atividades da
secretaria em consonância com todos os segmentos da comunidade escolar e uma
bolsista de iniciação científica em enfermagem, com 20 horas para monitoria nas
atividades teórico-práticas em laboratório e outras atividades educativas. Agregam-
se a essa equipe, enfermeiras/os do Grupo de Enfermagem - GENF do HCPA e de
outras áreas afins, que desenvolvem atividades educativas, tanto no Curso Técnico
de Enfermagem, como na Educação em Serviço.
Outra mudança significativa foi a eleição direta, pelas trabalhadoras da ETE,
da chefia da escola. Essa possibilidade resultou numa deliberação da atual gestora
do GENF, tendo em vista a mobilização das trabalhadoras no período que
antecedeu as últimas eleições.
Convém assinalar que a estrutura do GENF é compreendida por Serviços de
Enfermagem, conforme o tipo de assistência que pode ser, entre outras, clínica,
cirúrgica, pediátrica, psiquiátrica. Cada serviço é composto de Unidades. De acordo
com o Regimento do GENF, as chefias de serviço só podem ser exercidas por
docentes da Escola de Enfermagem da UFRGS e as de unidades por
enfermeiras/os funcionárias/os do HCPA. A ETE, como órgão de ensino do
GENF, é equiparada a um serviço, tendo como chefia docentes da Escola de
Enfermagem da UFRGS. No entanto, apesar de ter status de serviço, até 2004, as
chefias da escola nunca tinham sido eleitas por voto direto das trabalhadoras. Era o
único serviço em que as gerentes eram nomeadas pela Coordenadora do GENF.
95
Desde a criação, a ETE, teve três diretoras e vices. As duas primeiras diretoras
foram nomeadas pelo GENF. A primeira diretora ficou no cargo até o ano de 1992,
saindo da Escola para assumir a coordenação do GENF. A partir dessa data, a
vice-diretora assumiu a direção da Escola, permanecendo nessa função por 12
anos, até o final de 2004. Nesse ano, por meio de uma mobilização política
articulada pelas trabalhadoras da ETE, apoiadas pela associação de classe das/os
enfermeiras/os do HCPA conquistaram junto à Coordenação do GENF a
deliberação para eleição direta para o cargo de direção da ETE. Pelas regras do
Regimento do GENF somente as professoras enfermeiras tinham direito ao voto,
ficando fora dessa possibilidade, a pedagoga e a secretária da escola. Após
reivindicação junto à Coordenação do GENF, a pedagoga adquiriu o direito ao voto.
A secretária da ETE não pode participar do processo eletivo, para não abrir um
precedente, com relação aos demais funcionários de nível médio do GENF. O
regimento desse órgão não prevê o direito ao voto de funcionário auxiliar ou técnico
para chefias de serviço. Eles podem votar apenas para as chefias de unidade.
Essa rápida incursão sobre o processo eletivo para ETE deixa transparente o
quanto as áreas do hospital ainda são compartimentalizadas em corporações que
ainda conservam impermeabilidade, tanto em termos verticais, como horizontais.
Na questão da verticalidade, a dualidade no processo eletivo para os
serviços de enfermagem é um exemplo, uma vez que as/os funcionárias/os de
nível médio não têm direito à escolha de seus chefes mediatos. Uma das razões
levantadas é a de que as/os técnicas/os e auxiliares de enfermagem não
conheceriam as/os candidatas/os, por serem docentes da Universidade. Na
questão da horizontalidade, a falta de previsão do direito ao voto de uma
funcionária de nível superior, no caso a pedagoga. O argumento dos gestores se
deu pela não existência até 2002, na história do grupo de enfermagem, de outro
profissional que não fosse enfermeira/o. Embora a primeira pedagoga, exercesse
suas atividades na ETE, desde 1998 em regime de 20 horas, não estava lotada no
grupo de enfermagem e, sim, na Coordenadoria de Gestão de Pessoas. A partir de
2002, quando foi substituída, a nova pedagoga foi admitida no quadro do GENF,
com lotação na ETE.
96
Essa situação denuncia a produção e reprodução da materialidade da
estrutura e superestrutura da sociedade civil e política, nas quais, o hospital é uma
das manifestações.
Mediante a realidade configurada pela expressividade das contradições
apontadas, a ETE tem como objetivos:
Geral: desenvolver o exercício consciente da cidadania, com um perfil crítico,
responsável e comprometido com a saúde, visando o desenvolvimento da
educação integral do ser humano. Específicos: oportunizar o crescimento
profissional a funcionários da instituição; suprir as necessidades de técnicos em
enfermagem do próprio hospital, considerando-se a legislação profissional e a
complexidade dos pacientes/clientes assistidos nesta instituição; formar técnicos
em enfermagem capazes de executar as competências profissionais gerais do
técnico da área da saúde, acrescido das competências específicas
estabelecidas; Proporcionar Cursos de Especialização para técnicos em
enfermagem, de acordo com as necessidades da comunidade. (PLANO DE
CURSO - ETE / HCPA, 2002, p.10)
Ao mesmo tempo em que a ETE se propõe desenvolver o exercício
consciente da cidadania, a estrutura político-administrativa a que está vinculada
fragmenta o sentido do significado de cidadania, uma vez que não há previsão
irrestrita para o direito a voto de cargos eletivos para os serviços de maior poder
de decisão no hospital. A proposta de perfil crítico almejado na formação do
técnico de enfermagem fica arranhada pela própria estrutura da instituição, que
tenta a aproximar o discurso da realidade que é ainda fortemente centralizadora,
fragmentada, compartimentalizada e hierarquizante. No subsolo do hospital, os
discentes aprendem um conceito ampliado de cidadania nos 11 andares acima,
no velho e atual tecido social da instituição presenciam a materialidade de uma
prática de cidadania que os remetem para entendimento que elas e eles, futuros
profissionais de nível médio serão meio cidadãos, por só terem direito ao voto
para certos segmentos. A dualidade entre o que pensa e o que faz esfacela o
conceito de cidadania e expõe suas contradições, limites e origens iluministas.
Ribeiro ao examinar a questão entre educação e cidadania argumenta
que:
O conceito e a realidade da cidadania, mergulhados na sua compreensão
histórico-filosófica, identificam a cidade, a civilização, o discurso, a gramática, a
retórica, a escrita, a língua e a cultura dominantes, o conhecimento, a raça
97
branca, a propriedade privada da terra e dos meios de produção como
conteúdos indispensáveis a esse conceito e a essa realidade (RIBEIRO, 2002,
p.125).
A significação do conceito de cidadania que povoa o sistema eletivo da
instituição está plenamente identificada com a retórica burguesa que prende a
realidade da cidadania aos quesitos mencionados por Ribeiro.
A mesma autora assevera que o argumento que sustenta o conteúdo do
discurso burguês e o torna aceitável sobre o conceito de cidadania que propõe: “é a
separação entre a realidade política e as realidades econômica e social, porque
nestas a materialização das desigualdades é incontestável” (2002, p. 122).
Num contexto de reestruturação produtiva, de nova organização do trabalho
e de políticas educativas de caráter conservador, o currículo do curso técnico em
enfermagem afinou-se com as reformas educativas implementadas na sociedade
brasileira na década de 1990, caracterizadas por uma política de fragmentação da
educação profissional, de separação entre ensino médio e técnico, contrariando os
sentidos das reformas desejadas na década de 1980, contemporâneas ao período
da Constituição Brasileira de 1988. Na apresentação do Plano de Curso da ETE
encontramos um argumento que justifica nitidamente esse movimento:
Este projeto representa o referencial comum que permite a convergência de
esforços pedagógicos, a unificação da linguagem técnica e a coerência dos
procedimentos didáticos e de avaliação, baseado no novo paradigma vigente,
normatizado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Profissional de Nível Médio Técnico (PLANO DE CURSO, 2002).
A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 e dos
interesses hegemônicos ligados ao capital, a educação profissional passou a
inspirar-se numa concepção de educação polivalente, para um trabalhador que
pudesse exercer várias funções, adaptando-se, sem entraves, às exigências do
mercado. Pires refere que: “ao contrário dos trabalhadores desqualificados, que
desenvolvem atividades parcelares, do modelo taylorista-fordista, é utilizado um
trabalhador mais escolarizado, mais polivalente” (PIRES, 1998, p.50).
Em 1992 Roberto Guimarães Boclin, um dos mais importantes dirigentes do
SENAI, expressou que “a polivalência da escola devia aproximar-se da
polivalência do mercado” (Boclin,1992, p21).
98
Aplicou-se nos currículos das escolas de nível técnico a concepção de
educação por competência, com o fim de preparar profissionais versáteis para o
enfrentamento de processos de trabalho que rapidamente sofrem mudanças. Na
ótica da flexibilização do processo produtivo, o mercado de trabalho passa a
demandar trabalhadores multifuncionais.
Deluiz alerta que a adoção do conceito de competência sem um exame
crítico pode ser arriscado. A simples adequação da formação ao atendimento das
necessidades da reestruturação e econômica e de mercado é um risco. Adverte
que “ao ignorar a formação do sujeito político, uma abordagem restritiva das
competências torna-se instrumentalizante e tecnicista” ( 2004 ).
O plano de curso, atualmente vigente na ETE, foi estruturado pela ótica da
pedagogia das competências, seguindo a orientação pensada pela Lei 9394/96.
Emergiu da necessidade de implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Profissional de Nível Técnico e, em parte, das propostas de mudanças
pensadas pelas educadoras da Escola que almejavam a realização de um projeto
de educação técnica que respondesse às necessidades do mundo do trabalho.
Diante da idéia de uma formação que superasse o paradigma tecnicista, as
trabalhadoras da ETE foram esboçando o novo plano. A conclusão e o início da
aplicação do plano ocorreu em 2001. Esse assunto será pormenorizado no último
capítulo, a partir da análise da prática educativa das professoras enfermeiras da
ETE.
Até o primeiro semestre de 2005 a ETE oferecia 70 vagas para o Curso
Técnico de Enfermagem em dois horários, manhã e tarde e cursos de extensão em
saúde e educação para comunidade interna e externa. Atualmente o número de
vagas foi reduzido pela metade, tendo em vista nova frente de trabalho assumida, a
Educação em Serviço para os funcionários do GENF, num dos turnos. Essa
proposta de atuação era um desejo antigo do corpo docente da ETE que, por
conhecimento da realidade dos serviços de enfermagem, verificava a necessidade
de trabalhar os processos de trabalho. A partir do segundo semestre de 2007 a
escola vai oferecer, também, o curso de complementação de estudos de auxiliar
para técnico de enfermagem para os funcionários do hospital, que trabalham junto
ao GENF, na condição de auxiliares. Esta medida visa atender às necessidades de
99
qualificação do pessoal e a nova realidade de admissão no HCPA, somente, de
pessoas que tenham a formação em nível técnico de enfermagem.
Procurando situar melhor a ETE, como sujeitos da pesquisa concebem e
materializam seus trabalhos, menciono a seguir as configurações da escola, a
partir das concepções das professoras enfermeiras:
Profª Enfª 1 - A gente está num novo processo agora, mudando um pouco mais,
até pelo grupo estar tendo outras experiências.
A fala acima dá indícios de mudanças nos ventos da escola provocadas pela
maré alta de vivências de experiências recentes. A ETE sai do subsolo e começa a
ter visibilidade à medida que vem produzindo uma proposta de educação em
serviço que se contrapõe às práticas de educação continuada, até então,
desenvolvidas pelo hospital. Inspirando-se num referencial de problematização dos
processos de trabalho, as educadoras em serviço vão construindo caminhos de
participação dos trabalhadores e das trabalhadoras, de valorização da fala no
modos de fazer a assistência de enfermagem.
A professora abaixo também assinala as mudanças que vêm ocorrendo,
refere a importância inicial da criação da escola, ressaltando a contribuição de cada
profissional na busca de outros caminhos.
Profª Enfª 2 - O curso técnico foi uma construção nossa. A gente tem que
lembrar das pessoas que estavam aqui. Eu considero que a construção da
escola de auxiliar, da escola de técnicos, foi com a .... e depois a gente foi
ampliando. Cada uma de nós foi estudando um pouco, buscando experiências,
saindo para outras escolas para dar aula, voltando e trazendo experiências. A
gente foi adaptando e hoje eu considero que a gente conseguiu mudar várias
coisas pela nossa experiência.
Apesar de reconhecer as boas condições de organização e a qualidade do
trabalho desenvolvido na escola, a narrativa abaixo deixa clara a imagem da ETE
mediante a instituição. A figura utilizada pela professora enfermeira tem sido
mencionada pelas trabalhadoras da escola toda a vez que é percebida a pouca
visibilidade da ETE mediante a instituição. A projeção desse espaço de ensino, em
relação a um hospital universitário que opera na lógica de um modelo hegemônico
de valorização do conhecimento médico, da formação de nível superior, da
100
dualidade do ensino é bastante ínfima, quase à beira do esquecimento. Lidar com a
formação de nível médio dos futuros trabalhadores e trabalhadoras que realizarão
as ações da assistência de enfermagem, historicamente reconhecidas, como de
menor conteúdo intelectual dão uma idéia dessa inexpressividade diante das
realidades tradicionalmente valorizadas como de maior prestígio na perspectiva da
hegemonia já mencionada. A não influência direta no hospital,como avalia a
professora, parece se dever à falta de importância da prática que não está
relacionada ao que historicamente tem maior visibilidade social. A par de tudo isso,
há a esperança de melhores tempos, em razão de a ETE ter assumido a
coordenação da educação em serviço do GENF. A abertura desse espaço torna as
ações educativas, desenvolvidas pelas trabalhadoras, mais visíveis e com
contribuições voltadas diretamente para a instituição, uma vez que, até então, a
ETE realizava formação, prioritariamente, para o público externo.
Profª Enfª 3 - Eu acho que estamos bem organizadas, a gente consegue fazer
um trabalho bom, integrado. Acho que agora estão olhando um pouquinho mais
para nós, mas a ETE sempre foi um apêndice, ela não existia muito, porque nós
não temos influência direta no hospital, nos pacientes e a gente não era muito
valorizada. Existiam pessoas que nem sabiam da existência da ETE, tem gente
que achava que eu dava aula na UFRGS, não tinha nada a ver. Acho que agora
a gente está mais na vitrine com esse trabalho de educação em saúde, este
trabalho está ajudando.
Profª Enfª 4 – E vejo a ETE como um apêndice serve para alguns momentos,
mas em outros momentos ela passa despercebida. Como se fosse um
departamento do hospital, um setor, enfim, um almoxarifado, algo assim. Eles
não dão a devida importância. Atualmente percebo que a Escola Técnica está
tendo um lugar ao sol, coisa que nunca teve antes. Acho boa essa mudança.
A percepção da professora narrada acima reforça o que já foi analisado na
fala da Profª Enfª 3. O sentimento é o mesmo, de baixa estima mediante o hospital
como um todo. Ainda que o trabalho desenvolvido na escola seja extremamente
valorizado pelas trabalhadoras, que já vêem superando algumas nuances do peso
da dicotomia da dualidade em suas ações educativas, a imagem enfraquecida de
apêndice, de comparação com o almoxarifado, de inferioridade é bastante presente
diante da magnitude dos 12 andares da triangulação assistência, ensino e pesquisa
que projetam a empresa-negócio-hospital-universitário para um patamar de
excelência no hanking com as demais instituições do gênero.
101
A narrativa da Profª Enfª 6 vislumbra a importância da escola como espaço
crítico- reflexivo, de integração de saberes de educação e saúde, de busca de um
ensino conectado com a realidade não só hospitalar, mas da saúde coletiva.
Profª Enfª 6 - Eu Acredito que a Escola me abriu os olhos para outras coisas, me
fez buscar outras alternativas na forma de ensinar, na forma de avaliar. Aprendi
muito contigo, com a colega que foi embora, a questão da avaliação, a questão
da subjetividade, a questão dos conceitos, de como avaliar, o que pontuar e de
que forma a gente tem que, também, se organizar para isso, de aprender a ver o
cuidado de outra forma, de incluir a comunidade, de mostrar para o aluno que
nem tudo é tão cor-de-rosa e perfumado como a gente pensa, de mostrar a
realidade de trabalho para eles, não só a realidade hospitalar, os cuidados
domiciliares que aí estão, inteirá-los da política de saúde e de outros assuntos. A
gente não foi muito trabalhada na formação.
Profª Enfª7 - Eu acho que a Escola não é muito vista na instituição. Eu,
particularmente, nem sabia que existia uma escola de técnicos, ainda mais no
Clínicas. A escola é pouco divulgada, eu acho que as pessoas não sabem que
ela existe. Até quando tu circulas pelo hospital “pessoal da escola”, elas acham
que somos da Escola de Enfermagem, não se dão conta que somos do curso
técnico. Eu acho que poderia ser mais vista, mais valorizada.
A fala da Profª Enfª 7, referida acima, demonstra a pouca visibilidade da
escola, tanto na perspectiva interna da instituição, quanto na externa. A professora
antes de trabalhar no HCPA não sabia da existência do funcionamento de uma
escola para formação de técnicos em enfermagem do HCPA. Ressalto, como
bastante sugestiva, algumas expressões utilizadas na narrativa da professora, sem
a pretensão de análise de discurso, pois não é essa a perspectiva de análise que
faço nesse trabalho, em que ela diz: Eu, particularmente, nem sabia que existia
uma escola de técnicos, ainda mais no Clínicas. As últimas palavras da frase me
fazem inferir a suprema visibilidade pública do hospital, do Clinicas como menciona
a professora. Apesar de tão conhecido, de tão familiar na comunidade, não
consegue ter a mesma visibilidade no ensino médio-técnico que desenvolve nas
instalações de seu subsolo. Nem mesmo os demais trabalhadores do hospital a
percebem, confundindo as docentes da ETE, quando circulam nos andares da
instituição, com as da Escola de Enfermagem da UFRGS.
102
3 - A Dialética das Células
23
do Organismo Formação das professoras
enfermeiras da ETE/HCPA: Desvelando o Concreto Aparente do Fenômeno
para chegar ao Concreto Pensado:
Conforme Marx:
A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar
suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que
há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode descrever,
adequadamente, o movimento real (MARX, 2006, p.28).
Nessa perspectiva, na historicidade oral da materialidade da formação das
professoras enfermeiras encontrei algumas subcategorias empíricas que pretendo
explicitar ao longo desse estudo com o esforço do desnudamento das diversas
facetas do fenômeno pesquisado até conseguir despi-lo do seu concreto aparente,
como caminho inicial, para retomá-lo após, como síntese das mais variadas
determinações (Marx, 2006).
3.1 - Da idealização na formação à realidade
Na anatomia microscópica realizada neste estudo, procurando migrar do
concreto aparente para o concreto real, modificado no tempo e presente em suas
diversas manifestações, começo minha análise por uma das primeiras células
desse organismo, a imagem idealizada da enfermagem que foi passada para os
sujeitos, durante o período da formação.
Silva referindo-se aos fenômenos de idealização nos diz que estes
23
Célula, nesse texto não se refere à conceituação expressa pelas Ciências Biológicas, enquanto parte do estudo
do organismo vivo. Aqui, está sendo utilizada no sentido metafórico de partes, unidades contraditórias, numa
dialética que origina uma totalidade.
103
vinculam-se, por sua vez ao fenômeno da absolutização do papel das
enfermeiras, sobre cujos ombros se coloca a responsabilidade de melhorar o
bem-estar da coletividade, de procurar para todos “a plenitude da vida e da
saúde”, de “cuidar do ambiente social e espiritual do paciente” – como se tais
objetivos dependem-se apenas de suas boas intenções, dedicação e altruísmo”
(SILVA, 1986, p.116).
Esse poder de operar mudanças um tanto absolutizado na imagem da
enfermagem fica evidenciado quando as professoras expressam que:
Profª Enfª 1 - Teve alguns professores que eu acho que me marcaram. Foram
professores que fizeram, na realidade, eu acreditar na Enfermagem, que me
fizeram acreditar que tu sendo enfermeira, tu podias mudar.
Profª Enfª 2 - Logo que eu me formei, o mundo do trabalho para mim era
diferente do mundo do ensino, não sei porque eu fazia isso e eu demorei
bastante para assimilar isso.
Profª Enfª 3 - Falava-se muito em filosofia e não se falava muito no trabalho
como é que ia ser no futuro, não juntava, ficava assim... uma fantasia, uma
coisa...O que foi meio falho era que elas passaram uma idéia que depois... tu
trabalhando era tudo lindo, maravilhoso, que não havia problemas, isso que eu
senti falta, não havia um vínculo com as condições de trabalho da realidade
mesmo, porque aqui no Hospital de Clínicas é uma exceção, a gente era
estudante, era tudo arrumadinho, bonitinho, mas eu fui trabalhar em outro
hospital e não tinha processo de enfermagem nenhum e tu ficavas bem mais
independente para trabalhar, e ai era uma outra realidade.
Nestas falas observo o distanciamento entre a teoria e a prática, durante o
período de formação. É nítida a desvinculação do mundo do trabalho numa
perspectiva abrangente da realidade, das contradições do trabalho em saúde. A
perspectiva vislumbrada na fala da Profª Enfª 1, veiculada na formação, nos aponta
para a imagem de um saber que reserva sobre si a expectativa de operar
mudanças na realidade, como se essa possibilidade dependesse apenas de um
dos segmentos profissionais que atuam em saúde.
Nessa esteira, a enfermagem para se firmar vai se organizando orientada
nos passos da medicina, inspirando-se, organicamente, no projeto da classe
burguesa, que coloca nas mãos da enfermagem um poder absolutizado e
enclausurado numa imagem distanciada da realidade (Pires, 1989).
A formação, marcadamente hospitalar, se restringiu às experiências
vivenciadas num campo de estágio, abrigado num hospital-escola, dentro de
possibilidades e limitações perfeitamente controladas e previsíveis. Nessa ocasião,
104
década de oitenta, os hospitais escolas significam espaços de formação que
ofereciam às instituições de ensino a tranqüilidade de uma experiência prática
dentro de boas condições em termos de pessoal e de recursos físicos. A formação
dentro de uma perspectiva hospitalocêntrica não dava conta de uma prática em
saúde ampliada, que proporcionasse vivências que preparassem as alunas e
alunos para o enfrentamento da complexidade de um sistema de saúde que estava
sendo fortemente refletido na sociedade civil, por meio de movimentos nacionais
como o da constituinte, da reforma sanitária, da efervescência dos movimentos
sociais na luta por melhores condições de saúde, educação, habitação, entre
outros.
À medida que as professoras enfermeiras começam a sair do espaço
encantado de estágio, alimentado por uma perspectiva visionária de que a
realidade seria tão maravilhosa quanto, e, se tornam trabalhadoras em saúde, a
aparente realidade projetada começa a se desnudar, mostrando sua verdadeira
face, cheia de mazelas e dificuldades produzidas por uma sociedade com enormes
contradições em sua materialidade. Nesse impasse, a possibilidade de operar
mudanças, nas idéias consubstanciadas na formação, emudecia diante dos
enfrentamentos reais do dia-a-dia, fazendo com que seus egressos fossem aos
poucos em busca de uma práxis, que vislumbrasse o que era concretamente
necessário em termos de formação para o atendimento da realidade do exercício
profissional, como é observado na fala abaixo:
Profª Enfª 3 - Depois que a gente vai para a prática vê que não é bem assim, é
puxado, o trabalho é extenuante, tu tens que liderar uma equipe, tens que
entender o que as outras pessoas estão fazendo, ajudá-las. Havia sempre uma
mensagem de que os médicos são difíceis, parece que a gente é maravilhosa,
assim, não tem problema, que a gente se comunica super bem, que a gente é
habilidosa, e não é assim, não é.... Então foi aos pouquinhos que eu fui vendo
que tem que ir atrás, tem que agregar, tu tem muitas dificuldades, que a
enfermagem tem que melhorar em vários aspectos.
Nesses aspectos de formação, recuperados pela história oral dos sujeitos de
pesquisa, torna-se necessário resgatar a concepção de enfermagem que foi se
constituindo historicamente e que teve influência decisiva, na formação e,
conseqüentemente, nas práticas das enfermeiras professoras da ETE/HCPA.
105
Ao nos reportarmos ao nascimento da enfermagem profissional no Brasil
encontramos as bases materiais que foram sedimentando essa idealização da
profissão, ao longo do tempo.
Pires, ao analisar a historicidade do aspecto ideológico da enfermagem
profissional brasileira, cita um pronunciamento de Edith de Magalhães Fraenkel,
figura exponencial na construção da enfermagem profissional no Brasil, que ao
referir-se à implantação da Escola Ana Néri expressa:
A luta contra os preconceitos foi grande: as moças brasileiras desconheciam a
nobreza da profissão, que nada tem de servil, e proporciona, além da
independência econômica, a satisfação de ser útil e a oportunidade de trabalhar
pelo engrandecimento da pátria (PIRES, 1989, p.135).
Nessas idéias fica explícita a intencionalidade da elevação do papel da
enfermagem, que se estabelecia como profissão no Brasil. Uma visão romântica,
mas articulada para o contexto da época, pois necessitava firmar-se como
profissão, assumindo aspectos ideológicos preponderantes que demonstrassem
sua utilidade na melhoria dos atendimentos em saúde e seu imprescindível papel
auxiliar junto à equipe médica.
Neste período, o Brasil, inserido num modelo econômico agrário-exportador
e sofrendo as agruras da crise do capitalismo internacional, passava a ser cenário
de grandes mudanças na estruturação de sua economia vivificada pelas
transações com o mercado capitalista internacional. Nesse período, o país
precisava, urgentemente, implantar políticas públicas que atendessem o mote
econômico da época, que era o de dar ao Brasil uma visibilidade internacional
dentro das condições estruturais, exigidas para a ampliação de seu projeto político
e econômico de crescimento.
O setor da saúde, portanto, vai constituir um dos campos primordiais, nesse
projeto, na medida em que, contribuiria na proposta sanitarista pensada pela
sociedade política. A enfermagem brasileira passava de uma prática social, ainda
não encarada como uma profissão, para uma prática que ocuparia um importante
status profissional, necessitando para tanto, da produção e reprodução de um
discurso que atendesse essa nova demanda.
Após essa breve recuperação da história da enfermagem, é necessário
situar que mesmo nos anos oitenta e noventa que marcam a formação dos sujeitos
106
dessa pesquisa, ainda é bastante presente, a célula da idealização, acrescida,
obviamente, de novos ingredientes contextuais que irão justificar as falas que dão
vida às análises a seguir:
Profª Enfª4 - Durante a faculdade, as professoras diziam que a gente tinha que
trabalhar em equipe, mas quando a gente ia para a unidade, a gente não podia
entrar em contato com ninguém, “deus me livre” falar com o médico, demonstrar
alguma forma de afeição ou de interação, eu cheguei a levar um xingão. As
alunas para um lado, os homens médicos para o outro. Como eu fazia Rondon, e
o meu projeto era relacionado à comunidade, eu tive muitas experiências
diferentes em relação a maioria das outras colegas, a minha postura dentro do
estágio era diferente, porque eu tinha uma ligação com médicos, pedagogas,
pessoal de letras, pessoal da agronomia, por conta do Rondon, a gente se unia e
era um só.
Na fala acima, desvelam-se as contradições manifestadas pelos intelectuais
orgânicos, condutores da formação em enfermagem, no tocante ao
estabelecimento dos limites no terreno de sua práxis, sobretudo no cenário que
constituiu o principal espaço de formação da enfermagem dos sujeitos da pesquisa,
o hospital.
A enfermagem profissional, que no inicio de seu desenvolvimento contenta-
se com o papel de auxiliar do trabalho médico, não ameaçando o poder
hegemônico da medicina, para se firmar como um saber científico vai construindo
um caminho com certa independência do saber médico, embora contraditoriamente
copiando seu modelo. A Profª Enfª 1 confirma essa contradição em sua narrativa,
situando esse movimento na instituição no HCPA:
A Enfermagem, como um todo, eu acho que há anos ela tenta nadar contra a
maré, mas ela reproduz muito o modelo médico. Pela própria hierarquia que tem
dentro da instituição, pela própria divisão social pelas cores. Isso é uma
reprodução. Na verdade, não adianta a gente criticar, porque nós repetimos
modelos. Nós temos uma associação de enfermeiros que reproduz a associação
médica. Isso é uma reprodução. A gente tem uma associação dos enfermeiros
que não é junto com os auxiliares e técnicos. Nós fazemos cursos para os
enfermeiros e curso para os auxiliares e técnicos
.
O hospital reúne em suas paredes, o trabalho assalariado, a fragmentação
do cuidado ao paciente, a divisão social do trabalho, a forte hierarquização refinada
pelas cores dos uniformes, pelos crachás, que passam a ser distintivo de classe.
107
Os professores da universidade, crachás com fundo verde, as/os
empregadas/os do hospital crachás com fundo branco e assim por diante. A
classificação segue a mesma do modo de produção capitalista. Os que têm curso
superior, os que não têm, os doutores, os não doutores, os da saúde, os
administrativos, os da limpeza, os da manutenção e, por fim, o paciente que
também é classificado, o paciente SUS, o cliente convênio, como se o sistema
fosse único somente para aqueles que não têm convênio, aqueles que a sociedade
denomina de “os sem”, no caso, os sem convênio. Na equipe de saúde, as
profissões menos valorizadas socialmente acabam reproduzindo o modelo dos que
têm maior poder hegemônico. Os médicos, como os intelectuais orgânicos, de
maior prestígio nos serviços de saúde continuam determinando o seu modelo de
organização, decidem como, onde e quando. As demais profissões, no entanto,
não se resignam a essa hegemonia, partem para luta contra hegemônica, mesmo
“contra a maré”, usando fetiches parecidos, na tentativa de um maior
reconhecimento. Organizam-se em associações por castas, reproduzindo a
dualidade do trabalho, numa entidade que, se tivesse uma representação maior
poderia construir outra lógica, a da integração. Essa poderia representar ganho
para os profissionais da enfermagem.
Recentemente, ao participar de uma Oficina FNEPAS Regional Sul
24
,
promovida pelo FNEPAS para a discussão da integralidade e qualidade na
formação e nas práticas em saúde, em que estavam presentes, docentes e
discentes da graduação, do ensino médio e técnico de enfermagem,
representantes de serviços e usuários, percebi a recorrência, nas falas das/os
participantes, da falta de integração na equipe de saúde e o não favorecimento por
parte dos docentes desta integração.
24
O evento ocorreu em 20 e 21 de abril de 2007 e teve como objetivo geral desenvolver o
encontro de representantes dos vários segmentos que participam dos setores da Educação e
da Saúde dos estados: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul para: “proporcionar o
compartilhamento entre as profissões dos diferentes olhares e formulações a respeito dos
desafios da implementação das diretrizes curriculares nos cursos de graduação da área da
saúde; criar uma oportunidade para a reflexão conjunta sobre o tema da integralidade,
considerado central para a inovação das práticas e da formação em saúde e construir um
repertório mínimo compartilhado que subsidie a realização de oficinas e outros movimentos
de aproximação regional/estadual entre as diferentes profissões da saúde”. Disponível em:
http://www.fnepas.org.br, acessado em abril de 2007.
108
Gramsci ao analisar os aspectos contraditórios da hegemonia, informa que,
quanto mais uma classe exerce sua hegemonia, mais ela oferece terreno para que
as demais classes que se opõem a ela, se organizem para conquistarem sua
posição de autonomia (2001). A forma que a enfermagem encontrou de se projetar
na equipe de saúde e enfrentar a hegemonia médica foi utilizar os mesmos meios
de afirmação, em todos os sentidos da arquitetura de seu saber, bem como de sua
organização. Almeida informa:
Enquanto no nível dos conceitos são elaborados os princípios científicos
procurando dar fundamentação aos procedimentos de enfermagem, no nível de
modalidade de assistência de enfermagem é elaborado e caracterizado o
trabalho em equipe, procurando também dar um cunho científico ao trabalho e
humanizá-lo, assim como humanizar o cuidado ao paciente (ALMEIDA, 1989, p.
63).
Quanto ao aspecto do trabalho em equipe, evidenciado nas falas anteriores,
convém analisar a trilha histórica que esse modo de trabalho foi constituindo na
enfermagem brasileira.
À medida que passa a considerar, além do homem biológico, o homem
psicossocial, numa ótica do desenvolvimento do trabalho em equipe, a
enfermagem, passa a reproduzir uma política de administração das relações
humanas que vai se ajustar ao que é ideologicamente valorizado no modo de
produção capitalista.
Aliado ao cientificismo dos princípios que fundamentam os procedimentos de
enfermagem, surge o discurso do trabalho em equipe, inspirado nos princípios da
Escola das Relações Humanas de Elton Mayo.
25
Este movimento na enfermagem brasileira constitui mais um esforço na
construção de uma base científica, também, nas questões do trabalho em equipe.
Nesse aspecto teve a influência da enfermagem dos Estados Unidos da América,
pós Segunda Guerra Mundial, quando essa tentou migrar de uma organização de
trabalho por tarefas para o trabalho em equipe, devido à situação crítica de falta de
pessoal de enfermagem nos hospitais (Almeida, 1989).
25
O discurso do trabalho em equipe surgiu nos Estados Unidos como um movimento de reação e de
oposição à Teoria Clássica da Administração. Sugere a substituição do homo economicus pelo homo
social, mas na intenção do aumento da produtividade aliada à redução de custos. Os principais
intelectuais dessa escola: Elton Mayo (1880/1947), Kurt Lewin (1890/1947), John Dewey, Morris
Viteles e George C. Homans (Almeida, 1989)
109
Essa nova organização no trabalho, por meio de uma teoria de
administração que vai viabilizar a realização do cuidado dentro da idéia de
satisfação no trabalho, combinada com um melhor alcance de resultados, tem um
significado intencional de manter controladas as contradições geradas pela relação
capital\trabalho. Nesse paradigma, as enfermeiras passam a ser as
administradoras da assistência de enfermagem, distanciando-se do paciente e
delegando aos auxiliares e técnicos de enfermagem o cuidado mais direto.
O referencial ideológico da Escola das Relações Humanas que inspirou o
trabalho em equipe na enfermagem, parte do princípio de que todos os seus
membros são responsáveis pela produção do melhor cuidado ao paciente e se este
objetivo não for atingido, as causas se devem às dificuldades pessoais e funcionais
da equipe. Essa idéia desconsidera, na análise do fracasso da equipe, outros
aspectos relacionados aos condicionantes da divisão social do trabalho.
Na avaliação de Almeida:
O que se observa é que há somente uma elaboração discursiva para camuflar as
contradições do trabalho. As relações de poder (dominação e subordinação) são
vistas como hierarquia e autoridade e a divisão social é concebida como divisão
técnica que conduz à cooperação (ALMEIDA, 1989, p. 66).
Embora todo o empenho ideológico sobre o trabalho em equipe, que vem
fazendo parte da intenção da formação graduanda em enfermagem, é referida uma
orientação rígida e autoritária na relação enfermeira-equipe, conforme a oralidade
abaixo:
Profª Enfª 6 - A relação enfermeira-equipe era trabalhada pelos professores de
forma muito autoritária em alguns momentos. Não tinha essa divisão de tarefas,
essa democratização das atividades. Era muito pontual. Diziam:você pode fazer
o curativo nesse paciente, mas o cuidado era fragmentado. E isso nós dá uma
visão limitada e fragmentada do cuidado quando a gente sai da Universidade.
Naquele momento você só podia pulsionar aquele paciente e preparar o soro.
Saí do curso com essa visão muito fragmentada do cuidado.
A aluna foi treinada, com toda a dimensão do significado que o treinamento
assume nas formações em saúde, como uma instrução pontual e desvinculada do
todo, bem como desconectada das relações com a equipe e da própria relação
com o paciente.
110
As histórias revelam as contradições da formação em enfermagem que,
convivendo com a hegemonia do saber médico, luta para se impor como um saber
valorizado socialmente sem, no entanto, estabelecer a antítese ao modelo da
racionalidade médica que, historicamente, foi construindo seu poder de comando
junto à equipe, encarando as demais profissões como saberes auxiliares, ou
meramente de apoio logístico na complexidade do cuidado médico junto ao
paciente.
Outro aspecto, que requer destaque, diz respeito à questão de gênero
expresso na fala da Profª Enfª 4: “As alunas mulheres para um lado, os médicos
homens para o outro”. A acentuada “feminização persistente” na enfermagem
inspira-se, ideologicamente, em valores religiosos e caritativos, no dizer de Lopes e
Leal (2005). Esses valores estão culturalmente ligados ao papel feminino de
subordinação, relegado a um trabalho sem valorização econômica.
Frédéric refere que no Brasil, durante o governo imperial de D. Pedro II: “a
enfermagem era exercida por corações generosos que desejavam devotar-se aos
seus semelhantes, ou por pessoas incapazes de fazer qualquer outra coisa” (1991,
p. 241-242).
No Hospital da Caridade, inaugurado no Brasil, em 1825 havia um enfermeiro
para os pacientes e uma enfermeira para as pacientes. A enfermeira ganhava
menos que o enfermeiro e era hierarquicamente inferior a este (FRÉDÉRIC, 1991, p.
242).
A desvalorização do trabalho feminino, as diferenças salariais impostas pelo
mercado de trabalho, a consideração da mulher e da criança como meia-forças vão
produzir uma extração de mais valia expressiva do trabalho feminino e infantil, em
comparação ao trabalho adulto masculino. As meia-forças dos movimentos
originários do modo de produção capitalista, que pelo mesmo trabalho realizado
pelos homens recebem meio -salários, ainda se materializam em pleno século XXI.
Além desses aspectos, outros de cunho histórico-sociais dão conta de
justificar a intenção da professora, durante a formação graduanda em enfermagem
não permitir que a aluna falasse como o médico. Por muito tempo o puritanismo
que ditava a postura dos profissionais da enfermagem influenciou suas condutas
nas relações com os demais profissionais da equipe de saúde. Esse código de
postura provém dos princípios das Escolas Inglesas Nightingale, reproduzidos nas
111
Escolas de Enfermagem brasileiras, que manifestavam uma acentuada
preocupação com a postura pessoal das alunas tanto no que se refere ao
vestuário, como na forma de se relacionarem na materialidade do exercício
profissional.
A respeito desse aspecto acrescento algumas considerações que derivam
da minha observação participante no espaço onde atuam os sujeitos da pesquisa.
Percebo que grande parte do grupo das professoras enfermeiras manifesta uma
forte preocupação com o vestuário e a postura dos discentes, com certa
inflexibilidade. Essa rigidez está amparada não só a condicionantes históricos da
formação, bem como a regras de conduta e de vestuário estabelecidas na
instituição.
Outra fala bastante eloqüente nos aponta para a persistência da idealização
da enfermagem, ainda no final dos anos noventa, período em que a entrevistada
abaixo, concluiu sua formação:
Profª Enfª 6 - Eu acho que a gente está muito despreparada, com uma visão
muito limitada de tudo. Quando você se forma, tu sais deslumbrada. Eu preciso
arrumar um emprego. Eu preciso ganhar dinheiro. Preciso ter uma colocação
dentro da Enfermagem que seja conveniente, que seja em um hospital de
referência, que seja um lugar legal de trabalhar. A gente sai, assim, com uma
expectativa. Na realidade, o mundo é bem diferente do que se pinta na
Universidade. O processo saúde-doença não é bem trabalhado na comunidade,
do que nos espera na comunidade, do que nos espera na saúde pública, do que
é a realidade dos hospitais, do que é a política sanitária do Brasil. Nesse sentido,
faltou essa abordagem porque eu só fui ter essa visão após muitos anos de
formada.
A atitude de deslumbramento com a profissão e o desencanto por perceber
que a realidade está muito aquém do decantado na formação leva a profissional de
enfermagem a buscar, por si própria, a conexão teoria e prática, que poderia já ter
vivenciado no decorrer de sua formação.
No movimento dessa análise, separando algumas minúcias da configuração
do fenômeno da formação, apenas como recurso de exposição, parto para a
dissecação dialética da abordagem tecnicista e ético - humanista encontrada na
historicidade da formação dos sujeitos dessa pesquisa.
112
3.2 - Da abordagem tecnicista à abordagem ético-humanista
Outra célula a ser analisada em suas minúcias é a da abordagem tecnicista
à ético-humanista, tão presente, na formação das professoras enfermeiras,
conforme expressam a seguir:
Profª Enfª 1 - Durante a graduação, a nossa formação era muito técnica pelo que eu me
lembro.
Profª Enfª 4 - O primeiro ano de enfermagem foi todo teórico, o que eu acho
importante, tu tens que ter anatomia, fisiologia, tudo, mas faltou contextualizar a
saúde no Brasil. Nós tivemos aquele EPB, não lembro direito, mas não
contextualizava o mundo da saúde, o mundo de fora, quem era a população que
a gente iria entrar em contato, não tinha essa contextualização. A gente tinha
assim, microbiologia, anatomia, fisiologia e parecia que a gente sabendo aquilo
ali, a gente iria saber cuidar de todo mundo. Faltou, como é a saúde no Brasil,
como o país é estruturado politicamente e é aí que nós entramos. Para mim
faltou isso. Daí nós saímos para o 3º semestre, depois do 1º ano e fomos para o
hospital, daí era técnica, técnica, técnica.
Profª Enfª 5 - A minha formação foi em uma escola de enfermagem que tinha um
enfoque muito técnico. Eu fui muito bem preparada tecnicamente em questão de
habilidade do cuidado.
Profª Enfª 6 - A minha formação foi muito tecnicista. Claro que é fundamental o
domínio, mas é importante que o aluno tenha um período de experiência na
comunidade, na área hospitalar, que ele tenha esse outro olhar mais abrangente
nesse sentido. Porque eu vejo que as pessoas se apegam muito ao livro e isso o
torna muito teórico. O professor passa isso para os alunos, dessa forma. Então,
ele foca o olhar dele nisso e as pessoas, os alunos, se espelham muito no
mestre porque a gente cria um ideal de profissional.
Profª Enfª 7 - Na enfermagem a gente aprende muita prática: fazer sondagem,
passar um abocath, fazer uma punção, diluir uma medicação, fazer um soro. A
enfermeira é qualificada por isso. A boa enfermeira é aquela que sabe puncionar
com abocath. Enfermeira que não sabe puncionar não é uma boa profissional.
As oralidades, acima, apontam para uma formação voltada para o
treinamento, para competências focadas nos saberes técnicos.
A materialização dessa dimensão tecnicista, nas atividades pedagógicas das
professoras, fica nítida no planejamento das aulas para o curso técnico e das
ações de educação em serviço, junto às equipes de enfermagem do HCPA. Essa
preocupação vai se acentuando, à medida que o planejamento avança para as
113
ações de estágios curriculares ou para as ações de atualização técnica de
funcionários novos ou antigos.
Outro aspecto a considerar na perspectiva tecnicista, é quanto ao referencial
teórico utilizado pelas professoras enfermeiras para preparem suas aulas. Há uma
priorização no uso de livros técnico-científicos específicos da enfermagem, com
algumas exceções, como confirmam as falas abaixo:
Profª Enfª 2 - Uso o livro do Smeltzer, utilizo bastante. É um livro de enfermagem
médico-cirúrgica. Os sites do Ministério a gente utiliza muito para o bloco
temático I, porque ele é bem amplo, entra educação como o meio-ambiente,
então tem muita coisa no site do Ministério. Nas aulas na CTI utilizo as
bibliografias bem direcionadas para a CTI, então têm vários.
Profª Enfª 3 - Para preparar as aulas eu uso livros de conteúdos técnicos da
enfermagem tipo Brunner e Suddarth, uso de epidemiologia Maria Zélia
Rouquayrol. Quanto a livros didáticos uso, às vezes, algum livro em relação a
alguma dinâmica, alguma coisa nesse sentido.
Profª Enfª 4 - Eu não uso nenhum livro específico, porque eu utilizo vários…
utilizo muito a Internet. Utilizo vários autores, não tenho um autor específico. Eu
pego muitos projetos para preparar minhas aulas, muitas coisas da Internet,
nenhum específico.
Profª Enf ª 6 - Hoje eu estou utilizando livros de anatomia e fisiologia Pediatria de
Metter, que aborda bastante a questão da anatomia e da fisiologia na criança e
no recém-nascido. Na questão mais prática, assim, das atividades e
procedimentos da Enfermagem estou lendo Transformações na Área de Ensinar
na Pediatria e Desenvolver as Técnicas que é da Neuza Colett. A Neuza Collet
tem dois livros, esse, Transformações, tem a prática em si, que são as
atividades. Por exemplo, sinais vitais. E, nesse outro livro, ela aborda como
verificar os sinais vitais da criança, fazer abordagem. Então, são dois livros da
Neuza Collet que, no momento, a gente está utilizando aqui. Tem o Black Book
que é um livro de vários autores. Aborda mais a questão do medicamento e das
doenças em si. Faz uma descrição mais sucinta da doença. Ele faz uma
abordagem boa para a gente trabalhar com o aluno também. Além disso, estava
lendo alguma coisa sobre ética e bioética do cuidado, fundamentos de ética e
bioética do cuidado. Acho que o que estou utilizando hoje é isso.
As variações bibliográficas ocorrem nos casos de preparação de dinâmicas
para as aulas ou para a preparação de atividades com enfoques holísticos. Não há
ocorrência, também, de bibliografia em saúde pública especificamente. A Profª Enfª
- 1, por exemplo, atribui o uso de uma bibliografia mais variada em razão de sua
trajetória pessoal, por ler muito e não pela formação na academia. A Profª Enfª - 7
ressaltou a orientação das colegas nas bibliografias que vem utilizando, além dos
114
livros específicos de enfermagem. A Profª Enfª - 5 referiu alguma leitura em
filosofia, mas essa busca também ocorreu ao longo de sua prática profissional.
Profª Enfª 1 – Um dos autores que utilizo para preparar minhas aulas é o
Maturana. Utilizo o Paulo Freire. É que, na realidade, têm vários. Eu leio muito.
Da Enfermagem tem a Vera Waldow. É que têm várias coisas que eu utilizo.
Como é que eu vou te dizer… Não é um autor específico. Como eu trabalho com
algumas coisas que não são da educação formal, mas eu acho que tem mais a
ver com o Paulo Freire, com Maturana. Algumas coisas da Enfermagem
também. A questão do corpo também. Então, são coisas que eu uso mais.
As práticas corporais que eu comecei a fazer me influenciaram como enfermeira
e educadora. Eu acho que mudou. Foi uma busca individual. Eu comecei a
perceber em mim que tu só podes mudar alguma coisa se tem algum significado,
se tu vives aquilo.Uso muitas dinâmicas nas aulas. Na realidade, o conhecimento
tem que ser vivido. Eu acho que isso é bem Paulo Freire, de tu partir daquilo que
o outro já tem de conhecimento e, a partir daí, ele ir pensando sobre como que
ele vai construir o conhecimento dele.
Profª Enfª 5 - Eu gosto muito da Cristina Cairo, do Rüdiger, algumas coisas
Maria Julia, Maturana. A Cristina Cairo trata mais a questão da Metafísica, o
Rüdiger também. Eu uso bastante a Susan Andrews para as questões de
relaxamento e de sensibilização para o início das aulas. E, aí, dos livros técnicos,
eu uso os mais variados. Eu gosto muito de um cirurgião americano, o nome eu
não me lembro muito bem. Eu leio muitas coisas dele.
Profa Enfª 7 - Na licenciatura a gente usava o Piaget. Tem um texto que a
colega…. nos deu, que eu não lembro o nome da autora... que eu estava lendo
sobre a educação. Ela me deu como referencial. Agora não lembro o nome. E
uso livros de enfermagem também. Na realidade uso mais livros de enfermagem.
As colegas têm me dado textos para eu ler, mas não de um autor específico.
Para compreensão da abordagem tecnicista, na formação das professoras
enfermeiras, é importante referir algumas características do processo de trabalho
desenvolvido por elas, nas atividades da ETE, ao longo dos módulos teórico-
práticos. Nas atividades de estágio e aulas em laboratório, o processo de trabalho
ocorre por meio de parcerias. A equipe se organiza por duplas de acordo com as
áreas da materno infantil e pediatria, do adulto clínico e adulto cirúrgico, além de
outras áreas mais especializadas, como o CTI, a SR, o CC, a UTIP, a Neonatologia
e o Recém Nascido Crítico, a Emergência e a Psiquiatria. Nas atividades em sala
de aula essa parceria é flexível.
Nos estágios, em geral, as parcerias são mantidas. Esse arranjo pedagógico
foi estipulado, tendo em vista a área em que a docente teve maior experiência
técnica ao longo de sua prática profissional em enfermagem. Como já referi,
anteriormente, das seis professoras que desenvolvem práticas educativas em
115
estágio junto aos serviços de enfermagem do HCPA
26
, somente duas não
ocuparam o cargo de enfermeira da assistência nesse hospital e, mesmo quanto a
essas, que vieram de outras instituições hospitalares, o critério foi preservado.
Essa distribuição tem favorecido os planejamentos, bem como a prática educativa.
É importante ressaltar que na área de saúde pública as professoras têm mantido o
trabalho em duplas não pelo conhecimento teórico-prático em si, mas pelas
afinidades. Isso acontece pela pouca vivência em saúde pública, devido à ênfase
hospitalar na formação e pela própria trajetória profissional até chegarem à ETE, já
mencionada no item um, deste capítulo. Essa situação parece se repetir na vida
dos discentes das graduações em saúde, sob a vigência das Diretrizes Curriculares
Nacionais, conforme as considerações de um recente estudo de Kasper, em sua
tese de doutorado:
Muitos docentes estão ministrando aulas meramente expositivas, com ênfase
simplesmente naquilo que a legislação preconiza em sua forma escrita,
independentemente de como ela se constituiu, fragmentada e
descontextualizada ou, ainda, muito menos se discute como é que se
implementa esta legislação no seu locus de vida pessoal e profissional. Esta
formação fragmentada reforça o modelo da sociedade brasileira, centrada no
papel, no diploma, na certificação pela certificação, mas que não resolve nenhum
problema real, não contempla a realidade do Sistema Único de Saúde brasileiro,
ou mesmo as Diretrizes Curriculares Nacionais (KASPER, 2007).
O ensino de saúde pública, abrigado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
dos Cursos de Graduação em saúde, que têm como recomendação da Câmara de
Educação Superior do Conselho Nacional de Educação: “promover no estudante a
competência do desenvolvimento intelectual e profissional autônomo e permanente”
(CNE/CES 1133 -2001), parece, pelas conclusões da autora, estar distante dessa
orientação. Nesse movimento de idéias me atrevo a formular alguns
questionamentos: De que maneira os discentes, mencionados por Kasper, poderão
desenvolver uma formação focada na realidade brasileira, na prática dos princípios
do SUS e numa visão de totalidade que os prepare para um exercício profissional
que não negue o humano? De que forma desenvolver uma prática assistencial em
saúde pública, sem ter a concreticidade como elemento desencadeador da práxis
educativa, sem reconhecer, como diz o Professor Paulo Freire: ”que a reflexão
26
Os Serviços de Enfermagem no hospital são compostos por unidades de internação e organizados
de acordo com a espécie de tratamento, por exemplo: Serviço de Enfermagem Médica, Serviço de
Enfermagem Cirúrgica, entre outros.
116
crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a
teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo” (1996, p. 22), de que maneira
poderemos deixar de alimentar a formação fragmentada apontada por Kasper?
Retornando, após essa breve reflexão indagativa sobre o ensino da saúde
pública, aos modos de trabalho das professoras enfermeiras, é importante referir
como foram se desenvolvendo as correlações de força, ao longo da história
pedagógica da ETE. As professoras mais antigas, no hospital e na própria ETE, por
muito tempo conduziram hegemonicamente os rumos da antiga grade curricular,
hoje denominada de desenho curricular. É oportuno mencionar que ao começar a
trabalhar na ETE, percebia, nitidamente, o poder que essas professoras exerciam
no planejamento, no ensino e na avaliação. A fala seguinte nos explicita a
materialidade desse contexto:
Profª Enfª 3 - Com certeza houve uma mudança bastante importante aqui no
grupo. Quando eu entrei, algumas pessoas tinham um ensino muito
quadradinho, era a questão da inflexibilidade, acho que agora o grupo está bem
mais flexível. O grupo mudou, entraram outras pessoas, assim, como é que vou
explicar, aconteceu um choque de idéias aqui na ETE. Eu me lembro que eu
entrei, a ….., e a …….. e a gente meio que ficou brigando, porque existiam umas
posições muito pesadas. A gente entrou num grupo que já estava formado, tanto
em termos de chefia, como de colegas. Eu considero que, aqui, existiam coisas
muito duras, muito mesmo.. Eu fui atrás de ajuda, porque estava demais.
Embora o grupo tenha mudado muito, conforme assinalado pela Profª
Enfª 3, a meticulosidade e rigor observados, na descrição dos passos dos
procedimentos técnicos, têm sido uma rotina na prática pedagógica do
planejamento das aulas. Essa tendência, manifestamente tecnicista, denuncia
algumas configurações, nos processos de trabalho das professoras enfermeiras.
As menos rigorosas, no cumprimento do passo a passo dos procedimentos
técnicos, conforme transcrito nos manuais de instrução, embora não descuidem
dos princípios científicos, são rotuladas como professoras “light”. Observei que
essa nomenclatura para referir as professoras menos rígidas é utilizada tanto pelos
discentes, como pelas professoras que valorizam o rigor técnico.
As reflexões realizadas no planejamento participativo, as provocações
pedagógicas feitas pela pedagoga e por algumas professoras, que de certo modo,
demonstram estar superando a propalada rigidez na prática dos procedimentos
técnicos, vem produzindo movimentos de mudança, ainda tímidos, mas cada vez
117
mais recorrentes nos planejamentos. Por outro lado, observo que, por vezes, são
convencidas pelas colegas mais resistentes à mudança, a voltarem atrás. Essas
flutuações têm caracterizado o planejamento e a execução que ora avança no
sentido de uma flexibilização, ora paralisa numa situação de comodidade,
caracterizada pela reprodução acrítica da formação, em suas práticas educativas.
Na oralidade abaixo, a professora faz uma avaliação sobre o seu modo de
trabalho, antes de vir para ETE. A influência de sua formação tecnicista
27
se
materializou tanto em sua prática, a ponto dela expressar que “fazia só a técnica.
Foi necessário sair para estudar, mudar de emprego, sair da assistência e ir para
um ambiente de ensino para começar a “enxergar o resto”.
Profª Enfª 7 – Hoje eu vejo como eu fiquei bitolada, trabalhando na assistência e
porque eu não procurei estudar antes. Eu não tinha especialização, depois eu fiz.
Quando volto no hospital, onde trabalhei, para visitar minhas colegas, penso em
como eu era.
A gente fica tão tecnicista que esquece de enxergar o resto. Eu
cheguei à conclusão de que eu não sabia nada e, olha, que eu sabia bastante,
mas hoje…. Fazia só a técnica. Hoje digo graças a Deus por ter trocado de
emprego, por ter pedido demissão, por ter feito aquela opção, mesmo sem saber
se iria continuar, pois eu vim para a ETE para ocupar uma vaga provisória, não
tinha certeza se ficaria. Hoje, na Escola, como eu estou aprendendo coisas e
como eu era bitolada.
A dimensão dessa fala me faz refletir o quanto é importante a educação
permanente para os trabalhadores em saúde que trabalham numa lógica
fragmentada, rotineira e parcelada. Quando me refiro à educação no trabalho não
estou considerando a abordagem tradicional de educação continuada que trata,
especificamente, do desenvolvimento de ações pontuais, de treinamentos, em
geral, desconectados da perspectiva coletiva e da integralidade das ações de
saúde. Penso numa abordagem que propicie a reflexão coletiva dos processos de
trabalho, a problematização do cotidiano, o compartilhar de saberes, numa
perspectiva integradora, de participação de todos envolvidos, inclusive do usuário.
Na narrativa da professora fica nítida o quanto foi importante ela sair de um
sistema de trabalho focado na técnica, na produção individual. No momento em
que conseguiu respirar outros ares, vivendo uma experiência de trabalho diferente
deu-se conta que além da técnica existe “o resto” que, me parece, está
construindo.
27
Ler a narração da Profª Enfª 7citada na introdução do capítulo II, item: Da abordagem tecnicista à
abordagem ético-humanista.
118
A partir de 2005, com o início do desenvolvimento da educação em serviço
para as/os trabalhadoras/es de enfermagem do GENF, pelo corpo docente da ETE,
a tendência tecnicista tem sido questionada e confrontada pela disposição e
engajamento nessa nova frente de trabalho. A educação em serviço está inspirada
nos paradigmas de um modelo de educação problematizador, amparado em
princípios educativos emancipadores da política de educação permanente para os
trabalhadores do SUS, veiculada pela Portaria Nº 198/GM/MS de 2004
28
. Diante
desse novo desafio, percebi, enquanto pedagoga da ETE, a necessidade de criar
um espaço de educação permanente para as educadoras em serviço, que
oportunizasse estudos sobre essa nova abordagem de educação. A existência
desse espaço tem sido significativa na formação continuada das educadoras, no
questionamento de algumas crenças, valores pedagógicos e tendências, entre
outras coisas. Geram-se no conflito de ideologias, na incorporação de uma
literatura que propõe uma educação na linha freireana, crítica, um espaço fértil e
fomentador de energias para mudanças lentas, ainda, mas promissoras.
Para compreensão dessa subcategoria de análise da formação das
professoras enfermeiras é necessário buscar o sentido social e histórico da prática
do saber técnico na enfermagem.
A prioridade na formação tecnicista vem se materializando desde as
primeiras décadas do século passado nos Estados Unidos, conforme o que está
explicitado no item anterior desta dissertação. Os currículos da formação em
enfermagem se realizavam com base em três grandes áreas: a dos princípios, da
técnica e dos ideais (ALMEIDA, 1989). Esses parâmetros curriculares se
expandiram para outros cantos do mundo, por meio de programas visceralmente
articulados por organismos internacionais ligados à saúde. Esse direcionamento
tinha nome e endereço políticos baseado em interesses econômicos bem definidos.
O saber técnico na enfermagem, também conhecido como a arte no cuidado
em enfermagem, começou a ser sistematizado como tal, a partir das primeiras
décadas do século XX, nos Estados Unidos da América. Para Almeida as técnicas
28
A Portaria Nº 198/GM/MS de 13 de fevereiro de 2004 instituiu a Política Nacional de Educação Permanente
em Saúde como estratégia do SUS para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores em saúde (BRASIL,
2004).
119
Consistem na descrição do procedimento de enfermagem a ser executado de
enfermagem a ser executado, passo a passo, e especificam também a relação
do material que é utilizado. Tanto pode ser um procedimento a ser realizado com
o paciente, como banho no leito, curativo, sondagens, instilações e outros, como
procedimentos relativos às rotinas de admissão e alta de pacientes (ALMEIDA,
1989, p.29).
Há condições histórico sociais que justificam a ênfase no saber técnico.
Entre elas, a importância que esse saber assume no trabalho hospitalar que se
organizou no início do século XX, sobretudo nos Estados Unidos. A teoria científica
de administração, pensada por Taylor acabou por influenciar a prática social na
saúde, sobretudo, na enfermagem. A racionalidade do tempo e dos custos da
atividade laboral, que faz do indivíduo um instrumento do trabalho guiado por um
saber não produzido por ele, viabiliza a necessidade objetiva da produção
capitalista. O trabalho por meio da divisão parcelar, tendo como centralidade do
cuidado o procedimento e não o paciente, adequava-se perfeitamente a essa nova
abordagem. A descrição dos procedimentos técnicos permitia, por meio dessa
referência gerencial, que qualquer pessoa pudesse realizá-los, desde que
previamente escrita e determinada.
Essa linha gerencial visava responder à imposição do modo de produção
capitalista. Os empreendimentos econômicos no setor de serviços não fugiam a
essa determinação de maior produção com menos gastos. Para tanto acabavam
importando para as organizações hospitalares o mesmo receituário cientifico
gerencial, aplicado às indústrias. Como as escalas para o cuidado em enfermagem
eram definidas pela natureza dos procedimentos, essa organização se prestava
perfeitamente ao emprego de mão de obra não profissionalizada representada pela
figura, que ainda existe nos dias de hoje, do estagiário, que com a justificativa de
sua posição, não era considerado empregado e, em nome de seu treinamento nas
técnicas, era utilizado como mão de obra barata, minimizando os custos para a
administração financeira das instituições hospitalares e ao mesmo tempo
favorecendo a proliferação de escolas de enfermagem para atender essa
demanda. (ALMEIDA, 1989). Recupero parte da fala da Profª Enfª – 5, citada no
capítulo III, no item sobre os espaços educativos das Professoras Enfermeiras, que
caracteriza bem a situação difícil do estagiário submetido a uma acomodação que
120
serve tanto à universidade como ao hospital, na medida em que o docente leva seu
discente para desenvolver a prática educativa de estágio em seu ambiente de
trabalho. A universidade ganha o espaço para a prática de estágio, o docente ao
mesmo tempo em que ensina, trabalha e faz de seu aluno ou aluna mais um braço
de produção de mais valia, muitas vezes esquecido na perspectiva do
acompanhamento que mereceria como aluno. Na exploração de mão de obra
barata fica escancarada, a mais valia para o hospital e a mais valia para a
Universidade. E como se não bastasse, a inversão da lógica curricular quanto ao
grau de complexidade, a primeira prática de estágio numa UTI unidade fechada
que necessita de um elevado saber e domínio técnico, para atender aos interesses
do capital, não aos propósitos ético-humanos do ensino.
Profª Enfª 5 - A maioria das minhas professoras atuava em hospitais e os
estágios e vínculos vieram em turmas de trabalho delas. Então, ficava muito
complicado e sobrecarregado. Inclusive o meu primeiro estágio foi dentro de uma
UTI. Imagina eu, sem noção nenhuma, com pacientes graves. [...] às vezes, eu
sentia que a gente ficava um pouco sozinhos sem muita supervisão.
Esta situação expõe perfeitamente as artimanhas dos arranjos capitalistas
nas primeiras décadas do século vinte, nos Estados Unidos, em nome da mais
valia.
Essa realidade, no entanto, ainda é presente no Brasil. Existem situações
semelhantes, em que as instituições, para economizarem custos, na aparência de
oportunizarem experiências de estágio, acabam utilizando um grande contingente
de mão de obra barata, mascarando o que seria, na verdade, uma relação de
emprego.
A racionalidade científica do trabalho, movida pelo crescimento da demanda
hospitalar, pela otimização dos custos nos serviços prestados, pelo aumento de
tarefas manuais que auxiliam o processo de trabalho do médico acentuam cada
vez mais a parcelização do trabalho e a subordinação de uma prática social à
outra, ou seja, a enfermagem vai se constituindo em função do que é mais
vantajoso para prática social da medicina (ALMEIDA,1989).
A ênfase na competência técnica, em alta, na primeira metade do século
passado, ainda é presente na formação graduanda de enfermagem nos anos 80 a
90 do século vinte. Em contra-partida a essa tendência, a enfermagem vai rumando
121
para outros caminhos, a fim de firmar-se como um saber científico independente do
direcionamento do processo de trabalho médico. A enfermagem começa a
construção das teorias de enfermagem consubstanciadas no processo de
enfermagem.
Na oralidade da fala da Profª Enfª 1 sobre sua formação graduanda fica
explícita a importância que foi dada ao processo de enfermagem, como um
diferencial do papel do enfermeiro e da enfermeira.
Profª Enfª 1 - a questão do processo de Enfermagem. De ser importante tu
fazeres registro de Enfermagem. Hoje eu nem acho tanto isso, mas na época foi
aquela coisa do papel do enfermeiro. De fazer a diferença por fazer o histórico
de Enfermagem, pelo enfermeiro ser diferente, nesse sentido.
No entanto, esse avanço buscado pela enfermagem por meio das teorias,
não atendia a uma formação que preparasse para uma compreensão mais
abrangente das condições materiais de existência dos pacientes, da
contextualização do mundo da saúde, conforme expresso na fala abaixo:
Profª Enfª 2 – A questão do cuidado entrava com o processo de enfermagem, dai
tinham as teorias humanísticas. A teoria de Maslow. As necessidades humanas
eram todas direcionadas para as necessidades humanas básicas, mas não
conseguiam contextualizar as necessidades do indivíduo como um todo. Era
muito focado no indivíduo e não no todo, e não onde ele morava, e não onde ele
tinha as relações de trabalho. Tu não pensavas que aquele indivíduo vinha para
o hospital e que tu estavas mudando toda a vida dele.
Silva referindo-se à teoria de enfermagem sobre as necessidades humanas
básicas, escrita por Wanda Horta, tece o seguinte comentário:
Pode-se perceber, nas entrelinhas, a tendência dominante, na enfermagem, da
análise setorializada, que se fixa no objeto da investigação isolando-o do seu
contexto inclusivo ou tratando de forma mecânica as articulações entre
diferentes instâncias (SILVA, G., 1986, p. 102-103).
A análise de Silva nos aponta para uma tendência dominante, observada na
intelectualização da enfermagem, que é a da análise pontual, da falta de
122
articulação da construção epistemológica integrada por uma comunicação entre
ciência, técnica e ação social (MOREIRA, 2004).
Na oralidade das professoras fica, suficientemente, presente a idéia de uma
formação fragmentada de cunho tecnicista. A formação parece não ter desafiado
uma articulação com a realidade, com os contextos que iriam enfrentar no
quotidiano do trabalho. A lógica da formação seguiu “uma racionalidade meramente
cognitiva e instrumental que pode servir ao modelo tecnicista de trabalho”
(MOREIRA, 2004, p.63)
Profª Enfª 5 – A formação era muito fragmentada e muita coisa
descontextualizada. Tu estudavas aquilo e nem sabia para o que. Então, tu não
valorizas muito porque tu não dás um significado para aquilo. Depois, ao longo
da tua vida, é que tu vais identificando as lacunas que ficaram e que nem era
culpa da gente, porque não se tinha estímulo. Eu não me lembro de ter nenhum
professor que falasse “Gente, isso é importante por isso, isso e isso”. Não tinha.
Era muito fragmentado. Era um tanque. Eu me lembro de uma professora que
tinha um caderno amarelo, não sei de quando era aquele caderno. Era naquilo
que ela se baseava e, às vezes, ela, até lia. Tu imaginas qual era o estímulo do
aluno chegar na frente de um professor que lia. E a gente uma vez pensou em
roubar aquele caderno e ver o que ia acontecer com aquela mulher. Claro que
não tivemos coragem de fazê-lo. Tinham aulas que eram muito desestimulantes.
Eu acho o papel do professor fundamental. Poderia ter sido tão diferente a minha
formação. Também não culpo. Eu tenho que ir atrás e vou atrás e busco.
A falta de uma formação preocupada com a dimensão social, política e
histórica da saúde é percebida ao longo das oralidades das professoras
enfermeiras. A epistemologia social do conhecimento, embora intentada nas
reformas educacionais materializadas nas diversas composições dos currículos da
formação graduanda em enfermagem, não vem atendendo uma demanda mediada
por transformações sociais. Neste sentido, a formação que produziu e reproduziu a
realidade recuperada pelas professoras enfermeiras, não formou diferentes
pessoas, com diferenças individuais, mas diferenças sociais relacionadas à classe,
à raça e gênero (GOODSON, 1999).
Na fala abaixo, a professora enfermeira vai descrevendo a compreensão que
lhe era permitida, a partir de sua formação. Prevenir a doença seria freqüentar
semestralmente o médico, bastava isso. Com o tempo foi percebendo que a
prevenção da doença, como cuidado de saúde, era bem mais complexa do que a
fizeram pensar.
123
Profª Enfª 3 - Eu me lembro que a gente tinha aula que falava da questão da
prevenção e promoção da saúde. Eu ouvia aquelas aulas e pensava no porque
elas não faziam a prevenção. É tão fácil, era só ir todos os meses, não digo
tanto, estou exagerando, ir de em seis em seis meses ao médico e fazer a
prevenção, eu achava aquilo, “porque as pessoas não fazem?”. Hoje eu, 2006,
dentista não ia a um tempão, não é bem assim a coisa. Tem a ver com a
maturidade, naquela época eu achava tudo lindo e maravilhoso. Mas saúde pra
mim naquela época era assim algo que as pessoas tinham o direito a ter e era
fácil de ter, não chegava a ser um problema. Ai... depois a visão foi diferente, eu
vi que não é bem assim, que as pessoas também não são saudáveis, não só
porque elas não querem. Elas não conseguem ser.
Considerando as falas dos sujeitos da pesquisa, acima transcritas, cuja
formação ocorreu entre as décadas de setenta e oitenta do século passado e ao
datar e situar os contextos sobre os quais foram se estabelecendo os currículos da
graduação em enfermagem, neste período, vou reunindo a materialidade para a
interlocução dialética do concreto aparente e do concreto real.
As propostas curriculares que orientaram a formação em enfermagem da
maioria dos sujeitos da pesquisa passaram pelo Parecer 163/72 e 314/94 do CFE,
respectivamente. Como já referi, o parecer da década de setenta respondia a uma
formação realizada, em geral, para atuação em hospitais. Nesta década do milagre
econômico, as políticas de saúde giravam em torno de ações de caráter coletivo e
de assistência médica individual realizadas no órgão do Ministério da Previdência e
Assistência Social, o INPS. É um período marcado pela privatização dos serviços e
ênfase aos atendimentos centrados em hospitais.
O Brasil vivia a consolidação do crescimento industrial, que encerrava a fase
de modernização capitalista do século passado. (OLIVEIRA, 2003). No planejamento
educacional é observado, desde os anos setenta, um projeto hegemônico para a
América Latina e para o mundo, tradutor de um processo de mundialização do
capital.
A presença do pensamento neoliberal no cotidiano das sociedades em
desenvolvimento vai assumindo um “status de banalidade, de presença intrínseca e
perene” (Melo, 2004, p. 29) vai se introduzindo, estrategicamente, em todos os
patamares sociais sem ser notado, inicialmente, de forma clara e objetiva. Vamos,
inconscientemente, incorporando e passando a considerar como nossas as
características alheias e valores de outrem, tal como num mecanismo psicológico.
Essa expansão capitalista em meio à elitização cada vez maior dos serviços
de saúde e do agravamento das condições materiais de existência da população,
124
começa a viver uma de suas maiores crises. Para o enfrentamento dessa realidade
são pensadas novas políticas de saúde por parte do governo federal. É um período
marcado por reformas no setor da saúde e por iniciativas internacionais
fomentadas pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Organização
Mundial da Saúde (OMS) no sentido de políticas públicas que atendessem às
necessidades da população em geral por meio de ações de simplificação,
interiorização e promoção comunitária.
É nesse movimento que, no âmbito nacional da educação, ocorreu a
Reforma Universitária de 1968, que propiciou a revisão dos currículos dos cursos
superiores com a correspondente departamentalização da universidade dando
origem, na enfermagem, ao Parecer nº163/72 do CFE.
As mudanças operadas na formação dos profissionais da saúde estão
consubstanciadas no Relatório Flexner
29
. Entre as recomendações desse relatório
está a criação de departamentos, compartimentalizando o ensino das ciências
básicas, o incentivo à pesquisa dessas ciências e a criação de hospitais-escolas,
como espaços de formação. A separação entre o currículo básico e o
profissionalizante vai favorecer a lógica do complexo médico-industrial e a lógica de
uma formação que reduz o ser humano ao seu organismo biológico. Neste
contexto, ocorrem modificações na relação médico-paciente, na qual os médicos
passaram a ser reconhecidos como profissionais prestadores de serviços. Na
enfermagem Correia refere que:
O conhecimento no ciclo básico era oferecido por departamentos cada vez mais
especializados, com pouca correlação com a futura prática profissional. O aluno
vivenciava a dicotomia entre conteúdo teórico e prático. Na enfermagem, o aluno
podia concluir a graduação tendo apenas noções de Enfermagem em Saúde
Pública, e a graduação não conferia terminalidade, existindo três Habilitações:
Enfermagem em Saúde Pública, Enfermagem Médico-Cirúrgica e Enfermagem
29
O relatório Flexner, publicado em 1910, foi um trabalho preparado pelo professor Abraham Flexner
para a Fundação Carnigie de Educação, após visita a 155 escolas de medicina americanas. Este
documento apoiando-se em alguns pressupostos ideológicos como no mecanicismo (homem
comparado a uma máquina), no biologicismo (origem biológica das doenças), na tecnificação da ação
médica, no individualismo (desconsideração dos aspectos sociais), nas especializações médicas e na
crença na medicina curativa criticava a medicina da época (ALEIXO, 2002) e propunha os seguintes
encaminhamentos: “definição dos padrões de entrada e ampliação, para quatro anos, nos cursos
médicos; introdução do ensino laboratorial; estímulo à docência em tempo integral; expansão do
ensino clínico, especialmente em hospitais; vinculação das escolas médicas às universidades; ênfase
na pesquisa biológica como forma de superar a era empírica do ensino médico; vinculação da
pesquisa ao ensino; controle do exercício profissional pela profissão organizada” (CAMARGO, p.47-
52, 1996).
125
Materno Infantil. Ainda posterior à graduação havia a Licenciatura em
Enfermagem (CORREIA, 2007, p.2)
O parecer 163/72 do CFE agregava ao ensino profissionalizante e das
ciências biológicas o ensino da sociologia e psicologia, porém numa organização
curricular que favorecia a supremacia das disciplinas profissionalizantes e das
ciências biológicas em detrimento das disciplinas que complementavam a formação
e, além disso, a saúde pública em enfermagem continuava fora do núcleo
profissional comum. As orientações do parecer seguiam o modelo flexneriano,
promovendo uma formação mais sofisticada e na ótica das especializações.
Durand ao referir-se às relações entre educação e poder diz:
Como se sabe, os dois temas se cruzam em níveis relativamente distintos: o da
formação de força de trabalho e da transmissão da ideologia. E se confundem a
partir do reconhecimento de que a escola faz as duas coisas inseparavelmente
(DURAND, 1979, p. 7).
Essas configurações no tecido social da formação das professoras
enfermeiras conferem um denso caminho dessa materialidade, que desvelam os
porquês de suas falas. A recuperação dos significados da graduação em
enfermagem, aliada aos aspectos históricos sociais vão demonstrando a
intencionalidade dessa formação, bem como suas contradições.
A acentuada preocupação com os aspectos técnicos é mais uma vez
evidenciada pela expressão oral abaixo. A falta de contextualização do ambiente
de ensino, mesmo que esse espaço seja restrito a um hospital, onde praticamente
a formação da professora ocorreu denota uma expressiva contradição com relação
à presença no currículo, dos aspectos enfatizados em relação à humanização do
cuidado, tão propalada no processo de enfermagem.
Profª Enfª 4 - A escola técnica faz uma coisa muito boa. Nós integramos os
alunos, aos poucos nos campos de estágio, antes deles começarem a prática.
Há uma contextualização da realidade onde farão o estágio curricular. Eu acho
que isso tinha que acontecer também dentro da faculdade, não só simplesmente
ensinarem a puncionar uma veia e demais técnicas e largar o aluno no campo.
Foi assim que eu aprendi e pelo que eu senti, quando voltei como professora
substituta na faculdade em que me formei, o discurso é quase o mesmo de
muitos anos atrás, as bibliografias utilizadas eram muito parecidas com as que
eu usei, quando aluna. Era o Arthur C. Guyton, era a Doris Smith Sudart que não
tem muita diferença dos que eu utilizei na formação. Agora tem uma coisa nova,
que é o diagnóstico de enfermagem, que as pessoas estão lidando muito, isso é
126
um estímulo às enfermeiras voltarem a estudar, porque as enfermeiras pararam
no tempo e reclamam disso.
A fala, transcrita abaixo, evidencia a forte influência de uma formação na
linha flexneriana que carregou em si, a desconsideração dos aspectos sociais, a
tecnificação, a fragmentação do conhecimento e a desconexão do mundo em que
os sujeitos revelam sua existência material.
Profª Enfª 3 – Os conhecimentos na escola de enfermagem eram passados de
forma fragmentada. O que me assustou foi que depois de 20 anos, voltando na
lá na Escola, isso ainda se perpetua. Eu acho isso bastante sério, eu fiquei
assim.... confesso que fiquei bem decepcionada, porque eu dei aula para o 5º
semestre, e os alunos ainda terem que passar por isso. Observei que é com
todas as professoras substitutas, ali pelo o que eu vi. E claro, tem professores
que são assim, bem bons, mas achei muito, muito maluco, assim, muito
fragmentado.
Outra observação bastante elucidadora da Profª Enfª 3 e que vai ao
encontro das palavras da Profª Enfª 4, é que, mesmo após um tempo considerável,
elas constataram que muitos aspectos da formação que tiveram, teimam em não se
ausentarem, tais como a falta de integração entre os conhecimentos, a falta de
contextualização dos espaços onde os alunos desenvolverão o cuidado, a
aprendizagem pontual dos procedimentos.
A contradição fica explicita entre o currículo desejado e sonhado, com a
manifestação material da proposta. Ao localizar no tempo e no espaço os contextos
aos quais as professoras se referem, é possível deduzir que elas falam de uma
formação bem atual, abrigada pelas diretrizes curriculares de 2001. Os aspectos
que lhes causam perplexidade parecem revelar uma robusta contradição que tem
acompanhado a historicidade da formação em enfermagem em várias décadas. Ao
mesmo tempo, em que há acenos de mudança do ato educativo em enfermagem,
há uma expressiva conservação de aspectos que configuram um passado que
parece se perpetuar, utilizando o mesmo argumento da oralidade do sujeito da
pesquisa, diante da decepção que sentiu, quando estava na posição de professora
da formação graduanda e verificou que a fragmentação do ensino ainda é
marcante.
127
Essa característica, visceralmente presente na materialidade da formação de
enfermagem, produz e reproduz a lógica da divisão do trabalho, a desconsideração
de aspectos que configurariam uma prática social que, verdadeiramente,
expressasse uma realidade que não aparece em pedaços, mas em totalidades.
As políticas de natureza neoliberal, presentes na formação dos profissionais
da saúde, nos anos oitenta e noventa, tem demandado, desde essas décadas,
densas reflexões e ações nos meios acadêmicos, em busca de uma educação que
responda aos desafios da ampliação do capital.
Conforme referem Frigotto e Ciavatta:
Esse movimento ampliado do capital, principalmente o financeiro, a
reestruturação produtiva e a nova organização do trabalho, alicerçados pela
microeletrônica e pela informática, combinam-se à ideologia neoliberal para a
implementação de políticas educativas de cunho conservador, particularmente
nos países periféricos ao núcleo orgânico do capital (FRIGOTTO E CIAVATTA,
2006, p. 13).
É necessário referir que a efervescência política, econômica, social e
cultural, observada nos anos oitenta e início dos anos noventa, período de
formação da maioria das professoras enfermeiras, materializou diversas
contradições nas práticas curriculares, manifestadas nas possibilidades de
construção de projetos políticos pedagógicos, inspirados numa linha ético-
humanista, com nuances de problematização pedagógica, e, nas limitações
impostas pela produção de uma formação com forte tendência conservadora.
A intenção das propostas curriculares, protagonizadas nos anos oitenta, nos
diversos segmentos culturais e representativos da área de enfermagem, mesmo
que levadas a efeito na escrita dos currículos, não sustentaram a concretização
das reformas desejadas. Essas contradições são, nitidamente, percebidas nas
falas dos sujeitos da pesquisa, tanto no sentido sustentador da formação
cartesiana, como no sentido oposto de uma formação que busca o sentido ético-
humanista e, até mesmo, sentidos fragilmente emancipadores. A fragilidade, aqui
destacada, se deve ao fato das reformas educativas, consubstanciadas no período
mencionado, não terem se tornado uma realidade capaz de transformar a práxis
dos docentes, responsáveis pela formação dos sujeitos da pesquisa.
A partir das mudanças promovidas pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, Lei 9394/96, embora um tanto desnaturadas pelo enfraquecimento da
128
mobilização e perda de algumas conquistas expressivas da década de oitenta,
intensificaram-se os movimentos das instituições de ensino, dos órgãos científicos
e representativos dos diversos segmentos profissionais da saúde, no sentido da
reflexão sobre a formação de professores. Na enfermagem, Bomfim refere que a
proposta de um novo projeto de formação, tanto para o nível superior, como para o
técnico teria, como ponto de partida, a tarefa de superar a abordagem tecnicista de
ensino, em razão do tradicional modelo de medicina brasileiro, inspirado no
enfoque curativo no atendimento (BOMFIM, 2002, p.18).
Prosseguindo a análise, a configuração expressivamente tecnicista, na
formação das professoras enfermeiras, contraditoriamente, apresentou entonações
ético-humanistas. Essas veiculadas por ações pontuais de algumas professoras.
A abordagem ético-humanista, expressa na formação dos sujeitos de
pesquisa, é bastante influenciada pelas idéias dos autores escolanovistas Carl
Rogers, Dewey, Decroly, Piaget, Montessory e também por autores de tendência
cristã, entre outros, Jacques Maritain que trabalha, a partir do princípio religioso de
construção do humano, do “Uno” como o ser divino que dá origem à vida dos
demais seres. O humanismo revelado nas relações de algumas professoras com
suas alunas, a perspectiva do ensino do cuidado em enfermagem, a partir da
valorização das relações intersubjetivas, tendo como centralidade o ser humano,
contribuem para dar um colorido à formação, diverso da abordagem de cunho
tecnicista.
Segundo Cardozo:
Vale dizer que o pensamento rogeriano exerce influência na formação do
enfermeiro, encontrando eco entre vários teoristas da enfermagem, que se
preocupam em dar sustentação humanizada, nas relações estabelecidas por
esse profissional (CARDOZO, 2006, p. 27).
As oralidades abaixo são evidentes neste sentido:
Profª Enfª 1 - Durante um período da faculdade eu não me encaixava muito no
perfil de ser enfermeira, pelo meu próprio jeito. Eu não era muito dócil nesse
sentido. Então, no meio da faculdade, me perguntaram se eu realmente queria
ser enfermeira. Eu acho que eles tinham um modelo de ser enfermeira no qual
eu não me encaixava muito. Eu sempre fui uma aluna média e lá, pelo meio da
faculdade, uma professora viu o outro lado. Eu acho que isso foi uma das coisas
que influenciou muito a minha docência até hoje. Foi a questão de tu perceberes
o outro lado do aluno, o que ele é e qual é o potencial dele. Aí, no último ano da
faculdade, eu fiz um estágio. No último não, no segundo ano. Fui trabalhar numa
129
creche. Daí tu começas a ver mais a questão prática. E no último ano, eu fiz um
estágio num hospital. Essa experiência ampliou a realidade, o ser enfermeiro no
sentido de poder conviver com esse mundo.
Profª Enfª 3 - Eu tive aula com uma professora que era muito questionadora e as
aulas dela me ajudaram a pensar um pouco mais.
Profª Enfª 6 - Eu tinha uma professora muito boa como orientadora. Eu acho que
ela foi um diferencial no curso, porque ela dominava muito bem a questão
didaticamente falando. Ela era atrativa. Ela trazia exemplos ricos. Ela me fez
gostar do trabalho em enfermagem, do trabalho com as pessoas. Eu acho que
ela foi uma das professoras que me incentivou nessa coisa que eu gosto que é
de ensinar e aprender. Ela tinha um diferencial em relação aos demais
professores. Ela me parecia muito por dentro daquilo que fazia, dentro do
contexto. E a disponibilidade dela, fora dali e também de acolher a gente, de
conversar, de sanar dúvidas. Ela não era nem muito técnica, nem muito didática.
Ela conseguia ter a visão do todo e conseguia se reportar lá para a periferia,
porque a saúde não só é feita dentro do hospital, da clínica nas quatro paredes
da sala. Fazer saúde é essa coisa de ter um contato com a comunidade. Isso foi
um diferencial também.
A tonalidade de uma formação humanista, sentida nas falas acima, não
chega a ser generalizada na prática dos currículos vivenciados pelas professoras
enfermeiras, como é observado na seguinte oralidade:
Profª Enfª 5 - Eu me voltei muito para a questão técnica. Eu me preparei muito
bem tecnicamente, mas eu acho que faltou muito da questão do humanismo na
minha formação. Eu tive que buscar depois, ler, estudar porque me chocava as
maneiras como as pessoas tratavam os outros. Não adianta tu seres muito bom
tecnicamente, mas não tratares bem o outro.
O uso do termo tonalidade, como recurso semântico, em minha análise, é
proposital e expressa o meu entendimento de que a tendência ético-humanista,
não chegou a se materializar como uma abordagem sempre presente na totalidade
da formação em enfermagem dos sujeitos da pesquisa. O caráter humanista,
evidenciado na graduação, se deteve em algumas experiências específicas que,
por terem sido diferenciadas, acabaram marcando a história da formação das
professoras enfermeiras.
A Profª Enfª 4, expressa a presença dessa tendência em sua formação, ao
referir que:
O enfoque de humanização, de cuidado, a partir do último ano da faculdade,
mudou um pouco a concepção anterior, porque foi uma época de transição
130
política mesmo. No ano de 81 e 82, todo mundo começou a se voltar um pouco
mais para a idéia de que não era só a técnica que era importante.
Para situar melhor os fundamentos da abordagem ético-humanista, no
currículo da formação das professoras enfermeiras, é necessário recuperar algumas
nuances da visão escolanovista. Esta apareceu no Brasil, nas décadas de 20 e 30,
influenciada por teóricos europeus e norte-americanos como já referi acima. Um dos
fundamentos principais da escola nova constituía na adequação das necessidades
individuais ao meio social. Esse paradigma de educação está baseado em
fundamentos biológicos e psicológicos, tendo como centro do processo educativo o
aluno.
Os teóricos dessa tendência postulavam a democratização e socialização do
ensino. No ideário escolanovista, o docente assume o papel de facilitador no
processo educativo, que é encarado como formador de atitudes, possibilitando a
autonomia do discente, ao mesmo tempo em que respeita sua potencialidade como
indivíduo. No Brasil, Anísio Teixeira, ao inteirar-se dos pensamentos de Dewey,
torna-se um dos divulgadores das idéias escolanovistas por meio do Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova
30
que entre outras coisas, postula a idéia de uma
educação que possibilite a formação de indivíduos autônomos e preparados para o
pleno exercício da democracia.
Em sua proposta de educação para todos, atendendo, na realidade, a
expansão do capitalismo industrial, a escola nova reafirma a posição hegemônica
da burguesia, bem como a dualidade do ensino. Na ênfase dos aspectos culturais e
baseada na ideologia das aptidões atende perfeitamente aos interesses do capital.
A suposta democratização do ensino, embora ideologicamente reservasse a
pretensão de tornar-se, segundo o conceito gramsciano, uma escola unitária,
continuava de caráter dualista, legitimando cada vez mais a manutenção de um
modelo de educação confirmador das diferenças sociais e alheio ao conhecimento
do real. Entre o Uno dos religiosos e o caráter dualista do humanismo se sustenta o
tecnicismo.
30
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova é um documento escrito em 1932, intitulado como “A
reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo”
. Tinha a finalidade de propor diretrizes
para uma política nacional de educação. Este documento foi redigido por
Fernando de Azevedo e
assinado por intelectuais da época, entre os quais
Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho,
Roquette Pinto e
Cecília Meireles.
131
Longe de ser o que apregoa a proposta da escola nova, inspirada por uma
concepção pedagógica individualista, na avaliação de autores como Frigotto
31
e
Sarup
32
, entre outros, não surge das indagações sobre as condições materiais que
produzem as desigualdades sociais, mas das possibilidades de ascensão social pela
meritocracia.
33
A fala abaixo expressa a influência da pedagogia liberal escolanovista na
relação estabelecida entre a professora e a aluna. A valorização de um processo
educativo que possibilitasse a construção de autonomia do discente, a não
diretividade por parte do docente, de cunho rogeriano, por vezes, confundia a aluna
que queria mais atenção da professora. Entre as tentativas do exercício de uma
pedagogia de origem liberal não diretiva em contraponto com pedagogia liberal
tecnicista, os docentes estabeleciam uma formação entremeada de contradições,
mas representativa dos movimentos da práxis educativa na enfermagem.
Profª Enfª 5 - A gente tinha bastante autonomia. Inclusive, eu não gostava muito
dessa autonomia. Eu queria ter mais atenção da professora. Eu sentia falta
disso.
No dizer de Pires, “as características do ensino de enfermagem não diferem
do ensino institucional das sociedades capitalistas” (PIRES, 1989, p.81). O ensino
produz e reproduz as contradições da sociedade em suas dimensões políticas,
econômicas, filosóficas, sócio-culturais e também educativas, embora deixe em
aberto pequenas pistas para outras criações.
A formação ético-humanista vem ao encontro das necessidades emergentes
da prática social de enfermagem. No período em que os sujeitos da pesquisa
realizaram a graduação, ao mesmo tempo em que havia a necessidade de uma
formação que propiciasse o conhecimento de técnicas de vanguarda em saúde,
31
Para Frigotto (1986) ainda que se possa entender o pensamento liberal de Dewey, no seu tempo,
desvelando suas contradições na prática, as suas idéias são historicamente conservadoras.
32
Segundo Sarup (1978) o entendimento de história para Dewey era a luta com a natureza e não de
seres humanos contra seres humanos, ou seja, da luta de classes.Dewey toma a educação como
mecanismo de controle social, buscando orientação social não para as massas, mas para
especialistas.
33
Segundo Bonetto (2006, p.110-111) o termo meritocracia está relacionado à valorização do mérito
e do aproveitamento individual, mediante a competição entre as pessoas, a relevância dos talentos
individuais e a criação de mecanismos de avaliação, que não levam em conta a historicidade dos
indivíduos e os processos sociais do qual fazem parte. O resultado do fracasso ou sucesso é
atribuído, única e exclusivamente, ao próprio indivíduo. Para as sociedades modernas, a meritocracia
constitui um critério de discriminação e promove a competição.
132
que possibilitasse o efetivo apoio ao trabalho médico, em razão do avanço
cientifico e tecnológico na medicina, necessitava ainda de uma abrangência
curricular que atendesse as necessidades de seu diferencial, como nicho
profissional, o papel do cuidado. Saupe traz algumas considerações
esclarecedoras a respeito do significado da palavra cuidado na enfermagem:
A palavra cuidado está íntima e ousamos afirmar, definitivamente aderida à
enfermagem. Não é possível falar desta sem relacionar o cuidado de
enfermagem. Nenhuma profissão é mais cuidadora do que a enfermagem. [...] O
cuidado humano nasce de um interesse, de uma responsabilidade, de uma
preocupação, de um afeto, o qual, em geral, implicitamente inclui o educar que,
por sua vez, indissociáveis, implicam o ajudar a crescer. Enfatizando o cuidado
como uma forma de relacionar-se, de respeitar o outro em sua totalidade, faz-se
necessária a interlocução e a empatia. (SAUPE, 1999, p, 434).
As considerações trazidas por Saupe acerca do cuidado, revelam a
contribuição de Carl Rogers nessa construção. Fica nítida a influência rogeriana
expressa nesta fala:
Profª Enfª 4 - Os aspectos mais significativos da minha formação que influenciam
a minha prática educativa eu acho que é o respeito ao outro. O amor ao ser
humano. Eu me lembro que eu tinha professoras que eram extremamente
afetivas com as pessoas. Eu gostei muito e levei isso para mim.
Neste contexto, é importante referir o entendimento sobre o cuidado
humano, pensado por Waldow, professora da Escola de Enfermagem da UFRGS
até a década de noventa e, atualmente, escritora e palestrante na área de
enfermagem:
[...] consiste em uma forma de viver, de ser, de se expressar. É um compromisso
com o estar no mundo e contribuir com o bem-estar geral, na preservação da
natureza, da dignidade humana e da nossa espiritualidade, é contribuir na
construção da história, do conhecimento, da vida (WALDOW, 1998, p. 61).
O sentido ético-humanista das considerações expressas tanto por Saupe,
como por Waldow, além de trazerem argumentações de um ideário preocupado
com o bem estar coletivo numa linha do humanismo existencialista, é refinado, em
sua extensão, com um tom humanista cristão. O compromisso com o atendimento
133
da espiritualidade dos envolvidos no ato de cuidar denota a vasta influência do
cristianismo presente na enfermagem ocidental. (SILVA, 1986, p.103).
Profª Enfª 6 - Um dos aspectos significativos da minha formação foi que eu
aprendi a lidar com a dor, com alguns conceitos de saúde-doença diferentes
daqueles que eram meus, de me aproximar mais das pessoas, de conhecer
alternativas de cuidado. Eu lembro que a área materno-infantil sempre me
chamou a atenção, desde o início. Então, na medida do possível, eu fazia alguns
estágios voluntários no ambulatório de pediatria. A gente trabalhava com o
mundo de misturas, de carinhas, de sementes. Algumas pessoas me fizeram ver
a saúde de modo diferente e contribuíram na minha formação.
A par dessa humanidade, a formação não conseguiu preparar as
professoras enfermeiras para o conhecimento do mundo real, das contradições,
para a análise das condições materiais de existência daquele que cuida e de quem
é cuidado. Reforço essa consideração com o que diz Kosik sobre a dialética: “A
dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e
sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da
realidade. Por isso, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização
das representações comuns” (2002, p. 20).
A fala, transcrita abaixo, deixa claro o quanto a formação deixou de
desvendar a pseudo-concreticidade do cuidado:
Profª Enfª 6 - A gente não foi muito trabalhada em política de saúde. Eu não me
lembro de alguém ter comentado ao longo da graduação. De fazer essa
politização do cuidado.
Inspirada no ideário escolanovista que pode ser chamado, conforme o
pensamento gramsciano, de um transformismo
34
, pois não operou as
transformações de seu plano discursivo, a formação ético-humanista, vivida pelas
professoras enfermeiras, se desprende da concreticidade necessária para
34
O termo transformismo para Gramsci é utilizado para caracterizar um fato que continua sendo
político. Gramsci fala em transformismo molecular e de grupos radicais inteiros. O transformismo
molecular seria o que ele analise ou quanto as personalidades políticas criadas pelos partidos
democráticos de oposição se incorporarem individualmente à classe política conservadora e
moderada. O transformismo de grupos radicais inteiros, seria os que passam ao campo moderado.
Cita a formação do Partido Nacionalista, com os grupos ex-sindicalistas e anarquistas (GRAMSCI,
2002, v. 5, p. 286).
134
realmente contribuir “na construção da história, do conhecimento, da vida”.
(WADOLW, 1998).
Outra tendência vem influenciando a abordagem ético-humanista na
enfermagem desde os anos 80, a pedagogia problematizadora de Paulo Freire. A
busca de humanização no cuidado, de uma prática de educação em saúde,
amplamente participativa e numa perspectiva de integralidade foram sendo levadas
a efeito nos espaços de análise, de crítica e de proposição nos rumos da profissão.
A influência da pedagogia freireana estendeu-se para as propostas curriculares do
ensino de enfermagem, entre elas destacamos a do Parecer Nº 314/94 e das
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. A
própria Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, implantada em 2004
pelo Departamento de Gestão da Educação na Saúde do Ministério da Saúde,
inspira-se na pedagogia da problematização. A influência desse referencial vai ser
pormenorizada no próximo capítulo, quando tratar da prática de educação em
serviço das professoras enfermeiras.
3.3 – Da Formação Fragmentada à Formação Contextualizada
A seguir, refaço alguns caminhos pelos quais já percorri, durante a rápida
reconstrução histórica dos movimentos curriculares operados na formação
graduanda de enfermagem, no capítulo II, item 2 e, também, neste capítulo quando
analisei a abordagem tecnicista, com o intuito de tornar mais vivo o diálogo entre as
falas das professoras enfermeiras e os condicionantes materiais que operaram os
aspectos de fragmentação e contextualização observados na formação.
Uma das raízes da produção histórica da fragmentação da formação
graduanda em enfermagem, se deve à influência incisiva da enfermagem
americana na constituição da enfermagem profissional no Brasil. As Escolas
americanas vinculadas, comumente, a hospitais privados, seguiam a lógica
pedagógica que melhor convinha aos interesses econômicos dessas instituições
(SILVA, 1986).
135
No Brasil, a escola de enfermagem Ana Néri reproduziu o modelo de
organização curricular existente nas escolas americanas. Os conteúdos eram
distribuídos em várias disciplinas, sem um fio condutor, com uma carga-horária
prática maior que a carga-teórica, em função do aproveitamento útil e pouco
dispendioso, pelas organizações hospitalares, do trabalho resultante dos estágios
curriculares. A semântica pedagógica seguia o modelo da prática de saúde médica.
Pustai, ao discorrer sobre o desenvolvimento teórico-científico da medicina, informa
que:
No nascedouro, a Medicina Científica Moderna tinha, como objeto central, o ser
humano como um todo. Mas o ser humano assim caracterizado era apenas um
“tipo ideal” inaugural, pois o instrumento heurístico da nova ciência traduzia
fielmente o segundo preceito da lógica em Descartes: “dividir cada uma das
dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas pudessem ser e
fossem exigidas para melhor compreendê-las” (PUSTAI, 2006, p. 22)
O pensamento positivista, que permeou o campo da medicina moderna,
trouxe em seus postulados ideológicos, a fragmentação do saber, a pseudo-
neutralidade científica e todas as racionalidades que vão ao encontro dos
interesses do capital. No contexto resultante dessa lógica, surgem as diversas
especializações no campo da medicina, fortalecendo a construção de um caminho
hegemônico em relação aos demais representantes da ciência da saúde. O saber
em enfermagem, submetido ao referencial teórico-prático da medicina e a seu
controle, vai pautando sua proposta curricular, seguindo os critérios que convinham
a essa subordinação.
A situação de fragmentação nos currículos de enfermagem começa a ser
enfrentada à medida que a classe vai buscando sua autonomia, a partir da
construção de saberes que acarretem prestígio e reconhecimento frente à
hegemonia médica.
Retomo algumas considerações realizadas no capítulo II deste estudo, sobre
as propostas curriculares na enfermagem, com o intuito de acrescer outros
aspectos que considero importantes para a análise da subcategoria da
fragmentação e da contextualização, na formação graduanda das professoras
enfermeiras.
O processo de intelectualização no ensino de enfermagem vai se
materializando nos currículos, com a finalidade de projetar a formação não só em
136
relação às demais profissões da área da saúde, mas também no sentido de
reafirmar a posição de liderança da enfermeira sobre a equipe de enfermagem
(ALMEIDA, 1989).
Em 1949, por meio da Lei 775
35
, já se observa um aumento do campo teórico,
mas concomitante a essa mudança, a permanência de uma vasta subdivisão do
conhecimento em um número expressivo de disciplinas. Nesta decisão há a
intenção, também, da criação de disciplinas que abordassem conhecimentos
referentes às doenças típicas do contexto brasileiro, como as doenças tropicais e
mais as especialidades médicas (ANGERAMI, 1996).
Nos anos sessenta, o Parecer de Nº271/62, dentro de um contexto de
incentivo à privatização do modelo assistencial médico e a criação de
especializações, na fixação do currículo mínimo de três anos com a inclusão da
administração e a exclusão das ciências sociais, intensifica a fragmentação do
ensino e elimina a possibilidade do referencial sociológico na formação. Essa
mudança reflete a forma de organização e concepção das questões do trabalho em
saúde, inspirados no modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo em que, se
observa a produção de mudanças importantes, contraditoriamente, é verificada a
extirpação de aspectos essenciais para a formação.
Posteriormente, no auge do referencial tecnicista, de um contexto político de
exceção de direitos, capitaneado por uma pedagogia neoliberal voltada ao acúmulo
de capital, amplamente propiciadora de lucros para as indústrias ligadas à saúde, o
parecer N.º163/72 fragmenta ainda mais o currículo mínimo de enfermagem, com as
ditas habilitações optativas em Enfermagem Médico-cirúrgica, Saúde Pública e
Obstetrícia. Esta proposta visava preparar os discentes para o emprego de novas
tecnologias em saúde. Mais tarde, a partir da efervescência política dos anos oitenta,
década marcada pelos movimentos sociais de redemocratização, do projeto de
reforma sanitária, da mobilização de escolas de enfermagem, da Comissão de
Especialistas de Enfermagem da SESu do Ministério de Educação, das entidades de
classe, entre elas a ABEn, estruturada politicamente como aparelho ideológico e
ativador de ações de tons ora conservadores, ora inovadores, conforme as
correlações de forças estabelecidas, iniciaram uma densa reflexão e análise da
prática social de enfermagem em busca de uma nova revisão do currículo mínimo
137
que resultou no Parecer do MEC Nº 314/94, como já referido no capítulo II. A
construção desse parecer, embora tenha tido o mérito de gerar toda uma
movimentação política em torno das questões de um ensino mais adequado à
realidade brasileira, não representou uma superação do modelo fragmentado e
descontextualizado que vinha sendo veiculado na formação.
No âmbito desses dois currículos, como já havia situado anteriormente, as
professoras enfermeiras foram realizando suas formações ora fragmentadas, ora
contextualizadas. A fala a seguir recupera o concreto vivido:
Profª Enfª 5 – a formação na graduação era muito fragmentada e muita coisa
descontextualizada. Tu estudavas aquilo e nem sabia para que. Então, tu não
valorizas muito, porque tu não dás um significado para aquilo. Daí, depois, ao
longo da tua vida que tu vais identificando as lacunas que ficaram e que nem era
culpa da gente, porque não se tinha estímulo. Eu não me lembro de ter nenhum
professor que falasse “Gente, isso é importante por isso, isso e isso”. Não tinha.
Era muito fragmentado. Era um tanque. Eu me lembro de uma professora que
tinha um caderno amarelo, não sei de quando era aquele caderno. Era naquilo
que ela se baseava e, às vezes, ela, até, lia. Tu imaginas qual era o estímulo do
aluno estar frente a um professor que lia. Uma vez a gente pensou em roubar
aquele caderno e ver o que ia acontecer com aquela mulher. Claro que não
tivemos coragem de fazê-lo. Tinham aulas que eram muito desestimulantes. Eu
acho o papel do professor fundamental. Poderia ter sido tão diferente a minha
formação. Também não culpo. Eu tenho que ir atrás e vou atrás e busco.
Na perspectiva da oralidade acima, aponto como elemento dificultador da
prática social de enfermagem, a persistente desconexão da formação com a
realidade social. A desvinculação dos conhecimentos que poderiam contribuir para
uma análise critica do papel da enfermagem na área da saúde produziu um ensino
estanque. Essa lacuna na produção do conhecimento de enfermagem parece
revelar a excessiva preocupação com a assepsia dos conteúdos. A falta de uma
integração orgânica das diversas áreas de conhecimento não permitiu a
compreensão da complexidade do mundo real. A professora, com seu caderno
amarelo, esqueceu de visitar a realidade, a emergência da conexão interdisciplinar,
do desvelamento dialético do fenômeno da saúde. Neste contexto é importante
referir a formação dos docentes, intérpretes e materializadores desse currículo. A
hegemonia presente em suas construções acadêmicas e nos exercícios de suas
práxis como professoras da graduação em enfermagem, resultante de uma base
positivista, asséptica da realidade não poderia produzir outras manifestações de
35
Lei Nº 775/49 de 6 de agosto de 1949. Dispõe sobre o ensino de enfermagem no País e dá outras
138
ensino que não essas, ora fragmentadas, ora contextualizadas ao sabor da
formação que tiveram e que foram constituindo nos movimentos contra-
hegemônicos que marcam o desenvolvimento do ensino de enfermagem em busca
de uma nova dialética compromissada politicamente com a reflexão crítica
realidade.
Profª Enfª 6 - No currículo da graduação tinha muita coisa que era exigência
legal na época. A questão da Sociologia eu não sei se, hoje ainda existe. Até na
época eu pensava..., eu pago uma fortuna de créditos, porque até o segundo
semestre não tinha bolsa auxílio. Então, as pessoas ficavam se questionando,
pois vinham do interior, viajavam, moravam em outra cidade e para subsidiar
esse estudo ficava caro. E qual a necessidade? A real necessidade? Os
professores não traziam a Sociologia para o cotidiano da Enfermagem, o estudo
das políticas brasileiras para o cotidiano da Enfermagem. Não eram conectadas
essas informações. E tratando-se de uma turma nova, de pessoas imaturas de
17, 18 anos, não tínhamos essa compreensão. As aulas eram soltas. Na verdade
eu entendia um pouquinho mais, porque eu sempre gostei de história. Eu
estudava história. Eu gostava. Eu também gostava da Antropologia. Nós
tínhamos aula numa quarta feira à noite. Existia todo um terrorismo no sentido de
que o Campus da Universidade é bem afastado da cidade. Então, a gente
pegava o ônibus e essa aula era à noite. Nas quartas à noite tinha apagão na
Universidade. Levávamos na bolsa um canivete, uma lanterna. Era muito
engraçado, porque a professora falava que era mesmo violento, que tudo era
longe. Os prédios eram afastados uns dos outros, do local que a
gente pegava
ônibus. Então, isso contribuía para que muitas pessoas não fossem às aulas. A
aula não tinha atrativos, então, nesse sentido, também dificultou.
A proposta do Parecer do MEC, Nº 314/94 vinha com o encargo de
incorporar referenciais teóricos-práticos que fossem capazes de preparar os
profissionais de enfermagem no sentido do atendimento para o SUS. Foram
extintas as habilitações, foi proposto o aumento de carga horária, bem como a
determinação de uma reconfiguração dos conteúdos das ciências humanas e
biológicas. Os eixos temáticos deveriam considerar o perfil sanitário e
epidemiológico da população, a organização do trabalho em enfermagem e a
integração entre a academia e os serviços (GALLEGUILLOS, 2001, p. 84).
A oralidade acima é repleta de brasilidade, representa o lamento da grande
maioria dos estudantes brasileiros que, sem oportunidades iguais para o acesso a
uma educação gratuita, se subjugam aos arranjos de uma máquina - fábrica
privada de ensino, que submete seus discentes a toda sorte de riscos e
sofrimentos no sentido da construção de uma formação que lhes proporcionará, ou
não, acesso ao mercado de trabalho. Diante dessa materialidade perversa, onde
providências. Publicado no D.O. de 13 de agosto de 1949.
139
fica a proposta de contextualização do ensino no aclamado Parecer do MEC, Nº
314/94.
Outro aspecto a considerar, que vai além do cumprimento de uma proposta,
é a organização material do currículo, o simples arranjo de horários em que são
oferecidas as disciplinas. Por que “a sociologia” ficou para a noite, em dia de
apagão na universidade? Que docentes deram aulas para a entrevistada, a ponto
dela e de seus colegas questionarem, “qual a real necessidade” desse ensino tão
distante do que, até mesmo eles e elas esperavam, apesar dos 17 e 18 anos de
idade? Que saberes e práticas pedagógicas detinham tais professores? Por que os
docentes não traziam a realidade social para a reflexão em sala de aula? Por que
não saíram com seus discentes da sala de aula, a fim de respirarem a vida
concreta da saúde, as mazelas do SUS? Para disciplinas sobrantes, professoras
sobrantes
36
. Teria sido esse o argumento subliminar na organização do currículo
vivenciado pela Profª Enfª 6? Mediante essas indagações e não me ocorrendo
outras no momento, partilho da idéia construída por Pereira de que: “Não há,
portanto, inocência possível diante da relação entre conhecimento, currículo e
poder” (2004, p.124).
Embora alguns avanços observados no Parecer do MEC, Nº 314/94,
refletindo as movimentações da década oitenta e início da de noventa, fica clara a
manutenção de um ensino distante da realidade social, a persistência da matriz
flexneriana, voltada para a assistência curativa e individual. Mais uma vez, recorro
à idéia de transformismo de Gramsci ao me referir ao ideário do parecer e a prática
real do mesmo.
A oralidade, abaixo, informa o quanto os questionamentos sobre a
sociedade política e civil estavam um tanto quanto distantes da formação em
alguns momentos. Embora ainda jovem, no início da formação, não era propiciado
à aluna, uma análise fincada na realidade que a levasse a reconhecer as
contradições sociais a sua volta, não conseguia discernir entre o que é
positivamente colocado na lei e a aplicabilidade real nas condições materiais da
sociedade.
Profª Enfª 3 - Quando eu entrei na faculdade eu era uma guriazinha, acho que eu
nem sabia o que era saúde, saúde era estar arrumadinha e bonitinha e “tocar
36
Abordo o termo “sobrante”, pensado por Acácia Kuenser, no item 5 deste capítulo.
140
ficha”. Porque eu me lembro que a gente tinha aula que falava da questão da
prevenção e promoção da saúde e eu ouvia aquelas aulas e pensava nas razões
pelas quais as pessoas não faziam a prevenção. È tão fácil, é só ir todos os
meses, não digo tanto, estou exagerando, ir de em seis em seis meses ao
médico e fazer a prevenção. Eu pensava assim: “porque as pessoas não fazem
isso?”. Hoje em 2006, eu mesma não ia a dentista a um tempão, não é bem
assim a coisa, tem a ver com a maturidade, naquela época eu achava tudo lindo
e maravilhoso. Mas saúde pra mim naquela época era assim algo que as
pessoas tinham o direito a ter e era fácil de ter, não chegava a ser um problema.
Depois a minha visão foi mudando eu vi que não é bem assim, que as pessoas
também não são saudáveis só porque elas não querem, elas não conseguem
ser. O curso contribuiu para eu começar a pensar assim.
O Brasil é um dos países que mais evoluiu em termos de elaboração leis
sobre áreas essenciais da vida. Temos a Lei referente ao SUS, que na avaliação
mundial, é considerada uma das leis mais avançadas do planeta e condizente com
o melhor exemplo de democracia. No entanto, essa forma ornitorrinca
37
de ser,
como diz Oliveira, torna o nosso Estado, o país encantado, que tanto avança no
sentido legal sem, no entanto, avançar no sentido real, da aplicabilidade prática do
que é colocado na letra da lei, que antes mesmo de sua vigência, morre por falta
de condições materiais que possam mantê-la viva. Por outro lado, apesar dos
pesares das formas ornitorrincas, da formação, ora conservadora, positivista,
tecnicista, acrítica, há a percepção de que foi trabalhado o desvelamento das
contradições, mesmo que de forma ainda incipiente. Fica explícito isso, quando a
aluna refere que o curso deu para ela começar a pensar de uma forma mais crítica
sobre as condições do povo brasileiro fazer a prevenção da doença. No horizonte
da fala abaixo, confirmo essa perspectiva.
Profª Enfª 3 - Na graduação alguns professores oportunizavam que falássemos
sobre os conhecimentos que nós tínhamos, outros não. As aulas eram muito
expositivas, preocupadas com a enfermagem em si. Lembro-me que tive um
choque quando cheguei à universidade, pois vinha de um colégio que fazia a
gente pensar bastante. Quando cheguei à faculdade, com alguns professores,
não todos, eram umas aulas que “Meu Deus do céu”, era só conteúdo, conteúdo,
conteúdo. Isso me assustou, mas alguns compensavam então, meio que
equilibrava. A idéia era uma aula mais expositiva e quanto menos perguntar
melhor. Era mais ou menos uma aula bem quadradinha. Foi muito fantasioso, foi
muito fora da realidade, a gente não tinha uma visão real de como eram as
coisas, pois qualquer aula que tu vais dar, tu tens que relacionar com o que es
acontecendo no mundo, na hora, se tu não fazes isso...
37
Metáfora utilizada por Francisco de Oliveira, em seu livro Crítica à Razão Dualista – O Ornitorrinco
(publicado pela editora Boitempo, 2003) para designar uma peculiaridade estrutural da formação
econômica, social, política e cultural brasileira que lhe confere uma imagem de um monstrengo em
que o incomum se constitui a regra, como modo de manutenção dos privilégios de minorias.
141
A formação das entrevistadas não se afasta do enfoque conteudista,
expositivo, quadradinho para usar a expressão da entrevistada. A discussão sobre
a realidade, embora presente pela prática de alguns docentes era vencida por
aulas focadas num ensino descolado do que estava acontecendo no mundo.
A formação das entrevistadas voltada, prioritariamente, para uma prática
hospitalar não permitiu uma abordagem curricular diferenciada do paradigma
biologicista. Embora a atuação de alguns docentes da formação graduanda em
enfermagem, valorizando os conhecimentos prévios dos alunos, aparece com
maior ênfase a confirmação de uma prática favorecedora da passividade, na
medida em que não oportuniza a participação do discente no decorrer do
desenvolvimento das aulas. As falas sugerem uma prática pedagógica tradicional
centrada na figura do docente e marcada por ações educativas desconectadas da
realidade contextual.
Profª Enfª 6 - Percebo que a universidade é muito teórica. No início não agrega a
questão da prática. Na verdade, lá no terceiro ou quarto semestre que tu vais
sentir o gostinho de presenciar um contato maior com o cuidado em si, sentir
como é abordar o paciente. Acho que isso falta. Não sei como está hoje, mas
conversando com algumas pessoas eu vejo que está ainda nessa linha meio
dura, estática, assim, de primeiro você passar pelos Fundamentos. Eu tinha toda
aquela parte de EPB, estudo dos problemas brasileiros, lembra? Tinha EPB, a
questão da sociologia, a questão da antropologia. Eu acho que poderia ser muito
mais explorada, sendo menos teórica e sendo mais enriquecedora para os
alunos.
As narrativas sugerem, também, a falta de integração entre os
conhecimentos. A desvinculação das disciplinas das ciências humanas e sociais do
contexto da enfermagem, além de trazer prejuízo à compreensão pelos discentes
das questões específicas da área, dificulta o entendimento da saúde num âmbito
mais geral.
Profª Enfª 6 - A gente não é muito trabalhada na formação. Eu não sabia que
normas regiam, no momento, a educação ou a saúde. Ou os engajamentos. Se
eu tinha esse conhecimento, era porque eu buscava fora da faculdade, pois a
gente debatia em casa, sempre fui uma pessoa envolvida com outras coisas,
mas eu não via essa conexão nas aulas. As aulas de antropologia e sociologia
eram muito teóricas sem envolvimento com a realidade. Não chamavam a
atenção até porque era cansativo e à noite. Não faziam vínculo com a
enfermagem. Algumas pessoas trabalhavam durante o dia. Eu tinha muitas
colegas que trabalhavam.
142
Profª Enfª 7 - Eu odiava as disciplinas de sociologia e antropologia, porque eu
não entendia o que a gente estava fazendo ali, eu não gostava do tipo de
metodologia do professor. Ele falava um pouco sobre alguns autores que não me
lembro, hoje, quais são. Essas disciplinas eram dadas no 2º semestre em que a
gente ainda é muito jovem, a gente tem aquela coisa da prática, quer fazer
enfermagem, quer ir para o laboratório de anatomia, quer mexer nos corpos,quer
fazer injeção. Essas cadeiras mais teóricas, que tu tinhas que refletir, acho que a
gente não estava preparada para assistir, então o que acontecia..... na metade
da aula a gente ia embora, a aula ficava fazia. O professor não fazia nenhuma
dinâmica, era só conversa, teoria, pouca discussão. Dava alguns textos, dos
quais não lembro. As aulas eram de tarde, duas horas da tarde, a gente quase
dormia, o professor ficava falando, falando. Na metade da aula a gente não
agüentava, porque dava sono, pois o assunto não interessava. Não havia um link
com a enfermagem. Essas aulas eram dadas pela faculdade de educação. As
professoras enfermeiras, da parte prática, também não faziam esse link com as
aulas dadas na educação.
A presença das disciplinas de antropologia e sociologia, no currículo da
formação em enfermagem, vai perdendo o sentido à medida que os discentes não
vivenciam uma prática pedagógica problematizora e criativa capaz de despertar-
lhes a atenção. Como diz Freire: “O próprio discurso teórico, necessário à reflexão,
tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática”
(FREIRE,1996, p. 39). Percebo essa lacuna na formação. Os artífices do currículo
real, não conseguiram atender a pretensão do currículo formal ideado para
aproximar a formação em enfermagem de uma prática voltada, também, para a
saúde pública, campo ideal para concretizar a concepção de saúde não mais
calcada na cura da doença, mas na prevenção, como expressou satisfeita a Profª
Enfª 7: “Eu acho que a formação da enfermeira melhorou quanto à questão da
prevenção, porque o currículo novo é assim, tu não trata mais a doença, tu trata a
prevenção para a pessoa não ficar doente”.
Outro aspecto importante a ser analisado diz respeito à falta de realização de
pesquisas, durante a formação graduanda das professoras enfermeiras. O hábito da
pesquisa seria uma importante forma para contextualizar o ensino, dar a vida à
teoria e produzir conhecimentos. Normalmente as pesquisas foram solicitadas nos
trabalhos de conclusão, por uma determinação curricular, não foi percebida a prática
da pesquisa como um hábito cotidiano. As narrativas abaixo explicitam essa
realidade:
Profª Enfª 1 - Participei de uma pesquisa com crianças de zero a não sei quanto
de uma infecção lá. Eu não me lembro direito como era. Eu sei que nós coletamos
dados lá e ganhamos um prêmio.
143
A fala da professora deixa nítida a idéia da proposta de envolvimento dos
alunos limitada à coleta de dados. Essa prática tem sido corrente nos dias atuais, até
mesmo com os profissionais da enfermagem. Costumam participar de pesquisas
médicas das quais servem apenas como responsáveis pela coleta de dados, ou
entrevistadores, sem o envolvimento necessário com o nascedouro da pesquisa e
seus propósitos. Nesse sentido em vez do papel de pesquisadoras, assumem o
papel de instrumentadoras, mera aplicadoras de questionários ao arrepio da
triangulação: ensino, pesquisa e extensão tão propalada nos ambientes de ensino
como dos hospitais escola.
Nas narrativas abaixo as professoras confirmam essa tendência de um ensino
que existiu, mesmo sem a pesquisa, parafraseando às avessas o referido por Freire:
“Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino” (1996, p. 29).
Profª Enfª 3 - Na minha época nem se falava muito em pesquisa, mas claro que
teve acomodação minha. Depois que eu me formei, eu estou pesquisando só
agora, a formação não era para a pesquisa.
Quando houve a pesquisa, foi realizada uma participação tímida junto à
equipe médica, conforme narra a professora abaixo.
Profª Enfª 2 - Eu fui monitora dois anos, daí eu participei de pesquisa nesses
dois anos. Para mim foi uma experiência nova. A pesquisa na nossa época não
tinha a mesma importância que tem hoje, então era uma coisa muito nova e só
quem fazia pesquisa era a equipe médica, como eu trabalhava no CTI, eu tinha
um contato, porque a CTI era especificamente de paciente neurológico e eu
trabalhava como técnica de enfermagem.
Profª Enfª 5 Não fiz pesquisa na graduação. Pesquisa não. Era trabalho. Fiz
muitos estudos de caso.
Mediante essa realidade que não vislumbrou o incentivo à capacidade
criadora das alunas, que não oportunizou a interlocução com a realidade contextual
da saúde, a não ser com a de cunho específico à área médica, importantes, sim,
para enfermagem, mas sem a vinculação necessária para o envolvimento das
pesquisadoras, fica transparente a falta de conexão do ensino com a atividade de
criação do conhecimento. Pelas narrativas é percebido o quanto a prática de
pesquisa era insignificante no período de formação das professoras, pelo menos
até os anos oitenta. As alunas faziam muitos estudos de casos que não
144
configuravam, pelo visto, a natureza de uma pesquisa científica. Não é sentida a
preocupação da pesquisa como principio formativo na graduação das
entrevistadas. Essa prática começa a mudar, a partir dos anos noventa, com a
intensificação de propostas curriculares voltadas a um ensino mais contextualizado.
Na fala abaixo, a tradição intelectual da pesquisa surge com maior expressividade,
por meio da exigência dos trabalhos de conclusão de curso, os conhecidos TCC.
Essa perspectiva é alentadora para a formação, para o estimulo à criação do
conhecimento, para a integração teoria e prática.
Profª Enfª 7 - A pesquisa que fiz foi o trabalho de conclusão. Eu tive uma
orientação da coordenadora do curso. A gente fez um trabalho só que na área da
obstetrícia, na área da materno, sobre gravidez, sobre aborto na adolescência.
Antes de entrar para o TCC a gente tem um disciplina que se chama pesquisa
em enfermagem, em que te ensinam como fazer a pesquisa, te falam de
referências, te mostram bibliografia sobre pesquisa qualitativa, te explicam o que
é uma quantitativa, te falam sobre o termos de consentimento, como que a gente
faz , como é que a gente faz uma pesquisa e é o semestre inteiro fazendo e já se
faz o projeto, porque no próximo semestre a gente já vai ter que começar o TCC
. Então quando tu chegas na tua orientadora, tu já mostras o projeto, tu já fazes
os contatos, tu já vês as pessoas que te interessam, que são da área. Foi o que
eu fiz, eu fiz contato com ela, ela gostou do título e a gente aproveitou e fez esse
trabalho.
Essa lacuna na formação constitui mais uma contradição. Ao mesmo tempo
em que a enfermagem passa a cultivar um processo de intelectualização com a
finalidade de reconhecimento, de formação de um corpo de conhecimentos
específicos e autônomos, na tentativa de elevar o saber de enfermagem ao status
de ciência, a partir dos anos sessenta, do século passado (ALMEIDA, 1989), vinte e
poucos anos depois esse caminho não é trabalhado com a mesma intensidade na
formação graduanda das professoras enfermeiras entrevistadas. Parece ter ficado
esquecida uma prática que potencializaria a criação de conhecimentos na área e a
possibilidade de uma formação qualificada para o atendimento das necessidades
humanas.
3.4 - Da rigidez na formação à flexibilidade
145
Na intenção de apoderar-me do fenômeno pesquisado, em seus
pormenores, prossigo a análise de seus movimentos contraditórios, abordando,
nesse item, a rigidez e a flexibilidade presente na formação em enfermagem das
professoras enfermeiras da ETE.
Na narrativa abaixo, a professora menciona a rigidez de sua práxis,
enquanto enfermeira. A reprodução de sua formação, que denominou inconsciente,
estava inserida em uma determinada concepção que foi construindo ao longo de
sua graduação em enfermagem.
Profª Enfª 3 - Acho que devo ter reproduzido da formação, não de uma forma
consciente, mas acredito que sim, porque mesmo antes de vir para cá, cuidando
dos pacientes, agora eu me dou conta que muitas vezes eu era muito rígida.
As narrativas de alguns episódios da formação em enfermagem, trazidas
pelos sujeitos da pesquisa, vão dando visibilidade a alguns tons de rigidez que
conduziram a prática pedagógica desenvolvida pelos docentes da graduação.
Profª Enfª 3 - A minha turma pegou a mudança de currículo e tivemos uma
experiência desagradável em relação ao primeiro estágio que iniciou na
pediatria. Isso era novo, começar pelas crianças. Algumas professoras estavam
muito assustadas e passaram essa insegurança para os alunos. Tinha uma
professora que chegava a ser até histérica com alguns colegas, “não toca”, não
tinha didática nenhuma e a maioria das pessoas não gostou da experiência, foi
bem ruim, a gente fez até uma manifestação eu me lembro. Eu fiquei
traumatizada com a pediatria, a área de materno ficou bem prejudicada. E depois
com o adulto foi melhor, foi melhorando o curso, porque ai começou a área mais
de trabalho mesmo.
Na fala da Profª Enfª5 transcrita abaixo, a professora refere simpatia à
rigidez de algumas professoras do curso de enfermagem, tendo boas lembranças
dessas atitudes e avaliando-as como positivas em sua formação. Atribui ser
profissionalmente “bastante exigente” ao que foi construindo como valor em sua
graduação. Argumenta, no entanto, que o seu modo de ser exigente com o aluno
vem acompanhado de muita afetividade.
Tenho observado que o rigorismo revelado na relação docente- discente
está bastante ligado à dimensão técnica do ensino de enfermagem, à rigidez no
passo a passo da realização dos procedimentos do cuidado junto ao paciente.
Essa situação é bastante típica por ocasião das práticas de estágios, em que o erro
146
do discente assume uma conotação diferente em relação a outras formações que
não envolvem na relação docente-discente uma terceira pessoa, o paciente. Em
minha prática como pedagoga da ETE, observo o quanto a situação de supervisão
de estágio é estressante para as professoras e para os alunos e alunas. A atenção
minuciosa sobre o discente é a regra. Algumas professoras conseguem
desprender-se do estilo de supervisão mais incisivo sobre o discente na situação
de estágio, outras seguem um ritual impecavelmente rígido, prejudicando muitas
vezes o desempenho do discente, que se vê limitado pelo olhar fixo do docente em
sua performance.
Há muitas situações em que o aluno ou a aluna bloqueiam, necessitando
nesse impasse, uma parada para juntos docente e discente refletirem sobre a
relação que juntos estabelecem no processo ensino-aprendizagem. A ansiedade
em relação aos discentes que ainda não manifestam o domínio das técnicas, do
cálculo dos medicamentos, chega a provocar, em alguns docentes, a interferência
direta na realização dos procedimentos, como toque nas mãos do discente,
conduzindo o manejo dos instrumentos, como tons de voz alterados manifestados
em palavras de ordem.
Profª Enfª 5 - Eu lembro que as professoras que eram as mais rígidas, as mais
exigentes foi com elas que eu mais aprendi. E eu lembro até hoje e com muito
carinho. Têm outras que eu não lembro nem o nome. Talvez, isso tenha
contribuído no meu modo de ver hoje. Eu sou bastante exigente, mas eu me
lembro que foi com essas pessoas que eu cresci, em quem me espelhei, que
foram significativas para mim. Eu sei que eu sou super exigente com os alunos,
mas sou afetiva também. E sei que essa exigência é importante para a formação
deles e é importante para o cuidado que eles vão prestar depois. Eu fico
tranqüila em saber que isso é importante.
A reprodução da rigidez proveniente da formação, oriunda também da
própria natureza das atividades desenvolvidas pela enfermagem vai se dissipando
à medida que as professoras vão experimentando outras abordagens em suas
práticas pedagógicas que levam a resultados positivos, sem ferir os denominados
princípios científicos na realização do cuidado de enfermagem que deve ser levado
a efeito pelos discentes nas atividades de estágio ou pelas/os trabalhadoras/es nas
atividades de educação em serviço. A busca de formação permanente, as reflexões
críticas sobre a prática pedagógica, a procura de novos caminhos no processo
educativo, a partir de abordagens ético-humanistas e problematizadoras, o convívio
147
com colegas que vêm superando o paradigma rígido da formação por terem
experimentado abordagens pedagógicas que superam práticas tradicionais na
relação ensino-aprendizagem tem influenciado no processo de mudança da prática
educativa das professoras da ETE, a ponto da professora abaixo, reconhecer em
sua narrativa que “está mudando, que está trabalhando para isso”.
Profª Enfª 5 - Eu seguia a hierarquia rigidamente. Eram os exemplos que eu
tinha As minhas chefes, quando eu comecei, eram muito rígidas. Na minha
formação, as professoras eram muito rígidas. Eu venho ao longo da minha vida
com isso. Eu estou mudando. Eu quero ser uma pessoa mais flexível. Estou me
trabalhando para isso. Então, hoje, eu consigo entrar nas equipes com muito
mais tranqüilidade. Sem a barreira da hierarquia.
A rigidez expressa na prática pedagógica de alguns docentes durante a
formação das professoras enfermeiras da ETE também deu lugar a uma prática
docente a favor da construção da autonomia do discente. Na oralidade abaixo, a
professora expressa o quanto foi significativa sua experiência em um estágio de
administração em que teve a oportunidade de assumir um centro obstétrico
sozinha.
Profª Enfª 6 - Eu vivenciei uma experiência muito significativa em minha
formação. Um professor de Administração confiou em mim e me proporcionou a
oportunidade de fazer um estágio voluntário num hospital municipal do interior,
assumindo o centro obstétrico sozinha. Na reta final, no estágio em
administração que a gente faz. Então, ele confiou de certa forma e isso me fez
ver e atuar como se eu fosse uma enfermeira naquele momento.
Além dos aspectos que foram mencionados, há outros que estão operando
mudanças nas práticas educativas das professoras da ETE que serão abordados
na análise de suas práticas educativas no próximo capítulo desse estudo.
3. 5 - Da avaliação como mecanismo de controle, à avaliação emancipadora.
148
Na análise pormenorizada do fenômeno da formação das professoras
enfermeiras, a célula avaliação aparece como um mecanismo de controle sobre a
ação do docente. Todavia há indícios de uma construção de caminhos contrários,
em que a avaliação começa a ser materializada como uma experiência
emancipadora no processo educativo. Sinaliza um caminho de duas vias, cujo
trajeto não se destina apenas a um julgamento de valor sobre um dos sujeitos da
relação, mas uma análise crítica sobre a relação dialética estabelecida por ambos.
Contudo ainda há muitos desafios a enfrentar, pois a célula avaliação é apenas um
dos ingredientes do organismo vivo da formação, que estabelece infinitas conexões
com as demais células do organismo.
O olhar avaliativo narrado na primeira fala abaixo assume uma dimensão
fiscalizadora calcada na preocupação do docente quanto à possibilidade de
ocorrência de erro por parte do discente, durante as práticas de estágio. A
preocupação avaliativa sobre os aspectos puramente técnicos no desempenho do
discente reforça, também, a ênfase tecnicista na formação.
Para Luckesi a pedagogia tecnicista está “centrada na exacerbação dos
meios técnicos de transmissão e apreensão de conteúdos e no princípio do
rendimento” (1998, p.30). A perspectiva pedagógica de avaliação vislumbrada pela
Professora Enfermeira 4 se assenta perfeitamente à tendência tecnicista de sua
formação. Não são valorizados outros aspectos, como a interação social de quem
cuida com quem é cuidado. Os aspectos de humanização tornam-se secundários
na emergência dos aspectos puramente técnicos.
Profª Enfª 4 - Na graduação as professoras ficavam em cima da gente, avaliando
se tu fazias passo a passo da técnica que havia sido ensinada. Na realização do
cuidado, era mais valorizada a realização da técnica. Não davam importância
para outras coisas, como por exemplo: chamar o paciente pelo nome. Agora, se
dá importância. Dizíamos apenas: eu vou fazer uma sondagem no senhor e era
assim, era feito o procedimento. A técnica era mais importante do que saber
como chegar no paciente, como abordá-lo.
A experiência narrada abaixo confirma uma avaliação calcada na dimensão
do saber fazer, do comportamento, preocupada mais com os resultados do que
com uma reflexão sobre como o discente aprende e como melhorar seu
149
aproveitamento ao longo do processo ensino-aprendizagem. O ato de avaliar torna-
se quadradinho, como referiu a professora, sobretudo, quando os aspectos a
considerar no processo avaliativo se limitam a pontuar resultados e não a uma
análise da relação que foi estabelecida entre docente e discente no ato dialético do
ensino e da aprendizagem.
Profª Enfª 1 Ainda tenho essa coisa do controle da postura em alguns
momentos. A gente acaba fazendo isso com o aluno. O controle do horário. São
coisas que são da Enfermagem. O controle do horário, de tu saberes como o
aluno está fazendo o procedimento. Se bem que têm algumas coisas que eu, por
exemplo, no estágio eu sou mais tranqüila. Eu sei que o aluno não vai errar de
propósito. Eu nem vou pensando que ao ir para a unidade com os alunos vai
acontecer alguma tragédia. É como eu digo para eles, eu acho que eles têm o
potencial e temos que confiar. Têm algumas coisas que são bem quadradinhas
na avaliação. Quando a gente começa a avaliar os comportamentos, para mim é
quadradinho.
A concepção de avaliação é sustentada nos resultados do desempenho dos
discentes e não na possibilidade de análise crítica do processo educativo, da
interação estabelecida pelo docentes e discentes. Esse enfoque individualista,
calcado no ajustamento do aluno ou da aluna é, em geral, autoritário, controlador.
Luckesi aponta que esse tipo de avaliação educacional constitui-se como um
mecanismo disciplinador (1998). Na oralidade abaixo, a professora expressa o
quanto o tema avaliação é complicado. Em sua trajetória como educadora parece
estar superando o entendimento de avaliação como veículo de controle e atribui
essa mudança às análises que vem fazendo, coletivamente, nas reuniões
pedagógicas da ETE, sobre o assunto. À medida que encara a avaliação como
uma questão contínua demonstra sinais de superação da concepção anterior. No
entanto, ainda admite não ter rompido, de vez, com a atitude avaliativa fincada no
resultado final. Na justificativa dessa recaída agrega o ingrediente da rigidez, da
preocupação exacerbada com a técnica.
Em minha atuação pedagógica na ETE, tenho percebido o quanto essa
postura incisiva sobre os discentes tem provocado conseqüências nefastas em
seus aproveitamentos escolares, nas relações docente-discente e no cuidado. O
discente centrado na técnica não consegue perceber o todo, perde sua iniciativa na
medida em que assume a postura robotizada, cobrada pelo docente, de um fazer
repetitivo, tenso. O cuidado perde sua potencialidade humana. Tanto os discentes,
como os pacientes passam a ser objetos e não sujeitos e o docente, o gerente da
150
produção em série. Essas dificuldades têm sido levadas para as reuniões
pedagógicas e de estudos, onde temos refletido reiteradamente sobre o tema.
É importante referir que no plano de curso da ETE, a concepção de
avaliação está baseada na idéia de emancipação, de análise crítica e dialética do
processo ensino-aprendizagem, buscando sua transformação. Há, no entanto, um
caminho a percorrer até aproximar a letra do plano com a prática educativa levada
a efeito. A formação graduanda das professoras enfermeiras, alimentada pelo
contexto de um hospital-escola, baseado em relações fortemente hierarquizadas,
ainda é manifesta em suas práticas educativas. A Escola Técnica, como parte
desse organismo, também reproduz suas contradições.
Profª Enfª 2 - Acho que a avaliação ainda é uma questão difícil. Eu tinha muito o
referencial de que eu avaliava o aluno, de como foi o resultado dele. Hoje eu
consigo ter uma noção de que a avaliação do aluno é continua, desde o primeiro
dia de aula e que eu estou construindo essa avaliação com ele. Eu mudei muito
na questão de enxergar a avaliação. As nossas reuniões pedagógicas foram
boas para isso, para a gente tentar entender que a avaliação não é assim. Mas
acho que ainda falta entender melhor, porque quando eu vejo, de vez em quando
eu quero ser rígida de novo na avaliação, são as contradições e daí daqui a
pouco eu me lembro que não posso ser assim. Um exemplo bem típico é o do
estágio no ..., tem tanta tecnologia e quando eu vejo estou dizendo: “mas como é
que ele não sabe aspirar”, então pega a mão aqui, pega a mão ali, então é tudo
técnica, mas ele enxergar o paciente como um todo é mais difícil.
Outro aspecto que merece destaque, referido na fala abaixo, é quanto a não
participação do discente na avaliação do processo ensino-aprendizagem. Essa
observação confirma a tendência de uma proposta pedagógica que encara o ato
avaliativo como meio verificação da aprendizagem do discente. A culminância da
avaliação resultará na classificação do discente como apto ou não apto, tendo
como parâmetro aquilo que os docentes consideram como aprendizagem padrão.
A falta da presença do discente como sujeito no processo avaliativo acarreta pesos
diferentes na relação docente –discente, tal como ocorre nas relações hierárquicas
em que mais tarde os discentes irão atuar. A Professora assinala o distanciamento
que os docentes tinham dos discentes no período em que realizou sua formação.
Profª Enfª 3 - Durante a minha formação não me lembro de ter tido avaliação dos
alunos sobre os professores, penso que não. Agora, os estudantes têm essa
oportunidade. Na minha formação acho que os professores ficavam mais
distantes.
151
A prática de uma avaliação autoritária, classificatória, fundamentada no
rendimento e no controle exclusivo do docente foi produzindo a formação narrada
abaixo. No entanto, apesar desses aspectos complicadores, a aluna alega ter
aprendido. Essa situação representa mais uma evidência do enfoque que foi dado
à questão da avaliação.
Profª Enfª 7 - Eu me lembro de uma aula de um professor de fisiologia, que era um
professor extremamente exigente, não era médico. Esse professor sabia muito, mas
rodava metade da turma. Metade ficava em recuperação e dessa metade, cinqüenta por
cento era reprovada. Eu me lembro do meu primeiro dia de aula com esse professor, em
que a maioria dos colegas já se conheciam. Naquele momento eu fiquei surpresa, depois
fiquei sabendo que eram todos repetentes. Ele cobrava muito, fazia muita avaliação. Ele
explicava bem, aprendi com ele, mas o método de avaliação era errado, porque se tu não
escrevias a palavra que ele queria na prova, ele considerava errada a questão, mesmo
que a questão estivesse correta.
Na situação relatada abaixo, a avaliação aparece como algo difícil de ser
realizado. Essa consideração tem contribuído para os profissionais da área
encararem a prática avaliativa como algo complicado, de difícil encaminhamento.
Ao longo do convívio com os profissionais da enfermagem tenho percebido o
quanto o processo de avaliação dos funcionários no hospital, dos discentes na
escola, tem suscitado dificuldades. A avaliação tem assumido uma dimensão de
incertezas e inseguranças, sobretudo, diante do desafio de torná-la uma ação
dialógica. Para esses profissionais, formados numa concepção tecnicista de
educação, inspirada num paradigma pedagógico caracterizado entre outras coisas,
pela rigidez e pelo controle, partir para uma prática avaliativa inspirada numa
tendência pedagógica problematizadora, dialógica e amplamente democrática
requer um tempo.
Profª Enfª 3 - Na graduação trabalharam o tema avaliação em alguns textos, foi
uma introdução, sempre parecendo que era uma coisa difícil de fazer. E assim,
eu até tive alguma fundamentação teórica, mas é difícil, acho complicado. Que
nem hoje, a gente tem aqui o sistema de avaliação, que são aqueles três
conceitos, tem horas que eu fico engessada.
As histórias narradas se assemelham e me permitem inferir a influência das
contradições da formação das professoras enfermeiras em suas práticas
avaliativas, tanto na formação de técnicos em enfermagem, quanto na educação
em serviço para os funcionários do hospital. Essas contradições serão analisadas
amiúde no próximo capítulo.
152
4. A Formação no Curso de Licenciatura em Enfermagem
A formação pedagógica das professoras enfermeiras ocorreu em diferentes
períodos. Três professoras realizaram o Curso de Licenciatura em Enfermagem
nos anos oitenta, três nos anos noventa e uma das professoras nos anos 2000.
Embora em períodos diversos, os conteúdos das narrativas exibem características
em tons muito próximos. Das sete professoras, quatro fizeram a formação
pedagógica após a graduação, uma no último ano e duas no decorrer. Tanto na
realização do Curso de Licenciatura concomitante, como posterior à graduação não
percebo diferenças consistentes no sentido da produção de uma integração
qualitativa da formação específica para a enfermagem com a formação para o
ensino.
As propostas pedagógicas, preconizadas nos currículos que formaram as
entrevistadas para o ensino do nível médio, proporcionam uma visibilidade nítida
de suas contradições. Os movimentos do sistema de ensino brasileiro, dos órgãos
de representação de classe da enfermagem, entre outros, destaco o papel da
ABEN na produção dos currículos, atendendo às tendências ideológicas da divisão
técnica do trabalho, gerada pelo modo de produção capitalista vão cunhando a
necessidade de preparação profissional de trabalhadores de nível médio para o
mercado de serviços de saúde em franca expansão, desde o final dos anos
quarenta, como já abordado no capítulo II.
A docência dos graduados em enfermagem em cursos profissionalizantes de
nível médio no Brasil inicia a partir da criação da categoria de auxiliares de
enfermagem. O Decreto Nº 27.426 de 1949 que aprova o regulamento básico para
os cursos de enfermagem e de auxiliar de enfermagem, vai determinar que o
ensino de enfermagem auxiliar só poderá ser ministrado por profissionais de
enfermagem (BAGNATO, 1994). Esse documento legal não previa a exigência da
licenciatura para o exercício da docência, mas já garantia o espaço de ensino
específico para os profissionais da enfermagem. Essa situação se estende até o
final da década de sessenta em que foi criado o curso de Licenciatura em
153
Enfermagem. Nesse período é observada uma enorme demanda por profissionais
de nível médio para a realização do cuidado direto ao paciente. A questão política
de incentivo à formação de técnicos de nível médio, acentuada pela aceleração do
crescimento dos serviços de saúde e por um período marcado pela construção de
hospitais, vai configurando as marcas do capitalismo no campo da produção
imaterial constituída pela formação de docentes na área da saúde.
Bagnato informa que os graduados em enfermagem atuam principalmente
nos cursos profissionalizantes e superior de enfermagem, apesar de legalmente
terem sido criadas possibilidades de registro junto ao Ministério de Educação para
2º grau de ensino. Aponta, ainda, que somente em 1974, nos Congressos
Brasileiros de Enfermagem produzidos pela ABEN, a Licenciatura em Enfermagem
passou a ser discutida e recomendada a sua criação nas escolas de enfermagem
(1994).
Essa mobilização em torno da formação para o ensino, no entanto, parece
não ter se materializado a contento com as intenções propaladas nas discussões e
recomendações protagonizadas nos meios acadêmicos, nos fóruns de debates
acerca dos rumos do ensino médio em enfermagem. Os condicionamentos
políticos, econômicos e sociais, que permearam a criação dos Cursos Licenciatura
em Enfermagem no sentido de atenderem, inicialmente, a uma forte demanda de
formação imediata de mão de obra que lidasse diretamente com o paciente e que
não oferecesse riscos aos empreendimentos empresariais em termos de contra-
partida salarial, somados aos interesses da formação graduanda em enfermagem
na academia, constituíram e ainda parecem constituir a necessidade de criação de
espaços de intensas reflexões e avaliações dos rumos da formação pedagógica no
ensino da enfermagem como é observado pelas oralidades expressas a seguir:
Profª Enfª 1 - Eu resolvi fazer licenciatura porque eu sempre gostei muito de
estudar, de ler. Eu queria dar aula. Hoje eu não me lembro muito bem o porquê.
Eu queria dar aula, mas eu não sabia muito bem. Talvez soubesse na época.
Hoje eu não me lembro muito bem. Então, fiz a minha licenciatura na faculdade
de educação. E aí eu fiz o meu estágio.
Profª Enfª 2 - Eu fiz a licenciatura junto com a formação de enfermagem à noite.
Daí tu começas a te dar conta que as questões educativas precisam casar com a
questão da profissão, eu acho que assim, enfermagem tu nunca pode ver
separado da educação, porque tem muita coisa nova sempre chegando.
154
Profª Enfª 5 - Eu fiz a licenciatura concomitante com a enfermagem. Fiz a
licenciatura, porque eu sempre quis ser professora. Na época, era possível fazer
concomitante. Então, desde o primeiro semestre, eu já comecei fazendo a
licenciatura. Eu sempre achei que faria as duas coisas juntas, ser enfermeira e
ser professora, porque uma das atividades do enfermeiro é o ensino. A educação
em serviço da sua equipe. Eu sempre trabalhava junto com a minha equipe.
Acho isso muito importante. E eu me via dentro de uma sala de aula. Como era
possível, na época, fazer concomitante, eu optei fazer.
Profª Enfª 7 - A licenciatura tu podes fazer junto com a graduação ou depois, eu
fiz depois, porque eu já dava aula num curso técnico particular. E como a gente
sabia que para o futuro eles iriam exigir a licenciatura, resolvi fazer. Comecei em
2002 e terminei em 2003. O Curso tinha cinco professores. Um para cada
disciplina. Três eram dadas por professores da educação e psicologia e duas
disciplinas eram dadas por uma enfermeira que orientou como fazer parte prática
de ensino, trazendo autores. As disciplinas foram feitas na Faculdade de
Educação da Universidade ... com professores da psicologia e da educação.
Falaram sobre o projeto político pedagógico, pediram para a gente ir às escolas
para olhar os projetos, falaram da LDB. Foi na licenciatura que eu conheci o
autor Piaget. Trabalhamos muito sobre a teoria da linguagem. A gente discutiu
bastante sobre Piaget. Fiz as práticas de ensino, uma no ensino técnico e a
outra em nível fundamental.
As narrativas da professoras enfermeiras apontam a procura pela formação
pedagógica por uma necessidade inerente à natureza do papel educativo da
própria profissão junto à equipe enfermagem, aos demais integrantes da relação
assistencial à saúde e, também, pela possibilidade de expandirem suas atividades
educativas, além do espaço da assistência, criando outras alternativas de trabalho,
a partir do magistério.
Por serem trabalhadoras/es assalariadas/os, as/os enfermeiras/os, com
raras opções de exercício liberal na profissão, para aumentarem os seus ganhos
salariais desenvolvem paralelamente ao exercício da assistência, o trabalho como
docentes. Por terem uma jornada inferior a quarenta horas utilizam o tempo útil
disponível, trabalhando em mais de uma instituição de saúde, ou em instituições de
ensino profissionalizante de nível médio ou superior.
Bagnato expôs em sua tese de doutoramento, concluída em 1994, que os
cursos de licenciatura:
foram e continuam sendo “espaços menores” nas Universidades, sendo
relegados a segundo plano tanto pelo lugar que ocupam na estrutura curricular,
dos cursos superiores, como pelo tratamento administrativo pedagógico que
recebem pelos responsáveis pela organização dos cursos” (BAGNATO,1994,
p.157).
155
Nas oralidades abaixo, a materialidade da formação de docentes na área da
enfermagem continua, em sua essência, demonstrando as dificuldades
mencionadas por Bagnato. Até mesmo na formação abrigada pelos aspectos
considerados nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Graduação em
Enfermagem, ainda se pronunciam dificuldades não só nas tendências
pedagógicas assumidas, mas nas formas administrativa-pedagógicas veiculadas
nas propostas curriculares. De que maneira aproximar o ideário traduzido nos
princípios que orientam as Diretrizes Curriculares Nacionais da atual década, entre
os quais, o que diz respeito ao fortalecimento da articulação da teoria com a
prática, a partir da formação vivida pela Profª Enfª 7 (fala transcrita a seguir) que
realizou o seu Curso de Licenciatura em Enfermagem sob a égide dessa
recomendação?
O expressivo contingente de Cursos de Licenciatura em Enfermagem
oferecido à noite e nos sábados, atendendo uma circunstância que favorece o
profissional que precisa trabalhar em tempo integral, sobrando o turno da noite
para a busca da formação aliado às concepções pedagógicas desvinculadas da
realidade das alunas e alunos produzem o desinteresse manifestado pelos
discentes e a precariedade da formação apontada pelas entrevistadas ao longo de
suas narrativas. Após um dia exaustivo de trabalho de que maneira prender a
atenção dos discentes nos assuntos tratados em aula? Não me refiro somente aos
aspectos didático-pedagógicos da realização da formação, mas principalmente ao
distanciamento que se observa, na prática, do conteúdo das propostas político-
pedagógicas repensadas à luz dos princípios veiculados nas propostas
curriculares. A narrativa da Profª Enfª 7 é perfeitamente ilustrativa dessa
contradição.
Aulas à noite, turmas com mais de quarenta alunos, aulas desinteressantes,
discentes cansados pelo trabalho. A decisão de não assistir as aulas até o final do
período e o desânimo configuram a precariedade da formação. Apesar desses
aspectos desfavoráveis, a interação com colegas oriundos de diversas formações,
o compartilhar de enfoques diferenciados da formação específica atenuavam as
dificuldades relatadas.
Profª Enfª 7 - No início eu gostei de fazer licenciatura, porque na educação tu
interages com vários profissionais, da pedagogia, da educação física, porque
eles também fazem a licenciatura. Então isso que eu achava interessante nas
156
discussões de aula.. Só que era à noite e todos trabalhavam. Chegávamos nas
aulas cansados. Eu tinha uma jornada de trabalho pela manhã e pela tarde e à
noite fazia a licenciatura. No final da noite eu estava exausta. As turmas eram
muito grandes, eram quarenta e poucos alunos. Eu não estava acostumada,
porque na enfermagem não são grupos grandes. Na metade das aulas, faltando
dois períodos para terminar, na volta do intervalo já não tinha dez pessoas na
aula, todo mundo ia embora. Além do cansaço dos alunos, não achavam as
aulas interessantes.
Parece ser irremediável a questão do horário, tendo em vista a realidade do
trabalho assalariado das/os enfermeiras/os. No entanto, a realização do curso de
licenciatura simultâneo à formação em enfermagem poderia ser melhor
administrado em termos de oferecimento de horários das disciplinas. Nas
narrativas abaixo não havia opção de escolha, as disciplinas aconteciam
geralmente à noite ou aos sábados pela manhã.
Profª Enfª 2 - A gente tinha aula das seis da tarde às dez da noite, então depois
de ter estágio de manhã, aula de tarde e a licenciatura à noite, mas era assim
um mundo diferente. Era uma visão diferente da enfermagem e que era bom.
Profª Enfª 4 - As aulas eram principalmente à noite, oitenta por cento das aulas
eram de noite. Só os estágios tu podias escolher, mas as aulas eram somente à
noite. Vinha para aulas depois do trabalho, era muito cansativo, pois no outro dia
tinha que acordar 05h30min da manhã, porque iniciava o expediente às 7h no
hospital.
Profª Enfª 5 - Eu me lembro de uma disciplina que era de didática aplicada à
Enfermagem que foi no final do curso aos sábados pela manhã. As demais eram
ao longo da semana. Eu tinha aula por turnos: manhã, tarde, vespertino. Não
eram turnos fixos. As aulas aconteciam sábado de manhã. Nós tínhamos aulas
em vários prédios. As da saúde eram no prédio da saúde e as da licenciatura
também. Inclusive, tinha uma extensão da Universidade que era no centro da
cidade e a Didática foi lá. Porque a Universidade, na época, estava em
ampliação. Não tinha prédios fora do campus.
As lembranças enfraquecidas não só pelo tempo em que foi feita a
formação, mas pelo significado que teve fornecem a idéia de como se constituiu o
Curso de Licenciatura realizado pela Profª Enfª 1. Resta em sua memória a
recordação de um treinamento referente a elaboração de um plano, que acabou
sendo jogado fora, mais tarde, e de uma vaga idéia de estágio que teve que fazer.
O tecnicismo da formação, o cuidado com os formatos didáticos, com a questão
dos planos de aula.
Profª Enfª 1 - Eu não me lembro direito como foi a minha licenciatura. Não
lembro os autores que foram trabalhados. O que eu me lembro foi de …… que
157
deu algumas aulas e que nós tínhamos algumas cadeiras teóricas. Tinha a
questão dos planos de aula. Desses, eu lembro que fiz um plano que era tipo um
treinamento, mas dentro daquela questão bem técnica. Uns anos depois eu
achei. Acabei colocando fora, mas era uma coisa assim. Lembro, ainda, que eu
tive que fazer um estágio. Fiz numa Escola de Auxiliares de Enfermagem. Fiz a
supervisão em uma unidade que eu trabalhava, que tinha mais experiência e dei
uma ou duas aulas teóricas. Eu não me lembro.
Os autores que não são lembrados, os referenciais que sustentaram a
prática educativa de seus docentes que passaram despercebidos. A entrevistada
abaixo sabe que o referencial teórico não era o da pedagogia das competências,
no entanto, não lembra quais linhas teóricas inspiravam o currículo que a formou.
Há a lembrança do significado da prática, do que aprendeu com a experiência.
Profª Enfª 2 – Não lembro dos referenciais que eles usavam em educação. Não
consigo me lembrar, de competências não. Não consigo me lembrar
especificamente de autores, mas eu consigo ver que eles conseguiam fazer já
um link diferente da educação do 2º grau, porque era muito voltada para a
prática. Esta é que determinava muito o ensino, do que a gente conseguia
aprender com a prática. A minha faculdade se diferenciava de outras que tinham
menos horas de prática. Nós tínhamos um número de horas de prática muito
grande e até na licenciatura.
É observada a presença da preocupação acentuada com o didatismo, com o
preparo da aula. O pragmatismo tecnicista, a preocupação com os meios didáticos,
como revelado pela Profª Enfª 6:
Tínhamos algumas disciplinas que era Didática I e Didática II que abordavam
algumas questões assim: como você construir uma aula, quais eram os
objetivos, como era uma aula boa, como o ouvinte descrevia uma aula boa,
como é que tu te sentias em uma aula boa, como se construiria isso tentando
fazer com que a platéia te observasse, prestasse atenção no que tu estavas
falando, os recursos, como usar bem uma lâmina. Na minha época não havia o
Datashow, então, a gente utilizava lâminas e slides com retroprojetor. Como se
portar frente aos alunos em uma sala de aula. A questão da distribuição em uma
folha, como você colocaria os conteúdos. Enfim, como ser atrativa naquele
momento. Aí, escolher algumas escolas. Nós escolhemos algumas escolas da
comunidade para fazer um trabalho. Jovens, crianças ou adolescentes. Eu
escolhi trabalhar com turmas do noturno falando sobre educação e saúde e
planejamento familiar. O curso me preparou para essa abordagem.
Outro aspecto a ser ressaltado é a onipotência do saber da professora.
Nessa posição reacionária da figura do docente revela-se uma concepção
educativa autoritária, individualista em que o docente é o detentor do saber, é o
158
centro. Fica transparente a reprodução da dualidade na prática educativa da
professora enfermeira que ensina para o discente que está se formando para fazer
e não para pensar. O docente é “treinado” para se tornar um técnico, nesse
sentido, é perdida a perspectiva de um processo educativo que respeita os saberes
dos discentes, que traz a materialidade da realidade para a sala de aula. Em vez
de questionador da realidade social é preparado para organizar a melhor forma de
“transmitir” o que sabe. Na oralidade expressa abaixo, a professora aprendeu, com
sua própria prática, que sua posição não era de detentora do saber como haviam
lhe ensinado em sua formação, mas de alguém que na interação com seus alunos
e alunas ensina e aprende, aprende e ensina e conclui: Essa compreensão eu fui
construindo ao longo, por mim mesma.
Profª Enfª 2 - A gente teve umas aulas teóricas muito fechadas de como preparar
as aulas, de como é que era a técnica, que técnica que tu irias utilizar. Era
passada a idéia de que tu sabias tudo da enfermagem, que tu estavas passando
para aquelas pessoas o saber e aquelas pessoas não sabiam nada. Mas,
quando eu fui dar aulas, para aquelas pessoas que tinham um pouco mais de
idade do que eu, que tinham vivência, pois eles eram todos mais velhos e
contextualizavam a própria vida deles, eu tive que me desdobrar para dar as
aulas, para conseguir acompanhá-los. Essa experiência eu trouxe de
ensinamento para mim, a prática que eu fiz na licenciatura foi bem importante
para eu me dar conta que tinha que ampliar os meus horizontes, quando eu ia
para dentro de uma sala de aula, porque eu não sabia tudo. Eu acho que faltou
muito de preparo. Essa compreensão eu fui construindo ao longo, por mim
mesma.
A Profª Enfª 3 destaca os aspectos bons e ruins de seu Curso de
Licenciatura. A aplicabilidade do que era trabalhado no curso, a professora que lhe
fazia pensar, entretanto, haviam as aulas que não lhe acrescentaram, talvez por
não terem estabelecido a mesma conotação aplicativa como referiu.
Na licenciatura a gente se sentava e ela falava sobre dinâmica, ela fazia a gente
pensar, eu gostei daquela aula dela, era bem legal. Uma aula que eu tive, que
era aplicativa com a professora....sobre problemas de aprendizagem, também foi
bacana, ela fazia uma aula mais dinâmica. E teve uma outra que era uma
pessoa estranha, que eu não me lembro o nome dela, que foi uma aula que não
me acrescentou muito. Teve coisas boas e coisas ruins.
Outro aspecto mencionado como positivo pela Profª Enfª 2 foi a
possibilidade que o Curso de Licenciatura proporcionou aos discentes de se
159
depararem com enfoques diferentes do saber de enfermagem. As aulas com
docentes de outras áreas proporcionaram outras visões, além formação específica.
As aulas eram dadas por professoras que vinham da faculdade de educação,
não eram só enfermeiros, mesclavam. Então a gente conseguiu ter uma outra
visão, um pouco de pedagogia, um pouco de técnicas para que tu conseguisses
enxergar que não era só enfermagem. Tu conseguias unir um pouco a questão
de como fazer enfermagem educando junto. Acho que foi bem bom.
Embora a diversificação de oportunidades de aprendizagem em outras
áreas, pela possibilidade de convivência com outros saberes e práticas, as
propostas curriculares dos Cursos de Licenciatura, realizados pelas professoras
enfermeiras, em grande parte de suas abordagens, não viabilizaram uma formação
que realmente fizesse sentido para elas. A materialidade dos Cursos de
Licenciatura, marcada pela fragmentação do conhecimento, pela desconexão com
a realidade da saúde, a perspectiva reducionista de que a formação se resolveria
por meio da aprendizagem de técnicas, da elaboração de planos, entre outras
formalidades, desvelaram a precariedade dessa formação.
Profª Enfª 4 - As aulas eram dadas na faculdade de educação, a maioria, com
professores da educação. E mesmo assim eu achei muito fragmentado, tinham
muitos trabalhos teóricos. O curso de licenciatura foi muito fragmentado. Achei
muito fraco. Disseram-me que agora tu tens que dar aula, também, no curso
técnico. Achei ótimo isso, porque no meu tempo só se precisava dar em uma
escola de 1º ou 2º graus, dar umas aulas sobre ciências e só. A idéia era a de
que estávamos ali só para cumprir uma carga horária. Não puxavam para tua
realidade. Não lembro nem dos autores trabalhados. Para mim não contribuiu.
Tive uma colega da enfermagem que desistiu do curso de licenciatura por achá-
lo muito fraco. Eu fui até o fim. As aulas não eram interessantes. As professoras
não faziam conexão com a saúde. Tinham colegas de outras áreas também.
Apesar de ter muita gente da saúde, não faziam nenhuma conexão das aulas
com as pessoas que estavam assistindo. Havia uma disciplina denominada
Pedagogia aplicada à enfermagem, dada por uma enfermeira. Essa professora
também não trouxe a realidade para a aula.
Outra circunstância dificultadora nos processos educativos da licenciatura
apontada pela Profª Enfª 7 e Profª Enfª 5 é o distanciamento dos docentes da
educação das questões que envolvem a área da saúde e dos docentes da saúde
das questões educacionais. A falta de articulação entre uma formação e outra
causam o caos na formação comum prevista. Bagnato refere que a docência em
licenciatura “exige profissionais que, junto ao domínio do saber científico atualizado
160
das áreas específicas, possuam o conhecimento e a prática da Educação em suas
múltiplas faces” (1994, p.158).
As mais variadas disciplinas do currículo do Curso de Licenciatura sem a
devida eloqüência articuladora entre os fenômenos da saúde e da educação
retiram dos propósitos da formação docente o seu verdadeiro sentido, na medida
que não oferecem aos discentes condições para que desenvolvam a compreensão
das dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais do processo educativo e
de saúde, numa perspectiva integrativa e de totalidade.
Profª Enfª 7 - Na licenciatura a gente teve muitas aulas da educação e não é
feito o link com a enfermagem. Acho que faltou isso. A professora enfermeira, a
enfermeira que é professora e não tem muita formação em educação, embora
ela tivesse uma base bem profunda de doutorado. Os professores da educação
que não sabem nada da enfermagem e dão aula como se a gente fosse
pedagoga. De 50 alunos, 30 são da pedagogia, a maioria. A gente percebia que
as alunas da pedagogia sabiam muito. Nós das outras áreas da educação física
e da enfermagem não conseguíamos manter o ritmo, porque nós não tínhamos o
embasamento que elas tinham. Acho que deveriam vincular as disciplinas às
questões da saúde também. Praticamente nas aulas com os professores de
educação não se falava em enfermagem. Quando a gente dava exemplo da
enfermagem a professora nos olhava se perguntando, que será que ela está
falando. Isso foi muito difícil.
Para Kuenser: “Ao professor não basta conhecer o conteúdo específico de
sua área; ele deverá ser capaz de transpô-lo para situações educativas” (1999,
p.172).
Em meio a uma formação fragmentada, distante da problematização de
situações do cotidiano concreto da saúde e da educação, afastada das condições
materiais que lhe dariam legitimidade ficou o lamento da professora: Como poderia
ter sido diferente. Mediante questões importantes do ensino, que poderiam ter
motivado espaços de reflexões, de análise crítica, restou uma formação que não
rompeu com a alienação, produzindo e reproduzindo uma prática docente como
diria Freire: ”mentirosamente neutra” (2000, p. 23) e desanimadora no sentido de
causar um suplício nos alunos, pelas aulas monótonas, expositivas, cansativas e
estressantes. Como não bastasse todo esse desgaste pedagógico, o fato da
licenciatura ter em sua estrutura pedagógica a proposição de uma formação
integrada de educação e saúde o que, supostamente, garantiria uma formação
mais abrangente, de nada adiantou. As aulas da licenciatura, conforme avaliação
da professora foram piores que as da formação em enfermagem.
161
Profª Enfª 5 - As aulas da licenciatura eram mais ou menos, talvez pelo fato das
professoras de enfermagem não terem muito domínio da questão da educação.
Eu não me lembro de terem me instigado, de ir atrás. Às vezes, eu achava a
um suplício. Diferente de hoje que eu tenho o maior prazer em ir buscar, querer
cada vez mais aprender. E na época, pelo que eu me lembro era uma obrigação,
algo chato. Eram aulas muito fragmentadas e descontextualizadas, não faziam a
conexão, piores que as da formação em enfermagem. Eu me lembro de
Estrutura e Funcionamento do Ensino de Primeiro e Segundo Grau. O que é
isso. E era um blá, blá, blá sem relacionar com nada. Para que eu tenho que
saber isso? Para que serve isso? Quando eu vou usar isso? Como poderia ter
sido diferente. Eram aulas muito monótonas, expositivas, cansativas,
estressantes. Aquelas lâminas datilografadas, escrito mil coisas e o professor
lendo. Eu fiz isso também. Hoje, eu procuro escrever o mínimo possível. Eu
gosto muito de trabalhar com gravuras. A forma de muitas coisas serem dadas.
Tu imaginas alguém te projetando uma coisa. Só aquilo, aquilo, aquilo. Aquilo se
torna monótono, cansativo e quando tu vês, tu não estás nem aí. Está em outro
lugar. Eu fiz isso também. Hoje, eu procuro escrever o mínimo possível. Eu gosto
muito de trabalhar com gravuras.
Além das situações narradas, as professoras ressaltam aspectos de uma
prática educativa descontextualizada, preocupada, sobretudo, com a performance
didática. O curso produz e reproduz o rigorismo da racionalidade técnica, oriunda
do positivismo. Não é tocada a materialidade dos processos históricos que
constituem os fenômenos sociais estudados, as contradições das forças sociais
que os delineiam. E, ainda, na medida em que coloca o docente no pedestal, como
menciona a Profª Enfª 2, serve de veículo de reprodução de relações sociais
historicamente hierarquizadas entre aquele que sabe e aquele que supostamente
não sabe nada - docente e discente, entre o que pensa e o que supostamente não
pensa – intelectual e manual.
Profª Enfª 2 - A licenciatura era, também, muito descontextualizada. Enfatizava
muito a parte técnica, de como tu ias preparar, fazer um plano de aula, mas não
ti davas aquela noção de que tu vais aprender e ensinar jun
to, de que tu vais trocar com o aluno. Ainda colocavam o professor muito
naquela coisa assim, de que se tu davas aula, tu estavas em um pedestal. A
prática foi me mostrando que podia ser diferente. Logo que eu comecei a
trabalhar eu me deparei com isso, então eu tive que entender diferente, até
porque no local onde eu fui trabalhar, logo que eu me formei, a enfermeira
mandava. Eram poucas enfermeiras no hospital e elas tinham poder.
Embora a abordagem pedagógica narrada acima, centralizada no saber
docente, destituída de uma análise crítica da prática, há o exemplo da ação de uma
professora, que comparada às demais, fez a diferença, como expressa a
entrevistada, na oralidade abaixo. A perspectiva da visão ampliada do processo
162
saúde-doença da docente, produzida pelo sentido de sua caminhada, ou seja, de
sua práxis fez com a aluna lembrasse dela como alguém especial. A fala
responsabiliza a professora pelo diferencial na abordagem do curso. Tal
observação sugere, uma ação pedagógica isolada não dando indício de uma
proposta coletiva nesse sentido.
Profª Enfª 5 – Eu tive uma professora muito boa na licenciatura. Comparando
com as demais, ela fez a diferença. Ela tinha uma visão ampliada do processo
saúde-doença. Tinha uma caminhada nesse sentido. Em função dessa
profissional que acompanhava a gente, a licenciatura passou uma visão
ampliada. A abordagem dela era bem diferente. No entanto, eu acho que a gente
poderia ter explorado os campos de formas diferentes. De repente, revertendo
em ações naquela comunidade, não indo lá só um ou dois encontros como a
gente foi, mas implementando outras coisas nas escolas ou mantendo um
vínculo da Universidade com essas escolas, não só no momento dos estágios,
mas no momento do curso foi feito o que era possível, até porque era uma
pessoa para orientar vários alunos.
Outra experiência diferenciada é narrada abaixo em que a tentativa da
professora em diversificar a experiência dos discentes, em oportunizar-lhes o
convívio com os espaços de pesquisa, sinaliza uma prática que se afasta da visão
preocupada com os aspectos puramente didáticos da formação. Entretanto, a aluna
sentiu falta de uma contextualização que abrangesse sua prática, que trouxesse
para a sala de aula a realidade concreta de sua experiência de ensino, o que
poderia ter sido enriquecedor. À cerca disso, Freire em tom indagativo diz: “Por que
não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar à
disciplina, cujo conteúdo se ensina” (1996, p. 30). O lamento da entrevistada
parece ter sido sobre esse aspecto.
Profª Enfª 7 – Durante a licenciatura a professora, que tinha doutorado na
educação, nos convidou para assistir uma defesa de projeto de mestrado e ai
que eu conheci alguns professores. Foi a primeira defesa que eu assisti. Aí que
eu entendi o que era um mestrado, o que era um projeto, enfim. Ela começou a
fazer esses links, mas como eu dava aula só de prática em escolas técnicas, eu
não consegui fazer a relação. Em nenhum momento eu fiz o vínculo com o que
eu fazia na Escola. Eu fiz a licenciatura, porque eu tinha que fazer a licenciatura
para conseguir emprego. A licenciatura não me subsidiou para a prática. Em
alguns momentos essa professora, a enfermeira que era professora, ela nos
ensinou a fazer um plano de aula, um plano de ensino, porque isso na
enfermagem a gente não tem. Aí eu tive um pouco de embasamento.
Em relação às práticas de ensino, as Profª Enfª 5, Profª Enfª 2 e Profª Enfª 7
ressaltaram a validade da experiência em suas formações. Enfatizaram a
163
importância dos espaços sociais onde desenvolveram suas práticas, o quanto
aprenderam com os discentes, com a realidade material trazida por eles. O
encontro com a comunidade, a riqueza ao se depararem com os saberes dos
discentes parece ter compensado as dificuldades apontadas na formação. Por
outro lado, a par dessa experiência satisfatória, fica transparente as dificuldades
enfrentadas durante as práticas de ensino pela falta de acompanhamento
pedagógico dos docentes, de orientações aos projetos desenvolvidos pelos
discentes, pela não proposição de um projeto coletivo entre a universidade -
comunidade docente e discente e escolas-campos de estágio, pela utilização
pontual dos campos sem a preocupação com a continuidade dos projetos ou até
mesmo com a necessária interlocução dialética entre todos os envolvidos na
relação teórico-prática resultante dos estágios promovidos pela licenciatura. Fica a
impressão de que a comunidade funciona como um laboratório de experiências,
usadas ao acaso, pela procura aleatória do discente, que dependendo das
circunstâncias poderá ficar sem a oportunidade de estágio, como narrou a Profª
Enfª 7 a seguir:
Profª Enfª 2 – Eu fiz a prática em uma escola de saúde pública e fiz a prática
com uma turma de auxiliar, de técnico de enfermagem de uma instituição. Eles
se voltavam muito para saber primeiros socorros, eles tinham aquelas atividades
em que esse conhecimento era imprescindível. Para nós foi um aprendizado, foi
uma troca.
Profª Enfª 5 - Eu gostei bastante da experiência de dar aula, mas eu me lembro
que eu ficava muito nervosa. Talvez, assim, porque eu não tinha o apoio de
alguém. Eu me lembro que quando eu fui para a escola, nós íamos em duplas.
Uma dava aula e a outra observava. Nós discutíamos e a avaliação era feita por
nós. Eu e a colega. Apesar dessas dificuldades foi bem significativo o contato
com a comunidade e enxergar que não só na escola se faz a educação, mas em
uma empresa de tapetes, por exemplo, de reconhecer o público que atua lá.
Profª Enfª 7 - Eu acho que uma dificuldade que a gente teve, foi ter que buscar o
campo de estágio na licenciatura. Não tinha campo para nós. Por exemplo, a
gente tinha que fazer as duas práticas. Tu que tinha que bater nas Escolas, falar
com as pedagogas e oferecer o teu trabalho. A universidade não te proporcionava
o campo. Teve colegas meus que não conseguiram.
Profª Enfª 5 - Nas práticas, muitas nós desenvolvemos em escolas de primeiro e
segundo grau, na época. E as de Didática Aplicada à Enfermagem foram nas
aulas da graduação. Eu acho que devia haver alguma combinação entre os
professores das disciplinas. Eu me lembro que eu fiz alguma coisa sobre
doenças transmissíveis, cirúrgica. Lembro que a gente fazia um plano de aula
para os estágios, que era apreciado pela professora e íamos para as escolas. A
164
gente apresentava o que ia dar, mas não me lembro de ter dado aula para as
professores. Mostrava o plano e que técnicas que iria usar e ia para a escola.
Apresentava para o professor da escola, mas ficava sozinha na sala. Nenhum
professor entrava. Eu não me lembro de ter tido supervisão.
Outro aspecto da formação em licenciatura que merece destaque é o que diz
respeito ao impacto sentido pelos discentes ao iniciarem o curso. Oriundos de
formações específicas com abordagens mescladas pelas pedagogias tradicional e
tecnicista, ao se depararem com práticas de ensino que propõem um ato educativo
reflexivo sentem-se deslocados, não preparados pela proposta pedagógica
utilizada. A viabilização de uma participação mais ativa do discente causa certo
desconforto por não estar acostumado com uma proposta nessa linha. A fala da
Profª Enfª 7, transcrita abaixo, é eloqüente nesse sentido. Quando aluna da
licenciatura questionava o fato da professora trazer textos para discussão e
alegava não entender o que a professora falava. Sentia falta de aulas expositivas,
de aulas preparadas à luz de paradigmas mais tradicionais, como as criticadas pela
Profª Enfª 5 que, ao contrário, considerava que as aulas expositivas: eram muito
monótonas, cansativas, estressantes. Tanto na abordagem que reveste o docente
como o detentor do conhecimento, como transmissor de conteúdos-verdades,
cabendo ao aluno aceitá-las passivamente, como na abordagem em que o docente
assume o papel de facilitador, enquanto o discente constrói o seu conhecimento,
ficou evidenciada a falta de significado para as alunas dos assuntos tratados em
aula. Como refere Freire: “ler não é só caminhar sobre as palavras, é também não
voar sobre as palavras. Ler é reescrever o que estamos lendo. É descobrir conexão
entre o texto e contexto do texto, e também como vincular o texto/contexto como o
meu contexto, o contexto do leitor” (FREIRE, 1986, p. 22). Os problemas causados
pelo não entendimento do que a professora falava, na proposta de discussão de
textos, ou pelo tédio da aula expositiva poderiam ter sido minimizados, na medida
em que o trabalho educativo propusesse o diálogo com a realidade concreta da
saúde e da educação. Considerando essa perspectiva dialética, docentes e
discentes, ao perceberem-se partes dessa realidade, criam possibilidades para
reescrever os textos e contextos da realidade material.
Profª Enfª 7 - Quando eu fui para licenciatura foi um baque, porque eu não
entendia nada do que a professora falava. Ela era da educação, mas era
enfermeira. Ela fez o doutorado, se não me engano, na educação também. O
embasamento teórico dela foi todo feito na educação. As aulas dela eram muito
165
chatas. Ela trazia textos pra nós, mas eram poucos alunos e como a maioria já
era enfermeiro formado, a gente tem muito aquela coisa da prática... tecnicista,
de tu chegares na aula e discutires sobre...an...ah eu não me lembro dos
autores, incrível, mas, assim, essas questões teóricas da educação...eu não
gostava. Não achava interessante a maneira como ela abordava. Ela não usou
nenhum conteúdo expositivo, as aulas também eram de tarde, foram algumas
discussões de texto. Alguns eu até achava interessante discutir. Eu acho que, na
turma, eu era quem mais discutia. Eu sentia a professora cansada até pra dar
aula. Quando ela entrava em aula, ela já entrava cansada, parecia que ela não
estava com vontade de dar aula, todo mundo já sabia que era sempre a mesma
professora que dava aula na licenciatura.
Mediante a eloqüência das falas anteriores e das transcritas abaixo fica a
evidência de que não ocorreram mudanças significativas na prática das propostas
curriculares para os cursos de licenciatura realizados pelas professoras enfermeiras,
sujeitos dessa pesquisa, durante as décadas de 80 e 90 do século passado e
década de 2000 do atual século.
Nas formações que ocorreram ao longo dos anos 80, sob a égide da LDBEN
Nº 5.692 de 11 de agosto de 1971, de inspiração tecnicista, sob a hegemonia
taylorista e fordista foram observadas práticas docentes veiculadas pela transmissão
de conteúdos desconectados do contexto material da educação em saúde, com
metodologias orientadas mais para o didatismo, do que para uma prática educativa
dialógica que oportunizasse o conhecimento das práticas sociais e produtivas. Ainda
que tenha sido uma década de grandes debates nos campos da saúde e da
educação, com a 8ª Conferência Nacional de Saúde
38
, com as propostas de
mudanças do e com outras mobilizações políticas e intelectuais em torno do projeto
da nova LDBEN, a lei 9394/96, em que eram debatidas abordagens pedagógicas
problematizadoras, marcadas por uma dimensão política e social da formação
humana, é observado na formação das entrevistadas muitas contradições. A
redemocratização tão propalada nessa década é percebida em práticas isoladas de
alguns docentes que marcaram a lembrança das entrevistadas por terem trazido,
para a sala de aula, propostas e práticas pedagógicas numa linha mais crítica
voltada às questões sociais. Nos anos 90, década da nova LDBEN, dos espaços de
discussões político-intelectuais dos SENADENS, do Parecer do MEC Nº 314/94 que
38
A 8ª Conferência Nacional de Saúde constitui um ícone da historicidade das conferências de saúde
no Brasil, contou pela primeira vez com a participação da população nas discussões. Nessa célebre
conferência foi proposta a criação de uma ação institucional na esteira do conceito ampliado de
saúde, que envolve a promoção, proteção e recuperação. Disponível em:
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124. Acessado em 29/08/2007 –
19h.
166
vislumbrava mudanças nos paradigmas da educação em saúde para enfermagem,
década da globalização de mercados e de um projeto neoliberal de sociedade a
formação passa a prever um novo tipo de docente, que segundo Kuenser assume
como primeira característica:
ser capaz de, apoiando-se nas ciências humanas, sociais e econômicas,
compreender as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, construindo
categorias de análise que lhe permitam apreender as dimensões pedagógicas
presentes nas relações sociais e produtivas, de modo a identificar as novas
demandas de educação e a que interesses elas se vinculam (KUENSER, 1999,
p.170).
O pano de fundo contextual dessa década, caracterizado pelas contradições
sucintamente apresentadas no parágrafo anterior, vai reproduzindo uma formação
em licenciatura que não avança em propostas coletivas em torno de uma práxis
dialética. O que se observa, nesse sentido, da mesma forma que na década
anterior, são ações pontuais tímidas em torno de uma formação inspirada numa
tendência pedagógica voltada para uma prática educativa crítica e transformadora
da realidade material.
Chegando à formação para o ensino da atual década, pautada pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais da Formação de Professores, já comentada no
capítulo II dessa dissertação e, considerando o que essas diretrizes assinalam em
relação ao projeto pedagógico de cada curso quanto a orientarem-se por meio de
uma proposta metodológica baseada ação-reflexão-ação e por uma pedagogia
problematizadora como uma das alternativas, é visível, ainda, pela fala da Profª Enfª
7, que fez licenciatura nesse período, as dificuldades dos docentes para darem
materialidade a essas orientações.
As oralidades abaixo dão conta da evidência das necessidades da
aproximação a qual me refiro:
Profª Enfª 4- O modo como eu dou as aulas não teve influência da minha
formação no curso de licenciatura. Se eu tivesse que seguir os ensinamentos na
licenciatura, eu daria aulas direto com lâminas, como eu aprendi.
Profª Enfª 7 - Sei que faltam subsídios para mim e não é só a formação. Acho
que são os momentos que a gente faz, se hoje, por exemplo, eu estivesse na
ETE e fosse fazer a licenciatura certamente eu aproveitaria mais, mas na época
167
que eu fiz eu não tinha vínculo nenhum com a educação, era algo aparte, eu
estava fazendo porque era obrigada a fazer para conseguir um emprego, então
eu não conseguia fazer um vínculo, porque as escolas também não te
proporcionam isso. As escolas não estão fazendo isso, mas aqui é diferente. A
ETE é muito diferente. Falta muita coisa para eu ir superando minhas
dificuldades na questão do ensinar., Acho que teria que fazer uma nova
licenciatura, uma licenciatura específica para a enfermagem..
Profª Enfª 3 - Eu não diria que eu ter feito a licenciatura foi um diferencial, eu
virei professora… eu não diria isso, foi uma experiência a mais.
Diante dessa análise, baseada nas evidências das narrativas, acredito que as
propostas curriculares formais, que sustentam a formação de professores para o
ensino médio ainda necessitam de muitos investimentos, sobretudo, na formação
permanente para dos docentes em Curso de Licenciatura, com a finalidade de tornar
as propostas oficiais o mais próximo possível da realidade desejada. Essa questão
parece-me o grande desafio para a formação superior nas licenciaturas. Outro
aspecto é a aproximação do ensino- pesquisa- extensão. Até que ponto o ensino
universitário está dialogando com as reais necessidades da materialidade do ensino
médio, da educação em saúde, da formação de trabalhadores para o SUS numa
perspectiva de integralidade.
5. Professoras Enfermeiras ou Enfermeiras professoras?
Após ter me deparado com “a recuperação do vivido conforme concebido
por quem viveu” (ALBERTI, 2001, p.23) posso arriscar-me a lançar algumas
considerações sobre a identidade profissional das professoras, sujeitos da minha
pesquisa, quanto à indagação que fiz, se seriam elas, professoras enfermeiras ou
enfermeiras professoras.
Logo que comecei a conviver com os sujeitos de pesquisa, em razão de
minha prática pedagógica na ETE, as reconhecia como professoras do ensino de
enfermagem. Essa primeira impressão foi se desfazendo, quando percebi que elas
se reconheciam, primeiramente, como enfermeiras que ensinavam e não como
professoras enfermeiras. Essa dicotomia foi me levando a algumas trilhas que
168
deveria seguir para entendê-la melhor, sem as precipitações tão comuns, quando
iniciamos um estudo e ansiamos por explicações.
Aparece com muita intensidade, na história do surgimento da enfermagem
profissional, a busca de uma identidade referendada no paradigma cientificista. Até
meados do século XIX, a enfermagem era vista como uma prática de cuidado
doméstico sem qualquer prestígio, ao contrário do que já era observado em relação
à medicina, amplamente conceituada nos ambientes destinados às práticas de
saúde.
A partir da segunda metade do século XIX desencadeou-se uma
movimentação política de afirmação da identidade do saber de enfermagem e da
profissão articulada, primeiramente na Inglaterra, por Florence Nightingale e sua
equipe de enfermeiras e depois no mundo inteiro, a exemplo do que já vinha
acontecendo, em caráter pioneiro, na Europa. Essa busca de um caminho que
configurasse um saber respeitado e importante na prática do cuidado fez com que
a enfermagem não arredasse seus propósitos de expansão, estrategicamente
consubstanciados nos princípios organizativos da profissão. Para tanto, a
representatividade intelectual das figuras ícones da enfermagem, como de
Florence Nightingale, de suas sucessoras e de Ana Néri no Brasil seguia,
avidamente, a proposta ideológica do desenvolvimento de um saber em saúde
positivista, biologicista e mecanicista, completamente afinado com os valores
alimentados para as profissões de saúde.
A fala do presidente atual da ABEn-RS, ao recuperar algumas questões que,
em sua visão, são importantes para o entendimento da busca de reconhecimento
da prática social da enfermagem, traz alguns elementos que contribuem para esta
análise:
Para te falar da ABEn é importante referir o começo da história da enfermagem
no Brasil.
Em nível mundial a gente considera que Florence Nightingale para o
mundo ocidental seja o grande nome que norteou a enfermagem e, ao mesmo
tempo,
a tornou reconhecida. Até o surgimento da enfermagem de Florence, já
existia a profissão que era vista de outro jeito pela sociedade.
A partir da
Florence, a gente teve o reconhecimento. Ela, por sua vez, só conseguiu
estabelecer esse caráter profissional e reconhecido na enfermagem, quando se
aliou a medicina. A medicina precisava de profissionais melhores para ajudá-la,
então houve esse acordo, Florence teve essa visão de enxergar que ela, se
aliando ao saber da medicina, iria trilhar os caminhos da nossa profissão. E foi
fundamental isso. Na década de oitenta do século IX, a revista The Lancet, que é
a mais antiga revista de medicina, já publicava alguns artigos de médicos que
169
eram contrários aos fundamentos de enfermagem ou às enfermeiras já formadas
no estilo Florence, falando desse tipo de enfermagem, então já estava tendo um
impacto pela formação.
No contexto do surgimento da enfermagem profissional e, sobretudo, nos
países que orientavam o ordenamento das ciências, no modo de produção
capitalista para o mundo, a reificação da cientificidade exigia, dos saberes que
começavam a se estruturar nos serviços de saúde, a adoção de valores científicos
para sua legitimação na sociedade. Nesta perspectiva, os valores e a ideologia
dominantes são incorporados na enfermagem.
Na medida em que, a enfermagem foi se institucionalizando como um saber
científico e valorizado nas práticas de saúde foi afirmando a identidade dos
profissionais que a produziam nesse sentido e que na profissão ocupavam,
hierarquicamente, a posição mais elevada. As lady-nurses, na enfermagem de
Nightingale do século XIX, oriundas das camadas mais abastadas e, mais tarde, as
enfermeiras e enfermeiros que buscam a formação graduanda em enfermagem.
Como, então, serem reconhecidas, em primeiro lugar, como professoras? O
ser professora, sobretudo, do ensino profissionalizante, formadores de técnicos,
está ligada, no ideário da profissão, ao ensino de conhecimentos relacionados,
principalmente, mais ao fazer do que ao pensar. Essa decorrência da divisão
técnica do trabalho, e como conseqüência do próprio ensino de enfermagem, o
intelectual para os profissionais que produzirão o pensar na profissão, o ensino
técnico para os profissionais que executarão e ocuparão, na corrente hierárquica
da formação, a posição de menor prestígio por aprenderem atividades repetitivas e
de cuidado direto ao paciente, não parece conferir o status, arduamente
conquistado pelas profissionais que representam as trabalhadoras que produzem
conhecimentos científicos. Contraditoriamente, a par de todo esse esforço, as
enfermeiras, em grande maioria, são trabalhadoras assalariadas, que na equipe de
saúde ainda enfrentam, cotidianamente, a luta pela ocupação de espaços que lhes
confiram maior poder de decisão, autonomia e uma melhor remuneração. A
propósito disso, recorro a fala de duas professoras enfermeiras:
Profa Enfª 6 - A enfermagem sempre teve uma luta constante e eu vi isso nas
salas dos profissionais que atuavam com a gente, na questão das pessoas
batalharem muito por precisarem ter dois trabalhos. A maioria era professor e
atuava como enfermeiro em alguma unidade hospitalar ou em uma clínica pela
questão da remuneração.
170
Profª Enfª 7 – Há poucos anos atrás, eu dava aula no ensino técnico para
complementar meu salário.
As enfermeiras, ainda que tenham a atribuição de coordenação da equipe
de enfermagem, o que lhes vai conferir uma posição de maior valorização social,
trocam suas forças de trabalho pelo salário e, nessa condição, são exploradas,
tanto quanto, qualquer trabalhador assalariado. Na sociedade capitalista, “o
trabalhador decai a uma mercadoria, torna-se um ser estranho, um meio da sua
existência individual” (ANTUNES, 2004, p. 9). E em algumas situações, a força de
trabalho do indivíduo, vale menos ainda, pelos arranjos fetichizados do capital. A
enfermeira, recém formada, vale por meia força de trabalho, justificada por um
artifício legal, na condição de trabalhadora ”treineé”, como é explicada pela Profª
Enfª 7, a seguir. A situação, no entanto, é mais perversa, pois enquanto trabalha
nessa condição, está em período de experiência, com um vínculo empregatício
fragilizado por ser recém-formada. A experiência do primeiro trabalho, que poderia
lhe trazer mais satisfação, torna-se, desde o início, degradante, pelo fato de seu
trabalho valer só a metade. O que poderia ser uma experiência gratificante, se
transforma em exploração, alienação e ansiedade.
Profª Enfª 7 - Quando eu comecei a trabalhar, eu entrei como treineé, que é
aquela enfermeira que está em treinamento, que nunca fica sozinha na unidade,
só que tu ganhas a metade do salário da enfermeira antiga. Tu fazes as mesmas
coisas que a enfermeira antiga faz, mas ganha só a metade do salário. Não é
período de experiência. Tu podes ficar como treineé por até dois anos. É
chamada de enfermeira treineé, porque tu és recém formada, em experiência.
No modo de produção capitalista em que o ser humano vale pela sua força
de trabalho, pelo prestígio social e resultados econômicos que essa força encerra
no produto que vende, o ser professora assume uma identidade precária em
termos de poder e status social. O baixo valor econômico da profissão dos
professores confere um perfil sombrio da imagem social que sustenta. Essa
situação se manifesta, também, pelas condições em que a maioria dos docentes
desenvolve o seu trabalho e pela maneira como são tratados pela imagem objetiva,
que a sociedade faz dos mesmos, relacionando seus baixos salários à falta de
capacidade para exercerem outra profissão. Para que ser chamada, então, de
professora, se sua profissão de maior prestígio é ser enfermeira.
171
A desvalorização da docência de modo geral e, em especial, a do ensino
médio, justificada pelas políticas públicas que não incentivam uma formação
voltada para a pesquisa, deixando essa possibilidade para os docentes de nível
superior deixa claro o desprestígio da prática docente que não é exercida na
academia.
Outro argumento convincente é que, no modo de produção capitalista, em
que o ensino técnico se destina aos alunos sobrantes, como refere Kuenzer (1999),
em que as escolas técnicas se proliferam como um bom negócio, não importando a
qualidade do ensino e, sim, o atendimento rápido a uma demanda que cresce a
cada dia, mediante as transformações do mundo do trabalho e a necessidade de
busca de qualificação, serve qualquer docente. Basta dominar algumas técnicas,
saber usar equipamentos, reproduzir livros em lâminas que a aula está garantida,
como refere a professora enfermeira ao relatar uma experiência inicial e não
agradável no exercício do magistério, após um Curso de Licenciatura, que ela
reporta não ter tido muito significado em sua preparação para a docência (fala
transcrita no item 4 desse capítulo). Precisando de um emprego, buscou trabalho
em uma escola privada de Porto Alegre, que oferece o ensino técnico de
enfermagem:
Profª Enfª 7 - Eu não digo que tenha sido uma aula ruim, mas hoje, lembrando,
eu diria que eu jamais faria isso. Sabe o que eu fiz? Eu peguei um livro e fiz
lâminas do livro inteiro para dar aula. Eu mostrei o livro inteirinho em lâmina, eu
fiz isso e hoje eu lembro e digo: Meu Deus que vergonha de ter feito isso para
dar aula. Tu tens que dar aula em um mês, são cem horas. Das cem horas, tu
podes usar o retro-projetor ou o vídeo cassete em apenas dez horas. A
pedagoga tem tudo cronometrado. Eu tinha que me desdobrar nisso. Como é
que eu ia dar tanto conteúdo em cem horas e podendo usar só isso e isso e em
tanto tempo. Para mim foi um horror, porque eu nunca tinha dado aula teórica.
Para mim era um horror dar aula teórica. Eu achava que nunca iria conseguir. A
sorte, que a turma era pequena, tinha quinze alunos, era uma turma da tarde.
É comum a contratação de professores sem experiência e a falta de um
acompanhamento sistemático aos docentes por parte dos serviços pedagógicos.
Normalmente, esses serviços, inclusive os das escolas de maior porte e tradição no
ensino profissionalizante, são compostos por um número reduzido de orientadores
e supervisores que, junto ao trabalho pedagógico, acumulam os assuntos
administrativos, atuando mais como gerentes, do que como articuladores
172
pedagógicos do ensino, planejamento e avaliação. Não viabilizam a educação
permanente das/os trabalhadoras/es, que ficam reféns, ora da pouca experiência,
da falta de apoio pedagógico, ora dos planejamentos que não respondem às
necessidades dos alunos e, sim, do gestor da escola e das/os próprias/os
professoras/es. Em geral, essas escolas representam, para os recém-graduados
ou professores mais antigos, um “bico”, ou seja, uma fonte de renda frente aos
baixos salários pagos no setor da saúde. Alguns docentes ficam submetidos a esse
tipo de gestão até a aquisição de tempo de experiência necessário para busca de
melhores oportunidades em escolas públicas que possuem uma realidade contrária
à ótica das escolas de mercado, das escolas que oferecem ensino não como um
ato educativo em si, mas como um negócio que gera lucro numa proporcionalidade
maior de benefício do que de custo.
Num processo capitalista de acumulação flexível que necessita de uma
formação que vá além da reprodução de um saber pontual, como o que ocorria na
perspectiva taylorista-fordista de organização e gestão do trabalho, parece
contraditório que as oportunidades oferecidas a maioria das pessoas que buscam
esse tipo de formação, produzam e reproduzam um ensino de péssima qualidade,
enquanto o mundo do trabalho está exigindo o contrário. Só que o trabalho que
requer um conhecimento ampliado, com a integração entre a concepção e
execução, que cria a possibilidade de participação, de poder de decisão e de
controle do próprio trabalho não está na mão de qualquer trabalhador e, sim, de
uma minoria.
Kuenzer assinala que:
Embora se saiba que a finalidade do trabalho no capitalismo seja cada vez mais
simplificada, demandando, portanto trabalhadores desqualificados, realidade que
não é diferente na área da saúde – há uma dimensão contraditória que se
acentua neste regime de acumulação marcado pela globalização da economia e
pela reestruturação produtiva, a partir das demandas de ampliação da
qualificação para o exercício profissional (KUENZER, 2004, p. 110).
Em meio a essa realidade contraditória, convivemos com a degradação do
ensino técnico. Apesar da letra das disposições das diretrizes curriculares para o
ensino profissionalizante decantar uma formação que supere os valores mercantis
em favor de uma práxis educativa emancipadora, ainda é densamente presente um
ensino de baixa qualidade. Essa situação, no entanto, tem provocado a
173
organização de alguns movimentos contra-hegemônicos motivados,
principalmente, pela preocupação com a desfaçatez das fábricas de cursos
profissionalizantes na área da saúde e da baixa qualidade dos profissionais que
estão sendo lançados no mundo do trabalho. Instituições como entidades de
classe, associações, escolas técnicas começam a mobilizar os docentes, os
gestores do ensino técnico e as instituições de saúde para reflexão, análise e
produção de conhecimento por meio de fóruns, seminários e de modo geral do
oferecimento de espaços permanentes de discussão da formação no nível técnico
de ensino.
Na enfermagem, a ABEn.RS vem promovendo, desde 2006, o Fórum das
Escolas Técnicas em Enfermagem que acontece uma vez por mês, em sua sede.
Este fórum abriga professoras/es da UFRGS, gestoras/es, instituições de saúde de
saúde, usuários, docentes de enfermagem, pedagogas/os, conselhos, contando
com a participação de convidadas/os tanto da sociedade política, quanto da
sociedade civil que tramitam na área da saúde. Como representante do HCPA pela
ETE, nesse espaço e participando ativamente das atividades desenvolvidas,
acredito que essa iniciativa é uma das possibilidades de articulação para a
mudança das situações que vêm provocando a baixa qualidade na formação do
técnico em saúde e o risco no cuidado em saúde, que é oferecido pelas instituições
aos usuários.
Tenho convicção de que essas mobilizações estão longe de resolver a
maioria dos problemas enfrentados, mas constituem um coletivo de oposição que
de alguma forma vão gerando mudanças significativas a longo prazo.
De que forma, a enfermeira que ensina vai querer ser chamada de
professora, sobretudo, vivendo num contexto de um hospital escola, onde ensino,
pesquisa e extensão na graduação é sua configuração principal. Como sentirem-se
professoras de alunos e alunas sobrantes, num meio onde convivem, por todos os
lados, com alunos e alunas elitizados, pessoas que puderam escolher as
profissões de maior prestígio, discentes reconhecidos como doutores, doutorandos
e, portanto, orientados somente por professores doutores- pesquisadores.
Outro condicionante que estimula essa identificação se deve ao fato de os
contratos de trabalho dos sujeitos de pesquisa serem firmados para o cargo de
enfermeiras de assistência e não para o cargo de professoras do ensino médio de
174
enfermagem, que na minha visão, como profissional do direito, seria o mais
adequado.
Outra face dessa situação, vivida no ensino técnico, diz respeito à
organização dos currículos das escolas, principalmente das privadas. São feitos
arranjos pedagógicos subservientes ao capital, realizados para garantia de locais
de estágio, sobretudo, nas instituições hospitalares. Para darem conta da
programação dos estágios, as contratações dos docentes, que via de regra,
trabalham em outros lugares, tendo a escola técnica como um quebra- galho no
orçamento, é feita por hora. Não está prevista a participação dos docentes nos
planejamentos pedagógicos. Tudo vem pronto, por pacotes supostamente
pedagógicos. Normalmente o docente que trabalha a teoria não trabalha nas
práticas de estágio. O discente fica refém de um sistema de ensino fragmentado,
destituído de uma integração teórico-prática de qualidade, uma vez que o docente
que problematizou as questões teóricas não estar presente no campo da prática.
Nas instituições públicas de ensino técnico as propostas curriculares prevêem esta
integração o que proporciona ao discente uma aprendizagem de melhor qualidade.
Outro aspecto a ser levado em conta nas instituições que oferecem campos
de estágios e, sobretudo, nos hospitais-escola, o HCPA é um exemplo eloqüente
disso, é a desconsideração dos alunos da graduação, já doutores sem serem, com
os desvalidos da sorte, os discentes dos cursos técnicos e até mesmo com os
professores desses. Nas observações que fiz, durante os estágios dos discentes
da ETE, pude observar que a hierarquia entre as/os trabalhadoras/es da saúde, já
se manifesta desde as práticas de estágio. Dificilmente os estagiários da
graduação, principalmente da medicina, dirigem a palavra aos discentes do técnico,
ou dão ouvidos a esses. Por que ouvirem alunos e alunas sobrantes que não
pensam, que apenas executam? E volto a me perguntar, como serem reconhecidas
como professoras enfermeiras desses alunos? É mais seguro, para garantir o
respeito dos integrantes da equipe de saúde, serem em primeiro lugar, enfermeiras
e após professoras dos futuros técnicos.
Penso ter respondido mesmo que provisoriamente e ainda de forma
incompleta, a partir desses argumentos, a indagação sobre ser professora
enfermeira ou enfermeira professora. Na certa, esta indagação poderia ter outras
explicações ou nem ser considerada numa pesquisa. Pode parecer, também, perda
175
de tempo, me apegar a essa minúcia, mas acredito que para entender a
complexidade da formação das professoras enfermeiras, se tornou necessário,
como exercício de reflexão.
176
CAPÍTULO IV - No Caminho de uma Práxis Emancipatória
1 – Os movimentos da prática educativa – suas contradições em busca de
sínteses para uma práxis emancipatória
A partir da historicidade da prática social da enfermagem profissional, da
formação graduanda das enfermeiras e da formação para o ensino médio, por meio
do Curso de Licenciatura recuperada nos capítulos anteriores chego, finalmente, à
prática educativa das professoras enfermeiras da ETE no curso técnico em
enfermagem e na educação em serviço realizada com os trabalhadores do GENF/
HCPA.
No sentido de desvelar o fenômeno de pesquisa – “o todo vivo e em
movimento” (KOSIK, 2002, p. 60-61), da forma mais profunda que esse estudo
possa permitir, de desvendar as suas minúcias, de percorrer suas células -
categorias da formação dos sujeitos da pesquisa e as células - categorias que
configuram a manifestação de sua prática na relação dialética de ambas, retomo a
questão inicial que motivou sua realização: Quais as contradições na formação em
enfermagem e na licenciatura e como essas se manifestam nas práticas educativas
das professoras da ETE/HCPA?
1.1 - A concretude do Novo Plano de Ensino: entre o formal e o real
Com o novo Plano de Ensino da ETE, posto em prática em 2002, iniciaram-
se vários movimentos nas questões de planejamento, ensino, avaliação e relações
político-pedagógicas entre as trabalhadoras da escola. A mudança curricular,
embora feita, sobretudo, pela necessidade de implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação Profissional (Parecer CNE/CEB Nº16/99)
sinalizou o início de um processo de rupturas em relação aos espaços de poder
pedagógico e dos rumos da formação referente ao Curso Técnico de Enfermagem.
177
No sentido de situar tais movimentos solicitei às professoras enfermeiras, no
decorrer das narrativas de suas histórias orais sobre as suas práxis, que
recuperassem as vivências desse período de transição. As falas abaixo propiciam
algumas configurações importantes a respeito:
Profª Enfª 2 - A gente fez um primeiro plano de curso, recorte de como a gente
era, mas a gente montou o plano como a gente entendia. Nós mudamos o plano,
mas continuamos fazendo muita coisa como a gente fazia antes, mas dai quando
a pedagoga entrou a gente conseguiu re-recortar esse plano e quantas vezes a
gente sentou para gerir as competências e dizíamos “mas fomos nós que
fizemos isso”, mas acho que uma coisa bem importante que a gente não
esqueceu, a gente não deixou a nossa história passar em branco, a gente não
começou do zero, e isso para mim foi muito importante, porque eu não consigo
negar de que o cuidado tem toda essa parte técnica, tem essa parte humana,
não dá para ser oito ou oitenta, que a gente tem que vir com os dois juntos para
entender, e eu acho que é isso que a gente tem que conseguir passar para os
alunos. De alguns anos para cá eu consigo pensar no nosso plano de curso não
mais como um recorte, eu consigo entendê-lo e eu estar dentro. Tem a minha
história, mas tem a história do grupo e o andar da escola.
Na narrativa da Profª Enfª 2 dá para inferir que a elaboração do plano de
ensino, naquele contexto, representava o entendimento que as trabalhadoras
tinham a respeito do tipo de formação que deveria ser levada a efeito no ensino
técnico em enfermagem. O recorte das concepções socialmente construídas pela
formação e prática educativa dos sujeitos autores do plano de ensino foi
prescrevendo a estruturação curricular esperada, de acordo com as orientações da
Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Ministério de Educação. Essas
orientações indicavam como abordagem a ser adotada, a pedagogia por
competências no sentido de atender as exigências promovidas pela reestruturação
produtiva que iniciava um processo de migração do trabalho taylorista- fordista para
o trabalho polivalente. Na perspectiva dessa materialidade, o conceito de
competências vai permear as concepções à cerca das relações entre capital -
trabalho, educação. Nessa ótica ideológica neoliberal, submetida às necessidades
do sistema produtivo, a política de educação por competências vem com um
arcabouço de atributos para assegurar o ordenamento político, econômico, social e
cultural que vai se impondo, a partir de uma série de premissas, entre as quais a
flexibilização dos direitos sociais historicamente construídos, a competitividade dos
mercados e a exacerbação dos valores individualistas. Nesse contexto, Frigotto ao
178
prefaciar o livro de Marise Nogueira Ramos, “A pedagogia das competências:
autonomia ou adaptação”, refere que:
Cada indivíduo terá de agora em diante, então, de adquirir um banco ou pacote
de competências desejadas pelos homens de negócio no mercado empresarial,
permanentemente renováveis, cuja certificação lhe promete empregabilidade. Da
certificação por competências, transita-se para o contrato por competências,
reduzindo o contrato de trabalho a um contrato civil como qualquer outro.
(RAMOS, 2002, p. 16)
A adequação da expressão curricular da ETE às novas diretrizes do ensino
profissional foi se constituindo rapidamente, sem mesmo ter sido discutida com a
totalidade dos segmentos que compõe a comunidade escolar, uma vez que os
alunos, na elaboração inicial, não foram ouvidos. Enquanto em outras instituições
escolares públicas eram vividas as experiências dos movimentos da constituinte
escolar com ampla mobilização de discentes, docentes, equipe pedagógica, diretiva,
funcionários, pais e demais segmentos da comunidade num extenso debate sobre a
escola que tinham e a escola que queriam, as trabalhadoras da ETE concebiam o
novo plano de ensino a partir de recortes das orientações do SEMTEC sem terem
muita noção do novo ideário.
Profª Enfª 5 - Eu acho que quando a gente construiu essa nova proposta no
projeto político pedagógico foi uma coisa bem estressante. Foi muito confuso. A
gente trabalhou em cima de quebra-cabeças, de recortes. Então, muita coisa não
foi boa, mas que a gente está melhorando e está mudando. Aquela proposta
inicial, hoje, está muito diferente. Eu acho que é uma construção. A gente, ao
longo, está mudando. Eu acho que essas discussões que a gente pára, discute,
tenta mudar é muito importante. Eu acho que a gente tem que buscar isso
sempre.
Quando assumi minhas funções como Pedagoga na ETE, a partir de 2002, o
novo plano de ensino já estava em vigor. Passei a conviver com as dificuldades e
incertezas apontadas pelas professoras enfermeiras em razão dos novos rumos
pedagógicos assumidos.
A inquietação alegre que havia vivido por ocasião da constituinte escolar, nos
meus tempos de orientadora educacional no magistério estadual, motivada por um
aprender enriquecido pelo pensar coletivo, pela esperança de que juntos, numa
relação dialógica, poderíamos construir uma outra lógica para a prática educativa,
para as relações sociais estabelecidas em toda a comunidade escolar, se
179
contrapunha a minha nova realidade de trabalho, num hospital escola- empresa-
negócio-público e numa ambiência de formação em saúde, acentuadamente
tecnicista, com alguns vieses ético-humanistas, referendada por uma clara
distinção entre o pensar e o fazer, denunciada pela fala das/os próprias/os
trabalhadoras/es do hospital e pela forma como vem se estruturando historicamente
as relações de poder na instituição.
1.2 - Movimentos político-pedagógicos na ETE: a entrada de novas
professoras e da pedagoga para a instituição
É importante referir que no inicio da prática do novo plano de ensino
aconteceram algumas mudanças no quadro de profissionais da ETE, além da
minha entrada na escola houve a chegada de novas trabalhadoras para o corpo
docente. Como nova integrante da equipe, fiz parte desse período de transição.
Havia um clima de incertezas quanto à nova proposta curricular.
Conviver com profissionais da área da saúde, numa escola técnica de um
hospital, como o “Clínicas”, como é conhecido por todos, é bastante peculiar para
uma profissional que sempre desenvolveu seu trabalho em escolas públicas, em
meio a espaços de poder menos hierarquizados e com a comunidade escolar mais
presente nas decisões político pedagógicas da escola. Fazer parte de um processo
de trabalho junto a profissionais da saúde, formadas na lógica da dualidade entre o
saber e o fazer, da hegemonia médica, da racionalidade cartesiana nos modos de
trabalho foi um grande desafio. As professoras enfermeiras por uma razão de
formação e contexto de trabalho, que venho caracterizando ao longo desse estudo,
acostumadas a se organizarem sozinhas, a cumprirem tarefas, a ordená-las numa
lógica administrativa e pedagógica racional, aceitarem alguém estranha a toda
essa lógica, com uma formação diferenciada do restante do grupo, é um tanto
complicado.
A presença de uma profissional da pedagogia que pudesse orientá-las,
apoiá-las nas questões de planejamento, ensino, avaliação e outras interfaces
educacionais constituiu um desejo e necessidade manifestada por todas.
180
Entretanto, a chegada de alguém com outra formação, que além das atribuições de
orientação educacional e pedagógica tem a responsabilidade pela coordenação
dos assuntos educacionais, antes realizada pela própria equipe de professoras,
suscitou algum tempo para que as docentes, sobretudo as mais antigas da escola,
se despojassem desse papel.
É bastante presente na formação das enfermeiras a questão do controle, já
referida no capítulo anterior. Elas mesmas se identificam como muito controladoras
em razão da própria formação, pelas características que pontuam o processo de
trabalho nos atos da administração da equipe de enfermagem. O papel de
controladoras do trabalho da equipe é bastante observado nas relações das
enfermeiras com as/os demais trabalhadoras/es da enfermagem. Essa postura
também se reproduz em outras atividades.
A meticulosidade, a rigidez, o controle, o domínio da situação, a busca pela
delimitação do espaço da enfermagem tornou-se, historicamente, imperativo nas
relações que estabelecem com outras profissões, sobretudo em relação aos
profissionais da medicina. No caso da escola, a perda da coordenação das
questões pedagógicas para uma profissional da pedagogia, a proposta de um
pensar pedagógico crítico, reflexivo e problematizador sobre as questões
educativas, provocou algumas quebras de hegemonias por parte do grupo mais
antigo de professoras que, de certo modo, lideravam os rumos do planejamento, do
ensino e da avaliação.
Paralela a essa situação, as professoras novas, oriundas de outras
experiências educacionais e de trabalho insurgiam-se em relação a certas
conduções no planejamento e nas concepções que os embasava. As mudanças na
equipe da ETE produziram a luta dos contrários, abrindo caminho para mudanças
político-pedagógicas. As narrativas abaixo expressam como esses movimentos
foram se constituindo:
Profª Enfª 2 - Eu acho que teve um processo do nosso grupo aqui, eu acho que
foi bem importante. A entrada e saída de professores. Eu e as colegas mais
antigas, a gente tinha uma formação muito rígida e a gente veio aos poucos
construindo. Eu aprendi muito com uma colega que abriu muitos horizontes.
Depois ela saiu daqui e vieram outras colegas, todas essas pessoas trouxeram
outras coisas que foram acrescentando. E as pedagogas com certeza também.
Eu acho que uma das pedagogas teve um tempo muito curto conosco. Mas
quando veio a atual pedagoga para cá, foi que eu fui entender um pouco mais,
quem era a pedagoga, qual era o papel dela, e o que era nosso e o que era dela,
e o que era de todos nós. No início quando ela entrou, eu separava muito “isso é
181
teu, isso é nosso”, hoje eu consigo entender que tudo isso é nosso, que a gente
tem que caminhar junto. Esse crescimento veio com questão da pedagogia na
escola, o fazer enxergar, ter outro olhar sobre educação.
Profª Enfª 3 - Antes não tinha pedagogo, ai veio uma pedagoga e veio mais três
pessoas novas, mais da metade do grupo mudou. Teve mudanças e cada um
contribuiu de algum jeito. As pessoas, novas na escola, começaram a questionar
algumas coisas que aconteciam aqui.
Os outros olhares, referidos na narrativa abaixo, tanto da pedagoga como
das docentes, que passaram a integrar o grupo, depois de alguns anos de
existência da escola, estabeleceram contrapontos importantes para a mudança nas
concepções que embasavam a prática educativa, até então, conforme narrado nas
falas a seguir, eminentemente tradicional, tecnicista e com algumas nuances da
abordagem holística, quanto ao desenvolvimento de alguns temas.
Outro aspecto a destacar na narrativa abaixo é quanto ao poder de decisão
das professoras mais antigas, que por terem construído sozinhas a trajetória
pedagógica inicial da escola foram estabelecendo um modo de trabalho próprio, um
tanto quanto impermeável a outras concepções. A fala da Profª Enfª-1 “A gente
sempre que teve que se resolver muito sozinha. A nossa construção como
professora aconteceu sozinha”. Eu acho que a gente é muito auto-suficiente”
explica em parte essa questão.
Apesar do processo de trabalho em enfermagem acontecer em equipe é
observado que a produção do cuidado se dá de forma fragmentada, desenvolvido
individualmente, a partir de uma concepção parcelar das questões do cuidado. A
enfermeira chefe administra a equipe, mas suas intervenções são, prioritariamente,
de cunho burocrático, os auxiliares e técnicos realizam suas atribuições
individualmente sem a integração dos processos de trabalho. O papel discursivo
previsto para a enfermeira, no ideário do hospital, como de educadora e facilitadora
da integralidade dos processos de trabalho e das ações de saúde é subjugado pela
ênfase num estilo de administração voltado para a maximização dos resultados e
não para o estabelecimento da integralidade do trabalho da própria equipe. A
contradição é eloqüente entre o discurso formal e a realidade material.
Transporto essa observação para a prática pedagógica das docentes. A
característica do modo de trabalho da enfermagem, aliada à própria estrutura
curricular do curso técnico, que até o atual plano de ensino era organizada por
182
disciplinas, favorecia que cada um realizasse a sua parte sem se preocupar com
que o outro estava fazendo. Cada novo integrante da equipe teria que se adaptar,
ficando as decisões gerais a cargo de um pequeno grupo. Por analogia, a escola
reproduzia o que acontece nas unidades de internação em que o controle da
equipe fica ao encargo da enfermeira chefe, mas não é observada a integralidade
nas ações educativas. Na escola esse controle ficava ao encargo das professoras
mais antigas.
Profª Enfª 3 - A pedagogia também ajudou porque teve um outro olhar, uma
questão mais pedagógica, que puxava mais para o lado pedagógico, que a gente
não tinha até então, porque não se questionava algumas coisas. Quando eu
entrei aqui diziam: a gente trabalha assim, aqui a coisa é assim. E logo no início
isso me assustou muito, porque tinham algumas pessoas que comandavam o
grupo, a pesar de existir uma chefia que se mostrava ausente, que delegava as
funções. Era assim: “te adapta a esse grupo e te vira, porque até a questão da
comunicação, coisas básicas, de ter um texto para ser lido com algumas
orientações era lido assim, rapidamente, captou, captou, não captou.... E assim a
gente começou. Eu me lembro que tinham umas reuniões para decidir um
cronograma. Três pessoas resolviam e as outras três mais novas na escola
ficavam olhando, não houve acolhimento, acolhimento intelectual, ai começamos
aos pouquinhos a mudar. Como é que é isso, o que é isso, de onde que veio,
para onde é que a gente vai”.
Na fala abaixo a professora ressalta a importância do estabelecimento de
uma interação pedagógica de apoio e de escuta entre as educadoras. Em sua
narrativa refere que essa possibilidade não acontece em relação à equipe como um
todo. Esse aspecto reforça algumas dificuldades na materialização da integralidade
dos conhecimentos, prevista na proposta curricular do curso técnico e até mesmo
nas práticas de educação em serviço.
Profª Enfª 4 – Eu considero muito importante o fato de tu teres alguém com
quem tu possas trocar informações, ou que tu possas colher informações tem me
ajudado na minha prática. Tem a pedagoga, tem aquela colega mais próxima,
pessoas com que tu realmente podes dizer, “olha eu estou trancada em tal
coisa”. Da mesma forma eu também as ajudo. Mas não dá para contar com
todos, mas com alguns dá para contar.
A ótica da especialização do conhecimento inerente à divisão técnica do
trabalho é transferida às práticas educativas. Cada professora acaba assumindo a
responsabilidade pelo desenvolvimento de conhecimentos na área que tem mais
afinidade sem a devida conexão com outras áreas, reforçando a fragmentação do
ensino. Apesar do planejamento em equipe, ainda é sentida a necessidade de uma
183
interlocução maior entre as áreas de conhecimento. A oralidade abaixo é bem
expressiva quanto a esse aspecto:
Profª Enfª 5 - A gente trabalha bastante em equipe, busca fazer planejamentos,
mas eu gostaria de contribuir mais, de discutir mais as coisas. Eu não tenho um
conhecimento de todo o curso. Eu conheço mais as áreas que eu atuo. Eu
gostaria de compartilhar mais. Saber o que está sendo dado aqui, ali. A gente
conversa mais informalmente. Com alguns mais, com alguns menos.
Na narrativa abaixo, a professora destaca a importância das questões de
educação, valoriza a proposição reflexiva das reuniões pedagógicas e de estudos
realizadas na escola. O que não tinha muito significado antes parece, hoje, assumir
uma conotação diferente do passado de sua formação. As reuniões a que ela se
refere, são as de planejamento e avaliação de ensino e as de estudos pedagógicos
em que são discutidos temas referentes à educação e saúde, a partir de
referenciais que sustentam a educação para os trabalhadores do SUS.
Profª Enfª 5 - Hoje eu vejo diferente as questões de educação, as reflexões
sobre educação. Eu acho muito importante a pedagoga ter retomado esses
momentos de a gente discutir, abre novos horizontes. E eu acho super
importante a gente parar, discutir, buscar, fundamentar. Uma coisa que eu quero
trabalhar é a questão da avaliação. Ao longo do tempo com a minha experiência,
com a troca de experiências com os colegas venho construindo a cada
momento, a cada aula que eu dou e, no final, eu digo: ‘bom, essa foi boa, mas eu
posso melhorar nisso, nisso e nisso’.
Inicialmente as reuniões pedagógicas sobre o processo educativo se
detinham numa análise cartesiana das atividades educativas. Eram discutidas as
abordagens técnicas e abordagens teóricas. Havia uma preocupação enorme com
a uniformização dos passos a serem seguidos na realização dos procedimentos
técnicos e da teoria que seria ensinada, bem como uma padronização na
avaliação, a partir do estabelecimento de critérios previamente estabelecidos. O
acompanhamento era feito através de uma ficha de avaliação meticulosamente
elaborada, a partir de um “check list”
39
, termo muito utilizado no processo de
enfermagem e transferido para o ensino. Por meio de uma lista de habilidades e
atitudes avaliadas pelo corpo docente, como sendo imprescindíveis para um bom
desempenho do futuro profissional, ao final de cada módulo de ensino, era checada
39
A palavra check-list de acordo com o Dicionário Aurélio significa: “lista detalhada de itens a serem
checados na produção de evento, em procedimentos de segurança, etc. (FERREIRA, 1986).
184
a lista no sentido de verificar se o discente havia conseguido desenvolver, pelo
menos, um pouco mais da metade dos itens para sua aprovação no módulo. O que
não conseguisse desenvolver entrava em atividade de recuperação até atingir os
objetivos esperados. As narrativas abaixo caracterizam bem esses aspectos:
Profª Enfª 1 - Eu avaliava muito relacionado com a ficha de avaliação do hospital,
do que era pedido no hospital. Com a presença da Pedagoga, a gente foi
começando a pensar em outras coisas que a gente não pensava. Foram três
pedagogos que passaram pela escola. A gente queria muito, assim, logo no
início. Eu, até, fui uma das pessoas que falou bastante com a chefia na época
para isso. Eu acho que a gente não tem formação como educador. A gente pode
ter feito licenciatura, mas foi aprendendo assim. Têm coisas que tu não dominas.
Eu acho que foi difícil nós largarmos o controle como grupo. O enfermeiro tem
essa característica de saber tudo, querer mandar tudo. Eu acho que isso foi um
fato que foi conquistado aqui na escola. Eu acho que a pedagoga conquistou
esse espaço.. Eu acho que a última pedagoga foi, talvez, a pessoa que mais
conquistou esse espaço aqui na escola, não é da questão de importância, mas
de definir as coisas, de contribuir.
Profª Enfª 2 - Quando a gente estava montando o curso para a turma nova. A
gente tem que ir inserindo algumas coisas, mas não pode querer que o aluno
saiba tudo de anatomia, de fisiologia. Eu acho que essa avaliação no primeiro
módulo, quando a gente discute que é difícil, é difícil, a gente não pode querer
determinar que o aluno não sabe e não vai saber, eu considero que ele só vai
saber determinadas coisas lá na prática, por isso que eu acho que o bloco
temático 3, onde entra a arte do cuidado, que entra anatomia e fisiologia não
pode deixar ninguém para trás nesse momento, porque ele só vai construir isso,
quando estiver lá, tu só vais entender sobre a importância de saber o músculo,
quando tu precisares utilizar, numa prática, o músculo e isso eu fui vendo ao
longo. Como a gente era rígida quando fazia avaliação antes, se o aluno não
soubesse todos os sistemas no primeiro módulo ele não ia adiante, a gente tinha
que trancar ele aqui.
A compreensão mecanicista do desenvolvimento das competências pelos
discentes, expressa na fala da Profª Enfª 2, vai sendo substituída pela perspectiva
dialógica e problematizadora da construção do conhecimento, pela idéia de que
“Ensinar exige consciência do inacabamento”, como menciona Freire (1996, p.50).
À medida que as trabalhadoras da ETE avançam nas discussões de estudo
e reflexões coletivas sobre o plano de ensino da escola, sobre a prática educativa
que as professoras enfermeiras vêm materializando, à medida que os espaços de
participação do discente vão sendo cada vez mais valorizados e levados para o
planejamento, ensino e avaliação, como fator decisivo nos rumos do plano de
ensino e da prática educativa, são observadas sensíveis mudanças nas
concepções educativas antes orientadas, prioritariamente, por abordagens
185
pedagógicas tecnicista e tradicional de ensino para abordagens pedagógicas
problematizadoras, inspiradas na pedagogia da autonomia de Paulo Freire e outros
teóricos que convergem nessa linha.
A fala da professora, abaixo transcrita, reforça os aspectos analisados
acima:
Profª Enfª 2 - O tempo, a experiência, o estudo, a convivência com outras
pessoas aqui na escola, foram me colocando algo que eu tenho bem presente
hoje: que quantidade não é qualidade. Daí eu fui agregando algumas coisas. Eu
já tinha a noção eu tinha que ampliar, mas eu ampliava o meu conhecimento,
mas eu não abria para os alunos trazerem as vivências deles. Na época não me
interessava a vivência, onde eles estavam. Eu queria que eles cuidassem o
melhor possível do paciente e eu tinha aquela ânsia de passar tudo para eles e
que eles saíssem ótimos, mas ótimos tecnicamente e hoje eu consigo ver assim,
que eu amplio o mundo, mas eu consigo contextualizar, eu consigo trocar com
eles, eu consigo construir com eles.
É importante referir que a participação do discente sempre existiu, nas
questões de avaliação, no entanto, essa interlocução era entremeada pelo poder
do argumento do docente em relação à fala do discente. Era dada uma ênfase
muito grande às reuniões de avaliação, ainda existentes, em que a professora
apresenta seu parecer avaliativo a cada aluna e aluno individualmente. Essa
proposta é interessante já que oferece à relação docente-discente a oportunidade
de reflexão mútua sobre os destinos da prática educativa e da aprendizagem do
discente, no entanto, não era dada a mesma importância para o Conselho de
Classe em que a avaliação do ensino-aprendizagem é feita num fórum coletivo com
a participação de toda a comunidade escolar. Esse espaço, atualmente, vem
adquirindo cada vez mais importância. Nesse fórum, a fala dos docentes, da
pedagoga, da direção da escola se atenua, na medida em que há a presença de
todos os discentes, que se preparam para o encontro de reflexão antes. Há a força
do coletivo, não estão sozinhos com a professora, estão com os seus colegas e
com os demais participantes.
O currículo do curso técnico de enfermagem é constituído de três módulos
seqüenciais, sendo que um é pré-requisito para o outro. Cada módulo é composto
de blocos temáticos articulados, no sentido de integrar os conteúdos. Em cada
módulo existem competências que devem ser desenvolvidas, durante a formação
do discente. Os estágios supervisionados são desenvolvidos, prioritariamente, nas
unidades do HCPA. Há, portanto, a ênfase na formação hospitalocêntrica, como a
186
própria formação das professoras enfermeiras. Os estágios em saúde pública não
possuem a mesma ênfase. Essa característica do curso está mudando, também, à
medida que outras tendências pedagógicas revestidas pelo ideário
consubstanciado nos princípios sustentadores do SUS, da integralidade, da
igualdade e equidade
40
, entre outros, vão se fortalecendo no discurso e na prática.
As falas a seguir configuram a realidade que vem mudando, a luta entre as
abordagens da formação e da práxis das professoras enfermeiras ao longo de seus
modos de vida e trabalho na historicidade de suas vidas profissionais, da ETE e do
HCPA:
Profª Enfª 2 - No início da ETE, a gente tinha planejamento, mas em cima das
técnicas. A gente discutia, por exemplo, a medicação intramuscular, a agulha
coloca assim, tira o ar assim. Antes da aula de intramuscular, a gente tem que
aspirar assim, bota os dois dedos assim na ampola, aspira e depois pega o
músculo assim. Mas a gente não buscava a anatomia e fisiologia de volta, a
gente não contextualizava. A gente usava o aluno como um instrumento de
ensino aprendizado, mas a gente não respeitava aquele aluno. A gente estava
sempre voltada para não ter o perigo de dizer uma coisa, a outra professora
dizer outra e assim por diante. A gente se voltava para a técnica. A gente
discutia muito nos questionando: “mas por que tu ensinaste que não pode deixar
o ar e pode e não sei o que”, daí depois a gente passou a discutir formas de dar
aula, maneiras de ensinar e aprender, então assim, casar os conteúdos e isso a
gente só começou a fazer depois do plano novo. Então, na ordem de
entendimento, como é que eu entendo, se eu não entendo dessa forma que a
gente está dando, como é que o aluno vai entender.
Profª Enfª 1 – Na formação que fizemos aqui na ETE, pensando no Plano de
Ensino o que eu vejo é o seguinte, que a gente está num novo processo agora,
mudando um pouco mais, até pelo grupo estar tendo outras experiências. Eu
acho que a construção está um pouco diferente. Nesse módulo, eu acho que os
alunos estão diferentes. Eles conseguiram entender algumas coisas, por
exemplo, eles já conseguem se ver para poder ver o outro. Isso eu acho
importante. É mais tranqüilo o ensino e não é tão cobrador. Eu acho que a gente
ainda tem muito disso, do controle. Evoluímos, mas ainda somos cartesianas,
mesmo dentro de todos os questionamentos. Ainda hoje, quando estamos no
estágio, se o aluno não sabe, a gente se angustia. Se ele não consegue
responder de acordo com aquilo que tu pensas... Na realidade, lidar com a
questão da responsabilidade de ter o paciente lá (no campo de estágio) e, muitas
vezes, o aluno ter um branco, é complicado.
40
Os princípios do SUS estão previstos no Título II, capítulo II da LEI 8.080 de 19/09/1990 que
dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível no site:
www.planauto.gov.br/CCivil/Leis/L8080.htm. Acessado em: 18/08/2007 – 14 h.
187
As narrativas acima caracterizam, precisamente, as contradições na
formação em enfermagem e na licenciatura e a manifestação dessas contradições
nas práticas educativas das professoras enfermeiras da ETE/ HCPA.
Na fala da Profª Enfª 2 aparece nitidamente a influência tecnicista da
formação: A gente se voltava para a técnica, a racionalização cartesiana da prática
educativa, a presença do rigorismo, da rigidez no planejamento e preparo das
aulas. O ensino tradicional, centrado na professora, sobretudo quando é expresso:
A gente estava sempre voltada para não ter o perigo de dizer uma coisa, a outra
professora dizer outra e assim por diante. Por outro lado, são observados
movimentos contrários, a partir do novo plano de ensino, na tentativa de mudança
do enfoque racionalista para um enfoque reflexivo sobre: maneiras de ensinar e
aprender. O ensino deixa de ser centrado no docente. A Profª Enfª 1 refere as
mudanças, a partir do novo plano de ensino, bem como das vivências de outras
experiências. Quanto a estas ela está se referindo à ampliação do trabalho
educativo da ETE com a sua entrada na educação em serviço para os
trabalhadores do GENF. Essa nova ação educativa da ETE tem proporcionado
perspectivas interessantes em vários sentidos, não só da convivência com
profissionais de outras áreas da educação, com docentes da UFRGS, por meio de
projetos que estão sendo desenvolvidos, com profissionais de outras áreas, mas
pelos estudos que estão sendo realizados, a partir dos referenciais teóricos e
pedagógicos que embasam a proposta de educação para os trabalhadores do
SUS
41
. Todos esses movimentos vêm resultando em mudanças das propostas
educativas da ETE e, em conseqüência, nas práxis das trabalhadoras da escola.
A Profª Enfª 1, ainda ressalta que vem percebendo algumas diferenças no
ensino, antes cartesiano para um enfoque mais ético-humanista. No entanto, ainda
observa certas recaídas entre um e outro enfoque. É mencionada, ainda, a questão
da postura controladora do docente, do ir e vir, de uma tendência pedagógica a
outra, sobretudo quando expressa: Eu acho que a gente ainda tem muito disso, do
41
A proposta de Política de Formação e Desenvolvimento para o SUS: caminhos para a Educação
Permanente em Saúde tem por objetivo definir uma proposta nacional de formação e
desenvolvimento para os profissionais da saúde, capaz de tratar de Educação e Trabalho, promover
mudanças nas Práticas de Formação e nas Práticas de Saúde, promover articulação entre Ensino,
Gestão, Atenção, e Controle e criar os Pólos de Educação Permanente em Saúde.(BRASIL,
Ministério da Saúde do MS/SGTES/DEGES,2004). .....
188
controle. Evoluímos, mas ainda somos cartesianas, mesmo dentro de todos os
questionamentos.
Os movimentos da abordagem tecnicista para uma abordagem ético-
humanista assumiram peculiaridades na prática de algumas professoras. Na
narrativa abaixo, a professora refere que se vê de um jeito antes e de outro depois.
O divisor de águas em sua prática é atribuído, em grande parte, a uma formação
holística que realizou, enquanto professora enfermeira. Entretanto, assevera que a
formação anterior, ainda influencia sua prática de ensino. A luta dos contrários vai
acontecendo, no organismo vivo da formação permanente e de sua prática
educativa, a partir de seus movimentos como ser histórico e social:
Profª Enfª 1 – Na minha prática educativa eu me vejo até uma parte de um jeito e
depois de outro. Então, hoje, eu não consigo, talvez, mais lembrar. Muito da
minha prática hoje, ela está basicamente influenciada por um curso da formação
holística que eu fiz, em que a proposta metodológica era diferente. Era vivencial.
É um tipo de especialização. É claro que ainda tenho coisas da minha formação
anterior, as coisas do controle.
Na tentativa de romper com a forte presença tecnicista em sua formação
graduanda e na licenciatura, a professora vai buscando alternativas holísticas para
sustentar a abordagem metodológica de sua práxis educativa. Traz de sua
formação em enfermagem o que fez a diferença, o que teve importância e em seu
devir histórico e social. “vai ao encontro de um caminho para o aluno aprender”.
Recupera alguns sentidos pessoais, de sua formação, nessa trajetória.
Profª Enfª 1 - Uma coisa que me influenciou na formação foi poder achar um
caminho para o aluno aprender. Isso eu aprendi com uma professora na minha
formação. Foi vital, porque eu vivi isso. Agora, do restante da formação, eu vejo
a questão das práticas corporais, que eu comecei a fazer, principalmente da Ioga
que foi me modificando e foi me mudando. Eu comecei a entender que não podia
ser só aula teórica. Eu comecei a pensar que não podia ser só isso, que não era
isso que iria me garantir que os alunos iriam aprender porque, quando eu
comecei a dar aula aqui na ETE, na supervisão dos estágios, eu via que cada
aluno era diferente do outro. Essa coisa de querer entender como o aluno
aprende, sendo diferente do outro aluno eu trago da graduação. Para mim foi
importante alguém entender que embora eu parecesse diferente, mas eu tinha
alguma... É tu conseguires tocar o aluno. Eu acho que isso é essencial como
educadora.
189
Na perspectiva da formação continuada por uma busca pessoal, a
professora foi mudando sua prática educativa, a partir de abordagens
metodológicas embasadas em referenciais holísticos.
Profª Enfª 1 - Uso muitos referenciais lá da Unipaz. O Pierre Weil trabalha muito
com isso. Trabalha muito com o Psicodrama. Têm algumas aulas que eu
trabalho com isso. Um dos referenciais do Psicodrama que o Pierre usa é o
Moreno que trabalha com isso. Tu fazeres a dramatização de uma situação em
que eles possam trocar de papéis também. Acontece, na realidade, um pouco da
tua cura porque, quando tu cuidas, tu te curas também. E isso é diferente do que
eu havia aprendido lá na formação. Eu aprendi que eu sabia tudo e que eu
cuidava dos outros e curava os outros. A minha formação foi assim. Aí, eu
aprendi que eu cuido dos outros, mas sou cuidada e que é para o meu
aprendizado muito mais, do que tu estás ajudando aquele outro. Se cada aluno
perceber que aquela situação que ele está vivendo é para ele mudar, se
transformar, eu acho que, aí, a gente vai poder mudar a Enfermagem. Isso passa
pelo corpo, pela emoção, pelo choro.
A tendência holística tomou conta da enfermagem, a partir da construção de
conceitos que procuravam romper com o cartesianismo da formação, com as
abordagens puramente racionais. A abordagem holística tem sido utilizada para
sensibilizar os discentes para o desenvolvimento da perspectiva do cuidado total ao
paciente. Almeida menciona que a Teoria Holística de Myra Estrin Levine, refere
que: “A intervenção de enfermagem está baseada em quatro princípios de
conservação da enfermagem: conservação de energia, integridade estrutural,
integridade pessoal e social” (ALMEIDA,1989 p.91).
Embora todo o corolário holístico, buscando revestir a formação dos
discentes e a educação em serviço junto aos trabalhadores do GENF com
tonalidades ético-humanistas ficam explícitas as contradições desses movimentos
humanísticos nas práticas educativas de algumas professoras. Ao mesmo tempo
em que permeiam os conteúdos do ensino com abordagens dessa natureza, da
compreensão do indivíduo em todas as dimensões humanas, há a premência que
toda situação de ensino-aprendizagem acarreta, quanto à pressão do tempo para o
desenvolvimento do programa de ensino na concretude da formação do discente.
Aliado a esse aspecto se insurgem as contradições da formação das professoras
na medida em que vão praticando seus atos de ensino.
No sentido de tornar mais evidente essa análise recupero uma situação que
vivenciei em minha prática, como orientadora pedagógica na ETE, em que as
professoras, após o desenvolvimento do tema de ensino por meio da abordagem
190
holística, associada à abordagens crítico reflexiva, problematizadora e refinada
com aspectos contextualizadores, com a flexibilidade esperada à coerência da
proposta de ensino que estavam desenvolvendo, respeitando os ritmos de cada
aluna e aluno em seus processos de aprendizagem, sem a preocupação rígida com
a formalidade da técnica e sem a incisiva postura controladora no desempenho do
discente, ao realizarem as primeiras avaliações referentes ao tema ensinado,
reproduziram o oposto. Aplicaram instrumentos de avaliação coerentes com as
abordagens tecnicista e tradicional de ensino, na medida em que exigiam dos
discentes a memorização detalhada do conteúdo ensinado, valorizando a aquisição
e não a construção do conhecimento, a transmissão e não a compreensão
problematizada do tema desenvolvido.
A rigidez observada no modo de avaliação realizado deixa nítida a firme
presença da influência da formação somada a outros mecanismos que interferem
na produção de uma prática problematizadora e emancipadora na extensão da
relação de ensino e aprendizagem. A compreensão da busca de coerência na
triangulação do planejamento, do ensino e da avaliação cai por terra. O discente
mediante um ensino com essas visíveis contradições acaba sofrendo em seu
aprendizado. A avaliação que poderia assumir um sentido mediador para o docente
e discente, acaba sendo uma sentença de cunho finalístico, indo de encontro ao
entendimento da dimensão do inacabamento do ser humano. Volto a essa questão
no item 1.4 deste capítulo
A fala abaixo fornece algumas pistas para a compreensão da materialidade
das contradições apontadas. A prática educativa exercida pelas docentes da ETE
está mergulhada num contexto enriquecido por outras práticas e configurações
político-sociais, como as relações entre as equipes que circulam nos campos de
estágio, os espaços de poder estabelecidos historicamente, as exigências de um
cuidado formatado na lógica tecnicista, na ênfase no fazer, na reprodução
mecanicista do saber acaba influindo toda uma prática que na sala de aula e no
laboratório da escola se dá de um jeito e nos andares das unidades se dá de em
parte de outra forma. Essa mistura de tendências, acrescidas das contradições da
formação, dos espaços materiais do ensino, das relações de comprometimento
com as diversas configurações dos espaços onde transitam professora e alunos
contribui para a luta de contrários. No entanto, mesmo que a professora refira que:
191
Eu me vejo assim em muitos momentos, deixando-os ir sozinhos e em alguns
momentos controlando, puxando, a riqueza dessas contradições está nas
possibilidades dos movimentos que elas produzem em direção à transformação de
sua prática educativa, da formação do discente, dos espaços onde transitam com
seus alunos e alunas, enfim dos próprios processos de trabalho praticados na
instituição hospitalar.
Profª Enfª 1 - Eu como educadora, como professora dentro da Instituição, isso
desde que se começou, a gente desempenha vários papéis. Por exemplo,
quando vais fazer estágio, tu tens um papel de professora com aquele grupo de
alunos. Tu tens o papel de cuidadora desses pacientes que tu estás cuidando.
Tu tens um papel com essa equipe de relação e de cuidado. Então, tu tens que
transitar nessas três dimensões. Isso é uma coisa cansativa, porque tu estás
com o aluno e tu conheces as pessoas que estão naquele andar. Tu tens que
fazer um vínculo porque, senão, o aluno não consegue se inserir. Então, isso,
pra mim, é uma coisa muito junta. Até porque o conhecimento do aluno em
estágio, eu sou parte desse conhecimento. Tem muito de outros aprendizados
que acontecem com os auxiliares, com as enfermeiras, com os secretários, com
os pacientes. Eu me vejo assim em muitos momentos, deixando-os ir sozinhos e
em alguns momentos controlando, puxando. Tanto que eles estranham isso. Eu,
às vezes, tenho, até, dificuldades nisso. Tu tens que dar conta daquilo que tu te
propuseste. Então, para tu dares conta daquilo, tu tens que puxar um pouco.
Então, acaba voltando a formação de lá. Tu queres que o aluno tenha
experiência. Eu gostaria de trabalhar nos estágios coisas que não fossem
técnicas, mas eu não posso fazer.
Outro aspecto que traduz uma das expressões da própria materialidade do
ensino profissional, em meio à realidade institucional que cerca o processo
educativo, é a cobrança que o discente faz ao docente em relação a primazia do
ensino de técnicas, narrada abaixo pela professora. Como a própria docente
analisa, o discente baseado no modelo com o qual convive nas práticas de estágio
com relação à ênfase do fazer, próprio da teoria tecnicista, sobre outras dimensões
do cuidado, acaba sentindo a necessidade dessa abordagem em detrimento de
outras. No atendimento dessa solicitação, o papel da prática de ensino estará
fortalecendo na formação do futuro técnico, a divisão do trabalho intelectual –
trabalho manual, a dicotomia histórica entre o pensar e o fazer. No exercício do
meio de campo realizado pela professora nas atividades de estágio, vai estar mais
uma vez, a possibilidade do movimento, tanto na formação do discente, quanto no
processo de trabalho da/o auxiliar ou técnica/o da unidade, onde a prática de
ensino está acontecendo.
192
Profª Enfª 1 - O aluno exige experiência técnica, porque ele vem com a
concepção e ele vê o modelo. O modelo com o qual o aluno convive que é o dos
auxiliares e técnicos é a técnica. Aqui no hospital é assim Em alguns modelos
ele vê o diálogo, a conversa, mas o modelo é, basicamente, o fazer. O ir e vir. E,
na realidade, a equipe reforça um pouco isso. Essa questão do teórico com a
prática que tu tens que fazer um meio de campo na formação.
1.3 – A prática educativa: entre a sala de aula, as unidades de internação –
alunas/os, professoras enfermeiras – enfermeiras/os, trabalhadoras/es e
pacientes/usuários
As histórias orais, narradas abaixo, expressam o dia-a-dia das professoras
enfermeiras na concretude de sua prática educativa, enquanto prática social que se
realiza num contexto de interesses antagônicos entre o capital e trabalho, entre o
pensar e o fazer. Práticas resultantes da suas condições como seres históricos e
sociais, da materialidade de suas formações, dos espaços onde exercem os seus
saberes, suas certezas e incertezas provisórias, suas reproduções e criações, suas
contradições e sínteses.
O ensino realizado num curso técnico de formação em saúde assume
algumas características que tornam o seu currículo peculiar. As questões de vida,
de saúde, de doença, do nascimento, da morte fazem parte, entre outras, da
singularidade dos temas de ensino que compõe o currículo em sua totalidade. Em
meio a emergência dos conteúdos técnicos, dos procedimentos, existem os de
natureza cultural, ética, política, histórica, social e econômica. Nesse contexto, os
temas relacionados à finitude da existência humana fazem parte do cotidiano das
aulas, já que os alunos lidam diretamente com vida, a saúde, a doença e a morte.
Na fala abaixo, a professora lembra de uma aula sobre a questão da morte.
A metodologia de ensino utilizada pela professora está inspirada na abordagem
ético-humanista, defendida pelas idéias do psicólogo americano Carl Rogers, em
algumas teorias de enfermagem que tratam do enfoque do cuidado humanizado e
em na abordagem holística. O uso de dinâmicas de sensibilização funciona como
193
recurso facilitador para o trabalho educativo com temas referentes às diversas
dimensões da existência humana. O intuito da aula foi de desenvolver nos alunos
as competências de inter-relação do cuidador com o ser que é cuidado.
Profª Enfª 1 - Uma das aulas que me toca muito é uma aula que eu sempre faço
com as turmas, sobre a questão da morte. Eu faço uma técnica de
sensibilização. As aulas com dinâmicas, em geral, são, normalmente, aulas que
me mobilizam bastante. Na realidade, tu consegues chegar na essência e eles
dividem com o grupo. Essa aula, com essa dinâmica é uma aula que sempre
mobiliza muito eles. É uma aula que eles conseguem se colocar, cada um,
individualmente, e se conhecerem.
A utilização de abordagens ético-humanistas na introdução de aulas, que
suscitam reflexões mais aprofundadas referentes ao ser humano é bastante
freqüente por parte algumas professoras da ETE. Essas abordagens são utilizadas,
também, para o trabalho educativo em outros conteúdos. O que denota certa
tendência do curso. Em oposição a essa configuração de cunho humanista, após o
exercício de uma aula nesse tom, os alunos ao se dirigirem para a prática de
estágio, passam pela abordagem pedagógica tecnicista, com algumas nuances de
abordagens na linha problematizadora. Ao mesmo tempo em que, são ativados
aspectos da sensibilidade do discente, pela arte de cuidar, como é denominado o
eixo temático que trata desses conteúdos, é cobrado do discente, com certo
rigorismo, posturas mais objetivadas na realização do mesmo cuidado, tendo em
vista, uma programação que enfatiza a sistematização da aprendizagem, pela
repetição e realização de várias tarefas num mesmo turno de prática de estágio. A
contradição entre uma abordagem reflexiva, que trabalha questões da
corporeidade e da sensibilidade pessoal do discente e uma abordagem
transmissiva, de treinamento de posturas e desempenhos, minuciosamente,
ensinados para serem repetidos da maneira mais próxima possível da instrução
dada, é bastante pronunciada, causando no discente e, até mesmo, nas
professoras algumas dificuldades no convívio com abordagens tão radicalizadas
pelos modos como são levadas a efeito.
Abaixo a professora refere alguns aspectos de seu trabalho, da abordagem
teórico- metodológica que sustenta boa parte de sua prática educativa no curso
técnico e em seu trabalho de educação em serviço com as/os trabalhadoras/es da
enfermagem. Ressalta que esse seu modo de trabalho em educação e saúde foi
194
construído ao longo de sua vida profissional por buscas pessoais. Em sua fala cita
algumas influências de cursos que realizou em período posterior à formação em
enfermagem e no curso de licenciatura.
Profª Enfª 1 - Na verdade, a dinâmica serve em cima do que tu já tens, do que tu
trouxeste, do que tu viveste, tu pensaste para tu fazeres a reflexão. Isso eu não
aprendi nem na licenciatura e, também, não aprendi no curso de metodologia.
Tudo passa pelo corpo. O conhecimento só intelectualizado vai embora. Quando
ele passa pelo corpo, ele fica. Esse que fica no corpo e que tu conectas a tua
mente com o teu corpo é que vai te fazer andar. Então, se eu penso que se eu
tivesse cinco minutos de vida o que eu faria, eu vou lembrar que eu não me dou
bem com o meu pai e com a minha mãe. Aí, eu começo a rever isso e talvez, ao
chegar em casa, eu abrace o meu pai e a minha mãe. E, aí, quando eu estiver
cuidando e estiver alguém morrendo, eu vou me lembrar disso ou não.
Teoricamente, tu vais lembrar disso e tu vais trabalhar outro apoio. Isso vai ficar.
Tu podes incluir a questão da leitura, do teórico. Tu vais fazendo os ganchos,
mas se tu viveste aquilo, se tu ficaste com essa memória no teu corpo, tu andas.
Pelo menos eu acredito nisso. Isso eu aprendi na Unipaz, depois com a ....... e
com a minha própria experiência, dentro das coisas que eu fui fazendo, nos
cursos que eu fui fazendo dentro da própria Ioga. Isso não quer dizer que para
todos tem esse significado, mas eu acredito nisso.
As falas a seguir apresentam, nitidamente, a configuração das contradições
da formação tanto em enfermagem, quanto no curso de licenciatura e a
manifestação dessas nas práticas educativas das professoras enfermeiras,
conforme venho sinalizando nesse estudo. A prática ético-humanista reúne-se à
rigidez de um panorama pedagógico objetivado pelo tecnicismo, por uma ênfase na
quantidade de conteúdos, na quantidade de ações previstas para práticas de
estágio, nas práticas educativas centradas no docente. Na triangulação das falas
da Profª Enfª 5, da Profª Enfª 2 e da Profª Enfª 3 são percebidos os movimentos
nesse sentido, a busca em torno de uma coerência nas abordagens teórico-
pedagógicas de suas práticas educativas. A Profª Enfª 5 refere que foi aderindo a
sua prática educativa, prioritariamente tecnicista, alguns aspectos das abordagens
humanistas na educação e, nesses movimentos, foi modificando determinados
aspectos de sua prática: Estou em um processo de transformação de tentar dosar
mais a questão técnica, a questão humanística.
Profª Enfª 5 - No início da minha prática como professora eu, realmente,
valorizava muito a questão técnica. Eu achava que tinha que prepará-los para
serem tecnicamente bons. Eu pensava muito no fazer e na quantidade. Quanto
mais eles fizessem, melhor seria. Ao longo, eu fui vendo a importância da
emoção e, até, do aluno estar mais tranqüilo para o aprendizado, porque se ele é
muito exigido, muito cobrado e com muitas coisas, isso acaba atrapalhando o
aprendizado. Então, hoje, eu estou tentando. Estou em um processo de
195
transformação de tentar dosar mais a questão técnica, a questão humanística.
Deixar o aluno mais relaxado para aprender. Então, baseada nessas reflexões,
eu acabo conhecendo o aluno, entendendo mais todo o processo de
aprendizagem dele e tentando acertar nesse sentido. Eu gosto muito tanto de
estar dentro da sala de aula, como nos estágios.
A Profª Enfª 2, ao recuperar alguns contornos de sua prática educativa,
atribui ter reproduzido sua formação graduanda e sua própria formação no curso
técnico de enfermagem. Refere já ter evoluído, conforme menciona em sua
narrativa.
Profª Enfª 2 - Quando eu entrei para a escola, eu era enfermeira da ...,
extremamente tecnicista. Então eu preparava a minha aula tentando passar para
os alunos como é que eu fazia e baseada, e fundamentada em livros e tal, mas a
gente passava muita, muita técnica. Eu vejo que eu evolui. Eu tentava fazer com
que os alunos fizessem e fossem iguais aos funcionários que eu tinha lá no ...,
que eles tinham que ser tão bons. Eu era tão cobradora, impressionante, porque
eu ia para o estágio e queria que o aluno, quando terminasse o estágio, que ele
estivesse tão bom, ou melhor que o funcionário que eu tinha lá. Isso vem da
minha formação, eu tive uma formação no técnico de enfermagem extremamente
rígida e na faculdade não foi diferente. Então assim, eu tinha uma ânsia de
passar tudo o que eu sabia para os alunos, mas eu não deixava eles colocarem
o que sabiam e nem deixava espaço para eles fazerem de formas diferente.
A existência de uma prática delineada, majoritariamente, sobre a questão do
fazer, ajustada à ótica, por vezes, desumanizada dos processos de trabalho nas
unidades de assistência do hospital, pelo acúmulo cada vez maior de trabalho,
conjugado com a diminuição progressiva de trabalhadores por unidade, causava
inúmeras dificuldades na relação ensino-aprendizagem. Os alunos intimidados pela
pressão da situação, pelas conseqüências da possibilidade do erro, que no ensino
em saúde assume uma dimensão peculiar por estarem lidando com a vida de
outras pessoas, acabavam não aproveitando satisfatoriamente suas oportunidades
de aprendizagem. A Profª Enfª 3 aponta alguns indícios em torno dessas
circunstâncias:
Eu me lembro que tinham colegas que iam para o estágio em uma área
especializada, que é um local em que os pacientes estão graves e faziam grupos
de seis pessoas. Cada aluno ficava com um paciente. Tenho certeza que,
didaticamente, era impossível os coitados dos alunos aprenderem. Eu me lembro
que, a cada três semanas, alguém fazia uma medicação errada e os professores
ficavam conversando sobre o assunto. Claro... ninguém queria contar isso,
ninguém quer que aconteça isso, mas acontecia, porque não havia condições.
Existia uma preocupação muito grande de que os alunos fizessem coisas,
fizessem, fizessem, fizessem horrores de coisas e, agora, não. As coisas foram
mudando aos poucos, era uma coisa enlouquecida, enlouquecida.
196
Logo que entrei para a ETE percebia o quanto essa situação mobilizava a
todos. Tanto as professoras, como os alunos viviam momentos de muita tensão
nas práticas de estágio e em menor extensão nas aulas no’ laboratório e na sala de
aula. Os discentes demonstravam insegurança frente ao excesso de informações
que eram passadas de forma transmissiva, sem o devido tempo para entendê-las.
O treinamento repetitivo, a quantidade em detrimento da qualidade, o rigorismo
técnico, a falta de paciência na espera do tempo do discente, a realidade vivida
por docentes e discentes mediados por um contexto de ensino fortemente
hierarquizado e dicotomizado entre o saber e o fazer geravam sérios entraves no
processo educativo.
É importante referir que os discentes, além de aprenderem a realizar os
procedimentos técnicos nas práticas de estágio, convivem com a materialidade das
relações de trabalho configuradas nesses espaços. Nesse sentido, com algumas
exceções, professoras, alunos e alunas acabam reproduzindo na relação ensino-
aprendizagem, a mesma lógica das relações de trabalho, a do poder de quem
dirige a unidade, por ser intelectual (enfermeira/o), a do poder de quem ensina, por
se considerar detentora do saber (professor/a), sobre a subalternidade de quem
faz, por supostamente não pensar (trabalhador/a) e de quem aprende, por
supostamente não saber (aluna/o).
Na medida em que passava a conviver com essas questões de educação
em saúde, com a proposta curricular do novo plano de ensino da ETE, com falas
técnicas, até então estranhas para mim, sobre doenças, patologias, catéteres,
sondas, hemodinâmica, stents, com processos de trabalho peculiares, mais me
sentia instigada pela busca de compreensão dialética da materialidade desse
espaço de trabalho. A necessidade de entendê-lo, para poder realizar intervenções
pedagógicas mais apropriadas dirigiu a minha práxis, a partir de então. Nesse
sentido propus para as professoras a realização de encontros semanais para
estudos, além dos espaços pedagógicos que já existiam. Esses encontros foram
muito importantes naquele período do início do novo plano de ensino. Após dois
anos, fomos diminuindo o ritmo dos estudos pelas demandas da escola, até
retomarmos essa atividade, há um ano atrás, quando iniciamos a educação em
serviço com os trabalhadores do hospital.
197
Nesses encontros vinculávamos a teoria às questões da prática educativa, à
falas dos alunos ouvidas nas aulas, nos corredores, nas unidades de internação,
nos conselhos de classe. A mobilização pedagógica feita por meio desses
encontros e das demais reuniões da escola contribuiu, entre outras coisas, para a
realização de alguns movimentos nas práticas de ensino, no sentido de torná-las
mais críticas, menos focadas na excessiva preocupação com o fazer. A narrativa
abaixo evidencia essas mudanças:
Profª Enfª 2 - Eu acho que a questão da minha formação que eu trouxe, essa
formação tão rígida, que eu separava, uma coisa era eu dar aula, outra coisa era
eu na prática e na prática eu me transformava.Hoje eu consigo casar essas duas
coisas, teoria e prática , eu acho que eu consigo ter uma liberdade. Eu não dava
muita liberdade para os alunos, eu fazia essa diferenciação, com aluno e com
quem eu já trabalhava, então, hoje eu considero que eu consigo trocar muito
com os alunos, que eu consigo ser muito mais tranqüila, esperar o tempo do
aluno fazer, saber que cada um tem o seu tempo e de tentar aproveitar todas as
oportunidades do estágio. Eu acho que eu estou mais calma hoje, porque eu
tinha uma ânsia de fazer com que eles saíssem ótimos e ninguém sai ótimo, hoje
eu consigo me dar conta disso, que as pessoas vão se formando ao longo da
sua prática profissional e que não saem prontos da escola, mas eu não tinha
essa noção antes.Eu acho que eu consegui ter essa visão, quando eu sai do ... e
vim especialmente para a escola, porque daí eu tive mais tempo de me voltar
para estudar um pouco sobre a educação, para ler um pouco mais. Quando a
gente passou nosso currículo para as competências foi daí que eu me dediquei
um pouco mais e daí que eu comecei a entender um pouco mais e que
realmente eu tenho que ver o tempo do aluno, que eu não sei tudo.
Os movimentos na prática educativa produziram uma diminuição das aulas
expositivas, centradas na professora, com raras possibilidades de participação
das/os alunas/os e por meio de metodologias inspiradas nas tendências
pedagógicas tradicional e tecnicista. Na narrativa abaixo, a professora deixa visível
a influência da formação em sua prática educativa. Repetiu no início de seu
trabalho como professora, as aulas expositivas, cansativas e monótonas. Com o
passar do tempo foi mudando suas concepções de educação estimulada pelas
contradições da realidade material a sua volta. As aulas dadas por meio de lâminas
coloridas foram sendo substituídas por práticas humanizadas, pela valorização da
participação das/os alunas/os, pela conexão com a realidade:
Profª Enfª 5 - Quando eu comecei a dar aula, hoje eu não estou mais fazendo, fiz
aquelas aulas expositivas, cansativas, monótonas. Eu fazia projetando mil
imagens. Preparava com recursos visuais fantásticos, como eu aprendi. Eu não
faço mais e, hoje, estou gostando muito porque a gente começa uma aula com a
sensibilização, se preparando para o trabalho, fazendo uma dinâmica, depois, se
faz uma aula expositiva, dialogada, mais dialogada. Trocando experiências,
198
porque os nossos alunos têm uma bagagem imensa de vida. Eles estão mais
informados. Trazem coisas da Internet, que a gente nem viu ainda. Temos que
mudar e nos preparar para isso, de trocar mais em sala de aula. Eu gosto muito
de trabalhar em cima, tentando contextualizar e trabalhar baseada na realidade.
Isso eu estou fazendo na Educação e Serviço. Por exemplo, eu dava cursos.
Hoje, eu quero trabalhar mais em cima da vivência. Se eu vou dar um curso, por
exemplo, eu dava um de cuidados com cirurgias abdominais. Hoje, eu quero
tentar simular um paciente, trocando experiências com as pessoas. Não vindo
com uma aula pronta, discutindo junto. Então, eu estou gostando de fazer essa
transmissão. No início, foi um pouco difícil, porque tu vinhas com aquele modelo
que te era confortável. Era uma coisa fechada. Era fácil dar aula daquele jeito.
Hoje, é mais difícil e a flexibilidade do ir e vir, porque o aluno te questiona. Muitas
vezes, esses questionamentos estão fora do que tu estás dando. Tu não podes
deixar ele sem resposta, mas tu tens que ter essa agilidade do ir e vir para
retomar onde tu estavas.
A aparente proteção das paredes do hospital, mediante aulas quase
impermeáveis aos diversos contextos da saúde oficiais ou não, da não saúde,
marcada pela situação miserável de um enorme contingente populacional do país
e, à revelia dessa realidade, da boa saúde praticada pelo senso comum da
sabedoria popular começava a se dissolver, brotando, nas práticas educativas, a
semente do verdadeiro humano.
Aumentava a preocupação com a aproximação do aluno à realidade
contextual. A maior abertura para a realização de experiências educativas em
contextos menos certinhos foi permitindo o rompimento com os posicionamentos
mais rígidos na prática educativa.
Na narrativa abaixo, a professora está se referindo sobre um trabalho
proposto para os alunos com a finalidade de contextualização da realidade da
saúde pública, como está organizada, em que condições a população é atendida,
que trabalhos são feitos para promoção da saúde, quais os vínculos do
atendimento básico com as comunidades, por onde passa o usuário até chegar ao
hospital, quais os condicionamentos políticos, sociais e econômicos da saúde,
quais as políticas públicas, o que mudou a partir do SUS, o que ainda precisa ser
feito:
Profª Enfª 3 - Eu dei uma aula agora a pouco que os alunos apresentaram os
trabalhos e eu gostei, porque eles discutiram e eu vi que para eles fazia sentido
aquele assunto, eles conseguiram argumentar, falaram bastante, não ficou
aquela aula que o aluno fica só ouvindo. Eles deram exemplos do que acontecia
aqui em Porto Alegre, na vida deles, ai eu tentava sempre juntar depois, aqui no
199
estágio como é que vai ser. Eu gostei, acho que eles se sentiram valorizados.
Acho que as aulas têm que ser interativas, têm que colocar algumas coisas, eles
têm que falar, têm que entender, tem que ter algum tipo de discussão. E essa
aula eles falaram bastante, eu gostei porque não gosto de uma aula que as
pessoas não tenham oportunidade de se manifestar. Isso até agora, como
estudante, eu sinto às vezes, existe um pacto silencioso, as pessoas não falam,
apesar de não estarem entendendo, porque têm medo de serem criticadas, e eu
entendo que mesmo que seja uma bobagem que a pessoa vai falar, respeitando
os outros, ela tem direito a falar, e nos alunos eu também vejo isso e o professor
nesse momento tem obrigação de não expor o aluno, que às vezes os alunos
dizem umas bobagens, mas ai eu tento não expô-los, sei lá, se for uma coisa
muito séria, depois, quando acabar a aula, vai para um cantinho e conversa com
ele. Eles têm que se sentir à vontade para falar o que pensam dentro do tema
deles, claro.
A diferença no enfoque dado aos processos de cuidado realizados no campo
da saúde pública, com relação aos realizados entre as paredes de um hospital-
escola, passa a ser entendida e interpretada como um desafio pela riqueza da
experiência, pela emergência do entendimento do mundo da saúde.
Na perspectiva desses movimentos, as reuniões de planejamento, ensino e
avaliação passaram a ser mais polêmicas e enriquecidas dialeticamente pelo
estabelecimento do contraditório. Pessoas que, até então, não se manifestavam
começaram a dar suas opiniões, a romperem com os seus silêncios, encorajadas
pela valorização de seus saberes, pelas mudanças nos rumos da escola, agora
ocupando um espaço de maior inserção no hospital pelas ações de educação em
serviço e o conseqüente estabelecimento de uma convivência profissional
ampliada.
Pelas integrações de concepções, por uma nova direção que oportuniza o
crescimento profissional das trabalhadoras, incentivando-as na busca de
aperfeiçoamento e ainda, pela própria democratização do hospital, que vem
viabilizando políticas de participação, mesmo que ainda limitadas. Por essas
configurações, entre outras, a escola e suas trabalhadoras já não são as mesmas.
As narrativas abaixo expressam alguns dos movimentos mencionados
acima:
Profª Enfª 3 - O fato de estarmos estudando, eu estou estudando, a ........ já
concluiu o mestrado, tanto para gente como para todos é bom, porque estimula.
Hoje eu vejo o estudo como uma coisa muito boa, que estimula, isso eu tento
passar para os alunos, porque eu já passei por isso, eu já me acomodei, por isso
que é importante ter alguém que estimule, “olha, não vão ficar parados, vocês
têm que ir à luta, vamos atrás”. Eu acho bom.
200
Profª Enfª 5 - Eu estou gostando bastante da forma que a gente está
estruturando o currículo da ETE. Está mais contextualizado, engajado. Não está
mais tão fragmentado como era. Eu estou gostando bastante. Eu acho que
estamos no caminho certo, construindo ao longo. É óbvio que irão ficar lacunas
em qualquer formação, mas devemos buscar ao longo da vida o que nós
estamos fazendo. Eu acho que melhorou bastante e que a gente a cada vez está
fazendo transformações. É flexível, não é uma grade fechada como a gente
usava. Eu acho que a gente está conseguindo contemplar vários aspectos muito
importantes do cuidado, da forma como estamos estruturando.
A fala da Profª Enfª3 referindo a busca de caminhos de formação, a
superação da acomodação, o incentivo para o estudo, o ganho para todos, quando
as colegas saem para estudar e com isso estabelecem diálogos entre as suas
práticas e a realidade, trazendo para a escola a possibilidade dessa interlocução.
A abertura de algumas grades que ainda as aprisionavam como refere a Profª Enfª
5 no entusiasmo de ver que o currículo da escola está mais flexível,
contextualizado, menos fragmentado.
Nas contradições dos movimentos que vêm sendo realizados pelas
professoras enfermeiras, ao longo de suas práticas educativas, é importante
salientar, ainda, algumas falas que considerei eloqüentes na perspectiva desse
estudo:
A Profª Enfª 2 recupera uma aula que deu, a algum tempo atrás, sobre o
banho de leito. Em sua narrativa refere ter transmitido toda a técnica para os
alunos sem a oportuna contextualização que o tema merece. Esse assunto tem
sido tratado, exaustivamente, pelas professoras enfermeiras que buscam, a cada
planejamento, considerar os melhores caminhos para desenvolvê-lo.
No bloco temático que trata dos Fundamentos do Cuidado são
desenvolvidos os conteúdos básicos para a assistência de enfermagem, como
higiene e conforto, princípios de assepsia no cuidado, o cuidado de enfermagem na
administração de medicamentos, entre outros.
No decorrer das reuniões de planejamento dos blocos temáticos são
discutidos os referenciais teóricos e práticos, a metodologia e a avaliação. É
pensado, em linhas gerais, o desenvolvimento de todo o bloco, considerando os
aspectos mencionados. Na ocasião em que foi dada essa aula, as abordagens
eram, incisivamente, tradicional e tecnicista, com algumas feições ético-
humanistas, dependendo da professora que trabalhava o tema e, mesmo assim,
não fugindo da preocupação com a quantidade de informação. O essencial, na
201
avaliação de grande parte das professoras, parecia ser o treinamento, o domínio
perfeito da técnica, com algumas exceções.
Algumas professoras, por uma atitude individual, rompiam com as
combinações acordadas nos planejamentos, desenvolvendo sua prática de acordo
com suas próprias concepções de cuidado, sem, no entanto, desrespeitarem os
princípios científicos. Essas atitudes de suposta “rebeldia” foram constituindo o
contraditório e contribuindo juntamente com outras ações pedagógicas, para a
efetivação de algumas mudanças em direção a práticas educativas mais
contextualizadas, problematizadoras com uma maior integração entre a teoria e
prática.
Profª Enfª 2 - Eu dei uma aula de fundamentos que eu posso dizer que eu não
gostei, dei há um tempo atrás, de banho de leito. Eu cheguei e eu falei de toda a
técnica do banho de leito, depois nós fomos para a prática e eu não
contextualizei com eles, eu não parei para pensar junto com eles sobre quem
tinha vergonha do seu corpo. Um tempo depois, a gente refletiu, no
planejamento, sobre essa questão e vimos que as aulas de banho de leito não
poderiam ser dadas daquele jeito. Antes, eu era professora responsável por dar
toda a técnica. Eu tinha meia hora para dar a técnica. Cheguei na aula e despejei
para os alunos a técnica: tu começas pelo céfalo-caudal, lavando da cabeça aos
pés, lava primeiro esse braço, depois esse braço, depois as costas. Expliquei
bem a técnica em si, não levei em consideração que o tempo era curto para
introdução da técnica e se o paciente tivesse dor, se o paciente tivesse
evacuado, o que a gente teria que mudar. Eu falei muito rápido para eles e dei a
entender que, se tivesse alguma coisa física com o paciente a gente ia rever a
questão do banho, se o paciente tiver falta de ar... Mas eu não me reportei,
porque a gente ia fazer uma prática logo depois com eles fazendo o papel de
paciente, Não tive a reflexão deles sobre como é que eles se sentiam pacientes,
a vergonha que eles tinham do corpo frente aos colegas. Eu acho que esse foi
um tipo de aula ruim, e a gente passou para a prática. Daí a gente se deu conta
que muitos alunos não queriam dar o banho, eles não queriam se mostrar frente
aos colegas. Então a gente parou para refletir que a próxima aula a gente ia
fazer uma prática com eles sendo paciente, a gente tinha que contextualizar o
mundo deles sendo paciente, para daí começar.
A mesma professora que desenvolveu a aula narrada acima e falou sobre os
seus processos de trabalho, mencionados no decorrer dessa análise, após algum
tempo, vivendo a materialidade de ser professora de enfermagem numa escola
técnica, de uma instituição hospitalar, parece não ser aquela professora que não
ousava ouvir os alunos, o colorido de suas fantasias sobre o imaginário que
alimentavam suas imagens sobre os assuntos da saúde e daquele enorme
hospital, que apesar dos seus doze andares de concreto e de imponência sedutora
para os que estão do lado de fora, que o vêem poderoso, é feito por pessoas, pela
202
humanidade de cada um e do coletivo e pela materialidade fundante de suas
contradições. A sua narrativa, rica em detalhes, torna visível, por si só, as
mudanças de uma prática centrada no docente e na técnica para uma prática
reflexiva sobre a realidade, de valorização da participação do discente, de seus
saberes prévios.
Profª Enfª 2 - Eu dei uma aula que achei muito legal no ... Os alunos estavam
começando no ..., tem o medo do novo, é normal. Eu considero que a minha
prática facilitou para que eu conseguisse construir aquela aula. Primeiro pedi que
eles escrevessem o que eles imaginavam do ..., antes de eu começar a dar
todas aquelas aulas sobre o paciente crítico. O que eles entendiam, o que eles
imaginavam que era o .... Vieram muitas fantasias, porque eles vêem muita
televisão, então a gente discutiu muito sobre o que era fantasia, o que a
televisão mostrava, o que era realidade. Eu tentei deixar bem aberto para eles
falarem o máximo que eles podiam. Terminada essa parte, agora vamos colocar
o jaleco e vamos subir para vocês enxergarem uma .... Daí eles subiram, “mas o
que nós vamos fazer, perguntaram. Disse a eles: pensem, conversem,
observem, vejam o mundo do .... Eu mostrei algumas coisas, deixei-os
conversando com os funcionários, com alguns pacientes que estavam
acordados, para eles verem que nem todos os pacientes não falam e estão muito
mal, porque têm algumas pessoas melhorando no ....
A professora, pacientemente, ouviu seus alunos. No dizer de Freire:
Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que,
em certas condições, precise de falar com ele” (1996, p. 113). A docente estimulou
os alunos para a observação da realidade. Com calma, oferece o tempo
necessário para que os alunos reflitam sobre o que o contexto lhes oferece. Nesse
tempo de observação e reflexão, a professora instiga-os para a descoberta do que
não passou de um imaginário e de como foi produzido e do que é real.
Profª Enfª 2 - Quando voltei para a sala de aula naquela tarde “e agora, o que
vocês conseguiram enxergar, daquilo que vocês imaginavam, daquilo que vocês
viram lá”. Fizeram muitas colocações, porque eles pegaram o horário de visita,
pois fiz questão de levá-los em horário de visita, eles trocaram com os familiares,
eles conseguiram se dar conta que o ambiente era muito fechado, que os
pacientes estavam muito ansiosos e os familiares por aquele momento da visita,
que o familiar estava com grande necessidade de cuidado, tanto quanto o
paciente, que a equipe era ágil, mas a equipe conseguia, porque cada
funcionário ficava só com um paciente, então conseguia ver o paciente como um
todo, e a partir dali eu comecei a trabalhar com eles sobre como se enxerga o
paciente e a partir das necessidades do paciente como é que eu começo a
cuidar dele. Então eu considero que fiz uma construção com eles
desmistificando e tirando um pouco dos medos, para favorecer com que eles
conseguissem entender o que era cuidado de .... Eu acho que isso foi uma aula
bem legal.
203
Na observação desses aspectos, ainda percebo algumas contradições.
Apesar desses movimentos rumo a práticas mais democráticas, participativas, as
docentes, por vezes, produzem e reproduzem, sobretudo nos campos de estágio,
práticas ainda controladoras, com alguns ingredientes da rigidez e da
inflexibilidade, que marcaram o início de seus processos de trabalho, na condição
de professoras do ensino técnico. Nessas situações, talvez sejam mais enfermeiras
professoras do que professoras enfermeiras.
Continuando a análise sobre a referência que as professoras fizeram acerca
do passado recente de seus modos de trabalho e como vêm desenvolvendo no
presente, destaco a fala abaixo:
Profª Enfª 5 - Ao longo da minha prática já dei aulas maçantes, que tem aluno
dormindo. Tu sais e dizes “Meu Deus! O que eu fiz?”, por mais cansada que tu
estejas, se o assunto é interessante e a pessoa que está ali é estimulante, ele se
torna agradável. Então, se o aluno dorme é porque está ruim a aula mesmo.
Antigamente, eu fazia uma escala, por exemplo: tu vais ficar com tal, tu com tal e
tu com tal. Hoje, eu ainda faço a escala, mas eu tento perceber com o aluno. Eu
pergunto para ele, se ele acha que ele consegue, se ele quer ficar, se ele está
bem e para dizer se não estiver bem. No começo, eu pensava que a gente tinha
que cuidar do começo ao fim do turno de estágio como era minha formação,
independente de eu não estar bem, daquilo estar me mobilizando, sentimentos,
tu tinhas que fazer e eu fazia isso.
O ritmo enfadonho da prática educativa, sem significado para os alunos
parece ter ficado para trás. A professora, em sua produtiva autocrítica, vai
transformando sua prática educativa em direção a caminhos mais envolventes
junto ao discente. A reprodução de abordagens pedagógicas aprendidas em sua
formação, em confronto com a realidade concreta, com os enfrentamentos
pedagógicos com outras práticas, por meio de sua ação – reflexão – ação foi
oferecendo os ingrediente necessários para a mudança. A ação educativa
controladora, sem o incentivo à participação do discente, sem a opção de escolha
do melhor caminho para sua aprendizagem, sem o respeito a sua autonomia e
premida pela insegurança de ser realizada sobre o leito do paciente, com toda a
dimensão da vulnerabilidade humana que essa situação enseja, é substituída por
uma prática movida pela antítese dessas abordagens.
Profª Enfª 5 - Nos estágios, eu procuro dar o máximo de tempo junto com o
aluno, mas, também, procuro estimulá-lo na questão da autonomia e da
independência. Então, eu procuro ficar mais na sombra, mais longe, mas ele
sabendo que eu estou perto para necessidades. Também deixando ele ir.
204
Procura-se tentar o máximo perceber, até de fora de um quarto, se ele está
conseguindo ir... até para ver o momento em que eu preciso intervir, que eu
preciso ajudá-lo, dar a mão, estimulá-lo, incentivá-lo naquilo que ele está
fazendo, corrigindo na medida que é possível, que é necessário, melhor dizendo.
No início eu ficava muito perto do aluno, muito em cima. Eu fui vendo que eu
preciso dar mais espaço para eles. Até o modo de minha posição, eu me
posicionava muito perto do aluno e isso oprimia. Eu me posiciono um pouquinho
mais distante e, aí, ele tem mais espaço até para respirar. E me aproximar e
perceber se ele está com medo, até onde eu posso ir. De, às vezes, perceber
que ele está com medo de tocar o paciente. Então, eu vou lá e toco antes. Eu
vou colocando a mão dele.
Nessa perspectiva da prática educativa estão atreladas as implicações
ideológicas dos contextos de formação das professoras enfermeiras, dos espaços
onde elas vêm exercendo sua práxis, das políticas públicas de educação e saúde,
oriundas de contradições políticas, econômicas sociais e culturais de uma
sociedade favorecedora de propostas pedagógicas hegemônicas e
estrategicamente estruturadas para manter os interesses do capital. Na luta dos
contrários, o novo que vai se concretizando não elide totalmente o antigo. A nova
prática educativa traz em si, novas qualidades, mas em sua extensão conserva as
que são favoráveis a sua recente constituição. Nesse movimento as professoras
verbalizarem o ir e vir que acontece no decorrer da realização de seus atos de
ensinar.
Essa situação é evidenciada na fala abaixo. Embora a professora conserve
alguns elementos da prática educativa anterior, agrega outros que mudam o
significado do seu trabalho, na medida em que, aproxima a teoria da prática. O
rompimento, em parte, com o paradigma da pedagogia transmissiva para a adoção
de uma abordagem pedagógica participativa e contextualizadora indica um
caminho de reflexão crítica sobre a prática, a partir de seu envolvimento dialético
com um contexto escolar que, junto, se transforma nas possibilidades vivificadas
por uma realidade desafiadora e contraditória.
Profª Enfª 6 - Eu dei uma aula no ano passado que não gostei de História da
Enfermagem, usei vários recursos, mas eu acho que, de certa forma, eu dei
muita informação para os alunos que, hoje, eu já reciclo e faço com que eles
busquem de outra forma. Com a Internet, isso é muito bom para gente. Tem uma
interatividade maior. Têm fios que a gente pode trabalhar. As coisas de
legislação sobrecarregam os alunos em alguns momentos. Então, eu deixei para
dar isso em outro momento. Quando eles tiverem na prática do cuidado. Esse
ano, eu já agi de forma diferente. Eu consegui estruturar essa aula de forma
diferente, tendo o mesmo plano de fundo, mas modificando a forma, o enfoque.
205
Na fala abaixo, a Profª Enfª 6 refere ter feito um movimento em sua prática
educativa. A partir da convivência com outras colegas foi mudando a forma de
desenvolver suas aulas. Traz como exemplo uma aula sobre a lavagem das mãos.
Nessa narrativa é nítida a influência que o coletivo pode operar na ação educativa
de um docente. Dentro das margens de sua formação, das novas interações no
cotidiano de seu trabalho foi alterando o modo de concretizar as ações de sua
prática social de ensinar inspirando-se numa abordagem ético-humanista.
Profª Enfª 6 - Quando eu entrei na ETE eu dei uma aula que foi bastante
significativa, eu consegui ver de outra forma a minha construção. Eu consegui
fazer uma boa aula sobre lavagem das mãos. O que eu pensei? Convivendo
também na escola com outras colegas, principalmente, com uma delas que tem
uma visão de cuidado diferente da que eu fui construindo ao longo da minha
graduação, da minha faculdade. Eu disse, então, como eu vou fazer uma aula de
lavagem de mãos que seja atrativa para os alunos, gostosa e que passe a
importância que é dentro do processo hospitalar do cuidado, a lavagem das
mãos. Então, eu fui para um livro de simbologia das mãos. Qual é a mensagem
que a mão te passa. Qual é o significado da mão na tua vida. Quando você vai
casar, o noivo pede a mão ao pai da noiva não é? A aliança vai na mão da
pessoa. Quando você vai ensinar o seu filho a caminhar, a sua mão que vai
servir de suporte para ele. A mão é aquela que serve de cumprimento ao outro.
É símbolo de amizade. Então, ela tem muitas conotações, não é? Existe uma
prática da leitura das mãos também. Então, eu fiquei estudando sobre o
significado da mão, sobre todas as conotações que ela tem na vida da gente e
sobre a importância dentro do hospital. Assim como ela cuida, ela pode destruir.
Várias ações são destrutivas. Apertar o botão de uma bomba atômica é
destrutivo. Fazer uma medicação para curar, para salvar ou uma massagem e a
questão da energia que se passa de uma pessoa para outra. Então, para mim,
foi um marco de construção. E, a partir daí, eu consegui fazer com que as
minhas aulas fossem diferentes também. Partindo do pressuposto de que algo
sempre tem um significado maior do que aquilo que a gente está ensinando.
Como já mencionei anteriormente, o plano de ensino da ETE foi construído
com base na orientação das Diretrizes Curriculares nacionais para a Educação
Profissional de Nível Técnico. A sua base provém, sobretudo, de uma
determinação legal, resultante de políticas educacionais produzidas nas feições da
ideologia neoliberal que procuram “garantir efetividade, eficiência e produtividade
aos processos pedagógicos” (MOREIRA, 2004, p. 7). Existente há cinco anos, vem
sofrendo alterações, desde seu primeiro ano, a partir das tendências pedagógicas
que circulam através dos movimentos político- pedagógicos que o HCPA, a ETE,
suas trabalhadoras e discentes vêm fazendo ao longo desse período. O que
inicialmente foi feito a “toque de caixa”, expressão muito utilizada pelas
206
trabalhadoras para indicar a dificuldade inicial na concepção do Projeto Político
Pedagógico, hoje está sendo (re)construído. Nessa perspectiva tanto o currículo
escrito, como o que vem se materializando na produção educativa das
trabalhadoras da ETE vão expressando suas múltiplas manifestações movidos pela
permanente interação de ideologias, relações de poder, hegemonias, contra-
hegemonias nas concepções de educação em saúde.
A narrativa abaixo evidencia em parte os argumentos acima:
Profª Enfª 6 - Se eu tivesse que preparar aquela aula que falei sobre a lavagem
das mãos com a minha formação com certeza eu pegaria o negócio do controle
da infecção. Seria muito mais técnica do que essa outra abordagem maior.
Como trabalhadora da ETE, onde se materializam as práticas educativas das
professoras enfermeiras e a minha própria prática como pedagoga, tenho
consciência dos meus limites e possibilidades na análise do fenômeno estudado.
Limites pela dificuldade em realizar o distanciamento entre o olhar da pesquisadora
e o olhar da trabalhadora, limite pela delicadeza e comprometimento que esse ato
de análise acarreta, por ser pesquisadora do contexto do qual faço parte, no qual
influencio, no qual interfiro com a minha história e no qual sou influenciada como ser
que se constitui histórica e socialmente.
Possibilidades pela riqueza da observação participante, pela facilidade de
trânsito onde a prática educativa das professoras enfermeiras se realiza. A propósito
dessas possibilidades, ao recuperar alguns trechos das falas das entrevistadas,
quanto aos movimentos de suas práticas que ora acontecem de um modo, ora de
outro, tais como: “de vez em quando eu volto para a minha rigidez” (Profª Enfª 2,
Capítulo IV, item 1- 1.4);
“estou em um processo de transformação de tentar dosar
mais a questão técnica, a questão humanística” ( Profª Enfª 5, Capítulo IV, item 1-
1.3); “eu me vejo assim em muitos momentos, deixando-os ir sozinhos e em alguns
momentos controlando” (Profª Enfª 1, Capítulo IV, item 1- 1.2); “agora eu me dou
conta que muitas vezes eu era muito rígida” (Profª Enfª 3, Capítulo III, item 3 - 3.4) e
confrontar essas falas com algumas situações do cotidiano pedagógico da ETE
vividas por mim na interação com as professoras e alunos torna-se menos
complicado o caminho que tenho de fazer na busca das contradições da formação
em enfermagem das entrevistas e a influência dessas em suas práticas educativas.
Nas situações intermediadas por mim, percebo que a influência da formação ainda
207
é, incisivamente, presente no dia-a-dia das aulas na ETE, embora já existam muitas
ações educativas expressando alguns movimentos contrários.
Ao mesmo tempo em que as professoras se percebem tecnicistas,
controladoras, humanistas, flexíveis, contextualizadoras, entre outras tendências, e
tentam minimizar suas atuações nesse sentido, gerando outras formas de expressão
de suas práticas, realizam os movimentos acima, ora de um jeito, ora de outro.
Essas contradições, no entanto, oferecem o combustível necessário para mudança.
Nesse desafio diário de luta dos contrários há o exercício de variados atuações
educativas possíveis, previsíveis e innovadores, mediante o desafio de suas
condições materiais de existência.
As dimensões do ensinar e do aprender, da historicidade de uma formação
que expressou tendências pedagógicas tradicional e tecnicista, do esforço por um
saber contextualizado em detrimento da fragmentação, da racionalização
cartesiana da graduação, das dificuldades de uma Licenciatura em enfermagem
empobrecida pela falta de vínculo com a realidade do ensino em saúde, têm
revelado as condições materiais da prática educativa das professoras enfermeiras
da ETE.
A fala abaixo é expressiva nesse sentido:
Profª Enfª 7 - Eu tenho muita dificuldade na educação. Eu não tive embasamento
e eu estou aprendendo hoje, posso dizer que para mim a licenciatura não fez a
menor diferença, estou aprendendo hoje a fazer um plano de aula adequado, um
plano de ensino, tanto que as colegas ainda me ensinam, eu acho que falta
muito embasamento teórico, porque eu vejo vocês falarem dos autores e eu não
sei nem de quem é que vocês estão falando. Sinto que me falta isso.
Apesar das dificuldades oriundas de uma formação em licenciatura sem
muito sentido e pelo fato de estar se entrosando com a proposta curricular da ETE,
conforme expressa em sua fala abaixo, a Profª Enfª 6, ao contrário de uma prática
de ensino realizada no inicio de sua docência, narrada no Capítulo III, item 5 desse
estudo, a Profª Enfª 7 parece ter feito movimentos sensíveis em direção de uma
prática fundamentada em uma metodologia promotora da participação dos alunos,
completamente diferente das aulas em lâminas, de páginas e páginas de um livro.
Profª Enfª 7 - Logo que comecei a trabalhar na ETE foi difícil, porque eu não
entendia muito o currículo do curso. Agora eu estou entendendo melhor. Agora
208
eu consigo me situar melhor e consigo entender o que a gente desenvolve em
cada módulo e bloco. Eu consigo entender todo o contexto em que o aluno está
inserido, desde o início até o final do curso. Fica muito claro o que os alunos
precisam entender antes, que é a questão geral para depois iniciar na prática e
eu vejo, que naquela grade curricular, a gente está sempre mudando algumas
coisas. Na verdade não é uma grade, exatamente, é um projeto. Então eu noto
que a gente está sempre mudando então não é fechado. E ele está muito
adequado com a realidade que a gente está vivendo, ele está bem ambientado
com o que a gente vive aqui, acho que está bem adequado.
A docente fala entusiasmada sobre os resultados de sua aula interativa.
Satisfeita com a participação dos alunos vai descobrindo caminhos metodológicos
no ato de ensinar. A memória de uma aula dada em outro contexto escolar, no
inicio de seu exercício profissional, da qual não guarda boas lembranças, é
substituída por uma prática educativa que lhe gratificou. Nesse sentido, é
importante referir a influência das condições materiais que envolvem o trabalho
educativo do docente. A estruturação dos currículos expressa os interesses e
forças dominantes de um determinado ambiente de ensino. Em sua experiência
anterior, além de estar estreando como professora, sofria a inconseqüência de um
currículo escolar ajustado a interesses mais do funcionamento da escola, do que
do próprio ensino, como fica nítido neste trecho recuperado da fala anterior da
professora: ”Tu tens que dar aula em um mês, são cem horas. Das cem horas, tu
podes usar o retro-projetor ou o vídeo cassete em apenas dez horas” (Profª Enfª 7,
capítulo III, item 5). Na perspectiva de sua pouca experiência, para realizar sua
aula, a contento das exigências da escola, reproduziu um livro em lâminas.
Profª Enfª 7 - Eu dei uma aula na semana passada aqui na ETE em que eu falei
sobre a prevenção de acidentes na infância. Comecei a aula, perguntando para
os alunos “quem é que já tinha se acidentado na infância”. Começou a surgir
uma porção de coisas, daí um falava, outro falava, daí perguntei “quem já se
acidentou como adulto?” e continuou, “e quem tem filhos”, “e quem tem filho
pequeno, quando se acidenta?” O pessoal começou a trazer uma porção de
coisas que nem eu imaginava e teve até uma aluna que trouxe uma situação da
semana passada ”que a filha tinha acendido umas velas dentro da casa”. Foi a
primeira aula que eu dei que ninguém dormiu. As pessoas estavam
extremamente interagindo com a aula. Depois a gente fez a discussão que levou
uma hora. Após, eu apresentei a aula expositiva para falar o que a gente tem
que fazer, o que a gente não tem que fazer, com a questão da segurança e dos
primeiros socorros na infância e eu nunca vi a turma participar tanto assim. Eu
gostei tanto, porque foi uma aula tão interativa e eu gosto muito de ouvir isso,
pode ser até uma besteira minha, o aluno dizer assim: “Ba! nem vi que o tempo
passou”. Eu fiquei bem feliz, porque o resultado, no final, ficou muito gratificante.
Eu só sei que foi uma aula que eu sai e falei “gurias, como foi bom dar aula
hoje”. Essa aula no meio do feriado, eu achei que muitos alunos iriam faltar e
acabaram não faltando, as pessoas vieram, e eu gostei muito da aula. Eu
comecei com a discussão e ai eu fui para a minha aula e no final eu falei de
maus-tratos e elas trouxeram exemplos da comunidade como é que funcionava.
209
Foi uma aula muito... para mim foi perfeita, quanto mais interação para mim
melhor.
Profª Enfª 7 - Antes de vir para a ETE, logo que eu comecei, eu lembro que dei
uma aula que eu não gostei. Tinha tanto conteúdo que eu não dominava direito.
Não fiz plano de aula, nem me lembrava mais que tinha que fazer plano de aula.
Nas narrativas abaixo são percebidas as buscas que as professora
enfermeiras fizeram ao longo de seus modos de vida e de trabalho. As formações
na graduação e licenciatura, integram-se às buscas pessoais, às interações com os
contextos, onde exercem suas práxis, aos confrontos pedagógicos na
materialidade do dia-a-dia de ser docente, mediante as contradições do currículo
escrito e do currículo materializado na concretude do processo educativo.
Estabelecendo uma relação entre as falas da Profª Enfª 7, acima
mencionadas, com a fala da Profª Enfª 1 fica nítida a dificuldade para o docente
experiente ou não, dar uma aula sobre um tema distante de sua prática. Essas
situações de desconforto foram e, ainda, são recorrentes, na ETE, sobretudo nos
blocos temáticos que tratam do campo da saúde pública, tendo em vista as
formações das professoras terem sido priorizadas no campo hospitalar. O ensino
descontextualizado em saúde pública, durante a formação graduanda, realizado,
essencialmente, no plano teórico tem acarretado inúmeros entraves às práticas
educativas pela dificuldade das professoras na apreensão dessa realidade. De que
maneira as professoras poderão viabilizar uma prática educativa significativa para
as/os alunas/os, se desconhecem como refere Freire “a substantividade do objeto
aprendido” (1996, p. 69).
Profª Enfª 1 - Uma aula que não é significativa para mim é a que eu tenho que
dar um assunto que eu não domino e que eu tenho que dar uma aula teórica
sobre aquilo. Isto é uma violentação para mim. Se eu tiver que dar uma aula que
eu não tenha experiência naquilo. Eu já tive aulas que eu fui dar que eu não
dominava o assunto. Quando o assunto é de técnica, dependendo eu gosto, mas
eu prefiro falar sobre outras coisas, mas eu faço a técnica. Nas aulas o que me
mobiliza, na realidade, é o que vem das pessoas. Terça-feira, uma aluna disse
assim, nós estávamos falando sobre o filme O Golpe do Destino, ele valorizava a
doença, não a pessoa. Isso eu tinha lido no dia anterior. A questão da formação
médica. Eu estava lendo um livro e, então, isso me busca para ler. Isso me
motiva. O que as pessoas falam. Às vezes, eu pego uma aula que eu já dei. O
aluno, com a fala dele, me motiva.
210
Embora a professora abaixo refira que prepara pouco material para as suas
aulas interativas, na realidade está contando com a riqueza da oralidade de sua
apreensão da realidade, feita ao longo de sua práxis em enfermagem, da
integração que fez entre a teoria e a prática. Nesse movimento vai associando os
conhecimentos e experiências prévias de seus discentes, tendo como resultado
uma aula super gostosa, como mencionou em sua fala. Ao final de sua narrativa, a
professora fez questão de ressalvar que a diferença das aulas que dava
anteriormente para as atuais deve muito a sua experiência.
Profª Enfª 4 – As minhas aulas são interativas. Eu preparo um material mínimo.
Eu dei uma aula que foi super gostosa, porque eu pude trazer muito da minha
vivência em primeiros socorros por eu ter trabalhado com isso. Eu acho que
trazer a vivência, trazer exemplos, vale muito mais do que tu dar um monte de
papel para eles lerem. E fazer com que eles tragam exemplos que eles
vivenciaram, que eles já passaram, ou que alguém da família deles já passou.
Foi muito boa a aula, a importância dos primeiros socorros, querendo ou não,
alguém já viu alguém que passou algum sufoco. Nas minhas primeiras aulas,
como professora, acho que não fazia isso, eu sei, sim que conseguia tentar me
relacionar com os alunos, isso eu sinto que conseguia. Essa diferença eu atribuo
a minha experiência, quanto mais tempo… e mais o fato de tentar conhecer,
quanto mais tiver aberta, mais fácil aprender.
Na narrativa abaixo a professora refere sobre o preparo de sua aula, a busca
de fundamentação que sustenta sua prática educativa. Embora mencione a
espontaneidade de suas falas ao desenvolver sua aula, na medida em que vai
realizando as interlocuções entre o que pensou trabalhar e que resulta da
participação dos alunos e das ilações que juntos professora-alunas/os vão
realizando a partir daí, não há nada de espontâneo nessa ação. As suas
concepções de educação não são dimensões livres e desconectadas das
condições materiais, onde se formam e se realizam em sua ação educativa. A
professora traz em sua prática as concepções de sua formação ético-humanista, da
formação continuada que realizou ao longo de sua vida com todas as suas
contradições.
Profª Enfª 1 - Normalmente, quando eu preparo aula, eu busco alguma coisa
nova. Eu leio alguma coisa nova e, normalmente, o que eu preciso vem
espontaneamente. Acaba encaixando o que eu preciso ler. É como a história do
cavalheiro na máscara de ferro preso na armadura. Eu fui dar aula sobre o filme
Antes que o dia termine. Eles assistiram o filme. Eu comecei a falar, mas eu não
sabia a relação que tinha com aquilo. Eu comecei a falar porque eu tinha lido o
livro. Foi indo. Ele fizeram uma dinâmica da linha da vida deles. Eles pegaram os
acontecimentos e escreveram uma carta de como eles gostariam de mudar
aquele acontecimento. E no final eu acabei fazendo a relação do filme com o
211
livro e mais a vivência deles e o cuidado de Enfermagem, mas foi uma coisa que
foi se desencadeando. Eu gosto muito de ler e lendo tu acabas encaixando no
que tu estás fazendo. Porque isso faz a minha transformação. Faz do aluno
também, de quem está ali no processo, mas fundamentalmente modifica muito a
minha perspectiva do mundo que é a mesma coisa de quando tu estás cuidando
lá e o outro está te ensinando. O aluno também está te ensinando.
Nas histórias orais narradas abaixo, aparecem as influências do referencial
ético-humanista na formação, das abordagens historicamente construídas ao longo
da práxis social da enfermagem no sentido do conceito do cuidado humanizado.
As dimensões desses referenciais trazidos para enfermagem por Carl Rogers,
entre outros, e pelas teoristas de enfermagem que postulam o cuidado humanizado
na assistência são transferidas para a educação nas relações intersubjetivas entre
professora e alunos (ESPERIDIÃO, 2005).
Profª Enfª 3- Com os alunos eu me sinto, assim, um pouco mães deles assim,
uma pessoa que está ali pra tentar ajudá-los e ajudar eles a crescer, assim,
nesse sentido. Agora eu me vejo bem mais experiente, diferente deles nesse
sentido, de ter mais experiência, ter mais conhecimento e que eu tenho esse
compromisso de transmitir isso para eles.
Profª Enfª 5 - Eu gosto de estar muito próxima ao aluno. Eu preciso conhecê-lo,
a sua vida para entender como é que ele aprende. Eu e uma colega instituímos o
jornal. Antigamente, a gente chamava diário de campo para o aluno fazer as
suas reflexões. Então, por aí a gente conhece muito o aluno e entende muitas
coisas que a gente não tem a dimensão do que a vida deles repercute
diretamente aqui.
A avaliação da Profª Enfª 3, expressa em sua narrativa abaixo, é bastante
positiva quanto à formação que vem sendo realizada na ETE . Em sua fala revela a
existência de uma preocupação coletiva com o desejo de que os alunos aprendam.
Refere que a proposta curricular por competências tem sido benéfica, no sentido da
integração entre os conhecimentos. Na perspectiva dessa narrativa é possível
inferir que ainda existem dúvidas a respeito do ensino inspirado na pedagogia das
competências. As dificuldades, ainda existentes, parece se referirem à não
superação de práticas de ensino centradas no docente, no modo de ensinar
transmissivo, na rigidez da racionalidade técnica que não permitem ao discente a
descoberta de outros caminhos para chegar ao lugar esperado pela professora.
212
Profª Enfª 3 - Eu vejo a gente formando profissionais com uma fundamentação
teórica boa, uma boa percepção das coisas, eu vejo que todos os professores
são preocupados a aprendizagem dos alunos. Eu acabo comparando lá com a
graduação, os nossos alunos saem muito bem. E o currículo por competências
para mim tem sido bom no sentido de integrar mais as coisas, antes eu não
entendia muito bem como é que as coisas aconteciam, agora, os conteúdos são
mais integrados.
Nesse sentido, Zocche refere que um ensino por competências tem que
propiciar: ”um ensinar de modo abrangente, sair do ensino por ‘transmissão’ e
ousar uma educação de uma forma mais integradora e reflexiva, no sentido de
desenvolver nos aprendizes habilidades para saber viver e não somente para saber
fazer” (2007, p. 292).
A abordagem por competências ainda é bastante limitada como nos aponta
Ramos (2002) no que diz respeito à formação humana, no entanto, é preciso
compreendê-la para enfrentá-la já que é a proposta pedagógica que está
dimensionando as ações educativas pensadas no plano de ensino da ETE e
concretizadas pelas práticas educativas e pedagógicas das trabalhadoras dessa
instituição.
O que fazer como trabalhadoras-educadoras e, nesse sentido, também me
coloco por ser trabalhadora-educadora da ETE, diante do desafio de ensinar, a
partir dos princípios da escola unitária proposta por Gramsci, na perspectiva de
uma abordagem pedagógica que não vise a adaptação do ser do discente às
artimanhas do capital, mas a desenvolvimento de um saber autônomo, crítico–
reflexivo que lhe oportunize o exercício consciente de seu papel não como ser
adaptado, mas como um ser que ao constatar a realidade tenha condições de agir
sobre ela, transformando-a.
Nesse sentido, Gramsci refere:
A escola criadora: é o coroamento da escola ativa: na primeira fase, tende-se a
disciplina e, portanto, também a nivelar, a obter uma certa espécie de
“conformismo” que pode ser chamado de “dinâmico” ; na fase criadora, sobre a
base já atingida de “coletivização” do tipo social, tende-se a expandir a
personalidade, tornada autônoma e responsável, mas com uma consciência
moral e social sólida e homogênea (GRAMSCI, 2001, p. 39).
Encerro esse item, trazendo a fala da Profª Enfª2, bastante eloqüente no
sentido do reconhecimento da influência da formação no exercício profissional.
213
Cada vez eu me dou mais conta, que a formação é muito importante na questão
de como eu vou ser profissional depois. Porque eu acho que a gente tem uma
responsabilidade muito grande e quanto mais eu leio mais eu me dou conta que
a prática reflete a formação dessas pessoas, e algumas pessoas se formam e
acham que estão prontas para o resto da vida e elas continuam repetindo aquilo
e fazendo com que a sua equipe repita aquilo.
Penso que uma das possibilidades de transformação das práticas educativas
em direção a abordagens emancipatórias passe pelo reconhecimento das
contradições da formação e da manifestação dessas na materialidade do trabalho. A
riqueza desse movimento está nas futuras sínteses que a luta dos contrários possa
produzir.
1.4 - Os movimentos na prática avaliativa das professoras enfermeiras:
Embora já tenha abordado alguns aspectos da prática avaliativa, no item 1.3,
pela impossibilidade de desconectá-los das falas anteriores, que são vivas, não
estanques, retomo a análise, neste item, de forma mais aprofundada, a partir de
outras narrativas, que referem movimentos essenciais. Em meio a movimentos
contraditórios, ora de uma prática avaliativa realizada como mecanismo de aferição
de desempenho, de controle, classificatória, quantitativa, produtora de alunos
passivos, ora de processo dialógico entre sujeitos – alunas/os e professoras
mediados pela realidade material do ensino e da aprendizagem, qualitativa,
promotora da autonomia dos discentes e da criação de saberes docentes e
discentes.
A questão da avaliação, na ETE, tem motivado permanentes reflexões e
questionamentos sobre a prática educativa, sobre a relação dialética, que já
mencionei do planejamento, do ensino, da avaliação e dos contextos onde essa se
materializa. Essas reflexões e análises do processo educativo ocorrem em
reuniões semanais com toda a equipe docente e pedagógica e nos Conselhos de
Classe, onde há a presença de todos os segmentos da comunidade escolar, ao
longo e ao final de cada módulo. Além desses espaços sistemáticos de avaliação,
há os que acontecem motivados, tanto pelos discentes em menor quantidade,
como pelos docentes, mediante a necessidade de interlocução pedagógica com a
214
presença da pedagoga, tendo em vista a natureza do impasse produzido na
relação docente-discente. É importante salientar que nem sempre foram
desveladas as dificuldades mais preocupantes do processo educativo, nos
Conselhos de Classe.
Havia certo temor por parte dos discentes de que ocorressem repercussões
negativas em suas relações com as professoras e com a própria escola. Esse
temor calava a oportunidade de fala dos discentes e colocava em risco esse
espaço coletivo, tão importante, de avaliação. Havia algumas resistências por parte
dos docentes. Alguns consideravam o espaço uma perda de tempo, já que eram
feitas as avaliações individuais em que docente e discente falavam sobre o
processo. Outras professoras argumentavam que os discentes falavam muito
pouco, não justificando o tempo despendido.
Para que o sentido desse espaço não se esvaziasse com o tempo foi feito
um trabalho político-pedagógico, tanto com os discentes, quanto com os docentes
e direção da escola. Esse trabalho de manutenção dos espaços democráticos de
reflexão do processo educativo tem sido reiterado sempre que nova turma inicia e
quando troca a direção da escola.
Atualmente, a permanência desse espaço tem ganhado um reforço enorme,
por meio das reflexões teórico-pedagógicas realizadas para a introdução do
trabalho de educação em serviço que tem, em seu ideário, a prática democrática
da rodada de conversa entre todos os trabalhadores da equipe de enfermagem.
Professoras que resistiam a essa prática entenderam a importância da
permanência do Conselho de Classe na melhoria do processo educativo.
A fala abaixo parece caracterizar uma prática avaliativa dialógica em que o
docente não encara o ato de avaliar de uma forma autoritária, somente analisando
o desempenho do aluno, sem dar-se conta de que a avaliação é um processo. Há a
compreensão da professora de que, se o discente não aprende, as razões disso
não estão somente nele, podem estar na forma como vem conduzindo sua prática
educativa, pode estar na relação que o discente e docente estão estabelecendo,
durante o processo educativo.
Apesar da compreensão narrada, existem muitas contradições que impedem
que, no dia-a-dia do processo educativo, as práticas aconteçam mediante a relação
dialética relatada pela professora. A angústia das docentes, com relação aos ritmos
215
de aprendizagem dos alunos, a comparação do processo de aprendizagem entre
um discente e outro acabam interferindo na efetivação do discurso, em sua
totalidade, no exercício da prática avaliativa.
Profª Enfª 1- O aluno, quando ele erra, não erra de propósito. Ele erra porque ele
tem que aprender e eu tenho que aprender. Ou porque alguma coisa no
processo não funcionou. Eu não fiz bem. Sempre quando acontece um erro,
normalmente, eu sento com o aluno e analiso não o erro em si, mas o que
aconteceu antes, para ele fazer aquilo. O aluno vai pensar: “Eu dei uma
medicação errada, eu não posso dar uma medicação errada”, mas por que ele
deu? Porque ele estava preocupado, porque ele não sabia, porque ele teve
vergonha de perguntar para a professora, porque ele achou que estava certo e
fez. E fez e não leu de novo. Isso tem a ver com a minha relação com ele e com
o processo de como é que ele está fazendo aquilo. Então, temos que ver como
foi o processo. A partir desse momento, tu consegues, muitas vezes, que o aluno
não repita aquilo que ele fez, quando ele consegue entender o processo que o
levou a fazer aquilo.
Nas histórias orais abaixo, as professoras referem as oscilações entre os
exercícios de práticas avaliativas que emancipam e as que submetem o discente à
condição de passividade, como as práticas avaliativas do controle, de aferição
quantitativa. A Profª Enfª 2 ao dar-se conta que a possibilidade de aprendizagem
da/o aluna/o não está relacionada com quantidade de procedimentos que faça e.
sim, com a qualidade do que faz, consegue desvincular-se, em parte, da influência
tecnicista de sua formação, calcada no fazer, para uma perspectiva de uma prática
educativa em que o discente é desafiado a enxergar o paciente como um todo, a
decidir o que é prioritário realizar. Ao conceber uma relação ensino-aprendizagem
que possibilita a participação do discente nas escolhas dos procedimentos que irá
realizar, a partir da realidade enfrentada, essa professora está desenvolvendo a
reflexão crítica do discente sobre sua prática de estágio e respeitando a autonomia
do educando no processo. A avaliação, nesse movimento, assume a conotação de
continuidade no andar do aluno e não de cobrança por meio de uma prova.
Percebo na fala da professora, no entanto, a falta da expressão do sentido mais
amplo da avaliação, que é o de ser uma via de duas mãos. A mão do discente e a
mão do docente. A avaliação não serve só para saber, se o discente aprendeu ou
não, serve também para saber, se professora ensinou bem ou não, ou para refletir
o que aconteceu na relação para produzir um, ou outro resultado. A avaliação é um
processo dialógico. Em sua fala ressalta, também, que, por vezes, volta para a sua
rigidez. Essa oscilação, entre uma prática educativa que proporciona ao aluno
216
oportunidades de escolha, liberdade de ação, é interrompida pela prática da
quantidade em detrimento da qualidade. Nesses movimentos contrários parece
estar prevalecendo o exercício da primeira.
Profª Enfª 2 – Eu vejo que não tenho que dar toda aquela quantidade de teoria e
fazer uma prova para cobrar. Eu vou dar o conceito para o aluno lá no final,
quando ele estiver na prática, porque daí ele vai aos poucos colocando, a cada
dia ele vai somando uma coisa e vai acrescentando alguma coisa no cuidado, ou
seja, daquela técnica. Isso não é o mais importante hoje e, sim, tu enxergares o
paciente como um todo, é tu veres a necessidade que é prioritária naquele
momento, e isso é o mais difícil. Então a minha avaliação hoje é por ai, é no
andar do aluno, mas de vez em quando eu volto para a minha rigidez e quero
que o aluno cuide bonito do paciente, como se fosse um funcionário lá no .... Lá
no ... eu me vejo muito fazendo isso, daí eu volto e reflito, não, ele é um aluno,
ele está aprendendo, ele está construindo o que é cuidado, o que é saúde,
então, vamos voltar, vamos discutir. Queria que o aluno ficasse na prática do
início ao fim do estágio, sem ter nenhum tempo para ele refletir sobre o cuidado
que fazia, hoje isso é uma outra coisa que eu consigo entender.
Nas análises do processo avaliativo trazidas pelas docentes é bastante
freqüente a idéia de ser uma questão complicada, difícil. Tanto a Profª Enfª 1,
quanto a Profª Enfª 3 mencionam aspectos dessa dificuldade. A primeira atribui que
a utilização do conceito como referência do aproveitamento do discente não é
justa, na medida em que, não expressa a realidade do desenvolvimento do aluno
no processo educativo. Essa inconformidade da professora pode estar relacionada
com a conotação da avaliação como aferição dos resultados e não da avaliação
como uma possibilidade de mudanças nos rumos do processo ensino-
aprendizagem. Por vezes, a avaliação tem sido um mecanismo de aferição do
aproveitamento escolar do discente, embora todo o esforço das professoras em
sentido contrário.
Outras dificuldades, destacadas pela Profª Enfª 1, são quanto à questão da
arbitrariedade do docente no processo avaliativo e da idéias pré-concebidas sobre
o aproveitamento escolar do discente. As observações da professora suscitam a
idéia de que a prática avaliativa vem demonstrando as mesmas tendências
contraditórias, que a prática educativa vem assumindo ao longo dos movimentos
da historicidade da ETE. Ora arbitrária, ora na perspectiva de julgamento e não de
um processo dialógico que procura perceber, pela análise democrática de ambos
os envolvidos no processo, o que deve ser mantido, ou o que dever ser mudado no
processo educativo.
217
Por outro lado, a Profª Enfª 3 acredita que avaliar o discente, nas práticas de
estágio, é bem mais fácil, pois essa ação se dá sobre o fazer. Essa idéia vem
reforçar novamente a tendência do fazer no ensino.
Profª Enfª 1 - Em relação à avaliação eu acho a questão de dar um conceito é
muito complicada. Eu acho que tínhamos que tirar a avaliação por conceito.
Quando tu consegues ter uma relação com o aluno, o conceito te atrapalha
porque tu consegues conversar com o aluno, trabalhar o que tem de bom, o que
tem que melhorar em atitudes, nisso ou naquilo e o aluno concorda contigo. Aí,
tu dás o conceito e é como se caísse um balde de água fria. Na realidade, eles
ficam se comparando entre eles. Isso eu acho muito ruim. Porque é uma coisa tu
chegares para um aluno dizendo “Olha Fulano, tu tens isso, isso e isso que está
muito bom e nós temos que trabalhar mais isso, isso e isso”. A pessoa sabe que
ela tem que trabalhar aquilo. Outra coisa é tu dizer tudo isso e, aí, tu diz que a
aluna está com S. Daí, ela vê que a outra colega, porque um se compara com o
outro, que fez menos que ela, tirou PS, porque tu não consegues ver tudo. A
questão do conceito é complicada, não é a verdade sobre o aluno. Ela não
manifesta aquilo do aluno. Eu acho que não. A gente é meio arbitrária em
algumas coisas. Tu acabas meio que rotulando entra S e sai S.
Profª Enfª 3 - Acho mais fácil avaliar quando é coisa prática, acho mais fácil,
porque na hora do estágio ele tem que fazer, acho até mais fácil, eu enxergo
melhor. Agora que a gente está no primeiro semestre, que é mais teórico acho
difícil avaliar. Quando o aluno avalia algumas coisas acho que tem sentido,
outras eu vejo que as pessoas falam por falar, porque são, também, imaturas.
Acho que vale alguma coisa.
Na fala abaixo, a professora refere sobre as características quadradinhas
presentes na avaliação realizada em enfermagem. Voltando a uma análise já feita,
no decorrer desse estudo, sobre o detalhamento dos instrumentos avaliativos na
enfermagem e a transferência desse estilo para o ensino, a avaliação dos
comportamentos dos discentes têm sido uma prática bastante valorizada, na medida
em que fornece aos docentes indicações importantes na proposição de situações de
aprendizagem. Essa tendência é uma mais uma expressão da teoria pedagógica
tecnicista e da influência dos princípios da escola nova na formação em enfermagem
que tem como centro do processo educativo o discente e, consequentemente, toda
sua expressão bio-psico-social expressa na relação de ensino-aprendizagem. A
professora, embora considere quadradinho avaliar os comportamentos, revela ainda
fazer esse tipo de avaliação. O restante de seus argumentos confirma o quanto ela
reproduz essa tendência avaliativa, pois consegue identificar no discente a influência
de suas demais colegas em seus gestos ao realizar os procedimentos e, até mesmo,
no seu jeito de falar.
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Profª Enfª 1 – Na enfermagem têm algumas coisas que são bem quadradinhas
na avaliação. Quando a gente começa a avaliar os comportamentos, para mim é
quadradinho. Eu já fiz assim e às vezes, ainda faço isso. Outra coisa, quando tu
consegues avaliar os processos de aprendizado desse aluno, isso eu acho mais
rico, mas eu acho que a gente ainda não chegou aí. Não a gente, mas tu
conseguires criar condições, para que o próprio aluno se dê conta disso. Porque
ele sabe, mas, muitas vezes, ele não vai dividir com o professor. Ele só divide
quando tu crias um vínculo com ele, quando tu o tocas. Não é todo o aluno que
tu consegues tocar. Tu consegues entrar nele, porque o seu desempenho não é
só aquilo que está posto dentro do ensino. Na verdade, o que ele está
apresentando, lá no cuidado, é toda a bagagem que ele traz. Muito mais da casa
dele e os alunos reproduzem muito as nossas falas, os nossos jeitos de pegar a
seringa. Eu sei, assim, quem foi o professor que passou em Fundamentos
porque a fala do aluno, como ele pega a seringa, como é que ele chega no
paciente. Tu sabes. Eu acho legal isso, porque cada um tem a sua característica.
A Profª Enfª 4 utiliza sua experiência não muito prazerosa no período de sua
formação, quanto à questão de avaliações escritas, para exercitar uma prática
avaliativa pela observação do discente, de como está acontecendo sua
aprendizagem sem a ênfase no resultado. Parece estar preocupada com a
aprendizagem do aluno. Apesar de referir detestar a questão da avaliação, por
considerar uma ação subjetiva, não deixa de exercê-la, apenas parece se afastar
dos instrumentos formais de avaliação.
Profª Enfª 4 – Na avaliação eu dou muito mais valor ao que eu sinto deles
durante a aula, da atuação do aluno interagindo e depois interagindo nas aulas
práticas, mesmo que não seja em estágio, eu subo com eles para eles
conhecerem a unidade, eu subo com eles para eles mexerem nos prontuários e
ali eu começo a observar como é o comprometimento de cada um. Eu detesto
avaliação, acho que a avaliação é uma coisa muito subjetiva. Eu fui uma aluna
que nunca dei muita bola para a nota, sempre me interessou saber o que eu
aprendi. Se eu entendi, eu entendi, ótimo, para mim é o suficiente, porque eu
vejo assim, tem pessoas iguais a mim, que ficam muito ansiosas quando vão
fazer uma prova que não conseguem escrever.
Outro aspecto que tem influenciado a prática avaliativa de algumas
professoras enfermeiras que parece ser motivado pelos estudos de abordagens
holísticas na enfermagem, é a necessidade da compreensão do discente em várias
dimensões de sua vida. Para tanto, as docentes utilizam algumas dinâmicas de
grupo que suscitam o desvelamento das maneiras de sentir e de se relacionar e de
conceber o mundo de suas alunas e alunos..
A partir da compreensão dessas dimensões, as professoras acreditam na
possibilidade da realização de avaliações mais seguras. Essa abordagem pode
219
contribuir no ato de entender os porquês do aproveitamento do discente numa ou
em outra direção, no entanto, esse enfoque psicologizador poderá limitar a análise
do processo, na medida em que valoriza as questões de cunho mais subjetivo
como influenciadoras na aprendizagem. Essa tendência valorativa desses aspectos
pode confundir a análise do processo de ensino-aprendizagem, na medida em que
o enfoque fica direcionado para algumas questões subjetivas da vida do discente,
perdendo-se com isso, a perspectiva da materialidade dialética da relação
composta, também, por outras condições.
Profª Enfª 1 - Avaliar não é fácil, porque nem sempre tu és justo. Como e o que
tu vais fazer com o aluno? Tu sabes que ele está nervoso, tu sabes que ele tem
algumas limitações de aprendizado, porque ele teve um pai ou uma mãe que
diziam que ele não era capaz. Então, tu tens que trabalhar a auto-estima. Aí, ele
tem medo de fazer alguma coisa errada e do paciente morrer com ele. Tu tens
que trabalhar isso. Tens que trabalhar a auto-estima e o medo de errar. E, aí, tu
tens que trabalhar tudo que veio antes e que ele não conseguiu entender ou ele
não lembra na hora por estar em pânico. Por mais que tu tentes deixar ele
tranqüilo, ele já está em um estresse tão grande, que ele não aprende. Enquanto
ele não assume o aprendizado dele, enquanto nós assumimos isso como nosso,
ele não se dá conta, ele não anda. Tem um momento que tu vais andar com ele
e tem um momento em que ele vai ser responsável pelo aprendizado dele. E têm
pessoas que, muitas vezes, não é a profissão que deveriam realizar ou naquele
momento não é. Não sei.
A respeito da abordagem avaliativa mencionada acima, a Profª Enfª 3 faz a
seguinte observação:
A avaliação continua sendo um assunto difícil, acho difícil fazer avaliação, me
preocupa isso um pouco aqui na escola que às vezes eu acho que se invade
muito a privacidade dos alunos, quando se avalia. Eu me assusto, e procuro dar
opinião, acho que já melhorou, mas às vezes existem exageros em relação a
avaliação, eu fico preocupada. Eu não tento entrar muito na vida dos alunos,
acho que têm coisas que a gente tem que respeitar, se eles quiserem me falar
tudo bem, eu não me sinto confortável com essa exposição.
A professora parece não concordar com o que ela chama de invasão da
privacidade dos alunos. A partir dessa fala, fica nítido que as professoras
enfermeiras manifestam tendências pedagógicas avaliativas variadas. Essas
diferenças aliadas às reflexões e estudos sistemáticos sobre a prática educativa,
parecem estar produzindo movimentos, ainda extremamente lentos, mas
alentadores em direção à adoção de enfoques mais críticos e desafiadores.
A narrativa abaixo parece confirmar os movimentos aos quais me refiro. A
Profª Enfª 5 realça as mudanças que vem realizando quanto a sua prática
220
avaliativa, destacando o fato de estar sendo mais flexível. Atualmente, sente-se
satisfeita com os registros avaliativos por meio de pareceres descritivos e não mais
quantitativos. Refere estar gostando da avaliação por competências. Quanto a essa
questão, é importante salientar que a mudança da pedagogia por objetivos, no
plano de ensino da ETE, para a pedagogia por competências demandou muitas
discussões pedagógicas, estudos das concepções que sustentavam a proposta por
competências e a própria compreensão de como o discente seria avaliado, a partir
desse paradigma. Desses movimentos, restaram alguns entendimentos que foram
importantes para a prática avaliativa, entre esses, o de que a competência está
relacionada à idéia da consciência do inacabamento, de que a sua construção está
acompanhada de possibilidades, de um desenvolvimento progressivo e não do
sentido conclusivo, do alcance, ou não, de um objetivo. Nessa ótica, os resultados
da avaliação de competências são flexíveis, pois provisórios.
Os pareceres descritivos sempre existiram na Escola, por ser uma prática
comum de a enfermagem realizar registros descritivos. A diferença do passado
para o atual momento está na valorização crescente do parecer descritivo, no
entanto, os conceitos ainda existem e, por vezes, constituem uma transferência de
resultados quantitativos para os supostamente qualitativos. As mudanças de uma
prática avaliativa controladora, para uma prática avaliativa emancipadora não se
produzem de forma isolada, estão atreladas a mudanças de concepções em
educação e em educação e saúde. O exercício de uma prática avaliativa dialética,
problematizadora que emancipe, ainda está sendo construído, como lembrou a
professora:
Profª Enfª 5 - A avaliação é um problema que eu considero uma coisa bem difícil,
que eu quero trabalhar mais e que eu falo seguido. É um problema que a gente
esbarra. Já fui da questão da avaliação quantitativa, do número. Hoje, eu já
estou mais flexível. Gosto muito dessa maneira que estamos trabalhando com
pareceres descritivos, sem quantificar. Estou gostando de trabalhar com a
questão das competências e das habilidades. Eu acho que é uma construção. A
avaliação é um processo contínuo e que a gente tem que ir sempre tentando
melhorar. Tentar corrigir o que pode ser melhorado e ir reforçando e estimulando
no que está bom.
Na presente análise da prática educativa, a partir da história oral das
professoras enfermeiras, é importante referir o quanto a avaliação é considerada
uma prática difícil. Com algumas exceções, em todas as falas, ficam registrados os
221
aspectos da dificuldade de avaliar, da carga de subjetividade no processo, da
perspectiva de não terem sido justas, da possibilidade de não terem realizado a
avaliação correta e com isso terem aprovado alunas e alunos sem condições para
exercerem uma prática profissional adequada. A narrativa abaixo é bastante
eloqüente, quanto a esses aspectos e, ainda sinaliza o erro dos alunos como ponto
de partida para a aprendizagem. Nesse contexto, Luckesi refere que o erro: “é visto
como algo dinâmico, como caminho para o avanço” (LUCKESI, 1998, p, 58).
Profª Enfª 5 - Eu sempre trabalhei em cima das dificuldades do aluno e tentando
ao máximo, até agora acho que a gente está fazendo pouco isso, da questão do
reforço. Sempre estive disponível. Gosto de fazer isso, do reforço, de tentar
recuperar o aluno. Fico chateada quando a gente não consegue. Vivenciamos
juntas situações bem difíceis de, muitas vezes, tu saberes que tu formaste um
aluno sem condições. Para mim já foi muito mais difícil, do que é hoje, porque eu
já consigo perceber que a responsabilidade não é só minha. Antigamente, eu
achava que era minha, que eu não podia. Hoje, eu já consigo discutir com o
coletivo. Sinto que, ainda, talvez, pelo nosso ensino ser um curso técnico,
profissionalizante que vai lidar com questões de saúde que são muito complexas
e que um erro pode ter repercussões graves e irreversíveis. Antigamente, eu
pensava que eu tinha que ensinar tudo. Hoje, estou me conscientizando de que
eu não sou a única que é uma equipe que está trabalhando. O aluno tem várias
oportunidades em vários campos. Ele pode não ter se saído bem comigo em
determinado campo e que ele pode se sair melhor em outro. Eu quero tentar
cada vez mais. Eu vou fazer a minha parte bem feita, mas vou compartilhar com
os outros. Quero cada vez mais me instrumentalizar e melhorar essa questão da
avaliação, porque eu tenho dificuldade de fazer.
Na narrativa abaixo, a professora aponta que a dificuldade de avaliar
assume uma peculiaridade, quando o processo avaliativo é feito sobre as ações do
cuidado. É muito difícil de avaliar como você cuida, expressa a professora. Nesse
sentido, aponta a avaliação por competências como uma questão facilitadora da
prática avaliativa, com já referido pela Profª Enfª 5.
Profª Enfª 6 - Avaliar é muito difícil, e é muito subjetivo. Existem coisas bem
pontuais e que todos os professores chegam a um consenso sobre um aluno e
conseguem pontuá-lo. Existem outras coisas, por exemplo, o cuidado. É muito
difícil de avaliar como você cuida. Existem as coisas pessoais também. Avaliar
por habilidades e competências eu acho que, de certa forma, facilita. A partir do
momento que você coloca as habilidades e competências que ele tem que ter
para tal procedimento, para tal abordagem, ela já fica mais fácil de você
estruturar o teu olhar, a tua percepção sobre aquele processo de cuidado, mas,
ao mesmo tempo, a gente não pode desconectar o indivíduo, o cuidador e de
quem ele está cuidando.
222
Continuando sua história oral acerca de sua prática avaliativa, a professora
recupera seus primeiros momentos no avaliar. Na preocupação em estar atenta
aos movimentos do discente, nas várias anotações que fazia em relação à sua
postura é percebida uma nítida influência de sua formação em enfermagem, com o
histórico da evolução do paciente. A necessidade das várias anotações, no início
de sua prática avaliativa, está sendo substituída pelo acompanhamento analítico do
processo. Embora focada no aluno, na observação de seu modo de aprender, a
professora deixa pistas com relação ao entendimento de que a avaliação é um
processo e, sendo assim, há que ser analisado como uma relação dialógica.
Profª Enfª 6 - Eu, nos primeiros momentos no avaliar, eu me sentia muito
perdida. Então, eu fazia muitas anotações. Eu gosto muito de anotar. Eu gosto
muito de ver qual é a postura daquela pessoa. E como é que ele vai construindo
isso ao longo do curso. O que ele vem agregando, porque isso faz parte de um
processo de crescimento profissional e pessoal. Quando você entra em um
curso, você é de uma forma. Ao longo dos módulos, você vai agregando
conhecimentos, vai desenvolvendo habilidades que são aquelas mínimas
exigidas para que você passe para outro módulo. Assim como é qualquer
processo de construção mental ou de habilidades. Agora, se você vê que na
metade do curso ele não atingiu aquelas habilidades mínimas, alguma coisa está
acontecendo. Ou é na mensagem que tu estás querendo passar, ou é nele, ou é
no processo todo. O que eu estou oferecendo para aquela pessoa? As
oportunidades, a convivência, como é que está sendo a mensagem. Você não
pode deixar que o processo ande sozinho. Têm de haver algumas interferências.
Vai e vem. Isso que se faz em um processo construtivo em educação. Então, eu
vejo dessa forma: que não é fácil. A gente tem que estar sempre tentando
desvelar, tentando construir.
Profª Enfª 7 - Eu sempre faço avaliação conjunta com o aluno, eu não consigo
fazer avaliação sozinha, acho que não dá para fazer avaliação sozinha e eu
tento sempre me colocar no lugar do aluno e entender o que ele está sentindo e
o que ele está passando. Eu nunca cheguei no último dia e descasquei o aluno
“olha tu não consegues fazer isso e isso”, acho que ela é contínua, então todos
os dias, se eu via que tinha um aluno com problema, eu chegava no aluno
naquele dia e dizia “vamos fazer diferente, vamos fazer isso”, para ele poder
enxergar que ele estava fazendo errado, para no final do processo ele estar
conseguindo fazer direitinho. Acho isso muito importante. Também abandonei
um pouco a questão da prova.
Na fala acima, a professora refere o colocar-se junto com o discente na
avaliação. Nesse sentido ela se utiliza do enfoque rogeriano no entendimento de
estar com o outro, de se colocar no lugar do outro, por meio de sua empatia
42
.
42
O conceito de empatia, muito utilizado por Carl Rogers em psicologia, pode ser entendido como a
capacidade para sentir o que o outro sente, como se estivesse no seu lugar.
223
Apesar de seu entendimento de que a avaliação é contínua, os seus
argumentos não referem uma abordagem avaliativa de cunho dialético, construtivo
e crítico-reflexivo. Sua visão de avaliação parece se fundamentar numa lógica
centrada no aluno, numa perspectiva pedagógica individualista. Tal perspectiva por
vezes sustenta as buscas de novas práticas como as que se pode identificar na
Educação em serviço.
2 – Educação em Serviço - Em busca de uma nova prática educativa para os
trabalhadores em enfermagem
A partir de 2005, as trabalhadoras da ETE iniciaram um processo de
expansão de sua proposta educativa com a criação de espaços de educação em
serviço junto às equipes de enfermagem do hospital. A ampliação das ações da
ETE resultou de uma aspiração antiga das trabalhadoras de contribuir nos
processos educativos desenvolvidos na área da enfermagem. A possibilidade de
concretização desse desejo aconteceu com a aquiescência da direção, que iniciou
sua gestão no mesmo ano, tendo como um dos objetivos, entre outros, dar maior
visibilidade às ações da ETE pelo aproveitamento do potencial da equipe em
beneficio da comunidade interna de enfermagem do hospital.
Esse novo caminho tem sido gratificante para as professoras enfermeiras.
Por realizarem estágios curriculares em diversas unidades de assistência do
hospital, sentiam-se instigadas a colaborarem na reflexão dos processos de
trabalho nos demais serviços do GENF. As oralidades abaixo vêm ao encontro
dessa perspectiva:
Profª Enfª 1 - Acho que, agora, a Escola está mais inserida no hospital. A gente
está mais inserida. A experiência com a Educação em Serviço é muito
gratificante, de poder parar com as equipes de enfermagem para pensar sobre
os seus processos de trabalho.
Profª Enfª 5 - Eu estou gostando muito do trabalho de Educação em Serviço. Eu
sempre quis realizá-la. Até 1996 trabalhávamos na ETE em esquema de horas
extras, pois continuávamos vinculadas às Unidades de internação. Quando
viemos para a escola em caráter definitivo achávamos que iríamos fazer, além
da formação de auxiliar, inicialmente, e depois de técnicos, a chamada Educação
224
Continuada. Isso não aconteceu e me frustrou bastante. Não só a mim, mas as
minhas colegas também. Quando se retomou essa proposta e começamos a
fazer Educação e Serviço eu fiquei muito realizada, porque eu sempre quis fazer
isso aqui no hospital. A gente tem uma responsabilidade moral aqui dentro e só
estávamos formando profissionais para a comunidade externa. A gente vê o que
tem de potencial humano, aqui, para gente trabalhar. Eu estou muito feliz de
estar fazendo isso. Relaciono-me muito bem nas Unidades em que iniciamos o
trabalho de educação em serviço. A gente já tinha bastante afinidade com as
áreas, pelas experiências de estágio com os alunos da ETE. O fato de sermos
conhecidas foi um aspecto facilitador.
Profª Enfª 6 - Eu vejo a escola em outro momento. Na questão de ampliar
olhares, na questão de se inserir no hospital. Já era uma proposta antiga da
escola. Sinto-me instigada pela vontade de estar mais próxima das unidades
nesse momento, de vivenciar situações de cuidado com as pessoas das equipes,
porque a gente não pode ficar só aqui na escola. A gente tem que se inserir nas
Unidades. Eu vejo que a escola está se abrindo.
A educação em serviço praticada pelas educadoras da ETE está procurando
romper com o paradigma que sustenta a prática de educação continuada, que
vinha sendo desenvolvida pelas enfermeiras vinculadas ao Programa de Educação
Continuada (PEC) da instituição. Esse programa foi criado em 1990 e vinha
trabalhando, sobretudo na ótica de cursos pontuais, a partir de demandas
percebidas pelas chefias como importantes:
Profª Enfª 5 -. Eu lembro que, em 1990, a gente começou o Programa de
Educação Continuada (PEC) no hospital. Na Unidade, a gente fazia um
treinamento em serviço com todos os recém admitidos e com o pessoal antigo.
Uma vez por semana, a gente sempre reunia a equipe e trabalhava alguma
coisa. A partir daí começamos com o PEC. Fazíamos vários cursos, em várias
áreas. Eu gostava muito. A Educação Continuada que fazíamos no hospital era
no modelito de cursos.
Nesse sentido, a abordagem da educação continuada parte da idéia de que
o conhecimento é o que define as práticas. Atende, sobretudo, à necessidade de
atualização de conhecimentos específicos, normalmente por meio de cursos
padronizados, com uma carga horária previamente definida, seguindo uma
metodologia de ensino expositiva, centrada na “instrutora” (nomenclatura utilizada
na instituição para designar a enfermeira vinculada ao PEC). A identificação das
necessidades de "instrução" ocorre por meio de uma análise geral realizada pelas
chefias. As atividades educativas são propostas de forma fragmentada e
225
desarticulada com relação às demais demandas de gestão da saúde e da
educação. O enfoque está no treinamento, conforme assinalado na fala abaixo:
Profª Enfª 2 - Eu acreditava na educação em serviço, naquela época a gente
chamava muito de treinamento, de treinar o pessoal, de fazer o pessoal refletir
quem era o paciente que iriam cuidar. Juntos, estudávamos quem era o
paciente, como é que iríamos cuidá-lo, os equipamentos novos.
É importante resgatar o movimento que foi feito, desde 2005 até à prática do
que foi aspirado, como mudança, no modo de fazer educação em saúde.
Para construção da nova proposta reuniram-se chefias, trabalhadoras, com
representatividade de todos os segmentos do GENF. Foi elaborado um projeto
inicial, seguindo a perspectiva dos pressupostos teóricos da política de educação
permanente para os trabalhadores do SUS. Esse projeto não foi aprovado.
Diante desse resultado foi iniciado um trabalho de sensibilização dos
serviços de enfermagem para pensarem, juntos, um caminho que possibilitasse
colocar, na roda, uma proposta que não configurasse uma mudança radical de
paradigma, mas que veiculasse oportunidades de maior participação dos
trabalhadores e trabalhadoras, nas decisões dos processos de trabalho.
A proposta de educação em serviço da ETE parte da concepção da
educação permanente para os trabalhadores do SUS Constitui-se como
“aprendizagem no trabalho, onde o aprender e o ensinar se incorporam ao
cotidiano das organizações e ao trabalho” (Brasil, Ministério da Saúde, 2004).
De que forma essa concepção de educação, numa vertente emancipadora,
teria possibilidades de ir superando os modos de trabalho no hospital? Para tal
estão sendo buscados caminhos dentro das possibilidades existentes para,
lentamente, num trabalho de conquistas de espaços políticos, a proposta ser
efetivada.
Após um bom tempo de costura de adesões, sensibilização das unidades e
de densa busca de fundamentação em referenciais teóricos que fortalecessem a
caminhada foi concretizada uma versão longínqua, da idéia da educação
permanente, conforme refere a Profª Enfª 1 – “Nós ainda não estamos um
referencial de Educação Permanente. Eu acho que estamos no modelito antigo um
pouco modificado”.
226
As ações de educação em serviço, que estão sendo realizadas, como
experiências - piloto nas unidades clínica, cirúrgica e de materno infantil do hospital
com os trabalhadores e trabalhadoras das equipes de enfermagem partem da idéia
de que as práticas educativas envolvem aspectos relacionados a conhecimento,
valores, relações de poder e organização de trabalho. Nessas práticas emergem as
ideologias, hegemonias e correlações de força que irão configurar a estrutura da
instituição.
O objetivo principal dessas ações situa-se na busca de transformações das
práticas realizadas nas equipes de enfermagem do hospital, que representam um
contingente profissional significativo no quadro de trabalhadores.
A partir da análise coletiva da realidade do processo de trabalho e da
identificação de dificuldades e problemas de natureza diversa, vivenciados
cotidianamente na atenção e gestão, vem sendo feitos encaminhamentos de
resolução pensados por quem realmente está envolvido. O lugar do ensino é o
próprio ambiente de trabalho, de onde partem as propostas de educação em
serviço e onde estas devem ser realizadas e avaliadas de forma contínua com a
participação de todos.
Essa perspectiva ascendente de solução de nós críticos pela participação
coletiva dos trabalhadores na análise, reflexão, discussão, encaminhamentos e
construção de espaços educativos visa a superação das antigas práticas de
educação, denominadas de “treinamento”, ainda produzidas em grande parte no
hospital, que se efetivam por meio de uma análise descendente dos problemas,
evidenciados nos processos de trabalho. Esse modelo “treinamento” de fazer
educação em serviço, embora fundamentada em algumas necessidades referidas
pelas/os trabalhadoras/es, em geral, não corresponde às reais necessidades
enfrentadas pelas equipes.
Com o exercício dessa nova abordagem, venho observando uma série de
questões que desvelam a verdadeira face do trabalho nas unidades de assistência,
com seus espaços de poder, de ideologias e contradições, permitindo a quem
participa das discussões e análises dos processos de trabalho a nítida
configuração da instituição em sua realidade material histórica. As falas abaixo
sinalizam algumas questões, quanto ao sofrimento no trabalho e a vulnerabilidade
do trabalhador com respeito à doenças resultantes das atividades laborais:
227
Profª Enfª 3 - Aqui no hospital o trabalhador não tem um canal formal para
colocar coisas do trabalho, tipo o que a gente está fazendo agora, com a
educação em serviço, em que a gente senta e conversa, isso normalmente não
existe, então as coisas não são resolvidas e vão acumulando, acumulando,
acumulando. Eu considero que trabalhar com saúde, com doença é muito
desgastante e teria que ter alguma coisa mais organizada para dar um apoio
para as pessoas e não tem, a filosofia é cada um por si.
Profª Enfª 1 -. No hospital tem ainda a idéia de que o profissional da saúde não
pode se emocionar, não pode chorar, não pode se envolver. O profissional tem
que ter uma defesa, senão ele não vai agüentar tudo isso. Anteontem, uma
funcionária disse: “A gente vai criando as defesas, senão a gente não agüenta”.
Eu acho que sim. Eu acho que a gente acaba fazendo isso, mas eu vejo que, aí,
em todas as defesas, nós temos a quantidade de gente na Medicina
Ocupacional, que vão se contraindo, que vão fazendo uma porção de coisas, vão
fazendo força desnecessária não se envolvendo, mas o corpo vai. Ver as
pessoas morrerem, sofrerem com a dor. O cuidador ainda cuida muito do outro e
pouco de si. E isso eu acho importante trabalharmos na formação e isso lá na
minha formação não se falava disso. Talvez hoje se fale, mas não se falava.
Diante do exposto, torna-se necessário uma análise aprofundada da
realidade material que envolve as contradições que habitam e constituem o hospital
– empresa - negócio – escola – público - privado – paciente – usuário – cliente -
funcionárias/os – trabalhadoras/es.
Dias refere que:
Na perspectiva Gramsciana, sociedade civil e sociedade política são distinções
analíticas do conceito de Estado. Do conceito de Estado Integral. Estado que
organiza, representa, vigia e pune. A sociedade civil não é, portanto, uma
instância do real. Ela é uma das formas da natureza estatal. (DIAS, 1996, p.
112).
O hospital, como uma empresa pública, está imerso no universo da
sociedade política e sociedade civil. Não há como negar, portanto, que carrega em
suas veias estruturais o aspecto estatal e o aspecto privado e, por conseguinte,
arrasta nesta dialética as contradições da sociedade como um todo.
O HCPA que ao mesmo tempo se insere na Política Nacional Humanização
(PNH) do SUS, que diz respeito a uma proposta ética, estética e política tem seu
mapa estratégico desenhado por uma representação gráfica da Teoria do BSC -
Balanced Scorecard Painel de indicadores Balanceados.
O PNH está baseado
228
nos valores de autonomia e protagonismo dos sujeitos envolvidos, na co-
responsabilização entre eles, na solidariedade dos vínculos estabelecidos, no
respeito aos direitos dos usuários e na participação coletiva no processo de
gestão. (BRASIL, Humaniza SUS, 2007)
O BSC é uma ferramenta de gestão criada por Robert Kaplan e David
Norton. Significa um novo sistema de medição de desempenho das empresas com
base em indicadores financeiros e não financeiros.
Por meio desse mecanismo gerencial utilizado amplamente em instituições
privadas a empresa – negócio – hospital - escola, vinculada academicamente a
UFRGS, vai implementando suas metas. A educação, neste contexto é um dos
veículos para a viabilização dessa política. Esse modelo administrativo encontra-se
publicizado na Internet no site oficial da Instituição.
Uma parte dessa publicação refere que:
O Hospital está adotando o BSC (Balanced Scorecard Painel de indicadores
Balanceados), uma ferramenta gerencial criada para facilitar a comunicação, a
compreensão e a implementação das estratégias a toda organização
amplamente empregada no Brasil e outros países, inclusive por hospitais e
sistemas de saúde governamentais. ( HCPA, 2007).
A justificativa da adoção desse modelo de gerenciamento publicada pela
instituição está calcada nos argumentos de dinamização da administração pública,
na busca da otimização de resultados, na prática de estilos de gestão modernos e
compatíveis com a capacidade de competitividade da empresa em meio às
freqüentes variações do mercado. Ótica que rompe como o velho estilo de
administração burocrática dos serviços públicos.
Essas razões, em sintonia com as estratégias de mercado, correspondem ao
pleno atendimento das necessidades de uma nova racionalidade produtiva numa
lógica de globalização. Neste espaço presenciamos embates, conflitos de
interesses, luta dos contrários.
Na visão de Pires os serviços públicos definem suas políticas sociais, a partir
de um “processo multideterminado”. Neste sentido, a proposta de uma nova política
de educação numa instituição pública, inevitavelmente, vai estar atrelada a
determinados interesses. (Pires, 1998, p.234).
229
A instituição, mergulhada num sistema econômico globalizado e neoliberal,
expressa em sua configuração a estrutura de classe, um sistema de relações
fortemente hierarquizadas com poder de decisão, com relação aos processos de
trabalho, nos estratos corporativos de maior prestígio intelectual. Ao mesmo tempo,
que propõe em seu plano estratégico a participação de todos nos rumos de seus
projetos está imersa num contexto historicamente determinado. Na contradição
entre o desejado e o realizado reflete o próprio projeto de sociedade veiculado pela
burguesia brasileira que está associado e submetido às relações de poder
dominantes entre capital e trabalho e afirmado pelo “Estado educador brasileiro”
(NEVES, 2005, p.189), que trabalha as consciências individuais e coletivas
mantendo-as nos patamares mais simples.
Para Gramsci:
Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no
mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente,
uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e
consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também
no social e político (GRAMSCI, 2001, p. 15).
Num movimento de forte competição capitalista para fazer frente às
exigências do contexto de globalização econômica, o hospital – empresa – negócio
– público - escola, vai se dirigindo na busca de estratégias gerenciais que lhe
permitam condições de enfrentamento.
Nesse terreno Gramsci expressa:
É verdade que a própria função organizativa da hegemonia social e do domínio
estatal dá lugar a uma certa divisão do trabalho e, portanto, a toda uma
gradação de qualificações, em algumas das quais não mais aparece nenhuma
atribuição diretiva e organizativa: no aparelho da direção social e estatal existe
toda uma série de empregos de caráter manual e instrumental (de ordem e não
de conceito, de agente e não de oficial ou funcionário, etc). (GRAMSCI, 2001, p.
21).
A capacidade que algumas categorias profissionais, que detém o poder
decisório no hospital, têm de construírem sua hegemonia resulta da possibilidade
de elaborarem suas visões de saúde, educação e gestão de forma própria. A
supremacia dessas sobre as categorias de menor prestígio econômico, social e
intelectual torna-se uma constante.
230
Nesse horizonte multideterminado é preciso acreditar na construção de um
outro projeto de educação e saúde que se paute numa lógica de emancipação.
Nessa perspectiva, atuar como educadora nessa instituição, que reproduz o
projeto de sociedade que está posto, é acreditar e trabalhar pela construção de
caminhos educativos contra-hegemônicos, é romper com qualquer idéia de
submissão e conformismo aos princípios da classe dominante. Para tanto, articular
propostas educativas que coloquem em cena o desenvolvimento da subjetividade
dos trabalhadores e trabalhadoras subalternas/os, que no hospital, estão
representados pelas categorias de menor prestígio intelectual e econômico, torna-
se imperativo. Tirá-los da passividade por meio de espaços educativos que
possibilitem caminhos de emancipação, de quebra da lógica de obediência às
ditames historicamente estabelecidos, distantes de suas realidades materiais em
seus processos de trabalho, torna-se uma necessidade.
Nesse contexto, Semeraro reitera o pensamento de Gramsci:
O ponto central das reflexões de Gramsci se prende à formação de novos
sujeitos sociais que visam à construção de um projeto de sociedade aberto à
participação de todos os trabalhadores. Neste sentido, a consciência e a
subjetividade representam uma dimensão fundamental na ação política, pois se
é verdade que não é a consciência que determina o ser social, é também
verdade que só por meio da consciência o homem pode apropriar-se das
funções da sociedade e ter condições de realizá-las, lutando contra as pressões
externas que condicionam o seu comportamento e neutralizam as suas
aspirações (SEMERARO,1999, p.73)
Os projetos pilotos de Educação em Serviço (Educação Permanente) parece
estarem possibilitando uma brecha para o desenvolvimento dos elementos da
subjetividade, mesmo que de forma incipiente para o desejado na concepção inicial
da proposta. Coloca-se como ferramenta de problematização das práticas
vivenciadas no cotidiano de trabalho e possibilita a integração do que o serviço tem
a oferecer (bem como a forma como os profissionais concebem a saúde) com os
desejos dos usuários, de forma que haja aproximação entre esses sujeitos.
À medida que os trabalhadores e trabalhadoras vão percebendo a
materialização de uma proposta de educação, que se pauta na participação e
validação das falas de todos e todas não importando o nível de formação da/o
funcionária/o e, sim, da relevância de suas opiniões na produção coletiva da saúde,
as resistências iniciais vão se desfazendo.
231
Profª Enfª 5 - Nas Unidades em que não havíamos tido contato mais próximo, no
início, foi mais difícil, mas, hoje está muito bom. As pessoas não nos conheciam.
Tu chegares de fora com propostas de mudanças é complicado. O ser humano é
resistente a mudanças. Algumas situações foram um pouco difíceis, mas hoje é
muito bom. As pessoas estão valorizando muito. As pessoas nos cobram,
querendo saber quando é que vamos começar o trabalho de educação em
serviço com eles. Estou gostando muito de fazer Educação e Serviço.
A perspectiva de uma proposta que contraria o paradigma das práticas
verticalizadas de educação em saúde, veiculadas, na maioria das vezes, no
modelo de cursos para treinamento, em que os “instrutores” ou determinados
profissionais, normalmente os de maior poder e saber hierárquico, são os
detentores do conhecimento, vem angariando simpatias, mas também outros tipos
de resistências diferentes das analisadas no parágrafo anterior. Essas motivadas
pelo risco que a possibilidade de participação coletiva nas discussões e análises
dos processos de trabalho pode oferecer. Na medida em que, as/os
trabalhadoras/es, de modo geral, vão se dando conta do potencial que, juntas/os,
têm, no sentido de mudarem processos acomodados e cristalizados pela ótica de
uma minoria, essa possibilidade passa a ser vista, por essa mesma minoria, como
não tão apropriada. Romper com práticas arraigadas no modelo hegemônico de
concepção de educação é bastante complicado, mas não impossível pelas brechas
apontadas.
Nesse movimento contraditório de simpatias e antipatias, a proposta de
educação em serviço vai se materializando e produzindo suas sínteses.
Percebo a satisfação das equipes de enfermagem em que o projeto está
acontecendo, que já sinalizam posturas ativas, saindo da passividade em que se
encontravam. O simples fato da oportunidade de fala e de certa autonomia para os
encaminhamentos lhes devolveu mais ânimo para as articulações ensino, cuidado
e gestão. Há sinais de uma promissora mudança nas relações da equipe, na
medida em que são acolhidas e valorizadas as falas de todos os trabalhadores e
trabalhadoras, independente da categoria profissional.
Profª Enfª 5 - As relações na equipe de enfermagem estão melhorando,
inclusive, é o que a gente está ouvindo em depoimentos das pessoas que estão
participando das experiências de Educação em Serviço. A discussão do
processos de trabalho ocorrem entre enfermeiros, auxiliar e técnico juntos. Isso
está aproximando bastante a equipe. As pessoas estão relatando isso.
232
Por outro lado, ainda percebo contradições na execução da proposta por
parte das próprias facilitadoras do processo, as educadoras em serviço –
enfermeiras, o que é justificável, uma vez que tiveram suas formações atreladas a
uma pedagogia hegemônica, que separa trabalho intelectual e trabalho
instrumental, capital e trabalho, dirigente e trabalhador.
Na fala abaixo, a professora argumenta que, ainda, há muito da abordagem
do PEC em suas ações de educação em serviço. As mudanças vêm ocorrendo de
forma lenta, no entanto, já assinalam aspectos que não estavam presentes nas
práticas anteriores.
Profª 1 – Na Educação em Serviço, eu acho que pelo menos, nós estamos
pensando em fazer uma sensibilização junto da questão dita teórica, prática.
Fazer as pessoas refletirem sobre o seu processo de trabalho dentro da
modalidade do curso que a gente está fazendo, mas, ainda, tem muito do antigo
modelito. A gente ainda tem muitas coisas da nossa formação. Todas nós. Da
cobrança, do controle. Cada uma da sua maneira, mas eu acho que tem.
A valorização dos conhecimentos prévios dos alunos ou dos funcionários, de
seus modos de vida e de trabalho tornam evidentes a intenção, mesmo incipiente,
de escuta, de validação das falas na proposição da prática educativa.
Profª Enfª 1 - Na questão da Educação e Serviço os profissionais falam muitas
coisas que me mobilizam.
Profª Enfª 2 - Na educação em serviço, esse período de refletir sobre como tu
cuida é muito importante e é por isso que eu estou trazendo isso que eu acredito
na reflexão para os funcionários.
Profª Enfª 6 - Independente de ser profissional do Hospital de Clínicas ou nosso
aluno, as pessoas têm experiências prévias, têm uma bagagem, uma concepção
de vida. A partir daí tu vais explorar isso e vai propor a forma de estar ensinando.
A partir desse conhecimento, dessas expectativas que os alunos ou os
funcionários têm.
A constituição da enfermagem, como profissão, vem demonstrando, desde
suas origens, uma forte divisão do trabalho, acarretando nessa lógica, valorizações
sociais diferenciadas por atividades exercidas. A narrativa da professora traduz
essa realidade:
233
Profª Enfª 2 - Eu acredito na educação em serviço, na reflexão com os
funcionários. Eu estou falando, agora, especificamente da formação do
enfermeiro e o que a gente fazia quando dava aula. Repetíamos aquilo que
entendíamos que era importante para o enfermeiro. No entanto, a gente não se
dava conta do que era importante para o auxiliar e para o técnico. A gente fazia a
diferença, eu sou enfermeira, tu és técnico e tu tens que fazer. A gente pensava
por eles e ainda vemos muito isso nas unidades, por isso que eu acho que o
nosso trabalho de educação em serviço vai ser uma caminhada bem longa junto
aos enfermeiros, a fim de que eles também possam se abrir e a partir daí
conseguirem enxergar como é o trabalho em equipe, muito mais talvez do que
para os técnicos de enfermagem. Eu vejo uma responsabilidade muito grande na
formação, porque é ela que vai me dar a base até para me estimular a entender
o mundo do trabalho mais adiante. Eu tenho que ter esse estímulo. Eu fui
trocando de lugar até ter estímulo, porque se eu não tenho estímulo eu não
consigo trabalhar bem.
Pensar numa pedagogia da problematização, da reflexão em ato, da
valorização dos conhecimentos prévios dos trabalhadores e trabalhadoras, do
respeito ao saber de cada segmento profissional passa por uma construção de
uma consciência crítica individual e coletiva.
Aggio considera que Gramsci: Produziu uma reflexão seminal sobre as
condições materiais e institucionais de formação dos intelectuais, enquanto
agentes históricos socialmente determinados (1998, p.127).
Frente a essa realidade senti a necessidade de resgatar um espaço de
estudo que alimentasse a prática educativa das educadoras envolvidas no projeto
piloto de educação em serviço, a partir de um aprofundamento teórico dos
referenciais que o sustentam.
Por sugestão da coordenação da ETE envolvemos, neste espaço de
formação, outras profissionais, oriundas da Coordenação de Gestão de Pessoas do
hospital, aos quais cabem as atribuições burocráticas e de acompanhamento
institucional de todo e qualquer projeto que esteja relacionado à gestão de
pessoas. É importante salientar que estas profissionais, na maioria com formação
de administração de empresa, de psicologia organizacional, de pedagogia
empresarial buscam atrelar as propostas de educação aos referenciais do BSC,
ferramenta administrativa introduzida, na Instituição, pela administração central.
A busca de envolvimento com essas profissionais, portanto, torna-se
eloqüente, pois é preciso vincular o ideário do planejamento estratégico do hospital
a nossa proposta de educação em serviço.
Há uma correlação de forças no interior da instituição, de um lado, seguindo
uma lógica de participação coletiva e de desenvolvimento da subjetividade e
234
consciência dos trabalhadores e trabalhadoras, e, de outro, os interesses,
embalados na lógica do mercado com um ideário discursivo de participação. Nessa
dialética, o projeto de Educação em Serviço da ETE vai realizando seu percurso
em busca da construção de uma subjetividade social que rompa com a destituição
da fala, da valorização dos saberes com base na hierarquia, da separação entre o
pensar e o fazer. Pensar para os graduados, fazer para os técnicos.
Nessa marcha, as mudanças são produzidas numa luta persistente e diária,
como menciona Coutinho "uma batalha cotidiana e, a longo prazo, travada no seio
das instituições, envolvendo a participação consciente da grande maioria da
população" (Coutinho,1981).
Pensando na relação dialética estabelecida por Gramsci entre sociedade
civil e sociedade política como duas realidades diversas e de certo modo
autônomas, mas sem se separarem na prática e refletindo sobre o desenho da
relação entre as condições objetivas da realidade e a vontade dos sujeitos, acredito
na possibilidade da construção de um bloco histórico. Nesta relação, Semeraro
aponta que:
O que deve emergir é sempre a promoção sócio-política das massas, o
desenvolvimento dos valores de liberdade, da responsabilidade e da
capacidade dirigente das classes trabalhadoras [...] Gramsci confere uma
ênfase particular à criatividade e à capacidade de iniciativas que devem
aprender a desenvolver as classes subalternas (SEMERARO, 1999, p.70).
Neste sentido, Gramsci aponta para a necessidade de formação de novos
sujeitos sociais, do desenvolvimento da subjetividade e da consciência dos
trabalhadores e trabalhadoras em busca de um projeto de sociedade que lhes dê
condições de realização e de construção de autonomia.
Ao estar vivenciando a experiência de uma proposta de educação em
serviço, pautada na valorização da fala dos trabalhadores e trabalhadoras, embora
imersa num meio árido, mas ao mesmo tempo fértil em contradições, e com as
limitações oferecidas por uma realidade material marcada por processos de
trabalho mergulhados numa ótica mercantilista, as trabalhadoras da ETE vem
apostando nas possibilidades que a abertura desse caminho poderá proporcionar à
ação daqueles que foram roubados, historicamente, em suas oportunidades de
fala, daqueles que há muito tempo aguardam para saírem do ideário formal de
235
participação para a autoria, como sujeitos, de um projeto coletivo de trabalho
emancipatório.
236
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicio as considerações finais desse estudo me reportando ao mestre Paulo
Freire, quando refere: “Aqui chegamos ao ponto de partida de que talvez
devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o
inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há
vida, há o inacabamento” ( FREIRE, 1996, p. 50).
As considerações finais apresentadas nessa pesquisa terão o caráter
do inacabamento, tal como a vida. Nessa dimensão, resultam de um estudo de
caso sobre as contradições na formação das professoras enfermeiras da Escola
Técnica de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e como essas
contradições se manifestam, na ETE e na Educação em Serviço realizada com
as/os trabalhadoras/es do Grupo de Enfermagem do HCPA, no período de 2002 a
2006.
As motivações que me lançaram à realização desse estudo provêm da
minha inquietude como pedagoga mediante o início de um trabalho novo para mim,
num ambiente de ensino com aspectos, até então, não vividos por mim. Queria
compreender o meu novo espaço educativo, conhecer as professoras enfermeiras,
inicialmente, enfermeiras que exerciam a ação educativa na ETE do HCPA pelo
fato de assim se apresentarem a mim. O fetiche, dessa aparente identificação
natural das profissionais, gerou os meus primeiros conflitos reflexivos na tentativa
de configurar concretamente esse espaço educativo rumo à dissipação do meu
imaginário anterior. A indagação, se as minhas colegas seriam Professoras
Enfermeiras ou Enfermeiras Professoras foi o ponto de partida da minha
curiosidade, inicialmente perplexa, com a realidade que estava me circundando
para depois se constituir numa curiosidade epistemológica rumo à compreensão da
instituição e dos sujeitos que produzem sua materialidade.
Passados alguns anos, ao compartilhar as questões de pedagogia com uma
colega pedagoga e instigada por uma colega da ETE, que já se via professora
enfermeira, comecei a pensar que poderia aprender a pesquisar, a conviver com os
saberes da academia, da qual estava afastada há alguns anos, por dedicar a
maioria do tempo de meus dias, meses e anos de vida ao ensino público, às
alegrias e desafios gerados no convívio com crianças, adolescentes e adultos. Para
237
não me alongar, pois no inicio desse trabalho já consta a minha narrativa de como
cheguei até aqui, passo a expor as minhas considerações provisórias:
Ao iniciar essa pesquisa, além de responder à indagação inicial, comentada
acima e analisar criticamente as decorrências das inúmeras implicações
relacionadas à historicidade do fenômeno que carregava tal fetiche, aspirava
conhecer aprofundadamente a formação das professoras que até então era
desconhecida para mim. A produção desse conhecimento qualificaria a minha
prática como pedagoga.
De que maneira orientá-las, pedagogicamente, realizar interlocuções sobre
suas práxis e contribuir com a minha experiência como educadora sem essa
compreensão?
Durante a entrevista de seleção para o mestrado, um docente perguntou-me
sobre os meus referenciais teóricos. Respondi-lhe não referendando autores, pois
pelo tempo de afastamento da academia, mas não dos livros, pelo tempo de vida e
experiência não tinha presente de forma precisa os nomes dos autores, mas tinha
bem nítida dentro de mim, a minha opção de vida, de luta, de trabalhadora.
Naquele momento de emoção e nervosismo, longe dos olhares das crianças,
adolescentes e adultos das minhas várias escolas e presentemente, dos alunos do
ensino técnico do Clínicas, veio uma resposta mediada pela lembrança de Freire
que disse em um de seus livros que, antes de ler Marx ou Gramsci, já pensava
como esses autores, mais ou menos isso. E assim, de forma simples, como o
inesquecível mestre, respondi que mesmo sem saber os nomes desses autores, já
pensava como eles. Na realidade já os havia lido, por meio da voz de meu pai
quando criança e depois dos diálogos quando adulta, com as leituras de Freire,
Frigotto, Kuenser e outros autores que compreendem as relações entre educação e
trabalho pela filosofia da práxis. Sendo assim a teoria que fundamenta esse estudo
tem a ver com o meu modo de vida e de trabalho, tem a ver com a concepção
teórico-metodológica da filosofia da práxis. As interpretações que realizo no
decorrer desse estudo foram feitas à luz desse referencial. Diante da magnitude do
conhecimento e da riqueza interpretativa da realidade material trazida por Marx,
Gramsci e outros autores que partilham dessa forma de interpretar a materialidade
humana, tento nesse estudo, realizar um diálogo ainda muito tímido, com a teoria
238
crítica, mas verdadeiro na essencialidade da forma como percebo a constituição da
existência material humana.
Para dar conta da essência do fenômeno de pesquisa, busquei desvelar os
movimentos geradores das mudanças quantitativas e qualitativas, da luta dos
contrários na formação e prática das professoras enfermeiras. Mergulhei
profundamente nas dimensões do fenômeno e o que restou dessa busca, que
aponta alguns desnudamentos da materialidade dominante que tem sustentado a
formação e a resultante prática educativa das professoras enfermeiras, possa
servir como possibilidade de produção de reflexões críticas mais próximas da
realidade.
Nessa dimensão de busca da profundidade do fenômeno pesquisado, parti
das seguintes questões de pesquisa:
Quais as contradições na formação em enfermagem e na licenciatura e
como essas se manifestam nas práticas educativas das professoras enfermeiras da
ETE/HCPA?
Que contribuições, a partir do conhecimento, descrição e interpretação do
fenômeno social estudado, podem ser mencionadas para uma análise dialética e
reflexiva das práticas educativas das professoras e professores em enfermagem?
A partir destes questionamentos iniciais formulei um problema de pesquisa
em torno do qual teci o fio condutor desse estudo:
Quais são as contradições na formação das professoras enfermeiras da
Escola Técnica de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e como
essas contradições se manifestam em suas práticas educativas, na ETE e na
Educação em Serviço realizada com os trabalhadores do GENF, no período de
2002 a 2006.
Na busca de respostas aos questionamentos e ao problema de pesquisa,
fios condutores nessa análise dialética da materialidade do fenômeno da formação
e da prática educativa das professoras enfermeiras, formulei os seguintes
objetivos:
Conhecer, descrever e interpretar as contradições na formação em
enfermagem e na licenciatura e como essas se manifestam nas práticas educativas
das professoras enfermeiras da ETE/ HCPA.
239
Contribuir, a partir do estudo, para uma análise dialética e reflexiva das
práticas educativas dos professores e professoras em enfermagem.
Na perspectiva das categorias a priori, de análise: a historicidade da
formação das professoras enfermeiras de ETE/HCPA, as contradições dessa
formação e de suas práticas educativas, integradas pelas categorias empíricas que
apareceram, com maior incidência na formação e na prática educativa: Idealização
/ realidade, abordagem tecnicista/ abordagem ético-humanista, fragmentação /
contextualização, rigidez / flexibilidade, avaliação controladora / avaliação
emancipadora, práxis transmissiva / problematizadora, diretiva/dialógica,
controladora/emancipatória fui analisando minuciosamente a materialidade do
fenômeno social, embrenhando-me, dialeticamente, na historicidade dos cenários
que o estruturam, nas condições que o produziram. Nesse movimento de intensa
reflexão, de pura maquinação de minuciosidades das células – categorias -
formação e prática fui conhecendo a realidade manifestada em suas contradições,
o todo do organismo vivo em movimento produzido por suas múltiplas conexões
“num processo práxico que é geral e particular” (KOSIK, 2002, p. 60-61).
O estudo das determinações histórico-sociais da enfermagem profissional e
do ensino em enfermagem foram me conduzindo à compreensão dos modos de
trabalho de seus profissionais, da materialidade de suas expressões como sujeitos.
Uma dessas expressões instigantes e impulsionadoras para mim foi a busca de
entendimento do “fetiche” relacionado à identidade profissional. Por que as
professoras se identificam profissionalmente como enfermeiras professoras e não
como professoras enfermeiras?
Além da dimensão contratual, pois no hospital, o contrato de trabalho dos
sujeitos de pesquisas, é formalizado para o cargo de enfermeira de assistência e
não para o cargo que seria mais apropriado, segundo o meu raciocínio jurídico, o
de professora do ensino médio de enfermagem, ao que corresponderia a
identificação profissional como professora enfermeira. Na medida em que,
adentrava nos condicionantes materiais da formação em enfermagem e do objeto
da formação em licenciatura dessas professoras, o ensino médio, fui relacionando
essa materialidade às intermediações ideológicas, culturais, sociais, econômicas e
hegemônicas dos espaços onde exercem suas práxis, pela própria dualidade
histórica entre o saber e o fazer. Nesse sentido, o que é melhor valorizado em suas
240
condições profissionais, ser professora enfermeira ou ser enfermeira professora?
Qual das profissões tem maior prestígio social nesse contexto e em outros
contextos não só da saúde?
Na esteira da historicidade da constituição da prática social da enfermagem
profissional, que desde suas origens vem estabelecendo movimentos contra-
hegemônicos, e ideológicos no sentido de firmar-se como um saber valorizado
científico e socialmente, numa cultura de mercado ainda fortemente dualista é
justificável que a identificação primeira seja como enfermeira. Pela condição do
sujeito visto como mercadoria, ser professora do ensino médio, num hospital
escola, de professores e professoras, em sua maioria, que exercem práticas de
saúde, em nível de graduação e pós-graduação, num ambiente de ensino
fomentador de elevado saber científico, de alunos e alunas doutores, como podem
ser identificados como professores sobrantes de alunos sobrantes, recorrendo a
Kuenser, por enquanto, é essa minha compreensão.
A materialidade histórica da formação hospitalocêntrica das professoras
enfermeiras, nas décadas de oitenta, noventa e dois mil, confirmando um enfoque
mediatizado pelos movimentos políticos, econômicos e sociais e culturais em
saúde, vividos pela sociedade brasileira, pelos interesses do capital, desvelou as
contradições das políticas públicas de ensino e de saúde constituídas, sobretudo a
partir dos desdobramentos da reforma sanitária. Os avanços legais, considerados
mundialmente, como ordenamentos jurídicos impecáveis, alimentando uma triste
tradição brasileira do país, nesse aspecto, ficaram distantes de uma aplicabilidade
que assegurasse as mudanças esperadas na formação. A correlação de forças, a
defesa de interesses hegemônicos são tão fortes que acabam diminuindo em
grande potência o que foi sonhado, nos movimentos sociais, nas reformas
educativas, meticulosamente refletidas e pensadas tanto pelas instituições de
ensino, como pelos órgãos representativo de classe, para adequar a articulação
entre a formação dos profissionais da saúde à realidade onde esses profissionais
exercem a materialidade de suas práticas.
As contradições da formação refletem exatamente essa configuração, um
tanto quanto ornitorrinca, recuperando a metáfora utilizada por Oliveira.
O convívio de práticas educativas materializadas pelas professoras
enfermeiras e, por vezes, exteriorizadas pela mesma professora, que ora
241
preservam o humano como espaço ético de ser e ora a constituição profissional
rígida, controladora, que dividem o ser e o profissional em partes que não
constituem uma “inteireza do ser” (FREIRE, 1996) ou, nas palavras de Gramsci, a
coerência e o sentido do fazer educativo me possibilitam a realização de algumas
considerações.
O ser professora enfermeira, a partir de uma prática educativa transmissiva
– problematizadora – tecnicista – ético – humanista – controladora - emancipadora
– rígida – flexível - fragmentada - contextualizadora expressa a luta dos contrários
mediatizada pelas relações estruturais e conjunturais que a envolvem. Como refere
Frigotto na dimensão estrutural a materialidade dos processos históricos se realiza
num maior espaço de tempo e na conjuntural num lapso de tempo médio e curto
(2006).
A possibilidade de materialização da dimensão da coerência e o sentido do
fazer educativo, entre a disposição discursiva e realidade da prática, requerem
sínteses ainda não realizadas pelas trabalhadoras da ETE. Como seres históricos e
sociais carregam dialeticamente as contradições do tempo e do espaço que as vêm
constituindo.
Uma formação em enfermagem historicamente materializada por uma
fragilidade contextual, amparada em grande parte de sua expressividade prática
educativa na pedagogia transmissiva, focada numa dimensão amplamente
tecnicista e hospitalocêntrica, consequentemente, vai produzir profissionais
distantes das proposições discursivas dos projetos curriculares propostos,
insipientemente, pelo Parecer do MEC, Nº 314/94 e, de forma mais ampla, pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem que
visavam formar profissionais para uma realidade de atuação mais abrangente.
A formação abrigada pelos dois documentos legais pelas análises feitas
parece não ter avançado numa perspectiva que viabilize a preparação dos
trabalhadores de enfermagem para a realidade do SUS. Numa perspectiva bem
palpável de análise dessa dificuldade, entre outras, foi constatada na própria
organização do currículo dos cursos. As disciplinas que podem contribuir com uma
formação voltada para o entorno social da saúde são relegadas à condição de
disciplinas sobrantes, sendo oferecidas nos horários mais difíceis de serem
assistidas. Por outro lado, a formação nas demais disciplinas, de cunho mais
242
especializado acaba reforçando essa desvalorização das demais, na medida em
que os alunos já vêm culturalmente mediados pela idéia de que os bons
professores, as boas disciplinas são as técnicas, as de discussões, como os
discentes costumam identificar, não os levam a nada. Essa imagem, em geral, é
reforçada nas práticas, nos espaços onde a formação se realiza.
A luta dos contrários na dimensão do exercício da prática educativa das
professoras enfermeiras passa por essa dialética. Ao mesmo tempo em que
desejam ser professoras de um modo, a confluência do campo estrutural e do
conjuntural oferece a materialidade para incongruência da prática educativa.
A formação realizada no Curso de Licenciatura configura uma realidade
próxima da formação graduanda em enfermagem, analisada nesse estudo,
sobretudo quanto a alguns aspectos. O Curso de Licenciatura foi assinalado pelas
entrevistadas, como uma formação que não teve maior significado. Nessa questão
diferenciou-se da formação em enfermagem, elogiada nos aspectos específicos da
ênfase técnica. Distanciada da realidade da saúde, descontextualizada,
enfatizando a forma didática em detrimento da essência da formação que deveria
ter sido levada a efeito, com algumas exceções, trouxe decepções em relação às
expectativas que tinham em torno dessa formação. Apesar de ser uma proposta
curricular abrangente, que resultaria numa formação adequada às reais
necessidades das trabalhadoras da saúde e educação, essa formação foi,
visivelmente, fragmentada, alheia a uma problematização dos espaços educativos
em que as profissionais materializariam suas práticas. Além desses entraves, outro
materializado pelo próprio corpo docente do curso: alguns professores
desconhecem a realidade da saúde. O que esperar de uma formação com
docentes sem um razoável conhecimento da área, onde os alunos irão materializar
suas práticas educativas?
A integração propalada entre as várias disciplinas do currículo ainda não se
estabelece, ficando o discente submetido a uma formação desconectada de sua
materialidade e, portanto, sem o sentido mencionado. As mudanças ocorridas nas
reformas curriculares, com vistas a aumento da carga horária e outras
modificações realizadas para adequação da proposta curricular dos Cursos de
Licenciatura em enfermagem às Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de
Graduação constituem uma preocupação de mudança nesses aspectos.
243
Fica, no entanto, a indagação, se essas providências vão atender à urgência
da oralidade manifestada nas narrativas das professoras enfermeiras sobre o curso
que as licenciou para o exercício da prática educativa.
Volto à materialidade de inconsistência nas tendências pedagógicas que
manifestam em suas práticas educativas, embora cada vez mais, demonstrem o
desejo e a vontade da busca de uma prática educativa consistente em torno das
abordagens problematizadora e emancipadora, mais recentemente concretizada na
proposta de educação em serviço com os trabalhadores em enfermagem do
hospital.
Na dialética de minha condição de pesquisadora e ao mesmo tempo
trabalhadora da ETE, ao interpretar o fenômeno material, buscando compreendê-lo
em sua essência, fiz movimentos em minha própria prática pedagógica do mesmo
modo que no trabalho a práxis que realizo transforma as relações no espaço do
trabalho junto às professoras enfermeiras.
No sentido da busca de uma compreensão mais abrangente de tais práticas
educativas, mediatizadas pela materialidade das ideologias, das forças sociais
hegemônicas e contra-hegemônicas expressas nas dinâmicas da luta dos
contrários que produzem o fenômeno pesquisado concluo, provisoriamente, essas
considerações por acreditar no inacabamento do ser e, nessa dimensão, no que o
impulsiona a mudar na busca da coerência e do sentido de seu fazer educativo.
244
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254
255
APÊNDICES
256
APÊNDICE A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - A
A pesquisa "A formação das professoras enfermeiras e suas práticas
educativas, na Escola Técnica de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre", tem por objetivo: Conhecer, descrever e interpretar as tensões na
formação em enfermagem e na licenciatura e como essas se manifestam nas
práticas educativas das professoras enfermeiras da ETE/HCPA. Trata-se de uma
dissertação como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Educação de Elisabeth de Fátima da Silva Lopes, aluna do Programa de Pós-
Graduação em Educação - PPGEDU, da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRGS, sob a orientação da Profª. Drª Carmen Lucia Bezerra Machado.
Pesquisadora Responsável, orientadora do projeto: Drª Carmen Lucia
Bezerra Machado, telefone para contato: (51) 33164144 e e-mail:
[email protected]. Pesquisadora, mestranda: Elisabeth de Fátima
da Silva Lopes, telefone para contato: (51) 21018173 e-mail: [email protected].
Colocamo-nos à disposição para esclarecimento de dúvidas que possam surgir.
Este termo tem como objetivo garantir que Eu.............................
concordo em participar da entrevista, em ser observada nas aulas e demais
atividades pedagógicas que realizo na ETE/HCPA, combinando previamente
com a pesquisadora os dias da entrevista e observações, bem como autorizo o
registro fotográfico do cenário das aulas observadas. Explicaram-me o caráter
voluntário da participação nessa pesquisa, além do direito de retirar-me do
estudo a qualquer momento. Fui esclarecida quanto aos seguintes aspectos: 1-
Os dados coletados por meio de entrevista, observação às aulas ministradas
pelos participantes, durante o processo em curso, e mesmo na escrita da
dissertação, serão mantidos em confidencialidade e anonimato, sendo utilizados
com a única finalidade de fornecer elementos para a realização da dissertação e
257
dos artigos e comunicações que dela resultem. Fica garantido que não terão
repercussão na avaliação do desempenho e que não trarão quaisquer
problemas trabalhistas à participante. 2 - As entrevistas serão gravadas e após
guarda de até cinco anos, serão desgravadas. 3- Se, no decorrer do
procedimento a participante vier a manifestar sua vontade de que a entrevista
seja interrompida e/ou seu conteúdo não seja divulgado, as pesquisadoras
atenderão a esta vontade. 4- O material coletado também não poderá ser objeto
de comercialização e/ou divulgação que possa prejudicar as entrevistadas ou a
instituição onde exercem suas funções. 5- Essa pesquisa é considerada de risco
mínimo. 6- Somente após assinatura do termo de consentimento é que as
professoras enfermeiras da Escola Técnica de Enfermagem do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre constituirão a amostra de estudo. 7 -É compromisso
das pesquisadoras manterem as participantes informadas sobre o andamento
da pesquisa e, ao final de sua realização, comunicar-lhes os resultados e/ou
devolver-lhes, de alguma forma, o produto alcançado.
Concordo que as informações que eu prestar na entrevista ( ) / não ( ) e
as colhidas em observação de minhas atividades pedagógicas ( ) / não ( ), de
minha prática educativa ( ) / não ( ), registro fotográfico dos cenários das aulas
observadas pela pesquisadora ( ) / não ( ), façam parte deste estudo e que
ficarei com uma via desta declaração.
.....................................................................................................
(assinatura do participante da pesquisa)
Porto Alegre, ........de................................de 2006.
258
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - B
A pesquisa "A formação das professoras enfermeiras e suas práticas
educativas, na Escola Técnica de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre", tem por objetivo: Conhecer, descrever e interpretar as tensões na
formação em enfermagem e na licenciatura e como essas se manifestam nas
práticas educativas das professoras enfermeiras da ETE/HCPA. Trata-se de uma
dissertação como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Educação de Elisabeth de Fátima da Silva Lopes, aluna do Programa de Pós-
Graduação em Educação - PPGEDU, da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRGS, sob a orientação da Profª. Drª Carmen Lucia Bezerra Machado.
Pesquisadora Responsável, orientadora do projeto: Drª Carmen Lucia
Bezerra Machado, telefone para contato: (51) 33164144 e e-mail:
[email protected]. Pesquisadora, mestranda: Elisabeth de Fátima
da Silva Lopes, telefone para contato: (51) 21018173 e-mail: [email protected].
Colocamo-nos à disposição para esclarecimento de dúvidas que possam surgir.
Este termo tem como objetivo garantir que Eu.............................
concordo em participar da entrevista, combinando previamente com a
pesquisadora os dias da entrevista. Explicaram-me o caráter voluntário da
participação nessa pesquisa, além do direito de retirar-me do estudo a qualquer
momento. Fui esclarecido quanto aos seguintes aspectos: 1- Os dados
coletados por meio de entrevista, durante o processo em curso, e mesmo na
escrita da dissertação, serão mantidos em confidencialidade e anonimato, sendo
utilizados com a única finalidade de fornecer elementos para a realização da
dissertação e dos artigos e comunicações que dela resultem. 2 - A entrevista
será gravada e após guarda de até cinco anos, será desgravada. 3- Se, no
decorrer do procedimento o participante vier a manifestar sua vontade de que a
entrevista seja interrompida e/ou seu conteúdo não seja divulgado, as
pesquisadoras atenderão a esta vontade. 4- O material coletado também não
259
poderá ser objeto de comercialização e/ou divulgação que possa prejudicar o
entrevistado ou a instituição onde exerce suas funções. 5- Essa pesquisa é
considerada de risco mínimo. 6- É compromisso das pesquisadoras manterem o
participante informado sobre o andamento da pesquisa e, ao final de sua
realização, comunicar-lhe os resultados e/ou devolver-lhe, de alguma forma, o
produto alcançado.
Concordo que as informações que eu prestar na entrevista, na qualidade
de profissional de enfermagem façam parte desse estudo ( ) sim / ( ) não,
autorizo que as informações que eu prestar, como representante da ABEn-RS
(Associação Brasileira de Enfermagem – Rio Grande do Sul), façam parte desse
estudo ( ) sim / ( ) não e que ficarei com uma via desta declaração.
.....................................................................................................
(assinatura do participante da pesquisa)
Porto Alegre, ........de................................de 2007.
260
APÊNDICE B
Roteiro de Entrevista - A
Roteiro da Entrevista realizada com os sujeitos de pesquisa
Informações Gerais sobre a entrevistada:
Nome:......................................................................................................................
............
Idade:
Instituição onde realizou o curso de Enfermagem e ano de
conclusão:............................
Instituição onde realizou o curso de Licenciatura em enfermagem e ano de
conclusão:...............................................................................................................
............
Curso de Pós-Graduação:
( )Especialização, ( ) concluída ( ) cursando , em que:
( )Mestrado, ( ) concluída ( ) cursando , em que:
( )Doutorado, ( ) concluída ( ) cursando , em que:
Tempo de experiência como Enfermeira:..................................... Locais de
atuação:
Tempo de experiência como docente na ETE/HCPA:...................Locais de
atuação:
Nº de alunos que atende.............
Regime de trabalho:..................................com aluno.........com funcionários em
Educação em Serviço.....................
Atua ou atuou em outra Instituição de Ensino em Enfermagem?(.....)Sim( )atua,
( )atuou. No curso de Auxiliar de Enfermagem ( ), no curso de Técnico de
Enfermagem ( ), no Ensino Superior em Enfermagem ( ) em outro curso
superior. Qual?........
Continua tendo contato com as Instituições formadoras? ( )não ( )sim.
Em caso afirmativo. Qual.............................................................De que forma.
Não,
Porquê?...................................................................................................................
.................................................................................................................................
......................
Indique cinco autores que mais utiliza como apóio para preparação de suas
aulas....................................................................................................................
Questões Abertas:
Fundamentais:
1. Descreva como foi sua formação em enfermagem.
261
2. E no Curso de Licenciatura?
3. Quais as concepções que você tinha sobre saúde e educação antes da
chegada ao curso de enfermagem e quais as que passou a ter, após o
curso?
4. Do que sentiu falta em sua formação em enfermagem. Se pudesse
sugerir mudanças no currículo do curso, como proporia o seu desenho
curricular?
5. E no Curso de Licenciatura? Se pudesse sugerir mudanças no currículo
do curso, como proporia o seu desenho curricular?
6. Quais os aspectos mais significativos de sua formação que influenciam
sua prática educativa na ETE/HCPA
7. Você gostaria de falar alguma coisa que não está contemplada em uma
das perguntas?
Complementares:
8. A que razões você atribui a sua escolha pela formação em enfermagem?
9. E pela docência?
10. Durante a realização de sua formação em enfermagem, houve alguma
mudança no currículo do curso que mereça ser relatada pelo significado
que teve em sua formação?
11. Que referenciais teóricos apóiam tua prática educativa?
12. Dentre as disciplinas que cursou, quais as que mais contribuíram para a
realização de sua prática educativa?
13. Você fez pesquisa na graduação em enfermagem? Continua fazendo,
agora, como docente da ETE/HCPA? O que lhe motiva a pesquisar?
14. Como percebe o contexto (HCPA/ETE) onde realiza seu processo de
trabalho e desenvolve sua prática educativa?
15. Como percebe a sua relação Professora Enfermeira –Aluno da
ETE/HCPA, em situação de estágio? Professora Enfermeira e funcionário
do HCPA na situação de educação em serviço?
16. O que pensa sobre a avaliação no processo ensino-aprendizagem? A
partir de que referenciais teóricos você fundamenta a forma como você
avalia seus alunos?
262
17. Qual o seu pensamento sobre o Plano de Ensino do Curso de Técnico
em Enfermagem da ETE/HCPA? Como você o realiza em sua prática
educativa?
18. Descreva uma aula, ministrada por você, que achou significativa?
19. Descreva uma aula, ministrada por você, que não achou significativa?
263
Roteiro de Entrevista - B
Roteiro da Entrevista realizada com o Presidente da ABen –RS
Informações Gerais sobre a entrevistado:
Data da Entrevista: Março de 2007
Nome:
Gestão:
Temas para a entrevista:
1. Formação em Enfermagem – Aspectos históricos
2. Prática Social da Enfermagem
3. Contribuição da ABEn na produção do Pareceres do CFE e das Diretrizes
Curriculares referentes à formação graduanda em enfermagem
264
ANEXOS
265
Anexo 1 - Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em
Enfermagem
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
43
CÂMARA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR
RESOLUÇÃO CNE/CES Nº 3, DE 7 DE NOVEMBRO DE 2001.
Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso
de Graduação em Enfermagem.
O Presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de
Educação, tendo em vista o disposto no Art. 9º, do § 2º, alínea “c”, da Lei nº 9.131,
de 25 de novembro de 1995, e com fundamento no Parecer CNE/CES 1.133, de 7
de agosto de 2001, peça indispensável do conjunto das presentes Diretrizes
Curriculares Nacionais, homologado pelo Senhor Ministro da Educação, em 1º de
outubro de 2001.
RESOLVE:
Art. 1º A presente Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso
de Graduação em Enfermagem, a serem observadas na organização curricular das
Instituições do Sistema de Educação Superior do País.
Art. 2º As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Graduação em
Enfermagem definem os princípios, fundamentos, condições e procedimentos da
formação de enfermeiros, estabelecidas pela Câmara de Educação Superior do
Conselho Nacional de Educação, para aplicação em âmbito nacional na
organização, desenvolvimento e avaliação dos projetos pedagógicos dos Cursos
de Graduação em Enfermagem das Instituições do Sistema de Ensino Superior.
Art. 3º O Curso de Graduação em Enfermagem tem como perfil do formando
egresso/profissional:
I - Enfermeiro, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Profissional
qualificado para o exercício de Enfermagem, com base no rigor científico e
intelectua l e pautado em princípios éticos. Capaz de conhecer e intervir sobre os
problemas/situações de saúde-doença mais prevalentes no perfil epidemiológico
nacional, com ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões bio-
psicosociais dos seus determinantes. Capacitado a atuar, com senso de
responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde
integral do ser humano; e
II - Enfermeiro com Licenciatura em Enfermagem capacitado para atuar na
Educação Básica e na Educação Profissional em Enfermagem.
43
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES
3/2001. Diário Oficial da União,Brasília, 9 de Novembro de 2001. Seção 1, p. 37.
266
Art. 4º A formação do enfermeiro tem por objetivo dotar o profissional dos
conhecimentosrequeridos para o exercício das seguintes competências e
habilidades gerais:
I - Atenção à saúde: os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito profissional,
devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e
reabilitação da saúde, tanto em nível individual
quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de
forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo
capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de
procurar soluções para os mesmos. Os profissionais devem realizar seus serviços
dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética,
tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o
ato técnico, mas sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em nível
individual como coletivo;
II - Tomada de decisões: o trabalho dos profissionais de saúde deve estar
fundamentado na
capacidade de tomar decisões visando o uso apropriado, eficácia e custo-
efetividade, da força de trabalho, de medicamentos, de equipamentos, de
procedimentos e de práticas. Para este fim, os mesmos devem possuir
competências e habilidades para avaliar, sistematizar e decidir as condutas mais
adequadas, baseadas em evidências científicas;
III - Comunicação: os profissionais de saúde devem ser acessíveis e devem
manter a confidencialidade das informações a eles confiadas, na interação com
outros profissionais de saúde e o público em geral. A comunicação envolve
comunicação verbal, não-verbal e habilidades de escrita e leitura; o domínio de,
pelo menos, uma língua estrangeira e de tecnologias de comunicação e
informação;
IV - Liderança: no trabalho em equipe multiprofissional, os profissionais de saúde
deverão estar aptos a assumir posições de liderança, sempre tendo em vista o
bem-estar da comunidade. A liderança envolve compromisso, responsabilidade,
empatia, habilidade para tomada de decisões, comunicação e gerenciamento de
forma efetiva e eficaz;
V - Administração e gerenciamento: os profissionais devem estar aptos a tomar
iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da força de trabalho quanto
dos recursos físicos e materiais e de informação, da mesma forma que devem
estar aptos a serem empreendedores, gestores, empregadores ou lideranças na
equipe de saúde; e
VI - Educação permanente: os profissionais devem ser capazes de aprender
continuamente, tanto na sua formação, quanto na sua prática. Desta forma, os
profissionais de saúde devem aprender a aprender e ter responsabilidade e
compromisso com a sua educação e o treinamento/estágios das futuras gerações
de profissionais, mas proporcionando condições para que haja benefício mútuo
entre os futuros profissionais e os profissionais dos serviços, inclusive, estimulando
e desenvolvendo a mobilidade acadêmico/profissional, a formação e a cooperação
por meio de redes nacionais e internacionais.
Art. 5º A formação do enfermeiro tem por objetivo dotar o profissional dos
conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e
habilidades específicas:
267
I – atuar profissionalmente, compreendendo a natureza humana em suas
dimensões, em suas expressões e fases evolutivas;
II – incorporar a ciência/arte do cuidar como instrumento de interpretação
profissional;
III – estabelecer novas relações com o contexto social, reconhecendo a estrutura e
as formas de organização social, suas transformações e expressões;
IV – desenvolver formação técnico-científica que confira qualidade ao exercício
profissional;
V – compreender a política de saúde no contexto das políticas sociais,
reconhecendo os perfis epidemiológicos das populações;
VI – reconhecer a saúde como direito e condições dignas de vida e atuar de forma
a garantir a integralidade da assistência, entendida como conjunto articulado e
contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos,
exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;
VII – atuar nos programas de assistência integral à saúde da criança, do
adolescente, da mulher, do adulto e do idoso;
VIII – ser capaz de diagnosticar e solucionar problemas de saúde, de comunicar-
se, de tomar decisões, de intervir no processo de trabalho, de trabalhar em equipe
e de enfrentar situações em constante mudança;
IX – reconhecer as relações de trabalho e sua influência na saúde;
X – atuar como sujeito no processo de formação de recursos humanos;
XI – responder às especificidades regionais de saúde através de intervenções
planejadas
estrategicamente, em níveis de promoção, prevenção e reabilitação à saúde,
dando atenção integral à saúde dos indivíduos, das famílias e das comunidades;
XII – reconhecer-se como coordenador do trabalho da equipe de enfermagem;
XIII – assumir o compromisso ético, humanístico e social com o trabalho
multiprofissional em saúde.
XIV – promover estilos de vida saudáveis, conciliando as necessidades tanto dos
seus
clientes/pacientes quanto às de sua comunidade, atuando como agente de
transformação social;
XV – usar adequadamente novas tecnologias, tanto de informação e comunicação,
quanto de ponta para o cuidar de enfermagem;
XVI – atuar nos diferentes cenários da prática profissional, considerando os
pressupostos dos modelos clínico e epidemiológico;
XVII – identificar as necessidades individuais e coletivas de saúde da população,
seus condicionantes e determinantes;
XIII – intervir no processo de saúde-doença, responsabilizando-se pela qualidade
da assistência/cuidado de enfermagem em seus diferentes níveis de atenção à
saúde, com ações de promoção, prevenção, proteção e reabilitação à saúde, na
perspectiva da integralidade da assistência;
XIX – coordenar o processo de cuidar em enfermagem, considerando contextos e
demandas de saúde;
XX – prestar cuidados de enfermagem compatíveis com as diferentes
necessidades apresentadas pelo indivíduo, pela família e pelos diferentes grupos
da comunidade;
XXI – compatibilizar as características profissionais dos agentes da equip e de
enfermagem às diferentes demandas dos usuários;
XXII – integrar as ações de enfermagem às ações multiprofissionais;
268
XXIII – gerenciar o processo de trabalho em enfermagem com princípios de Ética e
de Bioética, com resolutividade tanto em nível individual como coletivo em todos os
âmbitos de atuação profissional;
XXIV – planejar, implementar e participar dos programas de formação e
qualificação contínua dos trabalhadores de enfermagem e de saúde;
XXV – planejar e implementar programas de educação e promoção à saúde,
considerando a especificidade dos diferentes grupos sociais e dos distintos
processos de vida, saúde, trabalho e adoecimento;
XXVI – desenvolver, participar e aplicar pesquisas e/ou outras formas de produção
de conhecimento que objetivem a qualificação da prática profissional;
XXVII – respeitar os princípios éticos, legais e humanísticos da profissão;
XXIII – interferir na dinâmica de trabalho institucional, reconhecendo-se como
agente desse processo;
XXIX – utilizar os instrumentos que garantam a qualidade do cuidado de
enfermagem e da assistência à saúde;
XXX – participar da composição das estruturas consultivas e deliberativas do
sistema de saúde;
XXXI – assessorar órgãos, empresas e instituições em projetos de saúde;
XXXII - cuidar da própria saúde física e mental e buscar seu bem-estar como
cidadão e como enfermeiro; e
XXXIII - reconhecer o papel social do enfermeiro para atuar em atividades de
política e planejamento em saúde.
Parágrafo Único. A formação do Enfermeiro deve atender as necessidades sociais
da saúde, com ênfase no Sistema Único de Saúde (SUS) e assegurar a
integralidade da atenção e a qualidade e humanização do atendimento.
Art. 6º Os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Enfermagem
devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da
família e da comunidade, integrado à realidade epidemiológica e profissional,
proporcionando a integralidade das ações do cuidar em enfermagem. Os
conteúdos devem contemplar:
I - Ciências Biológicas e da Saúde – incluem-se os conteúdos (teóricos e
práticos) de base moleculares e celulares dos processos normais e alterados, da
estrutura e função dos tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos, aplicados às
situações decorrentes do processo saúde-doença no desenvolvimento da prática
assistencial de Enfermagem;
II - Ciências Humanas e Sociais – incluem-se os conteúdos referentes às
diversas dimensões da relação indivíduo/sociedade, contribuindo para a
compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos,
ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-
doença;
III - Ciências da Enfermagem - neste tópico de estudo, incluem-se:
a) Fundamentos de Enfermagem: os conteúdos técnicos, metodológicos e os
meios e instrumentos inerentes ao trabalho do Enfermeiro e da Enfermagem em
nível individual e coletivo;
b) Assistência de Enfermagem: os conteúdos (teóricos e práticos) que compõem
a assistência de Enfermagem em nível individual e coletivo prestada à criança, ao
adolescente, ao adulto, à mulher e ao idoso, considerando os determinantes sócio-
culturais, econômicos e ecológicos do processo saúde-doença, bem como os
princípios éticos, legais e humanísticos inerentes ao cuidado de Enfermagem;
269
c) Administração de Enfermagem: os conteúdos (teóricos e práticos) da
administração do processo de trabalho de enfermagem e da assistência de
enfermagem; e
d) Ensino de Enfermagem: os conteúdos pertinentes à capacitação pedagógica
do enfermeiro, independente da Licenciatura em Enfermagem.
§ 1º Os conteúdos curriculares, as competências e as habilidades a serem
assimilados e adquiridos no nível de graduação do enfermeiro devem conferir-lhe
terminalidade e capacidade acadêmica e/ou profissional, considerando as
demandas e necessidades prevalentes e prioritárias da população conforme o
quadro epidemiológico do país/região.
§ 2º Este conjunto de competências, conteúdos e habilidades deve promover no
aluno e no enfermeiro a capacidade de desenvolvimento intelectual e profissional
autônomo e permanente.
Art. 7º Na formação do Enfermeiro, além dos conteúdos teóricos e práticos
desenvolvidos ao longo de sua formação, ficam os cursos obrigados a incluir no
currículo o estágio supervisionado em hospitais gerais e especializados,
ambulatórios, rede básica de serviços de saúde e comunidades nos dois últimos
semestres do Curso de Graduação em Enfermagem.
Parágrafo Único. Na elaboração da programação e no processo de supervisão do
aluno, em estágio curricular supervisionado, pelo professor, será assegurada
efetiva participação dos enfermeiros do serviço de saúde onde se desenvolve o
referido estágio. A carga horária mínima do estágio curricular supervisionado
deverá totalizar 20% (vinte por cento) da carga horária total do Curso de
Graduação em Enfermagem proposto, com base no Parecer/Resolução específico
da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação.
Art. 8º O projeto pedagógico do Curso de Graduação em Enfermagem deverá
contemplar atividades complementares e as Instituições de Ensino Superior
deverão criar mecanismos de aproveitamento de conhecimentos, adquiridos pelo
estudante, através de estudos e práticas independentes, presenciais e/ou a
distância, a saber: monitorias e estágios; programas de iniciação científica;
programas de extensão;
estudos complementares e cursos realizados em outras áreas afins.
Art. 9º O Curso de Graduação em Enfermagem deve ter um projeto pedagógico,
construído coletivamente, centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e
apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-
aprendizagem. Este projeto pedagógico deverá buscar a formação integral e
adequada do estudante através de uma articulação entre o ensino, a pesquisa e a
extensão/assistência.
Art. 10. As Diretrizes Curriculares e o Projeto Pedagógico devem orientar o
Currículo do Curso de Graduação em Enfermagem para um perfil acadêmico e
profissional do egresso. Este currículo deverá contribuir, também, para a
compreensão, interpretação, preservação, reforço, fomento e difusão das culturas
nacionais e regionais, internacionais e históricas, em um contexto de pluralismo e
diversidade cultural.
§ 1º As diretrizes curriculares do Curso de Graduação em Enfermagem deverão
contribuir para a inovação e a qualidade do projeto pedagógico do curso.
§ 2º O Currículo do Curso de Graduação em Enfermagem deve incluir aspectos
complementares de perfil, habilidades, competências e conteúdos, de forma a
considerar a inserção institucional do curso, a flexibilidade individual de estudos e
270
os requerimentos, demandas e expectativas de desenvolvimento do setor saúde na
região.
Art. 11. A organização do Curso de Graduação em Enfermagem deverá ser
definida pelo respectivo colegiado do curso, que indicará a modalidade: seriada
anual, seriada semestral, sistema de créditos ou modular.
Art. 12. Para conclusão do Curso de Graduação em Enfermagem, o aluno deverá
elaborar um trabalho sob orientação docente.
Art. 13. A Formação de Professores por meio de Licenciatura Plena segue
Pareceres e Resoluções específicos da Câmara de Educação Superior e do Pleno
do Conselho Nacional de Educação.
Art. 14. A estrutura do Curso de Graduação em Enfermagem deverá assegurar:
I - a articulação entre o ensino, pesquisa e extensão/assistência, garantindo um
ensino crítico, reflexivo e criativo, que leve a construção do perfil almejado,
estimulando a realização de experimentos e/ou de projetos de pesquisa;
socializando o conhecimento produzido, levando em conta a evolução
epistemológica dos modelos explicativos do processo saúde-doença;
II - as atividades teóricas e práticas presentes desde o início do curso, permeando
toda a formação do Enfermeiro, de forma integrada e interdisciplinar;
III - a visão de educar para a cidadania e a participação plena na sociedade;
IV - os princípios de autonomia institucional, de flexibilidade, integração
estudo/trabalho e pluralidade no currículo;
V - a implementação de metodologia no processo ensinar-aprender que estimule o
aluno a refletir sobre a realidade social e aprenda a aprender;
VI - a definição de estratégias pedagógicas que articulem o saber; o saber fazer e o
saber conviver, visando desenvolver o aprender a aprender, o aprender a ser, o
aprender a fazer, o aprender a viver juntos e o aprender a conhecer que constitui
atributos indispensáveis à formação do Enfermeiro;
VII - o estímulo às dinâmicas de trabalho em grupos, por favorecerem a discussão
coletiva e as relações interpessoais;
VIII - a valorização das dimensões éticas e humanísticas, desenvolvendo no aluno
e no enfermeiro atitudes e valores orientados para a cidadania e para a
solidariedade; e
IX - a articulação da Graduação em Enfermagem com a Licenciatura em
Enfermagem.
Art. 15. A implantação e desenvolvimento das diretrizes curriculares devem
orientar e propiciar concepções curriculares ao Curso de Graduação em
Enfermagem que deverão ser acompanhadas e permanentemente avaliadas, a fim
de permitir os ajustes que se fizerem necessários ao seu aperfeiçoamento.
§ 1º As avaliações dos alunos deverão basear-se nas competências, habilidades e
conteúdos curriculares desenvolvidos, tendo como referência as Diretrizes
Curriculares.
§ 2º O Curso de Graduação em Enfermagem deverá utilizar metodologias e
critérios para acompanhamento e avaliação do processo ensino-aprendizagem e
do próprio curso, em consonância com o sistema de avaliação e a dinâmica
curricular definidos pela IES à qual pertence.
Art. 16. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário.
Arthur Roquete de Macedo
Presidente da Câmara de Educação Superior
271
Anexo 2 – Fotos do HCPA e da ETE
Figura 1 – Vista Panorâmica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Figura 2 – Vista de um dos acessos à Escola Técnica de Enfermagem – Subsolo – Sala 059
272
Figuras 3 e 4 – Vista da frente da Escola Técnica de Enfermagem
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