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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
SANDRA KARINA BARBOSA MENDES
CULTURA E CONHECIMENTO SOB A ÉGIDE DOS ESTUDOS
CULTURAIS: UM OLHAR A PARTIR DA PRODUÇÃO ACADÊMICA
BRASILEIRA.
BELÉM PARÁ
2007
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1
SANDRA KARINA BARBOSA MENDES
CULTURA E CONHECIMENTO SOB A ÉGIDE DOS ESTUDOS
CULTURAIS: UM OLHAR A PARTIR DA PRODUÇÃO ACADÊMICA
BRASILEIRA.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em Educação,
Universidade Federal do Pará, Linha de Pesquisa
Currículo e Formação de Professores, Mestrado
Acadêmico em Educação, Centro de Educação, sob a
Orientação da Prof
a
. Dr
a
. Josenilda M. Maués da Silva.
BELÉM – PARÁ
2007
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2
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) –
Biblioteca Profa. Elcy Rodrigues Lacerda/Centro de Educação/UFPA, Belém-PA
Mendes, Sandra Karina Barbosa.
Cultura e conhecimento sob a égide dos estudos culturais: um
olhar a partir da produção acadêmica brasileira; orientadora,
Profa. Dra. Josenilda Maria Maués da Silva. _ 2007.
Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal do
Pará, Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,
Belém, 2007.
1. Cultura Estudo e Ensino Brasil. 2. Curculos - Brasil. 3.
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(Brasil). I. Título.
CDD - 21. ed.: 306.071181
3
SANDRA KARINA BARBOSA MENDES
CULTURA E CONHECIMENTO SOB A ÉGIDE DOS ESTUDOS
CULTURAIS: UM OLHAR A PARTIR DA PRODUÇÃO ACADÊMICA
BRASILEIRA.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em Educação,
Universidade Federal do Pará, Linha de Pesquisa
Currículo e Formação de Professores, Mestrado
Acadêmico em Educação, Centro de Educação, sob a
Orientação da Prof
a
. Dr
a
. Josenilda M. Maués da Silva,
pelos seguintes componentes da Banca Examinadora:
_______________________________________________
Orientadora: Profª. Drª. Josenilda Maria Maués da Silva.
Universidade Federal do Pará.
_______________________________________________
Examinadora: Profª.Drª. Wilma Baia Coelho
Universidade Federal do Pará.
_______________________________________________
Examinadora: Profª. Drª. Silvia Nogueira Chaves
Universidade Federal do Pará.
BELÉM, 30 DE ABRIL DE 2007.
4
À YHWH,
Aquele que causa o que venha a ser.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Vítor Feitosa...
Meu querido e estimado esposo, paciente e gentil nos momentos abstrusos; jovial e incitante
nos momentos otimistas; obrigada pela companhia nas ‘noites em claro’ e pelo ‘bom dia’
animador na manhã seguinte.
***
À Francinete Mendes e Genebaldo Mendes...
Meus maravilhosos pais, pelo exemplo de determinação frente aos estorvos e pela ‘garra’ na
peleja pela consumação dos sonhos admissíveis e excêntricos.
***
Aos meus irmãos...
Tatiane Mendes, Gizele Mendes e Sandro Mendes, por tornarem nossa casa um refúgio
amoroso nas estações dolentes, pela solidariedade e pela existência.
***
Aos meus eternos amigos...
João Lima, pelo apoio contíguo e longínquo.
Márcia Bezerra, amiga tão achegada – apesar da distância.
Madson Matos, amigo constante e leal.
Família Silva, pelos momentos de descontração, gostosas risadas, tão indispensáveis nos
momentos de tensão.
***
Às professoras e professores...
Sônia Maria Araújo, por acreditar em mim e mostrar-me meu denodo enquanto pesquisadora.
Sônia Bertolo, pela maneira suave de nos conduzir e pelo companheirismo irrestrito.
Paulo Almeida, pelo olhar metodológico indispensável aos rumos tomados nesta pesquisa.
Genylton Odilon Rego da Rocha, por ter dito o que precisava ser ouvido no momento certo.
6
Wilma Baia Coelho, pela singular sensibilidade e delicadeza em suas inferências.
Laura Maria Araújo Alves, pelo sorriso e humor contagiantes e relaxantes.
Josenilda Maria Maués da Silva, por me fazer ver os episódios primeiro do lado avesso e
depois do lado direito, para, por fim, notar que o avesso não é tão feio e nem sempre o direito
é mais bonito. São nossos olhares que tornam as coisas o que elas são – bonitas ou feias.
Digo-lhe: as mudanças em nós mesmos nos escapam, as nossas trajetórias se multiplicam à
nossa revelia, quem sabe nelas não nos encontremos novamente e o início de nosso reencontro
seja muito melhor do que o fim.
Aliás, o “fim” está sendo o melhor momento de nosso encontro, pois é nele que vejo você,
além de professora, de orientadora, vejo a Josenilda, ou Jose.
Obrigada!
***
A todos aqueles que contribuíram na realização deste empreendimento de pesquisa...
Álvaro Júnior, por suas “mãos” profissionais que tanto colaboraram para aliviar a
concentração de tensão nos músculos e membros sem os quais as tantas horas de digitação
não seriam suportáveis.
André Araújo, pela simples e vital companhia.
À Conceição Mendes, pelos cuidados e encaminhamentos burocráticos e pela paciência em
nossos descuidos.
***
À turma de Mestrado de 2005, por caminhar junto comigo “contra o vento sem lenço e sem
documento”, mas com muita coragem e resolução.
Em especial, à Ana Cláudia Peixoto de Cristo, Amélia Maria Araújo Mesquita, Vera Solange
Pires Gomes, Gleyce Izaura da Costa Oliveira, Carlos Amorim, Roseane do Socorro da Silva
Reis, Edinéia Bandeira Ribeiro, Herika Socorro Costa Nunes, Solange Mochiutti, Lucineide
Soares do Nascimento e Joana D’arc das Neves. A estes lembro: “Os perigos não constituem
lugares dos quais se pode fugir, mas lugares para onde se vai”
(HALL, 2003, p.215).
7
VERSOS ESCRITOS NÁGUA
Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.
Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...
Manuel Bandeira
8
RESUMO
Este empreendimento de pesquisa desenvolve uma análise acerca de cultura e conhecimento,
duas categorias basilares no campo dos Estudos Culturais, no intuito de investigar como estas
são concebidas nos textos publicados no GT de Currículo (GT-12) da Associação Nacional de
Pós-Graduação (ANPEd), no período de 2000 a 2006. De modo adjacente, analiso as ênfases
temáticas identificadas no conjunto dos textos e as conjugações temáticas e metodológicas
realizadas pelos seus autores, de modo a obter um quadro analítico integral das categorias
cultura e conhecimento tal como são abordadas. Como procedimentos metodológicos,
constam o estudo teórico de Raymond Williams, Stuart Hall e Tomaz Tadeu da Silva, autores
de referência internacional e nacional do campo dos Estudos Culturais, e a análise de
dezesseis (16) textos, entre pôsteres e trabalhos completos, retirados do site da ANPEd
www.anped.org.br no GT de Currículo, inseridos na perspectiva teórica dos Estudos
Culturais. A partir das análises desenvolvidas, é possível afirmar que cultura e conhecimento
são concebidos nestes textos como práticas de significação. Cultura não é mera transmissão
de tradições, valores, costumes e saberes de uma geração à outra, antes, a cultura é da ordem
dos sentidos e significados, isto é, refere-se a maneiras de interpretar e conceber o mundo e
constrói-se a partir das relações que homens e mulheres estabelecem entre si. Do mesmo
modo, o conhecimento também é construído, produzido pela cultura, pelos sujeitos que fazem
cultura. Não é neutro, nem estático, porque o processo no qual é criado está permeado por
interesses particulares, disputas, questões de poder. Em geral, cultura e conhecimento são
analisados em textos que discutem os currículos culturais, em especial a mídia, em suas mais
diversas modalidades – computador, jogos eletrônicos, programas de TV e revistas. As
conjugações teóricas mais recorrentes envolvem autores tais como Tomaz Tadeu da Silva,
teórico mais acionado, Michael Foucault, Homi Bhabha, Stuart Hall e Jean-Claude Forquim,
Gimeno Sacristán e Henry Giroux. As conjugações metodológicas mais utilizadas são as
análises do discurso e análises documentais. Refletindo sobre as análises que os textos
desenvolvem sobre o currículo, percebo dois grandes eixos de compreensão. Um no qual o
currículo é concebido como teoria/prática cultural, capaz de produzir sujeitos e subjetividades
e outro no qual diferenciação entre currículo teórico ou oficial e currículo real; neste eixo,
o currículo é concebido como um documento oficial apartado das experiências cotidianas dos
alunos. Observo, deste modo, duas vertentes teóricas acentuarem-se dentro de um mesmo
campo de pesquisa, a crítica e a pós-estruturalista, que convergem em alguns aspectos e
divergem em outros, mas no que concerne às categorias cultura e conhecimento, parece haver
um consenso no que se refere às relações intrínsecas destas com os processos de significação,
produção de identidades, subjetividades e de afirmação e produção de diferenças.
PALAVRAS-CHAVE: CULTURA. CONHECIMENTO. ESTUDOS CULTURAIS. CURRÍCULO.
9
ABSTRACT
This research enterprise, develops an analysis about the culture and knowledge, two base
categories in the field of cultural studies, with the objective of investigating how they are
conceived in the texts published in the WG (work group) of curriculum WG-12 of the
National Association of Post-Graduation (ANPEd), in the period from 2000 to 2006. In a
derived way, I analyze the thematic emphasis, identified in the group of texts and the
methodological thematic approaches realized by it’s authors, with the objective of obtaining a
complete analytical board of the culture and knowledge categories as they are dealt with. As
methodological procedures, there are the theorical studies of Raymond Williams, Stuart Hall
and Tomaz Tadeu da Silva, authors who are national and international references in the field
of cultural studies and the analysis of (16) texts, among posters and complete researches taken
from ANPEd site - www.anped.org.br - In the WG of curriculum inserted in the theorical
perspectives of cultural studies. Starting from the developed analysis, is possible state that the
culture and the knowledge are conceived in these texts as meaning practices. The culture is
not the simple transmission of tradition, values, habits and knowledge’s from generation to
generation, but the culture is in the senses and meanings order, therefore, refers to the ways of
interpretating and conceiving the world and is built up from the relationships that men and
women establish between each other and the social groups. In the same way, the knowledge is
built, produced by the culture and knowledge are analyzed in texts that discuss the cultural
curriculums, specially the media in it’s several styles – computer, electronic games, TV
programs, magazines. The most usual theorical approaches involve authors as Tomaz Tadeu
da Silva, the most quoted scholar, Michael Foucault, Homi Bhabha, Stuart Hall, Jean Claude
Forquim, Gimeno Sacristan, Henry Giroux. The most used methodological approaches are the
speech analysis and the documental analysis. Reflecting about the analysis that the texts
develop about the curriculum, I realize two important ways of comprehension. One in which
curriculum is conceived as cultural theory/practice, able to produce subjects and subjectivities
and other in which there is a differentiation between theorical or official and real curriculum,
in this way, the curriculum is conceived as an official document apart from the student’s daily
experience. I observe, two theorical approaches being stressed in the same researching field,
the critical and the post-structuralist, that are similar in some aspects and differentiate in
others, but in what deals with culture and knowledge categories, it seems that exists an
agreement in what refers to the natural relations with the meaning process, production of
identities, subjectivities and the statement and production of differences.
KEYWORDS: CULTURE. KNOWLEDGE. CULTURAL STUDIES. CURRICULUM.
10
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Freqüência em que as categorias cultura, significação, identidade e poder são
discutidas alternadamente nos pôsteres/GT-12....................................................................... 87
Tabela 2 - Freqüência em que as categorias cultura, significação, identidade e poder são
discutidas alternadamente nos trabalhos completos/GT-12................................................... 87
Tabela 3 - Teóricos e categorias analíticas mais recorrentes................................................ 116
11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadro 1 - Pôsteres e trabalhos completos publicados e selecionados para análise no
GT de Currículo / ANPEd ....................................................................................................... 30
Quadro 2 - Textos que acionam cultura e conhecimento em suas análises / GT-12 ............. 85
Quadro 3 - Número de pôsteres e trabalhos completos em que as categorias cultura,
significação, identidade e poder são discutidas em conjunto no GT-12................................. 88
Quadro 4 - Pôsteres e trabalhos completos selecionados para análise / GT-12...................... 92
Quadro 5 - Palavras-Chave e conexões na análise da cultura / GT-12................................... 91
Quadro 6 - Palavras-Chave e conexões na análise do conhecimento / GT-12....................... 93
Quadro 7 - Classificação por Temática / GT-12 .................................................................. 109
Quadro 8 - Apresentação por Conjugação Teórica / GT-12 ................................................ 115
Quadro 9 - Conjugações e Ênfases Metodológicas / GT-12................................................. 117
12
SUMÁRIO
PRIMEIRO CENÁRIO
1 – O DESPERTAR DA VELEIDADE ........................................................................
A Busca nas Veredas do Desconhecido ........................................................................
Colheita, Apuro e Confluências Analíticas ..................................................................
O Arcabouço ...................................................................................................................
13
22
28
32
SEGUNDO CENÁRIO
2 ESTUDOS CULTURAIS: DA OUSADIA INTELECTUAL AO
COMPROMETIMENTO SOCIAL E POLÍTICO .....................................................
2.1. Cultura e Culturas nos Estudos Culturais ..................................................
2.1.1. A Cultura nos Estudos Culturais ........................................................
2.1.2. O Culturalismo ...................................................................................
2.1.3. O Estruturalismo ................................................................................
2.2. As Ramificações Teóricas e Temáticas ........................................................
2.2.1. O Pós-estruturalismo e os Estudos Culturais .....................................
2.3. O Itinerário dos Estudos Culturais no Brasil .............................................
3 – O CONHECIMENTO NOS ESTUDOS CULTURAIS ........................................
3.1. Cultura e Educação nos Estudos Culturais ................................................
3.1.1. A Transição no Conceito de Cultura e as Implicações para
a Educação ...................................................................................................
3.2. A Tradição Seletiva da Cultura no Contexto Escolar ................................
3.3. Conhecimento e Currículo nos Estudos Culturais ......................................
34
36
39
42
45
47
53
56
61
64
65
68
80
TERCEIRO CENÁRIO
4 CULTURA E CONHECIMENTO NOS ESTUDOS CULTURAIS PELA VIA
DO GT DE CURRÍCULO DA ANPED .......................................................................
4.1. Primeiras Impressões ...................................................................................
4.2. Cultura e Conhecimento nos Estudos Culturais: o desvelar
dos subsídios .........................................................................................................
4.2.1. O Entrelaçamento entre Cultura, Conhecimento, Significação,
Identidade, Poder e Diferença.......................................................................
4.3. Ênfases Temáticas, Conjugações Teóricas e Metodológicas na Análise
da Cultura e Conhecimento no GT de Currículo da ANPEd ..........................
4.3.1. Ênfases Temáticas ..............................................................................
4.3.2. Conjugações Teóricas ........................................................................
4.3.3. Conjugações Metodológicas ..............................................................
4.4. O Currículo como Teoria e Prática .............................................................
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................
REFERÊNCIAS .............................................................................................................
85
85
91
95
109
109
115
117
120
123
129
13
O DESPERTAR DA VELEIDADE
A pretensão em pesquisar cultura, conhecimento e currículo na perspectiva dos
Estudos Culturais originou-se a partir das leituras desenvolvidas sobre multiculturalismo e
educação escolar, no contexto da pesquisa por mim realizada e intitulada “Multiculturalismo e
Educação: reflexões acerca da postura do professor frente à diversidade cultural existente na
escola”, vinculada ao curso de especialização em “Educação, Cultura e Organização Social”,
promovido pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal do Pará, em 2004.
Esta investigação, que tinha como objetivo refletir sobre a postura do professor ante as
múltiplas identidades culturais dos alunos, no que se refere à seleção e implementação dos
conteúdos curriculares e a interação, permitiu-me enveredar pelas discussões em torno da
cultura e entrar em contato com as diferentes vertentes do multiculturalismo, tanto aquelas
voltadas para o respeito e valorização da diversidade cultural (CANDAU, 2000, 2002) quanto
aquelas que assinalavam para além do respeito à diferença (MCLAREN, 2000).
Pude realizar nesta pesquisa uma incursão nas salas de aula de uma escola de Ensino
Fundamental da Rede Municipal de Ensino de Belém e ter acesso aos discursos dos
professores das disciplinas História, Geografia, Português, Matemática e Ciências. Nos seus
depoimentos, coletados através de entrevistas semi-abertas, esses docentes manifestaram suas
opiniões e refletiram sobre a postura que assumem ante as diferenças culturais, tanto no que
tange às relações estabelecidas com os alunos em classe quanto à seleção e aplicação dos
conteúdos por eles ministrados.
O contato com as “falas” dos professores me consentiu perceber como a questão
referente às diferenças culturais é delicada para alguns e como é despercebida por outros, isto
é, alguns professores, uma minoria em relação ao todo, reconheciam a presença das diferenças
e incomodava-lhes não saber exatamente como lidar com elas. Em geral, quando alguns
“conflitos” surgiam em sala de aula, esses docentes alegaram recorrer aos “sermões” sobre a
necessidade do respeito entre os alunos, “de aceitar o outro como ele é”.
Referente aos conteúdos selecionados para trabalhar com os alunos, esses professores
tentavam explorar, junto àqueles por eles denominados “tradicionais” e fundamentais para a
seleção do vestibular, alguns aspectos próprios das culturas dos alunos, tais como aqueles
pertinentes à linguagem, música, dança, folclore e outros costumes locais.
Quanto à maioria, não demonstravam perceber entre seus alunos diferenças
significativas em sentido cultural. Consideravam que a escola tem o papel fundamental de
14
ensinar aos alunos os conhecimentos cientificamente aceitos visto que, nas suas perspectivas,
a escola pública tem falhado neste respeito. Os livros didáticos não deviam ser dispensados,
pois, segundo os professores, estes constituem o único instrumento de informação e leitura a
que os alunos têm acesso.
Foi possível perceber que o freqüente emprego do livro didático em sala de aula
justificava-se pela facilitação que o uso deste permitia na seleção e aplicação dos conteúdos
programáticos, principalmente porque todos os alunos possuíam um exemplar do livro, e pelo
próprio investimento financeiro feito pelo governo na aquisição dos mesmos, de modo que
não poderiam ser simplesmente ignorados.
Alguns professores chegaram a mencionar que nunca haviam pensado na questão da
possível relação entre as diferenças culturais dos alunos e as seleções de conteúdo curricular.
Creditaram às suas formações iniciais a dificuldade de se posicionarem perante estas questões,
afirmando que não foram formados adequadamente para lidar com a presença do
homossexualismo, de alunos portadores de necessidades educativas especiais e de ex-
presidiários em sala de aula.
Assim, minha própria experiência como professora da mesma rede de ensino
imiscuída aos relatos daqueles professores trouxe-me à tona uma questão que se situava
muito tempo no campo das abstrações impossíveis de serem concretizadas e que, por este
motivo, havia sido relegada a um plano secundário: como construir uma escola e um currículo
levando em conta a existência de diferenças culturais?
Esta questão era tida por mim como utópica porque não havia ainda encontrado uma
resposta a ela nem nos livros, nem nas experiências ouvidas e compartilhadas, nem nas
palestras e cursos, enfim, escapava-me cada vez mais uma resposta, uma solução, até que
resolvi encará-la como uma quimera.
De fato, pude depreender que muitos professores ou, por que não, muitos de nós
professores esperamos respostas ou soluções imediatas para os problemas que enfrentamos
em nossas salas de aula, mas quão cansativa e ilusória tem se revelado ser tal tipo de
expectativa, pois vejo que as respostas são construídas em processos contínuos nos quais cada
um de nós exerce papel fundamental. Tratam-se, certamente, de constructos’ que surgem a
partir de muitas vivências, reflexões e estudos teóricos.
Assim, após a conclusão da pesquisa, passei a refletir sobre estas questões com maior
intensidade e, durante este processo, cada vez mais incorporava o desejo de questionar esta
‘lógica’ na qual as culturas estão envolvidas e na qual valores e sentidos contraditórios que
nos compelem a acreditar que as culturas são variadas, mas que devemos agir como se elas
15
fossem uníssonas; que as identidades são diferentes sim e, exatamente por isso, devem ser
aceitas, respeitadas e tratadas sem hierarquias; que a cultura ‘evolui’, mas suas tradições
devem ser resgatadas e preservadas. As contradições eram evidentes e me remetiam a outras
reflexões.
Uma destas reflexões direcionava-me para uma certeza inegável: não como
esquecer ou ignorar as questões relativas à cultura no espaço escolar, pois elas são
inescusáveis e sempre constitutivas dessa ambiência. O processo educacional é,
inevitavelmente, um processo cultural e sendo a cultura um espaço de diferenças, estas
borbulharão a todo instante no ambiente escolar composto por seres humanos com distintas
formas de conceber o mundo e suas relações. Não há, portanto, como não trazer as diferenças
culturais para o palco de discussão.
Outra reflexão que passou então a me interpelar voltava-se para o entendimento dos
tipos de relações estabelecidas entre as culturas e os seus grupos representativos. Parecia-me
haver uma espécie de jogo no qual as culturas estavam imersas, com regras” nuviosas, mas
que se direcionavam claramente para um fim comum: a supremacia de uma cultura sobre as
demais e a aquisição e manutenção do poder por parte de determinados grupos minoritários de
decidir, de ditar os rumos, isto é, de determinar o que deve ser aprendido, o que deve ser
ensinado, por que e para quem devem servir esses conteúdos.
As experiências vividas no curso de especialização e as trocas estabelecidas em
momentos posteriores com o grupo de alunos e professores do mestrado despertaram em mim
o desejo de aprofundar a reflexão teórica entre cultura e currículo.
Nas leituras que passei então a realizar, fui apresentada por Tomaz Tadeu (2004) a um
campo teórico que logo me despertou curiosidade os Estudos Culturais. Uma enxurrada de
dúvidas foi suscitada à medida que as idéias desse autor me envolviam num movimento
síncrono: que diferenças teóricas havia entre a concepção de cultura presente no
multiculturalismo revolucionário e a concepção de cultura nos Estudos Culturais?
diferença na maneira como as identidades e diferenças culturais são concebidas em ambos os
espaços teóricos? Essas, entre outras indagações, pontuavam meu campo de curiosidades.
Direcionei meus esforços, a partir de então, para conhecer este campo e topologizar
sua trajetória histórica. Comecei meu traçado na Inglaterra, sobretudo na década de 50,
momento em que uma reviravolta na concepção de cultura se iniciava e um campo teórico
passava a se constituir.
Os debates teóricos austeros em torno da transição da palavra cultura no singular para
cultura no plural, durante o século XIX, foram ‘registrados’ por Raymond Williams em sua
16
obra Cultura e Sociedade(1969), de modo que esta obra tornou-se uma das referências
sumárias no campo teórico dos Estudos Culturais. É a própria agitação referente a
reconceptualização da palavra cultura que faz nascer este campo.
Vivemos em uma sociedade em transição e a idéia de cultura tem sido
identificada, com demasiada freqüência, a uma ou outra das forças que
operam nessa transição. a cultura é produção de antigas classes
privilegiadas que buscam defende-la contra forças novas e destruidoras. Já a
cultura é herança da nova classe que surge, na qual se contém a humanidade
do futuro; essa classe procura agora libertá-la de suas restrições [...]. O que
de bom, aparentemente, é que cada uma das facções em luta aprecia
suficientemente a cultura para desejar com ela se identificar. Nenhum de
nós, porém, é juiz; estamos todos no jogo e atuamos a favor deste ou
daquele lado (WILLIAMS, 1969, p. 328).
Entre os que lideravam o movimento teórico em torno da reconceptualização da
cultura estavam Richard Hoggart e sua obra As utilizações da cultura” (1973), E. P.
Thompson e sua obra “A formação da classe operária inglesa” (1988) e, como citado,
Raymond Williams e sua obra Cultura e Sociedade (1969). Estes autores contribuíram
significativamente para a efetivação dos Estudos Culturais, campo teórico que granjeou
grande propulsão nas décadas posteriores e multiplicou-se sob variadas perspectivas teóricas e
metodológicas, em rios continentes, de modo que podemos também chamar os Estudos
Culturais de “estudos viajantes”.
No caso dos Estudos Culturais, trata-se das “viagens” de estudos que, ao
mesmo tempo em que abordam questões do âmbito da cultura global
adquirem os contornos e as matizes das configurações locais, reinventando-
se constantemente nos seus questionamentos e perspectivas de análises. Os
melhores exemplos que posso mencionar situam-se nas problematizações
sobre gênero, raça e etnia, que, com uma fecundidade sem precedentes, têm
recomposto todo o panorama dessas discussões em nosso país e em outros
pelos quais têm circulado (COSTA, 2000c, p. 26).
Desde o seu surgimento na Inglaterra, sua expansão pela América do Norte, e a partir
de sua chegada no Brasil, o campo teórico dos Estudos Culturais tem sido palco para muitos
debates proeminentes em torno do significado da(s) cultura(s), da reprodução/produção de
identidades, das questões de gênero/sexualidade, raça/etnia, colonial/pós-colonial, da
transmissão/construção de conhecimentos e das relações de poder entre os sujeitos e entre os
grupos culturais, questões que fornecem elementos relevantes para as análises atuais sobre
currículo.
17
Especificamente no Brasil, os Estudos Culturais tiveram sua entrada na arena
educacional e curricular na cada de 90. Tomaz Tadeu da Silva foi um dos pioneiros dos
Estudos Culturais no Brasil, sendo o responsável pela autoria, tradução e organização de
publicações
1
de suma relevância para o desenvolvimento de pesquisas na área.
Marisa Vorraber da Costa (2000c), Alfredo Veiga-Neto (1995, 2000, 2001) e Maria
Lúcia C. Wortmann (2001) estão entre aqueles que têm explorado consistentemente temáticas
centrais dos Estudos Culturais, tais como mídia e educação, disciplina, currículo e poder,
ciência, cultura e educação, respectivamente.
No campo curricular, os Estudos Culturais consideram inegável a relação do currículo
com a(s) cultura(s) e ambos são vistos como práticas de significação, produção, relação
social, relação de poder e práticas que produzem/reproduzem identidades sociais.
O campo teórico dos Estudos Culturais tem se disseminado de modo significativo e
vem apresentando uma produtividade crescente principalmente na Região Sul, nos programas
de pós-graduação das Universidades Federal do Rio Grande do Sul
2
(UFRGS) e Luterana do
Brasil
34
(ULBRA). As pesquisas desenvolvidas nestes programas enfocam os Estudos
Culturais ao discutir a cultura e educação como eixo central e eixos subsidiários tais como
identidade, subjetividade, raça e gênero, substituindo aqueles tais como nacionalismo,
unicidade, centralidade e todas as formas de interpretações biologizantes e essencialismos
culturais.
A Universidade Luterana do Brasil promove anualmente, em sociedade com a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o “Seminário Brasileiro de Estudos
Culturais em Educação”
4
,
3
hoje em sua segunda versão, cujo objetivo tem sido o de reunir
pesquisadores e estudantes interessados em análises referentes à cultura contemporânea e seus
reflexos na educação, discutindo de modo específico os Estudos Culturais em suas múltiplas
temáticas.
1
Entre essas, destaco: SILVA, T. T. (Org) Identidade e Diferença a perspectiva dos Estudos Culturais (2005);
SILVA, T. T. Documentos de Identidade – uma introdução às teorias do currículo (2004ª); SILVA, T. T. (Org) O
que é afinal, Estudos Culturais? (2004b); SILVA, T. T. (Org) Alienígenas na sala de aula (1995); SILVA, T. T.
O currículo como fetiche – a poética do texto curricular (2001).
2
No PPGE/UFRGS existe uma gama significativa de grupos de pesquisa referentes a temáticas tais como:
Estudos Culturais em Educação; Ética, Alteridade e Linguagem na Educação; Educação, Sexualidade e Relações
de Gênero; Filosofias da Diferença em Educação, entre outros.
3
No PPGE/ULBRA podemos citar o grupo de pesquisa “Cultura e Educação” e as linhas de pesquisas
desenvolvidas são: Escola, docência e identidades; Currículo e pedagogias culturais; entre outras.
4
O primeiro Seminário Brasileiro de Estudos Culturais em Educação (2004) congregou mais de duzentos e
cinqüenta trabalhos sob as temáticas centrais “poder, identidade e diferença”, com representantes de pesquisas
desenvolvidas em programas de pós-graduação de todo o Brasil.
18
Outros eventos que envolvem as temáticas dos Estudos Culturais também têm
ganhado espaço no Brasil, tais como: “Seminário Internacional Fazendo Gênero”
5
,
6
“Simpósio
Nacional Discurso, Identidade e Sociedade”
6 7
, entre outros.
A Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd) também tem sido
um espaço significativo de difusão das pesquisas situadas na temática atinente à relação entre
currículo e os Estudos Culturais. Através do Grupo de Trabalho “Currículo” (GT 12), tem-
se estimulado a discussão em torno da relação entre educação e cultura, ampliando a crítica às
políticas curriculares atuais e chamando atenção para a necessidade de expandir a esfera
educacional para além do domínio econômico e para o entendimento do currículo como
produção cultural.
Envolvendo-me com esta crescente produção científica dos Estudos Culturais no
Brasil e refletindo em paralelo com as minhas indagações iniciais sobre currículo e cultura,
algumas revoluções internas se iniciaram proporcionando o surgimento de outras inquietações
e indagações que me estimulavam a uma busca mais acirrada por possíveis respostas: sob que
ênfases teóricas, temáticas e metodológicas as categorias cultura e conhecimento são
analisadas no campo teórico dos Estudos Culturais? Que novas formas de pensar e conceber o
currículo estas análises têm proporcionado?
Foram estas perguntas que me levaram a pensar num investimento mais intenso e que
nortearam a elaboração de um projeto de pesquisa para a seleção do mestrado em Educação
ofertado pelo Centro de Educação da Universidade Federal do Pará. Examinando as
produções dos professores da linha de pesquisa “Currículo e Formação de Professores” do
referido mestrado, constatei que as temáticas envolvendo cultura e educação vinham
ganhando espaço cada vez maior e algumas pesquisas
784
abordavam temáticas que podem
ser situadas no campo dos Estudos Culturais.
Estas pesquisas não só representaram a “entrada” dos Estudos Culturais, ou pelo
menos dos estudos estritamente voltados para a cultura e suas implicações na educação, no
Centro de Educação da Universidade Federal do Pará, como também proporcionavam
subsídios relevantes para minhas intenções de investigação no campo dos Estudos Culturais
nessa unidade.
Assim, vi o mestrado como uma oportunidade de aprofundar as análises num campo
teórico que me despertara o interesse, de modo que elaborei um projeto inicial de pesquisa,
5
Promovido pela Universidade Federal de Santa Catarina, em sua 7ª versão realizada em agosto de 2006.
6
Promovido pela PUC – RJ, em sua 2ª versão a ser realizada em setembro de 2006.
7
SILVA, J. M. M. (1998; 1993); ARAÚJO, S. M. S. (2002); RIBEIRO, J. G. (2001); COSTA, G. D. (2005);
GONÇALVES, J. F. G. (2005).
19
cuja problemática envolvia pesquisar se o currículo do curso de Pedagogia da Universidade
Federal do Pará abarcava em suas disciplinas discussões em torno da cultura, conhecimento e
identidade na perspectiva dos Estudos Culturais.
Tendo meu projeto sido aprovado, muitas discussões em torno dele foram realizadas,
prática esta comum e esperada no mestrado, e as modificações e reformulações necessárias
foram efetivadas a partir destas discussões. Assim, com base nos encontros de orientação, nas
discussões empreendidas nos Seminários de Dissertação I, II e II e em minhas próprias
ponderações em torno dos meus interesses de pesquisa, o tema da investigação passou a
direcionar-se para a análise das pesquisas apresentadas no GT - Currículo da ANPED, no
período de 2000 a 2006, que abordam as categorias cultura e conhecimento, na perspectiva
teórica dos Estudos Culturais.
Assim, o desejo de pesquisar cultura, conhecimento e currículo foi se modelando e
remodelando até tornar-se, de fato, um problema de pesquisa traduzido na seguinte
interrogação propulsora: sob que perspectivas analíticas as categorias ‘cultura’ e
‘conhecimento’ apresentam-se nas pesquisas que dialogam com os Estudos Culturais no GT
de Currículo da ANPEd? A essa indagação central articulam-se duas outras questões
secundárias e interligadas: quais as ênfases temáticas e conjunções teóricas e metodológicas
que esses estudos compreendem? Que contribuições essas composições apresentam para o
currículo enquanto teoria/prática social?
No intuito de contemplar a indagação acima, constituem objetivos desta pesquisa
analisar as categorias cultura e conhecimento sob o enfoque dos Estudos Culturais na
produção dos discursos corporificados nos textos do GT de Currículo da ANPEd no período
de 2000-2006, a fim de considerar sob que proeminências temáticas, contextos teóricos e
metodológicos estas categorias são discutidas e examinar que práticas discursivas e não-
discursivas estas análises acionam na constituição e efetivação de uma determinada
concepção/prática de currículo.
O redimensionamento no foco de investigação para as pesquisas apresentadas em
forma de texto e pôsteres, no Grupo de Trabalho de Currículo (GT 12) da Associação de
Pós-Graduação em Educação (ANPEd), deu-se em virtude de a ANPEd ser uma associação de
pesquisa de grande projeção nacional e de ser, não só uma referência para a produção
científica brasileira no campo educacional internacional, mas de ter-se constituído em um
campo autorizado na produção de pesquisas e na discussão sobre currículo no âmbito dos
programas de pós-graduação. O recorte referente ao de 2000 à 2006 se justifica pela
significativa produção acerca do tema no período em questão.
20
Além disso, vale ressaltar a produção consistente de pesquisas que investiram suas
análises em torno do currículo sob outras incisões temáticas, com base no banco de dados da
ANPEd, especificamente no GT de Currículo, ou seja, este tipo de pesquisa tem sido um
empreendimento realizado por pesquisadores de referência do campo do currículo, tais
como MOREIRA (1995), PARAÍSO (2003) e LOPES e MACEDO (2002), e proporcionaram
contribuições teóricas de suma relevância para o campo.
Assim, nomeadamente o GT de Currículo tem discutido os múltiplos referenciais
teóricos, epistemológicos e metodológicos voltados para as questões curriculares, entendendo
o currículo como um produto cultural que se estende para além dos espaços escolares. A esse
grupo de trabalho veiculam-se diferentes núcleos de pesquisa
85
e os pesquisadores vinculados
a este GT desenvolvem uma atividade intensa em eventos
96
relacionados às temáticas
curriculares. Trata-se de uma produção científica
10
de grande alcance e que tem contribuído
de forma efetiva, através dos estudos e pesquisas desenvolvidos, para a proposição de
alternativas que visam contribuir à reformulação das ações educativas no Brasil.
A escolha pela análise dos conceitos de cultura’ e ‘conhecimento’ se deu em virtude
do papel central que assumem no entendimento do currículo como política cultural e pelo fato
de que o currículo operante tem atuado com a noção de conhecimento válido e verdadeiro,
noção esta retirada do seio da concepção de cultura vigente, sendo, portanto, culturalmente
produzida e desempenhando um lugar fundamental na produção de identidades culturais.
Além disso, cultura e conhecimento são categorias centrais tanto nos Estudos Culturais quanto
nos estudos sobre currículo.
A outra razão da escolha do eixo investigativo em torno da questão da cultura e
conhecimento sob a ótica dos Estudos Culturais reside no reconhecimento de que as análises
neste campo, tanto no Brasil quanto em outros países, têm conduzido à discussão sobre
cultura, conhecimento e currículo, à novos caminhos e horizontes, especialmente porque
retiram o significado destes conceitos da ‘caixa fechada’ no qual se encontravam, abrindo
8
Como por exemplo: Núcleo de Estudos de Currículo (UFRJ); Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e
Sociedade (NECCSO); Grupo Comunicar – Colectivo de Educación y Comunicación; Rede Universitas –
Produção Científica sobre a Educação Superior no Brasil e Observatório Latino-americano de Políticas
Educacionais (OLPED).
9
Tais como: Colóquio Luso-Brasileiro de Questões Curriculares; Encontro Nacional de Didática e Prática de
Ensino (ENDIPE); Seminário Internacional As redes de conhecimentos e a tecnologia: professores/professoras:
textos, imagens e sons”; Reuniões Anuais da ANPEd, entre outros.
10
Citando algumas publicações: “Currículo: pensar, sentir e diferir”, “Currículo de Ciências”; “Linhas de
Escrita”; Dossiê “Imagem e Pesquisa em Educação: currículo e cotidiano escolar”; Volume 4 da Coleção
“Memória, Cultura e Currículo”; Artigos nas Revistas “Educação e Realidade” e “Educação e Sociedade”, entre
outros.
21
caminhos, por assim dizer, a novos enfoques e interpretações e trazem à tona a dimensão
múltipla e incerta nas quais estes conceitos estão imersos.
Quando me refiro à ação de retirar os conceitos de cultura, conhecimento e currículo
da ‘caixa fechada’, quero dizer que estes conceitos passam a ser confessadamente tidos como
intrinsecamente relacionados. Os conhecimentos corporificados no currículo, sua distribuição
e seleção são diretamente mediados e controlados pelos ditames da cultura preponderante na
sociedade. Assim, a cultura não influencia a maneira como os conhecimentos são
selecionados como também ela própria é elemento de seleção.
Nos Estudos Culturais, a cultura não é venerada, pois isso descentraria sua
constituição social e retiraria o poder que, inevitavelmente, está em suas mãos; poder em
explicar e coordenar as relações sociais e em fazer seleções do que é válido e aceito e do que é
inútil e irrelevante. “A cultura organiza valores e significados da sociedade, mas também
institui outros valores e significados ao fazer isto. Por isso é necessário considerar as suas
condições de produção e as relações com o mundo que produz” (ARAÚJO, 2004, p. 6).
Partindo desta perspectiva de cultura, ao pensarmos o conhecimento, o currículo e a
escola, somos irremediavelmente remetidos às estruturas que os criaram, aos interesses
políticos que os articularam, às práticas e discursos que engendraram seus sentidos, pois
educação é cultura não simplesmente porque socializa as ciências, as artes e a literatura, mas
porque, ao se constituir, arquiteta significados e valores formulados no coletivo, nas
interações humanas (Idem, 2004).
Por ser um produto cultural, o currículo não apenas reproduz conhecimentos neutros,
dado que seus tentáculos aderem-se a um processo de conhecimento que é constituído “de
negociações intersubjetivas conflitivas”. Assim, ao selecionarem os conhecimentos que
deverão ser ensinados aos alunos, “as escolas fazem mais do que intermediar saberes ou
constituir espaço único de internalização de valores e normas” (SILVA, 1998, p. 113), porque
os sujeitos não são apenas receptores ou reprodutores, são também, e principalmente,
“criadores de significados em relações socialmente construídas” (idem).
Reconheço que, como qualquer outro plano teórico, os Estudos Culturais possuem
suas fragilidades e limitações
11
,
9
e quanto a estas, não as ignoro, embora não tenha intenção de
11
Algumas das críticas neste sentido referem-se ao abandono, pelos Estudos Culturais, de explicações ou
totalizantes ou alinhadas ao discurso da “libertação”, assim como à elisão do conceito de classe social (COSTA,
SILVEIRA e SOMMER, 2003). Outra crítica diz respeito à união entre os Estudos Culturais e os estudos ditos
pós-modernos; para Turner (1997), a prática crítica do s-modernismo é muito relativista e muito formalista
para ser útil como crítica cultural e política e algumas da idéias principais das teorias pós-modernas, tais como a
negação de teorias totalizantes, da teologia e da utopia, opõem-se à semente gramsciana dos Estudos Culturais
(BRUSCHI, 2003).
22
enfatizá-las nesta pesquisa. A meu ver, as virtudes deste campo e as contribuições e inovações
que têm proporcionado aos debates atuais na esfera educacional e curricular sobrepujam, em
muito, as suas fragilidades.
A Busca nas Veredas do Desconhecido...
Somos convidadas e convidados à flexibilidade e à coragem de sair das
grandes estradas retas, claras, já mapeadas antes de serem construídas, para
entrarmos por atalhos labirínticos onde não se pode ver antecipadamente
aonde nos levam, mutantes que são e, irrequietos, indisciplinados, que
aparecem e desaparecem, reaparecendo em outro lugar, como rizomas,
portanto, cheios de surpresas, onde a única bússola é a busca permanente e
obstinada. O que nos resta é termos a coragem de nos arriscar, pois que o
que já visto nada trazendo de novo. Trata-se de um “novo amor pelo
desconhecido, não xenófobo, não racista, não falocrático, uma ética da
singularidade que rompa os consensos e as seguranças” (GARCIA, 2002, p.
118, 119).
As profundas mudanças sócio-culturais que têm se desenrolado nas últimas décadas
são claramente perceptíveis a olho nu e densamente sentidas no âmago de cada um de nós: o
desmoronamento das certezas, o afloramento das diferenças culturais, a velocidade na
circulação das informações, os cruzamentos entre o local e o global. Neste contexto, as
verdades absolutas de um homem denominado moderno, centrado numa razão sólida, não
dão conta de replicar as indagações de uma sociedade evidentemente revirada, fragmentada e
plural.
Ciente de minha inserção nesta conjunção de incertezas, consigo vislumbrar com mais
limpidez as várias possibilidades e procedimentos alternativos de pesquisa configurando-se no
cenário educacional, e estes, em geral, estão voltados para o rompimento e superação da
tradição empirista de ciência. Paulatinamente, a realidade social caminha rumo à supressão
das disputas epistemológicas entre metodologias científicas e metodológicas políticas, que
é inescusável o fato de que “verdade” e “poder” não são pólos opostos e apartados (COSTA,
1994).
Coloco-me, então, no lugar de poder utilizar-me de vários e diferentes caminhos no
decurso desta pesquisa, sem o intuito de ter como ponto de chegada metanarrativas, verdades
únicas ou universalismos. Ao contrário, para mim o ponto de chegada é sempre um devir,
porque as trilhas percorridas são formadas de rupturas e descontinuidades, as estradas se
ramificam a todo o instante, intercruzando-se e cruzando-se livremente, como Garcia (2002)
bem nos lembra na citação no início deste tópico.
23
A ousadia, a autonomia e a criatividade se constituíram desde o início numa espécie de
“marca registrada” dos Estudos Culturais e servem para indicar a constante presença da
multiplicidade concernente aos procedimentos metodológicos de pesquisa neste campo.
Esta é a perspectiva metodológica que tem orientado parte significativa das pesquisas
desenvolvidas sob a égide dos Estudos Culturais, especialmente aquelas que buscam olhares
novos, perspectivas inusitadas, que seguem por variadas direções e pretendem soluções
originais.
As análises desenvolvidas sob a inspiração desses Estudos [Culturais]
buscam transitar em “zonas fronteiriças” percorridas com o auxílio de
métodos [...] transgressores e intervencionistas, por serem buscados em
outros campos disciplinares; sendo assim, os Estudos Culturais valem-se de
procedimentos e de metodologias que não lhes são próprios ou particulares,
mas dos quais se apropriam em determinadas circunstâncias em função de
propósitos específicos (WORTMANN, 2005, p. 46).
Convém mencionar que, desde sua origem, as pesquisas realizadas no campo dos
Estudos Culturais e os instrumentos nelas utilizados foram considerados marginais. A pugna
do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) com a Universidade de Birmingham,
na década de 50 na Inglaterra, pela legitimação acadêmica, exemplifica claramente isto.
Os membros do Centro partilhavam uma atração comum pelo que o
establishment universitário considerava, na melhor das hipóteses, um
vanguardismo pitoresco, e, na pior, “o ópio dos intelectuais”. Essa atenção à
renovação dos instrumentos de um pensamento crítico jamais mudou a
ortodoxia. O Centro foi um caldeirão de cultura de importações teóricas, de
trabalhos inovadores com objetos julgados até então indignos do trabalho
acadêmico. Quase sempre pretensiosa, a noção de laboratório adquire toda a
sua pertinência no CCCS. Uma rara combinação de comprometimento
social e político e de ambição intelectual produziu durante mais de quinze
anos uma impressionante massa de trabalhos (MATTELART e NEVEU,
2004, p. 55,56).
Assim, os Estudos Culturais não possuem um método específico e exclusivo, o que se
coloca em consonância com a própria multiplicidade de perspectivas e vertentes teóricas
constituintes deste campo, antes, se apropriam de metodologias existentes que fornecem
grandes contribuições às suas críticas, como as análises textuais, a etnografia, as entrevistas,
as análises de conteúdos, entre outros procedimentos. De fato, os Estudos Culturais
têm se apropriado de teorias e metodologias da antropologia, psicologia,
lingüística, teoria da arte, crítica literária, filosofia, da ciência política,
24
musicologia... Suas pesquisas utilizam-se da etnografia, da análise textual e
do discurso, da psicanálise e de tantos outros caminhos investigativos que
são inventados para poder compor seus objetos e corresponder a seus
propósitos (COSTA, SILVEIRA e SOMMER, 2003, p. 40).
De modo geral, podemos dizer que os instrumentos de análise dos Estudos Culturais
recusam os binarismos tais como alta cultura/baixa cultura, branco/negro, mulher/homem e
justificam as formas de produção cultural dentro da sua relação com as estruturas sociais e
históricas, estando comprometidos com as populações sem poder e com as inter-relações entre
domínios culturais supostamente separados. Os conceitos teóricos centrais dos Estudos
Culturais incluem:
Articulação, conjuntura, hegemonia, ideologia, identidade e representação.
Continuamente interagindo com o político, o econômico, o erótico, o social
e o ideológico, os Estudos Culturais implicam o estudo das relações entre
todos os elementos de uma forma inteira de vida (NELSON; TREICHLER;
GROSSBERG, 1995, p. 32).
Atualmente as principais categorias de pesquisa em Estudos Culturais envolvem:
Gênero e sexualidade, nacionalidade e identidade nacional, colonialismo e
pós-colonialismo, raça, etnia, cultura popular e seus públicos, ciência e
ecologia, política de identidade, pedagogia, política estética, instituições
culturais, política da disciplinaridade, discurso e textualidade, história e
cultura global numa era pós-moderna (Idem, p. 8).
Por ser coerente com a perspectiva dos Estudos Culturais, a pesquisa em educação, no
contexto dos Estudos Culturais, significa seguir diferentes caminhos, construir metodologias
inusitadas, significa “dialogar com o mistério do mundo” (MORIN, 1989, p. 36, citado por
COSTA, 1994, p. 19), repudiando a acomodada atitude de já tê-lo decifrado. A formalização,
o rigor e o planejamento não são dispensados, mas revestidos de um caráter imprevisível e
flutuante.
LÜDKE (1995) e COSTA (1994) têm desenvolvido análises relevantes em torno das
mudanças significativas ocorridas na cultura do trabalho de pesquisa. Segundo estas autoras,
os conceitos de generalização, validade e objetividade têm perdido espaço e já não são
elementos de busca e preocupação.
A constatação da ambigüidade e multiplicidades de fatores inerentes a um objeto de
pesquisa descarta um modelo único e seguro de investigação e cria a necessidade de imaginar
25
novos procedimentos que correspondam de modo satisfatório às necessidades e indagações do
pesquisador.
Este tem sido o aprendizado exercido nesta investigação. A busca por respostas
satisfatórias às indagações por mim levantadas nesta pesquisa me compele a definir os
caminhos que devo percorrer, mas admito que encontrei algumas dificuldades em nomear os
caminhos, pois às vezes eles se transformavam em outros ou se desviavam dos iniciais. Muito
provavelmente essas dificuldades estão impregnadas da tônica dos Estudos Culturais, onde o
vigor metodológico constitui-se numa espécie de bricolagem e a composição metodológica
desafia, inclusive, as ortodoxias existentes.
O conhecimento pós-moderno é temático e não mais disciplinar: os
“labirintos pós” são formados por antidisciplinas, contradisciplinas, pós-
disciplinas. Assumem o caráter de interdisciplinaridade, tornando-se, por
vezes, francamente antidisciplinares. É essa característica que faz com que
sua metodologia [a dos estudos Culturais] seja ambígua: supondo-se não-
unidade”, busca-se a bricolagem de métodos com compatibilidades
epistemológicas, que encontram seu eixo no estudo e na produção de
sentidos (SPINK, 2003, p. 13).
De modo que considero relevante, portanto, destacar que a maneira como procedo na
busca de informações e dados desta pesquisa coadunam-se diretamente com meus
pressupostos ideológicos, teóricos e com a minha própria compreensão de mundo e de
ciência, construída a partir das experiências por mim vivenciadas, especialmente na pós-
graduação. Assim, posso informar que, de modo geral, este estudo situa-se no olhar da
pesquisa educacional qualitativa e que se vale de procedimentos iniciais de caráter
bibliográfico e documental para nortear as análises.
Contudo, os discursos ou os dados serão analisados com base no diálogo com o
referencial teórico eleito, no sentido de buscar, não uma linearidade harmônica de fatos, antes,
no sentido de “seguir o pensamento em seu movimento e em suas transformações”,
pensamento do qual resulta um conhecimento que “é sempre interpretação” (GONÇALVES,
2005, p. 15) e as interpretações são apenas uma visão entre as várias outras e resultam de
diferentes pontos de vista, dependendo da posição e da perspectiva de quem vê.
Paralelamente, debrucei-me sobre a literatura original e traduzida e naquelas
publicadas no Brasil, fazendo levantamento bibliográfico acerca da temática e seleção dos
textos que trazem contribuições relevantes ao estudo. Com base neste levantamento, elegi os
autores e obras de referência no campo dos Estudos Culturais, como Raymond Williams
(1961, 1969, 1992), Stuart Hall (2003, 2004) e autores do campo do currículo de circulação
26
nacional tal como Tomaz Tadeu da Silva (1995, 2001, 2004, 2005), que tem desenvolvido
suas análises no enfoque da relação entre os Estudos Culturais e o currículo.
Após localização e eleição das obras, realizei a leitura e a análise das mesmas,
organizando as informações obtidas em fichas de resumo contendo os principais dados da
obra, do autor, as idéias basilares e os argumentos fundantes. Esta organização bibliográfica
revelou-se extremamente valiosa na fundamentação teórica dos capítulos desenvolvidos nesta
pesquisa.
Parte significativa dos caminhos percorridos na elaboração desta pesquisa adota
contribuições provenientes do que se denomina “arqueologia do saber” (FOUCAULT, 1987).
A “arqueologia do saber”, entendida aqui, não se limita apenas à análise de discursos, aliás,
não foi exatamente este o procedimento utilizado, porém, posso dizer que os procedimentos
utilizados situam-se dentro deste horizonte. Considero as contribuições de Foucault não como
um procedimento metodológico, mas como uma sugestão a mais de análise, “como um
horizonte aberto de possibilidades” ou como uma
atitude intelectual que, não se limitando dentro de fronteiras paradigmáticas
– ou seja, uma atitude que, o procurando amarrar marcos teóricos –,
procura se manter aberta e olhar para além de si mesma para que possa,
nesse processo, por fim, reverter sobre si mesma esse olhar (VEIGA-NETO,
1995, p. 41).
Compreendo que a análise perspectivada pela arqueologia do saber vai muito além do
discurso em si, e neste caso específico, é concebida como uma tentativa de estabelecer
relações entre as práticas discursivas e as práticas não discursivas de cunho cultural.
Isso significa dizer que penetramos nos discursos enunciados dentro do campo dos
Estudos Culturais, não em busca de relações de causa/efeito entre os enunciados, ou para
investigar os avanços nos conceitos dentro de uma determinada teoria científica, ou para
ajuizar se esta produz conhecimentos válidos ou não. O que nos motiva é a explicitação dos
modos específicos em que as práticas discursivas e as não-discursivas se articulam e se
entrelaçam constituindo o conhecimento.
Busco encontrar o que tem regido a produção dos discursos que delimitam saberes,
que rezam quais enunciados são permitidos e quais são proibidos, quais instituem o que é
válido, isto é, que conjugação basilar de homogeneidades designa àquelas necessidades sobre
as quais são concebidas as percepções, os conhecimentos e os saberes.
27
Nesta perspectiva, a linguagem assume proporção, pois colocando-a na posição de
objeto de estudo, e não apenas de mera representação da fala, podemos visualizar sua atuação
nas próprias formas de articulação das quais o sujeito se utiliza para chegar a produzir
conhecimento.
A linguagem é radicalizada no sentido de que é considerada um sistema de
significação fluido, flexível, indeterminado, no qual a diferença assume autonomia, e o sujeito
não é apenas tido como uma invenção cultural, social e histórica, mas é concebido como
produto desta linguagem.
Através de suas manifestações discursivas e não discursivas, e como um produto do
desejo e energia do sujeito, a linguagem institui determinadas visões do mundo e de
conhecimento. Longe de ser uma armação rígida que assume diferentes formas, mas
permanece a mesma estrutura, a linguagem é revelada como um organismo vivo, que através
da discursividade constrói, produz.
Toda esta argumentação é aqui colocada na tentativa de esclarecer que esta
investigação teórica não concebe a produção do conhecimento como uma ferramenta através
da qual os sujeitos que dela se apropriarem conscientizem-se de sua condição opressiva e
libertem-se das amarras da ignorância.
Minhas percepções situam-se fora da concepção de ciência reguladora, neutra, que
liberta e, ao mesmo tempo, aprisiona, exclui, classifica, e estabelece os critérios do que é
normal e do que é moral. Aproxima-se, entretanto, do material a ser inspecionado na tentativa
de apreender sua presença na constituição de um campo de conhecimento, o do currículo,
entendendo que os discursos contidos nos textos da ANPEd são práticas envolvidas na
definição do que é currículo e de como o fazemos.
Assim, concluo este momento com a seguinte citação de Rosa M. Bueno Fischer, que
considero bastante apropriada à ocasião:
Há que se prestar atenção ao fato de que, ao pesquisar, ao pensar, ao
escrever, estamos investindo em nós mesmos, numa espécie de exercício
daquilo que os gregos clássicos entenderam como “arte da existência”.
Assumir uma posição teórica, explorar ao máximo o pensamento de alguns
autores que passam a fazer parte de nós mesmos, relançar a herança, e, de
outro modo, como sugere Derrida, passar a orientar nosso olhar [agora
convertido] por esses outros olhares, sem, no entanto, deixarmos de ser nós
mesmos, de falar dessa pessoa única que aqui está a pensar, sem deixar de
estarmos atentos ao nosso país, ao nosso lugar, ao nosso tempo, às agruras e
belezas do espaço e da hora que habitamos – esse é o grande desafio, esse é
o grande exercício do que estou chamando aqui de conversão do olhar na
28
escrita acadêmica, como cuidado consigo, como escrita de si, como arte da
existência (2005, p. 125 – grifos meus).
Colheita, Apuro e Confluências Analíticas
Embora a postura adotada nesta pesquisa situe-se num enfoque teórico, político e
cultural cuja produção não assume o contorno de uma meta-teoria e cujos procedimentos não
seguem estritamente os manuais de metodologia, evidentemente, alguns procedimentos no
que se refere à triagem e ao manuseio dos dados foram adotados, de modo que se tornasse
possível a realização da coleta dos dados, das análises e inferências necessárias. Assim,
delineei algumas passagens fundamentais.
Inicialmente, enveredei num caminho em busca de informações significativas que
tornassem possível a construção de uma visão panorâmica das produções recentes no campo
dos Estudos Culturais no Brasil, sobretudo daquelas que enfocam cultura e conhecimento,
estabelecem relações com o currículo e fazem parte do banco de dados da ANPEd.
Através desta exploração” foi possível conhecer melhor as categorias desta
investigação, isto é, cultura e conhecimento, tais como se apresentam no contexto das
pesquisas divulgadas nas reuniões da ANPEd. Este procedimento tornou possível o
refinamento dos dados e apuro das hipóteses, levando-me a descobertas dos enfoques e
percepções mais consentâneas com a realidade.
Um dos critérios de seleção dos dados foi o de que os textos a serem eleitos para
análise deveriam constar no GT de Currículo da ANPEd, no período de 2000 a 2006,
disponíveis no site da referida associação - www.anped.org.br. A escolha do período de 2000
a 2006 justifica-se pelo fato de que, a partir da década de 90, tornou-se cada vez mais
crescente o número de pesquisas no campo dos Estudos Culturais no Brasil sob o enfoque
curricular e educacional, mais especificamente nos programas de pós-graduação, de acordo
com pesquisa realizada por Lopes e Macedo (2002), de modo que, ao investigar o início do
século XXI, poderei identificar as novas proporções e nuanças que esta expansão tem
ganhado a partir dos anos 2000, no que concerne às categorias cultura e conhecimento, no
bojo das conjugações teóricas, metodológicas e nas temáticas apresentadas nos textos.
Com base nesse critério, levantei todas as produções de pesquisa apresentadas nas
Reuniões Anuais da ANPEd, em forma de trabalhos completos e pôsteres, incluídos no Grupo
de Trabalho 12 Currículo, a partir da 23ª Reunião Anual (2000) até à 29ª RA (2006). De
posse deste material, realizei a leitura inicial e informativa ou flutuante no sentido de obter
29
uma visão global das pesquisas apresentadas no referido GT. Todos os trabalhos completos e
pôsteres que constavam no banco de dados on-line do GT de Currículo da ANPEd, no período
de 2000 a 2006, foram lidos e apreciados.
De posse de todos os textos completos e pôsteres, efetuei uma leitura mais restritiva e
seletiva e mais um corte foi efetuado, de tal modo que busquei identificar todos os textos em
que os autores acionavam as categorias cultura e conhecimento. Com base nesta seleção
prévia de textos que discutem as categorias cultura e conhecimento, realizei outro crivo, em
busca das pesquisas em que os autores anunciavam textualmente como inseridas no campo
teórico dos Estudos Culturais.
Em seguida, enveredei na busca daqueles textos que, embora seus autores não
assumissem nomeadamente como situados no campo dos Estudos Culturais, mas que, por
desenvolverem preocupação significativa com questões basilares, tais como cultura,
significação, identidade e poder (SILVA, 2004), poderiam ter suas pesquisas incluídas neste
campo.
É possível sintetizar da seguinte maneira o critério empregado na seleção dos textos:
Os textos em forma de ‘trabalho completo’ e ‘pôsteres’ que constam no GT de
Currículo da ANPEd, no site www.anped.org.br, referentes ao período de 2000
(23ª Reunião Anual) a 2006 (26ª Reunião Anual), cujos autores anunciam como
inseridos no campo teórico dos Estudos Culturais e que abordam as categorias
cultura e conhecimento.
Os textos em forma de ‘trabalho completo’ e ‘pôsteres’ que constam no GT de
Currículo da ANPEd, no site www.anped.org.br, referentes ao período de 2000
(23ª Reunião Anual) a 2006 (26ª Reunião Anual), que incorporam em suas análises
os termos cultura, identidade, significação e poder, termos basilares aos Estudos
Culturais segundo Silva (2001), e que discutem cultura e conhecimento.
Após a identificação e classificação dos trabalhos, realizei a leitura específica dos
trabalhos individualmente e por ordem cronológica, isto é, de acordo com o ano da reunião
anual da ANPEd, no intuito de compreender e destacar as temáticas, metodologias e
perspectivas teóricas das quais eram portadores.
As temáticas foram identificadas de acordo com a denotação do título do trabalho e
com as indicações do autor na introdução do texto. No caso das opções metodológicas
presentes nos trabalhos, aquelas que não foram nomeadas pelos autores foram identificadas de
30
acordo com os procedimentos e técnicas de análise utilizadas e apresentadas no corpo do
texto. Em relação à delimitação das perspectivas teóricas nas quais os textos se inserem, segui
o mesmo critério das opções metodológicas, isto é, levei em conta a indicação teórica
explícita dos autores e no caso da ausência destas, pautei-me nas referências teóricas
utilizadas com mais consistência nas análises.
Em relação à análise das categorias ‘cultura’ e ‘conhecimento’, em alguns trabalhos os
autores evidenciam claramente como concebem estas categorias, em outros é possível abstrair
como tais categorias são entendidas a partir das referências teóricas utilizadas e do enfoque
dado na análise do currículo. No tratamento e análise de como estas categorias são concebidas
nestes trabalhos, destacamos algumas palavras-chave relacionadas a elas, de acordo com sua
maior recorrência, de modo que foi possível obter uma orientação mais consistente para as
análises posteriores.
Assim, foi possível obter e organizar os dados na forma como os quadros a seguir
apresentam:
QUADRO 1
Pôsteres e trabalhos completos publicados e selecionados
para análise GT de Currículo / ANPEd
Ano
Reunião
Anual
Pôsteres
Publicados
Pôsteres
Selecionados
Trabalhos
Completos
Publicados
Trabalhos Completos
Selecionados
2000 23ª RA 3 - 15 4
2001 24ª RA 8 - 17 2
2002 25ª RA 4 - 10 2
2003 26ª RA 3 - 13 2
2004 27ª RA 3 - 12 -
2005 28ª RA 8 1 18 2
2006 29ª RA 6 1 11 2
Total 35 2 96 14
Total de textos
Publicados = 131
Total de textos selecionados
para análise = 16
Fonte: Dados da Pesquisa
Considero pertinente ressaltar que todas as classificações possuem um caráter
arbitrário, em virtude da impossibilidade em fazer ‘enquadramentos exatos’. Deste modo,
alguns impasses ocorreram no momento de classificar e selecionar os textos para a pesquisa, e
estes serão comentados a partir de agora.
31
Os impasses ocorreram em virtude de os Estudos Culturais constituírem um campo
diverso de análises, que possui uma característica inata de aversão a delimitações, limites,
barreiras e fronteiras, além de que suas trajetórias e intercâmbios teóricos, metodológicos e
temáticos são múltiplos e adversos a cerceamentos.
Assim, para não incorrer no equívoco de fazer classificações indevidas, optei por
selecionar para a análise os trabalhos nos quais os autores indicavam explicitamente o campo
teórico no qual se inseriam, isto é, nos Estudos Culturais. Porém, identifiquei um número
relativamente pequeno de textos, apenas seis, e o que me angustiava era saber que este
número não representava a totalidade da presença de textos no GT de Currículo da ANPEd
que fazem em suas pesquisas análises teóricas características no campo dos Estudos Culturais.
Deste modo, alguns trabalhos que realizam uma discussão consistente em torno de
cultura e conhecimento no âmbito da significação e poder e que poderiam ser situados no
enfoque dos Estudos Cultuais deixariam de ser incluídos porque seus autores não se assumiam
nomeadamente neste campo. Isso soava para mim como uma ‘perda’ significativa para o
enriquecimento do trabalho, visto que estes representam um número considerável de textos e
poderiam proporcionar uma análise mais abrangente do problema de pesquisa.
Movida por esta inquietação, várias tentativas foram realizadas para estabelecer
critérios de seleção para estes trabalhos, buscando as produções de teóricos de referência do
campo (ESCOSTEGUY, 2004; COSTA, SILVEIRA & SOMMER, 2003; NELSON,
TREICHLER & GROSSBERG, 2002), mas sempre recaía ou em classificações
demasiadamente amplas ou muito restritas.
Por fim, recorrendo a Tomaz Tadeu da Silva (2004a), um teórico reconhecidamente
autorizado para falar sobre os Estudos Culturais, consegui encontrar um critério de seleção
que me permitisse chegar a um número razoavelmente representativo de textos inseridos no
campo dos Estudos Culturais. Silva (2004a) anuncia que uma característica marcante às
pesquisas desenvolvidas no campo dos Estudos Culturais é a preocupação com questões que
envolvem cultura, significação, poder e identidade.
Com base neste critério, realizei nova leitura de todos os textos no GT de Currículo da
ANPEd, no período de 2000 a 2006, focando minha atenção apenas nos textos que discutiam
cultura e conhecimento em conjunto com questões voltadas para a significação, identidade e
poder. Pude então perceber a freqüência significativa em que estas questões são abordadas,
ora alternadamente, ora em conjunto nos textos do GT de Currículo.
Por fim, situei meu olhar apenas nos textos em que a preocupação com a cultura,
conhecimento, poder, identidade e significação se faziam presentes. Assim, pude obter uma
32
quantidade de textos que poderia representar a presença de pesquisas desenvolvidas no campo
teórico dos Estudos Culturais e, ao mesmo tempo, apropriada ao caráter qualitativo de minha
pesquisa e ao período de tempo disponível para desenvolver análises consistentes em torno do
material empírico já apresentado no quadro da página 19.
O Arcabouço
Situando as análises desenvolvidas no intuito de investigar os conceitos de cultura e
conhecimento nos Estudos Culturais e algumas implicações para o campo do currículo, inicio
nosso percurso adentrando na genealogia dos Estudos Culturais, percorrendo as
‘metamorfoses’ ocorridas na noção de cultura a partir da década de 50 (Capítulo I).
Raymond Williams e suas obras “Cultura e Sociedade” (1969) The Long Revolution
(1961) e Cultura (1992) foram o suporte teórico principal utilizado na discussão em torno da
noção de cultura na perspectiva dos Estudos Culturais. Nesta ocasião, considero o conceito de
cultura predominante no século XIX e seus expoentes majoritários Mathew Arnold e Frank
Leavis e as ponderações de Raymond Williams e Eduard Thompson sobre cultura na
perspectiva da experiência e da diferença no posicionamento destes dois autores no que
concerne a este termo.
Stuart Hall e suas obras Da Diáspora identidades e mediações culturais(2003) e
A identidade cultural na pós-modernidade (1997) foram utilizados como bússola
norteadora da análise do campo em si dos Estudos Culturais e de suas abrangências e
ramificações. Considero nesta ocasião dois paradigmas seminais dos Estudos Culturais
identificados por Hall, o culturalismo e o estruturalismo.
Dando seqüência, abordo o processo de institucionalização do campo teórico dos
Estudos Culturais e as ramificações que se desdobraram em seu bojo, sob as ênfases teóricas
advindas de Marx, Althusser e Gramsci. Neste momento, situo as principais temáticas
abordadas no campo dos Estudos Culturais após sua chegada no Brasil.
As categorias cultura e conhecimento são concebidas como inerentemente interligadas
nesta análise, porém, a título de explanação, foram abordadas separadamente, dado que, ao
falar na origem dos Estudos Culturais no capítulo I, havia de se tratar do conceito de cultura,
visto que foram as discussões em torno desta que constituíram a ‘mola propulsora’ do
nascimento do campo teórico dos Estudos Culturais. Em momentos posteriores, a discussão
em torno da cultura será constantemente evocada e retomada.
33
Nas análises que constituirão o capítulo II, ensejarei a discussão concernente à
concepção de conhecimento intrínseco aos Estudos Culturais, para seqüencialmente analisar a
relação entre cultura e educação, pois a reconheço como fundamental para a análise da
concepção de conhecimento que se sobreleva no campo dos Estudos Culturais.
Nesta ocasião discuto o conceito de ‘tradição seletiva’, utilizando Raymond Williams
como uma das referências, pois é a partir deste conceito que a análise sobre como o
conhecimento voltado para o currículo escolar se consubstancia neste autor. As análises de
Jean-Claude Forquim (1993), Pierre Bourdieu (1981) e Michael W. Apple (2006) em torno do
papel da escola no que tange à cultura e ao conhecimento também são acionadas, dadas as
relações que podem ser estabelecidas entre autores e a análise de Williams sobre a tradição
seletiva, conhecimento e currículo.
Por fim, no capítulo III, num primeiro momento, apresento um panorama geral a
respeito das produções no GT de Currículo da ANPEd no período de 2000 a 2006, no que
concerne à presença das categorias cultura e conhecimento. A partir disso, apresento a análise
referente aos dados coletados no GT de Currículo da ANPED, de modo a discutir sob que
perspectivas conceituais as categorias cultura e conhecimento são consideradas, e sob que
ênfases temáticas, conjugações teóricas e metodológicas elas são abordadas. A partir disso,
desenvolvo reflexões sobre que contribuições as ponderações realizadas nesses trabalhos
acionam para o campo do currículo concebido enquanto teoria e prática.
34
2 - ESTUDOS CULTURAIS: DA OUSADIA INTELECTUAL AO
COMPROMETIMENTO SOCIAL E POLÍTICO
No trabalho sério e crítico não existem “inícios absolutos” e pouca são as
continuidades inquebrantadas [...]. O que importa são as rupturas
significativas em que velhas correntes de pensamento são rompidas,
velhas constelações deslocadas, e elementos novos e velhos são
reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas. Mudanças
em uma problemática transformam significativamente a natureza das
questões propostas e a maneira como podem ser adequadamente
respondidas (HALL, 2003, p. 132).
O que são Estudos Culturais? Esta pergunta tem sido o título ou assunto de muitos
livros publicados atualmente. É visível que a tentação às definições e à fixação de “um
princípio” perseguem-nos constantemente, porém, a pretensão de atingi-las pode ser ilusória,
afinal, o movimento desordenado e irregular dos fatos históricos não nos permite chegar às
plenas certezas.
Porém, “demarcações” se fazem coerentes e oportunas, principalmente quando se
referem às mudanças na forma de pensamento e articulação com a realidade histórica. Desse
modo, considero imprescindível registrar a trajetória dos Estudos Culturais, buscar suas
“raízes”, tocar seus “alicerces”, trilhar em suas “ramificações”, para que seja possível captar
os ‘sentidos’ e ‘desejos’ que teceram sua história.
Evidentemente, não pretendo aqui, repetitivamente, refazer o caminho que outros
autores
121
traçaram com muito êxito, para apresentar-nos este campo teórico ou esta “nova
forma de pensar sobre cultura”. Porém, apropriarei-me daquilo que for pertinente para me
envolver com este horizonte teórico a fim de extrair dele elementos necessários para a análise
densa das categorias cultura e conhecimento em suas relações com a discussão curricular.
O contexto em que se deu as produções embrionárias dos Estudos Culturais revela-nos
um pouco das condições de emergência que as influenciaram: o pós-segunda guerra mundial e
o desenrolar da guerra fria a luta entre socialismo e capitalismo atingindo seu clímax e as
grandes potências se digladiando pela soberania mundial um cenário repleto de tensões,
disputas, inquietações e inconformidades. Alguma coincidência com o que se produz nos
Estudos Culturais?
Em se tratando dos Estudos Culturais, um desvio ou alteração significativa na forma
de pensar a cultura marca o “impulso intrínseco” que inspirou a produção de textos por um
12
Entre estes, destacamos: Johnson, Escosteguy e Schulman (2004); Mattelart e Neveu (2004); Veiga-Neto e
Wortmann (2001); Hall (2003); Costa (2000).
35
grupo de intelectuais que buscavam respostas às pressões de uma sociedade situada num
tempo histórico específico (HALL, 2003).
Estes intelectuais caminhavam em direção à contestação, e posicionando-se
criticamente no ensejo dos conflitos sociais, lideravam movimentos oposicionistas ao
capitalismo, suas formas de organização e de exclusão ou inclusão anômala. A Nova
Esquerda (New Left, 1957–1961) foi um destes movimentos políticos distintos e de grande
escala, que reivindicava
132
entre outras coisas, o fim do privilégio econômico e social.
A “nova esquerda” se cristalizou a partir dos acontecimentos de 1956: a
invasão soviética da Hungria e a crise do Suez, quando as forças israelitas,
francesas e britânicas atacaram o Egito do nacionalista árabe Nasser. Não se
identificava nem com o stalinismo, com o qual os membros do Partido
Comunista estavam alinhados com diversos graus de entusiasmo, nem com
o nacionalismo britânico, com seu projeto imperialista (SOVIC, apud
HALL, 2003, p. 11).
O grupo de intelectuais da Nova Esquerda dispunha-se a favor do enriquecimento da
vida social da classe operária e de uma análise crítica da cultura. A discussão situava-se no
embate entre a cultura legítima de uma sociedade altamente refinada e a ‘cultura das massas’
ou ‘cultura popular’.
Neste ensejo, duas revistas prefiguravam em seus artigos a luta entre interesses e
ideais antagônicos. A revista Scrutiny representava a tradição intelectual do pensamento em
consonância com Frank Leavis, representante da alta cultura e a revista New Left Review
apresentava as inquietações dos intelectuais da Nova Esquerda em busca da afirmação das
manifestações populares como cultura.
A revista New Left Review configurou-se como um instrumento significativo de
reivindicação de um sistema de comunicação expressivo da cultura das massas e menos
preocupado com a distinção elitista e tradicional entre ‘baixa’ e ‘alta’ cultura
143
.
Foi através dessa revista que os textos de Raymond Williams Cultura e Sociedade
(1969), Richard Hoggart As utilizações da cultura(1973) e E. P. Thompson A formação
da classe operária inglesa (1988) tornaram-se conhecidos e estabeleceram um marco no
estudo e reconceptualização no significado do termo ‘cultura’ naquele momento histórico.
Estas obras representaram uma ruptura com as tradições de pensamento em que estavam
13
Os militantes que compunham a Nova Esquerda nem eram totalmente marxistas e nem tinha plena filiação ao
socialismo. Em sua maioria, eram poetas e escritores de diferentes estratos sociais, que tinham como ideal
comum a contestação do sistema capitalista e da ordem autoritária que este impunha.
14
A revista New Left reclamava, entre outras coisas, a inclusão nos meios de comunicação de programas sobre
esportes, comédia, lazer, música popular e jogos pertencentes às culturas marginalizadas.
36
situadas e deram um “ponta inicial na configuração de uma nova área de estudo e de
prática, a ser chamada Estudos Culturais
15
.
4
2. 1. Cultura e Culturas nos Estudos Culturais
A lista acerca da definição de ‘cultura’ é quase infindável, o que torna difícil sua
reunião e tratamento exaustivo neste estudo. Entretanto, torna-se necessário incursionar pela
construção histórica desse conceito para visualizar as metamorfoses pelas quais tem passado a
partir de determinadas composições teóricas e do plano histórico-social e, mormente, situar
que noção de cultura, e conseqüentemente de conhecimento, originou o campo teórico dos
Estudos Culturais e tem permeado nele até a atualidade.
No contexto norte-americano, foi Edward B. Tylor em seu livro Cultura Primitiva’
(1871) quem primeiro criou uma acepção conceitual de cultura, baseada num sentido
universal e evolutivo. Na visão deste antropólogo, a cultura representaria “a totalidade da vida
social do homem”,
Cultura e civilização, tomadas em seu sentido etnológico mais vasto, são
um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a
moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos
pelo homem enquanto membro da sociedade (TYLOR, 1871, p. 1, apud
CUCHE, 1999, p. 35 – grifo do autor).
Tylor tentava conciliar numa mesma explicação a evolução da cultura e a sua
universalidade, alegando que, apesar das sociedades serem diferentes, em condições iguais, o
homem agiria de forma muito parecida. Sobre a evolução da cultura, o autor acreditava que
todas as culturas, inclusive aquelas consideradas ‘primitivas’, evoluiriam através de fases até
chegarem à civilização.
Ainda no início do século XIX, foi o antropólogo Franz Boas (1858-1942) quem
começou a pensar na cultura dentro do sentido da diferença. Na sua perspectiva, o conceito
cultura mostrava-se mais apropriado para explicar a diversidade humana. Boas chegou a tal
15
Neste mesmo grupo de intelectuais estavam ainda Stuart Hall (editor da revista New Left Review de 1958-
1961), Raphael Samuel, Charles Taylor, entre outros, que formavam uma inteligência cuja preocupação
fundamental relacionava-se às questões raciais e anticoloniais. Em geral, originavam-se das “margens”, seja em
sentido de classe ou geográfico (HALL, 2003).
37
conclusão depois de estudar a etnografia de vários grupos humanos, especialmente dos grupos
indígenas localizados na América do Norte.
Boas posicionava-se contrário à noção de uma cultura geral e evolutiva. Para ele o que
interessava, de fato, era o estudo “das culturas”, não sendo possível encontrar leis universais
do funcionamento das sociedades e das culturas humanas, muito menos determinar qualquer
tipo de padrão evolutivo (BOAS, 2005).
Segundo Cuche (1999), Franz Boas é considerado o inventor da etnografia e o pai do
relativismo, não do termo em si, mas da idéia à qual o relativismo se refere: toda e qualquer
cultura é única, específica e original, ou seja, “cada cultura é dotada de um estilo particular
que se exprime através da língua, das crenças, dos costumes, também da arte, mas não apenas
desta maneira” (p. 45).
No contexto europeu, mais ou menos no mesmo período, Emile Durkheim (1995)
introduziu a dimensão cultural dos fenômenos sociais, por estes serem, assim como a cultura,
fenômenos simbólicos. Para Durkheim, não havia diferença de natureza entre primitivos e
civilizados, ambos os povos possuíam capacidade de utilizar o pensamento conceitual, de
modo que Durkheim se recusava a ver tal pensamento como um produto de uma cultura tardia
em maior ou menor grau. Por mais que concordasse com a teoria evolucionista em
determinados aspectos, não compartilhava da idéia de um futuro idêntico para toda a
humanidade.
Nada nos autoriza a acreditar que os diferentes tipos de povos vão todos no
mesmo sentido [...]. O desenvolvimento humano deve ser ilustrado não sob
forma de uma linha em que as sociedades viriam a se colocar umas depois
das outras como se as mais avançadas não fossem senão a continuação e a
seqüência das mais rudimentares [...]. Nada nos diz que a civilização de
amanhã será apenas o prolongamento da existente atualmente para uma
mais elevada (DURKHEIM, 1913, p. 60-61, apud CUCHE, 1999, p. 54).
Por mais que tenha dado contribuições significativas para o estudo da cultura, através
de sua sensibilidade ao relativismo cultural e da criação de conceitos como “consciência
coletiva”
16
.
5
A preocupação primordial de Durkheim era verificar qual a natureza do vínculo
social, de modo que sua interpretação da cultura se dava através do estudo dos fenômenos
16
Refere-se a uma teoria cultural que considera a existência, em todas as sociedades, de uma consciência coletiva feita das
representações, dos ideais, dos valores e dos sentimentos comuns a todos os seus indivíduos. Tal consciência coletiva precede
o indivíduo, é exterior e transcendente a ele, apresentando-se como superior à consciência individual; é esta a consciência
responsável por realizar a unidade e coesão de toda uma sociedade. (CUCHE, 1999).
38
sociais, tanto que não se percebe em suas obras nenhum tratado exclusivo e específico sobre
cultura.
Foi na conjuntura norte-americana, agora em meados do século XIX, que o conceito
de cultura obteve maior exploração, em virtude da própria constituição dos países desta parte
da América, como os Estados Unidos, por exemplo, caracterizado pela presença de diferentes
culturas. Influenciado pelas idéias de F. Boas, Alfred Kroeber (1953) envereda pelo estudo
que privilegia a dimensão histórica dos fenômenos culturais. Foi este quem instituiu o
conceito da ‘difusão’, fenômeno resultante dos contatos entre as diferentes culturas e da
circulação dos ‘traços’ culturais.
Alguns anos mais tarde, Bronislaw Malinowski (1884 1942) desenvolve uma crítica
à corrente difusionista por acreditar que analisar um traço cultural em particular não dá a idéia
do lugar que ele ocupa no sistema global, e defende que para compreender uma cultura é
necessário observá-la em seu estado presente, não sendo possível estudá-la ‘de fora’, mas
apenas no seu interior, o que determinou de “observação participante” (MALINOWSKI,
1997).
Muitos outros teóricos surgiram com novas teorias sobre cultura, alguns relacionando-
a com a personalidade como em Edward Sapir (1967), ou classificando-a em “tipos culturais”
no caso de Ruth Benedict (1994), ainda outros, como Margareth Mead (1972), explicando que
ela se através da “transmissão cultural”, ou relacionado-a a “personalidade básica”como
em Ralph Linton (1971) e Abram Kardiner (1964). Destas teorias surgiram conceitos
importantes como contracultura e subcultura
176
.
No contexto britânico, em meados do século XIX, mais precisamente no fim dos anos
50 e começo dos anos 60, o debate entre sociólogos tais como Theodor Adorno, Antonio
Gramsci e Raymond Williams girava em torno do caráter político da cultura.
Williams (1969), especificamente, desenvolvia suas análises e reflexões em torno da
superação da dicotomia entre “alta cultura” e “baixa cultura”, posicionando-se contrariamente
à concepção limitada de cultura como apenas “o melhor que se produziu no mundo” para
estendê-la aos significados e definições que os homens dão aos acontecimentos e experiências
de sua vida e à forma geral como reagem em pensamento e sentimento às mudanças na
condição humana, condição esta criada e recriada por eles próprios (WILLIAMS, 1969).
17
Subcultura representa uma espécie de cultura particular, modo de pensar e de agir característicos de um determinado grupo
social pertencente a uma sociedade culturalmente diversificada e que, ao mesmo tempo, partilha da cultura global.
Contracultura, por sua vez, é um movimento de oposição contra a cultura global de referência na tentativa de manipulá-la; no
entanto, ao invés de enfraquecê-la, contribui para renová-la, para desenvolver sua dinâmica própria, de modo que sua
intenção não é produzir uma nova cultura, pois se trata, na verdade, de um movimento de subcultura.
39
Williams pleiteava uma “cultura comum”, isto é, cultura, para ele, refere-se ao legado
de tradição intelectual e artística e o acervo dos bens simbólicos que cada geração ou grupo
social recebe das gerações anteriores. Esta herança não se refere somente àquilo que foi
produzido apenas por uma classe social, mas à contribuição que todos os indivíduos dão,
independentemente de suas proveniências sociais e, ainda que de modo desigual, para a
produção dos bens simbólicos que compõem a tradição cultural.
Cultura comum ou cultura sem classes, para Williams, não significa cultura uniforme.
As diferenças existem, mas não é no critério de classe que as encontramos, antes, podemos
buscá-las no total modo de vida, e este não envolve apenas a linguagem, a maneira de se
vestir ou o tipo de entretenimento, mas envolve as formas diferenciadas em que a natureza da
relação social é concebida.
Foi esta ‘nova’ maneira de conceber a cultura que proporcionou o surgimento do
campo teórico dos Estudos Culturais. No bojo desta concepção, o conhecimento, seu acesso e
distribuição é, em geral, socialmente controlado (WILLIAMS, 1992). Cultura e conhecimento
estão inauferivelmente relacionados. As seleções feitas no interior da cultura refletir-se-ão nas
seleções de conhecimento ‘verdadeiro’ ou ‘erudito’ que devem ser ensinados e aprendidos
pelos sujeitos em diferentes contextos.
Williams estava ciente de que os valores dados a determinados conhecimentos, em
detrimento de outros, decorriam de seleções ou triagens feitas com base no interesse de
determinados grupos sociais, em geral, aqueles que se posicionam num lugar de vantagem em
relação aos demais e que se empenham em solidificar a idéia de que a sua cultura é a ‘única
cultura’, a que deve ser aprendida, a que todos devem se enquadrar.
Ora, se a cultura, a experiência humana é composta por construções, interpretações
que não são únicas e verdadeiras, mas subjetivas, relativas e políticas, o conhecimento, que é
uma destas construções, também não é neutro, homogêneo e estático. O conhecimento é
permeado por relações históricas, sociais e políticas, constitui-se de valores, significados e
sentidos múltiplos. O conhecimento expressa visões particulares, significados próprios de
determinadas culturas e insere-se na disputa e manutenção do poder.
2.1.1. A Cultura nos Estudos Culturais
Se vocês pesquisarem sobre a cultura, ou se tentarem fazer pesquisa em
outras áreas verdadeiramente importantes e, não obstante, se encontrarem
reconduzidos à cultura, se acontecer que a cultura lhes arrebate a alma,
então têm de reconhecer que irão sempre trabalhar numa área de
40
deslocamento. Há sempre algo descentrado no meio cultural, na linguagem,
na textualidade, na significação (HALL, 2003, p. 211, 212).
As primeiras teorizações e investigações dentro do campo dos Estudos Culturais
originaram-se de pensadores provenientes de famílias pertencentes a classes minoritárias e
excluídas que tiveram a oportunidade de ingressar na elite universitária britânica, como os
citados Raymond Williams, Richard Hoggart e Stuart Hall.
Viemos, pois, de uma tradição inteiramente marginal em relação aos centros
da vida acadêmica inglesa, e nosso envolvimento com as questões da
mudança cultural [...] foi, inicialmente, assumido no sujo mundo exterior.
[...] Alguns de nós – eu, especialmente – tínhamos planejado nunca retornar
à universidade, na verdade, nunca atravessar suas portas outra vez. Mas
então, a gente sempre tem que fazer ajustes pragmáticos aos locais onde o
trabalho real, importante, está sendo feito (HALL, apud SILVA, 1995, p.
28).
Os textos destes intelectuais representaram um movimento teórico de contestação a
uma visão elitista e discriminatória de cultura e de ruptura com a concepção dominante da
“alta cultura”, isto é, a idéia de que somente pode ser considerado como cultura os saberes e
conhecimentos pertencentes às determinadas classes tidas como superiores.
O foco central das contestações foi a noção de cultura defendida por Frank R. Leavis e
Mathew Arnold. Este último concebe a cultura como “o melhor que se pensou e disse no
mundo” e opunha-se a tudo aquilo que se referisse aos “progressos da civilização” (COSTA,
SILVEIRA e SOMMER, 2003, p. 37). Na visão arnoldiana, a cultura adjetivada de popular
era sinônimo de desordem social e política, ao passo que “cultura” grafada no singular e sem
adjetivos seria o mesmo que harmonia e beleza – algo a ser cultivado para enfrentar a
barbárie.
Raymond Williams, situando-se dentro de um enfoque culturalista, rebateu
radicalmente a concepção de “alta cultura” e localizou em suas obras Cultura e Sociedade
(1969) e “The Long Revolution” (1961) o conceito de cultura no campo das idéias, do
significado e da experiência.
A cultura passa por uma reformulação, e de “alta cultura”, torna-se “cultura comum”,
“cultura ordinária”. Williams um novo enfoque à cultura, ou seja, cultura refere-se às
práticas sociais, ao modo de vida global das sociedades e às relações sociais que estabelecem
entre si e com outros grupos; não é soma de costumes ou de práticas tradicionais e imutáveis,
mas permeia todas as práticas sociais em suas inter-relações.
41
Em sua obra Cultura (1992), Williams destacou a emergência de uma nova
Sociologia da Cultura, na qual uma convergência contemporânea de interesses conjuga os
sentidos de global e de significação da cultura com o seu sentido mais especializado, isto é,
todas as formas de atividades artísticas e intelectuais.
A cultura, na perspectiva da Nova Sociologia, é produzida através de processos
complexos concretos, envolve as práticas e relações sociais como um todo e refere-se
“aqueles modos de ser e aquelas obras dinâmicas e concretas em cujo interior não apenas
continuidades e determinações constantes, mas também resoluções e irresoluções, inovações e
mudanças reais” (Idem, p. 28, 29).
Williams menciona os Estudos Culturais como um ramo da Sociologia, não por ser
uma nova área de saber específica da mesma, mas no sentido de que as análises dentro dos
Estudos Culturais relacionam-se de modo muito característico com as questões sociológicas
gerais. De fato, o autor denomina os Estudos Culturais como um novo tipo de Sociologia,
“que coloca sua ênfase em todos os sistemas de significação”, estando fundamentalmente
“preocupado com as práticas e a produção cultural manifestas” (Williams, 1992, p. 26).
Ao considerar esta produção cultural manifesta, Williams quer dizer que os Estudos
Culturais devem ir além das crenças formais e conscientes, como filosofia, religião,
economia, e chegar até o teatro, a poesia, a pintura.
Williams ainda ressalta a relação íntima que há entre estas crenças e a produção
cultural em três aspectos fundamentais: ligação direta “entre seu próprio conteúdo manifesto”;
“ligação identificável através das relações, perspectivas e valores que as crenças legitimam” e
nas “escolhas e temas característicos”; e, por fim, “ligações analisáveis, entre os sistemas de
crenças e as formas artísticas e em seu posicionamento no mundo” (Idem, p. 27).
Um aporte fundamental das análises de Williams à reconceptualização do conceito de
cultura é perspectivá-la a partir da sociologia contemporânea, na qual o sentido é a mola
propulsora das análises. A partir da idéia de sentido, é possível relacionar as produções
culturais dos grupos sociais com diferentes instâncias, tais como classes sociais ou outros
tipos de identificações no âmbito político, econômico, e ocupacional, a nível formal e
consciente. Assim, pensar a cultura envolve inevitavelmente considerar os sentimentos,
atitudes e pressupostos típicos de determinado grupo.
Hall (2003) tece análises significativas relacionadas com as contribuições de Williams
para os Estudos Culturais. De fato, ele caracteriza dois paradigmas – o culturalista e o
estruturalista que representam o germe das produções e análises no campo dos Estudos
42
Culturais. Posteriormente, outras vertentes surgiram a partir destes dois paradigmas iniciais, e
estão em ação atualmente neste campo.
2.1.2. O Culturalismo
O culturalismo modula a análise da cultura com base nas experiências e vivências dos
grupos sociais diferentes em oposição ao “papel residual e de mero reflexo atribuído ao
cultural”. Este paradigma conceitua cultura
como algo que se entrelaça a todas as práticas sociais; e essas práticas por
sua vez como uma forma comum de atividade humana: como práxis sensual
humana, como atividade através da qual homens e mulheres fazem a
história (HALL, 2003, p. 141, 142).
Raymond Williams (1961) e E. P. Thompson (1988) compartilham as idéias do
paradigma dominante culturalista, no qual a cultura não é vista como mero reflexo da relação
base/estrutura/superestrutura e das determinações econômicas, pois se considera que uma
relação dialética entre o “ser” e a “consciência social”, e o aspecto histórico assume um papel
de destaque.
É importante salientar, no entanto, que o sentido em que Williams (1961) e Thompson
(1988) inserem-se no paradigma culturalista não é o mesmo. Ambos os autores podem ser
situados neste paradigma porque, embora partam de análises diferentes e divergentes em
alguns aspectos, eles têm como característica comum o caráter de ruptura de suas idéias com
as tradições de pensamento de sua época. Apesar de suas obras datarem de épocas diferentes,
porém, enquadram-se num mesmo período de contestação à “certa forma de evolucionismo
tecnológico, economicismo reducionista e determinismo educacional” (HALL, 2003, p. 133).
Além disso, tanto Williams quanto Thompson colocam a cultura no âmbito das
vivencias e experiências, porém cada um o faz de modo característico. Williams desenvolve
suas análises num enfoque empírico e particular, com uma ‘densidade experimental de
conceitos e de argumentação generalizante’ e com a intenção de estudar a cultura da classe
trabalhadora a fim de encontrar valores e significados incorporados em seus padrões e
estruturas.
Quanto a Thompson, desenvolve suas reflexões voltadas especificamente para a
‘historiografia marxista inglesa e a história da economia e do trabalho’. Porém, ambos os
estudiosos destacam questões de cultura, consciência e experiência, de modo que podem ser
43
situados dentro do paradigma culturalista. Analisaremos, inicialmente, o posicionamento de
Williams dentro deste paradigma.
Williams integrou com veemência as práticas sociais a uma totalidade do real, isto é,
não fazia distinções entre a cultura de uma classe superior e a cultura de uma classe
subalterna. De fato, para ele, a cultura abrange todas as formas de prática social,
independentemente de classe, todas as disputas e conflitos, todas as formas de energia e
organização estão imbuídas no conceito de cultura, como dimensão maior abarcante da
experiência humana.
neste paradigma culturalista uma relação dialética entre “cultura” e “não-cultura”.
É um pensar a cultura numa perspectiva mais abrangente, a partir de dois eixos principais. O
primeiro eixo define a cultura como
os sentidos e valores que nascem entre as classes e grupos sociais
diferentes, com base em suas relações e condições históricas pelas quais
eles lidam com as suas condições de existência e respondem a estas (Idem).
Além disso, nota-se uma forte crítica ao marxismo clássico, que limita as idéias e
significados a meros reflexos determinados pela base econômica, sem uma autonomia social
efetiva. Em Williams, de forma mais específica, descarta-se o materialismo vulgar e o
determinismo econômico e reitera-se um “materialismo radical”, ou seja, para contornar o
problema da determinação, é preciso uma interação mútua de todas as práticas sociais.
Passei a crer que tinha que abandonar, ou pelo menos deixar de lado, aquilo
que eu conhecia como tradição marxista: a tentativa de desenvolver uma
teoria da totalidade social; ver o estudo da cultura como o estudo das
relações entre os elementos numa forma inteira de vida; encontrar meios de
estudar a estrutura... que pudessem manter contato com formas e obras de
arte específicas e iluminá-las, mas também com as formas e relações de
uma vida social mais geral; substituir a fórmula base e superestrutura pela
idéia mais ativa de um campo de forças mútuas senão irregularmente
determinantes (WILLIAMS apud HALL, 2003, p. 138).
As palavras de Williams indicam que este autor discordava da idéia determinista na
qual se apoiava a tradição marxista, de que o pensamento e a cultura refletiam
necessariamente a organização da estrutura social e econômica. Assim, a posição de Williams
é mais ‘flexível’ neste respeito, pois este considera que a esfera cultural não é um simples
espelho das práticas econômicas. As relações entre cultura, sociedade e economia são muito
mais complexas, pois são mediadas pelas formas de ações humanas.
44
Assim, nunca houve, segundo Hall (2003), uma convergência de interesses e de
objetos de estudo entre o marxismo e os Estudos Culturais. No entanto, muitas questões
levantadas e não respondidas pelo marxismo interessavam a este campo e estavam presentes
em suas produções, como as próprias palavras de Hall nos dizem a seguir:
Em nenhum momento os Estudos Culturais e o marxismo se encaixaram
perfeitamente, em termos teóricos. Desde o início, já pairava no ar a sempre
pertinente questão das grandes insuficiências, teóricas e políticas, dos
silêncios retumbantes, das grandes evasões do marxismo as coisas de que
Marx não falava nem parecia compreender, que eram nosso objeto
privilegiado de estudo: cultura, ideologia, linguagem, o simbólico (HALL,
2003, p. 205).
No segundo eixo, cultura inclui as tradições e práticas vividas, através das quais os
entendimentos, sentidos e valores sociais e históricos são expressos e nos quais estão
incorporados. Aqui, Williams considera que o fator de reprodução é uma característica
indelével de toda e qualquer manifestação cultural. Todas as formas, sinais e convenções são,
imanentemente, reprodutivas.
Williams analisa que, de maneira geral, uma determinada cultura não se restringe a
formas de vida específicas de um momento isolado, “mas sim uma seleção e organização de
passado e presente, necessariamente provendo seus próprios tipos de continuidade” (1992, p.
182). A tradição não é descartada, antes, é considerada como um “processo de reprodução em
ação”, assumindo relevância proporcional ao reunir em torno de si muitos componentes
centrais do processo cultural. Porém, alguns alertas precisam ser feitos. Nas próprias palavras
de Williams
Mas também é certo, até nessas definições iniciais, que a reprodução”
mesma possui níveis diversos de significado. Na verdade, se for usado de
maneira simples e apressada demais, poderá antes ocultar do que esclarecer
os processos reais (Idem).
Tanto a reprodução quanto a produção são consideradas relevantes no processo
cultural na perspectiva de Williams. Este autor justifica o uso do termo “reprodução cultural”
menos porque muitas vezes lhe faltam as definições e distinções necessárias, também porque
pode ser usado como um conceito temporal que sugere a condução de uma manifestação
datável da cultura, e mais porque está subentendido no conceito de uma cultura ser ela capaz
de ser reproduzida.
45
2.1.3. O Estruturalismo
O segundo paradigma dominante nos Estudos Culturais, mencionado por Hall, é o
estruturalismo. Em geral, o início do movimento estruturalista é atribuído a Ferdinand
Saussure. Este movimento surgiu através de análises realizadas no campo da lingüística contra
a concepção exclusivamente histórica da língua e contra uma lingüística que dissociava a
língua em elementos isolados e se ocupava em seguir suas transformações.
Saussure (1995) contribuiu efetivamente para o nascimento da teoria estruturalista
através do estudo da noção de sistema. Saussure considerava a língua como um sistema
convencional de sinais, e cujas partes agem numa solidariedade sincrônica, ou seja, cada
língua forma um sistema no qual as partes estão interrelacionadas e onde os fatos e os
fenômenos se governam uns aos outros, não podendo ocorrer de modo isolado e, muito
menos, contraditório. Assim, Saussure constituiu os fundamentos que evidenciariam a
doutrina das estruturas dos sistemas lingüísticos o de que a língua é forma e de que as
unidades da língua só podem ser definidas considerando-se suas relações.
Partindo destes princípios iniciais, muitas outras interpretações foram adicionadas à
noção de estrutura e, de fato, os sentidos do conceito de estrutura passaram a ser variados, de
acordo com o campo teórico em que são usados. De modo que, encontrar o que há de
“comum” a todos esses sentidos parece ser uma tarefa desafiadora e até mesmo improvável,
dado que nem sempre as caracetrísitcas deste conceito podem ser tão claramente
identificáveis.
Interessa-me, neste momento, analisar o sentido de estrutura em Lévi-Strauss que,
aliás, tornou-se, após Saussure, o principal representante do paradigma estruturalista. É
necessário salientar, porém, que o paradigma estruturalista compunha-se de diferentes
abordagens teóricas, como, por exemplo, a apropriação feita por Althusser, que deu mais
ênfase a noção de ideologia do que a de estrutura, visto que a leitura que fez do estruturalismo
foi através do marxismo.
A opção pela análise em vi-Strauss se dá porque este considerou densamente o
termo ‘cultura’, inserindo-o no âmbito de suas formas e estruturas. Sob o seu enfoque, cultura
refere-se a categorias e quadros de referência lingüísticos e de pensamento, por meio dos
quais as diferentes sociedades classificam suas condições de existência (LÉVI-STRAUSS,
2003).
Lévi-Strauss dedicou-se a estudar como as categorias lingüísticas eram produzidas e
transformadas. E, mais adiante, empenhou-se em analisar as relações existentes no interior de
46
práticas significantes, no seio das quais as categorias de sentido eram produzidas,
principalmente através de uma analogia com as maneiras que a própria linguagem principal
meio de operação da cultura – agia.
Os signos e símbolos não podem desempenhar seu papel senão enquanto
pertencem a sistemas, regidos por leis internas de aplicação e de exclusão; e
porque o próprio de um sistema de signos é ser transformável, em outras
palavras, traduzível na linguagem (LÉVI-STRAUSS, p. 61).
Stuart Hall (2003, p. 144) destaca a contribuição de Lévi-Strauss para os estudos sobre
cultura nas seguintes palavras:
Foi o estruturalismo de Lévi-Strauss que, em sua apropriação do paradigma
lingüístico, após Saussure, ofereceu às “ciências humanas da cultura” a
promessa de um paradigma capaz de torná-las científicas e rigorosas de uma
forma inteiramente nova.
Hall critica a pouca importância que foi dada, pelos estruturalistas de cunho marxista,
ao estruturalismo de Lévi-Strauss e destaca que este paradigma causou grandes rupturas,
como, por exemplo, o abandono radical da metáfora base/superestrutura e a substituição da
lógica da causalidade transitiva do marxismo clássico pela causalidade estruturalista “uma
lógica do arranjo, das relações internas, da articulação das partes dentro de uma estrutura”
(Idem, p. 146, grifo do autor).
Nesta gica estruturalista, a experiência pode ser vivida se inserida em categorias,
classificações e quadros de referência, sendo que são tais categorias que produzem as
experiências e não o contrário. Assim, na perspectiva estruturalista, de cultura e linguagem, o
sujeito era “falado” pelas categorias de cultura em que pensava, ao invés de falá-las, e estas
categorias, por sua vez, eram consideradas não apenas como coletivas, mas também como
atuantes no nível do inconsciente.
divergências significativas entre o paradigma culturalista e o estruturalista no que
tange principalmente à noção de “homem”. Enquanto os estruturalistas concebem o homem
como portador das estruturas que os falam, enfatizam a lógica estrutural e tentam “remodelar
a história como uma marcha de estruturas”, os culturalistas concebem o homem como agente
ativo na construção de sua própria história e colocam o aspecto histórico em primeiro lugar
(HALL, 2003).
Na ótica de Hall, as ramificações que passaram a se desenvolver no âmbito dos
Estudos Culturais surgiram no bojo de ambos os paradigmas – o culturalista e o estruturalista,
47
e muitas outras temáticas passaram a ser alvo de pesquisas neste campo, como veremos mais
adiante. De fato, como bem condiz com sua origem de caráter múltiplo, os Estudos Culturais
passaram a abarcar variadas séries de pensamento, tanto de cunho teórico e metodológico
quanto de temas transdisciplinares, questões que trataremos na seção seguinte.
2.2. As Ramificações Teóricas e Temáticas
Paixão, efervescência, desordem, receio, renovação, inovação, marginalidade,
experiências e confronto, estas eram as palavras que pairavam sobre o ambiente do Centre for
Contemporary Cultural Studies (CCCS Inglaterra, Birmingham, 1964), onde foram
produzidas as primeiras pesquisas sobre cultura de massa e cultura popular com base nos
métodos da crítica textual e literária.
Stuart Hall, participante ativo na fundação do CCCS e diretor deste centro por 11
anos
18
,
21
ofereceu contribuições de suma relevância para este novo campo que se iniciou em
meados dos anos de 1950, mas foi incorporado no meio acadêmico britânico a partir da
década de 70.
Hall acrescentou um enfoque importante ao campo dos Estudos Culturais, ao consider
a cultura, não como um espaço simbólico de dominação e reprodução das idéias dominantes,
mas, fundamentalmente, como um lugar de luta entre diversas culturas, vinculadas a
determinados estratos da sociedade.
Encontra-se implícita nas idéias de Hall, e dos Estudos Culturais, uma certa influência
de Marx. De fato, o próprio Hall reconhece que os Estudos Culturais foram, desde o início,
fortemente influenciados pelo marxismo. Suas análises caminhavam como “vizinhas” do
projeto político marxista na discussão da questão do poder, das capacidades de realização
histórica do capital, das questões de classe social, dos relacionamentos complexos entre o
poder e a exploração, entre outros.
Richard Johnson (2004) menciona que, influenciados pelo marxismo, os Estudos
Culturais partiam, na década de 60, da premissa de que os processos culturais estariam
necessariamente imbricados nas relações sociais no que se refere especificamente às relações
de formação de classe e às divisões sexuais, raciais e de idade.
Ainda sobre a ingerência do marxismo, a cultura era percebida dentro das relações de
poder porque contribuía para produzir assimetrias entre os grupos sociais, e, talvez, a
218
No período de 1968 a 1979.
48
contribuição mais importante de Marx para os Estudos Culturais tenha sido o conceito de
‘consciência’. Para Johnson (2004), os Estudos Culturais dizem respeito às formas históricas
da consciência e da subjetividade e a compreensão de que a cultura é um local de diferenças e
lutas sociais.
No entanto, a relação entre os Estudos Culturais e o marxismo sempre foi marcada
pelo conflito, pois nunca houve uma fusão completa de ideais ou de perspectivas teóricas. Era
constante nesta relação a crítica tanto ao reducionismo e economicismo como ao caráter
doutrinário e a imutabilidade da lei histórica, intrínsecos ao marxismo.
Com isto quero dizer que, embora influenciado por alguns princípios marxistas como,
por exemplo, a inegável relação entre a cultura e as mudanças econômicas, Williams
discordava da polarização entre um nível - a vida econômica - e o outro - a cultura, porque
isso não correspondia à realidade social. Seria, portanto, um equívoco descrever a realidade a
partir da relação entre base e superestrutura, dado que, sob seu ponto de vista, a base não
determina a superestrutura e a superestrutura não é mero reflexo da base.
Foi neste embate que Althusser (1992) pôde dar sua contribuição ao campo. Esse autor
chamou a atenção para a existência de variadas forças ‘determinantes’ no conjunto da
sociedade e estas forças a econômica, a política e a cultural disputam entre si e guerreiam
em busca de supremacia. Aqui ocorre deslocamento importante na tradição dos Estudos
Culturais, o de considerar a cultura em “pé de igualdade” em relação às esferas econômica,
política e ideológica.
Este deslocamento ocorreu no sentido de que a cultura, anteriormente, era postulada
como a instância social de maior relevância, na qual incidiam com prioridade assumida todas
as divisões sociais, fossem de classe, sexo e etnia e onde ocorriam todas as disputas e
resistências entre os grupos subordinados e os grupos dominantes (COSTA, 2000c, p. 25).
Em Althusser, porém, os demais âmbitos sociais, o político, o econômico e o
ideológico, também são postos como integrantes fundamentais do conjunto de relações que
compõem a sociedade. Evidentemente, diferente do enfoque marxista, esse autor considera
que estas relações não se dão no âmbito das determinações, antes, são essencialmente
complexas e contraditórias (HALL, 2003).
Como já é possível notar, Williams desempenhou na fase inicial dos Estudos Culturais
um papel extremamente relevante e, ao colocar a discussão da cultura no âmbito social e
político, proporcionou ao campo dos Estudos Culturais um espaço para que diferentes objetos
de estudo, situados em diferentes áreas do conhecimento, se incorporassem.
49
Assim, o foco de interesse dos Estudos Culturais foi se multiplicando, modificando em
alguns aspectos e permanecendo o mesmo em outros. A partir da década de 70, foram
incorporadas contribuições relevantes de Antônio Gramsci (1991) ao campo através dos
conceitos de ideologia, e a releitura de suas obras pelas vertentes de gênero e raça foram
fundamentais para repensar a concepção de cultura popular no âmbito dos Estudos Culturais.
Os Estudos Culturais, influenciados pelas idéias de Gramsci, buscavam uma prática
institucional que pudesse produzir um intelectual orgânico. Isso significa, porém, o
reconhecimento de uma falta que causava certa tensão.
Nunca produzimos intelectuais orgânicos [antes tivéssemos] no Centro.
Nunca nos ligamos a esse movimento histórico em ascendência; o nosso
exercício foi metafórico. Contudo, as metáforas são coisas sérias. Afeta a
prática. Estou tentando re-descrever os estudos culturais como trabalho
teórico que terá que continuar a conviver com essa tensão (HALL, 2003, p.
208).
Os interesses dos Estudos Culturais assemelhavam-se aos de Gramsci (1991) em suas
análises sobre o intelectual orgânico em dois aspectos fundamentais o alinhamento dos
intelectuais através de um movimento histórico abrangente e o trabalho teórico do intelectual
orgânico em “transmitir” o conhecimento aos que não pertenciam à classe intelectual.
Assim, o intelectual orgânico surgiria dos grupos subalternos, do interior das culturas
populares, para ser seus representantes. Seu compromisso majoritário e primordial basear-se-
ia nos interesses destes grupos; eles seriam a manifestação em si destas culturas, porque delas
emergiram.
Deste modo, o intelectual orgânico atua como sustentáculo das “massas”, ou seja,
surgiriam no seu interior e operariam no sentido da elevação intelectual das camadas
populares com a intenção de ensejar um movimento cultural que substituísse o senso comum
e as velhas concepções de mundo, isto é, uma espécie de ‘revolução’ no panorama ideológico.
Outro elemento fundamental na contribuição de Gramsci aos Estudos Culturais refere-
se ao conceito de hegemonia. As análises neste campo partiam do pressuposto de que os
elementos que compõem os processos de produção e reprodução cultural são complexos,
dinâmicos e ativos e que não atuam de forma mecânica, antes, são ‘modelados’ de tal maneira
a sustentar e reproduzir a estabilidade social e cultural. Gramsci vem corroborar tais
pressupostos ao explicar como se dão estas modelações e conformações dentro do sistema
cultural.
50
A teoria gramsciana pressupõe a conquista do consentimento. O movimento
de construção da direção política da sociedade pressupõe complexas
interações e empréstimos entre as culturas populares e a cultura hegemônica
(ESCOSTEGUY, 1998, p. 91).
Gramsci destaca o fato de que não necessariamente constante rixa entre as
diferentes culturas. Em geral, o que acontece é o desenrolar de uma astúcia controlada de
trocas recíprocas entre elas. Ou seja, num dado momento, a cultura popular afronta e rejeita a
cultura hegemônica, em outro, reproduz a visão de mundo e de vida das classes hegemônicas.
A partir dos anos 80, o foco de interesse dos estudos Culturais centrou-se na cultura
popular não como um mero veículo ideológico, mas como um local de resistência e conflito
em potencial. Dois grandes momentos teóricos causaram uma interrupção no que, até então,
se produzia nos Estudos Culturais – feminismo e as questões de raça.
Autoras como Charlotte Brundson, Marion Jordon, Doroty Hobson,
Christine Geraghty e Angela McRobbie revêem suposições do senso
comum sobre os meios (massivos), reivindicando que a audiência, no caso,
feminina, tem autoridade sobre suas práticas de leitura (ESCOSTEGUY,
1995, p. 93).
O feminismo levantou a questão do pessoal como político e ocasionou a expansão
radical da noção de poder. A centralidade das questões envolvendo gênero e sexualidade
foram fundamentais para a compreensão mais plena do próprio poder em virtude,
principalmente, da abertura do sujeito e da subjetividade e da reabertura da teoria social e a
teoria do inconsciente, pelo viés da Psicanálise.
Sabe-se que aconteceu, mas não se sabe quando nem onde se deu o primeiro
arrombamento do feminismo. Uso a metáfora deliberadamente; chegou
como um ladrão à noite, invadiu; interrompeu, fez um barulho
inconveniente, aproveitou o momento, cagou na mesa dos estudos culturais
[...]. Abríamos as portas aos estudos feministas, como bons homens
transformados. E, mesmo assim, quando o feminismo arrombou a janela,
todas as resistências, por mais insuspeitas que fossem, vieram à tona o
poder patriarcal plenamente instalado, que acreditara ter-se desautorizado a
si próprio (HALL, 2003, p. 209).
O choque causado pelo feminismo nos Estudos Culturais tornou possível perceber a
“natureza sexuada do poder” e a diferença entre abrir mão do poder e ser silenciado por ele.
As cisões e impactos causados pelo feminismo deixaram suas marcas no modo de pensar e
sentir e na atitude de ‘compartilhar’ o poder.
51
Assim como o feminismo provocou cisões e conquistou seu espaço nos Estudos
Culturais, outras temáticas interligadas a outras áreas de saber seguiram a mesma trajetória.
Por exemplo, uma linha de análise que começou a ganhar propulsão nos estudos Culturais se
refere aos estudos de textos, incluindo aqueles situados além da linguagem e literatura.
Segundo Johnson (2004), o texto é um material bruto a partir do qual certas formas
podem ser abstraídas e o objeto principal de análise desta abordagem não é o texto
propriamente dito, mas a vida subjetiva das formas sociais presentes em cada momento de sua
circulação, incluindo, obviamente, suas corporificações no texto.
Assim, foi na linha das análises textuais que os Estudos Culturais “estabeleceram
sólidos avanços na compreensão dos novos jogos de poder pelos quais se estabelecem
identidades, significados sociais e culturais e pelos quais estamos, ao que tudo indica, sendo
cada vez mais governados” (VEIGA-NETO, 2000, p. 53). Assim, nas análises textuais os
discursos são tidos como práticas sociais eminentemente culturais.
Sob a influência da Psicologia e da Psicanálise, os Estudos Culturais passaram a
abranger conceitos tais como representação, que aqui assume o mesmo sentido de
apresentação, ou seja, a representação não esconde nada por detrás do discurso, antes, ela é o
que se apresenta e é revestida do poder de produzir sentidos plurais.
Algumas análises no campo da linguagem também ressaltam a interseção entre a
Psicanálise e os Estudos Culturais. Tanto em Lacan (1998) quanto em Foucault (2000) a
análise de um discurso não pressupõe a busca de algo obscuro, submerso no âmago do
inconsciente. O discurso fala por si mesmo, não existe qualquer coisa escondida em suas
entrelinhas ou vozes. A análise de um discurso ocorre no próprio corpo do discurso e situa-se
no campo do saber/poder, pois os discursos não são
conjuntos de signos [elementos significantes que remetem a conteúdos ou a
representações], mas práticas que formam sistematicamente os objetos de
que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que eles
fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que
os torna irredutíveis à ngua e ao ato da fala (FOUCAULT, 1987, p. 56
grifo do autor).
Segundo Bernardes e Hoenisch (2003), com a aproximação da Psicologia Social,
edificada pelos debates pós-estruturalistas nos Estudos Culturais, duas categorias de análise
foram incluídas, a identidade e a subjetividade. No entanto, estas não o concebidas como
sinônimas, muito menos como sendo fixas e uníssonas, antes são situadas numa outra
dimensão – a da produção e alteração.
52
Tanto as subjetividades como as identidades são situadas no campo da produção social
e cultural. Estas têm em comum o fato de serem produzidas, porém possuem peculiaridades
específicas. A subjetividade ou subjetivação é entendida como os modos pelos quais o sujeito
se e se perfilha, refere-se a um processo no qual o sujeito se faz e se refaz periodicamente
através de interrupções discursivas.
Chamarei de subjetivação o processo pelo qual se obtém a constituição de
um sujeito, mais exatamente de uma subjetividade, que evidentemente é
uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si
(FOUCAULT, 1984, p. 137).
A identidade também assume uma posição de destaque no campo dos Estudos
Culturais. De simples essência ou algo a que pertence o sujeito, ela passa a ser tida como a
própria constituição do sujeito enquanto um ser social, histórico e cultural. A identidade é o
que a pessoa se torna a partir das relações que estabelece com o outro; não é fixa, mas
flutuante, passível de transformações.
É a própria diferença que produz as identidades e, nesta construção, identidade e
diferença estão profundamente interligadas, sendo ora dependentes, ora independentes, isto é,
a identidade depende da diferença para existir, porém a diferença existe independentemente
da consciência ou não das identidades. A diferença é um processo no qual tanto a identidade
quanto a diferença são produzidas (SILVA, 2000).
Na década de 80 ocorreu uma desvalorização da abordagem marxista. Jim McRobbie
(1995) argumenta que embora o marxismo tenha sido anteriormente uma das principais fontes
de conexão nos Estudos Culturais britânicos, posteriormente passou a ser cruelmente atacado
pelas idéias pós-modernas, em virtude das concepções teleológicas, do caráter de
metanarrativa e dos essencialismos e determinismos que o caracterizam.
Assim, novas teorias e perspectivas vieram à tona, como, por exemplo, a revalorização
do sujeito; a discussão em torno do consumo de dia e a capacidade crítica atribuída aos
consumistas; as visões neoliberais e a crítica à classe social como fator explicativo; a
circulação mundial dos bens culturais; o consumo, a moda, as identidades sexuais, turismo,
literatura, museus, entre outros.
No fim da década de 80, outras modalidades de análise ganham espaço, tais como a
análise dos meios de comunicação, da recepção dos meios massivos, sobretudo, no que tange
aos programas televisivos.
53
Na década de 90, os Estudos Culturais ocuparam-se com mais entusiasmo das idéias
de Gramsci sobre hegemonia e ideologia, sobre como os grupos subordinados se submetem
ou resistem às visões da classe dominante, e das idéias de Althusser, do conceito de ideologia
e das análises sobre os “aparelhos ideológicos do Estado”. A influência destes teóricos
tornou-se importante e evidente nos debates futuros dentro dos Estudos Culturais. No entanto,
acabou por ser suprimida pela crescente “invasão” de autores pós-estruturalistas tais como
Foucault e Derrida.
2.2.1. O Pós-estruturalismo e os Estudos Culturais
Considero oportuno dar um destaque à vertente pós-estruturalista dos Estudos
Culturais, visto que esta progressivamente tem assumido grande relevância nas pesquisas
desenvolvidas neste campo e, de fato, no Brasil em particular, muitos estudos inicialmente
realizados no orbe dos Estudos Culturais atualmente situam-se no enfoque pós-estruturalista.
Segundo Paraíso (2000), os Estudos Culturais utilizaram durante um tempo
significativo algumas referências marxistas, especialmente em seus primórdios, fazendo,
porém, interpretações e reinterpretações de Marx pelo viés de Althusser e Gramsci. Mas a
partir da década de 80, o pós-estruturalismo começou a ganhar espaço, ao ponto de atingir um
predomínio neste campo, especialmente no que tange às análises de Foucault, Derrida e
Deleuze.
O movimento teórico pós-estruturalista tem seu início na década de 60, época que se
consagrou como uma de suas fases mais acentuadas. “Aplicou-se” em várias áreas geográficas
e de saber, principalmente na França, com Michael Foucault, Derrida, Gilles Deleuze, Félix
Guattari, Jacques Lacan, entre outros. Nos tempos hodiernos, o pós-estruturalismo tem-se
disseminado nos mais diversos campos de saber, e tem recebido outra denominação em Silva:
“pensamento da diferença” (SILVA, 2001).
Podemos analisar o pós-estruturalismo a partir de duas acepções. Aquela em que é tido
como uma continuidade e ampliação do estruturalismo de Ferdinand Saussure e em sua
acepção de “pensamento da diferença”, com base em Tomaz T. da Silva (2001, 2004).
Como o próprio termo indica, o pós-estruturalismo é uma linha teórica que
continuidade à análise estruturalista, ou seja, tem como ponto de partida a composição da
língua. No entanto, sua ênfase primordial não é a de analisar as regras de funcionamento da
linguagem, separando suas estruturas, analisando-as isoladamente, na busca de um esquema
básico, comum de funcionamento, como se dá no caso do estruturalismo.
54
O sentido de continuidade e ampliação da teoria estruturalista feita pelo pós-
estruturalismo recai sobre a idéia da linguagem não como um sistema de significação rígido,
contínuo, fixo e predominantemente estrutural, mas como um sistema de significação
“frouxo”, isto é, fluido e indeterminado, livre da rigidez e do caráter permanente e invariável
atribuído à significação pelo estruturalismo (SILVA, 2004).
Outra acepção em que podemos analisar o pós-estruturalismo é aquela em que sua
gênese é atribuída a Nietzche e Heidgger.
Nesta acepção, principalmente com base em Foucault e Derrida, a amplitude da
análise da linguagem é mais significativa, pois esta passa a ser discutida no corpo do discurso
e do texto. A fala e a língua não são tidas como estruturas separadas e os signos não têm
significados fixos. A linguagem é um todo que se consubstancia nos discursos e textos e é
capaz de produzir significados diversos e flutuantes e de instituir verdades e subjetividades.
Assim, passa-se a reconhecer o poder do qual a linguagem é revestida. Foucault (2000)
mais especificamente, teoriza sobre a relação entre linguagem e poder. Para este autor, a
linguagem enquanto discurso, com regras próprias, cria verdades, tem o poder de ditar rumos
e definir trajetos, ‘a linguagem é ela própria que constitui o mundo, homens e mulheres são
constituídos na e pela linguagem’.
A dimensão do poder é maximizada em Foucault, ganhando autonomia e legitimidade,
suplantando sua conotação de exclusivo a determinadas classes dominantes. O poder está em
todo lugar, a ‘vontade de poder’ permeia todas as ações do homem, e a este poder Foucault
não uma conotação necessariamente negativa, pois é tido como uma força que atua em
vários sentidos e em direções opostas.
Foucault concebe o poder não como algo que se possui, nem como algo
fixo, nem tampouco partindo do centro, mas como uma relação, como
móvel e fluido, como capilar e estando em toda parte [...]. O saber não é o
outro do poder, não é externo ao poder. Em vez disso são mutuamente
dependentes [...]. É ainda o poder, que para Foucault, está na origem do
processo pelo qual nos tornamos sujeitos de um determinado tipo
(SILVA, 2004, p. 120).
Foucault destaca a interdependência entre linguagem, poder e saber. de fato, uma
rede de relações embutidas no discurso, este é portador de saberes e poderes que se
materializam através dele. O discurso é controlado pelo poder; nem tudo pode ser dito, em
qualquer lugar, em qualquer circunstância e de qualquer maneira.
55
Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade [...]. O
discurso não é apenas aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que e pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar (FOUCAULT, 2006, p. 8, 9).
Muitas das idéias foucaultianas têm sua inspiração, segundo Tomaz T. da Silva, em
Nietzsche. Em seu artigo Dr. Nietzsche, Curriculista – com uma pequena ajuda do professor
Deleuze’, Silva (2001) faz um ‘resumo’ de algumas características fundamentais da vertente
pós-estruturalista de origem Nietzchiana: a mudança na concepção de verdade, que deixa de
ser única e absoluta para adquirir o sentido de ficção; o conhecimento é concebido em seu
caráter artificial e produzido; tanto a verdade quanto o conhecimento são produtos da
interpretação; a linguagem, por sua vez, é afirmada insistentemente em seu caráter produtivo.
O sujeito único e centralizado “morre” para nascer em seu lugar a subjetividade. Se
não sujeito no singular, logo não uma identidade única associada à ele. Assim, ocorre o
adeus à identidade, que é sobrepujada pela diferença e multiplicidade.
Os valores e a moral têm sido expostos em seu falso sentido de transcendentais e
universais, em vez de identificar e discutir que valores são importantes, o pós-estruturalismo
analisa quem atribui à valorização dos valores e por quê. Desse modo, os valores são vistos
como contingências; são, portanto, criados, impostos, instituídos. Assim, a partir da
genealogia dos valores, ao contrário de uma ontologia dos valores, torna-se possível a
transvaloração de todos os valores, ou seja, novos valores são criados e recriados de acordo
com as circunstâncias ou jogos de forças.
Por fim, chegamos à transmutação do poder de descobrir para o de inventar e na
substituição da essência pela aparência. Partir do poder como invenção levará a pensar o
conhecimento não como algo a ser descoberto e aprendido, mas como algo que é criado,
inventado.
Deste modo, não há um conhecimento da realidade, pois a realidade não é uma
essência e sim uma aparência ou presença forçada. Neste caso, conhecer não significa adequar
a aparência à sua essência, mas identificar que essências nos são impostas e de que maneiras,
e reconhecer que diferentes e diversas interpretações no ato de conhecer, procedentes do
encontro entre forças e conflitos, no campo de lutas.
É oportuno concluir este tópico acerca do pós-estruturalismo com algumas reflexões
de Hall sobre a importância da “virada lingüística” nos Estudos Culturais. Para ele, este
56
‘desvio necessário’ deslocou e descentrou o caminho estabelecido nas análises no campo dos
Estudos Culturais britânicos em geral.
De novo, não aqui espaço para fazer mais do que elencar os progressos
teóricos decorrentes dos encontros com o trabalho estruturalista, semiótico e
pós-estruturalista: a importância crucial das linguagem e da metáfora
lingüística para qualquer estudo da cultura; a expansão da noção do texto e
da textualidade, quer como fonte de significado, quer como aquilo que
escapa e adia o significado; o reconhecimento da heterogeneidade e da
multiplicidade dos significados, do esforço envolvido no encerramento
arbitrário da semiose infinita para além do significado; o reconhecimento da
textualidade e do poder cultural, da própria representação como fonte de
identidade [...]. A metáfora do discursivo, da textualidade, representa um
adiamento necessário, um deslocamento, que acredito estar sempre
implícito no conceito de cultura (HALL, 2003, p. 211, 212).
2.3. O Itinerário dos Estudos Culturais no Brasil
A tentativa de situar os caminhos percorridos pelos Estudos Culturais no Brasil,
descrevo e caminho na trajetória do campo educacional, mais precisamente, no campo
curricular, dadas as relações que pretendo estabelecer com meu problema de pesquisa.
Percorrendo esta direção chegarei, inevitavelmente, a três possíveis lugares: aos programas de
pós-graduação da Universidade Luterana e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e à
Associação de Pós-Graduação em Educação (ANPEd)
19
.
27
.
Estes três “lugares” encontram-se profundamente interligados quanto à realização de
pesquisas no campo dos Estudos Culturais. Utilizo a expressão ‘interligados’ para explicar
que os autores destas pesquisas circulam concomitantemente nestes três ambientes. Isto é,
num movimento simultâneo, pesquisadores tais como Alfredo Veiga-Neto, Maria Lúcia
Wortmann, Rosa Maria Silveira e Marisa Vorraber Costa atuam nos grupos e linhas de
pesquisa de ambas as instituições, ULBRA e UFRGS, e um dos principais veículos de
divulgação dos seus trabalhos tem sido a ANPEd.
Numa pesquisa realizada sobre o pensamento curricular no Brasil, Lopes e Macedo
(2002) mencionam a ANPEd como um dos principais centros de discussão sobre currículo e
conhecimento e situa o GT de Currículo como um dos fóruns de pesquisadores mais
19
Podemos citar também o Grupo de Pesquisa Estudos Culturais, Identidade/Diferença e Teorias do
Comportamento, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Psicologia da
PUCRG, liderado por Neusa Guareschi e o Grupo de Trabalho Mídia e Recepção da Associação dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação, coordenado por Ana Carolina Escosteguy.
57
significativos, a ponto de “garantir a legitimidade e a autoridade para falar sobre currículo”
(Idem, p. 18).
Assim, investigando as produções apresentadas no GT de Currículo da ANPEd,
chegamos a uma das principais vias de acesso às produções no âmbito dos Estudos Culturais
que relacionam cultura, educação e currículo no Brasil. Parte significativa dessas produções
assumem-se como inseridas na vertente pós-estruturalista dos Estudos Culturais
20
.
22
A coletânea de textos publicados no livro Estudos Culturais em Educação mídia,
arquitetura, brinquedo, biologia, cinema...”, organizado por Marisa Vorraber da Costa (2000)
e o livro Caminhos Investigativos III riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras”,
organizado pela mesma autora e por Maria Bujes (2005), refletem o panorama das pesquisas
desenvolvidas por autores pós-estruturalistas que utilizam, sobretudo, Michel Foucault como
referência teórica em suas análises. A seguir, situamos algumas pesquisas desenvolvidas sob o
enfoque dos Estudos Culturais.
Nas análises dos textos compilados do livro “Estudos Culturais em Educação – mídia,
arquitetura, brinquedo, biologia, cinema...”, a linguagem tem sido concebida como
produtora da realidade tal como existe de tal ou qual forma’ e a mídia é vista como prática
social que integra as tecnologias na produção de representações e de subjetividades (COSTA,
2000). O poder é inerente à lógica da vida em sociedade, como o ‘inventor de estratégias que
o potencializam, que engendram saberes que o justificam e o encobrem’ (VEIGA-NETO,
2000).
A alfabetização, pelo seu caráter discursivo, tem aprisionado, normalizado condutas,
construindo significados e subjetividades em torno do ‘alfabetizador ideal’, produzindo,
assim, identidades às quais os professores procuram se enquadrar (MARZOLA, 2000).
Os discursos sobre ‘natureza’ nas disciplinas de ciências instituem visões hegemônicas
e antropocêntricas, enfocando tanto o consumismo, o utilitarismo, a produção de artefatos
quanto as contemplações românticas que glorificam sua pureza, influenciando a forma como
estabelecemos nossas relações com a natureza, como concebemos a relação entre o mundo
natural e o não-natural, enfim, os sentidos e significados que construímos (AMARAL, 2000).
As produções culturais em torno da literatura infantil e a utilização das narrativas de
ficção são vistas como instituidoras de verdades ‘consumidas’ e ‘incorporadas’ pelas crianças,
202
Alfredo Veiga-neto (1995, 2000, 2001), Marisa Vorraber da Costa (2000c), Rosa Hessel Silveira (2000),
Maria Isabel Bujes (2000); Luis Henrique Sommer (2000, 2005), Maria L. C. Wortmann (2000), Rosa M. B.
Fischer (2000), entre outros.
58
a veiculação de sentimentos de compaixão ou de compensação em relação às crianças com
necessidades educativas especiais, no caso deste estudo, a surdez (SILVEIRA, 2000).
O brinquedo tem sido explanado enquanto manifestação da cultura vivida e, portanto,
‘envolvido no processo de produção e imposição de significados, imerso em relações de poder
que pretendem conduzir o processo de representação’. O jogo e o brinquedo são concebidos,
então, como integrantes de processos políticos, culturais, no âmbito de práticas discursivas,
através das quais atribuímos significados às experiências pelas quais passamos (BUJES,
2000).
No livro “Caminhos Investigativos III – riscos e possibilidades de pesquisar nas
fronteiras”, organizado por Costa e Bujes (2000), Meyer e Soares a partir da análise de um
filme
21
, focalizam os processos de diferenciação e hierarquização social e cultural, procurando
compreender e problematizar formas pelas quais estes produzem posições-de-sujeito no
interior de uma cultura. A visualidade é considerada uma relação de poder, que permite que se
revelem determinadas coisas em detrimento de outras; “o que nós vemos é o que aprendemos
a ver no interior das linguagens e das representações que nos constituem” (MEYER e
SOARES, 2005, p. 36).
Maria L. Wortmann
22
, discute os modos como se tem processado a produção
discursiva da natureza e as questões a ela vinculadas em inúmeras situações e ações, em um
artefato cultural cuja circulação entre as crianças se faz seguramente há mais de 300 anos, isto
é, os livros de histórias infantis. Assim, a autora busca saber o que essas histórias dizem sobre
a natureza, tomando tais discursos como práticas que sistematicamente formam os objetos dos
quais falam (WORTMANN, 2005).
Luis Sommer
23
, tomando a noção de biopoder em Foucault em sentido mais amplo,
isto é, enquanto investimento de poder sobre uma população e focalizando a campanha pela
informatização como uma tecnologia biopolítica, descreve a inserção de computadores na
educação de Novo Hamburgo através da análise do discurso da campanha Projeto Agora: a
conquista do computador”.
21
O título original do filme é Le fate ignoranti, em Português foi traduzido Um amor quase perfeito, refere-se a
uma co-produção cinematográfica italiana e francesa, dirigida por Ferzan Ozpetek, 2001 e o artigo que apresenta
as análises da pesquisa desenvolvida intitula-se Modos de ver e de se movimentar pelos “caminhos” da pesquisa
pós-estruturalista em Educação: o que podemos aprender com - e a partir de– um filme.
22
No artigo Dos riscos e dos ganhos de transitar nas fronteiras dos saberes, baseado nas pesquisas que
desenvolve desde de 2002 na Universidade Luterana do Brasil.
23
No artigo Tomando palavras como lentes, baseado na sua Tese de Doutorado Computadores na escola: a
produção de cérebros-de-obra, UFRGS, 2003.
59
Reconstruindo as formas discursivas que deram configuração à cidade,
Sommer isolou um discurso hegemônico identitário que foi utilizado para
conduzir a conduta da população trabalhadora, operando como uma
tecnologia de governamento que produzia e regulava os discursos sobre
computadores e a era da informática (SOMMER, 2005).
Com base nos estudos de Foucault sobre poder e saber, Jociane Costa
2427
examina as
prescrições relativas à formação da pedagoga, constantes das legislações educacionais
brasileiras e documentos correlatos, no período histórico de 1968 a 1971.
Costa (2003) mostra como os discursos presentes nestes documentos, ao inventarem
práticas pedagógicas específicas para a pedagoga a especialista da educação instituem
saberes que disciplinam, regulam e produzem sujeitos compatíveis com uma configuração
econômica e social determinada, atingindo tanto as pedagogas através de sua formação,
quanto o alunado, por intermédio dos efeitos de sua atuação (COSTA, 2005).
Com base nas sínteses das análises desenvolvidas pelos autores em suas pesquisas
25
,
acima mencionadas, podemos dizer que Estudos Culturais têm representado um processo de
produção de conhecimento sobre o amplo domínio da cultura humana e, no Brasil, muitos
estudiosos e pesquisadores têm se aproveitado da Psicologia e Psicanálise, do Pós-
estruturalismo e Pós-modernismo, da Lingüística e Sociolingüística e de outros “caminhos”
que permitem dialogar com a percepção político e social de cultura inerente a este campo.
Os Estudos Culturais, porém, embora articulem vários campos de saber, não darão
conta da “totalidade dos significados possíveis para um ou qual tema, situação, circunstância
ou questão” (WORTMANN, 2005, p. 65). Hall (1997) nos diz, apropriadamente, que os
significados sempre escapam às representações e que as articulações que empreendemos em
nossas análises são sempre contingentes e situadas.
Assim, as teorizações realizadas no campo dos Estudos Culturais são apenas algumas
entre as variadas e possíveis maneiras de estabelecer conexões com a realidade; não são, e
nem pretendem ser, as únicas e, muito menos, as ‘verdadeiras’.
Todas essas ingerências realizadas pelas pesquisas desenvolvidas na ótica dos Estudos
Culturais, sobretudo na década de 90, abriram caminhos para produtivas possibilidades de
articulações teóricas, temáticas e metodológicas em momentos posteriores.
Ao visualizarmos as pesquisas apresentadas nos GTs da ANPED, em especial o de
Currículo, nos primeiros anos do século XXI, isto é, de 2001 a 2006, verificamos um número
24
No artigo Redesenhando uma pesquisa a partir dos Estudos Culturais, construído a partir de sua Dissertação
de Mestrado A pedagogia nas malhas de discursos legais, UFRGS, 2002.
25
Foram considerados apenas alguns artigos das coletâneas citadas.
60
cada vez mais crescente de trabalhos que associam determinados conceitos centrais dos
Estudos Culturais cultura, conhecimento, poder e identidade à uma gama diferenciadas de
temáticas, desenvolvidas e analisadas com base em distintas perspectivas metodológicas.
No campo curricular, e no campo dos Estudos Culturais como um todo, conhecimento
e cultura têm assumido posição de destaque, impulsionando parte significativa das pesquisas e
produções teóricas. E não há como negar que o enfoque no qual essas categorias são
abordadas conduz a determinadas formas de pensar e fazer currículo.
São estas considerações que justificam e respaldam o interesse em investigar as
pesquisas desenvolvidas sob a égide dos Estudos Culturais no campo curricular, pois concebo
que estas pesquisas são textos vivos, que contribuem para instituição de sentidos, que
orientam práticas, que nos “invadem” e nos “traspassam”, criando novas maneiras de pensar e
idealizar o que nos rodeia.
61
3 - O CONHECIMENTO NOS ESTUDOS CULTURAIS
Conhecer
Conheci... Mento
Mente
Magia
Morali... daDe
Depositar
Deduzir
Deri...Var
Válido
Vernáculo
Verdad... Eiro
Ebulição
Educação
Eis... Currículo...
MENDES, S.K.B.
A concepção de conhecimento que permeia nossas mentes, nossas produções, que guia
as relações que estabelecemos entre os fatos e que está imbuída no modo como costumamos
fazer ciência não está desprendida do tempo histórico no qual estamos inseridos. As grandes
mudanças históricas comportam em si transformações significativas no modo de conceber e
produzir o conhecimento.
Esta é uma afirmação simples e, a um primeiro olhar, aparentemente óbvia. Porém, as
reflexões que as subjazem nos levam a ir muito mais além, a ponto de colocarmos em xeque
muitas verdades cristalizadas e que, por assim serem, colocam-nos o desafio de questioná-las
de modo pertinente.
Dar-nos conta de que transformações drásticas têm se desenrolado no contexto social e
histórico atual alerta-nos para o fato de que certas maneiras de pensar são descartadas em
conseqüência do crescimento e espaço que outros olhares passam a usurpar e estas rupturas,
geralmente, causam traumas e resistências, especialmente porque estão inevitavelmente,
traspassadas por lutas em torno do poder.
62
Isso significa dizer que as transições ou transformações ocorridas na concepção de
conhecimento nem sempre são reconhecidas ou possuem aceitabilidade. Aliás, o embate em
torno de que concepção de conhecimento é, de fato, válida ou não têm crescido
abundantemente no próprio campo do currículo, que tem lidado centralmente com esta
questão. Além deste, o campo dos Estudos Culturais também tem sido um local privilegiado
dessa discussão.
As análises neste campo têm desestabilizado a idéia de conhecimento científico
pautado numa razão absoluta e também trazido para a discussão as maneiras pelas quais este
conhecimento tem sido por nós incorporado. Como maior contribuição para a discussão, têm-
se apontado novas possibilidades de conceber o conhecimento, seguindo uma “lógica” situada
fora do pensamento dominante ocidental e moderno. Mas antes de ater-me a esta questão,
analisarei a idéia de conhecimento que tem predominado na esfera das produções científicas
atualmente e como ela se constituiu ao longo do tempo.
Incursionando numa breve respectiva histórica em torno da questão do conhecimento,
deparamos-nos com várias visões pautadas em teorias explicativas das relações entre o sujeito
que deseja conhecer e o objeto a ser conhecido. Sócrates, Platão e Aristóteles, na Grécia
Antiga, instituíram alguns métodos de produzir conhecimento, que iam desde a ironia e
maiêutica, expandindo-se à idéia de ciência opinativa Doxa, e chegando à ciência
experimental ou baseada na observação - Episteme.
Na Antiguidade, as influências deixadas por estes pensadores gregos são bastante
perceptíveis. Entre elas, podemos citar a separação entre o conhecimento sensível e o
intelectual, entre aparência e essência, entre opinião e saber. É neste período da história que
são instituídas regras lógicas para a produção do conhecimento ‘verdadeiro’.
Algumas mudanças significativas ocorreram na noção de conhecimento durante a
Idade Média. Santo Agostinho iniciou a tentativa de conciliação entre o pensamento cristão e
o platônico - Patrística. São Tomás de Aquino introduziu a filosofia aristotélica ao
pensamento cristão, e as linhas que separavam razão e fé já pareciam romper-se.
A concepção de conhecimento na Idade Moderna comportou verdadeiras revoluções.
A substituição da visão teocentrista pela visão antropocentrista foi uma delas. As teorias
racionalistas, as empiristas, a teoria do conhecimento universal e a própria herança iluminista
mais especificamente através da teoria da razão fundaram uma concepção de
conhecimento tão bem estruturada que tem permanecido soberana e imponente durante muitos
séculos.
63
Na contemporaneidade, tem-se questionado sobre que conhecimento pode ser
considerado racional ou irracional. Esta crise, porém, tem se apresentado de forma deveras
complexa, e como a considero central na discussão que pretendo desenvolver sobre o
conhecimento, deterei-me em analisá-la mais profundamente.
As palavras totalizante, racional, centrado, autônomo e consciente são distintivas de
uma ciência pautada em princípios iluministas e humanistas, de uma sociedade e ciência
modernas em que as idéias fundamentais são
a distinção entre sujeito e objeto e entre natureza e sociedade ou cultura;
redução da complexidade do mundo a leis simples susceptíveis de
formulação matemática; uma concepção da realidade dominada pelo
mecanicismo determinista e da verdade como representação transparente da
realidade; uma separação absoluta entre conhecimento científico
considerado o único válido e rigoroso e outras formas de conhecimentos
como senso comum ou estudos humanísticos; privilegiamento da
causalidade funcional, hostil à investigação das “causas últimas”,
consideradas metafísicas, e centrada na manipulação e transformação da
realidade estudada pela ciência (SANTOS, 2004, p. 2).
Boaventura de Souza Santos, em seus escritos (2003, 2004), faz menção ao
enfraquecimento da confiança epistemológica pela qual a ciência moderna está passando.
Considera que as bases epistemológicas que a sustentam não têm correspondido aos anseios
dos cientistas e o conhecimento por eles produzidos já não se ajusta aos princípios da
racionalidade totalizante.
Deveras, é no domínio do conhecimento e do poder que a falência da ciência moderna
tem sido mais evidente. Eis alguns sinais que as produções científicas atuais no campo da
física e da biologia, e não apenas nestes campos, têm nos dado a este respeito: ausência de
consensos ou a existência de falsos consensos, constatação de realidades cada vez mais
complexas, certezas relativas, em geral, sujeitas à mercantilização da ciência, debates intensos
e momentos de grande ebulição na comunidade científica (SANTOS, 2003).
É oportuno, neste caso, considerar o que Santos diz sobre ‘alternativas
epistemológicas’ a partir das quais o conhecimento científico pauta-se numa racionalidade
mais ampla, suplantando as dicotomias entre objeto/sujeito, ciência/senso comum,
natureza/cultura. Neste aspecto, o autor argumenta em favor da emergência de um outro
paradigma epistemológico – a ciência pós-moderna.
Compartilho com Santos suas ponderações concernentes à crise ou transição do
paradigma epistemológico na ciência moderna para a ciência pós-moderna. Porém, talvez seja
64
óbvio dizer que a construção de uma outra concepção de ciência não se dê repentinamente. Os
desdobramentos teóricos das ciências sustentadas em teorias que colocaram “em jogo” o
modelo de racionalidade totalizadora foram minando aos poucos a base de uma ciência
positivista, iluminista e racionalista, e constituíram-se nas principais responsáveis pelas
bifurcações que desembocariam em outra forma de pensar o conhecimento.
Alguns destes desdobramentos teóricos centram-se no mesmo ponto a crítica ao
Iluminismo e aos princípios da razão, racionalidade, progresso, ciência, epistemologia. No
campo das artes, literatura e estética, as críticas dirigem-se às noções de pureza, abstração e
funcionalidade, e no campo da educação e currículo, referem-se à transmissão do
conhecimento científico e a formação do aluno como ser racional, autônomo e democrático.
A crítica ao conhecimento racional abriu caminho para novas formas de pensar e conceber
o conhecimento. A trajetória no sentido do conhecimento é longa, e escapa aos objetivos desta
pesquisa, o que nos mostra sua característica metamorfósica, ou seja, o conhecimento é
móvel, transforma-se, assume novas e diferentes roupagens ao inserir-se em campos
epistemológicos variados e em épocas históricas diferentes.
O que, de fato, é de interesse neste momento é ir a fundo em uma’ concepção de
conhecimento aquela que se sobreleva no campo teórico dos Estudos Culturais. Para tanto,
considero apropriado iniciar a análise pela relação entre cultura e educação e, por fim, chegar
à discussão do conhecimento, especificamente, o conhecimento curricular.
3.1. Cultura e Educação nos Estudos Culturais
No capítulo anterior situamos que no século XIX, precisamente em meados na década de
50, no contexto inglês, desenrolava-se um debate acirrado entre duas concepções antagônicas
de cultura a alta cultura e a cultura popular o que era indício das transformações no
conceito de cultura que se efetivariam no século XX.
No campo educacional, este embate assumiu diferentes ares. Entre aqueles defensores da
preservação da cultura singular, especialmente Mathew Arnold (1971) e Frank Leavis (1943),
a educação era considerada um elemento fundamental na manutenção da alta cultura, para que
ela não fosse perdida ou ‘contaminada’ pela cultura das massas.
Em outra perspectiva, a de Williams (1969), a educação era tida como um instrumento
importante de informação e de acesso aos bens culturais comuns da humanidade e as escolas
65
deveriam exercer seu papel de tornar a tradição cultural acessível o mais amplamente
possível, retirando-a do domínio de uma classe social minoritária.
No bojo da discussão em torno do significado da palavra cultura, Williams passou a
investir na análise da cultura no campo da experiência e da coletividade, considerando a
tradição e a reprodução como intrínsecas ao processo cultural. Neste sentido, levantou
discussão em torno de como se dá a construção da memória cultural de um grupo, tornando-se
o responsável pela relevante idéia de “tradição seletiva” - a isto se refere Williams como o
trabalho de seleção no qual a memória coletiva constrói e reconstrói a sua herança cultural.
A contribuição deveras importante de Williams neste processo de seleção cultural
refere-se ao fato de considerar que esta seleção não se apenas no âmbito intrínseco, mas
também sofre influências externas, mais precisamente dos interesses políticos predominantes
num determinado momento histórico. Aplicando estas análises à educação, e ao campo do
currículo especificamente, é possível desenvolver reflexões interessantes acerca da relação
entre a cultura, a educação e a seleção dos conteúdos que consubstanciam o currículo escolar.
Inicio a discussão pela relação entre cultura e educação.
3.1.1. A Transição no Conceito de Cultura e as Implicações para a
Educação
Raymond Williams (1969) e Richard Hoggart (1957), Frank Leavis (1930) e Matthew
Arnold (1923) desenvolveram análises relevantes, no século XIX, acerca do impacto e das
conseqüências da revolução industrial na vida social, intelectual e na própria cultura nacional
da sociedade inglesa. De um lado, Leavis e Arnold consentiam que estivesse ao encargo dos
intelectuais, produtores ou difusores culturais promover a educação pautada numa cultura
nacional.
Williams e Hoggart evocavam a atenção para a relação entre o cultural e seus jogos de
poder, para a superação da dicotomia entre alta cultura” e “baixa cultura”, dado que a
concepção de cultura da qual se proviam incluía todas as manifestações e estilos de vida dos
grupos, independentemente de qualquer classificação social.
Considero pertinente, nesta análise, o diálogo que Williams (1969) estabelece com
Matthew Arnold e Frank Leavis em torno do significado do termo cultura e as relações que
estes estabelecem entre cultura e educação.
66
Segundo Williams (1969), tanto para Leavis (1943) quanto para Arnold (1971) a
cultura estava relacionada ao estudo e a busca da perfeição e da preservação de uma tradição
de vida “fina e alta”. Em Arnold, especificamente, a cultura era um revés à anarquia social e
espiritual, e caberia mais precisamente ao Estado, através de uma educação nacional,
desenvolver “o melhor eu” da humanidade, e divulgar “o melhor que foi pensado e escrito em
todo mundo”, enfim, a educação deveria originar um conhecimento geral e um padrão de
pensamento efetivo (WILLIAMS, 1969).
Em Leavis, a cultura também era privilégio de poucos, porém, neste caso não dos que
constituíam o Estado, mas de um grupo de intelectuais literários, cuja principal função seria a
de manter viva a tradição literária e as mais refinadas qualidades da língua.
Williams concorda com Leavis no ponto referente à importância de “preservar” as
tradições de uma sociedade, no entanto diverge da idéia de que é no seio de uma minoria
exclusiva que permanecem as significativas experiências passadas de um agrupamento
humano e de que o surgimento e crescimento das massas populares colocariam em jogo esta
herança cultural, levando à desordem social e cultural e à decadência da sociedade orgânica.
posso dizer, à guisa de conclusão, que as extremamente valiosas
propostas de caráter educacional e as importantes e luminosas análises da
sociedade local devem ser contrastadas com as falhas, que são às vezes,
sérias. A concepção de uma cultivada minoria, em oposição à massa
“decreada”, tende, em sua afirmação, a levar prejudicialmente ao ceticismo
e à arrogância. O conceito de um passado inteiramente orgânico e
satisfatório, em oposição a um presente desintegrado e desagradável,
tende, em sua negligência da história, à negação da verdadeira experiência
social (WILLIAMS, 1969, p. 273 – grifo meu).
Williams também discorda de Leavis quanto ao fato de que as experiências culturais
de um grupo social constam apenas no registro formal literário, mas as considera presentes na
história, na arquitetura, na pintura, enfim, nas diversas formas de saber. Este é um dos
sentidos em que Williams estende a cultura ao âmbito de toda a vida comum, isto é, a cultura
passa a abranger todas as formas de prática social, independentemente de classe, todas as
disputas e conflitos.
De fato, Williams não via o surgimento e a ampliação da classe trabalhadora e da
população em geral, estereotipadas pela classe dirigente como “massas”, como uma ameaça à
cultura. Em vez disso, a forma preconceituosa como as massas populares eram encaradas foi
algo fortemente criticado por Williams.
67
Em verdade, não massas; apenas maneiras de ver os outros, como
massa. Nas sociedades industriais dos grandes centros urbanos são muitas
as oportunidades de ver os outros desse modo. A questão não é apenas de
ressaltar esses fatos objetivos, mas a de investigar o efeito que esses modos
de ver as outras pessoas tiveram sobre nossos hábitos pessoais e coletivos
de pensar. A realidade é que esse modo de ver os outros, que é característico
de nosso tipo de sociedade, foi capitalizado para fins de exploração política
e cultural (Idem, p. 309).
Transpondo a cultura para o campo do significado e da experiência, Williams a retira
dos padrões de referência baseados numa qualidade ideal, no melhor exercício da faculdade
humana, elidindo o julgamento de que tudo o que não se enquadra nestes padrões é fútil,
medíocre.
Era este tipo de pensamento guiado por padrões fixos e tradicionais que orientava a
maneira como a cultura popular era julgada. A ênfase excessiva nos aspectos negativos ou na
qualidade do que era pertinente às “massas” era conseqüência de um julgamento baseado
nos valores e referenciais de um grupo minoritário que se utilizava de um crivo seletivo
altamente unilateral. De modo que o desprezo atribuído às atividades desenvolvidas pela
“maioria” era resultado das limitações próprias dos que as apreciavam e, assim, não de uma
incapacidade típica da maioria em produzir ou reproduzir a cultura “refinada”.
Williams posiciona-se contra a idéia de que a cultura da maioria seja inferior ou
possua padrões mais baixos em relação à cultura das minorias, visto que os níveis de preparo
e instrução desta minoria são extremamente superiores àqueles concedidos à maioria, e as
transformações técnicas ocorridas na sociedade, além de serem resultantes de uma
combinação de interesses e inércia, estão assaz longe das transformações educacionais. Indo
mais além, o autor alerta para os perigos de atribuir a uma crescente população, a que chama
de ‘maioria’, o estigma de “populacho”:
Considerar a maioria como populacho serviu, paradoxalmente, para deter ou
enfraquecer as consciências mais ativas a esse respeito. A tolice sempre é
fácil e há coisa menos inteligente do que, ao fim de um longo treino
educativo, desdenhar os que se iniciam e que, embaraçados e inseguros,
estão cometendo os inevitáveis erros? (Idem, p. 319).
É assim que, para Williams, a educação não tem a função de orientar as massas de tal
modo que as eleve ao padrão cultural de um determinado grupo. Não qualquer tipo de
defasagem cultural; o que ocorre é a discrepância nas oportunidades de acesso aos bens
culturais. Assim, “o máximo que se pode fazer é transmitir os hábitos e perícias que não são
68
propriedade individual, mas da espécie, e dar a todos livre acesso a tudo que se fez e construiu
no passado” (Idem, p. 327).
Porém, a cultura não se refere apenas a um corpo de trabalho imaginativo e intelectual
pois, se assim fosse, a expansão da educação à população em geral resolveria o problema da
distribuição e perpetuação da cultura ideal, atingindo esta cultura por fim as diferentes classes
sociais. Mas, como alerta-nos Williams, a cultura não se limita exclusivamente a este corpo de
trabalho imaginativo e intelectual, ela envolve também “essencialmente todo um modo de
vida” (Williams, 1969, p. 333).
Com base na idéia da cultura como um modo de vida, Williams cogita a emergência
de uma cultura sem classes, resultante principalmente das mudanças sociais. Cultura sem
classe, porém, não quer dizer cultura uniforme; as distinções, de fato, existem, mas não é no
critério de classe que as encontramos.
Segundo Williams, podemos buscar tais distinções no total modo de vida, e este não
envolve apenas a linguagem, a maneira de se vestir ou o tipo de entretenimento, mas as
formas diferenciadas em que a natureza da relação social é concebida. Isso justifica o
posicionamento de Williams contra a cultura de classes e a favor da existência de culturas
diferentes, resultantes das diferentes modalidades de relações sociais.
De fato, os grupos e instituições produzem culturas diferentes. No entanto, uma
“parte” da cultura que é comum a todos, fruto de uma produção coletiva, que consegue
perpetuar-se no passar das gerações, e que é “transmitida”, por exemplo, nas instituições
culturais, como a família e a escola. Williams analisou este processo através do conceito de
tradição seletiva, que explanaremos a seguir.
3.2. A Tradição Seletiva da Cultura no Contexto Escolar
Williams (1961) analisa três categorias gerais na definição da cultura. A primeira é a
ideal, na qual a cultura é o estado do processo da perfeição humana, em termos de certos
valores universais e absolutos. A segunda é a documentária, onde a cultura é o corpo do
trabalho imaginativo e intelectual e na qual, de forma detalhada, pensamentos humanos e
experiências são gravadas variavelmente. A terceira é a definição social, e nesta a cultura
passa a ser entendida como o inteiro modo de vida e expressa certos significados e valores
não somente na arte e na ciência, mas também nas instituições e nos comportamentos comuns,
ordinários.
69
Cada uma dessas definições possui algum valor na ótica de Williams, porém este se
posiciona criticamente em relação a cada uma delas. Refletirmos acerca deste posicionamento
nos ajudará a entender mais plenamente o processo de tradição seletiva analisado por este
autor e contribuirá para melhor compreensão das relações entre cultura e conhecimento no
contexto da educação escolar. Além disso, é a idéia da tradição seletiva originária em
Williams que sustenta muitas análises desenvolvidas atualmente no campo do currículo.
A identificação do processo de perfeição humana, através da descoberta de valores
absolutos, parece ser para Williams uma tarefa difícil e até improvável, visto que esses
valores já são ordinariamente definidos. Esses valores podem ser melhor compreendidos
como uma extensão dos valores de uma tradição ou sociedade particular, de modo que
Williams prefere ver este processo, não como a apresentação de um ideal conhecido em
direção ao qual devemos ir, mas como uma evolução humana para significar o processo de
crescimento geral do homem de determinado tipo.
For it seems to me to be true that meanings and values, discovered in
particular societies and by particular individuals, and kept alive by social
inheritance and by embodiment in particular kinds of work, have proved to
be universal in the sense that when they are learned, in any particular
situation, they can contribute radically to the growth of man’s powers to
enrich his life, to regulate his society, and to control his environment
(WILLIAMS, 1961, p. 43).
Assim, para Williams, os significados e valores de uma sociedade, desvendados
através de indivíduos particulares, e que permanecem ativos por meio das heranças sociais e
pela construção de formas privadas de trabalho, são universais no sentido de que quando são
aprendidos, em qualquer situação particular, podem dar uma contribuição significativa para o
enriquecimento na vida do homem, dando-lhe poderes para regular a sociedade ou controlar
seu meio ambiente.
No que se refere à análise da cultura no sentido documentário, Williams a considera de
grande importância, porque ela pode expor evidências específicas sobre toda a organização
dentre a qual foi expressa. Assim, parece evidente para Williams que, ao fazer tal exposição, é
necessário selecionar certas atividades para dar ênfase, e isso é inteiramente razoável para
traçar linhas particulares de desenvolvimento num período isolado, mas a história de uma
cultura lentamente construída a partir de um trabalho particular pode ser escrita quando as
relações ativas são restauradas e as atividades vistas como igualdade genuína.
70
Cultural history must be more than the sumo f the particular histories, for it
is with the relations between them, the particular forms of the whole
organization, that it is especially concerned. I would then define the theory of
culture as the study of relationships between elements in a whole way of life.
The analysis of culture is the attempt to discover the nature of the
organization which is the complex of these relationships. Analysis of
particular works or institutions is, in this context, analysis of their essential
kind of organization, the relationships which works or institutions embody as
parts of the organization as a whole (WILLIAMS, 1961, p. 46, 47).
Entendo com base na citação acima que, para Williams, a história cultural deve ser
mais do que o resumo das histórias particulares, por ela ser a relação entre elas. Assim, a
teoria da cultura é definida por Williams como o estudo dos relacionamentos entre os
elementos de todo um modo de vida, na tentativa de descobrir padrões, tipos de
comportamentos específicos, e é com a descoberta e análise das relações entre esses padrões,
onde surgirão identidades inesperadas e continuidades de um tipo inesperado, que a análise da
cultura geral se realiza.
Logo, a cultura vivida não é refinada de documentos selecionados, ela poderia ser
usada, em sua forma reduzida, parcialmente, como a contribuição, ainda que menor, à linha
geral do crescimento humano e para a reconstrução histórica e, parcialmente novamente,
como uma forma de ter nos nomeado e nos colocado num estágio particular do passado. A
tradição seletiva cria assim, em um nível acima, uma cultura humana geral; e em outro nível,
o registro histórico de uma sociedade particular, e em um terceiro nível, o mais difícil para
Williams, de aceitar e avaliar uma rejeição de áreas consideráveis do que foi uma vez um
modo de vida.
Dentre o que é ‘rejeitado’ ou o que é mais difícil de preservar e resgatar numa cultura
vivida em determinada época é o que Williams denomina de ‘estrutura de sentimento’
(strutura of feeling), um sentido distinto de um estilo particular e nativo de determinada
organização social. A estrutura de sentimento é algo tão definitivo e firme como alude a idéia
de ‘estrutura’ e, ao mesmo tempo, tão delicado e intangível quanto sugere a noção de
sentimento. Em certo sentido, essa estrutura de sentimento é a cultura de um período: é a
soma particular de todos os elementos vivos na organização geral.
Estrutura de sentimento é o caldeirão [poderíamos dizer assim], onde as
condições de possibilidade de produção da cultura são dadas. O sentimento
é o espaço, simbolicamente falando, onde a estrutura se estrutura, onde é
possível mover as conexões e construir as estruturas. O sentimento é da
estrutura, pertence à estrutura porque se desenvolve no mundo material. A
estrutura é o exterior. O sentimento, o interior. Mas sem o exterior, a
71
estrutura, não campo para o sentimento; o sentimento por sua vez, ergue
a estrutura (ARAÚJO, 2004, p. 9 – grifos da autora).
A estrutura de sentimento, chamada por Forquim de ‘estrutura de sensibilidade’, é,
segundo este autor, o “sabor específico de um lugar e de um tempo, a tonalidade sutil e difusa
que torna verdadeiramente ‘contemporâneos’ os membros de uma mesma geração e de uma
mesma comunidade” (FORQUIM, 1993, p. 34). A cultura documentária, embora consiga
reconstituir abstratamente certos aspectos da realidade vivida de uma época, no entanto,
consegue muito precariamente transmitir a estrutura de sentimento. Esta é o que é mais difícil
para o historiador compreender e restituir.
Assim, o que consegue sobreviver ou ser reconstituído desta estrutura de sentimento e
os demais elementos registrados na cultura documentária resultam do processo que Williams
chama de tradição seletiva. Esta seleção constrói a memória cultural de um determinado
grupo, construindo sua herança cultural, aquela que deverá ser transmitida às futuras gerações.
Esta herança cultural, que constitui a ‘cultura comum’, envolve o legado de tradição
intelectual e artística e o acervo dos bens simbólicos que cada geração ou grupo social recebe
das gerações anteriores. Esta herança não se refere apenas àquilo que foi produzido por uma
única classe social e, mesmo que esta tenha atuado como ‘dominante’ em determinado
momento no que se refere ao processo cultural, jamais poderia ser considerada como
controladora ou possuidora do monopólio cultural.
O processo de tradição seletiva inicia quando uma experiência deixa o campo
individual e passa a atingir o campo coletivo, isto é, público. Com o passar do tempo, tal
experiência ganha mais consistência e rigidez, embora também passe por reestruturações,
reinterpretações e reabilitações. Ao atingir o domínio coletivo, algumas divisões se
processam. Parte desta experiência se integra à cultura humana universal, outra parte é
conservada no plano documentário, através de acervos e arquivos. Por fim, uma parte
significativa cai na arena do olvido, isto é, desprende-se da lembrança e cai no esquecimento.
Neste processo de seleção, o que mais nos chama a atenção são as influências que o
perpassam. Além das influências internas ou próprias ao processo, aquelas externas que se
infiltram e “determinam” a seleção. Estas influências externas referem-se aos interesses
sociais, políticos e econômicos preponderantes num período específico e que, envoltos no
jogo do poder, dominam o processo no qual a seleção das experiências culturais passadas é
realizada.
72
Within a given society, selection will be governed by many kinds of special
interest, including class interests. Jus and the actual social situation will
largely govern contemporary selection, so the development of the society,
the process of historical change, will largely determine the selective
tradition. The traditional culture of a society will always tend to correspond
to its contemporary system of interests and values, for it is not an absolute
body of work but a continual select and interpretation (WILLIAMS, 1961, p.
51, 52 – grifos do autor).
O processo de tradição seletiva também envolve o jogo de interesses em vigor na
sociedade atual, ou seja, a situação social, o desenvolvimento da sociedade, o processo de
mudança histórica irá direcionar e determinar amplamente a tradição seletiva. Isso se deve ao
fato de que a seleção da herança cultural é sempre contínua e interpretativa, de modo que não
há como negar que o contexto presente ressignifica e dá novos sentidos a ela.
O processo de tradição seletiva está estritamente relacionado a um aspecto
fundamental que Williams considera inerente à cultura - a reprodução. Ao explicar o
funcionamento da reprodução no processo cultural, Williams logo alerta para a complexidade
do termo, enfatizando que o emprega não no sentido uniforme ou de mera imitação. Quando
aplicada a processos culturais, esta palavra assume significados bem mais profundos.
Em muitos de seus aspectos a cultura é, na verdade, um modo de
reprodução. O que é verdade sobre “uma cultura”, em seu nível mais geral –
o fato de jamais ser uma forma em que as pessoas estão vivendo num certo
momento isolado, mas sim uma seleção e organização, de passado e
presente, necessariamente provendo seus próprios tipos de continuidade -,
é também verdade, em diversos níveis, sobre muitos dos elementos do
processo cultural (WILLIAMS, 1992, p. 182 – grifo meu).
Ora, se considerarmos que um legado cultural envolve formas, sinais, convenções e
linguagem, então podemos dizer que estes elementos existem se podem ser reproduzidos.
A tradição, em si, não nos remete necessariamente a experiências mortas e paradas no tempo
histórico. Williams corrobora esta idéia ao dizer que a tradição é uma reprodução em ação e
um processo de reprodução deliberada, um tipo de seleção desejada de elementos
significativos recebidos do passado (WILLIAMS, 1992).
Jean-Claude Forquim (1993) faz uma análise muito pertinente no que se refere ao
processo de seleção e perpetuação da cultura, porém utiliza o termo ‘transmissão cultural’ em
vez do termo ‘reprodução cultural’ utilizado por Williams, mas os sentidos de ambos os
termos em muito se assemelham.
73
Para Forquim, a relação entre cultura e educação é intrínseca, orgânica, pois o que
justifica a existência de instituições educacionais, como a escola, é exatamente a sua função
de transmissão cultural: toda educação pressupõe a comunicação, transmissão ou aquisição de
conhecimentos, hábitos, valores que compõem a substância ou conteúdo da educação.
Esse conteúdo da educação que a escola transmite é sempre algo que já existia antes de
nós, que nos antecede, nos excede e nos designa enquanto sujeitos humanos. Tal conteúdo,
por sua dimensão e significado, pode ser considerado, então, como cultura (Forquim, 1993).
A acepção de cultura, neste sentido, precisa ser esclarecida. Forquim utiliza o termo cultura
não em sua definição perfectiva’, ‘elitista’, isto é, referente apenas àquelas disposições e
qualidades típicas do espírito cultivado, ao que ele se refere como o
amplo leque de conhecimentos e de competências cognitivas gerais, uma
capacidade de avaliação inteligente e de julgamento pessoal em matéria
intelectual e artística, um senso de “profundidade temporal” das realizações
humanas (FORQUIM, 1993, p. 11).
O autor também não vê a cultura somente em sua acepção descritiva e objetiva,
predominante nas ciências sociais, ou seja, como “o conjunto de traços característicos do
modo de vida de uma sociedade, de uma comunidade ou de um grupo” e que compreende
tantos os aspectos cotidianos e triviais quanto os mais “inconfessáveis”. Assim, ao falar da
função de transmissão cultural da escola, Forquim nem se refere a uma noção de cultura tão
restritiva como a “perfectiva” e nem tão ampla, como dá a entender o ‘modo de vida global’.
A cultura a que Forquim se refere na função de transmissão pela educação é
um patrimônio de conhecimentos e competências, de instituições, de valores
e de símbolos, constituído ao longo de gerações e característico de uma
comunidade humana particular, definida de modo mais ou menos amplo e
mais ou menos exclusivo (Idem, pág. 12).
Com isto, Forquim quer dizer que a escola transmite uma determinada cultura, aquela
desejável, a que tem utilidade e valor aos seus propósitos. Deste modo, por um lado, alguns
componentes da cultura ‘perfectiva’ ou da cultura ‘sociológica’ podem não ser necessários à
cultura que a escola transmite, enquanto que outros aspectos da cultura são esquecidos com o
passar do tempo ou aprendidos espontaneamente; por outro lado, alguns aspectos da cultura
devem ser deliberados e obrigatoriamente transmitidos pela escola.
74
O que justifica fundamentalmente, e sempre, o empreendimento educativo é
a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a experiência humana
considerada como cultura, isto é, não como a soma bruta (e, aliás,
inimputável) de tudo o que pode ser realmente vivido, pensado, produzido
pelos homens desde o começo dos tempos, mas como aquilo que, ao longo
dos tempos, pôde aceder a uma existência “pública”, virtualmente
comunicável e memorável, cristalizando-se nos saberes cumulativos e
controláveis, nos sistemas de símbolos inteligíveis, nos instrumentos
aperfeiçoáveis, nas obras admiráveis, (Idem, p.14 – grifo meu).
Isto nos remete à idéia de que um tipo de seleção no interior da cultura e uma
‘reelaboração dos conteúdos da cultura’ a serem transmitidos pela escola às novas gerações.
Ora, se partirmos do conceito de que a cultura é heterogênea, imperfeita, submetida a
‘relações de forças simbólicas’ e de ‘conflitos de interpretação’, não poderemos jamais
afirmar que a escola transmite uma cultura única ou várias culturas verdadeiras. Transmite
sempre ‘parcelas’ da cultura, de conhecimentos, de valores, enquanto que outras ‘parcelas’
são rejeitadas.
Além de selecionar e/ou abandonar elementos de uma tradição cultural que se
constituíram e se preservaram ao longo das gerações, a seleção que a escola realiza também
envolve, ainda que restritamente, os elementos da cultura que está sendo vivida na atualidade;
“esta seleção cultural escolar é também, e até mesmo mais ainda, em relação ao estado de
conhecimentos, das idéias, dos hábitos, dos valores que se desenrolam atualmente no interior
da sociedade” (FORQUIM, 1993, p. 15), e sofre influência direta dos interesses em jogo no
contexto social maior.
Pierre Bourdieu (1981) também analisou a função da escola relacionada à cultura. Este
autor considera que a instituição escolar exerce a função de ‘integração cultural’, ou seja, a
cultura escolar propicia “aos indivíduos um corpo comum de categorias de pensamento que
torna possível a comunicação”. Deste modo, é graças à escola que os indivíduos recebem “um
repertório de lugares-comuns”, o que envolve não só os discursos e linguagens comuns, como
também os “terrenos de encontro e acordo, problemas comuns e maneiras comuns de abordar
tais problemas” (p. 205-207).
Para Bourdieu, é o conjunto de questões/problemas discutido em determinada época
que determina ou caracteriza as gerações intelectuais e culturais e que, conseqüentemente,
marca o campo cultural de uma sociedade. Este campo cultural, porém, não é estático; ele
modifica-se sucessiva e constantemente e, neste processo, alguns temas ou problemas passam
a ser discutidos com prioridade, enquanto que outros são eliminados. Essa é a tônica das
relações comunicativas entre as gerações intelectuais e culturais.
75
Mas a cultura não seria somente “um código ou repertório comum” de respostas aos
problemas sociais de um tempo, indo além.
Ela constitui um conjunto comum de esquemas fundamentais, previamente
assimilados, e a partir dos quais se articula, segundo uma “arte da invenção”
análoga à da escrita musical, uma finidade de esquemas particulares
diretamente aplicados a situações particulares (BOURDIEU, 1981, p. 208).
Deste modo, a aprendizagem escolar fornece aos alunos este conjunto de ‘esquemas
fundamentais’ que o orientar a escolha e obtenção de esquemas subseqüentes. Com isto,
Bourdieu ressalta que o sistema de esquemas de pensamento não se caracteriza apenas por sua
natureza constitutiva ou por seu grau de consciência e atuação, mas é também, e
prioritariamente, aprendido inconscientemente na escola.
Um pensador participa de sua sociedade e de sua época, primeiro através do
inconsciente cultural captado por intermédio de suas aprendizagens
intelectuais e, em especial, por sua formação escolar [...]. Enquanto “força
formadora de bitos”, a escola propicia aos que se encontram direta ou
indiretamente submetidos à sua influência, não tanto esquemas de
pensamento particulares e particularizados, mas uma disposição geral
geradora de esquemas particulares capazes de serem aplicados em campos
diferentes do pensamento e da ação, aos quais pode-se dar o nome de habitus
cultivado (Idem, p. 210, 211 – grifo meu).
No caso da análise de Bourdieu, uma ênfase nos aspectos cognitivos, na
organização lógica do pensamento, um enfoque dessemelhante das análises de cunho social
feitas por Williams e Forquim. Mas parece haver uma convergência de opiniões entre estes
autores no que se refere a “algo de comum” que deva ser ensinado, transmitido ou integrado
pela escola.
Mais especificamente em Bourdieu, a escola efetua uma organização hierárquica, do
mesmo modo como se realiza na sociedade em geral, dos saberes a serem estudados, que são
encorpados nas estruturas de pensamento que os indivíduos recebem no decorrer de sua
aprendizagem intelectual. Ao fazer assim, a escola valoriza certos aspectos da realidade,
aqueles que possuem aceitabilidade ou, como nos disse Forquim, “aqueles desejados”.
Embora para Bourdieu a realidade não seja algo absoluto, mas por intermédio do
‘conteúdo’ ou ‘conhecimento’ que seleciona, a escola “ordena toda a experiência do real e
todo o real” (BOURDIEU, 1981, p. 213), isto é, fornece a base e os critérios dessa ordenação
e ensina como realizá-la. Isso quer dizer que a escola realiza integrações, define ‘itinerários,
métodos e programas’. A escola, então, impõe uma ordem de exposição da cultura que é por
76
ela transmitida, infligindo-se como “necessária à consciência dos que adquirem a cultura
segundo essa ordem” (Idem, p. 214).
O processo de integração a uma cultura geral deveria ser proporcionado aos indivíduos
independentemente de classe ou origem. Segundo Bourdieu, a escola tem tentado se organizar
progressivamente de acordo com as diferentes atividades profissionais, e conseqüentemente
com os diferentes grupos culturais, para as quais oferece uma formação.
No entanto, de modo geral, é a ‘classe cultivada’, uma espécie de elite orgânica, que em geral tem sido
integrada com mais veemência à cultura geral ou comum.
Isso se especialmente porque a transmissão da cultura comum nesta classe se
transversalmente pela escola e pela família, comumente formada por cientistas ou pessoas
com formação literária. E é esta facilidade de penetração na cultura comum, quer se trate de
esquemas verbais, admirações ou experiências artísticas, que se torna o fator essencial de
união e cumplicidade entre os membros da classe cultivada ou dominante em relação às
classes em diferente condição profissional e econômica.
De certo modo, ocorre que o ensino especializado, diversificado, baseado em
conhecimentos específicos e voltado para diferentes profissões, acaba sendo destinado apenas
às classes mais favorecidas em sentido econômico e cultural. E dado que, segundo Bourdieu,
a transmissão cultural reafirma necessariamente o valor da cultura transmitida, logo,
conseqüentemente, há desvalorização, manifesta ou não, de outras culturas.
Deste modo, a classe cultivada e favorecida economicamente tem sua própria cultura
afirmada pela escola em dois sentidos: através da educação baseada num programa geral de
pensamento e ação da cultura comum, e pela formação e ensino diferenciado. E os que
recebem uma formação baseada no que Bourdieu chama de “hemiplegia cultural”, além de
terem esta cultura hemiplégica reafirmada, passam conseqüentemente a relacionar o seu
próprio valor com o de sua cultura, o que os leva a ver a cultura da classe cultivada como
estranha e concorrente, chegando até mesmo, a desprezar a sua própria cultura, pois
a relação que um indivíduo mantém com sua cultura depende,
fundamentalmente, das condições nas quais ele a adquiriu, mormente
porque o ato de transmissão cultural, é, enquanto tal, a atualização exemplar
de um certo tipo de relação com a cultura (BOURDIEU, 1981, p. 218, 219).
Mas a escola faz mais do que efetivar a diferenciação entre a classe cultivada e as
demais classes; ela também separa os que recebem a cultura erudita do restante das parcelas
da sociedade por meio de uma série de ‘diferenças sistemáticas’ que envolvem um “sistema
77
de categorias ou percepção, de linguagem, de pensamento e de apreciação” que os distinguem
daqueles que tiveram acesso à aprendizagem veiculada a um ofício ou transmitidas pelo
convívio social com seus pares (BOURDIEU, 1981).
Bourdieu até cogita a possibilidade de contrapor a cultura erudita, reservada aos que
desde bem jovens cursaram a escola, à cultura popular, dos que não tiveram acesso à escola
ou que cursaram apenas a escola primária. Porém, considera que, se assim o fizesse, deixaria
de considerar o fato de que a cultura dita popular não era vista como uma cultura autêntica e
real, pois não possuía objetivação, isto é, ‘obras populares’ que lhe dessem o suporte, de
esquemas de pensamento e linguagem, para definir sua sustentabilidade como cultura, não
não possuia tal objetividade como nem mesmo tinha intenção de criá-la.
De modo geral, podemos assim sintetizar o papel da escola na integração cultural em
Bourdieu: a escola deve permitir, através de sua organização e dos conteúdos que seleciona, a
estruturação de um senso comum que é condição básica para a comunicação entre os homens;
a partir da aquisição deste senso ou cultura comum, os individuos adquirem um corpo de
categorias de pensamento que lhes permite refletir sobre os problemas e grandes questões de
sua época e pensar sobre as soluções para os mesmos.
Assim como Bourdieu e Forquim, Williams reconhece a necessidade de se preservar e
reproduzir a cultura comum de uma época passada ou presente. Fala-nos que instituições,
especialmente as de pesquisa e educação, que devem estar formalmente preocupadas em
manter a tradição cultural viva, comprometendo-se com a tradição como um todo, e não com
algumas seleções de acordo com interesses contemporâneos. Williams a necessidade de
criar instituições acadêmicas e eruditas com a função de conservar a memória do passado
mais próxima possível do que ela originalmente significava e não tão “influenciada” pelo
momento presente.
Sugere Williams, instituições cujo papel seria o de preservar uma memória
do passado o mais estável e objetiva do que aquela governada unicamente
pelos interesses ou pelas orientações momentâneas do presente e graças às
quais devem e podem ser “redescobertos” os elementos esquecidos ou
incompreendidos da herança: são as instituições acadêmicas e eruditas. A
estes conservatórios da memória coletiva, a sociedade deveria conceder
toda a autonomia e todos os recursos necessários, ao invés de depreciá-los
ou de sujeitá-los, em nome de uma concepção estreita da pertinência ou da
eficácia (FORQUIM, 1993, p. 35).
Deste modo, a educação na perspectiva de Williams está diretamente envolvida nos
processos de tradição seletiva e de reprodução cultural. Para Williams, “a educação é uma
78
portadora e organizadora muito eficiente da tradição” (1992, p. 185) e, em geral, os sistemas
educacionais são revestidos da função de reproduzir uma cultura ou conhecimento.
É razoável, pois, em dado nível, falar do processo educacional geral como
forma precisa de reprodução cultural, a qual pode estar vinculada à
reprodução mais abrangente das relações sociais em vigor, a qual é
garantida pelo direito de propriedade e por outras relações econômicas,
instituições estatais e outras forças políticas, e formas religiosas e familiares
existentes e auto-perpetuadoras. Ignorar esses vínculos é subordinar-se à
autoridade arbitrária de um sistema que se proclama autônomo
(WILLIAMS, 1991, p.184).
No entanto, o que ocorre em cada período histórico é a transmissão seletiva de uma
variação específica de conhecimento e de cultura, baseada na tônica das relações sociais. Diz-
nos Williams:
Ela [a tradição] se assemelha a educação que é uma seleção equivalente de
conhecimento desejado e de modalidade de ensino e autoridade. É
importante salientar, em cada caso, que esse “desejo” não é abstrato mas
efetivamente definido pelas relações sociais gerais existentes (1992, p. 184-
5).
Além de chamar a atenção para a relação entre a organização institucional da escola e
a organização mais ampla e geral da cultura e da sociedade, Williams levanta o debate sobre o
papel dos conteúdos escolares no processo de reprodução cultural, já que “o acesso ao
conhecimento e em particular a sua distribuição geral é socialmente mediado e, em alguns
casos, diretamente controlado” (Idem, 1992, p. 186).
Isto se torna explícito na organização curricular, nas modalidades de triagem dos que
devem ser formados e de que modo e nas próprias acepções da autoridade pedagógica. O
processo de tradição seletiva que se em nível da sociedade geral também influencia a
seleção dos conteúdos que compõem o currículo escolar.
Com isto queremos dizer que ao invés de explanar as diferentes modalidades de
cultura resultantes das diversas relações sociais, a educação através do currículo tem
selecionado apenas alguns aspectos culturais, em geral aqueles ligados à cultura
predominante, suprimindo outros. Neste caso, a cultura o tem influenciado a maneira
como a escola irá selecionar os conteúdos como também ela própria é elemento de seleção
dos conteúdos curriculares.
79
Em Williams entendemos que ao currículo cabe o papel de discutir os conhecimentos e
saberes que compõem a herança cultural, aqueles que são produzidos e reproduzidos nas
experiências vividas pelos diferentes grupos culturais. É somente através do acesso a esta
tradição cultural que os variados agrupamentos humanos poderão dar novos sentidos e
ressignificar aqueles “recebidos” pelas gerações anteriores.
Os processos de reprodução e de tradição não são vistos em sua acepção simplória e
negativa por Williams, antes são tidos como inerentes ao processo cultural. Nenhuma geração
é totalmente autônoma em sentido cultural, quero dizer, sempre existirão valores que foram
transmitidos para outras gerações e que ainda se mantém vivos, embora de modo precário.
Mas esses mesmos valores passam por processos de reformulações, de reestruturações.
É a experiência vivida e as relações sociais praticadas que irão permitir as continuidades ou
descontinuidades nas tradições culturais. O que acontece, porém, é que em geral, a seleção
dos conhecimentos curriculares tem expressado o resultado de uma triagem da cultura que é
mais conveniente e que corresponde aos seus interesses de determinado grupo social.
O processo de tradição seletiva, porém, não se restringe a um determinado grupo.
Todos os grupos sociais fazem seleções culturais, recriam seus valores, num processo
desejado e contínuo. E o currículo deve representar todas as seleções feitas pelos diferentes
grupos sociais. Discutindo como os saberes são produzidos e reproduzidos nas diferentes
culturas, o currículo sai do plano da cultura única e soberana e chega ao palco das culturas
diferentes.
Como vimos em Williams, todo sistema educacional sempre remeterá a processos de
seleção; o currículo é seleção, mas essa seleção comporta algo de arbitrário. Isso faz também
pressupor o questionamento da escola e traz à tona a idéia de que a memória cultural é um
tipo de reinvenção.
Se a cultura é permeada pelos processos de reprodução e produção, de seleção e
interpretação, de tradição e de transformação, então podemos dizer que o currículo, dada a sua
intrínseca relação com a cultura, também cria e recria, elege e dissemina, conserva e altera.
Há, portanto, diversos graus de autonomia e de mudança subjacentes ao processo educativo
que não podem ser ignorados, de modo que a educação não seja resumida a um simples
processo de reprodução, de fato, “constitui uma retificação necessária a qualquer idéia
simplória de educação como reprodução cultural (Williams, 1992, p. 184). Pois, afinal,
cultura envolve:
80
aqueles modos de ser e aquelas obras dinâmicas e concretas em cujo interior
não apenas continuidades e determinações constantes, mas também
tensões, conflitos, resoluções e irresoluções, inovações e mudanças reais
(WILLIAMS, 1992, p. 29 – grifo meu).
Assim, a experiência humana é composta por construções, interpretações que não são
únicas e verdadeiras, mas subjetivas, relativas, políticas. E o currículo também não é
homogêneo, estático, antes, é permeado por relações históricas, sociais e políticas, constitui-se
de valores, significados e sentidos múltiplos e híbridos, embora muitas vezes suprimidos por
um currículo oficial que ainda se prende a uma cultura única e “superior”.
3.3. Conhecimento e Currículo nos Estudos Culturais
Partindo da concepção de cultura em Williams, podemos conceber um currículo que
problematiza as formas de transmissão, apropriação e legitimação dos saberes escolares,
questionando as disciplinas e metodologias que expressam visões particulares, significados
próprios a uma determinada cultura, na disputa pela manutenção do poder.
A educação que concebe o currículo como resultado de seleções sociais, em que
interesses diversos se altercam e na qual a diferença existe por si própria, não pensará um
currículo fechado em suas disciplinas e metodologias mortas, paradas no tempo, não
“abafará” as diferenças em nome de uma equidade ilógica.
Perceber que o conhecimento corporificado no currículo não é neutro, pois é resultado
de escolhas culturais tomadas por determinados grupos, não significa dizer que as seleções
devem ser descartadas. Dada a amplitude de experiências e conhecimentos que constituem a
cultura e as limitações de tempo na dinâmica da instituição escolar, a seleção torna-se
extremamente necessária. “Os professores podem ter hierarquias de prioridades divergentes,
mas todos os professores e todas as escolas fazem seleções de um tipo ou de outro no interior
da cultura” (LAWTON, 1975, p. 6, citado por FORQUIM, 1993, p. 25).
Portanto, talvez seja mais oportuno direcionar a discussão para a análise de como estas
seleções são feitas, que critérios são empregados e por quê. A organização curricular deve
permitir que professores e alunos identifiquem, negociem e participem nestas seleções, que
reflitam acerca dos interesses envolvidos, de como os grupos sociais lutam pela supremacia
de suas próprias seleções culturais, que se percebam como agentes fundamentais no jogo de
poder que perpassa as dinâmicas culturais.
81
Nesta perspectiva, a escola e o currículo não são concebidos como simples
intermediadores de conhecimentos ou de internalização de valores e normas de uma cultura
tida como superior, pois o processo de conhecimento “passa a ser visto como
processo/produto de negociações intersubjetivas conflitivas [...] e os sujeitos passam a ser
vistos como criadores de significados em relações socialmente construídas”
(SILVA
, 1998, p.
113).
Como vimos anteriormente, sob o prisma culturalista, a realidade é uma construção, as
interpretações não são únicas e verdadeiras, mas subjetivas, relativas, políticas. Assim, a
cultura também não é homogênea, estática e única, antes, constitui-se de significados e
sentidos múltiplos e híbridos, permeados por relações históricas, sociais e políticas.
Referente ao conhecimento escolar, a teoria culturalista tem se proposto a pensá-lo de
um modo diferente, isto é, como produção, criação, invenção. Os textos curriculares são
vistos permeados pelas diferenças culturais, por relações de poder, e a escola não é apenas
um espaço de reprodução, mas um poderoso instrumento de criação: de identidades,
subjetividades e representações. Reconhece que sentidos e valores são atribuídos, padrões são
ensinados, aprendidos e solidificados nas formas de pensar e de sentir dos alunos.
Neste sentido, no que se refere à noção de conhecimento nos Estudos Culturais, todos
os essencialismos, as coisificações e os reducionismos são descartados, pois o meio social não
é tido como estático e passivo e os homens circulam constantemente ao interagir uns com os
outros, num processo de produção inconstante e imprevisível.
Isso quer dizer que ao lidarem com o conhecimento, os homens ainda possuem ou
sempre possuíram a capacidade de criar, de “fazer surgir” e não estão nem nunca estiveram
condenados à ‘mera’ reprodução, como ainda é costume de alguns ajuizar. Partir de tal
premissa nos leva a pensar que o conhecimento e o currículo também estão “vivos”, isto é,
criam, inventam, produzem.
Esta conclusão nos leva a uma outra questão: o que envolve tal produção e o que é
produzido? Uma resposta única o pode ser dada a tal indagação, porém alguns aspectos
podem ser analisados no intuito de “abrir” caminho para possíveis respostas.
Considerar o conhecimento e o currículo como processos de produção envolve
reconhecer que ambos atuam na esfera da significação e, portanto, abarcam “relações sociais
hierárquicas, assimétricas, [...] relações de poder” (SILVA, 2001, p. 16). Se atuam no campo
da significação e da produção, isso nos diz também que produzem sentidos não fixos, mas
mutáveis e constantemente submetidos à ressignificações.
82
Os significados produzidos nas relações sociais se corporificam e se organizam em
estruturas lingüísticas, compondo os textos e discursos que constroem conhecimento. Assim,
o currículo é uma fábrica que produz cultura e culturas, produz identidades variadas e
diferenças, produz também indivíduos e sujeitos específicos. De modo que “o currículo pode
se visto como um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a
sociedade, nos constitui como sujeitos – e sujeitos também muito particulares” (SILVA, 1995,
p. 195).
Dizer que o currículo é composto de discursos e narrativas que possuem um poder
criativo significa dizer que a linguagem aqui não é concebida como simples expressão oral da
realidade e dos fatos, antes é vista como um processo lingüístico que cria e sentidos às
coisas, produz significados, forma redes e práticas de significação (WORTMANN e VEIGA-
NETO, 2001).
Portanto, os indivíduos não são vistos como paralisados frente aos códigos e
convenções lingüísticas, e a linguagem não é tida como um sistema coerente, organizado,
contável, composto de regras e de sistemas fixos, estruturais. A língua é vacilante, produz
diferenças e a linguagem é composta de estruturas instáveis, de signos cujo sentido é sempre
um devir, um adiamento.
A produção da linguagem se no nível das representações, e a representação é um
fator fundamental na produção da diferença e da identidade. Segundo Silva, a representação é
“um processo de produção de significados sociais através dos diferentes discursos” (1995, p.
199). Nesta lógica, os significados não são pré-existentes e os signos não possuem qualquer
sentido se considerados isoladamente; ambos fazem parte de um encadeamento instável de
sentidos e de elementos simbólicos que se inter-relacionam e produzem, por fim, as diferenças
e as identidades.
A diferença é um processo no qual tanto a identidade quanto a diferença são
produzidas e, no jogo do poder, as identidades e as diferenças são ora impostas, ora
disputadas, ora produzidas ou reproduzidas (SILVA, 2000).
Como produto e criação social, a identidade e a diferença configuram-se como
questões autênticas de conhecimento, pois, através delas, significados e sentidos são
atribuídos e legitimados. Em suas representações, o conhecimento está permeado de conceitos
e pré-conceitos, valores e desvalores, crenças e descrenças, enfim, de representações, sentidos
e significados que tentam fixar, classificar e normalizar identidades, reforçando, ao mesmo
83
tempo, os binarismos nós/eles, branco/negro, feminino/masculino, entre outros. Como bem
nos diz Silva:
A política curricular define papéis [...], redistribuindo funções de autoridade
e de iniciativa. Ela determina o que passa por conhecimento válido e por
formas válidas de verificar sua aquisição. [...] efetua um processo de
inclusão de certos saberes e de certos indivíduos, excluindo outros (SILVA,
2001, p. 11, 12).
Mas outros caminhos, outras saídas, direções onde o currículo não reproduz e
reforça. Silva destaca a necessidade de uma teoria pedagógica que descreva e explique o
processo de produção do conhecimento, que crie estratégias, instrumentos e mecanismos que
questionem, que discutam como as identidades e diferenças são fabricadas. Que levem os
estudantes a “explorar as possibilidades de perturbação, transgressão e subversão das
identidades existentes” e estimulem “o impensado, o arriscado, o inexplorado e o ambíguo”
(2000, p. 100), que deixe a diferença continuar fazendo o seu trabalho, isto é:
Possibilitar o acontecimento em um currículo! Deixar vazar! Fazer
matilhas! Contagiar! Possibilitar um outro currículo; um currículo que
pense com a diferença para ver, sentir e viver a vida em sua proliferação.
Experimentar em um currículo: fazer currículo sem medo e sem programa.
Arriscar! Com certezas e precauções, é claro! Aventurar-se: aventurar junto
com outras pessoas. Partilhar: coisas, afectos, sensações, desejos,
aprendizagens [...] (PARAÍSO, 2005, p. 2005).
.
Ainda uma pergunta a ser respondida: o que faz então uma escola e um currículo,
baseados no conhecimento tal como é concebido nos Estudos Culturais?
É preciso, em primeiro lugar, entender que o conhecimento escolar, no enfoque dos
Estudos Culturais, insere-se tanto numa dimensão múltipla quanto contraditória. Ou seja, este
conhecimento comporta tanto os saberes de uma cultura comum, quanto os saberes das
diferentes culturas. Precisamos, porém, esclarecer quais são os limiares entre esses dois tipos
de conhecimento, se é que se pode definir fronteiras fixas neste caso.
O conhecimento comum, baseado numa cultura comum, é aquele construído
coletivamente nas experiências vividas por uma geração cultural passada ou atual; são aqueles
que promovem aos alunos elementos essenciais para a conexão com o meio social, no sentido
de lhes permitirem questionar seu contexto e transformá-lo. Mas este conhecimento não é
homogêneo e nem exclusivo de determinada classe, embora as tentativas de impor tal idéia
84
sejam fortes; quero dizer que algumas classes criam e reforçam a idéia de que são as únicas
detendoras da cultura comum.
Ao trazer conhecimentos da cultura comum para serem ensinados, a escola está
colocando aos alunos a maneira como esta cultura foi produzida num determinado momento
histórico, e, ao mesmo tempo, mostrando em que aspectos ela se manteve e em quais ela foi
modificada. Assim, estará proporcionando condições para que estes alunos explorem suas
habilidades mentais para compreender as limitações e possibilidades em que tal cultura foi
produzida.
A idéia de um conhecimento comum não é paradoxa ou excludente em relação aos
conhecimentos múltiplos. Ora, em cada cultura elementos e experiências que constituem
saberes próprios, específicos àqueles grupos. Porém, os grupos culturais não constituem
guetos isolados; os grupos sociais interagem, assim, as culturas interagem. Desse modo, os
diferentes grupos sociais contribuem para a construção de experiências, valores, sentimentos
comuns entre eles, ao mesmo tempo em que “mantém” aqueles que são próprios a cada um.
Deste modo, vejo que o faria sentido a escola excluir determinados conhecimentos
do currículo sob o argumento de que são “eruditos”, e que logo pertencem a uma cultura
dominante ou dar excessiva ênfase a esses conhecimentos por supostamente serem “eruditos”.
Nenhum grupo ou classe social é proprietário exclusivo da cultura que foi construída
coletivamente em dado período.
Não como definir certos conhecimentos como válidos e verdadeiros, enquanto que
outros são considerados supérfluos e irrisórios. À escola cabe a tarefa de pensar possibilidades
de acesso às diferentes culturas, não no sentido de incluir em seu calendário datas exclusivas
para explaná-las, mas no sentido de permitir que os alunos compreendam que diferenças e
semelhanças entre uma cultura e outra, e que elas existem em relações de disputa por
posições, que o conhecimento que aprendem é carregado de interesses particulares inerentes
tanto à sua própria cultura quanto às outras. Para isso, é necessário que os alunos conheçam a
cultura de outros grupos e a história de sua própria cultura, num processo de interação e
alteridade.
Enfim, não nos deve escapar o fato de que o conhecimento comum que a escola
transmite é aquele que passou pela ‘peneira’ de diversas gerações. Este conhecimento inclui,
inegavelmente, interesses de poder vinculados à organização social e econômica como um
todo, mas também inclui conhecimentos ‘éticos, estéticos e epistemológicos’ que foram
organizados historicamente e que são importantes para compreender e modificar a cultura
vivida em uma época passada ou presente.
85
4 - CULTURA E CONHECIMENTO NOS ESTUDOS CULTURAIS PELA
VIA DO GT DE CURRÍCULO DA ANPED.
4.1. Primeiras Impressões
Incursionando pelas trilhas do GT de Currículo da ANPEd e percorrendo sua trajetória
no início do século XXI, muitos encontros com a cultura foram provocados. Percebi que
parcela significativa dos textos publicados neste GT tem sido eminentemente balizada por
discussões curriculares no enfoque da cultura em suas mais diversas acepções e o
conhecimento logo aparece em proporção significativa, afinal, como ressalta Silva (2001, p.
2), “o componente mais óbvio de uma teoria de currículo tem a ver com a questão do
conhecimento”. Deste modo, como falar em currículo sem ventilar o conhecimento?
Nesta seção, antecipadamente à apresentação e análise dos dados empíricos, faço uma
breve introdução na qual constam algumas considerações metodológicas que julguei
necessário aqui estarem, para justificar as opções de seleção e classificação utilizadas no
apuro dos dados, principalmente por estar realizando um trabalho de pesquisa com análise de
textos que não possuem territórios definidos, fronteiras fixas e que, muitas vezes, situam-se
no espaço-entre uma perspectiva teórica e outra.
Assim, tendo em foco minhas duas categorias de análise cultura e conhecimento
iniciei o trabalho de colheita dos dados fazendo um levantamento de todos os textos em que
os termos cultura e conhecimento são acionados no GT de Currículo da ANPEd no período de
2000-2006 e, com base nesta triagem inicial, organizei o quadro abaixo que apresenta,
inicialmente, o número de textos em que as palavras cultura e conhecimento são acionadas
como ferramentas analíticas.
QUADRO 2
Textos que acionam cultura e conhecimento em suas análises / GT-12
Ano Nº. de Pôsteres
Publicados
Acionam
Cultura e
Conhecimento
Nº. de Trabalhos
Completos Publicados
Acionam Cultura e
Conhecimento
2000
3
1 15 14
2001
8
6 17 12
2002
4
2 10 9
2003
3
1 13 11
86
Ano Nº. de Pôsteres
Publicados
Acionam
Cultura e
Conhecimento
Nº. de Trabalhos
Completos Publicados
Acionam Cultura e
Conhecimento
2004
3
1 12 8
2005
8
6 18 14
2006
6
4 11 10
Total 35 21 96 78
Em cada texto lido neste GT, os debates aguçavam curiosidades intrigantes que
remetiam a diversas direções e possibilidades de análise, porém, não poderia perder de vista a
minha intenção de dialogar com estas produções e a necessidade de focalizar a atenção apenas
nos textos inseridos no campo dos Estudos Culturais, pois numa leitura inicial, em virtude da
ênfase dada à questão cultural, muitos textos que abordam a cultura em sua relação com o
conhecimento poderiam ser dispostos como fazendo Estudos Culturais.
Quero dizer que, ao realizar a leitura inicial dos textos, tive a impressão primeira de
que parte significativa deles serviria como material de análise, dada a presença constante nos
mesmos de reflexões em torno da cultura, dos saberes, de temáticas comuns ao campo dos
Estudos Culturais, tais como cultura popular, identidade, poder, entre outras, e a freqüência
expressiva de teóricos de referência do campo.
Porém, pensando mais densamente nas proposições que alguns destes textos fazem e
comparando com os textos de autores consagrados no campo teórico dos Estudos Culturais,
cheguei à conclusão de que nem todos eles poderiam ser incluídos neste campo teórico, dado
o caráter prescritivo, normativo e bipolar que muitos destes possuíam.
Deste modo, o mesmo desafio apresentado pela literatura no sentido da definição do
que são os Estudos Culturais encontrei ao tentar definir os trabalhos que se inserem neste
campo. Afinal, o fato de os textos acionarem a discussão em torno da cultura e do
conhecimento não os insere automaticamente no campo dos Estudos Culturais. E embora o
campo teórico dos Estudos Culturais seja matizado de acordo com uma série variada de
perspectivas teóricas, algo que caracteriza suas análises a centralidade na discussão da
cultura no campo da significação social, sem binarismos, tais como alta cultura e baixa
cultura, e onde os grupos sociais ocupam posições diferentes de poder (SILVA, 2004).
Segundo Silva (2004), “numa definição sintética, poder-se-ia dizer que os Estudos
Culturais estão preocupados com questões que se situam na conexão entre cultura,
significação, identidade e poder (p.134 grifo meu). Partindo desta ‘delimitação’, num
segundo momento procurei identificar no GT de Currículo da ANPEd os textos em que os
87
termos cultura, significação, identidade e poder são acionadas, no intuito de sondar se estes
estariam sendo analisados e com que recorrência.
Pude então verificar que o termo cultura tem maior recorrência de análise nos textos,
seguida da discussão sobre identidade e poder. Um número menor de textos discute a questão
da significação, especialmente no caso dos pôsteres, mas na maioria das vezes em que esta
palavra é acionada está em conexão com a palavra cultura, tanto nos pôsteres quanto nos
trabalhos completos, como mostra a tabela abaixo:
TABELA 1
Freqüência em que as categorias cultura, identidade, significação e poder aparecem
alternadamente nos pôsteres / GT - 12
Ano
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
Nº de Pôsteres
3
8
4
3
3
8
6
Cultura (%)
33%
75%
50%
33%
33%
75%
67%
Identidade (%)
33%
0%
50%
67%
33%
25%
50%
Significação (%)
0%
12%
0%
0%
0%
25%
17%
Poder (%)
33%
12%
50%
0%
0%
50%
33%
Total
35 60% 31% 11% 28%
Dados da Pesquisa
No caso dos trabalhos completos, a freqüência em que são apresentados os termos
cultura, significação, identidade e poder não só é maior como também mais densa e, na
maioria dos textos, a palavra cultura é relacionada ao poder, e, em segundo plano, à
identidade e, por fim, à significação, como podemos observar a Tabela 2:
TABELA 2
Freqüência em que as categorias cultura, identidade, significação e poder são discutidas
alternadamente nos trabalhos completos pesquisados / GT-12
Ano
2000
2001
2002
Nº de Trabalhos
Completos
15
17
10
Cultura (%)
93%
82%
90%
Identidade (%)
53%
59%
50%
Significação (%)
40%
23%
30%
Poder (%)
87%
70%
60%
88
Ano
2003
2004
2005
Nº de Trabalhos
Completos
13
12
11
Cultura (%)
93%
82%
90%
Identidade (%)
53%
59%
50%
Significação (%)
40%
23%
30%
Poder (%)
87%
70%
60%
Total 96 84% 54% 48% 62%
Dados da Pesquisa
Pude, a partir destes dois momentos, montar um panorama em torno da amplitude de
discussões desenvolvidas nos pôsteres e trabalhos completos no GT de Currículo da ANPEd,
em que palavras essenciais ao campo dos Estudos Culturais, tais como cultura, conhecimento,
significação, identidade e poder aparecem com maior ou menor freqüência.
Mas isto representava apenas o primeiro passo para que, por fim, fosse possível chegar
apenas aos textos que discutiam cultura, conhecimento, significação, identidade e poder em
conjunto, estabelecendo conexões entre estes. Isso se fazia necessário principalmente para
classificar os textos que não se nomeavam no campo dos Estudos Culturais.
Foi então que realizei a terceira triagem. Com base nos dados selecionados, e na
indicação de Silva (2000) sobre a preocupação dos Estudos Culturais com a conexão entre
cultura, significação, identidade e poder, identifiquei e selecionei apenas os textos que
discutiam em conjunto tais categorias e pude obter os dados organizados no quadro a seguir:
QUADRO 3
Número de Pôsteres e Trabalhos Completos em que as categorias cultura, conhecimento,
identidade, significação e poder são discutidas em conjunto no GT - 12
Ano
Nº. de
Pôsteres
Pôsteres que acionam
cultura, identidade,
significação e poder
Nº. de
Trabalhos
Trabalhos que acionam cultura,
identidade, significação e poder
2000
3
- 15 4
2001
8
- 17 2
2002
4
- 10 2
2003
3
- 13 3
2004
3
- 12 -
2005
8
1 18 5
89
Ano Nº. de
Pôsteres
Pôsteres que acionam cultura,
identidade, significação e poder
Nº. de
Trabalhos
Trabalhos que acionam cultura,
identidade, significação e poder
2006
6
1 11 4
Total 35 2 96 20
Total de textos publicados = 131
Total de textos que acionam cultura,
identidade, significação e poder = 22
Como é possível constatar nas Tabelas 1 e 2 e no Quadros 3, um número significativo
de textos acionam as categorias cultura, significação, identidade e poder, ora em conexão
umas com as outras, ora analisando-as alternadamente.
No caso dos textos indicados no Quadro 5, estes demonstraram ser os que mais se
aproximam do campo dos Estudos Culturais, porém mesmo entre estes era preciso lançar um
‘olhar’ mais específico e fazer classificação mais circunscrita
26
,
7
de modo a extrair aqueles em
que os autores anunciavam textualmente como inseridos no campo dos Estudos Culturais e
aqueles que discutiam de modo consistente cultura, significação, poder e identidade, e que,
portanto, poderiam ser considerados como inseridos neste campo.
Neste sentido, com base em uma leitura mais aprimorada dos textos selecionados e
apresentados no Quadro 4, identifiquei e selecionei seis (6) trabalhos completos e dois (2)
pôsteres em que os autores anunciavam textualmente como inseridos no campo dos Estudos
Culturais e que incluem em suas análises as categorias cultura e conhecimento.
Além disso, foram identificados e selecionados onze (11) trabalhos completos que
discutem cultura e conhecimento e fazem conexão consistente entre cultura, identidade,
significação e poder
27
,
8
e que foram incluídos no material de análise como pertencentes ao
campo teórico dos Estudos Culturais, classificados no quadro na página a seguir como
trabalhos ‘não anunciados nos Estudos Culturais’.
26
A cautela em ser bastante específica na classificação dos textos justifica-se por dois motivos principais. O
primeiro é devido à amplitude do campo teórico dos Estudos Culturais e sua determinação em não fechar’ suas
fronteiras, o que aplicado à seleção dos dados poderia resultar em um número muito grande de textos, o que
fugiria ao enfoque qualitativo desta pesquisa; segundo, porque tentei evitar o risco de situar textos no campo dos
Estudos Culturais à revelia dos seus autores, embora esteja ciente de que todas as classificações incorrem em
algumas arbitrariedades e, que são, evidentemente, responsabilidade de quem as pratica.
27
Apesar de explicitado, reforço que utilizei como critério de identificação e classificação dos textos em que
os autores não anunciavam textualmente como inseridos no campo dos Estudos Culturais - embora no conjunto
do texto e no sentido de suas análises demonstram estar incluídos neste campo - a categorização feita por Silva
(2000), onde este considera que os Estudos Culturais preocupam-se eminentemente em fazer conexões entre
cultura, identidade, significação e poder.
90
QUADRO 4
Pôsteres e trabalhos completos selecionados para análise GT -12
Ano
Reunião
Anual
Pôsteres
2
8
9
Selecionados e
anunciados nos EC
Trabalhos Completos Selecionados
Anunciados nos
Estudos Culturais
Não anunciados nos
Estudos Culturais
2000 23ª RA - 3 1
2001 24ª RA - - 2
2002 25ª RA - 1 1
2003 26ª RA - 1 1
2004 27ª RA - - -
2005 28ª RA 1 1 1
2006 29ª RA 1 - 2
Total de selecionados = 16 2 6 8
Cartografei propositalmente todos os caminhos percorridos na seleção final dos dados
para análise. Minha intenção, neste primeiro momento, foi a de compartilhar com os leitores
deste trabalho de pesquisa os obstáculos encontrados, as possibilidades de superação
sobrepostas, o apuro metodológico empreendido e a responsabilidade assumida pela decisão
metodológica tomada, pois outros caminhos, talvez “mais seguros”, poderiam ter sido
seguidos, mas talvez não dessem conta de me levar ao desígnio a que me propus o de
investigar a importância e consistência analítica que as categorias cultura e conhecimento têm
adquirido nas pesquisas desenvolvidas no campo do currículo no início do século XXI.
Poderia ter sido mais conveniente apenas apresentar os dados finais eleitos para a
seleção, porém, se assim o fizesse, o leitor não poderia dividir comigo outra questão
fundamental: a noção real de instabilidade e incerteza que senti no percurso da seleção dos
textos para análise – qualidades estas que são companheiras constantes das análises no campo
dos Estudos Culturais.
Ora, de fato, as sementes deste campo lançadas da década de 50, que diziam respeito
basicamente à multiplicidade e ordinariedade, germinaram e tornaram-se grandes árvores
frutíferas na atualidade, e estes frutos são pluralidades, desencontros, reinterpretações,
simbologias, artificialidade, e aqueles ‘outros frutos’ são tidos como indesejáveis numa
plantação ‘moderna’. Meus encontros com os textos da ANPEd no campo dos Estudos
Culturais não poderiam, portanto, escapar a esses ‘frutos’.
28
Não foi necessário criar coluna para pôsteres ‘não anunciados nos Estudos Culturais’, porque além dos dois (2)
pôsteres em que os autores assumiam como inseridos neste campo, não foi identificado nenhum outro texto em
que as categorias cultura e conhecimento eram discutidas no contexto da significação, identidade e poder, com
base em Silva (2000).
91
4.2. Cultura e Conhecimentos nos Estudos Culturais: o desvelar dos subsídios
As explanações deslindadas no início deste capítulo revelaram a proliferação da
cultura nos estudos e pesquisas no campo do currículo. Se partirmos do fato de que, de todos
os 131 textos publicados (31 pôsteres e 96 trabalhos completos) no GT de Currículo da
ANPEd no período de 2000 a 2006, 102 acionam a palavra cultura e 99 acionam cultura e
conhecimento no conjunto de suas análises, podemos ter uma idéia da dimensão analítica que
estas categorias têm adquirido no início do século XXI.
Focalizando nosso olhar apenas nos textos que se inserem no campo teórico dos
Estudos Culturais, percebemos uma consistência mais significativa em torno das categorias
cultura e conhecimento. De modo explícito ou tacitamente, estas palavras permeiam o corpo
dos textos analisados concatenadas com outras palavras designativas no campo dos Estudos
Culturais identidade, sentidos, significação, produção, poder, discurso, diferença, práticas,
governo, negociação, subjetivação, interpretação e artefatos, entre outras.
Em meio a estas coligações, as análises mostraram que algumas palavras foram
acentuadas com maior freqüência em consonância com a cultura, como, por exemplo,
produção, significação, práticas, poder e diferença. Chamadas de ‘palavras-chave’ no
Quadro 5, situado na página seguinte, estes termos são muito reveladores e, por isso, servem
como bússola na análise da cultura como é concebida nos textos do GT de Currículo da
ANPEd inseridos no campo dos Estudos Culturais.
QUADRO 5
Palavras-chave e conexões na análise da Cultura / GT 12
Pôster
2
9
10
Autor Palavras-Chave
Conexões
28rapt012005
BARREIROS, D.
Produz
30
11
Sentidos,
Diferenças
A cultura é plural, múltipla e complexa; produz
sentidos e práticas significativas; fabrica diferenças.
29rapt022006
PIONTKOVSKY,
D.
Produção
Sentido
Construção social
A cultura é uma forma de produção irregular e
incompleta de sentido; é uma construção social, um
lugar enunciativo.
29
Para melhor manuseio dos dados, criei um sistema de identificação no qual os dois primeiros números
seguidos das letras ‘ra’ referem-se ao número da Reunião Anual no qual o texto se insere, as letras ‘pt’ etc, em
seguida, significam ‘pôster’ e ‘trabalho completo’ respectivamente, os dois número seguintes referem-se à
numeração dos textos selecionados (de 01 a 16) e os últimos quatro números indicam o ano em que foi publicado
o texto (2000 a 2006).
30
As palavras destacadas em negrito nos quadros indicam as ênfases encontradas.
92
Trabalho
Completo
Autor
Palavras-Chave
Conexões
23ratc032000
CAPPELLETTI,
D. e FEENEY, S.
Produção
Poder
Significação
A cultura se transforma; pode ser entendida em
termos de criação. Produção que se em um
contexto de relações de negociação, relações de
conflito e poder; é uma prática de significação.
23ratc042000
MENDES, L.
Produção
Significação
Poder
Cultura vinculada a formas de vida, linguagens,
instituições sociais, leis, produções materiais e
como inserida num terreno de luta por significação
e poder.
23ratc052000
PARAÍSO, M. Política Cultura envolve uma ação política.
23ratc032000
SOMMER, C.
Significados
Discursividade
Cultura é do domínio dos significados,
representações e discursividade.
24ratc072001
KROEF, A.
Desterritorializada
Diferentes
Cultura é desterritorializada; não cultura, uma
polivicidade de diferentes saberes.
24ratc082001
GARIGLIO, J. Práticas
Política
A cultura impõe certas formas de pressão política e
social; institui práticas e hierarquias.
25ratc092002
MENDES, C.
Práticas
Gerar
Governo
Cultura é um conjunto de práticas governamentais
destinadas a gerar certos tipos de pessoas; gerencia
sujeitos, constituindo formas de governo do ‘eu’.
25ratc102002
RESENDE, T.
Selecionado
Transmitido
Diversa
A cultura é algo a ser selecionado e transmitido pela
escola; é diversa e se transforma.
26ratc112003
OLIVEIRA, V. E
COSTA, C.
Hierárquica
Diferentes
Cultura não é hierárquica; diferentes culturas e
todas são reconhecidas.
26ratc122003
FRANGELLA, R.
Prática
Produtiva
Poder
É prática de significação e sentidos; é prática
produtiva e social e de relações de poder.
28ratc132005
ALMEIDA, C. E
CICILLINI, G.
Sujeitos
Histórico
Constitui sujeitos históricos.
28ratc142005
FRANGELLA, R.
Significados
Regular
Cultura constitui sistemas de significados que os
seres humanos utilizam para significar coisas, para
codificar, organizar e regular suas condutas uns em
relação aos outros.
29ratc152006
MAUÉS, J.
Significação
Diferença
Poder
Identidade
Cultura é do campo da significação e do sentido;
produz diferenças e identidades em conexão com as
relações de poder; é localizada no território da
diferença.
29ratc162006
PASSOS, M.
Interpretações
Dinâmica
Está diretamente relacionada com as interpretações
por parte dos sujeitos; é dinâmica, não-fixada.
Dentre as ‘palavras-chave’ apresentadas no quadro acima, produção, significação e
poder se destacam na maioria dos textos em conexão com a cultura; isso nos leva à
compreensão de que a noção de cultura predominante nos pôsteres e trabalhos completos está
imbricada às noções de produção
31
,
12
significação e poder.
Pode-se dizer que estas palavras-chave - produção, significação e poder - constituem o
tripé no qual as noções de cultura e conhecimento se sustentam, porém outras palavras
aparecem em estreita relação, tais como diferença, política, identidade e prática, e estas
possuem a mesma relevância no contexto das análises desenvolvidas.
31
A palavra ‘gerar’ foi considerada como tendo o mesmo sentido de ‘produzir’ ou ‘produção’.
93
Os termos que mais se conectam à categoria ‘conhecimento’ nas análises
empreendidas nos textos pesquisados são: produto
32
,
13
poder e diferença, como é possível
perceber no quadro abaixo (Quadro 6).
QUADRO 6
Palavras-Chave e conexões na análise do Conhecimento / GT 12
Pôster Autor Palavras-Chave Conexões
28rapt012005
BARREIROS, D.
Neutro
Transformar
O conhecimento não é neutro, e está centralmente
envolvido no que somos, no que nos tornamos e no
que nos transformaremos.
29rapt022006
PIONTKOVSKY,
D.
Negociados
Trocados
Não há separação entre conhecimentos tradicionais e
conhecimentos cotidianos; os conhecimentos são
negociados, trocados.
Trabalho
Completo
Autor
Palavras-Chave
Conexões
23ratc032000
CAPPELLETTI,
D. e FEENEY, S.
Produzido
Não é algo a ser transmitido; assim como a cultura o
conhecimento é produzido.
23ratc042000
MENDES, L.
Poder
Constroem
Vinculado às relações de poder e saber que constroem
e modificam as experiências que os sujeitos m de si
mesmos.
23ratc052000
PARAÍSO, M.
Mídia
Válido
Produto cultural
É selecionado pela mídia daquilo que se considera
importante e válido para ser ensinado as novas
gerações; é um produto cultural.
23ratc062000
SOMMER, C.
Legitimados
Adaptar
Econômico
Social
São saberes legitimados pelas instituições
governamentais para serem ensinados e aprendidos
com objetivo de adaptar a população às mudanças do
sistema econômico e social.
24ract072001
KROEF, A.
Locais
Subjetivações
Diferença
Os saberes são locais e possuem diferentes elementos
que conformam territórios possíveis de construir
subjetivações singulares, criar e afirmar a diferença.
24ratc082001
GARIGLIO, J.
Construções
Ideologias
Poder
Os conhecimentos não são neutros; são construções
sócio-históricas, e atravessados por ideologias e
relações de poder.
25ratc092002
MENDES, C.
Conteúdos
Sujeito
Artefato
cultural
O conhecimento apresenta conteúdos que conectam os
sujeitos a artefatos culturais, como os jogos
eletrônicos por exemplo; tal conhecimento educa um
tipo específico de sujeito.
25ratc102002
RESENDE, T.
Diversificados
Diferentes
Tecnologias
Os conhecimentos são diversificados e diferentes; não
se limitam ao contexto da sala de aula, mas são
também adquiridos por meio das novas tecnologias de
informação.
26ratc112003
OLIVEIRA, V. E
COSTA, C.
Poder
Diferença
Conhecimento e poder estão juntos para reafirmar a
diferença e para interrogá-la.
26ratc122003
FRANGELLA, R.
Produzido
Atitudes
Normas
Os conhecimentos são produzidos, envolvem atitudes,
normas, modos de ser-estar.
32
As palavras ‘artefato’ e ‘construção’ são concebidas no mesmo sentido de ‘produção’ ou ‘produto’.
94
Trabalho
Completo
Autor
Palavras-Chave
Conexões
28ratc142005
FRANGELLA, R.
Governado
Subjetivas
O conhecimento é governado e envolve apropriações
subjetivas.
29ratc152006
MAUÉS, J.
Produzido
Sentidos
Valor
Interpretação
É artificial e produzido. Conhecer é atribuir sentidos,
valorar; não existe em campo neutro e implica sempre
em relações de forças; é uma interpretação particular
dentre as muitas que poderiam ser forjadas.
29ratc162006
PASSOS, M.
Selecionado
Significados
Construídos
É selecionado, normatizado pela escola de acordo com
os significados construídos sobre o que se deseja
ensinar.
Percebemos que tanto a cultura quanto o conhecimento são conectados com maior
ênfase a alguns termos em comum – produção e poder. Isso se dá em decorrência da afinidade
inerente entre estas duas categorias. Determinada concepção de cultura implica em uma
versão de conhecimento correspondente, que o conhecimento, em si, é uma das
manifestações da cultura e, se a cultura produz sentidos num campo de disputa pelo poder,
logo o conhecimento pode ser concebido como um produto cultural resultante das relações de
poder.
A análise que desenvolveremos, a partir de agora, pauta-se nos termos que mais foram
enfatizados nos textos analisados em conexão com cultura e conhecimento. Porém, sabemos
que as demais palavras-chave apresentadas nos Quadros 7 e 8 não são meras coadjuvantes, ao
contrário, contribuem para revelar o sentido peculiar de cultura e conhecimento que cada
autor desenvolve em seu texto e, com certeza, virão à tona assiduamente no bojo das análises
aqui desenvolvidas.
Ao retirarmos os termos em comum – produção e poder – a estas duas categorias, duas
outras aparecem relacionadas a cada uma delas significação relacionada à cultura e
diferença relacionada ao conhecimento. Assim, apenas a título de organização e seqüência de
idéias, iniciaremos a análise pela cultura como prática de significação; em seguida,
apresentaremos a discussão em torno da cultura e conhecimento como produção e poder; e
por fim, cultura e conhecimento em relação ao conceito de diferença. E, porvindouramente,
analisaremos em que temáticas e conjugações teóricas e metodológicas estas duas categorias
têm sido discutidas.
95
4.2.1. O Entrelaçado entre Cultura, Conhecimento, Significação,
Poder e Diferença.
Ao refletirem sobre a cultura inserida no universo da significação, os textos analisados
remetem-na à consideração dos sentidos que homens e mulheres dão às coisas que fazem, às
relações que estabelecem no seu convívio social e às formas de pensamento e maneiras de
resolver os problemas que se defrontam em seu cotidiano.
“Embora a cultura possa ser muitas outras coisas (modo de vida, prática material, etc.),
ela é, também, e fundamentalmente, prática de significação(SILVA, 2001, p. 17 grifo
meu). Porém, os sentidos e significados que constituem os processos de produção e
reprodução da vida social não são tidos como estáticos ou fixos, eles circulam, sofrem
mutações, transformam-se e se materializam.
Silva (2001), autor bastante freqüente na análise da cultura como significação feita
pelos autores dos textos da ANPEd, informa-nos e adverte que o sentido e o significado não
estão soltos; eles se estabelecem e atuam ordenadamente, e também não existem em sentido
ingênuo, visto que são enunciados por e na sua matéria significante – a linguagem. O discurso
e a prática discursiva são a concretização da produção de sentidos e de significados
particulares e convencionais.
Os significados organizam-se em sistemas, estruturas, em relações. Esses
sistemas, essas estruturas, essas relações, por sua vez, apresentam-se,
organizam-se como marcas lingüísticas materiais, como tramas, como redes
de significantes, como tecidos de signos, como textos, enfim (p.18).
Os textos são anunciados pelos sujeitos nas relações que estabelecem entre si e entre
os grupos sociais e, visto que estas relações são múltiplas e inconstantes, da mesma maneira
os textos e discursos são variados e irregulares. Logo entendemos que as substâncias que
compõem tais discursos, isto é, sentido e significado, também possuem um caráter flutuante e
indeterminado. Queremos dizer que na teia das relações entre os sujeitos e na produção dos
discursos e textos, os sentidos e significados se entrelaçam, produzindo e recriando outras
novas marcas lingüísticas, dando sentidos não-fixos às ações humanas.
É neste sentido que, nos textos analisados no GT de Currículo da ANPEd, a cultura é
concebida em seu caráter múltiplo e de prática, porque como significação, ela produz, cria
novas possibilidades de pensar e sentir, consubstancia textos e linguagens que expressam uma
96
variedade quase infinita de percepções, resultantes das múltiplas relações entre grupos sociais
e culturais.
Os teóricos mais acionados na análise da cultura como prática de significação são
Tomaz T. da Silva (2001), Stuart Hall (1997) e Homi Bhabha (2003). Estes fundamentam os
argumentos presentes nos textos analisados de que os seres humanos utilizam sistemas de
significados para edificar, codificar e organizar suas ações e condutas. Atuando no campo da
significação a cultura produz diferenças através de processos simbólicos e discursivos, que
instituem os objetos de que falam e, por fim, instituem a própria realidade discursivamente.
Ao partirem da idéia da cultura como prática e significação e, considerando que os
sentidos e significados se materializam na linguagem e são enunciados através dos discursos,
a questão discursiva também é enfocada na análise da cultura.
O discurso é pensado como materialmente produzido por arranjos sociais, políticos e
econômicos; as regras do discurso assumem o poder de governar o que pode ou não ser dito,
quem pode falar com autoridade e quem deve escutar, e esses processos de apropriação dos
discursos são produzidos e governados por relações de poder.
O discurso, por sua vez, articula poder e saber e é uma série de segmentos
descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável. É desse modo que o discurso
produz efeitos de poder e saber e integra estrategicamente os elementos da conjuntura e as
forças correlatas que tornam necessária a sua utilização.
O governo é a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos (FOUCAULT, 1995); a
governamentabilidade atua com base no conjunto constituído pelas instituições,
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas, são estes que permitem que esta forma
bastante específica e complexa de poder se efetive (FOUCAULT, 2000).
O poder é discutido não como regalia adquirida ou mantida pela classe dominante,
mas como o resultado ou efeito do conjunto de suas posições e movimentações estratégicas,
efeito este manifestado e, ocasionalmente, reconduzido pela posição dos que são dominados
(FOUCAULT, 1999).
Conceber a cultura no campo da significação implica considerar a sua dimensão de
produtividade. Isso se porque os sentidos e significados, como mencionado anteriormente,
formam os sistemas que produzem e reproduzem a realidade da vida social. Esta relação entre
cultura, significação e produção aparece de modo explícito no contexto das análises no GT de
Currículo.
97
Nestes textos, em especial os situados na perspectiva pós-colonialista e pós-
estruturalista, o caráter produtivo da cultura e do conhecimento, em sua relação com o
currículo, é enfatizado não no que tange à produção de sentidos e significados, como
também na produção de diferenças, de relações de conflito e poder, de práticas e produtos
materiais, na produção de sujeitos históricos e de certos tipos de governo do eu’. Os trechos
selecionados abaixo enfatizam a cultura, conhecimento e currículo em seu caráter produtivo.
Pretendemos descolar essa discussão para questões que nos aproximam do
currículo enquanto prática a ser negociada no cotidiano das escolas e
recorreremos a Bhabha [1998] que amplia estas idéias acerca da cultura para
uma forma de produção irregular e incompleta de sentido, sempre produzida
no ato da sobrevivência social. A cultura passa então a ser concebida como
construção social, um lugar enunciativo, como aquilo que constrói a partir
das marcas colocadas pelos sujeitos e não há como negar que o currículo seja
construído a partir dessas significações culturais (29rapt022006 – grifo meu).
Sob esta visão perspectivista e interpretativa, o conhecimento é intimamente
articulado ao que é, em determinados contextos e em meio a determinadas
regras, regimes e relações de poder, considerado verdadeiro e válido.
Contrariamente às visões que remetem esses elementos a qualquer tipo de
correspondência a realidades pré-existentes, sob a perspectiva pós-
estruturalista, conhecimento e verdade são destacados em seu caráter
artificial e produzido (29ratc152005 – grifo meu).
Em relação à análise da cultura e produção de diferença, percebemos duas formas
diferentes de abordagem, as de cunho crítico, referenciadas por Sacristán, Forquime Giroux; e
as de cunho pós-estruturalista, pautadas em Foucault, Deleuze e Guattari. Nesta última, a
produção cultural da diferença não se dá em relação de oposição à igualdade, e as proposições
feitas pelos autores não se voltam para a comparação ou equitação entre as diferentes culturas.
A diferença é concebida em relação a si mesma, sem medições ou parâmetros.
A diferença é afirmada e exercida por não estar em relação a nenhum critério
de igualdade, de medição, de comparação e, por isso, não se constitui como
negação. A diferença aparece em relação à diferença, tornando-se, então,
incomensurável, já que os critérios comparativos desaparecem
(24ratc072001).
Além disso, assim como a cultura, a diferença é concebida como sistemas de
significados que se desenvolvem no campo da ética e não da moral ou do julgamento. A
98
diferença é pensada como experiência de alteridade e deve ser assumida e reconhecida pelos
grupos sociais ao invés de tolerada ou respeitada.
As diferenças são significadas, são produzidas na esfera cultural onde as
lutas se dão em torno da construção e da imposição de diferentes
significados sobre o mundo social, sobre diferentes práticas, num processo
que não se reduz à definição e veiculação de significados fixos
(24ratc072001).
Nos textos cujas análises situam-se na vertente crítica dos Estudos Culturais, a
diferença é discutida no contexto da diversidade e do respeito. As condições de diferenciação
e socialização de cada grupo social é que constituem as especificidades e diferenças que os
caracterizam. A diferença existe porque os grupos culturais são diversos, as experiências,
linguagens e significações são variadas, de modo que os sujeitos são diferentes entre si.
Percebe-se um tipo de pensamento que leva à naturalização da diferença e à necessidade de
aceitá-la tal como ela é.
A construção do currículo real se revela como um processo de negociação
no qual a diversidade e a complexidade precisarão ser gerenciadas para a
realização dos objetivos postos à escola. [...] Em que sentido essas
mudanças (nos hábitos perceptivos, em decorrência do uso das novas
tecnologias de informação e de comunicação, que causam uma visão
fragmentada da realidade ou a criação de uma cultura-mosaico caracterizada
pela dispersão e pela desordem) realmente estão afetando toda a uma
geração? Qual o seu impacto sobre diferentes grupos sociais, dadas suas
condições diferenciadas de socialização, incluindo a distribuição desigual,
entre eles, das novas tecnologias de acesso à informação? (25ratc102002).
As novas tecnologias da informação e da comunicação estão, no mínimo,
intensificando a diversidade que adentra a escola por meio dos diversos
grupos que a freqüentam. Diversidades de experiências, de linguagens, de
significações, que pode chegar a ser exasperadora [...] mas que também
podem constituir a grande riqueza do trabalho pedagógico (25ratc102002).
Porém, em ambas as vertentes, enfatiza-se a importância de levar em conta a diferença
no processo de aprendizagem escolar. No caso da vertente crítica, o processo educativo deve
considerar a diversidade e a diferença cultural, buscando compreender as variadas formas de
pensamento, de interpretações do mundo (26ratc112003). Mesmo no caso dos textos cujo
objetivo é lançar “um outro olhar” sobre a cultura e a diferença, ainda é evidente um apelo ao
99
reconhecimento e respeito à diferença e um engajamento pela igualdade entre as diferentes
culturas.
Cabe a esse estudo uma busca pelo respeito às diferenças e por práticas
pedagógicas que vislumbrem possibilidades de combater o universalismo
dos discursos curriculares, colocando em questão “os valores que os
informam, os contextos que são produzidos. Os signos e os significados
presentes em sua construção, bem como os estereótipos e os silêncios que o
perpassam” (CANEN e MOREIRA, 2001, p. 31), (28rapt012005).
Nos textos influenciados pelas idéias pós-estruturalistas, a diferença deve ser
reconhecida pela sua própria constituição discursiva, simbólica e mutável, isto é, a diferença
não é natural e fixa, ela se desenvolve no contexto de lutas e imposições de significados que
também não são estáticos; a diferença é produzida (29ratc152006). Caberia à educação
escolar trazer para o ambiente da sala de aula, através dos conteúdos curriculares, a discussão
em torno de como as diferenças são construídas, em que jogos de poder elas estão envolvidas,
como são representadas nos conhecimentos que circulam pela escola e como estão presentes
nas relações entre os sujeitos que ali convivem.
O conhecimento, porém, não é concebido como verdade absoluta, em especial nos
textos baseados na teorização pós-estruturalista, visto que esta problematiza a concepção
realista de ‘conhecimento’ e ‘verdade’, destacando o caráter artificial e produzido destes
conceitos. Essa teoria e em cheque a idéia de valor em sentido transcendental, afirmando
que este pertence ao campo da invenção, que é posto e instituído. Neste sentido, a genealogia
(FOUCAULT, 1986) insiste em perguntar pela valoração do ‘valor’, isto é, não pelo valor em
si, mas pelos sentidos que são dados a este valor, abrindo lugar para a criação e recriação dos
valores e da moral. O sujeito, neste contexto, e a identidade única, perdem espaço para a
subjetividade e para a diferença.
O conhecimento escolar sofre influência dos artefatos culturais construídos fora do
ambiente escolar; estes instituem novas formas de relacionamento entre os sujeitos e os
conhecimentos, modificando a visão que estes têm de si mesmos e do mundo (23ratc042000).
A relação entre conhecimento e poder é enfocada no sentido de que quem tem o poder, pode
produzir verdades, construir realidades, que vêm à tona não apenas através das práticas
discursivas, mas também das não discursivas.
Michael Foucault tem sido o principal teórico utilizado quando a questão do poder e
saber é acionada nos textos analisados. É deste autor que é retirada a idéia de que poder e
100
saber são vontades dependentes uma da outra (FOUCAULT, 1996). O poder utiliza-se do
saber e vice-versa. Este saber envolve tanto o conhecimento dos sujeitos que estão submissos
a quem tem o poder quanto o conhecimento que tornará as pessoas o que elas poderão vir a
ser, ou seja, o conhecimento atrelado ao poder produz determinados tipos de pessoas, através
de discursos que os instituem desta forma.
O discurso da televisão ao falar sobre a escola, sobre o currículo, sobre o
conhecimento, sobre o/a professor/a, o/a aluno/a, ele termina também
definindo o que constitui a escola, o currículo, o conhecimento, o/a
professor/a, o/a aluno/a [...]. Para Foucault [1996], não existe saber que não
seja a expressão de uma vontade de poder; e não existe poder que não
utilize o saber, sobretudo um saber que se expressa como conhecimento das
pessoas submetidas ao poder. É também o poder que está na origem do
processo pelo qual nos tornamos sujeitos de um determinado tipo. Assim, os
sujeitos recebem sua identidade a partir dos aparatos discursivos e
institucionais que os definem como tais (23ratc052000).
O poder e saber também são relacionados com as questões políticas e econômicas. As
atitudes e ações direcionadas para a busca de supremacia de governos e do progresso
econômico definem que conhecimentos devem ser ensinados e aprendidos nas escolas, de tal
modo a atender as demandas políticas e econômicas de uma determinada sociedade.
É possível identificar, pois, duas vontades de poder no discurso da
informática brasileira: a vontade de soberania e a vontade de progresso
econômico que são indissociáveis de uma vontade de verdade: a produção
de saber acerca da informática cuja estratégia de poder-saber é,
provavelmente entre outras, a instituição da informática educativa
(23ratc062000).
A ânsia pela manutenção do poder envolve a instituição de verdades científicas e
contribui para a produção de subjetividades específicas de alunos e professores. Por exemplo,
ditando que tipo de relação deve existir entre estes, o que pode ou não ser feito ou ser dito,
“define, regula, normatiza, estabelece o normal e o anormal, em outras palavras, governa-os
pelo estabelecimento de parâmetros cientificamente determinados acerca de seus
comportamentos, de suas condutas” (23ratc062000).
A ‘noção de governo’ também é discutida em conexão com o poder e o conhecimento.
Novamente, é em Foucault que tal noção é pensada “no sentido amplo de técnicas e
procedimentos destinados a dirigir a conduta” (1997, p. 101). Tal administração ou governo
ocorre nos diversos espaços de atuação dos sujeitos e envolve, entre outras coisas, o apelo aos
sentimentos e às estratégias de poder e saber.
101
É predominante nos textos do GT de Currículo da ANPEd o argumento de que o
conhecimento não é algo a ser transmitido, dado o seu caráter construtivo. Os textos apontam
para a necessidade de compreender o conhecimento como envolvido num processo não neutro
de aprendizagem, onde disputas de interesses particulares estão envolvidas.
Outro aspecto bastante enfatizado é a necessidade da dissolução do binarismo
‘conhecimento científico e conhecimento cotidiano’, porque os conhecimentos não são
dispostos hierarquicamente, não há graus de valoração entre conhecimentos produzidos nas
academias ou centros educativos e os conhecimentos produzidos diariamente nas experiências
vivenciadas pelos sujeitos.
Assim, textos que ainda discutem a dicotomia entre conhecimento escolar e
conhecimento do cotidiano. Em geral, estes textos utilizam teóricos tais como Forquim e
Sacristán, e destacam que o conhecimento não existe e não é produzido apenas na escola, mas
também em outras instituições e instâncias culturais da sociedade.
Outra discussão bipolar é entre currículo explícito e currículo oculto. Neste caso,
discute-se que necessidade de perceber que os conhecimentos são construções histórico-
sociais e, portanto, além dos conteúdos formais, existem outros que também são construções
históricas, fruto da cultura e do jogo de interesses e imposição de significados (28ratc132005;
26ratc112003).
Assim, a polarização entre conhecimento escolar x conhecimento cotidiano, currículo
formal x currículo realizado ou currículo escolar x currículo extra-escolar ainda ocupa espaço
de discussão nos textos analisados. Nota-se, em alguns casos (25ratc102002; 26ratc112003),
um retorno velado à concepção crítica de currículo oculto, em contraposição ao currículo
explícito, que Silva define “como todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer
parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens
sociais relevantes” (2004, p.78).
Porém, em geral, a discussão não se no sentido de dizer que as relações sociais que
se desenvolvem no ambiente escolar, isto é, fora do currículo formal, contribuem para
aprendizagens que visam à submissão dos alunos às desigualdades decorrentes da divisão de
classe social ou para adaptação ao sistema econômico existente, mas no sentido de que os
currículos formais não são pautados no contexto dos sujeitos que freqüentam a escola, que
não levam em conta os conhecimentos da vida cotidiana, que constituem os currículos
vividos. uma contraposição entre currículo formal e currículo vivido, porque embora os
conhecimentos vividos não constem no currículo formal, eles estão ali, ou seja, fazem parte
102
do ambiente escolar, são trazidos pelos alunos e construídos nas práticas e experiências no
cotidiano das escolas, porém, são silenciados ou ocultados.
Esta pesquisa traz a inquietação de que os contextos dos sujeitos cotidianos
do interior valem à pena serem considerados, pois é neles que a escola
precisa buscar caminhos para orientar suas práticas, desconstruir conceitos
rígidos e reavaliar propostas curriculares que sejam capazes de transformar
condições pessoais e sociais. Acreditamos na possibilidade de pensar um
currículo onde não ocorram separações rígidas entre os conhecimentos
tradicionalmente elaborados e os conhecimentos da vida cotidiana. Um
currículo que se estabeleça através de manifestações de troca e negociação,
sem linearidades nas relações entre professores e alunos, tendo as múltiplas
identidades culturais respeitadas e superando silenciamentos e processos
discriminatórios. Um currículo realizado (25ratp022006 – grifos do autor).
Os riscos em que recaem estes textos que ainda fazem tais polarizações são os de
continuar pensando o currículo como prescrição, ou seja, o currículo está sendo feito desta
maneira, mas precisa ser feito de outra, ou de considerar o poder como algo que pertence a
alguns, os que podem definir que conhecimentos constituem o currículo formal, e não aos
outros, que não têm o direito de interferir na seleção destes conteúdos, quando de fato,
conhecimento e poder são indissociáveis. “O conhecimento não é exterior ao poder, o
conhecimento não se opõe ao poder. O conhecimento não é aquilo que põe em xeque o poder;
o conhecimento é parte inerente do poder” (SILVA, 2004, p. 149).
Além disso, se tomarmos como base para a análise a noção de currículo nos Estudos
Culturais, na extensão em que é concebido, como, de fato, indo para além do espaço escolar,
como um produto e artefato cultural, tal discussão bipolar entre currículo real e currículo
formal talvez não tenha sentido e, portanto, nem se faça necessária.
Assim, é provável que a compreensão da existência de um currículo dado, formal e de
um currículo dinâmico, vivido em relação de aversão, revele o entendimento de como se dão
as relações entre cultura e currículo. Se considerarmos que a cultura é algo externo ao
currículo e que deva ser incluída no mesmo e transmitida pela escola, neste caso, faz sentido
dizer que os currículos formais não têm feito isso. Porém, se partimos da idéia de que os
currículos são produtos da cultura, são produzidos nos diferentes campos da sociedade, então
a discussão fundamental seria a de saber que subjetividades e/ou identidades estes currículos
têm produzido e legitimado, e não de constatar se os currículos incluem ou não os
conhecimentos da cultura dos alunos.
Pode-se considerar talvez um equívoco dizer que Silva (1999), ao conceber o currículo
não apenas em sentido escolar restrito, estaria compartilhando com Sacristán (1998) a idéia de
103
“currículo extra-escolar” para referir-se a aprendizagens vivenciadas fora da escola, como
vemos no seguinte trecho de um texto analisado.
Entretanto, cumpre ressaltar que o uso da expressão “currículo extra-
escolar” encontra respaldo em alguns estudiosos do currículo. Silva [1999],
por exemplo, reconhece que as diversas instituições e instâncias culturais da
sociedade têm um currículo, embora não no sentido escolar estrito, pois
também transmitem conhecimentos importantes para a formação da
identidade e da subjetividade. Sacristán (1998), por sua vez, chega a usar a
expressão “currículo extra-escolar” para fazer referência ao conjunto de
aprendizagens vivenciadas por meio das fontes de informação e de
formação exteriores à escola (25ratc102002).
Percebe-se um equívoco na passagem acima, pois na própria obra citada de Silva
(1999) este autor situa suas análises dentro de uma concepção de currículo que não admite tais
polarizações entre currículo escolar e currículo extra-escolar. O autor informa que este tipo
de discussão enquadra-se no enfoque crítico do qual não compartilha, dado que assume um
ponto de vista pós-estruturalista sobre a análise curricular.
Com sua ênfase pós-estruturalista na linguagem e nos processos de
significação, as teorias pós-críticas não precisam da referência de um
conhecimento verdadeiro baseado num suposto real [ou currículo real] para
submeter à crítica o conhecimento socialmente construído do currículo [ou
currículo que se constrói em outros ambientes sociais além da escola]
(SILVA, 2004
33,14
p. 149).
Porém, considero pertinente e apropriada ao campo dos Estudos Culturais a discussão
que é desenvolvida em torno dos conhecimentos como construções históricas, sociais e
culturais. Nestes textos, em síntese, o conhecimento é concebido como democrático, no
sentido de que não é propriedade de poucos ou de determinada classe. Todas as culturas
produzem conhecimentos e os conhecimentos circulam entre as diferentes culturas; não são
produzidos apenas em ambientes autorizados, tais como escolas e universidades, porque são
produtos das relações simbólicas que as pessoas estabelecem entre si em qualquer ambiente
em que estejam.
Alguns textos (23ratc062000, 25ratc092002, 28ratc142005) enfatizam o caráter
produtivo do conhecimento, mostrando que este produz desejos, sentidos e sujeitos com
mentes e corpos diferenciados e informam que os conhecimentos são utilizados
pedagogicamente para governar condutas, produzir identidades e subjetividades.
33
Esta obra refere-se à mesma citada pela autora do texto analisado no GT de Currículo da ANPEd (Silva 1999),
sendo, porém, a 2ª edição, referente ao ano de 2004.
104
A escola sob o neoliberalismo continuaria, pois, implicada em complexas
relações de poder-saber, em técnicas de governo e regulação, empenhada,
em produzir determinadas subjetividades, adequadas a viverem num Estado
neoliberal onde “a governamentabilidade é máxima” (23ratc062000 grifo
meu).
Noção de governo “entendida no sentido amplo de técnicas e procedimentos
destinados a dirigir a conduta[Foucault, 1997, 101] dos seres humanos:
das crianças, dos cidadãos, dos sujeitos jogadores. A administração da
conduta ocorre em várias atividades [...]. Tudo isso está imbricado por
práticas que remetem a uma vasta gama de sentimentos. Sentimentos
relativos a outros, mas em especial a nós mesmos [...]. Dentro das
estratégias de governo discutidas deste trabalho, os jogos eletrônicos são
identificados aqui por diversas técnicas intelectuais e corporais
comprometidas com estratégias de poder-saber, formando um campo
estratégico (25ratc092002 – grifo meu).
Assim, considerar os nexos entre currículo e identidade implica a percepção
do que faz do currículo uma prática produtiva e de significação: nele
circulam poderes/saberes que mediados, articulados e negociados com/nas
esferas e produções sócio-culturais dos grupos que os praticam, objetificam,
narram, definem o eu e o outro, estabelecem o lugar e o não lugar ocupado e
a ocupar, fazendo parte do processo de fabricação das identidades
(28ratc142005 – grifo meu).
Em certos textos (24ratc072001) a questão do conhecimento e saber é radicalizada, no
sentido de que o conhecimento deva ser separado do aspecto funcional no qual a escola o
introduziu, isto é, o conhecimento não deve estar submetido à ação pedagógica, pois esta o
captura e o transmite de acordo com suas intencionalidades. Neste caso, não ação
pedagógica comprometida com a veiculação de ‘um conhecimento’, pois não ‘um
conhecimento’, diferentes modalidades de saberes que circulam, tocam-se, trocam-se e
desdobram-se em sentidos e ações variadas.
Em outros, o conhecimento, em sua íntima relação com o poder, é tido como algo que
produz identidades hegemônicas, que não são meramente formadas e fixadas, mas também
contestadas e disputadas, ao mesmo tempo produz identidades alternativas àquelas que se
referem às diferentes culturas.
O reconhecimento do currículo como uma narrativa racial abre caminho
para se pensar como as identidades e subjetividades raciais podem ter sido
forjadas. Abre, ainda, a possibilidade de se construir outras narrativas
diferentes, plurais, contra-hegemônicas que, muito provavelmente, poderão
contribuir para o surgimento de novas identidades ou identidades
alternativas [...]. A transformação dos currículos, assim como das relações
105
sociais, deve ser feita a partir de conhecimentos centrados na cultura
(26ratc112003).
Os indivíduos como objetos de poder/saber vão constituindo identidades de
diversas maneiras. Não podemos falar em essência do sujeito. As relações
de poder, dinâmicas e em constante movimento, vão sempre “fabricar novos
sujeitos”, novas formas de identidade [...]. As relações de poder nos fazem
acreditar que nossas maneiras de olhar o mundo, nossas sensações, nossos
interesses constituem o nosso “o mais íntimo eu” (23ratc042000).
Assim, dizer que a escola educa e forma significa dizer que ela não só produz e
reproduz conhecimentos técnicos e teóricos que propiciam aos sujeitos serem futuros bons
profissionais, ao contrário, acima de tudo, a escola forma condutas, através dos
conhecimentos que ensina, desenvolve e incute valores e normas, orienta e sentido às
práticas que os sujeitos realizam.
O texto 26ratc122003, ao analisar a identidade docente no campo da formação de
professores, destaca que é necessário fazer uma reflexão histórica, no sentido de interrogar
como a história de uma sociedade se construiu, que significados e tradições permaneceram ou
se romperam, para poder compreender e interrogar a noção de identidade que se estabelece no
presente. Pensar a identidade numa perspectiva histórica significa concebê-la como algo
mutável, movediço, que se ‘constrói-desconstrói-reconstrói’ permanentemente. Cada
momento histórico define e redefine a identidade docente.
Tomaz T. da Silva é comumente acionado na discussão sobre identidade,
conhecimento e currículo. Com base neste autor (SILVA, 1999, 2000), o currículo, através
dos conhecimentos que veicula, institui sentidos e produz identidades. Por ser artefato cultural
e envolver práticas de significação, articula saberes, poderes e identidades. Assim, o currículo
fabrica, consolida, institui identidades, demarca através dos discursos os lugares que os
sujeitos devem ocupar, diferenciando o ‘eu’ do ‘outro’, a ‘minha’ identidade da do ‘outro’.
Outros olhares sobre a identidade afluem nos textos analisados. Em especial naqueles
que utilizam Stuart Hall, Gilles Deleuze e Michael Foucault, a identidade tem ‘perdido
espaço’ para a subjetividade. Isto se porque alguns destes autores, como Stuart Hall,
concebe que a cultura não é fragmentada com base nas divisões de classe, gênero, raça e etnia,
antes, é um produto social que ultrapassa tais classificações. Estas localizações em que os
indivíduos eram situados não são tão sólidas o quanto pareciam e se desfizeram com as
mudanças nas relações sociais.
106
A questão da identidade está sendo extensivamente discutida na teoria
social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que
por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo
surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui
visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é
vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está
deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e
abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma
ancoragem estável no mundo social (HALL, 1997, p. 7).
Assim, as identidades sofreram ‘abalos’ e ‘deslocamentos’ consideráveis, de modo que
não há mais sujeitos integrados, com identidades únicas. O indivíduo não é contínuo e
idêntico durante toda a sua existência, não possui uma essência que permanece em toda a sua
trajetória de vida (23ratc042000). Deste modo, parece mais coerente e sensato pensar e falar
das subjetividades, já que a identidade parece quase sempre algum termo de referência
essencializado.
Deste modo, percebemos que parte significativa dos textos concebe a identidade como
inserida em um contexto sócio-cultural e instituída em processos de significação social. Ou
seja, a construção identitária é vista como um processo discursivo, resultante de elaborações
simbólicas, por isso, não é fixa e está sujeita a mudança; porém, esta concepção está mais
presente nos textos inseridos na vertente pós-estruturalista. Nos textos de caráter crítico, a
identidade é vista como resultante das relações estabelecidas no interior dos grupos culturais,
de modo que os sujeitos possuem identidades específicas, que precisam ser identificadas e
assumidas e, principalmente, as identidades devem ser respeitadas pelo que elas são.
A partir de todas as considerações e explanações feitas até agora com base no exame
dos textos selecionados no GT de Currículo da ANPEd, podemos analisar que principais
convergências e divergências, adiantamentos e recuos podem ser comentados, tomando os
textos numa adjacência geral.
Uma tônica comum às análises desenvolvidas nos textos analisados diz respeito à
compreensão de que o currículo, em suas formas de tratar o conhecimento, está intimamente
ligado às relações inseparáveis entre cultura, poder e saber. Embora estas relações sejam
enfocadas em algumas perspectivas diferentes como veremos a seguir, porém, há consenso de
que conhecimento e cultura atuam no mesmo ‘cenário e compartilham o palco com os
coadjuvantes poder e saber’.
O que diferencia algumas análises, que poderíamos classificar como um recuo ou
estagnação, é o persistente enfoque na existência de relações de supressão entre cultura e
currículo, no sentido de que alguns textos ainda discutem que os conhecimentos
107
corporificados no currículo escolar não levam em conta as culturas variadas dos alunos, ou
seja, percebe-se uma preocupação em analisar a separação entre cultura e currículo em
determinadas propostas e documentos oficiais. De modo que notamos uma tendência, ainda
que tênue, para a prescrição, num pequeno número de textos.
Neste último aspecto citado, o da prescrição, se considerarmos a maioria dos textos,
podemos notar um avanço importante. Os textos, em geral, não incluem em suas reflexões
finais o que, por fim, deveria ser o currículo: como deveriam ser selecionados os conteúdos,
como deveriam ser ministradas as aulas com a intenção de incorporar elementos culturais. Ao
contrário, observamos que os textos empenham-se em mostrar o que o currículo tem feito e o
que não tem feito, como têm sido construído ou desconstruído, ou que obras este currículo
tem realizado no cotidiano das escolas.
Outro adiantamento relevante, e consentâneo com a maioria dos textos, é a
compreensão de que o currículo não se limita apenas àquele corpo de conhecimentos e
aprendizagens existentes na escola. O currículo é eminentemente cultural, logo ele existe e
atua em qualquer lugar onde a cultura se processe; os currículos são culturais, assim sendo,
atuam nos mais variados ambientes, instituições, locais onde o conhecimento é construído,
onde identidades são formadas e subjetividades são produzidas.
Estabelecendo um paralelo entre as pesquisas realizadas no início da década de 90 no
GT de Currículo da ANPEd que, segundo Alice Lopes e Elizabeth Macedo (2002), discutiam
questões referentes às relações entre conhecimento científico, conhecimento
escolar, saber popular e senso comum; aos processos de seleção de
conteúdos constitutivos do currículo; às relações entre ação comunicativa,
os processos de crítica aos conhecimentos e os processos emancipatórios; a
necessidade de superarmos dicotomias entre conteúdos, métodos e relações
específicas da escola (LOPES e MACEDO, 2002, p.15),
e as pesquisas desenvolvidas nos anos iniciais do século XXI no mesmo GT, notamos uma
ampliação no que tange às relações entre conhecimento e currículo, em análises não apenas
voltadas para os aspectos de seleção, aplicação, dicotomias, mas para discussões que evocam
as disputas e imposições nas relações de poder travadas no interior do currículo, com ênfase
no aspecto cultural, no que se refere a estes mesmos aspectos, isto é, seleção, aplicação e
dicotomias, e a outros, tais como as identidades e subjetividades formadas pelo currículo, os
grupos sociais e culturais que são ou não representados no currículo, a força dos currículos
culturais (programas televisivos, filmes, internet, jogos eletrônicos, e outros) na educação das
novas gerações . Isso nos um indicativo de que estudos que levam em conta a cultura, tal
108
como é concebida no campo dos Estudos Culturais, continuam ganhando ímpeto no campo
curricular.
Isso pode ser compreendido, talvez, pela forte influência de Tomaz Tadeu da Silva nas
pesquisas desenvolvidas no GT de Currículo, o no campo dos Estudos Culturais, mas
principalmente neste, onde suas obras são referenciadas em praticamente todos os textos
analisados, em especial Currículo como Fetiche a poética e a política do texto curricular
(2001), Identidade e Diferença a perspectiva dos Estudos Culturais (2000) e
Documentos de Identidade uma introdução às teorias do currículo(1999)
34
,
15
sendo estas
obras citadas pelo menos uma vez em cada um dos 16 textos analisados.
No entanto, a própria utilização de Silva (1992, 1994, 1995, 1998, 1999, 2000, 2001)
nos textos analisados revela algumas dissonâncias na aplicação e interpretação deste autor, o
que talvez possa ser justificado pela própria trajetória teórica dele. Suas primeiras produções
(SILVA, 1992) eram de cunho evidentemente marxista e suas análises voltavam-se para a
seleção, organização e distribuição dos currículos escolares e as dinâmicas de produção e
reprodução da sociedade capitalista (LOPES e MACEDO, 2002).
Posteriormente, influenciado pelo pensamento pós-estruturalista, Silva (1993)
passou a incluir em suas análises as questões de ordem política, rompendo com as explicações
econômicas e com as idéia de razão, progresso e ciência. Embora defendesse as teorias pós-
estruturalistas num momento inicial, Silva (1995) ainda tinha como ponto de referência a
teoria crítica, considerando que as idéias pós-estruturalistas deveriam ser analisadas pelo viés
desta. Foi sua aproximação com Michael Foucault, J. Derrida, G. Deleuze e F. Guattari que
permitiu a adesão completa à teoria pós-estruturalista (SILVA, 1999, 2000).
Assim, levando em conta os posicionamentos teóricos de Silva, podemos entender o
fato de determinados textos incluírem este autor em suas análises, fazendo aplicações e
análises de cunho claramente crítico, no que se refere principalmente às noções de identidade
e diferença e do conhecimento curricular e outras, e o utilizarem como referência para basear
suas considerações num enfoque eminentemente pós-estruturalista, nos mesmos aspectos.
Porém, o que parece uma contradição é que as obras utilizadas com mais freqüência são
aqueles em que Silva (2000, 2001) posiciona-se nitidamente como um teórico pós-
34
Outras obras de Tomaz T. da Silva referenciadas com menor freqüência são: “Liberdades reguladas: a
pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu” (1998), “O sujeito da educação: estudos
foucaultianos” (1995), “O que produz e reproduz em educação” (1992), “Currículo, Cultura e Sociedade”
(1994), “Territórios Contestados” (1995) e “A educação em tempos de globalização” (2001).
109
estruturalista. Pode ser que, para alguns dos autores dos textos analisados, estes
deslocamentos de Silva ainda não estejam bem perceptíveis.
4.3. Ênfases Temáticas, Conjugações Teóricas e Metodológicas na
Análise da Cultura e Conhecimento no GT de Currículo da ANPED.
Cultura e conhecimento têm sido analisados nos textos publicados no GT de Currículo
da ANPED no enfoque de diferentes temáticas e no contexto de variadas conjugações teóricas
e metodológicas. Tendo em mente os impasses e transtornos envolvidos em qualquer tentame
de classificação, bem como as justaposições que irremissivelmente ocorrem nas
categorizações, cautelosamente procurei verificar quais as tônicas das temáticas e as
conjunções teóricas e metodológicas nos 16 trabalhos e pôsteres selecionados e analisados.
4.3.1. Ênfases Temáticas
No que se refere às temáticas, no grupo dos ‘pôsteres’ identifiquei as seguintes: redes
de saber/fazer e cotidiano escolar (1) e prática curricular e diferença (1); no grupo dos
‘trabalhos completos’ identifiquei as seguintes: mídia e educação (4); pluralidade cultural
questão étnico-racial (1); cultura popular (1); currículo (3) identidade e formação docente
(2); diferença (3). O quadro abaixo explicita esta classificação:
QUADRO 7
Classificação por Temática/ GT 12
Ano Pôster Temática
2005 28rapt012005 Prática curricular e Diferença
2006 29rapt022006 Redes de Saber/Fazer e Cotidiano Escolar
Ano Trabalho Completo Temática
2000 23ratc032000 Discurso Pedagógico e Currículo
2000 23ratc042000
Mídia
, Público e Privado
2000 23ratc052000
Mídia
, Educação e Currículo
2000 23ratc062000
Mídia
e Educação Escolar
2001 24ratc072001 Currículo-mapa e Currículo-programa
2001 24ratc082001 Educação Física e Saber Escolar
110
2002 25ratc092002
Mídia
, Consumo e Corpo
2002 25ratc102002 Currículo escolar e Currículo extra-escolar
2003 26ratc112003 Pluralidade Cultural e Questão Étnico-racial
2003 26ratc122003 Currículo e Identidade Docente
2005 28ratc132005 Diferença e Cotidiano Escolar
2005 28ratc142005 Formação de Professores e Identidade Docente
2006 29ratc152006 Currículo e Diferença
2006 29ratc162006 Currículo e Cultura Popular
A ênfase temática no período analisado, como mostra o Quadro 6, recai sobre os de
textos que discutem a mídia e suas relações com a educação, currículo e escola. Foram
incluídos na temática mídia quatro textos que abordam: a informática e identidade em relação
ao espaço público e privado (23ratc042000); a produção do currículo e da escola pela
televisão (23ratc052000); a constituição do discurso da informática educativa e a escola
pública (23ratc062000); o currículo cultural e os jogos eletrônicos na educação do corpo e
para o consumo (25ratc092002).
Segundo Escosteguy (2004), a temática ‘mídia’ esteve presente desde o início nos Estudos
Culturais. Richard Hoggart foi quem dedicou originariamente mais interesse em investigar os
meios massivos, mas, de modo geral, os Estudos Culturais demonstravam preocupação com
os produtos da cultura e dos mass media, dado que através do estudo desses poder-se-ia
perceber os rumos da cultura contemporânea.
Especificamente, foi quando os Estudos Culturais passaram a discutir questões voltadas à
ideologia e hegemonia, na década de 70, que os estudos sobre os meios de comunicação
social, especialmente os audiovisuais, assumiram posição acentuada. As análises nesta
temática direcionavam-se para a desmistificação da idéia de que os meios de comunicação de
massa eram meros utensílios empregados pela classe dirigente para manejar e dominar as
classes subalternas. Para os Estudos Culturais, a atuação de tais meios ia para além disso,
envolvia a reprodução e também a própria construção das relações sociais e culturais
hegemônicas.
Stuart Hall, ao assumir a direção do Centre for Contemporary Cultural Studies, deu
continuidade e incentivo aos estudos voltados para a análise dos meios massivos e a temática
da densidade e recepção dos consumos mediáticos ganhou propulsão. A ênfase, neste caso,
111
era para a pluralidade das modalidades de recepção dos programas televisivos
(ESCOSTEGUY, 2004).
Três posições hipotéticas foram identificadas por Hall no processo de interpretação da
mensagem televisiva: a dominante’, na qual o sentido da mensagem é decodificado segundo
as referências da sua construção; a ‘negociada’ com base nas condições particulares dos
receptores; e a de ‘oposição’, quando o receptor interpreta a mensagem dominante segundo
uma estrutura de referência alternativa (HALL, 1980, apud MATTELART e NEVEAU,
1997).
Na década de 80, esta temática continuou ganhando força, e novas modalidades de análise
dos meios de comunicação multiplicaram-se atreladas às questões de subjetividade e
identidade e aos textos culturais e mediáticos no domínio privado e doméstico. No Brasil,
especialmente a partir da metade da década de 90, surgiram muitos estudos e pesquisas no
campo dos Estudos Culturais enfocando a temática mídia
35
.
16
.
Giroux (2002) considera um dos pressupostos basilares dos Estudos Culturais a percepção
de que através da cultura da mídia, incluindo o poder dos meios de comunicação de massa,
seus massivos aparatos de representação e sua mediação do conhecimento, podemos perceber
como a dinâmica do poder, do privilégio e do desejo social organiza a vida cotidiana de uma
sociedade. Além disso, ao considerar que a aprendizagem não se apenas na escola, mas
também em lugares diversificados, como a mídia, Giroux amplia nossa compreensão sobre a
questão pedagógica e sobre o papel da escola.
Outra contribuição fundamental dos Estudos Culturais para as pesquisas sobre dia,
segundo Costa (2000), é a compreensão de que esta atua eficazmente na criação das coisas
que propaga. Os artefatos culturais, tanto a mídia falada quanto da escrita, ‘têm se mostrado
intensamente produtivos na constituição de padrões de referências sociais’.
Nos trabalhos analisados nesta pesquisa, a mídia é tida como um artefato cultural que
produz discursos específicos sobre o que deseja instituir, operando com formas de controle e
técnicas para divulgar idéias autorizadas, com o intuito maior de governar ações. No trabalho
23ratc042000, cujo título é Currículo Cultural e as Ressignificações entre o Público e o
35
Por exemplo, COSTA e SILVEIRA realizaram a pesquisa Produzindo subjetividades femininas para a
docência um estudo da revista Nova Escola, no Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade
(NECCSO), com apoio da Fundação Carlos Chagas, da Fundação Ford e do CNPq, 1997; AMARAL
desenvolveu a pesquisa Representações de natureza e a educação pela mídia, no Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPG-EDU), curso de Mestrado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; ESCOSTEGUY,
publicou artigos em livros e revistas abordando a temática dos meios mediáticos com base nas pesquisas feitas
no enfoque dos Estudos Culturais em 1998 (ESCOSTEGUY, 1998
a
e 1998
b
) entre outros
.
112
Privado
36
,
17
um estudo teórico-bibliográfico e de análise do discurso, as mudanças na
fronteira entre o público e o privado são discutidas sob a influência das novas tecnologias e
meio de informação, enfocando as repercussões na produção de identidades e no currículo
escolar.
Neste texto, a mídia, em especial os jogos eletrônicos, é considerada um artefato
cultural cuja atuação estende-se para além do espaço escolar e que influencia os currículos e
conhecimentos que os sujeitos têm de si mesmos, dos outros e do mundo, rompendo as
fronteiras entre o público e o privado. Seus discursos aparentemente privados revelam-se
como extremamente públicos em seus interesses.
O texto destaca que os discursos que compõem a relação entre o público e o privado
produzem identidades descentradas e deslocadas, e estão ligados aos discursos do
consumismo moderno, que, tentam expungir as diferenças e desigualdades através de atos de
consumo em massa, que através de uma gica de consumo, configuram identidades,
desestabilizam-nas, e ao mesmo tempo, oferecem novos produtos para restabelecer e criar
novas identidades.
No trabalho 23ratc052000, cujo título é A Produção do Currículo na televisão: que
discurso é esse?
37,18
a mídia é considerada uma ‘educadora eletrônica’ das novas gerações,
pois ensina as pessoas modos de ser, estar e se portar no mundo e conhecimentos de si e de
outros, veiculando normas, valores e procedimentos.
Ao fazer vínculos entre o currículo e a mídia, o texto enfoca as formas de controle
operadas pelo setor privado de telecomunicações e as técnicas adotadas para divulgar as idéias
e vozes autorizadas a falar nesse meio. Mostra como o currículo e a escola têm sido pensados,
falados e produzidos pela mídia, especialmente pela televisão. A TV produz um discurso
próprio sobre a escola, uma espécie de “regime de verdade para a educação”.
É um estudo teórico-bibliográfico e de análise do discurso com base em Foucault
(1980,1996) e as categorias “poder” e “discurso”. Analisa as produções discursivas da TV
através do programa do “Canal Futura”, propagandas, campanhas e o Jornal Futura,
integrantes da programação deste canal. Ao discutir a questão da dia, a autora recorre a
T.T. da Silva, Green e Bigum e M. Dalton, teóricos que discutem a mídia nos Estudos
Culturais e o currículo para além do ambiente escolar.
Com base em Foucault (1996), o texto analisa que a televisão é uma produtora de
discursos sobre e para a escola e o currículo e, é no discurso que se articulam poder e saber. O
36
MENDES, Cláudio Lúcio, 2000.
37
PARAÍSO, Marlucy, 2000.
113
saber articulado ao poder produz suas verdades, seus regimes de verdades, que se instauram e
se revelam nas práticas discursivas e não discursivas.
O trabalho 23ratc062000, cujo tulo é Informática Educativa e Currículo:
materialidade pós-moderna e racionalidade moderna
38
,
19
trata da constituição do discurso da
informática educativa e suas relações com a escola pública. O texto considera o discurso da
informática como um artefato cultural pós-moderno que, por meio de seus discursos e
significados de natureza econômica, administra populações e instrumentaliza novos postos de
trabalho. O autor analisa documentos oficiais, com base na arqueologia e genealogia de
Foucault, discutindo as vontades de poder presentes nos discursos da informática brasileira: a
vontade de soberania e a vontade de progresso, associadas à vontade de verdade (Foucault,
1996).
Neste texto, as práticas discursivas que instituem a informática são vistas como
vinculadas a razões estratégicas de soberania nacional e desenvolvimento econômico, e se
transformam numa tecnologia educacional, um recurso para a produção de aprendizagens. O
‘projeto de informática’ consiste na enunciação de verdades sobre a forma como as crianças
aprendem. A vontade de saber e a vontade de poder visam à sacralização das verdades
científicas sobre a infância, produzindo as subjetividades dos alunos e professores, na medida
em que diz como as crianças são e se desenvolvem.
No trabalho 25ratc092002, cujo título é Duas Lições para se Conectar a um
Currículo
39
,
20
o autor discute o currículo cultural e os jogos eletrônicos. Estes são assumidos
como artefatos culturais imbuídos da vontade de ensinar. Tais artefatos educam através de
estratégias articuladas em torno de um currículo cultural que atua por meio de duas lições: a
de educar para o consumo e a de educar os gestos e as atitudes corporais de quem joga.
As análises pautam-se no jogo de ação Tomb Rider softwares, caixas, manuais,
contratos de licença, revistas especializadas em jogos eletrônicos e revistas on-line.
Desenvolve-se, sob o enfoque dos Estudos Culturais e na perspectiva de governo em M.
Foucault, como um conjunto de técnicas e procedimentos entendidos em sentido amplo e
destinados a dirigir a conduta (Foucault, 1999).
O autor analisa o conceito de ‘pedagogia cultural’ nos Estudos Culturais, no qual os
processos educativos ocorrem em vários locais além da escola, ou seja, os sujeitos aprendem
em diferentes lugares, de diferentes formas, em diferentes contextos. Considera como espaços
pedagógicos, além da escola, todos os momentos/lugares onde o poder, e suas relações com o
38
SOMMER, Luis Henrique, 2000.
39
MENDES, Cláudio Lúcio, 2002.
114
conhecimento, se organiza e se exercita bibliotecas, TV, filmes, jornais, revistas,
brinquedos, livros, esportes, e outros.
A partir das reflexões sobre os textos analisados, destaco que a perspectiva em que a
temática mídia é pensada coaduna-se com o que os Estudos Culturais enfocam sobre o poder
da mídia em produzir identidades e subjetividades, e não somente sua atuação em reproduzir
valores de determinado grupo social dominante.
Simon (2002) ajuda-nos a compreender o conceito de tecnologias culturais, o que
inclui a mídia, como
Conjuntos de arranjamentos e práticas institucionais intencionais no interior
dos quais formas de imagens, som, texto e fala são construídas e
apresentadas e com as quais, ademais, interagimos. Essas tecnologias estão
implicadas na produção de significados que dão às pessoas uma idéia de
quem elas são e de quais serão os seus futuros (p. 71).
A mesma ênfase dada à mídia como formadora e reguladora de identidades e
subjetividades nos textos analisados é feita por Simon, quando este afirma que o cinema, a
televisão, a música e demais tecnologias culturais, tentam ‘colocar em efeito um processo
organizado e regulado de produção de significados’.
Assim, a mídia é um dispositivo produtivo material, no sentido de que corporifica
formas concretas particulares de “distribuição e exibição de inscrições simbólicas que podem
assumir a forma de informações, questões e/ou instruções visuais e textuais”; e um dispositivo
abstrato, por representar um conjunto específico de “práticas de significação que através da
linguagem, da imagem, do gesto e da ação tentam estruturar e governar o enquadramento
daquilo que pode ser conhecido” (SIMON, 2002, p. 72).
Ao estabelecermos um paralelo entre as análises sobre mídia realizadas no Brasil na
primeira metade da década de 90, tendo como referência a ANPEd e a pesquisa realizada por
Barreto (2002), com as que analisamos do início do século XXI nesta pesquisa, percebemos
que nos primórdios da década de 90 as apropriações em torno da temática mídia inseriam-se
numa perspectiva notadamente crítica e voltavam-se para a compreensão de como a escola
trabalharia com a leitura desses novos textos.
na segunda metade da década de 90, segundo Barreto (2002), quando os
microcomputadores passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas, com o advento da
Internet e das políticas educacionais, financiadas por organismos internacionais, voltadas ao
incentivo e implementação do uso das tecnologias no âmbito educacional, a discussão em
torno da mídia passou a constituir um campo mais consistente e diversificado. E foi no fim
115
desta década que as análises no campo dos Estudos Culturais, principalmente nos enfoques
pós-modernos e pós-estruturalistas, entraram com toda força no cenário (LOPES e MACEDO,
2002).
E o que dizer dos anos 2000? Os textos analisados no GT de Currículo da ANPEd
indicam que a temática mídia continua assumindo uma proporção significativa de estudos, e
no campo dos Estudos Culturais, é analisada principalmente a partir de enfoques pós-
estruturalistas.
Michael Foucault tem sido freqüentemente acionado como referência teórica para a
discussão da temática mídia e nas análises dos autores discussão não sobre a presença
da mídia na escola e sua influência no currículo escolar, mas também tem considerado
destacadamente a mídia como detentora de um currículo próprio, ora imposto ora usado como
referência pra a construção de currículos particulares. O caráter formador e produtivo dos
artefatos culturais mediáticos também tem sido privilegiado.
4.3.2. Conjugações Teóricas
Foucault também tem sido freqüentemente utilizado como referência teórica em outros
textos selecionados para análise no GT-12. Por exemplo, quanto às conjugações teóricas, os
pôsteres e trabalhos, em sua maioria, pautam suas análises conjugando mais de um teórico.
Foi possível identificar as seguintes conjugações teóricas:
QUADRO 8
Apresentação por Conjugação Teórica / GT 12
Ano Pôster Conjugações Teóricas
2005 28rapt012005 H. Bhabha, S. Hall, E. Said e H. Giroux
2006 29rapt022006 Tomaz T. da Silva, H. Bhabha e M. Certeau
Ano Trabalho Completo Conjugações Teóricas
2000 23ratc032000 Tomaz T. da Silva e A. Alba
2000
23ratc042000
C. Nelson, P. Treichler, L. Grossberg, Tomaz T. da Silva,
R. Johnson e S. Hall
2000
23ratc052000
M. Foucault, T. Tadeu da Silva, H. Giroux, M. Dalton,
B. Green, C. Bigum e S. Hall
2000 23ratc062000 Michael Foucault, Veiga-Neto, M. Peters e Tomaz T. da Silva
2001 24ratc072001 M. Foucault, G. Deleuze e F. Guattari
116
2001 24ratc082001 I. Goodson, J.C. Forquim, J. G. Sacristán,
Tomaz T. da Silva e C. Grignon
2002 25ratc092002 Michael Foucault, T. T. da Silva e Nikolas Rose
2002 25ratc102002 J.C. Forquim, T. T. da Silva, G. Sacristán, B. Green e C. Bigum
2003 26ratc112003 J. G. Sacristán, J. T. Santomé, P. McLaren,
J.C. Forquim e H. Giroux
2003 26ratc122003 T. Tadeu da Silva, I. Goodson e T. Popkewitz
2005 28ratc132005 A. Hargreaves, J.G. Sacristán e P. Gómez
2005 28ratc142005 T. T. da Silva, J. Kristeva, S. Hall e N. Fairclough
2006 29ratc152006 H. Bhabha, C. Skliar, Tomaz T. da Silva e G. Deleuze
2006 29ratc162006 C. Geertz, J.C. Forquim, E. Durkheim, Michel Agier e G. Canclini
O quadro 8 leva-nos a perceber uma característica marcante de pesquisas no campo
dos Estudos Culturais as diferentes conjugações teóricas. É por isso que optei por
denominar este aspecto da pesquisa não como referencial teórico ou referência bibliográfica,
mas como conjugações teóricas, pois esta expressão nos remete ao aspecto interdisciplinar e
teórico dos experimentos típicos dos Estudos Culturais.
Nos textos analisados, apesar de uma aparente dispersão, duas grandes linhas teóricas
destacam-se entre as vertentes existentes no campo dos Estudos Culturais, a crítica,
representada por teóricos tais como H. Giroux, J. C. Forquim, I. Goodson e G. Sacristán e a
pós-crítica, em especial a pós-estruturalista e pós-colonialista, representada nos textos por H.
Bhabha, Tomaz T. da Silva, M. Foucault, G. Deleuze, F. Guattari, B. Green e C. Bigum,
autores utilizados com maior recorrência.
Entre as variadas conjugações teóricas, a ênfase teórica em Tomaz Tadeu da Silva,
Michael Foucault, Henry Giroux, Gimeno Sacristán, Stuart Hall e Jean-Claude Forquim é
evidente. Foucault fundamenta todos os textos de cunho pós-estruturalista e os conceitos mais
utilizados deste autor são os de ‘governo’, ‘poder’, ‘discurso’ e ‘verdade’, em relação com o
currículo e o conhecimento. T. T. da Silva é conjugado tanto com teóricos críticos, tais como
H. Giroux, I. Goodson, G. Sacristán e J. C. Forquim, como com os pós-estruturalistas, tais
como B. Green e C. Bigum, T. Popkewitz e, em geral, são usados para fundamentar as idéias
relacionadas à cultura, currículo e conhecimento.
A Tabela 3 apresenta as ênfases teóricas no que se refere aos teóricos e as categorias
analíticas baseadas nestes, mais acionados pelos autores dos textos da ANPEd.
117
TABELA 3
Teóricos e Categorias analíticas mais recorrentes
Teóricos Freqüência Categorias analíticas
Tomaz T. da Silva
69%
identidade
;
currículo
; diferença
linguagem; sujeito; subjetividade e
estudos culturais, cultura, currículo
M. Foucault
25%
discurso
;
poder
;
saber
; disciplina;
governo
;
sujeito
Stuart Hall
25%
identidade; mídia; cultura
J.C. Forquim
25%
saberes
;
hierarquia
; currículo;
se
leção
cultural; conteúdos históricos
J. G. Sacristán
25%
Currículo
;
cultura escolar
; currículo extra-
escolar; diversidade; diferença
H. Bhabha
19%
tradução; hibridismo; diferença cultural
H. Giroux
19%
política cultural; mídia; poder; diferença
Dados da Pesquisa
Com base na tabela 3, podemos inferir que Tomaz T. da Silva é o teórico mais
acionado nos textos analisados, especialmente para discutir identidade e currículo. Nos textos,
a partir deste autor, o currículo é revestido da capacidade de produzir, baseado em uma noção
de cultura como prática de significação e entendida em termos de criação, produção, num
contexto de negociação e poder. Os currículos são textos, discursos, dizem os textos com base
em Silva, logo são atividades lingüísticas que produzem identidades sociais; o currículo
problematiza as identidades e diferenças, ao invés de celebrá-las.
4.3.3 – Conjugações Metodológicas
Referente às conjugações metodológicas, no conjunto dos textos analisados,
predominância de textos de natureza documental e que utilizam como procedimentos
metodológicos, em sua maioria, a análise do discurso. Os textos que fazem pesquisa
documental e análise do discurso, em geral, tomaram como objeto currículos oficiais, como
por exemplo, desenhos curriculares, boletins, programação escolar, legislação educacional e
currículos culturais, tais como jogos eletrônicos, programas televisivos, programas de
computador, entre outros. O quadro 9 apresenta as conjugações feitas pelos autores dos textos
e as palavras em negrito indicam as ênfases encontradas.
118
QUADRO 9
Conjugações e Ênfases Metodológicas / GT-12
Ano Pôster Conjugações
2005 28rapt012005
Pesquisa Documental Análise do Discurso
2006
29rapt022006
Pesquisa Documental
e
Pesquisa Etnográfica
Método Indiciário
(observação, entrevistas)
Ano Trabalho Completo Conjugações
2000
23ratc032000
Pesquisa Bibliográfica
40
21
e
Pesquisa Documental
Análise do Discurso
2000 23ratc042000 Pesquisa Bibliográfica
Análise do Discurso
2000 23ratc052000
Pesquisa Documental Análise do Discurso
2000 23ratc062000
Pesquisa Documental Análise do Discurso
2001 24ratc072001 Pesquisa Bibliográfica
Análise do Discurso
Ano Trabalho Completo Conjugações
2001
24ratc082001
Pesquisa Documental
e
Pesquisa de Campo
Análise do Conteúdo
(observação entrevista,
questionário)
2002
25ratc092002
Pesquisa Documental
e
Pesquisa Participante
Análise do Discurso
2002
25ratc102002
Pesquisa de Campo
Análise do Discurso
(observação direta, entrevista,
questionário)
2003
26ratc112003
Estudo de Caso e
Pesquisa Documental
Análise do Conteúdo
(observação e entrevista)
2003
26ratc122003
Pesquisa Documental
e
Pesquisa de Campo
Análise do Conteúdo
(observação e entrevista)
2005
28ratc132005
Pesquisa Documental e Pesquisa
Etnográfica
Análise do Conteúdo
(observação participante,
entrevista e questionário)
2005
28ratc142005
Pesquisa Exploratória e
Pesquisa Documental
Análise do Discurso
2006 29ratc152006
Pesquisa Documental Análise do Discurso
40
Pesquisa Bibliográfica é concebida, nesta classificação, como aquela em que o autor se vale somente de
referências teórico/bibliográficas como material de análise (GIL, 1999).
119
2006
29ratc162006
Pesquisa Etnográfica e
Pesquisa Documental
Análise do Discurso
(observação)
Nos textos, percebe-se que os autores buscaram realizar mais de um tipo de pesquisa e
de procedimentos metodológicos com o intuito de apreender o objeto de pesquisa em toda sua
complexidade. Um aspecto observado é o de que não há preocupação excessiva em nomear os
procedimentos metodológicos utilizados, porém o cuidado em descrever os passos seguidos
nas análises desenvolvidas se faz presente com clareza, o que foi fundamental no momento de
realizar as classificações.
Embora o campo dos Estudos Culturais paute-se um uma gama variada de
procedimentos metodológicos, foi possível perceber certo ‘acanhamento’ ou uma limitação
nas possibilidades de coleta, exploração e a análise. Porém, uma particularidade importante
foi encontrada no modo como as análises dos documentos foram realizadas. Não houve
primazia em investigar a aplicação ou concretização de documentos oficiais em determinados
contextos práticos.
Em geral, os textos demonstravam preocupação em analisar o que os discursos
presentes nos documentos oficiais produzem – sujeitos, identidades, subjetividades, formas de
pensar, sentir, se movimentar em determinados contextos. A própria utilização enfática da
Análise do Discurso, em geral referenciada em Foucault, permite-nos chegar a esta conclusão.
Considero ser este um aspecto de extrema relevância na tônica das pesquisas desenvolvidas
no enfoque dos Estudos Culturais.
É possível perceber que um número relativamente pequeno de textos direciona suas
análises na intenção de prescrever como o currículo deve ser aplicado ao levar em conta a
questão da cultura e do conhecimento no campo da significação. Em geral, os autores dos
textos tencionam fundamentar teoricamente seus objetos de análise e levantar discussões e
debates sobre as práticas curriculares investigadas, porém dão indicativos de como concebem
o currículo em sua relação com a cultura na dinâmica da sala de aula ou em outros ambientes
em que a aprendizagem ocorre. A partir de agora, analisaremos então, que proposições estes
textos propiciam para o currículo enquanto teoria e prática.
120
4.4. O Currículo como Teoria e Prática
Tomaz T. da Silva é um dos teóricos mais referenciados pelos autores dos textos
selecionados do GT de Currículo da ANPEd ao abordarem a questão curricular. Silva (1999,
2000) tem situado suas produções mais recentes na perspectiva do pós-estruturalismo e isto se
reflete na maneira em que concebe a relação entre teoria e prática curricular. Em primeiro
lugar, não relação de supressão entre teoria e prática, pois não existe teoria sem prática e
nem prática sem teoria. Dizendo de outro modo, a teoria institui a prática, não é algo externo a
ela. Ao teorizar sobre uma suposta realidade, a teoria a produz. Então, pode-se dizer que a
prática é a própria teoria em ação, ou é o seu fruto.
Assim, ao utilizar o termo ‘teoria’, Silva (2004) o faz não no sentido de algo diferente e
oposto à prática, mas no mesmo sentido de discurso, isto é, como algo que produz o seu
próprio objeto.
Do ponto de vista do conceito pós-estruturalista de discurso, a “teoria” está
envolvida num processo circular: ela descreve como uma descoberta algo
que ela própria criou. Ela primeiro cria e depois descobre, mas, por um
artifício retórico, aquilo que ela cria acaba parecendo como uma descoberta
(SILVA, 2004, p. 12).
Situando tal discussão no campo curricular, Silva (2004) irá nos dizer que não existe
uma teoria única e verdadeira de currículo que o apreenda como ele “realmente é”. Existem
tantos currículos quantos discursos que dizem o que ele é, ou seja, “o que o currículo é
depende precisamente da forma como ele é definido pelos diferentes autores e teorias” (p. 14).
Pensar o currículo na perspectiva da noção de discurso como trama lingüística
significa concebê-lo no domínio da linguagem, do simbólico, da significação, e portanto, da
cultura. É assim que a idéia de currículo em Silva (1998; 1999; 2000) está baseada em uma
noção dinâmica de cultura, diretamente relacionada à criação, produção de significados e
sentidos, num contexto de negociações, imposições, conflitos, disputas e poder. O currículo é
artefato, produto, arranjamento de “composições de coisas, ações, relações, discursos, cuja
arrumação destes elementos ocorre no cruzamento entre eles, atravessamentos que produzem
novas dimensões” (SILVA, 1998, p. 189).
121
Composições, arrumações, cruzamentos, atravessamentos são adjetivos próprios ao
currículo em determinadas perspectivas, pois revelam o que ele é um agrupamento
proposital de sentidos, conhecimentos, valorações, e outras coisas que talvez não saibamos
nomear, mas que existem, estão no currículo e nos influenciam, atravessam-nos, formam-
nos ou deformam, enfim, agem por nós e sobre nós, sobre o que somos ou podemos vir a ser.
Como produto e produtor de culturas, o currículo também está envolvido com práticas
de significação e articulação de saberes. Todas as seleções curriculares realizam-se em
espaços de lutas e contradições, onde os diferentes grupos buscam legitimar seus próprios
conhecimentos, valores, visões de mundo. E isso não se apenas no ‘falso duelo’ entre a
classe dominante e classe de dominados. Todos os grupos sociais disputam à supremacia de
suas culturas, querem ter o poder de ditar os rumos com base em suas próprias convicções,
interpretações, impor seus ideais de homem, mulher, criança.
O currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais
amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai
constituir, precisamente, o currículo. [...] “que eles ou elas devem ser?” ou,
melhor, “o que eles ou elas devem se tornar?”. Afinal, um currículo busca
precisamente modificar as pessoas que vão “seguir” aquele currículo
(SILVA, 2004, p. 15).
O currículo também pode ser produtor de identidades fixas ou mutáveis, herdadas ou
adquiridas; pode ser mera transmissão e transposição ou pura criação e condução. Mas entre
estes modos de agir diferenciados, alguns consensos o currículo não é neutro; seus
conteúdos não são universais; não é grade ou desenho; e não é mero reprodutor de
conhecimentos. O currículo tem vida própria, resulta de ações direcionadas, é regulado por
interesses particulares, produz, cria. Se é capaz produz identidades, pode produzir igualmente
subjetividades e diferenças, pois assim como a cultura, a identidade, o conhecimento e o
currículo, as subjetividades e diferenças também são do domínio dos significados e sentidos,
isto é, são produzidas nas relações sociais.
O currículo também pode ser ‘máquina’ (DELEUZE e GUATTARI, 1995), se o
pensarmos como algo que produz incessantemente, que se movimenta visando atingir certos
resultados na educação, na escola, no conhecimento, na cultura. Pode ser ‘corte’ por causar
divisões, rupturas, por multiplicar direções e sentidos, por abrir novas possibilidades, pois
‘pelos cortes passam fluxos-desejos, que se tornam incomensuráveis e incomparáveis porque
não há mais padrões’ (24ratc072001).
122
Que indicações, então, os textos no GT da ANPEd inseridos no campo teórico dos
Estudos Culturais nos dão sobre como o currículo produtor e criador atua? Em primeiro, o
currículo como criação e produção não existe apenas na prática educativa que é realizada no
espaço escolar. Ele existe e atua em outros ambientes de aprendizagem, fora da escola. Além
do currículo escolar, as crianças ‘aprendem’ através dos currículos culturais programas da
televisão, desenhos, jogos eletrônicos, danças, revistas, filmes, enfim, em qualquer lugar onde
sejam ensinados modos de ser, estar e se portar.
Em segundo lugar, se o currículo produz, pode também transformar, e isso só acontece
se o currículo for cruzado pelas questões sociais de nosso tempo, se discutir seriamente as
multiplicidades culturais e as desigualdades sociais, se questiona a naturalidade das
diferenças, que resultam, em geral, em carências para uns e fartura para outros. Por ser
produção, o currículo não é pré-existente, não é dado de uma vez por todas, não é um plano de
referência previamente organizado, ele é cruzamento, é composto e dissolvido pelas ações dos
indivíduos, dissolve e compõe sujeitos, de acordo com os diferentes movimentos e fluxos que
segue.
O currículo não é o ‘salvador’ dos problemas educacionais enraizados em nossa
sociedade, mas ele pode fazer algumas coisas acontecerem, se questionar determinadas
práticas tradicionais tais como a hierarquização entre os conhecimentos, se dissolver os
binarismos entre alta cultura e baixa cultura, negro e branco, homem e mulher, normais e
anormais, se abordar as diferenças culturais e sociais, trazendo à tona as relações de poder e
controle nas quais estão envolvidas e se criar espaços para que novas formas de organização
social sejam forjadas.
Dar vida ao currículo e admitir que ele faz, produz, cria, pode significar o primeiro
passo na busca de uma educação que promova novas relações entre os grupos sociais e
culturais. Portanto, a natureza produtiva do currículo é apresentada para além das marcas
reprodutivistas, numa dinâmica onde a produção/reprodução ultrapassa análises baseadas em
determinada noção de ideologia de base estruturalista.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A envoltura com a cultura e currículo no espaço escolar abalou algumas verdades em
mim cristalizadas, enveredou-me por caminhos alheios e, num desvio, levou-me a um
encontro com os Estudos Culturais. Este encontro despertou a volição por vivências e
ponderações ainda não experimentadas. Algumas palavras passaram a pairar no ar: Estudos,
Culturas, Conhecimentos, Currículos, que culminaram neste cometimento de pesquisa.
No fluxo desta pesquisa, encontrei-me com articulistas do campo teórico dos Estudos
Culturais, eis Raymond Williams (1969) e Stuart Hall (2003) e curriculistas de âmbito
nacional, sejam Tomaz T. da Silva (1995, 2003, 2004), Marisa V. da Costa (2000), entre
outros. O desígnio destes encontros foi o de considerar a fundo as categorias cultura e
conhecimento tais como são arquitetadas no campo dos Estudos Culturais e em suas
ramificações teóricas.
E assim o fiz. Em Williams (1969, 1961, 1992) descobri a semente de uma concepção
de cultura lançada em meados da década de 50, que não era culturA única, singular,
solitária, antes, culturaS ordinária, comum, múltipla. Ser acoplada a estes adjetivos não
desqualificava a cultura, como bem articulavam alguns pensadores da época, que o digam
Mathew Arnold e Frank Leavis. Adjetivar a cultura era apenas o início do percurso no qual
este conceito passaria por diferentes interpretações e realocações.
Williams retirou o termo cultura do seio das sociedades tradicionais e o inseriu nas
experiências de vida de qualquer grupo social, concomitantemente, outros contemporâneos
seus, entre os quais Richard Hoggart, Edward Thompson e Stuart Hall, passaram a questionar
a concepção de cultura “como o melhor que se produziu no mundo”, e várias tônicas de
abordagem da cultura configuraram-se.
Adjacente à noção de cultura ‘comum’ e ‘plural’, está a noção de conhecimento
‘comum’ e ‘diverso’. Se o conhecimento é produzido pelos homens e mulheres nas relações
que estabelecem entre si, nas experiências de suas vidas cotidianas, então o conhecimento
também faz parte da cultura, e se a cultura não é privilégio de poucos, logo o conhecimento
também não é propriedade de determinados grupos sociais. O conhecimento das artes, da
literatura, da matemática, enfim, dos variados campos de saber, é produto coletivo, cria-se e
recria-se à medida que os sujeitos interagem.
Estas análises sobre cultura e conhecimento foram ganhando forma e consistência e,
por fim, compuseram o campo teórico dos Estudos Culturais, marcadamente político e
124
contestador, cujas proposições ultrapassaram o contexto europeu, ‘viajando’ pelos
continentes, alargando suas ‘preocupações’ teóricas, acolhendo os movimentos feministas, de
negros, homossexuais, e todos os demais grupos marginalizados na sociedade.
Este cometimento de pesquisa, porém, desdobrou-se para além do diálogo com as
obras destes autores. Almejei saber como as categorias cultura e conhecimento são concebidas
nos textos sob o enfoque dos Estudos Culturais apresentados no Grupo de Trabalho de
Currículo (GT-12) da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd), no
período de 2000 a 2006. Dado que esta associação congrega pesquisas desenvolvidas em todo
o país e tem se mostrado um espaço de discussão teórica oficial sobre currículo, considerei
pertinente tomá-lo como campo de pesquisa e, de fato, as contribuições que os pôsteres e
trabalhos completos proporcionaram à minhas intenções de análises foram significativamente
relevantes.
Ao debruçar-me sobre os textos no GT de Currículo da ANPEd, aspirei analisar sob
que proeminências temáticas, contextos teóricos e metodológicos as categorias cultura e
conhecimento são discutidas e que contribuições estas análises acionam para o campo do
currículo.
Visto que o campo dos Estudos Culturais é bastante amplo, possuindo várias vertentes
e ramificações teóricas, nas quais a cultura e o conhecimento são concebidos de modos
particulares, nesta pesquisa a intenção foi a de analisar a concepção tônica de cultura e
conhecimento presente nos textos, publicados no referido Grupo de Trabalho da ANPEd, o
que permitiria, conseqüentemente, desenvolver uma idéia geral sobre a influência do campo
dos Estudos Culturais no Brasil e, principalmente, perceber o que as análises neste campo têm
proporcionado para discussões em torno do currículo, que novas maneiras de pensar o
currículo estão sendo construídas e com base em que concepção de cultura e conhecimento?
Que possibilidades proporcionam na educação escolar? Será que é apenas na escola que os
conhecimentos são construídos e as identidades e subjetividades são formadas? Que “outros
currículos” existem e como atuam?
Eis alguns indicativos de respostas.
Em consonância com Estudos Culturais, cultura e conhecimento nos textos do GT de
Currículo da ANPEd são inseridos no campo da significação (SILVA, 2001) e do discurso
(FOUCAULT, 1986, 1996). É uma prática de significação e produção de sentidos, mas
também pode ser lugar de enunciação e diferença (BHABHA, 2003). O conhecimento é um
produto da cultura, está diretamente imbricado nela. Os consensos em torno da noção de
cultura e do conhecimento referem-se ao caráter múltiplo, criativo e social atribuídos a eles, e
125
em suas relações de disputas, conflitos e poder. A igualdade entre as culturas é tão evocada
quanto o reconhecimento das diferenças que a caracterizam.
Aliás, o tratamento dado ao conceito de diferença e identidade segue duas direções.
Uma delas seria a que suponho estar inserida na vertente crítica dos Estudos Culturais e
baseada em autores tais como Jean-Claude Forquim, Gimeno Sacristán e Henry Giroux, em
que certa tendência à naturalização das diferenças as pessoas são diferentes, possuem
identidades diferentes, porque as culturas são diferentes, embora não existam em posições
hierárquicas; cada ser é único, singular, possui sua identidade própria, não como contestar
ou desfazer isso, o que se pode fazer é reconhecer que essas diferenças existem, que cada um
tem sua própria identidade, não discriminá-las e não silenciá-las, antes, dar voz à elas,
respeitá-las, valorizá-las.
A outra direção, provavelmente inserida na vertente pós-estruturalista dos Estudos
Culturais, na qual Tomaz Tadeu da Silva, Homi K. Bhabha, Michael Foucault, Deleuze e
Guattari são acionados, a diferença aparece em relação a si mesma. É construída através dos
sentidos e da linguagem, não necessidade de ser respeitada ou reconhecida, pois ela existe
independente disso, tem sua autonomia própria. Ela não é dada e nem está acabada.
A diferença produz coisas capazes de modificar ela mesma. Ela produz subjetividades,
e estas subjetividades são mutáveis, renováveis, num ciclo sem fim, onde produzem outras
diferenças, que por sua vez, criam outras subjetividades. É um processo irregular, incerto,
infinito – o que sou hoje é diferente do que fui ontem e do que serei amanhã, não possuo uma
identidade íntegra, descoberta e mantida durante toda a vida, antes, possuo subjetividades que
se transformam, porque são culturais e a cultura não é fixa, ou possuo várias identidades, pois
sou formada por ‘muitas coisas’, por uma cultura que é múltipla, não sou unicamente ‘eu’,
mas convivo com vários ‘eus’ dentro de mim.
São os jogos de poder que direcionam os processos nos quais as culturas,
conhecimentos, identidades, subjetividades, significações são criadas e recriadas. Nos textos
de cunho pós-estruturalista, o poder não é pensado num enfoque maniqueísta – o bem contra o
mal – não há o bem e o mal, todos são maus ou, se preferir, bons. As disputas de poder e pelo
poder se dão tanto entre os grupos e movimentos sociais e culturais, quanto no interior de
cada um deles. As relações de poder existem em qualquer lugar em que pessoas interajam,
convivam.
Assim, se de um lado, determinados grupos, chamados de dominantes ou opressores
querem legitimar e manter sua cultura como padrão de referência, querem dar a seus
conhecimentos o status de científico e válido, por outro lado, existem outros grupos,
126
chamados de dominados ou oprimidos, que também querem a mesma coisa. A disputa em
questão não é entre oprimidos e opressores, é a disputa pela supremacia, pela autoridade, pelo
poder. São estes binarismos oprimido/opressor, branco/negro, mulher/homem, rico/pobre que
as análises no campo dos Estudos Culturais tentam eliminar, pois partem do pressuposto de
que a cultura não se divide em dois pólos alta cultura e baixa cultura, logo as polarizações
talvez não sirvam para justificar ou explicar as relações desiguais entre os sujeitos.
Porém, nos textos analisados, mesmo os que se assumiam nomeadamente no campo
dos Estudos Culturais, ainda foi possível notar alguns resquícios destas polarizações. De
modo aparentemente contraditório, alguns posicionamentos tendiam para análises referentes à
atuação de determinados grupos em posição de superioridade em contraposição a outros
relegados
41.22
Ou então, discutiam o currículo com base em duas concepções de conhecimento
concorrentes – o tradicional ou científico e o cotidiano ou popular.
O risco de tais textos partirem desta perspectiva é o de passar a idéia equivocada de
que os grupos ou culturas populares talvez não produzam conhecimentos que possam
considerados científicos, dado que estes são tidos como diferentes e opostos ao conhecimento
por eles produzido. E é exatamente contra este pensamento que os Estudos Culturais se
colocam. Todos os grupos sociais e culturais produzem conhecimentos, científicos e não-
científicos. Foi nos textos de cunho pós-estruturalista que tal posicionamento se evidenciou de
forma mais acentuada.
No contexto geral dos textos analisados, cultura e conhecimento são discutidas dentro
de temáticas voltadas principalmente para a mídia, os discursos que produz e seus efeitos na
formação de identidades, subjetividades, educação do corpo, e nas concepções de currículo e
escola. Ao abordarem esta temática, os autores trazem à tona teóricos tais como Henry
Giroux, Stuart Hall e B. Green e C. Bigum. As conjugações metodológicas mais usuais no
contexto destas temáticas envolvem pesquisas de natureza documental e de análise do
discurso.
As conjugações teóricas mais freqüentes nas análises desenvolvidas nos textos
incluem Tomaz Tadeu da Silva, especificamente ao tratarem dos termos cultura, currículo e
conhecimento e Michael Foucault, nas discussões em torno do poder, governo e discurso.
Stuart Hall é acionado para ampliar a análise sobre as mudanças na concepção de identidade.
41
Não quero dizer, com isso, que a perspectiva dos Estudos Culturais não reconheça as desigualdades existentes,
a diferença esno enfoque em que é dado a estas desigualdades. A discussão entre igualdade, desigualdade,
eqüidade é bastante polêmica, e talvez não seja oportuno, no momento, adentrá-la. Creio que conjunto das
inferências aqui feitas possa indicar algumas proposições e posicionamentos neste respeito.
127
J.C. Forquim é a quem os autores geralmente recorrem para abordar as relações entre cultura,
escola, seleção de saberes escolares num enfoque histórico, assim como G. Sacristán aparece
na mesma proporção nas análises sobre currículo escolar e extra-escolar, cultura, diversidade
e diferença.
E o currículo? Os rebatimentos que estas análises inseridas no campo dos Estudos
Culturais, envolvendo cultura e conhecimento, possibilitam reflexões teóricas importantes
para o campo curricular. Desde os anos noventa, segundo Moreira (2002), havia estudiosos
específicos ao campo do currículo que apontavam para a necessidade de serem desenvolvidas
análises sobre as transformações culturais no currículo, discutindo como ele é organizado e as
formas como é concebido.
Foi possível observar nesta, pesquisa desenvolvida no GT de Currículo da ANPEd,
que estas ‘idéias de pesquisa’ se concretizaram no início dos anos 2000, visto que
identificamos vários textos que vinculam o processo curricular a desenvolvimentos culturais
mais amplos, abrindo espaço para a crítica de diferentes manifestações culturais.
A ampliação do currículo para além dos muros da escola, sua concepção como teoria e
prática e como um ambiente em permanente mutação, representam elementos fundamentais
para que a formação de identidades e subjetividades seja melhor compreendida, assim como o
próprio processo educativo seja visto em sua total amplitude e complexidade.
Os estudos de Williams (1961, 1969, 1992) são basilares ao campo dos Estudos
Culturais. As idéias deste teórico, como a de tradição seletiva e da cultura comum, foram
interpretadas de inúmeras maneiras, até a ponto de subsidiar ou justificar a criação de
currículos dicotomizados (parte comum e parte diversificada) ou de concepções nas quais o
currículo é visto meramente como uma seleção de conteúdos neutros, comuns e necessários
para a aprendizagem e formação dos alunos. Suponho que esses sejam crassos equívocos.
A contribuição de Williams para os Estudos Culturais no que se refere à tradição
seletiva e a cultura comum dá-se principalmente no sentido de que levou as análises neste
campo a compreender que a educação está intimamente ligada às questões políticas e
culturais. Deste modo, o currículo não poderia ser um somatório de conhecimentos neutros,
selecionados para serem aplicados nas salas de aula.
O currículo é sempre resultado de uma tradição seletiva, o que indica que alguém
realizou uma seleção, fez escolhas que representam a visão de algum grupo do que seja o
conhecimento legítimo, válido. Ser o currículo algo seletivo não quer dizer que é algo dado,
mas que é produto das tensões e conflitos culturais, econômicos e políticos.
128
Assim, o currículo não é, e nem poderia ser, objetivo, ao contrário, ele subjetiva-se
repetidamente, porque suas raízes são históricas, culturais, sociais. Não há como propor um
currículo que proporcione conhecimentos iguais – “os mesmos para todos” – porque os
posicionamentos e os repertórios culturais existentes nas escolas são diferentes e múltiplos. O
tratamento igualitário é dissonante de um currículo que é originalmente marcado pela
diferença que privilegia e marginaliza outros pela maneira como é tratada.
O currículo é político, porque está envolvido com interesses particulares. É histórico,
porque é um artefato que sofre mudanças, de acordo com os diferentes significados a ele
atribuídos no decorrer da história. O currículo é artefato, porque é fabricado num processo
social que nem sempre é lógico, mas onde os sujeitos se digladiam.
O currículo é produção, porque é criado para fazer, construir pessoas. Ao se produzir
um currículo faz-se pensando em que tipo de pessoas se quer formar. A maneira como se trata
diferenciadamente os conhecimentos se dá com base do tratamento diferenciado que é dado às
pessoas. Diferentes currículos produzem diferentes pessoas e essas diferenças não são naturais
ou simplesmente individuais antes, são, acima de tudo, produzidas e ligadas a questões de
classe, raça, gênero, etnia.
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