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Rafael Haddock Lobo
Para um pensamento úmido –
A filosofia a partir de Jacques Derrida
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Filosofia. Aprovada
pela comissão abaixo-assinada.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Cesar Duque Estrada
VOLUME I
Rio de Janeiro
Março de 2007
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Rafael Haddock Lobo
Para um pensamento úmido –
A filosofia a partir de Jacques Derrida
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor
em Filosofia. Aprovada pela comissão abaixo-assinada.
Prof. Paulo Cesar Duque Estrada
Orientador
Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. Elizabeth Muylaert Duque Estrada
PUC-Rio
Prof. Rosana Suarez
Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. Maria Fernanda Bernardo Alves
Universidade de Coimbra
Prof. Mónica Beatriz Cragnolini
Universidade de Buenos Aires
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro
de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 de março de 2007
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do
orientador.
Rafael Haddock Lobo
Graduado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ),
cursou o Mestrado e o Doutorado no Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da PUC-Rio, onde realiza uma pesquisa junto ao
Núcleo de Estudos em Ética e Desconstrução (NEED) sob a
coordenação do professor Paulo Cesar Duque Estrada. É professor
do Curso de Pós-Graduação Latu Sensu Em Filosofia
Contemporânea da PUC-Rio e autor de “Da existência ao infinito:
ensaios sobre Emmanuel Lévinas” (Loyola/PUC-Rio).
Ficha Catalográfica
CDD: 100
Haddock-Lobo, Rafael
Para um pensamento úmido: a filosofia a
partir de Jacques Derrida / Rafael Haddock Lobo ;
orientador: Paulo Cesar Duque Estrada. – 2007.
2v. 453p; 30 cm
Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Filosofia Teses. 2. Jacques Derrida. 2.
Desconstrução. 3. Alteridade. 4. Indecidibilidade.
5. Escritura. I. Duque-Estrada, Paulo Cesar. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.
Não se pode dedicar uma escritura... Ela, por um
estranho movimento – movimento este que só lhe
concerne –, acaba por endereçar-se, secreta e
obliquamente, mas também sem álibi e sem restituição,
por amor e infidelidade, a alguém. Tenho fé que este
texto destinerra-se ao Paulo Cesar.
Agradecimentos
Não por ser de praxe, mas eu desejo e preciso expressar minha eterna (in)gratidão
a Paulo Cesar Duque-Estrada, meu “consciente não-orientador”, sem o qual não
teria conseguido, de modo algum, rascunhar esta escritura oblíqua. Pas de
parole...
A quem contra-assina esta tese sob a rubrica de uma “banca” ou um “júri” – este
“tribunal feminino” ao qual, com toda reverência, me submeto: Elizabeth
Muylaert Duque-Estrada, que sempre me encorajou e que aceitou fazer parte desta
“loucura”; Fernanda Bernardo, companheira de dores e alegrias desconstrutivas,
de lutas, enfim, por sua solidariedade; Mónica Cragnolini, por acompanhar meus
escritos, pelas advertências tão imprescindíveis ao meu novo rumo, e, sobretudo,
pelas huellas; Rosana Suarez, pela constância em minha estória e em minha
história; e Ligia Saramago, por estar disposta a, a qualquer momento, ser
convocada, com toda prontidão e carinho.
Aos mestres (com carinho): Danilo Marcondes (pelo dom do “úmido”), Geoffrey
Bennington, Gianni Vattimo, Gilvan Fogel (por sempre me apontar a necessidade
de se escrever com sangue, pois sangue é espírito), Gustavo Bernardo (por me
iniciar nesta “terceira margem”), Jean-François Courtine, Jean-François Mattei,
Jean-Luc Marion, Kátia Muricy (por me tocar: por suas lindas e incontáveis
imagens e alegorias), Luiz Bicca (por escrever os nomes próprios que indicariam
toda esta minha travessia em um guardanapo no Bar Lagoa, por ser mais que
consangüíneo e por ter me dado a orientação que eu mais necessitava para poder,
hoje, não me deixar orientar conscientemente), Roberto Machado (por apontar em
mim a coragem que eu precisava para seguir meu descaminho), Rosa Dias (pela
infinita gentileza e generosidade, por sua maternidade que não se restringe ao
mero afago) e Simon Critchley.
Aos diretores, coordenadores de pós-graduação e secretários do Departamento de
Filosofia da PUC-Rio ao longo de meus anos de pós-graduação: Carlos Alberto
dos Santos, Déborah Danowski, Diná Lúcia de Jesus, Edna Sampaio, Luiz Carlos
Pereira, Maura Iglesias, Oswaldo Chateaubriand Filho e Vera Bueno.
Às agências de fomento: FAPERJ, e CAPES.
Aos companheiros do Núcleo de Estudos em Ética e Desconstrução (NEED): Ana
Maria Continentino, Carla Rodrigues, Rachel Nigro e – sempre – Tatiana Grenha.
À Fazenda São José, que tanto me acolheu: Celeste, Fabiane, Fabiano, Patrícia – e
Victor.
Aos amigos: Bianca Gismonti, Claudio de Souza Castro Filho, Leandra Leal,
Marcele Bocater, Maria Priscilla Familiar, Rosana Vieira da Cunha e Sara
d’Almeida Dantas.
À minha família: Christina, Ebe, Laïs, Roberta, Rodrigo e Rômulo.
Resumo
Haddock Lobo, Rafael; Duque Estrada, Paulo Cesar (Orientador). Para
um pensamento úmido – a filosofia a partir de Jacques Derrida. Rio de
Janeiro, 2007. 453p. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
“Para um pensamento úmido – a filosofia a partir de Jacques Derrida” é
um estudo que visa a apresentar alguns aspectos estruturais à constituição do
pensamento ocidental que parecem ter sido recalcados pela filosofia ao longo de
sua história. Para tanto, a fim de apresentar esta estrutura - ao mesmo tempo
constitutiva e recalcada - do pensamento, recorreu-se à metáfora baconiana do
úmido ou, mais precisamente, da umidade do úmido. Em seu Novum Organum,
dedicado à formulação de um método científico que evite o erro e conduza o
homem no caminho do conhecimento verdadeiro, Francis Bacon rechaça com
veemência a esfera da comunicação como lugar, por excelência, do erro, fruto da
ambigüidade ocasionada pelo uso indevido das palavras. O termo úmido é, então,
tomado como exemplo para ilustrar os equívocos produzidos pela linguagem por
não ser de precisa definição, não sendo seco nem molhado. A tese em questão
parte do princípio de que o intuito de Bacon pode ser entendido como uma atitude
típica da filosofia, qual seja, a sua necessidade de clareza, distinção, imunidade,
contenção, determinação, consistência, unidade, isolamento etc., e vê nesta
característica uma semelhança com a crítica que muito comumente se associa ao
pensamento de Jacques Derrida e ao seu esforço para não oferecer nenhuma
definição precisa, nenhuma conceitualização possível, apresentando, sob o nome
“desconstrução”, um pensamento contaminado e disseminado através de seus
“quase conceitos”: os indecidíveis. Com isso, uma análise paciente da
indecidibilidade nas primeiras obras de Derrida constitui a primeira parte da tese,
seguida de uma tentativa de se compreender a umidade do úmido a partir de
algumas características assumidas pelo pensamento desconstrutor: a contaminação
pela alteridade, a metaforicidade, a ficcionalidade, a tradutibilidade e o elemento
autobiográfico do texto.
Palavras-chave
Deconstrução, Alteridade, Indecidibilidade, Escritura
Abstract
Haddock Lobo, Rafael; Duque Estrada, Paulo Cesar (Advisor). Towards a
moisty thought – the philosophy in the perspective of Jacques Derrida.
Rio de Janeiro, 2007. 453p. Doc. Thesis – Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
“Towards a moisty thought – the philosophy in the perspective of Jacques
Derrida” is a research that intends to present some traits which, although are
central to the constitution of the Western Thought, has been excluded by
Philosophy along its History. In order to present those structures of thought –
constituted to and at the same time excluded by Philosophy itself –, we started
with Bacon’s metaphor concerning the term “moist”, or, more precisely, the
moistness of the moist. In his Novum Organum, dedicated to the formulation of a
scientific method that avoids error and leads men through the path of the true way
of knowledge, Francis Bacon firmly discards the realm of communication which,
according to him, constitutes the place of error for excellence. In other words,
Bacon understands communication as resulting from the ambiguity occasioned by
the wrong use of words. The term “moist” is then taken as an example to illustrate
the equivoques produced by language, because according to Bacon it doesn’t
allow a precise definition, being neither dry nor wet. We take Bacon’s attitude as
being representative of a typical philosophical attitude with its necessity of
clearness, distinction, immunity, contention, determination, consistency, unity,
isolation etc. Also, we see the very structure of this attitude as operative in the
critics usually addressed to Jacques Derrida and its efforts to offer no precise
definition and conceptualization. Contrarily to the classical philosophical thelos,
Derrida presents, under the name “Deconstruction”, a thought which is
contaminated and disseminated by its “quasi-concepts”: namely, the
undecidables. A patient analysis of undecidability in Derrida’s first woks
constitutes the first part of the thesis, followed by an attempt to formulate an idea
of moistness, starting from some characteristics assumed by the deconstructive
thought: contamination by Otherness, metaphoricity, ficcionality, traductibility
and autobiographical elements of the text.
Keywords
Deconstruction, Otherness, Undecidability, Writing
Sumário
Volume I: “... não se orientar conscientemente no pensamento”
1. Introdução: “- Sim, sim: Mas não é, portanto, um prefácio” 10
2. “Tome-se como exemplo a palavra úmido 32
3. “De uma certa maneira, ‘o pensamento’ nada quer dizer” 82
3.1. A an-arquitetura da desconstrução 83
3.2. O projeto (abandonado) para uma gramatologia 109
3.3. O processo de disseminação 216
Volume II: “... desde o início do jogo”
4. Aposta 289
5. “Todo outro é totalmente outro” 291
6. “O sentido ‘próprio’ da escritura como a metaforicidade mesma” 330
7. “A escritura já é portanto encenação” 358
8. “Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível” 388
9. “Como se tornar o que se é” 402
10. Conclusão: aposições 433
11. Referências Bibliográficas 441
“Perdão por não querer dizer”
JD
Parte I
“... não se orientar conscientemente no pensamento”
“Sentido diz orientação. Orientação evoca oriente e oriente
diz nascente, nascividade. Tal saber, em sendo o sentido, é
pois a orientação e, em sendo orientação, diz movimento de
nascividade e de instauração interessada.”
(Gilvan Fogel, Da solidão perfeita: escritos de filosofia)
“Neste jogo da representação, o ponto de origem torna-se
inalcançável. Há coisas, águas e imagens, uma remessa
infinita de uns aos outros mas sem nascente. Não há uma
origem simples.”
(Jacques Derrida, Gramatologia)
“Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha
vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da
travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos
lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a
gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na
outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso
do em que primeiro se pensou.”
(João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas)
“É preciso entendê-lo assim e de outra maneira. De outra
maneira, isto é, na abertura de uma questão inaudita, que
não abre nem para um saber, nem para um não-saber como
saber por vir. Na abertura dessa questão, nós não sabemos
mais. O que não quer dizer que nós não sabemos nada, mas
que estamos além do saber absoluto (e do seu sistema
ético, estético ou religioso), em direção àquilo a partir do
qual o seu fechamento se anuncia e se decide. Essa
questão será legitimamente conhecida como não querendo
dizer nada, como não pertencendo mais ao sistema do
querer-dizer.”
(Jacques Derrida, A voz e o fenômeno)
11
1
Introdução
“- Sim, sim: Mas não é, portanto, um prefácio”
Sim. Começo com um sim – e, ao mesmo tempo, com uma citação. Talvez para
prevenir o leitor de que não mais se fará aqui que isto: dizer “sim” e citar. Dizer
“sim” no sentido de aceitar a herança que é legada pela tradição; e, aqui, mais
precisamente, por um certo filósofo: Jacques Derrida. Um nome próprio que,
consigo, traz inúmeros espectros que me convocam neste exato momento nesta
obra. E eis-me aqui. Um “sim” estranho, digo. Um sim que é, ao mesmo tempo, o
sim de Abraão e o sagrado sim da criança metamorfoseada Zaratustra. Um sim
contaminado, portanto, por Kierkegaard e Nietzsche – mas também, como tentarei
mostrar, por tantos outros. Além disso, cito. Certamente na esteira de Walter
Benjamin, em que se cita para abalar a própria noção de contexto. Tudo isso, em
suma, é o que pretendo e o que posso fazer aqui.
desculpas, dons, dívidas
E comecei, ao dar o subtítulo desta quase-introdução, citando Geoffrey
Bennington, não Derrida. Em seu livro Jacques Derrida, o filósofo inglês antecipa
a dificuldade de realizar seu desejo, qual seja, o de “sistematizar o pensamento de
J.D. a ponto de fazer dele um programa interativo que, apesar de sua dificuldade,
seria, em princípio, acessível a qualquer tipo de usuário”
1
. E este foi o grande
incentivo que encontrei para empreender esta tarefa: fazer uma tese sobre algo
que, em tese, ao menos na minha tese, não é tematizável. A dificuldade que
encontrei foi tanta que minha única opção foi assumir as dificuldades desta
“sistematização” como “condições de (im)possibilidade” para a escrita de minha
tese, pois, como indica Geoffrey – e devo admitir que a “proximidade” aqui
invocada pelo nome próprio, mais propriamente pelo prenome, é absolutamente
proposital – “o que está em jogo no trabalho de J.D. é mostrar em que um sistema
desses deve permanecer essencialmente aberto” e que, por isso, “este
empreendimento [o de J.D., o dele, G.B., e assim como creio – e preciso crer
1
BENNINGTON, G. “Derridabase”. In: BENNINGTON, G. e DERRIDA, J. Jacques Derrida
(tradução para o português de Anamaria Skinner). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1996, pág. 5.
12
que o meu também] estava de antemão voltado ao fracasso”. E, então, a única tese
possível é a tentativa de se “provar esse fracasso” e “demonstrar a necessidade
inelutável do fracasso”
2
.
Aposto, assim, nesse “fracasso” como a única maneira de mostrar como o
pensamento de Derrida (tendo ao lado seus fantasmas) é desde sempre úmido.
Nem seco, nem molhado, híbrido, contaminado, disseminado, espectral... E é
assumindo minha impossibilidade, mas de modo algum fugindo de qualquer
esforço, que me entrego a esta tarefa de “agarrar isto que escapa”, como aforisma
Clarice em muitas de suas escrituras.
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão
fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é
mais... E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o
presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já.
3
Recorrerei, então, incansavelmente, às aspas (a contragosto, possivelmente, de
Benjamin) e às notas de rodapé (como diria Derrida, por uma “ética da citação”
4
),
como também a incontáveis paráfrases, assumidas na maior parte das vezes,
espero eu. E como se pode ver, optei pela primeira pessoa nesta escrita, ainda que
isso possa parecer extremamente antiacadêmico. Porém, não poderia ser diferente.
Como também não poderia deixar de ceder à tentação que tive em evitar utilizar
ao máximo as letras maiúsculas, no intuito de dar prosseguimento ao que Derrida
chama de “emaiusculação”
5
.
Desta maneira, tentarei dar voz a Derrida através de um único termo, a
palavra úmido, que sequer encontrei em Derrida, mas que a ele retorno como
metonímia de uma obra por excelência “não-metonimizável” – e que, por isso
mesmo, pode ser mais “metonimizável” que qualquer outra: e para este “dar voz”,
2
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 5. Grifo meu.
3
LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pág. 09.
4
Como quando, por exemplo, vemos a quase-completa ausência de referências a Husserl e
Kierkegaard no Ser e Tempo de Heidegger, mesmo sendo óbvia a influência destes, entre tantos
outros, como seus contemporâneos Dilthey, Buber e Scheler. Aí então se pode entender o porquê
da defesa derridiana de uma “ética da citação” ou de uma “política de notas de rodapé”. Sobre isso,
remeto ao artigo “Hermenêutica e desconstrução: por uma ética da leitura”, de Ligia Saramago
(em Desconstrução e ética: ecos de Jacques Derrida).
5
Em “A diferença”, quando do aparecimento do termo “emaiusculação”, os tradutores para a
língua portuguesa Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães advertem: “O autor joga aqui
com a combinação inesperada de duas expressões: ‘maiuscular’ (grafar com maiúscula) e
emascular (ou seja, castrar, figura central da ‘perda’ em psicanálise). O que na ‘emaiusculação’ se
produz é, de fato, a perda essencial da maiúscula enquanto sinal gráfico do nome ‘próprio’.” (“A
diferença”, p. 62. NT).
13
outrossim, é necessário que se ouçam os ecos nietzschianos, kierkegaardianos,
benjaminianos e levinasianos encontrados na letra derridiana (sendo estes os que
eu escolhi, arbitrariamente, como só poderia ser; mas que pretendo, ao menos,
conseguir apontar a razão desta arbitrariedade), bem como alguns vultos que eu,
ainda que entre brumas, associo nesta espécie de contrato a Derrida.
*
Contrato, pois, como qualquer tese, esta pressupõe um contrato, uma aposta, uma
promessa. E ainda que o fracasso já esteja anunciado, não há como fugir de uma
antecipação, de uma justificativa, da anunciação de normas etc... Que haja
contrato! Mas, como previne Derrida, que se atente à inevitabilidade do perjúrio
e nesta me amparo.
Foi por este motivo que, muito diferente do que normalmente se faz, esta
“introdução” foi de fato (e de direito) escrita antes do resto do texto. Além de
fragmentos anotados, de idéias, de textos de comunicações apresentadas, ou
coisas deste tipo, não há nada pré-determinado além da promessa que o título e o
subtítulo da tese comportam e do desejo de fazer justiça a esta idéia. Com mais
uma paráfrase, é na escrita desta tese que espero me encontrar, permitindo que a
escritura se escreva, mas atentando à necessária seriedade exigida por uma tese de
doutorado e à aparentemente requisitada “originalidade” (que, no meu caso – nada
original – consiste em retirar um termo de seu “contexto original” – entre muitas
aspas, já que, como pretenderei mostrar, tanto não há, em Derrida, “uma”
originalidade, como a noção de contexto, em seu pensamento, é problemática – e
usar este único termo para ilustrar os traços fundamentais que, na minha opinião,
fazem da desconstrução um modo de se pensar outramente).
E, no entanto, a minha grande dificuldade consiste em justamente não me
deixar orientar por nenhuma tese, muito menos a minha. A, conscientemente,
como em inúmeras vezes me advertiu meu orientador, Paulo Cesar Duque-
Estrada, “não me orientar no pensamento” e a assumir as aporias e as inevitáveis
violências do discurso – sabendo que essa assunção, essa sinceridade já é, por si
só, mais justa e menos violenta do que os discursos que se dizem justos e não-
violentos. Como a orientação é inerente à necessidade de se construir um texto, a
tarefa de escrever uma tese “não se orientando” parece-me mais uma das
14
tentativas falidas de antemão às quais (com o mesmo esforço que me dedicaria se
soubesse que triunfaria) me dedicarei. Mas isso não seria mais uma armadilha do
que se chama de desconstrução? Assumir o inevitável fracasso já não seria, deste
modo, prenunciar um conseqüente triunfo? Espero que não. E minha promessa
nada mais é que tentar, ao máximo, fazer justiça a isto que é intematizável,
absolutamente não orientado, totalmente outro.
*
Minha inquietação (ou melhor, meu medo, para ser sincero: meu medo de assumir
uma posição, de assumir uma posição “minha”, de tentar apresentar um estilo e
assumir que isso diz respeito a mim, a meu desejo de escrever sobre isso e de,
pretensamente, dizer que penso isso frente a uma banca, para, por esse “isso”, ser
julgado) apenas diminui quando o próprio G.B. (um dos mais respeitados, senão o
mais conhecido estudioso e, se isso for possível, “especialista” na obra de J.D.),
nas suas remarques iniciais, apresenta o que chama de “desculpas programadas”.
Porém, este fato, ao invés de me tranqüilizar, deveria me assombrar, com todos os
possíveis sentidos para este verbo: se ele mesmo afirma que é “impossível,
certamente, escrever um livro desse gênero sobre Derrida” (em que se sistematize
a desconstrução), como eu, ainda que me desinibisse e me despisse de qualquer
modéstia, poderia escrever uma tese sobre esse pensamento sem cair no violento
aprisionamento da alteridade pela lógica do mesmo nem no fechamento da
abertura que Derrida tanto lutou para manter aberta na atitude disseminante de
seus textos?
E, como se defende Bennington, não se trata aqui de dificuldades “reais”
de leituras, pois isso, por mais que se ouça falar da dificuldade de se ler Derrida (e
até mesmo o próprio filósofo admitira em sua última entrevista antes de sua morte
que a escrita deve mesmo ser críptica
6
), se encontra em inúmeros autores da
filosofia: como fossem leituras fáceis os textos de Kant, Hegel, Husserl,
Heidegger etc. Mas é óbvio que, como todo “idioma” a ser traduzido, a língua que
6
Em entrevista e Jean Birnbaum, Derrida diz: “eis porque há na minha escrita uma maneira, náo
diria perversa, mas um pouco violenta, de tratar esta língua [o francês, o que se verá mais adiante
ao se abordar o neologismo différance]. Por amor... Se afectamos a língua com alguma coisa, há
que o fazer respeitando o modo refinado, respeitando no desrespeito a sua lei secreta. É isto a
fidelidade infiel.” (DERRIDA, J. Aprender finalmente a viver: entrevista com Jean Birnbaum,
tradução de Fernanda Bernardo. Coimbra: Ariadne Editora, 2005).
15
fala a desconstrução comporta suas próprias dificuldades, que, ao contrário do que
se objeta em vários casos contra Derrida, não são nada banais. Ao contrário,
poderia dizer que são “dificuldades estruturais”.
Esta dificuldade vem do fato de que todas as questões para as quais este gênero
de livro [o livro de Geoffrey, como também, em extensão, a dificuldade que vem
do fato de que todas as questões para as quais este gênero de tese, ao menos da
minha tese] deve habitualmente pressupor respostas, (...) todas essas questões
(para não dizer nada da própria questão [a questão da questão]) nos são
propostas pelos textos que devemos ler. (...) Nossos pequenos problemas de
protocolo de leitura (...): eles são todo o problema.
7
Deste modo, a questão, ao menos a minha questão que, até então,
hiperbolicamente, pareço adiar a abordagem, está já anunciada em meu problema.
Como tentarei mostrar, o úmido, ou, melhor ainda, a umidade do úmido é algo
intratável pela filosofia. No entanto, foi desde sempre tratado (tanto abordado ou
tematizado como remediado, submetido a tratamento, indicado a uma
(im)possível cura, como um phármakon). E este “desde sempre”, que funciona na
desconstrução como algo semelhante a uma estrutura de citação e releitura, é o
que Derrida, em Disseminação, chama de remarque
8
; este caráter de “re-
marcação”
9
que nos “obriga a uma certa passividade diante do dado, do dom, do
texto do outro que nos diz ‘Vem’ e que se tem agora de ler” que nos transmite
a tarefa de compreender porque “sem tudo isso (...) nenhuma leitura poderia abrir-
se e não se teria chance de começar a compreender”
10
.
Portanto, re-marcar parece-me ser o termo que mais cabe na tarefa à qual
me incumbo: citações e repetições. Mas uma outra advertência de Bennington se
dirige à repetição (posto que, desde Lévinas, a filosofia de modo algum pode ser
pensada como a repetição do mesmo),
pois se este livro [e, nesse caso, minha tese] quer ser a repetição fiel de um
trabalho sem igual (sem exemplo, sem precedente), é preciso que não se caia nos
perigos da repetição literal, da qual se sabe, a partir de Borges, que esta
(re)produz algo totalmente diferente do original.
11
7
BENNINGTON, G. “Derridabase”, págs. 15-16.
8
DERRIDA, J. La dissemination. Paris: Seuil, 1972, pág. 283 (traduzido para o inglês por Barbara
Johnson. Dissemination. Chicago: Chicago University Press, 1981, pág. 290).
9
Segundo a tradução de Anamaria Skinner.
10
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 16.
11
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 18.
16
O que, para Bennington, pressupõe reconstrução, análise e exposição (e,
sobretudo, exposição ao risco de se errar). Tal é, nestes termos, a lei da repetição
de toda obra – que, no caso da desconstrução, seria assumida, e de modo algum
recalcada, reprimida ou silenciada – que, para ser obra, necessariamente, se
repete. Esta “lei” que eu, aqui, afirmo ser constituinte de toda “obra”, segundo o
autor (neste caso não) parafraseado, acentua-se em Derrida. G.B. diz: “esse
trabalho, admirável por sua diversidade e sua consistência, seus poderes de
dispersão e de reunião, sua formação, não aceita divisão em estilos ou períodos”.
12
Digo que não penso ser esta uma exclusividade de Derrida por, em
primeiro lugar, achar que se aludir, ainda que tangencialmente, a alguma noção de
“exclusividade” na desconstrução parece-me absurdo, sendo que um dos termos
mais recorrentes na “ética” derridiana é o de herança; e, como conseqüência, se se
herda sempre da tradição uma herança – e essa é uma das re-marcações que aqui
prometo fazer – este “trabalho admirável” ao qual Bennington se refere também
pode ser encontrado, entre tantos autores dos quais Derrida se assume herdeiro:
em Benjamin, Lévinas, Kierkegaard, Nietzsche etc. Isso justifica a razão de, em
momento algum, se adotar um caráter historicista ou linear nesta tese. Nesta
concepção de obra não há linearidade: herda-se de modo disseminado; e, neste
sentido, Platão é tão presente como Freud e mesmo como o próprio Bennington na
obra de Derrida.
Talvez isso seja um traço distintivo da obra derridiana, mas não sei se o
próprio, agora de modo algum “presentificável”, concordaria com isso. No
entanto, é nesta re-marcação, nesta releitura dos escritos (filosóficos e não
filosóficos, com igual “dignidade filosófica”), é nesta repetição que algo pode
acontecer. Ou, nos termos de Derrida, que há “invenção do outro”
13
. E recorro,
uma vez mais, a uma citação de Geoffrey:
12
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 18.
13
Segundo Paulo Cesar Duque-Estrada, “a desconstrução é um pensamento do impossível, nos
dois sentidos do genitivo, ou seja, tanto o pensar quanto o pensado dizem respeito ao âmbito do
impossível” (DUQUE-ESTRADA, P.C. “Alteridade, violência, justiça: trilas da desconstrução”.
In: Desconstrução e Ética: ecos de Jacques Derrida. Rio de Janeiro / São Paulo: Ed. PUC-Rio /
Ed. Loyola, 2004, p. 37), ou, nas palavras do próprio Derrida em Psyché: inventions de l’autre: “as
mais rigorosas desconstruções nunca se autoproclamaram como possíveis. Eu diria que a
desconstrução não perde em nada em admitir que ela é impossível (...). Possibilidade, para uma
operação desconstrutiva, significaria, antes, o perigo. O perigo de se tornar um conjunto disponível
de procedimentos, métodos e aproximações acessíveis baseadas em regras. O interesse da
desconstrução, de uma tal força e desejo que ela possa ter, é uma certa experiência do impossível
17
Nessa abertura do outro (na direção do outro, para o outro, chamado pelo outro),
sem a qual o mesmo não existiria, há chance de acontecer alguma coisa. Ocorre
que o que torna nosso trabalho a priori impossível é justamente o que torna
possível pelo mesmo motivo. Deixar à sorte da sorte deste encontro.
14
*
Tendo isso em vista, pode-se perceber porque a iniciativa natural de um certo
modelo de tese que demandaria, de início, que se inscrevesse esse pensamento
“em uma tradição ou uma filiação para dizer em que Derrida é novo, cingir uma
originalidade com relação a seus predecessores frente aos quais ele se demarcaria
dessa ou daquela maneira”
15
está a priori afastada. Mas é necessário que se
comece: de algum lugar, por alguma questão, alguma dúvida ou certeza. De todo
modo, deve-se, apesar do provavelmente cansativo adiamento, começar. Começar
pelo começo, como se diz.
Como comecei pelo “sim”, começo, deste modo, com uma afirmatividade.
Contra toda uma leitura que liga Derrida a uma postura niilista, a desconstrução
não seria mais que um dizer “sim”. Até porque se, como se antecipou brevemente,
a escritura nos exige uma certa passividade, se o texto do outro nos diz “Vem”,
como Abraão, paradoxalmente, temendo e tremendo, só podemos mesmo dizer
este “me voici”. Não há como não responder a esta escritura que nos demanda
infinitamente que sejamos responsáveis, que respondamos através do próprio
texto lido, pois a escritura se traceja neste ser-responsável do responder-por da
responsabilidade, que nada mais é que uma responsibilidade. E, assim, começo:
dizendo “sim”, aceitando uma tarefa e uma herança de Jacques, agora entre tantos
outros fantasmas que amo, mas que me obsediam assombrosamente, como
Emmanuel, Walter, Friedrich, Søren... “Sim”, digo a eles – tendo, como
procurador desta multidão de rastros do qual fora herdeiro, Derrida,
espectralmente, à minha frente. E eis-me aqui.
(DERRIDA, J. Psyché: inventions de l’autre, p. 27). Em outras palavras, “o interesse da
desconstrução, de sua força e de seu desejo, se é que ela os tem, é uma certa experiência do
impossível: quer dizer (...), do outro, a experiência do outro como invenção do impossível, em
outros termos, como a única invenção possível” (DERRIDA, J. Psyché: inventions de l’autre, p.
27).
14
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 19.
15
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 11.
18
Se herança e tradição, tarefa e responsabilidade são temas fundamentais à
“ética” desconstrutiva, devo atentar que também os são a ingratidão, o perjúrio e a
obliqüidade. Lévinas já antecipara que a obra requer, necessariamente, uma
ingratidão do outro. A obra, para, nos termos de Derrida, configurar-se um dom,
deve ser um movimento de retidão que vai do eu ao outro, mas que de modo
algum retorna ao eu. O retorno ao eu, a restituição, a reconciliação, a gratidão, ou
um simples obrigado, anulariam a dissimetria da relação que pressupõe qualquer
dom. E é nesse sentido que, se pretendo de algum modo ser justo com Derrida,
fazer justiça a seu pensamento, devo, incessantemente, me preocupar em não
restituí-lo, em não retornar seu pensamento a ele, em não abrigá-lo na economia
do mesmo. Portanto, o tratamento oblíquo, o adiamento, os meandros e os tantos
nomes próprios que convocarei nada mais são que uma grata ingratidão, por amor
a Derrida.
Então, adiando, repetindo, pedindo perdão e citando, a tese já teve seu
começo. Mas, como indica G.B., “para começar do ‘começo’ não se começou
exatamente no começo; tudo tinha sido começado”
16
. Se um de meus
pressupostos é o de que na desconstrução tudo é, desde sempre, contaminado e
disseminado – e este é o “fundamento sem fundamento” de minha tese –, não se
pode dizer que, em Derrida, deva haver um ponto de partida pré-determinado. A
questão é a questão, como, em diversos momentos, citando Ponge, se vê que “pela
palavra pela começa pois este texto, cuja a primeira linha diz a verdade...”
17
, e,
desta forma, todo começo é sempre um recomeço. E, não havendo ponto de
partida determinado, correto, verdadeiro, pode-se começar de onde se quiser. O
que, de modo algum, é um relativismo, mas sim uma questão de convocação.
Recomecemos. Dizer que não se está nunca certo de um ponto de partida não é
dizer que se começa não importa onde. Começamos sempre de algum lugar, mas
este algum lugar não está nunca não importa onde. A acusação ou mesmo a
reivindicação do não importa onde já é ordenada pela exigência filosófica: não se
pode identificar o não importa onde (e portanto o não importa o quê), senão a
partir da garantia pelo menos prometida de um verdadeiro fundamento, que só ele
pode fazer crer na liberdade ou na irresponsabilidade de um não importa onde.
(...) O ponto de partida é, num sentido, radicalmente contingente, e que ele o seja
é uma necessidade.
18
16
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 23.
17
DERRIDA, J. Psyché: inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1987, pág. 19.
18
BENNINGTON, G. “Derridabase”, págs. 23-24.
19
E esta contingência necessária à qual Geoffrey se refere é o que eu tomo aqui
como convocação. Se é necessária certa passividade em relação ao texto do outro,
que se leia o ordenamento “venha” que toda escritura comporta, para, então, se
dizer “sim”, só posso começar de onde e de como fui convocado por Derrida.
Penso que só deste modo pode ser que algo aconteça. E esta é
verdadeiramente, sem nenhuma retórica hipócrita, uma aposta. Mas uma aposta na
qual eu realmente acredito. É minha em que vou escrever uma tese que
possibilita que eu me lance, aqui e agora, a escrever esta tese. E, ainda que
advertido por Geoffrey (que diz que “nada pode programar que alguma coisa
aconteça, pois aquilo que está no programa não acontece, anula-se na sua
previsibilidade, não tem força de evento [acontecimento]”
19
), programo-me a
programar-me ao mínimo, nas violências inevitáveis de toda escrita. Mas começo
pelo meu começo, então, por minha convocação.
É tudo o que tens a dizer?
De alguma maneira, tudo o que se tem a dizer: falta tudo o que se tem a escrever.
Tudo então está programado e nada acontecerá...
Não se pode evitar esse risco: não se pode predizer o evento, que não o seria
então. É preciso ver a posteriori se alguma coisa terá se passado. Espero ao
menos que se testemunhe que este prefácio [bem como esta “introdução”]
realmente ocorreu antes do livro [e desta “tese”] que ele precede?
Sim, sim: mas não é, portanto, um prefácio.
20
o projeto abandonado
É mesmo impressionante o movimento da escritura... E é por essa razão que me
permito, antes e em primeira pessoa, uma pré-história desta tese.
Minha dissertação de mestrado, intitulada “Da Existência ao Infinito: a
Redução Ética no Pensamento de Emmanuel Lévinas”
21
, buscou pensar a ética
levinasiana como um terceiro momento da Fenomenologia. O Filósofo francês
Jean-Luc Marion indica a possibilidade de se pensar dois importantíssimos
momentos do pensamento fenomenológico: primeiramente, a “Redução eidética”
de Edmund Husserl, que introduziu a necessidade radical da filosofia pensar o
19
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 24.
20
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 25-26.
21
HADDOCK-LOBO, R. “Da Existência ao Infinito: a redução ética no pensamento de Emmanuel
Lévinas”. Dissertação de Mestrado. PUC-Rio, 2003.
20
fenômeno radicalmente, como nunca antes fora pensado pela filosofia; e, depois, a
“Redução ontológica” de Martin Heidegger, que, a partir do apontamento de que a
História da Filosofia nunca pensou autenticamente o Ser, exige o status de
filosofia primeira à Ontologia. Deste modo, pensei poder afirmar que, herdeiros
de um desejo aristotélico de inaugurar uma “Filosofia primeira”, ainda que se
dirigindo contra a Metafísica, os grandes fenomenólogos visaram a mostrar o que
até então não tivera sido propriamente pensado pelo pensamento, fosse a noção de
“fenômeno”, que abalaria radicalmente a relação binária entre “consciência” e
“objeto”, fosse o pensamento do Ser, que, diferenciando-se de uma ciência ôntica,
desfaria a grande confusão entre Ser e ente que a filosofia cometera.
É nesse contexto que o pensamento de Emmanuel Lévinas entrou em cena.
Tendo sido aluno, em seus anos em Freiburg, de Husserl e Heidegger, Lévinas
dedicou-se ao longo de sua vida a uma preocupação com a “técnica”
fenomenológica. Todavia, para o filósofo lituano, a filosofia não se preocupara
devidamente com o que deveria ser o fundamento de todo pensamento: o Outro.
Daí se inicia uma filosofia baseada em uma obsessão pela alteridade, ou, segundo
a fórmula levinasiana, a ética como filosofia primeira.
Assim, minha preocupação ao longo da pesquisa de mestrado foi a de
compreender essa ética tal como apresentada por Lévinas sob seus aspectos
fundamentais: a defesa de uma Ética que se inaugura em uma crítica da Ontologia;
a relação com o Outro, desdobrada sob o prisma de um outro Humanismo; um
pensamento da morte que romperia com a onto-centrada finitude heideggeriana e
inauguraria o eu como sujeito ético; e, por fim, um estudo da difícil noção de
“infinito” presente na Ética levinasiana a partir da questão do amor e da justiça
22
(e como posso, hoje, observar, a presença das letras maiúsculas, em Lévinas –
algo que atualmente me confere uma certa alergia –, ainda é impressionante.
Mesmo crítico da Ontologia e do Pensamento do Ser, ele propõe uma Ética e uma
Filosofia do Outro).
Como se sabe, o percurso de Lévinas, nessa empreitada ética, o conduziu a
uma crescente aproximação da religião a partir de suas leituras talmúdicas. O
princípio fundamental de alteridade, o Todo-Outro levinasiano, cada vez mais se
22
A dissertação de mestrado foi ligeiramente modificada e posteriormente publicada como Da
Existência ao Infinito: ensaios sobre Emmanuel Lévinas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo:
Loyola, 2006.
21
aproxima de sua concepção de Deus (ainda que, como defende, um “Deus sem
Ser”, não ontológico e, sim, ético). E, assim, o percurso levinasiano desloca-se,
primeiro, abruptamente, da Ontologia à Ética, e, depois, parece deslizar,
sutilmente, da Ética à Religião. Foi justo nesse momento que optei por não
acompanhar o pensamento de Lévinas. E o que, a princípio, pode ter parecido uma
arbitrariedade, se mostrou, por fim, uma importantíssima decisão para a
continuação de minha pesquisa, pois, nessa decisão de “deixar o clima”
23
da
religiosidade levinasiana, ou, melhor ainda, de não acompanhar sua concepção
teológica de Todo-Outro, percebi que a noção de “disseminação” presente no
pensamento de Jacques Derrida me ajudaria a não pensar esse Outro, que se vê no
rosto de todo aquele que me chega, como apenas o reflexo deste Todo-Outro sem
face, onipresente. Dessa maneira, Derrida me pareceu “resolver” o problema que
encontrava em Lévinas (que é o perigo, na esteira de Heidegger, de inaugurar
mais um pensamento triunfante, uma busca definitiva de fundamento, de sentido,
de orientação) e, se em Lévinas, a abrupta ruptura da Ética com a Ontologia
antecipa o deslizamento rumo à Teologia, meus escritos buscaram assumir esse
primeiro momento radical e seguirem-se de um, agora perceptível, deslocamento
para a desconstrução.
Algo que creio que deve ser ressaltado é o fato de Paulo Cesar, de modo
bem coerente com sua “ética do acolhimento”, nunca ter me sugerido uma maior
presença de Derrida em meus textos. Insistentemente, li Derrida ao longo desses
anos, nos cursos, nos encontros do Núcleo de Estudos em Ética e Desconstrução
e, também, solitariamente; mas só agora percebo que a postura ética de meu
orientador – o desejo de dar voz a Lévinas em seus cursos e em suas publicações –
apenas deixaria (ainda que, creio eu, ele também não o soubesse) vir a ser o que é:
a contaminação. Pois como o próprio Lévinas disse, não parece ter havido, desde
Kant, um pensamento do porte de Derrida, um novo paradigma, mas um
paradigma de uma força única e de uma potência avassaladora, que, como um
corpo sempre estranho, se instala no seio de um discurso e o desconstrói
23
O termo “deixar o clima desta filosofia” foi usado por Lévinas, em Da existência ao existente,
para apresentar seu rompimento com Heidegger (LÉVINAS, E. De l’existence à l’existant. Paris,
Vrin, 1986, pág. 19. Tradução para o português de Paul Albert Simon e Ligia Maria de Castro
Simon. Da existência ao existente. Campinas, Papirus, 1998).
22
internamente, mas com toda a mesura cabível
24
. E, completamente de acordo com
Lévinas, hoje posso afirmar que, ainda que de início sem saber, o vírus da
desconstrução instalou-se em meu coração.
É mesmo impressionante o movimento da escritura!
*
Logo depois, no momento de pensar no projeto de doutorado, as coisas foram se
tornando mais claras para mim. Além disso, outro importante acontecimento nesse
meu percurso foi meu encontro com o pensamento e com a pessoa de Geoffrey
Bennington. De início virtuais, algumas impressões tornaram-se ainda mais fortes
em sua estada aqui no Rio de Janeiro a convite de nosso Núcleo de Estudos em
Ética e Desconstrução, o NEED. Com toda sua delicadeza britânica, suas
sugestões foram cruciais para a escrita de meu projeto. Sendo um conhecedor de
Lévinas e de Derrida, Bennington foi um elegante ouvinte para minhas
inquietações e confirmou uma suspeita minha: que as leituras derridianas
conferem uma maior dignidade à obra de Lévinas, por não serem enclausurantes
como as que os próprios levinasianos empreendem. Pois, se, em Lévinas, já havia
a indicação da dissimetria e da necessária ingratidão do outro, as análises oblíquas
de Derrida são, neste sentido, muito mais levinasianas do que as que fazem os
leitores de Lévinas. E, desta maneira, minha opção por “resolver” o problema do
aparentemente inevitável direcionamento do pensamento levinasiano à teologia,
tendo como instrumento para isso a desconstrução, não foi um problema nem uma
precipitação, mas, pelo contrário, a possibilidade mesma de se fazer justiça ao
próprio Lévinas.
Preso às amarras da Fenomenologia, à busca cega de um fundamento
único, a uma teleologia, de um lado, mas também apontando para o intematizável,
ao indizível, à alteridade que sempre escapa, de outro lado, Lévinas se localiza no
limite da Fenomenologia, com um pé dentro e outro fora, mas de algum modo
sentindo a necessidade de transpor esse limite. Talvez, o termo certamente
contraditório apontado pelo filósofo italiano Mario Vergani para denominar esse
24
LÉVINAS, E. “Jacques Derrida: Wholly Otherwise”, in: Proper Names. Califórnia: Stanford
University Press, 1996 (LÉVINAS, E. “Jacques Derrida: Tout Autrement”, in: Noms Propres.
Paris: Fata Morgana, 1976).
23
pensamento, uma “Fenomenologia do impossível”
25
, possa mostrar esta
dificuldade da empreitada levinasiana. E é nesse sentido que creio que a
desconstrução do pensamento levinasiano seja a forma mais justa de dar
prosseguimento a seu projeto, sem que se caia em uma teleo-teologia.
Assim surgiu a primeira versão de meu projeto de doutorado, intitulado
primeiramente “Sobre a Hospitalidade: Derrida leitor de Lévinas”. Nesse
momento, eu acreditava seriamente na possibilidade da existência de duas fases
no pensamento derridiano, e que Lévinas teria sido a influência fundamental para
o que eu chamei de uma “reviravolta ética” na desconstrução. O objetivo de meu
projeto era, portanto, realizar uma análise sistemática da questão da hospitalidade,
questão esta que poderia representar a virada ética de Derrida. E, caso se
concordasse com a existência de duas fases no pensamento de Derrida, o divisor
de águas seria, justamente, o aumento de referências à obra de Lévinas. O que eu
acreditava nesse momento era que na década de oitenta teria havido a chamada
“reviravolta” em seu pensamento, na qual Derrida passaria a preocupar-se, em
detrimento de questões como História da Filosofia e Filosofia da Linguagem, aos
problemas de um cunho unicamente ético, como “justiça”, ”política”, “amizade”
etc. E seria justo nesse período, que se estenderia nas últimas duas décadas, que
veríamos, cada vez mais fortemente, aparecerem as indicações das leituras
levinasianas de Derrida. E, mais ainda, segundo esse projeto, não seria o
pensamento de Lévinas como um todo que teria mudado o eixo da desconstrução,
minha hipótese é a de que teria sido justamente a recepção do conceito levinasiano
de “acolhimento” pelas recentes obras de Derrida que teriam desviado seu
pensamento rumo à ética.
*
Ainda hoje vejo a importância do conceito levinasiano de acolhimento para
Derrida, bem como que a questão da hospitalidade é um tema norteador das
políticas da desconstrução, mas os constantes diálogos com Paulo Cesar e os
apontamentos das leitoras do meu projeto, Mónica Cragnolini e Rosana Suarez,
25
VERGANI, M. Jacques Derrida. Milano: Bruno Mondadori Editori, 2000.
24
foram fundamentais para que minha pesquisa tomasse um rumo, já, naquele
momento, diferente.
O constante argumento de meu orientador contra esse meu pré-texto
sempre foi o fato de que, para ele, a preocupação ética já se encontrava presente
no pensamento de Derrida desde seus primeiros trabalhos. Como maior exemplo
disso, o quase-conceito “rastro” (que, segundo o próprio Derrida, se aproximaria
bastante da apresentada por Lévinas), que aparece pela primeira vez em 1967, na
Gramatologia, nada mais seria que uma radical abertura à alteridade. Apesar de
minha forte resistência, ao debruçar-me mais cuidadosamente sobre esses
primeiros textos de Derrida, constatei que, ainda que o filósofo não se dedicasse
propriamente a temas éticos, seu pensamento desde o início estaria assentado
sobre uma radical concepção de alteridade – fato este que me obrigou a aceitar
(como em um solilóquio) a completa impertinência de meu projeto inicial.
Também, a necessidade de precisar melhor que ética seria essa que eu
pretendia abordar, que me foi indicada por Rosana Suarez, me fez, inclusive,
questionar a pertinência do termo “ética” para o pensamento ao qual me dedicava.
Ela me advertiu que quando eu dizia que a radicalidade do pensamento
levinasiano encontrava-se na pretensão de deslocar o eixo da filosofia rumo à
ética, eu me veria obrigado a revelar que eixo filosófico é este que estaria sendo
deslocado. Por outro lado, eu dava a entender que o eixo da filosofia jamais teria
sido a ética, até Lévinas, o que, segundo ela, seria plena e certamente discutível.
Outro fator de extrema importância para a questão ética que desejava tratar foi a
relação entre “ética” e “alteridade”: foi apontado por ela, então, a pressuposição
minha de uma sinonímia entre ética e alteridade e, de acordo com sua crítica, nem
todo pensamento ético privilegiaria, necessariamente, o problema ou o tema da
alteridade e do outro (exemplificando sua objeção com referência à eticidade
eudemonista e às chamadas “éticas de si”, como as denomina a pesquisa
foucaultina, mas também à “ética aristocrática” de Nietzsche, que dificilmente
pode ser considerada como sendo focada no “outro”). Assim, a ênfase na
alteridade deveria ser assinalada como sendo, sobretudo, levinasiana e derridiana
e, dessa forma, aquela sinonímia (ou, como defendi no projeto, que a radicalidade
ética aponta para a alteridade, sobretudo, para o “Outro”), seria uma ênfase a ser
creditada aos dois autores escolhidos e um ponto a ser cuidadosamente
desenvolvido por mim.
25
Além disso, as sugestões de Mónica Cragnolini, em um primeiro
momento, confluindo com as conversas que tive com meu orientador, apontaram à
importância de se atentar aos “rastros levinasianos” não só nas recentes obras de
Derrida, mas mesmo naquelas que eu tinha denominado mais propriamente
“teoréticas”, sobretudo através da preocupação derridiana com a linguagem.
Entretanto, uma advertência endereçada a mim, em seus comentários, foi algo de
extrema relevância para que eu dirigisse minha pesquisa para um rumo totalmente
outro. Segundo ela, talvez se poderia dizer que, com Lévinas, aconteceria algo
similar ao que acontece com Nietzsche na obra de Derrida: estando tão presentes
(ou disseminados em seus textos), possivelmente nem caberia localizar ou
precisar suas influências. Deste modo, Mónica me fez decisivamente desacreditar
na viabilidade de desenvolver um projeto como o então pretendido.
E foi desse modo que, ao invés de defender a tese sobre a existência de
duas fases no pensamento de Derrida, sendo a fase atual devedora das leituras
éticas que este empreendeu de Lévinas, eu realizei, então, que, sendo, desde seu
surgimento, “ética” e estando em constante diálogo com o pensamento
levinasiano, a desconstrução proporia um novo paradigma ético, que talvez nem
sequer possa ser chamado mais de ética (devido à carga metafísica presente nessa
palavra). Mas, de acordo com isso, constatei, então, que, ao lado de Lévinas (e na
infidelidade exigida pela amizade e que faz justiça à obra), Derrida inauguraria
um pensamento completamente outro, um modo todo-outro de pensar.
a promessa atual
Ao mesmo tempo em que eu ia me desiludindo com meu projeto inicial, até a
iniciativa de, de fato, abandoná-lo (ímpeto este muito rejeitado por mim, pelo fato
de meu projeto anterior tratar de um tema no qual eu realmente me sentia seguro,
chez moi, depois de minhas leituras para o mestrado e para o doutorado), outros
rumos foram se mostrando de irrecusável atenção. O primeiro acontecimento – e
hoje posso dizer que o mais importante deles – para que eu fosse precisando
melhor o que eu desejava mesmo estudar foi meu encontro (no sentido próprio de
Martin Buber: em que ocorre uma verdadeira relação com a alteridade) com o
termo úmido.
26
Na Semana dos Alunos de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio de
2003 (SAF IV), em uma palestra em que o tema central de sua exposição era a
filosofia da linguagem, o professor Danilo Marcondes aludiu, de passagem, ao
Novum Organum, de Francis Bacon. No entanto, o que me marcou, nesta fala, é
que Bacon apresentaria uma certa repulsa ao termo “úmido”, pois este seria de
difícil precisão, por não ser nem seco nem molhado – e, por isso, um “conceito”
inferior aos outros mais precisamente distinguíveis. Isso ressoou de tal maneira
em meu pensamento que, dias depois, eu escrevia para o Danilo para,
ansiosamente, pedir uma “orientação” sobre esta passagem de Bacon.
Prontamente, como não poderia deixar de ser, recebi uma mensagem que me
indicava a leitura específica do Livro LX do Novum Organum. Tendo, de
imediato, lido, ficou, para mim, claro, naquele momento, que a posição de Bacon
com relação ao termo úmido poderia ser transferida para a filosofia de um modo
geral, devido à sua necessidade de definições, distinções, conceitualizações,
classificações etc...
Além disso, percebi nesta recusa da umidade – o que de agora em diante
pretendo chamar de uma “estrutura úmida” ou da “umidade do úmido” – uma
extrema semelhança com a crítica que comumente se associa a Derrida pelo fato
deste não oferecer nenhuma definição precisa, nenhuma conceitualização
possível, e apresentar sempre um pensamento contaminado e disseminado através
de seus “quase conceitos” inapreensíveis, sem definição: os indecidíveis. No
entanto, isso me parecia um ótimo projeto para uma pesquisa futura, já que estava
(ainda) me sentindo confortável com minhas leituras “ético-políticas” de Derrida e
Lévinas. Entretanto, hoje, e agora, torna-se mais que imprescindível uma menção
ao dom com o qual, com sua extrema generosidade, Danilo me presenteou (e
talvez esta seja uma das mais cabíveis exemplificações do dom, em que, de modo
algum, se sabe que se está doando algo). E este paradigma do dom, destarte, foi o
que me fez perceber todos os dons anteriormente dados e os que ainda seriam, a
mim, silenciosa ou inadvertidamente, ofertados.
*
Ainda neste ano, outro fato marcou definitivamente o abandono de meu projeto
anterior e a minha decisão de dizer “sim” à convocação que, aos poucos, foi se me
27
impondo, e que teve seu estopim nas palavras do Danilo. As discussões sobre o
pensamento imagético, fomentadas pelos cursos e pelos textos de Kátia Muricy,
foram fundamentais para que eu repensasse a “forma” da apresentação de um
pensamento como o que eu pretendia estudar. Se, mais que tematizar o outro, o
pensamento é constituído pela alteridade, um modo de se pensar completamente
outro deveria, então, imprescindir de uma maneira de escrita completamente
outra. Algumas dessas inquietações deram margem ao texto escrito para o meu
exame de qualificação (que tratou do deslocamento ético que o pensamento
imagético possibilitaria). Na conclusão deste texto
26
, cheguei à constatação de
que um pensamento realmente ético, que pretende dar lugar à alteridade, ou
talvez, até mais, constituir-se através desta alteridade, só se torna possível se “se
constrói na medida mesma em que se desconstrói, que assume como estilo a
urgência de deter o leitor, de problematizar, de chocar e também de convocar à
responsabilidade. Ou seja, de um pensamento que não tem nada a dizer, só a
mostrar”
27
. Cheguei à hipótese então de que só se torna possível “umedecer” o
discurso racional (e, pela primeira vez, cedi à tentação de utilizar este termo) se se
deixa escapar o que se tenta arduamente controlar, se se permite, simplesmente,
que aconteça o que tem que acontecer: pois só assim pode acontecer o indizível, o
inassimilável, o impossível.
Outra reflexão à qual tangenciei neste texto – que se seguiu a inúmeras
“perturbações” que endereçava em mensagens escritas e virtuais à Kátia –, foi
que, além deste caráter imagético da escritura (que, como afirmei, possibilita uma
escrita realmente “ética”, pois permite que o discurso racional se contamine pela
alteridade da metáfora, da literatura, da ficção, ou seja, de seu outro), não se
poderia mais lutar contra a intrínseca relação entre vida e obra em nome da já tão
denunciada (por Nietzsche, Lévinas, Derrida etc.) “neutralidade filosófica” (e que,
neste sentido, a escrita fragmentada estaria intrinsecamente ligada a uma “vida
dilacerada”, tomando Walter Benjamin como exemplo). E como não se poderia
mais negar o caráter autobiográfico de todo texto
28
, em nome da falsa isenção
científica que se pretende assumir de acordo com as normas acadêmicas, eu, em
nome mesmo do rigor filosófico, da lucidez e do exercício constante exigido pelo
26
Que foi posteriormente publicado em Comum, v. 09, n. 22 (janeiro/junho 2004).
27
HADDOCK-LOBO, R. “Walter Benjamin e Michel Foucault: a importância ética do
deslocamento para uma Outra História”, p. 71.
28
Sobre isso ver o último capítulo da tese.
28
labor filosófico, não poderia, de modo incoerente, deixar de assinar (ao menos a
apresentação de minha tese) na primeira pessoa, nem me abster de assumir o meu
texto como a própria experiência de escreve-lo, ou melhor, como a própria
experiência dele se escrever.
Não que eu critique a incoerência, mas – se o formato acadêmico não me
permite uma escrita puramente imagética, se talvez a própria filosofia seja o
grilhão da imagem, tendo apenas na contracorrente alguns pensadores (como os
tão citados S.K., F.N., W.B., E.L., J.D. etc.), e, ao menos, seja-me permitido um
mínimo de assunção autobiográfica – minha preocupação concentrou-se nesse
exercício de abertura à alteridade, para que a escritura se fizesse, por mim: para
que, ela se escrevendo, eu pudesse assinar essa escritura.
O movimento da escritura... Impressionante. Pois foi deste modo –
fragmentado, autobiográfico, não linear – que as impressões para esta tese me
foram chegando. Sem ter, ao menos, um novo “projeto”, para substituir o
abandonado, apenas ofereço (como, antes disto, tive de me oferecê-la) esta
“promessa” de tentar, com respeito a todas estas vozes – aos vivos e aos mortos,
aos que se sabem e aos que não que não se sabem aqui “presentes”, aos que
nominalmente mencionei, que me convocaram e com as quais estou infinitamente
endividado –, sinalizar traços de algo que se assemelhe a um pensamento que tem
como metonímia a aparentemente recusada pela filosofia noção de umidade.
o título, a assinatura
“Para um pensamento úmido: a filosofia a partir de Jacques Derrida” é, portanto,
uma tese sem tese; e isto pode ser o que, na minha tese, pode configurar uma tese.
Mas, antes de escrevê-la, antes de qualquer coisa, antes mesmo de escrever estas
observações que de modo provavelmente cansativo estendem-se ad infinitum, eu a
batizei. Assim como a introdução de uma tese normalmente é escrita a posteriori,
para que se dissimule o perjúrio escondido por detrás de toda promessa, seu título
também é dado conforme aquilo que foi escrito. Mas se, como pretendo, intenta-se
a experimentar honestamente o movimento da escritura, o batismo deve ser o
primeiro gesto.
29
Como retomarei à frente, a relação entre obra e filho, em Lévinas, e
posteriormente remarcada por Derrida, torna-se expressão máxima de um
pensamento que leva em consideração a alteridade. Portanto, de início, há
fecundidade – o que pode ser encarado como um outro termo para a passividade
necessária ao dizer “sim”; ser “tocado”, “convocado”, “fecundado” pelo outro
para que, daí, advenha o terceiro, a escritura... E como a criança (em que escuto
ressoarem, em mim mesmo, e não necessariamente em Lévinas, os ecos de
Zaratustra) que, ao nascer (sem que se saiba como ela será, como vai parecer, qual
será seu caráter, mas que ainda assim precisa por direito de um nome próprio –
ainda que não assine por si mesma, que não responda por si), precisa de um
batismo (e mesmo sabendo que esta criança trará consigo a ingratidão, a
constante não-resposta às demandas, sendo por isso a possibilidade do novo),
como esta criança, a tese também clama por um nome próprio, que reflita minhas
promessas (como pretenso “pai”, “autor”, “dono”, “patrão”, ou qualquer outra
ilusão inevitável que eu assuma) e que, mais ainda, transmita essas promessas ao
outro, seja como um contrato ou um convite.
A despeito de sua forma gramatical, o título de um texto funciona como seu nome
próprio. Inscrito na borda exterior do limite ou da moldura que circunscreve o
texto (do qual a capa seria a figura empírica), o título identifica o texto e, como
todo nome próprio, permite que dele se fale em sua ausência. (...) O título, mais
do que a atribuição a um nome próprio de autor, é o próprio operador da
normalidade e da legalidade textual.
29
E, deste modo, retornando às minhas paráfrases de Bennington, “nomeando o
texto ‘idiomático’ que ele intitula, o título faz parte dele sem que realmente dele
faça parte”
30
, pois “na verdade, título e subtítulo funcionam sempre como
promessas
31
.
Como a questão do nome próprio é uma das promessas dentre as tantas
que aqui assumo, limito-me apenas a, agora, terminar com um breve comentário
sobre o que, em seu nome – em nome da tese que, como a criança, ainda não
responde por si e pela qual me nomeei procurador –, como em meu nome, devo,
com minhas mãos, assinar.
29
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 169.
30
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 170.
31
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 171.
30
Se, para Benjamin, a tradução marca a sobrevida da obra, a assinatura,
para Derrida, sobrevive-me como o que há de meu em meu nome próprio, como a
maneira pela qual eu lido com o que me foi determinado pelo outro: é, portanto,
em seus termos, aquilo que é mais forte que a morte. E, se, como se adiantou, não
vejo nenhuma “originalidade” na desconstrução (pois se está desde sempre
antecedido pelo outro), a assinatura, a minha assinatura, ainda que inevitável, que
aqui, neste caso, daria legalidade tanto a meu nome próprio como à tese da qual
supõe-se que eu seja autor, será sempre uma repetição frustrada da minha tentativa
de restituir-me da propriedade perdida de meu nome próprio.
O eu-aqui-agora implicado em toda enunciação, e perdido no escrito, é a
princípio recuperado na assinatura que se apõe ao texto. O ato de assinar, que não
se reduz à simples inscrição de seu nome próprio, esforça-se por um rodeio
suplementar, em reapropriar a propriedade sempre já perdida no nome mesmo. O
que implica que a assinatura, para marcar um aqui-agora, esteja sempre de direito
acompanhada pela marca de um lugar e de uma data.
32
O que, segundo esta lógica, tornaria a assinatura uma garantia de legalidade para
qualquer escritura, ainda que, como se verá quando se falar do autobiográfico,
toda assinatura seja sempre repetível – o que é necessário, mas por isso
reproduzível, imitável. Portanto, esta necessidade de se assinar um texto, como de
se localizar e de se datar, apesar de necessária, é, também, sempre fadada ao
fracasso e ao perjúrio.
E um último aspecto que queria aqui remarcar, para encerrar minhas juras
e meus perjúrios, meus projetos, percursos e promessas, é que uma única
assinatura (mesmo que implícita no texto: como, por exemplo, um nome na capa
ou na primeira página de um escrito, que pressupõe necessariamente que, em
algum momento e em algum lugar, o autor tenha assinado presentemente um
contrato, uma permissão etc.) nunca é suficiente. Sempre se precisa de uma
contra-assinatura, também explícita ou implícita. Como todo contrato, o autor do
texto compromete o leitor neste pacto de leitura que, simplesmente ao ler, contra-
assina a assinatura do autor. “Segue-se que toda assinatura só é uma assinatura se
reclamar ou prometer uma contra assinatura”
33
, diz G.B., o que indica que, de
acordo com análises desconstrutivas que pretendo aqui seguir – neste contrato que
32
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 108.
33
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 113.
31
assino com a desconstrução e que torna minha tese uma contra-assinatura da obra
de Derrida -, “minha assinatura está contaminada por essa alteridade, já é de
alguma maneira assinatura do outro”
34
.
Sob uma análise geral, pois nunca se pretende que apenas a banca
examinadora leia sua tese, presumo eu, esta contra-assinatura do outro manifesta o
caráter aberto de todo texto e ilustra a convocação, o “vem” que toda escritura
impõe. Assim, em um primeiro aspecto mais abrangente, a assinatura, que me
torna responsável por meu texto, que indica a suposta propriedade mais própria de
meu nome próprio, é também o que torna o leitor responsável pelo texto que lê,
que o obriga a assinar sua leitura e a assumir todo texto por ele lido como sua
herança. Mas, em uma análise mais estreita, aqui diretamente relacionada a este
meu texto, que terá, ao menos, seis ou sete leitores, dentre os quais me incluo, isso
significa – inclusive formalmente, já que os membros da banca devem assinar o
termo de aprovação e que este termo deve constar em todos os exemplares da tese
finalizada, revista, entregue à biblioteca etc. – que ainda que eu opte por aqui
assinar este texto, por acreditar ser este gesto meu de dever e de direito, isso quer
dizer que este texto não será legítimo sem as outras assinaturas exigidas – por
mim, pelo próprio texto, pela instituição, pelo desejo de prováveis ou casuais
futuros leitores e assim por diante. “Melhor, pelo fato mesmo de toda assinatura
ser somente lembrança e promessa de contra-assinatura, nenhuma assinatura está
verdadeiramente completa antes da (contra-) assinatura do outro”
35
.
Cruzeiro, 26 de janeiro de 2006.
_________________________
Rafael Haddock Lobo
34
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 117.
35
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 118.
2
capítulo primeiro
“Tome-se como exemplo a palavra úmido
“Isto não é um capítulo”. Como a “introdução” não foi de fato uma introdução,
como ela não introduziu propriamente (se isto for possível) o tema da tese (e se
isto for uma tese), então é necessário que, neste primeiro capítulo, realmente se
apresente o tema ao qual estou aqui me dispondo a tratar, o modo como eu estou
tendo que “lidar” com este dom que recebi através do termo “úmido” e que,
enfim, realmente prepare o terreno para o primeiro capítulo de cunho “teorético”
da tese (e, neste sentido, o terceiro capítulo será de fato o primeiro e talvez único
“capítulo”). A questão “introdutória”, neste caso, desta maneira, seria a seguinte:
Se se pode, se se deve – e, caso se possa ou se deva, como – re-contextualizar uma
crítica do pensamento moderno e realçar este “criticado” como trunfo de uma
certa tendência filosófica da contemporaneidade.
um contemporâneo
Tendo como mote a “re-contextualização” da citação que intitula este primeiro
capítulo da tese, parece que, de início, o problema que surge é quanto ao
“transporte” que faço (que logo em seguida se estudará detalhadamente no que
concerne ao conceito de “contexto”) de uma concepção “moderna” para um
pensamento dito “pós-moderno” – aliás, de uma noção de um dos primeiros
ícones da modernidade para um dos mais atuais pensadores. E a primeira parte
deste capítulo tratará, pois, desta problemática distinção (problemática como toda
distinção) para o pensamento de Derrida.
Recentemente, em sua última entrevista, concedida ao jornalista do Le
Monde Jean Birnbaum, Derrida utiliza a palavra “geração”
36
para indicar os
filósofos que seriam seus contemporâneos, como Lacan, Foucault, Lyotard,
Deleuze, Lévinas etc. Antes disto, em seu diálogo com Elizabeth Roudinesco, a
primeira parte da conversa foi também sobre a herança que Derrida e seus
36
Ver o já citado Aprender enfim a viver.
33
“contemporâneos” teriam herdado
37
. Certamente, Derrida e os filósofos que se
formaram em um mesmo período receberam, ao menos, informações parecidas,
mas isso não permitiria se falar ainda precisamente, devido à gama infindável de
diferenças entre eles, do “pertencimento” a uma geração. E é por isso que, na
mesma entrevista, Derrida objeta o termo e o coloca entre aspas
38
.
Mas, antes, para que não pareça arbitrária a afirmação que sustentarei
(qual seja, a de que há sim uma contemporaneidade, mas não relacionada a uma
presença empírica no mundo em determinada época, nem a um co-pertencimento
ou vizinhança de pensamento, e sim ao fato de que, se somos sempre herdeiros da
tradição, só há contemporaneidade), penso ser necessário uma breve apresentação
do que se pretende refutar. Deste modo, que se veja de passagem o que,
correntemente, se toma por “moderno” e “pós-moderno”, e apesar de saber a
extensão deste debate contemporâneo sobre a (pós)modernidade, me aterei apenas
à noção básica desta querela, já que meu intuito é o de apenas justificar os
“contextos” que intercambiarei – e que são, inevitavelmente, para mim,
intercambiáveis.
Ao apresentar a “idéia de modernidade”, Danilo Marcondes afirma que
talvez esta seja uma das idéias de mais fácil apreensão, por estar tão próxima de
nós e, com o que concordo plenamente, “por sermos ainda hoje, de certo modo,
herdeiros desta tradição”
39
. Tal tradição, que teria como seus precursores Bacon e
Descartes, seria marcada por um rompimento com a tradição, pela necessidade
filosófica de uma constante revolução e inovação. “O conceito de modernidade
está sempre relacionado para nós ao ‘novo’ (...). Trata-se, portanto, de um
conceito associado quase sempre a um sentido positivo de mudança,
transformação e progresso”
40
. Mas a antecipada controvérsia da modernidade
(que envolveu, sobretudo, Habermas e Lyotard) indica que, nos dias de hoje,
haveria duas posições possíveis a serem tomadas em relação a isto que se definiu
acima como modernidade: uma continuísta e a outra descontinuísta. Sob este
aspecto, de um lado, Habermas defenderia o projeto da modernidade,
37
DERRIDA, J. e ROUDINESCO, E. De que amanhã... Diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2004.
38
Sobre isso, ver o primeiro diálogo entre Derrida e Roudinesco, “Escolher sua herança”, em que
Derrida se posiciona frente à sua geração e a tal “pertencimento” (p. 15).
39
MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, pág. 139.
40
MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein, pág.
139.
34
“considerando que este projeto não está acabado, mas precisa ser levado adiante”,
e, de outro, Lyotard introduziria a noção de pós-modernidade, “como uma
necessidade de superação da modernidade”
41
.
Entretanto, esta aparentemente óbvia oposição não é tão simples assim. O
objetivo de A condição pós-moderna
42
não é o de simplesmente empreender uma
crítica da modernidade,
já que o pensamento pós-moderno não visa a uma crítica ou ruptura com a
modernidade, mas sim uma superação de metodologia, dos pressupostos
epistemológicos e das categorias de pensamento da modernidade, inclusive da
própria idéia de crítica, buscando novos rumos para o pensamento.
43
O que torna a crítica direcionada a Lyotard por Habermas, em “A modernidade –
um projeto inacabado”
44
, extremamente suspeita (bem como a crítica que faz, em
geral, aos “pós-modernos”, em O discurso filosófico da modernidade
45
). De todo
modo, esta questão, obviamente ainda em aberto – e que deve assim permanecer –
, não pode ser, aqui, aprofundada. Recorro, então, à vaga (e, por isso mesmo,
interessante) definição, encontrada no livro de Marcondes, para dela remarcar o
que me interessa:
O pensamento pós-moderno não se caracteriza como uma corrente ou doutrina
nem possui propriamente uma unidade teórica, metodológica ou sistemática, já
que em grande parte visa romper exatamente com isso. Na verdade, o ponto
comum entre esses autores [dentre os quais são citados Foucault, Deleuze,
Lyotard e Rorty, mas não Derrida] parece ser mais a necessidade de encontrar
novos rumos para o pensamento, concebendo a filosofia de forma mais ampla e
não-linear.
46
*
No entanto, a indicação de uma urgência em se “encontrar novos rumos para o
pensamento” pode ser vista tanto na definição que Marcondes apresenta da
41
JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1990, pág. 170.
42
LYOTARD, F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
43
MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein, pág.
274.
44
HABERMAS, J. “A Modernidade – um projeto inacabado”, in: ARANTES, O. e ARANTES, P.
Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992.
45
HABERMAS, J. Discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
46
MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein, pág.
275.
35
modernidade como da chamada pós-modernidade. Em que, portanto, se difeririam
estes afãs pelo “novo”? Será que não deveria, para-além de uma mera postura de
continuidade ou descontinuidade, se encontrar uma “terceira margem”?
É nesse sentido que pretendo tomar aqui emprestadas algumas das
considerações introdutórias que Gianni Vattimo faz a seu O fim da modernidade.
Em seu empreendimento de um pensamento fraco (que, em suma, propõe uma
releitura de Nietzsche e Heidegger de uma maneira em que sejam amenizados os
traços mais “violentos” destes pensamentos), Vattimo se recusa a ver no prefixo
“pós” uma atitude de superação crítica da modernidade, mas sim uma nova
construção em relação à herança do pensamento europeu, pois, para ele, um
pensamento da “superação” continuaria preso à lógica da modernidade. Para ele,
o pós de pós-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade, que,
na medida em que quer fugir das suas lógicas de desenvolvimento, ou seja,
sobretudo da idéia da “superação”crítica em direção a uma nova fundação, busca
precisamente o que Nietzsche e Heidegger procuraram em sua peculiar relação
“crítica” com o pensamento ocidental.
47
Portanto, não uma “superação”, mas, em seus próprios termos, uma “despedida”.
E, logo em seguida, ao questionar-se sobre essa necessidade de “estabelecimento”,
de nossa época, de localizar-se frente a isso que ele nomeia de “nossa herança
mais próxima”
48
, Vattimo objeta que, se de fato se crê estar em um “momento
posterior à modernidade”, se está, ainda mais reforçando o que “caracterizaria
mais especificamente o ponto de vista da modernidade: a idéia de história, com
seus corolários, a noção de progresso e a de superação”
49
.
É desta maneira que, para o pensamento fraco, o fato de supor que, em
nossos tempos, há uma “novidade” com relação ao moderno, estabelece uma linha
de continuidade entre a modernidade e a chamada pós-modernidade. Entretanto,
para o filósofo há uma sutil diferença – que para ele constitui uma diferença
radical – se se reconhece o pós-moderno “não apenas como novidade com relação
47
VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São
Paulo: Martins Fontes, 1996, pág. VII. Grifo meu.
48
VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, pág.
VII.
49
VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, págs.
VIII-IX.
36
ao moderno, mas também como dissolução da categoria do novo”
50
. Essa
sutileza, ou esse enfraquecimento da noção de “novo” é o que distinguiria a
postura pós-moderna (que pretende superar a modernidade) da chamada
modernidade tardia (que indica apenas uma despedida, um afastamento do clima
moderno). E também seria o que, na contracorrente das “filosofias da superação”
contemporâneas, apontaria a modernidade tardia como “o lugar em que se anuncie
uma possibilidade e existência diferente para o homem”, revelando-se “menos
apocalípticas e mais referíveis à nossa existência”
51
.
*
Muitos autores ainda insistem neste debate, como, por exemplo, Bruno Latour,
Gilles Lipovetski e Zygmunt Bauman, mas é sabido, como também assumido, que
o pensamento fraco é herdeiro da desconstrução – e por isso dá-se aqui minha
opção pelas definições de Vattimo. Apesar das anunciadas diferenças, o filósofo
italiano, em inúmeros momentos, declarou sua dívida para com Derrida
(sobretudo na abertura do Seminário de Capri em torno da religião
52
, em que se
encontravam Gadamer, Derrida e Vattimo. Tendo sido orientando de Gadamer e
admirador de Derrida, Vattimo declarava que estava sentindo-se acompanhado de
um pai e de um irmão mais velho). E, em sua concepção de modernidade tardia
que a mim é muito cara –, pretendo aqui, pois essa foi minha intenção ao fazer
esta digressão, apontar os ecos derridianos nesta noção que abala, de certo modo,
a oposição figurada por Habermas e Lyotard.
Para tanto, é da última citação de Vattimo que tirarei, a fórceps, os rastros
que enxergo. Ao se colocar contra as “filosofias da superação” e apostar em uma
existência “menos apocalíptica”, ressoam claramente as análises derridianas
contra o “tom apocalíptico” adotado pela sua geração. Derrida, que segue a
linhagem de Lévinas, não comungava com as bandeiras que marcam a chamada
contemporaneidade da filosofia – um termo ainda mais abrangente que o de uma
“pós-modernidade” – e, como se verá um pouco mais à frente, o próprio ideal de
50
VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, pág.
IX.
51
VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, pág.
XVII. Grifo meu.
52
VATTIMO, G. e DERRIDA, J. A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade,
2000.
37
morte ou de fim não se sustenta em uma perspectiva desconstrutiva, posto que,
para Derrida, nada morre e, como já se falou, tudo, como em Benjamin,
sobrevive.
Este “afã escatológico” é denunciado da seguinte forma em D’un ton
apocalyptique adopté naguère en philosophie:
O ocidente tem sido dominado por um poderoso programa que era também um
contrato não rescindível entre discursos do fim. (...) É o fim da história, o fim da
luta de classe, o fim da filosofia, a morte de Deus, o fim das religiões, o fim do
cristianismo e da moral (...) o fim do sujeito, o fim do homem, o fim do Ocidente,
o fim de Édipo, o fim do mundo (...) e também o fim da literatura, o fim da
pintura, a arte como coisa do passado, o fim da universidade, o fim do
falocentrismo, o fim do falogocentrismo.
53
Como pretendo mostrar, apenas para exemplificar, em Lévinas, Derrida e Vattimo
há uma outra maneira de pensar nosso tempo. Não abandonando os diagnósticos
catastróficos do que se chama contemporaneidade, não se cegando às injustiças, às
violências, por, inclusive, ter sido vítima e testemunha de uma das grandes, senão
a maior atrocidade dos “tempos modernos”, mas também não se curvando aos
modismos niilistas de sua época, cito um trecho de denúncia encontrado em
Humanismo do Outro Homem, de Lévinas:
Fim do humanismo, da metafísica - morte do homem, morte de Deus (ou morte a
Deus!) idéias apocalípticas ou slogans da alta sociedade intelectual. Como todas
as manifestações do gosto - e dos desgostos - parisienses, estas proposições
impõem-se com a tirania da última moda, mas se colocam ao alcance de todos os
bolsos e degradam-se.
54
Deste modo, torna-se extremamente difícil se classificar estes três autores anti-
apocalípticos, que viam nestes slogans até mesmo um certo mal-gosto, ou talvez,
uma indelicadeza com a modernidade, como filósofos pós-modernos. E, no
entanto, não há como negar que são contemporâneos.
*
53
DERRIDA, J. D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie. Paris: Galilée, 1983,
págs. 58-60.
54
LÉVINAS, E. Humanisme de l’autre homme. Montpellier, Fata Morgana, 1996, pág. 95
(Humanismo do outro homem, tradução coordenada por Pergentino S. Pivatto. Petrópolis: Vozes,
1993).
38
Deter-me-ei apenas no caso de Derrida, pois é em seu pensamento que pretendo
fazer o prometido enxerto anacrônico e invertido da filosofia baconiana. A
primeira frase de “Derridabase”, de Geoffrey Bennington, é justamente a seguinte:
“seria preciso, portanto, mostrar em quais aspectos Derrida é um
‘contemporâneo’”
55
. A proposta de Geoffrey, então, parte de dois princípios
complementares: primeiro, mostrar a “atualidade” do pensamento derridiano, sem
que – como se tenta maldosamente mostrar algumas vezes – que se trata de mais
um “fenômeno da moda”; e, ao mesmo tempo, mostrar como, em sua assumida
“filiação” à tradição, este acaba por rascunhar uma espécie de diferenciação.
Neste sentido, Derrida seria, em sua atualidade, sincrônico: ao lado de Lacan,
Lévinas, Lyotard, Foucault, Deleuze, Blanchot etc; mas, ao mesmo tempo, seria,
em sua contemporaneidade, anacrônico: devido justamente à sua assumida
herança dos fantasmas, como Hegel, Husserl, Heidegger, Nietzsche – e, porque
não, Francis Bacon?
E também, se a prática desconstrutiva consiste na leitura de textos –
levando-se em conta a herança e responsabilidade que isso supõe –, e se estes
textos lidos são sempre rastros, ou espectros – já que um dos objetivos de Derrida
é empreender uma crítica ao que ele chama de “metafísica da presença” –, não se
pode afirmar que tal texto esteja mais “presente” ou mais próximo de Derrida que
outro: e, sob este aspecto, Platão é tão atual como Lévinas em sua obra, mesmo
quando o amigo estava a seu lado, vivo. E, do mesmo modo, como rastro,
Lévinas é tão ausente como Platão na letra derridiana – e nem mesmo os livros de
Derrida, nem ele mesmo, está, desta forma, presente em seus textos, sendo,
também ele, mais um rastro dentre os tantos rastros que constituem o conjunto de
textos que compõem sua obra.
Por isso, não me parece nem um pouco extravagante a idéia de colocar
Francis Bacon em diálogo com Derrida. Nem uma possível objeção a que, de
algum modo, a asserção baconiana que tomarei como contraponto às minhas
especulações estaria – por ser ele um moderno, e, talvez, mais ainda, um
empirista –, desde o início, refutada. No mais, ainda que como auto-defesa, a
denúncia que Bacon faz do termo “úmido” é, ela própria, quem traz para a
filosofia o termo que ela deseja afastar: ao tentar eliminar a umidade, Bacon a
55
BENNINGTON, G.“Derridabase”, pág. 11.
39
introduz como tema na própria filosofia. Assim, mais uma vez, como o
(contra)dom que recebi de Danilo, Bacon foi quem me abriu as portas para pensar
o “úmido”. Além disto, a temporalidade da desconstrução é herdeira da
Nachträglichkeit freudiana
56
; Derrida admira, acima de tudo, em Freud, o fato de
que o acontecimento só é passível de ser pensado a posteriori
57
; mas mais além
de tudo isso, para a desconstrução, só se pensa com os fantasmas e, por isso, a
obra de arte se apresenta como sobrevida e toda escritura é, por isso,
contemporânea àquele que a lê, pois, independente da temporalidade – da
temporalidade linear, que tanto pode pressupor sucessões como rupturas – todo
texto, de Platão a Heidegger, de Anaximandro a Rorty, apresenta ao leitor,
estruturalmente e de igual maneira, o seu “vem”.
Contemporâneo, contemporaneus, cum tempus, com o tempo. Derrida pensa com
o tempo. Derrida pensa com o tempo, não, de modo algum, representando o
espírito de tempo (“pós-moderno”, “pós-filosófico”, se diz), mas pensando o
tempo de forma a deslocar nossa contemporaneidade. Infeliz daquele que se
proclama seu próprio contemporâneo.
58
o “contexto” inicial
A frase que dá título a este capítulo, “tome-se como exemplo a palavra úmido
59
,
foi “retirada” de seu contexto (pretensamente original, como se verá logo em
seguida), qual seja, o Livro LX do Novum Organum de Francis Bacon. Portanto,
56
De acordo com Derrida, em “Freud e a cena da escritura”, esta noção teria sido a grande
“descoberta” de Freud, possibilitando se pensar um tempo não mais marcado pelo crivo do
presente (L’écriture et la différence, págs. 303-314). Também em Gramatologia, Derrida
confronta Husserl com Freud, vendo no conceito freudiano de a posteriori ou só-depois um
poderoso questionamento de toda presença a si da consciência (Gramatologia, pág. 98). E sobre
essa relação entre a fenomenologia e a psicanálise, A voz e o fenômeno também marca esta
“resistência” de Husserl ao conceito psicanalítico de “inconsciente” (p. 73). Segundo Laplanche e
Pontalis, nachträglichkeit e nachträglich são “termos freqüentemente utilizados por Freud com
relação à sua concepção da temporalidade e da cusalidade psíquicas. Há experiência, impressões,
traços mnésicos que são ulteriormente remodelados em função de experiências novas, do acesso a
outro grau de desenvolvimento. Pode então ser-lhes conferida, além de um novo sentido, uma
eficácia psíquica” (LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo,
Martins Fontes, 1992, p. 33).
57
Sobre isso, remeto ao debate sobre o “acontecimento” 11 de setembro em “Auto-imunidade:
suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida” (in: BORRADORI, G. Filosofia em
tempo de terror. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2004, pp. 95-145).
58
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 14.
59
BACON, F. Novum Organum, tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo:
Nova Cultural, 1988, pág. 29.
40
antes de qualquer transporte (se devido ou indevido ainda não se pode, aqui,
julgar), é necessário que se pense no “contexto” em que o filósofo inglês escreveu
tais palavras.
Dentro de seu projeto empirista
60
– que, ao lado do racionalismo
cartesiano, inaugura o pensamento moderno –, que se preocupa, sobretudo, com a
formulação de um método científico que afaste o erro e conduza o homem no
caminho do conhecimento verdadeiro, um dos aspectos mais marcantes de sua
contribuição filosófica é sua concepção de pensamento crítico (contida justamente
na “teoria dos ídolos”, de seu livro que me inspirou). Um dos traços fundamentais
de sua indução era – o que me interessa – “uma sofisticada taxonomia dos
métodos científicos”
61
, e o chamado “método baconiano”, então, preconizava que
o objetivo da ciência é o de estabelecer leis.
Tal estabelecimento, no entanto, só seria possível se houvesse a eliminação
das falsas noções, que Bacon denomina “ídolos, fantasmas de verdade, imagens
tomadas por realidade”
62
. E este seria o objetivo fundamental do pensamento
crítico desenvolvido em sua “teoria dos ídolos”, pois estes fantasmas, estas
imagens, “bloqueiam a mente humana, impedindo o verdadeiro conhecimento”
63
.
E, como pretendo mostrar, esta atitude de “limpeza” que a filosofia adota com
relação ao que lhe incomoda – ou seja, com o que não pode compreender,
apreender, prender –, esta necessidade de “idéias claras e distintas” é o que
diferiria a corrente de pensamento que aqui pretendo apresentar da postura
tradicional adotada pela filosofia.
De acordo com algumas definições que encontrei para ídolo, destaco duas:
1. “no sentido dado por Francis Bacon, falsa noção, idéia falsa ou ilusória,
preconceito, do qual devemos nos libertar para realizar a ciência como
interpretação verdadeira da natureza”
64
; e 2. “os ídolos são eidola, imagens
60
De acordo com o Dicionário Oxford de filosofia, “como filósofo da ciência, foi o primeiro
exemplo notável da tendência empirista do pensamento inglês, mas, talvez ainda mais
significativamente, o profeta e protetor da revolução científica nascente”. BLACKBURN, S.
Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 36.
61
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997,
pág. 36.
62
JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1990, pág. 33.
63
MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein, pág.
178.
64
JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1990, pág. 128.
41
transitórias das coisas que, por isso, Bacon considera errôneas”
65
. O interessante
desta última definição, encontrada no Dicionário Oxford de Filosofia, é a
referência ao termo grego eidola (que quer dizer imagens) e que, como toda
referência marginal ou passageira (que, como se verá, ocorre com o termo úmido
no projeto baconiano), merece uma paragem. Este termo remete a uma teoria pré-
socrática, a “teoria dos eflúvios”, um esboço arcaico de uma espécie de teoria da
percepção, na qual esta só se daria quando os eflúvios emitidos pelos objetos se
encontram com os eflúvios que o corpo humano libera
66
. Assim, nesta arque-
fenomenologia, os eidola seriam a emanação dos fluidos dos objetos percebidos
pelo corpo humano (que seria, de alguma maneira “invadido” por estes corpos
estranhos que invadiriam seus poros
67
). Que se guarde em mente, por enquanto, a
relação disto tudo que Bacon, com seu pensamento crítico que visa a “purificar” o
conhecimento, quer combater: imagens (tomadas por realidades transitórias e, por
isso, errôneas), fantasmas de verdade, eflúvios, emanações de fluidos que, vindos
dos objetos (de fora, de algo outro), contaminam o ser humano – estes são os
ídolos a serem destruídos.
*
A crítica baconiana distingue os ídolos em quatro tipos, dentre os quais apenas um
me interessa: os idola fori. De acordo com a ordem apresentada no Novum
Organum, na tentativa de examinar estas causas que não permitem que o homem
trilhe o caminho correto para o pensamento e de descobrir os meios para que se
esteja precavido contra elas, Bacon nomeia os seguintes: “ídolos da tribo”
(enganos inerentes à própria natureza humana em geral); “ídolos da caverna”
(erros provenientes da perspectiva particular de um indivíduo); “ídolos do foro”
(equívocos originados pelo uso das palavras); e “ídolos do teatro” (embustes
oferecidos por sistemas filosóficos). Mas, como é a parte dedicada aos ídolos do
foro ou do mercado que me interessa, dedicarei a ela uma atenção maior.
65
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997,
pág. 195.
66
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997,
pág. 384.
67
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997,
pág. 112.
42
Para o próprio Bacon, este tipo de erro ao qual a comunicação conduz é o
mais perigoso, pois são os erros implicados na ambigüidade das palavras e no uso
indevido destas; são os erros que surgem na relação entre as pessoas e nos
discursos. Desta maneira, uma palavra pode ser usada em sentidos diferentes em
um diálogo e levar a uma aparente concordância, enquanto o que há entre os
interlocutores é uma comunicação equivocada. Bacon diz:
Os ídolos do foro são de todos os mais perturbadores: insinuam-se no intelecto
graças ao pacto de palavras e de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a sua
razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e refletem
suas forças sobre o intelecto.
68
E quando esta “força” que as palavras impõem ao intelecto se dá, torna-se
impossível que o conhecimento tenha acesso à natureza das coisas. E é neste
sentido que caberia, então, o empreendimento de “restaurar a ordem”, começando-
se pelas definições. Trata-se, portanto, do esforço em definir claramente o
significado das palavras, apontar seu sentido primeiro e verdadeiro, mas o próprio
Bacon parece enxergar algumas limitações em sua proposta, já que “as próprias
definições constam de palavras e as palavras engendram palavras”
69
. E, aqui, já
se vê, como quero mostrar, que esta atitude pode ser tomada como metonímia da
postura filosófica em geral.
Ainda, segundo Bacon, os idola fori dividem-se em duas espécies: ou são
nomes de coisas que não existem ou são nomes de coisas que existem, mas
confusos e mal determinados e abstraídos das coisas”
70
. A primeira espécie de
ídolos, os nomes de coisas que não existem, são os mais fáceis de se expulsar dos
discursos, por serem de fácil refutação; no entanto a segunda espécie é um tanto
mais complicada. Desta maneira, se os ídolos do mercado são, dentre os quatro
tipos de ídolos, os que exigem mais cuidado, o segundo gênero deste tipo de erro
torna-se o mais enganoso dentre os enganosos, pois é mais complexo e mais
profundamente arraigado “por ter se formado na abstração errônea e inábil”. E
prossegue:
68
BACON, F. Novum Organum, págs. 28-29.
69
BACON, F. Novum Organum, pág. 29.
70
BACON, F. Novum Organum, pág. 29. Grifos meus.
43
Tome-se como exemplo a palavra úmido e enumerem-se os significados que pode
assumir. Descobriremos que esta palavra úmido compila notas confusas de
operações diversas que nada têm em comum ou que não são irredutíveis.
Significa, com efeito, tudo o que se expande facilmente em torno de outro corpo;
tudo que é em si mesmo indeterminável e não pode ter consistência; tudo o que
facilmente cede em todos os sentidos; tudo o que facilmente se divide e se
dispersa; tudo o que se une e se junta facilmente; tudo o que facilmente adere a
outro corpo e molha; tudo o que facilmente se reduz a líquido, se antes era sólido.
71
Como se pode ver, a vontade de Bacon de eliminar a má-determinação
representada pelo termo “úmido” do vocabulário filosófico, de literalmente
extinguí-lo, excomungá-lo, exorcizá-lo, representa o desejo filosófico de clareza,
distinção, imunidade, contenção, determinação, consistência, unidade e
isolamento. Esta estrutura que a umidade do úmido “representa” é um perigo para
a filosofia (e não só à baconiana), pois esta não sabe lidar com isso que, por sua
própria estrutura, a ameaça, não sabendo o que fazer com isso que, de algum
modo, sempre lhe vai escapar.
E tal foi o desejo que se despertou em mim, ao receber estas palavras –
ainda que inversamente – como um dom: tentar “construir” um texto que não
quisesse de modo algum extirpar a umidade e seus semelhantes. Pelo contrário, o
desafio, provável e inevitavelmente paradoxal, de se aceitar, na filosofia, em um
primeiro momento, esta sua umidade, e tentar, além disso, escrever umidamente.
Talvez, agora, possa começar a se “clarear” (entre infinitas aspas, pois,
espero eu, que não de modo claro e distinto), como este pensamento úmido que
pretendo aqui remarcar inicia-se a partir das noções derridianas de contaminação
e disseminação – mas que, para tomar “forma” (esta forma fluida, que é a única
que faria justiça à umidade mesma), junto a Derrida, buscarei auxílio em
Kierkegaard, Nietzsche, Benjamin, Lévinas e na literatura, nas heranças minhas e
da desconstrução.
espectralidades
Tome-se como exemplo a palavra espectro. Se o termo úmido é aquilo que, para
Bacon, não é seco nem molhado, como mostrarei no próximo capítulo, para
71
BACON, F. Novum Organum, pág. 30.
44
Derrida, o pensamento é justamente composto por estes indecidíveis: rastro,
espectro, phármakon, brisura, sobrevida etc. etc. etc., em uma cadeia infinita e
infinitamente aberta de quase-conceitos. Mas, por enquanto, antes de entrar na
parte propriamente “teórica” da tese, a noção de espectro servirá como um chute
para que se mostre como a tão referida herança desordena a temporalidade e,
depois, como a postura filosófica, conforme a atitude de Bacon, busca sempre
conjurar esta espectralidade, esta umidade.
O quase-conceito “espectro” (que é chamado de quase-conceito
exatamente por não permitir uma definição precisa, clara e distinta, uma
decidibilidade) aparece de modo mais insistente (e não mais “presente”) em
Espectros de Marx
72
. E é a este livro que recorro para invocar tais aparições. O
que Derrida, aí, nomeia “espectros de Marx” (tanto os espectros de Marx que nos
assombram como os espectros que assombravam Marx) será, aqui, tomado, por
extensão, ao espectro em geral (pois, se se pensar bem, todo espectro, para ser
espectro, deve ser um espectro em geral). Desta maneira, a questão política de
uma “Nova Internacional”, o espectro do capitalismo e tantas outras questões
políticas serão postas de lado para que se entenda a “estrutura” espectral do
pensamento, através das metonímias e paráfrases que farei deste livro que se
originou de uma conferência pronunciada em duas sessões, nos dias 22 e 23 de
abril de 1993, na Universidade da Califórnia (sendo, este livro, também, uma
herança, uma tarefa e uma dívida de Derrida para com seu amigo Louis Althusser
73
).
O que está em jogo, neste livro aparentemente político, mas que, de tão
pouca política a oferecer, parece inaugurar uma outra forma de política, é a
obsessão mesma: a filosofia como um pensamento sempre assombrado, obsediado
por estes outros que não mais estão presentes. E é Hamlet quem figura esta
“política”. E, com ele, o fantasma de Shakespeare, um fantasma que obriga a um
trabalho, que impõe uma tarefa – por amor. Shakespeare assombrava Marx,
assombrava Valéry, assombrava Derrida e, nesta obsessão, nesta quase-possessão,
os três tomados como exemplo tiveram, assim como Hamlet, que herdar uma
72
DERRIDA, J. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho de luto e a nova Internacional,
tradução para o português de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
73
Ver o referido diálogo sobre “Escolher sua herança” com Elizabeth Roudinesco em De que
amanhã...
45
tarefa deste outro que lhes antecedeu
74
. Que eu me permita também ser possuído
– o que é inevitável, mas nem sempre, como mostrarei logo em seguida, aceito; e,
ao invés disso, de aceitar a inevitável possessão, apela-se ao exorcismo.
Se se pensar na tradição de Freud e Lacan, na constituição do “eu” pelo
“outro” e na noção de “fantasma”, ou então na tradição que se inicia com Martin
Buber e Emmanuel Lévinas, em que o “sujeito ético” é inaugurado,
dialogicamente, pelo “Tu” (no caso de Buber) ou, assimetricamente, pelo
“terceiro” (em Lévinas), pensar-se-á que Derrida, de fato, não acrescentaria nada
de novo à filosofia. Talvez ele mesmo pensasse isso. Mas é por assumir esta
obsessão (por Freud, Lacan, Lévinas, Buber, Marx, Shakespeare, Hamlet etc.)
como sua única possibilidade que Derrida pretende, em seus termos, inaugurar
uma política dos fantasmas
75
– que se antecipa através da estranha afirmação de
Derrida que diz “eu queria aprender a viver enfim”
76
. Mas o que seria isso?
Aprender a viver. Estranha palavra de ordem: Quem pode dar lição? A quem?
Que isto sirva de lição, mas a quem? (...) Saber-se-á alguma vez viver, e,
primeiramente, o que quer dizer “aprender a viver”? (...) Isoladamente, fora do
contexto – mas, um contexto sempre permanece aberto, portanto, falível e
insuficiente [como se verá no próximo capítulo] –, esta palavra de ordem sem
frase forma um sintagma quase ininteligível. (...) Isto só pode acontecer, se isto se
há-de fazer, aprender a viver, entre vida e morte (...), só se há-de valer de algum
fantasma.
77
Portanto, para Derrida, esta configuraria uma “locução magistral”, pois é o
que permite que se aprenda a irreversibilidade e a assimetria da relação de
mestria, como tudo aquilo que passa (sem se passar) de pai para filho ou de mestre
para discípulo. Mas esta “aprendizagem” não se dá, no entanto, no nível da
experiência, se se compreende este termo como a filosofia usualmente o faz:
74
Nos Ensaios quase políticos de Valéry, mais precisamente em “A Política do Espírito”, vê-se
belíssimas referências a Hamlet. É assumida a influência herdada por Derrida destas passagens
(VALÉRY, P. Oeuvres. Paris: Galimard, 1997, págs. 1014-1058).
75
Isso se rascunha primeiramente em Espectros de Marx, pela dívida com Althusser, e se torna
emblemático nas palavras que proferiu no velório de Lévinas (em seu Adieu – à Emmanuel
Lévinas, seguido da conferência Le mot d’accueil ) e em seu livro Mémoires – pour Paul de Man.
Mas a questão mesma do “espírito” na filosofia já estava, não neste sentido de herança, mas como
“questão” filosófica, antecipada em De l’esprit e em Glas (em análises sobre a questão do Geist
em Heidegger e em Hegel).
76
Isso vai ser explorado de modo mais preciso – esta questão do saber viver e do saber morrer, que
menos nos interessa aqui – na entrevista a Jean Birnbaum, posteriormente publicada, em que,
inclusive a referência a Walter Benjamin é acrescentada (por ter dele herdado a noção de
Überleben, que em Espectros é citada, mas não creditada. Entretanto, tal crédito foi feito, como se
verá em mais à frente, ao tratar do problema da tradução em Torres de Babel).
77
DERRIDA, J. Espectros de Marx, págs. 09-11.
46
como a experiência de um algo que está aí, ou seja, de uma presença. Derrida diz:
“Mas aprender a viver (...) não é, para quem vive, o impossível? Não vem a ser
isto mesmo que a lógica não permite?”, e prossegue: “Viver, por definição, isso
não se aprende. Não por si mesmo, da vida pela vida. Somente do outro e pela
morte. Em todo caso, do outro no limite da vida”
78
. E, todavia, nada seria mais
necessário à vida do que esta sabedoria, esta “heterodidática”.
*
Não sei se devia, mas não consigo deixar de antecipar uma carta que guardo (há
tantos anos) na manga e que, certamente, devo usar em futuros capítulos. Mas me
sinto impelido a aludir aqui a duas experiências que tratam, justamente, do
aprendizado, duas experiências, se assim posso dizer, úmidas: a de Lóri e a de
Riobaldo.
Em Para não esquecer Clarice aforisma: “Eu antes queria ser os outros
para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso
era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos
outros era eu.”
79
Em uma postura aparentemente fenomenológica, em uma
primeira análise, o testemunho de Clarice parece apontar à tentação racionalista de
sempre se guiar pelo “conhece-te a ti mesmo” socrático – e, na verdade, mais
antigo ainda, délfico. Sua aposta então parece caminhar em direção do imperativo
pindárico que convoca, como diria Nietzsche em seu Ecce Homo, alguém a se
tornar o que se é. Mas quem pode nos ajudar nesta aprendizagem do não
entender? Este é o ponto crucial de Lorelei, protagonista da prazerosa
aprendizagem de Clarice (que, não coincidentemente, tem um nome úmido
nome de uma sereia, ser híbrido, nem humano nem peixe. Ser indecidível e, ainda
por cima, aquático)
80
. E ela sabe, como bem coloca Derrida, e eu repito, que
“aprender a viver, aprender por si mesmo, sozinho, ensinar a si mesmo a viver
(‘eu queria aprender a viver enfim’) não é, para quem vive, o impossível?”
81
.
78
Espectros de Marx, pág. 10.
79
LISPECTOR, C. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pág. 23.
80
Apesar das sereias gregas, como a que Ulisses enfrentou em sua Odisséia, no retorno à Ítaca,
serem seres alados – mas que sobrevoavam e enfeitiçavam os barcos – a figura da sereia eternizou-
se sobre a forma feminina da mulher metade humana metade peixe, de beleza e perigo, que vive
sobre os rochedos de rios ou mares e encanta pescadores. E, entre elas, há a germânica Lorelei.
81
Espectros de Marx, pág. 10. Grifo meu.
47
Por isso esta seria, para Derrida, uma “locução magistral”, pois vem como
um violento imperativo da boca de um mestre, um mestre outro, de um fora. Não
há, para Derrida, aptidão como educação nem como treinamento, mas sim
sabedoria e aprendizado: a referida “heterodidática”. E não é isso o que, em Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, Lóri busca em Ulisses – no professor de
filosofia, no sábio? Ela busca mestria no viver. E, no entanto, é no silêncio que se
dá esta aprendizagem, não na palavra, na plena presença viva do presente da voz
de Ulisses. A protagonista queixa-se de não saber viver, mas antecipa que sabe
que saberá, pois sabe que “só no impossível está a realidade”
82
.
De modo semelhante, em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa,
através de Riobaldo (que também é água, que é rio errante), diz que “viver é muito
perigoso”
83
. E é neste momento perigoso – de vida e de morte, como se ve logo
em seguida com Derrida, mas que certamente ecoa em Clarice e Guimarães –
momento de entrega absoluta, de desprendimento de si mesmo, que Clarice
descreve lindamente a passagem em que Lóri é tomada pelo desejo de mergulhar
no mar de Ipanema. A mulher de útero seco sente uma imensa vontade de
mergulhar no mar – ao amanhecer, em plena solidão. E vai. Ao entrar na água fria,
Lóri sente, ao mesmo tempo, o puxar da maré e a resistência das ondas: chamado
e atrito, identidade e diferença, medo e volúpia. Sensação estranha, mas, como
diz, “sentia-se em casa”, sentia-se chez soi com essa alteridade imensa,
incomensurável que era representada pelo mar, pela – como diria Lévinas –
infinitude disso que é totalmente outro. Lóri sabia que seu ser não era pura água,
que não estava lá em plena completude – que a totalidade não era possível. Ela
sempre antecipou este momento: antes dissera para Ulisses que “um dia será o
mundo com sua impersonalidade soberba versus minha extrema individualidade
de pessoa, mas seremos um só”
84
. Este “Mergulho” é esta sensação de
pertencimento e não-pertencimento, ou, de, como diz Derrida em O
monolinguismo do outro, só se ter uma língua e a ela não se ter
85
.
Mas a lição de Lóri diz mais, diz que só se consegue ser quando se esquece
de ser e se mergulha. Se não se está preocupado em ser, está-se sendo – e isso é
82
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, pág. 106. Grifo meu.
83
Citação que aparece repetidas vezes ao longo da obra. GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão:
veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
84
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, pág. 73.
85
DERRIDA, J. Monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996, pág. 46.
48
vida, mas uma vida mais viva que a vida com a que se está acostumado, que se
acha que é vida, mas que na verdade é uma sub-vida, uma pseudo-vida. Essa vida
maior é mais viva que a vida cotidiana porque é vida e também é morte, é ser-si-
mesmo ao se perder, ou, como dirá Derrida logo em seguida, é uma sobrevida. É,
por isso, uma experiência sem experiência. Em que não se experimenta nem o
tudo nem o nada, nem a presença nem a ausência, mas apenas um rastro de
experiência. Uma experiência, por assim dizer, espectral.
E, então, neste mergulho infinito, ela se sente pronta para ser ela mesma,
ela aprendeu a ser e a se entregar; e para ser o que ela tem de ser, nesta entrega,
Lóri apostou no impossível, e ele aconteceu. Este impossível é o que , é o vir a
ser o que se é, é o “real” – não é uma substância, um ente, nem ao menos
ontológico, pois não existe; este impossível não é da ordem da existência, mas,
como diria Lévinas, do il y a
86
. Em Clarice, esta relação de entrega, de
sensualidade e morte, representa o mais alto grau de religiosidade – fazemos parte
do mundo, sendo um só na separação, e existindo apenas nesse encontro. Ser um
na separação, vida e morte, presença e ausência, rastro (e antecipo, já que estou,
agora, antecipando tanto, que será este o quase-conceito-chave que se verá no
próximo capítulo, mas que, em parte, será aludido logo em seguida ao se retornar
ao espectro).
E estes rastros também se encontram na religiosidade truncada do jagunço
Riobaldo. Para Guimarães, em suas veredas, o rio é mar e a vida é travessia. Em
muitos hexagramas do I-Ching lemos que “é preciso atravessar o grande rio ou
mar”, e essa insistência do oráculo parece indicar a necessidade deste mergulho
que é atravessamento, desta outra concepção de experiência que prescinde de
qualquer presença e, como tentarei mostrar em um capítulo a seguir, está na borda
da filosofia e da . Sobre isso, Riobaldo diz:
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece.
Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era
entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe:
a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é
num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se
pensou.
87
86
Sobre isso ver Da existência ao existente, de Emmanuel Lévinas.
87
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 26.
49
E conclui: “Viver nem não é muito perigoso?” Esse caminho oblíquo, como se
verá, é o mesmo que Derrida apresenta nas páginas iniciais de Paixões
88
, essa
resultante que impede que se trilhe um texto paralela ou perpendicularmente. Há a
soma do vetor da nossa “força”, da força do desejo do leitor, com o da “força” do
texto, de seu “vem”. E assim a escritura vai se fazendo, obliquamente, na
travessia, pois, se, como canta Paulinho da Viola, “não sou eu quem me navega,
quem me navega é o mar”, pode-se dizer que não sou eu quem escreve, e que
quem me escreve é a escritura (mais um indecidível que deixo, como quase exige
a desconstrução, em suspenso, reticente, em pontos de suspensão...).
Talvez, para Riobaldo, “por ser de escuro nascimento”
89
, por reconhecer
sua ausência de origem, sua Umheimlichkeit, seja mais fácil este lançar-se na vida
que é travessia, descrita nas veredas do jagunço; talvez ele saiba e possa dizer que
“o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia”
90
. Ainda assim, em sua aprendizagem, por vezes era demasiado forte
para Riobaldo a visão do transbordamento. Quando conhecera Diadorim, ainda
menino, no riacho que levava ao do-Chico, lançou-se em sua primeira travessia.
“O vacilo da canoa me dava um aumentante receio”
91
, diz, e continua:
Eu não sabia nadar. O remador, um menino também, da laia da gente, foi
remando. Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. (...) Eu
estava indo a meu esmo. (...) Mas, com pouco, chegávamos ao do-Chico.
O senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura:
imensidade. (...) Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia. O
arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco extenso d’água, de parte a
parte. Alto rio, fechei os olhos. (...) Aí o bambalango das águas, a
avançação enorme roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de
maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia.
92
E sabendo-se que as veredas de Guimarães Rosa são a própria travessia ou
uma aprendizagem, nos termos de Clarice, em que não se aprende a não ser a não
aprender aprendendo, podemos comparar o mergulho no mar de Lóri com o
momento em que Riobaldo encontra a coragem para encarar o Diabo, o coxo,
coisa-ruim, etc. Isso aconteceu também no vazio, na solidão, quando lhe
88
DERRIDA, J. Paixões. Campinas: Papirus, 1995, p. 21: “Em vez de abordar a questão ou o
problema de frente, de modo direto, sem rodeios, o que porvavelmente seria impossível,
inapropriado ou ilegítimo, deveríamos proceder obliquamente?”.
89
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 31.
90
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 52.
91
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 87.
92
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, págs. 87-89.
50
“requeimava forte sede” e “tinha tanto friúme”
93
(solidão esta que, somente ela,
permite que se vejam os vultos dos fantasmas, de se seja possuído, que se vejam
estes outros-outros, como dirá mais à frente Derrida). Então desceu, “de retorno
para a beira dos buritis, aonde o pano d’água. A claridadezinha das estrelas
indicava a raso a lisura daquilo. Ali era bebedouro de veados e onças”. Curvou-se
e bebeu a água (como, em Uma aprendizagem, Clarice descreve o momento em
que Lóri conhece a alteridade masculina ao beber a água do mar, quando sente “o
gosto do líquido espesso de um homem viril”
94
). Bebeu até enxergar melhor os
prazos que principiavam, porque “tudo agora reluzia com clareza”
95
. Nas palavras
de Riobaldo, “aquilo molhou minha idéia”, ao contrário do menino da “Terceira
margem do rio”, que fugira na hora de assumir o posto fluvial de seu pai, que não
conseguiu se entregar à tarefa de ser apenas rastro, à “sina de existir, perto e
longe”
96
, “no lanço da correnteza enorme do rio” onde “tudo rola o perigoso”
97
.
Mas a tarefa do menino com seu pai, isso, parafraseando Guimarães, é
uma outra estória, mesmo. O que eu queria aqui destacar, depois deste enorme
parêntese enxertado no texto derridiano, é que, também para Riobaldo, este
aprender a viver se deu quando este teve sua idéia molhada, e enfrentou-se com a
alteridade que ele mais temia, o espectro demoníaco do qual tanto fugira ao longo
de sua destinerrância. Meu ímpeto de antecipar este mergulho, de sentir que era a
hora disto, parece interessante, visto agora, para não apenas ilustrar (pois isso a
filosofia sempre fez bem: ilustrar suas “teorias” com a literatura), mas para deixar
que minha escrita se contamine com essas experiências totalmente outras – e
totalmente úmidas – para que, assim, minha travessia aconteça.
Points de suspension...
Espero que, ao menos, esta “estrutura” da desconstrução eu esteja conseguindo
fazer operar em meu texto: esta estrutura de promessa-adiamento-perjúrio. Mas eu
preciso reafirmar meu desejo de voltar a todas estas promessas que tenho feito até
agora, que tenho apenas deixado em suspenso, que não se trata apenas de falsos
93
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 372.
94
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, pág. 80.
95
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 373.
96
GUIMARÃES ROSA, J. “Terceira margem do rio”. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001, pág. 80.
97
GUIMARÃES ROSA, J. “Terceira margem do rio”, pág. 82.
51
juramentos. Entretanto, deve-se mais uma vez objetar que essa suspensão que
Derrida aponta não se aproxima em nada de um processo dialético. Não haverá
Aufhebung no sentido hegeliano, em que o que é suspenso (aufgehoben)
98
agora
se resolve futuramente, em um processo reconciliador. Não haverá, espero eu, de
fato, nenhuma reconciliação com o prometido, mas meu intuito é que, nas
repetições e remarcas às quais me proponho, algo “novo” vá se somando ou, ao
menos, podendo ser resignificado a posteriori, para tomar emprestado o termo de
Freud que Derrida tanto admirava.
Que se volte, então, aos espectros – e este “eterno retorno” aos espectros,
ou melhor, este eterno retorno dos espectros não poderia mesmo se dar de outra
forma; não poderia ser linear, seguir uma seqüência lógica e, assim, ser
aprisionado pela presença de um sentido a ser seguido, de uma “orientação”; os
passos da escritura são, literalmente, pas d’écriture, passos de escritura e não-
escritura ao mesmo tempo e, por isso, para que se respeite mesmo a proposta desta
tese, a linearidade temporal deve ser rompida e o encadeamento das idéias (no
qual, no próprio termo, já está sugerida a clausura, o fechamento da abertura)
disjunto.
Enter the Ghost, exit the Ghost, re-enter the Ghost”, diz Shakespeare. E,
aqui, se pode tentar começar a pensar essa “ética” do espectro ao qual Derrida
aponta no início de sua primeira conferência sobre Marx. A partir do que se
mostrou, “viver, por definição, isto não se aprende. Não por si mesmo, da vida
pela vida. Somente do outro e pela morte. Em todo caso, do outro no limite da
vida”: eis a heterodidática entre vida e morte (e, observo que Derrida não diz entre
a vida e a morte, como se pudesse haver, neste caso, uma presença e uma
98
As traduções para o português para aufgehoben (suprimido, suspenso, suprassumido, superado)
tentam dar conta do triplo movimento do verbo aufheben, quais sejam: 1. o de conservar, guardar,
manter, por exemplo, como quem diz a um comerciante para guardar o troco de uma compra. E
neste sentido pode-se pensar em algo semelhante a deixar em suspenso um assunto, guarda-lo para
depois etc.; 2. o de negar, cancelar, por exemplo quando é cancelada uma reunião. Também neste
sentido, o verbo suspender em português teria uma coerência maior que o mais adotado
“suprassumir”, pois comumente se pode dizer, sem nenhum problema, que as aulas foram
suspensas; 3. elevar, levantar, o que, no movimento próprio da dialética, vai fazer com que haja a
mudança de uma figura da consciência para outra no processo de fenomenalização do Espírito.
Neste caso, apesar de insuficiente, pode-se pensar em uma suspensão também como levantamento,
como quem pede para que se suspenda um pouco um móvel qualquer para se ver o que há debaixo.
Na língua francesa, também não há acordo quanto a esta tradução, e a proposta por Derrida foi,
para o verbo aufheben, réléver; para o substantivo Aufhebung, rélève; e para o adjetivo
aufgehoben, rélévé. Essa tradução é apresentada em “O poço e a pirâmide: introdução à
semiologia de Hegel” (em Margens da filosofia) e retomada e discutida em “Qu’est-ce qu’une
traduction ‘relevante’?”, em Quinzièmes Assisses de la traduction Littéraire, Arles, Actes Sud,
1998.
52
ausência, ou uma presença e uma não-presença). Esta aporia, entre as muitas que
ainda aparecerão e que são constituintes do próprio pensamento de Derrida, são
aquilo que não permite que este se encerre, se feche em si próprio, se “resolva”. E
esta é a própria aporia da vida, o que poderia se chamar de uma “ética da vida”
segundo a desconstrução: aprender a viver, pois “a vida não sabe viver de outro
modo” senão estar sempre tentando aprender a viver. Derrida, então, ironiza:
“estranho compromisso para quem está vivo, supostamente vivo, uma vez que tal
compromisso é, ao mesmo tempo, impossível e necessário”
99
. E é por esta razão
que, para Derrida, este desejo de aprender a viver não pode ser justo se não
trouxer consigo o ensinamento da morte: a minha morte (como defende
Heidegger) e a morte do outro (como defende Lévinas).
Portanto, entre vida e morte, vida-morte, sobrevida: uma tal análise como
a que é aqui proposta só pode caminhar se se pensar este entre, o qual, para ser
realmente aprendido, não pode ter nenhum “tutor”, nenhuma qualidade de
presença e, portanto, pode ser apenas aprendido com os fantasmas:
Nem na vida nem na morte apenas. O que se passa entre dois, e entre todos os
“dois” que se queiram, como entre vida e morte, só se há-de valer de algum
fantasma. Seria preciso, então, dar lição aos espíritos. Mesmo e antes de tudo se
isto, o espectral, não existe. Mesmo e antes de tudo se isto, sem substância nem
essência nem existência, não está jamais presente enquanto tal.
100
Este novo tempo que Derrida aponta, a temporalidade espectral, faz com que se
remarque a questão inicial deste livro, o “aprender a viver”, resignificado sob a
noite do espectro: aprender a viver é aprender a viver com os fantasmas. Como
antecipei com Clarice, a viver isso que pode ser chamado de “vida mesma” e não
a subvida, empírica ou ontológica, que comumente se concebe. Nem ôntica nem
ontologicamente, mas “a viver de outro modo [autrement], e melhor. Não melhor,
mais justamente [e ecoam os sussurros levinasianos da coincidência entre justiça e
justeza]”
101
.
Com isso, para Derrida, abre-se o que ele chama de uma “política” da
memória e das gerações. Este viver de modo mais justo, reto ou correto, implica
necessariamente este estar-com os fantasmas; e é em nome desta justiça, deste
99
Espectros de Marx, pág. 10. Grifo meu.
100
Espectros de Marx, págs. 10-11.
101
Espectros de Marx, pág. 11.
53
fazer justiça a esta estranha alteridade, que Derrida mantém sua obsessão por falar
de espectros, de herança e de gerações: “gerações de fantasmas”, segundo ele,
“certos outros que não estão presentes, nem presentemente vivos, nem para nós,
nem em nós, nem fora de nós”
102
. Tal atitude inaugura, certamente, uma outra
remarca para as noções tradicionais de “ética”, “política” e “justiça”. Pois se estas
noções passam a ser vistas sob a economia do espectro, então não podem se
apresentar ou se deixarem representar presentemente, como a política do espectro,
a ética do espectro e assim por diante. Aliás, se se rompe com o tempo presente e
com a presença, um pensamento espectral desta política, desta ética ou desta
justiça só acontece onde ainda não política, ética ou justiça (pois elas podem
acontecer, pode ser que haja justiça, ética ou política, mas elas nunca existirão)
ou onde elas não mais estão. Daí se segue um dos trechos mais belos do livro e, a
meu ver, mais significativos para que se comece a pressentir esta relação com o
inefável – que é a relação com o por-vir:
É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que
nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível,
pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que
não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos,
quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido. Justiça alguma (...)
parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade, para
além de todo presente vivo, nisto que desajunta o presente vivo, diante dos
fantasmas daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram (...). Sem essa
não-contemporaneidade a si do presente vivo, sem isto que secretamente o
desajusta, sem essa responsabilidade e respeito pela justiça com relação a esses
que não estão presentes, que não estão mais ou ainda não estão presentes e vivos,
que sentido teria formular-se a pergunta “onde?”, “onde amanhã?” (“whither?”).
103
Deste modo, a temporalidade espectral pode ser vista, de certa maneira,
sob uma possível ótima messiânica, pois traz consigo sempre uma questão sobre o
depois, sobre o que virá. De acordo com Derrida, quando se pergunta sobre este
futuro, excede-se toda presença a si do presente, pois a pergunta (a questão e, mais
ainda, a questão da questão), que é voltada ao por-vir, que aponta em sua direção,
é também uma questão que provém do porvir. E, caso pareça extremamente
radical a afirmação de rompimento com qualquer possibilidade de presença a si,
esta questão que é colocada pelo espectro “ao menos, só deve possibilitar essa
102
Espectros de Marx, pág. 11.
103
Espectros de Marx, págs. 11-12.
54
presença a partir do movimento de algum desajuntamento, disjunção ou
desproporção: na inadequação a si”
104
. Para a desconstrução, isso que aqui, neste
momento, Derrida chama de questão nada mais é a justiça mesma, a possibilidade
de romper com a presença plena no tempo e no espaço: e isso só se consegue se se
aceita o assombramento por essas entidades, que nem sequer se pode determinar
se são pessoas, livros, pensamentos, apenas rastros ou espectros.
Os espectros vêm até nós, não em uma fenomenologia dos espíritos, mas
em uma fenomenalidade não-fenomenal, não aparente, e, deste modo, nos
impõem uma tarefa. Nos legam, por assim dizer, uma herança. Como o fantasma
do pai ao qual Hamlet não pode deixar de ouvir, de seguir e de cumprir sua tarefa,
a tradição nos assombra com livros, lidos ou não, discursos ouvidos ou não, textos
conhecidos ou não, etc. Enfim, escrituras que infinitamente dizem “vem” e que só
se pode, como resposta, responder. E, como se disse, é uma questão-tarefa
disjunta ou desajuntadora, que, de acordo com a economia espectral, “umedece” a
linearidade do tempo e com a certeza da presença espacial. Os fantasmas
endereçam questões, colocam, deste modo, também em questão, o próprio
questionado – e, como se disse, se tal questão provém do porvir,
o que se mantém diante dela deve também precedê-la como sua origem: antes
dela. Mesmo se do porvir é a sua procedência, este porvir deve ser, assim como
toda procedência, absolutamente e irreversivelmente passado [o que se verá no
capítulo seguinte, ao se pensar o rastro a partir de Lévinas e Derrida].
“Experiência” do passado como porvir, um e outro absolutamente absolutos, para
além de toda modificação de um presente qualquer.
105
Este tipo de questão, que talvez seja o único questionamento que , deve ser
levada a sério, pois, como antecipei, é esta pergunta que traz consigo a justiça –
ainda que, como se sabe, assimétrica e oblíqua. É este “tipo” de questão, que vem
desta alteridade inominável, que pode conduzir o questionado para além da vida
presente, disto que se chama minha vida em geral, pois esta “minha vida” de hoje
é a mesma “minha vida” de alguém de amanhã ou de ontem, sendo, então, “minha
vida” de outros e, além disso, “minha vida” de outros outros – o que colocaria isso
que se chama de vida para além do presente vivo em geral e inauguraria, assim,
uma justiça-justeza na injunção.
104
Espectros de Marx, pág. 12.
105
Espectros de Marx, pág. 12.
55
Ser justo, desta forma, só é possível para além do presente vivo em geral.
Trata-se de um momento espectral: “um momento que não pertence mais ao
tempo, caso se compreenda debaixo desse nome o encadeamento das
modalidades do presente (presente passado, presenta atual: ‘agora’, presente
futuro)”
106
. Portanto, tem-se, de um lado, um conceito tradicional de tempo, este
“encadeamento” linear entre as várias manifestações do presente, e, de outro, o
justo tempo, do espectro, em que passado e futuro estão de tal modo contaminados
que não se pode determinar nenhuma espécie de presença a si. O tempo do
espectro é o tempo do acontecimento, do impossível, que não há como se
determinar; que, como uma irrupção, disjunta o tempo e acontece e nem “dá
tempo” de se prevenir, de fechar os olhos... É, segundo Derrida, furtivo e
intempestivo, e certamente irrefutável:
Mas o irrefutável supõe que essa justiça conduza a vida para além da vida
presente ou de seu estar-presente efetivo, de sua efetividade empírica ou
ontológica: nem em direção a uma morte, mas em direção a uma sobre-vida, a
saber, um traço [trace, rastro] com relação ao qual vida e morte seriam somente
traços e traços de traços [rastros e rastros de rastros], uma sobrevida cuja
possibilidade vem antecipadamente desajuntar ou desajustar a identidade a si do
presente vivo. Espíritos. É preciso contar com eles. Não se pode não dever, não
se pode não poder contar com eles, que não mais de um: o mais de um.
107
heranças
Espíritos, espectros, rastros... Eles são sempre mais de um, nunca unos, nem na
singularidade nem na totalidade da presença. Sequer formam uma multidão, um
grupo de fantasmas associados – não há conjunção, sem conjuntura
108
.
Agora vou começar a tratar propriamente do que se herda e do que se
conjura: herança, na disjunção, e a conjuntura da conjuração filosófica – à qual
tomo como metonímia o termo “úmido”. Mas se agora começo a escrever, este
agora não pode ser o agora do presente presente-a-si da plena presença viva, e
simplesmente pode ser um neste exato momento eis-me aqui. Apenas uma
resposta frente a isso que – de súbito – aparece e diz: “vem”, a esse fantasma que
106
Espectros de Marx, pág, 12. Grifo meu.
107
Espectros de Marx, pág, 12.
108
Sobre isso, ver CRAGNOLINI, M. “Una ontología asediada por fantasmas: el juego de la
memoria y la espera en Derrida”. In: Escritos de Filosofía, Academia Nacional de Ciencias, Nº 41-
42, Buenos Aires, 2002, pp. 235-241. Também disponível na página “Derrida en Castellano”
(http://www.jacquesderrida.com.ar
).
56
entra, sai e re-entra e convoca à resposta, ao responder-por da responsabilidade
mesma. Tal fato foi inigualavelmente abordado no momento do velório de
Emmanuel Lévinas, quando Derrida profere suas palavras de Adeus. Apesar de já,
tantas vezes, ter tratado deste tema, que amo, como, em tese, uma tese de
doutorado deve ser mais completa que todos os escritos já escritos pelo autor da
tese, não me permito apenas a indicar a discussão sobre o adeus
109
.
Para Lévinas, algo que ele insistentemente trabalha em La mort e le temps,
totalmente contra a autenticidade da morte própria da ontologia heideggeriana, é
que a morte do outro é aquilo que me inaugura como sujeito ético; o que me
convoca a assumir minha responsabilidade frente ao outro; a, no momento mesmo
da morte, receber do outro que não mais responde a procuração para que minha
assinatura, meu nome próprio, de agora em diante, passe a responder pelos dois. E
foi Jacques, amigo próximo de Lévinas, quem sentiu na pele o que significa esta
lição de adeus do filósofo lituano, se é que ela signifique algo. Foi Derrida o
filósofo que se preocupou em dar prosseguimento a esta noção de “a-Deus”
apenas indicada nos cursos de Lévinas na Sorbonne e é a ele que, agora, recorro,
no intuito de tentar esclarecer esta noção tão enigmática.
Adeus a Emmanuel Lévinas configura um elogio a Emmanuel Lévinas
feito por Jacques Derrida que tem por base as palavras que foram lidas por
ocasião do sepultamento do amigo, no cemitério de Pantin, a 27 de Dezembro de
1995. Em suas primeiras últimas palavras, Derrida ocupa-se e preocupa-se com a
tarefa de dar adeus a Emmanuel Lévinas: ou seja, em todo momento, procura
relembrar o que a palavra a-Deus significou no pensamento do amigo. Um ano
depois, em um seminário organizado por Danielle Cohen-Lévinas no Collège
International de Philosophie, intitulado “Visage et Sinaï”, Derrida prestava uma
nova homenagem a Lévinas, apresentando a conferência “a palavra de acolhida”,
que trata, na verdade, de um aprofundamento mais elaborado das questões
levantadas em Adieu. Não obstante, antes de tudo, precisa-se que se veja o que,
aqui, interessa tomar como metonímia para esta relação – ou, como diria Lévinas,
este face-a-face – com o fantasma (e lembrando que, também em Lévinas este
rosto do outro, apesar de epifânico, não apresenta feição, não é distinguível). Que
se veja, então, as indicações que o próprio texto oferece, sobretudo no que se
109
O artigo em que me deparei mais longamente sobre este tema foi: “O Adeus da desconstrução:
alteridade, rastro e acolhimento”, em Às margens: a propósito de Derrida.
57
refere ao quase-indefinível caráter da palavra adeus. Na tradução americana,
Adieu to Emmanuel Lévinas, a opção pela não tradução da palavra adieu já nos
indica a indecidibilidade de seu sentido. Segundo o tradutor grego Vanghélis
Bitsoris, responsável pela primeira tradução, este termo adieu pode significar ao
menos três coisas: 1. saudação dada tanto no encontro como na separação (Olá!,
Te vejo! etc.); 2. saudação dada no momento de uma separação sem volta,
também aplicável ao momento da morte; 3. o a-deus, “o para Deus ou o diante de
Deus antes de tudo e em toda relação ao outro, em todo outro adieu. Toda relação
ao outro seria, antes e depois de tudo, um adieu
110
. Esta elucidação proposta
pelo tradutor grego, que tem por base o que o próprio Derrida escreve em Donner
la mort, mostrou-se de tal modo significativo à compreensão de seu texto que a
própria edição francesa optou pela sua inclusão em forma de nota de fim de texto,
relativo à primeira aparição da grafia “à-Dieu”.
Deste modo, a relação com o outro é constituída sempre por um adeus,
cumprindo sempre um papel de saudação e de despedida. No adeus, não há a
quem responsabilizar a não ser a si próprio, já que o outro, agora, não está mais
lá: como se sabe, nunca lá esteve, e toda saudação de chegada nunca significou
mais que uma despedida, pois a alteridade sempre emerge do para-além-do-ser,
sempre passado e sempre futuro - nunca no presente, nunca presente.
“Nós seguiremos o rastro de Lévinas”
111
, diz Derrida. Tarefa esta que,
antes, já teria descrito: “Eu gostaria de fazê-la com palavras nuas, tão infantis e
desarmadas quanto minha dor (...) a endereçar-se diretamente, corretamente, a este
que não está mais aí, que não responderá mais”
112
. Esta empreitada insinua-se nas
palavras retas de Derrida, neste seguir rastros que o pensamento de Lévinas
mostra como único modo de vislumbrar-se o rosto do outro, demandando para
isso a retidão e o acolhimento necessários à relação ética. Assim, a despedida
proferida é metáfora de toda relação com a alteridade – e o cemitério onde Derrida
se atravessou por suas palavras (direta, reta e corretamente) é o palco de toda
relação. O outro sempre já se foi, o que apenas realça a infinita responsabilidade
que me resta a assumir; o outro sempre me deixa a palavra, e, ainda que
emudecido e com lágrimas nos olhos, sou chamado a comparecer, a falar e a
110
DERRIDA, J. Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 28.
111
Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 51.
112
Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 11-12.
58
assinar por todos aqueles que já não mais estão entre nós, por todos os outros.
Esta é a lei da retidão: lei diretriz (do que é de direito e do que é direto) da
droiture levinasiana, que delega a fala direta e correta ao outro. A retidão nomeia
aquilo que é “mais forte que a morte”, e, para defini-la, Lévinas afirma que ela “é
a urgência de uma destinação que conduz ao outro e não um eterno retorno ao
mesmo”, uma “inocência sem ingenuidade, uma retidão sem tolice, retidão
absoluta que é também absoluta crítica de si”
113
.
Esta retidão conduz imediatamente à noção de responsabilidade, mas a
uma “responsabilidade ilimitada”, que excede e precede minha liberdade. A lição
sobre a responsabilidade, que Derrida retira de Quatre lectures talmudiques, parte
do princípio de que esta seria uma responsabilidade baseada em um sim
incondicionado, “um sim mais antigo que a ingênua espontaneidade, um sim que
está de acordo com esta retidão que é fidelidade original em consideração de uma
aliança irresiliável”
114
, um “vem”. Como se viu, a retidão desta devoção ética ao
outro está subsidiada pela radical irretidão que o outro apresenta: tanto por sua
intempestividade (sendo ele desordenamento da temporalidade, já que sempre
houve outros e sempre haverá) como por sua infinitude (devido à abstração de seu
rosto, da nudez de sua face epifânica, que indica tão-somente a assimetria absoluta
da relação). O outro se apresenta a mim através desta extrema irretidão, mas esta
irretidào também só me é apresentada pelo outro. E são estes traços da alteridade
– o que, nos termos de Derrida, em frente do corpo morto do amigo, seria sua
espectralidade, sua fantasmagoria – o que nos chama a responder; é deste não-
estar-sempre-aí que nossa resposta é convocada, que a procuração é outorgada e
que, enfim, me torno infinitamente responsável pelo outro.
Em Lévinas, um pensamento do adeus seria algo como um pensamento
àquele que não é mais responsável porque não responde mais, e que, assim, me
convoca a responder-por, na responsabilidade e na responsibilidade. Mas e as
lágrimas e as preces de Derrida? E suas trêmulas e tementes palavras neste
enterro? Será que apenas apontam a uma “técnica” ou “lógica” da herança? Há
tristeza, e espanto: a morte, dizia Lévinas, é sempre um espanto, pois nunca é nem
pode ser antecipada. Permanecer vivo, sobre-viver, neste sentido, faz parte do que
Derrida chama de “luto impossível”, ou semi-luto: nunca se apaga este rastro que
113
Quatre lectures talmudiques, pág. 105.
114
Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 13.
59
o outro deixa, e essa marca de uma presença-ausência do outro, espectral, é o que,
de algum modo, faz com que se trabalhe com os “mortos”. Entretanto, para
Derrida, isso é o que torna infinita e irrestituível a dívida para com o outro; é o
débito que, neste caso, desde então, Derrida passa a ter com o amigo ausente, uma
responsabilidade neste exato momento herdada. A morte do outro não é apenas,
como queria Heidegger, uma facticidade empírica, pois o rosto, que, para Lévinas,
é sempre nudez e sempre ausência, é o que me chama a assumir
responsabilidades, e é a partir desta percepção deste “rosto sem face”,
fantasmagórico, que me responsabilizo.
Responsabilidade é, literalmente, o ato de responder por, de “assumir por
um outro, no lugar, em nome de um outro ou em seu nome como outro, frente a
um outro, e um outro do outro, a saber, o inegável mesmo da ética”
115
. Esta
responsabilidade que, em Paixões, Derrida define como amizade, esta
“responsabilidade de refém” à qual se está desde sempre preso, é experiência de
substituição e sacrifício, pois se assume sua responsabilidade e se passa a
responder pelo outro. Se se pode conceber, em Lévinas, algo próximo a uma
concepção de “subjetividade”, isso consistiria em que o próprio “eu” (eu vivo, eu
presente a mim, minha consciência etc.), seria uma resposta a este apelo do outro
para que se responda por outrem – “subjetividade” constituída por uma
responsabilidade indizível, por feixes de fantasmas.
É devido a este chamado ético que a morte do outro me afeta; essa é a
relação à morte e ao espírito, ao mais de um ou ao totalmente outro, na deferência
frente estes outros sempre outros que não respondem mais, na sobre-vida. A
relação com a morte é impossível, portanto, e, em Violence et Métaphysique,
Derrida enfatiza que o pensamento de Lévinas é uma filosofia do indizível, ou
seja, do que . E Lévinas sempre esteve consciente de sua responsabilidade, que,
de acordo com Derrida, com sua morte, veio a ele como herança, na ordem de um
“sim incondicional”; uma resposta a uma “questão-prece” que colocou Derrida no
frace-a-face com Lévinas (e, agora, que me coloca frente aos dois). A questão-
prece à qual Derrida responde é a questão do adeus frente à morte é a experiência
do para-Deus em que saudação não significa fim, já que a morte não é uma
115
DERRIDA, J. Paixões, pág. 18.
60
passagem ao nada e nem, muito menos, uma última passagem. Como se vê, é um
adeus:
Mas eu disse que eu não queria simplesmente recordar o que ele nos confiou do a-
Deus, mas antes de tudo dizer a ele adeus, chamá-lo por seu nome, chamar seu
nome, seu primeiro nome, o que se chama no momento quando, se ele não mais
responde, é porque ele responde em nós, do fundo de nosso coração, em nós, mas
adiante de nós, em nós diante de nós – nos chamando, nos recordando: a-Deus
116
.
E Lévinas foi mais um dos espectros que assombraram Derrida, pois, como
se viu, nunca há apenas um espírito, sempre mais de um: por isso não ser possível
afirmar que, em Derrida (como em qualquer pessoa), há uma filiação: nem
Heidegger, nem Lévinas, nem Freud, nem Nietzsche, nem Lacan, nem Husserl,
mas todos esses, junto a Marx, Benjamin, Kierkegaard, ao próprio Derrida como
fantasma-de-si, e a tantos outros que não sei e sequer ele sabia. No entanto, para
me aprofundar neste tema da espectralidade e da herança, que Derrida desenvolve
em “seus” Espectros de Marx, tive de recorrer aos fantasmas que mais me
obsediaram nestes últimos anos – sobretudo Lévinas. Creio que, agora, consigo
seguir os rastros derridianos apontados até então, para – eu mesmo – compreender
esta estrutura de disjunção e conjuração da filosofia.
conjurar – o úmido
Tentando, com a mínima violência possível, mas inevitável, montar as peças deste
quebra-cabeça que estou colocando à minha frente, vou me dedicar à leitura de
Espectros de Marx como metonímia da tradição filosófica, a fim de entender
porque isso que sempre nos assombra, mas que é inevitável (neste caso, o espectro
e, mais precisamente, o espectro e os espectros de Marx; mas, no meu caso, no
caso que neste momento apresento, o espectro é o que chamei da estrutura úmida
do úmido), é o que de toda maneira se tenta conjurar. Então, as paráfrases da
escritura derridiana que farei buscarão, tomando uma parte pelo todo (se houver
algum todo possível), substituir o movimento de herança e resistência ao
marxismo, apresentado no texto de Derrida, pela herança derridiana e a resistência
ao “úmido”, que é ao que viso.
116
Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 27.
61
os espectros
Derrida se pergunta o porquê desse plural. Há fantasmas? O mais de um, como se
disse, não pode querer dizer uma associação ou uma multidão de fantasmas a
serviço de algum propósito; no entanto, é menos de um, pois não pode se
simplificar na pura e simples dispersão. E é esse isso que faz com que se inicie
uma obra, qualquer que seja. Toda tarefa começa com a aparição do espectro, que
disjunta o tempo, como conclama Shakespeare ao dizer: “the time is out of joint
117
. Assim começa a tarefa de Hamlet, com a aparição do pai-morto-vivo, assim
começa o Manifesto do partido comunista: “Um espectro ronda a Europa – o
espectro do comunismo”. “Tudo começa pelo aparecimento do espectro. Mais
precisamente pela espera deste aparecimento”
118
, pois, como se viu através dos
exemplos de abertura em Clarice e Guimarães Rosa, é preciso espera – e que se
esforce para que se mantenha aberta a abertura. Hamlet, ao saber da aparição do
pai, inquieta-se; teme, mas não vê a hora de ver o invisível. A espera é a
antecipação do por vir e, ao mesmo tempo, abriga a ansiedade, a angústia e a
fascinação necessárias a toda aparição (que é sempre uma re-aparição e, no
entanto, é também sempre uma primeira vez):
Isso, a coisa (this thing) terminará por chegar. A aparição virá. Ela não pode tardar.
Como tarda. Com maior exatidão ainda, tudo se abre na iminência de uma re-
aparição, mas da reaparição do espectro como aparição pela primeira vez na peça.
O espírito do pai vai retornar e em pouco tempo lhe dirá “I am thy Fathers Spirit
(ato I, cena V), mas aí, no começo da peça, ele retorna, se assim podemos dizer,
pela primeira vez. Trata-se de uma première, a primeira vez em cena.
119
Derrida oferece algumas sugestões a se pensar sobre essa cena. A cena,
como toda cena, é histórica, encena uma estória e encena a história mesma da
historicidade, mas segundo uma obsessão que não data e nem pode se permitir
encadear de acordo com a cronologia do presente. Não se pode marcar no
117
The time is out of ioynt: Oh cursed spight, That ever I was borne to see it right. Nay, come
let’s goe together” (SHAKESPEARE, W. Hamlet. Ato I, cena V), citado por Derrida em Espectros
de Marx, pág. 15. na edição brasileira, abaixo do original, encontra-se a tradução de Carlos de
Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes: “O mundo está fora dos eixos. Oh! Maldita sorte... Por
que nasci para colocá-lo em ordem! Mas, vinde, entremos juntos”.
118
Espectros de Marx, pág. 18.
119
Espectros de Marx, pág. 18.
62
calendário o dia ou a hora da aparição; e, além disso, como se verá um pouco
adiante, a aparição nunca “chega”, de tão intempestiva: na verdade, não ocorre a
aparição do fantasma, uma fenomenalização, mas um saber-se obsediado.
Parafrasearei do meu modo para ilustrar o que está agora me passando pela
cabeça: Minha “hipótese” é a de que um espectro ronda a Filosofia – o espectro
do úmido. Espectro este que, como todo espectro, é mais de um, por ser
participante da umidade mesma. Minha pretensão é a de ver em Derrida (ou, mais
pretensiosamente ainda, a de ver em mim vendo em Derrida) a figura de Hamlet.
primeiro ato
Cito longamente sem aspas, alterando e adaptando: Exórdio ou incipit: Como em
Hamlet, em Marx (e em Derrida), príncipes de um Estado apodrecido, tudo
começa pelo aparecimento do espectro. Mais precisamente, pela espera deste
aparecimento. Mas essa obsessão não chega, não se deixa docilmente datar, não
sobrevém, como no caso do marxismo, um dia à Europa [e do mesmo modo, a
desconstrução não se deixa datar, não sobreveio datadamente, na década de
sessenta, à filosofia], como se esta data, em um determinado momento de sua
história [e da história da filosofia e, mais precisamente ainda, do pensamento
francês contemporâneo], viesse a sofrer de um certo mal, como se houvesse
deixado habitar por dentro, ou seja, obsediar por um hóspede estrangeiro
[exatamente como, para Derrida, há desconstrução, sempre houve e sempre
haverá; não foi uma criação sua que, como uma infecção, foi tomando a filosofia.
Se toda escritura é constructo, então é, por princípio, por seu princípio mesmo e
por sua estrutura interna, desconstruível. Do mesmo modo que não penso ter
achado nenhum caminho meu, nisso que aponto como um pensamento úmido a
partir de Derrida – apenas estou tentando, como Derrida fez, não negar esse
“estar possuído” por isso que é estrangeiro, pelo totalmente outro, mas, ao
contrário, assumi-lo; assumir a possessão mesma como princípio para o
pensamento e não querer exorcizá-la, como tentou fazer Bacon, por exemplo].
E o fato de ter desde sempre ocupado a domesticidade da Europa [como o
caso da estrutura da umidade na filosofia] não torna o hóspede menos estrangeiro.
Isso porque, e agora cito Derrida ipsis literis, “não havia dentro, não havia nada
dentro antes dele [do espectro]. O fantasmático deslocar-se-ia como o movimento
63
dessa história. A obsessão caracterizaria, de fato, a existência da Europa”
120
. O
que, em meus termos, resumir-se-ia na seguinte conclusão (precipitada como
qualquer conclusão): A umidade do úmido deslocar-se-ia como o movimento
dessa história da filosofia, da tradição. A umidade caracterizaria, por um lado, a
quase-substância mesma da filosofia; ao mesmo tempo, um certo tipo de luta ou
resistência aberta, declarada e assumida contra esta estrutura do úmido
configuraria a própria existência da filosofia.
segundo ato
Uma outra sugestão de Derrida para esta cena da escritura diz respeito a isso que
vê sem ser visto, esta figura assombrosa que, como eflúvios, pode penetrar em
nosso corpo (e lembro aqui o antepassado pré-socrático dos eidola de Bacon, que
invadiam o corpo sensível).
Este algum outro espectral nos olha; sentimo-nos olhados por ele, fora de toda
sincronia, antes mesmo e para além de qualquer olhar de nossa parte, segundo uma
anterioridade (que pode ser da ordem da geração, de mais de uma geração) e uma
dissimetria absolutas, segundo uma desproporção absolutamente incontrolável. A
anacronia faz a lei aqui. Que nos sintamos vistos por um olhar com que sempre
será impossível cruzar, aí está o efeito de viseira, a partir de que herdamos a lei.
121
Deste mesmo modo, os eflúvios, as imagens, os fantasmas de verdade, os ídolos
do foro sempre nos obsediaram: e não basta creditar ao platonismo, ao
cartesianismo, à filosofia crítica essa tentativa de purificação ou exorcismo. Pode-
se ver em exemplos bem recentes como este “outro que nos olha e que não
vemos” ou tudo isso que “não se pode nomear” está presente no pensamento
contemporâneo. Dois grandes exemplos, que serão retomados adiante, são
Saussure e Austin: o primeiro ao falar da “monstruosidade” da escrita e o segundo
ao falar dos “parasitas” da língua. E, para além destes exemplos berrantes, que
serão apresentados no capítulo seguinte, pode-se pensar a postura fenomenológica
também como uma espécie de “higienização”: seja no “retorno às coisas mesmas”
de Husserl, em que tudo o mais deve ser suspenso, posto entre parênteses (ou seja,
não levado em conta, excluído etc.); seja na autenticidade única do “pensamento
120
Espectros de Marx, pág. 19.
121
Espectros de Marx, pág. 23.
64
do Ser” de Heidegger, em que tudo o que não é digno de ser pensado é tido como
impróprio; seja em uma “ética do infinito” como a de Lévinas, em que se deve
abandonar o clima de qualquer ontologia e apagar do mapa qualquer vestígio
heideggeriano.
*
Entretanto, por outro lado, não vejo quem me vê – e é este quem faz a Lei. Tal Lei
– mais uma antecipação do que se mostrará à frente – resume-se em “que haja
lei!”, que Derrida toma emprestado do Processo de Kafka
122
. Está-se sempre
diante da lei, sempre, sem cessar – e esta lei é a lei do fantasma, “daquele que não
deve ser nomeado”, e quem nem pode ser, nem que se quisesse, pois é a Lei da
umidade que, querendo ou não, entra efluvialmente pelos poros do pensamento:
seja a lei do existente, da filosofia como ético-política rumo à lei do Todo-Outro
disseminado; seja a lei da metaforicidade mesma, da filosofia como alegoria; seja
a lei da impossibilidade de tradução, da filosofia como monolinguismo do outro;
seja a lei do “como se”, da filosofia como ficção; seja a lei da assinatura, da
filosofia como o autobiográfico. Estes cinco aspectos que acabo de nomear, de
batizar, como sendo desdobramentos da mesma Lei são aquilo que penso – e
como penso – poder apresentar como isso que chamo de pensamento úmido.
Seriam os traços desta Lei da umidade que a filosofia tanto se esforça por
exorcizar, por se auto-exorcizar, e que eu vejo assumidos e tomados como
princípio mesmo da desconstrução em Derrida. E, se haverá, aqui, nisto que “não
deve ser nomeado” de uma tese, alguma tese, aspectos que terão de – apesar de
não deverem – ser nomeados de capítulos, serão este pentágono. Ou melhor, já
que a geometria seria mais uma extirpação do úmido, então a figura geométrica
não caberia como metáfora, não há cinco lados distintos que formam um conjunto,
uma unidade da tese, mas são cinco aspectos da mesma Lei que comporão a
segunda parte desta: trata-se de um pentatlo.
É nesta esteira – em que me exercito, ando, caminho quilômetros sem sair
do lugar, mas que produz, é certo, um efeito – na esteira dos espectros de Derrida,
dos que o assombraram e que me assombram, assim como os do que me
122
Isso será tratado mais pacientemente no quinto capítulo da segunda parte, sobre a ficcionalidade
da língua.
65
assombram e que eu faço assombrar Derrida, neste “rumo” desorientado que tento
escrever. E, nesta esteira, em que Derrida caminha com Marx e Shakespeare,
“aquele” que vê e que faz a lei, o mais de um, é quem “liberta a injunção” – este
alguém impreciso, objeto não-identificado, mas que demanda, em seu
ordenamento, trabalho e : é preciso que se acredite no fantasma. Se o que
assombra o pensamento é a umidade mesma do úmido, esse algo quase-
ectoplasmático, sobretudo alegórico, isto pode tomar a forma que quiser e se
apresentar a mim como quiser, e Lévinas já dizia que o rosto do outro é um rosto
sem face, que, portanto, se esfacela. Esta tarefa é, portanto, também, um segredo
(e, continuo repetindo, estou antecipando inúmeros quase-conceitos que tentarei
responder-por nesta escrita), e, como observa Derrida sobre Hamlet, só se pode
acreditar na palavra disto que diz “I am thy Fathers Spirit” e, sem se ter certeza de
nada, seguir o ordenamento e assumir a herança: “submissão essencialmente cega
ao seu segredo, ao segredo de sua origem, eis uma primeira obediência à injunção.
Ela condicionará todas as outras. Pode-se sempre tratar de algum outro”
123
.
Mais acima, Derrida referira-se a um certo “efeito de viseira” que compõe a
lei da anacronia que se herda: o pressuposto espírito do pai de Hamlet “aparece”
completamente recoberto por uma armadura; esta armadura cobre todo seu corpo;
e não se pode identificar se esta faz parte ou não da encenação do espírito.
A armadura não deixa ver nada do corpo espectral, mas à altura da cabeça e sob a
viseira, permite ao soi-distant pai ver e falar. Fendas aí são preparadas e ajustadas,
permitindo-lhe ver sem ser visto, mas falar para ser ouvido. O elmo (helm, o
capacete), como a viseira, além de garantir uma proteção, encimava o escudo de
arma e designava a autoridade do chefe, como o brasão de sua nobreza.
124
E prossegue:
Para o efeito de elmo basta que uma viseira seja possível, e que se jogue com ela
(...). Mesmo quando está erguida, a viseira permanece, recurso e estrutura
disponíveis (...). Eis o que distingue uma viseira de uma máscara, com que, no
entanto, compartilha esse poder incomparável, talvez a insígnia suprema do poder:
ver sem ser visto. O efeito de elmo não é suspenso quando a viseira está erguida.
125
123
Espectros de Marx, pág. 23.
124
Espectros de Marx, pág. 23.
125
Espectros de Marx, págs. 23-24.
66
Tal fato, no momento da aparição do espírito do pai a Hamlet é, para Derrida,
extremamente marcante para que se pense esta estrutura espectral. Hamlet, assim
que Horácio lhe conta que uma aparição semelhante a seu pai aparecera armada
dos pés à cabeça (“Arm’d at all points exactly, Cap a pe”
126
), interroga-se,
primeiramente, sobre esta armadura (“Hamlet: Arm’d, say you? Both: Arm’d, my
Lord. Hamlet: From top to toe? Both: My lord, from head to foote”) e, logo em
seguida, para se certificar da aparição do espectro de seu pai, interroga-se sobre a
visão de seu rosto (“Hamlet: Then saw you not his face? Então não lhe pudeste
ver o rosto? Horácio: O yes, my Lord, he wore his Beauer vp. Como não? A
viseira estava erguida”. Ato I, cena II). As observações derridianas que se seguem
à exposição desta passagem da encenação decompõem analiticamente em três
coisas essa coisa (o espectro, o rei, o pai: “The body is with the King, but the King
is not with the body. The King, is a thing”), e a elas me deterei.
Antes, e sempre, o luto, como se viu no Adeus. Sempre se começa e,
portanto, sempre se fala de ou em um luto, enlutado, mas em um contínuo
processo de luto, em que o objeto nunca é substituído, nem introjetado – já que
não há vida, nem morte, mas apenas sobre-vida, há uma constante semi-perda que
é também um semi-ganho; e isso caracterizaria um semi-luto para-além do estrito
sentido do luto freudiano (que também seria, assim, uma semi-melancolia). Para
Derrida, não se fala senão do luto, deste luto-impossível
127
. “Este consiste sempre
em tentar ontologizar os restos, torna-los presentes, em primeiro lugar em
identificar os despojos e em localizar os mortos”
128
e isso configuraria o objetivo
de todo pensamento filosófico, hermenêutico e psicanalítico. Mas que, por estar,
de tal modo, presa a esta sistematização dos defuntos não permite que se pense
este aquém que Derrida propõe com a questão do espectro. A postura filosófica
tradicional, deste modo, precisa saber, saber quem é este espectro, como ele é,
onde ele está e, para Derrida, “nada seria pior para o [seu] trabalho de luto do que
a confusão e a dúvida: é preciso saber quem está enterrado onde – e é preciso
(saber – assegurar-se) que, nisso que resta dele, há resto
129
. E, portanto, só a
confusão permanece, os restos, rastros, traços. Qualquer catalogação ou
126
Todas as passagens de Hamlet são retiradas do texto de Derrida.
127
Sobre isso, ver a “Entrevista com Geoffrey Bennington” em Desconstrução e ética (pp. 228-
231). Ver também “Luto e alteridade no pensamento de Jacques Derrida”, de Ana Maria
Continentino (Analógos, v. V, novembro de 2005).
128
Espectros de Marx, pág. 25.
129
Espectros de Marx, pág. 25.
67
taxonomia dos cadáveres se torna impossível: há restos, aliás, só há e sempre só
houve restos, mas, para ser realmente um resto, um resto digno do nome resto, ele
não pode ser catalogado nem submetido a nenhuma nomenclatura – sendo, como
entendo, sempre úmido.
Uma segunda análise de Derrida sobre a coisa diz que “não se pode falar de
gerações de crânios ou de espíritos (...) a não ser sob a responsabilidade da
língua”
130
. Como se verá em seguida, ao tratar da língua, da minha língua, a
estrutura que Derrida apontou aqui como a estrutura da “vida própria” se repete. A
minha língua, a única que eu falo, que eu possuo, não me pertence. No entanto, só
se fala de ou na língua, nesta língua que nada mais é que uma estrutura de
promessa e adiamento, uma língua, deste modo, também espectral e que vem do
outro. Como se verá, meu monolongüismo é um monolingüismo do outro: e, no
entanto, esta língua, tão minha como a minha vida que não me pertence, sempre
vem do outro e não é de fato mono nem auto, mas sempre hetero e multi. A língua
que pode acolher esse pensamento de gerações de fantasmas, nos termos de
Derrida, ou de uma sucessão de eflúvios, não pode ser o pretenso auto-mono-
lingüe idioma filosófico, mas sim o hetero-poli-(ou multi)-lingüismo da
desconstrução – que mais que hetero, poli ou multi, é um alter-iter-lingüismo.
E depois do luto e da língua, do luto da língua inclusive, Derrida encerra
sua apresentação do problema (do marxismo como metonímia para o fantasma, e,
aqui, do fantasma como sinonímia do úmido) com a seguinte questão: “Aonde?”.
Aonde se irá ao se seguir um fantasma? Qual a destinação que uma presença-
ausência pode apontar? E, mais ainda, “o que é seguir um fantasma? E se isso
significasse ser seguido por ele, sempre, perseguido, talvez em razão da caçada
que lhe fazemos?”
131
. Que reentre o fantasma: Hamlet aceita seguir o fantasma
do pai (“I’ll follow thee”, ato I, cena IV), mas, logo depois, pergunta: “whither?”,
para onde? (“Hamlet: Where wilt thou lead me? Speak; I’ll go no further. Ghost:
Mark me […] I am thy Fathers Spirit”). Deve-se aceitar, assim, a seguir isto que
nem se sabe se é ou não o que se diz e, além disso, segui-lo sem saber para onde –
simplesmente segui-lo, seguir a ordenação que diz “vem” do outro, a autoridade
da alteridade radical que, em todo caso, é inevitável, mas às vezes reprimido,
recalcado, evitado, renegado ou conjurado. Esta estrutura já se viu antecipada, de
130
Espectros de Marx, pág. 25.
131
Espectros de Marx, pág. 25.
68
algum modo que aqui me aproprio, em “Violence et Métaphysique”, no qual
Derrida confronta Lévinas com Heidegger. Se Derrida mostra como Lévinas, o
discípulo, transformara-se em um parricida, com seu desenho ferrenho de fundar
uma filosofia pré-heideggeriana, descontaminá-la de toda ontologia, como
Macbeth frente ao espectro de Banquo, é porque este, no início, assumira a
postura de Hamlet e ouvira o “chamado” de Heidegger. A crítica de Derrida a
Lévinas não se deve ao fato do parricídio, pois a desconstrução, em grande parte,
tem como pressuposto a crítica da ética levinasiana; mas o que Lévinas não viu,
ou ao menos não assumiu, é que tudo o que ele escreveu estava já contaminado
por Heidegger, e que, se ele seguiu um rumo totalmente outro do de Heidegger
foi, justamente, por ter começado com Heidegger, com seu espectro e a segui-lo
sem saber pra onde. E, assim, se se segue o espectro sem se saber para onde,
acaba-se por se traçar um rumo próximo de algo que é próprio, uma travessia
obliqua.
terceiro ato
Enter the Ghost, Exit the Ghost, Re-enter the Ghost”. A aparição como
reaparição. O fantasma como retorno e, ao mesmo tempo, inauguração: injunções
temporais, temporalidades out of joint, sem-junção, dis-juntas. “Repetição e
primeira vez, eis talvez a questão do acontecimento como questão do fantasma; o
que vem a ser um fantasma?” – e, neste caso, esta aparição para mim do úmido,
de modo absolutamente espectral, isso que se mostrou a mim pela primeira vez
não é mais que uma repetição, uma remarca, como objetei. Mas é nesta remarca,
aponta Derrida, que pode haver alguma espécie de, entre infinitas aspas,
“...“singularidades”...”.
Repetição e primeira vez, mas também repetição e última vez, pois a singularidade
de toda primeira vez faz dela também uma última vez. Cada vez, trata-se do
acontecimento mesmo, uma primeira vez e uma última vez. Totalmente outro. (...)
Chamemos isso de uma obsidiologia. Essa lógica da obsessão não seria somente
mais extensa e mais poderosa do que uma ontologia ou um pensamento do ser (do
to be”, supondo-se que em to be or not to be” esteja em questão o ser [como
afirmou Lévinas], e nada é menos certo. Ela abrigaria em si, mas como lugares
circunscritos ou efeitos particulares, a escatologia e a teleologia. Ela as
compreenderia, mas incompreensivelmente.
132
132
Espectros de Marx, pág. 26.
69
De modo semelhante, que é o que eu pretendo, um pensamento úmido ou uma
umidologia teria sua singularidade em apenas tentar repetir de outro modo o que
“está” aí. Em um primeiro lugar, tentar compreender a atitude crítica de Bacon,
estendê-la à filosofia crítica, em geral, e talvez de modo mais generalizado ainda à
tradição filosófica, mas não tentando apreendê-la em uma lógica minha, dominá-
la, tê-la como meu objeto. Como tentei captar de Clarice e de Derrida, é no
escapamento por entre os dedos disto que tanto quero agarrar que algum
conhecimento é possível, incompreensivelmente – que, como ecoa nos dois: o
impossível acontece. Mas este “correr atrás” é inevitável, é o que produz a própria
escritura, só não se pode ter a pretensão de ter enfim agarrado o instante-já, enfim
compreendido um autor e enfim aprendido a viver. Sobre isso, faço questão de
repetir Clarice em Água Viva:
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão
fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é
mais... E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o
presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já.
133
E esse impossível, que está além do dizível e do conhecível é, ele mesmo, a
própria alteridade, o espectro, o úmido (não estes outros aqui presentes, pessoas,
coisas, discursos, pois estes já estão inseridos na lógica do possível). E é isso que
leva Derrida a afirmar que a desconstrução é um acontecimento;
desconstrução: não existe nenhum sujeito desconstrutor, um agente ativo que
promova a cerimônia do acontecer, ela simplesmente acontece. Sobre isso, Paulo
Cesar Duque Estrada diz que:
Em termos mais positivos, a alteridade que virá, quando a barreira da exclusão for
rompida, virá como um acontecimento inesperado, justo por não se tratar de
nenhuma alteridade já previamente determinada e, portanto, familiar de alguma
forma, calculável, previsível, apreensível, etc.
134
Pois, como diz Derrida: “o interesse da desconstrução, de sua força e de seu
desejo, se é que ela os tem, é uma certa experiência do impossível: quer dizer, (...)
do outro, a experiência do outro como invenção do impossível, em outros termos,
133
LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pág. 09.
134
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Alteridade, violência e justiça: trilhas da desconstrução”, pág. 37.
70
como a única invenção possível”
135
. E é justamente esta experiência, esta nova
maneira de se conceber a “experiência” (que rompe com o ideal de presença e
com a junção do tempo) que os espectros e os eflúvios podem nos ensinar. Esta
lição acena para o aprendizado do impossível, ou melhor, trata de aprender a não
lidar com o impossível, pois essa é a única relação possível com esse “isso” que
sempre escapará.
E, no entanto, é sempre um trauma. A experiência de se ter à frente um
espectro não pode ser algo fácil. E este trauma, no sentido derridiano do
rompimento com a ordem do possível e do cálculo que todo acontecimento traz
consigo, é por certo tudo aquilo que a filosofia, por auto-imunidade, tenta afastar.
Nos tempos sombrios, macabros, em que os funerais são bandeiras filosóficas, e
sempre festejados, quando, como Marcelo diz que “Something is rotten in the
state of Denmark”, o cheiro de putrefação impregna o ar, o melhor a fazer seria,
mesmo, se certificar de que os cadáveres estão bem enterrados e bem mortos – e,
assim, catalogá-los, esquartejá-los e ou guardá-los em formol. Mas não, Derrida
vem e afirma que nada morre (contudo, nem vive), tudo sobrevive: platonismo,
cristianismo, Deus, arte, sujeito, marxismos etc... Todos esses espectros
continuam a assombrar o pensamento, por mais que a tentativa de grande parte da
tradição seja a de parricídio e sepultamento, mesmo quando se traveste de
eternização e preservação e determinação de essências. Não é à toa que o úmido
incomodava tanto Francis Bacon, pois, em uma experiência como essa, de
confrontamento e assunção da estrutura úmida da umidade, muito se tem a perder,
certamente, aliás, tem-se a perder praticamente tudo. Mas dever-se-ia aprender
que é nesta perda – de tempo e de espaço – que algo a se ganhar, no trauma.
Um acontecimento sempre provoca uma ferida no curso cotidiano da história, na
repetição e antecipação comum de toda experiência, (...) precisamos questionar sua
crono-logia. (...) Estamos falando de um trauma e, portanto, de um acontecimento
cuja temporalidade não procede do agora que está presente, nem do presente que é
passado, mas de um im-presentável por vir (...) um futuro tão radicalmente por vir
que resiste mesmo à gramática do futuro do pretérito
136
.
O fantasma entra, sai e retorna. Escrever, portanto, é uma questão de
repetição, para Derrida – escrever, pensar, se relacionar em geral com qualquer
135
DERRIDA, J. Psyché. Inventions de l’autre. Pág. 27.
136
BORRADORI, G. Filosofia em tempo de terror, tradução de Roberto Muggiati. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2003, pág. 106.
71
outro (como se fosse possível não se relacionar com o outro, mesmo que seja uma
relação a si como outro de si). Um espectro é sempre um retornante, ele sempre
começa por retornar e é por esta razão que não se pode controlar suas idas e
vindas, suas aparições: não há como invocar nenhuma entidade; ou ela irrompe ou
não. É isso que torna impossível a tarefa que Derrida se coloca, que me obsedia e
que penso ser desprezada por grande parte da filosofia, qual seja, falar do
espectro, falar ao espectro, falar com ele, logo, e principalmente, fazer ou deixar
falar um espírito. E se, em Espectros de Marx, existe um momento realmente
crítico, tal seria o ponto em que Derrida coloca como esta dificuldade se acentua
quando se trata de um leitor, um erudito, um scholar. “Teoricamente”, o último a
quem um espectro apareceria seria a um teórico, isso em teoria. E, como se trata
ainda de um capítulo introdutório, talvez retomando a metáfora esportiva, antes do
pentatlo, o momento do aquecimento, devo pensar em como eu, pretenso
acadêmico, que deseja ser “aceito” pela sociedade intelectual, bem visto etc.,
posso fazer ou deixar falar o úmido.
Não há mais, nunca houve, um scholar capaz de falar tudo dirigindo-se a qualquer
um, e principalmente aos fantasmas. Nunca houve um scholar que tivesse
verdadeiramente, enquanto tal, lidado com fantasma. Um scholar tradicional não
acredita em fantasmas – nem em tudo a que se poderia chamar o espaço virtual da
espectralidade. Nunca houve um scholar que, enquanto tal, não acreditasse na
distinção entre o real e o não-real, o efetivo e o não-efetivo, o vivo e o não-vivo, o
ser e o não-ser (to be or not to be, conforme a leitura convencional), a oposição
entre o que está presente e o que não está, por exemplo sob a forma da
objetividade. Para além dessa oposição, não há para o scholar senão hipótese
acadêmica, ficção teatral, literatura e especulação.
137
E, se tomo, a partir desta crítica ao pensamento crítico, Bacon, entre muitos, como
a figura exemplar do scholar e sua dificuldade de admitir que o úmido, e que
ele deve haver, devo ressaltar que Derrida fala – apesar da clara firmeza – que
nunca houve, entre o que se tem tradicionalmente por scholar, um scholar capaz
disso. E é por este motivo que, aos espectros de Derrida, ao longo de toda a escrita
desta tese, para-aquém de toda invocação, tentarei deixar ou fazer falar tantos
outros espectros “marginais” que me assombram.
137
Espectros de Marx, pág. 27.
72
quarto – e penúltimo ato
E um penúltimo ponto a se insistir: a injunção. Retomando “As três falas de
Marx”
138
, de Blanchot, segundo Derrida, “de uma incomparável densidade, de
modo ao mesmo tempo discreto e fulgurante”, o filósofo franco-argelino retira,
desta obra, não uma resposta à questão da herança, mas o fato de que, hoje, se é
herdeiro de “mais de uma fala, como de uma injunção em si mesma desajuntada”
139
. A herança é sempre de uma heterogeneidade radical, que não se pode nunca
juntar: e se há algo próximo a uma espécie de unidade na herança, esta consiste na
injunção mesma de se reafirmar sempre isso que é por nós, de certo modo,
escolhido. “É preciso, quer dizer é preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso
escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção. E habitam-na de
modo contraditório, em torno de um segredo”
140
. E “herda-se sempre um
segredo”, mas um segredo, como se verá à frente, de uma extrema radicalidade e
alteridade, um segredo absolutamente secreto, que só se transmite em sua
criptidade mesma. A injunção é o que diz que se deve herdar e, mais ainda,
escolher o que se herda, pois não existe um algo a se herdar, senão as múltiplas
vozes do mais de um.
The time is out of joint”. É o imperativo herdado de Hamlet que o faz,
incessantemente e por , tentar manter junto o que é absolutamente separado, na
injunção de um tempo infinitamente disjunto. E, nas análises de Derrida, o que se
diz do tempo, neste caso, mas também em todo caso, serve também para a
história, e, neste caso aqui, para a história do pensamento: mesmo se o objetivo de
uma história ou de uma história do pensamento for o de juntar isso que, por
“natureza” é disjunto.
The time is out of joint”, o tempo está desarticulado, demitido, desconjuntado,
deslocado, o tempo está desconcertado, consertado e desconcertado, desordenado,
ao mesmo tempo desregrado e louco. O mundo está fora dos eixos, o mundo se
encontra deportado, fora de si mesmo, desajustado.
141
Retomando as quatro mais respeitadas traduções do francês para a disjunção, o
out of joint, Derrida encontra uma multiplicidade de interpretações para esta tarefa
138
BLANCHOT, M. L’Amitié, Paris: Gallimard, 1971, págs. 109-117.
139
Espectros de Marx, pág. 33.
140
Espectros de Marx, pág. 33.
141
Espectros de Marx, págs. 34-35.
73
de Hamlet: 1. a tradução mais fiel, de Yves Bonnefoy: “Le temps est hors de ses
gonds”, “O tempo está fora de seus gonzos”, “fora de si”
142
; 2. a tradução
arriscada de Jean Malaplate: “Le temps est detraqué”, “O tempo está alterado”; 3.
a tradução próxima ao original de Jules Derorquigny: “Le monde est à l’envers”,
“O mundo está às avessas”; e 4. a surpreendente tradução de André Gide: “Cette
époque est déshonorée”, “Esta época está desonrada” – a qual, para Derrida, pela
surpresa mesma, desperta um interesse, por introduzir um caráter ético-político à
sentença.
Se “há algo de podre no reino da Dinamarca”, Hamlet está, sim, inserido em
uma decadência moral, em uma perversão dos costumes, e, assim, não é de se
surpreender que o príncipe herdeiro pense o desajustado como injusto. Derrida se
questiona, então, se se poderia justificar esta passagem do desajuste – um valor, a
princípio, ontológico – à injustiça. Mas, na verdade, o que se deve entender, como
já se deve supor com o que se viu até agora, é que este desajuste, esta disjunção,
é, isso mesmo, a condição de possibilidade da justiça – guardando em mente, de
acordo com a máxima de Lévinas que Derrida assume ter herdado, a máxima de
Totalidade e Infinito que assombra Força de lei, que a justiça é ela mesma a
relação com o outro
143
.
Esta é a tarefa de Hamlet que o impõe a fazer justiça ao mundo, a herdar
uma responsabilidade infinita deste outro que lhe comanda uma ação, a agir reta e
corretamente, de acordo com a retidão, como dizia Lévinas. A dissimetria radical,
absoluta, é quase insuportável (como se verá no capítulo sobre a relação com o
outro), pois o “eu” só pode dizer “sim”, responder (infinitamente) a isto a que ele
nunca conseguirá responder, mas que é incessantemente convocado a fazer. É por
isso que, em um primeiro momento, Hamlet amaldiçoa seu tempo, esta injustiça
de ser ele o “eleito” a fazer justiça ao tempo desajustado. Hamlet “amaldiçoa a sua
missão: fazer justiça, de uma de-missão do mundo. Pragueja contra um destino
que o leva a fazer justiça a partir de um erro, um erro do mundo e dos tempos”
144
;
como Jó, Hamlet amaldiçoa o dia em que nasceu: “The time is out of joint: O
142
Anamaria Skinner indica que, em português, encontram-se as seguintes traduções: 1. “Dos
gonzos saiu o tempo”, de Carlos Alberto Nunes; 2. “Como as coisas andam / fora dos eixos!”, de
Péricles Eugênio da Silva Ramos; 3. “O mundo está fora dos eixos”, de F. Carlos de Almeida
Cunha Medeiros e Oscar Mendes. (Espectros de Marx, pág. 36.).
143
A afirmação de Lévinas que se encontra em Totalidade e Infinito (p. 76) é retomada por Derrida
tanto em Force de loi: le “fondement mystique de l’autorité” (p. 958) como no debate com John
Caputo em Deconstruction in a nutshell (pp. 17-18).
144
Espectros de Marx, pág. 37-38.
74
Cursed spite, That ever I was born to see it right ”, amaldiçoa o “erro trágico” que
teria sido feito em seu nascimento – e, no entanto, é essa perversão originária que
fez Hamlet ser Hamlet.
Só há tragédia, só há essência do trágico desde que haja essa originaridade, mais
precisamente, essa anterioridade pré-originária e propriamente espectral do crime.
Do crime do outro, um crime grave cujo acontecimento e a realidade, e a verdade,
não podem nunca apresentar-se em carne e osso; podem apenas se deixar
presumir, reconstruir, fantasmar.
145
Para Derrida, esta tragédia é a constituição da única possibilidade de justiça:
ser parte de uma geração sempre posterior, sempre segunda, e antecedida pela
absoluta disjunção do outro, uma contemporaneidade sempre tardia e somente,
então, destinada a herdar isso que é sempre uma injunção e mais de um – o
espectro, o úmido. Essa ferida sem fundo, essa tragédia originária, esse trauma é o
que constitui o “eu” como tal e o que o faz obrar. Para que haja obra é necessário
que o tempo esteja out of joint.
último ato
Porque se insistir nisso, aqui e agora? Porque insistir no espectro (para Derrida,
em um congresso que se perguntava sobre o amanhã do marxismo) e no úmido
(para mim, em uma tese que quer pensar, a partir de Derrida, a própria
academicidade da academia, o escrever acadêmico e em que medida a própria
escrita de uma tese não anula a própria “força”, a espectralidade e a umidade
mesma da tese). No “contexto” derridiano, endereçado aos scholars, o filósofo via
a importância de ressaltar a atual despolitização do marxismo através de sua
teorização, a tentativa acadêmica de, com isto, neutralizar a sua força, aceitando-
se seu retorno, mas não seu aspecto revolucionário. Para Derrida, “agora que
Marx está morto, e principalmente que o marxismo parece em plena
decomposição, parecem dizer alguns, vamos poder ocupar-nos de Marx sem ser
incomodados”
146
. Ou seja, agora se pode tratar disso que, antes, tanto incomodou
a academia, o pensamento, tanto assombrou; e agora, então, se pode tratar disso
de modo claro e distinto, sistematicamente, respeitando-se as normas, já que
145
Espectros de Marx, pág. 38.
146
Espectros de Marx, pág. 51.
75
Marx, hoje, morto, seria mais um filósofo entre tantos outros mortos – “e até se
pode dizer, agora que tantos marxistas estão calados, um grande-filósofo, digno de
figurar nos programas de concursos de que durante muito tempo foi proscrito”
147
.
Estas questões que o texto derridiano coloca, são, para mim, já que se
pretende concluir, enfim, mas ainda não agora este capítulo, profundamente
tocantes e urgentes. Em primeiro lugar, sobre meu tema: se eu acredito – e
realmente acredito – que há um caráter revolucionário em todo pensamento que
assume o caráter úmido (como em Kierkegaard, Nietzsche, Benjamin, Lévinas e
Derrida, entre meus espectros), não posso e nem devo, em respeito a esse
pensamento mesmo, seguir as normas que, desde sempre, o tem aprisionado.
Devo correr o risco de me lançar na contaminação e na disjunção: por uma escrita
úmida, dentro de sua impossibilidade mesma; além disso, por amor a Derrida,
que, como se sabe, apesar de ser um acadêmico, sempre sofreu resistência,
sobretudo da filosofia.
Sem querer me deixar tomar completamente pela autobiografia, minha
estória no doutorado atestou em alguns momentos esta resistência – e o
acolhimento pelos departamentos de Letras e pela psicanálise sempre foi tanto
mais gentil. E se, pelo contrário, na filosofia, um dos órgãos mais respeitados –
sobretudo por sua “neutralidade” – o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)
chega a emitir um parecer dizendo, entre outras coisas, que “Derrida não pode ser
considerado um autor formador para uma pesquisa de doutorado”
148
– o que,
apesar de me abalar momentaneamente me deu mais desejo de pensar o porquê
desta observação científica – penso que minha tarefa, então, torna-se aqui mais
séria do que imagino. Talvez, como Hamlet, tenha me sentido mais injustiçado
que todos neste mundo acadêmico out of joint, desajustado. Por que me senti
assombrado por este espectro, agora mesmo morto, e impelido a fazer justiça a
este crime que, talvez, ele mesmo, o próprio Derrida, tenha cometido? Mas, por
isso mesmo, já que assumi essa herança e essa responsabilidade (e, devo admitir,
muito mais depois de ler o referido parecer; e o que antes ocupava apenas um
lugar secundário passou a ser, desde então, uma questão de honra, como diria
Hamlet), não posso fazer, nem aceitar que se faça o que Derrida denuncia que se
147
Espectros de Marx, pág. 52.
148
Referência ao parecer negativo do CNPq, dado por um parecerista anônimo, sobre meu pedido
de bolsa de doutorado sanduíche.
76
fez com Marx (e com Nietzsche, com Benjamin etc.): tornar Derrida, agora que
morto e, por isso, aparentemente inofensivo, um grande filósofo, e decretar,
assim, a morte da desconstrução, do que há de revolucionário em seu pensamento.
São essas questões que me assombram – e, como já disse, por amor – que
me fizeram não querer ser um especialista em Derrida, um “comentador” de sua
obra, alguém que lhe restituísse sua verdade: um scholar. Optei por pensar a
partir de Derrida, com ele, na ingratidão necessária para que seu pensamento não
se inscreva na ordem do mesmo e não se aprisione em si. E, como ele mesmo
disse, para isso, é preciso se falar com e aos fantasmas: os que assombram
Derrida, o próprio Derrida como mais de um fantasma, e os meus fantasmas...
Derrida diz que é preciso que se impeça, em um congresso sobre o
marxismo e seu futuro, que prevaleça um retorno filosófico a Marx, mas não que
este retorno não deva ter espaço. É necessário que se retorne filosoficamente a
Marx, como aqui é inevitável que eu retorne incessantemente a Derrida, mas o que
não pode acontecer é que este “filosófico” do neutro e do científico, do
encadeamento, da junção e da conjunção, prevaleça – pois seu prevalecimento é
seu triunfo, é o triunfo mesmo do triunfo, e para que haja um pensamento de fato
úmido não pode haver triunfo. É preciso, na ótica de Derrida “este outro
pensamento do saber
149
: precisa-se que se reconheça a impossibilidade mesma,
como fez Blanchot, de se receber e de se entender uma fala ao recebê-la como
herança, “eis o que torna seguramente (...) a injunção, a herança e o porvir, numa
palavra, o outro, impossíveis
150
- mas aí, como em tantos outros lugares, sempre
que se trata de desconstrução, é preciso ver nisso uma afirmatividade na
“experiência” do impossível, na aporia e, por conseguinte, em uma concepção de
experiência que se mantém sempre às margens do talvez.
*
Ao pensar o título da série de conferências reunidas sobre o nome de espectros,
Derrida pensou inicialmente em nomear todas as formas de obsessão que
dominam o discurso hoje, mas logo em seguida se apercebeu de que toda
nomeação, toda organização participa da hegemonia mesma que o próprio Marx
149
Espectros de Marx, pág. 54.
150
Espectros de Marx, pág. 55.
77
tanto criticou. Deve-se, portanto, neste sentido, pensar a palavra conjuração, para
que se alerte à hegemonia de qualquer espécie de pensamento (e nem mesmo, de
um pensamento úmido, pois a umidade como a que aqui quero ver pensada é a
impossibilidade mesmo de qualquer hegemonia, de qualquer totalitarismo do
discurso, pois vai sempre permitir uma fenda, uma brecha, uma contaminação).
Tanto em francês como em português, a palavra conjuração possui uma
multiplicidade de acepções que aqui muito podem interessar: em uma primeira
análise, conjuração é uma conspiração, assumida ou secreta, por meio de um
juramento, contra um poder superior. É esta a conjuração de Hamlet que a
“aparição” do fantasma exige: pai e filho, obsessor e obsediado, fantasma e
herdeiro se conjuram para que advenha algum acontecimento; sob um outro
prisma, conjuração é também um “encantamento mágico” no qual se pretende
evocar, convocar um feitiço ou um espírito. “Conjuração exprime, em suma, o
apelo que faz vir pela voz e portanto faz, vir por definição, o que não está presente
no momento presente do chamado”
151
. Para isso, como se viu, precisa-se de uma
certa fidelidade à infidelidade, de uma insistência, de que se lute para que se
permaneça no perjúrio.
Assim, devo, antes de tudo ter feito um juramento; ter aceitado escrever
uma tese, ter me comprometido formalmente: com um departamento, um
orientador, uma instituição, e mais de uma, com agências fomentadoras, também
mais de uma (que recusam certo tipo de bolsa, por não acharem o autor
“formador” para um doutorado, mas concedem outro tipo, e, incoerentemente, até
mesmo com uma certa “dignidade”), ter jurado, dentro de certos limites, que já
aceitam alguma espécie de perjúrio, defender esta tese em um certo tempo e de
uma certa maneira; e também ter me comprometido informalmente: comigo
mesmo, com a filosofia, com Derrida, com o Paulo Cesar – e não com “o
orientador formal”, com os professores que acompanharam estas – e outras –
inquietações etc. Portanto, esta conjuração também apresenta uma dupla sessão,
como diz Derrida: jurei, primeiro secreta e depois publicamente, me filiar à
desconstrução, mas não como a um partido, pois onde só cabe “tomar posições”
não cabe “tomar partido”: Não há hasteamento de uma bandeira derridiana, mas a
assunção de uma herança que eu, junto a outros, vivos e mortos, conjurei; depois,
151
Espectros de Marx, pág. 62.
78
como por encantamento, através da aparição pela voz de Danilo Marcondes do
fantasma da umidade que, entrando por meus poros como eflúvios, me possuiu,
tive que, em inúmeros momentos, sentar e invocar, chamar, pedir para que a
aparição retorne e possibilite que se escreva, assim, na disjunta herança que
conjuro.
*
“A especulação é sempre fascinada, enfeitiçada pelo espectro”
152
, mas o
problema é que a atitude tradicional da especulação é, opostamente, a de recusar
este fato. O teórico é aquele que acredita suficientemente nas fronteiras, nos
limites das oposições e, assim, na eficácia das definições. Acredita, crê que, com
uma teoria das definições, com uma sistematização ou ontologização
fundamental, consegue denunciar e, conseqüentemente, expulsar e exorcizar os
espectros, exatamente do modo como Bacon age com o termo ao qual é de tal
modo hostil. E aqui entra em cena um outro aspecto do conjurar.
Marx não gosta mais dos fantasmas que seus adversários. Recusa-se a acreditar
nisso. Mas só pensa nisso. (...) Essa hostilidade para com os fantasmas, uma
hostilidade aterradora que se defende, às vezes, do terror pela gargalhada, é talvez
o que Marx sempre terá tido em comum com seus adversários. Ele também
gostaria de conjurar os fantasmas, e tudo isto que não era nem a vida nem a morte,
a saber, a re-aparição de uma aparição que nunca será nem o aparecer nem o
desaparecido, nem o fenômeno nem seu contrário.
153
E este é o problema que quero aqui me propor, agora, de fato, tentando concluir
isto que, a princípio, não era para ser um capítulo, mas uma introdução. A
filosofia e o pensamento crítico em geral empreendem uma batalha, por mais que
esta batalha seja ou tenha sido necessária ou, em sua época, revolucionária (como
Platão, Aristóteles, Agostinho, Descartes, Bacon, Kant, Hegel, Marx...), para
exorcizar (ou, como diz Derrida, exorçanalisar) a espectralidade do espectro:
descontaminar o pensamento, ressecar, enrigecer, desumedecer a filosofia.
Isso porque, em uma terceira análise do conjurar, além de juramento e
invocação, um conjuro também pode ser o exorcismo propriamente dito, em que
152
Espectros de Marx, pág. 69.
153
Espectros de Marx, págs. 69-70.
79
se invoca o espírito maligno que assombra o assombrado para, assim, poder
expulsá-lo deste corpus.
Pois conjurar quer dizer também exorcizar: tentar simultaneamente destruir e
denegar uma força maligna, endemoninhada, endiabrada, o mais das vezes, um
espírito malfeitor, um espectro, uma espécie de fantasma que retorna ou que ainda
corre o risco de retornar post mortem. O exorcismo conjura o mal, segundo vias
igualmente irracionais e segundo práticas mágicas, misteriosas, até mesmo
mistificantes.
154
E prossegue:
Sem excluir, muito pelo contrário, o procedimento analítico e o raciocínio
argumentativo, o exorcismo consiste em repetir, sob o modo da encantação, que o
morto está de fato morto. Procede por meio de fórmulas, e, às vezes, as fórmulas
teóricas desempenham esse papel com tal eficácia que engana quanto à sua
natureza mágica, seu dogmatismo autoritário, o oculto poder que repartem com
isso que elas pretendem combater.
155
E, neste momento, ao menos para mim, parece clara a advertência que devo tomar
como pressuposto para o empreendimento que assumo, doravante, como meu.
Devo, parafraseando Derrida, começar a falar disto que eu chamo úmido, desta
herança, de sua aparição e seu retorno, que tantas vozes se erguem e ergueram
para conjurar, para exorcizar essa quase-entidade maléfica cuja ameaça consiste
em obsediar o pensamento.
Mas atente-se ao fato de que, como estou tentando alertar, o cadáver não
está realmente morto, pois nunca se morre, como nunca se vive. O desaparecido, o
aparentemente conjurado sempre re-aparece quando sua aparição é inconsiderável,
e, em seu aparecer, faz trabalhar – aliás, é apenas isso o que faz trabalhar: um
modo de produção fantasmático, como diz Derrida
156
. E, como em um tropo,
posteriormente a um capítulo unicamente teórico (que me sinto na obrigação de
fazer, já que não se pode evitar por completo a violência), tentarei apontar o
quíntuplo desdobramento que enxergo deste modo de produção úmido, já
enumerado como meu pretenso pentatlo.
E depois de tanto aquecimento, e do anunciado alongamento teórico, sentir-
me-ei mais preparado para as cinco provas que disputarei, tentando ilustrar as
154
Espectros de Marx, págs. 70-71.
155
Espectros de Marx, pág. 71.
156
Espectros de Marx, pág. 134.
80
cinco leis que eu vejo se desdobrarem deste modo de produção específico da
umidade – e, só depois, poderei me permitir o relaxamento necessário. O chavão
diz que o pódio não importa, e sim a competição mesma – mas é claro que se
escreve sempre para o outro, mesmo que para mim como leitor de mim mesmo, e,
neste caso, para ao menos mais cinco ou seis leitores. E, ainda que não se espere
uma medalha de honra ao mérito, mas também não meramente um prêmio de
consolação, é preciso que se saiba as regras do jogo, que neste exato momento
nesta obra, podem ser simplificadas na consciência deste luto interminável, sem
normalidade, sem limite, entre luto e melancolia, entre incorporação e introjeção
157
, na atenção à injunção do tempo e da presença e na assunção de uma herança e
responsabilidades infinitas, às quais nunca se poderá responder-por propriamente.
Conjurar o úmido. Tarefa da filosofia. Jurar, seguir sem saber para onde,
invocar. E saber que se tenta exorcizar o pensamento disto que é sempre estranho,
mas que a isto pertence, estruturalmente – e mais ainda, sendo isto talvez, essa
estranheza mesma, que constitua o pensamento como tal –, guardar em mente que
a tentativa deste exorcismo que o pensamento crítico empreendeu é tão místico e
misterioso como isto que ele tenta expelir. Como, em um passe de mágica, para
Bacon, o úmido sumiria da linguagem; para Heidegger, o Ser seria propriamente
pensado; para Lévinas, poder-se-ia voltar para aquém da ontologia; para Marx, o
capitalismo seria superado pelo comunismo etc. etc. etc.
E, para terminar, dou voz ao espectro que tanto invoquei e que tanto
invocarei nesta tentativa minha de conjurar justamente o úmido. Que se ouçam as
primeiras e as últimas palavras dos Espectros de Marx de Derrida:
Um nome por um outro, uma parte pelo todo: poder-se-á sempre tratar a violência
(...) como uma metonímia. Em seu passado como em seu presente. Segundo
diversas vias (condensação, deslocamento, expressão ou representação), poder-se-
ão sempre decifrar por meio de sua singularidade tantas outras violências em
andamento. Ao mesmo tempo parte, causa, efeito, sintoma, exemplo, o que lá
ocorre traduz o que tem lugar aqui, sempre aqui, onde quer que se esteja e que se
157
Incorporação: “processo pelo qual o sujeito, de um modo mais ou menos fantasístico, faz
penetrar e conserva um objeto no interior de seu corpo” (LAPLANCHE e PONTALIS, p. 238); e
introjeção: “processo evidenciado pela investigação analítica. O sujeito faz passar, de um modo
fantasístico, de ‘fora’ para ‘dentro’, objetos e qualidades inerentes a esses objetos”. “A introjeção
aproxima-se da incorporação, que constitui o seu protótipo corporal, mas não implica
necessariamente uma referência ao limite corporal (...). está estreitamente relacionada com a
identificação (LAPLANCHE e PONTALIS, p. 248).
81
olhe, o mais próximo de si. Responsabilidade infinita, desde então, repouso
inadmissível para todas as formas da reta consciência.
158
E, enfim:
Ele [o “erudito”] deveria aprender a viver aprendendo a não conversar com o
fantasma, mas a ocupar-se dele, dela, a deixar-lhe ou restituir-lhe a fala, seja em si,
no outro, no outro em si: eles estão sempre , os espectros, mesmo se eles não
existem, mesmo se eles não são mais, mesmo se eles não são ainda. Eles nos dão a
pensar o “aí” desde que se abre a boca.
159
Enfim...
158
Espectros de Marx, pág. 07.
159
Espectros de Marx, pág. 234.
3
capítulo segundo
“de uma certa maneira, ‘o pensamento’ nada quer dizer”
... E chegamos, então, a um capítulo? Ao primeiro capítulo, digno deste nome, da
tese? Ou será, ainda, mais um adiamento do momento de, enfim, encontrar forças
para falar disto que tanto se ouve falar hoje em dia, isto que se chama,
vulgarmente ou não, de “desconstrução”? Isto que se desdobrou – ou melhor, se
disseminou – em torno e a partir da obra de Jacques Derrida, um filósofo argelino
e francófono? Sim. Isto pretende ser algo que, em uma estrutura clássica, se
chamaria de capítulo: de um capítulo introdutório ou de apresentação de “o que é
a desconstrução?”. Na verdade, trata-se de uma tentativa de mostrar os traços
específicos deste pensamento, sobretudo na primeira fase dos trabalhos de
Derrida, nas décadas de sessenta e setenta. Por esta razão, não posso prometer
mais do que uma simples apresentação destes traços que, por sua complexidade e
minha dificuldade, aparecerão em ordem cronológica – e, mais uma vez, a opção
por este ordenamento deu-se por acreditar (ainda que não na cronologia como
lógica do tempo) que alguma opção deve ser feita: e que, então, se faça a menos
violenta. Deste modo, não posso me comprometer em mais que ler os textos desta
fase da obra de Derrida, retirando deles os aspectos que acredito serem
importantes para o desenvolvimento do meu trabalho.
Assim, meu guia deve ser o próprio filósofo. Isto porque talvez ele, por ser
o pior guia possível, por não indicar linearidade nem solo fixo, seja o único guia
possível. O único capaz de, não obstante minha violenta cronologia, me
desorientar conscientemente no pensamento, no seu pensamento, capaz de me
indicar a não-orientação (im)possível: o que seria fundamental em uma tese
desconstrutiva. Neste intuito, assumo o livro Posições, de 1972, um livro que
reúne três entrevistas, como meu suporte, de acordo com o qual distingo dois
momentos, ou fases, desta primeira etapa da desconstrução, que vai do projeto
gramatológico abandonado (que, segundo o próprio Derrida reuniria
Gramatologia, A escritura e a diferença e A voz e o fenômeno, todos editados em
1967) a um projeto de disseminação (de 1972, que incluiria A farmácia de Platão,
A dupla sessão e A disseminação), passando pelo inevitável momento das suas
83
Margens da filosofia (também editado em 1972). Assim, que se parta direto à
crono-logia.
3.1
primeira seção
a an-arquitetura da desconstrução
posições
Em seu Humanismo do outro homem, Emmanuel Lévinas criva o termo an-arquia
para designar justamente, não uma teoria política, mas uma teoria do
conhecimento, uma ausência de arché que seria fundamental a um pensamento
ético: uma des-orientação na qual o sentido é o Outro (o que, como pretendo
mostrar no próximo capítulo, desemboca em uma quase inevitável disseminação,
se não se toma este outro ao pé da letra, como o outro ôntico). E, deste modo,
rompendo-se com a temporalidade do presente e da presença, do passado como
origem e do futuro como telos, a razão deixa de ser uma arqueologia. E, no caso
de Derrida, como pretendo mostrar, uma desconstrução não trata de modo algum
de uma arqueologia – seja no sentido foucaultiano ou não. Se a definição banal de
arqueologia é a de uma ciência que investiga os vestígios de civilizações arcaicas,
ela é, antes de qualquer coisa, uma ciência humana, algo que de modo algum pode
ser a desconstrução, que não pretende ter como objeto (se é que há objeto na
desconstrução) o homem; por outro lado, se se tomar a definição foucaultiana de
arqueologia como “uma análise histórico-filosófica do nascimento das ciências do
homem”
160
cujo interesse consistiria em dar conta dos saberes científicos criados
na modernidade, então, também, se estaria bem distante do propósito derridiano.
Como pretendo mostrar, se há algumobjeto” na desconstrução, este seria o
“grama” – ou: o rastro.
E é neste sentido que uma desconstrução não pode ser uma arqueologia e,
por isso, apresentar uma arquitetura específica. Ainda que se tome, como na obra
homônima, a desconstrução como uma gramatologia, esta se constituirá por uma
completa an-arquia, no sentido levinasiano. A dificuldade de se compreender a
obra de Derrida segundo uma arquitetura clássica é tamanha que o próprio teria
160
MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000,
p. 10.
84
definido esta sua “estranha geometria” do seguinte modo: “Seria impossível, pois,
fornecer uma representação linear, dedutiva, da organização interna dessas obras,
que correspondesse a alguma ‘ordem das razões’”
161
. Tal é a dificuldade do
primeiro entrevistador, Henri Ronse, em “Implicações”, a tentar estruturar o
pensamento de Derrida, ainda mais, como é de seu intuito, em torno da noção de
um “sistema”. Ronse inicia questionando se na obra derridiana o deslocamento
formaria um sistema. A resposta de Derrida é emblemática: “Eles [seus livros], de
fato, formam um certo sistema, aberto – em algum lugar – a algum recurso
indecidível [grifo meu] que o coloca em movimento, mas antes como
deslocamento e deslocamento de uma questão...”
162
. E Ronse insiste: “E,
entretanto, esses livros não formam um único Livro...”. Derrida replica:
Não. Naquilo que você chama de “meus livros”, o que está sobretudo colocado
em questão é a unidade do livro e a unidade “livro”, considerada como uma
perfeita totalidade, com todas as implicações de tal conceito. E você sabe que elas
envolvem, de uma maneira ou de outra, toda a nossa cultura. No momento em
que uma tal clausura se delimita, como poderia alguém ousar continuar
afirmando-se como autor de livros, qualquer que seja seu número: um, dois ou
três? Trata-se unicamente, sob esses diferentes títulos, de uma “operação”
textual [grifo meu], se assim se pode dizer, única e diferenciada, cujo movimento
inacabado não se atribui qualquer começo absoluto [e, portanto, qualquer arquia]
e que, inteiramente consumada na leitura de outros textos, não remete, entretanto,
de certa maneira, senão à sua própria escrita.
163
E, além disso, a este fato soma-se a impossibilidade de, segundo Derrida, se
esquematizar cronologicamente suas três primeiras obras, que foram publicadas
em 1967 e escritas quase que concomitantemente. Para Derrida, desta maneira,
esta ordem cronológica está posta também em questão. Suas obras se entrelaçam,
copulam, remetem uma à outra, não sendo possível distinguir, nem mesmo em sua
obra, um “primeiro livro”. Há livros. Livros “de toda uma fase ou toda uma face”
de seus textos. E é por isso que, de acordo com o filósofo, “é preciso, sobretudo,
ler e reler aqueles autores nos rastros dos quais eu escrevo, aqueles ‘livros’ em
cujas margens e entrelinhas eu desenho e decifro um texto que é, ao mesmo
tempo, muito semelhante e completamente outro”
164
.
161
DERRIDA, J. Posições, p. 10.
162
DERRIDA, J. Posições, p. 9.
163
DERRIDA, J. Posições, pp. 9-10.
164
DERRIDA, J. Posições, p. 10.
85
Mas, insistiria eu junto a Ronse, por onde então começar uma leitura
desconstrutiva? Derrida responde que se pode tomar Gramatologia como um
longo ensaio composto de duas partes no meio da qual se poderia inserir A
escritura e a diferença. Mas do mesmo modo, poder-se-ia tomar A escritura e a
diferença como um prefácio e uma conclusão à Gramatologia. Isso sem entrar nos
méritos de A voz e o fenômeno, que poderia ser anexado como uma longa nota a
qualquer uma das outras duas obras. Mas objeta que por seu conteúdo[em que se
anuncia pela primeira vez a questão do privilégio da voz e da escrita fonética e
suas repercussões na história da metafísica – logo, na história do Ocidente], “em
uma arquitetura filosófica clássica” este livro viria em primeiro lugar. Frente a
esta resposta ausente, Ronse apenas desilude-se: “eu perguntava a você por onde
começar e você me encerrou em um labirinto”. E Derrida (des)consola:
Todos esses textos, que são, provavelmente, o prefácio interminável a um outro
texto que eu gostaria de ter, um dia, a força de escrever, ou ainda a epígrafe a um
outro que eu não teria nunca a audácia de escrever, nada mais fazem, na verdade,
do que comentar aquela frase, sobre um labirinto de inscrições, que está na
epígrafe de A voz e o fenômeno.
165
Epígrafe esta que cito:
Um nome pronunciado diante de nós transporta-nos à galeria de Dresde e à última
visita que fizemos a ela: erramos pelas salas e detemo-nos diante de uma tela de
Téniers que representa uma galeria de quadros. Supomos, ademais, que os
quadros dessa galeria representam, por sua vez, quadros que revelam inscrições
passíveis de ser decifradas etc.
166
Bom, diante desta impossibilidade, resta a Ronse a tentativa de tematizar o
“estilo” de Derrida, sobretudo por sua relação com a não-filosofia. Ronse diz que
o que impressiona em um pensamento como o de Derrida é a dificuldade de situar
o estilo de seu comentário e diz ser quase impossível definir o estatuto de seu
discurso. E, a isso, o breve comentário de Derrida parece dever ser tomado como
mais um guia às minhas especulações – ou melhor, nas posições que pretendo
tomar. Derrida diz que tenta sempre [e isso deve mesmo ser mantido em vigília]
se manter no limite do discurso filosófico. “Limite, pois, a partir do qual a
165
DERRIDA, J. Posições, pp. 11-12.
166
HUSSERL, E. Idées...I, apud. DERRIDA, J. A voz e o fenômeno. Rio de Janeiro. Jorge Zahar
Editor, 1994, p. 7.
86
filosofia se tornou possível, se definiu como episteme, funcionando no interior de
um sistema de constrições fundamentais, de oposições conceituais fora das quais
ela se tornaria impraticável”
167
. E isto, na ótica desconstrutiva de Derrida, é
somente possível através do que ele vem a chamar de um “duplo gesto”. O gesto
duplo ou o “duplo jogo” ao qual ele se refere em Posições se dá através de dois
momentos constituintes da atividade desconstrutiva, a saber, a inversão e o
deslocamento. No momento da inversão, aquilo que é recalcado, reprimido,
abafado, marginalizado pela filosofia é colocado em destaque. Dá-se, assim, em
um primeiro momento um olhar especial à escrita, ao significante, à mulher, à
loucura etc., em detrimento de tudo que foi defendido pelo falo-logo-
fonocentrismo: a fala, o falo, a razão, o significado etc.
No entanto, o real intuito da desconstrução é o deslocamento das oposições
para além da dicotomia da metafísica dualista. Na verdade, se há, em um primeiro
momento, uma certa “aposta” no feminino, na escritura ou em qualquer um dos
pólos esmagados pela tradição, isso se dá em razão deste pólo ser justamente a
possibilidade de se romper com a polaridade. O que Derrida chama de feminino,
por exemplo, está para-além da mulher, está para além da distinção sexual
homem-mulher: é justamente o fim da distinção polar e a abertura para uma
produção de múltiplas diferenças sexuais. Para Derrida, enquanto se permanecer
preso a um discurso classificatório, seja nos discursos machistas dos
heterossexuais masculinos ou nos discursos libertários das feministas ou dos
homossexuais, ainda assim se estará insistindo em divisões dualistas tais como a
metafísica tradicional sempre impôs. Sob este prisma, o feminino não é a mulher,
mas sim a possibilidade de se lidar com a ausência da verdade fálica, masculina,
certa... É a possibilidade do desconhecido e do novo e, por isso, a chance de
pensarmos para-além de qualquer classificação sexual, seja hetero, homo, trans,
metro ou mesmo pansexual.
No entanto, para insistir no exemplo do feminino não como o fim da
distinção sexual, mas, pelo contrário, como a abertura à produção de diferenças e
o fim das oposições binárias, a coisa nunca é tão simples como pode parecer.
Derrida vem sendo muito criticado pelos movimentos das minorias [se é que há
isso que se pode chamar de minoria. Quem seria a maioria então?] pelo fato de
167
DERRIDA, J. Posições, p. 12.
87
não defender jusqu’à la fin estes movimentos. Em entrevista à Elizabeth
Roudinesco, ele diz que apóia [e deve mesmo apoiar] qualquer “movimento” de
minoria até o ponto em que ele se torne realmente um movimento, pois aí sim já
seria alvo de suspeita – e, logo, de desconstrução
168
. Isso quer dizer que, nos
moldes desconstrutivos, só se deve apoiar uma posição e nunca uma tomada de
partido. Quando uma posição [por mais que justa, válida, bem intencionada] se
torna um “partido”, começa a ter seus hinos e suas bandeiras, neste momento ela
já está se fazendo representar nos mesmos moldes do “opressor” que tanto é
combatido pelo recém-formado “partido”. É nesse sentido que a desconstrução só
é possível através de tomadas de posições, de um posicionamento frente aos fatos,
aos textos, momentânea e singularmente, uma posição de cada vez: sem se tomar
partido: sem ser “isto” ou “aquilo” ou, pior ainda, “isto” versus “aquilo”.
Outro exemplo desta atitude, que se verá melhor logo em seguida, mas que
acho válido antecipar em parte aqui para ilustrar a questão, concerne à leitura que
Derrida empreende, em diversos momentos, de Heidegger. Por um lado, Derrida
é, pelo menos a princípio, o único de seus contemporâneos que sempre assumiu a
importância da leitura de Heidegger para seu pensamento; no entanto, muitas de
suas leituras heideggerianas são criticadas pelos chamados “especialistas” em
Heidegger. Isso nos mostra que Derrida não pode ser tomado como um
heideggeriano, nem tampouco como um anti-heideggeriano (o que ocorre com
Nietzsche, Lévinas, Lacan, Freud, Husserl etc.), mas sim que o filósofo é um
leitor de Heidegger: que ele apenas lê textos deste filósofo se posicionando em
cada momento de acordo com a convocação do texto, algumas vezes como uma
inspiração, outras com um olhar crítico. Ou seja, sem tomar partido. Mas
posições...
Outra digressão necessária, mas breve, está no apontamento da influência
nietzschiana desta postura desconstrutiva. Não é à toa que, em diversos
momentos, como em Éperons ou em “Os fins do homem”, Derrida diz querer
salvar Nietzsche de uma leitura do tipo heideggeriana. A crítica de Heidegger a
Nietzsche funda-se justamente na hipótese de que o filósofo moderno apenas teria
invertido a metafísica: em sua aposta no riso, nas vísceras, na Terra etc. No
entanto, de acordo com a perspectiva derridiana, Nietzsche certamente teria ido
168
Sobre isso, ver o capítulo “Políticas da diferença” do diálogo entre Derrida e Roudinesco (De
que amanhã..., pp. 32-47).
88
bem além da mera inversão metafísica: se, desde seus primeiros escritos, o
filósofo sempre assumira a metaforicidade da linguagem, como não seriam
também metáforas a carne, a Terra, Dionísio...? Isso fica mais fácil se
entendermos, então, a desconstrução como uma herdeira da tarefa de
transvaloração dos valores, que seria, para Nietzsche, o ultrapassamento e o fim
das dualidades metafísicas. Isso me parece bem claro e óbvio – o que me faz
sentir um extremo cheiro de má fé nos que lêem Nietzsche de modo
heideggeriano, ou senão uma enorme falta de vontade de ler Nietzsche... – quando
se lê diversas passagens de seu Zaratustra (possivelmente uma das maiores obras
de deslocamento), das quais eu apenas queria destacar uma, para demonstrar que a
aposta no pólo rebaixado pela metafísica é a possibilidade de se desmantelar o
próprio sistema metafísico. Finalizo a discussão com “Do ler e escrever”, de
Nietzsche, com uma das frases que penso melhor exemplificar como a inversão
traz junto a si o deslocamento necessário a um outro pensamento, para além do
dualismo hierarquizante tradicional: “De tudo que se escreve, aprecio somente o
que alguém escreve com sangue. Escreve com sangue e verás que sangue é
espírito”
169
.
desconstruções
O deslocamento da desconstrução se dá quando, ao mesmo tempo, se respeita e se
desordena a “ordem interna” de um texto. Para Derrida, desconstruir a filosofia
seria, assim, “pensar a genealogia estrutural de seus conceitos da maneira mais
fiel, mais interior”, ao passo que, ao mesmo tempo, seria tamm “a partir de
certo exterior, por ela inqualificável, inominável, determinar aquilo de que essa
história foi capaz – ao se fazer história por meio dessa repressão, de algum modo,
interessada – de dissimular ou interditar”
170
. Este é o “trabalho” e o “amor” de
Derrida. Desconstruir. Só se desconstrói o que se ama, diz ele em O
monolingüismo do outro. Isso porque este é o desejo de Derrida, o desejo de fazer
justiça à alteridade mesma, a este outro que sempre escapa e que sempre foi
apreendido, compreendido, preso pela tradição filosófica. Mas é assim, somente
assim e neste momento duplo, de inversão e de deslocamento, no interior e do
169
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra, p. 56.
170
DERRIDA, J. Posições, p. 13.
89
exterior, que se produz “por meio dessa circulação ao mesmo tempo fiel e violenta
entre o dentro e o fora da filosofia... um certo trabalho textual que proporciona um
grande prazer”
171
.
No entanto, um trabalho como este, de Derrida, não pode ser guiado, como
normalmente é pela filosofia, por um desejo de ultrapassar ou de romper com a
metafísica. Para o filósofo, nada morre, e, deste modo, não se pode decretar o fim
de nada. Antes, como vimos, ao dizer que tenta se manter sempre no limite do
discurso filosófico, a palavra limite é utilizada justamente no lugar do termo
“morte”. Para Derrida, há – e é o que deve sempre haver – uma transgressão da
metafísica: isso não quer dizer que se deve de modo algum pensar esta
transgressão como uma instalação em um “além da metafísica”, nem mesmo
“além da linguagem”. Segundo Derrida, “mesmo nas agressões ou nas
transgressões, nós utilizamo-nos de um código ao qual a metafísica está
irredutivelmente ligada, de tal sorte que todo gesto transgressivo volta a nos
encerrar no interior da metafísica – precisamente por ela nos servir de ponto de
apoio
172
. No entanto, deve haver um certo tipo de transgressão, qual seja, a que
faça justiça ao próprio movimento interno do pensamento – e é isso que Derrida
vem a chamar de Desconstrução. E isso se dá no interior mesmo do pensamento,
não em um fora: “nós não habitamos jamais outro lugar”
173
, e é por essa razão que
este tipo de transgressão implica somente o fato de o limite ou as margens do
pensamento estarem sempre em movimento.
De acordo com a definição que encontro para isto que Derrida tenta, de
diversos modo, enunciar, “o ‘pensamento-que-nada-quer-dizer’, que excede –
interrogando-os – o querer-dizer e o querer-ouvir-se-falar, esse pensamento que se
anuncia na gramatologia, dá-se justamente como o pensamento que não está certo
quanto à oposição entre o fora e o dentro”
174
. É por este motivo que este
pensamento, que não pode querer dizer nada, é sempre um pensamento que se
situa às margens: impossibilitado e impossibilizante de qualquer situação
fundamental ou centralizadora: sempre marginal. Tal é a razão de Derrida nunca
ter apontado a um “grafocentrismo”, oposto ao tão denunciado por ele
logocentrismo. Na desconstrução não há centrismo, seja ele qual for. E, para isso,
171
DERRIDA, J. Posições, p. 13.
172
DERRIDA, J. Posições, pp. 18-19, grifo meu.
173
DERRIDA, J. Posições, p. 19.
174
DERRIDA, J. Posições, p. 19.
90
é necessário que “a escrita literalmente não-queira-nada-dizer”. Para Derrida, isso
não significa (se é que isso signifique) que a escrita seja absurda, longe disso,
“simplesmente ela se tenta, ela se tende, ela tenta deter-se no ponto de
esgotamento do querer-dizer”. E prossegue:
Arriscar-se a nada-querer-dizer é entrar no jogo [grifo meu] e, sobretudo, no jogo
da différance que faz com que nenhuma palavra, nenhum conceito, nenhum
enunciado primordial venha sintetizar e comandar, a partir da presença teológica
de um centro, o movimento e o espaçamento textual das diferenças. (...) É nesse
sentido que me arrisco a nada-querer-dizer que possa simplesmente se entender [e
ouvir], que seja simplesmente questão de entendimento [e de escuta]. Enredar-se
em centenas de páginas de uma escrita ao mesmo tempo insistente e elíptica,
imprimindo, como você pode observar, até suas rasuras, arrastando cada conceito
em uma cadeia interminável de diferenças, cercando-se ou sobrecarregando-se
com uma grande quantidade de precauções, de referências, de notas, de citações,
de colagens, de suplementos – esse “nada-querer-dizer”, não é., você haverá de
concordar, um exercício tranqüilizante.
175
Como se pode supor – e estou de pleno acordo com isso – a filosofia não
pode se resignar a ser um pensamento tranqüilizante, que ofereça “remédios”
(para utilizar a metáfora de Emmanuelle Severino em A civilização do remédio)
ou “sombrinhas”, para me servir da metáfora do Riobaldo em Grande Sertão:
Veredas. Aliás, talvez esta seja a postura que alie tanto a metafísica como seu
arquiinimigo declarado, o “senso comum. Através do jagunço, Guimarães Rosa
envereda:
O que mais penso, texto e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as
pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para
desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é
salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de
religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca,
talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces
de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso,
vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de
pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me
suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório.
176
A desconstrução é, nesse sentido, um pensamento de eterna vigília, de uma certa
prontidão e, como diz Derrida em Força de lei, quase um iluminismo. É um
pensamento destranqüilizante e, por essa razão, quase insuportável (e creio que
175
DERRIDA, J. Posições, p. 21.
176
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, p. VER REFERÊNCIA, grifo meu.
91
posso até mesmo arriscar a dizer que é um pensamento insuportável: tanto para a
filosofia, que literalmente não suporta a desconstrução, como – possivelmente –
para os próprios pensadores, que se pretendem “desconstrucionistas” – se é que
isso existe). Digo insuportável porque a atitude típica do pensamento é oferecer
estas sombrinhas metafísicas, e, com isso, percebe-se que nossa própria atitude –
inclusive a minha, que aqui pretendo assumir uma posição desconstrutiva –,
nossa, pertencente a nós, seres humanos, é a de buscar sempre as sombrinhas da
metafísica. E Derrida não seria ingênuo de pensar que há o fora-da-sombrinha,
que existiria uma possibilidade de se saltar fora da metafísica. No entanto, pode-se
permanecer atento às sombrinhas, aos remédios e, sobretudo, à nossa incansável
tentativa de nos abrigarmos neste confortante pensamento.
É por isso que “é necessário, pois, que... a escrita literalmente não-queira-
nada-dizer”
177
. E, no entanto, que ela, com isso, diga tanto... Mas o que seria esta
“escrita”? Isto que, de acordo com Derrida, nada quer dizer? Para Ronse, pode-se
distinguir dois sentidos de “escrita” na obra derridiana: o primeiro, o corrente, que
opõe a escrita fonética à fala; e o outro, o propriamente desconstrutivo, que, para
Ronse seria um “sentido mais radical”, algo como isto que seria a “raiz comum da
escrita e da fala”
178
. Em muitas das traduções para o português, optou-se traduzir
este termo cunhado por Derrida por escritura, para diferenciar-se, assim, da
escrita e da fala, para apontar a este aspecto de escritura que possibilita ambas.
Como muitos tradutores, também optarei doravante pelo termo “escritura” em
detrimento de “escrita”, seguindo a maior parte dos livros de Derrida em
português. Outra maneira que Derrida apresenta a referir-se a este termo, em
Gramatologia, é “arquiescritura”, termo este que não vejo repetir-se a não ser
nesta obra. E isto, uma vez mais, reforça a opção pela adoção de um mesmo
termo, escritura, para referir-se a isso que, de certo modo, está envolvido em toda
cadeia de significantes, ou melhor, de rastros. Em muitos de seus textos, Derrida
parece ilustrar esta cadeia de remetimentos que é a escritura através de seus
quase-conceitos ou indecidíveis, que, por serem quase-conceitos, não suportam
nenhuma espécie de conceitualização. Aliás, sempre escapam e escaparão a
qualquer tentativa de conceitualização: mas, para exemplificar, são eles rastro,
177
DERRIDA, J. Posições, p. 20.
178
DERRIDA, J. Posições, p. 14.
92
brisura, hímen, sobrevida, espectro, ..., e différance – talvez um dos indecidíveis
mais importantes para que se compreenda o que é a proposta desconstrutiva.
*
Na verdade, como se pode supor, não se pode compreender o que é a
desconstrução nem o que significa a “différance”. Isto porque, de acordo com o
próprio Derrida, a “différance” não significa. Em todo caso, o neografismo que
Derrida utiliza, esta certa perversão da língua, que segundo Silviano Santiago,
seria um “movimento inaugural [com todas as reservas que eu possa ter ao termo
“inaugural”] no texto filosófico derridiano”
179
, é algo que demanda uma certa
atenção inevitável. Sigamos as pistas de Santiago:
Não há bricolagem, há invenção. Há invenção e infração ao código lingüístico
francês. Trata-se, pois, de exemplo singular de inseminação artificial na língua
francesa... O filósofo entranha a letra a no vocábulo e fá-la agir como se fosse
uma cunha que abrisse espaço na parte superior do cabo de madeira, para que este
pudesse se aconchegar com maior firmeza às bordas da cabeça do martelo. A
letra como cunha servirá para tornar mais seguras e eficientes as marteladas
desconstrutoras de Jacques Derrida...
180
É praticamente unânime a dificuldade de se traduzir a inseminação deste a no
vocábulo différance. A meu ver, todas as traduções propostas (diferança,
diferência, diferensa, diferænça) não dão conta do movimento da différance, qual
seja, o da diferença como diferencialidade e ao mesmo tempo da diferença como
diferimento. Além disso, o ance em francês, homófono ao ence, e, por isso, cuja
diferença só pode ser percebida quando lida, e que consiste, também por isso
mesmo, em uma violação da língua, se mantido em sua língua original, faz com
que o leitor pense a respeito desta pequena – e significativa – violência.
O professor Silviano pensa diferente. Segundo ele,
a disseminação do vocábulo silencioso e secreto só se tornará aberta e
ruidosamente global se a inseminação feita no léxico francês se repetir ao pé da
letra em vários outros sistemas lingüísticos (repitamos nacionais) e se mostrar
179
SANTIAGO, S. “O silêncio, o segredo, Jacques Derrida”. In: NASCIMENTO, E. (org.)
Jacques Derrida: Pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005, p. 126.
180
SANTIAGO, S. “O silêncio, o segredo, Jacques Derrida”, p. 126.
93
reflexiva e operacional em todos eles, abrindo um lugar específico no linguajar
filosófico da pós-modernidade
181
.
No entanto, não posso crer que seja possível este transporte “ao pé da letra” de
uma língua à outra tal como desejaria Santiago, e nem sequer posso afirmar
acreditar em nenhuma justa tradução. Mas minha discórdia não se dá apenas pelo
fato de não acreditar na tradução ao pé da letra, pois, às vezes, posso mesmo
optar pela frustrada, frustrante e, na maioria das vezes, feia tradução (quase) ao pé
da letra (pois este pé da letra que pretende Silviano é inalcançável). Talvez na
esteira de Derrida, mas também certamente de Benjamin, a tradução de um texto
deve preservar o estranhamento que é justamente o que vai possibilitar que se veja
as diferenças entre uma língua e a outra. Mas, no caso de Derrida, há invenção – e
não é ao se repetir seu violar que a invenção se dará em português. Neste caso, ou
se mantém o original em francês (no intuito de que se compreenda o gesto
derridiano) ou se inventa um gesto que, em português, corresponda à tentativa
derridiana. Como não me sinto nem um pouco apto a inaugurar esta invenção,
mas também não acho que os gestos apresentados pelos tradutores façam justiça
ao gesto derridiano (pois ou não são homófonos, ou não preservam, sobretudo, a
letra a, uma letra certamente singular: a letra A de Abraão, o a do feminino, do
“objeto a” da psicanálise e o ance que dá uma conotação de movimento, como o
equivalente português “ência”). Deste modo, todas as traduções para o português
têm seu mérito, mas também acabam por não repetir o gesto “original”: e é
justamente a concomitância de homofonia, de uma homofonia com a letra “a” e
uma homofonia com a letra “a” que dá este sentido de movimento ao substantivo,
tudo isso ao mesmo tempo, que Derrida pretende ao lançar mão de différance.
“Diferança” é uma proposta que dá conta apenas da troca da letra e pela letra a;
“diferência” preocupa-se em preservar o sentido de movimento do original;
“diferensa” mantém a homofonia apenas; e “diferænça”, proposta por André Rios,
que talvez seja a mais próxima da proposta por Derrida, preserva o a e a
homofonia, mas sem o sentido de “ência” pretendido por Derrida (e, além disso,
recorre ao completamente desusado æ latino e não à “banal” primeira letra de
nosso alfabeto). Por isso, différance. Mas o que é isso?
181
SANTIAGO, S. “O silêncio, o segredo, Jacques Derrida”, pp. 126-127, grifo meu.
94
Para Santiago, o que há em Derrida é uma violação, no sentido libidinal,
do vocábulo “diferença”. Se Derrida diz que comete uma effraction ou um
arrombamento na língua, em que o termo utilizado apresenta um cunho jurídico-
policial, para Santiago isto nada mais é que um travestismo tanto quanto este,
pretendido por Derrida, “seqüestro de um bem inalienável para uso próprio”
182
.
Assim, de acordo com o professor brasileiro, o neologismo fruto desta penetração
e da seguinte substituição apresentará três fases: violação, travestismo e seqüestro
– e o intuito de Silviano é justamente o de, com essa constatação, “notar como a
disseminação pela luxúria vocabular da língua filosófica derridiana agravará o
peso da violação pela sua insistência vitoriosa”
183
.
A meu ver, esta “insistência vitoriosa” dá-se por certo quando se
permanece com o original em francês e se pode, a cada vez, ressentir o vivenciado
na conferência pronunciada pelo filósofo argelino na Sociedade Francesa de
Filosofia, em 27 de janeiro de 1968, em que Derrida, ao ler o texto que escreveu
precisava diferenciar o vocábulo original de seu neologismo. A apresentação oral
do texto requeria que seu orador distinguisse a cada vez o vocábulo “différence
avec e” de seu “différance avec a” e, como conseqüência disto, este “silêncio da
diferença gráfica” faz acentuar dois aspectos da descoberta derridiana: em
primeiro lugar, que não existe nenhuma escrita fonética que preceda a escrita;
depois, que não obstante não há escrita puramente fonética.
Mais a frente, poderá se compreender melhor o aspecto abraâmico do a
desconstrutor. Por isso, agora, basta que se dê a palavra, depois das indicações
(acatadas ou não) apresentadas pelo escritor brasileiro, a Derrida, pois gostaria de
retomar as Posições originais. Ronse pergunta ao filósofo o que significaria este
“a” da différance e Derrida responde justamente, como se disse, que não sabe se
ele significa. E explica:
Como se pode notar, esse “a” se escreve ou se lê, mas não se pode ouvir. Eu
insisto, sobretudo, no fato de que o discurso (...) sobre essa alteração ou essa
agressão gráfica e gramatical implica uma referência irredutível à intervenção
muda de um signo escrito. O particípio presente de o verbo diferir [“différant”], a
partir do qual se forma este substantivo, reúne uma configuração de conceitos que
eu considero sistemática e irredutível.
184
182
SANTIAGO, S. “O silêncio, o segredo, Jacques Derrida”, p. 128.
183
SANTIAGO, S. “O silêncio, o segredo, Jacques Derrida”, p. 128.
184
DERRIDA, J. Posições, p. 14.
95
A partir disso, Derrida vai apresentar, segundo o próprio, um quádruplo
movimento da différance. Segundo ele, “primeiramente, différance remete ao
movimento (ativo e passivo) que consiste em diferir, por retardo, delegação,
adiamento, reenvio, prorrogação, reserva”
185
. E, por conseguinte, diferimento
infinito não pode ser precedido por nenhuma unidade original e indivisa de uma
“possibilidade presente”. Ou seja, nos termos filosóficos tradicionais, não há
como se pensar nenhum fundamento, nenhuma substância – o que afasta, de certo,
as infundadas críticas endereçadas a Derrida que dizem que este, repetindo
Heidegger, faria da desconstrução uma Ontologia, substituindo, dessa forma o Ser
pela différance. Não há origem metafísica, como tamm em Heidegger, mas, ao
contrário deste, a différance não expressa nem o Sentido nem a Verdade nem a
Essência do Ser, ela é ao mesmo tempo um efeito e aquilo que produz efeitos, mas
só “existe” enquanto diferimento. É, por isso, uma tentativa de Derrida de
conseguir escapar da Metafísica da Presença – ainda tão presente (ao contrário do
que gostam de pensar seus especialistas) no discurso heideggeriano.
Além disso, mais que um “conceito econômico”, no sentido freudiano,
para Derrida este seria “o” conceito da economia, posto que não há economia sem
différance. Por isso, “em segundo lugar, o movimento da différance, na medida
em que produz os diferentes, na medida em que diferencia, é, pois, a raiz comum
de todas as oposições de conceitos que escandem nossa linguagem”
186
. Deste
modo, as oposições clássicas da metafísica (razão/sentidos, natureza/cultura,
mente/corpo etc.) têm sua raiz comum no processo econômico da différance, raiz
esta na qual a própria diferença entre estes pólos se anuncia.
Em terceiro lugar, a différance é também a produção, se ainda se pode
dizê-lo, dessas diferenças, dessa diacriticidade que (...) são a condição de toda
significação e de toda estrutura”
187
. Ou seja, além de ser a raiz das diferenças, ela
é também o que produz os efeitos das diferenças, sem que elas estejam de modo
algum inscritas em algum lugar, ou sujeito, ou seja lá o que possa ser tomado
como substrato ou substância. De acordo com Derrida, esta alternativa que não
pode ser compreendida como uma atitude geneticista, nem mesmo estruturalista,
185
DERRIDA, J. Posições, p. 14.
186
DERRIDA, J. Posições, p. 15.
187
DERRIDA, J. Posições, p. 15.
96
torna o próprio “conceito” de différance um “efeito” da différance – fato este que
o levará, mais tarde, a afirmar que “não se trata simplesmente de um conceito”
188
.
Uma outra paragem aqui se torna necessária. Como se verá mais adiante,
na sessão que tratará das margens da desconstrução, a noção de différance é
herdeira de Nietzsche, Freud e, sobretudo, de Heidegger. “Sim, sobretudo”, diz
Derrida
189
. E prossegue: “nada do que eu tento fazer seria possível sem a abertura
das questões heideggerianas”. Na verdade, devo confessar que eu, Rafael, ao
longo desta escrita tenho tentado ao máximo evitar um novo confronto com o
pensamento heideggeriano. Não para fugir deste enfrentamento ou desta
gigantomaquía, para utilizar-me do termo que aparece na introdução de Ser e
tempo, mas, pelo contrário, por acreditar que nas minhas leituras de mestrado, em
que busquei trilhar o percurso levinasiano, já me dedicara – no meu ponto de vista
– por demais a este pensamento: por demais sedutor e belo, aliás, de assustadora
sedução e beleza, o que configura e atesta ainda mais seu perigo. Não que eu
pense que o pensamento do Ser se esgote em minhas leituras, mais dedicadas, de
Ser e tempo, ou as mais rápidas de seus textos posteriores, mas sim que, para meu
atual intuito, a filosofia de Heidegger seria tratada apenas sob uma ótica crítica –
pois, de modo algum (e creio que isso os mais árduos e religiosos defensores da
Ontologia fundamental concordariam) este pensamento pode ser tomado como
“úmido”, já que se inaugura, desde os primeiros escritos, a tentar re-enraizar o
pensamento, desviado e esquecido de sua tarefa original e perdido na
inautenticidade do esquecimento do Ser (podendo, neste sentido, ser visto como
um dos exemplos mais potentes e refinados da secura do pensamento). E, como
antecipei, nesta “tese” se pretenderá mostrar a umidade do pensamento, de
Derrida e de seus antecessores neste aspecto – e, dentre os citados por Derrida,
apenas Nietzsche parece ter apresentado este traço de pensamento. A relação com
Heidegger e Freud é bem mais ambígua e complicada. Mas não é por covardia que
aqui me afasto destes dois pensadores: de Heidegger, como disse, me afasto por
cada vez acreditar mais nos perigos deste pensamento – perigos estes que devem
ser confrontados sim, mas creio que não de novo, e não agora
190
; e de Freud, me
afasto por uma simples incompetência e falta de tempo para retomar aqui minhas
188
DERRIDA, J. Posições, p. 16.
189
DERRIDA, J. Posições, p. 16.
190
Sobre isso indico especificamente o primeiro capítulo de meu “Da existência ao infinito”,
dedicado exclusivamente à relação da ética levinasiana com a ontologia heideggeriana.
97
arquileituras psicanalíticas. Ambas as tarefas, certamente não fazem parte desta
“tese” e permanecerão, ao menos para mim, como promessas para futuras
pesquisas.
Mas se Derrida mesmo, em Posições, diz que nada do que tenta fazer teria
sido possível sem Heidegger, como posso aqui dizer que este pensador em nada
contribuiria para este pensamento que tem a umidade como quase-fundamento?
Muito rapidamente, sabe-se que a própria noção de différance seria herdeira da
“diferença ontológica” de Heidegger, ou seja, o fato de como a diferença entre o
ser e os entes permanecer de certo modo pensado pela filosofia. Na verdade,
Derrida vê neste gesto heideggeriano (que diz que o Ser não é de modo algum
entificável e que, por isso, permanecera impensado pela metafísica) de inaugurar
sua ontologia através de uma certa “aposta” na diferença uma possibilidade, sim,
de se colocar a metafísica em questão através justamente desta espécie de
“diferencialidade” original que não pode ser entificada. É claro que, para
Heidegger, isto que foi impensado, talvez e provavelmente por ser impensável, é o
que deve ser pensado, é a tarefa do pensamento que pode nos “salvar” de uma
metafísica e nos afastar da decadência da impropriedade do desenraizamento.
Talvez seja por esta razão – e creio que por certo é – que Derrida, ao se
deparar com estes impasses “fundamentalistas” de Heidegger acaba recorrendo a
um “estilo nietzschiano” de pensamento. Ele diz que “talvez seja, pois, preciso –
de acordo com um gesto que seria mais nietzschiano do que heideggeriano, ao ir
ao extremo desse pensamento da verdade do ser – abrir-se a uma différance que
não esteja ainda determinada, na língua do Ocidente, como diferença entre o ser e
o ente”
191
. Assim, “em quarto lugar, a différance nomearia, pois, provisoriamente,
esse desdobramento da diferença – em particular, mas não apenas, nem sobretudo,
da diferença ôntico-ontológica”
192
. Em particular, mas não apenas, nem
sobretudo – neste caso, então, nem sobretudo com relação a Heidegger, mas
talvez para esta experiência de pensamento que se possibilita a partir de Ser e
tempo. Se esta experiência é a desconstrução – e é o que acredito ser – a diferença
é que, neste caso, para além do óbvio fato de, em Derrida, não haver nenhuma
ontologia, não há origem. Não há heideggerianismo nem anti-heidegerrianismo
em Derrida. Há heranças. E isso, a meu ver, teria uma herança bem mais forte da
191
DERRIDA, J. Posições, p. 17.
192
DERRIDA, J. Posições, p. 17.
98
própria psicanálise e da metaforicidade nietzschiana, da completamente outra
alteridade levinasiana, da convocação abraâmica de Kierkeggard e dos cacos
históricos benjaminianos do que de um pensamento como este que está
preocupado, sobretudo, em “corrigir” a inautenticidade, a impropriedade e o
nomadismo de um pensamento perdido – talvez, assim, configurando mais uma
das grandes tentativas de corrigir o que não deve de modo algum ser corrigido: a
errância, o nomadismo, a umidade...
ainda sobre a différance
Aliás, talvez – e isso é uma hipótese – a possibilidade de se pensar esta “an-
arquitetura” da desconstrução deva justamente partir de um pensamento da
différance. Compreender, tangenciar, ilustrar esta economia é, de fato, pensar a
desconstrução. Não é por acaso que este termo é um dos mais recorrentes no
léxico derridiano até os dias de hoje. Uma das entrevistas mais importantes de
Derrida na sua primeira década de escrita, concedida a Jean-Louis Houdebine e
Guy Scarpetta, e que dá título às Posições, começa e se desenvolve justo a partir
deste “indecidível”.
De acordo com a primeira pergunta da entrevista, Houdebine diz que “nós
poderíamos talvez partir dessa ‘palavra’ ou desse ‘conceito’ de différance
193
,
“que não é, estritamente, nem uma palavra nem um conceito”, mas que é uma
espécie de “feixe” que reuniria as diferentes direções que a pesquisa derridiana
teria tomado até então. E, ao contrário do que se poderia supor – e que a este
momento não pode causar mais surpresa nos leitores deste pensamento – o fato
deste termo não atuar como conceito ou como palavra “não o impede de produzir
efeitos conceituais e concreções verbais ou nominais”
194
, através de uma estranha
“lógica” impressa pela marca silenciosa da letra “a”.
Para Derrida, este “feixe” citado por Houdebine nada mais seria que um
ponto de “cruzamento histórico e sistemático”, mas não se trataria, portanto, de
um feixe como se poderia simplesmente conceber, já que representa a própria
impossibilidade estrutural de enclausuramento da rede de diferenças, de “traçar-
lhe uma margem que seja uma nova marca”. Deste modo,
193
DERRIDA, J. Posições, p. 45.
194
DERRIDA, J. Posições, p. 46.
99
Não podendo mais se elevar como uma palavra-mestra ou como um conceito-
mestre, barrando toda a relação com o teológico, a différance encontra-se
envolvida em um trabalho que ela põe em movimento, por meio de uma cadeia de
outros “conceitos”, de outras “palavras”, de outras configurações textuais.
195
E é por essa razão que, de acordo com o filósofo, dever-se-ia insistir nestas
“palavras” ou “conceitos” que são postos em movimento pela différance, como
“grama”, “rastro”, “espaçamento”, “brisura”, “pharmakon”, “margem” etc.
Derrida diz que esta lista que apenas indica alguns de seus “indecidíveis”, mas
que é, ela mesma, interminável, não tem nem é ela própria nenhuma “clausura
taxonômica” – e nem constituiria, muito menos, nenhum léxico “próprio”. Isto
devido ao fato de que estes quase-conceitos não são de modo algum átomos, mas
tão-somente “pontos focais de condensação econômica, de locais de passagem
obrigatórios para um número bastante grande de marcas, de crisóis um pouco
mais efervescentes”
196
. Além disso, os efeitos destes “pontos focais” também não
são de maneira alguma auto-afectivos ou auto-afetáveis: só há abertura, uma
espécie de constante e infinita “propagação em cadeia”, sempre e a cada vez de
uma forma diferente – pseudodefinição esta que acredito ser, como se verá mais
adiante, plenamente “adequável” à noção derridiana de disseminação.
Estas reflexões sobre a différance nada mais são que formas de se pensar
uma “economia geral” da desconstrução, que se constituiria por um gesto duplo:
isto que ele chama em La double séance de “dupla ciência” [double science], que,
como se viu, trata de se passar por um primeiro momento de inversão e um de
deslocamento. Sobre a inversão metafísica, poder-se-ia desconfiar do fato de
Derrida apostar na importância e, mais ainda, na necessidade desta inversão –
sobretudo devido ao fato de Heidegger ter, poucas décadas antes, acusado
Nietzsche de ser ainda metafísico por inverter a metafísica. Mas, ao contrário de
Heidegger, Derrida vê nesse ato de se “fazer justiça” a esta necessidade de
inversão a única maneira de se “reconhecer que, em uma oposição filosófica
clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face a
face, mas com uma hierarquia violenta”
197
, na qual um dos termos “comanda” ou
“ocupa o lugar mais alto” da oposição. É por isso que, em um primeiro momento
195
DERRIDA, J. Posições, p. 46, grifo meu.
196
DERRIDA, J. Posições, p. 47.
197
DERRIDA, J. Posições, p. 48.
100
do duplo gesto, para se desconstruir a oposição metafísica deve-se inverter a
hierarquia. Passar por cima disso, com o medo de se recair na metafísica, é não se
ter em mente o aspecto necessariamente “político” desta atitude, deste “salto”
para-além da metafísica é acreditar em uma neutralidade do saber, completamente
obsoleta e injusta, que nada mais faz que insistir na manutenção, querendo ou não,
desta hierarquia.
Ao falar de um primeiro momento não quero dizer que haja uma
anterioridade cronológica da inversão, que prepararia o terreno para um posterior
deslocamento. Existe uma necessidade estrutural neste duplo gesto de que haja
sempre e ao mesmo tempo este duplo movimento, que é um duplo vínculo. É por
esta razão que não se pode de modo algum exercer apenas esta operação. Assim,
permanecer-se-ia sempre no interior do sistema desconstruído, sem que haja a
também necessária mudança de terreno.
198
É preciso também, por essa escrita dupla, justamente estratificada, deslocada e
deslocante, marcar o afastamento entre, de um lado, a inversão que coloca na
posição inferior aquilo que estava na posição superior, que desconstrói a
genealogia sublimante ou idealizante da oposição em questão e, de outro, a
emergência repentina de um novo “conceito”, um conceito que não se deixa mais
– que nunca se deixou – compreender no regime anterior.
199
Antes afirmei que vejo nesta atitude de Derrida uma herança de estilo
tipicamente nietzschiano. Sobre este “duplo gesto” em Nietzsche, tomo
emprestadas as palavras de Roberto Machado:
Não há dúvida de que a transvaloração significa uma desvalorização dos valores
dominantes na filosofia e uma valorização dos valores subordinados. Mas ela é
muito mais do que isso, ou melhor, isso é apenas um de seus aspectos. (...) Tirar
os valores morais do lugar de valores supremos, que dominam e dão sentido a
todos os valores, só será possível destruindo este lugar que foi instituído pela
própria moral. O que implica necessariamente mudar o elemento de onde se
originam os valores, o princípio de avaliação, a própria maneira de ser de quem
avalia.
200
Ou seja, como Derrida já teria dito antes, este seu “gesto” seria bem mais
nietzschiano que heideggeriano.
198
Para isso, indico a leitura das primeiras páginas do artigo “Derrida e a escritura”, de Paulo
Cesar Duque-Estrada, sobretudo o item intitulado “A estratégia desconstrucionista” (DUQUE-
ESTRADA, P.C. Às margens: a propósito de Derrida, pp. 11-15).
199
DERRIDA, J. Posições, pp. 48-49, grifo meu.
200
MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 88, grifo meu.
101
Sobre estas duas formas de “desconstrução”, ou de destruição como
Heidegger e Nietzsche chamavam, Derrida já havia apostado em uma “terceira
margem” no texto “Os fins do homem”. De outro lado, o que pode ser visto como
uma reação ao heideggerianismo, estaria o estilo dominante na França de 1968
que visa a “decidir mudar de terreno, de maneira descontínua e irruptiva,
instalando-se brutalmente fora e afirmando a ruptura e as diferenças absolutas”
202
.
Neste caso, a crítica de Derrida consiste em afirmar que, com esta atitude,
continua-se “habitando mais ingenuamente, mais estreitamente que nunca, o
dentro do qual se declara desertar”. Assim, de modo diferente do “autismo
heideggeriano, este tipo de “cegueira” francesa dá-se por não se perceber algo,
aparentemente, óbvio, que “a simples prática da língua reinstala continuamente o
‘novo’ terreno sobre o solo mais antigo”.
Para fazer aqui ecoarem as palavras de Roberto Machado, ao apontar que,
além da inversão, Nietzsche opera uma “mudança de elemento”, somo o fato de,
após apresentar estas duas “desconstruções”, Derrida dizer que ambas não são
suficientes para a “mudança de terreno” de que se necessita. Não se deve, por
conseguinte, tomar uma das duas opções em detrimento da outra, e sim apostar
em uma nova escrita que teça e entrelace os dois motivos: ou seja, que inverta e
desloque, que aja duplamente. De acordo com derrida, “o que significa dizer que é
necessário falar várias línguas e produzir vários textos simultaneamente”. E,
então, vê-se Nietzsche aparecer como o inaugurador deste estilo. Ou, ao menos
como aquele que percebeu a necessidade deste estilo... Tal é a razão que faz com
que eu aposte que, no de-correr deste pentatlo, Nietzsche venha a ganhar um peso
surpreendente nesta tese, sobretudo no que diz respeito à escrita metafórica e a
necessidade de “estilo” na filosofia: “Porque é de uma mudança de ‘estilo’, dizia-
o Nietzsche, que nós talvez necessitemos; e se há estilo, Nietzsche no-lo recordou,
ele só pode ser plural”
203
.
um pensamento do “nem/nem”:
Assim a filósofa argentina Mônica Cragnolini definiu a desconstrução. Para ela, a
deconstrução é um constante tremor e “‘solicitando’ o edifício da metafísica, se
201
DERRIDA, J. “Os fins do homem”. In: Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 176.
202
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
203
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 177.
102
experimenta esse tremor dos muros que, desde sempre, desde a suposta origem,
‘já’ estão se deconstruindo”
204
. E é este movimento que faz com que se trema
diante de um pensamento como este, que se trema e se tema, pois um pensamento
do “nem/nem” assusta, por nos levar ao lugar indecidível do “entre”. Diz ela:
Frente à metafísica oposicional, caracterizada pelo binarismo, o
desconstrucionismo se acha situado no “entre” das oposições: nem verdade nem
falsidade, nem presença nem ausência, mas sim “entre”. O “entre” está
designando um âmbito de oscilação do pensar. (...) O “entre” não é um novo
lugar, mas é não-lugar, impossibilidade de assentamento, constante perigo (...).
Ainda que na historia do pensamento ocidental haja uma utilização do sema
sêmen – para a produção, a idéia de disseminação suporia uma dispersão do
sema-sêmen sem produção.
205
É certo que definições similares são encontradas em Posições, como quando se vê
Derrida realizar que um tal pensamento como o que ele pretende desenvolver – e
que ele diz ter conseguido “quase-sistematizar” [este termo é meu] em A
disseminação – só marcará de fato um afastamento, conforme o exigido “duplo
gesto”, se operar através de certas “marcas” ou “quase-conceitos” ou
“indecidíveis”. Segundo a definição (indefinível) de Derrida: “unidades de
simulacro, ‘falsas’ propriedades verbais, nominais ou semânticas, que não se
deixam mais compreender na oposição filosófica (binária) e que, entretanto,
habitam-na, opõe-lhe resistência, desorganizam-na, mas sem nunca constituir um
terceiro termo”
206
. E, deste modo, para fazer valer o batismo da professora
Cragnolini, o filósofo parece, com isso, (in)definir seu pensamento através do
“nem/nem” de seus “indecidíveis”:
O pharmakon não é nem o remédio nem o veneno, nem o bem nem o mal, nem o
fora nem o dentro, nem a fala nem a escrita; o suplemento não é nem um mais
nem um menos, nem um fora nem um complemento de um dentro, nem um
acidente nem uma essência etc.; o hímen não é nem a confusão nem a distinção,
nem a identidade nem a diferença, nem a consumação nem a virgindade, nem o
velamento nem o desvelamento, nem o dentro nem o fora etc.; o grama não é
nem um significante nem um significado, nem um signo nem uma coisa, nem
uma presença nem uma ausência, nem uma posição nem uma negação etc.; o
espaçamento não é nem o espaço nem o tempo...
207
204
CRAGNOLINI, M. “Temblores del Pensar”. Publicado em “Pensamiento de los Confines”,
Buenos Aires, n. 12, junho de 2003, pp. 11-119. Aqui foi utilizada a versão digital da página
Derrida en Castellano (http://www.jacquesderrida.com.ar/comentarios/temblores.htm#_edn1
).
205
CRAGNOLINI, M. “Temblores del pensar”.
206
DERRIDA, J. Posições, p. 49.
207
DERRIDA, J. Posições, pp. 48-49.
103
E isso se vê desde Gramatologia:
Aqui, como em outros lugares, colocar o problema em termos de escolha, obrigar
ou se acreditar, inicialmente, obrigado a responder-lhe por um sim ou um o,
conceber a pertença como uma submissão ou a não-pertença como um falar com
franqueza, é confundir alturas, caminhos e estilos bem diferentes. Na
desconstrução da arquia, não se procede a uma eleição.
208
Como se pode concluir, este “nem/nem” visa a fugir completamente de se
resolver por meio de um “terceiro termo” que viria “resolver a contradição”, como
em um molde dialético. O indecidível em nada se assemelha ao processo
hegeliano de Aufhebung
209
. Em “A diferença” e em “A disseminação”, Derrida se
detém a este debate com Hegel, no intuito de distinguir a différance da diferença
hegeliana, pois não se estrutura segundo uma “lógica da contradição”. E mais que
isso, a différance é, de certo modo, a própria ruptura com um sistema de
Aufhebung ou de qualquer dialética especulativa.
Em uma longa nota ao fim de Posições, pode-se ver explicitada esta
distinção derridiana. O filósofo diz que “ao não se deixar subsumir simplesmente
sob a generalidade da contradição lógica, a différance (processo de diferenciação)
permite realizar um cálculo diferenciante dos modos heterogêneos da
conflitualidade, ou, se preferirmos, das contradições”
210
. A suspeita de Derrida
com relação ao próprio termo “contradição” se dá por este já pressupor uma
possível (e esperada) resolução. E o que é pior, esta “reconciliação” se dará
necessariamente no interior do próprio discurso dialético – aliás, é o próprio
discurso que resolverá a contradição e que fará com que se perceba a presença
(absoluta) do terceiro termo. Isso explica o fato de Derrida utilizar-se mais
freqüentemente do termo conflito de forças do que propriamente contradições. E
conclui:
Assim, definido, o “indecidível”, que não é a contradição na forma hegeliana da
contradição, situa, em um sentido rigorosamente freudiano, o inconsciente da
oposição filosófica, o inconsciente insensível à contradição na medida em que ela
pertence à lógica da palavra, do discurso, da consciência, da presença, da verdade
etc.
208
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 76.
209
Ver nota 63 do Capítulo Primeiro.
210
DERRIDA, J. Posições, p. 101.
104
Contudo – e Derrida de modo algum se constrangeria com a possibilidade
de ser acusado de círculo vicioso – só é possível pensar différance através de
indecidíveis; e só é possível definir estes indecidíveis através da différance e
assim por diante. Com isso, não acredito de modo algum encontrar um “erro
lógico”, mas, muito pelo contrário, Derrida está, com isso, sendo o mais fiel
possível à sua “lógica”. Se o que dá movimento à esta diferenciação é a infinita
cadeia de remetimentos, estão seus “conceitos” só podem ser pensados através de
outros remetimentos.
Deste modo, o pensamento do “nem/nem”, que tem como “quase-
conceitos” seus indecidíveis e que é constituído pela différance, tem como ligação
dos termos da cadeia de remetimentos isto que Derrida chama de espaçamento,
um termo indissociável de outro, a saber, da alteridade. O espaçamento, ao
contrário do que se poderia pensar de um modo estruturalista, lingüístico ou
psicanalítico, não designa nada, sendo apenas o movimento de um conceito
“positivo” e “gerador”.
Como disseminação, como différance, ele comporta um motivo genético; não é
apenas o intervalo, o espaço constituído entre dois (...), mas o espaçamento, a
operação ou, em todo caso, o movimento de afastamento. Esse movimento é
inseparável (...) da différance, dos conflitos de força que estão aí em ação. Ele
marca aquilo que afasta de si, interrompe sua identidade consigo, todo rearranjo
pontual sobre si, toda homogeneidade consigo, toda interioridade consigo.
211
E prossegue, mais adiante, dizendo que “espaçamento significa também,
justamente, a impossibilidade de reduzir a cadeia a um de seus elos ou de aí
privilegiar absolutamente um – ou outro”. É por isso que esta noção de
espaçamento é decisiva para marcar o que, mais tarde, Derrida chamaria de
disseminação – que nada mais seria que o movimento mesmo da différance.
Certamente isto que tento aqui fazer nada mais reproduz que o “labirinto
de inscrições” de que tanto reclamou Ronse na entrevista de 1967. E é, também
certamente, proposital minha dedicação a esta quase-esquematização da an-
arquitetura derridiana. Outra estratégia proposital, mas possivelmente entediante,
é o prolongamento nisto que eu disse ser a “introdução” do capítulo. Se, por um
lado, o adiantamento dos temas pode “entregar o jogo” desde o início (o que
211
DERRIDA, J. Posições, p. 106.
105
realmente não me importa), por outro, penso que este esclarecimento prévio
facilitará bastante a fluência dos tópicos seguintes que tratarão dos temas pontuais
nas primeiras obras de Derrida. E, também, como disse, adiamento e promessa são
os traços constituintes desta escrita...
mas, então: disseminação
De acordo com Derrida, isto que não chega a ser um conceito nem um motivo,
mas talvez um “operador de generalidade”
212
, consiste em uma différance
seminal cuja força faz com que se exploda o horizonte semântico.
Mais um dos (às vezes não tão breves) parênteses aos quais me dedico
deve aparecer aqui, pois se encontra uma recorrente confusão, inclusive dentre os
estudiosos de Derrida, entre os conceitos de disseminação e de polissemia. Em
“Assinatura Acontecimento Contexto”, Derrida apresenta uma crítica à noção de
polissemia, que ainda permaneceria presa a uma noção de sentido, sendo isto
justamente do que o filósofo deseja afastar-se. Diferente de uma polissemia, a
iterabilidade da escritura consistiria na estrutura da própria “linguagem”. Iter quer
dizer “de novo”, e viria do termo “itara”, que, em sânscrito, quer dizer “outro” e,
com isso, Derrida pretende apontar que “a possibilidade de repetir e, portanto,
identificar as marcas está implícita em qualquer código, fazendo deste uma grelha
comunicável, transmissível, decifrável, iterável por um terceiro, depois por
qualquer utente possível em geral”
213
. E, logo em seguida, Derrida afirmará a
necessidade de desviar do conceito de polissemia através deste que apresenta
como disseminação, que – como se verá, isto é importantíssimo para esta tese –
“é também o conceito de escrita”
214
.
Sim. A escritura nada mais é que uma disseminação que não se deixa
reduzir a uma polissemia. E é esta a razão de Derrida ver a necessidade de
explicitar a explosão do horizonte semântico através disto que ele nomeia
disseminação. A insistência na polissemia demonstra a permanência em uma
espécie de leitura “sêmica”, não mais monossêmica, mas ainda guiada por um
sentido, orientada ainda demais. Já a disseminação não, ela nada mais é que uma
212
DERRIDA, J. Posições, p. 51.
213
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 356.
214
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 357.
106
produção infinita de efeitos semânticos e, com isso, não pode ser reconduzida a
qualquer solo, a qualquer substância, fundamento ou origem. É o epíteto da an-
arquia, pois “ela marca uma multiplicidade irredutível e gerativa. O suplemento e
a turbulência de uma certa falta fraturam o limite do texto, interditam sua
formalização exaustiva e clausurante ou, ao menos, a taxonomia saturante de seus
temas, de seu significado, de seu querer-dizer”
215
.
Derrida admite jogar com a exterior aparência entre os termos “seme” e
“sêmen” e, com isso, o sentido passa a significar a própria germinação, ou seja, a
geração de sentidos, o processo de diferenciação que é a própria escritura.
Disseminar, assim, tanto no sentido semântico como no seminal, consiste em
apenas se re-marcar, como antecipamos no Capítulo Primeiro; trata de apontar
esta “nervura” que interrompe qualquer espécie de processo de totalização (que
sempre é uma totalização em torno de um ou do sentido). E , de acordo com
Derrida, esta nervura, esta “dobra”, é a “re-dobra” de algo indecidível, de um
indecidível que não significa, apenas re-marca.
E, por conseguinte, a escritura, que – como se verá logo em seguida –
ultrapassa (o que é óbvio) a noção de “escrita”, mas também a de “linguagem”,
requer uma forma específica de “pensamento” que dê conta deste movimento de
disseminação. Por isso, só pode operar através de seus indecidíveis e requerer que
o pensador que se dedique a pensá-la propriamente siga (ou melhor, inaugure)
através de tomadas de posições, uma de cada vez, uma forma de pensamento que
siga o quase-modelo do “nem/nem”. Tal é a razão de Derrida afirmar que um
pensamento como este, da escritura, do nem/nem, dos indecidíveis etc., nada quer
dizer.
“O pensamento” (aspas: as palavras “o pensamento” e aquilo que se chama “o
pensamento”) nada quer dizer: ele é o vazio substantivo de uma idealidade
altamente derivada, o efeito de uma différance de forças, a autonomia ilusória de
um discurso ou de uma consciência cuja hipóstase deve ser desconstruída, cuja
“causalidade” deve ser analisada etc.
216
Mas não é apenas isso, este é apenas o primeiro aspecto desta frase. Além disso,
Derrida diz que:
215
DERRIDA, J. Posições, p. 52.
216
DERRIDA, J. Posições, p. 56.
107
Se existe o pensamento – e ele existe, e é igualmente suspeito, por razões críticas
análogas, recusar a instância de todo “pensamento” – , aquilo que se continuará
chamando o pensamento e que designará, por exemplo, a desconstrução do
logocentrismo, nada quer dizer, não procede mais, em última instância, do
“querer-dizer”. Em todo lugar que ele opera, “o pensamento” nada quer dizer.
217
Tais aspectos, decisivos e constitutivos da maneira de pensar
desconstrutiva, são freqüentemente alvos de críticas, principalmente no que
concerne (e que necessariamente concerne) a uma certa ausência de linearidade.
O filósofo admite, e diz que o linearismo nunca foi seu forte – pois, a seu ver, ele
estaria sempre ligado ao logocentrismo. E é certo que está: um pensamento linear
sempre será fracassado ao tentar dar conta disto que escapa à linearidade, a
disseminação, e, caso pretender seguir esta forma logocêntrica de cronologia, ele
sempre terminará por enclausurar isto que deve necessariamente escapar a
qualquer aprisionamento para seguir o infinito movimento da différance.
Em Gramatologia, trava-se uma árdua batalha para a denúncia e a
conseqüente tentativa de “desmontagem” do logocentrismo – e isto se dá pela
aposta, justamente, nisto que Derrida chama de rastro. Então, o que afastaria
Derrida de qualquer forma logocêntrica de pensamento, seja metafísica,
ontológica, teológica etc., é o fato “demonstrado” por Derrida em seu livro sobre
o grama de que “o rastro não é nem um fundo nem um fundamento, nem uma
origem, e que ele não poderia, em nenhum caso, dar lugar a uma onto-teologia
manifesta ou disfarçada”
218
. E este pensamento – que, como batizou Cragnolini,
trata do “nem/nem” – escapa, porque luta por escapar, porque tem como este
escape sua meta, porque vê a necessidade de se escapar do logocentrismo. E, no
entanto, um pensamento assim, posto que foge a qualquer originariedade, acaba
por escapar a qualquer originalidade. Derrida não se acha (e nem poderia, ou
então, ao menos, não deveria se achar) nada original: em primeiro lugar porque a
desconstrução é algo que acontece, porque há desconstrução no mundo, nos
textos, na língua, na razão etc., e, dessa maneira, o filósofo apenas pode tentar
penetrar nestas brechas estruturais presentes em todo “objeto” que pretende
analisar; além disso, o filósofo “desconstrutor” não passa (porque não pode
passar) de um “leitor” de textos – e entendam-se aqui “textos” como os textos
217
DERRIDA, J. Posições, p. 56.
218
DERRIDA, J. Posições, p. 59.
108
propriamente ditos, escritos pela tradição, e não apenas os filosóficos, mas
também o próprio “mundo”, a “política”, a “economia” etc.
O “trabalho de leitura” desconstrutor, deste modo, não pode nunca seguir
nenhuma forma de logocentrismo (e, como se viu, de nenhum centrismo – e
querer se falar de um “rastrocentrismo” ou “gramacentrismo” é algo
completamente absurdo, pois o rastro ou o grama não se deixa nunca conter em
nenhum centro), e ao tentar se decifrar um texto, não se pode, também não,
deixar-se guiar por uma tentativa de resposta do tipo “sim” ou “não” – mantém-se
sempre às margens, no limite, nas bordas. E é isso que se verá logo em seguida,
ao dedicar-me um pouco à fase “gramatológica” do pensamento desconstrutor, na
qual se desenvolve, ou melhor, pretende-se desenvolver (posto que o projeto é
abandonado, mas apenas como projeto e não como tematização) uma “ciência do
arquirastro”.
Assim, ao se ver a impossibilidade de se adentrar ao pensamento
derridiano por meio de uma arquitetura, muito menos de uma cronologia, posto
que qualquer forma de entrada deste tipo seria uma entrada logocêntrica, minha
opção foi a de, através de Posições, tentar fazer justiça à disseminação derridiana
e a de tentar deixar escapar isto que não deve ser aprisionado em nenhum sistema.
É certo que isto é possivelmente a maneira mais difícil de se pensar, de se ler e –
também, eu afirmo – de se escrever um texto. É algo extremamente irritante, mas
que deve ser assim e que deve, por isso, tocar e forçar a se pensar sobre as várias
questões que envolvem a linearidade, a objetividade, a certeza etc.
Apenas um pensamento fragmentado – dilacerado ou alegórico ou
biográfico – pode realmente fazer justiça a esta alteridade do próprio texto, a isto
que escapa e deve escapar. E é, por fim, por este motivo que um pensamento
como este – que não penso ser exclusivo de Derrida, mas que é ele quem
certamente reúne tais características em seu pensamento, a partir de Benjamin,
Lévinas, Kierkegaard, Nietzsche etc. – permanece sempre como um corpo
estranho dentro do próprio pensamento: como um vírus. Como algo que não é
nem vivo nem morto, nem filosofia nem literatura, mas que é justo o que pode
contaminar estes pensamentos (dominantes) que se pretendem “pasteurizados”,
“imunes”, “felizes”, “neutros”...
Por fim:
109
Tudo passa por este quiasma, toda escrita está nele presa – pratica-o. A forma do
quiasma, do χ, me interessa muito [como se verá na relação Derrida-Lévinas, ou
melhor, na estranha relação Lévinas-Derrida], não como símbolo do
desconhecido, mas porque existe nele, como o sublinha A disseminação, uma
espécie de forquilha (...), aliás desigual, com uma de suas pontas estendendo seu
comprimento mais longe que a outra: figura do duplo gesto e do cruzamento...
219
3.2
segunda seção
o projeto (abandonado) para uma gramatologia
E chego propriamente à primeira parte “conteudista” do capítulo e, creio eu, da
tese. Realmente o insuportável adiamento deste momento pode ter sido doloroso a
um provável leitor, mas acredito mesmo em sua pertinência. Mas, então, o que me
resta a fazer, como que uma única opção sensata, parece-me ser, de agora em
diante, comprometer-me com a promessa de concisão e síntese – da qual eu não
fora, até o presente momento, adepto.
Então... Esta seção tratará dos primeiros livros escritos por Derrida e
ambos publicados em 1967, a saber, A voz e o fenômeno, Gramatologia e A
escritura e a diferença. A opção por apresentar os livros nesta ordem cumpre, em
primeiro lugar, uma indicação de Derrida que disse que, em uma “arquitetura
clássica”, A voz... viria em primeiro lugar; e, além disso, segue também a hipótese
de que Gramatologia talvez seja a obra mais importante de Derrida e que, por
isso, apresenta de modo mais preciso seus quase-conceitos. E, em A escritura e a
diferença, então, escolherei alguns aspectos da Gramatologia para serem
exemplificados, desenvolvidos ou explorados de modo mais interessante para esta
pesquisa.
E, assim, a tentativa desta seção cumpre-se em dar conta do “labirinto de
inscrições” ao qual Derrida nos encerra desde seus primeiros escritos. Que se
adentre, sabendo que não mais se conseguirá sair...
da voz
219
DERRIDA, J. Posições, p. 78.
110
Começar por A voz e o fenômeno talvez seja o mais sofrível começo. Ao menos
para mim. Sobretudo porque não pretendo pontuar a relação entre Derrida e
Husserl, nem entre Derrida e a fenomenologia. Mas, como se sabe, para Derrida,
no início estava a palavra, ou ainda, a voz... E eis o problema! A relação com
Husserl, que vai ser desenvolvida ao longo de toda a obra desconstrutora, parte da
constatação do privilégio atribuído à voz na filosofia, ou seja, o que Derrida
chama de fonocentrismo, que seria tão-somente uma outra face do logocentrismo.
E é neste sentido que, mais que precisar esta relação em Husserl, tentarei partir da
premissa derridiana para pensar o que seria este “início” do projeto
gramatológico.
Como se viu, no ano de 1972, em Posições, Derrida refere-se ao seu livro
sobre Husserl (de 1967) como o ensaio ao qual ele teria mais apego, e diz também
que em uma arquitetura filosófica clássica, este livro deveria ser considerado seu
primeiro trabalho. Antes dele, em 1962, Derrida já havia escrito sobre Husserl, a
introdução à sua tradução de Origem da geometria. Entretanto, é às suas
especulações sobre as Investigações Lógicas (de 1900-1901, que “abriram um
caminho pelo qual toda a fenomenologia enveredou”
220
) que o filósofo diz ter
este apreço, pois nestas poucas e densas páginas se discute “a questão do
privilégio da voz e da escrita fonética em suas relações com toda a história do
ocidente, tal qual ela se deixa representar na história da metafísica, e em sua
forma mais moderna, mais crítica, mais atenta: a fenomenologia transcendental de
Husserl”
221
. Deste modo, nesta parte da tese cabe apenas ressaltar alguns aspectos
de A voz... e, para tanto, cabe, primeiramente, uma descrição dos argumentos-
chave que norteiam a investigação derridiana sobre a fenomenologia tal como
descrita nas Investigações Lógicas.
Deveríamos talvez concluir que (...) o conceito de intencionalidade permanece preso à
tradição de uma metafísica voluntarista, isto é, talvez simplesmente preso à
metafísica. A teleologia explícita que comanda toda a fenomenologia transcendental
seria, no fundo, apenas um voluntarismo transcendental. O sentido quer significar-se,
ele só se exprime em um querer-dizer que não é senão um querer-dizer-se da presença
do sentido.
222
220
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 09.
221
DERRIDA, J. Posições, p. 11.
222
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, pp. 42-43.
111
Para sintetizar a base da crítica a Husserl, que, como se verá, será
estendida a toda a história da metafísica, devo elencar alguns pontos. Segundo
Derrida: 1. todo o pensamento de Husserl estaria presente, ainda que em germe,
na primeira investigação lógica, mais precisamente, em seu primeiro parágrafo,
qual seja, sobre a distinção essencial entre signo como índice ou expressão
223
; 2.
o ideal de toda fenomenologia é a descrição. Com isso, empreender-se-ia uma
suspensão da atitude natural, a fim de abraçar um ideal de um “querer nada
pressupor”
224
. Derrida interroga-se se esta atitude não suportaria um certo grau de
dogmatismo e se, além disso, como toda teoria do conhecimento, esta não se
fundamentaria no ideal de presença. Por acreditar que sim, Derrida permite-se
enunciar que, justamente por isso, a metafísica da presença alcançaria em Husserl
sua máxima realização, a mais complexa e sofisticada (que, como se mostrará em
Gramatologia, se trata de um fonocentrismo, logocentrismo e etnocentrismo)
225
;
3. a estrutura das investigações husserlianas comportaria um conflito interno, ou
mesmo uma autocontestação implícita, no que diz respeito ao ideal de presença.
Este ideal em Husserl, segundo Derrida, seria contaminado por uma “ausência
constitutiva” [o que me permite fazer duas breves digressões: primeiro, em A
idéia de fenomenologia, encontramos a descrição da constituição do objeto como
originada por uma temporalidade que significa um passado que já foi projetando-
se no futuro: ou seja, não há somente o presente da presença; segundo, nas
Meditações cartesianas, mais especificamente na quinta meditação, Husserl fala
sobre a não presença do outro, que nunca estaria presente, a quem o eu nunca terá
223
“A primeira das Recherches (Ausdruck und Bedeutung) começa com um capítulo dedicado a
‘distinções essenciais’ que comandam rigorosamente todas as análises ulteriores. E a coerência
desse capítulo deve tudo a uma distinção proposta já no primeiro parágrafo: a palavra ‘signo’
(Zeichen) teria um ‘duplo sentido’ (ein Doppelsinn). O signo ‘signo’ pode significar ‘expressão
(Ausdruck) ou ‘índice’ (Anzeichen)” (DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, pp. 09-10).
224
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, pp. 09-23 e 31-39.
225
Derrida vai questionar, sobretudo, o ideal de “vida” na fenomenologia, deste acesso
“desinteressado” às coisas mesmas, e tentar mostrar que esta não é uma presença absoluta, mas
que só aparece, como todo “conceito” diferido a outra coisa. Derrida diz que “a estranha unidade
destas duas paralelas [o transcendental e o lógico] - e o que as relaciona uma à outra – não se deixa
dividir por elas, e, dividindo-se a si mesma, funde, finalmente, o transcendental ao seu outro; é a
vida”. E prossegue: “o ‘viver’ é pois o nome daquilo que precede a redução e escapa, finalmente, a
todas as partilhas [repartições] que esta faz aparecer. (...) Determinando assim o ‘viver’, acabamos
pois de nomear o recurso [a fonte] de insegurança do discurso, ponto em que, precisamente, ele
não pode mais consolidar na nuance a sua possibilidade e o seu rigor”. (DERRIDA, J. A voz e o
fenômeno, p. 21). Com isso, Derrida quer mostrar que a fenomenologia quer dar conta
dogmaticamente de uma “presença”, mas que a vida mesma está precedida e constituída por uma
alteridade: “La chose même se dérobe toujours...” (DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 117), isto
porque este conceito de vida, este “conceito ultratranscendental” nunca foi “inscrito na língua” e
requer, desta maneira, um outro nome: a différance.
112
acesso senão por analogia]. Por fim, dando prosseguimento a estes argumentos, a
autoridade da fenomenologia é posta em xeque como ciência cuja competência
subordinaria o signo à lógica e que intitularia a teoria do conhecimento como a
única ciência capaz de determinar a origem da linguagem. Além disso, como
último pressuposto, vê-se que Derrida insistirá novamente na possibilidade de se
enxergar uma tensão entre ausência e presença no cerne da própria idealidade.
Tal alteridade fundadora é tratada cuidadosamente por Derrida no terceiro
capítulo da referida obra, intitulado “O querer-dizer como solilóquio”. Sua tese
central é a de que o fora não expresso por Husserl em sua fenomenologia da
presença, mas pressuposto em sua concepção de expressão, indicaria a alteridade
da consciência nela mesma
226
. Tentarei brevemente apontar as indicações de
Derrida. Ao deter-se sobre a noção de expressão, Derrida indaga-se sobre a razão
de se chamar o signo como querendo-dizer. Daí se pode resumidamente apontar
três aspectos: 1. o caráter de exteriorização da expressão (ou o caráter de fora
presente na consciência lógica): em um esquema simples, Derrida aponta para o
fato de que a Noese (ou sentido) que é ideal refere-se sempre ao Noema (que não é
natureza, nem mundo, nem real e que, por isso, por não ser empírico, apresenta-se
fora da consciência)
227
; 2. o caráter voluntário da exteriorização da expressão: a
intencionalidade ou querer-dizer mediaria a relação entre a expressão pura e a
voz interior. A oposição aqui apresentada por Husserl coloca, de um lado, a noção
de índice, uma realidade empírica, existente no mundo, contra a noção de
expressão, uma idealidade, que concerne tão-somente à voz e ao espírito. Assim,
esta voz interior a que Husserl se refere é algo que não existe, ideal, e expressa
algo também não existente, a idealidade da expressão
228
; e 3. sobre este caráter
voluntário, Derrida ainda diz mais: a Bedeutung (ou aquilo que o querer-dizer
quer dizer, traduzido normalmente por significação) relaciona-se sempre à
226
“A ex-pressão é exteriorização. Ela imprime em um certo exterior um sentido que se encontra
inicialmente em um certo dentro. (...) O fora não é nem a natureza, nem o mundo, nem uma
exterioridade real em relação à consciência. Este é o momento de precisar. O bedeuten visa um
fora que é o de um ob-jeto ideal. Esse fora é então ex-presso, passa fora de si em um outro fora que
está sempre ‘na’ consciência. (...) Saída fora de si de um ato, e depois, de um sentido que só pode,
então, ficar em si na voz, e na voz ‘fenomenológica’... [grifo meu]” (DERRIDA, J. A voz e o
fenômeno, pp 40-41).
227
“Certamente, a Bedeutung só advém ao signo e só o transforma em expressão com a palavra, o
discurso oral” (DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 40).
228
“O discurso expressivo, como veremos, não tem necessidade, enquanto tal em sua essência, de
ser efetivamente proferido no mundo. A expressão como signo querendo-dizer é, pois, uma dupla
saída fora de si do sentido (Sinn) em si, na consciência, no com-sigo ou junto a si, que Husserl
começa por determinar como ‘vida solitária da alma’” (DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 40).
113
Deutung (interpretação, explicação, entendimento). De acordo com Derrida,
segundo este sistema de Husserl, que trata da Deutung da Bedeutung (ou do
entendimento do que o querer-dizer quer dizer), a Deutung teria a estrutura de um
ouvir, e não de uma leitura [ou seja, um privilégio da phoné]
229
.
O entendimento, assim, seria um escutar e de modo algum ler. Do mesmo
modo, a Bedeutung não seria uma escritura, mas uma fala. Isto implica que a
essência desta relação entre Deutung e Bedeutung só é alcançada no discurso oral.
E, mais ainda, no solilóquio, na voz interna da consciência. A princípio, neste
esquema que exclui por completo a alteridade, o que está em jogo na
referencialidade entre Deutung e Bedeutung é a relação da consciência consigo
mesma. Além disso, ainda que o sentido (representado pela consciência) queira
representar-se como um querendo-dizer que é um quer-dizer-se da presença do
sentido, a pura intenção espiritual (ou pura animação) pelo Geist (ou vontade) só
se dá em referência à totalidade visível e espacial (seja ela representada pelos
gestos, pelo corpo do signo, pela fisionomia etc.). Deste modo, em Husserl, o que
ainda se encontra em jogo é a antiga oposição metafísica entre corpo e alma
230
,
sendo que, devido à sofisticação de seu sistema, torna-se impossível se pensar este
dentro da consciência senão em relação, ou como diria mais radicalmente
Derrida, pressuposto por este fora.
Uma possível digressão aqui, a fim de situar a discussão de A voz... com
relação ao intuito desta tese, visa ao esclarecimento deste projeto derridiano que já
se mostra rascunhado em A voz e o fenômeno, qual seja, o de apontar a alteridade
recalcada pela metafísica da presença, sobretudo no que diz respeito à linguagem
e à relação entre fala e escritura. O empreendimento contemporâneo de Derrida,
também de 67, de elaborar uma Gramatologia partiria de princípios semelhantes.
229
“Na expressão, a intenção é absolutamente expressa porque ela anima uma voz que pode
permanecer apenas interior, e porque o expresso é uma Bedeutung, isto é, uma idealidade que não
‘existe’ no mundo. (...) Confirma-se, de outro ponto de vista, que não há expressão sem intenção
voluntária. De fato, se a expressão é sempre habitada, animada por um bedeuten como querer-
dizer, é que para Husserl, a Deutung, digamos, a interpretação, o entendimento, a inteligência da
Bedeutung nunca pode ocorrer fora do discurso oral (Rede). Só um tal discurso pode oferecer uma
Deutung. Esta nunca é essencialmente leitura, mas escuta. O que ‘quer dizer’ aquilo que o querer-
dizer quer dizer, a Bedeutung, é reservado ao que fala [grifo meu] e que fala enquanto diz o que
quer dizer: expressa, explícita e conscientemente” (DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, pp 41-42).
230
“Isso explica porque tudo o que escapa à pura intenção espiritual, à pura animação pelo Geist
que é vontade –, tudo isso é excluído do bedeuten e, conseqüentemente, da expressão: por
exemplo, o jogo de fisionomia, o gesto, a totalidade do corpo e a inscrição mundana, em resumo, a
totalidade do visível e do espacial como tais. Como tais, isto é, enquanto não são trabalhados pelo
Geist, pela vontade, pela Geistlichkeit que, na palavra assim como no corpo humano, transforma o
Körper em Leib” (DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 43).
114
Como se verá, toda a metafísica seria fonocêntrica, logocêntrica e etnocêntrica,
pois teria como base a escrita fonética, ou seja, a redução da escrita (exterioridade
do grafema ou significante escrito com relação ao par som-sentido) à idealidade
do sentido (ou significado). Isto configuraria um processo de apagamento do
signo (no intuito de que o significado se manifeste) que traria com o signo as
marcas de um logocentrismo (logos como presença, fundamento, querer-dizer), de
um fonocentrismo (primado da voz como presença, como verdade do querer-
dizer) e de um etnocentrismo (em que toda metafísica torna-se etnocêntrica, pois
consiste no primado de toda língua fonética).
Com isso, pode-se perceber o rebaixamento da escrita em relação à
linguagem falada (que estaria, metafisicamente, mais próxima da origem, do
sentido, da presença) – denúncia que não se encontra apenas em Gramatologia
como também em A farmácia de Platão. Assim, pode-se compreender a
constatação de Derrida quanto ao que ele chamou de um transbordamento da
escritura que “sobrevém no momento em que a extensão do conceito de
linguagem apaga todos os seus limites”
231
: isto é, a constatação de que aquilo que
mais se discute no século XX, a linguagem, não dá mais conta de seu próprio
“sentido”, que algo transborda no próprio conceito de linguagem do qual ela não
parece dar conta. Mas este excesso de discursos sobre a linguagem nada mais
seria que o sintoma da incapacidade da língua (fonética) de dar conta deste
transbordamento. Mas tal transbordamento não é uma proposta derridiana, apenas
sua constatação, e o empreendimento de uma gramatologia, deste modo, visaria
simplesmente à tentativa de fazer justiça a este excesso do qual a língua fonética
não dá conta, justo pelo fato de ser fundamentada na metafísica da presença que
crê na autoridade da fala frente à escrita. Assim surge o quase-conceito derridiano
de escritura ou arque-escritura que, como mostrarei logo em seguida, além de
indicar a problemática deste rebaixamento da escrita, visa, para além da mera
oposição, a indicar um deslocamento para fora da arquitetura metafísica (de Platão
a Saussure). Esta metafísica fundamenta-se em uma estrutura fonologocêntrica, na
qual a coisa (tomando, por exemplo, uma cadeira) afetaria o estado de alma, que,
por sua vez, se manifesta em uma descrição fonética (a palavra falada “cadeira”)
e, posteriormente, como um segundo símbolo, ou convenção da convenção, a
231
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 08.
115
escrita, a palavra escrita “cadeira”. O rebaixamento da escrita, devido à pretensa
presença da coisa mesma, colocaria, deste modo, o logos (o sentido da coisa que
afeta a alma) e a fala juntos, sendo eles a idealidade mesma do sentido, enquanto a
escrita, por, em um esquema ainda platônico, dizer respeito à dimensão do
sensível, da aparência, significaria a exterioridade do sentido.
*
Derrida, então, mostra como ao longo de toda a história do pensamento – e em
Husserl de modo mais sutil e refinado – a filosofia esforçou-se por conservar a
verdade da palavra (falada), mas em surdina lembra que “a linguagem guarda a
diferença que guarda a linguagem”
232
. Na tentativa de esmagar esta diferença, ou
ainda, a estrutura úmida desta alteridade que guarda escritura, a metafísica
ocidental afirmou sempre a intrínseca relação, ou uma quase sinonímia entre logos
e phonè fundamental ao privilégio da consciência. Assim, a fenomenologia
transcendental “com o maior refinamento crítico” alcançaria o ponto mais alto da
metafísica da presença ocidental, inseparável de um fonocentrismo,
pois não é à substância sonora ou à voz física, ao corpo da voz no mundo, que ele
reconhecerá uma afinidade de origem com o logos em geral, mas à voz
fenomenológica, à voz em sua carne transcendental, ao sopro, à animação
intencional que transforma o corpo da palavra em carne.
233
Desta maneira, esta “carne espiritual” que é a voz fenomenológica é o que fala e
que, por isso, está “presente a si” mesmo com a suspensão (isto é, ausência) do
mundo. E o intuito de Derrida, ao escrever sobre estes aspectos, é o de apontar
que, na fenomenologia (como metonímia do pensamento ocidental) o privilégio
da presença como consciência não pode estabelecer-se senão pela excelência da
voz – o que produz um certo fechamento.
Nesse sentido, no interior da metafísica da presença, da filosofia como saber da
presença do objeto, como ser-junto-de-si do saber na consciência, acreditamos,
simplesmente, no saber absoluto como fechamento, senão como fim da história.
Cremos literalmente nisso. E que um tal fechamento ocorreu. A história do ser
como presença, como presença a si no saber absoluto, como consciência (de) si
232
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 21.
233
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, pp. 22-23.
116
na infinidade da parusia, essa história está fechada. A história da presença está
fechada.
234
Para Derrida, esta história está fechada, pois é a história do solilóquio, da
tentativa de não se deixar ouvir a voz do outro, muito menos assumir que esta
“voz” que se crê presente a si é, ela mesma, constituída por muitas vozes de
muitos outros e de outros outros. Em outros termos, é o retorno a si da voz, o
querer-ouvir-se-falar absoluto, uma voz sem différance e sem escritura”
235
.
Portanto, para um novo “começo” é preciso ao máximo se afastar do absoluto, que
é o saber absoluto, que na verdade é o saber. Nesse sentido, é que os rastros
levinasianos fazem eco, que esta voz levinasiana pode, ela sim, soar: pois é
preciso, então, pensar outramente. “De outra maneira [autrement], isto é, na
abertura de uma questão inaudita, que não se abre nem para um saber nem para
um não saber como saber por vir. Na abertura dessa questão, nós não sabemos
mais
236
. O que, de modo algum, quer dizer que não sabemos nada, mas que não
estamos mais circunscritos ao modo absoluto do saber, que impõe o fechamento, a
clausura.
Com surpreendente coerência, Derrida retoma daí a sugestão de que esta
seria a questão, e, mais ainda, a questão do não querer dizer...
Sem dúvida, tudo começou assim: “Um nome pronunciado diante de nós
transporta-nos à galeria de Dresde... erramos pelas salas... Uma tela de Téniers...
representa uma galeria de quadros... Os quadros dessa galeria representam, por
sua vez, quadros que revelam inscrições passíveis de ser decifradas etc.”.
Certamente, nada procedeu nessa situação. Seguramente, nada a suspenderá. Ela
não está compreendida, como o desejaria Husserl, entre as intuições ou
apresentações. Da plena luz da presença, fora da galeria, nenhuma percepção nos
é dada, nem, certamente, prometidas. A galeria é o labirinto que compreende em
si suas saídas: nunca se cai ali como em um caso particular da experiência, aquele
que Husserl acreditava descrever então.
Então, resta falar, fazer ressoar a voz nos corredores, para suprir o brilho da
presença. O fonema, a akumene é o fenômeno do labirinto. Esse é o caso da
phonè. Elevando-se em direção ao sol da presença, ela é o caminho de Ícaro.
E, ao contrário do que a fenomenologia – que é sempre fenomenologia da
percepção – tentou nos fazer acreditar, ao contrário do que nosso desejo não pode
deixar de ser tentado a crer, a própria coisa se esquiva sempre [la chose même se
dérobe toujours].
237
234
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 115.
235
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 115.
236
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 115.
237
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, pp. 116-117. A questão do labirinto, dos “caminhos que se
bifurcam” vai retornar algumas vezes ao longo da tese.
117
e do signo
“Derrida não começou exatamente no começo, se considerarmos os começos
clássicos”
238
, diz Bennington em seu Jacques Derrida. Isto porque, de acordo
com a leitura do filósofo inglês, Derrida começa por um desvio, pelo signo, ou
melhor, por demorar-se na questão do signo, do signo como signo. Segundo esta
leitura, a filosofia não escaparia de modo algum deste “demorar-se”, em verdade,
ela não pode escapar, pois este é seu começo e, como se verá em Gramatologia, é
o que configura o começo sem começo da filosofia.
No entendimento do logos, o signo é sempre “signo-de”, ou seja, ele
“representa” a coisa em sua ausência, “toma seu lugar”, e só é compreendido em
relação a esta prioridade disto de que ele é signo-de, ou seja, desta falta. Na leitura
desconstrutiva, isto “significa” que o signo não significa, que não há signo nem a
coisa significada, e é nesta fenda que Derrida aponta a “desconstrução do signo”.
De início, o que não me parece muito controverso, “o signo deve tomar o lugar da
coisa na ausência desta, representá-la de longe, suficientemente separado dela
para ser seu delegado, mas ainda suficientemente ligado a ela para ser seu signo,
para só remeter, em princípio, a ela”
239
. Mas o que, então, seria esta “coisa” à
qual o signo “significaria”? Seguindo a terminologia saussuriana
240
, esta coisa
seria o “referente” ou o “significado” (“sentido”) e, assim, o signo remeteria ao
“conceito” (o “sentido”), que remete ao “mundo”, à “realidade”. Deste modo, a
função do signo é a de representar a coisa em sua falta, a coisa como referente,
como “realidade”, e não a coisa como “sentido”, sem o qual o signo não
funcionaria. E é por esta razão que para Saussure, em traços bem rasteiros (que
serão retomados mais à frente), o significante é inseparável do significado, mas
ambos separados do referente, distantes, melhor dizendo, pois deles nunca se
separam completamente, senão não seriam dele signo.
Signo, então, seria esta unidade entre significante e significado, sempre
separado e referido à “coisa mesma”. Estes signos, para Saussure, não são
“naturais”, mas instituídos, convencionados desde sempre, sem que se possa
apontar o momento desta “convenção” como origem. Bennington descreve a
238
BENNINGTON, G. Jacques Derrida, p. 26.
239
BENNINGTON, G. Jacques Derrida, p. 26.
240
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. São Paulo: Editora Cultrix, 1970.
118
estrutura do signo como uma “repartição tripartite (...) que toca pelos dois lados
um reino da materialidade”. Assim, estando “no meio”, o nível “ideal” ou
“conceitual” do sentido liga a “realidade” da coisa à “realidade” do fonema, tão
concreto como a coisa: a palavra ou um nome que nada mais seria que a
imperfeição, o desvio, o corpo fônico ou gráfico. Este lugar intermediário, de
médium entre a coisa e sua fonética ou sua grafia confere ao signo um lugar
extremamente privilegiado em qualquer “filosofia da linguagem”, no latu sensu
do termo. “O signo tem o privilégio e corre portanto todos os riscos – de religar os
dois mundos. Esteja ele a serviço da idealidade ou da materialidade, dos conceitos
ou das coisas, da theoria ou da praxis, o signo deve compor com o reino adverso”
241
. E isso, o que torna ainda mais interessante a teoria, sem poder se fazer uso do
referente, pois é necessário à “existência” do signo que a “coisa” não esteja
“presente” (como se alguma vez estivesse... Mas que se tente acompanhar o
pensamento metafísico da presença...). E se, como se viu, significado e
significante são indissociáveis, e que o significante é a “face material” do signo, é
apenas do significante que o signo pode “tirar sua identidade”
242
.
Ao ler este termo descrito por Bennington, imediatamente pulei da cadeira
e comecei a redigir uma nota de rodapé contra-argumentando a ineficácia e a
infelicidade de se falar desta “identidade” tirada do significante pelo signo. No
entanto, logo na página seguinte ele adverte sobre esta insuficiência, pois não se
pode cair na tentação de se pensar o significado como uma parte separável do
significante, nem reduzir, como fez Saussure, o significante a uma “imagem
acústica”. Como se verá logo em seguida, “o significado nada mais é do que um
significante posto em uma determinada relação com outros significantes”
243
. É
claro que, como em Husserl, se deve levar em consideração que este pensamento
já antecipa, certamente, um pensamento da différance, mas é justamente nas
brechas de Husserl, Saussure e Platão, entre muitos, que Derrida vai diferenciar
rastro de signo. Digo que isto já é antecipado por Saussure na medida em que em
sua teoria o significante nunca é tão-somente sensível, mesmo concebido
grafológica ou fonologicamente, já que a diferença entre as múltiplas unidades
241
BENNINGTON, G. Jacques Derrida, p. 30.
242
BENNINGTON, G. Jacques Derrida, p. 30.
243
BENNINGTON, G. Jacques Derrida, p. 31.
119
sensíveis não pode ser, ela mesma, sensível. E assim, o signo, mesmo como
significante, afasta-se ligeiramente de um ideal de presença. Para Bennington,
desde então, a matéria ou o tecido no qual, ao que parecia, os significados eram
de algum modo recortados, desaparece na definição essencial do signo, mesmo
em sua face significante. É o que arruína a tendência da lingüística em privilegiar
uma “substância de expressão” (a voz) em detrimento de uma outra (a escritura),
e esboça a desconstrução do fonocentrismo, prelúdio da desconstrução do
logocentrismo.
244
A questão é que em Saussure mantém-se de forma ainda muito enraizada a
questão do sentido, a um “algo” ao qual o significante aponta, ao “fora”. Derrida,
assim, parece, em um primeiro momento, apontar para um certo privilégio do
significante – e a completa ausência do “lugar” do significado, como em uma
estrutura onde houvesse apenas uma infinita remessa de significantes, sem que se
chegue nunca a um significado primeiro. Por mais que se assemelhe, neste caso, à
teoria da significação lacaniana, podemos dizer que em Lacan persiste, ainda que
sutilmente, um outro privilégio do significante, do significante fálico como
significante primeiro (ou seja, como origem). Para Derrida não. Este privilégio
dado ao significante logo solapa a própria noção de significante: “o significante
‘significante’ só significa na sua relação com (o significante) ‘significado’, que
ele coloca de antemão em posição de prioridade. ‘Significante’ e ‘significado’ se
entreimplicam, assim como eles implicam ‘signo’ e ‘referente’”
245
. E, como se
sabe, o ‘significado’ nada mais é que um ‘significante’ posto em uma certa
posição em uma certa cadeia de significantes, sem que haja alguma espécie de
“sentido”. Só há efeitos.
à escritura
A necessidade que Derrida apontará em Gramatologia de se buscar uma nova
maneira de expressar o que seria esta linguagem, de se falar uma (na verdade,
mais de uma) língua nova, e não apenas de substituir o significante “significante”
por outro significante que signifique a mesma coisa, é o que faz o filósofo romper
com a língua da metafísica e buscar novos termos, como, por exemplo, em
244
BENNINGTON, G. Jacques Derrida, p. 32.
245
BENNINGTON, G. Jacques Derrida, p. 34.
120
detrimento dos conceitos indica os quase-conceitos ou indecidíveis. Entretanto,
como adverti – e não é privilégio meu esta reivindicação –, não se trata de
abandonar a língua da metafísica em busca de uma língua originária, original, nem
fundamental; tampouco uma “nova” língua, uma língua do “fora”, mas de uma
língua sempre “estranha”, sempre “estrangeira”, uma língua que tenha na re-
significação, na re-marcação esta estranheidade.
No entanto, o que deve ser bem entendido é que de modo algum o trabalho
de Derrida pode ser compreendido, tal como adverte Bennington, “como uma
manipulação virtuosa e sofística de paradoxos e de jogos de palavras, que se
compraz maliciosamente em zombar de toda uma tradição metafísica” e que “leva
a um niilismo paralisante para o pensamento e a ação”, ou, na melhor das
hipóteses, como “uma prática ‘artista’ da filosofia e a um estetismo literário”
246
.
Contra esse tipo de leitura, Bennington afirma que Derrida é decisivamente um
filósofo. Ele, ou melhor, a desconstrução, opera com e nos conceitos herdados da
tradição – e é assim que o pensamento se dá, nesta repetição, nesta re-marca re-
significante que possibilita o novo, o acontecimento. E é neste sentido que Derrida
tenta recuperar a palavra escritura – um termo reprimido e rebaixado ao longo da
história da metafísica, sempre em nome de um ideal de “presença”. Assim, antes
de adentrar “propriamente”, no sentido fraco do termo, à gramatologia derridiana,
gostaria de me demorar um pouco nesta noção de escritura e, para isso, tomarei o
texto “Derrida e a escritura” de Paulo Cesar como pretexto.
Em uma nota
247
, Paulo Cesar diz que embora não sejam os únicos, há um
privilégio, nestes textos a que me dedico, a um debate com Husserl e Saussure – e
é por esta razão que tentarei pensar a escritura para alinhavar (out of joint) este
projeto desde sempre abandonado, mas que se apresenta ainda em forma de
projeto. Como se antecipou, escritura é o termo quase-equivalente ao que se
chama de “linguagem” ainda como uma “concepção tradicional de escritura”
como linguagem escrita, e isto se dá, de acordo com Paulo, segundo uma “lógica
da derivação” que se apresenta em dois momentos: 1. a um significado, não se
encontra apenas uma palavra a ele referida como seu significante, mas “uma
determinada palavra que, ao ser pronunciada, atua (...) como seu significante
246
BENNINGTON, G. Jacques Derrida, p. 38.
247
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 15 (nota 18).
121
maior ou mais importante
248
, pois devido ao fato de ser falada, esta palavra, na
estrutura de significação, estaria mais próxima do significado, quer dizer, da
origem, da presença do querer-dizer – a palavra deve expressar o significado; 2.
em um momento posterior, este “significante maior”, mais “importante” porque
falado, pode ser fixado em uma forma escrita – e assim “atuar como significante
secundário, já que é agora significante do significante mais importante”
249
. Disto
decorrerá a atribuição secundária à escritura que Derrida aponta em Gramatologia
e a indicação de sua periculosidade e de seu caráter suspeito, “já que, com o
surgimento de significantes escritos, o significado pode se propagar
indefinidamente, para além da presença e, portanto, da autoridade do querer-dizer
daquele que originalmente o proferiu”
250
.
Portanto, em Saussure, como ocorre em Husserl, e que na verdade ocorre
na estrutura geral da linguagem, a voz se encontra nesta estrutura de derivação
como “substância primeira” por sua proximidade com o significado. Isto ocasiona
uma espécie de “unidade” entre a voz e o sentido, entre phonè e logos o que, desta
maneira, constituiria a “essência da linguagem” – ocasionamento este que confere
à escrita um lugar diferente, estranho a esta unidade, sendo apenas sua
“representação exterior”: ou seja, signo do signo. Este privilégio da voz, tal como
se mostrou em Husserl, é inseparável do rebaixamento da escritura, que Derrida
aponta tanto em Saussure como desde Platão. Tal privilégio vai representar o
aspecto fonologocêntrico do pensamento, ao qual se acrescentará posteriormente
(já em “Violence et métaphysique”, sobre Lévinas, mas, sobretudo, mais adiante
ainda em A farmácia de Platão), o caráter inseparável de um falocentrismo, de
acordo com o qual “a voz da verdade é sempre a voz da lei, de Deus, do pai.
Virilidade essencial do logos metafísico”
251
. A ligação entre voz e sentido como
representação da verdade, portanto, está intrinsecamente ligada ao privilégio do
logos e do falo, sendo este centrismo que caracteriza a metafísica como uma
metafísica da presença, dualista e hierarquizante – por isso, sempre, em certo
sentido, moralista.
248
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 15.
249
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 16.
250
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 16.
251
DERRIDA, J. “Violence et métaphysique”, p. 228. Citado por Paulo Cesar Duque-estrada, no
referido artigo, que indica também a leitura de “Une philosophie ‘Unheimlich’”, em Lectures de
Derrida, de Sarah Kofman.
122
Contudo, o que Paulo Cesar aponta é que a escritura deve ser pensada
“para além da extensão da linguagem”, ou, em outros termos, segundo uma
“liberação da escritura” que não implique uma nova definição de escritura;
diversamente, “trata-se, isto sim, de uma efetiva afirmação dos próprios direitos
da escritura tal como a entendemos tradicionalmente. Em outros termos (...) trata-
se de uma positivação daqueles mesmos traços relativos à sua caracterização
tradicional”
252
. O que quer dizer que Derrida não pretende pensar a escritura
“fora” da definição tradicional de um “significante do significante”, mas pensar a
positividade desta “posição” na cadeia de significação e, mais ainda, da
inevitabilidade deste lugar de sempre estar diferido a algo: e tudo que resta é o
infinito remetimento de significantes a significantes, sem que se “chegue” ou se
“alcance” neste deferimento algum significado, muito menos a um significado
primeiro – o que Derrida chama de “jogo” e que, de acordo com Paulo Cesar,
permite situar este “cenário” que o filósofo começa a rascunhar em seu projeto
gramatológico para uma liberação da escritura.
Uma das “premissas” básicas desta “lógica” derridiana consiste no
apontamento da ausência do significado, de qualquer “significado transcendental”
ou “significado em si” que comporte em si a noção de uma verdade, de um
fundamento, de uma presença, de uma origem. A crítica maldosa ou equivocada
de que isto configuraria um relativismo, que se sustentaria na suposição de que
para o pensamento desconstrutivo nada tem sentido, logo tudo é possível,
naufraga na simples constatação de que não é o caso de que, não havendo
significado transcendental, não há sentido, mas sim de que a desconstrução sugere
uma lucidez (e eu creio ser este um dos termos mais cabíveis a este pensamento),
uma “permanente vigília” quanto à suposição de um sentido primeiro, desde
sempre presente e indene, auto-imune a qualquer contaminação, com seu lugar
fixo e bem determinado na cadeia de significação.
Neste ponto, parece que a noção de escritura confunde-se com o que se
viu antes em relação ao termo différance. Mas não se pode exagerar a ponto de
dizer que são intercambiáveis. Se o funcionamento do significante na cadeia de
significação não é mais o de estar referido ao significado, mas o de estar sempre
referido a outro significante, isto por si só, além de desarranjar a unidade do
252
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 18.
123
signo, sendo o significante, por definição, o que significa um significado, acaba
também por desestabilizar a própria noção de significante.
Deste modo, se não há significado em si, também não há significante em si, já
que este último só é o que é em função de um sistema de diferenças.
Evidentemente, já não se pode pensar aqui em um sistema de diferenças entre
coisas diferentes que, antes de serem confrontadas, já existiam em si mesmas,
como coisas presentes a si mesmas. O que é “primeiro” [e que Paulo me permita
colocar este seu termo entre aspas] não são as coisas em si (significantes ou
significados em si), mas sim uma diferencialidade, um sistema de diferenças
(segundo um determinado espaçamento entre as estruturas significantes que
organiza o sistema), mas também diferenças entre diferentes sistemas de
diferenças, proliferação da différance enquanto contínua produção, a um só
tempo, ativa e passiva de diferenças.
253
E, desta maneira, podemos pensar a escritura como este quase-sistema de
diferenças que seria solidificado pelo pensamento como cadeia de significação –
não pode haver cadeia na desconstrução se se pretende liberar a escritura; mas não
que não haja Lei; pelo contrário, há e deve haver lei, mas a lei deste encadeamento
que na verdade é um remetimento ou diferenciamento infinito, sem elos, sem
correntes, mas ligados desde sempre pelo espaçamento, pela rasura, pelas fendas
deste sistema. Deste modo, afasta-se de qualquer presença e se atenta aos efeitos
destes espaçamentos, destas faltas (que não chegam a ser uma ausência), em um
pensamento que pretende, então, assumir-se vigilante quanto a esta quase-
estrutura que foge à concepção binária presença/ausência. E “é a partir deste
sistema de diferenças que será tecida a idéia derridiana de escritura”, diz Paulo
[e o grifo é dele] e que Derrida se verá impelido a abandonar a terminologia
saussuriana e adotar, como se verá logo em seguida os termos grama ou rastro.
Ainda que Saussure tenha já abalado a metafísica tradicional da presença
(tanto por abalar a presença a si do significado, quando diz que o significado e o
significante são as duas faces de uma produção, como por abalar também o
suposto vínculo entre o significado e sua expressão fonética), ou seja, “não
obstante a sua contribuição crítica, Saussure não deixa de contribuir ao mesmo
tempo para uma confirmação da própria tradição metafísica”
254
. Mais uma vez,
como fez com Husserl, Derrida, por amor a Saussure, por ter sido ele, junto a
Husserl, um dos primeiros a, ainda que não pretendendo, apontar esta “alteridade”
253
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, pp. 19-20.
254
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 21.
124
intrínseca ao signo e, com isso, já comportar a própria desconstrução do signo,
pela necessidade mesma de dar prosseguimento, isto é, fazer justiça ao
movimento saussuriano, Derrida elenca os entraves que fincaram Saussure no solo
da metafísica. Quais sejam: 1. o dualismo interno do conceito de signo, em que o
significante continua de certo modo rebaixado ao significado, por ser sempre
substituível por outro possível significante e, como se viu, reproduzindo o sistema
platônico inteligível/sensível; 2. a anulação de seu próprio postulado sobre a
anterioridade do significante com relação à expressão fonética, findando por
privilegiar a fala e a ligação entre o pensamento e a voz; 3. a incapacidade de
deslocar a hierarquia que rebaixa o significante com relação ao significado,
decorrente da antes citada suposta ligação deste com a idealidade e daquele com a
empiricidade; e 4. um “exclusivismo” intrínseco ao conceito de signo, em que este
remete necessariamente a uma certa presença a si da voz e, portanto, de uma certa
subjetividade reguladora e ideal do âmbito empírico – o que caracterizaria
Saussure completamente dentro da metafísica etnocêntrica que tem sempre por
base a linguagem fonética, excluindo-se, assim, todas as outras formas de
escritura não-fonéticas, como, por exemplo, as hieroglíficas.
Deste modo, remetendo como exemplo fundamental ao projeto
gramatológico, Paulo Cesar mostra que desde a definição aristotélica de escritura
(que se encontra na afirmação de que “os sons emitidos pela voz são os símbolos
dos estados da alma, e as palavras escritas, os símbolos das palavras emitidas pela
voz”
255
) até a encontrada no Curso de lingüística geral (“língua e escritura são
dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o
primeiro”
256
), ou seja, o conceito tradicional de linguagem só se instaurou sob um
certo campo ou domínio, qual seja, o da escrita fonética. Como observa Paulo,
isto não vai desencadear em uma defesa da escritura oriental, como a egípcia ou a
chinesa (ou seja, de um “fora”) para corrigir o “erro” do pensamento ocidental;
antes disso, o intuito de Derrida é o de libertar a linguagem na afirmação da
trama diferencial que possibilita toda e qualquer estrutura de significação da
linguagem”
257
. É neste sentido (como já se apontou brevemente e como se verá
255
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 37 (citado por DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a
escritura”, p. 24).
256
SAUSSURE, F. Curso geral de lingüística, p. 34 (citado por DERRIDA, J. Gramatologia, p.
37 e retomado em DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 24. O grifo é de Derrida).
257
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 24.
125
mais detalhadamente logo em seguida) que Derrida decide abrir mão da noção de
signo, e conseqüentemente do par oposicional significante/significado, a fim de
adotar o quase-conceito rastro. Em termos mais diretos, se signo remete à
estrutura de significação da linguagem, rastro concerne à trama diferencial da
escritura (e, como se antecipou, esta opção por abandonar o léxico metafísico não
consiste apenas em uma mera renomeação do mesmo, mas sim no apontamento da
diferença). Assim, Derrida diz:
Seja na ordem do discurso falado ou do discurso escrito, nenhum elemento pode
funcionar como signo sem remeter a um outro elemento, o qual, ele próprio, não
está simplesmente presente. Esse encadeamento faz com que cada “elemento” –
fonema ou grafema – constitua-se a partir do rastro, que existe nele, dos outros
elementos da cadeia ou do sistema.
258
Mais uma vez antecipando, pode-se dizer que não existe o rastro e que ele
apenas produz efeitos e é, ele mesmo, um efeito também. Com isso, afasta-se
qualquer possibilidade de tentar se compreender o rastro de um modo ontológico
como algumas vezes já tentou se apontar, sobretudo nas análises rasteiras e mal-
intencionadas de Habermas em O discurso filosófico da modernidade, em que o
filósofo alemão, sem ao menos se dar ao “trabalho” de ler Derrida, atendo-se
apenas aos livros de Culler, sobretudo, de Paul de Mann e de Gasché, diz enxergar
certa ontologia na estrutura diferencial da escritura, tendo como exemplo este
movimento da différance
259
.
Agora, antes de adentrar gramatologia (e empreender a impossível tarefa
de tentar dar conta de sua primeira centena de páginas), cito algumas das
conclusões do artigo de Paulo Cesar, para facilitar o próximo, e talvez o mais
árido, percurso: não há essência do rastro, sendo ele apenas um efeito de um
sistema de diferenças; só há diferenças, ou seja, rastros de rastros, e esta
diferencialidade não se encontra em nenhum lugar determinado, seja ele empírico
ou transcendental; não há mais espaço neste pensamento para nenhuma
originalidade ou privilégio da consciência ou da voz, pois todo querer-dizer já está
sempre referido a um sistema diferencial, já é, ele próprio, um rastro e não é, de
258
DERRIDA, J. Posições, p. 32. Ligeiramente modificado e citado por DUQUE-ESTRADA, P.C.
“Derrida e a escritura”, p. 25.
259
Sobre isso, após sua leitura de Austin em “Assinatura acontecimento contexto”, Derrida é
atacado por Searle e a controvérsia produz Limited Inc. E é em algumas notas de rodapé desta obra
que Derrida vai apontar a má vontade de Habermas para com sua obra.
126
modo algum, uma presença a si; não se pode mais falar de um “dentro” ou um
“fora” da linguagem, pois estes termos nada mais são que rastros, sem identidade
a si e sempre dependendo um do outro para constituírem sua ilusória identidade.
Se, como se viu em A voz e o fenômeno, “a linguagem guarda a diferença que
guarda a linguagem”
260
, é porque as várias formas de linguagem tecem-se como
sistemas de rastros. Em outras palavras:
Significante do significante do significante do significante..., sistema diferencial
de rastros em que se configuram sistemas lingüísticos, com sua lógica interna,
suas referências e significados, a arqui-escritura ou simplesmente escritura,
conceito econômico de rastros, se emancipa e, como diz a Gramatologia,
“começa a ultrapassar a extensão da linguagem”.
261
epígrafe gramatológica
Gramatologia inicia por atestar certa “inadequação” do corrente conceito de
linguagem. Deste modo, as diversas correntes do pensamento contemporâneo ou
foram ou em certo momento se dedicaram a este tema, justamente por perceberem
que o próprio termo “linguagem” não dava mais conta do que pretendia
representar.
Sobre isso, o texto “Derrida e a escritura”, de Paulo Cesar Duque-Estrada,
apresenta esta “dinâmica própria” da desconstrução no que se refere ao conceito
quase-equivalente ao que se entende por linguagem: a escritura. Para Paulo Cesar,
Gramatologia consiste em uma espécie de “estratégia desconstrutiva” [o termo
utilizado por Paulo “desconstrucionista”, mas ele próprio me sugerira a troca por
desconstrutiva, já que a desconstrução não é nenhum movimento, nenhum
“desconstrucionismo” ou “desconstrutivismo”], uma estratégia geral do
pensamento de Derrida em que se podem entrever praticamente todos os aspectos
que futuramente ele desenvolveria. Assim, ao denunciar esta inadequação do
conceito de linguagem (e não criticar, pois como se pode deduzir, nenhum
conceito pode ser adequado, nem a verdade não pode ser pensada como adequatio
etc...), apresentando um quase-conceito, a escritura, Derrida não pretende que este
quase-conceito seja “adequado” àquilo que “linguagem” não dá mais conta, mas
260
DERRIDA, J. A voz e o fenômeno, p. 21.
261
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 26.
127
sim que “escritura” anuncie uma certa emancipação da necessidade de adequação
em nome de um fazer justiça a isso que excede a linguagem e que nunca será
adequado, em nenhuma das acepções deste termo. “Trata-se, precisamente”, diz
Paulo Cesar, “da emancipação da escritura que, até então, sempre fora
considerada como um domínio derivado, restrito, uma mera extensão ou simples
apêndice da linguagem”
262
. Citando JD, citado por PC:
[esta “emancipação da escritura” se dá] ... por um movimento lento cuja
necessidade mal se deixa perceber, tudo aquilo que – há pelo menos vinte séculos
– manifestava a tendência e conseguia finalmente resumir-se sob o nome de
linguagem começa a deixar-se deportar ou pelo menos resumir sob o nome de
escritura. Por uma necessidade que mal se deixa perceber, tudo se passa como se
– deixando de designar uma forma particular, derivada, auxiliar da linguagem em
geral (entendida como comunicação, relação, expressão, significação,
constituição do sentido do pensamento, etc.), deixando de designar a película
exterior, o duplo inconsistente de um significante maior, o significante do
significante – o conceito de escritura começava a ultrapassar a extensão da
linguagem”
263
.
E, deste modo, pensar a escritura como tema central de Gramatologia é uma das
chances que vejo de ser o menos violento possível com a obra derridiana
264
. Isto
porque este livro seja provavelmente o mais importante em uma an-arquitetura da
desconstrução – e, destarte, circunscrevê-lo em algumas poucas páginas talvez
seja mais impossível do que o que tento fazer com as outras obras (também de
impossível circunscrição). E é por esta razão que me aterei apenas à primeira parte
da obra, sobretudo aos dois primeiros capítulos, quais sejam, “O fim do livro e o
começo da escritura” e “Lingüística e Gramatologia”.
Pois bem: antes, a epígrafe. É quase obrigatório um começo crono-lógico
da leitura de Gramatologia, sobretudo porque, como disse, trata-se de um
“projeto”. E, assim, a epígrafe traceja o solo sob o qual Derrida empreenderá sua
desconstrução. Na curta epígrafe, Derrida apresenta três aspectos que, ao longo do
tempo, comandaram o conceito de escritura: etnocentrismo, falocentrismo e
logocentrismo, que reproduziriam o sistema fonocêntrico já denunciado em A
voz..., tomando Husserl como metonímia para o pensamento ocidental que Derrida
262
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 09.
263
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 08.
264
Uma das mais completas, senão a principal, introdução a esta obra foi feita por Gayatri Spivak
e consta na edição americana, Of Grammatology (SPIVAK, G. “Preface to Of Grammatology”,
Baltimore: John Hopkins University Press, 1976).
128
vem a chamar de “metafísica da presença”. Como se viu com relação à
fenomenologia no ensaio anterior, passando pela lingüística de Saussure nesta
obra, até a filosofia platônica, como mostrará A farmácia de Platão, Derrida
aproxima a noção de sentido (de verdade) da idéia de presença, o que traz consigo
o privilégio da voz, símbolo maior da plena presença (a si e aos outros). De
acordo com este esquema, a verdade (o sentido, o logos) seria anterior à expressão
fônica do sentido (a voz), que se seguiria pala expressão escrita. Deste modo, este
sistema ainda platônico, em que a escrita seria quase que uma cópia da cópia
(como o caso da arte na República), se reproduziria em toda a escrita fonética,
deixando a tentadora possibilidade de se pensar como em certas culturas de escrita
não-fonética, como no caso dos hieróglifos ou ideogramas, poderia haver um
certo abalo desta metafísica da presença, tipicamente ocidental – no entanto, sem
o intuito de querer apontar para um certo “fora” oriental, meu objetivo é pensar
como essa alteridade está encoberta na própria escrita ocidental, na língua da
filosofia, das ciências etc. Mas creio que isso se torna necessário devido à
crescente globalização (isto é, ocidentalização) do pensamento: segundo Derrida,
“o etnocentrismo mais original e mais poderoso, que hoje está em vias de se
impor ao planeta”
265
.
Esta imposição mundial da linguagem fonética comanda,
simultaneamente, três aspectos: 1. o conceito de escritura (que deveria ser
reduzido à mera reprodução de sons, ou seja, da pretensa verdade ou natureza); 2.
a história da metafísica (que atribui ao logos a origem da verdade em geral e que
conduz ao “rebaixamento da escritura e seu recalcamento fora da fala ‘plena’”
266
); e 3. o conceito de cientificidade da ciência (que continua sendo um conceito
dominado pela lógica e, portanto, um conceito filosófico). Mas é justamente neste
terceiro terreno, o das ciências, que Derrida vê um apontamento de um
movimento que põe em questão esta “verdade fonologocêntrica”: o pensamento
matemático, a psicanálise e a lingüística – e é a esta última que Derrida se
dedicará para tentar empreender sua gramatologia.
A definição do Littré para o verbete “gramatologia”, que, segundo os
tradutores brasileiros é retomado por Aurélio Buarque de Hollanda, é: “tratado das
265
Gramatologia, pp. 03-04.
266
Gramatologia, p. 04.
129
letras, do alfabeto, da silabação, da leitura e da escritura”
267
. Mas, para Derrida,
trata-se apenas de uma “ciência da escritura”, que visa a demonstrar os pequenos e
decisivos esforços já presentes no mundo para a liberação do conceito de escritura
de sua subordinação ao de fala. Para Derrida, “esta inadequação [do conceito de
linguagem] já se pusera em movimento desde sempre”
268
, ou seja, as coisas, os
discursos, a “linguagem”, as ciências se constroem desconstrutivamente, e,
portanto, não cabe ao filósofo “desconstruir”, mas apenas apontar esta fragilidade
dos constructos.
Pode-se entrever, aqui, o que seria, em termos desconstrutivos, a tarefa do
intelectual, este esforço discreto, disperso, mas decisivo:
Desejaríamos principalmente sugerir que, por mais necessária e fecunda que seja
a sua empresa, e ainda que, na melhor das hipóteses, ela superasse todos os
obstáculos técnicos e epistemológicos, todos os entraves teológicos e metafísicos
até agora a limitaram, uma tal ciência da escritura corre o risco de vir à luz como
tal e sob esse nome. De nunca poder definir a unidade de seu projeto e seu objeto.
De não poder escrever o discurso do seu método nem descrever os limites de seu
campo.
269
Ou seja, desde o início do projeto gramatológico, de sua epígrafe e de sua
anunciação como “ciência da escritura”, Derrida já levava em conta sua
impossibilidade. Mas, como antecipei, uma impossibilidade que exige uma
afirmatividade, uma ação, nem que seja a “simples” e limitada tarefa de apontar a
clausura do pensamento metafísico.
Derrida aqui faz questão de diferenciar clausura de fim, obviamente se
distanciando das “filosofias apocalípticas” de sua época (de tom quase-totalmente
francês) que teriam empreendido uma leitura modista e equivocada de Heidegger,
Nietzsche e Hegel
270
. E esta não-aposta em um fim, apenas vem reforçar o que
267
Ver nota 4 da edição brasileira, p. 05.
268
Gramatologia, p. 05.
269
Gramatologia, p. 05.
270
Com relação a Heidegger, gostaria de fazer algumas provocações sobre esta estranha herança.
Como se viu, em Posições, quando Henri Ronse pergunta a Derrida sobre a possibilidade de uma
superação da metafísica, Derrida responde: “Não há uma transgressão se por isso entendemos a
instalação pura e simples em um além da metafísica (...), de tal sorte que todo gesto transgressivo
volta a nos encerrar no interior da metafísica – precisamente por ela nos servir de apoio”
(DERRIDA, J. Posições, pp. 18-19). Assim, Derrida delimita sua distinção entre fim e clausura (e,
como pretendo mostrar, Heidegger falará de um acabamento (Vollendung) ou superação
(Überwindung) e Lévinas de uma substituição), ou seja, de uma outra forma de pensamento que
não aposte na ingênua e sedutora alusão a um “fora”. Em De um tom apocalíptico adotado
atualmente na filosofia, também se viu esta denúncia a seus contemporâneos: “O ocidente tem sido
dominado por um poderoso programa que era também um contrato não rescindível entre discursos
130
Derrida chama de uma “Necessidade” (infortunadamente aqui ainda com letra
maiúscula) desta gramatologia, que possibilitaria uma “abertura de campo que
regeu durante alguns milênios, sobretudo no Ocidente, a ponto de hoje nele poder
produzir sua deslocação e denunciar, por si mesma, seus limites”
271
. Entretanto,
esta “quase-ciência” requer uma “meditar paciente”, que é também uma
“investigação rigorosa” sobre o conceito de “escritura”.
Ou melhor ainda, nas palavras de Derrida que indicam o caminho errante
que se seguirá, um pensamento sempre por-vir, mas que também espelha
esperança ainda que se saiba inalcançável, e que já antecipa o teor ético da
desconstrução:
Talvez a meditação paciente e a investigação rigorosa em volta do que ainda se
denomina provisoriamente escritura, em vez de permanecerem aquém de uma
ciência da escritura ou de a repelirem por alguma reação obscurantista, deixando-
a – ao contrário – desenvolver sua positividade ao máximo de suas possibilidades,
sejam a errância de um pensamento fiel e atento ao mundo irredutivelmente por
vir que se anuncia no presente, para além da clausura do saber. (...) Para este
mundo por vir e para o que nele terá feito tremer os valores de signo, de fala e de
escritura, para aquilo que conduz aqui nosso futuro anterior, ainda não existe
epígrafe [grifos meus]
272
.
do fim. (...) É o fim da história, o fim da luta de classe, o fim da filosofia, a morte de Deus, o fim
das religiões, o fim do cristianismo e da moral (...) o fim do sujeito, o fim do homem, o fim do
Ocidente, o fim de Édipo, o fim do mundo (...) e também o fim da literatura, o fim da pintura, a
arte como coisa do passado, o fim da universidade, o fim do falocentrismo, o fim do
falogocentrismo” (DERRIDA, J. Op. Cit. 58-60). Não se apontou, naquele momento a escuta dos
ecos de Lévinas que, em seu Humanismo do Outro Homem, diz: “Fim do humanismo, da
metafísica – morte do homem, morte de Deus (ou morte a Deus!) idéias apocalípticas ou slogans
da alta sociedade intelectual. Como todas as manifestações do gosto - e dos desgostos -
parisienses, estas proposições impõem-se com a tirania da última moda, mas se colocam ao
alcance de todos os bolsos e degradam-se”? (Op. Cit. 109) Ou então quando se lê em O fim da
filosofia e a tarefa do pensamento Heidegger dizer que “Que dizemos nós quando falamos do fim
da Filosofia? Temos a tendência de compreender o fim de algo em sentido negativo como a pura
cessação, como a cessação de um processo, quando não como ruína e impotência. Pelo contrário,
quando falamos do fim da Filosofia queremos significar o acabamento da Metafísica. Acabamento
não quer dizer, no entanto, plenitude no sentido que a filosofia deveria ter atingido, com seu fim, a
suprema perfeição” (Op. Cit. 96)? Ou, mais ainda, quando em A superação da metafísica, o
filósofo alemão fala que “Trata-se de uma expressão [a superação da metafísica] que, a bem dizer,
provoca muitos mal-entendidos por não permitir que a experiência chegue ao fundo, somente a
partir do qual a história do ser entreabre seu vigor essencial. Este fundo é o acontecimento
apropriador em que o próprio ser se sustenta. A superação da metafísica não significa, de forma
alguma, a eliminação de uma disciplina do âmbito da ‘formação’ filosófica”; e conclui mais
adiante que “não devemos imaginar (...) que podemos ficar fora da metafísica. Depois da
superação, a metafísica não desaparece” (Op. Cit. 61). tal digressão visa apenas apontar que o
maior distanciamento que Derrida deseja empreender é, possivelmente, de seus contemporâneos
franceses. Sobre isso, sugiro a leitura de “The problem of closure in Heidegger and Derrida”, de
Simon Critchley (CRITCHLEY, S. The ethics of deconstruction: Derrida and Levinas. Indiana:
Purdue University Press, 1999).
271
Gramatologia, p. 06.
272
Gramatologia, p. 06.
131
programa gramatológico
“O fim do livro e o começo da escritura” é a parte de Gramatologia em que
Derrida apresenta o que é ainda chamado de um programa ou projeto para esta
ciência da escritura, ainda que já se apresente a noção de desconstrução não como
uma técnica, mas como algo que acontece.
O que o filósofo chama de o problema da linguagem diz respeito à questão
mesma, que não é apenas uma questão entre outras. Nos últimos séculos,
sobretudo na contemporaneidade, o abuso do termo “linguagem” e sua
conseqüente banalização são sintomas de que este conceito não consegue mais dar
conta de si mesmo, tendo como reação do pensamento o que Derrida chama de
uma “inflação” deste signo. Tudo é linguagem, diz-se, testemunhando sua
desvalorização: “a indolência do vocabulário, a tentação da sedução barata, o
abandono passivo à moda, a consciência de vanguarda, isto é, a ignorância”
273
. E
é nesta crise que o filósofo vê a “decadência” (entre muitas aspas) de uma época,
indica que a era da voz, da presença e da linguagem deve terminar.
Mas não que tal seja o desejo de Derrida, a época deve terminar pois ela já
comporta em si sua desconstrução, pois ela mesma, em nome dela, clama por sua
suplantação, por justiça ao que ela não dá conta. Para ele,
A linguagem mesma acha-se ameaçada em sua vida, desamparada, sem amarras
por não mais ter limites, devolvida à sua própria finidade [finitude] no momento
exato em que seus limites parecem apagar-se, no momento exato em que o
significado infinito que parecia excedê-la deixa de tranqüilizá-la a respeito de si
mesma, de contê-la e de cercá-la.
274
De fato, o que Derrida pretende demonstrar é que, neste momento, encontram-se
duas “feridas narcísicas” no conceito de linguagem: a primeira diz respeito ao seu
próprio objeto, que parecia se encontrar “fora” da linguagem e que agora não se
mostra senão como uma ilusão; a outra concerne à sua própria estrutura, ao
“conceito de linguagem”, que começa a entrar em colapso.
Tal é a razão que fará Derrida dedicar-se a rascunhar (no mesmo
movimento em que o rasura) um programa para uma gramatologia, repetindo uma
273
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 07.
274
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 07.
132
vez mais o filósofo, “por um movimento lento cuja Necessidade mal se deixa
perceber, tudo aquilo que (...) conseguia reunir-se sob o nome de linguagem
começa a deixar-se deportar ou pelo menos resumir sob o nome de escritura”
275
,
quase-conceito que, em todos os sentidos, compreende o conceito de linguagem. E
sem a presença (que na verdade é a presença plena) de um “significante maior”, e,
como vimos, apenas com a estrutura de significantes de significantes, sendo este
movimento mesmo de diferenciação sua origem, pressente-se, de acordo com
Derrida, que tal origem “arrebata-se e apaga-se a si mesma em sua própria
produção”
276
. Portanto, pode-se afirmar que, como origem an-árquica, a escritura
apresenta-se segundo uma história sem história, em que não há sentido ou
significado – e tal secundariedade que se creditava à escritura afeta desde sempre
a noção de sentido, contamina-a “desde o início do jogo
277
, pois não há
significado que escape a este jogo infinito de reenvios ou remetimentos. Pode-se
dizer que o programa de uma ciência do grama é um jogo, é o início de um jogo
que Derrida empreenderia ao longo de toda sua escritura – e que vou agora tentar
ilustrar.
o jogo
“O advento da escritura é o advento do jogo”
278
, diz Derrida, deste jogo que é,
justamente, o infinito jogo de significantes de significantes de significantes... que
se marcam como rastro. E tal jogo é o que se chama, por sinonímia de
desconstrução:
apagando o limite a partir do qual se acreditou poder regular a circulação dos
signos, arrastando consigo todos os significados tranqüilizantes, reduzindo todas
as praças-fortes, todos os abrigos do fora-de-jogo que vigiavam o campo da
linguagem. Isto equivale, com todo o rigor, a destruir o conceito de “signo” e toda
a sua lógica. Não é por acaso que esse transbordamento sobrevém no momento
em que a extensão do conceito de linguagem apaga todos os seus limites. Como
veremos: esse transbordamento e esse apagamento têm o mesmo sentido, são um
único e mesmo fenômeno.
279
275
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 08.
276
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 08.
277
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 08.
278
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 08.
279
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 08.
133
Este fenômeno nada mais é senão o movimento mesmo da escritura como arqui-
escritura ou como “escritura primeira”, levando em conta todas as ressalvas que já
se fez quanto ao uso dos termos “primeiro”, “original”, “fundamental” etc...
Pode-se tentar equacionar a terminologia derridiana, por enquanto, desta
maneira: o que antes se chamava linguagem e que não dá conta do que
“linguagem” quer dizer (o movimento sem fim e sem origem de remetimentos e
deferimentos) é agora nomeado “escritura”; o que antes se chamava signo, com o
fim da dualidade significante/significado, chama-se agora “rastro” ou “grama”; o
que antes seria pensado como um “princípio produtor de diferenças”, mas que
nada mais é que a diferencialidade mesma é a différance; e o pensamento que se
atenta a este jogo da linguagem que é a escritura é o que se chama previamente
“gramatologia”, sinônimo de “desconstrução”.
Em seu texto tão parafraseado, que utilizei como mote para penetrar o
universo gramatológico, Paulo Cesar optou justamente para encerrar dedicando
algumas palavras sobre o jogo como estratégia para se compreender o que seria a
“escritura” como abalo da onto-teologia e da metafísica da presença – e tal abalo
se dá na tentativa de não mais se pensar em termos de “ausência” ou “presença”,
mas como “rastros”. Assim, “não se trata de um jogo de presença e ausência, mas
sim de um jogo, ou melhor, de um conflito de rastros”
280
e o pensamento que se
pretende atento a esta impossibilidade, qual seja, a impossibilidade constitutiva de
se pensar norteada ou orientadamente, não pode ser mais um pensamento
orientado – e “isto impede que se pretenda realizar uma ‘teoria’ do jogo, deste
jogo aqui em questão, já que o que quer que se entenda, numa tal teoria, por
‘jogo’ já se inscreve, inevitavelmente no prévio jogo de rastros”. E, deste modo,
Não é mais possível pensar um lugar “fora” do jogo a partir do qual fosse
possível um conhecimento do mesmo e, portanto, um controle da circulação de
signos, dos sistemas de referência, da proliferação de discursos, da
diferencialidade de rastros, dos reenvios sem fim entre estruturas significantes,
enfim, da virulência da escritura.
281
Este imperativo desconstrutivo ordena-se frente à violência inerente que é
constituinte da própria linguagem (e que se atente ao fato de que o privilégio da
phoné e o conseqüente rebaixamento da escritura não é a única violência da
280
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 27.
281
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a escritura”, p. 28. Grifo meu.
134
linguagem: toda a sua arquitetura conceitual é por si só violenta). E, para que se
atente a este etnocentrismo lingüístico, que, como se verá mais à frente, constitui
também um humanismo lingüístico, torna-se necessário, e inevitável, um
pensamento que pense uma nova economia, bem diferente desta que dominou a
história do mundo e, mais que isso, determinou o que é a história, o que é o
mundo, o que está dentro e o que está fora da história, do mundo e da história do
mundo, ou seja, de todas as distinções metafísicas impostas pela aparentemente
ingênua e inconseqüente noção de linguagem.
Este pensamento não orientado, mas que é, sobretudo, um pensamento
atento, lúcido, reconhece que seu discurso não se dá na enunciação, mas no corte,
nas brechas de seu próprio discurso; é um pensamento lúcido também porque
reconhece que seu lugar não está nem dentro nem fora da linguagem, mas na
própria indecidibilidade de seu discurso; é um pensamento atento porque não se
inaugura na renúncia nem se atém apenas à denúncia, mas vê na linguagem
apenas um momento da escritura, um “modo essencial, mas determinado” e não
sua totalidade ou originalidade; e é também um pensamento quase-crítico, pois,
não obstante as reservas que fez e que fiz sobre os discursos apocalípticos e
niilistas dos quais Derrida definitivamente se afasta, ele parte desde sempre da
constatação de um fim: não de uma morte, pois já se sabe que em Derrida nada
morre, mas conserva-se sempre na estrutura de a vida / a morte ou semi-luto ou
sobrevida (que tratarei bem mais adiante quando abordar a tradução), mas de um
esgotamento – que vem a configurar a “morte do livro”.
Apesar das aparências, esta morte do livro anuncia, sem dúvida (e de uma certa
maneira desde sempre), apenas uma morte da fala (de uma fala que se pretende
plena) e uma nova mutação na história da escritura, na história como escritura.
(...) “Morte da fala” é aqui, sem dúvida, uma metáfora: antes de falar de
desaparecimento, deve-se pensar em uma nova situação da fala, em sua
subordinação numa estrutura cujo arconte ela não será mais.
282
Portanto, este outro pensamento demanda uma outra definição de linguagem, para
que se faça justiça a este inominável ao qual pretende se referir, por amor e, além
disso, por coerência. Deste modo, além de não orientado, vigilante, lúcido, a
desconstrução é um pensamento extremamente coerente, que leva a coerência ao
extremo, ao seu próprio limite. Se se toma por base o que se entende
282
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 10.
135
tradicionalmente por “linguagem”, entende-se por “escritura” isto e mais um algo,
que na verdade é o algo que nunca será compreendido pela linguagem, mas que o
pro-grama gramatológico pretende trazer para o pensamento. Contudo, para isso,
é necessário afastar-se de qualquer espécie de pensamento humanista, pois, como
se viu, se o ideal de presença e o privilégio da voz fazem parte da arquitetura etno-
fono-falo-logocêntrica, este mesmo ideal está sempre preso a um humanismo, seja
sob o modo de um antropocentrismo (a voz é sempre a voz humana) ou de um
subjetivismo (a voz da consciência, que é sempre uma consciência – ainda que
transcendental, absoluta, lógica ou mesmo ek-sistencial – referida ao homem, ao
subjectum ou Dasein), o que, no final das contas, dá no mesmo. Enfim:
Antes mesmo de ser determinado como humano (...) ou como a-humano, o grama
– ou o grafema – assim denominaria o elemento. Elemento sem simplicidade.
Elemento – quer seja entendido como o meio ou o átomo irredutível – da arqui-
síntese em geral, daquilo que deveríamos proibir-nos a nós mesmos de definir no
interior do sistema de oposições da metafísica, daquilo que portanto não
deveríamos nem mesmo denominar a experiência em geral, nem tampouco a
origem do sentido em geral.
283
exorbitâncias
É em Gramatologia também que se vê o primeiro rascunho/rasura para
“desconstrução”. Neste contexto de denúncia do privilégio da phonè, que é
também o privilégio do logos, Derrida expõe as “razões” que comandam a
desconstrução – e estas aspas indicam a necessidade de abandono desta palavra.
Segundo ele, a “racionalidade” que comanda a escritura “não é mais nascida de
um logos e inaugura a destruição, não a demolição, mas a de-sedimentação, a
desconstrução de todas as significações que brotam da significação de logos. Em
especial a significação de verdade
284
.
Todas estas significações que orbitam em torno de verdade (e que geram
todos os “centrismos” denunciados por Derrida) precisam ser ex-orbitados.
Precisam, em outras palavras, assumirem a estrutura da disseminação, como se
283
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 11. Como se vê, é impossível, nos termos da desconstrução, se
falar em sentido ou em experiência. Digo isto porque, uma vez mais, me surpreende a
incapacidade de leitura de alguns filósofos que vêem em Derrida qualquer aspecto ontológico. Não
há ontologia em Derrida; não há um algo definido ou não que é a différance; a différance não é
uma terceira instância das oposições binárias da metafísica, ela é apenas uma marca diferencial
que está presente em todas as oposições.
284
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 13.
136
verá ainda neste capítulo, precisam de um pensamento, nestes termos, exorbitante,
que ex-proprie toda possibilidade de órbita em torno de qualquer presença (seja a
verdade, a phonè, o logos, o homem etc.). E tal é a “razão” que faz com que
Derrida afirme que, neste sentido, o fonocentrismo se confunde com “a
determinação historial do sentido do ser em geral como presença
285
– o que, ao
contrário do que pode parecer, não significa abandonar a historicidade; ao
contrário, o que a desconstrução pretende mostrar é que, de certo modo, a filosofia
sempre suspendeu a história e buscou inaugurar uma nova época ainda não
propriamente pensada (o que teve seu ponto máximo não em Hegel, mas em
Heidegger). O que se pode fazer é entrever a clausura desta época, desta época da
qual se faz parte, à qual se pertence (ainda que “os movimentos da pertença ou da
não-pertença à época são por demais sutis”
286
), e manter-se vigilante com relação
a esta clausura, que, como se viu, já traz consigo seu próprio abalo.
Neste momento de Gramatologia, mais precisamente a partir do tópico “O
significante e a verdade”, começa-se a perceber melhor o que seria esta época do
logos que configuraria a história da metafísica da presença. A época do logos é a
época que rebaixou a escritura em detrimento do sentido da verdade representado
em primeiro grau pela voz e, segundo Derrida, “organizou-se e hierarquizou-se
numa história”
287
, a saber, a história da metafísica teológica fono-logocêntrica,
em que o edifício conceitual, desde Platão a Saussure, nunca fora abalado – ainda
que a lingüística de Saussure e Jakobson acredite que tenha rompido, por sua
cientificidade, com o pensamento metafísico, mas, para Derrida, ainda representa
a metafísica na sua totalidade”
288
. Mas porque “teológica”? Pois a tentativa de
manutenção, a todo custo, de um significado, de uma “essência”, de uma
“inteligibilidade pura”, traz consigo o remetimento inevitável ao logos absoluto,
ao verbo e à face de Deus.
Derrida objeta que não se trata de desfazer-se destas noções, “elas são
necessárias e, pelo menos hoje, para nós, nada mais é pensável sem elas”, mas se
trata de perceber que “o signo e a divindade têm o mesmo local e a mesma data de
nascimento”, e que, por isso, “a época do signo é essencialmente teológica”. O
que não quer dizer que ela já tem sua data de morte anunciada, seu “fim próximo”,
285
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 15.
286
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 15.
287
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 15.
288
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 16.
137
como diria Foucault. Talvez ela não termine nunca – e é Derrida quem frisa este
termo – mas “sua clausura histórica está desenhada”
289
. E é dentro desta clausura
que está a possibilidade de se pensar: a desconstrução não é um pensamento de
ruptura, mas sim de tensão, comportando ao mesmo tempo o duplo gesto de
ruptura e reinserção. A suspeição é assim lançada como um trabalho da
desconstrução, como seu “estilo”:
No interior da clausura, por um movimento oblíquo e sempre perigoso, que corre
permanentemente o risco de recair aquém daquilo que ele desconstrói, é preciso
cercar os conceitos críticos por um discurso prudente e minucioso, marcar as
condições, os meios e os limites da eficácia de tais conceitos, designar
rigorosamente a sua pertença à máquina que eles permitem desconstruir; e,
simultaneamente, a brecha por onde se deixa entrever, ainda inomeável, o brilho
do além-clausura.
290
Mas voltando à questão do significante, mais precisamente da
exterioridade do significante, Derrida mostra que mesmo em Saussure, assim
como em Husserl, esta alteridade estrutural (representada pela “exterioridade” ao
par voz-sentido) é inseparável da noção de signo, e, assim, fundamental à nossa
compreensão de linguagem. Notadamente, o filósofo quer deixar claro com isso
que de modo algum, com sua suspeição, se pretende livrar-se do signo ou jogar
fora toda uma época “passando para outra coisa”; ao invés disso, deve-se entender
“outramente” o que é “época” e sua clausura, sem que se caia em qualquer espécie
de relativismo. O que significa entender, ao longo disto que se chamou história da
metafísica da presença, que “tudo o que funciona como metáfora nestes discursos
[a escritura da verdade na alma, em Platão (Fedro, 278
a
), o livro da natureza e a
escritura de Deus medievais etc...] confirma o privilégio do logos e funda o
sentido ‘próprio’ dado então à escritura”
291
, qual seja, significante de significante,
significante rebaixado pelo distanciamento da verdade.
Como se viu, o que é rebaixado é o quase-originário, o que deveria, em
uma arquitetura clássica, anteceder aquilo do qual, de acordo com a tradição, é
derivado. Esta quase-anterioridade metafórica será mais adiante explorada, no
capítulo designado justamente à metáfora, mas há alguns aspectos que devo aqui
adiantar para evitar mal-entendidos. Derrida diz que “é claro que esta metáfora
289
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 16.
290
DERRIDA, J. Gramatologia, pp. 16-17.
291
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 18.
138
permanece enigmática e remete a um sentido ‘próprio’ da escritura como primeira
metáfora”
292
e estas aspas no termo que apontaria a uma “propriedade” da
escritura indicam justamente que a escritura seria uma espécie de
“metaforicidade”, e não uma metáfora original como em Nietzsche; ela é uma
referencialidade sempre aberta e sem origem. “Este sentido ‘próprio’”, prossegue,
“é ainda impensado...”. E deste modo, “não se trataria, portanto, de inverter o
sentido próprio e o sentido figurado, mas de determinar o sentido ‘próprio’ da
escritura como a metaforicidade mesma [grifo meu]”
293
.
Esta aposta na metaforicidade é a tentativa de apontar a esta origem (an-
árquica) que não se sustenta na verdade. É a tentativa de mostrar que a escritura
não pode ser compreendida, em nenhum dos sentidos deste termo: nem
apreendida, nem aprisionada, nem nada que signifique circunscrição, circuncisão,
castração etc. E, com isso, pode-se entender porque “o início da escritura” é “o
fim do livro”: se a escritura, antes, era compreendida sob a forma de uma
totalidade e de uma presença eterna, tal era a idéia do livro. No entanto, como diz
Derrida, “a idéia do livro, que remete sempre a uma totalidade natural, é
profundamente estranha [grifo meu] ao sentido de escritura”
294
, que, ao apontar
para este indizível que é referencialidade aberta, e que por isso não possibilita
nenhuma totalidade, remete a uma outra-origem, uma quase-origem
completamente outra que a do logos. Desta maneira, “se distinguimos o texto do
livro, diremos que a destruição do livro, tal como se anuncia hoje em todos os
domínios, desnuda a superfície do texto. Esta violência necessária responde a uma
violência que não foi menos necessária”
295
.
Parece inevitável que aqui, a escritura derridiana caminhe ao encontro do
pensamento de Nietzsche – e ainda que estes aspectos sejam retomados mais a
frente, não há como não abordá-los agora. Pensar contra o signo e em favor do
rastro, ainda que não nestes termos, talvez tenha sido uma das tarefas
nietzschianas. Isto porque o signo é sempre compreendido como uma unidade e
não como um rastro – e pode-se claramente ver um empreendimento nietzschiano
a fim de “libertar o significante de sua dependência ou de sua derivação com
referência ao logos e ao conceito conexo de verdade ou de significado primeiro,
292
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 18.
293
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 18.
294
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 22.
295
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 22.
139
em qualquer sentido em que seja entendido”
296
. Assim, se se pensar que o
essencial do significado é sua relação com a presença, com a proximidade do
logos como phonè, só se pode romper com esta idealidade presentificada se se
começar a pensar o signo como uma coisa (sob rasura) mal nomeada. E é neste
sentido que Nietzsche vai apresentar o texto como uma operação “originária” que
não possui compromisso com o sentido ou com a verdade, e que, sobretudo (para,
como propõe Derrida, “salvar Nietzsche de uma leitura de tipo heideggeriano”
297
), não se deixa compreender de modo ontológico, pois está para-além de
qualquer compreensão do Ser – e tal é sua força, ou, como previne Derrida, “é
impossível desconhecer mais a virulência do pensamento nietzschiano” se este for
inscrito ou descrito sob qualquer teor ontológico. Nietzsche possibilita o
arrombamento – a explosão necessária para que se entreveja a clausura; sem que
se instaure, como se verá em “Os fins do homem”, em um autismo da clausura,
como na ontologia heideggeriana, nem em um pensamento do fora, como a
filosofia francesa contemporânea.
Tal arrombamento só se dá, como se verá no capítulo sobre a metáfora,
pela questão do estilo. Não é um discurso contra a metafísica que vai arrombar a
clausura, pois todo discurso anti-metafísico é sempre metafísico, já que prossegue
falando o mesmo idioma da metafísica. Nietzsche não: ele cria uma nova língua e
escreve novos textos – e, com isso, exige novos leitores, como foi Derrida.
Seu texto reclama enfim um outro tipo de leitura, mais fiel a seu tipo de escritura:
Nietzsche escreveu o que escreveu. Escreveu que a escritura – e em primeiro
lugar a sua – não está originariamente sujeita ao logos e à verdade. E que esta
sujeição veio a ser no decorrer de uma época cujo sentido nos será necessário
desconstruir.
298
“fora”
A indicação primeira que deve vir à mente quando se fala, então, em uma
gramatologia, é a de que, a partir do quase-conceito de escritura, dever-se-ia
definir um campo gnosiológico ou epistemológico, como indica o sufixo “-logia”.
296
DERRIDA, J. Gramatologia, pp. 22-23.
297
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 23.
298
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 23-24, ligeiramente modificado. Mais à frente, Derrida vai
apontar a lingüística e a psicanálise como outros lugares em que atualmente este arrombamento
tem mais condições de desenvolver-se.
140
Tarefa, portanto, paradoxal, se se defendeu até agora que a escritura não se
sustenta sobre o logos. Mas, deste modo, como se pode pressupor que deva haver
“regras” ou “normas” para esta ciência da escritura? Parafraseando Paixões, em
que Derrida diz que se deve haver algum dever é o dever de não dever, pode-se
ensaiar que se há uma norma ou regra, esta, então, consistirá em não se ater a
normas ou regras; e, no entanto, esta é uma regra: “sua regra é que se conheça a
regra, sem nunca se ater a ela (...), em respeito a ela”
299
. Em nome da Lei da
escritura – que, como se verá bem adiante, consiste no “que haja lei” da Lei –
deve-se conhecer a lei, suas normas, as regras do jogo, mas sem a pressuposta
filiação partidária a essas regras, não por desrespeito ou falta de caráter; muito
pelo contrário, por respeito à Lei mesma da alteridade, do impossível, do Outro.
Como disse, a leitura de Gramatologia é bem complicada, pois Derrida
está ensaiando um projeto de antemão frustrado, fadado ao fracasso, e esta é sua
possibilidade de sucesso, este é o modo que Derrida encontrou para, ele próprio,
produzir seu arrombamento. O trecho abaixo é bem claro quanto a este paradoxal
– mas, sobretudo, lúcido – projeto:
Os movimentos de desconstrução não solicitam as estruturas do fora. Só são
possíveis e eficazes, só ajustam seus golpes se habitam estas estruturas. Se as
habitam de uma certa maneira, pois sempre se habita, e principalmente quando
nem se suspeita disso. Operando necessariamente do interior, emprestando da
estrutura antiga todos os recursos estratégicos e econômicos da subversão,
emprestando-os estruturalmente, isto é, sem poder isolar seus elementos e seus
átomos, o empreendimento da desconstrução é sempre, de um certo modo,
arrebatado pelo seu próprio trabalho. (...) Nenhum exercício está mais difundido
em nossos dias do que este, e deveria poder-se formalizar as suas regras.
300
Sempre se está, deste modo “dentro de”, e estando “dentro de” é que se pode
produzir o abalo ou o arrombamento. Deste modo, Derrida encontra-se “dentro
de” um projeto científico, portanto lógico. Isto o filósofo nunca negou; ao
contrário, sua crítica a pensamentos como o de Foucault partem justamente desta
pretensão de falar de um lugar “fora de”, como se se pudesse ingenuamente
abandonar um solo. Ao decidir-se por empreender uma gramatologia, o que
significa trazer o rastro para o pensamento, pensar o rastro “propriamente”,
299
DERRIDA, J. Paixões, pp. 14-15.
300
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 30.
141
Derrida inicia por abalar a própria “logia”, pois como se fundamentar uma ciência
disto que “antecede”, e por isso escapa desde sempre, a ciência?
O segundo capítulo de Gramatologia principia por afirmar que a própria
noção de ciência já nasceu de uma certa “época da escritura” e que, ao contrário
do que as “logias” pretendem, a escritura sempre fora a “condição de
possibilidade” da objetividade científica. Ou seja, “antes de ser seu objeto, a
escritura é a condição da episteme
301
(em termos mais atuais, poderia dizer que o
impossível é a condição de possibilidade de todo possível, que é a indizibilidade
da língua que possibilita a linguagem e que é a indecidibilidade dos conceitos que
possibilitam a filosofia). Além disso, deve-se atentar ao fato de que a própria
noção de “história” e de “historicidade”, que possibilitam que se pense em uma
história das ciências ou do pensamento, também são inseparáveis da escritura: do
mesmo modo, “antes de ser o objeto de uma história – de uma ciência histórica –
a escritura abre o campo da história – do devir histórico”
302
. Ciência estranha,
portanto: ciência que causa estranhamento a qualquer ciência positiva ou clássica,
que, ao contrário do que pretende Derrida, tratariam de reprimir esta espécie de
questão.
A ciência da escritura deveria, portanto, ir buscar seu objeto na raiz da
cientificidade. A história da escritura deveria voltar-se para a origem da
historicidade. Ciência da possibilidade da ciência? Ciência da ciência que não
mais teria a forma da lógica mas sim da gramática? História da possibilidade da
história que não mais seria uma arqueologia, uma filosofia da história ou uma
história da filosofia?
303
Deve-se, pois, pensar no abandono (assumido desde sempre) do projeto
gramatológico como um rompimento, por exemplo, mais especificamente, com o
projeto fenomenológico, mas mais em geral, com todo projeto científico. Sua
“ciência das ciências”, ao contrário de se tornar um pensamento lógico e
transcendental, visa a romper com a cientificidade em nome das metaforicidade
do pensamento: ao invés de uma arqueologia, uma an-arquia.
Contudo, isto não significa que o “gramatólogo” não deva se interrogar
mais sobre a origem; ao invés disto, ele deve constantemente perguntar-se pela
origem das coisas, dos conceitos, e, sobretudo, pela origem das origens, mas, sem
301
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 34.
302
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 34.
303
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 34.
142
a necessidade de encontrar respostas rapidamente, deve demorar-se nas questões,
deve manter as questões “propriamente” questionadas, questões de questões:
questões sem-resposta que (des)orientam o pensamento.
*
Uma das quase-questões diretrizes ou motes que Derrida toma para empreender
sua gramatologia diz respeito ao que sua “ciência” pode esperar como auxílio da
lingüística e, para isso, aproxima-se, como um exemplo privilegiado, do projeto
lingüístico de Ferdinand de Saussure (pois se sua “ciência das ciências” é a
gramatologia como ciência da escritura e a lingüística é a ciência da linguagem, é
forçoso que ambas tenham ao menos um ponto em comum: a relação estreita entre
escritura e linguagem). Alguma coisa já se antecipou deste debate, seja com
Husserl ou mesmo com Saussure, mas prefiro seguir a linha de exposição
derridiana para conseguir cumprir minha promessa de tentar dar conta deste
projeto e, assim, seguir o fio da meada, isto é, o fio de Ariadne.
Assim, que se relembrem aqui alguns aspectos: antes de mais nada, deve-
se atentar ao fato de que, tratando-se da lingüística de Saussure, “a cientificidade
desta ciência comumente é reconhecida devido ao seu fundamento fonológico
304
; além disso, ela determina a linguagem como uma unidade entre phonè, glossa
e logos (na qual haveria um “dentro” da linguagem plena em que a palavra seria
som e sentido e um “fora”, uma derivação que seria a escrita fonética, o “signo do
signo” como diziam Aristóteles, Rousseau e Hegel). Entretanto, Saussure, por
apresentar uma estrutura de pensamento completamente problemática com relação
à tradição, inscreve sua lingüística geral em uma contradição: contradição esta que
será interessante a Derrida e, mais precisamente, para o projeto gramatológico
antes mesmo de ser chamado “desconstrução”.
Se a escritura é um quase-conceito que comporta e ultrapassa em seu
transbordamento o conceito de linguagem, a gramatologia, do mesmo modo, é
uma quase-ciência que abrigará e buscará trabalhar o próprio transbordamento que
a lingüística geral de Saussure já comporta em si. E é isto que faz com que uma
gramatologia deva principiar-se por seguir “em Saussure esta tensão do gesto e do
304
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 35.
143
propósito”
305
, tensão intrínseca a uma ciência que se inaugura já tendo por certo a
função “estrita” e “derivada” da escritura. Uma função estrita porque “a língua
tem uma tradição oral independente da escritura”
306
e derivada por ter uma
função representativa exterior, gráfica, da unidade som-sentido (ou seja, um
significante do significante com um conseqüente posicionamento na cadeia de
significação mais afastado que o som do significado). Desta maneira, a lingüística
saussuriana, ao contrário do que deseja, aliás, bem ao contrário, não é de modo
algum uma lingüística geral, pois só concerne a um certo tipo de linguagem qual
seja, a escritura fonética. Mais ainda, ela toma esta estrutura, etnocentricamente,
como verdade para a escritura em geral.
Conseqüentemente, se antes se atentou ao fato de Saussure criar um
esquema em que há um “dentro” e um “fora” da linguagem, quando se lê que “o
objeto lingüístico não se define pela combinação da palavra escrita e da palavra
falada; esta última por si só constitui tal objeto
307
, conclui-se que à lingüística
só interessa o “dentro”, a unidade fonológica e glossemática do signo. E, assim, o
projeto saussuriano prossegue e realiza o projeto platônico-aristotélico de
hierarquização e denúncia do perigo da escritura, no qual a escritura “será o fora,
a representação exterior da linguagem e deste pensamento-som”
308
e em que é
necessário “crer que existe aqui um dentro da língua”
309
. Esta necessidade de
uma aposta ou de uma crença no dentro da língua surge exatamente para, de
início, aliviar as tensões do pensamento de Saussure, para tranqüilizá-lo com
relação a este “fora” perturbador. De acordo com Derrida, “a cientificidade da
lingüística tem, com efeito, como condição, que o campo lingüístico tenha
fronteiras rigorosas (...) e que, de uma certa maneira, sua estrutura seja fechada”
310
. E, com isso, ao propor a escritura como representação exterior da língua,
Saussure pretende que ela seja “por si, estranha ao sistema interno”
311
da língua –
e este estranhamento na língua deste “fora” que Saussure quer pasteurizar é
305
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 36.
306
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral, p. 35. Citado em DERRIDA, J. Gramatologia, p.
37.
307
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral, p. 34. Citado em DERRIDA, J. Gramatologia, p.
37. O grifo é de Derrida.
308
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 38.
309
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 40.
310
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 40.
311
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral, p. 33. Citado em DERRIDA, J. Gramatologia, pp.
40-41. O grifo é meu.
144
justamente, para Derrida, o que há na língua e não pode deixar de haver. É por
isso que Derrida se instaura na tensão do pensamento de Saussure, nestas brechas
em que ele aponta o que seria um quase-fundamento da desconstrução – neste
caso, o estranho – mas que depois Saussure termina por hierarquizar e
menosprezar isto que há de mais interessante na escritura.
A metafísica sempre apostou nestes pares binários que implicam inclusão e
exclusão, sempre buscou exorcizar os fantasmas e secar a umidade disto que é
desde sempre contaminado: “externo/interno, imagem/realidade,
representação/presença, tal é a velha grade a que está entregue o desejo de
desenhar o campo de uma ciência”
312
. E, com seu projeto científico, Saussure
termina por ser bem menos crítico e inquietante que Platão, por exemplo (como se
verá em A farmácia de Platão). Em sua tentativa de proteger a qualquer custo o
“dentro” da língua, Saussure acaba por desfazer-se, ou melhor, tentar desfazer-se,
desqualificando, isto que ele acredita “fora” da língua. Mas então por que razão
Saussure dedica-se a este “fora”? Para o lingüista, “conquanto a escritura seja, por
si, estranha ao sistema interno (...) cumpre reconhecer a utilidade, os defeitos e os
inconvenientes de tal processo”
313
– o que quer dizer que a escritura é um mal
necessário, uma exterioridade como a de qualquer ferramenta que é necessária,
mas que, neste caso, como se verá, pode apresentar-se extremamente “imperfeita”,
“tecnicamente perigosa” e “maléfica”.
Neste ponto, segundo a atitude tipicamente baconiana, inicia-se a denúncia
saussuriana da escritura no intuito de manter a “pureza” da língua da qual a
escritura, por ser exterior, seria a contaminação.
É que se trata, mais do que delinear, de proteger e mesmo restaurar o sistema
interno da língua na pureza de seu conceito contra a contaminação mais grave,
mais pérfida, mais permanente que não parou de ameaçá-lo, até mesmo alterá-lo,
no decorrer do que Saussure quer, de qualquer forma, considerar como uma
história externa, como uma série de acidentes afetando a língua, e lhe sobrevindo
do fora, no momento da “notação”
314
, como se a escritura começasse e terminasse
com a notação. O mal da escritura vem do fora (έξωθεν), já dizia o Fedro (275 a).
A contaminação pela escritura, seu efeito ou sua ameaça, são denunciados com
acentos de moralista e de pregador pelo lingüista genebrês.
315
312
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 41.
313
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 41.
314
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral, p. 34.
315
DERRIDA, J. Gramatologia, pp. 41-42, os grifos na última frase são meus.
145
Acentos moralistas e de pregador, exatamente como os exorcismos que denunciei
no primeiro capítulo, da moral pregadora que não suporta comportar em si a
indecidibilidade mesma e que, hipocritamente, transfere-a, ou melhor, contra-
transfere-a para o fora. E foi este “processo de heresia” que Derrida decide abrir
(em todos os sentidos da abertura) que me seduziu e ao qual tento nesta tese fazer
justiça – seguir este movimento “herético” que assume o “pecado da escritura”
316
como uma espécie de pecado original sim, mas sem nenhum pedido de
absolvição, sem mea culpas; como um pecado doloroso, também, mas não no
sentido do flagelo e sim de sua inevitabilidade, da possibilidade de apenas dizer
“sim” a ele: e “pecar”.
Mas, como disse Derrida, se Platão denunciou a escritura como artificial,
como uma violência em que um “fora” se introduz no “dentro”, Saussure vai bem
mais além, sustentando que a escritura consiste em um pecado (pois, se para Kant
e Malebranche o pecado seria uma “inversão das relações naturais entre alma e
corpo na paixão”, aqui retrataria “a inversão das relações naturais entre a fala e a
escritura”
317
– o que, para Derrida, não seria mera analogia, já que a letra e a
escritura sempre estariam ligadas à noção de corpo, de sensibilidade e de matéria.
Aliás, para Derrida, a própria hierarquização corpo/alma, bom como todas as
outras, surgem do problema mesmo do pensamento com a escritura, que
funcionaria como arque-metonímia de todas as exclusões, de tudo que se resolveu
crer “de fora”). Mas Saussure não pára por aí, ele segue dizendo que a escritura,
por ser matéria sensível e exterioridade artificial, não passa de uma vestimenta
pior ainda, uma travestimenta: “uma vestimenta de perversão, de desarranjo,
hábito de corrupção e de disfarce, máscara de festa que deve ser exorcizada, ou
seja, conjurada pela boa fala”
318
.
Desta forma, uma ciência positiva deveria preocupar-se em restaurar a
pureza da fala, rumo a uma origem anterior a esta história da queda que perverteu
a relação entre dentro e fora, em defesa do “liame natural, o único e verdadeiro, o
do som”
319
. Saussure, assim, acredita em uma natureza pervertida, invertida,
quando diz que “a imagem gráfica acaba por se impor à custa do som (...) e
316
Sobre isso ver GRENHA, T. “Herança e escritura em cena: Freud em Derrida”. Dissertação de
mestrado, PUC-Rio, 2004.
317
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 42.
318
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 43, grifos meus.
319
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral, p. 35.
146
inverte-se a relação natural”
320
. E esta inversão se daria segundo uma “inclinação
natural” à comodidade, à facilidade, que conduziria o homem a pecar, ou seja, à
apegar-se à materialidade.
Malebranche explicava o pecado original, pelo descuido, pela tentação de
facilidade e de preguiça, por este nada que foi a “distração” de Adão, único
culpado diante da inocência do verbo divino: este não exerceu nenhuma força,
nenhuma eficácia, pois não aconteceu nada. Aqui também [em Saussure], cedeu-
se à facilidade, que curiosamente, mas como sempre, está do lado do artifício
técnico e não na inclinação do movimento natural deste modo contrariado ou
desviado.
321
No caso de Saussure, ou talvez, em termos psicanalíticos, no “caso Saussure”, a
imagem gráfica representa a facilidade, mas, com isso, uma “natureza má” – posto
que superficial e factícia – frente à boa e bela natureza da phonè, que se liga
imediatamente ao logos: o “pensamento-som”.
A segunda parte da Gramatologia, que não tratarei nesta tese, abordará em
especial uma leitura deste movimento em Rousseau, em que há uma “ruptura com
a natureza”, uma “usurpação” do sentido primeiro da linguagem – sentido
primeiro este que, “naturalmente”, é a voz. E Derrida, como fez antes ressoar
Aristóteles e Platão, faz ressoar em Saussure a voz de Rousseau: se para o
lingüista, “a palavra escrita se mistura [quer dizer, contamina] tão facilmente com
a palavra falada de que é a imagem que acaba por usurpar-lhe o papel principal”
322
, para Rousseau “a escritura não é senão representação da fala; é esquisito
preocupar-se mais com a determinação da imagem do que com o objeto
323
. Mas
apesar de não poder me ocupar aqui de Rousseau, pode-se ver como Saussure dá
continuidade a uma tradição que se inicia em Platão e prossegue com Aristóteles,
Rousseau, Hegel e Husserl, mas como advertiu Derrida, de um modo excepcional
e muito mais refinado, de um lado; mas também muito mais grosseiro o moralista
de outro: a escritura é tratada como “promiscuidade perigosa”, “violência do
esquecimento”, “dissimulação da presença natural”, “tirania”, “perversão moral”,
“patologia”, “monstruosidade”, “catástrofe”, “usurpação” e “pecado”. Mas se
esquece que a origem está desde sempre perdida, que ela nunca esteve lá, que
320
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral, p. 35.
321
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 43.
322
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral, p. 34. Citado em DERRIDA, J. Gramatologia, p.
44. Os grifos são de Derrida.
323
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 44. Os grifos são de Derrida.
147
neste jogo da representação, o ponto de origem torna-se inalcançável. Há coisas,
águas e imagens, uma remessa infinita de uns aos outros, mas sem nascente. Não
há mais uma origem simples. Pois o que é refletido desdobra-se em si mesmo e
não só como adição a si de sua imagem. O reflexo, a imagem, o duplo desdobra o
que ele reduplica. A origem da especulação torna-se uma diferença. O que se
pode ver não é uno e a lei da adição da origem à sua representação, da coisa à sua
imagem, é que um mais um fazem pelo menos três.
324
É nesse sentido que a preocupação da desconstrução não pode se sustentar apenas
em inverter esta relação, em fazer a inversão da inversão ou desinvertê-la, como
que “inocentando a escritura” deste seu pecado. Como disse, ou como devo ao
menos ter dado a entender, a desconstrução é a assunção disto que é chamado de
“pecado” na tentativa de mostrar que esta violência da escritura não é a corruptora
de uma linguagem inocente e indefesa, mas em mostrar que “há uma violência
originária da escritura” e que “a ‘usurpação’ começou desde sempre”
325
.
Tais preconceitos fazem com que Saussure, neste ataque à escritura,
condene-a para fora de seu Curso. Ela não diz mais respeito à lingüística, mas à
gramática, dos quais Saussure fala com tom de deboche devido a esta obstinação
pela forma escrita que eles apresentariam
326
. Daí segue-se um rosário de
amaldiçoamentos e moralidades que Derrida faz questão de transcrever, mas que
não creio ser necessário aqui. O que me interessa nesta discussão é mostrar como
a “reação” de Derrida já está implícita no próprio movimento de Saussure: não é à
toa que, antes de iniciar suas análises, o lingüista se dedique ao esclarecimento
sobre esta perigosa deformação; para ele, é preciso, antes de qualquer coisa,
“desmontar a armadilha” na qual os gramáticos tendem a cair, em que “prefere-se
então o apoio, ainda que enganoso, da escritura”
327
, e, assim, poder seguir
tranqüilamente seu Curso. Para ele, preferir este apoio da escritura é o pecado, é a
facilidade de se ceder à paixão. Derrida frisa que é o apego à paixão da escritura
que Saussure vai criticar como moralista e “psicólogo de velhíssima tradição”, em
que a paixão é descrita como uma tirania, neste caso a “tirania da letra” que
traduziria a dominação do corpo sobre a alma em um “perverso culto da letra-
imagem” em vez de se erguer o altar ao verdadeiro Deus “pensamento-som”. E
324
DERRIDA, J. Gramatologia, pp. 44-45.
325
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 45.
326
Ver DERRIDA, J. Gramatologia, p. 44, nota 2.
327
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral, p. 42. Citado em DERRIDA, J. Gramatologia, p.
46.
148
esta “perversão do artifício engendra monstros. A escritura (...) participa da
monstruosidade. É um afastamento da natureza”
328
. E um pouco mais adiante, o
lingüista chegará a falar de um caráter por ser ocasional, acessório e auxiliar
com relação à fala – “parasitário” da escritura – e isto é o que irrita Saussure,
mostrando-se completamente alérgico à alteridade. E Derrida indaga-se: “e o que
é um parasita? E se a escritura fosse [e é] justamente o que nos obriga a
reconsiderar nossa lógica do parasita?”
329
– deixando já antecipar uma discussão
futura que ainda empreenderia com Austin e que é um dos temas abordados em
“Assinatura acontecimento contexto”, que será abordada no início do próximo
tópico.
Mas Derrida não pretende repreender ou reescrever a lingüística geral sem
um tom moralista, pois esta seria a atitude típica da filosofia, a de reescrever
continuamente a história da metafísica como se dela não se fizesse parte. A
desconstrução não pretende julgar as razões nem as entonações da lingüística
geral, mas apenas mostrar como que, em continuidade à tradição (da qual Derrida
faz parte e sem a qual ele não teria podido pensar o que pensou), mantém-se
sempre um certo “preconceito cego” – e é com relação a esta cegueira que Derrida
virá a se posicionar.
Preferiríamos colocar os limites [a limitação da lingüística saussuriana à fonética]
e os pressupostos [a metafísica da presença, fonocêntrica, logocêntrica etc...] do
que aqui parece óbvio e tem para nós as características e a validade da evidência.
Os limites já começaram a aparecer: por que um projeto de lingüística geral,
relativo ao sistema interno em geral da língua em geral, desenha os limites de
seu campo dele excluindo como exterioridade em geral, um sistema particular de
escritura [a escrita fonética], por importante que seja este, e, ainda que fosse de
fato universal?
E logo adiante, completa:
Declaração de princípio, voto piedoso e violência histórica de uma fala sonhando
sua plena presença a si, vivendo a si mesma como sua própria reassunção:
autodenominada linguagem, autoprodução da fala dita viva [à qual a
monstruosidade da escritura pode parecer comportar a morte e a desolação],
capaz, como dizia Sócrates, de se dar assistência a si mesma, logos que acredita
ser para si mesmo seu próprio pai, elevando-se assim acima do discurso escrito,
infans e enfermo por não poder responder quando é interrogado e que, tendo
“sempre necessidade da assistência de seu pai” (Fedro 275 d) deve pois ter
328
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 47.
329
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 66, grifo meu.
149
nascido de um corte e de uma extirpação primeiras, consagrando-o à errância, ao
cegamento e ao luto
330
.
E este discurso enfermo, que não pode responder, é o discurso que sempre
necessita de um outro que seja responsável e que, por conseguinte, responda por
ele. Como em Lévinas, a verdadeira alteridade é aquela que não responde e que,
por isso, convoca ao ato de responder-por exigido na responsabilidade
331
. Já o
outro discurso, o da violência não assumida, o da pretensa naturalidade ou pureza
só consegue se sustentar em um movimento de defesa que exige a expulsão do
outro – de seu outro, a escrita – lançando-o para o lugar do “fora”, que nada mais
é senão o lugar “abaixo”.
Entretanto, assim como Husserl, quando dá a entender que esta usurpação,
esta inversão não pode ser uma “aberração acidental”, Saussure aponta à crise do
sentido que marcaria o transbordamento do conceito de linguagem, sua
inadequação. Junto a Husserl, pode-se compreender que “a negatividade da crise
[da crise do logos] não é um simples acidente”
332
, mas, de modo sintético, uma
exigência da própria linguagem, de suas brechas e espaçamentos que são sempre
recalcados e expulsos para o fora-inventado. Mas a escritura está “dentro”, assim
como tudo está “dentro”; a escritura é esta ausência, e ela expressa estas brechas
que o discurso pretende amalgamar. Saussure quer evitar a virulência da escritura,
pois ele sabe o fato de que, por dentro, em seu âmago (se há dentro ou âmago), a
fala já está desde sempre contaminada por este vírus da depravação que é a
escritura, desde sempre pervertida, desde sempre monstruosa, sem nenhum
consolo ou porto-seguro que indique uma pura natureza ou presença a si da
verdade. Para Derrida, esta lingüística geral pretende apontar a deformação da fala
pela escritura – o que quer dizer denunciar o mal – e, ao mesmo tempo,
paradoxalmente, tentar provar que a língua falada independe da escritura, conferi-
la uma liberdade que sempre se soube inexistente. Mas tal contaminação já está
pressuposta desde sempre; a desconstrução já se encontra presente em seu
“interior”:
330
DERRIDA, J. Gramatologia, pp. 47-48.
331
Sobre isso, ver DERRIDA, J. Adeus a Emmanuel Lévinas. Ver também HADDOCK-LOBO, R.
“O adeus da desconstrução: alteridade, rastro, acolhimento”.
332
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 49.
150
A natureza é afetada – de fora – por uma perturbação que a modifica no seu
dentro, que a desnatura e obriga-a a afastar-se de si mesma. A natureza
desnaturando-se a si mesma, afastando-se de si mesma, acolhendo naturalmente
seu fora no seu dentro, é a catástrofe, evento natural que perturba a natureza, ou a
monstruosidade, afastamento natural da natureza.
333
Derrida acompanha até certo ponto as argumentações de Saussure. Ainda que veja
o importante passo que o lingüista deu em sua teoria do significante, ele adverte
quanto ao perigo do moralismo que acompanha sua teoria. Ou seja, Derrida
mostra a beleza daquilo que Saussure denuncia como monstruoso e catastrófico. E
é nesse sentido que posso admitir aqui que acompanho o mesmo movimento do
texto derridiano: ao ver a indicação da periculosidade do termo “úmido” por
Bacon (isto é, ao ler que o que necessita ser banido do vocabulário filosófico é
“tudo o que se expande facilmente em torno de outro corpo”; “tudo que é em si
mesmo indeterminável e não pode ter consistência”; “tudo o que facilmente cede
em todos os sentidos”; “tudo o que facilmente se divide e se dispersa”; “tudo o
que se une e se junta facilmente”; “tudo o que facilmente adere a outro corpo e
molha”; “tudo o que facilmente se reduz a líquido, se antes era sólido”
334
),
enxerguei nisto que é tido como nocivo ou danoso a estrutura mais “própria” do
pensamento.
E as questões prosseguem ao se indagar onde reside o mal da escritura?;
qual é seu caráter sacrílego?; porque esta beleza da anti-natureza, que na verdade
é quase uma arque-natureza, já que só há efeitos, portanto artifícios – e já que não
há o fogo do conhecimento, mas apenas os fogos artificiais; se não há a plena
presença a si da terra, nem a luz ativa, viva, do sol, mas talvez o úmido brilho,
também artificial, da lua –, porque tal beleza é vista como uma deformação? Por
fim, porque excluir a escritura do projeto lingüístico, destinando a ela um
“compartimento especial”, como se ela fosse – e é – infecciosa? Porque mantê-la
à distância?
As respostas a estas perguntas já se encontram desde o início colocadas,
não propriamente respondidas. Mas já se apontou o caráter sempre infeccioso do
pensamento, sempre úmido como o que se expande facilmente para outro corpo e
contamina-o, como disse Bacon – desejo de fixidez, de permanência e de duração.
333
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 50.
334
BACON, F. Novum Organum, pág. 30.
151
Todavia, o grande equívoco de Saussure não consiste nesta sua
moralidade. Na verdade, por mais que eu deva confessar o quanto fiquei chocado
com os termos que o lingüista designou à escritura – e a confessa revolta que me
tomou – sou obrigado a concordar com Derrida quando ele aponta que o erro de
Saussure está em descrever a escritura como representação de algo natural, de
uma coisa: a unidade do significante falado com o significado. “A escritura não é
signo do signo, a não ser que afirmemos, o que seria mais profundamente
verdadeiro, de todo signo”
335
. Como se viu, todo signo sempre remete a outro
signo e, desta maneira, todo signo é signo de signo. E, assim, o problema não está
fora, mas é constituinte do próprio discurso que o pretende extirpar – este é o
“errante proscrito da lingüística”:
É no sistema de língua associado à escritura fonético-alfabética que se produziu a
metafísica logocêntrica determinando o sentido do ser como presença. Este
logocentrismo, esta época da plena fala sempre colocou entre parênteses,
suspendeu, reprimiu, por razões essenciais, toda reflexão livre sobre a origem e o
estatuto da escritura. (...) Mas, inversamente, conforme anunciamos mais acima, é
justamente quando não lida expressamente com a escritura, justamente quando se
acreditou fechar o parêntese relativo a este problema, que Saussure libera o
campo de uma gramatologia geral. Que não somente não mais seria excluída da
lingüística geral, como também dominá-la-ia e nela a compreenderia.
336
“dentro”
“O fora é (“é”, sob rasura) o dentro”: assim se intitula a penúltima seção a ser
analisada de Gramatologia, já preparando para a conclusão da primeira parte que
tratará justamente da estrutura de “brisura” do pensamento. Se o tópico anterior
tratava da aparente oposição entre “fora” e “dentro” tal como indicada pela
tradição metafísica (científica, filosófica, lingüística...), agora Derrida pretende
apresentar a intrínseca relação entre dentro e fora, a co-pertença destes dois
“elementos” e a inevitável contaminação de um pelo outro, pois, como se acabou
de ver, o que é chamado “fora” já está desde sempre “dentro”, contaminando-o
desde sua origem sem-origem, como a contaminação constituinte de qualquer
conceito pela alteridade (creditada sempre como “exterioridade”). E é por esta
razão que a desconstrução não vem de “fora” para desconstruir os discursos, ela já
335
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 52.
336
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 53.
152
está instalada em seu seio – e o gesto de Derrida consiste em apenas (o que não é
nada simples) prestar atenção a esta “exterioridade” presente no interior dos textos
que ele lê, manter-se vigilante com relação a estes espaçamentos que todo
discurso possui, mas que pretende, de modo bem ou mal intencionado, esconder,
excluir, reprimir, recalcar ou mesmo forcluir. E é nesse sentido também que
Derrida diz que, em primeiro lugar, não há um “agente desconstrutor”, os próprios
discursos já comportam em si sua própria desconstrução, já pedem-na, na
verdade; além disso, é também por este motivo que Derrida diz que só se
desconstrói o que se ama, pois só se irá repousar (sem repouso), se demorar em
textos que se ama – e só por este amor se dá prosseguimento ao movimento de
desconstrução interna do texto, o que significa fazer justiça ao texto, ser infiel a
ele por fidelidade.
Assim, não seria estranho dizer que Derrida ama Saussure, que ama a
lingüística geral, senão não dedicaria a ela a maior parte de sua obra mais
importante E aqui arrisco dizer que talvez Derrida seja o filósofo que mais amou a
filosofia, e por isso a impossibilidade de se enclausurar no interior de seus textos,
que são sempre uma remessa infinita a outros textos e outros autores, sem uma
paragem e sem qualquer teleologia – e, talvez, mais ainda, o que mais amou o
pensamento, com o duplo gesto de gentileza e rigor, de dureza e cordialidade
inevitáveis em qualquer “amor louco”, que é o amor verdadeiro: Derrida amou
simplesmente; amava o amor e o apaixonamento, e não se deixava filiar, ou
melhor, casar, assumir um único parceiro e ser “feliz para sempre”. Este não é, de
modo algum o intuito da desconstrução: há heranças assim como há paixões; não
há filiação, um pai, um partido. Se a Lei é “que haja lei”, então o pai deve ser
sempre uma palavra plural e o par nunca é composto de dois, pois está desde
sempre contaminado pelo terceiro, como em Lévinas. Há parcerias, há encontros e
arrebatamentos por movimentos, que nunca se tornam pactos; existem contratos,
mas que já supõem desde sempre o perjúrio, a infidelidade e a “ingratidão exigida
por toda Obra” (este termo é de Lévinas). Derrida, assim, amou: uns mais, outros
menos, mas amou pensar e pensou por amor – a Heidegger, a Husserl, a Hegel, a
Nietzsche, a Lévinas, a Platão, entre tantos filósofos, mas do mesmo modo a
Freud e Lacan, a Artaud e Kafka, a Van Gogh e Borges, a Saussure. E é por este
amor a Saussure que Derrida tenta dar continuidade ao movimento de
desconstrução que a lingüística comporta. E, talvez, seja por este amor, por esta
153
paixão intensa, que alguns autores parecem conseguir tirar Derrida do sério: no
caso de Saussure, por exemplo (no caso de Saussure, no caso Saussure ou no seu
caso com Saussure), ao chamá-lo de moralista e pregador, o filósofo se mostra
obviamente “decepcionado” com o lingüista, com “o propósito declarado de
Saussure, quando ele expulsa a escritura para as trevas exteriores da linguagem”
337
como se se perguntasse: “ele escreveu o que escreveu, tão lindamente, seduziu-
me, e agora faz isso: exclui o que ele mesmo vislumbrou e o que me fez
apaixonar-me por ele?”. Mas não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que
Derrida se comportaria como o marido ou a mulher que fora traído; ele conhece
muito bem, talvez melhor que ninguém, a trama do pensamento que sempre se
funda neste recalque, nesta violência. Ele próprio, Derrida – seu pensamento e seu
nome próprio, que são inseparáveis – trai, perjura, dá a morte; mas, justamente
por saber disto, por tentar ao máximo manter esta vigilância que nunca será
perfeita, sem nunca desistir dela, a desconstrução tenta manter a sedução sedutora:
sem desvendar o mistério, sem que acabe a transferência; e mantendo-se o
segredo, preservando-o, faz-se justiça ao amor pelo amor, por amor.
E com (sua) relação a Saussure, isto fica bem claro quando Derrida alude à
“tese do arbitrário do signo”, que, delineada antes pelo lingüista, traria consigo a
impossibilidade mesma de distinguir entre signo lingüístico e signo gráfico, ainda
que para o lingüista esta teoria só se aplique à relação natural entre os
significantes fônicos e seus significados em geral. Para ele, a arbitrariedade do
signo referir-se-ia apenas à necessidade de relação entre significantes e
significados determinados, “no interior de uma relação pretensamente natural
entre a voz e o sentido em geral”
338
. No entanto, se se desfaz esta hierarquia
governada pelo “liame natural do som, rompe-se toda hierarquização de
significantes, e se se toma a noção de escritura como a duração mesma do signo, a
significação (ainda que in-significante) do signo, então o que se entende por
escritura passa a abarcar todos os campos dos signos lingüísticos, gráficos ou
fônicos. O que Derrida mostra é que a própria noção de “arbitrário do signo”,
ainda que circunscrita a uma especificidade, só é possível com e na escritura:
qualquer diferença, qualquer par oposicional só é pensável porque há diferenças,
ou melhor, há différance, a produção mesma de diferenças.
337
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 54.
338
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 54.
154
A idéia mesma de instituição [“em que se considera a totalidade dos signos
determinados, falados e a fortiori escritos, como instituições imotivadas”] – logo,
do arbitrário do signo – é impensável antes da possibilidade da escritura e fora de
seu horizonte. Isto é, simplesmente fora do próprio horizonte, fora do mundo
como espaço de inscrição [grifo meu, salientando que a escritura refere-se ao
“mundo” que é abertura à escritura], abertura para a emissão e distribuição
espacial dos signos, para o jogo regrado de suas diferenças, mesmo que fossem
fônicas.
339
Portanto, em um primeiro momento de seu pensamento, Derrida parece apresentar
a idéia de mundo como uma abertura espacial de significantes, significantes
“mundiais”, disseminados e de modo algum meramente humanos: há escritura,
independente do homem, há escritura entre os homens, mas entre os animais, e
entre os homens e os não humanos em geral (e Derrida vai porblematizar bastante
esta idéia de “animal”, como se houvesse um algo determinado que é o homem e
todo resto de existentes fossem sendo classificados com relação ao homem-
padrão, o que seria, por si só, uma redundância). Ao contrário do que sugerem
Descartes, Kant, Heidegger, Lacan e mesmo Lévinas, com suas noções de
“linguagem” (o que significa “linguagem humana”), a escritura rompe
completamente com o humanismo e irrompe como a quarta ferida narcísica do
pensamento.
Do mesmo modo que em Bacon, a exclusão saussuriana da escrita dá-se
por se pensá-la como “imagem” – logo, como os “ídolos”, eidola, que desde a
tradição hebraica devem ser destruídos, atestando cada vez mais o ideal de
presença como uma teologia, como uma proximidade divina da voz da alma e o
afastamento da imagem-corpo da escritura. Assim, definir a escritura como
“imagem” é, como imediata conseqüência, determinar sua exclusão – o que recai,
uma vez mais, sobre a não-aceitação da metaforicidade do pensamento, da
imagem como quase-fundamento para todo pensar. Por seu caráter “úmido”, a
escritura imagética vem justamente contaminar estas distinções epistemológicas e,
mais ainda, qualquer epistemologia: estes novos índices (rastro, escritura,
différance) oferecem “o meio seguro para encetar a desconstrução da totalidade
maior
340
, qual seja, a metafísica ocidental. E é por este motivo que “é preciso
agora pensar a escritura como ao mesmo tempo exterior à fala”, já que não se trata
339
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 54.
340
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 56.
155
mais de uma mera ilustração ou símbolo, e “mais interior à fala que já é sem si
mesma uma escritura”
341
, o que aponta de imediato à infinidade de remetimentos
da cadeia de significantes (como significantes de significantes de significantes...),
ou seja, à instância do rastro (ainda neste ponto nomeado “rastro instituído”).
Não se pode pensar o rastro instituído sem pensar a retenção da diferença numa
estrutura de remessa onde a diferença aparece como tal e permite desta forma
uma certa liberdade de variação entre os termos plenos. A ausência de um outro
aqui-agora, de um outro presente transcendental, de uma outra origem do mundo
manifestando-se como tal, apresentando-se como ausência irredutível na
presença do rastro, não é uma fórmula metafísica substituída por um conceito
científico da escritura. Esta fórmula, mais que a contestação da metafísica,
descreve a estrutura implicada pelo “arbitrário do signo”, desde que se pense a
sua possibilidade aquém da oposição derivada entre natureza e convenção,
símbolo e signo, etc. Estas oposições somente têm sentido a partir da
possibilidade do rastro. A “imotivação” do signo requer uma síntese em que o
totalmente outro [tout autre] anuncia-se como tal – sem nenhuma simplicidade,
sem nenhuma identidade, nenhuma semelhança ou continuidade – no que não é
ele. Anuncia-se como tal.
342
E conclui, com quase-definições:
O rastro, onde se imprime a relação ao outro, articula sua possibilidade sobre todo
o campo do ente, que a metafísica determinou como ente-presente a partir do
movimento escondido do rastro. É preciso pensar o rastro antes do ente. Mas o
movimento do rastro é necessariamente ocultado, produz-se como ocultação de
si. Quando o outro anuncia-se como tal, apresenta-se na dissimulação de si. (...) O
campo do ente, antes de ser determinado como campo de presença, estrutura-se
conforme as diversas possibilidades – genéticas e estruturais – do rastro.
343
Esta opção (sem escolha) por citar longamente o texto derridiano deu-se
em função de minha absoluta incapacidade de apreender o rastro tal como
descrito por Derrida. No capítulo sobre a alteridade esta discussão retornará e,
tomando Lévinas como ponto de apoio, provavelmente me sentirei mais seguro
em ensaiar mais linhas. Contudo, ao longo ainda da gramatologia, o rastro
“aparecerá” inúmeras vezes, pois, como se antecipou, o “grama” nada mais é que
um primeiro nome para “arqui-rastro” e “rastro”. Por conseguinte, seguindo a
linha de exposição derridiana exaustiva, conquanto precisamente citada acima,
esta “estrutura geral do rastro”, esta estrutura-sem-estrutura, já que o rastro é
341
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 56.
342
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 57, grifos meus.
343
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 57, grifo meu.
156
justamente o que desordena, desarranja, desestrutura estruturalmente, está
inseparavelmente ligada a três aspectos, ou melhor, três acontecimentos: a
estrutura da relação com o outro, o movimento da temporalização e a linguagem
como escritura. Entretanto, esta “estrutura” do rastro impede que se pense sua
“origem” em termos de “natureza” (e, muito menos em termos ontológicos,
teológicos, epistemológicos ou mesmo lógicos), pois sua chamada “imotivação”
está desde sempre “vindo a ser”. Daí o abandono do termo “rastro imotivado” e
sua simplificação como “rastro” que, mais que o rastro imotivado, seria a
“estrutura mesma” deste rastro. “Para dizer a verdade, não existe rastro imotivado:
o rastro é indefinidamente seu próprio vir-a-ser-imotivado”
344
.
*
A (não)estrutura “rastro” (e não digo mais “do rastro”) é, de acordo com esta
tríplice dimensão, da alteridade, da temporalidade e da metaforicidade, o que
configurará o “jogo dos significantes”, como já se mencionou, como o “jogo do
mundo”, em que mundo “representa” este infinito diferir da différance. A alusão a
Nietzsche reaparece em torno do termo jogo, ainda que de esguelha, mas se sabe
muito bem a importância do jogo para Nietzsche, herdeiro de Heráclito, no
sagrado dizer “sim” da criança. Tal tema, no entanto, será especialmente acurado
alguns capítulos à frente; não obstante, pode-se dizer que tal herança nietzschiana
é o que permite Derrida denominar o “jogo” como “a ausência do significado
transcendental como limitação do jogo, isto é, como abalamento da onto-teologia
e da metafísica da presença”
345
.
Este abalo, sendo um abalo “em”, faz crer que a escritura não pode ser
pensada como um jogo “de” linguagem, mas sim um jogo “na” linguagem, em
que o jogo disseminante está desde sempre instalado “no interior” disto que se
chama linguagem, mas que comporta bem mais do que diz ou que pensa (e
Derrida lembra que, no Fedro (277 e), Platão condenava a escritura justamente
por se tratar de um jogo – paidia – distinto da seriedade da fala). E, se como se
viu, o mundo nada mais é que a abertura à escritura, uma abertura à abertura, ao
incessante movimento de “estar-se sempre referido a”, este jogo que se viu antes
344
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 58.
345
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 61.
157
como o jogo dos significantes não pode ser pensado como mais um dos jogos
presentes no mundo, como se fosse mais um remetimento entre outros
remetimentos: o jogo ao qual Derrida alude é o “jogo do jogo”, a jogabilidade do
jogo. Derrida diz: “é pois o jogo do mundo que é preciso pensar primeiramente:
antes de tentar compreender todas as formas de jogo no mundo”
346
. O que quer
dizer que antes de se pensar as problemáticas das dualidades metafísicas e suas
hierarquizações (corpo/alma, sensível/inteligível, fora/dentro,
empírico/transcendental etc.) deve-se pensar o “princípio” destas, qual seja, o
rebaixamento da escritura desde o início do “jogo”, o jogo do “jogo metafísico”,
que nada mais é senão um jogo de cartas marcadas, em que cada elemento já tem
seu lugar bem delimitado e pretensamente muito fixo.
É por esta razão que uma gramatologia não pode sustentar-se no sentido de
reabilitar a escritura nem em um ideal de inversão, pois “o fonologismo não sofre
nenhuma objeção enquanto se conservam os conceitos correntes de fala e de
escritura que formam o tecido sólido de sua argumentação”
347
. De modo diverso,
é necessário para se pensar a desconstrução e este novo “conceito” de escritura
que a chamada linguagem original ou natural nunca tenha existido – e, mais ainda,
que ela nunca tenha sido desvirtuada, contaminada a posteriori, pois na realidade
nunca foi indene, pura, intacta antes de ser tocada e parasitada pela escritura. E
por um curto período, para diferenciar o seu “sentido” de escritura do tradicional,
Derrida optará pelo uso (logo depois abandonado) de arquiescritura, que “não
pode, nunca poderá ser reconhecida como objeto de uma ciência”. Assim, o
projeto de uma gramatologia traz consigo seu próprio desmoronamento (e neste
sentido pode-se mais uma vez louvar a coerência de Derrida em não cair nas
armadilhas que ele aponta nos textos que lê) devido ao fato de que este seu objeto
que não pode ser nunca objeto “é aquilo mesmo que não se pode deixar reduzir à
forma da presença
348
, que comanda toda objetividade e toda relação
gnosiológica, devendo-se aqui abrir, isto é, arrombar um novo domínio.
Neste momento, chega-se à definição de arquiescritura como o movimento
da différance, como uma espécie de “arqui-síntese irredutível abrindo ao mesmo
tempo [em] uma única e mesma possibilidade a temporalização, a relação ao outro
346
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 61.
347
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 69.
348
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 69.
158
e a linguagem” e que “não pode, enquanto condição de todo sistema lingüístico,
fazer parte do sistema lingüístico ele mesmo, ser situado como um objeto em seu
campo (o que não quer dizer que ela tenha um lugar real alhures, num outro sítio
determinável)”
349
. Ou seja, se antes, no tópico anterior, Derrida dedicara-se a
mostrar como o “fora” da linguagem encontrava-se na verdade em seu âmago,
desconstruindo assim a noção de “fora”, agora ele mostra que este “dentro
também é bastante complicado, pois não quer dizer “no interior de”, “contido
em”, mas que se sente seus efeitos “no” movimento da linguagem – “no” jogo
mesmo. A metafísica tem dificuldades – e creio eu que uma incapacidade – em
compreender porque, de acordo com Derrida, “o nome de escritura permanecia
neste X que se torna tão diferente do que sempre se denominou ‘escritura’”
350
.
Este é o “X” da questão que é tão fugidio, tão insuportável que a metafísica, para
manter-se propriamente viva tenta a todo custo abafar. Mas sabemos que ele
“está” lá, ainda que sob a forma de rastro, como a umidade que a filosofia tanto
renega, mas que a literatura parece admirar e desejar. Tal passagem de
Gramatologia fez-me pensar de imediato e novamente na Água Viva de Clarice
Lispector:
Tenho que interromper pra dizer que ‘X’ é o que existe dentro de mim. ‘X’ – eu
me banho nesse isto. É impronunciável. Tudo que não sei está em ‘X’. A morte? A
morte é ‘X’. Mas muita vida também pois a vida é impronunciável. (...) O instante
impronunciável. Uma sensibilidade outra que se apercebe de ‘X’.
351
Permito-me mais esta alusão à Clarice, pois a admiração de Derrida pela
literatura, como se verá, vem do fato de que ela assume que sua estrutura é
constituída pelo “como se”, admite e, mais ainda, opera em suas brechas; sabe que
o instante é impronunciável, mas que não é por isso que se deve parar, e que, pelo
contrário, é por isso mesmo que se deve escrever. Assim Derrida também pensa a
escritura, não só a sua, mas “a” escritura que acolhe todas as formas de escritura
“no mundo”: a literária, a científica, a filosófica etc.
Ainda além disto, esta “sensibilidade outra” que se apercebe da escritura
vai, tanto segundo Clarice como Derrida, levar a uma nova maneira de se pensar a
“experiência”. No entanto, de modo diverso a Clarice e a Guimarães Rosa, como
349
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 73.
350
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 74.
351
LISPECTOR, C. Água viva, pág. 73.
159
tentei apresentar brevemente nas noções de aprendizagem e de travessia, a
desconstrução deve prescindir de um ideal de presença ou de contato com as
“coisas mesmas”. Para Derrida o conceito de experiência é bastante
“embaraçoso”, e tal é o fato que o faz optar por utilizá-lo sob rasura.
“Experiência”, diz Derrida, “sempre designou a relação a uma presença, tenha ou
não esta relação a forma da consciência”
352
. Portanto, no campo da arquiescritura,
é necessário que isso seja pensado de outra forma que não a de uma “vivência”, de
um “contato”, de uma “visão” ou mesmo um “chamado”, mas, reaproximando de
Riobaldo e Lorelei, de uma certa aprendizagem e de um enveredamento: nos
termos derridianos, de um percurso; nos termos de Paulo Cesar, de trilhas
353
. Tal
rastreamento, destarte, nada mais é que uma certa experiência rasurada do rastro,
disto que não é presença nem ausência, mas que produz efeitos, que produz o
“próprio” jogo.
E mais uma vez, ao afastar-se de uma presença, afasta-se também de uma
certa compreensão de história, de uma nostalgia da origem:
O rastro não é somente a desaparição da origem, ele quer dizer aqui (...) que a
origem não desapareceu sequer, que ela jamais foi retroconstruída a não ser por
uma não-origem, o rastro, que se torna, assim, a origem da origem. Desde então,
para arrancar o conceito de rastro ao esquema clássico que o faria derivar de uma
presença ou de um não-rastro originário e que dele faria uma marca empírica, é
mais do que necessário falar de rastro originário ou arqui-rastro. E, no entanto,
sabemos que este conceito destrói seu nome e que, se tudo começa pelo rastro
acima de tudo não há rastro originário.
354
Desta maneira, enquanto se mantiver a noção de experiência atada a de presença,
jamais se conseguirá pensá-la sob o traço do rastro. E tal paragem é fundamental à
352
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 74.
353
Remeto aqui à primeira nota do texto “Alteridade, Violência e Justiça: Trilhas da
Desconstrução”, de Paulo Cesar Duque Estrada (em Desconstrução e ética: ecos de Jacques
Derrida. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004). Cito diretamente a passagem:
“Os termos ‘trilha’ e ‘trilhar’ comportam vários sentidos que, reunidos, podem prestar a uma
caracterização da condição intrínseca ao pensamento desconstrucionista. De acordo com o
Moderno Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, interessa-nos frisar, para trilha, os
seguintes sentidos: 1. ‘rasto ou vestígio que uma pessoa ou um animal deixa no lugar por onde
passa’; 2. ‘caminho, senda, trilho, vereda’; 3. ‘caminho a seguir’; 4. ‘exemplo, norma trilhada’; 5.
‘ato ou efeito de trilhar’; e, para trilhar: 1. ‘bater, pisar’; 2. ‘marcar com o trilho; percorrer
deixando assinalado por indicações, rastos, vestígios, etc.’; 3. ‘seguir (caminho, norma)’; 4. ‘abrir,
sulcar’; e 5. ‘contundir, magoar: ‘trilhar um pé’. ‘Trilhar o termo da vida’: estar em risco de
morrer. ‘Trilhar vereda’: fazer caminho’. De um modo oblíquo, que é o único possível aqui,
tentaremos situar esta condição de fazer caminho, de abrir trilhas para seguir na trilha, o que nunca
se faz sem correr riscos, como aquela em que sempre e já nos encontramos, qualquer que seja o
âmbito trilhado” (pág. 33).
354
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 75.
160
desconstrução, pois apenas deste modo pode-se pensar de outro modo a diferença:
a relação com o outro, a temporalidade e a escritura – e, neste sentido, o rastro é a
différance, “não é mais sensível que inteligível, e ela permite a articulação dos
signos entre si”
355
, permite, enfim, o jogo.
Tomadas estas precauções, deve-se reconhecer que é na zona específica desta
imprensão e deste rastro, na temporalização de um vivido que não é nem no
mundo nem num “outro mundo”, que não é mais sonoro que luminoso, não mais
no tempo que no espaço, que as diferenças aparecem entre os elementos ou,
melhor, produzem-nos, fazem-nos surgir como tais e constituem textos, cadeias e
sistemas de rastros. Estas cadeias e estes sistemas podem-se desenhar somente no
tecido deste rastro ou desta imprensão.
E conclui:
A diferença inaudita entre o aparecendo e o aparecer (...) é a condição de todas as
outras diferenças, de todos os outros rastros, e ela já é um rastro. (...) O rastro é
verdadeiramente a origem absoluta do sentido em geral. O que vem afirmar mais
uma vez, que não há origem absoluta do sentido em geral. (...) [e, por todos estes
motivos] nenhum conceito da metafísica pode descrevê-lo.
356
a “brisura”
De acordo com esta quase-lógica do rastro, este “indecidível” seria a possibilidade
de articulação entre o vivo e o não-vivo, entre o sensível e a idealidade, entre o
“mundo” e o “vivido”; ou seja, a possibilidade mesma de articular. Sem que se
busque fazer esta “experiência”, permanecer-se-á sempre preso a alguma
hierarquização, algum rebaixamento, alguma exclusão. É, deste modo, um quase-
conceito ético por excelência: só ele permite entrever o corte, a fenda que, na
realidade, é a escritura. E, como termina o segundo capítulo da Gramatologia,
este outro modo de articulação se dá sob a forma de uma “brisura”.
Em nota de rodapé, os tradutores brasileiros da obra Miriam Chnaiderman
e Renato Janine Ribeiro propõem a não tradução literal da palavra francesa
brisure”. Segundo eles, “como se vê da definição transcrita em epígrafe pelo
Autor [e eu não entendi o porque desta maiusculação], esta palavra possui um
355
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 77.
356
DERRIDA, J. Gramatologia, pp. 79-80.
161
duplo sentido, de que nem rotura nem juntura (alternativas estudadas, entre
outras) dariam conta”
357
. Reproduzo abaixo a epígrafe escolhida por Derrida:
Vós sonhastes, suponho, encontrar uma única palavra para designar a diferença e
a articulação. Folheando ao acaso o Robert, quiçá eu a encontrei, desde que se
jogue sobre a palavra, ou antes, que se indique o seu duplo sentido. Esta palavra é
rotura [brisure]: “– Parte fragmentada, quebrada. Cf. brecha, fratura, fenda,
fragmento. – Articulação por charneira de duas partes de uma obra de carpintaria,
de serraria. A rotura de uma veneziana. Cf. junta”. (Roger Laporte, Carta)
358
Como um dom, Roger Laporte aponta o sonho de encontrar esta palavra para
designar a diferença e a articulação, a junção na disjunção, e, desta maneira, a
palavra inexistente na língua portuguesa “brisura” é enxertada na desconstrução
(e, aliás, o enxerto é certamente uma das estruturas mais fundamentais ao
pensamento derridiano, como pode ver-se na seguinte passagem de “Il faut bien
manger”: “Eu lembro de passagem que a questão do enxerto em geral sempre foi
– e tematicamente desde o começo – essencial à desconstrução do
falogocentrismo”
359
). Por conseguinte, com este enxerto, posso principiar por
afirmar, já neste estágio de minha escrita, que aos que conhecem a obra derridiana
pode parecer familiar a afirmação de que esta se constitua justamente nestas e por
estar brisuras: se todo pensamento é um constructo, e por isso mesmo falível, a
Necessidade de uma desconstrução, como já se viu, encontra-se presente no
próprio corpo constituinte de qualquer pensamento, posto que ele é composto
também destas brechas, fragmentos e fraturas que nossos constructos pretendem
dissimuladamente amalgamar, não assumindo sua constituição por e nestas
brechas e apresentando uma falsa coesão, uma unidade ingênua ou maldosamente
proclamada. Deste modo, um pensamento vigilante – que não se pretende ingênuo
nem perigoso – deve assumir como sua estrutura mesma estas brisuras, deve
apontá-las, destacá-las e torná-las o motor mesmo de seu próprio constructo.
Mais que isso, a brisura assumida como elemento constituinte do
pensamento é uma chance de se escapar, ou ao menos enfraquecer o dualismo
metafísico. Vê-se isso, por exemplo, quando, em Gramatologia, o termo brisura é
introduzido como subtítulo do segundo capítulo, seguindo-se aos anteriores “o
357
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 80.
358
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 80.
359
DERRIDA, J. “Il faut bien manger ou le calcul du sujet”, in: Points de suspension. Paris:
Galilée, 1992, p. 298.
162
fora e o dentro” e “o fora é (sob rasura) o dentro”. Uma brisura é fora e dentro, e
nunca fora ou dentro, é presença e ausência, vida e morte etc. E não é por acaso
que nesta seção Derrida desenvolve o quase conceito “rastro”. A presença-
ausência do rastro é apresentada, justamente, através de uma brisura. Derrida diz
aproximar seu conceito de rastro do desenvolvido por Lévinas em “O rastro do
outro”, artigo que veio depois a compor sua obra Humanismo do outro homem e
que será estudada no primeiro capítulo da segunda parte. Mas que se tente
compreender, nas palavras de Derrida, a estrutura constituinte desta brisura: Tal
herança (dos então atuais escritos de Lévinas) compõe sua crítica à ontologia
heideggeriana, apresentando a relação com o terceiro como relação “à alteridade
de um passado que nunca foi e não pode nunca ser vivido na forma, originária ou
modificada, da presença”
360
. Entretanto, Derrida adverte que esta noção
colocada aqui, e não no pensamento de Lévinas, de acordo com uma intenção
heideggeriana (...) significa, por vezes para além do discurso heideggeriano, o
abalamento de uma ontologia que, em seu curso mais interior, determinou o
sentido do ser como presença e o sentido da linguagem como continuidade plena
da fala
361
.
Ou seja, a noção levinasiana, formulada contra Heidegger, é utilizada por Derrida
na perspectiva heideggeriana para que, assim, se ultrapasse o pensamento
heideggeriano e se faça de fato justiça a Levinas.
Interpretações errôneas desta estrutura derridiana têm dado margem a
inúmeros textos que se dedicam à proliferação de uma espécie de “picuinha
filosófica”, em que o autor apenas se dá ao trabalho de “colocar em um ringue” as
correntes filosóficas, apontando o que este disse daquele sem se posicionar frente
aos textos nem assumir seu próprio texto como parte desta “trama”. Um exemplo
atual desta atitude é o encontrado nos textos de Robert Bernasconi, em que o
“disse-me-disse” (dito desconstrucionista) não alcança, de modo algum, a
perspectiva ético-política que diz apresentar
362
. E se há algo que Derrida herda de
360
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 86.
361
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 86.
362
Entre alguns exemplos, em que isso parece bem mais sutil, saliento “Seeing double:
Destruktion and Deconstruction” em que o autor citado tece uma querela entre Derrida, Gadamer,
Heidegger e Nietzsche, mostrando como cada um mal-compreendeu o outro, aproximando-se de
uma Soap opera no melhor estilo americano (BERNASCONI, R. “Seeing double: Destruktion
and Deconstruction”, in: MICHELFELDER, D.P., PALMER, R.E. Dialogue and Deconstruction:
the Gadamer-Derrida encounter. New York: SUNY Press, 1989).
163
Nietzsche é seu martelo. Pensar, para Derrida, é tomar posições e, nesse sentido,
também para ele não haveria saber desinteressado. Mais ainda, como Nietzsche, o
saber que se diz desinteressado é o mais perigoso, mais violento. Isso é o que leva
Derrida a afirmar que “todo e qualquer colóquio filosófico tem necessariamente
uma significação política”
363
. Assim, o caráter “político” da brisura consiste em
não se encerrar em uma exegese cega de textos, formando os chamados
especialistas, nem ficar “de fora” atirando pedras na tradição: nem autismo, nem
um sádico voyeurismo.
Neste ponto parece-se tangenciar uma das brisuras fundamentais da
desconstrução (se é que se pode assumir qualquer caráter de fundamentalismo no
pensamento derridiano). De qualquer forma, esta brisura especial envolve os
nomes próprios de Nietzsche e Heidegger e diz respeito às estratégias do
pensamento com relação à tradição filosófica. E é a ela que se tomará como
metonímia para entendermos a própria “brisuridade” do pensamento.
Muitas são as influências nietzschianas da desconstrução, tantas que
sequer cabe, aqui, nomear, como me indicou a atenciosa amiga e cuidadosa leitora
Mônica Cragnolini. Exemplos disso encontram-se tanto em pesquisas que visam a
ressaltar certo caráter “negativo” no pensamento de Derrida como em leituras que
preferem salientar a estilística nietzschiana que Derrida teria herdado. Não
podendo aprofundar aqui esse aspecto, toma-se por pressuposto que estas análises
desenvolvidas por Derrida, sobretudo em Éperons, os estilos de Nietzsche,
também se encontram ainda em germe nos dois textos de que ecoarão agora:
Gramatologia e “Os fins do homem”.
*
Ressoando o que se falou da metaforicidade mesma em Gramatologia, também
“Os fins do homem”, em sua conclusão, ao apontar para a mudança de terreno
que se mostra necessária, Derrida diz: “porque é de uma mudança de ‘estilo’,
dizia-o Nietzsche, que nós talvez necessitemos; e se há estilo, Nietzsche no-lo
recordou, ele só pode ser plural”
364
. Metaforicidade mesma e mudança de estilo:
temas que Derrida desenvolveria posteriormente, mas que já se mostravam
363
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 178.
364
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 177.
164
fundamentais aos escritos derridianos da década de sessenta. Temas que
poderiam, de certa forma, classificar Derrida como um nietzschiano. E talvez ele o
tenha sido, talvez o maior nietzschiano de todos seus contemporâneos – menos
por ser um leitor de Nietszche, ou um especialista, mas mais por assumir em seu
pensamento a infidelidade que a obra nietzschiana comanda. Se Nietzsche
afirmara não querer seguidores, é na infidelidade que se faz justiça. E em uma
infidelidade por amor e não por um mero desejo parricida. Como se afirmou
antes, o caráter político da brisura consiste na única forma de se conseguir fazer
justiça às coisas, aos autores e à tradição que se herda e a que se ama. Dar
continuidade ao projeto nietzschiano, assim, consiste em ser e não ser fiel a
Nietzsche, ou como definiu Derrida, em “Os fins do homem”, “significa dizer que
é necessário falar várias línguas e produzir vários textos simultaneamente”
365
.
Aqui, de fato, alcança-se a brisura, pois Derrida, logo após esta explicação,
retoma a já mencionada necessidade de uma mudança de terreno. Mas dois anos
antes, pois “Os fins do homem” data de 1968 e Gramatologia de 1966, Derrida já
antecipava o enigma que envolve os nomes de Nietzsche e Heidegger. Além de
atribuir a Nietzsche a radicalidade de uma nova concepção de diferença, Derrida
diz que
Nietzsche, longe de permanecer simplesmente (junto a Hegel e como desejaria
Heidegger) na metafísica, teria contribuído para libertar o significante de sua
dependência ou de sua derivação com referência ao logos e ao conceito conexo de
verdade ou de significado primeiro
366
.
Também neste momento, como em alguns outros, Derrida busca “salvar Nietzsche
de uma leitura do tipo heideggeriano”
367
em que se insistiria somente em uma
inversão da metafísica. Derrida – e neste empreendimento não pareço me cansar
em unir-me a ele – aposta no deslocamento que o pensamento nietzschiano pode
provocar. Mais que inverter, é preciso que se mude de terreno, que se transvalore,
como se viu
368
. Para isso, entretanto, para tal deslocamento, a inversão passa a ser
um primeiro momento necessário. Antes de se deslocar a discussão para outro
365
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176. Todos estes aspectos concernentes à estilística, à
linguagem e à metaforicidade serão retomados cuidadosamente nos capítulos da segunda parte, nos
quais Nietzsche já promete ser um dos grandes interlocutores.
366
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 22-23.
367
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 23.
368
Sobre isso, ver a definição de Roberto Machado para a transvaloração de todos os valores
apresentada na página 18.
165
nível (para-além da metafísica ou para uma outra metafísica, nesse caso mais
enfraquecida), é necessário que se denuncie o pólo vigente: seja como fez
Nietzsche, na denúncia da razão, no desprezo ao espírito, para que se afirmasse as
entranhas e o desejo, seja na denúncia derridiana de um falo-fono-etno-
logocentrismo.
Apesar de algumas leituras nietzschianas darem realmente margem à
crítica heideggeriana (o que se discutirá logo em seguida), uma leitura justa de
Nietzsche não o colocaria de modo algum nesse lugar. Se a leitura de Heidegger é
arbitrária e injusta, as respostas a ela também são: o estilo, como disse Derrida,
“que domina atualmente na França” da década de sessenta
369
também teria seus
grandes riscos. Alguns elementos aqui parecem compor nosso enigma: Nietzsche
é um pensador da diferença e Derrida herda dele a necessidade de deslocamento,
que, como se mostrou, pode ser atribuída a uma nova estilística e a assunção da
linguagem como metaforicidade; mas a noção derridiana de différance, como
sabemos, é herdeira da diferença ontológica de Heidegger (pois foi a partir da
distinção entre o Ser e os entes que Derrida desenvolveu sua noção disto que seria
como que uma infinita diferencialidade). E aqui temos o impasse: situando-se na
França, numa época em que o pensamento heideggeriano e o nietzschiano
pareciam não se tocar de modo algum, como Derrida localizar-se-ia nessa brisura?
Uma das críticas que muito se fez a Derrida (sobretudo Luc Ferri e Alain
Renault) foi a de que ele seria apenas um heideggeriano com estilo (Derrida =
Heidegger + estilo de Derrida
370
), e isso se deve em muito, em um tempo em que
se evitava ler Heidegger na França, ao fato de Derrida afirmar que é graças a este
pensamento, o de Heidegger, “que, mais tarde, poderemos tentar fazer
comunicarem-se a différance e a escritura”
371
. Aqui, contra Nietzsche lido como
um “pensador do fora”, Derrida diz: “a hesitação destes pensamentos (aqui, os de
Nietzsche e Heidegger) não é uma incoerência. (...) Os movimentos de
desconstrução não solicitam as estruturas do fora. Só são possíveis e eficazes, só
ajustam seus golpes se habitam estas estruturas”
372
. E talvez aqui se localize a
mais radical crítica de Derrida a certas leituras empreendidas por seus
contemporâneos franceses: para Derrida não há o fora, sempre se habita estas
369
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
370
FERRY, L., RENAULT, A. O pensamento 68. São Paulo: Ensaio, 1988.
371
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 30.
372
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 30.
166
estruturas da metafísica, principalmente quando nem se suspeita disso. Desta
forma, este empreendimento da desconstrução, que é heideggeriano e é
nietzschiano ao mesmo tempo em que se mostra como uma crítica a Heidegger e
Nietzsche, funciona “operando necessariamente do interior, emprestando da
estrutura antiga todos os recursos estratégicos e econômicos da subversão,
emprestando-os estruturalmente, isto é, sem poder isolar seus elementos e seus
átomos”
373
.
Em “Os fins do homem”, este trabalho de estilo heideggeriano-
nietzschiano fica mais claro. Ao falar do padrão estratégico assumido por seu
pensamento, Derrida assume esta brisura:
um abalo radical só pode provir de um certo fora (...). Mas a ‘lógica’ de toda a
relação com o fora é muito complexa e surpreendente (...). Tendo em conta estes
efeitos do sistema, não resta mais, do dentro onde ‘nós somos’ [ou estamos], do
que a escolha entre duas estratégias
374
.
Derrida define então a primeira estratégia como uma abordagem tipicamente
heideggeriana. Esta se consistiria em “tentar a saída e a desconstrução sem mudar
de terreno, repetindo o implícito dos conceitos fundadores e a problemática
original, utilizando contra o edifício os instrumentos ou as pedras disponíveis na
casa”
375
. Há, contudo, um risco: assim, pode-se confirmar, consolidar ou superar
continuamente “numa profundidade sempre mais segura” o que se pretende
destruir. Derrida afirma que “a explicitação contínua em direção à abertura corre o
risco de se afundar no autismo da clausura”
376
.
Por outro lado, a outra estratégia, de estilo dominante na França de sua
época, seria herdeira de uma postura nietzschiana (e cabe aqui ressaltar que
Derrida em nenhum momento se refere a uma postura de Nietzsche, mas aponta a
leituras de seus contemporâneos franceses, justamente porque, e antecipo a
hipótese, a postura nietzschiana, na leitura de Derrida, seria justamente a de
permanecer na brisura, provocando assim o deslocamento e não apenas a inversão,
assumindo este lugar que não é fora nem dentro porque é fora e dentro). Tal
empreendimento contemporâneo francês, então, consistiria em “mudar de terreno,
373
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 30.
374
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
375
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
376
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
167
de maneira descontínua e irruptiva, instalando-se brutalmente fora e afirmando as
rupturas e as diferenças absolutas. (...) Habitando mais ingenuamente, mais
estreitamente do que nunca, o dentro do qual se deseja desertar”
377
.
Se a desconstrução heideggeriana, a que desconstrói no aprofundamento,
conduz o pensamento ao “autismo da clausura”, a desconstrução francesa
contemporânea conduziria a uma cegueira. É claro, para Derrida, que “a simples
prática da língua reinstala continuamente o ‘novo’ terreno sobre o solo mais
antigo”
378
, mas, ao mesmo tempo, Derrida constantemente afirma a necessidade
de mudança de terreno. Como, então, mudar de terreno sem que se opte pelo
ingênuo e cego fora? Talvez seja esta a pergunta crucial e que poderia fazer que
compreendêssemos a herança nietzschiana de Derrida.
As leituras nietzschianas que apostam em uma prevalência do corpo, dos
instintos, das vísceras, de tudo aquilo que há de animal no homem e que se
pretende romper com a metafísica da mente e do espírito realmente não fariam
justiça ao pensamento nietzschiano e, mais ainda, justificariam plenamente as
críticas heideggerianas que colocam Nietzsche como o último dos metafísicos. A
aposta no fora (e na conseqüente inversão) não enxerga o que há de mais radical
no pensamento de Nietzsche: a metaforicidade mesma. Se tudo é metáfora, como
lucidamente afirmou Nietzsche nas suas considerações sobre a verdade e a
mentira, como se poderia exaltar um corpo concreto? Como se esta aposta
nietzschiana não se cumprisse em mais uma outra metáfora.
Em “Do ler e escrever”, Nietzsche diz: “escreve com sangue; e aprenderás
que o sangue é espírito”
379
, mostrando que, na verdade, a aposta neste pólo
“corporal” acaba por englobar o pólo antes negado. Do mesmo modo que a eterna
oposição entre Apolo e Dionísio encerra-se quando Dionísio vence e se torna
Dionísio e Apolo, o sangue é sangue e espírito, o desejo é desejo e razão, as
vísceras são vísceras e mente etc. Somente desta maneira, nesta aposta nas
brisuras, pode-se enfraquecer a metafísica, pois a inversão acaba por conduzir
necessariamente ao deslocamento, não se prostrando na clausura autista nem na
cegueira do fora. E isso, a nosso ver, seria a leitura mais justa que se poderia fazer
da obra de Nietzsche.
377
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
378
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
379
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra, p. 56.
168
E tal é a posição assumida por Derrida: “é evidente que entre essas duas
formas de desconstrução a escolha não pode ser simples e única. Uma nova escrita
deve tecer e entrelaçar os dois motivos. O que significa dizer”, repetimos, “que é
necessário falar várias línguas e produzir vários textos simultaneamente (...)
Porque é de uma mudança de ‘estilo’, dizia-o Nietzsche, que nós talvez
necessitemos; e se há estilo, Nietzsche no-lo recordou, ele só pode ser plural”
380
.
Que se lembre, portanto, e por fim, de Nietzsche em sua Introdução teorética
sobre a verdade e a mentir no sentido extra-moral:
O que é, portanto, a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, de metonímias,
de antropomorfismos, em resumo, uma soma de relações humanas que foram
poeticamente e retoricamente alçadas, transpostas, ornadas, e que, depois de um
longo uso, parecem a um povo firmes, canônicas e constrangedoras: as verdades
são ilusões que nós esquecemos que o são, metáforas que foram usadas e que
perderam sua força sensível, peças de moedas que perderam seu cunho e que são
consideradas a partir de então não já como peças de moeda mas como metal.
381
E, deste modo, Nietzsche aponta a esta necessidade de uma nova articulação, que
figuraria, como se leu no texto derridiano, “a metaforicidade do conceito,
metáfora da metáfora, metáfora da própria produtividade metafórica” e que,
somente ela, pode “provocar um deslocamento e toda uma reinscrição dos valores
de ciência e de verdade”
382
: momento do signo, quando das Zeichen Kommt,
quando o Sinal chega e o super-homem “acorda e parte, sem se voltar para o que
deixa atrás de si. Queima o seu texto e apaga os traços de seu passado”
383
.
Momento, enfim, de uma justa superação do homem, pela ferida narcísica da
escritura.
*
Mas, ainda mais que isso, a brisura é condição de articulação de uma nova
temporalidade e espacialidade, posto que a sua junção é desde sempre disjunta,
out of joint. Mais ainda, é esta “escritura da diferença” tecida no rastro que
permitirá a articulação entre tempo e espaço, pois, nesse sentido (como em
380
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, pp. 176-177.
381
NIETZSCHE, F. Vérité et mensonge au sens extra-morale, pp. 181-182.
382
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 304.
383
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 177.
169
qualquer sentido, como sentido do sentido), “a diferença é articulação”
384
.
Articulação esta que, fazendo ecoar o outro levinasiano e sua noção de rastro,
remete a uma passividade – no sentido de passivo e de passado, mas de um
passado que nunca esteve presente, “um desde-sempre-lá que nenhuma reativação
da origem poderia plenamente dominar e despertar à presença”
385
; em outros
termos, em um rastro que, ao invés de remeter a uma presença originária, indica o
deferimento de um passado absoluto, que não se pode reduzir à presença nem ao
presente.
Se Lévinas falara, antes, em “paciência do tempo”, Derrida aqui evoca o
termo “passado” sob rasura, pois se este passado é absoluto, desde sempre
passado, a temporalidade do rastro não pode nem mais se anunciar sob o nome de
“passado”. Ainda nestes termos, em que “a diferença difere”
386
, o mesmo ocorre
com o futuro, que se torna um estranho porvir que não se apresenta, a não ser
através de uma inapresentável promessa, inalcançável e que, portanto, que nunca
chegará – e esta passividade requerida e pressuposta pelo rastro inadequa as
noções de “presente”, “passado” e “futuro”. E, como se adiantou, não é mera
coincidência que um dos aspectos, no que se refere à temporalidade, mais
queridos por Derrida é a noção freudiana de nachträglich, traduzido por “efeito
retardado”, “a posteriori”, “posterior” ou “só-depois”, que justamente rompe com
a idealidade fenomenológica de uma presença a si do presente da consciência.
Mas, além desta disjunção temporal que o rastro comporta – e que foi
posteriormente desenvolvido em Espectros de Marx, Adeus a Emmanuel Lévinas,
Memoires – pour Paul de Mann, Donner le temps e Donner la mort – Derrida
ressaltará, como se apontou também, o espaçamento que constitui a origem da
significação (a pausa, o branco, a pontuação, sobretudo as reticências, os não-
ditos etc.).
Mas, mais que espaço, espaçamento busca registrar a brisura entre tempo e
espaço, “o vir-a-ser espaço do tempo e o vir-a-ser tempo do espaço”, que “é
sempre o não-percebido, o não-presente e o não-consciente”
387
. Esta brisura, a
brisura-exemplar através da qual é possível que se compreendam todas as outras
brisuras, como a que, por exemplo, envolve os nomes de Heidegger e Nietzsche,
384
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 80.
385
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 81.
386
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 81.
387
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 83.
170
“marca a impossibilidade (...) de produzir-se na plenitude de um presente e de
uma presença absoluta”
388
, mas apenas rastros. E, nestas últimas páginas de
Gramatologia que pretendo analisar, Derrida põe-se a seguinte questão: “Por que
do rastro? O que nos guiou na escolha desta palavra?”
389
– e diz que irá começar
a responder esta questão, mas esta questão, por ser verdadeiramente uma questão,
por ser uma “questão da questão”, já que o rastro não apresenta respostas, tamm
participará da lógica do “sem-resposta” que o filósofo aludiu em seu Adeus a
Emmanuel Lévinas. Mas como este será um dos temas a serem desenvolvidos no
capítulo sobre a alteridade, deixarei Lévinas em suspenso e me aterei à breve
resposta-adiamento de Derrida: “Se as palavras e os conceitos só adquirem
sentido nos encadeamentos de diferenças, não se pode justificar sua linguagem, e
a escolha dos termos, senão no interior de uma tópica e de uma estratégia
histórica. Portanto, a justificação não pode jamais ser absoluta e definitiva”
390
.
questões
A título de conclusão, retornando ao debate com a lingüística depois destas
digressões apontadas pontualmente ou não por Derrida, o papel do significante é
ultrapassado por si mesmo, no transbordamento de significantes que se remetem
incessantemente uns aos outros no jogo do rastro. E é tal o motivo de Derrida
dizer que a desconstrução da metafísica (do fono, logo, falo, etnocentrismo) deve
passar obrigatoriamente por uma desconstrução do signo. Sem isso nenhuma
gramatologia seria possível; sem isso não se poderia liberar a escritura e permitir
que o pensamento pense e a diferença defira. “O rastro afeta a totalidade do signo
sob suas duas faces”, afeta obviamente o significado mas, mais sutil e de modo
interessante, o significante, o que quer dizer: “que o significado seja originário e
essencialmente (...) rastro, que ele seja desde sempre em posição de significante,
tal é a proposição aparentemente inocente em que a metafísica do logos, da
presença e da consciência deve refletir a escritura como sua morte e seu recurso”
391
. Mas sabe-se que para Derrida nada morre, então esta morte é a morte
simbólica, a morte da metafísica como símbolo, do signo “signo” como símbolo
388
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 85.
389
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 86.
390
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 86.
391
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 90.
171
da verdade e do sentido, da clausura – ainda que se diga abertura. Em uma
palavra: o arrombamento.
Tais especulações são fundamentais para que o projeto gramatológico, à
medida que vai se construindo, se desenvolvendo, já apresente desde sempre sua
desconstrução, através destas suas fendas e brechas que remarcam sua
impossibilidade como projeto. E é nesse sentido que posso dizer que Derrida
obteve sucesso, pois o início do terceiro capítulo “Da Gramatologia como Ciência
Positiva” apresenta o questionamento desta cientificidade: pois para uma
gramatologia ser possível, é necessário que se permaneça ainda no logocentrismo
– e, assim, como em tudo na desconstrução, “esta condição de possibilidades
transforma-se em condição de impossibilidade”
392
. Mas então? Então aparecem
incontáveis entãos que vêm atestar que a questão derridiana que perpassa todo o
projeto gramatológico é a questão sobre a questão.
Derrida se pergunta: “em que condições a gramatologia é possível?”, e a
resposta é a condição de se saber o que é (sob rasura) a escritura. Apenas isso...
Deve-se abandonar as questões como “onde começa a escritura?”, “onde começa
o rastro?”, “quando ambos tiveram seu início?”, etc. E a resposta de Derrida, neste
momento, pode já ser até mesmo previsível: “Onde e quando começa...? Questão
de origem. Ora, que não haja origem, isto é, origem simples; que as questões de
origem conduzem com ela uma metafísica da presença, eis o que uma meditação
do rastro deveria, sem dúvida ensinar-nos”
393
.
Isto é o aprendizado a que me dedico desde que me encontrei com Derrida,
ou melhor, em termos nietzschianos, que ele “caiu sobre minha cabeça”. Por isso,
findo com mais uma longa citação, a fim de ter conseguido dar conta do que seria
este projeto gramatológico e porque ele fora desde sempre abandonado, abrindo
espaço ainda, neste longo parágrafo (e certamente cansativo para o leitor – que me
perdoe, mas é inevitável esta demora sobre os trabalhos de Derrida das décadas de
sessenta e setenta) para algumas digressões presentes em A escritura e a diferença
que se seguirão.
Mas a questão de origem confunde-se inicialmente com a questão da essência.
(...) Deve-se saber o que é a escritura, para poder-se perguntar, sabendo-se de que
se fala e de que é questão, onde e quando começa a escritura. Que é a escritura?
392
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 91.
393
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 91.
172
(...) “Poder-se-ia mostrar em que esta impossibilidade de começar pelo começo
de direito (...) remete à originariedade (sob rasura) do rastro, isto é, à raiz da
escritura. O que já nos ensinou o pensamento do rastro, é que ele não podia
simplesmente ser submetido à questão ontofenomenológica da essência. O rastro
não é nada, não é um ente, excede a questão o que é e eventualmente a
possibilita.
394
redobramentos
A escritura e a diferença, uma coletânea de artigos datada de 1967, que versa
desde Husserl a Artaud, passando por Jabès, Lévinas e Freud, tem como epígrafe
uma sentença do prefácio ao Coup de dés que diz: “o todo sem mais novidade
senão um espaçamento de leitura”
395
. Ou seja, a novidade, a única novidade
possível que Derrida tentava apresentar nesta época, sobretudo frente ao intuito de
dialogar com o estruturalismo, é o espaçamento nas brisuras da estrutura que tal
estruturalismo não parecia querer enxergar. Posso arriscar dizer que seu primeiro
artigo, “Força e significação”
396
(como também poderia afirmar do mesmo modo
quanto a todos os outros artigos que compõem o livro), em seu diálogo com o
estruturalismo, pode ser tomado como metonímia para esta obra – e, como se
sabe, para a Obra derridiana em sua crítica do sentido, e aqui, por sua
proximidade, será analisado junto a “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das
ciências humanas”
397
.
A citação de Flaubert em seu Préface à la vie d’écrivain, “é possível que
desde Sófocles todos nós sejamos selvagens tatuados. Mas na arte existe alguma
outra coisa além da retidão das linhas e do polido das superfícies”
398
, ou seja, a
afirmação de que na arte se entrevê algo para-além das estruturas, indica o tom
que o artigo seguirá rumo à indicação que Derrida tanto trabalharia posteriormente
(já que este artigo data de 1963), qual seja, a da constatação de um certo “impulso
espantoso de uma inquietação sobre a linguagem – que só pode ser uma
inquietação da linguagem e na própria linguagem” e da “pobreza de nosso saber a
esse respeito”
399
. Anos depois, na conferência de 1966, a epígrafe de Montaigne
394
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 92.
395
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 09.
396
Publicado primeiramente em Critique, 193-194, junho-julho de 1963.
397
Conferência pronunciada no Colóquio Internacional “As linguagens críticas e as ciências
humanas”, em 21 de outubro de 1966 na Universidade John Hopkins.
398
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 11.
399
DERRIDA, J. ”Força e significação”, p. 12.
173
indicaria a mesma trilha a ser percorrida, quando Derrida cita: “existe maior
dificuldade em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas”
400
.
Com isso, Derrida, de um modo quase-cético, poderia começar a indicar um
caminho de suspeição – sobretudo, neste caso, no que se referiria à estrutura.
Bem como a linguagem não daria mais conta do que ela própria quer dizer – o
que, antes, Derrida chamou de transbordamento – a noção de estrutura também
seria insuficiente para dar conta do que se entende por estrutura, anunciando-se
assim um “acontecimento” na história da estrutura que teria a forma de uma
ruptura e um redobramento. E, do mesmo modo que em Gramatologia o
transbordamento é o que aponta o jogo da escritura, a ruptura e o redobramento
que este “acontecimento” comporta é o que indica o próprio “jogo da estrutura”.
Entretanto, o que o filósofo deseja que seja pensado é o impensável de
“uma estrutura privada de centro”
401
, o que fará compreender, em uma
irrecusável lógica da coerência na contradição, que o jogo da estrutura é sempre
um jogo fundado, “constituído a partir de uma imobilidade fundadora e de uma
certeza tranqüilizadora, ela própria subtraída ao jogo”
402
. Como assim, se tudo
giraria em torno do centro? Mas este é o ponto: tudo gira em torno do centro.
Então, o que aconteceria se fosse possível se pensar uma estrutura em que o
centro não seria o centro? Tal é a tarefa impossível que Derrida parece almejar a
provocar a platéia estruturalista que o ouvia sutilmente alfinetar o pensamento que
estava na crista da onda. A centralidade, a noção mesma de um centro, a
centralidade do centro é o que, ao mesmo tempo, abre e fecha a possibilidade do
jogo, então, para que o jogo continue sempre aberto, é necessário que se pense
radicalmente a estrutura do centro que o centro ocupa na estrutura. Lê-se que
“sempre se pensou que o centro, por definição único, constituía, numa estrutura,
exatamente aquilo que, comandando a estrutura, escapa à estruturalidade”
403
. E
prossegue:
Eis por que, para um pensamento clássico da estrutura, o centro pode ser dito,
paradoxalmente na estrutura e fora da estrutura. (...) O centro não é o centro. (...)
A partir do que chamamos portanto o centro e que, podendo igualmente estar fora
e dentro, recebe indiferentemente os nomes de origem ou fim, de arque ou de
400
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 229.
401
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 230.
402
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 231.
403
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 230.
174
telos, as repetições, as substituições, as transformações, as permutas são sempre
apanhadas numa história do sentido – isto é, simplesmente uma história – cuja
origem pode sempre ser despertada ou cujo fim pode sempre ser antecipado na
forma da presença.
404
Como conclusão, Derrida afirma que é por esta razão que toda arqueologia e toda
escatologia são cúmplices de uma visão estruturalista que reduziria a
estruturalidade da estrutura à pretensão de uma presença plena e de uma situação
“fora” do jogo. Assim, como já se conhece tão bem a coerência do filósofo, a
história da estrutura como história do centro, da centralidade, do que é central à
estrutura é mais uma das metáforas e metonímias que compõem a história do
ocidente ou da metafísica da presença, tendo este “centro”, ou seja, a plena
presença, a pura presença a si, os mais diversos nomes: fundamento, princípio,
eidos, arque, telos, energeia, ousia, essência, existência, substância, sujeito,
aletheia, transcendentalidade, consciência, Deus, homem, coisa em si, o absoluto,
a coisa mesma, o Ser, a diferença, o Outro etc...
O acontecimento digno deste nome na história da estrutura, a ruptura
desdobrada que disjuntaria este jogo “de cartas marcadas” só se dá quando se
começa a pensar, o que quer dizer parar para ficar atento ao que acontece, a
estruturalidade da estrutura, ou seja, “o desejo do centro na constituição da
estrutura”
405
. No entanto, o que a história da estrutura não percebia é que esta
centralidade de qualquer estrutura está desde sempre ausente, ou melhor, que o
centro é desde sempre um rastro, nem presença nem ausência, mas efeito de uma
referencialidade aberta. E é então que com certas vertentes estruturalistas (e, aqui,
a dedicação de Derrida endereçar-se-á a Lévi-Strauss, mas sabemos que isto se
aplicaria a Saussure e, possivelmente – o que deixo como dúvida ou dívida – a
Lacan) vê-se acontecer certo deslocamento que é um descentramento que se dá
pela substitutibilidade do lugar central, e onde o centro passa a ser visto como um
não-lugar em que ocorrem incontáveis substituições de signos. Segundo Derrida,
“foi então o momento em que a linguagem invadiu o campo problemático
universal” e que “na ausência de centro ou de origem, tudo se torna discurso”, ou
seja, “sistema no qual o significado central (...) nunca está absolutamente presente
fora de um sistema de diferenças”
406
.
404
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, pp. 230-231.
405
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 232.
406
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 232.
175
Por conseguinte, esta ausência de qualquer significado transcendental abre
infinitamente “o jogo da significação”, relembrando aqui os argumentos que antes
o filósofo direcionara a Saussure a fim de pensar “o jogo da différance”. E a
questão a que Derrida se dedicará a partir disto é a seguinte: “onde e como se
produz este descentramento como pensamento da estruturalidade da estrutura?”
407
Antes de prosseguir nas indicações derridianas sobre uma possível resposta a esta
questão, retomo algumas passagens de “Força e significação”, no intuito de
entrelaçar os argumentos críticos ao estruturalismo dos dois textos.
A relação entre história das idéias e o estruturalismo é o tema inicial do
artigo de 1963. Neste, o que Derrida chama de uma “invasão estruturalista” é a
impossibilidade da estrutura mesma ser tomada como objeto, o que significaria o
esquecimento de seu impulso, qual seja, “antes de mais nada de uma aventura do
olhar, de uma conversão na maneira de questionar todo objeto”
408
. Assim, o que
se chama de uma “atitude estruturalista” não pode ser considerado apenas um
momento na história das idéias, pois se trata de uma postura perante a linguagem:
“antes espanto pela linguagem como origem da história. Pela própria
historicidade”
409
. De acordo com Derrida, o estruturalismo (e, aqui se pode ler
Lévi-Strauss, mas também certamente Saussure, possivelmente Lacan e, como
arrisco – devido à anterior menção à arqueologia –, Foucault) escapa à história
tradicional das idéias que, de certa maneira, já clamava, em sua estrutura, por uma
abordagem filosófica como a proposta pelos estruturalistas: o deslocamento do
conceito de significado. Entretanto, justamente por esta característica de fugir à
compreensão historicista, por ser ela a própria estrutura da linguagem histórica e
da historicidade mesma, a atitude estruturalista pode e deve ser abordada pelo
historiador, assumindo a impossibilidade constitutiva de seu empreendimento.
Derrida diz:
O fenômeno estruturalismo merecerá contudo ser abordado pelo historiador das
idéias, devido a toda uma zona irredutível de irreflexão e de espontaneidade,
devido à sombra essencial do não-declarado. Bem ou mal abordado. Merecê-lo-á
tudo o que neste fenômeno não é transparência para si da questão, tudo o que, na
eficácia de um método, pertence à inefabilidade atribuída aos sonâmbulos e
outrora ao instinto, acerca do qual se dizia que era tanto mais seguro quanto mais
cego. Uma das dignidades, e das maiores, dessa ciência humana denominada
407
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 232.
408
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 12.
409
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 13.
176
história consiste em abordar por privilégio, nos atos e nas instituições dos
homens, a imensa região do sonambulismo, o quase-tudo que não é a pura
vigília, a acidez estéril e silenciosa da própria questão, o quase-nada.
410
Se se toma por certo que há algum socratismo em Derrida, e este se dá através de
uma ferrenha ironia, pode-se perceber que o que o filósofo aponta é tanto uma
certa crítica a história, que deveria ser uma outra história, uma história das lacunas
ou dos rastros, e não dos atos e das ações humanas, como uma crítica por vir disto
que se pensa como estruturalismo, que ainda que deslocando o significado e com
isso a noção de centro, persiste em ser um “ismo”, em que a estrutura passa a
figurar como a centralidade disto mesmo que diz apontar ao descentramento.
E Derrida escreve tal artigo, segundo o próprio, em uma época em que se
vive da “fecundidade estruturalista” – e, por isso, talvez fosse cedo demais para
“chicotear” este sonho estruturalista. “Talvez amanhã o interpretem como um
relaxamento, para não dizer um lapso, da atenção à força, que é tensão da própria
força”
411
. Tal força nada mais é senão a força mesma da criação – e seria por esta
razão que a crítica literária seria, em sua quase-totalidade, estruturalista,
acompanhada de certa “melancolia” inevitável quando se depara com um objeto
“morto”: um objeto sempre passado, realizado, constituído – “o construído”. Esta
força melancólica que a estrutura comporta é também um assombramento que não
cessa de horrorizar a própria linguagem. Como se disse antes, se tudo passa a ser
discurso, então não há mais como se retornar à Natureza (e, com isso, por
extensão, de se retornar a qualquer coisa mesma ou em si, enfim, de qualquer
retorno, reconciliação ou restituição), a nenhum modo de presença e, nem mesmo
mais, a uma “linguagem pura ou primeira” como tanto sonhava Rousseau.
Deste modo, assim como na lingüística geral, sua própria desconstrução já
se encontrava implícita, também o estruturalismo em geral já apresenta consigo
sua ameaça, ou melhor ainda, apresenta-se como sua própria ameaça. “Nada há
portanto de paradoxal no fato de a consciência estruturalista ser consciência
catastrófica, simultaneamente destruída e destruidora, destruturante
412
, diz
Derrida. E ainda que se insista neste paradoxo do estruturalismo, ele configuraria
uma época de deslocamento na história das idéias, um momento privilegiado, em
410
DERRIDA, J. “Força e significação”, pp. 13-14. Grifo meu.
411
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 14.
412
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 16.
177
que se é expulso de um lugar, de uma certeza que delinearia “o” lugar, em que se
é expulso justamente por esta “paixão estruturalista”:
Pode-se então ameaçar metodicamente a estrutura para melhor a perceber, não só
nas suas nervuras mas também nesse lugar secreto em que não é nem ereção nem
ruína mas labilidade. Esta operação denomina-se (em latim) preocupar ou
solicitar. Em outras palavras, sacudir com um abalo que atinge o todo (de sollus,
em latim arcaico: o todo, e de citare: empurrar).
413
De volta à “Estrutura, o signo e o jogo...”, pode-se acompanhar a resposta
que coaduna estes argumentos do artigo de 1963 com a questão levantada na
conferência de 1966 sobre este “descentramento” produzido pela estruturalidade
da estrutura. Esta “época” que o estruturalismo parece anunciar, como se pode
supor, não é um “acontecimento inaugural”, mas sim uma produção que desde
sempre está trabalhando. Não se pode nomear esta “época” ou este
“acontecimento”, muito menos através de nomes próprios, ainda que Derrida
elenque, entre tantos “discursos destruidores”, a noção nietzschiana de “jogo” que
configura uma crítica à metafísica, a noção freudiana de “inconsciente” que solapa
a consciência a si do sujeito e a “destruição da metafísica” tal como proposta pela
ontologia heideggeriana. Nietzsche, Freud e Heidegger, “nomes próprios” de certo
modo privilegiados, no entanto, por mais que tenham influenciado a
“desconstrução” derridiana, como já se mostrou antes, não podem ser lidos como
“destruidores da história da metafísica”, mas sim como discursos que, não
podendo abandonar o glossário filosófico tradicional, inventam maneiras de
solapar esta história.
Não tem nenhum sentido abandonar os conceitos da metafísica para abalar a
metafísica; não dispomos de nenhuma linguagem – de nenhuma sintaxe e de
nenhum léxico – que seja estranho a essa história; não podemos enunciar
nenhuma proposição destruidora que não se tenha já visto obrigada a escorregar
para a forma, para a lógica e para as postulações implícitas daquilo mesmo que
gostaria de contestar.
414
E, para exemplificar – mostrando, assim, a relevância do estruturalismo neste
processo de crise da metafísica (ainda que esta “crise” já estivesse desde sempre
implícita no próprio corpus do pensamento metafísico) –, Derrida vai dizer que é
413
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 16.
414
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 233.
178
justamente através do conceito de “signo”, como se viu, um conceito por
excelência metafísico, que se abala a metafísica da presença. Em outros termos, é
através da herança que se pode operar algum abalo – e é assim que devem ser
compreendidos os esforços de Nietzsche, Freud e Heidegger, em como eles
conseguiram descentrar alguns nódulos metafísicos operando no dentro/fora da
tradição, na brisura dos discursos que os antecederam.
Isto, para Derrida, irá requerer, mais radicalmente, um descentramento do
próprio pensamento ocidental, do etnocentrismo filosófico. No âmbito das
ciências humanas, assim como foi o caso da lingüística geral no projeto
gramatológico, neste momento um olhar para a etnologia pode indicar alguns
elementos a serem pensados rumo a este abandono da cultura ocidental como
“cultura de referência”. Ele diz que “podemos com efeito considerar que a
Etnologia só teve condições para nascer como ciência no momento em que se
operou um descentramento”
415
e que “pode-se dizer com toda a segurança que
não há nada de fortuito no fato de a crítica do etnocentrismo, condição da
Etnologia, ser sistemática e historicamente contemporânea da destruição da
história da Metafísica”, já que “ambas pertencem a uma única e mesma época”
416
.
Eis, pois, o “problema de economia e estratégia” de um discurso
desconstrutivo: não é uma mera contingência histórica a necessidade de acolher
no próprio discurso as premissas dos discursos que se pretende desconstruir. Ao
contrário, esta necessidade é irredutível e inescapável, o que torna o discurso que
assume esta necessidade – o que quer dizer, o discurso que assume rigorosamente
sua relação com a tradição e com os conceitos dela herdados – um discurso
criticamente responsável. E esta responsabilidade crítica do discurso Derrida
define do seguinte modo: “trata-se de colocar expressa e sistematicamente o
problema do estatuto de um discurso que vai buscar a uma herança os recursos
necessários para a des-construção dessa mesma herança”
417
.
A atitude de se entrever desde o início que a linguagem comporta a
necessidade de sua própria crítica é, neste texto, apresentada a partir de Lévi-
Strauss, sobretudo em Le Cru et le Cuit, em Les Structures élémentaire de la
parenté e em La Pensée sauvage. De modo surpreendente, Derrida cita Lévi-
415
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 234.
416
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 235.
417
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 235.
179
Strauss como um dos poucos que conseguiram “inquietar-se acerca dos conceitos
fundadores de toda a história da Filosofia” e, com isso, “esboçar um passo para
fora da Filosofia”
418
– ainda que este “fora” seja muito suspeito, mas, ainda
assim, o etnólogo teria obtido um sucesso bem maior que a grande parte dos
filósofos que se dizem “fora” do discurso que se pretendem libertados. Lévi-
Strauss, desta feita, não se atem à esterilidade do empírico, como seria o mais
comum neste caso; muito pelo contrário, ele conserva e denuncia os limites de seu
discurso, “como utensílios que ainda podem servir”
419
: ele não os abandona, mas
parece estar pronto a abandoná-los a todo momento, mas, enquanto não pode
prescindir deles, utiliza-os da melhor maneira que pode.
Enquanto esperamos, exploramos a sua eficácia relativa e utilizamo-los para
destruir a antiga máquina a que pertencem e de que eles mesmos são peças. É
assim que se critica a linguagem das ciências humanas. [Entretanto, pode-se ver
aqui uma clara objeção à seguinte desconstrução] Lévi-Strauss pensa deste modo
poder separar o método da verdade.
420
E é neste sentido que o etnólogo prosseguirá ao longo de sua obra neste duplo
movimento, qual seja, o de criticar o valor de verdade de seu instrumento e, ao
mesmo tempo, continuar a utilizá-lo.
No entanto, um fator que Derrida ressaltará no pensamento de Lévi-
Strauss é o que se denomina bricolagem. Em La Pensée Sauvage, o bricoleur é
apresentado como aquele que utiliza o que tem à mão, aqueles instrumentos que
estão, poderia eu arriscar, “Zuhanden”. Com isso, o operador de tal
instrumentalização não se sente em nada constrangido, caso necessário, de trocar
o instrumento que utiliza – e, a partir disto, chegou-se ao chavão de se afirmar que
a bricolagem, na verdade, seria, mais que uma crítica da linguagem, a própria
linguagem crítica. Segundo o filósofo, “se denominarmos bricolagem a
necessidade de ir buscar os seus conceitos ao texto de uma herança mais ou menos
coerente ou arruinada, deve-se dizer que todo o discurso é bricoleur
421
. De
acordo com os argumentos desconstrutivos, se se admite que o discurso em geral
comporta sempre um traço de bricolagem, então a própria noção de bricolagem
coloca-se em suspeição, pois não apresenta mais a diferença com relação à
418
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 237.
419
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 238.
420
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 238.
421
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 239.
180
tradição que parecia apresentar, sendo apenas mais uma forma de se denominar
esta tradição. Mas ainda assim há uma certa inovação nesta proposta etnológica,
pois Lévi-Strauss não limita a bricolagem a uma atividade meramente intelectual,
mas como uma atividade mito-poética: “Como a bricolagem no plano técnico, a
reflexão mítica pode atingir, no plano intelectual, resultados brilhantes e
imprevistos. Reciprocamente, observou-se muitas vezes o caráter mitopoético da
bricolagem”
422
. Esta “trama” que o etnólogo tece é notável, segundo Derrida,
pois sustenta-se em um esforço árduo, nesta tentativa de ressaltar o aspecto
mitopoético da bricolagem, para que qualquer referência a um centro seja
abandonada: e, por conseguinte, a qualquer sujeito ou a uma referência
privilegiada, contra qualquer arquia absoluta.
Isto porque, diferente da especulação filosófica (que sempre pressuporia
uma investigação sobre a origem e o fundamento), as inspirações etnológicas
“dizem respeito a raios privados de qualquer outro foco que não seja virtual...”
423
.
Esta posição de Lévi-Strauss, ainda que pouco explorada pelos leitores de
Derrida, parece-me ser um traço fundamental do que (como se verá mais adiante,
e em consonância com as influências nietzschianas) o filosofo descreve como a
“ficcionalidade da língua”. A bricolagem, desta forma, pode ser vista como um
aspecto “úmido” da etnologia (mas que, como toda ciência necessita para
sobreviver, acaba por ser enxugado pelo próprio discurso, que não sustenta a
preservação de sua umidade). Contudo, o esforço hercúleo de Lévi-Strauss abre
um arrombamento na racionalidade científica: se a “metaforicidade mesma” é o
pensamento da metáfora da metáfora, da própria produção metafórica, como se
apontou em Gramatologia e que será tema do segundo capítulo da segunda parte
desta tese, a bricolagem da etnologia seria uma espécie de “miticidade mesma”,
um pensamento do mito da mitologia, da produção mitológica dos mitos – o que
será um aspecto bem fortemente apresentado em Devant la loi, onde Derrida
apresenta a estrutura do “como se” da língua.
Outro aspecto fascinante, que será explorado poucos anos mais tarde em
“Assinatura acontecimento contexto”, mas que Derrida antecipa aqui em suas
leituras de Lévi-Strauss, é que um pensamento etnológico como este pressupõe
422
LÉVI-STRAUSS, C. La Pensée Sauvage, p. 26. Citado por DERRIDA, J. “A estrutura, o signo
e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 240.
423
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 242.
181
uma ausência de centro que se traduz em uma ausência de sujeito e,
conseqüentemente, em uma ausência de autor. Lê-se em La pensée sauvage:
O mito e a obra musical aparecem assim como maestros cujos auditores são os
silenciosos executantes. Se nos perguntarmos onde se encontra o foco real da
obra, será preciso responder que é impossível a sua determinação. A música e a
mitologia confrontam o homem com objetos virtuais cuja sombra unicamente é
atual... Os mitos não têm autores...
424
E, neste movimento, ao passo que assume sua função mitopoética, a bricolagem
etnográfica, como também a atitude de bricoleur do pensamento, ou seja, toda
atitude de bricolagem apontam a mitologicidade a exigência filosófica ou
epistemológica de qualquer “centrismo”. É por esta razão que, antes, Derrida
referiu-se à Etnologia como um certo “além” da filosofia, mas sem cair em uma
ingenuidade de embasar uma ciência fundamentada em conceitos trans-
filosóficos. “O que pretendo acentuar”, diz Derrida, “é apenas que a passagem
para além da filosofia não consiste em virar a página da filosofia” – o que, para
ele, “acaba sendo filosofar mal”. E prossegue, dizendo que o risco que se corre
nesta tentativa é desde sempre assumido pelo etnólogo francês, como preço de seu
esforço, porque, ao invés desta virada de página, precisa-se “ler de uma certa
maneira os filósofos”
425
. Este preço que Lévi-Strauss paga leva a se pensar na
impossibilidade de um discurso etnológico que seja totalizante, posto que se toda
linguagem é bricolagem, ou seja, a miticidade de um mito, não pode haver um
mito absoluto, já que o próprio absolutismo seria mais um mito. Com isso, já que
“em nenhum caso nos poderiam exigir um discurso mítico total”
426
, ou seja, se
não faz mais sentido nenhuma espécie de totalização, o campo de atuação que
Lévi-Strauss abre é o da possibilidade única de um jogo:
A natureza do campo – a saber a linguagem e uma linguagem infinita – exclui a
totalização: este campo é com efeito o de um jogo, isto é, de substituições
infinitas no fechamento de um conjunto finito. Este campo só permite estas
substituições infinitas porque é finito, isto é, porque em vez de ser um campo
inesgotável, como na hipótese clássica, em vez de ser demasiado grande, lhe falta
algo, a saber um centro que detenha e fundamente o jogo das substituições.
427
424
LÉVI-STRAUSS, C. La Pensée Sauvage, p. 25. Citado por DERRIDA, J. “A estrutura, o signo
e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 242.
425
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 243.
426
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 244.
427
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, pp. 244-245.
182
Daí provém a equação derridiana que indica que este movimento do jogo só é
permitido por uma falta – que é a ausência de centro ou origem – o que o torna
um movimento de suplementaridade. A lógica do suplemento é outro traço
indecidível do pensamento desconstrutivo, retratando a impossibilidade de se
determinar qualquer espécie de centralidade e, por conseguinte, de se alcançar
qualquer totalização devido ao fato de o signo que deveria “representar” ou
ocupar o lugar deste “centro” – ou seja, um signo que o “supre” – ser apenas um
acréscimo e não mais uma substituição, um suplemento ao invés de uma
representação.
Com isso, retorna-se à questão central da “fase gramatológica” de Derrida,
pois o próprio Lévi-Strauss vai utilizar-se do termo “significante flutuante” para
retratar esta lógica da suplementaridade, que nada mais é que uma lógica da
superabundância – onde se lê transbordamento – do significante que resulta “de
uma finitude, isto é, de uma falta que deve ser suprida
428
. Isto dá a pensar
porque as constantes referências às diversas formas de jogos são tão estudadas por
Lévi-Strauss (e, em especial a roleta, em Entretiens, Rec et Histoire e La Pensée
Sauvage): pensar as formas de jogos no mundo, como se viu, requer que se pense
o “jogo do mundo”; pensar as tensões dos jogos é pensar a tensão da história – e,
no intuito de manter-se nesta tensão que o jogo da bricolagem requer, para jogar
com o pensamento, jogar o jogo do pensamento sem se cair em um
“historicismo”, em uma “arqueologia” ou em um “fundamentalismo”, para isso
Lévi-Strauss trará para sua glossemática os vocábulos “acaso” e
“descontinuidade”. Destarte, além de provocar uma tensão com a história, o jogo
requer uma tensão com a presença (o que pode soar já, neste ponto, pleonástico),
pois, como já se viu, “a presença de um elemento é sempre uma referência
significante e substitutiva inscrita num sistema de diferenças e o movimento de
uma cadeia” e, mais ainda, “o jogo é sempre jogo de ausência e de presença”
429
, o
que Derrida chamaria posteriormente de rastro.
Como conclusão a esta análise do estruturalismo, pode-se ver que, para
Derrida, uma certa Etnologia pode configurar a possibilidade de se fazer aparecer
o jogo da repetição sem se cair em uma “ética da presença” nem em uma
428
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 246.
429
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 248.
183
“nostalgia de origem”, como teria sido a atitude adotada por Rousseau. Todavia,
em Lévi-Strauss também persistem alguns traços desta nostalgia, sobremaneira
quando o projeto etnológico se dirige às sociedades arcaicas, como se pode ver em
Tristes Trópicos
430
. Assim, Derrida delineia uma face estruturalista ainda com
aspectos rousseaunianos (“a face triste, negativa, nostálgica, culpada”) cuja face
inversa seria a de uma afirmatividade nietzschiana (“a afirmação alegre do jogo
do mundo e da inocência do devir, a afirmação de um mundo de signos sem erro,
sem verdade, sem origem, oferecido a uma interpretação ativa”)
431
que joga com
o não-centro, que joga sem nenhuma segurança, “sem álibi”. E este é o verdadeiro
jogo, o que é impossível de se jogar, pois o “jogo seguro”, o que trabalha com
determinações de presenças, que se preocupa em organizar, conceituar, não é
jogo: não há aposta, tudo já está determinado, seco e ressecado.
A vertente nostálgica-rousseauniana do estruturalismo seria, portanto, a
que se preocuparia com origens, conceitos e que, para isso, deve desenvolver todo
um aparato de resgate da natureza perdida, eliminando-se assim toda umidade
requerida pela bricolagem; já a afirmatividade estruturalista decide-se por um
pensamento que se entrega à indecidibilidade, “à indeterminação genética, à
aventura seminal do traço [rastro]”
432
.
Há portanto duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo.
Uma procura decifrar, sonha decifrar uma verdade ou uma origem que escapam
ao jogo e à ordem do signo, e sente como um exílio a necessidade de
interpretação. A outra, que já não está voltada para a origem, afirma o jogo e
procura superar o homem e o humanismo, sendo o nome do homem o nome desse
ser que, através da história da Metafísica ou da onto-teologia, isto é, da totalidade
da sua história, sonhou a presença plena, o fundamento tranqüilizador, a origem e
o fim do jogo.
433
Neste ponto, vê-se que a referência inevitável da Etnologia à figura humana
continua – e continuará sempre – sendo um empecilho para o rompimento que
pretendia com a metafísica. Sem citar nomes próprios, pode-se perceber
claramente que, aqui, Derrida, em detrimento de Lévi-Strauss, vai se aproximar
bem mais das críticas ao humanismo e à onto-teologia empreendidas por
430
Sobre isto, ver “A violência da letra: de Lévi-Strauss a Rousseau”, em Gramatologia, e também
De que amanhã..., pp. 19-22.
431
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 248.
432
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 248.
433
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 249.
184
Nietzsche e por Heidegger, como se verá logo em seguida ao abordarmos “Os fins
do homem”.
Resta, portanto, como parte seguinte ao estudo de A escritura e a
diferença, pensar neste clima pós-nietzschiano que Derrida assume ao longo de
sua escrita, neste clima de afirmatividade que Nietzsche – e tantos outros
espectros – lhe abriram e sobre a qual não há escolha. Entre as duas posições
estruturalistas, não há como escolher uma, devido à imprecisão da noção de
escolha, mas – como se verá agora – parece que uma delas, apenas uma, pode
deixar surgir o novo.
A categoria de escolha parece bem frágil (...) porque é preciso tentar primeiro
pensar o solo comum, e a diferência [différance] desta diferença irredutível. E
porque temos aí um tipo de questão, digamos ainda histórica, cuja concepção,
formação, gestação, trabalho, hoje apenas entrevemos. E digo estas palavras, é
certo, para as operações da procriação; mas também para aqueles que, numa
sociedade da qual não me excluo, os desviam perante o ainda inominável que se
anuncia e que só pode fazê-lo, como é necessário cada vez que se efetua um
nascimento, sob a espécie da não-espécie, sob a forma informe, muda, infante e
terrificante da monstruosidade.
434
*
De modo semelhante a “A Estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências
humanas”, “Força e significação”, depois de apresentar a “paixão estruturalista”,
desemboca também na apresentação de uma experiência de ruptura e de um
caminho no interior do mundo, simultaneamente, “pois se trata de uma saída para
fora do mundo, em direção a um lugar que nem é um não-lugar nem um outro
mundo, nem uma utopia nem um álibi”
435
– e, se no texto posterior, que tratei
antes, esta seria uma vertente “nietzschiana” do pensamento estruturalista, no
presente texto Derrida vai recorrer a uma veia que alinhava, desgrenhadamente,
Blanchot, Artaud, Flaubert, Valéry, Proust, Mallarmé, Verlaine, Claudel etc. E
como se trata aqui de um agrupamento de muitos idiomas, de muitas línguas
faladas e escritas, tecidas em sua disjuntada tecitura, e também devido ao curto
espaço que me cabe para tratar destas tantas línguas, seguirei a indicação de que,
também estes tantos nomes próprios, seriam parte da “outra face estruturalista”,
434
DERRIDA, J. “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, p. 249.
435
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 19.
185
qual seja, a da afirmatividade – o que me parece razoável pois o artigo se encerra
retomando Nietzsche: “seria preciso concluir mas o debate é interminável”, diz
Derrida. “O diferendo, a diferença entre Dionísio e Apolo, entre o impulso e a
estrutura, não se apaga na história pois não está na história. É também, num
sentido insólito, uma estrutura originária: a abertura da história, a própria
historicidade”
436
. Isto porque esta diferença, a diferença, não pertence nem à
história nem à estrutura: se Dionísio venceu Apolo, e tornou-se Apolo e Dionísio,
é porque “Dionísio é trabalhado pela diferença”
437
.
E contra Flaubert que, em Préface à la vie d’écrivain, diz “não há formas
suficientes”
438
, pois, ao contrário do que pode parecer não o diz para elogiar a
falta, mas antes para se lamentar pela insuficiência formal, Derrida contra-ataca
com Nietzsche e seu ensinamento da dança da pena – em que não é mais preciso
escolher entre a forma e a força, entre o corpo e a alma, entre a escritura e a dança,
pois a escritura dança: “Saber dançar com os pés, com as idéias, com as palavras:
será preciso dizer que é também necessário sabê-lo com a pena, – que é preciso
aprender a escrever?”
439
. E ainda que brinque com o fato de apenas os
pensamentos que se tem quando se está andando têm valor, Nietzsche, mais do
que ninguém, soube tratar e retratar a seriedade da escritura: a necessidade de que
se debruce sobre ela como Zaratustra o fez, descendo, trabalhando, inclinando-se
para gravar e carregar a nova Tábua para os vales.
A escritura é a saída como descida para fora de si em si do sentido: metáfora-
para-outrem-em-vista-de-outrem-neste-mundo, metáfora como possibilidade de
outrem neste mundo (...), escavação no outro em direção do outro (...), submissão
na qual sempre se pode perder. (...) Mas não é nada, não é ele próprio antes do
risco de se perder.
440
A escritura é sempre o sem-álibi, é essa gravidade, essa profundeza que é
superfície que Nietzsche tanto se preocupou em defender. E é também essa
coragem, essa ausência de medo de largar o comodismo e a segurança do abrigo
436
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 50.
437
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 50.
438
FLAUBERT, Préface à la vie d’écrivain, p. 111. Citado por DERRIDA, J. “Força e
significação”, p. 51.
439
NIETZSCHE, F. Le Crépuscule des idoles, p. 68. Citado por DERRIDA, J. “Força e
significação”, p. 51.
440
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 52.
186
metafísico, os “remédios” como diz Severino ou as “sombrinhas” que o jagunço
Riobaldo diz precisar em tempos de range-rede.
Aliás, este temeroso não-temer (que talvez se assemelhe ao tremor), esse
jogar (que é um jogar-se) na escritura é a possibilidade de que haja escritura: o
vale, o abismo, a falta, o descentramento, o fora-de-eixo. Só se trabalha – no
sentido mais nobre do termo, o que faz trabalhar – pela e na falta: “só a ausência
pura – não a ausência disto ou daquilo – mas a ausência de tudo em que se
anuncia toda presença – pode inspirar
441
. E, neste sentido, a estrutura do
estruturalismo traria em suas brechas estruturais esta ausência, aquém e além do
que se chama linguagem – a escritura – e a literatura, como o lugar em que estas
brechas tão mais honestamente se permitem falar, que tem como objeto esta
ausência mesma de objeto podem indicar ao pensamento que este deve – e precisa
– de certo modo destituir-se, ainda que momentaneamente, de seu querer-dizer.
Derrida cita Blanchot que cita Artaud: “Iniciei-me na literatura escrevendo livros
para dizer que não podia escrever absolutamente nada”
442
- e esta é a
possibilidade de surgir a palavra, a palavra soprada, como se verá logo a seguir.
Artaud, Mallarmé, Nietzsche são pessoas que escreveram, que souberam escrever
e o que é escrever: que não se trata apenas de reconhecer a ausência, o sem-
sentido; que não se trata apenas de saber que há estilo; “escrever é saber que
aquilo que ainda não está produzido na letra tem outra residência (...). É por ser
inaugural, no sentido jovem deste termo, que a escritura é perigosa e angustiante”
443
. O que quer dizer que nunca se sabe aonde se vai na travessia da escritura, não
há porto-seguro e, mais que tudo, não há nada que afaste este risco.
Como se verá mais à frente, na segunda parte desta tese, a escrita poética é
onde se deflagra com maior facilidade estes aspectos que são inerentes a toda
escritura, à escritura mesma, com a “morte” do signo e o nascimento da palavra.
Este “poder revelador” da linguagem poética, nos termos de Derrida, é libertado
de suas funções sinalizadoras “quando o escrito está defunto como signo-sinal”
444
. Ou seja, que não existe, na escritura “digna de tal nome”, uma possibilidade
de projeto, pois a eminência de um fracasso está desde sempre posta em questão
441
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 20.
442
BLANCHOT, M. L’Arche (27-28 agosto-setembro de 1948, p. 133). Citado por DERRIDA, J.
“Força e significação”, p. 20.
443
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 24.
444
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 26.
187
no próprio jogo. Este jogo, muito diferente da intencionalidade fenomenológica,
está muito além do querer-dizer: este jogo revela o verdadeiro “querer-escrever”,
do querer escrever a escritura, querer que a escritura se escreva, fadando-se ao
fracasso, ao medo de errar, mas também a uma espécie de superação da língua
pela própria língua que talvez poucos fizeram até hoje como os poetas, e
Nietzsche entre eles (para sua felicidade). O querer-dizer expressa de alguma
forma a vontade, enquanto o querer-escrever “desperta ao contrário o sentido de
vontade da vontade”
445
, sendo assim uma saída do nível da afecção e uma
assunção da responsabilidade do ato da escritura: querer-escrever, diz Derrida, e
não desejo de escrever – e apenas este querer-escrever, este comprometimento
com a escritura, pode permitir que alguém realmente escreva. E um exemplo
emblemático disto é o Livro de Mallarmé. Nele, o sentido do sentido é uma
implicação infinita que não possibilita nenhum descanso ao significado, que se
sustenta em constante diferimento. Para Derrida, e este é seu mérito-mor, é um
livro irrealizado, o que “não significa que Mallarmé não tenha conseguido
realizar um livro que fosse idêntico a si – Mallarmé simplesmente não o quis.
Irrealizou a unidade do Livro fazendo abalar as categorias com as quais se julgava
poder pensá-la com toda segurança”
446
.
Pode-se perceber que uma vez mais a vertente afirmativa do pensamento,
em que de certa maneira Dionísio desestabiliza (inverte) e ultrapassa (desloca)
Apolo, mostrando que Apolo estava, em suas veias, em suas fendas,
completamente contaminado pela virulência dionisíaca, e talvez mais que isso que
Dionísio sempre correra em seu sangue, que é sangue e espírito, que esta vertente
do sagrado “Sim” da criança da terceira metamorfose do espírito é mais uma vez
convocada pela desconstrução contra um discurso apenas formal ou apolíneo do
estruturalismo. Este discurso apolíneo da estrutura – portanto aprisionador, cego,
seco, infértil e parricida – é herdeiro direto, ainda que inconfesso, da
fenomenologia husserliana e, como se verá um pouco adiante, da tradição que se
inicia em Platão.
É preciso portanto tentar libertarmo-nos desta linguagem. Não tentar libertarmo-
nos dela, pois é impossível sem esquecer a nossa história. Não libertamo-nos
dela, o que não teria qualquer sentido e nos privaria da luz do sentido. Mas
445
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 27.
446
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 45.
188
resistir-lhe tanto quanto possível. É preciso em todo o caso não nos
abandonarmos a ela com esse abandono que é hoje a má embriaguez do
formalismo estruturalista mais complexo.
447
E, mais adiante, posiciona-se, por fim, quanto à filosofia (e ao pensamento crítico
em geral), pois esta “não poderá exceder-se até amar a força e o movimento que
desloca as linhas, a amá-la como movimento, como desejo, em si mesmo, e não
como o acidente ou a epifania das linhas. Até à escritura”
448
.
a afirmatividade da “ausência”
Então: Mallarmé e seu livro irrealizado abrem espaço a uma questão muito
importante na obra derridiana, que se apresenta desde o início de Gramatologia,
quando Derrida afirma que Hegel é o último pensador do livro e o primeiro
pensador da escritura: a questão do livro, da pretensa unidade da escritura, que se
dissimula e se traveste de Obra Completa, fechada, redonda e, portanto, cêntrica.
Esta questão, associada aqui por motivos econômicos à da palavra, pode ser uma
das trilhas que delineiam alguma possibilidade de (entre muitíssimas aspas)
“unidade” entre os artigos reunidos sob o batismo A escritura e a diferença.
Depois das indicações bibliográficas de quando e onde os artigos sob esta alcunha
foram reunidos, mais precisamente na última página do livro, lê-se o seguinte:
Pela data destes textos, desejaríamos observar que, no momento de lê-los para
reuni-los não podemos mais manter a mesma distância em relação a cada um
deles. O que aqui permanece como deslocamento de um problema forma
certamente um sistema. Por alguma costura interpretativa, teríamos conseguido
desenhá-lo depois de pronto. Nós, porém, deixamos somente aparecer o
pontilhado, arrumando nele ou abandonando esses brancos sem os quais nenhum
texto jamais se propõe como tal. Se texto quer dizer tecido, todos esses ensaios
obstinadamente definiram sua costura como alinhavo.
449
Logo antes deste apêndice, na conferência de 1966, Derrida encerra sua fala
dedicando-se à afirmatividade que possibilita o novo, mas sob a feição de uma
monstruosidade – certamente provocando Saussure. Mas apenas esta postura do
sagrado “Sim” nietzschiano pode propiciar o nascimento – que é inominável e,
por isso, para o pensamento, abominável. Tal seria, então, uma possível
447
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 49.
448
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 50.
449
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 252.
189
justificativa para se compreender porque – neste livro mais que em qualquer outro
– Derrida dedique uma atenção específica a pensadores marginais, como Edmond
Jabès, Antonin Artaud e Emmanuel Lévinas (porque, até onde eu saiba – e posso
estar completamente equivocado – não me lembro de ter ouvido falar de qualquer
filósofo que tenha, até então, dedicado um artigo científico ao autor lituano). E
como em “‘Gênese e estrutura’ e a fenomenologia” Derrida afirma a eficácia da
introdução de um corpo estranho em um debate (mas sem se esquecer que isto
comporta agressão e infidelidade)
450
, lembrando a lógica do enxerto sempre
inerente à desconstrução tal como apontada em “Il faut bien manger”, vou tentar
criar aqui meus alinhavos monstruosos, costuras de enxertos – portanto com certa
violência inevitável – englobando nesta afirmatividade aterrorizante do novo a
questão do livro e a palavra soprada artaudiana.
Trata-se aqui, portanto, de tentar reunir no mesmo tópico a paixão pela
escritura do judaísmo com a crueldade do teatro e tentar entrever o que ambos
podem apresentar em comum no que se refere à nossa costura. Realmente, seria
difícil falar sobre escritura ao longo de toda uma tese, por mais que se queira
(como eu quero, não por descontaminação, mas por ignorância) evitar que se entre
em questões teológicas, sem que em algum momento se aludisse às religiões do
livro ou à sagrada escritura. E é através da poesia de Jabès que Derrida vai
apresentar esta certa raiz judaica como nascimento e paixão da escritura: “Paixão
da escritura, amor e sofrimento da letra, acerca da qual não se poderia dizer se o
judeu é o sujeito ou a própria Letra. Talvez raiz comum de um povo e da
escritura”
451
. A apresentação de Derrida atenta para que existe esta possibilidade
de se pensar uma experiência da escritura no momento mesmo em que um “povo”
é constituído. Os trabalhos de minha colega Rachel Nigro tentam sempre abordar
cuidadosamente este problema da identidade, sobretudo de uma identidade
cultural, em termos desconstrutivos, mas é certo que Derrida algumas vezes, como
em Deconstruction in a Nutshell, fala de uma “comunidade sem comunidade”,
como também se pode ver em L’autre Cap e Voyous. É certo que se falar em
“povo” ou “raça” ou simplesmente postular um “nós” em Derrida é
definitivamente um equívoco imperdoável – o que se verá mais a frente em “Os
fins do homem” –, mas esta experiência que Derrida pretende ressaltar aqui é a de
450
DERRIDA, J. “‘Gênese e Estrutura’ e a fenomenologia”, p. 84.
451
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 54.
190
um povo que só tem esta estatura de povo, que só consegue se auto-denominar
povo, justamente quando acontece sua escritura: os judeus escreveram a escritura,
mas, ao mesmo tempo, antes da (sua) escritura, os judeus não eram judeus. Trata-
se, portanto, de um problema quase-estético. Do mesmo modo que Cervantes não
era Cervantes antes de seu Quixote, que apenas a desconstrução tornou Jackie o
Jacques Derrida, a fenomenologia “criou” Husserl etc...
Neste sentido, pode-se arriscar a poesia e a teatralidade que esta
experiência instauradora que a escritura traz consigo – que, em sua
afirmatividade, pode apresentar-se como um ato inaugural, conquanto para alguns
seja tido como monstruoso. Nas palavras judaicas de Jabès, “por uma espécie de
deslocamento silencioso”
452
, Derrida alarga este campo de interpretação para
além da situação do poeta, estendendo-o à posição – como já se apontou – ao
homem que escreve. Em seu Livre des questions Jabès diz: “Tu és aquele que
escreve e que é escrito”
453
– e não penso haver melhor metonímia para se pensar
o que poderia ser uma rudimentar noção de “Eu” em Derrida: uma produção da
escritura que produz escritura. Entretanto, para Derrida, a escrita do poeta
escreve-se, mas ao mesmo tempo já se perverte ao se tornar representação; já
tende, ao se afirmar como Obra, ou seja, como Totalidade, ao seu próprio
arruinamento, já que, de fato, o poeta é o assunto do livro, é ele mesmo que está
em questão, é seu “ser” como efeito da escritura que está em jogo no risco de se
escrever, do mesmo modo que o livro é o verdadeiro sujeito do poeta, subjectum,
substantia, subjétil. “A sabedoria do poeta”, diz Derrida, “realiza portanto a sua
liberdade nesta paixão: traduzir em autonomia a obediência à lei da palavra. Sem
o que, e se a paixão se tornar sujeição, aparece a loucura”
454
.
A tecelagem da escritura, desta feita, assemelhar-se-ia a um êxodo – “uma
localidade de exclusão” que é imemorial. “A tradição como aventura”, diz
Derrida, pois “o poeta e o judeu não nasceram aqui mas lá embaixo” e, por isso,
“erram, separados do seu verdadeiro nascimento. Autóctones apenas da palavra e
da escritura. Da Lei. (...) Filhos da terra que está para vir”
455
e, como
conseqüência, seu caminho a ser trilhado supõe a travessia de um deserto (“E o
452
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 54.
453
JABÈS, E. Le livre des questions. Paris: Gallimard, 1963. Citado por DERRIDA, J. “Edmond
Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 54.
454
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 55.
455
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 56.
191
deserto cresce...”, lembra insistentemente Heidegger sobre o Zaratustra de
Nietzsche). Mas o deserto é inevitável e só se pode mesmo é trilhá-lo. “A escritura
é o momento do deserto como momento da separação”
456
, mas faz-se mister
lembrar que, como mostrou Lévinas em Du Sacré au Saint e Derrida lembrou em
Force de Loi
457
, a palavra utilizada pelos judeus para designar a separação é
Kadosh, que é ao mesmo tempo santidade. Para Lévinas – depois de seguir a
sugestão de Derrida apresentada em “Violence et Métaphysique” de que sua
tentativa de traduzir a experiência hebraica para o idioma grego seria uma
violência ou mesmo uma incoerência com sua proposta – o abandono do termo
grego “ética” dá-se em favor do uso de “santidade”, que seria o oposto da
estrutura religiosa, da normatividade do “sagrado”. Se a sacralidade é a
prescritividade moral e empírica, a santidade apresentaria uma outra experiência,
esta de separação que Derrida aqui fala, a Kadosh – que não se dá, como no
sagrado, na ordem do logos ou do dever ser ou bem-agir, mas que só pode
acontecer por graça – ou em outra palavra, como dom.
O poeta, em seu êxodo – ou ainda, aquele que quer escrever, que quer
escrever a escritura, ou seja, ser escrito – participa desta santidade e torna-se,
assim, um homem “separado”, que, ao mesmo tempo, caminha errante entre uma
palavra desde sempre perdida, de seu passado que é rastro, rumo a uma palavra
prometida, mas de um messianismo sem messias, que nunca chegará: “O livro
desértico é de areia, ‘de areia louca’ [dizia Jabès], de areia infinita, inumerável e
vã”
458
– a errância mesma da escritura. E esta errância é o que caracteriza a
angústia da escritura, como Derrida já havia se referido anos antes em “Força e
significação”, antecipando a futura relação que teria com um pensamento de certo
modo avesso ao estruturalismo como o de Antonin Artaud. Ele diz: “falar mete-
me medo porque, nunca dizendo o suficiente, sempre digo tamm demasiado”
459
. Mas, neste ato, nesta angústia que quer dar conta do “sopro da palavra”, corre-
se também um risco – esta angústia é efeito do fato de que a escritura sempre
constrange a palavra, como que, insistindo nas metáforas derridianas, retirasse-a
do ar e fizesse-a tornar-se terra, em outras palavras, saísse do livro espiritual e
tornar-se escritura, efeito de escritura, disseminação.
456
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 58.
457
DERRIDA, J. Force de loi, p. 958.
458
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 59.
459
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 21.
192
A travessia do livro é a eterna tentativa de se sair do deserto da palavra,
ainda que se saiba que só há deserto, que “o deserto cresce: ai daquele que
encobre desertos!”
460
Assim, não se pode mais conceber a unidade do livro,
sendo ele sempre abertura e infinitude, como a kadosh levinasiana que exprime a
separação infinita do Outro e que “só é respeitada nas areias de um livro em que a
errância e a miragem são sempre possíveis”
461
; também assim, só se pode
conceber a “presença” de um livro como uma espécie de “ausência”, pois, a partir
de então, tendo Le livre des questions como metonímia para o Livro como um
todo, todo livro passa a ser um livro sobre o livro. Derrida diz: “A ausência tenta
produzir-se a si própria no livro e perde-se ao dizer-se; ela sabe-se perdedora e
perdida, e nesta medida permanece intacta e inacessível. Aceder a ela é perdê-la;
mostrá-la é dissimulá-la; confessá-la é mentir”
462
. Que se tente, um pouco,
entender o que esta ausência “quer dizer”.
1. Ausência como ausência de lugar: este “livro do livro”, que é o fim do
livro e o começo da escritura, mas que de modo algum busca centrar-se em uma
metalinguagem, não possui lugar, situa-se entre a cidade e o deserto e, como se
vê, “nada floresce na areia ou entre os paralelepípedos, a não ser as palavras”
463
.
Como é impossível esconder este deserto – mas que tem sido a tentativa da quase
totalidade dos livros que se pensam escritos –, o poeta que escreve a escritura
quer, ao contrário, proteger este deserto, que é o que protege a palavra (que só
pode ser dita no deserto), e que, desta maneira, é o escritor que protege a escritura
que rasga seu deserto
464
.
Isto é, inventando, sozinha, um caminho inencontrável e não-assinalado, cuja
linha reta e cuja saída nenhuma resolução cartesiana pode assegurar-nos. (...)
Sem o saber, a escritura ao mesmo tempo desenha e reconhece, no deserto, um
labirinto invisível, uma cidade na areia. (...) E ainda esta passagem do deserto à
cidade, esse Limite que é o único habitat da escritura.
465
460
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra, p. 306.
461
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 59.
462
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 59.
463
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 60.
464
Lembro-me aqui da noção de rasgão à qual Heidegger se refere em Qu’appelle-t-on penser ao
ler o deserto de Zaratustra (HEIDEGGER, M. Qu’appelle-t-on penser? Paris: PUF, 1967),
associando esta idéia com a noção de “fazer sulcos no deserto” apresentada aqui por Derrida
(DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 60).
465
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, pp. 60-61.
193
2. A ausência como ausência do escritor: se escrever é retirar-se de sua
própria escritura, então, ser escritor é saber abandonar a palavra, deixá-la
desamparada para que ela caminhe sozinha. Derrida relembra o Fedro, quando
Platão diz que a escritura é privada da assistência de um pai (do logos), e tal é a
razão de seu repreendimento. Estes aspectos de ausência (tanto do remetente
como do destinatário) retornarão tanto em “Assinatura acontecimento contexto”
como em A farmácia de Platão. Mas, então, neste sentido, cabe ao poeta
abandonar a palavra para, justamente, estar lá apenas para dar-lhe passagem e,
contudo, só escrevendo posso existir, sendo pela escritura nomeado. Decorrente
disto, rompendo-se simultaneamente com a presença e com a unidade do livro,
toda escritura passa a ser aforística, pois “nenhuma ‘lógica’ (...) pode acabar com
a sua descontinuidade e com a sua inatualidade essenciais, com a generalidade dos
seus silêncios subentendidos
466
.
Pretender reduzi-lo [o aforismo] pela narrativa, pelo discurso filosófico, pela
ordem das razões ou pela dedução, é desconhecer a linguagem, e que ela é a
própria ruptura da totalidade. O fragmento não é um estilo ou um fracasso
determinados, é a forma do escrito. (...) Supondo que a Natureza recusa o salto
[natura non fasti salti], compreende-se porque a Escritura jamais será a Natureza.
Só se procede por saltos. O que a torna perigosa. A morte passeia entre as letras.
Escrever, o que se denomina escrever, supõe o acesso ao espírito pela coragem de
perder a vida, de morrer para a natureza.
467
“Todas as letras formam a ausência”
468
, diz Jabès, reforçando a noção de que esta
ausência, por enquanto dúplice, que se apresenta na não-unidade do Livro,
configura uma espécie de “permissão” dada às letras para se soletrarem e
significarem, ao mesmo tempo em que “significa” a torção sobre si da linguagem,
ou seja, ausência que possibilita a futura significação e apropriação das palavras,
mas sem a qual nenhum sentido ulterior seria possível, não-lugar que aponta a um
lugar por vir no qual as palavras terão algum sentido ao menos aparente.
3. A ausência como o sopro da letra: se a letra vive, e, mais ainda, se ela
vive como aforismo, ela traz consigo a solidão, ela diz a solidão e vive da solidão,
pois supõe desde sempre a separação da infinita distância do Outro. E se assim
não o fosse, se não comportasse este respeito à diferença e à distância do outro,
466
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 63.
467
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 63.
468
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 63.
194
seria uma letra morta, uma interdição da solidão e uma não-relação: a isto, Derrida
vai chamar, obviamente como mais uma metáfora entre outras, de uma “quase
animalidade da letra” que se quase-fenomenaliza através de seu desejo, de sua
ansiedade e de sua solidão. Todavia, ainda assim, como uma metáfora a mais
entre tantas metáforas, como toda metáfora ela traz em si a própria produtividade
metafórica da metáfora, o que se chamou de “metaforicidade mesma”, ou seja, “é
sobretudo a própria metáfora, a origem da linguagem como metáfora” e o que
pode conferir ao significante alguma feição viva, produzindo-se tão-somente “na
inquietação e na errância da linguagem sempre mais rica que o saber, tendo
sempre movimento para ir mais longe do que a certeza pacífica e sedentária”
469
.
Isto, em termos derridianos, essa angústia de separação e de solidão é o
que vai articular (sempre out of joint) o grito e a escritura que se cantam através
dos livros. Se antes, na brisura urbano-desértica, Derrida disse:
Como o deserto e a cidade, a floresta, onde formigam os signos amedrontados,
diz sem dúvida o não-lugar e a errância, a ausência de caminhos prescritos, a
ereção solitária da raiz ofuscada, fora do alcance do sol, em direção a um céu que
se esconde. Mas a floresta é também, além da rigidez das linhas, das árvores em
que se agarram as letras enlouquecidas, a madeira que a incisão poética profere.
470
Ele o fez no intuito de mostrar que se, segundo a lógica do enxerto, a árvore não
pertence ao jardim, nunca pertencera, e o deserto nunca pertencera à cidade, o
poeta escritor só pode possuir alguma “liberdade” na escolha entre uma solidão na
natureza ou na solidão que, sob a forma de um assombramento, instala-se na
instituição – que é a solidão da escritura, da lógica do enxerto, da ficionalidade da
língua, da metaforicidade mesma, da autobiografia, da relação com o outro, enfim,
através dos quais (e somente assim) os signos parecem possíveis. Agora, nesta
articulação entre a escritura e o grito, que parece pôr em questão a supremacia
bíblica do verbo sobre o homem, em favor da escritura para-além da palavra (o
que de modo algum parece desafinar do tom nietzschiano contra a palavra),
Derrida diz:
O canto não mais cantaria se a tensão só fosse de confluência. A confluência tem
de repetir a origem. Canta esse grito porque faz aflorar, no seu enigma, a água de
469
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 65.
470
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 64.
195
um rochedo fendido, a fonte única, a unidade de uma ruptura que brota. Depois as
‘correntes’, as ‘afluências’, as ‘influências’. Um poema corre sempre o risco de
não ter sentido e ele nada seria sem este risco. (...) Entre a carne demasiado viva
do acontecimento literal e a pele fria do conceito corre o sentido. É assim que
passa no livro. Tudo se passa no livro. Tudo deverá habitar o livro. Os livros
também. Por tal razão o livro jamais está acabado. Permanece sempre em
sofrimento e vigília.
471
Jabès dirá que o livro sempre se situa no livro e que, portanto, toda saída
“para fora” do livro está, desde sempre, já dada no livro e, desta maneira, a
escritura, para comportar em seu fim seu para-além de si mesma, deve apresentar-
se sempre como “dilaceramento de si em direção ao outro na confissão da
separação infinita”
472
, porque se for apenas uma forma de “arte pela arte”, um
prazer, uma satisfação, ela estará destruindo a si mesma. No entanto, toda
exterioridade, e, por conseguinte, toda negatividade, produz-se no livro – esta
“alteridade infinita” não pode descrever-se e escrever-se senão no livro,
deduzindo-se, assim a fórmula “ser é ser-no-livro”
473
, o que quer dizer que não se
pode sair do livro a não ser no “interior” mesmo do livro.
A não-pergunta de que falamos é a certeza não enfraquecida de que o ser é uma
Gramática; e o mundo na sua totalidade um criptograma a constituir ou a
reconstituir por inscrição ou decifração poéticas; que o livro é originário, que
toda coisa é no livro antes de ser para vir ao mundo, só pode nascer abordando o
livro, só pode morrer malogrando em vista do livro; e que sempre a margem
impassível do livro está primeiro.
474
Mas, como se verá mais detalhadamente bem adiante, quando se falará na questão
da tradução, estes aspectos do livro trarão consigo o que Derrida chama de
“ilegibilidade radical” da escritura que produz, também (junto ao não-lugar e à
não-unidade), a angústia, e, ao contrário de supor uma irracionalidade ou
ilogicidade, não sendo um momento anterior ao logos nem tampouco uma relação
simétrica à razão, é a própria possibilidade do livro – e a subseqüente
possibilidade de leituras lógicas ou racionais destas escrituras. Com isso, não se
pode distinguir claramente onde se inicia uma ontologia e onde terminaria uma
gramática, sendo a escrita o duplo entrelaçamento destas razões em que a
literatura seria apenas uma instância privilegiada por deixar entrever este traço
471
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, pp. 66-68.
472
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 69.
473
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 69.
474
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 70.
196
“constitutivo” de toda escritura, que “difere-se e escreve-se como diferência
[différance]”
475
.
ainda sobre o livro
A “Elipse” que se segue a “Edmond Jabès e a questão do livro” é de fato um
prolongamento destas questões sobre o livro e, por esta razão, está aqui incluída
como um apêndice neste longo apêndice. Nesta elipse, à qual Jean-Luc Nancy se
deteria alguns anos depois
476
, vê-se algumas possíveis definições para esta
escritura para-além e para-aquém do livro: escritura seria “uma partilha sem
simetria” que “desenhava de um lado o fechamento do livro, do outro a abertura
do texto” e que, portanto, “a questão da escritura só se podia iniciar com o livro
fechado”
477
. Mas não se acabara de afirmar que este fora do livro só há no livro,
que a escritura pensada como este além do livro só pode ser pensada a partir do
livro? Tal é a questão à qual Derrida agora vai se deter brevemente a partir do
livro Le retour au livre, de Jabès
478
.
Então como se pensar este fechamento do livro, senão como um
movimento de errância que, de certo modo, acaba por repetir a “época do livro”.
No entanto, tal repetição que parece aqui necessária não configura uma reedição
do livro, mas, antes, “descreve a sua origem desde uma escritura que já não lhe
pertence, que finge, repetindo-o, deixar-se compreender nele”
479
– o que
permitiria compreendê-la como a primeira escritura. Se, para Jabès, “escrever é
ter a paixão de origem”, esta arque-escritura é a escritura de origem, que descreve
a origem ao mesmo tempo em que indica seu desaparecimento, e sua paixão por
esta sua escritura. Contudo, esta paixão é afetada não pela origem mesma, mas o
que, neste movimento, desempenha seu papel, nem a presença da origem, nem sua
ausência, mas o rastro “que substitui uma presença que jamais esteve presente,
uma origem pela qual nada começou”
480
.
475
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, 1995, p. 72.
476
Ver NANCY, J.L. “Elliptical sense”, in: WOOD, D. Derrida: a critical reader. Oxford;
Blackwell, 1992.
477
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 73.
478
JABÈS, E. Le retour au livre. Paris: Gallimard, 1965. Na verdade, é a terceira parte do Livre
des questions, de 1963, antecedido por Livre de Yukel, de 1964.
479
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 74.
480
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 74.
197
E do mesmo modo que a escritura, como esta “paixão de origem” é
apaixonada pela origem, a própria origem é, ela também, apaixonada e, por isso,
suscetível a ser escrita e, logo, inscrita. Em outros termos, escritura, repetição e
inscrição articulam-se de tal modo que este “retorno ao livro” passa a ter como
única essência possível a estrutura de elipse: ou seja, “algo invisível falta na
gramática desta repetição. Como esta falta é invisível e indeterminável (...) nada
se modificou. E contudo todo o sentido é alterado por esta faixa”
481
. Ao ser
repetida, o algo que se repetiu não é mais o mesmo algo antes de ser repetido, de
modo semelhante à lógica que Deleuze apresenta em Diferença e repetição, esta
“origem” de certo modo atua devido à falta para que o círculo do mesmo seja
perfeito e se feche
482
. A herança nietzschiana aqui é óbvia (e certamente o que
ligaria aqui Derrida a Deleuze, Foucault, Blanchot e Klossowski, entre outros),
pois este regresso ao livro assume a estrutura de um “eterno retorno” que, não
sendo um eterno retorno do mesmo, comporta um “poder ilimitado de perversão e
subversão”
483
. Este traço da escritura como repetição é o que faz desaparecer a
identidade a si da origem e, com isso, toda identidade a si, toda presença a si
pretensa na palavra e, neste movimento, entrevê-se o abismo quando se lê um
livro no livro, uma origem na origem, neste “sem-fundo da reduplicação infinita”
em que “o outro está no mesmo” e que “o centro está talvez no deslocamento da
pergunta”. Enfim, quando se constata que “não há centro quando o círculo é
impossível”
484
.
Retorna-se assim à questão do centro e, como conseqüência, a questão do
jogo, pois a escritura passa a delinear-se sobre a tênue linha entre o
descentramento e a afirmação do jogo, pressupondo um sujeito ausente e um saber
também ausente, produzindo-se sob a forma de um “quem sabe?”.
Se o centro for realmente ‘o deslocamento da pergunta’, é porque sempre se
denominou o inominável poço sem fundo de que ele próprio era o signo; signo do
buraco que o livro quis encher. O centro era o nome de um buraco (...). O
volume, o rolo de pergaminho deviam introduzir-se no buraco ameaçador,
penetrar furtivamente na habitação ameaçadora, com um movimento animal,
vivo, silencioso, liso, brilhante, escorregadio, à maneira de uma serpente ou de
um peixe. Tal é o desejo inquieto do livro. Tenaz também e parasitário amando e
481
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 75.
482
Sobre isso ver DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
483
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 76.
484
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 76.
198
aspirando por mil bocas que deixam mil marcas na nossa pele, monstro marinho,
pólipo.
485
A constantemente referida angústia da escritura, que não obstante é uma
desesperada paixão, parece adquirir, em algum momento, a tranqüilidade ou
serenidade neste retorno ou nesta repetição. Resta a afirmatividade “dançante e
cruel de uma economia desesperada”
486
, já que, como poetas, habita-se o
labirinto, escreve-se o buraco no qual labirinto e abismo coincidem-se,
“penetrando na horizontalidade de uma pura superfície, representando-se a si
própria de meandro em meandro”
487
.
Tem-se, então, um livro, o livro eternamente recomeçado, reescrito de um
lugar que não se situa nem dentro nem fora do livro, mas na própria abertura à
escritura que o livro traz consigo em seu reenvio. Tal livro permanece aberto,
preocupando-se em dizer não ao fechamento, enquanto é infinitamente aberto e
infinitamente refletido sobre si mesmo – o que, nos termos derridianos, possibilita
que se perceba o redobramento ou a dupla origem do livro. “Logo que o centro ou
a origem começaram por se repetir, por se redobrar, o duplo não se acrescentava
apenas ao simples. Dividia-o e fornecia-o”, diz Derrida, fazendo, de certo modo
judaico, ecoar a eleidade levinasiana quando prossegue dizendo que “havia
imediatamente uma dupla origem mais a sua repetição. Três é o primeiro número
da repetição. O último também, pois o abismo da representação permanece
sempre dominado pelo seu ritmo, ao infinito”
488
.
O infinito, como se verá no capítulo dedicado à alteridade, não pode ser
compreendido como a neutralidade, ou o sem valor, nem como a unidade, a
totalidade. Tampouco pode ser inumerável, senão não permitiria a jogabilidade do
jogo e, por este motivo, assim como Lévinas, Jabès vai afirmar que o infinito “é
de essência ternária
489
, pois o dois seria inútil ao jogo do livro, enclausurando-o
no jogo do mesmo e da repetição infértil, na qual não há espaço para o novo, para
a indizível alteridade.
485
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 78.
486
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 79.
487
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 79.
488
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 80.
489
DERRIDA, J. “Elipse”, p. 80.
199
A junção é a quebra [grifo meu]. (...) Se nada precedeu a repetição, se nenhum
presente vigiou o traço, (...) então o tempo da escritura já não segue a linha dos
presentes modificados. O futuro não é um presente futuro, ontem não é um
presente passado. O além do fechamento do livro não deve ser esperado nem
encontrado. Está mas além, na repetição mas evitando-a. Está lá como a
sombra do livro, o terceiro entre as duas mãos que seguram o livro, a diferência
[différance] no agora da escritura, a distância entre o livro e o livro, essa outra
mão...
490
A junção out of joint, a brisura, a umidade da obra que não pode ser, de modo
algum, seca, circunscrita, que se dérobe toujours... A alteridade mesma
sopros
O spiritus é por excelência uma questão filosófica – e, portanto, pode ser (o que
Derrida defende em inúmeras obras) a questão da questão. Se há a questão é
porque se pensa que há o “espírito” da questão, que há o que deve ser, antes e
acima de tudo, pensado. É neste sentido que Derrida vai, para além da óbvia
relação com a animação bíblica do homem, pensar a questão do espírito como
aquilo que persiste na filosofia e que, de modo impressionante, culmina com
Hegel na forma do Espírito Absoluto, na síntese absoluta e reconciliadora de toda
diferença, no “Nós” hegeliano que já se indica como mais verdadeiro que toda
dialética da servidão e escravidão no Capítulo IV da Fenomenologia do Espírito.
Mas tal questão também se estende, de modo mais sutil, em Heidegger, tanto na
referência a um certo “nós” (desde Ser e Tempo, o Dasein: este ente que somos;
este nós que sempre se move em uma pré-compreensão do Ser
491
) como no
pensamento de um Zeitgeist, deste “nós” que habita a clareira do Ser, este “nós”
que permanece preso a um pensamento técnico, este “nós” se dá no acontecimento
da linguagem etc.
492
. Assumindo-se herdeiro de Lévinas, mais uma vez, Derrida
em “Edmond Jabès e a questão do livro” vai contrapor uma escrita que tem como
pressuposto a letra, o Livro, o grama – tradição esta de certo modo hebraica – a
490
DERRIDA, J. “Elipse”, pp. 80-81.
491
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, parte I, p. 31.
492
Sobre isso, ver DERRIDA, J. Do Espírito: Heidegger e a questão. Neste texto, pode-se ver
como há uma insistência heideggeriana na questão do espírito e, portanto, na questão da questão:
desde Ser e Tempo a Carta sobre o Humanismo, A questão da técnica, A origem da Obra de arte,
A caminho da linguagem entre tantas outras obras das diversas “fases” de Heidegger.
200
um texto socrático, espiritual, soprado e que teria, contra a “animalidade da letra”
e da Gramática, a “miséria da letra”, ou “o pneumático”
493
.
Mas, então, porque, de certo modo, haveria em A escritura e a diferença
certa atenção à postura artaudiana com relação à ontologia e à metafísica, se esta
parece imediata e assumidamente uma inversão, uma aposta no pólo corporal, na
escatologia invertida, ou seja, em um sopro às avessas, quase um flato? Após as
setenta páginas que Derrida dedica ao dramaturgo, divididas em dois artigos (“A
palavra soprada”, editada pela primeira vez em 1965 na revista Tel Quel, e “O
teatro da crueldade e o fechamento da representação”, conferência proferida no
Festival internacional de teatro universitário de Parma, em 1966 e posteriormente
publicado em Critique, 230, julho de 1966), lê-se o seguinte:
Pensar o fechamento da representação é portanto pensar o poder cruel da morte e
do jogo que permite a presença de nascer para si, de usufruir de si pela
representação em que ela se furta em sua diferência [différance]. Pensar o
fechamento da representação é pensar o trágico: não como representação do
destino mas como destino da representação. A sua necessidade gratuita e sem
fundo. Eis porque no seu fechamento é fatal que a representação continue.
494
E estas serão as palavras que tomarei como guia em direção a uma conclusão a
este parágrafo.
Não obstante suas diferenças, em “A palavra soprada”, Derrida acaba por
aproximar certo discurso clínico do discurso crítico. A epígrafe de Artaud de L’art
et la mort que diz que “quando escrevo só existe aquilo que escrevo” pode dar as
pistas para o empreendimento desconstrutivo às quais as tantas páginas seguintes
serão dedicadas: e assumindo-se claramente a tentativa de, ainda que enxergando
a possibilidade de um discurso entre a clínica e a crítica, não ceder a nenhuma
destas posturas em nome da já mencionada “afirmatividade mesma” do
pensamento. Inspirado pelas leituras de Blanchot e Foucault, Derrida vai tomar
Artaud, o homem Artaud, a vida de Artaud, como a própria impossibilidade do
pensamento e o erro inevitável de se querer pensar o impensado, sem cair nem em
uma redução psicológica nem em uma redução eidética – não é o “caso” Artaud
que lhe interessa nem mesmo uma colocação entre parênteses da obra artaudiana
com relação a seu criador. Artaud teria sido o grande reconhecedor do impoder
493
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, p. 65.
494
DERRIDA, J. “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, p. 177.
201
que é essencial ao pensamento e da restança do grito quando “pensar é sempre já
não poder pensar ainda”
495
. A vida de Artaud, seu pensamento, suas atitudes e
sua obra não passariam, segundo o próprio, de um “erro patético”
496
, ou seja,
“essa impossibilidade de pensar que é o pensamento”: “eis a verdade que não se
pode descobrir, pois sempre se desvia e o obriga a senti-la abaixo do ponto em
que verdadeiramente a sentiria”
497
.
Então, a princípio, Artaud contra Hegel, pois enquanto este representaria
um dos grandes momentos da vida separada do pensamento, aquele acharia isto
um escândalo, buscando entregar-se à selvageria de um pensamento impossível.
E, assim, depois, Artaud como um outro exemplo deste pensamento soprado. Eis
o que se deve entender para concluir as indicações de um rompimento que Derrida
seguiria nos anos posteriores, abandonando tanto à noção de estrutura como a de
jogo e tentando pensar esta “afirmação” do pensamento, que tem por nome aqui
“o teatro da crueldade”:
O teatro da crueldade
não é o símbolo de um vazio ausente,
de uma terrível incapacidade de se realizar na sua vida
de homem,
é a afirmação
de uma terrível
e aliás inelutável necessidade.
498
A escritura, de certa maneira, comportaria este aspecto “trágico” como afirmação
seguindo o mesmo movimento do teatro da crueldade, não sendo símbolo de
nenhum vazio ausente, do qual muito comumente se costuma acusar Derrida, e
apontando a esta incapacidade de realização (no caso, não “humana”, mas inerente
à própria escritura) de acordo com esta terrível e inelutável Necessidade
(utilizando-me do termo em maiúscula como Derrida o utilizou em Gramatologia
para apontar a esta necessidade de desconstrução que o pensamento desde sempre
comporta).
495
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 110.
496
Citado por BLANCHOT, M. Le livre a venir, p. 48. Citado por DERRIDA, J. “A palavra
soprada”, p. 110.
497
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 110.
498
ARTAUD, A. Le théâtre de la Cruauté. Paris: Gallimard, 1948, p. 124. Citado por DERRIDA,
J. “A palavra soprada”, p. 111.
202
Não o “caso” Artaud nem o “fenômeno” Artaud, mas uma atenção à
“escritura” artaudiana: que não diz apenas, como Hölderlin e Mallarmé, que a
inspiração seria este “ponto puro” na falta da palavra – e Derrida adverte que se
deve ao máximo tentar evitar que se ceda a este impulso generalizador do
pensamento, pois “cada poeta diz o mesmo, e não é contudo o mesmo, sentimo-lo
bem”
499
–, esta “obra” diz também o caráter sempre perturbador do pensamento,
que o que se deve pensar é o que sempre está a desviar-se no pensamento, o que
está sempre a inesgotavelmente a se esgotar nele, donde se conclui que, nesta
tragicidade afirmativa, sofrimento e pensamento ligam-se de modo secreto. E é
esta angústia, esta relação com o impossível que Derrida busca preservar na
experiência do pensamento, sem que se console através de nenhum discurso
estruturalista, historicista, fundamentalista ou onto-teológico. Afastando-se das
leituras de Blanchot e de Foucault, e ainda mais da de Laplanche, Derrida não
quer ver em Artaud, menos ainda na loucura, um caso “único e exemplar”
500
; de
modo diverso, se todo discurso é fadado a uma certa derrota, não podendo ser
verdadeiramente um discurso sem correr este risco de se destruir a si próprio, os
“gritos de Artaud” não podem servir como exemplo, não se pode esperar deles
nenhuma lição – e, por conseguinte, tornar “Artaud” um caso único e exemplar
seria caminhar rumo ao que o próprio Artaud queria destruir, “aquilo sobre que
recaíam constantemente seus gritos raivosos”
501
. Em outras palavras:
O que seus urros nos prometem, articulando-se com os nomes de existência, de
carne, de vida, de teatro, de crueldade, é, antes da loucura e da obra, o sentido de
uma arte que não dá ocasião para obras, a existência de um artista que não é mais
a via ou a experiência que dão acesso a outra coisa além delas próprias, de uma
palavra que é corpo, de um corpo que é teatro, de um teatro que é um texto
porque não está mais submetido a uma escritura mais antiga que ele, a algum
arquitexto ou arquipalavra.
502
E prossegue:
Se Artaud resiste totalmente – e, cremo-lo, como ninguém mais o fizera antes
[grifo meu] – às exegeses clínicas ou críticas – é porque na sua aventura (e com
esta palavra designamos uma totalidade anterior à separação da vida e da obra) é
499
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 111.
500
FOUCAULT, M. “Le nom du père”, in: Critique, março de 1962, p. 209. Citado por
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 114.
501
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 115.
502
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 115.
203
o próprio protesto contra a própria exemplificação. O crítico e o médico ficariam
aqui sem recursos perante uma existência que se recusa a significar [grifo meu],
perante uma arte que se quis sem obra, perante uma linguagem que se quis sem
rasto. Isto é, sem diferença.
503
Assim, pode-se já entrever o nódulo do pensamento que Derrida pretende
desconstruir, tanto no que é exaltado como no que é problemático. Com toda sua
mestria na não-exemplaridade, com toda a força de sua recusa à unicidade, os
gritos de Artaud pretendem dirigir-se a uma manifestação “pura” da vida,
apostando ainda na prevalecimento de um corpo que não se deixaria decair em
signo ou em obra, tentando, como foi mostrado, destruir a metafísica dualista que
polariza o corpo em alma e corpo através da tentativa de manter sua palavra
soprada pelo corpo.
O sopro quer dizer, aqui, roubo. No teatro da crueldade, o público não
existe fora de sua cena, nem antes nem depois dela, aliás, nem pode existir como
público – são estes antes os “ladrões da palavra”. Quando a palavra cai do corpo e
dá-se a ouvir e a ser recebida como espetáculo já é palavra roubada, mas este não
é um roubo entre tantos outros. Se a pulsão da escritura é a pulsão de apropriação,
a palavra roubada ocupa um lugar, que não sendo único nem exemplar, merece
uma atenção especial, pois o roubo da palavra possibilita que se pense a própria
estrutura do roubo, a “roubabilidade mesma” pertencente à escritura e que pode
ser o único exemplo exemplar, pois o exemplo, todo exemplo, é, desde sempre,
roubado, exemplarmente roubado. Também porque este “sopro” pode ser
entendido com a inspiração, isto é, inspiração por alguma outra voz, a inspiração
como roubo ou, mais ainda, como o drama do roubo. É isso que Artaud percebe
na estrutura mesma da linguagem e é isto que, com seu teatro da crueldade, ele vai
combater: tentar destruir a inspiração poética, a metafísica, a religião e a estética
no intuito de abrir o mundo para o “Perigo” que estas invenções humanas
desejariam afastar. Em outras palavras, “restaurar o Perigo despertando a Cena da
Crueldade”
504
.
Desta maneira, Derrida pretende seguir os rastros de Artaud neste
empreendimento, segundo o próprio, com uma pequena diferença de um “deslize
calculado” que, como se deve já pressupor, se afastaria de qualquer tentativa de
503
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, pp. 115-116.
504
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 117.
204
manter a escritura “imune” deste algo outro, que seria, de certo modo, “original”.
Tentando compreender estes passos que Derrida segue de Artaud, o primeiro
aspecto a ser tematizado é o “impoder”, que não sendo de modo algum uma
espécie de impotência é a própria inspiração, a força de um vazio, um turbilhão
do sopro. Para o dramaturgo, esta é a generosidade da inspiração: “a irrupção
positiva de uma palavra que vem não sei de onde, (...) que não sei donde vem nem
quem a fala, essa fecundidade do outro sopro é o impoder”. E prossegue:
“Relaciono-me comigo no éter de uma palavra que me é sempre soprada e que me
furta exatamente aquilo com que me põe em contato”
505
. Deste modo, não é da
ausência da palavra que se trata, mas antes de sua “irresponsabilidade” que não
concerne nem à moral, nem à lógica e nem à estética, já que se trata de uma
“perda total” da própria existência; esta “erosão” produz-se em primeiro lugar no
Corpo e na Vida, pensadas, para Artaud, para-além de qualquer determinação
metafísica, representando a expressão máxima do “furtivo”.
O furtivo é – em latim – o modo do ladrão; que deve agir muito depressa para me
tirar as palavras que encontrei. Muito depressa porque tem de se infiltrar
invisivelmente no nada que me separa das minhas palavras, e de as sutilizar antes
mesmo que eu as encontre, para que, tendo-as encontrado, eu tenha a certeza de
sempre ter sido já despojado delas.
506
Ao contrário do que se pode pensar, Artaud não ignora o sentido “próprio” da
palavra, mas ele pretende se manter no movimento de sua desaparição. Ele sabe
que as palavras são sempre repetidas e o que ele pretende em O Teatro e seu
duplo é justamente propor uma encenação em que a repetição seja impossível,
pois não há mais sujeito segundo esta lógica do “rapto furtivo”: “o furtivo seria
portanto a virtude desapropriante que escava sempre a palavra na subtração de si”,
e prossegue, retornando ao caráter de roubo que a palavra furtivo comporta e, com
o tempo, pareceu apagar, “é o roubo do roubo, o furtivo que se furta a si mesmo
num gesto necessário – para o invisível e silencioso roçar do fugitivo, do fugaz e
do fugidio”
507
.
No entanto, como posso saber onde e como procurar as palavras, as
minhas palavras e a minha língua na qual devo escrever? Se, para Artaud, o
505
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 118.
506
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 119.
507
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 119.
205
próprio ato de falar é sempre uma repetição, se as palavras que eu penso que
encontrei, por serem palavras já não me pertencem, são originariamente repetidas,
então a estrutura do roubo já está implícita na própria língua. Toda palavra é
palavra roubada: roubada da língua, roubada pela língua, roubada de si mesma e,
por isso, roubada já do ladrão que pensa que a rouba. Este traço que pode apontar
um “buraco existencial” que serviria de exemplo para os discursos existencialistas
e psicanalíticos que tanto o violentaram, que violentaram inclusive o próprio
Antonin Artaud, devem, longe de insuflar tais discursos, sutilizar seu “poder
inaugurante” – o “espírito sutiliza”, diz Derrida
508
. Este sopro mais sutil faz
deslizar o pensamento – como se verá com relação à comunicação em “Assinatura
evento contexto” – de tal modo que a palavra proferida, a letra, é sempre roubada
porque é aberta. Em uma palavra, nunca é própria do seu autor nem do seu
destinatário. E em que lugar se situaria, então, a inspiração? Se não há exemplos
em Artaud, ao contrário há a tentativa de explosão da estrutura de exemplificação
e exemplaridade, a inspiração consistiria não nesta perda e desapropriação
original, mas em um ato mais original que esta originalidade, qual seja, “um sopro
de vida que não deixa que nada lhe seja ditado porque não lê e porque precede
qualquer texto”
509
, isto é, algo que restabelece o “eu” em uma verdadeira relação
consigo e, assim, restitui sua própria palavra, recaindo num solilóquio da Vida, no
qual, ao contrário do husserliano, a voz interior não proviria do pensamento, mas
do corpo – o que supõe, como já se sabe, um ideal de presença sob a forma de
origem, fundamento, “dignidade” etc.
O primeiro grito de Artaud, ainda que sob a feição de uma “metafísica da
carne”
510
, abriga a angústia da separação “originária”, do exílio, esta experiência
de desapropriação e desterro que antes foi mostrado em Jabès, em que a categoria
do “furtivo” indica uma desapropriação total da existência: do corpo e do espírito,
isto é, da carne. Quando Derrida antes indicara que acompanharia o movimento
do teatro da crueldade até certo ponto, em que propositadamente faria um deslize,
é porque, como já se sabe, este teatro tem, em sua inversão, um valor
incomensurável, mas é necessário que não se atenha tão somente a esta metafísica
508
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 121.
509
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 121.
510
Para compreender esta estranha ontologia à qual se dedica Artaud, remeto ao livro Antonin
Artaud: o artesão do corpo sem órgãos, de Daniel Lins (LINS, D. Antonin Artaud: o artesão do
corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000).
206
e que, portanto, se prossiga rumo ao deslocamento que ela própria já aponta. Em
um primeiro momento, então, Artaud vai dizer que “se a minha palavra não é o
meu sopro, se a minha letra não é a minha palavra, é porque meu sopro já não era
mais o meu corpo, porque o meu corpo não era mais o meu gesto, porque o meu
gesto não era mais a minha vida”
511
é porque, para ele, a Carne é sinônimo de
Existência. Diz ele: “sou um homem que perdeu a vida e que procura por todos os
meios fazer-lhe retomar o seu lugar [grifo meu]”
512
. Portanto, desejo de
restituição ainda, mas já, como se deve supor, nesta inversão ocorre a abertura
para um novo campo. Na negação da metafísica do Ser entra em jogo uma nova
experiência de pensamento, e ainda que uma leitura analítica de Artaud indicaria
apenas a inversão do esquema metafísico, como Heidegger tentou fazer com
Nietzsche e como os heideggerianos tentaram fazer com Lévinas, esta
incorporação de uma outra língua na filosofia abre espaço para o novo. Então, por
fim, e enquanto ainda se tiver fôlego, que se veja essa abertura exemplificada no
teatro artaudiano, em seu sopro.
orifícios
Fui roubado. Desde sempre. Por este Outro, este Ladrão ou grande furtivo que não
é ninguém senão o Deus. E tal furto só pode se ter dado pelo fato de minha carne
– isto é, minha existência, meu corpo e meu espírito – ter um orifício, o “buraco
existencial” que psicanalistas e fenomenólogos utilizaram como exemplo. “O
lugar da efração só pôde ser a abertura de um orifício. Orifício do nascimento,
orifício da defecação aos quais remetem, como à sua origem, todas as outras
aberturas”
513
. Assim como minha palavra, meu corpo, desde meu nascimento,
que por isso cheira a morte, fora roubado por este Outro apropriador e
desapropriante e, como conseqüência, a morte passa a ser vista como uma maneira
articulada de minha relação com o outro: “só morro do outro: por ele, para ele,
nele”. E denuncia o culpado: “E quem pode ser o ladrão senão esse grande Outro
511
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 122.
512
ARTAUD, A. Position de la Chair, I, p. 235. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p.
123.
513
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 123.
207
invisível, perseguidor furtivo duplicando-me por toda a parte, isto é redobrando-
me e ultrapassando-me, chegando sempre antes de mim aonde escolhi ir”
514
.
Em uma espécie de “alienação originária”, com a qual Derrida certamente
concorda, esconde-se uma melancolia, mais ainda, uma nostalgia de “pureza”
perdida do corpo. Sobre um desenho de Rodez, Artaud escreve La mort et
l’Homme, em que pergunta ao demiurgo: “O QUE FIZESTE DO MEU CORPO,
DEUS?”:
Ora não havia mais ninguém exceto eu e ele,
ele
um corpo abjeto
que os espaços não queriam,
eu
um corpo que se fazia
por conseqüência ainda não chegado ao estado de acabamento
mas que evoluía
para a pureza integral
como o do denominado demiurgo,
o qual sabendo-se irrecebível
e querendo mesmo assim viver a todo custo
não encontrou nada melhor
para ser
do que nascer à custa do
meu assassinato.
Apesar de tudo o meu corpo refez-se
contra
e através de mil assaltos do mal
e do ódio
que cada vez o deterioravam
e me deixavam morto.
E foi assim que à força de morrer
acabei por ganhar uma imortalidade real.
E
é a história verdadeira das coisas
tal qual se passou realmente
e
não
como vista na atmosfera lendária dos mitos
que escamoteiam a realidade.
515
Vê-se bem a revolta contra aquele que lhe roubou a propriedade, seu próprio ser,
sua autenticidade, nos termos mais clássicos de uma Ontologia Fundamental e
que, possivelmente unido a uma visão dialética em que o Outro é sempre aquele
514
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 124.
515
ARTAUD, A. La mort e l’Homme, pp. 108-110. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”,
p. 125.
208
que impede meu desejo, que me interdita e que, por isso, é a pura negatividade,
Deus passa a representar um falso valor como o preço que paga todo aquele que
nasce. Talvez, neste sentido, a escrita artaudiana possa ser interpretada como
“esquizofrênica”, não devido à patologia clínica de Antonin Artaud, mas por
apresentar um pensamento que, de um lado, comungaria com Nietzsche e Freud e,
de outro, ser tão hegeliano e heideggeriano – isto é, tão “espiritualizado”.
Artaud é escatológico em todas as acepções deste termo: culpa o pai, o
logos, pelo seu “escuro nascimento”
516
, e, por isso, valoriza o excremento: o
valor originário, não o falso valor do demiurgo, é aquilo que deveria ter ficado
retido em mim, como eu mesmo deveria ter ficado retido em mim; e como fui
roubado quando me furtaram por meu orifício, ainda o sou novamente sempre que
alguma parte de mim ainda me abandona – a obra, o excremento que pode ser
usado como arma contra mim mesmo. Nas palavras de Artaud, a defecação seria
uma espécie de nascimento, um arque-roubo que ao mesmo tempo me deprecia e
me suja. E é por esta razão que no Teatro da Crueldade, a história de Deus será
vista como uma genealogia do valor furtado, ou seja, como “história da
defecação”
517
, história da obra como excremento que pressupõe a separação do
espírito do “corpo puro”. É por este motivo que Deus não cria, mas sim rouba, é o
usurpador por excelência, o contrário do verdadeiro artista que seria Satanás “que
com suas tetas úmidas só nos dissimulou o Nada”, já que “Deus é a minha
criatura, o meu duplo que se introduziu na diferença que me separa da minha
origem, isto é, no nada que abre a minha história”
518
.
Lembrando que Artaud morreu de um câncer no reto, não estou, junto a
Derrida, querendo reduzir seu pensamento a um caso patológico nem tentar
circunscrever a obra à referência bibliográfica, como muito se faz; antes, é no
intuito mesmo de mostrar a intrínseca relação entre a vida e a obra que isso se
mostra necessário. Talvez, ainda mais, para mostrar a coerência (palavra tão
estranha a Artaud) que o dramaturgo possui, coerência esta como a catatonia
nietzschiana de seus últimos doze anos de vida, quando este parece ter,
516
Ao contrário de Riobaldo, que “por ser de escuro nascimento”, por reconhecer sua ausência de
origem, torna-se mais fácil este lançar-se na vida que é travessia, descrita nas veredas do jagunço
(GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 31).
517
ARTAUD, A. Le Théâtre de la Cruauté, p. 121. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”,
p. 126.
518
ARTAUD, A. Le Théâtre de la Cruauté, p. 121. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”,
p. 127.
209
literalmente, prescindido do logos e como a de Freud e seu câncer na boca que,
excetuando-se o fato de seu habitual cachimbo, mostra como deveria ser difícil ser
o grande analista, o inventor da análise e que, portanto, não tinha analista – e
deixaria aqui em suspenso, por ignorância biomédica, e incluindo entre estes
Derrida como um dos grandes paradoxalmente coerentes no pensamento, o fato do
filósofo ter morrido vítima de um câncer no pâncreas... Talvez a relação da
desconstrução com a função pancreática seja algo a ser ainda pensado. Mas,
voltando aos excrementos artaudianos – o que quer dizer à sua obra, pois toda
escritura no dramaturgo é visto como “porcaria”, como o que não se pode
aproveitar e que, por isso, é dejetado – pode-se tentar compreender como, ao
solicitá-la, a própria metafísica é abalada através de uma “alienação da alienação”
ao mesmo passo que esta é ainda requerida, fonte de inspiração, se se pode assim
chamar, querendo ser a ela mais fiel que ela própria, neste impulso de restituição
que Artaud promove na tentativa de refazer um “corpo sem obra” (logo, um corpo
que não defeque, que retenha seu excremento, que retenha sua essência).
Pois é preciso ser um espírito para
cagar,
um corpo puro não pode
cagar.
Aquilo que caga
é a cola dos espíritos
encarniçados em lhe roubar alguma coisa
pois sem corpo não se pode existir.
519
Ou, nas palavras de Derrida:
A minha obra, o meu rasto, o excremento que me rouba do meu bem depois de eu
ter sido roubado por ocasião do meu nascimento, deve portanto ser recusado.
Mas recusá-lo não é aqui rejeitá-lo, é retê-lo. Para me guardar, para guardar o
meu corpo e a minha palavra, é necessário que eu retenha a obra em mim, que me
confunda com ela para que entre em mim e ela o Ladrão não tenha a menor
chance, que a impeça de cair longe de mim como escritura. (...) Deste modo, o
que me despoja e me afasta de mim, o que rompe a minha proximidade comigo
próprio, emporcalha-me: aí me separo do que me é próprio. Próprio é o nome do
sujeito próximo de si. (...) Tenho um nome próprio quando estou limpo.
520
519
ARTAUD, A. Le Théâtre de la Cruauté, p. 121. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”,
p. 127. Ou, mais ainda, quando páginas antes, Artaud diz: “Abrir a boca é oferecer-se aos
miasmas. / Assim, nada de boca! / Nada de boca, / nada de língua, / nada de dentes, / nada de
laringe, / nada de esôfago, / nada de estômago, / nada de ventre, / nada de ânus. / Reconstruirei o
homem que sou” (p. 102. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 135).
520
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, pp. 127-128.
210
Junto ao excremento, ao “pau fecal” como diz Derrida, ou como o “étron” ao qual
ele se refere em Éperons: les styles de Nietzsche, o pênis como metáfora também
é aludido, pois a obra é algo que deve erigir-se. Mas, como excremento, ela não
possui força e, por isso, a ereção cai e a obra nunca ficará de pé e eu jamais me
colocarei de pé através de minha obra, pois o “colocar de pé” seria a salvação – e
tal coisa só é possível em uma arte sem obra, em uma dança ou em um teatro da
crueldade, onde crueldade quer dizer vida. Deste modo, ao contrário do que se
pode pensar, o teatro da crueldade não é uma saída para a salvação; na verdade é a
própria soteriologia como escatologia do corpo limpo, do “corpo-limpo-de-pé-
sem-porcaria”
521
.
É por esta razão que a obra artaudiana não se deixaria representar por
nenhuma crítica ou nenhuma clínica: estas seriam o mal, seriam palavra tornada
obra de seu corpo limpo, sua sujeira, seu comentário. O teatro deve manter-se
íntegro ante a qualquer comentário para respeitar a vida do corpo, a carne viva,
sem se deixar precipitar na doença do não poder se colocar de pé na dança ou na
cena. O que quer dizer, mais radicalmente, se só há o furto originário e que nunca
houve a ereção fundamental, que a dança e o teatro ainda não começaram a
existir. Derrida, aqui, levanta a hipótese de que, mais que uma metáfora, como se
encontra em Hölderlin ou em Nietzsche, este estar-de-pé indica a impossibilidade
da ereção exilar-se na obra e, portanto, na soberania da palavra: “o estar-de-pé da
obra é, mais precisamente, o domínio da letra sobre o sopro. (...) A língua está,
isto é, mantém-se de pé, na visão da palavra, nos signos da escritura, nas letras”
522
. E, ao contrário de Nietzsche e Hölderlin, é a própria metáfora que Artaud quer
destruir, quer que seu estar-de-pé não seja apenas uma ereção metafórica como a
dança com a pena de Nietzsche, como quando se lê em Le Pèse-Nerfs: “Eu vos
disse: nada de obras, nada de línguas, nada de espírito, nada. Nada, senão um belo
Pesa-Nervos. Uma espécie de posição incompreensível e totalmente ereta no meio
de tudo no espírito”
523
.
Por mais que se tente sempre associar a Artaud certa filiação nietzschiana,
esta recusa metafórica parece contradizer estas interpretações. O dramaturgo
521
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 129.
522
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 130.
523
ARTAUD, A. Le Pèse-Nerfs, p. 96. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 130.
211
pretende matar a metáfora e lançar uma nova noção de Perigo com seu “estar-de-
pé-fora-de-si-na-obra-roubada” que é o teatro da crueldade, ou, melhor ainda, sua
aventura. Então, tentarei, muito brevemente, apontar como se dá esta “salvação”
na restituição da própria carne no teatro da crueldade.
cenas
Cena única: A destruição do teatro clássico. Para Artaud, a cena ocidental
clássica sustenta-se sobre um teatro orgânico, das palavras e, por isso, da
representação, da interpretação, da tradução de um original a ser “posto em cena”,
ou seja, de um “Deus-autor” que deve fielmente ser encenado. Esta figura de
autoridade divina emprestaria sua verdade a alguns “eleitos”, a alguns diretores
(estranhas figuras: eternos tradutores condenados a passarem uma obra dramática
de uma língua para outra) e autores (de algum modo, detentores de certa verdade)
que lhe seguissem. É por esta razão que para se romper com o teatro clássico é
necessária a redução dos órgãos: um movimento no qual não se contenta mais em
servir de “escravo” a este Deus-autor, ou seja, em ser simplesmente um órgão
nesta encenação divina, movido pela vontade de se tornar “o senhor daquilo que
ainda não é
524
.
Isto que se designa então uma diferenciação orgânica é o que, ao longo de
todo o teatro clássico, devastou o corpo, pois esta “organização” é o que articula,
junta funções e membros, é o trabalho de diferenciação, sendo o que configura ao
mesmo tempo a unidade e a fragmentação do corpo. Para Derrida, “Artaud teme o
corpo articulado tal como teme a linguagem articulada, o membro como a palavra
(...). Pois a articulação é a estrutura do meu corpo e a estrutura é sempre estrutura
de expropriação”
525
. O que significa que dividir o corpo em órgãos (“a diferença
interna da carne”) é abrir o orifício pelo qual o corpo próprio perde sua
propriedade, tornando-se espírito.
O corpo é o corpo,
está sozinho
e não tem necessidade de órgãos,
o corpo jamais é um organismo,
524
ARTAUD, A. Le Théâtre et la culture, p. 18. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p.
133.
525
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, pp. 133-134.
212
os organismos são inimigos do corpo,
as coisas que se fazem passam-se sozinhas sem o concurso de nenhum órgão,
todo o órgão é parasita,
esconde uma função parasitária
destinada a fazer viver um ser que não deveria lá estar.
526
Esta organicidade que acolhe a diferença no corpo é o que indicaria sempre uma
perda e, neste sentido, qualquer órgão sempre estaria indicando este furto primeiro
que impediria a nostálgica desorganização-total. E a isto nenhum órgão escapa da
crucificação artaudiana, nem mesmo o órgão sexual, que deveria ser visto como o
emblema-máximo da Vida. O sexo não pode se tornar orgânico, assim como o
teatro, muito menos se tornar um órgão – ou seja, tornar-se estranho –; deve o
sexo, antes, ser o próprio homem, ser a totalidade do homem como sexo, e não
como órgão sexual, com sua “autonomia arrogante de um objeto inchado e cheio
de si”
527
. E, para Artaud, esta espécie de inchaço do sexo é, na realidade, uma
forma de castração, pois ele acaba por separar-se da totalidade do corpo. O que
reforça a sua idéia de que todo órgão é uma perda. Não posso deixar aqui de me
lembrar da metonímia do homem-orelha tão bem notado por Zaratustra, em que
um órgão acaba ganhando proporções gigantescas tornando o homem uma
deformidade, uma monstruosidade que se acha virtuosidade
528
– uma das grandes
críticas de Nietzsche ao homem tão bem lembrada por Rosana Suarez em recente
palestra na PUC-Rio e que me fez lembrar de outra palestra ouvida por mim anos
atrás de Cristina Ferraz, que também falava de uma “Filosofia para orelhas
pequenas”
529
; as duas falas me fazem pensar aqui, para além da clara denúncia da
metonomização do homem como aquele que escuta, que só diz o resignado “sim”
do camelo, ou nos termos artaudianos a organização do homem, estas indicações
nietzschianas ecoam posteriormente na obra derridiana sob a forma da denúncia
do fonocentrismo e do privilégio da voz e das metáforas auditivas utilizadas pela
filosofia.
Desta feita, todo órgão, de acordo com a denúncia de Artaud, passaria a
configurar uma embocadura e, por isso, sujeição aos miasmas e aos micróbios, e o
526
ARTAUD, A. Le Théâtre de la Cruauté, p. 101. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”,
p. 134.
527
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 135.
528
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaraustra, pp. 149-150 (“Da redenção”).
529
SUAREZ, R. “Os humanos de Nietzsche”, palestra proferida no I Colóquio de Antropologia
Filosófica da PUC-Rio em 10/11/2007. Ver também FERRAZ, C. “Por uma filosofia para orelhas
pequenas”, in: Nove variações sobre temas nietzchianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
213
teatro da crueldade, em sua dança, teria como função desintoxicar, imunizar,
esterilizar este corpo que fora contaminado por esta diferença radical e
apropriante – incorporando assim o movimento próprio e comum de toda a
tradição metafísica que não conseguiu lidar com esta extrema radicalidade. E,
entretanto, Artaud parece ter a lucidez necessária para saber que uma proposta
cênica como a sua era impossível, um teatro irrealizável ou abortado.
Não havendo espaço para a discussão mais propriamente teatral da
encenação – o que, para mim ao menos, é uma pena – eu me dedico ao aspecto
“filosófico” do pensamento artaudiano – o que é uma violência com o mesmo, um
inchaço de sua obra
530
. Mas como a violência é inevitável – ainda mais em um
capítulo como este, que se assume violento, sistematizante e mesmo chato, por eu
acreditar que ele seja necessário, e que é necessária à tese esta “chatice de
especialista” para poder, depois, ter a suposta “autoridade” para jogar com a
desconstrução ou jogar a desconstrução – permito-me aqui abreviar e organizar
Artaud neste “a título de conclusão” que se estende há páginas.
(aplausos)
A cena da crueldade deveria, destarte, restituir-me do meu nascimento, do meu
corpo e da minha palavra, libertando o teatro da ditadura do texto e da autoridade
divina – o que se dá apostando no Perigo do Devir: o que quer dizer, em
improvisações e inspirações sem que se caia no capricho subjetivista do ator. Mas
para isso, é necessária uma nova escritura teatral, uma nova dramaturgia que não
recrie a cena primeira do furto inevitável.
Esta nova escritura teatral, apesar da aparente incoerência a que Artaud
nos conduz, imprescinde que se rompa com o estabelecido modelo de discurso
representativo e ocidental, que se baseia em uma linguagem alfabética e fonética.
Com isso, Artaud diferencia, adia, pausa e promove um certo relaxamento que
530
E aqui me desculpo também, além de não poder me dedicar à leitura mais atenta do “Teatro e
seu duplo” e à questão estética, de não parar sobre o emblemático texto de Deleuze nos Mil Platôs,
“Como criar para si um corpo sem órgãos” (DELEUZE, G. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999). A opção por este salto justifica-se, em
verdade, pelo fato da construção de um corpo sem órgãos me parecer ser justamente o objetivo
oposto ao de Derrida, que vê a inevitabilidade (que Artaud já indicara) da articulação, da
instituição; no entanto, Derrida, por não querer tapar os orifícios, e talvez, ao contrário, queira
mesmo deixar que os orifícios, as brechas e as fendas tenham lugar na filosofia, seja um filósofo,
segundo o termo que o próprio utiliza, do arrombamento.
214
libera o jogo do significante e dos signos para-além das palavras – a liberação
pelo hieróglifo.
Fora da Europa, no teatro balinês, nas velhas cosmogonias mexicana, hindu,
iraniana, egípcia, etc., procurar-se-á sem dúvida temas mas também, por vezes,
modelos de escritura. Desta vez, não só a escritura não será mais transcrição da
palavra, não só será a escritura do próprio corpo, mas produzir-se-á, nos
movimentos do teatro, segundo as regras do hieróglifo, de um sistema de signos
em que a instituição da voz não mais comanda.
531
Desta forma, a almejada “criação teatral pura” seria regrada pela escritura
hieroglífica, que, além de não mais comandar a cena teatral seria, pelo contrário,
ritmada por esta arquiescritura. E é neste sentido que se pode compreender o
Teatro da Crueldade, nos termos de Gramatologia, como o “fim do Livro”, ou
seja, como “a única maneira de acabar com a liberdade da inspiração e com a
palavra soprada” através da criação de “um domínio absoluto do sopro num
sistema de escrita não-fonética”
532
. E, assim, a cena da crueldade seria ornada
pelos gritos, pelas onomatopéias, de expressões e gestos que comporiam uma
espécie de “gramática universal da crueldade” – tarefa assumidamente impossível,
completamente tomada pelo que há de mais transcendental da metafísica e ao
mesmo tempo alérgico a ela, como, por exemplo, quando, citando a Carta a
Rodez, Derrida mostra que Artaud pretendia ter escrito “numa língua que não era
o francês, mas que todo o mundo podia ler, fosse qual fosse a nacionalidade a que
pertence”
533
.
E se os aplausos de Derrida direcionam-se certamente a esta lucidez
vigilante de Artaud, também dele se afastam na medida em que este pretende
“tapar os buracos” da escritura desde sempre furtada, quando Artaud diz que “esta
nova informação teatral sutura todas as falhas, todas as aberturas e todas as
diferenças” – e sabe-se que Derrida antes posicionara-se contra qualquer espécie
de sutura, admitindo, neste intuito de apropriação inevitável, que se adote o
alinhavo como violência menor. A arquicena artaudiana torna-se então o
fechamento do movimento, da diferença e do diferir e a palavra roubada é, assim,
531
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 142.
532
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 142. Sobre isso, lembro que as páginas iniciais de
Gramatologia também fazem uma referência ao caráter privilegiado da escrita hieroglífica contra
certo primado metafísico (fonologocêntrico) da escrita fonética.
533
ARTAUD, A. Lettre à Rodez. Citado por DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 143.
215
restituída, a crueldade apaziguada e o duplo destruído através do hieróglifo
teatral.
Identificação mágica, certamente. (...) É dizer pouco dizer que é mágica. Poder-
se-ia mostrar que é a própria essência da magia. Mágica e ainda por cima
impossível de encontrar [grifo meu]. Impossível de encontrar, “a gramática desta
nova linguagem” que, Artaud concede, “ainda está por encontrar”.
534
Portanto, a leitura derridiana encaminha o teatro da crueldade para o limite da
metafísica, o que quer dizer que Derrida pretende ler a tensão que a obra de
Artaud propõe, nem dentro nem fora da metafísica, mas – no sentido
heideggeriano – como uma superação em que o fim não chega
535
.
Tais questões, que se desdobram no contexto mais propriamente estético,
prosseguem ao longo de “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”
no intuito de mostrar como este emblemático pensador da carne coloca em xeque
a representação na representação, representando a representação na arquicena da
crueldade que começa pela própria representação.
Porque ela sempre já começou, a representação não tem portanto fim. Mas pode-
se pensar o fechamento daquilo que não tem fim. O fechamento é o limite circular
no interior do qual a repetição da diferença se repete indefinidamente. Isto é, o
seu espaço de jogo. Este movimento é o movimento do mundo como jogo. (...)
Este jogo da vida é artista.
536
Pois, como antecipei nas palavras da conferência de 1966: “Eis por que no seu
fechamento é fatal que a representação continue”
537
. Pensamento que um ano
antes Derrida já havia se anunciado na metafísica paradoxal do teatro da
crueldade, na brisura “Artaud” que encerram (finalmente...) este parágrafo:
534
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 146. As citações mencionadasz são de Le Théâtre de la
Cruauté, p. 132.
535
Sobre isso, lembro uma vez mais de A superação da metafísica, quando o filósofo alemão fala
que “Trata-se de uma expressão [a superação da metafísica] que, a bem dizer, provoca muitos mal-
entendidos por não permitir que a experiência chegue ao fundo, somente a partir do qual a história
do ser entreabre seu vigor essencial. Este fundo é o acontecimento apropriador em que o próprio
ser se sustenta. A superação da metafísica não significa, de forma alguma, a eliminação de uma
disciplina do âmbito da ‘formação’ filosófica”. E conclui mais adiante que “não devemos imaginar
(...) que podemos ficar fora da metafísica. Depois da superação, a metafísica não desaparece”
(HEIDEGGER, M. A superação da metafísica. In: “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, ver
ano, p. 61).
536
DERRIDA, J. “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, p. 176.
537
DERRIDA, J. “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, p. 177.
216
A “metafísica” de Artaud, nos seus momentos mais críticos, realiza a metafísica
ocidental, a sua visada mais profunda e mais permanente. Mas, por um outro lado
do seu texto, o mais difícil, Artaud afirma a lei cruel, (isto é, no sentido em que se
entende esta última palavra, necessária) da diferença; lei desta vez levada à
consciência e não mais vivida na ingenuidade metafísica. Esta duplicidade do
texto de Artaud, ao mesmo tempo mais e menos do que um estratagema, obrigou-
nos constantemente a passar para o outro lado do limite, a mostrar deste modo o
fechamento da presença na qual devia encerrar-se para denunciar a implicação
ingênua da diferença.
538
Ou ainda:
Podemos parecer, a um olhar menos experimentado, criticar a metafísica de
Artaud a partir da metafísica, quando se nota, pelo contrário, uma cumplicidade
fatal. Através dela diz-se a inserção necessária de todos os discursos destruidores,
que devem habitar as estruturas por eles derrubadas e nelas abrigar um desejo
indestrutível de presença plena, de não-diferença: ao mesmo tempo vida e morte.
539
Mais ainda:
A transgressão da metafísica por este “pensar” que, diz-nos Artaud, ainda não
começou, corre sempre o risco de voltar à metafísica. Tal é a questão na qual nos
colocamos. Questão ainda e sempre implícita cada vez que uma palavra,
protegida pelos limites de um campo, se deixa de longe provocar pelo enigma da
carne que quis chamar-se propriamente Antonin Artaud.
540
3.3
terceira seção
o processo de disseminação
A parte final deste interminável capítulo – que, na verdade, abriga três ou mais
capítulos, ou mesmo uma dissertação – dedica-se especificamente aos textos das
décadas de sessenta e setenta escritos imediatamente após a trilogia labiríntica
estudada anteriormente. A primeira parte, dedicada ao livro Margens da filosofia,
se aterá a três ensaios específicos, escolhidos propositadamente por me parecerem
emblemáticos e fundamentais ao jogo que se seguirá, quais sejam, “A diferença”,
“Os fins do homem” e “Assinatura acontecimento contexto” (sendo que outros
538
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, pp. 146-147.
539
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 147.
540
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, p. 147. O último grifo é meu: o “enigma da carne que quis
chamar-se propriamente Antonin Artaud”.
217
ensaios como “Tímpano” e “A mitologia branca” serão utilizados nos capítulos
seguintes). Posteriormente, deter-me-ei à Disseminação, tendo como linha mestra
de não-orientação A farmácia de Platão para encerrar o longo capítulo que
pretende me conferir o violento e, talvez até mais, parricida título de
“especialista” ou “conhecedor” da fase inicial da obra de Derrida, para que eu me
sinta mais confortável em poder, depois deste cansativo trabalho, brincar com isto
que pretendo que se pense que eu “conheço”.
às margens
Em 2001, ainda em germe de formação, quando Paulo Cesar começou a alinhavar
o que viria ser o Núcleo de Estudos em Ética e Desconstrução em torno de alguns
artigos que seriam publicados em forma de livro, a questão sobre o “título” deste
“primeiro livro” nos ocupou algum tempo. Por fim, o batismo como “Às Margens:
a propósito de Derrida” se deu pelo fato de, segundo Paulo Cesar, “a expressão ‘às
margens’ (...) poderia se propor como uma espécie de equivalente
desconstrucionista à expressão ‘às coisas mesmas’ da fenomenologia”. Logo
depois, diz que “o subtítulo deste livro, como tudo de que trata Derrida, já traz a
possibilidade de se emancipar do próprio título, mas somente para afirmar a
mesma coisa, isto é, um mesmo movimento emancipatório já indicado no título”.
E conclui:
É que só se vai às margens – só se escapa ao domínio da repetição do mesmo, do
familiar, do previsível e do calculável – a propósito de algo que já se encontra
dado, já estabelecido no imediato das tramas discursivas. Dito de outro modo, é
sempre a partir dos códigos em que já nos encontramos inseridos que se encontra
a possibilidade do desvio, do ir ‘mais além’ em direção ao imprevisível, àquilo
que verdadeiramente nos empurra para o novo.
541
Então, além de o termo “margens” ter marcado minha iniciação como um “autor”
sobre Derrida e de ter sido um termo escolhido cuidadosamente, debatido,
argumentado e, portanto, muito querido ao NEED, este termo já se cunha na obra
derridiana desde 1972 em Marges de la philosophie – que tem como epígrafe (e
deve-se notar o meu amor pelas epígrafes) a afirmação de Hegel que diz que “um
limite é e o limite só é de fato um limite superado; o limite tem sempre um para-
541
DUQUE-ESTRADA, P.C. Às margens: a propósito de Derrida. Texto da orelha.
218
além com o qual se mantém em relação, em direção ao qual deve ser
transgredido, mas onde um tal limite, que não o é, ressurge”
542
. Estranho limite
este que abriria às margens (de) Derrida. Limite ainda mais estranho quando o
escrito e o ouvido são embaralhados por uma simples letra, a primeira, a feminina
e a abraâmica letra a que parece e aparece como um bizarro erro ortográfico na
língua francesa (a língua de Derrida, sua língua monolíngüe e na qual, apenas
nela, ela podia escrever), mas que se trata de uma propositada infração. Já se
aludiu ao termo différance no primeiro parágrafo deste capítulo e, para que não
seja deveras repetitivo, tentarei mostrar, a partir do que já se disse, a disseminação
deste quase-conceito no projeto “marginal” de Derrida da década de setenta.
O filósofo diz que falará de uma letra: “da letra a, dessa letra primeira que
pode parecer necessário introduzir, aqui ou além, na escrita da palavra diferença;
(...) de uma escrita sobre a escrita, (...) escrita dentro da escrita também”
543
.
Como se adiantou, este neografismo é intraduzível em português. Veja-se a nota
dos tradutores Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães para a edição
brasileira, com a revisão de Constança Marcondes César, que diz optar não pela
tradução portuguesa diferância ou pela brasileira diferencia, mas sim por
diferança que, segundo eles, “parece manter-se um mínimo de identidade fônica”
e se preserva “o impacto (...) desse outro ‘artificialismo’ que justamente Derrida
assume em francês”
544
. Aos “meus ouvidos”, contudo, ainda soa melhor – por
justamente não soar – o “original” différance, que continuarei usando – até porque
a opção “inaudível” de Anamaria Skinner por traduzir o termo por “diferensa”
anula a própria enunciação do “autor” do termo quando enuncia que falará da letra
a (que permaneceria “silencioso, secreto e discreto como um túmulo”
545
).
Todavia, ao produzir esta diferenciação, poder-se-á sempre prosseguir
como se esta différance não fizesse diferença; e produzir é certamente um termo
bem adequado, pois, não se tratando nem de uma palavra nem de um conceito, a
tentativa (impossível) de abordar este termo só se dá à medida que se toma esta
noção com uma produção de efeitos, nem através de uma arque-genealogia, aliás,
de nenhum tipo de história, mas apenas através de uma tentativa de apresentar o
542
DERRIDA, J. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 05.
543
“A diferença”. Conferência pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia em janeiro de 1968
e publicada na coleção Tel Quel, em Théorie d’ensemble no mesmo ano. DERRIDA, J. Margens
da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 33.
544
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 34.
545
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 35.
219
“sistema geral dessa economia” – sistema este que se apresenta como um feixe,
em outras palavras, “a estrutura de uma intrincação, de uma tessitura, de um
cruzamento que deixaria repetir os diferentes fios e as diferentes linhas de sentido
– ou de força – tal como estará pronto a enlaçar outros”
546
. Com isso, Derrida
pretende partir com certa ordem do entendimento, e não apenas promover um
“escândalo” por mero narcisismo intelectual, já que seu “projeto” fora traçado a
partir de questões a partir da escrita. Devido à indiferença oral do termo, torna-se
impossível não se pensar que a crivação deste neografismo pretende-se ser lido
como uma questão da escritura, pois “não poderemos aqui [mas se sabe que não é
só aqui] abster-nos de atravessar um texto escrito, de nos regularmos no
desregramento que nele se produz, e isso é, antes de mais, o que me interessa”
547
.
No entanto, como entender esta óbvia crítica que Derrida intenta ao grafar
différance, um silêncio sepulcral em uma específica língua, e ainda por cima de
uma língua fonética, se o filósofo pretende, justamente, acusar o fonocentrismo da
metafísica ocidental? Segundo o próprio, é justamente este silêncio que algumas
violências como esta pode provocar (como, por exemplo, quando posteriormente
Lévinas passa, au-délà de l’essence, a escrever essance) que mostra que esta
pretensamente uniforme escrita fonética é composta por “signos não fonéticos”,
como espaçamentos, pontuações, pausas etc., e que, por isso, para acompanhar
este movimento de “difer( )nça” é necessária uma outra forma de “espetáculo”
que não mais se encene tendo como palco os sentidos; e, ainda mais, é necessário
“deixarmo-nos remeter aqui para uma ordem que resiste à oposição, fundadora da
filosofia, entre o sensível e o inteligível”
548
– encenação esta que, ainda
representação, não pertence mais à voz nem tampouco à escrita, mas talvez entre
palavra e escrita.
Que vou fazer eu para falar do a da différance? É evidente que esta não pode ser
exposta. Não se pode nunca expor senão aquilo que em certo momento pode
tornar-se presente, manifesto, o que pode mostrar-se, apresentar-se como um
presente, um ente presente na sua verdade, verdade de um presente ou presença
do presente. Ora, se a diferença é (eu ponho aqui sob uma rasura) aquilo que
torna possível a apresentação do ente presente, ela nunca se apresenta como tal.
Jamais se oferece ao presente. A ninguém. Reservando-se e não se expondo, ela
excede neste ponto preciso e de um modo controlado a ordem da verdade, sem
546
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 34.
547
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 35.
548
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 36.
220
por isso se dissimular, como alguma coisa, como um ente misterioso, na
ocultação de um não-saber ou num buraco cuja orla seria determinável.
549
Indicando a impossibilidade de se adotar um “método” de exposição
preciso, que desse conta de um discurso adequado sobre a différance, Derrida
admite seus desvios inevitáveis e certa proximidade com uma “teologia negativa”,
já que se sabe apenas que a différance não é, que ela não existe, não sendo ôntica
nem ontológica, não tendo essência nem existência – sendo apenas um efeito de
alguma coisa que é também dela um efeito. Lembro-me, nesta passagem, de uma
distinção que posteriormente Derrida traçará em Donner la mort, ao falar do
misterium tremendum, entre críptico e abscôndito
550
. De modo semelhante, a
différance da différance não é algo da ordem do abscôndito, não é algo escondido
que se deve (por estar desde sempre lá, à mão, mas imperceptível) ser desvelado;
de modo diverso, é da ordem do críptico, do segredo que não se deixa revelar –
senão não é mais da ordem do segredo – mas que está sempre aí, à frente, sem
nenhuma necessidade de desvelamento, mas de decriptagem, de decifração: é o
enigma, o segredo do segredo. E, por esta razão, o discurso sobre a e a partir da
différance pode apenas ser uma espécie de aventura, não possuindo um ponto de
partida nem de chegada nem participando de nenhuma exigência de linearidade
discursiva e nem ao menos possuindo um tema a ser desenvolvido – um discurso
que nada-quer-dizer.
Estratégia, finalmente, sem finalidade (...). Se há uma certa errância no traçado da
différance, ela não segue mais a linha do discurso filosófico-lógico do que a do
seu simétrico reverso e solidário, o discurso empírico-lógico. O conceito de jogo
mantém-se para além dessa oposição, anuncia, às portas da filosofia e para além
dela, a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim. Desse modo, por
decisão e regra do jogo (...), é pelo tema da estratégia ou do estratagema que nos
introduziremos ao pensamento da différance (...) numa cadeia que, na verdade,
ela não terá jamais governado.
551
Portanto, a estratégia de Derrida consiste em apresentar sua estratégia, definir,
assim, qual o jogo que (se) joga – o jogo que ele, Derrida, joga e o jogo que ele, o
próprio jogo, joga – e que (se) começa pelo verbo diferir (em latim, differre).
549
DERRIDA, J. “A diferença”, pp. 36-37.
550
DERRIDA, J. The gift of death, pp. 88-91. Sobre esta relação com a alteridade, remeto ao
primeiro capítulo da segunda parte da tese.
551
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 38.
221
Futuramente, Derrida seria acusado de certo littreismo, ou seja, de um
apelo constante ao Littré, fato este (não o littreismo, mas a constante referência ao
dicionário) que aqui já acontecia. Diferir “littrealmente” quer dizer ação de
diferimento, adiamento, desvio, demora, retardo e reserva – dizendo respeito,
assim, à temporalização; mas é também espaçamento, “devir-tempo do espaço e
devir-espaço do tempo”
552
; além disso, de modo mais corrente, diz aquilo que
não é idêntico, que é outro, na alergia ou na dissemelhança. Mais uma vez, então,
espaçamento, se se leva em consideração a infinita distância que da separação, a
assimetria da relação com a alteridade. Além disso, deve-se levar em conta que o
a em francês provém do particípio presente, o que remete diretamente à ação do
“diferente” (que seria também o “diferendo” e que pode fazer com que se pense a
différance como “a causalidade constituinte, produtora e originária, o processo de
cisão e de divisão do qual os diferentes e as diferenças seriam os produtos ou os
efeitos constituídos”
553
) e que a terminação ance (que se assemelharia ao
português “ência”) mantém-se num campo indeterminado entre a atividade e a
passividade: uma operação sem operação, nem agente nem paciente, “a voz
média, uma certa não-transitividade” que “é talvez aquilo que a filosofia,
constituindo-se nessa repressão, começou por distribuir em voz ativa e voz
passiva”
554
.
Sabe-se que alguns dos termos mencionados acima são extremamente
problemáticos: sobretudo causa e origem. Então, entendida como efeito, essa
différance é ao mesmo tempo causa e efeito, sendo assim uma origem anárquica e
não-escatológica – já se considerando também que desde suas leituras de Saussure
a noção de “signo” já seria sempre secundária, sendo este apenas o que
representaria o sentido em sua falta. Disto decorrem duas coisas: 1. que a
différance não pode ser compreendida como um “signo”, pois isto sempre se
referiria a uma presença; 2. que, por conseguinte, a différance põe em questão a
“autoridade da presença”, pois o pensamento metafísico sempre se estruturou
segundo as noções de ausência e presença (momento este em que Derrida assume
que a différance é herdeira da diferença ôntico-ontológica de Heidegger, de uma
diferenciação entre os entes e o Ser, um referimento a algo que, por participar do
552
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 39.
553
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 39.
554
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 40.
222
ser de tudo que é, não é
555
). Destes dois apontamentos, pode-se, retornando a
Saussure, ter em mente alguns aspectos: a não presença do significado, já que
todo conceito está sempre inscrito em uma cadeia infinita de diferenças, conduz a
noção de différance rumo a este jogo de remetimentos das diferenças; disto tem-se
que as diferenças jogam e, ao mesmo tempo, são efeitos do jogo. Por esta razão:
O que se escreve différance será, portanto, o movimento de jogo que “produz”,
por meio do que não é simplesmente uma atividade, estas diferenças, estes efeitos
de diferença. Isto não significa que a différance que produz as diferenças seja
anterior a elas, num presente simples e, em si, imodificado, indiferente. A
différance é a “origem” não-plena, não-simples a origem estruturada e diferante
[différant] das diferenças. O nome de “origem”, portanto, já não lhe convém.
556
E, de acordo com isso, se as diferenças são efeitos produzidos sem que haja uma
causa ou sujeito produtor, no jogo da différance poder-se-ia, em um primeiro
momento, falar em “efeitos sem causa”, para que, como conseqüência, tendo-se
abolido o termo “causa”, se subtraia desta estrutura também o termo “efeito”,
restando apenas rastros que tornam a différance um infinito movimento de
reenvios. Estes “reenvios” da língua desconstrutiva remetem, inclusive, ou
melhor, entre-remetem os próprios termos da desconstrução, o que é bem
lembrado por Derrida quando ele afirma que o termo différance, ao longo de sua
obra, pode ser substituído por quase-sinônimos, que não se identificam, mas não
se deixam de co-implicar como arquiescritura, rastro, pharmakon, margem etc.
etc.
Até então, parece seguro afirmar que as diferenças são diferidas pela
différance, ou seja, pelo processo mesmo de produção de diferenças ou
diferencialidade mesma. Mas Derrida pergunta “o que é aquilo que difere, ou
quem difere? Dito de outro modo, o que é a différance?”
557
justamente para
mostrar que questões em torno de um quê ou de um quem não dizem respeito à
desconstrução, por sempre pressuporem uma presença, seja de um sujeito ou de
um objeto – recorrendo aqui ao mesmo argumento que ele se utilizará mais tarde
quando perguntado por Jean-Luc Nancy sobre o que ou quem vem depois do
555
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, parte I, p. 31 et passim.
556
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 43.
557
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 47.
223
sujeito
558
. Junto a isso, deve-se também lembrar que a différance não é um
produto da língua ou da linguagem: é por causa da différance que há línguas e
linguagens, sendo ela a própria diferencialidade da linguagem, o que em
Gramatologia se viu, em detrimento da oposição fala/escrita, Derrida chama de
escritura.
Conseqüentemente, a presença passa a não ser mais a “forma matricial” do
pensamento, que se rascunharia sob o feixe da différance que não admite mais
nenhuma determinação oposicional, do mesmo modo como teriam feito também
Heidegger, Freud e Nietzsche. Segundo Derrida, o “motivo da différance
apareceria “quase nomeado nos seus textos e nesses lugares em que tudo se joga”
559
e a consciência se dissipa. Junto a eles, pode-se perceber que a filosofia vive
na e da différance, e a reverência a estes três pensadores é devidamente
mencionada no intuito de não se lhe acusar de (um inevitável) parricídio. Alguns
momentos, nesta relação com estes autores (e, posteriormente se somará a eles
Lévinas) são decisivos para que se acompanhe o diferir da différance: 1. o
conceito de rastro é inseparável do conceito de différance (como tentarei mostrar
no capítulo dedicado à alteridade) – isso, referindo-se tanto ao conceito de Spur
ou “traço mnésico” em Freud como, por extensão, ao de trace em Lévinas; e 2.
em Freud, esta estrutura de encadeamentos de rastros inconscientes, além de não
representarem nenhuma “verdade presente” vão, ao contrário, ser classificadas
como “ficções teóricas” (o que será importantíssimo para o que Derrida entende
por “ficcionalidade da língua”).
Para o filósofo, estes aspectos tangenciariam o caráter de “maior
obscuridade” e o próprio “enigma da différance
560
:
Se a différance é esse impensável, talvez, não nos devamos apressar em trazê-la à
evidência, ao elemento filosófico da evidência que, em breve, com a
infalibilidade de um cálculo que lhe conhecemos bem, lhe teria dissipado (à
différance) a miragem e o ilógico, para lhe reconhecermos precisamente (a esse
elemento) o seu lugar, a sua necessidade, a sua função na estrutura da différance
(...) É necessário admitir aqui um jogo no qual quem perde ganha e quem ganha
perde em todos os lances.
561
558
Ver as páginas iniciais da já citada entrevista com Nancy “Il faut bien manger ou le calcul du
sujet”.
559
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 49.
560
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 50.
561
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 51.
224
Esta “lição” sobre a alteridade, em que se mantém infinitamente referido àquilo
que se desconhece e que sempre se desconhecerá, pois nunca se tornará “presente”
ou “presentificada”, é ensinada exemplarmente por Freud através da noção
(metafísica) de inconsciente, ou seja, essa alteridade radical irredutível a toda
forma de presença que se marca “em efeitos irredutíveis de fora-de-tempo”
através da estrutura da Nachträglichkeit, de um retardamento, de um a posteriori
ou de um só-depois. Com esta temporalidade estranha do “inconsciente” (à qual
Derrida dedicou elogiosas páginas em “Freud e a cena da escritura” e que talvez
configure a mais importante influência de Derrida para se pensar o “tempo” da e
na desconstrução), “entramos em relação, não com horizontes de presentes
modificados – passados ou por vir –, mas com um ‘passado’ que não foi nunca
presente nem o será jamais, cujo ‘por vir’ futuro não será nunca a forma da
produção ou a reprodução na forma da presença”
562
.
Tal lição também se encontrará em Lévinas, como se verá mais adiante,
mas no qual o passado também “significa” um presente que nunca esteve
presente, sob a forma do “enigma da alteridade absoluta”. Neste ponto de seu
texto, Derrida vai afirmar, como o fizera antes em Gramatologia, que o
pensamento da différance, assim como o da escritura, comporta em si toda a
crítica que a ética levinasiana endereça à ontologia heideggeriana e à filosofia em
geral, articulando, desta forma, os pensamentos de Nietzsche, Freud e Lévinas a
partir da noção de rastro e da necessária crítica ao pensamento do ser que esta
noção traz consigo. Além da desontologização do pensamento a que a différance
conduz, Derrida aponta também o que ele chamará alhures de “emaiusculação” do
pensamento, ou seja, um pensamento que “não comanda nada, não reina sobre
nada nem exerce em parte alguma qualquer autoridade. Não se anuncia por
nenhuma maiúscula. Não somente não há qualquer reino da différance como esta
fomenta a subversão de todo e qualquer reino”
563
– pressupostos “essenciais”
para qualquer filosofia que não se pretenda falocêntrica nem etnocêntrica.
E ainda que comporte em si toda emaiusculação do pensamento (seja da
Essência, do Ser ou mesmo do Outro) e, junto a isso, toda crítica à ontologia,
Derrida admite que – como que lendo Heidegger depois de ter lido Lévinas lendo
Heidegger – a différance é um quase-conceito tremendamente inspirado no caráter
562
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 54.
563
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 55.
225
diferencial que a diferença entre o Ser e os entes já apresentaria, pois, como se
sabe, todo conceito já comporta em si sua própria desconstrução e, nesse sentido,
o a da différance seria a marca do movimento da diferença ontológica. Ou, mais
ainda, que a diferença ontológica só seria possível de ser pensada pela différance.
A différance, de uma certa e muito estranha maneira, (é) mais “velha” do que a
diferença ontológica ou que a verdade do ser. É a essa idade que se pode jogo do
rastro. De um rastro que não pertence mais ao horizonte do ser, mas cujo jogo
suporta e contorna o sentido dos ser: o jogo do rastro ou différance que não tem
sentido nem é. Que não pertence. Nenhum suporte, mas também nenhuma
profundidade para esse jogo de xadrez sem fundo onde ser é posto em jogo.
564
É por esta razão que se deve agir de algum modo quase-fenomenologicamente ou
serenamente (lembrando aqui a Gelassenheit) em que se permita que o rastro
“apareça” como tal (ou seja, que não apareça nunca como tal, pois seu “como tal”
é não ser nunca “como tal”, mas que se vejam seus efeitos através de textos, de
escrituras etc.), ou seja, como rastro do que nunca aparecerá como rastro, como
aquilo que “apaga-se apresentando-se, silencia-se ressoando”
565
. O rastro seria
apenas um simulacro de uma presença que se desloca, reenviando-se
infinitamente, sem paragem, sem lugar, no apagamento de sua própria estrutura –
e é esse apagamento que “desde o início o constituiu como rastro”
566
, sem o qual
acabaria por se tornar uma estrutura presentificável, compreensível e, portanto,
ontológica. O presente, bem como a presença, torna-se rastro, não sendo nada
mais que o apagamento de si, rastro do rastro ou apagamento do rastro.
Assim, o que se entende por “texto” é somente lisível em seu apagamento,
não mais em seu “interior”. Contudo, isso não indica que se leia o texto pelo seu
“exterior”, mas sim na quase-apagada delineação de suas margens, indica que os
textos são lidos nos rastros e nas dissimulações e nunca “enquanto tais”. Como
rastros, segundo a economia da différance, os textos também não se apresentam
como presenças a si nem como presenças ao leitor e nem mesmo como presentes
ao autor.
Não há essência da différance, esta (é) não apenas aquilo que não poderia deixar-
se apropriar no como tal, de seu nome ou de seu aparecer, mas aquilo que ameaça
564
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 56.
565
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 57.
566
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 58.
226
a autoridade do como tal em geral, da presença da coisa mesma na sua essência.
Que não haja nesse ponto essência própria da différance, isso implica que não
haja nem ser nem verdade do jogo da escrita enquanto ela envolve a différance.
567
Mas que não se deixe de advertir quanto à lucidez de Derrida no que se refere ao
uso das palavras. A violência do conceito é inevitável e, sob este aspecto, tanto
différance como todos os não-sinônimos intersubstituíveis que são os indecidíveis
são metafísicos. Différance, enquanto um nome, é sempre metafísica – como o são
todos os nomes. Se, como disse Derrida, ela é “mais velha que o próprio ser”
568
,
esta diferencialidade não pode ser nomeável em nenhuma língua ou nenhuma
linguagem, sendo ela anterior a qualquer batismo ou nomeação. E isso não é por
que ainda não se encontrou um “nome” adequado ao seu processo econômico,
nem que tal nome esteja em alguma língua “fora” de nosso sistema gramatical ou
fonético, isso se dá pelo “simples” fato de não haver nome para isto, nem mesmo
o neografismo derridiano, que só aponta a esta insuficiência inesgotável de
adequação.
“Não há nome para isso”, diz Derrida. O que significa que se deve “ler esta
proposição na sua simplicidade”
569
, fato este que fora o contrário do que fez
Heidegger que, como Artaud, buscou esperançosamente a procura de um nome
próprio, o nome único: a palavra soprada ou a “primeira palavra do ser” (das
frühe Wort des Seins)
570
. Para o filósofo alemão, que na maior parte dos casos
pode ser tomado como a mais precisa metonímia, ainda que a mais sutil e por isso
controversa, para toda a tradição filosófica, a linguagem deveria encontrar uma só
palavra para nomear aquilo que se desdobra no ser (das Wesend des Seins), a
“palavra única” (ein einziges, das einzige Wort)
571
. Mas esse nome único não
existe, muito menos é ele o nome do ser – e a tarefa do pensamento é pensar esta
impossibilidade sem nostalgia (isto é, “fora do mito da língua puramente maternal
ou puramente paternal, da pátria perdida do pensamento”
572
).
Para encerrar, Derrida retoma mais uma vez a necessidade, contrária a toda
a nostalgia metafísica ou ontológica, de afirmação ou de afirmatividade deste
567
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 61.
568
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 61.
569
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 62.
570
HEIDEGGER, M.A fala de Anaximandro. In: Chemins qui ménent nulle part. Paris:
Gallimard, 1962. pp. 296-297.
571
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 63.
572
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 62.
227
impossível: esta afirmação estranha “no sentido em que Nietzsche põe a afirmação
em jogo, num certo riso e num certo passo de dança”
573
. Afirma, assim, a
impossibilidade, o jogo e, de certo modo, a castração e a inautenticidade e a
impropriedade – talvez no intuito, na esteira de Lévinas, de fazer justiça às
singularidades esmagadas por toda tentativa de unicidade, universalidade,
unilateralidade etc.
Esse inominável é o jogo que faz com que haja efeitos nominais, estruturas
relativamente unitárias ou atômicas a que chamamos nomes, cadeias de
substituição de nomes, e nas quais, por exemplo, o efeito nominal “différance” é,
também ele, arrastado, transportado, reinscrito, como uma falsa entrada ou uma
falsa saída e ainda parte do jogo, função do sistema. O que nós sabemos, o que
nós saberíamos se aqui se tratasse simplesmente de um saber, é que não houve
nunca, que não haverá jamais uma palavra única, uma palavra-mestra. É por isso
que o pensamento da letra a da différance não é a prescrição primeira nem o
anúncio profético de uma nomeação iminente e ainda inaudita. Esta “palavra”
nada tem de querigmático [de Kirion, grego que designava o sentido próprio das
palavras] por pouco que lhe possamos perceber a “emaiusculação”
574
. Pôr em
questão o nome do nome.
575
fins
A repetida frase que diz que “todo colóquio filosófico tem necessariamente uma
significação política”
576
que abre “Os fins do homem”, conferência de 1968, vai
introduzir um dos temas mais recorrentes em futuras obras derridianas e, também,
dos mais cuidados pela filosofia contemporânea: a antropologia filosófica. Junto
ao transbordamento do conceito de linguagem e da crítica do sujeito, o inevitável
tangenciamento da questão do homem é abordado diretamente por Derrida, depois
desta obra, em “Il faut bien manger” e, mais obliquamente desde Gramatologia e
Psyché – Inventions de l’autre até Politiques de l’amitié, Adeus a Emmanuel
Lévinas e Da hospitalidade. Além de ter como mote não apenas os cânones
críticos ao humanismo como Carta sobre o Humanismo, O Existencialismo é um
Humanismo e As palavras e as coisas, como também apresentando certo aspecto
de desfazimento do sujeito desde a Fenomenologia do Espírito de Hegel, tal como
573
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 62.
574
Ver nota 5 do primeiro capítulo. Também sobre esse tema, no recente debate com Elizabeth
Roudinesco, discute-se conjuntamente a crítica ao falocentrismo e ao paternalocentrismo (ver o
capítulo “Famílias desorganizadas” de De que amanhã...).
575
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 62.
576
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 149.
228
lida por Kojève, dos Manuscritos de 44 de Marx, das Investigações lógicas de
Husserl e do próprio Ser e Tempo de Heidegger, que apresentaria na leitura
francesa um antropologismo devido ao fato de o Dasein ter sido
“monstruosamente traduzido” por realidade humana.
Portanto, dirigindo-se a uma França que estaria se posicionando
equivocadamente quanto ao problema do homem, empreendendo-se leituras
antropológicas de Hegel, Husserl e Heidegger, não se estaria vendo como estes
filósofos, em suas próprias obras, já comportariam a desconstrução do conceito de
“Homem”: fosse a consciência como Aufhebung do homem e a fenomenologia
como Aufhebung da antropologia; fosse através da consciência lógica como
superação da oposição cognoscente sujeito-objeto através da intuição; fosse
através deste ente que tem como seu ser a simples abertura ao ser e que tem, por
isso, como essência, sua existência. Sendo a crítica a Sarte explícita, pode-se
pensar em que extensão o artigo destina-se à “geração” de Derrida – e tal é o
intuito de Fabiane Marques em “Desconstruções do humanismo: Foucault e
Derrida” ao tomar como hipótese uma referência elíptica a Foucault (e ao
perseguir esta hipótese) quando Derrida diz:
A crítica do humanismo e do antropologismo, que é um dos motivos
dominantes e condutores do pensamento francês atual, longe de procurar
as suas fontes ou a sua garantia nas críticas hegeliana, husserliana ou
heideggeriana do mesmo humanismo ou do mesmo antropologismo,
parece, pelo contrário, por um gesto por vezes mais implícito do que
sistematicamente articulado, amalgamar Hegel, Husserl e – de maneira
mais difusa e ambígua – Heidegger, com a velha tradição humanista.
577
De acordo com esta hipótese – que aqui se dedica exclusivamente a rastear
estes aspectos na fase arqueológica do pensamento foucaultiano, mas que se
poderia pensar como metonímia ao pensamento crítico francês de 1968 – o
pensamento francês deste período, na filosofia, na psicanálise, nas ciências
políticas, teriam como “tema” privilegiado o “anti-humanismo”, que, segundo a
autora, ainda que desvalorize por completo a autonomia do sujeito enquanto tal,
“essa oposição ao humanismo não significa que tenha estado no projeto desses
577
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 158.
229
pensamentos uma defesa de barbárie ou uma afirmação do inumano”
578
. Esta
“geração” de Derrida, que tematiza criticamente o homem e que, em “De que
amanhã...”, pode-se ler que se estende desde Lévi-Strauss e Lacan, passando por
Lévinas e Althusser até Foucault, Deleuze e Lyotard, radicalizaria a crítica
heideggeriana ao humanismo da carta a Jean Beaufret. Heidegger, em sua Carta
sobre o humanismo, quando perguntado “comment redonner um sens au mot
‘Humanisme’?
579
, esquiva-se propositadamente de uma resposta, pois, de acordo
com seu pensamento, qualquer resposta, ou qualquer indicação sobre a
humanidade do homem seria ainda metafísica. E pergunta-se ainda se isto é
necessário: “Será mesmo que ainda não está bastante clara a desgraça que
provocam todos os títulos desta espécie?”
580
. De acordo com Heidegger, todas as
espécies de humanismo preocupam-se em determinar a humanitas do homo
humanus e, por isso, “todo humanismo ou se funda numa metafísica ou se
converte a si mesmo em fundamento de uma metafísica”
581
, já que
necessariamente pressupõe uma indicação da essência do homem.
A advertência indicada por Heidegger neste texto, de que, de fato, todas
estas especulações metafísicas que sempre se preocuparam em indicar a essência
do homem nunca chegaram de fato “a fazer a experiência do que é propriamente a
dignidade do homem”
582
e que, nesse sentido, seu pensamento é contra o
humanismo (desde Ser e Tempo); e também de que esta sua oposição ao
humanismo ao invés de preconizar a desumanidade ou degradar a humanidade do
homem busca, justamente o contrário, pensar o humanismo “porque o humanismo
não coloca bastante alto a humanidade do homem
583
– tais advertências (que se
encontram presentes no pensamento heideggeriano desde o fim da década de
1920) indicam que o intuito da crítica heideggeriana ao humanismo não pretende,
de modo algum, defender o fim do homem, mas sim, em nome de uma dignidade
humana nunca antes pensada (por ter sempre sido pensada como sujeito,
consciência etc.), fazer justiça a este ente de certo modo inominável que somos (e
578
MARQUES, F. “Desconstruções do humanismo: Foucault e Derrida”. In: DUQUE-ESTRADA,
P.C. Às margens: a propósito de Derrida, p. 104.
579
HEIDEGGER, Carta sobre o Humanismo. VER REFERÊNCIA, p. 28.
580
HEIDEGGER, Carta sobre o Humanismo, p. 28.
581
HEIDEGGER, Carta sobre o Humanismo, p. 37.
582
HEIDEGGER, Carta sobre o Humanismo, p. 50.
583
HEIDEGGER, Carta sobre o Humanismo, p. 50.
230
que antes ele chamara de Dasein), mas que, contudo, continua a ser o que é digno
de ser pensado.
Pode-se afirmar que o objetivo de Heidegger sempre foi o de denunciar o
esquecimento daquilo que é digno de ser pensado, devido, justo, ao domínio da
metafísica; e, por conseguinte, a tarefa do pensamento, o fim da filosofia, a
superação da metafísica não pretendem de modo algum partir para algum fora,
mas, antes, apresentam a denúncia da época da metafísica, no intuito de
reconduzir serenamente o homem à sua essência: o que significa deixar o homem
ser o que ele é. Segundo Derrida, para não permanecer periférico, regional ou
secundário, todo questionamento do humanismo deve se unir à “radicalidade
arqueológica das questões esboçadas por Heidegger” e desenvolver “as indicações
que ele fornece sobre a gênese do conceito e do valor de ‘homem’”
584
. Isto se
deve ao fato de que, segundo Paulo Cesar Duque-Estrada, em seu artigo “Derrida
e a crítica heideggeriana do humanismo”, Heidegger rompe com “as filosofias
centradas em torno do homem, vale dizer, em torno de uma ou outra forma de
humanidade já estabelecida – portanto determinada metafisicamente – enquanto
essência perene do homem, para pensar então não mais o homem em sua unidade,
em seu modo de ser-humano já determinado, mas sim a referência ao ser ou ao
estar referido ao ser”
585
.
Em Ser e Tempo, quando apresenta o que, na minha opinião, independente
de se aceitar ou não a “reviravolta” em seu pensamento, norteia, orienta, direciona
todo o pensamento heideggeriano, ou seja, sua Totalidade, que é a estrutura
formal da questão do Ser (quando Heidegger denuncia que a metafísica é o
esquecimento do Ser e que tal seria, então, a tarefa de um pensamento que não se
emudece frente a um embate de titãs, como o de não deixar que o Ser seja pensado
como um ente), neste momento parece surgir a figura de um ente especial: “esse
ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a
possibilidade de questionar”
586
– o Dasein. Este ente que questiona, este ente que
se encontra sempre referido ao Ser, que, para não ser compreendido sob a tradição
metafísica, não deve ser designado como homem, sujeito ou consciência, tem,
nesta própria referência ao Ser, sua essência. Deste modo, sua essência não está
584
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 168-169.
585
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a crítica heideggeriana do humanismo”. In:
NASCIMENTO, E. Pensar a desconstrução. São Paulo: Estação liberdade, 2005, p. 250.
586
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, parte I, p. 33.
231
presa a nenhuma determinação metafísica – e, mais precisamente, a nenhuma
determinação, sendo esta “essência” a própria referencialidade ao Ser e, por isso,
abertura. Tal é o fato que faz Heidegger definir o Dasein como este ente que
possui a qualidade de “em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser”
587
,
ou seja, como pura potencialidade, como essência não-realizada – o que é
designado por Heidegger como existência. E, contra toda determinação metafísica
que afirma a precedência da essência com relação à existência – mas também
contra o existencialismo, já que Sartre, neste sentido, também seria metafísico ao
afirmar que a existência precede a essência – é isso que leva Heidegger a dizer
que o Dasein é o único ente no qual sua essência coincide com sua existência,
abrindo espaço, assim, através desta indicação da essência do homem como
referencialidade ou abertura ao Ser, para a já mencionada crítica que,
posteriormente, empreenderia do humanismo como metafísica.
Mas, como se viu, esta crítica heideggeriana se faz em nome de um algo
que nunca fora suficiente nem dignamente pensado, a humanidade do homem. É
este fato, que se encontra nas próprias palavras do filósofo na Carta sobre o
humanismo, que permite que, em pleno acordo com Paulo Cesar, diga-se que “o
pensamento da verdade do ser acaba reafirmando, em um nível ainda mais
refinado e potente, aquilo mesmo que é alvo de sua crítica”
588
, ou melhor, que a
crítica heideggeriana do humanismo não deixa de ser uma insistência no homem,
“um pensamento do homem; apesar das modificações e deslocamentos que
introduz”
589
.
Como conclusão, cita-se Derrida quando diz que “a verdade, porém, é que
o pensamento da verdade do ser em nome do qual Heidegger delimita o
humanismo e a metafísica, permanece um pensamento do homem. Na questão do
ser, tal como ela se põe à metafísica, o homem e o nome do homem não são
deslocados. E muito menos desaparecem. Trata-se, pelo contrário, de uma espécie
de reavaliação ou de revalorização da essência e da dignidade do homem”
590
.
Somando a isso o fato de que, em grande parte, a crítica levinasiana ao
humanismo deve-se às leituras de Ser e Tempo – o que é exemplarmente mostrado
587
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, parte I, p. 38.
588
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a crítica heideggeriana do humanismo”, 2005, pp. 250-
251.
589
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a crítica heideggeriana do humanismo”, p. 251.
590
DUQUE-ESTRADA, P.C. “Derrida e a crítica heideggeriana do humanismo”, p. 251.
232
em “Martin Heidegger e a ontologia” e “A ontologia no temporal”, o primeiro
artigo de 1932 e o segundo de 1940 e ambos publicados em Descobrindo a
existência com Husserl e Heidegger –, pode-se pensar em que medida a crítica
derridiana que Fabiane Marques vê implícita a Foucault (e que ela sustenta
exemplarmente ao longo do referido artigo) pode-se estender, em um primeiro
momento, também a Lévinas e, mais ainda, possivelmente a toda a geração
francesa de sua época. Nestes dois artigos citados, que podem caracterizar uma
primeira fase do pensamento leviansiano, pode-se ver a óbvia influência
heideggeriana sobre Lévinas, sobretudo no que concerne à sua crítica da
subjetividade: “a forma verbal [Dasein, ser-aí] exprime ainda outra coisa que é da
maior importância para a filosofia heideggeriana. Já o dissemos: o homem não
interessa à ontologia por si mesmo. O interesse da ontologia vai no sentido do ser
em geral
591
, e, além disso, “os conceitos que Heidegger elaborou para apreender
o Dasein não exprimem simplesmente a sua essência (...). Com efeito, o próprio
Dasein consiste em existir de tal maneira que a sua qüididade seja ao mesmo
tempo a sua maneira de ser e a sua essência coincida com a sua existência”
592
. E
conclui: “a filosofia intelectualista (...) procurava conhecer o homem, mas
aproximava-se do conceito de homem, deixando de lado a facticidade da
existência humana e o sentido dessa existência”
593
. E, no entanto, é nesta mesma
obra que já se pode entrever, não obstante a admiração, o afastamento que Lévinas
iria empreender com relação à ontologia heideggeriana. Para Lévinas “a filosofia
de Heidegger reata simultaneamente com a grande tradição da Antiguidade,
colocando o problema do ser em geral, e responde à preocupação do pensamento
moderno de devolver à pessoa o domínio de seu destino”. Ou seja, um primeiro
apontamento aqui de ruptura se dá em torno do problema do sujeito, e prossegue:
Aliás, é o destino de toda a filosofia que deduz o sujeito a partir do pensamento,
como o cogito cartesiano que deriva da dúvida. (...) Ao colocar o problema da
ontologia, em que Heidegger vê o essencial da sua obra, ele subordinou a verdade
ôntica, aquela que se dirige ao outro, à questão ontológica que se coloca no seio
do Mesmo, desse si-mesmo que, pela sua existência, tem uma relação com o ser
que é o seu ser. Essa relação com o ser é a verdadeira interioridade original”
594
.
591
LÉVINAS, E. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, p. 76.
592
LÉVINAS, E. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, p. 92.
593
LÉVINAS, E. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, p. 95.
594
LÉVINAS, E. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, p. 111.
233
É neste momento que Lévinas vê a necessidade de empreender uma crítica
à subjetividade que não se fechasse no círculo do Mesmo, nesta auto-referência de
um ente que tem como essência pensar o ser que é seu próprio ser: ou seja, um
pensamento que, ao contrário do de Heidegger, não se assente sobre si próprio. E
conclui, de modo intrigante o artigo, apontando já para a mudança de eixos que
Lévinas operará na filosofia: “Dessa forma [por se tratar de um pensamento
soberano], a ontologia de Heidegger dá os acordes mais trágicos e torna-se o
testemunho de uma época e de um mundo que talvez amanhã seja possível
ultrapassar”
595
.
De acordo com as análises derridianas apresentadas em “Il faut bien
manger”, a tradução do léxico ontológico para a língua ética não vai configurar
apenas uma inversão, mas um deslocamento, já que o que pode parecer
simplesmente uma alteração de nomenclaturas, da Totalidade para o Infinito, da
Existência para o existente, do Ser para o Outro, nesta mudança de sentido, mais
que a fuga da ontologia, que, como se viu, termina por enclausurar-se no autismo
do Mesmo, sendo o ser aquilo que norteia e aquilo que deve ser dignamente
pensado, nesta tradução levinasiana ocorre o apontamento para um outro sentido,
que não sendo o sentido do ser (e, por isso, o sentido do Mesmo), rompe com a
clausura do pensamento e abre espaço para este sentido múltiplo das
singularidades de todos os homens existentes. Inversão, mas também
deslocamento: abertura para o Outro no pensamento e, mais ainda, abertura para
um outro pensamento. No entanto, como se antecipou com relação a Heidegger,
também em Lévinas recorre-se a esta figura do “digno de ser pensado” que, não
sendo o ser, passa a ser o Outro Homem. E, ainda que abrindo todo um novo
âmbito na filosofia, o humanismo do outro homem persiste em insistir na figura
humana – o que acaba, ainda, produzindo um discurso excludente e violento. O
sentido é o Rosto do Outro e é este que me comanda, portanto, devemos estar
sempre abertos ao chamado deste rosto que sofre, que é fraco, que é pobre – mas
que é sempre e exclusivamente humano. Na entrevista a Jean-Luc Nancy em que
Derrida tenta responder à pergunta “O que vem depois do sujeito?”, o filósofo diz
que o humanismo do outro homem é o modo pelo qual Lévinas suspende a
hierarquia do sujeito, mas o outro homem é ainda um sujeito. Diz também que
595
LÉVINAS, E. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, p. 111.
234
Heidegger e Lévinas certamente desordenam o discurso humanista tradicional,
mas tanto a subjetividade sem fundo e passiva que é invadida pelo Outro em
Lévinas como o Dasein que tem apenas como essência sua abertura e
referencialidade ao Ser, “ambos são homens”
596
– o que abrirá o campo para toda
uma linda discussão, inclusive, sobre os limites do humano e do não-humano que
se desdobra na questão dos animais, que é bem trabalhada tanto no capítulo sobre
a violência contra os animais em De que amanhã... como em O animal que logo
sou
597
.
Em sua breve estada no Brasil junto a René Major, em 2001, a convite de
um grupo de psicanalistas, em entrevista à Folha de São Paulo, Derrida iria
retornar a estas questões levantadas mais de trinta anos antes. Diz ele:
Existe uma história do conceito de homem e é preciso se interrogar sobre essa
história: de onde vem o conceito de homem, como o homem, ele mesmo, pensa o
que é o próprio homem? Por exemplo, quando tradicionalmente se opõe ao
animal, se afirma que o próprio do homem é a linguagem, a cultura, a história, a
sociedade, a liberdade, etc. Pode-se colocar questões sobre a validade de todas
essas definições do “próprio” e do homem, e, portanto, sobre a validade do
conceito de homem tal como geralmente é utilizado. Colocar questões sobre este
conceito de homem é nada ter de seguro a este respeito. Mas isso não quer dizer
ser contra o homem. Freqüentemente se acusa a desconstrução de, ao colocar
questões sobre a história do conceito de homem, ser inumana, desumana, contra o
humanismo. Nada tenho contra o humanismo, mas me reservo o direito de
interrogar quanto à história, à genealogia e à figura do homem, quanto ao
conceito de próprio do homem.
598
Ou seja, o intuito de Derrida, desde o final da década de sessenta até o “fim” de
sua obra, seria o de causar um abalo mais radical no pensamento humanista
através do questionamento de qualquer “propriedade” ou “autenticidade” do
homem em detrimento aos outros entes, vivos ou não vivos, e até mesmo
pensáveis ou não. E é neste sentido que Fabiane Marques dirá que “se os valores
da identidade ou da proximidade a si que animam a busca do próprio também
animaram o conjunto da metafísica ocidental como pensamento da essência, como
busca da presença mesma da coisa em sua essência”, e, além disso, “se a
desconstrução da metafísica passa por um abalo desse pensamento do ser do ente
como presença”, então “é o questionamento da metafísica mesma o que está em
596
DERRIDA, J. “Il faut bien manger ou le calcul du sujet”, p. 294.
597
Sobre o tema dos animais, remeto ao capítulo “Viokência contra os animais”, de De que
amanhã... e também a O animal que logo sou. (São Paulo: UNESP, 2002).
598
DERRIDA, J. Entrevista à Folha de São Paulo, Caderno “Mais”, em 27/05/2001.
235
jogo numa recusa do pensamento do próprio”
599
. Mas tal fato não pode nem se
instituir através da recusa ou do falso afastamento dos discursos de Hegel, Husserl
e Heidegger, dando-lhes à morte, nem de uma mera reinscrição destes discursos
como meros pensamentos antropológicos. Se os existencialismos e marxismos
franceses desviaram de certo modo a crítica ao conceito de homem pressuposta
nas filosofias dos três “H”, isto não deveria supor que estes pensamentos que
marcar o próprio declínio do homem fossem amalgamados com a velha tradição
metafísica.
Quando esteve no Rio de Janeiro a convite do Núcleo de Estudos em Ética
e Desconstrução, o professor da New School for Social Research Simon Critchley
disse que:
Embora contrário a alguns derridófilos, eu não penso que ele leia tudo com o
mesmo poder persuasivo (encaremos: há melhores e piores textos de Derrida;
como poderia ser diferente?), não há dúvida de que o modo pelo qual ele lê uma
série crucial de autores da tradição filosófica transformou completamente nossa
compreensão de suas obras e, por implicação, de nossa própria obra. Em
particular, eu penso nas devastadoras leituras que os franceses chamaram de “les
trois H”: Hegel, Husserl e Heidegger, que proveram a matéria prima para a
filosofia francesa do período pós-guerra e também a própria formação filosófica
de Derrida na década de 1950. Descartando as polêmicas contrárias, as leituras de
Husserl são cintilantes em seu rigor e seu brilhantismo, seus engajamentos com
Hegel, particularmente Glas, (...) são um desmantelamento maravilhosamente
imanente e imaginativo do sistema hegeliano. Acho também que Derrida foi o
melhor e mais original leitor filosófico de Heidegger, em particular a série
Geschlecht e Do espírito, mas Heidegger está implícito em quase tudo que
Derrida escreve, sua sombra estende-se ao longo de toda sua obra.
600
O que pretendo usar aqui no sentido de apontar que a crítica derridiana aos seus
colegas de geração provém do fato de estes, em sua maioria, ou não
reconhecerem, ou reconhecerem bem tardiamente, ou mesmo recusarem o fato de
seus pensamentos serem, em sua “matéria prima”, articulados pela filosofia do
triplo “H” alemão, em sua esmagadora maioria (com exceção talvez de Lévinas e
Blanchot e, em alguma medida, Lacan e Bataille) declarando apenas uma filiação
nietzschiana. E talvez por isso, a meu ver, ainda que eu veja em Nietzsche um dos
grandes quase-alicerces da desconstrução, Derrida dedique tão poucos textos
exclusivamente à sua obra, preferindo mais abordar os filósofos alemães que
599
MARQUES, F. “Desconstruções do humanismo: Foucault e Derrida”, p. 104.
600
CRITCHLEY, S. “Derrida: the reader”. Palestra proferida no dia 25 de agosto de 2005 na PUC-
Rio a convite do NEED - Núcleo de Estudos em Ética e Desconstrução.
236
seriam de certa maneira recalcados ou silenciados de uma forma desonesta por seu
tempo.
Meu intuito aqui, portanto, não é o de me prolongar no tema do
humanismo, que infelizmente não terei como dar conta e que requereria, por si só,
uma pesquisa à parte, mas sim mostrar as “posições” de Derrida frente à sua época
que o artigo de 1968 delineia: em seus termos, “marcar os efeitos desse abalo total
sobre o que, por comodidade, com aspas e as precauções que se impõem, eu
comecei por chamar a ‘França’ ou o pensamento francês”
601
. Isto porque, para
ele:
Muitas vezes, de fato, aqueles que denunciam o humanismo ao mesmo tempo que
a metafísica permaneceram nessa “primeira leitura” de Hegel, de Husserl e de
Heidegger e poder-se-ia assinalar mais de um signo disso mesmo em numerosos
textos recentes
602
. O que permite pensar que, sob certos aspectos, se permaneceu
do mesmo lado.
603
As conclusões a que Derrida chega neste artigo – e nas quais se pode ver, para
além da brilhantemente trabalhada pela colega referência implícita a Foucault,
indicações críticas possivelmente direcionadas a Deleuze, Guatarri e Lyotard –
podem-se resumir brevemente em três aspectos:
1. Uma redução do sentido que indica a necessidade de se atentar tanto ao sistema
como à estrutura de um pensamento, sem que se reinstaure o movimento clássico
do sistema ao qual se analisa nem que se apague ou destrua este sentido estudado.
Deve-se assim pensar a possibilidade do sentido de modo que esta “redução” de
inspiração assumidamente husserliana se dê através de uma forma de “ruptura”
com a ontologia, tendo alguns aspectos, certamente tamm, de uma Aufhebung
do humanismo.
2. Um certo padrão estratégico que comandaria um abalo radical proveniente de
um certo “fora”. Tal abalo não pode configurar-se senão através de uma “relação
violenta do todo Ocidente com o seu outro”
604
, seja em termos lingüísticos,
etnológicos, econômicos, políticos ou mesmo militares. Para Derrida, “a ‘lógica’
601
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 175.
602
O que, com relação a Foucault, Fabiane Marques entrevê uma menção ao último capítulo de A
história da loucura, intitulado “o círculo antropológico”, escrito em 1961, e ao capítulo “O
homem e seus duplos” de As palavras e as coisas, de 1966. Ver MARQUES, F. “Desconstruções
do humanismo: Foucault e Derrida”, p. 105 et passim.
603
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 158.
604
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
237
de toda a relação com o fora é muito complexa e surpreendente. A força e a
eficácia do sistema, precisamente, transformam regularmente as transgressões em
‘falsas saídas’”
605
, o que deixaria apenas, às chamadas “desconstruções”, as duas
estratégias já mencionadas no primeiro parágrafo deste capítulo, no item “ainda
sobre a différance”: em primeiro lugar, a estratégia do tipo heideggeriana, em que
se desconstrói sem se mudar de terreno, repetindo-se, destarte, o léxico do sistema
que se pretende desconstruir, superando contínua e profundamente – correndo o
risco de enclausurar-se no autismo; em segundo lugar, aparecem as
desconstruções do tipo francesas, em que se decide mudar de terreno de modo
irruptivo e instaurando-se no “fora” – reinstalando-se, assim, cega e
continuamente o “novo” terreno sobre o antigo solo.
Lembro aqui que um ano antes, em um artigo dedicado a Husserl
intitulado “A forma e o querer-dizer: nota sobre a fenomenologia da linguagem
(publicado na Revue internacionale de philosophie, 1967, n. 81), ao abordar, de
um lado, uma corrente que buscaria experienciar o sentido da fenomenologia, isto
é, sua “matéria”, e de outro, uma exigência de leitura formalista de Husserl, que
pretenderia dar prosseguimento à sua lógica, Derrida teria dito que “não é
obrigatório, portanto, escolher entra duas linhas de pensamento. Mas antes a
meditar sobre a circularidade que indefinidamente as faz passar uma na outra”
606
.
E com esta meditação sobre o círculo talvez se possa produzir alguma diferença,
na própria repetição de sua circularidade, algum “deslocamento elíptico”:
Nem matéria nem forma, nada que possa retomar qualquer filosofema, isto é,
qualquer dialética, em qualquer sentido que se a determine. Elipse
simultaneamente do querer-dizer e da forma: nem fala plena, nem círculo
perfeito. Mais e menos, nem mais nem menos. Talvez uma questão
completamente diferente.
607
3. Uma mudança de estilo comandada por uma espécie de inclinação nietzschiana,
pois, certamente, como já se tentou mostrar, esta “mudança de terreno” (nos
termos de Derrida) ou esta “mudança de elemento” (nos termos de Roberto
Machado) é decisivamente necessária: o que dirá que não há como se escolher
605
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 176.
606
DERRIDA, J. “A forma e o querer-dizer: nota sobre a fenomenologia da linguagem”, p. 214.
607
DERRIDA, J. “A forma e o querer-dizer: nota sobre a fenomenologia da linguagem”, p. 214.
238
apenas uma entre estas duas formas de desconstrução, mas antes alinhavar estas
duas inclinações. Sendo repetitivo:
Uma nova escrita deve tecer e entrelaçar os dois motivos. O que significa dizer
que é necessário falar várias línguas e produzir vários textos simultaneamente.
(...) Porque é de uma mudança de “estilo”, dizia-o Nietzsche, que nós talvez
necessitemos; e se há estilo, Nietzsche no-lo recordou, ele só pode ser plural.
608
Se se pode ver em ambas as desconstruções a dívida ao pensamento nietzschiano,
provavelmente Nietzsche seja o “terreno” ou o “elemento” em comum entre as
duas línguas, a francesa e a alemã. O que remete à óbvia implicação do fato de
que se há algo que Nietzsche não pode ser é “elemento” nem “terreno” e,
portanto, este terreno ou elemento não funda nem inaugura nada, sendo o próprio
abalo sísmico ou sistemático das duas apropriações ulteriores.
Poder-se-ia, deste modo, dizer que a desconstrução quer ser mais
nietzschiana que Heidegger, Foucault, Deleuze, Guatarri, Lyotard etc.?
Provavelmente sim, se não se compreende nisto um “retorno a Nietzsche” nem
uma “Nietzsche Re-renaissance, em que se faria justiça aos primeiros franceses
que teriam conciliado as duas línguas: Bataille e Blanchot. É claro que estes dois
pensadores, neste sentido bem mais que Lévinas, teriam auxiliado Derrida a não
entender as duas propostas desconstruturas como excludentes, vendo nestes – a
partir dos seminários de Alexandre Kojève, fosse no hegelianismo assumido de
Georges Bataille ou nos hiatos e nas ausências que Maurice Blanchot aponta em
O espaço literário – a possibilidade de se mudar de terreno através da proposição
de um novo estilo, e não mais em nenhuma possibilidade de centro – nem que este
“centro”, esta “verdade” estivesse “fora”. Blanchot vê em Nietzsche este
deslocamento quando diz que, em sua obra, “nada funciona como centro. Não há
um livro central, não há um Hauptwerk (...). Algo de fundamental tenta se
exprimir, um tema idêntico, não idêntico, um pensamento constante, quase o
apelo de um centro não centrado, de um tudo além de tudo, que não se alcança
nunca”
609
; e é esta a posição que enxergo em Derrida.
Não é à toa que “Os fins do homem” finda com Nietzsche: depois de
Hegel, Husserl e Heidegger, Nietzsche. Finda, aliás, relembrando a diferença entre
608
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, pp. 176-177.
609
BLANCHOT, M. L’entretien infini. Paris: Galimard, 1969, p. 210.
239
o homem superior e o super homem, tomando como hipótese o fato das leituras
heideggeriana e francesas interpretarem Nietzsche de acordo com a diferença
destas duas superações: de um lado, para Heidegger, Nietzsche talvez tenha sido o
höherer Mensch, que é “abandonado ao seu infortúnio com um último movimento
de piedade”, denunciado como o último dos metafísicos pela serena “vigília”,
pela “guarda montada junto à casa do ser”
610
; por outro lado, o recurso a
Nietzsche “que na França é cada vez mais insistente” indicaria o filósofo como o
Übermensch, “que acorda e parte, sem se voltar para o que deixa atrás de si”, que
“queima seus textos e apaga os traços dos seus passos” no despertar de um dia que
está por vir. Haveria algum lugar na brisura destes discursos? Alguma “economia
da veille”: da vigília e da véspera, como também do surveiller e do éveiller, do
vigiar e do despertar? Antes da resposta, deixo Derrida falar:
Sabe-se como, no fim do Zaratustra, no momento do “signo”, quando das Zeichen
Kommt, Nietzsche distingue, na maior proximidade, numa estranha semelhança e
numa cumplicidade [grifos meus], na véspera da última separação, do grande
meio-dia, o homem superior (höherer Mensch) e o super-homem (Übermensch).
(...) O seu riso [do Übermensch] explodirá então em direção a um retorno que não
terá mais a forma da repetição metafísica do humanismo nem também, sem
dúvida, “para-além” da metafísica, a do memorial ou da guarda do sentido do ser,
a da casa e da verdade do ser. Ele dançará, fora de casa, essa aktive
Vergesslichkeit, esse “esquecimento ativo”, essa festa cruel (grausam) de que fala
a Genealogia da moral.
611
Pois é neste não-lugar, nesta brisura da “vigília-véspera” que a desconstrução
pretende instalar-se economicamente, como se pode ver quando Derrida diz que
nous sommes peut-être entre ces deux veilles
612
, ou seja, que nos situamos entre
estas duas formas de veille, entre a vigília e a véspera: e apenas isto, esta mudança
de estilo é o que pode vir a configurar verdadeiramente “os fins do homem”.
(in)comunicação
A idéia de que todo colóquio filosófico tem sua significação política parece
retornar na comunicação “Assinatura acontecimento contexto”, em um evento
cujo tema era a “comunicação”, no Congresso Internacional das Sociedades de
610
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 177.
611
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 177.
612
DERRIDA, J. “Os fins do homem”, p. 177.
240
Filosofia de Língua Francesa que aconteceu em agosto de 1971 em Montreal. Na
primeira parte do texto, o filósofo dedica-se justamente a pensar o que seria um
congresso em cujo tema é a comunicação, o que necessariamente suporia que
“comunicação” seja um conceito unívoco e, portanto, “comunicável”: verdades
estas que, doravante, ele se disporá a desconstruir. A primeira questão que se
coloca, a partir daí, é se a própria palavra “comunicação” comunicaria um
“conteúdo”, ou seja, se há um “sentido” (único e unívoco) na “comunicação”, que
seria, portanto, uma espécie de “transporte” ou o “lugar de passagem” deste
sentido.
Já se pode supor o intuito de Derrida: mostrar que a palavra comunicação
“abre um campo semântico que precisamente não se limita à semântica, à
semiótica, ainda menos à lingüística”
613
e, deste modo, o campo semântico da
comunicação designaria os movimentos não-semânticos (o que quer dizer que não
se trata, então, nem de um conteúdo semântico – ou concernente ao sentido –,
nem semiótico – concernente aos signos – e ainda menos lingüístico). Como se
viu, e como pode pretender certa interpretação nietzschiana ou hermenêutica, não
se trata aqui de pensar o “sentido próprio” (seja ele semântico, semiótico ou
lingüístico) como um deslocamento metafórico tanto porque – a fim de tentar a
qualquer custo evitar uma concepção de retorno, isto é restituição – não se pode
mais falar em “sentido próprio” como devido ao fato de Derrida – o que será
devidamente explorado no já mencionado capítulo – ir se afastando da própria
noção de metáfora, isto é de “transporte”. Neste último caso, o “deslocamento” da
metáfora seria compreendido como se houvesse um sentido primeiro (o que quer
dizer “presença”) que seria transportado ao outro “contexto”, ou ainda, que estaria
“fora de contexto” (termos que serão logo à frente postos em questão) e que irá,
mesmo que não se julgue moralmente este afastamento, apresentar-se como outra
forma de “presença”, secundária ou desviada – fato este que, por si, já demandaria
uma restituição.
Entre parênteses, Derrida assume que o “tema” ao qual se dedicará sua
comunicação é a relação entre “polissemia” e “comunicação”, ou, mais
precisamente, entre “disseminação” (que o filósofo diferenciará de polissemia) e
“comunicação”, o que, segundo o próprio, deverá recorrer a um novo conceito de
613
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 349.
241
escrita para que a própria discussão e os próprios conceitos em questão sejam
deslocados, ou seja, perturbados em seu “contexto original”.Isto, pois, um
parêntese adiante, o filósofo dirá que o “tema” da comunicação remete ao
problema do “contexto” e da “escrita”. Ele explica:
Por exemplo, num colóquio de filosofia de língua francesa, um contexto
convencional, produzido por uma espécie de consensus implícito, mas
estruturalmente vago, parece prescrever que se proponham “comunicações” sobre
a comunicação, comunicações de forma discursiva, comunicações coloquiais,
orais, destinadas a ser entendidas e a envolver ou a prosseguir os diálogos no
horizonte de uma inteligibilidade e de uma verdade do sentido, de tal modo que
um acordo geral possa finalmente, justamente, estabelecer-se.
614
Mas como se determina um contexto, se é que ele é determinável? – esta é a
questão multíplice que Derrida tentará empreender sobre o problema de uma
determinação precisa e científica do conceito de “contexto” que, de acordo com o
filósofo, sempre comporta uma certa confusão e que, por isso, não é nunca
absolutamente determinável. Com isso, Derrida apontará a inesgotabilidade de
toda determinação conceitual e, portanto, contextual; esta “não-saturação
estrutural” que, como remarcas, teria um duplo efeito: 1. a insuficiência teórica do
conceito de contexto, ou seja, o fato de que um contexto nunca é dado ou acabado,
sempre se está em um contexto; 2. a precariedade do conceito de contexto, ou seja,
o fato deste sempre apresentar um caráter provisório e, por isso, não poder mais
ser compreendido sob a categoria de “comunicação” como transmissão de sentido.
Três anos antes, em uma exposição nos seminários organizados por Jean
Hippolite no Collège de France intitulada “O poço e a pirâmide: introdução à
semiologia de Hegel”, Derrida relacionaria o “superar” ao que falar “quer-dizer”
dizendo que o processo do signo é uma Aufhebung: “isto é, ao mesmo tempo
elevada e suprimida, digamos doravante superada, no sentido em que se pode ser
ao mesmo tempo elevado e superado em suas funções, substituído por uma
espécie de promoção por aquilo que sucede e assume importância”
615
. No
entanto, tal superação só se daria, por um lado, dentro de um certo sistema
fonético de uma língua alfabética – o que demarcaria a “hierarquia teleológica das
escritas”
616
– e, por outro, segundo a mesma lógica da Fenomenologia do espírito
614
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 350.
615
DERRIDA, J. “O poço e a pirâmide: introdução à semiologia de Hegel”, p. 126.
616
DERRIDA, J. “O poço e a pirâmide: introdução à semiologia de Hegel”, p. 133.
242
em que o absoluto vai de certa forma, a cada esfera da Consciência, se
manifestando mais e de modo mais verdadeiro, da certeza sensível ao absoluto, a
história da escrita também passaria por este processo de superação, do hieróglifo à
semiologia, em que o último e mais completo nível reúne todas as diferenças na
absoluta identidade a si da reconciliação espiritual. Aí também Derrida diz que
“não basta derrubar a hierarquia ou inverter o sentido da corrente (...) para mudar
de maquinário, de sistema ou de terreno”
617
. Deste modo, não se pode pensar de
modo algum que Derrida pretenderá “superar” o conceito corrente de
comunicação e de contexto, mas sim apresentar este maquinário para que, na
“repetição” deste círculo (ou deste circo) possa acontecer alguma diferença.
E Derrida, neste artigo – e talvez como em toda sua obra, e mesmo ainda a
obra de todo filósofo seja apenas uma repetição: repetição esta em que algo é
acrescido – repete seu “circo”, que, não sendo círculo, pode se assemelhar mais a
uma espiral, mas reapresenta sua cena, que nunca fora original, quando diz que o
conceito de escrita, o corrente, pode ser entendido como uma “forma de
comunicação”. Ao retomar a concepção praticamente unânime e incontroversa de
que a escrita seria um poderoso “meio de comunicação” que alargaria o campo
da comunicação oral ou gestual, Derrida pretende atentar a este caráter de
“extensão” que se confere à escrita, vendo nisto a pressuposição de que haveria
um “espaço homogêneo” da comunicação no qual se distribuiriam as
comunicações locutória e oral e ao qual a escrita surgiria como um rompimento
de limites, viria para “abrir o mesmo campo a um domínio muito vasto”
618
.
Assim, o “sentido”, ou seja, o conteúdo semântico da mensagem, seria
transmitido, isto é, comunicado por diferentes meios. E esta, como já se sabe, é a
postura geral da filosofia com relação à transmissão de sentido, ou melhor, à
presença de um sentido a ser comunicado. Neste momento, Derrida toma o Essai
sur l’origine des connaissances humaines de Maurice de Condillac para
exemplificar a atitude habitual do pensador, dizendo que não crê que se possa
encontrar nenhum contra-exemplo em toda a história da filosofia. No entanto, a
escolha de Condillac dá-se em função de, em sua teoria, a função da escrita ser
descrita “sob a autoridade da categoria de comunicação
619
e apresentar as
617
DERRIDA, J. “O poço e a pirâmide: introdução à semiologia de Hegel”, p. 147.
618
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, pp. 351-352.
619
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 352.
243
seguintes razões: 1. os homens têm de se comunicar; 2. o que os homens têm para
comunicar é seu pensamento; 3. os homens, ao inventarem a escrita, já se
encontravam prontos a comunicar.
Ou seja, que o pensamento como pensamento “representativo” é algo que,
de certo, comandaria e antecederia a comunicação, que seria tão-somente um
“transporte” das idéias, do conteúdo, da “alma”... Nas palavras de Condillac: “Os
homens em estado de comunicar os seus pensamentos através de sons sentiriam a
necessidade de imaginar novos signos próprios para perpetuá-los e fazê-los
conhecer por pessoas ausentes
620
(e Derrida sublinha este valor de ausência
como se verá mais adiante). Neste sentido, o conteúdo que antes era comunicado
através de gestos e sons, este mesmo sentido, passaria, em um momento posterior
e por uma necessidade de se “preservar” a presença deste sentido, a ser escrito. A
partir do texto de Condillac, Derrida vai tomar como exemplo-mor este aspecto de
“representação” que a comunicação escrita possuiria, ressaltando neste o inter-
relacionamento dos conceitos de “representação”, “comunicação” e “expressão”
através da “história da escrita” que empreende. Nesta história, Derrida observa
que a relação entre “signo” e “idéia” é sempre constante e preservada, nunca
abalada ou posta em questão, o que há é uma espécie de gradação desde a escrita
pictográfica até a alfabética, e cita Condillac:
Eis a história geral da escrita conduzida por uma gradação simples, desde o
estado da pintura até o da letra; porque as letras são os últimos passos que restam
para dar depois das marcas chinesas, que, por um lado, participam da natureza
dos hieróglifos egípcios, e, por outro, participam das letras precisamente do
mesmo modo que os hieróglifos participam igualmente das pinturas mexicanas e
dos caracteres chineses. Estes caracteres são tão próximos da nossa escrita que
um alfabeto diminui simplesmente o embaraço do seu número, constituindo
resumo sucinto.
621
Desta maneira, em um primeiro momento, Derrida visa a apresentar o traço de
“redução econômica” que Condillac vê na escrita alfabética, mas também de sua
“homogeneidade” (pois a “idéia” torna-se “signo falado ou gestual”, depois
“signo escrito”, e destina-se ao “leitor”, sem que haja nenhuma aparente mudança,
620
CONDILLAC, M. Essai sur l’origine des connaissances humaines, segunda parte, cap. XIII,
seção primeira, parágrafo XIII. Citado por DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p.
352.
621
CONDILLAC, M. Essai sur l’origine des connaissances humaines, segunda parte, cap. XIII,
seção primeira, parágrafo XIII. Citado por DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p.
353.
244
permanecendo a mesma “mensagem”) e, como será fundamental a Derrida, de seu
caráter de uma “ausência” necessária (já que a escrita serviria para “expandir”
mesmo na ausência de um destinatário).
Anos antes, em “Edmond Jabès e a questão do livro”, já se viu que esta
caráter de ausência foi fundamental para que Derrida desenvolvesse a idéia de
escritura apresentada em Gramatologia, fosse na ausência de lugar que
“ocupava” o livro, visto como “terreno vago” e “não-lugar”, fosse na ausência do
escritor, quando a escrita é vista como uma retirada de si, como abandono da
palavra: “ser poeta é saber abandonar a palavra. (...) Abandonar a escritura é só lá
estar para lhe dar passagem, para ser o elemento diáfano da sua procissão: tudo e
nada. (...) só o escrito me faz existir nomeando-me”
622
. Agora, nos Ensaios de
Condillac, esta ausência apresentará uma significação impressionante, e Derrida a
descreve sob dois aspectos: 1. a ausência de destinatário, já que se escreve para
se comunicar com os ausentes – e Condillac já apontaria a este traço de ausência
que é fundamental a qualquer escrita ou linguagem em geral, pois a escritura não é
uma produção humana, estando o homem desde sempre inserido nela
623
; e 2. a
ausência como modificação da presença, pois, como toda a tradição, a
representação surge para suprir o que falta, representando o que está ausente. Esta
lógica do “suplemento”, entretanto, ao contrário do pensa Derrida, não é
apresentada como ruptura da presença, mas como uma modificação contínua da
presença e homogênea da presença, e é justamente ela que vai regular outros
termos fundamentais para se compreender a filosofia de Condillac, o “tracer” e o
retracer” (traduzidos por “traçar” e “retraçar”, mas que concernem ao “trace” –
o “rastro”). E, como se sabe, do mesmo modo que a lógica da suplência será lido
de um outro modo pela desconstrução, assim também ocorre com estes
“rastreamentos” de Condillac.
Traçar [tracer] quer dizer segundo ele “exprimir”, “representar”, “evocar”,
“tornar-se presente” (“é muito provavelmente à necessidade de traçar assim os
nossos pensamentos que a pintura deve a sua origem, e esta necessidade
622
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, pp. 61-62.
623
Aí Derrida diz: “A ausência do emissor, do destinador, em relação à marca que abandona, que
se separa dele e continua a produzir efeitos para além da sua presença e da atualidade presente do
seu querer-dizer, mesmo para além da sua própria vida, esta ausência que pertence, todavia, à
estrutura de qualquer escrita – e, acrescentarei mais adiante, de qualquer linguagem em geral –,
esta ausência é interrogada por Condillac” (DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p.
354).
245
concorreu, sem dúvida, para conservar a linguagem de ação, como aquilo que não
se podia pintar mais facilmente”
624
). O signo nasce ao mesmo tempo que a
imaginação e a memória, no momento em que é requerido pela ausência do
objeto na percepção presente. (...) A operação filosófica que Condillac chama
também “retraçar” consiste em remontar através da análise e decomposição
contínua o movimento de derivação genética que conduz da simples sensação e
da percepção presente ao edifício complexo da representação: da presença
original à língua mais formal do cálculo.
625
Esta filosofia da linguagem influenciaria posteriormente em grande parte os
“ideólogos” franceses, que elaboraram uma teoria do signo como representação da
idéia que representa a coisa percebida, sendo a comunicação, então, uma
veiculação do sentido e a escrita, assim, uma forma desta comunicação. Uma
“espécie”, diz Derrida, que comportaria no seu interior de seu gênero uma certa
especificidade – e eis aqui o início da desconstrução da teoria condillaciana.
Atenta-se então ao fato de que esta “diferença específica” da escrita seria o
já antecipado caráter de “ausência”, donde Derrida retira duas hipóteses: 1.
precisa-se, antes de qualquer coisa, determinar esta ausência, pois, como se sabe,
qualquer signo supõe uma certa ausência – assim, para se pensar esta
“especificidade” da escrita é necessário pensar esta “ausência” em um campo
original; 2. para que a escrita seja uma espécie de comunicação e para que se
assegure a rigorosidade de seus conceitos, a predicação da ausência da escritura
não pode ser a mesma que se refere aos outros signos e às outras espécies de
comunicação. E é por esta razão que a desconstrução doravante se preocupará em
empreender uma caracterização precisa desta ausência. “Um signo escrito avança-
se na ausência do destinatário. Como qualificar essa ausência?”
626
, pergunta
Derrida. Se se restringe esta ausência ao fato de que, quando se escreve, o
destinatário está ausente do campo de percepção, esta ausência estaria sendo
pensada então sob a forma de uma presença longínqua – ou seja, uma presença
modificada; e, além disso, se se leva em conta que a escritura possui um certo
arqui-rastro original, ela então desde sempre independeu do destinatário, o que
quer dizer que ela pressupõe um outro modo de distanciamento.
624
CONDILLAC, M. Essai sur l’origine des connaissances humaines, segunda parte, cap. XIII,
seção primeira, parágrafo XIII (“De l’ecriture”, p. 128). Citado por DERRIDA, J. “Assinatura
acontecimento contexto”, p. 354.
625
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 355.
626
DERRIDA, J. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 356.
246
Não parece, ou pelo menos esta distância, este desvio, este atraso, esta différance
[este diferimento] devam poder ser levados a um certo absoluto da ausência para
que a escritura da escrita, supondo que a escritura exista, se constitua. É aí que a
différance como escritura não poderia já (ser) uma modificação (ontológica) da
presença.
627
Assim, para que a escrita possua sua “legibilidade”, ou seja, sua função como
escrita, é preciso que esta escrita seja legível na ausência de qualquer destinatário
possível, o que quer dizer que é necessário que ela seja repetível (isto é, iterável)
na ausência absoluta destinatário. E esta repetição é o que Derrida definirá como
iterabilidade – “iter, de novo, viria de itara, outro em sânscrito, e tudo o que se
segue pode ser lido como uma exploração desta lógica que liga a repetição à
alteridade”
628
–, sendo este aspecto a própria marca da escritura e o que leva
Derrida a dizer que uma escrita que não seja iterável, ou seja, estruturalmente
repetível, e legível na ausência de qualquer destinatário não é uma “escritura”.
O exemplo que Derrida apresenta para que se compreenda a iterabilidade
da escritura é exemplar. Ele supõe que duas pessoas secretamente criaram um
código de comunicação apenas conhecido pelos dois. Ainda que o destinatário ou
mesmo ambos os dois parceiros morram, seu código continuará sendo uma
escritura, na medida em que “ela constitui-se, na sua identidade de marca, pela sua
iterabilidade, na ausência deste ou daquele, portanto, no limite, de qualquer
‘sujeito’ empiricamente determinado”
629
. O que levará à conclusão de que não
existe “código secreto”, pois a possibilidade de repetição por qualquer terceiro é a
possibilidade constitutiva do próprio código (fato que, nos dias de hoje, é sabido
por qualquer agência de segurança ou por qualquer hacker, com os avanços das
fraudes e invasões em contas “secretas”, protegidas por senhas, como na tentativa
louca de se prevenir contra a “descoberta” delas por parte dos invasores). A
escritura, assim, não é endereçada a ninguém e tem como sua marca a ausência
radical do destinatário, que será sempre desconhecido e indeterminado.
Qualquer escrita deve, portanto, para ser o que é, poder funcionar na ausência
radical de qualquer destinatário empiricamente determinado em geral. E essa
ausência não é uma modificação contínua da presença, é uma ruptura de
627
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 356.
628
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 356.
629
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 356.
247
presença, a “morte” ou a possibilidade da “morte” do destinatário inscrita na
estrutura da marca.
630
Fato este que terá suas implicações éticas: tanto no que se refere à
responsabilidade da escritura, posto que não havendo destinatário, com sua
“morte”, além de não se parar de escrever, deve-se assumir a responsabilidade
assimétrica neste pacto do código, como no fato de, por sua intrínseca constituição
como constructo, o código não poder ser mais visto como uma “autoridade”,
tornando todo “contexto” aberto. Nas palavras de Derrida: “A disrupção, em
última análise, da autoridade do código como sistema finito de regras; a
destruição radical, no mesmo lance, de todo contexto como protocolo de código”
631
.
Mas a desconstrução prossegue no intuito de mostrar que o que vale para o
destinatário vale também para o emissor, mostrando que a escrita, o ato de
escrever, é uma produção maquínica de marcas, que qualquer desaparição, seja do
emissor ou do destinatário, não impedirá de funcionarem de acordo com a “lógica
da máquina”
632
. A máquina impede qualquer possibilidade de presença, do
conteúdo (pois não há sentido a ser transmitido), do destinatário (posto que
mesmo na ausência deste a escritura funciona em sua iterabilidade) e também do
emissor (que não está nunca presente a si, plenamente consciente e no controle da
situação, nem no momento em que se acha “autor” do código, do texto, da
escritura); e também é ela que permite que, não obstante estas ausências radicais,
os efeitos, as marcas sejam infinitamente produzidos. “Para que um escrito seja
um escrito”, diz Derrida, “é necessário que ele continue a ‘agir’ e a ser legível
mesmo se o que se chama o autor do escrito não responde já pelo que escreveu,
pelo que parece ter assinado”
633
. E é isto que, com relação à escritura, põe o autor
na mesma situação que o leitor, ambos ausentes e constituídos pela escritura, e
630
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 356.
631
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 357.
632
Não podendo me aprofundar aqui neste tema, apenas adianto que isto que seria exemplarmente
tratado décadas depois em Papel máquina, ou seja problema da máquina para-além de qualquer
subjetividade, já havia sido rascunhado anos antes, em “Freud e a cena da escritura”, quando a
“máquina” inconsciente tenta ser compreendida através da Interpretação dos sonhos e delineia-se
a relação entre o rastro e os traços mnésicos, entre a elaboração onírica e a produção da escritura,
sobremaneira com relação à ausência constitutiva de qualquer código “presente”, sendo as
elaborações e produções unicamente possíveis como criações ficcionais. Derrida diz: “a ausência
de qualquer código exaustivo e absolutamente infalível significa que na escritura psíquica, que
anuncia assim o sentido de toda a escritura em geral, a diferença entre significante e significado
nunca é radical” (DERRIDA, J. “Freud e a cena da escritura”, p. 197).
633
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 357.
248
que, além disso, para aquém de qualquer valoração (como se verá na Farmácia),
torna a escritura desde seu “nascimento” órfã, separada de qualquer pai, de
qualquer logos, como Platão a condenara à irresponsabilidade e como se pode ver
que se prosseguiu ao longo da história da filosofia. Isto permite que se aponte
antecipadamente alguns traços “constituintes” da escritura: 1. “comunicação” não
pode ser mais entendida como comunicação entre “consciências” nem como
“transporte” do querer-dizer; 2. a escrita não pode mais ser compreendida por
nenhum horizonte sem6antico ou hermenêutico, sendo esta justamente a causa da
fenda do horizonte do sentido; 3. a inconsistência do conceito de “polissemia”
como pluralidade de sentidos, já que não havendo “o sentido” não há, assim,
“outros sentidos”, e a escritura passa a ser sinônimo de disseminação; 4. esta
concepção de escritura mostra o quão insuficiente e limitado é o conceito de
“contexto”.
Mas, antes mesmo de se pensar estes apontamentos desconstrutivos, pode-
se pensar em como eles já se mostram “desconstruídos” ou “desconstruíveis” no
próprio conceito tradicional de escritura, vinculado à noção semio-lingüística do
signo. Em primeiro lugar, entendido mesmo vulgarmente, um signo escrito é uma
“marca que permanece”
634
e, por isso, “pode dar lugar a uma iteração na
ausência” do “sujeito” que a produziu (e, sendo “produção de efeitos”, pode ser
compreendida aqui como rastro); se o contexto é compreendido como “o conjunto
das presenças que organizam o momento da inscrição” então o signo escrito traz
consigo a ruptura deste contexto, sendo este seu aspecto, esta “força de ruptura” a
própria estrutura da escritura, donde se conclui que o texto desde sempre rompe
com o contexto, pois, devido à sua iterabilidade essencial pode-se sempre jogar
com o que se chama de contexto, isolar, inscrever, enxertar em outras cadeias etc.
A escritura é esta força mesma de ruptura e, assim, “nenhum contexto pode
fechar-se sobre si. Nem nenhum código, sendo o código aqui simultaneamente a
possibilidade e a impossibilidade da escrita, da sua iterabilidade essencial
(repetição / alteridade)”
635
. Além disto, esta força de ruptura diz respeito também
ao espaço aberto entre as palavras, o espaçamento que permite que signos sejam
colocados em certos lugares na cadeia significante, sejam trocados de lugar, que
permite, enfim, o jogo discursivo como efeito destes espaçamentos, isolamentos e
634
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 358.
635
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 358.
249
enxertos (lembrando aqui sempre a “lógica do enxerto” como constitutiva da
desconstrução); do mesmo modo, diz esta força tamm respeito ao tempo, sendo
ela própria ruptura com a temporalidade do contexto, com o presente, o passado e
o futuro – ou seja, com toda presença do presente – e, ainda mais, com as noções
de subjetivo ou objetivo. Trata-se apenas do surgimento da marca.
Desta exposição sobre o sentido corrente de escrita, acrescida de algumas
notas derridianas, pode-se perceber que tais determinações sobre a “escrita” são
inerentes ao que se chama de linguagem, seja a falada, a gestual, a pictográfica
etc., já que a própria iterabilidade é o que constitui seu aspecto de “identidade”,
ou, ainda mais, que esta aparente identidade a si da marca ou do signo é o que
permite o reconhecimento e a repetição.
Esta unidade da forma significante constitui-se apenas pela sua iterabilidade, pela
possibilidade de ser repetida na ausência não só do seu “referente”, o que é
evidente, mas na ausência de um significado determinado ou da intenção de
significação atual, como de qualquer intenção de significação presente. Esta
possibilidade estrutural de ser privada do referente ou do significado (portanto da
comunicação e do seu contexto) parece-me fazer de qualquer marca, seja ela oral,
um grafema em geral, quer dizer, como se viu, a permanência não-presente de
uma marca diferencial separada de sua pretensa “produção” ou origem [sendo que
estas marcas que permanecem não são “presenças”, mas “rastros”]. E estenderei
mesmo esta lei [grifo meu, para caracterizar esta “lei” da produção de rastros,
desta economia] a qualquer “experiência” em geral se for adquirido que não
existe experiência de pura presença mas apenas cadeias de marcas diferenciais
[de significantes de significantes, ou melhor, de rastros].
636
Atentando a esta ausência do referente, Derrida aponta que sua detecção já havia
sido feita por Husserl em suas Investigações Lógicas na sua intenção de dar conta
do sentido originário, não da interpretação das coisas mesmas, mas de sua
vivência. Nas suas investigações Husserl já apontava à possibilidade de intenção
de significação vazia, ou seja, à óbvia possibilidade de um enunciado ser
proferido sem que o referente esteja presente – e esta possibilidade é aquilo que
Derrida chama de iterabilidade geral de qualquer enunciado, a produção mesma
das marcas e dos efeitos. Quanto à ausência do significado, Husserl também a
analisa, apesar de considerá-la inferior e perigosa, segundo três aspectos: 1. pode-
se usar os signos sem ter o devido conhecimento deles, sendo que este fato não
impede seu funcionamento; 2. enunciados podem ter sentidos privados de
636
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 359.
250
significação, como “círculo quadrado”, que “marca a ausência de um referente, é
certo, a ausência de um significado, mas não a ausência de sentido”
637
(e o que
Husserl aponta com isso, um dos temas centrais de sua obra: a crise do sentido,
não é uma anomalia da linguagem falada, mas a própria condição da escritura); 3.
além de não haver sentido, Husserl interroga-se sobre a possibilidade de, em
alguns casos, nem haver linguagem – o que ele chama de agramaticalidade ou
sinnlosigkeit, como em exemplos como “o verde é ou”. Esta “ausência” de sentido
agramatical é importantíssimo tomado como exemplo do próprio fenomenólogo,
se se pensar que o que interessa à lógica husserliana é a sistematização de uma
gramática universal, e o que Derrida demonstra com este exemplo é que, na
verdade, no intuito de criar esta “Gramática” pura, Husserl cria este contexto no
qual “o verde é ou” não faz sentido, sendo, nos termos derridianos, “apenas um
contexto determinado por uma vontade de saber, por uma intenção epistêmica, por
uma relação consciente com o objeto como objeto de conhecimento num
horizonte de verdade”
638
.
Esta possibilidade de agramaticalidade que Husserl aponta justamente, de
acordo com a leitura de Derrida, para a possibilidade de isolamento e de enxerto
citacional inerente à escritura: “como possibilidade de funcionamento separado,
em certa medida, do seu querer-dizer original e da sua pertença a um contexto
saturável e constrangedor”
639
. Daí o caráter “citacional” da escritura, a infinita e
irrestrita possibilidade de se colocar algo entre aspas, pois qualquer “marca” é e
sempre foi “marca”, desde Platão até as gírias cotidianas e, ainda mais, antes
mesmo de se citar algo, ou seja, de supostamente “retirá-lo” de seu contexto
original, este “algo:” já era, ele mesmo, uma citação: assim, tudo já deveria estar
“entre aspas”.
Qualquer signo, lingüístico ou não-lingüístico, falado ou escrito (no sentido
corrente desta oposição), em pequena ou grande unidade, pode ser citado,
colocado entre aspas; com isso pode romper com todo o contexto dado, engendrar
infinitamente novos contextos, de forma absolutamente não saturável. Isso não
supõe que a marca valha fora do contexto, mas, pelo contrário, que não existem
contextos sem qualquer centro de referência absoluto. Esta citacionalidade, esta
duplicação ou duplicidade, esta iterabilidade da marca não é um acidente ou uma
anomalia, é aquilo (normal / anormal) sem o qual uma marca não poderia mesmo
637
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 360.
638
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 361.
639
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 362.
251
ter funcionamento dito “normal”. O que é que poderia ser uma marcaque não se
pudesse citar? E que origem poderia ter sido perdida pelo caminho?
640
Derrida pretende derrubar a redução do discurso à voz e da voz ao fenômeno,
porque justamente não há sentido originário. E, deste modo, se Husserl enxuga a
linguagem até alvançar o “sentido”, o movimento derridiano inscreve-se e
interfere neste “sentido” a fim de mostrar que este “sentido” nada mais é que a
différance, o que quer dizer que não há este sentido de “sentido”.
parasitas
A segunda parte de “Assinatura acontecimento contexto” dedica-se à exploração
do caráter performativo da linguagem e, conseqüentemente, a um diálogo com
Austin. Sem tempo para uma devida atenção a esta discussão, aqui me limitarei a
apresentar os aspectos do texto que complementam as argumentações derridianas
iniciadas no projeto gramatológico e que, a partir destes textos, se disseminam,
mas adianto que esta discussão teve um desdobramento relevante no que concerne
a um debate com a chamada “filosofia analítica”, pois a partir deste texto veio a
resposta de John Searle e a contra-resposta de Derrida, com um direito a
intervenção de Habermas – debate que se tornou livro com Limited Inc.
641
A motivação de Derrida empreender uma leitura dos speech acts deve-se,
primeiramente, ao fato de Austin considerar os atos discursivos apenas atos
comunicativos, o que o faz considerar que qualquer enunciação “digna deste
nome”, ou seja, qualquer enunciado que comunique, é um ato de discurso entre
interlocutores. Além disto, o que Austin entende por comunicação não consiste
em uma “passagem” de conteúdo, mas antes uma comunicação original que é
produtora de efeitos. Assim, comunicar seria “comunicar uma força por impulsão
de uma marca”
642
. Também interessa Derrida o fato de que o enunciado
performativo (de modo diferente do constatativo) não descreve um algo fora da
linguagem (pois não há nada além das convenções), ele simplesmente produz uma
situação. Por fim, Derrida diz que Austin não conseguiu descrever sua análise do
performativo sem apontar à “autoridade do valor de verdade”, ou seja, a por em
640
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 362.
641
DERRIDA, J. Limited Inc. Campinas: Papirus, 1991.
642
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 363.
252
questão a oposição metafísica verdadeiro/falso (como, por exemplo, quando ele
diz que se preocupa “em desmontar dois fetiches (que estou bastante inclinado,
confesso-o a maltratar...), a saber: 1. o fetiche verdadeiro-falso, e 2. o fetiche
valor-fato (value-fact)”
643
), o que faz com que se veja em sua obra certa
proximidade com a obra nietzschiana, sobretudo quando Austin utiliza-se de
termos como “força”: illocutionary ou perlocutionary force – e esta proximidade
de Nietzsche com o pensamento inglês certamente seria mais um tema a ser
explorado. E são estas razões que fazem Derrida ver na teoria dos speech acts um
certo abalo no conceito semiótico, lingüístico ou simbólico de comunicação e, de
modo bem diverso de Husserl, em Austin “o performativo é uma ‘comunicação’
que não se limita essencialmente a transportar um conteúdo semântico já
constituído e vigiado por um objeto de verdade” (e, também diferente de
Heidegger, “de desvelamento do que é no seu ser ou de adequeção entre um
enunciado judicativo e a própria coisa”
644
). Mas o que Derrida aponta de crucial
em suas paciente análises (ainda que abertas e aporéticas) sobre a “perlocução” e a
“ilocução” (que seriam mais fecundas “no reconhecimento de seus impasses do
que nas suas posições”
645
) é que Austin não percebeu que na estrutura da
“locução” (antes de ser “per-” ou “i-”) já está implícita a marca, que perturba
todas as oposições ulteriores – que buscam a sempre almejada “pureza”, a
higiene” e o “preconceito” filosófico escondidos por detrás do nome de “rigor” –
ou seja, mais uma vez, na tentativa de se eliminar qualquer umidade, qualquer
contaminação, que será sempre vista pela filosofia como “suja”, “parasítica” ou
mesmo “verminosa” nos casos mais extremos, mas que mesmo disfarçada sob
quaisquer determinações mais “leves” não deixam de abrigar o fel do auto-
desprezo constitutivo de todo o pensamento filosófico, negando sua própria
constituição como contaminação e proclamando-se falsa ou hipocritamente,
ingenuamente nos melhores dos casos, como autônomo.
Austin, em sua teoria dos performativos, para poder classificar os sucessos
ou fracassos (infelicities) que podem afetar sua “performance”, necessita de
sustentar-se sobre um ideal de contexto – que ele nomeia de contexto total. Por
acreditar na presença consciente dos interlocutores, ou seja, na presença a si e
643
AUTIN, J. How to do things with words, p. 153. Citado por DERRIDA, J. “Assinatura
acontecimento contexto”, p. 363.
644
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 363.
645
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 363.
253
presença para o outro de um “sujeito” em seu ato locutório, a comunicação
performativa torna-se um ato intencional cuja presença consciente de locutor e
receptor não permite nenhuma restança. Quando diz que nesta operação nada
pode escapar à totalidade presente, Derrida utiliza o termo “resto”, pois pretende
indicar que Austin busca a unidade perfeita, ou seja, “nenhum resto, nem na
definição das convenções requeridas, nem no contexto interno e lingüístico, nem
na forma gramatical nem na determinação semântica das palavras empregues”,
nos termos derridianos: “nenhuma polissemia irredutível, quer dizer, nenhuma
‘disseminação’ que escape ao horizonte da unidade de sentido”
646
.
Para demonstrar o que se pretende, recorre-se então ao próprio texto de
Austin, How to do things with words, sobretudos às duas primeiras conferências:
na primeira, diz-se que as circunstâncias nas quais as palavras são pronunciadas
devem ser sempre apropriadas: isto é, que o próprio que fala ou outrem execute
uma ação (tendo como exemplos os conhecidos atos de casar-se, batizar um barco
ou fazer uma aposta, em que é preciso dizer um “sim” que produzirá um efeito, ou
seja, que certo “sujeito” consciente de si diga algo que se tornar imediatamente
um ato); na segunda, Austin examina a questão da possibilidade e da origem de
infelicities da enunciação performativa, definindo, assim, as condições necessárias
para seu sucesso, quais sejam: convencionalidade, correção, integralidade, um
contexto determinável, uma consciência livre e presente no ato e um querer-dizer
pleno – o que indica que Austin permanece preso à noção de intencionalidade. No
entanto, o que se entrevê é que a possibilidade do negativo, ou seja, de
“infelicidades”, é a condição estrutural para o ato, que o fracasso é “um risco
essencial das operações”
647
, ainda que se pretenda regulada idealmente para que
este “fracasso” torne-se quase propedêutico ou pedagógico, não podendo ser
tomado como um risco acidental. E para não parecer especulativo demais, Derrida
vai diretamente a Austin, tomando como exemplo a convencionalidade necessária
do performativo que indica a sujeição ao fracasso de todo ato convencional:
Parece em primeiro lugar evidente que o fracasso – ainda que tenha começado
por interessar-nos vivamente (ou não tenha conseguido fazê-lo!) a propósito de
determinados atos que consistem (totalmente ou em parte) em pronunciar
palavras – é um mal ao qual estão sujeitos todos os atos que possuem o caráter de
646
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 364.
647
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 365.
254
um rito ou de uma cerimônia: portanto, todos os atos convencionais. Não que, é
certo, todo ritual esteja sujeito a todas as formas de fracasso (além do mais, todas
as enunciações performativas não o são já)”.
648
A partir disto, sublinha-se então dois aspectos desta convencionalidade: 1.
Austin considera esta convenção apenas com relação a certo contexto e não como
uma espécie de “convencionalidade mesma” que seria estrutural à locução, pois,
para Derrida, “o ‘rito’ não é uma eventualidade, é, enquanto iterabilidade, um
traço estrutural de qualquer marca”
649
; 2. Austin, apesar de reconhecer a sujeição
ao fracasso dos atos convencionais, não considera que o fracasso seria uma
espécie de “lei do enunciado”, como sendo essencial à enunciação (e, como se
verá, que o que ele tanto quer “excluir”, os parasitas são, na verdade, a própria
constituição dos atos, a contaminação constitutiva contra a qual, como Sísifo,
sempre se luta inutilmente). Com isso, Derrida pretende adentrar seguramente na
teoria austiniana e, sobretudo, na oposição felicidade / infelicidade, que pensa ser
muito insuficiente. Em primeiro lugar, Austin exclui o que ele chama de uma
“teoria geral” em que o ato estaria “vazio” e, por esta razão, seria “infeliz” (ainda
que considere que estes acontecimentos sempre podem ser produzidos, “e
produzem-se sempre, de fato
650
), nomeando este caso como apenas uma
“circunstância atenuante”; no entanto é à segunda exclusão de Austin que Derrida
está atento, quando se admite que todo enunciado performativo pode ser citado.
Ora, Austin exclui esta eventualidade (e a teoria que disso daria conta) com uma
espécie de obstinação lateral, lateralizante mas tanto mais significativa. Insiste no
fato que esta possibilidade permanece anormal, parasitária, que ela constitui uma
espécie de extenuação, mesmo agonia da linguagem que é necessário manter
fortemente à distância ou de que é necessário resolutamente afastar-se.
Além disso, Austin dirá que os performativos, enquanto enunciação, estão sempre
sujeitos a estas infelicidades e, por isso, deve-se excluí-los, em particular a
performance artística como a de um ator em cena, de um poema ou de um
solilóquio. Apenas nestas casos “particulares” é admitido o caráter de “citação” (e
não a “citacionalidade mesma” dos atos em geral), citação esta que deve ser
648
AUSTIN, J. How to do things with words, p. 52. Citado por DERRIDA, J. “Assinatura
acontecimento contexto”, p. 365.
649
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 365.
650
AUSTIN, J. How to do things with words, p. 54. Citado por DERRIDA, J. “Assinatura
acontecimento contexto”, p. 366.
255
banida pois é “falsa”, é “mentira” como pensa todo pragmatisno vulgar ou não
com relação à arte, em que só se sustenta o “peso da vida”, do que se entende
banalmente como vida.
Austin completa seu pensamento dizendo que nestes casos a linguagem
não é empregada seriamente: “trata-se de um uso parasitário em relação ao uso
normal – parasitismo cujo estudo dimana do domínio dos estiolamentos da
linguagem. Tudo isto, portanto, nós excluímos do nosso estudo”
651
. Derrida
retoma o fato de estes sea-changes serem tomados como “não-sérios” e
“parasitas”, não obstante a aceitação de que eles próprios estão presentes na
possibilidade de qualquer enunciação, para lembrar que “é também como um
‘parasita’ que a escrita foi sempre tratada pela tradição filosófica, e a aproximação
não tem aqui nada de ocasional”
652
. E assim, ainda que em forma de questões
retóricas, Derrida escreve que esta “infelicidade” não é apenas uma possibilidade
da linguagem, mas sua estrutura mesma, ou seja, que esta parasitagem é condição
interna e positiva da linguagem, ou, melhor ainda, que “o que Austin exclui como
anomalia, excepção, ‘não-sério’, a citação
653
nada mais é que “a modificação
determinada de uma citacionalidade geral – de uma iterabilidade geral, antes –
sem a qual não haveria mesmo performativo” – enfim, “que não existe
performativo puro”
654
.
O ponto, portanto, em que Derrida de certa maneira choca-se com Austin
consiste no fato de que, para a desconstrução, só há citações: tanto em um
casamento, ou em uma aposta, ou no batizado de um barco, em que o “dizer”
“faz”, produz efeitos, como no teatro, na encenação de uma peça – nos dois casos,
além de se produzirem efeitos, sem distinções precisas, em nenhum deles a
citação, o “sim” pode ser tomado como “original”, mas também como mais um
efeito citacional. Mas, para-além do choque no que diz respeito ao fracasso,
Derrida questiona-se se um enunciado que não possa ser citado seria de fato um
enunciado – o que o levará a pensar a questão do acontecimento.
É preciso, em primeiro lugar, entendermo-nos aqui sobre o que se deve
“produzir” ou sobre a événementialité d’un événement [o acontecer de um
651
AUSTIN, J. How to do things with words, p. 55. Citado por DERRIDA, J. “Assinatura
acontecimento contexto”, p. 367.
652
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 367.
653
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 367.
654
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 368.
256
acontecimento, sua acontecimentalidade] que supõe no seu aparecimento
pretensamente presente e singular à intervenção de enunciado que em si mesmo
só pode ser de estrutura repetitiva ou citacional ou, antes, estas duas últimas
palavras prestando-se à confusão, iterável. Regresso, portanto, a este ponto que
me parece fundamental e que diz respeito agora ao estatuto do acontecimento em
geral, do acontecimento de fala ou pela fala, da estranha lógica que supõe e que
permanece freqüentemente despercebida.
655
Desta maneira, Um enunciado do tipo “performativo”, retornando a Austin, só
seria, em seus termos “conseguido” se não fosse iterável ou se não fosse
identificável como citação – apenas assim conseguiria obter sucesso. Mas, como
se sabe, ainda que se leve em consideração as diferenças entre as citações
artísticas, filosóficas ou as dos discursos ditos “vulgares” (que se pretendem não-
citacionais) – o que Austin chamará de uma “pureza relativa – ainda que se leve
isto em conta em nada se estará afastando a estrutura de citacionalidade ou
iterabilidade da linguagem, mas sim o que se está solapando é a própria noção de
pureza de qualquer acontecimento discursivo.
Assim, ao invés de propor-se uma oposição entre a citação e a não-citação,
poder-se-ia preocupar-se com a tipologia destas formas de iteração, pensando-se
desta maneira diferentes “cadeias de marcas iteráveis”. Ao se fazer isso, contudo,
tem-se que se levar em conta que “a intenção que anima a enunciação não será
nunca de todo em todo presente a si própria e ao seu conteúdo”
656
, o que faz com
que também se leve em conta que, ao contrário do que propõe Austin, o “não-
sério” nunca possa ser excluído da linguagem dita “vulgar” que ele pretende
isolar. Em grande parte porque Austin necessita para sustentar sua teoria de um
certo “contexto” determinável, o que pressuporia a intenção de um sujeito
consciente presente a si e aos outros participantes da comunicação, e, no entanto,
o que acontece é justamente o contrário: “esta ausência essencial da intenção na
atualidade do enunciado, esta inconsciência estrutural, se se preferir, interdiz
qualquer saturação do contexto”
657
. Isto faz com que Derrida venha a dizer que se
sente autorizado a postular a estrutura grafemática geral de qualquer comunicação
como différance (aqui, como “ausência irredutível da intenção ou da assistência
do enunciado performativo”
658
), ou seja, de acordo com a ausência nunca
655
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 368.
656
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 369.
657
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 369.
658
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 369.
257
excluível e constituinte da linguagem (entendida então como escritura), como a
dissimetria constituinte de sua possibilidade mesma.
O retorno do espaçamento, portanto. O “intervalo como disrupção da
presença na marca” que foi a armadilha que o próprio Austin percebeu ter armado
para si quando diz: “sim, eu sei que nos atolamos de novo. Se sentir deslizar sob
os pés o firme terreno dos preconceitos é exaltante, é necessário preparar-se para
qualquer vingança”
659
. Mas esta vingança não vem “de fora”, como pensava
Austin ter-se precavido. Esta “vingança” provém da própria parasitagem que ele
pretendeu excluir da linguagem, sem saber que ele próprio, Austin, citava ao
escrever e, com isso, “traía-se” e vingava-se já de si mesmo, de sua violência
dando voz aos parasitas, nomeando-os, batizando-os... Talvez – e creio que sim –
do mesmo modo que Bacon vingou-se de si mesmo em nome do úmido, ao batizá-
lo como tal e ao tomá-lo como exemplo privilegiado de tudo aquilo que ele vê
como engano, concedendo este “lugar especial”, elegendo seu “arquiinimigo”. E
tal parece ser o movimento filosófico como tal, esta maneira negativa de lidar com
a herança, escolhendo seus inimigos ao invés de assumir suas heranças, dizendo o
não do adolescente leão insistente e eternamente, sem aprender o sagrado “sim”
da afirmatividade do pensamento do infante, o “eis-me aqui” que faz com que o
pensamento torne-se pensamento e, mais ainda, pensamento responsável.
As Margens derridianas concluem-se pensando com e contra Austin,
levando em consideração este “lugar” do qual fala o filósofo inglês, na sua
enunciação na primeira pessoa do presente do indicativo, na voz ativa – que ele
chama de “fonte da enunciação”. Obviamente pressupor uma fonte do enunciado é
pressupor uma presença a si consciente do sujeito que fala e, também, do sujeito
que assina. Diz Austin:
Quando, na enunciação, não há referência àquele que fala (portanto, àquele que
age) através do pronome “eu” (ou o seu nome pessoal), a pessoa é apesar de tudo
“implicada”, e isso devido a um ou outro dos meios seguintes: a) nas enunciações
verbais, o autor é a pessoa que enuncia (quer dizer, a fonte da enunciação
termo geralmente empregue nos sistemas de coordenadas orais); b) nas
enunciações escritas (ou “inscrições”), o autor põe a sua assinatura. A assinatura
é evidentemente necessária, não estando as enunciações escritas ligadas à sua
fonte como estão as enunciações verbais.
660
659
AUSTIN, J. How to do things with words, p. 85. Citado por DERRIDA, J. “Assinatura
acontecimento contexto”, p. 370.
660
AUSTIN, J. How to do things with words, pp. 83-84. Citado por DERRIDA, J. “Assinatura
acontecimento contexto”, pp. 370-371.
258
E pode-se facilmente perceber o que Derrida pretende ao fazer esta citação: em
primeiro lugar, sabe-se que a assinatura, para a desconstrução, é inevitável.
Sempre se assina, tanto no escrever, quando isto é assumido na assinatura, quanto
no falar, pois assim se está dizendo “eis-me aqui”, responde-se das duas maneiras.
Além disso, é claro que, para a desconstrução, estas assinaturas não pretendem
apontar à existência de uma fonte, de uma presença presente a si em forma de
qualquer subjetividade, mas apenas a uma “responsibilidade” estrutural à
escritura, que supera a oposição fala / escrita.
De certo modo, pode-se dizer que tudo que se viu até agora neste
pleonástico hipercapítulo (no sentido de extensão, de grandeza e não de
grandiosidade) prepara a disseminação. São repetições de um mesmo tema tocado
e cantado pela metafísica, um estribilho insistente que parece ecoar e não sair dos
ouvidos. Um refrão que parece não ter remédio, se este for sempre pensado nos
moldes que a farmácia de Platão pareceu prescrever, e que teve desde seus
primeiros acordes a dissonância da dissemianção implícita, apesar de crer-se de
tão modo afinado que não distoe e nunca de si, supondo, ainda mais, que há o tom
certo a ser cantado, a melodia perfeita à qual seu instrumento deve apenas ecoar.
E isso se esgueira já na pretensa distinção entre assinatura oral e assinatura
escrita, esta última indicando a não-presença do signatário, marcando e retendo “o
seu ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro
portanto num agora em geral, na forma transcendental da permanência”
661
.
Pretende-se, assim, sob a forma de uma assinatura indicar a marca de alguém que
não está mais presente (como se algum dia pudesse ter estado), mas que se afirma
como presença, manifestando a presença passada para a futura presença da
“fonte”; ou seja, “a reprodutibilidade pura de um acontecimento puro”.
Existirá tal coisa? A singularidade absoluta de um acontecimento de assinatura
nunca se produzirá? Existirão assinaturas? Sim, sem dúvida, todos os dias. Os
efeitos da assinatura são a coisa mais vulgar do mundo. Mas a condição de
possibilidade desses efeitos é simultaneamente, ainda desta feita, a condição da
sua impossibilidade, da impossibilidade da sua rigorosa pureza. Para funcionar,
quer dizer, para ser legível, uma assinatura deve ter uma força repetível, iterável,
imitável, deve poder separar-se da intenção presente e singular da sua produção.
661
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 371.
259
É a sua mesmidade que, ao alterar a sua identidade e a sua singularidade, lhe
divide o cunho.
662
Com isso, ao dizer que pretender concluir bruscamente a questão, vejo-me
na condição de resumir mais bruscamente ainda estas questões levantadas por
Derrida: 1. “comunicação” não pode ser entendida como meio de transporte de
sentido nem troca de intenções de sujeitos conscientes, e isto deveria ser levado
em consideração pela “teoria da comunicação” pois diz respeito a um processo
histórico no qual está implicado no que se entende por globalização, informação,
mídia, etc., que tem por pressuposto um sistema de fala, de consciência, de
sentido, de verdade, ou seja, de um logocentrismo; 2. a disseminação que não se
deixa reduzir a nenhuma polissemia faz transbordar o horizonte hermenêutico de
qualquer sentido de comunicação em que se pretenda que haja uma decodificação
ou mesmo um desvelamento; 3. Derrida aponta à “lógica da paleonímia” que
desenvolve em Posições e Disseminação, em que o “velho nome” se preserva no
intuito de produzir o deslocamento para além das oposições binárias metafísicas,
através de um trabalho conceitual do gesto duplo de inversão e deslocamento.
Pretende-se, com isso, preservando o nome de escritura, “manter a estrutura do
enxerto, a passagem e a aderência indispensável a uma intervenção efetiva no
campo histórico constituído”. O que diz mais: “é fornecer a tudo o que se joga nas
operações de desconstrução a oportunidade e a força, o poder da comunicação”
663
.
Como conclusão, Derrida pergunta, a si e aos interlocutores, se se
compreendeu a evidência, “sobretudo num colóquio filosófico”, de que não há
comunicação se não se compreendê-la sob as diversas formas de uma “operação
disseminante” e enquanto se persistir apostando na presença de uma consciência
de si presente a si, de um querer-dizer e de um sentido a ser transmitido, ou
mesmo de uma “assinatura” – o que, por responsabilidade, nota e anota: “o texto –
escrito – desta comunicação – oral – devia ser endereçado à Association des
sociétés de philosophie de langue française antes da sessão. Esse envio devia,
portanto, ser assinado. O que fiz e contrafiz aqui. Onde? Aqui, J.D.”
664
.
662
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 371.
663
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 372.
664
DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, p. 373.
260
farmácia
Kólaphos: assim começa a Farmácia de Platão, com um golpe sobre a face, com
uma bofetada. E segue-se do verbo Kolápto, que penetra e corta como o bico de
um pássaro. E então, escreve Derrida que “um texto só é um texto se ele oculta ao
primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu
jogo”
665
. Isto porque o texto, jogo cujas regras nunca se entregam, nunca se
apresentam, deve permanecer sempre imperceptível, sempre críptico e, com isso,
está sempre a correr o risco de perder-se definitivamente. Cripta – labirinto. O
texto é, por isso, sempre disseminação / dissimulação, uma textura, uma tecitura
de panos que envolvem outros panos “regenerando indefinidamente seu próprio
tecido por detrás do rastro cortante, a decisão de cada leitura”
666
. Decisão e
dissimulação, portanto, ao mesmo tempo, num mesmo movimento de
responsabilidade e impossibilidade, numa só cartada para-além da carta, da carta
como escrita, pensada apenas como o querer-dizer de um sujeito que a assinou
plenamente presente a si e endereçada a outrem que a lerá também plenamente
presente assim e que, com isso, o conteúdo, o sentido tamm plenamente
presente a si, se transmitirá por completo... Não há cartas, nesse sentido.
Mas há jogo, de baralhos e embaralhos, embaralhando a escritura de
qualquer escrita e a leitura de qualquer texto; afastando qualquer blefe, se esse for
entendido como trapaça consciente, sendo um jogo “verdadeiro” na sinceridade da
trapaça e no qual não se pode pretender dominar o jogo, como não se pode
“querer olhar o texto sem nele tocar”
667
. Ler é tocar, é já estar jogando o jogo da
escritura, tomando o jogo para si, entre as próprias mãos, manuseando-o,
bordeando-o em seu limite, e não bordando, “a não ser que se considere que saber
bordar ainda é se achar seguindo o fio dado”
668
– o que quer dizer: deixar-se
seguir certo fluxo, certo movimento do texto sem pretender arrombá-lo; mas
sabendo que isso só se dá “no interior” mesmo do arrombamento do texto: trata-se
de entrever o arrombamento e tentar nele se instalar, herdar a falta e a fenda que
constituem a herança.
665
DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 07.
666
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 07.
667
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 07.
668
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 07.
261
Se a leitura é a escritura, esta unidade não designa nem a confusão indiferenciada
nem a identidade de todo repouso; o é que une a leitura à escritura deve descosê-
las. Seria preciso, pois, num só gesto, mas desdobrado, ler e escrever. E aquele
que não tivesse compreendido nada do jogo sentir-se-ia, de repente, autorizado a
lhe acrescentar, ou seja, acrescentar não importa o quê. Ele não acrescentaria
nada, a costura se manteria. (...) Mesma tolice, mesma esterilidade do “não sério”
e do “sério”. O suplemento de leitura ou de escritura deve ser rigorosamente
prescrito, mas pela necessidade de um jogo, signo ao qual é preciso outorgar o
sistema de todos os seus poderes.
669
E, na página seguinte, em um aforismo, Derrida diz que já teria dito, nesta uma
página e um pouco mais, quase tudo o que quer-dizer. E, como também neste meu
alongamento, tudo talvez já tenha sido dito – e tudo o foi, mas, como diz o
filósofo, o este léxico não cansa de se esgotar. Com ele, me manterei “nos limites
desse tecido: entre a metáfora do istos e a questão sobre o istos da metáfora”
670
(onde istos comporta a idéia de “objeto erguido”, “mastro de navio”, “tear de
tecelão”, “tecido”, “pano”, “pedaço de pano”, “teia de aranha”, “alvéolo de
abelha”, “vara”, “bastão”, “osso da perna”).
E, se já se disse tudo, só se pode, então, prosseguir, pacientemente, por
amor ao jogo. E este jogo aqui – o meu jogo, que ainda começará, já se mostra
acabado, desde Platão e com Platão. Jogo, portanto, a jogar. “Se, pois,
escrevemos um pouco: sobre Platão, que dizia desde então, no Fedro, que a
escritura só pode (se) repetir, que ela ‘significa (semaínei) sempre o mesmo’ e que
ela é um ‘jogo’ (paidía)”; se com Derrida assim o entendo, ainda que, com esse
prolongamento que não-pretende, pretendendo, dar conta da obra inicial de
Derrida, se creio que não possa, nesta estranha coerência, extremamente coerente,
ver uma unidade na desconstrução, mas apenas indicar a particular lógica que se
desdobra nos textos iniciais de Derrida, devo, por compromisso comigo, com meu
engajamento na desconstrução, por minha paixão, tentar ainda buscar alguns
retalhos nesta farmácia que o filósofo analisa.
Devo admitir que é para mim um pouco embaraçoso tratar deste texto que
já foi tão bem “retalhado” por minhas amigas Rachel Nigro e Tatiana Grenha, de
modo preciso e poético, e por tantos outros pensadores – mas, por tê-las ao meu
lado, sinto-me tanto mais embaraçado. Embaraço este do qual me desnudarei
através do fato de assumi-las como referência obrigatória, como travessia
669
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, pp. 07-08.
670
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 09.
262
necessária o fato de ter trilhado os artigos “A proposta da desconstrução de
Jacques Derrida: um pensamento na terceira margem
671
e “Derrida e Platão:
escritura e phármakon”
672
.
O primeiro artigo, que se localiza entre as letras de Guimarães Rosa e a
letra (ainda que elíptica) de Lacan, analisa o caráter de privação paterna da
escritura. Relembrando “A terceira margem do rio”, vê-se que o “sujeito” da
narrativa situa-se no conflito da decisão de seu pai de viver em uma canoa, na
correnteza do rio...
A estória retrata o conflito vivido por este narrador diante do silêncio do pai,
diante, portanto, de uma quebra de sentido, ponto de ausência naquele mesmo em
que deposita a origem de sua vida e de sua história. Aí, neste ponto, é preciso que
ele, o narrador, compareça diante do pai assumindo o seu lugar. A estória gira em
torno deste ponto: é da aventura deste comparecimento diante do pai que se trata.
673
E doravante, a autora tentará estabelecer as relações entre este abalo de sentido e
na origem e esta relação com esta estranha alteridade que, não estando presente,
me convoca, com a desconstrução. E é justamente com a Farmácia que ela
começa, ou melhor ainda, a partir do Fedro, quando, neste texto, Platão se
interroga sobre o estatuto do “pai do logos” – tal passagem, talvez a mais
significativa do texto, situa-se no segundo capítulo da Farmácia.
Antes, em Farmacéia, Derrida dedicou-se a abordar o “paradigma do
paradigma”, que seria a referida tecitura da escritura, a fim de mostrar que Platão
não condenava apenas a tarefa do escritor e, ao contrário do que comumente se
pensa, ele enobrece o jogo da escritura. Trata-se aí, portanto, de se pensar a
“organização mais secreta dos temas, dos nomes, das palavras
674
a partir da
origem e do valor da escritura tal como é invocada desde o início do Fedro, isto é
a logografia como farmacéia: a “logografia” é apontada quando Platão lembra
que “os homens, mais livres, sentem vergonha (aiskhúnontai) de escrever
671
GRENHA, T. “A proposta da desconstrução de Jacques Derrida: um pensamento na terceira
margem”. In: ENGELMANN, J. e HADDOCK-LOBO (ed.). Analógos, vol. II. Rio de Janeiro:
PUC-Rio, 2003.
672
NIGRO, R. “Derrida e Platão: escritura e phármakon”. In: CAMARGO, G. e HADDOCK-
LOBO, R. (ed.). Analógos, vol. V. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005.
673
GRENHA, T. “A proposta da desconstrução de Jacques Derrida: um pensamento na terceira
margem”, p. 180.
674
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 11.
263
discursos”
675
(Fedro 275 c) por temerem o julgamento da posteridade – deixando
ao “logógrafo” o papel de redigir os discursos aos quais assistia, ou seja, o de
produzir os efeitos da escritura e assumindo a ausência do enunciador: “a escritura
já é, portanto, encenação”
676
; e Farmacéia, para-além da figura mítica da ninfa
descrita no diálogo platônico (em que “no momento em que brincava com
Farmacéia (sùn Pharmakeíai paízousan) que o vento boreal (pneûma Boréou)
empurrou Orítia e precipitou-a no abismo”
677
), que mancha, que marca a cena da
virgem que se precipita no abismo, tal nome designa também a administração da
droga: do phármakon que é remédio e veneno. O que diz que a logografia, a tarefa
citacional, é remédio e veneno, literalmente, que escrever é uma droga.
Não muito mais adiante, Sócrates compara a uma droga (phármakon) os textos
escritos que Fedro trouxe consigo. Esse phármakon, essa “medicina”, esse filtro,
ao mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda
a sua ambivalência. Esse encanto, essa fascinação, essa potência de feitiço podem
ser – alternada ou simultaneamente – benéficas e maléficas. O phármakon seria
uma substância (...) de profundidade críptica recusando sua ambivalência à
análise, (...) recusando-a como a própria anti-substância: o que resiste a todo
filosofema, excedendo-o indefinidamente como não-identidade, não-essência,
não-substância, e fornecendo-lhe, por isso mesmo, a inesgotável adversidade de
seu fundo e de sua ausência de fundo.
678
A indecidibilidade da escritura, portanto, é o que faz com que Sócrates a pense
como “droga”, e é o que faz com que ele abandone seu caminho de costume e
“saia da cidade”, que vá para seu passeio para além de sua “geografia textual”
habitual e, no campo, recordar os mitos. Para Derrida é o que faz Sócrates “sair de
si”, conduzindo-o a um caminho que é seu “êxodo”
679
. Sócrates não deixaria a
polis senão pela escritura, senão por uma mistura de “estar drogado” e “estar
curado”, sendo que este desvio, este descaminho que Sócrates empreende pela
escritura é o descaminho da escritura, por ela e nela – uma associação, dirá
Derrida mais à frente, no phármakon, que envolve, “num mesmo gesto, o livro e a
droga”
680
.
E é então que entra em cena Theut, para reafirmar a escritura como
apêndice, suplemento ou mesmo uma “sobremesa”: “no momento desse
675
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 12.
676
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 12.
677
PLATÃO. Fedro 230 c. Narrado por DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 14.
678
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 14.
679
PLATÃO. Fedro d e. Retomado por DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 15.
680
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 17.
264
esgotamento geral que se instala e se organiza a questão da escritura” [grifo meu]
681
como questão moral, como a questão que envolve a oposição fala / escrita e
que, portanto, é a questão das oposições metafísicas, ou seja, que é a questão
mesma, a questão da questão. A escritura como indecência: eis o que precisa ser
pensado nesta genealogia da escrita que tem como objetivo perceber onde se deu
este “distanciamento” da origem, da verdade, e que a torna um mero “repetir sem
saber”
682
.
Esta cena da escritura começa quando Theut, o deus egípcio, descobre,
entre o cálculo, a astronomia, a geometria, o jogo de damão e os dados, os
caracteres da escritura (grámmata), e resolve mostrá-los ao rei Thamous, dizendo:
“eis aqui, oh, Rei, um conhecimento (tò máthema) que terá por efeito tornar os
egípcios mais instruídos e mais aptos para se rememorar (sophotérous kaì
mnemonikoutérous): memória e instrução encontram seu remédio (phármakon)”
683
. Diante da escritura, Thamous deprecia esta invenção não apenas devido à sua
inutilidade, mas também por seu malefício: para o Rei, a invenção divina não só
demonstra a incapacidade humana de apreender a verdade como também
prejudicaria sua habilidade de registrar, de arquivar o que foi dito na presença do
emissor, a verdade maior. O artigo de Tatiana Grenha aponta à leitura derridiana
desta passagem, que indicaria que, se Theut apresenta a Thamous a escrita, é por
que o Rei não sabe escrever, o que testemunha sua soberana independência: “é
que ele não tem necessidade de escrever: ele fala, ele diz, ele dita, e sua fala é
suficiente”
684
. E como cabe ao Rei conferir o valor a tudo que lhe é ofertado, ele
rejeita a escritura, rejeita-a por se tratar de um phármakon, rebaixa-a com relação
à fala e, assim, “age como um pai”
685
- e Derrida se perguntará: “mas o que é um
pai?”
686
.
Antes disso, no entanto, vale lembrar que Theut oferece a escritura a
Thamous como presente, mas tamm como presente submetido a uma
apreciação: o que quer dizer que a escritura nunca fora oferecida como presente
soberano, mas um dom sujeito à soberana fala – e, ainda mais, como um presente
681
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 17.
682
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 18.
683
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 21.
684
GRENHA, T. “A proposta da desconstrução de Jacques Derrida: um pensamento na terceira
margem”, p. 181.
685
GRENHA, T. “A proposta da desconstrução de Jacques Derrida: um pensamento na terceira
margem”, p. 181.
686
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 26.
265
de valor incerto. “O valor da escritura”, diz Derrida, “é, por certo, dado ao rei,
mas é o rei quem lhe dará seu valor. (...) A escritura não terá valor em si mesma”
687
. Trata-se, então, de um sistema platônico em que “o pai” soberano, para
preservar sua soberania de pai, suspeita da escritura, rejeitando-a – sendo este
sistema que “confere a origem e o poder da fala, precisamente do logos, à posição
paternal”
688
. Tal sistema encenado por Sócrates e tendo como dramaturgo Platão
é o mesmo que se viu desdobrado ao longo de todo esta capítulo, é o problema da
metafísica ocidental em sua “origem” e, portanto, nada como analisar este
“princípio” para encerrar o capítulo teórico da tese.
Não que o logos seja o pai. Mas a origem do logos é seu pai. Dir-se-ia, por
anacronia, que o “sujeito falante” é o pai de sua fala. (...) O logos é um filho,
então, e um filho que se destruiria sem a presença, sem a assistência presente de
seu pai. De seu pai que responde por ele e dele. Sem seu pai ele é apenas,
precisamente, uma escritura. (...) A especificidade da escritura se relaciona, pois,
com a ausência do pai.
689
Esta analogia à paternidade confere à escritura um caráter de orfandade,
porquanto o logos seja sempre dependente da assistência de seu pai, incapaz de se
defender nem assistir a si próprio sozinho. Por esta razão, pelo discurso
imprescindir da presença paterna, por comportar em si a voz da verdade fálica, a
escritura órfã torna-se phármakon na medida em que assistência nenhuma mais a
pode amparar, quando permanece como filho não reconhecendo suas origens:
emancipa-se com seu desejo subversivo e parricida. Enquanto o logos, filho
legítimo, tem seu pai vivo e assistindo-lhe, acreditando assim “poder interditar o
parricídio”
690
, a bastarda escritura, rejeitada por seu pai por sua corrosiva
inutilidade e periculosidade, tem seu pai morto e ao mesmo tempo mata seu pai –
sendo acusada da criminosa e irresponsável por Platão. Neste sentido, pode-se
compreender porque apenas uma fala pode ter um pai (sendo o logos
compreendido como discurso falado, como conversa) e porque apenas esta fala
pode ser entendida como responsabilidade, estando ligada à atenção cuidadosa e
responsável de seu assistente e presente pai.
687
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, pp. 21-22.
688
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 22.
689
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 22.
690
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 23.
266
Derrida lembra a passagem socrática em que o logos é descrito
zoologicamente, como um zôon, um organismo com suas articulações, com seu
centro e “com pé e cabeça”.
SÓCRATES: Eis aqui, no entanto, ao menos uma coisa que afirmarias, penso:
que todo discurso (lógon) deve ser constituído (sunestánai) como um ser
vivo(hósper zôon): ter um corpo que seja o seu, de modo que não lhe falte nem a
cabeça nem os pés, mas que tenha um meio ao mesmo tempo que extremos, que
tenham sido escritos de modo a convir entre si e com o todo.
691
E, desta maneira, sendo este logos bem-nascido e de boa raça, a escritura,
bastarda, de “raça inferior”, seria tão-somente sem pé nem cabeça, sem “lógica”
no sentido de que deve ter um começo e um fim, uma arché e um télos.
Fim (como limite) de toda a arque-teleologia, a escritura não tem pai sem
se pensa este termo como a “causa” de um filho vivo. “Mas o que é um pai?”,
perguntou já Derrida, respondendo negativamente que “o pai não é o gerador, o
procriador ‘real’ antes e fora de toda relação de linguagem”
692
, o que quer dizer
que só se pensa a paternidade a partir do discurso, do logos, que só o logos dá a
pensar um pai, que a “lógica” é sempre “lógica do pai” e que é por esta razão que
a escritura é neste sentido a-lógica, não por privação, mas por não se sustentar
nessa economia paterna. O pai é, ele também, efeito de discurso, se ele só se
entende na lógica que diz ter gerado; efeito, assim, e não causa primeira, pois não
há o “pai” do logos presente a si e assistindo em sua presença responsavelmente
seu filho, também presente a si. “é preciso, pois, proceder à inversão geral de
todas as direções metafóricas”, diz Derrida, ou seja, “não indagar se um logos
pode ter um pai, mas compreender que isso de que o pai se pretende pai não pode
se dar sem a possibilidade essencial do logos
693
.
E aqui Derrida liga a figura deste pai à do Bem tal como descrito na
República: como o sol
694
; como aquilo que não se pode olhar diretamente sem
que se segue. Nesta analogia, o pai seria, sem poder ser visto, uma espécie de
“fonte oculta” do logos, indizível, portanto, e tendo que se pensar apenas seus
efeitos, isto é, sua descendência. O logos finda por ser apenas um recurso ao qual
se deve acionar na falta deste pai; olha-se para o logos pois não se pode olhar para
691
PLATÃO, Fedro, 264 c. Citado por DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 25.
692
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 26.
693
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 26.
694
PLATÃO. República, VI, 506 e – VII 515 c
267
o sol – não pelo fato deste cegar, mas porque este está desde sempre em seu
eclipse. Deve-se, portanto, atentar-se a ele mesmo se se pensa este lugar em sua
falta; deve-se desconstruí-lo assim, desconstruir este lugar de remetimento que,
aqui, se nomeou “pai do logos”, pois se se guarda em mente, por um lado, a
periculosidade desta presença autoritária como Thamous, que se diz pai e acredita
na verdade de seu filho, por outro, “morto, apagado ou oculto, esse astro é mais
perigoso do que nunca”
695
.
Contudo, sabe-se que sempre se está respondendo a algo, que, ainda que
não seja como pai zoológico nem como sol, há uma alteridade (disseminada) que
constitui e institui esses efeitos. É a isto que Tatiana Grenha vai chamar de “pai
atravessado, rasgado pelo jogo da escritura”
696
e que verá na figura do pai que
habitava a terceira margem como exemplo-mor: como causa sem causa, como
ausência produtora de efeitos e convocadora de responsabilidades. Talvez sua
feliz aposta esteja em falar deste “pai” com a literatura e não com o logos; talvez
esse “lugar” não seja mesmo atingível senão por um discurso que não se pretende
filiado, que se pretende livre e assume seu parricídio e, com isso, pode fazer
justiça a esta alteridade mesma.
Deste pai falaremos com literatura: um pai como o do conto de Guimarães Rosa,
este que “nada não dizia”, que ao ir-se para viver numa canoa, na eterna
correnteza do rio, “nem falou palavras, não pegou matula e trouxa, não fez
alguma recomendação”. O pai que “se desertava para outra sina de existir, perto-
longe” de seu filho. Este pai é traço: “Nosso pai passava ao largo, avistado ou
diluso, cruzando a canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala”. Desse
modo, só podemos pensar neste pai como dentro do grande rio da escritura. Sim,
há pai. Um sujeito à violência do rio, da correnteza do jogo, jogando com a canoa
entre a afirmação dos discursos. Há pai porque simplesmente é preciso que
alguém escreva, deixe um legado, a sua forma de ficar suspenso no rio da
escritura. A cada pai, a cada autor, cabe fazer a sua parte para garantir a escritura
e seus efeitos “no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva,
fria, forte, o pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água
do temporal”.
697
Mas será que é possível se assumir este “lugar” de pai, ainda que atravessado?
Será que se pode, de fato, fazer-se justiça à tarefa que é legada pela tradição? Que
695
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 29.
696
GRENHA, T. “A proposta da desconstrução de Jacques Derrida: um pensamento na terceira
margem”, p. 183.
697
GRENHA, T. “A proposta da desconstrução de Jacques Derrida: um pensamento na terceira
margem”, pp. 183-184. As citações são de GUIMARÃES ROSA, J. “A terceira margem do rio”.
In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 200.
268
não se esqueça que o menino do conto de Guimarães Rosa esquiva-se de sua
herança no final, frente ao apelo deste “pai” flutuante, que ele fugira na hora de
assumir o posto fluvial de seu pai, que não conseguira se entregar à tarefa de ser
apenas rastro, à “sina de existir, perto e longe”
698
, “no lanço da correnteza enorme
do rio” onde “tudo rola o perigoso”
699
.
Para isto é preciso uma insuportável coragem, e a abertura para que se
assuma esta impossível tarefa. Travessia, aprendizagem da escritura, de sua
orfandade bastarda e de sua filiação responsável: mais uma brisura que se
aprende.
700
phármakon e umidade
Mas até agora pouco se falou desta “estrutura” úmida ou indecidível do
phármakon, e é a ela que se dedicarão agora algumas páginas. No português, o
vocábulo “fármaco”, de acordo o Houaiss, é “substantivo masculino. Rubrica:
farmacologia. Qualquer produto ou preparado farmacêutico. Etimologia. gr.
phármakon,ou 'medicamento'; ver farmac(o)-”, que, por sua vez, é definido assim:
“elemento de composição. antepositivo, do gr. phármakon,ou 'medicamento';
ocorre em voc. já formados no próprio gr., como farmácia (pharmakeía),
farmacêutica (pharmakeutiké) e farmacêutico (pharmakeutikós)”
701
. Mas se sabe
que, literalmente, o termo grego possui tanto a acepção de medicamento como de
veneno, traduzindo-se normalmente por “droga”. E é justamente este duplo
sentido, que não é apenas duplo, que Derrida pretende (não) analisar em sua
farmácia.
Como se viu, ele parte, então, do conhecido, embora preterido por grande
parte dos especialistas (por acreditarem se tratar de um diálogo de “imaturidade”),
Fedro. E é neste diálogo “sob suspeita” no entanto que lindos acréscimos,
desvios, suplementos e travessias são empreendidos por Sócrates quando, enfim,
ele deixa-se seduzir por Fedro inebriado pela droga que ele trazia escondida
698
GUIMARÃES ROSA, J. “Terceira margem do rio”, pág. 80.
699
GUIMARÃES ROSA, J. “Terceira margem do rio”, pág. 82.
700
Sobre isso, rascunhei algumas considerações em meu artigo “Mergulho no mar: a escritura
como metaforicidade mesma”, em que eu me coloco “rio abaixo, rio adentro, rio afora” desta
correnteza, tentando rastear estes aspectos de coragem na Lorelei de Clarice e no Riobaldo de
Guimarães Rosa. HADDOCK-LOBO, R. “Mergulho no mar: a escritura como metaforicidade
mesma”. In: Analógos, vol. V. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005.
701
HOUAISS, A. Dicionário eletrônico da Língua Portuguesa. 2001.
269
debaixo de seus mantos, velado, e que ele prometera apenas revelar se Sócrates o
acompanhasse para fora da Polis, se fossem para o campo e, juntos, deitassem na
relva e deleitassem-se com este entorpecente escrito. Rachel Nigro, em “Derrida e
Platão: escritura e phármakon”, acredita que este diálogo possa ser tomado como
um resumo da filosofia socrático-platônica pelo fato de se tratar aí de amor e de
escrita, de escrita como amor, entre a linguagem e o erótico. “No Fedro, Eros e
Logos estão estreitamente ligados. Não é por acaso que o jovem Fedro convida
Sócrates a ultrapassar os muros de Atenas, a sair sem direção definida, a vagar e
apreciar o cenário campestre, o riacho sinuoso, a relva que convidam ao
repouso...”
702
, tudo isso, diz Nigro, faz parte do jogo de sedução de Fedro, seria
talvez o cenário propício para se escrever a cena da escritura, do phármakon: fora
da Polis, longe de Atenas, da deusa-cabeça, da expressão-máxima de logos.
E a sedução se dá por um texto, ou melhor, pela promessa de um texto,
através de uma escritura e em uma escritura, na promessa de uma escritura velada
por debaixo de sua roupa. Exibir a Sócrates tal escritura seria, portanto, desnudar-
se, mostrar, ao pé da letra, o que ele tinha por baixo do manto – e Sócrates,
obcecado, diz que irá aonde Fedro o levar: “tu, contudo, pareces ter descoberto a
droga para me fazer sair! (dokeìs moi tês emês exódou tò phármakon
heurekénai)”, diz, pois “não é agitando diante doa animais, quando eles têm fome,
um ramo ou um fruto que os conduzimos? Assim tu fazes para mim: com
discursos em folhas (en biblíos) que seguras diante de mim”
703
. E, a contragosto,
como se sabe que Sócrates não gosta de deixar a Polis, o filósofo caminha-se sem
razão e sem rumo guiado / desnorteado por esta promessa de escritura. Quem
enfeitiça Sócrates, Fedro ou a escritura? O próprio Sócrates ou Platão? Platão ou
Lísias, o autor do discurso escondido? A roupa ou a nudez? Os grafemas que
serão lidos ou a doce voz do belo e jovem que os lerá? Quem é o “feiticeiro”, o
pharmakéus, ilusionista ou envenenador que faz com que Sócrates desrazoe-se?
O nome de feiticeiro é dado por Diotima a Eros, justamente. Eros, assim,
seria o mágico, o temível feiticeiro a quem concernem as adivinhações, as
iniciações, os encantamentos, e todas as artes das quais o logos não pode dar
conta. Então é Eros que conduz Sócrates ao campo? E, se assim se pensar, a
escritura seria o phármakon de Eros? Que se escreve por amor, que só o amor
702
NIGRO, R. “Derrida e Platão: escritura e phármakon”, p. 137.
703
PLATÃO, Fedro, 230 d. Citado por DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 15.
270
pode levar alguém ao impulso louco de escrever e que a escritura não diz respeito
unicamente ao logos isto não seria novidade, mas, pensá-la como “produto” do
Eros, creio que possa ser um tanto problemático. Isso porque o próprio Derrida
dirá que “o uso socrático do phármakon não visaria a assegurar a potência do
pharmakéus. A técnica de arrombamento ou de paralisia pode até mesmo,
eventualmente, voltar-se contra ele”
704
. Em outros termos, não se pode creditar a
um autor a magia do feitiço, o feitiço faz-se e desfaz-se em sua (des)medida, sem
“gênios malignos” ou “deuses enganadores”, mas apenas a própria escritura como
enfeitiçamento, como promessa de feitiço desde sempre já escrito, prescrito se se
puder utilizar aqui uma metáfora médica. Deste modo, não há autor que leve
Sócrates para fora da cidade, sendo tão-só a promessa da escritura que o conduz,
seu desejo de escritura, sua “fome” que se iguala a dos animais que se deixam
conduzir por um ramo.
Mas se sabe que escritura é phármakon. Não sei eu, nem sabe Derrida,
Sócrates muitantes já bem o sabia. Aliás, Sócrates é quem descreve, quem escreve
sem nunca ter escrito que a escrita pode ser benéfica ou maléfica, dependendo da
medida.
Mas não há remédio inofensivo. Assim como um remédio, as palavras escritas
são símbolos que vêm do fora, são marcas externas que vêm ao socorro do logos,
para levar adiante sua fala, mesmo na sua ausência; mesmo que esteja morto. O
phármakon e a escritura são, pois, sempre uma questão de vida ou de morte. O
phármakon não pode jamais ser benéfico.
705
E o que se pretende aqui é apontar a estas características farmacológicas da
escritura, pois, como Derrida aponta em sua farmácia, o malefício da escritura
consistiria em que qualquer fármaco, sendo artificial, é contrário à vida natural.
Se antes se recorreu ao logos como zôo, agora Platão se referirá ao logos como
bio. A metáfora zoológica do logos dizia respeito à sua qualidade de ser um
organismo articulado e genético, proveniente de uma gênese; a metáfora
biológica, entretanto, dirá que o logos é um organismo vivo que deve crescer e
desenvolver-se segundo suas próprias leis. Outrossim, por não dizer respeito ao
logos, a escritura – sempre artificial – pertence ao fora, ao insalutar, portanto. A
saúde é o “dentro”, o natural, a naturalidade da natureza, porquanto o phármakon
704
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 68.
705
NIGRO, R. “Derrida e Platão: escritura e phármakon”, p. 138.
271
seja em uma primeira instância nefasto por ser estrangeiro, secundário, derivado,
suplementar. Todavia é a ambigüidade da escritura que seduz Sócrates: seu
perigo. Ao ir ao campo, Sócrates punha-se em risco, arriscava-se a se perder, tanto
por andar por caminhos desconhecidos, no rumo que o outro lhe conduzia, como
por encaminhar-se a fim de desencaminhar-se, percorrer os mitos e o
entorpecimento que se situava sob as vestes de Fedro.
Desencontrando-se com Fedro, Sócrates mostra o movimento da escritura,
e também da escritura de Platão, no desencontro do logos com o grafos, do
desencontro da Grécia com o Egito, de Theut com Thot. O texto platônico mostra
a pulsão apropriadora da escritura, sua fome e seu desejo através da fome e do
desejo de Sócrates, através de Eros que conduz Fedro a conduzir Sócrates a deitar-
se na relva, no aconchego anacoreta. Esta digressão conduz-se, também assim,
pelas indicações do texto de Rachel Nigro que indicam a ligação da escritura com
a vida e com a morte e que me fez voltar ao texto platônico no indício destes
rastros. Platão cria Theut ao recriar Thot, o deus egípcio da escritura, inventa sua
ficção ao deixar-se contaminar pela estrutura mesma e pela necessidade interna
dos mitemas, o que indicaria, segundo Derrida, “uma necessidade mais
subterrânea” do que um simples acaso ou uma tomada de empréstimo parcial.
Segundo esta perspectiva, “Platão teve de adequar sua narrativa a leis de estrutura
(...) que articulam e comandam as oposições”, quais sejam, “fala/escritura,
vida/morte, pai/filho, mestre/servidor, primeiro/segundo, filho legítimo/órfão
bastardo, alma/corpo, dentro/fora, bem/mal, seriedade/jogo, dia/noite, sol/lua etc.”
706
. E Theut segue esta lógica arcaica, mostrando-se como um personagem
subordinado ao Rei Thamous do mesmo modo que se análogo egípcio, Thot, seria
filho do deus-rei Amon-Ra, o deus-sol – sendo Ra o deus criador, aquele que fala
e que, como os seus irmãos gregos e hebreus, é um deus que cria através do verbo.
Thot, como Hermes, é um deus mensageiro, é quem informa e transmite palavras,
é um deus sempre referido a algo, o que o faz Derrida chamá-lo de “o deus (do)
significante”.
Deus da linguagem segunda e da diferença lingüística, Thot só pode se tornar
deus da fala criadora pela substituição metonímica, por deslocamento histórico e,
por vezes, por subversão violenta. Assim, a substituição coloca Thot no lugar de
Ra como a lua no lugar do sol. O deus da escritura torna-se, dessa forma, o
706
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 32.
272
suplente de Ra, reunindo-se a ele e substituindo-o em sua ausência e em sua
essencial desaparição. Tal é a origem da lua como suplemento do sol, da luz
noturna como suplemento da luz diurna. A escritura como suplemento da fala.
707
Este jogo de substituição, deve-se prevenir, não passa de substituições de
rastros, sem que nada permaneça presente. Derrida lembra que Thot é um deus
sempre subversivo, que, como deus da escritura, participou de inúmeros complôs
e manobras contra a autoridade do Rei, seu pai, em nome de irmãos que eram
malditos por Ra, em nome de uma vontade de justiça. Thot é, por isso, também
deus da morte. O que pode ser evidente se se pensar que se escreve porque se
morre, porque se estará de certo modo ausente quando a mensagem chegar, fato
este que é acordado tanto no Egito como na Grécia. Deus da escritura, da morte e
da aritmética, é ele quem mede a duração da vida tanto dos homens como dos
deuses e, mais que isto, é ele quem organiza a morte: desde o momento em que
ela deve ocorrer até à organização mesma dos funerais e sepultamentos. Thot
como deus das criptas e tumbas, das inscrições secretas dos hieróglifos, da
dramaturgia mesma da encenação, do roteiro indecifrável para-além do cálculo do
logos: deus das cifras e do indecifrável; do hermético e da hermenêutica; das
ciências cultas e ocultas; da ciência e da magia como da vida e da morte; da
medicina. Para Derrida, todos os poderes de Thot poderiam se resumir na
medicina. “O deus da escritura é pois um deus da medicina”, diz o filósofo. “Da
‘medicina’: ao mesmo tempo ciência e droga oculta. Do remédio e do veneno. O
deus da escritura é o deus do phármakon
708
.
Mas o que seria, de fato, o phármakon? Pode-se apostar que esta é uma
pergunta retórica, já que se sabe que, como qualquer indecidível, o phármakon
não é; ele não pertence a nenhuma estrutura lógica ou ontológica, muito menos
metafísica no sentido corrente de se lhe atribuir uma essência. O que tornaria
qualquer formulação lingüística impossível sobre isto de que se pretende falar,
posto que ele sempre escapará a qualquer relação com e na língua e que qualquer
reconstrução de sua cadeia de significações é desde sempre interdita. No entanto,
certos deslocamentos são possíveis mesmo na paleonimia, se se pretende, mesmo
tendo em mente esta interdição da língua, percorrer os desvios e os labirintos da
escritura – o que antecipa já o problema inesgotável e irresoluto da tradução.
707
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 34.
708
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 38.
273
Traduz-se phármakon por remédio. O que, sob um certo aspecto, é correto,
já que há seu lado benéfico, contudo se pode presumir que o intuito platônico já
consistiria em deslocar o sentido único deste termo em sua beneficidade,
instalando-se, destarte, no mais tranqüilo e confortável pólo. Tal tradução, para
Derrida, “anula a fonte de ambigüidade e torna mais difícil, senão impossível, a
inteligência do contexto
709
, pois remete diretamente à ciência e afasta qualquer
possibilidade de alusão à magia. Entretanto, logo em seguida, vê-se que, também,
não se pode recusar tal tradução, por sua indecidibilidade mesma: os phármaka
não são bons nem ruins, nem indolores nem dolorosos apenas – e isso faz parte da
“estrutura” de qualquer phármakon. Daí Derrida notar que “todas as traduções
herdeiras guardiãs da metafísica ocidental têm, pois, sobre o phármakon um efeito
de análise que o destrói violentamente, o reduz a um dos seus elementos simples
ao interpretá-lo, paradoxalmente, a partir do posterior que ele tornou possível”
710
.
A tradução seria, assim, ao menos neste caso, ou ao menos neste caso como
metonímia, um processo analítico, metonimizante por tanto, tomando um dos
aspectos constituintes da “coisa” como seu essencial, esquartejando, assim, toda
heterogeneidade do “conceito” traduzido – e é por esta razão que o indecidível é,
por excelência, o intraduzível, mas que é só percebido como intraduzível em sua
possibilidade de tradução, em sua tradutibilidade.
Não se pode pretender compreender o phármakon por decomposição,
ainda que sua estrutura esteja desde sempre em decomposição – e lembro aqui que
o livro se inicia enunciando que “um texto só é um texto se ele oculta, ao primeiro
olhar, a lei de sua composição e a regra de seu jogo”
711
, o que faz ver que sua
“composição” é sempre críptica, é rastro enquanto presença-ausência e, por isso,
incapaz de ser esgotada ou mesmo compreendida por qualquer análise. E assim se
pode tentar entender algumas das últimas linhas da Farmácia de Platão:
Após ter fechado a farmácia, Platão retirou-se, ao abrigo do sol. Caminhou alguns
passos na sombra, em direção ao fundo de reserva, curvou-se sobre o phármakon,
decidiu analisar. Na espessura líquida, tremulando no fundo da droga, toda a
farmácia se refletia, repetindo o abismo de seu fantasma. O analista, então,
pretende distinguir entre duas repetições. Ele queria isolar a boa da má, a
verdadeira da falsa. Portanto o phármakon numa mão, o cálamo na outra, Platão
transcreve o jogo das fórmulas murmurando. O recinto fechado da farmácia
709
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 44.
710
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 46.
711
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 7.
274
amplifica desmesuradamente a ressonância do monólogo. A fala enclausurada
bate-se nos cantos, palavras se desprendem, trechos de frases separam-se,
membros desarticulados circulam entre os corredores, fixam-se no tempo de um
trajeto, nele se traduzem, rearticulam-se, repercutem-se, contradizem-se, formam
histórias, retornam como respostas, organizam suas trocas, protegem-se,
instituem um comércio interior, tomam-se por um diálogo. Pleno de sentido.
Toda uma história. Toda a filosofia.
712
Analisar é um fármaco; é o que tradicionalmente se entende por “fazer filosofia” –
violência esta que persiste enquanto o pensamento insistir em excomungar seus
espíritos, exorcizar seus fantasmas, conceituar seus indecidíveis, analisar sua
umidade.
Se Derrida inicia sua Farmácia com um golpe – kólaphos – é porque o
phármakon é aquilo que pode golpear a metafísica, um golpe baixo mesmo que
vem para mostrar sua contaminação, um golpe como uma virose, que faz com que
a alergia metafísica – a exclusão da alteridade – assuma-se alquímica, mística e
exotérica. Os golpes como os de alguém que bate à porta – como lembra Lévinas,
como todo outro que chega sem avisar – e acorda Platão de seu sono metafísico e
pode ver, por alguns instantes, a heterogeneidade, a umidade do phármakon que
tinha entre as mãos: umidade que pode ser, por um lado, bolorenta, dando um mau
cheiro à casa de Platão, mas que também permite florescer os girassóis que ele
devia ter plantado em seu jardim antes de cair no sono, querendo manter-se na
vigília...
Mas o sono sempre volta, como tudo, e, sonambúlico, Platão escreve esta
carta:
A maior precaução será não escrever, mas aprender de cor, pois é impossível que os
escritos não acabem por cair no domínio público. Por isso, para a posteridade, eu mesmo
não escrevi sobre tais questões. Não há obra de Platão e jamais haverá uma. O que
atualmente designa-se sob esse nome é de Sócrates, no tempo de sua bela juventude.
Adeus e obedece-me. Tão logo tenhas lido e relido esta carta, queima-a.
713
entres
O fim deste capítulo não poderia dar-se senão através de um “entre”, ou melhor
dizendo de alguns “entres” da obra derridiana – o que quer dizer que, como
conclusão, não haverá conclusão entendida como desfecho, encerramento ou
712
DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p. 123.
713
PLATÃO. Carta II, 314 c. Citado por DERRIDA, J. A farmácia de Platão, p.124.
275
acabamento. O “fim” do capítulo é apenas mais um “entre” que não fecha, apenas
articula de modo disjuntado. Poder-se-ia dizer, então, que este “fim” seria o
“início” da outra parte, mas se desde Heráclito diz-se que “princípio e fim se
reúnem na circunferência do círculo”
714
, afirmando-se isto não se estaria
respeitando as singularidades de “fim” ou de “início”. Não podem coincidir, nem
tampouco se opor, como se pode já supor: articulam-se desarticulando-se – out of
joint.
A disseminação, como Margens da Filosofia, não comporta nenhum
projeto. Trata-se de três artigos, um dos quais é homônimo ao livro, junto com
uma longa e precisa introdução (chamada “Hors livre”) e Farmácia de Platão e
La double séance, que participam de uma certa “atmosfera” que de modo algum
pode ser reunida senão na violência de um livro. E é por este motivo que o livro se
inicia novamente com a questão do livro, mais precisamente com a questão do que
haveria fora do livro. “Isto não terá sido um livro”, diz ele. “Minha intenção aqui
é a de apresentar (...). Trata-se aqui, precisamente, da questão da apresentação”
715
. Em outros termos, da questão da forma, que está de certo sempre submetida a
uma turbulência geral, mas que tem como tarefa a violência mesma de uma
organização. Daí a necessidade de se re-colocar, no intuito de desmontar estas
estruturas arcaicas, um “velho nome” – e a questão da paleonimía retorna uma vez
mais, e aqui mais que nunca, pois o que se anuncia já na “apresentação” da
Disseminação é a dupla marca que opera em todos os campos dos três textos que
Derrida aqui apresenta. A tríade Farmácia - Dupla sessão – Disseminação é,
então, (des)costurada por uma dupla marca, a remarca de velhos nomes, que dá
lugar a uma dupla leitura e a uma dupla escritura: uma dupla ciência em que
ressoa o homófono dupla sessão (double science / double scéance).
A paleonimía à qual Derrida refere-se, em primeiro lugar, e talvez no mais
antigo lugar (mas que comporta todas as paleonimias, ou seja, todos os velhos
nomes que se estruturaram polarizadamente, ao longo destes séculos), é a escritura
tal como pensada em oposição à fala. Este processo dá-se através das remarcas
paleonímicas, como, por exemplo, “ao nomear ‘escritura’ isto que critica,
desconstrói, força a oposição tradicional e hierarquizada da escritura à fala, da
714
HERÁCLITO, FRAGMENTO 103, in: ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES E HERÁCLITO,
Os pensadores originários. Petrópilis: Vozes, 1993, p. 87.
715
DERRIDA, J. “Hors livre”. In: La dissemination. Paris: Éditions du Seuil, 1972, p. 9.
276
escritura ao sistema”, o que se desdobra nos atos de “nomear ‘trabalho’ ou
‘pratica’ isto que desorganiza a oposição filosófica praxis / theoria, (...) nomear
‘inconsciente’ isto que jamais terá sido o negativo simétrico ou a reserva potencial
da ‘consciência’”
716
e assim por diante. Estas remarches são o modo de se
perceber o deslocamento a que Derrida pretende apontar e que podem, elas
apenas, deixar que seja entrevista um certo rastro diferencial – a différance:
“movimento econômico do rastro implicando ao mesmo tempo sua marca e seu
apagamento”
717
. Este duplo movimento é o que não permite que se caia nem se
paralise em nenhum das tendências previstas por Derrida, seja a de se instalar no
sistema velho que se pretende desconstruir, em uma espécie de regressão, ou
então pretender desatar-se imediatamente de todo o velho léxico, como se isto
fosse um gesto simples. Como se viu, a desconstrução deve necessariamente
comportar dois momentos concomitantes, a inversão e o deslocamento, momentos
simultâneos não obstante completamente distintos – e deve-se preservar este
afastamento entre eles: como diz Derrida: “o afastamento entre as duas operações
deve manter-se aberto, deixar-se sem cessar marcar e remarcar”
718
, e é isso que
vai assegurar que se preserve a heterogeneidade necessária de cada texto e a
impossibilidade de resumir este afastamento em um simples aspecto, o que, para
Derrida, é o “primeiro efeito” da disseminação.
Um outro aspecto da disseminação, uma outra entre as suas mil faces,
como simulacro, é a “encenação” da questão do aqui, da pretensão desta presença
que se deixa sempre se pôr em cena, que acaba por pôr em questão a
impossibilidade de um texto reduzir-se ao seu sentido – o que sempre se fará, é
claro, mas ao quê deve se manter uma certa resistência (que Derrida chama de
restança). A objeção atenta de Derrida aponta para o fato de que esta atitude de
resistência não se dá porque há um “sujeito consciente” que pretende
racionalmente resistir à redução ao sentido, ou a qualquer outra redução
(psicológica, estética, fenomenológica, ontológica, ética etc.), mas sim como uma
espécie de “repetição maquinal” que, se devesse se optar por um termo, estaria
mais perto de uma “inconsciência” do que de uma “consciência”, se se acreditasse
nesta divisão precisa. Mas tal repetição é escrita, inscrita, descrita na esfera, no
716
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 10.
717
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 11.
718
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 12.
277
campo, nas redondezas ou às margens daquilo que se pode chamar vulgarmente
de “desejo”, mas um desejo não oposto à razão, nem ao “amor puro”, um desejo
que abarca amor e razão, loucura e inveja, gentileza e infidelidade, e que se
desdobra quase como um terceiro termo – ou uma terceira margem... Este terceiro
termo dá-se no texto segundo a economia do enxerto, ele é cravado no seu interior
como um vírus desconstrutor – e representa, na verdade, a única economia textual
possível, o exemplo do que na escritura. Derrida pergunta-se “qual o estatuto
deste terceiro termo que não está simplesmente, como texto, nem no filosófico
nem fora dele, nem nas marcas, na marcha nem nas margens do livro?”
719
, e a
resposta indica que tal espaçamento se desvia para o lugar da khôra
720
.
Limen notável [remarcável] do texto: este que se lê [e que se deita] da
disseminação. Limes: marca, marcha, margem. Demarcação. Pôr em marcha:
citação: “Ora – esta questão já estava também anunciada, explicitamente, como
questão do liminar.” (...) Este espaço liminar está então aberto por uma
inadequação entre a forma e o conteúdo do discurso ou por uma
incomensurabilidade do significante ao significado. Enquanto se reduzir o bloco a
uma só superfície, o protocolo será sempre uma instância formal. Os chefes do
protocolo são, em todas as sociedades, os funcionários do formalismo [grifo
meu].
721
Este “lugar” liminar é, portanto, onde se apagam os limites entre a forma e
conteúdo, mas é também onde sua inadequação não se deixa desfazer: o
apagamento dos limites neste limen, que, em francês, já deixa ecoar mais um de
seus indecidíveis, o hímen, é a manutenção, não obstante, de suas singularidades,
sem que se permita que a norma da adequação governe seu campo. Contudo, a
economia do limen – como a do hímen – vista como a lógica do entre ou da
brisura, não permite que se pense nos termos de uma dialética ternária, pois o
terceiro termo não vem para “suprimir: conservar-negar-superar” os termos
anteriores. De uma certa maneira, a paleonimia conserva algo sim, mas não no
intuito de negá-lo nem se superá-lo, como num processo evolutivo, mas antes a
apontar para este “entre” que seria, de algum modo “anterior”, que estaria antes
mesmo de qualquer tese e qualquer antítese, tanto mais de qualquer síntese. A
dialética ainda segue certamente a prescrição do farmacêutico: “a inscrição
taxionômica, a classificação estática das oposições duais (...), o pensamento
719
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 23.
720
Sobre isso, remeto a DERRIDA, J. Khôra. Campinas: Papirus, 1995.
721
DERRIDA, J. “Hors livre”, pp. 24-17.
278
anatômico (...) se contenta em etiquetar os produtos acabados e inertes”
722
. Por
isso, a disseminação deve ser pensada como uma outra forma de nomear, ou
melhor, como uma outra “prática de nomes”: ela recoloca em cena – ela re-encena
– uma farmácia, de certo, mas uma farmácia que não seja “de manipulação”, que
não se dedique a analisar nem tampouco sintetizar os phármaka.
Pode-se sentir aqui “distintamente” os reflexos do terceiro levinasiano, que
vem justamente para abalar a lógica dual entre o mesmo e outro e que se impõe
como a verdadeira alteridade na forma da eleidade, rompendo com qualquer
predeterminação, qualquer precaução, qualquer possibilidade pré-dada que
caracterizam a compreensão, representando assim a possibilidade mesma do novo,
do surgir do novo, do novo em seu surgimento abrupto e inesperado – como
trauma.
O “três” não dará mais a idealidade da solução especulativa, mas o efeito de uma
re-marca estratégica referindo, por fase e simulacro, o nome de um dos dois
termos ao fora absoluto da oposição, a esta alteridade absoluta que foi marcada –
uma vez mais – na exposição à différance. (...) A disseminação desloca o três da
onto-teologia segundo o ângulo de um certo redobramento. Crise do versus: estas
marcas não se deixam mais resumir ou “decidir” no dois da oposição binária, nem
superar no três da dialética especulativa.
723
Destarte, este movimento é o que se pode identificar em toda escritura, que rompe
com qualquer horizonte semântico textualmente, de acordo com as marcas da
disseminação que desorganizam, que fazem desorganizar, ou melhor ainda, que
apontam a desorganização interna e não-assumida de todo triângulo ou de todo
círculo (que, na verdade, são figuras semelhantes, pois se fecham em sua
geometria... Tal foi a razão que me impediu de utilizar-me de metáforas
geométricas neste texto, pois elas exemplificam o perfeito fechamento). Nos
termos de Derrida, “a disseminação abre, sem fim, este rasgão da escritura que
não se deixa mais recozer”
724
; não há mais possibilidade de se pensar em um
lugar ou em um sentido, seja ele singular ou plural (pois a disseminação, como se
viu, não pode ser pensada como polissemia) – e esta é a lei da disseminação, a lei
mesma, a lei das leis, que diz: que haja lei!
722
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 33.
723
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 35.
724
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 36.
279
Esta postura possivelmente entendida como um “textualismo” (como
muito se vê criticamente atribuída a Derrida) encontra-se, ao contrário do que se
pode supor, instalado no limiar entre o que se entende por “texto” e o que se
chama de “real”; e se há alguma possibilidade de se pensar em termos “práticos” a
desconstrução, esta se situaria justamente na brisura destes dois conceitos,
tentando desconstruí-los em sua pretensa essência e oposição: ficcionalidade e
realidade entrecruzam-se, entrecortam-se, entredeterminam-se. Nesse sentido
entende-se que o que se chama paleonimicamente por “texto”, que não se opõe ao
“real”, mas antes que o supõe, e que não obstante parece cercear o pensamento a
ponto de endereçarem a Derrida críticas que o classificam como um pensador
“técnico” ou “áspero” (sendo ele justamente o oposto, para-além de qualquer
técnica e de uma extrema paixão), tal “texto” é justo o que faz transbordar os
limites da representação clássica.
Este transbordamento, esta de-limitação, dá a reler a forma de nossa relação com
a lógica hegeliana e com tudo isto que nela se resume. O arrombamento em
direção à alteridade radical (...). E a disseminação se escreve sobre o inverso – o
aço – do espelho. Não sobre seu fantasma invertido. (...) Esta questão deve impor
leituras prudentes, diferenciais, lentas, estratificadas.
725
Lentidão, estratificação, prudência e diferencialidade que fazem com que este
alongamento se alongue, na intenção de ser o mais justo possível com esta obra
que pressupõe e, por isso, não pode deixar de admitir a infidelidade, mas não a
leitura preguiçosa, mal-intencionada ou enclausurante. Esforço que impele a
operar no espaço assimétrico, infinitamente diferenciado, que não permite nenhum
retorno histórico nem nenhuma re-compreensão circular – em outras palavras, que
faz com que se escreva sempre em um quiasma sem igual.
Tal quase-estrutura faz com que se pense a disseminação como a
impossibilidade mesma de se achar alguma “produção original”, ou seja, é o que
faz Derrida dizer que “a disseminação não tem prefácio”
726
neste longo “fora do
livro” que não pode ser pensado como prefácio, mas que comporta e suporta já o
que poderia ser erroneamente chamada de “unidade” da Disseminação. Nenhuma
obra deveria comportar um prefácio, uma violência enquadradora em nome da
unidade do livro, até mesmo porque, sendo promessa, a escritura nunca chegará, é
725
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 44.
726
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 47.
280
puro adiamento, promessa-perjúrio. A não ser que se pense a periculosidade de
um prefácio, sua venenosidade devido ao seu caráter farmacêutico, como faz
Lautréamont no prefácio de seus Cantos de Maldoror
727
. “A encenação de um
título, de um incipit, de um exergo, de um pretexto, de um prefácio, de um
gérmen, nunca fará uma estréia. Ela estaria indefinidamente dispersa. Assim se
fratura o triângulo dos textos. Fora-texto”
728
, diz Derrida, seguindo o movimento
dos cantos de Maldoror, em que o espaço da disseminação não põe apenas o
plural em efervescência, mas, antes, neste assombroso caminho para fora do
abrigo, assume-se a “contradição sem fim”, sem télos, sem absoluto,
irreconciliável.
A disseminação como impossibilidade do men: da semente e do sentido.
A disseminação como a questão do sêmen – assim se poderia pensar. Colocando-
se o sêmen em questão, está-se pondo em questão toda originalidade, toda
potencialidade fálica, toda presença de sentido na escritura e, como Maldoror,
assumindo sua perversão e situando-se sempre no quiasma, no “x” do problema
que, desde a Grécia, quis ser evitado. O logos não suporta as encruzilhadas. Toda
tensão, todo não-saber deve ser evitado, seco, ressecado, ressequido. Não é isso
que ensina a Grécia a Édipo? Não é isso que ensina a África também, quando
Exu, o deus da discórdia (mas também do sexo, das vísceras, tal como um
Dionísio negro) é contado como o deus das encruzilhadas? Não. A África ensina
que Exu é deus tanto como Oxalá (o deus do céu, solar, criador) e, até mesmo,
que, antes de qualquer deus, deve-se cultuar este deus das encruzilhadas, pois, se
ele quiser, todos os trabalhos são desestruturados, desorganizados,
destrambelhados. A África, que não viu nascer ainda o sol do ocidente, que vive
na escuridão, como disse Hegel em sua História da Filosofia
729
, ensina que se
deve ir à encruzilhada, senão é a encruzilhada que vem... Deve-se assumir o
quiasma para que se possa percorrer o caminho do sol, deve-se buscar o caminho
da diferença, ainda que não se possa abster do uso do logos, e tentar ao máximo
permanecer nesta tensão.
727
Deixo em suspenso, adiado, a promessa deste prefácio. Do prefácio a uma das mais
monstruosas escrituras que já li. Monstruosas no sentido de assumir a monstruosidade mesma da
escrita, os seus venenos, seus estupros, sua força.
728
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 57.
729
Este tema é trabalhado incansavelmente no artigo de Derrida “O perdão, a verdade, a
reconciliação: qual gênero?”.
281
No entanto, sabe-se que a filosofia nunca suportou tal tensão: ela segue
ainda Delfos; como Édipo e Sócrates, ainda se quer “conhecer a si próprio”
sobremaneira, sem se pensar nos problemas do conhecer, do si e do próprio;
excluindo, sempre o devir, não o de um “plano de imanência” como o de Deleuze,
que me parece ainda deveras ontológico e ainda situado em uma oposição binária
anti-transcendente, mas um movimento que talvez o imperativo pindárico tenha
instaurado e que alguns parecem ter saboreado conjuntamente ao longo destes
séculos, como Heráclito, Kierkegaard e Nietzsche, entre outros. Ao contrário, a
literatura instala-se nesta tensão, e tem como objetivo disseminá-la. Eis porque
Derrida sempre guarda um lugar privilegiado para a literatura em suas escrituras:
deve-se aprender com ela seu jogo e sua encenação:
O excesso aventuroso de uma escritura que não é mais dirigida por um saber não
se abandona à improvisação. O acaso ou o lance de dados que “abrem” um tal
texto não contradizem a necessidade rigorosa de seu agenciamento formal. O
jogo é aqui a unidade do acaso e da regra, do programa e de seu resto ou de seu
excedente.
730
A filosofia como o recalque ou a denegação do que lhe constitui: o úmido, a
contaminação, o indecidível; a tentativa de não se dar espaço à disseminação e se
manter preso à lógica do véu ou da cunha, como em tantas metáforas sobre a
verdade como adequação: como a descoberta, o desvelamento para que se possa
cunhar o nome adequado, conceitualizar, enfim. E enquanto isso, a ficcionalidade
do pensamento parece abscôndita, no entanto ela é críptica... E o logos, com isso,
afasta-se do prazer. Parece ecoar as palavras de Caetano, cantando “mora na
filosofia, pra quê rimar amor e dor?”. A literatura não. Como o tão-citado Livro de
Mallarmé, ela rima “o prazer e a repetição segundo um golpe múltiplo”. A
disseminação que a filosofia aprende, de modo não maiêutico, com a literatura –
pois ela não se esqueceu, ela talvez nunca tenha “sabido”, se se pode falar aqui de
“saber”, no entanto, ela sempre tentou se livrar deste isto... – comporta, ou deveria
comportar, um golpe de prazer, um gozo que se traduz na sedução da escrita
como phármakon, no prazer formal e liminar da “gráfica do hímen”, no golpe,
enfim, que se deve dar – kólaphos: aqui, agora, confrontamento com o hímen.
730
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 71.
282
O que Derrida chama de “dupla sessão” – e que ele diz nunca ter o
atrevimento ou a arrogância de reservar esta questão à resposta do “que é
literatura?” – encontra “seu cunho ENTRE a literatura e a verdade”
731
e deve ser,
ela mesma, cunhada. E tal é a tarefa que me cabe aqui, quase como prefácio ou
posfácio a um capítulo que nunca termina: pensar a cunhagem desta dupla sessão
a partir de um de seus “entres”: o hímen. Derrida escreve suas rubricas:
Estaria, talvez, suspendido, sobre esta dupla sessão, um título assim facetado:
[pronunciar sem escrever, três vezes] O ANTRO DE MALLARMÉ, dito de
outro modo O “ENTRE” DE MALLARMÉ, dito de outro modo O ENTRE-DOIS
“MALLARMÉ”. Isto se escreve como se pronuncia. E o primeiro dos dois sub-
títulos seria então suspendido por dois pontos, segundo a sintaxe que se escreve
assim: [escrever, esta vez, sem pronunciar] o hímen: ENTRE Platão e Mallarmé.
732
Creio que não é mais necessário ressaltar os jogos intraduzíveis que Derrida opera
na língua francesa: a homofonia brinca, desliza, desdobre e desloca as palavras de
seu antro original para o entre-dois do hímen, para a película que (des)articula
prazer e repetição, em sua brancura.
O deslocamento que se pretende “deslocamento digno deste nome” deve
ser sempre pensado (e pensável) como e em um efeito da escritura, como o jogo
sísmico que Mallarmé empreendeu, com suas torções, na língua. Este jogo é o
jogo do indecidível, ou, o que é sinônimo, hímen, e abre-se na virgindade da
página ainda não escrita, em seu branco, neste espaçamento acolhedor da palavra
ausente, que ordena e implora o golpe da escrita, o cravejamento da caneta ou o
estocamento das teclas que cunham o espaço aberto. Hímen revela (sem desvelar)
a confusão entre o presente e o não-presente; ele instaura a confusão entre os
contrários e se instaura entre os contrários – e “isto que conta aqui”, diz Derrida,
“é o entre, o entre-dois do hímen. O hímen ‘tem lugar’ no entre, no espaçamento
entre o desejo e o cumprimento, entre a perpetração e sua lembrança”
733
.
Entretanto não é possível que se pense de modo algum este “lugar” do hímen na
forma de um centro, trata-se de um intervalo que faz com que, em seus termos,
passe-se da “lógica da paliçada” à “lógica do hímen”. Assumindo-se, assim, este
“espaço”, abandona-se cada vez mais o terreno cercado com estacas apontadas e
731
DERRIDA, J. “La double séance”. In: La dissemination. Paris: Éditions du Seuil, 1972, p. 219.
732
DERRIDA, J. “La double séance”, p. 223.
733
DERRIDA, J. “La double séance”, p. 261.
283
fincadas na terra, afasta-se desta barreira defensiva, para instalar-se na abertura à
abertura.
O hímen, como tela protetora e como cofre da virgindade e a escritura
como o golpe de penetração (sem conseguir penetrar) a superfície lisa e aberta.
Foucault descreveu isso de um modo bem particular em “Linguagem e literatura”:
Quando a página em branco começa a ser preenchida, quando se começa a
transcrever palavras nessa superfície ainda virgem, cada palavra se torna de certo
modo absolutamente decepcionante com relação à literatura, pois não há
nenhuma palavra que pertença por essência, por direito de natureza, à literatura.
(...) Quer dizer que cada palavra real é de certo modo uma transgressão da
essência pura, branca, vazia, sagrada da literatura que faz de toda obra não a
realização da literatura, mas sua ruptura, sua queda, seu arrombamento.
734
É claro que, também para Derrida, há arrombamento, mas um arrombamento
sempre impossível e mal-sucedido, pois o hímen deixa-se, não se deixando,
desvirginar. Deste modo, a transgressão não está no arrombamento, se se pensar
ainda em termos de transgressão, mas na insistência do próprio hímen e, deste
modo, ainda que ambos fossem apaixonados pelas letras mallarmianas, a
diferença entre o que Foucault e Derrida pensam do que “é” “literatura” estaria em
como cada um destes autores pensam a “brancura” e o “sagrado” – esta é uma
hipótese. E, tendo em mãos esta linda passagem de Foucault, em que o branco-
sagrado-virgem da folha é arrombado – de modo sempre decepcionante – pelas
palavras reais, posso tentar perseguir estes rastros himenêuticos da disseminação a
fim de pensá-los como impossibilidade ou talvez incoerência da Pharmakéia
seu fechamento, seu fim, como sua insistente abertura.
O que, de início, toma-se – nesta hermenêutica impossível do hímen, nesta
“himenêutica” – como a proteção do impisável, como a parede vaginal, como a
resistência à ação do golpe de escritura, nada mais é que um “véu muito fino e
invisível” que se mantém entre o fora e o dentro da mulher
735
. O desejo de
escrever, certamente, é o sonho de furar o hímen, o desejo de violentamente
perfurá-lo, mas se se pensa este véu, não como uma membrana orgânica,
734
FOUCAULT, M. Linguagem e literatura, in “Machado, R. Foucault, a filosofia e a literatura”.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. 2000, p. 142.
735
A questão do “entre” (Zwischen) como possibilidade de se pensar a alteridade em Nietzsche
será tratada na última sessão desta tese, a partir do trabalho de Mónica Cragnolini, e a questão que
“envolve”, que se envolve no véu e na mulher será tratada de modo mais cuidadoso na parte
dedicada às Esporas de Nietzsche no capítulo sobre a metaforicidade.
284
justamente como o “entre” o orgânico e o artificial, entre o desejo e o
cumprimento, entre o presente e o futuro, o entre-dois do desejo e do prazer, ou
seja, o entre-vida-e-morte, percebe-se outrossim que o hímen é a indecidibilidade
mesma do sentido e que, por isso, ele não tem lugar. Trata-se do “tecido sobre o
qual se escrevem todas as metáforas do corpo”
736
, como diz Derrida, que
prossegue: “dever-se-ia entretecer nele os fios com todas as gazes, véus, telas,
estofos, chamalotes, penas, plumas, com as cortinas e os leques que guardam em
suas dobras todo – quase – o corpus mallarmiano”
737
. E, deste modo, como
“redobra”, sendo a interdição do presente e da presença, o hímen “representa” o
fracasso de todo ato, de toda atualidade, de toda atividade, já que ele não é
penetrável porque não tem lugar, seu lugar é o não ter lugar, o próprio
espaçamento.
De modo semelhante ao rastro, que para Lévinas é o passado do que nunca
foi presente, o hímen é escrito como o vestígio de um crime que nunca foi
cometido, tanto pela cena do crime nunca ter sido presente como também pelo ato
do crime nunca ter acontecido, por não haver ato e pela intenção do crime ser um
ato de amor. É por este motivo que o hímen não se desvirgina, deixando-se
sempre penetrar e resistindo à penetração ao mesmo tempo; ele permanece sempre
no hímen e, assim, toda penetração é apenas marginal, no duplo sentido da
palavra, é tanto bandida, por não ser assentida, como só pode permanecer às
margens do ato, e a não-penetração não pode ser apenas vista como um coitus
interruptus, mas como a suspensão do “antro” no “entre” onde se dá a penetração.
Ontologias, dialéticas, hermenêuticas, portanto, não são indevidas, criminosas ou
dessacralizantes, mas são sempre marginais, é nas bordas do ato que se constrói a
farmácia e o abandono da análise só se dá na disseminação como jogo do hímen,
com o ato de se jogar com ele, de jogar seu jogo, de entrar na sua cena e suportar
sua indecidibilidade.
Segundo Gödel, em sua exposição de 1931, “uma proposição indecidível
(...) é uma proposição que , estando dado um sistema de axiomas que domina uma
multiplicidade, não é nem uma conseqüência analítica ou dedutiva dos axiomas,
nem a contradição destes, nem verdadeira nem falsa com relação a estes axiomas”
736
DERRIDA, J. “La double séance”, p. 262.
737
DERRIDA, J. “La double séance”, p. 263.
285
738
. Isto faz com que qualquer indecidível, mas que uma metáfora, seja visto como
uma silepse, isto é, segundo o Houaiss, como “figura pela qual a concordância das
palavras na frase se faz segundo o significado, e não de acordo com as regras da
gramática” ou “emprego de um vocábulo ao mesmo tempo no sentido próprio e
no figurado”
739
; ou seja, que doravante o que se leva em consideração não é a
riqueza lexical ou a infinidade semântica de um conceito, mas a “prática” formal
ou sintática que o compõe e o decompõe. Esta sintaxe pode ser compreendida de
acordo com uma “lógica do simulacro” ou uma “mímica” que se desloca e se
desfaz no não-lugar do entre, e, deste modo, uma economia intercambial entre os
indecidíveis seria completamente viável, como se viu. Assim, se brisura, rastro,
hímen, différance, phármakon, não suportando uma sinonímia, são entre-
remetentes e intercambiáveis, e tal foi minha aposta – se apostar em qualquer um
destes termos, destacá-lo, por em cena, é dar prosseguimento, nesta silepse, à
escritura – ao pensar a indecidibilidade do termo “úmido” neste jogo himenêutico:
em outras palavras, propor “minha” disseminação.
Para Derrida, se há algo “arcaico” nesta operação indecidível, esse “ponto”
estaria no “entre”. Ele diz: “a palavra ‘entre’, quer se trate de confusão ou de
intervalo entre, guarda então toda a força da operação”, o que quer dizer que “se
deve determinar o hímen a partir do entre e não o inverso”
740
. Pensar este “entre”,
portanto, é um modo de se redobrar o pensamento, de fazer-se ver suas redobras,
como no caso de se pensar o hímen, e é isto que faz com que o texto atue uma
dupla cena; e pensar esta redobra mais que a uma “teoria” cabe a uma dupla
ciência tal como Derrida propõe através do pensamento da disseminação. Tal
“dupla sessão” ou “campo duplo” não pode, então, apresentar um “meio”, um
“centro”, e contudo ela se divide em dois – o que se mostra não na penetração da
membrana vaginal nem no desvelamento do tecido, mas na dobra da folha do
hímen como processo de escritura, e não como um procedimento secundário. Este
processo faz dobrar a rachadura, a fenda, dissemina o não-lugar do entre, não
como uma polissemia, uma pluralidade de sentidos, mas como uma pluralidade de
impossibilidades de sentidos: “dobra não mais no véu ou no texto, mas na
738
Derrida refere-se a GÖDEL, K. “On formally undecidable propositions of Principia
mathematica and related systems I”. In: Collected works, vol. I. Oxford: Clarendon Press, 1986,
pp. 144-195 (DERRIDA, J. “La double séance”, p. 271).
739
HOUAISS, A. Dicionário eletrônico da Língua Portuguesa. 2001.
740
DERRIDA, J. “La double séance”, p. 272.
286
dobradura que o próprio hímen era”. O que não vai conduzir este “lugar” para um
inalcançável ou incansável fora, pois “entre o fora e o dentro, fazendo entrar o
fora no dentro e retorcendo o antro ou o outro em sua superfície, o hímen não é
nunca puro ou próprio, ele não tem vida própria, nome próprio”
741
. O não-lugar é
esta linha invisível da dobra, o entre-dobra que não permite que nenhum
indecidível se decida: isto é, se represente, se apresente, se presente; a dobra (se)
desdobra, mas (é) não (mais que um) – eis minha frustrada tentativa de traduzir a
sentença: “le pli (se) multiplie mais (n’est) pás (un)
742
.
Mas se sabendo que não há o que se esclarecer pois não há clareza no
sentido de clareira nem na cópula da distinção, há ainda algo que permanece em
branco: o permanecer branco do branco, a virgindade incorruptível da folha – pois
não houve ato, há impossibilidade do ato, bem como nunca houve a “pureza” da
folha, no sentido de intocabilidade absoluta – que Foucault desapontava-se ao
pretender penetrar. Isso se dá pois, neste sentido, Foucault atua como mais um
farmacêutico no cenário filosófico, ele crê ter em suas mãos o medicamento e os
instrumentos quase-alquímicos, mas que ele acredita serem plenamente
epistemológicos, para empreender a análise do fármaco e a conseqüente – e
possivelmente secundária – tarefa de classificação, nomenclatura, taxionomia, que
se dá sobre a brancura da folha virgem. Foucault, paradoxalmente, então, ergue
seu falo, sua pena e, ainda, que frustrado, pretende desvirginar a folha, estreá-la,
ser seu primeiro homem, seu macho a fecundá-la e a tirar toda sua santa pureza.
Para o ato de Foucault apenas o casamento resolve, alguma reconciliação ou
conforto, pois para quem se acredita culpado, há duas soluções: ou se desculpa,
pedindo perdão à vítima (e casando, unindo-se a ela em matrimônio), ou se
mantém na culpa, sentindo-se punido pela sociedade, excluído, fugido de seu
dever. Foucault quis casar, e com a noiva em seu vestido branco, de véu e
grinalda, mas parece ter fugido e deixado a noiva na porta da igreja e, com medo
de seu pai, só pôde optar pelo fora.
A folha de Derrida certamente também é branca, disto não duvido, mas ele
não a toca como quem toca o sagrado, o puro, pois ele sabe que ela está desde
sempre aberta, sem lacre; ele tamm sabe que o seu estupro nunca se dará, ele
estará sempre tentando violá-la, mas ela já terá escapado sempre; ele também sabe
741
DERRIDA, J. “La double séance”, p. 281.
742
DERRIDA, J. “La double séance”, p. 281.
287
que sua violência é amor e desejo de apropriação e, por isso, seu golpe, ainda que
fatal, será sempre uma carícia – que, contudo, dói em ambos; e também, e
sobretudo, sabe que ele não produz o sêmen do sentido semântico, que ele é o
autor produtor de sentidos que, ao erguer sua caneta, fecunda a virgem folha com
sua tinta espessa. Sua tinta é transparente e apenas multiplica a brancura da folha,
faz com que se veja sua brancura, sua nudez (a dele e a dela), pois não há mais ele
nem ela, e não porque houve um perfeito matrimônio como aquele do qual
Foucault escapou e que Platão cumpriu, mas porque ele e ela se desdobraram em
muitos eles e elas fazendo ecoar a brancura não do sêmen, mas a da disseminação.
*
FIM DA FARMÁCIA – COMEÇO DO PHÁRMAKON.
*
288
duplo canto... ou interlúdio
Isidore Ducasse escreve, Conde de Lautréamont encena, Maldoror canta:
Praza ao céu que o leitor, audacioso e tornado momentaneamente feroz como isto
que lê, encontre, sem se desorientar, seu caminho abrupto e selvagem, através dos
pântanos desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois, a não ser
que invista em sua leitura uma lógica rigorosa, e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberão sua
alma, assim como a água ao açúcar. Não convém que qualquer um leia as páginas
a seguir; somente alguns saborearão este fruto amargo sem perigo. Por
conseguinte, alma tímida, antes de penetrar mais longe em tais extensões
inexploradas da terra, dirige teus calcanhares para trás e não para a frente.
743
E Caio Fernando Abreu Preludia:
No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se movia. Era
dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo
– e queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são ou que-se-há-de-
fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas mas-afinal-que-importa. E a cada dia
ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio guardado
no fundo escuro de alguma gaveta.
744
...
743
LAUTRÉAMONT, C. Os cantos de Maldoror. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 73.
744
ABREU, C.F. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005, p. 142.
Volume II
“... desde o início do jogo”
“Aquilo molhou minha idéia, seu moço.”
(João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas)
“É preciso atravessar o grande rio ou mar.”
(I-Ching: o livro das mutações)
“Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do
instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora
tornou-se um novo instante-já que também não é mais... E
quero capturar o presente que pela sua própria natureza me
é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a
atualidade sou eu sempre no já.”
(Clarice Lispector, Água viva)
“E ao contrário do que a fenomenologia – que é sempre uma
fenomenologia da percepção – tentou nos fazer acreditar, ao
contrário do que o nosso próprio desejo não pode deixar de
ser tentado a crer, a própria coisa sempre escapa.”
(Jacques Derrida, A voz e o fenômeno)
“É pois o jogo do mundo que é preciso pensar
primeiramente: antes de tentar compreender todas as
formas de jogo no mundo.”
(Jacques Derrida, Gramatologia)
“E era bom. ‘Não entender’ era tão vasto que ultrapassava
qualquer entender – entender era sempre limitado. Mas não-
entender não tinha fronteiras (...). Compreender era sempre
um erro – preferia a largueza tão ampla e livre e sem erros
que era não-entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia
que se estava em plena condição humana.”
(Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres)
4
Aposta
Antes do início do jogo, há a aposta. Todo jogo pressupõe uma aposta, bem como
toda escritura. E estas páginas que se seguem são minha aposta, talvez a aposta
que custe todas as minhas fichas. Trata-se da aposta que me indicou um caminho
a seguir. E se o jogo desde sempre já começou, a aposta desde sempre estava feita,
e cabe a mim, então, seguir a travessia que o jogo supõe. Como em todo jogo, a
própria jogabilidade supõe regras: e, como disse Derrida em Paixões, mesmo que
a regra seja a de não se ater a regras, a de permitir-se a errância necessária ao
vigor do pensamento, a necessidade de se jogar e de fazer justiça ao jogo não pode
ser perdida de vista. É nesse sentido que nesta segunda parte eu me permitirei um
certo desvio do rigor acadêmico que uma tese exige e, ao invés de capítulos,
completarei o tão-anunciado pentatlo de um modo mais ensaístico, tentando me
deixar ao máximo me contaminar por isso que não pode se ater a ser um mero
objeto – o úmido. Os cinco ensaios que se seguem, portanto, não são propriamente
capítulos, de tão modo inter-relacionados que são. Talvez, nesse jogo úmido que
pretendo agora travar, o pentatlo seja composto por cinco provas – que nada têm
de comprovação ou de demonstração, tratando-se apenas de testes que exigem
concentração, esforço e rapidez. Enfim, dedicação – para não dizer devoção.
5
Primeira prova
“Todo outro é totalmente outro”
- Estos últimos cuatro años han sido los más ricos de mi vida. Ocupándome de Alicia y
haciendo las cosas que a ella le gustaba hacer. Menos viajar, claro.
- A mí me pasa lo contrario con Lidia.
- ¿Y eso?
- No soy capaz ni de tocarla. No reconozco su cuerpo. Soy incapaz hasta de ayudar a las
enfermeras a que le den la vuelta en la cama. Y me siento muy mezquino.
- Hable con ella. Cuénteselo.
- Sí, ya me gustaría. Pero ella no puede oírme.
- ¿Cómo está tan seguro de que no nos oyen?
- Porque su cerebro esta apagado, Benigno.
- El cerebro de la mujer es un misterio, y en este estado más.
- A las mujeres hay que tenerlas en cuenta, hablar con ellas, tener un detalle, de ven en
cuando... acariciarlas de pronto. Recordar que existen. Que están vivas y que nos
importan. Esa es la única terapia, se lo digo por experiencia.
- ¿Y qué experiencia tienes tú con las mujeres? ¿Qué experiencia tienes tú con las mujeres?
- ¿Qué?
- ¿Qué experiencia tienes tú con las mujeres?
- ¿Yo? Toda. (...) De eso quería hablarte, Marco. Antes de que te vayas.
- ¿De que?
- De la soledad. Quiero casarme.
- Casarte, ¿con quien?
- Con Alicia, ¿con quien va a ser?
- Benigno, ¿estás loco?
- Alicia y yo nos llevamos mejor que la mayoría de los matrimonios. ¿Por qué es raro que
alguien enamorado de una mujer quiera casarse con ella?
- Porque la mujer está en coma. Alicia no puede decir con ninguna parte de su cuerpo, “sí
quiero”. Porque no sabemos si a la vida vegetativa se le puede llamar vida. (...) Benigno,
lo tuyo con Alicia es un monólogo, y una locura.
(Pedro Almodóvar, Hable con ella. 2002)
*
Lembro aqui, para início de conversa, de uma outra possível epígrafe para esta
parte da tese, que se encontra no prefácio de As palavras e as coisas de Foucault:
Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba
todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e
nossa geografia –, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que
tornam sensatas para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por
muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “uma
certa enciclopédia chinesa” onde está escrito que “os animais se dividem em: a)
pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e)
sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente qualificação,
i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel
muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n)
que de longe parecem moscas”. No deslumbramento dessa taxionomia, o que de
súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto
292
exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente
de pensar isso.
745
Afinal, esta parte da tese é dedicada à alteridade, e tomo como subtítulo o
intraduzível título de um capítulo de Donner la mort, de Derrida. Meu objetivo
aqui é o de me permitir certa errância, para diminuir a seriedade do jogo, ao lado
de alguns espectros que vêm me assombrando desde o mestrado, e, para tanto,
aludirei (sempre à distância) meu Da existência ao infinito, tentando trazer novas
discussões que entrevejo sobre o tema, em detrimento das questões ônticas
tratadas por Lévinas e buscando me deter sobre a disseminação destas questões tal
como Derrida fez, sobretudo em um diálogo com Kierkegaard. Por fim, a partir
das análises que Derrida inicia com Patočka, tentarei mostrar como essa alteridade
totalmente outra emerge para confundir a pretensa distinção levinasiana e
kierkegaardiana entre ético e religioso. Mas, se o rastro é um dos “temas”
privilegiados aqui, sendo, sobretudo, uma das poucas coisas que posso tentar
agarrar com as mãos, é bom que se tenha em mente que o próprio Derrida afirma
que em sua noção de “rastro” está implícita a crítica à ontologia que Lévinas
empreendeu – e que, por esta razão, eu devo necessariamente retomar as minhas
próprias inspirações levinasianas, ainda que errando para um outro rumo.
rastros (de Lévinas)
O que (é) o rastro? Ou ainda: o rastro (é)? Cabe ao rastro uma ontologia ou, como
Derrida afirma, uma hantologie ou hauntology? Em “Una ontología asediada por
fantasmas”
746
, Mónica Cragnolini adota o termo “fantología” para designar este
traço da desconstrução que substituiria o lugar do Ser na ontologia pelo não-lugar
do rastro ou do espectro nesta “fantologia”. Assim, ao contrário de ocupar o lugar
do Ser, o rastro destitui e desestrutura o próprio lugar do “lugar”, disseminando
por completo qualquer possibilidade de ontologismo. Segundo a filósofa, Derrida
assinalaria sua dívida para com o trabalho realizado por Nietzsche, Heidegger e
Benjamin, que seriam “pensadores da fidelidade e da repetição” e, ao mesmo
745
FOUCAULT, M. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris:
Gallimard, 1966, p. 07 (As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 05.
746
CRAGNOLINI, M. “Una ontología asediada por fantasmas: el juego de la memoria y la espera
en Derrida”. In: Escritos de Filosofía, Academia Nacional de Ciencias, Nº 41-42, Buenos Aires,
2002, pp. 235-241.
293
tempo, do “abalo” e da “destruição”. Como herdeiro destas desconstruções,
Derrida assumiria como constituinte de seu pensamento as “fissuras” que fazem
com que, ao invés de conceitos, seu pensamento se “apresente” através de
“indecidíveis”: “essas unidades de simulacro que, encontrando-se ‘entre’ as
oposições binárias, fazem patente que a língua ‘já’ está se desconstruindo”
747
.
Como se antecipou, Cragnolini nomeia esta filosofia como uma “lógica do
nem/nem” na qual estes indecidíveis – estas “falsas unidades verbais” –
solapariam o edifício conceitual baseado no fundamento e no binarismo
conceitual. Deste modo, concomitante à própria idéia de uma “desconstrução”
apareceria a noção de “fantologia” ou “obsediologia” – a “hantologie”, uma
“ontologia assediada por fantasmas”. A autora então faz ressaltar o aspecto de
“assombração” do verbo hanter, não se tratando apenas de uma aparição espectral,
mas da freqüentação assombrada de algum lugar por um espírito, de um obsessor,
um morto que não morre nunca, que está sempre para aparecer e reaparecer.
A fantologia, como filosofia de umbrais, move-se “entre”: entre os vivos e os
mortos, entre o passado e a espera. Mas este “entre” não supõe um espaço de
dialetização possível, mas sim um âmbito de incerteza que não pode ser saldado
por nenhuma dialética, por nenhuma síntese. Este “entre” supõe uma disjunção do
presente que dificulta as filosofias da presença e, com elas, as lógicas
identificatórias do mesmo.
748
E este aspecto fantológico do pensamento é o único que pode suportar que se
pense o rastro, isto que, nos termos leviasianos, vai sempre escapar aos
filosofemas.
Retornar ao rastro de Lévinas em Derrida, portanto, parece-me, pois,
urgente: não que Lévinas seja a origem do rastro ou do rastro derridiano, mas por
ter sido Lévinas justamente quem apontou esta não-origem do rastro. O texto de
Lévinas ao qual Derrida se refere em Gramatologia como sendo sua maior
proximidade na filosofia é “O vestígio do outro” [“La trace de l’autre”, de 1963].
Como se antecipou, tal texto inicia-se retomando a crítica à ontologia
heideggeriana como a maior expressão do mesmo que a filosofia tradicional já
apresentou – tarefa esta à qual o filósofo se dedicava desde a década de 1940, com
747
CRAGNOLINI, M. “Una ontología asediada por fantasmas: el juego de la memoria y la espera
en Derrida”, p. 235.
748
CRAGNOLINI, M. “Una ontología asediada por fantasmas: el juego de la memoria y la espera
en Derrida”, p. 241.
294
seu Da existência ao existente. O pensamento ontológico não seria mais que o
“desfecho lógico dessa alergia fundamental da filosofia”
749
com relação à toda
alteridade verdadeira, sempre travestindo-a de mesmo e englobando-a em sua
economia. Este texto, retomado em O humanismo do outro homem, de 1972,
como conclusão ao capítulo “A significação e o sentido”, apresenta a relação do
rastro com a alteridade, mais precisamente com o que ele chamará posteriormente
de Todo-Outro (Tout-Autre) e que Derrida disseminará como na citação que dá
nome a este capítulo. O rastro representa o “movimento” da alteridade e concerne
à “eleidade” e à relação com Deus – e, ressalto, não do Deus de Kierkegaard, que
suspende a ética em nome do religioso, nem o Ser de Heidegger, outro nome para
um Deus ontológico, mas a um verdadeiro Deus não onto-teológico, um Deus
ético e, por isso, nos termos de Lévinas, “sem ser”, que só se apresenta
disseminado no rosto de todo e qualquer existente.
Pensar esta alteridade de uma maneira não necessariamente teológica,
conquanto ainda comporte o traço teológico e, talvez mais ainda, que imprescinda
deste elemento, certamente é algo ainda bastante questionável pela filosofia
contemporânea. No entanto, pode-se antecipar que em pensamentos de extrema
força como os de Kierkegarrd, Artaud e Lévinas o lugar deste grande Outro se
impõe sempre com a violência de um comando, de um mandamento irrecusável,
ou seja, preservando de certa maneira o lugar tradicional de Deus, mas, com isso,
empreendendo uma forte crítica à teologia: partindo para a estética, no caso do
dramaturgo, para a ética, no caso do pensador judeu, ou para a fé, no caso do
cristão. Para Artaud, Deus é o nome próprio do Ladrão, do Outro, do Furtivo, o
que vai comandar uma exigência estética da arte sem obra, desembocando em
uma escatologia, no mais amplo sentido do termo, que é ainda uma ontologia, e na
qual o Ser é o excremento: “Portanto, desde sempre meu corpo me foi roubado.
Quem pode tê-lo roubado senão um Outro? (...) Quem pode ser o ladrão senão
esse grande Outro invisível, perseguidor furtivo duplicando-me por toda a parte,
isto é, redobrando-me e ultrapassando-me, chegando sempre antes de mim aonde
escolhi ir?”
750
. Certamente Lévinas veria este mesmo lugar na total alteridade do
outro tal como Artaud o concebera, mas ele de modo algum – neste aspecto, junto
749
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”. In: Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger.
Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 229.
750
DERRIDA, J. “A palavra soprada”, pp. 123-124.
295
a Kierkegaard – desejaria ou pensaria ser possível isentar-se de uma contaminação
por esta alteridade. Lévinas e Kierkegaard bem sabem a inevitabilidade do
mandamento, para o qual apenas é possível responder “eis-me aqui” como fez
Abraão.
A atenção voltada para Lévinas parece-me necessária não apenas por ser
ele um dos grandes tematizadores do rastro, mas antes por sua presença-ausência
nos textos derridianos nas décadas de sessenta e setenta seguirem esta economia.
Realmente a objeção de Mônica Cragnolini de que a presença de Lévinas, assim
como a de Nietzsche, talvez seja de tal modo marcante que não seja possível
nomeá-la demonstra esta economia do rastro na letra derridiana. Em textos como
“A diferença”, por exemplo, quando começa a afirmar que este “conceito” é a
tentativa de se sair da clausura do esquema metafísico
751
, Derrida afirma
categoricamente que “antes de ser, tão radical e tão expressamente, o de
Heidegger, esse gesto foi também o de Nietzsche e de Freud”
752
, e parece tão-
somente a estes se dedicar. No entanto, algumas páginas adiante, ele lembra o que
antes já teria antecipado na Gramatologia, ou seja, que “um passado que não foi
nunca presente, esta fórmula é aquela pela qual Emmanuel Lévinas, segundo
caminhos que não certamente os da psicanálise, qualifica o rastro e o enigma da
alteridade absoluta: outrem”, lembrando também que “o pensamento da différance
implica toda a crítica da ontologia clássica empreendida por Lévinas. E o conceito
de rastro como o de différance, organiza assim, através destes rastros diferentes e
destas diferenças de rastros, no sentido de Nietzsche, de Freud, de Lévinas”
753
.
Voltando à Gramatologia, pode-se ver que uma vez mais Lévinas
desenha-se por detrás de Nietzsche, Freud e Heidegger – autores certamente de
maior prestígio na época, e possivelmente até nossos dias e, por isso,
interlocutores por excelência. Aqui, uma vez mais, o rastro “aparece” em uma
perspectiva herdeira da ontologia heideggeriana, na qual a diferença ôntico-
ontológica ecoaria na différance, mas de acordo com a qual aquela só seria
possível a partir desta, sendo esta a diferencialidade mesma.
751
“Da saída da clausura deste esquema procurei eu indicar o alcance através do ‘rastro’, o qual é
tanto menos um efeito quanto não tem uma causa, mas não pode bastar por si mesmo, extra-texto,
para operar a transgressão necessária” (DERRIDA, J. “A diferença”, p. 43).
752
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 49.
753
DERRIDA, J. “A diferença”, p. 55.
296
Não se pode pensar o rastro instituído sem pensar a retenção da diferença numa
estrutura de remessa onde a diferença aparece como tal e permite desta forma
uma certa liberdade de variação entre os termos plenos. (...) Estas oposições
somente têm sentido a partir da possibilidade do rastro. (...) O rastro, onde se
imprime a relação ao outro, articula sua possibilidade sobre todo o campo do ente
(...). É preciso pensar o rastro antes do ente. Mas o movimento do rastro é
necessariamente ocultado, produz-se como ocultação de si. Quando o outro
anuncia-se como tal, apresenta-se na dissimulação de si. (...) O campo do ente,
antes de ser determinado como campo de presença, estrutura-se conforme as
diversas possibilidades - genéticas e estruturais - do rastro.
754
E prossegue mais adiante:
O conceito de arqui-rastro (...) é, com efeito, contraditório e inadmissível na
lógica da identidade. O rastro não é somente a desaparição da origem, ele quer
dizer aqui (...) que a origem não desapareceu sequer, que ela jamais foi
retroconstituída a não ser por uma não-origem, o rastro, que se torna, assim, a
origem da origem. (...) E, no entanto, sabemos que este conceito destrói seu nome
e que, se tudo começa pelo rastro, acima de tudo não há rastro originário.
755
A conclusão à qual Derrida chega é que o rastro é a différance e, portanto, a
desconstrução, não sendo de modo algum uma fenomenologia da escritura, só
pode ser um pensamento do rastro. E este é o ponto exato em que Derrida parece
uma vez mais convocar o amigo lituano.
Derrida pergunta-se sobre o por quê do rastro, sobre qual a motivação da
escolha deste nome e, como resposta, indica a referência a um certo número de
discursos contemporâneos dos quais teria se inspirado, mas ressalta: “assim,
aproximamos este conceito de rastro daquele que está no centro dos últimos
escritos de E. Lévinas e de sua crítica à ontologia: relação à eleidade como à
alteridade de um passado que nunca foi e não pode nunca ser vivido na forma,
originária ou modificada, da presença”
756
. Como se adiantou, Derrida toma a
noção levinasiana de rastro e enxerta-a em uma intenção heideggeriana para que,
assim, o rastro contamine a ontologia e, com isso, o pensamento caminhe para-
além do discurso heideggeriano. É desta maneira que, ao mesmo tempo em que se
constrói, a ciência gramatológica se desconstrói, pois um pensamento como este
do rastro impede que se fundamente uma gramatologia como ciência positiva, já
que a pergunta que fundamentaria epistemologicamente uma ciência, neste caso:
em que condições uma gramatologia é possível?, está desde o “início” descartada.
754
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 57.
755
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 75.
756
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 86.
297
“O que já nos ensinou o pensamento do rastro é que (...) o rastro não é nada
757
ou seja, que não sendo ontológico ele é tampouco ente algum. A referência de
Derrida, breve, única, mas decisiva no “projeto gramatológico” é ao já citado
artigo de 1963 “O vestígio do outro”, em que o rastro é “definido” com relação à
noção levinasiana de “rosto”. Posso antecipar, até porque já o fiz inúmeras vezes,
que o rosto “significa” a epifania do outro no campo da ética, a “percepção” ética
do outro pelo eu, em sua completa abstração. O “movimento” do Rosto com
relação ao mundo é descrito segundo a lógica do rastro, pois se, por um lado, o
rosto direciona-se aos seres no mundo, por outro, ele não se compromete com tais
seres, mas antes se retira do mundo, o que faz com que Lévinas afirme que “o
rosto apresenta-se em sua nudez (...). Ele deriva do absolutamente Ausente. Mas a
sua relação com o absolutamente ausente de que deriva não indica e não revela
esse Ausente; e contudo o Ausente tem um significado no rosto”
758
. Nos termos
levinasianos, isso quer dizer que o rosto não pode ser compreendido como um
fenômeno nem descrito sob nenhum modo de desvelamento, tratando-se aqui de
uma relação exterior a qualquer dissimulação ou revelação: “uma terceira via
excluída por essas [duas outras vias] contraditórias”
759
.
Essa estranha significação do rosto não significa, ou melhor, significa
apenas como rastro, como rastro do Ausente absolutamente passado, sempre
passado e nunca presente e que (in)significa o “lugar”, o não-lugar, o além de
onde o rosto vem como epifania. Tal relação refere-se a um “passado irreversível”
em que “nenhuma memória conseguiria abrir os vestígios [rastros] desse passado.
É um passado imemorial”
760
. E, como se viu, não se dando a nenhuma
fenomenologia, também desconcerta qualquer ontologia, pois o rastro “significa”
o além do Ser e este além de onde o rosto provém “significa” a terceira pessoa:
além do ser é uma terceira pessoa que não se define por si mesma (...). Ela é
possibilidade dessa terceira direção de não retidão radical que escapa ao jogo
bipolar”
761
. Lévinas, então, elege o pronome “ele” para exprimir o que ele chama
de uma “irreversibilidade inexprimível”, aquilo que escapa a qualquer revelação
tanto como a toda dissimulação, o “não englobável”. Esta “eleidade” como
757
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 92.
758
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 239.
759
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 239.
760
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 240.
761
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 240.
298
condição de irreversibilidade apresenta seu sentido significando sem fazer
aparecer, e esta parece ser a economia do rastro descrita por Lévinas, disto que, de
certo modo, é sim um sinal, mas não um sinal qualquer, pois ele significa fora de
qualquer intenção e de qualquer projeto, sendo, ao contrário, fora de qualquer
projeto, sendo ele próprio o fim dos projetos e a desordem mesma, o transtorno de
toda intencionalidade.
O rastro autêntico (...) transtorna a ordem do mundo. Ocorre em sobre-impressão.
O seu significado original esboça-se na impressão deixada por aquele que quis
apagar os seus rastros, com o desejo de cometer um crime perfeito, por exemplo.
Aquele que deixou rastros ao apagar os seus rastros nada quis dizer ou fazer por
meio dos rastros que deixa. Perturbou a ordem de uma forma irreparável. Ser na
acepção de deixar um rastro é passar, partir, absolver-se.
762
Deste modo, mais que a significação, o rastro indica a passagem daquilo
ou daquele que deixou o sinal, ou seja, a marca da marca, para além de qualquer
intenção de qualquer emissor, não revelando nem escondendo nada, ele demarca a
relação com o absolutamente outro. Esta alteridade radical, portanto, abre a
relação com o infinito assimétrico – o que, em termos éticos, se dá pela entrada
em cena do terceiro. “Enquanto que Ele é terceira pessoa, ela é, de alguma forma,
exterior à distinção do ser e do ente. Só um ser que transcenda o mundo pode
deixar um rastro”, diz Lévinas, mostrando a ligação que Derrida apontou em
Gramatologia entre o abalo da presença que o rastro implica e a crítica à
ontologia que ele comporta, e conclui: “o rastro é a presença daquilo que nunca
esteve lá, propriamente dito, daquilo que é sempre passado”
763
. A estrutura do
rastro não pode ser pensada em termos empíricos. O rastro empírico, ainda que
tomado como metáfora de todo aquele ou tudo aquilo que passa e deixa rastros,
não pode ser emblemático, pois, neste caso, está se supondo que em algum
momento alguém ou algo “esteve lá”, esteve presente, marcando a presença de um
passado presente, e não deste passado absoluto que, no entanto, se deixa entrever
na estrutura comum a todo rastro. Esta estrutura do rastro, que se permite perceber
em todo rastro empírico, é a “eleidade” que, por si, não deixa rastros, mas produz
efeitos. “O rastro como rastro não leva apenas ao passado, mas é a própria
passagem em direção a um passado mais longínquo que qualquer passado e
762
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 242.
763
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 244.
299
qualquer futuro”
764
, passagem esta que consiste na perturbação da presença e da
temporalidade, apontando a um tempo que a lógica do mesmo não pode dar conta
em sua crono-logia: a eternidade como disjunção.
*
A alteridade absolutamente outra foi o tema de alguns ensaios de Derrida,
sobretudo os que envolvem o tema da morte e do tempo (como Adieu à Emmanuel
Lévinas, Donner la mort, Donner le temps etc.), em que o nome próprio de
Lévinas é convocado e, nestes escritos, os temas relativos à relação com Deus, a
morte do outro, a interrupção e a responsabilidade são retomados. No “Adeus”,
por exemplo, esta relação é emblematicamente indicada quando ao nome de
Lévinas soma-se o de seu amigo Maurice Blanchot. Sem entrar nos méritos deste
texto – como costumo dizer, um dos mais belos da bibliografia filosófica de todos
os tempos
765
–, no momento em que Derrida retoma o tema da morte no amigo
para falar da morte do amigo, no momento em que, mais que aprender o que é o a-
Deus de Lévinas ele quer dizer adeus a Lévinas, ele se depara com a palavra
“desconhecido” para caracterizar esta relação com a morte. Lévinas diz: “A
relação à morte em sua ex-ceção (...) é uma emoção, um movimento, uma
inquietação no desconhecido
766
, e Derrida ressalta o grifo da palavra no intuito
de mostrar que isto não concerne ao limite negativo do saber, mas antes a um
elemento de não-saber – o elemento da amizade e da hospitalidade, por se tratar
da convocação ética à responsabilidade – que emerge com a transcendência do
estrangeiro, ou melhor, com a distância infinita do outro. E relembra então que
esta foi a palavra escolhida por seu grande amigo, seu e dele, de Derrida e de
Lévinas, ou ainda, do exemplo-mor de amizade que ele, Derrida, como amigo-
caçula, teria sido agraciado em contemplar e participar: em A conversa infinita, o
capítulo “Conhecimento do desconhecido” é uma interlocução entre Blanchot e
Lévinas, um diálogo escrito por Blanchot no qual as letras levinasianas vão
764
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 244.
765
Sobre isso, remeto ao meu já citado artigo “O adeus da desconstrução: alteridade, rastro,
acolhimento” e ao capítulo “O ser e a morte” de Da existência ao infinito: ensaios sobre
Emmanuel Lévinas.
766
LÉVINAS, E. Dieu, la mort et le temps, p.26.
300
tomando maior força e revelando a potência desta alteridade absoluta que não diz
respeito à razão.
Em seu solilóquio final, Blanchot escreve que pensar esta alteridade
levinasiana obriga a uma dupla contradição, pois primeiro deve-se pensá-la como
distorção de um campo e o deslocamento da descontinuidade, e depois “como o
infinito de uma relação sem termos e como infinita terminação de um termo sem
relação”
767
. Esta radicalidade do Outro surge na obra quando, no final do quarto
capítulo, Blanchot entra no paradoxo da impossibilidade constitutiva da
comunicação e descreve como a poesia se situa neste estranho terreno da
impossibilidade, já que ela não está aí para dizer a impossibilidade, mas a
responder a ela – e talvez, sustenta ele, esta seja a “função” de toda linguagem.
“Nomeando o possível, respondendo ao impossível”, diz ele, convocando a
responsibilidade fundadora de toda linguagem: “toda palavra inicial começa por
responder, resposta ao que não foi ainda ouvido, resposta ela mesma atenta, onde
se afirma a espera impaciente do desconhecido e a esperança desejante da
presença”
768
. E então o desconhecido surge como aquilo que, em uma primeira
instância, não é temido pela poesia, mas que é absolutamente pavoroso aos olhos
do pensamento racional, e o medo filosófico representaria esta relação com o
desconhecido em que se oferece um conhecimento daquilo que sempre escapa ao
conhecimento – e Blanchot frisa que isto não concerne ao irracional, o que diria
muito pouco e reduziria este campo à razão. E, no entanto, este campo é infinito,
ultrapassa qualquer racionalidade e é a questão mesma: o medo do desconhecido é
o medo propriamente dito, e ter medo do desconhecido nada mais é que ter medo
do próprio medo, o que seria, nos termos mais atuais, filosofar. A filosofia como o
medo do medo, como medo de assumir seu medo, o que a faz tentar ao máximo
permanecer no solo da proximidade e de modo algum se lançar ao estrangeiro,
permanecendo, assim, em sua pretensa familiaridade e imunidade, não se
deixando contaminar pela verdadeira e úmida alteridade. Perguntaria um sábio e
seco filósofo:
Porque se o desconhecido [o “úmido”] deve permanecer como tal, no próprio
conhecimento que temos dele, não caindo então sob nosso domínio e irredutível,
não somente ao pensamento, mas a qualquer forma pela qual pudéssemos
767
BLANCHOT, M. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001, p. 130.
768
BLANCHOT, M. A conversa infinita, p. 94.
301
apreendê-lo, não correríamos o risco de sermos obrigados a concluir que não
temos conhecimento a não ser daquilo que nos é próximo: do familiar, não do
estranho?
769
E esta sensatez e sequidão filosóficas estão em grande parte certas. Talvez o termo
conhecimento não seja o melhor para se colocar aqui, mas se o desconhecido não
é o negativo do conhecido, como atentou Derrida, isto não seria uma contradição:
havendo, sim, uma possibilidade de se ter algum conhecimento do desconhecido,
sobretudo da experiência mesma do desconhecido, que se deixa perceber por
representar a relação com a distância, com a infinita separação. E o
“conhecimento” que se extrai dessa experiência não consiste em diminuir esta
distância e se aproximar do desconhecido, mas em saber preservar seu
desconhecimento e sua distância, aprendendo, assim, a respeitar a não-relação.
Blanchot sorri: “estranha relação que consiste no fato de não existir relação”
770
.
E é aqui que o filósofo francês abre o livro do amigo lituano, remetendo o
leitor a Totalidade e infinito e afirmando que esta nova idéia de Outro, que diz
respeito à relação com outrem, configura “um novo ponto de partida da filosofia e
um salto que ela e nós mesmos seríamos convocados a dar”
771
. E quando
interpelado por seu outro sobre o que haveria de novo em uma filosofia que
tematizasse a alteridade, Blanchot responde (-se) que Lévinas conduz a uma
experiência radical em que outrem é irredutivelmente outro e que a relação com
ele ultrapassaria, assim, qualquer ontologia e qualquer teoria do conhecimento.
Parece-me ser o contrário de um solipsismo e é, no entanto, efetivamente, uma
filosofia da separação. Estou decididamente separado de outrem, se outrem deve
ser considerado como aquilo que é essencialmente outro que não eu, mas
também, é por essa separação que a relação com o outro impõe-se a mim como
me ultrapassando infinitamente: uma relação que me remete ao que me ultrapassa
e me escapa na medida mesma em que, nesta relação, eu sou e permaneço
separado.
772
Portanto, para Blanchot, ao contrário de qualquer abstração, este pensamento da
alteridade apresenta a realidade mesma, o real como esta relação impossível. O
filósofo lembra aqui que, para Lévinas, quando se pensa no infinito, pensa-se
aquilo que não se pode pensar, tendo-se, deste modo, um pensamento que
769
BLANCHOT, M. A conversa infinita, p. 97.
770
BLANCHOT, M. A conversa infinita, p. 98.
771
BLANCHOT, M. A conversa infinita, p. 98.
772
BLANCHOT, M. A conversa infinita, p. 99.
302
ultrapassa absolutamente aquilo que se poderia pensar, só podendo ser, então, uma
relação com uma alteridade absoluta e exterior: o outro.
Retomando brevemente aqui as indicações de Totalidade e infinito, pode-
se ver que a obra se inicia já anunciando esta relação que obriga a abandonar “um
mundo que nos é familiar”, a “nossa casa” rumo a um “fora-de-si estrangeiro”, um
“além”: “uma terra onde de modo algum nascemos”; “uma terra estranha a toda a
natureza, que não foi a nossa pátria e para onde nunca iremos”
773
. E isto se dá
justamente devido à idéia de infinito que se impõe como a impossibilidade mesma
de se pensar dentro da lógica do mesmo, como uma teoria do conhecimento em
que há um sujeito e um objeto, pois o infinito não se deixa apreender como um
simples pólo da relação: ele representa a relação mesma, a dissimetria constitutiva
de qualquer relação a um exterior, um “fora”, algo outro, enfim. Descartes, para
conceber o infinito, admitiu a necessária relação com um ser que conserva uma
exterioridade total, uma alteridade absoluta em relação àquele que o pensa.
Entretanto, não obstante distinguida da objetivação, deve-se se esforçar por
descrever esta relação com o Estrangeiro, a complexidade desta relação não-
semelhante. E, neste momento, Lévinas recorre a uma figura que já nos é bem
(des)conhecida para descrever esta relação: “o rosto de Outrem [que] destrói em
cada instante e ultrapassa a imagem plástica que me deixa”
774
. E, assim, define o
que seria esta estranha, totalmente estranha relação: “uma relação com o Outro,
que não desemboca numa totalidade divina ou humana, uma relação que não é a
totalização da história, mas a idéia do infinito. (...) Quando o homem aborda
verdadeiramente Outrem, é arrancado da história”
775
.
Blanchot, em seu diálogo com e sobre o amigo, verá o rosto como uma
presença que o olhar não pode dominar, que sempre transbordará a representação
que se possa fazer dele, não se pode diante dele, diz o francês, transformando o
maior poder (o conhecimento) em impotência frente à alteridade, a
impossibilidade mesma de se assumir que, diante do rosto de outrem, não se pode
mais poder: “O que permanece decisivo, no meu entender, é que a maneira pela
qual outrem se apresenta na experiência do rosto, esta presença do próprio exterior
(Lévinas diz, da exterioridade) não é a de uma forma aparecendo na luz ou seu
773
LÉVINAS, E. Totalidade e infinito, pp. 21-22.
774
LÉVINAS, E. Totalidade e infinito, p. 38.
775
LÉVINAS, E. Totalidade e infinito, p. 39.
303
simples recuo na ausência da luz: nem revelada, nem desvelada”
776
. O rosto,
então, indicaria o infinito, a infinita distância que separa eu e outro,
impossibilitando qualquer conquista, qualquer gozo, qualquer conhecimento. E,
quando (auto)indagado sobre o fato de este a relação-sem-relação permanecer
ainda um mistério, ele confessa que ela é um mistério: ela é o próprio enigma.
“De maneira que esta filosofia poderia então, por sua vez, significar o fim da
filosofia”
777
, afirma Blanchot sobre o enigma que o livro do amigo legou-lhe,
terminando o capítulo reconhecendo que não haveria nada em seus dias que o
obrigaria mais a refletir que um pensamento como este de Lévinas. E é isto que o
escritor faz logo em seguida, quando retoma a questão da escrita e da palavra à luz
obscura de Lévinas, em que a palavra passa a ser este abismo assimétrico desta
relação sem relação que é a escrita e a impossibilidade mesma de se escrever,
apenas podendo-se responder a esta impossibilidade, escrevendo.
*
Em diversos momentos de seu discurso no cemitério de Pantin esta
responsibilidade é retomada – como já indiquei algumas vezes –, mas em certo
momento de suas palavras de adeus Derrida relembra o que ele teria antecipado
em Donner la mort e que, como pretendo abordar, ligaria Kierkegaard a Lévinas:
o “sim” incondicional.
Nesse segundo tempo que reconduziu a um nível bem mais elevado do que o
primeiro, produziu-se lá uma mutação discreta porém irreversível, uma dessas
poderosas, singulares, raras provocações que, na história, depois de mais de dois
mil anos, terão marcado indelevelmente o espaço e o corpo do que é mais ou
menos, em todo caso outra coisa do que um simples diálogo entre o pensamento
judaico e seus outros, as filosofias de ascendência grega ou, na tradição de um
certo “eis-me aqui”, os outros monoteísmos abrâmicos. Isto é passado, esta
mutação aconteceu por intermédio dele, por Emmanuel Lévinas, que tinha, creio,
desta imensa responsabilidade uma consciência ao mesmo tempo clara, confiante,
calma e modesta, como a de um profeta.
778
Isto porque, como Kierkegaard, Lévinas também retirará um poderoso
pensamento da lição de Abraão, sendo que enquanto naquele a lição é religiosa e
776
BLANCHOT, M. A conversa infinita, p. 103.
777
BLANCHOT, M. A conversa infinita, p. 107.
778
DERRIDA, J. Adeus a Emmanuel Lévinas, p. 28.
304
suspende a ética, neste a lição é ética em detrimento da religião (lembrando que
Lévinas, ao adotar o nome “santo” para a ética, em que a santidade, ou kadosh,
quer dizer separação e representa esta infinita distância entre eu e outro pela qual
sou responsável e obrigado a responder-por, ele empreende uma crítica ao
“sagrado”, à estrutura religiosa que sacraliza a alteridade e impede uma verdadeira
relação com isto que escapa à qualquer estrutura
779
). Contudo, para o filósofo
lituano, como se pode ver em Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, o
sentido do pronome eu no acusativo do “eis-me aqui” remete à responsabilidade
pelo outro, enquanto para o dinamarquês isso representa o laço religioso com
Deus. Para Lévinas não há eu senão como “eu convocado” pela convocação à qual
só se pode responder “sim”, convocação que me obriga a comparecer e a me
tornar responsável por este outro que, ao mostrar-se, já apagou todos seus rastros,
sem jamais poder ver sua face.
E é na economia do rastro que o rosto “aparece”, nos termos de Lévinas,
“que o rosto brilha”, que o momento fugaz já passou, que o outro já passou sem
mesmo nunca ter se apresentado, “é a própria desordem imprimindo-se
(estaríamos tentados a dizer gravando-se) de gravidade irrecusável”
780
. E a
gravidade que é irrecusável é algo a ser grifado nesta relação: a impossibilidade de
recusa desta alteridade que, mesmo nunca estando presente, nem no presente nem
nas formas modificadas da presença, continua a ser o que convoca à
responsabilidade e ao responder por. Este “princípio” de eleidade é o que poderia
ser visto como a origem da alteridade, o outro mais outro que qualquer outro, o
absolutamente outro ou o Todo-Outro: nome ético de Deus. O Deus, assim,
também é renomeado para além da ontologia e da teologia e visto sob a ótica do
rastro, como rastro ou, possivelmente, como a atividade produtora de rastros,
sendo rastro de rastros. Deus também já passou – e nunca esteve lá.
O Deus que passou não é o modelo de que o rosto seria a imagem. Ser à imagem
de Deus não significa ser o ícone de Deus, mas encontrar-se no seu rastro. O
Deus revelado da nossa espiritualidade judaico-cristã conserva todo o infinito da
sua ausência que existe na própria ordem pessoal. Ele mostra-se apenas no seu
rastro, como no capítulo 33 do Êxodo. Ir na Sua direção não consiste em seguir
779
Sobre isso, remeto a LÉVINAS, E. Do sagrado ao santo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.
780
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 244.
305
esse rastro, que não é um sinal; mas em ir para os Outros, que se mantêm no
rastro da “eleidade”.
781
Remeto aqui ao versículo citado por Lévinas, que diz que a visão face a face de
deus está reservada à felicidade ao Céu e mostra a passagem de Deus como rastro:
‘Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e continuar
vivendo’. E Iahweh disse ainda: ‘Eis aqui um lugar junto a mim; põe-te sobre a
rocha. Quando passar a minha glória, colocar-te-ei na fenda da rocha e cobrir-te-
ei com a palma da mão até que eu tenha passado. Depois tirarei a palma da mão e
me verás pelas costas. Minha face, porém, não se pode ver’.
782
Assim, o terceiro é o verdadeiro outro, o inesperado, que me apareceu e
que está além de todos meus planos, aparecendo, agora, como a metáfora do filho,
da sua vinda além-do-possível e além-dos-projetos, como já se prenuncia na
Bíblia quando, em Isaías 49, lê-se que “meu filho é um estanho”. Sim, mas este
filho não é apenas um estranho, porque não pode ser meu – esse filho é um eu que
é também “eu”, e por isso, é um eu estranho a si e sou eu estranho a mim: essa é a
necessidade urgente e vital da alienação, pois, na paternidade, o eu liberta-se de si
mesmo, sem deixar de ser um eu, porque este outro eu é seu filho. O pai não
produz ou causa simplesmente o filho, ser seu filho significa ser um eu no seu
filho, estar substancialmente nele, sem, no entanto, nele se manter identicamente,
na mesmidade. O filho, como futuro, é inevitável, é o desconhecido, inesperado.
Mas isto não desresponsabiliza, de modo algum, a paternidade, pois, ainda assim,
esta é uma escolha, uma decisão. Eu devo escolher meu filho, meu filho único, e
este filho retoma a unicidade do pai, enquanto permanece exterior ao pai. O filho
é sempre o filho único – cada filho do pai é seu único filho, por ele eleito, e o
amor do pai pelo filho realiza “a única relação possível com a própria unicidade
de um outro”
783
. É nesse sentido que todo amor deveria se aproximar do amor
paterno, no qual o filho é único para si porque é único para seu pai.
Mas se todo filho é filho único, o mundo torna-se um mundo de irmãos. Eu
sou único entre meus próximos, como irmão entre irmãos, eu sou eleito. “Mas
onde posso eu ser eleito, a não ser entre outros eleitos, entre os iguais?” A
resposta a esta questão encontra-se no fato de que o eu, enquanto eu, mantém-se,
781
LÉVINAS, E. “O vestígio do outro”, p. 245.
782
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1991. Êxodo: 33.
783
LÉVINAS, E. Totalidade e infinito, p. 258.
306
pois, voltado eticamente para o rosto do outro e a fraternidade é a própria relação
com o rosto, em que se realiza, ao mesmo tempo, minha eleição e igualdade - o
domínio exercido sobre mim pelo outro. E desta discussão, permito-me algumas
considerações sobre o Deus fenômeno ou o “lado ôntico” desta absoluta
alteridade, a necessidade intrínseca dela se manifestar empiricamente, a partir do
conto “Onde está o amor, Deus está também”, de Tolstoi
784
, outra das grandes
influências no pensamento levinasiano. No conto, o protagonista Martuin é um
viúvo que possuía apenas um filho, o filho único. A morte de sua mulher, a falta
do feminino, do segundo da relação, nada lhe causara. Ele tinha a certeza de ter
seu futuro no filho, de ele ser seu futuro. Mas esse filho morre. Esse filho falta. A
morte em Lévinas, diferente de como é apresentada em Heidegger, dá-se quando o
rosto do outro me falta, momento em que ele não está lá e eu devo assumir a sua
palavra. A morte do outro é o instante em que devo assumir minha
responsabilidade, que devo representá-lo no mundo. A angústia, desta maneira,
não é o contato com a própria finitude, é o contato com a infinitude de minha
responsabilidade pelo outro, de meu infinito comprometimento com o mundo. A
falta de um rosto faz com que eu olhe para os infinitos rostos que me cercam, pois
o todo-outro não acaba, é Deus, criador e eterno. Somente através da morte de seu
filho pôde instalar-se a angústia em Martuin e, assim, ele pôde ouvir a palavra de
Deus. Em Lévinas, o Deus-homem é a prova de que em todo-outro Deus está
presente, de que todos somos filhos únicos, escolhidos por ele, irmãos entre
irmãos, posto que a palavra de Deus está presente no rosto de todo outro e se
encontra, originalmente, no mandamento “ama teu próximo como a ti mesmo”.
A partir do conto de Tolstói, vemos que, na figura do protagonista, através
da falta de seu filho, da falta do rosto dele, pôde se ouvir a palavra de Deus. Ao
dormir, Martuin sonha com deus, que lhe promete aparecer em carne no dia
seguinte. Aparecem, no entanto, inúmeras pessoas que lhe batiam à porta, com
inúmeras necessidades: pessoas idosas, crianças, pessoas com fome, com frio e
que necessitavam, mesmo, de amparo, de acolhimento. Foi, então, que Martuin
percebeu que tal era a anunciada aparição que deus lhe prometera. Junto a essa
escuta, que representa mais um vislumbre, Martuin apreendeu o real sentido do
mandamento do amor ao próximo, o amor a todo aquele que me aparece, o amor
784
TOLSTOI, L. “Onde está o amor, Deus está também”. In: Obras escolhidas. Rio de Janeiro,
Ediouro. 2000.
307
ao fraco, à velha, à criança, ao doente. O terceiro é a introdução, no eu, da
bondade, da caridade e da justiça, que se faz através do respeito à lei (a lei maior
da alteridade fundadora, do respeito ao outro - palavra de Deus). Deste modo, a
equação da ética do infinito resulta na sentença de que “a relação com o outro é
justiça” – definição tão cara a Derrida. Deve-se, então, se pensar agora como esta
relação com a alteridade se dá em Kierkegaard para que se possa rascunhar
alguma incipiente conclusão sobre o tema. E a cortina abre-se ao absurdo...
absurdo (de Kierkegaard)
“Aqui o trágico e o cômico ligam-se ao infinito absoluto...”
785
, diz Kierkegaard
em sua obra quase-autobiográfica Temor e Tremor: uma obra sobre o absurdo que
foi escrita logo após a morte de seu pai, com quem Kierkegaard tinha uma
turbulenta relação, e o rompimento de seu noivado, fator que marcaria
profundamente a vida do filósofo. Em linhas gerais, poderia resumir a obra na
confluência entre tragédia e comédia no absurdo, no patético da vida em modos
gerais. E a promessa a Abraão é invocada, quando Deus promete que ele seria o
pai de um grande povo: no momento em que o patriarca das religiões monoteístas
parece não mais crer que a promessa se cumpriria, Sara, sua esposa, infértil e em
avançadíssima idade, engravida de Isaac. A obra kierkegaardiana tratará
justamente da superação da moralidade pela fé que se segue ao cumprimento da
promessa e ao nascimento de Isaac, e tal superação se dá justamente pela chamada
“resignação infinita” e a confiança no absurdo. A figura que Kierkegaard nomeia
para protagonizar sua tragédia, seu herói, é o cavaleiro da fé, que precisa,
necessariamente, passar pelo estágio do cavaleiro da resignação para poder dar
este “salto”. Poder-se-ia dizer que a atividade de resignação é um exercício
individual de crença no absurdo, fundamental para que, num momento seguinte, a
graça aconteça, o dom se dê.
Três questões podem ser antecipadas para nortear as observações sobre a
estória de Kierkeggard. A primeira seria “há uma suspensão da moralidade?”:
para o filósofo, de modo inverso a Hegel, o que importa é a individualidade, a
relação do indivíduo com o Outro, estando o singular, assim, acima da moral (da
785
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor. Rio de Janeiro: Ediouro. Sd., p. 22.
308
lei, do Estado, da família etc.) – e abre-se deste modo o lugar de uma
irresponsabilidade absoluta e de solidão: Abraão, por exemplo, será aquele que
não responde a nenhuma norma, que mantém o segredo e que, por isso, passa por
cima de qualquer responsabilidade (de pai de família, de bom marido etc.); depois
“há um dever absoluto para com Deus?”: a suspensão da moral se dá devido ao
pacto irrecusável com Deus, para quem se tem um dever absoluto – e sendo este
absoluto a referência para o indivíduo, somando-se a isso o fato de Deus ser amor,
então este dever absoluto só pode ter como conseqüências coisas boas; por fim,
“pode-se justificar moralmente o silêncio de Abraão?”: a estrutura do mistério
delinearia, assim, uma estrutura humana, em que todo indivíduo seria depositário
de um segredo, um mistério que envolve o outro, que é, de certo modo,
inacessível. Tome-se como exemplo o momento em que Issac pergunta, ao seguir
o pai monte acima, onde estaria o cordeiro a ser sacrificado, e o pai responde,
ironicamente, mas responde
786
, pois ele deve de algum modo responder e tamm
porque ele, Abraão, acredita no absurdo – o que conduz o pai ao nível da
irresponsabilidade, da incompreensão, da solidão e do silêncio.
Quando se pensa em absurdo, vêm imediatamente as concepções de
disparate, despautério ou despropósito. Em suma: o absurdo como contra-senso.
Correta e estranhamente, o senso comum mostra uma pertinente definição ao
concebê-lo assim, pois ele seria de fato uma desrazão, o que não implica que as
pressuposições de um “pensamento do absurdo” conduziriam à irracionalidade.
Em Kierkgaard encontra-se a descrição do absurdo como o “nível” onde todas as
eternas impossibilidades ganham espaço como possibilidades realizáveis em um
futuro que, se se persistir na fé, virá certamente e de modo ainda melhor: sabe-se
da impossibilidade e, contudo, acredita-se em sua efetivação através do absurdo. E
o que há de melhor: nada se perde com isso, continua-se seguindo a vida
normalmente, só que com a futura certeza de felicidade guardada pelo destino. De
certa forma, sabe-se que se pode abrir mão de alguma impossibilidade, pois
sempre haverá a possibilidade (ainda que absurda) dela acontecer – o que mostra
que o absurdo do pensamento reside em sua impossibilidade mesma. Em Salvo o
nome, Derrida define a desconstrução, com referência a esta impossibilidade
absurda, como “a própria experiência da possibilidade (impossível) do impossível,
786
Abraão apenas responde a Isaac: “Deus proverá”.
309
do mais impossível”
787
e, por isso, a possibilidade de um pensamento do absurdo
torna-se “possível” segundo uma impossibilidade “maior” que o próprio
impossível: como uma espécie de hiper-impossibilidade. Derrida explica:
Esse mais, esse além, esse hiper (über) introduz, evidentemente, uma
heterogeneidade absoluta na ordem e na modalidade do possível. A possibilidade
do impossível, do ‘mais impossível’, que enquanto tal é também possível (‘mais
impossível que o impossível’), marca uma interrupção absoluta no regime do
possível que, apesar disso, permanece, se assim podemos dizer, no lugar.
788
O que indica que se agindo, como Kierkegaard prescreve ao cavaleiro da
resignação, desta maneira, nada se perde. Um pensamento do absurdo – como o
que se abriga na “resignação infinita” – em nada nega a ordem lógica da vida
possível, apenas indica sua insuficiência. A razão sempre permanecerá em seu
lugar, fixa, ao passo que a absurdidade infinita toma espaço, como diria
Kierkegarrd, na eternidade. Uma indicação: aqui, agora, o absurdo tem “lugar”.
Aliás, aqui, só ele pode ter este (não) lugar – e é necessário, após os tantos séculos
da formalidade lógica da possibilidade, que se abra este “lugar” e que as palavras
de Clarice que se seguem façam sentido, ainda que no sentido do absurdo:
... E era bom. ‘Não entender’ era tão vasto que ultrapassava qualquer entender —
entender era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao
infinito, ao Deus. Não era um não entender como um simples de espírito. O bom
era ter uma inteligência e não entender. Era uma benção estranha como a de ser
louca sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do
intelecto, uma doçura de estupidez. Mas de vez em quando vinha a inquietação
insuportável: queria entender o bastante para pelo menos ter mais consciência
daquilo que ela não entendia. Embora no fundo não quisesse compreender. Sabia
que aquilo era impossível e todas as vezes que pensara que se compreendera era
por ter compreendido errado. Compreender era sempre um erro — preferia a
largueza tão ampla e livre que era não-entender.
789
*
Retorno à cena ternária que envolve os personagens kierkegaardianos: Abraão,
Sara, Issac – e Deus! No início de Temor e tremor, Johannes de Silentio, o autor
da adaptação moderna para a tragédia judaica, repete a mesma cena de diversas
787
DERRIDA, J. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995, p. 19.
788
DERRIDA, J. Salvo o nome, pp. 19-20.
789
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de janeiro: Rocco, 1998, pp.
43-44.
310
maneiras diferentes, indicando com suas rubricas as motivações dos personagens
na cena mais que conhecida por seus atores: o momento em que Abraão sobe o
monte Moriá para sacrificar seu filho, Issac, a pedido de Deus. O suspense de
Kierkegaard (de Silentio) faz com que o leitor acompanhe passo a passo a
angústia dos personagens, para que, com isso, se aprenda sua experiência de
resignação e de fé.
Levantamo-nos com Abraão, vêmo-lo albardar os burros para a longa viagem,
seguimos o olhar terno de Sara, que acompanha seu marido e seu filho da janela
até se perderem de vista em sua descida pelo vale. Sentimos o contraste entre a
alegria e a confiança do menino e o coração pesado do homem que o conduz para
um terrível destino: a morte pelas mãos de seu próprio pai. A parábola começa a
reverberar em nós à medida que seguimos Abraão pelos vales e montanhas do seu
atribulado interior.
790
Kierkegaard, então, para descrever esta fábula, veste, entre tantos figurinos que
guardava em seu armário, a roupa de Johannes, mas não a do Johannes, o sedutor,
autor do Diário, mas Johannes, o silencioso poeta, o menestrel da fé que pode
cantar a fé. De Silentio, desde o início de sua estória, assume-se apenas um
contador, um cantador, incapaz, por ser poeta, por ser esteta, de ser o cavaleiro da
fé: como menestrel, ele pode apenas nos ambientar nesta trama kierkegaardiana.
Ao contrário do poeta, e apesar de seu aposto “de Silentio”, é ao cavaleiro da fé
que cabe o silêncio: quem vive verdadeiramente a fé deve necessariamente se
silenciar, pois sua vivência ultrapassa qualquer significação.
E o protagonista eleito para interpretar o cavaleiro da fé foi Abraão – o que
conduz imediatamente a um paradoxo: imagine-se que um inflamado pastor
pregasse esta figura como um modelo de conduta; isto poderia levar um crédulo
pai a acreditar que matando seu filho ele estaria assegurando seu caminho ao lado
de Deus, ainda que, entre os homens, fosse tido como um assassino. E é para
garantir que o leitor siga os passos de Abraão, sinta em sua pele seu padecimento,
suas inquietações e suas dúvidas, e para que, com isso, ele saiba diferenciar entre
o ato de um simples infanticídio e a conduta do cavaleiro da fé, que Johannes de
Silentio dedica-se à poesia e aos detalhes quase barrocos do drama existencial.
Desta maneira, como se verá, pode-se distinguir o duplo salto que o cavaleiro da
fé empreende do finito ao infinito e do infinito ao finito, tornando-se o paradigma
790
GRAMMONT, G. Don Juan, Fausto e o judeu errante em Kierkegaard. Petrópolis: Catedral
das letras, 2003, p. 85.
311
do estágio religioso. Um detalhe necessário a se salientar é a importância desta
angústia em Kierkegaard, pois, se Abraão fosse um mero seguidor, um cordeiro,
ele não apresentaria a força de decisão necessária à fé: com isso, o filósofo
dinamarquês, em nome da fé, afasta a simples credulidade e ressalta a dúvida,
sendo apenas esta que pode fazer com que se alcance este estágio mais elevado da
existência (daí o interesse de muitos céticos na filosofia existencial de
Kierkegaard, pois sua obra confronta-se com a filosofia moderna na medida em
que “para restabelecer a dignidade da fé, Kierkegaard primeiro precisou resgatar a
dignidade da dúvida de seu uso ilegítimo perpetrado pelos filósofos modernos”
791
).
Isaac, sabe-se, é o filho da promessa – e é isto que conduz a trama à lógica
do paradoxo: “Deus concede um filho a Sara quando esta, pela natureza, já não
estaria mais em idade de conceber. Deus realiza este milagre para que sua obra se
perpetue sobre a terra, pois a linhagem que parte de Abraão dará origem ao povo
escolhido”
792
, ou seja, se, por um lado, Issac é quem guarda em si o futuro do
povo eleito, por outro lado, Deus exige sua morte como prova de fidelidade e
obediência: ainda mais, de temor. E este paradoxo, que se estende a todos os
indivíduos, não seria legado como uma tarefa, como uma silenciosa tarefa que
todos devem carregar, já que Deus dá a vida, mas pode, a qualquer momento, tirá-
la? Como conseqüência, apenas a assunção do absurdo da vida pode fazer com
que se suporte este paradoxo, e é neste sentido que de Silentio faz com que o
leitor passe pela mesma provação de Abraão, para que aprenda a lição de fé
ensinada pelo cavaleiro: “o absurdo consiste em que Deus, pedindo-lhe o
sacrifício, devia revogar a sua exigência no instante seguinte”
793
. Isto significa
que Abraão, ainda que inabalavelmente encaminhava-se à montanha para
sacrificar o filho, como verdadeiro cavaleiro da fé, em seu íntimo de pai,
acreditava que por sua fé seu filho lhe seria restituído – e tal é o referido salto que
o cavaleiro da fé necessariamente deve dar: quando parte rumo ao cume onde se
daria o holocausto, Abraão perde sua razão e, com isso, sua ligação com o finito,
saltando para o infinito da fé, no qual a razão não tem sentido; e através do
absurdo, por sua fé, ele recupera o finito. Contudo, isso que só se dá por graça, e
791
MAIA NETO, R. “Kierkegaard’s Christianization of Pyrronism”. In: Scepticism and faith in
Pascal, Kierkegaard and Shestov. Boston/London: Kluwer Academic Publishers, 1995, p. 72.
792
GRAMMONT, G. Don Juan, Fausto e o judeu errante em Kierkegaard, p. 88.
793
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 128.
312
não na ordem do cálculo, é o que faz com que, neste duplo salto, um homem
possa ser um cavaleiro da fé – e isso só se dá quando:
converte em resignação infinita a profunda melancolia da vida, conhece a
felicidade do infinito, experimentou a dor da total renúncia àquilo que mais ama
no mundo – e, no entanto, saboreia o finito com tão pleno prazer como se nada
tivesse conhecido de melhor, não mostra indício de sofrer inquietação ou temor,
diverte-se com uma total tranqüilidade que, parece, nada há de mais certo do que
este mundo finito e no entanto, toda essa representação do mundo que ele figura é
nova criação do absurdo. Resignou-se infinitamente a tudo para tudo recuperar
pelo absurdo.
794
A resignação é o estágio necessário para que se alcance a fé, é o movimento que o
indivíduo deve dar para além do finito para conseguir que o finito lhe seja
restituído pelo absurdo. Antes de prosseguir na resignação, lembro aqui da aposta
não religiosa que Nietzsche faz no aforismo 323 da Gaia ciência em que vejo
ecoarem estes acordes absurdos de Kierkegarrd: “Sorte no destino – O destino nos
confere a maior distinção, quando nos faz combater por algum tempo ao lado de
nossos adversários. Com isso estamos predestinados a uma grande vitória”
795
.
*
Todo indivíduo, para Kierkegaard como também para Nietzsche, é desde o início
apátrida, como se pode ler logo no início de Temor e tremor quando Kierkegaard
diz que todos os homens são “estranhos no mundo”
796
. Outro pano de fundo em
comum que se pode tentar vislumbrar entre a filosofia trágica e o pensamento do
absurdo é um certo combate ao socratismo. No caso de Kierkegaard, a questão da
esperança pode ser interpretada de duas formas segundo os princípios fundadores
do pensamento ocidental, através da tomada das sentenças de Sócrates e Píndaro
que, respectivamente, proclamam: “Conhece-te a ti mesmo” e “Vem a ser o que tu
és”. Essas duas sentenças, que nada mais são que horizontes exegéticos para a
vida, fundam duas possibilidades absolutamente opostas no que diz respeito ao
sentido da vida. Assim, as formas de se enfrentar a existência não podem
assemelhar-se a um confronto com uma esfinge devoradora, por isso não se deve
794
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 132.
795
NIETZSCHE, F. A Gaia ciência, p. 215.
796
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 34.
313
travar batalha alguma contra si mesmo, como preconiza Sócrates, pois não se cai
em uma incessante auto-reflexão sem se tornar um ser totalmente entediante (e o
tornar-se chato pode ser o que de melhor aconteça na opção pela via socrática:
pode-se também cair em desgraça eterna, como Rei Édipo bem conhecera a dor de
buscar sua origem...). Por outro lado, um sentimento apátrida como o que se
necessita para o que poderia ser chamado de felicidade assemelhar-se-ia mais ao
desprendimento interessado de Zaratustra ao descer da montanha e tornar-se o
viajante solitário ou às errâncias demasiado humanas como as que o jagunço
Riobaldo enveredou em seus confrontos com o Demo – e essas figuras da
literatura mundial são discípulos de Píndaro: não buscam auto-conhecimento, mas
apenas deixam vir a ser o que eles devem ser, deixam-se ser através da abertura.
Mas como esta postura frente à vida pode bem-suceder confrontando-se à
postura analítica do cálculo? Como a assunção ética da sentença de Píndaro pode
conduzir a uma vida mais interessante? De modo estranho e quase paradoxal, isso
não é absurdo, ou melhor, talvez seja a experiência mesma do absurdo. “Eu
acredito, sem reserva, que alcançarei aquilo que eu amo em razão do absurdo”
797
,
diz o cavaleiro do infinito. Para ele, o absurdo é a impossibilidade absoluta, é o
que se dá de tal forma in possibilitas que passa a ter o possível como único limite.
E quando as impossibilidades cotidianas transformam-se em uma absoluta
impossibilidade, na representação eterna de uma infinita impossibilidade, neste
momento, só há duas possibilidades: ou se abre mão do que se ama ou se parte
para o absurdo. Em Temor e Tremor, Kierkegaard dedica-se, em algumas páginas,
à possibilidade do amor dar-se no absurdo, através da tão referida resignação
infinita (e Kierkegaard, como poucos, viveu a experiência de uma impossibilidade
amorosa e, talvez por isso, seja um dos pensadores que mais pode indicar uma
resposta à questão sobre como agir frente à impossibilidade). Na teoria
kierkegaardiana, vê-se explicitado o exemplo de um jovem que se apaixona por
uma princesa
798
, mas para ilustrar melhor sua argumentação, tentarei traçar um
paralelo com uma célebre ilustração da impossibilidade: Romeu e Julieta, de
William Shakespeare, tomando a figura de Romeu como um antagonista à
expectativa de como deve agir um cavaleiro do infinito. Assim, como no exemplo
de Kierkegaard, a peça de Shakespeare trata de um tão proclamado “amor
797
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 40.
798
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, pp. 34-40.
314
impossível”: Romeu, ao vislumbrar a jovem e bela Julieta, herdeira de uma
família rival à sua, fica imediatamente apaixonado, pois nunca vira ou sentira
nada igual e nada mais no mundo teria sentido, a partir daquele momento, senão a
jovem encantadora. Como o cavaleiro, Romeu “apaixona-se (...) de modo tal que
a substância de sua existência está concentrada neste amor”
799
, e viver passa a ser
o mesmo que amar, sua vida passa a ter como único significado o amor que dedica
a amada.
Até este ponto, Romeu parece configurar a mais clara expressão do
cavaleiro do infinito. No entanto, como disse Kierkegaard, podem haver milhares
de cavaleiros desta sorte pelo mundo, mas não se encontra, ainda que muito se
puxe pela memória, um único exemplo quando se é perguntado sobre tal
existência. Desta forma, e somando a isso o tão conhecido final da “tragédia” em
questão, já se pode antecipar que o herói não figura, de forma alguma, uma
concepção de fé. Isso se pode afirmar: Romeu nunca possuiu a resignação
necessária à felicidade – e tomados pelo desespero (a doença mortal do espírito,
segundo Kierkegaard) e pela ansiedade (o inverso da melancolia, na qual não se
vive o presente por se buscar, a todo custo, a antecipação do futuro), o jovem e
sua amada não perceberam o óbvio, não deram ouvidos à impossibilidade absoluta
que lhes batia à porta a todo instante e, agindo desta forma, contrariaram aquilo
que Hegel, em sua Estética, chamou de confronto com as eternas “potências
substanciais”. Confrontaram-se com um Eu muito maior que ambos, com um Eu
absoluto, um Eu moral; colocaram sobre a totalidade o valor do indivíduo e não
enxergaram, ou melhor, preferiram ignorar as convenções morais, éticas e sociais.
Mas como deveria agir, neste caso, o referido cavaleiro? Se tal amor constitui-se
como a substância de sua existência, como poderia ele não ignorar tais códigos
que, apenas, o afastam de sua própria vida? Como poderia ele dar ouvidos a tais
prenunciadores de sua morte e, sobretudo, agir segundo suas leis? Isso não
implicaria um prévio suicídio? Kierkegaard responde: “O cavaleiro da resignação
infinita não os ouve, nem mesmo pela maior glória deste mundo renuncia ao seu
amor. (...) Sente a alma bastante sadia e orgulhosa para permitir que o acaso se
apodere da mais ínfima parcela de seu destino (...), pois esse movimento é vida e
morte”
800
. O cavaleiro bebe, tranqüilamente, o veneno da voluptuosidade e,
799
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 34.
800
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 35.
315
quando este se instala em cada parte de seu ser, passa a ter a coragem necessária a
tudo ousar e arriscar. Nada vê no mundo além de seu amor, sopra qualquer
existência alheia para outra realidade e aposta na efetivação de seu desejo. Porém,
se a resposta do mundo não for positiva, se os mensageiros da impossibilidade
chegam e declaram sua sentença, frente a tal notícia, “conserva-se calmo,
agradece-lhes e, estando só, começa o seu movimento”
801
.
Aqui se vê a diferença entre Romeu e o cavaleiro da resignação infinita: o
cavaleiro é abertura, por isso percebe o sentido maior a ele guardado pelo destino
e com isso reúne forças para prosseguir seu movimento. A ele é necessário o vigor
de concentrar o resultado de todo seu trabalho de reflexão em apenas um “ato de
consciência”, não pode permitir que sua alma se disperse no múltiplo, pois caso
isso ocorra, “jamais terá tempo de efetuar o movimento, correrá sem cessar atrás
das questões da existência, sem jamais entrar na eternidade”
802
. Não obstante, tal
movimento não implica, de forma alguma, uma mudança no ser do cavaleiro;
muito pelo contrário, a resignação infinita é a preservação de sua essência – a
renúncia espiritual de seu amor, esta sim configuraria uma renúncia de sua própria
existência, uma transformação que não demonstraria grandeza nenhuma, mas
apenas fraqueza, covardia e impotência. Até agora, então, já se deve ter percebido
que a grande questão aqui a ser colocada é a seguinte: como poderia a farsa
shakespeareana apresentar um final feliz? A resposta que poderíamos pensar ouvir
na boca de Joahannes de Silentio encontra-se na infinita aceitação do destino e na
eternização do sentimento que só pode efetivar-se no absurdo; só assim pode o
herói viver em constante “despreocupação alegre”. Ele:
transmuda em resignação infinita a profunda melancolia da existência; conhece a
ventura do infinito; sentiu a dor da renúncia total ao que mais ama no mundo — e
entretanto, saboreia o finito com tão pleno prazer como se não tivesse conhecido
nada de melhor, não dá mostra de sofrer inquietação ou temor, diverte-se com
uma calma que, dá a entender, nada existe de mais certo do que este mundo
finito.
803
No entanto, toda esta nova representação de mundo, este simulacro do
movimento infinito é uma nova “criação do absurdo”, pois o cavaleiro “fez-se
801
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 35.
802
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 36.
803
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, pp. 33-34.
316
resignado infinitamente a tudo para tudo reaver pelo absurdo”
804
, pois acredita no
acaso, acredita no poder que o destino lhe atribuirá por fazer-se seguir sua
vontade. Contudo, isso não demonstra ansiedade: não se trata de aflita antecipação
do futuro, trata-se, sim, de uma tranqüila certeza de felicidade: graças à sua
infinita resignação, acha-se de bem com a vida; seu amor transmuda-se, para ele,
na expressão de um amor eterno, e assume um “caráter religioso”. Tal amor,
agora, tem como única finalidade o ser eterno (“o qual, indubitavelmente, negou-
se a favorecer o cavaleiro, porém, ao menos, acalmou-o dando-lhe a consciência
eterna da legitimidade de seu amor, debaixo de uma forma de eternidade que
nenhuma realidade lhe poderá tirar”
805
), para que, somente assim, torne-se
possível o impossível, ao menos no patamar do espírito. Seu desejo, ainda que
perdedor frente ao tribunal da moralidade, mas ávido por se tornar realidade,
estagnou-se frente à impossibilidade. Mas nada se perde ou é esquecido: a doce e
certa esperança conserva sempre novo esse sentimento que, à medida que se
envelhece, se tornará cada vez mais belo e encantador.
Isso não é o que ensina Romeu; ele não mostrou tamanha astúcia para se
manter vivo e feliz, precipitando-se no abismo da ansiedade e do desespero,
movido pelo desequilíbrio e sem conseguir apostar na sorte. Romeu não tem fé: e
este é o ponto principal da resignação infinita. Ele quis ser maior que o destino,
quis desafiar as grandes leis e, com isso, não aprendeu o maior segredo de todos:
“Nos bastamos a nós mesmos quando amamos (...), pois quem se resignou
infinitamente a si mesmo se basta”
806
. Romeu, se agisse desta forma, nunca mais
abandonaria a resignação e seu amor manteria sempre a frescura do primeiro
instante, não o abandonaria jamais como recompensa por haver optado pelo
infinito. Só assim teria feito calar-se seu sofrimento, posto que só assim dois
amantes podem selar seu pacto frente à eternidade. “A resignação infinita implica
paz e repouso”, diz Kierkegaard, mas logo após acrescenta: “A resignação infinita
implica repouso, paz e consolo no imo da dor”
807
. Esta, para o filósofo, é a única
maneira de não se viver a morte antes mesmo de se falecer de fato, é a chance de
se encontrar a felicidade mesmo na própria dor:
804
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 34.
805
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 37.
806
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, pp. 37-38.
807
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, pp. 38-39.
317
No instante em que o cavaleiro se resigna, convence-se, conforme o alcance
humano, da impossibilidade. (...) Contudo, ao invés, do ponto de vista do infinito,
ainda permanece a possibilidade no imo da resignação. (...) O cavaleiro da fé
possui ainda lúcida consciência desta impossibilidade; somente pode salvá-lo o
absurdo. (...) Reconhece, portanto, a impossibilidade e, ao mesmo tempo, acredita
no absurdo; pois se alguém supõe ter a fé sem reconhecer a impossibilidade de
todo o seu coração e com toda a paixão de sua alma, ilude-se a si mesmo e o seu
testemunho é completamente inaceitável, porque nem mesmo atingiu a
resignação infinita.
808
*
Este longo exemplo ilustrativo de como Romeu poderia ter agido pode facilitar
agora a compreensão de como o “sim” de Abraão à vontade de Deus configura
este primeiro ato que pode fazer o cavaleiro da resignação tornar-se o cavaleiro da
fé. Seja em um amor como o de Romeu ou em um amor como o de Abraão, deve-
se apostar no absurdo e lembrar destas palavras de Kierkegaard: “Por esse motivo
não será olvidado dos que foram grandes. E se é necessário tempo, se ainda as
nuvens da incompreensão apagam a figura do herói, virá contudo aquele que o
amou e tanto com maior fidelidade se ligará a ele quanto maior for seu atraso”
809
.
No caso de Abraão, a fé e a esperança que o move como um jogador que está
perdendo, mas crê que ainda tem uma carta, mesmo sabendo que esta carta não
está em suas mãos, mas na de Deus – e é isto que faz Abraão prosseguir e levar
sua horripilante prova de amor até as últimas conseqüências, só e em silêncio.
A fé, assim, consiste no próprio paradoxo da vida: “o movimento de
renúncia a toda temporalidade através da fé, para conquistá-la outra vez através do
absurdo. A fé restaura, por meio do absurdo, a ligação com o finito, mas apenas
na medida em que o homem já tenha renunciado ao mundo terreno para ganhar o
infinito”
810
. Abraão realiza um duplo movimento, sendo o primeiro quando
renuncia a Isaac através da resignação, alcançando, assim, o infinito na recusa do
finito, e o segundo quando recupera seu filho e retorna ao finito pela crença no
absurdo. E é apenas este paradoxo que pode fazer com que, sob o ponto de vista
ético, Abraão seja um criminoso, mas pela ótica da religião seja um homem santo.
E pode parecer óbvio que tal é o motivo das críticas que Lévinas endereça a
Kierkegaard em “Existência e ética”: não que Lévinas repreenda o fato de o
808
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 40.
809
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 36.
810
GRAMMONT, G. Don Juan, Fausto e o judeu errante em Kierkegaard, p. 90.
318
absurdo ser a suspensão da razão, mas que de modo algum o nível ético deve ser
suspenso em nome do religioso, sendo a santidade mesma o sinônimo da ética e
de modo algum a solitária vida sacralizada – para a ética, o santo é aquele que
assume, ao contrário, o mandamento-mor “não matarás”
811
. Abraão não possui de
modo algum a virtude moral de um herói, como lembra Kierkegaard (pois, para o
filósofo, o herói trágico atém-se à moralidade e sempre age no nível público,
sendo seu sofrimento sempre partilhado, enquanto o cavaleiro da fé age sempre de
modo solitário e incompreensível pelo domínio popular); ele não está preocupado
com a polis e, ao contrário, só deve prestar contas a Deus.
Se [Abraão] tivesse simplesmente renunciado a Isaac, sem fazer mais nada, teria
expresso uma inverdade; porque sabe que Deus exige Isaac em sacrifício, e que
ele próprio está, neste momento, prestes a sacrificá-lo. A cada instante, depois de
ter realizado esse movimento, efetuou, portanto, o seguinte, o movimento da fé,
em virtude do absurdo. Nesta medida, não mente; porque, em virtude do absurdo,
é possível que Deus faça uma coisa completamente diferente.
812
Por fim: como se pode, então, cantar esta melodia silenciosa? Kierkegaard
o faz pela voz de Johannes de Silentio – e se ao poeta não cabe o silêncio, se ele
deve entoar seus versos e não pode prescindir das palavras como o cavaleiro da fé,
ao menos ele pode escrever suas rimas com temor e tremor. Tremendo,
Kierkeggard faz com que se experiencie o silêncio sepulcral que inaugura o
cavaleiro da fé, a angústia que faz com que se compreenda que “Abraão cala-se
(...) porque não pode falar; nesta impossibilidade residem a tribulação e a
angústia”
813
. Falar, para o cavaleiro da fé, não é apenas supérfluo, ele nunca será
compreendido por ninguém, muito menos por Isaac, seu filho que, seguindo-o,
sente falta do cordeiro para ser oferecido em holocausto. E, quando perguntado
sobre esta ausência, Abraão, como só o cavaleiro da fé poderia responder,
absurdamente, diz: “Deus proverá” – e proveu. Fato este que a escrita de
Kiekegaard deixa bem marcado como o êxito da fé neste jogo silencioso entre
finito e infinito em que só se pode crer, nada mais.
811
LÉVINAS, E. “Kierkegaard:Existence and Ethics”, in: Proper Names. Califórnia: Stanford
University Press, 1996 (LÉVINAS, E. “Kierkegaard: Existence et ethique”, in: Noms Propres.
Paris: Fata Morgana, 1976).
812
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 182.
813
KIERKEGAARD, S. Temor e tremor, p. 179.
319
mysterium tremendum
Meu intuito com as questões até aqui expostas é o de encerrar estas questões com
Donner la mort, de Derrida, em que parece que Kierkegaard e Lévinas se
encontram no cerne de um quiasma. E é com a questão do segredo que Derrida
inicia seu trabalho, apontando o nível de “segredo” que traz consigo a discussão
sobre a responsabilidade e a experiência moral. E, neste caso, a lição de
Kierkegaard pode ser valiosa, pois esta responsabilidade não pode mais ser
pensada nos termos de um caráter comunitário, mas somente a partir da
experiência individual – o que, como se viu, só é possível na esfera do segredo.
Trata-se agora, portanto, de se pensar não a universalidade do segredo, mas sua
viabilidade como experiência ética.
É por este motivo que Derrida inicia seu livro com os Essais hérétiques
sur la philosophie de l’histoire, de Jan Patočka
814
, em que o autor correlaciona
segredo e responsabilidade, sendo que esta só seria acessível através da religião,
pois este tipo de segredo, para o filósofo tcheco, estaria associado ao mistério
sagrado. Trata-se, portanto, de “uma tese sobre a origem e a essência do religioso”
815
e, sobretudo, da essência do religioso como o mistério cristão em sua absoluta
singularidade, uma “religião por excelência” pois concerne à história do sujeito e
da responsabilidade, inaugurada pela relação do indivíduo com o totalmente outro
“que vê sem ser visto”. Segundo Derrida, lendo Patočka, “ou a religião é
responsabilidade ou ela não é nada. Sua história tira seu sentido totalmente da
idéia de uma passagem à responsabilidade”
816
, pois traz consigo a injunção para
responder: responder ao outro e responder por alguém diante do outro – o que
leva a questão para o momento da decisão responsável. Nesse sentido, como
Patočka coloca, ainda que a história deva permanecer sempre um problema, sendo
sempre aberta, ela diz respeito à relação mesma com a alteridade, o que
necessariamente pressupõe (que, para Derrida, é pensado para além ainda do
religioso: fé no outro, fé no conhecimento, uma fé em geral que caracteriza uma
estrutura de promessa participando de toda relação com alteridades).
A história não pode ser nem um objeto decidível nem uma totalidade capaz de ser
conhecida a fundo, precisamente porque ela está ligada à responsabilidade, à e
814
PATOČKA, J. Essais hérétiques sur la philosophie de l’histoire. Lagrasse: Verdier, 1981.
815
DERRIDA, J. The gift of death. Chicago: University of Chicago Press, 1996, p. 02.
816
DERRIDA, J. The gift of death, p. 02.
320
ao dom. À responsabilidade na experiência de decisões absolutas tomadas fora do
conhecimento ou das normas estabelecidas, tomadas, portanto, através do ordálio
mesmo do indecidível; à religiosa através de uma forma de envolvimento com
o outro que é uma aventura no risco absoluto, para além de conhecimento e de
certeza; ao dom e ao dom da morte [the gift of death, a morte dada, la mort
donée] que me coloca em relação com a transcendência do outro, com Deus como
bondade desinteressada, e que me dá o que me dá através de uma nova
experiência de morte. Responsabilidade e fé caminham juntas, conquanto isso
possa parecer paradoxal para alguns, e ambas devem, no mesmo movimento,
exceder a mestria e o conhecimento. O dom da morte seria este casamento entre
responsabilidade e fé.
817
Então, se a historicidade deve permanecer desconhecida, Patočka certamente se
refere a uma outra espécie de segredo, que não seria o segredo apenas do “manter-
se calado” mas antes o do não poder falar, por temor e tremor diante do que é
totalmente outro, desconhecido, inassimilável, mas que desde sempre já se
mostrou como alteridade constitutiva, ou melhor, como contaminação: o
mysterium tremendum. Derrida sublinha o fato de que, para o filósofo tcheco, a
história não é vista como uma história da verdade ou do desvelamento; pelo
contrário, a história é a história da dissimulação, realizando-se essencialmente
através de um encriptamento (o que Derrida chama de uma economia de dois
sistemas: incorporação e repressão) da alteridade, sendo, por conseguinte, uma
espécie de genealogia do crypto- ou do mysto- na qual o mistério é incorporado e
então reprimido, mas de modo algum destruído. “Esta história tem um axioma,
qual seja, que a história nunca apaga o que enterra; ela sempre guarda consigo o
segredo do que quer que ele encripte, o segredo de seu segredo. Esta é uma
história secreta de segredos guardados”
818
.
Já se deve ouvir aqui, na leitura derridiana de Patočka, o ressoar das vozes
de Lévinas e Kierkegaard no que diz respeito à alteridade, ao desconhecido e ao
segredo. E também acho que já se pode afirmar que o objetivo de Derrida aqui é o
de alinhavar os temas levinasianos e kierkegaardianos – e talvez ainda mais que
alinhavar, seu intuito seja mesmo o de entrelaçar, emaranhar os dois idiomas,
entre-cozendo assim o primado ético do lituano e o primado religioso do
dinamarquês: o que se dá a partir da aporia da responsabilidade indicada por
Patočka. Esta aporia acontece porque se se diz que a decisão responsável deve ser
tomada tendo por base o conhecimento, então se estaria definindo a condição de
817
DERRIDA, J. The gift of death, pp. 05-06.
818
DERRIDA, J. The gift of death, p. 21.
321
possibilidade da responsabilidade, ao mesmo tempo que se define a condição de
impossibilidade desta mesma responsabilidade (já que a aplicação de qualquer
teorema ou lógica do “agir responsável” estaria levando a ação para a ordem do
cálculo, das normas, etc.). E ao contrário do que se pode pensar, esta aporia não
conduz a uma inação ou uma paralisia, mas antes ao próprio ato e à decisão
responsável – contudo, permanece ainda como algo “impensado” na história da
cristandade: o mysterium tremendum.
Este mistério é o que deixa-se ver no abismo dos olhos daquele que vê e
que está para-além do olhar, tanto para Patočka como para Kierkegaard e Lévinas,
e é este olhar que não é visto que clama a exposição da alma à alteridade e que
delineia a subjetividade apenas como um eis-me aqui, ou seja, como resposta à
convocação à responsabilidade. Este segredo, portanto, é da ordem do paradoxo
indicado por Kierkegaard, que carrega em si a estrutura mesma do mistério, além
de ser, como em Lévinas também, uma ruptura com relação à tradição das
doutrinas, das autoridades, das ortodoxias, das regras, pois se dá por graça e não
na ordem do calculável e comporta em sua “essência” a dissimetria mesma do
olhar. Para o tcheco, esta dissimetria identifica-se com o mistério cristão como o
assustador e terrificante mistério do “abismo da responsabilidade”, pois esta
dissimetria abissal é o que ocorre quando se é exposto ao olhar do outro, que, para
Patočka, seria um tema primeira e unicamente herdado do cristianismo. A
desconstrução de certo lê estas intenções segundo sua referência ao incalculável,
mas também irresistível dom. Derrida refere-se a Patočka:
Ele também faz uma referência oblíqua a algo que não é uma coisa, mas que é
provavelmente o lugar mesmo do mais decisivo paradoxo, qual seja, o dom que
não é um presente, o dom de algo que permanece inacessível, inapresentável e,
como conseqüência, secreto. O acontecimento deste dom ligaria a essência sem
essência do dom ao segredo. Pois se poderia dizer que um dom que possa ser
reconhecido como tal na luz do dia, um dom destinado ao reconhecimento,
imediatamente anularia a si próprio. O dom seria o segredo mesmo, se o segredo
mesmo pudesse ser contado. O segredo é a última palavra do dom que é a última
palavra do segredo.
819
E, como se sabe, o dom tem um lugar especial na desconstrução, por ser
precisamente o que pode desestruturar a ordem do mesmo, a lógica do cálculo, e
abrir o campo ao impossível, para além de qualquer dever ou norma, mas na
819
DERRIDA, J. The gift of death, p. 28.
322
ordem da alteridade, do outro totalmente outro que impede qualquer
aprisionamento. E, seguindo de modo semelhante a argumentação de Johannes de
Silentio, ao dedicar-se a uma cripto-genealogia da responsabilidade Patočka
confronta-se com fino liame que (não) distingue o dom da morte. Como no caso
de Abraão, um dom terrivelmente dissimétrico como este do mysterium
tremendum permite-me apenas responder e apenas me impõe a responsabilidade
tornando-a um dom de morte, dando-me a morte ou fazendo-me dar a morte –
dando-se assim o segredo da morte.
De um modo completamente outro que o conhecido tema da morte como
explorado por Heidegger em Ser e tempo (em que o Dasein é analisado como ser-
para-a-morte quando, ao confrontar-se com sua própria finitude, descobre seu
modo próprio de ser, sua autenticidade) e das posteriores repreendas feitas por
Lévinas, sobretudo em La mort et le temps (em que a morte do outro é ressaltada
em detrimento da mortalidade do Dasein, pois aquela seria a morte mais autêntica,
por abrir o campo da ética e da responsabilidade, sem enclausurar o homem no
autismo ontológico), o que Derrida propõe a partir do mysterium tremendum é
uma nova experiência da morte, que não trata mais de autenticidade ou de
fundamento, seja ele ético ou ontológico, mas sim de uma experiência secreta, na
qual apenas se pode tremer
820
. A discussão de inspiração heideggeriana (seja ela
a ontológica ou a ética) ainda está presa à lógica do desvelamento e da
dissimulação, em que o segredo nunca é melhor que a exposição: deve-se expor,
desvelar a autenticidade, e não mais deixa-la escondida, guardada. Para uma
intenção ontológica, “o mistério do ser é dissimulado por sua inautêntica
dissimulação que consiste em expor o ser como uma força, mostrando-o por
detrás de sua máscara, por detrás de sua ficção ou de seu simulacro”
821
. No
entanto, para Derrida, o segredo é tanto mais guardado quando é exposto, pois não
há melhor maneira de dissimular do que desvelando, o que indica que Heidegger
de modo algum propõe um pensamento do ser e da morte capaz de tremer frente
ao silêncio e ao críptico, à ausência de resposta que – somente ela – permite que o
segredo se preserve secreto, mantendo-se por temor e por tremor em silêncio,
temendo e tremendo a alteridade totalmente outra. E é nesse sentido que o
820
Sobre isso remeto ao capítulo “O ser e a morte” de meu livro Da existência ao infinito: ensaios
sobre Emmanuel Lévinas,.
821
DERRIDA, J. The gift of death, p. 39.
323
mysterium tremendum possibilita uma outra experiência da morte, anunciando –
sem falar – uma outra morte: uma outra maneira de dar a morte ou de dar-se à
morte, a morte como um dom e um dom que é dado por um outro. “Este outro
modo de apreender a morte e de aceder à responsabilidade vem de um dom
recebido do outro”, diz Derrida, “do outro que, em absoluta transcendência, me vê
sem ser visto, me segura em suas mãos enquanto permanece inacessível”
822
.
O dom, o “algo” que é dado não pode ser entendido como alguma “coisa”,
mas sim como a própria bondade ou dádiva em si que apenas recebe seu sentido
da dissimetria do dom, deste dom que é também uma morte, uma morte dada, ou
seja, como a Lei mesma, o dom da Lei que significa a experiência da
responsabilidade. Esta ligação entre a mortalidade e a responsabilidade, em que o
dom é a morte dada, é o que leva Derrida a dizer que “apenas um mortal pode ser
responsável”
823
na medida em que é na proximidade da morte que a
responsabilidade aparece como experiência da singularidade. Sob este aspecto,
Derrida relembra a máxima de Lévinas que diz que se deve incluir o outro em sua
própria morte – e a ligação entre morte e responsabilidade:
Lévinas quer nos lembrar que a responsabilidade não é primeiramente a
responsabilidade minha para comigo mesmo, que a minha mesmidade é derivada
do outro como se ela fosse secundária ao outro, tornando-se responsável e mortal
devido à posição de minha responsabilidade frente ao outro, pela morte do outro e
em sua face. Em primeiro lugar, é porque o outro é mortal que minha
responsabilidade é singular e inalienável.
824
Nas palavras de Lévinas: “eu sou responsável pela morte do outro na medida em
que me incluo em sua morte. Isso pode ser mostrado em uma proposição bem
aceitável: ‘eu sou responsável pelo outro porque ele é mortal’. É a morte do outro
que é a morte primeira”
825
. Como se viu com relação ao a-Deus, o que Lévinas
ensina, ou melhor, o que Lévinas aprende com a morte do outro – cujo
ensinamento se dissemina nas palavras de Derrida frente à sua morte – é que esta
só pode ser pensada para-além do dar e do tomar: trata-se de um fenômeno do
sem-resposta. E o que há de mais antigo nesta relação é a alteridade absoluta do
outro como o “desconhecido” ou esta “ausência de resposta” que apenas convoca
822
DERRIDA, J. The gift of death, p. 40.
823
DERRIDA, J. The gift of death, p. 41.
824
DERRIDA, J. The gift of death, p. 46.
825
LÉVINAS, E. La mort et le temps, p. 38.
324
à responsibilidade, exprimindo-se na possibilidade de morrer do outro ou morrer
pelo outro e instituindo a responsabilidade como “colocando à morte” ou
“oferecendo-se à morte”: o que pode ser visto tanto na experiência hebraica de
Lévinas como no cristianismo ainda não experienciado tal como referido por
Patočka.
Experiência esta necessariamente de tremor, experiência do tremor, do que
faz tremer, do segredo, portanto. “Tememos o medo, nos angustiamos com a
angústia, e trememos. Trememos nesta estranha repetição que liga um passado
irrefutável a um futuro que não pode ser antecipado”, ou seja, que não pode ser
antecipado nem apreendido por ser imprevisível. “Então eu tremo porque ainda
temo o que já me dá medo, o que eu não posso ver nem prever. (...) Tremer é de
fato uma experiência do segredo ou do mistério”
826
. Tal é o fato de que não se
sabe necessariamente porque se treme, não se sabe a causa ainda que
normalmente se chame esta causa de “Deus” ou “morte”, a causa mesma do
mysterium tremendum que se traduz na desproporção entre o infinito dom e minha
finitude, esta referência implícita, em Kierkegaard e Patočka, à Epístola aos
Filipenses, quando Paulo diz: “Portanto, meus amados (como sempre fostes
obedientes) obrai vossa salvação com temor e tremor não só na minha
presença,mas agora muito mais em minha ausência”
827
. Os discípulos devem
obrar não apenas na presença, mas na ausência do mestre, e é por essa razão que
se teme e se treme diante do segredo inacessível de um Deus que é a absoluta
alteridade que decide por todos – em outros termos, uma alteridade absoluta que
inflige ao indivíduo uma solidão absoluta, uma responsabilidade única e
intransferível. Como observa Derrida, o mandamento de Paulo exprime, desse
modo, Deus como algo totalmente outro: como ausente, escondido e silencioso,
separado e secreto.
Deus não dá suas razões, ele age como bem entende, ele não tem que dar suas
razões ou dividir nada conosco: nem suas motivações, se ele tiver alguma, nem
suas deliberações, nem suas decisões. De outro modo, ele não seria Deus, nós não
estaríamos lidando com o Outro como Deus ou com Deus como o totalmente
outro [tout autre].
828
826
DERRIDA, J. The gift of death, p. 54.
827
BÍBLIA SAGRADA. Epístola aos Filipenses. 2:12.
828
DERRIDA, J. The gift of death, p. 57.
325
Para Derrida, pode-se com isso entender os motivos que levaram
Kierkegaard a escolher as palavras de Paulo para intitular seu livro em que ele
mergulha na experiência judaica de um Deus misterioso, secreto, ausente,
escondido e separado que, apenas ele, pode ordenar a Abraão “o mais cruel,
impossível e insustentável gesto: oferecer seu filho Isaac como sacrifício. E tudo
isso em segredo: Deus mantém segredo sobre suas razões; e Abraão também”
829
.
Esta é a história da verdadeira experiência do sacrifício, em que se deve dar à
morte o que é precioso, aquilo que é verdadeiramente insubstituível, sendo, assim,
o que liga o sagrado ao sacrifício e o sacrifício ao segredo. Derrida lembra que
Abraão é aquele que fala e não fala, pois é quem responde sem responder, que não
pode responder como única resposta possível: e, no entanto, ele responde a Issac
e, com sua resposta vazia, trai a ética e torna-se um transgressor em nome de um
juramento – e é isso que faz com que Derrida diga que “toda decisão
permaneceria ao mesmo tempo fundamentalmente solitária, secreta e silenciosa”
830
. A ética, então, é vista como uma tentação, como algo que faria transgredir o
mandamento divino e, por isso, deve-se a todo custo se resistir a ela. Em outras
palavras, a ética seria irresponsável na medida em que a responsabilidade maior
seria a do indivíduo para com Deus, ou, na melhor das hipóteses, uma
responsabilidade menor frente à responsabilidade absoluta e cuja escolha
definitivamente negaria a palavra de Deus tanto como uma blasfêmia: “é como se
a absoluta responsabilidade não pudesse ser derivada de um conceito de
responsabilidade, e, portanto, para ser o que deve ser, ela deve permanecer
inconcebível, até mesmo impensável: deve, portanto, ser irresponsável para ser
absolutamente responsável”
831
. E esta é a verdadeira decisão que se apresenta no
“eis-me aqui” de Abraão.
Como todo acontecimento, esta decisão comporta um paradoxo estrutural,
estando “a serviço de”, de um lado, e sacrificando, de outro, dando à morte.
Derrida aponta para além do paradoxo kierkegaardiano, mostrando que, no fundo,
este “dom de morte”, como resposta ao dever absoluto, em sua absoluta
responsabilidade é um dever de ódio: lembrando o evangelho de Lucas [em que se
lê: “se alguém vem a mim e não odeia seus próprios pai e mãe e sua esposa e
829
DERRIDA, J. The gift of death, p. 58.
830
DERRIDA, J. The gift of death, p. 60.
831
DERRIDA, J. The gift of death, p. 61.
326
filhos e irmãos e irmãs, e ainda sua própria vida, não pode ser meu discípulo”.
832
], a desconstrução mostra como Kierkegaard refina este difícil mandamento,
mas sem pretender torná-lo menos chocante ou paradoxal.
Mas o ódio de Abraão pelo ético e pelos seus (...) deve permanecer uma fonte
absoluta de dor. Se eu conduzo à morte ou concedo a morte ao que odeio, isso
não é um sacrifício. Devo sacrificar o que amo. Devo chegar a odiar o que amo,
no mesmo momento, no instante de conceder a morte. Devo odiar e trair os meus,
o que quer dizer oferecê-los o dom da morte por meio do sacrifício, não na
medida em que eu os odeio, o que seria muito fácil, mas na medida em que eu os
amo. Eu devo odiá-los na medida em que os amo. O ódio não seria ódio se apenas
se odiasse o odiável, isso seria muito fácil. Devo odiar e trair o que é mais
amável. O ódio não pode ser ódio, ele pode ser apenas o sacrifício de amor ao
amor.
833
E tal atitude paradoxal reflete-se fundamentalmente no gesto do cavaleiro da fé e
o terrificante segredo de seu mysterium tremendum que faz com que Abraão aja
com ódio aos seus mais próximos, por amor, pois é necessário que ele ame
absolutamente seu filho e sua mulher a ponto de matá-lo e tornar-se um assassino
aos olhos de Sara. O mais interessante aqui é que Kierkegaard embaralha a
distinção tradicional entre amor e ódio, reinterpretando de modo a fazer-se notar
que Deus apenas ordena a Abraão seu gesto odioso pelo fato de que ele amava seu
filho acima de tudo – “o instante da decisão é uma loucura”
834
, diz Kierkegaard,
pois se o ético é o que deve ser valorizado (se se pensa aqui em termos de
comunidade, de povo, das normas fundamentais à coletividade, e seu princípio-
mor sendo o “não matarás”, como defende Lévinas) é ao mesmo tempo o que
deve ser traído, e estes dois deveres devem se contradizer, é preciso que haja esta
contradição para que o sacrifício como paradoxo seja de fato efetivado.
Segundo Derrida é justamente este paradoxo que indica a relação – ainda
que sem relação, em um “duplo segredo” – com o absolutamente outro, ou seja,
com a absoluta singularidade do outro (que, em Kierkegaard, tem o nome de Deus
e, em Lévinas, o nome de Todo-Outro, o nome ético de Deus). Esta seria a “moral
da estória”, uma moral que ordena que se traia a moralidade, que clama por uma
traição de tudo que se manifesta na ordem geral das coisas – e, como se deve
supor, é isso que interessa Derrida, este “dar a morte” como estrutura da relação
832
BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de São Lucas. 14:26.
833
DERRIDA, J. The gift of death, p. 64.
834
KIERKEGAARD, S. Fear and trembling, p. 74.
327
com a alteridade: sempre se está dando a morte a algo, se sacrificando algo em
nome de um dever absoluto, no amar, no escrever, em qualquer escolha (e é por
este motivo que uma dos indecidíveis que Derrida trabalhara mais recentemente
foi o do “perdão”: deve-se sempre se pedir perdão, pois se está sempre, nas
mínimas decisões, dando a morte a algo
835
). E, assim, “a ética deve ser
sacrificada em nome do dever. É um dever não respeitar, fora do dever, o dever
ético (...) em nome do dever, de um infinito dever, em nome do absoluto dever”
836
, e para que se cumpra tal dever, o silêncio sacrificial é essencial, pois é ele que,
na responsabilidade e no dever, me liga ao outro como outro e que me torna, no
“eis-me aqui” da responsabilidade, responsável pelo outro como outro. Então,
vivencia-se a fórmula derridiana que dá título a este capítulo, pois se há infinitos
outros, uma inumerável generalidade de outros a quem devo ser responsável,
Lévinas e Kierkegaard devem mesclar-se, o outro outro e os outros outros: tout
autre est tout autre, cada outro é totalmente outro, o todo-outro é totalmente
outro, cada outro é o todo-outro e o todo-outro é cada outro.
Eu ofereço um dom de morte, eu traio, eu não preciso erguer minha faca para
meu filho no monte Moriá para isso. Dia e noite, a cada instante, em todos os
montes Moriás deste mundo, eu faço isso, erguendo minha faca sobre o que eu
amo e devo amar, sobre estes a quem eu devo absoluta fidelidade,
incomensuravelmente. (...) Preferindo meu trabalho, simplesmente por dar a ele
meu tempo e minha atenção, preferindo minha atividade como cidadão ou como
um professor ou filósofo profissional, escrevendo e falando aqui em uma
linguagem pública, o francês no meu caso, eu talvez esteja cumprindo meu dever.
Mas eu estou sacrificando e traindo a cada momento todas as minhas outras
obrigações: minhas obrigações aos outros outros que conheço e que não conheço,
meus bilhões de companheiros (sem mencionar os animais que são ainda mais
outros outros que meus companheiros), meus companheiros que estão morrendo
de fome e de doença. (...) Ou seja, em uma maneira singular (...), assim também
para aqueles que eu amo em particular, os meus, a minha família, os meus filhos,
cada qual é o filho único que eu sacrifico por outro, cada um sendo sacrificado
por todos nesta terra de Moriá que é nosso habitat a cada segundo de cada dia.
837
Assim, Derrida pretende demonstrar o caráter sacrificial de toda relação,
em que se está sempre dando a morte a algo ou a alguém em nome de um
juramento secreto que compromete toda ação, em um “eis-me aqui” de tal modo
835
Sobre isso, remeto a DUQUE-ESTRADA, P.C. “Notas sobre a desconstrução do perdão e do
direito”, in: CASTELO BRANCO, G. (org) Filosofia Pós-Metafísica. Rio de Janeiro: Papel
Virtual, 2005.
836
DERRIDA, J. The gift of death, p. 67.
837
DERRIDA, J. The gift of death, p. 69.
328
irresponsável que parece ser a única responsabilidade possível. Um indivíduo só é
responsável por qualquer um se falha em sua responsabilidade por todos os
outros. No entanto, estes outros, estas singularidades também representam o
absolutamente outro e, deste modo, por uma eleição, devota-se a algo em
detrimento de infinitos outros algos. E, como Abraão, dizendo “eis-me aqui” pode
ser que haja o reencontro com o finito: respondendo a Deus, mostrando estar
pronto a responder, responde-se. Talvez assim, quando se estiver com a faca na
garganta de seu filho, Deus declare sua satisfação e poupe do efetivo sacrifício –
que, no entanto, já acontecera, não a morte ôntica, mas sim a simbólica.
Sacrificando, elegendo, dando a morte, recupera-se o finito, o que nos termos de
Derrida quer dizer que se está de fato se relacionando com a alteridade digna deste
nome. Nem o outrinho dos entes nem o Outrão da religião, mas com essa instância
que é sempre radical e totalmente outra e, por isso, inacessível e absolutamente
desconhecida. “Nossa fé não está assegurada”
838
, diz Derrida, pois a fé nunca
pode ser uma certeza, deva ser, ela mesma, a maior expressão de incerteza e, por
isso, fé. É por este fato que cada indivíduo divide com Abraão o que não pode ser
dividido – “um segredo do qual não sabemos nada” – e se há algum ensinamento
possível nesta fábula é que dividir um segredo, como acontece entre Abraão e
todos os homens, não significa conhecer ou revelar o segredo, mas antes implica
saber que não há o que se dividir: o segredo dos segredos.
Frente à alteridade totalmente outra, só se pode tremer: portanto, um outro
pensamento deve ser aquele que sabe tremer, diferente da tradição metafísica que,
com sua secura e auto-imunidade, sempre tentou afastar o tremor e o temor que o
outro impõe. Pode-se dizer que a história da filosofia foi a história do abafamento
do tremor – e uma filosofia úmida deve ser aquela que não teme o tremor e, pelo
contrário, assume-se desde sempre tremendo diante do totalmente outro e luta
arduamente para manter-se em tremor. Não tremer é orientar-se no pensamento, é
seguir a lógica do mesmo e não se deixar contaminar por isso que sempre vai
escapar, mas que desde sempre já contaminou e deixou seus rastros no
pensamento, que pretende enxugar-se completamente. Abraão soube tremer e com
ele deve-se aprender o que não se aprende nem se ensina – ele perseverou no
insuportável. Ele foi quem conseguiu dar o “golpe de gênio”
839
.
838
DERRIDA, J. The gift of death, p. 80.
839
DERRIDA, J. The gift of death, p. 115.
329
*
Sem pretender nenhum fechamento, por não acreditar em nenhuma circularidade,
é com este golpe de gênio que eu queria encerrar o capítulo. A tematização da
alteridade deve dar lugar a um (não) saber lidar com a alteridade absoluta. Saber
lidar com a alteridade é o que pretendeu a filosofia tradicional: o que quer dizer
aprisioná-la, compreendê-la, isto é, neutraliza-la; a verdadeira relação com a
alteridade consiste em se admitir que não se pode saber lidar com ela.
As epígrafes tomadas do livro de Foucault e do filme de Almodóvar
mostram como a tradição sempre pretendeu calar a alteridade, seja em uma
relação monológica, em que ainda por cima se diz relacionar-se por amor e
pretende-se estar falando com ela, ou então em uma tentativa fantasiosa de
classificar o que é inominável – sem se assumir que isso é mera ficcionalidade,
que suas categorias vão sempre estar violentando o outro e enclausurando-o. Mas
se admite esta impossibilidade, sem medo, ou melhor, com o medo que se deve
manter sempre – o mysterium tremendum – tremor e errância coincidem, por se
tratarem de ficção: da mais séria e justa ficção possível, um pensamento em que o
outro será sempre totalmente outro.
6
Segunda prova
“O sentido ‘próprio’ da escritura como a metaforicidade mesma”
- Por causas alheias à sua vontade, duas das atrizes que diariamente triunfam sobre este
cenário não podem estar aqui hoje... O espetáculo foi cancelado. Quem quiser, receberá o
dinheiro do ingresso de volta. Quem não tiver nada melhor para fazer, já que veio ao
teatro, é uma pena ir embora. Se ficarem, eu prometodivertir vocês com a história da
minha vida... Chamam-me de Agrado porque a vida inteira só pretendi tornar a vida dos
outros agradável. Além de ser agradável, sou muito autêntica. Olhem só que corpo! Tudo
feito sob medida. Olhos amendoados: 80 mil. Nariz: 200 mil. Jogados no lixo. No ano
seguinte ficou assim depois de outra surra. Sei que me dá personalidade, mas, se soubesse
antes, não mexeria nele. Vou conyinuar. Peitos: dois, porque não sou nenhum monstro.
70 mil cada um, mas eles já estão superamortizados. Silicone: nos lábios, testa, maçã do
rosto, quadris e bunda. O litro custa cerca de 100 mil. Calculem vocês, porque eu já perdi
as contas. Redução da mandíbula: 75 mil. Depilação definitiva a laser. Porque as
mulheres também vêm dos macacos, até mais que os homens. 60 mil por sessão. Depende
da cabeluda que se é. O normal é entre duas e quatro sessões. Mas, se é uma diva do
flamenco precisa-se de mais, claro. Bem, como eu estava contando, custa muito ser
autêntica. E, nessas coisas, não se deve ser avarenta. Porque nós nos tornamos mais
autênticas quanto mais nos parecemos com o que sonhamos que somos.
(Pedro Almodóvar, Tudo sobre minha mãe, 1999)
*
Quando esteve aqui no Rio, no final de agosto 2005, para participar do Krisis – II
Fórum de Filosofia Contemporânea, evento do qual eu fui um dos organizadores,
pude travar um interessante diálogo com Gianni Vattimo. Beira-mar, caminhando
à noite pela orla de Copacabana, falava eu do interessante caráter cosmopolita
daquele bairro, onde co-habitam às vezes, em um mesmo prédio, idosos, judeus
ortodoxos, travestis, drag queens... E ele me interrompe subitamente dizendo que
já havia escrito sobre drag queen. Disse que se tratava de uma pequena matéria
para o jornal L’espresso sobre o professor Donald N. McCloskey, economista
americano que teria recentemente conseguido o direito de mudar de sexo – e que
agora se chama Deirdre
840
. Falou que me mandaria a matéria e me perguntou se
eu sabia o que significa “drag”. Como disse não saber do que se tratava ele me
respondeu que “drag” quer dizer “dressed as a girl”. No dia seguinte, no colóquio,
assim que chega me diz que está com o artigo e que eu deveria escrever sobre
isso. Pergunto porque ele próprio não escrevia, e a resposta foi que ele estaria
muito velho para isso e que eu era doravante o herdeiro de um “pensamento drag”.
840
VATTIMO, G. “Il saggio, orgoglio drag queen di Gianni Vattimo”, L’espresso, 11 de agosto de
2005.
331
Esta anedota verídica não quer dizer que o “pensamento úmido” que quero
mostrar aqui é um “pensamento drag”, mas alguns traços em comum me fazem
pensar sobre a relação entre a figura do travesti e a da metáfora, (des)norteando as
investigações sobre a escritura, denunciada por sua “perversão” e “inversão” por
Saussure. O que adianto é que, neste capítulo que tratará da metáfora, da escrita
alegórica e do estilo – portanto, do “vestir-se” – eu não pretendo apresentar a
escrita úmida de Derrida como uma escrita drag, mas talvez como uma escrita
sempre “dressed as”. Mas enfim, como tratar brevemente deste universo de estilos
e de alegorias que contaminam a filosofia não me parece também nenhuma tarefa
fácil, meu objetivo aqui é o de apenas mostrar como esta escrita é a verdadeira
maneira de lidar com a alteridade do pensamento, assumindo-se sempre “vestida
como” algo, sempre um simulacro que não esconde verdade alguma, a
impossibilidade mesma de desnudamento, desvirginamento, desvelamento – estas
pretensões do par dominante macho/logos (pai logosófilo/filho fálico) das quais
pretendo me afastar ao máximo em uma tentativa de, mais que falar sobre a
metáfora, incorporar o estilo em minha escrita, escrever de modo quase aforístico,
elíptico e alegórico: tarefa desde sempre falida para quem tem como (Ab) grund a
filosofia.
trópica – a estratégia
Metáforas, pleonasmos, silepses, metonímias parecem ser o “elemento”
constitutivo do pensamento filosófico. Isso não me parece controverso de se
afirmar desde Nietzsche. Segundo Bennington, a escritura trópica não seria apenas
a utilização figurada de palavras – que poderia se assemelhar a uma aposta na
polissemia do pensamento, e não no processo de disseminação – mas sim no
caráter de “catacrese” de toda escrita. Pensar, assim, a escrita como uma
“metáfora desgastada” não se limita a indicar que o que é sempre uma metáfora,
como indicou Nietzsche, já foi de tal modo absorvido pelo uso que não mais se
deixa ver como tal, mas, além disso, que este uso foi assim absorvido para suprir a
falta de uma palavra específica que designasse determinada coisa – ou seja, um
uso abusivo para suprir uma falta constituinte da própria linguagem.
De acordo com o filósofo inglês, a escritura derridiana seria difícil de ser
classificada como estritamente “filosófica” pelo fato de ela “jogar a metáfora
332
contra o conceito”
841
, produzindo, assim, com esta aposta, a inversão. Com isso,
não se quer dizer que a metáfora exprima o não-filosófico, mas que talvez seja ela
própria o que há de mais filosófico, e que a filosofia tradicional queira, em seu
fervor de indenização, eliminar esquizofrenicamente o que há de mais “seu”, mais
“próprio” e que impossibilita qualquer “propriedade” ou “autenticidade”. Para
tanto, é necessário um primeiro momento em que haja a valorização da metáfora
em detrimento da verdade do conceito (já que um pensamento da presença não
suporta de modo algum a não-verdade da metáfora) para o deslocamento
necessário para se abalar definitivamente a metafísica. Certamente Derrida segue
Nietzsche quando aceita tranqüilamente que “o discurso filosófico, em sua
seriedade aparente, não seria mais do que metáforas esquecidas ou gastas, uma
fábula especialmente cinzenta e triste e mistificada por se propor como a verdade
verdadeira”
842
, entretanto ele não restringe a possibilidade de superação deste
discurso pelo artístico. A escritura – seja artística, filosófica, científica, religiosa
etc. – é sempre “metafórica”, não havendo nenhum “privilégio” a ser atribuído a
nenhum tipo de escritura, pois o que Derrida quer pensar é a “metaforicidade” da
escritura, ou seja, da escritura em geral.
Tal é o motivo que faz Bennington, em detrimento de “metáfora”, utilizar
o termo “catacrese” para indicar que a escrita derridiana apresenta-se através de
figuras que não podem conduzir de modo algum a um sentido próprio, como se
pode fazer ao indicar uma certa “verdade” da metáfora.
Todo conceito não é mais do que “metáfora”, levada até o limite marcado pela
catacrese. (...) A generalização da metáfora desarma sua oposição em relação ao
próprio, e não se pode mais, portanto, pretender nomear o resultado desta
operação propriamente, ainda que seja como o nome “metáfora”. Tem-se portanto
uma “(quase-)metaforicidade” originária que daria lugar a efeitos de próprios e
efeitos de metáforas. Não se trata de outra coisa senão da escritura.
843
E aqui se vê um imediato remetimento à Gramatologia, onde Derrida parece
radicalizar o tratamento nietzschiano da metáfora, como pretendo mostrar ao
longo desta primeira parte da prova. Como se mostrou, já no início desta obra o
filósofo assume o aspecto radicalmente nietzschiano de sua escrita ao indicar que
os conceitos e as oposições filosóficas recebem seus nomes por um processo
841
BENNINGTON, G. “Derridabase”, p. 89.
842
BENNINGTON, G. “Derridabase”, p. 92.
843
BENNINGTON, G. “Derridabase”, p. 98.
333
metafórico, segundo claramente as indicações de Nietzsche em Sobre a verdade e
a mentira no sentido extra-moral. Não obstante, ele adverte que “esta metáfora
permanece enigmática e remete a um sentido ‘próprio’ da escritura como primeira
metáfora”, e acrescenta que “este sentido ‘próprio’ é ainda impensado pelos
detectores deste discurso. Não se trataria, portanto, de inverter o sentido próprio e
o sentido figurado, mas de determinar o sentido ‘próprio’ da escritura como a
metaforicidade mesma”
844
. E este intuito traz consigo a urgência de se levar ao
extremo a virulência do pensamento trágico, que contribuiu de modo único para
“libertar o significante” de sua dependência com relação ao logos
845
.
Tentando ser “mais realista que o rei”, Derrida pretende fazer justiça a este
pensamento que soube, talvez mais que qualquer um, pensar o “jogo do mundo”,
pensar o jogo do jogo que é esta produtividade metafórica da escritura,
escrevendo, como fez Nietzsche. “É pois o jogo do mundo que é preciso pensar
primeiramente: antes de tentar compreender todas as formas de jogo no mundo”
846
, escreveu Derrida em 1967, podendo-se assim tentar compreender seus
esforços nesta fase como tentativas de analisar esta “história da metáfora”,
segundo o termo que o próprio já teria utilizado antes, em “Força e significação”,
de 1963. Neste texto, ao apresentar o sentido metafórico da noção de “estrutura”
Derrida indica que a metáfora deve ser sempre levada a sério pelo pensamento, e
não posta de lado já de início. Isso se dá porque, segundo ele, “a metáfora nunca é
inocente”
847
e apenas um olhar atento a esta metáfora pode fazer com que as
metáforas saiam do armário sem culpa e assumam sua metaforicidade mesma –
não se limitando nem ao preconceituoso logos, travestindo-se de conceito, nem se
isolem em um gueto metafórico por se sentirem excluídas. A não inocência da
metáfora é a não-inocência do pensamento, não sua culpa, e assumindo-se
metafórico, metaforicamente constituído e constitutivo, o pensamento pode fugir
da bandeira fascista da neutralidade, que apenas encobre o ideal de totalidade do
totalitarismo do logos. E assumir este ideal não significa vestir a camisa da
metáfora, mas antes senti-la na pele, escrever com sangue, tatuá-la: não escrever
ou descrever as metáforas, mas pensar com elas, pensar sua própria produção
como elemento “originário” do pensar.
844
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 18.
845
DERRIDA, J. Gramatologia, pp. 22-24.
846
DERRIDA, J. Gramatologia, p. 61.
847
DERRIDA, J. “Força e significação”, p. 33.
334
Muito provavelmente junto a Benjamin, como buscarei explorar, Nietzsche
é a inspiração derridiana para este pensamento contaminado por isso que a
filosofia tradicional pretendeu eliminar, sua constituição mesma, Se “toda
escritura é aforística”
848
, então não se pode mais limitar a atividade desta
produção aos limites da continuidade e da lógica, e conhecer a linguagem deve
passar a não apenas conhecer e reconhecer seus saltos e seus perigos como a
escrever como fez Nietzsche com estes saltos e estes perigos: escrever com “a
animalidade da letra”
849
. E esta animalidade implica necessariamente uma
errância, uma ausência completa de telos que indica a assunção do tremor
necessário à aventura da escritura. Aliás, a différance só se permite entrever como
tal na aventura: “Tudo no traçado da diferença é estratégico e aventuroso. (...)
Estratégia, finalmente, sem finalidade, poderíamos chamá-la tática cega, errância
empírica”
850
, e apenas este caráter errático pode possibilitar que se pense esta
diferencialidade, portanto, esta metaforicidade e esta umidade. Errar escrevendo é
a tarefa que cabe ao pensamento para que, para além da mera inversão metafórica
da polissemia, se possa efetuar o deslocamento metafórico da disseminação, que
supõe já a inversão metafórica
851
. Errância e disseminação poderiam ser, então,
aspectos que ligariam a escrita sanguínea de Zaratustra à escritura derridiana sob a
rubrica da performance para-além do performativo, como o simulacro do
simulacro, como uma aventura.
O excesso aventuroso de uma escritura que não é mais dirigida por um saber não
se abandona à improvisação. O acaso ou o jogo de dados que “abrem” um tal
texto não contradizem a necessidade rigorosa de seu agenciamento formal. O
jogo é aqui a unidade do acaso e da regra, do programa e de seu resto ou de sua
sobra.
852
metafórica – o primeiro tempo
Em qualquer canto longínquo do universo difundido no brilho de inumeráveis
sistemas solares, houve certa vez uma estrala na qual animais inteligentes
inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais ilusório da
848
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, p. 63.
849
DERRIDA, J. “Edmond Jabès e a questão do livro”, p. 64.
850
DERRIDA, J. “A diferença”, pp. 37-38.
851
Sobre isso, remeto a DERRIDA, J. “Assinatura acontecimento contexto”, pp. 350-353.
852
DERRIDA, J. “Hors livre”, p. 71.
335
“história universal”: mas não foi mais que um minuto. Com apenas alguns
suspiros da natureza a estrela se congela, os animais inteligentes logo morrem. –
Tal é a fábula que alguém poderia inventar, sem conseguir ilustrar no entanto que
exceção lamentável, tão vaga e fugidia, tão fútil e sem importância, o intelecto
humano constitui no seio da natureza. Houve eternidades nas quais esteve ausente
e se de novo faltasse nada aconteceria.
853
“Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral” pode ser
visto como o texto paradigmático de Nietzsche sobre seu tratamento acurado da
metáfora. Nele, “Nietzsche procede a uma instigante reabilitação da metáfora,
investindo contra a primazia tradicionalmente atribuída ao conceito na filosofia
ocidental”
854
. O intuito nietzschiano, portanto, consiste em solapar a verdade e
todo o arcabouço conceitual do qual ela necessita e, para tanto, mais que uma
teoria da metáfora é necessário que o autor empreenda uma teoria metafórica, uma
escrita que diga respeito à metáfora e que, além disso, seja sustentado por uma
articulação entre metáforas entrelaçadas. Segundo Cristina Ferraz, a força deste
ensaio não consiste no que comumente se atribui a ela, ou seja, sua afirmação ou
sua “tese central” de que a verdade, a verdade conceitual, não passaria de uma
construção metafórica como qualquer metáfora, mas, antes, pelo fato deste “ser
invadido por metáforas que se convocam, se sucedem e articulam, tecendo uma
rede em que o leitor é seduzido e fisgado”
855
. Com isso, o filósofo, ao pensar esta
“origem” como interpretação e invenção, põe em questão a própria noção de
origem, que não pode mais ser pensada como uma substância ou uma presença
efetiva que guie e sustente a verdade e todo o discurso conceitual que dela se
desenvolve.
Esse sentido etimológico [o de “texto” como texere: tecer, entrançar, entrelaçar],
ele mesmo metafórico, será também realizado no entrelace de metáforas que irão
dar sustentação à delicada arquitetura desse ensaio. A aposta na metáfora se
confunde, portanto, com a construção do texto e com a intensificação do que se
guardou (e se esqueceu) na própria palavra “texto”. As metáforas utilizadas
nomeiam diversas construções possíveis, relacionadas por Nietzsche às forças
que lhe dão sustentação.
856
853
NIETZSCHE, F. “Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”. In:
O livro do filósofo. São Paulo: Centauro, 2001, p. 64.
854
FERRAZ, M.C.F. “Da valorização estratégica da metáfora em Nietzsche”. In: Nove variações
sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 37.
855
FERRAZ, M.C.F. “Da valorização estratégica da metáfora em Nietzsche”, p. 38.
856
FERRAZ, M.C.F. “Da valorização estratégica da metáfora em Nietzsche”, p. 38.
336
O texto-tecido que Nietzsche borda não se destina, então, unicamente
confrontar metáfora e conceito, apostando na “verdade” da primeira, mas
pretende, assim, empreender o “uso estratégico” de uma vasta rede de metáforas
que faz com que sua “máquina textual” não opere apenas como combustível
conceitual, tendo como sua explosão máxima além da inversão do sistema que,
desde Aristóteles, concede à metáfora um local secundário com relação ao
conceito, também a sua performance: isto é, um uso da potencialidade metafórica
levada ao extremo, possibilitando a co-existência de diversos idiomas em um
único texto. Sendo, assim, o que antes era visto como mero ornamento agora
tornado eixo, além da inversão, opera-se então o deslocamento deste próprio eixo,
que não pode mais servir de sustentáculo teórico. Com isso, Nietzsche procura
demonstrar a precariedade e a insuficiência do conceito em expressar o sentido
único da verdade, pois não havendo esse sentido original, resta uma infinidade de
sentidos dos quais nenhum conceito pode dar conta, restando apenas os idiomas
da metáfora, que são sempre plurais, para conseguir fazer justiça e essa
multiplicidade.
A essa rede metafórica, mais justa e mais “original”, Sarah Kofman se
dedica em Nietzsche et la métaphore, lendo cuidadosamente o texto nietzschiano e
fazendo ecoar sua herança derridiana. Em sua perspectiva, a metaforização seria
um gesto mais original que a conceitualização, aliás, o gesto humano mais
original: e se há alguma “propriedade” no homem, esta seria sua capacidade de
construção metafórica. Assim, o que se entende por “sentido” não passaria de um
suplemento, de algo acrescentado ficcionalmente às coisas, que não apresentam
nenhuma verdade em si. Retomando a definição de Aristóteles (Poética 1457b)
Kofman traduz: “a metáfora é o transporte para alguma coisa de um nome que
designa outra, transporte do gênero à espécie ou da espécie ao gênero, ou da
espécie para a espécie ou segundo a relação de analogia”
857
. Com isso, mostra-se
que numa perspectiva grega (e tradicional) o conceito sempre viria antes da
metáfora, sendo esta um “segundo movimento” apenas de ornamento ou de estilo
e o que Nietzsche pretende é romper com esta pretensão de verdade no
apontamento de que o que se entende por verdade nada mais é que uma metáfora
857
KOFMAN, S. Nietzsche et la métaphore. Paris: Galilée, 1983, p. 27, nota 2.
337
esquecida, uma metáfora que esqueceu de seu status de metáfora e deixou-se
acreditar verdade.
A verdade foi assim “fixada” a fim de trazer paz ao homem frente à
insuportável pluralização infinita de sentidos que a metáfora engendra – eis o
“instinto de verdade”
858
que Nietzsche denuncia: a legislação que, por
comodismo e covardia frente ao insustentável, estabelece a distinção entre
verdade e mentira: “acreditamos saber algo das coisas em si mesmas quando
falamos de árvores, de cores, de neve e de flores e entretanto não possuímos nada
mais que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades
originais”
859
. E, então, Nietzsche aponta para esta “origem” estranha, entre aspas,
que permanecerá sempre “um X inacessível e indefinível”, uma origem que
antecede a origem da verdade ou a verdade como origem e que consiste em um
simulacro arcaico, cuja arque nenhum logos é capaz de datar:
O que é então a verdade? Uma multiplicidade incessante de metáforas, de
metonímias, de antropomorfismo, em síntese, uma soma de relações humanas que
foram poética e retoricamente elevadas, transpostas, ornamentadas, e que, após
um longo uso, parecem a um povo firmes, regulares e constrangedoras: as
verdades são ilusões cuja origem está esquecida.
860
E assim se define o impulso a formar metáforas como o instinto fundamental do
homem – e é assumindo esta pulsão (Trieb) que Nietzsche certamente rompe com
a pretensa neutralidade da filosofia, pensando a diferença entre os diversos
sistemas filosóficos como diferença de estilos, sendo esta sua grande arte, sua, de
Nietzsche, que em Ecce homo vai se apresentar como um mestre na “arte do
estilo” que é o que explica por que escreve tão bons livros. De acordo com Katia
Muricy, “poder entender a novidade deste estilo torna-se imprescindível para a
compreensão da filosofia de Nietzsche” e seria a uma das explicações “para que as
suas teorias sobre a linguagem passassem a ser consideradas decisivas para muitas
interpretações que, nas últimas décadas, têm aberto novas perspectivas para a obra
858
NIETZSCHE, F. “Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”, p.
66.
859
NIETZSCHE, F. “Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”, p.
68.
860
NIETZSCHE, F. “Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”, p.
69.
338
de Nietzsche”
861
. Estas reflexões referir-se-iam ao período de 1872 a 1874 e
estariam expostas com maior expressividade não apenas em sua introdução
teorética, mas também nos cursos sobre retórica antiga nos quais Nietzsche
explora a origem e a natureza da linguagem.
Esta “origem” seria então retórica, incluindo-se nesta designação mesmo o
preconceito filosófico que a classifica como mera artificialidade. Se não há uma
linguagem original, anterior aos artifícios da retórica, esta passa a ser vista como
um aperfeiçoamento dos artifícios da linguagem, que compõem sua real essência.
Assim, os ecos destes cursos no escrito de 1873 e só publicado postumamente
mostram-se na indicação do caráter convencional e figurativo da linguagem, que,
ao contrário do que se pode pensar, não exprime a natureza íntima das coisas,
tratando-se apenas de uma convenção humana necessária à sobrevivência da
espécie. Em “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, Rosana Suarez trata desta
relação que se desenvolverá não pela lógica conceitual, mas pela economia trópica
862
. Segundo a autora, a tradição concede ao conceito o lugar de propriedade e aos
tropos o de impropriedade, e é nestes que Nietzsche encontrará “o procedimento
mais importante da retórica”
863
, seu grande recurso de estilo. O transporte ou
“transposição de significação” representaria a “lei geral da trópica” e é nesse
sentido que a metáfora passa a ser vista quase como a própria estrutura trópica, se
se tem em mente a definição aristotélica de metáfora. Assim, de acordo com
Suarez:
Por meio dessa estratégia [em que o sentido de uma “significação própria” perde
a acepção de originalidade, naturalidade ou de adequação], ao contrário, é a
significação “imprópria”, isto é, trópica, retórica, artística que sobressai como
configuração primeira da linguagem, encaminhando a afirmação: se o essencial à
retórica são os tropos, “todas as palavras são, desde seu começo, quanto à
significação, tropos”.
864
861
MURICY, K. “A arte do estilo”. In: BARRENECHEA, M.A., CASANOVA, M.A., DIAS,
R.M. e FEITOSA, C. (org.) Assim falou Nietzsche III: para uma filosofia do futuro. Rio de
Janeiro, 7Letras, 2001, p. 83. Sobre o tema, também remeto a MURICY, K. “As figuras da
verdade”. In: In: O que nos faz pensar, Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, no.
14, agosto de 2000.
862
SUAREZ, R. “Nietzsche e os cursos sobre Retórica”. In: O que nos faz pensar, Cadernos do
Departamento de Filosofia da PUC-Rio, no. 14, agosto de 2000. Sobre isso, ver também SUAREZ,
R. “Linguagem e arte nos primeiros escritos de Nietzsche”, dissertação de mestrado, UFRJ, 1991.
863
NIETZSCHE, F. Cursos sobre Retórica, p. 115. Citado por SUAREZ, R. “Nietzsche e os
cursos sobre Retórica”, p. 70.
864
SUAREZ, R. “Nietzsche e os cursos sobre Retórica”, p. 71. A citação é de NIETZSCHE, F.
Cursos sobre Retórica, p. 112.
339
Contra toda insistência filosófica na verdade e no desvelamento, Nietzsche então
apresenta o valor da dissimulação neste recurso ao artifício, sendo isto o que torna
o que antes era tido por impróprio como o que há de mais próprio ao homem. Mas
se poderia perguntar então se Nietzsche com isso, além de inaugurar uma outra
oposição binária, em que o conceito permaneceria oposto à metáfora, não
permaneceria imensamente metafísico por também apresentar certa origem do
pensamento. E algumas leituras de Nietzsche por certo caminhariam nesse
sentido, mas se se leva em conta que Nietzsche em Da origem da linguagem
desconsidera a oposição entre nomos e physis por sua ingenuidade, indicando que
esta devia ser superada por um terceiro termo que abale este dualismo (a saber, o
instinto formador da linguagem), então se pode supor que o filósofo alemão não
se satisfaz com uma oposição hierárquica de dois termos.
Estas considerações sobre a superação da metafísica que a trópica pode
engendrar repercutem no escrito de 1873 sobre a verdade e a mentira no sentido
de que a retórica, representada por sua figura mais significativa, a metáfora, seria
a estrutura de toda linguagem, conceitual ou não. Em outros termos, a linguagem
seria constituída pelos tropos, constituída, então, pela impropriedade, pela
dissimulação, sendo sempre figurativa e alegórica, mesmo quando se diz neutra,
linear, lógica, conceitual, própria etc. Por essa razão, uma filosofia menos ingênua
seria aquela que assumisse esse seu “substrato” úmido (metafórico, aforístico,
estilístico, ficcional, autobiográfico etc.) como constituinte, a contaminação como
sua “propriedade” e a disseminação como sua lógica. Apenas assim não se estaria
insistindo na ingenuidade nem na neutralidade, na autoridade nem na tirania da
filosofia.
*
“A mitologia branca” é o texto de Derrida exclusivamente dedicado à metáfora
ou, mais precisamente, sobre o uso da metáfora no texto filosófico, como indica
seu subtítulo
865
. Este texto parece fazer ressoar na língua desconstrutora as
considerações de Nietzsche sobre a metáfora, justamente pelo fato de este texto
trágico destruir depressa qualquer segurança no que se refere à língua filosófica
865
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”. In: Margens da filosofia.
Campinas: Papirus, 1991.
340
por mostrar seu caráter metafórico. O interesse da desconstrução dirige-se à força
que o uso da metáfora insere na estrutura do pensamento filosófico, que passa a
caracterizar-se como um “processo de metaforização que se conduz a si mesmo”
866
, pois se funda na grande metáfora do fundamento, nesta grande construção que
a encerra no autismo da clausura e torna-a sempre auto-referente. A grande
metáfora é a metáfora metafísica, a metáfora da metafísica, ou ainda, a metafísica
como grande metáfora: a criação ficcional de uma fábula que conta a estória de
um outro mundo, outra realidade, já havia sido antes contada em O crepúsculo
dos ídolos de Nietzsche:
Como o “mundo verdadeiro” acabou por se tornar fábula. História de um erro: 1.
O mundo verdadeiro passível de ser alcançado pelo sábio, pelo devoto, pelo
virtuoso. – Ele vive no interior deste mundo, ele mesmo é este mundo. (Forma
mais antiga da idéia, relativamente inteligente, simples, convincente. Transcrição
da frase: ‘eu, Platão, sou a verdade’.); 2. O mundo verdadeiro inatingível por
agora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso (‘ao pecador que cumpre
sua penitência’). (Progresso da idéia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais
inapreensível – ela torna-se mulher, torna-se cristã...); 3. O mundo verdadeiro
inatingível, indemonstrável, impassível de ser prometido, mas já enquanto
pensado um consolo, um compromisso, um imperativo. (No fundo, o velho sol, só
que obscurecido pela névoa e pelo ceticismo; a idéia tornou-se sublime,
esvaecida, nórdica, königsberguiana.); 4. O mundo verdadeiro – inatingível? De
qualquer modo, não atingido. E, enquanto não atingido, também desconhecido.
Conseqüentemente tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que
algo de desconhecido poderia nos obrigar?... (Manhã cinzenta. Primeiro bocejo
da razão. O canto de galo do positivismo.); 5. O ‘mundo verdadeiro” – uma idéia
que já não serve mais para nada, que não obriga mesmo a mais nada – uma idéia
que se tornou inútil, supérflua; conseqüentemente, uma idéia refutada:
suprimamo-la! (Dia claro; café da manhã; retorno do bon sens e da serenidade;
rubor de vergonha Platão; algazarra dos diabos de todos os espíritos livres.); 6.
Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O mundo aparente,
talvez?... Mas não! Com o mundo verdadeiro suprimimos também o aparente!
(Meio-dia; instante da sombra mais curta; fim do erro mais longo; ponto
culminante da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA.)
867
Para Derrida, a metáfora metafísica sempre forneceu todo o sentido da
filosofia, sempre governou o pensamento, ainda que não se assumindo metáfora e
chamando-se de verdade. A esta metáfora “especial” para a filosofia, o filósofo
chama de “mitologia branca”, como se vê no trecho que se segue: “A metafísica –
mitologia branca que reúne e reflete a cultura do Ocidente”, define, na qual “o
homem branco toma a sua própria mitologia, indo-européia, o seu logos, isto é, o
866
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 251.
867
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos, ou, como filosofar com o materno. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000, págs. 31-32.
341
mythos do seu idioma, pela forma universal do que deve ainda querer designar por
razão”
868
. Mas, por ser metafórica, por apresentar o traço metafórico do tropo ou
a metaforicidade da metáfora, por isso torna-se então impossível decifrar a figura
da metáfora no texto filosófico, e Derrida assume a “condição de impossibilidade”
de seu projeto
869
. Definir a especificidade ou a essência do metafórico ou
identificá-la, descrevê-la, seria assim um traço metafísico e é nesse sentido que a
metáfora permanece para o filósofo um conceito ainda metafísico, presente em
sistemas filosóficos, definida precisamente por toda uma rede conceitual que a
determina em relação ao conceito, que a determina de acordo com certa hierarquia
etc. Por outro lado, a metaforicidade mesma, o metafórico em geral, seria
inapreensível por qualquer filosofema – e eis o aspecto radical que a metáfora da
metáfora compartilha com a umidade do úmido.
A metáfora permanece, através de todos os seus traços essenciais, um filosofema
clássico, um conceito metafísico. É, portanto, compreendida no campo que uma
metaforologia geral da filosofia pretenderia dominar. É o produto de uma rede de
filosofemas que correspondem, eles próprios, a tropos ou a figuras que lhe são
contemporâneos ou sistematicamente solidários. Este estrato de tropos
“institutores”, esta camada de “primeiros” filosofemas (supondo que as aspas
sejam aqui uma preocupação suficiente) não é domável. Não se deixa dominar
por si própria, pelo que ela própria engendrou, faz crescer no seu solo, sustentada
pelo seu alicerce.
870
Segundo Derrida, essa inapreensibilidade do metafórico torna impossível que se
conceba todas as classificações metafóricas da filosofia, pois sempre alguma irá –
e deve – escapar, ficando excluída de qualquer sistema – e esta que sempre
escapará é a metáfora da metáfora. E ainda que Derrida mostre certa suspeita à
presença de qualquer metáfora privilegiada ou a qualquer idéia de origem, ele vê
em Nietzsche uma dilatação dos limites do conceito de metáfora que não mais se
pretende possível empreender uma taxinomia geral das metáforas devido à
impossibilidade de domínio do metafórico por qualquer “metáfora” filosófica ou
tropologia. O ensinamento que retira da introdução teorética de Nietzsche é,
portanto, que “este recurso trópico e pré-filosófico não pode ter a simplicidade
868
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 253.
869
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 259.
870
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, pp. 259-260.
342
arqueológica de uma origem própria, a virgindade de uma história dos começos”
871
.
Retomando a definição tradicional de tropo como foi visto ao longo da
história da filosofia, Derrida chega à definição de Pierre Fontanier que, em
consonância com Aristóteles, define as metáforas como “tropos por semelhança”
872
. Seguindo esta definição, o filósofo desconstrutor afirma que, deste modo,
qualquer palavra poderia então ser empregada metaforicamente, para ele “senão a
título de figura, pelo menos a título de catacrese”
873
. No entanto, a discordância
de Fontanier com relação à teoria aristotélica dos tropos consiste no fato de o
filósofo grego considerar a metáfora apenas o transporte entre nomes próprios,
tendo um sentido e um referente fixos – o que, para Derrida, traz a figura do sol
para o centro das discussões. O “primeiro monoteísta” da filosofia, deste modo,
tem suas teorias basicamente fundamentadas em uma figura solar, ao ponto do
filósofo francófono dizer – tomando Aristóteles como metonímia para a filosofia
– que “existe apenas um sol neste sistema. O nome próprio é aqui o primeiro
motor não-matafórico da metáfora, o pai de todas as figuras. Tudo gira em volta
dele, tudo gira para ele”
874
. Por esta razão, Derrida vai dizer que a metáfora é, por
si, já um conceito filosófico, inserido em determinados sistemas e desempenhado
certo papel. Além disso, agora se vê um “fundo não-metafórico” da metáfora nas
teorias filosóficas, o que significaria que mesmo as metáforas, passariam por um
processo de metaforização para chegarem a ser metáforas. Contudo, o que
interessa aqui é que ainda que se precise metaforicizar-se para ser metáfora e
abandonar seu substrato heliocêntrico, há algo que diz respeito ao “sem fundo” na
própria estrutura da metáfora e é o que a permite passar por este processo de
metaforização.
Por esta razão, Derrida, abre mão do termo “metáfora” em prol do uso de
“metaforicidade” ou “metáfora da metáfora” sendo isto aquilo que sempre escapa
ao sistema (solar, sempre).
Se se pretendesse conceber e classificar todas as possibilidades metafóricas da
filosofia, uma metáfora, pelo menos, ficaria sempre excluída, fora do sistema:
871
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 270.
872
FONTANIER, P. Les figures du discours. Paris: Flammarion, 1968, p. 99. Citado por
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 275.
873
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 275.
874
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 284.
343
aquela, pelo menos, sem a qual não se teria construído o conceito de metáfora ou,
para sincopar toda uma cadeia, a metáfora da metáfora. Esta metáfora além disso,
ficando fora do campo que ela permite circunscrever, extrai-se ou abstrai-se este
campo, subtraindo-lhe, portanto, como metáfora pelo menos.
875
E, com isso, ainda que sempre situada em certo sistema filosófico, lingüístico,
literário etc., encontra-se na metáfora algo a-sistemático por excelência, certa
estrutura (metafórica) que não se deixa apreender nem se representar logicamente,
e é a isso que Derrida quer dedicar-se, tendo como seu assumido precursor
Nietzsche.
Ecoando as palavras de Aristóteles, “A mitologia branca” encaminha-se
para a sua última figura, a do heliotropo – o tropo do sol, a metáfora por
excelência, mas também o girassol, a flor que, como sua propriedade, ganha o que
é próprio do sol, e também uma pedra, uma pedra preciosa, verde e rajada de
vermelho, uma espécie de jaspe, um parente mais valioso da ágata brasileira, um
óxido de silício que, por não ser transparente, ganha sua preciosidade devido às
suas impurezas, que lhe dão brilho e cor, mas também ainda o sol como tropo.
Neste “trópico”, Derrida desenvolverá o tema do nome próprio a que Aristóteles
se referiu na Poética. Assim, poder-se-ia pensar a metáfora como “o próprio do
homem”
876
. E é tratando desta “propriedade” que gostaria de encerrar minhas
considerações sobre a metáfora.
O que é próprio ao homem é, certamente, uma capacidade de fazer
metáforas, de elaborá-las ainda que, no fundo, ele queira dizer apenas uma coisa:
a mesma. Com isso, o movimento de metáforas, ainda que jogue com os nomes
próprios das coisas, deslize os sentidos próprios e não deixe revelar propriamente
as essências, parece continuar girando em torno de certo sol, ou melhor, do sol.
Portanto, insistir na metáfora é insistir nesta órbita ainda lógica, em que se podem
“transportar” sentidos presentes, e não tentar lidar com esta ausência de sentido
que não permite nenhum centrismo. No entanto, se, por um lado, “de cada vez que
acontece uma metáfora, há sem dúvida um sol em qualquer parte”, por outro, “a
cada vez que há sol, a metáfora começou”. O que indica que todo centro é, ele
próprio, um efeito da metaforicidade da metáfora, um efeito da produção
metafórica “própria” do homem, como Nietzsche tão bem mostrou, e, decorrente
875
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 260.
876
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 287.
344
disto, pode-se supor que mesmo a “propriedade” qualquer que seja, qualquer
sentido próprio, torna-se, ele mesmo, produto metafórico desta propriedade,
também ela metafórica. “Se o sol é metafórico já, sempre não é de modo algum
natural. E já, sempre, um lustre, dir-se-ia numa construção artificial se pudesse
ainda acreditar nesta significação quando a natureza desapareceu”
877
.
Para Derrida, Nietzsche arruína com a teoria da metáfora tal como foi
tradicionalmente concebida, “para figurar a metaforicidade do conceito, metáfora
da metáfora, metáfora da própria produtividade metafórica”
878
. Com isso, o
filósofo alemão promove uma nova articulação em seu discurso, um deslocamento
fundamental à teoria desconstrutora e toda uma reinscrição nos valores de ciência
e de verdade. Nietzsche tece sua teia, certamente uma teia de aranha, como o
próprio define a rede metafórica – e nesta rede, sempre se cai, querendo ou não.
Está-se sempre preso nesta rede que Nietzsche teceu, onde conceitos e metáforas
intercambiam-se, trocam de roupas e travestem-se uns dos outros, sem o menor
pudor. E deve-se mesmo perder este pudor para conseguir, como fez Derrida,
entrar em cena neste grande teatro cujo palco é uma grande teia e cujo roteiro
determina-se apenas pela escritura.
Heliotropo de Nietzsche (...). Essa flor traz sempre consigo o seu duplo, seja este
a semente ou o tipo, o acaso do seu programa ou a necessidade do seu diagrama.
O heliotropo pode sempre se superar. Pode em qualquer altura tornar-se uma flor
seca num livro. Uma flor seca num livro está sempre ausente de qualquer jardim e
devido à repetição em que se precipita continuamente, nenhuma linguagem pode
reduzir em si a estrutura de uma antologia. Este suplemento de código que
atravessa o seu campo, desloca-lhe sem cessar a clausura, perturba a linha, abre o
círculo, nenhuma ontologia terá podido reduzi-lo.
879
alegórica – o segundo tempo
A escrita alegórica de Walter Benjamin mostra-se a mim um ponto interessante
para ser também aqui invocada, neste panteão de nomes próprios que escreveram
com sangue e com estilo. Benjamin também foi certamente um filósofo que
escreveu vários idiomas ao mesmo tempo – o que atesta seus escritos mais
“acadêmicos” (se é que se pode usar este termo para um filósofo que nunca fora
877
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 292.
878
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 303.
879
DERRIDA, J. “A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico”, p. 313.
345
aclamado pela academia), seus textos mais alegóricos, os mais biográficos, os
aforísticos etc. E por essa razão, deixar Benjamin falar (-se) um pouco neste
espaço úmido parece-me, senão uma “obrigação”, pelo menos a coisa mais justa a
se fazer. Meu intuito aqui não é o de mostras as influências benjaminianas no
pensamento desconstrutivo, mas apenas apontar como Benjamin, em certo
sentido, radicaliza também – em alguns de seus textos – a escrita metafórica que o
bufão Nietzsche teria inaugurado. A alegórica benjaminiana, então, como um
segundo passo para uma escrita úmida.
Desde sua tenra infância em Berlim, Walter Benjamin já desconfiava de
que sempre estivera sendo observado por alguma criatura – possivelmente
maligna – que fazia com que agisse de modo equivocado. Nesta época, pensava
ele chamar-se “Sem Jeito” tal criatura (pois, segundo sua mãe, “Sem Jeito”
sempre lhe mandava lembranças). No entanto, crescido, ao deparar-se com o livro
de contos infantis de Georg Scherer, descobrira o verdadeiro nome de seu curioso
e sempiterno amigo: era ele o corcundinha. Os versos que se seguem descrevem
melhor do que qualquer definição a atitude deste “amigo”:
Quando à adega vou descer
Para um pouco de vinho apanhar
Eis que encontro um corcundinha
Que a jarra me quer tomar.
(...)
Quando a sopinha quero tomar
É à cozinha que vou
Lá encontro um corcundinha
Que minha tigela quebrou.
(...)
Quando ao meu quartinho vou
Meu mingauzinho provar
Lá descubro o corcundinha
Que metade quer tomar.
880
É sabido – e isso muito bem retrata sua biografia – que, ao longo de toda sua vida,
Benjamin caminhara lado a lado com seu companheiro corcunda: na não aceitação
de sua tese sobre o drama barroco alemão, no exílio, na perseguição nazista, mas,
sobretudo, nos dias que antecipariam seu suicídio
881
. Não há esperança para nós,
880
BENJAMIN, W. “Infância em Berlim”. In: Obras escolhidas II: Rua de mão única. São Paulo:
Brasiliense, 1995, pp. 141-142.
881
Na introdução a seu livro Alegorias da dialética, Katia Muricy relembra, fato a fato, este
tortuoso e, como prefiro chamar, dilacerado percurso da vida de Benjamin: “um bom número dos
346
Benjamin o dissera, pois se está sempre sob o olhar deste homenzinho, ao longo
de toda a vida. Assim foi, assim é e assim sempre será. Mas, ao contrário do que
possa parecer, esta atitude de Benjamin não conduz a um niilismo inerte ou a uma
atitude histérica e ressentida com relação à vida: não se deve ficar de braços
cruzados, nem maldizendo a miserável condição humana. Há algo a ser feito (e
este parece ser, no final das contas, o “imperativo do corcundinha”). É por isto
que, a meu ver, as seguintes palavras encerram o texto “Infância em Berlim”:
“Contudo, sua voz, que faz lembrar o zumbido da chama de gás, me cochicha para
além do limiar do século: Por favor, eu te peço, criancinha / Que reze também
pelo corcundinha”
882
. Palavras estas que, entre um tom enigmático e um
suspeitado apelo ético, deixo, por enquanto, em suspenso...
Benjamin, através do uso da linguagem alegórica, dedicou-se a corroer as
bases do discurso da razão através da “contaminação” metafórica que ele
promoveu. Um exemplo disso, para não me estender muito, consiste no
deslocamento que uma outra concepção de história pode promover, lançando mão
aqui incessantemente à imagem, como ele empreendeu em suas “Teses sobre o
conceito de história”. “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus”, diz
Benjamin. “Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele
encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas
abertas”. E conclui: “O anjo da história deve ter este aspecto”
883
. De modo
artigos de apresentação da vida e obra de Walter Benjamin costuma enfatizar a constância de sua
má-sorte. Quase todos aludem ao ‘corcundinha’ (...). A figura do corcundinha tornou-se
emblemática (...). A vida pessoal e a história entrelaçam-se como memória de cacos, de ruínas. (...)
Sobressaltos foram a matéria-prima da vida de Benjamin. Nascido em uma família judaica
berlinense, abastada e cultivada, Benjamin pertenceu a uma geração que viveu duas guerras
mundiais, que assistiu, perplexa mas esperançosa, a liquidação dos valores burgueses, que apostou
em uma nova cultura, anunciada nas artes e na revolução bolchevique, para depois submergir nos
tempos sombrios da Europa nazista. Na sua curta vida, amargou a derrocada financeira da família,
na crise da República de Weimar, o fracasso do sonho de uma carreira universitária com a recusa à
sua tese sobre o barroco, o fim de qualquer expectativa de uma estabilidade econômica para que
pudesse se dedicar a seu trabalho. Prisioneiro em um campo de trabalhos em Nevers, durante a
ocupação, Benjamin esteve sob constante ameaça e seus anos de exílio em Paris, cidade que tanto
amou, foram de uma tocante miséria financeira. Seu irmão foi morto em um campo de
concentração, seu casamento fracassou, seus amores foram infelizes. Teve um filho, Stephan, para
quem dedicou Infância em Berlin. Suicidou-se quando a polícia espanhola negou-lhe o visto para
passar a fronteira, após uma fuga difícil, a pé, da França. Pretendia alcançar Portugal e dali partir
para os Estados Unidos. No dia seguinte a sua morte, os companheiros de fuga tiveram permissão
para atravessar a fronteira. O olhar da má-sorte o acompanhou.” (MURICY, K. Alegorias da
dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, pp.
11-13.)
882
BENJAMIN, Walter. “Infancia em Berlim”, p. 142.
883
BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de história”. In: BENJAMIN, Walter. Obras
escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 226.
347
semelhante a Nietzsche, que sabia da impossibilidade do discurso lógico de dar
conta da noção de eterno retorno, que fizera, ao invés de discursar para multidões
ou mesmo para poucos, Zaratustra cantar sozinho seu canto, que escrevera em
versos e alegorias sua obra prima, também Benjamin anuncia um de seus
principais conceitos através de uma construção imagética. Discursos
fragmentados e alegóricos, colagens e citações compõem o pensamento
benjaminiano – tal o motivo de seu isolamento intelectual na época, mas, também,
da força de seu pensamento ainda para os dias de hoje. E isto é o que constitui a
força que o corrosivo pensamento de Walter Benjamin oferece para um estudo
sobre o deslocamento que ele próprio opera.
Em sua tragédia barroca, em que Benjamin vislumbrou a expressão da
visão de história como um “drama trágico”, ou de “história como tragédia”, pode-
se ver uma mise en scène na qual a história “junta-se ao cenário”, na qual a
história não aparece em dimensão temporal, mas como uma cena
884
. Deste modo,
para Benjamin, a cena histórica e a cena da escritura são idênticas, pelo fato de
que as cenas imagéticas da história se tornam imagens legíveis, como uma
escritura. Entretanto, para o filósofo, estas imagens da história somente serão
legíveis – as imagens dialéticas – se a postura historiográfica assumir uma atitude
descontínua de leitura. E é por esta razão que as “Teses sobre a História” de
Benjamin não são propriamente teses, mas fragmentos construídos a partir destas
alegorias: as chamadas imagens dialéticas. As “teses” são construídas através
destas alegorias (dialéticas na medida em que acontecem na tensão dos extremos –
entre passado e futuro). Desde a primeira tese, em que surge a imagem do anão,
ao ápice da alegoria do anjo da história, metáforas são arremessadas contra e a
favor do leitor, de modo não linear, fragmentado, “a golpes de martelo”, para que,
de modo algum, se possa conceber uma história apresentada de modo linear,
retilíneo e concreto (no sentido mais pobre que este termo pode oferecer, como
empírico, preso aos chamados “fatos reais” – o que impediria qualquer
possibilidade de se encarar a realidade como “texto”).
De modo semelhante, em seus “Temas sobre Baudelaire”, a intenção
alegórica quer desconstruir os “contextos orgânicos”, pois a história, em
Benjamin, por ser descontínua e não-linear, não estabelece uma origem como
884
WEIGEL, S. “Communicating tubes”, p. 46.
348
fundamento originário, como uma essência ou uma identidade. E, de modo
semelhante à genealogia nietzschiana, “não unifica, não totaliza, não fundamenta
uma História Universal
885
. De modo diverso a qualquer atitude empírico-
realista, herdeiro do romantismo e do barroco e simpatizante do surrealismo,
Benjamin defende uma certa infidelidade aos fatos “concretos”, posto que, para
ele, a história é sempre valorativa, em que só o que são apropriações
estratégicas e descontinuidades.isso poderia fazer “emergir a diferença”
886
; só
assim a história se redimiria de seu triste fado.
A figura de Klee, o Angelus Novus, é a expressão da tarefa do historiador para
Benjamin. Olhos no passado, vê ruínas onde o historicista vê acontecimentos, vê
catástrofes onde o historicista conta vitórias. Não pode recolher os destroços
porque é impelido para o futuro, isto a que o historicista chama progresso. Seu
olhar é iconoclasta, mas nesta história bárbara, que quebra a dialética do
progresso, está a única possibilidade de um resgate do passado e da tradição que
escape à apologia dos vencedores
887
.
Benjamin aponta a este apelo que o passado dirige ao presente, mas sem
melancolia, pois apenas o que há é uma “frágil força messiânica”, que toda
geração possui e que solicita-nos este “encontro” com o presente. Vê-se, então,
que a história apresenta-se como tarefa salvadora, como apelo ético, como
chamado ou convocação a uma responsabilidade de toda uma “geração” –
responsabilidade esta eterna e sem fim, sempre por-vir, e messiânica em relação
ao passado, e não ao futuro, pois sua “missão” consiste, justamente, em liberar o
passado e não se ater a ele. Somente assim se conseguirá “ler o real como um
texto”: e é por este motivo que a obra de Benjamin adquire aqui seu máximo
poder “político”. O messianismo de Benjamin fundamenta-se no acaso e na
fugacidade, tendo a natureza como modelo, visto que “o messias se anuncia no
processo histórico. Ele é, antes, a metáfora do acaso”
888
. Em contraponto a
qualquer atitude melancólica (como, por exemplo, evidenciam suas análises de
Em busca do tempo perdido, de Proust), Benjamin visa a denunciar o “dilacerante
e explosivo” impulso à felicidade que move a humanidade, sendo isto, justamente,
o que prende as pessoas ao passado e o que imobilizaria o desejo. E é no intuito de
885
MURICY, K. Alegorias da dialética, p. 214.
886
MURICY, K. Alegorias da dialética, p. 215.
887
MURICY, K. Alegorias da dialética, p. 215.
888
MURICY, K. “Benjamin: política e paixão”. In: CARDOSO, S. (et al.) Os sentidos da paixão.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 506.
349
que se liberte esse desejo de qualquer nostalgia que a promessa messiânica, tal
como apresentada em Walter Benjamin, consiste em uma apropriação do passado
em função do presente. “A sagacidade do messias – esta irrupção do acaso – é
enfrentar esses mitos enquanto paródias, tomando a história como uma narrativa
cujo sentido é dado pelo narrador, segundo a necessidade do presente”
889
.
Somente nesse sentido é que a política de Benjamin pode explodir o círculo do
Mesmo, abrindo os olhos à alteridade e construindo, assim, uma outra história. E,
contudo, foi sobretudo no contexto de uma reformulação da cena histórica como
uma cena da memória, que as imagens constituíram, para Benjamin, um ponto
central em sua teoria para esta outra história – o que é decisivo para a dimensão
“ético-política” destes discursos e, mais ainda, o quanto isto significa para uma
atitude condizente com um discurso da e não sobre a alteridade.
Como conclusão a estas páginas que me servem como impulso e que têm
como objetivo apenas trazer à cena estas questões sobre como a “forma” de um
pensamento pode comportar uma dimensão ética e não-logocêntrica, pode-se
reiterar a importância do pensamento de Benjamin para uma nova compreensão de
história para além do reinado metafísico, do homem europeu, heterossexual e
ariano, e em direção a uma outra história, ou melhor, uma história do outro.
Walter Benjamin denunciou a tirania da razão, dedicando-se à árdua tarefa de
deslocar os eixos do pensamento. No entanto, ao invés do uso do discurso crítico,
em algum de seus textos, Benjamin deixou as alegorias falarem por si, assumiu as
colagens e citações e, com isso, enfraqueceu completamente o primado do logos.
Desde sua infância à maturidade, quando o corcundinha transmutou-se no anjo da
história, Benjamin demonstrou seu sobressalto frente à pilha de cacos que é nossa
“realidade”. Assim, pôde ele construir uma filosofia a-sistêmica, na qual a vida
pessoal e a história entrelaçam-se como “memória de cacos”, uma filosofia como
retomada de fragmentos, como borbulhar de imagens dialéticas, como uma
experiência coletiva. De modo algum, em um pensamento como este, há espaço
para a captura do passado, pois o tempo não pode ser negado e (mais uma vez, de
modo contrário a Proust) o que se encontra é a aceitação do por-vir e,
conseqüentemente, da morte. Há, sim, um lugar especial para a infância, para uma
homenagem a seu filho Stephan, na rememoração de sua infância em Berlim, mas
889
MURICY, K. “Benjamin: política e paixão”, p. 506.
350
através de uma recordação “antibiográfica”
890
, da qual todos podem participar.
Como a afirmação da temporalidade, em Benjamin, consiste na procura, no
passado, do futuro, a infância torna-se o lugar onde se diluem as categorias de
sujeito e objeto, de dentro e fora, de eu e de outro, e a história passa a ser um
desvio libertador, mas como um ato de justiça – tarefa esta nunca concluída e que
deve ser assumida novamente a cada geração, a cada “nós. E isto só se torna
possível através de um pensamento que se constrói na medida mesma em que se
desconstrói, que assume como estilo a urgência de deter o leitor, de problematizar,
de chocar e também de convocar à responsabilidade. Ou seja, de um pensamento
que não tem nada a dizer, só a mostrar. Uma possível hipótese que daí se poderia
tirar é que só se consegue “umedecer” o discurso racional se se deixa escapar o
que se tenta arduamente controlar, se se permite, simplesmente, que aconteça o
que tem que acontecer. Assim acontece o indizível, o inassimilável, o
impossível...
Talvez, não só por sua proximidade com a escrita automática do
surrealismo, nem tão-somente por suas leituras de Zaratustra, uma obra-poética –
talvez não seja somente isto que tenha possibilitado a Benjamin o insight que
necessitou para abrir o seu discurso à alteridade. Nem tampouco seja somente isto
o que fez com que a filosofia de Benjamin, por deixar-se contaminar pelo outro
imagem – fosse, provavelmente, um dos grandes marcos na história do
solapamento da metafísica. Talvez, perdendo por um lado, mas ganhando por
outro, uma vida dilacerada, bem como a companhia do corcundinha, tenham sido
decisivas para que Benjamin compreendesse tal realidade. Talvez seja este o
grande mérito daqueles que sabem que não há esperança para “nós”, mas que há
algo a fazer. E que não se esqueça da “prece” que, talvez, na noite que antecedeu
sua quase-alcançada liberdade, ele deixou como herança: que se reze também pelo
concundinha!
estilística – o terceiro tempo
890
MURICY, K. Alegorias dialéticas, p. 14.
351
A experiência de uma impossibilidade como a alteridade absoluta, completamente
outra, sempre outra e, por isso, sempre inacessível, parece ser, também, o que
caracterizaria o aspecto “úmido” da escrita trópica – o que possibilitaria, então,
mais que uma filosofia da diferença, uma filosofia diferente, mais que um
pensamento do outro, um outro pensamento, completamente outro e, por isso,
capaz de abrir espaço para o novo. Uma experiência ao mesmo tempo ética e
estética, pois envolve criação: geração e fecundidade. Uma certa experiência do
impossível como a da criança que nasce, que rompe com todas as expectativas,
com toda lógica e com toda dialética e que aparece como surpresa. E, para isso,
para esta espécie de experiência do impossível, é preciso que se esteja também em
sintonia com o feminino – ou melhor, com o estilo.
Apesar de o feminino ser um tema que venho desenvolvendo em Lévinas,
posso afirmar que nunca o havia pensado com relação a este impossível como
uma radical impossibilidade e que aponta para uma questão de estilo: tal como
Derrida lindamente tece em Éperons: les styles de Nietzsche
891
. De acordo com o
filósofo lituano, por supor recolhimento, o acolhimento, princípio de sua ética,
supõe a intimidade do estar em casa com a figura da mulher. Em Totalidade e
Infinito, lemos que o outro, “cuja presença é discretamente uma ausência” e a
partir do qual se cumpre o “acolhimento hospitaleiro por excelência que descreve
o campo de intimidade”, é a mulher. “A mulher é a condição de recolhimento, da
interioridade da morada e da habitação”
892
. A mulher, em sua silenciosa
alteridade, rompe com qualquer estrutura ontológica, pois habitar não é tão só um
simples estar lançado na existência, mas um recolhimento, um tornar-se si
respondendo a uma hospitalidade, ao chamado de um acolhimento humano. Por
tais razões, encontramos a figura da mulher constantemente retratada como o
acolhimento hospitaleiro por excelência, e é por isso que o filósofo define a
essência do ser-feminino como o acolhedor em si, como o fundamento da pré-
ética que dá conta só, mas não simplesmente, da habitação.
Como se pode ver, a fêmea alteridade representa o desconhecimento de si
da consciência masculina, a escuridão que se oferece como refúgio, como terra de
asilo, como caloroso abrigo. A figura da mulher é, sempre, a resposta frustrada à
891
Sobre isso remeto ao segundo capítulo de meu “Da existência ao infinito”, em que, entre as
muitas alteridades no pensamento levinasiano, trato da questão do feminino como “o acolhedor
por excelência” e, por isso, abertura a uma nova ética pensada a partir da hospitalidade.
892
LÉVINAS, E. Totalité et Infini, p. 166.
352
nossa demanda de razão, a resposta que não responde e que nos faz mostrar nosso
rosto, desnudar-nos, desarmar-nos. A mulher chama à ação, impõe que o desejo
criador do homem se realize para que haja a procriação e, por conseguinte, recebê-
la em nossa casa, na casa que pensamos ser nossa, é receber a possibilidade dela
gerar nosso filho – nossa obra.
A enxurrada de chavões aparentemente machistas em Lévinas pode
assustar: pois o princípio de sua ética do acolhimento sustenta-se em uma
definição do feminino como abertura, passividade, desconhecido, ou seja, como a
antítese do que se pensa como “o masculino”. Isso pode, e deve, causar espanto.
Em uma conversa, posteriormente publicada, o filósofo inglês – e um dos maiores
representantes da desconstrução – Geoffrey Bennington disse-me que Lévinas,
“de um modo pouco usual para um filósofo, adota explicitamente uma posição
enunciativa masculina”
893
, não uma “neutralidade filosófica”, o que, por si só, já
solaparia a arquitetura tradicional da metafísica. Mas o que Bennington ressalta é
que a postura de Derrida, ao ler estes textos de Lévinas, decide por não ler
Lévinas nem como um autor falocêntrico, masculino, nem como um autor que
exalta a mulher sob uma bandeira feminista. “Derrida nos convida a repensar os
termos da situação, de modo que eles não sejam reunidos dessa maneira”
894
.
Como se deve supor, então, como um outro estilo de pensar. Assim, uma das
suspeitas que se pode apontar é que o jogo que Derrida empreende da diferença
sexual pode ser tomado como metonímia para sua tentativa de inversão e
deslocamento para-além do campo da metafísica
895
. E é justamente a este jogo
que o filósofo franco-argelino também se dedica em Éperons, seu único livro
dedicado exclusivamente a Nietzsche.
Retorno aqui uma vez mais a “Os fins do homem”, quando Derrida indica a
mudança de terreno que se mostra necessária aos caminhos da filosofia, pois
segundo Nietzsche o que urge ao pensamento é uma mudança de estilo – e, como
tantas vezes o filósofo desconstrutor lembrou, se há estilo, ele só pode ser plural.
Metaforicidade mesma e mudança de estilo: temas que Derrida desenvolveria
893
“Entrevista com Geoffrey Bennington”, in: Desconstrução e ética: ecos de Jacques Derrida, p.
231.
894
“Entrevista com Geoffrey Bennington”, in: Desconstrução e ética: ecos de Jacques Derrida, p.
232.
895
O tema da diferença sexual sob o ponto de vista desconstrutor é trabalhado cuidadosamente por
Ana Maria Continentino em “Derrida e a diferença sexual para além do masculino e feminino” (in:
Às margens: a propósito de Derrida).
353
posteriormente, mas que já se mostravam fundamentais aos escritos derridianos da
década de sessenta. Nesta perspectiva, então, dar continuidade ao projeto
nietzschiano, ou, em termos mais obtusos “ser nietzschiano” consiste em ser e não
ser fiel a Nietzsche, ou, como também já se viu aludido, significa dizer que é
necessário falar várias línguas e produzir vários textos simultaneamente. Por isso,
quanto ao feminino, quanto à “mulher”, Derrida nem é nietzschiano nem
levinasiano; contudo, é profundamente nietzschiano e levinasiano. Instala-se, por
assim dizer, nesta brisura, como em muitas outras (entre Freud, Lacan, Heidegger,
Kierkegaard etc. etc.), e nela age. Mas deve-se ter em mente que a brisura, como
experiência do indecidível, é “mulher”, é fêmea porquanto se considere que a
“mulher” é abertura e desordenamento da oposição binária metafísica homem-
mulher. Esta articulação sem junção, out of joint como o tempo de Hamlet, este
espaço infinito entre os dois pólos, que pode, por isso mesmo, superar,
transvalorar ou deslocar a dualidade, é mulher. É mulher no sentido do
inapreensível pelo discurso racional; é mulher também no sentido que abre para o
novo; mas é mulher também porque trata do estilo, ou melhor, dos estilos.
Os estilos de Nietzsche, portanto. Esporas ou esporões: são os termos que,
reunidos em uma única palavra francesa, éperons, nomeiam a obra derridiana
sobre os estilos de Nietzsche. Nada mais fálico, bélico, viril, a princípio. A
princípio e certamente, pois era isso mesmo que Nietzsche, assim como Lévinas,
se dizia e se assumia: homem. Tanto que, para o filósofo, “supondo que a verdade
seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na
medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulher?”
896
. Mas, então,
em que sentido (se se admite que há algum sentido ainda, depois da “mulher”) um
filósofo pode “entender de mulher”? Será que a escrita filosófica, bem como o
pensamento, sempre falocêntrico, pode dar conta desta alteridade feminina? Para
Derrida, em suas esporas, apenas se se aprender com Nietzsche (como, por
exemplo, em “A palavra de acolhimento” e em Dans cet moment même dans cet
ouvrage me voici o filósofo tratara do feminino em Lévinas
897
), se se aprender
com esta outra escritura um novo estilo: aberto, contaminado por todos seus
outros que foram, ao longo de toda a história da metafísica, esmagados,
896
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Prólogo, p. 5.
897
Cf. DERRIDA, J. “En ce moment même dans cet ouvrage me voici”, in: Psyché: inventions de
l’autre; e também “Le mot d’accueil”, in: Adieu à Emmanuel Lévinas.
354
reprimidos, recalcados pelo pensamento falogocêntrico: a literatura, a loucura, o
desejo, a sexualidade, a autobiografia, o movimento – ou seja, um fundamento
sem fundamento, uma origem an-arquica, uma alteridade completamente outra
que, como metonímia, reúne-se nestas obras sob a metáfora do feminino.
Siga-se o rastro de Derrida, ou, em suas palavras, “deixemos o élitro
flutuar entre o masculino e o feminino”
898
, neste espaço assimétrico do entre que
Lévinas chamou de infinito, ou a infinita distância que me separa disto que é
completamente outro – ou seja, nas brisuras. Flutuando neste espaço, pode-se
obter alguma espécie de “sucesso”, não obstante os grilhões da língua, se não se
deixar de modo algum que se articule a esta poderosa e perigosa lógica do
Mesmo, do macho, do falo que é o Logos. Para Derrida, a escrita nietzschiana
desarticula toda possibilidade, pois se delineia na prática da pluralidade de estilos,
e, então, de gêneros. E assim, o desejo de Derrida é o de deixar aparecer, enfim,
certa troca entre o estilo e a mulher em Nietzsche:
e para insistir nisto que imprime a marca da espora estilada na questão da
mulher – eu não digo, segundo a locução tão freqüentemente consagrada, a
figura da mulher –, aqui se tratará de vê-la enlevar-se, deixando a questão
da figura, por sua vez, aberta e fechada por isto que se chama a mulher.
899
A inspiração desconstrutora provém do famoso fragmento 60 da Gaia Ciência
“As mulheres e o seu efeito à distância”
900
, pois, para o filósofo
898
DERRIDA, J. Éperons: les styles de Nietzsche, p. 29.
899
DERRIDA, J. Éperons: les styles de Nietzsche, p. 32.
900
Cito a longa análise que Derrida empreende do aforismo 60 de A gaia ciência tal como
traduzido por Klossowski: As mulheres e o seu efeito à distância” (ihre Wirkung in die Ferne) –
“Ainda tenho ouvidos? Sou todo ouvidos e nada mais? (Ai-je encore des oreilles? Ne suis-je plus
qu’oreille et rien de plus?)”. [Todas as interrogações de Nietzsche, e estas relativas à mulher em
particular, encontram-se enroladas no labirinto de uma orelha, e logo mais adiante, em A Gaia
Ciência (Die Herrinnen der Herren, As senhoras dos senhores, fragmento 70), uma cortina ou um
papel de parede, uma tela (Vorhang) se levanta (“nos descortina possibilidades nas quais
habitualmente não cremos”), quando se eleva tal voz de contralto, profunda e poderosa (eine tiefe
mächtige Altstimme), que parece, como o melhor do homem na mulher (das Beste vom Manne),
superar a diferença dos sexos (über das Geschlecht hinaus) e encarnar o ideal. Mas quando essas
vozes de contralto “representam o amante viril ideal, Romeu, por exemplo”, Nietzsche declara sua
reserva: “Não cremos nesses amantes: essas vozes têm ainda uma coloração maternal e doméstica,
justamente e sobretudo quando há amor no seu timbre”]. “Sou todo ouvidos e nada mais? Aqui
estou, em pleno fogo das ondas [jogo de palavras intraduzível, como se diz: Hier stehe ich inmitten
des Brandes der Brandung. Brandung, em afinidade com o abrasamento de Brand, que significa
também a marca a ferro em brasa, é a ressaca, justamente, como traduz Klossowski, o retorno
sobre elas mesmas das ondas quando elas encontram as cadeias de rochas ou se quebram sobre os
arrecifes, as falésias, as esporas etc.], cujas brancas flamas me vêm lamber os pés [então, eu sou
também a espora]: – de todos os lados chegam gritos, ameaças, uivos, gemidos, enquanto nas
profundezas o velho abalador da terra canta sua ária [‘sua ária’, seine Arie singt, Ariadne não está
355
desconstrucionista, a sedução da mulher opera à distância; e, logo, a distância é o
elemento de seu poder. Mas adverte que “este canto, este charme, deve ser
mantido à distância”, deve-se “manter a distância à distância, não apenas, como se
poderia supor, para se proteger contra essa fascinação, mas também para
experimentá-la”
901
. Em outras palavras: a distância é necessária; deve-se esforçar
para manter-se à distância isto que falta. E se se deve manter à distância a
operação feminina (da actio in distans), isto que não se resolve simplesmente com
uma aproximação, é porque “a mulher não é, talvez, alguma coisa, a identidade
determinável de uma figura que se anuncia à distancia”, mas sim uma espécie de
“não-identidade, não-figura, simulacro, o abismo da distância, o distanciamento
da distância, o corte do espaçamento, (...) e se pudéssemos ainda dizer, o que é
impossível, a distância mesma
902
.
tão longe] no tom surdo de um touro que muge: ele bate os pés num compasso tão abalador, que
mesmo esses derruídos monstros de rocha sentem tremer o coração. De repente, como que vindo
do nada, ante o portão desse labirinto infernal, distante apenas algumas braças – surge um grande
veleiro (Segelschiff), deslizando silente como um fantasma. Oh, que beleza espectral! Com que
magia me toca! Como? Todo o silêncio e a calma do mundo nele embarcaram? [Klossowski
concentra aqui em uma só palavra – esquif, esquife – todas as possibilidades de “sich hier
eingeschifft”] Minha própria felicidade se encontra nesse lugar calmo, meu Eu mais feliz, meu
segundo Eu eternizado? Não estando morto, e também não mais vivendo? Um ser intermédio
(Mittelwesen), fantástico e tranqüilo, que olha, desliza, flutua? Semelhante ao navio de velas
brancas que corre sobre o mar escuro, qual imensa borboleta! Sim, correr sobre a existência! (Uber
das Dasein hinlaufen!) É isto! Seria isto! – Então o ruído (Lärm) me terá levado a fantasias
(Phantasten)? Todo grande ruído (Lärm) nos leva a pôr a felicidade na quietude e na distância
(Ferne). Quando um homem se acha no meio de seu ruído, em plena rebentação (Brandung, de
novo) dos seus planos e seus projetos, (Würfen und Entwürfen), pode ver passar, deslizando à sua
frente, calmos seres encantados, cuja felicidade e reclusão ele anseia para si (Zurückgezogenheit: o
redobrar-se sobre si mesmo) – são as mulheres (es sind die Frauen)”. “Ele chega a pensar que
junto às mulheres habita o seu Eu melhor (sein besseres Selbst): nestes tranqüilos locais, até a mais
violenta rebentação (Brandung) se tornaria silêncio de morte (Totenstille), e a própria vida seria
sonho da vida (über das Leben)”. [O fragmento precedente, Wir Künstler!, Nós, artistas!, que
começa por: “Se amamos uma mulher”, descreve o movimento que comporta simultaneamente o
risco sonambúlico da morte, o sonho da morte, a sublimação e a dissimulação da natureza. O valor
de dissimulação não se dissocia da relação da arte com a mulher: “– imediatamente o espírito e a
força do sonho vêm sobre nós, e de olhos abertos e indiferentes ao perigo escalamos os mais
perigosos caminhos, rumo aos telhados e torres da fantasia (Phantasterei), sem qualquer vertigem,
como que nascidos para escalar – nós, sonâmbulos diurnos! (wir Nachtwandler des Tages!) Nós,
artistas! Nós, ocultadores do que é natural! (wir Verhehler der Natürlichkeit!) Nós, maníacos da
Lua e de Deus! (wir Mond- und Gottsüchtigen) Nós, incansáveis e silenciosos andarilhos (wir
totenstillen, unermüdlichen Wanderer), em alturas que não vemos como alturas, mas como nossas
planícies, nossas certezas!”] “Porém, meu nobre sonhador, porém! Mesmo no mais belo veleiro há
muito ruído e alarido (Lärm), e, infelizmente, muito alarido pequeno e lamentável (kleinen
erbärmlichen Lärm)! O encanto e poderoso efeito das mulheres (der Zauber und die mächtigste
Wirkung der Frauen) é, para usar a linguagem dos filósofos, um efeito à distância (de le faire
sentir au loin, eine Wirkung in die Ferne, uma operação à distância), uma actio in distans: o que
requer, antes e acima de tudo – distância! (dazu gehört aber, zuerst und vor allem - Distanz!)”.
DERRIDA, J. Éperons: les styles de Nietzsche, pp. 32-36.
901
DERRIDA, J. Éperons: les styles de Nietzsche, p. 37.
902
DERRIDA, J. Éperons: les styles de Nietzsche, p. 38.
356
Desta maneira, de acordo com esta quase-lógica do feminino, a distância
se distancia, o longe se afasta e “a abertura afastada deste distanciamento dá lugar
à verdade e a mulher aí se afasta de si mesma”
903
. E tal é o ponto fundamental
para o que quero apreender do texto: o afastamento de si da verdade, que é o que
pode se assemelhar a alguma espécie de verdade. Para Derrida, não há essência da
mulher porque a mulher afasta qualquer verdade de si e, assim, afasta-se de si
mesma.
Ela engole, vela pelo fundo, sem fim, sem fundo, toda essencialidade, toda
identidade, toda propriedade. Aqui, cego, o discurso filosófico soçobra – deixa-se
precipitar à sua perda. (...) Não há verdade da mulher, mas é porque este
afastamento abissal da verdade, esta não-verdade é a ‘verdade’. Mulher é um
nome desta não-verdade da verdade.
904
Derrida, propositadamente, confunde os termos “mulher” e “feminino”, para que,
ao contrário da violência que estou aqui tentando fazer, não haja possibilidade de
categorizar isto que justamente deve fugir a qualquer categorização. O uso
indiscriminado de mulher e feminino, mas também a utilização do pronome “ela”
para se referir à mulher, à verdade, ao velamento, à distância faz com que o leitor
de Esporas não saiba a quem Derrida está se referindo. Mas tal é seu desejo:
deixar que estes quase-conceitos possam se substituir mutuamente sem que haja
necessariamente uma lógica, uma ordem, um encadeamento: não há
encadeamento se não há cadeia, a não ser a cadeia infinita de significantes, sem
significado, que se simulam e se dissimulam, a fim de que haja apenas a própria
disseminação – e que, desta maneira, fique marcada a própria metaforicidade da
língua, a ficcionalidade da verdade, a contaminação pelo outro, o rastro
inapreensível do impossível: isto que, aqui, estou tentando mapear como a
umidade do úmido.
*
Umidade trópica: da metáfora, da alegoria, do estilo: da “mulher” entre aspas que
opera à distância e que opera a distância. Desta que sabe como ninguém se vestir
como o que desejar. O estilo como o “vestir-se”. Travestir-se sem culpa e sem
903
DERRIDA, J. Éperons: les styles de Nietzsche, p. 38.
904
DERRIDA, J. Éperons: les styles de Nietzsche, p. 39. Grifo meu.
357
punição, perversão sem patologia, fora de toda denúncia possível. Derrida com
Nietzsche além de Saussure: dançando em seus bailes de máscaras, com Saussure
querendo desmascará-los e rasgar suas fantasias. Ele quer, como muitos, acabar
com o jogo e com a errância. Mas o jogo não tem fim: este jogo é a escritura.
Saussure esconde sua máscara e sai de fininho enquanto o bufão e o desconstrutor
continuam sua viagem.
7
Terceira prova
“A escritura já é portanto encenação”
- Silencio. Silencio. Silencio. No hay banda. No hay banda. No hay orquestra. Silencio.
Silencio. Silencio. Silencio. Silencio. No hay banda. No. No.
(...)
- No hay banda. There is no band. Il n’est pas de orquestra. This is all... a tape
recording. No hay banda, and yet, we hear a band. If we want to hear a clarinet…
listen… Un trombone racolisse. Un trombone en surdina. C’est le son du trombone
en sourdine. Hear le son... a muted trumpet. It’s all recorded. No hay banda. It is all a
tape. Il n’est pas de orquestra. It is an ilusion. Listen!
(David Linch. Mulholland drive. 2002)
*
Na Farmácia, quando Derrida diz que a escritura é desde sempre encenação, o
autor está antecipando uma discussão central em sua obra, qual seja, a da relação
entre filosofia e ficção, tornando transparente o que seria a “ficcionalidade da
língua”, de todo discurso e, portanto, da escritura. Para se pensar esta estrutura,
que comporia mais um aspecto da umidade que a filosofia tradicional recalca, a
relação com a literatura torna-se emblemática. Para tanto, estudar-se-á aqui a
relação da desconstrução com a literatura em geral para, somente depois, tentar
compreender o que, a partir de Devant la loi ele chama, inspirado nas páginas do
Processo de Kafka, de uma estrutura de “como se”. Em um primeiro momento,
tentarei mostrar a razão do grande interessse que a literatura desperta em Derrida,
para, só depois, empreender uma leitura de seu pensamento sobre a literatura,
como consta em Acts of literature. Somente a partir disso, pode-se tentar
compreender a lei do texto que a desconstução herda e assume.
interessância
A afirmação de Derrida de que a literatura é a coisa mais interessante do mundo,
talvez mais interessante que o mundo é título e tema do artigo de Elizabeth
Muylaert Duque Estrada que inspira estas páginas e dá a pensar sobre a relação
entre a desconstrução e a literatura, justamente por se focar no que a autora
nomeia como a “interessância” desta para aquela. Para entender tal afirmação –
que abre caminho para minhas futuras considerações sobre os Atos de literatura
359
de Derrida
905
– precisa-se, em um primeiro momento, concentrar-se no talvez que
liga as duas asserções: a saber, que a literatura é a coisa mais interessante do
mundo e que talvez ela seja mais interessante que o mundo. Para Beth, este
“talvez” certamente não significa dúvida nem reticência nem especulação, trata-
se, antes, de um talvez que diz “que não há nada de concreto que justifique o
mundo”
906
, pois não há como se afirmar nenhuma substância, causa ou origem
primeiras que possam explicar ou justificar a “existência” do mundo. Desse modo,
Beth conduz a leitura da afirmação derridiana sob uma “lógica do talvez” que
simbolizaria esta relação entre pensamento e mundo.
Ressaltando que a primeira parte da afirmação diz que esta “interessância”
da literatura está no mundo e que a parte final indicaria algo possivelmente
“anterior” ao mundo, Beth pergunta qual seria a relação disto com outra afirmação
de Derrida, que diz que a literatura seria uma instituição na qual se pode dizer
qualquer coisa. A resposta remete diretamente ao talvez, ou melhor, à “força do
talvez” que na literatura se encontra “em toda a sua potência”. Segundo a autora, a
energia de uma instituição como a literatura funda-se nesta força do talvez, no
direito garantido ao autor de utilizar-se assumidamente desta força de dizer o que
quiser, de dizer o mundo ao mundo de forma ao mesmo tempo estabilizadora e
desestabilizadora. “Um talvez em que toda experiência de familiaridade se vê
ameaçada, afinal, tudo é assim como é, mas poderia ser sempre diferente”
907
. A
literatura seria, então, o lugar por excelência deste paradoxo, da tensão mesma,
caracterizando assim uma espécie de ser-duplo da literatura que, com isso,
abalaria qualquer autoridade metafísica, qualquer apelo ontológico ou teleológico.
A pergunta “o que é?” esfacela-se frente à força do talvez e desestabiliza-se,
desloca-se devido à entrada em questão de seu “não lugar” constitutivo: e, como
se sabe, se o constitutivo é o não-lugar, não há prévia nem posterior constituição.
Segundo Elizabeth Muylaert:
905
DERRIDA, J. Acts of literature, edited by Derek Attridge. New York, London: Routledge,
1992.
906
DUQUE-ESTRADA, E.M. “A literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais
interessante que o mundo”. In: Confraria do vento, no. 11, novembro / dezembro de 2006, versão
eletrônica. Endereço do sítio: http://acd.ufrj.br/~confrariadovento/numero11/ensaio04.htm
, último
acesso em 30 de novembro de 2006.
907
DUQUE-ESTRADA, E.M. “A literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais
interessante que o mundo”.
360
Sem o poder e a vontade de dizer a verdade, ela é o talvez do talvez de
tudo o que há no mundo, e por isto talvez seja, como quer Derrida, a
coisa mais interessante do mundo. E isto porque talvez ela preserve, mais
do que qualquer outra instituição, a estrutura da promessa, do novo, do
outro, enfim, do porvir.
908
A sua interessância, deste modo, se dá devido a esta nova experiência que ela
abre; a literatura como experiência do porvir desajusta até mesmo a noção de
experiência, pois não se sustenta, assim, mais em nenhuma relação com um algo,
pois esta referência futura não é a de uma presença que um dia se presentificará no
presente. Ao contrário, o novo é a impossibilidade de presentificação, que
desestrutura a noção tradicional de experiência para uma nova relação com a
alteridade – o lugar excepcional do encontro com o outro.
O que se entende, então, por uma espécie de estrutura do literário em
geral rege-se de acordo com uma lógica do não aparecimento que se define pelo
fato de que “toda narrativa, todo relato, ficcional ou não, é uma relação com
aquilo que ela narra. Nesta relação, tanto o relato, a narrativa, quanto o relatado, o
que é narrado, não aparecem em sua presença efetiva”
909
. O que Beth herda de
Derrida nesta “teoria da literatura” é a constatação de que este não aparecimento
estrutural não é exclusividade da literatura, mas de todo relato, constituindo uma
espécie de “ficcionalidade constitutiva” de todo discurso. A literatura, então, mais
que o (não) lugar desta relação com a ausência, em que só há invenção, sendo este
“lugar” o de toda escritura, tem sua singularidade no fato de assumir este talvez
como seu “próprio”, desapropriando-se, desta maneira, constantemente. Com isso,
todo relato, que se supõe um relato sobre “algo”, ou seja, pressupondo sempre
uma presença, descobre-se uma narrativa sobre “o que não aparece”, não por uma
insistência em não aparecer, uma teimosia de abscondito, mas por uma estrutura
própria de não aparecimento. Tal economia do não aparecimento que regula a
escritura “apresenta” paradigmaticamente o traço da “umidade”, configurando
“uma situação ou condição, contudo, que nunca foi, é ou será apreendida,
apropriada, tomada em nossas mãos; e isto não porque ela seja algo que nos
908
DUQUE-ESTRADA, E.M. “A literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais
interessante que o mundo”.
909
DUQUE-ESTRADA, E.M. “A literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais
interessante que o mundo”.
361
escapa, mas porque ela nunca existiu, existe ou existirá ‘enquanto tal’, como algo
em si mesma”
910
.
Assim, a literatura traz para o pensamento uma estrutura radical, que
impõe por certo um difícil aprendizado à filosofia. A força estabilizadora /
desestabilizadora do talvez constrange a lógica de apreensão do entendimento e
obriga à racionalidade que enxergue sua experiência mais “original”, a de não ter
origem nem presença nem fundamento, mas não segundo, como se poderia
objetar, de um modo niilista: a força do talvez traz consigo uma experiência
afirmativa disto – o talvez – que lhe é inerente. E então, esta “estranha instituição”
que é a literatura, como diz Derrida, em que se pode dizer tudo sobre tudo, passa a
ser vista, ou ao menos deveria passar, como a possibilidade mesma de se colocar
em xeque e, com isso, solapar a metafísica identitária da presença.
atos
Acts of literature traz algumas das páginas mais interessantes sobre o que poderia
ser uma teoria desconstrutora da literatura. As quase cinqüenta páginas da
entrevista “This strange institution called literature” concedida a Derek Attridge,
em 1989, talvez sejam a fonte mais interessante para se pensar esta relação entre
desconstrução e ficção.
Os “fatos biográficos” de Derrida mostram a relação “vital” que o filósofo
tinha com a literatura. Nos anos de 1942 e 1943, publica poemas de sua autoria
em revistas de pequena circulação nos EUA (poemas estes que diz detestar) e,
entre 1947-48, “descobre” sua vocação para escritor, ainda que acreditasse que se
dedicaria à literatura, e apenas no ano seguinte se orientava mais para a filosofia.
Assim, poder-se-ia jogar com o fato de que no início estava a literatura – e é a
partir disto que Derrida inicia sua entrevista como Attridge, partindo deste seu
“interesse primário”. “Eu não ousaria dizer que meu interesse primário dirigiu-se
à literatura mais que à filosofia”, diz Derrida, e explica que “para isso, ter-se-ia
que determinar o que se chamou ‘literatura’ e ‘filosofia’ durante minha
910
DUQUE-ESTRADA, E.M. “A literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais
interessante que o mundo”.
362
adolescência”
911
. Sem dúvida, ele diz ter hesitado entre as duas “vocações” (e a
autobiografia deve certamente ser levada em consideração): filosofia e literatura;
mas salienta que, ao mesmo tempo, foi uma filosofia como a de Nietzsche que
parecia seduzi-lo: por se tratar de um filósofo que escreve na primeira pessoa, que
multiplica seus nomes próprios, suas máscaras e suas assinaturas (e creio que um
parêntese aqui seja interessante no que diz respeito à paixão adolescente que
Nietzsche provoca. Digo isso também em nome próprio, pois meus primeiros
livros comprados foram os de Nietzsche, que, com meus quinze anos, via meu
sangue ferver com suas leituras, e era impressionante como seus textos causavam,
de fato, um furor corporal, um entusiasmo na mais sagrada acepção do termo. E,
contudo, impressiona também como isso vai se esfriando com o tempo, como a
sensação de “entendi tudo” com a qual lia Nietzsche do mesmo modo que lia
Herman Hesse – sobretudo Demian, que, ao lado de Zaratustra, acompanhou-me
em diversos momentos minhas empolgações, tão saudosas, da adolescência –
como todo este ânimo vai se tornando cada vez mais distante. É certo que as
leituras que dizem “entender tudo” de Nietzsche são, de fato, adolescentes, mas
sinto falta, às vezes, da susceptibilidade ao prazer e à empolgação que nos
permitimos ao ler Nietzsche na adolescência. Relato isso, talvez, por acreditar na
sintomaticidade deste fato: da paixão adolescente das leituras de Nietzsche
(minha, de Derrida, mas tamm de tantos rostos adolescentes que se saboreiam
nas salas de aula) e do “balde de água” acadêmico que se tem na entrada da
filosofia. Será possível ainda o sangue de um filósofo, não apenas o de um
adolescente, ferver com Nietzsche? Será possível que a filosofia trema ainda?
Estas parecem ser as inquietações que estão nas entrelinhas de Derrida – ou talvez
as que, apropriativa e apaixonadamente, eu entreveja, devido ao meu sintoma,
minha patologia, meu patos). Mas, de volta à estória, Derrida assume-se desde
sempre um apaixonado por estas “instituições fictivas”
912
que, segundo ele, são
onde se pode dizer tudo, onde está tudo a dizer.
Historicamente definida como esta instituição ocidental em que há esta
licença dada ao escritor de dizer o que quiser ou o que puder dizer, a literatura
torna-se politicamente importantíssima a ser pensada, o que parece ter sempre
911
DERRIDA, J. “This strange institution called literature”. In: Acts of literature, edited by Derek
Attridge. New York, London: Routledge, 1992, pp. 33-34.
912
DERRIDA, J. “This strange institution called literature”, p. 36.
363
atraído Derrida: não é por acaso que ele elenca os seguintes autores como suas
paixões juvenis: Nietzsche, Rousseau e Gide e diz: “eu estava interessado na
possibilidade da ficção, pela ficcionalidade, mas eu devo confessar que lá no
fundo eu nunca tive um grande prazer na ficção, em ler romances, por exemplo” –
o que lhe interessava era o jogo da escrita, uma certa prática de ficção, “a intrusão
de um simulacro efetivo ou de desordem na escrita filosófica”
913
. Isto, para o
filósofo, é o que dá um imenso poder à literatura – mas não se trata aqui da
literatura, mas do literário da literatura: este poder que a linguagem pode
“apresentar”, só ela, se assume seu “poder dizer tudo”, sua singularidade e seu
“como se”. Em seus textos, Derrida pretende responder – afirmativamente – a esta
“economia da iterabilidade” que a linguagem possui e que a literatura exibe sem o
menor problema, isto é, sem culpa. Lê-se em Acts of literature que “a ‘economia’
da literatura às vezes me parece mais poderosa do que qualquer outro tipo de
discursos: como, por exemplo, o histórico ou o filosófico. Às vezes: isso depende
de singularidades e de contextos. A literatura seria potencialmente mais potente”
914
. No entanto, esta potência não concerne apenas à literatura, e aqui se encontra
o objetivo de Derrida ao dedicar-se a esta “instituição: o que ela apresenta como
sua estrutura “própria” – a literalidade – é uma estrutura do discurso em geral, não
sendo uma essência, mas antes um conjunto de traços e aspectos que todo discurso
artístico, literário, científico, filosófico etc. possuem em comum, mas que
transparecem exemplarmente na literatura, por não se achar devedora da razão
nem do cálculo, podendo dizer o que quiser sobre qualquer coisa.
Este aprendizado da e com a literatura é, nos termos de Clarice, um
aprendizado “prazeroso”, que se aprende por prazer e que se faz com prazer. E é
isso que leva Derrida a dizer que a experiência da desconstrução liga-se ao prazer:
“em todo momento que há ‘jouissance’ (...), há desconstrução”
915
. Tendo isso em
mente, pode-se pensar que a desconstrução tem por efeito (e Derrida alude
estranhamente ao termo “missão”) liberar certos “gozos proibidos”, certos
recalques que os filósofos tradicionais não gostam de enfrentar, mas que estão
desde sempre aí, no face-a-face do pensamento – e penso que talvez tenha sido
essa a minha “missão” que aqui assumi ao pensar este “gozo proibido” que é o
913
DERRIDA, J. “This strange institution called literature”, p. 39.
914
DERRIDA, J. “This strange institution called literature”, p. 43.
915
DERRIDA, J. “This strange institution called literature”, p. 56.
364
úmido para a filosofia e que Bacon tanto quis esconder, negar, enfim, proibir. E é
por isso que Derrida diz: “então: não há desconstrução sem prazer e não há prazer
sem desconstrução”
916
. Mas este aprendizado, que vem desta “estranha instituição
chamada literatura”, traz consigo um certo odor de transgressão, sempre, ao
mesmo tempo em que diz respeito à Lei (à Lei das leis que é a Lei do texto), à Lei
que diz que se deve ser e não ser fiel à Lei – que se deve decidir não decidir. Esta
ficcionalidade não produz apenas efeitos fictícios, como se pode supor, ao
contrário, é ela a grande – senão única, conquanto guarde minhas imensas
reticências a esta palavra – produtora de efeitos (que, por sua vez, são sempre e
nunca fictícios). Isto porque, para Derrida, não há e nem pode haver uma
“realidade literária mesma”
917
e, no entanto, “o acontecimento literário talvez seja
mais que um acontecimento (porque é menos natural), mais que qualquer outro,
mas pela mesma razão é muito ‘improvável’, difícil de verificar. Nenhum critério
interno pode garantir a ‘literalidade’ essencial de um texto. Isto é a existência ou a
essência não garantida da literatura”
918
.
Assim, o que se pode perceber do que (não) seria uma teoria
desconstrutora da literatura é que não há literatura em si senão nesta certa
instituição ocidental que possui como seus traços “essenciais” traços que todos os
discursos comportam (poder dizer tudo sobre tudo, escrever como se os fatos
tivesses de fato acontecido e ser mais interessante que o mundo), mas que apenas
aí, nesta estranha instituição, assumem-se constitutivos. Estes traços, que se
exprimem na literalidade mesma ou na ficcionalidade da língua, permanecem
ocultos, não assumidos ou recalcados no discurso filosófico tradicional – e é
apenas através desta contaminação pelo literário, por este “outro”, que a filosofia
pode, de algum modo, fazer justiça a esta umidade que desde sempre lhe
acompanha. Não a fim de que se apaguem os limites entre isto e aquilo, não para
que as singularidades sejam reunidas num só conjunto (literatura, filosofia, arte,
ciência etc.), pelo contrário, a contaminação destes limites reclama à filosofia que
se destitua de seu lugar autoritário que sempre se auto-atribui. Assumir-se
contaminada pelo literário e saber que muito ainda tem para aprender com seus
outros, respeitando suas singularidades, dedicando-se a compreender os diferentes
916
DERRIDA, J. “This strange institution called literature”, p. 57.
917
DERRIDA, J. “This strange institution called literature”, p. 73.
918
DERRIDA, J. “This strange institution called literature”, p. 73.
365
idiomas, suas sintaxes próprias, sem se apropriar automática e indevidamente do
que acredita ser um objeto: eis um aprendizado talvez prazeroso, com todos seus
gozos proibidos, mas ao qual ainda certamente se tem um longo caminho à frente.
“como se”
O tema da lei está presente em diversos trabalhos de Derrida, sobretudo em Force
de loi. Le “fondement mystique de l’autorité” e em “Préjugés, devant la loi
919
no primeiro, Derrida trata especificamente da questão do direito e da justiça, em
um longo debate com Crítica da violência [Crítica do poder] de Benjamin; já no
último, em uma homenagem no Colóquio de Cerisy a Lyotard, relendo o conto
“Diante da Lei” (que foi posteriormente incluído por Max Brod, amigo e
responsável pelo testamento de Kafka, no capítulo “A catedral” de O processo),
dedica-se a uma estrutura da lei em geral, que traz consigo o que se poderia
chamar de “lei da escritura”. Por isso, é a este texto que se dedicarão estas páginas
seguintes. Para isso, antes de qualquer outra coisa, é preciso lembrar o conto de
Kafka, em que se lê:
Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e
pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a
entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar
mais tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não”. Uma vez que a porta da
lei continua como sempre aberta, e o porteiro se posta ao lado, o homem se
inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz:
“Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou
poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala, porém, existem
porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a
visão do terceiro”. O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve
ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar
mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo e a
barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a
permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado
da porta. Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido,
e cansa o porteiro com os seus pedidos. Muitas vezes o porteiro submete o
homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra e de
muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que costumam
fazer os grandes senhores, e no final repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-
lo entrar. O homem, que se havia equipado bem para a viagem, lança mão de
tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita tudo, mas
sempre dizendo: “Eu só aceito para você não achar que deixou de fazer alguma
919
DERRIDA, J. “Préjugés. Devant la loi”. In: La faculté de juger. Colloque de Cerisy. Paris:
Éditions de Minuit, 1985.
366
coisa”. Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro quase sem
interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único
obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa em voz alta o
acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo.
Torna-se infantil, e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou
conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo
mudar de opinião. Finalmente, sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está
escurecendo em volta ou se apenas os olhos o enganam. Contudo, agora
reconhece no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já
não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências
daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não
havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode
mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente
até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem. “O
que é que você ainda quer saber?”, pergunta o porteiro, “você é insaciável”.
“Todos aspiram à lei”, diz o homem, “como se explica que, em tantos anos,
ninguém além de mim pediu para entrar?” O porteiro percebe que o homem já
está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio, ele berra: “Aqui
ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você.
Agora eu vou embora e fecho-a”.
920
Josef K., o caluniado processado da narrativa de Kafka, ouve o conto enxertado
no Processo pala boca de um sacerdote, em uma visita à catedral. O enxerto feito
por Brod, que deveria ser feito por Kafka, segundo o amigo (e “dono” do legado
Kafka) que se auto-nomeou corretor das obras kafkianas, passa a ser um
ensinamento central nesta obra prima do escritor
921
. Ao terminar de ouvir
atentamente o relato do sacerdote, tal como em Cerisy Derrida relata à platéia, e
que, antes, Derrida teria ouvido de Kafka, K. diz de súbito: “o porteiro enganou o
homem”. Segundo o movimento do texto kafkiano, vê-se que o sacerdote adverte
que este é um julgamento precipitado, pois o porteiro apenas cumpriu seu dever, e
o cumpriu de modo cuidadoso. Pode-se admitir aqui que o fim e o início do conto
convergem perfeitamente, mostrando que nunca houve nenhuma mentira dita ao
homem pela boca do porteiro: primeiro, diz-se que ele não podia “agora” entrar na
lei, e no fim, que a entrada era apenas dedicada a ele – o que não comportaria
nenhuma contradição, segundo as argumentações do sacerdote (de Kafka e de
Derrida). E, para concluir esta linha de contra-argumentação às objeções de K., o
sacerdote diz que não se pode colocar em questão a dignidade do porteiro, pois ele
está lá representando a lei: “a história não dá a ninguém o direito de julgar o
porteiro. Não importa como ele nos apareça, é sem dúvida um servidor da lei, ou
920
KAFKA, F. O processo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992, pp. 230-232.
921
E, sobre esta auto-nomeação dos porta-vozes das obras, ver mais à frente a parte dedicada à
autobiografia, mais precisamente ao debate que se seguiu à edição de A minha irmã e eu.
367
seja, pertencente à lei e, portanto, fora do alcance do julgamento humano”. E
completa: “ficar preso por ofício, mesmo que seja só à entrada da lei, é
incomparavelmente mais do que viver livre no mundo. O homem do campo
apenas chega à lei, o porteiro já está lá”
922
.
*
Após esta longa epígrafe, pode-se tentar ler nesta passagem a indicação derridiana
de que os textos, a tradição e os discursos seriam esta porta diante da qual se para.
Eles prometem um acesso, algum dia, uma leitura por vir, um sentido a se
alcançar, uma interpretação perfeita, mas deixam esta promessa guardada,
trancada por detrás da porta – em que não há nada senão mais textos que guardam
textos e assim por diante. E, além disso, convocam – e convocam singularmente:
querem que se esteja a postos em sua frente, dizendo “sim”. Abrem-se sem se
abrir, querem ser penetrados sem desvirginamento – até porque não há
desvirginamento e dentro dos textos encontram-se tantos outros textos que
comportam textos como no quadro “Arque-duque Leopold Wilhelm em sua
Galeria de Quadros”, de David Teniers, ao qual Husserl se refere e que Derrida
elege como epígrafe para A voz e o fenômeno. Resta apenas a tarefa de querer
entrar, o que quer dizer assumir o fracasso, mas sem cessar de dizer “sim” e
comparecer diante destes textos.
Isso pode exprimir-se do seguinte modo: ao invocar o nome “lei” Derrida
pretende aludir a um outro “conceito”, ou melhor, a um indecidível homônimo: a
Lei. A homofonia entre “a Lei” e “há Lei” é bem vinda aqui, pois assim se pode
fazer com que entre em cena a expressão de indecidibilidade à qual Derrida
pretende chegar em Devant la loi, a necessidade de que haja lei que se encontra
no coração da Lei. Lei esta, portanto, que para além de uma lei, traz consigo o
processo de disseminação e a “cláusula da impossibilidade”, inalienável na
desconstrução. Em “Horizonte dissimétrico: onde se delineia a ética radical da
desconstrução”, Ana Maria Continentino diz que este pensamento da lei abre um
horizonte que não suporta mais os constrangimentos do cálculo, da possibilidade e
da decisão, e que figura, assim, um certo “desejo de impossível” que exige sempre
922
KAFKA, F. O processo, p. 237.
368
uma invenção, ou, melhor ainda, um desejo de invenção daquilo que não pode ser
inventado. Ela diz:
Mas afinal o que podemos dizer dessa invenção que nos vem do impossível, o que
interessa nela para além do poema ou da máquina que uma invenção desveladora
ou produtora nos traz? A invenção como invenção do outro, do impossível, não
nos traz nada, pois isto seria ainda o possível, ela apenas acolhe e exibe num
gesto paradoxal, “que consiste em desafiar e exibir a estrutura precária de suas
regras: respeitando-as, pela marca de respeito que ela inventa”
923
.
924
Esta difícil postura de Derrida, que creio ser praticamente insuportável para o
pensamento, decide por não decidir (“I’d rather not”, diria Bartleby), e mantém-se
na tensão entre a decisão e a indecidibilidade. Além deste fato, soma-se a isso
certo messianismo (sem messias) no que diz respeito à promessa, ao por vir de
algo que nunca virá, pois não se pode apostar em nenhuma forma de presença,
nem mesmo na modificação do presente em futuro: esta estrutura “legal” à qual
Derrida parece conduzir lentamente, tem como pressuposto certo “ainda não”
como aquele que o homem encontra diante da porta, diante do porteiro, diante da
lei. Esta estrutura de adiamento e promessa, que é o que faz com que se escreva,
se compareça, se fale, enfim, é a expressão do que haja lei da Lei, ou ainda, da
Lei das leis. Tentando ser breve: a Lei consiste em estar diante da lei.
Esta Lei estrutura-se no conflito incessante entre as leis e a singularidade,
entre cada um que comparece diante da lei, cada um como cada um, não no lugar
de outro, mas em um apelo ao singular, pelo qual ninguém mais pode responder,
tal como o de Deus a Abraão. A Lei, portanto, traz consigo uma tensão inevitável
e vital ao pensamento: o imperativo de cada texto para que se compareça diante
dele, ou melhor, para que eu compareça diante dele e tente adentrá-lo, mesmo
sabendo que a entrada vai me estar desde sempre barrada. É um comando para que
eu me confronte com esta impossibilidade e, ainda assim, não deixe de agir, de
transformar a impossibilidade em ato. Cada livro, assim, é uma porta, uma porta
fechada e fortemente guardada, à qual devo insistentemente querer entrar, mesmo
que saiba que isso custará minha vida; e ainda assim é uma porta que só está
destinada a mim, ou seja, à qual apenas eu posso querer entrar. É por esta razão
que o homem do campo decide não decidir – e o próprio sacerdote dissera isso a
923
DERRIDA, J. Psyché – inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1998, p. 59.
924
CONTINENTINO, A.M. “Horizonte dissimétrico: onde se delineia a ética radical da
desconstrução”. In: Desconstrução e ética: ecos de Jacques Derrida.
369
K.: “o homem do campo é efetivamente livre, pode ir aonde quer (...). Quando ele
se senta no banquinho do lado da porta e ali permanece durante toda a sua vida,
isso ocorre voluntariamente, a história não fala de coação alguma”
925
–; ele
suspende qualquer decisão pelo seu desejo de entrar na lei, esquecendo-se de tudo
mais e fincando-se ao lado da porta, dedicando-se a estudar minuciosamente o
porteiro, seu gestos, e chegando inclusive a conhecer as pulgas de seu casaco de
pele. Isto, para Derrida, configuraria a fidelidade à Lei – ou seja, a expressão
máxima do desejo de impossível, onde tudo perde seu sentido, restando apenas ao
homem do campo o seu desejo (impossível). Chegar à lei não significa, como quer
o homem do campo, atravessar a porta, pois não há justiça lá dentro, aliás, não há
nada lá, apenas outras portas guardadas por outros porteiros; a porta nunca será
atravessada, pois a Lei é a da constante travessia – como tantas vezes diz
Guimarães Rosa em suas veredas, “Digo: o real não está na saída nem na
chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”
926
– e a ela deve-se
perseguir, em toda sua indecidibilidade, estando-se, assim, sempre diante dela.
Por este motivo, ouvir a lei do texto não pode simplificar-se no desejo de adentrá-
lo, de resumi-lo, de interpretá-lo, de compreendê-lo; pelo contrário, esta tentativa
não é nada mais que um desrespeito à Lei, pois com isso poder-se-ia pensar que a
Lei foi cumprida – e, neste caso, o imperativo da Lei é que esta nunca seja
cumprida, mas sempre mantida em questão, que sempre se esteja diante dela. E as
palavras de Riobaldo que vêem na realidade esta travessia podem ser vistas como
ecos deste mandamento para que se perceba que a vida, a escritura, os textos, não
são mais que estas vias de acesso barradas que obrigam a um constante
movimento, a um jogo sem fim como a errância do jagunço que constrói e relata
sua estória em Grande Sertão: Veredas.
Assim, a simples decisão, um simples e banal gesto de decidir, ao
contrário do que se pensa, tal como o “bater o martelo” do juiz, seria, então, a
mais alta irresponsabilidade, pois significa não mais se deter aos juízos, tratando-
se, aliás, do fim dos juízos e, por isso, do fim da justiça. Todo veredicto, assim,
toda decisão, toda leitura fechada, toda hermenêutica, por conseguinte, consiste
na interrupção da única chance que se tem de se ser fiel à lei – que é decidir não
decidir, isto é, suspender a decisão para continuar decidindo, o que se pode
925
KAFKA, F. O processo, p. 236.
926
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: Veredas, p. 52.
370
entender como o fato de nunca se dever fechar um livro ou uma leitura, nunca se
ter uma interpretação como a certa ou a definitiva, nunca se tomar verdade alguma
por verdade, mas apenas se prostrar ao lado da porta, sem decidir, decidindo
infinitamente ao chamado da Lei.
O que poderia, então, aqui, ser arriscado como algo próximo a uma
“condição humana” seria esta dupla condição que Kafka descreve em “Diante da
lei”: simultaneamente “homem do campo” e “guardião”. Ao mesmo tempo,
deseja-se entrar na lei e guarda-se essa lei, suporta-se sua inacessibilidade –
apenas assim, neste duplo gesto, se é fiel à infinita exigência do “que haja lei”.
Esta dupla atitude, que se dá pela tensão da Lei das leis, torna-se emblemática
para Derrida devido ao fato de esta Lei, que salta aos olhos a partir da literatura,
sendo esta a instância por excelência que a assume, estender-se infinitamente
para-além da literatura, podendo ser vista em qualquer escritura, judiciária,
filosófica, científica etc. A Lei das leis, como Lei do texto, pode ser compreendida
como a Lei em geral, Lei disto que se chama vida ou realidade, e que se resume
no imperativo de que deve sempre haver leis. O que, como tudo na desconstrução,
não se restringe a uma mera obediência ou resignação; ao contrário, é a instância
mesma da aporia. De acordo com Ana Maria Continentino:
Em Derrida, responsabilidade e promessa se tecem na mesma trama. Ele nos
alerta para uma responsabilidade radical sintonizada com a dimensão paradoxal
que é a nossa condição. Só podemos pensar a lei rompendo com a lei,
interrompendo nossa relação com ela. A lei que nos estrutura é ela mesma a
proibição e o proibido; portanto, respeitar a lei é não ingressar na lei.
927
A estrutura aporética da Lei, portanto, faz com que a impossibilidade de entrada
na lei – ou seja, nos textos – seja radicalizada de tal modo que esta
impossibilidade passa a configurar a única possibilidade de se lidar com a Lei. O
único modo de haver uma leitura responsável, nestes termos, é assumindo a
infidelidade à Lei, aceitando e recusando seu apelo ao mesmo tempo, tentando
entrar sem entrar nos textos, lendo-os nem perpendicular nem paralelamente, mas
de acordo com o movimento oblíquo que Derrida ensina e tece em sua escrita.
Não se pode, assim, querer arrombar a porta à força, violentando o texto –
sobretudo porque este seria um trabalho vão, pois o texto é absolutamente
927
CONTINENTINO, A.M. “Horizonte dissimétrico: onde se delineia a ética radical da
desconstrução”, p. 148.
371
inviolável, críptico – nem tampouco se deve permanecer resignado ao seu lado,
sem tentar entrar, sem nenhum esforço. O que Derrida diz é que se há algo a ser
feito – e certamente há –, esta atitude deve refletir a tensão e a aporia da Lei.
Além disso, só desta maneira pode-se compreender a última figura que
pretendo aqui analisar como estrutura do literário em geral: esta estranha
configuração que o texto de Kafka, através do texto de Derrida, apresenta como
um entrelaçamento da lei – do direito – com a Lei das leis – do texto: o “como
se”, que é a lei-mor da literatura. Esta característica aparentemente banal da esfera
da ficção, em que tudo acontece “como se” (Kafka escreve como se K. estivesse
sendo réu de um processo, Clarice escreve como Lóri não soubesse viver,
Guimarães Rosa escreve como se Riobaldo, agora que está de “range rede”,
pudesse relatar suas aventuras da época de jagunço etc.), não parece, nesta esfera
da ficção, apresentar nenhum problema
928
. A questão parece se tornar tanto mais
problemática quando isso se estende à escritura em geral (isto é, à “realidade”, à
“vida”, à “linguagem”): como o pensamento lógico poderia suportar o fato de que,
também ele, seguiria a lei do “como se”? Se tal pensamento, seja ele filosófico ou
científico, considera sua maior característica a exatidão – a adequação aos fatos, a
lógica e, poirtanto, a verdade – como pode ele sobreviver caso “constate” que seu
discurso repousa sobre a ficcionalidade? Mas, do mesmo modo, não parece, a este
ponto, admissível que Descartes também escreva como se ele tivesse um pedaço
de cera nas mãos, como se Platão escrevesse como se existisse um mundo das
idéias ou mesmo que Kant escrevesse como se devêssemos agir de tal ou tal
maneira? Parece-me que sim, e o percurso desta escrita desejaria ter possibilitado
que se aceitasse esta afirmação.
928
Sobre essa discussão na esfera da literatura, remeto ao livro Verdades quixotescas: ensaios
sobre a filosofia de Dom Quixote da Mancha, de Gustavo Bernardo (São Paulo: Annablume,
2006). Ao mostrar como a atitude cética, elevada à sua máxima potência ficcional, torna-se o que
ele chama de “quixotismo”, o autor apresenta tese – ainda que não reconhecidamente – semelhante
à de Derrida. Para Gustavo Bernardo, com a escrita de Cervantes, torna-se tanto mais claro que “se
a realidade existe [o aspecto cético da sentença], ela não se deixa perceber a não ser como ficção”
(p. 09). O que acrescenta um aspecto bem interessante à discussão é que, para o autor, este fato
configuraria a máxima responsabilidade da ficção. Diz ele: “desconfiando que a realidade
conhecida seja basicamente fictícia ainda que não se admita como tal, para não mergulhar no
niilismo assume a responsabilidade por desenhar uma outra realidade que se assuma desde o início
como um desenho. Ora, é esta assunção da responsabilidade que empresta à ficção sua força: a
força de parecer mais real do que o real cotidiano” (p. 09). Deste modo, para Gustavo, a escritura
quixotesca faria com que se percebesse o quixotismo de toda escrita, primeiramente literária e, por
conseguinte, mesmo a filosófica e a científica. Creio que esta discussão, em que a esfera das letras
contamina a filosófica, pode ser tomada como um bom exemplo para se perceber como o literário,
desde o início, assume esta esfera constitutiva do pensamento que o filosófico esforça-se
arduamente para rechaçar.
372
Tomando Kant como exemplo (já que ele de fato escreveu, na segunda
formulação de seu imperativo categórico, que devemos agir como se a máxima de
nossa ação devesse se tornar por nossa vontade lei universal da natureza), esta
ficcionalidade do relato filosófico-científico pode não parecer tão absurdo. Aliás,
de acordo com Derrida em Devant la loi, vê-se mesmo que esta estrutura ficcional
que ele descrevera a partir de Kafka teria sua inspiração na formulação kantiana
do imperativo categórico. Derrida diz:
Tratava também do “como se” (als ob) na segunda formulação do imperativo
categórico: “Age como se a máxima de tua ação devesse se tornar por tua vontade
lei universal da natureza”. Este “como se” permite conciliar a razão prática com
uma teleologia histórica e a possibilidade de um progresso ao infinito. Eu tentava
mostrar como ele induzia virtualmente narratividade e ficção no coração mesmo
do pensamento da lei, no momento em que esta se põe a falar e a interpelar o
sujeito moral.
929
Assim, no “nascimento” mesmo do sujeito moral, da responsabilidade condicional
e dos direitos está a ficcionalidade: no coração da racionalidade, portanto,
encontra-se o “como se”. E, com isso, agora não deve parecer – espero eu – tão
despropositado afirmar que do mesmo modo que toda narrativa literária sempre
acontece “como se” os fatos tivessem de fato acontecido, a moral e o pensamento
crítico também se estruturam do mesmo modo, como se a realidade ou a verdade
fossem esta ou aquela, só que estes não parecem aceitar tal fato. O como se é a
base de todo discurso, de todo texto, seja ele qual for; ao se escrever, sempre se
está escrevendo “como se” isso fosse a verdade, “como se” isso interessasse a
alguém, “como se” isso devesse ou pudesse, enfim, ser escrito. Mas o que
acontece é que esta característica constitutiva do literário em geral encontra-se
recalcado no discurso lógico, sendo este o motivo que me fez pensá-la como uma
das estruturas úmidas que são ao mesmo tempo constitutivas e recalcadas pelo
pensamento filosófico tradicional, já que, por exemplo, Bacon escreveu “como se
se devesse tomar o úmido como exemplo de tudo aquilo que causa confusão na
comunicação, sem perceber que seria esta umidade do “como se” que o
possibilitou escrever seu Novum Organum.
*
929
DERRIDA, J. “Préjugés. Devant la loi”, p. 108.
373
Como uma breve observação a essas páginas, penso haver algo a ser sublinhado –
e assumo aqui que eu escrevo como se fosse possível atentar radicalmente a este
fato sem cair em nenhuma das tantas armadilhas do logos ou da secura. Mas ao
contrário do que vejo nos tantos textos filosóficos que se utilizam da literatura,
penso que não se pode nem se deveria ao menos tentar tomar um texto literário
apenas para exemplificar uma teoria. Isto, mais que qualquer coisa, é desrespeitar
a singularidade daquele texto, é não tentar aprender sua sintaxe própria – e isto
deve valer para qualquer texto que se deseje ler (os filosóficos, os literários, a
economia, a universidade, as guerras etc.). Neste tipo de leitura que a academia,
mais que aceita, incentiva e tem como correta, apenas há um desrespeito à Lei do
texto, a Lei das leis. E isso não apenas com relação ao literário, mas ao artístico
em geral. Tomo, por exemplo, as análises que Heidegger faz do quadro de Van
Gogh. Apesar de se tratar de uma belíssima passagem, pouco resta de Van Gogh
naquele quadro, e consigo apenas ler as palavras de Heidegger
930
. Ou seja, o
quadro serviu apenas como mera (não obstante bela) ilustração para a teoria
heideggeriana – e posso também aqui aventar se o mesmo não ocorreria com o
Nietzsche de Heidegger, com seu Platão e seu Hölderlin. Mas é claro que isso não
diz respeito unicamente a Heidegger, este desrespeito à sintaxe dos textos lidos
parece ser um traço típico da filosofia. É nesse sentido que enxergo mais uma
distinção da posição de Derrida frente aos textos. Ao contrário do que comumente
se faz, Derrida tenta entregar-se aos textos que lê, enxergar seu idioma e aprender,
com isso, sua Lei – mesmo que saiba que nunca conseguirá entrar nem conseguir
captar a essência disto que ama: a lei da literalidade, para, com esse aprendizado,
rascunhar o que ele pensa ser a lei da escritura. Nesta atitude tipicamente
desconstrutora, penso encontrar-se uma relação verdadeiramente justa com este
outro que é a literatura e, somente assim, torna-se possível não compreender, mas
experimentar a “interessância” desta literalidade, de seu “poder dizer tudo sobre
tudo” e seu “como se”: leis também úmidas.
930
Sobre isso, ver A origem da obra de arte (HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. Lisboa:
Edições 70, 1999, pp. 24-28).
374
5
quarta prova
“um texto permanece, aliás, sempre imperceptível”
- Delfine: A felicidade do marinheiro é como a do peixe?
- John: Exatamente, precisamente como a do peixe. Com a diferença de que ele respira na
água e nós não conseguimos.
- Delfine: Respira, mas não fala.
- Helena: O que o impede de dar a sua opinião.
- John: Visto que não fala, não pode dar opinião. Mas com certeza tem outros meios de se
comunicar.
- Delfine: É possível. Mas também nós nos comunicamos de forma estranha.
- John: Estranha como?
- Delfine: Sim. Estranha, inédita, insólita. De maneira muito pouco normal. Não notou
que nesta mesa cada um fala a sai própria língua e que viemos todos de países onde se
falam línguas diferentes?
- Francesca: E o mais esquisito é tudo parecer tão natural.
- Delfine: Natural, mas também de estranha coincidência.
- Helena: Coincidência?
- Delfine: Sim. Compreendemo-nos todos tão bem e facilmente.
- Helena: Entre mulheres cultas não costuma haver barreiras. E entre homens também
não, acho.
- Francesca: Sinceramente, não sei, mas acho que cada um de nós se exprime à sua
maneira, seja homem ou mulher. E nada é mais cômodo do que falarmos na nossa língua.
(...)
- John: De fato, estou começando a achar que vocês três deviam se unir para reconstruir
uma nova e harmoniosa Torre de Babel, onde todos falássemos a mesma língua à sombra
da árvore do bem.
- Delfine: Aí está uma boa idéia.
(...)
- John: Mas o melhor já encontramos, por acaso, nesta fórmula fabulosa.
- Delfine: Fórmula fabulosa? Do que está falando, comandante?
- John: De que seria senão desta intercomunicação poliglota? Não a acha extraordinária?
- Delfine: Extraordinária?
- John: Brindemos a isso!
(Manoel de Oliveira, Um filme falado, 2003)
*
A questão da tradução, quase como um prolongamento da questão da
comunicação, tem sido um tema de relevância nos estudos desconstrutores e isso
se deve porque o tema em questão, partindo da impossibilidade de comunicação –
pois, desde Walter Benjamin, já se sabe que “aquela tradução que quisesse
comunicar, nada comunicaria senão a comunicação”
931
– entrelaça-se com a
questão fatal do monolingüismo. Portanto, pode-se imaginar que a tradução como
questão filosófica, expressa nos textos “Qu’est-ce qu’une traduction relevante” e
931
BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor”. In: Cadernos do Mestrado / Literatura, 2
a
. edição. Rio
de Janeiro: UERJ, 1994, p. 9.
375
“Des tours de Babel”, tenha como tríplice antecipação o texto específico de
Benjamin sobre “A tarefa do tradutor”, a questão da língua de O monolingüismo
do Outro e o problema da comunicação como antecipada em “Assinatura
acontecimento contexto”. E pensar esta relação é o objetivo desta prova.
monolingüismo
Ao final de seu “Monolingüismo”, Derrida sintetiza as questões que parecem ser
cruciais para se pensar a língua de um ponto de vista desconstrutor: pergunta-se
ele: “como é possível que a única língua que este monolingüismo fala e seja
destinado a falar, para todo o sempre, como é possível que ela não seja a sua?”; ou
ainda: “como crer que ela permanece muda para aquele que a habita e que ela
habita o mais próximo, que ela permanece longínqua, heterogênea, inabitável e
deserta?”; e mais: “deserta como um deserto no qual é preciso fazer crescer,
construir, projetar até a idéia de uma estrada e o traço de um retorno, uma outra
língua ainda?”
932
.
O texto de 1996, que estampa a emblemática afirmação em que se ouvem
os ecos das considerações sobre Nietzsche retumbarem – “Se eu tivesse que
arriscar, Deus me guarde, uma única definição da desconstrução, breve, elíptica,
econômica, como uma palavra de ordem, eu diria: mais de uma língua
933
, que
traz consigo a afirmação inspirada em Nietzsche de que é preciso falar várias
línguas e escrever vários textos simultaneamente – foi escrito sob a forma de um
diálogo, portanto, um texto em que se entrecosturam a relação com o outro, a
ficção e a autobiografia, assumindo desde o início tratar-se de uma estória escrita
por um franco-magrebino apaixonado por uma certa língua e a história de sua
inscrição violenta nesta língua, a francesa. Interessando-se pelas tensões e pelas
questões (do) limite, Derrida compreende o caráter afirmativo da desconstrução
não como uma simples positividade, oposta à negatividade, mas através de um
“sim” ao paradoxo. Diz Derrida: “é disso que a desconstrução é feita: não uma
mistura, mas uma tensão entre memória, fidelidade, preservação de alguma coisa
que nos foi dada, e, ao mesmo tempo, heterogeneidade, alguma coisa
932
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996, pp. 108-109.
933
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 113.
376
absolutamente nova, e uma ruptura”
934
, o que caracterizaria o lugar da
desconstrução em uma certa “dobra” da língua e sua tarefa como assumir a paixão
por esta dobra ou esta divisão, que persiste para manter a dimensão intrínseca à
língua do segredo.
O texto de Tatiana Grenha “Derrida e la question la plus fatale
935
trata
justamente desta dimensão do segredo da língua e remete à leitura de Paixões, em
que, antes do Monolingüismo, Derrida já apresentaria esta dimensão do segredo
como uma “experiência de interdição na ordem da linguagem(...). Sendo aquilo
que na dimensão da língua não se entrega, que resiste à própria dimensão de
decifração”
936
, enfim, o segredo que permanece sempre secreto. Como se viu,
esta dimensão do segredo não se limita à esfera da dissimulação, pois ele está
sempre além do jogo de velamento / desvelamento por ser um segredo sem
conteúdo, não tendo o que mostrar nem o que esconder. Para Derrida, tal é a
estrutura da língua, que se mostra como uma “cripta indecifrável” na qual “o
segredo não dá lugar a processo algum. Nem é um ‘efeito de segredo’. Ele pode
dar-lhe lugar na aparência (e até o faz sempre), pode se prestar a isso, mas nunca
se rende a isso”
937
. Nos termos derridianos, uma lógica nova que vem disjuntar a
lógica do cálculo, da prestação de contas, do velar / desvelar que rege a filosofia, a
moral e religião etc. Tratar do intratável consiste então o desafio de Derrida, o
que, nos meus termos, significa abrir espaço à umidade do úmido no pensamento
que aqui se expressa sob a língua de um segredo insustentável, mas ao qual se
deve respeito: “quer o respeitemos, quer não, o segredo fica lá, impassível, à
distância, fora, do alcance. Mas não se pode deixar de respeitá-lo, quer desejemos,
quer não, quer saibamos, quer não”
938
. O úmido é o segredo e a umidade do
úmido à qual tento aqui tanto fazer justiça nada mais é que esta dimensão secreta
do segredo, que sempre escapará a qualquer manipulação, mas que, por outro
lado, não se pode deixar de respeitar, pois sempre diz respeito ao pensamento,
sempre o concerne e, por isso, uma forma de pensamento mais justa seria aquela
934
CAPUTO, J. Deconstruction in a nutshell: a conversation with Jacques Derrida. New York:
Fordham University Press, 1997, p. 6.
935
GRENHA, T. “Derrida e la question la plus falate”. In: DUQUE-ESTRADA, P.C. (org.)
Desconstrução e ética: ecos de Jacques Derrida.
936
GRENHA, T. “Derrida e la question la plus falate”, p. 159.
937
DERRIDA, J. Paixões. Campinas: Papirus, 1995, p. 46. Citado por GRENHA, T. “Derrida e la
question la plus falate”, p. 159.
938
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 46.
377
que levasse em consideração este respeito, esta responsabilidade insuportável que
o segredo, a umidade do úmido, impõe-se em seu monolingüismo.
Esta língua do segredo – do úmido – entretanto, só se “mostra” através
desta minha língua, desta que eu creio ser minha, que eu creio manipular, que eu
tenho a pretensão de ser quase como uma matéria prima. Nesse caso, no meu, o
português: e é na borda dessa língua, ou seja, na tensão da língua, às suas margens
que eu posso habitar, pois ela me pertence sem me pertencer, eu sou dela sendo
estranho a ela, e ela é minha sempre me escapando e me desapropriando de mim
mesmo e desapropriando-se de mim. É neste estranho lugar que dá a relação de
duas ficções: sujeito e língua, eu e minha língua etc., e a dificuldade do texto
derridiano consiste no fato de o autor se situar, ou melhor, assumir esta borda
como seu lugar de narração: Derrida escreve (-se) neste limite da língua, nesta
tensão entre o “dentro” e o “fora”, nem dentro nem fora da língua, dela amante e
ressentido, invejoso e apaixonado, querendo dela se apropriar para apropriar-se de
si.
Só se tem uma língua, a princípio. O que constitui o monolingüismo, ou
ainda, o que constitui o sujeito pelo monolingüismo. No entanto, como essa língua
não pertence a ninguém, jamais será uma língua de um sujeito, Derrida chega a
afirmar que se é monolingüe e fala-se apenas uma língua sem que esta lhe
pertença. E isso é o que caracteriza a “fúria apropriativa” da língua ou da
escritura, que, agora, é definida como um “certo modo de apropriação apaixonada
e desesperada da língua”
939
. Esta língua que, sendo de tal modo única e
singularmente minha, não é, nunca foi e nem será minha é uma língua dividida,
desde sempre interditada, que frustra a cada instante meu desejo de fazer justiça às
coisas, ou seja, de falar, o desejo de adequação, é o que “guarda” o impossível no
coração de toda língua: e o que se chama aqui língua não é mais uma ou
determinada língua, mas a “minha língua” que todos são capazes de falar, a
estrutura de ser e não ser minha de toda língua. Em uma palavra: a escritura. E, no
entanto, se quer falar, se precisa falar e desejar fazer justiça a isto que, pela
própria língua, me é interditado; falo por desejo, por uma promessa que a língua
comporta, um messianismo que me faz crer que um dia conseguirei ser preciso,
conseguirei dar conta e exprimir o inexprimível – e tal “fúria apropriativa’ me faz
939
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 59.
378
perseguir louca e apaixonadamente esta promessa, em um movimento da língua
que mescla amor, desespero, esperança, fé, paixão e desejo. É nesse sentido que
Grenha afirma que “esse movimento de apropriação, essa fúria desejante da
língua, Derrida o concebe como uma lei, ou melhor, como a lei a que todo
discurso está submetido”
940
. Nos termos do filósofo: “a língua fala esta inveja, a
língua não é outra coisa senão a inveja desatada. Ela empreende a sua revanche no
coração da lei. Da lei que é ela mesma, a língua, e louca. Louca dela mesma.
Louca do desejo de atar, de apropriar”
941
. Esta “lei da língua” em O
monolongüismo do outro dissemina-se em uma dupla lei que diz que, ao mesmo
tempo, só se fala uma só língua e que junca se fala uma só língua, pois toda língua
traz sempre consigo a marca do estrangeiro: não se fala uma só língua porque toda
língua é desde sempre interditada, mesmo – e sobretudo – a língua dita “materna”,
sendo sempre estrangeira a quem se pensa dela falante; ao mesmo tempo, só se
fala uma língua, pois a soberania da língua se impõe ao falante como única lei a
ser seguida, o que configura o inevitável monolingüismo do outro:
O monolingüismo do outro quer dizer ainda outra coisa, que se descobrirá pouco
a pouco: que de todas as maneiras não se fala mais de uma língua – e que esta,
não a possuímos. Nunca se fala mais que uma língua, e esta, a voltar sempre ao
outro, é, dissimetricamente, do outro, o outro a guarda. Vinda do outro,
permanece no outro, volta ao outro.
942
A alteridade irredutível da língua configura-a sempre como sendo minha e, ao
mesmo tempo, estrangeira, própria e desde sempre desapropriada. A língua é a
língua do outro, ou melhor, é a própria vinda do outro, sua emergência como
alteridade absoluta e radical que, por sua interdição, me será sempre inalcançável.
Esta língua do outro que configura meu monolingüismo dobra a minha
língua segundo sua dupla lei e me obriga a falar apenas nesta borda, neste limite
impreciso que não permite que se distinga em que medida este monolingüismo é
meu ou é do outro. Monolingüismos embaralham-se nestas fronteiras, que não
deixam de ser fronteiras, mas que, por isso, por este processo de embaralhamento,
não permitem mais nenhuma propriedade ou identidade precisa, caracterizando o
940
GRENHA, T. “Derrida e la question la plus falate”, p. 154.
941
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 46. A tradução portuguesa de Fernanda
Bernardo atenta para o fato de que a expressão “Folle de lier”, em seu uso corrente, significa, além
do literal “louca para atar”, também “doida varrida” (DERRIDA, J. O monolinguismo do outro,
trad. Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001).
942
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 59.
379
que Derrida chama de uma “ex-apropriação da língua”. Movimento também duplo
que, desapropriando-me de toda identidade ou pretensa autenticidade, contudo,
me convoca, me obriga a permanecer nesta borda e respeitar este segredo, a correr
cegamente atrás deste impossível ao qual se deseja tanto fazer justiça. E no
entrecruzamento destes monolingüismos no qual escrevo meu monolingüismo,
que me sendo completamente estrangeiro não deixa de ser meu, ao contrário,
tendo nesta estrangeridade a única possibilidade de se pensar em identidade ou
singularidade, línguas se falam e se escrevem, confundem-se, contaminam-se e,
somente assim, é possível que haja disseminação, proliferação de idiomas e, com
isso, que se fale mais de uma língua ao mesmo tempo.
babéis
Se a noção de tradução consiste no transporte de um conteúdo original de uma
língua materna para outra língua, podemos pensar que aí residem inúmeros
equívocos: a noção de transporte, que imprescinde de uma verdade; a idéia de
conteúdo como presença; a pressuposição de uma originariedade; e a idéia de uma
língua própria. É, por isso, uma discussão em que os temas da metáfora, da
comunicação, da ficcionalidade e do monolingüismo se encontram e tornam a
questão ainda mais problemática do que já era para seu primeiro grande crítico,
Benjamin. Tal é a razão que, para Derrida, a tradução torna-se um problema que
diz respeito ao coração mesmo da filosofia, em que ela toda está em jogo e o
exemplo desta situação paradoxal encontra-se na fábula bíblica de Babel. Para
resumir a escritura, cito Geoffrey Bennington:
O Gênese conta como a tribo dos Shem (a palavra Shem significa nome em
hebraico) quis tornar seu nome famoso, edificando uma torre e impondo
unicamente a sua língua a todos os povos da terra. Para puni-los por essa ambição
excessiva, Javé destruiu a torre gritando seu nome “Bavel” ou “Babel”, que
(confusamente) se parece com a palavra hebraica que quer dizer “confusão”, e
impôs a diferenciação lingüística em toda a terra. (...) Ao impor seu nome
(confusamente percebido como “confusão”) contra o nome do nome (Shem), deus
impõe, desde então, a necessidade e a impossibilidade da tradução. A dispersão
das tribos e das línguas sobre a terra os condenará à confusão, logo, à necessidade
de se entretraduzir sem jamais conseguir alcançar a tradução perfeita, o que
significaria a imposição de uma única língua. Nesse meio de relativa confusão,
resultado de uma tradução confusa do nome de Deus, estamos condenados, não a
uma total incompreensão, nem a uma pura intraduzibilidade, mas a um trabalho
de tradução que jamais estará completo. Como a confusão absoluta é impensável
380
assim como a incompreensão absoluta, o texto está por definição “situado” neste
meio, e, portanto, todo texto reclama uma tradução que jamais será feita.
943
Sobre isso, Derrida, na mesa-redonda que se seguiu à sua exposição de
“Otobiografias”, na Universidade de Montreal em 1979, relaciona a tradução à
decisão, portanto ao cálculo, e parece encaminhar a questão para o “campo” da
indecidibilidade.
Para o filósofo, quando Javé interrompe a construção da torre e condena a
humanidade à multiplicidade de linguagens, é “a necessária e impossível tarefa de
tradução”
944
que está entrando em cena. Isso se dá porque, com a declaração de
guerra de Deus à tribo, ou seja, de Babel aos semitas, ou, ainda mais, da Confusão
ao Nome, com a maldição que impõe que haja singularidades, há algo que sempre
permanecerá intraduzível: a estranheza mesma da singularidade de cada língua.
Derrida dá o exemplo do conto “Pierre Ménard” de Jorge Luis Borges
945
. No
conto, o autor cria um personagem fictício que desejava escrever, pela primeira
vez, “Dom Quixote” – e nota-se que o personagem não queria escrever uma
versão, mas sim o original. O conto está escrito em espanhol, mas é marcado por
uma atmosfera estritamente francesa: “Pierre Ménard é um francês, a estória
acontece em Nîmes e há todo tipo de ressonâncias que levam Borges a escrever
seu texto em uma língua espanhola que é muito sutilmente marcada por uma certa
francesidade”
946
. Quando Derrida ouvira um comentário sobre esse texto, dizendo
que no fim das contas a tradução francesa pareceria bem mais fiel que o original,
ele disse que sim e que não, primeiro pelo fato de não haver “originalidade” no
original, por não se acreditar mais na primazia da língua materna, como também
pelo fato de, na tradução, ter se perdido à estranheidade que a língua francesa
operava no espanhol. E conclui: “a tradução pode fazer tudo, menos marcar esta
diferença lingüística inscrita na linguagem”
947
. E, certamente, esta é a “moral”
943
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pp. 124-125. Vale lembrar que o tema da tradução parece
ser um dos mais abordados nas leituras derridianas dos departamentos de letras. Ainda que em
perspectiva mais lingüística ou literária, remeto aos artigos “A ética da palavra e o trabalho de
luto” (SKINNER, A.), “Derrida: entre a língua e o idioma. O primeiro pensador da tradução”
(OTTONI, P.) e “Desertos, senhas e miragens: a tradução e o pensamento derridiano”
(GLENADEL, P.), todos em Jacques Derrida: pensar a desconstrução.
944
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”. In: The ear of the other. Otobiography,
transference, translation. Lincoln and London: University of Nebrasca Press, 1985, p. 98.
945
BORGES, J.L. “Pierre Ménard, autor de Quijote”. In: Ficciones. Madrid: Alianza Editorial,
2001.
946
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 99.
947
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 100.
381
que Derrida retira do relato bíblico, uma certa “impureza” presente em cada
língua, uma impureza que é de tal modo sua que quase se assemelha a uma
originalidade e que é o que impossibilita a tradução perfeita – e é isso também que
faz com que Derrida veja no exemplo de Babel uma “epígrafe para todas as
discussões sobre tradução”, tanto por seu tema, que confronta o nome próprio, ou
seja, o desejo de propriedade da língua, com a confusão mais própria que a
propriedade do nome, como pelo próprio relato, que, ao se traduzir para qualquer
língua, ao pretender se ajustar a qualquer outra língua perde seu jogo de nomes e
de palavras que compõem a trama do relato.
Uma primeira observação dirige-se à tribo de Shem, ou melhor, à tribo do
Nome. Eles pretendiam conquistar um nome para si e carregar, assim, o nome do
nome, e impondo sua língua a todos os outros povos, seu nome reinaria sobre
todos os nomes e sua língua seria a única a ser falada. O nome do nome é,
portanto, o nome: o mais próprio que pretende ver sua identidade estendida a
todos os outros, e, através da imposição de sua língua, a vitória do mesmo sobre o
outro. Então intervém Deus, que derruba a torre, impondo seu nome, o nome de
Deus, à torre. Ele, Javé, grita seu nome, não seu nome dado, mas seu nome por si
escolhido, seu nome “próprio” – o que demonstra sempre um duelo entre nomes
próprio: a guerra de Deus contra os semitas dá-se pela destituição do nome
“Shem” por “Babel”, o nome da torre destruída. Além disso, o nome escolhido de
Deus, “Babel” confronta-se com seu nome dado pelos hebreus “Javé” e, nesse
sentido, o nome “Babel”, substantivo comum tornado próprio, a confusão
maiusculada, destitui, de uma só vez, o nome próprio de Deus (que nunca foi
próprio, mas que, agora, mais que nunca, significando “confusão” não pode ser de
modo algum apropriável), o nome da torre (que é destruída ao ser nomeada,
passando a chamar-se, em meio aos escombros, “confusão”, ou seja, que só passa
a ser algo no momento de nomeação, que é, ao mesmo tempo, o momento de
destituição de qualquer propriedade), e o nome do povo (que se chamava “nome”
e que agora não possui mais nome, por ter sido vencido pelo nome e pela
confusão de Deus, pelo nome da confusão e de Deus, por Deus e pelo nome da
confusão...). E tudo isso acontece apenas no simples ato de Deus dizer: Babel.
Derrida então aponta o problema de se traduzir “Babel” por “confusão”,
porque assim se estaria traduzindo um substantivo próprio por um comum. Mas,
assim, pode-se entender que Deus esteja declarando guerra aos homens
382
justamente no momento em que os força a traduzirem seu nome por um nome
comum e, com isso, condena-os a uma multiplicidade de línguas.
Traduzam meu nome, diz Ele, mas ao mesmo tempo Ele diz: vocês não
conseguirão traduzir meu nome porque, em primeiro lugar, é um nome próprio e,
em segundo, o meu nome, o nome que eu próprio escolhi para esta torre, significa
ambigüidade, confusão, et cetera. Assim, Deus, em sua rivalidade com a tribo dos
Shems, dá-lhes, em um certo modo, um comando absolutamente duplo. Ele
impõe um duplo vínculo [double bind] a eles quando diz: traduzam-me e, o que é
mais importante, não me traduzam. Eu desejo que vocês me traduzam, que vocês
traduzam o nome que eu impus a vocês; e, ao mesmo tempo, o que quer que
vocês façam, não o traduzam, vocês não serão capazes de traduzi-lo.
948
Derrida, com isso, apresenta Deus como o desconstrutor da torre de Babel, pois
ele interrompe a construção. Ele interrompe a construção no próprio ato de
interditar a tradução: e interditar a tradução significa aqui ordenar e proibir;
significa dizer “que haja tradução” e advertir que a tradução será sempre
impossível.
discheminação
O neologismo de Derrida – como todos os seus – segue a lógica do duplo vinculo
babélico: deve-se traduzi-lo sabendo que é intraduzível; além disso, deve-se
traduzi-lo preservando sua estranheidade, sua inadaptação à língua, inclusive à sua
“materna”; e também se deve traduzi-lo de modo a preservar a estrangeridade
infiltrada no que seria a língua materna, o hebraico no francês e, agora, no
português. Discheminação é o ato de, segundo Derrida, Deus dizer: “vocês não
imporão seu significado ou sua língua, e eu, Deus, obrigo-os a submeterem-se à
pluralidade de línguas da qual vocês nunca conseguirão sair”
949
; mas é também,
ao mesmo tempo, disseminação, desesquematização, de-“semitização” e
desencaminhamento (de de-chemin, descaminho). O que Derrida pretende mostrar
é que o texto “original” é o texto sagrado e que, por isso, como diz Benjamin em
“A tarefa do tradutor”, todo o esforço de tradução é exemplificado pelo gesto de
se traduzir para uma língua a sagrada escritura – “pois todos os grandes escritos,
em qualquer grau, e a Sagrada Escritura em grau máximo, contêm nas entrelinhas
948
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 102.
949
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 103.
383
sua tradução virtual. A versão interlinear do texto sagrado é o arquétipo ou o ideal
de toda tradução”
950
. Isto porque um texto sagrado é, por excelência, um texto
intraduzível, um texto que tem como estrutura interna um segredo que não pode
ser contado – e, segundo Derrida: “a única coisa que se pode fazer quando se
traduz um texto sagrado é lê-lo entre as linhas, entre as suas linhas. Benjamin diz
que esta leitura ou esta versão intralinear do texto é o ideal de toda tradução: a
pura traduzibilidade
951
.
Disto, pode-se entender o interesse de Derrida na teoria de Benjamin que
afirma que a tarefa do tradutor é, de certa maneira, tentar preservar a “impureza
original” do texto, o que consiste em pensar a tradução como sobrevida do texto:
nem vida nem morte, o texto traduzido não dá vida ao “original”, animando-o,
nem é o seu fim; é justamente o fim destas duas opções em uma indecidibilidade
única que apenas o tradutor herda. O tradutor, e não a tradução, é o protagonista
da teoria benjaminiana: é quem está infinitamente endividado com o texto
“original” e que se sabe submetido à sua lei; além disso, é aquele que deve
empreender a tradução de uma maneira justa, isto é, sem reproduzir, representar
nem copiar o original, o que seria um desrespeito às singularidades das línguas.
Com isso, não se deve ater à preocupação em comunicar ou transmitir a ess6encia
ou a verdade do original, já que, para Benjamin, tradução não tem nada a ver com
comunicação nem com informação. A única relação que a tradução mantém com o
original é a de sobrevivência, pois a única maneira do texto sobreviver é através
de sua tradução, uma justa tradução que preserve tanto a sua lei interna (de
intraduzibilidade) como à pluralidade das línguas que Babel impôs.
A tradução é, por isso, no sentido benjaminiano, o que possibilita que se
entreveja, na sobrevida, a “linguagem pura”. Esta linguagem pura, longe de querer
dizer uma originariedade ou pureza que uma língua possuiria, seria o que torna
uma linguagem linguagem, ou seja, o fato de que “há linguagem”. E este
sentimento de haver linguagem, haver a multiplicidade babélica de línguas, só se
dá através da experiência da tradução, mas precisamente, a experiência da
impossibilidade da tradução e o esforço para este empreendimento, mesmo
sabendo-o impossível. Este seria o maior aprendizado que se tem da tradução –
um esforço para se persistir na impossibilidade, aprendendo que o fracasso é o
950
BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor”, p. 32.
951
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 103. Grifo meu.
384
único trunfo a se obter. Tradução, portanto: sobrevida de um texto legado, de uma
herança, representação máxima da inadequação de uma língua a outra; tradução
da tradução: “o mito da origem do mito, a metáfora da metáfora, a narrativa da
narrativa”
952
. Esta experiência do tradutor – do texto sagrado – reproduz a própria
experiência da filosofia da qual o filósofo se esquiva: deve-se aprender a lidar
com o não-acabamento, com a impossibilidade mesma de completude, de
totalização, de saturação, de edificação – enfim, de secura.
Mas, de fato, na hora de escrever, de falar, de agir, só resta a decisão, o
cálculo e, com isso, a construção e a secura. Escrever, agir e falar pressupõe
certamente uma dose inevitável de cálculo e é por essa razão que uma escrita
impossível, isto é, úmida, deve assumir esta experiência da tradução (de ter que
traduzir sem poder traduzir) como sua tarefa: deve, portanto, assumir-se
constructo e negociar com a secura. Eis um verdadeiro aprendizado que, via
Derrida, busco incessantemente herdar de Benjamin: minha negociação, meu
fracasso.
Muito rapidamente: no instante mesmo em que pronunciamos Babel,
experimentamos a impossibilidade de decidir se esse nome pertence,
propriamente e simplesmente, a uma língua. E o que importa é que essa
indecidibilidade elabore uma luta pelo nome próprio no interior de uma cena de
dívida genealógica. Procurando “se fazer um nome”, fundar ao mesmo tempo
uma língua universal e uma genealogia única, os Semitas querem colocar a razão
no mundo, e essa razão pode significar simultaneamente uma violência colonial
(pois eles universalizariam assim seu idioma) e uma transparência pacífica da
comunidade humana. Inversamente, quando Deus lhes impõe e opõe seu nome,
ele rompe a transparência racional, mas interrompe também a violência colonial
ou o imperialismo lingüístico. Ele os destina à tradução, ele os sujeita à lei de
uma tradução necessária e impossível; por conseguinte, do seu nome próprio
traduzível-intraduzível, ele libera uma razão universal (esta não será mais
submetida ao império de uma nação particular), mas ele limita por isso a
universalidade mesma: transparência proibida, univocidade impossível. A
tradução torna-se a lei, o dever e a dívida, mas a dívida que não se pode mais
quitar. Tal insolubilidade encontra-se marcada diretamente no nome de Babel:
que ao mesmo tempo se traduz e não se traduz, pertence sem pertencer a uma
língua e endivida-se junto dele mesmo de uma dívida insolvente, ao lado dele
mesmo como outro. Tal seria a performance babélica.
953
*
952
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 11.
953
DERRIDA, J. Torres de Babel, pp. 25-26.
385
Pode-se, então, a partir deste aspecto “etico-político” que a experiência de (in)
traduzibilidade da tradução ensina – qual seja, o fim de certo “colonialismo” do
logos, da imposição de certa língua, isto é, uma verdade, como absoluta –, sempre
por uma estranha analogia, pensar certa ética ou política que a experiência de
assunção da umidade do úmido pode comportar. Tentar falar várias línguas ao
mesmo tempo, permitir que várias línguas falem ao mesmo tempo em um texto,
podem abrir espaço para uma experiência da hospitalidade na própria escritura.
Por certo, meu projeto abandonado parece sempre ressoar, mesmo agora,
quando pretendo ter abandonado o campo da ética rumo a um pensamento mais
teorético
954
. Em “Mal de hospitalidade”, Fernanda Bernardo alinhava
cuidadosamente tradução e acolhimento, de modo a mostra que a tradução seria “a
experiência enigmática do acolhimento do estrangeiro, da língua de um outro – e
isso a começar na cena da apropriação ex-apropriante da língua dita própria ou
materna –, tanto quanto a experiência da invenção e da transação a que sempre ela
nos obriga”
955
. Lembrando a quase-definição que Derrida apresenta para
desconstrução – “mais de uma língua” – pode-se assim equacionar que
desconstrução é tradução; sendo esta a experiência mesma da hospitalidade, a
condição do acolhimento em geral, pode-se pensar que a umidade da
desconstrução é sinônimo de um pensamento acolhedor por excelência. E é a esta
relação a ser ainda “propriamente” pensada – que não cabe aqui precisar, mas
apenas apontar futuros desdobramentos – que me deterei como conclusão a esta
prova.
Certa vez, ao escrever sobre a poesia do amigo, Lévinas referiu-se à
“poesia de Derrida” (com a qual se encontraria “no coração de um quiasma”
956
),
o que mais tarde ecoaria de modo assustador nos textos derridianos a partir da
década de oitenta, em que as letras levinasianas são bem mais retomadas, quando,
por exemplo, Derrida chega a dizer que “um ato de hospitalidade só pode ser
poético”
957
. Este pensamento que só pode ser poético é um pensamento que,
assim, mescla metaforicidade (alegoria e estilo), ficcionalidade, traduzibilidade e
autobiografia como possibilidades de se dar conta desta alteridade, delineando,
954
Sobre isso remeto ao meu livro Da existência ao infinito: ensaios sobre Emmanuel Lévinas.
955
BERNARDO, F. “Mal de hospitalidade”. In: Jacques Derrida: pensar a desconstrução, p. 174.
956
LÉVINAS, E. “Jacques Derrida; Wholly Otherwise”. In: Proper Names. Califórnia: Stanford
University Press, 1996, p. 56.
957
DERRIDA, J. Da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003, p. 04.
386
para além de um pensamento da hospitalidade, a filosofia como hospitalidade, isto
é, como tradução. A filosofia, portanto, como a co-habitação de várias vozes em
uma, de várias palavras em uma, de várias línguas em uma, definindo-se de
acordo com a máxima do monolingüismo.
Em uma perspectiva derridiana, poder-se-ia chegar a afirmar, como
pretendo arriscar a partir do referido artigo de Fernanda Bernardo, que a filosofia
pode ser compreendida como uma longa nota de tradução. Se um idioma ou um
sintagma nunca será perfeita ou justamente traduzido para outra língua, pode-se
dizer que a tarefa de “comentador” à qual os filósofos sempre se dedicam nada
mais é que tentar “traduzir” um idioma (como, por exemplo, eu estou aqui
tentando fazer com a língua da desconstrução) para sua própria língua – ouvindo o
“traduza-me” do texto e, ao mesmo tempo, sabendo que ele é intraduzível, sempre
estranho e sempre estrangeiro. De acordo com Fernanda:
O seu próprio sentido [aqui, o das línguas filosóficas] não seria nunca
apropriadamente transportável para a nossa língua sem o resto e, por isso, sem
pelo menos uma nota de tradução. Uma nota de tradução a assinalar-lhe a
restança e, portanto, a idiomaticidade a incomensurável singularidade e a
resistência encarniçada à tradução – a sua recusa em passar ou transpor a fronteira
dessa instância universalizante que é a língua, e em deixar-se de todo acolher
numa outra – a nossa nesse caso. Uma recusa que é, no mesmo lance, um apelo
tão desesperado quanto infinito à tradução.
958
Desse modo, o trabalho de um pensamento que se pretende minimamente úmido
deve atentar a esta especificidade de leitura que a desconstrutora ensina:
transportando-se, com todos os equívocos e estranhamentos, suas palavras sobre a
nota de tradução de um idioma a outro para minha língua nesta tese, neste simples
ato de traduzir seu texto, pode-se entrever a extensão de um pensamento como o
de Derrida, no qual esta simples nota (de tradução) põe em cena a própria ruína da
tradução – o que, então, diz respeito ao fracasso do pensamento.
O pensamento mais justo seria, assim, o que assume seu fracasso, o que,
ecoando as palavras de Lévinas, pode fazer pensar os perigos de um pensamento
triunfante, a que ponto um triunfo do pensamento ou de uma verdade pode chegar
– como atestou Auschwitz. E, ao contrário do que diria um maldoso leitor, isso
não conduz a um niilismo nem a qualquer inércia. Ao invés disso, o clamor
“divino” que o texto impõe (“traduza-me!”) – quase como um “decifra-me ou
958
BERNARDO, F. “Mal de hospitalidade”, p. 188.
387
devoro-te”, e digo quase porque, apesar das incansáveis tentativas, o texto é
sempre críptico, sempre indecifrável, mas também porque ele sempre me
devorará, querendo eu ou não –, este imperativo constrange qualquer pretensão de
propriedade de minha parte que, como os Shem, sou obrigado a enfrentar a
multiplicidade de línguas e, por isso, como herdeiro de Abraão, só posso dizer
“sim”. Afirmatividade frente ao estrangeiro que, no fim das contas, dita-me meu
monolingüismo e do qual não se pode nem se deve fugir, apenas abrir as portas e
às línguas.
5
quarta prova
“um texto permanece, aliás, sempre imperceptível”
- Delfine: A felicidade do marinheiro é como a do peixe?
- John: Exatamente, precisamente como a do peixe. Com a diferença de que ele respira na
água e nós não conseguimos.
- Delfine: Respira, mas não fala.
- Helena: O que o impede de dar a sua opinião.
- John: Visto que não fala, não pode dar opinião. Mas com certeza tem outros meios de se
comunicar.
- Delfine: É possível. Mas também nós nos comunicamos de forma estranha.
- John: Estranha como?
- Delfine: Sim. Estranha, inédita, insólita. De maneira muito pouco normal. Não notou
que nesta mesa cada um fala a sai própria língua e que viemos todos de países onde se
falam línguas diferentes?
- Francesca: E o mais esquisito é tudo parecer tão natural.
- Delfine: Natural, mas também de estranha coincidência.
- Helena: Coincidência?
- Delfine: Sim. Compreendemo-nos todos tão bem e facilmente.
- Helena: Entre mulheres cultas não costuma haver barreiras. E entre homens também
não, acho.
- Francesca: Sinceramente, não sei, mas acho que cada um de nós se exprime à sua
maneira, seja homem ou mulher. E nada é mais cômodo do que falarmos na nossa língua.
(...)
- John: De fato, estou começando a achar que vocês três deviam se unir para reconstruir
uma nova e harmoniosa Torre de Babel, onde todos falássemos a mesma língua à sombra
da árvore do bem.
- Delfine: Aí está uma boa idéia.
(...)
- John: Mas o melhor já encontramos, por acaso, nesta fórmula fabulosa.
- Delfine: Fórmula fabulosa? Do que está falando, comandante?
- John: De que seria senão desta intercomunicação poliglota? Não a acha extraordinária?
- Delfine: Extraordinária?
- John: Brindemos a isso!
(Manoel de Oliveira, Um filme falado, 2003)
*
A questão da tradução, quase como um prolongamento da questão da
comunicação, tem sido um tema de relevância nos estudos desconstrutores e isso
se deve porque o tema em questão, partindo da impossibilidade de comunicação –
pois, desde Walter Benjamin, já se sabe que “aquela tradução que quisesse
comunicar, nada comunicaria senão a comunicação”
959
– entrelaça-se com a
questão fatal do monolingüismo. Portanto, pode-se imaginar que a tradução como
questão filosófica, expressa nos textos “Qu’est-ce qu’une traduction relevante” e
959
BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor”. In: Cadernos do Mestrado / Literatura, 2
a
. edição. Rio
de Janeiro: UERJ, 1994, p. 9.
389
“Des tours de Babel”, tenha como tríplice antecipação o texto específico de
Benjamin sobre “A tarefa do tradutor”, a questão da língua de O monolingüismo
do Outro e o problema da comunicação como antecipada em “Assinatura
acontecimento contexto”. E pensar esta relação é o objetivo desta prova.
monolingüismo
Ao final de seu “Monolingüismo”, Derrida sintetiza as questões que parecem ser
cruciais para se pensar a língua de um ponto de vista desconstrutor: pergunta-se
ele: “como é possível que a única língua que este monolingüismo fala e seja
destinado a falar, para todo o sempre, como é possível que ela não seja a sua?”; ou
ainda: “como crer que ela permanece muda para aquele que a habita e que ela
habita o mais próximo, que ela permanece longínqua, heterogênea, inabitável e
deserta?”; e mais: “deserta como um deserto no qual é preciso fazer crescer,
construir, projetar até a idéia de uma estrada e o traço de um retorno, uma outra
língua ainda?”
960
.
O texto de 1996, que estampa a emblemática afirmação em que se ouvem
os ecos das considerações sobre Nietzsche retumbarem – “Se eu tivesse que
arriscar, Deus me guarde, uma única definição da desconstrução, breve, elíptica,
econômica, como uma palavra de ordem, eu diria: mais de uma língua
961
, que
traz consigo a afirmação inspirada em Nietzsche de que é preciso falar várias
línguas e escrever vários textos simultaneamente – foi escrito sob a forma de um
diálogo, portanto, um texto em que se entrecosturam a relação com o outro, a
ficção e a autobiografia, assumindo desde o início tratar-se de uma estória escrita
por um franco-magrebino apaixonado por uma certa língua e a história de sua
inscrição violenta nesta língua, a francesa. Interessando-se pelas tensões e pelas
questões (do) limite, Derrida compreende o caráter afirmativo da desconstrução
não como uma simples positividade, oposta à negatividade, mas através de um
“sim” ao paradoxo. Diz Derrida: “é disso que a desconstrução é feita: não uma
mistura, mas uma tensão entre memória, fidelidade, preservação de alguma coisa
que nos foi dada, e, ao mesmo tempo, heterogeneidade, alguma coisa
960
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996, pp. 108-109.
961
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 113.
390
absolutamente nova, e uma ruptura”
962
, o que caracterizaria o lugar da
desconstrução em uma certa “dobra” da língua e sua tarefa como assumir a paixão
por esta dobra ou esta divisão, que persiste para manter a dimensão intrínseca à
língua do segredo.
O texto de Tatiana Grenha “Derrida e la question la plus fatale
963
trata
justamente desta dimensão do segredo da língua e remete à leitura de Paixões, em
que, antes do Monolingüismo, Derrida já apresentaria esta dimensão do segredo
como uma “experiência de interdição na ordem da linguagem” (...). Sendo aquilo
que na dimensão da língua não se entrega, que resiste à própria dimensão de
decifração”
964
, enfim, o segredo que permanece sempre secreto. Como se viu,
esta dimensão do segredo não se limita à esfera da dissimulação, pois ele está
sempre além do jogo de velamento / desvelamento por ser um segredo sem
conteúdo, não tendo o que mostrar nem o que esconder. Para Derrida, tal é a
estrutura da língua, que se mostra como uma “cripta indecifrável” na qual “o
segredo não dá lugar a processo algum. Nem é um ‘efeito de segredo’. Ele pode
dar-lhe lugar na aparência (e até o faz sempre), pode se prestar a isso, mas nunca
se rende a isso”
965
. Nos termos derridianos, uma lógica nova que vem disjuntar a
lógica do cálculo, da prestação de contas, do velar / desvelar que rege a filosofia, a
moral e religião etc. Tratar do intratável consiste então o desafio de Derrida, o
que, nos meus termos, significa abrir espaço à umidade do úmido no pensamento
que aqui se expressa sob a língua de um segredo insustentável, mas ao qual se
deve respeito: “quer o respeitemos, quer não, o segredo fica lá, impassível, à
distância, fora, do alcance. Mas não se pode deixar de respeitá-lo, quer desejemos,
quer não, quer saibamos, quer não”
966
. O úmido é o segredo e a umidade do
úmido à qual tento aqui tanto fazer justiça nada mais é que esta dimensão secreta
do segredo, que sempre escapará a qualquer manipulação, mas que, por outro
lado, não se pode deixar de respeitar, pois sempre diz respeito ao pensamento,
sempre o concerne e, por isso, uma forma de pensamento mais justa seria aquela
962
CAPUTO, J. Deconstruction in a nutshell: a conversation with Jacques Derrida. New York:
Fordham University Press, 1997, p. 6.
963
GRENHA, T. “Derrida e la question la plus falate”. In: DUQUE-ESTRADA, P.C. (org.)
Desconstrução e ética: ecos de Jacques Derrida.
964
GRENHA, T. “Derrida e la question la plus falate”, p. 159.
965
DERRIDA, J. Paixões. Campinas: Papirus, 1995, p. 46. Citado por GRENHA, T. “Derrida e la
question la plus falate”, p. 159.
966
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 46.
391
que levasse em consideração este respeito, esta responsabilidade insuportável que
o segredo, a umidade do úmido, impõe-se em seu monolingüismo.
Esta língua do segredo – do úmido – entretanto, só se “mostra” através
desta minha língua, desta que eu creio ser minha, que eu creio manipular, que eu
tenho a pretensão de ser quase como uma matéria prima. Nesse caso, no meu, o
português: e é na borda dessa língua, ou seja, na tensão da língua, às suas margens
que eu posso habitar, pois ela me pertence sem me pertencer, eu sou dela sendo
estranho a ela, e ela é minha sempre me escapando e me desapropriando de mim
mesmo e desapropriando-se de mim. É neste estranho lugar que dá a relação de
duas ficções: sujeito e língua, eu e minha língua etc., e a dificuldade do texto
derridiano consiste no fato de o autor se situar, ou melhor, assumir esta borda
como seu lugar de narração: Derrida escreve (-se) neste limite da língua, nesta
tensão entre o “dentro” e o “fora”, nem dentro nem fora da língua, dela amante e
ressentido, invejoso e apaixonado, querendo dela se apropriar para apropriar-se de
si.
Só se tem uma língua, a princípio. O que constitui o monolingüismo, ou
ainda, o que constitui o sujeito pelo monolingüismo. No entanto, como essa língua
não pertence a ninguém, jamais será uma língua de um sujeito, Derrida chega a
afirmar que se é monolingüe e fala-se apenas uma língua sem que esta lhe
pertença. E isso é o que caracteriza a “fúria apropriativa” da língua ou da
escritura, que, agora, é definida como um “certo modo de apropriação apaixonada
e desesperada da língua”
967
. Esta língua que, sendo de tal modo única e
singularmente minha, não é, nunca foi e nem será minha é uma língua dividida,
desde sempre interditada, que frustra a cada instante meu desejo de fazer justiça às
coisas, ou seja, de falar, o desejo de adequação, é o que “guarda” o impossível no
coração de toda língua: e o que se chama aqui língua não é mais uma ou
determinada língua, mas a “minha língua” que todos são capazes de falar, a
estrutura de ser e não ser minha de toda língua. Em uma palavra: a escritura. E, no
entanto, se quer falar, se precisa falar e desejar fazer justiça a isto que, pela
própria língua, me é interditado; falo por desejo, por uma promessa que a língua
comporta, um messianismo que me faz crer que um dia conseguirei ser preciso,
conseguirei dar conta e exprimir o inexprimível – e tal “fúria apropriativa’ me faz
967
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 59.
392
perseguir louca e apaixonadamente esta promessa, em um movimento da língua
que mescla amor, desespero, esperança, fé, paixão e desejo. É nesse sentido que
Grenha afirma que “esse movimento de apropriação, essa fúria desejante da
língua, Derrida o concebe como uma lei, ou melhor, como a lei a que todo
discurso está submetido”
968
. Nos termos do filósofo: “a língua fala esta inveja, a
língua não é outra coisa senão a inveja desatada. Ela empreende a sua revanche no
coração da lei. Da lei que é ela mesma, a língua, e louca. Louca dela mesma.
Louca do desejo de atar, de apropriar”
969
. Esta “lei da língua” em O
monolongüismo do outro dissemina-se em uma dupla lei que diz que, ao mesmo
tempo, só se fala uma só língua e que junca se fala uma só língua, pois toda língua
traz sempre consigo a marca do estrangeiro: não se fala uma só língua porque toda
língua é desde sempre interditada, mesmo – e sobretudo – a língua dita “materna”,
sendo sempre estrangeira a quem se pensa dela falante; ao mesmo tempo, só se
fala uma língua, pois a soberania da língua se impõe ao falante como única lei a
ser seguida, o que configura o inevitável monolingüismo do outro:
O monolingüismo do outro quer dizer ainda outra coisa, que se descobrirá pouco
a pouco: que de todas as maneiras não se fala mais de uma língua – e que esta,
não a possuímos. Nunca se fala mais que uma língua, e esta, a voltar sempre ao
outro, é, dissimetricamente, do outro, o outro a guarda. Vinda do outro,
permanece no outro, volta ao outro.
970
A alteridade irredutível da língua configura-a sempre como sendo minha e, ao
mesmo tempo, estrangeira, própria e desde sempre desapropriada. A língua é a
língua do outro, ou melhor, é a própria vinda do outro, sua emergência como
alteridade absoluta e radical que, por sua interdição, me será sempre inalcançável.
Esta língua do outro que configura meu monolingüismo dobra a minha
língua segundo sua dupla lei e me obriga a falar apenas nesta borda, neste limite
impreciso que não permite que se distinga em que medida este monolingüismo é
meu ou é do outro. Monolingüismos embaralham-se nestas fronteiras, que não
deixam de ser fronteiras, mas que, por isso, por este processo de embaralhamento,
não permitem mais nenhuma propriedade ou identidade precisa, caracterizando o
968
GRENHA, T. “Derrida e la question la plus falate”, p. 154.
969
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 46. A tradução portuguesa de Fernanda
Bernardo atenta para o fato de que a expressão “Folle de lier”, em seu uso corrente, significa, além
do literal “louca para atar”, também “doida varrida” (DERRIDA, J. O monolinguismo do outro,
trad. Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001).
970
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre, p. 59.
393
que Derrida chama de uma “ex-apropriação da língua”. Movimento também duplo
que, desapropriando-me de toda identidade ou pretensa autenticidade, contudo,
me convoca, me obriga a permanecer nesta borda e respeitar este segredo, a correr
cegamente atrás deste impossível ao qual se deseja tanto fazer justiça. E no
entrecruzamento destes monolingüismos no qual escrevo meu monolingüismo,
que me sendo completamente estrangeiro não deixa de ser meu, ao contrário,
tendo nesta estrangeridade a única possibilidade de se pensar em identidade ou
singularidade, línguas se falam e se escrevem, confundem-se, contaminam-se e,
somente assim, é possível que haja disseminação, proliferação de idiomas e, com
isso, que se fale mais de uma língua ao mesmo tempo.
babéis
Se a noção de tradução consiste no transporte de um conteúdo original de uma
língua materna para outra língua, podemos pensar que aí residem inúmeros
equívocos: a noção de transporte, que imprescinde de uma verdade; a idéia de
conteúdo como presença; a pressuposição de uma originariedade; e a idéia de uma
língua própria. É, por isso, uma discussão em que os temas da metáfora, da
comunicação, da ficcionalidade e do monolingüismo se encontram e tornam a
questão ainda mais problemática do que já era para seu primeiro grande crítico,
Benjamin. Tal é a razão que, para Derrida, a tradução torna-se um problema que
diz respeito ao coração mesmo da filosofia, em que ela toda está em jogo e o
exemplo desta situação paradoxal encontra-se na fábula bíblica de Babel. Para
resumir a escritura, cito Geoffrey Bennington:
O Gênese conta como a tribo dos Shem (a palavra Shem significa nome em
hebraico) quis tornar seu nome famoso, edificando uma torre e impondo
unicamente a sua língua a todos os povos da terra. Para puni-los por essa ambição
excessiva, Javé destruiu a torre gritando seu nome “Bavel” ou “Babel”, que
(confusamente) se parece com a palavra hebraica que quer dizer “confusão”, e
impôs a diferenciação lingüística em toda a terra. (...) Ao impor seu nome
(confusamente percebido como “confusão”) contra o nome do nome (Shem), deus
impõe, desde então, a necessidade e a impossibilidade da tradução. A dispersão
das tribos e das línguas sobre a terra os condenará à confusão, logo, à necessidade
de se entretraduzir sem jamais conseguir alcançar a tradução perfeita, o que
significaria a imposição de uma única língua. Nesse meio de relativa confusão,
resultado de uma tradução confusa do nome de Deus, estamos condenados, não a
uma total incompreensão, nem a uma pura intraduzibilidade, mas a um trabalho
de tradução que jamais estará completo. Como a confusão absoluta é impensável
394
assim como a incompreensão absoluta, o texto está por definição “situado” neste
meio, e, portanto, todo texto reclama uma tradução que jamais será feita.
971
Sobre isso, Derrida, na mesa-redonda que se seguiu à sua exposição de
“Otobiografias”, na Universidade de Montreal em 1979, relaciona a tradução à
decisão, portanto ao cálculo, e parece encaminhar a questão para o “campo” da
indecidibilidade.
Para o filósofo, quando Javé interrompe a construção da torre e condena a
humanidade à multiplicidade de linguagens, é “a necessária e impossível tarefa de
tradução”
972
que está entrando em cena. Isso se dá porque, com a declaração de
guerra de Deus à tribo, ou seja, de Babel aos semitas, ou, ainda mais, da Confusão
ao Nome, com a maldição que impõe que haja singularidades, há algo que sempre
permanecerá intraduzível: a estranheza mesma da singularidade de cada língua.
Derrida dá o exemplo do conto “Pierre Ménard” de Jorge Luis Borges
973
. No
conto, o autor cria um personagem fictício que desejava escrever, pela primeira
vez, “Dom Quixote” – e nota-se que o personagem não queria escrever uma
versão, mas sim o original. O conto está escrito em espanhol, mas é marcado por
uma atmosfera estritamente francesa: “Pierre Ménard é um francês, a estória
acontece em Nîmes e há todo tipo de ressonâncias que levam Borges a escrever
seu texto em uma língua espanhola que é muito sutilmente marcada por uma certa
francesidade”
974
. Quando Derrida ouvira um comentário sobre esse texto, dizendo
que no fim das contas a tradução francesa pareceria bem mais fiel que o original,
ele disse que sim e que não, primeiro pelo fato de não haver “originalidade” no
original, por não se acreditar mais na primazia da língua materna, como também
pelo fato de, na tradução, ter se perdido à estranheidade que a língua francesa
operava no espanhol. E conclui: “a tradução pode fazer tudo, menos marcar esta
diferença lingüística inscrita na linguagem”
975
. E, certamente, esta é a “moral”
971
BENNINGTON, G. “Derridabase”, pp. 124-125. Vale lembrar que o tema da tradução parece
ser um dos mais abordados nas leituras derridianas dos departamentos de letras. Ainda que em
perspectiva mais lingüística ou literária, remeto aos artigos “A ética da palavra e o trabalho de
luto” (SKINNER, A.), “Derrida: entre a língua e o idioma. O primeiro pensador da tradução”
(OTTONI, P.) e “Desertos, senhas e miragens: a tradução e o pensamento derridiano”
(GLENADEL, P.), todos em Jacques Derrida: pensar a desconstrução.
972
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”. In: The ear of the other. Otobiography,
transference, translation. Lincoln and London: University of Nebrasca Press, 1985, p. 98.
973
BORGES, J.L. “Pierre Ménard, autor de Quijote”. In: Ficciones. Madrid: Alianza Editorial,
2001.
974
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 99.
975
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 100.
395
que Derrida retira do relato bíblico, uma certa “impureza” presente em cada
língua, uma impureza que é de tal modo sua que quase se assemelha a uma
originalidade e que é o que impossibilita a tradução perfeita – e é isso também que
faz com que Derrida veja no exemplo de Babel uma “epígrafe para todas as
discussões sobre tradução”, tanto por seu tema, que confronta o nome próprio, ou
seja, o desejo de propriedade da língua, com a confusão mais própria que a
propriedade do nome, como pelo próprio relato, que, ao se traduzir para qualquer
língua, ao pretender se ajustar a qualquer outra língua perde seu jogo de nomes e
de palavras que compõem a trama do relato.
Uma primeira observação dirige-se à tribo de Shem, ou melhor, à tribo do
Nome. Eles pretendiam conquistar um nome para si e carregar, assim, o nome do
nome, e impondo sua língua a todos os outros povos, seu nome reinaria sobre
todos os nomes e sua língua seria a única a ser falada. O nome do nome é,
portanto, o nome: o mais próprio que pretende ver sua identidade estendida a
todos os outros, e, através da imposição de sua língua, a vitória do mesmo sobre o
outro. Então intervém Deus, que derruba a torre, impondo seu nome, o nome de
Deus, à torre. Ele, Javé, grita seu nome, não seu nome dado, mas seu nome por si
escolhido, seu nome “próprio” – o que demonstra sempre um duelo entre nomes
próprio: a guerra de Deus contra os semitas dá-se pela destituição do nome
“Shem” por “Babel”, o nome da torre destruída. Além disso, o nome escolhido de
Deus, “Babel” confronta-se com seu nome dado pelos hebreus “Javé” e, nesse
sentido, o nome “Babel”, substantivo comum tornado próprio, a confusão
maiusculada, destitui, de uma só vez, o nome próprio de Deus (que nunca foi
próprio, mas que, agora, mais que nunca, significando “confusão” não pode ser de
modo algum apropriável), o nome da torre (que é destruída ao ser nomeada,
passando a chamar-se, em meio aos escombros, “confusão”, ou seja, que só passa
a ser algo no momento de nomeação, que é, ao mesmo tempo, o momento de
destituição de qualquer propriedade), e o nome do povo (que se chamava “nome”
e que agora não possui mais nome, por ter sido vencido pelo nome e pela
confusão de Deus, pelo nome da confusão e de Deus, por Deus e pelo nome da
confusão...). E tudo isso acontece apenas no simples ato de Deus dizer: Babel.
Derrida então aponta o problema de se traduzir “Babel” por “confusão”,
porque assim se estaria traduzindo um substantivo próprio por um comum. Mas,
assim, pode-se entender que Deus esteja declarando guerra aos homens justamente
396
no momento em que os força a traduzirem seu nome por um nome comum e, com
isso, condena-os a uma multiplicidade de línguas.
Traduzam meu nome, diz Ele, mas ao mesmo tempo Ele diz: vocês não
conseguirão traduzir meu nome porque, em primeiro lugar, é um nome próprio e,
em segundo, o meu nome, o nome que eu próprio escolhi para esta torre, significa
ambigüidade, confusão, et cetera. Assim, Deus, em sua rivalidade com a tribo dos
Shems, dá-lhes, em um certo modo, um comando absolutamente duplo. Ele
impõe um duplo vínculo [double bind] a eles quando diz: traduzam-me e, o que é
mais importante, não me traduzam. Eu desejo que vocês me traduzam, que vocês
traduzam o nome que eu impus a vocês; e, ao mesmo tempo, o que quer que
vocês façam, não o traduzam, vocês não serão capazes de traduzi-lo.
976
Derrida, com isso, apresenta Deus como o desconstrutor da torre de Babel, pois
ele interrompe a construção. Ele interrompe a construção no próprio ato de
interditar a tradução: e interditar a tradução significa aqui ordenar e proibir;
significa dizer “que haja tradução” e advertir que a tradução será sempre
impossível.
discheminação
O neologismo de Derrida – como todos os seus – segue a lógica do duplo vinculo
babélico: deve-se traduzi-lo sabendo que é intraduzível; além disso, deve-se
traduzi-lo preservando sua estranheidade, sua inadaptação à língua, inclusive à sua
“materna”; e também se deve traduzi-lo de modo a preservar a estrangeridade
infiltrada no que seria a língua materna, o hebraico no francês e, agora, no
português. Discheminação é o ato de, segundo Derrida, Deus dizer: “vocês não
imporão seu significado ou sua língua, e eu, Deus, obrigo-os a submeterem-se à
pluralidade de línguas da qual vocês nunca conseguirão sair”
977
; mas é também,
ao mesmo tempo, disseminação, desesquematização, de-“semitização” e
desencaminhamento (de de-chemin, descaminho). O que Derrida pretende mostrar
é que o texto “original” é o texto sagrado e que, por isso, como diz Benjamin em
“A tarefa do tradutor”, todo o esforço de tradução é exemplificado pelo gesto de
se traduzir para uma língua a sagrada escritura – “pois todos os grandes escritos,
em qualquer grau, e a Sagrada Escritura em grau máximo, contêm nas entrelinhas
976
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 102.
977
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 103.
397
sua tradução virtual. A versão interlinear do texto sagrado é o arquétipo ou o ideal
de toda tradução”
978
. Isto porque um texto sagrado é, por excelência, um texto
intraduzível, um texto que tem como estrutura interna um segredo que não pode
ser contado – e, segundo Derrida: “a única coisa que se pode fazer quando se
traduz um texto sagrado é lê-lo entre as linhas, entre as suas linhas. Benjamin diz
que esta leitura ou esta versão intralinear do texto é o ideal de toda tradução: a
pura traduzibilidade
979
.
Disto, pode-se entender o interesse de Derrida na teoria de Benjamin que
afirma que a tarefa do tradutor é, de certa maneira, tentar preservar a “impureza
original” do texto, o que consiste em pensar a tradução como sobrevida do texto:
nem vida nem morte, o texto traduzido não dá vida ao “original”, animando-o,
nem é o seu fim; é justamente o fim destas duas opções em uma indecidibilidade
única que apenas o tradutor herda. O tradutor, e não a tradução, é o protagonista
da teoria benjaminiana: é quem está infinitamente endividado com o texto
“original” e que se sabe submetido à sua lei; além disso, é aquele que deve
empreender a tradução de uma maneira justa, isto é, sem reproduzir, representar
nem copiar o original, o que seria um desrespeito às singularidades das línguas.
Com isso, não se deve ater à preocupação em comunicar ou transmitir a ess6encia
ou a verdade do original, já que, para Benjamin, tradução não tem nada a ver com
comunicação nem com informação. A única relação que a tradução mantém com o
original é a de sobrevivência, pois a única maneira do texto sobreviver é através
de sua tradução, uma justa tradução que preserve tanto a sua lei interna (de
intraduzibilidade) como à pluralidade das línguas que Babel impôs.
A tradução é, por isso, no sentido benjaminiano, o que possibilita que se
entreveja, na sobrevida, a “linguagem pura”. Esta linguagem pura, longe de querer
dizer uma originariedade ou pureza que uma língua possuiria, seria o que torna
uma linguagem linguagem, ou seja, o fato de que “há linguagem”. E este
sentimento de haver linguagem, haver a multiplicidade babélica de línguas, só se
dá através da experiência da tradução, mas precisamente, a experiência da
impossibilidade da tradução e o esforço para este empreendimento, mesmo
sabendo-o impossível. Este seria o maior aprendizado que se tem da tradução –
um esforço para se persistir na impossibilidade, aprendendo que o fracasso é o
978
BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor”, p. 32.
979
DERRIDA, J. “Roundtable on translation”, p. 103. Grifo meu.
398
único trunfo a se obter. Tradução, portanto: sobrevida de um texto legado, de uma
herança, representação máxima da inadequação de uma língua a outra; tradução
da tradução: “o mito da origem do mito, a metáfora da metáfora, a narrativa da
narrativa”
980
. Esta experiência do tradutor – do texto sagrado – reproduz a própria
experiência da filosofia da qual o filósofo se esquiva: deve-se aprender a lidar
com o não-acabamento, com a impossibilidade mesma de completude, de
totalização, de saturação, de edificação – enfim, de secura.
Mas, de fato, na hora de escrever, de falar, de agir, só resta a decisão, o
cálculo e, com isso, a construção e a secura. Escrever, agir e falar pressupõe
certamente uma dose inevitável de cálculo e é por essa razão que uma escrita
impossível, isto é, úmida, deve assumir esta experiência da tradução (de ter que
traduzir sem poder traduzir) como sua tarefa: deve, portanto, assumir-se
constructo e negociar com a secura. Eis um verdadeiro aprendizado que, via
Derrida, busco incessantemente herdar de Benjamin: minha negociação, meu
fracasso.
Muito rapidamente: no instante mesmo em que pronunciamos Babel,
experimentamos a impossibilidade de decidir se esse nome pertence,
propriamente e simplesmente, a uma língua. E o que importa é que essa
indecidibilidade elabore uma luta pelo nome próprio no interior de uma cena de
dívida genealógica. Procurando “se fazer um nome”, fundar ao mesmo tempo
uma língua universal e uma genealogia única, os Semitas querem colocar a razão
no mundo, e essa razão pode significar simultaneamente uma violência colonial
(pois eles universalizariam assim seu idioma) e uma transparência pacífica da
comunidade humana. Inversamente, quando Deus lhes impõe e opõe seu nome,
ele rompe a transparência racional, mas interrompe também a violência colonial
ou o imperialismo lingüístico. Ele os destina à tradução, ele os sujeita à lei de
uma tradução necessária e impossível; por conseguinte, do seu nome próprio
traduzível-intraduzível, ele libera uma razão universal (esta não será mais
submetida ao império de uma nação particular), mas ele limita por isso a
universalidade mesma: transparência proibida, univocidade impossível. A
tradução torna-se a lei, o dever e a dívida, mas a dívida que não se pode mais
quitar. Tal insolubilidade encontra-se marcada diretamente no nome de Babel:
que ao mesmo tempo se traduz e não se traduz, pertence sem pertencer a uma
língua e endivida-se junto dele mesmo de uma dívida insolvente, ao lado dele
mesmo como outro. Tal seria a performance babélica.
981
*
980
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 11.
981
DERRIDA, J. Torres de Babel, pp. 25-26.
399
Pode-se, então, a partir deste aspecto “etico-político” que a experiência de (in)
traduzibilidade da tradução ensina – qual seja, o fim de certo “colonialismo” do
logos, da imposição de certa língua, isto é, uma verdade, como absoluta –, sempre
por uma estranha analogia, pensar certa ética ou política que a experiência de
assunção da umidade do úmido pode comportar. Tentar falar várias línguas ao
mesmo tempo, permitir que várias línguas falem ao mesmo tempo em um texto,
podem abrir espaço para uma experiência da hospitalidade na própria escritura.
Por certo, meu projeto abandonado parece sempre ressoar, mesmo agora,
quando pretendo ter abandonado o campo da ética rumo a um pensamento mais
teorético
982
. Em “Mal de hospitalidade”, Fernanda Bernardo alinhava
cuidadosamente tradução e acolhimento, de modo a mostra que a tradução seria “a
experiência enigmática do acolhimento do estrangeiro, da língua de um outro – e
isso a começar na cena da apropriação ex-apropriante da língua dita própria ou
materna –, tanto quanto a experiência da invenção e da transação a que sempre ela
nos obriga”
983
. Lembrando a quase-definição que Derrida apresenta para
desconstrução – “mais de uma língua” – pode-se assim equacionar que
desconstrução é tradução; sendo esta a experiência mesma da hospitalidade, a
condição do acolhimento em geral, pode-se pensar que a umidade da
desconstrução é sinônimo de um pensamento acolhedor por excelência. E é a esta
relação a ser ainda “propriamente” pensada – que não cabe aqui precisar, mas
apenas apontar futuros desdobramentos – que me deterei como conclusão a esta
prova.
Certa vez, ao escrever sobre a poesia do amigo, Lévinas referiu-se à
“poesia de Derrida” (com a qual se encontraria “no coração de um quiasma”
984
),
o que mais tarde ecoaria de modo assustador nos textos derridianos a partir da
década de oitenta, em que as letras levinasianas são bem mais retomadas, quando,
por exemplo, Derrida chega a dizer que “um ato de hospitalidade só pode ser
poético”
985
. Este pensamento que só pode ser poético é um pensamento que,
assim, mescla metaforicidade (alegoria e estilo), ficcionalidade, traduzibilidade e
autobiografia como possibilidades de se dar conta desta alteridade, delineando,
982
Sobre isso remeto ao meu livro Da existência ao infinito: ensaios sobre Emmanuel Lévinas.
983
BERNARDO, F. “Mal de hospitalidade”. In: Jacques Derrida: pensar a desconstrução, p. 174.
984
LÉVINAS, E. “Jacques Derrida; Wholly Otherwise”. In: Proper Names. Califórnia: Stanford
University Press, 1996, p. 56.
985
DERRIDA, J. Da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003, p. 04.
400
para além de um pensamento da hospitalidade, a filosofia como hospitalidade, isto
é, como tradução. A filosofia, portanto, como a co-habitação de várias vozes em
uma, de várias palavras em uma, de várias línguas em uma, definindo-se de
acordo com a máxima do monolingüismo.
Em uma perspectiva derridiana, poder-se-ia chegar a afirmar, como
pretendo arriscar a partir do referido artigo de Fernanda Bernardo, que a filosofia
pode ser compreendida como uma longa nota de tradução. Se um idioma ou um
sintagma nunca será perfeita ou justamente traduzido para outra língua, pode-se
dizer que a tarefa de “comentador” à qual os filósofos sempre se dedicam nada
mais é que tentar “traduzir” um idioma (como, por exemplo, eu estou aqui
tentando fazer com a língua da desconstrução) para sua própria língua – ouvindo o
“traduza-me” do texto e, ao mesmo tempo, sabendo que ele é intraduzível, sempre
estranho e sempre estrangeiro. De acordo com Fernanda:
O seu próprio sentido [aqui, o das línguas filosóficas] não seria nunca
apropriadamente transportável para a nossa língua sem o resto e, por isso, sem
pelo menos uma nota de tradução. Uma nota de tradução a assinalar-lhe a
restança e, portanto, a idiomaticidade a incomensurável singularidade e a
resistência encarniçada à tradução – a sua recusa em passar ou transpor a fronteira
dessa instância universalizante que é a língua, e em deixar-se de todo acolher
numa outra – a nossa nesse caso. Uma recusa que é, no mesmo lance, um apelo
tão desesperado quanto infinito à tradução.
986
Desse modo, o trabalho de um pensamento que se pretende minimamente úmido
deve atentar a esta especificidade de leitura que a desconstrutora ensina:
transportando-se, com todos os equívocos e estranhamentos, suas palavras sobre a
nota de tradução de um idioma a outro para minha língua nesta tese, neste simples
ato de traduzir seu texto, pode-se entrever a extensão de um pensamento como o
de Derrida, no qual esta simples nota (de tradução) põe em cena a própria ruína da
tradução – o que, então, diz respeito ao fracasso do pensamento.
O pensamento mais justo seria, assim, o que assume seu fracasso, o que,
ecoando as palavras de Lévinas, pode fazer pensar os perigos de um pensamento
triunfante, a que ponto um triunfo do pensamento ou de uma verdade pode chegar
– como atestou Auschwitz. E, ao contrário do que diria um maldoso leitor, isso
não conduz a um niilismo nem a qualquer inércia. Ao invés disso, o clamor
“divino” que o texto impõe (“traduza-me!”) – quase como um “decifra-me ou
986
BERNARDO, F. “Mal de hospitalidade”, p. 188.
401
devoro-te”, e digo quase porque, apesar das incansáveis tentativas, o texto é
sempre críptico, sempre indecifrável, mas também porque ele sempre me
devorará, querendo eu ou não –, este imperativo constrange qualquer pretensão de
propriedade de minha parte que, como os Shem, sou obrigado a enfrentar a
multiplicidade de línguas e, por isso, como herdeiro de Abraão, só posso dizer
“sim”. Afirmatividade frente ao estrangeiro que, no fim das contas, dita-me meu
monolingüismo e do qual não se pode nem se deve fugir, apenas abrir as portas e
às línguas.
8
Quinta prova
“Como se tornar o que se é”
- Só mais uma coisa. Posso lhe perguntar, Billy, como se sente quando está dançando?
- Não sei... Eu me sinto bem. No começo é difícil, mas, depois que começo, esqueço tudo.
E desapareço. Parece que desapareço. Eu sinto uma mudança no meu corpo todo, como se
tivesse um fogo. E eu fico ali. Voando. Como um pássaro. Como a eletricidade. É.
Eletricidade.
(Stephen Daldry, Billy Elliot, 2000)
*
O título desta prova é também uma citação, mas, nesse caso, uma tripla citação.
Sabe-se bem que se trata do subtítulo do Ecce homo de Nietzsche. No entanto, no
“contexto” que aqui pinçarei, a saber, o da autobiografia, ou melhor, do
autobiográfico, da estrutura autobiográfica da autobiografia estendida a toda
escritura como sua estrutura, a citação pode ser retirada de Otobiografias de
Derrida, citando explicitamente Nietzsche, que, por sua vez, cita implicitamente a
sentença de Píndaro que diz: “venha a ser o que tu és”.
Isto pode certamente dar a pensar que a desconstrução seria herdeira desta
linhagem pindárica da qual Nietzsche assume-se herdeiro-mor, contra toda a
linhagem tradicional da filosofia que traria em seu sangue a genética do “conhece-
te a ti mesmo” de Sócrates. Nesse sentido, Píndaro versus Sócrates pode significar
este pensamento que não pretende se curvar ao logos em nome de algo maior: ser
o que se é, fazer-se o que se é na escritura. É disso que tratarei para encerrar meu
trabalho. Com isso que talvez seja o maior traço de umidade do pensamento: o
indiscernimento preciso entre vida e obra: o úmido como autobiográfico.
tímpanos
A escritura derridiana caminha da metáfora à metaforicidade ao mesmo tempo em
que parte do hímen em direção do tímpano. Ou seja, quando rompe, assume a
total impossibilidade de qualquer projeto e instala-se decididamente no limite.
Talvez um pequeno e (provavelmente considerado por muitos) irrisório texto de
Derrida possa mostrar a radicalidade desta assunção metafórica como constituinte
403
do pensamento, mais que o projeto gramatológico e mesmo que o processo
disseminante: “Timpanizar a filosofia” é a metáfora e a indicação.
Apresentar o tímpano como Derrida faz é escrever timpanizando,
martelando como Nietzsche, batendo seu tambor cuja membrana é impenetrável,
não se deixando nunca se desvirginar. Neste sentido, todos os elogios que eu teci
com relação ao hímen podem parecer exagerados, pois aqui parece se estabelecer
uma figura bem mais interessante ao indecidível do que a membrana que separa o
dentro e o fora da cavidade feminina. Do hímen ao tímpano, portanto – o que quer
dizer “ser no limite”
987
. Esta expressão utilizada por Derrida indica que sua obra
não pretende de modo algum “superar” os limites, ultrapassar, nem se ater
cegamente à clausura limitada do pensamento do que é o limite, do que seria este
limite original ou autêntico. Ser-no-limite é tentar de modo mais justo “manter-se
em relação com o não-filosófico”
988
como tal, sem que ele seja compreendido sob
a lógica do mesmo. Tímpano é o que está no-limite entre o dentro e o fora, o que
suporta a tensão, a diferença de pressão e que, ao mesmo tempo, recebe pancadas,
amortiza as impressões e faz ressoar: filosofia, golpes e ouvidos, relação que,
antes de Derrida, Nietzsche já indicara tão bem.
O tímpano derridiano está intrinsecamente ligado ao martelo nietzschiano;
tímpanos e martelos como os tambores que ressoam uma certa batucada
dionisíaca que requer novas orelhas. Orelhas pequenas, como lembra Maria
Cristina Franco Ferraz em “Por uma filosofia para orelhas pequenas”
989
. A
metáfora da orelha já aparece no início de Zaratustra, quando este se interroga se
será necessário arrebentar os ouvidos dos homens para lhes ensinar a “ouvir com
os olhos” e logo se depara com a estranha criatura, tida pelos homens como
sábios, mas que aos olhos do profeta seria uma aberração: uma orelha gigante com
uma pequena haste como corpo
990
– e é isso que faz com que Nietzsche, em Ecce
homo, diga possuir as menores orelhas que possam existir
991
. Mas, para além da
audição minúscula, o que parece interessar a Derrida é a percussividade: o liame
987
DERRIDA, J. “Timpanizar a filosofia”. In: Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p.
11.
988
DERRIDA, J. “Timpanizar a filosofia”, p. 12.
989
FRANCO FERRAZ, M.C. “Por uma filosofia para orelhas pequenas”. In: Nove variações sobre
temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, pp. 75-88.
990
Refiro-me aqui à já citada passagem de “Da redenção” do Assim falou Zaratustra de Nietzsche.
991
Trata-se do segundo parágrafo de “Por que escrevo tão bons livros”: “Todos nós sabemos,
alguns até por experiência, o que é um bicho de orelhas longas. Pois bem, ouso afirmar que possuo
as menores orelhas que existem” (NIETZSCHE, F. Ecce Homo, p. 55).
404
estranho em que a diminuição da audição faz sentir-se na pele, no corpo, que
treme com o rufar dos tambores. Derrida explica – isto é, timpaniza: “o martelo,
como se sabe, pertence à cadeia de ossos, a par da bigorna e do estribo. Aplica-se
à face interna da membrana timpânica. O seu papel é sempre de mediação e
comunicação: transmite as vibrações sonoras à cadeia de ossículos e depois ao
ouvido interno”
992
. O ouvido interno possui também seu labirinto: um órgão de
equilíbrio que, com seus líquidos labirínticos, deve equilibrar as pressões internas
e externas. Então: órgão de relação com algo “exterior”, com certa alteridade,
portanto. Por isso o tímpano como o estranho limite ao qual Derrida se remeterá
ao longo de todas as suas Margens, com esta estranha relação com isso que, não
sendo “exterior” à filosofia não é também de modo algum “filosófico” ou
estritamente filosófico, não sendo também o não-filosófico: a este algo outro, diz
Derrida, só se pode relacionar-se obliquamente. O tímpano no lugar do hímen
desloca a relação com o outro da vagina ao ouvido, de certo modo aqui rompendo
com a oposição binária sexual da qual a biologia não pode se libertar: toda relação
com o outro que passa pelo discurso pode, de certo modo, esbarrar ou causar
alguma impressão no tímpano. Ao contrário do hímen, ele não está aí para ser
rompido, mas justamente para ocupar este estranho lugar de resistência, regulação
e receptividade.
Sem ter em conta todos os investimentos sexuais que, por toda a parte e sempre,
constrangem fortemente o discurso da orelha, indico aqui como um exemplo os
lugares do material abandonado à margem. Essa corneta a que se chama pavilhão
(“papillon”, borboleta) é um pênis para os Dogons e os Bambaras do Mali, e o
canal auditivo uma vagina. A fala é o esperma, indispensável para a fecundação.
(Concepção pelo ouvido, diríamos, pois, toda a filosofia).
993
Trata-se, portanto, de uma nova relação a que requer o tímpano. Uma relação da
filosofia com aquilo com o que ela nunca possuiu nem pode possuir relação – com
um outro que não chega a ser um outro, pois está “presente” na própria
constituição disto que se chama filosofia.
Assim, o imperativo “timpanizar a filosofia” nada mais seria – a meu ver –
que o oposto radical da tentativa de “desconjurar o úmido” que a postura
filosófica tradicional adota. Timpanizar, radicalizar o tímpano, é a própria
992
DERRIDA, J. “Timpanizar a filosofia”, p. 14.
993
DERRIDA, J. “Timpanizar a filosofia”, p. 15.
405
tentativa de se desconjurar o desconjuro e de, então, abrir-se a abertura, manter
aberta a abertura, a abertura da abertura. Isso nos termos de Derrida quer dizer que
se deve “luxar o ouvido filosófico”:
O tímpano enviesa. Conseqüência: luxar o ouvido filosófico, fazer trabalhar o
loxôs no logos, é evitar a constestação frontal e simétrica, a oposição em todas as
formas do anti-, inscrever em qualquer caso o antismo e a inversão, a denegação
doméstica, numa forma totalmente diferente de emboscada, de lokhos, de
manobra textual. (...) Luxar, timpanizar o autismo filosófico, eis o que nunca se
opera no conceito e sem qualquer massacre da língua. Esta derruba então a
abóbada, a unidade fechada e com volutas do palácio. Prolifera para fora até já
não ser compreendida.
994
A luxação que a desconstrução causa na filosofia é tremenda. De tal modo intensa
que não posso aqui nem arriscar medir suas conseqüências e sua extensão, mas
estou certo de que a “porrada” que Derrida deu no pensamento (e, desculpando-
me pelo termo, insisto nele, pois não penso haver um outro mais propício em
nossa língua para expressar isto que Derrida, possivelmente tendo apenas como
antecessor Nietzsche, fez com a filosofia de seu tempo) torna-o um extemporâneo
– e isto justificaria a necessidade (auto-imune) da filosofia de tentar desconjurar a
desconstrução por não suportá-la. Derrida esforça-se insistentemente em
“desequilibrar a pressão” a pressão filosófica, enquanto o pensamento tradicional
se esforçaria em preservar o que seria as fictícias CNTP filosóficas. Mas é certo
que a filosofia nunca se dá nas “condições normais de temperatura e pressão”,
pois não existe este substrato perfeito, esta idealidade do pensamento. Como
evento, a filosofia irrompe e desmede, rompe e timpaniza, faz estalar o ouvido
mostrando a pancada que vem do “exterior”, do “martelo que fala”, como diria
Nietzsche.
E, no entanto, este exterior não está de modo algum fora, pois outro traço
do tímpano é estremecer a oposição dentro-fora, interior-exterior que o
pensamento do limes, marginal, não pode mais aceitar como preciso e certo. Com
isso, através das margens, a própria oposição questão-resposta parece embaralhar-
se. Um novo enunciado deve ser enunciado então, para além das margens direita e
esquerda, para além de qualquer possibilidade de se instalar em uma margem
oposta a outra, golpeando qualquer eixo que o pensamento possa pretender seguir.
994
DERRIDA, J. “Timpanizar a filosofia”, p. 16.
406
“Se há margens, haverá ainda uma filosofia, a filosofia?”
995
, pergunta-se Derrida.
E o termo “porrada” deve ser retomado aqui na esteira do gesto nietzschiano, já
que o empreendimento de Derrida, não se restringindo a uma tarefa de destruir a
filosofia, busca, através destes tímpanos – estilos, ficções e traduções, com o
maior amor e com o maior rigor – timpanizar a filosofia, isto é, mudar seus eixos.
Em meus termos, umedecer o pensamento.
“E se o tímpano é um limite, talvez se tratasse menos de deslocar tal limite
determinado do que trabalhar no conceito de limite e no limite do conceito. De
fazê-lo sair, a vários golpes, dos seus eixos”
996
. Estremecer preservando o tremor,
eis o intuito de Derrida. Mas isso só se dá se se adquire certo timbre e certo estilo.
Esta é a “tarefa” que o filósofo assume para si: encontrar este timbre (que não é de
modo algum pré-determinado) e este estilo, o que só é possível aceitando-se que a
filosofia é uma questão de timbre e de estilo. A estrutura metafórica da metáfora,
a alegórica da alegoria, a estilística do estilo, a ficcionalidade da ficção e a
autobiográfica da autobiografia (enfim, a umidade do úmido) seriam este tímpano,
este timbre que ressoa a estrutura trópica de todo tropo e com o qual Derrida quer
escrever (com sangue) sua escritura: cantar seu canto e dançar sua dança.
Tímpano, Dionísia, labirinto, fio de Ariana. Percorremos agora (de pé,
caminhando, dançando), compreendidos e envolvidos para jamais daí sairmos, a
forma de uma orelha construída em torno de uma barreira, circulando em torno da
sua parede interna, uma cidade, pois (labirinto, canais semi-circulares – previnem
que as rampas não estão seguras), enroladas como um caracol em torno de uma
comporta, de um dique e estendida para o mar; fechada sobre si mesma e aberta
na direção do mar. Cheia e vazia da sua água, a anamnese da concha apenas
ressoa numa praia. Como poderia aí produzir-se uma fenda, entre terra e o mar?
(...) Acontecimento necessariamente único, não reprodutível, ilisível, desde então,
enquanto tal e de imediato, inaudível na concha, entre terra e mar, sem marca.
997
ecces
Mas para quem escrever? Para quem se escreve? Quem possui as orelhas que
querem ouvir tais rufares? Certamente o Outro. Mais que o outro, o
completamente outro que é de tal modo outro que só pode se ouvir em mim.
995
DERRIDA, J. “Timpanizar a filosofia”, p. 17.
996
DERRIDA, J. “Timpanizar a filosofia”, p. 18.
997
DERRIDA, J. “Timpanizar a filosofia”, p. 19.
407
Talvez aqui se encontrem o totalmente outro de Derrida e os leitores
extemporâneos de Nietzsche, em Derrida e em Nietzsche, nas filosofias que
escreveram para destinatários ausentes, ou seja, que escreveram para eles próprios
como outros de si. Suas filosofias como otobiografias.
Derrida, sem assumir nenhuma autobiografia explícita, com exceção da
impressionante Circonfissão, pretende assumir todos estes traços úmidos em seus
textos, sobretudo a partir de seu sempre assumido estilo que se mantém nos
limites, nem lógico nem metafórico, nem linear nem aforístico, nem neutro nem
autobiográfico: e, por isso, completamente metafórico, aforístico e autobiográfico,
pois estes textos “nem/nem” seguem a linha de sua vida: nem francês nem
argelino, nem desconhecido nem famoso etc. É por isso que na conferência dada
na Universidade de Montreal em 1979 (Otobiographies), Derrida diz: “eu
procederei de um modo que alguns acharão aforístico ou inadmissível, que outros
aceitarão como lei, e que ainda outros julgarão não ser ainda aforístico o bastante.
Todos estarão escutando a mim com um ou outro tipo de orelha...”
998
. Como
Nietzsche, Derrida quer ser escutado com um outro tipo de orelhas, o que requer
que se aprenda este prazer de ouvir com ele, como ele aprendeu com tantos que
souberam se auto-conferir a “liberdade acadêmica” necessária a uma certa dose de
demonstração autobiográfica, como Kierkegaard e, sobretudo, Nietzsche, por
exemplo. Querer ser escutado pressupõe, por certo, algum “saber ouvir”; e saber
ouvir, neste caso, significa desejar ouvir justamente certa melodia ou certo timbre
nos acordes dissonantes de alguns destes trágicos pensadores. E Derrida escolhe a
partitura de Ecce homo.
Desta obra o filósofo argelino inspira-se para pensar a relação entre o bios
necessário a uma suposta autografia com seu tanatos. Derrida relembra a página
que separa o prólogo do livro de seu primeiro capítulo, uma simples página que
diz:
Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não só a videira doura, caiu-me na
vida um raio de sol: olhei para trás, olhei para a frente, jamais vi tantas coisas
boas de uma só vez. Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto
998
DERRIDA, J. “Otobiographies: the teaching of Nietzsche and the politics of the proper name”.
In: The ear of the other: Otobiography, Transference, Translation. Lincoln and London:
University of Nebrasca Press, 1988, p. 04.
408
ano, era-me lícito sepultá-lo. (...) Como não deveria ser grato à minha vida
inteira? – E assim me conto minha vida.
999
A vida-morte de Nietzsche é assim retomada para mostrar que o que se entende
por autobiografia é por demais insuficiente, pois como se determinar estes termos
que se deveria ter por certos, como bios e auto? O autógrafo (de) Nietzsche
mescla grafia entre biologia, tanatologia, biografia e tanatografia: e pensar-se
então em qualquer traço autobiográfico passa a ser visto como uma tentativa
sempre autobiotanatografia. Colocar-se em questão uma nova dimensão do
biográfico, desta maneira, imprescinde de uma cuidadosa reflexão sobre os limites
entre o que se entende por “obra” e o que se chama “vida”. “Este limite”, diz
Derrida, “não é nem ativo nem passivo, não está fora nem dentro. Não é uma linha
tênue, um traço invisível ou indivisível entre a clausura dos filosofemas, de um
lado, e a vida de um autor já identificável por detrás de seu nome, de outro”
1000
.
Este limite só pode significar o próprio fim dos limites, sobretudo da vida, da vida
pensada em seu limite, o limite da vida como o fim da oposição entre vida e
morte, como a zona de contaminação, de umidade. E é neste “lugar” que se deve –
e de onde só se pode, somente aí – escrever.
Fora deste (não) lugar, qualquer biografia ou biologia torna-se uma
“ciência da morte”, o lugar no qual se escreveu grande parte da filosofia e do
pensamento ocidental, com exceção de alguns nomes próprios que se deixaram e
quiseram escrever-se nesta zona de umidade que deveria ser o lugar da filosofia
par excellance. Diz Derrida:
O nome de Nietzsche é talvez hoje, para nós no ocidente, o nome de alguém que
(com as possíveis exceções de Freud e, de um modo diferente, Kierkegaard) foi
único no tratamento da filosofia e da vida, da ciência e da filosofia da vida com
seu nome e em seu nome. Ele talvez tenha sido único a pôr seu nome – seus
nomes – e suas biografias na linha, correndo assim todos os riscos a que isso leva:
para “ele”, para “eles”, para suas vidas, seus nomes e seu futuro, e
particularmente para o futuro político do que ele deixou para ser assinado.
1001
A leitura derridiana de Nietzsche dedica-se a Ecce homo, mas não a uma análise
da obra, mas sim a seu “espírito”, ou melhor, a seu pathos para sermos mais
nietzschianos. A atenção de Derrida concentra-se nas máscaras e pseudônimos
999
NIETZSCHE, F. Ecce homo. São Paulo: Companhia das letras, 1995, p. 21.
1000
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 05.
1001
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 06.
409
que a obra nietzschiana abriga, em uma economia de nomes que afasta a simples
simulação inaugurando sua “comunidade de máscaras”, “em nome dos nomes”
1002
. E escrever em nome dos nomes nada mais é que se tornar o que se é.
O prefácio de Ecce homo, neste sentido, pode ser entendido como um
prefácio para a Obra de Nietzsche, ou melhor, a Obra de Nietzsche pode ser
entendida como um prefácio para o prefácio de Ecce homo. Aí se encontram as
infinitas assinaturas (dis)simuladas por detrás deste pseudônimo “Nietzsche”, que
é também um homônimo e que permite que se pense que as múltiplas assinaturas
de Nietzsche (Dionísio, Julio César, Nero etc.) tanto dissimulam o nome próprio
Nietzsche como que este nome próprio não possui nenhuma propriedade, sendo
ele justamente a assinatura da impropriedade, da completa inautenticidade das
pluralidades que o nome Nietzsche engendra. E, ainda mais, este nome
(im)próprio é o narrador de uma história, da sua estória, da estória que surge com
seu sepultamento ao completar quarenta e cinco anos.
Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria
exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável dizer quem sou.
Na verdade já se deveria sabê-lo, pois não deixei de “dar testemunho” de mim.
(...) Vivo de meu próprio crédito: seria um mero preconceito, que eu viva? (...)
Nessas circunstâncias existe um dever, contra o qual no fundo rebelam-se os
meus hábitos, e mais ainda o orgulho de meus instintos, que é dizer: Ouçam-me!
Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me confundam!
1003
No fim do prólogo, Nietzsche assina: Friedrich Nietzsche. E na página seguinte,
na estranha página de passagem entre o prólogo e o primeiro capítulo, o interlúdio
trágico, ao referir-se ao dia de seu quadragésimo quinto aniversário, ele data sua
obra. Texto, então, datado e assinado: autor – Friedrich Wilhelm Nietzsche; data –
quinze de outubro de 1888. Lavrado e assinado, portanto. Mas como se acreditar
ou se creditar na assinatura de quem se assume máscara e pluralidade de nomes?
Quem “Nietzsche” assina? Qual “Nietzsche”, Dionísio? O fim da obra responde a
questão, não respondendo: “Dionísio contra o Crucificado...
1004
. Nietzsche
contra todos? Nietzsche contra seu tempo? Nietzsche contra Nietzsche? Todos
contra Nietzsche? Realmente a propriedade dos nomes, por demais precária, não
permite que se identifique a assinatura, o que pode levar a se pensar que não é o
1002
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 07.
1003
NIETZSCHE, F. Ecce homo, p. 17.
1004
NIETZSCHE, F. Ecce homo, p. 117.
410
nome próprio que assine Ecce homo, nem Dionísio nem o Crucificado, mas o
“contra” que configure a mais precisa assinatura: Nietzsche como o quiasma,
como a tensão mesma entre os nomes opostos, Nietzsche entre Grécia e o
Cristianismo, Nietzsche na tensão – portanto, assina-se: Dionísio “Nietzsche”
Crucificado. Eis o labirinto ao qual o nome de Nietzsche (como todo nome
próprio) conduz, o “labirinto da orelha”:
Ecce homo – um livro cujas palavras finais são “– Fui compreendido? – Dionísio
contra o Crucificado...” [gegen den Gekreuzigten], Nietzsche, Ecce homo, Cristo,
mas não o Cristo, nem mesmo Dionísio, mas ao invés disso o nome do versus.
(...) O combate chamado entre os dois nomes (...) para pluralizar em um modo
singular o nome próprio e a máscara homonímica.
1005
O “tema” de Ecce homo é a vida: mais ainda, é a vida que “Nietzsche” se
conta – eis o caráter autobiográfico do “relato”, o “eis” de todo “eis” de todo
“ecce”. Ecce homo, portanto, torna-se exemplar por apresentar a caráter de “eis-
me aqui” de todo “ecce”, sendo este termo compreendido em sua multi-
significação: apresentação de si a si, comparecimento, responsibilidade, mas
também ritual fúnebre, cerimônia funerária segundo acepção alemã. E o que “eis”
aqui é a vida, a vida que se conta a si mesma por Nietzsche ou por este que se
proclama Nietzsche, a vida contando-se a si mesma, tornando-se outra através de
Nietzsche: “eis” o autobiográfico da autobiografia. Infinitas significações
circunscrevem-se aqui, entreremetem-se no relato de algo que não é nada senão
um relato: relato de relato feita por um relato. Efeitos, enfim: eis o que torna a
vida apenas um preconceito, como afirma o autógrafo de Ecce homo, o
preconceito de que “se vive” de que o “eu” vive, da presença e do presente, por
fim. Mas seria então este preconceito uma mera dissimulação? Seria isto que se
chama vida uma máscara sobre uma verdadeira natureza que se esconde por detrás
da máscara? Não, se se compreende dissimulação como o oposto de
desvelamento. Não há o que desvendar, descobrir por baixo da máscara, talvez
apenas outra máscara que cobre infinitas máscaras sem rosto algum. Interessante
como o ecoam aqui os versos de “Vida”, de Chico Buarque: “Sei que além das
cortinas são palcos azuis, e infinitas cortinas com palcos atrás”. Como Chico
[“vida, minha vida, olha o que é que eu fiz”], Nietzsche apresenta-se nestas
1005
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 11.
411
infinitas cortinas, infinitos véus que não desvelam senão a dissimulação da vida
dissimulada, a “dissimulação da dissimulação” que impede de se pensar a
verdade, a presença, a presença da verdade ou a verdade como presença. O “ecce”
desta apresentação não tem o que apresentar senão o preconceito, a ficção, e tudo
o mais passa a ser reavaliado segundo este desvelamento sem desvelado que o
relato relata.
“Nietzsche” relata sua vida a si próprio enquanto é ele próprio o relato, o
conteúdo – e pode-se arriscar, por certo, que a forma é também “Nietzsche”, se se
pensa que Nietzsche é sinônimo do termo “versus”. Para Derrida, o “eu” desta
narrativa que é (de) Nietzsche não existe, pois apenas se constitui através do
crédito do eterno-retorno. “Ela não assina antes da narrativa qua eterno retorno.
Até então, até agora, que eu esteja vivo pode ser um mero preconceito. É o eterno
retorno que assina ou sela”
1006
. E, como o eterno retorno trata da mais sincera e
perfeita afirmatividade, só se pode ouvir “o nome ou os nomes de Friedrich
Nietzsche” se novos ouvidos abrirem-se para a melodia do “sim, sim” que a obra
nietzschiana obriga e ensina – o quer torna difícil qualquer precisão temporal
sobre o “autobiográfico”, que não comporta nem suporta nenhuma cronologia
senão a do acontecimento, da irrupção e do novo. A umidade do úmido mostra-se
também aqui como “problema de limite”: “Esta dificuldade [de situar qualquer
advento do relato autobiográfico] surge onde quer que se procure fazer qualquer
determinação: para datar um evento, é claro, mas também para identificar o
começo de um texto, a origem da vida ou o primeiro movimento de uma
assinatura”
1007
. Estes problemas de limite ou do limite indicam a indecidibilidade
que o autobiográfico faz emergir, mas que concernem a todo relato, por
comportarem em seu “subsolo” a estrutura úmida que não admite nenhuma
precisão.
Segundo Derrida, o eterno retorno é a “vida” relatada a si por si mesma, é
a vida feita neste relato, ao fazer-se relato de si, não se situando nem na obra nem
na vida empírica do autor, neste estranho “lugar” no qual “a afirmação é repetida:
sim, sim, eu aprovo, eu assino” e que eu quero que retorne
1008
. Por esta razão, a
obra nietzschiana não admite nenhuma análise, no sentido hermenêutico, lógico
1006
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 13.
1007
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 13.
1008
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 14.
412
ou mesmo literário, apenas uma resposta ao chamado e a proclamação deste
desejo de retorno. Talvez, apenas exemplificações, por se tratar de uma obra sem
origem, sem começo e sem fim, o que transparece justamente na assunção de sua
origem, de seu início e de seu fim. Obra que tem em seu início um enigma:
A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade:
diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe ainda
vivo e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais elevado e do mais
rasteiro degrau da vida (...) – este foi o meu mais longo exercício, minha
verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre foi nisso. Agora, tenho-o na
mão, tenho mão bastante para deslocar perspectivas: razão primeira porque talvez
somente para mim seja possível uma “tresvaloração dos valores”.
1009
Como seu Zaratustra, que andava sempre acompanhado de sua serpente e de sua
águia, o mais alto dos animais e o mais rasteiro, e que como Nietzsche foi outro
relato de si, Ecce homo tem seu início na duplicidade, ou melhor, apresenta e
assume a duplicidade desde o início, sem nenhuma dissimulação, ou melhor, com
a própria dissimulação assumida. Para Derrida, mais uma vez se vê o princípio de
contradição que mescla morte e vida, alto e baixo, superioridade e décadence e
assim por diante; desde o “início”, “Nietzsche” está entre-dois e assume esta
dupla origem.
Isto certamente desautoriza qualquer autoridade nietzschiana, qualquer
mestria ou especialização em Nietzsche: quem pode afirmar-se uma “autoridade”
em algo que não permite autoridades, que, ao contrário, pretende-se o fim da
autoridade? Quem pode, assim, ser “a voz viva” de Nietzsche se ele mesmo nunca
pretendeu ser a voz viva nem a plena presença de si? Estas questões devem
refletir-se no debate seguinte, um pouco adiante, que envolverá A minha irmã e eu
de “Nietzsche”.
Bem, pode-se ver que isto implica um protocolo impossível para a leitura e
especialmente para o ensino, bem como quão ridícula ingenuidade e quão pérfido,
obscuro e sombrio negócio encontram-se por detrás de declarações do tipo:
Friedrich Nietzsche disse isto ou aquilo, ele pensou isto ou aquilo sobre este ou
aquele assunto.
1010
otos
1009
NIETZSCHE, F. Ecce homo, p. 25.
1010
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 14.
413
No dia seguinte da conferência Otobiografias, aconteceu na Universidade de
Montreal uma mesa-redonda sobre autobiografia (seguida de outra sobre tradução)
com a participação de diversos professores e filósofos canadenses, entre eles
Rodolphe Gasché, que inicia a sessão relembrando como Derrida empreendera no
dia anterior uma revalorização e reavaliação da biografia, segundo ele, de modo
que “o biográfico [e não a biografia, como se deve salientar] é assim esta borda
interna da obra e da vida, uma borda na qual textos são engendrados”
1011
. Esta
borda prescinde não de um “auto” como supõe a corrente noção de autobiografia,
mas sim de “otos”, de novas orelhas que queiram ouvir de si o relato da vida. Para
Derrida, este relato de modo algum pode referir-se a uma empiricidade, pois por
mais que se saiba “fatos empíricos” da vida de tal ou tal autor nunca se saberá em
que medida estes relatos não são tão fictícios quanto os considerados meras
ficções. É nesse sentido que Derrida, em vez de compreender a autobiografia nos
moldes do empírico ou da ficção tentará descrever o autobiográfico sob a rubrica
do eterno retorno de Nietzsche. “O eterno retorno é seletivo”, diz Derrida, e “isso
que retorna é a constante afirmação, o ‘sim, sim’ no qual eu insisti ontem”
1012
. O
sim ao qual o filósofo se refere é a assinatura – o “eis-me aqui” – de um retorno
sem negatividade, que converte toda negatividade em afirmação: uma espécie de
iterabilidade sempre afirmativa como estrutura de todo ato de assinar, da repetição
incessante da qual não se pode fugir e à qual só se pode dizer sim que relaciona a
assinatura autobiográfica ao eterno retorno. Mas Derrida adverte: “eu diria que
aqui talvez possa se encontrar não a resposta, mas o enigma ao qual Nietzsche se
refere quando ele fala de sua identidade, sua genealogia e assim por diante”
1013
.
Não obstante, a transformação assumidamente deliberada do “auto” em
“oto” remete precisamente ao “pavilhão interno” no qual co-habitam labirintos,
martelos, tímpanos, bigornas, entre ossos e líquidos que mantém equilíbrio entre
dentro e fora: a orelha como o membro externo que deixa entrever o órgão interno
que é a metonímia par excellence da relação com o outro:
a orelha envolvida em qualquer discurso autobiográfico que ainda está no estágio
de ouvir alguém falar (ou seja: eu estou contando a mim mesmo minha estória,
como Nietzsche disse, eis a estória que conto a mim mesmo; e isso significa que
eu escuto a mim mesmo falar). Eu me falo para mim mesmo em um certo modo,
1011
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 41.
1012
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 45.
1013
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 46.
414
e minha orelha está assim imediatamente conectada ao meu discurso e à minha
escrita.
1014
E a isso Derrida chama “a diferença na orelha”, o que remete, em uma primeira
instância ao tamanho da orelha: e se Nietzsche orgulhava-se de ter orelhas
pequenas, isso se dá pelo fato destas “orelhas pequenas” serem orelhas de garoto.
Ao invés de possuir orelhas grandes e de abano, como as de um asno, orelhas que
crescem como as de um velho com acromegalia, marcadas pelo tempo e pelo
espírito de suportação – orelhas de camelo –, Nietzsche possui orelhas de garoto
que, tendo já encolhido quando enfrentara o dragão do “tu deves” no deserto,
tornam-se orelhas infantis, como a do menino acrobata Zaratustra, orelhas que não
ouvem o resignado “sim” nem o “não”, mas apenas “têm ouvidos” para o
“sagrado Sim”. “Uma orelha de garoto”, diz Derrida, “é uma orelha com audição
de garoto, uma orelha que percebe diferenças, aquelas diferenças às quais ele
[Nietzsche] esteve bem atento”
1015
. Uma orelha, portanto, que retrata a relação
com a alteridade, sua própria alteridade e a alteridade dos leitores, que
exemplarmente não estavam presentes em seu tempo.
A assinatura de Nietzsche não tem lugar quando ele escreve. Ele diz claramente
que ela só terá lugar postumamente, de acordo com a infinita linha de crédito que
ele abriu para ele mesmo, quando o outro vier para assinar com ele, juntar-se a ele
na aliança e, para isso, ouvi-lo e compreendê-lo. Para ouvi-lo, deve-se ter um
ouvido de garoto. Em outras palavras, para abreviar minhas observações de um
modo bem lapidar, é a orelha do outro que assina. A orelha do outro me diz para
mim e constitui o auto da minha autobiografia.
1016
O outro é, portanto, o que faz com que eu me escreva a mim mesmo e, enfim, que
eu escreva. Mas o que acontece, seguindo a colocação de Pierre Jacques a
Derrida, “quando Nietzsche escreve, finalmente, a si mesmo”?
1017
Derrida
responde, em primeiro lugar, que Nietzsche não é ele mesmo quando escreve.
“Quando ele se escreve a si mesmo, ele escreve-se para o outro que está
infinitamente longe”, o que quer dizer que “quando ele se escreve para si mesmo,
ele não tem a presença imediata de si a si próprio”
1018
. O que faz lembrar
imediatamente a estrutura desconstrutora apresentada em “Assinatura
1014
DERRIDA, J. “Otobiographies”, pp. 49-50.
1015
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 50.
1016
DERRIDA, J. “Otobiographies”, pp. 50-51.
1017
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 88.
1018
DERRIDA, J. “Otobiographies”, p. 88.
415
acontecimento contexto” sobre a ausência tanto do remetente como do
destinatário no ato de escrever uma carta – neste sentido, a diferença entre
escrever-se uma carta ou escrever uma carta a alguém seria mínima frente à
“estrutura” de ausência que solapa o ideal de presença de todo querer-dizer.
*
Um recente trabalho tem muito a contribuir para uma “teoria desconstrutora da
autobiografia”. Trata-se da atese “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita
de si” de Elizabeth Muylaert Duque Estrada
1019
– à qual terei aqui como base para
pensar este elemento autobiográfico, somando a Derrida Nietzsche e Dostoievski.
Em seu primeiro capítulo, “A im/possibilidade da autobiografia”, Elizabeth
Muylaert inicia apresentando o que acredita ser “a única maneira apropriada de
abordar o tema da autobiografia”, qual seja, “afirmando a sua impossibilidade de
cumprir a sua mais profunda promessa: apresentar a verdade de uma vida reunida
numa trama narrativa”
1020
. Esta noção tradicional de autobiografia – apresentar a
verdade da vida – parece iniciar-se com o projeto moderno e traz consigo todo o
arcabouço da noção de sujeito. De modo diferente de Agostinho, que, através de
suas Confissões, assume-se apenas um médium da vontade e da verdade de Deus,
Rousseau seria, então, um dos primeiros a ensaiar uma autobiografia moderna nos
moldes também de Confissões. Para Blanchot, este intuito do autobiógrafo
moderno – o sujeito – consiste na tentativa de entrar “em contato imediato
consigo próprio, revelar este imediato de que tem o incomparável sentimento,
expor-se inteiramente à luz, atravessar a luz e a transparência da luz que é a sua
íntima origem
1021
– o que se pode ver exemplarmente retratado na seguinte
afirmação de Rousseau:
O objeto próprio das minhas confissões é revelar com exatidão o meu íntimo em
todas as situações da minha vida. É a história da minha alma que prometi lhes
1019
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”. Tese de
doutorado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Letras, 2005.
1020
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 11.
1021
BLANCHOT, M. O livro por vir, Lisboa: Relógio d’Água Editores Ltda, 1984, p. 54. Citado
por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 11.
416
contar, e para escrevê-la fielmente não tenho necessidade de outras memórias:
basta-me, como fiz até aqui, voltar para dentro de mim.
1022
O autobiógrafo moderno, então, dissocia a verdade dos fatos da verdade subjetiva,
sendo esta última à qual o relato autobiográfico deve fazer justiça, retratando a
alma tal como ela é. A autobiografia inaugura, dessa maneira, um relato da
“experiência original”, mais original que qualquer dado empírico, e à qual apenas
o sujeito tem acesso e somente ele pode relatar (-se). Como acredita Rousseau,
“uma pessoa é sempre muito bem retratada quando se retrata a si própria, ainda
que o retrato em nada a ela se assemelhe”
1023
.
A “tarefa” do autobiógrafo, assim, não consistiria de modo algum em
tentar adequar seu relato à verdade empírica, mas antes em fazer justiça à sua
verdade subjetiva, à realidade de sua alma, correndo apenas o risco não de não dar
conta de vida tal qual ela é, mas, de outro modo, de poder, em exasperado
entusiasmo, “ir além de si ou desviar-se de si”
1024
. O fato ao qual Elizabeth
Muylaert atenta é que o próprio Rousseau teria observado a impossibilidade de
seu empreendimento, deixando suas confissões incompletas, sem ter escrito a
terceira parte do livro. Elizabeth, com Blanchot, enxerga um grande êxito neste
“fracasso” de Rousseau, dizendo que:
É provável que ele [Rousseau] tenha se dado conta da enormidade, ou, antes, da
impossibilidade da tarefa que se impôs, que tenha percebido que já não mais lhe
bastava “contar tudo”, que a pretensão de apresentar-se a si e ao mundo na sua
verdade mais absoluta não era senão uma empresa insensata, talvez mesmo
absurda.
1025
E, citando Blanchot, completa:
[Na autobiografia] há alguma coisa a ser dita que não se pode dizer: não é
necessariamente um escândalo, pode ser algo bastante banal – uma lacuna, um
vazio, uma área que se esquiva da luz porque a sua natureza é a impossibilidade
1022
ROUSSEAU, J.-J. Les Confessions, Livre VII, Oeuvres completes, I, Paris: Éditions
Gallimard, 1959, p. 278. Citado por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a
atualidade da escrita de si”, p. 11.
1023
ROUSSEAU, J.-J. “Lettre à Dom Deschamps”, Les Confessions, Introdution, p. xxxix. Citado
por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, pp. 12-13.
1024
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 13.
1025
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, pp. 13-14.
417
de ser trazida à luz, um segredo sem segredamento cujo selo quebrado é a própria
mudez.
1026
Em uma palavra: o segredo. A dimensão secreta, sempre e totalmente secreta, que
não se permite iluminar, não porque seja constituída de trevas, mas, como se
disse, porque não há o que revelar senão o segredo mesmo de todo segredo. E é a
esta dimensão que o autobiógrafo deve aprender a manter respeito, preservando,
assim, o mysterium tremendum.
No entanto, frente à tão explorada “crise do sujeito” com a chamada “pós-
modernidade”, o autobiógrafo não consegue – apropriando-me aqui da metáfora
de Foucault – impedir que a onda do mar lamba suas frágeis verdades desenhadas
na areia da praia. “Aqui”, diz Beth, “o auto do autobiográfico se estilhaça nos
desdobramentos sem fim de sempre possíveis determinações”
1027
e torna-se mais
necessário que nunca, para que o autobiográfico não se torne apenas uma
biografia, ou um relato presente em qualquer relato, que se repense radicalmente o
elemento autobiográfico. E tal é o intuito do trabalho de Elizabeth Muylaert,
dedicar-se às questões mais urgentes que envolvem uma discussão atual sobre o
autobiográfico – o que necessariamente deve começar por questionar-se a noção
de verdade presente até então no corpus do relato autobiográfico. Para Beth,
Nietzsche foi um pensador decisivo para pôr em xeque esta verdade neutra que o
pensamento almeja através da afirmação de que “todo o conhecimento não existe
fora da vida, e que, por isto, guarda sempre algo terrivelmente muito pessoal”
1028
.
Com isso, Nietzsche mostra o elemento autobiográfico da filosofia e Além do bem
e do mal se torna, assim, exemplar para um pensamento que assina o seu nome e
em seu nome, como se vê no trecho seguinte: “gradualmente foi se revelando para
mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu
autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas”
1029
.
Este caráter que se revela a Nietzsche e que ecoa nas orelhas de Derrida e
Paul de Man faz questionar-se não apenas o auto como também, como se
antecipou, o bio da autobiografia. Este último, teórico desconstrutor, tratará o
1026
BLANCHOT, M. “Combat avec l’Ange”. In: L’Amitié. Paris: Éditions Gallimard, 1971, p.
152. Citado por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de
si”, p. 14.
1027
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 19.
1028
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 32.
1029
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, p. 12. Citado por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires
autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 32.
418
tema de modo um tanto mais radical: Autobiography as De-facement apresenta a
escrita de si como prosopopéia, pois, para de Man, qualquer texto é sempre
autobiográfico, pois seu autor possui a pretensão de ser “o sujeito da sua própria
compreensão”
1030
. O radicalismo de de Man, ao afirmar que todo livro é
autobiográfico pode, por um lado, enfraquecer o elemento autobiográfico como
estilo literário, esgotar sua especificidade, sua característica “própria” que deve,
sim, ser respeitada. No entanto, esta teoria desconstrutora, segundo Robert Smith,
“não apenas dissocia a autobiografia da escritura e do escritor, mas a coloca entre
o escritor e o leitor, escritura e leitura”, caracterizando assim um “gesto que
permite que se afirme que todo texto é mais ou menos autobiográfico e que
impede uma determinada atribuição de autobiografia para o leitor ou escritor”
1031
.
Para além da controvérsia de de Man, cujo radicalismo não pretendo de modo
algum seguir – pois penso ser extremamente desrespeitosa qualquer afirmação do
tipo “todo pensamento é isto” ou “todo livro é aquilo”, desrespeitando-se assim
qualquer singularidade –, pode-se dizer que há certo “traço” autobiográfico em
toda escritura, que todo relato, em alguma medida, diz respeito ao seu “autor”,
coloca-o em jogo através da própria escrita, mas não que todo livro seja uma
autobiografia.
*
Antes de Nietzsche, Dostoievski: acredito que outro dos grandes méritos da
pesquisa de Elizabeth Muylaert consiste na apresentação da antecipação do pathos
nietzschianos feita pelo escritor russo. O foco em Memórias do subsolo não se
concentra apenas na crítica da cultura e da moral como foi empreendida por
Dostoievski, mas sim na espécie de relato que esta estória do podpólie tece. A
palavra russa “podpólie”, segundo o tradutor brasileiro Boris Schnaiderman, além
de subsolo traz também consigo o sentido de clandestino, subversivo, com o algo
1030
DE MAN, P. “Autobiography as De-facement”. In: The Rhetoric of Romanticism. New York:
Columbia University Press, 1984, pp. 67-68. Citado por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires
autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 37.
1031
SMITH, R. Derrida and autobiography. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp.
66-67. Citado por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de
si”, p. 38.
419
que se passa secretamente por debaixo dos pés de todos, mas que pode a qualquer
momento emergir
1032
.
O “homem do subsolo”, então, é um homem que adota o subsolo como seu
habitat, pois apenas aí pode ele sentir-se em paz e em casa para escrever suas
confissões. Escrever para si, pois, também como Nietzsche, este homem não
possui leitores com as orelhas apropriadas para ouvir seu relato. Sabendo disso,
assume: “confissões como as que pretendo começar a expor não se imprimem e
não se dão a ler”
1033
. A análise que se segue empreendida por Beth colocará as
“memórias” deste homem anônimo como uma “ruptura radical” ou uma “proto-
desconstrução” com os fundamentos da autobiografia tradicional (que vai de
Agostinho a Rousseau, passando por Montaigne) através de “uma outra maneira
de falar de si”
1034
. Para a teórica do autobiográfico, alguns fatores encontrados em
Memórias do subsolo a levam a afirmar isto, dentre os quais destaco dois: uma
perturbação na oposição entre ficção e realidade (“fazendo com que a escrita da
realidade não possa mais negar a sua ficcionalidade, e que a ficção passe a trazer
consigo uma valência de ‘realidade’ autobiográfica”
1035
) e uma nova escrita que
se delineia sobre uma “profunda ausência de profundidade”
1036
– sendo que este
último fator é o que leva Elizabeth a entrever, mesmo antes de Nietzsche, uma
complexa “questão de estilo” no homem do subsolo de Dostoievski. E se
Alexandre Nehamas atribui o uso de metáforas e aforismos e a escrita estilística e
autobiográfica de Nietzsche ao fato de que “não existe linguagem neutra e única
que possa servir à exposição de suas idéias, e nem das idéias de quem quer que
seja”
1037
, então o mesmo “pluralismo estilístico” pode ser encontrado em
Dostoievski, que teria, mesmo antes do filósofo alemão, torcido a escritura de tal
modo a fazê-la dobrar-se sobre ela mesma. Além disso, o auto que está em jogo
1032
Sobre isso, ver a explicação do tradutor. DOSTOIEVSKI, F. Memórias do subsolo. São Paulo:
Editora 34, 2000, pp. 11-12.
1033
DOSTOIEVSKI, F. Memórias do subsolo, p. 52.
1034
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 41.
1035
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 41.
1036
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 41.
1037
NEHAMAS, A. Nietzsche. La vie comme littérature, p. 54. Citado por DUQUE ESTRADA,
E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 43. Faz-se necessário notar que
Nehamas, neste livro, desenvolve toda uma argumentação sobre a concepção nietzschiana do
mundo como um texto, retomando as leituras de Sarah Kofman sobre a escrita metafórica de
Nietzsche como um “estilo aristocrático” e as feitas por Jacques Derrida em Éperons: les styles de
Nietzsche. Sobre isso, remeto o leitor ao capítulo “The multifarious art of style” do referido livro.
NEHAMAS, A. Nietzsche. Life as literature. London, Cambridge: Harvard University Press, 1985,
pp. 13-41.
420
não supõe nenhum “solo”, mas antes um subsolo que não representa nenhum
fundamento, pois o “eu” que relata suas memórias não pretende relatar verdade
alguma nem busca nenhuma legitimação ou crença por parte de seus leitores.
Elizabeth conclui suas análises sobre o livro indicando este novo “lugar” de onde
o otobiógrafo escreve como o “espaço do eu do subsolo”: a partir da constatação
de que “não há, nunca houve e nunca haverá solo, ponto de partida e de chegada”,
alcança-se e instala-se, desta maneira, em “um lugar, portanto, que não é,
igualmente, jamais apreendido pelo horizonte de inteligibilidade das experiências
tanto cotidianas quanto científicas”
1038
.
A tese de Beth, com Dostoievski, abre o caminho para as otobiografias de
Nietzsche e de Derrida, iniciando o capítulo central e mais extenso de seu trabalho
com uma análise de Ecce homo e, mais especificamente, de seu subtítulo: “como
tornar-se o que se é”, ao invés de assumir a tradução brasileira “como alguém se
torna o que é”. Quando do aparecimento da frase no texto de Nietzsche, no nono
aforismo de “Por que sou tão inteligente”, o tradutor brasileiro acrescenta uma
nota explicando que “Wie man wird, was man ist: é o subtítulo do livro, difícil de
ser recriado com a mesma precisão em português. Man é a partícula impessoal da
3
a
pessoa; corresponde ao on francês, ao se português. Werden (wird, na 3
a
pessoa
do singular) significa ‘tornar-se’, ‘vir a ser’”
1039
; e depois, no posfácio que
escreve à obra, lembra a retomada da sentença grega do século V a.C. que tanto
teria seduzido Nietzsche nos seus anos de estudante: o imperativo pindárico génoi
hoios essí – “torna-te aquilo que és”. Também em nota de rodapé, Muylaert
remete às traduções francesa e inglesa (“Comment on devient ce que l’on est” e
“How one becomes what one is”, respectivamente) para discordar da opção de
Paulo César de Souza por incluir a palavra “alguém” na tradução, “pois parece”,
segundo ela, “que ela faz referência a um caso particular, dando conotação de
exemplaridade, perdendo aí o que há de ‘impessoal’, de algo que diz respeito a
todos”
1040
. Somo à objeção de Elizabeth o fato de que o termo “alguém” supõe a
presença (a si) de um sujeito pré-definido, bem-definido ou apenas definido, mas
certamente representando uma idéia que em nada agradava Nietzsche; e, com isso,
1038
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 48.
1039
NIETZSCHE, F. Ecce homo, p. 124.
1040
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 49.
421
faço eco à sua opção pelo uso do impessoal em português, contra qualquer
substancialização possível.
Portanto, “vir a ser o que se é” como um paradoxo ao mesmo tempo entre
devir e ser, mas também entre liberdade e destino, pois o homem livre é aquele
que vem a ser o que é, o que pressupõe uma total entrega às “forças do destino”,
nesta assunção trágica, para que se seja. E Nietzsche vem a ser o que é escrevendo
sua otobiografia, escrevendo-se para si não no intuito de conhecer-se a si próprio
como preconizaria Delfos, Édipo e Sócrates, mas por saber há algum tempo que o
homem é apenas uma ponte, a ponte sobre um abismo, e que o Übermensch não
pode ser meta, mas sempre uma constante superação de si. Assim, este “o que se
é”, não representa nenhum lugar de chegada, nenhum solo, pois o Zaratustra
apátrida não se sedentariza, é sempre o nômade, o errante que caminha de cume
em cume – e Zaratustra só vem a ser o que se é contando seu ocaso, relatando-se
ora a ninguém, ora a seus animais, ora ao cadáver, ora a todos (ou a ninguém, o
que é o mesmo), mas sempre se contando a si, a sua saga, seu destino. Como seu
Zaratustra – como ele se refere lindamente em Ecce homo ao falar de sua
“gestação de elefante”:
Naquele dia eu caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana; detive-me
junto a um imponente bloco de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de
Surlei. Então veio-me esse pensamento [do eterno retorno] (...) Resultam então
dezoito meses de gravidez. Esse número exato de dezoito meses poderia sugerir,
entre budistas pelo menos, que no fundo sou uma fêmea de elefante. (...) Apesar
disso [do abrupto declínio de saúde que sofrera após esta gestação], e como para
demonstrar minha tese de que tudo decisivo acontece apesar de tudo, foi nesse
inverso de desfavorecimento das circunstâncias que meu Zaratustra nasceu. (...)
Nesses dois caminhos ocorreu-me todo o primeiro Zaratustra, sobretudo o próprio
Zaratustra como tipo: mais corretamente, ele caiu sobre mim...
1041
E daí em diante passa a referir-se à sua obra como se ela fosse seu filho “seu”
Zaratustra – como seu filho, como a obra que se fez filho, escrevendo-se,
Zaratustra escrevendo-se e Nietzsche escrevendo-se e escrevendo Zaratustra
escrevendo, o “o que se é” que de deve “vir a ser” é a escrita, a narrativa do relato
de si, apenas isso.
Não se podendo fisgar com certeza o que seria o “eu” de Nietzsche a não
ser sobre a forma de mais um relato autobiográfico e ficcional, deve-se ter em
1041
NIETZSCHE, F. Ecce homo, pp. 82-84. Grifos meus.
422
mente então que, como diz Nehamas, “o personagem que nos fala é o autor que o
criou e que é, por seu turno, um personagem criado pelo conjunto dos livros – ou
implícito em cada um deles – que o autor que escreveu este [também] os
escreveu”
1042
. Não se pode – e nem se deve – acreditar na falsa noção de que a
obra de um autor é separada de sua vida, nem tão pouco reduzir aquela a esta, pois
Nietzsche só se tornou o que ele foi escrevendo seus livros, criando-se como
ficção, desacreditando e descreditando, assim, toda substância, toda subjetividade.
E, ao caminhar lado a lado com Nietzsche, Elizabeth, em seu caminho (também
errante, como só poderia ser) encontra-se com Derrida, com o já estudado Derrida
de Otobiografias, a fim de excluir definitivamente a lógica tradicional que regia
as noções de vida e de obra. Em um esforço atento à tentativa de situar o espaço
autobiográfico nos limites, no entre a vida e a obra [“uma fronteira, no entanto,
que não separa, mas que, antes, atravessa ‘vida’ e ‘obra’, sem que se possa
estabelecer sobre ela qualquer determinação”
1043
], Beth tenta respeitar os limites
entre pensamento e biografia, entre o nome e a vida, escrevendo uma tese como
sua Circonfissão, na qual relata (-se) o relato autobiográfico mesclando
respeitosamente os textos, dos outros e seus, o estilo, a teoria. Certamente a
escritura de Elizabeth Muylaert segue o movimento que talvez eu não tenha
conseguido seguir, o de um desequilíbrio harmônico entre auto, bio e logos.
Minha grafia, como uma grafia ainda por demais presa aos grilhões acadêmico-
filosóficos, talvez não faça justiça a esta umidade que tanto amo.
zona de indecidibilidade
Temor e tremor, Ecce homo, Infância em Berlin e Circonfissões podem ser
tomados como alguns exemplos de obras que se mantêm em uma certa “zona de
indecidibilidade” e que, ao serem assinadas com os nomes próprio de seus
otobiógrafos (com exceção de Kierkegaard, mas que contudo assinava com um
nome próprio), ao invés de engavetarem-se nos limites da autobiografia, rompem
seus limites tradicionais e mesclam teoria, biografia, empiricidade, ficção e
desejo. Sobre a desapropriação necessária ao autobiográfico (entendido como
1042
NEHAMAS, A. Nietzsche. La vie comme literature, pp. 224-225. Citado por DUQUE
ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 53.
1043
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 56.
423
otobiográfico), então sobre a entrada em cena do nome próprio, Beth lembra as
palavras de Mónica Cragnolini:
A noção do eu nietzschiano que se configura a partir do nome próprio, no âmbito
da constituição da identidade, ao modo de um indecidível, não significa somente
uma polissemia do nome (esses muitos nomes da história com os quais se quis
chamar Nietzsche), senão também um deslocamento, um contínuo separar-se da
unidade-sentido, ou da unidade doadora de sentido. Esta nova “identidade” que se
configura a partir do nome próprio assumido na autobiografia filosófica e no
modo de filosofar, se caracteriza por uma contínua desapropriação de si, que
permite que o eu se constitua não a partir de uma propriedade (um si mesmo
fundacional), mas de uma im-propriedade: a de construir-se a partir dos outros –
as outras forças, as circunstâncias, etc – que se escrevem em sua escritura.
Escrever implica abandonar toda centralidade, converter-se quase em um “lugar
vazio” para ser atravessado por outras vozes, outros corpos, outros textos.
Escrever, ainda que em nome próprio (ou, sobretudo, em nome próprio), significa
deixar toda propriedade de si para permitir que nela outros falem a partir de
nossas palavras.
1044
Deste modo, o autobiográfico rompe com qualquer possibilidade de propriedade,
de próprio, de autenticidade etc. O que faz com que se pense em uma questão
muito delicada que envolve diversos scholars sobre a autenticidade de uma
específica obra nietzschiana: My sister and I.
A tese de Elizabeth Muylaert – além de tantos méritos acadêmicos, como
um mapeamento cuidadoso do problema da autobiografia, uma dedicação ao
estudo de Memórias do subsolo como uma antecipação de Ecce homo, uma atenta
leitura de Nietzsche, Montaigne, Rousseau e Barthes, e de uma retomada do
contemporâneo sobre o sujeito – causou-me um exercício especial, particular e
autobiográfico: a tese traz à cena um livro esquecido, esquecido por muitos e,
particularmente por mim, esquecido em minhas prateleiras, amarelado, velho. A
coragem de Beth de trazer à discussão, ao lado de Ecce homo, A minha irmã e eu,
instigou-me profundamente e me fez reabrir o livro desacreditado e deliciar-me
tanto com sua leitura como com a querela que enseja. Talvez, possa arriscar agora,
que A minha irmã e eu represente o que há de mais próprio ao pensamento
nietzschiano: sua impropriedade e sua incapacidade de ser reduzido a nenhuma
propriedade, nenhuma apropriação por nenhum nome próprio que se ache dono da
Verdade-Nietzsche.
1044
CRAGNOLINI, M. “Nombre e identidad. Del filosofar en nombre propio”. In: Moradas
nietzscheanas. Del sí mismo, del otro y del “entre”. Buenos Aires: Ediciones La Cebra, 2006, pp.
54-55.
424
A biografia relata o notório episódio de janeiro de 1889, segundo o qual
Nietzsche, ao passear por uma praça de Turim, vê um cavalo sendo chicoteado
pelo dono e agarra-se aos prantos no pescoço do animal, caindo logo depois no
chão, desacordado – eis o relato do que se chama de “o colapso”. Depois deste
episódio, tudo o que se segue cumpre-se em mera especulação, ficção teórica,
pura fertilidade das mentes acadêmicas especialistas no filósofo. Sabe-se que
seguindo imediatamente o colapso, Nietzsche fora internado em um sanatório em
Jena por pouco mais de um ano. Com exceção do que se entendia por loucura na
época, nunca se sabendo de fato a origem de tal doença (narcóticos, doença
nervosa hereditária, conflitos interiores, sífilis), o colapso deu origem a inúmeras
especulações, tornando-se quase tão famosa como a obra de Nietzsche. É nesta
querela de especulações que se encaixa perfeitamente A minha irmã e eu, uma
autobiografia não oficial que teria sido escrita justamente neste período de
internamento no manicômio. Mais interessante que a obra, que mescla uma
enxurrada de nomes próprios, fatos históricos, obras filosóficas, acontecimentos
pessoais, familiares e atos incestuosos, não obstante sendo um livro extremamente
interessante, agradável e por vezes bem engraçado de se ler, parece ser a novela
que ela originou, uma fábula bem tragicômica e com uma “moral da história” bem
clara: não há como se apreender isso que se chama Nietzsche.
Portanto, é a este “caso” que me dedicarei para mostrar como a ficção,
tanto como qualquer “obra autêntica” produz efeitos e marca a história do
pensamento. A obra, cuja autoria continua contestada, foi publicada apenas em
1951, e em sua introdução (também supostamente) escrita por Oscar Levy, relata
a estória deste livro
1045
. Levy, editor americano responsável pela organização da
publicação de Nietzsche em inglês, teria escrito, neste prefácio, que ele haveria
recebido o manuscrito (em inglês, pois o alemão teria sido perdido) em 1923 de
“um jornalista norte-americano que o recebera em troca de um favor que fizera a
um empresário canadense, que, por sua vez, o comprara de um alemão que
emigrara para o Canadá”
1046
. Segundo o estudo de Elizabeth (Muylaert Duque
Estrada e não a Föster Nietzsche), “o pai deste alemão, um ex-interno do
manicômio de Jena, seria a pessoa a quem Nietzsche teria confiado o manuscrito,
1045
Os dados citados têm como fonte a tese de Elizabeth Muylaert Duque Estrada e o prefácio da
Editora encontrado na edição brasileira. NIETZSCHE, F. A minha irmã e eu. São Paulo: Editora
Moraes, 1992.
1046
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 70.
425
temeroso que sua mãe e irmã o confiscassem”
1047
, interno este a quem Nietzsche
se refere inúmeras vezes ao longo da obra. Levy teria, então, escrito a introdução à
obra e, em 1924, entregue o material a um editor que costumava publicar obras
consideradas obscenas na época. E o tal editor Samuel Roth, segundo Kaufmann
um “mercenário desprezível, teria sempre vivido dos escândalos de suas
publicações, lucrando com a importação do que a moralidade americana
considerava “promiscuidade européia”, aumentando o descrédito do livro
Em fevereiro 1952, com a primeira resenha da obra, no Saturday Review of
Literature, inicia-se a querela que incluiria a declaração de Maud Rosenthal, filha
de Oscar Levy, de que o pai nunca escrevera tal introdução e que reuniria alguns
dos mais respeitados leitores de Nietzsche de língua inglesa, inclusive a
“autoridade” Walter Kaufmann, tradutor e editor da obra do filósofo nos EUA,
que, em maio do mesmo ano daria o “veredicto final”: a obra era falsa. Kaufmann
então determinou a posição oficial da academia, não apenas pela ausência do
manuscrito original, mas por considerar o estilo “nada nietzschiano”, bom como o
fato de o suposto Nietzsche tê-lo escrito em um período de insanidade. Outro fato
interessante para a construção desta trama deveras nietzschiana é que o sumiço do
manuscrito original deve-se a um também suposto confisco deste por membros da
“Sociedade para a Supressão do Vício de Nova Iorque”, a NYSSV, que teria
poderes legais de empresas contra violações do estatuto anti-obscenidade e que
teria, por isso, invadido e confiscado todo o material da editora “vanguardista”.
Para os scholars, mais uma fantasiosa cena para mascarar a fraude que é A minha
irmã e eu.
Para Elizabeth Muylaert, “A minha irmã e eu coloca em cena um
Nietzsche bastante diferente daquele que escreveu Crepúsculo dos Ídolos,
Zaratustra e Ecce homo; ali fala um homem vulnerável, esquecido entre os
pacientes da clinica psiquiátrica e vencido pelas suas contradições”
1048
. Mas seria
este argumento suficiente para desautorizar uma obra deste filósofo que não
apresentara nunca um mesmo estilo em seus escritos? Seria o Nietzsche de
Zaratustra o mesmo de O nascimento da tragédia, ou de A gaia ciência, o de Ecce
homo? Não acredito de modo algum, tratando-se de Nietzsche, que um argumento
sobre uma diferença de estilo possa ser levado em consideração para se
1047
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 70.
1048
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 71.
426
determinar a autenticidade de uma obra. O suposto Nietzsche, ou ainda, o
paradigmático personagem / paciente Nietzsche explicaria: “é a impossível
contradição da minha vida e reconcilia-me com esta atual vivência entre deuses
menores”
1049
.
Após a proclamação de inautenticidade por Kaufmann, o livro entraria em
uma completa rejeição do meio intelectual, ficando no ostracismo por mais de
trinta anos, até que o professor Walter Stewart publica uma pesquisa na revista
Thought destacando alguns aspectos que foram desconsiderados por Kaufmann ao
bater seu martelo. Com isso, “a história ressurge” e em 1991 My sister and I é
reeditado e volta à cena. Segundo as atentas observações de Elizabeth Muylaert,
Nietzsche é uma vez mais usado como um instrumento àquilo que ele tanto
combateu, ou seja, “Nietzsche, sua filosofia e sua irmã são invocados a contestar
ou justificar a verdade do livro e a verdade no livro”
1050
. Depois disso, alguns
nomes próprios ainda se manifestaram nesta busca da verdade nietzschiana, como
R.J. Hollingdale, Denis Dutton, K.J. Wininger, Yeshayahu Yariv, H.J. Schmidt e
H. Walther. Entre as pretensões de autoridade que, inutilmente, degladiam-se em
nome de uma “presença” de Nietzsche, sacando das mangas autoridades de
documentos, argumentos lógicos e suposições fantasiosas, a posição de Wininger
parece bem interessante, por não se preocupar em provar ou não se Nietzsche
escreveu ou não o livro, mas sim em propor que seria mais interessante ler-se o
livro como se fosse de Nietzsche, já que “a vida de Nietzsche tem sido tratada
como uma ficção ou como uma tentativa de viver através da ficção” e que, assim,
nada seria mais anti-nietzschiano que “perseguir com zelo positivista a questão da
autenticidade do texto”
1051
.
De fato, para além das divertidas declarações e das bombásticas confissões
que A minha irmã e eu oferece, o bafafá intelectual que se seguiu à sua publicação
deve, de fato, ter retirado do bufão Nietzsche umas boas gargalhadas e, como
insinua Stewart em seu artigo, feito cair ao menos um pouco a máscara pudica e
moralista de Kaufmann. Exemplo dessa postura equivocada e estranha a um
1049
NIETZSCHE, F. A minha irmã e eu, p. 57. Citado por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires
autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 71.
1050
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 74.
1051
WININGER, K.J. “Friedrich Nietzsche (or maybe not), My sister and I”. In: Telos – A
Quarterly Journal of Critical Thought, n. 91, spring 1992, pp. 185-198. New York: Telos Press
Ltd., 1992, p. 189. Citado por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade
da escrita de si”, p. 75.
427
pensador trágico encontra-se quando, em The Portable Nietzsche, o tradutor busca
explicações mais atenuantes para a contração da doença venérea do filósofo
alemão, ressaltando sua “vida ascética” e aceitando que Nietzsche poderia ter
freqüentado uma ou duas vezes um prostíbulo quando estudante. E lança mão da
autoridade: “qualquer narrativa detalhada de tais experiências é poesia ou
pornografia – não biografia”, supondo ainda – para ressaltar um aspecto
“humanitário” e não promíscuo de sua doença – que o filósofo poderia “ter se
infectado quando trabalhava como enfermeiro cuidando de soldados feridos em
1870”
1052
. Kaufmann, além de julgar o que é certo e errado, ou melhor, o bem e o
mal sobre Nietzsche, ainda julga-se a tal ponto conhecedor “disto” que é
Nietzsche a ponto de julgar qual é o “melhor” e o “pior” Nietzsche
1053
.
Kaufmann, a voz viva – e auto-declarada – de Nietzsche sobre a terra, determina o
que se pode ou não se pode escrever a partir de Nietzsche, o que é certo ou errado
sobre ele, chegando ao ponto, como acontece nas megalomanias acadêmicas, de
determinar o que Nietzsche deveria ou não ter escrito, o que é um Nietzsche
“digno” ou “indigno”, o que é um mero capricho do filósofo ou o que é relevante
à filosofia: eis a postura anti-nietzschiana do tradutor.
Elizabeth Muylaert atenta para a persistência de “um Nietzsche teimoso,
que insiste em escapar da vigilância do austero Kaufmann”
1054
, e que, como A
minha irmã e eu, é indefinível, sem nenhuma precisão lógica, um mero relato sem
origem determinada e que sempre retorna. Um Nietzsche que eternamente retorna
e que não se deixa apreender por nenhuma autoridade. Este “Nietzsche” é o
próprio autobiográfico.
É sempre um desejo de apropriação, de tomar posse: Nietzsche possuiu a irmã ou,
antes, foi esta quem o possuiu; que esta possessão seja uma fraude inaceitável
1052
KAUFMANN, W. The portable Nietzsche. New York: Penguin Books, 1982, pp. 13-14.
Citado por DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p.
77.
1053
Como ocorreu no caso Colli e Montinari, quando, em 1972, a publicação de manuscritos não
publicado é discutida. Mazzino Montinari teria descoberto manuscritos de Ecce homo com
alterações que Nietzsche teria pedido que seu editor fizesse às vésperas do colapso. Kaufmann,
não podendo desqualificar a obra devido à sua autenticidade, resolveu não incluí-la em sua
tradução por considerar um Nietzsche de menor qualidade que o anterior e questiona o fato de o
editor ter mantido estas alterações – em que Nietzsche descarrega seus desafetos com a mãe e com
a irmã, a canaille – sugeridas como um “capricho” de alguém que estava surtando. Vale lembrar
que a tradução brasileira de Paulo César de Souza também restringe o trecho final da obra de
Nietzsche às notas, sem explicar suas razões, mas provavelmente andando na sombra da
autoridade de Kaufmann.
1054
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 80.
428
como quer Kaufmann, que, aliás, pretende ter possuído Nietzsche a ponto de falar
em nome do próprio Nietzsche; que tal posse seja talvez questionável como
pretende Stewart, aspirante talvez à posse de um novo Nietzsche, toda esta trama
é tecida numa força ou pulsão de posse, de tomar para si, de apropriação, de
penetração nos segredos deste nome próprio Nietzsche, e que assim disputam
senão a posse ao menos uma boa parcela do capital da Nietzsche Corporation.
(...) Mas é a ironia de Nietzsche que acena em cada momento destas torções
narrativas...
1055
identridade
Em um modo diverso do que empreendeu Elizabeth Muylaert Duque Estrada em
“Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, Mónica Cragnolini
também se dedica a pensar este estranho “eu” em Moradas nietzscheanas. Del
mismo, del otro y del “entre”. O objetivo de terminar minha pesquisa com uma
atenção a este lugar do “eu” em uma perspectiva trágico-desconstrutora justifica-
se na necessidade de, junto ao traço autobiográfico, tentar pensar como poderia
ser pensada uma “identidade úmida”. Assim, creio eu que as indicações de
Mónica sobre o “entre” – a “morada provisória no estranho e do estranho”
1056
inspiradas em Nietzsche e Derrida cairão como uma luva para pensar fechar, sem
conclusão e sem chave do ouro, as inspirações que pretendi, aqui, pôr em prova –
pôr em cena.
“Pensar a constituição da(s) subjetividade(s) no pensamento ao modo do
“entre” (Zwischen) supõe uma ruptura com a noção de homem moderno,
autônomo, sujeito seguro de si e afirmador de sua liberdade no exercício da
apropriação”
1057
, diz Cragnolini. Com isso, se pretendo seguir as argumentações
da filósofa argentina para deixar no ar, sem pretender definir, algo como um
apontamento da “identidade úmida”, é necessário que toda a crítica do sujeito, das
diferentes linhagens filosóficas (de Kierkegaard e Buber a Lévinas, de Husserl e
Heidegger a Nancy, de Nietzsche a Foucault e Derrida) estejam aqui presentes,
ainda que elididas. A elipse se dá pelo fato de não caber aqui – nem em termos de
tamanho nem por acreditar mesmo tratar-se de uma pressuposição ao pensamento
contemporâneo – um parêntese tão extenso como este. Contudo, os ecos em tudo
que fiz ao longo destas páginas supõem certamente esta crítica da subjetividade,
1055
DUQUE ESTRADA, E.M. “Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si”, p. 81.
1056
CRAGNOLINI, M. Moradas nietzscheanas. Del sí mismo, del otro y del “entre”, p. 07.
1057
CRAGNOLINI, M. Moradas nietzscheanas. Del sí mismo, del otro y del “entre”, p. 07.
429
sobretudo por meu percurso em um pensamento do outro. Neste sentido, pensar a
alteridade, o outro totalmente outro no sentido levinasiano pode assemelhar-se em
muito com este “habitar o entre” que o livro de Mônica indica como identidade
provisória, mas necessária, e cuja precariedade permite que se instale em seu
cerne uma contínua desapropriação, uma habitação ao estranho, em si. O viajante
nietzschiano, o Zaratustra Umheimlich, o ultrapassamento sem cessar do Super-
Homem e os labirintos de Ariadne representam esta “figura” de instabilidade e
mobilidade que é a expressão mais “verdadeira”, ou melhor, mais justa do que se
pode entender por identidade.
Sendo a herança úmida de Nietzsche e de Derrida, que eu pretendo
proclamar como a minha, uma forma de pensamento que de modo algum se
permite uma forma de “detenção”, então, em consonância com Mónica, pode-se
compreender porque qualquer possibilidade de “redução” torna-se indesejada,
pois um pensamento como o que se tentou aqui rascunhar e apresentar apenas
teria alguma “força” se se mantém em tensão, produzida entre aspectos positivos e
negativos, por um jogo entre o ‘não’ e o ‘sim’. Segundo a definição: “Filosofia da
tensão: o pensamento, nesta perspectiva, é tarefa constante, é força que constrói
interpretações e as desarma e re-arma segundo as circunstâncias e as
necessidades”
1058
. E apenas com esta maleabilidade, com esta mobilidade pode-se
pretender alcançar alguma forma de “identidade”, caracterizada por Mónica como
“entridade”. Esta característica por demais “úmida” de indecidibilidade, que a
filósofa já havia apresentado como um pensamento “nem/nem”, parte como
legado da figura do espírito livre como uma “figura de trânsito” que não admite a
permanência em nenhuma das margens que admitem “sins” e “nãos”. A tensão a
que Nietzsche se deixa levar é a da correnteza, da travessia e o lançar-se neste
fluxo consiste certamente uma ainda nova experiência de pensamento – que
necessita, então, de um novo sujeito.
Cragnolini, destarte, retira da obra nietzschiana a noção de subjetividade
como um “entre” das forças, caracterizando algo como uma id-entridade, em que
não se tem nada de próprio senão a própria tensionalidade.
1058
CRAGNOLINI, M. “La re-sistencia del pensar (filosofía nietzscheana de la tensión)”. In:
Moradas nietzscheanas. Del sí mismo, del otro y del “entre”, p. 16.
430
Este sujeito múltiplo assume diferentes formas possíveis na filosofia de
Nietzsche, como figuras “provisórias” do que anteriormente se denominava
“identidade”: a do Wanderer, caminhante sem meta última, a do “espírito livre”,
aquele que rompe com os velhos deuses, a do “amigo”, figura por excelência do
Zwischen.
1059
A figura do “entre”, assim, redefiniria uma espécie de subjetividade, não mais a
do tradicional sujeito autista, fechado em si mesmo em sua clausura, mas em uma
espécie de “entrecruzamento” de um eu que é também outro de si mesmo e de
seus outros, como o “eu” que pode contar-se a si sua própria vida, estando de tal
modo distante de si e de qualquer possível outro. Na “identridade” como um lugar
indeterminável, lugar estranho e do estranho, as forças próprias tornam-se
desapropriadoras, pois nenhuma definição mais de “eu” torna-se possível, pois
esta zona de contaminação é onde se tensionam o dentro e o fora, não permitindo
mais que nenhum limite possa ser claramente discernível: sobrando apenas o
limite, o tímpano.
Esta noção de Zwischen tem um forte caráter “desapropriador”: (...) Supõe esta
tensão da impossibilidade da detenção no “interior” ou no “exterior”, no “agente”
ou no “paciente”; porque o “entre” põe em questão estas diferenças, ou lhes dá
apenas um valor de “erros úteis” [que é como Nietzsche classificava o sujeito]
para a expressão do que acontece.
1060
A tensão não se resolve, e nem pode – bem como a umidade não se
permite nem apreender nem expulsar. E o jogo de propriação-desapropriação não
ocupa um lugar tão paradigmático como na escritura. Esta escritura úmida:
contaminada, trópica, ficcional, otobiográfica, é o que mais se aproximaria de uma
“experiência de vida”, pois se trata de um “exercício de ausência e presença” que
permite que se (des) construa uma espécie de identidade em tensão, identidade do
“entre”, id-entridade. Este “cruzamento de forças” de “dentro” e de “fora”, de
“eu” e dos “outros”, de “razão” e “desejo”, e assim por diante, um auto que se
torna oto porque necessita das orelhas do outro para se contar a si, que precisa
tornar suas próprias orelhas as orelhas de outro; fazer-se outro, então, para vir a
ser “eu”.
1059
CRAGNOLINI, M. “La re-sistencia del pensar (filosofía nietzscheana de la tensión)”, p. 21.
1060
CRAGNOLINI, M. “La re-sistencia del pensar (filosofía nietzscheana de la tensión)”, p. 22.
431
Enfim: “Para um filósofo amante das máscaras (...) a obra é a vida”
1061
.
1061
CRAGNOLINI, M. “Del cuerpo-escritura. Nietzsche, su ‘yo’ y sus escritos”. In: Moradas
nietzscheanas. Del sí mismo, del otro y del “entre”, p. 48.
432
...demasiado tarde, és menos, tu, menos que tu mesmo, passaste a
tua vida a convidar chamar prometer, a esperar suspirar sonhar, a
convocar invocar provocar, a constituir engendrar produzir, a
nomear assinar intimar, a prescrever comandar sacrificar, o quê, a
testemunha, tu a contrapartida de mim, com intuito único de que
ele ateste essa verdade secreta, isto é desvinculada da verdade, isto
é nunca terás tido testemunha alguma, ergo es, aqui mesmo, tu
somente cuja vida terá sido tão curta, a viagem breve,
penosamente organizada, por ti sem farol e sem livro, tu o
brinquedo flutuante na maré alta e sob a lua, tu a travessia entre
esses duas testemunhas fantasmas que nunca retornarão ao
mesmo.
Jacques Derrida, Circonfissão
9
Conclusâo: aposições
Em uma cena aparentemente corriqueira, o comandante de um navio recebe
algumas convidadas à sua mesa na hora da jantar. A conversa cotidiana poderia
ser a mais banal: uma empresária francesa, uma ex-modelo italiana, uma atriz e
professora grega e o anfitrião, um americano de origem polonesa. Falando
banalidades, eles percebem que cada um está falando sua própria língua, e que
todos eles se compreendem perfeitamente. Com chegada de uma estrangeira, na
verdade duas, uma jovem professora de história e sua filha, ambas portuguesas, a
comunicação parece tornar-se mais problemática, já que, com esta chegada, a
harmonia entre as diferenças estremece.
*
A cena é de “Um filme falado”, de Manoel de Oliveira. À mesa, aos consagrados
John Malcovitch, Catherine Deneuve, Irene Papas e Stefania Sandrelli junta-se
Leonor Silveira. Semelhante à entrada de Portugal na União Européia, a língua
portuguesa parece abalar o perfeito diálogo entre o imperialismo do inglês, com
seu sotaque judaico, o glamour do francês e a importância histórica do grego e do
italiano. Se a imperceptível estranheza da conversa inicial surpreende o espectador
e pode fazer pensar que assim é, ou deveria ser, o pensamento filosófico, um
diálogo perfeito entre as diferenças, a chegada do elemento surpresa, aqui
representado pela língua portuguesa, parece deixar entrever a mais efetiva
impossibilidade de comunicação. Se há algum diálogo verdadeiro, este é o diálogo
impossível, no qual, quando se pensa ter conseguido reunir as diferentes vozes em
um uníssono, o coral destoa com a estrada do estranho.
Ensaiar aqui uma proximidade entre Jacques Derrida e Manoel de Oliveira
pode não ser um despautério tão grande, pois sei de ao menos uma vez em que se
deu um encontro entre os dois: pouco tempo antes da morte do filósofo franco-
magrebino, o cineasta português esteve presente em sua laureação na
Universidade de Coimbra, a convite da professora Fernanda Bernardo –
testemunha, portanto, deste encontro. Mas, para-além dos fatos – pois creio
mesmo no dever de a filosofia se desapegar deste obsessivo amor aos fatos –, esta
434
cena é tipicamente derridiana: aliás, como toda cena digna deste nome, toda
escritura que assume o seu caráter de encenação. Se o pensamento filosófico
sempre se ocupou e se preocupou em escrever o perfeito diálogo, no qual cada
filósofo cria de seu relato através da orquestração das diferentes vozes da história
da filosofia de acordo com sua própria partitura, os textos de Derrida dedicam-se a
mostrar a dissonância que se esconde por detrás desta grande sinfonia chamada
filosofia.
Talvez esta tenha sido a minha maior preocupação e o fato – que não é
nada pouco significativo – que eu devo a Derrida. Não me pretendi compositor de
nada, muito menos maestro. Possivelmente, apenas um amante da música que se
inspirou em sons aqui e ali ouvidos e tentou fazer sua compilação. Compilação
confusa, talvez, mas certamente assimétrica, em que melodias diletas se misturam
com sons externos e internos e com outras melodias que nem mesmo esperava
ocupar meu tempo. Mas não apenas de sons consiste esta minha seleção: uma
infinidade de imagens e cheiros e letras, rabiscos e grifos, entretecem-se nisto que
deve, por dever, chamar-se uma “tese” – um texto, uma textura de citações,
paráfrases e algumas tentativas de inspirações. Mas certamente não na busca de
originalidade ou de inauguração, e sim no trabalho de negociação que a leitura e a
escritura pedem para que haja uma contra-assinatura. E foi assim que eu pude
assinar isto que se chama “tese”, tentando apenas fazer justiça às tantas
assinaturas desta multidão de espectros que, aqui, me assombram – de modo
dissimétrico e inevitavelmente violento, pois sempre haverá exclusão, isto é,
secura.
*
E o primeiro espectro que apareceu a mim foi a própria idéia de “úmido”, que
intitula este trabalho. “Para um pensamento úmido: a filosofia a partir de Jacques
Derrida” é um estudo que visa a apresentar alguns aspectos estruturais à
constituição do pensamento ocidental que parecem ter sido recalcados pela
filosofia ao longo de sua história. Para tanto, a fim de apresentar esta estrutura -
ao mesmo tempo constitutiva e recalcada - do pensamento, recorreu-se à metáfora
baconiana do úmido ou, mais precisamente, da umidade do úmido. Em seu Novum
Organum, dedicado à formulação de um método científico que evite o erro e
435
conduza o homem no caminho do conhecimento verdadeiro, Francis Bacon
rechaça com veemência a esfera da comunicação como lugar, por excelência, do
erro, fruto da ambigüidade ocasionada pelo uso indevido das palavras. O termo
úmido é, então, tomado como exemplo para ilustrar os equívocos produzidos pela
linguagem por não ser de precisa definição, não sendo seco nem molhado. A
“tese”, sempre entre aspas, que tentei desenvolver parte do princípio que o intuito
de Bacon pode ser entendido como uma atitude típica da filosofia, qual seja, a sua
necessidade de clareza, distinção, imunidade, contenção, determinação,
consistência, unidade, isolamento etc., e vê nesta característica uma semelhança
com a crítica que muito comumente se associa ao pensamento de Jacques Derrida
e ao seu esforço para não oferecer nenhuma definição precisa, nenhuma
conceitualização possível, apresentando, sob do nome “desconstrução”, um
pensamento contaminado e disseminado através de seus “quase conceitos”: os
indecidíveis.
A infinidade de espectros aos quais deveria aqui fazer justiça impossibilita
qualquer indicação, pois à indiscutível influência de Derrida somam-se os rastros
de filósofos do porte de Nietzsche, Kierkegaard, Benjamin e Lévinas, mas
também as inspirações derridianas de Blanchot, Patočka, Kafka, Artaud, Jabès
etc., e a esses as minhas próprias assombrações, como Clarice Lispector,
Guimarães Rosa, Tolstoi, Dostoievski e os tantos outros que me foram legados
por Geoffrey Bennington, Danilo Marcondes, Roberto Machado, Gianni Vattimo,
Mónica Cragnolini, Katia Muricy, Elizabeth Muylaert, Fernanda Bernardo,
Rosana Suarez, Luiz Bicca e, sobretudo, Paulo Cesar Duque Estrada. Sem
qualquer hierarquia possível, estes nomes próprios foram inspirando passagens,
permitindo paráfrases, solicitando citações e, com isso, minha escritura foi se
fazendo, cabendo a mim a tentativa de agenciar estas assinaturas e, assim,
rascunhar a minha. Ouvir as melodias, sem regê-las, tentando escutar o mais
fielmente possível a sonoridade de cada uma, mas permitir também, e mesmo
desejar, seu entrecruzamento. Nos termos de Paulo Cesar, que tanto insisti ao
longo de minha escrita: não me orientar conscientemente no pensamento.
*
436
E este acabou por se tornar o título da primeira parte do texto: “... não se orientar
conscientemente no pensamento”. Esta parte, que trata da apresentação do úmido
e de um longo e provavelmente cansativo capítulo que busca analisar as duas
primeiras décadas da obra de Derrida, poderia ser vista como a tentativa de
cumprimento das exigências acadêmicas para a obtenção do título Doutor em
Filosofia. As páginas introdutórias, que chamei de “preposições”, preocupam-se
em mostrar como se deu para mim o acontecimento da idéia da umidade do
úmido: trazendo desde dados intelectuais, como os diversos dons que recebi ao
longo destes últimos anos, até fatos biográficos, como as felicidades e
infelicidades que me fizeram tomar um posicionamento exclusivamente
desconstrutor em minhas leituras – mostrando assim como meu percurso desviou-
se das preocupações ético-políticas para uma discussão de cunho mais teórico. O
segundo capítulo dedicou-se a mostrar o que seria a recusa desta estrutura úmida,
ou seja, indecidível, que eu vejo na postura filosófica, a partir da leitura da
inspiradora passagem de Bacon em que o úmido é problematizado por não
permitir nenhuma conceitualização exata e, depois, correlaciono esta estrutura do
úmido (inapreensível pelo logos) com a noção de espectro que Derrida apresenta,
desdobrando-se da idéia de rastro, como alternativa às oposições
presença/ausência, vida/morte, presente/passado que sempre orientaram as
análises filosóficas. O último e extenso capítulo desta parte tenta pensar a teoria
desconstrutora desenvolvida por Derrida nas décadas de sessenta e setenta a partir
de sua afirmação de que seu pensamento nada quer dizer, ao contrário da filosofia
que consiste sempre em um pensamento que tem “o quê” dizer. Trata-se de um
capítulo certamente cansativo e, nos termos daquilo que tanto tentei combater,
seco – mas acreditei na necessidade de uma leitura cuidadosa destas obras para
entender o princípio sem arquia da desconstrução, desde o projeto gramatológico,
que nunca chegou a configurar um projeto ou uma ciência, até o processo de
disseminação em que Derrida insiste na necessária contaminação da filosofia por
seus outros e põe em questão os tão aclamados e tidos por certos limites entre as
chamadas “disciplinas”.
Nestas quase trezentas páginas que compõem a primeira parte, e que pode
certamente representar a árida ou desértica parte do meu trabalho, visto que
inclusive para mim foi muitas vezes penoso enfrentar as escarpas e os abismos da
escritura derridiana, tentei, não obstante, manter em mente a frase que ecoou todo
437
o tempo em meus tímpanos – e que Derrida herda de Nietzsche ao tomar seu
martelo – que, fazendo lembrar a paradigmática tomada do filme português, diz
que é preciso falar vários idiomas e escrever vários textos simultaneamente. Frase
esta que poderia ter sido o título da segunda parte da tese, mas que não foi.
*
Já no primeiro capítulo, antecipei que tentaria, depois do aquecimento e do
alongamento da primeira parte, empreender um pentatlo: ou seja, cinco provas
rápidas que comporiam o “jogo do úmido”. Estas provas, que não são de modo
algum comprovações ou demonstrações, tratam de características que um
pensamento úmido apresentaria. O formato rígido de uma tese é então
abandonado para dar lugar a um modelo ensaístico, na tentativa de ser o mais
coerente possível com uma escrita úmida, tentando ao máximo, posto que se trata
de uma tarefa impossível, utilizar-me das cinco quase-categorias com as quais
pretendi jogar. Antes de qualquer jogo, há a aposta e, nesse sentido, posso agora
realizar que a aposta – aposta esta alta para meu cacife – que fiz ao abandonar
meu projeto inicial, praticamente a apenas um ano antes da defesa, o que, para
muitos e até mesmo para mim, parece ser uma loucura, tal aposta que se demorou
em muitas páginas para ser enfrentada, é o que motiva a segunda parte da tese e
que, definitivamente, é o ponto em que queria chegar. E, não podendo nem
devendo me estender mais, as cinco provas quase-atléticas tiveram mesmo que
assumir a forma de ensaios, por vezes aforísticos ou mesmo autobiográficos, na
tentativa de adequar-me à economia do pensamento que buscava defender.
A primeira prova, “todo outro é totalmente outro”, parte de meu percurso
levinasiano, no intuito de delinear os aspectos “úmidos” que meus estudos éticos
já pareciam buscar. A partir da noção de rastro, a alteridade foi apresentada como
a verdadeira alteridade, inapreensível e inassimilável, que sempre escapará a
qualquer tematização. Um pensamento úmido, tratando-se de um pensamento que
assume a forma do nem/nem, fazendo uso dos termos de Mónica Cragnolini,
desconstruindo, assim, todos os pares oposicionais e hierarquizantes da
metafísica, necessariamente leva em consideração este caráter totalmente outro da
alteridade e a radical assimetria da relação com o outro. Nesse sentido, é também
um pensamento frente ao qual só se pode dizer “sim”: tanto o sagrado sim da
438
criança nietzschiana, que se situa para-além do resignado sim e do contestador
não, mas que só ele pode criar novos valores, como também o sim de Abraão, do
pai santo e assassino que, ultrapassando a moralidade e a responsabilidade, revela
uma estrutura fundamental de toda alteridade (seja ela uma pessoa, um texto,
Deus, um pensamento etc.), qual seja, o “eis-me aqui”. Esta lição abraâmica, mais
especificamente sua leitura feita por Kierkegaard, permite que se perceba um dos
maiores desafios para a filosofia: o tremor. Frente a esta alteridade, totalmente
outra, que sempre escapará, não há certeza possível, somente o tremor que o
impossível provoca. Filosofar seria, então, não tremer, não se permitir tremer
frente a este outro indecidível – em meus termos, frente ao úmido –, o que se pode
ver não apenas na atitude de exclusão que Bacon propôs quanto ao termo por mim
eleito para intitular este trabalho, mas também de tantos outros, como Saussure,
Austin, Husserl, Platão etc. Assim, pensar umidamente seria saber tremer.
As quatro provas seguinte podem ser vistas como desdobramentos desta
tentativa minha de tremer, dedicando-me às outras quase-categorias que se
mesclam, se repetem, formando um revezamento ou uma quase-unidade que me
parece fazer justiça à minha aposta. Em “o sentido ‘próprio’ da escritura como a
metaforicidade mesma”, os tropos são assumidos como constituintes do
pensamento filosófico. Com as considerações sobre a metáfora de Nietzsche, a
escrita alegórica de Benjamin e a estilística que Derrida desenvolve, para-além da
metáfora, busquei pensar o caráter úmido como a estrutura metafórica da
metáfora, que se desdobra até a questão do estilo na filosofia. Assim, a escrita
úmida só é possível se se escreve com estilo, ou melhor, com estilos – palavra
sempre plural.
Do estilo à literatura é o movimento de “a escritura já é portanto
encenação”, a prova em que a “interessância” da literatura é interpretada como sua
possibilidade de dizer tudo e, com isso, a ficção ganha, em Derrida, um lugar
privilegiado. Mas não necessariamente a ficção, mas sim a ficcionalidade da
língua, esta estrutura que todo discurso carrega e que segue a arquitetura do
“como se”. O privilégio da literatura consistiria, portanto, no fato de ela assumir
que seu discurso é sempre estruturado sob esta arquitetura, ao contrário dos
discursos lógicos, que se pretendem de tal modo verdadeiros que não percebem
que também se constroem sob a forma de um “como se”.
439
Em “um texto permanece, aliás, sempre imperceptível” a questão da
tradução é tratada como uma questão à qual a filosofia não poderia deixar de se
deparar. Tradução e língua refletindo a lógica do monolingüismo e da
impossibilidade de tradução são traços úmidos no sentido de que também seguem
a lógica da “brisura” ou do “nem/nem”, pois, em uma primeira instância, vê-se o
fato de que só se possui apenas uma língua, mas que esta não nos pertence e,
assim, tornamo-nos estrangeiros em nossa própria língua, abalando, com isso, a
própria idéia de identidade. Já o problema da tradução, que se encontra desde o
relato bíblico sobre Babel até Benjamin, mostra que todo texto abriga o
imperativo “traduza-me, sabendo da impossibilidade da tradução” – o que
exemplifica perfeitamente o movimento da desconstrução de se entregar à tarefa
que, de antemão, já sabe ser impossível, pois esta tarefa do tradutor é a tarefa do
filósofo, que deve ler e escrever, conhecendo e amando, as múltiplas gramáticas e
sintaxes dos tantos idiomas filosóficos.
A última prova, “como se tornar o que se é”, trata do elemento
autobiográfico do texto filosófico. A árdua tentativa de separar vida e obra talvez
seja a máxima representação da secura, sob a forma da pretensão de indenidade. O
que Derrida mostra é que não se pode reduzir a vida à obra nem a obra à vida: o
autobiográfico situa-se na tensão entre vida e obra, neste “entre” em que uma
contamina a outra e que é o “lugar” de inscrição de toda trama conceitual. E esta
noção de “entre”, talvez a expressão máxima do úmido, é o que, por fim, permite
que, a fim de conclusão, eu ensaie a possibilidade de se pensar o “eu” não mais
sob a lógica da identidade, mas sim sob a economia da “identridade”.
*
Pouco mais de um ano depois, é inevitável assumir os perjúrios que foram
cometidos e as infidelidades que marcam a impossibilidade que acompanhou a
escrita desta tese desde seu início. E ainda que o fracasso tenha sido assumido por
mim desde o início do jogo, a frustração, sobretudo, por não ter conseguido
escrever de modo totalmente úmido, torna-se inevitável. Talvez isso se deva ao
fato de que se esta fosse uma tese plenamente úmida, ela não seria filosófica – e é
certo que se há algo que ainda me move, me motiva a escrever e a pensar (se é que
estes termos não são sinônimos) é esta antiga forma de amor ao saber. Mas
440
mesmo que a filosofia seja a instância por excelência da secura, ainda deve haver
algo a se fazer: o que eu creio se tratar de escrever para fazer justiça ao úmido.
Justiça na traição, na infidelidade, no perjúrio, mas apaixonada. Por isso, mesmo
que eu saiba, e sempre soube, da impossibilidade de escrever umidamente, assumi
para mim esta tarefa – e retomando a maior indicação que eu tive ao longo de
minha escritura, das dificuldades e angústias que se misturaram sempre com
entusiasmo, disposição e mesmo orgulho, restou-me apenas, como em um
momento decisivo me aconselhou Paulo Cesar, o trabalho sem fim de negociar
com o seco. Só posso dizer, então, que esta foi minha tentativa: escrever por amor
à umidade.
Rio de Janeiro, 30 de Janeiro de 2007.
Rafael Haddock Lobo
10
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