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ADILSON INÁCIO MENDES
ESCREVER CINEMA
A CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA DE PAULO EMÍLIO SALES GOMES
(1935-1952)
São Paulo
2007
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TRABALHO FINANCIADO PELA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA
(FAPESP)
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Resumo
O trabalho busca acompanhar a evolução da crítica de Paulo Emílio Sales Gomes,
enfocando seu ensaísmo, que mescla análise interna com erudição cinematográfica e
uma prosa escorreita. Nesse trajeto, Paulo Emílio é enquadrado numa moldura histórica
que tenta estabelecer as influências e revelar a autonomia do crítico. O trabalho se inicia
com a análise dos primeiros escritos dos anos 30 e vai até o livro Jean Vigo (1949-52),
momento de cristalização de uma disposição crítica.
Palavras-chave
Paulo Emílio Sales Gomes; Crítica cinematográfica brasileira; Crítica cinematográfica
francesa; Jean Vigo.
4
SUMÁRIO
Introdução………………………………………………………………………01
Capítulo I……………………………………………………………………….10
Capítulo II………………………………………………………………………40
Capítulo III……………………………………………………………………...65
Considerações Finais………………………………………………………….108
Agradecimentos……………………………………………………………..…112
Bibliografia…………………………………………………………………….114
5
Introdução
O lançamento da terceira edição de Três mulheres de três Pppês em fevereiro de
2007, com a ajuda do cotejamento das diferentes versões do texto, cuja alguma parte foi
reproduzida na nova edição, permite que contemplemos uma vez mais o jogo estilístico
elaborado por Paulo Emílio. Para os desavisados que tendem a dividir a trajetória do
crítico em etapas que não se complementam, um Paulo Emílio crítico do cinema francês
e um Paulo Emílio nacionalista, que negaria o cosmopolitismo anterior, o livro Três
mulheres, mais do que criar uma nova etapa, Paulo Emílio escritor, explicita a
continuidade de uma obra que se apresenta como uma totalidade.
A noção de ensaio em Paulo Emílio exige do leitor uma atenção redobrada para
que a fluência do estilo não se sobreponha à rigorosa análise subterrânea. Foi Zulmira
Ribeiro Tavares quem mais se deteve na análise da escrita do crítico, e esse estudo
apenas tenta dar continuidade e explicitar as questões por ela levantadas, sobretudo em
seu texto Paulo Emílio: Cinema e Brasil - um ensaio interrompido. Em diferentes
momentos, a escritora refletiu sobre o tipo de interpretação que, ao mesclar elementos
ficcionais com dados empíricos, se aproximava da realidade de maneira bem singular.
1
Para ela, o ardil do estilo do crítico está na construção dialética do argumento
apresentado que, ao mesmo tempo em que expõe uma idéia, acrescenta sua negação.
Assim, num texto sobre a importância de uma cinemateca, destaca-se a vacuidade de
um saber cinematográfico especializado, ou, num filme declaradamente colonizado,
chama a atenção do crítico uma “certa tonalidade verde” que, por imprecisão técnica,
1
Cf. TAVARES, Zulmira Ribeiro. O trabalho de ser simples (sobre Paulo Emílio). IDART, 1974; _____.
Paulo Emílio: Cinema e Brasil um ensaio interrompido. In: GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema:
trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. _____. Biografismo em Paulo
Emílio (simplicidade e ardil). E _____. O antes e o depois. Ambos em: CALIL, Carlos Augusto e
MACHADO, Maria Teresa (orgs.). Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente.
6
revela um dado nacional. Também em Paulo Emílio há dialética por todos os lados. A
maneira de incluir a cinemateca na cultura cinematográfica e esta na cultura que, por
sua vez, se liga ao movimento geral da sociedade terá resultados bem profícuos. A
alternância de focos, do particular para o geral, desenvolvida por meio de um prosa
escorreita, caracteriza o ensaio de Paulo Emílio, um tipo de interpretação que colhe no
dado individual um grão de revelação para um panorama mais complexo.
Esse juízo crítico se vale também, segundo Zulmira, de um tipo bem particular
de “biografismo”, sem o sentido pejorativo das análises psicologizantes. Esse
biografismo vai prefigurar a nebulosa relação entre a narração e o conceito, presente em
Três mulheres de Três Pppês.
2
O fato se mistura com a imaginação e somente por ela
ganha um sentido revelador. Com isso compreendemos melhor a “aparição” de
Almereyda no livro sobre Vigo e principalmente toda a descrição de Cataguases no
livro sobre Mauro.
No início tumultuoso da primeira história de Três mulheres, o protagonista e
narrador Polydoro se depara em Águas de São Pedro com seu primeiro e último mestre,
o Professor Alberto. Como já haviam se passado trinta anos desde o último encontro,
Polydoro não o reconheceria de chofre não fosse a singular luz que pairava numa
pracinha do balneário, repleta de estátuas de anões, e que delineava conservando a
figura que há tanto tempo intrigava o narrador. Esse encontro surpreendente, cheio de
revelações para a história, nos coloca diante de um procedimento narrativo que
curiosamente aparece quando o próprio Paulo Emílio se depara com Eva Nil.
Doutorando temporão, nosso autor, na passagem dos anos sessenta para os
setenta, desenvolvia uma pesquisa sobre o principal cineasta brasileiro do período
Embrafilme/Ministério da Cultura/Brasiliense: São Paulo, 1986. pp.343-348. _____. Surpreendendo-se
com Paulo Emílio. In: Atualidade de Paulo Emílio. Cinemateca Brasileira, 2002.
2
Sobre o uso da bota de sete léguas pela narração ver: SCHWARZ, Roberto. Sobre 3 Mulheres de Três
Pppês. In:_____. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. pp.127-147.
7
silencioso, Humberto Mauro. Com forte temperamento, Eva Comello, a Eva Nil,
realizara com o cineasta cataguasense apenas dois filmes, mas sua beleza e fotogenia
admiráveis chamaram a atenção de Pedro Lima, o principal crítico de cinema brasileiro
nos anos vinte, com tudo o que a definição carrega. Porém, na época da pesquisa de
Paulo Emílio, os filmes dos quais a atriz participara já não existiam mais, restando
apenas alguns parcos fotogramas e uma coleção de fotografias, obra do pai da atriz.
Muito suscetível, ela era evasiva em suas entrevistas com o crítico, daí a necessidade de
uma série de encontros. Num deles, a atriz se achava indisposta para receber visitas.
Mas diante da insistência do pesquisador, se submeteu a um rápido diálogo através da
janela. E foi nesse breve encontro que se revelou plenamente ao crítico uma fisionomia.
Vale a pena conferir a imaginação de Paulo Emílio em plena atividade.
“Através da janela atendeu-me rapidamente de uma sala com a lâmpada
apagada, iluminada apenas por dois focos, um vindo de dentro da casa, provavelmente
do corredor de entrada, outro assegurado pela iluminação bruxuleante da rua. Como o
tempo alterou pouco o conjunto de seu porte e apenas as linhas básicas do rosto se
impunham à relativa obscuridade, pude durante alguns minutos conversar com uma
Eva Nil saída diretamente das fotografias antigas e apenas desfocada. Nas vezes
seguintes em que a vi à luz do dia ou da iluminação direta, aquela comovente aparição
noturna foi o meu melhor guia para escrutar o passado.”
3
Enquanto na literatura um aparente tradicionalismo narrativo recobre uma
análise do mundo burguês e seus constrangimentos na sociedade brasileira, na crítica,
esta narração, com liberdade de estilo, se apóia num profundo conhecimento da história
do cinema e possui uma preocupação ensaística, coroada pelo respeito aos elementos
estruturados no objeto e que diante das dificuldades impostas pelas marcas do tempo,
3
GOMES, Paulo Emílio Sales. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974. p.
102.
8
não hesita em dar vôo livre para que a imaginação crie e complemente os espaços que
somente o conhecimento seguro do universo evocado permite. Foi esse tipo de
disposição que o próprio crítico chamou de “inventar certo”. Essa capacidade de
fabulação, aliada à erudição, faz a originalidade da prosa de Paulo Emílio que, sem
medo de pedantismo e para citar Thibaudet, poderíamos chamar de “crítica criadora”.
Última das críticas de arte, a cinematográfica nasceu de um esforço em
compreender a especificidade da nova arte e, para isso, lançava mão de conceitos
forjando um novo gênero de crítica, na medida em que se amparava em experimentos
estéticos, caros à literatura avançada do início do século XX, e constituía-se como uma
escritura. Essa forma primeira de crítica, e quando penso em crítica não estou me
referindo ao dominante comentário meramente descritivo dos primórdios do cinema e
dos dias atuais, teve em Louis Delluc seu fundador. Esse início literário vai marcar
definitivamente a crítica cinematográfica, afastando-a do debate das ciências humanas
pelo menos até os anos sessenta em torno de uma objetividade fria em contraposição a
uma cultura dos sentimentos. No caminho entre as duas, o ensaio será a forma
privilegiada da crítica de cinema, mesmo com os diferentes matizes de cada autor. A
visada sociológica de um Siegfried Kracauer nunca perderá seu caráter literário, mesmo
em suas tentativas teorizantes. Discípulo dileto de Georg Simmel, ele soube cultivar o
ensaio enfocando de maneira extremamente original o filme dito “médio”. Com André
Bazin, o ensaio ganhou uma capacidade analítica extraordinária ao explorar nos filmes
suas relações com a ambigüidade do real. Na Itália, foi Alberto Moravia quem
introduziu o ensaio na crítica de cinema e a transformou em objeto de análise.
Esse gosto ensaístico que une uma vertente crítica também encontra em Paulo
Emílio um terreno fértil. E desvendar o seu desenvolvimento é o foco deste trabalho.
Desde os escritos de juventude há uma vontade de criar um estilo próprio, que perpassa
9
até mesmo os textos de caráter político. Mas é nos textos da revista Clima que vemos
uma obsessão estilística - semelhante à do jovem Léautaud - se desenvolver plenamente.
Com referencial teórico originário do cinema mudo, os escritos de Clima apresentam
um esforço de compreensão do cinema moderno amparado na liberdade expositiva, nas
intuições brilhantes e, principalmente, na vontade de experimentar abordagens. A
inovação desses ensaios está na maneira como tateiam o objeto, sem a pretensão de
exauri-lo, sem a vontade de chegar a um fim definitivo; apenas se deseja criar uma
forma de abordagem para o filme em análise. Como se sabe, o ensaio parte do já
formado e dele se nutre para se desenvolver, forjando assim as próprias ferramentas a
partir do contato direto com seu objeto, mas esse corpo-a-corpo é sempre mediado pela
subjetividade que busca ordenar o que o mundo moderno estilhaçou. Por isso, a marca
característica do ensaio é a diversidade, a flexibilidade e a plasticidade com que se
defronta com o objeto em aproximações sucessivas. Daí seu caráter de jogo e felicidade,
como nos lembra Adorno. Sua forma aberta, cíclica, aparece ao leitor como um convite
ao diálogo, a um passeio onde o que importa é o percurso. É uma proposta de se
aproximar da verdade por meio de escavações que não encontram nenhum tesouro, mas
revolvem o solo para torná-lo mais fértil e dele extrair os melhores frutos. E nos escritos
de Clima essa concepção abrangente do ensaio está em estado puro.
É preciso lembrar também que a estréia de Paulo Emílio se dá na segunda
metade dos anos trinta, momento de rotinização dos procedimentos artísticos
apresentados pelo Modernismo e marcado por forte politização. Para o jovem irrequieto,
filho de secretário de Estado, a cultura burguesa em que fora criado se tornava cada vez
mais um enfaro, e negá-la sistematicamente se tornou logo uma disposição. Estremece o
círculo familiar ao vender parte de suas ações da Fábrica Santa Maria para investir
numa revista de cultura. Choca ainda mais quando denuncia em jornal a exploração
10
operária em vigor na fábrica familiar. Esta disponibilidade leva-o cada vez mais às
fileiras do comunismo, pelo menos como este se apresenta na São Paulo do início da
década de trinta. Por isso, num esforço de aprofundamento dos problemas sociais, o
jovem passa a estudar furiosamente os manuais da ortodoxia e, sempre que possível, se
posiciona em público. Sua desenvoltura e elegância logo o destacam como polemizador,
mas também despertam o ressentimento de alguns comunistas. Seus textos da época
revelam um inconformismo e um antifascismo que se manifestam no ataque ao
integralismo. São desse período a tentativa de uma pesquisa sobre o estado intelectual
do proletariado brasileiro e também a criação do poeta operário Hag Reindrahr, a síntese
da vontade política olhada com sarcasmo pela veia irônica do jovem Paulo Emílio.
Nos ensaios de Clima, a noção crítica separa arte e política, salvo quando a
análise da primeira requisita a segunda. Mas não podemos perder de vista a articulação
delas em toda a obra do crítico. Os experimentos de Clima nunca impediram o exercício
político autônomo, fruto da primeira viagem (1937) à França. As notícias sobre os
Processos de Moscou e, principalmente, o contato com o revolucionário Andrea Caffi
afastaram Paulo Emílio da ortodoxia comunista que, na verdade, nunca lhe coube bem,
dada a desconfiança em torno de sua origem social. Em 1939 retorna ao Brasil, e nas
páginas da revista sintetiza a posição que era sobretudo a sua de socialista
independente de base marxista. A politização dos anos trinta e quarenta foi frustrada
pelo destino obscuro tomado pelo país em 1945, impulsionando-o novamente em
direção à França, na procura de completar sua formação intelectual. E novamente Caffi
será uma referência, assim como o debate francês em torno do cinema.
A atenção à história e ao cinema define o significado de Jean Vigo, publicado na
França em 1957. Nele vemos plasmado o diagnóstico de um momento definitivo da luta
de classe no século XX em paralelo com as formas encontradas por um cineasta para
11
expressar seu inconformismo, herança daquela situação histórica. Muito alinhado ao
pensamento heterodoxo de Andrea Caffi, Paulo Emílio descreve um momento da III
República francesa para entender a ação do anarquista Miguel Almereyda e sua conexão
com o pensamento do filho, Jean Vigo. Nesse procedimento, o crítico recorre a uma
prosa que utiliza diversos recursos analíticos, inclusive literários, para revelar o cineasta
e sua obra. Exemplo disso, a forma como se apresenta a conexão entre Almereyda e
Vigo possui um caráter romanesco no seu modo de expor fundo e personagem; como se
inspirado pelo estilo poético do cineasta, o crítico buscasse iluminar instantes decisivos
da vida de Almereyda recuperados pela imaginação de Vigo, para isso recorrendo
também à sua própria experiência. Sendo o resultado a revelação de uma obra e sua
influência sobre o crítico que tenta compreender os instrumentos pelos quais ela se
estrutura.
Mas o ensaísta da revista Clima, que parte em 1946 para sua segunda estada na
França com um gosto estilístico desenvolvido, encontra um universo de renovação da
cultura que passa também pelo cinema. Assim, entender o debate no campo da crítica de
cinema, a contribuição de Bazin, Sadoul e intelectuais como Sartre e Malraux, nos
mostra como o pensamento de Paulo Emílio se alimenta das discussões sem se filiar
explicitamente a nenhuma corrente. Sua posição de outsider favorece um
acompanhamento objetivo dos resultados do debate que refletia as possibilidades do
cinema moderno em se constituir enquanto linguagem. O caso Citizen Kane é um bom
exemplo do esforço crítico para perceber o cinema como forma de expressão
privilegiada do mundo moderno. A recusa de Sartre e de Sadoul ao filme de Welles e a
empolgação de Bazin e Leenhardt são amostras de como o cinema se posicionava no
núcleo do campo da cultura. Numa época de renovação, ele aparece como esperança de
retorno da arte ao grande público.
12
O ensaio de Paulo Emílio na revista Clima, emparedado na dimensão técnica,
ganha novos contornos em Jean Vigo, pois no livro os traços genéricos do ensaio
ganham funções mais precisas. Não somente uma descrição inspirada pelo objeto: há
uma investigação das mediações extracinematográficas e sua continuidade artística.
Tudo isso filtrado pelo olhar atento de um crítico estrangeiro que reconhece seu lugar no
campo e observa seus nobres contemporâneos, para deles extrair o que mais se coadune
com sua posição. Esse espírito crítico autônomo, que se cristaliza em Jean Vigo, será
decisivo para a difusão da cultura cinematográfica, de tanta influência sobre os jovens
do Cinema Novo, leitores do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo.
Também contribuirá na constituição de bases sólidas para o campo dos estudos de
cinema brasileiro, cujo livro Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte é o exemplo mais
acabado de boa prosa ensaística aliada à discrição metodológica, pesquisa histórica e
análise interna reveladora, procedimentos que fazem lembrar o livro francês, mesmo se
o ensaio se transforma conforme o objeto.
4
No que segue, apresento momentos da trajetória de Paulo Emílio e tento refletir
como eles afirmam uma disposição crítica particular, que surge na década de 30 para se
cristalizar na França do início dos anos 50. O recorte é arbitrário e por isso mesmo o
trabalho se impõe como transitório.
4
Vali-me bastante da noção de ensaio desenvolvida por WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg
Simmel. São Paulo: Ed. 34, 2006. Assim como de STAROBINSKI, Jean. Montaigne em movimento. São
13
Capítulo I
Paulo: Cia. das Letras, 1992.
14
O despertar político de Paulo Emílio se deu no complicado ano de 1935. Desde
1933, ano da conclusão do ginásio, ele enveredara por uma cultura de esquerda, fazendo
parte de pequenas arregimentações e publicando textos em alguns periódicos.
5
Mas foi
somente em 1935 que a disponibilidade juvenil deu lugar ao questionamento de classe,
ao conhecimento da função política de sua geração e ao compromisso cultural. Foi em
1935 que o jovem filho da burguesia paulistana resolveu ampliar sua cultura política
sistematizando leituras e sobretudo testando-as no espaço público por meio de
intervenções bem definidas, como a conferência no Sindicato Unitivo dos Ferroviários
da Central do Brasil sobre a “Ação Social do Sindicatos”, os escritos contra o
integralismo no jornal A Platéia o órgão da ANL - e na Vanguarda Estudantil, a
produção da revista Movimento, “revista do presente que enxerga o futuro”, e o contato
com Oswald de Andrade, a quem trinta anos mais tarde ele chamaria de mestre.
Esse turbilhão de acontecimentos transformou totalmente suas preocupações,
mesmo se o esforço de sistematização dos estudos políticos contraste com certo gosto
inconsciente e modernista pelo escárnio. Em 1964, fazendo um retrospecto de sua
juventude, Paulo Emílio declararia: “aderia a tudo que parecia moderno: comunismo,
aprismo, Flávio de Carvalho, Mario de Andrade, Lasar Segall, Gilberto Freyre, Anita
Malfatti, André Dreyfuss, Lenine, Staline e Trotsky, Meyerhold e Renato Viana.”
6
Essa
miscelânea provinciana de referências não significa necessariamente diletantismo ou
disponibilidade juvenil, mas sim o esforço para discernir e traçar projetos. A mescla de
marxismo ortodoxo e modernidade artística será uma contradição presente na revista
5
Para uma visão exaustiva da trajetória política do jovem Paulo Emílio cf. SOUZA, José Inácio de Melo.
Paulo Emílio no Paraíso. Record: Rio de Janeiro, 2002.
6
GOMES, Paulo Emílio Sales. Um discípulo de Oswald em 1935. In: _____. Crítica de Cinema no
Suplemento Literário vol.2. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1981. p.440-441.
15
Movimento, mesmo com o esforço de seu criador para divulgar a pluralidade ideológica
que a revista abarcaria.
7
Na tentativa de dar continuidade ao projeto modernista de liberdade estética e
crítica nacional, a revista vai congregar representantes da velha geração com alguns da
nova. Embora, em seus pronunciamentos, Paulo Emílio reivindique um caráter
aglutinador independente das ideologias, o tom geral da revista será esquerdizante e
modernista. Paulo Emílio tenta convidar Monteiro Lobato para participar da revista dos
“novos”, na “(...) certeza de que não negará apoio. Ele tem tanto interesse pelas
crianças...” Mas a citação de Monteiro Lobato como provável colaborador é pura ironia,
pois a ênfase em seu caráter destruidor faz sentido se entendemos a contribuição
indireta do autor de Urupês para a visibilidade do modernismo. O que se nota na análise
de Movimento é a seriedade do tom no esforço de alertar a juventude para os perigos da
política e da cultura. Entre os colaboradores temos Mário de Andrade, “o general à força
da revolução modernista”, Flávio de Carvalho, “não o artista moderno, mas o
conhecedor da arte moderna”, Pontes de Miranda, autor de Penetração, “o homem que
aplica o que sabe”, e Lucia Miguel Pereira, “a inteligentíssima cathólica, anti-
integralista e adepta do socialismo utópico”. Esses colaboradores, cujas qualidades a
pena humorística de Paulo Emílio ressalta, dão ao empreendimento uma cerimônia e
uma pretensão significativa para uma revista de jovens.
A contribuição de Paulo Emílio ultrapassou bastante a organização e a produção
da revista. Assinou um artigo sobre A posição do artista revolucionário na sociedade
burguesa, em que apresenta o tema de maneira dicotômica, comparando a posição do
artista ao lugar ocupado pelo artesão na sociedade capitalista. Também resenhou nove
livros e nove revistas, escreveu mais seis artigos ligeiros, o manifesto de abertura, a
7
GOMES, Paulo Emílio Sales. Além de Mickey-Mouses. Entrevista concedida ao Diário da Noite (SP),
29.06.1935.
16
tradução de uma “interpretação materialista da revolução de São Paulo”, e uma poesia.
Todos os artigos da revista tentam dar conta de uma especificidade da cultura moderna
e, embora o editor clame pela colaboração sem “especialização excessiva” e diga que
até “uns errinhos de português” são admissíveis, cada um dos colaboradores vai tratar
de questões estritas à sua área de atuação. Com exceção do artigo de Lucia Miguel
Pereira, que versa sobre os riscos da juventude ao se deixar influenciar pela geração
anterior, todos os outros colaboradores seguirão uma argumentação sisuda. O que
destoa desse tom é a encarnação de Hag Reindrahr. É o único experimento literário
modernista da publicação, mas não por suas qualidades poéticas.
A recepção de Movimento foi morna e, não fosse pelo bibliotecário do
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, teria passado despercebida. O
bibliotecário, após a leitura de Movimento, concluiu que se tratava de uma revista
“imoral” e “dissolvente” por conter “palavras que ofendem o decoro” e, assim, rasgou o
periódico em público. Vendo no fato uma possibilidade, sem perder tempo, Paulo
Emílio lança o desafio: um duelo a tapas. O caráter inusitado do desafio fará com que a
publicação repercuta na imprensa. A revista está lançada. José Inácio de Melo Souza
tem razão ao apontar como motivo do escândalo do bibliotecário o poema Trecho de
vida. O simples poeminha, que possuía sua graça pela junção inusitada de tragédia e
chiste, causara certo estranhamento. A reação fora diversa: “Murilo Mendes gostou.
Manuel Bandeira metteu o pau”. Mas o que continha esse Trecho de vida? É bom citá-lo
antes de algum comentário.
Trecho de Vida
Aos meus companheiros de prosa
do mictório da fábrica.
O operário tuberculoso, aquele dia
17
tinha trabalhado demais e estava cansado.
Sentia, naquele dia, muita falta de ar.
O gerente xingou e ele mandou o gerente
para aquele lugar.
O gerente perdeu o apetite.
O operário perdeu o emprego.
O gerente chegou em casa chateado
com a má-criação daquele sem educação.
A mulher do gerente, aquele dia chorou
por não ter ido ao cinema.
A mulher do gerente era uma beleza.
Também, por obra de deus, era burguesa.
A mulher do operário chorou também.
Seus filhos no dia seguinte, iam chorar
porque não iriam à matinê (era domingo).
E segunda-feira iam chorar de fome.
A mulher do desempregado era um pária.
Também, por obra de deus, era operária.
18
Na revista Movimento todos os pseudônimos têm a função apenas de multiplicar
os colaboradores, dando a idéia de contribuição de uma geração. Não é o caso de Hag
Reindrahr. O motivo de sua existência é liberar uma imaginação lúdica contida pelo
esforço de organização exigido pelo jargão militante. Como Hag Reindrahr, Paulo
Emílio se sente à vontade para satirizar a rigidez ortodoxa de um tipo de militância que
molda em tudo a injustiça social. Entretanto, a figura de Hag não significa para Paulo
Emílio somente a retomada de sua faceta “careteira”, mas principalmente um teste
diante da ortodoxia comunista. Com um tom derrisório, o poeminha satiriza a
simplicidade do argumento ao mostrar sua infantilidade.
A rudeza do trato social contrasta com o tom pueril da rima fácil da quadrinha
literária, uma mescla de empenho político e experimento modernista característicos da
época. Os anos 30 são marcados pela radicalização política e pela rotinização dos
procedimentos modernistas. Mas a modernidade de Trecho de vida reside justamente na
ironia que a ficção permite. É somente através desse jogo de espelhos que o autor coloca
sua afinidade de classe, ao mesmo tempo em que ironiza e se vê numa autocaricatura.
Como veremos, a mescla de engajamento político e disposição heróica será fonte de
inspiração e de fascínio para Paulo Emílio. A imagem de Paulo Emílio elegante, sisudo
e encarando o espectador e lhe impondo a foice e o martelo sugere bem a ironia que
vejo em Trecho de Vida. Os braços à mostra apresentam uma disposição juvenil, uma
vontade política que contrasta com o rigor da vestimenta tipicamente burguesa.
Diferentemente de Brecht, que se esforçava em se disfarçar de proletário, o jovem Paulo
Emílio não se constrange nem um pouco em se apresentar como um traidor de sua
classe, e tal disposição já manifesta certa clareza sobre problemas ideológicos e
posições de classe.
19
Essa junção de ímpeto juvenil e esforço político marca profundamente Paulo
Emílio e, em diferentes períodos de sua vida, ele recorre a tal fonte. Nestor Makhno e
Miguel Almereyda são bons exemplos de materiais de grande rendimento para estórias
infantis de inspiração inconformista. Nessa linha, poderíamos ver em Hag Reindrahr a
raiz de seu distanciamento do estalinismo. Este Trecho de Vida é tão significativo que
nosso autor sente a necessidade de ampliar os traços biográficos de Hag.
8
Em novembro de 1935, Paulo Emílio, no jornal A Platéia, volta a escrever sobre
o poetinha. Em frases rápidas, ficamos conhecendo um pouco mais sobre o judeuzinho
filho de uma prostituta, tuberculoso, anti-integralista e de visão política singular, que
não via culpa nos patrões mas sim no sistema. O inconformismo e a precariedade da
formação de Hag o tornam não um intelectual proletário, mas um proletário intelectual.
Um jovem que diante da exploração mais cruel do capitalismo sempre intuiu em qual
lado se posicionar: o dos mais fracos.
A significação de Trecho de Vida reside justamente em seu caráter insular. O
jovem que se esmerava em absorver uma cultura política de esquerda atualizada com
seu tempo vai experimentar, logo em seus primeiros passos, uma posição estético-
política que lhe proporcionará um certo veio crítico da cena de polarização estática que
poucos souberam superar. Como se a realidade tivesse se mostrado fictícia e nas suas
brechas despontasse sua contradição. No dizer de Zulmira Ribeiro Tavares, “a realidade
brasileira se mostrou tão fictícia e porque esta ficção ao aguçar as qualidades de
representação e distorção do gesto público, assim como da fantasia esquemática do
pensamento teórico político, levou à interdição e interrupção do próprio processo; vale
8
Essa tendência ao biografismo, muito além de um traço de cultura bacharelesca, será característica do
jovem Paulo Emílio. Cf. A palestra proferida no Lyceu Rio Branco sobre Vicente de Carvalho e o Mar,
assim como, seguindo um pendor modernista em anunciar trabalhos que não se realizam, a disposição em
Movimento de elaborar uma síntese biográfica e psicológica de Lênin. Cf. CINEMATECA
BRASILEIRA. Arquivo Paulo Emílio, PE/PI.0032 e Movimento, n.1, 1935. Contracapa.
20
dizer: à passagem do fictício para o ficcional.”
9
Trecho de Vida ilustra as hesitações e os
cacoetes pessoais, e por isso mesmo podemos extrair daí o entrechoque cultural que
tanto marcará a personalidade. A política tratada de maneira irônica por meio de um
estilo modernista. Este o desafio de sua geração: dar conta de um legado estético e
pensar politicamente o país.
Trecho de Vida é o primeiro sinal significativo de uma imaginação política que
tateia um caminho original. Para caracterizar o jovem Paulo Emílio, poderíamos usar
suas palavras sobre Malraux: “A margem de irresponsabilidade com que opera é sempre
compensada pela imaginação organizadora e pelo estilo que aponta.”
10
A publicação de Movimento o colocará em contato direto com o Modernismo, e,
com isso, suas certezas de militante neófito serão sistematicamente abaladas. É sabido
que tanto Oswald e sobretudo Mário de Andrade nunca adotaram de maneira submissa a
cartilha do Partido Comunista, mesmo que uma ética de esquerda tenha sido marca no
segundo e a vontade de uma verdadeira inclusão tenha sido sempre negada ao
primeiro.
11
Sobretudo nos anos 30, os modernistas com os quais Paulo Emílio tinha
maior contato, com todas as suas contradições, buscavam o nivelamento entre o fato
estético e o fato social. E aqui, a figura de Oswald será mesmo decisiva.
A significação maior de Movimento, como sugere Décio de Almeida Prado, está
na projeção que proporcionará ao jovem Paulo Emílio no campo intelectual dominado
pelos modernistas.
12
A revista, com o auxílio do duelo a tapas, inseriu o jovem no
9
TAVARES, Zulmira Ribeiro. Paulo Emílio: cinema e Brasil, um ensaio interrompido. In: GOMES,
Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p.20.
10
GOMES, Paulo Emílio Sales. André Malraux une vie dans le siècle. Discurso, São Paulo, vol.7, n.7,
pp.161-7, 1976.
11
cf. DANTAS, Vinicius. Um parêntese biográfico: as relações de Oswald de Andrade com o Partido
Comunista. In: Margem Esquerda, n.6, setembro de 2005.pp.147-161.
12
A revista também ofereceu a Paulo Emílio a possibilidade de participar da organização do Quarteirão,
pretenso clube onde se reuniriam os artistas modernos dispersos. Paulo Emílio foi eleito secretário-geral e
Sérgio Milliet, o presidente. “De uma forma ou de outra, aquele esforço de muitas semanas propiciou a
Paulo Emílio penetrar em cheio no modernismo paulista, ele que já tinha um pé na esquerda (e por
esquerda se entendia então, salvo raríssimas exceções, o stalinismo). É provável que no seu espírito os
21
contato pessoal com os principais representantes do movimento e, sobretudo, ofereceu
ao neófito a possibilidade de testar sua opinião em alguns jornais circunstancialmente de
esquerda, como A Platéia. A contribuição na imprensa e sobretudo a querela com
Oswald de Andrade em torno do livro O moleque Ricardo, de José Lins do Rêgo, dão ao
jovem certa notoriedade de polemista.
No debate com Oswald, vemos o desenvolvimento dos argumentos esboçados
em Movimento sobre o artista revolucionário. O artigo Considerações sobre o artista
revolucionário na sociedade burguesa (a propósito de Facio Hebequer) reflete as
questões pelas quais passava o pensamento estético brasileiro da época. O
esquematismo da postura é evidente. “A arte política tem grande valor como incentivo à
revolta.” Entretanto, esse funcionalismo banal da arte é atenuado com a afirmação: “O
próprio Lênin que, aliás, não tinha grandes conhecimentos sobre arte, reconheceu de
maneira particularmente aguda a eficiência da arte para a agitação. Lênin nessa
conclusão não partiu da arte que conforme já disse pouco conhecia, para a agitação, mas
sim da agitação, que conhecia perfeitamente, para a arte.” Ou seja, a arte não deve se
submeter inteiramente à agitação, embora ela a sirva. O interessante é o fato de que o
artista não deve simplesmente se afastar do universo burguês (leia-se Arte), embora o
contato com as massas (leia-se Revolução) seja indispensável. Essa dicotomia
esquemática redime o artigo de mera propaganda socialista e acena para um tipo de arte
empenhada com rigor estético. A principal característica de Facio Hebequer é ser um
(...) revolucionário que conheceu a arte, ao passo que de uma maneira geral, no mundo
e especialmente aqui no Brasil, os artistas é que estão, agora, conhecendo a Revolução.”
Esse pequeno artigo é já um estado de alerta em relação à ortodoxia. O nome Facio
dois movimentos, o artístico e o político, corressem em paralelos. Ambos ainda próximos de seu
momento de explosão, ambos colados ao presente, refletiam apenas a face pressentida do futuro. Os dois
significam um começo, não um apogeu, muito menos um fim de jornada.” PRADO, Décio de Almeida.
Paulo Emílio quando jovem. In: CALIL, Carlos Augusto e MACHADO, Maria Teresa. Op. Cit. p.21.
22
Hebequer, uma brincadeira com as palavras “fácil” e “rebéquer” (responder com maus
modos) possui a dupla função de esboçar, mesmo que de maneira ingênua, o
utilitarismo em arte e, de um ponto de vista pessoal, mostrar aos comunistas ortodoxos
como um filho da burguesia pode dar também sua contribuição para a Revolução.
13
A polêmica com Oswald em torno do livro de José Lins do Rêgo é um
desdobramento dessa discussão, muito mais do que uma análise d’O Moleque Ricardo
ou d’O Homem e o Cavalo. O que se percebe tanto em Trecho de Vida, Nas
considerações sobre o artista revolucionário na sociedade burguesa, como n’O
Moleque Ricardo e a Aliança Nacional Libertadora é o ponto de vista político. Embora
o estilo desses escritos possua certa dubiedade, ausente de outras colocações políticas
pontuais, como o documento sobre a Frente Vermelha dos Estudantes (FVE), ligada à
Juventude Comunista, ou o protesto em favor da estudante Genny Gleiser,
14
suas razões
são essencialmente políticas. O desprezo pelas aventuras formais da peça de Oswald e o
elogio ao romance de José Lins são desdobramentos naturais das questões abordadas
anteriormente no artigo sobre Facio Hebequer. Enquanto o escritor paraibano é um
revolucionário que conheceu a arte, o poeta paulista é um artista que tateia a
revolução.
15
Essa reflexão sobre o artista moderno é o resultado direto do CAM (Clube dos
Artistas Modernos) de Flávio de Carvalho. Surge do embate da proposta formalista de
um Oswald de Andrade, que na época lia no Clube trechos de sua peça O Homem e o
cavalo, com o projeto de uma arte social do muralista David Alfaro Siqueiros, de
13
Um bom exemplo do ressentimento causado pela presença de Paulo Emílio no meio comunista são os
comentários de Eduardo Maffei em que o jovem aparece como uma espécie de playboy de esquerda.
“Soubemos que certo moço, gente bem, residente nas bandas do elegante Higienópolis, organizara um
grupo de jovens ao qual ministrava um extravagante esquerdismo, havendo financiado, rico que era, a
publicação de um livreto de crítica à sociedade vigente, escrita por um operário (...)” Cf. SOUZA, José
Inácio de Melo. Op. Cit. p.23. Para outro exemplo de rejeição classista do Partido Comunista cf.
DANTAS, Vinicius. Op. Cit.
14
Cf. ARQUIVO DO ESTADO, Prontuário de Paulo Emílio Sales Gomes no DOPS.
23
passagem pelo Brasil, cuja síntese positiva é a memorável conferência de Mário Pedrosa
sobre Käethe Kollwitz. Em 1933, de maneira extremamente original, Mário Pedrosa
propunha uma arte atualizada com seu tempo ao mesmo tempo em que preservasse o
que ele mais tarde chamaria de “exercício experimental da liberdade”. Vendo na
gravurista alemã um exemplo de rigor estético aliado ao posicionamento de classe,
Mário Pedrosa encontrava aqui o caminho de uma “arte proletária”. Poderíamos
concluir, sem forçar a nota, que Käethe Kollwitz é, por sua origem proletária e seu
aprendizado de arte, ela também um bom exemplo de um revolucionário que conheceu a
arte.
16
Como se vê, a cultura se dá em paralelo na trajetória de Paulo Emílio, tendo o
mesmo peso da política, diferentemente do que se costuma perceber. E isso estará na
base de seu interesse por cinema. Mas ainda estamos em 1935. E o lugar ocupado no
campo intelectual, com a derrocada do golpe comunista, será a justificativa para seu
encarceramento de 14 meses. Dias após ter completado 19 anos, Paulo Emílio é detido e
encarcerado no presídio do Paraíso. A prisão servirá como um laboratório para essa
concepção de “arte proletária provisoriamente utilitária”.
No presídio do Paraíso, trava contato com diversos militantes que coletivamente
discutiam os problemas da sociedade capitalista, esforçando-se para superar as
diferenças ideológicas. Esse contato direto será importante para sua formação política,
firmando-o como um bom orador. No segundo trimestre de 1936, Paulo Emílio é
transferido para o Presídio Maria Zélia, um presídio improvisado nos galpões de uma
antiga fábrica. O grande número de prisioneiros proporcionou ao jovem uma
convivência ainda maior com outros militantes políticos. Foi nesse período que Paulo
Emílio redigiu a peça teatral Destinos.
15
A questão é apresentada em PRADO, Décio de Almeida. Paulo Emílio quando jovem. In: CALIL,
Carlos Augusto e MACHADO, Maria Teresa. Op. Cit.
24
Como nos lembra Décio de Almeida Prado, a peça tinha a função primeira de
manter acesa a chama revolucionária, daí seu esquematismo que separa o proletariado
(Bem) da burguesia corrompida (Mal). “Para que a reclusão se tornasse menos penosa,
nada mais indicado que reafirmar constantemente não apenas a justiça da causa pela
qual eles estavam presos (...) mas igualmente, a próxima e inevitável vitória da
revolução.” Em vez de ver a peça como declaradamente stalinista, tendo a pensar que tal
proselitismo mais evidencia o conhecimento da rigidez ideológica dos comunistas do
que apresenta uma afinidade ideológica. É sintomático que Paulo Emílio interprete na
peça o promíscuo Álvaro (típico representante da burguesia decadente). É da mesma
época a declaração: “Essa cadeia está me dando uma experiência política realmente
notável. Você não pode imaginar, Décio, a quantidade de ilusões que perdi, os erros que
enxerguei e as coisas que aprendi durante esses nove meses de prisão. E aqui também se
firmaram tendências da minha personalidade que até então estavam incertas, como por
exemplo a minha decidida vocação para a política e meu irremediável fracasso em
relação à existência normal...”
17
Portanto, por mais limitadas que tenham sido as
referências do jovem Paulo Emílio, a dúvida sobre a ortodoxia comunista já estava
presente, e a viagem à França em 1937, após a fuga da prisão, só veio reforçar uma
intuição e, sobretudo, apresentar um novo ambiente cultural onde Andrea Caffi, assim
como Plinio Sussekind Rocha, desempenharão papel decisivo.
Sobre este último, além da simpatia e o carisma que sua fisionomia sugere, é
importante lembrar sua participação no movimento cinematográfico brasileiro dos anos
30. Plínio Sussekind Rocha foi um dos integrantes do Chaplin Club, cuja publicação O
Fan representava o que havia de mais avançado no pensamento cinematográfico
brasileiro, interpretando de forma particular o legado da avant-garde. Mas a crítica da
16
PEDROSA, Mario. Política das artes. Arantes, Otília (org.). São Paulo: Edusp, 1995.
25
Plínio Sussekind, ou Mestre Plínio como Paulo Emílio o chamava, se caracterizou
menos pela especulação teórica comum a seus companheiros do Chaplin Club e mais
pela liberdade crítica com que aborda cada filme. Mesmo se nas suas críticas comenta-
se pouco o filme em si, uma visada teórica mais abrangente o livra do jargão cerrado
dos teóricos franceses. Isso fica patente no debate, travado nas páginas d’O Fan com
Otávio de Farias e Almir Castro, em torno do filme de Murnau, Aurora.
18
Por sua singularidade e coerência, a trajetória de Caffi (1886-1955) merece uma
digressão maior. Russo de nascença, mas cidadão europeu por adoção, foi sempre um
revolucionário. Aos 14 anos, fundou o primeiro sindicato dos tipógrafos em São
Petersburgo e no Ensaio Geral pertencia às fileiras dos mencheviques. Como integrante
de um pequeno grupo revolucionário, conheceu Nadeska Konstantinova (a futura
mulher de Lênin), Molotov (futuro Ministro do Comércio de Stálin) e Voytinski
(economista e colaborador de Lênin, que se tornaria presidente da Geórgia). No Liceu
Internacional de São Petersburgo conheceu Lênin, de quem se tornou grande amigo. Em
1908 segue para Berlim onde conhece e se maravilha com os cursos de Georg Simmel,
de quem seria um aluno fiel. Fascinava-o em Simmel o sentido da vida concreta da
cultura. Terminados os estudos universitários, estabelece-se em Paris, freqüentando os
cursos de Bergson e de Charles Péguy. No mesmo ano, conhece Giuseppe Ungaretti.
Com o poeta italiano e amigos franceses, russos e alemães, cria o grupo La jeune
Europe, que pretende erigir uma enciclopédia sobre a revolução cultural promovida pelo
século XIX. Os princípios “irrenunciáveis” da Jeune Europe eram: a conservação no
plano cultural da tradição clássica e humanista, o culto da forma, a luta contra a maré de
17
PRADO, Décio de Almeida. Paulo Emílio na prisão. In:______. Seres, Coisas, Lugares. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. p.152.
18
Para uma análise definitiva do Chaplin Club cf. XAVIER, Ismail. A estética do testemunho. In:
______. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978. pp.199-263.
26
barbárie que o futurismo e o irracionalismo anunciavam; no plano político, recusa da
propriedade, oposição ao centralismo estatal, reavaliação da tradição socialista não-
marxista, desenvolvimento da democracia socialista. Esse programa nos antecipa com
clareza a posição de pensador e a vastidão do interesse de Caffi.
19
O projeto não se
realiza, em razão da Primeira Guerra Mundial.
Após a dispersão do grupo, Caffi se alista no exército francês e em seguida é
ferido e, depois da recuperação, é nomeado na Itália oficial do destacamento dos
granadeiros. Caffi, assim como Gustave Hervé e Kropotkin, participou da ilusão
segundo a qual o progresso da democracia socialista passava pela destruição do Império
Central. Mas durante a Grande Guerra, faz uma reavaliação das possibilidades
revolucionárias criadas pela catástrofe. Com o fim da guerra, funda a revista La
Giovane Europa, com a intenção de estudar uma “paz justa”. Em 1919, volta para a
Rússia como jornalista do Corriere della Sera, mas indignado com a calamitosa
situação do país, ingressa numa missão internacional de ajuda econômica. Ansioso por
conhecer de perto a realidade da Rússia, no outono, Caffi entra clandestinamente em
Odessa para logo se envolver em atividades revolucionárias, graças aos velhos amigos.
Meses atrás, escrevera sobre a Revolução para o jornal Voce dei Popoli. No ensaio faz
uma genealogia da revolução russa, invocando seu parentesco com a tradição
revolucionária anarquista e, sobretudo, com o populismo russo. Além disso, alertava
para o perigo da criação de uma elite que burocratizasse o processo revolucionário. Essa
postura crítica, desperta contra as formas de autoritarismo, se acentuará com a
participação em conselhos até que, mais uma vez, a situação se torna insustentável.
19
Sobre a vastidão do interesse de Caffi, Cf. ABEL, Lionel. What is society? The ideas of Andrea Caffi.
Commentary, n. 50, set. 1970. Segundo o crítico teatral, a noção de mitologia de Caffi só encontra
paralelo na obra de Lévi-Strauss e, por sua reflexão sobre o fascismo e os meios de comunicação,
Maurice Nadeau no Quinzaine Litteraire o chama de o “Walter Benjamin italiano”. Cf. BIANCO, Gino.
Un socialista ‘irregolare’: Andrea Caffi intellectuale e político d’avanguardia. Milano: Edistampa
Edizione Levici, 1977.
27
Acusado de tentativa de cooptação de comunistas em prol da III Internacional, Caffi é
preso e condenado à morte. Mas com a chegada da primeira missão diplomática italiana
à Rússia revolucionária, é liberto. Retorna então à Itália e colabora em diversos jornais
de esquerda. Em Volontà, jornal bastante radical no início do pós-guerra, Caffi publicou
Cronache di dieci giornate, na qual envolvia diretamente Mussolini na morte do
militante Matteotti. Em 1926 é acusado de propaganda subversiva e segue para Paris.
Na França, é contratado como secretário pela revista literária Commerce, famosa
publicação que abrigava diversos representantes da poesia moderna. Nos três anos que
trabalha em Versalhes, Caffi trava amizade com André Malraux. O pessimismo do
jovem escritor, então com 25 anos, cativa Caffi, que admira sua consciência de um
momento histórico no limite. Em Paris, encontra-se com os Irmãos Rosseli e colabora
nos Quaderni do grupo Giustizia e Libertà, contribuindo para o desenvolvimento da
reflexão antifascista que sua experiência revolucionária e internacionalista vinha dar
conteúdo histórico. Soma-se a tudo isso uma visão “socrática” do mundo: cultivava
muito a conversação intelectual, mas dificilmente publicava, e vivia materialmente
como um franciscano. Esse espírito libertário, avesso às convenções, despertou o
interesse de homens como Alberto Moravia, Albert Camus, Claude Lefort, entre outros.
Diante dessa biografia, é compreensível o fascínio exercido sobre um jovem
provinciano inconformista que definia sua personalidade.
20
Como já assinalamos, as preocupações de Caffi eram vastas e nunca se
deixavam eclipsar pela política revolucionária. Seu interesse por arte e história o fez
publicar um livro sobre os santos e os guerreiros bizantinos da Itália meridional. Sua
erudição e seu inconformismo o levaram a formulações importantes para a reflexão do
20
As informações biográficas de Andrea Caffi foram colhidas principalmente em BIANCO, Gino. Op.
cit. Mas também em VALLAURI, Carlo. Il socialismo umanitario di Andrea Caffi. In: Storia e Política,
n. 12, 1973 e CHIAROMONTE, Nicola. Introduzione. In: CAFFI, Andrea. Critica della Violenza. Milão:
Bompiani, 1966. pp.05-25.
28
mundo moderno. Suas idéias sobre o totalitarismo e os meios de comunicação, que lhe
valeram o isolamento, por outro lado o colocam em consonância com a teoria crítica do
século. A ausência de amparo de uma posição institucional estabelecida (Caffi sempre
recusou o vínculo com a universidade ou com qualquer partido político) fez com que
suas idéias circulassem apenas entre seus companheiros fiéis. A amizade tinha para
Caffi um sentido superior, montagniano, sendo que para ele um amigo não se escolhe,
mas se encontra.
Sua crítica, no calor da hora, à militarização da sociedade russa, assim como
suas críticas ao marxismo vulgar foram recebidas pela esquerda como afronta de um
dândi. Sozinho na Paris do pós-Segunda Guerra, com o quarto repleto de objetos, ídolos
peruanos, artefatos da arte negra, recortes de jornal e a fotografia da Bande à Bonnot,
Caffi é a encarnação do espírito revolucionário do século XIX que não se realizou. O
espírito anárquico, o humor negro, a extravagância. Como não pensar no Pai Jules? Sua
reflexão sobre a Europa não deixa lugar para a esperança. Em todas as esferas, a
contestação se esvaziou e até mesmo na arte a tecnificação encontra também um campo
aberto para se desenvolver. E o cinema é representante artístico dessa decadência. Visão
próxima da de Malraux, mas distante da de Bazin. Mas não nos adiantemos e fechemos
aqui esta digressão, esse “trecho de vida” que já se estendeu demais.
É sob a influência de Caffi e de Plínio Sussekind Rocha que Paulo Emílio
retorna de uma França prestes a entrar na Segunda Guerra Mundial: um jovem com
referências culturais de uma geração anterior à sua, mas com uma visão política
original, nutrida pela heterodoxia marxista. Suas palavras sobre a juventude comunista
de sua geração são um auto-retrato bem fiel. “Esses jovens intelectuais, cuja história
estamos contando, tinham chegado aos anos decisivos para uma formação. Alguns
29
viajaram, todos mais ou menos se lançaram pelos vários caminhos do conhecimento
científico e artístico, da física à psicanálise, da pintura ao cinema. Conheceram o amor.
Foram independentes, foram mesmo mais do que isso. Conheceram a gratuidade e a
disponibilidade, com as facilidades que lhes permitiam as suas condições de classe.
Puderam se dar ao luxo de usar o processo de conhecimento que consiste em acreditar-
e-depois-não-mais-acreditar naquilo que momentaneamente se está interessado. Assim
foi feito com Spengler, o neotomeísmo, etc. E o que complicaria a análise de uma
situação dessas é que a palavra frivolidade não teria aqui cabimento. Através desse
processo contraditório, esses jovens intelectuais adquiriram uma seriedade e uma
eficácia de pensamento que os diferencia logo em relação ao tom boêmio de Vinte-e-
Dois.”
21
Ávido por testar seus conhecimentos políticos e por inaugurar uma crítica
analítica de cinema, é esse o titular da seção de cinema da revista Clima. O ensaio longo
marca a vontade de influir num meio inexplorado, e o tom professoral e pretensioso
reinvidica um lugar para o cinema no mundo moderno. O tratamento isolado da obra, a
fatura, a disposição dos materiais, a análise temática, tudo isso é fruto do contato com
“mestre Plínio” e os teóricos da avant-garde, assim como da leitura da estética de
Hegel, comprovada pelos cadernos existentes em seu Arquivo e que reforçam o enorme
esforço em se atualizar nas ciências humanas ao mesmo tempo em que busca superar a
ortodoxia política.
22
De volta ao Brasil, Paulo Emílio vai plasmar essas referências à
prosa modernista, sobretudo se pensarmos no ensaísmo de Mário de Andrade.
Numa análise mais geral, toda a revista Clima é um esforço de continuidade com
o projeto modernista, mesmo se para isso a revisão dos produtos culturais da geração
21
GOMES, Paulo Emílio Sales. Plataforma da nova geração. In: CALIL, Carlos Augusto e MACHADO,
Maria Teresa (orgs.). Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Embrafilme/Ministério
da Cultura/Brasiliense, 1986.p.88.
30
anterior seja submetida ao gesto crítico. Mesmo a seção de cinema, com suas diferenças
de abordagem, segue de perto a idéia familiar também ao Chaplin Clubde
orientação do público e o culto ao cinema como arte moderna. Nas duas revistas o
cinema brasileiro é uma sombra incômoda. É preciso dizer também que a proximidade
das análises cinematográficas d’O Fan, de Klaxon, e de Clima, é um desdobramento
direto das reflexões da avant-garde francesa.
Clima não busca marcar sua posição negando o legado da geração anterior como
o fazia Klaxon. Ao contrário, surgidos na hegemonia modernista no campo intelectual,
os jovens críticos buscam dar balanço a uma experiência histórica ainda em vigor. Se
trocássemos o ímpeto criativo pela vontade de crítica, poderíamos sem exageros,
mudando Klaxon por Clima, atribuir à nova geração tal afirmação: “Houve erros
proclamados em voz alta. Pregaram-se idéias inadmissíveis. É preciso refletir. É preciso
esclarecer. É preciso construir. Daí Klaxon.”
23
O grupo Clima é caracterizado freqüentemente por ter criado um tipo de crítica
que introduz concepções científicas inspiradas nos moldes da Universidade de São
Paulo, desenvolvido no contato com professores estrangeiros. Em lugar do
impressionismo e das intuições muitas vezes brilhantes dos polígrafos, surge uma
dicção acadêmica baseada na compreensão interna do objeto, na sistematização de
métodos atualizados com os avanços das ciências humanas.
24
Na síntese de Ruy Coelho
22
Cf. No Arquivo Paulo Emílio Sales Gomes, depositado na Cinemateca Brasileira, os registros
PE/PI.0640 e PE/PI.0641.
23
Klaxon, mensário de arte moderna, n.1, São Paulo, 1922. Para um comentário geral da revista cf.
LARA, Cecilia de. Klaxon Terra Roxa e outras terras. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1972.
24
PONTES, Heloísa. Destinos Mistos os críticos do grupo Clima em São Paulo 1940-1968. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. O notável livro de Heloísa Pontes traça de maneira definitiva as
reformulações do campo intelectual paulista nos anos 40 com o advento do ensino universitário. Quando
apresento as escritas de Antonio Candido e Paulo Emílio como algo além de uma “dicção acadêmica” não
estou negando o valor de Destinos Mistos e muito menos o acusando de “generalizante”. O fato é que
observados em sua singularidade, esses críticos, mesmo jovens, superam de longe o valor documental que
a autora lhes confere na busca de um perfil geracional. Como pretendo analisar a evolução da crítica de
Paulo Emílio, uma investigação particularizada deve superar o panorama, dando atenção ao pormenor. O
que questiono é certa tendência do panorama em atropelar a verdade singular, para citar um alerta de
Antonio Candido. Com o passar dos anos, foi ficando evidente, tanto em Antonio Candido como em
31
o “(...) dinamismo do espírito impelia a novos caminhos. Eis que os artistas que se
tinham distinguido pelo ímpeto libertário, Jean Cocteau na França, no Brasil, Mário de
Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade (pobre Manuel Bandeira, que posição
inconfortável lhe dei!), vão agora voltando a moldes mais socializados de expressão.
Mas não são as velhas fórmulas tão combatidas. Como o filho pródigo, retornam
enriquecidos de toda experiência adquirida nesse doido vagabundear pelos campos. A
meu ver, não se trata simplesmente do conformismo e amadurecimento que os anos
trazem. Entre os jovens de todo o mundo ressoa o apelo à disciplina. E a Escrava que
não era Isaura tendo ficado nua tanto tempo, sente o frio do inverno e procura cobrir-se
com algum agasalho. Mas ainda não sabe bem as cores que terá.”
25
Neste comentário já está plasmado o embate de dois mundos, de duas gerações
que buscam se afirmar no provinciano campo intelectual da cidade de São Paulo dos
anos 40. Enquanto os modernistas se reconheciam como criadores que retiraram a
expressão brasileira de um estado colonizado e vegetativo, os jovens do grupo Clima
buscam uma síntese dessa tradição e um balanço respeitoso do trabalho dos mestres
baseando-se na crítica. Na busca de uma especialização, o grupo Clima, cada integrante
à sua maneira, vai tentar pela análise crítica superar o legado modernista. Mas o
confronto entre os modernistas e os “chato-boys” não acontece de maneira clara e
explícita assim. A utilização dos progressos das ciências sociais, apreendidos no contato
com figuras como Jean Maugüé e outros intelectuais estrangeiros em ínicio de carreira,
será a arma principal da crítica da nova geração. Entretanto, é preciso problematizar tal
afirmação, já que na análise interna cada obra nos apresenta diálogos e relações
diferenciadas com o modernismo. Se uma dicção acadêmica, fruto de conhecimentos
filosóficos e sociológicos modernos, é bem nítida em um Ruy Coelho, no fascínio de
Paulo Emílio, o quanto a formação atualizada nas ciências humanas faz parte de um processo de análise
que inclui memória privilegiada, experiência histórica nacional e envolvimento político.
32
Décio de Almeida Prado pelos experimentos de Jacques Copeau, ou na defesa da arte
moderna de Lourival Gomes Machado, o mesmo não se dá em Antonio Candido e Paulo
Emílio Sales Gomes.
26
Em Antonio Candido, as referências sociológicas produzem um salto qualitativo
com relação à crítica literária de um Álvaro Lins, por exemplo, mas elas não explicam a
profundidade das análises e os acertos críticos que o corpo-a-corpo com as obras
proporciona e que já prenunciam o grande crítico. Difícil caracterizar o jovem Antonio
Candido como um crítico empenhado no uso dos conhecimentos sociológicos,
sobretudo se pensarmos em seu marxismo, o marxismo de Groucho. Segundo o crítico,
foi Groucho Marx quem compreendeu “(...) melhor do que ninguém, que a crítica ao
preconceito, assim como o estabelecimento de uma nova base para a conduta não
25
COELHO, Ruy. Fantasia e a Estética. In: Clima, n.5, out.1941.pp.18-19.
26
Ruy Coelho chama a atenção do leitor da revista Clima por sua erudição ao mesclar referências
sociológicas, filosóficas e literárias. Em seu ensaio sobre Proust, o melhor da revista, fica patente a
utilização de referências advindas de sua formação universitária. Um bom exemplo da
interdisciplinaridade de Ruy Coelho é quando descreve a culpabilidade de Proust comparando-o com
Schopenhauer, Pascal e a filosofia indiana. “Proust está muito longe da serenidade budística, ou Yoga. Os
elementos mórbidos que contém a angústia, a inquietude metafísica, a conciência culpada o aparentam
com o cristianismo. Razão têm, pois, Henri Massis e Mauriac, salientando essas ligações. A ‘ausência
terrível de Deus’ é um valor negativo demasiado marcado para que não se sinta sua importância.
Os pontos de contacto entre Proust e Pascal, esboçados por Georges Gabory em Essai sur Marcel Proust
merecem nossa atenção. Ao falarmos em cristianismo somos obrigados a fazer apêlo a êsse pensador que
está no próprio cerne do pensamento cristão. Todo o anseio de destruição schopenhauriano, característico
da filosofia proustiana, já o encontramos nesse asceta, que para a Europa teve o mesmo papel de Kapila e
Pantajali na Índia. Tinham ambos a mesma noção de obra no sentido místico da palavra, isto é, o emprego
total da vida do homem. Mas esta, que para um é a salvação da alma, a meditação dos problemas
metafísicos, para o outro é aprofundar as recordações, para imortalização puramente pessoal, através da
arte.” Cf. COELHO, Ruy. Marcel Proust e a nossa época. In: Clima, n.1, maio, 1941, São Paulo. Pp.157-
58.
No caso de Décio de Almeida Prado, o fascínio por Jacques Copeau possui um caráter formativo. Seu
primeiro contato com o encenador se deu em 1938 quando, visitando Paulo Emílio em Paris, assistiu a
uma leitura de Macbeth. O respeito à “convenção teatral”, o afastamento de um teatro naturalista e a
centralidade do texto vão marcar de maneira decisiva a crítica de Décio. Cf. AGUIAR, Flávio, ARÊAS,
Vilma, FARIA, João R. (orgs.). Décio de Almeida Prado um homem de teatro. São Paulo: Edusp, 1997.
A leitura de Copeau marcará toda a trajetória crítica de Décio de Almeida Prado, estando na base de sua
incompreensão da reconfiguração do teatro brasileiro nos anos 60. Para uma boa descrição da obra do
crítico cf. BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice Décio de Almeida Prado e a formação do teatro
brasileiro moderno. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005.
Lourival Gomes Machado foi o primeiro crítico de arte a defender com bases sólidas a arte moderna
brasileira. Como o meio era constituído ainda por diletantes e polígrafos, sua prosa empolada e com forte
dicção cientificizante busca na análise imanente das artes plásticas modernistas encontrar um fio condutor
que envolva o barroco mineiro, já escolhido pelos modernistas como fonte de inspiração, a produção das
vanguardas históricas e a produção dos modernos. Cf. PONTES, Heloísa. Destinos Mistos os críticos do
grupo Clima em São Paulo 1940-1968. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp.21-51.
33
podem estar presos a justificação doutrinária retórica, maçante e ineficiente.
Compreendeu além disto, que não pode haver fases distintas na transformação; que não
se deve destruir para construir em seguida. O mesmo ritmo deve compreender no seu
embalo a destruição e a reconstrução. Quando o tabú é derrubado, já deve estar
nascendo de suas cinzas o novo tabuzinho, pronto e reluzente. É esta a sua profunda
originalidade e a sua divergência com os outros heróis deste século.”
27
No caso de Paulo Emílio, a distância de um jargão academicista é ainda maior.
Pois embora a indiferença pelo cinema brasileiro confirme certo elitismo, por outro lado
a inovação de sua crítica de cinema reside nas fontes utilizadas e no tipo de análise dos
filmes que explora os materiais fílmicos, mas também dá vazão ao impressionismo.
Como vimos com Hag Reindrahr, a experiência do modernismo ajudou a promover no
jovem uma liberação de certo ímpeto ficcional.
O ensaio de Paulo Emílio em Clima é o resultado de seu contato com o
movimento modernista, assim como do embate com a cultura francesa e seus teóricos de
cinema da avant-garde.
Em seu primeiro ensaio em Clima sobre o filme The Long Voyage Home já se
percebe o salto em relação à crítica de cinema de então, que se mantinha em breves
incursões pela narrativa chamando a atenção para um ou outro dado técnico.
Evidentemente, em Klaxon e n’O Fan os comentários técnicos acrescentavam para
análise, mas a forma do ensaio, mais do que se aproximar do filme, se ligava sobretudo
ao gosto pelas “belas letras” dos polígrafos e “anatolianos”. O Chaplin Club se destaca
na história das idéias cinematográficas no Brasil por sua postura teórica avançada, que,
do ponto de vista especulativo, não fica nada a dever à produção européia. Pregando um
liberalismo iluminista, os jovens Otávio de Faria, Plínio Sussekind Rocha, Almir
27
CANDIDO, Antonio. O Grouchismo. In: Clima, n.3, ago.1941, p.131.
34
Castro, Aurélio Gomes, Aluízio B. Coutinho e Nogueira Jr. buscaram desenvolver os
pressupostos de uma linguagem cinematográfica. Entretanto, tamanha densidade teórica
em meio tão inóspito resultou no que Ismail Xavier chamou de duplo isolamento: “um
oceano concreto os separava da Europa, enquanto um fosso ideológico os ilhava no
espaço cinematográfico que habitavam.”
28
Embora alguns de seus textos possam ser
caracterizados como ensaios, a vontade crítica era sobretudo de ordem teórica, definir
um sistema em que apresente o “específico fílmico”. Assim como não há um
questionamento do cinema enquanto representação, e esta enquanto dado histórico,
também não há no Chaplin Club uma reflexão elaborada em torno do gesto crítico, a
escrita enquanto forma. Por meio de discursos elaborados do ponto de vista teórico ou
de apreciações técnico-artísticas, o que temos nas páginas d’O Fan são interpretações e
adaptações do debate teórico europeu calcadas na realidade do circuito cinematográfico
brasileiro. Otávio de Farias vê a concretização dos exemplos teóricos de Epstein no
cinema narrativo norte-americano, mas sem um autoquestionamento sobre o lugar de
onde se fala ou como se escreve. Lembremos que Otávio de Farias, o principal teórico
do grupo, nunca escreveu bem.
Voltando ao texto de Paulo Emílio sobre o filme de John Ford, logo no primeiro
parágrafo temos a aproximação do filme com o ideal do cinema mudo. The Long
Voyage Home teria alcançado a nobreza procurada pelos teóricos da fotogenia. O
cinema moderno é a realização do mudo. Assim, temos logo de início o diálogo com um
pensamento, que fora esboçado em Klaxon e sistematizado no Chaplin Club, ao mesmo
tempo em que há a ruptura na escolha pelo cinema sonoro. Com isso não quero afirmar
uma continuidade explícita entre esses grupos tão diversos, apenas apontar como o
contato com o Modernismo e com Plínio Sussekind Rocha coloca nosso crítico em
28
XAVIER, Ismail. Op. Cit. p.238.
35
posição privilegiada para superar seus antecessores. A posição em favor dos talkies é
bem evidente, sobretudo para quem participara em 1939 do Festival Charles Chaplin no
Cércle du Cinéma du Trocadero, onde a polêmica reviveu fortemente e os participantes
ao final de uma sessão gritaram: “Vive le muet!”
29
Mas não há um fascínio gratuito pelo
cinema falado. O cinema mudo realizou grandes obras, enquanto o cinema falado pouco
fez. Por isso, mais do que embate, essas duas etapas da arte cinematográfica devem se
complementar numa síntese, e a análise do crítico vem dar sua contribuição. Não se
trata simplesmente de aplicar uma terminologia consagrada por intelectuais franceses,
mas sim de utilizá-la para melhor definir o cinema que nasce. Portanto, a pretensão da
crítica do jovem Paulo Emílio é exercer seu espírito crítico e também acompanhar o
pensamento e a estruturação do novo cinema. O “(...) esforço de simplificação era o
sentido para o qual estava se dirigindo o cinema nos últimos tempos da era silenciosa.
Com a vitória do cinema falado tudo se complicou e hoje estamos diante de uma arte
novamente balbuciante, e, o que é pior, viciada e pretensiosa. E diante desse cinema de
hoje, não é possível separar-se o que há de cinematograficamente autêntico num filme
que é falso, sem vê-lo várias vezes, com muita boa vontade e atenção, às vezes com
espírito alertado, outras com bastante abandono.”
30
Voltando ao filme de Ford, Paulo Emílio o caracteriza como um drama, pois aos
personagens não resta senão se conformar com o destino. Essa visão do drama é
claramente inspirada na estética de Hegel e a descrição da autonomia dos personagens e
do mundo exterior, para além de uma apresentação que imita os procedimentos fílmicos,
29
SADOUL, Georges. Vie de Charlot, Charles Chaplin ou le rire dans la nuit. Paris: J. Damase, 1952.
Ver também o texto do próprio Paulo Emílio Notícias sobre a polêmica do Rio, Clima, n.10, jun. 1942.
Publicado posteriormente em CALIL, Carlos Augusto e MACHADO, Maria Teresa (orgs.). Op. Cit.
30
GOMES, Paulo Emílio Sales. Tobacco Road. In: CALIL, Carlos A. e MACHADO, Maria Teresa
(orgs.). Op. Cit. pp.133-134.
36
é justificada pelo fato de que no filme The Long Voyage Home “(...) quem impera,
implacável, é o destino: é a história de um punhado de homens condenados ao mar.”
31
A análise do drama impõe uma investigação das fisionomias e seus rendimentos
para a fatura da obra. O mesmo procedimento é visível nas análises de Citizen Kane
32
e
Tobacco Road, sendo que neste último os objetos ganham o estatuto de fisionomia.
Conhecendo os teóricos da avant-garde, sobretudo Louis Delluc, e bem orientado por
Malraux, Paulo Emílio sabe da potencialidade do cinema em transformar
dramaticamente objetos como o arado de Tobacco Road. Em The Long Voyage Home o
comentário sintético sobre cada personagem nos ajuda a compreender o drama de cada
um. Assim, “o abatimento de Smity” é a lamentação da distância familiar e prenúncio
31
Sobre a concepção hegeliana de drama Cf. HEGEL, G.W.F. Curso de estética o sistema das artes.
São Paulo: Martins Fontes, 1997. pp.555-602. Em carta a Paulo Emílio, D. Gilda Mello e Souza contesta
a caracterização esquemática de The Long Voyage Home como sendo um drama: “Em primeiro lugar
acho que você fez mal dando aquela distinção entre drama e epopéia. Aliás você mesmo sentiu o
simplismo da definição pondo aquela nota de rodapé em que explicava que para ali o esquema servia. Me
parece que nem para o artigo o esquema serve, pois vai te obrigar a uma série de limitações as quais você
poderia ter fugido si não tivesse tomado êsse ponto de partida. Não me parece que TLVH seja um drama
apenas porque ai quem impera implacável é o destino; porque é ‘a história de um punhado de homens
condenados ao mar’. Não concordo também com Décio, que acredita que ‘o que êsses marinheiros mais
desejam conciente ou inconcientemente não é fugir ao seu destino de marinheiros mas realizá-lo.’ Como
você, Paulo Emílio, eu acho que existe uma luta. Mas interpreto essa luta de acôrdo com aquele
sentimento ambivalente de amôr e ódio ao mar, que coube a Décio a glória de descobrir. Não estou
querendo com isso acender uma vela a Deus e outra ao Diabo, não... Mas me parece que si os
marinheiros abandonam o navio, não é apenas para fugir ao instinto que os impele violentamente para o
mar, não é apenas para fugir a uma atração que os escraviza, é também para realizar a outra parte de seu
sêr, a parte mais fria e racional que reclama que a liberdade seja reconquistada. Todos os dois desejos me
parecem autênticos e daí o drama, pois que qualquer realização tende a ser unilateral e portanto acarretará
uma renúncia. Indo para o mar eles irão com saudade da terra. Ficando na terra a gente sentirá o
transitório da situação.” Cinemateca Brasileira/Arquivo Paulo Emílio, documento PE/PI.00297.
Ao escolher o termo “drama” para analisar o filme, Paulo Emílio busca compreender a alma desses
personagens isolados de si mesmos, de suas terras. A proximidade com que cada personagem e seu drama
são tratados, mesmo que de maneira sintética, nos ajuda a compreender o universo desses eternos
exilados, além de apresentar o grau de liberdade com que John Ford e Dudley Nichols adaptaram Eugene
O’Neill. É pena que o jovem crítico não se dedique ao trabalho de Gregg Toland, que no filme inicia seus
experimentos com a profundidade de campo. Somente na análise de Citizen Kane o trabalho do fotógrafo
será reconhecido e, dado curioso, antes da leitura de Bazin.
32
Citizen Kane, o mais elaborado ensaio de Paulo Emílio em Clima, não será alvo direto de minha análise
aqui, embora ele paire em toda a interpretação. O ensaio sobre o filme de Welles é o mais digno desse
nome, pois é nele que percebemos melhor a articulação de análise e procedimentos fílmicos efetuada pelo
jovem crítico. Entretanto, acredito que sua abordagem em cotejamento com as interpretações de André
Bazin e Jean Paul Sartre pode ser de grande rendimento na compreensão do contato de Paulo Emílio com
a crítica francesa do Pós-Segunda Guerra. Esse procedimento será realizado posteriormente, quando o
foco de minha análise for o livro sobre Jean Vigo.
37
trágico de sua morte por uma metralhadora; “a severidade gótica de Davis” revela o
conformismo com sua situação de eterno exilado.
A descrição de cada individualidade, além de nos mergulhar no universo de cada
drama, também nos ajuda a desfazer um possível engano. Pois se o filme trata de uma
coletividade, ele o faz por partes, e é isso que o distancia de uma estética próxima dos
filmes russos. “A meia dúzia de atores de primeiro plano do The Long Voyage Home
pode representar a massa dos homens que trabalham no mar, mas eles não são essa
massa. Ao passo que no Potenkim é a totalidade dos marinheiros que trabalha e age, é a
totalidade dos oficiais que é trucidada, é a totalidade dos soldados da repressão que
marcha, é a totalidade do povo de Odessa que surge. Os close-up não indicam nenhuma
hierarquia de atores, mas unicamente detalham e condensam alguns aspectos de uma
coletividade homogeneizada.”
Essa lição de estética cinematográfica visa Guilherme de Almeida, o crítico
oficial d’O Estado de S. Paulo, que em “boa crítica” relaciona o filme de Ford com a
atmosfera dos filmes russos. Tal lição é orientada por Moussinac
33
e marca de maneira
decisiva a diferença das duas gerações. Se para o modernista o diálogo evidente de Ford
é com o cinema mudo, para Paulo Emílio a era silenciosa é apenas uma referência de
um cineasta que só se realiza com o advento dos talkies.
Feita então a análise do filme, segue um escorço biográfico que revela o gosto
do diretor por questões relacionadas à Irlanda. A crítica de Paulo Emílio em Clima
33
“Il [Eisenstein] a été fortement influencé par les théories et l’exemple de Vertoff, en ce sens que dans
chaque partie de ses films il s’applique à faire oublier le jeu des interprètes et la composition artificielle
en studio du blanc et du noir, pour se rapprocher le plus possible du document d’actualité, d’image saisi
sur le vif et interprètes par l’objectif et le mécanisme de l’appareil cinématographique. De là, la varieté
des angles de prises de vues qu’il utilise, de là ses changements de plans opposés ou successifs qui donne
tant de vie à certaines suites d’images. Ainsi montre-t-il assez rarement une vie général d’un ensemble,
préferent là suggerér comme mécaniquement par là presentation de details le plus caractérisques (...).”
MOUSSINAC, Léon. Le Cinéma Soviétique. Paris: Gallimard, 1928. p.156. Segundo Moussinac, o
cinema soviético seria a salvação do cinema de vanguarda, mesmo o seu sistema abrigando a
mediocridade. Seu fascínio pelo cinema soviético se deve particularmente à obra de Eisenstein e à sua
38
ganha coesão em cada texto, sendo a culminação em Citizen Kane. As análises se
aprofundam na medida em que o corpo-a-corpo com os filmes ocupa o espaço do
comentário técnico e biográfico. Cada vez mais, os materiais requisitados pelo filme são
apropriados pela análise que os converte em ferramentas que auxiliam no
desvendamento da obra. Assim como a dissecação das personalidades é a base do artigo
sobre The Long Voyage Home, a interpretação dos objetos em Tobacco Road nos
coloca no embate entre tradicional e moderno promovido pelo filme. Em Citizen Kane,
esses procedimentos chegam ao apogeu e são didaticamente explicitados no recurso à
memória, na análise da sucessão das imagens.
A presença teórica dominante em toda a escrita de Clima é René Schwob e seu
livro Une mélodie silencieuse. Seguindo de perto a lição do esteta, Paulo Emílio busca
no filme a lógica interna que ultrapassa sua transparência.
34
Mais do que o espaço, o
cinema revela a duração, e ela, por sua vez, está vinculada ao fluxo de imagens que se
sucedem criando um encadeamento e uma totalidade. Uma imagem só se completa em
sua sucessora, ao contrário da pintura que se caracteriza por suspender a mobilidade.
Essa concepção do cinema enquanto fruto da disposição das imagens, da unidade em
desenvolvimento, enfim, da preponderância da montagem, vai marcar toda a escrita em
Clima.
antiga militância de esquerda. Cf. TOULLET, Emmanuelle. Léon Moussinac et le cinéma: un intellectuel
s’adresse aux intellectuels. In: Les Cahiers de la Cinémathèque, n.70, 1999, p.23-32.
34
O livro de Schwob é de fato uma reflexão acurada sobre o universo de Carlitos, mas, para tanto, amplia
sua discussão ao dar espaço ao comentário de outros filmes pois, segundo o autor, para captar a riqueza
de tal universo é preciso surpreender em outros filmes instantes de emoção que iluminem o mundo de
Carlitos. Para isso, serão abordados os temas mais diversos, como cinema e pintura, a unidade orgânica
da narrativa fílmica, diversos tipos de estilos cômicos, experimentos vanguardistas (Napoléon e
Metropolis). É desse caleidoscópio cinegráfico que resulta a riqueza desse livro ainda fascinante. Sua
linguagem mística e sua apologia ao cinema nos remetem ao ideário da avant-garde, afinal, entre outros
aspectos, o livro de Schwob é um bom resumo do pensamento vanguardista com o acréscimo da
“visibilidade” do gesto humano proposta por Béla Balazs. Mas, por intuição, ele ultrapassa a vanguarda
ao apresentar a idéia de uma espécie de “subconsciente” da imagem, um “índice histórico” que resiste
independente de sua qualidade estética. Cf. SCHWOB, René. Une mélodie silencieuse. Paris: Grasset,
1929.
39
Essa disposição ensaística, que procura se nutrir dos materiais agrupados pela
obra em análise, passará da vontade crítica para o ímpeto criativo, numa espécie de
balanço teórico na interpretação do palhaço Piolim. Assim como Trecho de vida serviu
à imaginação como elemento organizador de uma ironia auto-reflexiva, o ensaio sobre
Piolim é um experimento das teorias cinematográficas adquiridas e também a
radicalização do ensaio enquanto forma.
O texto sobre Piolim é evidentemente um resquício da preocupação modernista,
vanguardista em geral (vide Degas ou Toulouse-Lautrec), de renovar as referências
artísticas do ocidente, ressaltando outros tipos de cultura que explicitem o esgotamento
da tradição clássica no mundo burguês. Assim como a arte negra, o circo ganha sua
relevância. O depoimento de Paulo Emílio nos anos 60 nos lembra o fascínio pelo
circo.
35
O início do texto é programático: “Muita gente já escreveu histórias de Circo.” E
poucos, salvo os dotados da alma cristalina de palhaço, alcançaram êxito. “Aviso quase-
prévio e de grande importância: Não é possível conversar Piolim com quem não viu
Piolim. E muito menos ainda se aprende Piolim com leituras. Não adianta.” Repare o
leitor que dissertar sobre Piolim é “falar Piolim”. Ou seja, é falar um tipo de linguagem
cuja escrita pouco ajuda. Para isso, é preciso forjar uma linguagem. Assim, toda a
sintaxe vai se contorcer para criar imagens estáticas. “Tárárá rárárárá.” E uma turba de
35
“Foi Oswald que me levou de volta ao circo, que freqüentara na infância com meu irmão Éme, levados
por Maria Preta, mas do qual só guardara a lembrança de uma aguda crise de apendicite. Piolim, amigo de
Oswald, interpelava-o do meio da pista. Ele respondia, Nonê e eu arriscávamos alguma coisa e nos
integrávamos no espetáculo. Mais tarde eu deveria freqüentar metodicamente o Circo Piolim, na Praça
Marechal Deodoro, durante cerca de dois anos. Cheguei a escrever uma espécie de ensaio (grifo meu)
sobre Piolim mas os companheiros da revista Clima se opuseram a que fosse incluído no número da
revista em preparo. Meu texto, com efeito, continha algumas expressões populares ou infantis ainda mal
aceitas literariamente, como por exemplo pipi. Acontece que havia sido recebido e já aceito um poema de
Vinícius de Moraes no qual o verso estribilho era cocô de ratinho, cocô de ratão. Se não me engano, foi
Décio de Almeida Prado que opinou contra esse acúmulo num mesmo número da revista. A publicação de
meu trabalho foi adiada e, em seguida, devo ter perdido o manuscrito. Deploro, pois desconfio que não
era mau.” GOMES, Paulo Emílio Sales. Um discípulo de Oswald em 1935. In: _____. Crítica de cinema
no Suplemento Literário, vol.2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p.442. Felizmente o texto foi
40
artistas vai desfilar e se exibir. E a magia do circo, dividida em cenas, agrada a todos
por sua perfeição repetitiva. “Eu sei de uma coisa que não sei se é minha mas que em
todo caso é verdade. Diferentemente das outras artes, pintura, escultura, música,
cinema, em que as coisas podem ser ótimas, más, regulares e péssimas, na Acrobacia
tudo é sempre bom e ótimo. Porque se não for, os artistas levam um tombo. Um pianista
quando erra um compasso, o piano não avança para ele com sua alva e temível
dentadura.” Depois dos acrobatas, o Raul, “é claro que não vou apresentar o Raul” e seu
“ventrão de atleta aposentado”, o mágico, “o mágico é o único cínico do circo”, os
cachorrinhos e, por fim... Delírio! Piolim! Gentil e feminil ele aparece e logo desaparece
para voltar logo depois do intervalo. “É melhor não ir fazer pipi porque precisa entrar na
fila.”
Piolim volta e inicia sua série de burletas. Começa pela mais fraquinha. Mas não
tem importância. “Quando Piolim é ruim é que a gente vê como ele é bom quando ele é
bom.” Seguem-se: Piolim desempregado, Piolim puritano num puteiro, Piolim e um
gago etc. etc. Piolim é poeta e herói. “Alerta Piolim heróico, vencedor em todas
encrencas e todos os inimigos. O mais terrível você ainda não liquidou é o Teatro.”
Essa referência final ao teatro ilumina todo o processo criativo do texto.
Eisenstein, em seu artigo sobre a Montagem de atrações, pretende romper com o
tradicionalismo teatral, o odiado naturalismo burguês, sendo que “elevar o nível
organizacional da vida cotidiana das massas” requer uma atualização do programa
teatral com o momento histórico da Revolução. A referência a Eisenstein explicita todos
os procedimentos para entender Piolim e sua “montagem de atrações”. A intuição de
Piolim ao romper com a figuração ilusionista cria cenas estáticas que proporcionam o
choque e o riso, daí a dificuldade de reproduzir pela descrição escrita tal sensação. Se
encontrado e publicado em CALIL, Carlos Augusto e MACHADO, Maria Teresa (orgs.). Op. Cit. pp.46-
51.
41
isso é possível por meio da escrita, o esforço deve ser o de impor uma cena para em
seguida abandoná-la e logo impor outra de mesmo, ou maior, impacto. É por isso, que
no ensaio, cada cena se esgota em si, sem truques, somente quando o espectador-leitor é
despertado pelo riso. As frases buscam uma oralidade telegráfica e ensaiam, na síntese
de imagens pueris, nos remeter ao universo de Piolim. O significado desse ensaio está
na maneira como se vaza na sua forma, de modo cabal, o objeto em análise e, como o
Mário de Andrade d’A Escrava que não era Isaura, a metalinguagem serve para o
crítico-escritor na obtenção da concretude daquilo que deseja exprimir.
A crítica de Paulo Emílio em Clima é um marco na história das idéias
cinematográficas no Brasil. Seu ensaísmo e sua opção pelo cinema moderno marcam
bem a diferença de seus antecessores, embora as afinidades sejam evidentes, já que se
trata de um processo formativo. Paulo Emílio partilha com os outros membros de sua
geração o gosto pelo ensaio. Se a crônica e o artigo curto foram a forma de expressão
das análises dos “anatolianos” e o ensaio literário foi a marca da crítica modernista, os
“chato-boys” se caracterizam pelo ensaísmo puro, alargando o gênero e adensando-o
com citações científicas atualizadas. Retomando a forma da crítica modernista e
dilatando-a com bases mais sólidas nas ciências sociais, o grupo Clima funda uma nova
maneira de avaliar os produtos culturais. O que singulariza Paulo Emílio, e de certa
forma Antonio Candido também, é justamente a capacidade em fundir a “fria
racionalidade” e uma “cultura da sensibilidade”.
36
Propondo uma renovação na crítica
de cinema, Paulo Emílio em Clima, num esforço de síntese de procedimentos e
atualização teórica, apresenta ao leitor ensaios de maior extensão, com um rigor técnico
inédito (cf. as fichas técnicas que iniciam os escritos), confrontando o filme de perto e
encontrando soluções admiráveis em filmes medíocres ou em obras-primas com
42
defeitos. Essa crítica que supera as aparências funda um espaço onde se aprende e se
discute o valor da cinema. Por isso, ela é um marco. Depois de Clima, cinema em São
Paulo seria tomado como um objeto de análise. Coisa séria. Mas essa disposição nasceu
do contato com as tentativas anteriores do Chaplin Club e de Klaxon mais a descoberta
cultural ocorrida com a viagem à França. Do experimento político-estilístico de Trecho
de vida até a “rotinização” de procedimentos ensaísticos em Vontade de crônica sobre o
Circo Piolim solidamente armado à Praça Marechal Deodoro, há um esforço de
compreensão da política de maneira autônoma e da cultura realizada em sintonia com a
arte moderna.
36
Para um debate entre o discurso literário e o científico na disputa do campo intelectual ocidental, Cf.
LEPENIES, Wolf. Between Literature and Science: the rise of sociology. Éditions de la Maison des
Sciences de l’Homme/Cambridge University Press: 1988.
43
Capítulo II
Paralelamente à crítica de cinema na revista Clima, Paulo Emílio desenvolvia
uma intensa militância política. Convencido definitivamente sobre a indisposição dos
comunistas do partido em relação à sua figura de filho da elite paulistana, ojeriza
reforçada agora ainda mais por suas idéias sobre um certo tipo de socialismo de base
marxista, autônomo e radical, o jovem se insere no movimento de contestação ao Estado
Novo que se iniciara no princípio da década de 40 e unira (da classe média para cima)
diversos tipos de insatisfeitos com o regime. Dessa efervescência política, representada
nos diversos grupos novos e/ou renovados, no número enorme de manifestos, jornais
clandestinos, congressos, manifestações estudantis, surgiram grupos como a Esquerda
44
Democrática (ED), a União Democrática Socialista (UDS) que se fundiriam mais
tarde no PSB e a União Democrática Nacional (UDN).
37
O contato na França com certa literatura anti-estalinista e sobretudo a
proximidade com Andrea Caffi e Victor Serge lhe renderam uma experiência política
importante para a cena brasileira. Suas perspectivas e seu radicalismo estão presentes
em diversos documentos significativos para a história política brasileira do século
passado.
38
Mas é em seu depoimento para Mário Neme, na Plataforma da nova
geração, que percebemos mais claramente o diagnóstico do militante. Sem os
compromissos do documento político coletivo, o depoimento nos revela uma visão
particular do momento histórico brasileiro ao passar em revista alguns agentes políticos
da nova geração. Mas o significado do texto não reside somente em seu diagnóstico mas
também na apresentação de uma perspectiva das especificidades da realidade brasileira.
Na Plataforma da nova geração vemos mais claramente a superação das perspectivas
cosmopolita e abstrata que detectamos na crítica de cinema, mas elas ainda permanecem
em paralelo.
O depoimento para Mário Neme é uma reflexão sobre a própria trajetória, uma
análise consciente da fragilidade da própria formação política e cultural que se adensou
na medida em que se distanciou criticamente do culto à Rússia, buscando tirar
consequências concretas da interpretação da realidade brasileira. Para Paulo Emílio, a
trajetória de sua geração, leia-se a esquerda, pode ser caracterizada em linhas gerais a
partir dos movimentos reacionários e progressistas que emanam da Rússia. O
movimento de fluxo e refluxo se inicia em 1917 com a Revolução e a III Internacional,
mas a ascensão de Stálin marca a reação que, por sua vez, produz a crítica de Trótski.
37
Cf. BENEVIDES, Maria Victoria. A UDN e o Udenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, l981.
38
Cf. CANDIDO, Antonio. Informe político. In: CALIL, Carlos Augusto e MACHADO, Maria Teresa
(orgs.). Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente. Rio de Janeiro/São Paulo: Embrafilme/Ministério
da Cultura/Brasiliense, l986.
45
Entretanto, a dissolução da III Internacional e o bordão “socialismo num só país”
marcam o regresso do pêndulo, mas engendram a idéia da “revolução permanente” e a
IV Internacional, e é diante desta última que sua geração deve se posicionar.
Diante dos problemas lançados pela experiência política da Rússia surgiriam
para sua geração três pontos de vista: 1) retorno ao culto à Rússia; 2) crítica radical e
trotskista; 3) fim do culto à Rússia, repensando o legado marxista à luz das experiências
históricas locais. Esta última posição parece ser a mais original e também a mais
necessária. É preciso arrancar o marxismo das garras do dogmatismo. “A impressão
geral é que se está processando no plano cultural do mundo um imenso trabalho que
culminará numa tentativa de revisão progressista do marxismo. Este fenômeno
corresponderia às necessidades históricas da crise social e político-militar de nosso
tempo.”
39
Mas no caso brasileiro essa “revisão progressista”, dada a precariedade
teórico-prática, deve se dar no campo histórico, na elaboração e coleta de dados que
possibilitem uma análise histórica conseqüente. Aqui a leitura de Formação do Brasil
Contemporâneo (1942) se faz sentir. Com esse raciocínio não há uma diluição da
dialética entre o universal e o particular em favor do último, mas a consciência do
perigo de importação de modelos teóricos universalizantes para a análise local. A
originalidade dessa formulação ainda nos inquieta. No depoimento de Paulo Emílio há
outros elementos que nos revelam a atmosfera política do período, como por exemplo o
alerta ao travestimento de ideologias, fato que se comprovaria mais tarde com a
fundação da UDN. Mas a atenção ao particular nos importa por sua atualidade e por seu
desdobramento na obra do crítico.
40
39
GOMES, Paulo Emílio Sales. Plataforma da nova geração. In: NEME, Mário (org.). Plataforma da
nova geração. Porto Alegre: Globo, l945.
40
Sobre o depoimento de Paulo Emílio dado a Mário Neme confira o debate em torno de Cinema:
trajetória no subdesenvolvimento, na revista Filme Cultura, ano 12, jan-fev-mar, 1980, n.34. Em especial
a intervenção de Ismail Xavier na página 07.
46
As expectativas políticas de Paulo Emílio nos anos 40 levam-no à campanha do
Brigadeiro Eduardo Gomes, pelo sentimento antigetulista que ela carregava ao abrigar
liberais, parte da esquerda, parte da direita, católicos. Mas essa união estratégica,
posteriormente caracterizada pelo próprio Paulo Emílio como um “erro histórico”, se
dissolve com a vitória nas eleições de dezembro do General Dutra, e o jovem termina
sua militância, sua luta, em grupos políticos acenando com um lenço branco a bordo do
navio Kemp P. Battle com destino à França.
Para uma geração empenhada na transformação do Brasil formal em uma nação,
a eleição do General Dutra foi um verdadeiro anticlímax. Todo o sentimento nascido do
despertar ideológico da década de 30, adensado no debate para a estruturação e
organização de grupos políticos na primeira metade dos anos 40, se esmorece diante da
lúgubre perspectiva. A expectativa de libertação do jugo capitalista com o fim da guerra
aumenta ainda mais o impacto. E para um jovem abastado, ainda com pretensões
políticas e sobretudo culturais, a França se apresenta como um ponto decisivo no
processo de “revisão progressista”.
41
Por ter se constituído historicamente como abrigo
de refugiados políticos e oferecer certa tolerância ao debate, a França, malgrado Vichy,
ainda era um país que dispunha de grandes possibilidades para o desenvolvimento de
questões políticas, mas com relação a questões de estética cinematográfica, o ambiente
era ainda mais favorável, já que Paris se constituía como o epicentro da crítica de
cinema no mundo. Com a Liberação, há um enorme processo de renovação cultural no
41
A correspondência de Paulo Emílio com Antonio Candido no período mencionado confirma a decepção
com o clima político e revela uma guinada cultural de ambos, embora o interesse pelo destino da
militância de esquerda continue. Sempre pedindo informações sobre a situação brasileira, Paulo Emílio
não deixa de pagar sua gorda mensalidade à Esquerda Democrática. Nas cartas que envia para sua mãe (a
quem ele chama de Muia), indica militantes com quem ela deve travar contato para melhor mantê-lo
informado sobre o debate político.
A relação de Paulo Emílio com D. Gilda Moreira de Salles Gomes é permeada de constante troca de
idéias e enorme ascendência do filho caçula sobre uma mãe inquieta e ansiosa por ultrapassar o universo
provinciano de uma senhora bem posta na sociedade paulistana na década de 40. Cf. PE/CP. 0429 e 0430
no CB/APESG.
47
qual o cinema ocupa uma posição central, uma fonte privilegiada de memória e
legitimação para a coletividade.
Reconhecido pelo Estado como elemento importante na sociedade de massa, o
cinema será concebido como contribuinte para a formação da consciência histórica.
Instituições como o Institut des Hautes Etudes Cinématographiques (1945), a Comission
Supérieure Technique (1945), o Festival de Cannes (1945) e o Centre National de la
Cinématographie (1946) enriquecem o universo cinematográfico francês, sem falar no
número enorme de cineclubes que promovem relançamentos de filmes, agora com o
visa aprovado.
42
É neste sentido que se compreende o lançamento e a boa recepção de
crítica e público de filmes que emanam uma atmosfera de insurreição e heroísmo,
filmes como Zéro de conduite e L’Espoir ao lado de La bataille du Rail e La Libération
de Paris.
43
O cinema não era somente concebido no âmbito da produção e da memória, mas
principalmente no plano das idéias, já que a reorganização da indústria não é imediata e
os primeiros filmes surgem apenas em 1946. O número de intelectuais envolvidos no
debate cinematográfico é considerável, o que proporciona à crítica francesa do pós-
guerra um enorme salto qualitativo. André Bazin, na esteira de Malraux, busca dar o
sentido do destino do cinema, mostrando que sua função social nasce de uma profunda
necessidade psicológica. Por outro lado, Maurice Merleau-Ponty louva o cinema por ele
apresentar o homem em sua exterioridade, expondo nos gestos o pensamento. Enquanto
isso, Georges Sadoul, preconizando a história do cinema por meio dos gêneros
nacionais, defende o cinema russo e o francês, e Sartre, desde os anos 30, classifica o
42
Cf. LANGLOIS, Suzanne. La Résistance dans le cinéma français: 1944-1994 De la Libération de
Paris à Libera Me. Paris: L’Harmattan, 2001.
43
Cf. GOMES, Paulo Emílio Sales. Outra face de Jean Renoir. In: ______. Crítica de cinema no
Suplemento Literário. Vol. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; BOST, Pierre. Zéro de conduite et Jean
Vigo. In: L’Ecran Français, n. 22, nov. 1945, p. 3; A. Une grande prémière. (Sobre Zéro de conduite). In:
L’Ecran Français, n. 21, nov. 1945, p. 12; MARION, Denis. Comment André Malraux a tourné son film.
48
cinema como a arte do nosso tempo. É nessa atmosfera efervescente que o veterano
Léon Moussinac afirma que ao cinema é preciso audácia, entusiasmo e independência
para a experimentação. E não há aqui espaço para o diletantismo.
44
A história da crítica de cinema na França tem uma história particular que, para
nossa exposição do campo no pós-guerra, vale a pena recapitular. A crítica de cinema se
desenvolve em paralelo com o cinema, isto é, com a descoberta da mobilidade da
câmera na mudança de plano, com as revelações do close e da composição da imagem
por meio da montagem. Essa consciência de meios expressivos próprios exigiu para
que o cinema se tornasse uma arte pura, segundo a ideologia da época uma crítica que
reconhecesse o valor da nova arte. O interesse de Louis Delluc pelo moderno em
diversas áreas faz de sua crítica um cadinho em que todas as artes são convocadas para
servir ao cinema. Com estilo próprio, testado na literatura, Delluc reivindica para o
cinema um papel preponderante na vida moderna. Sua disposição crítica será decisiva
para a eclosão da vanguarda e para a tomada de consciência da crítica. A partir de então,
a crítica de cinema ganha sua especificidade, e o crítico deve possuir conhecimentos
técnicos de toda ordem e manipulá-los conforme o filme apresentado. Essa premissa
básica, em que Delluc mistura crítica e teoria, se adensa com o estilo do crítico, no
esforço de traduzir para a escrita os procedimentos cinematográficos. Na França, a
tradição literária proporcionou à crítica uma investigação de si mesmo, do ato crítico e,
por conseqüência, do estilo. O lugar de Delluc reside justamente na autonomia com que
desenvolve seus escritos, a liberdade com que julga os filmes. Entretanto, sua influência
In: L’Ecran Français, n. 1, 04.07.1945, p. 8 e MARION, Denis. Le cinema selon André Malraux. Paris:
Cahiers du Cinéma, 1996.
44
Segundo Antoine de Baecque na sua Histoire d’une revue, o campo intelectual da crítica de cinema na
França do final dos anos 40 se dividia em três tendências: os “progressistas” em torno de Sadoul e
dedicados à análise histórica; uma tendência mais formalista empenhada no neo-realismo e na descoberta
de alguns cineastas americanos, centrada na Revue du Cinéma, do remanescente da avant-garde Jean
George Auriol; e por fim, os “neo-hollywoodianos” como Alexandre Astruc, Bazin e Eric Rohmer, que
pregavam uma moral da mise-en-scène.
49
não ultrapassa o círculo da avant-garde, malgrado seu empenho na construção do
movimento de cineclubes que, por sua vez, engendra a cinefilia.
Com o esgotamento da vanguarda, a indústria cinematográfica francesa aflora no
cinema falado, mas uma crítica influente não surge para dar continuidade a esse legado.
Na década de trinta, os livros mais significativos ainda são L’Arbre d’Eden (1922),
Naissance du cinema (1925), Une mélodie silencieuse (1929) e Charlie Chaplin (1928),
respectivamente de Elie Faure, Léon Moussinac, René Schwob e Henri Poulaille.
Mesmo com o surgimento de bons críticos como Lucien Rebatet ou Roger Leenhardt, a
produção crítica dos anos trinta, se comparada com a que a antecede e a sucede, é
bastante inferior em estilo e acuidade. É somente com a Liberação que surge uma nova
geração disposta a romper com o conformismo reinante e sobretudo com a ideologia
vanguardista do específico cinematográfico.
Quando Paulo Emílio desembarca em 1946, o campo da crítica cinematográfica
está passando por uma mudança que se concluirá em 1951 com a publicação da revista
Cahiers du Cinéma. Até a década de 1940, o cinema fora valorizado por eruditos, ou
pelos próprios cineastas que possuíam vínculos com a vanguarda literária, como Jean
Epstein, ou com as artes plásticas, como Elie Faure e André Malraux. Os eruditos se
caracterizavam pelo estilo, abordagens biográficas e análises gerais, cujo vínculo com a
crítica literária impressionista era evidente. Com o reflorescimento da cultura
cinematográfica no pós-guerra, marcado pelo número de instituições (de ensino, de
produção e de preservação do filme) que surgem, o desenvolvimento do mercado
editorial exigia um novo tipo de profissional, dotado de uma pena ágil e certeira e de um
mínimo de objetividade, mas com interesses diversificados. O maior exemplo dessa
conjuntura será André Bazin. A nova configuração quase que por si mesma exige uma
transformação do campo da crítica, na medida em que demanda do comentador uma
50
versatilidade ao mesmo tempo que uma capacidade teórica, já que o cinema é cada vez
mais incluído no debate intelectual. Habituado ao debate filosófico, como normalien,
Bazin terá uma prática exemplar, quando orienta o público em jornais de grande
circulação (Le Parisien Liberé), ao mesmo tempo em que assistia aos filmes como um
espectador atento, não como especialista (Nouvel Observateur e Esprit), e fazia teoria
(em livros como Cinéma, un oeil ouvert sur le monde e Vingt ans de cinéma à Venise,
assim como em sua tribuna oficial, os Cahiers du Cinéma). Evidentemente, essas fases
não são tão nítidas e se intercambiam. Textos como Teatro e cinema e O realismo
cinematográfico e a escola italiana da libertação foram publicados em Esprit. Mas essa
divisão esquemática nos ajuda a entender o campo da crítica do cinema na França e nele
o lugar de Bazin, um crítico que em catorze anos de atividade possui uma média de um
artigo a cada dois dias! Já em 1943 ele reivindicava a transformação da crítica de
cinema, para que ela não submetesse o cinema a leis exteriores como o fizera a avant-
garde. Um grau de especialização é exigido (“imagine-t-on une critique d’opéra qui ne
critiquerait que le livret?”), para em seguida definir três tipos importantes de
intervenção. Na imprensa cotidiana o trabalho deve ser um resumo do filme e um
julgamento sucinto sobre os méritos técnicos e artísticos, enquanto que no espaço do
semanário literário a crítica deve desenvolver a verdadeira cultura cinematográfica,
deve recrutar em favor do cinema um público cultivado, por isso, o crítico deve ser
militante no sentido largo do termo. Por fim, o crítico da revista especializada deve
unir o leitor iniciante com o iniciado.
45
Esse texto, escrito na Paris ocupada, não é somente um sintoma das mudanças
que se iniciavam no campo da crítica de cinema mas também um programa que o
próprio Bazin encorporaria e, mutatis mutandis, Paulo Emílio também. Se fizermos um
45
BAZIN, André. Pour une critique cinématographique. In: ______. Le cinéma français de la Libération
à la Nouvelle Vague. Paris: Ed. Cahiers du Cinema, 1983.
51
flash-forward, veremos que em 1953 Bazin faz críticas sucintas no Le Parisien Liberé,
milita no France Observateur e reflete nos Cahiers du Cinéma e em Esprit.
Curiosamente, Bazin escreverá sobre Jean Vigo nestes três órgãos, como veremos
adiante.
Junto com Bazin, Alexandre Astruc encabeça a nova onda crítica. Eles
defendem o surgimento de uma nova vanguarda, menos elitista e mais criativa. O texto
que sintetiza esse empenho será Naissance d’une nouvelle avant-garde: la câmera
stylo.
46
Nele, Astruc afirma ter o cinema conseguido dominar seus meios de expressão e
por isso ter se libertado definitivamente do realismo fácil. O texto reflete o impacto do
cinema norte-americano, pouco visto durante a Ocupação, mas sobretudo, a caméra-
stylo é uma conseqüência de um só filme, Citizen Kane, de Orson Welles.
Como nos mostra Antoine de Baecque, as grande batalhas críticas do pós-guerra
testemunham o papel do cinema no mundo intelectual francês. A vontade de participar
da realidade através do cinema pode ser exemplificada com o caso Citizen Kane. O
filme, lançado na França em julho de 1946, foi motivo de grande discussão. Sartre já
publicara uma severa crítica no L’Ecran Français de outubro de 1945. O filósofo teria
visto o filme em Nova Iorque, o que lhe permitiu um julgamento precursor.
Influenciado pela análise do romance americano moderno e pela dificuldade em falar
inglês
47
, Sartre busca entender o esforço de Welles em criar uma narrativa densa, uma
écriture artistique para o cinema americano, termo bastante pejorativo utilizado para
caracterizar a l’art pour l’art
48
. Segundo Sartre, o problema principal de Citizen Kane é
seu pedantismo, sua tentativa de tudo revelar. O filme “um exemplo a não ser
seguido” na sua pretensão de tudo mostrar revela muito mais a presença do narrador e
46
ASTRUC, Alexandre. Naissance d’une nouvelle avant-garde: la caméra stylo. In: L’Écran Français, n.
144, mars 1948.
47
Cf. CHATEAU, Dominique. Sartre et le cinéma. Paris: Seguier, 2005.
48
Cf. SARTRE, Jean-Paul. Présentation. In: Temps Modernes, n. 1, octobre 1945.
52
o domínio da técnica pelo cineasta Orson Welles. Essa manipulação de materiais do
cinema hollywoodiano cheia de virtuosismo, embora com intenção de denúncia política,
aos olhos de Sartre é justamente o contrário do que faz John dos Passos, para quem a
beleza é uma contradição velada. John dos Passos “o maior escritor do nosso tempo”
, nos apresenta o mundo sem comentários ou explicações, como se seu tempo fosse o da
História.
49
No mesmo L’Ecran Français, Roger Leenhardt, antecipando Bazin, saúda o
filme por seu caráter inédito de panfleto social rigoroso no cinema ocidental, e também
por sua forma na qual a profundidade de campo torna o travelling e a montagem
desnecessários para a compreensão da narrativa. Em declarada polêmica com Sartre, o
cineasta e crítico enxerga em Citizen Kane a mesma violência e a mesma
experimentação expressionista que não escapa da realidade. O que importa para
Leenhardt não é o tempo narrativo mas a técnica narrativa, exatamente como fez Sartre
ao analisar os romances de Dos Passos e Faullkner.
50
Georges Sadoul, o grande historiador do cinema mundial, retoma no Lettres
Françaises os termos de Sartre com o acréscimo do rótulo de “enciclopédia de antigas
técnicas”, pois para ele o filme recorre aos clássicos do cinema sem nada criar.
51
No
esforço de fazer um balanço crítico e tendo a vantagem da distância no tempo, o crítico
André Bazin, no ano de 1947 em Les Temps Modernes, emite sua opinião sobre este
filme decisivo para sua teoria do realismo. O artigo passa em revista as diversas
abordagens. Para Bazin, Georges Sadoul tem razão ao relacionar os experimentos de
Welles com cineastas como Stroheim, Méliès ou Dziga Vertov. Mas não se trata de
49
SARTRE, Jean Paul. Sobre John dos Passos e 1919. In: ______. Situações I. São Paulo: CosacNaify,
2005. A primeira edição é de 1932. Embora Paulo Emílio tenha chegado na França somente em 1946, há
em sua biblioteca um exemplar do L’Ecran Français no qual aparece o texto de Sartre sobre o filme de
Welles.
50
LEENHARDT, Roger. Citizen Kane. In: L’écran français, n.03, jul.1946. Incluído posteriormente em
LEENHARDT, Roger. Chronique cinématographique. Paris: Cahiers du cinéma, 1986.
53
reminiscências mediocremente assimiladas, bem ao contrário. Welles, segundo Bazin,
reinventa o cinema. Pois quando a câmera de Gregg Toland nos apresenta a
profundidade de campo não significa somente uma redução do diafragma como em
Louis Lumière, mas um novo espaço dramático que preserva a ambigüidade do real. E
nesse procedimento específico está seu maior valor. Para Bazin, a novidade do filme
não reside na utilização singular de velhos procedimentos, e sim na criação de um estilo,
afinal Flaubert não inventou o tempo imperfeito, Gide tampouco o passado simples ou
Camus o passado composto, o que todos fizeram foi dar um significado pessoal a esses
tempos.
Bazin também não considera virtuosismo a arquitetura da narrativa em forma de
quebra-cabeça. Para ele Citizen Kane se aproxima dos romances de Dos Passos quando
narra em fragmentos a história de Charles Foster Kane, preservando a ambigüidade da
realidade. A vida de Kane não nos é apresentada de maneira unívoca. E o maior mérito
de Welles foi adaptar os procedimentos cinematográficos a essa vida estilhaçada. Para
Bazin, Citizen Kane vai marcar um novo período da história, pois apresenta a passagem
da técnica, que antes deveria ser adquirida, mas que agora deve ser utilizada. O cinema
chega à sua maturidade quando reconhece sua linguagem e a utiliza conforme a
narrativa.
Como se vê, Citizen Kane foi marco de um debate no qual o interessado em
questões da estética cinematográfica deveria tomar conhecimento
52
. E é desse debate
que surgirá uma concepção sistemática da essência cinematográfica. O autor dessa
51
SADOUL, Georges. Citizen Kane. In: Les Lettres Françaises. Apud: UNGARO, Jean. André Bazin:
généalogie d’une théorie. Paris: L’Harmattan, 2000. p.111.
52
Em carta de 26 de julho de 1946 para sua mãe, Paulo Emílio afirma: “Fui ver o Cidadão Kane com o
Paul [Oury], a mulher, Jeanne [Oury] e Huguette [futuramente Oury] (namorada de Jean), eles saíram
tontos e eu, encantado. A boa crítica francesa está fazendo uma acolhida entusiástica a Orson Welles.” Cf.
Arquivo Paulo Emílio Sales Gomes/Cinemateca Brasileira, PE/CA. 0195.
54
teoria é André Bazin e sua influência será decisiva para todo o pensamento
cinematográfico da segunda metade do século XX.
E para quem Citizen Kane já chamara a atenção por sua manipulação singular do
fluxo de imagens e pela criação de uma nova continuidade na profundidade de campo,
esse debate não poderia deixar de chamar atenção. Paulo Emílio na revista Clima
manifestara sua argúcia crítica ao perceber no filme um manuseio de imagens inédito no
cinema americano e também o esboço da transformação da relação som-imagem num
conflito assincrônico. Essa análise técnica do filme, de função didática precisa na São
Paulo da primeira metade dos anos 40
53
, vai se transformar radicalmente no contato com
a crítica francesa do pós-guerra.
Neste momento, o comentário sobre o texto de Paulo Emílio (Citizen Kane) pode
nos ajudar a entender seu interesse no debate francês. Como já observamos, o ensaio
publicado na revista Clima versa sobre as possibilidades que o filme traz ao cinema. Na
busca de revelar os elementos essencialmente cinematográficos busca que marca
todos sues textos em Clima, a exposição de Paulo Emílio quer decifrar cada novidade.
Como o filme se impõe como renovador, ele “não comporta uma análise como a de
outra obra contemporânea qualquer.”
54
E, por isso, a crítica “(...) não pode deixar de ter,
por vezes, um aspecto de aventura narrada.” (Grifo meu) Com a disposição já apontada
no texto sobre Piolim, o crítico vai se aproximar do filme por meio de diversas idas ao
53
Sobre o estágio do debate em torno do cinema em São Paulo dos anos 40, veja-se o episódio, citado por
Ruy Coelho, entre Paulo Emílio e Mario de Andrade que, em diversas ocasiões, na revista Klaxon
demonstrou interesse pela sétima arte.
“Uma tarde na Confeitaria Vienense, Mario de Andrade chega-se à mesa em que estávamos os dois [Ruy
Coelho e Paulo Emílio] e diz: ‘Paulo, não entendo bem o que você chama de ritmo. Veja, você está
falando de uma tomada. Mas ritmo não é só uma seqüência de imagens?’ Não retive a resposta, mas
quando Mario finalmente se foi, Paulo Emílio voltou para mim o rosto cheio de espanto: ‘Ele estava
falando como um menino frente ao mestre!’” COELHO, Ruy. Ouvir Paulo Emílio. In: CALIL, Carlos
Augusto e MACHADO, Maria Teresa. Op. cit., p. 113. Para uma interpretação da crítica de cinema de
Mario de Andrade Cf. XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978.
Principalmente o capítulo Modernismo e cinema.
54
GOMES, Paulo Emílio Salles. Citizen Kane. In: CALIL, Carlos Augusto e MACHADO, Maria Teresa.
Op. cit., p. 150. A partir de agora, as citações se referem a esse texto.
55
cinema. E a cada sessão novos elementos surgirão, e ultrapassando o virtuosismo,
chega-se ao filme. Uma nota de rodapé explica a análise que se seguirá. Dividida em
duas partes, a crítica se detém no roteiro para em seguida verificar as soluções da
montagem. Frases, que se dilatam conforme o tema, apresentam um enredo, expõem o
dédalo. News on the march, Susan Alexander, Thatcher, Bernstein, Leland, Gettys,
Susan Alexander, o garçom e, enfim, Rosebud. Os personagens, como peças de um
grande puzzle, são evocados para dar conteúdo à superfície do cinejornal. A descrição
do enredo ganha seu sentido quando passamos para a segunda parte do ensaio, em que o
crítico define o estilo de Welles na capacidade de orquestrar imagens e sons. É na
apresentação das conquistas do filme que a argúcia do crítico se revela. Ao provar o
jogo estilístico entre fotografia, montagem visual e sonora em Citizen Kane, o ensaio
supera a mera descrição de procedimentos ao valorizar suas funções internas no drama,
sem a gratuidade técnica da produção média. É assim que veremos salientada a
importância da profundidade de campo, da sutileza da ligação entre uma cena e outra
pelo som e pela imagem. Portanto, a opção radical pelo específico fílmico é aqui
contrabalançada pelo enfrentamento direto do filme. Dito isso, podemos agora ampliar o
panorama das idéias cinematográficas que atraíram Paulo Emílio, para em seguida nos
determos definitivamente em Jean Vigo. Como já observamos, o crítico não entende
cultura cinematográfica isolada da cultura tout court, de modo que seu interesse é
diverso, passando por cinema, teatro, literatura, política e estética. Na incapacidade de
pintar um quadro mais amplo, apresento apenas dois autores caros ao nosso crítico e
tento apontar possíveis influências. Assim, após rápida explanação das idéias de
Malraux e Bazin no período aqui enfocado (1946 até 1952), tentarei uma abordagem
mais livre do Jean Vigo de Paulo Emílio.
56
Com as malas cheias de mantimentos para uma longa estada num país que
acabara de sair de uma guerra e uma enorme disposição para ampliar sua formação
intelectual, Paulo Emílio, mais maduro do que em 1937, sabe os endereços certos.
Conhece o cinema e tem definida sua posição política, e a relação com Andrea Caffi e
Victor Serge vai ainda reforçar sua autonomia. De início, inundado de felicidade, Paulo
Emílio passa seu tempo flanando e buquinando pela cidade. Freqüenta muitos cafés,
onde passa horas lendo e escrevendo, entre um café e outro. O café era péssimo, mas
alguns torrões de açúcar, que ele sempre carregava no bolso, ajudavam.
Gradativamente, mergulhou na renovação cultural parisiense. Assíduo ao teatro,
descobriu Strindberg, assim como a dança em diversos espetáculos e, claro, uma
infinidade de filmes.
No âmbito do cinema, os filmes em evidência são Une partie de campagne, de
Jean Renoir, Zéro de conduite, de Vigo, e L’Espoir, de André Malraux. Como a
produção francesa não tinha se reestruturado totalmente, esse primeiro esforço é
marcado pela reavaliação de um filme inacabado mas precioso, de um incompreendido
pela crítica e censurado por questões obscuras e de outro, também censurado por
evidentes problemas políticos. A descoberta de Une partie de campagne em 1946
revelou para Paulo Emílio um novo Renoir, mais multifacetado do que o socializante
pintado pela crítica anterior à guerra.
55
Zéro de conduite é a descoberta de Vigo e o
início da pesquisa, enquanto que L’Espoir é a apresentação dos problemas estéticos de
Malraux, mas sobretudo, o contato com um debate cujo fio condutor se inicia no escritor
francês, passa por Elie Faure e desemboca em Bazin.
55
Sobre a recepção da obra de Renoir no pós-guerra, Cf. a série de artigos Renoir e a Frente Popular
(texto em que, ao comentar os percalços da Frente Popular, a clareza política do crítico se alia à análise
dos filmes), Outra face de Jean Renoir (redefinição da obra do cineasta a partir da experiência reveladora
e poética de Une partie de campagne), Espiritualidade e prazer (a diversidade temática e estética do
último Renoir) e, por fim, O filho de Auguste Renoir (conexões biográficas e estéticas esboçam um perfil
57
É preciso lembrar que o célebre texto de Malraux, Esquisse d’une psycologie du
cinéma, teve sua segunda publicação em 1946, numa edição luxuosa da Gallimard. Este
texto fundamental da estética cinematográfica francesa foi publicado em 1939, nos dois
primeiros números da revista Verve, mas somente chegou às mãos de Paulo Emílio na
segunda edição. O texto está diretamente ligado à experiência de Malraux durante a
Guerra Civil Espanhola, experiência que gerou L’Espoir, livro e filme.
Figura-chave para entender a evolução do pensamento cinematográfico francês,
André Malraux é fonte de inspiração para uma geração.
56
Em 1936, Malraux passava
férias na Espanha na casa de um amigo. Dois meses depois, estourava a Guerra Civil.
Ele então participa da convulsão social pelo lado esquerdo, como organizador da
esquadrilha España. A esquadrilha, que tinha Nicola Chiaromonte como um de seus
membros, realiza missões importantes em Tage, Toledo e principalmente em Teruel. No
começo de 1937, Malraux deixa seu posto e se transforma em propagandista da jovem
República, partindo para os Estados Unidos a fim de recolher fundos para os hospitais
espanhóis. De volta à Europa, escreve de uma só tacada L’Espoir. Em 1938, decide
realizar um filme homônimo, mesmo com as precárias condições de produção. Exibido
em 1939, o filme, por sua montagem extremamente elíptica devida às difíceis condições
de produção, é incompreendido e censurado, sendo reavaliado somente no pós-guerra.
Da experiência das filmagens surgem as notas que serão a base de sua psicologia do
cinema. As relações entre cinema e romance, evidentes no texto, e o esforço em ver o
cinema como depoimento “sem filtro” da realidade já estão na película que Bazin
qualificou de “filme genial de um amador”.
da crescente obsessão pictórica do cineasta). In: GOMES, Paulo Emílio Sales. Suplemento Literário, vol.
1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
56
Sobre a importância dos romances de Malraux para a consecução de L’Être et le Néant Cf.
MENDONÇA, Cristina Diniz. O mito da Resistência Experiência histórica e forma filosófica em Sartre
(uma interpretação de L’Être et le Néant). Tese de doutoramento apresentado ao Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2001.
58
Em Esquisse d’une Psycologie du Cinéma o desenvolvimento pictórico
promovido pelo Ocidente se deve aos meios de produção criados e à capacidade
dramática do Cristianismo. O ponto capital do texto se situa na sua concepção de
ruptura. Diferente de Bazin, que vê a história da arte como uma evolução em direção à
representação do real, Malraux concebe a evolução dos meios de representação como
possibilidade de devolver a arte ao seu papel social. Com a ruptura do Barroco, há uma
guinada interior da pintura. Deixando de lado a representação do movimento, a pintura
se torna um “assunto de artistas” e a massa não mais contempla as obras. Essa guinada
interior promovida pelo Barroco levará a pintura para a busca da expressão do mundo
abstrato. E o cinema, sempre segundo Malraux, será o responsável pelo retorno à
figuração, e, para isso, o mundo moderno colabora com a criação de novos meios de
representação. A profissão de fé do escritor o distancia das conclusões de Walter
Benjamin em seu ensaio sobre A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica, de quem Malraux se serve de conceitos como meios de representação, e se
aproximará da noção de ontologia da imagem de Bazin, com quem recusa a vanguarda,
já que ao cinema cabe a representação.
57
Diante dessa crença no poder do cinema, como entender a frase amarga (Par
ailleur, le cinéma est une industrie) que encerra o texto? Malraux vê no cinema uma
espécie de fatalidade que é preciso aceitar como evidência histórica, e a história, para
57
Sobre as filmagens de L’Espoir Cf. MARION, Denis. Le cinéma selon André Malraux. Paris: Ed.
Cahiers du Cinéma, 1996. Para uma análise do filme, Cf. BAZIN, André. L’Espoir, du style au cinéma.
In: ______. Le cinéma français de la Libération à la Nouvelle Vague. Paris: Ed. Cahiers du Cinema,
1998. Sobre a importância de Malraux para Bazin, Cf. UNGARO, Jean. André Bazin: Généalogie d’une
théorie. Paris: L’Harmattan, 2000. Para uma análise de toda a obra teórica de Malraux, Cf. SAINT-
CHERON, François de. L’esthétique de Malraux. Paris: Sedes, 1996. Sobre as relações entre literatura em
Malraux, Cf. CLERC, Jeanne-Marie. Écrivains et cinema. Metz: PUM, 1985. Por fim, para um balanço
biográfico e analítico, Cf. GOMES, Paulo Emílio Sales. As idéias de Malraux e Ação de Malraux, ambos
no Suplemento Literário, vol. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. Esses textos, junto com Sentido da
cineplástica, O homem Eisenstein, O pensamento de Eisenstein, A formação de Eisenstein, Eisenstein e a
massa, Eisenstein e a mística, Eisenstein e o herói e Sombra e reflexo formam um conjunto que
desenvolve uma noção de cinema enquanto narrativa e fragmentação, fluência e suspensão, idéias caras à
análise da obra de Vigo.
59
ele, tem um sentido trágico. Contrariamente, Bazin percebe o cinema como arte que
responde de maneira adequada às exigências de sua época. Para Bazin, o cinema não é
um avatar desastroso da arte, mas um meio no qual podemos reencontrar uma relação
verdadeira com o mundo. Por isso, le cinéma, c’est une langage.
Toda a reflexão de Malraux carece de exemplos, e o próprio filme do
romancista, cineasta improvisado, aponta os limites de sua intricada e contraditória
definição de cinema. Para Paulo Emílio o mérito da teorização do romancista está na
bela síntese da arte ocidental, na maneira como ele inclui a representação na pintura no
mesmo nível que a perspectiva, o relevo e a profundidade. Porém, esses avanços na
análise da história da pintura não auxiliam na compreensão do cinema, pois para
Malraux o cinema é o herdeiro do elemento mais desimportante da pintura. E assim, se
coloca no campo contrário de Elie Faure, que com sua noção de cineplástica vê no
cinema o desenvolvimento de questões pictóricas. Entretanto, Faure também não
apresenta exemplos significativos que reforcem sua teoria. Para ele a luz de A marca do
Zorro, de Douglas Fairbanks, se compara às de Velásquez, Goya e Monet.
O crítico André Bazin, com sua forma ensaística e sua concepção realista do
cinema influenciou bastante Paulo Emílio. A importância do crítico francês é
confirmada em textos testemunhos (Descoberta de Bazin, O crítico André Bazin e O
gosto pela inteligência), mas é sobretudo nas análises de cineastas caros a Bazin (Orson
Welles, Jean Renoir, Vittorio de Sica) que vemos essa ascendência. Mas ela é menos
conceitual e mais prática. É na disposição do ensaísta que Paulo Emílio encontra a
maior afinidade. “Ele sempre entendeu o termo método no sentido etimológico de
procura (...).
58
O que significa dizer que o que fascinava Paulo Emílio era a disposição
Para uma análise histórico-biográfica de Malraux, Cf. GOMES, Paulo Emílio Sales. Malraux. In: CALIL,
Carlos Augusto e MACHADO, Maria Teresa. Op. cit.
58
GOMES, Paulo Emílio Sales. O crítico André Bazin. Suplemento Literário, vol.2. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982.p.37.
60
de Bazin em se ater ao filme, sem recorrer a dados anteriores, mesmo sendo o seu
interesse teórico. Esta vocação está ligada à busca de reformulação da crítica, que
durante toda a década de trinta é exclusivamente impressionista, mesmo se as intenções
de um Lucien Rebatet e Roger Leenhardt lhe são especialmente caras. A procura por um
gênero novo de crítica através do ensaio é também sinal da influência de Sartre.
59
“Há
uma crise do ensaio. (...) O romance contemporâneo, com os autores americanos, com
Kafka, entre nós Camus, encontrou seu estilo. Falta encontrar o do ensaio. E diria
também o da crítica, pois não ignoro, ao escrever estas linhas, que utilizo um
instrumento obsoleto, que a tradição universitária conservou até nossa época.”
60
Este
desafio lançado pelo maître à penser, e desenvolvido por Bazin em toda sua obra, vai
ser o desafio de toda a geração que passou pelo cisma cultural francês contemporâneo, a
Ocupação. Esta aposta no ensaio significa para Bazin a busca da linguagem do cinema a
partir dos filmes. É neste corpo-a-corpo com eles, nesta disposição vers le concret
61
, que
reside o fascínio de Bazin.
Pela riqueza e profundidade dos ensaios de Bazin, Paulo Emílio chega a
compará-lo do ponto de vista teórico com Eisenstein, e até colocá-lo à frente do
cineasta-teórico, pois na obra do crítico a elaboração da escrita prepondera à formulação
conceitual. Esse paralelo com Eisenstein nos revela o lugar de Bazin no panteão de
Paulo Emílio. Ao compará-lo com “o grande gênio do cinema”, o crítico confirma que
59
Sobre a importância do filósofo para o debate intelectual cf. ANDREW, Dudley. André Bazin. Paris:
Ed. Cahiers du Cinéma/Cinémathèque Française, 1983. Para uma análise mais pontual sobre o lugar de
Sartre (e também de Malraux) no constructo da teoria baziniana Cf. UNGARO, Jean. Op. cit. Para uma
intricada análise da obra de Sartre, que investiga a relação entre filosofia, história e ensaio Cf.
MENDONÇA, Cristina Diniz. Op. cit.
60
SARTRE, Jean-Paul. Situações I. São Paulo: Cosac/Naify, 2005.
61
Sobre a importância do livro de WAHL, Jean. Vers le concret. para a ruptura com a geração anterior cf.
SARTRE, Jean-Paul. Questão de método. (trad. Bento Prado Junior). São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1966. p.21.
61
sua atração é sobretudo uma questão de estilo.
62
Para Bazin, a partir da noção de
mimese da ontologia da imagem fotográfica (1945), a profundidade de campo e o plano
seqüência confirmam a vocação realista do cinema, que o uso excessivo da manipulação
da montagem e sua capacidade de sugestão negariam ao fundir elementos distintos, não
vinculados na duração.
63
É preciso lembrar que a influência de Bazin se desdobra por toda a década de 50,
como se nota na leitura dos textos do Suplemento Literário. No momento aqui
enfocado, Bazin ainda não formulou, embora a tenha esboçado em textos esparsos, a
idéia de “cinema impuro”, nem publicou o ensaio fundamental A evolução da
linguagem cinematográfica, no qual sua noção de realismo está desenvolvida por
completo. Entretanto, o que saliento é a postura sempre crítica de Paulo Emílio, sua
liberdade diante de seus pares, um diálogo constante. Verifiquemos então como ele se
dá em Jean Vigo.
Mantendo-se a distância conveniente, assim como Humberto Mauro,
Cataguases, Cinearte, o livro é a síntese de anos de análise, momento de colocar à
prova procedimentos e interpretações desenvolvidos durante longo tempo, desde a
revista Clima, tentativas dispersas que nos aproximam de um estilo. É também o
resultado do descobrimento da linguagem cinematográfica do cinema mudo, do
confronto direto com as grandes obras do cinema americano moderno e também o
coroamento do estilo de Paulo Emílio. O labor contínuo do estudioso que examina
cuidadosamente suas fontes recebe agora um fino verniz que escamoteia o longo
percurso da investigação, dando coesão a elementos dispersos de maneira singular para
62
Em texto pouco conhecido, Bazin toma como exemplo a capacidade crítica de Albert Thibaudet em
fundir erudição e estilo. Cf. BAZIN, André. Misère, servitude et grandeur de la critique de films. Revue
internationale du Cinéma, n.2, 1949.
63
Para uma análise dessa noção da imagem enquanto espelho do real Cf. DUBOIS, Philippe. O ato
fotográfico. Campinas: Papirus, 1993.
62
a crítica de cinema.
64
Como se a descoberta dos elementos cinematográficos utilizados
na obra agora se incluíssem definitivamente na análise, ganhando uma função estilística.
Jean Vigo é a síntese de pouco mais de uma década de pesquisa e descoberta, de
tentativas de aproximação da linguagem cinematográfica. Os textos Nought for
behaviour, escrito com a colaboração de Henri Storck, L’oeuvre de Vigo et la critique
historique e Jean Vigo revelam momentos da pesquisa, as diversas formas de
aproximação do objeto, mas principalmente a resistência da obra de Vigo a um método
a priori.
65
Abordando agora de maneira geral o livro, o que salta aos olhos é a capacidade
do autor em nos devolver um poeta, suas fontes de inspiração, uma certa estrutura de
sentimentos que se congela nos filmes, e principalmente em nos mostrar a mestria com
que Vigo articula sua obra ao desenvolver gradativamente, de filme a filme, um estilo
poético por meio de imagens. Sem a ilusão do gênio-criador, o estudo pretende uma
análise que supere as perspectivas formalistas ou sociologizantes que na passagem dos
anos 40 para os 50 dividiam o campo cinematográfico. Daí sua singularidade ao mesclar
análise psicológica, política e estética, na procura de uma síntese que nos faz lembrar a
idéia de círculo hermenêutico. Como se a interpretação da obra de Jean Vigo surgisse
através da compreensão do legado de Almereyda, o pai do cineasta. O que surpreende
nessa tentativa não é simplesmente a revelação de um cineasta pouco conhecido ou a
64
Embora a década de 50 seja rica em biografias cinematográficas, poucas são as que escapam à mera
descrição de personalidade. O Orson Welles de André Bazin e Jean Cocteau é uma exceção e, por sua
análise biográfica em paralelo com a análise imanente dos filmes, será uma referência para Paulo Emílio.
Cf. BAZIN, André e COCTEAU, Jean. Orson Welles. Paris: Chavanne, 1950.
65
Cf. STORCK, Henri e GOMES, Paulo Emílio Sales. Nought for behaviour. In: MANVELL, Roger
(org.). The cinema l951. Londres: Pellican, l951; GOMES, Paulo Emílio Sales. L’oeuvre de Vigo et la
critique historique. In: Positif, n.7, mai.l953, (Este texto foi traduzido por Margarida e Eduardo
Katchburian e revisto pelo próprio Paulo Emílio, sendo publicado na Revista de Cinema, n.10, vol.II, jan-
1955) GOMES, Paulo Emílio Sales. Jean Vigo. In: Bianco e Nero, n.8-9, ago-set.1953. Embora
publicados somente em l953, os dois últimos textos foram escritos em 1952, logo após o término do livro,
redigido em 1949-1952.
63
reconstrução de um período conturbado da III República, mas também a criatividade na
elaboração dos procedimentos analíticos.
O rastreamento de fontes pouco requisitadas até então na análise cinematográfica
diários, correspondência, depoimentos para a composição de um portrait, com o
auxílio de uma perspectiva em profundidade de campo que enxerga a influência de um
pai anarquista sobre um filho desamparado, vai colocar na berlinda as conexões entre
mundo social e prática artística, entrando assim de maneira sutil no debate que orienta a
crítica de cinema do pós-guerra.
A relação de Almereyda com Vigo não deve ser simplesmente classificada como
“psicologismo”, como o faz o biógrafo de Paulo Emílio, José Inácio de Melo Souza. A
liberdade com que o estilista nos apresenta Almereyda pode ser caracterizada como
certo exagero, como aponta André Bazin
66
, talvez um fascínio pelo personagem, mas
para a interpretação de Vigo a revelação de Almereyda é indispensável, pois se tratava
também de retirar o anarquista do olvido em que se encontrava à época da Liberação. A
fonte principal do “insurrecionalismo” de Vigo é Almereyda e de todo o culto que este
lhe inspira, sobretudo se pensarmos em A propos de Nice e Zéro de conduite. Porém,
para que a conexão seja possível, para nos familiarizarmos com o pai de Vigo e o seu
culto, nos é apresentada uma atmosfera de penúria material que contrasta com o
engajamento político total, tudo isso filtrado pela pena do crítico.
67
Para melhor
compreender o espírito revolucionário que a figura paterna transmite a Vigo, foi preciso
um mergulho na lata de lixo da história para retirar o editor do jornal Bonnet Rouge,
66
BAZIN, André. Présence de Jean Vigo. In: France-Observateur, 22.08.1957. Publicado posteriormente
em ______. Le cinéma fraçais de la Libération à la Nouvelle Vague. Paris: Cahiers du Cinéma, 1998.
67
Sobre o grau de inconformismo de Vigo, há uma curiosa coincidência com a geração de escritores de
1914, chamada por Thibaudet de geração da “descompressão”. Sartre tecerá um longo comentário sobre a
predisposição subversiva dessa geração, com destaque para Alain Fournier, o autor do Le grand Meaulnes
que tanto influenciou Jean Vigo. Cf. SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la littérature? [1948] Paris:
Gallimard, 2002.
64
tido pela direita como um traidor da pátria e pela esquerda como um filisteu. É esse
Almereyda, “plus Rastignac que jamais”, que a narrativa de Paulo Emílio recupera.
68
A escolha de Jean Vigo também vai na contracorrente. Embora o cineasta fosse
saudado pelos jovens cinéfilos que freqüentavam os cineclubes, paira ainda um certo
lamento sobretudo da crítica pela perda de um cineasta que não se realizou
completamente. E diante de uma parcela da crítica, que enxergava no cinema moderno a
superação do fascínio que norteara os experimentos vanguardistas reiterado a cada
obra pela descoberta da linguagem cinematográfica, e de outra parte da crítica que
preconizava um cinema nacional de forte tonalidade social, a figura de Vigo, sua atitude
poética marcando a intervenção do narrador a todo instante, explicitando o manejo dos
materiais, o truque, a metáfora, tudo isso em detrimento da representação, será de forte
impacto. A maneira como o cineasta recorre à câmera lenta ou à aceleração é um bom
exemplo pois, ao contrário do truque gratuito ou de um verbete da “enciclopédia das
antigas técnicas”, o que temos plasmado nesses procedimentos é um traço estilístico de
grande rendimento ao dilatar o sentido atribuído a esses mecanismos no filme cômico
americano. Outro elemento contrabandeado do cinema americano, o bestiário, tido pelo
melodrama principalmente como elemento anunciador das disposições morais das
personagens, em L’Atalante os gatos serão a própria encarnação do impulso erótico.
Experimento só comparável ao cavalo de The wind, de Victor Sjöstrom.
A poesia, que de maneira primitiva se apresenta em A propos de Nice, e de
forma clássica habita Zéro de conduite, transborda no romantismo de L’Atalante.
Apresentando o desenvolvimento de Vigo, sua criatividade em trabalhar com a
precariedade de recursos técnicos, Paulo Emílio nos mostra o cineasta em sua plenitude,
impondo com finura de mestre um método interpretativo a Michel Simon para que ele
68
Cf. SERGE, Victor. Mémoires d’un révolucionnaire. Paris: Seuil, 1957.
65
pudesse compreender a riqueza da personagem Pai Jules. Michel Simon, o grande ator
de La chienne, repete o fim das frases de seus interlocutores, com a funcionalidade do
som ser reproduzido de forma mais nítida, mas também com a vantagem de ampliação
do contorno dramático da personagem que, ao “mastigar” os restos das falas,
transfigura-as, dando-lhes um sentido próprio. Mas é na percepção do corpo que Vigo
encontra uma fonte rica de erotismo, na qual a Nouvelle Vague beberá ad nauseum. Os
corpos de Jean, o marinheiro, de Juliette, sua esposa, e do velho lobo do mar, o Pai
Jules, pela própria exigüidade espacial do interior da barcaça (exigüidade preservada em
estúdio), serão explorados de maneira a ressaltar o contato direto da objetiva, dando à
pele significações novas no cinema. Também vemos Vigo utilizar com perfeição o
recurso da sobreimpressão. Testada de forma gratuita no curta-metragem Taris ou la
natation, no longa-metragem L’Atalante, ela vai produzir um dos maiores morceau de
bravoure do cineasta, com o auxílio indispensável da melodia de Maurice Jaubert, o
primeiro músico de cinema.
Assim, com a narração da formação de uma sensibilidade, com a análise interna
dos filmes em que vemos a imaginação de Vigo em operação, criando um universo
poético ao forjar de maneira nova a linguagem cinematográfica do cinema mudo e
sugerir as possibilidades do recente cinema falado, com tudo isso, caem por terra os
mitos em torno do cineasta morto aos 29 anos. O processo de revelação de Jean Vigo é
bem explícito. Trata-se de eliminar as conexões fáceis com o surrealismo e com a
avant-garde, para finalmente apresentar um mestre que, por sua ácida crítica social e
seu lirismo criador, no panteão do cinema francês deve ocupar o posto entre Jean Renoir
e René Clair.
Mas antes de concluir essa primeira aproximação, ainda nos resta uma
observação sobre o apêndice do livro que trata da fortuna crítica de Jean Vigo. A
66
abordagem, além de revelar a disposição infatigável do pesquisador, é de grande
rendimento para reforçar e auxiliar a interpretação dos filmes. Sem ser exagerada, como
pensa Bazin
69
, a análise dos críticos de Vigo nos permite compreender o processo sócio-
estético e, assim, o que há de fundamentalmente novo na obra do cineasta. A
incapacidade dos críticos em perceber adequadamente as novas estruturas artísticas faz
com que seus depoimentos se tornem significativos, tanto pelo que ressaltam como pelo
que deixam de lado.
Como podemos notar a partir deste resumo das qualidades do livro, fica patente
que a elaboração da pesquisa supera de longe a hipótese de que a “(...) posição
subalterna como estrangeiro e intelectual, vindo de um país periférico ao grande centro
cultural e cosmopolita dos anos 50, obrigou-o ao desenvolvimento de um trabalho
delicado e penetrante (...)”.
70
Longe de ver o livro Jean Vigo como um esforço de
inclusão no campo intelectual francês, tendo a compreen-lo como um avançado
trabalho de crítica que, além de proporcionar ao seu autor uma cultura cinematográfica
indispensável para a compreensão do cinema moderno dos anos 60, também lhe
possibilitou a formulação de procedimentos de análise de olho no debate
cinematográfico francês que buscam na obra suas principais ferramentas de
interpretação como a raiz que extrai do solo os nutrientes necessários para sua
sobrevivência. Diferentemente do que sugere Bazin
71
, a interpretação de Paulo Emílio
possui uma forma precisa. Um dispositivo que, tateando a obra, passo a passo nos
apresenta a constituição de um estilo e como este é a transformação de uma experiência
em forma.
Em Jean Vigo, o que temos é a junção de uma experiência crítica cujo domínio
do objeto apresenta ao leitor elementos que suprem uma existência. Diante do Vigo de
69
BAZIN, André. Présence de Jean Vigo. Op. cit.
70
SOUZA, José Inácio de Melo. Paulo Emílio no Paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2002. P. 334.
67
Paulo Emílio nos deparamos com uma sensibilidade, uma inteligência, uma ação que se
expressa pelo cinema. Não interessa aqui a influência da obra, sua função social ou a
evolução de um gênero. É a vida de um jovem órfão de pai e renegado pela mãe e por
colegas na infância. Essa vida, inspirada pelo anarquismo do pai, encontra meios de se
rebelar contra a opressão e, com a mesma poesia, supera a estagnação da vida cotidiana.
Antes que entremos na análise direta do livro para verificarmos como se dá a
autonomia crítica de Paulo Emílio, continuemos a traçar as linhas do quadro no qual se
encaixa o livro.
71
BAZIN, André. Cinéma. In: Esprit, n. 266, octobre 1958.
68
Capítulo III
A segunda viagem de Paulo Emílio à França foi programática, no sentido de
concluir uma formação intelectual, política e culturalmente. A partir da segunda metade
de 1946 a formação cinematográfica ganhou sistematicidade com os cursos no IDHEC e
as cotidianas sessões na Cinémathèque Française, enquanto que a relação com Andrea
Caffi e seu círculo de amigos se intensificou. O empenho nessas diferentes frentes lhe
valeu a estima de Henri Langlois, o que não era pouca coisa, e solidificou ainda mais
sua posição de socialista autônomo. Mesmo o contacto intenso com o universo cultural
francês, a realidade política e também cinematográfica brasileiras interessavam cada vez
mais o crítico. Ao mesmo tempo em que desenvolvia sua pesquisa sobre os Vigos,
69
Paulo Emílio se familiarizava com os problemas relativos à FIAF (Federação
Internacional de Arquivos de Filmes) na medida em que tentava aproximar o renascido
Clube de Cinema de São Paulo da instituição francesa. Como representante do Clube,
Paulo Emílio foi responsável por aproximações com entidades similares européias e
mediador na compra de filmes. Com o término da pesquisa sobre Miguel Almereyda e
Jean Vigo e uma notória reputação no universo da crítica e das cinematecas européias,
graças às participações em festivais, aos textos esparsos sobre o cineasta, à colaboração
na reconstituição de L’Atalante e aos pronunciamentos nos congressos da FIAF, em
1954 Paulo Emílio parte para o Brasil para contribuir na realização do I Festival
Internacional de Cinema de São Paulo, mas antes deixa André Bazin e Pierre Gourjon
empenhados na publicação dos manuscritos de Jean Vigo.
72
Jean Vigo e Eisenstein
73
, os dois primeiros livros da coleção Cinémathèque da
editora Seuil, foram anteriormente previstos para sair na coleção Ombres Blanches da
editora Arcanes, mas por problemas financeiros, o proprietário, Eric Losfeld, acabou
informando Paulo Emílio e Marie Seton sobre a impossibilidade da empreitada e
apontou a Seuil como possível editora, já que ela preparava uma nova coleção, e
certamente esses livros seriam de grande interesse ao editor, que no caso era Chris
Marker.
74
Este último já se destacara por realizar dois curtas-metragens experimentais,
mas sua fama no meio editorial se devia à sua participação em Culture et Peuple, uma
associação cultural que apoiava e incentivava a edição de livros da literatura popular.
Além disso, Marker dirigiu a famosa coleção Petite Planète, que teve enorme impacto e
deu nova perspectiva ao panorama editorial francês ao plasmar imagem e texto de
72
Informações colhidas no indispensável livro de José Inácio Melo e Souza, Paulo Emílio no paraíso.
Rio de Janeiro: Record, 2002.
73
O Eisenstein de Marie Seton é o principal responsável pela ocidentalização da doxa em que o cineasta
aparece como um arrivista genial e apolítico que tudo faz em prol de sua arte. Cf. AUMONT, Jacques.
Montage Eisenstein. Paris: Images Modernes, 2005.
74
LOSFELD, Eric. Endetté comme une mule. Paris: Ed. Belford, 1979.
70
maneira autônoma, sem que uma se constituísse enquanto moldura do outro. A
concepção arrojada de Jean Vigo e Eisenstein, onde as fotografias abrem o volume nos
ajudando a entender a conexão entre as vidas e os filmes que serão apresentados, foi
obra de Marker.
75
Como nos mostra a correspondência, Chris Marker foi um editor criterioso e
exigente. Sua atenção ao livro de Paulo Emílio foi total e embora na biografia do crítico
José Inácio Melo e Souza recuse, e, em Vigo, vulgo Almereyda, Carlos Augusto Calil
sugira, é bem provável que tenha mesmo partido do próprio editor a idéia de sintetizar o
capítulo relativo a Almereyda. Em carta de 13 de janeiro de 1955, em que confirma o
interesse em publicar o livro, Chris Marker chama a atenção de Paulo Emílio para o
número limitado de páginas que a edição comporta e sugere uma síntese do apêndice La
carrière de l’oeuvre. Como os originais manuscritos depositados na Cinemateca
Brasileira não confirmam uma tal condensação, somos levados a crer que ela se deu no
capítulo primeiro dedicado a Almereyda. O fato é que reduzido o capítulo pelo próprio
Paulo Emílio, como os manuscritos o confirmam, para a análise tal condensação
apresenta vestígios de procedimentos críticos que marcam a disposição da obra. Para
enfim entrarmos na análise do livro, passemos então a um rápido cotejo entre o capítulo
75
O rigor do editor, que buscava estruturar sua coleção incluindo notas de rodapé tanto em Jean Vigo
como no Eisenstein, jamais será alcançado nas traduções do livro de Paulo Emílio. A série de fotografias
que abre o livro desaparecerá e o índice onomástico irá se reduzir ou desaparecer. A primeira tradução foi
feita em língua inglesa em 1972 pela Secker and Warburg, com muitas fotografias internas e o índice
onomástico e a inclusão de uma filmografia tornam a edição excelente. Em 1979, Daniela Garavini
realizou a tradução para o italiano pela Giangiacomo Feltrinelli Editore, porém esta edição, além de
acrescentar o surpreendente subtítulo Vita e Opere Del Grande Regista Anarchico, não traz o apêndice
La carrière de l’oeuvre nem o índice onomástico, somente uma série de fotografias, reproduções de
fotogramas. A tradução brasileira, realizada em 1984 por Elisabeth Almeida e revista por Carlos Roberto
de Souza e Lúcia Nagib, saiu pela editora Paz e Terra e também não possui o índice onomástico e,
embora traga uma filmografia, é de todas a que mais possui problemas técnicos de tradução. Em 1998,
uma edição norte-americana, da Faber and Faber, incluiu o interessante posfácio de Paul Ryan, Jean
Vigo: The ghost in the vanguard. Por último, em 1999 saiu em espanhol (Barcelona) a tradução de Juan
Abeleira pela Circe. Embora a tradução seja rigorosa, ela traz notas de rodapé que apresentam a
intervenção dispensável do tradutor.
71
publicado em Jean Vigo e em Vigo, vulgo Almereyda
76
, para verificarmos como se dá
essa condensação.
A escrita telegráfica já notada por Calil no primeiro capítulo de Jean Vigo é
a redução de uma longa história que relaciona de maneira profunda a guinada
conservadora da III República com a débâcle dos movimentos revolucionários e, no
olho do furacão, a espetacular trajetória de Miguel Almereyda. Mas a síntese não visa
apenas condensar um período, pois, como se trata de um estilista, os dados aparecem
não somente por sua coerência histórica mas em relação direta com o próprio Jean Vigo.
O registro se dá então em três níveis pois, na medida em que a História é evocada, seus
dados se organizam para compor um perfil, e neste esforço de recuperação de
Almereyda está a afirmação das virtudes revolucionárias que serão definidoras para a
visão de mundo de Jean Vigo. Prova disso é o relato da prisão do jovem Eugène
Bonaventure de Vigo, que logo que se transformará no revolucionário Miguel
Almereyda.
“Uns dois meses mais tarde, o rapaz, que encontrara outro emprego, estava
vivendo sem grandes preocupações, trabalhando o dia inteiro e preenchendo o tempo
livre com a leitura de folhetos libertários e visitas às reuniões e aos bares onde, todas
as noites, os companheiros se encontravam para intermináveis discussões doutrinárias.
Um dia, no final de maio de 1900, vieram prendê-lo. A promotoria o havia indiciado
por receptação e cumplicidade em furto.
Essa perseguição se explica pela ficha nos arquivos do policial Fouquet, que
também esclarece o rigor da condenação. Depois de ficar alguns minutos diante de um
tribunal para menores, sozinho, sem queixosos, sem testemunhas de defesa ou
acusação, com um procurador recrutado nos corredores do Palácio da Justiça, que mal
76
GOMES, Paulo Emílio Sales. Jean Vigo. Paris: Seuil, 1957. CALIL, Carlos Augusto (org.). Vigo, vulgo
Almereyda. São Paulo: Companhia das Letras/Edusp/Cinemateca Brasileira, 1991.
72
alinhavou algumas palavras, Eugène Bonaventure foi condenado a dois meses de
prisão.
Passou esse período na Petite Roquette, prisão reservada, em princípio, aos
delinqüentes de dezoito a 21 anos, cuja pena não excedesse um ano. Mas a Petite
Roquette estava também repleta de meninos menores de dezoito anos alguns não
tinham sequer oito -, classificados sob a rubrica ‘punições paternas e maternas’, ou
seja, encarcerados a pedido dos pais, após uma autorização dada pelo delegado de
polícia do bairro. O regime, no entanto, era o mesmo para todo mundo: cela e lei do
silêncio.
Instalado numa cela de dois metros de largura por três de comprimento, com
altura de aproximadamente dois metros e meio, Vigo ficou logo conhecendo os métodos
corretivos dos carcereiros. ‘Uma divertida tradição dos carcereiros da Petite
Roquette’, escreveu muitos anos depois, ‘consiste em adestrar os novos. Eis o
procedimento pelo qual os educadores não esquecer que a PR é uma casa de
correção e preservação’ instalam, desde o primeiro momento, o terror no espírito do
recém chegado, a fim de curvá-lo, de um golpe, à rude disciplina da casa.
‘Às seis da tarde, um sino anuncia a hora de deitar, hora abençoada entre todas
as horas. Ao prisioneiro cabe dobrar com cuidado e de maneira regulamentar todas as
peças que compõe seu equipamento. Isto feito, o pacote é depositado no corredor, e o
carcereiro tranca a porta até as seis horas da manhã seguinte.
‘Meia hora depois, uma nova badalada anuncia a partida dos vigias diurnos, que
deixam ouvir seus passos, propositalmente sonoros, afastando-se, perdendo-se na
distância das galerias.
‘É então que começa a brincadeira tão engraçada para os gaffes [guardas de
presídio]. Logo, na escuridão, retumbam bruscos chamados, provindos das celas dos
73
que chegaram de manhã e ainda ignoram os costumes da prisão. Reconfortados pela
partida do carcereiro, depois de ficarem à escuta por alguns instantes sem perceber
qualquer ruído, os infelizes acreditam-se livres de toda vigilância. Que oportunidade!
Poder falar finalmente! Falar! Eis o comichão irresistível... Falar! Dizer qualquer
coisa, lançar um ‘boa-noite’ ao companheiro de cadeia visto de relance pela manhã...
Falar, enfim! Os chamados, hesitantes no começo tornam-se audaciosos, à medida que
os tagarelas se crêem mais seguros. Prudentemente, os veteranos se calam. Conhecem
a terrível lição que se prepara. E miserável conseqüência dessa vida antinatural! -,
ávidos por distrações, ainda que cruéis, riem à socapa do desenlace que se aproxima.
‘Sub-repticiamente, um vigia noturno substitui um colega diurno; e como que
para melhor gozar a surpresa aterrorizada dos prisioneiros, deixa passar alguns
minutos antes de intervir. Caminha pé ante pé diante da porta das celas, cuidando para
não fazer barulho.
‘De repente, um tilintar de chaves sacudidas, de ferrolhos puxados com violência
- uma porta se abre, e, num salto brusco, o gaffe arroja-se sobre um dos culpados, com
o molho de chaves na mão. Por alguns instantes, a divisão se enche de gritos
lancinantes e de súplicas. Depois, silêncio... Acabou? Nada disso, o mesmo
estardalhaço de chaves e ferrolhos batidos recomeça. O vigia passou para outra cela:
haverá mais lágrimas.
‘As chaves das trancas são enormes, e os vigias as utilizam como soco-inglês para
golpear os flancos dos detentos. Escolhem os flancos para não deixar marcas de
violência no corpo dos infelizes.’
A seguir, Vigo conheceria também a diversão de um vigia de nome Cornua, que
consistia em passar silenciosamente diante das portas das celas e, pelas janelinhas
74
abertas, cuspir no rosto dos que se aproximavam demais.” (Vigo, vulgo Almereyda,
pp.19-21)
Essa narração cheia de dramaticidade vai ser resumida, no livro publicado em
1957, em frases rápidas e agressivas. Vejamos.
“Um dia, em meados de maio de 1900 ele foi detido: o júri o acusara de
cumplicidade num roubo. Tal medida se devia à sua ficha de anarquista, sendo
condenado a dois meses de prisão cumpridos na Petite Roquette. De início, sua reação
foi uma provocação ao substituir o nome de Vigo por um outro que tinha merda (‘y a
(de) la merde’): Almereyda. A escolha deste anagrama se explica na crença, em certos
meios anarquistas, da virtude revolucionária do palavrão, e, no começo do século, este
ainda o era. No todo, Miguel Almereyda, soava espanhol e anarquista.” (Jean Vigo,
p.20)
E logo a seguir:
“Almereyda não esqueceria nunca os guardas que fingiam se distanciar para
surpreender os meninos que tentavam se falar, espancando-os com seus enormes
molhos de chaves usados como soco-inglês. Um guarda chamado Cornua passava
silenciosamente diante das portinholas abertas das celas e escarrava nos rostos dos
que se aproximavam.” (Jean Vigo, p.21).
77
A necessidade da síntese elimina tudo o que é acessório.
O que se nota de uma versão para outra é a concentração na inocência vingativa do
jovem que muda de nome contra toda a sociedade, contra a infinita crueldade e
humilhação imposta aos meninos fracos e desprotegidos. E esta equação é de grande
conseqüência para entendermos a trajetória de Almereyda, assim como os sentimentos
que dela emanam e chegam até Jean Vigo, por meio dos velhos amigos e principalmente
77
As traduções de Jean Vigo foram realizadas pelo autor.
75
pelas pesquisas empreendidas pelo filho apaixonado e revoltado com o destino do pai.
Tais sentimentos geram um tipo de inconformismo que será fonte importante para
entender os filmes, sobretudo quando se pensa em Zéro de Conduite. Assim, a síntese
imposta não é somente a redução de um foco histórico para sobressair a figura de
Almereyda, mas também para afirmar um vínculo entre pai e filho, entre imaginação e
história que somente uma análise criadora pode sugerir. Evidentemente, no âmbito da
escrita do livro, tudo se passa de maneira velada, diria-se mesmo a contrapelo, mas se
com a condensação de um texto de aproximadamente 150 páginas para outro de 25
temos uma enorme perda do panorama histórico e também uma perda estilística, do
ponto de vista da interpretação facilita-se o desvelamento da obra Jean Vigo e sua
fatura. Com a redução, diversos fatos e personagens do universo anarquista
desaparecem, entrando em cena somente quando se relacionam diretamente com
Almereyda, ou quando reforçam o delineamento das virtudes revolucionárias do pai de
Vigo. Fatos como a campanha do avião em que se propunha a compra de um aeroplano
em nome do proletariado francês, por ressaltar excessivamente a debilidade teórica de
Almereyda, serão excluídos da versão de 1957. O mesmo acontecerá com alguns
personagens, como o anarco-individualista Libertad, um aleijado que se impunha nos
meios avançados por meio da violência, utilizando com habilidade suas muletas, ou o
communard Malato, desiludido com a clivagem do movimento operário, e até mesmo
Marius Plateau, o discípulo de Maurras que só pensava em “dar pancadas”. Todos esses
personagens secundários, que ajudam na configuração particular da luta de classes do
começo do século XX e também explicam o fascínio de Paulo Emílio pela biografia dos
destemidos anarquistas, na condensação, eles irão desaparecer e com isso a atmosfera
histórica vai perder seu relevo. Neste sentido, o caso de Liabeuf é paradigmático.
76
“Jean Liabeuf era um jovem operário sapateiro, preso pela polícia de costumes,
certa noite, em companhia de uma prostituta. Foi condenado como rufião a três meses
de prisão, sendo-lhe ainda proibida a permanência em Paris por cinco anos. Ao sair da
Santé, Liabeuf não deixou a cidade, trabalhando dia e noite para economizar cem
francos e comprar um bom revólver. Com dois trinchetes bem afiados, fabricou a seguir
um armadura de couro, cravejadas de pontas de ferro. Envolto num casaco, partiu à
procura dos dois policiais que tinham provocado sua condenação. Antes de encontrá-
los, teve o azar de dar com outros policiais, ou melhor: alguns policiais e soldados
toparam com ele. De início, levou vantagem na luta. Com efeito, cada vez que os
adversários tentavam agarrá-lo pelo braço para amarrá-lo, largavam-no com a mão
ensangüentada lançando gritos de dor, até o momento em que, ao receber um violento
golpe de sabre no ventre, Liabeuf sacou o revólver e matou o policial Deray.
A grande imprensa, a partir do dia seguinte, empreendeu uma campanha contra
os vadios, e o próprio Hervé, embora admirando a fibra de Liabeuf e citando-o como
exemplo para os homens de bem e os revolucionários, mencionou-o, de início, como um
vadio.
Logo se compreendeu, no Guerre Sociale, que não se tratava de um vadio, menos
ainda de um rufião, mas de um operário enfurecido por uma condenação injusta e pela
desonra. Sozinho contra toda imprensa, o Guerre Sociale empreendeu uma campanha
em seu favor. Ao defender um homem injustamente acusado, pretendia fazer a acusação
da polícia, assim como, no caso Dreyfus, se acusara o Exército. Mas os jornais de
opinião permaneceram reticentes, e a imprensa de informação divulgou as teses da
polícia.
Durante o processo, Liabeuf não cogitou em se defender do assassinato de Deray.
Repetindo sem cessar que não era um rufião, acabou condenado à morte.
77
Então, uma parte da opinião se comoveu. Almereyda conseguiu uma carta de
Anatole France em favor dele, Séverine tomou sua defesa em L’oeuvre. Jaurès,
Drumont, Rochefort e Léon Bailby logo se juntaram a eles, assinando um pedido de
perdão ao presidente Fallières.
Liabeuf, no entanto, foi guilhotinado no fim de junho no bulevar Arago.
Atendendo à convocação do Guerre Sociale, algumas dezenas de milhares de pessoas,
conduzidas por Almereyda, comprimiam-se, às duas horas da madrugada, junto às
barreiras dispostas no cruzamento Saint-Jacques e nas imediações da rua Glacière,
gritando: ‘Assassinos! Assassinos!’. De repente, estalaram dois disparos: um inspetor
da brigada dos anarquistas comandada, não mais por Fouquet, que enlouquecera,
mas por Guichard caiu morto.
Com a cabeça já dentro da luneta, Liabeuf berrava ainda que não era um
rufião.” (Vigo, vulgo Almereyda, p.61-62)
Na versão publicada em 1957 o fato é apenas mencionado e uma curtíssima nota
de rodapé expõe o caso. Vejamos:
“Durante meses, Almereyda trabalhou em diferentes frentes, tendo em vista a
criação de um Partido Revolucionário, isso antes de mergulhar de cabeça no ‘caso
Liabeuf’, que foi uma obra sua. No dia em que o jovem sapateiro foi guilhotinado,
milhares de pessoas, conduzidas por Almereyda, às duas horas da madrugada nas
barreiras colocadas no cruzamento da rua Saint-Jacques se comprimiam gritando:
‘Assassinos! Assassinos!’. Disparos foram ouvidos e um inspetor da brigada dos
anarquistas foi morto. Ao lado de Almereyda se encontrava um camarada de origem
russa, Kibaltchich, que mais tarde se tornará Victor Serge.” (Jean Vigo, p.27)
E a nota de rodapé informa:
78
Acusado injustamente de ser um gigolô, Liabeuf matara um guarda da polícia
de costumes.” (Jean Vigo, p.27)
A humilhação e a revolta de Liabeuf são deixadas de lado para se dar ênfase no
caso enquanto criação de Almereyda. Ou seja, o caso Liabeuf teve grande repercussão
graças aos artigos de Almereyda no Guerre Sociale. Claro, há também a menção ao
contato com Victor Serge que, curiosamente, em Vigo, vulgo Almereyda, foi suprimido.
Em relação à parte histórica propriamente, Paulo Emílio utilizou a escassa bibliografia
sobre o anarquismo e a rara bibliografia sobre o período, mas certamente se valeu da
troca de idéias com Caffi. Como vimos, o ítalo-russo foi um espectador privilegiado das
lutas revolucionárias em toda a Europa no começo do século XX. Muito mais do que
um espectador, participou de diversas frentes e, malgrado sua crença na União Sagrada
que fez coro na época a todo movimento da esquerda européia, sua reflexão se mostrou
clara e superior a de muitos de seus contemporâneos. Compreende já em 1905 a
importância do legado do populismo russo e amarga a derrota da Revolução. Na
Alemanha, sente a regressão do pensamento revisionista da social-democracia. Na
França, conhece a clivagem dos movimentos avançados e se alista no exército, equívoco
de toda uma geração (Weber, Simmel, Thomas Mann, Marinetti, Gustave Hervé, Léon
Daudet, entre outros) que ignora o manifesto da I Internacional. Diante da catástrofe,
reavalia as possibilidades revolucionárias e parte para a Rússia pós-17. A miséria, a
carestia e a situação de penúria do campesinato chocam Caffi sem impedir seu
engajamento nas fileiras da Revolução. Entretanto, a crescente burocratização e
militarização da sociedade fazem com que em 1919 Caffi emita uma severa crítica ao
processo revolucionário. Enfim, sua postura independente, ao mesmo tempo em que
ampliou a reflexão, o tornou persona non grata em diversos círculos. Sua crítica final
sobre os limites da transformação social e o desmantelamento das forças avançadas, em
79
paralelo com o culto estatal, herança do totalitarismo, produz um balanço negativo sobre
as possibilidades da Europa no contexto do pós-Segunda Guerra. E, certamente, Paulo
Emílio também se nutriu dessa reflexão para avaliar a conjuntura de Almereyda e como
sua revolta encontra no filho uma forma de expressão no cinema.
78
No capítulo inicial de Jean Vigo, não há um significado único de
contextualização da biografia de Almereyda, indo muito além do arrolamento de dados
significativos para a imaginação de Vigo. Sua originalidade está na composição, na
maneira como Paulo Emílio lança mão de procedimentos narrativos, para relatar uma
experiência política individual, de interesse do crítico, no redemoinho da III República.
É como se, para ligar Almereyda a Vigo, nosso autor se servisse de materiais históricos,
de sua experiência política e se inspirasse na simplicidade poética de Vigo.
Salta aos olhos a forma como nos é apresentada a vida de Almereyda, a rejeição
da mãe, a dureza do trabalho, a fome, a péssima moradia. Tudo só encontra consolo nos
meios anarquistas, onde conhece a amizade, se familiariza com o debate político e se
inicia como orador virtuoso. A miséria de uma vida ganha sentido por meio dos lugares
comuns anarquistas e transforma em revolta o sentimento de inadequação do jovem.
Esse movimento de inclusão da personagem num contexto histórico vai gradativamente
ganhando relevo até que, por um breve momento, por um flash, a personagem ocupa o
primeiro plano na história, para logo ser devolvida ao pelourinho da História Oficial.
Tal procedimento, de junção de biografia e história, claro, fica explícito em Vigo, vulgo
78
A carta foi o gênero literário predileto de Andréa Caffi. Em correspondência de 8 de julho de 1954,
enviada para Paulo Emílio, Caffi continua o debate em torno do socialismo e faz um balanço da história
do movimento operário europeu, chamando a atenção para a farsa ideológica em torno da democracia e
conclui melancólico: “Le ‘mouvement socialiste’ reste à mes yeux un effort long, patient et souvent
décévant d’éducation révolutionnaire en ce sens que non pas ‘le citoyen’ mais l’homme tout entier
jusqu’aux moindres reflexes de ‘la vie privée’, voit le monde et sa propre destinée et ses rapports avec ‘le
prochain et le lointain’ d’une manière toute nouvelle et d’une manière absolument inconciliable avec
toutes les normes et les conventions du système sociale en vigueur. Les ‘activités électorales’ ne sont
qu’un à côté équivoque et mesquin de cette émancipation et les partis socialistes ne s’y sont laissés
absorber qu’en leur phase de décadence.” Arquivo Paulo Emílio Sales Gomes/Cinemateca Brasileira.
PE/CP. 0914.
80
Almereyda. Por isso, passo a considerar os dois livros como um só. O que bem poderia
acontecer em uma edição ideal.
Almereyda, já estabelecido como polemista fecundo nas páginas do Le
Libertaire e do La Guerre Sociale, é detido por seus artigos aguerridos insuflando o
amotinamento de batalhões do exército. Na prisão, toma contato com a equipe do Action
Française e se surpreende com as afinidades. A vontade da extrema esquerda de, a
qualquer custo, “achincalhar a legalidade” e o ódio dos “Camelôs do Rei” à República
estabelecem um curioso diálogo improvável. Essa forma de apresentar um fato na vida
de Almereyda, sua confusão ideológica, nos coloca diante da pulverização de um
movimento operário, incapaz de se levantar como um só homem, e da complexidade do
momento histórico. Ao misturar vida e história, sem que o fundo não eclipse os
primeiros planos, lembra-nos a forma do romance histórico. Comentando o gênero,
Lukács afirma que algumas crises nos destinos pessoais de uma série de seres humanos
coincidem e se entrelaçam com o contexto determinante de uma crise histórica.
79
Claro
que não se trata aqui de um romance histórico, mas o problema de Paulo Emílio é tornar
sensível a experiência política individual e representar sua prática, o que, por sua vez, é
um procedimento romanesco.
80
Enfim, esses exemplos, escolhidos sem muito critério, nos ajudam a
compreender a fatura do livro na medida em que nos revelam uma forma de exposição
do objeto, forma que já contém em si uma avaliação que nos revela sensibilidade aos
problemas históricos do anarquismo e à atmosfera revolucionária da Belle Époque
francesa, mas que também deixa indícios para entendermos a influência do pai sobre o
79
Cf. LUKÁCS, Georges. Le roman historique. Paris: Payot, 1972. p. 42.
80
Luiz Felipe Alencastro, no seu breve comentário no livro Vigo, vulgo Almereyda, tem razão ao
comparar o pai de Vigo com Sénécal. Na Educação sentimental, este personagem secundário é um leitor
dogmático do socialismo utópico (Mably, Morelly, Fourier, Saint-Simon, Cabet, Louis Blanc), com
tendências militaristas e que acaba traindo a revolução. No romance de Flaubert, os personagens
secundários se relacionam diretamente com o fundo histórico, diferentemente de Frédéric Moreau, que
81
filho. Figura múltipla, o crítico de cinema em Paulo Emílio se desdobra em escritor,
mas também em historiador. Assim, não se pode ver de maneira separada
procedimentos que se completam. Tomando então o livro como uma unidade coerente, é
possível agora passarmos à análise feita pelo crítico da obra cinematográfica a partir do
corpo-a-corpo com os filmes e a biografia de Jean Vigo.
Na leitura de Jean Vigo, na parte referente ao Vigo filho, após o relato
biográfico sobre a infância e adolescência, o que se percebe é a recorrência de
procedimentos que consolidam um método. Este se desenvolve em quatro níveis: 1) a
produção dos filmes, seu preparo, a escolha da equipe técnica, os atores, os estúdios; 2)
a vida particular de Vigo, seus relacionamentos, as amizades, as crises de saúde; 3) os
filmes vistos internamente, sua estrutura, as escolhas do cineasta, seus êxitos e
fracassos; 4) a recepção dos filmes, sua fortuna crítica e o levantamento dos motivos de
sua aceitação ou recusa. Esses quatro níveis oscilam conforme a obra. Tal forma de
exposição fornece uma visão de conjunto que busca captar as questões estéticas
levantadas por Vigo e como ele as filtra.
As primeiras páginas da segunda parte do livro se detêm na vida de Jean Vigo e
suas desventuras em internatos de província, cuja severidade de regras e o autoritarismo
dos adultos acentuaram ainda mais no adolescente sua visão de mundo inconformista,
além de valorizar as poucas amizades que se reforçaram no gosto pelos esportes. A
desenvoltura do garoto nas composições francesas chamou atenção, mas ele nunca
deixou de ser um aluno mediano. Outro dado importante desse período é a amizade com
possui uma autonomia relativa. Cf. PROUST, Jacques. Structure et sens de l’Éducation Sentimentale. In:
Revue des Sciences Humaines, n. 125, jan-mar 1967.
82
Fernand Desprès, Fanny Clar, Eugène Merle, todos amigos de seu pai, o Almereyda do
Guerre Sociale. Em rápidas linhas, são esses os principais elementos que formam o
autor de A propos de Nice. Com a morte do pai, Jean Vigo foi obrigado a trocar de
nome para freqüentar escolas de província para não ser motivo de escárnio entre seus
colegas. Com o nome trocado, vai presenciar a rigidez dos colégios, reforçando assim
sua indignação, tornando-o ainda mais próximo de seu pai. Passadas essas experiências,
o jovem se interessa pelo cinema, e graças à intervenção de Germaine Dulac, consegue
junto à Franco-Film um pequeno emprego de irrisória remuneração mas valioso pelo
contato com o universo dos estúdios cinematográficos. Após rápido aprendizado e com
o auxílio financeiro do pai de Lydou, sua esposa, Vigo idealiza um filme com liberdade,
mas uma liberdade relativa, já que seu capital lhe possibilita somente a compra de uma
Debrie usada e algumas latas de filme. Sem condições de alugar um estúdio e de se
deslocar, o jovem se vê obrigado a realizar um filme sobre a cidade em que habitava,
Nice, lugar em que se encontrava em razão de sua saúde frágil. É neste momento de
nossa história que percebemos a mestria de Paulo Emílio ao flagrar Vigo no ato de
criação. A glosa feita aqui serve para apresentar as intervenções do crítico e como sua
estratégia de seguir de perto Vigo nos revela um processo criativo.
“Agora Vigo poderia pensar uma obra pessoal. Ele tinha uma câmera, tempo
livre e uma reserva de dinheiro. Sem almejar a possibilidade de filmar em estúdio ele
somente podia pensar num filme documentário sobre Nice. Ele não possuía uma
concepção prévia, somente certa irritação contra seu tema. Inicialmente, foi obrigado a
ficar em Nice quando estava convencido que somente em Paris poderia deslanchar. Seu
olhar sobre a cidade tinha se tornado ambivalente. Enquanto amava o quadro de sua
felicidade com Lydou, odiava esse ponto de encontro de ricos. Feita sua escolha, as
primeiras iniciativas foram, inconscientemente para se distanciar.” (Jean Vigo, p.68)
83
Neste pequeno trecho temos o entrelaçamento de vida (o amor do casal e a
estadia em Nice) e a escolha formal (a opção pelo documentário) que resultará num
grito inconformado com a cidade burguesa. Essa conjunção inicial, impressão
inconsciente de lirismo e um tipo de crítica romântica social, vai ganhar corpo de
maneira mais elaborada no desenvolvimento de toda a obra de Vigo. Mas A propos de
Nice supera o refúgio nos sentimentos íntimos quando revela o gosto pela investigação
formal particular do filme. A introdução dispensa praticamente a presença humana para
descrever uma cidade de formas extravagantes; o núcleo do filme é o carnaval, rito em
que a sátira e o erotismo se mesclam com o riso profano. É no carnaval que os corpos
vão se desnudar, apresentando sua putrefação social, como a personagem superfeiosa,
ou a injustiça de tal sociedade, como no caso da gama de pobres e trabalhadores. É no
carnaval que Nice se expõe. A crítica hoje tende a enquadrar a obra na etiqueta de
“filmes sobre a cidade”.
81
O filme se distancia do fascínio pelo progresso (Berlin, die
symphonie einer grosstadt), como é óbvio, assim como da crítica de inspiração
materialista (Rien que les heures). Embora se inspire explicitamente na estética das
“sinfonias”, não esqueçamos da fundamental colaboração de Boris Kauffman, A propos
de Nice é um forte brado de liberdade diante de costumes arcaicos, hábitos hipócritas e
exploração do homem pelo homem que somente a vulgarização das idéias acráticas
pode produzir, acrescentando a isso o apego às formas, produzindo uma sátira perversa
cheia de erotismo. Mas o primeiro filme de Vigo não é somente a revelação de
sentimentos íntimos ou um ensaio com base nos experimentos vanguardistas. Para além
de sensações ou ideologias, o filme possui um estilo que rapidamente se torna
consciente em Zéro de Conduite.
81
Cf. AUMONT, Jacques. O olho interminável. São Paulo: CosacNaify, 2005 e DESPOIX, Philippe.
Esthétique de la coupe transversale. Documentarisme et montage à la fin des années vingt. In: DIDIER,
Béatrice e NEEFS, Jacques. L’Europe des années vingt: créations et théories esthétiques. Saint-Denis:
PUV, 2002.
84
Vigo partiu de uma investigação bibliográfica da cidade de Nice. Encontrou
diversos livros antigos que relatavam a arqueologia e a história local. Foi então verificar
in loco as possibilidades visuais dos monumentos comentados. Um tanto frustrado pelo
desgaste que o tempo impusera aos lugares, começa a construir um roteiro ideal para as
filmagens. Decide assim separar natureza e homem e trabalhar minuciosamente os
detalhes referentes a um e outro. Pronto. Ele já tem uma câmera, filme, tempo e, agora,
um esquema de filmagem. Mas sua frágil saúde o obriga a uma consulta em Paris onde
encontrará, nos meios cinematográficos, Boris Kauffman.
82
Eles partem para colher algumas imagens, mas logo verificam que o esquema de
Vigo não possui a visualidade desejada. Os detalhes idealizados da natureza não se
realizam na tela. Assim, preparam um roteiro mais aberto, mais livre ao acaso das
imagens, que se apoiava agora na cidade moderna. Sua organização para receber turistas
e ignorar seus habitantes faz com que um clima fúnebre paire sobre tudo. Começam
então as filmagens e Vigo enche de notas um caderninho, que será precioso para o
crítico seguir os passos do cineasta. As anotações revelam projetos para a montagem, a
descoberta de personagens (a superfeiosa), o apreço pelo corpo e, principalmente, o
gosto pelos experimentos vanguardistas misturado ao ódio à injustiça da sociedade
82
Neste momento da história, Paulo Emílio aproveita para desfazer um mal-entendido em torno do
cinegrafista russo. Confundia-se até então, mesmo o grande historiador George Sadoul, Boris com
Mikhail. Este era o segundo irmão de Denis Kauffman, ou Dziga Vertov, o inventor do cine-olho,
enquanto Boris era o caçula. Em seu posfácio à edição americana, Paul Ryan aponta como falha em Jean
Vigo a ausência de um comentário maior sobre o cinegrafista, e justifica a recusa deste em responder as
cartas de Paulo Emílio por certa prudência política, já que a partir dos anos 40 ele se radicara nos Estados
Unidos. Cf. RYAN, Paul. Op. cit.
Boris Kauffman (1906-1980) nasceu em Bialstock, na Polônia, na época sob administração russa. Tomou
contato com o cinema através de correspondências trocadas com seus irmãos. Ainda muito jovem, nos
anos 20, partiu para a Bélgica e, em seguida, para Paris, onde conheceu os experimentos da Avant-Garde.
Amigo de Léon Moussinac e de seu cunhado Jean Lods, o organizador do cineclube Les amis de
Spartacus que exibia os filmes soviéticos. Junto com Lods, em 1928, Boris realiza Aujourd’hui, também
conhecido como 24 heures en 30 minutes, inspirado em Alberto Cavalcanti, Walter Ruttman e também
em Mikhail Kauffman (Moscou, 1927). Em seguida, também com Lods faz Champs-Élysées (1929).
Esses serão os filmes que convecerão Vigo sobre a qualidade do cinegrafista. Na mesma época, Boris
Kauffman filma com Eugène Deslow e Henri Storck. Com o início da Segunda Guerra, parte para os
Estados Unidos, onde filma com Elia Kazan, Sidney Lumet e Samuell Beckett, em sua única experiência
no cinema, Film de 1970. Sobre a trajetória de Kauffman Cf. BOURGEOIS, N., BENOLIEL, B.,
85
burguesa. Flanando com a câmera, eles colhem elementos para a estrutura do filme. Os
planos elaborados, as mazelas sociais e a patetice burguesa servem para uma visão de
mundo satírica na qual o erotismo é mais consciente do que o próprio Paulo Emílio
imagina. Para ele o filme possui um caráter primitivo, na medida em que organiza
elementos díspares de maneira brusca, embora a montagem procure suavizar a ligação
entre uma imagem e outra. Mas acho significativo que o esforço de Vigo seja apresentar
suas idéias ancoradas na “espontaneidade dos documentos em estado puro (...)”. Porém,
quando o cineasta introduz o tema do erotismo e da sátira, o documento não aparece em
estado puro, pois é o próprio Vigo num contre-plongé absoluto que surge travestido de
dançarina se movimentando desesperadamente e aparentando flutuar, dado o recurso da
câmera lenta. Ou seja, o tema, importante para o filme e decisivo para a obra, é
encenado, consciente.
O significado principal de A propos de Nice está na forma como o material
disperso é agrupado na montagem. Os milagres da montagem colocam o filme ao lado
dos grandes filmes russos ou do L’Espoir de Malraux. Foi na montagem rigorosa que os
elementos foram construindo idéias, negando outras. Infelizmente para o crítico, e para
nós também, a mutilação do filme dificulta a percepção das minúcias da montagem. E
neste momento, o crítico se mostra por completo, ao fazer uso de toda sua perícia, de
todo o seu esforço de pesquisador e toda a imaginação de escritor. Este é o maior
significado do livro Jean Vigo: a maneira sutil como é apresentada uma diversidade de
elementos e como eles são importantes para a compreensão global da obra. No início,
vimos que Vigo tinha um esquema a priori, que investigava detalhadamente os aspectos
da separação entre homem e natureza. Esse primeiro roteiro cai por terra quando se
verifica como, na tela, uma onda média não se diferencia de uma onda grande, ou como
LOPPINOT, S. de. L’Atalante un film de Jean Vigo. Paris: Cinémathèque Française/Pôle Méditerranéen
d’Éducation Cinématographique, 2000.p.19.
86
uma montanha assume na projeção um tom de cartão postal. Em seguida, vimos como
Vigo, em parceria com Boris Kauffman, sai colhendo material aleatoriamente, a partir
de um roteiro livre, ao mesmo tempo em que faz notas e apresenta temas e personagens.
Na hora da montagem, todo o material era dispersivo, o que os obrigou a nova
reformulação na busca de uma ossatura razoavelmente consistente. Porém, a mutilação
“natural” do circuito exibidor (lembremos que A propos de Nice teve carreira
considerável nos cineclubes) traz problemas para a análise, já que é na precisão de como
cada plano é agrupado que o filme ganha sua estrutura. Entretanto, diante do filme em
seu estado atual, o crítico e o leitor, com plenos conhecimentos dessas etapas, têm sua
tarefa facilitada pela constância de elementos, por certos procedimentos formalistas e
pelo inconformismo que os dados biográficos clarificam. Claro, o filme fala por si. Sua
análise imanente é indispensável.
Por fim, a interpretação do crítico, que se preocupa somente com o
desenvolvimento interno da obra, esmerada do ponto de vista estilístico, produz um
efeito que se assemelha ao próprio filme. Daí o recurso à narração dos filmes. O termo
utilizado é “raconter” (que a versão brasileira traduz como “descrever”). A narração,
neste caso muito pessoal, procura o objeto sem propor teses explicativas, mesmo se uma
frase ou outra deixa escapar uma interpretação. Cruzamento de análise fílmica, de
escrita literária e interpretação estética, o ensaio de Paulo Emílio se configura como
caso singular no universo da crítica cinematográfica da primeira metade do século XX.
Vejamos o melhor exemplo do livro.
“A propos de Nice começa com um fogo de artifício seguido de quatro planos
em sobreimpressão de tomadas áreas da cidade que se encadeiam à roleta. O trilho de
trem de brinquedo chega e os bonecos-turistas são recolhidos pelo rodo. Novas
tomadas aéreas são circunscritas no tempo por ondas que continuam a enquadrar uma
87
palmeira, vista de baixo para cima num movimento rotatório, e um varredor de rua.
Sua presença anuncia os preparativos para o carnaval. Estes planos continuam por seis
planos de construção de bonecas e de máscaras gigantes, que se alternam com três
planos de garçons arrumando as mesas dos terraços. Depois de uma imagem onde se
pinta a boca de uma enorme boneca, passa-se à limpeza da palmeira, que após um
instante ter sido associada a uma outra palmeira pequena num vaso, é mostrada
abrindo suas lindas palmas no alto da tela. Volta-se ao Hotel Rhul, ao Palais de la
Mediterranée e ao Hotel Négresco, palácios que estavam invertidos. Depois
acrescenta-se a estátua, um travelling sobre a sombra das grades projetadas sobre as
calçadas, e está tudo pronto.”
“Mas o Passeio dos Ingleses mudou singularmente. As mulheres, maduras ou
velhas, são de uma feiúra assombrosa, aquela que poderia ser a mais elegante é
relacionada a um avestruz e a superfeiosa lê o jornal. A comicidade da feiúra anuncia
o Carnaval. Os pacatos músicos, os camelôs, ou as gaivotas nada poderão mudar.”
“Felizmente há o paraíso das velhas senhoras ricas, as vestimentas, e os
smokings com seus gigolôs dentro! Sem a cabeça da senhora rica, que embaraço! Pois
o Carnaval chegou! As bonecas gigantes vivem, andam e algumas são tão vivas que
possuem máscaras humanas na barriga. A superfeiosa está na festa, como também as
faixas e o cavalo que elas adornam. Mas, no chão, as flores, aquelas que foram
colhidas pelas mãos das mulheres de Grasse, são pisoteadas. E agora as únicas mãos
que elas tocam, antes do massacre, são as da superfeiosa ou as de um polícia. É porque
o cachorrinho e as bonecas guitarristas são melancólicas. A melancolia é quebrada
pelas mulheres que dançam lá em cima. E se o pingüim e a boneca são de papelão, o
general e seu cavalo, ao contrário, estão lá em carne e osso. As outras bonecas não
88
são, nem de carne nem de papelão, elas são de mármore no cemitério. Mas pouco
importa, é Carnaval!.(Jean Vigo, pp. 80-82).
A narração continua neste mesmo tom até anunciar o surpreendente final. Mas
antes do comentário, é preciso lembrar que se comparada de perto com o filme, a
narração de Paulo Emílio faz supressões que visam o jogo estilístico. E esta longa
citação se justifica pelo número de procedimentos que traz. Após um longo relato sobre
o trabalho de Vigo em captar imagens aqui e ali, Paulo Emílio, num dos principais
morceau de bravoure do livro, mostra como a imaginação de Vigo trabalha diante de
um material tão variado, colocando em cena de maneira formalizada o mundo dos
pobres e dos ricos e todo o teatro da sociedade burguesa que a câmera desmascara. O
gosto pelas formas está presente nos planos aéreos iniciais e na maneira como a
palmeira é captada. O que o crítico nos apresenta é o fio condutor de A propos de Nice,
ligando uma imagem à outra, criando assim uma continuidade surpreendente. O que o
estilo de Paulo Emílio revela de maneira exuberante são os temas caros a Vigo. Mas
para isso não explicita a utilização de elementos rotinizados pela avant-garde, somente
explora a utilização particular que deles faz o cineasta. O processo de narrar as imagens
busca organizar o material que a montagem agrupa. Poderíamos estender esta
disposição à descrição da herança revolucionária de Almereyda, do gosto pelo esporte
em Jean Vigo e particularmente pelo corpo, das investigações das formas geométricas,
tudo isso a que a sensibilidade do jovem cineasta confere um significado poético,
embora primitivo, mas que vai além da descrição do espaço urbano. No narrar das
imagens, Paulo Emílio demonstra como a imaginação de Vigo constrói uma atmosfera
ao mesclar flores pisoteadas com policiais e burguesas envelhecidas, assim como
cachorros e bonecas, dando um tom melancólico. Ao falar de Vigo, o crítico recria o
cineasta para ver as obras. Em diversos momentos veremos esse tipo de esforço, esse
89
tipo de narrativa que se cola no objeto para dele extrair suas principais inspirações. Em
Zéro de Conduite, quando o tímido Tabard é obsedado pelo gordo professor de química,
Paulo Emílio não hesita em chamá-lo de porco, ou quando Jean, em L´Atalante,
siderado pela ausência de Juliette, é despertado pelo milagre do gramofone. Estes
momentos são exemplos nos quais vemos o crítico em ação, no corpo-a-corpo com os
filmes, mas também levando em conta a história e principalmente os sentimentos
íntimos do autor. Como esse tipo de análise estilística conecta ideologia e estética,
forma e biografia, não há nada na obra que não seja levado em conta, daí que o estudo
de Paulo Emílio é ainda o principal ponto de partida para os recentes estudos sobre a
obra de Jean Vigo.
O capítulo sobre Zéro de conduite é a ampliação do ensaio Nought for behavior,
publicado em parceria com o cineasta e colaborador de Vigo, Henri Storck. O capítulo
segue de perto o texto publicado em 1951, a tal ponto que fica no ar se a verdadeira
colaboração de Storck ultrapassou o uso de seu prestígio e o fornecimento de preciosas
informações sobre a produção do filme. Entretanto, será aqui que a reflexão sobre o
filme atenta aos elementos exteriores para ganhar maior vigor. O filme trata do
ambiente repressivo de um internato e a força revolucionária de seus alunos, que no
final sabotam a festa oficial proclamando uma nova escola. Como já vimos, o tema da
infância oprimida toca profundamente não só o jovem Almereyda, encarcerado na Petite
Roquette, mas também o Vigo, com nome falso, estudante de internatos de província.
No coração de seu tema, com condições inéditas de produção, o cineasta inicia a criação
de Zéro de conduite, atento agora às transformações impostas pela realidade. Paulo
Emílio acompanha esse trajeto relatando sobressaltos e a capacidade criativa de Vigo
para reagir ao acaso.
90
O estilo do crítico evolui conforme o desenrolar da obra do cineasta, e outros
procedimentos de análise vão se somar à verificação biográfica e à análise interna das
obras. A compreensão do estilo do cineasta passa não somente pela obra em si mas
pelo que o autor pensa de si mesmo. Embora a perspectiva adotada nunca seja a do
próprio artista, no estilo “Vigo segundo Vigo’’ a análise de textos como Vers le cinéma
social ou Présentation de Zéro de Conduite será significativa no delineamento de uma
visão de mundo que nos filmes aparece precipitada.
Se fossemos seguir rigorosamente os passos de Paulo Emílio, seria necessária
agora uma abordagem da recepção de A propos de Nice, para em seguida falarmos da
atividade de Vigo enquanto cineclubista. Entretanto, a ocasião de comentar a fortuna
crítica de Vigo virá com L´Atalante, enquanto que o trabalho nos Les Amis du Cinéma à
Nice somente nos conduzirá de maneira organizada a Zéro de Conduite.
É neste momento do livro que o método se apresenta de maneira mais clara para
se realizar definitivamente em L’Atalante. É na narração do primeiro longa-metragem
de Vigo que temos consciência da função dos primeiros capítulos sobre as infâncias do
pai e do filho e o sentimento de revolta que delas emana para se desenvolver no
anarquismo revolucionário ou no cinema poético. Se Almereyda encontrou acolhida
para sua revolta nos meios avançados, Jean Vigo forjou uma forma cinematográfica que
deu vazão para seu inconformismo. A interpretação de Paulo Emílio de A propos de
Nice valorizou a inocência e a inabilidade no manejo do material cinematográfico caro à
vanguarda, mas o filme não é por isso considerado um fracasso, já que apresenta um
estilo. A análise de Paulo Emílio do filme seguinte vai perseguir o cineasta no embate
já esboçado no filme anterior - entre fluidez narrativa e estilo.
Como já estamos habituados, a análise se apresenta sob um véu de descrição, e o
crítico expõe a evolução do cineasta pelo modo como este toma consciência de seu
91
assunto e se distancia do gosto formal típico da vanguarda. Ainda hoje, há quem insista
na relação de Vigo com a vanguarda.
83
Coloquemos então um ponto final neste mal-
entendido. Os experimentos da vanguarda dos anos vinte em filmes como Entr’acte ou
Le ballet méchanique são desenvolvimentos, por meio da câmera, de pesquisas do
movimento já trabalhadas pelas artes plásticas e pela fotografia. Em Jean Vigo, o que
temos é uma guinada em sentido oposto, uma busca pela verdade, em que o recurso à
sátira e à técnica é inteiramente motivado pela necessidade poética. Instruído por
Malraux, Paulo Emílio sabe das correspondências entre as artes, e na análise de Vigo
fica evidente a escolha pela representação, mesmo que esta se dê nos moldes
particulares de uma poesia inconformista que, em prol do estilo, compromete a
linearidade da ação. Os filmes da vanguarda se apresentam num espaço pictural, onde
há a composição do quadro na superfície da tela, enquanto que em Vigo temos o espaço
fílmico, um espaço virtual reconstituído, onde a presença da mise-en-scène é
determinante.
84
Fechando este parêntese, voltemos a observar como Paulo Emílio busca captar a
relação entre a realidade e a fantasia em Zéro de conduite.
Da mesma forma para com os meninos, Vigo, ao criar seus personagens
adultos, teve seu ponto de partida na realidade, mas uma realidade vista pelos olhos de
um garoto rebelde ou magoado que, feito homem se vingava por meio da sátira. Seus
personagens se distanciam de seus modelos e suas características são tão misturadas
que toda tentativa de filiação direta não logra êxito.(Jean Vigo, p.121)
É diante da postura inflexível de Jacques-Louis Nounez, o produtor, que Vigo
deve reduzir seu roteiro, decupado para um filme de 2.000 metros, aproximadamente 60
minutos. Como a intenção de Nounez era criar um produto independente e
83
Cf. WARNER, Marina. L’Atalante. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. E RYAN, Paul. Op. cit.
92
intermediário, entre o curta e o longa, a metragem pensada foi 1.200 metros,
aproximadamente 40 minutos. Assim, oprimido pela necessidade, o cineasta vai se
impor uma busca precisa de expressão. E munido dos diversos roteiros do filme, dos
dados biográficos e o domínio do estilo o crítico nos oferece o cineasta criando,
escolhendo cada seqüência que exprima melhor sua poesia. Seguindo os passos de
Paulo Emílio, a disposição que conduz Vigo nessa tarefa de condensação é seu
sentimento de respeito pela infância. Por isso, comete exageros ao cortar uma seqüência
inteira em que um garoto de torso nu se cala diante do reproche insultuoso de Bec-de-
Gaz, o inspetor-geral da escola. Exemplos como este nos mostram o crítico em pleno
domínio de seu objeto, fundindo no ensaio as inquietações e a originalidade do jovem
cineasta. Mas é na análise do filme que isso se torna ainda mais patente.
A escolha dos atores seguiu um critério preciso, e seus gestos sintetizam bem a
oposição entre o mundo da infância e o mundo dos adultos. O anão Delphin, intérprete
do diretor da escola, resume o sentido cinematográfico de Vigo. No comentário à
introdução do diretor da escola, vemos como o crítico traduz em sua escritura a
imaginação de Vigo. O grotesco da cena é explicitado pelas fisionomias, pela postura
muito recatada do diretor. A dificuldade em alcançar o lugar de seu chapéu, a vaidade
do anão ao ajustar seu figurino diante de um espelho em que ele não vê projetada sua
imagem dada a altura do objeto. Seus gestos polidos se concluem quando se senta na
cadeira. A atenção às pernas é a forma encontrada na escrita para chamar a atenção ao
tom caricato e também para nos mostrar a movimentação de câmera. Vigo, num plano
baixo, mostra como as pernas, após a acomodação do anão-diretor, ficam balançando no
ar. Por meio de uma montagem muito simples, mas que não segue a cartilha do plano-
contra-plano, o cineasta tira proveito e ironiza a arrogância da autoridade e sua
84
Sobre as noções de espaço pictural e espaço fílmico, Cf. ROHMER, Eric. L’organization de l’espace
dans le Faust de Murnau. Paris: Union Générale d’Éditions, 1977.
93
incapacidade. E, num breve comentário, o crítico desvenda como o cineasta nos impõe
seu estilo. Além disso, chama atenção para a maneira como a retórica vazia do diretor
faz repetir inúmeras vezes a mesma frase. É necessário lembrar que, em 1933, o cinema
ainda se adaptava ao advento do som, sendo a tecnologia muito carente de ajustes. O
crítico nos lembra que Vigo já realizara um pequeno filme sonoro, Taris, em que o som
existia apenas em uma locução. Prudente, o cineasta vai experimentando conforme
filma e descobre que os diálogos por ele formulados se tornaram apenas um ponto de
partida. E assim, encontra na repetição das frases um modelo adequado, técnica e
formalmente, como veremos abaixo, com o Pai Jules.
O filme não possui uma unidade de ação, apenas um estilo que encadeia
momentos representativos do cotidiano escolar, e a atenção do crítico vai se deter na
construção de cada cena, na composição, na montagem, nos movimentos de câmera, no
interior de cada imagem, nos diálogos, e como tudo isso se funde na cena. A sala do
professor de química é exemplar nesse sentido.
“Os alunos estão instalados e o professor entra na sala, seguido pelo esqueleto
dependurado no alto do anfiteatro. O professor, armado de seus óculos, examina a
situação e comenta malicioso, se dirigindo aos alunos: ‘Muito espirituoso!’ E continua,
em tom cansado e maldoso: ‘Mas eu não gosto nem um pouco disso.’ É um ser gordo e
repulsivo. Ele substitui seu paletó por um avental de trabalho ainda mais sujo. Sentado
atrás de sua mesa, inicia sua toalete. Começa por encher suas narinas com uma
pomada e termina dobrando cuidadosamente seu lenço, seu único objeto limpo, cuja
função é receber seu escarro. Este já pigarreia em sua garganta, mas o
desenvolvimento visual nos escapa, somente o horrível som nos persegue enquanto a
câmara nos mostra Tabard preocupado, largado em sua carteira. O professor, que já
iniciou sua aula, se aproxima acariciando os cabelos do menino e lhe diz com uma
94
ternura falsa: ‘E então meu garotinho, não vamos tomar nota esta manhã? Tabard
começa a escrever nervosamente. O professor, colocando sua mão gordurosa, suada e
brilhante sobre a mão do aluno, lhe diz: ‘Em boa hora, muito bem.’ Tabard afasta o
contato com um gesto bruto: ‘Me deixe!’
O professor reage, entre conciliador e ameaçador: ‘Ah! Meu menino, te mando
somente isso!’ E Tabard dispara: ‘Pois então, eu te mando... eu te mando à merda!’”
(Jean Vigo, pp.145-146)
Aqui a cumplicidade entre crítico e narrador do filme é tamanha que a análise
alcança uma intensidade e sentimos bem o ódio de Vigo, consubstanciado em Tabard,
que evoca a frase do Almereyda do Guerre Sociale. A observação em torno das
vestimentas do professor e sua repugnância e a ênfase no menino “largado em sua
carteira” são traduções profundas das imagens, como se as frases ocupassem o lugar dos
planos para atentar ao rigor não só da disposição da montagem, um tanto truncada, mas
cuja validade reside no grito de revolta do garoto. Notemos que do escarro até a
primeira fala do professor há uma sutil elipse que sacrifica a continuidade mas enfatiza
uma idéia. A do professor asqueroso que sistematicamente zomba do aluno. Essa
sutileza que a narração de Paulo Emílio capta bem, apresenta a cena como corriqueira,
habitual. Vendo o filme e lendo a interpretação, a sensação que nos invade é de certo
constrangimento, pois a riqueza da análise de uma seqüência tão simples, de poucos
planos, nos revela um universo. Seguindo nessa linha, a cena que abre o filme é ainda
mais surpreendente por sua síntese estilística. Paulo Emílio comenta:
As primeiras imagens são defeituosas. Vigo queria dar por um instante a
impressão de uma criança fora do mundo das crianças. O primeiro momento é bom,
quando Caussat está comportado, pensativo, um pouco triste; mas seus primeiros
movimentos são bruscos demais. Com o surgimento de Bruel a seqüência se torna
95
excelente. A música de Jaubert cadencia simultaneamente o movimento do trem e o
jogo dos garotos. O jogo consiste na comunicação recíproca das descobertas das férias
sendo levado num espírito de emulação e desafio. Uma bexiga não é nada. Mas duas
podem fazer os seios de menina que se acaricia. Bruel saca uma flauta e toca: Caussat
acharia notável, mas Bruel vai mais longe ele é capaz de tocá-la com uma narina
Caussat possui penas e as cola em todos lugares, até no próprio traseiro, imitando um
galo ou outra ave qualquer. Uma pausa. Cada um se prepara para mostrar uma
descoberta que esmagará a do outro. Num mesmo movimento, eles sacam de seus
bolsos um enorme e idêntico charuto. O trem atinge sua velocidade máxima. A fumaça
da locomotiva, que surge no vidro da janela, corresponde no interior à fumaça expelida
rapidamente dos charutos dos garotos, instalados confortavelmente. A atmosfera torna-
se brumosa e fantástica: um halo em torno da lâmpada e a bexiga que flutua na
fumaça. Os colegiais acabam se sentindo mal. No seu canto, a massa corpórea do
senhor adormecido é sacudida pelo movimento do trem. Chega-se então ao destino e
Caussat diz se referindo ao homem: ‘Tá morto. Vamos dar o fora.’ O trem entra na
estação e os dois se precipitam sobre suas bagagens. (Jean Vigo, pp.135-136)
Esta aparente descrição estabelece conexões que ultrapassam de longe a mera
exposição. A imagem do menino solitário recebe adjetivos precisos que não se deixam
obscurecer pela qualidade do enquadramento impreciso. Mas a entrada em cena do
outro garoto e sobretudo a melodia de Jaubert pontuam a cena e apontam de maneira
acusmática uma relação ambígua entre sonho e realidade. Num esforço de mimese,
tradicional no cinema clássico, a música sugere o compasso da locomotiva, marcando
também o ritmo das brincadeiras, e, além disso, impõe um tom onírico que a fumaça dos
charutos produz.
85
A escolha dos adjetivos “comportado”, “pensativo”, “inquiteto” e
85
Sobre a noção de acusmática cf. SCHAEFFER, Pierre. L’élement non visuel au cinema, Revue du
Cinema, vol.1, n.1, n.2, n.3, 1946.
96
“triste” nos mostra uma afinidade com o projeto de Vigo em respeitar a infância. Vemos
o crítico na busca de termos que realizem o projeto do filme e, para isso os dados
acumulados até aqui vêm mostrar seu papel. O crítico poderia simplesmente apresentar
o menino solitário, como um menino taciturno, que é o que a imagem nos informa
também, entretanto essa proximidade faz par com o narrador do filme e sentimentos são
esboçados. A penetração no universo infantil é tal que, após as saborosas brincadeiras, o
que nos alerta para o retorno ao mundo é a frase do próprio garoto, e o crítico não tem
problema em parar seu relato e citar: “Vamos dar o fora.” Poderíamos enfatizar tal
proximidade traduzindo “on” do relato na terceira pessoa do plural, porém seria
explicitar uma sutileza que o pronome indefinido encerra. Zéro de Conduite é feito de
momentos como a revolta de Tabard ou as brincadeiras no trem, instantes em que o
naturalismo é rompido para dar lugar a um lirismo que invade e toma a atmosfera.
Diante da imposição da metragem de 1.200 metros a fluidez narrativa foi sacrificada em
prol do estilo. Neste sentido, Zéro de Conduite é um dos poucos filmes, assim como Les
vacances de M. Hulot, que sabe se estruturar, malgrado as diferenças internas de cada
seqüência, e, por isso mesmo, cada uma delas é tratada independentemente. Sem
relações fixas de tempo ou espaço.
86
Assim como A propos de Nice é um primitivo na
sua inabilidade e inocência, Zéro de Conduite pode ser considerado clássico na medida
em que organiza e desenvolve com rigor um estilo poético.
Na análise de L’Atalante teremos novas formas de aproximação do filme, que se
somam ao esquema da descrição da produção, da vida privada e da recepção da obra. O
próximo passo será expor o método crítico de Paulo Emílio em sua análise de
L’Atalante e como o filme vai exigir novas formas de aproximação dada sua existência
problemática.
86
Sobre o problema das durações das seqüências, Cf. BURCH, Noel. O repertório das estruturas simples.
In: ______. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992.
97
Paulo Emílio nos mostra como a incompreensão generalizada de Zéro de
Conduite, e sobretudo sua censura total, dificultou a carreira do jovem cineasta. Foi
graças à persistência de Nounez que Vigo realizou seu último e mais belo filme. Mas
diferente dos anteriores, L’Atalante partiu de um roteiro encomendado que, felizmente,
a criatividade do cineasta soube transfigurar, e a pena do crítico soube captar em quais
níveis se deram as mudanças.
O cotejo do filme com o roteiro medíocre, que estabelece a história, auxilia o
crítico novamente numa busca por comparação e apresenta ao leitor um autor diante de
seu objeto. Transformando por completo o roteiro inicial, o cineasta vai dando vida a
seus personagens em cada seqüência realizada. O cachorro do roteiro dá lugar no filme
aos gatos, cuja função dramática ultrapassa quilômetros de distância aquela projetada
para o primeiro. Eles serão responsáveis pela atmosfera erótica e ansiosa de certas
seqüências. A recepção dos noivos de casta passa a ser extremamente cômica. O roteiro
original de Jean Guinée era de um naturalismo banal que Vigo soube transformar em
lirismo, superando a própria realidade, como na seqüência que abre Zéro de conduite.
Foi Henri Langlois o primeiro a chamar a atenção para o caráter fragmentário do estilo
de Vigo, comparando-o a um mosaico. A construção precisa de cada plano levou Paulo
Emílio a propor uma cena, excluída da primeira montagem de Louis Chavance, em que
Jean, febril pelo desaparecimento de Juliette, lambe um pedaço de gelo. Essa quase
independência dos planos na construção da seqüência que levou Alain Bergala a
caracterizá-los como “planos-aquário” vai marcar todo L’Atalante. Em passagens
reveladoras, a câmera vai nos mostrar a noiva insegura diante do futuro que é Juliette na
proa da barcaça, e em seguida vemos a moça ao acordar exprimir num olhar oblíquo o
tédio diante da rotina. De um plano para o outro temos uma ousada aceleração do
tempo, uma sutil elipse. Do primeiro encontro dos noivos na péniche à percepção da
98
dura vida fluvial temos somente alguns segundos. Essa capacidade de síntese e sutileza
marca toda a narrativa, dando ao narrador um poder surpreendente de exposição dos
personagens e dos espaços. Como se a fragmentação lírica e a fluência da ação, sem
necessariamente promover conflito, coordenassem a narrativa. A segunda buscando
organizar de maneira causal o tempo e o espaço enquanto que a primeira dá relevo à
motivação artística, rompendo com a linearidade e buscando nos planos uma síntese
poética para resumir o universo cotidiano dos noivos recém-casados.
Para nos contar essa transformação, Paulo Emílio valoriza os momentos em que
uma atmosfera fantástica invade a vida cotidiana. O mergulho do marinheiro Jean é o
exemplo mais completo de busca pelo fantástico e também é o instante em que o crítico
domina o estilo de Vigo, interpretando de modo criativo uma seqüência de grande
poesia. A descrição da evolução de um estilo se soma à narração da principal seqüência
de L’Atalante. Aqui não será diferente: os sentimentos de Vigo ao seu tema, a análise da
produção, a descrição das personagens e dos atores e depois a narração do filme.
Enfim Vigo tinha encontrado uma função para a experiência adquirida com o
filminho sobre Taris e a sobreimpressão feérica de Juliette se comunica com as
tomadas submarinas de Jean, os cabelos eriçados pela água, a expressão febril e
desolada pela angústia de alguém que a água impede de chorar, água que envolve, com
a valsa, o diálogo dilacerante das duas imagens.(Jean Vigo, p.140)
Esta “expressão febril e desolada pela angústia de alguém que a água impede de
chorar” reúne em si toda a disposição crítica de Paulo Emílio, na medida em que
sutilmente narra a imagem ao mesmo tempo em que sugere uma interpretação. Num
exemplo de sensibilidade poética, o crítico desvela a força incontida de um plano e
como sua composição possui um rigor absoluto que torna Vigo um cineasta do plano.
Outro momento é o quarto do Pai Jules. O espectador de L’Atalante certamente se
99
recorda da seqüência da descoberta do quarto do Pai Jules. A cena resume bem o teor
dos experimentos de Jean Vigo e sublinha sua singularidade no panorama do cinema
francês. Na seqüência em questão, Juliette já demonstrou seus primeiros sinais de tédio
diante da rotina sufocante do barco e de seus estranhos navegantes. Logo na seqüência
inicial, a mãe de Juliette já nos fornecera dados sobre a visão de mundo de sua filha:
“Quand je pense qu’elle jamais quitté le village...” A partir dessa observação feita por
uma mãe aflita com o destino da filha, tiramos algumas conclusões. Pois se Juliette
também já nos apresentou seu caráter inquieto, sua vontade de reformular o cotidiano do
barco, podemos deduzir, sem simplificar demais, que o casamento com um rapaz de
fora do vilarejo pode ser mais um atrativo para uma moça provinciana disposta a amar e
experimentar o mundo. Mas o caráter ascético de Jean, o marido, e o duro dia-a-dia da
vida fluvial em pouco tempo eclipsam os sonhos da moça. O tédio parece encurralá-la
gradativamente, mas a súbita chegada em Paris pode ser a luz definitiva que faça valer a
vida de sombras do barco.
A chegada em Paris é marcada por um espírito novo, algo no ar sugere
novidades, os gestos manifestam um misto de aflição e curiosidade, uma atmosfera que
a música de Maurice Jaubert vem aprofundar.
87
No exterior do barco, Jean e o grumete
são precisos nos movimentos para ultrapassar a eclusa. Aqui a montagem se sucede em
vários planos enfatizando o esforço e a dignidade dos personagens. Juliette observa e
entra no quarto para devolver o “linge” do Pai Jules, o imediato. Sozinha no quarto do
marujo, ela se depara com uma enorme concha. Buscando ouvir o marulhar das ondas,
Juliette exprime seu contentamento. Percebendo a sideração da moça, que não notara
sua presença, o Pai Jules exibe um brinquedinho que, pelo som produzido, tira Juliette
de um transe para mergulhá-la em outro. Como uma criança mimada, ela toma o
100
brinquedo das mãos do marujo e aciona o mecanismo que emite um tamborilar
titubeante. Exibindo-se, Pai Jules aciona agora uma caixinha de música, o que reforça
ainda mais o tom pueril e feérico da cena. Como se estivesse vivo, outro brinquedo
dispara como uma matraca. Pai Jules o silencia. Encorajado pelo enfeitiçamento cada
vez maior de Juliette, o velho lobo-do-mar exibe seu “bonhomme”, um boneco-maestro
que ele faz renascer para completar a atmosfera onírica que se realiza com a melodia de
Jaubert. Juliette contempla e acompanha musicalmente com um brinquedo. Pai Jules
encerra a manipulação do “bonhomme” e, gabando-se, agradece explicando a
procedência do títere. Mas Juliette, ávida de curiosidade, se mostra pouco interessada na
explicação “histórica”. Assim, ela penetra à sua maneira no universo do Pai Jules,
passando por uma fotografia erótica, um leque sino-japonês, uma navalha afiadíssima (a
“navaja”), mãos dentro de um pote, até as tatuagens do Pai Jules. Cria-se então uma
atmosfera de harmonia e cumplicidade que culmina com a troca de gentilezas sobre as
respectivas cabeleiras. Inicialmente, a cena do quarto do Pai Jules, se apresenta em um
realismo mais cru, mas a intervenção dos brinquedos “vivos” fornece uma conotação
simbólica para a atmosfera, criando uma tensão crescente entre a linearidade inicial e
uma fragmentação que culmina com a incrustação do “tondeur de chien”.
88
Com o
surgimento de Jean, a primeira tentativa de comunicação de Juliette com o Pai Jules será
marcada pela castração voluntária, no plano simbólico, do corte do cabelo.
A cena da descoberta do quarto do Pai Jules mostra-se emblemática também por
sua organização espacial. O ponto de vista instaurado aproxima-se bastante da
87
Para o papel criador desempenhado por Maurice Jaubert no cinema francês dos anos 30 cf. BAZIN,
André. Jaubert et le cinéma français. In: _____. Le cinéma français de la Libération à la Nouvelle
Vague. Cahiers du Cinéma: Paris, 1998. pp.313-316.
88
Esse corte súbito que chamei de incrustação, dado o seu não-lugar na narrativa, remete ao lugar da
compra da máquina utilizada para o corte de cabelo do Pai Jules. Provavelmente, esse corte foi inserido
na restauração de L’Atalante de 1990, mas ele é revelador de como opera a imaginação de Vigo no ato de
criação, assim como no plano em que Jean “(...) provavelmente sedento em razão da febre, lambe um
grande pedaço de gelo. Como a imagem é interessante, somos tentados a incluí-la na resconstituição ideal
101
perspectiva de Juliette, ora de seu campo visual, ora de sua presença física. Vemos suas
reações aos objetos ou vemos a câmera sugerir o caminho percorrido pelo olhar de
Juliette, como na cena em que ela encontra a “navaja”. Afinal, como já demonstrou
Nick Browne, “(...) a leitura de um plano como olhar de um personagem não requer que
a câmera ocupe, na topografia do filme a mesma localidade que o corpo do
personagem.”
89
Entretanto, o filme está longe de uma “montagem invisível” dada a
gradativa proeminência da fragmentação e das freqüentes intervenções do narrador.
Estamos aqui colhendo momentos importantes que valorizam o trabalho do
crítico, por isso o desprezo com a ordem e a transparência dos filmes. Podemos dar
seqüência à nossa vontade de flagrar Paulo Emílio operando com os filmes e a realidade
num jogo emaranhado de complementaridades. Assim é o camelô de L’Atalante que
repete a interjeição de um verdadeiro clochard de Montparnasse. O camelô é outra peça
fundamental em que Vigo transfigura o roteiro original. Sua capacidade nos faz lembrar
a importância do diálogo no filme. Já lembramos o lugar de Vigo entre o mudo e o
sonoro. A loquacidade dos personagens contrasta com o raro entendimento. É
sintomática a repetição por parte do Pai Jules das frases dos outros. Ele as repete para
lhes dar outro sentido. A promiscuidade física, reforçada pela exigüidade espacial
90
e
explicitada pela constante de plongés, contrasta com o isolamento afetivo que dificulta a
comunicação entre os personagens. A fascinação de Juliette pelo quarto do Pai Jules se
de L’Atalante, mas não é impossível que o próprio Vigo a tenha eliminado, julgando-a muito elaborada.”
GOMES, Paulo Emílio Sales. Jean Vigo. Paris: Seuil, 1957. p 198.
89
BROWNE, Nick. Réthorique du texte spéculaire (À propos de Stagecoach). In: Communications, n.23.
pp. 203-212.
90
A maneira de construir planos quase autônomos num espaço exíguo vai ser bem caracterizada por Alain
Bergala como “plano-aquário”. Comentando a maneira de criar de Vigo, Bergala se questiona como
Paulo Emílio: “Que faire aujourd’hui d’un plan comme celui où Jean Dasté frotte son visage contre un
bloc de neige gelée? Il est clair que ce plan n’a pás été programmé par Vigo comme une pierre dont la
destination était déjà prévue dans le plan de l’édifice. Sans doute s’est-il imposé à lui comme image
poétique surgie d’une rencontré dans le réel. Je l’imagine volontiers tournant à l’improviste, sur un coup
d’inspiration né de la vision de ces congères, ce plan non prémédité et isolé de tout autre avec qui il
pourrait faire série, en se disant: Je verrai plus tard au montage si et où il tournera sa place. Lui seul
pouvait en décider.
102
deve menos ao conteúdo de experiência que cada objeto encerra em si e que o velho
marujo busca a todo momento enfatizar, do que a prefiguração de um mundo por ela
desconhecido e que a chegada em Paris vem aumentar a ansiedade. Em cada objeto,
Juliette vê o quanto lhe falta, o quanto o mundo exterior pode lhe oferecer de poesia e
de encanto. Em cada objeto, Pai Jules vê o quanto experimentou. De um lado a
curiosidade, o desabrochar de uma vida, de outro o conhecimento e, entre eles, as
coisas. Em L’Atalante o caráter insular dos personagens se evidencia passo a passo,
como se a dificuldade de comunicação fosse responsável direta pelos grandes momentos
do filme, que são mudos: a marcha dos noivos, o quarto do Pai Jules, o milagre do
gramofone, o mergulho de Jean, e o enlace do casal separado no espaço. Porém, o filme
é recheado de diálogos ou, se se preferir, de monólogos, dos quais o Pai Jules é o
personagem-chave, dada sua maneira de “mastigar” o que os outros dizem, sem nunca
concluir nada. Neste universo de loquazes é a música que promove a união, rompendo o
continuum de um realismo canônico e alcançando uma tonalidade lírica que resume a
contento os desejos das personagens. São as quinquilharias do Pai Jules que excitam a
curiosidade de Juliette, e a música por elas produzidas vai calar ambos e criar uma
cumplicidade em torno da descoberta. Na cena do quarto, o Pai Jules e Juliette são
sempre enfocados de modo enviesado pela câmera, como se o narrador sugerisse a
desimportância das falas que só balizam o ambiente para a eclosão dos sentimentos.
Porém, como em L’Atalante Vigo está no coração de seu estilo de tendência
romântica, o aspecto social é visto pelo crítico em segundo plano. Esse descompasso
resulta em perda, na medida em que o lugar social dos personagens não é comentado.
Em contraposição ao espaço apertado do barco, a cidade aparece como lugar aberto,
mas repleto de conflitos ausentes no universo fluvial. Já vimos no início a pressa de
Jean em sair da margem. Numa evocação do cinema russo, vimos, num contre-plongé
103
de Boris Kauffman, uma camponesa desamparada com seu filho a se benzer. Mas toda
essa desconfiança da margem e suas personagens singulares só aumentarão com o
aportamento em Paris. O primeiro contato com a cidade será marcado pela mesma
loquacidade do barco, embora o tom irônico do camelô destoe bastante dos demais.
Quando ele entra em cena, ninguém consegue interrompê-lo. Nele, tudo se faz por
brincadeira. O camelô alimenta os desejos de Juliette em conhecer a cidade. As
avenidas, os bulevares, as luzes, as lojas. Com um tom que faz lembrar as canções de
Brecht e Weil, o camelô é a síntese da cidade. Da cidade idealizada. Juliette se deixa
fascinar por suas promessas, mesmo após a expulsão deste, a pontapés, por Jean. Sem se
conter, ela escapa para a cidade e contempla as vitrines do bulevar Haussmann,
anunciado no rádio, e no qual os brinquedos possuem ainda mais vida do que os do Pai
Jules. Bestificada, ela os contempla. Mas após ultrapassar a superfície da cidade, ela só
encontra a miséria, o desemprego e a solidão. A cidade dos grandes magazines, da moda
e da novidade era uma ilusão. Vemos aqui o questionamento social de Vigo que
também pulsa no filme. Após ser assaltada por um mendigo e verificar a partida do
barco, Juliette busca emprego mas se depara com uma enorme fila e um cartaz taxativo
na porta de uma fábrica: “Pas d’embauche”. Em seguida, um homem a confunde com
uma prostituta e lhe faz a corte de maneira ostensiva. Na cidade, o mendigo-ladrão é
quem explora ainda mais o mundo dividido de pobres e ricos, já escrutinado por Vigo
em A propos de Nice. Esse lado documental da cidade, que destoa do estilo do filme,
encontra sua motivação no tratamento encontrado. A cidade não é mais um décor como
em A propos de Nice, agora ela se configura como uma forma. Aqui o espaço da cidade
serve de contraste aos planos gerais, e uma figura se faz presente: a grade de ferro. Ela
cerca o caminho de Juliette, amplia sua solidão e reforça a divisão da sociedade. O
bandido-mendigo é contido em sua fuga por uma grade que o entregará aos burgueses
104
bem nutridos. O travelling em que vemos, através da grade, o pretenso punguista
capturado é explícito em anunciar seu futuro. O Pai Jules, quando procura Juliette,
perambula sem segurança por uma ponte gradeada. A cidade é o contraponto do mundo
fluvial de L’Atalante, e a forma inédita no cinema como este último é elaborado merece
atenção.
A abertura do filme já prenuncia a disposição dos personagens: o Pai Jules
apressado e resmungão, a insatisfação imprecisa de Juliette e o exagerado ascetismo de
Jean. A montagem intercala planos descritivos com a melodia de Jaubert, ora em tom
cômico, quando o Pai Jules é enfocado, ora em tom dramático quando os noivos
caminham. O embarque da noiva no barco pelo mastro de carga marca bem o caráter
insólito do casamento, nos introduzindo no mundo fluvial de L’Atalante. A ficção
fluvial já fora, nos anos 20, alvo de filmes empenhados na busca pelo realismo, filmes
como La fille de l’eau (Jean Renoir, 1924), La belle nivernaise (Jean Epstein, 1924),
Maldone (Jean Grémillon, 1927) ou L’hirondelle et la mésange (André Antoine, 1920).
Entretanto, nesses filmes não encontramos um tratamento que relacione de maneira
conseqüente a disposição dos personagens com o fluxo das águas. Após a constituição
da comunidade d’O Atalante, até a chegada em Paris, teremos uma linha tênue entre o
rio e o barco que nele navega. Juliette vestida de noiva anda lentamente sobre o barco,
como se andasse sobre a água à procura de um caminho seguro, mas o lúgubre tempo
anuncia um futuro incerto. O lento travelling com a música de Jaubert reforça a
trajetória titubeante da noiva, que na contracorrente busca seu rumo. Em seguida,
Juliette despertando com a “aubade” oferecida pela tripulação, o doce fluir do barco e a
luz do dia marcam a harmonia do grupo, que entoa a “canção do marinheiro”. A cena
chega ao ápice com a revelação carnal do casal, interrompida pela brusca chegada na
margem. A revelação do “segredo” das águas, que apresenta a figura da amada, mas que
105
Jean não alcança mesmo mergulhando a cabeça no gelado rio. Por fim, a noite chuvosa
em que a rotina parece se sobrepor definitivamente à alegria do barco. Daqui por diante,
o mundo exterior marcará presença por meio de sua atmosfera funesta e cheia de riscos.
O mergulho revelador de Jean, seguido do milagre do gramofone, será a ruptura com o
mundo das sombras e a busca do retorno da harmonia, mesmo se para isso for preciso
buscar Juliette na cidade: lugar da opressão e da pobreza, que as grades de ferro
pontuarão, em contraposição ao espaço reduzido do barco. A cena do mergulho servirá
para Vigo como desenvolvimento de procedimentos testados em La natation par Jean
Taris. Mas em L’Atalante o viés cômico desaparece, e a câmera lenta com a melodia e a
sobreimpressão de Juliette compõem a imagem mais perfeita do filme ao fundir
linearidade e fragmentação.
O rio é o lugar da travessia, da vida, da procura do mundo. O fluir da água é um
símbolo recorrente do viver, e viver significa descer pela corrente e não observar o rio
pela margem. É por meio do rio que se delineia o mundo, mas é somente ultrapassando-
o que as personagens se realizam. É a presença da margem que engendra a crise e é a
compreensão desta, de seus riscos e vantagens que possibilita o retorno da harmonia.
Essa presença poética do rio no final do filme não significa um final feliz para o casal,
mas a constatação de um longo caminho a ser percorrido, novas crises e conflitos. Por
isso, do começo ao fim, o filme de Vigo ultrapassa o roteiro tradicional de A. Guinné,
transformando um argumento prosaico em poesia cinematográfica.
Outro aspecto problemático do livro, já notado por André Bazin
91
, é a inflação
do trabalho sobre a fortuna crítica. Tal procedimento encerra cada capítulo sobre os
filmes, facilitando a compreensão de como a originalidade de Vigo rompe com o
campo, além de nos servir de guia à outra etapa da trajetória que acompanhamos.
91
BAZIN, André. Présence de Jean Vigo. L’Observateur, 12.09.1957.
106
Porém, no capítulo destinado a L’Atalante, tal procedimento demasiado descritivo,
enfadonho mesmo, quase se destaca da análise. Por sua vez, o apêndice La carrière de
l’oeuvre, desenvolvimento do artigo publicado em Positif no número dedicado a Jean
Vigo
92
, parece uma tentativa de fundar um lugar no campo da crítica cinematográfica
francesa, além de uma análise exaustiva da ideologia desta crítica. Mas a análise não
pode perder de vista os diversos procedimentos requeridos por nosso autor. Sou tentado
a concordar com André Bazin, que vê no recolhimento da fortuna crítica de Vigo um
procedimento exaustivo, enfadonho mesmo, que repisa o que já foi dito nos capítulos
anteriores.
93
Entretanto, se enxergarmos na perspectiva do ensaio, o capítulo se torna
importante para entendermos a recusa de Vigo, mas também a disposição crítica de
Paulo Emílio.
A carreira da obra escrutina a recepção de Vigo e traça um panorama preciso da
crítica de cinema na França dos anos 30. Período de raquitismo crítico, a década possui
uma unidade na sua diversidade política e estética, e pode ser chamada de Idade Média
da crítica de cinema francesa, já que se posiciona entre a eclosão da crítica de vanguarda
dos anos 20 e o surgimento da crítica moderna.
A recepção da obra de Vigo apresenta bem o problema quando se verifica o
diagnóstico semelhante da crítica. O principal crítico do período, Lucien Rebatet (que
Paulo Emílio cita François Vinneuil, um de seus pseudônimos), partidário eterno de
Maurras, resume com perfeição a recusa de Vigo.
“Alguns fragmentos de L’Atalante revelam um vigor amargo que certamente
teria sido melhor empregado se Jean Vigo tivesse sobrevivido. Mas no conjunto, o filme
é esforçado, de uma lentidão desesperadora. Com apenas cinco anos, ele parece tão
arcaico e fora de moda como os ensaios da vanguarda de 1920.” (p.229)
92
GOMES, Paulo Emílio Sales. L’oeuvre de Vigo et la critique historique. Positif, n.7, mai-1953.
93
BAZIN, André. Cinéma. In: Esprit, n. 266, octobre 1958.
107
Para a crítica do período, que Philipe d’Hugues chama de família unida e
desunida
94
, a unanimidade em torno do “realismo poético” era uma verdade
incontornável. Os filmes de Renoir, Duvivier, Carné, e sobretudo os de René Clair,
apresentam “la tendre féerie des faubourgs” que domina o cinema francês. Para a crítica
francesa do período, que sempre desconfiou dos traços políticos dos filmes, o filho de
Almereyda rompia com o cânone ao apresentar corpos sujos e maltratados ou
sexualizados sem pudor, envolvidos em raiva, ironia e romantismo.
Portanto, o que Bazin viu como “amorfo” possui um caráter revelador para a
história da crítica, assim como para a análise da obra de Vigo. A partir do estudo da
recepção da obra, o crítico revela o que Vigo não é, e por isso não se inclui no repertório
da crítica da época.
A prova que a diversidade de aspectos da análise de Paulo Emílio traz são os
resultados que a crítica em torno de Vigo tem revelado nos últimos anos.
Desenvolvendo a argumentação do crítico, Michel Chion posiciona L’Atalante no
centro do primeiro cinema falado, caracterizando-o como “um filme sobre a palavra”.
95
Alain Bergala, por sua vez, recuperando a noção de um todo fragmentado e salientando
a elaborada noção de plano em Vigo, cunha o termo “plano-aquário”.
96
Enquanto que
Jonathan Rosenbaum, seguindo de perto as observações de Paulo Emílio, tece
considerações sobre o tipo de sexualidade em jogo em L’Atalante.
97
E, para retornarmos
94
HUGUES, Philipe d’. Critique et politique. In: ZIMMER, Jacques e CIMENT, Michel. La critique de
cinéma en France. Paris: Ramsay, 1997.
95
CHION, Michel. Vigo: la matière et l’idéal. In: ______. Un art sonore, le cinéma histoire, esthétique,
poétique. Paris: Cahiers du Cinéma, 2003.
96
BERGALA, Alain. Le plan-aquarium. In: BOURGEOIS, N., BENOLIEL, B., LOPPINOT, S. de. Op.
cit.
97
ROSENBAUM, Jonathan. Jean Vigo’s secret: L’Atalante . In: ______. Placing movies the practice of
film criticim. California: University California Press, 1995.
108
ao livro, citemos François de la Breteque, que no rastro de Jean Vigo desenvolve uma
crítica genética do texto fílmico de L’Atalante.
98
Para a interpretação de L’Atalante, Paulo Emílio contou, além dos roteiros, das
anotações das filmagens de Vigo e de outros participantes da produção, com
correspondências, textos críticos de época, entrevistas, e com o esforço de
reconstituição do filme dada sua complicada trajetória. A morte prematura de Vigo e a
avidez dos produtores da Gaumont impuseram ao filme uma nova montagem,
massacrando a idealizada por Vigo e Louis Chavance. Em 1950, Paulo Emílio e o
crítico florentino Panfilo Colaprete realizaram uma reconstituição do filme. Num gesto
de crítica genética do texto fílmico avant la lettre, os dois criaram as bases para
restauração definitiva em 1990. Aqui nos interessa sugerir como esse trabalho forneceu
subsídios para a interpretação, pois é na reconstituição que o filme se expõe
definitivamente ao crítico.
Para a reconstituição de L’Atalante, Paulo Emílio contou com toda a experiência
crítica que a aproximação à obra de Vigo lhe permitiu. Todo o material colhido foi
somado à intuição do crítico para ordenar coerentemente o filme. Percebemos como o
contacto físico com o filme foi fundamental, pois somente essa experiência poderia
colocá-lo diante de algumas inquietações de Vigo, como, por exemplo, a indecisão em
torno da cena que Jean, febril, lambe um pedaço de gelo, ou a escolha dos planos
intermináveis em que o marinheiro vaga entristecido pela praia. Por fim, o que aqui
observamos de maneira separada e truncada se dá muitas vezes em Paulo Emílio, com a
contribuição decisiva de uma escrita literária, de forma coesa. Assim, mais do que
proceder a uma leitura crítica, nos detivemos na forma como Paulo Emílio constrói um
98
BRETEQUE, François de la. Historia y arqueologia del cine: por una genética del texto fílmico. El
caso de L’Atalante. In: Archivos de la Filmoteca, n.10, oct-dic, 1991. A importância do conhecimento do
estado físico do filme, suas diversas cópias, está nas revelações que o cotejamento entre elas proporciona,
109
tipo de análise autônoma se comparado a seus pares franceses, e como a obra ainda
oferece subsídios para quem se detém na interpretação de Vigo. Passados cinqüenta
anos de sua publicação, o livro Jean Vigo ainda é uma fonte importante para a crítica de
cinema, e seu lugar na trajetória do crítico é central para entendermos a originalidade de
toda a obra.
O encontro com Jean Vigo não significou simplesmente a possibilidade de
completar uma formação intelectual, muito menos foi a forma encontrada para se incluir
no campo da crítica cinematográfica francesa: ele foi sobretudo um feliz encontro na
medida em que ofereceu uma via para uma imaginação que, no universo do cinema,
encontrara uma maneira de experimentação formal. Se é certo que a eleição de um
panteão pessoal diz muito sobre si mesmo, e quanto mais penetramos na obra de um
Mestre mais podemos circunscrever nossos próprios valores pessoais, nosso
conhecimento de causa com inteira liberdade, é possível afirmar que o encontro de
Paulo Emílio com Vigo promoveu simultaneamente a descoberta do jovem cineasta mas
também cristalizou no crítico procedimentos de análise. O que se pode sublinhar é que o
método crítico empregado por Paulo Emílio a propósito de Vigo é aquele que permite
ao cineasta exercer sobre o crítico o máximo de influência, e que, por outro lado,
permite ao crítico usufruir ao máximo da experiência estética do cineasta.
Aqui somente se buscou salientar as diversas maneiras construídas por Paulo
Emílio para abordar a obra de Vigo e como elas misturam análise interna dos filmes
com biografia e a história, criando uma forma original, como se o acesso ao estilo fosse
facilitado pela particularidade dos sentimentos íntimos. Em Jean Vigo, o que o leitor vê
se estruturar diante de seus olhos não é uma mera biografia em que os fatos são
descritos e organizados cronologicamente. Definitivamente diante deste livro não
e essa perspectiva teve em Paulo Emílio um pioneiro. Cf. BORDE, Raymond. Los archivos
cinematograficos. Valencia: Ediciones Filmoteca, 1991.
110
estamos frente a uma descrição empírica da realidade. Trata-se de uma análise
multifocal, na qual a imaginação possui papel-chave, que visa compreender o
desenvolvimento do homem por trás da obra. Embora, em determinados momentos, a
busca pelo estilo de Vigo nem sempre alcance os filmes, dedicando-se excessivamente
em elementos externos, como vimos em L’Atalante. Mas deslocadas para a análise do
cinema brasileiro, as etapas de investigação que detectamos em Jean Vigo ganham
sentidos diversos. Seria então importante verificar as transformações desse tipo de
crítica no desenvolvimento da obra de Paulo Emílio, o papel formador do crítico para a
geração do Cinema Novo, e para isso passaríamos pelos ensaios do Suplemento
Literário, manancial rico e ainda pouco explorado, para desembocar no estudo sobre
Humberto Mauro. É inegável a semelhança das formas investigativas nos livros de 1957
e 1974, porém a realidade brasileira apresentará novos problemas e dará novos
significados a esses procedimentos em torno dos filmes, das biografias e da recepção.
Mas isso, como diria Kipling, é uma outra história.
111
Considerações finais
A tentativa em apresentar momentos significativos da trajetória de Paulo
Emílio Sales Gomes me levou a entender sua obra como uma totalidade, que se inicia
nas fileiras do Modernismo engajado dos anos 30, se amplia nas páginas da revista
Clima para amadurecer na França do pós-guerra. Em geral essa fase da obra do crítico é
tratada como “cosmopolita” em razão de sua radicalização nacionalista dos anos 70. Se
o cinema brasileiro é um tufo de grama de segunda ordem no jardim das musas, não
podemos deixar de entendê-lo à luz de outras cinematografias. Por isso, mais do que
vítima do cosmopolitismo abstrato tão comum em intelectuais de países de cepa
colonial, tendo a ver essa fase da obra de Paulo Emílio como um laboratório crítico em
112
que se desenvolveram tendências e procedimentos que renderão inúmeros frutos em sua
volta ao Brasil em 1954. A exigência de padrões mais científicos para a história do
cinema brasileiro, a ênfase nos problemas da representação da fala brasileira, a
propriedade estética em julgar cineastas estrangeiros tão diferentes em estilo e técnica, o
reconhecimento do valor do mau filme. Essas questões só podem surgir após um intenso
contato com a cultura cinematográfica e a percepção de como ela se transforma em cada
filme.
Outro aspecto importante é seu pendor de ensaísta. O ensaio de Paulo Emílio se
nutriu do gosto pela experiência do Modernismo, do ímpeto teorizante do Chaplin Club
amenizado pela flexibilidade de Plínio Sussekind Rocha, mas também se inspirou
bastante na maneira como o crítico francês André Bazin constitui uma teoria do cinema
a partir do reconhecimento de uma linguagem no cinema moderno. Entretanto, para
Paulo Emílio, cada filme instaura uma forma e exige uma investigação que praticamente
dispensa o conhecimento a priori. Como se para ele o Cinema não existisse, somente os
filmes. Mas essa noção do ensaio também se vale da própria experiência do crítico. Sua
experiência como escritor e como homem diante da história. Neste sentido, sua
trajetória política esclarece a obsessão por Almereyda, a maneira como em todos os
períodos de sua vida a política aparece entremeada com o estilo. Por isso, a criação de
Hag Reindrahr é um ponto de partida para se entender como a imaginação do crítico
trabalha misturando realidade e ficção.
A conexão entre realidade e ficção se intensifica em sua obra até que ganha
forma definitiva em Três mulheres de três Pppês. O que surge nos anos 30 como mera
brincadeira se desenvolve em Clima, para chegar até Humberto Mauro, Cataguases,
Cinearte, e se completa na ficção. Essa disposição ensaística é a marca de sua posição
na fronteira da transformação do campo intelectual, no debate em torno de uma “cultura
113
dos sentimentos” em oposição a uma “racionalidade fria”. O ensaio é a forma
privilegiada de sua crítica, e a maneira como articula erudição, experiência e análise
interna compõe um juízo crítico importante para a formação de um pensamento
cinematográfico no Brasil.
O aspecto literário do ensaio de Paulo Emílio é outra marca a seu favor. A
maneira como uma situação é narrada não possui uma funcionalidade explícita que se
soma à interpretação. Sua capacidade em ficcionalizar elementos da realidade não
depende de como estes se agrupam para favorecer a interpretação, mas como eles
auxiliam na evocação de uma atmosfera, delineam uma personalidade ou definem uma
situação. Em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte temos no início uma narração em
forma de crônica de momentos da vida de cataguasense, que de certa forma lembram os
procedimentos utilizados para Almereyda. Alfredo Bosi não compreendeu a disposição
ensaística particular, pois para ele todo o panorama que abre o livro não se soma à
análise dos filmes. A ficcionalização de elementos da realidade, sua ordem expositiva
busca apresentar um universo, uma estrutura de sentimentos, importante para a fatura
das obras, e resta ao leitor traçar conexões e o crítico não as impõe. Assim, a opção
literária em Paulo Emílio não se deixa caracterizar facilmente, pois a discrição
metodológica abriga em si uma série de procedimentos que, se retirados e analisados
por um só lado, perdem sua validade para o todo. A escolha literária ultrapassa a
erudição, recria elementos extracinematográficos para em seguida verificar sua
continuidade estética. Para um cinema provinciano ainda carente de investigações
históricas, que exigem conexões extracinematográficas, esses procedimentos são
imprescindíveis para se compreender o significado de uma produção marcada pela
mediocridade. Por isso, entender a evolução da crítica de Paulo Emílio ainda pode nos
surpreender.
114
Não procurei esgotar a análise da obra de Paulo Emílio, apenas lançar luz sobre
um período pouco debatido e sobre aspectos ainda incompreendidos de sua crítica. A
diversidade de ferramentas analíticas para a interpretação que a obra exige somente nos
faz concluir sobre a necessidade de um retorno a Paulo Emílio.
115
Agradecimentos
Este trabalho não teria sido realizado sem a colaboração inestimável de diversas
pessoas. Olga Toshiko Futemma foi muito mais do que uma colaboradora. Com sua
afabilidade me apresentou o arquivo de Paulo Emílio e me proporcionou preciosos
atalhos para o conhecimento da obra do crítico. Ismail Xavier foi o orientador no
sentido pleno, que, com rigor, paciência e camaradagem, sugeriu caminhos com toda a
liberdade, como só o verdadeiro professor faz. Carlos Augusto Calil foi o mais generoso
leitor que tive. Seu profundo conhecimento da obra de Paulo Emílio me ajudou
enormemente, e boa parte dos questionamentos a que me propus, foi lançada pelos seus
textos sobre o crítico. Além disso, seu constante incentivo me fez ultrapassar os
momentos de hesitação.
Outros nomes também foram importantes para a execução do trabalho, como os
de Carlos Eduardo Jordão Machado e Olavo Soares, pelo pontapé inicial, o de Sarah
Sarzynski, Julien Prévoteaux e João Carlos Zuin, pela ajuda bibliográfica. Gabriela
Queiroz merece um agradecimento especial pela generosidade e pela guarida, decisiva
na redação do trabalho. Rodrigo Archângelo me influenciou por sua enorme capacidade
de trabalho. Ao amigo Pedro Plaza Pinto devo inúmeras sugestões sobre a obra do
mestre. Eduardo Victorio Morettin e Iná Camargo Costa contribuíram com suas leituras
críticas e cheias de incentivos.
Um agradecimento institucional se faz necessário a toda a Cinemateca
Brasileira, sobretudo ao setor de documentação. Anna Paula Nunes, com serenidade,
ajudou no empréstimo de livros, Raphael Messias revisou com extremo rigor o texto
final, e Fernando Fortes, com toda a gentileza, soube indicar as melhores imagens de
Paulo Emílio. Alex Andrade, Rafael Carvalho e Remier Lion merecem mais que
agradecimentos, pela compreensão e pelo estímulo.
116
Por fim, devo agradecer o apoio de minha família: Cida, Telma, Rosa, Ana,
David, Marcelo e César, sem falar na contribuição à l’insu de meus amigos do Jardim
Ângela: Dequias, Joãozinho, Nanato, Márcio e Akim.
117
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