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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
BIANCA RECKER LAURO
A DIVERSIDADE NO/DO COTIDIANO DE CRECHE: IDENTIDADES,
CONHECIMENTOS E ESPAÇOSTEMPOS
Juiz de Fora
2007
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BIANCA RECKER LAURO
A DIVERSIDADE NO/DO COTIDIANO DE CRECHE:
IDENTIDADES, CONHECIMENTOS E ESPAÇOSTEMPOS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação, da Faculdade
de Educação da Universidade Federal de
Juiz de Fora, para obtenção do título de
Mestre, sob a orientação da Professora
Doutora Luciana Pacheco Marques.
Juiz de Fora
2007
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TERMO DE APROVAÇÃO
BIANCA RECKER LAURO
A DIVERSIDADE NO/ DO COTIDIANO DE CRECHE: IDENTIDADES,
CONHECIMENTOS E ESPAÇOSTEMPOS
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Juiz de Fora, pela seguinte banca examinadora:
__________________________________________
Profª. Drª. Luciana Pacheco Marques
(Orientadora)
Programa de Pós-Graduação em Educação,
UFJF/JF
__________________________________________
Profª. Drª. Carmen Sanches Sampaio
Programa de Pós-Graduação em Educação,
UNIRIO/RJ
__________________________________________
Prof. Dr. Jader Janer Moreira Lopes
Programa de Pós-Graduação em Educação,
UFF/RJ
___________________________________________
Profª. Drª. Léa Stahlschmidt Pinto Silva
Programa de Pós-Graduação em Educação,
UFJF/JF
Juiz de Fora, 13 de março de 2007
A todos aqueles que acreditam que o
mundo ainda pode ser um lugar
bonito de se viver.
E a todas as crianças que nos fazem
acreditar nessa esperança de um
mundo melhor.
AGRADECER!
A Deus por tudo que faz e significa em minha vida, força constante nos momentos de
angústia que me presenteou na vida com pessoas especiais como:
Os amigos da Creche Casablanca: Cris, Verônica, Cecília, Carmem, Ana Paula, Regina,
Maria da Dores, Deusuita, Carmem Granja, Lena, Sr. Tiãozinho e bolsistas, pessoas
que guardo por toda vida a quem muito devo e muito estimo como criaturas lutadoras,
humanas, solidárias e de fé.
As amigas, Fernanda Cardoso, Fernanda Dias, Silvana, Neila, Aretusa, Marcela,
Graciele, Rosângela e todas as outras que me permito ausentar o nome, mas não deixo
de agradecer por cruzarem meu caminho e compartilharem comigo uma amizade.
O Núcleo de Educação Especial, por me receber sempre de braços abertos e por ter
Em especial a minha mãe, aquela de onde tudo começou, mulher de e de força que,
como a Fênix que ressurgiu das cinzas, ressurge todos os dias em nossas vidas de
esperança em esperança, mostrando-me que a vida se renova a cada amanhecer.
RESUMO
Minha pesquisa teve como objetivo o estudo sobre a diversidade no/do cotidiano da
Creche Casablanca a partir dos elementos: identidades, conhecimentos e espaçostempos.
Adotei como referencial metodológico a pesquisa no/do cotidiano, que se situa no
paradigma da complexidade. Nosso contexto foi uma creche cooperativa da cidade de
Juiz de Fora Creche Casablanca. Juntamente com os profissionais da Creche
Casablanca e bolsistas do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora
fiz a análise e refleti o cotidiano da creche a partir do registro das observações feitas na
creche em forma de nota expandida, atas das reuniões de formação em contexto,
entrevistas abertas com pessoas da comunidade, o Projeto Político-Pedagógico da
creche, avaliações das crianças que foram realizadas pelas professoras e fotografias do
espaço escolar. Concluí que na Creche Casablanca as identidades das crianças são
marcadas pelas diferenças, ocorrendo rotulações em função de um padrão de perfeição
eleito pelas professoras. Quanto ao conhecimento, constatei que a creche valoriza as
diferentes formas de saber de suas crianças e daqueles que vivem aquele cotidiano. E
quanto aos espaçostempos estão muito delimitados na tentativa de se manter a ordem.
Palavras-chave: Educação Infantil – Creche - Diversidade
ABSTRACT
The object of this research was the study of the diversity in the daily routine at Creche
Casablanca (Casablanca Nursery School) based on the following elements: identities,
knowledge background and timespaces. The methodological reference used was the
daily-routine research as it stands within the paradigm of complexity. The context was a
cooperative nursery school in the city of Juiz de Fora, namely Creche Casablanca.
Along with Creche Casablanca’s staff and UFJF’s (Universidade Federal de Juiz de
Fora) Pedagogy College scholarship students, the nursery school’s daily routine was
studied and analyzed based on the registration of observations made in the school in the
form of expanded notes, minutes of context-formation meetings, open interviews with
people living in the community, the school’s Political-Pedagogical Project, teachers’
evaluation of the children and photographs of the school setting. The children’s
identities at Creche Casablanca were concluded as being marked by differences, with
the presence of labels due to a perfection pattern chosen by the teachers. As to the
knowledge background, the school was observed to value the different forms of
knowledge in their children and in those who take part in its daily routine. As to the
timespaces, they are much too constricted in an attempt to keep the order.
Key-words: Child Education – Nursery School - Diversity
SUMÁRIO
1 - O MERGULHO NA PESQUISA: CAMINHO E OBJETIVO
11
2 - A HISTÓRIA QUE SE FAZ: CRECHE
23
3 - DA IDENTIDADE UNIVERSAL ÀS IDENTIDADES
MÚLTIPLAS 45
4 - DO CONHECIMENTO REGULAÇÃO AO CONHECIMENTO
EMANCIPAÇÃO 59
5 - DA LINEARIDADE À SIMULTANEIDADE DOS
ESPAÇOSTEMPOS 95
6 - O PESQUISAR NO COTIDIANO: PISTAS E
(IN)CONCLUSÕES 121
7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 135
8 - ANEXOS 143
10
Se se contesta hoje a modernidade nessa aversão
que teve pela diferença, é precisamente porque nem
todas as diferenças necessariamente inferiorizam as
pessoas. diferenças e igualdades, e nem tudo
deve ser igual e nem tudo deve ser diferente. Então,
num debate multicultural, nessa tal configuração
cognitiva que proponho, é preciso, como princípio de
conversa, aceitar um imperativo: temos o direito a
ser iguais quando a diferença nos inferioriza,
temos o direito a ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza. Sem esse princípio
não me parece que seja possível um diálogo
multicultural progressista.
(Boaventura SANTOS, 1995, n/p)
11
SAUDAÇÃO – ENTRADA DA CRECHE CASABLANCA
12
1 - O MERGULHO NA PESQUISA: CAMINHO E OBJETIVO
Eu não saberia dizer se a travessia do
século foi para mim uma travessia de
desertos com alguns oásis ou algumas
temporadas de oásis em oásis, com
passagens pelo deserto. [...] De qualquer
forma, fui e sou um itinerante. Toda vida é
itinerante mas, sem cessar, a minha vida
despertou minhas idéias e meus atos e fez
interagir uma sobre os outros. (MORIN,
2003a, p. 147)
O trabalho que hoje aqui relato é um pouco do que sou, do que
penso e do que fui construindo em toda minha trajetória enquanto
profissional, educadora e ser humano. Um pouco do vivido desse
espaçotempo do mestrado e de experiências anteriores a ele que, de
alguma forma, me tece/(re)tece enquanto sujeito. Consiste na trama que
envolve experiências entrelaçadas a autores que a mim foram
apresentados, levando-me a refletir sobre as questões dos cotidianos nos
quais me propus mergulhar.
Sou um emaranhado de gente, gente que, quando saio e piso no
chão da escola, ou da creche, não consigo deixar em casa. Essa gente me
persegue, dita as roupas que quero vestir, a comida que quero comer, os
lugares em que quero estar. Eles me constituem e me fazem ser o que hoje
sou.
Essa gente me faz e me refaz todos os dias, sou o que ela é,
pessoas que capturo nas ruas, crianças cujas histórias aprisiono, como
aquele menino que um dia entrou em minha sala com olhar desconfiado,
com um semblante de esquecido e que todos os funcionários insistiam em
me dizer:
Não se preocupe com esse aí, ele não irá aprender nada, foi
assim com os irmãos dele, ninguém daquela casa consegue
aprender. Você fará isso (mão na testa como se enxugasse o
suor) e ele aprenderá isso (unha do dedo mindinho).
(Funcionária da creche)
Duas pessoas, ainda que
enfrentem o mesmo
acontecimento, não fazem
a mesma experiência é
para cada qual sua,
singular e de alguma
maneira impossível de ser
repetida. O saber da
experiência é um saber que
não pode separar-se do
indivíduo concreto em que
encarna [...] o saber da
experiência não pode
beneficiar-se de qualquer
alforria, quer dizer,
ninguém pode aprender da
experiência de outro, a
menos que essa experiência
seja de algum modo
revivida e tornada própria.
(LARROSA, 2002, p. 27)
13
Uma vida condenada por um futuro traçado, resquícios dos irmãos que
foram, destino do que há por vir. A história desse menino de alguma
forma vive em mim. E me faz pensar no tipo de educadora que sou e quero
ser e no tipo de educação que procuro acreditar.
A história desse trabalho inicia-se no Curso de Pedagogia da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursando o período, no ano
2000, tive a oportunidade de participar, por um período de 6 meses, como
bolsista de treinamento profissional da Pró–Reitoria de Graduação, de um
projeto intitulado “Caleidoscópio” do Núcleo de Educação Especial -
NESP. Os objetivos eram: proporcionar aos alunos do Curso de Pedagogia
um treinamento voltado, especificamente, para a atuação profissional na
Educação Infantil; atuar junto aos educadores de uma creche comunitária
da Prefeitura de Juiz de Fora/MG, refletindo sobre a prática pedagógica
desenvolvida em reuniões específicas para este fim, realizadas,
semanalmente, com todos os profissionais da creche.
Iniciava-se com esse projeto minha relação com as creches e a
Educação Infantil, focos de meu interesse, temáticas fundamentais na
minha formação enquanto educadora e pesquisadora.
Posteriormente, fui bolsista de Iniciação Científica do projeto
“Programa de Apoio à Educação Infantil PAEDI” também do NESP,
financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas
Gerais (FAPEMIG). Este projeto foi desenvolvido durante o ano 2001
junto a uma creche comunitária da Prefeitura de Juiz de Fora e durante o
ano 2002 em uma creche cooperativa. Os objetivos do projeto eram traçar
o perfil dos profissionais, das famílias e das crianças das creches, atuar
junto aos profissionais da creche locus da pesquisa, analisando e
modificando as ações numa construção coletiva de uma educação de
qualidade para todos, tendo como metodologia a pesquisa-ação;
desenvolver uma proposta de formação dos profissionais, analisando e
modificando tal proposta para posterior implementação nas demais
creches municipais de Juiz de Fora/MG. O PAEDI atuava,
14
especificamente, com os profissionais das instituições, buscando um
aperfeiçoamento da prática e problematizando questões referentes a uma
Educação Infantil Inclusiva que respeitasse a diversidade humana.
Através desses projetos, pude observar a realidade das crianças
que freqüentavam duas creches públicas e uma cooperativa de Juiz de
Fora/MG, os perfis econômicos de suas famílias e a formação dos seus
profissionais. Assim, minha “rede” aos poucos foi sendo tecida. Situações
vividas no/do cotidiano das creches me faziam aprofundar e buscar nas
teorias possíveis respostas e, aos poucos, os saberes foram se constituindo
e me constituindo enquanto educadora e pesquisadora.
Muitas dificuldades e obstáculos surgiram nesse percurso.
Resistências frente à mudança e ao novo. Práticas consolidadas e
enraizadas impediam grandes transformações. Questões que, muitas vezes,
dificultavam o andamento do projeto.
Diante das dificuldades, fui buscar, juntamente com os
profissionais da creche, um diálogo com os vários teóricos da educação e
através da pesquisa, reflexão e diálogo sobre os fazeres pedagógicos da
Educação Infantil, pude ir construindo um pensar que justificasse minha
prática.
Na creche cooperativa, uma das creches onde atuei como bolsista
do PAEDI, vivi a experiência de uma gestão praticada juntamente com a
comunidade, onde os saberes eram divididos e compartilhados.
Acrescentei fios de cooperação e diálogo em minha rede na busca de uma
educação democrática.
Depois de formada, fui convidada a assumir a coordenação desta
creche cooperativa tendo, assim, a oportunidade de vivenciar uma outra
prática, não mais como pesquisadora, mas como profissional da creche.
Nesse mesmo período terminei meu bacharelado na Universidade
Federal de Juiz de Fora com o trabalho de conclusão de curso intitulado: O
discurso de educadores frente à diferença na infância, onde discuti a
Como princípio alicerçado
no dado atual da
diversidade, a inclusão
contempla necessariamente
todas as formas possíveis
da existência humana. Ser
negro ou branco, ser alto
ou baixo, ser deficiente ou
não-deficiente, ser homem
ou mulher, rico ou pobre
são apenas algumas das
inúmeras probabilidades
de ser humano. É nessa
abrangência plena que
situamos o nosso sentido
do termo “inclusão”.
(MARQUES e
MARQUES, 2003, p.223)
As cooperativas são
sociedades de pessoas, com
forma e natureza jurídica
próprias, de natureza civil,
não sujeitas a falência,
constituídas para prestar
serviços aos associados.
(BRASIL, 1971, art. 4º)
15
questão das estigmatizações sofridas pelas crianças que freqüentavam as
creches, marcas essas carregadas, talvez, por toda uma vida.
No ano seguinte, assumi uma sala de aula de uma creche
conveniada da Rede Municipal de Educação de Juiz de Fora. Vivi
situações das mais inusitadas e enriquecedoras que uma professora de
Educação Infantil poderia viver e afirmo que naquele ano minha formação
enquanto profissional se deu através das crianças que compartilhavam
comigo aquele momento. Elas me formaram/educaram no sentido de
respeitar o tempo de cada uma, a olhar cada criança como única, fui
aprendendo ser impossível generalizar e comparar uma criança com a
outra, pois cada uma é uma.
Paralelamente, realizei o Curso de Especialização em Educação
Infantil na Universidade Federal de Juiz de Fora onde foi possível, mais
uma vez, aprofundar questões que dizem respeito à Educação Infantil,
sendo o tema da minha monografia: A formação em contexto de
professores de educação infantil, na qual discuti uma experiência de
formação em contexto de professores da mesma creche cooperativa de
Juiz de Fora onde havia atuado como bolsista de Iniciação Científica e
coordenadora.
No momento em que vivemos a transição da Modernidade para a
Pós-Modernidade (Boaventura SANTOS, 2000), a diversidade humana
toma grande relevância enquanto paradigma que pressupõe o
reconhecimento do um e do outro, entendendo-se aqui a aceitação do outro
não como tolerância que nos remete à idéia de somente “suportar” as
diferenças, mas como respeito ao outro. Até mesmo porque as diferenças
não devem ser “suportadas” ou “toleradas”, mas entendidas como
constitutivas de todos os sujeitos.
Daí a importância de as instituições de Educação Infantil estarem
em constante formação para esse novo modo de ver e compreender os
seres humanos. Quando falamos dessa formação, não falamos somente da
formação acadêmica, mas de uma formação que se no/do cotidiano
A tolerância não está isenta
de ambigüidades, mas
principalmente: expressa
por acaso uma utopia de
profundo (re) conhecimento
da alteridade? Por um lado,
é certo que a tolerância é
um convite para admitir a
existência das diferenças.
Por outro, contudo, essa
admissão constitui também
a essência de seu próprio
paradoxo: aceitar as
diferenças supõe aceitar
também a intolerância.
(SKLIAR, 2003, p. 132-
133)
16
dessas instituições, que seja reflexiva e crítica, possibilitando a cada
sujeito desse cotidiano um constante repensar sobre o fazer pedagógico.
O cotidiano escolar é o conjunto de relações e práticas que
ocorrem no dia-a-dia das instituições de ensino. Palco de relações e
interrelações que se tecem/destecem e retecem cotidianamente. Adentrar
por esse cotidiano é embarcar numa grande aventura onde o mesmo
aponta os possíveis caminhos e os contornos a serem explorados.
Ao começar essa pesquisa, desembarquei novamente na creche
cooperativa em que havia atuado como bolsista de Iniciação Científica,
coordenadora e pesquisadora na cidade de Juiz de Fora/MG. Posso dizer
que reencontrar esse “espaço escolar” gerou em mim um afloramento de
sentimentos já há algum tempo adormecido. Senti-me como se algum
“fio” tivesse ficado sem e que era a hora de “retecê-lo” e refazer a rede
que há algum tempo atrás havia começado a tecer.
Houve momentos em que uma ou outra professora me olhava,
vendo a coordenadora de alguns anos atrás. Era preciso desviar o foco e
perceber ser aquele momento um novo momento.
Estar em espaço conhecido trazia, a princípio, uma dúvida: até
que ponto isso não iria interferir negativamente na pesquisa? Mas, ao
mesmo tempo as relações e leituras do cotidiano eram mais acessíveis. Eu
tinha liberdade de estar e caminhar por entre os espaços da creche, muitas
das crianças se sentiam à vontade com minha presença, por já terem
sentado ao meu lado, tínhamos compartilhado, por algum tempo, o mesmo
cotidiano.
Assim, os fatos vividos eram coletados por uma estranha
conhecida, eu me tornava uma conhecida estranha (SAMPAIO, 2003).
A creche investigada possui uma história, assim como seus
personagens, na luta daquela comunidade o carente pelo direito de ter
uma creche para suas crianças. Tomando a diversidade como foco de
análise, precisava mergulhar no seu cotidiano.
A diversidade implica, é
claro, o reconhecimento e o
respeito pelo que faz de uma
pessoa um ser diferente de
todos os demais
[...]Todavia, pressupõe,
também, a preservação do
dado de que todas as
pessoas são iguais no que se
refere ao valor máximo da
existência: a humanidade
do homem. A diferença não
deve, pois, se constituir num
critério de hierarquização
da qualidade humana
independentemente da
condição existencial de
cada um, todos são
igualmente homens, com o
mesmo valor existencial.
Assim, o que se deve
considerar é a diferença na
totalidade e a totalidade na
diferença, sem se prender à
prejudicial polarização do
normal (igual), de um lado,
e do diferente (desigual), do
outro. (MARQUES e
MARQUES, 2003, p. 233-
234)
Este envolvimento dialógico
nos leva a falar em
mergulho e não em
observação, porque
sabemos que a vida
cotidiana desses e dessas
praticantes não se reduz
àquilo que é observável e
organizável formalmente.
(OLIVEIRA, Inês, 2001,
p. 8)
17
Senti, então, a necessidade de realizar um levantamento sobre os
trabalhos que têm como foco a Educação Infantil e a questão da
diversidade. Recorri ao banco de dissertações e teses da CAPES e ao
Grupo de Trabalho Educação de Crianças de 0 a 6 anos da Associação
Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), no período
de 2000 a 2004.
Surgiram diversas temáticas, dentre elas, destacamos os trabalhos
que tratam da cultura infantil (COUTINHO, 2001; MARTINS FILHO,
2004), do discurso da e sobre a infância (OLIVEIRA, 2002; KOHAN,
2004; SILVEIRA, 2004); das relações entre infância e poder (BUJES,
2000) e sobre infância e diversidade (MONTEIRO, 2003; MACHADO,
2005; NEVES, 2005).
Coutinho (2001) traz em seu trabalho a questão da infância e
diversidade pela busca das culturas infantis. Não somente uma cultura de
brincadeira, mas uma cultura que se em vários momentos do cotidiano
de Educação Infantil. A pesquisadora buscou conhecer a imagem do
“outro criança”, desvencilhando, assim, de nossos modos de ver a criança
através de nossa cultura adulta, pensando a criança a partir dela mesma.
Martins Filho (2004) em sua pesquisa, investigando a criança por
meio do conhecimento da produção cultural da infância, considerando a
criança como ator social que se apropria da cultura e é produtora da
cultura, buscou conhecer, descrever e analisar as dinâmicas das relações
que as crianças estabelecem umas com as outras no espaço/tempo em que
convivem em uma creche.
Oliveira (2002) trabalhou a alteridade da infância. Buscou a
inteligibilidade das infâncias no contexto de creche e pré-escola a partir da
perspectiva da criança. Rompendo com a visão da criança como um “vir-
a-ser”, uma tábula rasa, o inocente em forma humana. Mais do que
apresentar um olhar sobre o Outro (criança), a investigação fez emergir
inúmeras questões sobre as diferentes representações construídas sobre o
A infância persiste em seus
modos de ser. O criar, o
brincar, o sonhar, o estar
com o outro, e tantas outras
expressões contínuas das
crianças esbarram em
muitos ideologismos do
adulto: “agora não pode”,
“agora não é hora”, “este
não é lugar para isto”, no
entanto elas persistem.
(COUTINHO, 2001, n/p)
Conhecer as construções
culturais e sociais das
crianças que freqüentam
essa instituição,
consideramos ser uma
aventura complexa e
sinuosa, pois, é preciso
reconhecer a creche e o
grupo de crianças que lá
estão, em seu caráter não
homogêneo, avistando as
diferenças, de maneira a
tornar visível a pluralidade
cultural. (MARTINS
FILHO, 2004, n/p)
18
Outro como suas implicações no cotidiano destas crianças em creches e
pré-escolas.
Silveira (2004) teve como objetivo compreender a escola de
educação infantil pela ótica das crianças de 5 anos de idade que a
freqüentam. Essa autora ressalta que grande parte das pesquisas vê a
criança do ponto de vista do adulto, com isso suas falas e idéias são
silenciadas. A fala das crianças não é considerada como legítima na ordem
discursiva, como se suas falas fossem menores, infantis e destituídas de
razão. Com isso optou em ouvir o que a criança tem a dizer, contribuindo,
de alguma forma, para mudanças de paradigmas sobre o que é ser criança
a partir da maneira pela qual elas percebem a instituição que freqüentam.
Para isso a pesquisadora utilizou entrevistas com as crianças e produção
fotográfica das crianças sobre a escola. A autora concluiu que saber como
as crianças vêem a escola pode nos ajudar a pensar em melhorias nas
instituições ou em uma nova forma de atendimento, organizado para as
crianças de forma que sejam mais felizes e atendidas num processo de
maior qualidade.
Kohan (2004) segue o pensamento de respeito a essa alteridade
da infância, fazendo uma discussão sobre o tempo pelos termos gregos:
Chrónos que seria a continuidade de um tempo sucessivo e Aión que seria
a intensidade do tempo na vida humana. Assim ele coloca a existência de
duas infâncias: a infância majoritária definida pelo Chrónos, como a
aquela infância baseada no tempo cronológico, uma sucessão - criança,
adulto, idoso - e a infância minoritária definida pelo Aión que seria aquela
que se estabelece em “linhas de fuga”, infâncias que se tornam possíveis
em espaços em que não é fixo o que alguém pode ou deve ser. Conclui que
a instituição “escola” trabalha com a infância majoritária, como essa etapa
da vida na qual trabalhamos com as crianças através de nosso olhar
adultocêntrico quando o que deveríamos era nos preocupar com essas
infâncias minoritárias, encontrar esses “devires” minoritários que não
Sujeitos de pouca idade sim,
mas que lutam através de
seus desenhos, gestos,
movimentos, histórias
fantásticas, danças,
imaginação, falas,
brincadeiras, sorrisos,
caretas, choros, apegos e
desapegos e outras tantas
formas de ser e de
expressar-se pela
emancipação de sua
condição de silêncio.
Condição que lhes foi
imposta segundo uma visão
adultocêntrica, engendrada
no caminho histórico-social
trilhado pela humanidade e
que, em alguns casos,
insiste em reinar nos mais
diversos contextos
contemporâneos vividos
pela criança.
(OLIVEIRA, 2002, n/p)
O devir não é imitar,
assimilar-se, fazer como um
modelo, voltar-se ou tornar-
se outra coisa num tempo
sucessivo. Devir-criança
não é tornar-se uma
criança, infantilizar-se, nem
sequer retroceder a própria
infância cronológica. Devir
é encontrar-se com uma
certa intensidade.
(KOHAN, 2004, n/p)
Ao invés de falar da
criança, sobre ela, ou por
elas, falar com elas.
Sabemos que suas falas são
tão limitadas e polissêmicas
quanto a dos adultos. [...]
Não se trata de tomar as
suas falas como verdades
ou mentiras, ou mesmo
enaltecer um suposto saber
infantil, mas sim entendê-
las enquanto enunciados
que supõem singularidades.
(SILVEIRA, 2004, n/p)
19
imitam nada, não modelam nada, mas ao contrário, interrompem o que
está dado e propiciam novos inícios. Assim, temos o “devir-criança”.
Bujes (2000) teve como propósito discutir as relações entre
infância e poder. Ao tomar a infância como um sujeito/objeto cultural,
revela como o sujeito infantil é fabricado pelos discursos institucionais,
pelas formulações científicas e pelos meios de comunicação de massa.
Esse processo de constituição das identidades infantis se insere em um
amplo projeto de constituição do sujeito moderno, como uma unidade que
é única, singular e que o diferencia de qualquer sujeito. Constatou que as
construções históricas foram sendo modeladas pelas condições sociais. A
partir dessa constatação, percebeu que as crianças têm sido produzidas
pelos discursos que se enunciam sobre elas: médicos, biológicos,
pedagógicos. Tais discursos constroem para elas uma posição de sujeito
ideal, um sujeito universal, sem cor, sem sexo, sem filiação, sem amarras
temporais ou espaciais, negando, pois, toda a diversidade da infância.
Monteiro (2003), em sua pesquisa, buscou a compreensão das
concepções de infância da criança deficiente presentes no discurso de
profissionais da Educação Infantil. Destacou que nesses discursos estão
presentes os seguintes sentidos: a infância que se constitui no devaneio,
alicerçada nas formações discursivas romântica e negativista; a infância
idealizada, situada nas formações discursivas romântica e futurista e ainda
a infância real que se configurou na formação discursiva negativista.
Concluiu que todas essas formações discursivas inscreveram a criança
como um “não-ser”.
Machado (2005) discutiu os sentidos sobre diversidade presentes
no discurso literário, estabelecendo as principais marcas dos paradigmas
da Modernidade e da Atualidade, utilizando para tal discussão duas obras
literárias infantis: O patinho feio (1844) de Hans Christian Andersen,
representando os ideais da Modernidade sustentada pelos pilares da
exclusão e da normalidade e Mano descobre a diferença, de Heloisa Prieto
e Gilberto Dimenstein, retratando os ideais da Atualidade como a inclusão
Os significados atribuídos
à infância são o resultado
de um processo de
construção social. [...] Não
resultam como querem
alguns, de um processo de
evolução, nem estão acima
e à parte das divisões
sociais, sexuais, raciais,
étnicas,... São modelos no
interior de relações de
poder e representam
interesses manifestos da
igreja, da Sociedade
Civil... [...] Não são
estáveis nem únicos e as
linguagens que usamos, ao
mudar constantemente, são
indicativas da fluidez e da
mutabilidade a que estão
sujeitos. (BUJES, 2000,
n/p))
No caso especifico da
criança deficiente, surge o
imperativo de, antes da
deficiência, vermos a
criança, para que, então,
possamos pensar em ter
consolidado nosso discurso
da inclusão, reconhecendo
o outro, a criança, como
interlocutor. O
reconhecimento e o
respeito à diversidade não
se faz por ato de tolerância
ou caridade, mas por se
acreditar que a vida é rica
e ampla justamente nessa
diversidade. (MONTEIRO,
2003, p. 120)
20
e a pluralidade cultural. A pesquisa possibilitou compreender os discursos
presentes nas obras literárias como parte do discurso de determinada época
e lugar e o entendimento do momento de transição que estamos vivendo,
tornando-se essencial para compreendermos o deslocamento do discurso
da Exclusão para o da Inclusão.
Também voltado para a literatura infantil o trabalho de Neves
(2005) teve como objetivo compreender os sentidos sobre a diversidade
veiculados por professoras de Educação Infantil através do trabalho com
livros de literatura em sala. A questão da diversidade foi marcada por uma
formação discursiva integracionista, no entanto o uso da literatura na
prática pedagógica foi marcado por um processo de deslocamento para
uma formação discursiva inclusivista por aquelas professoras para as quais
a concepção de infância e de educação infantil apresentou um movimento
para uma formação discursiva histórico-cultural.
Conclui, então, que a questão da diversidade na Educação
Infantil era uma temática ainda pouco investigada.
O pensamento moderno nos ensinou a compreender o mundo a
partir de um modelo determinista, ao pretender explicar a diversidade a
partir da unidade. Essa forma de pensar não tolera mudanças, a não ser as
que ela mesma é capaz de produzir. Tudo o que não pode ser enquadrado
nessa lógica é considerado anormal. Tal paradigma quer fazer crer que o
todo é igual à soma das partes, que o pensamento é linear, contínuo, que
tudo pode e deve ser planejado, que uns indivíduos são mais capazes que
outros e que, portanto, é legítimo que tenham mais poder do que outros,
mas a experiência com o cotidiano mostra–nos o oposto a isso.
O pensamento moderno está tão contaminado pela idéia de
estabilidade que, diante da impossibilidade que a multiplicidade e a
complexidade do real apresentam de continuar a ser explicado por ele,
rompe-se, entra em crise, dando passagem à criação de outras formas de
pensar; surgem os novos paradigmas.
A prática exercida com os
livros de literatura infantil
para discutir sobre a
diversidade está
diretamente relacionada
com a concepção que as
professoras têm de
infância, educação infantil,
bem como sobre literatura
infantil; tudo isso
perpassado pelo seu
entendimento e
compreensão sobre a
diversidade humana.
(NEVES, 2005, p. 135)
Entendermos os discursos
presentes na obra literária
como parte do discurso de
determinada época e lugar
e entendermos o momento
de transição pelo qual
estamos passando torna-se
essencial para
compreendermos o
deslocamento do discurso
da diversidade do
paradigma da Exclusão
para o da Inclusão
(MACHADO, 2005, p. 6)
21
Na perplexidade atual, é preciso pensar o todo nas partes e as
partes no todo, numa perspectiva holográfica, como um caleidoscópio. O
todo e as partes estão ali mas, cada vez que se olha, eles se apresentam
como um certo desenho, sempre outro, sempre novo. O todo é mais do que
a soma das partes, porque possui mais propriedades do que cada uma das
partes em separado.
Diariamente as creches estão se formando e se refazendo, se
construindo e se reconstruindo através de uma grande rede que é o
cotidiano.
Meu objetivo constituiu-se no estudo sobre a diversidade no/do
cotidiano da Creche Casablanca a partir dos elementos: identidades,
conhecimentos e espaçostempos, elementos esses que emergiram do
cotidiano durante a pesquisa.
Desenvolvi a dissertação com a seguinte estrutura:
Neste capítulo 1 “O mergulho na pesquisa: caminho e objetivo”,
contei minha história, apresentei a revisão de literatura realizada,
justificando e delimitando o objetivo desse trabalho.
No capítulo 2 “A história que se faz: creche”, expus a história das
creches no Brasil, os tipos de creche que hoje existem em Juiz de Fora e a
história da Creche Casablanca, locus da minha pesquisa.
No capítulo 3 “Da identidade universal às identidades
múltiplas”, discuti a questão das identidades, ressaltando os dispositivos
utilizados pelas professoras da Creche Casablanca no processo de
constituição das identidades das crianças.
No capítulo 4 “Do conhecimento regulação ao conhecimento
emancipação”, discuti a questão do conhecimento, abordando quais
conteúdos são trabalhados na Creche Casablanca, como os professores
desenvolvem o planejamento e de que forma usam a avaliação.
No capítulo 5 “Da linearidade à simultaneidade dos
espaçostempos”, refleti sobre as concepções de tempo e de espaço e suas
implicações no/do cotidiano da Creche Casablanca.
O princípio
“hologramático” em que
não apenas a parte está no
todo, mas em que,
igualmente, o todo enquanto
tal está no interior da parte.
(MORIN, 2003a, p. 63)
22
E no capítulo 6 “O pesquisar no cotidiano: pistas e indícios”,
apresentei a forma como o trabalho foi realizado, seus fundamentos
metodológicos e as conclusões/inconclusões que chegamos ao final da
pesquisa.
A grande relevância da pesquisa foi estudar os elementos
identidades, conhecimentos e espaçostempos na transição da Modernidade
para a Pós-Modernidade, o que nos possibilitou rever nossas práticas
cotidianas, refletindo-as e criando perspectivas de mudança do nosso fazer
pedagógico de forma a contemplar a diversidade humana em nossas
instituições escolares.
23
O PALHAÇO – CORREDOR DA CRECHE CASABLANCA
24
2 - A HISTÓRIA QUE SE FAZ: CRECHE
Fremem os bambus sem sossego, num
insistente ritmo breve. O vento é o
mesmo:mas sua resposta é diferente, em
cada folha. (Cecília MEIRELLES,
1983, p. 293)
Toda esta história se passa em uma creche: na Creche
Casablanca. Qual a história das creches no Brasil? Que tipos de creche
existem? Qual a história da Creche Casablanca? Por que Casablanca?
Começo por contar sobre uma tarde de terça-feira, no decorrer
da pesquisa, quando visitei um dos primeiros moradores do bairro Jardim
Casablanca com o intuito de saber o porquê do nome do bairro ser
justamente Jardim Casablanca. Um senhor de cabeça grisalha, envolvido
de grande atenção, me pediu que esperasse um pouco enquanto adentrava
em sua casa. Alguns minutos depois ele voltou com um papel amarelado
e começou a desdobrar pedaço por pedaço.
Vi em minha frente surgir a primeira planta do bairro dividida
pelos loteamentos que foram feitos. A planta datava 16 de maio de 1956.
Pacientemente aquele senhor me mostrou os lotes e seguimos
pelas ruas e esquinas do bairro enquanto ele me contava as histórias dos
que ali viveram.
Segundo ele, o dono do loteamento possuía uma sapataria na
cidade que se chamava Casablanca, daí o nome que foi dado ao bairro.
Se era real ou não sua história não posso dizer, mas essa foi
mais uma das muitas histórias que ouvi por aquelas pessoas daquele
fantástico lugar.
***
Uma creche não se constrói somente de massa e tijolos. Sua
construção ultrapassa “os muros”, as “cercas” e se edifica pelos pilares de
uma ideologia, às vezes, de um desejo, outras vezes de uma necessidade.
25
Uma creche se forma do nada ao mesmo tempo em que se
origina do tudo. É construída por “gente” e se constitui de “gente”. O
entorno, a história de sua comunidade lhe forma, a ornamenta, lhe
uma face, um rosto, fazendo com que, ao ser visitada por outros, esses
outros possam vê-la com seus personagens, participantes de uma história,
de um enredo que se faz e refaz no cotidiano.
Essas instituições levam diversos nomes, nomenclaturas que
dizem um pouco do que vem a ser uma creche. O termo creche em si têm
origem na França, vinda do francês “crècheque significa manjedoura.
Ela era associada ao simbolismo cristão de dar abrigo a um bebê
necessitado (Zilma OLIVEIRA, 2001). Vemos, desde aquela época, o
significado das creches se alterando e suas funções sendo redefinidas.
Os primeiros nomes dessas instituições são reveladores do seu
propósito: garderie, na França; asili, na Itália; écoles gardiennes, na
Bélgica. E, até hoje, guardería é a expressão usada em vários países
latino-americanos para se referir à instituição que atende a crianças
menores de 3 anos. Guarda da criança” também foi uma expressão
utilizada nos primórdios dessa instituição no Brasil (DIDONET, 2001).
A história das creches liga-se às modificações do papel da
mulher na sociedade. A creche deve ser compreendida dentro de um
contexto social que inclui a expansão da industrialização e do setor de
serviços, ao mesmo tempo em que a urbanização se torna cada vez maior.
As referências históricas sobre creches são unânimes em dizer
que essas foram criadas para cuidar de crianças pequenas, cujas mães saem
para o trabalho. Está, portanto, estreitamente ligada ao trabalho
extradomiciliar da mulher.
A revolução industrial no século XVIII, na Europa, deu partida
ao emprego da mão-de-obra feminina, provocando uma substancial
alteração na forma de cuidar e educar as crianças. Com a implantação da
industrialização, surgiram as mães operárias que precisavam de um local
para deixar os filhos, muitas vezes pagando vizinhas para olhá-los.
Em outros países também
foram criadas instituições
para crianças a partir de 2
ou 3 anos, como a infant
school inglesa, os asili
infantili italianos, e o mais
conhecido, o kindergarten
(jardim-de-infância)
alemão. (KULHMANN,
2000, p. 471)
26
Na década de vinte, muitos imigrantes europeus foram
absorvidos pelas fábricas e reivindicavam melhores condições de
trabalho. Os donos das fábricas começaram a criar creches, pois para eles
era vantajoso: mais satisfeitas, as mães operárias produziam mais.
Nesse quadro se levantam duas hipóteses: a creche tem ocupado
o lugar da falta da família, isto é, só pode se definir enquanto instituição de
atendimento à criança pequena, quando a família, de alguma forma, não
cumpre devidamente seu papel; a segunda decorre da primeira, a creche
foi se modelando à sombra da família que sua função se limitava a
reproduzir aquilo que se idealizava que a família faria caso não se
ausentasse.
Foi por esse lado, “como problema”, que a criança começou a ser
vista pela sociedade e com um sentimento filantrópico, caritativo,
assistencial que começou a ser atendida fora do espaço da família.
A origem da creche acompanha a organização da família em
torno da criança pequena. Sua evolução, portanto, deu-se em um campo
que pertencia à família, o que gerava um antagonismo: quanto mais
definida a responsabilidade da família em face dos cuidados e educação da
criança, menor o espaço de legitimidade para a creche atuar nesse campo
(HADDAD, 1993).
No Brasil, as creches surgiram enquanto “guarda diário” de
crianças pequenas, visando responder questões diversas, como o
abandono, a desnutrição, a mortalidade infantil, a formação de hábitos
higiênicos e a moralização das famílias operárias (DIDONET, 2001).
Para os filhos das mulheres trabalhadoras, as creches tinham que
ser de tempo integral; para os filhos de operárias de baixa renda, a creche
precisava ser gratuita ou cobrar muito pouco. A educação permanecia
assunto de família. Essa origem determinou a associação creche/criança
pobre e o caráter assistencialista da creche.
A mesma circunstância de origem na Europa e no Brasil
determinou a semelhança entre a creche européia e a brasileira, sendo que
A creche é uma instituição
que nasce no campo da
filantropia ou da
“assistência científica”,
articulando iniciativas da
benemerência patronal [...]
os aportes da pediatria e da
puericultura, bem como a
ação de médicos e outros
notáveis; e elementos da fé e
da ação cristãs, nucleados
da igreja católica apoiada
pela organização de damas
patrocinadoras, senhoras da
sociedade.
(VIEIRA, 2000, p. 205)
Mortalidade infantil
elevada, desnutrição
generalizada e acidentes
domésticos passaram a
chamar a atenção e
despertar sentimentos de
piedade e solidariedade de
religiosos, empresários,
educadores... (DIDONET,
2001, p. 11)
27
se agregou aqui outro fator: o atendimento das crianças abandonadas,
órfãs e filhas de mães solteiras que eram atendidas em asilos e internatos.
O Brasil, um longo tempo, exportava as idéias da Europa,
como o que aconteceu com as chamadas instituições “Roda dos
Expostos”, que surgiram no Brasil no período colonial, tendo sobrevivido
até 1950. Eram consideradas instituições de abrigo para crianças
abandonadas e órfãs.
Essas instituições surgiram na Europa durante a Idade Média
havendo um relevante número delas em Lisboa, sendo transferida para o
Brasil essa idéia de um lugar de guarda para as crianças que eram
abandonadas na “roda”.
Quase por um século e meio a “Roda dos Expostos” foi
praticamente, a única instituição de assistência à criança abandonada em
todo o Brasil. Como assistência caritativa, missionária, sua primeira
função era batizar a criança abandonada para salvar-lhe a alma.
Esse cunho caritativo e assistencial era encontrado também nas
creches das décadas de 30, 40, 50. Nessa época, as poucas creches
existentes fora das indústrias eram de responsabilidade de entidades
filantrópicas que, com o tempo, passaram a receber ajuda de famílias
mais ricas e ajuda governamental. O trabalho com as crianças nas creches
era de cunho assistencial-custodial. A preocupação era com alimentação,
higiene e segurança física das crianças.
A partir dos anos 40, com a criação do Departamento Nacional
da Criança (DNCr) do Mistério da Educação e Saúde, a ação estatal foi
predominantemente normativa. A creche era divulgada como um mal
necessário no combate à mortalidade e às “criadeiras” - as mulheres do
povo que tomavam conta dos filhos das mulheres sem recursos.
No governo Getúlio Vargas foi criada a Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT). O que se viu foi que o poder público não fiscalizou
essas creches, sendo que esta conquista não foi efetivada na prática.
O nome da roda provém do
dispositivo onde se
colocavam os bebês que se
queriam abandonar. Sua
forma cilíndrica, dividida
ao meio por uma divisória,
era fixada no muro ou na
janela da instituição. No
tabuleiro inferior e em sua
abertura externa, o
expositor depositava a
criancinha que enjeitava. A
seguir, ele girava a roda e
a criança já estava do
outro lado do muro.
Puxava-se uma cordinha
com uma sineta, para
avisar a vigilante ou
rodeira que um bebê
acabava de ser
abandonado e o expositor
furtivamente retirava-se do
local, sem ser identificado.
(MARCILIO, 2003, p. 57)
28
Com o avanço da industrialização a partir da década de 50,
houve um aumento da procura de creche para seus filhos por mulheres de
classe média que faziam parte do mercado de trabalho.
Nos períodos de governo militar, continuou a idéia de creche
como equipamento de assistência à criança carente, como um favor
29
O passo seguinte foi dado pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional 9394, de 1996, que fixou um prazo de três anos a
contar de sua publicação para que as creches se integrassem ao sistema de
ensino (BRASIL, 1996, art. 89).
Em 2005, as discussões sobre as creches emergem em algumas
Propostas de Emenda Constitucional (BRASIL, PEC 393/2005 e BRASIL,
PEC 415/2005)
De acordo com a PEC 393/2005, que teve como autora a
senadora Heloisa Helena, é proposta a alteração do artigo 208 da
Constituição Federal de 1988, dispondo assim sobre a obrigatoriedade e
gratuidade da Educação Infantil para crianças de 0 a 6 anos de idade. Com
a aprovação dessa Emenda, as creches serão obrigatórias para todas as
crianças.
A PEC 415/2005 teve como autor o Poder Executivo. Sua
proposta era criar o Fundo Único da Educação Básica (FUNDEB), porém
o documento apresentou várias limitações, necessitando, assim, ser
aprimorado. Dentre essas limitações, está a exclusão na distribuição dos
recursos do fundo das matrículas das crianças de 0 a 3 anos de idade. Com
isso várias entidades se mobilizaram pela inserção das creches no
FUNDEB dentre elas: UNDIME (União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação), MIEIB (Movimento Interfóruns de Educação
Infantil) e Fundação ABRINQ.
Em meio a essa discussão surgiu o Movimento “Fraldas
Pintadas” em uma campanha intitulada FUNDEB pra valer - Direito à
educação começa no berço e é pra toda vida.” Várias passeatas foram
realizadas em frente ao Congresso Nacional com carrinhos e chocalhos de
bebês.
O movimento foi organizado pelo Fórum de Educação Infantil/
Rio de Janeiro com apoio da: UNDIME, CAMPO, ACTION AID,
UNIRIO, UERJ, UFF, UFRJ, SINTUFRJ, FIOCRUZ, PUC-RIO,
O FUNDEB embora
reconheça que a educação
básica é constituída de três
etapas – a Educação
Infantil, o Ensino
Fundamental e o Ensino
Médio – atenderá o Ensino
Fundamental e o Médio e
apenas a uma parte da
Educação Infantil, aquela
que abrange a pré–escola,
excluindo as creches que
atendem as crianças de 0 a
3 anos. O MEIB entende
que nossa proposta
evidencia incoerências com
os preceitos constitucionais
(artigo 7º, 208 e 211),
desrespeita a prioridade
absoluta que deve ser dada
a crianças e adolescentes
(artigo 227), inviabiliza as
metas do PNE, alem de
descumprir os
compromissos
internacionais assumidos
pelo Brasil.
(MIEIB, 2005, n/p)
30
SINPRO, OMEP, CECIP, Rede de Creches, Associação das Mulheres do
Brasil e MIEIB.
Em 2006 o texto da PEC 415/2005 foi alterado e as creches
foram inseridas na redação da proposta. E em 19 de dezembro do mesmo
ano o FUNDEB foi aprovado pela Emenda Constitucional n. 53.
Parafraseando Faria (2005), no momento, discutir essas questões
é como fazer um mapa durante um terremoto, estamos vivendo toda essa
movimentação em termos de leis. A única certeza, se é que podemos ter
certezas, é de que, de alguma forma, a mobilização é necessária para que
algo seja feito.
No momento, podemos falar um pouco das creches existentes
no Brasil, o que também nos ajuda a entender um pouco toda essa trama
na qual estamos envolvidos.
***
No Brasil são vários os tipos de creches existentes: creche
domiciliar, creche universitária, creche comunitária, creche cooperativa,
creche conveniada e creches particulares.
A “Creche Domiciliar (CD)” é uma modalidade presente em
diversos países. Refere-se ao atendimento onde uma mulher cuida das
crianças, em sua própria casa, mediante pagamento, enquanto os pais
trabalham. Não se trata de um atendimento formal, institucionalizado,
mas que ocorre fora do espaço escolar.
No Brasil, as CDs surgiram, oficialmente, no final da década de
70, com caráter provisório, como uma política compensatória e
emergencial para crianças em situação sócio-econômica precária que não
encontravam vagas na rede oficial. Dada a característica da população que
a freqüenta, não perderam o caráter assistencialista.
Enquanto pouco se sabe da história e condições de atendimento
das CDs, milhares de crianças estão sendo educadas nos seus espaços e o
que tinha caráter provisório já carrega uma história de quase três décadas.
31
A falta de vagas nas creches é um dos fatores que impulsionou,
principalmente a partir da década de 80, o projeto de CDs no Brasil como
solução emergencial. Ou seja, não se tratava de mais uma
alternativa/possibilidade de escolha para as famílias, mas sim uma opção
“melhor” do que deixar os filhos pequenos em casa ou pela rua, sozinhos
ou sob os cuidados de irmãos um pouco maiores.
Um exemplo de formalização dessas creches ocorre em
Blumenau/SC. as CDs existem desde o início da década de 80, com
subsídios do Governo do Estado, como forma alternativa, emergencial e
compensatória de atender crianças de 0 a 6 anos sócio-economicamente
desfavorecidas.
Em 1997, no âmbito das políticas sociais do Município de
Blumenau, a Secretaria Municipal de Saúde (SEMAS), a Secretaria
Municipal da Criança e do Adolescente (SEMED), Conselhos Tutelares e
Conselho de Direito se reuniram para estabelecerem novos critérios para
abertura e funcionamento de CDs. O Conselho Municipal de Educação
(COMED), em 1999, apontou diretrizes para Educação Infantil, fazendo,
pela primeira vez, referência explícita às CDs. Por estas diretrizes, a e-
crecheira deveria apresentar documentos como comprovante de sua
escolaridade e alvará sanitário, sendo que o parecer para o funcionamento
dependeria também de uma visita in loco por uma delegação do COMED.
Na prática isso não ocorreu.
A Prefeitura Municipal de Blumenau (PMB) também
disponibiliza uma funcionária, chamada educadora, que faz visitas
semanais às creches para verificar se as condições de atendimento estão
dentro dos critérios estabelecidos, servindo esta de elo entre a Prefeitura e
a creche no repasse de informações e dando suporte pedagógico para a
crecheira atender às crianças. Cada educadora é responsável por três
creches, o que implica em poder fazer duas visitas semanais em duas
creches e uma visita na terceira. Existe ainda uma preocupação com a
A configuração básica da
CD em Blumenau,
conveniada com a PMB, se
dá pelo atendimento de seis
a onze crianças, sob a
responsabilidade da
crecheira (não é permitido
homens, nem mesmo que
fiquem na casa durante o
período de atendimento) em
sua própria casa. A
crecheira disponibiliza a
casa, podendo cobrar dos
pais uma mensalidade de
até R$50,00 para período
integral. (BENTO e
MENEGHEL, 2003, n/p)
32
formação da crecheira e, neste sentido, são organizados encontros de
formação bimestrais entre crecheiras e coordenação do programa.
Outro tipo de creche são as chamadas “Creches Universitárias”
que são encontradas em todo o país. Essas surgiram como direito
trabalhista, sendo que, muitas delas, no decorrer de suas trajetórias,
assumiram novas funções além do atendimento às crianças, na perspectiva
de fortalecimento do seu papel no interior das Instituições Federais de
Ensino Superior (IFES). O universo dessas unidades oscila entre apenas
desenvolver o trabalho educativo com a criança, caracterizando-se como
campo de experimentação e ou observação para cursos das IFES, espaço
de visitação para profissionais da área e produção de conhecimentos em
atividades de pesquisa e ainda espaço para atividades de extensão,
socializando o conhecimento produzido na formação continuada de
profissionais da área, ou atuando na formação regular em cursos de
especialização da IFES (RAUPP, 2001).
Em diversas cidades do país ocorre um outro tipo de creche: as
chamadas “Creches Comunitárias”. Tivemos acesso a experiência de
Joinville/SC, lá as creches comunitárias foram implantadas a partir da
década de 90, devido à implantação de um modelo gerencial que restringiu
o orçamento destinado à esfera social.
As conseqüências foram: nenhuma nova instituição construída,
duas instituições fechadas, a criação do cargo de auxiliar de educadora e a
ampliação física das instituições. A alimentação das crianças, a aquisição
de materiais pedagógicos e brinquedos passaram a ser de responsabilidade
das famílias (CAMPOS, 2000).
Como conseqüência dessa situação, as comunidades buscaram
construir alternativas como as Creches Comunitárias, entidades mantidas
pelas Associações de Moradores de Bairro. O atendimento é feito às
crianças do próprio bairro que não conseguiram vaga na rede municipal,
seja por não existir no bairro nenhuma instituição pública ou por não
possuírem recursos financeiros para pagar as “crecheiras”.
O mapeamento revelou a
existência de vinte e oito
creches universitárias
federais, administradas no
interior de 20 IFES [...] oito
creches localizam-se na
região sul, onze na região
sudeste, uma na região
centro-oeste, oito na região
nordeste, sendo que não há
creches universitárias na
região norte. (RAUPP,
2001, n/p)
33
O critério de seleção é o fato de o pai e de a mãe estarem
trabalhando. Quando um desses perde o emprego tem o prazo de 2 a 3
meses para conseguir um novo; caso não consigam, a criança é desligada
da creche.
Como são instituições comunitárias não recebem nenhum recurso
financeiro ou assessoria pedagógica da Secretaria Municipal de Educação
de Joinville, diferentemente das creches comunitárias de Juiz de Fora que
são de total responsabilidade da Associação Municipal de Apoio
Comunitário (AMAC) da Prefeitura de Juiz de Fora. As creches
comunitárias de Joinville sobrevivem de eventos promovidos pela e na
comunidade, algumas cobram uma taxa aos pais. Como a fonte de recurso
não é fixa, o trabalho das pessoas é voluntário e é remunerado quando
“sobra” algum recurso.
Durante a reunião, em um dos cantos da sala, Cristiana sussurra
algo:
Bianca:_ Você podia falar de novo o que você falou? [...]
Cristiana:_ E agora? Porque aqui não é nem do Estado, nem da
Prefeitura, nem particular! Não é nada, não tem identidade
nenhuma! (Reunião do dia 12/04/2006)
1
Cristiana revela em seu sussurrar: a creche não têm identidade!
Que identidade é essa que clama por ser instituição, por ser parte de algum
órgão ou de pertencer mesmo a algum grupo ou algum lugar?
O que esse sussurro nos mostra é a existência de diferentes tipos
de creches em Juiz de Fora e um pouco do embate que essas instituições
vivem de não saber ao certo quem mesmo são.
Bianca: _ E pra vocês qual que é a identidade da creche? Que
ela tem? A Cris falou esse negócio agora e eu fiquei encucada,
porque a creche o tem uma identidade, ela não é nem da
prefeitura, nem é cooperativa e pra vocês qual é a identidade
que a creche tem?
Cristiana:_ Pra mim a creche é da comunidade ainda que com
todas restrições que a gente fala que tem aqui, ela foi pensada
34
pra comunidade e é isso que a gente investe mesmo. Então a
criança chega aqui com piolho, cheiro ruim, sujo a gente
recebe. Então pra gente não tem muito isso. Veio limpo?
bom. Veio sujo? Tá bom também. Porque a creche não foi
pensada pra uma elite, foi pra comunidade, então a identidade
da creche pra mim é a da comunidade.
(Reunião do dia 12/04/2006)
Em Juiz de Fora/MG, encontramos hoje as Creches
Comunitárias”, as “Creches Conveniadas”, as “Creches Particulares” e as
“Creches Cooperativas”,.
As “Creches Comunitárias” são de responsabilidade do poder
público. Foram construídas, em sua maioria, nos anos 80/90 sob a
responsabilidade da AMAC; porém, a partir do ano 2000, surgiram neste
município as creches cooperativas, sendo de responsabilidade das
comunidades em parceria com o poder público, que correspondem as
chamadas creches comunitárias em Joinville/SC.
As “creches Conveniadas” são geralmente instituições
filantrópicas que através de convênios recebem da prefeitura profissionais
e merenda escolar.
As “Creches Particulares” são instituições com fins lucrativos
autorizadas e fiscalizadas pela Secretaria de Educação do município.
***
Como a creche locus de nossa pesquisa Casablanca é uma
creche cooperativa, achamos de fundamental importância trazer a
discussão sobre a origem do cooperativismo no mundo e no Brasil.
Os primeiros fatos históricos que deram origem ao
cooperativismo no mundo demonstram que essa forma de organização
política se constituiu da relação entre o capital e o trabalho, surgindo,
assim, de tentativas de encontrar soluções para os problemas econômicos
advindos dessa relação. Diferente do Brasil, onde surgiu como forma de
controle social desenvolvida pelo Estado brasileiro (GOMES, 2005).
Em todas as civilizações, a
ajuda mútua foi sempre uma
das características da
humanidade, resultando daí
bons exemplos de
associativismo, que é uma
forma de participação
social, de atuação coletiva
de homens e mulheres que
objetivam transformar
determinada realidade,
tendo por conseqüência o
desenvolvimento de
relações sociais, produtivas
e culturais. (GOMES, 2005,
p. 14)
35
O cooperativismo organizado surgiu como expressão de
movimentos operários que, no século XIX reagiram às condições de
extrema exploração à qual os trabalhadores estavam sendo submetidos em
conseqüência do capitalismo industrial.
Bem antes de surgir a primeira cooperativa, no século XVII, na
Inglaterra era realidade a idéia de cooperativa que tinha como objetivo
36
Nas décadas de 30 e 40 do século XX, países latino-americanos
começaram a importar modelo de cooperativas. Da Inglaterra, por
exemplo, importaram a idéia de cooperativa de consumo; da Alemanha,
cooperativas de poupança e crédito.
Quando falamos em cooperativa em nível de Brasil, nos
remetemos às primeiras idéias cooperativistas que remontam a 1610,
quando os jesuítas iniciaram a construção de um modelo de sociedade
solidária, fundamentado no trabalho coletivo, que valorizava o bem-estar
do indivíduo e da família em detrimento do interesse econômico de
produção.
Foi no final do século XIX que surgiu, no Nordeste brasileiro, o
cooperativismo propriamente dito. Inicialmente, ele não se apresentou
como busca de alternativa econômica e social na solução de problemas de
sobrevivência de trabalhadores ou como instrumento de mudança social
da população, muito menos de superação do modo de produção e de
transformação da economia brasileira, mas simplesmente como uma
política de controle social.
No Brasil, o cooperativismo não possui sua origem nas lutas do
movimento operário brasileiro, mas conforme seu desenvolvimento ele
foi se constituindo numa possibilidade de organização social e de
alternativa econômica. Sua origem no Brasil se caracteriza mais como
cooperativa de serviço do que de produção.
Para Gabbi (2001), foram os imigrantes europeus que se
estabeleceram nas áreas rurais no Sul do país que, a partir da década de
1930, impulsionados por estímulos do Governo Federal, organizaram
atividades agropecuárias em moldes cooperativos. O governo Getúlio
Vargas regulamentou, por meio do Decreto 22.239/32, a organização e
o funcionamento das cooperativas, ficando declarado, assim, legalmente,
o cooperativismo no Brasil.
Com o tempo, a questão ganhou importância no cenário político
e econômico, constituindo-se em Política Nacional de Cooperativismo no
Diferentemente do europeu,
o movimento cooperativista
brasileiro teve sua origem,
basicamente no Nordeste,
adotado como uma política
de controle social
desenvolvida pelo Estado e,
por isso, com um exercício
fortemente caracterizado
pela intervenção estatal.
(GOMES, 2005, p. 20)
A partir de 1891 foram
criadas outras cooperativas
no território nacional, de
trabalhadores brasileiros,
descrevendo-se como as
mais antigas, as seguintes:
Cooperativa Militar de
Consumo, no Rio de
Janeiro, antigo Distrito
Federal – 1894;
Cooperativa de Consumo
dos Empregados da
Companhia Paulista de
Estrada de Ferro, em
Campinas, SP – 1897;
Cooperativa de Consumo
dos Funcionários Públicos
de Ouro Preto, em Outro
Preto, MG – 1898; e
Cooperativa dos
Empregados e Operários da
Fábrica de Tecidos da
Gávea, no Rio de Janeiro e
a Cooperativa de Consumo
dos Empregados da Viação
Férrea (Coopfer), em Santa
Maria, RS – 1913.
(GOMES, 2005, p.21)
37
final de 1971, pela Lei 5.764, sendo representada pela Organização das
Cooperativas Brasileiras (OCB).
De acordo com a OCB, a primeira cooperativa surgiu em 1847
no Paraná, sendo que depois de 1891 surgiram outras cooperativas em
todo território nacional.
Outros acontecimentos históricos também foram relevantes,
dentre eles, o Fundo Nacional de Cooperativismo, em 1966; a criação do
Conselho Nacional de Cooperativismo, em 1967; a criação da União
Nacional das Associações Cooperativas e da Aliança Brasileira de
Cooperativas, ambas fundadas em 1969; e o IX Congresso Brasileiro de
Cooperativismo, em 1997.
Gomes (2005) traça uma trajetória da legislação desde 1903, no
que diz respeito ao funcionamento do cooperativismo brasileiro:
Decreto n. 799, de 1903, foi o primeiro a mencionar o
cooperativismo, inserindo-o no contexto legal brasileiro; permitia aos
sindicatos e às cooperativas de produção e de consumo organizarem
caixas rurais de crédito; Decreto n. 1.637, de 1907, reconheceu a utilidade
das cooperativas sem forma jurídica distinta de outras empresas; Decreto
n. 22.239, de 1932, conhecido no Brasil como “Primeira Lei
Rochdaleana”, mencionada anteriormente, dispôs acerca das
características e formas de organização e de funcionamento das
cooperativas segundo os princípios dos Pioneiros de Rochdale e
consagrou os postulados do sistema cooperativista; tendo sido revogado
em 1934, restabelecido em 1938, revogado novamente em 1943 e
reeditado em 1945, vigorando até 1966.
A Lei Cooperativista, Lei n. 5.764, de 1971, em vigor, define a
política nacional de cooperativismo, institui o regime jurídico das
sociedades cooperativas e dá outras providências. (BRASIL, 1971b)
Possui como características: a adesão voluntária com número
ilimitado de associados, variabilidade do capital representado por quotas-
partes, limitação do número de quotas-partes do capital para cada
38
associado, incessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros,
singularidade de voto, quorum para o funcionamento e deliberação da
Assembléia Geral baseado no número de associados, retorno das sobras
líquidas do exercício, indivisibilidade dos fundos de Reserva e de
Assistência Técnica Educacional e Social, neutralidade política e
indiscriminação religiosa, racial e social, prestação de assistência aos
associados e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da
cooperativa, área de admissão de associados limitada às possibilidades de
reunião, controle, operações e prestação de serviços.
Apesar de essa ser uma lei ainda em vigor, ela se mostra
obsoleta e carente de reformulação para que se adeqüe a um país que vem
tentando se modernizar jurídico-legalmente desde a promulgação atual da
Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988.
E, por último, a Lei n. 9.867, de 1999, que dispõe a respeito de
cooperativas sociais, visando à integração social dos cidadãos.
Além da legislação, em 1990 a OCB lançou a cartilha
“Orientação para Constituição de Cooperativas”, um manual que
contempla informações e procedimentos necessários ao processo de
organização e criação de cooperativas, adaptados à legislação pertinente
em vigor.
As cooperativas são:
Singulares – são aquelas constituídas por, no mínimo, 20
pessoas. Como objetivo pode prestar qualquer tipo de
serviço. A creche lócus deste estudo se enquadra neste
tipo.
Centrais/federações constituídas por, no nimo, de 3
singulares. Objetivam organizar serviços em maior
escala, integrando forças e produção.
Confederações - constituídas de, pelo menos, 3 centrais.
Têm por objetivo orientar e coordenar atividades
filiadas.(BRASIL, 1971b, n/p)
39
Nos anos 80 e 90, diante da crise econômico-financeira pela
qual o Brasil passava, começou a ganhar visibilidade como ramo
específico da OCB a educação.
Nos fins dos anos 80, o governo sensível ao ideário neoliberal,
procura transferir à sociedade funções de sua responsabilidade. Entre
outras ações, concedeu linha de crédito para o cooperativismo
educacional, subsidiando e estimulando a implantação de escolas
mantidas por pais, desse modo, eximindo-se de garantir educação para
uma parcela significativa da população.
A primeira cooperativa educacional não tem mais que 18 anos,
surgiu em Itumbiara, no estado de Goiás, em 1987.
As cooperativas foram ganhando adeptos e apoio institucional
governamental e não-governamental, tanto no plano federal quanto no
estadual, assumindo as escolas cooperativas um papel que é
constitucionalmente responsabilidade política do Estado brasileiro.
Em Juiz de Fora, a Prefeitura assumiu essa perspectiva,
tornando-se um dos parceiros dessas creches, ao invés de abrir creches
comunitárias.
O repasse de verba dado às creches cooperativas, insuficiente
para dar o atendimento com qualidade às crianças, fez com que as mesmas
fossem obrigadas a viver de doações.
Assim, trago agora a história da Sociedade Cooperativa
Assistencial de Pais e Responsáveis “Vivendo e Aprendendo”
(COOPVIVA) apelidada por nós de Creche Casablanca em referência ao
bairro Jardim Casablanca onde está localizada.
***
Contextualizando um pouco de sua história, Casablanca é uma
creche cooperativa. Localiza-se em uma pequena comunidade da periferia
da cidade de Juiz de Fora, no entorno do Campus da Universidade Federal
de Juiz de Fora. No ano de 1999, a comunidade se organizou e votou no
orçamento participativo a implantação de uma creche no bairro, visto ser
40
esse projeto uma necessidade sentida por todos os moradores, pois a
Creche Comunitária mais próxima não tinha capacidade de atender toda a
demanda de crianças na faixa etária de 0 a 6 anos.
A partir de tal solicitação, o poder público apresentou à
comunidade a proposta de implantação, no bairro, de uma Creche
Cooperativa onde o poder público seria um dos parceiros da comunidade
em sua manutenção.
A construção da creche no bairro foi resultado da parceria entre
o poder público, através da Associação Municipal de Apoio Comunitário
da Prefeitura de Juiz de Fora, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) e a Associação dos Condônimos do
Granville Residence, condomínio residencial de classe alta vizinho da
comunidade que até hoje é um dos parceiros, propiciando o
funcionamento da creche.
A Sociedade Pró-Melhoramento do Bairro elaborou um
anteprojeto para uma Associação Pró-Infância que surgiu como
contraproposta ao projeto de cooperativa. Tinha como objetivo envolver a
sociedade civil organizada em co-responsabilidades com o poder público
na busca não de recursos financeiros, mas na participação,
envolvimento e integração de todos na viabilidade do sucesso da creche.
Tal anteprojeto, porém, não foi aprovado e a comunidade não
teve outra alternativa senão a de aceitar a implantação da creche na forma
de uma cooperativa. Vemos uma história de engano e frustração contada
nas vozes daqueles que viveram a real situação.
A gente foi enganado porque essa creche era para ser
comunitária e não cooperativa. vieram com esse lançamento
de cooperativismo, falando que esse era o melhor, que o
governo, que a prefeitura ia abrir em forma de
cooperativismo que não ia haver mais creche comunitária, que
são avanços de modernização de gestão e essas coisas assim.
Mais fizeram um curso um minicurso, bem rápido, bem breve
pra passar por alto, entre aspas, o que era cooperativa, né? Nós
fomos saber mesmo como a cooperativa funciona na parte
41
burocrática porque a (N) foi buscar essas informações em Belo
Horizonte em um órgão que não me lembro o nome[...] Foi
buscar essas informações, foi dado a realidade do que é o
cooperativismo, né?[...] foi feito isso pra abrir a creche tem
que ter 21 cooperados, aliás, qualquer sistema de cooperativa
tem que ter 21 cooperados. Tinha que ter 21 mães cooperadas...
(Mãe fundadora, 28/04/2005)
Para a implantação da creche, foi organizada uma “comissão de
mães”, que decidiu junto com a Sociedade Pró-Melhoramento do Bairro
organizar um levantamento das crianças na faixa etária de 0 a 4/5 anos,
cujas mães, pais e/ou responsáveis desejassem se candidatar a uma vaga
na creche. As crianças de 5 e 6 anos ficariam sem atendimento, na creche,
em função do espaço físico da mesma que só tinha 1 berçário e 3 salas.
Decidiu-se ainda atender, prioritariamente, às crianças que se
encontrassem em estado de vulnerabilidade e miserabilidade, cuja
situação era de risco pessoal.
O poder público pretendia que as mães da comunidade fossem
as educadoras e as educadoras de apoio da creche. As educadoras de
apoio (secretária, profissional da limpeza e da cozinha) foram escolhidas
entre as moradoras da comunidade; no entanto nenhuma moradora
apresentava a escolaridade mínima obrigatória, segundo a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação 9394/96 (magistério em nível médio) para
o exercício da função de educadora. A alternativa encontrada foi a
contratação de educadoras de fora da comunidade, por processo seletivo,
realizado pela cooperativa.
O que eu acho mais grave é eles não terem explicado que seria
uma creche cooperativa. Outras pessoas tomaram a frente que
eu não vou dizer o nome e aceitou essa votação no orçamento
participativo e não contou nada pra comunidade. Depois que eu
e a (N) entramos no processo é que começamos a contar o que
realmente ia acontecer. E pra colocar na cabeça dessas mães
que elas não iam trabalhar aqui? Mães que não tinham nem a
primeira série? (Lena, 25/1/2006)
Conversar com os outros e
não apenas falar sobre eles
ou para eles – é a condição
para desenvolvermos a
compreensão dos
significados e das estruturas
significantes de nossas
próprias ações. A
compreensão do sentido da
ação do outro é uma
condição importante para a
compreensão do sentido de
nossa própria ação.
(FLEURI, 2002, p. 10)
42
A Universidade Federal de Juiz de Fora foi convidada a ser um
dos parceiros da creche. Foi realizado em Casablanca o Programa de
Apoio à Educação Infantil (PAEDI), financiado pela Fundação de Apoio
à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) que já havia sido
realizado em outras creches de Juiz de Fora, mas a situação e o contexto
desta creche eram um diferencial em relação às outras. A creche estava
iniciando seu trabalho e buscou a ajuda da Universidade para a
construção de sua proposta pedagógica.
Outro mundo, novas esperanças, algo inacreditável. As coisas
iam acontecendo e dando certo. O Projeto Político-Pedagógico e seu
Estatuto foram construídos juntamente com todos os profissionais da
creche, com as famílias e a comunidade. Algo discutido
democraticamente, o que dava a sensação de êxtase em ver que algo era
possível de ser feito coletivamente.
As mães fundadoras participaram da montagem do Estatuto da
creche, da cooperativa da creche, né? Então em relação assim,
em relação a horário, dias de funcionamento é... nós
participamos na construção do Estatuto, na verdade os
funcionários eleitos, fizemos uma eleição entre as mães
fundadoras, entre as outras mães também que já ultrapassavam
as 21, foi montado o quadro de funcionários. (Mãe fundadora,
28/04/2005)
Ao mesmo tempo em que o fato de a creche ser cooperativa lhe
dava uma certa autonomia em praticar um currículo diferenciado em
relação às outras creche; esse atenuante também lhe causava sérios
problemas financeiros. Os baixos salários para um adequado pagamento e
em dia dos funcionários e a verba sempre insuficiente para aquisição de
recursos materiais, precisando contar, muitas vezes, com a ajuda de
doações, acarretavam em alta rotatividade dos profissionais.
Eu sou mais é de fazer festa, promover pipoca, festival de
pipoca, disso, daquilo, mas isso também tira a responsabilidade
do poder público, né? Enquanto a gente fica promovendo
43
festinha, fazendo isso, fazendo aquilo, pra pagar, essa parte não
cabe a gente, isso tira a responsabilidade deles, porque com
isso o número de creches vem diminuindo e o número de
cooperativismo vem aumentando, né? (Mãe fundadora,
28/04/2005)
Ao relembrar a história da construção da creche, Sr. Tiãozinho,
um dos personagens desse enredo, membro da comunidade, nos levou a
uma viagem no tempo antes mesmo de se erguerem as primeiras vigas.
Em meados de 96, após a eleição do novo prefeito, na época Tarcisio
Delgado, Sr. Tiãozinho limpou o terreno onde futuramente seria
construída a creche.
Eu entrei em contato com os responsáveis da Prefeitura e eles
me deram o terreno pra mim plantar. Eu rocei, queimei,
destopei, quando eu ia plantar eles falaram que a máquina ia
passar ( gargalhadas). Bianca euo plantei nada, eu ia
plantar, por exemplo se eu tivesse terminado hoje (quarta-feira)
eu ia começar a plantar segunda-feira. [...] Não saiu horta, não
saiu nada, mas um terrenão Bianca... aquele terreno limpinho
ali precisava de ver que terreno bonito que ficou, eles vieram
aqui e tiraram [...] Um engenheiro ele veio aqui, depois de
um ano, depois de um ano, depois de um ano tava tudo
matagal de novo é que o pessoal veio mais pra fazer a creche.
empreitou a creche pra esse rapaz fazer, esse engenheiro.
(Sr. Tiãozinho, 13/4/2005)
Durante a construção da creche foram utilizadas água e luz do
Sr. Tiãozinho, sendo prometido o reembolso dos gastos, porém somente
dois meses de gastos foram pagos e segundo ele “ficou no prejuízo”.
O que nos chama, porém, a atenção em toda essa trama de
promessas, enganos e suposições é algo maior, algo que não sabemos
explicar, algo que só consegui fechar os olhos e sentir.
O que eu já fiz aqui pra essa creche se for preciso voltar tudo de
novo, eu faço tudo de novo que eu não me arrependo do
prejuízo que eu tive, eu não conto nada de prejuízo, tô satisfeito
com tudo do mesmo jeito eu faço tudo do mesmo jeito sabe
porquê? Porque eu vendo ela ali (Sr. Tiãozinho se vira pra
44
creche e seus olhos se enchem d’água). (Sr. Tiãozinho,
13/4/2005)
Pessoas simples que deram tudo de si para que algo de bom
fosse construído na/para aquela comunidade e para aquelas crianças.
Nada tinha preço, nada era prejuízo diante do fato de poder abrir a janela
e todos os dias olhar para aquela creche e vê-la ali, a sua frente, erguida,
diante de tudo...
Na reunião em que levei as entrevistas realizadas em 2005, as
educadoras chamaram a atenção para a importância do Sr. Tiãozinho para
a creche.
Cristiana:_ Ele se sente muito parte da creche, muito dono.
(Reunião do dia 25/01/2006)
Regina:_ As pessoas que moram aqui perto não entendem esse
envolvimento, outro dia tinha uns meninos em cima da laje do
quartinho e ele começou a gritar com os meninos, uma mulher
falou quanto ele tava ganhando pra isso. (Reunião do dia
25/01/2006)
A Creche Casablanca é um pouco de tudo isso, uma história de
personagens e enredos que acabam por ser “parte” de um grande “todo”
que representa a Educação Infantil em Juiz de Fora, atendendo as crianças
de 3 meses a 5 anos e funcionando em horário integral.
1
Utilizei os símbolos da legenda a seguir para melhor compreensão das transcrições.
(N) - Utilizado na omissão do nome de alguma pessoa;
( ) - significa inclusões feitas por mim em determinadas falas para ajudar a
compreensão do pensamento;
[...] - Corte proposital de alguma parte da fala, considerada desnecessária para a
análise;
(///) - Inaudível
... - Pausa na fala;
Palavras em negrito- correspondem a falas enfatizadas;
Outros pontos que achei importante ressaltar para o leitor, como, por exemplo,
expressão facial no momento de uma fala, foram transcritos entre parênteses.
45
OBRA DE ARTE – SALA DE AULA DA CRECHE CASABLANCA
46
3 - DA IDENTIDADE UNIVERSAL ÀS IDENTIDADES
MÚLTIPLAS
Se você fica me instigando a declarar
47
Chego na creche e algumas crianças do berçário estão tomando
café. Fico sentada nos colchonetes esperando todos chegarem.
Lia chega, pula no colchonete perto de mim com um pedaço de
biscoito e volta para o refeitório para pegar mais.
Lia volta de novo para o berçário.
Verônica:_ Vem bolo fofo, vem pra dentro
(Nota expandida n. 39 do dia 06/12/2005)
Em minha leitura enquanto pesquisadora que “ouvia” a situação,
considerei que naqueles momentos ocorreram situações de rotulação,
porém o cotidiano foi muito além da simplória leitura que eu havia feito
dele. Ele me lançou a incerteza, uma outra leitura diferente da minha, mas
que me ensinou sobre o que vinha a ser a questão das identidades.
Muito se tem discutido, nos dias atuais, sobre a questão das
identidades. Diante da crise dos paradigmas que enfrentamos nessa
passagem da Modernidade para a Pós-Modernidade, as identidades
deixam de ser percebidas como únicas e passam a ser consideradas como
várias. Conhecemos, assim, a chamada “crise de identidades” (HALL,
2005)
Hall (2005), ao tratar da crise da Modernidade, utiliza a
terminologia Modernidade Tardia. Para o autor, o sujeito da Modernidade
unificado, na Modernidade Tardia se descentra, desloca ou fragmenta.
Para Hall (2005), a Modernidade Tardia é caracterizada pela
“diferença”, atravessada por diferentes divisões sociais que produzem
uma variedade de diferentes “posições de sujeito”, isto é, de identidades.
O sujeito previamente com uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado, deixando de ser composto por uma única
identidade e passando a constituir-se de várias, algumas vezes
contraditórias ou não-resolvidas. A identidade deixa de ser fixa, essencial
ou permanente, tornando-se móvel, formada e transformada
continuamente.
Inicialmente se acreditava que as identidades eram divinamente
estabelecidas, não estavam sujeitas a mudanças, à classificação e a
Um tipo diferente de
mudança estrutural está
transformando as
sociedades modernas no
final do século XX. Isso está
48
posição de uma pessoa predominava sobre qualquer sentimento de que a
pessoa fosse um indivíduo soberano.
Muitos movimentos importantes no pensamento e nas culturas
ocidentais contribuíram para a emergência de uma forma nova de
individualismo, no centro da qual originou-se uma nova concepção de
sujeito individual e sua identidade. A Reforma e o Protestantismo
libertaram a consciência individual da Igreja e a expuseram aos olhos de
Deus; o Humanismo Renascentista colocou o Homem no centro do
universo; as revoluções científicas conferiram ao Homem a faculdade e as
capacidades para investigar e decifrar os mistérios da Natureza e o
Iluminismo centrado na imagem de Homem racional, científico, libertado
do dogma e da intolerância e diante do qual se estendia a totalidade da
história humana, para ser compreendida e dominada. (HALL, 2005)
Um filósofo importante que formulou a concepção de sujeito
racional foi René Descartes. Matemático e cientista que foi atingido pela
profunda dúvida que se seguiu com o deslocamento de Deus do centro do
universo. Descartes colocou no centro da mente o sujeito individual,
constituído por sua capacidade para raciocinar e pensar: “Penso, logo
existo.”
Desde então essa concepção de sujeito racional situado no
centro do conhecimento vem sendo divulgada como o “sujeito
cartesiano”.
Aqueles que defendem que as identidades modernas estão sendo
fragmentadas argumentam que o que aconteceu com a concepção do
sujeito moderno, na Modernidade Tardia, não foi sua desagregação, mas
seu deslocamento. Eles descrevem esses deslocamentos através de
algumas rupturas no discurso do conhecimento moderno.
Hall (2005) faz um esboço de cinco grandes avanços na teoria
social e nas ciências humanas ocorridos no pensamento no período da
Modernidade Tardia, os quais passo a descrever, tendo sido seu o
descentramento final do “sujeito cartesiano”.
O sujeito assume
identidades diferentes em
diferentes momentos,
identidades que não são
unificadas ao redor de um
“eu” coerente. Dentro de
nós há identidades
contraditórias, empurrando
em diferentes direções, de
tal modo que nossas
identificações estão sendo
continuamente deslocadas.
(HALL, 2005, p. 15)
O nascimento do “indivíduo
soberano”, entre o
Humanismo Renascentista
do século XVI e o
Iluminismo do século XVIII,
representou uma ruptura
importante com o passado.
Alguns argumentam que ele
foi o motor que colocou
todo o sistema social da
“modernidade” em
movimento.
(HALL, 2005, p. 25)
49
A primeira descentração refere-se às tradições do pensamento
marxista. Marx afirmou que os homens fazem a história, mas apenas sob
as condições que lhes são dadas. Intérpretes da década de sessenta leram
isso no sentido de que os indivíduos não poderiam de nenhuma forma ser
os “autores” ou os agentes da história uma vez que eles podiam agir
apenas com base em condições históricas criadas por outros e sob as quais
eles nasceram, utilizando recursos materiais e de culturas que lhes foram
fornecidos por
gerações anteriores.
Eles (intérpretes) argumentavam que o marxismo, corretamente
entendido, deslocara qualquer noção de agência individual. Hall (2005)
cita Louis Althusser, ao dizer que Marx desloca duas proposições-chave
da filosofia moderna: que há uma essência universal de homem e que essa
essência é o atributo de cada indivíduo singular o qual é o seu sujeito real.
O segundo dos descentramentos foi a descoberta do inconsciente
por Freud. A teoria de Freud de que nossa sexualidade e a estrutura de
nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e
simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com uma lógica
diferente daquela da “razão”, que joga por chão o conceito de sujeito
cognoscente e racional provido de uma identidade única e fixa.
O terceiro descentramento está associado ao lingüista Ferdinand
de Saussure. Ele argumenta que nós não somos os autores das afirmações
que fazemos ou dos significados que expressamos na língua. Esta é um
sistema social e não individual. O significado das palavras não é fixo, ele
surge nas relações de similaridade e diferença que as palavras têm com
outras palavras no interior do código da língua.
Existe uma analogia entre língua e identidade, eu sei quem eu
sou em relação com “o outro” que eu não posso ser. Tudo o que dizemos
tem um antes e um depois, uma margem na qual outras pessoas podem
escrever. O significado é inerentemente instável: ele procura o
fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela
diferença).
Quando o inesperado se
manifesta, é preciso ser
capaz de rever nossas
teorias e idéias, em vez de
deixar o fato novo entrar à
força na teoria incapaz de
recebê-lo. (MORIN, 2004,
p. 30)
Os homens fazem sua
própria história, mas não a
fazem como querem; não a
fazem sob circunstâncias de
sua escolha e sim sob
aquelas com que se
defrontam diretamente,
legadas e transmitidas pelo
passado. (MARX, 1986,
p. 17)
O inconsciente é a
verdadeira realidade
psíquica; em sua natureza
mais íntima, ele nos é tão
desconhecido quanto a
realidade do mundo
externo, e é tão
incompletamente
apresentado pelos dados da
consciência quanto o é o
mundo externo pelas
comunicações de nossos
órgãos sensoriais.
(FREUD, 1900, n/p)
Mas o que é a língua?
Para nós, ela não se
confunde com a linguagem;
é somente uma parte
determinada, essencial
dela, indubitavelmente. É,
ao mesmo tempo, um
produto social da
faculdade de linguagem e
um conjunto de convenções
necessárias, adotadas pelo
corpo social para permitir
o exercício dessa faculdade
nos indivíduos.
(SAUSSURE, 1969, p. 17).
50
O quarto descentramento ocorre com o historiador e filósofo
francês Michel Foucault. Numa série de estudos, Foucault produziu uma
espécie de “genealogia do sujeito moderno.” Ele destaca um novo tipo de
poder denominado por ele de “poder disciplinar” que se desenvolve e
alcança seu desenvolvimento máximo no início do século XIX. Seus
locais são aquelas instituições que se desenvolvem ao longo desse século
e que policiam e disciplinam as populações modernas, as oficinas,
quartéis, escolas, prisões, hospitais e clínicas.
O que é interessante do ponto de vista da história do sujeito
moderno é que, embora o poder disciplinar seja o produto das novas
instituições coletivas e de grande escala da Modernidade Tardia, suas
técnicas envolvem uma aplicação do poder e do saber que “individualiza”
ainda mais o sujeito e envolve mais intensamente seu corpo.
Essa sociedade disciplinar ou normalizadora se caracteriza como
um ambiente de confinamentos, cada qual com suas leis. A instituição da
norma absolutiza atitudes de pensamentos e o controle passa a ser uma
questão de estar “dentro” ou “fora” dos padrões estabelecidos.
O quinto descentramento é o impacto do feminismo tanto como
crítica teórica quanto como um movimento social. O feminismo fez parte
do grupo de “novos movimentos sociais” que emergiram nos anos
sessenta juntamente com os movimentos estudantis, antibelicistas, lutas
pelos direitos civis, movimentos pela paz, dentre outros.
Cada movimento apelava para a identidade social de seus
sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual
aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista
aos pacifistas e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do
que veio a ser conhecido como a “política de identidade” - uma
identidade para cada movimento.
Bauman (2001, 2005), na mesma direção de Hall, nos diz que
estamos passando por um processo de “liquefação” das estruturas e
instituições sociais. Ou seja, passamos da fase “sólida” da Modernidade
O poder disciplinar é com
efeito um poder que, em vez
de se apropriar e de retirar,
tem como função maior
‘adestrar’; ou sem dúvida
adestrar para retirar e se
apropriar ainda mais e
melhor. Ele não amarra as
forças para reduzi-las;
procura ligá-las para
multiplicá-las e utilizá-las
num todo. (FOUCAULT,
2004, p. 143),
Para muitas estudiosas e
estudiosos [...] as
problematizações
levantadas pelo feminismo
fizeram mais do que exigir
um acréscimo das mulheres
aos estudos, uma
descoberta de suas
histórias e de suas vozes.
Essas problematizações
desafiaram a própria
forma de fazer ciência até
então hegemônica. No
entendimento de muitas/os,
as questões postas pelas
feministas não teriam
mostrado, apenas,
insuficiências ou
incompletudes nos
paradigmas teórico-
metodológicos, essas
questões teriam abalado
radicalmente os
paradigmas. Em vista
disso, a construção de uma
ciência feminista
acarretaria, como uma
espécie de marca de
nascença, um caráter de
desafio à ciência
“normal”, uma disposição
intrínseca para o
questionamento e a
instabilidade (se é que essa
afirmação não acaba por
se constituir numa
contradição em seus
próprios termos).
(LOURO, 1997, p. 144).
51
para a fase “fluida”, por ele denominada como Modernidade Líquida. Os
“fluidos” são assim chamados porque não conseguem manter a forma por
muito tempo, continuam mudando sob influência até mesmo das menores
forças.
Para este autor, na Modernidade Líquida as identidades passam
a ser liqüídas, deixam de ser sólidas e estáveis. E com isso também a idéia
de pertencimento se desmancha e torna-se fluida também.
Bauman (2005) acredita que a identidade só nos é revelada
como algo a ser inventado e não descoberto, como alvo de um esforço,
uma coisa que se precisa construir a partir do zero ou escolher entre
alternativas e aí então lutar para protegê-la.
Fluímos por nossas identidades. Muitas vezes o prazer de
selecionar uma identidade é corrompido pelo medo, pois se nossos
esforços fracassarem por falta de determinação, uma outra identidade,
intrusa, pode ser incorporada sobre aquela que nós escolhemos e
construímos.
A grande preocupação atual é a incerteza de qual das identidades
escolher e por quanto tempo se apegar a ela. No passado a preocupação
era encontrar os meios adequados para atingir determinados fins, agora é
preciso testar, experimentar todos os fins que se possam atingir com a
ajuda dos meios que já se possui ou que estão ao alcance.
A construção da identidade assume uma forma de
experimentação interminável. Você assume uma identidade em um
determinado momento, mas muitas outras ainda estão por vir. Nunca se
saberá ao certo se a identidade que agora exibimos é a melhor que
poderemos obter.
Em nosso mundo fluido, como nos diz Bauman (2005),
comprometer-se com uma única identidade para toda a vida, ou por um
longo tempo, é coisa arriscada. Transitamos por elas por toda vida,
experimentando, testando, sem termos a absoluta obrigação de nos
“enquadramos” em uma só.
Tornamo-nos conscientes de
que o “pertencimento” e a
“identidade” não têm a
solidez de uma rocha, não
são garantidos para toda a
vida, são bastante
negociáveis e revogáveis, e
de que as decisões que o
próprio indivíduo toma, os
caminhos que percorre, a
maneira como age – e a
determinação de se manter
firme a tudo isso – são
fatores cruciais tanto para o
“pertencimento” quanto
para a “identidade”.
(BAUMAN, 2005, p. 17)
52
Mas nem sempre sabemos disso, ou melhor, não sabemos.
Quando levei a situação vivida no berçário, levei no intuito de
discutir a questão da construção da identidade das crianças da creche e o
cuidado que devemos ter ao colocar apelidos, rotulando as crianças, mas
o que Cecília, Verônica, Ana Paula e as outras profissionais me
trouxeram foi muito além do que eu pensava em discutir naquela tarde:
Cecília:_ Igual o Davi não é por eu achar ele mais bonito que
as outras crianças não, foi no sentido assim [...] tudo dele é
perfeito, ele faz tudo direitinho, até se alimentar ele come
direitinho, faz tudo direitinho, mastiga direitinho, come sozinho,
ele come sozinho. A Janaína quando tenta comer sozinha
entorna a comida toda. Ele não, deu um prato pra ele, ele come
direitinho, não deixa entornar. (Reunião dia 15/02/06)
Verônica:_ Por exemplo, a Lia eu chamava ela de bolo fofo no
sentido carinhoso, né?Por causa dela ser bem gordinha, bem
fofinha, né? Aí então eu chamava ela de bolo fofo nesse sentido,
não é de chamar a coitadinha de gordinha nem de nada não,
porque sei lá, bolo fofo é gostoso, gente? (ri) se eu chamasse
ela de bolo solado, aí sim. (Reunião dia 15/02/06)
Ana Paula:_ Posso falar? [...] Eu achei assim que a segunda e a
terceira ata, às vezes a gente sem pensar, né? Coloca, rotula
uma criança, né? Com apelido que agora a gente tá lendo
53
esses valores modernos ainda existem mais do que imaginamos nas
nossas práticas escolares.
Ana Paula:_ Ele é tão perfeito, tão bonitinho, a Lia não.
Cecília:_ A Lia eu fui dando a colher pra ela, ela não deixou
ninguém dar comida pra ela, ela não comia. Ai tinha que ir
buscar ela não comia direito tinha que buscar ela não comia.
eu tive que deixar.
Verônica:_ Punha a mão na comida.
Cecília:_ Ela não comia sozinha nem deixava dar. um belo
dia, o que que aconteceu? [...] Ela ficou sem se alimentar.
ela fez assim, a o dela ela pegou, ia sozinha entornava
tudo. Aí depois que tava com fome ela entregava o prato a
gente. eu falei com a mãe dela ai. ela falou:_ Não Cecília,
não. Deixa que ela vai ficar sem se alimentar, ela não vai comer
com a mão. Depois que ficou maiorzinha, Deus me livre, andava
com prato. E o Davi não, dava o pratinho pra ele e ele sentava
bonitinho, por isso que eu falo: Tudo dele é lindinho, tudo
dele é...
Verônica:_ No início ele era muito quietinho, era uma criança...
brincava sozinho, não era agressivo então ele era diferente das
outras crianças do berçário. (Reunião dia 15/02/2006)
Percebemos que os profissionais destacam as mudanças das
crianças, mas apontando para a identidade padrão.
Vemos que as sociedades e a vida estão mudando e se
transformando e com isso os homens e as mulheres também precisam
desconstruir a idéia de uma única identidade e assumir que as identidades
são múltiplas, fluidas.
Bauman (2005) nos diz que, quando o mundo conhecido se
despedaça, um dos efeitos mais perturbadores é a pilha de escombros,
ocultando as fronteiras enquanto o lixo e a sucata escondem os postes de
sinalização. As vítimas não são temidas e odiadas por serem diferentes
mas porque não são suficientemente diferentes, misturando-se assim na
multidão.
Desse modo, de acordo com padrões da Modernidade, toda
destruição é aqui uma destruição “criativa”, uma guerra santa da
A identidade é realmente
algo formado, ao longo do
tempo, através de
processos inconscientes, e
não algo inato, existente na
consciência no momento do
nascimento.
(HALL, 2005, p. 38)
54
disciplina contra o caos, um ato dotado de propósito, um trabalho voltado
à construção da ordem, como nos diz Bauman (2005).
Marques e Marques (2003) nos dizem que a movimentação de
sentidos do “normal” para o diverso não constitui uma simples superação
do princípio da igualdade entre os homens como valor absoluto pelo
princípio de que somos todos diferentes em características e direitos.
Todos são iguais no que se refere ao valor máximo da
existência: a humanidade do homem. A não consideração das diferenças é
uma decorrência do primado do universal que derivou no processo de
padronização do “normal”, marca de todo o pensamento moderno.
A Modernidade foi tida por sociedades disciplinares e
reguladoras, caracterizadas por ambientes de normalização e
confinamentos. O controle selecionava quem estava “dentro” ou “fora” de
um determinado padrão estabelecido como “normal”.
Uma característica do esquema de vigilância e controle da
Modernidade foi o estabelecimento de padrões e enquadramento das
pessoas e dos comportamentos. A Modernidade foi para Vaz (1997)
marcada pelo desejo do normal, o que implicou na necessidade de se criar
a categoria das anormalidades para se estabelecer o antagonismo normal
X anormal.
Marques (2001), citando Foucault, diz que a criação da figura do
anormal na Modernidade foi um processo onde primeiro se formulou o
que é o anormal, em seguida ocorreu sua exclusão através dos
internamentos e, posteriormente, ocorreu sua incorporação no nível da
sua representação simbólica.
Assim, o que o homem moderno fez foi construir um mundo
segundo os seus padrões de certo e errado, bonito e feio, igual e diferente,
seguindo uma idéia preconcebida do que vinha a ser a normalidade.
Ao assumir o normal como padrão, era necessário criar o
anormal para que a contradição fosse estabelecida, ou seja, ao criarmos a
idéia da criança ideal, “normal”, como aquela que come direito, que anda
Talvez a diferença mais
aparente entre o suplicio e a
disciplina seja que esta não
pode extinguir do real
aquilo que designa como
negatividade ética. Dito de
outro modo, o poder
disciplinar produz
positivamente o negativo
para exercer uma pressão
constante de
homogeneização sobre os
indivíduos. E de que outro
modo, senão pela existência
do anormal, poderia
suscitar o desejo de
estabilidade, a busca do
prazer ressentido de ser
normal, da afirmação de si
pela negação prévia do
outro?
(VAZ, 1997, p. 83)
55
direito, que se comporta de forma adequada, estamos também de alguma
forma fazendo com que aquelas que não conseguem comer com
perfeição, que não andam no mesmo tempo que seus pares, que não
brincam de forma coordenada sejam vistas muitas vezes como as
“anormais” de nossas instituições. E com isso padronizamos desde cedo o
comportamento de nossas crianças.
Para Ferre (2001), nossa identidade quem nos dá são os outros,
mas nós não somos essa identidade, pois se os outros têm de nos dá-la é
porque nós, em nós mesmos, por nós mesmos, em nossa intimidade não a
temos.
Para esta autora, não existe identidades especiais e sim diversidade
humana, mas, infelizmente, a sociedade e principalmente a escola, insiste
em fazê-las existir. Esta existência se faz a partir dos padrões de
normalidade instalados previamente nos sujeitos, antes mesmo de seu
nascimento, pois não é permitido o surgimento de algo novo, inesperado,
e sim de algo antes determinado, definido, limitado ao já desejado.
Segundo Guirado (1998), a escola é o lugar para a reprodução da
mesmidade e para a produção da diferença uma vez que diante de tantas
certezas quanto à metodologia adequada, à boa relação professor-aluno, à
melhor forma para a aprendizagem, a escola institui certos padrões de
conduta, de pensamento e de discurso. A escola acaba por demarcar
nossos lugares e prever nossos papéis.
Woodward (2000) nos diz que a identidade é relacional. A
identidade para existir depende de algo fora dela, de uma identidade que
ela não é, mas fornece condições para que ela exista. A identidade é assim
marcada pela diferença.
E por falar em diferença:
Bianca:_ o essas questões que a gente tem que pensando
que às vezes uma coisa que a gente fazendo todos os dias a
gente não tem noção de que isso pode estar sendo importante
pras crianças, né? Na construção dessa identidade deles. E a
mesma coisa foi o que aconteceu semana passada, a questão do
Não obstante, a educação
impõe, a si mesma, o dever
de fazer de cada um de nós
alguém; alguém com uma
identidade bem definida
pelos cânones da
normalidade, os cânones
que marcam aquilo que
deve ser habitual, repetido,
reto, em cada um de nós.
(FERRE, 2001, p. 196)
A escola é um dispositivo
que nos põe atores em uma
cena com demarcações de
lugares, previsões de papéis
e de textos. E, nisso, nos
indiferencia. Sim, porque,
como atores, todos e cada
um de nós, sem distinção,
fazemos e portamos
discursos, desempenhamos
papéis, em intima relação
com esses lugares previstos.
(GUIRADO, 1998, p. 199)
56
apelido que a gente foi colocando. Igual o que a Cecília falou,
porque que o Davi era o lindinho? Porque tudo dele era
perfeito, andava perfeito. essa questão da perfeição que a
Cecília falou, é uma história que vem lá de tras na Modernidade
porque que o patinho era feio?
(Risos)
Verônica:_ Por que ele era diferente, né?
Bianca:_ Por que que o Davi era lindinho?
(silêncio)
Bianca:_ Por que ele era perfeito?!?[...]
Verônica:_ Lindinho não é por causa de beleza.
Bianca:_ Mas é um lindo de perfeição.
Verônica:_ Exatamente.
Bianca:_ Por que ele se destaca dos outros?
Cecília:_Tudo que surgindo nele é perfeito, é diferente das
outras crianças.
Bianca:_ Mas porque que a gente tem que gostar tanto do que é
perfeito?
(Silêncio)
Cecília:_ Assim, é...
(silêncio)
Bianca:_ É porque internalizado na gente. Não é culpa da
Cecília, culpa de ninguém não. É porque a gente é criado num
mundo em que as coisas que são perfeitas é que a gente acha
bonito.
Verônica:_ Mas o objetivo do trabalho não é a perfeição? O
que é certo? Então a gente vive assim.
Bianca:_ Mas e os outros eles sempre vão ser feios?
Verônica:_ Eu quis dizer o seguinte, a gente sempre procura
sempre isso. A gente vai vivendo, vai trabalhando nisso.
Cecília:_ Mas só a perfeição também não é bom não.
Bianca:_ É esse o exercício diário. Quando alguma coisa foge
do nosso padrão, que é diferente de qualquer coisa que a gente
faz, a primeira coisa que a gente faz? A gente rotula.[...]
Maria Lúcia:_ Eu nunca tinha pensado.
Verônica:_ Vivendo e aprendendo!
(Reunião do dia 22/02/2006)
Não bastava somente levar as situações vividas no cotidiano, era
preciso refleti-las, digeri-las, repensá-las e ressignificá-las. Talvez não
naquele momento, talvez mais tarde ou talvez algum dia em alguma outra
ocasião elas atentariam para aquilo que estávamos refletindo.
57
Vimos com Woodward (2000) que as identidades são fabricadas
por meio da diferença. Essa marcação ocorre por meio dos sistemas
simbólicos de representação e por meio de formas de exclusão social.
A identidade não é o oposto da diferença, ela depende da
diferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença - simbólica e
social - são estabelecidas por meio de sistemas classificatórios. Um
sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população
de uma forma tal que seja capaz de dividi-la em dois grupos opostos:
nós/eles.
A diferença é aquilo que separa uma identidade da outra, segundo
Woodward (2000), estabelecendo distinções, freqüentemente na forma de
oposições no qual as identidades são construídas por meio de uma classe
de oposição entre “nós” e “eles”.
A marcação da diferença é, assim, a componente chave em
qualquer sistema de classificação. Os sistemas classificatórios são
construídos, sempre em torno da diferença e das formas pelas quais as
diferenças são marcadas.
Fixar uma determinada identidade como norma, para Silva (2000),
é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das
diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o
poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar
para o autor significa eleger uma identidade específica, como o parâmetro
em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas.
A identidade normal passa a ser natural e desejável, porém única.
E a força dessa identidade normal é tamanha que ela não é mesma vista
como uma identidade, mas como a identidade.
Larrosa (1998) fala da importância de não definirmos a priori o
que o outro, enquanto sujeito, deve ser, pois é algo que não podemos
antecipar. Não é presa de nosso poder, mas requer nossas iniciativas, não
está no lugar que lhe damos, contudo requer um lugar que o receba.
Como a definição da
identidade depende da
diferença, a definição do
normal depende da
definição do anormal.
Aquilo que é deixado de
fora é sempre parte da
definição e da constituição
do “dentro”. A definição
daquilo que é considerado
aceitável, desejável, natural
é inteiramente dependente
da definição daquilo que é
considerado abjeto,
rejeitável, antinatural.
(SILVA, 2000, p.84)
58
Regina:_ Igual o Gabriel com a questão do feio. Ele fica:_
Nossa minha mãe é o feia, né?Aí eu falo:_ Ô Gabriel, ela vai
ficar triste se você ficar falando isso. ele:_ Ela é feia de
verdade, ela sabe disso. Todo hora ele fala. eu falo:_ Nossa,
mas sua mãe é tão bonita, tem um cabelo tão bonito, uma pele
bonita, um sorriso bonito. Aí ele falou assim:_ Não é nada, ela é
feia, meu pai falou com ela, eu já falei com ela e ela sabe que
ela é feia.
Bianca:_ Porque olha só, a idade em que eles estão e eles
estão construindo o que que é feio e o que é bonito, o que que é
belo e o que que é horroroso. Isso é muito sério.
Ana Paula:_ Aprende mesmo.
Bianca:_ Isso vem de onde?
Verônica:_ Da creche, da família, da rua...
Cristiana:_ Da comunidade
Maria Lúcia: _Da televisão.
(Reunião do dia 22/02/2006)
As crianças estão sujeitas a seguirem esses padrões de beleza, de
normalidade colocados por uma determinada concepção na sociedade. O
papel da escola é reverter esse quadro no seu fazer cotidiano pelas
propostas e ações dos educadores, por meio das atividades, numa outra
lógica curricular. Desviar o foco da dualidade feio/bonito para o foco da
diversidade.
O que a escola precisa é encarnar o currículo de diversidade.
O que se espera é que o sujeito moderno fundado no universal
passe a se constituir, na Pós-Modernidade, a partir do múltiplo
(MARQUES e MARQUES, 2003).
É preciso educar na diversidade, respeitando as diferenças de cada
um. Esse é o grande desafio que nos coloca o cotidiano: entender que
somos sujeitos diversos, que assumimos papéis diversos, com identidades
móveis.
Inclusão escolar implica
numa reorganização
estrutural da escola, de
todos os elementos da
prática pedagógica,
considerando o dado do
múltiplo, da diversidade e
não mais o padrão, o
universal. (MARQUES e
MARQUES, 2003, p.235)
59
NOSSAS MÃOS – REFEITÓRIO DA CRECHE CASABLANCA
60
4 - DO CONHECIMENTO REGULAÇÃO AO CONHECIMENTO
EMANCIPAÇÃO
Em vez da eternidade, temos a história; em
vez do determinismo, a imprevisibilidade;
em vez do mecanicismo, a interpenetração,
a espontaneidade e a auto-organização; em
vez da reversibilidade, a irreversibilidade e
a evolução; em vez da ordem, a desordem;
em vez da necessidade, a criatividade e o
acidente. (Boaventura SANTOS, 2000,
p.70 -71)
Ao nos encontramos, como de costume, para refletirmos as
leituras feitas por mim do cotidiano da creche, Regina nos presenteou
com uma história em especial:
Regina:_ No Natal a Milena ganhou uma sacola de presentes do
Granville, em uma tinha brinquedos e outras, roupas. A Milena
ganhou três vestidos.
Milena:_ Vou dar pra Pâmela.
Regina retruca: _ Não, é seu, leva pra sua mãe ver.
Milena insiste:_ Vou dar pra Pâmela.
A moça do Granville que trouxe os presentes diz: _ É pra você o
presente.
Milena:_ Tá, mas eu preciso só de um. A Pâmela precisa mais
do que eu!
E pegou os dois vestidos mais bonitos e deu para Pâmela.
Cristiana:_ Eu olhei pra Regina e me deu uma vontade de
chorar.
A moça do Granville falou: _ Eu nunca vi isso na minha vida...
(A reunião parou por alguns minutos, alguns choraram e foi
difícil conter a emoção). (Reunião do dia 1/2/2006)
Essa história, contada em pleno século XXI nos coloca uma
questão em especial: Educar para quê?
Situação disparadora que nos coloca a questão sobre com qual
conhecimento estamos trabalhando na creche. O conhecimento que
emancipa, que liberta ou o que regula, o que aprisiona? Educar para
61
aprender a ler escrever ou educar, como nos diria Morin (2003b), para a
era planetária? Para a humanização dos homens?
Segundo Boaventura Santos (2000), o modelo de racionalidade
que preside a ciência moderna constituiu-se a partir da revolução
científica do culo XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes,
basicamente no domínio das ciências naturais. Ainda que com alguns
prenúncios no século XVIII, é no século XIX que este modelo de
racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. A partir de então,
pode-se falar de um modelo global de racionalidade científica que admite
variedade interna, mas que se defende ostensivamente de duas formas de
conhecimento não científico: o senso comum e os chamados estudos
humanísticos (estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários,
filosóficos e teológicos).
Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é
também um modelo totalitário na medida que nega o caráter racional a
todas as formas de conhecimento que não se enquadrarem nas suas regras
metodológicas. É esta a sua característica fundamental e a que melhor
simboliza a ruptura do novo paradigma científico com o que os precede.
Está consubstanciada, com crescente definição, na teoria heliocêntrica do
movimento dos planetas de Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas
dos planetas, nas leis de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande
síntese da ordem cósmica de Newton e na consciência filosófica que lhe
conferem Bacon e Descartes.
Cientes de que o que os separa do saber aristotélico e medieval e
ainda dominante não é apenas uma melhor observação dos fatos, mas sim
uma nova visão de mundo e da vida, os protagonistas do novo paradigma
conduzem uma luta apaixonada contra todas as formas de dogmatismo e
de autoridade. Esta visão conduz a duas distinções entre conhecimento
científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza
e pessoa humana, por outro. (Boaventura SANTOS, 2000)
62
As idéias que presidem a observação e a experimentação são as
idéias claras e simples a partir das quais se pode ascender a um
conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza. Essas idéias são as
idéias matemáticas. A Matemática fornece à ciência moderna o o
instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da
investigação e ainda o modelo de representação da própria estrutura da
matéria.
Desse lugar central da Matemática na ciência moderna derivam
duas conseqüências principais: conhecer significa quantificar, o rigor
científico afere-se pelo rigor das medições; o que não é quantificável é
cientificamente irrelevante e a visão de que o método científico se assenta
na redução da complexidade (Boaventura SANTOS, 2000). O mundo é
complicado e a mente humana não o pode compreender completamente.
Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar
relações sistemáticas entre o que se separou.
Um conhecimento baseado na formulação de leis tem como
pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a
idéia de que o passado se repete no futuro. O mundo da matéria, segundo
a mecânica newtoniana, é um mundo que o racionalismo cartesiano torna
cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o
constituem. Esta idéia do mundo máquina é de tal modo poderosa que vai
transformar-se na grande hipótese universal da época moderna. De acordo
com Boaventura Santos (2000), o determinismo mecanicista é o horizonte
certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e
funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender
profundamente o real do que pela capacidade de o dominar e transformar.
Para o citado autor, o marco na inversão que começa a ocorrer
foi a Bomba de Hiroshima e Nagasaki. Na Modernidade, o homem cria
muita coisa, mas junto com isso também destrói.
Hoje são muito fortes os sinais de que o modelo de
racionalidade científica atravessa uma profunda crise. A crise do
O rigor científico, porque
fundado no rigor
matemático, é um rigor que
quantifica e que, ao
quantificar, desqualifica,
um rigor que, ao objectivar
os fenômenos, os
objectualiza e os degrada,
que, ao caracterizar os
fenômenos, os caricaturiza.
É, em suma e finalmente,
uma forma de rigor que, ao
afirmar a personalidade do
cientista, destrói a
personalidade da natureza.
(Boaventura SANTOS,
2000, p. 73)
63
paradigma dominante é o resultado de uma pluralidade de condições. A
identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma
científico moderno, é o resultado do grande avanço no conhecimento que
ele propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a
fragilidade dos pilares em que se funda.
Nesse período de transição paradigmática sentimos a
necessidade de outras formas de conhecimento, de outras formas de
poder, de outras formas de convivência, mas ainda não fomos capazes de
encontrar as formas de conhecimento e as formas de poder que virão
satisfazer nossas sociedades.
O que se propõe é romper com a ciência moderna, não uma
ruptura total, pois se rompe é com a pretensão que a ciência moderna
desenvolveu de ser a única forma de conhecimento verdadeira e absoluta.
Ao fazer essa ruptura, surgem outras formas de conhecimento, onde a
ciência moderna vai continuar a ser uma forma de conhecimento valiosa
mas de modo algum a única, deixando com isso de ser um paradigma
hegemônico.
Continua o mesmo autor, existiram quatro rombos no paradigma
da ciência moderna os quais passo a citar.
O primeiro foi constituído por Einstein. Um dos pensamentos de
Einstein é o da relatividade da simultaneidade. Ao medir a velocidade
numa direção única, defronta-se com um círculo vicioso: a fim de
determinar a simultaneidade dos acontecimentos distantes, é necessário
conhecer a velocidade; mas, para medir a velocidade, é necessário
conhecer a simultaneidade dos acontecimentos. Com um golpe de gênio,
Einstein rompe com este círculo, demonstrando que a simultaneidade de
acontecimentos distantes não pode ser verificada, pode tão-só ser
definida.
Esta teoria veio revolucionar nossas concepções de espaço e de
tempo. Não havendo simultaneidade universal, o tempo e o espaço
absolutos de Newton deixam de existir. Dois acontecimentos simultâneos
Primeiro, que essa crise é
não profunda como
irreversível; segundo, que
estamos a viver um período
de revolução científica que
se iniciou com Einstein e a
mecânica quântica e não se
sabe ainda quando
acabará; terceiro, que os
sinais nos permitem tão-só
especular acerca do
paradigma que emergirá
deste período
revolucionário, mas que,
desde já, pode afirmar-se
com segurança que
colapsarão as distinções
básicas em que assenta o
paradigma dominante.
(Boaventura SANTOS,
2000, p.68)
64
num sistema de referência não são simultâneos noutro sistema de
referência.
A segunda condição teórica da crise é a mecânica quântica.
Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir um
objeto sem interferir nele, sem o alterar e a tal ponto que o objeto que sai
de um processo de medição não é o mesmo que entrou. Dessa forma, a
hipótese do determinismo mecanicista é inviabilizada uma vez que a
totalidade real não se reduz à soma das partes em que a dividimos para
observar e medir.
O rigor da medição posto em causa pela mecânica quântica se
ainda mais abalado se se questionar o rigor do veículo formal em que a
medição é expressa, ou seja, o rigor da Matemática. É o que sucede com
as investigações de del, as quais são consideradas a terceira condição
da crise. Suas investigações vêm demonstrar que a veracidade da
Matemática carece ela própria de fundamento. A partir daqui é possível
não questionar o rigor da matemática como também redefini-lo
enquanto forma de verdade que se opõe a outras formas de rigor
alternativo, uma forma de rigor cujas condições de êxito na ciência
moderna não podem continuar a ser concebidas como naturais e óbvias.
A quarta condição teórica da crise do paradigma newtoniano é
constituída pelos progressos do conhecimento nos domínios da
Microfísica, da Química e da Biologia nos últimos 30 anos, podendo citar
aqui as investigações de Ilya Prigogine. A situação de bifurcação, ou seja,
o ponto crítico em que a mínima flutuação de energia pode conduzir a um
novo estado representa a potencialidade do sistema em ser atraído para
um novo estado de menor entropia.
A importância maior desta teoria está em que ela não é um
fenômeno isolado. Faz parte de um movimento convergente, sobretudo a
partir das duas últimas décadas, que atravessa as várias ciências da
natureza e até as ciências sociais, um movimento de vocação
transdiciplinar. Este movimento científico e as demais inovações teóricas
A importância desta teoria
(teoria das estruturas
dissipativas de Prigogine)
está na nova concepção da
matéria e da natureza que
propõe, uma concepção
dificilmente compaginável
com a que herdamos da
física clássica. Em vez da
eternidade, temos a
história; em vez do
determinismo, a
imprevisibilidade; em vez
do mecanicismo, a
interpenetração, a
espontaneidade e a auto-
organização; em vez da
reversibilidade, a
irreversibilidade e a
evolução; em vez da ordem,
a desordem; em vez da
necessidade, a criatividade
e o acidente. (Boaventura
SANTOS, 2000, p. 70-71)
65
da crise do paradigma dominante têm vindo propiciar uma profunda
reflexão epistemológica sobre o conhecimento científico, uma reflexão de
tal modo rica e diversificada que, melhor do que qualquer outra
circunstância, caracteriza exemplarmente a situação intelectual do tempo
presente.
Hoje, no século XXI, vemos o desejo de raízes, de diferenças. A
Modernidade não foi capaz, nem no seu modelo cognitivo, nem no seu
modelo político, de acomodar igualdade e diferença. A tendência foi de
rotular tudo que é diferente como inferior.
A caracterização da crise do paradigma dominante traz consigo
o perfil do paradigma emergente. Com isso Boaventura Santos (2000)
propõe o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida
decente, argumentando que o paradigma a emergir de uma revolução
científica que ocorre numa sociedade onde a própria ciência questiona
seus propósitos, tem que considerar para além do paradigma científico (o
paradigma de um conhecimento prudente), o paradigma social (o
paradigma de uma vida decente).
A solução seria partir das representações inacabadas do nosso
tempo. Isso significa que transcendemos a Modernidade a partir da
Modernidade.
Para o autor, as representações que a Modernidade deixou mais
inacabadas são, no domínio da regulação, o princípio da comunidade e,
no domínio da emancipação, a racionalidade estético-expressiva. Dos três
princípios de regulação (mercado, estado e comunidade), o princípio da
comunidade foi o mais negligenciado. E quase foi absorvido pelos
princípios do estado e do mercado, porém ele passa a ser o menos
obstruído por determinações e, portanto, o mais bem colocado para
instaurar uma dialética positiva com o pilar da emancipação.
A comunidade é composta por duas dimensões: participação e
solidariedade. Essas parcialmente foram colonizados pela ciência
moderna. Com a participação, a colonização deu-se no contexto de que a
Se se contesta hoje a
modernidade nessa aversão
que teve pela diferença, é
precisamente porque nem
todas as diferenças
necessariamente
inferiorizam as pessoas. Há
diferenças e há igualdades,
e nem tudo deve ser igual e
nem tudo deve ser diferente.
(Boaventura SANTOS,
1995, n/p)
Porque é uma
representação aberta e
incompleta, a comunidade é
ela própria dificilmente
representável – ou é-o
apenas vagamente – e os
seus elementos
constitutivos, também eles
abertos e inacabados,
furtam-se a enumerações
exaustivas. Têm, contudo,
uma característica comum:
todos resistiram à
especialização e à
diferenciação técnico-
científica através das quais
a racionalidade cognitivo-
instrumental da ciência
moderna colonizou os
outros três princípios
modernos de regulação: o
mercado e o Estado. Ao
contrário dos dois últimos,
o princípio da comunidade
resistiu a ser totalmente
cooptado pelo utopismo
automático da ciência e, por
isso, pagou duramente com
a sua marginalização e
esquecimento.
(BOAVENTURA
SANTOS, 2000, p. 75)
66
teoria política liberal definiu, de forma rígida, como sendo a esfera
política (cidadania e democracia representativa), todavia ficaram outros
domínios da vida social em que a participação continuou a ser uma
competência não especializada e indiferenciada da comunidade.
Com a solidariedade, a sua colonização ocorreu nos países
capitalistas desenvolvidos, através de políticas sociais do Estado-
Providência, também de forma incompleta, entretanto na grande maioria
dos Estados-Nação, a solidariedade comunitária não especializada
continua a ser a forma dominante de solidariedade.
Em relação ao pilar da emancipação, a racionalidade estético-
expressiva resistiu melhor à cooptação total. Em geral, a racionalidade
estético-expressiva é, por natureza, tão inacabada como a própria obra de
arte e, por isso, não pode ser encerrada na prisão flexível do automatismo
técnico-científico.
O princípio da comunidade e a racionalidade estético-expressiva
são, assim, as representações mais inacabadas da Modernidade, por isso,
deve-se dar prioridade à análise das suas potencialidades epistemológicas
para restabelecer as energias emancipatórias que a Modernidade deixou
transformar em regulatórias (Boaventura SANTOS, 2000).
O paradigma da Modernidade comportou duas formas de
conhecimento: o conhecimento-emancipação e o conhecimento-
regulação. O conhecimento-emancipação é uma trajetória entre um
estado de ignorância que Boaventura SANTOS (2000) designa de
colonialismo e um estado de saber designado por solidariedade. O
conhecimento-regulação é uma trajetória entre um estado de ignorância,
designado por caos e um estado de saber, designado por ordem.
Se o primeiro modelo de conhecimento vai do colonialismo à
solidariedade, o segundo progride do caos para a ordem. A vinculação
recíproca entre os pilares da regulação e da emancipação implica que
esses dois modelos se articulem em equilíbrio dinâmico, significando que
Depois de dois séculos de
excesso de regulação em
detrimento da emancipação,
a solução procurada não é
um novo equilíbrio entre
regulação e emancipação.
Isso seria ainda uma
solução moderna cuja
falência intelectual é hoje
evidente. Devemos, sim,
procurar um desequilíbrio
dinâmico que penda para a
emancipação, uma
assimetria que sobreponha
a emancipação à regulação.
Se a pós-modernidade de
oposição significa alguma
coisa, é justamente esse
desequilíbrio dinâmico ou
assimetria a favor da
emancipação,
concretizando com a
cumplicidade
epistemológica do princípio
da comunidade e da
racionalidade estético-
expressiva. (Boaventura
SANTOS, 2000, p. 78)
67
o poder cognitivo da ordem alimenta o poder cognitivo da solidariedade e
vice-versa.
Esse equilíbrio foi confiado às três lógicas de racionalidade: a
moral-prática, a estético-expressiva e a cognitiva-instrumental, contudo
nos últimos duzentos anos a racionalidade cognitivo-instrumental da
ciência e da tecnologia foi se impondo às demais. Assim, o
conhecimento-regulação se impôs ao conhecimento-emancipação: a
ordem acabou transformando-se em forma hegemônica de saber e o caos
em forma hegemônica de ignorância.
O estado de saber no conhecimento-emancipação passou a
estado de ignorância no conhecimento-regulação (a solidariedade acabou
sendo recodificada como caos) e a ignorância no conhecimento-
emancipação passou a estado de saber no conhecimento-regulação (o
colonialismo foi recodificado como ordem) (Boaventura SANTOS,
2000).
A situação atual é a de conceder primazia do conhecimento-
emancipação sobre o conhecimento-regulação, isto significa transformar a
solidariedade em forma hegemônica de saber e aceitar um certo nível de
caos decorrente da negligência relativa do conhecimento-regulação,
obrigando, pois, a dois compromissos epistemológicos: o primeiro seria
reafirmar o caos e o segundo reafirmar a solidariedade, ambos como
forma de saber e não de ignorância. Quanto ao primeiro compromisso, em
vez de transcender o caos, a ordem coexiste com ele numa relação quase
sempre tensa. Nas duas versões que temos da teoria do caos - a de
Prigogine onde ordem é uma auto-organização a partir do caos e a de
Lorenz, Feigenbaum e Mandelbrot, que acreditam existir ordem no
interior de sistemas caóticos o caos deixa de ser negativo e passa a ter
uma positividade própria inseparável da ordem. (Boaventura SANTOS,
2000)
68
Uma das positividades para o autor (2000) é a idéia de não-
linearidade, a idéia de que nos sistemas complexos as funções não são
lineares, assim uma pequena causa pode produzir um grande efeito.
O caos apela a suspeitar da capacidade de ação e pôr em causa a
idéia da transparência entre a causa e o efeito. Assim, o caos nos convida
a um conhecimento prudente.
***
Cristiana:_ E no dia que a gente pintou (o painel da sala) a (N)
veio aqui, ela chegou na turma eu tava acabando de levantar
o TNT as mesas estavam aquela festa, né? Ela falou:_ Nossa,
mas que bagunça, que é isso? Que confusão é essa? Aí as
crianças foram, falaram com ela:_ A gente pintando o painel
da nossa sala. Elas não falaram painel não, falaram outra
coisa. ela falou:_ Ah, mas que lindo, não sei o que. Mais
assim depois, né? Porque primeiro ela viu a bagunça, a
confusão, a desorganização, uma criança chamou a atenção
dela pra ela ver o porquê daquilo ali.
Bianca:_ você que dentro de uma desorganização
aparentemente quando a pessoa de fora uma organização
pra quem tá ali dentro da situação.
Ana Paula:_ Foi o que eu falei com a Cris outro dia não foi
Cris? Eu tava falando:_ Nossa! esse ano eu tô adorando a
desorganização da sala [...] a desorganização da minha sala é
uma delicia gente, porque é dentro daquela desorganização que
eu respeito o espaço da criança e aprendo muito com eles. É
muito legal.
Cristiana:_ Sobre desorganização eu lembro muito da turma da
Carmem do ano passado. Ás vezes eu chegava lá, tinha um no
colchonete cortando revista, o outro desenhando, o outro
brincando de carrinho e o outro fazendo outra coisa. Quem
chegava de fora levava aquele susto:_ Nossa Senhora, cada um
faz o que quer? Como é que é essa bagunça? Mas não, cada um
tava construindo ali, uns com tesoura, outros com lápis, outros
com giz de cera, outros brincando. E é assim, muito legal.
(Ata do dia 15/03/2006)
Ana Paula e Cristiana mostram que convivemos com o caos
cotidianamente e não como uma forma negativa, contudo de uma forma,
como elucidou mesmo Ana Paula, que é dentro daquela “desorganização”
69
que ela respeita o espaço das crianças, a forma que elas utilizam para
brincar, aprender e se organizarem dentro de uma sala de aula.
Quem não participa da atividade e chega de repente imagina a
sala como uma “bagunça”, porém para a professora e as crianças que
estão dentro do processo há uma organização no que estão vivendo ali em
sala. Na sala da Carmem as crianças estão construindo conhecimento, não
ao mesmo tempo, da mesma forma, mas cada uma de acordo com seus
interesses.
A aceitação do caos é uma das duas estratégias epistemológicas
que tornam possível desequilibrar o conhecimento regulação a favor do
conhecimento emancipação.
Quanto ao segundo compromisso, consiste em revalorizar a
solidariedade como forma de saber. Essas duas estratégias estão
interligadas de forma que nenhuma delas é eficaz sem a outra.
A solidariedade é uma forma específica de saber. Um
conhecimento obtido no processo, sempre inacabado, de nos tornarmos
capazes de reciprocidade através do reconhecimento da
intersubjetividade. Enfatizar a solidariedade é converter a comunidade ao
campo do conhecimento emancipatório.
Carmem:_Eu tentando, tirar esse hábito deles ficarem em
cima da mesa. Aqui a gente sabe que pode ser a laje, o telhado.
Mas eu também tenho visto aquele lado, tenho visto também que
eles o podem ficar pulando, né? Igual a mesa põe um
colchonete e eles pulam de cima da mesa, eu tentando
transferir isso pra cadeira. Por exemplo, chega um pai, uma
visita aqui:_ Nossa olha as crianças naquela sala a
professora não tá dominando. A professora não tá dando conta.
Cristiana:_A minha preocupação em pular é a hora em que eles
estão pulando, a hora que eu vejo que eles pulam mais é depois
do almoço eu fico apavorada. teve duas vezes que eu
falei:_Oh! a barriga cheia não pode pular assim. você
podia combinar com eles um horário pra brincar de pular. Aí
vocês vão estar brincando. Que você não vai ter que ficar
preocupada com as crianças que ainda estão fora almoçando
e as que estão pulando aqui. Porque você fica dividida, eu
vou olhar lá ou vou olhar aqui?
70
Regina:_Uma coisa que deu certo na minha sala não sei se com
eles vai dar, colocar uma pilha de colchonetes e colocar outros
no chão pra eles pularem da pilha pro outro pra ver qual pula
mais longe e tudo porque eles não precisam ficar subindo na
mesa. E assim na minha sala como todo mundo gostava muito
de cantar dava certo assim a mesa é o palco:_ Vamos brincar
de show? Aí assim eu punha cadeira pra eles subirem na mesa e
cantar, era na hora do show, o palco podia ser usado pra
aquilo.
Maria cia:_ Quando colocava a colcha era a hora da casa,
depois ali era mesa.
Carmem:_ E só pode subir na laje quando tiver o pano.
Cristiana:_ Quanto a essa preocupação de quando eles forem
pra outro lugar, eu também me preocupava muito, eu ficava
pensando no sofrimento deles porque aqui eles iam pegavam
folha na hora que eles quisessem, faziam um triângulo eles
queriam fazer uma casa, faziam um quadrado eles queriam um
triângulo, tudo bem. Pintavam dentro e fora e eles sabiam onde
era cada um. Aí o que que eu fazia? De vez em quando eu falava
com eles?_ Aqui é a creche, a gente trabalha desse jeito, mas
não é assim em todo lugar, a diferença é que aqui é de um jeito
e em outro lugar vai ser diferente. Então se um dia alguém falar
com vocês que é pra colorir dentro, vocês vão colorir dentro.
Então presta atenção, pergunta primeiro. Aqui tudo bem, a
gente combina. Então sabe, né? Sofrer eles vão sofrer mesmo
com essa separação, sentir eles vão sentir também, falar da
gente eles vão falar também.
Regina:_ Eu acho Carmem que se você ficar pensando nisso
você vai sofrer demais o ano inteiro e vai perder a chance de
aproveitar muito as crianças. Igual ano passado a gente
brincava e tal. tinha hora de fazer atividade que eu falava:
_ Agora a gente vai fazer a atividade desse jeito porque quando
vocês forem para a Escola Municipal de Educação Infantil, vai
ser desse jeito. eles faziam daquele jeito. acabava eles
falavam:_ Agora a gente pode fazer do nosso jeito? Eu falava: _
Agora pode. Então acho que é combinar, fazer do jeito que vai
fazer na outra escola e agora é do nosso jeito, sabe? Porque se
você for ficar pensando que vai fazer como vai ser na
escola, você vai perder a chance de aproveitar muita coisa com
eles.
Carmem:_ Vou perder...
(Ata do dia 14/04/2006)
A situação nos mostra que Carmem coloca suas dificuldades e o
grupo é solidário com Carmem, trouxe um pouco de suas experiências
71
vividas, deram sugestões e junto com Carmem pensaram e repensaram a
situação desafiadora, dando-se o conhecimento de forma solidária.
Morin (2003b) nos fala de princípios do conhecimento
pertinente. Para articular e organizar os conhecimentos e assim
reconhecer e conhecer os problemas do mundo, é necessário a reforma do
pensamento. Essa é, entretanto, paradigmática e não programática.
Para que o conhecimento seja pertinente, a educação deverá
torná-los evidentes. Com isso se tornam de fundamental importância: o
contexto, o global, o multidimensional, o complexo.
O conhecimento das informações ou dos dados isolados é
insuficiente. É preciso situar as informações e os dados em seu contexto
para que adquiram sentido.
Morin (2004) cita Claude Bastien ao dizer que a evolução
cognitiva não caminha para o estabelecimento de conhecimentos cada vez
mais abstratos, mas, ao contrário, para sua contextualização.
O global é mais que o contexto, é o conjunto das diversas partes
ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional.
Sendo assim, uma sociedade é mais que um contexto, o planeta
Terra é mais que um contexto. Tanto no ser humano, quanto nos outros
seres vivos existe a presença do todo no interior das partes, cada célula
contém todo nosso patrimônio genético, a sociedade está presente em
cada indivíduo. Para Morin (2003b), como cada ponto singular de um
holograma contém a totalidade da informação do que representa cada
célula, cada indivíduo contém de maneira “hologrâmica” o todo do qual
faz parte e que, ao mesmo tempo, faz parte dele.
Unidades complexas, como o ser humano ou a sociedade são
multidimensionais: dessa forma, o ser humano é ao mesmo tempo
biológico, psíquico, social, afetivo e racional.
O conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade.
Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade
quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo e
Para ter sentido a palavra
necessita do texto, que é o
próprio contexto, e o texto
necessita do contexto no
qual se enuncia. (MORIN,
2003b, p. 36)
O todo tem qualidades ou
propriedades que não são
encontradas nas partes, se
estas estiverem isoladas
umas das outras, e certas
qualidades ou
propriedades das partes
podem ser inibidas pelas
restrições provenientes do
todo. (MORIN, 2003b,
p. 37)
72
um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de
conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as
partes entre si.
Em conseqüência, a educação deve promover a “inteligência
geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo
multidimensional e dentro da concepção global.
Trago situações cotidianas vividas que ilustram essas quatro
dimensões que não podem ser vistas de uma só dimensão, pois estão
interligadas.
Podemos ver através do Projeto Político-Pedagógico da Creche
Casablanca a preocupação em contextualizar os conteúdos para as
crianças daquela comunidade.
Tendo por base os pressupostos teóricos das teorias de
Vygotsky e Paulo Freire, organizaremos o ensino com base
numa pesquisa sócio-antropológica feita na comunidade a cada
início de ano. Tais temáticas orientarão o fazer pedagógico.
Nosso objetivo é articular as atividades planejadas à
realidade sociocultural e ao desenvolvimento infantil,
respeitando os interesses das crianças e proporcionando a
construção coletiva do conhecimento através de trabalhos em
grupos.
Outro fator característico de nossa proposta é a
transversalidade dos conteúdos, possibilitando uma superação
da fragmentação e justaposição dos conteúdos sem sentido,
para uma totalidade de abrangência dos mesmos.
O planejamento de tais temáticas deve ser iniciado pela
consulta bibliográfica de livros, gravuras, histórias, músicas,
filmes; devendo priorizar também vivências fora do contexto
escolar como visitas e passeios realizados com as turmas. No
seu desenvolvimento deve ser permitido que a criança manifeste
sua curiosidade com o assunto ou com temas relacionados;
priorizar uma visão ampla e flexível das observações e das
vivências experenciadas pelos alunos; permitir a crítica e
criatividade das mesmas, incentivando a busca de informações e
a articulação entre as diferentes áreas do conhecimento.
(Kramer, 1997)
O planejamento das atividades diárias individuais e
coletivas deve ser compartilhado com os alunos logo no início
da aula e avaliado ao final desta pelos mesmos. Estas atividades
73
devem ser/estar integradas à temática em foco, respeitando suas
metas e fundamentadas em um embasamento teórico. (Projeto
Político-Pedagógico, 2002, p. 43-44)
Ao se preocupar com a contextualização das temáticas, a creche
trabalha dando sentido aos conteúdos de acordo com a realidade das
crianças e da comunidade em que vivem, não ficando presa ao espaço
físico dentro da sala de aula, ampliando os espaços de conhecimento para
outros lugares.
Ana Paula e Regina dizem que estão programando irem com as
crianças no quintal do Sr. Tiãozinho pegar conto de lágrima e
fazer pulseirinha e cordãozinho com as crianças. Ana Paula diz
que um dia foi fazer um passeio com as crianças para
chuparem cana, as crianças começaram a fantasiar que
estavam no meio de uma floresta. (Ata do dia 14/4/2005)
Outra situação vivida que retrata tanto a questão global quanto o
contexto:
Comentamos sobre a novela da Globo que mostrou uma cena de
um casal de brasileiros que está em Nova York e leva o filho
para uma escola. Lá a professora fala:
_ Cada criança têm direito a um abraço por dia. Como somos
um país democrático, cada um pode escolher que hora gostaria
de receber seu abraço, na entrada, na hora do recreio ou na
hora da saída.
Falamos da diferença entre a educação de e a que utilizamos
aqui.
Regina diz que aconteceu uma coisa essa semana que mexeu
muito com ela.
Na sala de Reginnoa
74
Marcos fica muito feliz e corre para calçar.
Beto ainda retruca:_ Tá descolando aqui atrás.
Marcos:_ Tá não, tá boa, tá novinha.
As crianças vão até a sala da Cristiana.
Marcos:_ Cris, o Beto me deu uma botina, é a primeira botina
da minha vida, eu nunca tive uma botina.
Cristiana disse que se emociona muito.
Marcos diz que não consegue calçar e Beto começa a empurrar
o pé dele.
Cristiana diz que deve ser porque o pé está suado.
Beto diz que ele precisava calçar com meia para o pé
escorregar, Marcos diz que não tem nenhuma meia.
Beto:_ Pode deixar eu vou conseguir uma meia pra você.
Marcos dorme na hora do repouso com a botina do lado, pede a
Regina para deixá-la dormir do lado dele, hoje, para não
guardá-la no cestinho.
Comparamos as duas realidades: em uma é dado um abraço
por dia, em outra as crianças dividem o que tem. Que crianças
são essas que esses dois países querem formar?
Penso que no nosso a questão seja: formar crianças para que
sejam mais solidárias e menos capitalistas, que privilegiam
mais as amizades e menos o material.
Cristiana fala então finalizando a reunião que a grande
preocupação dela com a creche no momento é que as pessoas
deixem de rotular as crianças.
Cristiana:_ Pode tá chique, tá sujo, tá feio, tá cagado!!! É
criança, é isso que vocês precisam entender, é criança!
(Ata do dia 23/03/2006)
Nessa situação vemos as profissionais envolvidas com o tipo de
educação que está sendo oferecida nos Estados Unidos, fazendo a ponte
com situações que elas vivem em seu dia-a-dia, estabelecendo o contraste
entre as duas realidades, colocando em foco que tipo de educação
queremos para nossas crianças.
Cristiana conta que o Granville deu algumas caixas de morango
na última compra.
Os morangos foram divididos entre as crianças e partidos para
que cada um pudesse comer um pedaço. As crianças de Regina
pedem para que ela não coma a parte dela (assim eles poderiam
ficar com mais).
Depois de comer as crianças começam a comparar sobre o que
é da cor do morango e fazem uma série de levantamentos.
Marcos:_ Rê onde compra morango?
75
Regina:_ No Bretas, no Bahamas.
Marcos:_ Quanto que custa?
Regina:_ Acho que R$1,00.
Marcos:_ Nossa eu tinha R$1,00 e comprei linha de papagaio,
sábado eu vou ganhar mais R$1,00 e vou guardar pra comprar
morango na feira. (Ata do dia 17/08/2005)
A situação vivida nos mostra que o morango passa a ser o
disparador de uma discussão contextualizada que envolve a questão das
cores, o lugar onde se compra, o preço que custa, a comparação do preço
com outras mercadorias como a linha de papagaio.
As crianças aprendem, ao comer o morango, a dividi-lo e a
discutir outras questões que estão entrelaçadas a ele, dando-se, assim, o
conhecimento de forma muito mais rica e ampla.
Kramer (1997) nos diz que o currículo não deve ser um
“currículo por atividades”, onde as crianças fazem desenhos, colagens,
pinturas de forma espontânea e individualizada, atendendo apenas a
interesses imediatos. O eixo condutor do currículo deve ser dado pelos
“temas geradores”.
Para a autora existem duas formas de temas geradores: os temas
gerados pelas crianças e suas famílias e os temas cíclicos.
Os temas gerados pelas crianças e pelas famílias seriam temas
levantados pelos pais ou pelas crianças, seriam os temas contextualizados
ou de origem sociocultural.
E os temas cíclicos são os que recorrentemente são
comemorados em datas ou períodos específicos como páscoa, dia do
índio, dia das mães, folclore, dia do trabalho, natal; ou aqueles como
eleição, copa do mundo ou a passagem de um cometa. (KRAMER, 1997)
Kramer acredita nos temas contextualizados como a melhor
forma de se trabalhar curricularmente na educação infantil.
O Projeto Político-Pedagógico da creche Casablanca trabalha
com o que nele é denominado de “temáticas”. Essas são escolhidas no
início de cada ano através de uma reunião feita com as famílias. No ano
de 2005, as temáticas escolhidas foram: amizade, higiene, hábitos,
No que diz respeito à
prática cotidiana, este
currículo está centrado na
realização de atividades
significativas, que têm
objetivos claros do ponto de
vista do adulto, e que, ao
mesmo tempo, atendem aos
interesses e necessidades
das crianças, sendo
prazerosas (lúdicas) e,
simultaneamente, geradoras
de produtos reais.
(KRAMER, 1997, p. 50)
76
atitudes e diversidade. E, em 2006, foram: amizade, higiene, alimentação,
mídia, hábitos e atitudes.
Trabalhar com essas temáticas significa a possibilidade de
articular, no trabalho pedagógico, a realidade sociocultural das crianças, o
desenvolvimento infantil e os interesses específicos que as crianças
manifestam, assim como os conhecimentos acumulados por elas.
As temáticas são fios condutores e geradores de atividades
infantis. Essas temáticas devem envolver, necessariamente, as áreas de
conhecimento Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Sociais e
Ciências Naturais, possibilitando uma visão de totalidade para as
crianças, superando a fragmentação do conhecimento.
Pergunto às educadoras quais datas comemorativas são
trabalhadas na creche e o porquê de se trabalhar com elas.
Bianca:_ Como trabalhar a Páscoa? Como vocês estão
trabalhando?
Cecília:_ O que não pode é deixar de passar em branco.
Verônica:_ [///] E aqui não, aqui a gente ganha os ovos de
Páscoa tem que entregar pras crianças e dizer por que estão
ganhando um ovo de Páscoa, né? Eu acho que é assim, né? E se
não tivesse ovo de Páscoa a gente ia falar de Páscoa?
Cristiana:_ Acho que teria.
Regina:_ Igual o Natal, a gente trabalhou o Natal com as
crianças sem saber se ia ter os presentes.
Verônica:_ Mas no Natal, geralmente as crianças em casa
ganham presente de Papai Noel.
Ana Paula:_ Mas o consumismo, eles ganham presente de
Natal, mas a gente trabalha a verdadeira história do Natal igual
a Páscoa.
Verônica:_ E se não tivesse o ovo de Páscoa pra dar pras
crianças cada um ia comprar um ovo de Páscoa pra dar pra sua
criança? Ia falar:_ Ah tá chegando a Páscoa, tal, tal, o
chocolate. Alguma coisa assim?
Cristiana:_ Se não tivesse ganhado o ovo...
Verônica:_ Que é o ovo de Páscoa, símbolo maior da Páscoa,
aos olhos de praticamente todo mundo.
Cristiana:_ Tem coisa que eu sou meio pessimista, eu sempre
prefiro acreditar que a gente não vai ganhar, eu torço e espero
que a gente ganhe, então, deixa eu terminar, na minha cabeça
77
se a gente não tivesse ganhado os ovos do Granville o que
que a gente ia fazer? O bolo de chocolate da Lena, entendeu?
(Todos riem)
Cristiana:_ O cachorro-quente...
Verônica:_ Mas vamos supor se não tivesse o ovo de Páscoa
pra dar pras crianças, algumas crianças sabem do ovo de
Páscoa.
Cristiana:_ Pelo menos assim, pra mim, na minha cabeça, a
comemoração da Páscoa não está presa ao ovo.
Verônica:_ Mas ah! Pras crianças tá.
Bianca:_ Mas será que aqui não é o lugar pra trabalhando
isso com elas? De não ficar só na questão do ovo?
Regina:_ Quando a gente trabalha com elas o retorno que a
gente tem, igual a minha sala, quando eu comecei trabalhar o
Natal ano passado a primeira coisa que eles falavam era em
presente, Papai Noel e depois assim, eles tiveram uma
consciência bem diferente do Natal. E com eles eu trabalho as
que eu acho mais importante: a Páscoa, o dia dos pais, dia das
mães, dia das crianças, sem essa parte mesmo de consumismo, e
o Natal. (Ata do dia 29/03/2006)
Na Proposta Político-Pedagógica vemos o trabalho com as
temáticas, no cotidiano sentimos que acabam emergindo também as datas
comemorativas. O capitalismo cotidianamente fala mais forte? A creche
se preocupa em não incentivar o consumismo, entreta
78
A sociedade moderna fazia de seus membros produtores e
soldados. Contudo no seu atual estágio a sociedade tem pouca
necessidade de mão-de-obra industrial em massa e de exércitos
recrutados; em vez disso, ela precisa que seus membros exerçam a
condição de consumidores.
A diferença de viver nessa sociedade ou na que a precedeu não é
tão radical quanto abandonar um papel e assumir outro. Em nenhuma de
suas duas fases a sociedade pôde passar sem que seus membros
produzissem coisas para consumir, sendo claro que membros das duas
sociedades consomem. A diferença entre as duas fases é a ênfase e as
prioridades.
O consumidor de uma sociedade de consumo é totalmente
diferente do consumidor de outras sociedades. Se nossos ancestrais
refletiam se o homem trabalhava para viver ou vivia para trabalhar, o
dilema atual é se o homem consome para viver ou se vive para poder
consumir. (BAUMAN, 1999)
O mercado de consumo acaba por seduzir os consumidores.
Porém para que isso aconteça, é preciso que o consumidor se permita ser
seduzido. Numa sociedade de consumo que funcione de forma adequada,
os consumidores buscam por todo empenho ser seduzidos. Vivem de
atração em atração, de tentação em tentação até ser agarrado, ter seu
desejo satisfeito e um novo desejo a ser realizado.
O autor ainda nos diz que todo mundo pode ser “lançado” na
moda de consumo; todo mundo pode “desejar ser um consumidor.
Contudo nem todo mundo “pode” ser um consumidor. Desejar somente
não basta, para tornar o desejo uma realidade, é necessário ter uma
esperança racional de se poder chegar ao objeto desejado.
A sociedade de consumo é uma sociedade estratificada. Mas é
possível diferenciar uma sociedade da outra pela extensão ao longo do
qual ela estratifica seus membros. A extensão na qual os de “classe alta” e
Viajar esperançosamente é
na vida do consumidor
muito mais agradável que
chegar. A chegada tem esse
cheiro mofado de fim de
estrada, esse gosto amargo
de monotonia e estagnação
que poria fim a tudo aquilo
pelo que e para que vive o
consumidor – o
consumidor ideal – e que
considera o sentido da
vida. (BAUMAN, 1999,
p. 93)
79
“classe baixa” se situam numa sociedade de consumo é o seu “grau de
mobilidade”, sua liberdade de escolher onde estar.
Os que vivem no “alto” estão satisfeitos de viajar pela vida
segundo seus desejos, podendo escolher seus destinos. Os de “baixo”
volta e meia são expulsos do lugar em que gostariam de ficar. Se eles não
se retiram, às vezes o lugar é puxado e sua viagem não é tão tranqüila
como a do outro grupo.
As crianças, são grandes consumidoras e receptivas aos
bombardeios que recebem da mídia: sandália de tal apresentadora, o
relógio de outra e a boneca de outra recebem toda essa influência do
mercado a televisão acaba ditando as normas e o comportamento para
essas crianças. Elas devem, de alguma forma, refletir sobre essas
influências do mercado consumista.
E é possível observar no cotidiano a influência da televisão:
Victor pega os colchões.
Victor: _Vão fazer a casa da anta nordestina?
As crianças concordam
Pergunto o que é anta nordestina
Victor: a Maria do Carmo da novela, tem a Nazaré também
ela roubou a filha da Maria do Carmo. Ela fala que a Isabel
não é filha dela (Maria do Carmo) é filha dela (Nazaré). Hoje a
Isabel vai casar.
Uma das crianças bate na porta. Victor grita:
Victor:_Maria do Carmo chegou, veio da escola de samba.
Empurra, empurra a Nazaré Tedesco.
Victor me grita:
Victor:_ Moça tô precisando de ajuda.
Bianca: _O que você quer?
Victor:_ Quero que você arruma isso daqui da minha casa (me
entrega uma roda).
Finjo que conserto e lhe entrego ele diz:
Victor: _Obrigado.
E me dá dois reais (duas cartinhas)
Victor chama as crianças para montarem outra casa, a casa dos
3 porquinhos.
Pergunto quem serão os porquinhos, ele responde:
Victor: _ Jonatas, Daniel e Carolina.
Os comerciais descortinam
um novo mundo infantil, que
reduz o ser criança ao que é
produzido para a infância.
A criança contemporânea é
aquela que consome o leite
industrializado e
enriquecido para os recém-
nascidos; bolachas, iogurtes
e fermentados para o
desenvolvimento, que
compra brinquedos, que
veste determinada roupa ou
calça determinado tênis ou
sandália, que se “alimenta
de tudo que o mercado de
consumo
convencionalmente destinou
a ela. (LOPES e
VASCONCELLOS, 2005,
p. 59-60)
80
Jonatas vira lobo e sai correndo atrás das crianças, Victor grita
com Jonatas:
Victor:_ Jonatas sai daí, tá fora da brincadeira!
Jonatas ameaça matar Victor e a brincadeira reinicia.
(Nota Expandida n. 5 dia 02/03/2005)
Outra situação:
Talita chega e mostra seu tamanco.
Amanda grita:
Amanda:_ Que lindo!
Mostra o seu e diz:
Amanda:_ Um dia minha mãe vai comprar um desse pra mim
também.
(Nota expandida n. 5 dia 02/03/2005)
Cotidianamente na Creche Casablanca repensamos essas
situações, como no dia em que refletimos sobre o consumismo:
A pedido de Cristiana, trago (Bianca) um texto que vi ser
apresentado na Anped sobre brincadeiras a criança e o
consumo de Núbia Santos da Puc- Rio. Em seu trabalho ela
conta brincadeiras de faz-de-conta em que as crianças
utilizavam dinheiro, cheque, cartão, referindo-se também à
venda de objetos na escola.
Dona Verônica diz que seu filho quando era pequeno fez uma
birra para comprar um livro na escola e ela acabou comprando,
diz que o livro era uma porcaria.
Continuo dando o exemplo dado pela autora do texto, quando
uma criança chega para a gente e mostra seu sapato a gente
logo fala: _Que lindo, é novo?
Sem termos consciência, nós incentivamos o consumo.
Não nos contentamos com uma bolsa queremos sempre mais,
uma de cada cor. Não vivemos a sociedade do ser, mas do
parecer, compramos uma bolsa de R$10,00 imitação da Victor
Hugo para parecer que temos aquilo que não temos condições
de comprar. Sem contar o valor das coisas, uma bolsa por 10,00
no camelô faz com que você tenha realmente uma de cada cor,
porque o preço é acessível.
(Ata do dia 9/11/2005)
A reunião foi enriquecedora e as próprias professoras foram se
vendo nas situações e percebendo até mesmo o quanto somos consumistas
e não tomamos consciência disso.
81
Durante as leituras que fiz do cotidiano, no ano de 2005,
apareceram nas observações várias situações onde as professoras
demonstraram ter flexibilidade no desenvolvimento do seu planejamento.
Perguntei às professoras, então, o que levavam em conta em
seus planejamentos:
Ana Paula:_ As crianças. Igual hoje, hoje nossa atividade foi
escrever num papel pardo cantigas, fizemos a rodinha e eles
cantaram cantigas, depois eu falei com eles que tinha que
levar o livro pra secretaria e eles pediram pra deixar escrito na
sala:_ Não tia tem que deixar aqui na sala. Aí a Aline trouxe um
papel pardo eu falei:_ Você quer que eu cole o livro ai Aline?
Ela falou:_ É.eu falei:_ Não pode, o livro é da creche. Ai a
Lia começou a chorar. Eu falei então vão escrever? Aí eu
escrevi as cantigas todas na folha, escrevi as parlendas. A
Melissa fala inteira aquela parlenda que fala assim,
pinguelinha, como é que é?
Cristiana:_ Passei na pinguelinha.
Ana Paula:_ Passei na pinguelinha, chinelinho caiu do pé, os
peixinhos reclamaram: que cheirinho de chulé.
(Ata do dia 29/03/2006)
A situação narrada por Ana Paula nos mostra o planejamento
prévio que ela trazia para a sala que era o de trabalhar com parlendas, mas
um planejamento flexível que permite a atividade seguir um caminho
solicitado pelas crianças que é o de deixar, de alguma forma, registrado
na sala as parlendas e cantigas trabalhadas.
Regina:_ Igual na minha sala, hoje nós fizemos uma dobradura
de chapéu, porque tendo esses helicópteros do exército todo
dia passando. o Gabriel falou:_ Vamos fazer um soldado.
eu falei:_ Como a gente vai fazer um soldado? o Dinerson
falou:_ Então vamos fazer o chapéu do soldado. nós fizemos
a dobradura do chapéu e pintamos, por causa disso do exército.
O Tiago gosta muito de polícia e eles estão gostando muito.
Ana Paula:_ Ele faz assim pra gente (bate continência) e
marcha.
Regina:_ É assim, pra ele dormir eu tenho que falar:_ Agora o
helicóptero vai descansar porque o soldado cansado vai no
82
banheiro. Aí o Gabriel falou:_ Ah é, né?Não tem como fazer xixi
lá do alto.
(Todos riem)
Regina:_ quando o Tiago dorme a gente tem que ficar
esperando o helicóptero passar pra fazer o Tiago dormir pra
dar tempo do helicóptero voltar, se não ele não dorme.
(Ata do dia 29/03/2006)
A professora trabalhou o soldado sem estar no mês de
comemoração do Dia do Soldado pelos moldes tradicionais, aproveitando
um treinamento do exército que estava acontecendo na cidade. Os
helicópteros estavam passando por cima da Creche Casablanca, o que
mudou a rotina e que foi aproveitado pela professora devido ao interesse
das crianças.
Bianca:_ O que vocês acham de vir com um planejamento
pronto? Ajuda? Ou o planejamento vai surgindo durante o dia?
Ana Paula:_ Surge durante o dia, nunca um dia é igual ao
outro.
Regina:_ Sempre o que a gente planeja nunca é o que as
crianças querem. Às vezes eu chego na minha sala e falo:
_ Vamos pintar hoje? Eles falam:_ Ah não, a gente quer
recortar. Outras vezes eu falo:_ Vamos recortar hoje? Eles
falam:_ Hoje eu quero colorir com giz de cera. E assim, até
mesmo pra desenhar nunca é igual. Porque tem dia que eles
querem colorir com lápis de cor, tem dia que é giz de cera.
Então assim, não, a gente tenta fazer um esquema, mas não
pra seguir à risca não. (Ata do dia 29/03/2006)
Ana Paula e Regina nos falaram de um planejamento flexível,
que sobretudo acontece no “imprevisto”, porém não se perde, não se
rompe, pelo contrário, utilizam desse imprevisto para enriquecer mais
ainda as atividades trabalhadas com as crianças. Um planejamento que é
feito previamente, entretanto que se dobra e desdobra no decorrer do dia.
E nos mostra a questão do imprevisível, do incerto, de que “um dia nunca
é igual ao outro”.
83
As professoras, para além do planejamento consideravam os
imprevistos, alterando a rotina da sala de aula sempre que fatos cotidianos
impunham tais desvios de rota.
Insisto com elas:
Bianca:_ Uma coisa também que a gente não para pra pensar é
a questão do imprevisível. _ Me dá o seu Regina
(leio) “Hoje mudamos a atividade por causa do Tiago”.
Bianca:_ Quer dizer, ela vem com uma atividade montada pra
fazer. Acontece uma coisa que ela não podia prever que mudou
toda a rotina daquela sala de aula.
Regina:_ Igual hoje não era pra fazer depois do almoço nós
fomos pra fora esperar a dele e tudo teve que fazer depois
do almoço.
Verônica:_ No berçário não tem isso porque a gente não
planeja atividade, né? Então a gente põe um papel na mesa,
giz de cera, quem quer rabiscar rabisca, tem dia que pega a
tinta também quem quer pinta pinta, não é igual nas outras
salas que montam a rotina de acordo mesmo e no berçário é
complicado.
Cristiana:_ Eu acho que tem sim, ainda que vocês não
percebam porque assim, outro dia tava todo mundo chorando,
o que vocês fizeram esticaram o colchonete colocaram um
monte de brinquedos lá e ficaram lá brincando.
Cecília:_ Peguei a tinta levei toda pra lá, coloquei eles
pintaram bastante, acabou o chororo, é bom pra relaxar e não
chorou mais durante o dia pintaram bastante mesmo.
Cristiana:_ A música também, às vezes o bicho tá pegando
vocês levam a música pra então são situações que acontecem
lá e vocês vão tentando, tenta uma coisa, tenta outra.
(Ata do dia 29/03/2006)
No berçário, porém, as temáticas eleitas pelos pais, mães e/ou
responsáveis e os temas cíclicos não eram considerados na orientação do
planejamento das professoras. A ênfase destas recaía sobre o
desenvolvimento dos aspectos físico, motor, emocional, social e da
linguagem, o que ficou explicitado na redação das avaliações que faziam.
Estavam as berçaristas erradas? Estavam certas? Isso não nos
cabia julgar. O que estava explícito era que trabalhavam numa outra
84
lógica. Julgá-las nos levaria a escolher entre duas formas dicotômicas
certo/ errado, o que não era nossa intenção.
Vejamos algumas avaliações do aluno Alan:
Iniciou-se o ano seguinte, chegou o Alan pequenino no carrinho
ao lado de seu irmão Vagner. O tempo passou muito rápido.
Alan engatinhou e andou antes de completar um ano.
É inteligente, esperto, rápido, bonito, simpático, observador,
gosta de todos. Estranhar pessoas? Não acontece com ele.
Gosta de músicas, dançar, revistas, massinha, lápis, brincar no
pátio (solário), brinquedos, bola também pegar, peso é com ele
mesmo.
Gosta de tomar banho, e quando o tiramos da água faz
pirracinhas. Alimenta pouco e dorme regular, depois que
começou a andar passou a dormir melhor.
(Avaliação Alan n. 2. Maio de 2005)
Alan é inteligente, esperto, carinhoso, observador. Gosta de
brincar, fazer atividades e de conservar os trabalhinhos.
Quando alguma criança estraga ele fica preocupado e vem logo
comunicar. Adora pegar peso, objeto pesado, tem muita força.
Quando está ouvindo sica, dança e faz gestos, não se cansa,
corre de um lado para o outro o tempo todo.
Alan agora está dormindo melhor, mas a alimentação é um
problema, não quer saber de comer. Quando chamamos para
tomar banho e escovar os dentes vem correndo. Ele fala
bastante palavras e repete o que as professoras dizem e canta
do seu jeito. É muito criativo e entende de tudo, passa o tempo
todo fazendo travessuras.
(Avaliação Alan n. 4. Outubro de 2005)
Alan é inteligente, esperto observador e carinhoso.
Gosta de brincar de subir nos lugares bem alto, equilibrar com
uma perna, faz de conta que é bicicleta e cavalo. É
travessuras o tempo todo.[...] Alan no próximo ano estará na
sala de dois anos, foi muito bom estar com você.
(Avaliação Alan n. 5. Dezembro de 2005)
Essas diversas avaliações foram feitas por diferentes professoras
da mesma criança. Privilegiaram em seus registros os gostos da criança,
seu desenvolvimento, sua linguagem e até mesmo suas brincadeiras.
85
O ato de avaliar, para Esteban (2002), mantém fortes vínculos
com a busca da homogeneidade, entrando em conflito com a
heterogeneidade da vida cotidiana.
A avaliação escolar muitas vezes se prende à perspectiva
cognitivo-instrumental, porém hoje se mostra o anúncio de outras
perspectivas, substituindo uma avaliação classificatória e tecnicista por
uma que privilegie o sujeito múltiplo.
A escola vive a tensão entre o paradigma hegemônico
(regulatório) e o paradigma emergente (emancipatório).
Para Esteban (2002), o conhecimento-emancipação é uma
referência importante para a redefinição do processo de avaliação ao
buscar exercícios de solidariedade entre as diferentes comunidades e
redes de estabelecimento de consensos, movimentos mediados pelo
princípio da responsabilidade com o futuro. A avaliação classificatória é
inviável para o sujeito complexo.
Segundo a autora (2005), quando tratamos de crianças de classes
populares a definição de padrões para se avaliar é perversa, pois não se
considera o quanto essas crianças produzem respostas diferenciadas de
crianças de classe média, utilizadas quase sempre como modelo. Dessa
forma a diferença passa a ser entendida como deficiência.
Assim, não se permite que crianças participantes de classe social
diferente, construam formas de interação distinta com seu contexto social.
A complexidade social cria uma grande variedade de possibilidades de
ação e comportamentos.
Não vemos isso acontecer na Creche Casablanca que os
profissionais se preocupam em avaliar a criança em relação a ela mesma
desde que entrou na creche até o momento atual. E ela em relação à turma
que freqüenta, como anda seu relacionamento em sala, suas dificuldades
com colegas e professora. Uma avaliação de acordo com as possibilidades
de cada criança.
O conhecimento-
emancipação ressalta a
positividade da diferença,
nos dando pistas para a
configuração de práticas de
avaliação coerentes com
nosso desejo de fazer da
escola um lugar de
educação popular, capaz de
abrigar, de modo solidário
e dialógico as muitas
formas de ser, de pensar e
de viver.
(ESTEBAN, 2002, n/p)
86
Foi uma adaptação difícil e delicada, pois a mãe é educadora
na instituição e ele ficou dois anos no berçário onde estava
acostumado com a Cecília e a Verônica. Ele estranhou a minha
presença, o espaço físico da sala, os novos amigos.
Tudo era difícil, a troca da sala da mãe (a mãe era professora
na turma de dois anos no ano anterior). O ciúme dele com as
crianças novas no berçário, enfim foi muito delicada a
adaptação.
Graças à Deus a Carmem me ajudou muito, as berçaristas a
Cris enfim todas as pessoas na creche colaboraram para a sua
adaptação.
Demorou duas semanas para ele dormir na sala e três semanas
para ele dormir sozinho no colchonete sem que eu ficasse com
ele no colo.
Depois dessas três semanas sentia-me vitoriosa e confiante, pois
ele passou a me aceitar; ele reagia ao novo ambiente e pessoas
com mordidas e pirraças.
Trabalhamos essa agressividade e as mordidas viraram
deliciosos beijos estalados e a pirraça tem desaparecido aos
poucos.
Sua alimentação melhorou muito. Temos tido dificuldades no
controle de esfíncter. O interessante que a mãe me ajuda,
manda roupas suficientes e conversa muito com ele.
(Avaliação Alan n. 6. Maio de 2006)
Ana Paula, na avaliação de Alan, fala de suas angústias, a difícil
adaptação, mas fala de suas conquistas, se sente “vitoriosa” e fala do
apoio que recebeu de todos e como trabalhou a agressividade e a forma
como o Alan reagia naquela nova turma.
Tatiana fez um texto final sobre sua bolsa de treinamento
profissional da Universidade Federal de Juiz de Fora, que enfocava a
avaliação na pré-escola. Em uma de nossas reuniões ela trouxe e
compartilhou com o grupo o que estudou, as profissionais foram dando
exemplos e enriquecendo ainda mais o texto de Tatiana.
Regina iniciou, contando um episódio vivido pela sua sobrinha e
seu irmão:
Regina:_ Igual quando chega os trabalhinhos, ela com
quatro anos (sua sobrinha) agora, quando chegava os
A avaliação se destina a
obter informações e
subsídios capazes de
favorecer o
desenvolvimento das
crianças e a ampliação de
seus conhecimentos.
Dispondo dos principais
elementos relativos a elas e
à pré-escola como
instituição, podemos
planejar e (re)direcionar
nosso trabalho cotidiano.
(KRAMER, 1997, p. 94)
87
trabalhinhos, o (N) (seu irmão):_ Toma pra você tirar
idéia. um dia eu levei os trabalhinhos das crianças aqui da
creche pra casa, eu falei:_ (N), me ajuda aqui a separar o
nome das crianças grampear e tudo e ele falou assim:_ Mas
esse é os trabalhinhos das crianças? Eu falei:_ São. Aí ele
falou:_ Ah não, mais é muito feio. eu falei:_ É, o da (N) é
bonitinho mas não é ela quem faz, né? ele pegou e falou:_ É,
né? eu tava grampeando ele falou:_ Nossa olha esse
daqui mais adiantado, esse desenha uma forma, esse
desenha desse jeito. eu falei: _É porque eles tão construindo
aos poucos o conhecimento. Aí ele parou com essa história de
ficar levando trabalhinho da filha dele, que é tudo assim:
colorir dentro do limite, leve a mosquinha até a comida
passando em cima do pontinho, só essas coisas que vem no
trabalhinho.
(Reunião do dia 12/04/2006)
Regina coloca em questão as atividades feitas por sua sobrinha
em uma escola particular e as atividades feitas por seus alunos na Creche
Casablanca acreditando que as crianças é que devem fazer seus desenhos,
sendo que elas fazem arte, que a creche não se limita a desenhos e
atividades mimeografadas.
Tatiana:_ Continuando gente, então a ficha de avaliação de
algumas creches e algumas pré-escolas privilegiam as áreas de
desenvolvimento: afetiva, cognitiva e a psicomotora, estão ali
principalmente pra separar, emocional de um lado, disciplina
do outro, separa tudo, segundo a Jussara Hoffmann isso não é
correto. Deve-se também resultar de uma avaliação freqüente,
não sentar num dia e fazer tudo, não deve ser feita pra agradar
os pais, você colocar o que que o pai quer ouvir, não
interessa. Centrar na criança pra ver as conquistas dela e deve
ser uma avaliação freqüente todo dia e que até mesmo deve
aparecer as perguntas das crianças, brincadeiras que mais
gosta, dificuldades, tudo sobre a criança. Assim é bem melhor
pra professora, porque vamos supor você faz um mês aquilo que
você volta deixa guardado depois um mês pra frente você vai
fazer de novo olhar aquela anterior ver o que que a criança o
que que continuou o que que melhorou o que você fez pra
melhorar se deu resultado ou não. Os registros e as anotações
compartilhadas com todas as pessoas que convivem e se
responsabilizam pela criança. Por exemplo, igual aqui na
creche a criança fica aqui na sala. Ela não fica aqui, ela vai
88
na sala da Cris, ela vai na cozinha, entendeu? Todo mundo
igual o ...
Verônica:_ Vai no berçário.
(Todos riem)
Tatiana:_ Outra coisa também é que não deve ser feito
intervalos bimestrais e semestrais. Você pensa bem seis meses é
muito tempo e não seguir um roteiro a avaliação da creche não
segue um roteiro, igual assim as avaliações que a Verônica fez,
a avaliação que ela fez do Henrique não segue o roteiro que ela
fez da Rita.
Verônica:_ Ah é. Realmente é.
Tatiana:_O Henrique ela começa falando da alimentação, da
Rita ela começa a falar dos brinquedos.
Verônica:_Mas é justamente porque a gente não tem um modelo
né? Então quer dizer a gente não tem um modelo pra seguir.
[...]
Tatiana:_ Outra coisa também que não deve ser característica,
não falar de maneira artificial. Por exemplo, você pega uma
avaliação, coloca o nome e pode comparar são iguais, por
exemplo, tem características tipo assim: ela é alegre, uma
criança que adora brincar, é inteligente, linda.
Verônica:_ Umas são mais quietas, outras querem brincar
sozinha.
Tatiana:_ Porque quando você coloca a criança é alegre e a
criança que não é alegre? A criança gosta de brincar e a
criança que não gosta, inteligente, criança linda.
Verônica:_ Igual a Rita, ela não gostava de sujar a mão de tinta
de jeito nenhum, ela pegava o pincel nas pontinhas nunca
gostou de lambuzar ao de tinta dessa coisao, tem criança
que não gosta de desenhar.
(Reunião do dia 12/04/2006)
Vemos a preocupação quanto à forma da escrita, a importância
de se fazer um registro cotidiano da criança, mesmo que a entrega seja
bimestral. O professor deve ter um diário de anotações , para que nada se
perca, centrar a avaliação na criança e não nos pais. A avaliação deve ser
redigida não dizendo somente o que a criança não consegue ou não sabe
fazer, mas ressaltar as características da criança, algumas frases ou
situações vividas por elas, não seguir modelos ou roteiros prontos. Cada
criança é uma e sua avaliação deve ser única também.
Peço às professoras que comentem sobre suas avaliações:
89
Bianca:_Vocês podiam cada uma falando o que vocês levam
em consideração quando fazem a avaliação, como é que faz
essa avaliação, né? Porque aí ficava legal. Quem começa?
Verônica:_Eu fiz comentário com as meninas:_ Hoje eu não
gostei da minha avaliação. Tem dia que a gente tá tão sem
inspiração. Teve uns dias que eu fui fazer a avaliação, fiz o
rascunho porque eu faço um rascunho, quando eu olhei eu falei
eu não tô gostando disso. Eu realmente tava sem inspiração pra
fazer. eu me lembro da avaliação do Alan, Carmem? Que
eu fiz, nossa a Carmem adorou. eu fiquei tão satisfeita,
porque a Carmem leu assim e ela falou:_ Ah Verônica eu gostei
tanto da avaliação do Alan. é bom sabe, aquilo assim, sei
me encheu, eu fiquei cheia por causa do elogio da Carmem. [...]
Bianca:_ Mas na hora que você faz a avaliação o que que
você acha importante colocar?
Verônica:_ Ué, é tudo. Tem que colocar tudo. Justamente
quando a gente fica mais satisfeita, quando a mãe e vem
comentar com a gente. Então quer dizer, acho que ela
interessada em alguma coisa que ela leu sobre a criança lá, que
às vezes ela nem sabia, nem tinha observado em casa. Então eu
acho assim a gente tem que ser autêntica quando quer dizer.
Ana Paula:_ Eu sempre anoto tudo.
Bianca:_ Você já tem o hábito de diariamente estar anotando?
Ana Paula:_ Isso tenho o hábito. E é isso, observando o
dia-a-dia.
Bianca:_O que que você acha importante colocar pra quando
você for entregar essas avaliações pros pais?
Ana Paula:_ O mais importante que eu acho é o
desenvolvimento da criança. [...]
Ana Paula:_ Eu faço a avaliação, coloco um dia antes na mesa
da Cris e vou lá disfarçando:_ E aí Cris você gostou?
(Todos riem)
Cristiana:_ Eu antes de colocar nas pastas eu leio todas as
avaliações porque é legal quando você lendo você vai vendo
a criança fazendo aquilo, faz, depois volta. Igual o Adauto eu
voltei lá na ficha de quando ele entrou na creche. Fui pra casa e
fiquei pensando...
Verônica:_ Eu acho que é o jeito de conhecer a criança.
Justamente. Igual a criança que vem... o Gilmar desde o
berçário agora ele já na última sala da creche, tem a vida
histórica dele todinha, desde o berçário, então quer dizer se for
pegar tudo, as avaliações desde o berçário, sala de 2 anos, tudo
assim, vai ver realmente é uma história.
(Reunião dia12/4/2006)
90
Vemos que a avaliação não é algo tão simples, até mesmo
porque cada professora avalia de um jeito, percebe a situação de um jeito
e os pais também têm um olhar diferente do da professora, mas ela tem
sido um importante elo de ligação da família com a creche e dos pais com
o desenvolvimento dos filhos.
A avaliação, porém, não se limita somente aos registros que são
entregues aos pais e arquivados nas pastas individuais das crianças.
Avaliação não se refere somente aos alunos, contudo à
professora, pais, bolsistas; equipe pedagógica e a instituição também
devem ser avaliados.
A criança deve ser avaliada, segundo Kramer (1997), por seu
desenvolvimento e seus conhecimentos, a professora por suas
dificuldades, a equipe pedagógica por seus progressos e dúvidas e a
creche por sua estrutura e seu funcionamento.
As professoras, a equipe pedagógica e a creche eram
semanalmente avaliadas nas reuniões de formação em contexto.
Nessas reuniões é possível que os profissionais e as alunas da
Universidade reflitam sobre o cotidiano escolar fazendo assim, com que
suas práticas pedagógicas sejam semanalmente ressignificadas.
Ao levantarmos a questão do professor que reflete, ou seja, num
pensamento prático baseio-me em Schön (2000) que utiliza as
terminologias conhecimento-na-acção, reflexão-na-acção e reflexão
sobre a acção.
O conhecimento-na-acção é o componente inteligente que
orienta toda a atividade humana mais conhecido como o saber fazer.
um tipo de conhecimento em qualquer ação inteligente, ainda que esse
conhecimento seja fruto de experiências anteriores, tendo se consolidado
em esquemas automáticos ou em rotinas.
Não existe apenas um conhecimento na atividade prática. Em
nosso cotidiano pensamos sobre o que fazemos diariamente ao mesmo
tempo em que fazemos. A isso Schön (2000) denomina de reflexão-na-
A reflexão não é apenas um
processo psicológico
individual, passível de ser
estudado a partir de
esquemas formais,
independentes do conteúdo,
do contexto e das
interacções. A reflexão
implica a imersão
consciente do homem no
mundo da sua experiência,
um mundo carregado de
conotações, valores,
intercâmbios simbólicos,
correspondências
afectivas, interesses socais
e cenários políticos. O
conhecimento acadêmico,
teórico, científico ou
técnico, só pode ser
considerado instrumento
dos processos de reflexão
se for integrado
significativamente, não em
parcelas isoladas da
memória semântica, mas
em esquemas de
pensamento mais genéricos
activados pelo indivíduo
quando interpreta a
realidade concreta em que
vive e quando organiza a
sua própria experiência. A
reflexão não é um
conhecimento “puro”, mas
sim um conhecimento
contaminado pelas
contingências que rodeiam
e impregnam a própria
experiência vital.
(GÓMEZ, 1997, p. 103)
91
acção. A um conhecimento de primeira ordem sobrepõe-se um de
segunda ordem, um processo de diálogo com a situação-problema e sobre
uma intervenção particular que exige uma intervenção concreta. O
conhecimento de segunda ordem encontra-se constrangido pelas pressões
espaciais e temporais e pelas solicitações psicológicas e sociais do cenário
em que se atua. É um processo de reflexão sem rigor, mas com a riqueza
da captação viva e imediata das múltiplas variáveis intervenientes e com a
grandeza da improvisação e criação.
A reflexão-na-acção é um processo rico na formação do
profissional prático. Pode-se considerar o espaço de confrontação
empírica com a realidade problemática. Quando o professor se revela
flexível e aberto ao cenário complexo das interações da prática, a
reflexão-na-acção é o melhor instrumento de aprendizagem. No contato
com a prática, adquire, constrói novas teorias, conceitos e aprende o
próprio processo de aprendizagem dialética.
A reflexão sobre a acção é a análise que o indivíduo faz depois
da ação sobre as características e processos da sua própria ação. Na
reflexão sobre a ação o professor liberto dos condicionamentos da
situação prática, pode aplicar os instrumentos conceituais e as estratégias
de análise no sentido de compreensão e da reconstrução da sua prática. A
reflexão sobre a acção supõe um conhecimento de terceira ordem, que
analisa o conhecimento-na-acção e a reflexão-na-acção em relação á
situação problemática em seu contexto.
Esses três processos: conhecimento-na-acção, reflexão-na-
acção e reflexão sobre a acção constituem o pensamento prático do
professor, que enfrenta problemas divergentes na prática. Não são
processos independentes, completam-se entre si para garantir uma
intervenção prática racional.
Alguns autores, contudo, acrescentam outros elementos à
discussão de Schön, dentre eles Pimenta e Ghedin (2006). Para eles há
uma diferença entre professor reflexivo como conceito e como adjetivo.
Um professor reflexivo
permite-se ser surpreendido
pelo que o aluno faz. Num
segundo momento, reflecte
sobre esse facto, ou seja,
pensa sobre aquilo que o
aluno disse ou fez e,
simultaneamente, procura
compreender a razão por
que foi surpreendido.
Depois, num terceiro
momento, reformula o
problema suscitado pela
situação; talvez o aluno não
seja de aprendizagem lenta,
mas, pelo contrário, seja
exímio no cumprimento das
instruções. Num quarto
momento, efectua uma
experiência para testar a
sua nova hipótese; por
exemplo, coloca uma nova
questão ou estabelece uma
nova tarefa para testar a
hipótese que formulou sobre
o modo de pensar do aluno.
Este processo de reflexão-
na-acção não exige
palavras. Por outro lado, é
possível olhar
retrospectivamente e refletir
sobre a reflexão-na-acção.
Após a aula, o professor
pode pensar no que
aconteceu, no que observou,
no significado que lhe deu e
na eventual adopção de
outros sentidos.
(SCHÖN, 1997, p. 83)
A teoria tem importância
fundamental na formação
dos docentes, pois dota os
sujeitos de variados pontos
de vista para uma ação
contextualizada,
oferecendo perspectivas de
análise para que os
professores compreendam
os contextos históricos,
sociais, culturais,
organizacionais e de si
próprios como
profissionais. (PIMENTA e
GHEDIN, 2006, p. 24)
92
Refletir, todos nós educadores refletimos que é isso o que nos
diferencia dos outros animais, seria refletir como um adjetivo. O que vem
ocorrendo é um modismo atual onde “professor reflexivo” vem a ser um
conceito.
Pimenta e Ghedin (2006) entendem que Schön baseia sua teoria
de professor reflexivo em uma forte valorização da prática. Os autores
acrescentam que o saber docente não é formado apenas de prática, sendo
nutrido também pelas teorias da educação.
A formação do professor não pode ser uma formação individual
do educador com ele mesmo, desconsiderando o contexto em que ele está
inserido. E essa superação se dará a partir da teoria, permitindo, assim,
aos professores entenderem as restrições impostas pela prática
institucional e histórico-social ao ensino de modo que se identifique o
potencial transformador das práticas.
Para Pimenta e Ghedin (2006), a epistemologia da prática
ocorrerá ao se considerar inseparáveis teoria e prática no plano da
subjetividade do sujeito, pois sempre haverá um diálogo do conhecimento
desse professor com a ação. Esse conhecimento não ocorre apenas na
experiência particular do sujeito, podendo ser nutrido pela cultura e com o
outro.
Os autores se baseiam em Henry Giroux que desenvolve o
conceito de “professor como intelectual crítico”, ou seja, uma reflexão
coletiva no sentido de incorporar as análises dos contextos escolares no
contexto mais amplo e colocar clara direção de sentido à reflexão: um
compromisso emancipatório de transformação das desigualdades sociais.
A compreensão dos fatores sociais e institucionais que
condicionam a prática e a emancipação das formas de dominação que
afetam o pensamento e a ação não são espontâneas e nem se produzem de
forma natural. São processos contínuos de descoberta, de transformação
das diferenças de nossas práticas cotidianas. (PIMENTA e GHEDIN,
2006)
93
A análise feita pelos autores coloca em evidência a contribuição
da perspectiva da reflexão no exercício da docência para a valorização da
profissão, dos saberes dos educadores, do trabalho coletivo deles e das
escolas enquanto espaço de formação continuada, assinalando, pois, que o
professor pode produzir conhecimento a partir da prática desde que na
investigação reflita intencionalmente sobre ela, problematizando os
resultados com suporte da teoria, pesquisando assim sua própria prática.
Cristiana:_ Sabe o que eu tentando fazer? Não
conseguindo ainda, tô em processo, é de não dar o nome da sala
às professoras e sim da idade. é o berçário, a sala de 2 e 3
anos, a sala de 3 e 4, a de 4 e 5 anos. Aí, às vezes eles ficam
olhando pra minha cara. Sala de 2 e 3 anos, qual que é?
(Todos riem)
Cristiana:_ É a da Ana Paula. outro dia o Adauto assim:
_ A minha sala então é de quanto? eu tô:_ De 4 e 5 anos.
ele:_ Ah é porque eu vou fazer 5 anos?. Eu falei:_ É. falando
dos cadernos ele falou:_ As outras têm caderno? Eu falei:
_ Não, nem o berçário nem a de 2 e 3 , nem a de 3 e 4 anos, só a
de 4 e 5. Aí ele tá lá contando:_ Cara eu vou fazer 5 anos!!!
(Reunião do dia 12/4/2006)
Cristiana, em seu fazer pedagógico cotidiano, nomeava as salas
pelas professoras que estavam acompanhando a turma, porém sentiu no
decorrer de sua “ação” que, quando mudava o ano letivo e as professoras
mudavam de turma, as crianças se sentiam confusas: “sala da Carmem?
Mas agora é da Ana Paula?” Um meio que Cristiana utilizou para acabar
com essa situação problemática foi nomear as turmas pela faixa etária,
assim outro ano letivo chegaria e as crianças saberiam que determinadas
salas seriam a de 3 ou 4 anos por exemplo. Cristiana diz: eu tentando
fazer. Ela reflete que ainda não consegue mudar sua ação totalmente, mas
está em processo de mudança. E com isso as crianças junto com ela vão
refletir sobre o sentido de se nomear uma sala de 4 a 5 anos.
Essa reflexão que Cristiana realizou ocorreu dentro da creche,
no grupo de estudo semanal, não sendo um processo somente solitário de
94
Cristiana com ela mesma, mas processo que se fazia coletivamente no
cotidiano de creche.
Quando essas educadoras refletem sua prática, buscam relação
entre o que fazem e o que os teóricos dizem, elas fazem o que Boaventura
SANTOS (2000) denominou de “dupla ruptura”, ou seja, elas
reencontram teoria e prática, enriquecendo a prática e dando novo ar à
teoria.
Oliveira (2005) nos diz que não propostas nem práticas que
possam ser, inequivocadamente, identificadas com a regulação ou com a
emancipação. Não existe uma ou outra. A autora utiliza a metáfora que
nos diz que no cotidiano não existe preto ou branco, o que existe são
práticas curriculares cotidianas “multicoloridas”, as tonalidades
dependem sempre daqueles que as realizam e das circunstâncias
envolvidas.
Isso porque propostas emancipatórias não garantem práticas
emancipatórias, da mesma forma que propostas regulatórias não implicam
em práticas regulatórias; é porque a tensão entre emancipação e regulação
não são uma dicotomia. São pólos estabelecidos que nos auxiliam na
tarefa de busca de práticas e de saberes mais emancipatórios do que
aqueles que hoje são dominantes.
Com isso compreendemos que os dois tipos de conhecimento
coexistem no cotidiano da Creche Casablanca sem que, necessariamente,
um ou outro seja o verdadeiro ou absoluto.
Assim, acreditamos que o conhecimento que desejamos que seja
construído com as crianças seja o que liberta, o que emancipa, ensinar
para as crianças, de alguma forma um conhecimento prudente para uma
vida decente, como nos propôs Boaventura SANTOS (2000). Um
conhecimento que, oriente as crianças sobre as questões que se colocam
hoje para a humanidade.
É nesse sentido que
entendemos a
impossibilidade de se
avaliarem as práticas
curriculares através de
mecanismos que
essencializam os fazeres,
colocando-os em lados
opostos, sem considerar as
“misturas” que fazemos
entre normas,
circunstâncias,
características dos grupos e
outras. Por isso dizemos
que o “preto e o branco”
não são as cores que nos
permitem captar a
complexidade e a riqueza
desses processos.
(OLIVEIRA, 2005, p. 104)
95
ÁRVORE-ROSA E FLOR AZUL-ANIL - ENTRADA DA CRECHE
CASABLANCA
96
5 - DA LINEARIDADE À SIMULTANEIDADE DOS
ESPAÇOSTEMPOS.
As territorialidades infantis pressupõem um
embate entre as concepções, da cultura de
massas e da cultura popular, enfim, todas
as demais que definem o modo de vida das
crianças. Dessa maneira, para além da
geografia da infância está a “infância das
crianças desencarnadas... abstratas”,
deslocadas de seus espaços e tempos.
(LOPES e VASCONCELLOS, 2005, p.
41).
Outras questões emergiram do nosso mergulho no cotidiano:
Que concepção de tempo permeava as ações da Creche Casablanca? Que
espaço ocupava a infância dentro da creche?
Carmem: _ Foi legal na hora que eu cheguei o Jonatas gritou:
_ Gente a Carmem chegou!!!
(Todos riem)
Cris: _ É aquilo a gente muito valor na hora que a gente
sem, né?
Carmem: _ É. Na hora da rodinha eu falei vamos
cumprimentar, a gente foi pra casa ontem, né? Vamos
cumprimentar, vamos dar bom dia. (///)
Maria cia: _Eu acho importante essa questão da
temporalidade, passou a noite, é outro dia, você vai
construindo isso com eles. (Reunião do dia 22/02/06)
Como as questões sobre o tempo giravam em torno da sua
linearidade, nos propusemos a estudar e discutir os espaçostempos como
nos diriam as autoras do cotidiano Alves e Oliveira (2004).
Elas têm adotado esse modo de escrever junto para alguns
termos que foram dados a aprender como "dicotomizados" no modo
moderno de pensar, para marcar que compreendemos nossos limites de
formação e a necessidade de superá-los, permanentemente.
“O tempo já não é mais o mesmo”, diriam alguns saudosistas.
97
Para alguns, ele transcorre cada vez mais rápido, para outros 24
horas são poucas, tamanho compromissos e múltiplos papéis que se
exercem no decorrer dos dias atuais.
Até mesmo nossa noção de espaço já não é a mesma. Um espaço
sem fronteiras, sem limites. Estamos em vários lugares ao mesmo tempo.
Devemos isso à tecnologia que nos faz de maneira assustadora estar em
vários espaçostempos em questão de segundos.
Às vezes sentimos nosso corpo (biológico) cansado diante da
quantidade de papéis que assumimos e o ritmo acelerado em que
vivemos. Com isso somos obrigados a construir novas identidades
ajustadas ao ritmo da Pós-Modernidade.
Na segunda metade do século XX, ocorreram grandes
mudanças. O tempo e o espaço perderam sua rigidez, as fronteiras se
abriram. As mudanças instauraram uma nova ordem. Vivemos uma
transição que gera insegurança diante do desconhecido, do inusitado.
Para alguns, a perda das certezas, para outros a possibilidade de
múltiplas verdades que depende dos múltiplos olhares.
Essa nova ordenação característica da Pós-Modernidade nos
apresenta como uma crise de paradigmas. As concepções são colocadas
em xeque e passamos a encarar o mundo de outra forma.
A literatura, o cinema e o teatro anunciaram o que a ciência veio
a descobrir. A arte muito anunciava a abordagem multidisciplinar,
rompendo a rigidez da concepção newtoniana de espaço e tempo.
O espaço hoje é um espaço em expansão. O computador
projetou o homem para um espaço virtual sem limites e no qual todos os
usuários estão em de igualdade de condições, de acesso e de diálogo.
(MARQUES, 2001)
A tecnologia tem dado um grande incentivo quanto à isso a
Internet - espaço expandido que propicia estar em vários espaços, num
tempo que deixa de ser linear e se faz simultâneo. Presente, passado e
futuro acabam por dividir o mesmo espaçotempo.
O espaço passa a ser, então,
o espaço expandido,
interativo, ilimitado, flexível
o bastante para que os
pontos de parada sejam
estabelecidos em
conformidade com os
interesses do usuário.
(MARQUES, 2001, p. 42)
98
Esse tempo denominado Modernidade é um tempo de ordem, de
coerência, do aprisionamento de tudo o que é vago, o futuro certo e
seguro de si mesmo, o passado do que acreditamos ser e não fomos ou
não pudemos ser. (SKLIAR, 2003)
Veiga-Neto (2002) nos diz que o que se iniciava na ruptura do
medieval para o moderno era uma nova geometria e uma nova
temporalidade no mundo europeu. A separação medieval entre espaço
interno (rígido, sensorial, percorrível, doméstico) e espaço externo
(fluido, desconhecido, misterioso, mágico) foi substituída pela separação
entre espaço e lugar. O lugar passou então, a ser entendido e vivido como
projeção neste chamado mundo sensível, de um espaço ideal.
não é o tempo passado ou o tempo presente o que nos
preocupa, mas a irrupção do presente traço marcante da Modernidade.
Um presente tomado como referência para se pensar o passado e o futuro.
Para o pensamento Moderno, o presente constitui a emergência de um
possível que se articula ao universal, à humanidade. (MARQUES, 2001)
A Modernidade foi e é pensada como um tempo de ordem,
estabilidade e precisão. Um tempo linear ou cíclico. Os eventos ocorrem
de forma sucessiva, cronologicamente ordenados.
Dessa forma o tempo funciona como um ordenador, um
instrumento de controle e disciplina.
Para Veiga-Neto (2002), o currículo foi a peça principal da
maquinaria que foi a escola na fabricação da Modernidade. Ele propiciou
à escola assumir uma posição fundamental na instauração de novas
práticas cotidianas, de novas distribuições espaciais e temporais. E o mais
importante, foi pelo currículo que a escola contribuiu decisivamente para
a abstração do tempo e do espaço e para o estabelecimento de novas
articulações entre ambos.
Em termos temporais, o currículo engendrou/engendra rotinas e
ritmos para a vida cotidiana de todos que têm algo a ver com a escola.
O tempo tornou-se-nos
inconstante, não-linear e
não-circular ou, ao menos,
não somente constante,
linear e ou/circular.
(SKLIAR, 2003, p. 40)
A continuidade, como
duração, como tempo
infinito, como um passo sem
saltos, como princípio e
final de cada uma e de
todas as coisas, é uma
construção do tempo que
serve para proibir seu
contrário, isto é, proibir a
descontinuidade, o salto, a
irrupção, a ruptura; em
síntese, um tempo que serve
para proibir a diferença.
(SKLIAR, 2003, p. 43)
O currículo imprimiu uma
ordem geométrica, reticular
e disciplinar, tanto aos
saberes quanto à
distribuição desses saberes
ao longo de um tempo.
(VEIGA-NETO, 2002, n/p)
99
Foram vários dispositivos criados para controlar o uso do tempo de
alunos e professores.
Em termos espaciais, o currículo funcionou/funciona como o
grande dispositivo pedagógico que recolocou, em termos modernos, a
invenção grega da fronteira como o limite a partir do qual começam os
outros; o limite a partir do qual os outros passam a existir para nós, o
limite a partir do qual a diferença começa a se fazer problema para nós. O
currículo ainda contribui para fazer do outro um diferente e por isso um
problema para todos nós.
Em relação ao tempo, a escola delimita esse tempo, quadricula,
um tempo para sentar, para andar, para comer sozinho. E se esse tempo,
de algum modo é modificado, aí é instaurado o caos, e logo vem o
diagnóstico: a criança tem problema, tem atraso no desenvolvimento,
precisa procurar um médico, gerando em muitos casos as rotulações:
devagar-quase-parando, tartaruga, dentre outros.
Voltemos à situação relatada anteriormente sobre o “lindinho”
do berçário. O que era esse lindinho? Segundo Cecília uma criança que
comia direitinho, que fazia tudo direitinho. E indaguei mais uma vez:
precisamos fazer tudo direitinho? Todos precisam fazer tudo direitinho?
Se respondo que sim, podo com minha atitude qualquer, ou melhor, toda
possibilidade de a criança construir suas aprendizagens, construir seu
desenvolvimento e sua forma de ver e viver o mundo.
Se julgo um tempo certo e uma maneira adequada de se ser
criança, rompo com qualquer possibilidade de permitir ao outro ser da
maneira que é, fazendo do modo que pode, tendo o tempo de que precisa.
Isso não passa de um t1693(z343( )-6.99843(t)0.441715(a)-3.71568(r)-1.63761(t)917(p)-3.71568(a)12.2412.2438( )-212.597(jl.96262(l)0.441715(h2t)0.441715(a)-3.715o)-3.7196513(í)-06.56299(t)-97522(a)12.2425( )-212. Td( )Tj-207.237 -29.861 0 Td[(m)-3.275.624 0 Td[(i)0.441gQ0.04 Td[(a1.963-3.71693(i)0.04195(m)-3.27271(a432( )-171.476(d)-3.7. Td[(I7(t4.04257(e)1.96325(c)1.9)-3.71693369 -20.16 Td )-171.476(d)-3.7. Td[(I7?41715(t)0. 0 Td[(i)08262( )-171.476(6b1.96262(,. 0 Td[(i)08262( )-212. Td( )Tj-207.237 -29.861 559(o)-3.71568(l)0.44175( )-2e41715(212.262( )-150.963706(a)1.963916 -20.2838( )-212.597(jl.9663916 -20.2823916 -20.2823916 -220.28.917(o)-3.7597(c)1.96(d)6.56299(a)1.96262( 388(z)-8.31605(e)1.9 Td[(I7?4i)0.441gQ0.04 Td[(au)-3.7-20.2823916 -20.2823916av.31d )-171.476(d)-3.7. T716931693(t)0.441715(r)4.-212.53.7. T716568(r).-212.53.7. 6a8 )-212.597p1.63635(a)17362(ç)1.96325(ã)1.9632gva)17362(ç4(s)]TJ279..44798(t)0.441715(u)-3. 16568(r).-21.3.9969(e)1.96262(q)6.32(a)1.9626d)-3.7. T716931693(t)0.441u9171.476(d)4em)-3.27271(i)0.44173.71568(d)-3.7 T716568(r).-212.53.723.71621(o)-3.262( )250]TJ-260.66)-92.2432(n)-3.102 0 Td[(t)0.44159I 432( )-1768(l3.71568(d)-4(ã)1.96388(o3821(o)6..71693(r)-,.262( )25085(r)4.041953821(o)6..7z1.9632gva)17362(ç4(s)109.798(d)-3.71568(i)-9823916 -20.2823916 - )-161.197(4l 5r)4.041953823916 -20.2823916 -[(m)-3.2438(s)-1.63766.9978(9U -20.28239132(a)1.962663635(a)1207.237 -29.1568(d)-3.7 T28(r)-1.63-3.71568( 33( )-1-3.716933,)-6248(dí0.44173.717271(i)0.47271(i)0.4417151.63761(t)94425(r)-6.23672I61.63761(t)95(r)-6.23672I61.63761(3.9969(e)1.96262(z)-a6.56424(e)568(d)-4(ã)1.9n)-3.102a1693(e)1.( 388(z)-8.3-3.71693(r)4.0432(e)-8-3.71693(41u9171.476(d)3(e)1.( 3884.0432(a)]gva)17362.441715(u)-390.4417151.6)1.( 3874417151.6)1.( 3874417ã)1.9n)-3.102(s)-1.63698(p)6.5636[(m)-3.2438(s)9477(r)4.0414-6.63. 16568(r).-21.3.9969-3.243(t)0.441715(u)-3. 16568( )-212.597(-2q)-3.71568(u)6.56424(e)1.935(a)12.2427q77(u)-13.9b1693(e)12.2313.9b1693(e)13761(s)-1.69á3(e)12.23171.477(c)12.2s)9477(r)(r)4.0432(e)-8-3.71699á3(e)12.23171.477(c)168(s)-1.63761f)6.59(u)6.56299(i)-9.83821(r)4.0432( )-253.715(s17ã)-3.71568568(e)1.96388( )3.2.962624.0432e)1.96388( )1.962620.04 Td[(d)-3.71631(88( )1lC3l624.0432e)1.920.2838( )-212.597(j6798 Tf62.62823916 - )h897(j6798 Tf628)12.2313./R34t4.04257(313693(e)12.234t4.04257- )-161.197(4l 5r)4.041c-3.27271(a)1.96388( )3.28149(d)-3.715631.96325(c)1.9)-33.2438(s)9477(e)1.96os8.28149(d)-3.715631)6.56299(e)1.( )3.28149(d e)1.( )3..2438(s)94772(n)-3.102 0 T.28149(d e6(a)-3.71568(c)1.96s)-1.63635(e)-8.3173(r)4l 5r)4.041953823916 -20.2823916 262e )-171.476(d)-sç.96325(c)1.96325(i)51aaq49(d)-3.71.( 388(z)-8.25(c2)94gva)1734257- 4l 5.71.( 388(z).1.283-1.63635(a)6.56299(d)-3.71653672I61.63768.31388(z)-8.3160517151.63761l243 (d)3(e)1. í]TJ-260.66)-92.2432441715(c)1.gva
100
Um tempo do outro que irrompe em nosso tempo e se torna
irredutivelmente inesperado.
As únicas crianças que não largaram as fraldas foram o
Jonatas e o Gilmar. As educadoras pensam ter sido culpa dos
pais o que aconteceu.
Ana Paula:_ A mãe do Gilmar o sentava no vaso e dizia que
iria tirá-lo de quando ele fizesse xixi, deixando o menino
sozinho no banheiro. E o pai do Jonatas falou que se ele fizesse
cocô na calça outra vez que iria trancá-lo no banheiro.
Regina:_ É, hoje o Jonatas na hora do repouso:_ Eu não posso
fazer xixi na roupa, a fralda acabou. Ele ficou inquieto e não
conseguiu dormir na hora do repouso. (Ata do dia 9/3/2005)
O que vemos na situação narrada é que, muitas vezes, pensamos
ser culpa dos pais quando alguns de nossos alunos não conseguem fazer o
controle de esfíncter. Com essa atitude nivelamos os que conseguem e os
que não conseguem, não respeitando o tempo natural que cada um precisa
de acordo com seu organismo.
Acabamos nós educadores e, muitas vezes, os pais, colocando
uma responsabilidade muito grande em cima das crianças. Jonatas não
consegue nem mesmo dormir no repouso com medo de fazer xixi na
roupa já que sua fralda acabou.
Skliar (2003) nos fala que o tempo presente desdobrou-se,
despregou-se, multiplicou-se em trajetórias, que não existe um tempo
presente, pelo menos num sentido unitário, onisciente, centralizador,
senão uma multiplicidade de tempos presentes como talvez nunca
tivéssemos percebido.
O tempo presente está repleto de paradoxos. Deleuze (1988) nos
fala quatro deles:
O paradoxo do salto que contradiz a idéia de uma recomposição
do passado com o presente. É por meio de um salto que nos localizamos
na existência do passado. O passado coexiste com o presente do qual ele é
o passado. O presente constitui o tempo para passar a ser esse tempo
101
constituído, por isso, o presente não é um, senão dois: cada presente é, ao
mesmo tempo, um presente e um passado.
O paradoxo do ser supõe uma diferença de natureza entre o
passado e o presente e isso contradiz a noção de passarmos de um ao
outro de forma gradual e previsível.
O paradoxo da contemporaneidade que supõe uma não-
distinção entre o antes e o depois, em virtude de que o passado não
continua num presente que já foi, senão que convive com ele.
Por fim, o paradoxo da repetição psíquica, onde se acredita que
aquilo que convive com cada um dos presentes é todo o passado, o
passado íntegro, contudo em diferentes graus de distensão.
Elias (1998) nos fala da dicotomia entre o “tempo físico” e o
“tempo social”. O autor nos narra que Galileu utilizava a clepsidra
(espécie de relógio de água) em suas experiências como um instrumento
de medição do tempo nos assuntos humanos. Era uma escala de medida
de caráter social. Media-se o tempo, centrando-se no homem, porém a
imaginação de Galileu levou-o a mudar a função desse instrumento,
utilizando-o como padrão de medida de processos físicos e não mais de
eventos sociais. Assim, nasceu um novo conceito de tempo, um “tempo
físico” que se afastou do conceito antigo centrado no homem.
Isso desencadeou a mudança no conceito de natureza que, aos
poucos, se tornou para os homens uma rede autônoma de acontecimentos,
mecânica e ordenada.
O “tempo físico” surgiu assim a partir do “tempo social”. A
crescente dualidade da noção de tempo, cujo ponto de partida foram as
experiências de Galileu, reflete o crescente dualismo existencial da
representação geral do universo.
O próprio tempo foi classificado em tempo físico e social. Em
seu primeiro sentido, o “tempo” se apresenta como um aspecto da
“natureza física”, como uma das variáveis imutáveis que os físicos
medem e que desempenham seu papel na Matemática, considerada como
Nas sociedades de que se
trata, esse dualismo
arraigou-se a ponto de as
pessoas partirem dele, como
se fosse uma premissa
evidente em si, para
poderem classificar os
acontecimentos como
naturais ou sociais,
objetivos ou subjetivos,
físicos ou humanos.
(ELIAS, 1998, p. 93)
102
representação simbólica das “leis” da natureza. Em seu segundo sentido,
o “tempo” tem o caráter de instituição social, de uma instância reguladora
dos acontecimentos sociais, de uma modalidade da experiência humana.
O “tempo físico” podia ser representado por quantidades,
passíveis de serem medidas com precisão e de figurar com os resultados
de outras mensurações em cálculos matemáticos. Em contraste o “tempo
social” permaneceu insignificante como campo de pesquisa, no entanto
sua importância no convívio social dos homens não parou de crescer.
O tempo físico representa uma ramificação tardia do tempo
social. A natureza desse desenvolvimento foi mal entendida e
desvalorizada como uma “história” desprovida de estrutura, como algo de
“puramente histórico”. Os sociólogos, contudo, não se preocuparam com
o “tempo”, que assim permaneceu como um enigma.
Hoje a preocupação é de que, enquanto não tivermos presente
essa relação entre os planos sico e social do universo, enquanto não
aprendermos a ver o surgimento e o desenvolvimento das sociedades
humanas como um processo que se encaminha no interior do vasto
universo alheio ao homem, não conseguiremos apreender um dos
aspectos essenciais do problema do tempo: que o tempo no contexto da
Física ou da Filosofia é um conceito de síntese enquanto na sociedade
humana reduz-se a um mecanismo de regulação e de força coercitiva que
nos dirige em nosso cotidiano.
É preciso acabar com a dicotomia natureza e sociedade. Com
essa dicotomização acabamos tendo que abordar o “tempo sociale o
“tempo físico”, tempo interno à sociedade e tempo interno à natureza,
como se eles existissem e pudessem ser analisados separadamente. Sendo
isso impossível, os homens, desde os primórdios, situaram-se no interior
do universo físico e se portaram como um elemento do universo. Na
verdade, o tempo não se deixa enquadrar em divisões científicas. O
exame do tempo físico e do tempo social pode contribuir para
103
restabelecer uma consciência da interdependência entre “natureza” e
“sociedade”, da unidade na diversidade, que é o universo.
Hoje existem algumas metáforas sobre o tempo.
O tempo que antes era linear deixa de ser assim entendido dando
lugar à simultaneidade de eventos. Para isso, Marques (2001) utiliza a
metáfora do leque, cujas varetas representam a simultaneidade de todos
os eventos. A expansão do tempo se nos sentidos adiante, de
lateralidade, ou seja, da concomitância dos acontecimentos.
Skliar (2003) utiliza a denominação vagabundos, que muito
além de seu significado literal, traz uma idéia parecida com a de
estrangeiros. Diferentemente do estrangeiro, que chega de repente e logo
se estabelece, vagabundos permite construir uma configuração diferente
da temporalidade; vagar, ir de um lado a outro sem destino certo ou rumo
fixo, transitar, passar à distância. Mas não existe nem chegada nem
estabelecimento. Também não existe linearidade e/ou circularidade.
Vagabundeia-se não pelo tempo, mas através dele.
O presente e o futuro ainda persistem. O que os diferencia da
Modernidade é que agora surge o dado novo da multiplicidade de opções
e a velocidade com que essas se desdobram num número infinito de
opções.
Assim a dúvida e a incerteza acabam por serem protagonistas
desse novo tempo.
Talvez o presente não seja outra coisa senão a perda de
paisagem, familiaridade com o mundo, a perda da calma e da previsão, a
perda, finalmente, da metáfora do homogêneo, do estável, da ordem, da
coerência. (SKLIAR, 2003)
Deleuze (1998) distingue a infância em dois modos de
temporalidade: o devir e a história. A história é o conjunto de condições
de uma experiência e de um acontecimento que têm lugar fora da história.
A história é a sucessão de efeitos de uma experiência ou acontecimento.
De um lado está o contínuo, a história, chrónos, as contradições e as
Aion é o lugar dos
acontecimentos incorporais
e dos atributos distintos das
qualidades. Enquanto
Cronos era inseparável dos
corpos que o preenchiam
como causas e matérias,
Aion é povoado de efeitos
que o habitam sem nunca
preenchê-lo enquanto
Cronos era limitado e
infinito, Aion é ilimitado
como o futuro e o passado,
mas finito como o instante.
Enquanto Cronos era
inseparável da
circularidade e dos
acidentes desta
circularidade como
bloqueios ou precipitações,
explosões, desencaixes,
endurecimentos, Aion se
estende em linha reta,
ilimitada nos dois sentidos.
Sempre já passado e
eternamente ainda por vir.
Aion é a verdade eterna do
tempo: pura forma vazia do
tempo, que se liberou de seu
conteúdo corporal presente
e por aí desenrolou seu
círculo, se alonga em uma
reta, talvez tanto mais
perigosa, mais labiríntica.
(DELEUZE, 1998, p. 170)
104
maiorias; do outro lado, o descontínuo, o devir, aión, as linhas de fuga e
as minorias. Uma experiência, um acontecimento, interrompem a história,
a revolucionam, criam uma nova história, um novo início, por isso, o
devir é sempre minoritário.
O devir instaura outra temporalidade que não a da história. O
devir não é imitar, assimilar-se, fazer como um modelo, voltar-se ou
tornar-se outra coisa num tempo sucessivo. Devir-criança não é tornar-se
uma criança, nem retroceder à própria infância cronológica. Devir é um
encontro entre duas pessoas, acontecimentos, movimentos, idéias,
entidades, multiplicidades que provocam uma terceira coisa, algo sem
temporalidade cronológica, porém com geografia, com intensidade e
direção próprias.
Como Deleuze, Kohan (2004) segue o pensamento de respeito a
alteridade da infância, fazendo uma discussão sobre o tempo pelos termos
gregos: Chrónos que seria a continuidade de um tempo sucessivo e Aión
que seria a intensidade do tempo na vida humana.
Para Kohan (2004) são duas infâncias que coexistem: a infância
majoritária e a minoritária.
A infância majoritária, a da continuidade cronológica, da
história, das etapas do desenvolvimento, das maiorias e dos efeitos: é a
infância que desde Platão, se educa conforme um modelo. Essa infância
segue o tempo da progressão: seremos primeiro bebê, depois crianças,
adolescentes, jovens adultos e idosos, linearmente.
A outra infância, a minoritária, é a infância como experiência,
como acontecimento, como ruptura da história. É a infância que
interrompe a história, que se encontra num devir minoritário, numa linha
de fuga. É a infância como intensidade, um situar-se intensivo no mundo;
um sair sempre do “seu” lugar e se situar em outros lugares,
desconhecidos, inusitados e inesperados.
A instituição “escola” trabalha com a infância majoritária, como
essa etapa da vida em que trabalhamos com as crianças através de nosso
A infância não é apenas
uma etapa, uma fase
numerável ou quantificável
da vida humana, mas um
reinado que tem como
marca uma intensidade. No
reino infantil, que é o
tempo, não há sucessão
nem consecutividade, mas
uma intensidade da
duração. Uma força
infantil, sugere Heráclito, é
o tempo aiónico. E também
sugere que a infância,
muito mais do que uma
etapa da vida, é um
reinado, uma potência,
uma força vital. (KOHAN,
2004, n/p)
105
olhar adultocêntrico, quando o que deveríamos era nos preocupar com
essas infâncias minoritárias, encontrar esses “devires” minoritários que
não imitam nada, não modelam nada, pelo contrário, interrompem o que
está dado e propiciam novos inícios. Assim, temos o “devir-criança”.
Para Frago e Escolano (2003), a invenção do relógio e sua
difusão social que se originou nos começos do século passado, foi o que
ocasionou a cisão espaço-tempo que se opera com a modernidade e que
supõe uma ruptura com a estreita vinculação que ambas tiveram nas
culturas pré-modernas.
As horas do dia sempre estiveram associadas aos espaços em
que transcorriam as atividades, até que a Modernidade introduziu a
uniformidade do tempo mediante a medida do relógio mecânico.
O relógio foi incorporado ao edifício–escola organizador da vida
da comunidade e também da infância.
Para os autores, o tempo, como o espaço, não é uma propriedade
“natural” dos indivíduos, sim uma ordem que tem que ser aprendida, uma
forma cultural que deve ser experimentada.
Os relógios tanto escolares como domésticos regulam a conduta
diária, ensinam a organizar as primeiras percepções cognitivas de
temporalidade e garantem a internalização dos valores da exatidão, da
aplicação e da regularidade.
O relógio colocado na escola, perpetua a cronometria apreendida
durante a infância na vida dessas comunidades, constituindo-se assim
num símbolo cultural e num mecanismo de controle social de duração.
Para Elias (1998), os relógios não medem o tempo, medem sim
a duração de um dia de trabalho ou de um eclipse.
Os relógios ocupam um lugar eletivo dentre os dispositivos
destinados a representar o tempo, entretanto não são o tempo. Quer se
trate dos relógios ou do curso aparente do Sol ao redor da Terra, os
instrumentos de determinação do tempo são sempre seqüências
A palavra “tempo”,
diríamos, designa
simbolicamente a relação
que um grupo humano, ou
qualquer grupo de seres
vivos dotados de uma
capacidade biológica de
memória e de síntese
estabelece entre dois ou
mais processos, um dos
quais é padronizado para
servir aos outros como
quadro de referência e
padrão de medida.
(ELIAS, 1998, p. 39-40)
Ele marca as horas de
entrada na escola e de saída
delas, os tempos de recreio
e todos os momentos da
vida e da instituição. A
ordem temporal se une,
assim, à do espaço para
regular a organização das
primeiras aprendizagens.
(FRAGO e ESCOLANO,
2003, p. 44)
106
observáveis de acontecimentos, ou, no caso dos calendários, seqüências
simuladas de acontecimentos, sob uma forma escrita ou impressa.
O autor ainda diz que os segundos, as horas, os dias de 24 horas,
ou todas as outras subdivisões do movimento contínuo de um cronômetro,
seguem regularmente umas às outras, de acordo com uma linha de
sucessão unidirecional. Assim, cada segundo, cada hora, cada dia, é único
e não repetível, nunca mais voltam. Mas a duração de qualquer um desses
socialmente padronizado como “segundo”, “hora”, “mês” ou “ano”,
duram exatamente tanto quanto qualquer outro segundo ou hora, mesmo
numericamente diferentes. A duração própria dessas unidades de tempo
que se sucedem numa série não repetível se reproduz, torna-se possível
fazer referência a essas unidades de tempo para comparar a duração de
acontecimentos sucessivos que pertençam a outras seqüências.
Os relógios podem exercer sua função quando as
configurações formadas por seus ponteiros, as horas indicadas por eles,
são comuns à totalidade de um grupo humano. Eles perderiam o papel de
instrumentos de medida do tempo se cada indivíduo construísse seu
próprio tempo. E essa para Elias (1998) é uma das fontes do poder
coercitivo que o “tempo” exerce sobre os indivíduos.
Estes acabam se comportando de acordo com o “tempo”
instituído pelo grupo a que pertencem e, quanto mais se alongam e se
diferenciam as cadeias de interdependência funcional que ligam os
homens entre si, mais severa torna-se a ditadura dos relógios.
Para Elias (1998), existem etapas na evolução das sociedades
em que os homens não encontram problemas que exijam uma sincronia
ativa das ocupações de seu grupo com outras mudanças que ocorrem no
universo.
Determinamos temporalmente nossas atividades, pautando-nos
no ritmo das pulsões biológicas: comemos quando temos fome, dormimos
quando nos sentimos cansados. Em nossas sociedades esses ritmos
biológicos são regulados em função de uma organização social, que
107
obriga os homens a se disciplinarem, pautando seu relógio fisiológico no
relógio social.
nas sociedades mais simples, isso não acontece, pois a
regulação do relógio fisiológico depende mais diretamente das
possibilidades oferecidas ou negadas pela natureza externa ou por outros
homens exploráveis, para atender às necessidades dos indivíduos.
Nessas sociedades, os homens podem ir à caça quando sentem
fome e parar de se esforçar quando estão saciados. Podem deitar quando
começa a escurecer e se levantar ao nascer do sol. Diferente de nós que,
muitas vezes, vivemos nossas vidas baseadas nos ponteiros dos relógios.
Na Creche Casablanca puderam ser observadas e depois
analisadas no coletivo questões relacionadas aos espaçostempos.
Cecília:_ As crianças do berçário um ano almoçam aqui, outro
ano almoçam lá, dar comida na boca, buscar cadeirinha, o
espaço é pequeno.
Verônica:_ Você lembra Cecília quando trazia duas salas pra
almoçar e depois mais duas era muito mais confuso do que a
idéia agora do berçário almoçar no berçário e jantar no
berçário do que quando eram os menores e a sala de dois anos.
A turma de três e quatro anos sentia o cheiro da comida e
ficava com fome. Então gente vocês lembram disso que penúria
que era?
Cristiana:_ Sem contar depois porque a primeira turma que
almoçava tava escovando os dentes e indo dormir, a última
turma ainda tava almoçando e atrapalhando o sono do outro.
Verônica:_ Essa mudança foi ótima gente, porque quem
lembra que teve aqui.
Cristiana:_ Eu nem lembro como foi.
Ana Paula:_ Foi natural!
Cecília:_ Teve um ano que as dez crianças tinham que dar
comida na boca.
Verônica:_ Trazia as crianças pra cá, levava as crianças pra lá,
tava na hora das crianças dormirem a outra turma tava indo
almoçar, era uma confusão de gente.
Lena:_ A creche ficava suja mais tempo, tava ficando muito
suja, não dava tempo pra limpar. Agora acabou logo, limpa
logo e acabou.
108
Cecília:_ Porque as crianças do berçário demoram mais a
almoçar, então almoçando ocupa menos tempo e espaço, né?
Vai tentando, né? Um dia resolve tudo.
Verônica:_ A gente vai adequando pra melhorar, né? A
situação. (Reunião do dia 15/03/2006)
A Creche Casablanca foi no seu cotidiano buscando a melhor
forma de fazer as refeições das crianças, através de erros e acertos,
chegando a uma adequação espaçotemporal que melhor se adaptava às
crianças e profissionais da creche.
Vemos a importância do espaço coletivo que a rotina de uma
sala influencia a rotina das outras salas. Buscou-se uma forma de fazer
com que as rotinas de cada sala pudessem ocorrer de forma harmônica,
privilegiando sempre o coletivo.
O que podemos observar é que se manteve a lógica
espaço/tempo da Modernidade, onde cada grupo teve de ocupar um
espaço num determinado tempo para que a ordem fosse mantida.
Em relação ao espaço, Foucault (1985) nos fala sobre o
fenônemo do quadriculamento. Para ele cada pessoa tem definido seu
espaço de realização, o que acaba por ser um espaço de vigilância sobre
cada indivíduo.
Regina:_ As crianças brigam com Junior e dizem que lugar de criança que
faz pirraça é lá na turma de 2 anos. (Ata do dia 28/09/2006)
As crianças e nós mesmos delimitamos, muitas vezes, o espaço
que o outro ocupa e o lugar que “achamos” que deve ser ocupado pelo
outro.
Ao analisarmos algumas fotos na creche, discutimos sobre o
estabelecimento de fronteiras que demarcam os espaçostempos interiores
e exteriores.
Não acreditamos que haja
“tempos” ou “espaços”
ideais ou modelos a serem
indistintamente seguidos. O
que deve haver, sim, são
formas estruturadas de
organização e
aproveitamento do espaço e
do tempo disponíveis, tendo
em vista os objetivos
propostos. (KRAMER,
1997, p. 73)
109
Lena:_ Tá horrível essa imagem, não gostei dessa imagem .
Cristiana:_ Cadeião?
Lena:_ É isso tá igual a cadeia. Eu acho assim uma coisa
degradante. Não parece uma cadeia?
Cristiana:_ Me dá mal-estar.
Lena:_ É mal-estar.
Cristiana:_ Assim, a gente construindo uma coisa sempre,
né? Essa questão da liberdade, da autonomia e tudo e as
grades... Tanto que na hora em que eu vi também eu falei:_
Nossa igual o Ceresp (Centro de remanejamento de presos).
Te um... Uma idéia de delimitação mesmo, o espaço
marcado aqui. Aqui dentro é a creche fora não é mais. Então
essa foto me marcou bastante, porque é como se tivesse
delimitado o espaço da comunidade e o espaço da creche, não
fosse um único espaço. (Reunião do dia 15/03/2006)
Talvez a imagem tenha incomodado tanto porque assusta, ou
pelo fato de essas profissionais fazerem um trabalho que buscava trazer as
famílias a todo momento para dentro da Instituição, ao depararem com
essas grades na foto sentiram que apesar dessa tentativa, era delimitado o
espaço até onde as famílias podiam ir.
O desejo de não estabelecimento de fronteiras foi reforçado pela
análise feita pelo grupo da foto escolhida por Ana Paula.
110
Ana Paula:_ Essa me passa liberdade, tem uma criança na
janela e ela tá linda.
Bianca:_ Porque essa é a que passa liberdade?
Ana Paula:_ Porque tem uma criança na janela, ela chegar
naquela janela ali e olhar pra fora.
Bianca:_ E essa fotografia aí ela
Alguém:_ O muro
Bianca:_ Como é que é?
Ana Paula:_ Essa aí não tem o muro.
(Reunião do dia 15/03/2006)
Através de outra fotografia pudemos observar o muro que divide
o bairro Jardim Casablanca do Condomínio Granville.
111
Tatiana:_ Eu vi assim o espaço social, né? Uma paisagem
bonita que tem um muro separando o lado de lá do lado de
cá.
Verônica:_ É o céu e o inferno.
Tatiana:_ O lado de lá com casas bonitas e boas e no de cá nem
tanto. Até o capim é diferente, do lado de é graminha e o
daqui é mato alto, capim. (Reunião do dia 15/03/2006)
A diferença de classe social é visível, esse muro mais do que
algo concreto e de blocos de cimento ele é algo que divide realmente o
lugar que os moradores do bairro Jardim Casablanca ocupam, delimita
literalmente até onde eles podem ir, aonde podem chegar, fixando o
espaço social dessas pessoas linearmente e com rigidez.
A mesmidade ocupa o centro, corre suas fronteiras cada vez
mais para fora e concentra tudo e todos na periferia, nas bordas, exclui. E
a periferia, as bordas, o excluído passa a esforçar-se para entrar, para se
incluir, para ocupar o centro. Vigiamos, controlamos, castigamos o outro
e o conduzimos para a periferia insistindo ao mesmo tempo no espaço de
nossa bondade e na perfeição de nossa centralidade. (SKLIAR, 2003)
Assim é o espaço na Modernidade, concebido de forma gida,
fisicamente definido, tendendo à centralização, ou seja, para a
112
convergência do olhar e da ação humana para pontos específicos do
espaço vivido.
A forma como isso se se reflete nos corpos. A redução
espacial dos pontos determinados implica na produção dos corpos
retraídos e aprisionados.
Cecília:_ Aqui as crianças estão presas mesmo, coitadas.
Presas mesmo, não podem sair daqui. (Reunião do dia
15/03/2006)
A foto narrada por Cecília nos incomodou, nos mostrou
metaforicamente as crianças dentro de um espaço delimitado, marcado,
como a Modernidade fez.
A Creche Casablanca preocupada em transformar o espaço
físico a fim de aproveitar o melhor espaço possível para as crianças, mais
uma vez reforçou a concepção de espaço da Modernidade com lugares
definidos para a realização de determinadas atividades, sempre com seus
limites muito bem delineados.
114
Para Frago e Escolano (2001) as categorias espaço e tempo não
são simples esquemas, estruturas neutras nas quais deságua a ação
escolar.
O espaço-escola não é apenas um “continente” em que se acha a
educação institucional, isto é, um cenário no qual se situam os atores que
intervêm no processo de ensino-aprendizagem para executar um
repertório de ações.
A arquitetura escolar é uma espécie de discurso que institui seus
sistemas de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância, marcos
para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre
diferentes símbolos estéticos, culturais e ideológicos.
Na Creche Casablanca é explicito em suas paredes e portas,
corredores, salas e refeitório a cultura da criança, seus cartazes, adereços
e estética. Tudo foi confeccionado pelas crianças, a ordem que ali se
segue é sempre valorizar o que vem deles e incentivar sua criatividade e
suas expressões artísticas. Mais do que simples paredes coloridas e
enfeitadas, o espaço físico da Creche Casablanca expressa suas
concepções.
Ao analisar a foto Carmem comenta:
115
Carmem:_ Isso daqui me chamou a atenção é que a gente
trabalha na creche com o que a gente tem, entendeu? A gente
não tem papel oficio pra dar pras crianças fazerem
trabalhinhos, o papel oficio é para as avaliações. o que a
gente faz? A gente pega, como é que chama? Rascunho, né? E
umas revistas, né? A gente reaproveita no caso, né?
Verônica:_ Eu acho que o material como diz, né? A gente pensa
que algumas escolas têm todo material uma lista enorme de
material, tudo coisa cara, tudo coisa moderna. E às vezes nem
tanto é aproveitado quanto quando a gente pega isso aqui, essa
sucata aqui, e as crianças aproveitam muito mais. (Reunião do
dia 15/03/2006)
Além de utilizar rascunhos doados, material escolar doado
muitas vezes em “trote solidário” da Universidade e vários tipos de
sucata, trabalhando muitas vezes com escassez de material, a Creche
Casablanca também reaproveita seus espaços físicos internos como foi
explicitado pelas educadoras do berçário e o espaço externo.
Emannuelle:_ As meninas usaram o espaço fora pra plantar
os alimentos para as crianças.
Bianca:_ Utilizar o espaço físico externo da creche pra
fazendo a horta, né?
116
Cristiana:_ E é legal porque as crianças pegam as folhas de
couve, comem e chegam perto da gente com a boca toda verde.
_ Você tá comendo mato? _Não couve. (Dá gargalhada)
Carmem:_ Outro dia eu fui chamar a atenção:_ comendo
mato? Ele falou:_ Não é mato não, é couve!
(Reunião do dia 15/03/2006)
Fazer a horta com as crianças, colher e almoçar suas próprias
verduras fazem uma grande diferença em sua vida, além de melhorar sua
alimentação que eles não comem sem “verdinho”, é despertado neles o
cuidado com a horta e pelo espaço físico da creche.
Nas paredes da creche vemos também a questão da autonomia
que é construída com as crianças.
Ana Paula:_ Essa foto me lembra a questão da autonomia da
criança. Porque a gente colocou o material pra criança
usando no baixo, na altura da criança pra ela tendo a
liberdade de fazer o que ela quiser. Porque essa atividade na
minha sala não surgiu assim, eu dei tinta pra eles eles foram
lá e marcaram a mãozinha sabe? Foi uma autonomia.
Bianca:_ E olha a posição do quadro que tava quando a
creche foi construída, olha a posição que ele ocupa na parede.
Ana Paula:_ É.
Bianca:_ Agora uma coisa que a gente não comentou e que é
muito importante são as paredes, olha os recursos que você tem.
117
Por exemplo, você utilizou na sua sala o cartaz na altura das
crianças. (Reunião do dia 15/03/2006)
Além de fazer uma atividade que surgiu das crianças, Ana Paula
colou o cartaz na altura das mesmas preocupando-se com o tamanho dos
alunos, algo que não aconteceu com as pessoas que construíram a creche,
que colocaram o quadro numa altura inacessível às crianças.
Para Frago e Escolano (2003), enquanto lugar situado num
espaço, a escola possui uma determinada dimensão espacial. O espaço
escolar educa. Todo educador sempre é um arquiteto quando decide
modificar o espaço escolar. O espaço não é neutro, o espaço sempre
educa.
Assim, a arquitetura escolar, para os autores (2003), pode ser
vista como um programa educador, como um elemento do currículo
silencioso, ainda que ela seja bem explícita. A localização da escola e
suas relações com a ordem urbana das populações, o traçado
arquitetônico do edifício, seus elementos simbólicos próprios ou
incorporados e a decoração exterior e interior respondem a padrões
culturais e pedagógicos que a criança internaliza e aprende.
O espaço se projeta ou se imagina; o lugar se constrói. Constrói-
se a partir da vida, a partir do espaço como suporte; o espaço está sempre
disponível e disposto para converter-se em lugar, para ser construído.
A escola enquanto instituição ocupa um espaço e um lugar. Um
espaço projetado ou não para tal uso, mas um lugar por ser um espaço
ocupado e utilizado, por isso, sua análise e compreensão, a partir dessa
perspectiva, requerem algumas considerações prévias sobre as relações
entre o espaço e a atividade humana, a escola como lugar e a dimensão
espacial dos estabelecimentos educacionais. (FRAGO e ESCOLANO,
2003)
Ao se delimitar fisicamente o espaço do corpo, determina-se
também seu espaço social. A escola por vezes delimita esse espaço, “esse
era menino de rua”, “aquele é menino que vem de creche”. E assim os
O espaço estaria para o
lugar como a palavra
quando falada, isto é,
quando é percebida na
ambiguidade de uma
efetuação, mudada em um
termo que depende de
múltiplas convenções,
colocada como o ato de um
presente (ou de um tempo),
modificado pelas
transformações devidas a
proximidades sucessivas.
Diversamente do lugar,
não tem, portanto, nem a
univocidade nem a
estabilidade de um certo
“próprio”. (CERTEAU,
1998, p. 202)
Muito do que se propagou
[...] sobre território,
inclusive a nível acadêmico,
geralmente perpassou,
direta ou indiretamente,
estes dois sentidos: um,
predominante, dizendo
respeito à terra e, portanto,
ao território como
materialidade, outro,
minoritário, referindo aos
sentimentos que o território
inspira, por exemplo, de
medo para quem dele é
excluído, de satisfação para
aqueles que dele usufruem
ou com o qual identificam.
(HAESBAERT , 2004, p.
43-44)
118
corpos vão sendo “colocados” arbitrariamente em algum lugar
determinado.
Expressões desse tipo delimitam espacialmente o que os adultos
definem por territórios destinados ou vedados para as crianças. Essa
definição tem correspondência com um lugar social prescrito à infância e
às instituições capazes de concretizar ocupação desse lugar social.
A idéia de um local/lugar para as crianças corresponde em certa
medida a uma visão/abordagem adultocêntrica por mais que se ancore
em uma escuta da demanda das crianças porque é o resultado da visão do
adulto que traça territórios para as crianças.
Assim, surge a geografia da infância (Lopes e Vasconcellos,
2005) que faz a indagação: que lugar (espaço) é esse que colocamos
nossas crianças?
Quando a criança se apropria dos espaços e lugares, ela os
reconfigura, os reconstrói e apropria-se de outros, criando suas
territorialidades, seus territórios usados. A isso Lopes e Vasconcellos
(2005) denominam de territorialidades de crianças, das geografias
construídas pelas crianças.
A infância, portanto, se dá num amplo espaço de negociação que
implica a produção de culturas de criança, de lugares destinados às
crianças pelo mundo adulto e suas instituições e das territorialidades de
criança, resultando desse embate uma configuração por estes autores
chamada de territorialidades infantis.
A geografia da infância não se reduz a cartografar o modo de
vida das crianças nos diferentes espaços, mas trazer à tona à
impossibilidade de falar de infância sem articulá-la com a questão do
espaço, dos lugares e territórios.
De Marinis, citado por Skliar (2003), cita que realiza uma
cartografia de alguns procedimentos pelos quais são administradas as
supostas exclusões e inclusões nas sociedades.
119
O mapa do presente supõe para este autor o traçado de múltiplos
mapas justapostos que devem mostrar todos os lugares vistos de algum
ângulo possível. Assim passam a existir duas modalidades diferentes: a
sociedade disciplinar e a sociedade controle. (Skliar, 2003)
A sociedade disciplinar assume a forma de um mapa que
representa uma demarcação de territórios que permite observar e vigiar os
sujeitos. Essa sociedade é o resultado de um poder maciço, cotidiano,
sistemático que fecha seus olhos para as exclusões e tudo que possa
acontecer “do lado de fora”.
Diferente dessa cartografia, a da sociedade de controle está
representada por meio do desenrolar de uma espiral de modulação e de
uma rede com furos. O sujeito deixa de ser governado a partir de dentro e
se desloca continuamente ao longo da espiral.
A sociedade de controle estabelece uma espacialidade central de
movimento rápido e vertiginoso o global, o flexível, o veloz e uma
espacialidade periférica – onde fixar, deixa rígido e imobiliza.
Eu e Cristiana estávamos conversando quando entraram 3
crianças na secretaria. Uma delas Aline é novata na creche.
Aline:_ Cris você empresta seu telefone para ligar pra minha
mãe?
Cristiana:_ A sua mãe vai chegar quando o ponteirinho
pequeno do relógio estiver no 4 igual eu falei, ele ainda está no
3 (mostra o relógio).
Aline:_ Mas eu queria falar com ela.
Cristiana:_ Mas meu celular não tem cartão, vai lá e fala com a
Ana Paula.
As meninas voltam.
Aline fica atrás da porta e manda as outras falarem.
Meninas:_ A Ana Paula não tem R$15,00 pra comprar cartão.
Cristiana:_ Eu também não, vai ter que esperar a mãe dela
chegar.
As meninas saem e voltam.
Aline:_ Pode deixar Cris, a Rê vai ligar pra mim, ela tem
cartão.
As meninas foram à sala da outra professora quando viram que
seu problema não estava sendo resolvido.
120
As crianças transitam pela creche livremente entram na
secretaria, perguntam o que querem, saem, entram nas outras
salas. (Nota expandida n. 2 do dia 18/02/2005)
O espaço físico da Creche Casablanca o apresenta uma
vigilância ou uma rigidez de espaço que deve ser ocupado pelos adultos
ou espaço ocupados pelas crianças. As crianças caminham pelas salas,
transitam pelos diferentes espaços, sentindo-se parte desse espaço que faz
lugar, um lugar que se faz e refaz cotidianamente nas relações vividas.
O que pude considerar nessas análises foi que o tempo das
crianças são respeitados e o espaço sofre uma ordenação pensada em
função das mesmas.
121
MÓBILE DE PEIXES – SALA DE AULA DA CRECHE
CASABLANCA
122
6 - O PESQUISAR NO COTIDIANO: PISTAS E
IN(CONCLUSÕES)
Construirás labirintos impermanentes
onde sucessivamente habitarás. Todos
os dias estarás refazendo o teu desenho.
(...) o te fatigues, tens trabalho para
uma vida toda. (Cecília MEIRELLES,
2001, p. 1455-1456)
Ao terminar a reunião em que foram discutidas as fotografias
sobre a questão do espaço, Verônica disse:
Verônica:_ Tinha que ter filmado o que nós fizemos hoje, tinha
que mostrar essa fala que a gente tá falando hoje aqui.
Bianca:_ O que eu posso fazer é trazer o que eu transcrever,
trazer essa reunião para vocês lerem o que que aconteceu.
Cristiana:_ Ah tá legal [..]
Verônica:_ Sobre tudo o que a gente discutiu aqui hoje Lena, eu
acho que era importante que isso ficasse gravado e mostrado aqui
pra que isso fosse mostrado pra outras pessoas. Porque igual o
painel que a Cris fez com as suas crianças é uma coisa muito
bonita que deveria mostrar pras outras pessoas. Mas aí a Bianca
vai dar as fotos pra gente.
Bianca:_ E se a gente confeccionasse um painel, todo mundo na
quarta-feira que vem? Eu trago a transcrição pra vocês estarem
vendo, a gente recorta frases, falas das pessoas que vocês
acharem mais importante e a gente monta um painel pra colocar
aqui na entrada da creche: as fotografias e as falas.
Verônica:_ Ai também pode.
Bianca:_ Pode?
Cris:_ Tudo de bom. Pode ser?
Verônica:_ A história da creche, falando da história da creche.
Então quer dizer quatro a cinco anos de luta dessa creche aqui.
Então quer dizer até hoje a gente andou bastante mas ainda
falta muito pra andar. Então se Deus ajudar que ande tudo pra
frente, depois quando for voltar e ver essa história do começo isso
vai chocar, vai chocar as pessoas porque é tudo com muita
dificuldade, tudo ali devagar, devagar. Mas nós estamos firmes
ali.
Ana Paula:_ Ah Verônica, fala isso não que eu fico mais
emocionada. (Reunião do dia 15/03/2006)
O observador/ criador deve
se incluir na observação e
na concepção. O
conhecimento necessita de
autoconhecimento.
(MORIN, 2003 a, p. 11)
123
Na reunião seguinte foi confeccionado o painel com as fotos da
creche, algumas falas transcritas da reunião e o fundo pintado pelas
crianças para que tivesse a contribuição de todos. O painel está na entrada
principal da creche. De vez em quando uma foto cai, as crianças pegam,
olham, colam de novo, mas sabemos que tudo isso faz parte do processo.
A busca pelo entendimento da diversidade e pelo respeito ao
outro são questões que me instigaram e permearam todo o trabalho, me
fazendo muitas vezes, fazer/refazer, tecer/retecer minhas concepções
ontológicas e gnoseológicas.
Na busca de construção de uma escola mais democrática, as
questões de igualdade e diferença afloram. Hoje em dia, não se pode falar
em igualdade sem incluir a questão da diferença, nem se pode abordar a
questão da diferença dissociada da afirmação da igualdade.
O que pretendi na discussão sobre a diversidade foi romper com
os padrões estabelecidos e as desigualdades. Uma luta pela igualdade e
pelo reconhecimento das diferenças.
Dentre todas as creches, a “nossa” creche, locus de “nossa”
pesquisa, se mostrava singular e única. Digo nossa porque me sinto parte
dela assim como ela faz parte de mim. Lembro-me do personagem de
Saint-Exupéry, o Pequeno Príncipe e de sua rosa: Porque tanto amor por
uma rosa se há tantas rosas no universo? Porque aquela rosa o havia
cativado.
A Creche Casablanca se mostrava singular e única porque
cativava aqueles que dela se aproximavam porque nos fez ter esperança
num ensino de respeito ao outro, à diversidade humana, nos fez crer num
caminho de ética da convivência que pressupõe o ouvir, o acolher, o
reconhecer o outro e que acaba por envolver creche/comunidade na
esperança de um futuro melhor; sua tentativa de alcançar a sonhada
“educação para todos” é um exercício diário, uma busca incessante por
algo ainda não alcançado.
_ Vós o sois
absolutamente iguais à
minha rosa, vós não sois
nada ainda. Ninguém ainda
vos cativou, nem cativastes
a ninguém. [...]
_ Foi o tempo que perdeste
com tua rosa que fez tua
rosa tão importante.
_ Foi o tempo que eu perdi
com minha rosa...
(SAINT EXUPÉRY, 1986,
p. 72-74)
Não se deve opor igualdade
à diferença. De fato, a
igualdade não está oposta à
diferença e sim à
desigualdade. Diferença
não se opõe à igualdade e
sim a padronização
(CANDAU, 2003, n/p).
124
Na primeira reunião, ao usarmos as transcrições das entrevistas
realizadas que tinham como foco a história da creche pesquisada, as
reações foram diversas:
Lena:_ Cruz credo, escrito errado, eu falei isso? A não, não
podia ter melhorado aqui Bianca? Nossa quanto né, ?
(Reunião do dia 25/1/2006)
Enquanto uma se preocupava com a forma escrita das
entrevistas, outras relembravam algum momento, riam de alguma fala ou
se mostravam surpresas por algum fato que aentão era desconhecido
para o grupo.
Através das histórias narradas nas entrevistas, outras histórias
foram tecidas e entrelaçadas. Os múltiplos olhares enriqueciam o
momento. E eu, extasiada, assistia a um novo tipo de pesquisa aflorar
diante de meus olhos. E assim a história da Creche Casablanca ia sendo
construída.
Para que essa história pudesse hoje ser narrada, procurei por
uma metodologia que respeitasse o singular e o uno e que fosse a mais
coerente com o trabalho proposto. Encontrei na pesquisa no/do cotidiano
justamente essa busca. Uma metodologia que possui como base
epistemológica a complexidade, o que me proporcionava um pesquisar do
múltiplo, uma porta aberta à diversidade de saberes e conhecimentos que
se trançavam no decorrer da minha imersão no cotidiano da Creche
Casablanca.
A pesquisa no/do cotidiano é baseada no Paradigma da
Complexidade. Uma ruptura que fazemos com o saber científico como
saber absoluto e soberano buscando uma valorização das situações
cotidianas como uma outra forma de saber.
Pesquisar o cotidiano, mergulhar nele e se envolver por ele, são
os passos iniciais para quem busca por essa nova maneira de se fazer
pesquisa.
A rede como metáfora, com
seus fios, seus nós e seus
espaços esgarçados, nos
permite historicizar a nós
mesmos, a nossos
pensamentos e a nossos
atos, se entendemos que
nada surge do nada, que
tudo, de alguma forma está
ligado a tudo, aí incluídos
os imprevistos, os acasos,
os lapsos, as fraquezas. Se
por historicizar entendemos
puxar os fios, desenovelar,
desdobrar as redes ou, ao
contrário, enredar fios, a
metáfora escolhida ajuda,
como tantas outras usadas,
a organizar os
acontecimentos. Sua riqueza
maior, no entanto, está em
que permite a possibilidade
de transar um número
infinito de fios, como exige
a opção teórica pela noção
de complexidade. Alguns
desses fios, também
chamados conhecimentos,
são fornecidos pelo viver
cotidiano, em seus múltiplos
contextos, tanto como
outros são permitidos pelos
conhecimentos científicos
que vamos adquirindo em
pesquisas que
fazemos.(AZEVEDO, 2001,
p. 60
-
1)
A complexidade é
efetivamente a rede de
eventos, ações, interações,
retroações, determinações,
acasos que constituem
nosso mundo fenomênico. A
complexidade apresenta-se,
assim, sob o aspecto
perturbador da
perplexidade, da desordem,
da ambigüidade, da
incerteza, ou seja, de tudo
aquilo que é se encontra do
emaranhado, inextricável.
(MORIN, 2003b, p.44)
125
Até mesmo porque lidar com o cotidiano é deparar com
incertezas, é ter como método a dúvida. É perder a crença num único e
absoluto caminho e acreditar que são múltiplas as formas de caminhar.
O cotidiano é a “hora da verdade”. É nele que os grandes
projetos e as grandes certezas são confirmadas ou negadas e o que
complica é que, às vezes, a mesma certeza que num certo momento é
confirmada, no momento seguinte é negada (GARCIA, 2003a, 2003b ).
Para Pais (2003), o que se passa no cotidiano é “rotina”,
costuma-se dizer. O conceito de rotina reporta-se à prevalência de
determinadas formas de conduta sustentadas por uma “segurança
ontológica”, isto é, por uma confiança ou certeza de que a realidade é o
que ela aparenta ser, no entanto as raízes etimológicas de rotina, para o
autor, apontam para outro campo semântico, associado à idéia de rota
(caminho), do latim via, rupta, donde derivam as expressões “rotura” ou
“ruptura”: acto ou efeito de romper ou interromper; corte, rompimento,
fractura.
Fomos ensinadas nas escolas a pensar linearmente. Ensinaram-
nos as disciplinas de forma segmentada e hierarquizada, porém, ao
pesquisar o cotidiano, nos damos conta de que pensar linearmente,
simplesmente não combina. No cotidiano, espaço de complexidade, os
acontecimentos aparecem, se transformam, reaparecem e desaparecem na
denominada forma rizomática (GARCIA, 2003b).
Investigar o cotidiano preso às fronteiras da visão disciplinar nos
faria ver apenas o nosso estreito ponto de vista unidisciplinar.
Ao escrever a dissertação e fazer a pesquisa em nenhum
momento me senti sozinha. A Creche Casablanca estava sempre pronta
a me ouvir contar empolgada como estava sendo a escrita, me ajudando a
refletir quando alguma situação estagnava o meu escrever. A Creche
Casablanca me dava “as pistas” de que eu precisava, me mostrava o
caminho que eu precisava seguir.
É preciso “ir de ponta-
cabeça” nas pesquisas
nos/dos/com os cotidianos
[...] Quatro movimentos
foram considerados
fundamentais nesses
processos: o primeiro deles
se refere a que a trajetória
de um trabalho no cotidiano
precisa ir além do que foi
aprendido com a
modernidade, na qual o
sentido da visão foi
exaltado. Este movimento
foi chamado de o
sentimento do mundo. O
segundo movimento a ser
feito é compreender que o
conjunto de teorias,
categorias, conceitos e
noções que herdamos das
ciências criadas e
desenvolvidas na chamada
modernidade, e que
continuam sendo um
recurso indispensável, não é
só apoio e o orientador da
rota a ser trilhada, mas
também e cada vez mais,
“limite” ao que precisa ser
tecido. A idéia para nomear
este foi a de virar de ponta-
cabeça. O terceiro deles,
incorporando a noção de
complexidade (Morin, 1977)
[...] vai exigir a ampliação
do que é entendido como
fonte. Este movimento foi
denominado beber em todas
as fontes. Por fim,
entendendo que para
comunicar novas
preocupações, novos
problemas, novos fatos e
novos achados é
indispensável uma nova
maneira de escrever, a esse
movimento se deve chamar
de narrar a vida e
literaturizar a ciência.
(ALVES e OLIVEIRA,
2006, n/p)
126
Aprendi a lidar com as incertezas e os imprevistos que essa
forma de pesquisar me mostrou.
Quando deparamos com o desequilíbrio causado pela perda das
certezas, procuramos algo que nos leve ao reequílibrio. Desiste-se do
rigor absoluto antes procurado, aceitando o limite, a possibilidade de um
rigor flexível. Um rigor flexível que nos permita “garimpar” as pistas que
emergem do cotidiano (GINZBURG, 1989, 1991).
Como no episódio em que Cecília e Verônica me disseram que
não faziam o planejamento para o berçário, o que pra mim (sujeito ainda
com pensamento linear fruto da dicotomia certo ou errado), em um
primeiro momento julguei como um grande equívoco da creche: um
absurdo não ter um planejamento!
Durante a escrita do capítulo sobre conhecimento, esse equívoco
me perseguiu ao dia em que voltei à creche e contei para Cristiana o
que tinha “analisado” quanto ao planejamento do berçário. Cristiana me
disse que, apesar de elas não fazerem o planejamento a partir das
temáticas como as outras turmas, as avaliações do berçário eram as mais
bonitas e ricas quanto ao desenvolvimento das crianças.
Cristiana me abriu as portas e me entregou valiosas “pistas”
sobre o berçário: suas avaliações. Recolhi algumas delas e levei-as no
mesmo dia para minha orientação.
Ao mostrá-las para Lu”, “minha ficha caiu”, e percebi que as
educadoras do berçário trabalhavam com outra gica, não planejavam os
conteúdos a partir das temáticas, mas planejavam a partir do
desenvolvimento das crianças quanto as seus aspectos físico, motor,
emocional, social e em relação à linguagem, o que era de se esperar em
função da faixa etária das crianças.
Alívio...
Deixei de julgar o berçário e me abri ao perceber o que de
inovador surgia.
O rigor flexível (se nos for
permitido o oxímoro) do
paradigma indiciário
mostra-se ineliminável.
Trata-se de formas de saber
tendencialmente mudas – no
sentido de que, como já
dissemos, suas regras não
se prestam a ser
formalizadas nem ditas.
Ninguém aprende o ofício
de conhecedor ou de
diagnosticador limitando-se
a pôr em práticas regras
preexistentes. Nesse tipo de
conhecimento entram em
jogo (diz-se normalmente)
elementos imponderáveis:
faro, golpe de vista,
intuição. (GUINZBURG,
1989, p. 179.)
Toda pergunta é um
buscar. E, como
etimologicamente método
significa caminho e como o
caminho se faz ao andar, o
método que nos deve
orientar é esse mesmo: o
de trotar a realidade,
passear por ela em
deambulações vadias,
indiciando-a de uma forma
bisbilhoteira, tentando ver
o que nela se passa mesmo
quando “nada se passa”.
Nesse vadiar sociológico,
como se adivinha, importa
fazer da sociologia do
quotidiano uma viagem e
não um porto. (PAIS, 2003,
p. 33)
127
Aqui a grandiosidade da pesquisa no/do cotidiano não poderia
deixar de ser enfocada: essa leitura foi possível quando eu,
pesquisadora, juntamente com Cristiana e minha orientadora,
desvendamos um dos “mistérios infindáveis” daquele berçário.
Em outro dia, ao falar sobre o “lindinho” do berçário, cheguei à
creche com o discurso pronto para falar sobre rotulação e o que surgiu no
decorrer daquela reunião foi uma discussão sobre os padrões
preestabelecidos que ainda persistem hoje oriundos da Modernidade.
Sempre que eu chegava na creche com uma idéia pronta, a
reunião seguia outro rumo e enfrentei por várias vezes o imprevisto.
Deixava todas as minhas idéias de lado e permitia que o que elas tinham a
dizer falasse mais alto.
Ao analisarmos o cotidiano vivido, vivenciamos momentos
mágicos e conflituosos. Muitas vezes as leituras que eu, enquanto
pesquisadora, havia feito, eram confrontadas com a leitura daqueles que
viveram a situação.
A reinvenção do senso comum é incontrolável dado o potencial
desta forma de conhecimento para enriquecer nossa relação com o
mundo. Apesar de o conhecimento do senso comum ser geralmente um
conhecimento mistificado e mistificador e, apesar de conservador, possui
uma dimensão utópica e libertadora que pode valorizar-se através do
diálogo com o conhecimento pós-moderno.
Com a pesquisa no/do cotidiano lidamos exatamente com esse
conhecimento de senso comum, reaproximando prática e teoria até que se
confundam e voltem a ser o que, um dia, foram, apenas
praticateoriaprática, sem divisões ou hierarquias (GARCIA, 2003b).
É preciso mergulhar na prática com as práticas, descobrir a
riqueza da teoria em movimento que se atualiza no cotidiano, enriquecido
pelo que cada dia se revela como novo.
O cotidiano vai sendo tecido, dá-se os nós, tecendo uma outra
trama. Aos antagônicos, abandona-se, esgarçando idéias antes tecidas.
Na análise da vida
quotidiana, as
interpretações possíveis
que admiti-lo
formigam através de
perspectivas e percursos
que seguem rotas bem
distintas. Há “formigas” à
procura do retórico, do
pormenor, da revelação, do
deslocado, como quem
peneira pacientemente o
quotidiano na expectativa
de nele poder encontrar o
exótico, o acontecimento, o
inesperado, o excepcional, a
aventura, a agulha no
palheiro da vida
quotidiana; outras que
procuram o amontoado, o
trivial, o banal, o repetitivo.
Maneiras diferentes de
encarar a realidade da vida
quotidiana.
(PAIS, 2003,
p. 88)
128
Algumas tramas tecidas são desatadas, (des)tecidas e alguns de seus
fios, ainda que seja um só, são atados a outros, formando novos nós, nova
trama.
Compartilhamos juntos pontos de vista diferenciados e
deslizávamos da prática à teoria, da teoria à prática, indo e vindo
inúmeras vezes, escrevendo e reescrevendo vários parágrafos até chegar a
uma conclusão mesmo que momentânea, mesmo que por um dia.
Ao vivermos o cotidiano de creche, observamos que a
diversidade permeia as relações e inter-relações existentes no dia-a-dia. A
própria história de como uma instituição foi criada e construída, carrega
as questões de desigualdades econômicas, sociais, culturais. A luta por
igualdade de condições básicas para se deixar o filho num local seguro e
adequado enquanto trabalha. A tentativa de ter a igualdade de direitos que
as outras instituições têm, sendo única e singular.
Inicialmente diante de tantas informações, ao mergulhar” no
cotidiano, a metáfora mais adequada seria a de um grande “afogamento”,
mas no decorrer das observações os entrelaçamentos foram ocorrendo e
pequenos fatos cotidianos muitas vezes irrelevantes se tornaram de
fundamental importância mais à frente.
Pesquisar o cotidiano foi ir a campo sem receitas dos passos a
serem dados. Simplesmente chegávamos abertos para acompanhar o que
apontava ou sugeria a realidade a ser investigada e os sujeitos envolvidos.
Somente depois da leitura feita do cotidiano da creche no ano de 2005 é
que vimos emergir os três elementos que foram trabalhados no decorrer
da dissertação: identidades, conhecimentos e espaçostempos.
O método foi sendo construído na trajetória, o caminho foi
sendo construído e reconstruído durante o caminhar. Muitas foram as
sensações de angústia quando tudo parecia não fazer sentido e logo após
as situações se entrelaçavam e surgiam sentidos múltiplos no caminho.
Daí a necessidade de se realizar uma pesquisa, onde o
pesquisador não estava somente observando o cotidiano, escrevendo
Foi o caminho, não que eu
tracei para mim, mas que a
caminhada traçou:
Caminante no hay camino,
camino se hace al andar.
(MORIN, 2003 a, p. 187)
A prática para nós, é
portanto o critério de
verdade; é ela que
convalida a teoria. Assim,
partimos da prática
retornamos com a teoria a
fim de a compreendermos
e à prática retornamos
com a teoria
ressignificada, atualizada,
recriada, dela nos valendo
para melhor interferirmos
na prática. (GARCIA,
2003a, p.12)
129
sobre os acontecimentos observados, mas vivia esse cotidiano
influenciava e era influenciado por ele, fazendo junto com os sujeitos da
pesquisa (co- participantes) as análises do que foi observado para que de
alguma forma aquela realidade se reconstruísse e se ressignificasse.
Ana Paula, Carmem, Cecília, Regina e Verônica professoras;
Cristiana (Cris) coordenadora da creche; Lena presidente da
COOPVIVA; Maria das Dores, Carmem e Deusuita, educadoras de apoio;
Emmanuelle, Maria Lúcia, Maristela, Neila e Tatiana - bolsistas do Curso
de Pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora, constituíam o
grupo de formação da Creche Casablanca.
Esse grupo se reunia todas as quartas-feiras para “formação em
contexto”. Desde a inauguração da creche, duas horas semanais eram
dedicadas a essas reuniões que se configuravam em momentos de
reflexão coletiva sobre os fazeres da prática cotidiana.
A pesquisa não privilegiou nem dia nem horário. Em 2005, fiz
registro das observações feitas nas salas de aula, nos corredores, no
refeitório, na secretaria, em forma de nota expandida. Das reuniões de
formação em contexto de que participei foram feitas atas. Foram
realizadas entrevistas abertas com a presidente da COOPVIVA, com um
morador do bairro e com uma mãe fundadora, que foram gravadas e
depois transcritas. Utilizei, ainda o Projeto Político-Pedagógico da
creche, as avaliações das crianças que foram realizadas pelas professoras
e fotografias do espaço escolar.
Nas reuniões de formação em contexto do primeiro semestre de
2006, retornei com todo esse material no intuito de, juntas, fazermos as
análises e refletirmos sobre o que emergiu no cotidiano, o que agrupei em
três grandes questões: identidades, conhecimentos e espaçostempos.
Numa primeira reunião explicamos novamente o objetivo da
pesquisa, o que havíamos feito no início de 2005 e conversamos sobre
a história da creche. Depois cada questão ocupou quatro reuniões. Numa
última reunião fizemos uma discussão sobre constar na dissertação seus
Numa perspectiva de
formação em contexto, as
práticas formativas
articulam-se com as
situações de trabalho e os
quotidianos profissionais,
organizacionais e
comunitários das escolas. A
formação e a acção são
dimensões indissociáveis de
um ambiente formativo que
tem em vista o
desenvolvimento humano
dos profissionais, das
crianças, das famílias e das
comunidades. (OLIVEIRA-
FORMOSINHO, 2000,
p.62)
O quotidiano – costuma
dizer-se – é o que passa
todos os dias: no
quotidiano nada se passa
que fuja à ordem da rotina
e da monotonia. Então o
quotidiano seria o que no
dia a dia se passa quando
nada se parece passar. [...]
é nos aspectos frívolos e
anódinos da vida social, no
“nada de novo” do
quotidiano, que
encontramos condições e
possibilidades de
resistência que alimentam
a sua própria rotura.
(PAIS, 2003, p. 28)
130
próprios nomes, o nome da creche e ainda refletimos sobre o que foi a
pesquisa.
Em relação aos nomes dos sujeitos e co-participantes da
pesquisa, ao ser levantada a questão de seus nomes serem ou não trocados
por nomes fictícios, recebi a seguinte resposta:
Verônica: _ Ah a minha opinião, eu acho que deveria colocar o
nome original de todo mundo e o nome original da creche,
porque se colocar o nome fictício, ninguém nunca vai saber,
entendeu? Eu acho a minha opinião é a mesma desde o dia em
que você falou a primeira vez a minha opinião é essa. Porque
eu acho que a coisa vai ficar bonita pra história daqui
quantos anos alguém pegar vai saber: é a creche do Jardim
Casablanca. As pessoas que trabalharam ali, entendeu? A
minha opinião é colocar o nome verdadeiro da creche e de todo
mundo. [...]
Cristiana: _ É faz sentido, nossa luta é muito grande pra gente
omitir, acho que principalmente o nome da creche, eu acho que
o nome próprio tudo bem é pessoal mas a luta da creche, a
experiência da creche vale a pena é que acontece é esse
lugar que todo mundo fala, todo mundo se apaixona enfrenta as
discussões.
Carmem:_ É importante também você mostrar que existe, né?
Cristiana: _ É porque senão as pessoas ficam assim: _ Ah isso
daqui em Juiz de Fora? Será onde? Esse nome aí, sei será
que é mesmo? O lado financeiro é péssimo? As coisas vão de
mal a pior? Vão, mas o lado pedagógico é legal. Então é uma
coisa que dá certo. Então tem que mostrar mesmo para as
pessoas verem que dá certo. [...]
Verônica: _ Põe o nome da creche e pode pôr assim bairro
Jardim Casablanca, não? O nome da creche verdadeiro e
podia até colocar entre aspas COOPVIVA porque é a sigla e
depois põe o bairro Jardim Casablanca eu acho. Gente até as
próprias pessoas, as próprias crianças que estudaram nessa
creche aqui quando pegar um documento desse vão olhar e
falar:_ Olha!!!
Cecília:_ Se não fica parecendo uma lenda, a história de
alguma coisa que não existe mais. (Reunião do dia 3/5/2006)
Decidimos, então, coletivamente que os profissionais, bolsistas,
e dois dos entrevistados (Lena e Sr. Tiãozinho) teriam seus nomes
fielmente mantidos. Somente para a mãe entrevistada, que não quis ter
131
seu nome publicado, utilizei a nomenclatura “mãe fundadora”. Os
entrevistados assinaram um “termo de autorização” e os profissionais da
Creche Casablanca e bolsistas o “consentimento informado” (modelos
anexos). Combinamos também substituir os nomes das crianças por
nomes fictícios que algumas delas saíram da creche durante o processo
e ao final dele.
Para os recortes que foram colocados no texto utilizei o termo
“nota expandida” para as observações na creche; “ata”, ao me referir a
algum trecho que usei das atas das reuniões de 2005; o nome do
132
creche talvez o seu comportamento seria diferente. E isso aqui
ajudou e foi tudo de bom, ué.
Cristiana:_ Eu acho que talvez o nosso comportamento seria
diferente porque seria uma pessoa estranha que vai na sua sala,
olha, registra, depois traz pra e aconteceu isso. Nossa
Senhora, então assim por conhecer e saber e tudo ajudou
bastante. Eu lembro porque quando uma estagiária veio fazer o
estágio aqui eu não via a gente assim tão à vontade na creche
quanto com a Bianca fazendo a pesquisa dela aqui. O
acolhimento era diferente o diálogo que tinha era diferente,
então a gente, é tudo muito família.
Maria Lúcia:_ Tem envolvimento, né? A Bianca tinha
envolvimento, né? Sempre muito alegre, chora nas horas tristes,
sorri nas alegres.
Verônica:_ Porque eu acho que aqui a gente tem total liberdade
pra falar, o é aquele negócio assim a coordenadora ali,
fulana ali e o professor, ta um bocado num canto e no outro.
Não eu acho assim aqui a gente tem um ambiente em que a
gente pode falar tudo e botar tudo pra fora ali, fica muito à
vontade a gente até muda de uma reunião pra outro assunto e
isso é que é o bom das nossas reuniões de quarta-feira, a gente
fica descontraído não é aquela coisa ali taxada tudo ali em
cima, a ata, hora pra isso, hora pra aquilo, foi acabou fez
isso fez aquilo isso muda tudo. (Reunião do dia 03/05/2006)
Pude concluir junto com elas que durante a pesquisa nos
aprofundamos nas questões das identidades, conhecimentos e
espaçostempos.
Verificamos que a identidade na Modernidade foi entendida
como fixa, universal, lida; na Pós-Modernidade se constitui como
móvel, múltipla e fluida. Na Creche Casablanca vimos que as identidades
das crianças são marcadas pelas diferenças, ocorrendo rotulações em
função de um padrão de perfeição eleito pelas professoras.
Quanto ao conhecimento, constatamos que o conhecimento
“científico” julgado na Modernidade como absoluto e soberano dá lugar a
uma outra lógica de pensamento na Pós-Modernidade, onde não somente
o “científico” é valorizado, mas também quaisquer outras formas de
conhecimento. A Creche Casablanca valoriza as diferentes formas de
saber de suas crianças e daqueles que vivem aquele cotidiano, inclusive
É nestas rotas – caminhos
de encruzilhada entre a
rotina e a ruptura – que se
passeia a sociologia do
quotidiano, passando a
paisagem social a pente
fino, procurando os
significantes mais do que os
significados, juntando-os
como quem junta pequenas
peças de sentido num
sentido mais amplo: como
se fosse uma sociologia
passeante, que se vagueia
descomprometidamente
pelos aspectos anódinos da
vida social, percorrendo-os
sem contudo neles se
esgotar, aberta ao que se
passa, mesmo ao que passa
quando “nada se passa”.
Daí as maledicências e
apodos que por vezes se
dirigem a uma tal
perspectiva analítica e
metodológica. [...] a
sociologia do quotidiano é
vista como uma sociologia
“superficial” (facilmente
seduzida pelo anódino,
anedótico, inessencial) ou
“indiscreta” (tentada pelo
proibido, oculto,
subterrâneo). (PAIS, 2003,
p. 29)
133
quando orienta sua prática por temáticas levantadas junto à comunidade,
considerando principalmente o saber que se de forma cooperativa, em
comunhão.
Quanto aos espaçostempos, estes, durante a Modernidade foram
fragmentados e segmentados. A busca na Pós-Modernidade é pela junção
do espaço e tempo de forma a romper com sua dicotomização.
Respeitam-se os espaçostempos de cada criança e as infâncias vividas
nesses espaçostempos escolares, permitindo que cada sujeito se expresse
em diferentes ritmos de acordo com suas possibilidades e em espaços sem
fronteiras. Na Creche Casablanca os espaçostempos ainda estão muito
delimitados na tentativa de se manter a ordem.
E as reflexões na Creche Casablanca continuam...
Hoje cada profissional tem o seu diário, seu “caderno
espelhado” como elas chamam, pois é encapado de papel laminado prata.
O que escrevem lá? Tudo, suas angústias, suas conquistas, suas
descobertas. Cada quarta-feira uma seu diário e o grupo discute, elas
refletem, não deixando nunca de buscar, de sonhar por alcançar uma
educação melhor, por serem profissionais melhores, por oferecerem um
ensino mais digno, mais libertador, mais humanitário.
Talvez o grande mistério da Creche Casablanca seja algo que
muitos de nós ainda não encontraram na vida. Sempre nos perguntávamos
por que num lugar que teria tudo para dar errado, problemas financeiros,
escassez de recursos materiais dentre tantas outras situações
desencorajadoras, aquelas pessoas faziam algo de novo e encorajador?
A Creche Casablanca e todas as pessoas que fazem parte
daquele espaçotempo sabem viver e conviver em comunhão, elas não são
sozinhas, não deixam somente duas pegadas pelo caminho, mas são
muitas que se misturam em meio a uma multidão.
Descobriram que trabalhar em cooperação é muito mais rico e
grandioso do que qualquer jornada solitária. Depois que se passa por
nunca mais se consegue fazer algo individualmente, você reveste todo seu
As únicas resistências estão
nas forças de cooperação,
comunicação, compreensão,
amizade, comunidade e
amor, com a condição que
sejam acompanhadas de
perspicácia e de
inteligência, cuja ausência
pode favorecer as forças de
crueldade... Elas são
sempre as mais fracas, mas
é graças a elas que há
sociedades em que se pode
viver, famílias amorosas,
amizades, amores,
dedicação, caridade,
compaixão e afetos, e que,
de solavancos em caos, de
caos em solavancos, o
mundo vai, aos tropeços,
sem ser nem total nem
permanentemente
submergido pela barbárie.
Estas virtudes trazem em si
mesmas a crueldade em
relação ao que lhes é
exterior, antagônico ou
simplesmente indiferente,
mas são elas que tornam a
vida possível de ser vivida e
a morte não desejada; são
elas que, em nível humano,
mantêm o que há de mais
precioso, e que é ao mesmo
tempo o mais ameaçado e
mortal, o amor. (MORIN,
2003a, p.273)
134
corpo e seu espírito e passa a querer dividir com toda a humanidade sua
vida e seu trabalho.
Esse é o segredo para que a pesquisa no/do cotidiano certo,
justamente por ser uma pesquisa que não se faz sozinho mas se faz com o
outro. E fazer com o outro é uma viagem muito mais prazerosa e
confortante, podemos lutar porque sabemos que temos muitos ali ao
nosso lado para nos ajudar sempre a estar de pé e a sonhar com a tão
sonhada educação para a humanização do homem.
135
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perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
143
ANEXO 1
TERMO DE AUTORIZAÇÃO
Eu, _______________________________________________,
autorizo à mestranda Bianca Recker Lauro a realizar comigo entrevista
utilizando gravação da mesma.
Estou consciente de que os dados coletados nessa entrevista
serão usados como elementos de análise para a dissertação de mestrado
da referida mestranda, assim como podem vir a ser usados também em
futuros trabalhos acadêmicos.
Será resguardado o anonimato dos sujeitos da pesquisa, usando-
se pseudônimos para referir-se a eles na redação do relatório final da
pesquisa.
Juiz de Fora, ______ de ________________ de 2005.
__________________________________________
Assinatura do entrevistado
144
ANEXO 2
CONSENTIMENTO INFORMADO
Eu, _______________________________________________,
professora regente da Creche Cooperativa Vivendo e Aprendendo
autorizo à mestranda Bianca Recker Lauro a realizar observações de
minhas aulas durante o ano letivo de 2005, realizando anotações e
gravações das referidas aulas.
Estou consciente de que os dados coletados nessas observações
serão usados como elementos de análise para a dissertação de mestrado
da referida mestranda, assim como podem vir a ser usados também em
futuros trabalhos acadêmicos.
Será resguardado o anonimato dos sujeitos da pesquisa, usando-
se pseudônimos para referir-se a eles na redação do relatório final da
pesquisa.
Juiz de Fora, _____ de ___________________ de 2005.
__________________________________________________
Assinatura da professora
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