Download PDF
ads:
ANGELINA MARIA FERREIRA DE CASTRO
AS IMAGENS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NAS
NARRATIVAS LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ANGELINA MARIA FERREIRA DE CASTRO
AS IMAGENS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NAS
NARRATIVAS LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras - Estudos Literários, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Letras - Teoria da
Literatura - elaborada sob a orientação da Profa. Dra. Maria
Antonieta Pereira.
Área de Concentração: Teoria da Literatura
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2007
ads:
Dedico
a Eustáquio, meu marido e interlocutor,
a meus filhos, Júnior, Luís e Vívian.
RESUMO
Esse trabalho propõe-se a comparar as imagens da inteligência artificial, nas obras A chave
do tamanho, de Monteiro Lobato, e no filme AI: Inteligência artificial, de Steven
Spielberg. Seu principal objetivo é examinar as estratégias de produção e recepção das
imagens, comparando-as em ambos os sistemas semióticos e verificando como a tecnologia
intervém nas experiências estéticas do texto, afetando as formas de percepção e de
representação literária e cinematográfica. Além das Teorias de rede que, ao abrirem um
espaço para a recriação do ambiente intersemiótico do hipertexto, oferecem a possibilidade
de se fazer uma leitura das obras numa perspectiva pluridimensional e sinestésica,
pretende-se tomar também, como referência metodológica, as teorias da Estética da
recepção, que permitem tecer uma relação estético-dialética entre o autor, a obra e o leitor.
A partir desses prismas, serão analisados os contextos de produção e recepção das imagens
das obras e seus respectivos procedimentos narrativos.
RESUMEN
Este trabajo intenta comparar los imágenes de la inteligencia artificial en las obras A chave do
tamanho, de Monteiro Lobato, y en la película AI: Inteligência artificial, de Steven Spielberg.
Su principal objetivo es analisar las estrategias de producción y recepción de imágenes,
comparándolas en los dos sistemas semióticos, identificando como la tecnología interviene en
las experiencias estéticas del texto influyendo en las formas de percepción y de representación
literaria y cinematográfica. Además de las Teorías de red que, al abrir un campo para la
recreación del ambiente semiótico del hipertexto ofrecen la posibilidad de hacerse uma lectura
de las obras en una perspectiva pluridimensional y sinestésica, eligióse también, como
referencia metodológica, las teorías de la Estética de la recepción, que permiten tecer una
relación estético-dialética entre el autor, la obra y el lector. Partiendo de eso, se analisarán los
contextos de producción y recepción de imágenes de las obras y sus procedimientos narrativos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
........................................................................................................................................ 8
CAPÍTULO 1
CONEXÃO ENTRE OS SABERES: UM DESAFIO PARA O SÉCULO XXI ............................................ 14
CAPÍTULO 2
FICÇÃO CIENTÍFICA - RESGATANDO OS LAÇOS ENTRE CIÊNCIA E ARTE ................................. 34
CAPÍTULO 3
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - O CORPO SOB EFEITO DA TECNOLOGIA .................................... 55
O corpo sob o efeito de suas interfaces com a tecnologia ............................................................ 72
CAPÍTULO 4
IMAGENS EM CONFRONTO: MUNDO NATURAL VERSUS MUNDO ARTIFICIAL ....................... 80
As imagens da inteligência artificial nas narrativas literária e cinematográfica ........................... 103
CONCLUSÃO
......................................................................................................................................... 114
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................... 118
INTRODUÇÃO
As imagens têm sido meios de expressão da cultura humana. A evolução da linguagem
escrita começou com imagens que foram evoluindo até chegar ao alfabeto, e o pensamento
conceitual surgiu do pensamento imagético por meio do lento desenvolvimento dos poderes
de abstração e simbolização. Das pinturas nas cavernas, vistas apenas em presença do
observador, chegou-se, por meio do computador, à difusão mundial das imagens. A
irreversível conjunção escrita/imagem explicita-se, hoje, na variedade de códigos circulantes,
mudando o estatuto da escrita e, conseqüentemente, os conceitos de autor e leitor
1
.
Conforme Parente
2
, vivemos, atualmente, uma crise das antigas ordens das
representações e dos saberes, devido à grande quantidade de sistemas maquínicos, em
particular a mídia eletrônica e a informática, que estão incidindo sobre todas as formas de
produção de enunciados, pensamentos e afetos. As novas tecnologias de produção, captação,
transmissão, reprodução, processamento e armazenamento da imagem são, segundo ele,
máquinas de visão que funcionam, ao mesmo tempo, como meios de comunicação e como
extensões da percepção humana, permitindo ao homem observar e conhecer universos jamais
vistos antes porque invisíveis a olho nu.
Santaella
3
, analisando a evolução da imagem, propõe três modos de produção que
predominaram em determinadas épocas, devido às mudanças dos suportes tecnológicos. O
primeiro deles seria o paradigma pré-fotográfico em que as imagens eram produzidas
artesanalmente e dependiam da habilidade manual de um indivíduo para plasmar o visível.
Seu suporte era, portanto, uma matéria informe e passiva, à espera da mão do artista para lhe
dar vida. A grande modificação que se deu na passagem desse paradigma para o fotográfico
está, segundo a autora, no advento de um processo de produção cujo suporte é um fenômeno
químico ou eletromagnético preparado para o impacto, pronto para reagir ao menor estímulo
1
WALTY, 2006, p. 25-27.
2
PARENTE, 1993, p. 14.
3
SANTAELLA, 2001, p. 157-167.
da luz. Fotografia, cinema e vídeo são sempre frutos dessa “colisão ótica”. Já o modelo pós-
fotográfico é resultado do desenvolvimento da infografia que provocou uma mutação radical
nos modos de produção da imagem. Seu suporte não é mais matérico como na produção
artesanal, nem físico-químico e maquínico como na morfogênese ótica, mas resulta da união
entre o computador e uma tela de vídeo, mediados ambos por uma série de operações
abstratas, modelos, programas, cálculos. O ponto de partida da imagem sintética é uma
abstração, não existindo a presença da realidade empírica em nenhum momento do processo,
sendo suas palavras de ordem o “modelo” e a “simulação”. O cruzamento desses três
paradigmas produziu o fenômeno multimídia que hoje transforma nossa forma de ver o
mundo, instaurando uma nova ordem perceptiva e vivencial.
Nesse contexto, em que o modelo pós-fotográfico domina, buscamos analisar sua
interferência na produção artística e, especialmente, em sua recepção. Para tanto, tomamos
como corpus as obras A chave do tamanho, de Monteiro Lobato, e Inteligência artificial, de
Steven Spielberg, na medida em que elas permitem trabalhar as conexões entre palavra/
imagem, narrativa literária/ cena, saber narrativo/saber científico. Nesse caso, a obra de
Monteiro Lobato está sendo abordada como um dos mais interessantes exemplos de geração
de imagens ficcionais e artificiais, muito antes de esse tema ocupar nosso cotidiano,
estimulado inclusive por produções como o filme de Steven Spielberg. O objetivo desse
trabalho é, portanto, analisar as imagens da inteligência artificial em sistemas semióticos
distintos, mas associados por suas próprias redes narrativas. É preciso analisar como essas
imagens, inseridas em seus próprios contextos de produção e recepção, têm afetado as formas
de percepção e de representação da literatura e do cinema. Dessa maneira, essa dissertação foi
desenvolvida por meio de quatro pilares básicos, que têm como fio condutor o estudo das
imagens da inteligência artificial.
No primeiro capítulo, Conexão entre os saberes: um desafio para o século XXI,
esboçamos uma trajetória do debate intelectual que culminou com a mudança de paradigma
do conhecimento que, ao invés de basear-se na idéia de “máquina”, passou a ser entendido
como “rede”, metáfora do pensamento complexo que nortearia a sociedade contemporânea na
resolução dos novos desafios impostos pelo mundo globalizado. Por meio do estudo da
evolução do conhecimento, tentamos abrir uma discussão sobre o importante papel da
transversalidade, em cujo seio foi gerada a idéia do computador, mídia revolucionária, que
trouxe, dentre tantas novidades, uma forma original de escrita e leitura, o hipertexto. Também
buscamos analisar a natureza da inteligência artificial como disciplina que, sendo gestada no
ambiente transversal da cibernética, integrou-se a outras ciências, produzindo novas
disciplinas como a Biotecnologia e a Nanotecnologia, dentre tantas outras, introduzindo
métodos revolucionários aplicáveis a vários setores da sociedade que vão desde a medicina
até a robótica. Nesse sentido, as obras A chave do tamanho e Inteligência artificial, por sua
flexibilidade e abertura às multiplicidades e aos hibridismos, revelaram-se transversais e
hipertextuais, oferecendo-nos a oportunidade de proceder a uma leitura fractal, rede infinita de
produção de sentidos.
No segundo capítulo, Ficção científica: resgatando os laços entre ciência e arte,
detivemo-nos em três aspectos. No primeiro deles, procuramos discutir o papel da ficção
científica na veiculação de idéias revolucionárias que, abrindo brechas nos paradigmas atuais,
desencadeiam debates que se materializam em ações produtivas para a sociedade. O segundo
aspecto abordado foi o exame da natureza híbrida desse tipo de ficção, verificando sua
vocação para mesclar ciência, arte e tecnologia, recursos importantes para a criação dos
mundos virtuais. O terceiro item examinou como esse tipo de narrativa está evoluindo do
estágio de subgênero da cultura de massa para a narrativa por excelência da subjetividade
homem-máquina, devido ao novo ambiente oferecido pelas novas tecnologias da inteligência
que, funcionando como próteses de nossos sentidos, têm oferecido ao homem contemporâneo
um outro ambiente para sua integração com a máquina. Observadas dessa perspectiva, as
narrativas literária e cinematográfica em questão, ao estabelecerem uma aliança entre arte,
ciência e tecnologia, procuraram sintonizar-se com a ciência e a tecnologia de seu tempo,
utilizando tais avanços tanto para materializar e enunciar mundos virtuais como para refletir
sobre o papel deles na sociedade de suas épocas, principalmente, procurando focalizá-los de
um ponto de vista ético.
No terceiro capítulo, A inteligência artificial: o corpo sob efeito da tecnologia,
procuramos mostrar, em primeiro lugar, a importância da ficção científica para a consolidação
do conceito de inteligência artificial e de como uma imagem ancestral, incrustada no
imaginário social - a criação de um ser artificial - tomou vulto por meio desse gênero
ficcional, tornando-se, depois, realidade com os avanços tecnológicos. Também é discutido
como a informática, aliada às ciências cognitivas, avançou em suas pesquisas sobre
inteligência artificial, por meio do estudo tanto do comportamento inteligente em homens,
animais e máquinas, como da linguagem humana, estabelecendo relações cada vez mais
próximas entre cérebro humano e computador, impulsionando um novo campo do
conhecimento, a robótica que, por meio de artefatos inteligentes e integração com várias
ciências, delineia-se como suporte para a nova humanidade. Por último, analisamos como as
tecnologias da inteligência, interagindo com a cognição humana, têm afetado não só as
subjetividades, mas também o corpo, suscitando questionamentos sobre a identidade humana
no século XXI. Devido às próteses midiáticas, segundo estudiosos do assunto, estaríamos nos
transformando em cyborgs, misto de organismo e máquina, no século que ora se inicia. Tanto
no livro como no filme são analisadas as imagens da inteligência artificial representadas pelos
cyborgs em sua relação com o meio ambiente. David e Emília são personagens apropriadas
para vivenciarem a aventura entre as dimensões do tempo e do espaço porque seus corpos
resistem a essa passagem .
No quarto e último capítulo, Mundo natural versus mundo artificial, focamos nosso
estudo de A chave do tamanho e Inteligência artificial, a partir dos princípios fundamentais
do hipertexto que, permitindo-nos estabelecer novas operações cognitivas, ofereceu-nos a
oportunidade de desenvolver outra experiência estética: sinestésica, múltipla e heterogênea.
Dessa forma, a comparação entre os dois sistemas busca examinar como as imagens da
inteligência artificial afetam a percepção humana, sendo assimiladas a nosso sistema
cognitivo e provocando mudanças tanto na leitura quanto na escrita, por meio da
transformação das categorias básicas da narrativa – tempo, espaço, narrador e personagens.
CAPÍTULO 1
CONEXÃO ENTRE OS SABERES:
UM DESAFIO PARA O SÉCULO XXI
O mundo está em guerra. No universo ficcional de A chave do tamanho, obra de
Monteiro Lobato, Emília, desejando pôr fim a essa tragédia, move a chave que regula o
tamanho das criaturas e a humanidade é reduzida a 1/40 do seu tamanho original. Tudo então
se transforma a seu redor. O tempo e o espaço estão dilatados, as aves e os animais são
ameaçadores e os seres humanos devem mudar seu ponto de vista para entender essa nova
situação. Adaptar-se é condição indispensável para se sobreviver nesse mundo biológico,
hostil e agressivo. A boneca é colocada à prova: tem que buscar os recursos cognitivos
adequados à sua nova situação tais como criatividade, raciocínio lógico e intuição. Para o
sucesso de seu empreendimento, conta com a ajuda do famoso cientista do Sítio do Picapau
Amarelo, o Visconde de Sabugosa. Um bom exemplo de adaptação é oferecido por um
antropólogo da Califórnia que coordena, em Pail City (Cidade do Balde), a organização de um
novo núcleo civilizatório. Essa é uma das opções, oferecidas pela história, à humanidade
corrompida pelo progresso. Cabe, agora, aos seres “apequenados”, aceitar ou não tal proposta.
Em AI:Inteligência artificial, filme dirigido por Steven Spielberg, o planeta está
alagado devido ao descongelamento das calotas polares. David não é o responsável por essa
tragédia, mas é uma conseqüência direta dela: os robôs tornaram-se um elo econômico
essencial à estrutura da sociedade, porque não tinham fome nem consumiam recursos além
dos de sua fabricação. A empresa Cybertronics, de New Jersey, produziu David, o primeiro
protótipo de uma série de robôs que traziam, em sua programação, o amor como chave para a
aquisição do mundo subconsciente, pleno de metáforas, intuição, raciocínio próprio e sonho.
Entretanto, David surpreende o seu criador, indo além dessa programação. Deseja
transformar-se, como Pinóquio, num menino de verdade. Para realizar seu sonho, como
Emília, deve pôr à prova sua capacidade cognitiva.
Emília e David, frutos da inteligência artificial, conseguirão superar seus próprios
limites?
Monteiro Lobato e Steven Spielberg, com suas obras A chave do tamanho e
Inteligência artificial
4
, abriram um espaço para a discussão de temas transversais que
emergiam, desde o início do século XX, no nosso complexo sistema social, introduzindo
paradigmas ético-estéticos, veiculadores de novas formas de se pensar e expressar o
conhecimento.
Influenciado pelas teorias cientificistas - evolucionismo, positivismo e naturalismo - em
voga na Europa e importadas para o Brasil no início do século XX, Monteiro Lobato,
nietzschiano
5
convicto, não ignorava a função do artista como mediador da realidade.
Pessimista com relação à situação do mundo devido à Segunda Guerra Mundial e observando
agora o progresso, que tanto exaltara, por outro ângulo, ele resolve interferir no processo. Para
tanto, escreve a obra A chave do tamanho, utilizando-se, dentre outros procedimentos, de dois
recursos importantes para a construção da narrativa. O primeiro deles refere-se à polifonia
6
,
tipo de pensamento artístico, estudado por M. Bakhtin, que encontrou expressão nos romances
de Dostoievski. Utilizando-se dessa estratégia, o narrador de A chave do tamanho, relativiza
sua postura narrativa, desdobrando sua voz em muitas outras vozes, num sistema em que cada
uma corrige, modera e acrescenta algo à outra. Emília, Visconde e Dr. Barnes apresentam
discursos distintos que, em dados momentos, chocam-se e, em outros, coincidem, oferecendo
oportunidades a seus interlocutores de contribuírem para que novos signos enriqueçam o
sistema de comunicação. Na passagem abaixo, podemos perceber o predomínio de uma
heterogeneidade não-marcada, já que o discurso do narrador foi tecido com outros discursos,
dentre eles, o “evolucionista” e o do próprio autor, que se manifesta na fala da Emília que, por
sua vez, busca respaldo na opinião de Dona Benta. Os travessões e as citações em itálico -
Homo sapiens e Adaptar-se - são as únicas marcas lingüísticas da polifonia. Marcadas ou não,
as vozes falam de lugares, de tempos e de cultura diversas.
O Visconde suspirou.
- Adaptar-se! Você usa das palavras da ciência mas não sabe. Repete-as como
papagaio. Isso de adaptação é certo, mas é coisa de milhares de milhões de anos,
Emília. Pensa então que do dia para a noite essa enorme população humana, que
4
Nome original do filme de Steven Spielberg AI.Artificial intelligence. Foi traduzido para o português como
AI.Inteligência artificial. De agora em diante, para efeito de maior clareza, passaremos a denominá-lo Inteligência
artificial.
5
Monteiro Lobato trocou correspondência durante quarenta anos com seu amigo Godofredo Rangel. Em várias
cartas, o escritor afirma sua adesão às idéias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche de cuja obra foi tradutor. Cf.
LOBATO, 1944.
6
O estudo da polifonia e da carnavalização, como recursos de construção da narrativa, foi realizado por M.
Bakhtin na obra Problemas da poética de Dostoievski, 1997, p. 101-180.
você apequenou e está nos maiores apuros, vai ter tempo de adaptar-se? Morre tudo
antes disso, como peixe fora d’água – e adeus Homo sapiens!
- Homo sapiens duma figa! Morrem muitos, bem sei. Morrem milhões, mas basta
que fique um casal de Adão e Eva para que tudo recomece. O mundo já andava
muito cheio de gente. A verdadeira causa das guerras estava nisso – gente demais,
como Dona Benta vivia dizendo. O que eu fiz foi uma limpeza. Aliviei o mundo. A
vida agora vai começar de novo – e muito mais interessante. Acabaram-se os
canhões, e tanques, e pólvora, e bombas incendiárias. Vamos ter coisas muito
superiores – besouros para voar, tropas de formiga para o transporte de cargas, o
problema da alimentação resolvido, porque com uma isca de qualquer coisa um
estômago se enche, et coetera e tal.
7
O segundo procedimento diz respeito à utilização de uma “situação de carnaval”
8
:
subvertendo, na história, uma estrutura social reinante, a narrativa experimenta uma idéia
filosófica e verifica o comportamento das personagens diante dela, deixando, no final, o texto
com um efeito interrogativo. A humanidade é reduzida drasticamente graças a um gesto
inconseqüente da Emília e, agora, nus (clara referência ao despojamento das convenções e da
moral), os homens têm que buscar nova alternativa para se adaptarem a um ambiente
biológico hostil. Sendo o texto desestabilizador, ao inverter o regime social estabelecido,
oferece uma “nova ordem” para que os personagens possam vivenciar situações
enriquecedoras e apreender os novos valores éticos delas decorrentes. Dentre esses valores, o
relativismo
9
é apresentado como uma nova forma de se pensar a realidade, presa, até então, a
um ponto de vista autoritário e absolutista. O raciocínio de Emília, na passagem abaixo, pode
refletir a filosofia de seu criador:
Emília demorou na resposta. Estava pensando. Isso de falar a verdade nem sempre
dá certo. Muitas vezes a coisa boa é a mentira. “Se a mentira fizer menos mal que a
verdade, viva a mentira!” Era uma das idéias emilianas. “Os adultos não querem
que as crianças mintam, e no entanto passam a vida mentindo de todas as maneiras
- para o bem. Há a mentira para o bem que é boa; e há a mentira para o mal, que é
ruim. Logo, isso de mentira depende. Se é para o bem, viva a mentira! Se é para o
mal, morra a mentira”.
10
A narrativa, dessa forma, invertendo os seus aspectos convencionais, como o tempo e o
espaço, e incluindo personagens portadores de inteligência artificial - recurso de que o escritor
é pioneiro na literatura infantil brasileira - coloca em confronto, por meio do
“apequenamento”, duas dimensões da realidade para que se possa refletir sobre a relatividade
das coisas. Em carta a Godofredo Rangel, o autor descreve a obra A chave do tamanho como
“filosofia que gente burra não entende”. Segundo ele, a história é “uma demonstração
7
LOBATO, 2005, p. 44.
8
BAKHTIN, 1997, p. 101-180.
9
Leitor assíduo de Nietzsche, Monteiro Lobato acreditava que não existe uma verdade e, sim, diferentes
perspectivas por meio das quais se pode examinar o mundo. Cf. LOBATO, 1944, p. 31,37,109,159.
10
LOBATO, 2005, p. 26.
pitoresca do princípio da relatividade das coisas”
11
. Essa parece ser a idéia-chave que o
escritor experimenta na obra e, nesse sentido, a perda do tamanho pode oferecer ao leitor a
possibilidade de verificar as verdades logocêntricas de outras perspectivas, escolhendo aquela
que mais lhe aprouver para examinar o mundo em que vive.
Já o filme Inteligência artificial foi a concretização de um sonho, acalentado por
Stanley Kubrick, durante dezenove anos. Comovido com o conto do inglês Brian Aldiss,
“Superbrinquedos duram o verão todo”, o cineasta iniciou com o escritor um longo debate
(1979 a 1999) que culminaria na produção de um roteiro para um filme de ficção científica
com características de conto de fada. Kubrick, contrariando a história original, desejava que a
personagem central, David, se tornasse humano, como aconteceu a Pinóquio, personagem da
obra de Carlo Collodi, que foi transformado em um menino real graças à intervenção da Fada
Azul. O diretor também almejava que o garoto fosse representado no filme por um robô
verdadeiro o que não foi possível naquela época, visto que o contexto tecnológico ainda não
contava com recursos suficientes em inteligência artificial para a produção desse artefato.
Depois da morte de Kubrick, em 1999, Aldiss escreveu mais dois contos que, dando
continuidade à história de David, foram incluídos na obra Superbrinquedos duram o verão
todo e outros contos de um tempo futuro. Steven Spielberg, por meio de um acordo amigável
com a Warner Brothers, adquiriu as três histórias e filmou-as como Kubrick desejara fazê-lo,
programando o lançamento do filme, muito apropriadamente, para 2001.
12
Do ponto de vista estético, o filme apresenta um visual exótico bastante ousado em suas
inovações técnicas. Para criar um mundo completamente artificial, as imagens precisaram,
antes, ser projetadas por meio de fotografias, desenhos, maquetes e programas de computador
para, depois, serem articuladas e filmadas, tendo como objetivo maior a obtenção dos efeitos
especiais que puderam tornar críveis os mundos narrados.
A inteligência artificial ganha destaque nessa película. Os robôs, de completamente
mecânicos, passam por aqueles que foram transformados por meio de maquiagens e próteses,
até os construídos por animação computadorizada. David (Haley Joel Osment) e o Gigolô Joe
(Jude Law), personagens centrais do filme, são transformados por meio de maquiagens e
próteses. O Dr. Know, os seres esculturais e a Fada Azul, que aparecem na última cena, são
produtos de programas de computador. Outros, como o ursinho Teddy, companheiro de David
em sua jornada, apresentam uma mistura disso tudo. Uma performance ousada foi utilizada na
cena inicial do filme em que o professor Hobby (William Hurt), diretor da empresa
11
LOBATO, 1944, p. 341.
12
ALDISS, 2001, p. 7-20.
Cybertronics, que produziu David, abre o rosto da secretária-robô (recriado totalmente por
computação) e tira de dentro dele o bloco da memória para expô-lo aos seus funcionários.
Do ponto de vista ético, a criação de dois mundos distintos - um após o derretimento
das calotas polares e o outro depois do congelamento que durou dois mil anos - insere-nos
num ambiente hipertextual com interface em duas dimensões da realidade (processo bem
semelhante àquele utilizado por Monteiro Lobato em A chave do tamanho), oferecendo-nos a
oportunidade de fazer uma viagem
propõe que se construa um robô que saiba amar - Se um robô ama verdadeiramente uma
pessoa, que responsabilidade ela terá com relação a esse Meca?
No último ato do filme, as imagens da inteligência artificial assinalam a passagem para
uma outra era. Seres evoluídos (esculturais) representam um futuro em que o Homo sapiens
estaria extinto (essa também é uma questão debatida na obra de Monteiro Lobato). Nessa
parte, David encontra a Fada Azul e consegue realizar seu desejo. Por meio de uma regressão
de memória, ele se encontra com Mônica, sua mãe adotiva e, juntos, apenas por um dia,
vivem momentos felizes. Pela primeira vez, ele se sente amado. O menino robô, conseguindo
sobreviver ao congelamento de dois mil anos, transforma-se num cyborg, uma mistura de
organismo e máquina.
As obras analisadas fazem remissão à história de Pinóquio que, ao lado de Alice no país
das maravilhas
14
, de Lewis Carroll - ambas traduzidas por Monteiro Lobato - influenciaram
os caminhos da literatura infantil no início do século XX . As duas formas de narrativa
parecem propor que os contos de fada podem oferecer ao leitor um horizonte de criatividade e
de sonho onde a fantasia pode ser reveladora de conflitos, contribuindo para a resolução de
problemas internos. Além disso, a obra de Carlo Collodi influenciou a construção de muitas
personagens criadas por meio do protótipo de um boneco que evolui. Emília fala, em A chave
do tamanho, de sua própria evolução
15
, e David, no filme Inteligência artificial, deseja
encontrar a Fada Azul de Pinóquio para que ela o transforme num menino de verdade.
A questão afetiva é crucial em ambas as narrativas. A obra literária trata do
relacionamento humano em nível coletivo, a guerra, ponto de partida para o desenvolvimento
da história. Dona Benta estava abatida com as últimas notícias sobre a Segunda Guerra
Mundial e Emília quis pôr um ponto final na discórdia. Moveu a chave e a humanidade foi
reduzida em seu tamanho. Bastou esse “pequeno gesto” para que a Guerra acabasse por si
mesma: com a diminuição do tamanho, o conflito perdeu o sentido. Dessa perspectiva, a obra
pode ser considerada como uma denúncia à estupidez humana e aos horrores causados pelas
guerras promovidas pelo ser humano. Podemos observar, por meio do trecho abaixo, a ternura
com que o autor se debruça sobre os problemas humanos.
- Não fique assim, vovó. A coisa foi em Londres, muito longe daqui.
- Não há tal, minha filha. A humanidade forma um corpo só. Cada país é um
membro desse corpo, como cada dedo, cada unha, cada mão, cada braço ou
14
Monteiro Lobato, quando editor da Companhia Editora Nacional, traduziu muitas obras infanto-juvenis, ainda
hoje, disponíveis em sua ex-editora. Entre elas, Pinóquio, Alice no país das maravilhas e Alice no país do
espelho.
15
LOBATO, 2005, p. 80.
perna faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e
mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha como você ou deixa
aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. É uma
perversidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo
de não suportar por muito tempo o horror desta guerra. Vem-me vontade de
morrer. Desde que a imensa desgraça começou, não faço outra coisa senão
pensar no sofrimento de tantos milhões de inocentes. Meu coração anda
cheio da dor de todas as avós e mães distantes que choram a matança de seus
pobres filhos e netinhos.
16
o filme trata do relacionamento humano do ponto de vista individual. De fato, isso
pode ser verificado já na primeira cena quando uma pergunta, feita pela colega do professor
Hobby, conforme assinalamos anteriormente, aponta para essa preocupação. A partir daí, a
narrativa se desenvolve, tendo, como núcleo básico, a história de um pequeno robô que fora
rejeitado por sua mãe adotiva. Em várias cenas do filme, tais como a da convivência de David
com Mônica, a do encontro do robô com o seu criador - professor Hobby - e com a Fada Azul,
a do “coliseu” romano e a do encontro com os seres evoluídos, há uma apologia à ternura. O
amor puro e desinteressado de Davi, pequeno pastor de Judá de Belém, que curou, por meio
de sua música, o rei Saul de Israel que se encontrava em profunda depressão (Samuel, 16:14-
23), parece ter inspirado Steven Spielberg na construção da personagem principal da história,
David, que representa o amor desinteressado que deve evoluir com uma nova raça de seres.
Se por um lado, as duas obras em questão abriram espaço para o debate de idéias
revolucionárias, introduzindo recursos inovadores na arte, por outro, pode-se perceber que
essa mudança de perspectiva não aconteceu repentinamente, foi fruto de pesquisas, debates e
experimentações, tanto na área das ciências exatas quanto na das humanas, que mobilizaram
várias parcelas da sociedade de vários países, durante décadas. A título de esclarecimento,
tentaremos organizar um dos trajetos percorrido pelos teóricos e pesquisadores que culminará
com a descoberta do computador e a conseqüente mudança de concepção do conhecimento
que, de “máquina”, passa a ser entendido como “rede”.
A ênfase dada ao pensamento racional em nossa cultura levou a uma concepção do
universo como um sistema mecânico que tem estado na base da maioria de nossas ciências e
continua a exercer influência em muitos aspectos de nossa vida
17
. A revolução quântica,
iniciada no século XX, abalou esse sólido edifício conceitual, introduzindo idéias que, no
futuro, mudariam radicalmente o pensamento do homem contemporâneo. Admitindo o
princípio do “acaso”, a física quântica trouxe instabilidade a esse arcabouço tradicional, ao
despojar a ciência de um de seus atributos básicos, o da certeza absoluta, levando, assim, a
16
LOBATO, 2005, p. 8-9.
17
CAPRA, 1982, p. 37.
comunidade científica à necessidade de aceitar o princípio da desordem e a reconhecer a
parcela inevitável de incerteza no conhecimento.
A obra A chave do tamanho, por meio de sua personagem, o Visconde de Sabugosa,
questiona o paradigma científico baseado apenas na racionalidade. Emília, a contraparte do
“sábio pernóstico e radical”, pode acrescentar os dados da intuição e da prática que faltavam a
esse modelo. Um exemplo dessa postura pode ser verificado, abaixo, pelas palavras do
narrador, ao se referir ao desaparecimento dos órfãos:
Emília ia pensando em todas as hipóteses imagináveis. O certo era estarem
mortos, reduzidos a lama ou afogados nas lagoas que a chuva formara no
tijuco. Isso era o certo. Mas havia o incerto - e era no incerto que Emília
levantava as suas hipóteses.
18
Além da questão da instabilidade, mencionada anteriormente, outra idéia importante,
gerada no seio da revolução quântica, permitiu a compreensão do comportamento ondulatório
da matéria, identificou a estrutura dos átomos e sua capacidade de interagir e de se ligar a
outros, formulando a noção de que o todo é algo mais do que a soma de suas partes. Ou seja, o
todo tem um certo número de qualidades e de propriedades que não aparecem nas partes
quando elas estão separadas. Concluiu-se, portanto, que o conhecimento do todo não podia ser
isolado de suas partes
19
.
A essas idéias se somou a compreensão quântica dos sistemas macroscópicos que só foi
bem sucedida, um pouco mais tarde, com o estudo dos cristais, facilitado por conta de sua
estrutura regular, em células ordenadamente repetidas. Da compreensão à manipulação não
demorou nada e, nos meados do século XX, produziu-se a microeletrônica dos cristais
semicondutores, os famosos chips, base material da informática.
20
A física quântica mostrou que não podemos decompor o mundo em unidades
elementares que existam de maneira independente. Quando desviamos nossa atenção dos
objetos macroscópicos para os átomos e as partículas subatômicas, a natureza não nos mostra
blocos de construção isolados, e sim, uma complexa teia de relações entre as várias partes de
um todo. Na física quântica, enfim, nunca se chega a alguma coisa muito definida, sempre se
lida com interconexões.
21
Os novos conceitos em física apontam para outra percepção da realidade: quanto mais
observamos os principais problemas de nossa época, mais somos levados a perceber que eles
18
LOBATO, 2005, p. 47.
19
CAPRA, 1982, p. 74-75.
20
CAPRA, 1996, p. 41.
21
MENEZES, 2005, p. 26.
não podem ser entendidos de forma isolada. São problemas interligados e interdependentes
que precisam ser vistos como diferentes facetas de uma única crise que é, em grande medida,
uma crise de sentido produzida pela aceleração geral de todas as evoluções e pela mistura das
culturas, características da fase atual de planetarização que questionam a estabilidade dos
sistemas simbólicos, ameaçando nossa capacidade de produzir sentido e de nos identificarmos
como membros de uma comunidade.
22
Podemos verificar, hoje, em nossas instituições, de um lado, uma inadequação cada vez
mais ampla, profunda e grave entre um saber fragmentado e compartimentado nas disciplinas
e, de outro, uma realidade multidimensional, global, transnacional, planetária, com problemas
cada vez mais transversais. O desafio que se coloca para o século que ora se inicia é o
desenvolvimento de uma “inteligência coletiva”
23
, que nos ofereça recursos para lidarmos
com o complexo espaço social. A questão que se coloca a partir dessa constatação é: “Com
que ferramentas construiremos os novos conhecimentos”?
O pensamento crítico tem buscado uma resposta para este desafio. Edgar Morin e Ivan
Domingues - dentre outros pensadores - perseguem novas metodologias, buscando traçar
caminhos e estabelecer metas que possam orientar um trabalho que será da responsabilidade
de toda a sociedade. O sociólogo francês Edgar Morin, percebendo que a maior urgência no
campo das idéias era a de elaborar uma nova concepção do próprio conhecimento, introduz o
conceito de pensamento complexo para substituir o paradigma da especialização, da
simplificação e da fragmentação. Esse tipo de pensamento, segundo ele, tem como
fundamento formulações surgidas no campo das ciências exatas e naturais, como as teorias da
informação e dos sistemas e a cibernética, que evidenciaram a necessidade de superar as
fronteiras entre as disciplinas
24
.
Dessa forma, o sociólogo sugere o resgate de uma cultura dinâmica que promova um
diálogo entre as humanidades e a ciência, visando desenvolver as competências de
problematização e contextualização, importantes para a apreensão dos problemas
fundamentais e globais. Isso levaria, segundo ele, a uma tomada de consciência e à vontade
de enfrentar o grande desafio da complexidade lançado pelo mundo e que deverá ser
trabalhado pelas novas gerações. Fazer e transmitir conhecimento pode ser algo prazeroso,
desde que se reaprenda a conectar a parte com o todo, o texto com o contexto, o global com o
local, a cultura das humanidades com a cultura científica.
22
CAPRA, 1996, p. 23.
23
LÉVY,1999, p. 29-30.
24
MORIN, 2004, p.13-23.
Domingues, refletindo sobre a importância da prática da transdiciplinaridade no
momento atual, argumenta que tal exercício seria fundamental para a reinvenção das
atividades científicas e intelectuais, abolindo do contexto educativo o especialista disciplinar,
em favor da chamada “inteligência coletiva” - resultado da cooperação de especialistas
oriundos de diversos campos disciplinares - que poderia dar conta do acúmulo e da expansão
de uma massa enorme de informações. O autor propõe, além de um modelo para representar o
intelectual de hoje, também uma imagem para simbolizar a inteligência trans e um tipo de
olhar característico daqueles que pensam ou escrevem de maneira transdisciplinar. Leonardo
da Vinci
25
funcionaria, nesse caso, segundo Domingues, como modelo do intelectual
contemporâneo, alfabetizado em ciência, tecnologia e humanidades já que o indivíduo isolado
não daria mais conta da complexa realidade atual que exige a existência de coletividades
pensantes.
Para representar esse pensamento complexo, o autor propõe a imagem da rede, não a do
pescador que é trançada e organizada em malhas, mas a rede da informática, dos neurônios e
das telecomunicações, organizada em pontos que se agrupam, estando eles em conexão direta
ou não. A imagem da rede, além de permitir o agrupamento das ciências, das tecnologias e
das artes num sistema aberto, sem qualquer idéia de hierarquia, teria a vantagem de introduzir
referências cruzadas em todos os campos do conhecimento e dos recortes disciplinares.
Dessas referências cruzadas é que surgiria, segundo o autor, um olhar cruzado, o olhar
oblíquo de Demoiselle D’Avignon de Picasso, que é justamente o olhar transdisciplinar.
26
A imagem da rede, com os sentidos de entrelaçamento e interdependência dos
fenômenos, é uma idéia antiga que tem sido utilizada por poetas, filósofos e místicos ao longo
das eras, mas foi particularmente valorizada pelos poetas românticos no final do século XVIII
e início do século XIX - movimento que trouxe em seu bojo a primeira forte oposição ao
paradigma cartesiano. Goethe, figura central do romantismo, concebia a forma como um
padrão de relações dentro de um todo organizado. Ele foi um dos primeiros a utilizar o termo
“morfologia” para o estudo da forma biológica a partir de um ponto de vista dinâmico.
27
Contudo, o grande impacto que adveio com a ciência do século XX - a percepção de
que os sistemas não podem ser entendidos pela análise das partes já que suas propriedades não
são intrínsecas e só podem ser entendidas dentro do contexto do todo mais amplo - provocou
um choque maior na física do que na biologia porque, desde Newton, os físicos acreditavam
25
Leonardo da Vinci: um dos primeiros cientistas modernos e, ao mesmo tempo, um dos maiores artistas da
humanidade. Cf. GOMES, [s.d.], p. 53-63.
26
DOMINGUES I., 2005, p. 18-39.
27
CAPRA,1996, p. 35.
que todos os fenômenos físicos podiam ser reduzidos às propriedades de partículas materiais
rígidas e sólidas. Isso levou os pensadores a estilizarem modelos de rede em todos os níveis
de sistemas, considerando os organismos como redes de células, órgãos e sistemas de órgãos.
Já na segunda metade do século XX, a concepção de rede foi a chave para os avanços na
compreensão científica da própria natureza da vida. Mas foi só a partir de 1970 que esse
modelo de conhecimento científico foi formalizado com Geoffrey Chew, em sua filosofia
bootstrap
28
, em que o universo material é visto como uma teia dinâmica de eventos inter-
relacionados.
Também, devido ao forte apoio vindo da cibernética
29
, esses conceitos ganharam força,
tornando-se parte integrante da linguagem científica e gerando numerosas metodologias e
aplicações como a engenharia dos sistemas, a análise dos sistemas e a dinâmica dos sistemas.
O estudo da cibernética, financiado pelos militares, começou durante a Segunda Guerra
Mundial quando um grupo de matemáticos, neurocientistas e engenheiros, ao compor uma
rede informal para investigar interesses científicos, impôs-se os desafios de descobrir os
mecanismos neurais subjacentes aos fenômenos mentais e expressá-los em linguagem
matemática explícita. A origem da ciência contemporânea da cognição, que oferece uma
concepção científica unificada do cérebro e da mente, pode ser rastreada até chegar aos anos
pioneiros da cibernética.
30
O arcabouço conceitual da cibernética foi desenvolvido numa série de lendárias
reuniões na cidade de Nova Iorque, conhecidas como Conferências Macy. Esses encontros - o
primeiro deles em 1946 - foram extremamente estimulantes, reunindo um grupo singular de
pessoas altamente criativas que se empenharam em longos diálogos interdisciplinares para
explorar os novos modos de se pensar. Os participantes dividiram-se em dois núcleos: o
primeiro formou-se em torno dos ciberneticistas originais, compondo-se de matemáticos,
engenheiros e neurocientistas; o outro constituiu-se de cientistas vindos das ciências humanas.
Desde o primeiro encontro, os pesquisadores fizeram grandes esforços para transpor a
lacuna acadêmica que havia entre eles e as ciências humanas. John von Newmann, por
exemplo, era um dos cientistas que fazia parte desse grupo de pesquisadores. Gênio
matemático, que se tornou mundialmente famoso com a invenção do computador digital,
mostrava-se fascinado pelos processos do cérebro humano e concebia a descrição de seu
funcionamento, em termos de lógica formal, como o supremo desafio da ciência. Seu
28
CAPRA, 1996, p. 48.
29
Novo campo de pesquisas científicas que estuda o homem em sua relação com as máquinas. Surgiu a partir da
Segunda Guerra Mundial. Cf. DOMINGUES D.,1997, p. 27.
30
CAPRA, 1996, p. 56-58.
principal objetivo - descobrir o padrão que conecta todas as coisas - foi concretizado no final
da década de setenta com a introdução de duas teorias que vieram estabilizar esse novo
paradigma.
31
A primeira delas foi a descoberta da matemática da complexidade, que disponibilizou
novas ferramentas matemáticas e permitiu aos cientistas modelarem a interconexão não-linear
das redes. A nova geometria, denominada “geometria fractal”
32
, tinha por finalidade descobrir
e analisar a complexidade das formas irregulares no mundo natural, cuja propriedade mais
notável era o padrão que se repetia constantemente em qualquer uma de suas partes,
reproduzindo o todo. O novo modelo do conhecimento - a rede - constituindo-se na dinâmica
da interação por meio da qual se privilegia a dialógica em detrimento da lógica clássica,
permitiu o acesso a um pensamento flexível e dialético.
A segunda teoria, elaborada pelos cientistas chilenos Maturana e Varela, foi aquela que,
considerando a cognição como um fenômeno biológico, caracterizou a mente como uma
metáfora para o processo de pensamento e o cérebro
moleculares que constitui o ser vivo. O conceito de rede continua, pois, sendo fundamental,
seja ela uma rede de células ou uma cadeia de interações lingüísticas no nível celular.
35
Na teoria dos sistemas vivos elaborada por Maturana e Varela e denominada “Teoria de
Santiago”, a incorporação contínua de um padrão de organização autopoiético numa estrutura
é identificada como cognição. Isso implica uma concepção radicalmente nova da mente, que
promete superar de vez a divisão cartesiana entre mente e matéria. De acordo com essa teoria,
o cérebro não é necessário para que a mente exista, os organismos mais simples são capazes
de percepção e, portanto, de cognição.
Na nova concepção de cognição, o processo de conhecimento é, pois, muito mais amplo
que a concepção de pensamento, envolvendo percepção, emoção e ação - todo o processo da
vida. No domínio humano, a cognição também inclui a linguagem, o pensamento conceitual e
todos os atributos da consciência humana.
36
Essa teoria abriu novas perspectivas para as
pesquisas da inteligência artificial, revolucionando esse campo do conhecimento, e
contribuindo para as novas descobertas científico-tecnológicas que se fazem visíveis hoje em
todos os setores da sociedade.
Os pesquisadores da corrente conexionista - uma das tendências em inteligência
artificial - ao conceberem o sistema cognitivo como uma rede composta por um grande
número de pequenas unidades, que mudam de estado em função das unidades às quais estão
conectadas, também confirmam que o paradigma da cognição não é o raciocínio, mas a
percepção.
37
As teorias de todos os pensadores, citados anteriormente, são revolucionárias no sentido
de que, ao causarem uma ruptura no paradigma cartesiano, vieram introduzir em suas brechas
novos conceitos que redesenharam o mapa do saber, contribuindo, decisivamente, para a
emergência da “ciência trans”. A partir daí, a noção cartesiana de representação do
conhecimento, que orientava a cultura ocidental, e o chamado espelho da natureza que cindiu
sujeito e objeto, sofreu um sério abalo porque, na representação emergente, as novas
identidades estão sendo tecidas no complexo embricamento do ser, do fazer e do conhecer.
38
Tomando essas reflexões como referência e pensando nas questões que foram
levantadas no início deste trabalho, podemos pensar com Morin
39
que, se o século XX
presenciou a irrupção da desordem, da incerteza e da complementaridade, o século XXI tem
35
RAMOS, 1999, p. 190.
36
CAPRA,1996, p.144-146.
37
LÉVY,1993, 155.
38
PELLANDA, 2000, p.117-118.
39
MORIN, 2004, p. 559-567.
pela frente a inédita possibilidade de restaurar o conhecimento cindido, sem se deixar seduzir
pelos confortáveis apelos da hiperespecialização e da fragmentação. O novo contexto está
exigindo uma nova maneira de pensar o conhecimento, e nós temos que buscá-lo através da
dúvida e da desestabilização. Agora, o velho dilema epistemológico da procura do
fundamento externo ou interno é resolvido na ação e na emergência, exigindo de nós uma
postura crítica e criativa, para interagir, ao mesmo tempo, com o conhecimento e com a
tecnologia.
O conceito de tecnologia da inteligência, introduzido por Pierre Lévy
40
é central para se
pensar o conhecimento enquanto um universo de interações múltiplas, que tem sua gênese no
coletivo. Nesse sentido, o homem e a técnica não podem ser dissociados, pois os atos de ser,
fazer e conhecer constituem-se em um único processo que tem como resultado a
subjetividade. A palavra oral, a escrita, a cibernética e a informática são exemplos de
tecnologias intelectuais: são práticas sociais que, na medida em que criam signos, também
possibilitam ou limitam modos de expressão e intercâmbio, pautam interações e constroem
universos de relações sígnicas, sendo que cada sistema semiótico abre novos caminhos para o
pensamento.
A primeira tentativa de auxiliar na construção desse novo conhecimento seria a de
buscar uma espistemologia da invenção, embasada nas teorias de Pierre Lévy sobre as novas
tecnologias e nos estudos de Humberto Maturana e Francisco Varela sobre a ecologia
cognitiva
41
que, constituindo-se em torno da biologia, da filosofia e da psicologia,
compreende o conhecimento como processo de construção e invenção, e não como
representação. Conhecer, ser e viver são dimensões inseparáveis porque o conhecimento
emerge como um padrão de auto-organização numa ecologia cognitiva do ser com seu meio.
Isso vem libertar a ação de um universo mecânico e determinista que não deixa lugar para a
autocriação. Lévy reafirma, com outras palavras, a posição dos dois biólogos: “Cada forma de
vida inventa seu mundo (do micróbio à árvore, da abelha ao elefante, da ostra à ave
migratória) e, com esse mundo, um espaço e um tempo específicos”.
42
Nesse sentido, a utilização do espaço da rede, em termos de espaço cibernético
43
, seria
uma ferramenta fundamental. De dentro dele, poderíamos retirar uma variedade de
ferramentas, de dispositivos e de tecnologias intelectuais: hipertextos, recursos multimídia
40
LÉVY, 1996, p. 22.
41
Termo cunhado por Pierre Lévy para caracterizar as interações do sujeito com o meio numa relação de
construção de conhecimento. Cf. PELLANDA, 2000, p.121.
42
LÉVY,1996, p. 22.
43
O novo espaço de interação humana que instaura uma rede de todas as memórias informatizadas e de todos os
computadores. Cf. LÉVY, 2000, p. 13.
interativos, simulações, mundos virtuais, dispositivos de telepresença. Esse terreno fértil,
segundo Machado
44
, tem provocado uma verdadeira mutação na concepção da escrita e da
leitura, já que não é mais o leitor que vai se deslocar diante do texto, mas é o texto que, como
um caleidoscópio, vai se desdobrar diferentemente diante de cada leitor. O hipertexto sugere a
idéia de que todos os textos fazem parte de um texto infinito que está em constante mutação,
justamente porque seu autor é coletivo.
Nesse espaço, poderíamos, ainda, recuperar a possibilidade de ligação com um contexto
que havia desaparecido com a escrita. Segundo Lévy
45
, a humanidade desenvolveu quatro
tipos de relação com o saber: o primeiro, que veio antes da escrita, conteria o saber ritual,
místico e encarnado por uma comunidade viva; o segundo, ligado à escrita, seria o saber
veiculado pelo livro; o terceiro viria com o advento da imprensa, cujo tipo ideal não era mais
o livro, mas a biblioteca; o quarto conteria o saber contemporâneo que traz a
desterritorialização da biblioteca, levando o homem a buscar suas origens na comunidade
viva, mas de maneira ampliada e diferenciada. O portador desse quarto tipo de saber seria
então a própria humanidade enquanto espaço cibernético, espaço de um saber vivo e
dinâmico.
Outra ferramenta de que poderíamos nos utilizar para construir a nova ciência seria o
espaço da arte já que esta possui uma ambigüidade básica que permite a aglutinação de
múltiplas disciplinas, por meio das quais se podem criar novos signos que possibilitem a
geração de novas formas de conhecimento. O signo do fractal, por exemplo, pode ser utilizado
para avançarmos nesses estudos já que apresenta uma ruptura na forma de se ver, que desloca
o olhar para outras dimensões da realidade. Alguns trabalhos recentes, em áreas de interseção,
colocam em evidência o arbítrio das categorias dicotômicas. Um bom exemplo disso são as
obras do pintor norte-americano Jackson Pollock
46
, que atraem um grande público para os
museus. A resposta para seu sucesso está, segundo o físico americano Richard Taylor, na
matemática. Para ele, as pinturas desse artista seguem o modelo geométrico dos fractais -
padrões em que cada detalhe reproduz o todo. Outro exemplo de arte que tem buscado gerar
novos tipos de signos, experimentando o cruzamento entre ciência, arte e tecnologia, é o livro
de Douglas Hofstadter
47
em que o autor – pesquisador da inteligência artificial – investiga a
natureza do processo humano de pensamento, a partir da identificação de uma curiosa
44
MACHADO, 1996, p. 186-191.
45
MACHADO, 1996, p. 15-16.
46
KENSKI, 2003.
47
MACHADO, 1996. p.12.
similitude estrutural existente entre certas pas musicais de Bach, algumas gravuras de
Escher e os teoremas matemáticos de Gödel.
Muitas experiências transdisciplinares têm sido realizadas atualmente. Um dos frutos
desse tipo de trabalho é o projeto na área de inteligência artificial conduzido pelo MIT
48
, que
implica na cooperação de duzentos pesquisadores oriundos da engenharia, da informática, das
neurociências, da lingüística e da filosofia, onde há a perspectiva de unificação dos diferentes
campos disciplinares, mediante a adoção da metodologia da informação, com características
interdisciplinares. Outros exemplos que podem ser encontrados nas áreas da arte e da
tecnologia são o cinema e a televisão que, para sua realização, congregam uma plêiade de
especialistas.
Seguindo essa orientação, o grupo Redes da Universidade Federal de Minas Gerais
desenvolveu esforços para reunir as diversas áreas do conhecimento, oriundas tanto das
ciências exatas como das humanas, compartilhando metodologias diferentes para, ao
confrontá-las, levantar questionamentos e preencher lacunas que poderiam resultar em novas
formas de saber. O “Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela e o texto”, novo núcleo
dessa rede, desenvolve atividades pioneiras no sentido de democratizar a leitura,
especialmente de textos da Literatura Brasileira, projetando-a em outros espaços além da
universidade.
Nesse contexto, que caminhos tem buscado a literatura contemporânea?
Para responder a essa questão, Miranda
49
propõe que levemos em consideração, além
do aspecto transnacional da literatura, as novas relações intersemióticas nascidas dos atuais
meios de reprodutibilidade técnica e simulação audiovisual já que as novas interfaces e os
novos modos de comunicação oferecem à escrita e à leitura capacidade de atuarem como uma
atividade desconstrutora, desafiando de modo intrigante a conexão cada vez maior que
passamos a manter com a rede de relações e interfaces que compõem o aparato maquínico que
nos cerca e define hoje.
O hipertexto - nova forma textual tridimensional, concebida pelo americano Ted
Nelson
50
- possibilitando trabalhar a escrita como uma escultura de textos superpostos, insere-
se no contexto das novas tecnologias e representa, para Lévy
51
, o futuro da escrita e da leitura,
já que dá conta da estrutura indefinidamente recursiva do sentido, ao conectar palavras e
48
Massachussets Institute of Tecnology. Nesse Instituto, encontra-se o maior núcleo de pesquisas em inteligência
artificial.
49
MIRANDA, 1995, p. 10-11.
50
MACHADO, 1996, p. 18.
51
LÉVY,1993, p. 71.
frases cujos significados remetem uns aos outros, dialogam e ecoam mutuamente para além da
linearidade do discurso. Refletindo sobre isso, poderíamos concluir que o sonho de
Mallarmé
52
estaria prestes a ser concretizado neste momento em que os multimídia
definitivamente instalaram-se em nossa sociedade, transformando nossa maneira de perceber
o mundo e de ler os textos. Vazados numa nova linguagem, eles oferecem recursos para que o
“livro de Mallarmé” seja agora implementado.
Segundo Machado
53
, a construção e a desconstrução de textos é uma das marcas da
literatura contemporânea, engajada na perspectiva mallarmaica, e o texto, que ora temos em
mão, já é o resultado de um percurso combinatório realizado pelo próprio autor, sendo a
atualização de uma infinidade de escolhas, num repertório de alternativas que, mesmo
eliminadas na apresentação final, continuam a perturbar dialogicamente a forma atual. Uma
primeira aproximação do sonho mallarmaico poderia estar no holopoema, construído com a
luz paralela do laser num espaço virtual de três dimensões. Quando ele explora as
possibilidades de uma escritura verdadeiramente tridimensional, o resultado pode ser
desconcertante, pois coloca o leitor diante de um texto paradoxal, um texto onde as palavras
não estão mais arranjadas por nexos absolutos de linearidade e cujas relações sintáticas
encontram-se em permanente transformação.
Atualmente, além do videotexto e da holografia, os novos suportes de linguagem oral
ou escrita, sobretudo os eletrônicos, estão redefinindo, de forma cada vez mais complexa, o
conceito de escritura. Com as tecnologias modernas de tratamento da palavra, estamos
assistindo a uma transformação tão importante no modo de produção textual quanto aquela
que, em outros tempos, substituiu instrumentos como o pincel e a pena de ganso por
caracteres móveis uniformes.
O novo espaço da arte oferece muitos instrumentos para o desbravamento do território,
mas exige muita criatividade. A competição com a Internet e outros meios de comunicação
está exigindo obras cada vez mais criativas e a literatura de ficção está apta a figurar entre as
artes que, dotadas de capacidade plástica, sofrem metamorfoses profundas, adaptando-se às
exigências de novas épocas e de novos estilos. Hoje, os recursos tecnológicos tendem a
interferir cada vez mais no modo de ser da narrativa, produzindo uma intersemiose na medida
em que o entrelaçamento da literatura com os outros meios permite o entrecruzamento de
52
O sonho de Mallarmé era dar forma a um livro integral e múltiplo que já contivesse potencialmente todos os
livros possíveis. Lévy, 1993, p. 165.
53
MACHADO, 1996. p.165-166.
linguagens distintas, num processo dinâmico de inter-relação sígnica propiciador de novas
leituras e de novos sentidos.
Além da qualidade da plasticidade, a literatura, dentre as mais variadas artes, possui
também a virtude de nos oferecer um ótimo espaço de articulação, pois não havendo limites
para a imaginação, haverá, conseqüentemente, o enfraquecimento das fronteiras. Por sua
própria natureza, ela é palimpséstica - escrita sobre escrita - e hipertextual, abrindo-nos
constantemente para o contato com várias dimensões da realidade por meio das quais
poderemos ouvir outras vozes e entrar em contacto com culturas, linguagens e mensagens
diversas que nos alertam para novas maneiras de sentir e de pensar.
A escrita hipertextual é um recurso importante para a construção dos textos porque, ao
oferecer novas soluções narrativas, inaugura também novos modos de leitura. Transgredindo
os princípios do texto escrito - verbalidade, estabilidade, linearidade - introduz pontos
inovadores tais como a deslinearização (ubiqüidade), a semiose (pluritextualidade), a conexão
(rede) e a metamorfose (mudança). Por meio da pluritextualização, ao fundir várias
linguagens ao mesmo tempo, possibilita a recriação de um ambiente intersemiótico que
provoca grande impacto cognitivo no processamento da leitura
54
. Fazendo com que o ato de
ler e compreender se viabilizem com muito mais amplitude, exige a competência da
simultaneidade para a compreensão dos textos com interfaces em muitas dimensões, bem
como a convergência de texto e imagem, imagem e som, ou texto, imagem e som. Além disso,
nesse contexto, o leitor pode instituir seu próprio trajeto de leitura.
As obras A chave do tamanho e Inteligência artificial oferecem a possibilidade de uma
leitura fractal ou hipertextual dado o conteúdo heterogêneo de suas imagens e temas que se
interconectam numa intersemiose infinita. Para compor essa rede, os autores utilizam-se de
procedimentos discursivos diversos, dentre eles, a intertextualidade, em que se ativam
referências culturais e literárias várias, num jogo de remissões que pressupõe níveis textuais
distintos. A representação como imagem visual assume-se como uma manta de retalhos e o
texto se constitui, ao mesmo tempo, como uma entidade dinâmica e compósita, por força da
contribuição advinda de outros textos e de outras linguagens. O dinamismo dos textos de
Monteiro Lobato e Steven Spielberg resulta não apenas de uma intertextualidade incessante,
mas também da complementaridade estabelecida entre palavra escrita e imagem visual, na
obra literária, sistema enriquecido, no cinema, pelo acréscimo de outras linguagens tais como
a iluminação, o som e a montagem. Muitos procedimentos discursivos auxiliam na formação
54
XAVIER, 2005, p. 170-180.
dessa rede fractal, dentre eles, a transgressão das barreiras entre fantasia e realidade, com a
conseqüente diluição das marcas seqüenciais, o encaixe de diversas histórias, a formação das
cadeias semânticas e lexicais e a polifonia discursiva e imagética.
Segundo Duarte
55
, estamos diante de uma revolução tecnológica cujos resultados são
ainda imprevisíveis para a literatura porque, na tela do computador, tudo pode acontecer,
desde a possibilidade de superposição dos textos, passando pelos enxertos, pelas apropriações,
até as reciclagens, dentre outras atividades. Para ele, nesse contexto, criar passa a ser
sinômino de reprocessar.
Enfim, além da literatura contemporânea, podemos verificar que as revoluções
tecnológicas e científicas do século XX deixaram suas marcas em todas as áreas do
conhecimento e em todos os setores de nossa sociedade, trazendo-nos a consciência de que
estamos vivendo num mundo que, a cada dia, torna-se mais complexo porque está se tornando
múltiplo com o fenômeno da globalização. Para compreender esse universo interligado,
teríamos que adquirir - segundo a teoria de Ivan Domingues a que nos referimos
anteriormente - uma nova forma de ver e de ser. Poderíamos incluir, nesse novo modelo
cognitivo, também uma outra forma de fazer – segundo as teorias de Edgar Morin, Pierre
Lévy, Maturana e Varela - criando, construindo e reinventando os homens e a vida, por meio
da arte, da inteligência coletiva e dos recursos tecnológicos de que dispomos no momento.
Ainda que munidos dessas ferramentas, ver, ser e fazer exigirão um grande esforço de
nossa parte. Como realizar tal façanha? A resposta estaria na aquisição do próprio
conhecimento. Só ele pode tirar as vendas de nosso olhar e abrir outras janelas para que
possamos entender a nós mesmos e ao mundo lá fora. Enfim, necessitamos adquirir um
pensamento complexo que, como um fractal, permita-nos vislumbrar o todo que está contido
em cada parte do que foi separado.
Além das imagens da rede e dos fractais que representam o conhecimento hoje, outra
bela metáfora, extraída da narrativa mitológica, talvez possa desvelar o processo de resistência
à fragmentação que atualmente vivenciamos: a cabeça do poeta e músico Orfeu,
desmembrada de seu corpo e atirada às águas do rio Hebro pelas Mênades, continuou a cantar
numa obstinação dolorosa, buscando, quem sabe, com seu canto, atrair os membros
desarticulados para integrá-los ao todo.
56
55
DUARTE, 1999, p. 51-60.
56
Orfeu, poeta e músico grego. Teve o corpo desmembrado e jogado no rio Hebro pelas Mênades por ciúme de
Eurídice. Sua cabeça continuou a cantar, mesmo separada do corpo. In: COMMELIN, 1997, p. 284-286.
CAPÍTULO 2
FICÇÃO CIENTÍFICA:
RESGATANDO OS LAÇOS ENTRE CIÊNCIA E ARTE
Quando escrevi O choque, pus entre as maravilhas do futuro a televisão. Pois já é
realidade. O Times de hoje anuncia que a estação WCFW vai inaugurar comercialmente a
irradiação de imagens. O sonho que localizei em séculos futuros encontro realizado aqui. A
primeira vítima da televisão vai ser a velha e boa Saudade, que no fundo é filha da Lentidão e
da Falta de Transportes. A saudade desaparecerá do mundo. (Pobres poetas! Dia a dia vão
perdendo as cocadas de sua quitandinha). Porque a saudade vem de não podermos ver e ouvir
a pessoa querida que está longe ou já morreu. Mas o rádio e a televisão destroem o longe. Em
breve futuro a palavra “longe” se tornará arcaísmo. Como longe essa tua Minas, se poderei
ver-te e ouvir-te daqui? E quanto ao longe da morte, logo o De Forest inventa uma válvula
metapsicotônica para a comunicação entre vivos e mortos. Em vez de ter saudades do
Ricardo, eu chego ao aparelho e ligo-me com a freqüência ricardiana.
57
O que importa é o que nós projetamos num mecanismo, numa máquina. Não se trata da
máquina nos amar, mas de quanto amor investimos nela e isso determina o quanto devemos
avançar na criação de coisas que nos fazem lembrar de nós mesmos. Acho que devemos ter
muito cuidado em como nós, como espécie, usamos nossa genialidade. Todos precisamos ter
cuidado. Meu filme teve essa preocupação número um. Precisamos assumir a
responsabilidade pelas coisas que colocamos nesse planeta e também pelas coisas que
retiramos dele. De certa forma, precisamos ter limites para os nossos avanços, limites éticos,
morais e limites que nos digam: “Ei, não podemos mexer com isso”. Essas idéias foram
discutidas também em Jua0.4k9(b)1vos e9(u9(b)1(murca)]TJ14.285 0 TD0.0004 Tc21.6888 Tw(os m)8a2(e)-0iéiasinos.8(s)-5c2(e)-0iscu nãor Stanley Kubia k(émram )]TJET75.037444.98 0.48 20.7 ref540.037444.98 0.47998 20.7 ref/TT6 000fBT12 0 0 12 826382.3403 Tm0.0012 Tc-019.88 TwInte)5c[geqüi7.7artifiü
O Aleph - pequena esfera furta-cor através da qual se pode vivenciar uma experiência
de totalidade - é uma criação de Jorge Luis Borges, que se inspirou, para escrever o conto
homônimo, na construção e na desconstrução das formas geométricas e das cores iridescentes
de um caleidoscópio. Também no filme A máquina do tempo, baseado no romance homônimo
de H.G.Wells
59
, a bela imagem da máquina, que descortina para o protagonista o passado e o
futuro da humanidade, vem envolvida por uma esfera de cristal.
Essas instigantes imagens, além de brindar-nos com a possibilidade desse tipo de
experiência, representando aquilo que Leonardo da Vinci chamou de fantasia essata
60
-
achado da imaginação e modelo do conhecimento - levam-nos a refletir sobre o poder
antecipador da literatura de ficção que, inscrevendo-se no terreno das artes como potência
simbólica, entrevê o desenvolvimento científico e seus efeitos em nossa sociedade. Arlindo
Machado afirma que os artistas são exploradores de fronteiras, reinventores de formas,
sobretudo em se tratando daqueles que são capazes de desencadear possibilidades novas,
abrindo as portas para a compreensão da consciência de outros mundos. Lewis Carroll, em
Alice no país das maravilhas, no século XIX, já tinha invadido o mundo euclidiano,
construindo a fantasia de um espaço-tempo descontínuo e antecipando, dessa forma, as atuais
teorias do tempo e do espaço. Contudo, foi só a partir da teoria da relatividade, elaborada por
Einstein no início do século XX, que a ciência também passou a encarar esse tema com
seriedade.
61
A sinestesia, figura de estilo que expressa e estimula uma percepção mais abrangente
da realidade, ao relacionar os sentidos e a vida imaginativa, sempre pareceu um sonho
inatingível para os poetas e artistas ocidentais do século XVIII, que olhavam com tristeza para
sua vida fragmentada e empobrecida. Mas as novas conquistas tecnológicas, dentre outros
fatores, foram mudando o modo de vida do homem ocidental que, depois de séculos de
rigorosa separação e especialização dos saberes e das percepções por meio dos sentidos,
passou a vivenciar novas experiências com a chegada de “próteses” que potenciaram os
órgãos humanos e ofereceram aos artistas novos recursos para expressarem uma suposta visão
de totalidade. Segundo Mcluhan
62
, os novos meios de comunicação, como extensões de
nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas particulares, como
59
Filme baseado na obra de H.G.Wells e dirigido por seu bisneto, Simon Wells. Produção de 2002.
60
Um objeto fractal corresponde hoje exatamente àquilo que Leonardo da Vinci chamou de fantasia essata. Cf.
MACHADO,1996, p. 27.
61
MCLUHAN, 2003, p.186.
62
MCLUHAN, 2003, p. 72.
também entre si, na medida em que se inter-relacionam, desencadeando mutações sensoriais e
intelectuais que serão muitas vezes o motor de grandes transformações estéticas.
Desde tempos imemoriais, houve artistas, místicos e cientistas cujas mentes foram
capazes de contemplar o universo em busca da totalidade. Einstein foi um deles e Leonardo da
Vinci, outro. Ao investigar a natureza, Leonardo avançou na ciência e na técnica, dando à sua
atividade artística uma nova dimensão. Esse grande gênio talvez tenha sido o primeiro homem
a sonhar com a unificação da ciência e da arte. A linguagem verbal, para ele, jamais
alcançaria a expressão sistemática da beleza natural em suas contínuas mutações de estado e
forma. Dessa maneira, para exprimir os aspectos físicos e naturais colhidos durante suas
investigações, ele usava uma forma literária resumida, embasada em experiências e
apresentava o resultado obtido por meio de imagens magníficas.
63
A aliança entre a ciência e a arte é fundamental para a compreensão desse novo
universo: tanto uma como a outra são necessárias para o completo entendimento da natureza e
dos efeitos que provocam nas pessoas. No século XVII, entretanto, a filosofia cartesiana
trouxe em seu bojo uma forma de pensamento que pode ter sido responsável pela crescente
especialização das diferentes disciplinas, afastando a ciência da arte. Hoje, a parceria entre
esses campos do saber vem sendo resgatada e valorizada, vivendo o conhecimento científico
uma experimentação artística, ao libertar-se de uma visão da realidade objetiva, absoluta e
determinista, atentando para as noções de caos e acaso com que opera a arte. Abordar os laços
que unem ciência e arte, hoje, é tratar da própria vida, já que
“máquina” aos desígnios do imaginário, introduzindo nela os elementos não-previstos, para os
quais ela não está programada, e driblando seus automatismos com achados de transgressão.
Foi exatamente isso que fez Méliès: criou o cinema como arte (mas também como indústria
cultural), transformando o cinematógrafo num veículo mágico para uma viagem sem
precedentes ao mundo do imaginário.
66
Segundo Condé
67
, os gregos inventaram a idéia de ciência como uma forma de
conhecimento do universal, instrumento que permitiria acessar a essência
68
do mundo, mas
que se distanciava deliberadamente do conhecimento prático ou da techné. Sendo tal
separação mantida até o Renascimento, percebeu-se, a partir de então, que a episteme sem a
techné era vazia, e que a techné sem a episteme era um mero catálogo medieval de técnicas
desconexas. Assim, os dois saberes foram reunidos, formando as bases das modernas ciência e
tecnologia.
As poéticas tecnológicas são reveladoras dessa conexão, já que reúnem as mais variadas
formas de culturas e ninguém é mais, a priori ou exclusivamente, pintor, poeta ou compositor.
Para Machado
69
, o media man, agora, é um navegante do reino dos signos, e a arte de nosso
tempo é resultado de uma aliança entre a técnica e o imaginário, nascendo, portanto, do
diálogo produtivo que o artista trava com a máquina. Com os dispositivos eletrônicos, abre-se
terreno para o que se pode chamar de cultura do disponível ou do virtual, algo que existe em
estado de possibilidade e que poderia ser atualizado de infinitas maneiras e, como acontece
com os objetos manipulados pela computação gráfica, a imagem é agora uma realidade
fantasmática: está presente para todos os efeitos práticos mas, a rigor, não passa de uma
equação matemática à qual se deu forma plástica, por meio de um algoritmo de visualização.
Nesse sentido, segundo Machado
70
, são importantes certas iniciativas tais como a
fundação, em 1968, do Center for advanced visual studies em pleno MIT (um dos carros-
chefe da pesquisa tecnológica e bélica em nível planetário e também pólo aglutinador de
artistas interessados em pesquisar as novas tecnologias). Também a criação da sede americana
da IBM, que reúne um núcleo de artistas em torno do matemático Benoît Mandelbrot
71
, para
66
MACHADO, 1996, p.38.
67
CONDÉ, 2006.
68
No Platonismo, concebia-se a essência como o ser verdadeiro, reconhecível na medida em que o espírito
superava o caráter enganoso e ilusório das impressões sensíveis, tornando-se apto à contemplação das formas
eternas e imutáveis da realidade.
69
MACHADO, 1996, p. 18.
70
MACHADO, 1996, p. 29.
71
Matemático francês. Inventou um novo tipo de matemática para descrever e analisar formas geométricas,
introduzindo o termo “fractal” para caracterizar sua invenção e publicou seus resultados no livro The fractal
geometry of nature. CAPRA, 1996, p. 118.
explorar as perspectivas estéticas da geometria fractal que configura as aproximações entre
arte e tecnologia.
A incursão de muitos cientistas no campo da arte é um fenômeno que tem auxiliado
também na tentativa de reunir ciência e arte. Impulsionado por esse objetivo, o American Film
Institute, de Hollywood, promoveu o encontro de quinze cientistas americanos provenientes
de áreas diversas, para orientá-los na produção de roteiros cinematográficos. Contudo,
pretendiam contribuir para que as imagens da
sobre a necessidade da adoção de novas posturas, para nos libertarmos de uma visão obsoleta
sobre a realidade. Marshall Mcluhan vai ao encontro desse pensamento ao afirmar que o que
traz singularidade ao mundo de hoje é a complexa rede de comunicações em que está imerso o
homem. Na era da eletrônica, da cibernética e da automação, ele é profundamente afetado em
sua experiência do mundo, de si mesmo e dos outros.
76
A existência dos computadores atuais está ligada a um antigo desejo do homem de
automatizar certas tarefas, sendo a Antigüidade profícua em histórias que envolvem
mecanismos automatizados tais como robôs, cabeças falantes e outras curiosas criaturas
artificiais. No final da Idade Média, passando a Europa por uma série de transformações
notáveis, muitos artefatos com aparência humana foram construídos, mas o século XVIII foi o
apogeu dessas criações.
77
Como conseqüência desse desenvolvimento, o conhecimento
técnico tornou-se central para o entendimento do mundo e o próximo passo do ser humano foi
procurar outros mundos, visitar sociedades estranhas na Lua ou no centro da Terra, buscando,
dessa forma, sugerir caminhos diferentes para suas próprias sociedades. A idéia de projetar
especulações sobre o futuro é ainda mais tardia, firmando-se no século XVIII, em obras como
L’An 2440 (1771) de Louis-Sébastien Mercier.
78
No século XIX, firma-se a Revolução Industrial que alterou não apenas a vida
concreta e cotidiana do homem, mas também o imaginário das sociedades modernas. Surgem
os primeiros autores da moderna ficção científica cuja tarefa foi, desde o início, pensar e
antecipar as conseqüências sociais, políticas e psicológicas provocadas por esse novo
desenvolvimento científico-tecnológico. As obras de Mary Shelley, Júlio Verne e H.G.Wells
refletem as inquietações dessa fase. No século XX, as tecnologias da informação abriram aos
escritores novas possibilidades para enunciar e materializar os mundos virtuais, oferecendo às
narrativas de ficção científica as mais variadas inspirações, que vão desde o questionamento
das fronteiras entre a subjetividade e a tecnociência, passando pelas possibilidades de
experiências espácio-temporais, até as antecipações de questões que atualmente precisamos
enfrentar num ambiente efetivamente dominado pela técnica e que exige posturas mais
críticas e ações compatíveis com a complexidade do momento.
79
76
MACLUHAN, 2003, p. 17-20.
77
BERTOLDI, 2000, p. 235.
78
CAUSO, 2005, p.149 -158.
79
TUCHERMAN, 2004.
Descendente do imaginário cnico-científico da modernidade e reunindo autores que
migravam de áreas diversas do conhecimento (engenheiros, médicos, físicos, matemáticos,
advogados, filósofos e químicos), a literatura de ficção científica constituiu-se como um
espaço heterogêneo, oferecendo um campo profícuo para o exercício de idéias e formas que,
atravessando as fronteiras do senso comum, romperam com a visão reducionista da realidade.
As variadas instâncias discursivas, ao atravessarem esse espaço múltiplo, chocaram-se,
provocando mudanças de perspectivas por meio de suas utopias e distopias, que causaram
efeitos de estranhamento e tensão, numa dinâmica que muitas vezes projetava o leitor num
beco sem saída. Pensar, buscar soluções e solucionar enigmas era uma questão-chave. Um
exemplo desse procedimento encontra-se na obra
clássico da ficção científica”, correspondente ao período de 1818 a 1938, quando o gênero
constituiu-se como uma vertente da literatura. Numa época em que nem se cogitava a
existência dos robôs, Mary Shelley, em sua obra Frankenstein (1815), escreveu sobre a
criação de um ser artificial e suas conseqüências para o seu criador, expressando uma fobia
que acompanharia o homem até nossos dias - o complexo de Frankenstein - termo cunhado
por Isaac Asimov para expressar o medo do homem diante de suas criaturas.
Júlio Verne, na França, escreve suas viagens extraordinárias influenciado por Edgar
Allan Poe. Nessas viagens, estavam incluídas passagens pela órbita da Terra, pelo centro do
planeta (tema de que Poe também se utilizou) e travessias no fundo do mar. Outros tipos de
ficção científica no século XIX tomam por tema a guerra futura de civilizações
desconhecidas, com aventureiros descobrindo um lugar fora dos mapas e habitado por povos
estranhos e primitivos. O mundo perdido (1912), do inglês Conan Doyle, em que dinossauros
e homens primitivos convivem num planalto da Amazônia, é um bom exemplo dessa
tendência. Surge também, nesse contexto, uma vertente mais intelectualizada, de crítica
social: o tcheco Karel Capek (1890-1938) tratou da luta de classes em R.U.R e o inglês Olaf
Stapledon (1886-1950) descreveu o futuro longínquo da humanidade em Last and First Men e
Star Maker.
82
Nessa mesma época, surge o escritor H.G.Wells cujas obras causaram impacto no
mundo todo, abrindo as portas para o romance científico. Considerado o expoente máximo da
ficção científica dessa época, Wells
83
é o autor intelectual das imagens que o homem dos
séculos XX e XXI adotou sobre o futuro. Ecos de sua literatura podem ser encontrados até
hoje em livros, jogos eletrônicos e, principalmente, no cinema. Essa literatura fantástica, filha
da Revolução Industrial, causou grande impacto no mundo. Divulgando a ciência e, ao mesmo
tempo, fazendo a crítica da sociedade vitoriana, ele explorou em seus textos os limites da
credulidade humana e o papel ambíguo da ciência para com o progresso. Percebendo que,
com a Revolução Industrial, uma massa de pessoas pobres recém-alfabetizadas estavam
ávidas por leitura, Wells elaborou uma literatura de massa, divulgada numa linguagem mais
acessível, onde discutia as idéias de evolução e segregação, salientando os resultados de um
capitalismo sem freios. A máquina do tempo, novela escrita em 1855, funda a ficção
científica tal como a conhecemos hoje e representa uma obra-prima do gênero.
82
CAUSO, 2005, p.151-152.
83
H.G.WELLS: as novas metrópoles. Scientific American. Série Exploradores do futuro. São Paulo: Editora
Duetto, [ s.d.].
Inspirados pela ficção wellsiana, Monteiro Lobato, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy-
Casares e Steven Spielberg, dentre outros, ofereceram à humanidade obras-primas da
literatura e do cinema. Jorge Luis Borges, com seu conto “O Aleph” e Adolfo Bioy-Casares,
na novela A invenção de Morel, convidam-nos a fazer uma segunda leitura que se insinua sob
a história primeira. Na novela de Bioy-Casares, somos levados a estabelecer um diálogo
intenso com A ilha do doutor Moureau, de Wells, que está presente desde o título da obra até
o conteúdo mesmo da história.
A esse respeito, no artigo “A criação pelo olhar”
84
, Maria Antonieta Pereira assim se
manifesta: “Essa sensação de irrealidade e simulação também se apresenta no texto A
invenção de Morel, de Adolfo Bioy-Casares. Enquanto ‘imaginação raciocinada’, segundo o
prefácio de Borges, a novela trabalha com elementos sugeridos pela tecnologia e pela mídia
atuais, lembrando às vezes os percursos da ficção científica”.
No Brasil, segundo o estudioso do gênero, Roberto de Sousa Causo
85
, apesar de
apresentar pouca popularidade, a ficção científica existe desde o século XIX. A obra O doutor
Benignus (1875), por exemplo, de Augusto Emílio Zaluar, traz as marcas da influência de
Júlio Verne e Camille Flammarion
86
; A Amazônia misteriosa, (1925) de Gastão Cruls, e
Viagem à aurora do mundo (1930), de Érico Veríssimo, apresentam claras citações das idéias
de H.G.Wells. Menotti del Picchia também oferece sua contribuição ao gênero com a novela
A filha do inca (1927), que relata as peripécias de uma expedição militar para encontrar uma
supercivilização escondida no Brasil Central. Já Berilo Neves e Jerônimo Monteiro
conseguiram inovar o gênero: o primeiro, que escrevia contos na década de 1920, usou a
ficção científica como ferramenta satírica contra a sociedade carioca, e o segundo, além de
escrever sobre o futuro da Terra, transformando H.G.Wells em seu personagem, na obra 3
meses no século 81, produziu um volume considerável de textos policiais cujo protagonista, o
detetive Dick Peters, usava recursos da tecnologia para prender bandidos.
Merece destaque, nessa fase clássica da ficção científica no Brasil, a obra de Monteiro
Lobato. Inspirando-se nas narrativas de Wells, ele construiu o romance O presidente negro ou
o choque das raças (1926) e as histórias contidas na série Sítio do picapau amarelo que traz a
ficção científica para o cotidiano das crianças brasileiras, valorizando a ciência e o espírito
científico. Satirizando a sociedade do momento, Lobato conseguiu levantar inúmeras
84
PEREIRA, 1995, p.180.
85
Organizador da obra Histórias de ficção científica, publicada pela Editora Ática em 2005. Realizou o estudo
pioneiro Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950 (2003).
86
Astrônomo francês, autor de numerosas obras que popularizaram a astronomia. Monteiro Lobato explica a
importância do cientista na obra Viagem ao céu, 1973, p. 18.
polêmicas no país, tendo sua obra infantil sofrido verdadeira campanha difamatória por parte
da Igreja e dos órgãos oficiais, com a queima de seus livros, numa verdadeira “caça às
bruxas” em pleno século XX.
Entretanto, com todas as novidades trazidas pela Revolução Industrial, os homens, no
início do século XX, estavam mais interessados do que nunca na tecnologia. Por meio do
cinematógrafo, os irmãos Lumière apresentaram o cinema para o mundo, oferecendo ao
francês, Georges Méliès, a oportunidade de transformá-lo em arte como criador do grande
filme do gênero, Viagem à lua (1902). Tendo escrito o roteiro, Méliès também dirigiu o
“longa-metragem” de 21 minutos, introduzindo nele efeitos especiais e a idéia de cinema
como expressão artística.
A Primeira Guerra Mundial e a crise econômica dela decorrente confirmaram que o
progresso nem sempre traz benefícios, e que a ciência, se mal conduzida, pode trazer
conseqüências desastrosas. Nesse contexto e sob essa ótica pessimista, foi lançado o filme
Metropolis (1926), dirigido pelo alemão Fritz Lang, com roteiro assinado por sua esposa e
aberto a várias reflexões que vão da luta de classes à robotização do mundo. O Robô Futura
foi o primeiro robô feminino que apareceu no cinema e, talvez, o primeiro cyborg, já que
apresenta em seu corpo uma mistura de máquina e organismo (uma máquina recoberta por
pele humana). Desde então, o cinema começou a exibir filmes com seres surgidos de
acidentes nucleares ou de laboratórios.
87
O período clássico da literatura de ficção científica é seguido pela chamada “era
dourada” (1938-1960), correspondente ao momento histórico em que ocorre a fissão do urânio
e a invenção da bomba nuclear, feito que passou a integrar uma série de revistas populares de
entretenimento. A fé no progresso científico - que havia sido abalada pela primeira grande
guerra - foi restabelecida e, quando o editor John W. Campbell
88
assumiu a revista Astounding
Science Fiction, a ficção passou a se orientar por uma base científica sólida. Emergem, nesse
contexto, autores importantes tais como Isaac Asimov
89
e Arthur Clarke.
O primeiro, além de criar todo um mundo tecnológico, povoado por robôs e mutantes,
levou para o povo - por meio da série Fundação - vários conceitos científicos, de maneira
simples e objetiva, influenciando suas vidas. Seu sucesso não se deveu, entretanto, somente
aos robôs e ao mundo da tecnologia. Seus contos agradam pelo rigor lógico e pela precisão
87
SALLUM, 2005, p. 18-19.
88
Grande escritor e descobridor de talentos, editor incansável que transformou os pulp magazines em revistas
respeitáveis.
89
ISAAC ASIMOV: homens e robôs. Scientific American. Série exploradores do futuro. São Paulo: Editora
Duetto. [ s.d.].
dos argumentos que se encaixam numa seqüência interminável mas, que por isso mesmo,
não fizeram grande sucesso no cinema, com exceção de O homem bicentenário (1999) e
Eu, robô (2004). Asimov procurou demonstrar o que representa para a humanidade o
desenvolvimento de máquinas de ace2(menctou 2(meá)-0.2o )]TJ185415 0 TD0.0081 Tc0.0024 Tw[ intligüênci,e mmeáreicedo, de
Ainda nessa fase, a visão otimista sobre as possibilidades oferecidas pela tecnologia,
começa a ser deslocada nas obras de Aldous Huxley e George Orwell: Admirável mundo novo
e 1984. Nessas ficções, os avanços da ciência e da tecnologia foram utilizados como uma
espécie de alegoria da sociedade contemporânea, sendo recorrentes as críticas às instituições
nas descrições de um futuro no qual a humanidade é controlada de modo absoluto pelas
máquinas ou pelos grandes conglomerados que monopolizam a tecnologia.
Dos anos 60 até os anos 80, surge, na Inglaterra, a fase da literatura de ficção científica
denominada “nova onda” (new Wave)
93
e comprometida com experiências formais da
narrativa. Nesse período, a efervescência cultural (permeada por movimentos pela paz
mundial, ampliação dos direitos civis e questionamento de valores tradicionais) e a corrida
espacial provocam mudanças drásticas na ficção científica. Surgem os heróis solitários,
paranóicos e angustiados com questões existenciais, em substituição aos mocinhos corajosos
da “era dourada”. Os britânicos J.G.Ballard, Brian Aldiss
94
- autor dos três contos que deram
origem ao filme Inteligência artificial de Steven Spielberg - e Ray Bradbury, dentre outros,
são nomes importantes desse período. Bradbury é conhecido como o poeta da ficção científica
pela grande quantidade de metáforas que utiliza em seus textos. Dentre suas obras, destacam-
se Crônicas marcianas, livro reeditado em 2006, cujo prefácio foi assinado por Jorge Luis
Borges, e Farenheit 451, transformado em filme pelo cineasta francês François Truffaut.
Nos Estados Unidos, desponta um novo tipo de ficção científica hard em que as
ciências exatas assumem uma função mais importante. Larry Niven e Vernon Vinge
participam desse tipo de literatura. Também surge uma ficção feminista (semente lançada por
Thea von Harbou no filme Metropolis) com a chegada de escritoras tais como Ursula Le Guin
e Alice Shelley que estavam dispostas a discutir a condição da mulher a partir de teorias
sociológicas, psicológicas e históricas.
95
Nesse momento, no Brasil, os escritores começavam a debater as questões relativas à
ficção científica. Dois livros chamam a atenção de críticos e leitores: o romance O homem que
viu o disco voador e a antologia de contos Maravilhas da ficção científica, de Rubens
Teixeira Scavone. Surgem também, nessa época, editoras importantes como a EdArt e a GRD,
tendo essa última iniciado a primorosa coleção Ficção científica GRD, inaugurada com a
obra Além do Planeta silencioso, clássico do britânico C.S.Lewis (o mesmo autor de Crônicas
93
VOGT, 2004.
94
ALDISS, 2001, p. 21-57.
95
CAUSO, 2005, p. 153.
de Nárnia, adaptado recentemente para o cinema). Ao lado de autores estrangeiros, foram
editadas obras de André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz e Rubens Teixeira Scavone. Mas
o sonho durou pouco. Com a chegada da ditadura e a conseqüente invasão por autores
estrangeiros do mercado nacional, a tônica da ficção científica, daí em diante, passou a ser a
crítica ao regime militar e à tecnocracia.
O romance Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão
96
, publicado
no ano em que a ditadura militar dava seus últimos suspiros, além de ser uma crítica ao
regime militar, faz previsões impressionantes sobre o panorama caótico do clima no planeta.
Passado um quarto de século, o livro torna-se cada vez mais atual. No lugar do “Brasil, terra
do futuro”, com suas belas e virgens matas, riquezas minerais e um povo bom e ordeiro, a
obra descortina um país com problemas de meio ambiente, sem árvores, sem água, dominado
por um sol inclemente que causa as mais estranhas doenças.
No início dos anos 80, foram criadas associações em torno de um novo instrumento
literário: o Fanzine, um tipo de revista produzida de forma amadorística, feita em fotocópia e
com tiragens simbólicas, vendida de mão em mão ou pelo sistema de assinatura. Nesse
movimento, alguns autores destacaram-se e demonstraram fôlego para seguir adiante. Assim,
foi criado o Clube Antares em Porto Alegre no qual colaborava Jorge Luiz Calife, o primeiro
nome importante da nova ficção científica, cujos romances Padrões de contato e Horizontes
de eventos foram publicados, naquela década. Nesse período, foi criado também o Fanzine
hiperespaço que, no final dos anos 90, evoluiu para a edição de novelas de bolso e, em 2003,
gerou a antologia Vinte anos no hiperespaço, apresentando uma boa seleção de autores tais
como Carlos Orsi Martinho, Roberto de Sousa Causo e Gerson Lodi Ribeiro, dentre outros.
Em 1985, surgiu, em São Paulo, com estatuto próprio, o Clube de leitores de ficção científica
(CLFC), fundado por Roberto Nascimento, dono de uma imensa coleção de obras da
especialidade, que editava o Fanzine Somnium, ainda hoje existente.
Pode-se dizer que o momento atual da ficção científica pertence à geração da Internet.
Muitos fanzines tornaram-se digitais e inúmeras páginas abriram-se na rede, acolhendo uma
infinidade de textos e de autores. Scriptonauta e Estronho são algumas das páginas nas quais
podem ser encontrados textos de ficção científica.
97
Em termos de cinema atual, houve os fenômenos Guerra nas estrelas, de George
Lucas, e Contatos imediatos de terceiro grau, culminando com ET, o extraterrestre, ambos de
Steven Spielberg. Com o desenvolvimento recente da inteligência artificial e dos efeitos
96
BRANDÃO, 2001.
97
CARQUEIJA, 2006.
especiais, utilizados pelos estúdios de última geração, foram sendo produzidos filmes de
muito sucesso como a trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski, e os demais espisódios de
Guerra nas estrelas. George Lucas criou a empresa industrial Light and Magic (ILM), em
1975, para desenvolver os efeitos dessa película. Os três filmes da trilogia utilizaram todas as
técnicas conhecidas, além dos recursos criados pelos profissionais da ILM. Um dos processos
revolucionários foi a técnica conhecida como blue screen, que consiste em filmar pessoas e
objetos com uma tela azul de fundo, que depois é substituída por um cenário em movimento,
filmado separadamente e combinado por meio de sofisticadas máscaras e recortes. A linha
evolutiva da computação gráfica foi iniciada com Tron – uma odisséia eletrônica (1982),
pioneiro no uso de cenários e personagens gerados por animação digital e Matrix alcançou o
auge dessa evolução com o bullet-time, efeito de animação transferido para atores de carne e
osso, que são fotografados inúmeras vezes em ângulos diversos e cujo resultado é a exibição
da personagem em 360 graus, numa velocidade ultralenta, como se o tempo estivesse
suspenso
98
. As técnicas do blue screen foram bastante utilizadas no filme Inteligência
artificial.
Nas décadas de 80 e 90, a narrativa de ficção científica, na literatura, hibridiza-se,
abrindo-se tanto para as questões da alteridade - adesão de mulheres, autores negros,
indígenas, caribenhos, indianos, afro e nativo-americanos - como para outros valores
literários, brincando com as noções habituais de narrativa e derrubando os limites dos
gêneros, numa tendência denominada Slipstream. Por outro lado, as descobertas científicas e
as invenções tecnológicas, com que estamos sendo confrontados atualmente, têm
desencadeado transformações individuais e sociais nesse tipo de ficção. No seio dessa
revolução, uma preocupação candente tem ocupado a mente dos teóricos e a imaginação dos
artistas: as mudanças por que o corpo humano está passando e que, de acordo com os
prognósticos, deverá passar. Segundo Lúcia Santaella
num futuro sombrio e supertecnológico. Esses dois estilos costumam interagir numa mesma
obra. É o caso do romance Neuromancer, de William Gibson e da trilogia Matrix, dentre
tantos outros, que misturam as duas estéticas.
100
O período denominado cyberpunk tem como característica a assimilação da cultura de
massa à ficção científica, envolvendo elementos como a cultura hacker, o rock e a própria
cultura do computador como um todo. Essa abordagem abre espaço para novos
questionamentos e para a diminuição das diferenças entre animais, humanos e andróides,
apresentando também características marcantes dos romances de ficção gótica do século
XVIII, cujo exemplo clássico é o Frankenstein, de Mary Shelley.
101
Inspirado pela ideologia anarquista e pela desobediência civil pregadas pelo
movimento punk, o estilo cyberpunk questiona as relações de poder e o monopólio do uso das
novas tecnologias na sociedade contemporânea por meio do hacker, personagem capaz de
roubar ou manipular dados, piratear softwares e, assim, lutar contra o sistema. Já por meio do
cyborg - figura-chave desse tipo de ficção – procura-se representar a relação homem-máquina,
expressando a perda da estabilidade entre as fronteiras do que seria artificial ou natural. O
apagamento de fronteiras, simbolizado por esse tipo de personagem, seria a expressão da
própria subjetividade pós-moderna.
102
Outra tendência, que desponta neste início de século, é a space opera, um estilo que
está atualizando a aventura espacial com muita política, crítica social e humor. Um dos
representantes dessa corrente é o britânico Douglas Adams, escritor que se envolveu
profundamente com a literatura e a ciência. Autor da série O guia do mochileiro das galáxias
começou sua história com programas de rádio, depois transformados em livro. Unindo
filosofia e humor, a obra apresenta situações absurdas vividas por um anti-herói que, numa
viagem bizarra pela Galáxia, descobre que a verdadeira história da Terra é a resposta final à
grande pergunta da vida: Quem somos nós?
103
O caminho percorrido pela ficção científica mostrou-nos que, em cada uma de suas
fases, ela se preocupou com questões próprias de sua época. Tais problemas foram projetados
no futuro ou transformados em metáforas do presente para que, por meio da ficção, os autores
pudessem afetar seus leitores, buscando uma maior conscientização para as mazelas causadas
à sociedade pelo mau uso da tecnologia.
100
CAUSO, 2005, p.154.
101
VOGT, 2004.
102
Idem, 2004.
103
ADAMS, 2004.
A narrativa da fase clássica registrou o espanto do homem frente aos desenvolvimentos
técnicos trazidos pela Revolução Industrial e a da era dourada procurou orientar-se por uma
base científica sólida, criando mundos tecnológicos povoados por robôs e utilizando os
avanços científicos e tecnológicos como alegorias da sociedade contemporânea para fazer
críticas às instituições que monopolizavam a tecnologia. Já na fase new wave, essa literatura
mostrou-se comprometida com as experiências formais e com as questões existenciais,
abrindo-se, em seguida, para a alteridade e a desconstrução formal.
Em sua fase recente, ela dialoga com o movimento cyberpunk que tem procurado
refletir criticamente sobre o corpo humano em suas relações com as novas tecnologias. Sua
aceitação, hoje, ocorre exatamente pelas potencialidades que o tema encerra, abrindo
oportunidades para a difusão dos paradigmas científicos com vistas a examinar a relação entre
ciência, arte, tecnologia e sociedade, e oferecendo, dessa forma, recursos para se desenvolver
o pensamento crítico com relação à utilização artística dos métodos científicos e tecnológicos
no contexto em que vivemos.
Descrevendo mundos virtuais sem renunciar à verossimilhança, e utilizando-se dos
avanços científicos como apoio para materializar e enunciar mundos virtuais, o gênero mostra
sua preocupação em sintonizar-se com a ciência de seu tempo para projetá-la no futuro
próximo ou distante, enquanto possibilidade, tomando cuidado para que suas especulações
sejam verossímeis e possam servir para que o público reflita sobre seus alcances, visto que a
maior parte do contato das pessoas com a ciência se dá por meio da mediação do cinema ou
da literatura.
104
Em A chave do tamanho, há, como nas demais histórias de ficção científica, um
deslocamento conceptual (viagem a uma outra dimensão da consciência) que oferece a
oportunidade para que um novo mundo virtual emerja, enquanto simulacro literário do
potencial dos avanços científicos. O mundo dado, nessa história, serve para especular sobre as
mudanças de perspectiva numa determinada realidade e suas conseqüências na vida das
pessoas. Vista, por esse ângulo, podemos pensar na obra como uma metáfora do presente que
busca levantar uma discussão sobre o papel ambíguo do progresso em nossa sociedade.
Ao permitir a intervenção de Emília na humanidade, quando esta, ao procurar uma
solução para a Guerra, move a chave que regula o tamanho dos homens, Monteiro Lobato
parece estar propondo a utilização da nanotecnologia avant la lettre. O título da obra também
parece sugerir tal proposta: assim como o tamanho poderia ser, na história, a chave que abriria
104
QUINTANA, 2004.
as portas para uma visão revolucionária da vida, a nanotecnologia, do ponto de vista
científico, também foi a chave que abriu as portas para inúmeras conquistas tecnológicas. Por
meio da crescente miniaturização da tecnologia, aplicada aos mais variados campos do saber,
a nanotecnologia avança, segundo Santaella
105
, de maneira extraordinária, principalmente, na
área da protética que promete, nos anos vindouros, uma grande integração entre o tecido
orgânico e a máquina.
Sob essa perspectiva - o mundo em A chave do tamanho foi miniaturizado - o autor
instaura um debate sobre os benefícios e riscos da tecnologia e do conhecimento, anunciando
a possibilidade de se criar todo um mundo de pensamento a partir da situação do
apequenamento dos seres humanos. De fato, é a partir desse prisma que se pode observar na
narrativa, por meio das ações da Emília, a busca por aquisição de novos conhecimentos a
partir de um processo - a rede autopoiética - que se estabelece entre o ser, o -1.a6(a)4
a quMniatangia Vareli a cisma5
605
Eu sempre achei graça na “prosa” dos homens com as invenções lá deles.
Que são as invenções dos homens perto dos milhões de inventos destes
bichinhos? Não há pulgão que não tenha vários inventos para a defesa, para
conseguir alimento, para morar - ou como diz o Visconde, para “sobreviver”
num mundo onde a tal Seleção só tem duas palavras na boca: “Isca! Pega!”
109
A lembrança do almoço da corruíra fê-la lembrar-se do estômago. Ainda não
tinha comido coisa nenhuma. Que poderia comer naquele jardim? Se fosse
ave, nada mais simples, porque não faltavam insetos; mas era gente e gente
não come insetos - isto é come içá torrado e gafanhotos. Dona Benta havia
dito que São João no deserto se alimentava de gafanhotos e mel.
110
É importante ressaltar também a seguinte questão: uma nova situação, como a que foi
vivenciada por Emília, vai exigir da aprendiz a percepção de que as velhas idéias não servem
mais para expressar a nova realidade. Outros conceitos devem, pois, ser elaborados. O trecho
abaixo pode esclarecer esse aspecto:
A situação era3(a)11se (a)11s(l)4.1(002uãa)14.7(ão )64poleioet6.52uet6.52uet6.52uet6.52buur
ficaria ao encargo das formigas que já tinham nascido carregadoras. O aproveitamento dos
materiais da natureza abre, por meio da história, a nossa percepção para um novo tipo de
tecnologia cujas possibilidades pareciam ao sábio infinitas. Com relação a essa experiência,
Emília assim se manifesta:
- Isso mesmo! Domesticaremos os serra-paus, para serrar paus. E as brocas
das laranjeiras para servirem de verrumas. E os mede-palmos para as
medições. E os pernilongos para a música do fiun. E os gafanhotos para
substituírem as pontes - pularemos riozinhos montados neles! E os
caranguejos para abrirem túneis. E as taturanas para tecerem fios de casulo.
E as mamangavas para buldogues de nossas casinhas. Com uma boa
mamangava amarrada no quintal, quero ver quem entra!?
112
Para o vestuário, os habitantes de Pail City contavam com tangas feitas de papel ou de
musgo. Para a leitura, como os livros não serviam mais, o sábio afirma que se, antes deles, já
havia cultura, a humanidade contaria, agora, com a memória por meio da qual se poderia
transmitir a ciência de uma cabeça para a outra. Para a escrita, o sábio sugere as pétalas secas
que Emília chamou de “papirinhos”
113
. Já para as obras de engenharia, poderiam contar com
as térmites que, além de construírem maravilhosas cidades de barro, dentro delas constroem
galerias com uma substância preta, a celulose, que, segundo o antropólogo, equivale a um
maravilhoso material de construção resistente, elástico, higiênico e mau condutor do calor.
Por meio das mais variadas atividades adaptativas realizadas pela comunidade da
Cidade do Balde, o Dr. Barnes esperava que os homens não apenas subsistissem mas que
pudessem criar uma nova civilização muito mais agradável que a velha sem os horrores da
desigualdade social, da fome e das inúteis complicações criadas pelos inventos mecânicos.
Para ele, a nova civilização estava livre do fogo e do ferro. Sua filosofia pode ser resumida no
trecho abaixo:
Aquele tipo de civilização que havíamos realizado,era uma simples
conseqüência do fogo. Enquanto o homem não descobriu o fogo, viveu
muito bem dentro da lei biológica, a civilizar-se lentamente. Veio o fogo e
tudo mudou - começou o galope sem fim. (...) Tudo naquela civilização era
um produto do ferro, continuou o sábio, e o ferro era filho do fogo. Estamos
livres do fogo e de seu filho o ferro e das mil reinações que os dois faziam
no mundo, como as grandes guerras em que tudo era ferro e fogo. Estamos
livres até da tremenda multiplicação dos homens sobre o planeta.
114
112
LOBATO, 2005, p. 77
113
LOBATO, 2005, p.75.
56 LOBATO, 2005, p. 74.
57 SWIFT, 1979, p. 141.
Outra questão relevante, abordada na obra, diz respeito à ecologia. O homem, em relação
à Terra, é um ser minúsculo mas, mesmo assim, tem acarretado, com suas ações, muitos males
ao planeta. O gesto de Emília (uma boneca de quarenta centímetros), ao abaixar a chave, nesse
sentido, é simbólico: causa um problema mundial. Não se pode subestimar a força do
pequenino, é o que nos diz Monteiro Lobato em seu conto, “Os pequeninos”, publicado em seu
livro Negrinha
115
, reforçando a sua filosofia, exposta em A chave do tamanho. Trata-se de um
pequeno gavião que, descobrindo um ponto fraco da maior ave brasileira, a ema, vai sugando o
seu sangue até a morte. O autor termina o conto de maneira que comprova essa sua filosofia:
“Hum! Sempre a mesma coisa – o pequenininho a derrubar o grande”.
O Visconde se espanta com esse gesto do pequeno: como pode uma boneca interferir no
tamanho da humanidade? Não é preciso se espantar, basta verificar o que o homem está
fazendo contra a natureza, como tem interferindo em suas leis. Mas o Visconde é um sábio e,
como tal, vive profundamente absorto em suas especulações. É o que acontece também com os
sábios laputianos (região de Laputa, ilha flutuante, referida na obra Viagens de Gulliver de
Jonathan Swift) que, para acordarem de suas profundas reflexões, tinham que ser “acordados”
por batedores que os cutucavam com uma vara, restituindo-lhes a memória.
116
Sob a perspectiva do apequenamento, pode-se perceber, ainda, que o autor procura
realçar o estabelecimento de uma nova ética no contexto dessa nova situação: novos valores
surgem para orientar os homens em sua relação com o meio ambiente, numa atitude de respeito
e amor para com a natureza.
Enfim, do ponto de vista da filosofia nanotecnológica de Monteiro Lobato, o tamanho é
que era o responsável pelo caminho errado que a humanidade havia tomado. Segundo o
Visconde, o tamanho era o mal, era ele que produzia escassez e seria no “destamanho” que se
encontraria a abundância. Ao que o narrador retruca: “Aquele história de andar com a Emília
em cima da cabeça estava ‘emiliando’ o Visconde. – Destamanho! É boa”.
117
Além da filosofia nanotecnológica, cruzam-se, na narrativa de A chave do tamanho,
outros discursos científicos e filosóficos. Dentre eles, podemos citar o evolucionismo, a teoria
da relatividade e o relativismo de que já tivemos oportunidade de falar no primeiro capítulo
desta dissertação. Utilizando o procedimento da interdiscursividade, o autor tece sua trama
por meio desses fios sutis, cujo ponto de interseção parece ser seu próprio discurso. O trecho
abaixo deixa transparecer o discurso evolucionista, oriundo das constatações da própria
115
LOBATO, 1994, p. 137-147.
116
SWIFT, 1979, p. 135-197.
117
LOBATO, 2005, p. 78.
Emília, que se serve das “teorias do Visconde” para compreender a própria realidade em que
está inserida.
- Que mundo este, Santo Deus - murmurou, muito atenta a tudo quanto se passava
em redor. É o tal “mundo biológico” de que tanto o Visconde falava, bem diferente
do “mundo humano”. Diz ele que aqui quem governa não é nenhum governo com
soldados, juízes e cadeias. Quem governa é uma invisível Lei Natural. E que Lei
Natural é essa? Simplesmente a Lei de Quem Pode Mais.
118
Pode-se apreender também, por meio das noções da teoria da relatividade, que as
transformações operadas na antiga ordem afetam a percepção do tempo e do espaço, como se
pode observar pelas palavras do narrador: “Como atravessar a pé os cem metros do terreiro?
Cem metros antigamente pouco significavam para a Emília ‘grande’, mas agora, ah, exigiam
33.333 passos, visto como o seu passo se reduzira a 3 milímetros”.
119
A narrativa de Inteligência artificial, utilizando-se também do procedimento do
deslocamento conceptual (viagem ao futuro da humanidade), levanta questões filosóficas,
morais, éticas e ecológicas que podem abrir caminho para debates em nossa sociedade. Uma
delas refere-se ao derretimento das calotas polares com a conseqüente mudança climática, um
alerta para a possível destruição do planeta. Outra discute a questão da criação dos robôs,
formulando princípios e valores que deveriam orientar a relação do homem com o mundo e
com a inteligência artificial.
Na primeira cena do filme, Spielberg formula as razões que levaram ao
desenvolvimento de seres mecânicos complexos e as questões éticas delas decorrentes. O
professor Hobby, diretor da Cybertronics, propõe a construção de uma criança-robô que, além
de ter fala e membros articulados e reações humanas, seja capaz de amar de verdade seus pais
adotivos. Um exemplo da irresponsabilidade do homem perante suas criações, encontra-se na
própria história de David que é adotado para aliviar a dor da perda de uma mãe e, depois,
abandonado à sua própria sorte.
O pequeno robô, projeto da sua empresa, seria programado para amar, desenvolvendo
todo um mundo de sonhos, metáforas, intuição e raciocínio próprio. Sobre essa “máquina” se
ergueria o edifício da nova sociedade proposta pela robótica “bio-inspirada” do professor
120
.
Nessa mesma cena, numa representação de um diálogo socrático, uma colega do professor
introduz uma questão que leva a refletir sobre a responsabilidade do homem diante de seus
empreendimentos. Para ela não de tratava apenas de um robô que poderia amar, mas sim, de
118
LOBATO, 2005, p. 18.
119
LOBATO, p. 13.
120
QUINTANA, 2004.
como um ser humano poderia corresponder a esse amor. O vocábulo “Sócrates”, uma das
palavras-chave do código para a programação de David, estabelece a relação com a cena.
121
Ao investigar as razões que teria a raça humana para criar andróides inteligentes,
capazes de sentir e amar, o filme também mostra como os robôs tornaram-se peças
importantes na estrutura econômica da sociedade após o mundo sofrer as conseqüências
catastróficas do aquecimento global. Como os recursos naturais foram dizimados pela
calamidade, muitas pessoas morreram de fome e o governo foi forçado a restringir a
natalidade, medida que tinha por fim economizar a alimentação, visando a garantir a
sobrevivência da espécie.
Dessa forma, cruzando ciência, arte e tecnologia e dialogando sempre com a cultura, o
gênero vem ganhando respeitabilidade e notoriedade, fazendo-se presente por meio de seus
questionamentos que, abrindo brechas nos paradigmas de hoje, desencadeiam debates e se
materializam em ações produtivas para a sociedade. Monteiro Lobato e Steven Spielberg
certamente escolheram a ficção científica para compor suas histórias, devido à sua natureza
transversal, híbrida e múltipla que, concedendo maior flexibilidade ao texto e à tela, permitem
à imaginação exercer seu papel, oferecendo soluções narrativas mais adequadas à expressão
de idéias inovadoras. Essas são excelentes razões para que possamos valorizar o gênero,
incluindo-o em nossas discussões em salas de aula e tomando-o como ferramenta de
criatividade na produção de textos.
121
Idem, 2004.
CAPÍTULO 3
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:
O CORPO SOB EFEITO DA TECNOLOGIA
O doutor escolheu uma pílula falante e pôs-lhe na boca.
- Engula duma vez! - disse Narizinho, ensinando à Emília como se engole pílula. E
não faça tanta careta que arrebenta o outro olho.
Emília engoliu a pílula, muito bem engolida, e começou a falar no mesmo instante.
A primeira coisa que disse foi: “Estou com um horrível gosto de sapo na boca”! E
falou, falou, falou.
(Reinações de Narizinho)
Mônica pôs a mão na nuca do robô, repetindo vagarosamente as palavras que
compunham o código da programação:
- Cirro, Sócrates, partícula, decibel, furacão, golfinho, tulipa.
- Por que essas palavras, mamãe?
- Do que você me chamou?
- Mamãe.
- Quem sou eu, David?
Ele se abraçou a ela e respondeu:
- Você é a minha mamãe.
(Filme Inteligência artificial)
Criar um ser artificial foi o sonho do homem desde os primórdios da ciência. Não
só no início da era moderna quando nossos ancestrais criaram as primeiras
máquinas pensantes, monstros primitivos que sabiam jogar xadrez. Vejam onde
chegamos! O ser artificial é hoje uma realidade, um simulacro perfeito, com
membros articulados e provido de reações humanas. Agora eu proponho que
construamos um Meca racional com uma resposta neuronal. O que eu sugiro é que
o amor seja a chave com a qual ele irá adquirir uma subconsciência jamais
alcançada, um mundo interior de intuição, de raciocínio próprio, de sonho.
(Filme Inteligência artificial)
O trecho em epígrafe foi retirado da primeira cena do filme Inteligência artificial, de
Steven Spielberg, o qual formula as razões que levaram ao desenvolvimento de seres
mecânicos complexos e as questões éticas delas decorrentes. O visionário professor Hobby,
diretor da Cybertronics de New Jersey, propõe a construção de uma criança-robô que, além de
ter membros articulados, fala articulada e reações humanas, seja capaz de amar de verdade
seus pais adotivos. Assim, David é construído, o primeiro robô que, inspirado pelo amor, foi
capaz de empreender uma jornada para torná-lo real.
Criar um ser à sua imagem e semelhança sempre foi uma aspiração remota do homem.
Sonhando, ele teceu seus mitos que, alimentando sua imaginação, instigaram-no à criatividade
por meio da arte e da ciência. A literatura oral - fonte inesgotável de mitos, lendas e fábulas -
efetuou a propagação de histórias que expressavam, desde os primórdios da humanidade, esse
desejo do homem de construir artefatos que o representassem, histórias que, mais tarde, foram
registradas com a descoberta da escrita e que, um pouco adiante, a ciência ajudou a
materializar. A Revolução Industrial, no século XIX, foi a responsável pelo enriquecimento
do imaginário social, oferecendo aos escritores, por meio do desenvolvimento técnico e
científico, os recursos de que necessitavam para a criação literária.
Uma grande variedade de mitos profanos e religiosos desde Prometeu - que roubou o
fogo do céu para oferecê-lo aos seres humanos, passando por Pigmalião, escultor grego que se
apaixonou pela estátua que havia esculpido, e alcançando a Renascença com Michelangelo
que, maravilhado com a perfeição de seu “Moisés”, ordenou que ele falasse - alimentou a
imaginação do artista e do cientista, auxiliando-o a modelar as máquinas inteligentes da
atualidade. Dentre esses mitos (religiosos ou seculares) encontra-se O golem, que segundo
Cornelsen
122
, foi o monstro antropomorfo que mais prosperou no imaginário ocidental, sendo
reproduzido, por meio de robôs, cyborgs, clones, mutantes, dentre outros, nas narrativas de
contistas, novelistas, dramaturgos, romancistas e poetas, ganhando em 1915, a primeira versão
cinematográfica - O Golem (Der Golem) - de Paul Wegener e Henrik Galeen.
O grande boneco de argila, segundo o autor, foi modelado por um rabino de Praga para
defender seu gueto que estava sendo saqueado. Quando este ficou pronto, o rabino
assoprando-lhe as narinas, escreveu em sua testa a palavra hebraica emet, que significa
verdade, e a criatura imediatamente começou a mover-se. Aconteceu, então, que o boneco não
parou mais de crescer, e o rabino, amedrontado com sua própria criação, apagou de sua testa o
primeiro alef, restando a palavra met, que, em hebraico, significa morte, e a criatura
desfaleceu no mesmo instante. Os cibernéticos associam esse mito aos computadores, sendo
seu aspecto distintivo mais importante a manipulação pelos cabalistas das letras sagradas que
animam a criatura, em tudo semelhante à atual manipulação, pelos bioquímicos, do código
genético dos seres vivos.
123
De acordo com Pereira
124
, para falar de sua origem, o mundo ocidental e o cristianismo
recorrem ao verbum que, ao encarnar a própria idéia de Deus, funciona como o começo
histórico-religioso que confere ao homem a explicação de si mesmo e de seu mundo. Assim,
acrescenta a autora, ao escolher como suporte fundamental os conceitos gregos de logos e
biblos, as idéias latinas de parabola e textum e a concepção hebraica de qabbalah, nossa
civilização se desenvolveu como uma extensa narrativa repleta de auto-referências e
subordinada ao poder da palavra, feito que favorece a imaginação, a ficção e o invento.
Dessa forma, todos esses seres, criados pela imaginação do homem, tornaram-se
humanos por uma intervenção externa, quase sempre mágica. Em alguns casos, como o do
golem e o da boneca Emília, por exemplo, a linguagem assume um papel fundamental no
processo anímico. Aquele foi vivificado por meio da manipulação das letras sagradas, mas a
animação de Emília realizou-se num processo inverso, preferindo o autor recorrer aos
recursos da ciência e da tecnologia: às famosas pílulas do doutor Caramujo. Na obra
Reinações de Narizinho
125
, podemos observar o valor que a menina dá ao doutor justamente
porque ele utiliza procedimentos científicos para curar.
O doutor Caramujo foi chamado às pressas para consertar a taturana e o besouro.
122
CORNELSEN, 2004, p. 39-67.
123
Idem, p. 39-67.
124
PEREIRA, 2001, p. 21-22.
125
LOBATO, 1973, p.20.
- Que bom cirurgião! - exclamou Narizinho, vendo a perícia com que ele arrolhou a
taturana e consertou o besouro. E trabalha cientificamente, refletiu a menina, notando
que, antes de tratar do doente, o doutor nunca deixava de fazer o “diagnóstico”.
Emília constitui-se, por efeito das pílulas do doutor Caramujo, num ser eminentemente
lingüístico, cuja expressão original e anti-convencional por excelência, surpreende a todos: ela
desmascara as palavras, explorando a ambigüidade e os trocadilhos até os extremos do
nonsense, transmitindo uma noção ao mesmo tempo lúdica e prática da linguagem. Quando
começou a falar, “abriu sua célebre torneirinha de asneiras”, trocando as sílabas das palavras,
mostrando a todos que sua fala não estava ainda “bem ajustada”: “Só acordei quando o doutor
Cara de Corujíssima me pregou um liscabão”. Ela queria dizer “beliscão”.
126
Se Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo, “com olhos de retrós
preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa”
127
, foi criada por tia Nastácia, o
Visconde de Sabugosa veio ao mundo pelas mãos de Pedrinho. Seu nascimento também é
narrado na obra Reinações de Narizinho, no capítulo intitulado “O pedido de casamento”.
Emília não queria casar-se com Rabicó, e Narizinho, para convencê-la, diz que ele era filho de
um Visconde. Então a menina corre ao pomar e pede a Pedrinho que faça um Visconde de
sabugo, bem respeitável, de cartola na cabeça. E assim foi feito.
É curioso observar que o processo de desenvolvimento da identidade do Visconde de
Sabugosa não foi fácil, passando este por muitas dificuldades para definir seu jeito de ser:
desapareceu, embolorou e morreu várias vezes, mas foi sempre ressuscitado por tia Nastácia.
Em Os doze trabalhos de Hércules, além de passar por um período de loucura, tal qual Dom
Quixote, ao participar de uma festa dionisíaca, ele bebe alguns tragos e começa a exceder-se,
fazendo coisas de matar de vergonha Dona Benta e tia Nastácia. Desconsolada com tal
mudança do sábio, Emília manifesta-se da seguinte forma: “Assim que chegarmos ao Sítio,
temos de pedir à tia Nastácia para reformar o Visconde. Este está cafajéstico demais. O bom
era o antigo”
128
. Edgard Cavalheiro
129
, biógrafo de Monteiro Lobato, ao tecer comentários
sobre os personagens do Sítio do picapau amarelo, apresenta uma explicação para tal fato:
para ele, o Visconde representa, na obra, o filósofo passivo, sábio complicado e pernóstico.
Por meio dele, o autor se vinga das pessoas pedantes e complicadas como é o caso dos
retóricos.
126
Idem, p. 41.
127
Idem. p. 11.
128
LOBATO, 1973, p. 122.
129
CAVALHEIRO, 1955, p.18
Por outro lado, Emília apresenta um desenvolvimento que caminha, cada vez mais,
para uma definição de sua identidade, evoluindo tanto física quanto mentalmente já durante a
primeira história da série – Reinações de Narizinho. Primeiro começa a falar, depois, a contar
histórias, e vai, paulatinamente, por meio das experiências vividas no Sítio, agregando
características à sua personalidade. Dependendo da situação, é interesseira e autoritária ou
exibe qualidades marcantes: possui grande desenvoltura para falar, suas idéias são geniais -
ela é a “dadeira” de idéias do grupo e é dotada de percepção extra-sensorial – apresenta “visão
telescópica”, conseguindo captar o invisível, como acontece em Viagem ao céu
130
onde
enxerga os marcianos, coisa que passa despercebido a todos. Ela se desenvolve tanto que, no
último livro da série, Os doze trabalhos de Hércules , é elevada à condição de fada porque,
sob a ação de sua varinha de condão, todos se transformam.
Como vimos, a capacidade de o futuro ocupar a imaginação tem sido uma característica
permanente da condição humana, expressa em mitos, desenhos, rituais, produções literárias e
filmes de ficção científica. Muito antes do cinema, portanto, a literatura, segundo Pereira
131
, já
alimentava o olhar do leitor com inúmeras obras tematizando a criação. No ocidente, além dos
textos genesíacos dos gregos, da Bíblia e da Torah, as figuras de sereias, golems, ciclopes,
centauros e górgonas recolocam o tema da criação de seres híbridos, questionando a imagem
puramente humana e, portanto, lembrando a possibilidade de seu desaparecimento.
Assim, além dos seres artificiais criados por Mary Shelley e H.G. Wells, outros
escritores, especialmente contistas, dedicaram-se, desde o século XIX, a construir suas
narrativas, utilizando-se dos recursos da inteligência artificial para discutir temas importantes
para a humanidade. Mas foi só a partir de um artigo escrito em 1949 pelo matemático
britânico Alan Turing (1912-1958), considerado um dos pais da moderna computação - “As
máquinas podem pensar?” - que se começou a especular sobre a possível inteligência das
máquinas. Ele propôs um experimento chamado de Teste de Turing, um “jogo da imitação”
em que uma pessoa conversaria escrevendo por meio de dois terminais com um computador e
com um humano. Caso essa pessoa não conseguisse, depois de alguns minutos, descobrir qual
dos dois interlocutores era a máquina, então esta poderia ser considerada inteligente.
132
O primeiro experimento feito para realizar esse teste foi denominado Eliza, um
programa criado em 1966 pelo pesquisador Joseph Weizenbaum, do MIT, e simulava uma
psicóloga virtual que usava trechos das falas dos usuários para compor respostas, estimulando
130
LOBATO, 1973, p. 38.
131
PEREIRA, 1995, p. 179.
132
WHITBY, 2004, p. 29-33.
o “paciente” a se aprofundar cada vez mais nos detalhes de seus problemas. Esse jogo, nova
modalidade de comunicação tal como a prevista por Turing, está se tornando realidade dentro
da Internet: a conversa entre seres humanos e robôs virtuais já é possível por meio dos
recursos da Inteligência artificial. Programados para conversar sobre os mais diversos
assuntos, esses robôs, também conhecidos como chatterbots (chat: conversa; bot: robô), são
na verdade sofisticados programas de computador que conseguem entender e responder
coerentemente às frases e perguntas dos usuários como se fossem pessoas em uma sala de
bate-papo.
133
Ainda não chegamos ao resultado previsto por Turing. Se, hoje em dia, os robôs
evoluíram e conseguem ter recursos como memorizar, contextualizar fatos, buscar respostas
em diversas bases de dados, compreender gírias e abreviações, responder em diversos idiomas
e até ficar horas conversando sem repetir as respostas, com dezenas ou centenas de usuários
ao mesmo tempo, ainda existem muitas limitações nas questões relacionadas à Inteligência
artificial, principalmente, no que se refere aos mecanismos da inteligência humana.
Curiosamente, o escritor e jornalista americano Ambrose Bierce antecedeu, em cinco
décadas, a proposta do matemático inglês. Em 1894, escreveu o conto “O feitiço e o
feiticeiro”
134
, cuja originalidade não está apenas na história de um robô que joga xadrez, mas
também na percepção das implicações filosóficas da invenção de um mecanismo dotado de
inteligência que será mais tarde, como vimos, uma das maiores preocupações de escritores e
cineastas como Isaac Asimov, Stanley Kubrick e Steven Spielberg.
Antes de Bierce, entretanto, outros escritores usaram autômatos e máquinas dotadas de
inteligência em trabalhos de ficção: basta citar Herman Melville em The bell tower (A torre
do sino) e Samuel Butler em The book of machines (O livro das máquinas). Mais tarde, em
1932, a história de John Wyndham – “A máquina perdida”
135
- apresentando um robô como
protagonista, introduz novidades: uma delas é a técnica narrativa, pois a história é contada do
ponto de vista do robô, e a outra é a transgressão do complexo de Frankenstein já que
apresenta, como protagonista, um robô bondoso e inteligente. O conto “Rex”
136
, de 1934, do
escritor Harl Vicent, introduz a figura do cyborg. Rex era um robô cirurgião que, fazendo uma
experiência no corpo de um engenheiro que se acidentara, substitui um grupo de células
neuronais por uma placa, retirando o núcleo de suas emoções. À página 77, diz o narrador:
“Estavam prestes a dar à luz uma nova raça de supercriações; e não se perturbavam, de forma
133
SIQUEIRA, 2005.
134
ASIMOV, 2005, p. 20-32, v. 1.
135
ASIMOV, 2005, p. 35-58, v.1.
136
Idem, p. 59-79, v.1.
alguma, com o fato de que seriam, em parte, humanas e, em parte, máquinas. [ ... ] A nova
cota de seres híbridos iria de vento em popa”.
Em 1940, Isaac Asimov escreveu sua primeira história de robôs, explorando, em seu
conto “Robbie”
137
, o desenvolvimento de máquinas de alto grau de inteligência. Esse conto,
segundo o autor, sofreu a influência de um autômato que vira exposto na Feira Mundial de
Nova York, em 1939 - um exemplo curioso do permanente cruzamento entre a imaginação
literária e a técnica
138
.
Se histórias de robôs eram bastante comuns na literatura de ficção do século XIX, a
construção do primeiro robô só aconteceria décadas mais tarde. A palavra robô, que vem do
termo robota (em tcheco, significa trabalho ou serviço repetitivo), aparece em 1921 no teatro,
na peça do autor tcheco Karel Capeck, intitulada R.U.R (Os robôs universais de Rossum).
Seis anos depois, a inteligência artificial estréia no cinema com o filme Metropolis, de
Fritz Lang e Thea Von Harbou: o cientista Rotwang cria o Robô Futura, máquina que,
disfarçada de Maria, a líder do proletariado, leva os operários à desobediência. Esse robô já
traz as marcas do cyborg, pois é uma máquina revestida de pele humana. A partir daí os robôs
humanóides vão proliferar na ficção científica de nossa sociedade tecnológica. Dentre eles,
podemos citar o robô da família Robinson, na série de TV Perdidos no espaço (1965 -1968),
de Irwin Allen, o computador Hal, de 2001: uma odisséia no espaço (1968), de Stanley
Kubrick e os robôs da trilogia Guerra nas estrelas de George Lucas, dentre muitos outros.
3.1- A inteligência artificial – da imaginação à realidade
Vimos, no primeiro capítulo dessa dissertação, que o mundo mudou bastante desde o
século XX. Muitas coisas foram descobertas com o desenvolvimento da ciência - da mecânica
quântica à engenharia genética. Espantosamente, começamos a perceber que o universo se
dilatou com as novas conquistas, enquanto nosso planeta diminuiu já que, hoje, além de
podemos ter uma noção exata de seus limites, também podemos viajar de um ponto a outro
apenas ao toque do botão de um computador. As conquistas trouxeram progresso para a
humanidade mas, ao mesmo tempo, os problemas aumentaram e se tornaram mais complexos.
O homem precisa, agora, viajar para dentro de si mesmo, para entender melhor a realidade de
seu microcosmo. Muitas pesquisas têm sido realizadas na área da neurobiologia e das ciências
cognitivas para que se venha a compreender melhor o cérebro humano, seu funcionamento e
137
Idem, p. 80-106, v.1.
138
Idem, p. 7-18, v.1.
as formas de aumentar a sua eficácia. A sociologia, a antropologia, a psicologia e a
cosmonáutica, dentre muitas outras disciplinas, estabelecendo alianças entre si e a
computação, vieram somar-se a esses esforços tendo como objetivo a expansão da percepção
do universo pelo homem.
Nesse sentido, um passo decisivo foi dado. O cosmonauta russo Iúri Gagárin mudou a
história da civilização humana em 12 de abril de 1961, ao realizar o primeiro vôo espacial.
Pela vigia de cristal da nave Vostok, ele viu e transmitiu para o planeta inteiro um mundo
pequeno e delicado – um aquário com ilhas e continentes girando em torno do sol. Para que
tal façanha acontecesse, foram necessários milênios de paciente acumulação de
conhecimentos e experiências. O equipamento, que esteve presente nos bastidores da era
espacial e foi o principal beneficiado pela exploração cósmica, impondo-se agora em todos os
lugares, é o computador, que revolucionou a cultura humana, na segunda metade do século
XX
139
.
O momento em que os computadores conquistaram definitivamente o mundo talvez
possa ser localizado em 1992, quando as ações da Microsoft superaram as cotações da
General Motors. As bolsas indicavam que os investidores enxergavam o futuro na informação
e não mais na solidez aparente de bens como automóveis e geladeiras. Nesse momento,
começou um processo de desmaterialização do mundo: os padrões de riqueza, antes
representado pelas terras, pelo ouro, ou pelo papel moeda, passaram a ser identificados com a
informação. A verdade retorna a Francis Bacon, um dos pais da ciência moderna, quando ele
afirma que “conhecimento é poder”.
140
Como foi assinalado no segundo capítulo desta dissertação, a existência dos
computadores atuais está ligada a um antigo desejo do homem de automatizar certas tarefas
que envolviam trabalhos repetitivos e atividades de risco. A primeira experiência de
automatização aconteceu na pré-história e está intimamente associada à caça e à armadilha. A
Antigüidade está repleta de histórias envolvendo mecanismos de alguma forma automatizados
- robôs e cabeças falantes - e o século XVIII foi o apogeu dessas criações.
Se a palavra “robô” foi popularizada em 1921, o sonho humano de criar aparelhos
robóticos existe há milhares de anos. Nas mitologias grega e romana, os deuses da metalurgia
construíam ajudantes mecânicos feitos de ouro. No século I, Heron de Alexandria - o grande
engenheiro a quem se credita a criação do primeiro motor a vapor - desenhava curiosos
autômatos. O esboço de um cavaleiro mecânico feito por Leonardo da Vinci em 1495, capaz
139
BERTOLDI, 2000, p. 234.
140
BERTOLDI, 2000, p. 234.
de sentar-se e mover braços e pernas, é considerado o primeiro robô humanóide. As pesquisas
sobre a anatomia humana de Da Vinci ajudariam, posteriormente, na criação de articulações
mecânicas: a partir de seus estudos, surgiram bonecos que moviam mãos, olhos e pernas e
conseguiam realizar ações simples como escrever ou tocar certos instrumentos musicais.
141
Descartes, ao observar os jogos de água nos principescos jardins-autômatos da Europa
de 1630, desenvolveu a teoria de que os animais seriam máquinas, construindo ele mesmo
uma boneca mecânica pela qual se apaixonou. Os grandes progressos da mecânica
possibilitaram ao engenheiro francês Jacques de Vaucanson criar, entre 1730 e 1750,
autômatos incríveis: o Tocador de Flauta, andróide de 1.50m que executava rigorosamente as
mesmas operações de um flautista vivo; o Tocador de Tamborim; e um canário que digeria
grãos.
142
Conforme nos referimos anteriormente, após a Segunda Guerra Mundial, algo de
extraordinário aconteceu: um grupo de intelectuais, oriundos das mais diversas áreas do
conhecimento, reuniu-se para discutir questões emergentes a partir dos novos conceitos
divulgados pelas ciências, inclusive pela física quântica. Em 1945, Norbert Wiener, John von
Neumann e outros pesquisadores decidiram que a engenharia e a neurologia poderiam criar
um novo campo (que Wiener chamará, em 1947, de cibernética) em que são criadas as
máquinas homeostáticas que simulam atividades do cérebro humano, e “animais artificiais”,
que se deslocam evitando os obstáculos e recarregando suas baterias. Um importante passo
dos ciberneticistas foi tentar a aproximação entre as ciências exatas e as humanas, fato que
viria trazer conseqüências extraordinárias para o sucesso do projeto tais como a criação das
ciências cognitivas e a descoberta do computador digital. A partir daí e remetendo-se à
tradição imaginária dos autômatos, os cientistas criaram os cérebros eletrônicos.
As ciências cognitivas - conjunto de disciplinas que se uniram, sem perder suas
características próprias e sua existência como disciplinas individualizadas, para investigar o
conhecimento - surgiram por volta de 1940, quando foram arquitetados os protótipos dos
primeiros computadores. Aliando-se à informática, os cientistas deram início à chamada
pesquisa cognitiva, permitindo que a investigação filosófica e puramente especulativa cedesse
espaço à experimentação.
143
O que esses cientistas pretendiam, ao transitar pelas mais diversas fronteiras do saber,
era responder a uma questão candente: “Como o homem desenvolve o conhecimento de si
141
GATES, 2007, p. 38-45.
142
NAZÁRIO, 2004 , p. 82-83.
143
SOARES, 2000, p. 7-10.
próprio e do mundo que o cerca?” Essa questão levou-os a identificar o objeto das chamadas
ciências cognitivas - as questões epistemológicas - buscando entender o que se passa no
cérebro e na mente do homem durante o processo que leva ao conhecimento. Hoje, o campo
das ciências cognitivas encontra-se muito ampliado pela adesão de artistas, psicólogos,
lingüistas, neurobiólogos, cientistas da computação e filósofos, dentre outros.
144
Impondo-se o desafio de entender a lógica da mente, os ciberneticistas começaram a
comparar os organismos com as máquinas, chegando à elaboração da primeira teoria da
cognição que estabeleceu o primeiro modelo do cérebro como um circuito lógico que tem os
neurônios como elementos básicos. Em 1945, por exemplo, o matemático John von Neumann
assinou os planos do computador Mark 1, cujo protótipo foi construído em 1948. Uma de
suas preocupações centrais era a criação de um modelo reduzido do cérebro, já que via, nos
tubos eletrônicos, o equivalente ao neurônio humano. Ele partilhava essa preocupação com o
matemático britânico Alan Turing, que contribuiu na criação desse computador com seus
conceitos de programação. Para esse matemático, o “segredo da vida” estaria na codificação
da informação.
145
Essa arquitetura inspirou o conceito de computação chamado conexionismo, que levou à
formulação dessas redes. Suas concepções de estrutura e função intelectual estão apresentadas
no livro The society of mind, que é também o título de seu curso no MIT. Em 1951, ele
desenvolveu SNARC, o primeiro simulador de rede neural. Suas invenções incluem também
mãos mecânicas e outros sistemas robóticos.
147
Esse segundo modelo lançou novas luzes sobre o conceito de inteligência artificial pois,
desde os primórdios das pesquisas, uma das propostas da disciplina foi a de programar um
computador para entender a linguagem humana. Entretanto, depois de várias décadas de
trabalhos frustrantes nessa área, os pesquisadores começaram a perceber o desafio imposto
pela linguagem que se encontra embutida numa teia de convenções sociais e culturais,
fornecendo um contexto de significados não expresso em palavras e que não pode ser
apreendido por um computador cujas atividades se distanciam da complexidade do processo
cognitivo humano.
148
Atualmente, a área da inteligência artificial está empenhada em fazer programas
contextualizados, com preocupação semântica, como a linguagem natural. Essa pesquisa
começou na década de 50, quando os estudos iniciais estavam preocupados em responder à
questão O que é a linguagem?, enquanto hoje se pergunta Como os seres humanos interagem
uns com os outros? Wittgenstein, por exemplo, filósofo da linguagem, tem contribuído de
maneira efetiva para o progresso dessas pesquisas, pois concebendo a linguagem como um
tipo de jogo, em que as palavras são peças usadas de acordo com um conjunto de regras
(convenções lingüísticas), dá ênfase às afirmações que se desenvolvem dentro de um contexto
e de um conjunto de regras, mostrando o modo como a fala funciona.
149
Curiosamente, John von Neumann, o inventor do computador digital, comungava com
esse pensamento de Wittgenstein. Amava os jogos de estratégia, especialmente pôquer e
xadrez e, entre os anos de 1920 e 1930, desenvolveu uma teoria matemática para descrever
suas estruturas, acreditando que a teoria do jogo poderia gerar uma base científica para o
estudo de situações similares em outros campos.
150
As novas descobertas vieram dar um impulso extraordinário às pesquisas realizadas na
área da inteligência artificial, a qual se tornou um ponto de forte interesse da mídia, do
público e dos cientistas. Hoje, todos se interrogam sobre sua existência enquanto disciplina
científica, sobre seus objetivos, seu campo de investigação, a situação e os limites que ela
147
KUBRUSLY, 2004.
148
KUBRUSLY, 2004.
149
Idem, 2004.
150
Idem, 2004.
poderá atingir em suas aplicações atuais e futuras, seu impacto social, econômico ou
psicológico na sociedade.
Conforme venhamos a entender melhor a ciência do comportamento inteligente,
poderemos construir melhores interfaces com os computadores ou quaisquer outras máquinas
voltadas para esse propósito. Dessa forma, a ciência cognitiva promete lançar luz no processo
de ensino-aprendizagem, o que pode resultar numa tecnologia cada vez mais eficiente. Com
apenas 35 anos de existência, esse campo de pesquisa foi capaz de gerar grandes polêmicas e,
sobretudo, muito desenvolvimento.
151
O termo inteligência artificial só foi criado por John McCarthy durante o workshop do
Darmouth College, ocorrido em 1956, primeiro encontro realizado para discutir as
características da inteligência e sua implementação em máquinas. A partir daí, as pesquisas
foram avançando e, hoje, os estudos recentes da neurociência (análise do cérebro de um ponto
de vista micro, verificando como os neurônios se ligam e funcionam) e da ciência cognitiva
(estudo da constituição da inteligência, cujo mecanismo básico está relacionado à nossa
capacidade de perceber, reconhecer padrões e manter seus modelos de funcionamento) têm
desafiado a construção de autômatos cada vez mais aperfeiçoados.
Os biomateriais e a microeletrônica abrem, progressivamente, espaço no corpo humano,
levando à sua robotização: das microcâmeras que devassam o interior de nossos corpos ao
homem transparente, cujo corpo foi dividido, escaneado e reconstituído; das próteses de ancas
e joelhos à projetada operação de transplante de rosto; das placas para reparação de ossos
implantadas no corpo às próteses de braços e pernas; dos eletrodos implantados no cérebro
para reduzir os efeitos da doença de Parkinson, além dos gadgets que, cada vez mais se
acoplam aos corpos e fazem com que seus usuários fiquem permanentemente conectados em
diferentes redes (relógios e celulares que se tornam computadores, canetas, scanners que
gravam dados e traduzem textos, livros eletrônicos ), o homem tende a transformar-se, à
medida que vai perdendo individualidade, órgãos e membros naturais, num cyborg mantido
vivo pelas novas tecnologias.
152
Em Digital people - from bionic humans to androids, o físico norte-americano Sidney
Perkowitz enumera aspectos dos robôs que têm como objetivo atingir níveis da capacidade
humana. Nesse livro, o autor também apresenta um conjunto de microprocessadores e
softwares como o equivalente ao cérebro humano em seres artificiais. O êxito de projetos que
busquem essa equivalência, no entanto, é colocado em dúvida por pesquisadores da área de
151
WHITBY, 2004, p. 108-120.
152
SANTAELLA, 2002, p. 123-134.
informática, que afirmam que a experiência com os complexos sistemas de software hoje
existentes não permite ter certeza das respostas a essa questão.
153
Dúvidas como essa
aparecem no filme Inteligência artificial, de Steven Spielberg e Stanley Kubrick, de 2001.
Curiosamente, o diretor coloca o protagonista da história, o robô David, em contato com o
elemento trágico de sua existência - o desejo de fazer-se humano - correndo na contramão
daquilo que o homem contemporâneo nega - sua dor, sua tragédia, enfim, sua própria
humanidade.
Monteiro Lobato foi precursor da discussão sobre inteligência artificial no Brasil, na
literatura infantil. Na obra O sítio do picapau amarelo, ele trabalha com a tecnologia e com os
objetos técnicos disponíveis no momento, inclusive, fazendo experiências com o processo
cognitivo de Emília e Visconde. Também os animais eram foco de sua observação: estudava,
principalmente, aqueles que agiam por meio de uma inteligência coletiva, como é o caso das
formigas e das abelhas, utilizando-os para fazer comparações com as ações e os
comportamentos dos seres humanos. Hoje, as pesquisas tomam as formigas como modelo de
programas de computação que simulam seu comportamento, ou seja, pode-se imaginar que a
inteligência coletiva de um formigueiro é semelhante a uma rede neural de computação
paralela, demonstrando que o cérebro humano e algumas instâncias mais complexas da
natureza, como os comportamentos sociais, podem funcionar de forma semelhante.
154
Também A chave do tamanho é um cruzamento das diversas idéias que predominavam
na época em que o escritor viveu. Além das teorias já mencionadas - relativismo, relatividade
e evolucionismo - o foco da preocupação do escritor recai sobre a educação: Jean-Jacques
Rousseau é citado em sua obra e o nome da boneca remete ao Emílio
155
. Monteiro Lobato
parece ter o mesmo propósito do educador francês, privilegiando a criança e sua formação
como indivíduo livre para querer, sentir pensar e agir. Enfim, o que os autores tinham em
mente era formar um homem livre, por meio da ciência. Assim, Emília - como o Emílio de
Rousseau - torna-se, para Monteiro Lobato, objeto de especulações, de provocações e de
experiências, tendo como desafio buscar uma solução para a humanidade perdida, desviada de
sua rota pelo progresso. Nessa aventura, ela teria como função testar sua capacidade de
resolver problemas, contando com os recursos de sua atividade cognitiva: raciocínio lógico
(utilizando jogos de raciocínio e silogismos, para entender a nova realidade), inteligência
153
VOGT, 2004.
154
Disponível no site www.revistasaladeaula.com.br. Acesso em 03/04/2007.
155
Obra publicada em 1762 e considerada um tratado sobre a educação. Ao tomar seu personagem Emílio como
educando, Rousseau procura demonstrar como seria a educação de uma criança que, vivenciando suas próprias
experiências, vai descobrindo, aos poucos, a ciência, criando conceitos e construindo o próprio conhecimento,
constituindo-se como sujeito de sua própria educação. Cf: ELIAS, 2000.
prática (buscando captar as imagens das histórias de Dona Benta e tia Nastácia, para resolver
os problemas que surgiam a cada momento), criatividade (procurando adaptar-se ao meio,
criando defesas e novas oportunidades), intuição (utilizando sua percepção sensorial e extra-
sensorial). É interessante observar que, em A chave do tamanho, Emília sofre a “ação do
apequenamento” como se fosse gente, pois na obra só os seres humanos passam pela
experiência de redução. Isso já não acontece com o Visconde de Sabugosa que permanece nas
mesmas proporções e, para a Emília reduzida, torna-se um “imensíssimo gigante”.
Steven Spielberg, em seu filme Inteligência artificial, também se propõe a fazer uma
experiência cognitiva com o seu personagem David. Podemos perceber que o seu criador, o
professor Hobby, tinha como objetivo criar um ser artificial que pudesse ter acesso ao mundo
das emoções, dos sentimentos, das intuições e dos sonhos. Foi assim que surgiu David, um
pequeno e surpreendente robô que, permitindo-se vivenciar uma experiência inédita, soube
usar sua capacidade cognitiva para transgredir todas as normas, ultrapassando, dessa forma, as
fronteiras que separam o não-humano do humano. Tanto Emília quanto David exprimem o
pensamento de seus autores e confirmam as idéias de Maturana e Varela, reconhecendo que a
cognição é um processo amplo, envolvendo a própria experiência, a percepção, a emoção e o
comportamento.
A inteligência artificial (IA) está entre as disciplinas que compõem as chamadas
“ciências cognitivas”. Como vimos nas obras de Monteiro Lobato e Steven Spielberg, ela tem
como objetivo estudar o comportamento inteligente em homens, animais e máquinas.
Segundo Whitby
156
, a principal ferramenta usada na pesquisa de IA é o computador digital
porque permite aos investigadores construírem rapidamente “modelos de comportamento” e
examiná-los por meio do uso intensivo de programas que simulam aspectos do mundo real.
A IA pode ser definida como uma ciência e como uma técnica. Como ciência, ela se
interroga sobre a forma de modelizar mecanismos mentais que existem e podem ser
observados objetivamente. Compreendendo as manipulações dos símbolos, ao longo do
exercício das faculdades mentais (interpretar, comparar, associar, sintetizar, abstrair,
memorizar, deduzir, generalizar, induzir e aprender), a IA contribuiu para a descoberta
(modelização e reprodução) dos mecanismos abstratos colocados em funcionamento nessas
faculdades. Como técnica, ela explora as possibilidades do real para conceber artefatos:
máquinas e programas que tratem de uma determinada classe de problemas.
157
156
WHITBY, 2004. p. 25.
157
SOARES, 2000. p. 50-51.
Desde o início, essa disciplina sempre foi um empreendimento verdadeiramente
transdisciplinar. Muitas ciências que tiveram origem em cruzamentos com a IA têm gerado
resultados surpreendentes, como é o caso da Biotecnologia e da Engenharia Genética. Essa
última tem apostado na nanotecnologia, engenharia de materiais microscópicos, os
nanarrobôs que formam um exército virtual invisível, podendo ser aplicada em diversas áreas,
desde o processamento de dados até à eliminação de pedra nos rins. Lúcia Santaella
158
afirma
que estão em curso pesquisas na área da robótica que têm em mira levar a máquina a atingir
autonomia, buscando, por meio do controle de computadores, produzir robôs semi-
inteligentes, knowbots, ou robôs móveis, mobots.
As pesquisas em inteligência artificial já produziram programas que realizam
diagnósticos médicos, que pintam quadros e podem improvisar jazz. Muitos deles podem
ajudar a detectar transações fraudulentas e crimes, alguns são especiais para os negócios e as
finanças e outros, ainda, têm servido para curar as doenças da modernidade como é o caso da
síndrome do pânico, em que as experiências virtuais possibilitam às pessoas enfrentarem seus
medos para se libertarem. Um ônibus espacial só consegue voar por causa de um programa de
IA que trabalha para programar as operações envolvidas na preparação de seu lançamento. A
NASA, por exemplo, tem o compromisso contínuo de pesquisar e executar IA: suas
aplicações no espaço vão de robôs autônomos até sistemas que dão informações e avisos aos
astronautas. Quase todas as abordagens de IA que emergiram ao longo dos anos permitiram
dar respostas a algumas das questões científicas mais difíceis de nosso tempo.
159
Se, ao longo do último século, as máquinas antropomórficas tornaram-se figuras
comuns na cultura popular por meio de obras literárias e filmes, para Bill Gates, isso se deve
ao fato de que as pessoas são receptivas à idéia de que essas máquinas um dia estarão entre
nós como auxiliares e até mesmo como companheiras. Contudo, ele explica que, apesar do
papel fundamental que desempenham em diversos setores industriais, como na produção de
automóveis - em que há um robô para cada dez operários - ainda há um longo caminho a
percorrer antes que os robôs de verdade alcancem seus semelhantes do mundo da ficção
científica. É bastante possível que os robôs desempenhem importante papel na sociedade,
auxiliando pessoas com limitações físicas e mesmo servindo como companheiros de idosos.
Os equipamentos robóticos, muito provavelmente, ajudarão portadores de deficiências físicas
a se locomoverem e expandirão a força e a resistência de soldados, operários e médicos. Os
robôs farão ainda, segundo ele, a manutenção de máquinas industriais perigosas, se
158
SANTAELLA, 2002, p. 131.
159
WHITBY, 2004, p. 37.
encarregarão do monitoramento de oleodutos em lugares remotos, permitirão a profissionais
da saúde diagnosticar e tratar pacientes a milhares de quilômetros de distância, e se tornarão
componentes fundamentais de sistemas de segurança de busca e resgate.
160
A inteligência artificial e a robótica são dois temas que também têm despertado um
interesse cada vez maior do público, dividindo espaço no imaginário do espectador. Não é à
toa que os eventos relacionados a esses assuntos fazem sucesso. Foi o que aconteceu com o
Salão internacional de robótica e inteligência artificial, espaço educacional e lúdico, criado
para estimular o gosto pela ciência e tecnologia: exposição realizada no mês de abril deste ano
no “Centro de Convenções Imigrantes”, onde se reuniram 60 expositores, dentre eles a
“Comau”, de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O evento, em sua segunda
edição, promoveu campeonatos e competições automatizadas e mostrou diversos tipos de
robôs, como um cachorro, um carro e um celular, além de máquinas que ensinam, desenham e
falam. No espaço da Comau, além do robô Smart NH1PressBooster que possui grande
capacidade de carga, o estande da empresa mineira mostrou outras atrações, como o Comau
Robot Drink que faz coquetéis e serve ao público.
161
Também a Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais tem
investido na área da robótica. Somando esforços para dar asas ao sonho ancestral do homem,
projetou a primeira aeronave totalmente automatizada. O avião-robô, segundo artigo do jornal
O Estado de Minas em seu caderno “Gerais”, de 14 de abril de 2007, assim chamado pela
capacidade de ganhar os céus sem tripulação, vai servir a missões militares da Força Aérea
Brasileira (FAB) e de controle ambiental e agrícola. A aeronave, de quatro metros de
envergadura e motor a gasolina, pode ser dirigida por controle remoto, semelhante a um aero-
modelo, ou atuar de forma autônoma.
A interação entre IA e arte vem desconstruindo, paulatinamente, a ilusão de separação
que ainda persiste entre as duas áreas. De fato, elas se cruzam de diversas maneiras: em
primeiro lugar, os artistas usam programas para gerar todos os tipos de obras de arte, inclusive
para criar histórias e poesias e, em segundo lugar, muitos pesquisadores de IA buscam a arte
para ter uma melhor compreensão de como a inteligência em geral opera.
Esses cruzamentos apresentam muitas dimensões: alguns programas, como os de
algoritmos genéticos, por exemplo, são usados para gerar padrões, apresentando uma beleza
exótica porque seguem, até certo ponto, a matemática da vida natural, como a arte fractal.
160
GATTES, 2007, p. 45.
161
REALIDADE no universo da ficção. Jornal O Estado de Minas, Caderno de Informática, 05. 04.2007.
Segundo Mandelbrot, o pai da geometria fractal
162
, isso não teria sido possível antes da
existência do hardware e do aparecimento do software, isto é, antes da década de 70. Para ele,
ao lado da arte pela arte e da arte pelo comércio, a geometria fractal parece ter criado uma
nova categoria de arte, em inter-relação com a ciência. As imagens fractais, como as redes
autopoiéticas de Maturana e Varela, são auto-organizadoras, repetem-se e, ao se repetirem,
metamorfoseiam-se, produzindo imagens do infinito. Devido ao desenvolvimento da
inteligência artificial, pode-se observar, hoje, um entrelaçamento entre a semiótica e a
infografia que se refere à produção, por meio de computador, de imagens sintéticas: frutos de
elaborações digitais regidas por procedimentos lógico-matemáticos.
O estudo sobre a robótica contribuiu para o desenvolvimento de inúmeras idéias em IA,
realizando conexões inteligentes desde a percepção até a ação. O tratamento da linguagem
natural e as interfaces, dialogando na língua do usuário, começam a ser bem compreendidos
quando o domínio dos discursos é restrito a um assunto sobre o qual dispomos de muitos
conhecimentos. Permitindo avançar substancialmente na pesquisa cognitiva, esses estudos
têm se mostrado um excelente meio experimental, não só para as questões relativas à própria
disciplina, mas para todas as outras ciências cognitivas.
163
Se robô já existe no imaginário da literatura e do cinema, há muito tempo, a robótica -
como área de investigação científica - nasce de fato após o advento do computador e,
curiosamente, a partir da obra de um ficcionista (também bioquímico), o russo Isaac Asimov.
O termo “robótica” aparece primeiramente em uma pequena história do autor, de 1942,
intitulada Runaround. Em 1950, ele publica Eu, robô, obra que mostra a evolução dos seres
autômatos, postulando na história as três leis fundamentais da robótica: um robô nunca deve
atacar nem omitir socorro a um ser humano; deve sempre obedecer às ordens dadas pelos
seres humanos (a não ser que esta lei entre em conflito com a primeira) e nunca deve se
autodestruir e destruir um dos seus (a não ser que essa lei entre em conflito com as duas
primeiras).
164
Essas leis sintetizam algumas inquietações humanas, expressas na ficção, diante
das novas possibilidades científicas e tecnológicas que não se restringem à área da robótica.
Rodney Brooks, do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, afirma que, em 20 ou
30 anos, a ciência terá recursos tecnológicos para construir um robô com a mesma capacidade
de computação do cérebro humano, mas garante que a maior parte dos robôs não terá vontade
162
MANDELBROT, 1993, p. 195-200.
163
WHITBY, 2004, p. 98-103.
164
ASIMOV, 2005, p. 7-18, v. 1
própria
165
.Contudo, falta muito para chegar lá ... Ainda não se tem um quadro completo de
como um único neurônio funciona, não se entende completamente o que acontece nas
sinapses, por meio das quais os neurônios se comunicam, nem como os muitos compostos
químicos, que fluem através do cérebro, afetam seu desempenho. Os pesquisadores da vida
artificial chegaram à conclusão de que animais, com vidas supostamente simples, demonstram
um comportamento notavelmente complexo - normalmente complexo demais para ser
reproduzido por um robô. A robótica tem produzido algumas máquinas maravilhosas, mas os
robôs tendem a ter um bom desempenho apenas numa situação específica
166
. O filme
Inteligência artificial trata da possibilidade de codificar emoções em redes neurais
implantadas no pequeno robô David no contexto de uma civilização onde seres mecânicos são
produzidos para aliviar o fardo da vida dos humanos. O professor Hobby cria uma máquina
inteligente e sensível, capaz de amar e sonhar: David, como o boneco de madeira criado por
Gepeto, deseja tornar-se um menino de verdade... Por enquanto, isso é apenas um desejo.
3.2 - O corpo sob o efeito de suas interfaces com a tecnologia
As tecnologias pós-humanas
167
- realidade virtual, comunicação global, robótica e
protética, redes neurais, nanotecnologia, manipulação genética e vida artificial - estariam
remodelando o corpo do homem atual?
Maria Antonieta Pereira, em sua tese de doutorado
168
, oferece-nos, por meio da análise
do romance La ciudad ausente, de Ricardo Piglia, uma visão antecipada do escritor sobre o
novo homem que perambula pelas ruas das grandes metrópoles contemporâneas:
[...] En un momento en el cual las culturas se cruzan y se destruyen mutuamente,
los centros urbanos se constituyen como espacios fragmentados y atópicos,
habitados por sujetos inciertos. Ciudadanos cyborg deambulan por avenidas y
subterráneos, como cuerpos mecánicos que necesitan ansiosamente cruzar espacios,
idiomas y algún afecto en un tiempo esquizofrénico y vacío. Presos en los
engranajes de la ciudad-máquina, sus habitantes reproducen movimientos
previsibles, ordenados, automáticos, como en una línea de montaje fabril.
165
VOGT, 2004.
166
WHITBY, 2004. p. 98-103.
167
SANTAELLA, 2002. p. 129-130.
168
PEREIRA, 2001. p. 15.
Essa imagem do novo homem, exibida pelo escritor, vai ao encontro do pensamento de
Donna Haraway que em seu ensaio - “Um manifesto para os cyborgs
169
- define o cyborg
como um organismo cibernético híbrido, que se constitui a um só tempo como máquina e
organismo, uma criatura ligada não só à realidade social mas também à ficção. Chamando
nosso tempo de “mítico”, ela afirma que, nele, somos todos quimeras, seres híbridos
teorizados e fabricados como máquina e organismo.
Para explicar esse novo modelo do corpo humano, em seu manifesto sobre a nova
ciência intitulado “Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina”
(1948)
170
, Norbert Wiener apresenta uma história dos autômatos no Ocidente que se divide em
quatro estágios ligados à representação do corpo: 1. a era golêmica - em que o corpo humano
foi visto como uma figura de barro maleável; 2. a era dos relógios (séculos XVII- XVIII) -
corpo entendido como um mecanismo de relojoaria; 3. era da máquina a vapor (fim do século
XVIII e século XIX) - visto como um motor de aquecimento; 4. era das comunicações, em
que o corpo e a mente humanos estão sendo concebidos como uma rede comunicacional.
Lúcia Santaella
171
parece comprovar a posição de Norbert Wiener quando afirma que o
estudo dos autômatos, iniciado no final dos anos 40, era um ramo da engenharia das
comunicações. Para ela, o modelo cibernético do organismo humano e de sua identidade foi
tão influente que muito dele permaneceu no protótipo subseqüente do próprio corpo,
aparecendo até hoje nas intermitentes imagens do cyborg. O neologismo cyborg (cib-ernético
+ org-anismo), segundo a autora, foi inventado por Manfred E. Clyner e Nathan S. Kline, em
1960, para designar os sistemas homem-máquina auto-regulativos, quando ambos aplicavam a
teoria do controle cibernético aos problemas que as viagens espaciais impingem à
neurofisiologia do corpo humano. No contexto da relação do programa espacial com a
pesquisa médica, o termo cyborg foi proposto como uma solução para as alterações corporais
oriundas de acomodações a ambientes diversos.
Em 1965, D.S. Hallacy publicou uma apresentação popularizada do fenômeno cyborg,
sob o título de “Cyborg - evolução do super-homem”, na qual defendia a idéia de que uma
nova fronteira estava se abrindo por meio de uma ponte entre a mente e a matéria e que, nessa
ponte, o cyborg aparecia como uma entidade reversível, porque era uma combinação entre o
homem e a máquina. Nessa perspectiva, novas subjetividades estariam sendo forjadas, a cada
momento, por meio da relação homem-máquina e o potencial para as combinações entre vida
169
HARAWAY, 1994, p. 243-244.
170
SANTAELLA, 2002, p. 123.
171
SANTAELLA, 2002, p. 124-126.
artificial, robótica, redes neurais e manipulação genética seria tão grande que nos levaria a
pensar, segundo o autor, que estamos nos aproximando de um tempo em que a distinção entre
vida natural e artificial não terá mais onde se balizar.
172
Nessa mistura, a identidade do corpo humano tornou-se problemática, porque estamos
atravessando, hoje, uma profunda crise de subjetividade cujo descarnamento, provocado pelas
novas tecnologias, abalou a ilusão da estabilidade e está apontando para múltiplas
identidades tais como: corpo remodelado (manipulação estética do corpo); corpo híbrido
(corpo cyborg, corrigido por meio de próteses); corpo esquadrinhado(colocado sob a
vigilância das máquinas para diagnóstico médico); corpo plugado (cyborgs interfaceados no
ciberespaço, usuários que se movem no ciberespaço enquanto seus corpos ficam plugados);
corpo simulado (o corpo algorítmico, feito de tiras de números, corpo descarnalizado); corpo
digital (experiência de digitalização integral de dois corpos doados depois de mortos para sua
transformação em dados digitais); corpo molecular (esse corpo tem estado no centro das
atenções desde que a decifração do “sumário básico” do genoma humano foi posta a
público).
173
Evando Nascimento
174
, referindo-se a certos processos de subjetivação que apontam
para o que Michel Foucault, no rastro de Nietzsche, chamou de “a superação da forma-
homem”, denominou-os de processos diferenciais de subjetivação. O autor lança mão do
exemplo do filme O homem bicentenário para mostrar como a saga do autômato, que
atravessa dois séculos, torna-se a parábola invertida do processo atualmente em pauta, no
próprio universo do homem. Ele não acredita que o homem vá, um dia, tornar-se uma
máquina estritamente programada, perdendo toda e qualquer liberdade individual, mas que a
história do robô Robbie - misto de robô e homem - demonstra que há algo em nós mesmos de
maquínico, já que o robô humanizado representa a fragilidade da oposição que tanto prezamos
entre cultura ou civilização, de um lado, e natureza, de outro.
Lúcia Santaella
175
aponta três tipos de máquinas que se relacionam com o homem de
maneiras distintas. A primeira delas é a muscular, engendrada no cerne da industrialização,
puramente imitativa e grosseiramente física; a segunda, a sensória, menos rude e mais sutil,
começou a perder sua natureza de máquina para se converter em aparelho produtor de signos,
extensor dos sentidos. De fato, conforme McLuhan
176
, as novas técnicas de informação e de
172
Idem, p. 126-134.
173
SANTAELLA,2002, p. 126- 134.
174
NASCIMENTO, 2002. p. 36.
175
SANTAELLA, 1997, p. 33-43.
176
MCLUHAN, 2003, p. 17.
comunicação são mais que instrumentos, próteses ou extensões de nossos sentidos: a Internet,
o ciberespaço e a realidade virtual são as novas maneiras de integração homem-máquina,
constituindo-se no novo ambiente de suas experiências. Já no terceiro nível da relação entre
homem e máquina, o cerebral, Santaella afirma que a própria noção de máquina está sendo
definitivamente substituída por um agenciamento instável e complexo de circuitos, órgãos,
aparelhos diversos, camadas de programas e interfaces. Para ela, é justamente esse
ecossistema sensório-cognitivo que está lançando as novas bases para se repensar a robótica
não mais como máquinas que trabalham para o homem, mas como a emergência de um novo
tipo de humanidade.
A obra Neuromancer, de William Gibson, publicada em 1984, inaugura a fase
cyberpunk da ficção científica, o primeiro movimento cultural a refletir criticamente sobre as
implicações trazidas pelas novas tecnologias da informática. Seu protagonista - que marca a
passagem do modelo do cyborg híbrido para o cyborg como simulação digital - é um hacker
que, ao roubar seus patrões, recebe como punição uma toxina, implantada em seu sistema
nervoso, que o impede de freqüentar a euforia do ciberespaço. Nesse mundo ficcional, o
ciberespaço é uma rede computacional global de informações que é chamada de “a matriz”.
Os operadores podem acessar essa rede por meio de fones de ouvido e de um terminal de
computador. A trilogia Matrix, dentre outros filmes mais recentes, inspirou-se nesse romance.
O termo cyberpunk tem sido, desde então, usado para designar a literatura que trata da
alienação do corpo carnal num constructo informático.
177
Mais do que uma antecipação das possibilidades de utilização das novas tecnologias, a
importância de Neuromancer reside em suas inovações estéticas que, postas no plano da
linguagem, permitem classificar a ficção cyberpunk de Gibson como pós-moderna. O autor
utiliza a intertextualidade por meio das mais variadas referências - desde o conhecimento
aprofundado da cultura japonesa, passando por punk rock e literatura policial - rompendo com
as fronteiras entre a chamada “alta cultura” e a cultura de massa. William Gibson e outros
autores cyberpunks, influenciados por ele, tais como Bruce Sterling, John Shirley e Pat
Cadigan compartilham a visão de que suas influências se originaram tanto da literatura
beatnik de William Burroughs quanto da ficção de Phillip K. Dick e de bandas como Velvet
Undergrond e Stooges. A narrativa de Neuromancer nos faz lembrar de alguns filmes que são
Scott e a trilogia Matrix, iniciada em 1999, pelos diretores Larry e Andy Wachowsky. Tais
obras mantêm relações interessantes em si. Blade Runner e Neuromancer trazem referência à
obra de Phillip k. Dick, considerado um autor clássico da ficção científica. Além disso,
compartilham um contexto histórico comum: os Estados Unidos do começo da década de
1980, da Guerra Fria e do início da popularização da informática com os
microcomputadores.
178
Lúcia Santaella
179
afirma que os cyborgs têm aparecido repetidamente nos filmes de
ficção científica dos últimos trinta anos. Segundo ela, o filme Robocop - o policial do futuro
(1987), dirigido pelo holandês Paul Verhoeven, é o melhor dos “filmes cyborg”. Para a
transformação de um soldado quase morto, foi necessário eliminar todo o seu corpo, exceto
face e cérebro, este modificado pelo implante de um chip programável. Por ter a consciência
dividida entre ser um artefato aperfeiçoado e, um dia, ter sido inteiramente humano, Robocop,
segundo a autora, pode ser visto como uma alegoria da consciência protética.
Trabalham com a imagem do cyborg, como corpo descarnalizado, dentre outros, os
filmes O impostor e Jonny Mnemonic - o cyborg do futuro. O primeiro, baseado no conto
homônimo (1953) de Philip K. Dick, mostra como alienígenas se apossam do corpo de
terráqueos, tornando-se homens-bomba. Já o segundo, baseado no conto de William Gibson,
mostra como uma doença - síndrome da atenuação nervosa (SAN) - provocada pelos meios de
comunicação eletrônicos no século XXI, põe em atuação os hackers, piratas da informação,
que promovem um movimento de resistência às grandes corporações que contratam
mensageiros mnemônicos como Johnny que leva 320 megabytes de informação no seu
cérebro.
Emília, protagonista da obra A chave do tamanho, e David, de Inteligência artificial,
podem estar incluídos na categoria dos cyborgs exatamente por serem criaturas artificiais, que
possuindo uma mente evolutiva, no decorrer das histórias, alcançam a condição de seres
humanos. Ela, uma boneca de retalhos, construída pelas mãos de tia Nastácia, e ele, um
boneco de metal fabricado pela Cybertronics, ambos almejam sua transformação que vai se
efetivando no decorrer de suas vivências, nos contextos em que estão inseridos.
Como foi discutido no primeiro capítulo desta dissertação, a experiência da boneca
começa precisamente no momento em que ela toma as pílulas do doutor Caramujo, no
primeiro volume da série Reinações de Narizinho (1973), assumindo, a partir daí, novas
posturas e incorporando qualidades humanas, de tal modo que, a cada aventura, vai se
178
Idem, 2004.
179
SANTAELLA, 2002, p. 127-128.
reinventando e redefinindo-se, até alcançar o estado de ser humano e chegando mesmo a
superá-lo, sendo considerada, na última história da série, Os doze trabalhos de Hércules,
como um ser superdotado, com percepção extra-sensorial e visão ampliada, uma fada que a
todos ajuda com sua varinha de condão - o "faz-de-conta". David também evolui no filme: de
um robô que fora "programado" para amar, passa a perseguir uma condição humana,
desejando ardentemente, como Pinóquio, ser transformado em homem pela Fada azul.
Se o cyborg pode ser apontado como uma espécie de super-homem, capaz de adaptar-se
a ambientes estranhos e hostis
180
, podemos então afirmar que Emília e David representam em
A chave do tamanho e Inteligência artificial, entidades reversíveis (são consertados e
reconstruídos por diversas vezes), podendo, por isso, perambular por outras dimensões da
realidade. Para viver tal experiência, o corpo tem que ser adaptável, principalmente, para
quem, como Emília, fora lançada num mundo hostil onde os insetos e os animais de estimação
tinham sido transformados em feras enormes, e ela, “apequenada”, tinha que encontrar armas
contra os perigos que agora a ameaçavam. Podemos observar, no trecho abaixo, retirado da
obra A chave do tamanho, um exemplo da atitude de Emília com relação a seu aprendizado:
- Chorar não adianta Dona Nonoca. O que temos de fazer é nos adaptar. Dona
Nonoca não entendeu essa palavra tão científica. Emília explicou-se:
- Adaptar-se quer dizer ajeitar-se às situações. Ou fazemos isso ou levamos a
breca. Estamos em pleno mundo biológico, onde o que vale é a força ou a
esperteza. A senhora até teve muita sorte de que nenhum passarinho ou gato a
visse.
181
Como Emília, David também enfrenta dois mundos muito diferentes e seu corpo resiste
até o final dos tempos, quando a espécie humana já havia se extinguido e ele se depara com
seres muito diferentes dos que ali tinham vivido.
As imagens da inteligência artificial, nas obras citadas, traduzem as inquietações dos
artistas com relação a dúvidas pessoais e coletivas. A chave do tamanho e Inteligência
artificial são narrativas ficcionais que nos permitem dar um mergulho no mundo da
imaginação, vivenciando experiências inusitadas por meio de personagens-cyborg que
exprimem o desejo ancestral do homem de criar um artefato à sua imagem e semelhança.
Hoje, isso está se tornando realidade. Turing ofereceu à humanidade uma máquina preciosa,
ferramenta intelectual capaz de levar o homem a desvelar os mistérios da inteligência e essa
máquina está rompendo agora com as fronteiras que separavam a realidade da imaginação.
180
SANTAELLA, 2002, p. 127-128.
181
LOBATO, 2005, p. 24.
CAPÍTULO 4
IMAGENS EM CONFRONTO:
MUNDO NATURAL VERSUS MUNDO ARTIFICIAL
Para proceder a uma comparação entre os dois sistemas semióticos - A chave do
tamanho e Inteligência artificial - optamos pela análise das obras em sua dimensão
hipertextual, visto que, sendo as imagens portadoras de significação cultural, elas nos
permitem estabelecer relacionamentos infinitos, que propiciam a formação de uma rede de
sentidos construídos no jogo entre produção e recepção.
Essa leitura buscará se orientar pelos seis princípios básicos que caracterizam o modelo
do hipertexto, tais como: metamorfose - processo constante de construção e mudança dos
discursos em que seus atores negociam os jogos da linguagem; heterogeneidade - nas
conexões da rede há um material multimídia; multiplicidade - organização fractal das
conexões, nas quais se pode encontrar uma rede dentro da outra num processo de encaixe
infinito; exterioridade - a força que move a rede vem de estímulos externos e fora de seu
controle; topologia - a rede é o espaço: tudo que se move por meio dela deve usá-la ou
modificá-la por um processo de contigüidade; mobilidade dos centros - a rede não tem centro
fixo, qualquer conexão pode ser um centro provisório funcionando simultaneamente com
outros.
182
Se os processos de informatização da escrita estão intensificando a transformação do
texto em hipertexto, existe, atualmente, a necessidade de se repensar o conceito e a prática de
leitura, tendo em vista a transformação operada em nossa percepção pelas tecnologias da
inteligência. Para ler o hipertexto, essa entidade dinâmica e híbrida, devemos acionar novos
recursos cognitivos, desenvolvendo as habilidades da simultaneidade e da transversalidade, a
fim de as que as imagens sejam apreendidas em sua estrutura múltipla e heterogênea.
Esse novo tipo de leitura vem enriquecer a perspectiva da Estética da Recepção que
discute a reação gerada pelo texto no leitor e até num sistema estético ou histórico de um
determinado período. Nesse caso, o leitor tem um papel tão importante na literatura quanto o
182
PEREIRA, 2001, p. 45-46.
do autor. Se, para Jauss e Iser, a experiência estética se realiza num jogo interativo entre autor,
obra e leitor, no modo hipertextual de leitura, um outro elemento toma vulto: o contexto.
Segundo Lévy
183
, no hipertexto, a comunicação se estabelece num jogo interativo, cujo
objetivo é transformar o contexto compartilhado pelos parceiros, que se modifica a cada
instante, com novos comentários ou novas interpretações. Nesse tipo de leitura, a experiência
estética proposta por Iser e Jauss, pode se concretizar de uma maneira muito mais intensa
porque, sendo o hipertexto um texto permutativo, que possibilita a inversão de papéis entre
autor, leitor, produtor e receptor, ele permite uma recepção em tempo real, mais dinâmica e
autêntica, intensificando a fruição estética, porque os leitores são afetados pela experiência da
simultaneidade, que coloca múltiplos sentidos em ação.
Para Oliveira
184
, se nossa sociedade já resolveu seus problemas de produção e
circulação de informações, por meio de elementos técnicos cada vez mais rápidos, ela ainda
não resolveu os problemas de sua lenta recepção que se furta à simultaneidade
contemporânea. Entretanto, é possível que o texto literário, devido às profundas
transformações por que tem passado, possa resolver esse problema de recepção lenta já que,
munidos de novos recursos tecnológicos, os autores têm buscado novos caminhos para a
escrita, influenciados pelas novas tecnologias. Resta educar o público para que essa recepção
seja efetuada de maneira satisfatória.
Segundo Pellegrini
185
, as profundas mutações efetivadas nos modos de produção e
reprodução cultural, desde a invenção da fotografia e do cinema, que alteraram, antes de tudo,
as maneiras pelas quais se olha e se percebe o mundo, estão impressas no texto literário,
especificamente em seus estruturantes básicos, tais como as noções de tempo, espaço,
personagem e narrador. Para a autora, existem diferenças básicas na representação do tempo e
das demais categorias nas narrativas modernas e contemporâneas, desde que sua percepção e
representação estão mediadas pelos recursos tecnovisuais de cada época. Há sempre, diz ela,
um horizonte técnico a considerar, influindo diretamente nas formas de percepção e
representação literárias.
Monteiro Lobato e Steven Spielberg, por exemplo, viveram em momentos distintos,
mas a tecnologia de seus contextos ficou impressa em seus textos. O primeiro, por exemplo,
pertenceu a uma época cujo universo técnico era marcado, no Brasil, pelo rádio e pelo cinema
em sua fase inicial. Já o segundo tem sua produção influenciada por um contexto tecnológico
183
LÉVY, 1993, p. 22.
184
OLIVEIRA LC. 1999, p. 40-41.
185
PELLEGRINI, 2003, p. 16-18.
muito mais evoluído. Com a descoberta do computador, o cineasta tem podido lançar mão dos
recursos multimídia que lhe têm permitido realizar grandes eventos na cena cinematográfica
atual.
A chave do tamanho insere-se num contexto maior. Faz parte de um grande hipertexto
denominado Sítio do picapau amarelo.
A primeira conexão que procuraremos estabelecer diz respeito aos papéis que Monteiro
Lobato e Steven Spielberg assumem em seus momentos históricos e seu desempenho
enquanto autores/leitores dessa etapa de suas vidas. Dessa forma, poderemos perceber o efeito
que a leitura dos eventos histórico-sociais de cada época causaram nos autores (Lobato e
Spielberg) e a razão para a aceitabilidade de suas obras pelo público.
Encontramos, tanto no livro como no filme, uma acentuada consciência histórica por
meio da recorrência constante a elementos da História e da Ciência que, impregnando as
narrativas da seriedade de seus discursos, atingem a percepção do leitor, provocando o efeito
de verossimilhança. As obras em questão, apresentando procedimentos narrativos que
alcançam a concretude do ideal dos dois artistas, a união entre ciência e arte, contam histórias
sobre os efeitos negativos do progresso, veiculando os discursos histórico e científico por
meio da criação de dois grandes mundos, o das verdades ficcionais e o das verdades histórico-
científicas, que são harmonizados nas instâncias narrativas.
Nas obras ficcionais em análise, os autores criam uma representação dos mundos
observados. Enquanto leitores dos acontecimentos, tanto Lobato quanto Spielberg recebem as
mensagens e compõem o texto por meio dos atos de fingir
187
, que dizem respeito à
transgressão de limites entre texto e contexto. Ao ocasionar uma reação no leitor, a
experiência estética se realiza no momento em que ele, imaginando o mundo textual como
real, levanta perguntas e respostas, preenchendo as lacunas do texto e formulando, assim, um
sentido para sua leitura. Nesse caso, ambos os autores criam um relato de suas observações,
ocupando a posição de leitores dos acontecimentos narrados e construindo os mundos textuais
por meio da designação do mundo real.
Para preencher os vazios dos textos, faz-se necessário abrir um link que estabeleça uma
relação com outro , núcleo revelador da situação em que se encontravam os autores no
momento da construção de suas narrativas. Monteiro Lobato, por exemplo, viveu na primeira
metade do século XX e sofreu a influência de teorias cientificistas em voga na Europa e
importadas para o Brasil no início do século, que eram as correntes intelectuais marcantes do
fim do Império e início da República, sendo decisivas para sua formação filosófica, política e
ideológica. Em tudo que escrevia, havia a marca da adesão a essas linhas de pensamento.
Fazia parte de um projeto de modernização do país que acreditava que a democracia era o
único sistema político capaz de levar o Brasil ao progresso. A relevância do discurso de A
187
Os atos de fingir do texto ficcional - seleção e combinação - apresentam função transgressora. Por meio da
seleção, o autor retira os elementos de um contexto e coloca noutro e, por meio da combinação, estabelece um
relacionamento entre os elementos do texto. ISER, 1996, p. 13-33.
chave do tamanho evidencia-se pelo fato de o escritor ser um intelectual engajado nas lutas
pela modernização do país, sendo fiel, na obra, a esse pensamento, ao recusar profundamente
os horrores da Guerra e introduzir, na ficção, sugestões de soluções para a humanidade
resgatar sua harmonia.
Conta-nos Lajolo
188
que a proclamação da República trouxe em seu bojo os ideais da
construção de uma imagem que o Brasil ambicionava e, entre o fim do século XIX e o início
do XX, surgiu, em meio a uma acelerada urbanização do país, o momento propício para o
aparecimento da literatura infantil, em que as massas urbanas, além de consumidoras de
produtos industrializados, foram constituindo os diferentes públicos, para os quais se
destinavam diversos tipos de publicações: as sofisticadas revistas femininas, os romances
breves, o material escolar, os livros para crianças.
Para a transformação de uma sociedade rural em urbana, acrescenta a autora
189
, a escola
exerceu, juntamente com a literatura, um papel fundamental, e seus laços foram estreitados
com o fortalecimento dos ideais da classe média. Para esse grupo, a educação era um meio de
ascensão social, e a literatura, um instrumento de difusão de seus valores, tais como a
importância da alfabetização, da leitura e do conhecimento e a ênfase no individualismo, no
comportamento moralmente aceitável e no esforço pessoal. Esses aspectos faziam da
literatura, nesse contexto, um elemento educativo, englobando a ficção temas que
correspondiam a exigências da sociedade, ultrapassando o setor exclusivamente escolar.
Lobato, por meio da literatura infantil, contribuiu para o avanço desse projeto de
modernidade, sugerindo, com sua ficção, uma nova metodologia de ensino que, baseando-se
no diálogo socrático, incentivava a produção do conhecimento e não o oferecimento de
soluções pré-fabricadas ou prontas. Dessa maneira, o sítio metamorfoseia-se numa escola
paralela. O que havia de novo, nesse espaço escolar lobatiano, era o antigo reformulado. O
prazer de aprender vinha da literatura, das histórias contadas por Dona Benta, tia Nastácia ou
por qualquer membro do grupo.
Recorrendo à pragmática do saber narrativo, analisada por Lyotard em A condição pós-
moderna
190
- embora o autor construa a sua teoria a partir da análise do saber narrativo de
uma tribo indígena no Brasil, suas conclusões podem ser aplicadas a vários contextos de
produção do conhecimento na sociedade do audiovisual (da oralidade secundária) - pode-se
entender a razão de Monteiro Lobato utilizar a narrativa como principal instrumento
188
LAJOLO, 1985, p. 23-25.
189
Idem, p. 25.
190
LYOTARD, 2000, p. 35-42.
metodológico no “contexto escolar” do Sítio do picapau amarelo. Para Lyotard, o saber
transmitido por meio da narrativa desenvolve uma tripla competência: saber-fazer, saber-
viver, saber-escutar, sendo o relato sua forma por excelência. Em primeiro lugar, porque as
histórias populares contam o que se pode chamar de formações positivas ou negativas, isto é,
o sucesso ou o fracasso que coroa as tentativas do heróis e dão legitimidade às instituições da
sociedade (função dos mitos) e representam modelos positivos ou negativos (heróis felizes ou
infelizes) de integração às instituições es
enfim, a arte de narrar. Após a narrativa, é desenvolvida uma experiência transformadora,
proporcionada pela história que, por meio da ação do grupo, torna-se realidade. Por fim, o
espaço do Sítio é utilizado conforme a necessidade do grupo e contando sempre com o auxílio
do faz-de-conta e do pó de pirlimpimpim - recurso tecnológico intensamente explorado pela
ficção de Lobato.
A utilização da tecnologia confere um cunho moderno à obra infantil de Monteiro
Lobato. Sua crítica, mesmo quando indireta, mostra uma conduta renovadora. Apoiando-se no
diálogo como metodologia de ensino e no amor ao conhecimento como finalidade, aponta um
caminho pedagógico para a sociedade de seu tempo, injetando novas idéias por meio da
ficção.
191
Como Nietzsche, o escritor assume, em toda a literatura infantil, uma postura
iconoclasta, desconstruindo os valores estabelecidos, principalmente, na obra História do
mundo para crianças, em que rejeita a ótica religiosa ainda dominante na educação brasileira,
considerando-a um empecilho para a renovação da escola. Após a publicação dessa obra, em
1933, Lobato amplia o currículo escolar de acordo com suas convicções, convertendo o sítio
no local desse ensino renovador. Para cada disciplina, escreve uma história. Devido a essa
atitude demolidora de valores, sua obra sofreu uma verdadeira campanha difamatória,
conforme nos conta seu biógrafo, Edgar Cavalheiro.
192
Ao mesmo tempo, esses acontecimentos suscitaram, na literatura infantil, uma polêmica
que incendiava a teoria do ensino brasileiro, colocando, de um lado, os partidários da Escola
Nova, adeptos de uma pedagogia laica, fundada nas conquistas da ciência moderna e, de
outro, os seguidores da educação religiosa tradicional, apoiada nos conhecimentos e valores
aprovados pela Igreja. De fato, o predomínio das disciplinas científicas prevalece, de modo
que o escritor não fugia ao espírito dominante dos novos teóricos da educação, reunidos no
movimento da Escola Nova. Os ideais de Lobato para a educação se adequavam perfeitamente
ao novo paradigma tecno-científico da época.
193
Entre 1916 e 1918, procurando livros infantis para ler a seus filhos e só encontrando
aqueles de conteúdos ideológicos importados e traduções mal feitas, conforme explica em
carta a Godofredo Rangel
194
, resolve partir para as adaptações e as traduções dos clássicos da
literatura infantil. Já proprietário da Revista do Brasil, depois transformada na Companhia
Editora Nacional, Monteiro Lobato faz as primeiras adaptações das fábulas de Esopo e La
191
LAJOLO, 1985, p. 76-77.
192
CAVALHEIRO, 1955, p. 591-597.
193
LAJOLO, 1985, p. 75-78.
194
LOBATO, 1944, p. 326.
Fontaine, tornando sua linguagem mais acessível às crianças. Um pouco mais tarde, em 1921,
começa a escrever a primeira das histórias que daria início à sua obra completa, O sítio do
picapau amarelo.
As obras do escritor, além de terem sucesso de vendagem, foram muito bem recebidas
pela crítica especializada, como se pode depreender do trecho abaixo, assinado por Breno
Ferraz, conforme informação do biógrafo de Lobato:
Publicou-se um livro absolutamente original em completo desacordo com todas as
nossas tradições didáticas. Em vez de afugentar o leitor, prende-o. Em vez de ser
tarefa que a criança decifra por necessidade, é a leitura agradável que lhes dá a
mostra do que podem os livros. Com o seu aparecimento, marca-se a época em que
a educação passará a ser uma realidade nas escolas paulistas.
195
Não só o público infantil acolhia sua obra com entusiasmo, mas também os adultos.
Prova disso são as inúmeras cartas que o escritor recebia de seus leitores, tanto crianças
quanto adultos, o que mostra que a obra infantil era lida por várias gerações
196
. Para a
recepção de sua obra, além da literatura libertária, introdutora de uma nova estética, o homem
de negócios contava também com seus préstimos de editor de visão (cada livro seu já trazia
propaganda do próximo) e com o auxílio do Estado. Por essa época, era editor da Companhia
Editora Nacional e vendeu, de uma só vez, 50.500 exemplares de Reinações de Narizinho,
para ser adotado nas escolas estaduais de São Paulo. O próprio Lobato não entendia a razão de
seu sucesso, podendo-se atestar o fato pelo trecho a seguir, extraído de uma das cartas do
autor a Godofredo Rangel, datada de 1919: “Vendo-me como pinhão cozido ou pipoca em
noite de ‘escavalinho’. Por que gosta o público de mim dessa maneira? Ando intrigado. Tudo
que imprimo voa”.
197
Durante o período em que viveu e exerceu sua função, tanto de escritor como de editor,
suas obras infantis transformaram-se num grande sucesso editorial. Depois de haver sido o
principal crítico paulista de arte e cultura na década de l910, Lobato foi o primeiro e maior
empresário do mercado editorial brasileiro nos anos de 1920, o homem do ferro e do petróleo
nos anos de 1930, sustentando-se na sua “velhice” com o que lhe rendia a literatura infantil
que, hoje, apesar de se constituir uma fonte inesgotável de trabalhos, pesquisas acadêmicas e
séries de televisão, é pouco lida pelo público infantil. A obra está envolvida numa espécie de
aura que mais atrapalha do que ajuda, ainda mais que o autor foi acusado de comunista,
palavra cujo peso atingiu grande parte da população iletrada. Sua obra foi proibida de constar
195
CAVALHEIRO, 1955, p. 569-570.
196
Idem, p. 600-610.
197
LOBATO, 1944, p. 400.
nas bibliotecas do país (foi proibida até em Portugal e suas colônias) e queimada em muitas
instituições, como atesta Edgar Cavalheiro.
198
É necessário, pois, que se promova, hoje, uma
nova campanha em prol do Sítio do picapau amarelo. Essa dissertação, ao fazer uma nova
leitura da obra, do ponto de vista da inteligência artificial, poderá, quem sabe, intervir
positivamente em sua recepção.
Sendo a idéia da rede propícia para se pensar um mundo onde cabem as diferenças,
outras figuras podem se tornar veículos dessa nova estética, tais como a metonímia, o
paradoxo e a aporia. Nesse sentido, o Sítio do picapau amarelo não é somente o cenário onde
a ação pode transcorrer nem apenas a reprodução da sociedade rural brasileira. Ele representa
também uma concepção a respeito do mundo e da sociedade, bem como uma tomada de
posição a propósito da criação de obras ficcionais para a infância: um projeto estético
envolvendo a literatura infantil e uma aspiração política envolvendo o Brasil
199
, o sítio
significando o mundo como o autor gostaria que ele fosse. Nesse sentido, a obra infantil
apresenta uma dimensão metonímica, tomando o autor uma parte - o Sítio do picapau amarelo
- para representar o todo: um Brasil moderno, movido pelo progresso da tecnologia. Além
disso, ela também revela um dos princípios do hipertexto, a metamorfose, já que o sítio, nesse
contexto, transfigura-se num outro lugar.
Se o universo ficcional de Lobato pode ser considerado como um projeto educativo
para a nação, por seu turno, o filme Inteligência artificial também se baseou num projeto
pessoal do cineasta Stanley Kubrick, responsável pelo primeiro filme de ficção científica de
grandes proporções em Hollywood, considerado, ainda hoje, como o melhor de seu gênero:
2001: uma odisséia no espaço. Inteligência artificial seria a segunda obra-prima do cineasta,
um projeto ambicioso em termos técnicos e ficcionais que ele acalentou por dezenove anos.
No aspecto técnico, ele desejava que o personagem principal não fosse um ator-robô e, sim,
um andróide verdadeiro, animado por computação. No aspecto ficcional, a intenção era recriar
o famoso conto de fadas Pinóquio, mesclado a temas voltados para adultos. A primeira
imagem que temos de David lembra os seres do final do filme que, no auge de sua evolução,
assumem a forma do símbolo de perfeição humana, criado pela Cybertronics. Essa imagem
pode revelar o pensamento de Kubrick, que acreditava que essa perfeição não seria atingida
por homens, mas por máquinas que, ao longo de todo o filme, demonstram ser mais humanas
que os humanos.
198
CAVALHEIRO, 1955, p. 590-597.
199
Idem, p. 56.
O cineasta, que se preocupava com o futuro da humanidade, tinha receio de que o
homem utilizasse a tecnologia para fins escusos (a mesma angústia que levou Monteiro
Lobato a escrever A chave do tamanho). Por esse motivo, Kubrick fez o esboço do roteiro de
um filme de ficção científica que pudesse atingir o telespectador, alertando-o para as
conseqüências de seus atos. A idéia que nortearia a obra seria a produção de uma máquina que
fosse capaz de amar, mostrando que a emoção seria a última fronteira a ser ultrapassada para
que um robô, afinal, se tornasse humano. Ele não teve tempo para realizar seu sonho, mas
acreditou que o diretor Steven Spielberg pudesse fazê-lo.
Inteligência artificial é um filme polêmico: muitos exaltam sua perfeição gráfica e
alguns o condenam pela artificialidade no tratamento de temas importantes. Outros o
aplaudem pela forma e pelo conteúdo. A película recebeu duas indicações ao Oscar nas
categorias de efeitos especiais e melhor trilha sonora e também ganhou o prêmio “Adoro
cinema” de melhor ator (Haley Joel Osment). Recebeu também três indicações ao Globo de
Ouro nas categorias melhor diretor, melhor ator coadjuvante (Jude Law) e melhor trilha
sonora. Apesar das críticas, o filme é importante tanto em seu aspecto gráfico como em seu
conteúdo. Tratando de temas relevantes para o futuro da humanidade, a narrativa fílmica
consegue harmonizar os discursos científicos com a ficção e busca, por meio de seus
procedimentos narrativos, principalmente dos efeitos especiais, produzidos por recursos
multimidiáticos, criar efeitos de verossimilhança e provocar emoção. Suas imagens chocam,
especialmente, porque a realidade apresentada no filme não está distante de nosso planeta, já
se consegue visualizá-la no horizonte. A narrativa, abordando o tema da inteligência artificial,
traz à tona a reflexão sobre as novas posturas éticas que devem reger as relações entre homens
e máquinas.
Como se discutiu no primeiro capítulo deste trabalho, a ciência atual tem criado um
clima de desestabilização que permite a interface de muitas disciplinas. As obras A chave do
tamanho e Inteligência artificial, abrindo espaço para a transversalidade, que permite a
ultrapassagem de barreiras, apresentam, além do gênero ficção científica, que abre espaço
para a utilização de temas e recursos diferentes, discursos com estruturas de fractais em que os
fatos são replicados, auto-semelhantes, passando por encaixes de núcleos narrativos que
podem desdobrar-se em outras micro-narrativas num processo ininterrupto. A chave do
tamanho, por exemplo, abre-se com uma história que está acontecendo no espaço rural de O
sítio do picapau amarelo quando chega o jornal trazendo a notícia da Segunda Guerra
Mundial. Essa notícia provoca uma metamorfose na narrativa: Emília move a chave que
regula o tamanho dos homens e, imediatamente, eles se tornam minúsculos. Para passar de
uma história à outra, o procedimento adotado é o encaixe, que permite a passagem para um
outro estado, quase que imperceptivelmente, provocando o efeito de verossimilhança. O pó de
pirlimpimpim, conducto tecnológico, permite essa transformação, derrubando as barreiras que
separam a realidade da fantasia. Apequenados, os homens têm para contar outras histórias que
se encadeiam, buscando uma explicação para o evento que está afetando a todos. Assim é que
cada personagem fala sobre o fenômeno do “apequenamento” de seu ponto de vista.
O filme também utiliza essa rede de produção de significados. Abre-se com uma
reunião na Cybertronics onde os cientistas da época discutem a produção de um projeto que
utilizaria tecnologia de ponta para produzir um novo tipo de Meca (robô mecânico),
programado para amar incondicionalmente. Essa apresentação do projeto pelo grupo de
cientistas busca provocar efeitos de verossimilhança, ancorando a narrativa na realidade por
meio dos avanços científicos da época. Após esse primeiro momento, a história propriamente
dita tem início: David é comprado por um casal cujo filho, em hibernação criogênica, aguarda
os avanços da ciência que possibilitarão sua cura.
O procedimento para efetuar a transição ao segundo episódio é a utilização da tela
escura com os dizeres Vinte meses depois. Este pode ser considerado o primeiro ato do filme e
o mundo futuro, nele criado, é o século XXI - após o descongelamento das calotas polares -
que, por sua vez, se entrelaça a um outro momento da história, o segundo ato, que apresenta
David, abandonado na floresta por seus pais adotivos, sofrendo uma perseguição implacável
por parte dos “mercadores de peles”. Essa parte é encaixada ao terceiro episódio que acontece
dois mil anos depois, quanto “extraterrestres”, fazendo um trabalho arqueológico das ruínas
da antiga civilização humana, vasculham os oceanos da Terra e se deparam com a pequena
cápsula onde o imóvel robô olha fixo a estátua da Fada Azul. Resgatando a cápsula, animam
David e reconstroem sua memória, trazendo de volta a sua mãe com quem ele passa 24 horas
felizes. Esses núcleos narrativos vão sendo ativados por muitas marcas que a enunciação
fílmica registra, como é o caso do parque temático, link que se abre para uma micro-narrativa
que contém a história de Pinóquio, um dos temas centrais do filme.
O cenário da obra A chave do tamanho continua, como em todas as obras da série,
sendo o espaço rural do Picapau amarelo, agora apresentado em duas dimensões. Na segunda
dimensão, esse espaço se amplia com uma viagem que a Emília e o Visconde empreendem à
Europa e aos Estados Unidos. No momento em que escreve essa história, o escritor encontra-
se desiludido com os avanços tecnológicos, devido à Segunda Guerra Mundial - embora
revele, na narrativa, interesse pelo cinema, fato que se comprova pela exaltação do desenho de
Walt Disney, Fantasy
200
que, curiosamente, apresenta o tema utilizado pelas duas obras em
questão, o da extinção dos seres - mas ele apresenta um novo projeto para a humanidade
perdida. Aproximando-se, cada vez mais, do procedimento hipertextual, trabalha com a
superposição das imagens espácio-temporais, para criar a ilusão de uma experiência noutra
dimensão desse mesmo espaço. Tempo e espaço formam uma única imagem que tem como
efeito a simultaneidade: um espaço e um tempo percebidos sob uma nova ótica, a dos seres
apequenados. Nessa perspectiva, a humanidade é convidada a dar um passeio na natureza
primitiva, a fim de se adaptar às novas condições e tomar contato com a nova civilização que
está sendo construída por meio da sabedoria humana já adquirida.
Se na obra de Monteiro Lobato o mundo criado é natural, projetado em duas dimensões,
no filme ele também apresenta um mesmo espaço em duas dimensões: depois da tragédia do
alagamento e após o congelamento, que durou dois mil anos. Mas os seres que habitam o
planeta alagado não são apenas humanos são também robôs, seres artificiais, produzidos em
série, para servir a uma classe social abastada.
Ao entrelaçar dois mundos, as narrativas, rompendo com o pensamento linear,
permitem-nos acessar novas realidades. Assim é que somos brindados com imagens
sobrepostas - captadas simultaneamente – que configuram dimensões de uma mesma
realidade, sendo janelas abertas para se observar o mundo. Imagens que, por sua natureza
ubíqua, permitem-nos vivenciar experiências virtuais que, agindo sobre nossos esquemas
perceptivos, podem provocar mudanças de posturas que se refletem em nossas vidas.
Nesse encaixe de narrativas, o mundo micro, colocado em confronto com o macro, em
A chave do tamanho, provoca mudanças nos esquemas perceptivos tanto das personagens
quanto dos leitores, e o tempo, juntamente com o espaço, é alterado pela nova perspectiva.
Emília vai comparando as duas dimensões, fazendo exercícios de perspectiva e procurando
compreender o mundo por meio de analogias e ações. O espaço se torna imenso aos olhos dos
seres apequenados que, para percorrê-lo, gastam um tempo incalculável (Emília está sempre
fazendo cálculos para estabelecer a duração de suas travessias). É curioso observar, nesse
contexto, como o autor já sugere, por meio do diálogo entre Emília e Juquinha, que a
tecnologia poderia encurtar as distâncias:
- Tudo é longe agora, Juquinha. Até o sítio de Dona Benta, que era pertíssimo virou
lonjura sem fim.
- E se for montada num besouro?
200
LOBATO, 2005, p.44.
- Ah, então ficará perto. Mas antes disso temos de descobrir a “dirigibilidade dos
besouros”, senão a gente monta num e vai parar onde ele quer e não onde a gente
quer.
201
Discutindo a questão da miniaturização, Agamben
202
mostra como, na descrição de uma
utópica república infantil, Collodi legou-nos-nos a imagem de um universo no qual não há
nada mais que jogo. Estabelecendo uma relação do jogo com o rito, o autor mostra que a
maior parte dos jogos que conhecemos se encontra nas antigas cerimônias sagradas, em
danças, lutas rituais e práticas divinatórias. Tanto em Inteligência artificial como em A chave
do tamanho, há uma preocupação com a miniaturização. No filme, as miniaturas foram
preparadas por maquetes, desenhos e computação gráfica como no parque temático, que
aparece na seqüência sob as águas, depois do congelamento do planeta. Sua representação foi
realizada por meio de uma reconstrução da Itália antiga, que é o mundo de Pinóquio. Foram
filmadas fotografias, pinturas e desenhos para criar o clima embaixo d’água, sendo o efeito de
realidade provocado pela filmagem num estúdio cheio de fumaça, criando assim a ilusão de o
parque estar imerso.
A miniaturização na obra literária também pode ter esse efeito de jogo compartilhado
entre as personagens apequenadas e o próprio leitor. Um jogo que oferece, pela própria
diminuição do tamanho, a oportunidade de aproximação da natureza, exercitando o prazer
desse contato por meio do aguçamento dos sentidos. O tabuleiro do jogo oferece peças
riquíssimas, sucatas que se transformam em artefatos tecnológicos e, funcionando como
próteses, auxiliam Emília em sua sobrevivência no ambiente hostil. Esses artefatos
apresentam, avant la lettre, como já foi discutido no segundo capítulo desta dissertação, a
noção do que hoje chamamos de nanotecnologia: pequenos objetos, restos de natureza que
são utilizados por Emília como “recursos tecnológicos”. Exemplo disso é o espinho de cactus
que ela cata no chão para se defender das formigas canibais, utilizando-o como lança durante
a aventura
203
(aqui ela resgata a história de Dom Quixote que lhe deu a idéia da lança). Nesse
sentido, também os insetos são experimentados como meios de locomoção, dentre eles, o
mede-palmo (escada-rolante viva), o caramujo que ela achou vagaroso demais, o gafanhoto
que a derrubou no primeiro pulo e o besouro que, segundo ela, não era ainda dirigível. Tentou
também viajar numa mutuca, agarrando-se em suas perninhas. Para cada situação vivida, a
boneca busca um novo sentido para as coisas, enxergando nos restos, oferecidos pela
201
LOBATO, 2005, p. 33.
202
GIORGIO, 2005, p. 81-83.
203
LOBATO, 2005, 15-22.
natureza, “artefatos tecnológicos”, objetos que se metamorfoseiam ao serem transpostos para
um novo contexto.
o mundo de Inteligência artificial apresenta imagens tecnológicas de última geração:
portas sensíveis a movimentos de mão, computadores que aceitam comando de voz, serviçais
robóticos avançados com sistemas de alerta para a dor (DAS), e dispositivos que permitem
aos robôs transformarem o seu visual: Gigolô Joe possuía, na palma de sua mão, um espelho,
por meio do qual transformava sua imagem a todo momento.
O procedimento da intertextualidade também permite que um jogo se estabeleça
porque, sendo as palavras e as imagens irruptoras de outros discursos, oferecem a
oportunidade para que uma grande interlocução se estabeleça entre muitas vozes, inscrevendo
os autores numa tradição com a qual dialogam, mesmo que seja para desconstruí-la e recriá-
la
204
, remetendo-nos, por esse motivo, a uma estrutura fractal. Curiosamente, esses fios
também ligam as duas obras, A chave do tamanho e Inteligência artificial. Na primeira,
remissão ao cinema quando Emília faz referência ao desenho de Walt Disney, Fantasia, que
aborda o tema da extinção dos seres, devido ao fenômeno da glaciação. Ela diz o seguinte:
- Pois acabei com o Tamanho e fiz muito bem! Para que esse trambolho do
Tamanho? Não há tantos e tantos milhões de seres que vivem sem tamanho?
Tamanho é atraso. Quer uma coisa mais atrasada que um brontossauro ou
mastodonte? Tão atrasados que levaram a breca, não agüentaram a “glaciação”,
como o Walt Disney mostrou na Fantasia
205
.
Com relação à Literatura, há referências distintas: desde poemas, como é o caso de O
navio negreiro, de Castro Alves, passando pelas histórias em O pequeno polegar, conto de
fada recontado pelos irmãos Grimm, Robinson Crusoé, cuja personagem é comparada, pelo
Visconde de Sabugosa ao Dr. Barnes, Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll
206
, Dom
Quixote de Miguel de Cervantes e os mitos gregos.
207
Merece destaque a interlocução que A
chave do tamanho estabelece com a obra Viagens de Gulliver de Jonathan Swift,
principalmente, na primeira e segunda partes, intituladas respectivamente “Viagem a Lilipute”
e “Viagem a Brobdingnag” em que Gulliver, após uma tempestade, é jogado, na primeira,
numa terra de seres apequenados e, na segunda, numa terra de gigantes
208
. Por meio dessas
duas perspectivas, pode-se, como na obra de Monteiro Lobato, examinar os conhecimentos já
adquiridos de pontos de vista diferentes.
204
WALTY, 2006, p. 80.
205
LOBATO, 2005, p. 44.
206
LOBATO, op.cit. p. 11.
207
LOBATO, op. cit, p. 10.
208
SWIFT, 1979, p. 17-69, 73-131.
Além dessas referências, pode-se citar também o sonho de Confúcio, filósofo oriental,
que serve como ponto de partida para um diálogo entre as personagens do sítio que buscam
entender a nova realidade em que estão inseridos. O autor também faz referência, por meio de
suas personagens e em vários momentos da narrativa, à sua própria obra: “Juquinha já lera nos
livros a história do rinoceronte do Picapau Amarelo, de modo que, ao ouvir falar em Quindim,
assanhou-se. Seu sonho sempre fora dar uma passeio montado no tremendo paquiderme”.
209
Além dessas referências literárias, podemos perceber que essa rede se expande,
primeiro, se pensarmos no tipo de argumentação utilizada nos diálogos entre a Emília e o
Visconde, baseada nos silogismos da herança grega; em seguida, nos discursos da ciência, que
perpassam toda a obra, como é o caso do evolucionismo, do relativismo e da teoria da
relatividade; depois, no discurso histórico e político que, tomando a Segunda Guerra Mundial
como tema central da obra, denuncia os horrores dos atos de Hitler, enfatizando, sobretudo, a
perseguição aos judeus. Além desses, há também o discurso social, que propõe uma nova
ordem, inspirada nas idéias do Dr.Barnes.
Ao lado de todas essas remissões, encontra-se a utilização de aforismos que, explorando
a linguagem informal, causam efeitos humorísticos, suprimindo da história a seriedade de que
se revestem os discursos científicos. Dentre esses ditados, quase sempre utilizados pela
Emília, podemos citar alguns: “Toca o bonde, Visconde”, referindo-se à sua nova morada, a
cartola do Visconde. Nota-se aí não só a utilização do ditado, mas também o acréscimo do
trocadilho; “Será o Benedito?”, expressão histórica que faz referência a Benedito Valadares e
que foi utilizada no momento em que Emília avista o Visconde, então o maior gigante sobre a
Terra, porque este não sofrera o efeito do apequenamento; “Sua alma, sua palma”, referindo-
se à humanidade que desejava voltar ao seu tamanho normal. Com relação ao uso desses
aforismos, podemos observar que tanto a obra literária como o filme utilizaram o mesmo
ditado popular: Todo caminho leva a Roma. Procurando pela cidade de Berlim, perdidos no
meio da Europa, depois de acordarem do desmaio provocado pelo pó de pirlimpimpim, Emília
sugere: “Vamos tomar aquela estrada, todo caminho dá em cidade”.
210
No filme, a
personagem Gigolô Joe também faz referência a esse mesmo ditado quando, perdidos na
floresta, diz a David: “Agora me siga e não fique para trás. Todos os caminhos levam a
Rouge” (referência à cidade artificial de Rouge City, semelhante a Las Vegas).
O filme também dialoga com a tradição, fazendo remissão à História, à Literatura, à
Arte. Podemos citar, com relação à História, a cena em que David e Gigolô Joe estão tentando
209
LOBATO, op.cit. p. 49.
210
LOBATO, 2005, p. 65.
escapar do “Mercado de peles”, imagem que representa um grande circo, onde se realiza um
espetáculo para a execução dos robôs que transitavam sem licença de suas empresas. O circo,
como já foi colocado no primeiro capítulo, apresenta uma imagem do Coliseu romano que,
pela força de sua sugestão, leva-nos à conexão com o não-dito. Também a frase proferida por
um dos robôs - A história se repete - leva-nos a recuperar a ligação do show business com a
história de Roma.
Nessa parte do filme, os recursos são os mais ricos possíveis, como já se teve
oportunidade de mencionar no primeiro capítulo desta dissertação. Movimentação contínua da
câmara para provocar efeitos de perseguição e emoção, a bela iluminação produzida pelo
“balão” do Mercado de Peles que mais se parece com uma enorme Lua, imagem ambígua que
também se liga à questão da ufologia. As tomadas do alto, na cena da floresta, exibem as
personagens em fuga, iluminadas pelo grande globo que sobrevoa o local, procurando os
tripulantes da nave detectar, por meio de um computador, os fugitivos. A beleza das imagens
contrasta com o medo dos robôs fugitivos. A cantiga de ninar de um robô feminino que
embala David também se integra às imagens do balão que sobe ou desce ao som da música. É
impressionante o movimento da câmera (travellings) no momento da perseguição, acentuando
o efeito de terror ao se integrar com uma música insistente e ritmada e com o barulho das
motos que caçam os transgressores. A cena da execução, que acontece no “Mercado de
peles”, também une recursos diferenciados: movimentos variados de câmera, principalmente
da câmera subjetiva que focaliza o ponto de vista dos robôs, da platéia, do dono do circo,
produzindo efeitos variados: desde o terror, estampado no rosto dos robôs, passando pelo
delírio da platéia e pela explosão das cores, (reflexos das luzes de néon), pela música que
nesse momento é estridente e metálica, até o movimento constante dentro do circo, um delírio
para aqueles que alimentavam o ódio pelos Mecas e eram a favor da destruição deles.
Por meio de Joe, robô-dançarino, o cineasta faz um tributo à dança americana. O Gigolô
se parece com Fred Astaire em Dançando na chuva. Com relação à Literatura, há interlocução
com a história Pinóquio, de Carlo Collodi, que se traduz no tema principal da história de
Kubrick. Faz-se também, por meio da cena do Dr. Know, uma remissão à mitologia grega, ao
se apresentar a bela imagem de um oráculo moderno que exibe a informação como
mercadoria de nossa sociedade de consumo. Quando Joe e David entram no recinto, está
tocando uma música suave, um mantra, clara referência à cultura oriental. Curiosamente, o
programa sofre mutações, já que as informações são sempre incluídas em sua memória. O
professor Hobby, ciente de que o garoto iria procurar o Oráculo, incluiu ali pistas que
pudessem trazê-lo de volta à Cybertronics. O oráculo atual não passa, pois, do próprio
computador que, além de armazenar informações, pode oferecer sugestões interessantes, se
soubermos elaborar as questões. Foi por meio dessa rede, sistema interativo entre as pessoas e
as imagens, que David e Joe encontraram as respostas que procuravam. Na abertura do filme,
na palestra do Professor Hobby, há também a utilização de uma metodologia grega: o diálogo
socrático (como na obra de Lobato). Essa referência é confirmada na programação de David.
Uma das palavras que a compõe é justamente “Sócrates”.
Abrindo links para outros mundos, AI traz à memória filmes tais como Blade Runner - o
caçador de andróides e O mágico de Oz, dentre outros. A edição e os movimentos de câmera
lembram um dos filmes de Kubrick, Nascido para matar. A história de David também nos
remete à saga do garoto Jim em O império do sol ou mesmo ao Homem de lata que só queria
ter um coração.
Um segundo link que nos remete a uma cadeia de significados é a heterogeneidade
discursiva, também denominada polifonia, procedimento a que já nos referimos no primeiro
capítulo deste trabalho e que nos remete também a vozes de tempos e de culturas diferentes.
No livro, a polifonia acontece por meio dos diálogos que incluem discursos vários - direto,
indireto e indireto livre. Este último expressa, num mesmo enunciado, vozes simultâneas que
reproduzem a verdadeira interlocução. Como exemplo desse procedimento, o trecho abaixo
indica a simultaneidade de duas vozes contidas num único enunciado, cujo pensamento passa
tanto pela perspectiva do narrador quanto de Emília:
- Que lugar era aquele? Um simples canteiro de violetas, dentro do qual Emília teve
a sensação do caçador em plena mata virgem. A sua redução de tamanho permitia-
lhe ver a “abundância do pequenino”. Quantas vidinhas na sombra daquela mata,
sobretudo sob forma de vermes!
211
No capítulo II da obra, intitulado “A chave do tamanho”, o jogo polifônico se insinua por
meio de um monólogo da Emília que, necessitando conversar para buscar compreender a
realidade em que está inserida, cria uma interlocutora. Então, duas vozes são ouvidas: a dela e
a da outra que é ela mesma Essa argumentação riquíssima vai conduzindo-a ao julgamento
perceptivo. Já no capítulo XII, “O gigante de cartola” pode-se entrar no jogo da linguagem
por meio da argumentação do pró e contra que acontece entre a Emília e o Visconde. Além
dessas duas vozes, suas opiniões puxam outras vozes, numa cadeia ininterrupta de pontos de
vista que nos conduzem a discursos científicos e posições filosóficas sobre a questão do
tamanho.
211
LOBATO, 2005, p. 20.
- Pois o que você fez passa de todas as contas, Emília. Se os homens souberem, não
perdoam. Agarram-na e assam-na viva na maior das fogueiras. Incrível! Destruir o
tamanho das criaturas!... Sabe que isso corresponde a destruir toda a civilização
humana? Desde que o mundo é mundo, os homens, com as maiores dificuldades, foram
construindo essa civilização feita de casas, máquinas, estradas, veículos, idéias. Mas
agora com a redução do tamanho, nada mais serve e, portanto, o que você fez, Emília,
foi destruir a civilização! Des – tru – ir a ci- vi- li- za- cão!... Do tamanhinho que os
homens ficaram, eles têm de criar outra civilização muito diferente. Isso na hipótese de
subsistirem.
- Pois acabei com o Tamanho e fiz muito bem! - disse ela - Para que esse trambolho do
Tamanho? Não há tantos e tantos milhões de seres que vivem sem tamanho? Tamanho é
atraso. Quer uma coisa mais atrasada que um brontossauro ou mastodonte? Tão
atrasados que levaram a breca, não agüentaram a “glaciação”, como o Walt Disney
mostrou na Fantasia. Compare a estupidez desses monstros tamanhudos com a leveza
inteligente duma abelha ou formiga – e por isso os brontossauros e mastodontes só
existem hoje nos museus, enquanto as abelhas e as formigas andam por toda a parte aos
bilhões. Eu acabei com o Tamanho entre os homens e fiz muito bem. Um dia a
humanidade nova me há de agradecer o presente, depois que a raça nova dos “homitos”
se adaptar.
212
No capítulo XX, “A cidade do balde”, mais uma voz é incluída no debate, a do
antropólogo que dirige o novo núcleo de civilização que se desenvolve debaixo de um balde
na Califórnia. Não é por acaso que as posições de Barnes são perfeitamente aceitas por
Emília. Nesse sentido, é interessante observar que, mesmo negando na obra todas as idéias de
progresso que tinha alimentado até então, Monteiro Lobato continua mantendo o seu
entusiasmo pelos Estados Unidos, país em exerceu as funções de Adido comercial entre os
anos de 1927 e 1930.
213
Na obra, como também no filme, a heterogeneidade não se estabelece somente por meio
da corrente discursiva. Em A chave do tamanho, há imagens que podem sugerir temas
importantes da obra como, por exemplo, no capítulo XII, onde um jogo polifônico insinua
uma imagem-síntese: Emília passa a habitar na cartola do Visconde, uma alusão, talvez, à
necessidade da interlocução entre ciência e criatividade já que, para o pensamento do escritor,
a ciência só seria válida se fosse conectada à prática.
Como assinalamos anteriormente, no filme, também a polifonia nos leva a vozes
outras. No episódio da perseguição aos robôs, por exemplo, muitos discursos e imagens se
encadeiam para produzir o efeito polifônico. É o caso da aparição de uma Lua gigantesca que
se revela, depois do primeiro impacto, como um balão que caça robôs para destruí-los num
espetáculo. Por meio dessa imagem, os jogos de luz se estabelecem e iluminam o drama dos
robôs embaixo, na floresta, num contraste entre a beleza e o terror. Além das diversas
212
LOBATO, 2005, p. 44.
213
LOBATO, 1944, p. 473.
referências poéticas que podem ser encontradas na simulação de uma Lua perseguindo seres
robóticos, a imagem é ambígua, porque se trata de um balão disfarçado de Lua. Essa imagem
parece trazer à tona especulações em torno de projetos militares secretos, num toque sutil de
Kubrick, lembrando como ele lidou com diversos temas reais da Guerra Fria em sua comédia
Doutor Fantástico.
214
Se Kubrick abordou, nesse filme, temas sensíveis do mundo real que fariam parte da
ufologia, Spielberg ofereceu muitas contribuições a esses estudos que se disseminaram
amplamente por meio do cinema, como o conceito da bondade do extraterrestre e agora do
robô. As imagens dos seres que resgatam David do oceano descongelado em Inteligência
artificial também nos levam de volta a Contatos imediatos de terceiro grau. Esse fato é
irônico porque os diálogos entre os seres evidenciam que eles não são alienígenas, mas sim,
evoluções dos andróides que sobreviveram à extinção do ser humano. Gigolô Joe
profeticamente diz a David: “No final, tudo que restará seremos nós”.
A heterogeneidade discursiva ainda deixa suas marcas nas mais variadas seqüências
discursivas - narração, descrição, argumentação - utilizadas tanto no livro como no filme,
produzindo, por meio do sistema de encaixe, o efeito de verossimilhança e servindo também
para retardar ou acelerar o tempo da narrativa. Assim é que, do capítulo III ao XI, o tempo se
retarda (como era de se esperar pelo apequenamento dos seres) e as seqüências descritivas
ganham destaque, já que Emília tinha de fazer descobertas no universo micro em que agora
estava vivendo. Do capítulo XII em diante, após seu encontro com o Visconde, a narrativa
progride e o tempo se acelera com as ações das duas personagens que viajam para a Europa e
para os Estados Unidos a fim de buscarem informações sobre a redução dos seres humanos.
Há, pode-se dizer, um cruzamento bem feito entre as três seqüências, com destaque para uma
ou para outra, de acordo com a necessidade do tempo da narrativa.
O filme, por sua vez, também alterna seqüências. No primeiro episódio, imagens
descritivas convivem ao lado daquelas que impulsionam a narrativa por meio de ações. Um
exemplo de uma bela descrição é a focalização da imagem da mesa onde janta a família
adotiva de David. Aqui o diretor utiliza um jogo de ângulos de câmera e, sendo a tomada do
alto, a visão passa por meio do lustre e encapsula o robô, enquadrando-o e produzindo, dessa
forma, o efeito de solidão do garoto. Outra descrição surpreendente corresponde à imagem do
Mercado de Peles com utilização de jogos de luz, cores, sons estridentes, metálicos,
provenientes da banda que tocava e dos gritos da assistência. Há também, misturadas às
214
MORI, [s.d.].
seqüências descritivas, muita ação com grande dinamismo da câmera que busca captar a
movimentação constante e a participação do auditório, em perspectivas diversas. Na
perseguição aos robôs, o máximo de ação. A câmera registra todos os movimentos, distancia-
se, aproxima-se das personagens, num contínuo vaivém. Aqui os elementos se misturam
(ronco das motos, música ritmada insistente, luz da Lua, bela e apavorante, já que era ela que
seguia os rastros dos fugitivos), provocando efeitos vários, como medo, solidão, abandono.
Outras interessantes seqüências descritivas são mostradas no espisódio do Dr. Know com a
utilização de imagens holográficas e a cena do fundo do mar, onde está imerso o parque
temático de Pinóquio.
Figuras e temas transversais se cruzam em ambas as obras se espalhando como
rizomas. Na composição textual de A chave do tamanho, metáforas, metonímias e outros
recursos lingüísticos dão ao texto uma dimensão material, num jogo de deslocamentos e
condensações que se encadeiam numa rede de imagens, gerando significações várias. Na obra
em estudo, podemos observar a dimensão metonímica quando o sítio é tomado como uma
parte do todo: o mundo em guerra. As metáforas são utilizadas por Emília nos momentos em
que ela busca estabelecer comparações entre os universos macro e micro, preenchendo os
significantes com novos significados, revestindo os fatos de outros valores. É por meio dessa
comparação que o autor vai desestabilizando a hierarquia dos valores, buscando causar o
efeito da relatividade das coisas. Outros temas também se revelam por meio das imagens de A
chave do tamanho que mostram o desejo do autor de libertar a humanidade de uma realidade
que a estava oprimindo, ou seja, a Segunda Guerra Mundial. Logo ele, que tinha sido um
arauto do progresso, encontrava-se agora pessimista com relação à utilização da tecnologia.
Negava, portanto, todo o desenvolvimento tecnológico, acreditando que o homem teria que
criar uma Nova Ordem, retornando à antiga civilização para se libertar do ferro e do fogo
responsáveis pelo caminho errado que o Homo sapiens tomara. Isso fica claro no diálogo
entre Dr. Barnes e Emília:
- Um caminho errado. Livres do fogo, nós vamos agora construir uma civilização
muito mais natural e vantajosa para nós mesmos - sem guerras, sem máquinas, sem
aquele desvario das invenções que nos iam levando para o beleléu.
- Mas nós poderemos continuar a viver perfeitamente comendo minhocas em vez de
bois, mel de flores em vez de cocadas, e a voar a cavalo em besouros em vez de
correr em automóveis.
- Isso mesmo - concordou o Doutor. - Será regressarmos ao período da evolução
humana anterior à descoberta do fogo, mas com toda a nossa bela ciência na cabeça
- e podemos ser muito mais felizes que os nossos avós daquele tempo.
215
Logo, o tema mais importante da obra é a guerra, por meio da qual se irradiam todas as
outras imagens, numa cadeia sem fim. E a imagem do tamanho é conseqüência dela. Por meio
da criação de um mundo miniaturizado, o autor deixa transparecer, nos discursos das
personagens e nos diálogos, a crítica à sociedade macro, sua aversão à Guerra, à sociedade
industrial que inverteu todo processo civilizatório, desviando a humanidade de sua rota.
Lobato era um homem que pensava em prol da coletividade. Mesmo no mundo micro, ele não
deixa de perceber a inversão dos valores. Isso pode ser verificado quando Emília tomava
banho de piscina num pires com os amigos do sítio. De repente, houve uma discussão e o
Visconde refletiu: “Lá vai a propriedade se formando. Emília já está toda cheia de minhas e
meus”.
216
Lobato critica também os ditadores, principalmente Hitler, referindo-se ao pior de
seus pecados: a perseguição aos judeus.
Esse mundo apequenado também oportunidade para que o autor veicule idéias
favoráveis aos regimes democráticos. Apesar de a redução do tamanho acontecer devido a
uma ação individual da boneca que se mostra, durante todo o processo bastante autoritária, no
final, ela concorda com um plebiscito. Com o gesto democrático desejado pela maioria, a
história se fecha, com a volta do tamanho e o restabelecimento da normalidade.
O princípio da relatividade das coisas, como vimos no primeiro capítulo deste trabalho,
também é um tema relevante da história, se não for o mais importante. A narrativa, ao virar o
mundo pelo avesso, dá oportunidade para que essa teoria seja experimentada a fim de que
novos pontos de vista sejam revistos pelos leitores. Ainda outros temas se ramificam nesse
rizoma, sendo experimentados o relativismo das idéias, o evolucionismo e a própria filosofia
do autor, que é adepto da inteligência coletiva: abrindo as portas, com a miniaturização do
mundo para a observação do espaço natural, mostrando in loco a inteligência coletiva dos
insetos que se organizam em estruturas invejáveis, como é caso das formigas que indicam,
segundo o Dr. Barnes, o caminho para a reconstrução da humanidade
217
. Estando os animais
próximos da terra, apresentam instintos mais aguçados, alguns com antenas que servem à
audição e ao tato. Hoje, com as próteses, segundo McLuhan
218
, estamos nos aproximando
215
LOBATO, 2005, p. 75.
216
LOBATO, 2005, p. 58.
217
LOBATO, 2005, p. 77.
218
MCLUHAN, 2003, p. 63.
desse estágio evolutivo, só que artificialmente, numa mistura entre organismo e máquina. Mas
não podemos nos esquecer de que as imagens da inteligência artificial também expressam um
tema importante. Quem vai à Guerra é a Emília, e seu ajudante é o Visconde. Quem senão
eles - munidos de inteligência artificial e de corpos híbridos que se sustentam em ambientes
hostis - poderiam suportar essa passagem entre as dimensões? Como Kubrick, Lobato atesta,
nessa obra, ainda que de maneira paradoxal, sua esperança na tecnologia.
No filme, os temas vão emergindo como resultado dos cruzamentos entre imagens e
discursos que, de certa forma, se entrelaçam com a obra literária. A principal imagem da
narrativa fílmica é a da inteligência artificial. A história se tece por meio da figura central de
um pequeno robô para onde todas as expectativas convergem. Esse ser superficial é fruto de
uma sociedade que utiliza a tecnologia para fabricar andróides para seu próprio consumo. Só
que muitos desses robôs exercem atividades profissionais, como é o caso do Gigolô Joe, e isso
divide a sociedade em duas classes, produzindo um grande confronto entre Orgas e Mecas,
formando uma imagem chocante da submissão e do poder.
Os discursos da ciência também perpassam a narrativa fílmica, servindo de apoio para
“materializar” e enunciar mundos virtuais, sintonizando-se com a ciência de seu tempo. O
primeiro tempo do filme aponta para uma proximidade com nossa época, dada a aceleração
dos acontecimentos, devido ao aquecimento global. O futuro longínquo, que mostra a
extinção da raça humana, não deixa de ser um alerta à irresponsabilidade humana para com o
planeta. A criação desses mundos futuros em Inteligência artificial, ao promover um
deslocamento perceptual, oferece a oportunidade de o telespectador viver essa experiência de
forma virtual e lançar um novo olhar sobre a realidade. A família de David adotou-o para
suprir a falta do filho verdadeiro, que estava congelado esperando a cura por meio dos
avanços da medicina. Quando o filho voltou e surgiram os conflitos, os pais não refletiram
sobre as conseqüências de seus atos e abandonaram a criança-robô.
A ciência ainda não produziu quinas ou seres que fogem ao controle de seus
criadores da forma como a ficção já o faz. Mas outras inquietações apresentadas na ficção
acerca do futuro, que não gostaríamos de ter, suscitam discussões que podem ajudar a mudar
o curso da história. O filme de Spielberg e Kubrick também vai além da questão filosófica
acerca de seres previamente programados e reproduzidos em série: cidades costeiras como
Nova Iorque, no futuro em que se passa o filme, estarão totalmente alagadas em função do
derretimento das calotas polares, o que é um alerta para as discussões ecológicas envolvendo
mudanças climáticas e aquecimento global. A narrativa fílmica sugere também uma reflexão
sobre o que significa criarmos cópias imortais de nós mesmos. Dessa maneira, a proposição
que Spielberg formula diz respeito à ética e à responsabilidade científica e social que
deveriam orientar a relação do homem com o mundo e com as máquinas.
Ambos, filme e livro, apresentam semelhanças e diferenças em suas estéticas. Como
diferença fundamental, podemos citar a preocupação do livro com a epistemologia,
característica do estilo moderno. Podemos observar esse fato por meio da variedade de
discursos científicos que perpassa toda a obra e pela postura da própria personagem Emília
que se empenha muito mais em conhecer o mundo exterior para viver e adaptar-se. Já o filme
cede lugar à ontologia, característica pós-moderna
219
, ao levantar questionamentos sobre o
que acontece quando tipos de mundos são postos em confronto ou quando as fronteiras são
violadas. David tem uma preocupação ontológica: deseja saber de onde vem e sua
preocupação maior é resolver o conflito que o mantém prisioneiro de si mesmo. As
semelhanças entre as duas obras estão em seu hibridismo, em sua heterogeneidade discursiva
e temática, na variedade de recursos formais, trazendo ambos um entrelaçamento
carnavalesco de estilos, vozes e registros. Nas duas obras, cujo gênero é marcado pelas
características da ficção científica, a imagem que se apresenta é a de um tempo superposto
que opera por meio da transição entre os espaços.
4.1- As imagens da inteligência artificial nas narrativas literária e cinematográfica
Como nos referimos anteriormente, vivemos hoje uma época de crise das antigas
ordens de representações e dos saberes e de uma grande complexidade em relação às formas
de produção da imagem. As novas tecnologias colocam em crise o sistema de representação,
ao introduzirem a imagem de síntese, simulacro da realidade, que não nos permite mais
distinguir o falso do verdadeiro, a cópia do original, a realidade da ilusão.
220
Para estabelecer um paralelo entre os dois sistemas de imagens, o analógico e o digital,
André Parente
221
utiliza duas personagens da mitologia grega: Ulisses e Proteu.
222
Se
partirmos de Ulisses (mito da identidade), encontraremos um pensamento de representação, já
que este, diante da imagem, olharia para trás para observar o mecanismo produtor da ilusão,
219
CONNOR, 1993, p.105.
220
PARENTE, 1993, p. 14.
221
Idem. p. 30-31.
222
Proteu: deus marinho, guardião dos rebanhos de Netuno. Assumia todo tipo de forma para espantar os que dele
se aproximavam. COMMELIN, 1997, p. 115-116.
recusando a metamorfose. Entretanto, se partirmos de Proteu (mito fractal), chegaremos a um
pensamento de diferença em que a imagem é pura metamorfose, virtualidade criadora, que
nos permite ver e viver a imagem em dimensões e freqüências diferentes.
Segundo o autor
223
, existe, hoje, uma infinidade de sistemas maquínicos, em particular
a mídia eletrônica e a informática que incidem sobre todas as formas de produção de
enunciados, imagens, pensamentos e afetos. A foto, o cinema, a televisão e a infografia
transformaram radicalmente nossas relações com o tempo e o espaço, anulando a presença do
aqui e agora por meio de uma programação que se dá em escala cósmica. Afirma o autor que
Teilhard de Chardin e, mais tarde McLuhan, pressentiram que a humanidade, por meio da
tecnologia e das redes de comunicações, objetivava um organismo ultra-humano, um sistema
nervoso planetário, ampliando e estimulando nossos órgãos sensoriais - tato, visão e audição -
para reconstituir uma consciência artificial.
As novas imagens supõem uma relação causal direta entre nova tecnologia e nova
linguagem, nova estética ou novo imaginário. Nesse sentido, as novas tecnologias da
inteligência têm provocado uma revolução estética na literatura e no cinema, rompendo com o
modelo clássico de representação. A literatura introduziu novos modos de narrar e o cinema
soube aproveitar um espaço puramente ótico e tátil por meio da imagem de síntese que se
distribui entre dois tipos diferentes de simulação: uma que rivaliza com os sistemas de
representação do espaço e uma outra que rivaliza com nossos sistemas sensoriais. O primeiro
tipo é mais utilizado na criação de efeitos especiais no campo do audiovisual e o segundo tipo
de simulação é própria da realidade do virtual, na qual se constroem ambientes constritivos de
ação, baseados em sistemas especializados, como a tecnologia que visa ao aprimoramento de
desempenho instrumental.
224
As novas tecnologias terão cada vez mais influência sobre os modos de intelecção,
sobre a gestão do espaço e do tempo, sobre as relações do sujeito consigo mesmo e com os
outros, provocando uma reviravolta ética e estética das vontades. Supõe-se ainda que elas
provocarão o surgimento de uma nova linguagem que afetará as condições de exercício do
pensamento.
225
Para alguns especialistas, as novas tecnologias da imagem podem levar a um
processo de automação da percepção e de industrialização da visão
226
.
Os universos criados pelas narrativas fílmica e literária podem ser identificados por
meio da análise de suas imagens. A obra A chave do tamanho, editada em 1942, põe à mostra
223
PARENTE, 1993, p. 14-19.
224
Idem, p. 24-25.
225
LUZ, 1993, p. 49-55.
226
PARENTE, 1993, p. 18-19.
um mundo rural e, se existe um confronto entre duas dimensões da realidade, essas diferem
apenas pelo ponto de vista que, no mundo micro, alcança a natureza em sua profundidade. Os
seres apequenados estão mais próximos da Terra e podem entrar mais em contato com ela por
meio de sua percepção. Os mundos não se chocam, os elementos tecnológicos ainda não estão
industrializados, constituindo-se, pelo contrário, em sucatas, restos da própria natureza. Como
o escritor se preocupava com o progresso, com a ciência e com a tecnologia, é natural que
utilizasse, para construir suas personagens, os materiais “tecnológicos” disponíveis no sítio.
As imagens da inteligência artificial - Emília e Visconde - estão inseridas num tipo de
paradigma que Santaella
227
denomina de pré-fotográfico. Nesse modelo, estão incluídas as
imagens artesanais, um primeiro passo na história da evolução das imagens. Como podemos
perceber, tais personagens são fabricadas artesanalmente. Ela, uma boneca de retalhos de
pano feita por tia Nastácia, como nos conta o narrador da obra Reinações de Narizinho
228
.
Ele, o Visconde, construído por Pedrinho a partir de um sabugo de milho, acontecimento
registrado nessa mesma obra
229
:
Pedrinho fez como Lúcia pediu. Arranjou um bom sabugo, ainda com umas
palhinhas no pescoço que fingiam muito bem de barba, botou-lhe braços e pernas,
fez cara com nariz, boca, olhos e tudo - e não esqueceu de marcar-lhe a testa com
um sinal de coroa de rei. Depois enterrou-lhe na cabeça uma cartolinha e lá foi com
ele à casa da boneca.
O processo de animação de Emília aconteceu por meio da linguagem, pois ela era
muda, e não por intervenção divina, preferindo o escritor utilizar os recursos da tecnologia, as
pílulas do Dr. Caramujo.
230
Tanto o processo de animação da boneca como o de sua evolução
são bem definidos na obra, mas o do Visconde não. Sendo construído por Pedrinho, ele
começa a falar sem nenhuma intervenção e sua identidade demorou a se formar. Ele se perdia
e embolorava, sendo refeito várias vezes por tia Nastácia. Por fim, transformou-se no
Visconde de Sabugosa, o cientista do sítio. A partir daí, manteve essa identidade. Já Emília
sofreu uma grande metamorfose, já que sua aspiração era transformar-se em gente. Ao
conversar com o presidente dos Estados Unidos, ela se denomina “evolução gental” da
bonequinha pernóstica:
227
SANTAELLA, 2001, p. 157.
228
LOBATO, 1973, p. 12.
229
Idem, p. 50.
230
Idem, p. 22.
- Como?
- Artes do mistério. Fui virando gentinha e gente sou; belisco-me e sinto a dor da
carne. E também como. Já o Visconde permaneceu milho. Fala, pensa, raciocina
muito bem, sabe todas as coisas, mas não come nem sente dor de beliscão.
231
Essa transformação da Emília se aproxima do princípio de metamorfose do hipertexto e
as demais personagens, dotadas de inteligência artificial, vão se articulando e formando uma
rede de coletivos pensantes que, segundo Lévy, representam a inteligência dos grupos, já que
pensar é um devir coletivo no qual se misturam homens e coisas.
232
Além da Emília e do
Visconde, fazem parte da história: Rabicó, o porco comilão; o burro falante, filósofo do sítio;
e Quindim, o guardião. Não podemos nos esquecer de que Lobato era simpatizante da
inteligência coletiva, sempre ressaltando a inteligência das formigas e das abelhas que agem
de comum acordo. O grupo do sítio também está sempre unido, seja ouvindo histórias ou
planejando viagens e acontecimentos, seja vivenciando experiências. Em A chave do
tamanho, Emília precisa tanto do Visconde como dos demais membros do grupo para
deliberar sobre as decisões.
Para viver a aventura do apequenamento, foram escolhidas as personagens Emília e
Visconde (os outros foram colocados em suspenso numa cômoda) porque seus corpos eram
recicláveis e poderiam, portanto, transitar entre os dois mundos. Os pequenos cyborgs da obra
marcam a passagem em retrocesso de uma sociedade recém-industrializada para outra
primitiva, natural, governada por um sábio. Para ajudá-los nessa empresa, contam com o
superpó de pirlimpimpim, criado artificialmente em laboratório.
Santaella
233
, abordando o papel dessas imagens na recepção, mostra que a imagem
artesanal, matérica ou imagem-mímese (figuração por imitação), contém sempre algo de
sagrado, que convida o receptor a uma contemplação. De fato, bonecos de pano ou de sabugo
provocam em nós esse efeito de respeito e contemplação visto que são objetos únicos. A
Emília e o Visconde são frutos daquele instante em que foram plasmados pelo olhar e pelo
gesto idílico de tia Nastácia e de Pedrinho, criadores que dão corpo ao pensamento figurado.
Nessas imagens instauradoras, fundem-se, num gesto indissociável, o sujeito que cria, o
objeto criado e a fonte da criação. Tais imagens são também temporais, pois nos devolvem a
um tempo sagrado em que convivíamos com os artefatos construídos por nossas próprias
mãos. Mas não podemos nos esquecer de que as imagens da Emília e do Visconde, ao serem
231
LOBATO, 2005, p. 80.
232
LÉVY, 1993, p. 169.
233
SANTAELLA, 2001, p. 174.
animadas, tornaram-se portadoras de uma voz que não condiz com a do senso comum,
podendo, portanto, ser recebidas com estranhamento e impacto.
O produtor dessas imagens, Monteiro Lobato, procurou introduzir a boneca num
ambiente experimental. Dessa forma, buscou observar a evolução de seu processo cognitivo
em sua relação com o ambiente natural, até sua transformação em gente. O segundo capítulo
de A chave do tamanho é exemplar, nesse sentido. Após o evento do “apequenamento”,
Emília sente-se perdida, envolta num toldo de circo que era seu próprio vestido. Mas para
entender essa realidade, ela precisa de referências, pois não podemos entender o mundo sem
um exercício comparativo. Por sorte, trouxera consigo a caixa de fósforos, que continha
alguns grãos do pó de pirlimpimpim, e foi exatamente esse objeto que lhe serviu como ponto
de partida para entender a nova realidade. Mas isso também não bastava, necessitava de um
interlocutor para, por meio da linguagem, elaborar os signos produtores de novos significados.
Cria então uma alteridade, um outro de si mesma, iniciando um monólogo que contém essas
duas vozes e travando consigo mesma um diálogo. Primeiro, faz perguntas e tenta respondê-
las, por meio de um exame do ambiente e, depois, vai chegando a conclusões, escolhendo,
pelo processo de eliminação, aquelas respostas que se ajustam à situação. Explora muitos
tipos de raciocínio e, aos poucos, vai iluminando, auxiliada pela linguagem, sua própria
condição. Podemos explicar esse pr0.174rópcurouoguxera las, po8 m8.7 par
cria e inova, passando da percepção para a cognição e entendendo a realidade de forma
revolucionária: ela compara, seleciona, analisa, reflete, faz cálculos e chega a conclusões
satisfatórias a respeito da realidade que a cerca. Nesse processo, a tecnologia está sempre
presente, auxiliando-a na experiência: alguns insetos lhe servem de transporte, outros de ponte
e elementos naturais como espinhos e chumaços de algodão são usados como defesa contra
animais.
Para a construção da imagem de sua personagem Emília, Lobato contou com as idéias
de Nietzsche, Jean-Jacques Rousseau e Carlo Collodi. Emília parece responder ao eco das
leituras desses escritores. Ela é uma espécie de super-homem nietzschiano, é amoral, está
acima do bem e do mal: moveu a chave, reduziu o tamanho da humanidade, causando
milhares de mortes e não se sentiu culpada. Pelo contrário, aceitou a situação de forma natural
já que, para ela, conforme confessa ao Visconde, poderiam morrer milhões, mas bastava que
ficasse um só casal de Adão e Eva para que tudo recomeçasse. Se já havia tanta matança no
mundo, se a vida estava valendo tão pouco, o que significava a morte de milhares de pessoas
pela perda do tamanho?
237
A boneca também parece ser fruto de seu contato, por meio da
leitura, com as experiências educativas do filósofo Jean-Jacques Rousseau que sugeria uma
educação pela autonomia e pela ciência. Além desses dois filósofos, as obras de Carlo Collodi
(Pinóquio), de L.Frank Baum, (O mágico de Oz), e de Lewis Carroll (Alice no país das
maravilhas), certamente influenciaram o escritor e foram as bases sobre as quais nasceu a
boneca Emília. Além disso, por meio de sua heroína Emília, Lobato faz justiça às mulheres
num tributo à inteligência feminina.
O segundo paradigma da imagem, segundo Santaella
238
, é o fotográfico que inaugura
um processo de produção eminentemente diático que repousa sobre técnicas óticas de
formação da imagem a partir de uma emanação luminosa, que o cinema e o vídeo não vieram
modificar, mas só levar à sua máxima eficácia. Nesse modelo, a imagem é o resultado do
registro sobre um suporte químico ou eletromagnético, do impacto dos raios luminosos
emitidos pelo objeto ao passar pela objetiva. Enquanto o suporte no paradigma pré-fotográfico
é uma matéria informe e passiva, no fotográfico, é um fenômeno químico ou eletromagnético
preparado para o impacto, pronto para reagir ao menor estímulo da luz.
O terceiro tipo de imagens está inserido no paradigma pós-fotográfico que é, sob todos
os ângulos, triádico, pressupondo três fases interligadas, como nos afirma Lúcia Santaella.
239
237
LOBATO, 2005, p. 44.
238
SANTAELLA, 2001, p. 164-165.
239
SANTAELLA, 2001, p. 166-167.
A infografia provocou uma mutação radical nos modos de produção da imagem como vimos
anteriormente. O suporte das imagens sintéticas resulta do casamento entre um computador e
uma tela, mediados ambos por uma série de operações abstratas, modelos, programas,
cálculos. A imagem infográfica é uma realidade numérica que só pode aparecer sob forma
visual na tela de vídeo porque esta é composta de pequenos fragmentos elementares chamados
de “pixels”, cada um deles correspondendo a valores numéricos que permitem ao computador
lhes dar uma posição precisa no espaço bidimensional da tela. Partindo de uma matriz de
números, contida dentro da memória do computador, a imagem pode ser integralmente
sintetizada, programando o computador e fazendo-o calcular a matriz de valores que define
cada pixel.
As conseqüências dessas imagens no papel do receptor é que o caráter dominante delas
está em sua interatividade que suprime qualquer distância, produzindo mergulho, imersão,
navegação do usuário no interior das circunvoluções da imagem. Imediatamente
transformáveis, ao apertar de teclas e mouses, elas estabelecem com o receptor uma relação
quase orgânica, numa interface corpórea e mental imediata, suave e complementar até o ponto
de o receptor não saber mais se é ele que olha para a imagem ou se é a imagem que o
observa.
240
A hibridização da arte tem levado à mistura dos três paradigmas: pré-fotográfico,
fotográfico e pós-fotográfico. Exemplos dessas misturas podem ser encontrados nos
fenômenos artísticos que receberam o nome de hibridização das artes e contemporaneamente
comparecem de modo mais cabal nas instalações, onde objetos, imagens artesanalmente
produzidas, esculturas, fotos, filmes, vídeos e imagens sintéticas são misturados numa
arquitetura, com dimensões, por vezes, até mesmo urbanísticas, responsável pela criação de
paisagens sígnicas que instauram uma nova ordem perceptiva e vivencial em ambientes
imaginativos e críticos capazes de regenerar a sensibilidade do receptor para o mundo em que
vive.
241
O desenvolvimento tecnocientífico, a partir da segunda metade do século XX, desafia a
concepção do homem da modernidade. A ciência e a filosofia modernas conceberam homens,
animais e máquinas como seres de naturezas distintas, que não podiam se misturar. Ao
explicar os mecanismos da vida em termos de interações moleculares e programa genético, a
biologia molecular elimina a possibilidade de vitalismo, produzindo uma maquinação do
humano em nível bioquímico. Por sua vez, as máquinas de última geração são providas de
241
SANTAELLA, 2001, p. 183.
organização, interagem com o ambiente e executam tarefas cognitivas, faculdades até então
reservadas aos humanos. Além da maquinação do humano e humanização das máquinas, a
inteligência artificial, as biotecnologias e a engenharia genética produzem próteses, implantes,
tecnologias invasivas e biocompatíveis que tornam ambíguas as diferenças entre natural e
artificial, pensante e não-pensante, orgânico e maquínico
242
.
O filme Inteligência artificial trata dessa questão: a transgressão das fronteiras que
separam o natural do artificial. Colocando esses dois universos ficcionais em confronto, gera
uma abertura para as multiplicidades, permitindo os hibridismos nas suas fronteiras. Apesar
de todo o avanço tecnológico alcançado pela sociedade do futuro, o homem não soube lidar
com esse tipo de progresso o que resultou no desequilíbrio entre esses universos, devido ao
excesso de produção de robôs e artefatos tecnológicos e, ao mesmo tempo, pela indiferença a
uma ética que deveria reger as alteridades.
David, protagonista da história, juntamente com seus companheiros Gigolô Joe, garoto
de programa, e Teddy, o superbrinquedo animado por computador, foram escolhidos para
fazer parte dessa rede de personagens que experimentam suas inteligências artificiais na sua
relação com o meio em que estão inseridos. O garoto de programa e o ursinho é que vão
ajudar David em sua epopéia pela vida real. Juntos, esses coletivos pensantes, ao vivenciarem
os fatos, vão procurando entender a realidade circundante por meio dos recursos cognitivos de
que dispõem, superando obstáculos e seus próprios limites.
O Meca, rejeitado pela mãe, recebeu o nome de David, o que não deixa de ser irônico,
já que, em origem hebraica, esse nome significa “querido”. Davi, rei de Israel, ganhou
notoriedade ao matar em combate o gigante filisteu Golias.
243
O nome escolhido para a
criança-robôe
audaciosa e maliciosa, mostra uma evolução em sua conduta, deseja adaptar-se no novo
ambiente para sobreviver. Seus motivos são bem diferentes dos de David. Sua relação com o
ambiente é mais clara e seu comportamento bastante interativo. David, pelo contrário, mostra-
se bastante ingênuo e protegido, seja por Joe, seja por Teddy. Apesar disso, vai ganhando uma
certa habilidade em lidar com situações difíceis, conseguindo até dirigir o anfibiocóptero e
fugir de seus perseguidores juntamente com seus companheiros. Na cena em que ele e Joe
visitam o Dr. Know, um oráculo moderno, baseado em memória de computador, ele mostra
um desempenho muito bom em matéria de exercício cognitivo, estabelecendo comparações
entre as frases, fazendo perguntas pertinentes e obtendo respostas satisfatórias. Essa cena
exibe um interessante processo interativo entre o computador, David e Joe. Além de seu
esforço para compreender a realidade circundante, o que encanta no robô é sua capacidade de
resistência e sua vontade firme de encontrar a Fada Azul, o que será uma de suas conquistas
ao final do filme.
O Gigolô Joe apresenta um protótipo avançado de andróide, guardando, em seu próprio
corpo, recursos que lhe permitem realizar muitas ações, como uma espécie de espelho que
exibe na palma da mão. Quando ele deseja modificar sua aparência, olha para ele e
mentalmente formula o desejo, mudando a cor do cabelo. Apresenta também um excelente
nível de raciocínio e ajuda David a pensar. Mas é acomodado, está satisfeito com a função que
exerce na vida, a de garoto de programa. Fantasticamente maquiado, com cabelo e pele
assemelhando-se ao plástico e sendo portador de um tique nervoso (encaixe do pescoço), o
gigolô se aproxima bastante da aparência de um verdadeiro robô.
Para Benjamin
244
o cinema serve para exercitar o homem em novas percepções e
reações exigidas por um aparelho técnico, cujo papel cresce cada vez mais em sua vida
cotidiana, provocando metamorfoses profundas do aparelho perceptivo e provocando uma
recepção por meio da distração, fato que se observa crescentemente, segundo ele, em todos os
domínios da arte, constituindo um sintoma de transformações profundas nas estruturas
perceptivas. Arlindo Machado confirma essa posição de Benjamin quando afirma que os
mediadores tecnológicos, longe de configurarem dispositivos enunciadores neutros ou
inocentes, na verdade, desencadeiam mutações sensoriais e intelectuais que serão muitas
vezes o motor de grandes transformações estéticas.
A recepção dessas imagens pode acontecer no momento em que percepto, atingindo os
sentidos sob a forma de choque, produz o efeito de estranhamento, desautomatizando os
244
BENJAMIN, 1994, p. 190-194.
esquemas perceptivos normais e prolongando o julgamento perceptivo. Como as imagens da
inteligência artificial são híbridas, já que para a composição dos robôs foram necessárias
mídias como o computador e a fotografia, dentre outras, sua recepção também pode ser
sinestésica, contando com a ajuda simultânea de órgãos dos sentidos, tais como a visão e a
audição que se unem para uma captação mais abrangente da imagem.
Ao escolherem personagens portadoras de inteligência artificial para compor suas
histórias, tanto Mlher5 4usato como Steven Spielberg já tinham consciência de que essas
imagens poderiam interferir no processo criativo, alterando as categorias de tempo e espaço
que estruturam a própria narrativa. Por esse motivo, teriam que integrá-las num gênero que,
por sua natureza transversal, pudesse se abrir para as multiplicidades e para os hibridismos,
instrumentalizando o leitor, por meio das marcas textuais impressas no enunciado, para
proceder a esse tipo de leitura.
A leitura das obras de ficção científica, A chave do tamanho e Inteligência artificial,
sendo realizada de uma manr5 a transversal, auxiliou na expansão da competência de uma
leitura por simultaneidade ao propor aquele olhar ubíquo ou fractal de que nos fala Ivan
Domingues, citado no primr5 capítulo deste trabalho. Por meio desse olhar, tivemos a
oportunidade de procurar perceber, em cada do texto, a rede toda, tecida ponto por ponto
pelo autor e pelos leitores, que participam de sua metamorfose ao introduzirem nessa rede
novos signos, portadores de novos sentidos. Assim, uma leitura hipertextual é recriadora e co-
criadora.
A experiência estética provocada por esse novo modelo de leitura também mostrou, por
meio de seus temas e deslocamentos conceptuais, a condição em que o homem
contemporâneo vive, exaurido pelo excesso de informação e pela compressão do tempo. Essas
descobertas oportunizaram, ao mesmo tempo, a abertura de uma nova via de acesso a nós
mesmos, num convite instigante à reavaliação e ao questionamento dos valores que nos
movem, como cidadãos-cyborg perdidos no vazio existencial. Projetando-nos em realidades
ficcionais estranhas e tornando evidente o que não desejamos ver, a literatura de ficção pode
contribuir para a construção de um novo humanismo, como deseja o sociólogo Edgar Morin,
já que todo o desenvolvimrnto científico e tecnológico, acumulado nas últimas décadas tem se
mostrado insuficiente para evitar a cegueira com relação aos problemas básicos do ser
humano. Uma visão ético-estética do mundo poderá mudar o destino do planeta e da literatura
que, sendo veiculadora de certos valores, pode potencializar os anseios humanísticos,
permitindo, por sua vez, a abertura de caminhos para a reflexão e suas conseqüentes
mudanças.
CONCLUSÃO
O trajeto percorrido entre a elaboração do projeto de mestrado e o término dessa
dissertação foi longo. Iniciou-se com a pesquisa teórica que, oferecendo sustentação ao
desenvolvimento do tema proposto, exigiu que fossem revistas as modernas teorias de
produção e recepção das imagens: Estética da Recepção, Semiótica e Teorias de Rede. Em
seguida, procurou-se um método de leitura que fosse compatível com o desenvolvimento
tecnológico atual da escrita e da imagem, optando pela forma hipertextual por cujo prisma
foram analisados os contextos de produção e recepção das imagens da inteligência artificial .
Após a análise comparativa dos sistemas semióticos literatura e cinema, chegamos a
algumas conclusões. A primeira delas nos mostrou como o desenvolvimento tecnológico,
instaurado a partir do século XIX e acelrs sens dcomes dr dora séculoXda,[(oto ro, )]TJ-182985 -1.725 TD0.0001 Tc208246 Tw[(pvoc(rad(stnsa form)7.9çusõas aa pelheto ps )]TJm)7826 0 TD0.0002 Tc0.3089 TwRecratnto dhominem.2(levptan-ado inaugiturse ora)-5.o,
Com relação à recepção das imagens da inteligência artificial, constatamos que elas se
metamorfoseiam de acordo com o desenvolvimento tecnológico de cada época. Tanto num
sistema quanto noutro, devido à sua produção em diferentes contextos tecnológicos, elas
apresentam naturezas diversas. Na literatura de Monteiro Lobato, por exemplo, tais imagens
que são artesanais e que deveriam por isso mesmo representar estímulos suaves para a
consciência, ao serem animadas, tornam-se portadoras de uma voz que não condiz com a do
senso comum, sendo, por esse motivo, recebidas com estranhamento e impacto. No filme, as
imagens da inteligência artificial resultam da mistura de muitas mídias, sendo híbridas,
portanto. Por esse motivo, o estímulo causado por elas também alcança a nossa consciência
sob a forma de choque, de estranhamento, desautomatizando nossos esquemas perceptivos e
prolongando o julgamento perceptivo. Devido a seu hibridismo, sua recepção pode ser ainda
sinestésica, estimulando vários órgãos dos sentidos ao mesmo tempo.
No que se refere à produção dos textos, percebemos que, atualmente, conta-se com uma
multiplicidade de soluções narrativas que se devem, dentre muitas outras questões, aos novos
modos de ver o mundo e de representá-lo, instaurados a partir da invenção da câmera -
primeiramente a fotográfica e, depois, com mais intensidade, a cinematográfica. Nos
horizontes técnicos dos séculos XX e XXI, que marcam a existência das obras em estudo, o
que interessa é, sobretudo, a intercorrência dos procedimentos de representação por meio da
imagem que, pouco a pouco, veio acentuando sua influência na narrativa literária.
A partir dessas constatações, o primeiro ponto a ser observado é que o cinema, por meio
da imagem em movimento, mostrou a inseparabilidade entre tempo e espaço, sendo a noção de
tempo inseparável da experiência perceptiva visual, e assumindo o espaço uma dimensão
temporal. Assim, pudemos perceber que houve uma alteração da dimensão espácio-temporal
na obra A chave do tamanho, promovendo a narrativa uma subversão da ordem cronológica.
Como a literatura está presa à linearidade do discurso, a narrativa criou uma série de artifícios
e convenções destinadas a criar a ilusão de simultaneidade e realizando, com as palavras, o que
o cinema faz com as imagens. A superposição de duas imagens simultâneas - mundo macro e
mundo micro - exprime essa mudança na ordem temporal e espacial da narrativa. Uma das
conseqüências da redução dos seres humanos foi a alteração de sua percepção com relação ao
tempo e ao espaço que, segundo seu ponto de vista, foram dilatados. Para criar o efeito de
simultaneidade de espaço e tempo, foi utilizado o recurso do encaixe de histórias, sendo que,
na passagem para uma outra dimensão, foi empregado o pó de pirlimpimpim, um conduto que
é mostrado, no cinema, com o recurso da imagem do túnel. O filme Inteligência artificial
também utiliza o encaixe de narrativas para apresentar mundos simultâneos por meio da
montagem que seleciona as imagens, superpondo-as umas às outras. A película também
procura estabelecer uma coesão entre as várias cenas por meio de soluções criativas, usando a
música e a voz para garantir a continuidade de uma imagem quando outra já se instalou na tela.
O meio usado para dar vida ao espaço é a descrição que pode, numa determinada
sucessão, representar objetos simultâneos e justapostos. No livro, as seqüências descritivas se
mesclam com as narrativas, prolongando o tempo da narrativa ou acelerando-o. No filme,
também há esses jogos de seqüências, recursos que foram transpostos da literatura, por meio
da utilização da panorâmica, do travelling, dos jogos de luz, da mudança de planos para situar
a personagem e integrá-la a seu meio, sendo que, com esses mesmos recursos se interferiu no
fluxo da ação e no desenrolar do tempo.
O narrador, instância responsável pela enunciação, também sofreu interferências da
câmera cinematográfica. Na narrativa literária, essa instância é representada por um narrador
heterodiegético que atua em terceira pessoa, utilizando a perspectiva principalmente de Emília,
que percebe o mundo novo na medida em que faz suas experiências e as compara com o
mundo antigo. No filme, a câmera também captura realidades visuais que geralmente estão
livres de sentimentos e emoções apresentando uma perspectiva mais objetiva que a da palavra.
Mas, para criar efeitos de subjetividade, a narrativa utiliza uma câmera subjetiva quando deseja
captar pontos de vista diferentes. Assim é que explora o olhar da personagem David em muitas
situações, utilizando a câmera baixa. Ou busca o olhar de cima, do balão que captura os
fugitivos. Ou ainda capta o olhar da platéia que se diverte com a expiação dos robôs
condenados. A edição e a montagem provam que não existe objetividade completa, já que há
sempre alguém por trás delas que é responsável por seleções, cortes e combinações, extraindo
uma nova síntese do material que foi filmado e que apresenta significados totalmente novos.
O processo de metamorfose da narrativa pelos meios tecnológicos envolve também a
noção de personagem que ganha outros contornos com a evolução das novas técnicas
narrativas. As narrativas contemporâneas e também a ficção científica têm utilizado, tanto na
obra literária como no cinema, personagens que são moldadas à imagem e semelhança de um
novo sujeito que representa o cidadão solitário, habitante das grandes cidades, e que traz em
seu corpo a mistura do artificial e do humano. Os cyborgs, seres que têm seus corpos
remodelados pelas novas tecnologias, representam, nas respectivas obras, a fé de seus
criadores no potencial da inteligência artificial As personagens, tanto num como noutro
sistema, resistem à ação do tempo e, portando, à destruição, característica dos cyborgs que, por
sua própria natureza, podem transitar entre mundos paralelos, ultrapassando as fronteiras entre
o humano e o não-humano.
O que se pôde constatar de tudo o que foi analisado é que a produção e a recepção dos
textos foram se alterando desde a invenção da imprensa, passando pela descoberta da
fotografia e do cinema até alcançar a era do computador. E a imagem, como não poderia
deixar de ser, acompanhou de perto essa evolução que, de artesanal, está chegando, hoje, à sua
potência máxima de recurso digital, sujeito a constante metamorfose.
Se a imagem técnica revolucionou as formas de se produzir e receber os textos, a leitura
das narrativas literária e cinematográfica também foi revolucionária na medida em que nos
permitiu, por meio da hipertextualidade, participar da infinita rede de significados que se
encontra em estado potencial nas obras analisadas. Esperamos que nossa leitura contribua para
re-significar a imagem dos leitores contemporâneos a respeito das obras A chave do tamanho e
Inteligência artificial. E que, sobretudo, nossa análise contribua para difundir a importância
das obras de Monteiro Lobato no cenário contemporâneo da Literatura Brasileira e da literatura
produzida num mundo globalizado, hipermidiático e transdisciplinar.
Bibliografia:
ADAMS, Douglas. O guia do mochileiro das galáxias. Trad. Carlos Irineu da Costa e Paulo
Henriques Brito. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
AGAMBEN, Giorgio. O país dos brinquedos: reflexões sobre a História e sobre o jogo. Trad.
Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
AGUIAR, Vera Teixeira de. O verbal e o não-verbal. São Paulo: UNESP, 2004.
ALDISS, Brian. Superbrinquedos duram o verão todo: e outros contos de um tempo futuro.
Trad. Beth Vieira. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
ARAÚJO-JORGE, Tânia C. de. Ciência e arte: encontros e sintonias. Rio de Janeiro: Editora
Senac, 2004.
ARTHUR CLARKE: ficção das origens. Scientific American. Série exploradores do futuro.
São Paulo: Editora Duetto [s.d.].
ASIMOV [et al]. Histórias de robôs, v.1. Trad. Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 2005.
___________Histórias de robôs, v.2. Trad. Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 2005.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1999.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994.
BERTOLDI, Odete Gasparello;VASCONCELOS, Jacqueline Rauter de. A aventura da
tecnologia. In: Ciência e sociedade. São Paulo: Scipione, 2000.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Não verás país nenhum: memorial descritivo. São Paulo:
Global, 2001.
BROSSO, Rubens; VALENTE, Nélson. Elementos de semiótica: comunicação verbal e
alfabeto visual. São Paulo: Panorama, 1999.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Trad. Newton Roberval Einchemberg. São Paulo: Cultrix,
1996.
___________ . O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.
CARQUEIJA, Miguel. Eles herdarão a Terra. Revista Discutindo Literatura, ano 2, nº 9. São
Paulo: Escala Educacional, 2006.
CAUSO, Roberto Sousa de. In: Posfácio à edição da obra Histórias de ficção científica. São
Paulo: Ática, 2005.
CAVALCANTE, Marianne C. Bezerra. Mapeamento e produção de sentido: os links no
hipertexto. In: Hipertextos e gêneros digitais. MARCUSHI, Luiz Antônio; XAVIER, Antônio
Carlos (orgs.). Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: Vida e obra. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1955.
COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
fontes, 1997.
CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão de. Desafios do saber. Caderno Pensar. Estado de Minas,
09.09.2006.
CONNOR, Steven. Cultura pós moderna: introdução às teorias do contemporâneo. Trad.
Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1993.
CORNELSEN, Élcio Loureiro. Os caminhos do Golem pela literatura. In: Os fazedores de
golems. NAZARIO, Luiz; NASCIMENTO, Lyslei (orgs.). Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2004.
COSCARELLI, Carla Viana. Novas tecnologias, novos textos, novas formas de pensar. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
COSTA LIMA, Luiz. O leitor demanda (d)a literatura. Introdução à A literatura e o leitor:
textos da estética da recepção. Coordenação e tradução: Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1979.
CRILLNOVICK, Quéfren. Vivem os corpos no ciberespaço. In: Arte e tecnologia na cultura
contemporânea. MEDEIROS, Maria Beatriz de (org.). Brasília: Dupligráfica Editora Ltda,
2002.
DELEUZE, Gilles. Cinema I: a imagem em movimento. Trad. Stella Senra. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Rizoma. In: Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia.
Coordenação da tradução: Ana Lúcia de Oliveira, v.1. Rio de janeiro: Editora 34, 1995.
DINIZ, Dilma Castelo Branco. Monteiro Lobato: o perfil de um intelectual moderno. Tese de
doutorado em literatura comparada. Faculdade de Letras, UFMG, 1997.
DINIZ, Thaïs Flores Nogueira. Literatura e cinema: da semiótica à tradução cultural. Ouro
Preto: Editora UFOP, 1999.
DOMINGUES, Diana. Introdução à humanização das tecnologias pela arte. In: ______.(org.).
A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1997.
DOMINGUES, Ivan. Em busca do método. In: ______. (org.). Conhecimento e
transdisciplinaridade II: aspectos metodológicos. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
DUARTE, Eduardo Assis de. Literatura e outros sistemas semióticos. In: 1000 rastros
rápidos: (Cultura e Milênio). VASCONCELOS, Maurício Salles; COELHO, Haydée Ribeiro
(orgs.). Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
DUARTE, Rosália. Cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
DUTRA, Mariana. A inteligência artificial na boneca Emília de Monteiro Lobato e em David
de Steven Spielberg. In: Projeto leitura para todos: A tela e o texto. PEREIRA, Maria
Antonieta (org.). Belo Horizonte: UFMG. Disponível em www.letras.ufmg.br/atelaeotexto.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
EDWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2002.
ELIAS, Maria del Ciopo. De Emílio a Emília: a trajetória da alfabetização. São Paulo:
Scipione, 2000.
GATES, Bill. Um robô em cada casa. Revista Scientific American. São Paulo: Duetto
Editorial, fevereiro/2007, nº 57.
GIORGIO, Agamben. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. O
país dos brinquedos. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
GOMES, Morgana. A vida e o pensamento de Leonardo da Vinci. Coleção Iluminados da
humanidade. São Paulo: Minuano, [s.d.].
HARAWAY, Donna. Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo
socialista na década de 80. In: Tendências e impasses: o feminismo como crítica da Cultura.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
H.G.WELLS: as novas metrópoles. Scientific American. Série exploradores do futuro. São
Paulo: Editora Duetto [s.d.].
ISAAC ASIMOV: homens e robôs. Scientific American. Série exploradores do futuro. São
Paulo: Editora Duetto [s.d.].
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1999,
v. 2.
___________O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Trad.
Johanes Krestschmer. Rio de Janeiro: EDUERG, 1996.
___________A interação do texto com o leitor. In: A literatura e o leitor: textos da estética da
recepção. Coordenação e tradução: Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad.
Sérgio Tellaroli. São Paulo, Ática, 1994.
___________O texto poético na mudança de horizonte da leitura. In: Teoria da literatura em
suas fontes. Luiz Costa Lima. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1983, v.2.
___________A estética da recepção: colocações gerais. In: A literatura e o leitor: textos da
estética da recepção. Coordenação e tradução: Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979.
___________O prazer estético e as experiências fundamentais da Poiesis, Aistheses e
Katharsis. In: A literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Coordenação e tradução:
Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
KATHRIN H. Rosenfield. Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
KENSKI, Rafael. Jackson Pollock. Revista Superinteressante, edição 188. Editora Abril, maio
de 2003.
KUBRUSLY, Ricardo Silva. Pensando no infinito. Disponível em
http://www.dmm.im.ufrj.br~risk. 29.09.2004. Acesso em 22.04.2007.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: História e histórias.
São Paulo, Ática, 1985.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática.
Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de janeiro: Ed. 34, 1993.
____________ A inteligência coletiva. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Loyola, 1998.
____________ Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo, Editora 34, 1999.
____________ A emergência do cyberspace e as mutações culturais. In: Ciberespaço: um
hipertexto com Pierre Lévy. PELLANDA, Nize Maria; PELLANDA, Eduardo Campos
(orgs.). Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000.
____________ O que é o virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944.
___________ A chave do tamanho. São Paulo. Brasiliense, 2005.
___________ Os doze trabalhos de Hércules. São Paulo: Brasiliense, 1973.
___________ Histórias diversas. São Paulo: Brasiliense, 1973.
___________ Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1973.
___________ Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1973.
___________ Viagem ao céu. São Paulo: Brasiliense, 1973.
___________ Os pequeninos. In: Negrinha. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LUZ, Rogério. Novas imagens: efeitos e modelos. In: Imagem máquina: a era das tecnologias
do virtual. PARENTE, André (org.). Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2000.
MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio
Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2003.
MAGRO, Cristina; PAREDES, Victor (orgs.). Cognição: ciência e vida cotidiana - Humberto
Maturana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
MANDELBROT, Benoit. Fractais: uma forma de arte a bem da ciência. In: Imagem máquina:
a era das tecnologias do virtual. PARENTE, André (org.). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
MENEZES, Luís Carlos de. A matéria uma aventura do espírito: fundamentos e fronteiras do
conhecimento físico. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2005.
METZ, Christian. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980.
MIGUEL, Alcebíades Diniz. O Golem e suas leituras tecnológicas. In: Os fazedores de
golems. NAZARIO, Luiz; NASCIMENTO, Lyslei (orgs.). Belo Horizonte: UFMG, 2004.
MIGUEL, Carqueija. Eles herdarão a Terra. Revista Discutindo literatura, nº 9, São Paulo:
Escala educacional, 2006.
MIRANDA, Wander Melo. Ficção Virtual. Revista de Estudos de Literatura, v.3. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 1995
MORI,Kentaro.AI:Inteligência artificial...incompreendida? Disponível em:
ceticismoaberto.com [s.d]. Acesso em 7.5.2007.
MORIN, Edgar; WULF, Christoph. Planeta: a aventura desconhecida. São Paulo, Editora
UNESP, 2003.
MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Trad. Flávia Nascimento.
São Paulo: Bertrand Brasil, 2004.
NASCIMENTO, Evando. Limites da arte e da tecnologia: em desconstrução. In: Arte e
tecnologia na cultura contemporânea. MEDEIROS, Maria Beatriz de (org.). Brasília:
Dupligráfica Editora, 2002.
NAZARIO, Luiz. O Golem, o autômato e Frankenstein. In: Os fazedores de golems.
NAZARIO, Luiz; NASCIMENTO, Lyslei (orgs.). Belo Horizonte: UFMG, 2004.
OLIVEIRA, Fátima Régis de. A ficção científica e a questão da subjetividade homem-
máquina. Disponível em http://www.comciencia.br.Atualizado em 10.10.2004. Acesso
08.12.2006.
OLIVEIRA, Luiz Cláudio Vieira. Da literatura à música: por uma semiótica das
transformações culturais. In: Mil rastros rápidos: (cultura e milênio). VASCONCELOS,
Maurício Salles; COELHO, Haydée Ribeiro (orgs.). Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
PARENTE, André. Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora
34, 1993.
PELLANDA, Nize Maria Campos. Pierre Lévy e Humberto Maturana: convergências
paradigmáticas. In: Ciberespaço: um hipertexto com Pierre3/á7(.(PELLANDA, Nizea1(r;1( )]TJ412.16 -1.725 TD0.0201 Tc-0.0749 Tw[(PELLANDAEduars dCa(c)-8(m)ptroo (rgs.)PobertAam)4(l(O)(egrnte:persvy OA fios, 2.20ré. )]TjT*089990 Tw[(PEEGRINI, Tân(ri[et al].a: )Tj/TT6 1 Tf10.025 0 TD0.0006 Tc089449 TwL lit Matu,ão nemura telev)4)4(2(i)-4.6ão: )]TJ/TT2 1 T8.12825 0 TD0 Tc0849 Tw. SstãPauliroSenac,s. stituertItaú1( )]TJ4130775 -1.725 TD-0.0001 Tc0.0001 TwC(cultul, 2.2306. )TjT*0.0006 Tc044449 Tw[(RENADLHOJosé Ro(mbertW)9)4(h(p))-6takerré. )]TJ/TT6 1 T15.6364 0 TD0.0003 Tc042647 Tw[s A lhogis Lobatoos: )]TJ/TT2 1 T8.6364 0 TD0.1003 Tc043647 Two áti9)8.1ginár Riinf)p
SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
___________A percepção: uma teoria semiótica. São Paulo Experimento, 1998.
___________O corpo cibernético e o advento do pós humano. In: Arte e tecnologia na cultura
contemporânea. MEDEIROS, Maria Beatriz de (org.). Brasília: Dupligráfica Editora Ltda,
2002.
___________O homem e as máquinas. In: A arte no século XXI: a humanização da
tecnologia. DOMINGUES, Diana (org.). São Paulo: UNESP, 1997.
SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried. Imagem: Cognição, semiótica, mídias. São Paulo:
Iluminuras, 2001.
SANTOS, Jair Ferreira. O que é o pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1986.
SIQUEIRA, Rodrigo Almeida de. Robôs com inteligência artificial. Disponível em
http://www.comciencia.br.Atualizado
em 10.10.2005. Acesso em 19.04.2007.
SOARES, Adriana. O que são ciências cognitivas. Coleção primeiros passos. São Paulo:
Brasiliense, 2000.
SPIELBERG, Steven. Nossa responsabilidade para com a inteligência artificial. Depoimento
no DVD I.A. Título 15, capítulo 1, 2001.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. Fernando Mascarello. Campinas, São
Paulo: Papirus, 2003.
SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. Trad. Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Abril
Cultural, 1979.
TUCHERMAN, Ieda: A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo.
Disponível em http://www.comciencia.br/reportagens/2004/10/05.shtml.Acesso em
10.11.2006.
VASCONCELOS, Maurício Salles. Mundo-Arte: o rastro novo, o dado do fim. In: 1000
rastros rápidos : (cultura e milênio). SALLES, Maurício Vasconcelos; COELHO, Haydée
Ribeiro (orgs.). Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
VLASSELAERS, Jóris. Tecnologia mediática e inovação literária. In: Declínio da arte e
ascensão da cultura. ANTELO, Raul; BARROS CAMARGOS, Maria Lúcia de; ANDRADE,
Ana Luiza; ALMEIDA, Tereza Virgínia de ( orgs.). Florianópolis: ABRALIC, 1998.
VOGT, Carlos. A academia vai para Hollywood e o cinema para a sala de aula. Disponível
em http://www.comciencia.br/reportagens/2004.10.05.shtml.Acesso 10.11.2006
.
____________ Ficção científica problematiza o presente em todos os tempos. Disponível em
http://www.comciencia.br/reportagens/2004.10.05.shtml.Acesso 10.11.2006.
____________ Ciência e ficção: o futuro antecipado. Disponível em http://www.comciencia
/reportagens/2004.10.05 shtml. Acesso 10.11.2006.
______________Cyberpunk, a ficção científica contemporânea. Disponível em
www.comciencia.br /reportagens/2004/10/03.shtml.Acesso em 10.11.2006.
XAVIER, Antônio Carlos. Leitura, texto e hipertexto. In: Hipertexto e gêneros digitais: novas
formas de construção do sentido. MARCUSHI, Luiz Antônio; XAVIER, Antônio Carlos. Rio
de Janeiro: Lucerna, 2005.
WALTY, Ivete Lara Camargos [et al]. Palavra e imagem: leituras cruzadas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
WHITBY, Blay. Inteligência artificial: um guia para iniciantes. Trad. Claudio Blanc. São
Paulo: Madras, 2004.
WIKIPEDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/david
. Acesso em 11.05.2007.
Filmografia: AI:Inteligência artificial. Direção Steven Spielberg, 2001.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo