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LUÍS CARLOS SIMÕES
“MARÍLIA DE DIRCEU”: MIMESE E ALTERIDADE EM DIÁLOGO NA
POESIA LÍRICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
PUC-SP
SÃO PAULO
2007
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LUÍS CARLOS SIMÕES
Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Literatura e Crítica Literária à Comissão
Julgadora da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra.
Olga de Sá.
SÃO PAULO
2007
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Banca Examinadora
...........................................................................
...........................................................................
...........................................................................
A minhas Musas inspiradoras,
Sueli Joanita e Maria Carolina.
A Dirceu / Gonzaga,
pastor de liras
e confidente do amor de Marília.
Agradecimentos
- a Deus, pela orientação e força para superar os obstáculos surgidos;
- à professora Drª. Olga de Sá, pela prestimosa orientação, pelo carinho e
dedicação, além da paciência dispensada a este orientando, um abraço e um eterno
obrigado;
- aos professores e Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Crítica Literária da PUC-SP, pela competência, empenho e amizade, e também por
acreditarem sempre no meu trabalho;
- à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, pelo financiamento do meu
curso através do Programa Bolsa Mestrado;
- à Ana Albertina, muito mais do que secretária do Programa de Literatura e Crítica
Literária, uma verdadeira amiga, sempre disposta a ajudar fraternalmente;
- ao Paulo Eduardo Rodrigues Ruiz que, além de amigo fraterno de muito tempo,
fez a gentileza de me auxiliar na elaboração do “Abstract”;
- à Sueli, esposa, amiga e e, minha alteridade, com quem dialogo dezessete
líricos anos e que nas horas vagas me secretariou, digitando esta monografia, um
beijo;
- à Marina, Vera e Carmen, irmãs carinhosas, porto seguro de todas as horas;
- à Denise, Tânia, Sandra e Fátima Carvalho, muito obrigado pela amizade de
todas as horas e pelo incentivo;
- a meus sogros, Geraldo e Ephigênia, pela preocupação, carinho e estímulo;
- aos colegas e direção da Escola “São Vicente de Paulo”, pela força dada a mim
e pela grande família que formamos;
- aos que me ensinaram ao longo da minha formação acadêmica, obrigado;
- aos que ensinei e ensino, pelo muito que recebo, mais do que ofereço;
- à profª. Drª.Ingedore G. Kock, pelo constante incentivo.
In memoriam:
- a meus pais, João e Maria, pela amizade, carinho e formação moral e espiritual
que puderam me ofertar, meu eterno amor;
- a meus segundos pais, Hermínio e Beatriz, que também me orientaram com
muito carinho, desprendimento, e ajudaram a me formar como ser humano;
- à querida Margarida Bambini, que me ensinou a caminhar pelo caminho das
letras, razão maior deste trabalho, eterna gratidão;
- à Anita Gambardella, eterna amizade.
- à querida Dna. Teresa Vânia Aderson de Melo, cujo estímulo ao meu trabalho de
professor e de pesquisador auxiliou para que este trabalho pudesse nascer,
obrigado.
Resumo
A dissertação que ora apresentamos preocupou-se em averiguar como
se estabelecem os limites fronteiriços entre a entidade literária que é o “eu
lírico”, criação de um autor, e a entidade do mundo real, criadora do texto, que
é o poeta. Para tanto, escolhemos como objeto de pesquisa um dos textos
mais populares da poética brasileira: o livro de poemas líricos Marília de
Dirceu, escrito por Tomás Antonio Gonzaga, em finais do século XVIII.
A escolha de tal obra foi-nos motivada não por sua popularidade
entre os leitores de poesia, mas também porque acreditamos que nela o limite
entre o “eu lírico” e o poeta se torne bastante tênue, a ponto de traços
autobiográficos do autor se projetarem na figura do “eu lírico”, num
espelhamento narcísico. Uma vez que no Arcadismo um dos traços marcantes
é a convenção pastoril e o poeta, fingindo-se de “pastor”, concede voz a uma
entidade ficcional em que se apagam a sua identidade e sua biografia pessoal,
o texto de Gonzaga representaria uma ruptura aos cânones do período.
A partir de uma metodologia de investigação teórica sobre conceitos
relativos à linguagem, ao discurso e à literatura, procuramos entender melhor a
construção da poesia, do seu lirismo e de como, através da mimese literária, se
estabelecem as alteridades no texto poético, conhecimentos fundamentais para
trabalharmos com a poesia árcade.
Com tais levantamentos teóricos e uma breve pesquisa sobre a
formação do Arcadismo e suas manifestações em Portugal e no Brasil,
partimos para a verificação de nossas hipóteses nas liras de Gonzaga. O
resultado deste trajeto acadêmico, aqui apresentado, nos levou a perceber que
os cânones árcades se cumprem em parte na obra, quando o “eu lírico”, na
figura do pastor Dirceu, idealiza um mundo feliz com sua amada Marília. No
entanto, quando Gonzaga é preso, como suspeito de participação na
Inconfidência Mineira, ao escrever suas liras na masmorra, poeta e pastor se
imbricam numa única entidade que passa a refletir relações de mútua
dependência, tornando a fronteira entre a literatura e a realidade cada vez mais
imprecisa.
Palavras chave: mimese, alteridade, Arcadismo, convenção pastoril,
autobiografia, Marília de Dirceu.
Abstract
This monograph deals with the limits between the literary entity named
lyrical self , created by an author, and the real world entity that created the
text who is the poet himself. For such a task we chose as an object for this
research one of the most popular texts from Brazilian Poetry: Marília de Dirceu
written by Tomas Antonio Gonzaga in the late XVIII century.
The choice of this work was motivated not only for its popularity among
poetry readers, but especially because we believe that in this text the limits or
boundaries between the lyrical self and the poet are so fragile that even the
autobiographical features of the author are now projected on to the lyrical self in
a kind of narcissistic mirror. However, one of the most essential characteristics
of Arcadian Poetry (Arcadismo) is the pastoral convention where the
poet pretends to be a "shepherd" that gives voice to this fictional entity instead
of his true self and his personal biography. That is one of the reason why
Gonzaga's text represents a breakthrough from the traditional thinking of
Arcadian Poetry. From a methodology of theoretical investigation into the
concepts of language, discourse and literature, we try to understand the
construction of the poem, its lyricism and how through the literary mimesis the
alterities of the poetical text are established. All these are fundamental to the
understanding of Arcadian Poetry.
With these theoretical considerations and a brief research into the origins
of Arcadian Poetry and its manifestations in Portugal and Brazil we tried to
verify our hypothesis in the lyric poems created by Gonzaga. The result made
us realize that the Arcadian canons were in fact followed in part of the work
especially when the lyrical self as the character called Dirceu idealizes a happy
world with his beloved Marília. Nevertheless, when Gonzaga is arrested
suspected of taking part in Inconfidência Mineira and he has to write in prison,
both the poet and the "shepherd" are now intermingled with each other
reflecting the mutual dependency that both have and thus making the
boundaries between fiction and reality even more delicate.
Keywords: mimesis, alterity, Arcadian Poetry, pastoral convention,
autobiography, Marília de Dirceu.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................ 01
I O PODER DA PALAVRA POÉTICA .............................................................. 04
1. Pensando a Poesia – a palavra poética. ................................................... 04
2. Caminhos e percalços da poesia. ............................................................. 07
3. Poesia e Lirismo. ....................................................................................... 20
II MIMESE, ALTERIDADE E DIALOGISMO: A POESIA EM MOVIMENTO..... 29
1. A mimese literária: forma de representação do texto poético. .................. 29
2. A mimese e a alteridade na “Teoria da recepção”. ................................... 33
3. A questão da mimese na emergência de outros “olhares”......................... 39
4. Mikhail Bakhtin: dialogismo e alteridade. .................................................. 43
III NEOCLASSICISMO E ARCADISMO. ........................................................... 55
1. Arcadismo em Portugal e no Brasil: alguns apontamentos. ...................... 64
IV GONZAGA LÍRICO: A CONSTRUÇÃO DE ALTERIDADES NAS
CARACTERÍSTICAS ÁRCADES DA OBRA “MARÍLIA DE DIRCEU”. .......... 79
1. Presença e imitação da natureza: a poesia bucólica e pastoril. ................ 81
2. “Áurea Mediocritas”. .................................................................................. 84
3.“Carpe diem”. ............................................................................................. 87
4. Figuras Mitológicas. .................................................................................. 89
5. “Inutilia Truncat”. ........................................................................................ 94
6. A imagem lírica de Marília: o ideal. ........................................................... 97
7. A imagem lírica de Dirceu: o duplo personagem. ...................................... 104
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 131
1
Introdução
A pesquisa que ora apresentamos procura refletir sobre a importância e a
amplitude do estudo do “eu – poético” para análise de um poema, tentando
contribuir para o conhecimento de algumas formas de representação poética do
“eu lírico”, tomadas em suas manifestações na poesia brasileira do século XVIII,
período conhecido como Arcadismo na história literária. Além disso, pretendemos
verificar em que medida a poesia da época, expressa através de pseudônimos
literários utilizados normalmente pelos poetas, cria uma identificação literária e
cultural com o período de sua escritura. Tomamos a obra poética de Tomás
Antônio Gonzaga, significativo representante do movimento árcade no Brasil, a fim
de averiguar como se dá a construção da imagem de um “eu – lírico”, projetada no
discurso que se instala nas liras poéticas da obra Marília de Dirceu. O poema lírico
de Gonzaga, apesar da distância temporal que nos separa, continua a ser uma
das obras poéticas mais lidas e reeditadas em língua portuguesa, tendo se
tornado, sem dúvida alguma, um dos textos mais populares entre nós.
Iniciaremos nosso percurso investigativo, analisando o poder que exerce a
literatura, e nela a palavra poética, sobre as relações humanas e também na
trajetória histórica dessa palavra que, apesar de concebida de maneiras diversas,
ao longo dos tempos, faz, como nos dizia Barthes em suas reflexões sobre a arte
literária, do saber uma festa. Ao mesmo tempo, tentaremos adentrar o terreno do
lírico e do lirismo, conceitos essenciais na construção do texto poético que
analisamos, verificando quais critérios são necessários ao seu estabelecimento.
Estas investigações constituirão o primeiro capítulo desta dissertação.
Em seguida, objetivamos pensar criticamente a questão da mimese em
literatura e sua relação com o estabelecimento da alteridade no texto poético, uma
vez que trabalharemos com um texto árcade, em que a consciência mimética por
parte do autor e do leitor, além de “abrir-se” para a alteridade, através do
fingimento poético, é essencial. Para nossa reflexão crítica, adotaremos uma
metodologia de pesquisa baseada na investigação teórica, com levantamento de
alguns conceitos da teoria da linguagem e da literatura, referentes à
2
representação poética, foco de nossos estudos, notadamente aqueles propostos
pela Estética da Recepção e do Efeito, de Wolfgang Iser e pelo método dialógico
de Mikhail Bakhtin. Estes serão temas do nosso segundo capítulo.
Revisitaremos, a seguir, os fundamentos do Neoclassicismo e do
Arcadismo (século XVIII) e trataremos um pouco das normas de concepção
filosófica e literária que formalizaram os cânones deste momento literário.
Veremos como o Arcadismo brasileiro se relaciona com o português e através de
que formas e condições o nosso Arcadismo conseguiu se adaptar à arte, em um
país colonial que vivia sob o jugo da Metrópole portuguesa. Procuraremos
averiguar se este Arcadismo conseguiu criar raízes próprias, numa condição de
“alteridade”, ou seja, criando o produto literário de maneira diversa do modelo. A
literatura passaria a expressar o que começa a ocorrer historicamente: a formação
do espírito de nacionalidade entre nós, que tem como centro a cidade de Vila Rica
(MG) e como marco a Conjuração Mineira. O relacionamento História Literatura
e o conhecimento das normas do estilo árcade que foram canonizadas ou
rompidas no Arcadismo brasileiro serão essenciais para entendermos os
compromissos literários assumidos por Gonzaga em sua poesia lírica destinada à
sua amada Marília. São estes os pontos básicos do terceiro capítulo.
Nossa atenção se voltará, a seguir, para a lírica de Gonzaga e como se
constrói a imagem do “eu–lírico” nos versos de Marília de Dirceu”. Observaremos
de que forma preceitos clássicos de poesia, tais como mimese, presença da
natureza, a mulher amada, como pólo centralizador da poesia, os ideais de
bucolismo e pastoralismo, os elementos mitológicos, o carpe diem, aparecem
normatizados na lírica de Gonzaga, marcando a tradição literária do período.
Tentaremos verificar se ao mesmo tempo que segue normas ditadas pela escrita
do Arcadismo, Gonzaga provoca alguma ruptura em relação às convenções, na
questão de como estabelece o diálogo e a alteridade entre ele (poeta) e os outros
elementos com quem se comunica (a natureza / a amada / o amigo) nos seus
poemas líricos. Parece-nos que a ruptura com os modelos árcades torna-se forte e
evidente nas liras da parte do livro: os poemas escritos na masmorra após a
prisão do poeta como participante do movimento de conspiração contra a Coroa.
3
Os versos passam a traduzir a realidade e o sofrimento vividos por Gonzaga, uma
situação bem diferente da vida tranqüila e idealizada da “Arcádia”, que marcou os
versos da 1ª parte. O poeta apresenta características que, a nosso ver, permitem
enquadrá-lo como pré-romântico. É sobre tais hipóteses e aspectos dialéticos de
tradição e ruptura na poesia lírica de Gonzaga que se assentará o nosso quarto
capítulo, momento essencial de nosso trabalho.
Segundo fundamentos propostos por Mikhail Bakhtin, teórico do
estruturalismo russo, acerca do funcionamento da linguagem, todo texto apresenta
uma relação dialógica entre consciências e isto possibilita a sua realização
estética; é também este dialogismo que coloca um elemento dialeticamente diante
de outro, da outra consciência, criando a alteridade EU X OUTRO. Nossa
pesquisa pretende observar como esta relação de alteridade aparece na poesia de
Gonzaga, através do diálogo (ou o) que se estabelece entre o pseudônimo
pastoril do poeta (Dirceu) e seus objetos de discurso, vistos como marcas
alegóricas da literatura árcade. Acreditamos também que o discurso poético em
Marília de Dirceu é ora dialógico, ora monológico, segundo posição do próprio
Bakhtin, assumindo, muitas vezes, modos de representação de falas e/ou idéias
atribuídas a outros (“alteridades”), diferentes do enunciador (eu lírico) e que têm
relação direta não com as ideologias do Arcadismo como também com as
ideologias sociais dominantes no Brasil do final do século XVIII. Assim, uma
questão se nos impõe e tentaremos respondê-la ao longo dos nossos
levantamentos de pesquisa e estudos: a pseudonomia utilizada por Gonzaga em
Marília de Dirceu e representada pela “personagem” Dirceu, voz do “eu lírico”,
está simplesmente marcando uma convenção árcade ou confere autonomia a
esse EU – poético? Em outras palavras, tomando-se sempre como base a lírica de
Gonzaga, expressa através do pseudônimo pastoril Dirceu, procuraremos
averiguar se identificação do poeta com o seu pseudônimo, criando-se facetas
do próprio Gonzaga que se ocultam em Dirceu, membros ambos de uma
aristocracia mineira da Vila Rica dos Inconfidentes.
4
Capítulo I
O poder da palavra poética.
“Se não houvesse Tasso, nem Petrarca,
por mais que qualquer delas fosse linda,
já não sabia o mundo se existiram
5
comunicar, como se repete com demasiada freqüência, é sujeitar: toda língua é
uma reição, generalizada”, lugar em que “servidão e poder se confundem
inelutavelmente”
(Aula
6
O escritor, principalmente quando se trata do poeta, não se importa com a
7
básica da identidade do eu e a única possibilidade de se entender o dinamismo
das relações sociointeracionais e os valores dialéticos da sociedade. As palavras
e seu ritmo no texto poético permitem ainda ao leitor conhecer projeções,
vibrações, tensões e expectativas de um sujeito enunciador (como dissemos
anteriormente) que, embora não seja ele, identifica-se com a sua humanidade, a
sua essência de ser. A expressão desse ser será então o resultado da
plurivocidade estabelecida pelo texto e com o texto, numa relação
verdadeiramente dialógica. Esta relação será objeto de nossas reflexões mais
adiante.
O texto poético é, portanto, um sistema de signos “re-organizados”, “re-
ordenados”, a partir da óptica de um autor, desconstruindo um sistema “fascista”.
Estes signos estão postos no texto em relação intencional por um autor (o que cria
as tensões necessárias entre as palavras) e serão desvelados por um leitor, pois
a interferência deste produzirá os sentidos que movimentarão toda a rede
simbólica estabelecida pelas palavras. Assim, podemos dizer que o texto é um
organismo ou sistema de relações internas que “atualiza certas ligações e
narcotiza outras [...]. Depois que um texto foi produzido, é possível fazê-lo dizer
muitas coisas mas é impossível ou pelos menos criticamente ilegítimo fazê-
lo dizer o que não diz” (Os limites da interpretação Umberto Eco, 1.995 Apud
Cyntrão, 2.004, p. 19). Cabe ao leitor e a cada época literária atualizar essas
ligações, lembrando que o texto é uma rede interconectada e que sua vida
orgânica pressupõe tanto relações internas quanto externas.
2. Caminhos e percalços da poesia.
Na sua origem, a poesia estava relacionada a rituais religiosos. Na Grécia
Antiga, berço da poesia ocidental, no início da primavera, os habitantes se dirigiam
aos oráculos, geralmente pequenas grutas consideradas sagradas, e se reuniam
em torno da pitonisa, a celebrante, que se acreditava ter o poder e a capacidade
de predizer o futuro. Ao acompanharem a celebração, todos os homens se
punham a gritar, fazendo seus lamentos e danças, enquanto a pitonisa declamava
suas profecias, inspirada nos deuses. Concebidos para estabelecer contato com
8
as forças das divindades e da Natureza, esses rituais se transformavam na
expressão de grandes emoções coletivas. Nascia, assim, a poesia acompanhada
do canto.
Pode-se imaginar que, para se aproximarem dos deuses, os homens faziam
da linguagem um ato puro. Na dança, no canto e na poesia oral. Os gestos e as
palavras tinham para eles um significado vital, em íntima relação com os
movimentos da vida e, nos rituais de magia, reviviam as lendas antigas. A
linguagem poética acabava tendo um sentido purificador, original. Teríamos
aqui o que Aristóteles denominaria mais tarde de função catártica da poesia:
função purgativa e restauradora do ser humano, através do “elemento espiritual”
que une o poeta ao ouvinte / leitor a palavra “eucarística”. De certa maneira,
também representa uma função ético política, uma vez que a poesia tem ação
sobre o comportamento dos indivíduos e sua atuação cidadã na sociedade.
1
Os gregos sentiam prazer nas palavras. Por utilizarem uma língua flexível,
sutil e expressiva não sentiam inibições com as palavras. Como ocorreu com
outros povos, além da profusão de personagens mitológicos, a poesia chegaria a
ser quase “uma segunda religião”. Os poetas eram bastante prezados e quase
que pessoas “sagradas” na sociedade grega. Eles tratavam de temas sobre
mitologia, política, agricultura, vida cotidiana, entre outros, E qualquer cidadão
mesmo não sendo poeta quando tinha algo importante a dizer, geralmente o
fazia em forma de versos cantando ou declamando com o acompanhamento
de música. A poesia fazia, assim, parte do cotidiano do homem grego.
1
A identificação do espectador com a obra de arte ou do leitor com a poesia é um ponto importante
na visão aristotélica. Esta identificação permite uma catarse que funciona como uma espécie de
“purgação”, liberação de conflitos cotidianos do espectador ou do leitor, compensando suas
atribulações e ansiedades. Ao contrário do que pensava Platão (para quem essa função “catártica”
da obra de arte podia prejudicar a formação moral e política dos cidadãos), Aristóteles acreditava
que essa compensação dos problemas reais seria algo bom, uma vez que era capaz de despertar
o prazer e a dor, sentimentos necessários ao ser humano, aliviando parte da “culpa” humana e
formando melhores cidadãos para a polis.
A obra de arte, especialmente a poesia, passa a ter uma função ético-política, porque faz a catarse
do cidadão, tendo influências sobre seu comportamento e sua atuação cidadã na sociedade, ao
mesmo tempo que forma o indivíduo para que participe politicamente dela.
9
Depois, na mesma Grécia, a poesia passa a se associar à filosofia e aos
mitos. Os filósofos, seres mais sensíveis à conscientização dos problemas do que
a maioria das pessoas da polis, têm a função de dirigir e organizar a sociedade
grega, de maneira que ela se torne um modelo ideal de comunidade. Entenda-se
“ideal” como uma sociedade que consiga se aproximar o mais possível do mundo
das idéias, o mundo espiritual, perfeito, mundo das essências que regula a razão
humana (na visão do filósofo grego Platão). Tanto o filósofo quanto o poeta devem
estar atentos ao modo de representar esse mundo, através da mimese (imitação)
do mundo perfeito, feita numa realidade sempre faltante.
A respeito de tais associações, mito e poesia, filósofo e poeta, é importante
observarmos o que ocorre nos poemas de Homero e de Hesíodo (historiador e
poeta), nos primórdios da poesia grega (século VIII a.C.). Para ambos, a poesia
aparece como linguagem responsável pelo registro da tradição oral de lendas e
mitos do povo grego. Na verdade, é da experiência com a linguagem grega que
resulta o imaginário conceito de mito, fundamental para se explicar a cultura e
organização da Grécia Clássica. Poderíamos mesmo afirmar que descrever o
conceito de mito na cultura grega é descrever uma experiência mítica da
linguagem.
Apesar de terem escrito obras poéticas com temáticas diferenciadas,
Homero e Hesíodo apresentam alguns aspectos comuns em seus textos. Homero
aparece como o consagrado criador da Ilíada e da Odisséia, poemas épicos
grandiosos destinados a cantar a superioridade cultural e militar do povo grego
diante de outros da Antigüidade, sendo Ulisses a voz heróica, representante dessa
soberania. Hesíodo assina duas importantes obras, a Teogonia, em que trata da
ação dos Deuses e Deusas sobre o mundo humano e seu funcionamento e
Trabalhos e Dias, voltado para uma temática agrícola, no qual demonstrará que o
desenvolvimento humano é fruto de trabalho severo e disciplinado, mas que
resultaria vão se não fosse premiado com os favores dos Deuses. Distintas as
especificidades dos poemas e de seus autores, notamos que, curiosamente, tanto
Homero quanto Hesíodo vão se valer das palavras das Musas para concretizar e
fundamentar as idéias expostas em seus versos. As Musas, filhas de Zeus e da
10
Memória, são invocadas para que cantem e contem acontecimentos havidos entre
os Deuses e os heróis humanos, em determinado momento do passado (nasce
delas a poesia oral cantada). A palavra das Musas, Deusas olímpias sempre
presentes (oniscientes) e testemunhas de todos os acontecimentos, garante a
Verdade dos fatos narrados pelo poeta (notadamente nos poemas de Homero).
Cantor épico, “homem divino”, o poeta se apresenta como porta-voz dos Deuses e
da palavra das Musas.
Em Hesíodo, Por exemplo, são as Musas que o ensinam a Verdade (o “belo
canto”):
“Elas [as Musas] certa vez, a Hesíodo, ensinaram belo canto,
Ovelhas ele apascentando sob o Hélicon divino.
E a mim, antes de tudo, as deusas estas palavras dirigiram,
As Musas olimpíades, filhas de Zeus que tem a égide:
Pastores agrestes, maus opróbios, ventres só,
Sabemos de muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autênticas
E sabemos, quando queremos, verdades proclamar.”
(Teogonia, versos 22 – 28)
Perceba-se que, ao contrário das Musas da Ilíada e da Odisséia de Homero
que dizem o que sabem e isto se associa imediatamente a “dizer a verdade”, em
Hesíodo, as Musas afirmam que sabem anunciar coisas verdadeiras (alethéa),
como também dizer “mentiras semelhantes a coisas autênticas” (pseúdea). Talvez
possamos ver uma crítica de Hesíodo às Musas de Homero, que tinham
compromisso exclusivo com o fato verdadeiro. O que, sem dúvida, podemos
afirmar é que a linguagem, para os poetas gregos desse momento, representa um
aspecto fundamental do mundo, que nos interpela (como aos poetas),
apresentando-se como expressão verdadeira desse mundo. Como nos demonstra
o professor Torrano (1.997, p. 30), em seu artigo a respeito do conceito de mito
em Homero e Hesíodo:
“Para maior comodidade e correndo o risco, um saudável risco de equívoco,
chamemos de“mito” a essa experiência da linguagem e definamo-la como uma experiência
da linguagem em que uma forma divina do mundo nos interpela, a nós, mortais, e assim
11
desvenda a verdade de acontecimentos passados, presentes e futuros. Nessa experiência,
a linguagem serve de suporte a uma hierofonia, isto é, uma manifestação divina. O mito
enquanto forma de linguagem, instaura o seu próprio sentido para falar da verdade.”
Como vimos, essa verdade, em Hesíodo, se relativiza: ela pode ser
formada de “ilatências” (revelações), dom dos Deuses e das Deusas Musas, que
são ofertadas aos humanos de acordo com seu merecimento e que indicam a
universalidade do conhecimento trazido pela palavra divina, ou formada de
pseúdea etýmoisin homoîa, coisas mentirosas ditas semelhantemente a coisas
autênticas (que também as Musas conseguem realizar). De qualquer forma a
interpelação (a invocação à ação das Deusas Musas) é capaz de transformar um
simples pastor de ovelhas em cultor de Musas, cujo culto se celebra com os
cantares. O cantor (na figura do poeta) tem nos seus cantos uma imagem dos
cantos imortais das Musas no Olimpo.
Importa ressaltar que Hesíodo traz para a esfera das Musas e sua palavra
divina o pseûdos (contra a perspectiva arcaica que emprestava ao discurso das
Musas, enquanto deusas, uma verdade inerente) e tenta responder a algumas
questões da poética de seu tempo. Senão vejamos: os pastores agrestes não
sabem discernir quando as Musas dizem pseúdea semelhantes a coisas
autênticas de quando apresentam alethéa. Também não distinguem os momentos,
em que, elas representam dizer verdades daqueles em que as dizem de fato. As
Musas não condenam os pseúdea nem se mantém longe deles; o que condenam
são aqueles que, por sua rudez, não diferenciam pseúdea de alethéa,
considerando tudo como “verdadeiro”. Na prática poética, Hesíodo condena, por
meio das palavras das Musas, os equívocos em torno da recepção da poesia de
sua época.
A poesia pode e, a certo ponto, deve criar imagens semelhantes à
verdade para expressar o mundo, ou seja, é-lhe permitido dizer “muitas mentiras
(criações)” que se assemelhem a “coisas autênticas” (realidades). Teríamos, neste
pensamento hesiodíaco, a base para a formulação da idéia de mimese poética,
proposta e trabalhada por Platão e Aristóteles, filósofos gregos posteriores a
Homero e Hesíodo.
12
Interessante notar-se, ainda na linha dessa visão mimética do real, a
atuação das Musas sobre a memória dos fatos. Filhas de Zeus e da Memória
(como dissemos), as Musas acabam, ironicamente, por se uma espécie de
“memória para o esquecimento”. Não um esquecimento absoluto, o que seria
negar a própria memória e, neste caso, totalmente sem sentido, mas um
esquecimento “seletivo”. Trata-se de memória que, em vez de fluir sem limites, faz
cessar algumas recordações, especificamente as preocupações, devendo, assim,
criar um mundo glorioso e ideal. Diríamos que se Zeus é o deus que distribui
honras e funções, organizando e dirigindo tudo, as Musas, suas filhas, são uma
espécie de memória organizada e dirigida por ele e que, ao cantarem diante de
Zeus, para Zeus, devem alegrar seu espírito. Poderíamos admitir, assim, que se
cabe a Zeus o poder da Mêtis prudência -, às Musas compete essa memória
refletida, ardilosa, prudente, que rememora algumas coisas, ao mesmo tempo que
lança outras no esquecimento (lesmosýne). Esta função das Musas diante da
realidade aparece expressa nos poemas de Hesíodo e reencontrará voz nos
Diálogos platônicos do culo III a.C., através das discussões, realizadas pelo
filósofo, sobre o mito e sua simbologia.
Nos Diálogos de Platão, mythos e mythologia se referiam às narrativas
míticas da poesia épica, que se constituíam de uma mistura de verdades e
mentiras. O mito representava o legado de outra época, válido como expressão
legítima da cultura, não pelo reconhecimento da utilidade que as mentiras
podem ter como phármakon (“droga”, remédio”), mas também pelo
reconhecimento das verdades (“ilatências”) que podem estar contidas nas
narrativas míticas. Neste sentido, a função dos mitos se aproxima das palavras
das Musas.
Os Diálogos apresentam duas formas de linguagem que se alternam: a das
narrativas míticas e a dos enunciados e argumentos filosóficos. Na República de
Platão, nos livros VI e VII, o filósofo institui critérios pelos quais a tradição épica,
através das narrativas míticas, e sua continuidade na poesia lírica e na tragédia
hão de ser apreciadas e julgadas, condenadas ou resgatadas. Abre-se, desta
13
forma, um diálogo entre o presente do conhecimento filosófico e o legado poético
da tradição épica.
Será ainda Platão, no Crátilo (sub-intitulado Diálogo acerca da justeza dos
nomes) que lança um questionamento em torno do poder da palavra,
principalmente em torno do nome. Para ele, assim como para Sócrates, seu
mestre, é através do conhecimento do nome das coisas que se chega ao
conhecimento das próprias coisas à sua essência, à sua Verdade. A linguagem
tem, assim, uma função didática como instrumento de conhecimento. É necessário
frisar que, para ambos os filósofos, uma complexidade de premissas
envolvidas para que se atinjam os objetivos da linguagem; o conhecimento prévio
que se tem das coisas, dado pelos nomes, não pode confundir-se com o
conhecimento que o filósofo vai tendo das mesmas, fruto de seu trajeto pessoal
em busca da verdade. Esta busca compete ao filósofo e não ao poeta, segundo
Platão.
Para Platão, não legitimidade do poeta na busca da justeza do nome
face à verdade inerente às coisas, muito embora admita o poder sublimador e
divino da palavra poética, inspirada pelo sopro divino no espírito humano. Os
nomes simulam as coisas, “por meio das suas letras e das suas sílabas”,
permitindo ao falante “apoderar-se do ser” das coisas, de forma a “imitar a sua
essência”. Assim, cada palavra carrega em si a expressão de um sentido racional
( o logos) do objeto que nomeia. O filósofo admite que haja outra face da palavra
para além do logos racional, uma face irracional e até mais bela, semelhante a
uma face oculta e caótica, proferida por poetas (rapsodos), por loucos ou por
possuídos da “mania” sublime e generosa dos deuses. Platão reconhece a maior
proximidade deste outro logos com a idéia do que acredita ser o verdadeiro real, o
mundo ideal, mas conclui que sua existência entre os humanos é impossível, ao
menos enquanto elemento que leve à conscientização da realidade, pois cria uma
dimensão utópica extrema e ao mesmo tempo paradoxal da existência da
perfeição num lugar inexistente. Este não é o caminho que conduz ao
conhecimento da Verdade, porque “alimentapaixões humanas quando deveria
extingui-las. As paixões comprometem a racionalidade e, conseqüentemente, a
14
vida social da polis. A linguagem poética, como linguagem possessa, assim quem
a profere, os poetas e os homens insanos, devem ser banidos da cidade:
“... quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encômios
aos varões honestos e nada mais. Se porém acolheres a Musa aprazível na lírica ou na
epopéia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a
comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor”.
(República, de Platão)
Há, nestas palavras de Platão, uma crítica explícita à palavra poética que
não esteja ligada a uma finalidade pragmática da realidade do homem grego (os
hinos de louvor aos deuses ou aos homens importantes das cidades-Estado).
Quando a palavra poética ultrapassa este limite, encontra-se corrompida pela
subjetividade do poeta (auxiliada pelas Musas) e afastada da função primeira
inerente às palavras da linguagem: nomear de forma justa o pensamento das
coisas, aproximando-se da “verdade histórica”. Neste sentido, é que encontramos
nos diálogos do Crátilo algumas críticas de Platão a Homero: Platão confessa ter
sérias dificuldades em explicar a linguagem de poetas da grandeza de Homero,
pois para aquele, apesar da habilidade retórica deste, o texto homérico é pontuado
de imaginação e deturpado pela ação das Musas, o que contribui para afastá-lo,
em certa medida, da verdade histórica e da sua função de conhecimento utilitário.
A linguagem utilizada por Homero apresentaria, então, um defeito próprio e
comum a toda linguagem extremamente poética e que deveria ter sido evitada
pela habilidade retórica do poeta: falta de adequação à realidade histórico-social.
E para Platão, mais do que falar é preciso “saber falar bem”, ou seja, de acordo
com a situação histórica. Estaria aí a adequação necessária do poeta à sociedade,
para que pudesse contribuir com ela. A diferença original que constitui o logos
racional, o defeito de adequação inerente à poesia (ser segundo da linguagem),
poderiam ser minorados com a busca constante do “bem falar”, entendido aqui
como a fala justa para expressar o pensamento das coisas. De acordo com
Vasconcelos (2.004, p. 6), em seu ensaio sobre o pensamento grego, podemos
perceber que o questionamento apresentado por Platão no Crátilo “... vem a
constituir-se num dos mitos fundadores mais consistentes da palavra poética, em
15
sucessivas gerações até aos nossos dias”. E a pesquisadora ainda acrescenta
uma observação importante para nossa reflexão: ”Uma última achega, muito
breve. Na fusão indiscriminada do legislador, do poeta e do filósofo em Platão,
onde cabem igualmente as sínteses aristotélicas na Poética sobre a necessidade
e verossimilhança poética e filosófica, em oposição à ”verdade” histórica,
encontram-se naturalmente as definições românticas de poeta e de poesia”.
(Sintetizando, podemos distinguir três concepções fundamentais de poesia,
de um ponto de vista filosófico:1ª) a poesia como estímulo ou participação
emotiva; 2ª) a poesia como verdade; 3ª) a poesia enquanto modo privilegiado de
expressão lingüística.
A concepção de poesia como estímulo ou participação emotiva foi exposta
pela primeira vez por Platão (428/27 a.C. 347 a.C.) que acreditava serem as
ações do poeta e da poesia nefastas à sociedade. Afirmava ele que a imitação
poética dos sentimentos humanos (o amor, a cólera e todos os sentimentos
dolorosos ou agradáveis da alma) agrava os efeitos produzidos por tais
sentimentos ao invés de aplacá-los. A Poesia os nutre, transformando os seres
humanos em servos de sentimentos que, ao contrário, deveriam obedecê-los para
que se tornassem mais felizes e melhores. Para Platão, a característica
fundamental da poesia imitativa (como também a principal razão de sua
condenação pelo filósofo) é a participação emocional em que ela se baseia, bem
como o reforço das emoções que ela provoca com tais participações. Esta visão
platônica foi, ao longo dos tempos, confirmada ou refutada pelos usos da própria
Poesia.
Vale frisar ainda nessa concepção, a distinção que pode ser estabelecida
entre o uso simbólico da linguagem e o seu uso emocional, atribuindo-se à poesia
“a forma suprema da linguagem emotiva”, que tem como único objetivo estimular
“emoções e atitudes” (
I.A.RICHARDS, Princípios da Crítica Literária Apud
Abbagnano 2.000, p. 767). A função simbólica da linguagem consiste em
simbolizar a referência ao objeto e comunicar essa referência ao ouvinte, que
deverá reconhecê-la. A função emotiva, por sua vez, exprime emoções que são
16
estimuladas, evocadas, no ouvinte, reproduzindo-se aqui o ponto de vista
platônico.
A segunda concepção, da poesia como verdade, tem suas bases em
Aristóteles (384 322 a.C.) que considerou a tendência à imitação (parte da
função da poesia) como algo inato ao ser humano e capaz de conduzi-lo ao
conhecimento. Para o filósofo, a imitação poética tem valor cognoscitivo superior
ao da imitação historiográfica, uma vez que não representa as coisas realmente
acontecidas, mas “as coisas possíveis, segundo a verossimilhança e a
necessidade”. Sendo assim, é “mais filosófica e mais elevada que a história,
porque exprime o universal, enquanto a história exprime o particular”. Aristóteles
coloca a poesia na mesma esfera da verdade filosófica, que como esta capta a
essência das coisas, e, no domínio das vicissitudes humanas, a essência é
formada das relações entre verossimilhança e necessidade e isto é objeto da
Poesia. Desta forma, a poesia apresenta grau de verdade semelhante ao da
filosofia, por expressar verdades relativas aos feitos humanos (universais,
portanto). Esta concepção de poesia dominou por muito tempo a tradição filosófica
(Aristóteles, Poética Apud op.cit.).
Esta concepção foi retomada depois, com as devidas adaptações, pelos
poetas pré-românticos e românticos. Para eles, a poesia não se aproxima da
verdade absoluta, porque ela é a própria verdade absoluta. Na obra Sobre a
poesia ingênua e sentimental (1.795 96), Schiller afirma que o poeta é a
natureza, ou seja, sente naturalmente e, portanto, imita a natureza, ou estando
afastado dela, vai à sua procura nostalgicamente, como um ideal. No primeiro
caso, temos a poesia ingênua e no segundo, a poesia sentimental. Percebe-se
que, tanto num como noutro caso, a poesia é o elemento absoluto. Então, a
poesia ingênua, por imitar a natureza, é representação absoluta, modelar e
definitiva; a poesia sentimental, por tratar de um elemento faltante, é
representação do absoluto, busca de um ideal de perfeição consumado, ainda que
longínquo. Com isto, Schiller afirma a superioridade da poesia sobre a filosofia
(Werke, XII – Apud op.cit.).
17
Schelling, outro poeta do período, irá nos falar sobre a faculdade poética:
“A faculdade poética é a intuição originária na sua primeira potência; e vice – versa,
a única intuição produtiva que se repete na mais elevada potência é o que chamamos de
faculdade poética” (Sistema dos idealismos transcendentais, VI – Apud op.cit).
A faculdade poética predispõe à atualização da unidade das atividades
conscientes e inconscientes do poeta. Esta unidade constitui a natureza do EU
poético, um ser absoluto.
“O que chamamos de natureza é um poema, fechado em caracteres misteriosos e
admiráveis. Mas se o enigma pudesse ser revelado, reconheceríamos nele a odisséia do
Espírito, que, por maravilhosa ilusão, buscando-se, foge de si mesmo” (Ibid, Apud op.cit).
Temos, nestas palavras do poeta, a marca básica do texto poético, a seu
ver: a palavra misteriosa, por sua própria natureza poética e ambígüa, capaz de
elevar o Espírito rumo ao absoluto. Como linguagem original, a poesia é a própria
verdade, isto é, a manifestação ou revelação do Ser (Visão do filósofo alemão
contemporâneo Heidegger in Holzwege – Apud op.cit.).
Na terceira concepção, menos filosófica que as anteriores, vislumbramos as
características da poesia que l4.33117(l5.014 0 Td03117( )-8a)-25(a)-4.33117(s)-0.29n9273(,)-2.1643Sa0117( )-8aa lica fif5(a1.84.33117([(c)-0.2949o5-0.2842.188(l)1c)-0.295p.805(d)-4.33056(a)-(f)-12.1703(i)mb87122(o)-4.33117(r)2.8T361(s)-0.2931(.)-188(l)1331176189)-4.33117(r4.33117(r-0.295p.81093(87122(o)-4.9117(r4.3257 -20.76 T767474(u)-4.33117(e)-4.3336())2.80439))5.67535(74(n)-4.33117(t)-87122(o)-40( )-12.1703(v)7(r5.671(d)5.674744.33117(e)-4.34500]TJ-315.186ê0.67474(f)-12.099))(c)-0.J-315.17474(f)-12.004aO871(d)5.6747TJ-287.57974(f)-12.004)-4.33117(56(r)2.8o)5.67474(m)-7.49466(240b5.2.2122(n)-4.33117(g)57([(7.84032(s9466(240b5.2.2122(98a)5.67474(n)b6(240b5.2..87122(i)1.1311)2.805(í40b5.2.2129i)1.89(n)-4.33117(g)8(e)-4.33056(r)2.805(í)73117(g)57([(9.)2.805(í40b5)1.89(n)-4.33117(g)8(e)-4.33056(r)2.8188(l)1c)-0.-4.3336(-0.2955852004aOO871(d)5.6733)-4.3311767474(u).331170439(e)-80561( 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18
Nesta visão, a intensidade da palavra poética está na sua força expressiva
e não emotiva. A carga de possibilidades expressivas constitui a maior força do
significado das palavras que não estão desgastadas pelo uso (vale lembrar que no
princípio a própria linguagem como um todo apresentava um caráter poético,
desfrutado coletivamente através dos rituais e cerimônias, como entre os antigos
gregos). Confiar à poesia a função de restabelecer na linguagem a força de
significação das palavras, purificando-as, renovando-as e mantendo constante
aperfeiçoamento e eficiência, é o que vêm fazendo os poetas em seu trabalho ao
longo dos tempos.
A partir dessa concepção expressiva de poesia, podemos chegar a alguns
aspectos importantes do caráter do texto poético: primeiro, a poesia apresenta
uma beleza que é formal e cujo caráter é objetivo, estando além da simples
experiência emotiva ou utilitária de um trabalho artesanal do poeta
3
, ou de
construção como diria o poeta Paul Valéry:
acentua-se o caráter comunicativo da
poesia que deve estar em sintonia com o seu tempo; em seguida, a poesia
procura a perfeição formal, que é a exatidão ou precisão expressiva, encontrada
na própria escrita do poema.
4
Como resumo dos aspectos aqui discutidos, podemos ressaltar que, na sua
função expressiva, a poesia apresenta a função primordial de manutenção de uma
linguagem eficiente. A fala de Ezra Pound parece-nos esclarecedora a esse
respeito: “Sua função (da literatura) tem a ver com a clareza e o vigor de qualquer
pensamento ou opinião. Diz respeito à preservação e ao esmero dos
instrumentos, à saúde da própria substância do pensamento (...); a manutenção
de uma linguagem eficiente é tão importante para as finalidades do pensamento
quanto em cirurgia é importante manter os bacilos do tétano distantes das
3
O escritor realista francês Flaubert dizia: “Quanto menos se sente uma coisa tanto mais se tem
capacidade para exprimi-la tal qual ela é sempre, em si mesma, na sua universalidade, livre de
todas as suas contingências efêmeras. É preciso, porém, ter a faculdade de fazer-se senti-la, e
isso é o gênio”. (Carta à Louise Colet, 6/7/1. 852; apud op.cit.)
4
Mallarmé estende a preocupação com a exatidão ao modo de escrita do poema: “O arcabouço
intelectual do poema dissimula-se e sustenta-se acontece no espaço que isola as estrofes e o
branco do papel: silêncio significativo, de composição o bela quanto a dos próprios versos (Carta
não datada a Charles Morice, cf. Propostas sobre a poesia, ed.Mondor,p.164) Apud. op.cit.
19
ataduras” e ainda afirma que “a poesia é simplesmente linguagem carregada de
significado no máximo grau possível” (Ensaios Literários – In op.cit.).
Derivados da sua concepção sobre o texto poético, Pound concebe três
elementos intrínsecos à poesia: a melopéia, na qual “as palavras, além do seu
significado comum, comportam alguma qualidade musical que condiciona o
alcance e a direção desse significado”, a fanopéia que “é a projeção de imagens
sobre a fantasia visual” e a logopéia, na qual “as palavras são usadas não em
seu significado direto, mas também em vista de usos e costumes, do contexto, das
concomitâncias habituais, das acepções conhecidas e da ironia” (Ibid. – In op.cit.).
A apreensão do conceito de Poesia como forma nos leva a refletir sobre
como essa concepção foi utilizada, tempos depois, pelos estruturalistas do
Formalismo Russo, nos princípios do século XX. Para eles, retomando as
posições aqui apresentadas e regressando mesmo à Grécia Antiga, com as
propostas de Aristóteles sobre a arte poética (para quem o conhecimento das
formas era essencial), a Poesia resulta do conhecimento e da aplicação de
técnicas.
Um dos mais importantes formalistas russos, Roman Jakobson, vai afirmar
que a Poesia é uma forma muito especial de trabalhar a linguagem (a língua e seu
código), sendo necessário ao poeta o conhecimento de como operar com o código
lingüístico. A poesia parte de uma estrutura (um “arquétipo”) que irá estar em
primeiro plano em relação ao conteúdo. Os formalistas mudaram o ângulo de
visão sobre a poesia (mas nunca negaram o seu conteúdo): ao contrário dos
gregos, que se preocupavam com o lado social e formador que a poesia poderia
proporcionar a seus cidadãos, os formalistas se preocupavam “a priori” com a
estrutura do verso, da frase (o sintagma), produzida a partir da seleção vocabular
das palavras da língua (paradigmas), ou seja, uma preocupação de se analisar
estruturalmente como os arranjos poéticos são produzidos. Essas possibilidades
de arranjos, que muitas vezes rompem com a organização tradicional e utilitária da
frase, podem provocar no leitor de poesia o que chamaríamos de “estranhamento
poético”. Este leva à suscitação de outras leituras por parte do leitor, tornando-o
20
um “co-autor” do texto, e desautomatizando a leitura unívoca e tradicional. Obriga
o leitor a refazer o caminho da leitura, a refazer o seu “olhar” sobre o objeto
poético.
Jakobson trabalha com as noções de paradigma (eixo das possibilidades
vocabulares de uma língua que operam por similaridades) e de sintagma (eixo das
combinações de palavras que estabelecem relações funcionais, operando por
contigüidade) propostas por Ferdinand de Saussure. O formalista russo cria a
noção da “paradigmatização do sintagma”, isto é, os elementos do paradigma, as
similaridades que a língua oferece, se projetam no sintagma, o eixo das
combinações vocabulares, de um modo especial, quebrando com a ordem e a
expectativa lingüística tradicionais. A essa “quebra” que desordena a lógica da
frase (o que era lógico se tornará analógico) -se o nome de função poética. O
poeta tira a palavra de um local tradicional que ela ocupa na língua e a coloca em
outro, renovado. Trabalha, portanto, sobre a estrutura lingüística que, alterada em
sua linguagem, produzirá o estranhamento poético a que nos referimos
anteriormente. A mudança estrutural afeta a língua enquanto corpo, ou seja, toda
mudança de colocação e organização da palavra em poesia se corporifica na
palavra poética dentro do sintagma. Esta corporificação da palavra poética resulta
da alteração estrutural que influi na alteração semântica da palavra.
Jakobson está preocupado com a construção do poema, com a técnica, a
maneira de dizer, buscando atingir a poeticidade, a literariedade do poema. Para
ele, o poeta é um produtor e criador de linguagem e a função da poesia é
realmente desautomatizar a leitura, obrigando autor e leitor ao ato criativo, através
da recriação da linguagem. Esta posição de Jakobson é a base que sustenta
também a poesia concretista, surgida a partir dos anos 50.
Como nos dizia Roland Barthes, no início de nossas reflexões, o importante
é que a Poesia renove a linguagem, deslocando a visão tradicional que apresenta
das palavras, “trapaceando com a língua e trapaceando a língua” e surpreendendo
o leitor a cada nova leitura do texto. Nas palavras do poeta português Alberto
Pimenta, a poesia deve despragmatizar a língua, rompendo com os sintagmas (as
21
combinações) pré-estabelecidas. O professor de Teoria Literária da PUC/SP,
Fernando Segolin, acrescenta ainda que a despragmatização das palavras na
22
dos feitos heróicos de um povo, através das ações de determinado herói, como
faz o texto épico (a epopéia) ou refletir sobre o drama da vida humana, ensinando
através das ações exemplares, como apresenta o texto dramático (o drama
teatral). Talvez este posicionamento da maioria em relação ao lírico e ao texto
poético, de forma geral, explique o porquê de as pessoas associarem “poesia”
unicamente a momentos sentimentais ligados à paixão, desvarios, alegrias ou
tristezas de alguém. Ou então verem na poesia um passatempo para preencher
momentos ociosos, simples entretenimento.
Na verdade, a questão não é tão simples quanto parece. vários
elementos e fatores influentes na composição de um texto poético, principalmente
no caso do texto lírico, que precisam ser considerados e discutidos de forma mais
profunda. Como o campo dessa discussão é muito vasto e impreciso,
apresentando uma série de estudos sobre o assunto, que por vezes são
contraditórios, optamos por delimitar o nosso material de pesquisa, escolhendo o
ensaio crítico do professor da Universidade de Toulon, França, Dr. Yves Stalloni,
para nossas reflexões acerca do gênero lírico em poesia (“A poesia e o gênero
lírico” In Os Gêneros Literários Yves Stalloni). O motivo de nossa escolha foi o
tratamento amplo e criterioso dado ao tema pelo professor Stalloni.
Organizado em quatro capítulos mais as conclusões, o livro procura discutir
pontos polêmicos dos estudos literários: definir as diversas nuanças da Literatura
e tratar das diferenças que permeiam os textos enquanto classificados por
“gêneros”. no primeiro capítulo (“A noção de gênero literário”), Stalloni trata da
dificuldade de se classificar os textos em gêneros, partindo da delimitação do que
é gênero como palavra (do latim genus, generis = origem), passando a sua
aplicabilidade em relação à obra de Aristóteles, “Poética”, para mostrar ao leitor
que a idéia de gênero existia na Antigüidade Grega, ainda que intuitivamente.
Em seguida, o livro aborda a questão do teatro e do gênero dramático,
considerado por Stalloni uma criação com marcas bem definidas e o mais objetivo
enquanto gênero, em que a palavra é verbalizada diretamente ao público. Num
terceiro capítulo, o assunto analisado é o romance e o gênero narrativo: o autor
analisa inicialmente o surgimento da narrativa como gênero literário para chegar
23
ao romance como forma narrativa que tem seu reconhecimento como gênero de
maneira tardia e incerta.No último capítulo, o professor Stalloni discute a questão
da poesia e do gênero lírico (que nos interessa diretamente), mostrando as
dificuldades de se classificar a poesia como um gênero literário e relativizando
alguns critérios tradicionais na análise da poesia. Neste ensaio, refaz-se a
trajetória dos gêneros literários, tomando-se novamente a idéia de poética
oferecida por Aristóteles; analisa-se, a seguir, a questão do lirismo na Antigüidade
e na modernidade, os recursos oferecidos pela forma poética e a hibridização de
gêneros que rompe, definitivamente, com as classificações tradicionais e com os
limites rígidos entre prosa e poesia. São estes aspectos do ensaio escolhido por
nós que procuraremos resenhar criticamente a partir de agora, levando à
discussão as questões da poesia e da lírica.
O ensaio de Yves Stalloni, traduzido por Flávia Nascimento, se inicia com a
afirmação de que “a poesia não constitui um gênero”. A dificuldade em classificar
a poesia como gênero literário, com características definidas, como o teatro ou o
texto narrativo, decorre de três critérios aplicados à estética da poesia e do lírico: a
utilização do verso, o papel da subjetividade e a relação com a ficção.
Em seguida, o ensaio passa a analisar cada um dos critérios. Em relação
ao primeiro, o autor afirma que o verso o que poderíamos chamar hoje de
característica de forma não era, na Antigüidade, um traço pertinente de
classificação do texto, porque se negligenciava a oposição entre verso e prosa e
toda forma literária se constituía em forma “poética” (o que era ilustrado, no
gênero dramático, pela poesia trágica e, no narrativo, pelo ditirambo ou a
epopéia). Para Aristóteles, o termo poética englobava a teoria dos gêneros
literários e a teoria do discurso, e a poesia impregnava os gêneros dramático e
narrativo, significando o ato de “fabricar”, “construir” ou “criar” todas as formas
escritas. Na visão do filósofo e de seu mestre, Platão, a poesia aparecia
intimamente ligada à idéia de representação do mundo externo (“mimese”) e no
seu interior encontravam-se em confluência três grandes gêneros miméticos: a
tragédia, a epopéia e a comédia, nada que designe uma escrita específica
baseada na utilização do verso. Assim, a poesia não parece, no que diz respeito à
24
sua forma, um gênero autônomo, uma vez que “presa” às formas anteriormente
citadas (epopéia, tragédia ou ditirambo), perde sua característica de originalidade.
O verso e seu metro são sinais infalíveis de um determinado gênero literário.
Quanto ao critério de subjetividade, o autor dirá que ele se constitui num
aspecto mais distintivo do gênero poético do que o anterior (principalmente se
tomada como ponto de partida a poesia da Antigüidade). O poeta abandonará,
paulatinamente, o domínio da imitação da realidade (mimese) em troca da
introspecção individual, negligenciando o modelo do mundo exterior, ignorando as
expectativas de seu auditório, preocupando-se em traduzir a sua interioridade
criativa, de maneira incontrolada, e reproduzir uma fala que se dirige a si mesmo,
o que chamaríamos de lirismo.
A partir desta posição do poeta, criar-se-á o hábito de classificar o gênero
poético em três paradigmas estéticos: a poesia lírica, em que o poeta estará numa
relação imediata consigo mesmo; a poesia épica, em que o poeta se apresenta
numa relação intermediária dele com os outros e a poesia dramática, em que ele
apresenta sua imagem numa relação imediata com os outros (como descrito nas
palavras de Stephen Dedalus, herói de Joyce). Isto, de certa forma, corresponde a
uma tendência atual de responder a um gosto pronunciado pela harmonia ternária,
mas que apresentaria um “senão”: de acordo com o critério do lirismo, deveriam
ser incluídas na expansão lírica obras com forte marca de subjetividade, como
autobiografias, confissões, jornais íntimos, memórias, relatos de infância, etc,
obras essencialmente em prosa, dificilmente com lugar na categoria “poesia”
dentro das classificações modernas.
O terceiro critério, ligado à ficção, mostra que a obra lírica (e poética, em
geral) apresenta uma aparente recusa da ficção. Isto se explicaria na medida em
que a subjetividade seria a origem da inspiração do poeta, que abandonaria, de
certa forma, as vias da imaginação.
Resumindo esta primeira parte, o ensaísta afirma que o gênero poético não
goza, na sua origem, de estruturas que o coloquem num patamar de igualdade
literária com os gêneros narrativo ou dramático e que o lirismo se marca, então,
25
por um modo próprio de enunciação poética em que a expressão, a temática e a
pragmática da mensagem se voltam para as falas e sentimentos pessoais, cujos
critérios formais não ajudam no estabelecimento de uma categoria homogênea no
que diz respeito ao gênero “poético”.
Numa segunda parte, o autor tenta discutir a essência da linguagem
poética, partindo da definição de poesia
6
e nos remetendo basicamente a dois
“objetos” de análise: a poesia como resultado de técnica poética ou como
resultado da elevação, da inspiração do poeta (qualidade estética). Para Stalloni,
apenas o primeiro objeto permitiria distinguir a poesia como “gênero”, uma vez que
o outro a inspiração poética pode ser aplicado a outras expressões artísticas e
estaria ligado a uma apreciação subjetiva da criação. Isto reforça a distinção
aristotélica de obras / criações artísticas de grau superior e inferior.
Apesar das variações de visão e definição de poesia, um ponto que
parece ser senso comum: o verso continua sendo considerado um referencial de
base na criação poética. Por isto, o texto passa a discutir alguns componentes
tradicionais do poema: o verso, a imagem, a prosódia, a intransitividade e a
questão da inspiração.
Sobre o verso, além do citado anteriormente, o texto afirma que ele é a
estrutura mais elementar de identificação da forma poética, nos níveis métrico e
rítmico (notadamente no trabalho com as rimas e a sonoridade).
Em relação à imagem, retoma-se a visão da Antigüidade Clássica: a poesia
é uma forma mimética, cuja particularidade é representar a realidade, através de
imagens figuradas desse real, traduzidas por metáforas, metonímias e
comparações. Como aperfeiçoamento desse processo, num nível superior de
6
Poesia: 1. Arte de fazer obras em versos (...) 2. Diz-se dos diferentes tipos de poemas e das
diferentes matérias tratadas em versos (...) 3. Qualidades que caracterizam os bons versos e que
podem também encontrar-se em textos que não sejam versos (...) 4. Diz-se de tudo aquilo que
de elevado, de tocante, numa obra de arte, no caráter ou na beleza de uma pessoa e até mesmo
numa produção natural” (Dicionário da Língua Francesa, 1.874). Complementado com: Poesia:
Arte da linguagem, geralmente associada à versificação, visando a exprimir ou a sugerir algo por
meio de combinações verbais em que o ritmo, harmonia e a imagem têm tanta e às vezes mais
importância que o próprio conteúdo inteligível”.(Robert, Dicionário Alfabético e Analógico da Língua
Francesa, 1.962).
26
“comparação”, surge a analogia: ela aparece como uma das formas primeiras e
mais audaciosas de transformar a linguagem prosaica (denotativa) em poética
27
Num terceiro momento, o texto discute os problemas de delimitação do
gênero poético e trata de algumas formas de poesia.
Inicialmente, refletindo sobre a questão do gênero, o texto diz que a poesia
não se confunde com a epopéia ou a tragédia, porque além de diferenças formais,
a poesia faz a escolha de exprimir-se através de elementos de diversos gêneros:
ao lado de uma poesia lírica existem uma poesia dialogada, uma poesia épica e
uma poesia satírica. Apontam-se, em seguida, algumas fragilidades do “gênero
poético”: algumas obras poéticas são híbridas (misturam os gêneros), além de
apresentarem o traço de transitividade (não serem, em si mesmas, seu próprio
fim), desejando transmitir uma mensagem por meio de um enunciado poético. É
comum a interpenetração de gêneros (a narração introduzir-se no teatro; o diálogo
constituir-se em romance, etc), o que acarreta a dificuldade de legitimar um
determinado gênero literário. O texto do ensaísta declara, então, que não vai se
preocupar com tipologias poéticas como a poesia épica, dramática e nem mesmo
a fábula (que contém qualidades poéticas), voltando-se exclusivamente para a
poesia lírica e a elegíaca.
Em relação à poesia lírica, retoma-se a sua origem grega, ligada ao canto,
e, depois, apresenta-se o sentido moderno de lirismo: “expressão pessoal de uma
emoção demonstrada por vias ritmadas e musicais”. No entanto, ressalva-se que o
lirismo é uma emanação do EU e que os versos e poemas de forma fixa serão os
meios mais comuns da expressão da poesia lírica. Quanto à temática, os
sentimentos individuais (principalmente os melancólicos) serão os privilegiados
pela poesia lírica: amor infeliz, sofrimento, tristeza, etc. Como uma variante da
inspiração lírica, temos a poesia elegíaca, voltada para o “canto de luto”,
exprimindo sentimentos tristes ou dolorosos, com métrica particular. Seus temas
giram em torno da fuga do tempo, da ruptura, do luto, da relação com a natureza,
transformados em lamento, em canto de pesar.
Outros poemas de formas “menores” (a ode, a écloga, o idílio e o madrigal)
são citados e o texto discorre, então, sobre os poemas de forma fixa. Dos poemas
de forma fixa são trabalhados, em especial, a balada e o soneto. A balada
28
poema original do século XIV acompanhada de música para dançar (do italiano
ballare), com estrofes de oito ou dez versos, surgida no Renascimento, será
retomada no Romantismo (por Goethe, Keats e Victor Hugo); o soneto – forma fixa
consagrada codificado no Renascimento italiano por Petrarca, foi escrito
inicialmente em decassílabos, alcançando depois a forma de alexandrinos.
Apresenta estrutura rímica rígida em seus dois quartetos e dois tercetos, uma
forma em que “a expansão afetiva se molda no rigor de uma forma concisa”.
Em sua última parte, o ensaio discute os limites da prosa e da poesia.
Começa por afirmar que a poesia, mais do que outras formas literárias, na
tentativa de se legitimar enquanto gênero, impôs uma rígida codificação de suas
formas, o que se costuma denominar por versificação. Mas o tempo, o bom senso
e a história literária mostraram que a poesia e o poeta não podem ser confundidos
com “a arte de fazer versos”. Assim, a poesia se define tanto pelas leis que
impõem como pelas transgressões que suscita às próprias imposições.
Poderíamos, numa visão tradicionalista, dizer que a poesia é o verso
enquanto a prosa é a frase normal. No entanto, essa concepção é contestável,
uma vez que versos podem servir para expressar realidades prosaicas, destituídas
de “poesia” e textos aparentemente “prosaicos” podem, devido a certas
qualidades, vir enriquecidos de elementos poéticos, misturando-se gêneros pré-
concebidos. Alguns elementos serão marcantes nessa transgressividade, como o
verso branco, a prosa poética e o poema em prosa.
O verso branco, sem rimas obrigatórias, muitas vezes sem molde rítmico
aparente, comparece como ruptura à modelização do verso, abolindo a tradição
da versificação, mantendo porém a aparência da estrofe que vem ritmar o texto e,
imitando o “sopro” do poeta, impõe uma estruturação “calculada”. Abre-se o
caminho para o poema em prosa.
O poema em prosa é a poesia que abandona seus traços formais distintivos
para ultrapassar a linha de delimitação que a distingue da prosa, hibridizando
formas de escrita. A própria expressão “poema em prosa”, aparente oxímoro
desencoraja a tentativa de classificação de “gêneros”. É um texto que se constitui
29
prosa, enquanto forma livre com uma temática aberta e, ao mesmo tempo, poema,
por estar moldado numa forma intensa e homogênea, que remete a si mesma
enquanto linguagem. O ensaio, neste ponto, explicita alguns conceitos de teóricos
sobre o assunto (como T.Todorov com a distinção de prosa e verso a partir dos
conceitos de apresentação e representação dos textos ou Michel Sandras que
aborda a questão do poema em prosa a partir da enunciação poética). Em
seguida, faz-se um breve histórico do poema em prosa, desde Baudelaire aa
modernidade.
Finalizando o texto, Yves Stalloni discute a questão do que poderíamos
chamar de prosa poética, anunciadora definitiva da hibridização de gêneros. Nesta
forma de linguagem, a prosa encontra-se diferenciada pela afetação de uma
tonalidade essencialmente formal e dificilmente definível, o “toque poético”. Este
resulta de uma consciência sobre a linguagem que deixa de ser simplesmente a
linguagem informativa, nomeadora das coisas no mundo, para assumir a tarefa de
tentar traduzir o indizível, transgredindo a natureza da própria linguagem: a fala
poética passa a ser a fala da ausência e lugar do essencial.
O texto pontua ainda algumas experiências poéticas com essa forma
literária, a partir dos estudos da especialista Suzanne Bernard: o experimento de
Fénelon, em 1.699, com o texto Telêmaco, passando pela prosa poética dos
escritos de Rousseau (século XVIII) e atingindo forma de maturidade, no chamado
“pré-romantismo”, com Chateubriand (especialmente em René e Atala).
Observa-se ainda que se os textos em prosa poética
7
possuem qualidades
ornamentais e formais que os aproximam da poesia, não chegam, no entanto, a
deslocar a expectativa do leitor do texto em direção ao que Sartre chamaria de
“auto-destruição da linguagem”, transgressão que pode constituir a essência do
texto poético, desejoso de “fabricar silêncio com a linguagem”
8
Como diria Jean-Yves Tadié sobre a narrativa-poética:
7
Todorov chamaria a este tipo de texto de “poesia sem verso”.
8
Citação de Suzanne BERNARD in O poema em prosa, de Baudelaire até nossos dias. Apud
Stalloni, Yves – “A poesia e o gênero lírico” In Os Gêneros Literários (2.001, p.170).
30
“(...) a distinção entre a prosa e a poesia é muito menos clara hoje do que no
tempo em que o alexandrino triunfava(...) Todo romance é, nem que seja minimamente,
poema, e todo poema é, ao menos num mínimo grau, narrativa” (“A narrativa poética”,
PUF, 1.978 – Apud op.cit.).
Assim, o ensaio de Yves Stalloni consegue traçar uma reflexão sobre a
poesia, suas características básicas e sua busca de se definir enquanto gênero
literário. E prova, com elementos contundentes, a dificuldade desta classificação,
principalmente hoje em dia, quando a poesia e a prosa beiram a hibridização dos
gêneros.
31
Capítulo II
Mimese, alteridade e dialogismo: a poesia em movimento.
“Pega na lira sonora,
Pega, meu caro Glauceste;
E ferindo as cordas de ouro,
Mostra aos rústicos pastores
A formosura celeste
De Marília, meus amores.
Ah! pinta, pinta
A minha Bela!
E em nada a cópia
Se afaste dela.”
(Lira XXXIII – 1ª parte, in Marília de Dirceu – Tomás Antonio Gonzaga)
1. A mimese literária: forma de representação do texto poético
”O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Assim se inicia o poema “Autopsicografia” do poeta português Fernando
Pessoa que nos remete a uma característica fundamental da poesia: a
representação simbólica do real através da palavra artística, o “fingimento poético”
que passa a ser o tradutor de uma realidade vivida ou imaginada / transformada
pelo poeta (criando-se, assim, o EU – POÉTICO).
E, por sua vez, esta atitude de representação ou fingimento poético nos
leva a refletir sobre a idéia de mimese. O termo, de origem grega, surge no
momento em que a poesia passa a se associar à filosofia e aos mitos. Os
filósofos, como Platão, acreditavam que a sociedade grega deveria ser um modelo
ideal de comunidade, ou seja, para eles, esta sociedade deveria trabalhar com
valores e elementos sensíveis capazes de aproximá-la o mais possível do mundo
32
das idéias, o mundo espiritual, perfeito, mundo das essências que regula a razão
humana. A poesia e seu criador, o poeta, aparecem como elementos que podem
realizar essa aproximação, sendo que o poeta torna-se uma espécie de arauto
entre o plano humano e o plano divino, aquele que pode atingir o mundo das
idéias, fazendo uso de um repertório a que têm acesso somente os “iniciados” e
destinado a transmitir a “luz” (visão do mundo das essências), revelando o que
poderíamos chamar de Verdade. Desta maneira, a linguagem poética (próxima
dos deuses e das essências) não mais apenas representa os seres, mas instaura
a verdadeira existência desses seres pela linguagem, ficando próxima do ideal
grego de Beleza e de Arte, buscando a palavra adâmica (palavra divina) que não
evoca nem invoca o objeto, porque já é essencialmente esse objeto.
Assim, Platão concede à palavra poética a função de ser elo entre dois
mundos, promovendo a metéxis, ou seja, a participação de um mundo de coisas
em outro, estabelecendo relações entre as coisas sensíveis e as idéias. Daí surge
a concepção de mimese como presença da idéia nas coisas e mesmo como
imitação das coisas do mundo sensível. Esta mimetização do real apareceu,
portanto, como elemento externo ao poeta e à poesia.
Outro filósofo grego, Aristóteles, discípulo de Platão, apresenta uma visão
diferenciada sobre a função da poesia e o trabalho com a mimese: para ele, ao
contrário do que pensava Platão, a essência, o ideal dos seres, está neles
mesmos e não necessariamente no mundo exterior, a busca de soluções às
dúvidas tem de ser feita pelos próprios seres. Aristóteles derruba, assim, a idéia
de “mundo ideal” (externo) de Platão.
Imitar (ou idealizar) passa a ser sinônimo de criar (produzir verossimilhança
com o real), construir um todo organizado, algo novo, que depende do
conhecimento das leis ordenadoras que regem uma obra. Esta é entendida como
um organismo vivo em que cada elemento tem uma função no todo, ou seja, cria-
se a visão da obra de arte como um sistema de relações (a obra de arte é
33
importava era o homem e sua atuação como cidadão na polis grega e não a obra
de arte, ou seja, a Arte tinha uma função primordialmente social.
Em Aristóteles, a Arte, e notadamente a Poesia, é o resultado do engenho
humano, da sabedoria do poeta, e supõe, por isso, um engendramento, um
conhecimento que se articula com a imaginação (o gênio, a criação poética), tudo
isto aliado ao conhecimento da própria estrutura da poesia, da técnica de escrita
(vale lembrar que, em grego, tekné é sinônimo de Arte). Podemos afirmar que,
neste sentido, Aristóteles é um estruturalista que se preocupa com a organização
da obra.
Para o filósofo, a poesia é conseqüência da ação de um homem: o poeta.
Este deve ser visto como um artista, instaurador de algo novo, renovador da
essência humana; renovação esta que se faz permanente necessidade do ser
humano. Ou, como diria Pessoa em seu Autopsicografia, o poeta é o “fingidor”
que, ao criar, “finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor de
deverás sente”. O poeta o será mais o “copista” da realidade ou o “médium”,
intermediário entre o mundo humano e o mundo das idéias (das essências). Ele
agora é realmente um imitador criador em busca do Belo. A idéia de Beleza, para
Aristóteles, está diretamente ligada à organicidade da obra de arte que deve
procurar o equilíbrio de suas partes (relação harmônica da sua composição).
Assim sendo, a obra de arte é o produto da imitação humana (ou seja, a mimese)
que resulta da perfeita organização interna de seus elementos.
É importante lembrarmos também da visão sobre poesia e mimese que nos
apresenta o poeta latino Horácio. Para ele, a poesia depende da escolha
adequada das palavras, aliando-se a simplicidade da escrita à habilidade do
poeta. Este conhecimento deve produzir uma poesia que seja natural, dando
forças às expressões tiradas da vida cotidiana, e assim atraindo o ouvinte para
ele. Como afirma o próprio Horácio em Arte Poética:
“Com efeito, a natureza, em primeiro lugar, nos dispõe interiormente, conforme
os acontecimentos, e nos alegra, ou nos impele à ira, ou nos abate e angustia com uma
profunda tristeza; depois exprime pela palavra os estados da alma”.
34
Na visão do poeta romano, é necessário ter-se os gregos como parâmetro
para a verdadeira arte poética, respeitando-lhes as convenções e o ritmo dado aos
versos, mas também ousar ir além deles na criação. A sabedoria e o equilíbrio são
o princípio e a fonte do escrever bem. E a poesia louvável é a união do talento
natural do poeta ao trabalho artístico, de esforço e aperfeiçoamento, que este
realiza. Nas suas concepções sobre Arte e Poesia, Horácio sugere que a mimese
deve ser a imitação de caracteres que tomam como modelo a vida e os costumes,
e que são capazes de provocar o prazer, o deleite, no espectador. Assim, o hábil
imitador é o que consegue produzir uma obra de arte reunindo o útil ao agradável.
Esta capacidade faz a grandiosidade da obra, eliminando quaisquer pequenos
defeitos que possa apresentar.
Neste conceito, a mimese poética é construída a partir da seleção dos
caracteres superiores da natureza das coisas que devem aparecer retratados no
poema como elementos “pictóricos”, aproximando a poesia da pintura. Os poemas
comparam-se a quadros que imitam e completam a visão sobre a realidade,
através do olhar do artista. Esta visão de Horácio sobre a obra de arte e a mimese
será referendada mais adiante pelo Classicismo (séculos XV / XVI) e retomada
pelo Neoclassicismo (século XVIII), base do Arcadismo, período estudado por s
em nossa pesquisa.
Podemos perceber pelo exposto aaqui que a mimese, enquanto trabalho
artístico – literário, na percepção da cultura greco-latina, suscita várias discussões.
No conceito aristotélico do termo, a mimeses grega anunciava a representação
do conteúdo que é possível, mas não está na natureza (mundo externo) como
algo atual e concreto. Nesta visão, a natureza deixa incompletas suas obras
porque se envolve com o mundo fenomênico do particular e do contingente; a
mimese aparece como possibilidade de o artista completar a falta deixada pela
natureza, apresentando o universal e o necessário, referindo-se, então, àquilo que
deveria ou poderia ser. Desta forma, ela tem como referência algo que “ainda não
é” ou que “ainda não está finalizado”, ao contrário do consenso geral que pensa a
mimese como simples imitação da realidade. Privilegia-se o “vir a ser” e não a
35
preocupação estreita com a representação nem do factual nem do que é dado
objetivamente.
A obra de arte passa a se constituir num leque de possibilidades para
concretizar o que ainda não foi cumprido e produzir a visibilidade do que ainda não
é. Ao trabalhar com uma referência interna à própria obra, a mimese literária,
assim concebida, ultrapassa qualquer imposição, qualquer modelo “a priori”, seja
ele literário, antropológico ou psicológico. E consegue recriar a linguagem,
fazendo com que a literatura seja mesmo o lugar em que é possível “trapacear
com a língua”, como nos afirmou o crítico, professor e poeta francês Roland
Barthes.
2. A mimese e a alteridade na “Teoria da recepção”
Passemos a refletir melhor sobre esse conceito, utilizando as idéias do
escritor, teórico e crítico alemão Wolfgang Iser.
Iser, teórico da chamada “Estética da Recepção e do Efeito”, entende a
ficção literária como um campo de ação onde um processo lúdico de fingimento se
desenvolve. Isto possibilita o livre acesso da escrita ao imaginário. Assim, a
mimese verbal (o “fingimento”) constitui, para Iser, uma forma de jogo que
possibilita a encenação de uma realidade que, desde o princípio, faz-se imaginária
e, portanto, inexistente (concordando, neste caso, com Aristóteles). O mundo do
texto entendido como se fosse um mundo real está relacionado ao que ele não é.
Os “atos de fingir” presentes na escritura do texto literário atestam a presença do
imaginário no texto ficcional e criam uma ambigüidade em que se ancora o próprio
texto, tentando unir o eixo do real a algo irreal ou improvável.(Wolfgang ISER
“Os atos de fingir, ou o que é fictício no texto ficcional” trad. de Luiz Costa Lima.
In: Lima, Luiz Costa Teoria da Literatura em suas fontes. - 1.979, p. 402, Apud
Fernandes, Isabela – “A ficção literária como imagem e máscara”.)
Em resumo, enquanto resultante de um processo de fingimento, a ficção
literária cria um campo de encenação onde tudo está condicionado pelo jogo do
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“como se”. O que existe no mundo real, vivencial, fenomenológico, passa a ser
“desmanchado” pelo jogo literário. Pois é o jogo literário o espaço ideal para
expressar a ambigüidade entre o que se faz presente e o que se faz ausente no
texto, sem a dominação de um plano sobre o outro. O próprio Iser, em “O fictício e
o Imaginário”, acerca da presença do imaginário no texto ficcional afirma:
O ficcional (...) funciona, preferencialmente, como um meio de tornar o imaginário
acessível à experiência fora de sua função pragmática. Ao abrir espaços de fingimento, o
ficcional compele o imaginário a tomar uma forma, enquanto, ao mesmo tempo, age como
um meio para sua manifestação. (O fictício e o imaginário - 1.996, p.225, Apud op.cit).
A literatura encontra, desta forma, seu campo discursivo específico,
representado pela presença do imaginário no artesanato ficcional dentro da
situação de comunicação entre texto, autor e leitor.
Vale lembrar que nesta relação de comunicação, o imaginário do leitor /
receptor e o do autor são ativados. Ou seja, nem o leitor nem o autor, no jogo da
comunicação literária, perderão a lucidez em relação ao estado ilusório das
representações ficcionais. Eles sabem, afinal, que tudo não passa de um “como
se”. Em outras palavras, temos aqui uma consciência subjetiva do autor e do leitor
que, dentro do processo de criação literária, funciona como ativador intencional do
imaginário.
um conflito aberto consciente entre o ser (o que é na realidade) e o
simulacro (o que surge naquele momento da criação). Deste conflito, resulta a
criatividade do fingimento no texto literário que se estrutura em torno de um signo
ficcional que denuncia o ausente por trás do presente.
Na teoria de Iser, a função imaginária (como ele a denomina) é estruturada
no texto ficcional, que constitui uma malha de significações oscilantes entre os
eixos da realidade e os do imaginário. A ficção, numa primeira instância, é este
jogo de idas e voltas entre o real e o imaginário. Na dupla orientação do ato de
fingir da ficção, real e imaginário transgridem, um e outro, seus limites para depois
se combinarem na mesma trama literária. Segundo esta visão, o caráter ficcional
da escrita literária se manifesta como duplo movimento oscilatório assumido pelo
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texto, entre um eixo realizador e um eixo irrealizador: a “realização do imaginário”
e a “irrealização do real”.
Caberá ao texto ficcional dar uma configuração objetiva às formas
indefinidas e caóticas do imaginário, ou seja, realizar este imaginário. Isto equivale
a dizer que o texto ficcional literário formatará esteticamente o imaginário
desejante, uma vez que deve obedecer rigorosamente ao domínio estético,
impondo uma relação comunicativa intensa entre a obra de arte e seus receptores.
Neste sentido, a ficção literária necessita afastar-se dos padrões fluidos e
subjetivos do imaginário. Assim, ainda que em alguns momentos a mimese
alcance um grau máximo de desfiguração imaginária como ocorre na poesia ou
nas narrativas contemporâneas, o objeto literário manterá uma certa objetividade e
concretude figurativa que possibilitarão a comunicação autor obra-leitor e
acionarão o efeito estético.
De outro lado, os elementos do “mundo real” se irrealizam através do
imaginário, extrapolando as fronteiras da realidade, do lógico e coerente. Na
irrealização do real, as experiências pessoais e o mundo vivencial são “de
formados” e envolvidos na indeterminação das imagens literárias. Estas, por sua
vez, geram um ambiente marcado pelo fingimento, desdobrando a experiência do
EU no mundo e transformando-a na experiência de uma ALTERIDADE
irrealizadora. Para Iser, a dinâmica da escrita ficcional é, então, estruturada numa
dupla orientação: auto reguladora e, ao mesmo tempo, transgressora de seus
próprios limites de ação (retoma-se aqui o posicionamento de R.Barthes). O texto
literário ultrapassa os limites da realidade vivencial da mesma forma como
transpõe os limites do imaginário.
“Na conversão da realidade vivencial repetida em signo doutra coisa, a
transgressão de limites manifesta-se como uma forma de irrealização. Na conversão do
imaginário, que perde seu caráter difuso em favor de uma determinação sucede uma
realização do imaginário”. (O fictício e o imaginário - 1.996, pp. 386 – 387, Apud op.cit.).
A partir do raciocínio de Iser, que percebe o texto literário como um
“constructo” imaginário, podemos afirmar que, diferentemente de outras produções
imaginárias do homem, a mimese literária tem um lugar discursivo “próprio” e
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“específico”: não se destina nem a criar um modelo pragmático científico de
compreensão do real, nem a criar apenas um mundo de fantasias. Na verdade, o
imaginário contido na ficção literária cria tensão e conflito, suportes de uma
ambigüidade sombria, porém essencial à vida desse tipo de texto.
O “constructo” imaginário e ficcional que define o texto literário e seu
trabalho mimético, como apresentado acima, promove certa ativação do
imaginário e, por meio dela, resgata a experiência humana da diferença, do não–
dito e da irrealização. Cria-se o que poderíamos chamar de alteridade imaginária:
esta experiência do não–ser possibilitada pela literatura. A ficção literária passa a
ser uma encenação imaginária da alteridade subjetiva e objetiva e a mimese, uma
necessidade natural do homem de criar imaginariamente novas formas para
“exprimir o inexprimível”, o não-dito e o incognoscível da experiência humana.
Esta posição nos leva a pensar a obra literária como um elemento de
emancipação do ser humano e que possui também uma “específica função
antropológica”.
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Esta representação de alteridade visa a uma experiência
imaginária liberadora, que desfaz os vínculos que prendem o homem a papéis
sociais e às identidades que lhe são impostas no cotidiano. A alteridade
vivenciada através da mimese promove uma “liberação das limitações sociais e
também (...) das restrições biológicas” (Ibidem - 1.996, p. 357, Apud op.cit.).
Produzindo formas alternativas de ser, através da mimese, a ficção poética
representa uma necessidade básica do ser humano: significar para o homem a
sua experiência de si mesmo no Outro. Para Iser, a ficção literária sustenta a
condição lúdica do êxtase, que permite ao homem sair de si mesmo e ingressar
simbolicamente no espaço do Outro.
“A ficção literária possibilita a condição extática da pessoa: estar
simultaneamente em si mesma e fora de si. Assim, ela se torna o paradigma que se
desnuda aqui e ali como engano, mas apenas para evidenciar que, a partir dela, todo
engano é, ao mesmo tempo, uma descoberta” (Ibid – 1.996, p.91, Apud Fernandes, Isabela
“A ficção literária como imagem e máscara”).
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Em outras palavras, a ficção literária permite constantemente ao ser
humano encontrar momentos epifânicos de sua existência. Ou como diria o
lingüista francês, Emile Benveniste: “é na e pela linguagem que o homem se
constitui como sujeito” (“Estrutura da língua e estrutura da sociedade” In
Problemas de lingüística geral, Apud Amorim, Marília O pesquisador e seu outro
– Bakhtin nas Ciências Humanas, 2.001, p. 95).
O texto literário, então, configura-se como meio de que o “eu” dispõe para
transfigurar-se em “outro” de modo prazeroso (extático, epifânico), entregando-se
a este ato sem riscos para si mesmo, uma vez que tudo não passa de “máscara”,
um consciente faz-de-conta.
Esse jogo, que a ficção literária permite, cria para o leitor ou mesmo para o
autor a possibilidade de se despojar de seus papéis habituais, de sua realidade,
suspendendo imaginária e temporariamente as marcas de sua identidade
cotidiana e oferecendo-lhe uma oportunidade única de autodesestruturação fingida
que servirá como referência para a reconstrução do seu próprio “eu”.
A trajetória de nossas reflexões até o momento poderia ser assim resumida:
a necessidade de dizer o o-dito, de completar o faltante, leva o artista à criação
da mimese (um constructo imaginário que se assenta no fingimento). Este
processo, por sua vez, nomeia uma alteridade que expressa, no texto literário, a
encenação de tudo o que o homem não é na ilusão de seus papéis cotidianos.Não
se trata, portanto, de opor alteridade e identidade reais, mas possibilidades de ser
e de não ser encenadas no próprio texto literário, diante de um sujeito que não
se define a si mesmo de modo algum, nem no nível consciente, nem no nível
inconsciente. Através do texto, o indivíduo pode abandonar uma identidade
imaginada para assumir, de repente, uma alteridade impensada. Ou seja, as
relações de alteridade / identidade, neste caso, extrapolam o real, devendo ser
definidas esteticamente pelo texto.
9
Palavras de Iser para designar a função cognitiva da literatura aliada à sua função
emotiva/poética, “revelação contínua do ser humano em suas possíveis alteridades”.(in O fictício e
o imaginário, 1.996, p. 363)
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A alteridade, atualizada e nomeada como presença no texto literário,
através da performance mimética, aparece como a “máscara”, a “virtualidade
subjetiva” que o leitor ou o autor experimenta no roteiro imaginário acionado no
ato de criação e de recepção da obra literária. É a orientação mimética do texto
que possibilita a representação de uma imagem concreta que se tornará, então,
uma imagem literária. E esta realiza uma figura de alteridade que, fora da escrita,
não encontra significado ontológico, reforçando assim o seu elo estreito com o
texto literário.
A duplicidade da ficção literária instaura a conciliação de elementos e
planos que, na vivência cotidiana do homem, são inconciliáveis: presença /
ausência, identidade / alteridade, real / imaginário, cabendo à função imaginária o
papel de superar as oposições e transgredir os limites cotidianos humanos. A
mimese, por sua vez, supõe a aproximação da ausência e da presença, o para
criar a ilusão compensatória da presença, mas para criar o conflito que aponta a
ausência por trás da esperada presença.
“(...) a literatura se torna o signo de algo irreconciliável por sua própria natureza: o ser e o
não-ser. No entanto, é precisamente para dar presença a este caráter irreconciliável que a
obra de arte necessita produzir a aparência de reconciliação, embora sob a condição de
que a aparência seja desmascarada (...). A presença ausente é produzida pela aparência
estética(...). Como meio, a aparência produz uma presença de algo que, se fosse
transformado em uma presença real, não seria mais a presença do ausente. Portanto, a
aparência deve ser sempre caracterizada como inautêntica”(Wolfgang ISER – O fictício e o
imaginário, 1.996, p. 352 Apud op.cit.).
Trabalhar com os elementos aparentemente inconciliáveis, explorando a
sua dialética, configurar as formas obscuras do impossível e do incognoscível,
alcançar a expressão do não-ser e rastrear o não-dito são funções do texto
literário que trazem como substrato o movimento lúdico de destruição de uma
identidade pré-concebida. Vale lembrar também a importância do movimento de
sair de si e projetar-se no espaço da alteridade, o que, segundo Iser, constitui a
essência do efeito estético do texto. A escrita ficcional passa a ter uma função
liberadora que não consiste, no entanto, em oferecer uma nova identidade ao
sujeito, nem em construir um modelo de veracidade para o real, mas em realizar a
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mimese que cria “possibilidades de ser”, continuamente apagadas e recriadas no
texto mental da leitura, em que o mundo e o “eu” surgem, após cada ato de leitura,
como enigmas a serem de novo decifrados.
A obra mimética pode ser vista como um discurso com “vazios”, o discurso
de um significante em busca dos significados que o leitor lhe atribuirá. Estes
significados serão sempre transitórios, pois sua mutabilidade estará em
correspondência com o tempo histórico do receptor. Assim, o produto mimético é
sempre algo inacabado, que sobrevive enquanto admite a alocação de um
interesse diferente do que o produziu, ou seja, durante o tempo em que a
intervenção do Outro, o receptor.
Ao trabalhar com a realidade e a subjetividade, consideradas como eixos
extra-textuais selecionados pela mimese, o texto literário irá desfigurá-las,
transfigurá-las e re-figurá-las, enquanto imagens literárias do mundo ficcional. Se
a mimese se torna possível através de um campo de fingimento, a obra literária
vai esquivar-se à qualquer função pragmática de construção de verdades. O texto
literário empurrará o sujeito para a multiplicidade, ou seja, para fora do eixo da
identidade, e a mimese, além de subordinada à tematização imaginária, também
estará articulada à função antropológica de encenação da alteridade humana,
como vimos anteriormente. Esta função será cumprida quando permitir a
desestabilização de uma ilusória identidade através da integração entre o “eu” e a
sombria alteridade.
Assim, durante o processo de recepção do texto literário, o leitor toma
emprestada a máscara do “outro” ficcional, a fim de experimentar em si mesmo o
que antes não ousava experimentar, assumindo a persona alheia. O efeito estético
desta atitude será determinado na medida em que o leitor se permita um
distanciamento crítico interior, ou seja, identifique-se com a máscara do “outro”,
oferecida pelo texto, para conseguir olhar-se de longe a si mesmo. A
identificação inaugura a distância, e esta produz a experiência do
autoconhecimento.
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Esse processo é o que denominamos de catarse. A “Kátharsis” é resultante
de uma identificação do leitor com o “outro”, elemento estético do texto. Podemos
até mesmo afirmar que esse processo catártico resulta do efeito estético que
produz o paradoxo da identificação do eu com a máscara, capaz de libertar o
homem pelo distanciamento crítico. Como afirma o crítico alemão Hans Robert
Jauss:
“Designa-se por ”Kátharsis”, unindo-se a determinação de Górgias com a de
Aristóteles, aquele prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de
conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções quanto à
liberação de sua psique. Como experiência estética comunicativa básica, a catarse
corresponde tanto à tarefa prática como função social (...) quanto à determinação ideal de
toda arte autônoma: libertar o espectador dos interesses práticos, a fim de levá-lo, através
do prazer de si no prazer do outro, para a liberdade estética de sua capacidade de julgar”
(O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis e kátharsis, In:
Costa Lima, Luiz – Teoria da literatura em suas fontes – 1.979, p. 81,Apud op.cit.).
O efeito estético desvincula-se, assim, de um simples processo de
reconhecimento projetivo do “eu” no “outro” e se alia à vivência do conhecimento.
O texto literário arranca o sujeito de duas alienações: a narcísica e a sociocultural.
Sob esta visão, podemos concluir que a obra literária articula uma função cognitiva
a uma função emotiva e, com isto, torna-se comprometida com o papel de
emancipar o leitor, individual e socialmente.
3. A questão da mimese na emergência de outros “olhares”.
Verifiquemos, ainda que rapidamente, algumas outras visões teóricas sobre
o processo artístico da mimese e como confluem com os pontos de vista de W.Iser
ou divergem deles.
Comecemos por analisar a opinião do critico e ensaísta inglês Harold
Osborne que afirma: “no reino da teoria, o conceito que parece mais intimamente
expressar a idéia de naturalismo (grifo nosso) é o de mimesis (...) mimese e
naturalismo têm elos estreitos e de um certo ponto de vista não seria errado
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considerar a mimese como o primeiro e ainda vagamente articulado precursor do
conceito emergente de naturalismo”.
(Estética e teoria da arte 1.968, p. 44, Apud
Lima, Luiz Costa “Representação social e mimesis” In Dispersa Demanda
1.981).
Para Osborne, a mimesis remete à idéia de verossimilhança (conceito
aristotélico de “mimese”) e supõe haver certa homogeneidade entre o
representado (o referente) e o representante (o objeto da mimesis), sendo que
cumpre ao artista corrigir, ajustar, modificar relativamente a fonte representada,
sem, no entanto, alterá-la de modo que pudesse se tornar naturalisticamente
irreconhecível. Com isto, o artista afastaria o impuro e contingente, para que se
destacassem as formas da Verdade, as formas superiores.
Esta tendência a conceber a mimesis ligada a uma explicação naturalista
de Arte provém da dificuldade de se entender a mimesis aristotélica tal qual a
elabora o próprio filósofo que nunca explicou de onde derivaria o interesse
prazeroso despertado por ela; interesse que poderia ocorrer mesmo diante de
uma cena de horror, daquilo que não temos o desejo de ver na realidade. A
própria Antigüidade substituirá o conceito de mimesis para escapar da tentação
naturalista, trocando-o pelo de potencialidade de visão interna do artista (o que
Aristóteles denominaria de “tekné”, como visto anteriormente), como se nota na
passagem de Cícero:
“(...) Aquele artista, ao executar a figura de Zeus ou de Atena, a ninguém
contemplava de quem pudesse formar a semelhança, mas em sua própria mente
encontrava-se um admirável ideal de beleza. (...)” (Citado por Jean-Paul VERNANT,
Imagem e aparência na teoria platônica da mimesis” In Jornal de Psicologia Paris,
1.979, p. 137 Apud op.cit.).
Tempos depois, ao redescobrirem a Poética de Aristóteles, os
renascentistas italianos mantiveram esta posição assentada na imaginação do
artista, fonte de criatividade e de correção, entendendo a mimesis como
expressão do artista, captadora do essencial. Assim, o objeto da mimesis,
denominado mimema, importa enquanto ilustra uma determinada visão de mundo;
a arte causa o prazer do filósofo (criador) e do intérprete (receptor) ao confirmar a
44
justeza de suas idéias. Opõe-se, neste momento, a mimesis ao discurso
conceitual, o que diz o que é, e separa a verdade das opiniões e da imaginação,
seja este discurso identificado com o filosófico ou com o científico. Esta
supervalorização do conceitual sobre o imaginário chegará ao século XX e
influenciará a visão de alguns teóricos na conceituação da mimesis e da própria
literatura como arte.
O lingüista americano J.L. Austin tenta afastar suas teorias a respeito do
discurso das noções artísticas de mimesis, afirmando serem estas “formas ocas
ou vazias” por aproximarem-se de peças teatrais ou de poemas e o utilizarem a
linguagem de forma pragmática, comunicativa:
“Uma emissão performativa será, por exemplo, de um modo peculiar oca ou
vazia se dita por um ator no palco ou se introduzida em um poema ou falada em um
solilóquio (...) Em tais circunstâncias, a linguagem é (...) usada não seriamente, mas de
modo parasitário quanto a seu uso normal (...)” (Como fazer coisas com as palavras
1.962, p. 22 Apud op.cit.).
Em importante ensaio de 1.975, outro lingüista americano, John R. Searle,
iria demonstrar que não se pode teorizar acerca do texto literário e a literatura
porque eles não possuem traços inerentes que os definam; a teorização plausível
está circunscrita ao discurso ficcional, no qual se incluem obras literárias e não
literárias; o discurso ficcional se caracteriza por um fingimento intencional, que se
define por sua não seriedade, por fingir realizar enunciados (“atos elocutórios”)
que não realiza na verdade, e, portanto, é parasitário. Se tais discursos ainda
apresentam alguma função comunicativa, isto se deve a convenções
extralingüísticas e extra semânticas. Confirma-se, assim, seu caráter de
discursos vazios.
Richard Ohmann, também ensaísta e crítico literário, tentou repensar a
mimesis exatamente a partir dos atos de elocução. Sumarizando seu pensamento:
o acerto das emissões elocutórias depende de convenções sociais (grifo nosso).
Para Ohmann, a literatura “imita” o elocutório e, através desta imitação, suspende
a força normativa do mesmo, permitindo ao receptor ver à distância a relação
entre o contexto social e o enunciado.
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Charles Altieri faz objeção à idéia da mimesis como “imitação” de atos
elocutórios, uma vez que a definição não dá conta de uma parte importante do
campo literário.
“Ao menos os poemas, com freqüência, não imitam qualquer espécie de ato
elocutório e não chamam a atenção para estruturas sociais invocadas pelas formas de
expressão” (“O poema como ato: um caminho para reconciliar as teorias miméticas e
presencionais” In Revisão Iowa, volume 6, Apud op.cit.).
Para o autor, a característica inerente à mimesis consiste em, através de
um uso especial da linguagem, fingir-se “outro”, experimentar-se como outro ou
ainda usar a linguagem não apenas como meio de informação,mas,
principalmente, como espaço de transformação; ações cumpridas não em função
de descrever um referente, mas possibilitadas pela própria ideação verbal
(apresenta-se, assim, uma função estética do texto).
O “abrir-se” para a alteridade pelo eu fingido do personagem e/ou pela
transformação da linguagem, exige, por parte do receptor, uma transposição de
molduras (cenas) a que está habituado, (condição básica para que se realize o
processo mimético). Esta transposição imposta pela mimesis depende de que
fique claro para o sujeito tratar-se aqui de um jogo particular o jogo literário, em
que o prazer não se esgota no próprio objeto do jogo. A mimesis distingue-se dos
demais jogos de linguagem porque sua ludicidade é apenas ponto de partida para
seu verdadeiro fim: exigir-se pensar, seriamente, sobre o que se joga. Ao
afirmarmos isto, estamos retomando, de certa forma, a concepção de Ohmann
sobre mimesis: pensar-se sobre o jogo que se joga implica localizarem-se as
convenções sociais que presidem este “jogo”. Também W. Iser já admitia esta
consciência mimética por parte dos que participam deste jogo.
É importante lembrar que pela prática da mimesis, a linguagem perde sua
identidade habitual não se diz algo de implicações imediatas sobre o mundo,
mas, ao contrário, mediatiza-se o conhecimento e o acesso ao mundo imaginário.
Aristóteles, em Poética, afirmava que o homem se diferencia por sua
especial capacidade de imitar e por meio dela adquirir seus primeiros
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conhecimentos, ou seja, para o filósofo a mimesis tinha função cognitiva. Esta
cognição advinda do ato de imitar assenta-se num “duplo movimento”, seja na
prosa ou na poesia: a mimesis supõe em ação o distanciamento pragmático do
sujeito (o eu) e a sua identificação com a alteridade (o outro), captada nesta
distância. Identificação e distância, identificação a partir da própria distância,
constituem termos básicos e aparentemente contraditórios do fenômeno da
mimesis. É justamente a distância que, ao mesmo tempo que impossibilita a
atuação prática sobre o mundo, permite pensar-se sobre ele, experimentar-se a si
próprio nele.
Apesar dos vários posicionamentos teóricos sobre os efeitos da mimesis na
Arte (notadamente na literatura) e no Homem, analisados por nós, desde a
Antigüidade grega chegando a estudiosos e críticos da modernidade, parece-nos
que um ponto comum pode ser aqui levantado: podemos pensar que a única
universalidade a respeito dos efeitos da mimesis é que eles não o são por alguma
propriedade “essencial” (como julgaram os renascentistas italianos), mas assim se
tornam para as comunidades e, dentro destas, para os receptores capazes de
operar uma transposição peculiar (ou seja, existem como elementos “acidentais”).
Para eles, a mimesis surge como um jogo, não apenas lúdico, mas um jogo que
implica prazer e distanciamento ao mesmo tempo, sendo que este obriga o retorno
àquele. Assim, uma conseqüência prática desta opinião será o não privilégio, pelo
teórico, de alguma propriedade estética, mas a prevalência de um estudo que
analise, em um período histórico demarcado, a atualidade da idéia de mimesis e
sua relação com as formas vigentes de representação social.
4. Mikhail Bakhtin: dialogismo e alteridade.
Neste item, queremos discorrer um pouco sobre algumas idéias do lingüista
russo Mikhail Bakhtin que estão formalizadas nos termos dialogismo, alteridade e
cronotopia, usados por ele em seus trabalhos. Nossa preocupação, ao abordar
idéias e conceitos formulados por este teórico, é levantar pontos relevantes que
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servirão de apoio para nossas análises das obras de Gonzaga, como o
anunciamos na introdução desta pesquisa. Assim, não é nossa intenção realizar
uma ampla e profunda investigação das idéias bakhtinianas sobre a linguagem,
mesmo porque os escritos de e sobre M. Bakhtin são vastos e não formam uma
unidade temática de estudo, ao contrário tendem a uma fragmentação e abrem
caminhos para múltiplos desenvolvimentos. O que nos interessa mais
particularmente são alguns conceitos formulados por ele que dizem respeito à
literatura e ao texto poético.
Mikhail Mikháilovitch Bakhtin (1.895 1.975) foi um lingüista russo
influenciado pelo denominado formalismo russo, influente escola de crítica
literária que existiu na Rússia de 1.910 até aproximadamente 1.930. Seus
trabalhos tiveram grande repercussão nos campos da teoria lingüística, teoria
literária, crítica literária, análise do discurso e na semiótica. Na verdade, são
trabalhos que apresentam uma visão bastante filosófica, reflexiva, sobre os atos
de linguagem de forma geral. Podemos dizer que mais do que um lingüista,
Bakhtin foi um filósofo da linguagem e suas análises lingüísticas fazem parte do
que se considera “trans – lingüística” porque ultrapassam a simples visão da
língua como sistema.
O Formalismo Russo, que o influenciou, caracterizava-se pela ênfase no
papel funcional dos elementos do texto literário e a concepção que apresentava
sobre a história literária.Os formalistas russos defenderam um método “científico”
para o estudo da linguagem poética, excluindo da análise literária de um texto
abordagens psicológicas ou histórico–culturais. Dois princípios básicos
fundamentaram o estudo “formalista” da literatura: primeiro, a literatura
considerada nela mesma, ou a análise das características que distinguem a
literatura de outras atividades humanas deve constituir o objeto de inquisição da
teoria literária; segundo, fatos literários (estruturais) têm de ser priorizados sobre
os compromissos metafísicos da crítica literária (sejam eles filosóficos, estéticos
ou psicológicos). Para alcançar esses objetivos, os formalistas russos criaram
vários modelos de análise.
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Os formalistas, apesar de alguns pontos divergentes, concordavam que a
natureza da linguagem poética (literária), por sua especificidade e autonomia em
relação à linguagem prática, deveria ser objeto de estudo da crítica literária.
Empenharam-se em definir, então, um conjunto de propriedades características da
linguagem poética (seja ela poesia ou prosa), desde a forma, a sonoridade das
palavras até a constituição do enredo e dos personagens, que pudessem ser
reconhecidas como arte e assim serem analisadas.
O Formalismo Russo apresentou grupos que se diferenciaram em suas
propostas: o formalismo mecanicista, o formalismo orgânico e o formalismo
lingüístico. Este último, bastante influente, lider
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observado por nós, na fala de E.Benveniste, “é na e pela linguagem que o homem
se constitui como sujeito”. Sendo assim, a comunicação humana que se faz
essencialmente pela linguagem supõe a presença do outro, a alteridade. Cria-se a
possibilidade do diálogo. A alteridade surge sob a forma do diálogo e é traço
fundamental da linguagem humana.
Esta impõe que haja um outro a quem se fala e que ele próprio (o outro)
seja, ao mesmo tempo, respondente e falante; a linguagem também cria a
possibilidade de se falar do que um outro disse. A alteridade, como expressão
humana, prevê a possibilidade de imprevistos, equívocos e estranhamentos de
respostas, por isso é, ao mesmo tempo, uma relação singular e variável, na forma
e no conteúdo.
Estas noções vão nos levar a alguns conceitos importantes da teoria da
linguagem, formulados por Benveniste. O primeiro diz respeito à enunciação que,
segundo Benveniste, designa o ato individual (próximo à fala de Saussure),
através do qual a língua é posta em funcionamento e se converte em discurso. O
discurso é de natureza social, pois apresenta um locutor que na sua singularidade
pretende influenciar o seu ouvinte, produzindo um enunciado. Esse ato de produzir
um enunciado tem a estrutura do diálogo: duas figuras em posição de parceiros
que se alternam como protagonistas da enunciação.
“Em última análise, é sempre ao ato de fala no processo de troca que a experiência
humana inscrita na linguagem remete” (“A linguagem e a experiência humana” In E.
Benveniste - Problemas de Lingüística Geral, Apud Marília Amorim – 2.001, p. 97).
De acordo com Benveniste, “a condição lingüística de todo discurso é dada
por um conjunto de três pessoas: eu / tu / ele” (Ibid, Apud op.cit.) Eu e tu são
pessoas únicas a cada enunciação e que podem apresentar inversibilidade de
papéis (o tu pode sempre se tornar um eu que então designará o outro como tu,
mas ele, a expressão da não pessoa, por ser o assunto do discurso, não é
inversível porque está ausente da enunciação como ela se apresenta).
É importante agora distinguirmos discurso de relato. Para isto, valer-nos-
emos ainda das propostas de Benveniste. Quando tratamos do discurso, estamos
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diante do diálogo de ordem pessoal: é preciso que um eu se apresente na sua
singularidade a um tu que se constitui seu interlocutor presente ao ato de
comunicação. No relato, que tem características históricas ou literárias, não
interlocução e saímos da esfera pessoal. A pretensão do relato é produzir um
efeito de objetividade. Trata-se de relatar acontecimentos que, em princípio, teriam
se passado sem a interferência do locutor. No relato, ninguém fala; os
acontecimentos devem parecer contarem-se a si mesmos. Benveniste admite que
obras em que a forma relato pode passar à forma discurso ou vice-versa,
sendo, por isso, formas híbridas de enunciação.
Essa teorização sobre o discurso, proposta por Benveniste e por outros
lingüistas da teoria da linguagem (como Dufour), terá continuidade nas teorias de
Bakhtin. O texto dialógico ou polifônico, conceito bakhtiniano, discute a questão da
alteridade como a presença de um outro discurso no interior do discurso
enunciado. Na verdade, esses termos foram criados por Bakhtin para se referirem
ao romance que apresentasse “várias vozes” (tensão dialógica) no seu interior, e
diferem do termo polissemia, utilizado pela lingüística, que representa
simplesmente a variedade de significados de uma palavra, não necessariamente
em tensão. Segundo Todorov (Mikhail Bakhtin O princípio dialógico 1.981,
Apud op.cit.), a originalidade desse conceito esno fato de colocar o contexto da
enunciação no interior do enunciado. O extra–verbal, em seu conteúdo social, é
constituinte necessário das estruturas semânticas do enunciado. A análise refere-
se então ao modo como as vozes dos outros se misturam com a voz do sujeito no
enunciado.
Essa relação entre vozes é sempre tensa e reveladora. Um sentido só
revela as suas profundidades ao encontrar-se com outro, com o sentido do outro;
começa aí o diálogo que supera a unilateralidade dos sentidos, das culturas.
“Colocamos para a cultura do outro novas questões que ela mesma não se
colocava; nela procuramos resposta a essas questões, e a cultura do outro nos responde,
revelando-nos seus novos aspectos, novas profundidades de sentido. Sem levantar nossas
questões, não podemos compreender nada do outro de modo criativo. Nesse encontro
dialógico de duas culturas, elas não se fundem nem se confundem; cada uma mantém a
51
sua unidade e a sua integridade aberta, mas elas se enriquecem mutuamente“ (“Os
estudos literários hoje resposta a uma pergunta da revista Novi Mir In Estética da
criação verbal, 2.003, p. 366).
Dessa fala de Bakhtin, podemos perceber que para que as diversas
culturas mantenham “a sua unidade e sua integridade aberta”, enquanto se
“enriquecem mutuamente”, o contato entre elas deve preservar o dialogismo, uma
forma de relacionamento politicamente democrática. Se pensarmos na dominação
de uma cultura pela outra, o que caracteriza toda forma de imperialismo, teremos
uma relação onde o que predomina é o monologismo, imposição de um
pensamento de ordem pessoal e único, que pretende ser expressão da “verdade”.
Vamos verificar agora como Bakhtin trata das diferenças entre dialogismo e
monologismo na literatura. Como dito anteriormente, o dialogismo ou texto
polifônico implica numa pluralidade de vozes cuja natureza não pode ser
caracterizada nem como individual nem como psicológica e também não deve ser
pensada num estatuto formal ou abstrato. Bakhtin critica, deste modo, o
formalismo de um lado e o subjetivismo de outro, expondo a natureza social de
todo enunciado, que se faz diálogo.
11
Os gêneros textuais se constroem, portanto,
nas diferentes esferas da vida social, com suas condições e finalidades, têm
bases históricas. Poderíamos dizer que o dialógico ou polifônico pertence à ordem
do social composicional. A palavra composicional é usada com freqüência por
Bakhtin para falar das formas próprias do gênero: estruturação e realização de
uma obra ou de um enunciado e a relação locutor / interlocutor. Da forma como
aparece definido, o gênero, de natureza social, relativiza uma forma discursiva e
literária para uma determinada forma de alteridade e essa relação se atualiza cada
vez que um gênero é escolhido. O gênero se torna assim um fator de vínculo
11
À multidão de vozes sociais, Bakhtin chamará de heteroglossia dialogizada (ou plurilingüismo
dialogizado) e dirá que todo enunciado é parte integrante de uma memória discursiva” e é
intrínseco ao enunciado um receptor presumido, qualquer que seja o “auditório social”
(M.BAKHTIN, Marxismo e linguagem”, in Linguagem e Diálogo as idéias lingüísticas do Círculo
de Bakhtin” – Carlos Alberto Faraco – 2.003, pp. 56 – 58).
52
social, que, em suas relações com o outro, estabelece a mais importante
dimensão discursiva da questão do poder.
Todo enunciado, na visão bakhtiniana, é um acontecimento (um ato), uma
relação de elementos que se organizam em “tensão”, uma espécie de drama em
que se envolvem um locutor (o eu), o objeto (o ele) e o ouvinte (o tu). O gênero
que representa de forma mais sistemática e completa esta pluralidade de vozes
(identificadas pelo locutor, o ouvinte e o objeto), para Bakhtin, é o romance
moderno (a que ele chamará, então, de romance polifônico) e que tem sua
expressão máxima nas obras de Dostoievski.
A presença do Outro (a alteridade) no discurso pode ser observável através
das formas gramaticais (ao nível da frase) ou não estar marcada lingüisticamente,
sendo identificada apenas ao nível do enunciado. Assim, é o contexto que servirá
de suporte de compreensão. O tom de um enunciado pode ser identificado, por
exemplo, pelo contraste entre idéias heterogêneas no interior do texto: é o que
ocorre no caso da ironia ou da polêmica.
É importante lembrar, numa relação dialógica, que o sentido de um
enunciado não depende apenas da atribuição de um locutor. O interlocutor é uma
peça fundamental para que esse sentido se concretize. Sentido que se produz
entre os dois elementos (locutor e interlocutor) e, de forma mais ampla, na
situação social em que o enunciado é sustentado.
Um dos pontos fundamentais do dialogismo bakhtiniano é o que diz respeito
à relação de alteridade autor – personagem, presente no romance polifônico,
tomada a obra de Dostoievski como base. Bakhtin distingue dois níveis de
alteridade: o primeiro é aquele em que se estabelece a relação do autor com ele
mesmo; enquanto presença segunda, a coincidência com o autor real não pode se
representar no conteúdo do texto. O segundo nível opera na criação do
personagem: esta é resultado de um processo de “desapropriação de si”, de perda
de si num mundo exterior. O prazer na criação estaria em satisfazer-se num objeto
outro, exterior e sensível. Se esse processo realiza uma identificação com o ponto
de vista do outro, no entanto, não se conclui o ato criador. Para isto, seria
53
necessário o autor redescobrir sua exterioridade com relação ao outro (o
personagem), numa posição de exotopia; nada de fusões ou coincidências do
autor com o personagem. Esta posição de Bakhtin retoma, de certa forma, a
questão da mimese como analisada por nós: o processo mimético da arte é um
jogo que oferece prazer ao seu criador e aos receptores quando lhes permite um
distanciamento em relação ao objeto retratado; tal distanciamento deve ser capaz
de promover uma consciência de alteridade tanto no criador como em seus
receptores, que se enxergam como o outro na relação de criação, não podendo
haver neste processo nenhuma fusão. A mimese torna-se, assim, um mecanismo
capaz de operar com a transposição ao mesmo tempo que com a conscientização
dos receptores em determinada comunidade, num determinado tempo histórico.
Estas são condições básicas para o processo de criação, tal como nos fala
Bakhtin, que supõe a alteridade como sua condição prévia. Ou como demonstra
Todorov (Ibid, 1.981, p. 154, Apud Marília Amorim, op.cit.), ao afirmar que a
recíproca da não coincidência do autor com o personagem é a impossibilidade
artística da expressão de si mesmo: o que se exprime, neste caso, é sempre uma
relação com o outro.
É importante ainda ressaltarmos que, no romance polifônico, o personagem
não é apenas objeto do discurso do autor, mas seu próprio discurso é
imediatamente significante. O autor não tem uma verdade acabada sobre seu
personagem, ao contrário, ele entra em diálogo e se deixa alterar pela palavra do
personagem. O próprio personagem se constrói na relação do discurso, ou seja,
as palavras de um personagem nunca são plenas, acabadas: elas se buscam nas
palavras dos outros, seja por oposição, acordo ou submissão, é no contato com as
palavras dos outros que suas palavras fazem sentido e lhe permitem uma
coerência de ação. Assim, desta maneira, uma das bases do discurso dialógico,
para Bakhtin, é a sua capacidade de representação: ele representa as linguagens,
que por sua vez representam os objetos. Esta forma de representação é múltipla e
está em permanente construção, ou seja, é marcada pela instabilidade resultante
do sistema de alteridades que se instauram no próprio discurso.
54
O caso da intertextualidade é também um caso de polifonia, na acepção de
Bakhtin. Isto porque a intertextualidade pressupõe a presença da alteridade (o
“outro”), na forma de um intertexto: ou a fonte é diretamente mencionada no texto
que o incorpora ou o produtor está presente (comunicações orais), ou, ainda,
“trata-se de textos anteriormente produzidos, provérbios, frases feitas, expressões
estereotipadas ou formulaicas, de autoria anônima, mas que fazem parte de um repertório
partilhado por uma comunidade de fala. Em se tratando de polifonia, basta que a alteridade
seja encenada, isto é, incorporem-se ao texto vozes de enunciadores reais ou virtuais, que
representam perspectivas, pontos de vista diversos, ou põem em jogo ”topoi” (lugares)
diferentes, com os quais o locutor se identifica ou não” (Koch,2.003, p. 73).
As características apresentadas aaqui o essenciais para a construção
das relações dialógicas e de suas alteridades num texto, permitindo-nos entender
melhor a oposição que se processa entre dialogismo e monologismo. Na
concepção bakhtiniana, o texto monológico é aquele que orienta o seu discurso
para um objeto e onde a palavra serve apenas para representar este objeto. É o
texto que não apresenta diversidade de centros discursivos, tensões com o outro,
incompletudes, instabilidades, procurando ser um “discurso da verdade”. É o caso
do texto científico como nos ilustra Authier em sua fala:
“Desde que um discurso tenda a se representar, quanto a seu modo de
enunciação, como discurso da Verdade, fora de toda especificidade histórica e individual,
ele elimina tendencialmente todo rastro mostrado “do outro” (“Heterogeneidade
representada e heterogeneidade constitutiva: elementos para um alcance do outro dentro
do discurso” – 1.984, p. 146 ,Apud Marília Amorim, op.cit.).
Curiosamente, ao lado do texto científico, que procura expressar seu
discurso como verdade absoluta, apresentando por vezes um caráter autoritário,
Bakhtin vai nos apresentar também como monológico o texto poético.
Ao contrário do romance, que tem sua complexidade garantida na relação
do discurso com seus enunciadores, a complexidade da poesia se restringe à
relação entre o discurso e o mundo, intermediada por seu criador, o poeta, cuja
marca é uma visão pessoal, subjetiva. Assim, a linguagem do poeta é marcada
pela pessoalidade, é dele e ele não saberia traí-la. “O poeta habita a sua
linguagem e sua linguagem o habita inteiramente, com todo seu drama e suas
55
impotências” (Marília Amorim, p. 148 In op.cit.). O poeta se confunde com o
discurso e o objeto de que trata, não havendo distanciamento no emprego de suas
palavras, sendo que elas exprimem de modo imediato e direto o desejo do poeta.
“O poeta assume seu ato de palavra que é desde logo uma enunciação no
primeiro grau, não representada, sem aspas. O prosador representa a linguagem, introduz
uma distância entre ele mesmo e seu discurso; sua enunciação é dupla”.
“(...) O poema é um ato de enunciação, enquanto que o romance representa um
[ato de enunciação]”. (grifos nossos) (TODOROV, citando M.Bakhtin In Mikhail Bakhtin, O
princípio dialógico – 1.981, p. 101, Apud, op.cit.).
Bakhtin considera monológico todo gênero direto onde a linguagem não
aparece como objeto de representação. Mas monológico aqui não significa
exatamente o mesmo que “unívoco” e tem-se, então, uma diferença fundamental
entre o monologismo da ciência e o monologismo da poesia: ao contrário da
ciência, cujo trabalho com o signo e o conceito visa à univocidade, a poesia tende
sempre ao signo polissêmico. Nesse aspecto, podemos falar mesmo que a
palavra poética e a palavra romanesca se aproximam, pois ambas se
fundamentam na ambigüidade. Porém, enquanto uma é apenas polissêmica (a
poesia), fato que a identifica mais com a expressão lingüística, a outra tem relação
com o processo polifônico (a palavra romanesca). Desta forma, cabe admitir que a
polissemia, por concernir à língua, resulta numa virtualidade anônima, enquanto
que a polifonia, por relacionar-se ao enunciado e ao discurso, dá-se como um
acontecimento de múltiplas vozes, em que estas vozes são sempre nomeadas,
particularizadas, ainda que esses nomes sejam por vezes generalizados.
Não queremos dizer com isto que somente o romancista trabalhe com a
alteridade. O poeta, em seu processo criativo, também se defronta com as
palavras dos outros, ditas, num processo intertextual5(s)9.3(s)-0.29558117(r)436(i)1.87122(v).32873(t).3338 7( )-342.365
56
pureza do objeto que pode ser nomeada por uma palavra “única”, uma espécie
de palavra “inaugural”. No dizer de Bakhtin, essa “linguagem dos deuses” exprime
um desejo de esquecimento ou de superação do tempo e do espaço, fazendo-a
aproximar-se de um desejo enunciativo universal humano, que também é o da
ciência.
O monologismo no texto poético pode resultar de um processo progressivo
de monologização da consciência do poeta, ou seja, a palavra do outro teria sido
reconhecida e acolhida no início e, com o uso, no final ela se tornaria totalmente
assimilada e anônima. O autor acaba por acreditá-la sua, tamanho o grau de
incorporação ocorrido. Este é o caso dos cânones poéticos, que instituídos por um
período, acabam assimilados pelos poetas como se fossem características
individuais.
“Depois disso, a consciência monologizada, na sua qualidade de só e único
todo, insere-se num novo diálogo (daí em diante, com novas vozes de outros exteriores)”
(BAKHTIN , 2.003, p. 386).
Sobre esses aspectos do texto (cientifico ou literário), assentados na
oposição dos conceitos “dialógico” e “monológico”, vale ressaltar um ponto de
reflexão apontado por Tezza (2.003, pp. 232 233): na verdade, os conceitos
bakhtinianos são sugestões para pensarmos os textos como formas comunicativas
que participam de uma rede social de v95585(i)1.87122(a)-4.(”)2.80439436( )-82.55(e)-4.33é2.1.80439436( )2uQ1417 2938.67 455 7 refq8.3 s
57
empreendida pelos primeiros formalistas, entendendo-a como uma máquina ou como um
conjunto de procedimentos técnicos”.
Sobre as reflexões e levantamentos teóricos realizados por nós até este
ponto, gostaríamos de acrescentar que, para além da representação que possa
trazer um texto, existe sempre um nível de alteridade que participa de todo
enunciado, independentemente de ele ser monológico ou dialógico. É que todo
enunciado responde a enunciados anteriores, historicamente expostos. O objeto
de que se fala foi falado anteriormente. A palavra que se utiliza foi utilizada
antes. E, de acordo com Bakhtin, eles (objeto e palavra) carregam sempre consigo
suas respectivas memórias. “A pluralidade de contextos de enunciação habita
assim cada texto e suas vozes serão tanto mais audíveis quanto o permita a
memória discursiva do leitor” (Amorim, 2.001, p. 133).
Trataremos agora de outro conceito trazido até nós por Bakhtin: o de
cronotopo
12
.Bakhtin criou o termo para tratar da questão do tempo espaço
como uma unidade indissociável que está no centro de todos os juízos de valor
humanos. Tempo corresponde ao que é histórico e espaço, ao que é social.
Tempo espaço é equivalente, então, a histórico social. Mas a expressão pode
indicar também o histórico–social internalizado no indivíduo, um tempo interior,
psicológico.
Para Bakhtin, a teoria do cronotopo consiste em “uma interligação
fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em
Literatura, nas quais ocorre uma fusão dos indícios espaciais e temporais num
todo compreensivo e concreto em que o princípio condutor do cronotopo é o
tempo”.(apud Sant’Anna, 2.003, p. 36). O cronotopo, como uma idéia
12
Cronotopo é um termo formado pela justaposição do radical crono - com o radical - topo; crono
- vem do grego khrónos,ou 'tempo', ocorre em compostos da nomenclatura científica do século XIX
em diante. - topo vem do grego tópos,ou 'lugar', em uns poucos vocábulos da terminologia
científica do século XX. [ Dicionário Houaiss]
58
fundamentada no tempo, corresponde ao momento em que o sujeito observa seu
objeto, é único e irrepetível.Como conseqüência da aplicação do cronotopo,
temos: o “horizonte próprio”
13
do “eu cognoscente”
14
que varia no tempo,
resultando, portanto, num conhecimento inacabado, uma consciência que é
sempre um “vir-a-ser”; os cronotopos de dois sujeitos que observem o mesmo
objeto não são permutáveis entre si: eles nunca compartilham o mesmo
“horizonte”.
O lingüista russo aponta ainda dois significados do cronotopo, aplicáveis à
obra literária (marcadamente o romance), que acreditamos importantes para esta
análise: os cronotopos são os organizadores dos principais acontecimentos
temáticos do romance (os conflitos do enredo se organizam a partir de relações
espaço - temporais) e nos elementos espaço temporais é que os
acontecimentos do enredo ganham corpo, concretizam-se e criam condições para
o desenvolvimento das “tomadas de cena” do romance. Desta forma, elementos
abstratos como as generalizações filosóficas e sociais, as idéias e análises de
causas e efeitos, entre outros, e elementos concretos como a história dos modos
de vida, dos costumes, das instituições e das sociedades passam a gravitar em
torno do cronotopo, criando imagens de caráter literário (cf. Sant’Anna, 2.003, p.
37).
13
horizonte próprio”, de forma bastante simplificada, pode ser entendido como o conhecimento
individual que cada “eu” de uma cultura apresenta; esse conhecimento, na verdade, introjeta a
totalidade de conhecimentos de uma cultura mais o conhecimento próprio do “eu”, sendo, portanto,
um “excedente de conhecimento” que o indivíduo carrega consigo e que o distingue dos outros em
sua cultura.
Esse "excedente de conhecimento" distingue o "horizonte próprio" dos horizontes
alheios, destacando a singularidade do indivíduo no grupo social (totalidade cultural) a que está
subsumido. Na literatura, essa pluralidade de pontos de vista é expressa através dos personagens
que enformam o romance polifônico, na medida em que não um olhar privilegiado que enfoque
uma verdade superior às demais.
59
Capítulo III
O pai das Musas,
o pastor loiro
deu-me, Marília,
para cantar-te,
a lira de oiro.
As cordas firo;
o brando vento
teus dotes leva
nas brancas asas
ao firmamento:
(Lira XXX – 2ª parte, in Marília de Dirceu – Tomás Antonio Gonzaga)
Neoclassicismo e Arcadismo
Século XVIII, o “Século das Luzes”: o mundo atinge um considerável
desenvolvimento científico e sob esta óptica passa a olhar e explicar os
acontecimentos físicos e culturais do cotidiano humano. É o momento de Isaac
Newton propor a teoria gravitacional, inaugurando um novo capítulo da Física
Moderna. São as teorias psicológicas de Locke e d’Holbach que procuram
demonstrar que o relógio da humanidade aponta para a hora do racionalismo e da
investigação científica. São as teorias educacionais de Rousseau e a ciência
experimental de Pestalozzi e de Pinel. É o momento da energia a vapor na
indústria têxtil inglesa e da energia do conhecimento universal representada pelo
espírito enciclopédico (no saber e na experiência humana). A ciência e o
racionalismo constituem as “luzes” que guiam o homem em sua trajetória terrestre.
Razão que “ilumina”, ilustra e esclarece os homens, conduzindo-os ao progresso.
Daí os termos iluminismo e ilustração, que caracterizam as manifestações
14
“eu cognoscente” o indivíduo, que adquire constantemente conhecimento no seu
relacionamento com as coisas e com o outro.
60
culturais deste século, geralmente de origem francesa ou inglesa e que traduzem
o termo alemão Aufklaerung.
15
Uma nova estrutura social começa a se estabelecer, fundamentada em
críticas da burguesia à aristocracia e à realeza dominantes, procurando negar as
desigualdades sociais e propondo que a sociedade seja racionalmente reformada.
São as idéias “iluministas” de filósofos e teóricos como Voltaire, Rousseau e
Montesquieu que dão suporte a essas reformas e possibilitam o aparecimento de
monarquias reestruturadas e de “déspotas esclarecidos”. Hora de crise, em que se
assiste à transferência da liderança histórica da aristocracia para a classe média
(a burguesia).
No tocante à Literatura, o século XVIII desponta como um entrecruzar-se de
atitudes: de um lado, temos a permanência de aspectos do Barroco (do século
anterior), traduzidos no chamado “barroquismo”; por outro lado, surge o que se
denominará como Neoclassicismo, movimento de restauração nas artes do
espírito renascentista. Assim, expressa-se, na cultura desse momento, uma
transição apoiada em tendências contraditórias, reflexo da própria ordem social
estabelecida: polarização entre a tradição e a liberdade, o formalismo e a
espontaneidade, o ornamentalismo e a simplicidade. Como afirma Afrânio
Coutinho, em artigo sobre o Neoclassicismo (2.001, p. 199):
“O subjetivismo burguês avança firme em substituição ao formalismo cortês, não
sem experimentar de passagem formas transicionais, ainda de restauração clássica, mas
de sentido diferente. Contra o gosto barroco seiscentista, que ainda perdura no século
XVIII sob formas degeneradas e de decadência (o” barroquismo “), o movimento espiritual
para a conquista de nova forma artística, procura abrir caminho através de experiências
sucessivas, que, misturando-se umas às outras, têm por efeito torná-lo confuso e impuro.
Assim, ao gosto barroco do esplêndido e do grandioso, da ostentação e da desmedida, vai
suceder, sem que haja uma completa libertação do primeiro, a procura das qualidades
clássicas de medida, conveniência, disciplina, pureza, simplicidade, delicadeza (...). Ao
mesmo tempo(...) que se busca o primado absoluto da razão, cultiva-se o sentimento, a
sensibilidade, o irracionalismo. A ruptura com o Barroquismo, que também encontrava
15
A palavra iluminismo” é tradução da alemã Aufklaerung, tendo entrado em uso, ao lado de
‘ilustração’, para designar a mentalidade dominante do século XVIII.
61
apoio na lei da imitação, baseia-se ainda na imitação dos antigos, o que seria a única
justificativa para dar-se a denominação de Classicismo a todas essas correntes (...)”
Apesar de características dialéticas e da infiltração da literatura barroca,
mesmo decadente, nas manifestações literárias do século XVIII, começam a se
definir mudanças no gosto literário do período, que se orienta para novos rumos,
acompanhando o declínio da aristocracia e a ascensão da burguesia. Em vez de
expressar grandeza e poder, a literatura busca agora a presença da graça e da
beleza, como tradutoras dos sentimentos e das formas artísticas ideais. uma
reação consciente contra o Barroquismo dos seiscentos, expressa num amplo
movimento de restauração classicizante, que se desenvolve sob a forma de
Neoclassicismo: nasce o “espírito clássicodo século XVIII e apesar de apoiado
em tal espírito, preso à idéia de restauração das formas e tradições do mundo
antigo, a partir do Renascimento, o movimento neoclássico desse momento
adquire um feitio diferenciado em relação ao Classicismo italiano do século XIV.
Na intenção de recapturar o espírito dos antigos clássicos, o Neoclassicismo
abandona a espontaneidade de criação e resulta num apanhado de fórmulas e de
princípios abstratos, de rígidos códigos de valores críticos e formas literárias, de
propensão didática e de preferência pela satisfação intelectual em lugar da
emoção, pela elegância da forma em lugar da unidade interna. Daí o surgimento
de uma arte em que a emoção está em segundo plano, a liberdade criadora
encontra-se coagida e se cultiva uma beleza formal idealizada. As regras a serem
seguidas são as mais rígidas possíveis, oriundas do Renascimento, e que
retomam regularmente os modelos greco – latinos; no caso da Literatura, os
princípios estéticos apresentados por Horácio (que, por sua vez, retomam os de
Aristóteles) são modelos a serem imitados pelos escritores do século XVIII: unir o
útil ao agradável e valorizar a natureza como meio de conhecimento da verdade.
Cândido (1.975, p. 47) observa este fato, afirmando que, embora variando de
nação para nação, as diversas tendências literárias
“compreendem em geral o culto da sensibilidade, a na razão e na ciência, o interesse
pelos problemas sociais, podendo-se talvez reduzi-las à seguinte expressão: o verdadeiro
é o natural, o natural é o racional. A literatura seria, conseqüentemente, expressão racional
62
da natureza, para assim manifestar a verdade, buscando, à luz do espírito moderno, uma
última encarnação da mimesis
16
aristotélica”. (grifos nossos)
Tais princípios aparecem expressos em alguns manuais da época como a
Art Poétique (1.674), de Nicolas Boileau e a Poética (1.737) do espanhol Luzán,
entre outros.
Boileau dirá que a primeira virtude de um artista é a Razão:
“Aimez donc la raison; que toujours vos écrits
empruntent d’elle seule et leur lustre et leur prix.
Que toujours le bon sens s’accorde avec la rime.
Jamais de la nature il ne faut s’écarter.”
17
E acrescentará que é a Razão que leva à Verdade e esta à Beleza:
“Rien n’est beau que le vrai; le vrai seul est aimable.”
18
Vale lembrar que ainda estamos numa estrutura social em que a razão e o
bom senso são características de um ambiente aristocrático.
Luzán, por sua vez, dirá que a poesia é imitação da Natureza no Universal
e no Particular, feita com versos, para utilidade ou para deleite dos homens, ou
para uma e outra coisa juntamente.”
A verdade e a natureza são imprescindíveis à arte poética, mas devem ser
sempre conhecidas através da experiência.
“À emoção quinhentista do mundo descoberto em superfície, sucede (...) a emoção
da realidade vista em profundidade e pormenor. As novidades espantosas que antes se
pediam aos nautas e exploradores de continentes esperam-se agora dos investigadores de
16
Mimesis significa, em grego, imitação; muitos a consideram um princípio básico na criação
artística: como representação da natureza, neste caso opondo-se a simbolismo; como emulação
de obras anteriormente elaboradas, notadamente pelos gregos e romanos, oposta, portanto, à
espontaneidade; como imitação de conduta, idiossincrasias e hábitos alheios (Cf.Joseph T.
Shipley, Diccionario de la Literatura Mundial, Barcelona, Ediciones Destino, 1.962). No seu sentido
originário, aristotélico, deve ser entendida não como a simples reprodução fotográfica” da
natureza, mas como o fazer a natureza aflorar em toda a plenitude.” Apud Proença Filho, 1.969, p.
171 – notas ao capítulo VII – Neoclassicismo.
17
“Amai, portanto, a razão; que sempre vossos escritos
precisam dela unicamente, de seu brilho e de seu prêmio.
Que sempre o bom senso combine com a rima.
Jamais da natureza ele deve se afastar.”
63
laboratório, (...) munidos de microscópios. (...) é à razão, a que Descartes confiava a
audaciosa como que recriação do Universo, de que a dúvida metódica fizera bua rasa, a
que recorrem moralistas e legisladores, que tentam a reforma nacional nos costumes e das
instituições tradicionais. A Razão, livre da pressão da Fé, na solução dos problemas do
cognoscível ; a Natureza, minuciosamente observada.” (Hernani Cidade Lições de
Cultura Luso – Brasileira , 1.960. Apud Proença Filho, 1.969, p.165)
É importante frisar que a noção de Natureza aparece como idéia diretora no
século XVIII: a Natureza e suas leis tinham autoridade indiscutível, exercendo
influência em todos os domínios do conhecimento, e esperava-se dela que
introduzisse, nas artes e na literatura, ordem, unidade, proporção. Durante todo o
século, o conceito de Natureza foi padrão, apesar das mudanças de sentido que
se operaram no seu decorrer. Sem vida, a idéia de Natureza ocupa o centro do
mundo setecentista: a Natureza smica e paisagística, a Natureza do coração (o
esprit). O grande mito deste século se tornará o da união do Homem com a
Natureza, como se pode observar, por exemplo, nas pinturas das paisagens de
Watteau (as fêtes galantes, fêtes champêtres), onde grupos de jovens se divertem
em reuniões sociais que transcorrem pacificamente em ambientes bucólicos e
pastoris, com música, dança e poesia, ou com cenas de caçadas. Reflete-se,
assim, a concepção do “estado de natureza” como situação áurea e feliz, ligada à
idade da pureza e da bondade; concepção traduzida por Rousseau em sua
teorização sobre o homem naturalmente bom”, ponto de partida de verdadeira
crença em todo o Romantismo. Desta forma, podemos afirmar que a emoção da
Natureza infiltra-se em toda a literatura do século XVIII, misturando-se a
elementos clássicos e mitológicos, barrocos e iluministas.
A forma neoclássica que mais se adaptou à literatura de língua portuguesa
no século XVIII foi a corrente de procedência italiana denominada Arcadismo,
surgida em Roma.
Em finais do século XVIII, a ex–rainha da Suécia, Cristina, filha do rei
Gustavo Adolfo, muda-se definitivamente para Roma, abdicando ao trono e à
religião luterana que praticava, convertendo-se ao catolicismo. Culta e
18
“ Nada é belo como a verdade; a verdade somente é desejável.”
64
acostumada aos estudos filosóficos e literários, desde a Suécia, habituara-se a
reunir em seu palácio artistas, poetas, sábios e cientistas da época, com os quais
constituíra verdadeiras academias para a discussão de problemas sociais ou
momentos de deleite, lendo e comentando com o grupo trabalhos de natureza
literária ou científica. Quando em Roma, continuou a reunir em sua casa a jovem
intelectualidade italiana. A soberana morre em 1.689 e os participantes das
reuniões não querem que esse bom hábito se perca; com regulamento–programa,
um presidente e 16 membros, fundam a agremiação que chamariam de Arcádia,
em 1.690. Esta denominação vem recuperar a referência a uma região mitológica
grega da Antigüidade Clássica, comandada pelo deus Pan e habitada por pastores
que se divertiam com canções de amor e pugnas poéticas, caracterizadas pela
simplicidade, espontaneidade e regularidade. Os membros da Arcádia chamavam-
se “pastores”, adotando nomes pastoris, do grego ou do latim, tendo um
presidente que se intitulava o “Guardião Geral” e um patrono representado pelo
Menino Jesus, símbolo da tão almejada simplicidade e que destacava uma
diferença da ideologia árcade em relação à ideologia de natureza clássica:
naquela, ao contrário desta, admite-se o clericalismo e a religiosidade. Como sinal
do espírito pastoril, as reuniões ocorriam em parques públicos ou jardins das
grandes vilas romanas, até que, em 1.725, o rei D. João V, de Portugal, ofertou à
academia o idílico bosque Parrasio, junto ao Janículo.
A Arcádia propõe algumas normas gerais para atingir a renovação dos
cânones desgastados do período:
- reação contra o mau gosto do Barroquismo: ao Barroco decadente se
contrapõe a razão, a simplicidade, a naturalidade expressional, como formas de
boa realização poética.Vale lembrar ainda que, em Portugal, por exemplo, abolir
tudo que lembrasse o Barroco era abolir da arte e da cultura portuguesas o
período de jugo espanhol por que o país passara, sob o domínio de Felipe, rei da
Espanha.
- persistência dos cânones do Classicismo, através da imitação de
modelos renascentistas, notadamente da poesia de Petrarca, valorizando a boa
65
tradição humanística, o amor puro e o conteúdo cristão. Nessa premissa anti
seiscentista e classicizante do Arcadismo reside provavelmente sua principal
inspiração.
- culto da teoria aristotélica da Arte como imitação da Natureza: a
verdadeira poesia deve inspirar-se num entusiasmo natural e exprimir com
naturalidade, sendo simples, pastoril, bucolicamente ingênua e inocente.
- disciplina e regularismo estético.
- desejo de investigar o mundo, conhecer a lei da sua ordem, que a razão
apreendia.
- o Arcadismo passa a ser fruto da conciliação do Racionalismo e do
classicismo, com o predomínio da razão e da autoridade literária. Assim, o poeta
deve ser um pintor de situações e não de emoções (poetas, que fogem a essas
características, na verdade, negam-se a aceitar essas formas coercitivas).
- a poesia árcade, ao seguir os preceitos aristotélicos de arte, admite que o
processo de imitação é legítimo meio de se conhecer a Verdade, ou seja, a poesia
é maneira de imprimir verdade na imaginação e no sentimento.
- o árcade, através de seus cânones, pensa a literatura com finalidade
moral e didática.
O idealismo renascentista, ao qual a Arcádia procura se filiar, construiu a
idéia de uma vida racional e em equilíbrio em lugares utópicos, naturais e de
sonhos, formando o que poderíamos considerar um “complexo mítico”. A Arcádia
passa a fazer parte dele, caracterizando-se como uma região ideal e fictícia, de
extrema beleza, de onde foram expulsas as paixões perturbadoras, refúgio das
idéias e do deleite espiritual, em que é possível fugir das cidades que começam a
se industrializar, das fábricas, da agitação da vida urbana. Como lugar perfeito, da
vida de sonhos e equilíbrio, a Arcádia situa-se no campo, em plena natureza (que
vimos ser uma de suas marcas essenciais), opondo-se, assim, à vida citadina.
Por isso, o tema da Arcádia sempre esteve ligado à literatura pastoril e bucólica e,
ao se denominarem “pastores”, os árcades conscientemente estabeleciam um elo
66
fantástico de evasão para um paraíso campestre, criando uma poesia com marca
de ingenuidade, sentimental e idílica ao mesmo tempo, de inspiração e motivação
“pastoris”, situando-se fora de sua condição real (cumpre lembrar que os árcades,
na sua maioria, provinham de uma classe social aristocrata ou pertenciam à
burguesia abastada). Sannazaro, árcade italiano, ao publicar o romance pastoral
de nome Arcádia (1.504), introduziu o nome e o tema na literatura ocidental
moderna, que da Itália se espalharia para outros países. A Arcádia assumiu um
cunho internacional, atraindo filiações de indivíduos e associações culturais de
países estrangeiros (como foi o caso da Academia Francesa), que passaram a se
denominar “colônias” do Arcadismo italiano.
Curiosamente, a despeito do seu embasamento racional e clássico, o
sentimento (como dito anteriormente) é uma das preocupações importantes do
Arcadismo. Estava implícito no sonho árcade “o desejo de uma livre e pura
expressão lírica do sentimento, sem as afetações do Barroco”, como define o
crítico literário italiano C.Calcaterra:
“em contraste com a realidade e a razão, ao pressuposto de que a verdadeira poesia se
inspira em um entusiasmo natural e se exprime com naturalidade, em nome de uma
simplicidade quase pastoril, de uma fictícia inocência primitiva e de uma ingenuidade
bucólica, considerando o sentimento a fonte mesma da poesia (...) Seu segredo (do
Arcadismo) artístico, sua guidditá poética, será colher liricamente, por via interior, o
contraste entre o sentimento e a razão, tornados os dois pólos espirituais da vida
setecentista.”
(Il Parnaso in revolta, Apud Afrânio Coutinho, 2.001, p.205).
Esta característica do estilo árcade aparece concretizada, do ponto de vista
da forma poética, na opção por maior liberdade e simplicidade de escrita dos
versos, utilizando-se versos curtos e soltos (sem rimas), compondo-se elegias e
odes, poesias líricas que conduzem a um retorno dos modelos anacreôntico e
pindárico.
A verdade seja dita, como acentua ainda Calcaterra, que há algo de falso e artificial
nessa simplicidade procurada, que, reagindo contra o retoricismo barroco, redunda afinal
em outra forma de retórica, a esconder não um ânimo lírico, mas um ânimo literário,
amestrado pela nova razão poética. (Afrânio Coutinho, 2.001, p. 206).
67
Acerca da artificialidade árcade, vale citar que a Arcádia, por sua intenção
de agremiação igualitária, filiou-se ao “espírito democrático”, proclamando-se uma
“república literária”, com um presidente eleito (como referido anteriormente), e
pastores e pastoras com nomes fictícios para demonstrar a renúncia à sua
condição social, igualando-se aos demais, sem preferências ou privilégios
(veremos mais adiante que, no caso do Brasil, isto não se cumprirá em relação ao
poeta objeto de nossa pesquisa, Tomás Antônio Gonzaga).
Verificamos, com o que foi pontuado até aqui sobre o Neoclassicismo e
sobretudo o Arcadismo, que uma arte contrastante a percorrer todo o século
XVIII. É essencial que compreendamos as formas artísticas deste século sem a
preocupação de extremas classificações e sem isolar as correntes que o
marcaram. Elas a barroca retardatária, a neoclássica, a arcádica e a iluminística
correm misturadas mesmo quando se opõem, num complexo entrelaçamento,
que acaba por desaguar no Romantismo, não antes de passar por uma fase que,
poderíamos denominar como pré romântica, em que a confusão de tendências
se faz bastante forte. Assim, é muito difícil, diríamos quase impossível,
estabelecer limites precisos entre Barroquismo e Neoclassicismo ou entre
Arcadismo e Pré Romantismo: encontram-se no período, como bem lembra
Coutinho (2.001, p. 209),
“a continuação do renascimento clássico; o impetuoso movimento racionalista e iluminista;
a reação aristocratizante expressa na beleza ideal e na graça, em vez de no poder e na
grandiosidade; uma nova irrupção do emocional, da sensibilidade e do irracionalismo,
traduzido no movimento do Sturm und Drang alemão, chegando finalmente ao
Romantismo.”
Finalizando estas primeiras observações, poderíamos afirmar que o
programa estético do Arcadismo está de acordo com a ideologia setecentista: a
criação de um lugar utópico, onde se possa viver junto à Natureza um ideal de
rusticidade (o “locus amoenus”), fugindo do tédio e do horror das cidades, dos
grandes centros urbanos, foco dos conflitos humanos (“fugere urbem”), em busca
da serenidade e do equilíbrio; o “homem natural”, ao assumir pseudônimos
pastoris utilizados como convenção grupal, dissolve a sua personalidade em favor
68
da criação de uma sociedade perfeita, onde não deve haver distinção de classes.
Nessa visão idealizada, cabem todas as reformas e revoluções que agitaram o
século XVIII, desde a política, com seus propósitos democráticos de tolerância e
de igualdade entre os povos, até a econômica, com a proposta de justa
distribuição de renda, ou a do ensino, que tem na imagem da Razão e da
Sapiência a base de todo Progresso humano.
No entanto, o nos esqueçamos de que o período é de contrastes e
dificuldade de estabelecer limites, como comentamos anteriormente. Temos,
além da confluência de correntes estéticas diferentes, alguns paradoxos que se
apresentam, como nos observa Mongelli (1.992, p. 26), na sua introdução à
Estética da Ilustração:
“concentrados na Poesia, tida desde a Antigüidade como exemplo da mais alta inspiração,
os árcades reduziram-na a porta – voz da Nova Sociedade iminente, muitas vezes panfleto
de estratégias revolucionárias e/ou de novidades científicas. Quando não, os”pastores”
fechavam-se alienadamente em suas academias, presos a intermináveis discussões sobre
questiúnculas literárias ou aos entretenimentos ligeiros que o a tônica dos salões
aristocráticos dos séculos XVII e XVIII. Ora, a contradição é evidente: quanto mais
pregavam mudanças, mais delas se distanciavam de fato, permanecendo, muito do que
formulavam, no plano da teoria, da abstração, do ideal. Realidade vista através do modelo
– a trair o pragmatismo da feição lockiana e a denunciar a ambigüidade autodestruidora da
receita.”
Ou seja, estamos diante de um momento da vida político social e cultural
do Homem Moderno que poderíamos chamar realmente de caleidoscópico.
1. Arcadismo em Portugal e no Brasil: alguns apontamentos.
Da Itália, o movimento arcádico chegou a Portugal e de ao Brasil.
Socialmente, no século XVIII, Portugal está empenhado em restaurar sua
independência política frente à Espanha, livrando-se do jugo de D.Felipe e do
castelhanismo imposto pelos espanhóis à cultura portuguesa. Sendo assim, o
movimento arcádico, de origem italiana e francesa, vem representar bem a luta
69
contra os excessos do Barroco espanhol, a cultura dos “seiscentos”, vista agora
como ultrapassada. Além disso, as academias literárias da época do Barroco,
focos de culteranismo, transformaram-se, em meados do culo, em corporações
de tipo arcádico ou científico e prático. Essa reação antibarroca propiciou o retorno
à boa tradição clássica e também a utilização dos modelos franceses, a cuja
influência os próprios italianos não fugiam. Desta maneira, a corrente
academicista reagia contra os seus próprios excessos, continuando sob outra
forma e com outros objetivos. Era a volta à simplicidade e pureza dos modelos
clássicos, a tranqüilidade da vida antiga que inspirava a renovação dos velhos
cânones.
Em Portugal, o Arcadismo instalou-se com a Arcádia Lusitana, agremiação
de intelectuais, inspirada nas Arcádias romana e francesa. A Arcádia portuguesa
sobreviveu por aproximadamente dezoito anos (1.756 1.774), reunindo
escritores importantes da história literária portuguesa como Antônio Dinis da Cruz
e Silva, Gomes de Carvalho, Manuel de Figueiredo, o Pe. Francisco José Freire
(“Cândido Lusitano”, seu nome arcádico), Correia Garção, José Caetano de
Mesquita e Domingos dos Reis Quita. Houve, ainda, uma Arcádia, “tardia”,
denominada Nova Arcádia, no final do culo XVIII de que foram expoentes José
Agostinho de Macedo e Manuel Maria du Bocage.
A firme convicção no poder da razão e da vontade e, conseqüentemente, a
possibilidade de planejar as produções artísticas, com aguda consciência crítica,
fizeram com que o Arcadismo português se tornasse realmente um momento de
“mutação” ou de alteração qualitativa no que se produzia a partir da poesia
seiscentista. Esta transformação, na verdade, teve sua origem nos finais do século
XVII, atingindo o século seguinte. Houve, desde o início, o desenvolvimento de
uma vasta poesia satírica, caricatural, algumas vezes pornográfica, que fazia
contraponto ao cultismo e ao conceptismo das formas barrocas. Socialmente, esta
poesia satírica tinha uma situação bastante semelhante à das longínquas cantigas
de escárnio e maldizer:
“é uma desforra semiclandestina da compostura forçada da poesia oficial, uma espécie de
musa degradada e desqualificada, que raramente apareceu em letra de forma, uma musa
70
negra, digamos, oferecida e procurada debaixo da capa. O traço grosso da caricatura, o
grande riso alarve e o exibicionismo da inconveniência são características dela. Esta
tradição transita para o século XVIII e teve continuadores, entre eles Bocage e Correia
Garção.” (Saraiva, 1.982, p.169)
Além disso, os árcades assumiram, com a nova estética, a fundamental
idéia da moderna organização do trabalho científico, definida inicialmente por
Descartes ao afirmar:
“julgava eu que não havia melhor remédio contra (...) impedimentos do que comunicar
fielmente ao público todo o pouco que eu tivesse achado e convidar os bons espíritos a
esforçarem-se por ir mais além, contribuindo, cada um de acordo com a sua inclinação e a
sua força, para as experiências que fosse preciso realizar (...) a fim de que os últimos,
começando onde tivessem acabado os primeiros e desta forma reunindo as vidas e os
trabalhos de vários, fôssemos, todos juntos, muito mais longe do que o poderia fazer cada
um em particular.” (Apud Saraiva, 1.982, p. 175)
Esta cooperação entre estudiosos e artistas gerou uma contribuição
fundamental para os árcades portugueses e para os estatutos da Arcádia: o
processo crítico. A crítica não era uma “artificialidade arcádica”, um princípio
apenas estético. Era, pode-se dizer, uma instituição com severas regras de
funcionamento. O corpo dirigente da Arcádia compreendia, além do presidente,
dois “árbitros” e dois “censores”. Estes últimos deveriam examinar e criticar as
composições que lhes fossem entregues pelos árcades, dando aos autores um
prazo para responder às críticas que lhes fossem dirigidas. Tanto as defesas
como as críticas seriam depois examinadas pelos árbitros, sendo que, se não
houvesse acordo das partes, o presidente teria voz de desempate. Conforme a
decisão dos árbitros e do presidente, seriam os autores obrigados ou não a
executar as emendas propostas pelos censores. A autocrítica, como conseqüência
inevitável da crítica, era, pois, obrigatória na associação.
Este espírito de criticidade se manifestou em todas as relações sociais
dentro da Arcádia portuguesa. A igualdade total entre seus membros é uma regra
atenta e repetidamente expressa nos estatutos da associação. Todas as
distinções o abolidas e, desta forma, cada membro tem as mesmas obrigações,
inclusive a de adotar um pseudônimo pastoril:
71
“Os seus alunos se fingirão árcades e escolherá cada um nome e sobrenome de
pastor adequado a esta ficção, para por ele ser conhecido, e nomeado em todos os
exercícios e funções da Arcádia.” (Capítulo I Estatutos da Arcádia Lusitana in “Jornal
de Coimbra”, nº 88 Apud Saraiva, 1.982, p.176).
O nome arcádico pastoril deveria suplantar a categoria social à qual o
membro pertencesse. A igualdade é, realmente, essencial ao funcionamento da
associação intelectual. Como nos esclarece novamente Saraiva (1.982, p. 177):
“... todos os cargos (excepto os cargos burocráticos de secretário e de guarda ou porteiro)
eram tirados à sorte ”por querer a Arcádia mostrar a igualdade e justiça com que procede
com todos os seus pastores” (Capítulo V Estatuto da Arcádia). Estabelece-se também
que, exceptuando o presidente, os árbitros, os censores, o secretário, que terá mesa
própria, e o guarda, que terá de ficar ao da porta, os sócios se sentarão sem qualquer
ordem de preferência (Capítulo XVII).”
Finalmente, determina-se de forma expressa que só o mérito individual
deve ser considerado para a admissão na sociedade:
“Poder-se-ão eleger para membros desta sociedade todos os sujeitos que
parecerem capazes de a ilustrar, sem que obste a não assistirem nesta Corte à sua
eleição, na qual se olhará para o mérito pessoal sem atender a outras circunstâncias
que costumam servir de reparo a alguns contemplativos, que ignoram o preço e a
estimação, que se deve à virtude (capítulo XV).” (grifos nossos) e recomenda-se-lhes
segredo absoluto sobre o que dentro da Arcádia se passasse (capítulos X e XX).
A protetora da Arcádia era Nossa Senhora da Conceição (além do Menino
Jesus) e esse patronato, puramente simbólico e espiritual, apresentava-se como
afirmação de independência da agremiação: como se subordinava a um poder
celestial, a Arcádia repelia a tutela dos poderosos deste mundo. No pensamento
de muitos dos árcades, como o de Garção que, mais tarde, influenciaria Gonzaga,
esta idéia aparece. Temos, então, algo no mínimo curioso na Arcádia portuguesa:
seguem-se normas e valores estéticos clássicos, reforçados por uma mitologia
pagã, ao mesmo tempo que são valores católicos que orientam os princípios da
sociedade arcádica portuguesa.
19
Apesar da contradição aparente, estas
preocupações árcades se justificavam na medida em que havia a intenção de criar
72
uma agremiação inteiramente liberta dos preconceitos sociais dominantes,
norteada por rigoroso espírito de objetividade e cientificismo, em que a busca da
verdade objetiva é o único interesse que conta, uma vez que fundamenta as
virtudes humanas.
No entanto, a finalidade específica da Arcádia era a reforma literária, não
uma investigação científica. Os regulamentos e estatutos que regem essa
instituição intelectual demonstravam a crença dos árcades na possibilidade de a
Literatura promover uma reforma geral da mentalidade social. Para eles, a reforma
da Poesia era um aspecto dessa mudança: devia-se combater o mal da
ignorância, da futilidade, da fantasia “descabeçada” própria da ausência de idéias
dos “seiscentistas”; para realizar uma Poesia série era necessário dar à razão o
seu devido lugar, restaurar o bom senso e combater a ignorância geral de um país
atrasado (ao contrário do que se pode, à primeira vista, imaginar dos árcades
racionais, sistemáticos e frívolos, percebe-se aqui um compromisso social
consciente e bem demarcado). Fazia-se necessário aprender e praticar a crítica,
com um trabalho de esforço, disciplina e autodomínio.
20
Trabalho este que
contava com o apoio real (inicialmente de D.João V e, em seguida, de D.José) e o
lastro intelectual de Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal.
Apesar de seu período áureo ter curta duração no tempo (1.757 1.761), parece-
19
Em Portugal, esta foi uma questão até certo ponto polêmica e que dividiu a opinião dos próprios
árcades.
20
Correia Garção, expressivo árcade e crítico do Arcadismo português, desenvolveu o que
chamou insistentemente de “o sistema da crítica”, consciência artística que via necessária não só à
manutenção da Poesia, mas, principalmente, à fundamentação e permanência da estética
arcádica. Segundo ele a crítica (e a correspondente autocrítica) é o meio pelo qual o artista
consegue alcançar o “bom gosto”. Para que este objetivo se efetive, faz-se necessário ao poeta
árcade meditar sobre sua escrita e aprender com os ensinamentos dos antigos filósofos e poetas
greco latinos. Imitá-los passa a ser essencial. Porém, imitar não significa traduzir suas palavras”
ou simplesmente copiá-los” como faziam muitos poetas portugueses desse período. É bem mais
do que isto: é assumir um gênio criador; na conceituação do século XVIII, assemelhar-se-ia a ter
“inspiração” ou “entusiasmo natural”, fruto da associação de talento com sapiência do artista numa
disposição bastante horaciana, uma vez que, para este poeta latino, “ser sábio é o princípio e a
fonte do escrever bem.”
Ao se propor a falar de imitação, Garção deixa claro que os antigos são a única fonte de
aprendizado válida e suas obras devem prevalecer, como objeto de imitação até mesmo sobre a
Natureza.Critica, então, aqueles a quem chama de plagiadores”, os que cometem “o vício mais
comumde tradutores de Virgílio, em franca distorção dos ensinamentos de Horácio. Esses, “não
imitam, roubam e despedaçam o que lhes agradou, como se tomassem por empresa fazer-nos
73
nos que a Arcádia Lusitana conseguiu cumprir seu intento: combateu os excessos
da literatura seiscentista barroca, que Portugal herdara da Espanha, e
arregimentou os literatos portugueses em torno da questão da restauração do
país, fazendo com que a literatura, mesmo intelectualizada, assumisse um papel
nacional importante. Abre-se, assim, o caminho para o nacionalismo literário,
célula mestra da literatura romântica.
No Brasil, o movimento arcádico se inicia oficialmente em 1.768, marcado
pela distribuição das Obras Poéticas de Cláudio Manuel da Costa. Na verdade,
como afirma o crítico Alberto Faria (Apud Coutinho, 2.001, p. 208), nosso
Arcadismo apresenta uma série de “árcades sem arcádias”, uma vez que nenhum
documento idôneo até hoje comprova a existência do que se denominaria “Arcádia
Brasileira”, o que leva a crer que o termo representa, entre nós, uma designação
genérica, tomada da Europa, para fazer referência aos poetas arcádicos
brasileiros ou que viviam no Brasil, ou ainda às “reuniões acadêmicas” e
“academias literárias” comuns no século XVIII. Assim, a denominação de árcades
e Arcádia Ultramarina, termos utilizados pelos poetas brasileiros desse período,
que tanto ocuparam literatos e historiadores, acaba por ser um problema
definitivamente superado. Exceção feita ao poeta Basílio da Gama, que realmente
esteve filiado à Arcádia romana, com o nome pastoril de Termindo Sipílio, nenhum
outro poeta do Arcadismo brasileiro pertenceu a qualquer Arcádia.
O que tivemos, neste século XVIII, foi a criação de Academias literárias e
científicas, entre elas a Academia dos Esquecidos, na Bahia (1.724), a dos
Felizes, no Rio de Janeiro (1.736), a dos Seletos, ainda no Rio (1.752) e a
Academia dos Renascidos, novamente na Bahia, em 1.759. Esta última, fundada
por um grupo de juristas, clérigos e latifundiários, abordava temas literário e
histórico com histórias lendárias, próximas a epopéias, ou crônicas mais ou
menos ingênuas sobre acontecimentos. Essa Academia assinala um momento
singular e importantíssimo na formação da nossa literatura, pois, ao congregar
homens de letras de várias partes da Colônia, representou o que Cândido (1.985,
aborrecer o que admiramos.” (“Da imitação dos Antigos” Correia Garção, texto doutrinário; Apud
74
p. 97) denominou de “um primeiro lampejo de integração nacional”. Outra
agremiação, a Academia Científica, fundada no Rio de Janeiro em 1.771 por
médicos, e reformada, em 1.786, sob o nome de Sociedade Literária, propagou a
cultura científica da época, promovendo estudos sobre as condições sociais e de
saúde do Rio e criticando a situação da Colônia, com base em Raynal e
inspirações em Rousseau e Mably.
Pode-se dizer, então, que o Brasil assistiu a uma pequena “Época das
Luzes”, influenciado pelo Neoclassicismo e pelo Arcadismo europeu, notadamente
o de inspiração portuguesa. As idéias e a literatura dessa época geraram um
espírito nativista brasileiro que se encaminhou, mais tarde, para a independência
política e as teorias de emancipação intelectual, base do nosso Romantismo após
1.830, fato que se assemelha bastante à trajetória do Arcadismo português.
Historicamente essa época coincide com o governo do Marquês de Pombal, em
Portugal. Para os brasileiros dos meados do século XVIII, a imagem que Pombal
faz transparecer é a de governante grave, desabusado e reformador e que acabou
por simpatizar com os colonos brasileiros, que soube proteger, ampliando com
suas medidas políticas o desenvolvimento do nosso país. “Para uma colônia
habituada à tirania e carência de liberdade, pouco pesaria o despotismo de
Pombal” é o que nos afirma Cândido (1.985, p. 95) em seu livro de ensaios
Literatura e Sociedade.
Algo de fato reformador parecia acontecer no Brasil: os escritores
brasileiros se destacavam na poesia épica, fundamentada no espírito pombalino
de luta aos jesuítas o caso de O Uraguai, de Basílio da Gama) ou no tema da
reforma da Universidade (O desertor de Silva Alvarenga). Francisco de Melo
Franco, em O reino da estupidez, atacou o despotismo da rainha D.Maria I, mas
foram Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, com uma série de “poemas
ilustrados”, ao molde pombalino, que formularam a teoria do bom governo,
louvando as grandes obras públicas e a sapiência do governante capaz
(referência explícita ao Marquês de Pombal).
Mongelli, 1.992, pp.109 – 112)
75
Essa visão iluminista de nossos árcades contribuiu, em contrapartida, para
o incremento do nativismo em nosso país. Este sentimento nativista resultou da
necessidade de investigar sistematicamente a nossa realidade, avaliando-lhe os
problemas tanto de ordem política como econômica. As condições econômicas
impunham, agora, a libertação da colônia em relação aos monopólios
metropolitanos, num país que sofrera o baque da decadência do ouro e
necessitava de maior desafogo para a sua população. A Revolução Francesa e a
libertação das 13 Colônias Americanas do jugo inglês, o nascente liberalismo
oriundo de certas tendências ilustradas européias, serviram-nos de exemplos e
completaram o impacto do pombalismo sobre nós, formando um ambiente propício
ao desenvolvimento de idéias e medidas de modernização político econômica e
cultural no Brasil, reforçadas a partir de 1.808, com a vinda da Família Real
Portuguesa. No governo de D.João VI, na Corte brasileira, conjugaram-se
tendências e circunstâncias, que resultaram na inevitável autonomia política. Estas
considerações nos levam a perceber o entrosamento acentuado entre a vida
intelectual e a vida político – social da Colônia, neste período.
É marcante o esboço de uma consciência crítica nacional que se forma
entre nós e vai-se aprofundando, marca geradora da primeira noção de alteridade
no meio pensante brasileiro, que procura diferenciar a cultura portuguesa da
Metrópole da nossa cultura colonial, criando conseqüentemente a noção de
autonomia entre nós. Disto derivam os ecos de “liberdade” anunciados pelos
intelectuais brasileiros, notadamente os mineiros, com base nas idéias iluministas
européias, no final do século XVIII. Interessante perceber que essa “voz” libertária,
tida em princípio como expressão do desejo nacional, acaba por ser de direito
apenas de uma determinada classe social, a burguesia aristocrata, tornando-se
privilégio de alguns escolhidos, os “melhores”. Ou, na expressão do poeta árcade
Tomás Antônio Gonzaga, “os poucos da escolha nossa” (lira:¨ Ah! Marília, que
tormento”). Em relação à outra idéia que fundamentava o pensamento sócio
político do Iluminismo, a “igualdade”, percebe-se que no Brasil foi uma aspiração
humana desfavorecida nas lutas libertárias. Como registra Lucas (2.002, p. 60):
76
“Certamente porque a burguesia brasileira podia enaltecer a liberdade para si,
embora não pudesse bater-se pela igualdade num regime escravocrata. Ainda que se
reconheça a universalidade da busca da liberdade, como atributo antropológico da espécie
humana, no mundo real a reserva de poder confina o âmbito da liberdade e macula o pacto
da igualdade”.
Nas Minas Gerais do século XVIII, a fermentação das idéias iluministas
representou o auge de um momento em que uma concepção filosófica implicou
igualmente uma concepção de ruptura com o sistema de exploração econômica e
de organização política lusitana. Não é à toa que três poetas dos mais
importantes (Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga
Peixoto) e vários pensadores, além de religiosos e membros da alta burocracia
estatal, tenham sido apanhados e julgados como envolvidos numa rede de
conspiração contra a Coroa Portuguesa, que foi o caso da Inconfidência Mineira.
Uma aparente contradição também se instalara na Colônia: a jovem elite
intelectual brasileira ia buscar conhecimentos na Europa, principalmente em
Coimbra, devido à proximidade de costumes e da língua. O governo português
cuidava de preparar esses intelectuais como súditos fiéis aos interesses da Coroa,
mas aquela juventude, em contato com os meios acadêmicos, acabava por
informar-se do progresso técnico e político dos setores mais avançados da
Europa. No retorno ao Brasil, abraçavam as causas libertárias a favor da
independência do país.
Além de todos esses fatores, de se observar ainda a contribuição dada
ao nosso país pelo governo do Marquês de Pombal (como citado anteriormente) e
a reforma do ensino que ele promoveu tanto em Portugal quanto no Brasil. Foi
exatamente com esta reforma que se enfatizou o ensino e o aprendizado da língua
portuguesa falada no Brasil, que apresentava formas muito diferenciadas das
utilizadas em Portugal. O substrato da língua popular aproximava-se em valor
daquele outro que estruturava a língua erudita.
Isto veio facilitar, de certa forma, a instalação do nosso Arcadismo, que se
pautou pelo uso de uma linguagem clara e expressiva, sem os eruditismos do
português barroco, e nem por isso deixando de ser um momento intelectualizado
77
da nossa literatura. Lucas (2.002, p. 91) registra a importância dessa nova prática
lingüística:
“A consolidação da língua portuguesa no Brasil, no século XVIII, marcará
igualmente uma diferenciada prática linguajeira, estabelecendo-se, então, um fosso cultural
na direção da autonomia brasileira”.
Estava preparado o terreno para reafirmar o nosso nativismo e transformá-
lo em identidade nacional.
Os princípios básicos norteadores do Arcadismo europeu também
marcaram presença no caso brasileiro: na manifestação do desejo de mostrar que
também nós tínhamos capacidade para criar uma expressão racional da natureza,
“cor local”, nossa verdade nacional, marcada pela descrição nativista das suas
características e pela busca de normas justas, que traduzissem e orientassem o
nosso comportamento como povo. Essa capacidade de mudanças e de buscas
ficou clara na atuação de dois grêmios intelectuais sobre os quais discorremos:
a Academia dos Renascidos, associação humanista da Bahia e Academia
Científica do Rio de Janeiro, cada qual sob uma orientação, mas com o mesmo
intuito de criticar a situação social da Colônia, propondo-lhe algumas soluções.
Mas serão os autores mineiros que marcarão mais profundamente a nossa
literatura árcade. É preciso ressaltar que, no caso desses autores, a literatura se
desenvolveu na mais rica e próspera província da colonização portuguesa, Minas
Gerais. No entanto, lembremos que a Colônia ainda apresentava fortes ligações
físicas e intelectuais com a Metrópole, o que obrigava os poetas árcades mineiros
a obedecerem a normas sócio culturais impostas pela Coroa Portuguesa. Como
afirma Lucas (2.002, pp. 107 108), em seu ensaio sobre o Iluminismo entre os
mineiros:
“ Vivendo sob o império de um monarca absoluto, devemos levar em conta as injunções de
cada um e as cautelas e hesitações a que se viam submetidos. Tinham que sobreviver sob
o assédio das caprichosas leis da Corte e das censuras da Igreja e do Estado. Eram
presas dos temores e das ambições pessoais, sempre que se punham perante os braços
do poder. (...) Em alguns poemas gratulatórios dos mineiros é comum encontrarmos o
elogio das “virtudes” dos governantes, incluindo-se ali a bondade, o bom desempenho e a
justiça.”
78
No que se refere aos nossos escritores desse período, é comum
encontrarmos uma “transição” das características barrocas para as árcades: os
que transitam do nativismo apenas extático para um nativismo mais consciente e
nacional; os que buscam superar as imposições de um estilo cultista e
conceptista, adequando-o a uma expressão mais simples, capaz de tratar da
natureza e da verdade; os que passam da simples descrição da terra para as
perspectivas do seu progresso.
Cândido (1.985, p. 98) cita o árcade Feliciano Joaquim de Souza Nunes
que, na introdução à sua obra Diálogos político morais (1.758), apresenta
claramente expresso o tema do ressentimento dos intelectuais brasileiros,
desejosos de serem reconhecidos por seus talentos a par dos colegas
metropolitanos e que se apegavam, como defesa, à teoria de que o critério de
avaliação do trabalho deveria ser o rito do artista, não as circunstâncias da sua
nacionalidade ou posição social, aliás como ocorria no Arcadismo português, no
tocante à admissão de seus membros.
Uma atividade literária mais regular e de alta qualidade inicia-se no país
com a obra do poeta mineiro de Mariana, Cláudio Manuel da Costa (1.729
1.789), cuja escrita transita entre o cultismo barroco e as novas tendências
arcádicas. Reajustou conforme os seus preceitos a forte vocação para o Barroco,
encontrando para sua poesia uma solução numa espécie de Neoquinhentismo.
Como ainda nos lembra Cândido (1.985, p. 98), Cláudio comporta-se como
“um novo Diogo Bernardes pela síntese da simplicidade clássica com certo maneirismo
infuso. Há muita beleza nas suas éclogas, apesar da eventual prolixidade; mas nos
sonetos está o melhor do seu estro, como forma e elaboração dos dados humanos.”
O poeta, em seus sonetos, apresenta características nativistas bastante
fortes: o apego à terra natal, possibilitando a reprodução literária das Minas Gerais
em seus aspectos mais típicos, naturais ou sociais as montanhas, as rochas, a
mineração, o ouro, a angústia fiscal. Empreendeu “cantar” tais aspectos também
numa espécie de epopéia, narrando a história da Capitania de Minas, em que as
normas civis vencem o caos da zona pioneira dos aventureiros do ouro. O objetivo
esperado pelo poeta com este texto o foi alcançado e o poema de nome Vila
Rica não chegou a ser publicado.
79
Como sonetista, escrevendo num nero praticado pelo Arcadismo, vale
ressaltar ainda que nenhum dos poetas árcades brasileiros atingiu o seu grau de
perfeição melódica e estrutural, com poemas apresentando uma propensão ao
conceitismo, ao jogo de idéias ou aos sentimentos sutis, lembrando muitas vezes
a poesia de Camões. Sua escrita escapa a uma classificação rigorosa de
Arcadismo, aproximando-se mais do Quinhentismo, distinguindo-se deste apenas
pela maior ênfase dada à expressão subjetiva. E é nesta característica que vamos
encontrar elementos novos em sua poesia: motivação pré romântica, um
sentimento melancólico de perda ou de abandono, às vezes de exílio; seus
assuntos prediletos são o desencanto da vida e a ausência de Nise, a amada,
que, mais do que uma entidade arcádica, existe como um símbolo de distância,
aumentando as penas naturais do poeta, para quem o amor é apenas mais um
motivo de sofrimento, e o sofrimento o motivo principal de seus sonetos e liras.
Dessa subjetividade intensa, sem que o poeta caia em excessos, resulta o
condicionamento da natureza, ou melhor, da visão da natureza, ao estado de
espírito do poeta. Como assinalou Sílvio Romero, crítico literário brasileiro,
uma tendência de Cláudio Manuel da Costa ao noturno e às sombras. O poeta se
volta à natureza, ao campo, mas não ao campo arcádico, todo amenidades e
prazeres, e sim a uma natureza profundamente identificada com o próprio poeta,
como podemos perceber nas seguintes estrofes:
“Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Mas, que peito há de haver tão desabrido
Que fuja à minha dor! Que serra, ou monte
Deixará de abalar-se a meu gemido!”
Esta foi realmente uma marca importante deste poeta que, toda vez que
fugiu ao seu temperamento e o sacrificou em nome da Arcádia, por força da moda,
travestindo-se de “pastor”, perdeu em qualidade poética e transformou sua poesia
em lugar – comum. Temos, aí, claramente, o duplo aspecto do bucolismo arcádico
80
em nossa literatura: se por um lado, o fato de nossos poetas árcades “viverem”
num ambiente rústico, cercados pela natureza, marca a autenticidade de muitas
de suas poesias, por outro lado, essa mesma natureza não se mostrava propícia
ao aparecimento e sobrevivência de entidades mitológicas como ninfas e dríades
ou pastores flautistas ociosos. Como conseqüência, os poetas se viram diante de
um dilema: serem fiéis ao meio natural e realizarem uma poesia fora dos cânones
arcádicos, entremeada mesmo pelo sentimentalismo, ou utilizarem uma linguagem
artificial, procurando imitar uma natureza que não existia. Cláudio optou,
normalmente pela primeira disposição, assim como seu amigo Inácio José de
Alvarenga Peixoto (1.744 1.793) que deixou obra pequena (autor do poema em
oitava rima Canto genetlíaco e outros poemas), próxima na forma e nas
preocupações políticas de sua poesia.
Tomás Antônio Gonzaga (1.744 1.810), outro autor do período, único dos
nossos árcades nascido em Portugal, e autor da obra poética mais popular em
língua portuguesa depois de Os Lusíadas, o livro de poesias lírico amorosas
Marília de Dirceu, representou a mais alta expressão do Arcadismo no Brasil,
inclusive pela tendência acentuada para a poesia bucólica. Neste livro, o poeta
árcade desenvolveu o tema da natureza ao lado de um erotismo controlado e da
expressão lírica da sua própria personalidade, ponto que acreditamos ser o mais
complexo da obra. Com admirável simplicidade e nobreza de estilo, traça a
trajetória do autor desde seu amor idealizado e pastoril pela jovem Marília
(pseudônimo de sua amada), passando por suas preocupações, visão de mundo,
até chegar finalmente ao que poderíamos chamar de “otimismo estóico”, marcado
pelos momentos da prisão em que Gonzaga esteve envolvido, graças à sua
participação no episódio da Conjuração Mineira de 1.789. A ele é atribuída
também a autoria das Cartas Chilenas, espécie de texto panfletário e satírico
contra os desmandos do governador mineiro Luís da Cunha Menezes, mandatário
da Coroa Portuguesa, envolvido em escândalos administrativos. Neste texto, o
tom dos versos de Gonzaga torna-se enérgico e expressivo, ao contrário do tom
sentimental de sua obra lírica.
81
A poesia de Gonzaga guardou sempre uma estreita relação com a beleza,
o idílico, a tranqüilidade e a justiça, convicta que se apresenta tanto na lírica
quanto na sátira de que o bem triunfará sempre sobre o mal, a justiça, sobre os
maldosos e prepotentes. Faltou-lhes inquietação poética, pois seu idílio amoroso é
fruto da madura idade, sempre tranqüilo, e os poucos desgostos e ciúmes que
provoca são antes convencionais do que verdadeiros ainda um aspecto do
exercício poético arcádico praticado por ele. Gonzaga mostrava-se um espírito
confiante, a quem a vida já não oferecia problemas: tinha um alto posto no
governo, gozava de reputação como poeta e jurista, ia casar-se com uma
adolescente. Tudo lhe parecia tão seguro que nem a prisão e nem o processo
judicial que enfrentou o desanimavam. Sua poesia resulta, assim, não de conflitos,
como a de Cláudio ou a dos posteriores românticos, mas da ausência de conflitos:
tinha como clima a tranqüilidade, mesmo quando o mundo em que vivia desabou e
no exílio africano o homem Gonzaga teve de refazer sua vida, suplantando o
poeta.
Em relação ao tema da natureza, também presente nos poemas de
Gonzaga, percebemos que ultrapassa a pura cópia dos modelos greco latinos
idealizados pela Arcádia. Trata-se de uma “imitação” direta de lugares e animais
conhecidos do poeta, dando ao texto um realismo mais exato, um bucolismo que
supera a linguagem amaneirada, “rococó” do texto árcade
21
. Surgem os motivos
locais, tomados ao vivo, como a mineração, as cenas entre animais, nas quais as
coisas recebiam seus nomes exatos:
“Atende como aquela vaca preta
o novilhinho seu dos mais separa,
e o lambe, enquanto chupa a lisa teta.
21
O vocábulo ainda não se encontra integralmente definido e caracterizado, mas se vem
manifestando uma tendência a utilizá-lo para definir “a época setecentista em bloco”. A palavra
deriva de rocaille”, que se refere a rochedos, grutas. As conchas (coquille, sem o molusco,
coquillage, com o mesmo) eram elemento de ornamentação na época. Hatzfeld, ao estudar o
século XVIII francês, define o espírito rococó como: 1. uma gama de amor, do namoro ao idílio, à
lascívia, ao erotismo; 2. a natureza como lugar ideal para o prazer voluptuoso (“fêtes champêtres,
paisagens eróticas,etc). 3. intimidade na vida e nas instituições sociais (interiores, música de
câmara, bijoux”, cenas íntimas, etc). 4. máscaras e disfarces, como recurso intimista para velar e
revelar. 5. “esprit”, talvez maior predicado do espírito rococó (ironia de Montesquieu e Voltaire )”
82
Atende mais, oh cara,
como a ruiva cadela
suporta que lhe morda o filho o corpo
e salte em cima dela”
Vemos, pelos versos acima, que Gonzaga obedecia ao princípio arcádico
de utilização e imitação da natureza, mas sem idealizá-la, desprezando
inteiramente o embelezamento da paisagem. A “cor local” se impunha ao poeta
que, embora se afastasse do preceito de imitação ideal, continuava fiel ao espírito
árcade do período. Tratar-se-ia, apenas, de um árcade menos ortodoxo.
Não é de estranhar também que vez por outra despontasse um
sensualismo, mal contido, nas liras do poeta, traçando um retrato físico da amada,
com o mesmo realismo da natureza:
“O seu semblante é redondo,
sobrancelhas arqueadas,
negros e finos cabelos,
carnes de neve formadas.
A boca risonha e breve,
Suas faces, cor-de-rosa,
Numa palavra, a que vires
Entre todas mais formosa.”
Além dessas características, fica evidente em Gonzaga a preocupação
formal com os versos: rimas perfeitas, equilíbrio melódico de sons graves e
agudos, sons consonantais e vocálicos, regularidade na estrofação e esquema
rímico próprio que, por vezes, sugere uma quebra na monotonia do esquema
poético adotado no período. Essa valorização da forma sobre o conteúdo revela o
melhor do engenho poético de Gonzaga: não importa qual seja o tema das liras; o
que importa, em poesia, não é o que se diz, mas a forma pela qual se diz.
Outro poeta que segue essa máxima parece ser Manuel Inácio da Silva
Alvarenga (1.749 1.814), mineiro de Vila Rica. Silva Alvarenga é autor do
citado poema herói cômico O desertor (1.774), em que apóia a reforma na
83
Universidade, segundo os modelos pombalinos de Educação. Mesmo após a
queda de Pombal, continuou fiel à sua obra e às tendências da Ilustração, atuando
dinamicamente na Sociedade Literária carioca, de que foi o mentor, o que lhe
valeu quase quatro anos de prisão. Sua ação foi importantíssima, principalmente
como professor que influenciaria a jovem geração dos partidários da
Independência. Representou um elo entre as primeiras aspirações filosóficas
brasileiras e sua conseqüência político social. Como poeta, é autor da poesia
lírica Glaura, uma rie de rondós e madrigais. Os rondós, forma poética criada
por ele, são versos que constituem uma melodia monótona e procuram tratar de
velhos temas da poesia como decepção amorosa e esperança. Os madrigais,
mais clássicos e mais austeros, mostram a capacidade de exprimir os sentimentos
dentro de formas equilibradas. Dentre os árcades brasileiros, aparece como o
mais musical na forma de seus versos.
José de Santa Rita Durão (1.722 – 1.784), frei e poeta árcade, ocupa, no rol
dos poetas, uma posição especial. Por questões de formação religiosa e de sua
atuação como frei, apresenta uma decidida oposição à ideologia pombalina (o que
não ocorreu com outros árcades) e uma declarada simpatia pela tradição poética
camoniana. Como comenta Cândido (1.985, pp. 100 – 101):
“A sua cultura escolástica e o afastamento dos meios literários, mais a influência
de cronistas e poetas que se ocuparam no Brasil no modo barroco (Vasconcelos, Rocha
Pita, Jaboatão, Itaparica), fazem dele, sob muitos aspectos, prolongamento da visão
religiosa (...), levando-o a avaliar a colonização do ângulo estritamente catequético. Mas a
época e o talento fizeram-no buscar, superando a falsa e afetada epopéia pós
camoniana, um veio quinhentista mais puro, para celebrar a história da sua pátria no
Caramuru (1.781). (...) Ele representa uma posição intermediária importante, por ter
atualizado a linha nativista de celebração da terra, abrindo caminho para sua florescência
no século XIX.”
Para encerrarmos essa visão panorâmica dos autores do nosso Arcadismo,
gostaríamos de fazer um breve comentário sobre O Uraguai de JoBasílio da
Gama (1.741 1.795). A obra, classificada em geral como epopéia (tem sua base
na Eneida, de Virgílio), é na verdade um poema narrativo de cunho bélico, visando
a atacar os jesuítas, que se colocavam contra a escravização dos indígenas pelos
colonos, mas que mantinham, eles próprios, os índios na qualidade de mão-de-
84
obra gratuita, a serviço dos objetivos econômicos da Companhia de Jesus. Os
indígenas aparecem como vitimas das desavenças entre jesuítas e colonos. O
Uraguai assume declaradamente uma atitude pró Pombal e seu autor se coloca
então contra a tradicional orientação catequética e a favor da nova direção estatal.
Ao se colocar ao lado do indígena, esmagado entre interesses opostos, e
elaborar, através da fantasia criadora, um universo plástico onde a natureza
aparece idealizada, a obra de Basílio da Gama, sugere novos rumos à literatura
do século XVIII. Passa a ser um dos momentos–chave da nossa literatura,
descrevendo o encontro de culturas (européia e ameríndia), que, como aponta
Cândido (1.985, p. 99),
“... inspiraria o Romantismo indianista, para depois se desdobrar, como preocupação com
o novo encontro entre a cultura urbanizada e a rústica, até Os Sertões
85
Capítulo IV
Gonzaga lírico: A construção de alteridades nas características árcades da
obra “Marília de Dirceu”.
“Se encontrares louvada uma beleza,
Marília, não lhe invejes a ventura,
Que tens quem leve à mais remota idade
A tua formosura.”
(Lira III, - 3ª Parte, in Marília de Dirceu – Tomás Antônio Gonzaga)
Nossa atenção se voltará, agora, para o trabalho realizado por Gonzaga na
construção de sua lírica, simbolizada pelo livro de poemas “Marília de Dirceu”.
Como dito na introdução, nossa intenção é analisar as características literárias
que marcam o discurso lírico de Gonzaga como representante do Arcadismo
Brasileiro e verificar de que forma o poeta constrói o seu outro “eu” (o eu - lírico) e
em que medida esse outro é ou não reflexo do próprio poeta.
Marília de Dirceu é um livro de poemas de amor escrito por Tomás Antônio
Gonzaga (1.744 1.810), português que viveu, trabalhou e produziu poesia no
Brasil. Escreveu no período literário conhecido como Arcadismo (final do século
XVIII) e respeitou-lhe os cânones. Por volta dos quarenta anos, já respeitado
advogado em Vila Rica (MG), ao fazer uma visita ao amigo Dr. Bernardo da Silva
Serrão conhece sua sobrinha e apaixona-se por ela à primeira vista. Desta visão,
nasceria o amor apaixonado e apaixonante que, infelizmente, não terminou com o
“e foram felizes para sempre” devido à participação do poeta na Conjuração
Mineira.
86
Mas o registro da paixão do magistrado Tomás Antônio Gonzaga,
quarentão, por D.Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, de dezessete anos
aproximadamente, ficaria para sempre eternizado na literatura brasileira nas
figuras dos amantes Dirceu e Marília, pseudônimos criados pelo poeta para
representá-lo e à sua amada, num dos livros de poemas de amor mais lido até
hoje em nossa literatura. Estava preparado o terreno para o florescimento de
Marília de Dirceu. Nas palavras de Antonio Cândido (1.975, pp. 117 118), “não
como escapar ao fato de que, apenas em Vila Rica, a poesia avultou na sua
vida [de Gonzaga]. No Brasil, o homem de estudo, de ambição e de sala, que
provavelmente era, encontrou condições inteiramente novas. Ficou talvez mais
disponível, e o amor por Dorotéia de Seixas o iniciou em ordem nova de
sentimentos: o clássico florescimento da primavera no outono”.
Marília de Dirceu é um livro que consta de três partes: a primeira sobre os
sonhos de amor idealizados por Gonzaga/Dirceu com sua amada,
Dorotéia/Marília, e as esperanças desse amor para o futuro; a segunda, trata dos
desencontros do amor e da vida para o poeta que se encontra na prisão, após ser
preso como inconfidente político; a terceira, dá continuidade aos versos de amor
desencantados (essa terceira parte teve duas edições: uma falsa, em 1.810,
aproveitando-se o sucesso que o livro apresentava, com poemas muito
semelhantes a alguns de Cláudio Manuel da Costa e outra comprovadamente
autenticada pela crítica, em 1.812). É importante frisar que todas as partes do livro
foram publicadas quando o romance entre Gonzaga e Dorotéia havia se
encerrado (a primeira parte foi publicada em 1.792, em Lisboa, quando o poeta
estava preso na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, e a segunda e terceira partes
foram publicadas com o poeta vivendo no exílio, em Moçambique). São poesias
que tratam ora de situações imaginadas e desejadas, ora de experiências vividas
e poetizadas.
Iniciaremos nossas análises, verificando como se a estruturação da obra
enquanto discurso literário. Vale relembrar alguns pontos: ela está situada,
tradicionalmente, do ponto de vista da história da literatura, no Arcadismo
Brasileiro (final do culo XVIII) e tem suas bases literárias, como outras obras
87
árcades produzidas entre nós, no Arcadismo Europeu, notadamente o português,
que revisita as características temáticas e estruturais do Classicismo (século XVI).
Este dado se torna importante para verificarmos em que medida a obra
cumpre os cânones literários da escrita colonial de seu período, uma escrita
oficialmente árcade. Encontramos um poeta que reproduz muito marcadamente as
características do movimento árcade.
1. Presença e imitação da natureza: a poesia bucólica e pastoril.
Antes de atestarmos esta característica na poesia de Gonzaga, lembremos
que os antigos filósofos gregos e romanos, como Aristóteles e Horácio,
entendiam a poesia e as outras artes, incluindo a pintura, como artes de imitação.
Imitar é um exercício, ao mesmo tempo, de inspiração e de racionalidade, que
distingue o homem do animal; copiar não é reproduzir fielmente, pois a mimese,
que toma por base a realidade, distancia-se, seleciona e transpõe o objeto para a
Arte, interagindo com ele. O processo artístico da mimese imita a natureza que
deve ser entendida, neste caso, não como a natureza física, mas tudo que é
natural ao mundo que nos cerca: personagens, características, ações e paixões.
Imitar aproximando-se da verdade (verossimilhança) e extraindo do objeto
imitado suas características mais belas e universais. Ou, no conceito de Horácio,
unir o útil ao agradável, ensinar e provocar prazer estético. Seguir os passos dos
antigos que representavam sabedoria.
Podemos perceber isto nos versos de Gonzaga que se seguem:
“Enquanto pasta, alegre, o manso gado,
minha bela Marília, nos sentemos
à sombra deste cedro levantado.
Um pouco meditemos
na regular beleza,
que em tudo quanto vive nos descobre
a sábia Natureza.”
(Lira 19, Parte I – “Marília de Dirceu”)
88
Perceba-se, neste exemplo, que a Natureza comparece não como um
lugar ideal, que sugere beleza e tranqüilidade, mas como um elemento sábio,
regular e capaz de levar à interação, à meditação do poeta e de sua amada. O
culto ao bucólico, à Natureza, aparece diretamente ligado ao culto da razão e do
razoável, uma vez que aquela deve espelhar estes e servir como modelo de
ensinamento (inspira-se, portanto, na visão do poeta latino Horácio: unir o útil e o
agradável).
A natureza representa esse lugar de regularidade, beleza e tranqüilidade
onde se pode ser feliz, opondo-se ao mundo citadino, opressivo e ao crescimento
das cidades que começavam a marcar a vida das pessoas. É a fuga para o campo
(fugere urbem), o retorno à natureza, a retomada do modelo clássico do
bucolismo, com uma poesia ambientada em um cenário pastoril e marcada pela
simplicidade de escrita (simplicidade que equivale à da vida no campo).
Contestam-se todas as complexidades, tudo o que poderia sugerir a escrita do
Barroco, movimento literário anterior.Tenta-se seguir as odes gregas do poeta
clássico Anacreonte, de formas bastante simples, e cria-se um típico “locus
amenus” (lugar ameno, paraíso bucólico) de aparente harmonia.
“Acaso são estes
os sítios famosos,
aonde passava
os anos gostosos?
São estes os prados,
aonde brincava,
enquanto pastava,
o manso rebanho
que Alceu me deixou?
..................................
Existem as fontes
e os freixos copados;
dão flores os prados,
e corre a cascata,
89
que nunca secou.”
..........................
(Lira 5, Parte I – “Marília de Dirceu”)
É neste “lugar ameno” que o sujeito poético terá não a liberdade de criar
a mimese, como de se introjetar no outro, assumindo as características deste num
processo de alteridade, ainda que artificialmente. É o processo de criação da
pseudonomia, característica bastante forte no Arcadismo: o poeta assume uma
outra identidade que não é dele, abdicando da sua voz própria e da sua biografia,
geralmente sendo um pastor que possa estar harmonicamente situado nesse
“locus”, no cenário pastoril da poesia árcade. Trata-se de uma alegoria atrás da
qual o poeta se esconde.
Atentemos para um comentário acerca da imitação presente na obra de
Gonzaga.Trata-se de uma observação apresentada por Fernando Cristóvão
(2.002, pp. 18 20), professor de literatura brasileira da Faculdade de Letras de
Lisboa, em seu livro sobre a obra “Marília de Dirceu” e com quem concordamos.
Para o catedrático, a avaliação que se costuma fazer da imitação em Gonzaga é
injusta, exatamente por verem nela a simples repetição de modelos clássicos. Em
sua visão, Gonzaga ousou ao falar de seus amores serôdios por Marília, sendo
criativo e original; além disso, apresentou uma escrita particular dentro do
Arcadismo, diferenciando-se da maioria dos autores árcades de seu tempo, e
também foi sem dúvida um homem da sua época: ao escolher modelos clássicos
para imitar, tratar de temas como o apelo à fuga para o campo e à vida simples, a
adoção de um código de valores morais que tinham como base a vida familiar e o
elogio aos poderes constituídos estava agindo de acordo com princípios do seu
tempo e da sua estética literária, indo por vezes além deles, consciente ou
inconscientemente. Não podemos, concordando com Cristóvão, deixar de ver
nesses aspectos uma questão de originalidade.
Reforçando a defesa da originalidade da escrita de Gonzaga, vamos nos
valer de outra opinião abalizada. Trata-se de um estudo de Antonio Cândido sobre
uma das liras de “Marília de Dirceu” (a lira 15, da parte), que comentaremos a
90
seguir, em que o crítico discute, ao final do texto, o que caracteriza a lira e como
Gonzaga lidou com ela.
Após esclarecer que a lira no final do século XVIII, época da escrita árcade
no Brasil, se encontra desprovida de algumas características clássicas iniciais e
que a convenção pastoril, uma de suas normas, também apresenta modificações
em relação à écloga, ndido vai declarar que Gonzaga inova na sua maneira de
construir a lira. Ao contrário da tradição, sua lira suprime não o diálogo entre
pastores, mas os lugares-comuns mais freqüentes, como a referência a sacrifícios
de animais, à oferta de produtos da terra e a entidades protetoras. Sua lira
apresenta antecipadamente algumas características da lírica romântica, embora
conserve o que podemos denominar de “delegação poética”, recurso que consiste
em transferir a manifestação do EU a uma personagem alternativa, o pastor, numa
alteridade “fingida”, pois sob a pele stica do pastor se esconde o poeta
civilizado, e com isto conseguir o afastamento necessário à ilusão poética
(mimese arcádica).
22
2. “Aurea Mediocritas
Gonzaga trabalhará a característica clássica da “aurea mediocritas” (a
presença de uma vida simples, mas rica em dignidade moral) que faz o elogio a
uma vida modesta, campesina, normalmente compartilhada a dois (o poeta e sua
amada, Marília), elevada pelo culto à poesia e ao estudo, como atestam os versos:
“Irás a divertir-te na floresta,
sustentada, Marília, no meu braço;
ali descansarei a quente sesta,
dormindo um leve sono em teu regaço;
enquanto a luta jogam os pastores,
e emparelhados correm nas campinas,
toucarei teus cabelos de boninas,
22
A hipótese de uma “delegação poética” foi formulada por Antonio Cândido, que lhe atribuiu o
poder de manter coesas tanto a consciência histórica do escritor quanto a fidelidade a uma
convenção. “No caso do Brasil, a poesia pastoral tem significado próprio e importante, visto como a
valorização da rusticidade serviu admiravelmente à situação do intelectual de cultura européia num
país semibárbaro , permitindo-lhe justificar de certo modo seu papel.” (Cândido, 1.975, p. 65)
91
nos troncos gravarei os teus louvores
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!”
(Lira 1, Parte I)
“Enquanto revolver os meus consultos,
tu me farás gostosa companhia,
lendo os fatos da sábia, mestra História,
e os cantos da poesia.”
(Lira 3, Parte III )
Reparemos que o eu lírico compartilha de momentos de lazer, ociosos, e
de felicidade com a amada; momentos de amenidades que o auxiliam a se
recompor dos afazeres diários e que são vividos junto à natureza ou coroados
pelos cantos superiores da poesia (características evidentemente arcádicas).
Para aprofundarmos um pouco este aspecto do Arcadismo visto pela ótica
da obra de Gonzaga, vamos a algumas considerações sobre uma das liras mais
conhecidas de “Marília de Dirceu”: a lira 15 da parte da obra (quando o poeta
lamenta sua sorte devido à prisão). Antonio Cândido (1.989, pp. 20 - 37) fez uma
profunda análise do texto que também foi detalhado por Ruedas de la Serna
(1.995, pp. 78 - 91). Estamos utilizando comentários desses autores para
sustentação de nossas explanações.
Para começarmos, lembremos que o tema dessa lira aparece também na
lira 1 (1ª parte) e lira 5 (3ª parte), se seguirmos as edições críticas que tenham por
base o texto selecionado pelo filólogo Manuel Rodrigues Lapa.
Escrita durante o período em que o poeta ficou preso na Ilha das Cobras, a
lira 15 pode ser dividida em 2 momentos, um que vai do verso 1 ao verso 24 e
outro que vai do verso 31 ao 60, sendo que os versos de 25 a 30 formam uma
estrofe intermediária. No primeiro momento, o “pastor” Dirceu se dirige à sua
amada, também “pastora”, Marília, para narrar a vida dele que era próspera e
cercada de respeito (o que também se nas outras liras citadas) e que, por uma
catástrofe do destino, teve seu rumo alterado. Não esclarece a natureza do que
92
lhe aconteceu, apenas opõe sua situação anterior, de prosperidade e felicidade, à
atual, de privações e angústias. No segundo momento, afirma que recomeçará
sua vida, reconstruindo suas finanças, mesmo com pouco dinheiro porque isto
pouco importa, o mais importante é voltar ao convívio da mulher amada e tentar
com ela constituir uma família. Assim, serão felizes até que a morte os separe.
Mas para que isto ocorra existe uma condição, expressa na estrofe intermediária
(versos 25-30): é necessário que a Fortuna (a “sorte”) volte, para que ele se sinta
um novo homem e possa amar a Jove no céu e à Marília na terra. Tudo isto ocorre
num mundo de simplicidade, numa pretensa vida pastoril, objetivo maior do sujeito
poético (a quem poderíamos denominar de “eu – lírico”) e de sua amada.
No entanto, as palavras simples do eu-lírico, reveladoras do sofrimento do
pastor Dirceu, são alegorias de uma outra realidade que não aparece no texto
explicitamente: a verdadeira prisão de Gonzaga, que fez com que ele perdesse
bens financeiros e tivesse sua “fortuna” (sorte) alterada. Além disso, a figura do
pastor também é alegórica, uma vez que o poeta era um homem letrado, refinado,
acostumado a saraus, festas e roupas finas. Assim, como nos fala Ruedas (1.995,
p. 79), citando a opinião de Antonio Cândido (1.989, p. 22):
“só se poderá lograr a compreensão cabal do texto se ao sentido manifesto,
alegórico, justapusermos o sentido implícito, oculto, que, no entanto, sustenta o primeiro.
Para isso, é necessário que o leitor entre no jogo da convenção, que é o miolo da poesia
arcádica”.
E acrescentando suas próprias observações, o pesquisador afirma em sua
tese, na mesma página:
“O mundo dos pastores, acrescentaríamos nós, é o disfarce sob o qual se oculta o
drama pessoal do poeta (Gonzaga), como em uma saturnal versalhesa, a máscara que
esconde a verdadeira identidade do ator. A magia da festa arcádica depende disso e o
jogo consiste em adivinhar o que, ou quem, se oculta detrás da máscara(...)”
Percebe-se, portanto, que para chegarmos à compreensão do texto
arcádico será necessário entender a situação que cerca o texto, o contexto, e se
necessário pesquisar os dados biográficos do poeta (como neste texto de
93
Gonzaga). Temos uma falsa simplicidade de expressão que serve de suporte para
valores complexos, ideológicos.
Se aplicarmos o conceito bakhtiniano sobre o texto poético à lira de
Gonzaga, veremos que, por definição, ela deveria constituir um “monólogo
polissêmico”; no entanto, parece-nos que existe aí uma relação claramente
dialógica, em que os sentidos do texto entram em tensão com sentidos externos a
ele: o texto, por sua própria natureza, contém implicitamente elementos
“extratextuais” inseparáveis dele, que com ele criam tensão, e são necessários à
totalidade da compreensão.
Como afirma Cândido (1.989, p. 32) em seu ensaio, nesta lira “os
elementos de tensão (grifo nosso) constituem princípios estruturantes, núcleos
dinâmicos, acima dos quais predomina o princípio organizador”. As tensões se
dispõem em pares antitéticos (ex. rusticidade x refinamento, enunciado direto x
alegoria, tranqüilidade x desgraça, etc).No entanto, o princípio organizador do
texto, como num movimento dialético, organiza e integra essas tensões
procurando um equilíbrio simétrico na expressão do poema (basta vermos como
ele dispõe os versos todas as estrofes são sextilhas; o ritmo apresenta versos
decassílabos; e o uso das orações adversativas e da pontuação simétrica nas
duas partes do texto).
Se observarmos, então, a lira 1 (parte I) e a lira 5 (da parte III do livro),
veremos ser recorrente o tema da alegoria pastoril que comparecia na lira 15 (da
parte II), com o eu - lírico transfigurado num pastor que se dirige à amada com o
objetivo de emocioná-la. Na referida lira 5, temos a impressão de um exercício de
auto-afirmação do pastor em que ele compara a sua sorte à dos deuses
mitológicos da Antigüidade Clássica ( Apolo e Jove também deliram pela beleza
das ninfas e é a eles que Dirceu segue); na lira 1, o pastor apresenta à amada
seus dotes superiores abastado, respeitado pelos outros pastores da aldeia,
tem caráter boa situação social) e afirma que com a amada (que também possui
dotes físicos superiores) será feliz até que venha feri-los “a mão da Morte”. Nestas
liras, o eu-lírico tem como centro de interesse imediato ele mesmo e de interesse
94
mediato, a amada. Pintam-se cenas que lembram quadros idealizados (a poesia
se assemelha à pintura), com pouca ou nenhuma tensão, numa visão platonizante
de mundo ideal, num verdadeiro cenário bucólico e pastoril (como vimos
anteriormente); a poesia esmais próxima da monologia polissêmica a que se
referia Bakhtin. A alegoria pastoril representada nestas três liras aqui citadas tem
como característica criar um tempo-espaço (cronotopo) no discurso do poema que
possibilite a existência de felicidade e paz, ainda que numa vida modesta, porém
cheia de encantos. Temos, assim, uma variante da aurea mediocritas
(mediocridade dourada), de princípio Horaciano e também comum no Arcadismo.
3. ”Carpe diem”
Outro tópico árcade que aparece na poesia de “Marília de Dirceu” é o carpe
diem (aproveitar o momento presente) que os poetas do Arcadismo recuperaram
da poesia barroca, baseando-se novamente em pensamento de Horácio (“goza o
95
nos castos peitos
de dia em dia
a nossa chama
mais se acendia
..................................
Assim vivia;
hoje em suspiros
o canto mudo:
assim, Marília,
se acaba tudo!”
(Lira 9, Parte II)
Vemos, na lira 14 (Parte 1), que o pastor Dirceu convida a pastora amada,
Marília, a aproveitarem juntos o tempo de amor que têm, a não confiarem no
futuro, pois ele rouba a graça e a vida das pessoas. Eles devem aproveitar a vida
antes que suas “estrelas” (destinos) mudem. Vale relembrarmos aqui que, na vida
real, o nosso poeta Gonzaga é um quarentão e a amada, Maria Dorotéia, uma
adolescente. Expressa-se, desta forma, uma preocupação do poeta com o “tempo
que passa” e o receio de que algo venha a ser obstáculo na realização desse
amor serôdio.
Na lira 9 (Parte 2), o poeta pastor contrasta o passado com o presente e
mostra a crueldade do tempo atual que acabara com tudo, toda esperança de
concretização daquele amor. São elementos dialeticamente opostos que o tempo
trata de unir de forma inevitável. É a marca da tensão, do contraste “barroco”, que
permeia a vida humana, portanto um elemento UNIVERSAL, que faz parte da
NATUREZA humana.
4. Figuras Mitológicas.
Encontram-se também, nesta poesia, alusões a figuras mitológicas da
Antigüidade Clássica, recurso comum ao Classicismo, retomado pelo Arcadismo
do século XVIII. Por meio desta característica, o poeta setecentista recupera a
visão da cultura greco latina sobre a formação do Universo, os deuses e sua
relação com os Homens, em que, muitas vezes, homens e deuses se equiparam
96
em seus destinos. Este é um recurso bastante recorrente na rica gonzaguiana e
que atesta certa intimidade do poeta na referência a esses elementos. Como
ilustram os versos adiante:
“Pela ninfa, que jaz vertida em louro,
o grande deus Apolo não delira?
Jove, mudado em touro
E já mudado em velha não suspira?
Seguir aos deuses 4.330529.o
o 41a
97
coração e sua alma poética, de pastor. Marília é, na opinião de Dirceu, o modelo
original do Amor e Cupido apenas uma suposta cópia desse sentimento humano.
“Tu, Marília, agora vendo
De Amor o lindo retrato,
Contigo estarás dizendo,
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é Deus suposto:
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu.”
Após esta primeira visão de Amor, as referências voltam à conotação
mitológica, ou seja, Amor passa a estar associado a Cupido novamente, aquele a
quem até os corações humanos mais brutos se sujeitam. E também Dirceu, que
pede auxílio constante a Amor, para que este interfira a seu favor junto à Marília,
muitas vezes descuidada e cruel em seus sentimentos.
“Vou retratar a Marília,
A Maríllia, meus amores;
Porém, como? Se eu não vejo
Quem me empreste as finas cores:
............................................................
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.”
(Lira 7, Parte I )
“Apenas lhe morde,
Marília gritando,
C’o dedo fugiu.
Amor, que no bosque
Estava brincando,
Aos ais acudiu.
..........................................................
98
“Se tu por tão pouco
“O pranto desatas,
“Ah! dá-me atenção;
“E como daquele,
“Que feres, e matas,
“Não tens compaixão?
(Lira 20, Parte I )
Mesmo na parte, quando Dirceu se encontra preso, Amor é seu parceiro
de sofrimento e cuida de ajudá-lo, quando possível.
“Não molho, Marília,
De pranto a masmorra
Que o terno Cupido
Não voe, e não corra,
A i-lo apanhar.
Estende-o nas asas,
Sobre ele suspira,
Por fim se retira,
E vai-to levar.”
(Lira 18, Parte II )
“Nesta triste masmorra,
De um semivivo corpo sepultura,
Inda, Marília, adoro
A tua formusura.
Amor na minha idéia te retrata;
Busca extremoso, que eu assim resista
À dor imensa, que me cerca, e mata”.
(Lira 19, Parte II )
Diz-me Cupido: “Já basta,
“Já basta, Dirceu, de pranto;
“Em obséquio de Marília
“Vai tecer teu doce canto.
Pendem as fontes dos olhos,
Mas eu sempre vou cantar.
99
(Lira 20, Parte II )
Ou ainda na parte, em que o eu lírico reflete sobre a importância dos
ensinamentos de Cupido aos que amam, como ele.
“Ah! ensina, sim, ensina
Ao vil mortal atrevido,
E ao peito que adora terno,
Que tem, para um o Inferno
Para outro um Céu, Cupido.
Ao resto Amor me convida,
Eu chorando a mão lhe beijo,
E lhe digo: Amor, perdoa
Não seguir-te; pois não voa
A ver mais o meu desejo.”
(Lira 1, Parte II I)
Realmente, para uns havia o Céu, para outros, o Inferno. E é a Fortuna
(destino), outra figura mitológica recorrente no texto, que conscientiza Dirceu na
sua sorte. Ela faz com que o pastor Dirceu tenha uma vida abastada, trabalhando
tranqüilamente nos seus consultos jurídicos, como homem de letras e leis,
reconhecido socialmente por seus pares e invejado por alguns, devido à sua sorte.
Esta vida idealizada é “pintada” com tons suaves de aquarela na parte dos
poemas. Quando sua situação de vida muda e o pastor – poeta é enclausurado na
Ilha das Cobras, a Fortuna o abandona. Como lembra Ruedas de la Serna (1.995,
pp. 101 – 102), ao comentar a sorte de Dirceu / Gonzaga:
“A Fortuna, que antes lhe sorria, converteu-se em sua inimiga. Em sua cela de prisioneiro,
começam a perturbá-lo imagens sinistras, seguramente não isentas de penas de consciência”,
que o fazem “humildemente” confessar seu temor de estar totalmente abandonado
aos perigos da realidade que o cerca.
“Humildemente lhe respondo: - Quem debaixo
do açoite da Fortuna aflito geme,
nas mesmas coisas que só são brinquedos
se agoiram males, teme.”
100
(Lira 10, Parte II )
Tem-se, aqui, a figura do preso e magistrado, que é certamente mais
Gonzaga que Dirceu, simbolizando o homem solitário com sua consciência e que
tem de enfrentar um mundo cruel, movido pelo arbítrio e capricho da Fortuna, que
é cega, assemelhando-se muito à outra deusa mitológica, que Gonzaga conheceu
bem em sua atividade de jurista, a Justiça. É outra vez Ruedas que observa (pp.
102 – 103):
“Já é o homem com sua conciência e enfrentando o mundo que o rodeia. Esse
mundo que é movido, caprichosa e arbitrariamente, pela Fortuna, que é cega e, por isso
mesmo, se confunde e se assimila a essa outra deusa, Astréia (a Justiça), que “traz nos
olhos a venda / balança numa mão, na outra espada”, e que a ele, que foi seu êmulo e seu
discípulo, e, em seu nome, soube dirimir os pleitos, dá as costas:
Ah! vai-te, então lhe digo, vai-te embora;
Melhor, minha Marília,
Eu gastasse contigo, mais esta hora.”
(Lira 38, Parte II )
5. ”Inutilia Truncat”
Em relação à construção dos versos, percebemos que Gonzaga segue
igualmente outra orientação árcade: o “inutilia truncat” (eliminação do inútil,
entendido aqui principalmente como a eliminação dos exageros da escrita barroca
pelo Arcadismo).
Esta forma de escrita cria um meio termo entre o Barroco e o Arcadismo,
o “estilo rococó”. O rococó reduz o caráter grandioso e dinâmico do Barroco,
transformando-o em ornamento delicado, submetido a normas de simetria
clássica. É uma espécie de “realismo decorativo”, com detalhes graciosamente
naturais e leveza de estilo.
Na primeira parte das liras de “Marília de Dirceu”, em que o poeta confessa
seu amor à amada e planeja toda uma vida a dois, encontram-se poemas de
expressão rococó, com uma estrutura bem simples, bem delineada e harmônica
101
em que aparecem detalhes (imagens) que se entrelaçam como um “arabesco”.
Vejamos, por exemplo, o poema que começa com a descrição de um suave
quadro bucólico: “Em uma frondosa / roseira se abria / um negro botão. / Marília
adorada / o pé lhe torcia / com a branca mão”. Na estrofe seguinte,
outros novos
detalhes vão sendo acrescentados e entrelaçados: “Nas folhas viçosas / a abelha
enraivada / o corpo escondeu. / Tocou-lhe Marília, / na mão descuidada / a fera
mordeu.” A estas imagens segue-se a da presença de Vênus (símbolo do Amor),
nas duas estrofes posteriores, que a tudo observa e que, então, dirige-se à
Marília: “Se tu por tão pouco / o pranto desatas, / ah!
dá-me atenção; / e como
daquele, / que feres, e
matas, não
tens compaixão?”
(Lira 20, Parte I
)
.
Tudo isto
fornece um tom de leveza e graça natural à composição poética.
Nota-se também que a poesia do autor recria à sua maneira a ode
anacreôntica, com poemas de versos breves. Alguns destes versos são bem
curtos, apresentando quatro ou cinco sílabas poéticas e um ritmo
binário de
acentuação, produzindo quase sempre um ritmo melódico monótono:
“A/ca/so /são/ es /tes os /si/tios / for/mo/sos...
Estes são versos em que normalmente se mostra a relação do poeta com a
Natureza e onde se pode conceber a presença de um eu lírico, qualidade da
linguagem primeira do texto poético.
Outros versos apresentam uma estrutura mais longa e mais variada, seja
na métrica, seja no ritmo: alternam-se, com freqüência, versos decassílabos e
hexassílabos. Estas espécies de versos permitem um tom mais elevado de
linguagem, em que a elocução de Dirceu à Marília ganha certa intimidade solene.
As observações do poeta adquirem relevo e o canto amoroso passa a ser veículo
para outros temas, mais universais e reflexivos, como a brevidade da vida, o
elogio à vida regular e simples, a preocupação com a velhice (o “porvir”).
“Não / vês / a / que/ le/ ve/ lho/res/pei/tá/vel
que, à /um/lê/ta/ em/cos/ta/do
a/pe/nas/mal/se/mo/vê e /mal/se a/rras/ta?”
102
Esta alternância de versos pentassílabos (medida “velha”, do
Trovadorismo) com versos decassílabos (medida “nova”, do Classicismo) retoma,
em parte, um modelo clássico de escrita herdado de Camões.
Além da dicotomia versos breves versos longos, comparecem, na maioria
das liras, refrões (versos finais repetitivos das estrofes) que retomam idéias ou
questionamentos sicos do poeta lançados ao longo da lira e que vão marcar
outra característica neoclássica: a simetria dos versos.
Vejamos os exemplos das liras 5 (parte III) e 21 (parte I) de “Marília de
Dirceu”:
“A Cresso não igualo no tesouro;
mas deu-me a sorte com que honrado viva
..................................................................
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!
Pretendam Anibais honrar a História,
e cinjam com a mão, de sangue cheia,
os louros da vitória;
eu revolvo os teus dons na minha idéia:
só dons que vêm do céu são minha glória.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!”
(Lira 5, Parte III)
“Não sei, Marília, que tenho,
depois que vi o teu rosto,
pois quanto não é Marília
já não posso ver com gosto.
................................................
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de amor?
103
Se estou, Marília, contigo,
não tenho um leve cuidado;
nem me lembra se são horas
de levar à fonte o gado.
..............................................
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de amor?
(Lira 21, Parte I )
Como afirma Pound (2.003, p. 155), “a simetria ou as formas estróficas
aconteceram naturalmente na poesia lírica quando um homem estava cantando
um poema longo ao som de uma melodia curta, que ele tinha de repetir muitas
vezes. A simetria não tem nenhum tabu nem é nenhuma entidade sacrossanta. É
um dos muitos artifícios, algumas vezes mero expediente, outras vezes recurso
vantajoso para certos efeitos.” (grifo nosso)
No caso do poema de Gonzaga, percebe-se esta dupla utilização do efeito
simétrico, representado pelos refrões: ora o refrão é mero expediente arcádico,
ora pretende expressar os sentimentos ou a filosofia de vida do poeta (como
marcado nos exemplos das liras anteriores).
O uso da simetria (ou similaridade) nas construções comprova uma das
características poéticas do texto, marca da função poética da linguagem. Samira
Chalhub (2.003, p. 40), professora e pesquisadora na área de literatura,
demonstra que a similaridade é um princípio que revela a poeticidade do texto e
pode ser exercida no sintagma em vários níveis (sonoro, lexical, sintático e mesmo
retórico, com figuras de linguagem que chamam a atenção para o próprio texto). A
estudiosa, relembrando ainda as palavras de Roman Jakobson, recorda que “A
função poética projeta o princípio de equivalência do eixo da seleção no eixo da
combinação” e que quando o poeta seleciona e combina as palavras escolhe
dentre (ou por “entre”) os elementos propostos no código lingüístico aqueles que
vai utilizar para compor o sintagma, a combinatória, orientando-os para a
intencionalidade de seu texto. E esta “consciência poética” encontramos no texto
de Gonzaga, com todos os seus artificialismos e ideologias.
104
Poderíamos, assim, afirmar que Tomás Antonio Gonzaga, pelas
características analisadas até agora, cumpre o papel de promulgador das
características tradicionais da poesia árcade no Brasil. O poeta realiza um trabalho
artístico que se fundamenta na mimese aristotélica, re-presentificando uma
realidade imaginada por ele, imitando um mundo ideal, equilibrado, natural, que se
aproxima da Arcádia grega, na Antigüidade Clássica. Atua, desta maneira, como
criador de um mundo “fingido” que parece se afastar do mundo real, do Brasil
Colonial em que vivia o poeta.
6. A imagem lírica de Marília: o ideal.
Como vimos, Marília é o pseudônimo dado por Gonzaga à figura de Maria
Dorotéia, sua amada. Essa figura convive com a de Dirceu num cenário bucólico,
onde se procura a harmonia de um amor idealizado pelo pastor, dentro das
convenções arcádicas. A celebrar tal amor estão a natureza e os deuses que
compactuam com ele.
“Minha Marília
Se tens beleza,
Da Natureza
É um favor.
Mas se aos vindouros
Teu nome passa,
É só por graça
Do Deus de amor,
Que tanto inflama
A mente, o peito
Do teu Pastor.”
(Lira 31, Parte I )
“Junto a uma clara fonte
A mão de Amor se assentou,
Encostou na mão o rosto,
No leve sono pegou.
105
Cupido, que a viu de longe,
Contente ao lugar correu;
Cuidando que era Marília
Na face um beijo lhe deu.”
(Lira 30, Parte I )
Ela aparece descrita também como uma “pastora” que compartilha as
expectativas do amado. Curioso é que ora ela surge como uma presença física,
sentida, e concretizada como um “tu”, receptor dos versos de Dirceu:
“Quando à janela saíres,
sem quereres, descuidada,
tu verás, Marília, a minha,
a minha pobre morada.”
(Lira 12, Parte II)
“Fito os olhos na janela,
aonde, Marília bela,
tu chegas ao fim do dia.”
(Lira 21, Parte I )
ora é apenas a mulher amada, “ela”, que carrega consigo características
genéricas que fogem a qualquer detalhamento:
“É melhor, minha Bela, ser lembrada
Por quantos hão de vir sábios humanos,
Que ter urcos, ter coches, e tesouros,
Que morrem com os anos.”
(Lira 22, Parte I )
“Eu vejo, ó minha Bela, aquele Nume
A quem o nome deram de Fortuna;
Pega-me pelo braço,
E com voz importuna
Me diz que mova o passo;
Que entre no grande Templo, em que se encerra
Quanto o destino manda,
Que ela obre sobre a terra.
106
(Lira 8, Parte II )
Importante é assinalarmos que tanto como presença física quanto como o
tema da poesia de Gonzaga, Marília tende a ser descrita como imagem, mais do
que como pessoa, ou seja, quando Gonzaga se dirige a ela, não existe réplica por
parte de Marília e quando esta se torna simples assunto de idealização do poeta
(a “não-pessoa” a que se refere Benveniste), descaracteriza-se como receptor (o
“tu” da enunciação).
São várias as referências à amada e a maioria delas diz respeito à sua
figura física, como se o poeta tentasse pintar o retrato de Marília. A composição da
figura nesse retrato é harmônica, percebendo-se em primeiro plano elementos
como os olhos, o peito e em menor proporção os braços, as mãos, os dedos, os
lábios (“beiços”) e os dentes que quase não aparecem. Descrições desses
elementos quando ligados à sensualidade o raros e isto acaba por aumentar a
espiritualização da figura de Marília. “Um retrato que olha delicadamente, em
suaves adornos, mas não fala”, como nota Fernando Cristóvão em obra referida
(2.002, p. 64) Um retrato discreto da mulher amada que poderia supor a
representação ideal de mulher e de amor, adotada pelo poeta segundo as
convenções literárias do momento e as suas próprias convenções, reveladoras da
tradicionalidade. No entanto, ao lado desse retrato, outro, se bem que menos
freqüente, que parece mostrar mais sensualidade e frescor em relação à figura de
Marília e que escapa ao convencionalismo estético observado e às formas rígidas
e controladas da poesia árcade.
Quando apareces
Na madrugada,
Mal embrulhada
Na larga roupa,
E desgrenhada,
Sem fita ou flor;
Ah! Que então brilha
A natureza!
Então se mostra
107
Tua beleza
Inda maior.
(Lira 17, Parte I )
A porta abria,
Inda esfregando
Os olhos belos,
Sem flor, nem fita
Nos seus cabelos.
Ah! que assim mesmo
Sem compostura,
É mais formosa
Que a estrela-d’alva,
Que a fresca rosa!
(Lira 9, Parte II )
Interessante perceber-se que os traços suaves da figura de Marília
aparecem geralmente associados a elementos que indicam preciosidade (as flores
jasmim branco, lírios, rosas; pérolas, cristal, marfim), tingidos pelo branco ou por
tons de cores suaves, que podem ser encontrados na natureza.
“Vou retratar a Marília,
A Marília, meus amores;
Porém como? se eu não vejo
Quem me empreste as finas cores:
Dar-mas a terra não pode;
Não, que a sua cor mimosa
Vence o lírio, vence a rosa,
O jasmim, e as outras flores.
(Lira 7, Parte I )
Na verdade, o branco revela tanto a suavidade feminina da donzela Marília
como uma condição essencial para ser a eleita de Gonzaga/Dirceu. Elemento
distintivo de categorias sociais, numa sociedade colonial e racista, a cor branca
marca a superioridade dos amantes. Isto vem confirmado em versos em que
108
Dirceu orgulha-se de não ser simples vaqueiro e não precisar separar a areia do
pesado esmeril ou enrolar pacotes de fumo como os negros e Marília não precisar
trabalhar, poder cuidar dos futuros filhos e se ocupar de ler histórias para eles por
ser uma dama da sociedade branca. Como observa Olga de Sá, professora de
Estética da Literatura, em seu artigo sobre a poesia dos inconfidentes, tomando
como base o início do poema:
“Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Papoila, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo bálsamo vapora.
Ah! não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual Tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!”
(Lira 1, Parte I )
“A luz dos olhos de Marília é mais brilhante que a luz do sol. Marília provavelmente
era morena (isto se verifica em versos de algumas liras em que há referências aos longos
cabelos negros de Marília). Porém ser loira era um topoi” da literatura. Eram lindas as
mulheres loiras; em inglês “fair” quer dizer loira e bela. O corpo de Marília rescende a
bálsamo.
Marília deixa de ser simplesmente uma presença física da mulher amada para se
tornar um símbolo “áureo” do amor, visto sob a ótica do Arcadismo” (1.989. p. 12)
Antônio Cândido, em seu Formação da Literatura Brasileira – volume 1
(1.975, pp. 114 - 118), assinala que a amada de Gonzaga, Dorotéia, “se
desindividualizou para ser absorvida na convenção arcádica: é a pastora Marília,
objeto ideal de poesia, sem existência concreta”, apenas um tema da poesia
árcade, que permite descrevê-la ora com cabelos negros, ora com cabelos loiros,
despersonificada, numa espécie de “ingênuo escândalo”, como ao fato se refere o
também crítico e literato Alfredo Bosi na História Concisa da Literatura Brasileira
(1.980, p. 80).
109
Esta visão mítica de Dorotéia trans formada em “Marília”, mito feminino,
marca todo o poema, notadamente a parte, onde a amada é alvo das
declarações e projeções do amor de “Dirceu”, eu – lírico do texto.
É interessante notar que o poeta contrasta a descrição mítica cautelosa que
faz de Marília, com um senso de realidade com que a integra na vida social,
salientando a nobreza da paz e da serenidade advinda da razão humana, e
valorizando o sentimento natural do amor, como observa A. Cândido (1.975, p.
122):
“Um pouco meditemos
na regular beleza,
que em tudo quanto vive, nos descobre
a sábia Natureza.”
(Lira 19, Parte I )
Verás em cima da espaçosa mesa
Altos volumes de enredados feitos;
Ver-me-ás folhear os grandes livros,
E decidir os pleitos.
Enquanto revolver os meus consultos,
Tu me farás gostosa companhia,
Lendo os fatos da sábia mestra história,
E os cantos da poesia.”
(Lira 3, Parte III )
Desta maneira, o eu lírico concretiza a presença do outro (a alteridade),
através das palavras, a figura de Marília presente na natureza física e na natureza
social, elementos com os quais Dirceu mantém um “idílio amoroso”. Neste
aspecto, podemos afirmar que o convívio amoroso, na obra de Gonzaga, dignifica
“os sentimentos quotidianos, superando os disfarces alegóricos [pseudônimos]
que o Arcadismo herdou da poesia seiscentista e quinhentista” (Cândido, 1.975, p.
118). Vemos, então, uma Marília presentificada nas liras, que tem relação direta
com a adolescente de dezessete anos, noiva e amada do poeta. Entre os árcades
110
brasileiros, esta relação amorosa entre Gonzaga / “Dirceu” e Dorotéia/ “Marília”
trará uma novidade para o estilo neoclássico: uma poesia em que emerge um
lirismo pessoal, de impacto emocional sobre o leitor.
Em relação ao uso que o poeta faz do pseudônimo Marília, devemos ainda
destacar que aparece relacionado a outros nomes femininos, como Nise ou Laura,
provavelmente “musas” de Dirceu/Gonzaga anteriores à convivência com Marília/
Maria Dorotéia ou ainda representado no pseudônimo Dircéia (provavelmente
outro nome que Dirceu utilizava para se referir à Marília). Este processo identifica
a presença do uso da intertextualidade, uma vez que tais pseudônimos foram
utilizados também por autores clássicos ou neoclássicos.
A intertextualidade
também está presente quando o poeta retoma textos de outros poetas ou fala de
mitos e deuses da Antigüidade Clássica.
7. A imagem lírica de Dirceu: o duplo personagem
Gonzaga/Dirceu se anuncia nas liras de Marília de Dirceu logo no primeiro
verso da primeira lira, expresso no pronome pessoal EU, que marcará toda a
orientação argumentativa do texto. E também se auto-define para sua amada,
demonstrando, logo de início, a sua superioridade diante de outros que possam ter
alguma semelhança com ele.
“Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite,
Das brancas ovelhinhas tira o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!”
(Lira 1, Parte I )
Como observa (1.989, p. 14), em artigo citado, a cena descrita e a
apresentação de Dirceu, pseudônimo árcade de Gonzaga, causam certo
111
“estranhamento” ao leitor brasileiro, uma vez que a referência ao pastor não leva à
atividade própria de nossa realidade, e também o fato de esse pastor ter um sítio
(propriedade rural = “casal”) em terras brasileiras que produza vinho, azeite e lã,
produtos mais próximos da realidade européia. Assim, Dirceu declara sua
diferença social, apesar de ser um “pastor” (trabalhador humilde), apresenta
distinção e nobreza, graças ao destino, à estrela, que o ilumina e lhe
esclarecimento e cultura (vale lembrar que o período é influenciado pelas idéias
iluministas francesas, que privilegiam a razão sobre outras características da vida
humana). Todos os elementos da cena descrita levam a um lugar e a um tempo
distantes da nossa realidade, criando um mundo mítico, a Arcádia, um local grego
em que pastores convivem, declamando poemas, num ambiente simples,
campestre, com uma vida ideal. Utilizando Bakhtin, diríamos que se tem um
cronotopo de mundo e tempo idealizados.
A idealização da pessoa do poeta continua na figura de Dirceu que, além
das vantagens financeiras, também possui beleza (mesmo quarentão) e
habilidades várias, desde o uso da palavra ao domínio da música, sendo por
isso muito respeitado por seus pares.
“Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado;
Os Pastores, que habitam este monte,
Respeitam o poder do meu cajado.”
“Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja me tem o próprio Alceste;
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!”
(Lira 1, Parte I )
112
Dirceu também se mostra uma pessoa de bom caráter e de bom coração,
humilde em muitos momentos, e que talvez por este motivo desperte a inveja dos
poderosos.
“Esprema a vil calúnia muito embora
Entre as mãos denegridas, e insolentes,
Os venenos das plantas,
E das bravas serpentes.
Chovam raios e raios, no meu rosto
Não hás de ver, Marília, o medo escrito:
O medo perturbador,
Que infunde o vil delito.
Podem muito, conheço, podem muito,
As fúrias, que Pluto move;
Mas pode mais que todas
Um dedo só de Jove.
Eu tenho um coração maior que o mundo!
Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração..., e basta,
Onde tu mesma cabes.”
(Lira 2, Parte II )
Percebe-se no poema que, mesmo atacado por intrigas e calúnias dos
poderosos (os movidos pelo deus da riqueza, Pluto), Dirceu não se abala, pois se
sustenta na força de Jove e no valor de um coração bondoso como o que ele
mesmo possui, onde todos cabem, principalmente a amada, Marília.
Historicamente, Gonzaga participou do movimento de insurreição mineira
contra a Coroa Portuguesa, a Conjuração Mineira, mais como um intelectual
contemplativo do que um membro realmente conspirador. Conhecedor dos altos
riscos que esse movimento político social representava para os conspiradores,
consciente de que poderia ser preso a qualquer momento e terminar seus dias na
113
masmorra, o poeta pastor apela à sua amada para que aproveitem o tempo que
lhes falta. Mais uma vez, o pastor Dirceu se apresenta como porta voz do poeta
Gonzaga e de suas preocupações; faz-se necessário viver o momento presente
enquanto ele oferece liberdade para agir e amar na sua plenitude. É a marca do
carpe diem, característica árcade, já discutida anteriormente.
“Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
.............................................................
Ah! enquanto os Destinos impiedosos
Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
(Lira 14, Parte I)
Este fato nos leva a pensar efetivamente na possibilidade de projeção da
personalidade de Gonzaga nas ações e desejos de Dirceu. Uma projeção
autobiográfica que poderia nos levar a procurar o pastor e descobrir o poeta ou
procurarmos o poeta e sermos remetidos ao pastor.
A ficção pastoril e a projeção autobiográfica, embora fenômenos de ordem
aparentemente diversa, acabam por se aproximar no centro da história de Dirceu
que é Gonzaga e vice-versa. Poderíamos declarar que, neste caso, o uso do
elemento biográfico, não convencional às normas do Arcadismo, provocando uma
ruptura no equilíbrio estético neoclássico, surge como uma resposta do EU que,
por princípio, não parece aceitar a impessoalidade das convenções. Esse “eu” que
se faz pessoal e lírico, ao mesmo tempo, reprocessa o literário e o projeta no
mundo exterior, definindo-o segundo suas concepções. Temos, então, um dado da
escrita de Gonzaga que pode começar a responder à nossa questão: parece-nos
que uma faceta da personalidade de Gonzaga está introjetada no eu-lírico
representado por Dirceu.
Antonio Cândido, tratando deste aspecto, dirá:
114
“Gonzaga surge, vivo, de sob o tênue disfarce do pastor Dirceu, e a sua obra é a única,
entre as dos árcades, que permite acompanhar um drama pessoal e as linhas duma
biografia.”(Cândido, 1.975, p. 123).
Neste aspecto, Bosi (1.980, pp.
79 - 80), ao comentar a poética de
Gonzaga, fará algumas ressalvas: “O ponto de mediação entre o desembargador
e o poeta acha-se no tipo de personalidade que se poderia definir, negativamente,
como não-romântica”, e “Assim, a figura de Marília, os amores ainda não
realizados e a mágoa da separação entram apenas como “ocasiões” no
cancioneiro de Dirceu. Não se ordenam em um crescendo emotivo.” Importante é
a forma como o poeta Gonzaga (eu), re–presentificado no “eu lírico” Dirceu (tu),
constrói esse idílio amoroso.
Enquanto tem posição social e liberdade (vale lembrar que Gonzaga foi
ouvidor em Vila Rica, MG), o poeta celebra Dorotéia em seus versos,
caracterizando-a como a Marília-pastora, suave e participante de uma vida
bucólica ideal, sonhada a dois. Isto acontece em versos curtos e poemas na
maioria anacreônticos, com um amaneiramento rococó.
Quando o poeta é preso como inconfidente, as liras escritas por ele na
parte (fase da prisão) apresentam um “eu lírico” que evoca sua amada a toda
hora, mas ela serve apenas de pretexto para destacar a figura do próprio poeta,
atingido pela fatalidade do destino. A maioria das liras desta parte, 21 a 38, dá
relevância à figura de Gonzaga/ “Dirceu” e somente 10 liras têm como motivação
poética o puro enleio amoroso. Como analisa novamente Cândido (1.975, p. 125),
“a sua grande mensagem (da poesia de Gonzaga) é construída em torno dele
próprio; não apenas da sua paixão, que entra muitas vezes como ponto de partida
e ingrediente, mas da sua personalidade total, amadurecida e de certo modo
recomposta pelo amor, a poesia, a política e a desgraça que veio encontrar
misturados na decadente Vila Rica de Ouro Preto.” (grifo nosso). Na forma de
escrita, os versos utilizados pelo “eu – lírico” aparecem em medidas maiores e são
mais reflexivos.
Nas liras que tratam do sofrimento do poeta na masmorra, a autenticidade
biográfica, o fato histórico, a paisagem mineira com suas características se fazem
115
presentes, para destacar o indivíduo Gonzaga, alvo da atenção dessas liras. O
traço individualista do poeta aparece, agora, imbricado com um realismo vivido por
ele, e se desfaz o cunho de “delegação poética” dado ao pastor, predominante nas
liras da primeira parte, ao mesmo tempo em que a poesia se distancia dos
padrões anacreônticos e do caráter rococó, em que se pretendia “cantar” uma
pastora incaracterística, de caráter vago.
Gonzaga/Dirceu discursa para uma Dorotéia/Marília que é a sua amada, o
seu mito amoroso, e também a possibilidade de ele alcançar a felicidade plena
(amorosa e social). A mulher idealizada (e ideal) é a que se encontra
intrinsecamente ligada à Natureza descrita no poema, que o poeta também
endeusa dentro dos princípios neoclássicos e com quem também “dialoga”. Isto
ocorre freqüentemente na 1ª parte da obra.
É interessante observar ainda, durante todo o poema, referências
freqüentes de Dirceu a Glauceste (denominado em algumas liras por Alceste), ao
que tudo indica um pseudônimo árcade criado por Gonzaga para representar seu
amigo Cláudio Manuel da Costa. Criam-se, assim, relações de alteridade:
alteridade entre o “eu – lírico” e a amada, entre o “eu lírico” e a natureza, entre o
“eu lírico” e a voz do amigo. Estas relações constituem um dos fundamentos do
dialogismo bakhtiniano (no conceito das consciências múltiplas presentificadas no
texto), em que um sujeito (o eu lírico) entra em contraste, em complementação,
com outro(s) sujeito(s) (a amada, a natureza, o amigo), provocando relações intra
e extratextuais, relações entre o seu particular subjetivo e o intersubjetivo que o
compõem, relações entre os sujeitos e as ideologias (lembrando que a ideologia
como um produto social também é dialógica). Na escrita do poema, estas formas
de alteridade vêm, muitas vezes, marcadas pelos refrões.
Exemplos:
“Acaso são estes
Os sítios formosos,
Aonde passava
Os anos gostosos?
............................
116
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Espera, que eu vou”
(Refrão em que o poeta dialoga, ao mesmo tempo, com
a Natureza e com a amada).
(Lira 5, Parte I )
“Marília, teus olhos
São réus, e culpados,
Que sofra, e que beije
Os ferros pesados
De injusto Senhor.
Marília, escuta
Um triste pastor
” (Diálogo com Marília)
(Lira 4, Parte I )
“Pega na lira sonora,
Pega, meu caro Glauceste;
E ferindo as cordas de ouro,
Mostra aos rústicos Pastores
A formosura celeste
De Marília, meus amores.
Ah! pinta, pinta
A minha Bela!
E em nada a cópia
Se afaste dela
(Diálogo com Glauceste)
(Lira 33, Parte I )
Meu prezado Glauceste,
Se fazes o conceito,
Que, bem que réu, abrigo
A cândida virtude no meu peito;
Se julgas, digo, que mereço ainda
Da tua mão socorro,
Ah! vem dar-mo agora,
Agora sim que morro.
(Lira 7, Parte II )
117
No entanto, a forma de alteridade mais importante no texto do poema talvez
seja a que se estabelece entre Gonzaga e Dirceu, seu pseudônimo. Poderíamos
afirmar que o pastor Dirceu “contra cena” com o poeta Gonzaga, assim como
Dirceu, “cantor” de Marília, tem seu duplo em si mesmo, com quem dialoga, a
ponto de podermos dizer que existe um “Dirceu de Marília” em Marília de Dirceu,
principalmente nas liras da masmorra.
Em relação ainda ao conceito bakhtiniano de cronotopo, verificamos que os
versos líricos de Gonzaga fazem referências à Marília e à natureza, procedendo a
um tempo histórico (o tempo do amor maduro de Dirceu pela adolescente, que é
interrompido por sua prisão a partir do desvelamento da Conjuração Mineira) e a
um espaço delimitado (a antiga Vila Rica, caminho do ouro e da poesia áurea dos
árcades brasileiros). Tempo e espaço confluem, aqui, para criar conflitos e
imagens poéticas que Gonzaga utilizará em seu poema. Inclusive a imagem de
Marília aparecerá concretizada, numa realidade passível de reconstrução, que
percorre os caminhos de Vila Rica, numa espécie de “topografia gica do antigo
amor” (de Dirceu). E quando na prisão, o poeta tentará reconstruir um “topos
doméstico” e um momento em que era feliz junto à amada, idealizando uma vida
conjugal e uma velhice tranqüilas. Há, assim, a criação de uma espécie de
“cronotopia mítica” em relação à Marília e ao amor e que reforça a cronotopia
árcade a que nos referimos anteriormente.
Parece-nos que, na parte da obra, Dirceu se preocupa realmente em
mostrar um cenário pastoril idealizado mitologicamente, um lugar edênico, onde
elementos como a natureza, os pastores, os deuses, o amigo e Marília anunciam
um mundo de felicidades justas. É o sonho do pastor e do poeta que se faz
através de liras a que poderíamos denominar de “ingênuas” e que Bakhtin
consideraria intransitivas porque supõem um olhar pessoal e monológico.
na parte, em que o poeta, preso na masmorra, toma o lugar do pastor
e vive consciente e solitariamente o drama de uma realidade de conflitos, perdas e
queixas diante da má-sorte de sua estrela, o tom de suas liras se altera. Temos
agora um poeta que dialoga com a sua existência, filosofa sobre seus infortúnios,
118
em poemas que expressam claro conflito temático. A poesia passa ao lirismo
sentimental e se aproxima mais do dialogismo próprio da poesia romântica que
definiria o período literário seguinte. Daí, podermos afirmar que Gonzaga
apresenta, nessa 2ª parte, um conjunto de liras que descaracteriza estilisticamente
os poemas da parte e que são pré-românticas. Vejamos isto nas liras que
seguem:
“Nesta triste masmorra,
De um semivivo corpo sepultura,
Inda, Marília, adoro
A tua formosura.
Amor na minha idéia te retrata;
Busca extremoso, que eu assim resista
À dor imensa, que me cerca, e mata”.
(Lira 19, Parte II )
“Se me viras com teus olhos
Nesta masmorra metido,
De mil idéias funestas,
E cuidados combatido,
Qual seria, ó minha Bela,
Qual seria o teu pesar?
(Lira 20, Parte II )
“Que diversas que são, Marília, as horas,
Que passo na masmorra imunda e feia,
Dessas horas felizes, já passadas na tua pátria aldeia!
Então eu me ajuntava com Glauceste;
E à sombra de alto cedro na campina
Eu versos te compunha, e ele os compunha
À sua cara Eulina.”
(Lira 21, Parte II )
Nota-se o sofrimento do poeta que não consegue mais ser feliz, não pode
ter mais a amada junto a si (ele está no espaço real da masmorra; ela se encontra
distante na idealizada “Arcádia”), para quem essa amada, Marília, e o amigo,
119
Glauceste, são agora apenas lembranças de um passado formoso. Simples idéias
retratadas na memória do poeta e do jurista que teve a rota do seu destino
desviada pela Inconfidência.
Apesar de todo infortúnio do poeta inconfidente, que se declara inocente
das acusações, é interessante perceber-se que, em momento algum, revolta
dele contra os atos punitórios da Coroa Portuguesa aos membros da Conspiração.
Ao contrário, em algumas liras da parte, existe o elogio explícito às autoridades
do lugar e a crítica às atitudes de seus companheiros.
Na lira “Eu vejo aquela Deusa (Lira 36, parte II), o poeta Gonzaga
denuncia Tiradentes, a quem chama de “demente” e o qual considera merecedor
de zombarias de todo o povo.
“O mesmo autor do insulto
Mais a riso do que a terror me move;
Deu-lhe nesta loucura, Podia-se fazer Netuno ou Jove.
A prudência é tratá-lo por demente.
Ou prendê-lo, ou entregá-lo, Para zombar dele a moça gente.”
Na lira “Não praguejes, Marília, não praguejes” (Lira 23, parte II), faz o
elogio ao Visconde de Barbacena que mandou prender os inconfidentes e à justiça
de deve sumariamente punir os erros dos faltosos.
“Tu vences, Barbacena, aos mesmos Titos
Nas sãs virtudes, que no peito abrigas:
Não honras tão – somente a quem premeias,
Honras a quem castigas.”
“Não praguejes, Marília, não praguejes
A justiceira mão, que lança os ferros;
Não traz debalde a vingadora espada;
Deve punir os erros.”
Mesmo em outro texto de Gonzaga, anterior à Marília de Dirceu, o poema
satírico Cartas Chilenas, uma posição oscilante do autor no que se refere a
atacar o poder constituído da Coroa: as Cartas são peças satíricas que funcionam
120
como um amplo documento da época, de circulação anônima, num texto alegórico
contra os desmandos do poder de um mandatário corrupto, o Fanfarrão Minésio,
contra o qual se insurge o remetente, Critilo. Este é também um pseudônimo
árcade de Gonzaga que, em delegação poética, representa a sua voz, o seu “eu –
satírico”. No entanto, a sátira parece atacar mais a pessoa do Fanfarrão (alegoria
do governador mineiro Luís da Cunha Meneses) do que a corrupção
governamental praticada por ele ou pelo poder central da Metrópole. Como
comenta Antonio Cândido (1.975, p. 167):
“na terrível e impiedosa sátira, Critilo apresenta-nos um tipo exemplar de conservadorismo,
cheio de respeito ao regime governamental então vigente, de que o Fanfarrão não era uma
exceção.”
E como acrescenta Fernando Cristóvão (2.002, p. 84), também comentando
a posição crítica de Gonzaga:
“A prova ainda mais clamorosa dessa total ausência de ideais emancipadores está
nas Cartas Chilenas. Nelas podia Gonzaga, a coberto do anonimato e em perfeita
impunidade, defender qualquer proposta que, porventura, julgasse ousada. Não não o
fez, como a sátira ao governador Minésio não vai além de crítica moralizante, reivindicando
governadores moralmente idóneos. Uma reivindicação, portanto, ética e não política.”
Talvez esta complacência de Gonzaga com o poder português, do qual na
verdade teve muito apoio para suas ações como magistrado, explique o porquê
de, mesmo na cadeia e às portas de uma condenação, o poeta ainda acreditar
numa possível absolvição, num refazer da sua vida, de preferência junto à amada
Marília. É o que constatam algumas liras da e da partes do livro, como
segue:
“Fiadas comprarei as ovelhinhas,
Que pagarei aos poucos do meu ganho;
E dentro de pouco tempo nos veremos
Senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
Que as afague, Marília, ou só que as veja”
(Lira 15, Parte II )
121
Este posicionamento de Gonzaga frente ao poder nos leva a refletir sobre o
aspecto do perfil moral de Gonzaga/Dirceu que se constrói no poema.
O perfil moral de Dirceu vai-se desenhando ao longo das liras, ganhando
complexidade psicológica e marcando principalmente a segunda parte do livro em
que a figura do pastor – poeta Dirceu/Gonzaga é o centro dos versos. Este
complexo retrato de qualidades e defeitos do espírito (mais que qualidades)
supera a descrição física que o eu lírico faz de si mesmo durante o poema.
Aliás, também é na segunda parte que os pormenores físicos aparecem com mais
insistência, relativos ao envelhecimento físico e esmorecimento de ânimo do
prisioneiro, como os cabelos que branquejam e caem, as faces que enrugam e
perdem as cores, os olhos inchados, costas vergadas e membros gastos.
Interessante é notar que na terceira e última parte predomina a “testa altiva”, num
símbolo de vitória, em que o eu lírico confirma sua superioridade diante da
situação que vive, a mesma anunciada na primeira lira da primeira parte:
“A Cresso não igualo no tesouro;
mas deu-me a sorte com que honrado viva.
Não cinjo coroa d’ouro;
Mas povos mando, e na testa altiva
Verdeja a coroa do sagrado louro
Graças, ó Nise bela,
Graças à minha estrela!
(Lira 51, Parte III )
O retrato físico, diminuto nos poemas, é quase sempre negativo, ao passo que o
moral é predominantemente positivo. Isto poderia levar-nos a pensar numa
influência das idéias da época, idéias iluministas, fruto do Enciclopedismo
rousseauniano, para as quais era mais importante a formação intelectual e moral
do homem do que a sua aparência física. Confrontando-se a descrição de Dirceu
com os outros elementos do poema, com quem mantém alteridade (a amada
Marília, os pastores, até mesmo a natureza e o amigo Glauceste), percebe-se que
o pastor aparece com relativo saldo. Marília, por exemplo, é quase que uma
pintura da beleza, ao contrário de Dirceu, marcado por dotes superiores
122
intelectuais e morais. Como observa F.Cristóvão, àgina 72 de sua obra sobre o
poema de Gonzaga:
No confronto das duas pinturas, a de Marília é estática, vive toda no mesmo
espaço, e isso desde o primeiro momento em que é contemplada - o que é mais próprio
da pintura que da poesia, por viver da amplidão espacial - , diferentemente da de Dirceu.
Esta não surge completa de uma vez, vai-se completando na seqüência temporal da
sucessão das liras, mais de acordo, portanto, com o modo de ser da poesia, arte do tempo,
como lembrou Lessing, arte de sucessão e das acções”.
Moralmente, Dirceu (Gonzaga) apresenta-se como digno de consideração
social desde a primeira lira, pois, como vimos, possui “próprio casal”, é
independente economicamente, “os Pastores” que habitam o lugar em que mora
respeitam o poder do seu cajado e ele é um ser que, mesmo “mandando em
povos” (lira 5, parte III), referência maior a Gonzaga que era juiz, sabe ser piedoso
e amoroso com os vencidos (ao contrário dos que o aprisionam), uma virtude que
merece recompensa e admiração não por parte dos pastores fictícios, mas
também de todos os que sabem, como ele, apreciar os dotes superiores do
espírito e as qualidades do caráter. Compare-se sua situação de prisioneiro com a
sua filosofia de piedade e heroísmo expressa na lira 27 da primeira parte do
poema:
“O ser herói, Marília, não consiste
Em queimar os Impérios: move a guerra,
Espalha o sangue humano,
E despovoa a terra
Também o mau tirano.
Consiste o ser herói em viver justo:
E tanto pode ser herói o pobre,
como o maior Augusto.”
Cabe-nos, neste momento, e dentro da análise do perfil moral de Dirceu,
ressaltar como o pastor poeta a questão do “ser herói”. Pelo trecho da lira
acima destacada, parece que o eu lírico acredita em um heroísmo que se pauta
pela piedade e justiça, em vez de glória obtida através da guerra e da destruição.
123
Poderíamos, então, observar que esse ideal heróico está mais de acordo com o
que preconizava a poesia de Virgílio ou Horácio do que o ideal guerreiro da épica
de Homero. E também vai ao encontro da tão sonhada áurea mediocritas do
Arcadismo do século XVIII. Mas é também uma visão heróica que, em Marília de
Dirceu, surge para destacar a figura do discreto pastor. Dirceu, em três liras
diferentes (as liras 11 e 27 parte I e a lira 14 da parte II), abandona o equilíbrio e a
discrição costumeiros para proclamar em tom decisório o caráter do seu próprio
heroísmo, enaltecendo-se: “Eu é que sou herói, Marília bela / Seguindo da virtude
a honrosa estrada”; “Nem pode competir comigo aquele, / Que desceu ao negro
inferno”; “Não é, não é de herói uma alma forte, / Que com rosto enxuto / No
seu igual a morte”.
Isto aparece como uma espécie de réplica de Gonzaga àquela sociedade
que via o herói como produto vencedor da guerra, que associava o valor guerreiro
à impulsividade. Vale lembrar que Gonzaga era um homem do Século das Luzes,
tempo que tinha por base o humanismo e o iluminismo das idéias. Idéias estas
que, ao ganharem terreno em todos os campos de atividade e pensamento no
século XVIII, trouxeram uma nova concepção de herói. O novo herói deveria ser
laico, deixando de apelar para a causalidade ou presença divina (ao contrário do
herói cristão medieval ou renascentista, que perdurou durante o século anterior), e
prezando por uma filosofia sem metafísica e uma moral sem dogmas, amando a
liberdade do espírito e apoiando-se nas idéias do próprio Iluminismo, notadamente
em Voltaire, tomado como modelo: um herói igualitário e piedoso, por isso justo.
Em Marília de Dirceu, os primeiros passos do herói nas liras são dados no
caminho do amor, um amor geralmente bastante emotivo, beirando à
obsessividade. Um amor bastante lacrimoso para um árcade, principalmente nas
liras referentes à prisão e que, por isto, anuncia uma ruptura em relação à
estética literária a que se filiava Gonzaga. Trata-se também de um amor
egocêntrico em que o poeta a sua amada para, no final, exaltar a si mesmo.
Inclusive os poemas da masmorra acabam por servir de exaltação a esse amor e
principalmente às dores do poeta, e não à defesa de ideais coletivos de autonomia
124
ou independência, o que nos faz outra vez reavaliar o papel de Gonzaga enquanto
inconfidente.
É a partir dessa visão pessoal de amor que o poeta (eu lírico”) ganha
consciência cada vez maior de si mesmo como indivíduo e da mesma importância
de um EU que se torna cada vez mais distinto e distante do OUTRO coletivo,
como podemos observar nos seguintes versos: “Eu, Marília, não sou algum
vaqueiro”, “Eu, Marília, é que sou herói”, “Eu tenho um coração maior que o
mundo” (verso que Drummond retomaria no Modernismo com uma conotação
social: “Não, meu coração não é maior que o mundo”), “Eu honro as leis do
Império”, ... . Podemos perceber, então, que a par da exaltação amorosa à Marília
caminha a exaltação amorosa a Dirceu, feita por ele próprio. O individualismo
consagra-se progressivamente, quer em Dirceu, quer em Gonzaga, pois nas liras
de Dirceu se valoriza a primeira pessoa como centro de decisão e medida das
coisas, e em Gonzaga se afirma o individualismo pessoal na não solidariedade
do poeta com as causas coletivas e os interesses alheios. Dirceu representa o
ideal teórico; Gonzaga, a prática dele.
No caso de Dirceu, vale ressaltar que esse heroísmo individualista, apesar
de pouco humilde, apresenta a coerência das idéias iluministas já comentadas: ele
é um herói que segue os modelos virtuosos e justos.
“Eu é que sou herói, Marília bela,
Seguindo da virtude a honrosa estrada:
Ganhei, ganhei um trono,
Ah! não manchei a espada,
Não o roubei ao dono!
Esta virtude moral do pastor também merece consagração no plano social,
pois Dirceu está entre os que negam à nobreza de sangue os seus privilégios
tradicionais, pronunciando-se a favor do reconhecimento dos valores da pessoa.
Entende que a verdadeira dignidade está na “nobreza da alma” e não na nobreza
da genealogia. “E tanto pode ser herói o pobre / Como o maior Augusto” (lira 27,
parte I). Interessante que este ideal heróico também pode ser encontrado em
125
Critilo, o “eu satírico” das Cartas Chilenas, ao criticar o poder do Fanfarrão
Minésio e de outros governantes, originário do arbítrio genealógico:
“De uma estéril, mortal genealogia,
Que o mérito produz de seus maiores,
Eles, amigo, argumentar não devem
Propalados talentos. A virtude
Nem sempre aos netos, por herança, desce.”
(“Espístola a Critilo”, in Cartas Chilenas)
O herói de Gonzaga, o poeta, é avesso à violência e às virtudes guerreiras
e dignifica a virtude moral, a nobreza da alma, a piedade, a justiça, o culto das
letras e, principalmente, o culto ao amor. Tem-se, neste sentido, uma transferência
axiológica dentro dos cânones do Arcadismo: através da valorização da piedade e
da compaixão, o poeta exalta as atitudes de amor do indivíduo, trocando o
primado arcádico da razão pelo do sentimento. Amar é agora o componente
essencial do indivíduo, traço distintivo do novo herói, que vislumbra as luzes do
porvir romântico.
Estamos diante de um conflito, de uma “crise de consciência”, que permeou
os finais do século XVIII e que também atingiu Gonzaga:
“O herói Dirceu Gonzaga ressente-se de demasiadas contradições, e apenas
anuncia o futuro. Coexistem e operam nele os dois modelos antagónicos que provocaram
a “crise de consciência” do século XVIII: o do honnnête homme e o do herói romântico. O
primeiro domina-lhe a razão e regula a sua vida social, ditando-lhe o dever, a ordem, o
respeito às hierarquias, a contensão. O segundo comanda-lhe os sentimentos, dirige a sua
vida pessoal, insinuando-lhe uma filosofia de valores que visa, em última instância, a uma
outra troca fundamental, a da prioridade dos direitos sobre a dos deveres.”
(Cristóvão, 2.002, p.83)
Essa dualidade da razão e do sentimento, vivida por Dirceu/Gonzaga,
aparece expressa em Marília de Dirceu nas liras que retratam o amor do pastor
por sua pastora. As liras pretendem professar um amor virtuoso, equilibrado e
reflexivo no tocante à função de seu significado para os amantes, notoriamente
para Dirceu. Um amor planejado para uma união vitoriosa, capaz de vencer
126
qualquer obstáculo, feliz, duradoura, e que almeja, a sua perpetuação através da
família; uma idealização amorosa vivida harmonicamente num ambiente
campestre, próximo à natureza, mas sem abrir mão dos confortos burgueses da
cidade. É o que podemos perceber nos versos a seguir:
“Enquanto pasta alegre o manso gado,
Minha bela Marília, nos sentemos
À sombra deste cedro levantado.
Um pouco meditemos
Na regular beleza,
Que em tudo quanto vive, nos descobre
A sábia natureza.”
(Lira 19 Parte I )
“Nas noites de serão nos sentaremos
C’os filhos, se os tivermos, à fogueira;
Entre as falsas histórias, que contares,
Lhes contarás a minha verdadeira.
Pasmados te ouvirão; eu entretanto
Ainda o rosto banharei de pranto
Quando passarmos juntos pela rua,
Nos mostrarão c’o dedo os mais Pastores;
Dizendo uns para os outros: “Olha os nossos
“Exemplos da desgraça, e são amores.”
Contentes viveremos desta sorte,
Até que chegue a um dois a morte.”
(Lira 15, Parte II )
“Enquanto resolver os meus consultos,
Tu me farás gostosa companhia,
Lendo os fatos da sábia mestra História,
E os cantos da poesia.”
(Lira 3, Parte III )
127
Apesar destes e outros exemplos trazerem a marca de um amor planejado,
racional e indelével no tempo, momentos do texto de Gonzaga em que o
sentimento de amor como sensualidade aflora. Momentos em que o poeta –
pastor descreve os “lindos beiços encarnados” ou “pescoço e peitos nevados” de
Marília/Dorotéia. O desejo amoroso fica explicitamente declarado, fugindo-se,
assim, do primado da razão e adentrando-se no primado da emoção, do
sentimento, numa manifestação pré romântica. Isto aparece forte, por exemplo,
na lira 8 da parte I:
“As grandes deusas do céu
sentem a seta tirana
da amorosa inclinação.
Diana, com ser Diana,
não se abrasa, não suspira,
pelo amor de Endimião?
...............................................
Desiste, Marília bels,
de uma queixa sustentada
só na altiva opinião.
Esta chama é inspirada
pelo céu, pois nela assenta
a nossa conservação.”
Temos, aí, a menção do amor sensual (= a chama), que abrasa o corpo e
sobre o qual se assenta a conservação da espécie humana. Ou o que se percebe
ainda na lira 14 da mesma parte:
“Ornemos nossas testas com as flores,
e façamos de feno um brando leito;
prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
gozemos do prazer de sãos amores.”
Nada de platônico ou horaciano temos na estrofe acima. Ao contrário, o
poeta – pastor convida sua amada ao ato amoroso e aos prazeres que ele
provoca, antes que o tempo passe e não seja mais possível vivê-los. Até mesmo
128
nas Cartas Chilenas, trechos de sensualismo, que denotam deslizes da mão
satírica de Gonzaga neste texto, ou estariam indicando a imbricação do eu lírico
das poesias de amor no eu satírico das cartas. Como exemplo, observe-se
alguns versos da carta 11ª:
“O sucesso lhe conta, desta sorte:
“Fizemos esta noite um tal batuque!
Na ceia todos nos alegramos,
Entrou nele a mulher do teu lacaio;
Um só senhor, não houve que, lascivo,
Com ela não brincasse”...”
Para encerrarmos nossas reflexões neste capítulo, uma observação ligeira,
mas não menos importante, sobre casos em que uma mesma lira recebe mais de
uma versão com variações sobre o tema apresentado. É o que ocorre com três
liras de Marília de Dirceu, em que o tema é a superioridade do pastor, mantida em
qualquer ocasião, seja nos momentos idílicos ou nos de agonia na masmorra.
Vamos encontrar esta situação nas liras “Eu não sou, minha Nise, pegureiro” (lira
5, parte III), “Eu, Marília, o sou algum vaqueiro” (lira 1, parte I) e “Eu, Marília,
não fui nenhum vaqueiro” (lira 15, parte II). Interessante notar-se que, nestes
poemas de tema recorrente, alguns elementos do estilo de Gonzaga aparecem
bem definidos: a imitação de modelos; a ênfase dada à reflexão de Dirceu sobre si
mesmo, num movimento de auto – homenagem ao homem letrado (Gonzaga), que
não se toma, nem quer ser tomado, por “qualquer vaqueiro”; além disso, o uso das
pastoras Nise e, depois, Marília como pretexto narcisista para enfatizar a
superioridade do “eu lírico”. A lira que menciona a primeira pastora Nise, e cuja
primeira estrofe é
“Eu não sou, minha Nise, pegureiro,
Que viva de guardar alheio gado;
Nem sou pastor grosseiro,
Dos frios gelos e do sol queimado,
Que veste as pardas lãs do seu cordeiro.
Graças, ó Nise bela,
129
Graças à minha est.331170.12 0 0 0.12618m9
130
Na última das liras, percebe-se que o pastor, após a prisão, abandonado
por sua “estrela” (o refrão está ausente nesta lira) e pela Fortuna, não cita mais
Aníbal, nem Cresso, mas a sorte que o cerca. Com a “estrela” sem brilho,
as grandezas financeira e moral abaladas, desprovido do necessário, o pastor
contempla o passado e teme perder também sua amada:
“Para ter que dar, é que eu queria
De mor rebanho, ainda ser o dono;”
Pensa, por fim, no recomeço
Idealizante, se a sorte volta:
“Fiadas comprarei as ovelhinhas,
Que pagarei aos poucos do meu ganho;
E dentro em pouco tempo nos veremos
Senhores outra vez de um rebanho.”
Vejamos como, estilisticamente, os dois poemas que têm como
interlocutora a figura de Marília (lira 1 Parte I; lira 15 Parte II), e que destacam
a superioridade de Dirceu diante de seus pares, constroem a identidade e
relevância do eu – lírico. O primeiro desses poemas, na parte da obra que trata do
amor idealizado dos amantes (1ª parte), se inicia com o pronome pessoal singular
EU seguido da forma verbal SOU (presente do verbo ser); mas para o eu lírico
afirmar o que ele é (o que ocorrerá nos quatro últimos versos da estrofe, que é um
octeto) seu poder superior, sua superioridade material e cultural, inicialmente
afirmará o que não é, utilizando-se do advérbio de negação combinado com o
pronome indefinido algum (- qualquer um). Temos, então, que o pastor / poeta
“NÃO É ALGUM (= QUALQUER UM, ELEMENTO SEM IMPORTÂNCIA)
VAQUEIRO. Ao contrário, o que aparece definido como identidade singular do eu
lírico é a possibilidade do patronato e de posse de bens, mostrando que ele é
patrão, não o vaqueiro, o elemento “mandado”. Apesar do inusitado da descrição
que ocorre na estrofe, o pastor (empregado) ser dono de terras e animais, produzir
vinho e azeite em terras tropicais e tirar leite de ovelhas, além de não estar
queimado pelo sol nas suas lidas diárias no campo, fica evidente a distinção social
que separa o trabalhador rural de vida simples e rústica (nas quatro primeiras
131
estrofes), do aristocrata, culto e rico, com autonomia de vida, nas quatro últimas.
Interessante é notar que todos os bens (materiais e culturais) do pastor burguês
lhe vêm graças a sua “estrela”, o destino que o premia com a sorte da classe
social a que pertence, com o “brilho” e as “luzes” na vida (o que poderíamos
relacionar inclusive com o Iluminismo da época, com a marca superior cultural).
Corresponde, em nosso texto, ao aristocrata, o juiz Gonzaga, que se oculta sob a
pele do pastor Dirceu e com ele cria uma relação de alteridade.
o segundo poema, escrito enquanto o poeta esteve na masmorra,
começa por identificar o “eu lírico” como alguém que não foi um vaqueiro, um
simples empregado que viveu “de guardar alheio gado”. O tom do poema muda e
o verbo que era presente transforma-se em pretérito perfeito, indicando uma ação
conscientemente finalizada: “Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro”. Em seguida, o
“eu lírico” faz lembrar à Marília que ele habitou a aldeia dela, sendo honrado
Pastor que vestia finas lãs e tinha sempre o de que precisava.
23
O uso dos verbos
no pretérito imperfeito ajuda o poeta pastor na rememoração daquele tempo de
felicidades e plenitude, tempo que foi definitiva e completamente retirado do
alcance do poeta, marcado gramaticalmente pelo pretérito perfeito que reaparece
no poema (“tiraram-me...”). Finalizando esta primeira estrofe da lira 15 parte II, o
poeta concluirá sobre sua situação atual, diametralmente oposta à situação da lira
1 – parte I. O poeta não é mais possuidor de propriedades, na verdade não possui
um único bem em que possa se apoiar. O tempo verbal presente aparece, no
último verso da estrofe, como marca dessa vida cruel e imutável (“Não tenho, a
que me encoste, um cajado; cf. com “Tenho próprio casal e nele assisto” lira
1, parte I). É agora o poeta Gonzaga, que revela a sua triste sina de prisioneiro,
sem o apoio da Fortuna e sem o brilho da sua “estrela”. Numa situação inversa à
da parte da obra, o poeta assume realisticamente a sua identidade e o pastor
se torna cada vez mais uma entidade ficcional.
Lúcia Helena (2.002, p. 570), em ensaio sobre Tomás Antonio Gonzaga,
destaca:
132
“Realista cauteloso, misturam-se num perfil o pastor Dirceu e o poeta
Gonzaga, como havia, a título de outros textos e motivos, comentado
agudamente Antonio Cândido. Lira e lei se misturam, neste painel gonzaguiano
setecentista da lírica arcádica, entramando, num quadro complexo, o poeta, o réu,
a lira, a lei e o processo, num conluio em que o lírico e o traçado real da existência
se enlaçam, articulando literatura e vida cultural!
23
Vemos aqui a declaração de Gonzaga sobre o papel que cabe ao poeta dentro das convenções
arcádicas. Isto é dito pela voz de Dirceu.
133
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mimese é uma característica predominante na composição poética, um
meio de selecionar caracteres superiores da natureza das coisas e trans-formá-
los em matéria poética.Conseguindo recriar a linguagem poeticamente, a mimese
permite que a literatura seja o lugar em que os limites da realidade vivencial se
aproximem dos limites do imaginário. E é também por meio do processo mimético
de criação que se chega ao Outro. Esta alteridade que é estabelecida e nomeada
como presença no texto literário, através da performance mimética, aparece como
uma “máscara”, uma “virtualidade subjetiva”, que envolve principalmente o autor e
sua criação num roteiro imaginário. É a representação de uma imagem concreta
que se tornará, então, uma imagem literária. Cria-se um elo entre fatores da
realidade externa ao texto (o que podemos chamar de fatores extra-lingüísticos) e
os elementos intratextuais que passam a manter um constante diálogo de formas
e idéias. A palavra literária é, assim, um signo extremamente ideológico.
Este signo, como nos lembra Iser, possibilita a conciliação de elementos e
planos inconciliáveis na vivência cotidiana: identidade / alteridade, real /
imaginário, presença / ausência, trabalhando com a sua dialética. Neste trabalho
de aproximação cria-se um movimento lúdico, um jogo verbal, de destruição de
identidades e conceitos pré-concebidos, em que a palavra literária se projeta no
espaço da alteridade, essencial ao efeito do texto. A escrita, como ficção, passa a
ter uma função liberadora de “possibilidades de ser”, continuamente apagadas ou
recriadas no texto mental da leitura e no tempo histórico do receptor. Temos,
neste movimento lúdico e contínuo do jogo literário, o verdadeiro sentido do
processo mimético.
Não cabe aqui a tal processo construir modelos de veracidade que sirvam
de esteio para o real, nem oferecer novas identidades aos sujeitos sociais, uma
vez que a obra mimética constitui-se como um discurso com vazios, em que
significantes vão em busca constante de significados que o leitor lhes atribuirá.
Esta atribuição de sentidos será sempre transitória, pois, como o dissemos, sua
134
mutabilidade estará condicionada ao tempo histórico da leitura e do leitor.
Podemos afirmar, por isso, que o produto mimético é sempre algo inacabado, que
sobrevive enquanto admite a alocação de um interesse diferente do que o
produziu, durante o tempo em que há a intervenção do Outro, o receptor.
No processo de recepção do texto literário, o leitor toma emprestada a
máscara do “outro” ficcional, criada pelo autor, assumindo a persona alheia. Tal
procedimento se torna produtivo na medida em que o leitor se permita um
distanciamento crítico interior, ou seja, se identifique com a máscara do “outro”,
oferecida pelo texto, para conseguir olhar-se de longe a si mesmo. A
identificação inaugura a distância, e esta produz a experiência do
autoconhecimento. É o processo de catarse.
Talvez seja essa identificação com o texto literário, num processo catártico,
restaurando os significados da leitura e atualizando seu sentido historicamente,
que tenha dado à obra Marília de Dirceu tão longa vida, dentro e fora do
Arcadismo brasileiro.
Na literatura do Arcadismo (século XVIII), percebemos que a mimese
adotada por seus autores cria modelos de representação de uma realidade de,
modelos que passam a ser encarados como cânone do movimento literário. Esses
modelos geralmente apresentam lugares, personagens e situações de vida ligados
a um mundo idealizado, a Arcádia. Para estabelecer a ligação entre o mundo real
e o ideal (o jogo dico), a literatura árcade cria a figura do “pastor” que, com sua
pseudonomia (fruto da mimese e alteridade), passa a dialogar com os elementos
da Natureza, numa perfeita conjunção pastoril bucólica, com elementos
mitológicos, responsáveis pela Fortuna do “pastor”, além, evidentemente, de criar
uma imagem idealizada da mulher amada, capaz de responder às expectativas da
mimese arcádica.
Marília de Dirceu parece cumprir, em certa medida, esses cânones do
Arcadismo. Apresenta o “pastor” Dirceu que idealiza um mundo feliz e harmônico,
bucólico, coroado pelo sorriso da Fortuna (a sua “estrela”) e da amada Marília,
onde os dotes superiores do pastor e da mulher amada se mostram significativos
135
na busca e obtenção da felicidade. Cria-se uma “Arcádia” marcada, entre outras
características, por um mundo ideal e justo, segundo valores estéticos e sociais
dos finais do culo XVIII. Valores que traduziam bem os ideais socioculturais de
uma asristocracia burguesa que despontava, e da qual fazia parte o luso
naturalizado brasileiro, Tomás Antonio Gonzaga. Curioso é notar que essa
Arcádia, em alguns momentos, dialoga com as Minas Gerais do Brasil, sendo
estas uma alteridade daquela. Começa aqui, ligeiramente, a ruptura com o modelo
arcádico.
Essa ruptura se torna mais evidente quando Gonzaga, ao ser preso como
inconfidente mineiro, toma o lugar central do pastor nas liras do poema. O foco
dos versos passa a ser, então, a angústia e os momentos de expectativa de um
julgamento, vividos por Gonzaga. O pastor Dirceu atua fortemente como a “voz
lírica” do poeta – inconfidente Gonzaga, voz da entidade ficcional, num uníssono.
A amada, Marília, aparece em todas as partes da obra como um retrato que
olha, mas não fala, pois na verdade não é necessário que ela fale, uma vez que os
sentimentos do poeta falam ambos e Marília é a encarnação do Amor, um símbolo
que transita entre o Arcadismo e o Romantismo, um amor puro, nobre, fiel e
despretensioso.
Podemos doizer, aplicando os conceitos de Bakhtin sobre o dialogismo,
como estudamos, que na 1ª parte das liras de Gonzaga é marcante uma
consciência monologizada do poeta, ou seja, a palavra do(s) Outro(s) com quem
Dirceu cria relações de alteridade é utilizada como simples apoio para as
expressões individuais do poeta, constituindo-se como elementos transitórios,
mediáticos do texto poético, a fim de concretizar literariamente os cânones do
período. Não há, neste caso, a presença do conflito, inexistindo, portanto, um
processo dialógico. O texto de Gonzaga adequa-se estilisticamente aos modelos
do Arcadismo. na e partes da obra, instaura-se o conflito, fruto da vida de
Gonzaga/Dirceu na masmorra e, a partir desse momento, as alteridades que o
poeta estabelece em seu texto encontram referenciais no mundo externo, criando
a possibilidade de surgimento do dialogismo. Os versos não se referem mais ao
136
espaço imaginário da Arcádia nem a seus elementos bucólicos; ao contrário,
situam fatos determinados num tempo espaço histórico, resultantes de ações do
mundo real, que têm como alvo pessoas reais (trata-se da marca da instabilidade
a que se refere Bakhtin). Assim, podemos afirmar que esses momentos de Marília
de Dirceu anunciam, em sua base, características do Romantismo futuro. Desta
forma, é válido dizer que essa obra de Tomás Antonio Gonzaga marca uma
transição do Arcadismo para o Romantismo.
Sobre a hipótese que nos guiou nesta pesquisa: uma identificação do eu
lírico dos versos de Marília de Dirceu com o autor, o poeta Tomás Antonio
Gonzaga? Se há, como se estabelece o diálogo entre eles e os outros elementos
(alteridades) presentes no poema?
Acreditamos ter conseguido, ao longo do nosso texto, demonstrar que o
poeta canta seu amor pela amada, Maria Dorotéia/Marília, assumindo a figura do
“pastor” e assinando com o pseudônimo Dirceu, para cumprir as normas da
estética árcade, quase apoliniamente. Quando a mudança de situação o leva ao
cárcere, faz com que o desvelamento do poeta e dos conflitos daquele momento
superem a figura do “pastor”. Este continua a existir como voz lírica, entidade
ficcional que compartilha dionisicamente o impasse vivido pelo poeta. Assim, fica a
imbricação e o diálogo entre Dirceu (eu lírico) e Gonzaga (o poeta). Sobre as
demais alteridades estabelecidas no texto e representadas pela amada, o amigo e
a Natureza, podemos afirmar que todas estão em função de construir uma
imagem ideal do pastor Dirceu que, no fundo, é o poeta Gonzaga.
Quanto à figura de Gonzaga como um homem “duplo”, jurista e poeta, vale
a pena atentar para as palavras de Kothe (1.997,p. 398):
“Há, em Gonzaga, o jurista e o poeta, o dito luso e o emancipador brasileiro,
aquele que procurava evitar conflitos com a Corte e aquele que trabalhava para a
autonomia regional, o homem do período colonial e o brasileiro de um país que se
pretendia independente, o apaixonado sonhador e aquele que se escondia sob o frívolo
pretexto de um casamento oportuno etc. No jurista, pode-se ver o defensor da existência
de Deus, da fidelidade absoluta do rei, da indissolubilidade do casamento, do combate à
“usura”, mas também o homem preocupado com direitos superiores a qualquer sistema
137
positivo, o defensor da diferença entre lei e privilégio, da liberdade,... No poeta, tem-se o
imitador da forma arcádica européia e uma elaboração da experiência do seu tempo e
meio, com visão prospectiva. O cânone só ressalta seu lado mais neutro.”
Antonio Cândido (1.975, p. 125) acrescenta a favor de Gonzagas/Dirceu:
“Graças a essa aventura humana e artística, Tomás Antônio, pôde traçar e exprimir
o nítido contorno com que passou à história. Pôde legar através das gerações, a milhares
de homens e mulheres que se desdobram sobre o seu canto de ternura, dor e orgulho,
uma imagem de grandeza invulgar...”
Se a História não perdoou Tomás Antonio Gonzaga por suas atitudes como
cidadão, quer traindo a confiança do governo português, quer não assumindo o
seu compromisso como revolucionário na conspiração mineira, chegando mesmo
a se eximir de participação no movimento diante do tribunal inquisidor, a Literatura
de muito o absolveu. Seus versos líricos e também sua tira vêm
atravessando época, dialogando com outras estéticas literárias e outros poetas,
cumprindo plenamente a função da palavra poética: atualizar a experiência
humana. Como nos mostra o interessante “haicai” composto por Manuel Bandeira
em que homenageia Gonzaga em seu amor, texto que o poeta modernista
apresenta como um dos poemas da sua Lira dos Cinqüent´anos e que aponta
para a penetração do texto Gonzaguiano na literatura brasileira:
HAICAI
TIRADO DE UMA FALSA LIRA DE GONZAGA
Quis gravar “Amor”
No tronco de um velho freixo:
“Marília” escrevi.
Afinal, o maior álibi a favor da inocência de Gonzaga é apresentado por ele
mesmo quando discute, na prisão, qual teria sido seu maior crime:
“Se teve delito,
Só foi a paixão,
Que a todos faz réus.”
(Lira 35, parte II Marilia de Dirceu – Tomás Antônio Gonzaga)
138
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