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SEMÍRAMIS CORSI SILVA
RELAÇÕES DE PODER EM UM PROCESSO DE MAGIA NO
SÉCULO II D.C.
UMA ANÁLISE DO DISCURSO APOLOGIA DE APULEIO
Franca
2006
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UNESP
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
RELAÇÕES DE PODER EM UM PROCESSO DE MAGIA NO
SÉCULO II D.C.
UMA ANÁLISE DO DISCURSO APOLOGIA DE APULEIO
SEMÍRAMIS CORSI SILVA
Dissertação apresentada ao curso de pós-
graduação em História da Faculdade de História,
Direito e Serviço Social - UNESP/Franca como
requisito à obtenção do título de Mestre em
História.
Orientadora: Profa. Dra. Margarida Maria de
Carvalho
Franca
2006
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SILVA, Semíramis C. Relações de poder em um processo de magia no século II d.C.
Uma análise do discurso Apologia de Apuleio. Dissertação de Mestrado. Franca: UNESP,
Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 2006.
Comissão Examinadora:
___________________________
Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho
(Orientadora)
____________________________
Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva (UFES)
____________________________
Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha (UNESP/Assis)
4
AGRADECIMENTOS
Ao longo dos anos que transcorreram o Mestrado, muitas foram as sugestões,
idéias e diversos tipos de auxílios para que esse trabalho pudesse se realizar. Cabe
agradecer primeiramente ao apoio financeiro da CAPES, entidade que me concedeu
recursos para aquisição de material e realização desta Dissertação.
Agradeço a imprescindível orientação da Profa. Dra. Margarida Maria de
Carvalho. Desde a discussão da temática a ser trabalhada até as considerações finais da
pesquisa, a orientação desta professora esteve presente, mostrando-me os interessantes
caminhos da “Escrita da História”.
Sou especialmente grata à solicitude do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva
(UFES), que aceitou participar da banca de defesa e enviou-me materiais bibliográficos e
informações para a pesquisa. A este professor devo ainda o despertar da paixão pelo estudo
da magia na Antiguidade Romana por ocasião de um mini-curso por ele ministrado no XX
Encontro Nacional dos Estudantes de História - ENEH, ocorrido do ano de 2000 na
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.
Ao Prof. Dr. Glaydson José da Silva (UNICAMP) e ao Prof. Dr. Ivan Esperança
Rocha (UNESP/Assis) agradeço a participação na banca de qualificação. A leitura atenta
feita por estes professores foi fundamental para minha pesquisa, suas críticas e sugestões
procurei incorporar ao texto final na medida de minhas possibilidades. Ao Prof. Ivan sou
grata também pela disposição em participar na defesa da presente Dissertação.
A Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves (UFG) agradeço pelas reflexões
fornecidas sobre alguns conceitos por nós empregados. Ao Prof. Dr. Thomas Winter
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(University of Nebraska-Lincoln) agradeço pela disposição rápida de sua Tese de
Doutoramento, de enorme valia para alguns questionamentos pertinentes à discussão de
nossa fonte documental.
As colegas que compartilham comigo da paixão pela História de Roma e que se
tornaram grandes amigas nos anos do meu Mestrado, Beatris Gratti, Helena Papa e Vanessa
Fantacussi, agradeço pelas experiências compartilhadas, trocas de materiais pertinentes e
pelas hospedagens em suas casas nas ocasiões de orientações, pesquisas e eventos
científicos.
Agradeço aos amigos que contribuíram diretamente e indiretamente com a
Dissertação que se apresenta, lendo manuscritos, trocando idéias, dando dicas, auxiliando
na formatação do trabalho final, me fornecendo hospedagens durante meus dias de pesquisa
e concursos, comemorando cada vitória e, acima de tudo, dando o apoio emocional
necessário nas horas mais difíceis da conclusão do Mestrado. Não me furtarei a dizer o
nome de todos eles: Mateus Marcelino, Danilo Marcelino, Renan Carmo, Érica Winand,
Thiago Reis, Reginaldo Guiraldelli, Leonardo Borges, Caio Tuzzolo, Fernanda Corsi,
Alexandre Bonafim, Bruno Pessoni e Douglas Sampaio.
Finalmente, agradeço minha família pelo incentivo constante. Agradeço de forma
especial minha mãe e minha tia Regina Corsi, pelo carinho, paciência e compreensão que
sempre acompanham cada um de meus projetos e realizações.
6
“O passado é interessante não
somente pela beleza que dele
souberam extrair os artistas para
quem constituía o presente, mas
igualmente como passado, por seu
valor histórico”. Charles
Baudelaire
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RESUMO
Por volta do ano de 159 d.C., o filósofo médio-platônico Apuleio foi acusado de praticar
magia para conquistar e se casar com uma rica viúva da cidade de Oea na África romana.
Os acusadores faziam parte da família da viúva e de seu falecido marido, sendo que todos
envolvidos na ação contra Apuleio eram homens da elite da cidade em questão. Apuleio
defendeu-se em causa própria e, anos mais tarde, transcreveu o discurso de defesa
intitulado Apologia. Os estudos historiográficos que versam sobre as razões do processo
fundamentam-se em mostrar possíveis confusões dos acusadores em relação às práticas
místicas de Apuleio, típicas da filosofia médio-platônica, com a magia e razões de interesse
de Apuleio e dos acusadores na riqueza da viúva como causa do processo. A presente
Dissertação objetiva apresentar uma proposta de leitura das motivações da acusação
infligida contra Apuleio no âmbito das relações de poder em torno de algumas
características que envolviam o acusado e que estão, conforme nossa análise, presentes na
acusação, tais como: a representação do filósofo como homem público capaz de
desenvolver atividades relacionadas à política, as relações da magia com o poder e os
casamentos da elite romana como formas de alianças entre famílias.
Palavras-chaves: Roma, Apuleio, Apologia, Magia, Médio-Platonismo, Casamento
Romano.
8
ABSTRACT
In the region of year 159 a.D. the philosopher medium-platonic Apuleius was accused to
practice magic to conquer and to marry to a rich widow of the city of Oea in the Africa
Roman. The plain tiffs were part of the family of the widow and of her deceased husband,
being that all involved ones in the action against Apuleius were elite’s men of the city in
question. Apuleio defended in proper cause and years later he transcribed the defense
speech, entitled Apology. The historiography’s studies that turn on the reasons of process,
are based on showing possible confusions of the plaintiffs in relation them practice mystics
of Apuleius, typical of the medium-platonic philosophy with the magic and reasons of
interest of Apuleius and of the plaintiffs in the wealth of widow as cause of the process.
The present Dissertation consists to present a propose of reading of the motivations of the
accusation inflicted against Apuleius in the scope of the relations of being able around
some characteristics that involved the defendant and that they are, in agreement our
analysis present in the accusation, such as: the representation of the philosopher as public
personality capable to develop activities related to the politics in this context, the relations
of the magic with the power and the marriages of the elite roman as forms of alliances
between families.
Keywords: Rome, Apuleius, Apology, Magic, Medium-Platonic Philosophy, Roman
Marriage.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................11
1. EM TORNO DE APULEIO.....................................................................................23
1.1 Vida e obra de Apuleio: a trajetória de um homem público.............................23
1.2 O contexto geográfico-cultural de Apuleio......................................................42
1.3 A opulência das personagens da Apologia.......................................................51
2. O DISCURSO APOLOGIA E A HISTORIOGRAFIA..........................................62
2.1 Alguns aspectos do discurso Apologia............................................................62
2.2 Discussão historiográfica acerca do processo de magia..................................70
3. MAGIA, FILOSOFIA, CASAMENTO E PODER NO PRINCIPADO
ROMANO......................................................................................................................96
3.1 As práticas mágicas de Apuleio e as relações entre magia e poder.................96
3.2 Apontamentos sobre a filosofia de Apuleio e o papel do filósofo no século
II d.C.....................................................................................................................112
3.3 Considerações acerca do casamento romano e a situação jurídica de
Pudentila...............................................................................................................122
4. ACUSAÇÃO E DEFESA NA APOLOGIA............................................................131
4.1 Envolvidos no processo..................................................................................131
4.2 Difamações contra Apuleio............................................................................133
4.3 Interpretação dos pontos de acusação e apresentação da defesa de Apuleio.136
4.3.1 Pontos relacionados à imagem de Apuleio como filósofo, orador e homem
público................................................................................................134
10
4.3.2 Pontos relacionados à magia e suas relações com a filosofia de que Apuleio
era seguidor......................................................................................145
4.3.3 Pontos relacionados ao casamento de Apuleio com Pudentila e a possível
aliança estabelecida com o mesmo...................................................157
4.4 Estrutura e análise da defesa..........................................................................166
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................182
ANEXOS......................................................................................................................197
Anexo 1- Mapa das províncias da África do Norte no final do século II d.C.....197
Anexo 2 - Árvore genealógica dos principais envolvidos na acusação contra
Apuleio................................................................................................................198
11
INTRODUÇÃO
O presente trabalho representa, de certa forma, um desdobramento de uma
pesquisa desenvolvida na graduação em História que teve como tema as representações de
feiticeiras romanas na obra do poeta Horácio.
1
Nesta pesquisa, constatamos que as fontes
literárias do Principado Romano representavam a mulher como a principal praticante da
magia. Autores como Horácio (65-8 a.C.), Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.), Lucano (39-65 d.C.),
Petrônio (m. 65 d.C.), Apuleio (ap. 125-170 d.C.), entre outros, ao tratarem da magia em
suas obras literárias, em geral, se referiam aos praticantes dessa arte com personagens
femininas.
Ainda durante a graduação tivemos contato com o texto Apologia, transcrição da
autodefesa do filósofo Apuleio perante uma acusação de magia no século II d.C.
2
A leitura
do discurso Apologia nos atraiu, pois o referido processo trata-se de uma acusação a um
homem público, ocupante de cargos políticos, iniciado nas religiões de mistérios da época,
filósofo, orador e sacerdote.
Por meio da leitura bibliográfica percebemos que os homens são especialmente
mencionados nos processos judiciários relativos ao crime de práticas mágicas. Ainda
pudemos conferir que os homens também foram os maiores praticantes da magia em si, o
que é atestado pelas fontes arqueológicas, enquanto que no campo literário as mulheres são,
em geral, mais citadas. Acreditamos que este fato esteja relacionado às próprias relações de
1
Tal pesquisa resultou na Monografia intitulada: Práticas de magia e universo feminino: feiticeiras romanas
na obra do poeta Horácio (65-8 a.C.)”, apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social
UNESP/Franca, no ano de 2003 sob orientação da Profa. Maria Celeste Fachin.
2
Conferimos também que esta obra constitui um importante documento sobre a vida cotidiana na região da
Tripolitania (região que abarcava as cidades romano-africanas de Oea, Sabrata e Leptis Magna) durante o
século II d.C. e para o estudo da magia e da eloqüência judiciária nesse contexto.
12
influência no mundo antigo que estavam limitadas à participação feminina. Assim,
constatamos que se processavam mais homens no Principado Romano porque havia uma
preocupação maior com as possíveis ligações destes com a magia.
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as mulheres eram
representadas como praticantes de magia na literatura porque os escritores deste período
consideravam estas práticas desviantes e temidas, devendo ser ridicularizadas e jamais
podendo ser algo masculino, principalmente para a elite detentora do poder político da qual
faziam parte os poetas. Nesse sentido, ao representarem a magia como algo essencialmente
feminino, os poetas moldavam um diálogo com os homens romanos, estabelecendo o que
lhes era proibido, digno apenas de mulheres e que ainda assim deveria ser punido.
Verificamos, igualmente, que grande parte das acusações de magia em Roma
estão diretamente ligadas ao poder, tanto que ao analisarmos o marco legal sobre o crime de
magia, podemos perceber que nem sempre era a prática em si que estava em questão, mas
também o poder, a hierarquia social e as posses.
4
Destacamos que o direito romano se caracterizou como uma estratégia refinada de
resolução de problemas sociais, sendo comum que disputas relacionadas a questões de
3
Conforme Flitz Graf (1994: 211), os documentos arqueológicos encontrados em solo romano dizem respeito
a práticas mágicas relacionadas a disputas entorno de poder. Assim, segundo este historiador, é comum
termos imprecações mágicas que envolvem disputas (jurídicas, comerciais, esportivas) e práticas de magia
amorosa. No primeiro caso fica visível que tais disputas eram realmente mais comum aos homens, pois eram
eles que, em geral, tramitavam no âmbito jurídico, comercial e esportivo da sociedade romana. No segundo
tipo de prática, a magia amorosa, o caso mais comum são de homens que ensaiam para possuir um casamento
com uma mulher. Sobre a prática de magia amorosa, Graf (1994: 212) nos sugere que analisemos a
superioridade masculina também no âmbito das relações de poder, que os casamentos eram uma forma
apenas do homem adquirir bens e status social, os bens femininos não estavam nas mãos das mulheres.
4
Em relação às leis que puniram o crime de magia em Roma, sabemos que o uso da magia foi punido em toda
tradição jurídica romana. No período em que Apuleio foi acusado, se incriminava o praticante da magia por
meio da Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, que foi instituída por Sila em 81 a.C. e se encontra atualmente
como parte das compilações do Digesto do Imperador Justiniano. Esta lei, assim como a Lei das Doze Tábuas
- que incriminava aquele que “jogou mal olhado” sobre a colheita de outrem - punindo, dessa maneira, uma
espécie de roubo - não condena a magia enquanto tal, mas os crimes a mão armada contra a vida de uma
pessoa, emparelhando a magia ao envenenamento. O problema se deu devido ao fato do termo veneficium,
que deriva do grego, significar não somente a fabricação de drogas e venenos, mas também encantamentos de
todas as espécies (GRAF, 1996: 57-58). A Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis era um ponto da Lei Cornélia
que castigava delitos contra a vida humana, assim, punia também assassinatos com outros tipos de armas e
roubos (MUNGUÍA, 1980: 24).
13
poder e posses fossem resolvidas perante um juiz durante o Principado Romano (VEYNE,
1989: 167).
Dessa maneira, nessa nova pesquisa, nos propusemos compreender as possíveis
motivações que levaram o filósofo Apuleio a comparecer frente a um tribunal na cidade de
Sabrata, no norte da África Romana, acusado de praticar magia no século II d.C.
Partimos do pressuposto de que tal acusação dissimula uma ameaça de Apuleio às
estruturas de poder da cidade onde é acusado. O que nos remeteu a tal situação foi o fato do
acusado ser orador e filósofo e ter, neste sentido, recebido uma educação para exercer
cargos públicos. Conseqüentemente, acreditamos que Apuleio tinha uma formação político-
cultural que ameaçava seus acusadores, membros da elite local de Oea.
5
Além disso,
Apuleio era iniciado em diversos cultos mistéricos e seguidor da filosofia médio-platônica
que aceitava especulações gicas em seus estudos. Tais práticas foram tidas como
ameaçadoras para uma elite que temia magos, adivinhos e qualquer tipo de praticante que
pudesse representar poderes alternativos e paralelos ao poder oficial. Destacamos ainda que
Apuleio se casa com uma rica viúva da cidade, contraindo uma aliança política entre ele e a
família de sua esposa e que seus principais acusadores eram pessoas da família do primeiro
marido de sua esposa, sendo que ela, antes de ser casar com Apuleio, contraiu esponsais
6
com o irmão do marido falecido. Portanto, podemos perceber que uma possível aliança
entre a família dela e de seu marido foi rompida e uma nova, entre sua família e Apuleio,
5
Para a aristocracia romana a educação era o meio de formar os jovens para administrarem o Império,
favorecendo o desenvolvimento e a formação de profissionais liberais (GAGÉ, 1971: 221). O que distinguia
um homem erudito entre os antigos gregos e romanos era sua cultura filosófica e oratória e o prestígio
artístico conferido ao orador lhe valia, indiretamente, certo prestígio político. A retórica em Roma sempre se
mostrou como a formadora dos dirigentes e futuros detentores de alguma forma de poder (MARROU, 1971:
305, 307, 390). É nesse sentido que usamos o termo formação político-cultural, que no Império Romano os
jovens das camadas superiores recebiam uma educação e uma formação cultural própria para a vida pública e
política.
6
Referente a uma espécie de noivado moderno, as esponsais eram um compromisso de futuras núpcias, um
contrato verbal entre a família do noivo e da noiva. A palavra esponsais, em latim sponsalia, deriva do verbo
latino spondére que significa prometer, assim os esponsais seriam uma promessa mútua de casamento
(CARROZZO, 1991: 70).
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foi contraída, que tais acordos matrimoniais eram comuns no contexto estudado e tinham
relações com práticas políticas e alianças de poder entre famílias.
Como fonte documental principal para nossa pesquisa utilizamos o próprio
discurso de defesa de Apuleio, a obra Apologia.
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Este documento consiste na transcrição da
autodefesa do filósofo, elaborada anos mais tarde do desenrolar do processo. Além disso,
fazemos algumas referências e nos apoiamos na interpretação de informações remetidas por
outras obras de Apuleio, tais como O Deus de Sócrates, Metamorfoses e Flórida.
Adotarmos o conceito de discurso para referirmos a fonte por nós trabalhada é
importante para definir a própria maneira como a tratamos. Sobre este conceito, adotamos a
acepção elaborada por Helena Nagamine Brandão (1995: 12), que se refere aos discursos
como operadores de ligações entre o nível lingüístico e o extralingüístico. Ou seja, para a
autora, o texto:
[...] é resultado do percurso que o indivíduo faz da elaboração mental do
conteúdo a ser expresso à objetivação externa - a enunciação - desse
conteúdo, é orientado socialmente, buscando adaptar-se ao conteúdo
imediato do ato da fala, e, sobretudo, a interlocutores concretos
(BRANDÃO, 1995:10).
Dessa maneira, deixa claro que em uma análise de documento que adote esta
perspectiva, apenas o estudo lingüístico interno não conta do objeto, é necessário fazer
uma articulação do processo lingüístico com o social.
De acordo com Eni Pulcinelli Orlandi (1987: 233), o conceito de discurso é um
conceito teórico-metodológico usado para definir a maneira de se analisar um texto, a
unidade de análise. Ambos, texto e discurso se definem mutuamente e o papel do
7
Utilizamos na presente Dissertação das traduções da Apologia de Santiago Segura Munguía, da Editora
Gredos (1980) e de Paul Valette, da Editora Les Belles Lettres (1960). A primeira tradução é da língua latina
para o espanhol e a segunda do latim para o francês, sendo essa edição bilíngüe. Também fazemos neste
trabalho algumas referências ao texto original em latim, para tal, utilizamos o texto bilíngüe da Editora Les
Belles Lettres.
15
pesquisador é encontrar no texto sua qualidade discursiva. Para isso é necessário levar em
conta as condições de produção do texto analisado, interpretando as características
discursivas que situam o texto em sua formação discursiva. Portando, a autora citada
mostra que a análise do texto não pode prescindir jamais da análise do contexto sócio-
histórico, pois os dados retirados do material não têm sentido próprio se não forem
referidos a seu tempo, espaço e lugar de onde fala o autor.
Assim, propomos considerar nosso discurso dentro das condições concretas que
foi produzido, desmontando-o e desvelando-o através de uma crítica interna, dentro de sua
intencionalidade inconsciente, vinculada a uma crítica externa. Segundo nos aponta Jaques
Le Goff (1996: 547), o documento é monumento no sentido de que foi feito para durar, não
sendo algo que fica por conta do passado, mas um produto da sociedade que o fabricou
segundo as relações de forças que detinham o poder. A função do historiador, segundo
Le Goff (1996: 545) é estabelecer a crítica ao documento/monumento. a análise do
documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador
usá-lo cientificamente, isto é, ao pleno conhecimento da causa.
Nesse trabalho buscamos compreender a exterioridade do que é enunciado através
de uma análise das questões colocadas implicitamente por Apuleio como razões da
acusação, verificando o valor das mesmas no contexto em que nossa fonte foi elaborada.
Para isso, analisamos a maneira como Apuleio se defende, ou seja, a maneira como
concebe sua acusação e a significação das acusações mencionadas contra ele na sociedade
do século II d.C.
O discurso ainda é analisado como um local ideal para a manifestação de uma
ideologia (SILVA, Glaydson J. 2001: 26). Compreendemos ideologia como um sistema de
significação da realidade, sendo o posicionamento de um sujeito e/ou um grupo diante do
16
mundo que vive. Sobre linguagem, entendemos como signo que representa a realidade
(BRANDÃO, H., 1995: 10). A linguagem, nessa perspectiva, pode até camuflar a realidade,
ou seja, a leitura do que poderia ser explícito, daquilo que foi escolhido pelo autor para ser
dito e até o que se omitiu, levam-nos a identificar os elementos necessários para nossa
interpretação.
Percebemos a obra Apologia como um discurso que não está isento de ideologias.
Por isso, não devemos deixar de decodificar a linguagem contida nesta obra como uma
forma de interação social, repleta de significados. Logo, a Apologia foi tida não como um
testemunho irrefutável, mas como uma representação do real pela ótica de seu autor.
Devemos considerar que a fonte histórica por nós estudada refere-se à transcrição
de um processo e sua defesa pelo próprio acusado, sendo um instrumento de mediação e
testemunho de uma realidade. O discurso contém uma visão do autor a respeito dos pontos
de acusação que pode não ser a mesma apresentada pelos acusadores, mostrando-nos a
apreensão do real de acordo com seu escritor/réu. Acreditamos que a acusação colocada a
partir do ponto de vista do acusado revela-nos a maneira como o mesmo viu as motivações
que o levaram ante o tribunal, como ele representa sua imagem perante seus acusadores e
como percebe-se inserido em seu contexto sócio-histórico.
Assim, faz-se útil o instrumental teórico-metodológico fornecido pela História
Cultural que nos fornece subsídios para identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é constituída, pensada e dada a ler
(CHARTIER, 1988: 17). O método que utiliza a análise das representações sociais tem se
constituído nos últimos anos como uma das principais formas de investigação histórica.
17
Portanto, com o intuito de compreender a maneira como nosso autor se defendeu,
como percebeu o processo, apropriando-se da linguagem representativa, e também como
seus acusadores o expuseram a fim de conter uma possível ameaça do acusado, acreditamos
ser necessário recorrer à noção atual do conceito de representações. Para isso, nos
reportamos à obra de Roger Chartier, um dos pilares fundamentais da moderna História
Cultural, e sua definição para este outro conceito.
Consideramos que o homem por meio da manipulação das representações pode
esconder o real, representando seus anseios, suas revoltas e suas vitórias da maneira que
deseja, construindo representações como se fossem verdades. Cabe ao historiador
desconstruir o discurso do protagonista por meio da análise de sua maneira de compreensão
do mundo.
O conceito de representações foi por nós utilizado em dois aspectos: ao analisar a
representação que Apuleio faz de sua imagem e de sua acusação e a representação que os
acusadores demonstram fazer dele.
Buscamos analisar as acusações apontadas contra nosso autor como construções
que representam o mundo social. Compreendemos que os adversários de Apuleio fazem
parte de um grupo social com determinados interesses próprios e ao verem seus interesses
em perigo, representam as práticas de Apuleio como maléficas, chegando a ponto de acusá-
lo como um praticante da magia, algo proibido por lei no mundo romano.
Conforme Chartier (1988: 17), os grupos sociais criam suas representações do
mundo social, de maneira a impor seus limites e valores. As apreensões de mundo
particulares nos fornecem informações sobre os grupos sociais, pois visando estabelecer
uma comunicação social, os indivíduos classificam, ordenam e hierarquizam a sociedade a
18
sua volta. Dessa maneira, os grupos criam os mecanismos necessários para impor ou tentar
impor a sua concepção de mundo e seus valores. O autor mencionado supõe as
representações sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos
desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. Observa que existe uma luta de
representações, “onde o que está em jogo é a ordenação, logo a hierarquização da própria
estrutura social” (CHARTIER: 17).
Portanto, entendemos que os acusadores de Apuleio se apropriam de
determinados aspectos e forjam representações da realidade conforme seus interesses de
grupo. Devemos salientar que não consideramos estas representações como simples
abstrações, mas como uma forma de ação política, um artifício usado pelos inimigos de
Apuleio para eliminarem alguém que poderia representar perigo às estruturas de poder da
cidade onde viviam e onde representavam a elite. Também consideramos que Apuleio, ao
montar seu discurso, o apresenta a partir de seu ponto de vista, de suas representações.
É nesse sentido que em nosso trabalho foi fundamental a reconstituição das
posições sociais de nosso autor e de seus acusadores, na medida que nossa documentação
permitiu que isso fosse feito, e exteriorizar as referidas acusações contra Apuleio,
analisando suas significações no contexto estudado.
Ao trabalharmos estas representações relacionadas ao poder, ou seja, analisando
as referidas acusações contra Apuleio como formas de prestígio social e político no século
II d.C. também é preciso conceituar o que interpretamos como poder em nossa pesquisa.
Conforme a definição de Mario Stoppino (1909: 933-936), poder significa, em
linhas gerais, a ação ou a capacidade de agir de um homem sobre outro homem. Portanto, é
a capacidade de uma pessoa produzir os efeitos desejados por ela, determinando o
comportamento de outrem.
19
Podemos considerar que dois tipos de poder. O primeiro tipo seria o poder
atual que é o ato efetivamente exercido (ato concreto) evidenciado pelo exercício de
domínio e influência. O segundo tipo de poder é o potencial (possibilidade de agir),
representação que uma pessoa ou um grupo de pessoas projetam em alguém devido a
aptidões que esta possua.
Ainda de acordo com Stoppino (1909: 939), um modo de medir o poder é
“determinando as diversas dimensões que tem o comportamento em causa. Em tal sentido,
uma primeira dimensão do poder é dada pela probabilidade que o comportamento desejado
se verifique”.
Em nossa pesquisa, utilizamos a expressão poder para definir a capacidade de
Apuleio em converter os recursos à sua disposição em formas de ação política. Dessa
forma, analisamos a capacidade dos acusadores em representarem Apuleio como alguém
que teria potencial por ter entorno de si recursos ligados ao poder de modificar o curso
natural dos eventos (o poder advindo da magia) e à política em Roma: ser um orador e
filósofo, ter relações com a magia e a religião e casar-se com uma mulher da elite de Oea.
8
Sendo que aceitamos em nossa pesquisa a ligação do papel do orador e filósofo, da magia e
do casamento com a política neste contexto.
Os aspectos citados, filosofia, magia e casamento e suas ligações com o poder e
conseqüentemente com a política no século II d.C. podem ser considerados as preocupações
gerais da Dissertação que se apresenta. Em torno destes aspectos, analisados como centrais
na acusação contra Apuleio, montamos a estrutura de análise de nossa fonte.
8
O conceito de poder está diretamente relacionado ao conceito de política, pois ao analisar estruturas de
poder em uma sociedade necessariamente está se analisando as formas dos homens se relacionarem e se
organizarem, ou seja, como agem politicamente a fim de ordenarem a vida social.
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Quanto à estrutura da Dissertação, nosso texto é apresentado em quatro capítulos.
Optamos por fazer no primeiro capítulo uma exposição dos aspectos biográficos de
Apuleio. Ressaltamos a camada social que nosso autor fazia parte, fator que consideramos
determinante para a posição do sujeito na sociedade romana e característica ímpar para sua
formação político-cutural. Especial atenção foi dada para a trajetória de nosso autor como
homem público e sua formação em relação ao território onde nasceu e foi acusado: a África
Romana. Ainda analisamos no primeiro capítulo a opulência das personagens que figuram
na acusação contra o filósofo.
9
Dado esse passo, procuramos identificar no segundo capítulo alguns aspectos do
discurso Apologia, tais como: possível datação da escrita da fonte, modificações do
discurso pronunciado para o discurso escrito, razões da elaboração da obra, incertezas sobre
a autoria da transcrição do discurso
10
, público para o qual se direcionava o texto e
denominação do discurso. Também nesse capítulo foi feita uma discussão historiográfica
com autores que apenas opinam e outros que elaboram análises sobre os motivos da
acusação contra Apuleio.
O terceiro capítulo consiste na análise dos elementos que acreditamos dar
subsídios para o estudo de nosso objeto de pesquisa: a magia, a filosofia e o casamento no
século II d.C. e as vinculações destes com o poder em Roma. Assim, buscamos
conceitualizar o que compreendemos como magia, analisamos as práticas de Apuleio dessa
natureza e fizemos um estudo sobre as relações da magia com o poder em Roma. Vale
ressaltar que consideramos as ligações do poder com a magia neste momento histórico não
9
O termo opulência não foi escolhido por acaso em nossa análise, pois como verificamos, todos os
envolvidos na acusação, inclusive o próprio acusado, eram pessoas abastadas financeiramente.
10
possibilidades do discurso escrito ter sido obra de copiadores especializados em transcrever discursos
jurídicos e não de Apuleio. Esse tema foi tratado por nós no Capítulo 2.
21
apenas como as representações de saber e, conseqüentemente, poder de modificar os
eventos naturais em torno do praticante de magia, mas também as relações entre magia e
poder político no Principado Romano. Também procuramos neste capítulo nos posicionar
em relação a afirmação de Apuleio ser um filosofo médio-platônico. Ainda, mostramos,
através de uma sólida bibliografia, o papel desempenhado pelo filósofo na sociedade do
século II d.C. Na terceira parte do capítulo fizemos uma definição do casamento romano,
citando autores que mostram esta instituição como forma das famílias aristocráticas de
Roma contraírem alianças políticas. Por fim, analisamos a possível situação jurídica de
Pudentila, a viúva com quem Apuleio se casa.
O objetivo do quarto capítulo é a análise da fonte propriamente. Primeiramente,
citamos todos os envolvidos na acusação. Feito isso, identificamos os pontos de acusação e
os agrupamos dentro de categorias que acreditamos estarem relacionadas aos motivos da
mesma: a questão da magia, da filosofia e do casamento de Apuleio. Interpretamos cada
acusação dentro das categorias analíticas que sugerimos - acusações relacionadas à magia,
ao papel de Apuleio como filósofo e orador e acusações relacionadas ao casamento de
nosso autor com a rica viúva.
Finalmente, analisamos a estrutura da defesa de Apuleio e como ele próprio nos
fornece indícios de que foi acusado por ser um homem ligado a práticas mágicas, próprias
de sua filosofia, por ser um filósofo e por ter casado com uma aristocrata contraindo uma
aliança política e desmanchando outra. Nesta última parte do quarto capítulo fizemos
algumas referências à estruturação de discursos judiciários proposta por Quintiliano,
retórico do século I d.C. em seu manual de retórica Instituições Oratórias, que
possivelmente foi lido e estudado por Apuleio a fim de melhor montar sua defesa. Nossa
preocupação em buscar subsídios de compreensão do discurso na obra de Quintiliano está
22
ligada a uma tentativa de analisarmos como Apuleio sentiu sua acusação e como destaca os
pontos principais da mesma, nos dando pistas das motivações de ter comparecido frente ao
tribunal, objeto de nossa pesquisa.
Por fim, nas considerações finais, resumimos os resultados obtidos, estabelecendo
os pontos de contato entre a análise documental e a bibliografia trabalhada.
23
1. EM TORNO DE APULEIO
1.1 Vida e obra de Apuleio: a trajetória de um homem público
Há controvérsias sobre os dados biográficos a respeito de Apuleio, bem como sobre a
maioria dos autores da Antigüidade Clássica. Desta forma, o que consideramos como
biografia do autor é uma montagem de dados tirados de minuciosos exames dos
documentos, com indícios que se alteram a partir de informações novas, variando da
suposição a traços evidentes, sendo que o próprio Apuleio entrelaça muitos elementos
autobiográficos em suas obras.
11
Apuleio (geralmente atribui-se a Apuleio o prenome Lúcio
12
, mas não sabemos ao
certo se esse foi seu nome ou se foi associado a ele devido ao personagem Lucius de sua
novela Metamorfoses) é considerado um expoente da literatura, da retórica e da filosofia
platônica do século II d.C. Nasceu por volta de 114 e 125 d.C. na África sob dominação de
Roma e viveu entre os governos dos Imperadores Adriano (117-138 d.C.) e Marco Aurélio
(161-180 d.C.).
A cidade natal de Apuleio parece ser Madaura, colônia agrária romana na África
(atual Mdaurush, na Argélia). Ao referir-se a sua pátria, ele se declara seminumida e
semigetulo, denominação proveniente de Numídia e Getúlia, regiões que entremeavam a
cidade de Madaura.
Quanto à minha pátria, já foi dito, embasados em meus próprios escritos,
que está situada na fronteira da Numídia e da Getúlia. Assim, eu mesmo
11
Além de informações remetidas pelas próprias obras de Apuleio, utilizaremos indicações de estudiosos e
tradutores de suas obras, entre eles: Paul Valette (1960), Jean Beaujeu (1973), Santiago Segura Munguía
(1981), Pierre Grimal (1994), María José Hidalgo de la Vega (1977, 1986, 1995 e 1999), entre outros.
12
L. Lucius Apuleius.
24
declarei, em uma conferência pública que pronunciei na presença do
ilustre Loliano Avito, que eu era seminumida e semigetulo. (APULEIO,
Apologia, XXIV, 1, 2).
A afirmação de ser Madaura a pátria do filósofo é corroborada por manuscritos da
época que acrescentam ao seu nome o epíteto “madaurense”. Segundo Philip Ward (1969:
5), uma estranha lenda coloca as origens de Apuleio não na região da Numidia, mas na
Tripolitania - região formada pelas cidades de Leptis Magna, Sabrata e Oea.
13
Para nós, tal
fato pode ter ocorrido por ele ter vivido nesta região durante algum tempo e também por
citá-la em suas obras.
No ano de 1918, descobriu-se uma estátua com um fragmento de dedicatória dos
cidadãos de Madaura a um filósofo platônico que constituía honra à cidade. Tudo indica
que esta era uma homenagem para Apuleio
14
(GARCÍA, 1988: 20). Porém, para Pierre
Grimal (1994: 487), é difícil reconhecer essa estátua como dedicada a Apuleio, argumento
que refutamos devido às próprias inscrições da estátua fazerem alusão ao filósofo como
seguidor da filosofia platônica e por não haver nenhuma informação sobre outro filósofo
desta região que recebeu destaque e foi seguidor desta filosofia.
A família de Apuleio ocupou cargos importantes na administração de uma cidade
do norte da África, que tudo indica ser Madaura, um importante centro de influência
romana (BOISSIER, 1909: 237).
15
Seu pai, vindo da Península Itálica, segundo indicações
13
Estas três cidades foram fundadas pela colonização fenícia (LEVEL, 1992: 1099). Sobre esta região e as
respectivas cidades ver mapa em anexo.
14
A inscrição em latim: Philosopho platonico madaurense ciues ornamento suo dedicauerunt pecunia
publica, significava: os cidadãos de Madaura dedicaram a expensas públicas esta estátua ao filósofo platônico
que constitui para eles honra. Acredita-se que mais duas estátuas tenham sido erguidas em homenagem a
Apuleio porque em uma passagem da obra Flórida (XVI), ele agradece a um cidadão de Cartago chamado
Emiliano Estrabão por render-lhe homenagem em forma de uma estátua e ao senado desta mesma cidade por
uma outra que aguardava ser erguida.
15
A família romana correspondia a um grupo de pessoas de mesma descendência e seus agregados,
considerando o corpo de escravos como seus membros, quando os romanos queriam demonstrar a família no
sentido de conexão de descendentes, eles expressavam as pessoas de mesmo sobrenome, herdado de um
25
do próprio Apuleio (Apologia, XXIV, 9), foi para o norte da África formar a elite dirigente
local, ocupando cargos municipais, chegando a tornar-se diunviro, a mais alta magistratura
municipal.
Como a ordem social era hereditária (ALFÖLDY, 1989: 126), Apuleio fez parte
da ordem dos decuriões (ordo decorionum uma ordem senatorial em vel local) e, como
ele nos informa, ocupou também o cargo do pai no Senado de sua cidade natal.
Nesta colônia meu pai ocupou o cargo de diunviro, depois de ter
desempenhado todos os demais postos honoríficos. E eu ocupo seu
mesmo posto nesta querida cidade desde que comecei a participar de sua
cúria, mantendo-me à altura de tal cargo, defendendo-a com considerável
estima (APULEIO, Apologia, XXIV, 9).
Segundo inscrições encontradas na antiga cidade africana de Leptis Magna, o
nome
16
de um nobre cidadão chamado Cassius Langinus, diunviro designado e membro da
cúria de Leptis, é mencionado na inscrição
17
como parente de um cidadão chamado
Apuleio. Se tal cidadão realmente for parente do filósofo Apuleio, temos mais uma
demonstração da influência política da família do autor na região da África. Contudo, o
Apuleio da inscrição também pode ser um homônimo do filósofo.
Como todo jovem das ordens da elite romana, durante sua formação, dedicou-se
aos estudos, falando fluentemente as duas línguas principais do Império: grego e latim.
Ainda em sua cidade natal, estudou as matérias do ensino elementar dos jovens romanos:
aritmética, leitura e escrita. Reportando-se para Cartago, dedicou-se aos estudos de
descendente comum (CROOK, 1967: 88). Assim, usaremos o termo família em diversas passagens deste
trabalho no sentido de conexão entre pessoas de parentesco consangüíneo e mesmo sobrenome.
16
Localizado por Julien Guey (1954: 116).
17
Entendemos o parentesco como um vínculo estabelecido por descendência entre pessoas que possuem um
ancestral comum ou por relações de afinidade (parentesco que um njuge contrai com a família do outro
cônjuge) e adoção.
26
gramática e retórica (APULEIO, Flórida, XVIII, 15), elementos fundamentais para seu
futuro como homem público.
Na Grécia, mais especificamente em Atenas, Apuleio estudou a filosofia de
Aristóteles e, principalmente, de Platão (MUNGUÍA, 1981: 10), complementando sua
formação político-cultural. Há indicações de ter sido discípulo de Gaio.
18
Como nos indica Paratore (1983: 810) sobre sua formação:
Ele próprio, depois de ter concluído os estudos de gramática e de retórica
em Cartago, principal centro da sua região, passou a formar-se em
Atenas, onde se embebedou de todas as correntes retóricas, místicas e
pseudo-filosóficas, de que a pátria de Platão se voltará a tornar o centro,
graças à nostálgica revivescência dos estudos, que ali se afirmava no
tempo de Adriano.
Conforme indicações de Apuleio, ele foi filósofo, orador, romancista, advogado,
pesquisador e dedicou-se a diversos gêneros artísticos.
Ependócles, em efeito, compôs poemas; Platão, diálogos; Sócrates,
hinos; Epicarmo, mimos; Xenofonte, histórias; Crates, sátiras. Eu,
Apuleio, cultivo com igual arte todos os gêneros e as nove musas
(APULEIO, Flórida, XX, 5).
Muitos estudiosos acreditam que ele foi também professor de retórica em Roma e
por não ter obtido grande sucesso na capital do Império, retornou à África.
19
Santiago
Segura Munguía (1980: 13) não compartilha desta opinião. Para esse autor, Apuleio
18
Jurista e professor de Direito da época de Antonino Pio Viveu de 110 a 180 d.C. (ap.) (HARVEY, 1998:
243). Apuleio não deixou nenhum relato escrito sobre a possibilidade de Gaio ter sido seu professor, a
hipótese foi elaborada por Th. Sinko em 1905 e é corroborada por Jean Beajeu na sua Introdução aos
Opúsculos Filosóficos de Apuleio. Ambos autores afirmam que Apuleio foi discípulo de Gaio através de
análises comparativas entre suas obras e as obras do também filósofo, e discípulo de Gaio, Albino. Para estes
autores, as características de escrita e da reflexão dos contemporâneos Apuleio e Albino, levam-nos a
acreditar que eles tinham um mesmo mestre (PLACES, 1974: 351).
19
Alguns estudiosos da obra de Apuleio defendem que a obra Metamorfoses tenha um cunho autobiográfico
metafórico por alguns fatos do desenrolar da narrativa terem ligação com assuntos e acontecimentos da vida
de Apuleio expostos por ele em outras obras. Esta tese é corroborada por nós e, nesta perspectiva, acreditamos
que Apuleio faz certa alusão a sua estadia em Roma nas palavras de Lúcio que reclama não ter tido muita
sorte na capital por seu custo de vida ser muito mais caro do que nas províncias (APULEIO, Metamorfoses,
XI, XXVIII).
27
alcançou certa reputação em Roma como orador e homem de letras, relacionando-se com
altos personagens públicos que lhe seriam úteis no futuro, não dando, porém, nenhuma
explicação sobre o porquê do retorno de Apuleio à África.
Apuleio também demonstra seu prestígio comodico e seus conhecimentos
sobre certos distúrbios físicos em uma passagem da Apologia (XLII). Nesse trecho da obra,
o filósofo se defende da acusação de ter feito um de seus escravos cair ao chão por meio de
suas artes mágicas. Para Apuleio, a queda do jovem escravo não foi ocasionada por nenhum
ritual mágico e sim pela doença, que o tradutor Munguía (1980: 127, 131) acredita ser
epilepsia, doença conhecida pelos antigos romanos como morbus comitialis.
No texto que se segue, Apuleio indica que o médico da cidade de Oea lhe pediu
que examinasse uma paciente, que de acordo com Munguía (1980: 138) e Paul Valette
(1960: 58) era também epiléptica.
No caso que nos ocupa, demonstrarei que a mulher em questão não fôra
encantada e nem derrubada ao chão por meio dos meus encantamentos e
eu não nego que havia a examinado, mas a pedido do médico, vou lhe
dizer Máximo, por que a examinei e lhe fiz perguntas a respeito do
zumbido no ouvido (APULEIO, Apologia, XLVIII, 11-12).
A polivalência era uma virtude fundamental na vida de um homem público
(HUSKINSON, 2000: 103). E como mostrado, Apuleio exaltou esta sua característica em
seus textos.
Segundo Apuleio (Apologia, XXIII, 2), ávido por saberes diversos, ele
empreendeu várias viagens de estudos, passeios e configurou-se como um sofista, uma
28
espécie de filósofo e orador que não tinha moradia fixa e viajava pelas cidades do Império
pronunciando conferências.
20
No Oriente, iniciou-se em vários cultos mistéricos, próprios da nova forma que a
filosofia platônica se configurava.
Fiz parte, na Grécia, das iniciações mistéricas da maior parte dos cultos
mistéricos. Conservei, ainda, com grande carinho, certos símbolos e
recordações de tais cultos, que me foram entregues por seus sacerdotes.
(APULEIO, Apologia, LV, 8)
No caminho de uma de suas viagens para Alexandria, Apuleio passa pela cidade
de Oea (atual Trípoli, na Líbia) para pronunciar suas habituais conferências, porém adoece
nesta cidade e estabelece pouso na casa de amigos. Nesta cidade, reencontra Ponciano, um
antigo amigo dos tempos em que estudou em Atenas. Ponciano apresenta Apuleio a sua
mãe, a viúva Emilia Pudentila, com quem o filósofo se casa pouco tempo depois com o
consentimento do próprio amigo.
tempos a viúva negava-se a contrair novo matrimônio, tendo, inclusive,
estabelecido um contrato de futuro casamento com o irmão de seu falecido marido Sicinio
Amico, portanto seu cunhado, Sicinio Claro.
21
Mas, segundo as indicações de Apuleio, esta
promessa foi rompida antes mesmo de ele chegar em Oea (APULEIO, Apologia, LXVIII,
5; LXIX).
Neste ponto, retornamos a um ponto anterior, sobre o motivo do retorno e
permanência de Apuleio na África.
20
Os preços de uma viagem da África Romana para as demais partes do Império são muito difíceis de serem
contabilizados. O preço de uma viagem para Roma, por exemplo, valia em média duzentos sestércios e apenas
homens da elite empreendiam tais deslocamentos com certa freqüência, o que era, inclusive, bastante comum
(BOUGAREL-MUSSO, 1934: 374-375).
21
Destacamos que casos de promessa de casamento entre o irmão de um homem e sua viúva não eram
excepcionais na antiga Roma. Bradley (1991: 93) expõe o caso, citado por Plutarco, de dois irmãos da
aristocrática família Crassi, que por volta de 70 d.C., após o falecimento de um dos irmãos, o outro se casa
com sua viúva e tem filhos com ela.
29
Sabemos que Apuleio era um sofista e estava na África empreendendo suas
habituais viagens como conferencista. Sua intenção talvez não fosse permanecer ali, ele não
tinha neste momento uma moradia fixa, porém acabou se estabelecendo na África, inclusive
fora de sua pátria, em uma outra região, por contrair o matrimônio. Apuleio nos informa
que por um tempo pensou se contraía ou não matrimônio em função de suas viagens, mas
cedeu aos pedidos de seu amigo Ponciano, que desejava muito que sua mãe se casasse com
seu amigo filósofo.
Eu havia recusado durante algum tempo tal matrimônio, não porque não
tinha tido ocasião de conhecer ao fundo, durante um ano inteiro, seus
dotes morais, mas sim porque, como eu era um apaixonado por viagens,
considerava semelhante união como um impedimento para realizá-las.
(APULEIO, Apologia, LXXIII, 7)
Era muito comum que os sofistas, homens de grande reconhecimento dentro do
Império, fossem convidados pelos cidadãos e até pelo próprio Imperador para assumirem
cargos nas cidades por onde passavam, mas muitos tendiam a fugir destas obrigações, não
aceitando tais cargos (GAGÉ, 1971: 235).
Esse não foi o caso de Apuleio, que aceitou permanecer na cidade de Oea após ser
convidado pelos cidadãos do local e se casar com Pudentila, o que nos leva a inferir que o
matrimônio foi algo de extrema importância para que o fizesse mudar a forma como exercia
sua profissão de filósofo e orador sofista.
A chegada de um orador renomado nas cidades do Império, sobretudo estrangeiro,
era muito esperada pelos cidadãos do local e esses homens recebiam honras, doações e
títulos de cidadania por onde passavam. O dia e hora fixados para seus discursos eram
grandes eventos (GAGÉ, 1971: 240-241).
30
Na acusação de magia, Apuleio, para sua defesa, exalta como foi bem recebido
em Oea:
[...] a pedido de meus amigos, dou uma conferência pública, todos os
presentes, que com grande concorrência lotam a basílica onde tinha lugar
as audiências, entre outras numerosas demonstrações de aplausos,
gritaram unanimemente ‘bravo’, pedindo-me que passasse a viver ali e
que me fizessem cidadão de Oea (APULEIO, Apologia, LXXIII, 2).
O filósofo refere-se a um convite para receber a cidadania de Oea. Sabemos que
além de obter a cidadania romana, as pessoas recebiam a cidadania do local em que
nasciam. Na realidade, no caso citado por Apuleio, não se trata de adquirir uma nova
cidadania, mas de receber um título oficial, outorgado pela cidade como uma espécie de
pagamento por seus serviços honrosos, assim também eram erguidas estátuas, realizados
banquetes, etc. (MUNGUÍA, 1980: 176).
Apesar de Apuleio ter sido muito bem recebido em Oea, pouco tempo depois de
seu casamento com Pudentila, a família de seu marido falecido, formada por membros da
elite local desta cidade (GUEY, 1954), acusa Apuleio de ter praticado magia amorosa para
casar-se com a rica viúva.
22
Quem moveu a ação contra Apuleio (Apologia, I, II, LXXVIII) foi Emiliano,
irmão do marido falecido de Pudentila. Porém a acusação é feita em nome do filho mais
novo da viúva, Pudente, que não tinha ainda maioridade jurídica e foi assessorado pelo
tio.
23
22
Segundo as indicações de Apuleio (Apologia, LXXIII, 8), ele casou-se com Pudentila depois de permanecer
um ano em Oea. A acusação aconteceu depois de dois anos do casamento ter-se realizado (APULEIO,
Apologia, LV, 10), ou seja, depois de três anos que ele vivia na cidade.
23
Ver a árvore genealógica dos acusadores de Apuleio em anexo. A maioridade jurídica dos romanos ocorria
por volta dos vinte e cinco anos e Pudente tinha cerca de dezoito anos na ocasião do processo (WINTER,
1968: 24).
31
Devemos destacar que Pudentila esteve prometida em casamento a seu cunhado
Sicinio Claro (irmão de seu falecido marido e de Emiliano). Esse fato confere à acusação
um aspecto passional, mas é, sobretudo, nesse ponto que reside uma das argumentações da
hipótese que iremos desenvolver.
Segundo Guey (1954), três das trinta e uma inscrições epigráficas atualmente
encontradas pela arqueologia na antiga cidade de Oea, realmente, concernem a membros da
família dos pais de Pudentila, os Aemilius, que pertenciam à alta nobreza da cidade da qual
recrutavam os membros da nobreza do Império.
Um importante membro dos Aemilius foi, segundo Guey (1954: 118), Lucius
Aemilius, senador, cônsul e procônsul da Ásia. Esse personagem era um parente de
Pudentila nascido um pouco mais tarde da época em que viveu Apuleio. Ele foi localizado
por Guey (1954: 118) através de inscrições em um templo elevado pelo mesmo em honra
ao Imperador Cômodo (180-192 d.C.).
Também a família Sicinii - família do marido falecido de Pudentila e acusadores
de Apuleio - foi localizada nessas inscrições. Segundo tais inscrições, esta produziu de seu
meio um senador - Sicinius Clarus Pontianus - mais tarde, em 202 d.C. pretor de Roma.
24
Por meio das citações da Apologia (LXVIII, 2), percebemos que o nome deste
senador e pretor, Sicinio Claro, é o mesmo nome do irmão do falecido marido de Pudentila,
ao qual ela esteve prometida em novo casamento. Portanto, as pessoas envolvidas na
acusação contra Apuleio eram, realmente, membros das ordens superiores desta cidade e
24
O estudioso destas inscrições, Jean Guey, não nos fornece se Sicinio Claro era um senador de Roma ou da
própria cúria de Oea. Segundo Jean Gagé (1971: 170), esses decuriões locais podiam ser recrutados para o
senado de Roma, sendo possível, portanto, que Sicinio Claro fosse um senador a nível imperial.
32
Sicinio Claro chegou a ocupar o cargo mais importante de toda província da África
Proconsular, o de pretor.
25
Conforme a onomástica romana, primeiramente vinha o nome individual da
pessoa (prenome), depois o nome gentílico (nome da gens) e por fim o nome particular (da
família). As mulheres, porém, não recebiam nome individual, apenas o nome da gens e da
família que pertenciam (ADRADOS, 1986, p. 206-207). Assim, Aemilia Pudentila, ou
Emilia Pudentila, faz primeiramente uma referência ao nome da gens Emilia e depois à
família Pudente, sendo Tannonio Pudente, o advogado de acusação, da mesma família da
esposa de Apuleio.
26
Em sua defesa Apuleio admite que Tannonio Pudente também levantava
julgamentos contrários a ele.
27
Percebemos com essa informação que não é apenas a família do esposo falecido
de Pudentila que está envolvida no processo, mas outros membros da elite local e o mais
interessante: é um membro da família de Pudentila que se coloca contrário ao casamento
dela com Apuleio, denotando que o motivo pode ser porque tal membro dessa família
tivesse interesse que ela continuasse casada com um membro da importante família Sicinii,
não desfazendo, com isso, uma possível aliança entre os Aemilius e os Siciniis.
Ouvi, em efeito, alguns instantes, no princípio da acusação, que se
dizia o seguinte: ‘Acusamos você como um filósofo aposto e oh, crime
25
Em Roma, o título de pretor era usado para designar magistrados incumbidos de administrarem a justiça
entre os cidadãos romanos (praetor urbanus) e estrangeiros (praetor peregrinus). Mais tarde foram nomeados
também pretores para a administração das províncias, também chamados de procônsules. Eram estas
autoridades que estavam incumbidas de presidir os tribunais de justiça. A datação do proconsulado de Sicinio
Claro em 202 d.C. torna-se um pouco confusa, já que Apuleio o chama de velho durante seu pronunciamento
(APULEIO, Apologia, LXX, 3), que tudo indica ter ocorrido por volta de 157/158 d.C. Porém, não temos
mais informações para contrapor tais datas. O Sicinio Claro mencionado na inscrição pode ser outro,
possivelmente filho do cunhado de Pudentila, mas isso o modificaria muito nossa idéia sobre a riqueza e
ocupação de cargos públicos importantes da família dos Sicinii.
26
Talvez Pudente seja até mesmo irmão de Pudentila. Para s, Apuleio omite o grau de parentesco entre
Pudentila e Tannonio Pudente de seu discurso para não denotar a idéia de uma disputa de alianças políticas.
27
Apuleio faz algumas referências a este personagem em: Apologia IV, 2; XLVI, 1.
33
abominável! muito eloqüente tanto em língua grega como latina.’ Com
estas mesmas palavras, se não me engano, iniciou a acusação contra mim
Tannonio Pudente, homem já célebre e não precisamente como bom
orador (APULEIO, Apologia, IV, 2).
O assessor do acusador de Apuleio, irmão do falecido marido da viúva, chama-se
Emiliano, o que nos sugere que estas famílias faziam parte da mesma gen (Emiliano Sicinio
e Emilia Pudentila). Isto é uma hipótese bem provável ao se tratar de uma cidade pequena
como Oea. Mas Apuleio e as epigrafias estudadas por Guey não nos trazem nenhuma
informação a esse respeito.
Apuleio advoga em defesa própria. O tribunal se estabelece em Sabrata, cidade
perto de Oea e como ele nos indica, parece ter sido assistido por muitas pessoas (Apologia,
XVIII, 3).
De acordo com Apuleio (Apologia, I, 1), a audiência ocorreu diante de Cláudio
Máximo, sendo várias as referências que o autor faz a esse procônsul no texto. Cláudio
Máximo foi procônsul da África entre 157/158 d.C. no período de governo do Imperador
Antonino Pio (148 a 161 d.C.) (VALETTE, 1960, p. XXIII). ainda uma referência de
Apuleio (Apologia, LXXXV, 2) sobre estar ante as estátuas do Imperador Antonino
proclamando sua defesa.
É nesse sentido que estudiosos têm tentado datar a defesa de Apuleio. Guey
(1951: 308) sugere a datação de 158/159 ou entre 151/160 d.C. para o proconsulado de
Cláudio Máximo, considerando o inverno de 159 d.C. como o período mais provável para o
desenvolvimento do processo.
34
Devido às indicações sobre viver em Cartago
28
, que o próprio Apuleio faz na obra
Flórida (XVIII, XX), acreditamos que por ocasião do final do processo de magia ele partiu
com sua esposa para essa cidade, desenvolvendo atividades como a de médico,
conferencista e advogado.
29
Em Cartago, Apuleio certamente foi sacerdote. Na passagem da obra Flórida,
abaixo citada, ele agradece Emiliano Estrabão, um cônsul, homem da aristocracia da cidade
que Apuleio serviu de alguma forma. Emiliano ergue uma estátua em homenagem a ele,
que explica as razões do erguimento da mesma, vangloriando seus feitos, sua própria
erudição e o fato de ocupar o cargo de sacerdote na cidade, onde tal discurso foi
pronunciado.
O que posso acrescentar a tamanho elogio, tributado publicamente por
um varão consular. E ainda mais: aludindo que eu assumi um cargo
sacerdotal, demonstrou que eu ostentava a mais alta dignidade de Cartago
[...]. E, para tanto, prometeu-me que disporia e ergueria a suas expensas
uma estátua em Cartago (APULEIO, Flórida, XVI, 38-39).
Tudo indica que Apuleio foi sacerdote do deus Esculápio (L. Aesculapius, G.
Asklépios).
30
Ele mesmo nos fornece esta informação em uma homenagem a Cartago:
Por ele, neste momento, ao dirigir-me a vocês, começarei com
felicíssimos auspícios, invocando o Deus Esculápio, que protege
benévolo com seu poder indiscutível, a cidade de nossa querida Cartago.
Cantar-lhes-ei também um hino que compus, em honra deste deus, em
versos gregos e latinos e que já lhe dediquei. Não sou, entretanto, nem o
menos conhecido de seus adoradores, nem o menos antigo de seus fiéis,
nem o menos favorecido de seus sacerdotes e manifestei a veneração
que por ele sinto, tanto em prosa como em verso, de tão sorte que
28
Cartago era uma das principais cidades africanas da época, capital da África Proconsular, principal
província da África Romana.
29
Alguns autores sugerem que Apuleio ainda permaneceria por mais três anos em Oea após o processo ter
acabado (SILVA, M.R.S. 2001: 23).
30
Segundo Munguía (1980: 150), o deus Esculápio é uma das grandes divindades africanas e foi incorporado
pelo panteão greco-romano como deus da medicina, recebendo culto em Roma desde os princípios do século
III a.C. Mais informações sobre este deus ver em: HARVEY, P. Dicionário Oxford de Literatura Clássica.
Grega e Latina. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 62, 209.
35
também agora cantarei seu hino em ambas as línguas (APULEIO,
Flórida, XVIII, 37).
Também na obra Apologia, Apuleio alude ao deus Esculápio, informando-nos que
pronunciou um discurso sobre essa divindade quando chegou em Oea.
[...] faz uns três anos, poucos dias depois de eu ter chegado em Oea, ao
pronunciar uma conferência acerca da majestade de Esculápio, fiz
publicamente estas mesmas declarações e enumerei todos os cultos
mistéricos nos quais eu havia me iniciado. Este discurso meu é bastante
conhecido, as pessoas o lêem, anda por em todas as mãos, encontrou
uma boa acolhida entre os piedosos cidadãos de Oea, não tanto pela
minha eloqüência, mas porque nele falo de Esculápio (APULEIO,
Apologia, LV, 10).
Segundo John Scheid (1992: 52), o sacerdote era aquele que realizava atos
cultuais, diferenciando-se dos magistrados por ser o depositário do direito sagrado e exercer
uma autoridade divina. É interessante notar que:
[...] em Roma não se tornava sacerdote quem o desejasse: o sacerdócio
não era uma questão de vocação (pelo menos, não nos cultos
tradicionais), mas de estatuto social. Como os atos religiosos eram
celebrados em nome de uma comunidade, e não em nome de indivíduos,
só aqueles que estavam destinados, pelo seu nascimento ou pelo seu
estatuto, a representá-la, exerciam as funções sacerdotais (SCHEID,
1992: 53).
[...] na vida comunitária do povo romano, o que determinava essa
distribuição eram as regras tradicionais da vida pública. Portanto, as
funções sacerdotais eram confiadas a todos aqueles que eram, ou tinham
sido, regularmente eleitos como magistrados ou sacerdotes do povo
(SCHEID, 1992: 54).
Em nenhuma passagem de suas obras, Apuleio cita ter sido magistrado, apenas,
como colocamos, faz alusões a ter sido membro da cúria de sua cidade natal e sacerdote
de Cartago.
Conforme Scheid (1992: 62, 63, 66), as funções de um sacerdote eram de
celebração dos ritos, sacrifícios ao deus, fixação das datas e modalidades da liturgia e
36
pronunciamentos de palavras em honra ao deus. É nesse sentido que Apuleio explana sobre
os discursos que pronunciou em Oea e Cartago.
Os sacerdotes romanos, sobretudo os pontífices, eram homens de direito
e ‘homens de letras’. Os seus textos não constituíam revelações
metafísicas, mas o registro de factos que pudessem interessar aos actos
públicos dos homens e dos deuses, e a compilação de todos os decretos e
respostas dadas pelos sacerdotes: em suma, toda jurisprudência sagrada
(SCHEID, 1992: 67).
Através da análise biográfica de Apuleio, notamos que ele era envolto em um
misticismo próprio das iniciações mágico-filosóficas que fizera, além disso, era um
“homem de letras”, termo usado por Scheid, era um escritor, um retórico e um advogado,
tendo ainda como atributo para exercer a função de sacerdote de Cartago o fato de ser um
decurião.
Os sacerdócios oficiais dos romanos reduziam-se aos homens beneméritos e
letrados (CARCOPINO, 1990: 152). Também na região da África Romana, o título de
sacerdote era dado aos homens mais nobres naquele momento.
O grande sacerdote da província é escolhido anualmente em Cartago,
entre os cidadãos mais nobres, sendo que esse deve ser um personagem
político influente e forte, que represente a população no Império
(CHARLES-PICARD, 1954: 168).
Apuleio não nos indica se foi o “grande sacerdote da província”, mas de qualquer
forma, apenas por ter recebido o título de sacerdote na principal cidade da África
Proconsular, percebemos a importância que desempenhou nesta região.
Apuleio morre por volta de 170-180 d.C., durante o governo de Marco Aurélio,
havendo controvérsias também sobre a data de sua morte.
37
Apresentar a produção escrita de nosso autor torna-se necessário para que o leitor
compreenda os temas que interessaram ao autor e sua Paidéia
31
, que está, para nós,
diretamente ligada à motivação do processo. Acreditamos que o texto é uma espécie de
porta-voz de seu autor e representa o mundo a partir do ponto de vista de quem o escreve.
Compreende-se por meio da produção escrita de um autor também seu contexto histórico e
a relação entre ambos.
As obras de Apuleio configuram-se como filosóficas, poéticas, uma novela, hinos,
panegíricos e discursos, sendo também tradutor de obras de Platão do grego para o latim.
Há, ainda, algumas obras apócrifas.
Várias categorias são dadas à produção de Apuleio. Groningen (1987: 398)
destaca que não devemos excluir a categoria de tradutor, que certamente aparece em seus
escritos filosóficos, e a categoria retórica que aparece em obras como a Apologia, Flórida e
O Deus de Sócrates.
Para uma melhor compreensão do leitor, dividiremos a apresentação das obras
segundo critérios estilísticos.
1) Obras oratórias:
Faltam testemunhos sobre as performances de Apuleio em seus pronunciamentos,
todas as informações que temos são do próprio autor.
1.1) Apologia (L. Pro se de magia liber)
31
De acordo com Margarida Maria de Carvalho (2002: 20-21), entende-se Paidéia como a educação
pedagógica, política, filosófica e religiosa, recebida pelos cidadãos da elite romana.
38
Como mencionado, este discurso trata-se da autodefesa de Apuleio perante a
acusação de magia, elaborado na forma escrita alguns anos depois do processo.
32
1.2) Flórida (L. Florida)
Compilação feita não se sabe quando e nem por quem, possui vinte e três
fragmentos de discursos pronunciados por Apuleio em Cartago.
2) Novela
2.1) O asno de ouro ou Metamorfoses (L. Methamorphoseon)
33
O enredo desta novela é a história de Lúcio, um curioso viajante que estabelece
pouso na casa de um rico homem da Tessália
34
, região da antiga Grécia. Na Tessália, Lúcio
se envolve em uma experiência de magia que, por dar errado, acaba transformando-o em
asno.
Ignoramos em qual momento de sua vida Apuleio escreveu esta obra. Grimal
(1994: 489) acredita que ela possa ter sido um dos motivos que levou Apuleio ao processo
de magia, porém, acreditamos que essa obra tenha sido escrita como uma espécie de
resposta ao processo, visto que a transformação e redenção de Lúcio se caracterizam como
uma espécie de alegoria à defesa do processo. Para Nicole Fick (1985: 133-134), a obra foi
32
De acordo com Neil Bernstein (1997), a autodefesa é algo que aproxima Apuleio dos moldes gregos de se
defenderem. Segundo Yann Le Bohec (2003), mesmo sendo reconhecida a profissão de advogado em Roma,
na época da acusação contra Apuleio era preferível defender-se sozinho frente a um tribunal, isto era um
indício de que não se temia nada.
33
Apesar das versões desta obra a nomearem como O asno de ouro, utilizamos o título Metamorfoses para
referirmo-nos à obra porque, conforme Philip Ward (1969: 3), foi a maneira com que Apuleio a intitulou.
Alguns tradutores lhe nomeiam como O asno de ouro. Segundo Ruth Guimarães (s.d., p. 7) o termo “de ouro”
se refere a uma história extraordinária, fantástica.
34
A Tessália foi conhecida em toda literatura greco-romana como a tria das feiticeiras. Nos textos de
Apuleio podemos notar referencias a esta região como ligada à magia em Metamorfoses, II, 1; 21 e Apologia,
XXXI, 2; XC, 6.
39
escrita antes de 197 d.C., bem depois do processo de magia que sofre Apuleio e é uma
resposta ao mesmo. Para Hidalgo de la Vega (1986: 19) e Philip Ward (1969: 4), as obras
de Apuleio têm uma grande conexão e quando analisadas dão uma plena intencionalidade à
escrita da obra Metamorfoses.
Desta forma, Apuleio demonstra que, ao usar da magia maléfica, Lúcio torna-se
um asno e apenas ao se iniciar nos cultos mistéricos de Ísis, ele encontra a redenção, tal
como havia se defendido no processo por nós estudado: ele não era um mago, apenas um
adepto de religiões mistéricas próprias da filosofia que seguia, na qual a magia em si é uma
prática ilícita, mas a filosofia mística e especulativa é uma forma de redenção.
Enquanto homem público, Apuleio escreveu Metamorfoses para obter maior
notoriedade, que possuía reconhecimento como filósofo e orador, sendo a linguagem de
uma novela a maneira de ser reconhecido por pessoas que não se interessavam somente por
filosofia e discussões sobre moral, misticismo e política, temas gerais de suas demais obras
e pronunciamentos.
3) Obras filosóficas
As obras filosóficas de Apuleio apresentam grande importância enquanto
transmissão e divulgação da filosofia médio-platônica, fornecendo meios para conhecermos
a nova forma do platonismo em Roma, que os primeiros escritos sobre tal corrente de
pensamento não passam de traduções de textos de Platão do grego para o latim. No século
XIV tais obras foram compiladas com o título de Opúsculos filosóficos de Apuleio por
apresentarem um mesmo código (BEAUJEU, 1973, p. VII).
40
Segundo Munguía (1980: 19), as três obras a seguir projetam uma espécie de
trilogia apuleiana, tomando como base a filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles,
respectivamente.
3.1) O Deus de Sócrates (L. De Deo Socratis)
O Deus de Sócrates se constitui como uma exposição aprofundada sobre
demonologia e um dos estudos mais importantes do Médio-Platonismo, equiparando as
especulações de Apuleio à filosofia de Máximo de Tiro e Celso (ZABALA, 1989: 267).
A obra recebe esta denominação porque, segundo Apuleio (O Deus de Sócrates,
XVII), o sábio filósofo grego Sócrates honrava um deus particular, o seu demônio pessoal.
Esse demônio pessoal afastava Sócrates do errado e o conduzia ao caminho correto e sábio.
Sócrates ainda o usava para obter presságios.
Não devemos deixar de mencionar que esses referidos demônios não possuem a
conotação negativa do demônio cristão para os romanos da época de Apuleio. Rosângela
Maria de Souza Silva (2001: 27) mostra-nos que nosso autor definiu esses seres como
habitantes das sublimes regiões aéreas que tinham como função facilitar a comunicação
entre os homens e os deuses, portanto, eram seres especiais. Os demônios, daimones como
eram conhecidos entre os gregos, também receberam a denominação de gênios entre os
romanos.
35
De acordo com Jesús de Miguel Zabala (1989: 266), a experiência do homem
com o mundo demoníaco é uma das características que mais chamam a atenção dos
estudiosos do século II d.C.
35
Nesta Dissertação, utilizaremos a denominação daimones para nos referirmos a estes seres, a fim de evitar
confusões do leitor com a concepção cristã sobre demônio.
41
3.2) Platão e sua doutrina (L. De Platone et eius dogmate)
A obra contém os ensinamentos de Platão, provavelmente é um resumo dos
estudos de Apuleio sobre esse filósofo com uma breve biografia do mesmo. A obra está
dividida em dois livros.
3.3) O mundo (L. De Mundo)
Obra que apresenta traços para a compreensão das teorias platônicas no contexto
do século II d.C.
4) Obras perdidas de possível autoria apuleiana
Muitas são as citações de outras obras suas que Apuleio faz em passagens de seus
textos, como por exemplo, o poema que teria escrito aos filhos de um amigo (Apologia,
IX). Porém estas referências são desconhecidas, tendo provavelmente se perdido. Entre
estas, estariam obras em verso, uma novela, uma possível obra histórica, vários discursos e
obras científicas. Os conhecimentos que Apuleio faz em citações de suas obras demonstram
que ele provavelmente escreveu tratados de zoologia, botânica, medicina e astrologia,
porém, tais obras não foram encontradas.
5) Obras apócrifas
42
Devido à fama de mago e filósofo naturalista
36
, Apuleio recebeu alguns tratados
sobre a divindade de Hermes Trimegisto
37
e Esculápio
38
e tratados naturais sobre plantas
medicinais encontrados são colocados como de possível autoria de Apuleio.
1.2 O contexto geográfico-cultural de Apuleio
A fim de compreendermos melhor algumas referências de Apuleio no discurso
Apologia, faz-se necessário uma análise da região da África Romana, especialmente da
Tripolitania (Sabrata, Oea e Leptis Magna), região onde Apuleio foi incriminado e onde se
estabeleceu o tribunal de acusação, e a inserção deste personagem no quadro cultural local
à época de seu pronunciamento.
A partir do final do século I d.C., a África conheceu uma prosperidade
excepcional que se prolongará durante o Principado. A organização política destas cidades
proporcionava meios para a aristocracia se enriquecer e condições de refinamento e acesso
às manifestações culturais. As cidades se multiplicaram e ornaram-se de grandes
monumentos. O desenvolvimento foi propiciado pela ordem dos decuriões, sobretudo de
africanos descendentes de colonos estabelecidos nesta região no início de nossa era.
36
Entendemos filósofos naturalistas como aqueles homens do Principado Romano que se dedicavam ao
estudo e conhecimento de física, biologia, medicina e demais tipos de estudos relacionados às ciências
naturais. De acordo com Bréhier (1948: 404), além de questionamentos sobre o conhecimento sensível, era
comum que os filósofos deste período se preocupassem com estudos matemáticos, físicos e médicos, por
exemplo.
37
A figura de Hermes Trimegisto ainda hoje apresenta controvérsias. Como nos indica Harvey (1998: 269), o
nome Hermes Trimegisto - três vezes grande - foi dado por místicos e neoplatônicos ao deus egípcio Toth,
considerado similar ao deus grego Hermes. A partir do século III d.C. esta denominação também passou a ser
aplicada a um autor neoplatônico de origem incerta.
38
Sobre este tratado, Apuleio cita na Apologia (LV, 10-11) ter transcrito uma conferência que pronunciou em
Oea e que muitas pessoas da cidade leram.
43
Charles-Picard (1954: 165) denomina os decuriões de “aristocracia romanizada” porque
eles buscavam adaptar-se a referências culturais romanas.
O polêmico conceito de romanização deve ser compreendido, como nos sugere
Norma Musco Mendes (2001: 26-27), “como a própria cultura do Imperialismo, cujos
mecanismos divulgam o projeto de identidade romana num contexto de mundialização do
mundo antigo”. Ou seja, como a dinâmica relacional entre as identidades culturais
provinciais e a cultura romana. Contudo, a autora alerta-nos para não homogeneizar o que
era “romano” e o que era “nativo”.
A cultura greco-romana prevaleceu durante o Império Romano também nas
províncias, porém, havia grandes diferenças entre as regiões do Oriente e do Ocidente ou
até mesmo dentro das próprias comunidades. A dinâmica da sociedade imperial redundou
em uma mistura de aspectos gregos, romanos e autóctones que podem ou não ter
preservado suas tradições (HUSKINSON, 2000: 107).
Consideramos que houve a criação de uma identidade entre a aristocracia Imperial
e a aristocracia das províncias romanas. Segundo Janeth Huskinson (2000: 107-111), desde
o início do Principado, as elites locais auxiliavam a própria política imperial através da
difusão de elementos da cultura romana - tais como exército, instituições civis, edifícios,
cerimônias, estátuas, sistema econômico, planejamento urbano, arquitetura, etc. (MENDES,
2001: 27). Diferentes regiões tinham suas próprias trajetórias culturais, mas a elite das
províncias buscava se aproximar da simbologia e dos costumes da elite imperial.
Nessa perspectiva, as cidades africanas, governadas pela aristocracia, tendiam a se
assemelhar cada vez mais às italianas, havendo assembléias populares, um senado
municipal e magistrados nomeados por um ano e sujeitos a um colegiado: duoviri,
quattuoiviri, aediles, quaestores (MOKTAR, 1983: 487).
44
[...] Nada é mais falso do que a perspectiva que mostra uma elite
africana totalmente desleal ao Império e a seus ideais, não se pensava na
época em separar-se de Roma. Os romanos aceitaram perfeitamente o
sistema de dupla cidadania. Todas as províncias enviavam soldados,
funcionários e até senadores para Roma [...]. A África parece ter sido a
província mais romanizada de todas. Havia dois estatutos para estas
cidades: as que tinham instituições próprias e as que se submetiam ao
direito romano público, as de assimilação maior eram elevadas ao grau
de colônias, copiando exatamente a constituição de Roma (CHARLES-
PICARD, 1954: 167-168).
Segundo Carlos Norena (1997), durantes os dois primeiros séculos d.C., as
cidades da região de Tripolitania incorporaram-se, de forma cada vez maior, ao sistema
romano de governo provincial.
Em Leptis Magna foi concedido o estatuto de município
romano (colônia) durante o período da dinastia flaviana (69-96 d.C.). Oea e Sabrata
transformaram-se em município durante o governo de Antonino Pio (138-161 d.C.),
passando a usar totalmente do direito latino - ius latii - o que permitia aos cidadãos locais
de participarem de contratos válidos com cidadãos romanos e contraírem uniões legais com
romanos. No final do século II d.C. a região da Tripolitania emitia um número considerável
de senadores para Roma, esse processo teve seu auge no governo do Imperador Septímio
Severo (193-211 d.C.), nascido em Leptis Magna.
39
Nicole Fick (1987: 286) ressalta que Madaura, Oea e Cartago, as três cidades
africanas onde Apuleio viveu, se situam em regiões muito afastadas umas das outras para
que a paisagem intelectual seja identificada, não havendo elementos para apreciar a
originalidade e as relações entre as mesmas.
39
O texto de Carlos Norena, assim como outros que utilizamos nesta Dissertação, é uma conferência
apresentada em um Seminário sobre o discurso Apologia de Apuleio que aconteceu em 1996 na Universidade
da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Tais conferências estão disponíveis on-line desde 1997 em um banco de
dados dos Estados Unidos.
45
As cidades da Tripolitania tinham uma economia baseada, principalmente, no
comércio marítimo.
40
Apuleio pronunciou sua defesa em uma época de prosperidade
econômica local, sendo que a presença de uma corte de justiça e do procônsul, pela ocasião
da acusação, contribuiu para propiciar uma atmosfera ainda mais romana à região
(NORENA, 1997).
Mas a região da Tripolitania não é Roma e nem a Grécia. Assim, percebemos que
havia uma cultura púnica sobrevivente nesta região.
41
A própria Apologia nos fornece
indicações desta cultura quando Apuleio cita que seu enteado Pudente se expressava
somente em língua púnica. (APULEIO, Apologia, XCVIII, 9).
Os elementos romanos que se constituíam na região código de direito,
arquitetura, língua, práticas culturais, títulos oficiais - representavam um revestimento dos
elementos locais. certamente uma multiplicidade de elementos e as referências culturais
do discurso de Apuleio se inserem também nesse aspecto.
Segundo Charles-Picard (1954: 165-167), a camada dirigente, formada em maior
parte por colonos itálicos e autóctones romanizados, estava habituada aos costumes
helenísticos, possuindo uma Paidéia helenística acomodada à latina.
Por meio da análise da formação de Apuleio, percebemos que ele representava a
ordem social a que se refere Charles-Picard, constituindo a base de sua formação como
filósofo na mais importante cidade grega do momento, Atenas, onde, segundo Huskinson
(2000: 99), grande parte dos jovens da aristocracia imperial buscava aprimorar seus
40
Tudo indica que o amigo e enteado de Apuleio, Ponciano, era envolvido com o comércio marítimo. Apuleio
menciona que ele morreu em uma viagem para Cartago (Apologia, XCVI), tal viagem pode ter sido comercial
e marítima, devido à tradição destas cidades nesta área.
41
Referente a cultura cartaginesa. Como sabemos, a cidade de Cartago dominou toda esta região durante o
período de 600 a 200 a.C. (NORENA, 1997). “Após a destruição de Cartago em 146 a.C. e a redução de seu
território à condição de província romana, o destino da África do Norte ficou nas mãos de Roma” (MOKTAR,
1983: 473).
46
conhecimentos. Apuleio também cita suas viagens pelo Oriente e sua atração por ritos
variados.
42
Consoante Boissier (1909: 272) muitos homens de formação filosófica,
pertencentes à aristocracia africana, não permaneciam restritos às cidades africanas. Alguns
deles viajavam por todo Império e foram considerados importantes personagens em Roma.
Destes homens, podemos citar o Imperador Septímio Severo (193-211 d.C).
Apuleio comenta que tinha habilidade nas duas línguas mais importantes do
Império: latim e grego (Apologia, XXXVI, 5; Flórida, IX, 29).
43
Segundo Hiljmans (1987:
399), esta habilidade era comumente compartilhada pelos contemporâneos eruditos de
Apuleio e os aristocratas romanos de todo o Império no século II eram adoradores da língua
grega (CARCOPINO, 1990: 137). O nico foi a ngua conhecida durante todo Império
Romano na África Proconsular, sendo o grego e o latim línguas conhecidas de algumas
pessoas da aristocracia local (MUNGUÍA, 1980: 216).
Percebemos que Apuleio usa a língua como forma de se defender contra seus
oponentes, criticando o idioma local através do acento de seu acusador, o jovem Pudente,
que somente se pronuncia na língua cartaginesa (APULEIO, Apologia, XCVIII, 8) e da
incapacidade do advogado de acusação, Tannonio, em escrever bem em grego. Apuleio
trata de durus
44
e rusticus
45
o acento de Tannonio, chamado de língua materna (Apologia,
IX).
42
Como mostrado, antes de estudar em Atenas, Apuleio estudou em Cartago. Atenas era a cidade para onde
os estudantes afluíam, dado que abarcava escolas tradicionais. Todavia, no século II d.C. havia outras
cidades significativas como Alexandria e Cartago, freqüentadas por muitos estudantes (HUSKISON, 2000:
116).
43
O texto da Apologia é escrito em latim, mas as citações de Apuleio de trechos de obras de escritores gregos
são feitos na língua grega. Como a citação de um verso da Ilíada de Homero (Apologia, IV, 4).
44
Durus, a, um - adjetivo que significa tosco, áspero, insensível (FARIA, 1956: 316).
45
Rusticus, a, um - adjetivo que significava rústico, grosseiro, inculto, desajeito e simples (FARIA, 1956:
851).
47
Desta maneira, a educação e os costumes de Apuleio poderiam se diferenciar, em
certa medida, dos de seus acusadores.
Tannonio queria dar a entender que tais nomes eram os das genitais de
um e outro sexo, mas nosso reluzente advogado, por pobreza de léxico,
não pode expressar-se com propriedade e, trás sérios e prolongados
engasgos, designou, por fim, ao peixe cujo nome corresponde ao óro
viril por meio de não sei como perífrase desmedida e grosseira
(APULEIO, Apologia, XXXIII, 6).
No entanto, eu podia censurá-lo com a maior justiça, porque fez blica
profissão de advogado empregando uma linguagem grosseira para
nomear o que pode se designar com palavras honestas e porque muitas
vezes, ao se tratar de coisas que não oferecem dificuldade nenhuma de
serem expressas, se expressou com torpeza ou caiu em absoluto mutismo
(APULEIO, Apologia, XXXIV, 2).
Observemos, porém, que Tannonio era um advogado e membro da família de
Pudentila, recebendo, ao que tudo indica, uma educação aristocrática. Mesmo assim
Apuleio ironiza a rusticidade africana de Tannonio frente a sua formação nos moldes greco-
romanos.
O filósofo cita que o acusador Emiliano não possuía cuidados higiênicos
(Apologia, VIII, 1, 2), alude a grosseria do adversário, comparando-o a um bárbaro
(Apologia, X, 6), coloca que ele não conhece ao menos um livro, dedicando-se sempre à
vida no campo (Apologia, XVI, 7), e que sempre se preocupou com a vida alheia em
detrimento de sua própria formação educacional (Apologia, XVI, 11), não sabendo como
encarar um filósofo (Apologia, XVII, 6). Por fim, Apuleio compara Emiliano à uma árvore
(Apologia, XXIII, 5).
46
Outro trecho que mostra a ignorância de Emiliano é quando esse o acusa de
possuir um espelho. Para Apuleio, o espelho é um objeto para sua vaidade, útil para refletir
46
A pátria de Emiliano pode ter sido Zarath, pequena população de moradores de costumes diferentes dos
romanos e considerados ignorantes (MUNGUÍA, 1980: 97). Apuleio não deixa de fazer esta observação,
aludindo a pátria do adversário (Apologia, XXIV, 10).
48
sua imagem enquanto se arruma (Apologia, XIV). Nessa parte do discurso Apuleio
demonstra e vangloria seus conhecimentos de Matemática e Física e cita que se Emiliano
tivesse estudado estas matérias, saberia sobre as propriedades naturais e não mágicas de um
espelho.
Apuleio ainda trata Sicinio Claro, o irmão de Emiliano com quem Pudentila
deveria se casar, de campesino grosseiro e velho decrépito (APULEIO, Apologia, LXX, 3).
A intenção de Apuleio era contrapor-se a seus acusadores como um homem que
estudou e viajou muito, enquanto eles permaneciam no interior do Império. Porém, segundo
inscrições parietais da região de Tripolitania, Sicinio Claro era um senador e pretor, um
homem que deve ter recebido uma educação especial para ocupar tal cargo importante,
mas, ainda assim, Apuleio ressalta a grosseria deste adversário, expressando sua
rusticidade.
Se Apuleio nasceu em uma colônia africana, como retratado nas fontes utilizadas,
sua educação como aristocrata é romana e ele se utiliza disso.
Entretanto, devemos atentar para o fato de que, mesmo como um cidadão romano
com educação tipicamente aos moldes romanos, na frente de uma corte de lei com um
procônsul romano, Apuleio não se identifica sempre como tal.
Segundo as informações de Apuleio, sua pátria, possivelmente a cidade de
Madaura, estava entre a Getúlia, região formada por tribos consideradas bárbaras pelos
romanos (Apologia, XXIV). Assim, Apuleio se interroga por qual motivo seus acusadores
não criticam que ele seja simultaneamente de nascimento bárbaro e eloqüente como um
49
grego, se justificando, logo em seguida, que o local de origem não serve como marca
verdadeira de seu valor moral, estando esse na educação de um homem.
47
Não vejo porque razão devo avergonhar-me mais disso que Ciro, o
antigo, por ter nascido de raça mestiça, semimedo e semipersa, pois, não
se deve ter em consideração onde nasceu uma pessoa, e sim que
formação moral ela tem (APULEIO, Apologia, XXIV, 2-3).
Apuleio intenta opor-se a seus acusadores no que se refere à sua educação, mas
compreende, talvez para uma melhor aceitação do público, que não é interessante
desqualificar seu local de origem, que também é o de seus acusadores e dos ouvintes e
leitores do discurso Apologia, esclarecendo que nasceu entre eles, em território africano.
Nosso autor compara-se com o sábio Anacarsis (Apologia, XXIV, 6), que, como
ele, tem nascimento e formação considerados como culturalmente muito diferentes e após
inúmeras viagens é acusado e morto pelos reis citas por ter introduzido um culto estrangeiro
na cidade de Cítia no século IV a.C. (HARVEY, 1980: 35).
Assim, Apuleio não nega que nasceu em um lugar que pareça bárbaro, porém
exalta sua formação aos moldes da Paidéia greco-romana.
Acreditamos que referências à sua formação sejam uma estratégia retórica,
constituindo como uma forma de obter a animosidade do pretor Cláudio Máximo. Também
observamos que Apuleio se mostra como um romano nas diversas alusões à erudição do
pretor. Apuleio busca equiparar-se ao pretor em uma possível formação platônica de
ambos. Diferenciando-os de seus acusadores e tornando-os, ele e o pretor, como iguais.
Vás acusar em mim, algo que Cláudio Máximo e eu admiramos em
Aristóteles (APULEIO, Apologia, XLI, 4).
47
De acordo com Munguía (1980: 95), o emprego do orgulho moral, mais do que do racial, é tomado da
tradição estóica, que dá menor importância ao local de nascimento do que ao caráter de um homem.
50
Tu admites, ximo, esta teoria científica de Platão que eu expus com a
maior clareza possível, dada a urgência do momento (APULEIO,
Apologia, LI, 1).
Não é preferível, Cláudio Máximo, que, confiando em sua ciência e
erudição, desdenhe contestar a estas acusações formuladas por homens
tolos e incultos? (APULEIO, Apologia, XCI, 3).
Uma parte importante de sua identificação como romano pode ser observada no
apelo que faz à justiça romana por meio da exaltação à presença da estátua do Imperador
Antonino Pio. Apuleio indigna-se de como o próprio filho de Pudentila ousa expor a carta
pessoal de amor de sua mãe frente à estátua de Antonino, já que fazer algo escuso na frente
de uma estátua imperial significava fazer frente ao próprio imperador (NORENA, 1997),
sendo considerado um enorme desrespeito.
48
Desta maneira Apuleio procurou fortalecer
seus vínculos com a justiça romana.
Mas para que deplorar o passado, quando não é menos amargo que
presente? Este pobre menino foi pervertido por vocês até o ponto que é
capaz de ler em voz alta a carta, que é considerada de amor, de sua
própria mãe, ante o tribunal do procônsul, ante um homem honrado como
Cláudio Máximo, ante estas estátuas do Imperador Pio. (APULEIO,
Apologia, LXXXV, 1-2).
na obra Flórida, Apuleio exalta-se como um legítimo africano. Devemos
destacar que ambas as obras, Flórida e Apologia, foram discursos orais transcritos. Portanto
Apuleio lisonjeava sua educação e eloqüência aos moldes do centro do Império (Grécia e
Roma), mas não desqualificava o local de seu nascimento.
Minha pátria, portanto, forma parte da assembléia provincial da África,
ou seja, da vossa; minha infância transcorreu entre vós; vós mesmos
formais meus mestres, minha doutrina filosófica, ainda que amadurecida
em Atenas, na Ática, nasceu, no entanto, aqui, minha voz, em ambas as
48
Carlos Norena (1997) ainda nos indica um efeito retórico forte nesta passagem: sabe-se que o Imperador
Antonino Pio persuadiu o Senado Romano a consagrá-lo como filho adotivo do Imperador Adriano. Assim,
Apuleio estabelece um contraste entre Antonino (que deseja muito ser filho de um pai honroso) e Pudente
(que despreza as honras de seu padrasto). Certamente este efeito retórico foi apreciado pelo pretor.
51
línguas, converteu em algo muito familiar para vossos ouvidos nos
últimos seis anos. (APULEIO, Flórida, XVIII, 15)
Norena (1997) afirma que em relação à região africana, as referências à formação
romana não tinham grande valor. Mas lembremos que a maioria de homens aristocratas da
África, que possivelmente seriam os ouvintes e leitores de Apuleio, também receberam uma
educação romana, segundo a tradição das altas ordens do Império. Nesse sentido, Apuleio
faz questão de se igualar à educação e ao nascimento de seu público.
Destarte, Apuleio é um africano, filho de pais romanos. Como membro de uma
elite africana que possuía elementos culturais aos moldes gregos e romanos, logo, sua
formação seguiu modelos romanos.
1.3 A opulência das personagens da Apologia
A classificação das camadas sociais no Império Romano tinha como base a
propriedade e o princípio da hereditariedade, que eram aplicados para determinar a qual
camada pertencia uma pessoa. Assim, a não ser em casos em que o Imperador Romano
conferia o grau de senador ou cavaleiro como favor especial, o título era adquirido
unicamente como direito hereditário (MOKTAR, 1983: 500). Desta maneira, como já
ressaltado, assim como seu pai Apuleio pertencia à camada dos decuriões.
Os decuriões tinham a função de controlar as finanças da cidade, decidiam sobre
as novas despesas e administravam a propriedade municipal. Todos deveriam ter uma
52
fortuna superior a uma espécie de censo, que era modesto nas pequenas cidades e alto nas
grandes, principalmente em Cartago
49
(MOKTAR, 1983: 487-488).
O exercício de cargos públicos supunha a posse de amplos recursos e tempo
disponível: os magistrados não recebiam salários e, ao assumir uma função administrativa
deviam pagar ao tesouro municipal uma quantia variável conforme o cargo desempenhado.
Além disso, era bastante comum que os decuriões financiassem a construção de templos
públicos, doassem víveres e dinheiro para os pobres e para os espetáculos como jogos e
banquetes.
50
Isso significava que apenas homens ricos podiam desempenhar algum
papel na cidade onde os magistrados presidiam a assembléia do povo e o
senado, despachavam as questões rotineiras, mantinham relações com as
autoridades provinciais e exerciam o poder judiciário limitado a
pequenos delitos de pouca importância (MOKTAR, 1983: 487).
Apuleio mostra-se muito bem relacionado na obra Apologia, até mesmo porque
colocar as pessoas importantes na administração da província com as quais ele se
relacionava é uma forma de conquistar os ânimos do juiz. Em uma passagem do discurso
ele cita a amizade com Loliano Avito, procônsul da África Proconsular antes de Cláudio
Máximo, que preside o tribunal em Sabrata.
51
Logo me suplicou que o congraçasse de novo com o ilustríssimo Loliano
Avito, a quem eu o havia recomendado recentemente, nos começos de
sua carreira de orador. Havia-se comunicado, pelo visto, de que poucos
dias antes eu ter-lhe escrito, informando-lhe detalhadamente de todo o
que ocorreu e de como havia sucedido. Também conseguiu isto de mim,
se dirigiu para Cartago, onde finalizando seu proconsulado, Loliano
Avito aguardava sua chegada, Máximo. Quando leu minha carta,
49
Em Cartago, o mínimo exigido de fortuna dos decuriões era de cerca de cem mil sestércios (ALFÖLDY,
1989: 143).
50
Os dados sobre as fortunas públicas e privadas na região da África do Norte sob dominação romana são
pouco precisos atualmente. As inscrições trazem escassas informações, sendo o discurso Apologia, o material
que melhor fornece dados a esse respeito (BOURGAREL-MUSSO, 1934: 354).
51
Como podemos perceber, é o próprio Apuleio que indica que Loliano Avito era o proconsul um pouco antes
da acusação. Também em um estudo sobre datação e nome dos procônsules africanos, Ronald Syme (1959:
318) confirma o nome de Loliano Avito e estabelece a data de seu proconsulado para 157/8 d.C.
53
Loliano, fazendo gala de sua maior afabilidade, aconselhou Ponciano a
reparar seu erro e me enviou, por meio do mesmo Ponciano, sua
resposta
52
(APULEIO, Apologia, XCIV, 3, 4, 5, 6).
Após tais palavras, Apuleio pediu para que o pretor Cláudio Máximo permitisse
que ele lesse uma carta que Loliano Avito lhe enviou felicitando-se com a reconciliação
entre ele e Ponciano (APULEIO, Apologia, XCIV, 8). Nesse trecho, podemos observar o
prestígio e influência de Apuleio nesta região, por mais que ele tenha usado esta carta a seu
favor, acreditamos que ele jamais falsificaria um testemunho com tais características.
Sobre a riqueza de Apuleio, sabemos que com a morte do pai, ele e o irmão
receberam uma herança de dois milhões de sestércios. Apuleio gastou sua parte com
viagens, estudos e causas que considerava essenciais a um bom cidadão. Tais causas
públicas que os cidadãos romanos considerados bons se dedicavam se chamavam
liberalidades.
[...] declaro que meu pai deixou, a mim e a meu irmão, uma herança de
dois milhões de sestércios, pouco mais ou menos. Claro que esse
patrimônio foi diminuído por mim devido minhas viagens prolongadas,
meus estudos e as freqüentes liberalidades. Porque eu gratifiquei muitos
de meus mestres e ajudei muitos de meus amigos, alguns dos quais
proporcionei os dotes de suas filhas. (APULEIO, Apologia, XXIII, 1-4)
Em passagens da Apologia, Apuleio mostra os gastos com as liberalidades que a
elite urbana tinha que ter para se manter enquanto tal. Assim, ele justifica o motivo de ter se
casado no campo com Pudentila para que eles não tivessem que gastar com mais um grande
52
Nesta passagem, Apuleio coloca que recomendou que seu amigo e enteado Ponciano se dirigisse a o
proconsul para alguma ajuda da qual ele não menciona. Antes de Ponciano se encontrar com Loliano Avito,
Apuleio conta ao proconsul dos desentendimentos que teve com Ponciano por intrigas entre o sogro deste,
Rufino. Assim, como vemos na passagem, o procônsul aconselha Ponciano que se entenda novamente com
Apuleio. Esta passagem é de extrema importância na defesa de Apuleio, pois Apuleio busca citar suas
amizades com importantes personagens políticas como apoio em sua defesa, em uma tentativa de mostrar que
até o proconsul anterior ao que presidia o tribunal era favorável a ele.
54
banquete, que há pouco tempo atrás tinham gastado com as festas do casamento de
Ponciano, filho de Pudentila.
[...] a única razão pela qual o contrato matrimonial entre Pudentila e eu
não foi realizado na cidade, e sim em uma fazenda: assim fizemos para
não ter que desenrolar de novo outros cinco mil sestércios [...]
(APULEIO, Apologia, LXXXVIII, 1)
53
Como membro da cúria de sua cidade natal e sacerdote de Cartago, Apuleio
também tinha tais gastos onerosos. Segundo Gagé (
1971: 165)
:
O novo decurião, de praxe, ao entrar na cúria, tem de fazer uma certa
doação de muitos milhões de sestércios. A nomeação para sacerdote
comprometia o título a um donativo análogo.
Apuleio não sugere em nenhum momento de seus textos de onde provinha a renda
de seu sustento, indica apenas que herdou um milhão de sestércios, que o outro um
milhão indicado era a parte da herança de seu irmão.
Conforme Andrée Bougarel-Musso (1934: 374), as heranças de africanos
geralmente eram terras para o cultivo.
Se a herança de Apuleio constituiu-se em forma de terras, mesmo que não tenha
cultivado pessoalmente suas terras, pode ter mantido sua fortuna de rendas provindas da
terra durante os anos que ele passou fora da África, estudando.
Também de acordo com Moktar (1983: 501), as rendas dos decuriões provinham,
em geral, de suas propriedades rurais e eles viviam na cidade com as rendas de suas terras.
Jean Gagé (1971: 165) também nos traz esta informação:
A camada de decuriões do alto Império, mesmo na Itália, realizou-se
antes ligada a uma estrutura fundiária, mesmo que nós encontrássemos
esses notáveis morando em casas na cidade, eles tinham rendimentos que
53
Tais liberalidades eram meios de conquistar o prestígio e angariar votos nas próximas eleições para os
cargos públicos, não sendo sempre espontâneas, mas impostas pelo uso, o costume e a vontade popular.
(BOURGAREL-MUSSO, 1934: 409).
55
vinham de suas propriedades. Mesmo quando eles eram grandes
latifundiários guardavam o gosto pelas coisas da terra e era visível que a
vida de um burguês era também a vida de um agricultor.
Os ricos africanos que aparecem na obra Apologia provinham sua riqueza do
campo. Apuleio cita que Pudentila fez uma grande doação de terras, produtos agrícolas,
rebanhos e escravos a seus filhos (APULEIO, Apologia XCIII, 4-5), além de citar os seus
adversários, em várias partes do discurso, como homens do campo.
Conforme Munguía (1980: 208), mesmo que estas ricas personagens da Apologia
retirassem o sustento de suas rendas no campo, era nas cidades que eles viviam e onde
colocavam em prática sua influência ou sua capacidade de se envolver em intrigas,
defendendo seus interesses de agricultores e integrando-se na vida política local.
Apuleio informa (Apologia, CI, 5) que Pudentila tinha uma fortuna de cerca de
quatro milhões de sestércios e que ele mesmo cuidou de administrar a compra de uma
fazenda para ela. A propriedade, que segundo ele era de tamanho modesto, custou cerca de
sessenta mil sestércios. Esse valor, segundo Bourgarel-Musso (1934: 371), pode ter sido
diminuído para não mostrar uma grande ostentação da riqueza de Pudentila. Outra citação
de que Pudentila possuía terras está na passagem em que Apuleio nos indica que o dinheiro
gasto com o casamento do filho Ponciano proveio de suas rendas com a terra (APULEIO,
Apologia, LXXXVII, 10-11).
Como uma típica mulher da aristocracia romana, Pudentila faz doações para a
comunidade de Oea quando seu filho Ponciano casa e quando seu filho Pudente recebe a
toga viril, chegando a gastar nestas ocasiões, que parecem ter sido na mesma época, cerca
de cinqüenta mil sestércios (APULEIO, Apologia, LXXXVIII, 10).
56
Uma indicação de que Pudentila era uma mulher rica, além dos valores expostos
por Apuleio que podem ter sido diminuídos ou aumentados conforme seus propósitos, está
na própria formação de seus filhos, típica dos filhos da aristocracia: Ponciano estudara
filosofia em Atenas (Apologia, LXXII, 4) e Pudente começara o estudo jurídico (Apologia,
XXVIII, 9), além do fato de Apuleio nos indicar (Apologia, I, 5) que quatro ou cinco dias
antes de comparecer perante o juiz para responder sobre o crime de magia, defendera sua
esposa em um processo sobre bens patrimoniais empreendido contra ela pelos Granios,
família de origem plebéia (MUNGUÍA, 1980: 54).
Pudentila também recebera uma herança de seu filho falecido, Ponciano, que veio
enriquecê-la ainda mais. Segundo Apuleio, Ponciano não deixou nada de herança para a ex-
mulher, apenas para a mãe e para o irmão.
Entretanto, instituiu herdeiros, tanto neste testamento como no anterior,
que foi lido aqui, sua mãe e seu irmão, que ainda é uma criança.
(APULEIO, Apologia, XCVII, 7)
Porém, segundo as fontes de direito romano, os bens adquiridos pelos filhos
vinham a integrar o patrimônio do paterfamilias e para que a mulher pudesse receber a
herança de um filho morto, deveria ter dado à luz pelo menos quatro filhos (CARROZZO,
1991: 77), o que não era o caso de Pudentila. Desta maneira, esta informação que nos
remete Apuleio está em desacordo com os hábitos dos romanos, devendo a herança de
Ponciano ser passada por ser parente mais velho por linha masculina na ocasião de sua
morte.
É interessante notar que Apuleio cita a riqueza de Rufino, ex-sogro de Ponciano e,
segundo ele, um dos envolvidos na acusação
54
. Rufino também é um homem muito rico,
54
Antes de morrer, Ponciano tinha se separado legalmente da filha de Rufino (APULEIO, Apologia, XCVII).
57
recebeu de herança de seu pai, cerca de três milhões de sestércios (BOUGAREL-MUSSO,
1934: 407). O dote que Rufino providenciou para sua filha casar-se com Ponciano era
relativo a quatrocentos mil sestércios, que Apuleio cita como um valor muito alto, maior do
que o de Pudentila, que era uma mulher rica, e que foi possível através de um
empréstimo que Rufino fez (APULEIO, Apologia, XCII, 3).
As relações entre Rufino e demais membros da aristocracia de Oea são mostradas
na citação de Apuleio de que sua filha, Herennia, esteve prometida em casamento a um
“certo jovem de muito boa família” antes de se casar com Ponciano (Apologia, LXXVI, 3).
Rufino também possuía uma fazenda e Apuleio chega a confessar que esse
adversário era um homem abastado financeiramente, mas justifica sua riqueza graças a
fraudes que seu pai cometeu no passado (Apologia, LXXV, 5).
Portanto, Rufino era um homem de posses, mas mesmo assim, Apuleio aponta-
nos, contradizendo a si próprio, que ele tinha um patrimônio limitado e uma enorme
ambição, envolvendo-se no processo contra ele justamente por ter interesses em usufruir de
alguma forma da fortuna de Pudentila. O dote da filha de Rufino já demonstra sua riqueza e
por mais que fosse fruto de um empréstimo, esse foi possível somente pela credibilidade de
Rufino, sendo, como exposto, comum que homens ricos fornecessem dotes e demais
liberalidades para outros homens de posses em casos de necessidades.
A riqueza de Emiliano, o irmão do falecido marido de Pudentila, também pode ser
observada através de uma passagem da Apologia (LIX, 7), em que Apuleio cita a compra
de um falso testemunho por Emiliano pela quantia de três mil sestércios.
55
Se realmente
esta quantia for possível de ser despendida por Emiliano na compra de um testemunho, ele
55
O testemunho é de Junio Craso, cidadão de Oea que morava na casa de um amigo de Apuleio, na qual,
segundo os acusadores, Apuleio e o amigo teriam realizado sacrifícios noturnos (APULEIO, Apologia, LVII).
58
era um homem de elevada fortuna. Entretanto, devemos observar que era muito interessante
demonstrar que Emiliano era demasiado desonesto a ponto de gastar uma grande quantia de
dinheiro na compra de testemunhos, assim, esse ponto também pode ter um efeito retórico.
Podemos perceber a opulência de Apuleio ao sabermos que um procônsul africano
ganha um total de um milhão de sestércios por ano.
56
Se Apuleio possui em média de um
milhão de sestércios, um pouco diminuído com as viagens e liberalidades, mas também
aumentado se ele investiu em terras ou ganhou por seus discursos, temos a idéia de que
Apuleio era sim um homem de posses. Porém, possuía uma riqueza mediana se comparada
a de Pudentila que era quatro vezes maior.
Segundo Bourgarel-Musso (1934: 408) estas fortunas rendiam no máximo uma
taxa de um por cento ao mês. Assim, mesmo as fortunas mais altas não parecem ter grandes
rendimentos. Além disso, havia as liberalidades que desequilibravam consideravelmente as
fortunas dos decuriões e Apuleio não esteve nem um pouco isento das mesmas.
Devemos considerar ainda o dote de Pudentila era de valor muito alto, relativo a
trezentos mil sestércios, como é mencionado por Apuleio (Apologia, XCII, 1). Esse
enriqueceu mais o filósofo, que talvez tenha investido esse dote na compra de terras, lhe
proporcionando meios de rendimentos que lhe garantiram melhores formas de chegar ao
cargo de sacerdote em Cartago.
Notamos o alto valor do dote de Pudentila ao sabermos que o dote de Túlia, uma
rica aristocrata da época republicana, foi de quatrocentos mil sestércios, soma
correspondente ao censo mais elevado da época - o censo eqüestre - no século I a.C. E que
56
Destacamos que o procônsul, ou pretor como também era designado este cargo, era o cargo mais alto da
província.
59
o orador Cícero
57
teve de pagar o valor do dote de sua filha Terência, relativo a cento e
oitenta mil sestércios, dividindo-o em três prestações anuais (THOMAS, 1990: 146).
Apesar desses valores referirem-se ao período republicano, não acreditamos que tenham
mudado de forma drástica até o século II d.C. Sendo assim, o dote de Pudentila era
realmente alto e ela se caracterizava como uma mulher muito rica. Outro valor que
podemos usar para basearmos a dimensão do dote de Pudentila é a indicação de Lucien
Jerphagnon (1981: 170), esse autor mostra que na época dos Imperadores Antoninos um
funcionário da ordem eqüestre recebia cerca de dez mil sestércios por ano. Dessa maneira,
se comparado à renda anual de um funcionário eqüestre, uma das altas ordens do Império, o
dote de Pudentila era realmente muito alto.
Apuleio se posiciona de maneira ambígua em relação ao dote de Pudentila, ora
afirma que esse era modesto e estava constituído apenas a título de empréstimo para ele, ora
afirma que tinha um valor alto que se justificava por ser Pudentila uma viúva e querer
oferecer um bom dote a seu marido por não lhe poder dar o maior bem que uma mulher
podia oferecer: a virgindade. Mas ressalta que não se interessa pelo valor do dote, até
mesmo porque não pode demonstrar a imagem de seus interesses no dinheiro da viúva na
frente do juiz.
Em primeiro lugar, notarás que o dote de minha esposa, apesar dela ser
muito rica, é modesto. E que não foi constituído de forma fixa, e sim a
título de empréstimo (APULEIO, Apologia, XCI, 7).
Por estas razões e outras mais, as viúvas tratam de atrair pretendentes
com o anúncio de um dote mais valoroso. É o que havia feito também
Pudentila, para conseguir outro marido, se não houvesse encontrado a um
filósofo, para quem o dote não significa nada (APULEIO, Apologia,
XCII, 11).
57
Cícero foi um importante orador e estadista romano, nasceu em Arpino em 106 a.C. e
morreu em Formia em 43 a.C. Entre seus escritos configuram tratados de retórica, discursos de defesa
judiciária, cartas pessoais e reflexões filosóficas (HARVEY, 1998: 113-118).
60
Além de um decurião que provavelmente possuía terras, Apuleio era um filósofo e
deveria receber pagamentos por suas conferências. Assim nos informa Jean Gagé (1971:
230-236) ao colocar que estes homens recebiam por seus discursos e eram isentos de
pagamentos tributários pelos próprios Imperadores, isentando-se de algumas despesas
locais.
De acordo com Elizabeth Rawson (1985: 80), era possível que os filósofos
romanos vivessem de suas heranças e ainda recebessem salários por serviços prestados para
certos patronos, mas era comum que estes homens fossem desinteressados em dinheiro
propriamente e muito mais interessados em privilégios e honras, embora eles nunca
ensinassem ou se pronunciassem gratuitamente.
A única indicação realmente precisa sobre a fortuna de Apuleio é a de que recebeu
um milhão de sestércios de herança e sobre o valor do dote de Pudentila, porém não temos
referências sobre o valor de sua fortuna no momento da acusação. Talvez Apuleio tente
diminuir o valor de sua herança, despendida com suas viagens e liberalidades, e se isenta de
comentar o que fez com o dote de Pudentila para não dar um aspecto de soberba e garantir
uma imagem de homem modesto financeiramente, o que vários indícios mostram que ele
não era, isentando-se também de suspeitas de um casamento de interesses financeiros.
Por esse mesmo motivo observamos um longo discurso sobre o valor da pobreza
na Apologia (XVIII, 1-3). Para nós, isto é um efeito retórico de Apuleio para mostrar-se um
homem muito mais preocupado com as questões morais e espirituais do que com o
enriquecimento e a ambição. Nesse sentido, ele exalta a riqueza da alma e a necessidade de
bens interiores e não exteriores (APULEIO, Apologia, XX, 9).
61
Desta maneira, compreendemos que a fortuna de Apuleio e de sua esposa
Pudentila eram altas, assim como a da maioria dos homens públicos do norte da África que
despendiam altos valores com as necessárias liberalidades.
Consideramos, através da análise da formação político-cultural, dos cargos
ocupados pelos envolvidos no processo contra Apuleio e o valor que os mesmos tinham
nesta sociedade, além das quantias em dinheiro e das terras citadas como parte de suas
posses, que o próprio Apuleio, Pudentila e seus filhos, Emiliano, Rufino e o advogado
Tannonio eram membros da aristocracia e financeiramente bem sucedidos, por mais que o
texto da Apologia tenha intenção retórica de demonstrar o valor da pobreza e as quantias ali
fixadas serem passíveis de modificações.
62
2. O DISCURSO APOLOGIA E A HISTORIOGRAFIA
2.1 Alguns aspectos do discurso Apologia
Após a defesa de Apuleio da acusação de magia, não podemos precisar ao certo a
época em que o discurso Apologia foi elaborado. Para nós, a data da publicação varia entre
a data do processo, por volta de 157/158 d.C., até a morte de Apuleio, em torno de 170/180
d.C., podendo ainda ser uma obra póstuma, fruto do trabalho de estenógrafos, o que
achamos pouco provável por representar uma importante ação para a imagem de Apuleio,
com possibilidades de sua escrita ter servido a uma intenção.
Achamos relevante tentar compreender possíveis modificações que o discurso
Apologia sofreu de sua forma oral para a escrita, questão pouco trabalhada pelos estudiosos
de Apuleio.
Para Thomas Winter (1969: 607), o discurso transcrito apresenta algumas
modificações, entretanto, respeita a fisionomia dos debates ante os juízes romanos. Winter
nos informa que a Apologia é um longo discurso e que possivelmente duraria mais de
quatro horas - a média de duração de uma defesa desse tipo na época - para ser pronunciada
oralmente. A defesa teria usado mais de uma terça parte do tempo para as queixas, o que é
muito tempo.
Conforme Munguía (1980: 28), devido à exigüidade do tempo para o
pronunciamento ante o tribunal, é natural que o discurso escrito seja maior, com mais
argumentações e sofisticação no estilo do que a apresentação oral diante do procônsul da
África, tese defendida também por Conte (1994: 557), que acredita que, se o discurso
63
tivesse sido pronunciado da maneira como foi escrito, certamente duraria muitas horas,
porém, para este autor, o discurso escrito, obedeceria com fidelidade à ordem dos
argumentos expostos verbalmente.
Rosângela Maria Souza Silva (2001: 24) acredita que Apuleio acrescentou novos
temas à sua obra escrita, como o tema da demonologia exposto no capítulo XLIII da
Apologia. Para a autora, se Apuleio em seu pronunciamento frente ao pretor explanasse
sobre a existência e natureza de daimones e de suas práticas de magia teúrgica, como fez na
obra escrita, a defesa da acusação de práticas mágicas se tornaria muito mais difícil.
58
De acordo com Neil Bernstein (1997), o aspecto de espontaneidade do discurso
Apologia frente à situação dramática que ocorre em torno de Apuleio contribui para a tese
de que este discurso não é idêntico ao preparado pelo autor antes do pronunciamento e nem
ao texto revisado após o mesmo. Porém, para Bernstein, a espontaneidade é própria da
estratégia retórica de Apuleio e o discurso se caracteriza como a gravação verbal do
discurso pronunciado, sendo que a única modificação ocorrida do pronunciamento para a
escrita são os cortes, sendo o texto escrito incompleto.
Entretanto, podemos perceber que passagens engraçadas e de grande ironia no
discurso escrito que dificilmente teriam sido pronunciadas em um momento tão grave. Por
exemplo, quando Apuleio compara seu acusador com os crocodilos do Rio Nilo que
somente abrem a boca para mostrar os dentes e para que as aves a limpem, aludindo que
seu acusador além de não usar sua boca para a arte da oratória ainda a usa para denegrir as
pessoas (Apologia, VIII, 6-7).
58
SILVA, R. M. S. (II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais/VIII Ciclo de Estudos Antigos e
Medievais - UNESP/Assis). Comunicação pessoal, 2006.
64
Sobre os pontos de acusação, consideramos que Apuleio não omitiria nenhum
ponto ou os modificaria, sendo que tal atitude perante os ouvintes que possivelmente
estiveram presentes na ocasião do processo e os futuros leitores do discurso escrito, pode
ser considerada antes uma confissão do que um simples desprezo.
Acreditamos que o discurso escrito recebeu modificações devido ao tamanho da
obra escrita e à exigüidade de tempo para o pronunciamento oral. Apuleio também não
mostra na obra escrita a discussão do advogado de acusação e dos acusadores, que
certamente houve no tribunal.
Segundo o próprio Apuleio (Apologia, I, 1-2), seus acusadores o caluniavam
havia algum tempo, até o momento em que ele próprio os intimou a abrirem um processo
formal e, com isso, a acusação foi feita de forma bem rápida. Como as intrigas entre
Apuleio e seus acusadores já eram anteriores à abertura do processo, provavelmente o
filósofo dispôs-se de tempo para se preparar contra as inventivas dos acusadores, usando,
no pronunciamento, de argumentos já elaborados.
Há ainda uma importante questão a ser discutida: teria sido Apuleio ou copiadores
que elaboraram o discurso na sua forma escrita?
Os antigos romanos possuíam esquemas de pronunciamento de seus discursos e
recorriam à ajuda de profissionais conhecidos como estenógrafos para a escrita dos mesmos
(LAURAND, 1936: 6). A prática da estenografia, cópia de discursos orais, é conhecida
desde 63 a.C. pelos romanos. Pesquisadores têm mostrado que os estenógrafos copiavam de
uma vez cinco horas de discurso oral, especialmente quando se tratavam de discursos
jurídicos, sendo que alguns desses discursos sofriam cortes nas publicações (WINTER,
1969: 608).
65
evidências do próprio Apuleio de que seus discursos eram copiados e
publicados por estenógrafos. Na obra Flórida indicações de que todos os discursos que
nós possuímos desse orador não foram publicados por ele mesmo, mas por um estenógrafo
e indicam que, provavelmente, a Apologia teria argumentos revistos e melhorados na
versão escrita.
Apuleio se mostra favorável à prática da estenografia ao aludir que muitos tentam
copiar e denegrir sua imagem, pedindo ao público que ao ler um discurso que realmente foi
pronunciado por ele prestem atenção no que possivelmente seja falso. Além disso, devido à
sua grande fama como orador, suas palavras devem ser minuciosamente analisadas antes de
serem escritas (APULEIO, Flórida, IX, 2-9). Isso indica que possivelmente seus discursos
não foram transcritos por ele próprio. Porém, somente um estudo filológico dos discursos
de Apuleio ajudaria a responder a questão da autenticidade da Apologia.
Sobre as razões da elaboração escrita do discurso, nenhum dos estudiosos por nós
trabalhados discutiu esse tema.
Nesse sentido, Mikhail Bakhtin (1922: 277) indica-nos que existem dois tipos de
discurso: o primário e o secundário. O primeiro caracteriza-se como comunicação do
mundo real e o segundo como comunicação cultural, sendo este segundo a maneira que a
oralidade toma forma enquanto literatura, surgido da necessidade do discurso primário
completar o ato da comunicação e permanecer para a posteridade.
Era prática comum dos oradores romanos escreverem seus discursos após o
pronunciamento. Cícero, por exemplo, escrevia pelo menos o exórdio dos discursos tal qual
foi apresentado, as outras partes muitas vezes eram reflexões e improvisações (LAURAND,
1936: 4).
66
Com base nisso, inferimos que nosso autor escreveu sua defesa como forma de
torná-la literatura, a fim de suscitar a crítica do público, buscando fazer-se mais conhecido
e apreciado. Porém, por tratar de uma autodefesa devemos considerar que Apuleio possa ter
escrito o discurso não apenas para torná-lo literatura, mas principalmente como forma de se
autopromover, de auto-afirmar sua eloqüência e, principalmente, sua imagem íntegra em
Cartago, onde passou a morar e exercer o importante cargo de sacerdote, e, junto com a
obra Metamorfoses, diferenciar a magia goetéa da teurgia para a posteridade. Acreditamos
que ambas as obras serviram a algumas intenções: promover-se socialmente, fazer-se lido e
admirado, divulgar a filosofia médio-platônica da qual o autor era adepto e isentar-se da
culpa de mago, no sentido negativo que era atribuído a tal prática.
Conforme Janet Huskinson (2000: 97), a fim de promover sua imagem, a
aristocracia do Principado Romano preocupava-se em criar elementos que as auto-
representassem, utilizando-se de decorações de casas, túmulos, talheres, louças e arquivos
biográficos (res gestae) para tal expressão.
Desta maneira, mesmo que a defesa escrita tenha sido elaborada por estenógrafos,
certamente, foi analisada por Apuleio antes de ser publicada, que lhe teria grande valor
como forma de demonstrar sua integridade e eloqüência.
O discurso pode ainda ter sido escrito pelo próprio Apuleio, já que, segundo
Winter (1969: 611), os oradores romanos estudavam formas de memorizar as orações,
sendo a prática da estenografia parte dos estudos retóricos. Este discurso, por ter uma
temática tão polêmica (a acusação de magia) e por representar algo de extrema importância,
certamente recebeu um tratamento e cuidado especial do autor.
Para Gaston Boissier (1909: 279), apesar de ter ganhado a causa frente ao juiz, as
pessoas não aceitaram muito fácil a inocência do filósofo, tanto que a imagem de Apuleio
67
na posteridade seria de um homem mágico e envolto em misticismo, idéia que Philip Ward
(1969) também defende. Carlos García Gual (1988: 22), diferentemente de Boissier e
Ward, não acredita que as pessoas tenham visto uma reputação em Apuleio após a
acusação, pelo contrário, para este autor, esse fato aumentou seu prestígio como orador e
filósofo, tornando-o ainda mais conhecido.
Acreditamos que a linha de pensamento de Boissier e Ward seja mais adequada,
visto que Apuleio se muda da cidade de Oea para Cartago e, apesar de nesta segunda cidade
ter exercido o cargo de sacerdote, sente a necessidade de afirmar-se enquanto não praticante
de uma magia condenada perante a sociedade que o ou lerá futuramente e, por isso,
escreve o discurso Apologia.
Portanto, a elaboração desse texto foi de extrema importância para Apuleio, não
porque o defendeu, mas também porque perpetuaria sua memória e o faria mais
conhecido e até admirado. O que nos leva a considerar que sua construção retórica serve a
um propósito e este é afirmar (ou reafirmar) sua imagem para a sociedade romana do século
II d.C. e para a posteridade. É neste sentido que acreditamos que Apuleio tenha omitido as
provas levadas por seus acusadores como forma de manter-se livre de qualquer possível
suspeita de ligação com a magia maléfica e do casamento de arranjos políticos.
Cada argumento dos acusadores proporciona a Apuleio desenvolver um tema,
fazer digressões, recorrer à mímese, buscando seu propósito em lembranças e em
expressões de autores do passado.
Mimese é a idéia de imitação e recorrência a escritores do passado como
referência para a produção do presente, e, como visto em Rosângela Maria de Souza Silva
(2001:64), “A prática intelectual da mímese, muito antiga na cultura helênica, tornou-se um
fenômeno comum em todo o Império Romano do século II d.C.”. Apuleio não se furta ao
68
hábito comum da Paidéia mimética e cita com orgulho numerosas passagens de autores
como Homero, Virgilio, Aristóteles, Platão, entre outros. Sua habilidade em criar situações
que reforçam o aspecto dramático do texto, criando a ilusão de espontaneidade e
improvisação e sua ironia e sarcasmo, leva-o a ser freqüentemente comparado com a
maneira argumentativa do orador Cícero (BERNSTEIN, 1997; CONTE, 1994: 557).
Na primeira parte da obra várias digressões que vão desde o uso do espelho
para reflexão da luz até a teoria platônica sobre o amor celeste e terreno. Com seus recursos
de orador, Apuleio utiliza figuras de linguagem como antíteses, aliterações e jogos de
palavras, apresentando todos os personagens que intervêm na ação, os incidentes e as
interrupções, o que enriquece ainda mais o discurso.
A linguagem erudita nos sugere que este discurso foi escrito para ser lido por
homens que, como Apuleio, se interessavam por filosofia, que os recursos estilísticos
utilizados a partir de diversas leituras do autor exigem certos conhecimentos prévios de seu
público.
na Apologia uma oposição clara entre homens instruídos que sabiam latim e
grego e homens rústicos que confundiam misticismo filosófico com magia e o
escarnecimento de homens que sabiam a língua púnica local durante todo discurso.
Destarte, esse discurso foi escrito para a leitura de homens que receberam uma educação
erudita, como o seu autor. Até mesmo porque se compreendermos o discurso da maneira
que nos propomos, dentro do âmbito do poder político, veremos que sua intenção é
justamente a de autopromoção e auto-afirmação de Apuleio perante, principalmente, às
esferas mais altas da sociedade.
Quanto ao nome do discurso, temos em latim a denominação de Pro se de magia
liber (Frente ao livro de magia), sendo conservado também o nome De Magia (A magia)
69
ou Apologia. É interessante notar que também se denomina Apologia a transcrição da
defesa de Sócrates perante os cidadãos de Atenas por seu discípulo Platão (Apologia de
Sócrates), sendo que possivelmente tradutores e estudiosos de Apuleio denominaram sua
obra como Apologia por certa alusão à obra de Platão.
Tal denominação seria baseada nas próprias aproximações de Apuleio durante
todo o texto da Apologia com a tradição da família platônica”, referente àqueles filósofos
que seguiam os exemplos de Platão em uma série de pensamentos.
59
Não temos certeza de qual foi a decisão judicial sobre a acusação, mas tudo leva-
nos a inferirmos que foi favorável a Apuleio, pois não nenhum relato dele, nem de
outros autores, sobre uma possível punição ao filósofo. O único fato constatado é que,
posteriormente ao processo, Apuleio muda-se com sua esposa para Cartago e pronuncia
discursos perante importantes homens políticos da região, como os governadores Severiano
(Flórida, IX, 39) e Cipião Orfito. (Flórida, XVII, 1), fatos que nos levam a acreditar que
ele não foi considerado culpado das práticas mágicas.
Winter (1968: 5) nos informa que há uma opinião unânime dos estudiosos sobre o
veredicto de inocência dado a Apuleio pelo juiz, mas estudos modernos consideram o
discurso da Apologia como evasivo.
60
Paul Vallette (1922 apud WINTER, 1969: 5-6), por
exemplo, acredita que as explicações de Apuleio nem sempre são convincentes e a questão
de Apuleio ser um mago ou não é totalmente dúbia na obra.
Consideramos que o discurso de Apuleio não é evasivo. Como buscamos
demonstrar no decorrer desta Dissertação, a acusação de práticas gicas é defendida no
59
Notemos também que na obra Metamorfoses, Apuleio aproxima seu protagonista da “família platônica”,
sendo o personagem Lucio exposto como descendente do filósofo platônico Plutarco de Queronéia
(APULEIO, Metamorfoses, I, 2).
60
Além de Paul Vallette, entre estes estudiosos estão Adam Abt e Fritz Norden. Todos eles apóiam seus
argumentos no fato de Apuleio não conseguir demonstrar que não possuía relações com a magia (WINTER,
1968: 5-7).
70
âmbito das práticas místico-filosóficas do acusado. Assim, a questão de Apuleio ser
praticante de magia não suscita dúvidas, que o filósofo deixa claro que dois tipos de
magia, sendo ele praticante de uma que não é, na sua concepção, maléfica e nem passível
de punição.
61
2.2 Discussão historiográfica acerca do processo de magia
Em relação à historiografia que investiga o processo no qual Apuleio é envolvido,
percebemos que tradutores de suas obras, literatos e historiadores que fazem
comentários sobre o processo em introduções das obras de Apuleio e textos de Literatura e
História romana. Tais autores, que convencionamos denominar de comentaristas, não
deixam de opinar sobre os motivos que teriam levado Apuleio à frente do tribunal.
também alguns autores que trabalham especificamente com o conteúdo desse processo,
realizando uma leitura crítica da obra Apologia e questionando os fundamentos da
acusação.
Antes de mostrar a opinião dos estudiosos devemos destacar que Apuleio se
defende dizendo ser acusado porque seus adversários confudem suas práticas de filosofia
mística com magia (teurgia com goetéa
62
), têm inveja dele e estão interessados no dinheiro
da rica viúva. Destacamos, também, que pontos de acusação relacionados com práticas
61
No Capítulo 3 expomos os dois tipos de concepções sobre a magia que havia no Principado Romano.
62
A teurgia foi considerada pelos gregos e romanos como uma filosofia que admitia práticas mágicas. Tais
práticas tinham como objetivo proporcionar a ligação e o contato direto entre o filósofo e os deuses. Uma alta
teurgia mágica e benevolente era considerada próxima da religião. Já goetéa era a denominação usada para
definir um grau inferior de práticas mágicas, de reputação maléfica e fraudulenta, seus praticantes tinham uma
larga reputação de charlatanismo (RUSSELL, 1993: 16). Desenvolvemos melhor estes conceitos no terceiro
capítulo desta Dissertação.
71
mágicas, com a opulência e pobreza de Apuleio, sua eloquência, sua paixão por jovens
garotos e com seu casamento com Pudentila.
Primeiramente, observaremos as opiniões dos comentaristas. Agrupamos estes
comentaristas em dois tipos, com base nas suas opiniões sobre as motivações do processo
contra Apuleio.
O primeiro grupo de comentaristas admite, em geral, que Apuleio foi acusado por
ser um filósofo platônico e que suas práticas seguiam os rumos místicos que o platonismo
tomava em seu contexto, sendo facilmente e erroneamente confundidas com uma prática de
magia maléfica, assim como o próprio autor se defende. Inclusive, Apuleio não nega suas
preferências pela magia, mas, como exposto, define dois tipos de magia: a teurgia e a
goetéa. Desse grupo destacam-se os seguintes autores: Pierre Grimal, Graham Anderson,
Carlos García Gual, Naomi Janowitz, Domingo Plácido, Maria José Hidalgo de la Vega e
Philip Ward.
Neste sentido, conforme Grimal (1994: 489), não podemos saber ao certo se
Apuleio foi praticante da magia, mas a forma que o platonismo tomou depois de Platão,
com todas as especulações sobre as ões de daimones e iniciações mistéricas, pode ter
confundido os acusadores do filósofo e Apuleio teria sido processado devido a essa
confusão. Grimal também não descarta a hipótese de Apuleio ter sido acusado por escrever
a obra Metamorfoses, que, segundo o autor, demonstra seus conhecimentos sobre magia
explicitamente.
63
63
Porém, tudo indica que a obra Metamorfoses foi escrita depois do processo, sendo que, para nós, como já
discutido, é uma resposta ao mesmo. Alguns estudiosos como Gudeman e Paratore (1952, 1987, apud SILVA,
R. M. S. 2001: 24) afirmam que tal obra foi escrita depois da defesa, pois, caso isso não tivesse acontecido,
Apuleio se prejudicaria perante o tribunal por já ter escrito sobre os temas de que esta obra trata.
72
Sobre saber ao certo se Apuleio praticou a magia ou não, não concordamos com
Grimal, pois o próprio filósofo nos indica que admitia tais práticas dentro de sua filosofia,
embora afirme que eram apenas práticas de cunho benéfico, negando as maléficas.
Grimal (1994: 297) também nos indica o prestígio dos filósofos sofistas no
Império, considerados como unificadores culturais e a importância de Apuleio neste
sentido. Este historiador, porém, não concretiza nenhuma ligação entre este prestígio e as
possíveis causas da acusação. Assim, para Grimal, Apuleio foi acusado por praticar magia,
mesmo que seja uma magia teúrgica.
Da mesma maneira que Grimal, para Graham Anderson (1993: 223), Apuleio foi
acusado por sua filosofia admitir uma certa ligação com a magia. Anderson acredita que a
Apologia possa parecer mais um das “bizarrices” típicas dos filósofos da Segunda Sofistica,
mas o fato mais interessante é que é um discurso real, frente à corte de um pretor também
real, sugerindo a quantidade de ódio que uma contenda local pode engendrar em uma
cidade africana provinciana.
64
Assim, mesmo levantando a idéia de que em torno de
Apuleio havia um enorme rancor por parte dos acusadores, percebemos que Anderson não
questiona os motivos desse rancor.
Assim também, para Naomi Janowitz (2001: 12), Domingo Plácido (1985: 131) e
Carlos García Gual (1988: 21-22), as acusações referidas contra Apuleio estão relacionados
às atividades comuns da vida dos filósofos que investigam o mundo místico e natural, como
o próprio acusado se defende. Janowitz (2001: 12) acrescenta que visto desse ângulo,
Apuleio parece inocente e usando desses artifícios, ele impugna toda a ação. Plácido (1985:
134) discorre que através do discurso da Apologia, ficamos ainda na vida se Apuleio
64
O que Anderson chama de “bizarrices” dos sofistas, são suas especulações místicas, fantásticas e mágicas,
aparentemente estranhas em uma sociedade que punia, de certa maneira, a prática de magia.
73
estava implicado nesse tipo de atividade ou apenas em seus aspectos considerados como
lícitos pelos romanos, portanto, se Apuleio era simplesmente um teurgo ou um praticante
da goetéa.
65
María José Hidalgo de la Vega (1986: 14) por sua vez, adiciona que o discurso
Apologia é uma obra especial, onde se observam as manifestações ideológicas de Apuleio
por meio de sua postura frente a aspectos como a organização social, a magia, a religião e a
filosofia que ele reproduz e articula no texto. A magia de Apuleio convertida em teurgia
ocupa um lugar importante na suas crenças religiosas, em sua filosofia e em suas iniciações
mistéricas. Porém, ao colocar as possíveis causas da acusação, a historiadora (1995: 180)
não soma novas propostas ao que os outros estudiosos haviam colocado e indica que o
processo foi movido pela confusão dos acusadores entre práticas proibidas de goetéa e
práticas filosóficas de teurgia.
Para Philip Ward (1969: 7, 19), as práticas filosóficas de Apuleio o tornavam um
homem envolto em misticismo. Assim, este autor admite que a imaginação popular dos
cidadãos de Oea ligou a imagem de Apuleio à magia devido ao seu grande interesse em
religiões mistéricas e a dúvida se Apuleio era ou não um mago é agravada por fatores
diversos e misteriosos como seus estudos sobre as propriedades do espelho, a manumissão
de mais escravos do que possuía quando chegou em Oea, estranhos rituais praticados junto
de um amigo, entre outros aspectos.
66
Ward (1969: 9) sugere que o processo é aberto por
membros da família de Pudentila porque estes pretendiam proteger a antiga viúva dos
65
Como melhor desenvolvemos no terceiro capítulo deste trabalho, a magia encontrou punição em toda
tradição jurídica romana, mas práticas de cunho mágico eram incorporadas e aceitas na religião oficial
romana, assim como em estudos de certas correntes filosóficas.
66
Estas questões são pontos de acusação levantados contra Apuleio. Ver todos os pontos de acusação no
quarto capítulo desta dissertação, item 4.1.
74
supostos poderes mágicos e nefastos de Apuleio, não mencionando possíveis interesses dos
acusadores e de Apuleio nas relações sociais que se estabeleceram com o casamento.
67
Em certa passagem de sua obra, Ward (1969: 24) se contrapõe sem fazer um
maior questionamento, colocando que os romanos politeístas aceitavam poderes
miraculosos e sobrenaturais, chegando a honrar quem os possuía, diferentemente dos
cristãos que os condenariam tempos mais tarde. Assim, se tais poderes eram honrados, por
que então Apuleio foi acusado justamente por ser possuidor dos mesmos? Notamos que
Ward não faz uma diferenciação entre as categorias da magia em Roma, e menos ainda
analisa todas as questões levantadas pelo próprio Apuleio como motivações de sua
acusação, não ligando-as a seus significados no contexto do século II d.C.
Em vista disso, podemos perceber que os autores abordados anteriormente
simplesmente reproduzem o que Apuleio coloca em sua defesa (o filósofo praticava uma
magia que era parte de sua filosofia) e seus acusadores confundem suas práticas e por isso o
acusam. Outrossim, nenhum desses autores faz sequer uma observação sobre a posição
social dos acusadores e do acusado, deixando de questionar que os acusadores eram
homens da elite romana e poderiam ter uma formação que lhes permitisse compreender as
práticas mágico-filosóficas de Apuleio sem confundirem-nas com uma magia punida por
leis. Também estes autores, por não analisarem minuciosamente todas as acusações
levantadas contra o filósofo, acabam por generalizar a acusação.
67
Ward, (1969: 5, 19) também explana sobre a imagem de Apuleio perante bispos cristãos como Lactâncio e
Santo Agostinho, mostrando que essa sua imagem de mago, motivo do processo para este autor, perdurou por
muito tempo, sendo condenada entre bispos cristãos que o citam em suas obras.
75
O segundo grupo de autores comentaristas trabalha com a seguinte problemática:
a riqueza da viúva Pudentila estaria envolvida nos motivos da acusação. Sobre este grupo,
percebemos também que suas discussões se apresentam de forma superficial.
Como exemplos de autores que citam o casamento com Pudentila como
motivação para o processo, podemos mencionar Ettore Bignone (1952: 491), que não
dedica mais que duas páginas para caracterizar esta fonte. Gian Conte (1994: 557) e
Munguía (1980: 23/24), para os quais a origem da acusação parece estar relacionada aos
possíveis interesses econômicos de Apuleio na fortuna da viúva e dos mesmos interesses
por parte de seus acusadores. A finalidade do processo, segundo Bignone, Conte e
Munguía, era impedir que Apuleio tivesse acesso à herança de sua esposa.
Também citando o casamento dentro das causas do processo, temos a opinião de
Jean Guey (1954: 115), para quem a família Sicinii, família do falecido marido de
Pudentila, acusou Apuleio por motivos de inveja e por ele ter se casado com a viúva para se
tornar mais rico. Desta forma, Guey usa da própria defesa de Apuleio quando o filósofo
expõe que seus acusadores possuem inveja dele. Porém, Guey não questiona o sentido desta
colocação, que consideramos citar a inveja como causa de um processo como algo
extremamente abstrato frente a um tribunal.
Acreditamos que esta inveja citada pelo acusado e aceita por Guey esteja
relacionada a um certo receio do que a formação de Apuleio e o que o seu casamento com a
aristocrática viúva pudessem significar na cidade de Oea. Consideramos interessante não
apenas reproduzir o que Apuleio sugere, mas buscar compreender o que significaria esta
possível inveja dentro da própria formação e posição social do acusado e dos acusadores.
Neste sentido, a maioria dos autores não faz uma crítica da acusação como um
todo, não analisa todos os pontos levantados contra Apuleio e apenas reproduz a própria
76
opinião do acusado sobre as motivações do processo: seus adversários confundem suas
práticas filosóficas com uma magia punida e maléfica, acreditam que ele se casou
interessado no dinheiro da viúva e possuem uma inveja sem fundamento por Apuleio ter se
casado com ela e não eles.
Quatro análises específicas das motivações da acusação contra Apuleio são feitas
por Flitz Graf, Léon Herrmann, Elizabeth Pollard e Michaël Martin. É interessante notar
que, desses autores, apenas Pollard e Martin possuem concepções parecidas sobre as razões
do processo, Graf e Herrmann divergem entre si e também dos demais. Analisamos, então,
as propostas desses estudiosos.
Flitz Graf (1994) dedica um capítulo inteiro de seu livro La Magie dans
l’Antiquité Gréco-Romaine para o exame do processo de Apuleio. Inicia citando como
comumente a figura do mago aparece na História: um charlatão, sacerdote, filósofo,
estudioso ou simples personagem carismático. Nas primeiras páginas Graf propõe usar da
teoria do antropólogo Marcel Mauss para interpretar a acusação contra nosso autor.
68
De acordo com Graf (1994: 104), Apuleio é um marginal na cidade de Oea, onde
é estrangeiro. O fato de ser um estrangeiro e de tentar interferir nas estruturas de poder já
consolidadas na cidade, somados ao seu poder miraculoso de filósofo médio-platônico,
constituem as causas que o levam para o tribunal.
Graf (1994: 79) sugere que a acusação é clara e simples: Apuleio é acusado de
mágica maléfica, mais especificamente de magia erótica. A partir do próprio discurso de
defesa, Graf monta sua interpretação. Assim, após a morte do marido de Pudentila, a
68
De acordo com a teoria de Marcel Maus, uma figura marginal pode representar o propósito de uma imagem
de feitiçaria, sendo que toda condição anormal pode preparar-se para o exercício da magia em sociedades que
acreditam nela (MONTERO, 1990: 18).
77
fortuna da esposa deve permanecer, segundo a vontade dos acusadores, na família do
marido e por isso ela torna-se prometida a casar-se com o cunhado. Como um protótipo do
mal, Apuleio entra em cena na cidade, aparecendo aos olhos da família de Pudentila como
um homem repulsivo e mundano no meio desta querela. Desta forma, essas pessoas
colocam a filosofia da qual é adepto como pretexto para acusá-lo, mostrando o uso negativo
que a mesma poderia ter em suas concepções.
Portanto, para Graf, Apuleio não é acusado por ser um mago em si, mas sua figura
como marginal, sua condição anormal na cidade e suas práticas filosóficas relacionadas à
magia e a estudos naturalistas fornecem pretextos para a acusação.
Conforme o autor supracitado (1994: 83), esse ponto da história merece certa
atenção, mostrando claramente as relações sociais que se levantam neste processo de
magia. De um lado, os membros da família Sicinii, estabilizados e livres de qualquer
suspeita, de outro o filósofo estrangeiro, figura marginal em meio a uma sociedade de
estruturas fechadas, onde o poder está articulado e bem definido. A sociedade que tem
suas categorias está em perigo, pois Apuleio tenta se integrar a ela.
Graf (1994: 83) observa que Apuleio aparece como um homem repulsivo e
sombrio nesta cidade e isto faz com que a família de Pudentila se levante contra ele. Sua
filosofia é tida como má e aproveitadora.
Acreditamos que ao analisar a representação do filósofo como cidadão político
temos uma outra imagem que não foi analisada por Graf, o qual pautou seu estudo apenas
em Apuleio como filósofo e mago marginal, e esta figura mística como negativa, frívola e
charlatã. Concordamos com Graf ao propor que são as estruturas de poder que estavam
ameaçadas, mas não por Apuleio ser um marginal que tenta integrar-se a este poder e sim
78
por ser um homem público, um filósofo e ter profundos conhecimentos de magia,
elementos que o relacionavam com poder neste contexto.
Se analisarmos Apuleio apenas como marginal, sombrio e maléfico, não haveria o
que a família acusadora temer neste personagem, a não ser seu casamento com a rica viúva,
que Graf não analisa como motivações do processo.
Para nós, a magia aparece com um papel de destaque nesta acusação, mas no
sentido de ser uma prática que representava conhecimentos e formas de detenção de
poderes incomuns e que poucos possuíam. Como em Graf, na nossa análise, a magia será
colocada como ponto da acusação, mas de forma diversa: não usaremos a interpretação da
magia como uma prática vista pelos acusadores de Apuleio como charlatanismo, e sim
como representação de poder.
Diferentemente da concepção de filósofo e místico forasteiro, exposta por Graf,
analisamos a filosofia e o misticismo de Apuleio como pontos importantes e positivos de
sua formação, causando um certo temor a seus acusadores por também representar formas
de se alcançar cargos públicos e prestígio político.
Neste sentido, não admitimos Apuleio como a figura marginal, mesmo na cidade
de Oea onde aparece como estrangeiro. Ele é membro da elite africana e recebeu a melhor
educação possível da época, ocupando cargos em sua cidade natal. Por mais que ele não
seja um cidadão nascido em Oea, ele é membro da aristocracia africana e tudo indica que
teve grande prestígio como sofista.
Com interpretação muito distinta da de Graf, Léon Herrmann (1959) infere que o
motivo de Apuleio comparecer frente ao pretor é o de uma acusação de cristianismo.
69
Para
69
Devemos considerar, a priori, que o próprio conceito de cristianismo ainda não existia no século II d.C.,
havendo apologistas cristãos, mas não cristianismo propriamente. BRANDÃO, J. L. (II Ciclo Internacional de
79
Herrmann, Apuleio apresentava concepções cristãs sobre um deus supremo que
atemorizaram os cidadãos pagãos de Oea que o acusam.
A hipótese de Herrmann se baseia em um ponto da acusação (APULEIO,
Apologia, LXI) em que Apuleio é aludido como venerador de uma estátua em formato de
um esqueleto, chamada pelo filósofo de basiléus (rei).
70
Junto com este ponto da acusação,
Hermann analisa concepções da filosofia de Apuleio sobre a sublimidade e superioridade
de um único deus.
Herrmann nos remete a seguinte situação: a fabricação de tal estátua, realizada na
cidade de Oea, foi secreta, conforme os acusadores, porém Apuleio os contrapõe,
explanando que se fosse secreta, eles não conheceriam o artista que a talhou em madeira,
Cornélio Saturnino, que o procuram e o usaram como testemunha de acusação
(APULEIO, Apologia, LXI, 4).
Para Apuleio (Apologia, LXIII, 1-2), este fato torna-se ponto da acusação porque
a estátua tem aspecto infernal e espantoso, sendo usada, conforme seus acusadores, para a
magia. Apuleio defende-se citando que mandou talhar a estátua porque tem como costume
levar consigo, por onde quer que vá, a imagem de algum deus e honrá-la. Tal estátua seria,
segundo nosso autor, do Deus Mercúrio.
Tenho, em efeito, o costume de levar comigo, por onde quer que eu vá,
colocada entre meus objetos pessoais, a imagem de algum deus e de
honrá-la em dias de festa com minhas orações, oferecendo, ademais,
incenso, libações de vinho puro e, em determinadas ocasiões, o sacrifício
de uma vítima (APULEIO, Apologia, LXIII, 3-4).
O problema todo ocorreu, para Herrmann (1959: 111), porque Apuleio se nega a
discorrer sobre a natureza desse deus. Sendo assim, Herrmann interpreta que Apuleio era
Estudos Antigos e Medievais/VIII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais - UNESP/Assis). Comunicação
pessoal, 2006.
70
O termo grego basiléia é equivalente ao latim rex, significando rei (MUNGUIA, 1980: 159).
80
um cristão, pois não quer falar sobre o deus que venerava e a estátua foi interpretada pelos
acusadores como uma representação de suas crenças monoteístas.
Aqui eu mesmo agravo a suspeita de magia que sobre mim recai: não te
direi, Emiliano, quem é o ‘Rei’ a quem rendo culto, nem mesmo se o
próprio proconsul me perguntar qual é a natureza de meu deus, guardaria
silencio (APULEIO, Apologia, LXIV, 8).
Em relação ao nome, já disse o que exigem as circunstâncias presentes
(APULEIO, Apologia, LXV, 1).
Segundo Herrmann (1959), em uma passagem da obra O Deus de Socrátes,
Apuleio explana sobre a concepção de um deus superior de acordo com a teoria de Platão.
Assim também, para o autor supracitado, na obra De mundo, Apuleio assimila este deus a
Júpiter e faz referências a seu diversos epítetos em latim e em grego. Para o referido autor
não há, porém, explicações sobre o porquê de sua recusa em revelar a natureza de tal deus
na Apologia.
Ainda de acordo com Herrmann (1959: 112), dos autores romanos neoplatônicos
que trabalharam a idéia da tríade divina platônica que origina o deus-rei, Plotino, Porfírio e
Proclos, nenhum deles se recusou a dar explicações sobre o mesmo. Apuleio se recusa a
responder não somente a seus acusadores, como também ao pretor, que ele mesmo coloca
como seguidor de Platão. Herrmann conclui que sua reticência na Apologia é simplesmente
uma questão de estratégia, uma tentativa de esconder idéias sobre a trindade cristã, sendo
assim, um esforço deve ser feito para descobrir o objetivo do segredo do filósofo.
Neste sentido discordamos de Herrmann, pois os autores neoplatônicos por ele
citados, Plotino, Porfírio e Proclos, são filósofos do século posterior ao que viveu Apuleio e
no contexto deles a filosofia neoplatônica, da qual Apuleio apresenta certas
características, encontrava-se mais bem fundamentada e aceita. Assim, devemos nos atentar
81
pra os problemas de comparar tais autores com o filósofo Apuleio que viveu no século II
d.C.
Para Herrmann, devemos considerar, além da reticência de Apuleio em falar do
Deus-Rei, o fato de ele mencionar uma passagem da obra Epístola II de Platão (APULEIO,
Apologia, LXIV, 5), na qual Platão associa o deus-rei com outras duas entidades, numa
trindade mística. Herrmann acredita que esta obra de Platão não seja realmente de sua
autoria, sendo forjada por apologistas cristãos devido a sua popularidade entre eles. M.J.
Souilhé (1938 apud HERRMANN, 1959: 112) acredita que a Epístola II de Platão nasceu
de algum grupo neoplatônico, sendo que no século XVII, Cudworth (1673 apud
HERRMANN, 1959: 112) reconheceu um dado falso na Epístola II, que consiste no fato de
nas demais epístolas da obra, Platão citar a palavra deus no plural e nesta epístola no
singular, podendo, assim, ter sido a epístola em questão forjada por algum cristão. M.J.
Souilhé sublinha que os escritores cristãos podem ter se identificado com esta Epístola de
Platão por encontrarem nela um princípio trinitário da formação de sua idéia de
monoteísmo (Deus é formado pelo pai, filho e espírito santo) e, sendo assim, passível de
atribuição de sentido cristão.
Portanto, para os autores utilizados por Herrmann, a autenticidade desta obra é
muito discutida, sendo possível que, se sua autoria não foi forjada, pelo menos houve
interpolações no que se refere à idéia da trindade.
71
Assim, esta passagem da Apologia pode
ser considerada como uma digressão à teologia platônica.
Em outro artigo de sua autoria, Herrmann (1953: 189) observa uma crítica de
Apuleio aos cristãos na obra Metamorfoses, mas simplesmente a coloca como uma
71
Acreditamos que talvez estas interpolações possam não ser do século II, que idéias deste tipo não eram
bem aceitas nesse momento.
82
contradição em relação ao processo referente à Apologia. Desta forma, na obra
Metamorfoses, para Herrmann, Apuleio busca retirar possíveis suspeitas de ser cristão,
que foi acusado como tal no processo em questão.
Devemos observar que Herrmann, ao considerar a acusação de Apuleio como de
cristianismo, a generaliza com base em apenas um ponto. Sabemos que existem oito pontos
que recaem contra Apuleio como praticante de magia, os quais devem ser passíveis de uma
análise para que seja elaborada este tipo de opinião. Além dos demais pontos de acusação,
que não são sequer mencionados por este autor.
Devemos considerar ainda que os filósofos cristãos procuraram na filosofia grega
e, sobretudo, em Aristóteles, uma lógica, uma física e mesmo uma teologia que tentaram
tornar compatíveis com os seus dogmas (BRUN, 1988: 12). Assim, não se estranha que
pontos da filosofia cristã e suas concepções sobre deus coincidam com pontos da filosofia
médio-platônica de Apuleio, há, como podemos perceber, um sincretismo filosófico neste
momento, sendo, desta forma, arriscado sugerir que Apuleio era um cristão, como o fez
Herrmann.
Daniélou (1966 apud PLACES, 1974: 348) coloca, também, que concomitante ao
auge das idéias médio-platônicas no século II, há o movimento dos primeiros padres
gregos, os apologistas cristãos, e que o médio-platonismo, que atraía grande atenção de
muitos pensadores neste momento, foi o meio intelectual de muitos estudiosos cristãos da
época. Os cristãos, porém, lhe reinterpretavam no sentido de suas preocupações.
Não nada de estranho, portanto, que as elaborações de Apuleio coincidam com
pontos de interpretações cristãos, não sendo por isso que devemos analisar a acusação que
nos remete a Apologia como uma acusação de cristianismo propriamente.
83
Apesar das explanações de Herrmann serem bem expostas, com argumentos
sólidos, Raoul Mortley (1972) apresenta alguns contrapontos à tese de Herrmann, com os
quais concordamos. Para Mortley (1972: 584), Apuleio dotava suas práticas místico-
religiosas com uma aura de ortodoxia e devoção, e a maneira mais óbvia de fazer isso era
justamente se negar a falar sobre a natureza divina, tirando ainda um proveito de suas
filiações platônicas a fim de impressionar o juiz presente, também descrito como versado
na tradição platônica.
Segundo Mortley (1972: 584), Apuleio, na defesa, recorre aos ensinamentos de
Platão ao negar o pronunciamento a respeito do deus cuja estatueta venerava. Percebemos
que também na obra O deus de Sócrates, assim como na Apologia, Apuleio evoca Platão
para explicar a inefabilidade do deus.
Platão considera que todos eles são seres incorpóreos, animados, sem fim
nem começo, porém eternos no passado e no futuro, estão afastados do
contato do corpo pela própria natureza [...] Desses o autor, que é dono e o
criador de todas as coisas, libertou-se de todos os encadeamentos do
sofrer ou, em certa medida, do agir; não se envolveu, por sua vez, em
nenhuma função. Então, por que eu agora começaria a descrevê-lo?
Quando Platão, dotado de uma eloqüência celeste, orador comparável aos
deuses imortais, começou, de modo muito freqüente, a falar somente isto
por causa do excesso até um certo ponto inefável e inacreditável de sua
grandeza e por causa da escassez da linguagem humana, não pôde ser
compreendido, indiferentemente, em seu estilo ou moderação apenas
pelos homens sábios, mas pelo seu vigor da alma (APULEIO, O Deus de
Sócrates, III).
Então, eu farei lançar este assunto, em que não pudemos nem mesmo
eu nem meu mestre Platão Dispor de algumas palavras para amplidão
do tema (APULEIO, O Deus de Sócrates, III).
Ainda de acordo com Mortley (1972: 587), quando Apuleio afirma que não falará
sobre a natureza de seu Deus ele está apenas demonstrando sua fidelidade a Platão, não
tendo nenhuma relação com os cristãos. Assim, este autor conclui que Herrmann não
84
percebe a ironia desta reticência de Apuleio e que se o filósofo realmente tivesse algo para
esconder, certamente não teria indicado. Mortley (1972: 588) também nos informa que a
idéia de discrição praticada pelos iniciantes em determinados cultos de mistérios, dos quais
Apuleio era adepto, é frequentemente encontrada em textos de escritores médio-platônicos.
Concordamos com Mortley, pois constatamos, a partir de uma interpretação da
obra Metamorfoses de Apuleio, que a religiosidade personificada no protagonista da
novela, Lúcio, caminha para um politeísmo, descrevendo diversas práticas religiosas,
especialmente o culto de Ísis. Neste contexto, percebemos que o cristianismo também é
mostrado por Apuleio de forma irônica. Luís Mucillo (1995: 88) levanta a possibilidade da
obra Metamorfoses ser uma crítica ao cristianismo, na medida em que os cristãos eram
acusados de “asnolatria” - idolatria ao animal asno e destaca que Apuleio o descreve
como um animal vil e digno de escárnio.
Percebemos também que a religião monoteísta é ainda criticada na obra
Metamorfoses (IX, 14) quando Apuleio apresenta um moleiro casado com uma das piores
mulheres que existia. A esposa do moleiro é criticada pelo personagem Lucio como uma
mulher, que além de ser cruel e mesquinha, professava a crença presunçosa em um deus
único.
Ainda sobre a estátua do basiléus, conforme Dodds (2002: 297), Apuleio foi
acusado de modo justo por possuir esta estátua ligada à magia. A fabricação de imagens,
segundo Dodds, era prática comum aos teurgistas, embora não lhes fosse exclusividade. De
acordo com Gil Renberg (1997), era comum a procura de artesãos para que estes
fabricassem estátuas de adoração particular na época em que viveu Apuleio.
72
Assim, para
72
No Capítulo 3 desta Dissertação discutimos as razões pelas quais consideramos Apuleio como um teurgo,
embora tal termo não seja utilizado por ele para se definir.
85
Dodds a acusação contra Apuleio, pelo menos neste ponto, é uma acusação de magia
propriamente.
Tais estátuas, segundo Dodds (2002: 310) se diferenciavam das simples estátuas
religiosas, fabricadas para o uso particular, por serem construídas para o aprisionamento
mágico de almas de daimones e uso na magia. Porém, como conferimos, nada no texto da
Apologia diferencia esta estátua de uma simples estátua religiosa. Consideramos que o
texto foi escrito para a defesa de Apuleio e mesmo que tal estátua fosse fabricada com
finalidades mágicas, teurgicas ou não, estas não seriam facilmente reveladas devido à
natureza da obra. De qualquer forma, se a estátua foi usada para a magia ou para a religião,
práticas difíceis de serem delimitadas com exatidão, para nós, outros pontos que
mostram Apuleio como uma espécie de mago, pelo menos na concepção de seus acusadores
e de acordo com a filosofia que era seguidor.
De acordo com Nuccio D’Anna (1992: 81), um aspecto relevante e particular do
neoplatonismo do século III é a arte de consagrar e vivificar estátuas por parte de seus
seguidores, prática típica da teurgia. Consideramos que este costume de Apuleio era parte
de seus estudos e iniciações filosóficas, sendo este um filósofo médio-platônico. Tal ritual
pode ser interpretado como um ritual mágico, pois a estátua representaria a presença do
deus para o teurgo, mas também religioso se o teurgo suplicar pelo deus e usar de seu
aspecto devocional. Neste sentido, os campos da religião e da magia se interpenetram e os
acusadores de Apuleio utilizam-se dos aspectos negativos desta última, porém, não
havendo, na nossa opinião, nenhuma relação desse ponto da acusação com o cristianismo,
como sugerido por Herrmann.
86
Percorrendo um caminho bem diferente de Herrmann, temos o texto de Elizabeth
Pollard e sua interpretação para as razões da acusação por nós trabalhada.
73
Na abordagem de Pollard, a Apologia é frequentemente confundida com a defesa
de uma acusação de magia, mas, para a autora, este discurso deve ser compreendido como
uma resposta a uma disputa de herança, cujos principais envolvidos são pessoas
interessadas no dinheiro da viúva Pudentila.
Pollard nos informa que o dote (dos), o testamento (testamentum) e as
propriedades envolvidas em uma união matrimonial eram as transações financeiras mais
bem suscedidas que um romano poderia empreender. Na época em que Apuleio responde a
esta ação, a mulher, segundo as leis, tinha direitos de deixar sua herança, e isto foi
disputado pelos familiares de Pudentila envolvidos e citados por Apuleio (Emiliano - irmão
de seu falecido marido, Pudente - filho e Rufino - ex-sogro de seu filho falecido).
Para esta autora, os casos da magia e da filosofia aparecem como meras
difamações nesta acusação, sendo tratados antes de vir a questão real da acusação: o
dinheiro de Pudentila. Pollard refere-se à acusação de praticante de magia apenas como um
subterfúgio para a verdadeira acusação, tanto que no final de sua defesa, Apuleio coloca
que a acusação é de magia amorosa, ele é acusado de encantar sua esposa para conseguir
que esta se case com ele. Sendo assim, para Pollard, o ponto central da acusação, a magia,
está relacionado ao dinheiro.
73
O texto de Pollard é resultado de uma conferência apresentada em um seminário sobre a fonte Apologia de
Apuleio na Universidade da Pensilvânia nos Estados Unidos, em 1996. O seminário foi organizado pelo
Professor James J. O’Donnell, desta universidade, para alunos do curso de doutorado da mesma e contou com
a participação de estudiosos da área de Antiguidade Clássica de outras instituições. As conferências foram
disponibilizadas on-line em 1997 no site <http://ccat.sas.upenn.edu/jod/apuleius/>. Esse site é um banco de
dados dos Estados Unidos para pesquisas chamado Scholl of Arts and Sciences. Este texto, assim como os
demais textos por nós usados da Internet, não possui menções de páginas, por não possuí-las em seu formato
original.
87
A autora ressalta que a longa digressão sobre os valores da pobreza feita por
Apuleio na Apologia tem um valor muito importante, tendo como intento não demonstrar
seu interesse no dinheiro da rica viúva.
Assim, como notamos, também se posiciona Apuleio explicitamente diante da
acusação.
Se empenharam em escarnecer o aspecto físico e a idade de Pudentila e
logo me reprovaram por querer como minha esposa, semelhante mulher,
somente para saciar minha cobiça, acrescentando que para isto, na
primeira vez que nos falamos, lhe arranquei um dote grandioso e rico
(APULEIO, Apologia, XCI, 5).
Esta foi a principal inquietude que os levou a me acusar; de acordo com
sua própria avareza, imaginaram que havia me deixado toda sua herança
(APULEIO, Apologia, CXIX, 7).
O ponto que esta autora trabalha especificamente é a acusação de que Apuleio
comprou certos peixes cujas propriedades tinham poder para a prática de magia amorosa
(APULEIO, Apologia XXIX). Pollard trabalha apenas este ponto da acusação e demonstra
seu relacionamento com a magia amorosa e, conseqüentemente, com o casamento. Porém, a
autora interpreta somente este aspecto, não citando os demais e não estabelecendo uma
crítica à maneira como Apuleio se defende.
Percebemos que, para uma análise dos interesses dos envolvidos no processo com
o dinheiro de Pudentila, seria preciso verificar as ligações que estes poderiam ter com a
riqueza da viúva e também as relações do próprio Apuleio com o dinheiro de sua esposa. O
que não ocorre na análise de Pollard.
que se destacar que, conforme Apuleio, segundo o testamento feito por
Pudentila, sua herança seria deixada para seu filho Pudente, uma vez que o outro filho
88
havia falecido, enquanto que Apuleio receberia uma parte de seus bens e, conforme o
contrato matrimonial deles, se tivessem um filho, metade do seu dote seria desse filho, caso
não tivessem filhos, o dote se reverteria aos filhos do primeiro casamento de sua esposa,
sendo este dote apenas um empréstimo de Pudentila para ele.
Ordena, Máximo, que se rompam os selos deste documento. Verás que é
o filho que foi instituído herdeiro e que a mim será deixado somente um
insignificante legado, para cobrir as aparências e evitar que, em caso de
ocorrer algum percalço, eu, o marido, não tenha meu nome escrito no
testamento de minha esposa (APULEIO, Apologia, C, 2).
Ademais, nossa união matrimonial se fez com a condição de que, se
Pudentila falecesse sem ter deixado filhos meus, todo dote revertería a
seus filhos Ponciano e Pudente; se, pelo contrário, morresse deixando-me
filho ou filha vivos, a metade do dote passaria ao filho do segundo
matrimônio e o restante revertería para os do primeiro (APULEIO,
Apologia, XCI, 8).
Neste contexto, Apuleio teria direitos sobre a herança de sua esposa e a análise de
Pollard de que se casaria com ela interessado neste patrimônio é bem suscedida. Porém,
devemos observar que Apuleio também era um homem rico e casamentos com dotes e
heranças eram naturais e até regras nesta sociedade. Sendo assim, acreditamos que havia
algo mais nesta união que incomodasse tanto os acusadores.
Para nós, no caso de Emiliano, o único ponto que pode demonstrar seus interesses
no dinheiro de Pudentila seria o fato de ele não querer que o dote estabelecido com o
casamento dela com seu irmão falecido saísse das propriedades dos Sicinii, que quando
uma mulher ficava viúva, seu dote era restituído a sua família (CROOK, 1967: 105).
Emiliano não tinha nenhum direito sobre a herança do sobrinho Pudente caso
Pudentila falecesse. Sabemos que com a morte do pai de Pudente, o jovem garoto passou
para a tutela do avô, que faleceu (APULEIO, Apologia, LXVIII, 2), mas como o jovem
89
havia recebido a toga-viril (APULEIO, Apologia, LXX, 7), ele certamente estava
emancipado dos poderes de seu parente agnado mais próximo, no caso um de seu tios.
Sobre os direitos do jovem Pudente ao dinheiro de Pudentila, sabemos que
nenhum texto de leis romanas fixa que os filhos são herdeiros legítimos da mãe unicamente
porque ela seria sua cognata mais próxima e não sua agnada. Porém, verificamos mudanças
no que diz respeito à sucessão das mulheres na sociedade Imperial, sendo atribuído aos
cognatos o direito da posse dos bens de seu parente mais próximo, por conseguinte, os
filhos herdavam os bens de sua mãe e o testamento permitia dar uma realidade patrimonial
ao vínculo com a mãe.
74
Outros herdeiros podiam ser constituídos por disposição
testamentária (YAN, 1990: 132, 141, 148).
Como podemos perceber, o testamento de Pudentila estava de acordo com a
tradição romana da época, sua herança ficaria para seu filho (APULEIO, Apologia, C, 1),
podendo também ser estabelecida uma parte para seu marido, no caso, para Apuleio.
Pudente não tinha muito que reclamar de sua parte no testamento de sua mãe, a
ponto de precisar mover uma ação desta envergadura contra Apuleio. Mesmo que sua mãe
não o estabelecesse como herdeiro, sabemos que a transferência dos bens maternos era
considerada como uma obrigação. Os filhos e filhas tinham o direito de mover uma ação
quando se sentiam lesados em relação ao testamento da mãe, havendo inúmeros exemplos
de invalidações de testamentos maternos nas fontes jurídicas dos séculos II, III e IV da
nossa era. Em casos jurídicos, “o magistrado concedia ganho de causa àquele cuja mãe o
74
Por meio de uma lei dos Imperadores Antoninos, Antonino Pio (138-161 d.C.) e Cômodo (180-192 d.C.),
que eram governantes na época do processo contra Apuleio, ficou decidido que os filhos receberiam
sucessões legítimas de sua mãe, mesmo se a mãe não fosse casada com o pai por regime cum manu. Ou seja,
mesmo que eles não estivessem sob o mesmo poder paterno. Em 178 d.C. ficou estabelecido que na ausência
de testamento, os filhos passavam doravante à frente dos colaterais agnásticos e dos ascendentes da mãe
(YAN, 1990: 156-157).
90
tinha omitido tão facilmente como àquele cujo pai o tinha deserdado”. (YAN, 1990: 151,
153)
Desta maneira, no caso de Pudente, percebemos que o testamento podia não ser o
problema da ação contra Apuleio, que o jovem tinha outras formas, de vitória mais
garantida, para infligir contra o filósofo do que uma acusação de magia.
Neste contexto de intrigas em torno do dinheiro da viúva, não encontramos
motivos pelos quais Herennio Rufino, o ex-sogro do falecido Ponciano, movesse uma ação
contra Apuleio, que Rufino não receberia parte da herança de Pudentila e nem tinha
formas de ser beneficiado com o dote ou qualquer outra possessão da viúva.
O fato da acusação ter sido feita em nome do jovem filho de Pudentila, causa um
aspecto de intrigas em torno da riqueza da viúva, mas por todos estes fatores analisados
acima, consideramos que o motivo da acusação excede às referências ao dote e testamento
de Pudentila.
Diferente de Pollard, acreditamos que não é a riqueza de Pudentila propriamente
que está inserida nas relações estabelecidas na acusação porque Pudente não tinha
ameaçados seus interesses financeiros no dinheiro de Pudentila e Rufino não era
beneficiado pelo dinheiro da viúva. Em certa medida, apenas Emiliano teria o dinheiro
como motivo principal para a acusação.
O que pode estar implícito como motivo da acusação também se relaciona com o
casamento, mas, em nossa opinião, não é a fortuna de Pudentila o fator que move três
famílias contra o acusado e sim as vantagens políticas e sociais trazidas com o mesmo para
Apuleio e desfeitas entre os Sicinnii e os Aemilius.
91
Destacamos que antes de se casar com Apuleio, Pudentila celebrou esponsais com
o irmão de Emiliano, Sicínio Claro, sendo este contrato, porém, rompido com a morte do
patriarca dos Sicinii. Pelo Digesto (45, 1, 1, 134) percebemos que com o rompimento
injusto das esponsais, podia ser aberto um processo indenizatório pela parte que se sentia
prejudicada e esta podia receber uma indenização da outra parte.
Apuleio não faz nenhuma citação sobre um possível processo contra sua esposa.
Sicínio Claro, inclusive, é pouco mencionado na Apologia, sendo que Apuleio volta seus
ataques e a culpa do seu processo para Emiliano. Todavia, supondo que Sicinio Claro fosse
um senador e não vivesse em Oea
75
, quem mais se preocupa com a quebra de alianças entre
as famílias é realmente Emiliano, que conforme Apuleio, vivia na mesma cidade e talvez
ocupasse cargos importantes na mesma, uma vez que era membro da elite.
Em relação ao dote, sabemos que este constitui-se como o centro de toda
regulação dos bens matrimoniais e é igualmente o ente patrimonial de maior relevância no
que se refere às relações entre os cônjuges. A estipulação de um dote era absolutamente
necessária para a contratação de um matrimônio em Roma. Era costume que o
paterfamilias ou a própria mulher, se ela fosse sui iuris
76
, passassem o dote para o marido,
que desde então era seu titular e administrador. Em consequência, o marido estava
encarregado de administrar estes bens matrimoniais, enquanto que a mulher ocupava uma
posição secundária, com respeito a eles (DEL CASTILLO,1986: 188).
75
Sobre as razões de levantarmos esta hipótese, ver informações no Capítulo 1, pág. 31.
76
São as mulheres que não estavam baixo a patria potestas de um homem. Tudo indica que era este o caso de
Pudentila que não deve ter casado com seu primeiro marido através do casamento cum manu, assim com a
morte deste não passou a patria potestas do pai dele. No Capítulo 3 nos dedicamos a uma análise da possível
situação jurídica que se encontrava a viúva Pudentila antes de se casar com Apuleio.
92
Portanto, nada havia de ilícito no fato de Apuleio receber parte da herança caso
sua esposa morresse antes e cuidar de seus bens, o que corrobora a nossa hipótese de que o
motivo da acusação, para Emiliano, não era o fato de Apuleio estar interessado no dinheiro
dela, mas porque tais bens não continuariam sendo administrados pelos Sicinii.
Pollard ainda menciona que inclusive o irmão de Pudentila está relacionado com
esta acusação, sendo o advogado de acusação. Mas percebemos que este não tinha razões
de se preocupar com a herança de sua irmã por também não ser um dos beneficiados com a
mesma.
Devemos mencionar o desejo de Ponciano, filho mais velho de Pudentila, de que
sua mãe se casasse com Apuleio, estabelecendo um vínculo entre eles. Para nós, Ponciano
não faria este pedido ao amigo se achasse que ele iria interferir na herança de sua mãe de
forma negativa.
Também devemos perceber que Apuleio o era um homem pobre que
necessitasse do dinheiro de Pudentila. Mesmo que a quantia mencionada como a herança
que recebera de seu pai tenha seu valor modificado. Seus estudos, suas liberalidades e suas
viagens mostram que suas posses eram típicas de homens da alta elite africana. O
casamento iria trazer-lhe outros tipos de vantagens que não eram apenas financeiras.
Apuleio faz uma longa defesa da filosofia e da importância do saber, que de forma
alguma está ingenuamente colocada no discurso e que Pollard simplesmente não menciona,
além dos demais pontos da acusação estarem fortemente relacionados com outros tipos de
magia que não a amorosa e que Pollard não trabalha em seu texto.
93
Portanto, não concordamos com a teoria trabalhada por Pollard sobre as raízes do
processo por a considerarmos, de certa maneira, reducionista.
Indo ao encontro da tese de Pollard, averiguamos a posição do historiador Michaël
Martin.
Martin (2006) estuda as práticas mágicas no território da África Romana no texto
Sous le signe de Didon: Magie et Superstition en Afrique Romaine, que é dividido em três
partes. Na terceira parte do texto, Martin dedica algumas páginas ao estudo do processo
contra Apuleio.
Martin propõe estudar o aspecto social da acusação e coloca como motivação o
fato da união entre Apuleio e Pudentila interferir nos interesses financeiros dos cidadãos
acusadores do filósofo, ameaçando as estruturas sociais da cidade. Assim, percebemos que,
como Graf, a situação que Martin verifica nesta acusação está relacionada com as estruturas
sociais da cidade de Oea. Porém, diferentemente de Graf, o autor estuda o casamento entre
Apuleio e a viúva e não sua imagem como marginal na sociedade em questão.
Mas, como Pollard, Martin não desenvolve uma crítica sobre as formas de
envolvimento dos acusadores com a riqueza da esposa de Apuleio, tornando sua análise, do
nosso ponto de vista, incompleta. Martin também não analisa o significado dos casamentos
da aristocracia na Antiguidade Romana como formas de alianças entre famílias, o que
deveria ter sido feito, já que a riqueza de Pudentila somente poderia ser transferida para
Emiliano e Rufino através de um casamento e, pela análise das relações dos casamentos da
aristocracia na Antiguidade Romana, percebemos que os interesses no caso do casamento
de Apuleio e Pudentila podem ter ultrapassado o âmbito apenas financeiro.
94
Diferente de Pollard, Martin não descarta outros pontos da acusação, inferindo
que a magia também seja uma das motivações da mesma. Entretanto, Martin analisa as
práticas gicas relacionadas ao casamento, à magia amorosa, ou erótica, nas palavras do
autor, sendo que o intuito principal da acusação relaciona-se ao interesse financeiro dos
acusadores. Para Martin, a forma mágica da filosofia de Apuleio, que o levava a iniciar-se
em vários rituais, está ligada à magia, não sendo inocente na acusação e valendo a Apuleio
a fama de praticante da magia perante os homens que o acusam.
Por último, devemos considerar também uma observação de Neil Bernstein (1997)
em seu artigo sobre a retórica de Apuleio em Apologia. Para Bernstein, Apuleio certamente
não passou como uma pessoa que incomodava os habitantes da cidade de Oea, tanto que
seu alvo de ataque é um único proprietário de terras obscuro, Emiliano, e não um corpo
inteiro de cidadãos.
77
Concordamos que Apuleio não foi considerado como uma pessoa impertinente na
cidade de Oea para a maioria das pessoas com que se relaciona, pelo próprio carisma que
possuía enquanto orador, filósofo e místico. Todavia, mesmo fazendo tal observação,
Bernstein não questiona a existência de uma outra importante personagem da acusação que
é Rufino. Assim, não era apenas um homem que estava envolvido na ação contra Apuleio,
mas dois homens da aristocracia são citados pelo filósofo ao longo de todo seu discurso,
além de outros que são testemunhas e do advogado de acusação.
77
Bernstein usa das expressões “escuro-obscuro” para definir Emiliano frente à “clareza” de Apuleio,
relacionada à sua imagem pública, porque, para este autor, é assim que Apuleio define Emiliano: como um
homem que, diferente dele, o tem notoriedade. Neste sentido, o ataque ao filósofo, ao homem público, vem
da escuridão e anonimato de um homem do campo.
95
Dessa forma, para nós, a “boa imagem” de Apuleio perante a população de Oea
seria um dos motivos que teria feito seus acusadores se voltarem contra ele, o que, por sua
vez, se refere ao carisma do filósofo e sua relação com formas de poder público.
Bernstein também não analisa a importância e o significado deste “obscuro
proprietário de terras”, que era Emiliano, nas relações sociais de Apuleio com a cidade e se
percebermos as relações sociais e cargos públicos que a família de Emiliano ocupava,
podemos perceber que esta “obscuridade” na qual Apuleio o remete pode ser mais um
efeito retórico a fim de contrapor seu acusador à sua importância como filósofo.
Portanto, como notamos, as análises dos estudiosos não consideram pontos da
acusação fundamentais para a compreensão das motivações do referido processo e quando
consideram, como no caso de aceitarem que Apuleio é acusado por suas práticas de magia,
não analisam as significações de ser um mago nesta sociedade. Os autores não analisam a
acusação em sua totalidade, considerando apenas alguns pontos e também não se atentam
suficientemente para as condições financeiras e as posições sociais dos envolvidos no
processo e suas relações com a riqueza de Pudentila. Outro fator que compreendemos como
fundamental, não abordado pelos autores mencionados, é o questionamento da eloqüencia
de Apuleio na acusação, algo que não se relaciona com a magia propriamente e todos os
autores citados não analisam.
96
3. MAGIA, FILOSOFIA, CASAMENTO E PODER NO PRINCIPADO
ROMANO
3.1 As práticas mágicas de Apuleio e as relações entre magia e poder
As práticas compreendidas sob a denominação de magia englobam fenômenos
diversos que têm como natureza comum a pretensa capacidade de mudar o curso natural
dos eventos mediante a utilização correta de procedimentos, objetos e forças sobrenaturais.
A crença em poderes mágicos pode ser interpretada como um fenômeno
sociocultural, recorrente em inúmeras sociedades. Suas origens remontam a tempos e
espaços amplamente divergentes, fundando um consenso entre diferentes estudiosos sobre a
existência de práticas e representações da magia inerentes a todas culturas. Tais práticas se
perpetuam, influenciando-se e adaptando-se em uma relação dinâmica com outros saberes
sociais (SANTOS, 1999: 11).
Os romanos não se isentaram desta crença generalizada. As evidências
arqueológicas e literárias das épocas romanas não deixam nenhuma dúvida de que havia
praticantes de diversos tipos de magia no Principado Romano, inclusive na África do Norte,
onde Apuleio viveu a maior parte de sua vida.
78
De uma forma geral, na sociedade romana do Principado, houve uma distinção
entre práticas de magia populares consideradas maléficas e charlatãs - goetéa - e outra
78
Os objetos mágicos encontrados por arqueólogos no Norte da África são talismãs, amuletos, tabuletas e
defixios - finas minas de chumbo com imprecações mágicas, conhecidas pelos gregos como katádesmoi
(RENBERG, 1997). As regiões africanas de Cartago e da antiga Hadrumete são particularmente ricas em
sítios arqueológicos onde se encontraram grandes quantidades de defixios (MARTIN, 2005).
97
magia incorporada em rituais de deuses da religião oficial romana e parte de estudos
filosóficos como, por exemplo, as especulações de Apuleio sobre a natureza dos daimones
e o uso destes seres em uma espécie de ritual mágico para a comunicação entre homem e
deuses.
79
Conforme Jacyntho Lins Brandão (1991: 113-114), a magia ligada à filosofia
possuía uma base científica estabelecida pela Teoria da Simpatia Universal
80
e se por um
lado era considerada um conhecimento místico, por outro era também um conhecimento
científico e isso fez com que a magia fosse aceita por largas faixas das camadas mais
eruditas da sociedade romana.
Esta segunda visão da magia era uma assimilação de práticas religiosas e
especulações filosóficas com uma base gica, conhecida como teurgia.
81
Para os gregos e
para os latinos, os diferentes termos enumerados designavam correntemente uma classe
única de fenômenos e os filósofos tendiam naturalmente a fazer prevalecer a característica
religiosa de suas práticas, mas entre a teurgia e a goetéa, não havia uma demarcação
suficientemente nítida. (HUBERT, s/d: 1495).
Acreditamos que o que diferenciava estes fenômenos era a concepção sobre a
atitude do agente mágico, ou seja, do praticante da magia. Se a concepção fosse boa, seria
magia denominada teurgia ou rituais de cunho mágico incorporados em práticas religiosas.
79
Devemos considerar que a magia praticada pelos gregos e latinos não é a mesma em todo território greco-
romano e que ainda ignoramos as formas primitivas e originais da magia na Itália e na Grécia (HUBERT, s/d:
1494).
80
A Teoria da Simpatia Universal foi estabelecida pelo antropólogo inglês James Frazer, e outros estudiosos
após ele vieram a confirmá-la e complementá-la. De acordo com esta teoria, os antropólogos consideraram o
pensamento mágico como uma forma de conceber a organização do universo por meio de leis que se
conhecidas podem ser usadas a fim de regular a ação mecânica da natureza. Tais leis, conforme Paula
Montero (1990: 21-31), seriam: Lei da Contigüidade (parte pertence ao todo, o mago pode atuar na parte por
meio de rituais mágicos e produzir efeitos sobre o todo), Lei da Similaridade (semelhante age sobre
semelhante), Lei da Contrariedade (o semelhante ao evocar o semelhante provoca seu contrário).
81
Porém nem toda atitude mágica considerada benéfica foi chamada de teurgia. Havia também rituais
religiosos que possuíam elementos mágicos e a teurgia era uma prática específica de magia religiosa com o
objetivo de incorporar a força divina através da produção de um estado de transe visionário.
98
Se a concepção fosse ruim era denominada de goetéa. Entretanto, tal concepção não
significava que a atitude do praticante fosse o único ponto definidor do tipo de magia.
Joseph Bidez (apud DODDS, 2002: 284) define a teurgia como uma prática de
magia baseada na relação entre espíritos celestes e cujo objetivo principal é atingir as forças
divinas, sendo normalmente oposta a goetéa, que invocaria forças maléficas.
Dodds (2002: 294) nos indica que o filósofo Proclos
82
, que possivelmente viveu
depois de Apuleio, definiria a teurgia como a magia aplicada com propósito religioso e
consistindo em uma suposta revelação de mesmo caráter. Sendo, para Proclos, a magia
vulgar aquela que utiliza fórmulas de origem religiosa para fins profanos e a teurgia a que
utiliza procedimentos mágicos para fins religiosos.
De acordo com Bidez (apud DODDS, 2002: 286), o primeiro homem a se
denominar teurgo foi o filósofo Juliano, que viveu durante o império de Marco Aurélio
(161-180).
83
Juliano teria se denominado dessa maneira para distinguir-se dos simples
sacerdotes, que, segundo Juliano, falavam sobre os deuses, enquanto ele “agia sobre os
deuses” ou até “os criava”. A gnose, sugerida por Juliano, tinha como veículo principal a
prática da magia e a denominação de teurgia a esta prática objetivava enfatizar seu caráter
divino. O mago não era apenas alguém que praticava a magia e nem um homem que
simplesmente refletia sobre a natureza e as propriedades dos deuses, mas aquele que agia
sobre a natureza e sobre os deuses com fundamentações especulativas (SILVA, Gilvan, V.
2003: 187).
82
Filósofo neoplatônico que tem a datação de seu nascimento incerta, algumas fontes indicam seu nascimento
no século II, outras no século V (HARVEY, 1998: 417).
83
Juliano, o Teurgo, era filho de Juliano, o Caldeu, que proveniente da Babilônia passou a viver em Roma
após as campanhas do Imperador Trajano no Oriente. Juliano, o caldeu, praticava a magia e a adivinhação e
versou seu filho na suas artes mágicas (SILVA, Gilvan, V. 2003: 186). A Juliano, o Teurgo, é referida a
autoria dos Oráculos Caldeus, obra que trata de prescrições para a mágica evocação dos deuses, e uma obra
sobre daimones.
99
Tudo indica que Apuleio viveu um pouco antes de Juliano e na Apologia o próprio
Apuleio indica ser praticante de uma magia do tipo teúrgica. Porém, Apuleio não se
denomina como teurgo porque estas práticas estavam no início de seu desenvolvimento no
momento que sofre a acusação, e talvez ainda não recebessem esta denominação.
Todavia, as referências de Apuleio na Apologia a respeito das práticas de que era
adepto, assim como as especulações presentes em outras obras como O Deus de Sócrates,
nos indicam que ele praticava um tipo de magia similar à teurgia, havendo, segundo ele, um
outro tipo, a vulgar e charlatã, à qual se opunha.
Esta segunda classe de magia a que meus adversários se referem,
segundo entendi, é uma prática penalizada pelas leis e está proibida desde
os tempos mais antigos pelas Leis das XII Tábuas, devido as misteriosos
e nefastas influencias que pode exercer sobre as colheitas. É, portanto,
uma prática tenebrosa e horrível, que se realiza durante a noite, se oculta
nas trevas, evita testemunhos, busca a solidão e murmura seus
encantamentos em voz baixa [...] (APULEIO, Apologia, XLVII, 3).
Na obra Metamorfoses uma distinção entre dois tipos de magia: uma magia
totalmente afastada de concepções tidas como religiosas, representadas por meio de
operações espetaculares e privadas, e outra que explora elementos religiosos
84
, ligada a
filosofias e ritos religiosos, portanto, não punida por leis. A primeira espécie de magia
mostra um sacrilégio e certo constrangimento ao praticante, sendo uma prática individual.
A segunda, ao contrário, conhece os segredos divinos e venera os deuses, opera na crença
da condição da ação divina e é uma prática coletiva.
As obras de Apuleio referem-se freqüentemente a um tipo de magia ligada à
filosofia, fazendo poucas referências às práticas de magia populares em sua cultura. Para
Gil Renberg (1997), as obras de Apuleio são excelentes para se estudar concepções sobre a
84
Como, por exemplo, oração e piedade.
100
magia na época, mas para se conhecer as práticas populares de magia na África Romana é
preciso recorrer a outras fontes.
A fonte Apologia tem uma especificidade em relação às outras fontes por se tratar
de uma defesa de praticante de magia. Portanto, mesmo que Apuleio fosse praticante de
uma magia considerada nefasta, ele jamais trataria sobre ela nesse discurso. Mas não é
apenas nesta obra que ele se mostra favorável a certo tipo de prática mágica e contrário a
outras. Seguindo uma espécie de senso comum dos escritores da aristocracia romana do
Principado, faz críticas à magia popular em um sentido metafórico também na obra
Metamorfoses.
85
Conforme Nicole Fick (1985: 134), em geral, os autores latinos do
Principado Romano representam a primeira concepção de magia em gestos de temor e
crítica, a segunda concepção é por eles colocada como resultado de um precioso
esclarecimento, tal concepção, como notamos, é destacada tanto na obra Metamorfoses
como na Apologia.
86
Apuleio expõe um longo tratado sobre a natureza dos daimones. Segundo Zabala
(1989: 266), os filósofos da época imperial tinham um conceito dos daimones claramente
influenciado sobre as noções que Platão formulou sobre este elemento em sua obra O
Banquete.
Nas obras Apologia e O Deus de Sócrates são os daimones os responsáveis pela
comunicação mágica entre homem e deuses, mas esta comunicação sempre é estabelecida
com princípios benéficos. Para Apuleio, o bom filósofo estava em contato com um gênio
85
Exemplos destes escritores são os poetas Lucano (39-65 d.C.), Virgílio (70-19 a.C.), Horácio (65-8 a.C.),
Ovídio (43 a.C.-17 d.C.) e Petrônio (m. 65 d.C.) (SILVA, S. C. 2004). Sobre tais autores do Principado
Romano e suas críticas às práticas de magia ver mais informações em: TUPET, Anne Marie La magie dans la
poésie latine. Des origines à la fin du règne d’Auguste. vol. 01. Paris: Les Belles Lettres, 1976.
86
Renberg (1997) informa-nos que uma atitude semelhante acontece em relação à adivinhação, os escritores,
sempre membros da elite romana, ao tratarem das consultas adivinhatórias, concernem em relação à vida de
seus companheiros aristocratas. Quando tais autores mencionam as atitudes das camadas populares romanas,
suas referências são sempre depreciativas.
101
personificado superior aos demais daimones: era o demônio superior. Os daimones de
Apuleio eram seres intermediários não apenas no campo do domínio, mas também na
natureza de seu espírito, se apaixonavam como os homens e eram imortais como os deuses
(APULEIO, O Deus de Sócrates, XIII).
Ainda acredito como Platão, quando este assegura que entre os deuses e
os homens existem certos poderes divinos, que lhes servem de
intermediários, por sua natureza e pelo lugar que ocupam, e que tais
poderes regem todas as manifestações da adivinhação e os milagres
realizados pelo homem. (APULEIO, Apologia, XLIII, 2).
As especulações filosóficas serviam para Apuleio em sua busca da divindade e de
atingir a verdade e perfeição, considerada por ele como contrária à ignorância (APULEIO,
O Deus de Sócrates, III).
Apuleio também foi iniciado em diversos cultos mistéricos.
Na Grécia fiz parte de iniciações na maior parte dos cultos mistéricos.
Conservei ainda, com grande carinho, certos símbolos e recordações
destes cultos, que me foram entregues por sacerdotes. Não estou dizendo
nada insólito, nem desconhecido. (APULEIO, Apologia, LV, 8)
Pois bem, eu também, como já disse, conheci, por meu amor à verdade e
minha piedade aos deuses, cultos de toda classe, ritos numerosos e
cerimônias variadas. E não estou inventando esta explicação para
acomodar-me às circunstâncias [...] (APULEIO, Apologia, LV, 9-10).
A expressão “religiões de mistérios” refere-se, normalmente, ao culto de Ísis,
Mater Magna ou particularmente Mitra, de Dioniso Baco, e, igualmente, ao culto de
Elêusis, representante dos mistérios propriamente ditos (BURKERT, 1991: 13).
Na Apologia (LX, 9), Apuleio se revela iniciado nos mistérios de Líber, uma das
denominações dos romanos para o deus Baco (MUNGUÍA, 1980: 149). No Livro XI da
Metamorfoses, Apuleio faz uma minuciosa descrição de um ritual de iniciação aos
102
mistérios de Ísis e, pela riqueza de detalhes, conferimos que tal descrição poderia ser
obra de alguém que conhecesse bem tal culto.
87
Conforme Walter Burkert (1991: 20), estas religiões ficaram conhecidas como
uma alteração básica na postura propriamente religiosa, transcendendo a perspectiva
realista e pragmática da religião romana e possuindo uma espiritualidade mais elevada.
Eram também consideradas religiões de salvação.
A filosofia platônica revisada no século II d.C. levanta questionamentos sobre a
alma e sobre os estudos acerca dos daimones. Assim, os filósofos seguidores do platonismo
de então se interessam pelos cultos mistéricos, como o caso de Apuleio.
88
É nesse sentido que Apuleio na Apologia alude a uma necessidade da sua filosofia
em conhecer a magia, justificando suas práticas mágicas como algo próprio e natural de sua
filosofia (Apologia, XV, 9-11). De acordo com Hidalgo de la Vega (1995: 175):
[...] a magia teúrgica é uma concepção elevada e sacerdotal com caráter
soteriológico, estando vinculada à religião, estabelecendo a comunicação
com as potencias divinas e sendo um veículo de conhecimento e
participação no culto isíaco. Cerimônias de caráter mágico se veiculavam
claramente com ritos mistéricos, que participavam da adivinhação e
inclusive veiculavam-se a doutrinas de elevado conteúdo espiritual, como
a própria teoria demonológica apuleiana e toda corrente filosófica do
platonismo médio. As operações “milagrosas” dos magos se realizavam
pela mediação dos daimones. Ainda que tentassem despojá-las de seus
aspectos mais conflituosos. A magia se apresentava em um marco de
grande diversidade segundo eram seus agentes, seus rituais e suas
práticas.
Devemos destacar que as religiões mistéricas atraíram muitas pessoas das
camadas menos favorecidas economicamente, mas também atraíram um grande número de
intelectuais romanos (RAWSON, 1985: 299).
87
Sobre esta passagem, ver mais em: BURKERT, W. Antigos cultos de mistério. São Paulo: EDUSP, 1991:
29.
88
Burkert (1991: 101) informa-nos que o próprio Platão se interessou pelas experiências dos mistérios, sendo
reiteradas vezes imitado pelos neoplatônicos.
103
no século I d.C., com exceção do Imperador Calígula, os demais Imperadores
se mostraram com uma predileção especial aos cultos dos deuses egípcios, a partir dos
Flávios e, sobretudo dos Antoninos, a maioria dos imperadores foi atraída por estes cultos.
O culto mistérico de Ísis, do qual Apuleio foi iniciado, alcançou seu esplendor na época dos
Imperadores Antoninos e Severos, sendo considerado um culto integrado à ideologia
dominante. No século II d.C., entre seus adeptos, estavam magistrados, funcionários
imperiais e outros representantes do poder público.
Segundo Rosa Cid (1996: 56), a partir do momento em que se eliminam as
proibições e os próprios imperadores se tornam seguidores de Ísis, os setores mais
romanizados da sociedade provincial acabam se convertendo em adeptos do isísmo.
Ainda para Cid (1996: 47), tais práticas de mistérios tinham um caráter secreto,
iniciatório e noturno. Acreditamos que nesse sentido oculto possa ter residido a ligação dos
cultos mistéricos com algo gico em Roma. Tudo isso contribuiu para aumentar a fama
de mago que envolvia Apuleio. Porém, devemos considerar que os cultos mistéricos,
principalmente o de Ísis, eram bem difundidos na região da Tripolitânia e não constituíam
algo extraordinário nessa região (RUBIO, 1996: 47), tendo, como demonstrado
anteriormente, ligações com as altas esferas do poder político.
Outra questão levantada no processo por nós estudado é a diferença entre magia e
religião. Inferimos que se a magia praticada por Apuleio não deveria ser punida em sua
opinião, é porque ele acreditava admitir algo benéfico e estar mais próxima da religião e da
filosofia do que da goetéa.
É muito difícil definir as diferenças entre magia teúrgica, goetéa, e práticas
religiosas que comportam ritos gicos, também não é fácil distinguir as fronteiras entre
magia e religião.
104
O que, para nós, diferencia a magia da religião, em linhas gerais, é a própria
característica do poder que é atribuído ao mago e a questão de que o religioso admite uma
devoção aos seres sobrenaturais, enquanto o mago os obriga, através de rituais, a fazer sua
vontade.
Segundo Baroja (1978: 44-46), não podemos pensar a magia como um sistema de
crenças totalmente separado da religião ou ligado ocasionalmente a ela. Também não
devemos fazer uma distinção entre a religião como prática boa e a magia como má. Em
geral, o pensamento mágico se exerce no domínio do desejo e da vontade sem entrave,
enquanto o sentimento religioso pressupõe, por parte dos homens, o aceitar de valores tais
como o respeito, o conhecimento e a submissão. O sistema religioso pode ser considerado
como composto por cerimônias que têm como finalidade saudar os seres sobrenaturais
reverenciados pela sociedade em votos, ritos e preces individuais ou coletivas, se voltando
para aspectos mais devocionais. Já o sistema gico tem como finalidade uma espécie de
auxílio divino através de ritos que obrigam os deuses a obedecerem às ordens do mago em
rituais de magia simpática. Mas, muitas vezes esconjuro, orações, sacrifícios se interferem
em um mesmo rito.
Dessa maneira, subentende-se que toda religião pode comportar ritos de cunho
mágico ao executar ritos simpáticos, divinatórios, purificatórios, etc.
A própria crença em representar um deus através de uma imagem pode ser
considerada como uma crença essencialmente mágica, difundida e aceita pela religião.
Nesse caso, não apenas as religiões clássicas, mas mesmo as religiões da atualidade aceitam
pressupostos mágicos. A imagem representa a presença do deus como a Lei do Semelhante
atrai Semelhante (Similaridade). Conferimos que esta lei, estabelecida por James Frazer
sobre a ação do pensamento mágico, tem como mesmo princípio a crença em representação
105
de seres humanos em encantamentos por meio de bonecos de cera ou outro material, prática
esta que, conforme indicações de Anne-Marie Tupet (1976: 302), também se mostrou
comum no mundo romano.
89
Ao mesmo tempo em que a magia constitui práticas comumente enraizadas em
todas sociedades humanas, não possuindo, dessa forma, características extraordinárias, ela é
também punida, o que demonstra que por mais que tais práticas existam corriqueiramente
nas mais diversas culturas, elas representam um certo perigo.
Para nós, tal perigo vem do poder que é atribuído ao praticante da magia. Gilvan
Ventura da Silva (2003: 168) indica-nos que dentre as diversas teorias sobre o que seria
magia, os pesquisadores, sejam eles antropólogos ou historiadores, concordam em um
ponto: a magia representa, em diferentes sociedades, uma forma de poder.
O antropólogo Marcell Mauss (1979: 100-101) demonstra que, em determinadas
sociedades, quem detém conhecimentos mágicos ocupa cargos de liderança, ou a sociedade
lhe confere a capacidade de ocupá-los. Esta análise considera a magia como um sistema
simbólico, que tem sua eficácia construída pela sociedade. Para Mauss, existe algo
chamado maná, termo que este antropólogo designa uma categoria inconsciente da
existência da força de certos objetos (calor, resistência) ou seres (prestígio social, ou
riqueza, por exemplo). É o maná que sempre existe como categoria do pensamento de uma
coletividade, portanto, que atribui o poder a alguém. Assim, se uma pessoa é qualificada
como portadora de poderes mágicos é porque há um valor socialmente construído em torno
deste poder (MONTERO, P. 1990: 17-20).
89
Na Sátira VIII do Livro I das tiras do poeta Horácio (65-8 a.C), a descrição do uso de uma estátua de
cera na representação de um ritual mágico. Usando do tom habitual de humor e crítica de um poema satírico,
nesta sátira Horácio descreve a busca noturna das personagens Canídia e Sagana por ossos e plantas maléficas
em um antigo cemitério.
106
Claude vi-Strauss (1970: 184) também concorda que a eficácia da magia
implica na crença nos poderes extraordinários do praticante, na eficácia de suas técnicas.
De acordo com Bronislaw Malinowski (1984: 77-80), a força da magia está no
feitiço, elemento mais importante da mesma, o feitiço, por sua vez, é possível porque
alguém conhece sua fórmula eficaz. A força da magia não é possível independente da ão
humana, não existe força mágica na natureza e nos objetos isoladamente, o homem é que
descobre e apreende esta força. Usando desta força, o agente mágico possui poder pessoal,
que é a perícia mágica.
Portanto, para estes antropólogos, o praticante da magia é tido como alguém que
possui um saber especial.
90
Em torno da ação mágica se estabelece uma relação entre poder
e saber. Seu poder é a fonte de um grande saber e seu saber a possibilidade de exercer um
poder maior (HIDALGO DE LA VEGA, 1995: 166).
Esta seria a razão pela qual todo mago ou suposto mago vê surgir em torno de si
uma série de histórias de seus feitos e façanhas que garantem sua fama e a crença em seus
poderes, é a “mitologia da magia”. A função desta mitologia não seria de explicar, mas
garantir os poderes mágicos de um determinado indivíduo (MALINOWSKI, 1984: 86).
90
Lévi-Strauss e Malinowski usam o termo feiticeiro e mago. Devemos atentar para as peculiaridades do uso
de termos como feitiçaria e bruxaria, que não é desprovido de problemas conceituais. línguas modernas,
como o francês, que não distinguem tais práticas, havendo também estudiosos que não as diferenciam, assim
como os que as diferenciam. Conforme Jeffrey Burton Russel (1993: 14) tanto as práticas da Europa Antiga e
Medieval quanto a magia de tribos africanas, por exemplo, estariam agrupadas sob a denominação de
feitiçaria. Já o termo bruxaria seria característico dos fenômenos de magia da Idade Média e Moderna,
relacionados a representações de cultos satânicos. Carlos Roberto Figueiredo Nogueira (1991: 30-32) afirma
que a feitiçaria é um fenômeno social arquétipo tanto na Antiguidade Clássica como na Europa Cristã,
oriundo dos antigos sistemas agrários de tendência matriarcal, constituindo-se de uma prática individual e
urbana. A bruxaria é caracterizada por este autor como prática mágica rural de caráter coletivo das sociedades
agrárias medievais. Preferimos adotar os termos “praticante de magia”, “mágico”, “mago” e “encantamento”
para referirmo-nos à Antiguidade Romana por serem estes os termos que Apuleio usa na Apologia. Segundo
Apuleio, o acusam de ter encantado incanto (Apologia, XLVIII, 2), ter praticado a magia magia, ae
(Apologia, LIII, 4) - e por ser um mago magus, a, um (Apologia, XLVIII, 2).
Na tradução de Munguía
o uso do termo feiticeira, na de Vallette é usado o termo encantadora. No texto em latim a palavra usada para
a denominação da mulher praticante de magia é saga (APULEIO, Apologia, XXXI, 5). De acordo com
Santiago Montero (1996: 46), saga, ae viria do vocábulo latino sagire que significa compreender de forma
penetrante, assim a praticante de magia é aquela que parece saber muita coisa.
107
Esta mitologia mágica pode ser verificada em torno de Apuleio. Uma lenda cristã
mostra Apuleio competindo com os magos romanos Juliano e Apolônio de Tiana
91
para ver
quem curava mais rápido uma peste que invadira Roma. Segundo Dodds (1960: 265), estes
casos demonstram que um status de poder é colocado em causa: o poder de curar e de
alterar a natureza que é atribuído a estes três lendários personagens romanos envoltos em
misticismo.
Os padres da Igreja Católica no início de sua afirmação (São Jerônimo, Santo
Agostinho, Lactâncio, entre outros) chegaram a opor Apuleio a Jesus Cristo, como faziam
com o místico grego Apolônio de Tiana (BICKEL, 1987: 245).
Ernst Bickel (1987: 249) conclui que Apuleio pode ser considerado um precursor
de certos aspectos sticos da Idade Média por ter se tornado uma figura mitológica ligada
à magia.
Acreditamos que este poder, quando conferido a alguém considerado mágico,
pode ser atribuído também na forma de prestígio social, sendo que os indivíduos que o
portam chegam a ocupar cargos de liderança em suas comunidades ou despertarem o temor
e o repúdio. Podem ser exaltados e referenciados ou até perseguidos, punidos e mortos pela
capacidade de sua arte em exercer um poder incontrolado e subversivo.
Como notamos, portanto, se punição a indivíduos que praticam a magia é
porque o temor à magia, acreditam em sua eficácia e no poder do praticante. Segundo
Hidalgo de la Vega (1995: 167) outro ponto a se considerar é que se a magia foi punida em
Roma não tanto por seu caráter secreto e marginal, mas por utilizar, em muitos casos, a
91
Apolônio foi um filósofo pitagórico e místico que viveu na Capadócia - ap. 4 a.C. (HARVEY, 1998: 46).
Essa anedota pode ser apenas uma lenda, já que estes três personagens não foram contemporâneos. Apenas
Apuleio e Juliano parecem ter vivido na mesma época, ainda assim, não se sabe ao certo a data da vida de
Juliano.
108
mesma linguagem da filosofia e do misticismo, configurava-se como uma linguagem
representativa de um saber. Desta forma, em torno da ação mágica se estabelece uma
relação entre poder e saber. O poder do mago é fonte de um grande saber e seu saber lhe
a possibilidade de exercer cada vez mais poder.
Ainda conforme Hidalgo de la Vega (1996: 166), a magia na sociedade romana
esteve presente em todas as atividades humanas: festas religiosas, rituais de magia amorosa,
necromancia, adivinhações, não sendo estranha ao mundo da política. A ligação da magia
com o mundo do poder política era tão forte em Roma que a repressão contra a magia se
desenvolveu nos momentos em que o papel dos magos se fez preponderante em relação ao
poder Imperial.
92
No Império Romano havia, portanto, uma atitude ambígua em relação à magia,
assim como a sua própria concepção encontrava-se dupla na época de Apuleio. Os romanos
acreditavam na existência de uma magia boa e outra ruim, mas não como negar uma
coisa: o fato de que a magia representava uma forma de poder em Roma, o que pode ser
notado não apenas na maneira como os romanos puniram a magia, mas também em seus
relatos sobre homens com poderes miraculosos.
Segundo Zabala (1989: 71), um filósofo romano que se mostrava como possuidor
de conhecimentos acerca da essência dos deuses e daimones, sendo capaz de colocá-los a
seus serviços era tanto um membro muito apreciado pela sociedade como ameaçado por ela
92
Sabemos que a magia foi punida durante toda história de Roma, porém amplas perseguições contra
adivinhos e pessoas consideradas como detentoras de poderes mágicos somente ocorreram a partir do governo
do Imperador Constâncio II (337-361 d.C.). Gilvan Ventura da Silva (2003: 33) sugere que tais perseguições,
deflagradas por Constâncio II, tiveram um “duplo significado simbólico: o de retirar de mãos alheias um
eficiente instrumento de poder que é o conhecimento da magia e da adivinhação e o de converter um grupo
formado por pessoas das mais diversas categorias sociais [...] em adversários potenciais do regime [...]. Mais
informações sobre estas perseguições e suas relações com o poder imperial sugerimos a leitura de: SILVA,
Gilvan Ventura da. Reis, Santos e Feiticeiros: Constâncio II e os fundamentos místicos da Basiléia (337-361).
Vitória: EDUFES, 2003.
109
e “a discriminação referente à magia não se produzia - ainda - pelo que lhe era essencial, e
sim por cálculos ideológicos e sociopolíticos”.
Portanto, podemos citar casos de repúdio a homens considerados gicos (como
o próprio caso de Apuleio e o processo que trata o discurso Apologia) e também ligações da
magia com um tipo específico de poder: o poder político.
De acordo com Franz Cumont (1929: 293), na Caldéia, na Mesopotâmia e na
Pérsia, os magos, adivinhos e profetas possuíam um enorme prestígio. Em Roma, homens
com saberes desta espécie receberam uma aparência sacerdotal. Sábios inspirados que
recebiam confidências dos espíritos celestes ocupam lugares de prestígio junto aos
Imperadores Romanos. A idéia de ligação mágica com a política pública acaba sendo
acoplada às discussões filosóficas, o que retirava dela um certo aspecto de vulgaridade.
Magos e adivinhos aparecem na antiguidade clássica como auxiliares diretos dos
soberanos ou até como dirigentes políticos.
93
Assim são os casos de Trasilo e Balbilo,
astrólogos de grande influência da corte de Tibério e Nero respectivamente. (CRAMER,
1954 apud SILVA, Gilvan V., 2003: 171).
93
Magia e adivinhação estão freqüentemente associadas, que pressupõem saberes de mesma ordem e
conferem poderes sobrenaturais a quem lhes domina. Segundo Santiago Montero (1998: 44), a característica
principal da magia, desde a Antiguidade, é de obrigar as forças sobrenaturais a obedecer ao homem, enquanto
a adivinhação implica em uma maior obediência do homem à divindade. Em Roma, ambas as artes
misturavam-se não apenas no domínio privado como no público, tanto nas práticas não oficias quanto nas
oficiais. Em casos como a acusação contra Apuleio, podemos perceber práticas de magia e de adivinhação em
pauta - Apuleio também é acusado de encantar um jovem para que este lhe fizesse profecias sobre o futuro
(Apologia, XL, 3). De acordo com Hubert (s/d: 1495), os oráculos e as fórmulas mágicas para obter sonhos
adivinhatórias abundam nos papiros mágicos encontrados em território romano. Pode-se classificar sem
hesitação como mágica a prática de necromancia, é considerada como mágica a evocação dos mortos da
Odisséia. A adivinhação por interpretação dos versos de Homero, de Virgílio ou das escrituras santas
aparecem igualmente no domínio da magia, com a apropriação dos mecanismos gicos que serão tratados
mais para frente. Em geral, em todas cerimônias adivinhatórias se aplicam princípios mágicos. A magia está
intimamente ligada ao renascimento dos oráculos no século II de nossa era. A mântica e a magia estão
estreitamente ligadas, tanto que o nome da primeira é freqüentemente usado para designar a segunda.
110
Através de uma análise da historiografia que estuda as punições a magos e
adivinhos romanos podemos notar que, em geral, o Estado Romano proibiu e perseguiu
toda forma de adivinhação e magia “não oficial”. As autoridades de Roma puniram práticas
de magia que fossem tidas como maléficas. Entretanto, práticas mágicas consideradas
oficias podem ser vistas, freqüentemente, como instrumentos de poder político a serviço
dos imperadores, do Senado e dos generais de guerra.
Assim é o caso do uso das imagens oníricas com valor adivinhatório e conteúdo
político pelo Imperador Septímio Severo (193-211 d.C.), como nos mostra Ana Teresa
Marques Gonçalves (2003: 36) ao expor que os sonhos premonitórios eram componentes de
reconhecida eficácia ideológica e usados com densa carga de simbologia política, citando
vários exemplos de sonhos usados por Septímio para afirmar-se como legítimo
representante do poder Imperial. Também Renberg (1997) trata de uma consulta a um
astrólogo do norte da África por Septímio Severo, antes deste se tornar Imperador. As
pessoas que interpretavam estes presságios de maneira favorável aos governantes eram
reconhecidas e valorizadas na corte, tendo um prestígio social, as que diziam ter sonhos
contrários às vontades dos governantes eram perseguidas.
Esta história a respeito de Septímio Severo faz deste Imperador um dos muitos
Imperadores do Principado que tiveram histórias de ligações com adivinhadores e
predileções sobre seus futuros poderes políticos (RENBERG, 1997). A aristocracia romana
toda estava ligada a astrólogos que eram procurados a fim de prever seus futuros políticos e
se estes faziam previsões que se concretizavam, tais predições eram usadas para adicionar
legitimidade a seus governos.
111
Em toda história romana temos notícias de generais de guerra que nos momentos
prévios de combate consultavam mulheres com dons proféticos e mágicos, buscando um
clima favorável para as tropas e aspirações políticas (MONTERO, S. 1998: 162-163).
Há uma grande quantidade de lendas sobre a relação de imperadores com espécies
de magos. De acordo com Jean Gagé (1986: 2386), o historiador Dion Cássio (ap. 150-235
d.C.) relata uma passagem conhecida por “o milagre da chuva” que salvou a armada
romana em uma batalha durante o governo de Marco Aurélio. Segundo este autor, tal feito
aconteceu depois que este imperador consultou um sábio egípcio chamado Harnouphis. O
sábio, através de um ritual mágico, invocou o deus Hermes e fez parar os raios e a chuva.
Segundo Hubert (s/d: 1502), para Plínio
94
, as primeiras manifestações do
mitraísmo oficial na corte de Nero são gicas, porém o mitraísmo uma característica
religiosa aos modos de ação e teorias qualificadas como mágicas. Ao mesmo tempo em que
Hubert faz esta consideração, Jean Beaujeu (1955: 349) se interroga sobre como
conciliarmos as superstições místicas que adentram as filosofias no século II com a
hostilidade estabelecida contra magos e astrólogos por Marco Aurélio, um imperador-
filósofo, por exemplo.
Para tentar resolver a questão levantada por Beaujeu é preciso, para nós,
considerar a elasticidade do conceito de magia em Roma. Mas o fato é que mesmo por trás
do crime pautado em leis e medidas em relação à magia, ela nunca deixou de ter ligações
com o poder político durante o período do Principado.
95
94
Hubert não se refere a qual Plínio está citando, se é Plínio, o antigo (23 ou 24 - 79 d.C.) ou seu sobrinho
Plínio, o jovem (61 ou 62 ap. - 113 d.C.). Ambos exerceram cargos públicos e foram escritores romanos
(HARVEY, 1998: 401 - 403).
95
Além da Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, que pautou o crime de magia no Principado Romano, foram
baixados o Edito de 11 por Augusto, fixando as normas para o exercício da adivinhação e dois
senatusconsulta por Tibério cassando astrólogos e magos de Roma e proibindo a consulta a adivinhos de
forma secreta e sem testemunhas (SILVA, Gilvan V., 2003: 228-229).
112
As práticas mágicas de Apuleio ainda tiveram ligações com o que era
considerado como religião para os romanos da época. Apuleio foi um homem mágico, um
sacerdote, um místico e, como nos indica Rawson (1985: 299), no Império Romano religião
e política estavam estreitamente relacionadas, tanto que muitos cargos religiosos do
Império eram ocupados por homens que já ocupavam cargos políticos.
Portanto, a magia na época do autor por nós estudado teve ligações com o poder
tanto no sentido de que o praticante da magia era temido por representarem-no com a
capacidade de usar de meios sobrenaturais, quanto com o poder no sentido de que homens
públicos tinham ligações com práticas de fundo mágico. Sendo assim, é neste sentido que
acreditamos poder analisar a acusação contra Apuleio, que esteve ligado de certa forma à
magia por meio de sua filosofia, de seu envolvimento com a religião e de suas iniciações
em cultos mistéricos.
3.2 Apontamentos sobre a filosofia de Apuleio e o papel do filósofo no século II d.C.
Estudos modernos se contrapõem ao considerarem Apuleio como um filósofo.
autores que usam apenas o termo sofista para designá-lo. Para nós, Apuleio se mostra em
total competência ao desempenhar atividades que o acoplam à noção de filósofo.
No discurso Apologia, Apuleio caracteriza-se como um filósofo naturalista,
apresentando uma pesquisa física sobre as propriedades do espelho (APULEIO, Apologia,
V), a mesma atitude é demonstrada em relação às pesquisas de biologia (APULEIO,
Apologia, XXIX) e em seu interesse em relação à medicina (APULEIO, Apologia, XLII),
mostrando o uso dos textos do Timeo de Platão (APULEIO, Apologia, XLIX, 1). Seu
113
interesse pelas iniciações místicas e suas especulações sobre daimones, como já exposto,
também estão ligados à filosofia de que era seguidor.
Conferimos que a controvérsia em ser Apuleio considerado um filósofo ou não
está ligada à significação das funções e formações do filósofo da época em que ele viveu
para uma concepção do filósofo na nossa atualidade. Sua filosofia está diretamente
relacionada ao misticismo e magia e não deve ser comparada a concepções de filósofo
racionalista, que pauta seus estudos em pressupostos científicos, excluindo qualquer tipo de
manifestação mística para explicação de fenômenos de naturezas diversas. Se analisarmos
as concepções do que é um filósofo, suas significações no século II d.C. e o sentido que
Apuleio emprega para o filósofo em sua obra, não há razões para negar-lhe este título.
Conforme Bruno Mosca (1970: 43), Apuleio se defendeu no processo de magia
como um filósofo estudioso da doutrina platônica. Porém, para este autor, na realidade
Apuleio não foi nem um, nem outro. Não foi filósofo porque seus escritos se revelam de
péssima originalidade, não sendo nem uma elaboração original do pensamento de outro
filósofo, muito menos algo propriamente seu. o foi platônico porque seu platonismo se
restava em traduzir Platão adaptado a atmosfera mágico-religiosa própria de sua época.
Também em alguns estudos sobre Médio-Platonismo não encontramos o nome de
Apuleio citado como um de seus representantes, apesar dos estudiosos de Apuleio, em sua
maioria, o classificarem enquanto tal.
Entretanto, sugerimos que Apuleio pode ser considerado como um filósofo
platônico. Para nós, não é apenas a especulação original de uma obra que lhe faz ser
classificada como tal, mas a adaptação de uma doutrina para determinada época, como
Bruno Mosca mesmo coloca, lhe trás também originalidade. Acreditamos que as obras de
Apuleio ofereçam certa originalidade ao tratarem de temas como a demonologia e as
114
iniciações nos cultos mistéricos, citados em todas suas obras, em um momento em que tais
estudos e cultos retomavam seu desenvolvimento enquanto especulações filosóficas. As
investigações mágicas e místicas de Apuleio, misturando Platão a cultos mistéricos e
demonologia, além de lhe darem originalidade, lhe conferem o título de estudioso,
pesquisador e filósofo.
Apuleio também foi médio-platônico se o considerarmos como portador de idéias
que mais tarde seriam desenvolvidas e conhecidas como Neoplatonismo. Se não o
considerarmos como tal, toda uma conceituação sobre o sentido do emprego do termo
Médio-Platonismo deveria ser revista.
Portanto, escrevendo em latim e em grego, Apuleio configurou-se como
intelectual e filósofo.
96
Denominamos a filosofia da qual Apuleio era seguidor de Médio-Platonismo, que
seria a filosofia de alguns autores como Apuleio, Plutarco de Queronéia, Filão de
Alexandria, entre outros filósofos do final do século I e do século II d.C, uma filosofia
ainda indefinida, uma série de anotações de Platão, Aristóteles, Pitágoras e outros filósofos
gregos, com reflexões de seus próprios autores.
diferentes posições sobre a periodização do Médio-Platonismo. Segundo
Bréhier (1927 apud PLACES, 1974: 347), o Médio-Platonismo é um período muito mal
conhecido da história do platonismo, que vai do século II a.C., quando o platonismo se
revela na Alexandria, ao fim do século II d.C. Heinrich Dörrie (1971 apud PLACES,
96
Utilizamos o termo intelectual no sentido referido por Francisco Miro Quesada (1966: 59). Para Quesada,
os intelectuais são todas aquelas pessoas cuja principal atividade é o devotamento sistemático ao
conhecimento. O pesquisador, tal como concebe nossa cultura ocidental, é um intelectual porque suas
disciplinas de trabalho são eminentemente cognoscitivas.
115
1974: 347), reduz a época do platonismo três séculos, I a.C., I d.C. e II d.C. período que
vai do filósofo Antíoco de Áscalon até o filósofo Plotino.
Existe uma resistência da historiografia filosófica na legitimação do uso do termo
Médio-Platonismo, a crítica sugere que a fusão de elementos filosóficos, e não apenas
platônicos, torna inadequado o uso do termo. autores que defendem apenas a
denominação de platonismo para toda essa filosofia eclética que cobre personagens
diversos antes de Plotino. (ROMANO, 1998: 18-21).
Os filósofos citados como médio-platônicos definiam-se apenas como platônicos,
mas esboçavam a idéia fundamental do neoplatonismo: unificação do mundo inteligente
ao mundo da idéia platônica usando como instrumento o intelecto divino.
Mas, por receberem influência dos neopitagóricos e estóicos, usando dos mesmos
elementos que mais tarde usariam os neoplatônicos, porém com reflexões mais amplas,
deve ser usada a denominação de médio-platônicos para os definir. Por agregarem
elementos de outras correntes e não apenas platônicos, acreditamos que tais autores não
devem ser definidos como platônicos simplesmente e por desenvolverem especulações
típicas dos neoplatônicos, porém sem grande aprofundamento especulativo, também não
devem receber a denominação de neoplatonicos. Neste sentido, médio-platonismo melhor
definiria esta corrente de idéias, sendo uma definição para algo que viria antes do
neoplatonismo, porém que ainda não se configura como tal.
Todavia nunca existiu uma escola médio-platônica propriamente, existiu apenas
um sentimento de pertença a uma tradição filosófica cultural (ROMANO, 1998: 21).
O período dos Imperadores Antoninos, em que viveu Apuleio, ficou conhecido
como um momento de revigoramento da arte de discursar. Raros foram os momentos da
história humana onde tantas palavras foram pronunciadas em conferências por filósofos e
116
oradores itinerantes (CLARKE, 1996: 58). À maneira dos sofistas gregos, os filósofos
saiam pelas cidades com suas apresentações, ganhando em troca aplausos e privilégios, era
a Segunda ou Nova Sofística, fenômeno substancialmente aristocrático (GRIMAL, 1994:
108).
Jean Gagé (1971: 226) chama estes sofistas de “personagens genéricos”,
prestigiados, sábios em eloqüência em grego e latim, oradores das festas públicas e
representantes oficiais de um movimento cultural, atravessadores de fronteiras incertas
entre a retórica e a filosofia. Assim, na Segunda Sofística os papéis do filósofo e do retórico
se tornam muito próximos. Jean Marie André Dijon (1987: 52) também nos informa que a
demarcação entre filosofia e artes liberais é cada vez mais difícil de se estabelecer durante a
Segunda Sofística.
[...] as doutrinas filosóficas fornecem material à retórica: um estudante ou
um amador de arte retórica brilhará se enriquecer sua argumentação com
razões filosóficas; os professores de eloqüência indicavam as doutrinas
mais úteis para um aprendiz de orador. A filosofia acabou sendo uma
parte da vida cultural, de suas pompas e de suas obras, e todos acorriam
as muito eloqüentes conferências públicas de certos grandes tenores do
pensamento (VEYNE, 2000: 218).
Podemos perceber tais características em Apuleio, que se destacou em outras
áreas além da filosofia, caracterizando-se também como orador, retórico e advogado.
ainda autores que o consideram como um poeta, como Rosângela Maria de Souza Silva
(2001), tradutora de suas obras.
Apuleio não fez distinção destas áreas na Apologia. Conferimos que ao tratar do
pronunciamento de seus discursos místico-filosóficos expõe-se como um orador. Também
o discurso Apologia está repleto de divagações filosóficas em tom eloqüente próprio de
uma autodefesa. Apuleio pode ser considerado ainda como advogado, que advogou em
117
causa própria no processo que tomamos como estudo e em causa de sua esposa em um
processo movido contra ela e citado por ele no princípio da Apologia (I, 5). Portanto, nosso
autor exaltou também suas habilidades em casos jurídicos.
Respeitados pelos governantes, os sofistas foram muito honrados. Adriano (117-
138 d.C.) consentia com eles e os respeitava. Antonino Pio (138-161 d.C.) deu-lhes
privilégios e tal política foi mais tarde incorporada pelo Código de Justiniano. Marco
Aurélio era atento às palavras e às necessidades destes filósofos, fundando uma cadeira de
retórica em Atenas e dividindo seus interesses pessoais com eles. Os senadores deixavam
de assistir a espetáculos artísticos para ouvirem os discursos. Os Imperadores Flávios
também se mostraram interessados na arte da filosofia e da retórica, fornecendo pensões
aos mais altos mestres (GAGÉ, 1971: 235).
De acordo com Munguía (1980: 258), a sociedade aristocrata romana concedia
uma grande importância às manifestações culturais, principalmente na época dos Antoninos
e Severos. Nas cidades enchiam de honra cidadãos beneméritos, grandes mestres da
eloqüência e sofistas. Este foi o caso de Apuleio, como percebemos no primeiro capítulo
desta Dissertação.
Por seu poder e prestígio como homens eloqüentes, a estes sofistas muitas vezes
foram confiados os assuntos públicos das cidades. Eram estes homens que intermediavam
assuntos entre seus concidadãos e os senhores romanos.
São amigos dos governadores e vão muitas vezes a Roma em embaixada
por conta da cidade. Em Roma, são recebidos com honra e integram-se
facilmente na mais elevada aristocracia. Alguns deles fazem carreira
como advogados, ou exercem magistraturas (GRIMAL, 1993: 107).
Hidalgo de la Vega (1995: 12) ressalta que uma das funções destes filósofos era
dar solidez teórica à política, legitimando ou contestando o poder imperial e as estruturas
118
administrativas através de propagandas políticas e representações do poder coletivo de
Roma. Sobre os sofistas, a autora (1995: 56) dispõe que estes colaboravam mantendo a
unidade cultural dentro do mundo mediterrâneo com uma clara utilidade política, sendo
assim grande a utilidade social dos mesmos.
A autora supracitada define estes homens como intelectuais (1995: 49-50, 59),
palavra que aparece no período do Iluminismo e viria definir, segundo a autora, um grupo
distinto do resto da sociedade na Antiguidade Romana, aplicando a um setor minoritário de
homens da elite que receberam uma educação especial em escolas de retórica e de filosofia,
sendo os mediadores entre a produção cultural e a sociedade e propagadores de projetos do
Estado, os quais difundiam por meio da escrita e da palavra oral. Estes homens atuavam
também como mediadores de conflitos sociais, como os existentes entre suas cidades e a
autoridades superiores das províncias e do Império.
Conforme Dijon (987: 6-7), os filósofos e as escolas filosóficas romanas se
inseriam profundamente na conjuntura política e no tecido sociológico. Os grupos
ideológicos romanos do Império estavam ligados aos grupos sociais e a estrutura social -
relações de amicitia
97
, clientelismo, etc. - e a inserção destes homens em círculos de
amicitia e em relações familiares era um mecanismo primordial da sociedade romana.
De acordo com o que Apuleio indica na obra Flórida (IX, 30), em 162, sob o
reinado de Marco Aurélio, ele pronunciou um panegírico em honra ao procônsul Severiano
e seu filho Honorino, no teatro da cidade de Cartago. Em 174, pronunciou-se diante do
procônsul Cipião, seu amigo pessoal. Tais considerações mostram a influência de Apuleio
97
De uma maneira geral a amicitia designava relações favoráveis de camaradagem, parentesco e dependência
entre indivíduos e grupos políticos, usada para definir os laços pessoais entre os cidadãos romanos
(VENTURINI, 2006).
119
na região e que seu círculo de amizades abarcava pessoas importantes da administração das
cidades africanas.
Para nós, portanto, havia duas formas destes intelectuais se inserirem na política
romana: a primeira seria ocupando diretamente cargos administrativos, muitos dos quais
como continuidade de uma tradição familiar, que os cargos políticos-administrativos de
Roma e de suas províncias eram passados, de certa forma, através da hereditariedade; a
segunda seria proclamando seus discursos e suas propostas através das conferências que
pronunciavam, elaborando panegíricos laudatórios à determinadas autoridades políticas e
servindo a estas autoridades como conselheiros, indicando-lhes a forma mais correta que o
poder deve ser exercido, inserindo-se, assim, nas relações de amicitia do Império.
98
Desta forma, como ressalta Hidalgo de la Vega (1995: 19, 59), “a filosofia
participava da vida política do Império tanto do ponto de vista especulativo como da ação”.
Segundo Veyne (2000: 216) uma das missões dos filósofos era justamente a de “dar
conselhos de alta moralidade às cidades que visitavam”.
Segundo Gaston Boissier (1909: 284), Santo Agostinho se espanta em suas
Epístolas que Apuleio com seu nascimento, sua habilidade e sua magia não tenha ocupado
nenhum cargo político. Boissier conclui que com a fama de grande orador que Apuleio
parece ter ganhado, é normal que não tenha se preocupado com isso, sendo outras suas
preocupações e funções.
98
Dentre os casos em que os filósofos adentraram os meios político, pode citar o de Sêneca, preceptor do
imperador Nero, que interferiu diretamente na mais alta esfera da política romana. Apesar de não ocupar
cargos oficiais, Sêneca atuou como conselheiro imperial, redator de discursos e criador de uma nova
concepção sobre poder imperial, interferindo, desta maneira, nas questões político-administrativas do Império.
(GUARINELLO, 1996: 53-57). Também podemos verificar vários imperadores que se dedicaram ao estudo
da filosofia, como Marco Aurélio.
120
Não concordamos com a opinião expressa por Boissier. Como já exposto, Apuleio
fez parte da cúria de sua cidade natal, ocupando-se, assim, de forma prática com assuntos
políticos e administrativos. Inferimos que Apuleio se interessou em caracterizar-se como
orador, tradutor, filósofo e sacerdote de acordo com sua filosofia mística e, neste sentido,
sua atuação não deixou de ter uma certa relevância política, mesmo sem constituir uma
grande carreira de ocupações político-administrativas propriamente.
Lembremos ainda, como nos informa Nilo Odália (1988: 15), “filosofia e política
sempre mantiveram relações estreitas “[...] porque toda a ação política se faz embasada
numa certa concepção do mundo e da sociedade”, ou seja, em uma filosofia política. Um
discurso filosófico pode ser um discurso político sem necessariamente falar em política,
sem aparecer nele o interesse e a preocupação em estudar formas de manutenção do poder e
organização administrativa.
Apuleio também reflete em sua obra propostas de organização social e econômica,
expressando de forma idealizada uma teoria sobre a sociedade organizada em cidades, onde
os homens virtuosos devem governar. Os governantes da cidade, conforme Apuleio, devem
ser os melhores cidadãos, ou seja, os mais virtuosos
99
e os conhecedores da filosofia e da
eloqüência (APULEIO, Flórida, IX).
100
Apuleio elogia também os que se preocupavam
com as pessoas pobres (APULEIO, Flórida, XXIII), despendendo com a cidade seu
dinheiro e oferecendo espetáculos públicos.
101
A idéia de Apuleio sobre organização social
99
100
Na obra A República, Platão sugere que a filosofia e o poder político deveriam coincidir, os filósofos
deveriam ser os políticos e vice-versa (HIDALGO DE LAVEGA, 1995: 29).
101
Na Apologia (XXIII, 2-5), Apuleio mostra-se como um homem virtuoso que gastava seu dinheiro com
atividades públicas, porém, como bem observa Hidalgo de la Vega (1977: 110), Apuleio contradiz seus
postulados morais que qualificavam um bom cidadão ao colocar que se casou com Pudentila no campo a fim
de não gastar mais com festas para a população da cidade de Oea (APULEIO, Apologia, LXXXVIII).
121
está baseada nos ensinamentos de Platão e reflete traços do pensamento próprio de um
aristocrata (HIDALGO DE LA VEGA, 1977: 109).
Para Paul Veyne (1989: 239), o papel do filósofo no século II d.C. situa-se em um
contexto de uma necessidade que a aristocracia sente de controle mais estreito sobre as
camadas populares. Para este autor, o filósofo era o missionário moral da Antiguidade
Romana, ele parecia dirigir-se para todos com igual conhecimento, mas, segundo Veyne, na
prática não era nada disso que ocorria e “aos membros da elite dirige em primeiro lugar sua
edificante mensagem”.
Ser filósofo era, segundo Veyne (1989: 240), um status, e estes homens assumiam
uma alta condição moral por suas pregações.
102
Coloca também um outro ponto da imagem
do filósofo neste momento, um certo paradoxo que eles desfrutavam: eram ao mesmo
tempo “bufões e santos da cultura”, chegavam a ter grandes reconhecimentos por parte de
parcela da população e também desprezo e zombaria por parte de outros, principalmente
por outros filósofos.
Neste sentido de honras e desprezos, Lucien Jerphagnon (1981: 169-170) traz-nos
contrapontos na imagem do filósofo nos dois primeiros séculos do Principado, mostrando
que havia filósofos que andavam pelas ruas, nas vielas e portas de templos das cidades
romanas, considerados, principalmente por outros filósofos, como loucos, charlatões de
barbas e cabelos compridos.
103
102
Na obra Flórida pode ser verificado o interesse de Apuleio em mostrar ao público uma série de histórias
morais, nelas o orador abusa de seus conhecimentos, estas parecem contos populares em forma de
moralização. Em uma dessas histórias (Flórida, VI) fala-nos sobre os faquires hindus, homens que ele admira
enormemente por cultivarem a sabedoria, odiando a preguiça e a ociosidade.
103
Para Apuleio (Flórida, VII), poucos deveriam ser os homens a se dedicarem à filosofia e estes, segundo
ele, deveriam ter autorização para escrever. Apuleio acredita (Flórida, IX) na existência de homens que se
dizem filósofos, mas que não se passavam de charlatões, pedindo ao público que não se enganasse com os que
o imitam.
122
O termo filósofo neste momento apresenta também uma certa ambigüidade,
podendo significar realidades e personalidades díspares, que vão do exemplar ao
lamentável, do imperador filósofo Marco Aurélio até um conferencista mundano,
subversivo e pouco confiável. Tais filósofos tinham ainda níveis sociais muito distintos.
Portanto, como observamos, o estatuto do filósofo em Roma apresentava certa
ambigüidade. Os filósofos eram louvados quando considerados bons e escarnecidos quando
considerados charlatões.
3.3 Considerações acerca do casamento romano e a situação jurídica de Pudentila
De acordo com o direito civil romano (Digesto, XXIII, I, II), casamento ou
matrimônio, uma das instituições mais sólidas da urbe romana, é entendido como uma
comunhão monogâmica entre um homem e uma mulher. Não havia matrimônio em Roma
se não houvesse um consentimento entre todas as partes. No momento da união o
consentimento da mulher era muito importante, mas na realidade ela não podia recusar,
que o matrimônio era anteriormente acordado entre as famílias do futuro casal (PICHON,
1911: 06). Os casamentos eram negociados pelos pais dos noivos ou pelo futuro marido e
quem possuía o direito de patria potestas (poder) sob a mulher
104
(DURANT, 1971: 55).
O casamento romano era um ato privado não estabelecido ante um juiz, era apenas
um contrato de dote, o sendo obrigatório nenhum tipo de ritual simbólico, embora, de
acordo com Munguía (1980: 197) houvesse grandes festas públicas nos casamentos dos
aristocratas. Não obstante, este ato configurava-se como algo de extrema importância na
104
“Eis que a patria potestas, inerente ao pater, com duração vitalícia, constituía um poder limitado ao
ascendente masculino, vivo, de mais idade: bisavô, avô ou pai. Considere-se que a idade de todas as pessoas
relacionadas com a patria potestas, em nada influía sobre sua existência” (CARROZZO, 1991: 65).
123
vida dos romanos, principalmente dos homens públicos que deveriam oferecer à toda
sociedade aspectos de uma vida sólida (ROULAND, 1997: 363), sendo um dever de todo
cidadão se casar e perpetuar o corpo cívico (VEYNE, 1995: 45-48).
A função primeira do casamento é a descendência. Em latim o casamento chama-
se justum matrimonium ou justae nuptiae. Da palavra matrimonium deriva a palavra mater,
mãe, definindo o casamento como relacionado à fecundidade do mesmo (ROULAND,
1997: 272).
O dote tinha um papel fundamental no casamento da elite romana, constituindo-se
de uma transferência (ou promessa em transferir) um certo valor monetário que poderia ser
terras ou vários outros tipos de bens da família da noiva para seu marido. O marido, então,
passava a ser o dono do dote durante o casamento. Se o casamento acabasse ou a esposa
morresse sem deixar filhos, o dote deveria ser restituído inteiramente para a família da
mulher, caso houvesse filhos envolvidos, uma porção ficava para estes. Mas o marido
poderia ficar com possíveis rendas do valor do dote. Caso a mulher ficasse viúva, o dote
também deveria ser restituído para sua família a fim de lhe assegurar um segundo
casamento. (CROOK, 1967: 105).
Havia em Roma duas formas de casamento: cum manu e sine manu. A manu
identificava-se com o poder (patria potestas) que era exercido pelo pai ou descendente
homem de maior idade (paterfamilias) sobre a mulher. Em geral, as mulheres estavam
sobre o poder do pai ou, no caso da morte deste, de um parente agnado mais próximo. O
casamento cum manu caracterizava-se como a transmissão do patria potestas da mulher de
sua família para a família de seu marido. Em casos de casamentos sine manu este poder
sobre a mulher não era transmitido para a família do marido e ela permanecia na
dependência de sua própria família (CARROZZO, 1991: 65). Neste segundo tipo de
124
casamento a mulher e seu dote eram apenas “emprestados” para o marido (ROULAND,
1997: 271).
Durante o Império o casamento cum manu tendeu a desaparecer, prevalecendo a
forma de casamento sine manu. Segundo Arcádio Del Castillo (1988: 192):
Com o tempo, a conventio in manum foi perdendo a sua importância e
nos finais da época republicana, e muito especialmente durante o
Império, se pode manifestar com certeza que se encontrava em fase de
desaparecimento. Muitos dos matrimônios que se estabeleceram, então,
não recebiam a contratação da manus. O que esta mudança resulta é que
a mulher não está mais submetida a manus do marido ou de seu
paterfamilias, lhe permitindo uma maior liberdade para dispor de seus
bens [...]
O casamento sine manu seria uma forma de favorecer a permanência do
patrimônio das famílias patrícias, uma vez que passou a ser permitido o casamento entre as
camadas aristocratas e as camadas populares através da Lei Canuléia de 445 a.C. e que a
mulher casada sob a forma cum manu transmitia inteiramente seus bens para a família do
marido. Assim, no século II d.C. o poder ilimitado do marido sob a mulher, colocada em
sua autoridade sob a forma de casamento in manu como se fosse uma de suas filhas, havia
gradativamente se transformado (CARCOPINO, 1990: 99). Todavia, as tradições
patriarcais nunca desapareceram totalmente (GRIMAL, 1991: 06).
A imagem da esposa ideal era aquela que confiava no marido e o encarregava de
administrar os seus bens e ao marido cabia salvaguardar a fortuna pessoal da esposa,
protegê-la e estimá-la
105
(GRIMAL, 1991: 266).
Muito diferente da idéia de união matrimonial da atualidade, os aristocratas
romanos não se casavam por meio de uma união sentimental. O casamento nunca deveria
105
Em passagens da Apologia, Apuleio mostra que ele aconselhava sua esposa sobre a melhor forma de
administrar seus bens e que ele também ajudava pessoalmente a esposa a administrar suas propriedades
(Apologia, XCIII).
125
ser confundido com a felicidade do casal. “Amor e casamento são absolutamente distintos.
[...] O gosto pessoal dos futuros esposos é o mais negligenciável” (PICHON, 1911: 05) e o
sentimento era algo mais que incidental para o arranjo do casamento (BRADLEY, 1991:
85). Assim, “o amor como sentimento não passava de uma superestrutura que os costumes
não levavam em conta. Isso perdurou por muito tempo; as leis imperiais ainda o atestam”
(GRIMAL, 1991: 06).
O dinheiro, as alianças entre famílias e as promessas de herança desempenharam
um papel fundamental na conjugação dos casamentos das famílias abastadas de Roma,
implicando em casamentos frágeis e envolvidos em complexas intrigas. Não apenas em
Roma, mas também nas províncias, os dramas do amor estavam envolvidos com a política,
sendo antigo o costume de fazer dos casamentos formas de consolidação de alianças entre
famílias envolvidas na política das cidades do Império. As cidades das províncias, tal como
Roma, possuíam suas aristocracias que “aliavam-se sem temer as incertas conseqüências da
consangüinidade” (GRIMAL, 1991: 204-226). Todos os homens políticos estavam
envolvidos em casamentos de alianças e laços familiares (BRADLEY, 1991: 86).
Por serem os casamentos da elite romana consolidados por alianças políticas,
assim também eram os casos de divórcios. As alianças e as regras sobre o retorno do dote
poderiam configurar-se tanto como um empecilho para o divórcio acontecer como uma
forma de novas alianças serem estabelecidas, não sendo uma decisão individual do casal,
mas de suas famílias (CROOK, 1967: 105). Desta forma, de acordo com a necessidade de
gerar filhos, que possivelmente não tivessem sido gerados no casamento em questão, e a
necessidade do estabelecimento de novas alianças entre famílias, aconteciam os divórcios e
os novos casamentos.
126
O jurista Servius Sulpicius Gallus divorcia-se porque encontrou a sua
mulher na rua com a cabeça descoberta; um cavaleiro divorcia-se porque
viu sua mulher na rua falando com um escravo; um outro faz o mesmo
porque sua mulher foi ao teatro. Todas as personalidades eminentes
daquele período divorciavam-se mais vezes (Cícero quatro vezes). [...]
Na realidade, nos casos citados, os divórcios apóiam-se com certeza em
razões outras que não aqueles pretextos fúteis [...] (ROULAND, 1997:
271).
Conforme Bradley (1991: 79), citando os casos de Sula e Marco Antônio
106
, o
segundo casamento acontecia na aristocracia romana porque o matrimônio estava
intimamente ligado à vida dos homens públicos, fazendo deste também uma espécie de
carreira pública. Os historiadores modernos de Roma têm verificado que quanto mais se
descobre sobre pessoas de notoriedade pública, mais casamentos vêm à tona, demonstrando
que divórcios e novos casamentos eram muito comuns para homens públicos.
As leis que pautavam sobre o casamento baixadas pelo Imperador Augusto (27
a.C.-14 d.C.) exigiam dos cidadãos, homens e mulheres, que se cassassem novamente em
caso de viuvez ou de divórcio, principalmente se o primeiro casamento não tivesse gerado
descendentes. Os homens políticos recebiam vantagens na carreira se nestas condições
contraíssem um novo matrimônio. Entretanto, o segundo casamento não era obrigatório
para mulheres com mais de cinqüenta anos e homens com mais de sessenta (ROBERT,
1997: 232).
O segundo casamento feminino foi comum no período dos Imperadores
Antoninos, constatando o que filósofo Sêneca, no século anterior ao governo destes
imperadores, comentava admirado: “Nenhuma mulher podia corar por romper o casamento,
pois as damas mais ilustres haviam adquirido o hábito de contar seus anos não pelos nomes
106
Sula (138-78 a.C.), questor, cônsul e homem de vasta carreira política em Roma (HARVEY, 1998: 472-
473). Marco Antônio (82-30 a.C.), tribuno romano, chefe militar e cônsul do período republicano (HARVEY,
1998: 326).
127
dos cônjuges, e sim pelos dos maridos. Divorciavam-se para casar. Casavam-se para
divorciar” (CARCOPINO, 1990: 124).
A respeito de Pudentila, conforme a Apologia (LXVIII, 2), sabemos que ela
estava viúva 14 anos quando contraiu um novo casamento. Apuleio não sugere em
nenhuma passagem da Apologia se ela estava sob a potesta de alguém antes de se casarem,
porém fortes indícios nos levam a deduzir que ela estava sob a potesta de seu filho
Ponciano que consente com o amigo filósofo sobre o casamento da mãe.
107
Caso o casamento de Pudentila com seu primeiro marido tenha sido na forma cum
manu, com a morte deste ela passaria para a potesta de seu sogro, e como este morreu, para
a de seu próprio filho ou parente agnado mais próximo. Se o casamento ocorreu na forma
sine manu, os mais freqüentes no período, a viúva continuaria sobre a potesta da sua
própria família e, provavelmente, sob a tutela de seu próprio filho Ponciano. se Pudentila
estivesse sobre a tutela de seu filho, com a morte deste, deveria voltar para a potesta de
alguém de sua própria família, podendo também ficar sem tutor por um certo momento.
Porém, Pudentila se casa com Apuleio antes da morte do filho.
Apuleio mostra Pudentila como uma mulher capaz de tomar decisões sozinha,
porém uma mulher que age sempre pensando no bem estar dos filhos e que aceitava a
opinião do filho mais velho.
Liberada de tal escrúpulo, como foi pedida em matrimônio pelos homens
mais importantes, decidiu que não devia permanecer em sua viuvez
durante muito tempo [...] (APULEIO, Apologia, LXIX, 1).
108
Além disso, escreveu pessoalmente a Roma para seu filho Ponciano, lhe
colocou a parte sobre o assunto e lhe expôs, ponto por ponto, todos os
motivos de sua decisão. Explicou-lhe, pois, todo o detalhe antes
mencionado a propósito de sua saúde Acrescentava que já não havia
107
Este possível consentimento ente o filho de Pudentila e Apuleio e uma provável aliança entre ambos foi
mais bem desenvolvido por nós no quarto capítulo desta Dissertação.
108
O escrúpulo que Apuleio cita refere-se ao contrato de esponsais entre Pudentila e Sicinio Claro.
128
razão alguma para que permanecesse mais tempo em seu estado atual,
posto que, mediante sua prolongada viuvez, com desprezo de sua própria
saúde, havia conseguido para seus filhos a herança de seu avô e até a
havia aumentado graças a uma administração hábil da mesma. Que por
vontade dos deuses, Ponciano estava em idade de casar e seu irmão
podia tomar a toga viril, que, depois disso, deviam permitir a ela colocar
fim em sua solidão e doenças [...] (APULEIO, Apologia, LXX, 5-6).
Ao mesmo tempo, Ponciano havia persuadido a sua mãe para que me
preferisse em relação aos demais pretendentes e colocava uma paixão
incrível em realizar o mais rápido possível o casamento. A duras penas
conseguimos dele um curto espaço de tempo, até o momento em que ele
se casou e que seu irmão tomou a toga viril, assim, combinamos de nos
casar logo em seguida (APULEIO, Apologia, LXXIII, 8-9).
Sobre a questão do testamento, segundo Del Castillo (1988: 191), após as leis do
Imperador Augusto (27 a.C-14 d.C.) regulamentando o casamento, ficou estabelecido que
para as mulheres viúvas casadas no regime cum manu, o marido poderia deixar em seu
testamento que a esposa tinha direito a escolher seu novo tutor, havendo ainda um
mecanismo criado para que a mulher pudesse trocar de tutor mediante pagamento. Sendo
que mulheres viúvas dispunham de uma verdadeira liberdade testamentária, podendo ainda
ser este o caso de Pudentila que Apuleio não cita ninguém opinando no estabelecimento
do testamento da viúva.
Em uma passagem da Apologia (CXIX, 3-5), Pudentila é mostrada como capaz de
deserdar seu filho mais jovem por este estar sempre contra ela, ou seja, Apuleio a mostra
com a capacidade de dispor-se de seu próprio testamento.
Desta forma, se ela tivesse sido casada na forma cum manu, estando viúva, não
havia grandes obstáculos para dispor de seus bens da forma como quisesse, administrando
suas propriedades, elaborando seu testamento e favorecendo quem quisesse. Pudentila
poderia ser uma mulher emancipada, o que também é provável, que através de leis
estabelecidas pelo Imperador Cláudio (41-54 a.C.), se ela tivesse casado na forma sine
129
manu e seu pai morresse, ela escapava do controle dos seus irmãos, tios e primos. Se a
mulher viúva, casada em regime marital (cum manu), estivesse sob a potesta dos agnados
adquiridos com o casamento, ela escapava do controle dos irmãos, tios e primos de seu
marido, podendo contrair um novo casamento à vontade, não necessitando nem da
autorização de seu filho, perante o qual estaria na posição jurídica de irmã. Não tendo
filhos, também não precisaria da autorizarão dos irmãos de seu marido ou de seus outros
parentes em linhagem masculina (YAN, 1990: 184).
Portanto, casada nas formas sine manu ou cum manu, Pudentila podia ser uma
mulher emancipada, não estando sob nenhuma tutoria antes de se casar com Apuleio,
permanecendo assim se seu casamento com o filósofo também foi sine manu. Acreditamos
na emancipação de Pudentila pelo fato de que Apuleio não faz nenhuma referência se ela
teve interferência de alguém ao estabelecer-se um novo matrimônio. Se ela estivesse sobre
a tutoria de alguém era de seu filho mais velho, que, porém, morreu antes mesmo do
desenrolar do processo e se mostrava, segundo Apuleio, a favor do matrimônio.
Sobre o casamento de Pudentila com Apuleio, talvez este tenha sido na forma
mais freqüente do momento: sine manu. Sabemos que Apuleio estava mencionado em seu
testamento (APULEIO, Apologia, C, 2). Este fato configura-se como natural, que as
mulheres do século II d.C. tinham direitos para dispor-se de suas heranças (CARCOPINO,
1990: 107), podendo deixar parte para o marido, apesar de marido e mulher o serem
herdeiros naturais um do outro (GRIMAL, 1991: 76).
Para finalizar este capítulo, como pudemos verificar pela análise de alguns
aspectos da magia, do papel do filósofo e do casamento no Principado Romano, todos os
pontos trabalhados tiveram relações estreitas com as formas de poder. Assim, o
conhecimento mágico representou um poder e recebeu uma qualificação ambígua, ora
130
benéfico, partindo dos ritos oficias, ora maléfico e perseguido. Os detentores desses saberes
recebiam tanto credibilidade como desprezo e punições. A atitude perante alguém
considerado como portador de atributos mágicos variava dependendo da concepção sobre
sua prática. O filósofo, orador e estudioso romano caracterizaram-se também como
especiais durante o Império, ocupando cargos e servindo como conselheiros das autoridades
públicas, especialmente no século II d.C. com o desenvolvimento da Segunda Sofística,
quando a figura do filósofo e do orador confluíram-se. Também o casamento foi algo de
extrema importância política nesse contexto, principalmente para as elites dirigentes do
Império, servindo como forma de alianças entre famílias e sendo fundamental para a
carreira dos homens públicos.
131
4. ACUSAÇÃO E DEFESA NA APOLOGIA
4.1 Envolvidos no processo
Apresentamos abaixo as pessoas citadas no discurso Apologia de Apuleio.
Algumas destas personagens não estão diretamente envolvidas na acusação contra o
filósofo, havendo algumas que eram falecidas na época do processo. Todavia,
consideramos que todas as pessoas apresentadas por nós têm ligações com pontos da
acusação ou questões importantes para a mesma.
Crime: praticar magia amorosa para conquistar Pudentila;
Apuleio: Réu;
Pudente: Acusador, filho mais jovem de Pudentila, enteado de Apuleio;
Cláudio Máximo: Juiz;
Pudentila: esposa do réu e mãe do acusador;
Ponciano: filho de Pudentila, irmão do acusador e amigo do réu. Já falecido na ocasião
do processo;
Sicinio Emiliano: irmão do falecido marido de Pudentila e assessor de Pudente na
acusação
109
;
Sicinio Amico: pai do acusador. Falecido na ocasião do processo;
Sicinio Claro: tio do acusador. Havia contraído esponsais com Pudentila, desfeitas na
ocasião do processo;
109
Segundo Munguía (1980: 55), em geral, além do advogado da parte que move a ação, o acusador podia
recorrer a um assessor judicial se fosse uma mulher ou ainda possuísse menoridade jurídica.
132
Tannonio Pudente: advogado de acusação e supostamente irmão ou parente próximo de
Pudentila;
Herennio Rufino: ex-sogro do falecido Ponciano. Envolvido na ação contra Apuleio. O
filósofo afirma ser Rufino o grande acusador e se mostra preocupado em atacar Rufino em
diversas passagens. Conforme Apuleio, é Rufino que promove a ação, incita Ponciano,
contrata o advogado, paga testemunhas para que o acusem e irradia toda calúnia de
praticante de magia contra ele (Apologia, LXXIV, 5);
Calpurniano: testemunha de acusação. Segundo Apuleio (Apologia, VI, 1), Calpurniano
o difama pela cidade de Oea como fabricante de produtos exóticos por ter recebido de sua
oferta uma pasta dental produzida por ele. Calpurniano também aparece no desenrolar da
acusação como um dos mediadores de Emiliano na compra do testemunho de Junio Craso
(APULEIO, Apologia, LX, 2). Portanto, Calpurniano, embora pouco citado, pode ser
percebido como alguém muito interessado na acusação de Apuleio;
Junio Craso: testemunha de acusação. Proprietário da casa na qual Apuleio e o amigo
Quinciano teriam praticado rituais noturnos;
Cornélio Saturnino: testemunha de acusação. Escultor que fabrica para Apuleio a estátua
de Mercúrio. Apesar de ter sido levado pelos acusadores de Apuleio para testemunhar
contra ele, Saturnino não incrimina o filósofo, que, conforme nos indica Apuleio
(Apologia, LXI, 5), Saturnino, homem de honra reconhecida, diz somente a verdade sobre a
encomenda da estátua, que era uma simples estátua de um Deus;
Escribonio Leto: amigo de Apuleio e pai dos garotos aos quais, conforme a acusação,
Apuleio fez versos de amor;
Talo: escravo que, conforme os acusadores, Apuleio fez cair ao chão mediante
encantamentos;
133
Temisão: médico que trouxe a mulher epiléptica para Apuleio examinar;
Apio Quinciano: amigo de Apuleio que, de acordo com o filósofo (Apologia, LVII, 2), é
incriminado pelos acusadores como praticante de rituais noturnos junto a ele. É na casa dos
Apios, família de Quinciano, que Apuleio ficou hospedado quando chegou em Oea
(Apologia, LXXII, 2).
4.2 Difamações contra Apuleio
Antes de expor os pontos de acusação propriamente, Apuleio considera que seus
acusadores buscavam difamá-lo na cidade de Oea antes de moverem a ação legal contra ele.
Segundo o filósofo, a intenção de seus adversários era suscitar um escândalo em torno de
sua pessoa (Apologia, I, 6) e já lhe atribuíam fortes acusações (Apologia, II, 2).
As difamações eram de: praticar magia e ser responsável pela morte de seu
enteado e amigo Ponciano.
Apuleio cita que tempos o caluniavam como praticante de magia (Apologia, I,
5), porém não expõe quais eram as referidas calúnias de práticas mágicas propriamente.
Apuleio também cita que o difamavam como responsável pelo assassinato de seu
enteado Ponciano, mas não admitem esse ponto no processo. O filósofo sugere que este
ponto não foi considerado como parte da acusação legal porque era mais fácil o acusarem
de práticas mágicas e mais difícil que ele conseguisse provar sua inocência
110
(Apologia, II,
110
Durante a defesa, Apuleio não nega que suas práticas místicas, filosóficas e religiosas tivessem ligações
com o que se compreendia por magia na época, podendo denotar que nesse sentido residiria a dificuldade de
sua defesa perante tal acusação e a facilidade de seus acusadores em mostrá-lo como um mago. Dessa forma,
seus acusadores teriam apenas deturpado o tipo de prática mágica que ele seguia.
134
3). Portanto, percebemos que, para o acusado, a intenção era exterminar sua presença
independentemente da forma como isso fosse feito.
Apuleio (Apologia I, 6) ainda nos informa que a ação legal foi movida porque
ele próprio incita seus adversários a acusarem-no, sem, contudo, dizer o motivo deste ato.
Segundo Thomas Winter (1968: 39), a intenção de Apuleio ao incitar seus
adversários era criar um pretexto para poder se defender perante a população da cidade,
buscando uma forma de mostrar seus valores e estabelecer sua inocência. Além disso, este
historiador atenta para o fato de Apuleio ser um excelente advogado, qualidade esta que
acredita ter contribuído para que Apuleio instigasse os adversários a levarem as calúnias
adiante, transformando-as em um processo jurídico. A hipótese de que Apuleio estimulou
os acusadores, ainda de acordo com Winter (1968: 38), também se enquadraria no
momento do discurso no qual Apuleio afirma que foi ameaçado de morte pelos acusadores
(Apologia, LXVI, 3).
De acordo com Paul Valette (1960: 19-20), a intenção de Emiliano e dos demais
acusadores não era mover uma ação legal contra Apuleio, mas apenas mobilizarem a
opinião pública contra ele. Winter (1968: 32, 34) não concorda com Valette, acreditando
que os adversários tinham a intenção de continuar as calúnias anteriormente levantadas,
levando Apuleio a comparecer frente ao pretor. No entanto, propõe que o processo movido
contra Apuleio começara muito antes da ação jurídica com as calúnias pela cidade de
Oea e, sendo assim, Apuleio incitou seus acusadores, como o próprio acusado discorre.
Independente de ter sido Apuleio ou não que incitou o desenrolar destas calúnias e
sua transformação em acusação real, acreditamos que a questão da difamação contra
Apuleio tenha uma importância fundamental no processo. Com a expressão destes pontos,
Apuleio deixa entrever que seus acusadores guardavam um enorme rancor contra ele, sendo
135
a ação legal uma forma de exterminarem o mal que ele causava, uma espécie de subterfúgio
para eliminarem um inimigo que há tempos caluniavam. Assim, eles o acusam porque
tempos vinham demonstrando que sua presença os incomodava de alguma forma e, não
conseguindo apenas por forma de calúnias o objetivo de denegrir e exterminar a figura do
filósofo, movem legalmente o processo.
A idéia de Apuleio sobre a questão de acusarem-no de qualquer forma pode conter
uma estratégia retórica a fim de convencer o pretor de que o acusam injustamente, que não
é praticante da magia e nem se casou com Pudentila interessado em seu dinheiro, minando
assim os principais pontos da acusação. Entretanto, esta intenção também pode mostrar o
ódio em torno da pessoa de nosso autor antes mesmo do estabelecimento do processo.
Ainda sobre estas calúnias, podemos tentar compreender uma importante questão:
o possível tempo despendido com a preparação do processo. Apuleio afirma que o processo
se desenrolou de forma muito rápida (Apologia, LXXXIV, 5). Contudo, devemos atentar
para um intervalo de pelo menos dois anos entre a morte de Ponciano e o desenrolar do
processo.
111
Assim, sendo a responsabilidade pela morte de Ponciano um dos pontos de
difamação contra o filósofo, podemos ponderar que os acusadores de Apuleio já
demonstravam ter problemas com ele um tempo considerável, tendo todo esse período
para prepararem a acusação.
111
Como mostrado na nota 12 do Capítulo 1, pág. 28, o processo desenrola cerca de três anos depois de
Apuleio viver em Oea e dois anos depois de seu casamento com Pudentila. Segundo as referências a respeito
da mudança de opinião de Ponciano sobre ter apoiado o casamento entre sua mãe e o filósofo (Apologia,
XLIV) percebemos que ele ainda estava vivo quando os dois se casam e sua morte aconteceu no período de
tempo de dois anos decorridos entre o casamento e a abertura do processo. Esse período de mais ou menos
dois anos entre sua morte e o processo pode ser percebido através das citações de Apuleio que referem a
Ponciano estar vivo durante o governo do proconsul Loliano Avito - 159/160 d.C. - e já ter falecido durante a
ocasião do processo, que aconteceu no governo de Cláudio Máximo - 160/161 d.C. Sobre as datas dos
proconsulados africanos ver em: SYME (1959: 310-319).
136
4.3 Interpretação dos pontos de acusação e apresentação da defesa de Apuleio
Diferente dos pontos definidos como de difamação do filósofo, os pontos abaixo
expostos foram levados ao tribunal como acusações propriamente, baseando-se em provas e
testemunhas. As referidas acusações eram de:
Ser um filósofo formoso e eloqüente;
Fabricar um creme dental;
Fazer versos de amor para jovens garotos;
Fazer uso de um espelho;
Manumitir três escravos ao mesmo tempo;
Comprar peixes que seriam usados com finalidades mágicas;
Fazer um escravo e uma mulher caírem ao chão mediante poderes mágicos;
Possuir objetos mágicos secretos;
Praticar sacrifícios noturnos;
Possuir uma estátua em formato de esqueleto que é usada em malefícios mágicos;
Praticar magia para conquistar a viúva Pudentila;
Casar-se com Pudentila interessado em seu dinheiro.
É importante explicarmos que entendemos pontos de acusação como as acusações
e suas respectivas provas com finalidade de incriminar Apuleio. motivo da acusação
seria a razão pela qual Apuleio é acusado, não sendo o motivo explícito no texto da
Apologia, estando, porém, conforme a opinião do acusado, subentendido através de uma
análise.
Dessa forma, em relação aos motivos da acusação, segundo Apuleio, a acusação
real é a de praticar magia (Apologia, XXV, 5) e Emiliano orienta toda sua acusação com o
137
único objetivo de demonstrar que ele é um mago (Apologia, XXV, 8). Porém, Apuleio
esclarece que a acusação não é apenas de magia na passagem na qual afirma que se seus
acusadores acreditassem em sua magia enquanto poderosa prática que objetiva mudar a
natureza, eles teriam medo dele e não iriam acusá-lo (Apologia, XXV, VI).
Assim, o sentido da acusação, de acordo com o filósofo, não foi pelas práticas de
magia e sim porque seus acusadores possuíam uma enorme inveja dele (Apologia, LXVI,
3).
A não ser que Emiliano tenha pretendido dar-nos um exemplo da rigidez
de seus princípios morais e, por ser inimigo incompatível dos malefícios,
tenha empreendido esta acusação com o único objetivo de velar pela
integridade dos costumes (Apologia, LXVI, 7).
Para qualquer um está mais claro que a luz do dia que a inveja foi o único
motivo que impulsionou a este e a Herennio Rufino, seu instigador, de
quem irei falar agora, e aos demais inimigos meus a levantar caluniosas
acusações de magia (Apologia, LXVII, 1).
[...] a verdadeira causa deste processo, eu digo, é a suspeita, ditada pela
inveja, de que eu pretendia me apoderar da herança (Apologia, CI, 3).
São mostradas mais questões além das práticas de magia em si, e a causa da
mencionada inveja dos acusadores por Apuleio está, na nossa opinião, certamente
relacionada à maneira como ele se defende, ou seja, relacionando a causa à sua eloqüência
e à sua filosofia e definindo seus acusadores como homens rústicos e ignorantes.
Apuleio demonstra em seu discurso que foi acusado por três motivos, porém não
os aceita. Os motivos do processo, de acordo com nosso autor, seriam:
Seus acusadores possuíam inveja dele por ser um homem público, um grande filósofo e
orador, ou seja, um intelectual renomado;
Confundiram suas práticas e pesquisas místicas e naturalistas com a magia goetéa;
138
Tinham pretensões no dinheiro de Pudentila e por isso o acusam de ter casado com ela
para ficar com seu dinheiro.
Usando desses argumentos, Apuleio se defende como um renomado filósofo e
orador, um filósofo místico e naturalista e um homem gentil que aceita desposar uma bela
viúva pelas suas qualidades.
Em vista disso, a partir das leituras da obra Apologia e da estrutura da defesa de
Apuleio, propomos que os pontos de acusação sejam agrupados em três categorias dentro
dos possíveis motivos de acusação propostos por nosso autor, que compreendemos que
eles se relacionam com:
A imagem de Apuleio como filósofo, orador e homem público (acusações de ser um
filósofo formoso e eloqüente, fazer versos de amor para jovens garotos, fazer uso de um
espelho e manumitir três escravos ao mesmo tempo);
O uso da magia e suas relações com as especulações filosóficas (místicas e naturalistas)
de Apuleio (acusações de fabricar um creme dental, comprar peixes usados com finalidades
mágicas, fazer um escravo e uma mulher caírem ao chão mediante poderes mágicos,
possuir objetos mágicos secretos, praticar sacrifícios noturnos e possuir uma estátua em
formato de esqueleto usada em malefícios mágicos);
A possível aliança estabelecida com o casamento de Apuleio com Pudentila (acusações
de praticar magia para conquistar a viúva e casar-se com ela interessado em seu dinheiro).
Como percebemos, são doze pontos de acusação agrupados por nós dentro de três
motivos do processo. A seguir; trataremos especificamente de cada ponto de acusação
dentro das três categorias analíticas por nós sugeridas.
139
4.3.1 Pontos relacionados à imagem de Apuleio como filósofo, orador e homem
público
A) Ser um filósofo formoso e eloqüente (Apologia, IV)
Apuleio cita que, no princípio da acusação, seus adversário colocam o seguinte:
“Acusamos ante ti de ser um filósofo elegante e, “oh, crime abominável!” Muito eloqüente
tanto em língua grega como na latina” (APULEIO, Apologia, IV, 1-2).
Este ponto de acusação constitui como elemento fundamental para nossa análise
de que eram as relações de poder em torno de Apuleio que estavam em pauta no processo.
Consoante Apuleio, este ponto de acusação é mencionado porque seus adversários
possuem inveja de sua imagem elegante e de sua oratória eloqüente.
Quanto a minha eloqüência, se é que eu tenho alguma, nada deveria ter
de estranho, nem ser objeto de inveja, já que eu venho a objetivando
desde os primeiros anos de minha vida, entregando-me com todas minhas
forças unicamente aos estudos literários, desdenhando de todos demais
prazeres, até a idade que agora tenho [...] (Apologia IV, 5).
O próprio cabelo, meus adversários, com uma mentira manifestada,
disseram que é comprido para que eu possa tirar partido de sua
formosura, sendo gracioso e atraente (Apologia, IV, 10).
Conforme Henri-Irinée Marrou (1971: 305), o que distinguia um homem
realmente erudito na Grécia e em Roma não eram seus estudos científicos ou médicos, mas
sua cultura filosófica e oratória. Como exposto no terceiro capítulo desta dissertação, a arte
retórica dos grandes oradores era extremamente valorizada nas cidades do Império
Romano.
A eloqüência possuía, na concepção dos antigos um valor propriamente
humano, que transcendia as aplicações práticas que as circunstâncias
históricas podiam dela extrair: encerrava a essência do homem autêntico,
todo o patrimônio cultural que distinguia o homem civilizado do homem
bárbaro [...] (MARROU, 1971: 308).
140
Destarte, se considerarmos a importância destes filósofos e retóricos dentro do
Império Romano e o valor dado a seu ofício, não haveria motivos pelos quais os acusadores
de Apuleio desmerecessem esta sua característica. Acreditamos que os acusadores assim
fizeram porque sobre ela recaía a grande ameaça de Apuleio ao status quo da cidade,
representando no eloqüente filósofo alguém com características próprias para ocupar cargos
públicos e propagar suas idéias pela população. A mesma interrogação a respeito de o
acusarem de ser eloqüente é feita por Apuleio, que considera a eloqüência como um
presente divino (Apologia, IV, 4) e não um motivo de acusação.
Não nos restam dúvidas de que Apuleio teve seus valores intelectuais
reconhecidos em sua época, não pelos dados encomiásticos que ele mesmo nos fornece
sobre si, mas pelos cargos que lhe foram atribuídos e as estátuas a ele erguidas. Estas
últimas mostram que, de certa forma, ele era reconhecido por aqueles que lhe prestaram tais
homenagens
112
, entretanto, também podemos verificar veis de desconfiança, desprezo e
perseguição a sua pessoa por ocasião do processo que sofre.
Sobre a afirmação de que ele era formoso - formonsum
113
- podemos perceber que
a vaidade de Apuleio é questionada. Até mesmo a aparência física e o cabelo comprido de
Apuleio são criticados (Apologia, IV, 9-12).
112
Uma das estátuas foi erguida, segundo indicações do próprio Apuleio (Flórida, XVI), em Cartago,
importante centro cultural da África, e foi uma homenagem de Emiliano Estrabão (Aemilianus Strabo),
procônsul da província em 156 e condiscípulo de Apuleio. Conforme o filósofo, Estrabão solicita a
autorização para erguer a suas expensas a estátua alegando que ele é um grande sacerdote da província.
Apuleio alude ainda, nesta mesma passagem da obra Flórida, que outra estátua em sua homenagem está
pendente para ser erguida também nesta cidade com o tesouro público, aguardando a aprovação do Senado.
Nesse ato verificamos a ligação de Apuleio com a elite citadina de Cartago, o motivo do erguimento da
estátua é o reconhecimento de Apuleio por parte de Estrabão, o porquê do mesmo, porém, não é indicado,
mas parece referir-se a serviços particulares prestados como conselheiro, orador ou mesmo advogado. Uma
outra estátua também pode ter sido erguida para Apuleio em Madaura, como já citamos no primeiro capítulo.
113
Formosulus, a, um: adjetivo que significa belo, encantador (FARIA, 1956: 390).
141
Para nós, esta acusação à vaidade do filósofo está relacionada com uma crítica a
auto-exaltação que lhe era característica. Estas explanações eram recorrentes em seus
discursos escritos e possivelmente também em seus discursos orais. Acreditamos também
que tal acusação pode ter relações com uma crítica à vontade de Apuleio de se destacar
entre os demais, com seus auto-elogios e com o misticismo que o envolvia e atraia a
admiração das pessoas de Oea.
B) Versos de amor (Apologia, IX)
Os adversários de Apuleio afirmam que ele fez versos para os filhos de seu amigo
Escribonio Leto no aniversário de um dos meninos, nos versos ele não citou o nome dos
garotos, os chamando por apelidos singelos. Para nós, este ponto de acusação contra
Apuleio está relacionado com a paixão de Apuleio pelos garotos para os quais faz versos.
Sabemos que o amor homossexual em si não constituía critério de classificação e
nem questão vexatória a ser discutido pelos romanos.
Mais importante do que o gênero de um (a) parceiro (a), era a postura de
subserviência diante do desejo que se tinha, postura esta que podia levar
à paixão, por um homem ou por uma mulher, em virtude da falta de
autocontrole gerada pela intemperança, pelo não domínio de si (SILVA,
Glaydson J.,
2001: 126).
Outro fator que é colocado por Glaydson J. da Silva (2001: 127) é a natureza
social das pessoas em um envolvimento amoroso, a passividade e a posição social dos
envolvidos.
[...] a passividade e o que a ela se associa será o objeto das maiores
problematizações acerca da homossexualidade nos mundos grego e
romano; a ela se associa a figuração do homem na vida social, cuja
atuação em meio aos quadros de poder, encontra-se diretamente atrelada
à sua representação no ato sexual.
142
Nesse sentido, os acusadores de Apuleio o mostram como alguém que apaixonado
pelos jovens garotos demonstra seu amor por meio de versos apaixonados, residindo o
caráter de repúdio a sua incontinência passional como um cidadão, um filósofo e orador
renomado na cidade por simples garotos de quatorze anos.
114
Assim, não é a homossexualidade em si que é colocada em questão, mas a
expressão da paixão e a significativa representação de Apuleio na vida social da cidade de
Oea. São relações de poder que se configuram nesse ponto de acusação, estando para
Apuleio, enquanto aristocrata e homem público, proibida a atitude de passividade diante da
paixão por garotos mais jovens.
Apuleio reclama que tais versos não se relacionam em nada com os malefícios
mágicos, tema principal da acusação. Nesse ponto, o filósofo se defende usando de sua
inteligência apta a fazer versos de amor, contra a rusticidade e pouco saber de seus
acusadores e, principalmente, se defende como um filósofo sério que gostava de fazer
versos, mesmo não sendo um poeta, assim como Platão, que era um filósofo, mas também
escreveu versos a garotos como Aléxis e Fedro. Apuleio recita versos de Platão e cita que o
Imperador Adriano (117-138 d.C.) fez versos para um amigo, alude que se seus acusadores
são ignorantes por não conhecerem os versos destas personalidades e, mais uma vez,
contrapõe sua erudição à falta de conhecimentos dos acusadores.
C) O uso do espelho (Apologia, XIII, 5)
Acusam Apuleio de ter um espelho em casa e citam que ele possuía um espelho,
mesmo sendo um filósofo. Segundo o acusado, a afirmação de que possui um espelho
mesmo sendo um filósofo, estima que é mais punível ainda que ele enquanto filósofo use
114
Apuleio indica que um dos garotos tinha quatorze anos (Apologia, IX, 14).
143
deste objeto (Apologia, XIII, 8). Podemos compreender, nesse ponto, que os acusadores
admitem que Apuleio enquanto filósofo deveria ser desprendido de vaidades e não um
homem que se preocupa com sua imagem bela, necessitando de um espelho para se
arrumar.
Para nós, novamente foi colocada em causa a vaidade de Apuleio, seu costume de
olhar-se ao espelho e buscar se apresentar de forma elegante diante das pessoas. É sua
imagem enquanto filósofo garboso que foi criticada.
Apuleio defende que usava espelhos para seus estudos sobre leis de óptica
(Apologia, XVI), sendo também de enorme dignidade ao homem poder contemplar-se e
conhecer sua imagem (Apologia, XIV, 2). O filósofo cita que Sócrates chegou a aconselhar
que seus discípulos se olhassem no espelho para que se sentissem satisfeitos com sua beleza
e os que não fossem dotados de atrativos físicos fizessem o possível para dissimular sua
feiúra (Apologia, XV, 4-6). Também cita que o retórico Demóstenes ensaiava seus
discursos na frente de um espelho (Apologia, XV, 8).
Ainda nesta passagem Apuleio aproveita para exaltar seus conhecimentos de
física em contraponto a rusticidade de seu acusador Emiliano, que não passa de um
insignificante frente a um estudioso como ele (Apologia, XVI, 11-12).
Portanto, também nesse ponto, Apuleio utiliza como argumento a defesa de sua
imagem enquanto filósofo, pesquisador e orador.
D) Manumissão de três escravos (Apologia, XVII)
Acusam Apuleio de ter chegado em Oea com apenas um escravo e, depois de
passado um curto período de tempo, ter manumitido três escravos em um mesmo dia. Os
acusadores estranham o fato de manumitir três escravos enquanto tinha apenas um e
144
sugerem, segundo Apuleio, que esse enriquecimento repentino foi possível devido à
prática de magia (Apologia, XVII, 4).
Conforme nossa opinião, esta acusação contra o filósofo não tem necessariamente
ligações com a magia. Acreditamos que o acusam usando deste argumento como um mago,
todavia, percebemos que a questão sugerida está relacionada à situação financeira de
Apuleio quando chega em Oea e os bens adquiridos alguns dias após permanecer na cidade.
Assim, ter poucos escravos é indício de pobreza e manumitir três escravos em tão pouco
tempo, para os acusadores, é indício de opulência.
Apuleio não cita se realmente chegou em Oea com apenas um escravo e pouco
tempo depois manumitiu três, mas conferimos que a compra de mais escravos durante seus
dias nesta cidade pode ter sido possível devido os valores que Apuleio certamente ganhou
com seus pronunciamentos.
Logo, este ponto é levantado por seus acusadores justamente porque é na inserção
de Apuleio na estrutura social local, seu prestígio e enriquecimento que se enraíza o rancor
de seus inimigos contra o filósofo.
Apuleio, mais uma vez, defende-se enquanto filósofo, citando casos de vários
outros filósofos que possuíam poucos escravos. Nesta parte do discurso Apuleio faz uma
defesa da pobreza como uma escrava a serviço da filosofia, glorificando os filósofos como
homens que não se preocupam com bens materiais (Apologia, XVII).
É precisamente a pobreza que, desde seus primórdios, nutre a todos os
homens que admiramos por algum mérito excepcional. A pobreza, repito,
foi nos tempos primitivos fundadora de todos os Estados, descobridora de
todas as artes. Alheia a toda maldade, dispensadora generosa de toda
glória, e gozou entre todos os povos de toda classe de louvores
(Apologia, XVIII, 5-7).
145
Em uma passagem da defesa da pobreza como mérito do filósofo, Apuleio cita a
inveja que Emiliano sentia de seu matrimônio com Pudentila e de sua posição de filósofo
(Apologia, XXII, 5-6).
Apuleio, porém, se contrapõe afirmando que possui uma pobreza real e não
dissimulada (Apologia, XIX, 7), logo depois exalta que não precisava do dinheiro de
Pudentila, pois seu pai lhe deixara uma herança que ele administrava como um bom
cidadão da aristocracia, despendendo gastos com liberalidades (Apologia, XXIII).
4.3.2 Pontos relacionados à magia e suas relações com a filosofia de que Apuleio
era seguidor
Para Apuleio, seus acusadores denunciaram-no por magia porque são ignorantes e
incapazes de reconhecer os estudos de um filósofo, confundindo suas práticas de filósofo
místico e naturalista com magia nefasta.
Mas por uma crença errônea, que compartilham todos os ignorantes, se
proferem tais acusações contra os filósofos, de sorte que uma parte deles,
precisamente aqueles que investigam as causas primeiras e os princípios
constitutivos dos corpos, os tomam por ímpios e acrescentam que, por tal
razão, negam a existência dos deuses, como aconteceu com Anaxágoras,
Leucipo, Demócrito, Epicuro e os demais defensores da ordem natural do
mundo. Por outro lado, aos demais, aos que estudam com maior zelo a
providência que rege o universo e rendem culto aos deuses com a mais
profunda devoção, os chamam de ‘magos’ no sentido vulgar da palavra,
assim foram capazes de realizar por si próprios o que sabem ter lugar,
como sucedeu com Epimenides
115
, Orfeus
116
, Pitágoras
117
e Ostanes
118
(APULEIO, Apologia, XXVII, 2).
115
Poeta e profeta semilendário cretense (HARVEY, 1998: 199).
116
Poeta lendário pré-homérico. Em torno de sua personagem surge um culto místico grego conhecido como
Orfismo (HARVEY, 1998: 368).
117
Famoso filósofo grego, nascido por volta de 580 a.C. Fundador de uma escola filosófica e religiosa na
Magna Grécia. Princípios de sua doutrina sobre a transmigração das almas estavam presentes no Orfismo
(HARVEY, 1998: 398).
146
As acusações relacionadas à magia são as seguintes: fabricar um creme dental,
comprar certas espécies de peixes e animais marinhos, fazer cair sob seus poderes um
escravo e uma mulher, possuir objetos mágicos, adorar uma estátua em formato de
esqueleto e praticar sacrifícios noturnos. Apuleio monta a defesa destas acusações
argumentando que houve um equívoco existente entre sua filosofia que comportava rituais
de cunho mágico e práticas mágicas negativas.
A) O creme dental (Apologia, VI)
Acusam Apuleio de ter fabricado com o uso de certas plantas de virtudes
branqueadoras um creme dental para um homem chamado Calpurniano. Apuleio se defende
como um filósofo que usava plantas para seus estudos e que necessitava conhecer e
produzir cremes dentais para limpar sua boca, a parte física mais importante de um orador.
Em nossa opinião, este ponto denota a relação de Apuleio com o ponto principal
da acusação: a prática da magia.
Apuleio nos indica que seus acusadores pronunciavam sobre sua fabricação de um
creme dental com tanta indignação como se a aludissem à fabricação de um veneno. Assim
sendo, acreditamos que os acusadores de Apuleio buscam mostrá-lo como alguém que
possui relações com a magia que, segundo Flitz Graf (1994: 56-57), o termo veneficus,
que deriva do grego veneficium, significa não somente a fabricação de drogas e venenos,
mas também encantamentos de todas as maneiras. A Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis
especifica que existem venenos que possuem propósitos de cura e outros maléficos com
118
Ostanes é um protótipo de mago em Roma e tem sua localização em várias épocas, caracterizando-se como
uma figura lendária. É citado por alguns autores cristãos como Minucio Félix, Cipriano e Eusébio
(MUNGUÍA, 1980: 102).
147
propósito de matar. Esta lei pune aqueles que administram venena mala, encantamentos
com finalidades maléficas.
A ligação de Apuleio com as plantas também o coloca como um mago ao
percebermos, conforme indicações de Anne-Marie Tupet (1976: 293), que os romanos se
mostraram crentes no poder mágico de ervas e plantas de diversas espécies.
Há, em textos da literatura latina, representações de magas em rituais que
utilizavam plantas, como no ritual descrito pela Écloga VIII do terceiro livro das Bucólicas
de Virgílio e a busca em um cemitério de plantas das magas Canídia e Sagana na Sátira
VIII do primeiro livro das Sátiras de Horácio.
119
O próprio Apuleio, em outro ponto da
acusação
120
afirma que seus acusadores desconhecem que os elementos usados na magia
são ervas, expondo passagens de poemas de Homero, Teócrito e Virgílio que aludem ao uso
de plantas na magia e o de substâncias e objetos vindos do mar (Apologia, XXX, 7-13,
XXXI).
Apuleio afirma que o creme dental lhe servia para limpar sua boca, que era um
importante orador, não tendo valor nenhum para seus acusadores que eram homens que não
usavam das palavras. Este ponto está diretamente ligado com a fabricação do creme dental
e sua ligação com o conhecimento de plantas, porém Apuleio liga esta acusação a sua
imagem como orador em contraponto ao anonimato dos adversários que não tinham a
necessidade de usar nenhum creme para limpar a boca (Apologia, VI), que não usavam
esta parte do corpo.
119
Virgílio (70-19 a.C.) e Horácio (65-8 a.C.) foram poetas do círculo de escritores do Imperador Augusto (27
a.C-14 d.C.). A Écloga VIII de Virgílio relata, em seu segundo canto, o drama de uma camponesa na busca de
recuperar seu amado por meio da magia. Sobre a Sátira VIII ver a nota de rodapé 12 no Capítulo 3, pág. 96.
120
O ponto referido é a acusação de que Apuleio teria comprado peixes para a magia, acusação que
apresentamos a seguir.
148
B) Os peixes e a magia (Apologia, XXIX)
Acusam Apuleio de ter comprado, para a prática mágica, peixes de uma espécie
venenosa, o lepos marinus, e dois tipos de animais marinhos cujos nomes representam as
denominações dos órgãos sexuais masculino e feminino, ueritilla e uirginal.
121
Conferimos que o problema da compra de peixes reside no fato de que a espécie
lepos marinus, adquirida por Apuleio, possui propriedades venenosas. De acordo com
fontes documentais da época, como os escritos de Plínio, o antigo, em sua obra História
Natural, o lepos marinus não era um peixe propriamente, mas uma espécie de molusco
marinho e se caracterizava como um dos mais venenosos animais do mar, seu simples
contato com uma pessoa provocava alterações e reações estomacais imediatas. Filostrato
também citou os poderes mortíficos desta espécie na obra Vida de Apolônio de Tiana
(GRAF, 1994: 88). Dessa forma, percebemos que os acusadores fazem com que o crime de
Apuleio recaia sobre a punição do fabricante de poções mágicas caracterizadas como
venenos na Lex Cornelia de Sicarii et Veneficii.
a problemática da compra de animais marinhos com nomes de órgãos sexuais
ocorre justamente devido à denominação da espécie comprada por Apuleio, pois de acordo
com os acusadores, estes peixes foram usados na prática da magia amorosa com o intuito de
conquistar Pudentila.
Observamos que este ponto se refere a princípios da virtude simpática ou imitativa
estabelecidos conforme as Leis da Simpatia Universal. De acordo com o principio destas
leis, o pensamento mágico admite uma afinidade entre as coisas. Assim, os acusadores de
Apuleio vêem as propriedades gicas dos peixes propícias para a magia amorosa no
121
Sobre tais nomes, Munguía (1980: 116), nos explica que veretilla, diminutivo de ueretrum (de uereor,
respeitar, sentir pudor), significa no latim membro viril, partes pudentas. uirginal, seria um neologismo
inventado por Apuleio para referir-se ao órgão sexual feminino.
149
parentesco entre as palavras. Segundo Graf (1994: 87), a convicção de que o nome das
coisas se assemelha com suas propriedades está profundamente inscrita no pensamento
greco-romano. Também de acordo com Jacyntho Lins Brandão (1991: 113):
Não dúvida de que, nos dois primeiros séculos de nossa era, a teoria
da simpatia universal se encontra consideravelmente difundida,
fornecendo fundamentos ‘científicos’ para a alquimia, a astrologia, a
magia e certas formas de medicina: havendo relação simpática entre os
elementos, os astros e os órgãos do corpo humano [...] agindo sobre um
dos componentes da cadeia pode-se obter reação no correlato.
Este ponto de acusação é considerado por Apuleio como o argumento mais
poderoso para acusá-lo de praticante da magia (Apologia, XXIX, 1) e sobre ele o filósofo
demonstra grande atenção, dedicando uma grande parte do discurso para sua defesa.
Apuleio nega a compra dos animais marinhos e admite que comprou peixes da
espécie lepos marinus com o intuito de utilizá-los em seus estudos de filosofia naturalista, o
que foi feito por vários filósofos seguidores de Platão (Apologia, XXXVI). O filósofo
também admite que assegurar as propriedades afrodisíacas de certos peixes devido sua
denominação é uma elaboração de pessoas ignorantes (Apologia, XXXIV).
C) O caso do escravo e da mulher epiléptica (Apologia, XLII, XLVIII)
Primeiramente os acusadores colocam que um escravo chamado Talo, sob os
encantamentos de Apuleio, caiu ao solo em um lugar secreto na frente de um altar, fazendo
nesse momento várias profecias. Os demais escravos de Apuleio, conforme os acusadores,
participaram do ritual e serviam como testemunhas contra o filósofo.
De acordo com Munguía (1980: 136), as práticas mágicas realizavam-se sem
testemunhos justamente para não divulgar o segredo de sua arte. Apuleio usa deste
argumento para justificar que não praticou o rito e se tivesse praticado não teria feito na
150
frente de várias pessoas, ele cita ter levado os escravos ante o tribunal e estes negaram ter
visto a prática de adivinhação.
Outro ponto de acusação é que foi trazida à casa de Apuleio pelo médico Temisão
uma mulher que o filósofo prometeu curar e que também caiu ao chão sob seus
encantamentos.
De acordo com Apuleio (Apologia, XL, 2), seus acusadores, após observarem que
o argumento dos peixes era irrisório, resolveram imputar contra ele mais argumentos que o
caracterizassem como mago, inventando questões relacionadas com as crenças mais
divulgadas na época. Dessa maneira, o próprio Apuleio nos deixa entrever uma questão: se
tais crenças eram muito comuns na época, nada impedia que os acusadores realmente
acreditassem que ele era um mago, não apenas usando estas crenças como simples pretexto
para incriminá-lo, sem acreditar que ele se caracterizava como tal.
Apuleio nega que praticou hipnose sobre o escravo Talo para que ele lhe fizesse
presságios e adivinhações e ainda justifica que, segundo vários filósofos, entre eles Platão,
a alma capaz de ser usada pelos deuses para pressagiar o futuro é a alma pura de uma
criança bela, não a de Talo, o escravo mostrado pelos acusadores, que era adulto e doente
(Apologia, XLIII, 2-3). Portanto, Apuleio apenas nega que praticou a adivinhação, mas não
nega que acredita na mesma.
Conforme Apuleio, tanto Talo, quanto a mulher sofriam de morbus comitialis,
doença atualmente conhecida como epilepsia. Na Apologia (L), o filósofo aproveita a
oportunidade de se defender e faz um longo discurso sobre a natureza e as reações desta
doença, citando estudos dos filósofos Platão, Aristóteles e Teôfrastros. Mais uma vez
Apuleio opõe magia e filosofia, como no caso da compra das espécies marinhas.
151
D) Objetos mágicos secretos (Apologia, LIII)
Acusam Apuleio de ter deixado na casa de Ponciano, mais especificamente sobre
os Lares - pequenos santuários domésticos - certos objetos mágicos envoltos em um pano.
Tais objetos foram vistos por um liberto da casa de Ponciano.
Apuleio refuta esta acusação como uma suspeita sem fundamento. Segundo ele,
seus acusadores dizem desconhecer as práticas mágicas e seus objetos rituais, mas o
acusam como se conhecessem. Assim sendo, Apuleio cita que poderiam fazer tal
afirmação se tivessem algum conhecimento sobre o que acusam, ou seja, sobre a magia,
pois se desconheciam o valor dos objetos não poderiam pretender que eles fossem mágicos.
(Apologia, LIII, 1).
Apuleio também cita que se os objetos fossem mágicos não os deixaria expostos
na casa de Ponciano para que as pessoas que ali entrassem pudessem ver, portanto, não
nega a crença no poder da magia.
O filósofo assume ser dono dos objetos, mbolos dos rituais de iniciações
mistéricas que ele havia realizado. Novamente, Apuleio opõe magia e filosofia, que os
objetos tidos como mágicos pelos acusadores são parte de iniciações próprias da sua
filosofia, que nada tinham de negativa, conforme nos mostra. Não sendo estranho, portanto,
que um homem iniciado em tantos cultos, conserve objetos e símbolos dos mesmos.
Pois bem, eu também, como disse, conheci, por meu amor a verdade e
minha piedade a os deuses, cultos de toda classe, ritos numerosos e
cerimônias variadas. E não estou inventando esta explicação para
acomodar-me as circunstâncias, uns três anos que, poucos dias depois
de chegar a Oea, ao pronunciar uma conferência em majestade de
Esculápio, tornei públicas estas minhas declarações e enumerei todos os
cultos mistéricos em que havia iniciado (APULEIO, Apologia, LV, 9-
11).
Acaso pode ser estranho a alguém, se tem alguma noção de religião, que
um homem iniciado em tantas religiões mistéricas conserve alguns sinais
de reconhecimento destes ritos e que as mantenha envoltas em um pano
152
de linho, que é a proteção ideal para estes objetos? (APULEIO, Apologia,
LVI, 1).
Nosso autor nega falar sobre a natureza dos objetos, dizendo ter respeito aos
cultos e ser proibido pronunciar sobre eles. O filósofo propõe que se houver no tribunal
algum adepto destes ritos, este poderá conhecer quais objetos foram conservados, mas
somente este, não todos os presentes no tribunal (Apologia, LVI, 9).
Assim, Apuleio previne a suspeita explicando as finalidades filosóficas destes
objetos.
E) O sacrifício noturno (Apologia, LVII)
Nesse ponto os acusadores de Apuleio incriminam-no juntamente com seu amigo
Apio Quinciano por celebrarem ritos noturnos na casa que Quinciano morava com Junio
Craso
122
.
A prova desta acusação seria uma carta de Craso citando que viu sinais de fumaça
no muro da casa e penas de aves após voltar de uma viagem que fez até Alexandria e que
um de seus escravos disse ter visto Apuleio e Quinciano praticando sacrifícios noturnos na
casa.
Novamente observamos que o argumento está vago, que os indícios de fumaça
no muro, que segundo os acusadores eram de fumaça sacrificial e as penas de aves, não são
provas suficientes para mostrar que estas eram práticas de magia. O que levaria os
acusadores a verem estas práticas como de magia maléfica é o fato de que o animal citado
como sacrificado por Apuleio e o amigo Quinciano eram aves, espécie de animal presente
122
Não fica muito claro no texto da Apologia a quem na verdade pertencia a casa, apenas que Quinciano e
Craso moravam ou moraram juntos de alguma forma.
153
em muitos atos mágicos atestados pelos papiros egípcios, e não os comumente utilizados
em ritos cívicos romanos (GRAF, 1994: 96).
Craso somente envia a carta com seu testemunho e não comparece ao tribunal.
Durante o Principado Romano não era necessário que os testemunhos comparecessem
durante o processo, podendo fazer como Craso, apenas mandando um testemunho escrito.
Entretanto, o não comparecimento da testemunha permitia à parte contrária uma
interessante refutação do seu testemunho (MUNGUÍA, 1980: 155). Assim faz Apuleio,
afirmando também ter levado o amigo Quinciano para testemunhar a seu favor.
Apenas os atos sacrificiais previstos pela religião eram permitidos no mundo
romano. Seitas e sociedades secretas não possuíam prestígios entre os romanos e eram
freqüentemente acusadas de realizar sacrifícios humanos e práticas similares de magia
(MUNGUÍA, 1980: 137). Os sacrifícios humanos, inclusive, eram considerados como
práticas de povos bárbaros, indignas dos romanos.
Tudo indica que Apuleio percebe a gravidade desta acusação e nega
obstinadamente haver praticado sacrifícios noturnos, sendo este ponto o único relacionado à
magia que Apuleio não refuta como parte de um equívoco dos acusadores com seus estudos
filosóficos.
F) A estátua em formato de esqueleto (Apologia, LXI)
Como exposto no segundo capítulo da Dissertação, Apuleio é acusado de ter
encomendado (Apologia, LXV, 8) uma estátua de madeira rara em formato de esqueleto
que ele adorava com o nome de basiléus.
154
Apuleio nega dizer mais sobre sua natureza do Deus que reverenciava nesta
estátua, apenas afirmando que ela representa o Deus Mercúrio e que ele lhe rendia culto
com admiração e piedade.
A estátua foi fabricada com ébano, madeira de um cofre que Ponciano deu de
presente para Apuleio e que este pediu que o escultor desmanchasse para a reutilização do
material, já que esta madeira é mais duradoura e rara (APULEIO, Apologia, LXI, 7).
Apuleio não nega a encomenda da estátua, afirmando que havia pedido que sua
fabricação fosse de qualquer madeira e mostra que a estátua era para um ritual religioso ao
se referir a devoção que teria a ela. Percebemos com isso que Apuleio nega uma
característica própria da magia, a de obrigar os deuses fazerem a vontade do mago.
Portanto, Apuleio contrapõe uma atitude típica do mago à atitude do homem devoto
religioso, mostrando que as barreiras entre religião e magia estão muito mais na atitude do
praticante do que na prática em si.
[...] lhe havia pedido que me fabricasse certos artigos e que, ao mesmo
tempo, me esculpisse uma imagem de uma divindade, ante a qual eu
pudesse fazer minhas devoções habituais, utilizando qualquer material,
contando que fosse madeira (APULEIO, Apologia, LXI, 6).
Apuleio utiliza mais uma vez das palavras de Platão em sua defesa, explicando,
segundo este filósofo, a origem do Deus, cuja estátua venera. Apuleio refere-se a Platão não
apenas como seu mestre, mas também como advogado do processo (Apologia, LXV, 8),
estratégia que confere maior autoridade a sua defesa. Portanto, do mesmo modo, Apuleio
também emprega a filosofia nesse ponto de acusação.
Sobre esta segunda categoria de acusações contra Apuleio, a de praticante da
magia, devemos considerar que na antiga Roma havia uma diferença entre magos
profissionais e temidos que chegavam a possuir clientes aos quais prestam seus serviços e
155
os usuários da magia em determinadas ocasiões, como por exemplo, nas práticas de magia
amorosa para seduzir alguém ou se proteger. Esse segundo tipo de mago tenta empreender
a magia para fins próprios, usando manuais aparentemente populares na Antiguidade
(RENBERG, 1997).
Vários são os pontos relacionados com a magia que os acusadores de Apuleio
apontam contra ele, o que pode denotar que seus adversários não queriam apenas incriminá-
lo como usuário da magia amorosa para conquistar Pudentila, mas um legítimo mago, ou
seja, não estavam apenas preocupados com o crime da prática de magia amorosa, mas com
alguém que freqüentemente praticasse magia.
Apuleio pode ser considerado, na interpretação dos acusadores, como um mago
profissional, que vende seus serviços no caso da mulher epiléptica (APULEIO, Apologia,
XLVIII), quando é procurado por um médico para curar a mulher através da magia.
O próprio Apuleio cita que alguns cidadãos de Oea o tinham como um mago ao
discursar sobre uma carta na qual Pudentila escreve que foi encantada por ele. Nesta
passagem Apuleio refere-se a certos boatos que circulavam pela cidade sobre suas práticas
de magia.
Havia sido enviada, precisamente, para negar os boatos de prática de
magia que imputavam contra mim, mas, por obra de Rufino, produziu-se
um efeito contrário, até o ponto de representar a opinião adversa de
alguns cidadãos de Oea, que me consideram como mago (APULEIO,
Apologia, LXXXI, 1-2).
Portanto, Apuleio parece demonstrar que também era considerado como
praticante da magia por mais pessoas na cidade de Oea.
Os vários pontos de acusação relacionados à magia nos denotam que a
representação do mago e seu poder estavam sendo questionados nesta acusação, recusando
156
a idéia de que a magia era apenas um pretexto da acusação, somente relacionada com os
interesses de ambas as partes no dinheiro de Pudentila.
Além disso, Apuleio serve-se de grande parte do discurso para defender-se dos
pontos que o incriminam como mago, mostrando a seriedade da acusação. Apuleio sugere
como principal ponto a ser discutido o de ter praticado a magia para conquistar a rica viúva,
mas percebe que são muitos os pontos de acusação de magia levantados contra ele. Talvez
ele destaque as relações da magia com o casamento como ponto principal para dar ao
processo o aspecto de que foi acusado por homens interessados no dinheiro da viúva e eram
contrários ao casamento, não dando margens à interpretação de ser a própria representação
do filósofo e mago motivo de ser acusado.
O que percebemos é que não importa o tipo da magia que ele pratica, se goetéa,
portanto vulgar, ou magia teúrgica, mas sim o sentido que a prática de magia tem para esta
sociedade. Se o acusam de magia, não o fazem por confundirem tais práticas, até mesmo
porque seus acusadores eram homens da aristocracia e não meros ignorantes que não
sabiam reconhecer o valor da magia considerada negativa e outra considerada como
especulações filosóficas. Mas o acusam por perceberem nele poderes eminentes também
como mago, assim como filósofo eloqüente.
As práticas mágicas de Apuleio juntamente com sua imagem de filósofo eloqüente
e garboso poderiam causar temor nos acusadores, membros da elite, ocupantes de cargos
públicos em Oea e preocupados na manutenção da ordem e do status quo da cidade.
A caracterização de Apuleio como mago, com todas as implicações desviantes
que isso envolvia, pode não ter significado uma deturpação na intenção de Emiliano, mas
um dos reais motivos que o levam a se levantar contra o filósofo.
157
Ora, se Apuleio foi um praticante da magia ou não, pelo menos na acusação
parece que ele não foi julgado culpado, não na concepção de magia de que é acusado:
prática de magia amorosa para fazer a rica viúva se apaixonar por ele, ou seja, uma magia
com finalidades de agir sobre a vida de outra pessoa de maneira negativa buscando
finalidades egoístas e falsas, uma goetéa. Também não parece que lhe recaiu nenhuma
penalidade pelas demais acusações de magia que lhe foram imputadas.
Para nós, Apuleio era um praticante de um certo tipo de magia, assim ele mesmo
afirma (Apologia, LV, 8-12). Se ele praticou goetéa ou teurgia, não podemos saber, mas
com certeza praticou teurgia, o que o qualifica enquanto tal. Percebemos claramente que
Apuleio considera medicina, filosofia, magia e adivinhação como um todo. Concordamos
com Bruno Mosca (1970: 41) ao explanar que o tribunal, mesmo absolvendo Apuleio, não
concluiu que ele não se ocupava das artes mágicas. O juiz resolvia ali um caso judiciário,
não um problema filosófico.
Consecutivamente, o processo contra Apuleio expõe a causa de polêmicas do
século posterior a ele: a possível diferença entre teurgia e goetéa e coloca em questão as
ligações entre magia, filosofia, medicina, adivinhação e até ciência para sua época.
4.3.3 Pontos relacionados ao casamento de Apuleio com Pudentila e a possível
aliança estabelecida com o mesmo
A) Práticas de magia para conquistar Pudentila
Este ponto se caracteriza como central na acusação, principal motivo pelo qual os
acusadores teriam se movido contra Apuleio.
158
A única prova de que o filósofo praticou magia para que a viúva se apaixonasse
por ele é uma carta escrita pela própria Pudentila ao seu filho Ponciano, levada ao tribunal
pelos acusadores, e que expunha Apuleio como um mago que a enfeitiçou, estando por este
motivo apaixonada por ele (APULEIO, Apologia, LXXIX).
Apuleio refuta o fato de ser mago citado na carta como somente uma forma de
Pudentila se expressar. Ele também afirma que ao colocá-lo como mago, Pudentila quis
negar ter caído em amores por ele, algo, segundo ele, típico das mulheres que não se
assumem apaixonadas, escondendo seus sentimentos através de uma possível coação. No
caso de Pudentila, a coação seria a prática mágica (APULEIO, Apologia, LXXIX, 1).
Devemos considerar que a carta é remetida a Ponciano e se este acreditasse
mesmo que Apuleio era um mago no sentido negativo que tais práticas podiam assumir em
Roma e não tivesse um grande interesse em que sua mãe contraísse matrimônio com o
amigo filósofo, jamais negligenciaria esta observação da mãe de ter sido enfeitiçada.
Portanto, os acusadores de Apuleio se aproveitam desta citação de Pudentila, que pode ter
sido uma simples citação, para incriminá-lo como praticante da magia.
Porém, não devemos subestimar a crença dos acusadores nos poderes mágicos de
Apuleio. Como nos indica Winter (1968: 7), levantar uma falsa acusação na época em que
viveu Apuleio era um crime muito sério e os estudiosos devem estar atentos para isto.
Devemos perceber que a viúva, tempos, negava contrair novo matrimônio e que os
acusadores de Apuleio podem realmente acreditar que ela somente se casou com ele porque
o filósofo praticou magia para conquistá-la.
B) O casamento de interesses com Pudentila
159
Sobre a acusação de ter se casado com Pudentila interessado em sua fortuna,
Apuleio defende-se discorrendo que sua esposa compensava em virtudes o casamento.
Desta maneira, não havia necessidade de se casar com ela pelo seu dinheiro, até mesmo
porque, segundo nosso autor, ele não seria beneficiado economicamente com o casamento
(Apologia, LXVI, 2).
[...] este matrimônio, que de maneira alguma era vantajoso para mim nos
demais aspectos tinha resultado contrário a meus interesses, se minha
própria esposa não tivesse compensado com suas virtudes os múltiplos
inconvenientes do mesmo (Apologia, LXVI, 2).
As exaltações em relação às virtudes de Pudentila são feitas durante toda parte do
discurso em que Apuleio explana sobre o casamento entre ambos.
[...] esta mulher prudente, esta mãe extraordinariamente responsável [...]
(Apologia, LXVIII, 5).
Esta mulher de castidade provada havia suportado os largos anos de sua
viuvez imaculada, sem dar lugar a falatórios [...] (Apologia, LXIX, 2).
[...] mais pura e casta das mães [...] (Apologia, LXXVIII, 2).
Apuleio ainda justifica que se casou com Pudentila desinteressado em sua riqueza
econômica. Nosso autor defende que para um filósofo um dote não significa nada
(Apologia, XCII, 11). Como podemos observar, ele usa também da sua posição de filósofo
nesse ponto de acusação.
Por fim, para tentar demonstrar que realmente não casa com Pudentila apenas por
seu dinheiro, Apuleio expõe suas tentativas de fomentar a paz entre sua esposa e seus filhos
depois das intrigas que estes fizeram, Ponciano por se arrepender de ter consentido e
fomentado o casamento entre eles e Pudente por ser contra o filósofo, ficando assim contra
a mãe (Apologia, XCIII, 2-6). Apuleio afirma que foi ele que não deixou Pudentila deserdar
160
seu filho mais novo, buscando demonstrar que se ele possuísse algum interesse no dinheiro
da esposa desejaria que ela deserdasse e não mantivesse boas relações com o filho
(Apologia, XCIX, 4).
Como já mostramos, Apuleio seria favorecido economicamente com a riqueza de
Pudentila no dote e também na herança, ele mesmo cita ser um dos beneficiários da esposa
caso ela morresse antes dele (Apologia, C, 2). Porém, não devemos desconsiderar a
naturalidade dos casamentos que envolviam dinheiro e política nesse contexto histórico.
É preciso que nos atentemos para o fato de ser exposta implicitamente em
algumas passagens do texto da Apologia uma possível aliança entre Apuleio e o filho de
Pudentila, seu amigo Ponciano, indicando a amizade entre ambos e o desejo de Ponciano de
que sua mãe se cassasse com o amigo Apuleio. Nessas passagens Ponciano é mostrado
como alguém que busca convencer tanto o amigo quanto à mãe de como o casamento seria
interessante. Apuleio, inclusive, mostra-se contrário ao casamento em um primeiro
momento, mudando rapidamente de opinião, deixando entrever que uma boa proposta lhe
foi feita.
Na realidade, para falar desta maneira, Pudentila se deixou guiar muito
mais pelo desejo de seu filho, do que pelo seu próprio (APULEIO,
Apologia, LXXI, 3).
[...] pensava, sem dúvida, que havia encontrado para sua mãe um marido
interessante, a quem poderia confiar sem risco toda sua fortuna e a de sua
família [...] (APULEIO, Apologia. LXXII, 4-5).
Apoiando em todos estes argumentos, insiste em seu empenho e acaba
por convencer-me. Confia a mim sua mãe e seu irmão, o garoto que aqui
vêem. Eu o ajudo um pouco em nossos estudos comuns e nossa amizade
se torna cada vez maior (APULEIO, Apologia. LXXIII, 1).
Eu havia recusado durante algum tempo tal matrimônio, não porque não
tinha oportunidade de conhecer Pudentila ao fundo durante um ano
inteiro de assídua convivência e de comprovar todos seus dotes morais e
sim porque, como eu era apaixonado por viagens, considerava a união
como um impedimento para realizá-las. No entanto, rapidamente quis me
161
casar com tão extraordinária mulher, com tanto entusiasmo como se
minha decisão houvesse sido espontânea. Ao mesmo tempo, Ponciano
havia persuadido sua mãe para que me preferisse ao resto de seus
pretendentes e colocava uma paixão incrível em finalizar este projeto. A
duras penas conseguimos um tempo até que Ponciano se cassasse e seu
irmão tomasse a toga viril, acordamos que nos casaríamos em seguida
(APULEIO, Apologia, LXXIII, 8-9).
[...] fala de sua prolongada viuvez, do remédio para sua saúde, de seus
desejos de casar-se, de meus méritos que eram conhecidos por
Ponciano, dos conselhos que este lhe havia dado para que se cassasse
comigo, preferindo aos demais pretendentes (APULEIO, Apologia,
LXXX, 5).
O casamento é mostrado como um acordo mútuo entre ambas as partes: Ponciano,
Pudentila e Apuleio.
[...] é certo que, quando se casou, voltou atrás do que havíamos decidido
de mútuo acordo [...] (APULEIO, Apologia, LXXIV, 2).
Também é mencionado o desejo de Ponciano de que a mãe se case com Apuleio
em uma passagem da Apologia em que há alusão a uma carta que Pudentila escreveu ao
filho pouco antes de se casar com o filósofo.
Ao ver-me decidida, pelas razões que disse, a casar-me, tu mesmo me
aconselhastes que o preferisse aos demais. Tão grande era sua admiração
por este homem e teu desejo de fazê-lo entrar para a família graças a mim
(trecho da carta de Pudentila, Apologia, LXXXIII, 1).
Apuleio refere-se ao consentimento de Ponciano sobre um novo matrimônio para
a mãe também nesta passagem em que o filósofo mostra que Emiliano aconselhava o filho
mais velho de Pudentila a consentir sobre o casamento da viúva com Sicinio Claro.
Por sua parte, acreditando ainda que ela se casaria com seu irmão Claro,
estimulado por uma esperança infundada, aconselha, inclusive, seu filho
Ponciano a dar seu consentimento neste sentido (APULEIO, Apologia,
LXX, 2).
162
Pouco tempo antes de Apuleio se casar com Pudentila, Ponciano se casa com
Herennia, filha de Herennio Rufino, um aristocrata de Oea. Neste momento Ponciano se
arrepende de ter estabelecido que sua mãe se casaria com Apuleio e briga com o amigo
filósofo, tentando impedir que eles se casassem. Segundo Apuleio, Ponciano age desta
maneira impulsionado pelos desejos do sogro Rufino (Apologia, LXXIV, 5), que acreditava
que se livrando de Apuleio poderia explorar o dinheiro de Pudentila (Apologia, LXXVII,
1). Pouco tempo depois, Ponciano se separa da filha de Rufino e pede perdão ao amigo que
finalmente se casa com sua mãe (Apologia, XCIV, 2).
Tal intriga denota uma relação de alianças feitas e desfeitas entre estas
personagens. Ponciano se alia ao amigo, mas ao casar-se com a filha de Rufino por algum
outro interesse acaba rompendo a aliança com Apuleio que justifica o rompimento com os
interesses de Rufino no dinheiro de Pudentila, não havendo, porém formas diretas de
Rufino se beneficiar com a riqueza da viúva. Não são expostas por Apuleio as razões pelas
quais Ponciano se volta contra ele, apenas citando que foi influenciado pelo sogro. Por
meio de uma nova intriga, desta vez com o sogro, Ponciano refaz as relações estabelecidas
com Apuleio.
Outra questão a ser percebida é o impedimento do pai de Emiliano e do marido
falecido de Pudentila em deixá-la casar novamente. De acordo com Apuleio (Apologia,
LXVIII, 4), o antigo sogro de Pudentila ameaçava deixar seus filhos sem herança caso ela
se cassasse com um homem que não fosse da mesma família de seu falecido marido e esta
somente se liberou de concluir matrimônio com um outro membro da família Sicinni
devido à morte do avô de seus filhos e seu testamento deixando aos netos parte de sua
herança. Portanto, Pudentila desmanchou o contrato de sponsalia com o cunhado e tornou-
se livre para casar-se com quem escolhesse.
163
Apuleio cita que Pudentila somente se submeteu a um novo matrimônio porque
havia necessidades físicas para isso, já que passara todo período da viuvez na abstinência
sexual e esta lhe atrofiava cada vez mais os órgãos, sendo recomendado por médicos que
ela se cassasse novamente. Vários homens se interessavam e procuravam Ponciano para
tentarem casar com sua mãe (APULEIO, Apologia, LXIX, 1). Também Emiliano havia
recomendado que a viúva se cassasse novamente (APULEIO, Apologia, LXIX, 5).
O problema para os acusadores, portanto, não era que Pudentila contraísse novo
matrimônio, mas que o novo matrimônio fosse com Apuleio (Apologia, LXIX, 6).
Buscando demonstrar que Apuleio se casa com Pudentila somente interessado em
sua riqueza, os acusadores levantam várias questões sobre o casamento. As referidas
questões dizem respeito ao casamento ter acontecido no campo e não na cidade, Pudentila
ser muito mais velha que o filósofo e, desta maneira, o casamento entre ambos não ser
considerado fértil e também questionam o alto valor do dote da viúva. Discutiremos abaixo
estas colocações dos acusadores, destacando que estas não foram acusações contra o
filósofo, mas tentativas de invalidação do casamento e provas do interesse de Apuleio no
dinheiro da viúva. Portanto, os pontos discutidos abaixo estão relacionadas à acusação de
Apuleio ter se casado com Pudentila interessado em seus bens.
B1) O casamento no campo (Apologia, LXXXVIII):
Usando do argumento de que Apuleio se casa com Pudentila no campo, os
acusadores tentam invalidar o casamento de Apuleio e Pudentila como uma celebração
clandestina.
164
Em resposta, Apuleio discursa sobre o que pautava a lei em relação à validade de
um casamento, sendo o seu com Pudentila totalmente legal, embora tenha acontecido no
campo sem as tradicionais festas e banquetes comemorativos (Apologia, LXXXVIII, 3-4).
Apuleio justifica a escolha do campo justamente para não gastarem com festas,
que sua esposa acabara de gastar com o casamento do filho mais velho e a celebração da
toga viril do seu filho mais novo (Apologia, LXXXVIII, 10-11).
Nosso autor ainda cita os bons augúrios de um casamento no campo, ligando a
idéia de fertilidade da terra com a fertilidade da esposa na geração dos futuros filhos que
viriam com o matrimônio (Apologia, LXXXVIII, 4-5). Esta idéia expressa por Apuleio dos
bons augúrios da terra sobre a fertilidade de quem casa sobre ela, é um típico caso das leis
que regem o pensamento mágico, obedecendo a Lei da Similaridade O semelhante atrai e
age sobre o semelhante.
B2) A idade de Pudentila (Apologia, LXXXIX)
Neste ponto, é questionado o casamento de Apuleio com uma mulher muito mais
velha que ele. Como percebemos, novamente os adversários de Apuleio buscam invalidar
seu casamento com Pudentila. De acordo com Apuleio, a idade de sua esposa na ocasião do
casamento, que acreditamos ter sido por volta de 155 d.C., era de aproximadamente
quarenta anos.
123
Ordena Máximo, que contem os consulados transcorridos: se não me
engano, verás que a idade de Pudentila apenas ultrapassa os quarenta
anos [...] Mas, como se trata de quarenta anos, número que se expressa
mais facilmente que os demais, com a palma da mão estendida [...].
(Apologia, LXXXIX, 7).
123
A idade de Pudentila é calculada por Apuleio de acordo com os consulados que se sucederam após seu
nascimento (Apologia, LXXXIX 3), que os cônsules romanos davam seus nomes aos anos que
desempenhavam o cargo (MUNGUÍA, 1980: 201).
165
Porém, segundo o filósofo (Apologia, LXVII, 4), seus acusadores aumentaram a
idade de Pudentila para sessenta anos. Para Munguía (1980: 168), este fato ocorreu para
que o casamento entre ambos não fosse legalmente reconhecido, já que a idade de Pudentila
a proibiria de ter mais filhos, estando em desacordo com a Lex Iulia y Papia Poppaea, que
proibia o casamento de mulheres de mais de cinqüenta anos, idade máxima aconselhável
para que as mulheres contraíssem matrimônio segundo as leis (CARROZO, 1991: 74), por
ser considerado infértil.
Acreditamos que a idade de Pudentila possa ter sido diminuída por Apuleio pelo
fato de que Ponciano, o filho mais velho dela, estudou filosofia com Apuleio em Atenas
(APULEIO, Apologia, LXXII, 4). Desta forma, Apuleio e Ponciano deveriam ser mais ou
menos da mesma idade. Se Apuleio e Ponciano tinham na média de trinta anos, certamente,
Pudentila tinha mais de quarenta anos e Apuleio diminuiu sua idade para não dar margens a
desconfianças em relação ao casamento por interesses financeiros. Dificilmente Apuleio
teria muito menos que trinta anos, devido seus relatos de várias viagens e estudos já
realizados. Portanto, há poucas formas de prever a data exata de nascimento de Apuleio.
Além disso, aumentar em vinte anos a idade de Pudentila seria algo
demasiadamente notório nas próprias expressões físicas da viúva, sendo muito fácil que
esta prova fosse reconhecida como falsa, o que incriminaria os acusadores.
Portanto, sobre a idade de Pudentila não podemos confiar exatamente no que
Apuleio nos apresenta. No entanto, se Pudentila tinha cerca de sessenta anos teria dado à
luz a seu filho mais novo, que acabou de receber a toga viril que acontece por volta dos
quinze e dezesseis anos, com cerca de quarenta e cinco anos. O mais provável é que a atual
idade de Pudentila nas vésperas do casamento com Apuleio era uma idade intermediária
entre quarenta e sessenta, podendo ser em média de cinqüenta anos.
166
B3) O dote de Pudentila (Apologia, XC)
Acusam Apuleio de ter obtido com o casamento um alto dote. De acordo com
Apuleio, esta é a causa real da acusação de malefício.
Certamente o dote de Pudentila era uma quantia alta, quatrocentos mil sestércios,
mas que não deixava de ser natural em um casamento entre personagens da alta aristocracia
local como ela e o filósofo Apuleio, portanto, não deveria ter causado tamanha contenda se
não houvesse outros interesses em disputa.
O próprio Apuleio cita que as mulheres ricas viúvas buscavam atrair pretendentes
com um dote de valiosa quantia. Assim também fez Pudentila para conseguir outro marido,
porém acaba encontrando ele, para quem o valor do dote não tinha grandes significações
(Apologia, XCII, 11). Esta última afirmação de Apuleio não tem grandes significações se
analisarmos, como ele mesmo cita em outra parte do discurso, ele era um homem
preocupado com viagens e não estava disposto a se casar e fixar moradia em um único
lugar. Neste sentido, o casamento não apenas financeiramente, mas também politicamente
lhe deve ter sido altamente vantajoso.
4.4 Estrutura e análise da defesa
Sabemos que os discursos dos romanos eram estruturados através de manuais de
retórica vigentes em determinados períodos e regiões do Império. Na época em que Apuleio
apresentou sua defesa, era destacada a importância de Quintiliano, retórico do século I d.C.,
167
e seu manual Instituições Oratórias
124
, obra amplamente utilizada durante o Principado
Romano por professores, juristas, políticos, oradores e escritores, sendo uma fonte
privilegiada de inspiração e reflexão (COUSIN, 1975: VII). Esta obra também é
considerada como o melhor tratado de retórica produzido na Antiguidade Clássica (RUIZ,
1956: 1; BARILLI, 1979: 53).
Apuleio era um filósofo sofista - Segunda Sofística - e as origens do florescimento
deste movimento, de acordo com Armando Plebe (1978: 79), estão ligadas ao mesmo
ambiente em que Quintiliano se destaca: o ambiente de interesse dos Imperadores Flávios
pelos estudos retóricos.
Por acreditarmos que Apuleio possa ter seguido algumas indicações de
Quintiliano na montagem do discurso Apologia, o utilizamos fazendo uma leitura de nossa
fonte principal de acordo com sugestões do manual Instituições Oratórias.
Buscamos, assim, subsídios para entender de que forma a montagem do discurso
da Apologia pode mostrar a maneira como Apuleio compreendeu sua acusação e os pontos
principais, levando-nos a perceber as possíveis motivações da mesma. Da obra Instituições
Oratórias, utilizamos algumas partes que tratam da composição de um discurso
judiciário.
125
124
Quintiliano (L. Marcus Fabius Quintilianus) era espanhol da Calagurria e viveu de 35 a 95 d.C.,
aproximadamente. Foi professor de retórica em Roma, o primeiro professor pago pelo Estado romano, onde
obteve enorme prestígio, chegando a ocupar o cargo de cônsul sob o governo de Domiciano (81 a 96 d.C.). A
obra Instituições Oratórias data do final de sua vida, sendo doze volumes que tratam de considerações sobre
educação de uma maneira geral, ensino da arte retórica e análise de oradores, deixando entrever a percepção
de seu autor sobre a natureza humana e princípios da arte retórica (HARVEY, 1998: 426).
125
A tradução a que tivemos acesso trata-se de uma compilação de textos dos vários livros na ordem que
Jerônimo Soares Barbosa, o tradutor, acreditou dar melhor continuidade e sentido à obra. Barbosa (1944: 22)
acredita ainda que na obra original Quintiliano não fez nenhuma divisão de capítulos e parágrafos, sendo
estes, obras dos copistas e tradutores. Nas nossas indicações desta obra utilizamos a divisão feita pelo tradutor
citado.
168
Nesse sentido, de acordo com Quintiliano, a primeira parte de um discurso
judiciário é o exórdio. O objetivo do exórdio é fazer o orador ganhar a afeição dos ouvintes
(Instituições Oratórias, I, XV, I, I), o que Apuleio faz defendendo sua integridade e
atacando seus principais acusadores - isto também é desenvolvido ao longo de todo
discurso.
Segundo Louis Laurand (1936: 4), o exórdio era essencial nos discursos dos
antigos romanos, sendo a parte que Cícero certamente escrevia antes do pronunciamento
das defesas em público. O exórdio deveria apresentar um resumo do que seria desenvolvido
ao longo do pronunciamento.
Quintiliano sugere (Instituições Oratórias, II, I, I, I) que é interessante levar para
a causa, no exórdio, a defesa do bem público, ou pelo menos de uma coisa atendível e de
conseqüência para o futuro. Assim, notamos Apuleio (Apologia, I, 3; III, 6) mostrar que sua
defesa será em nome da filosofia, equiparando-se ao próprio pretor que, segundo o acusado,
tinha também formação filosófica (Apologia, XXXVI, 5; XLI, 4).
Compreendemos que ao aliar sua defesa à defesa da filosofia, além de dar um
aspecto de causa pública, Apuleio intenta equiparar-se ao juiz e defender um dos pontos da
acusação propriamente: a nossa hipótese da imagem do filósofo e sua função social e
política estar relacionada à acusação. Logo, ele busca mostrar a filosofia neste processo,
pois seus estudos filosóficos fazem parte da acusação.
O exórdio varia conforme o tipo de causa, que pode ser: Duvidosa, Escura e
Baixa. dois tipos de exórdio: Princípio - em causas de mais fácil defesa, quando se
procura diretamente a atenção do juiz - e Insinuativo - em causas de difícil defesa, quando
se insinua aos ânimos do juiz. Neste segundo caso, quando se está perante uma acusação de
difícil defesa, deve-se recorrer à pessoa do réu. (Instituições Oratórias, II, I, III, III).
169
De acordo com o próprio Apuleio (Apologia, II, 3), a causa imputada contra ele, o
crime de magia, não é de fácil defesa. Por isso ele baseia o exórdio da Apologia,
essencialmente, em defender-se pautado na sua boa reputação, exaltando essencialmente
sua eloqüência e honra, recorrendo-se, portanto, à pessoa do réu.
Quintiliano indica (Instituições Oratórias, II, II, III, VI) que se as circunstâncias
prejudiciais ao réu forem muitas, ou seja, muitos são os pontos de acusação, o orador deve
juntar a eles idéias que lhes são favoráveis a fim de que fiquem confundidas, não separando
pontos de acusação e pontos extrínsecos à defesa.
Na Apologia temos Apuleio se defendendo como um bom filósofo, homem
respeitado, eloqüente tanto em latim quanto em grego, honesto e preocupado com sua
imagem de bom cidadão, um homem íntegro que não está acostumado a ouvir injúrias
(Apologia, III, 10), citando, inclusive, sua amizade com o último pretor da África
(Apologia, XCIV). Apuleio também denigre o acusador Emiliano como um mau filho
(Apologia, LXXXIII) e cita problemas pessoais dos demais adversários como aliados em
sua defesa (Apologia, III, 2; LXXIV). Desta forma, durante toda defesa são trazidos pontos
extrínsecos à causa, o que demonstra que, possivelmente, foi uma acusação de difícil
defesa, havendo a necessidade de se recorrer a muitos argumentos.
De acordo com Monika Asztalos (2005: 268), o exórdio da Apologia se apresenta
como uma forma condensada do discurso, que, para esta autora, o discurso pode ser
dividido em duas partes: uma em que Apuleio dirige-se contra seu acusador Emiliano e ao
jovem Pudente - Parte I - e outra em que Apuleio dirige-se a Rufino - Parte II.
Entretanto, acreditamos que Apuleio não divide seu discurso voltando-se para
quem irá atacar, que ele ataca Emiliano e Pudente também no momento em que está
atacando Rufino. Para nós, o discurso divide-se em três partes propriamente: primeiro
170
Apuleio refuta os pontos ligados a sua imagem como filósofo e orador, depois os ligados a
suas práticas de magia e, por fim, os ligados ao seu casamento com Pudentila. Portanto, o
discurso divide-se conforme os pontos de acusação.
Assim, o exórdio da Apologia objetiva mostrar-nos a ação que será defendida - a
magia -, os argumentos de defesa - defesa da filosofia -, um ataque a seus principais
acusadores - Emiliano e Pudente - e uma defesa de sua integridade, seguindo
recomendações de Quintiliano para o exórdio (Instituições Oratórias I, IV, I). Conforme
Quintiliano (Instituições Oratórias, II, I, II, II), o exórdio deve apenas passar uma idéia
sumária e clara do ato para que o juiz tome conhecimento do mesmo. Dessa maneira, nada
é citado sobre seu casamento com Pudentila ainda, não se caracterizando como uma
condensação geral do discurso como coloca Monika Aztalos, mas apenas uma apresentação
da ação.
Sobre o tamanho do exórdio, para Quintiliano (Instituições Oratórias, II, I, III,
IV), ele deve variar conforme a causa, as que possuem muitos pontos, sendo causas mais
complexas, requerem exórdios maiores, as causa simples de um só ponto admitem exórdios
menores. O exórdio da Apologia é um pouco extenso, visto que a acusação também se
estende em muitos pontos.
Para impugnar a pessoa do adversário, Quintiliano (Instituições Oratórias, II, I, I,
I) sugere que ele deve ser mostrado como alguém poderoso para torná-lo odioso; baixo e
abjeto para torná-lo desprezível ou de uma conduta; e malfeitor para torná-lo
abominável. A causa ainda deve oferecer meios de denegrir a imagem dos adversários.
Apuleio escolhe as duas segundas formas de indispor o juiz contra Emiliano, Pudente e
Rufino.
171
Apuleio apresenta o acusador Emiliano como um homem velho ridículo, alguém
que está quase morto. Emiliano é alguém que o aborrece, mas não apresenta ameaça
genuína. Para nós, este relativo desprezo de Apuleio ao adversário é uma estratégia do
autor. Assim, ao minimizar a importância de Emiliano, ele busca minimizar a própria
importância da acusação, seu valor e sentido, ou seja, Emiliano é desprezível assim como a
própria acusação que ele move.
Outro traço que Apuleio caracteriza Emiliano é sua imprudência, dedicando
grande parte do exórdio para caracterizá-la. Ao desqualificar seu adversário logo no início
do discurso, Apuleio busca deixar o juiz preparado para a falta de importância de Emiliano
e conseqüentemente da ação.
Emiliano é apresentado também como um homem rústico
126
, em contraponto ao
filósofo Apuleio, conhecedor de diversas culturas, erudito como o juiz. Porém, ao longo do
discurso Apuleio se contrapõe ao mostrar que Emiliano leva ao tribunal como prova de que
ele seduziu a viúva, uma carta, segundo o acusador, escrita pelo acusado em grego
(APULEIO, Apologia, LXXXVII, 4), mas se Emiliano era um homem de tamanha
rusticidade não saberia ler grego e compreender o significado da carta. De homem rude,
Emiliano imediatamente passa a homem bilíngüe, que sabe ler grego a ponto de usar uma
carta nesta ngua como prova de acusação. Portanto, Apuleio busca mostrar Emiliano
como um homem rude como estratégia para contrapor-se a ele, mas Emiliano como um
aristocrata da época parece não ter uma educação tão rudimentar como Apuleio sugere.
Apuleio conta a história sobre um falso testamento que Emiliano forjou,
demonstrando que ele tinha um passado de mentiras diante da justiça (Apologia, III, 1).
126
Apuleio usa dos adjetivos rudi et indocto - rude e ignorante - e rustico et barbaro - rude e bárbaro - para
qualificar Emiliano.
172
Toda a estratégia de Apuleio é, naturalmente, de denegrir a imagem do acusador,
contrapondo-a a sua.
Umas das partes mais interessantes da defesa é a oposição que Apuleio faz com
seus adversários de sua imagem enquanto homem público e de seus adversários como
homens anônimos. Entendemos que com isso Apuleio intenta mostrá-los como
insignificantes perante a sociedade, diferente dele que tem uma importância enquanto
filósofo (Apologia, XVI, 11-12). Apuleio discorre que pela cidade, as pessoas diziam mal
de Rufino e muito bem dele. (Apologia, XCIV, 1). Portanto, sua imagem de homem público
e seu poder enquanto tal são referidos no texto.
Apuleio afirma sua superioridade intelectual em relação aos adversários em várias
passagens do texto e busca demonstrar que a acusação não é séria, pois vem de homens
rudes e inferiores intelectualmente a ele. Sendo assim, considera que sua defesa não
apresenta dificuldade. O acusado critica o fato de Emiliano jamais abrir a boca se não for
para pronunciar insultos, em contraposição a ele, um grande orador (Apologia, VIII, 2).
Porém, Emiliano não parece ser tão rude assim e nem o discurso tão fácil de ser defendido,
como já definido por nós.
O jovem Pudente é apresentado como pernicioso, aquele que mesmo não tendo
idade suficiente para ser punido, causa injurias (APULEIO, Apologia, LXXXV). Winter
(1968: 22) observa que Apuleio parece diminuir a idade mental do jovem Pudente, que
deveria ter por volta dos dezoito anos na época do processo, a fim de fazer do processo algo
falso, movido por alguém incapaz de receber credibilidade, desacreditando o juiz. O autor
(1968: 23) afirma ainda que Apuleio jamais mentiria a idade biológica de Pudente frente ao
tribunal, portanto esta declaração da incapacidade do rapaz diz respeito apenas a sua
173
imaturidade mental. Como podemos notar, Pudente também é referido como um mau filho
e como alguém que não respeita a própria mãe (APULEIO, Apologia, LXXXV).
O último acusador a ser apresentado é Herennio Rufino, que tem grande
importância na acusação, apesar de percebermos pelo discurso de Apuleio que ele se
esconde atrás de Emiliano que, por sua vez, se esconde atrás de Pudente.
Apuleio ataca Rufino como um homem efeminado (Apologia, LXXVIII, 3), de
aparência pouco jovial mesmo quando jovem e desprovido de graça (Apologia, LXXIV, 7),
também usando do ataque à aparência física do acusador, assim como sua aparência física é
criticada na acusação.
Para Apuleio (Apologia, LXXVII, 1), Rufino é um homem avarento que se
envolve na acusação interessado no dinheiro de Pudentila. A mulher de Rufino é definida
pelo filósofo como uma corrompida pelo próprio marido ao vendê-la sexualmente para
outros homens. Até a casa de Rufino não fica isenta de críticas, sendo apresentada por
Apuleio como um prostíbulo (Apologia, LXXV, 1-3). Apuleio também se refere
negativamente à filha de Rufino, expondo-a como uma jovem despojada de pudor, intrépida
e que seguia os modelos de sedução da mãe (Apologia, LXXVI, 5).
alguns pontos interessantes de serem percebidos no envolvimento destas
pessoas na acusação. Primeiramente, que a principal pessoa que Apuleio ataca é Sicinio
Emiliano. Em diversas partes de sua defesa ele escarnece este personagem. Consideramos
que se fosse uma acusação de cunho passional, que Pudentila havia contraído esponsais
com Sicinio Claro, as desfazendo e casando com o filósofo, motivando os Sicinii a
moverem uma ação contra o filósofo, a medida tomada por Apuleio seria de atacar Claro e
não Emiliano. O próprio garoto Pudente, promotor legal da ação, é pouco atacado frente
174
aos ataques que Apuleio levanta contra Emiliano. Rufino, embora receba especial atenção
no ataque do filósofo, é menos atacado que Emiliano.
Sobre o juiz, Quintiliano aconselha (Instituições Oratórias, II, I, I, I) que em todo
discurso o louve com muito modo e engrandeça sua autoridade e sua pessoa como
estratégia para ganhar seus afetos, ligando este louvor à causa. É interessante também que
se conheça o gênio e os costumes do juiz.
Certamente Apuleio usou de elogios, da semelhança de formação e do gosto pelo
cosmopolitanismo de ambos, citando personagens políticos importante de conhecimento
dos dois e contrapondo o saber deles à afirmada ignorância de seus acusadores, estratégia
para conquistar a simpatia desta autoridade (Apologia, XXV, 3XLVI, 5; XLVIII, 5; LIII, 4;
LXIII, 6, 7; LXXXV, 2; CIII, 5).
Sobre a defesa dos pontos que lhe acusam, propriamente, como observamos, no
primeiro ponto Apuleio sugere o argumento central da defesa (Apologia, IV) discorrendo
sobre a acusação de ser um filósofo formoso e eloqüente.
Neste sentido, será usando da filosofia e de sua eloqüência que ele se defende e a
filosofia é mostrada como base da defesa de cada ponto: os pontos relacionados com magia
são parte de seus estudos místicos, ou seja, parte da filosofia de que era seguidor e os
pontos relacionados ao casamento são refutados através das digressões sobre o desprezo
dos filósofos em relação à riqueza.
Antes da apresentação das provas e contra-provas, Apuleio nos mostra o objeto
particular de cada ponto de acusação: ser um filósofo aposto e eloqüente, o que demonstra
que uma estreita relação da filosofia e a representação de poder do filósofo - aposto e
eloqüente, capaz de falar bem e persuadir pessoas - com este processo.
175
Quintiliano recomenda (Instituições Oratórias, II, IV, I, I) que antes da
apresentação da prova e da refutação, deve-se fazer uma partição que é uma enumeração
ordenada dos pontos a fim de aclarar as matérias e fazer o juiz mais atento à causa.
Em um primeiro momento, Apuleio não faz uma partição das provas que são
apresentadas contra ele, passando direto para a refutação de cada ponto. Somente enumera
as provas que irá refutar individualmente na parte em que são analisadas as provas
relacionadas à magia amorosa (Apologia, LXVII, 2), ou seja, os pontos diretamente
relacionados ao seu casamento.
Esta estruturação feita por Apuleio pode demonstrar que a questão do casamento é
fundamental no processo, até mesmo porque se ele não contraísse matrimônio com a rica
viúva não permaneceria na cidade de Oea e não despertaria o temor de seus acusadores,
mesmo sendo um importante filósofo e orador e ter sua imagem envolta em um atraente
misticismo. Também as demais provas relacionadas à magia complementam a ligação com
o casamento, que o ponto central de acusação é que ele enfeitiçou Pudentila para que ela
se cassasse com ele.
Quintiliano (Instituições Oratórias, II, XIV, I, IV) recomenda que a ordem que
deve seguir o refutamento dos pontos da acusação deve ser: primeiramente o ponto mais
forte de acusação, depois os mais fracos e terminar com o mais forte, a fim de impelir o
juiz. Porém, se a defesa do mais forte for demasiadamente difícil e a dos mais fracos muito
fáceis, é preciso mudar a regra. Assim, começa-se pelo mais fraco e desenvolve-se até o
mais forte, para que o juiz ao chegar ao ponto mais difícil já esteja persuadido de que tudo é
falso.
Seguindo possíveis recomendações de um manual como o de Quintiliano, Apuleio
escolhe a segunda estratégia para sua defesa: primeiramente defende sua imagem enquanto
176
filósofo e orador, de fácil defesa tendo em vista as honras que recebia enquanto homem
público; depois passa para a defesa das sérias acusações de magia, que, porém são
misturadas à sua filosofia e, por fim, discursa sobre o casamento de interesses, ponto mais
difícil de defesa tendo em vista as vantagens explícitas que a união com Pudentila lhe
trouxe.
De acordo com Monika Asztalos (2005: 276), a estratégia de defesa maior
espaço às acusações menos perigosas, seguindo primeiramente com os pontos menores da
acusação, relacionados à magia e filosofia mística de que Apuleio era seguidor e depois o
ponto principal: o casamento com Pudentila.
Não consideramos que a magia e a filosofia de Apuleio sejam pontos menores da
acusação, com a intenção apenas de denegrir a imagem de Apuleio. Analisamos tais pontos
como autênticas acusações, porém menos importantes se consideramos que a magia e a
filosofia de Apuleio apenas são questionadas porque ele casa com a viúva e assim
permanece na cidade, desfazendo possíveis relações entre famílias e estabelecendo uma
aliança entre ele e a rica viúva.
Portanto, se Apuleio apenas tivesse passado por Oea como um sofista, não
contraindo matrimônio e se estabelecendo nesta cidade como morador, as características
que o tornam um homem público, que despertam inveja e capacitam-no a ocupar cargos
políticos, teriam passado despercebidas. É assim, que consideramos o casamento como
elemento fundamental na acusação, não deixando, porém, de atribuir valor aos demais
pontos da mesma.
Podemos perceber também que Apuleio tende a minimizar as questões colocadas
contra ele, lançando-as no âmbito de uma intriga familiar. A própria colocação do
casamento como principal foco de acusação pode ser uma estratégia do filósofo neste
177
sentido, que o crime da magia é em Roma um crime bem mais rio que uma disputa
entre famílias
127
.
O juiz parece ter aceitado a tese de Apuleio de que se tratava de um crime
privado, no âmbito das famílias envolvidas, e não público.
Para finalizar, cumpre notarmos quais os temas Apuleio desenvolve melhor ao
longo de sua defesa. De acordo com Laurand (1936: 05), o orador Cícero em suas causas
judiciais desenvolvia melhor temas mais interessantes e que considerava de maior peso para
a causa e omitia os menos interessantes.
Todas as três possíveis motivações do processo são tratadas igualmente durante o
discurso. Os valores da eloqüência e a inveja dos acusadores, a filosofia mística e suas
práticas de cunho mágico e o casamento com a viúva são bem desenvolvidos por Apuleio.
Dentro destes temas, os pontos que recebem maior atenção e maior desenvolvimento na
Apologia são especialmente três: o ponto de acusação sobre a compra dos peixes - que
permite a Apuleio exaltar seus valores de filósofo naturalista e descartar possíveis relações
com a perigosa goetéa, o caso do escravo e da mulher epiléptica - em que Apuleio mais
uma vez exibe seu saber sobre causas de doenças e descarta mais uma vez suas ligações
com a magia nefasta e a digressão acerca dos valores da pobreza - em que Apuleio busca
exaurir a idéia de que tinha interesses financeiros ao se casar com Pudentila.
127
Segundo nos informa Gilvan Ventura da Silva (2003: 268), os romanos dividiam o direito entre público e
privado, conforme o sujeito que sofre a ação: O Estado ou os indivíduos. Conforme a Lei das Doze buas, o
crime de magia se enquadra como infração do âmbito do direito privado. Ao longo do Império uma
tendência em converter os crimes da esfera privada em crimes da esfera pública, crimes contra o Estado,
incluindo a magia e adivinhação. Podemos notar, nesse sentido, a importância dada à magia e a seus
praticantes. Ainda durante a República, com a preocupação das ordens dirigentes em proibir as práticas
religiosas que pudessem interferir na moralidade e na ordem pública, ritos báquicos e práticas de magia
maléfica passam a ter uma conotação de ordem política. Desta maneira, o crime de magia no período em que
Apuleio é acusado enquadra-se no âmbito do Direito Público Romano.
178
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos a História como o resultado de operações interpretativas, que
cada historiador/intérprete tem uma visão relativa a seu contexto, utilizando-se de
procedimentos que permitem articular um modo de compreensão em um discurso de
“fatos” (CERTEAU, 2002: 41). Baseando-nos nas idéias de Michel de Certeau sobre a
“Escrita da História”, buscamos na presente dissertação interpretar o episódio da acusação
de praticante de magia contra Apuleio por meio das relações com o poder na cidade onde se
desenrolou a ação legal mediante o próprio testemunho do réu.
Durante o primeiro capítulo, percebe-se que Apuleio, sendo um homem
abastado financeiramente, configurou-se como um importante cidadão da África Romana,
chegando a ocupar cargos políticos e sacerdotais. Também seus acusadores faziam parte da
elite da época, sendo todos ricos em termos de fortunas privadas. Embora Apuleio não nos
forneça muitos indícios das relações sociais e possivelmente os cargos que seus acusadores
ocupavam na administração de Oea, podemos compreender que estes homens faziam parte
da elite administrativa dessa cidade através dos dados sobre suas fortunas, já que era
comum que os cidadãos membros da elite econômica fossem também os dirigentes e
homens públicos nas cidades do Império. Assim, todas as famílias envolvidas no processo
parecem estar relacionadas nas redes de poder que estruturavam as relações políticas das
cidades romanas no contexto do Principado, sendo que indícios arqueológicos indicam que
um importante membro dos Sicinii, família dos acusadores, chegou a ser senador em Roma.
Apesar deste dado ser algo de extrema importância para a análise do sentido da
acusação, os estudos que versaram sobre as motivações do processo em questão não
demonstraram preocupação em analisar o local de onde se proferiu a acusação, os
179
personagens envolvidos e a configuração do casamento entre Apuleio e Pudentila, além dos
interesses financeiros do filósofo. Os historiadores não atentaram para o fato de que
casamentos na Antiguidade Romana eram extremamente importantes para as carreiras de
homens públicos como Apuleio e estavam relacionados com as alianças políticas entre as
abastadas famílias da elite que administrava as cidades do Império.
Nenhuma importância também foi dada pelos historiadores que estudaram o
processo contra Apuleio para o fato do acusado se configurar como um filósofo, um orador,
um sacerdote e, de certa maneira, um praticante da magia. Posições estas que lhe
conferiram grande destaque nos setores da vida pública e na política romana, pois estavam
também relacionados com o poder e o prestígio social, como buscamos mostrar no terceiro
capítulo. Diante do exposto, vale ressaltar, que acreditamos que Apuleio foi acusado porque
a magia nesta sociedade tem um significado maior do que apenas a prática em si, estando
relacionada não apenas à crença no poder de mudar o curso natural das atividades humanas,
que conferia um status de poder à figura de seu praticante, mas também ao poder político,
que no mundo romano imperial os próprios administradores eram adeptos de práticas
desta natureza. Assim, acusando Apuleio de ser um mago, percebemos que esta sociedade
acreditava na magia como um instrumento de poder, buscando eliminar um inimigo em
potencial.
Observamos ainda que no discurso de defesa, Apuleio delimita graus de
diferenciação entre ele e seus acusadores, julgando-se mais importante que os mesmos. O
ataque maior do filósofo se volta contra o rico proprietário de terras Emiliano, o que indica
que foi este homem que pode ter induzido o jovem Pudente a abrir o processo contra o
novo marido de sua mãe. Sicinio Claro, irmão de Emiliano com quem Pudentila deveria se
casar, é pouco mencionado e mais pessoas além da família de Emiliano e Claro são citadas
180
por Apuleio como querendo sua punição. Isso, para nós, demonstra que a acusação
extrapolou o âmbito familiar e abarcou outros homens da elite de Oea que tinham como
interesse comum afastar o filósofo da sociedade dessa cidade.
Apuleio justifica a acusação com um argumento subjetivo e não concreto: a
inveja que os acusadores sentiam dele, de sua representação como filósofo, orador e
conhecedor de doutrinas mágicas e mistéricas. O argumento da acusação por inveja, neste
sentido, é por nós interpretado como uma maneira do acusado se sobrepor aos adversários e
nos fornece indícios de uma interpretação da acusação pelo próprio Apuleio dentro das
relações de poder entre acusado e acusadores, uma vez que achar que alguém sente inveja
pode significar que se acredita ter um certo potencial para que essa inveja seja despertada e,
no caso de Apuleio, esse potencial seria sua filosofia, oratória, magia e o casamento com a
rica viúva.
Apuleio recorre sempre à filosofia para se defender. Em diferentes pontos da
acusação o réu traz à tona suas especulações como filósofo místico e naturalista - acusações
relacionadas à magia e à sua imagem como filósofo - e como filósofo desprendido de
preocupações com bens materiais - acusações relacionadas ao casamento por interesses
financeiros com Pudentila-, demonstrando-nos assim a importância da sua imagem como
filósofo e buscando, ainda, convencer o juiz de sua inculpabilidade.
Os pontos da acusação podem ser percebidos como frágeis, sendo todos
defendidos dentro da própria Paidéia do acusado. O único ponto que parece ter sido de
defesa mais difícil para Apuleio foi o das práticas secretas de ritos noturnos, quando o
acusado se isenta em falar sobre o assunto. Acreditamos que, com isso, Apuleio deixe
entrever ainda mais suas relações com a magia.
181
Não deixamos de perceber que tudo indica que o texto da defesa, a fonte
Apologia, é elaborado cerca de quinze anos após o processo em um outro contexto e em
uma outra cidade, quando Apuleio era um importante sacerdote em Cartago. Com isso, o
texto pode ter sofrido alterações nas reais acusações e formas de defesa. Entretanto,
conferimos que este discurso é um testemunho de extrema validade para a compreensão das
motivações da acusação, dentro da ótica do acusado e com a intenção de mostrar sua
imagem de cidadão honesto e correto para a sociedade que o aceita como sacerdote e para
os que o lerão futuramente.
182
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265-271.
197
ANEXOS
ANEXO 1
Mapa das províncias romanas da África do Norte no final do século II
d.C.
Fonte: MOKHTAR, G. (coord.) História geral da África v.2: A África Antiga. Tradução
de Carlos Henrique Davidoff. São Paulo: Ática/UNESCO, 1983, p. 474.
198
ANEXO 2
Árvore genealógica dos principais envolvidos na acusação contra Apuleio
Sicinii
|
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
| | |
| | |
Sicinius Clarus Sicinius Aemilianus Sicinius Amicus - Pudentilla -
Apuleius
|
|
|
|
Herennius Rufinus _ _ _ _ _ _ _ _ _
| | |
| | |
Herennia - Pontianus Pudens
Na árvore genealógica mantivemos os nomes em latim como são remetidos por
Apuleio.
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