Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
Bianca De Vit Begrow
AS MÃES E SEUS FILHOS
(Uma leitura d’O tempo e o vento, de Erico Verissimo)
Orientador: Prof. Dr. Flávio Loureiro Chaves
Caxias do Sul, novembro de 2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
Bianca De Vit Begrow
AS MÃES E SEUS FILHOS
(Uma leitura d’O tempo e o vento, de Erico Verissimo)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras e
Cultura Regional.
Orientador: Prof. Dr. Flávio Loureiro Chaves
Caxias do Sul, novembro de 2006
2
ads:
DEDICATÓRIA
Ao meu grande mestre e amigo,
Flávio Loureiro Chaves, e à minha
mãe, Elisabeth.
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao meu orientador, Flávio Loureiro Chaves, homem por
quem tenho profunda admiração, não apenas pelo excelente profissional que é, mas pela
pessoa extraordinária que orgulhosamente chamo de amigo.
Agradeço também a todos os professores que fizeram parte desse processo: Elisa
Battisti, Loraine Slomp Giron, Jayme Paviani, Heloísa Feltes, Cecil Jeanine Albert Zinani,
Marília Conforto, João Cláudio Arendt, Cleodes P. J. Ribeiro e Vânia Beatriz Herédia.
Aos meus colegas de curso, pelas trocas inestimáveis que me proporcionaram e pelo
coleguismo: Morgana Rossetti, Nivaldo Pereira, Patrícia Alberti, Marli Cristina Tasca
Marangoni, Márcia Hillebrand, Tenisa Zanoto, Sinara Maria Boone, Marisa Bráulio, Maria
Cristina Zandomeneghi Bergamaschi, Greice Tomasi, Janete Fassini Alves e, muito
especialmente, a Douglas Ceccagno, grande amigo e confidente, com quem pude partilhar as
angústias de mestranda e vários outros momentos nesses últimos dois anos.
À minha família: meu pai, Nilvo, meu irmão, Leandro, minhas irmãs, Clarissa e
Desirée e, especialmente, minha mãe, que esteve esse tempo todo à disposição para me
escutar e apoiar, dando-me forças e estímulos para seguir em frente sempre.
Ao Vagner, que sempre acreditou em mim e apoiou minhas escolhas, que
compreendeu minhas ausências nesse período de dedicação ao Mestrado e que incentivou
constantemente o meu crescimento profissional.
Agradeço à Ariela, sempre tão prestativa e pronta para auxiliar a mim e a meus
colegas. Ao meu primo Ben-Hur, pelos valiosos empréstimos de livros e, finalmente,
agradeço a Juliana Maria Andrighetti, colega de trabalho e amiga, que me disponibilizou o
tempo necessário para que eu conseguisse concluir esse trabalho.
4
RESUMO
Esse trabalho propõe uma interpretação das relações entre mães e filhos estabelecidas por
Erico Verissimo em O tempo e o vento. Toma como parâmetro as personagens femininas Ana
Terra, Bibiana Cambará, Luzia Silva, Maria Valéria e Ismália Caré, e as personagens
masculinas Pedro Terra, Bolívar, Licurgo e Rodrigo. Pretende verificar como estas relações
condicionam as personagens masculinas e examinar seu significado literário no contexto
histórico projetado no texto. As cinco mães estudadas têm importância decisiva na construção
da sociedade patriarcal imaginada pelo autor e, assim, constituem personagens basilares do
texto.
Palavras-chave: Erico Verissimo; Literatura; Sociedade patriarcal
5
ABSTRACT
This work is an interpretation about the relationships between mothers and sons made by
Erico Verissimo to his book “O tempo e o vento”. It takes as a parameter the female
characters Ana Terra, Bibiana Cambará, Luzia Silva, Maria Valéria and Ismália Caré, and the
male characters Pedro Terra, Bolívar, Licurgo and Rodrigo. It intends to check how these
relationships lead the male characters and think about the literary meaning in the historical
context projected on the text. The five women studied have a founder importance to the
building of the patriarchal society imagined by the author and they are the basic characters of
the text.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 8
A MÃE TERRA........................................................................................................................19
A MÃE DUAS VEZES ANA...................................................................................................45
A MÃE SECA...........................................................................................................................62
A MÃE SEM VOZ................................................................................................................... 79
A MÃE ESTÉRIL.....................................................................................................................94
CONCLUSÃO........................................................................................................................ 105
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................... 109
7
INTRODUÇÃO
Tratar das relações humanas é centro das atenções de várias áreas de estudo, a começar
pela antropologia, psicologia, sociologia, entre outras. A Literatura também se preocupa em
abarcar essas relações, tomando-as como temática de vários textos que são do nosso
conhecimento.
grandes clássicos da literatura preocupados em retratar relações entre familiares
que permeiam a memória cultural de grande número de pessoas. Desde textos mais remotos
da literatura, como os dos gregos, havia amostras do quão amplo e discutível é o tema do
convívio entre pessoas da mesma família. Verificamos isso ao lembrarmos do caso cânone
criado por Sófocles, Édipo Rei, no qual pai, mãe e filho se vêem enredados num destino
inevitável de tragédia familiar. Lembremos também de Eurípides, criador das ações tão
condenadas de Medeia, personagem que título ao texto, com relação a seus filhos,
realizadas com o propósito único de vingar-se do marido. Remetendo-nos à produção
brasileira, pode-se citar os irmãos gêmeos e rivais Pedro e Paulo, criados por Machado de
Assis em seu romance Esaú e Jacó, no qual se retrata a relação conturbada existente entre os
dois desde a gestação.
Seria possível trazer à discussão muitos outros exemplos de criações literárias,
especialmente do nero romance, feitas a partir desse recorrente tema e, ainda assim, o
instigante. Isso porque o romance é visto como a mais importante e mais complexa forma de
expressão literária do nosso tempo
1
. Então, sempre haverá algo a ser dito sobre o que se passa
no âmbito familiar, seja de forma científica ou puramente inventiva, a exemplo do teatro, do
cinema e da literatura.
1
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1967, p. 239.
8
Escrevemos sobre o que conhecemos, sobre o que vemos, sobre o que entendemos,
sobre o que estudamos ou até sobre o que procuramos compreender. Provavelmente nem
todos os que se dedicam (ou se dedicaram) a escrever sobre relações familiares tenham as
respostas para todas as inquietações formuladas acerca dessa instituição cultural, mas, de uma
forma ou de outra, a maioria deles nos traz perguntas pertinentes a serem feitas sobre o que
nos rodeia.
Na tentativa de responder a algumas, nesse trabalho procuraremos investigar a maneira
como Erico Verissimo representou as personagens femininas enquanto mães em sua trilogia
O tempo e o vento
2
, texto que enfoca a saga da família Terra Cambará no decorrer de duzentos
anos de História (de 1745 a 1945), enfatizando personagens de sete gerações da família.
Dentre essas personagens, as que nos interessam são: Ana e Pedro Terra, Bibiana e Bolívar
Cambará, Luzia e Licurgo Cambará, Maria Valéria e Rodrigo Cambará e, por fim, Ismália
Caré.
Assim, temos o objetivo de interpretar as relações mãe/filho, subsidiados pela
sociologia, antropologia e teoria literária, verificando como essas relações condicionam as
personagens masculinas acima determinadas no mundo imaginário de Erico Veríssimo.
Pretendemos, também, identificar se essas personagens femininas/mães correspondem ou não
às expectativas da sociedade rural e patriarcal retratada pelo autor e, por fim, examinar a
importância dessas relações no contexto histórico projetado em O tempo e o vento e o seu
significado literário.
Em seu enredo, “as personagens constituem um dos elementos estruturais basilares do
romance. O romancista cria seres humanos, situados num determinado espaço, movendo-se
numa determinada ação”
3
. De acordo com Forster
4
,
2
VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento. 27. ed. São Paulo: Globo, 1995.
3
AGUIAR E SILVA, op. cit, p. 239.
4
apud AGUIAR E SILVA, op. cit.p. 241 e 242.
9
dois tipos de personagens romanescas: as personagens desenhadas (ou
planas) e as personagens modeladas (ou redondas). As primeiras são
definidas linearmente por um elemento característico básico que as
acompanha durante toda a obra. Tende à caricatura e à natureza cômica. Não
altera seu comportamento e, por isso, não surpreende. As segundas são mais
complexas, com multiplicidade de traços e que, por vezes, apresentam
reações que surpreendem o leitor.
Determina-se que, visto isso, o nosso objeto de estudo são personagens modeladas
redondas criadas por Erico Verissimo em O tempo e o vento, com ênfase nas personagens
que caracterizam as relações mãe/filho. Sendo assim, faz-se necessário rever as personagens
femininas selecionadas do texto que assumem a função de mãe: Ana Terra, Bibiana, Luzia,
Maria Valéria e Ismália Caré, e as que assumem a função de filho: Pedro Terra, Bolívar,
Licurgo, Rodrigo Cambará e Lauro Caré. Para tanto, far-se-á uma divisão de linha de estudo,
ou seja, as mães citadas serão divididas em dois segmentos: as mães que correspondem, de
certo modo, à expectativa da sociedade patriarcal da época (Ana, Bibiana e Maria Valéria) e
as que não correspondem (Luzia e Ismália). As personagens masculinas, então, serão de
importância para que demonstremos as funções de suas respectivas mães. Ou seja, nos
serviremos desses filhos em prol de um estudo mais cuidadoso das mães.
As personagens que integram as gerações da família Terra Cambará são também fator
fundamental para a demarcação de um romance histórico como é o caso de O tempo e o vento.
Há, no texto como se poderia esperar em um romance histórico personagens que de fato
existiram (podendo-se citar a aparição do político Getúlio Vargas, por exemplo) e as criadas
pelo autor. Percebe-se, entre essas últimas, uma firme diferença de papéis na construção da
narrativa e na estruturação da sociedade em formação, que se trava entre as personagens
femininas e as masculinas. De um lado, têm-se os homens que vão para a guerra e
representam, então, uma “força horizontal nômade”, o vento, e, de outro, as mulheres, que são
a sustentação da família, do Sobrado, da História, como uma força vertical, o tempo
5
.
5
CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo: o escritor e seu tempo. Porto Alegre: Ed. Universidade, 2001.
1
Também voltada ao segmento feminino do texto de Erico, Lélia Almeida
6
entende que
o significado da palavra ‘mulher’ remete diretamente ao seu papel social de mãe e esposa.
“Ser feminina, ser mulher passa por determinadas funções: a de ser esposa, em primeiro lugar,
seguida esta da função materna e todas as infinitas implicações que a maternidade traz
enquanto função.”
7
A autora cita Danda Prado
8
, que o papel de mãe como fundamental,
confundindo-se com o próprio estatuto prescrito para a mulher. Assim, afirma-se que é a
partir da regulamentação da função de mãe que se institui a família.
Durante muito tempo, a maternidade foi considerada a principal função feminina, não
pelo compromisso em gestar, como também em criar e educar os filhos, o que explica a
tamanha responsabilidade depositada nessas mulheres pelo tipo de pessoa que criam, como se
essa educação dependesse apenas delas. Segundo Falcke
9
,
a idéia da procriação ainda é parte inerente da vida da mulher. Nos dias
atuais, o questionamento sobre querer ou o ter filhos é mais comum.
Contudo, esta possibilidade de escolha é recente. Ela tornou-se efetiva em
função do surgimento dos métodos anticoncepcionais e a partir daí, passou a
ser, gradativamente, uma opção mais aceita no âmbito psicossocial. [...]
Neste sentido, a maternidade era tida como inquestionável. A idéia de ser
mãe ia sendo absorvida pelas mulheres como uma conseqüência lógica e
natural da vida.
A autora ainda expõe que existe uma expectativa de um amor extremo da mãe pelos
filhos, acima de qualquer coisa: o amor materno. Então, normalmente é exigido das mães que
coloquem os filhos como prioridades em suas vidas, tendo esse amor como incondicional,
inato e insubstituível
10
. Porém, ainda nesse mesmo texto, a psicóloga revê a existência de
teorias, como a de Badinter, que mostram o amor materno não como inato e parte intrínseca
6
ALMEIDA, Lélia. A sombra e a chama: uma interpretação da personagem feminina n’O Tempo e o Vento de
Erico Verissimo. Porto Alegre, 1992. 147 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
7
Idem, p. 39.
8
Apud ALMEIDA, op. cit.
9
apud WAGNER, Adriana (coord.). Família em cena: tramas, dramas e transformações. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2002.
10
Idem.
1
da natureza feminina, mas como um sentimento humano semelhante a outro qualquer: incerto,
frágil e imperfeito. “Além disso, ele possui variações de acordo com a época e com os
intervenientes socioeconômicos do contexto em que vivem as mães”
11
.
O discurso que se faz sobre a função materna envolve, inevitavelmente, o conceito de
família, ao qual se entende que seja um fenômeno social, básico e universal por se encontrar
em todos os agrupamentos humanos embora variem as estruturas e o funcionamento. Com
base nos estudos de Marconi e Presotto
12
, entendemos o conceito de família como uma
complementação do que as estudiosas denominam família elementar e família extensa. A
primeira é formada pelo homem, sua esposa e seus filhos. Entretanto, com a saída dos filhos
de casa, essa família diminui e, eventualmente, acaba no momento em que ocorre a morte dos
pais. a família extensa é composta por duas ou mais famílias nucleares, ligadas por laços
consangüíneos, o que pode abranger, além da família elementar, os avós, tios, sobrinhos,
afilhados, etc.
Vista assim, a família apresenta quatro funções básicas: a) sexual que é permitida
pelo casamento, uma vez que gerará filhos legítimos aos pais; b) de reprodução – que propicia
a perpetuação da família; c) econômica que garante o sustento e proteção da mãe e dos
filhos e d) educacional que envolve o cuidado das crianças com cooperação entre homem e
mulher. Além dessas, as funções subsidiárias, que tratam dos aspectos religioso, jurídico,
político, recreativo e até do cuidado com os idosos.
Quando se fala em filhos legítimos dos pais, como na primeira das funções sicas
citadas, pensa-se no motivo pelo qual criou-se a família monogâmica patrilinear de origem
elementar, cujo traçado de descendência é feito pelo lado paterno –, que é a presente em O
tempo e o vento. Ela surgiu em função da transmissão hereditária dos bens dos pais aos filhos
11
Ibidem. Esse argumento faz-se válido quando estudarmos a relação entre Luzia e seu filho Licurgo, no terceiro
capítulo deste trabalho.
12
MARCONI, Marina de Andrade & PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia: uma introdução. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2001.
1
certos e legítimos traçando a relação primeira entre formas familiares e propriedade
privada. Esse sistema, ao contrário do que se poderia pensar, não é natural, mas cultural.
Concordamos com Catemario
13
quando afirma que cultura
é a atividade criadora determinada pelos homens, em seu significado
antropológico global de conjunto de experiências e de valores partilhados e
vividos em comum. Ou seja: é cultura a parte que historicamente se
acrescenta à natureza do homem, aquele conjunto explícito e implícito dos
modos estabilizados de pensar, sentir e agir dos homens [...], instrumento
especificamente humano de adaptação à natureza para a satisfação dos
carecimentos. Desse modo, transformando a natureza de suas criações, os
homens se transformam a si mesmos.
Nesse caso, a família aparece como o verdadeiro laboratório do desenvolvimento
cultural, uma vez que a continuidade da tradição baseada na organização da família é a
condição essencial da cultura humana. Para a família essa função é de suma importância,
que “o homem sem cultura não poderia sobreviver, assim como não poderia sobreviver a
cultura sem a espécie humana para transmiti-la”
14
. Mesmo Le Play
15
dizia que a família não
poderia ser percebida e definida sem um domínio sólido da cultura do povo em que está
inserida, uma vez que ela é o elo crítico entre os valores morais que transmite e a estrutura
social que representa.
Num estudo comparativo entre o modelo de família patrilinear da civilização moderna
e outro de família matrilinear de certas comunidades insulares da Melanésia norte-ocidental,
Malinowsky
16
expõe que, no primeiro dos modelos, (o que nos interessa, pois e é o
apresentado em O tempo e o vento) a autoridade e o poder do marido e pai são apoiados pela
sociedade, visto que a situação econômica também está em jogo: é ele quem assegura a
manutenção da família e quem pode negar ou fornecer a ela seus meios de sustento.
13
Apud CANEVACCI, Massimo (org.). Dialética da família. 5. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
14
MALINOWSKY, Bronislaw. A família no direito paterno e no direito materno. In: CANEVACCI, Massimo
(org.). Dialética da família. 5. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 132-139.
15
Apud CASEY, James. A história da família. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1992.
16
MALINOWSKY, op cit.
1
Assim, faz-se a associação com o significado primeiro do vocábulo família, originado
de famulus, que quer dizer “escravo doméstico”. Família era, então, o conjunto de escravos
pertencentes a um mesmo homem. Em tempos remotos, na Roma Antiga, a família era
transmitida por testamento (id est patrimonium), o que designava um novo organismo social,
cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o
pátrio poder romano e o direito de vida e de morte sobre todos eles
17
.
Diante da autoridade concedida socialmente ao homem, como recém visto pelas vias
da História, a mulher/mãe acaba tendo um papel secundário, de guardiã, colaboradora
afetuosa, e não de provedora (embora o primeiro vínculo natural de qualquer pessoa seja o
que a prende à e). Cabe principalmente à mulher a função de educar os filhos,
transmitindo-lhes todas as tradições culturais do seu meio social. Para que essa troca seja
realizada com sucesso, ainda segundo Malinowsky,
não apenas o genitor deve ter interesse em instruir o filho e o filho ter
interesse em aprender, mas é necessário ainda um particular ambiente
emotivo. Deve haver reverência, submissão e confiança, por um lado; e
ternura, sentimento de autoridade e desejo de orientar, por outro. A instrução
não pode ser ministrada sem autoridade e prestígio. As verdades reveladas,
os exemplos dados, as ordens impostas não alcançarão sua meta, nem
determinarão sua obediência, se não forem secundadas por aqueles
específicos comportamentos de terna subordinação e de afetuosa autoridade,
que são característicos de todas as relações entre genitores e filhos.
18
Acerca dessa relação traçada entre a mãe e o filho, o antropólogo acrescenta que a mãe
geralmente não encontra dificuldades na fase inicial de suas relações com a criança. E, uma
vez desejando que essa relação se mantenha num estado de perfeita harmonia, seria necessário
17
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. 15. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
18
MALINOWSKY, op. cit. Isso explicará, posteriormente, o motivo pelo qual a personagem Maria Valéria, por
exemplo, conseguiu assumir com tamanha eficácia o papel de mãe de seus sobrinhos, enquanto o mesmo não
ocorre com relação à Luzia e seu filho Licurgo.
1
que se conservassem as características de submissão, reverência e subordinação, referidas
anteriormente
19
.
Voltando nosso olhar para estudos dedicados às personagens femininas criadas por
Erico Verissimo em O tempo e o vento, pudemos conhecer com cuidado o trabalho de Lélia
Almeida
20
, que julga algumas das características atribuídas à linhagem de mulheres imaginada
pelo autor, tais como “fortes, combatentes, poderosas e resistentes” como características
masculinas. Pensamos, entretanto, que, se assim fosse, a experiência feminina estaria sendo
ignorada. No presente trabalho, tais qualidades não serão tratadas como masculinas, pois
entendemos que caracterizam muito mais mulheres que homens não na obra de
Verissimo. A força, o combate, o poder, a resistência e a determinação de Ana Terra e suas
sucessoras são, aqui, essencialmente femininas.
Pensando também assim, Tristão de Athayde
21
crê que o anti-herói de Erico, aqui
representado em suas personagens femininas, representa uma crítica à deformação do
heroísmo como machismo, isto é, como privilégio do varão. Ainda argumenta que
O heroísmo não é uma atitude apenas militar, do homem em face da luta
física e da morte, uma valentia biológica masculina, mas uma atitude serena
em face do sofrimento e da vida. Portanto, uma virtude bissexuada,
privilégio de certas criaturas e especialmente de certos momentos da criatura
humana, não reservado ao sexo masculino.
Conforme Flávio Loureiro Chaves
22
,
um contraste explícito entre o masculino e o feminino, entre destruição e
preservação, como se residissem os dois pólos fundamentais da existência
na visão do mundo configurada pelo escritor. Por estranho que pareça, a vida
não se resolve nos combates e guerras que engolfam os homens, mas, por
assim dizer, no interior do Sobrado, onde a resistência das mulheres assegura
a continuidade dos dias e das coisas.
19
MALINOWSKY, op. cit.
20
ALMEIDA, Op. cit.
21
ATHAYDE, Tristão de. Erico Verissimo e o antimachismo. In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O contador
de histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972, p. 86-102.
22
CHAVES, Flávio Loureiro. A terra de Erico. In:_____ Matéria e invenção:ensaios de literatura. Porto Alegre:
Ed. da Universidade/UFRGS, 1994, p. 49-60.
1
Quanto a essa dicotomia de feminino/masculino, Chaves
23
ainda ressalta que, enquanto
os guerreiros do texto de Erico se destroem e o campo se tinge de sangue, as mulheres agem
como força de conservação da descendência. “São criaturas capazes de desafiar padrões
morais e sociais, romper com as convenções da época, descartar papéis convencionais e
assumir uma posição de comando”
24
. Ou seja, nas palavras de Athayde
25
, o verdadeiro
heroísmo existe tanto nos homens quanto nas mulheres, que são tanto mais heróicas e
varonis quanto menos se apresentam e se inculcam como tais”.
Uma vez que as mulheres são o elemento de preservação aparente no texto, uma das
características que as compõem é a de saber/ter de esperar. De acordo com Donaldo Schüler
26
,
esperar é uma virtude principalmente feminina, não implicando, entretanto, na submissão ao
machismo. “Com a espera tenaz e calada, as mulheres obtêm vitórias negadas aos homens”,
como, por exemplo, a conquista do Sobrado realizada a partir das articulações silenciosas de
Bibiana.
Assim como ela, Ana Terra, anteriormente, principiou a tradição feminina de esperar.
No capítulo dedicado à mãe de Pedro, tem-se a intenção de mostrar ao leitor a personagem
Ana Terra como a mãe-primeira, a mãe-origem, aquela que se viu obrigada a desbravar o
novo em prol de um futuro melhor para si e para seu filho. Ela é a mãe que quebrou o
paradigma de ser necessário casar para então poder ser mãe. Engravidou de um
descendente de índios e assumiu todas as responsabilidades dessa gravidez sozinha, inclusive
o parto. Criou o filho Pedro sem ajuda de outras pessoas e transmite suas crenças e valores
para a neta Bibiana.
Sobre essa última, no nosso segundo capítulo pretende-se reforçar a idéia de que a
mulher é a força que continuidade à família e à História. É Bibiana quem supera o
temperamento do marido aventureiro, livre de amarras, boêmio e cria os filhos
23
CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo e o mundo das personagens. In:_____ O contador de histórias:
40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972, p. 71-85.
24
BARBOSA, Maria José Somerlate. Saltando os “círculos de giz”: as personagens femininas e a dinâmica de
gêneros em romances de Erico Verissimo. In: BORDINI, Maria da Glória (org.). Caderno de pauta simples: a
literatura de Erico Verissimo e a crítica literária. Porto Alegre: Instituto Estadual do livro, 2005. P. 301-333.
25
ATHAYDE, Tristão de. Op. cit.
26
SCHÜLER, Donaldo. O tempo em “O Continente”. In:_____ O contador de histórias: 40 anos de vida
literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972, p. 158-175.
1
praticamente sozinha. É ela quem consegue tomar conta do território da família o Sobrado
e vence a batalha doméstica contra a nora, Luzia, de maneira que também cria o neto,
Licurgo, responsável pela continuidade do clã.
Em seguida, abordaremos a personagem Luzia, representante do oposto de Ana Terra,
Bibiana e até Maria Valéria. Essa personagem reflete sempre o diferente, o inusitado em todos
os sentidos: enquanto mulher, enquanto senhora do Sobrado, enquanto esposa e,
principalmente, enquanto mãe, a começar pelo fato de elao ter tido leite para amamentar o
filho, Licurgo. É ela também quem transgride as regras sociais estabelecidas para as mulheres
de seu tempo no momento em que insinua uma possível traição de sua parte contra o marido,
Bolívar. É, sem dúvida, a “musa da tragédia” da família Cambará.
Em seguida, damos voz à Ismália, a mãe que não aparece, que não tem voz no texto,
que não tem vez. No entanto, Licurgo faz-se fiel a ela e ao amor mantido por ela. A relação
entre os dois se estende por toda a vida de Licurgo, tendo um filho como fruto, ou seja, toda
uma história paralela de família e de mãe da qual todos sabiam da existência, mas que
ninguém assumia socialmente, nem mesmo a maior interessada: Ismália. Sujeita-se a estar em
segundo plano na vida do homem que ama e a não ter direito nenhum perante a sociedade
nem ela, nem seu filho. Ambos são fruto da falsa moral da sociedade patriarcal configurada
por Verissimo. A questão a ser trabalhada neste quarto capítulo é: que papel tem essa mulher
no texto? O início dessa resposta é que seu papel é indispensável.
E, finalmente, o último capítulo trata de Maria Valéria, que é uma mãe peculiar, visto
que nunca deu à luz nenhum filho ou filha. No entanto, é ela quem faz o papel de mãe de
Rodrigo e Toríbio, filhos de sua irmã falecida, Alice, e também, de certo modo, dos filhos de
Rodrigo e Flora. Ela é a mulher que substitui a presença de Bibiana no Sobrado, controlando-
o e mantendo-o, apesar de todas as guerras e crises que se sucedem. É a personagem que
1
tudo o que acontece no que diz respeito à família – mesmo depois de cega – e não permite que
essa engrenagem – a família – pare ou se dilua.
Assim, com um texto de cunho ensaístico, pretendemos atender de forma satisfatória
as inquietações formuladas acerca dessas cinco personagens e, talvez, despertar o interesse de
outros estudiosos para que mais e diferentes trabalhos sejam realizados a partir da obra
deixada por Erico Verissimo.
1
A MÃE TERRA
Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece.
Ana Terra, personagem definitiva e presente no imaginário popular brasileiro, criada
por Erico Verissimo, o é a primeira mãe a ser citada em “O tempo e o vento”, mas é, com
certeza, a mais reconhecida, a mais lembrada, a mais mencionada. O capítulo do texto
reservado a ela encontra-se na primeira das partes da trilogia “O Continente” entretanto,
pode-se facilmente encontrar em livrarias e bibliotecas o capítulo “Ana Terra” separado de
todo o resto da obra. Isso significa que nem todos os que conhecem a saga desta personagem
comprendem a saga de todo o resto das famílias Terra e Cambará, o que fornece à
personagem uma certa independência em relação ao texto, ultrapassando-o.
Ana qualifica-se no tipo de personagem modelar proposto por Aguiar e Silva sobre o
qual há uma caracterização física, psicológica e moral conhecida como retrato. Através dele, o
leitor pode ter a idéia de um ser bem definido, com quem se familiariza e de quem se recorda
facilmente.
27
Flávio Loureiro Chaves
28
na história dessa personagem o mito da vida renascendo
das cinzas, numa tarefa milenar que se fará repetir até o fim dos dias pelas Bibiana, pelas
Maria Valéria. Ainda acrescenta que “na personagem de Ana Terra se reedita o primeiro dia
da criação, a imagem primitiva da fecundação, enquanto antítese do instinto de morte”.
O próprio Erico Verissimo, ao se referir à criação da personagem Ana Terra, afirmou:
“Eu penso nela como uma espécie de sinônimo de mãe, ventre, terra, raiz, verticalidade (em
oposição à horizontalidade nômade dos homens), permanência, paciência, espera,
perseverança, coragem moral...”
29
. Isso vem provar o quanto o nome de uma personagem
27
AGUIAR E SILVA, op. cit. p. 243.
28
CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo e o mundo das personagens. In:_____ O contador de histórias:
40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972, p. 71-85.
29
CHAVES, Flávio Loureiro. A terra de Erico. In:_____ Matéria e invenção:ensaios de literatura. Porto Alegre:
Ed. da Universidade/UFRGS, 1994, p. 49-60.
1
Ana Terra, por exemplo é um dos fatores primários na caracterização das personagens no
romance.
Partindo daquele depoimento do autor e de outros estudos críticos sobre a obra, vê-se,
em O tempo e o Vento, um universo tipicamente masculino e outro, paralelo, feminino. Ana
Terra, então,
É a própria imagem do eterno feminino, que em toda a obra [de
Erico] se opõe ao eterno machismo da sua gente, de seu rincão, de sua
tradição, de seu meio, da filosofia da vida que ele combateu por toda a vida,
- eterno feminino que aparece como a própria vingança do humilhado contra
o opressor, uma filosofia do anti-heroísmo belicoso como símbolo do
verdadeiro heroísmo. Por isso é que, em sua obra, o chamado sexo fraco
representa o verdadeiro sexo forte.
30
De acordo com Lélia Almeida
31
, é através da construção das personagens femininas
que se pode perceber o que o texto de Erico apresenta como um modo de ser feminino típico,
“decente”, aceito. Para a autora,
as personagens em questão, em seus hábitos, comportamentos e costumes,
constroem um modo de ser mulher, com normas, regras, leis, limites e
códigos próprios, repassados de geração em geração como modelares,
paradigmáticos, e, que, em si, vão delineando o que identificamos como este
território feminino.
Esse universo feminino começou a ser traçado com a personagem de Ana Terra, que
veio com a família (pai, mãe e irmãos) do Estado de São Paulo para o interior do Rio Grande
do Sul em busca de um pouco de terra que poderia ser cultivada por eles. O pai de Ana,
Maneco Terra, tinha o sonho de plantar trigo, ou seja, desejava dar início a uma cultura
agricultora, coletora, e não pastora, como se vê:
30
ATHAYDE, Tristão de. Erico Verissimo e o antimachismo. In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O contador
de histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972, p. 86-102.
31
ALMEIDA, Lélia. A sombra e a chama: uma interpretação da personagem feminina n’O Tempo e o Vento de
Erico Verissimo. 147f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, 1992, p. 35.
2
Em princípio de 89 Maneco Terra realizou o grande sonho de sua vida. Foi a
Rio Pardo, comprou sementes de trigo e conversou com alguns colonos que
o haviam plantado com sucesso e que lhe ensinaram preparar a terra e
semear. Maneco voltou para casa contente. Pela primeira vez em muitos
anos Ana viu-o sorrir. [...]
Durante o mês de junho Maneco e Antônio aprontaram a terra para plantar o
trigo. Toda a gente da casa, inclusive Pedrinho, que ia já a caminho dos onze
anos, foi para a lavoura. Limparam primeiro o terreno, arrancando as raízes e
as ervas. Depois viraram a terra, trabalhando de sol a sol. Quando voltaram
ao anoitecer para o rancho, Eulália esperava-os com o jantar pronto: carne de
veado, abóbora, mandioca e feijão. Maneco estava excitado e parecia ter
rejuvenescido. Fazia contas nos dedos, ficava às vezes absorto nos próprios
pensamentos, esquecido da comida que fumegava no prato. Plantaria poucos
alqueires, para experimentar a qualidade da terra; e naturalmente continuaria
com o milho, a mandioca e o feijão. Se o trigo desse bem, aumentaria o
trigal. Com o produto da venda do primeiro trigo colhido poderia comprar
mais uma junta de bois, ferramentas e mais escravos. E era preciso arranjar o
quanto antes mais uma carreta.
[...] Na noite do dia em que se fez a primeira semeadura, Maneco teve um
sono agitado. Ana ouviu-o revolver-se na cama e finalmente levantar-se e
sair. Ergueu-se também, foi até a porta e olhou para fora. Era uma noite de
lua cheia, de ar parado e frio. Avistou o pai, que caminhava para a lavoura.
Seguiu-o com os olhos e viu-o ficar olhando longamente a terra, como se o
calor de seu olhar pudesse fazer as sementes germinarem. Quando ele se
voltou e começou a andar na direção do rancho, Ana tornou a deitar-se.
Uma semana depois, certa manhã, mal o sol havia raiado, Pedrinho entrou
em casa todo alvorotado, no momento em que o avô e o tio tomavam
chimarrão e as mulheres se preparavam para ir tirar leite no curral.
- Mãe! gritou ele. Mãe! O trigo está nascendo! [...] O trigo está
aparecendo... – disse ele. – Uma coisinha verde. Tão bonita, mãe, tão...
Calou-se, engasgado. Brotaram-lhe lágrimas nos olhos. Maneco e Antônio
precipitaram-se para fora e correram para a lavoura. As sementes
efetivamente haviam brotado. A terra era boa! O trigo punha a cabeça para
fora, procurava o sol!
32
Trigo é o grão que origem ao alimento capaz de nos sustentar em quaisquer
circunstâncias: o pão. Esse trigo almejado representa a fertilidade, a fartura que a família
buscava e continuará buscando em outros personagens, como Pedro Terra.
Essa semente de trigo, plantada com tanta esperança em solo novo e que é replantada
tantas vezes no decorrer da narrativa, tem a simbologia das forças latentes, não manifestadas,
do que está por vir, mas se desconhece: o futuro incerto. São as possibilidades misteriosas
cuja presença às vezes nem se suspeita, mas que justifica a esperança, uma vez que nela estão
contidas todas as partes da futura planta
33
.
32
VERISSIMO, op. cit. p. 116 e 117.
33
CIRLOT, Juan Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes Ltda., 1984.
2
Tal planta pode ser comparada à família Terra Cambará, que tem início com Ana, em
seu ventre. É a partir da semente que ela planta – seu filho Pedro – que todo o resto da família
poderá existir e se desenvolver. Esse é o símbolo da vida em formação, fenômeno retratado
durante todo o texto de Erico, no qual acompanha-se o crescimento da família que começou
com Ana Terra e Pedro Missioneiro e que prossegue, independentemente deles.
Lembrando que a semente pode germinar quando sua casca é rompida de dentro
para fora, ou seja, um morrer simbólico
34
, esse trigo está intimamente relacionado à Ana, pois,
conforme relação estipulada por Flávio Loureiro Chaves e já comentada anteriormente, ela
também passou por um renascimento interior no momento em que decidiu lutar por uma vida
nova para si e para seu filho. Essa é uma das características da mãe-terra: a renovação da vida,
pois a terra “é a matéria da criação do mundo e do ser humano. Ela faz surgir toda a vida,
aparece como a grande geradora e alimentadora”
35
. Foi a partir da força de vontade de Ana – o
alimento que a história seguiu seu rumo em direção ao povoado de Santa e ao seu
complementar “Cambará”.
É com essa personagem que aparece no texto a primeira referência ao vento: “Sempre
que me acontece alguma coisa importante, está ventando”
36
, sentença que se repetirá também
com as personagens femininas que aparecerão depois de Ana. Esse elemento, o vento, está
intrinsecamente ligado à Ana e pode ser visto como a força duradoura que as mulheres
representam, uma vez que o tempo (masculino) passa e o vento (feminino) permanece. Essa
ligação é passada de geração para geração entre as mulheres, assim como outros objetos que
permanecem na família no decorrer de toda a história (o punhal, o crucifixo, a tesoura e a
roca).
34
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figures, cores, números. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
35
CIRLOT, op. cit.
36
VERISSIMO, Erico. O Continente I. 34.ed. São Paulo: Globo, 1997, p. 73.
2
Para Theodore Robert Young
37
, esses objetos simbolizam a longevidade e a fortaleza
das mulheres de O tempo e o vento, sendo que o crucifixo representaria a em tempos
adversos, a tesoura é o objeto presente no momento em que os descendentes da família Terra
nascem e a roca representaria o perene trabalho feminino. Estima-se que o punhal, por ser o
único objeto herdado pelos homens da família, represente justamente a vertente masculina e
viril da história.
No princípio da narrativa sobre Ana, esta aparece como alguém que se sentia
extremamente só “naquele cafundó”
38
, pois quase não passavam pessoas por ali. Concentrava-
se em seu trabalho simples e árduo, sem perder a esperança de um dia, quem sabe, poder se
casar e mudar de volta para uma cidade (pensava em Rio Pardo ou Viamão). Era uma moça
bonita, de vinte e cinco anos, que via na rotina do trabalho diário o remédio “para esquecer o
medo, a tristeza, a aflição”
39
.
Quando Pedro Missioneiro aparece no território de Ana, Erico usa recursos de
linguagem que deixam entrever a paixão que surgirá entre os dois: “Em compensação o
coração começou a bater-lhe com mais força...” e “Por um instante esteve prestes a gritar, sob
a impressão de que ia ser frechada”
40
. O fato de ela ter percebido, pelo vento, que o dia traria
consigo algo de especial, de seu coração ter acelerado e de ela ter tido a impressão de que
seria “frechada” (como a corriqueira imagem do cupido que flecha o coração dos amantes)
foram as evidências dadas pelo autor de que, a partir daquele momento, o rumo da vida das
personagens seria muito diferente.
É importante ressaltar que a referência que Ana tinha de esposa e de mãe era dona
Henriqueta, sua mãe, uma mulher submissa ao marido: “D. Henriqueta respeitava o marido,
37
Apud BARBOSA, Maria José Somerlate. Saltando os “círculos de giz”: as personagens femininas e a dinâmica
de gêneros em romances de Erico Verissimo. In: BORDINI, Maria da Glória (org.). Caderno de pauta simples:
a literatura de Erico Verissimo e a crítica literária. Porto Alegre: Instituto Estadual do livro, 2005. P. 301-333.
38
VERISSIMO, op. cit, p. 74.
39
Idem.
40
Idem, p. 77.
2
nunca ousava contrariá-lo”
41
. Entretanto, Ana Terra achava injusta a vida que as mulheres
estavam fadadas a levar:
Ana não chorou. Seus olhos ficaram secos e ela estava até alegre, porque
sabia que a mãe finalmente tinha deixado de ser escrava. Podia haver outra
vida depois da morte, mas também podia não haver. Se houvesse, estava
certa de que D. Henriqueta iria para o céu; se não houvesse, tudo ainda
estava bem, porque sua mãe ia descansar para sempre. Não teria mais que
cozinhar, ficar horas e horas pedalando na roca, em cima do estrado, fiando,
suspirando e cantando as cantigas tristes de sua mocidade.
Desde moça, Ana sentia atração por um tipo de vida diferente da sua, que sabia ser até
mesmo proibida, como retrata o trecho a seguir:
Quando tinha dezoito anos visitara com os pais a cidade de São Paulo e uma
tarde, estando parada com a mãe a uma esquina, viu passar uma caleça que
levava uma vistosa dama. Toda a gente falava daquela mulher na cidade.
Diziam que tinha vindo de Paris, era cantora, uma mulher da vida... Ana
sabia que não devia olhar para ela, mas olhava, porque aquela mulher
colorida e cheirosa parecia ter feitiço, como que puxava o olhar dela. Era
loura, estava toda vestida de sedas e rendões, e tinha o pescoço, os braços e
os dedos coruscantes de jóias. Uma mulher da vida, uma ordinária... Ana
contemplava-a de boca aberta, fascinada, mas ao mesmo tempo com a
sensação de estar cometendo um feio pecado. Pois tivera havia pouco a
mesma impressão ao olhar para aquele desconhecido.
42
Nesse trecho vê-se, também, o fascínio com que Ana olhava para Pedro, o índio que
agora morava perto do rancho da família e ajudava no trabalho do campo. Ele era diferente do
que ela conhecia e estava acostumada, era o proibido, o que sabia ser socialmente errado, mas
que representava a satisfação de seu deleite. E, além disso, era o único homem do lugar que
não era seu parente. Assim, passou a representar objeto de desejo e de repulsa, como se
percebe:
Lembrava-se duma exaltação tocada de horror, dum doloroso dilaceramento
misturado de gozo, e também do desespero de quem faz uma coisa que teme
só para se livrar da obsessão desse temor. [...]
41
Idem, p. 79.
42
Idem, p. 80.
2
No fim das contas, que era mesmo que ela sentia por Pedro? Amor? Nojo?
Ódio? Pena? Às vezes se surpreendia a querer que ele morresse de repente,
ou então que fosse embora, deixando-a em paz. Talvez fosse melhor que
aquilo não tivesse acontecido... Ou melhor, que Pedro nunca tivesse
aparecido na estância. A agonia em que vivia desde o primeiro dia em que
pusera os olhos naquele homem persistia ainda. E agora ela tinha novos
cuidados porque, além de todas as coisas que sentia antes, vivia num estado
de apreensão insuportável. Chegava à conclusão de que o horror de que o pai
e os irmãos descobrissem tudo era o sentimento que dominava todos os
outros, até mesmo o desejo de ser de novo tomada pelo índio.
43
E foi com este homem, que lhe evocava sentimentos tão ambíguos, à beira da sanga
sanga esta que aparece sempre com o sentido de início da vida, início do amor, de uma nova
fase que Ana gerou seu filho, Pedro. O elemento água presente no encontro de Ana com
Pedro Missioneiro, presente no dia-a-dia de Ana e na fecundação de seu filho tem o
significado de todas as possibilidades de existência, uma vez que a água precede toda a forma
e sustenta toda a criação, de acordo com Mircea Eliade
44
.
O teórico ainda mostra a água como símbolo tanto de morte quanto de renascimento,
uma vez que o contato com ela supõe uma regeneração, que à dissolução segue-se o novo
nascimento e a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. O fato de Ana estar
parcialmente imersa nas águas da sanga remete à criação de uma nova vida, de um novo
homem: seu filho; a família a qual dará origem. Dessa forma, Ana é símbolo de origem, de
criação, de vida latente.
Ao utilizar-se da imagem mítica da água, Erico refere-se ao momento intemporal em
que aconteceu a criação da vida, pois é uma repetição simbólica do nascimento dos mundos e
do homem, lembrando que um mito remete a acontecimentos sucedidos in principio, ou seja,
no começo
45
, assim como Ana representa o começo de tudo ao narrador da história, Floriano
Cambará, descendente da família instaurada por Ana e Pedro Missioneiro..
43
VERISSIMO, op. cit, p. 103.
44
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Trad: Sonia Cristina
Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
45
Idem, p. 53.
2
Talvez por isso também, para Pedro Missioneiro, aquela gravidez de Ana fosse
sagrada:
[...] E quando Pedro voltou, uma noite ela saiu da cama sem ruído o ar
estava frio, o capim úmido e sereno, o céu muito alto foi até a barraca do
índio, contou-lhe que ia ter um filho e ficou ofegante à espera duma resposta.
Houve um curto silêncio, ao cabo do qual Pedro murmurou:
- Mui lindo.
De repente Ana desatou a chorar. Estavam ambos sentados no chão
lado a lado. Pedro enlaçou-a com os braços, estreitou-a contra si e as
lágrimas da rapariga rolaram-lhe mornas pelo peito. Ana sentia contra as
faces as carnes elásticas e quentes do homem, e o bater regular de seu
coração. Chorou livremente por algum tempo. Pedro nada dizia, limitou-se a
acariciar-lhe os cabelos. E quando ela parou de chorar, pôs-lhe a mão
espalmada sobre o ventre e sussurrou:
- Rosa mística.
Ana franziu a testa.
- Quê?
- Rosa mística.
- Que é isso?
- Nossa Senhora, mãe do Menino Jesus.
46
Porém, essa criança era fruto de um relacionamento não permitido pela família, o que
levou à morte do índio, único meio encontrado por Maneco Terra para limpar a honra da filha.
Na época retratada por Erico para o desenrolar da narrativa de Ana Terra, o que permitia que
uma mulher engravidasse era o fato de ser casada; até então, a moça deveria permanecer
virgem, como prova da virtude e boa educação da família. A alternativa encontrada pelos
Terra diante daquela situação irremediável de vergonha familiar era dizer, a quem
questionasse sobre o pai da criança: “Minha filha é viúva. O marido morreu de bexigas, faz
meses”
47
.
Justamente pelo fato de o ser casada, ou seja, de seu filho ser fruto de um amor
proibido, Ana, a princípio, rejeitou-o, como se nos trechos a seguir: “- Mãe, e se eu
tomasse um remédio pra botar o filho fora?” e “Ana voltou para casa com a morte na alma. Ia
pensando naquela coisa que lhe crescia no ventre.” (grifo nosso). Até que, após a morte de
46
VERISSIMO, op. cit, p. 104
47
VERISSIMO, op. cit, p. 112.
2
Pedro Missioneiro, Ana apresenta sua primeira atitude de mãe temerosa pelo filho, não tendo
coragem para cometer qualquer atentado contra ele e temendo também pelo seu futuro:
[...] Ana pensou então em matar-se. Chegou a pegar o punhal que o índio lhe
dera, mas compreendeu logo que não teria coragem de meter aquela lâmina
no peito e muito menos na barriga, onde estava a criança. Imaginou a faca
trespassando o corpo do filho e teve um estremecimento, levou ambas as
mãos ao ventre, como para o proteger. Sentiu de súbito uma inesperada,
esquisita alegria ao pensar que dentro de suas entranhas havia um ser vivo, e
que esse ser era seu filho e filho de Pedro, e que este pequeno ente havia de
um dia crescer... Mas uma nova sensação de desalento gelado a invadiu
quando ela imaginou o filho vivendo naquele descampado, ouvindo o vento,
tomando chimarrão com os outros num silêncio de pedra, a cara, as mãos, os
pés encardidos de terra, a camisa cheirando a sangue de boi (ou sangue de
gente?). O filho ia ser como o avô, como os tios. E um dia talvez se voltasse
também contra ela. Porque era “filho das macegas”, porque não tinha pai.
48
Durante a gestação, Ana continuou executando suas atividades diárias e sendo
duramente ignorada pelo pai e pelos irmãos, atitude essa que não surpreendia dadas as
circunstâncias. Tentava, então, escapar daquele lugar e daquela situação em seus
pensamentos, chegando a pensar que talvez tudo não passasse de ilusão: Pedro Missioneiro e
a gravidez. E foi nesse mesmo momento de distanciamento que Ana sentiu, pela primeira vez,
seu filho movimentando-se dentro de si:
Um dia, olhando o bordado branco que a espuma do sabão fazia na
água, teve a sensação de que Pedro nunca tinha existido, e que tudo o que
acontecera não passara de um pesadelo. Mas nesse mesmo instante o filho
começou a mexer-se em suas entranhas e ela passou a brincar com a idéia
que dali por diante lhe daria a coragem necessária para enfrentar os
momentos duros que estavam para vir. Ela trazia Pedro dentro de si. Pedro ia
nascer de novo e portanto tudo estava bem e o mundo no fim de contas não
era tão mau.
49
Nesse trecho é como se Ana Terra estivesse transferindo o amor que sentia por Pedro
Missioneiro para seu filho, que estava para nascer. Como se esse amor pudesse fazê-la,
finalmente, aceitar o bebê que estava gerando e trazer a serenidade com que, posteriormente,
48
Idem, p. 108.
49
Idem, p. 110.
2
recebeu o filho: “Naquele instante, Ana dava de mamar ao filho. Estava serena, duma
serenidade de céu despejado, depois duma grande chuva”
50
. E, segundo o texto, parece que a
criança trouxe, de fato, à personagem, mais satisfação em viver e em trabalhar. Ana Terra
conseguiu até mesmo recordar-se de tempos felizes do passado, que se fazem notar através de
canções:
Três dias depois se achava em , trabalhando. E sempre
que ia lavar roupa levava o filho dentro da cesta, e enquanto batia nas
pedras as camisas e calças e vestidos, deixava a criança deitada a seu
lado. E cantava para ela velhas cantigas que aprendera quando menina
em Sorocaba, cantigas que julgava esquecidas, mas que agora lhes
brotavam milagrosamente na memória. E a água corria, e a criança
ficava de olhos muito abertos, com a sombra móvel dos ramos a
dançar-lhe no rostinho cor de marfim.
51
Mas assim como a gravidez de Ana não foi bem recebida pela família Terra visto
que era um pecado, era impensado, naquela época, uma mulher engravidar sem que estivesse
casada Pedrinho também não o foi. No momento em que Ana teve as primeiras dores do
parto, os homens da família retiraram-se da casa e, ao regressarem, não quiseram nem ver o
menino. E foi dessa forma ignorando a existência da criança e de Ana que os dias se
seguiram no rancho dos Terra. Esse ambiente hostil foi onde Ana teve que criar Pedrinho:
“Pedrinho tinha começado a berrar. Ainda arfando, Ana aproximou-se do catre, tomou o filho
nos braços e deu-lhe o peito. A criança acalmou-se em seguida, e por algum tempo no silêncio
do rancho o único som que se ouviu foi o dos chupões que ela dava no seio da mãe.”
52
Ana, então, resignou-se à vida que lhe cabia: trabalhar para a família e atender o filho,
para o qual talvez não estivesse tão preparada, ainda mais nas circunstâncias familiares em
que estava:
Seu único consolo era Pedrinho, que ela via crescer, dar os primeiros passos,
balbuciar as primeiras palavras. Mas o próprio filho também lhe dava
50
Id, p. 111.
51
Ibidem, p. 111.
52
Idem, p. 113.
2
cuidados, incômodos. Quando ele adoecia e não sabia dizer ainda que parte
do corpo lhe doía, ela ficava agoniada e, ajudada pela mãe, dava-lhe chás de
ervas, e quando a criança gemia à noite ela a ninava, cantando baixinho para
não acordar os que dormiam.
53
Depois da morte de D. Henriqueta e de anos terem se passado mais ou menos
quando Pedrinho já tinha uns onze anos as coisas estavam bem e em paz no rancho. Foi o
período de contentamento e orgulho de Ana com relação ao filho, no qual pôde reconhecer
características do pai e do homem que amou, como se vê:
“Ana estava tão excitada que não conseguia pregar olho. Ficava então
acordada, ouvindo o ressonar leve do filho, que dormia a seu lado, e
pensando no dia em que pudesse ir-se embora dali com Pedrinho.”
“Uma tarde Ana Terra olhou bem para o filho e começou a ver nele traços do
pai: os olhos meio oblíquos, as maçãs salientes, o mesmo corte de boca.
Pedrinho era um menino triste, gostava de passeios solitários (...)”.
“Um dia surpreendeu o menino a brincar com o punhal de prata.
- Posso ficar com esta faca, mamãe?
Ela sorriu e sacudiu a cabeça afirmativamente. E Pedro dali por diante
começou a riscar com a ponta do punhal os troncos das árvores, fazendo
desenhos que surpreendiam a mãe: cavalos, bois, casas, pés de trigo, árvores
e até caras de pessoas. Ela olhava e sorria. E consigo mesma dizia: ‘Bem
como o pai. Sabe fazer coisas’.”
54
Quando os castelhanos aproximaram-se do rancho, “o primeiro pensamento de Ana foi
para o filho”
55
, o que demonstra o quanto ela se preocupava com o menino e explica sua
atitude de bravura ao decidir não se esconder no mato junto com a cunhada, a sobrinha e o
filho para que os bandidos não fossem à procura deles. Num raciocínio que privava pela
segurança de Pedrinho, Ana imaginou que os castelhanos poderiam perceber que naquele
rancho havia mulheres e ir a busca delas, o que os levaria, conseqüentemente, às crianças
também: “Se eu me escondo eles nos procuram no mato, porque logo vão ver pelas roupas do
baú que tem mulher em casa. Se eu fico, eles pensam que sou a única e assim a Eulália e as
crianças se salvam.”
56
53
Ibidem.
54
Idem. p. 118 e 119.
55
Idem, p. 119.
56
Idem, p. 120.
2
Esse trecho é o maior exemplo dado por Ana dos sacrifícios a que estava disposta a
fazer enquanto mãe. Essa é a marca inicial de renúncia materna em nome do filho que se fará
presente em todo o resto do texto de Erico, no decorrer do qual fica claro que tais renúncias,
tais sacrifícios exigem mais coragem das personagens que quaisquer das atitudes masculinas
de bravura.
A partir disso, percebe-se que a ética do texto de Verissimo consiste nesses repetidos
sacrifícios femininos/maternos, intimamente ligados à coragem, que colocam as personagens
de Ana, Bibiana e as outras mulheres que as seguem na função de mãe. Assim, vê-se que a
coragem feminina surge dos atos de coragem, enquanto que a coragem masculina surge de
atos de agressão. E essa diferença é a base que sustenta a superioridade feminina em O tempo
e o vento.
Depois dos horrores que passou vendo a morte do pai e do irmão e sendo brutalmente
estuprada pelos castelhanos, Ana foi tomada de nico ao pensar na possibilidade de ter
perdido também o filho. Correu em direção à sanga a mesma na qual havia concebido
Pedrinho gritando por Pedro. fica evidente a transposição de expectativas que Ana faz
com relação ao filho, pois, ao mesmo tempo em que chamava pelo filho, clamava pelo
falecido amante, em busca de proteção, de consolo:
Avistou a corticeira... E à medida que se aproximava dela um novo horror
lhe ia tomando conta do espírito. E se em baixo à beira do mato
encontrasse o filho, a cunhada e a sobrinha mortos também? E então
começou a desejar não chegar nunca, mas apesar disso corria sempre.
Finalmente chegou à sanga. Pedro! Pedro! Pedro! gritou. Mas ela não
chamava pelo filho. Chamava o pai de seu filho, como se ele pudesse ouvi-la
e vir socorrê-la.
57
Depois de ver Pedrinho em segurança, sob seus cuidados, e de ter enterrado os mortos
com a ajuda dele, Ana lembrou-se do dinheiro que o pai havia enterrado antes da chegada dos
castelhanos. Quando o encontrou, tomou-o nos braços “como quem segura uma criança
57
VERISSIMO, op. cit, p. 123.
3
recém-nascida”
58
, o que configura a esperança de uma nova vida depositada naquelas
economias. Poderia ser o começo de uma nova vida para todos, o começo de uma nova fase
para Ana, na qual ela poderia ser mais autêntica, poderia ser Ana Terra, teimosa como o pai:
Tinha dentro de si uma espécie de vazio: sabia que nunca mais teria vontade
de rir nem de chorar. Queria viver. Isso queria, e em grande parte por causa
de Pedrinho, que afinal de contas não tinha pedido a ninguém para vir ao
mundo. Mas queria viver também de raiva, de birra. A sorte andava sempre
virada contra ela. Pois Ana estava agora decidida a contrariar o destino.
59
Não queria mais morrer. Viver era bom: ela desejava viver, para ver o filho
crescer, para conhecer os filhos de seu filhos e, se Deus ajudasse, talvez os
netos de Pedrinho.
60
Flávio Loureiro Chaves bem define essa passagem como sendo aquela na qual Ana
Terra “surge dos escombros, armada de uma confiança absurda em si mesma, que se integra
na caravana pioneira para fundar, muito distante, a vila de Santa Fé”.
61
No trecho recém citado
d’O Continente, nota-se o aparecimento da personagem Ana Terra como aquela que inaugura
uma nova fase na vida da personagem e no texto que depende unicamente dela e de seus
esforços, sua determinação: “Sim, era pura teimosia. Chamava-se Ana Terra.”
62
Esse é um
marco de ação fundadora de Ana, reafirmando sua atitude preservadora e tenaz sempre
sugerida no texto.
A viagem que Ana Terra faz com o filho, a cunhada e a sobrinha até o povoado de
Santa é, para Donaldo Schüler
63
, uma fuga do passado. Ela estaria fugindo da solidão, da
incompreensão das pessoas que a cercavam, do crime cometido pelos irmãos, do amor
impossível que tivera, da insegurança, violência e humilhação extrema pela qual passara. Para
58
Idem, p. 125.
59
Idem, p. 127.
60
Idem, p. 131.
61
CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo e o mundo das personagens. In: _____(org). O contador de
histórias. Porto Alegre: Globo, 1972.
62
VERISSIMO, op. cit. p. 127
63
SCHÜLER, Donaldo. O tempo em “O Continente”. In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O contador de
histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972, p. 158-175.
3
esse autor, “embora seja amargo o presente, o passado não oferece refúgio, mas constitui
ameaça”.
Mas quando Ana se percebeu numa situação mais segura, num lugar onde não estava
mais sozinha e onde via que poderia ter um futuro para si e para seu filho, viu-se em
condições de fazer planos para Pedrinho, preocupando-se com sua educação:
Um dia pensou ela havia de mandar o filho para uma escola. O
diabo era que não existia nenhuma escola naqueles cafundós. Ouvira dizer
que um homem na vila do Rio Grande tinha aberto uma aula para ensinar a
ler, escrever e contar. Mais tarde, quando Santa fosse povoado, talvez o
coronel mandasse abrir uma escola (...).
64
Em Santa Fé, onde construiu, junto com o filho, um rancho para morar, Ana
desenvolveu a habilidade de parteira, sendo sempre solicitada quando alguma nova criança
estava para nascer no povoado. Ter se disposto a isso não se deve apenas à posse da tesoura,
herdada da mãe, mas também ao fato de ter sido bem sucedida em seu próprio parto e no
ofício materno.
Enquanto parteira do vilarejo de Santa Fé, a ampliação da função materna de Ana:
ela passa de mãe exclusiva de seu filho Pedro para a categoria implícita de mãe da
comunidade, da cidade. Assim, ela deixa de ter apenas um papel materno individual para dar
lugar à função histórica da mãe coletiva, a mãe de todos, mãe da poles, da mãe que traz à
vida. Uma vez sendo a mãe primeira da comunidade, tem sua função ampliada no texto, o que
a torna a personagem mítica que é, a partir da definição de mito dada por Eliade:
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o
mito narra como uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o
Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de
uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O
mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou
plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são
64
VERISSIMO, op. cit, p. 137.
3
conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos
“primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e
desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas
obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes
dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa
irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que
é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o
homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.
65
Com isso, relaciona-se a personagem de Ana Terra como um desses Entes
Sobrenaturais, na definição do autor, uma vez que instaura uma realidade de comportamento
humano adotada também pelas personagens que a seguem e que igualmente serão abordadas
no decorrer desse trabalho. Ana é quem cria a personagem arquetípica materna no texto de
Erico, reconhecida com todos os ritos como fundadora cultural da família Terra Cambará
através da personagem de Floriano Cambará em O arquipélago, última das partes da trilogia
O tempo e o vento.
No final do capítulo dedicado à Ana, no qual a personagem se encontrava bem
estabelecida no pequeno povoado de Santa Fé, ela recorda-se de bons e maus momentos que
passara na localidade, fazendo um balanço de sua vivência como mãe. Lembra-se de quando
se deu conta de que Pedrinho era já um homem feito:
Havia também outros dias que Ana Terra não podia esquecer, como
aquele em que pela primeira vez percebera que Pedrinho era um homem
feito, de voz grossa e buço cerrado. Ficara espantada ao notar que o filho
estava mais alto que ela. Mas espanto maior ainda lhe causara a descoberta
que aos poucos fizera de que, embora fosse a imagem viva do pai, o rapaz
tinha herdado o gênio do avô: era calado, reconcentrado e teimoso.
Engraçado! Maneco Terra e o homem que ele mandara matar agora se
encontravam no corpo de Pedrinho.
66
Para qualquer mãe, perceber que o filho tornara-se um homem é um momento bastante
conflituoso, uma vez queo orgulho de ter criado um menino transformado em homem e
um certo ressentimento quanto à sua função materna, que não se faz mais tão necessária, ou
65
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 11.
66
Idem, p. 139.
3
seja, o filho não depende mais da mãe. Uma das funções maternas, segundo Luiz Carlos
Osório
67
, é defender o filho. Mesmo depois de Pedro já ser adulto, verificam-se, no texto, duas
tentativas de Ana ainda tentar defendê-lo, uma na qual é bem sucedida e outra na qual não o é.
A primeira trata-se do dia em que Ana viu-se obrigada a matar um índio em defesa de Pedro,
como se lê:
Ana procurava sempre esquecer os dias de medo e aflição,
principalmente aquele o pior de todos! em que, chegando à casa uma
tarde, vira, horrorizada, um índio coroado aproximar-se, na ponta dos pés, da
cama onde seu filho dormia a sesta. Quase sem pensar no que fazia, apanhou
o mosquete carregado que estava a um canto, ergueu-o à altura do rosto,
apontou-o na direção do índio e atirou. O coroado caiu com um gemido
sobre Pedro, que despertou alarmado, desvencilhou-se daquela “coisa” que
estava em cima de seu peito e saltou para fora da cama com o punhal na
mão e todo banhado no sangue do bugre. Vendo o filho assim
ensangüentado, ela se pôs a gritar, imaginando que também o tivesse
atingido com o tiro. Os vizinhos acudiram e foi depois de muito tempo
que tudo se aclarou. Ana Terra não gostava de recordar asse dia. Ficara com
o ombro arroxeado e dolorido por causa do coice que a arma lhe dera ao
disparar. A sangueira que saía do corpo do coroado deixara-a tonta. Não
tinha tido coragem de ir olhar de perto... Mas um vizinho lhe contara:
- Ficou com um rombo deste tamanho no pulmão.
Ana passara o resto daquele dia tomando cde folhas de laranjeira.
Tinha matado um homem – ela que ajudava tanta gente a nascer!
68
A atitude de pegar a arma, para Ana, foi quase que impensada, pois, como se percebe,
não hesitou em matar um homem em nome da proteção e segurança do filho que, naquele
momento, somente ela poderia proporcionar. Depois de disparar a arma, Ana foi tomada pelo
pânico ao pensar que, sem querer, pudesse ter atingido involuntariamente o próprio filho. Esse
foi um ato de extrema doação de mãe para filho, pois, além de ter-se arriscado por Pedrinho, a
mãe ainda acabou machucada externa e internamente. Externamente em função do disparo
(que machucou seu ombro) e internamente pelo fato de ter executado um homem, o que ia
contra os seus princípios (princípios de quem ajuda a trazer as pessoas à vida, e não de quem
as leva à morte).
67
OSÓRIO, Luiz Carlos. Famílias hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981.
68
VERISSIMO, op. cit. p. 139.
3
A morte do filho, nesse caso, seria como perder a única chance de continuidade de sua
própria existência. Alguém existe enquanto é lembrado. Essa é a mesma preocupação que
Bibiana, posteriormente, terá com relação ao filho Bolívar e, depois, com o neto Licurgo.
Esses filhos/netos são o meio possível para a preservação de sua linha genética. Se eles não
cumprirem (ou viverem o suficiente para poderem cumprir) com essa quase que obrigação de
procriar, não haverá descendentes e o legado da família Terra termina aí.
A segunda tentativa de defender Pedrinho foi no momento em que Ana recebeu a
informação de que o filho deveria ir para a guerra pela primeira vez junto com os outros
homens do vilarejo. Ali, novamente, a personagem passa por cima de seu orgulho pois o
pedido que faria representava, na época retratada, humilhação para a família que o faz e de
seus medos, pois o Cel. Ricardo Amaral era um homem muito poderoso e fazia com que Ana
se sentisse acuada. Com a resposta negativa que obteve, Ana ficou revoltada diante da
possibilidade de perder o único filho para uma guerra com a qual não se importava
pessoalmente. Sabia que Pedrinho poderia não mais regressar ou, então, regressar com
irreversíveis danos físicos. Era seu lado materno tentando, de qualquer forma, proteger o
filho, que, para ela, ainda era como um menino carente de proteção:
Ana olhava, bisonha, para Ricardo Amaral.
- Então? – perguntou este último. – Que novidade há?
- Não que eu vim fazer um pedido a vossa mercê... Calou-se,
embaraçada. Amaral brincava, meio impaciente, com a argola do rebenque
que estava em cima da mesa, a seu lado. Ana criou ânimo e prosseguiu: -
Não vê que tenho um filho, o Pedrinho...
- Eu sei, eu sei.
- Seu Marciano disse que o menino tem que marchar também... E
acrescentou rápida, a medo “pra guerra” como se esta última palavra lhe
queimasse os lábios.
- E que tem isso? Pois ele não é homem?
- É, sim senhor.
- Então?
- Mas acontece que é tão moço. Recém fez vinte anos.
- Moço? Sabe quantos anos eu tinha quando entrei no primeiro
combate? Dezessete!
Ana tinha os olhos postos no chão. O vozeirão do estancieiro a
intimidava. Ela olhava fixamente para suas grandes botas negras, cujos
canos lhe subiam até os joelhos, e lembrava-se de que, quando menino,
3
Pedro lhe dissera um dia ter medo daquelas botas que lhe pareciam um
“bicho preto”.
- Vosmecê volte para casa disse Ricardo. Volte e não conte a
ninguém que veio pedir para dispensar o seu filho. Não conte, que é uma
vergonha.
Ana recobrou a coragem e fez nova tentativa:
- E se ele morrer?
- Todos nós temos de morrer um dia. Ninguém morre na véspera.
[...]
Ana Terra sentiu uma revolta crescer-lhe no peito. Teve ganas de dizer
que não tinha criado o filho para morrer na guerra nem para ficar aleijado
brigando com os castelhanos. Guerra era bom para homens como o Cel.
Amaral e outros figurões que ganhavam como recompensa de seus serviços
medalhas e terras, ao passo que os pobres soldados às vezes nem o soldo
recebiam. Quis gritar todas essas coisas mas não gritou. A presença do
homem – aquelas botas pretas, grandes e horríveis! – a acovardava. Fez meia
volta e se foi em silêncio.
69
Ventava também no dia em que Ana teve que se despedir do filho, pois ele deveria
partir para a guerra. Esse é o primeiro dos vários trechos em que fica evidente a sina das
mulheres de esperar pelos seus homens (filhos, maridos, irmãos, pais) voltarem da guerra – ou
não. O “ar de desastre e luto em todas as caras”
70
representava justamente isso: a espera sem
previsão de quando chegaria ao fim:
E de novo Ana Terra começou a esperar... Esperava notícias
da guerra; esperava a volta do filho. Se era dia, desejava que caísse a
noite, porque dormindo esquecia a espera. Se era noite, queria que um
novo dia viesse, porque quanto mais depressa o tempo passasse, mais
cedo o filho voltaria para casa. Muitas vezes até em sonhos Ana se
surpreendia a esperar, agoniada, vendo longe no horizonte vultos de
cavaleiros entre os quais ela sabia que estava Pedrinho, - mas por mais
que seus cavalos galopassem eles nunca chegavam.
71
Esse trecho demonstra o quanto era angustiante a espera das mulheres que aguardavam
pela volta de seus filhos e/ou maridos, assim como na citação a seguir, em que Ana traz o
passado de volta em seus sonhos repletos de incertezas quanto ao estado do filho. Confunde a
imagem de seu pai, Maneco, e de seu filho com a lembrança dolorida do assassinato de Pedro
Missioneiro: “às vezes a imagem do filho em seus sonhos confundia-se com a do pai, e uma
69
VERISSIMO, op. cit., p. 141-142.
70
Idem, p. 142.
71
VERISSIMO, op. cit, p. 143.
3
madrugada Ana acordou angustiada, pois sonhara que Antônio e Horácio tinham levado
Pedrinho para longe, para assassiná-lo”
72
.
Tal angústia fazia com que Ana tivesse preocupações com relação ao filho nos
momentos mais inesperados, como o transcrito:
Uma noite de chuva, voltando para casa depois dum parto,
caminhando meio às cegas e orientando-se pelo clarão dos relâmpagos, Ana
pensou todo o tempo no filho, imaginou-o a dormir no chão, enrolado num
poncho ensopado, com a chuva a cair-lhe em cheio na cara. Teve vontade de
apertá-lo nos braços, emprestar-lhe o calor de seu corpo.
73
Apesar de viver nessa espera e incerteza, Ana sabia que o filho voltaria vivo para casa,
sentimento que só uma mãe poderia nutrir com relação ao filho ausente: “Mas Pedro está vivo
disse Ana Terra para si mesma. Uma coisa dentro de mim me diz que meu filho não
morreu”
74
. Sensação similar terá também a personagem de Bibiana com relação ao marido,
Cap. Rodrigo Cambará, típico sentimento comumente chamado de intuição feminina. E essas
certezas levam a outra: a de que a família teria uma continuidade, de que os Terra não
terminariam ali, o que dependia exclusivamente de Pedro, seu único descendente. Ele tinha
essa responsabilidade. Ele representava, para Ana, a união do que passara seu pai, seu
amante – e do que estava por vir – seus netos e bisnetos: a continuação da família.
No dia em que os homens de Santa retornaram da guerra, Ana avistou, depois de
mais de um ano de espera, seu filho Pedro entre os sobreviventes. Houve um certo
estranhamento por parte dela, visto que Pedrinho estava mudado: havia envelhecido e
emagrecido, o que o deixava ainda mais parecido com o falecido avô. Havia, enfim,
amadurecido duramente com a vivência da guerra:
72
Ibidem.
73
Idem, p. 144.
74
Idem, p. 145.
3
Ana Terra não pôde conter as lágrimas quando viu o filho. Quase
não o reconheceu. Pedro tinha envelhecido muitos anos naqueles meses.
Estava magro, abatido e deixara crescer a barba, e quando ele desceu do
cavalo e caminhou para a mãe, esta teve a impressão de que ia abraçar o
próprio Maneco Terra.
75
Dentre tantos partos que ajudava a fazer, usando a velha tesoura que herdara da mãe,
Ana auxiliou também no parto do neto, Juvenal e, no inverno de 1806, no da neta, Bibiana
Terra. No nascimento desta, Ana demonstrou seu desapontamento ao identificar que se tratava
de uma menina, pois sabia ter posto mais uma escrava no mundo, tendo em vista o destino de
trabalho e servidão a que as mulheres daquela época e daquele lugar estavam condenadas, em
seu modo de ver.
Com a família formada e sua pequena lavoura de trigo encaminhada, Pedro Terra foi
obrigado a abandonar tudo outra vez por causa de uma nova guerra. Dessa, ele teve a
sensação de que não voltaria, obtendo consolo apenas com a mãe, que disse: “Volta, sim. (...)
Vosmecê precisa voltar. Pense nos seus filhos, na sua mulher, na sua lavoura.”. Assim, sendo
a única pessoa a quem Pedro confiaria tal missão, solicitou à mãe que tomasse conta de tudo
durante sua ausência, pedido que evidencia a cumplicidade existente entre mãe e filho, o que
já não se demonstra entre ele e sua esposa.
Apesar dessa cumplicidade, Pedro viria a compreender certos pensamentos e
atitudes da mãe através da filha, Bibiana, herdeira de muitas características da avó. Com a
filha crescida, teve, como Ana, a preocupação acerca de seu futuro, temendo que ela talvez
tivesse que “trabalhar como uma escrava para ganhar seu sustento”
76
.
Porém, havia outros comportamentos de Ana que Pedro não viria nunca a entender,
como o fato de ela não se ter casado, apesar de ter recebido diversas propostas:
Pedro nunca pudera descobrir a razão por que a mãe tinha tanta malquerença
pelos homens em geral. Às vezes fugia deles como o diabo da cruz. Era com
75
Idem, p. 145.
76
VERISSIMO, op. cit, p. 185.
3
freqüência que falava, com vontade e repugnância, em “cheiro de
homem”. [...] Pedro não compreendia e às vezes ficava a pensar que espécie
de pessoa teria sido seu pai para que Ana vivesse assim tão ressabiada de
homem.
77
Com a morte de Ana, Pedro Terra sentiu-se desamparado. Sua mãe era a sua única
referência de família desde o ataque dos castelhanos, ou seja, estava habituado a levar a vida
junto dela, trabalhando e trocando opiniões. Além do fato de ter perdido a mãe, perdera
também a cúmplice. Nessa saudade está refletido o bom relacionamento existente entre mãe e
filho, que não se repete entre Pedro e sua esposa. Com a mãe, tinha uma amizade que não
diminuiu mesmo após seu casamento, algo não freqüente para o tempo em que se passa a
narrativa.
Desde a morte da mãe sentia-se desamparado, como um terneiro que se
subitamente desmamado. Sabia que um dia a velha tinha de morrer: era uma
lei da vida. Mas habituara-se de tal modo a buscar o apoio dela, a pedir-lhe
conselho, que agora lhe era custoso viver sem a velha. Pensava na vida que a
mãe levara e agora ali em sua casa repetia para si mesmo a pergunta que se
fizera no cemitério diante do túmulo materno. Valia a pena lutar, sofrer,
trabalhar como um animal para depois ir servir de comida aos vermes da
terra?
78
Ainda em vida, Ana solicitara ao filho o local no qual gostaria de ser enterrada, sinal
de que ela provavelmente não temesse a morte próxima e não via motivos para possíveis
lamentações, nem do filho, nem de qualquer outra pessoa. No texto não está evidente, mas
acredita-se que Ana encarava sua morte como descanso merecido após uma vida de trabalho,
assim como pensara a respeito da morte de sua mãe.
Considerando-se o grau de importância de Ana para o tronco familiar Terra Cambará,
é de se supor que sua participação na narrativa não estivesse encerrada com sua morte. Depois
disso, a presença de Ana faz-se notar nos personagens que a sucedem: no filho, na neta e em
toda a linhagem que carrega a força de seu sobrenome e de sua história.
77
Idem, p. 187.
78
VERISSIMO, op. cit, p. 192.
3
Isso deixa claro que Ana, como mãe e como personagem de Erico, é fundamental,
parâmetro de mãe e mulher para todas as outras que a sucedem, provedora de todos os
alicerces que sustentam a família Terra Cambará: honra, coragem, força, bravura. Dessa
forma, o autor criou aí, ao invés de um personagem secundário esperado para uma mãe de
família, em detrimento ao papel principal do homem, pai de família um personagem
feminino principal e mais importante no texto que todos os outros masculinos que aparecem.
A função provedora que seria de um personagem masculino está toda centrada nessa mulher,
que pode não corresponder às expectativas da sociedade patriarcal retratada enquanto mulher,
mas que certamente corresponde enquanto mãe.
Ana consegue instituir uma família sem a presença de um homem/marido e, nesse
caso, assume todas as responsabilidades que seriam divididas entre os membros de um casal.
Ana é aquela que não precisou de homem para mantê-la nem para manter seu filho, fruto de
uma relação ilegítima, e isso não era bem visto pela sociedade, acostumada a ter suas
mulheres dependentes de seus maridos. Mesmo as viúvas preocupavam-se em casar
novamente para não ficarem desamparadas, enquanto que Ana assumiu, por conta e risco, a
criação e o sustento de Pedrinho.
Vê-se, então, que Ana Terra assume também, além de suas funções de mãe e mulher, o
que seria considerado como “função masculina”: ir em busca de novas terras, construir a
própria casa, matar um homem para proteger o filho, sustentar esse filho e dar-lhe condições
de trabalho, arrumar-lhe uma boa esposa, continuar com o controle sobre os assuntos todos
condizentes à família, entre outros. O contrário, ou seja, um homem assumir as funções
femininas, já não ocorre ao longo de todo o texto de Erico. Nenhum dos personagens
masculinos se coloca na posição de pai-e-mãe, por exemplo, de seus filhos. O único que teria
reais motivos para fazê-lo Licurgo acaba colocando essas responsabilidades nas mãos da
cunhada – Maria Valéria.
4
Então, o autor deixa claro que quem é capaz de assumir funções em dobro não são os
homens representados no texto, mas as mulheres. E assumem de forma louvável, ou seja,
executando-as tão bem ou até mesmo melhor quanto um homem. Esse é um dos motivos
pelos quais Tristão de Athayde
79
, no artigo Erico Verissimo e o antimachismo, classifica as
personagens femininas do romancista como representações de anti-herói, ou seja, uma crítica
à deformação de heroísmo enquanto típico dos machos, privilégio dos varões.
Seguindo esse raciocínio, não é a valentia biológica masculina de guerra e de morte
que prevalece no texto, mas a valentia serena, a alma ativa e feminina das mulheres. No
contexto da narrativa, pode-se dizer que Erico conseguiu, através de Ana e de outras
personagens femininas, formar e divulgar uma imagem de mulher – gaúcha e mãe detentora
de tanto poder (ou mais) quanto seus homens.
Essa personagem de Ana Terra, então, foge aos parâmetros estabelecidos pela
sociedade rural patriarcal de O tempo e o vento, uma vez que o destino esperado para ela era
nem mesmo conseguir gerar filhos, devido ao isolamento em que vivia. Assim, é a
personagem que modifica a cultura enquanto modo estabilizado de pensar e agir no momento
em que consegue modificar a si mesma. Ana (in)conscientemente engravida para fugir da vida
a que estava fadada e leva o filho embora do rancho onde morava para que ele não tivesse o
mesmo destino de seu pai e de seus irmãos. Buscava mais, ambicionava uma vida melhor
também para si própria, objetivo esse demonstrado desde o início do capítulo dedicado a
ela.
Diante da sociedade patriarcal machista retratada por Erico Verissimo, que cerca essa
personagem de cobranças e expectativas, Ana Terra apresenta como seu maior trunfo e até
como vingança contra tudo o que combate – o filho criado, valente, trabalhador, viril.
79
ATHAYDE, Tristão de. Erico Verissimo e o antimachismo. In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O contador
de histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972, p. 86-102.
4
Vê-se também que ocorrem muitas vezes, com Ana Terra, certas dúvidas com relação
à própria fé, como, por exemplo, no momento em que a mãe, Dona Henriqueta, morre e a
filha questiona-se acerca da existência ou não de u e de paraíso, segundo os ensinamentos
da igreja católica. Por isso e por outros momentos de dúvida de pessoal, pensa-se que Ana
não precisava ter esse tipo de crença uma vez que acreditava suficientemente em si própria e
em sua capacidade de superação.
Uma vez em Santa Fé, Ana Terra adquire autoridade como mãe e como parteira. Essa
é outra referência possível de ser feita com relação ao seu papel no texto de Erico: aquela pela
qual a vida se origina, que é peça-chave na continuidade da existência. Do mesmo modo, Ana
é a raiz a partir da qual todo o tronco da família Terra Cambará irá se firmar. Sem essa muito
bem pensada personagem de Verissimo, todo o resto da narrativa não se faria possível.
Sem ela, Pedro Missioneiro não teria permanecido tanto tempo no rancho dos Terra.
Sem ela, Pedrinho não teria o significado de filho ilegítimo com a obrigação de provar que
pode ser tão bom quanto qualquer outro homem filho legítimo de um pai. Sem ela, Bibiana
não teria sido formada com tamanha fidelidade de caráter e de sentimentos. Sem ela, a família
Terra Cambará não teria tamanho apego à terra e ao que conquistou ao longo da história. Sem
ela, enfim, não haveria família Terra Cambará.
O que se em sua história seria tipicamente caracterizado como uma família de
ordem patrilinear, ou seja, aquela na qual o pai é o detentor das posses e as passa para os
filhos machos. Aqui, esse mesmo sistema se aplica para o segmento matrilinear destacado,
visto que as posses e a cultura são passadas de mãe para filho, e para as outras mulheres
de força inseridas nessas relações.
Ana Terra deixa como maior herança para o filho não apenas seu exemplo de força e
coragem, mas a terra sobre a qual todo o resto da história irá se desenrolar. Esse é seu maior
bem. E, apesar de ter sido perdido pelo filho Pedro, vem a ser resgatado novamente pela
4
próxima personagem feminina a receber destaque: Bibiana Terra Cambará. Por essa sua
determinação em reaver o que a avó conquistara, ela é vista como “duas vezes Ana”.
É interessante constatar que as relações traçadas entre essas mães (Ana e Bibiana,
como será apresentada a seguir) e seus filhos se mantêm baseadas na subordinação, submissão
e reverência dos filhos para com as mães. Pedro Terra não consegue nunca se desvincular
como homem maduro, como pai de família, do laço estreito que o liga a Ana. Ele permanece
dependendo dela no sentido de pedir que ela tome conta de suas coisas, que assuma o controle
inclusive de sua própria família e é o tipo de filho que se submete a tudo o que a mãe propõe,
seja com relação ao trabalho ou a sua vida pessoal.
Esses filhos, a começar por Pedro, são irremediavelmente calados e, assim como
aceitam tudo o que as mães lhes dizem, acabam por aceitar tudo o que a sociedade lhes impõe,
no sentido de irem resignadamente para a guerra, de cumprirem sua subentendida missão de
casar e ter filhos e de permanecerem casados, mesmo que esse casamento não lhes faça bem,
como ocorre com Bolívar, filho de Bibiana.
A morte de Ana, se bem interpretada, não significa uma morte total e completa de tudo
o que ela era. um ditado popular que diz que a semente germina quando morre. O
mesmo se aplica a essa personagem que, mesmo depois de morta, continua exercendo
influência sobre aqueles que a seguem. Ela é o tipo de personagem que, segundo Tristão de
Athayde
80
, vive por si só, à revelia do próprio autor.
Nesse caso, Ana Terra não morre. Sua presença e seu legado se faz sentir em vários
elementos do texto que segue: no vento que sopra, no pensamento dos seus descendentes, nos
seus silêncios, nas histórias que se contam, no sangue dos Terra, nas árvores ao redor do
Sobrado, na matriz de todas as outras mulheres/mães de O tempo e o Vento e, sempre, na
terra.
80
In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O contador de histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo.
Porto Alegre: Globo, 1972.
4
4
A MÃE DUAS VEZES ANA
A personagem de Bibiana, filha de Pedro e neta de Ana Terra, aparece como uma
menina de vinte e dois anos, solteira, com “um rosto redondo, olhos oblíquos e uma boca
carnuda em que o lábio inferior era mais espesso que o superior. Havia em seus olhos, bem
como na voz, qualquer coisa de noturno e aveludado”
81
. Além dos atrativos físicos, Bibiana
tinha o gênio característico dos Terra:
Era voluntariosa, duma teimosia nunca vista, e dum orgulho tão grande que
era capaz de morrer de fome e de sede só para não pedir favor aos outros. No
entanto, quem olhasse para ela julgaria, pelo seu suave aspecto exterior, estar
diante da criatura mais meiga e submissa do mundo. [...] Pedro mal se
lembrava do avô, mas certas ocasiões chegava quase a vê-lo nos olhos da
filha e principalmente no jeito de franzir o sobrolho. Havia nela também
muito da avó, principalmente a voz. Bibiana tinha crescido à sombra de Ana
Terra, com a qual aprendera a fiar, a bordar, a fazer pão e doces, e
principalmente a avaliar as pessoas. Depois que Ana Terra morrera, Pedro às
vezes tinha a impressão de que ela continuava a falar pela boca da neta.
Bibiana repetia frases da avó.
82
Assim, o autor apresenta essa personagem feminina que sucede Ana como uma
continuação desta última. Ana Terra não apenas continuava a falar pela boca da neta, como se
fazia viva através dela. Bibiana é outra personagem forte, mais enérgica e moralmente mais
corajosa que os homens, cuja inspiração parece ter origem no lado materno da própria família
de Erico Verissimo, como bem se pode constatar em suas memórias
83
.
O romancista faz questão de mostrar que Bibiana aprendeu mais sobre a vida, sobre
seus deveres e sobre os homens com Ana que com a própria mãe e, por isso, a neta sente tanta
falta da avó nos momentos mais importantes de sua vida. Bibiana tem sua mãe, Arminda,
como exemplo de esposa e mãe, mas não pensava ser esse o melhor modelo, visto que “não se
81
VERISSIMO, op. Cit, p. 185.
82
Idem, p. 186-187.
83
VERISSIMO, Erico. Solo de clarineta: memórias. v. 1. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
4
entendia muito bem com a mãe: achava-a boa, sim, serviçal, não havia dúvida, mas muito
parada, muito...”. Sua referência admirável de mulher era mesmo a avó.
Essas personagens de Ana e Bibiana assim como posteriormente Maria Valéria e
Luzia representam a rejeição ao protótipo da mulher serviçal, representada aí por Arminda.
Optamos, porém, em não nos dedicarmos a elas, mas sabendo que, assim como esta última,
outros exemplos de mulheres servis aparecem no texto de Erico, sendo o caso de Henriqueta
Terra, mãe de Ana, de Eulália, cunhada de Ana, de Maruca, cunhada de Bibiana, de Ondina,
mãe de Maria Valéria, de Alice, esposa de Licurgo e até mesmo de Flora, esposa do Dr.
Rodrigo.
Mas o são essas mulheres recém citadas as privilegiadas em O tempo e o Vento. As
merecedoras de destaque nesse texto de Erico são justamente aquelas que não assumem o
papel de mulher serviçal, esperado de todas elas na sociedade patriarcal retratada pelo autor.
Essas outras, as servis, representam todas as mulheres que, em silêncio, cumpriram sua função
social de esposas obedientes aos maridos e mães abnegadas de seus filhos, sem a firmeza de
caráter demonstrada pelas personagens selecionadas para este trabalho.
Na expectativa de que Bibiana seguisse a linha da mãe, para seus pais, seu casamento
significava segurança de futuro para ela que, com sua idade, ainda não tinha marido nem
noivo, fato que, para o contexto social criado pelo autor, era preocupante:
Mas com Bibiana a coisa era diferente. Estava com vinte e dois anos e ainda
solteira numa terra em que as moças se casavam às vezes com quatorze ou
quinze anos. [...] A sua pressa [de Pedro] em arranjar marido para a filha lhe
vinha do medo de morrer duma hora para outra, deixando a família
desamparada. [...] Por isso às vezes lhe passava pela cabeça a idéia de que o
melhor mesmo seria casar a filha com um homem decente que a pudesse
levar para Viamão, Porto Alegre ou qualquer um daqueles lugares que
estavam menos sujeitos aos ataques dos selvagens.
84
Porém, Bibiana apaixonou-se por um homem que era o oposto do planejado pelo seu
pai. Era do tipo incerto, podendo até vir a abandoná-la, que gostava de correr mundo, de
84
Idem, p. 192.
4
beber, de jogar, de fazer festas e guerras: o Capitão Rodrigo Severo Cambará. Logo no
primeiro contato tido com o forasteiro, Bibiana sabia que aquele seria o homem de sua vida:
“Ela estava inquieta, com uma coisa no peito... Era um alvoroço que nunca
sentira antes. Por mais que fizesse, o podia esquecer o homem que vira
aquela manhã no cemitério. Sabia que se chamava Rodrigo e que estava
hospedado no rancho do Nicolau, ali do outro lado da praça, bem defronte a
sua casa. Pensava na voz dele e sentia um calor no corpo. Não, não era bem
calor. Era um amolecimento morno, uma vontade de... de que mesmo? Ela
não sabia direito. Melhor: sabia mas não queria saber e de pensar nisso
corava, ficava perturbada, errava o ponto do bordado. Ainda bem que os
outros ignoravam o que ela estava pensando e sentindo...”
85
“No entanto, o desconhecido que ela vira aquela manhã no cemitério (Será
mau agouro?) não lhe saíra da lembrança.”
86
“Bibiana tentou concentrar a atenção no que estava fazendo, mas não
conseguiu. Não via o bordado: via a cara do Cap. Rodrigo. Aqueles olhos
azuis tinham um fogo, uma coisa que puxava a gente, bem como um
atoladouro. Eram olhos que davam medo e ao mesmo tempo atraíam.”
87
Para Bibiana, Rodrigo trazia um pressentimento de desastre e prazer, ao mesmo
tempo. E, para Rodrigo, a idéia de casamento também era um desastre, uma prisão, uma
espécie de morte, mas pensava que, com Bibiana, poderia não ser tão desagradável nem
impossível. E, além disso, era a única forma de possuí-la, desejo alimentado desde o primeiro
momento em que a viu, indício do quanto a voracidade sexual impulsiona a personagem do
Capitão Rodrigo. Apesar dessa característica, assume para si, para o Padre Lara e para a
família Terra gostar mesmo de Bibiana e ter sérias intenções a seu respeito.
O casamento com o Capitão Rodrigo Cambará foi, a princípio, motivo de extrema
felicidade para Bibiana. Sentia-se feliz com as funções de esposa que, aliás, eram as mesmas
observadas em sua mãe: cuidar da casa, cozinhar, lavar roupas, cuidar dos bichos do quintal,
cuidar do marido, homem tão extremamente diferente de seu pai. Para ela, tudo era tão bom
o amor, a felicidade, o sexo – que chegava a lhe parecer errado.
85
VERISSIMO, op. cit, p. 193.
86
Idem, op. cit, p. 195.
87
Ibidem.
4
“Era por tudo isso que Bibiana não se habituava à nova situação. Tudo era
bom demais para ser verdade. Tinha agora seu marido, sua casa, sua
liberdade... Mas Rodrigo era tão diferente do pai, tão alegre, tão descuidado,
tão barulhento, tão engraçado, que ela às vezes ficava com a impressão de
que estava – ainda para usar uma frase de Pedro Terra – levando uma vida de
“gente louca” e que portanto essa vida não era decente nem podia durar.”
“Mas havia sempre de mistura com seus prazeres e êxtases um elemento
secreto de inquietação não o pressentimento de que aquilo tudo não
podia durar como também a desconfiança de que aquele tipo de amor não era
direito, não devia existir entre marido e mulher.
88
Quando Bibiana engravidou pela primeira vez, veio também o medo de perder o
marido, visto que sabia estar ficando menos atraente, e o medo do parto. Apesar disso, a
maternidade tornara-lhe “mais adulta, mais mulher”
89
, amadurecimento fruto da gravidez e da
futura responsabilidade que um filho lhe acarretaria.
Ao contrário do que ocorreu com Ana Terra, que não desejara ficar grávida, Bibiana
tinha orgulho do filho que carregava no ventre: “Ela estava satisfeita e orgulhosa por trazer
dentro de si um filho do Cap. Rodrigo Cambará”
90
. A concepção desse filho fora, para
Bibiana, planejada, diferentemente do que houve com a avó, Ana, que não desejara o filho,
chegando até mesmo a rejeitá-lo em princípio. reside a grande diferença entre a concepção
de Pedro Terra e de Bolívar Terra Cambará: a primeira significou o pecado, o proibido, a
transgressão da regra, enquanto a segunda representou a realização de um projeto, a prova da
fertilidade, da mulher gaúcha parideira que deseja estender, através de seu filho, o homem que
ama, o seu sobrenome, as suas características de homem gaúcho guerreiro.
Claro está que, apesar de não ter desejado seu filho, fruto de um amor ilegítimo, e de
tê-lo, a princípio, rejeitado, Ana foi capaz de exercer seu papel de mãe muito bem,
principalmente quando se viu num lugar onde ninguém conhecia seu passado então
considerado profano. com Bibiana não houve necessidade de mudanças, de redimir-se
88
VERISSIMO, op. cit. p. 253 e 254.
89
Idem, p. 255.
90
Id, p. 256.
4
perante a sociedade, uma vez que sua gestação fora fruto de um relacionamento aceito
socialmente, digno. Ana não via futuro para si com a gravidez, enquanto que Bibiana via seu
futuro garantido através dela.
E, na primeira vez que seu bebê se mexeu dentro de sua barriga, pensou na
possibilidade de ser um menino e de ele herdar o gênio do pai, Rodrigo. Como acontecera
com a avó, lhe agradava a idéia de ter dentro de si uma reprodução do homem que amava,
fato que Béatrice Marbeau-Cleirens
91
exemplifica como quando a mãe no filho a cópia do
homem que ama, o que dá à atitude materna um leve reflexo do sentimento amoroso.
O primogênito de Bibiana e Rodrigo nasceu no dia dois de novembro, dia de finados,
mesma data na qual o casal se vira pela primeira vez, o que fez Bibiana cogitar se não seria
sinal de mau agouro. O nome Bolívar, escolhido pelo pai, não agradou a mãe, que preferiu
ainda acatar o desejo do esposo. Em seguida, no texto, vários trechos nos quais a mãe
Bibiana aparece embalando, ninando (com cantigas aprendidas de Ana Terra) e acalentando o
filho, responsabilidade que cabia somente a ela, uma vez que Rodrigo aproximava-se do filho
apenas para brincar e exibir aos outros.
O maior temor de Bibiana era com relação ao futuro do filho, caso viesse a seguir os
passos do pai. Sabia que teria de esperar e ter medo por causa de dois homens e não mais por
causa de apenas um. “Imaginou o que seria sua vida no dia em que Bolívar crescesse e saísse
a correr mundo com o pai.”
92
Assim como os sentimentos direcionados a Rodrigo refletiram-
se em Boli, as preocupações que tinha com relação ao marido também refletiram-se no filho.
Bolívar era ainda bem pequeno quando Bibiana teve vontade de ter mais filhos, uma
menina talvez, que lhe fizesse companhia. E, quando nasceu Anita, seu trabalho como mãe
dobrara, pois Rodrigo não a ajudava com nada. Toda a responsabilidade com a casa e as duas
crianças cabia a ela e,
91
MARBEAU-CLEIRENS, Béatrice. O sexo da mãe e as divergências entre as teorias psicanalíticas. Trad.
Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989.
92
Op. cit, p. 265.
4
além de todo o serviço da casa, tinha de cuidar de duas crianças pequenas.
Bolívar, longe de diminuir-lhe o trabalho agora que caminhava, criava-lhe
mais problemas, pois andava a correr por toda a casa, saía pelo quintal a
perseguir as galinhas e um dia virara sobre a cabeça um tacho cheio de
marmelada a ferver.
93
De todas as personagens femininas do texto de Erico, Bibiana é a que mais aparece
envolvida com as funções maternas triviais, tais como atender as crianças enquanto fiava,
alimentá-las, lavá-las, entre outras. Essas atividades associadas às de cuidado com a casa
“ajudaram-na a esquecer as lembranças tristes e um pouco o medo do futuro”
94
. Essas
lembranças tristes referidas são as da perda da filha Anita, enfrentada duramente em uma
noite de inverno, enquanto Rodrigo jogava cartas e bebia longe de casa:
- A coitadinha está gelada... murmurou [Bibiana], botando as
costas da mão na testa de Anita.
D. Arminda inclinou-se sobre a neta, mirou-a longamente e depois
murmurou:
- Essa criança vai morrer.
As palavras caíram como geada no peito da mãe. Por um instante se
fez silêncio e as duas mulheres ficaram escutando o uivar do vento. D.
Arminda acabava de dizer o que Bibiana temia, o que ela se esforçava por
não reconhecer. Anita ia morrer. Era questão de dias, talvez de horas. Estava
ficando fria e roxa. De súbito, como que compreendendo o horror da
situação, Bibiana precipitou-se para a filha, encostou o rosto no peito dela e
procurou escutar-lhe as batidas do coração.
- O coraçãozinho dela não está batendo mais, mamãe!
95
É justamente neste ponto, no qual Bibiana começou a sofrer as desilusões da vida
(morte da filha, traições e abandonos do marido, dificuldades financeiras) que ela se
fortaleceu e tornou-se obstinada por seus objetivos pessoais. Apresentou, então, um grande
poder de recuperação e voltou a ter a sensação de felicidade com a outra filha que teve:
Leonor. Como os Terra, sabia aceitar “os fatos com uma coragem resignada, e tinha vergonha
de fazer cenas”
96
e, como Ana, acabara tornando-se incrédula em função das tantas coisas
93
Idem, p. 267.
94
VERISSIMO, Erico. Op. cit, p. 288.
95
Idem, p. 284.
96
Idem, p. 293.
5
ruins que vivera, tendo consciência de que “coisas boas nunca aconteciam. Por isso nem
pedia”
97
.
Para a sociedade patriarcal retratada por Erico, nada havia de errado nas traições de
Rodrigo, desde que Bibiana se mantivesse fiel, pois a família monogâmica, então, baseava-se
no poder concedido ao homem e não à mulher –, “com a finalidade precípua de procriar
filhos de paternidade incontestada”
98
. Nessas famílias, a autoridade e o poder do pai são
apoiados pela sociedade, já que é ele quem provê sua família economicamente.
Depois da morte do marido na guerra, vê-se surgir uma Bibiana renovada, como Ana
depois do ataque dos castelhanos. Ela sentia-se como “seca por dentro, incapaz de qualquer
sentimento. No entanto, a vida continuava” e “outra verdade poderosa era a de que ela tinha
dois filhos e havia de criá-los direito, nem que tivesse de suar sangue e comer sopa de
pedra”
99
.
Essas atitudes de força e de coragem criadas por Erico para suas personagens
femininas representam a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor pelos
mecanismos de identificação, projeção e transferência. Essas personagens (Ana, Bibiana e as
que seguem) são o elemento vivo do romance, cuja leitura depende basicamente da aceitação
da verdade do personagem por parte de quem lê
100
.
É toda essa obstinação que lhe forças, posteriormente, para lutar pelo que entende
ser seu de direito: o Sobrado de Aguinaldo Silva e de sua filha Luzia, construído nas terras
pertencentes antes a Pedro Terra e perdidas em função de um empréstimo não pago pelo ex-
proprietário. A maneira encontrada por Bibiana para poder tomar para si o Sobrado é através
do filho Bolívar, apaixonado por Luzia. Uma vez casados, a casa voltaria a pertencer aos
Terra.
97
Idem, p. 302.
98
CANEVACCI, Massimo (org.). Dialética da família. 5. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 74.
99
Passim VERISSIMO, p. 308 e 309.
100
CANDIDO, Antonio (et. al). Personagem de ficção. 10.ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 54.
5
A partir disso, percebe-se que a influência de Bibiana sobre o filho Bolívar é bastante
marcada no texto. Embora adulto, ele ainda sente-se bastante dependente da proteção da mãe,
o que perdura até o fim de sua vida:
“Meu filho!”
Donde vinha aquela voz? Da direita? Da esquerda? De onde?
“Meu filho!” Quase sem sentir, como uma criança que tem medo da
escuridão, ele gritou: “Mamãe!”
A memória então lhe voltou. Era Bolívar Cambará, estava em sua
casa, em seu quarto e fazia tempo que se deitara para dormir. Mas o medo
ainda lhe comprimia o peito, e era mais terrível ainda porque ele não
conhecia a causa. Alguma coisa o fizera soltar um grito e acordar assustado,
alguma coisa que decerto estava agora escondida num dos cantos do quarto
escuro... Por isso a voz da mãe era uma esperança de socorro. Ele queria luz:
ele queria a mãe.
Uma porta se abriu e Bibiana apareceu com uma vela acesa na mão. A
chama alumiava-lhe o rosto. E por um segundo Bolívar de novo voltou à
infância. Pareceu-lhe até sentir o cheiro de óleo da lamparina. O rosto da
mãe lhe deu a sensação de segurança de que ele precisava. Seu primeiro
ímpeto foi o de caminhar para ela, buscando a proteção de seus seios, de
seus braços, de seu ventre. Para ele mãe e luz eram duas coisas inseparáveis.
Quando menino, muitas vezes acordava assustado no meio da noite,
começava a chorar e se acalmava quando a mãe acendia a lamparina e o
tomava nos braços para o embalar.
101
Apesar do nome remeter primeiramente a um herói da História da América Latina o
famoso Simon Bolívar, líder das independências da Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia
assim como nesse trecho citado, outros aparecem nos quais Bolívar demonstra sua
insegurança enquanto homem, sua sensação de abandono quando a e não es por perto,
transferindo, posteriormente, à esposa Luzia. No episódio de seu noivado, ocorrido no mesmo
momento da execução de seu amigo Severino, o rapaz põe-se a chorar e quem o defende é a
mãe, pois “fosse como fosse, ela estaria sempre junto dele para ampará-lo e dar-lhe
conselhos”
102
.
Bolívar a mãe como uma pessoa triste e sofrida em conseqüência da “sina das
mulheres da Província”, onde Bibiana é o tipo de mãe que corresponde às expectativas da
101
Idem, p. 336-337.
102
Ibidem, p. 368.
5
sociedade patriarcal da época, ou seja: mantém-se fiel ao marido mesmo depois de morto
e dedica-se com avidez à sua função materna, mais particularmente com relação a Bolívar,
visto que Leonor quase não tem destaque no texto. Para Bibiana, assim como antes fora para
Ana, “cuidar da terra é mais do que parece, cuidar da terra é cuidar da descendência e da
manutenção da sobrevivência, que é, afinal, o que importa e o que concerne às mulheres”
103
.
Essa manutenção da sobrevivência acontece particularmente na conquista do Sobrado,
feita através do filho, a qualquer custo, e de tudo o que o local representava: a história de sua
família, seu passado, o lugar onde Ana Terra vivera, onde a própria Bibiana noivara, onde o
pai, Pedro, plantara suas árvores. Pensando nisso,
Estava resolvido: ia tomar o Sobrado. Não de assalto, aos tiros, como o Cap.
Rodrigo. Agora não havia nenhuma pressa. Era mulher, tinha paciência,
estava acostumada a esperar...Que era um ano, dois anos, dez anos? Um dia
Aguinaldo morre, Bolívar fica de dono de tudo, eu volto pras minhas
árvores, vou ver nascer os filhos de meu filho, vou ajudar a criar meus
netos...
104
E durante todo o tempo do noivado do filho, Bibiana gentilmente o empurrava para o
futuro ao lado de Luzia, apesar da sensação de “náusea, medo e impotência” que o rapaz
sentia perto da noiva. Além disso, havia também a situação da execução de Severino no
mesmo horário da comemoração desse noivado, sugestionando claramente que aquele
compromisso com Luzia era uma forma de enforcamento, de morte para Bolívar.
Sobre isso, Schüler bem constata que
O momento decisivo na vitória dos Cambarás é o casamento de Bolívar com
Luzia, dona do Sobrado e de uma grande fortuna. Este casamento é uma
ardilosa maquinação de Bibiana. Na execução tenaz de seu plano, não lhe
interessa a felicidade do filho. Obediente aos planos da mãe e às decisões de
sua noiva, Bolívar se despersonaliza. Entra no casamento como um animal
de sacrifício. A este preço os Cambarás conquistam fortuna e poder.
105
103
ALMEIDA, Lélia. op. cit. p. 49.
104
VERISSIMO, op. cit. p. 368.
105
SCHÜLER, Donaldo. Op. cit. p. 170.
5
Com o casamento de Bolívar e Luzia, conforme o planejado, Bibiana mudou-se para o
Sobrado e, após a morte de Aguinaldo, instalou-se uma batalha doméstica entre Bibiana e a
nora pelo comando da casa, de Bolívar e de Licurgo, filho do casal. Como constatara o
próprio personagem do doutor Winter, presente em toda essa segunda parte de O Continente:
“sogra e nora nunca se entendem, principalmente quando moram na mesma casa”
106
. E
Bibiana e Luzia vêem para acentuar essa crença popular corrente.
Bibiana via a nora como alguém não pertencente àquele lugar, nem àquele chão,
tampouco àquela família. Após ter alcançado seu grande objetivo conquistar o Sobrado
através do casamento do filho Bibiana não via mais propósito algum em ainda manter Luzia
por perto. Para ela, a nora era total e completamente dispensável. Vê-se, nas atitudes de
Bibiana, o ciúme que ela tem da nora com relação ao filho, sentindo-se ameaçada por ela, por
sua beleza, por seu talento musical e literário, por sua influência sobre Bolívar. Para justificar
seus próprios atos e pensamentos, Bibiana acusa Luzia freqüentemente de bruxa, assanhada,
sem-vergonha, mulher perdida, louca e outros adjetivos pejorativos dessa natureza.
Entendendo essa rivalidade, compreende-se o comportamento da mãe de Bolívar com
relação à nora, que era ríspido, seco e carregado de desdém. Usava do argumento altruísta de
ter sujeitado o filho àquela situação para garantir-lhe o Sobrado e todas as posses que viriam
junto com ele, quando, na verdade, ela mesma é quem queria ter, a qualquer custo, o título de
dona do Sobrado – e o consegue sacrificando o próprio filho.
Visto que Bibiana não poupa esforços para conseguir o que quer, ou seja, o controle
do Sobrado e a continuidade da família através de Licurgo, por vezes ela usa de subterfúgios
escusos para vencer sua batalha pessoal contra Luzia, como no caso do fazendeiro de café,
seriamente interessado pela Teiniaguá, mas afastado dela propositadamente por Bibiana.
Por isso a premissa de que ninguém – nem nenhuma das personagens aqui abordadas –
é totalmente mau nem totalmente bom. Todos apresentam momentos, ou melhor, traços de
106
VERISSIMO, op. cit. p. 405.
5
bondade e traços de uma certa malvadeza. Bibiana é a prova disso. Tanto que seu sobrinho,
Florêncio Terra, duvida e sente-se ofendido pelo Dr. Winter quando este lhe expõe a
constatação de que a posse do Sobrado fora algo totalmente planejado pela tia, o que era
verdade.
É interessante o fato de que quem primeiro percebeu a gravidez de Luzia e a relatou ao
médico da família fora Bibiana, pois tinha muito medo de que a nora, com a índole que
parecia ter, pudesse abortar o bebê. Ela ficou sabendo da gravidez por méritos próprios, pela
experiência que tinha em reconhecer mulheres grávidas, ou seja, ninguém precisou lhe contar.
Com o medo latente de que sua esperança de continuidade da família um filho de Bolívar
não obtivesse êxito, pensara na conveniente solução de internar a nora, resolvendo seus
problemas e garantindo seu controle sobre o Sobrado, o filho e o neto.
Por se pode constatar que Bibiana estava realmente disposta a tudo para vencer a
“carreira” metáfora utilizada por Dr. Winter para descrever a disputa entre sogra e nora
que ela própria travara contra Luzia. Nessa concorrência, acabou sendo Bibiana quem deu a
notícia da gravidez de Luzia a Bolívar, função pertencente à esposa e não à mãe do homem
que se tornará pai. Como essa, várias outras atitudes apresentadas por Bibiana são assumidas
em lugar da nora. Por isso, uma insinuação por parte dela de que Luzia, naquele triângulo,
teria o papel de “a outra”, “a rival”, quase como uma amante de seu filho, e não esposa
legítima que era.
Bibiana tinha consciência de que interferia na vida do casal, mas não se preocupava
com isso desde que Bolívar estivesse bem. Portanto, para ela, o ideal seria a morte de Luzia,
com a qual Boli sofreria por um tempo, mas, a seu ver, se recuperaria, tendo a mãe ao lado
para apoiá-lo. Essas idéias de morte da nora tornaram-se mais freqüentes quando o jovem
casal encontrava-se em Porto Alegre e, nessa ocasião, espalhou-se a peste pela capital.
Bibiana, que ficara cuidando do neto em Santa Fé, imaginava o velório da nora, o sofrimento
5
do filho, mas com alívio. O que lhe apavorava era pensar que talvez não fosse a nora a morrer,
mas o filho. Nessa segunda hipótese, havia a possibilidade de perder o neto definitivamente.
Bibiana olhava para Licurgo, seu único neto, com o pensamento em seu futuro de
homem Terra Cambará, sem nenhuma característica que pudesse herdar da mãe. Depositava
no menino todas as expectativas de continuidade da família e, por isso, fazia questão de tomar
conta pessoalmente da educação da criança. Usou inclusive o argumento da peste,
aproveitando-se do momento delicado pelo qual a família passava, para privar Luzia de ver
seu filho.
Por isso Flávio Loureiro Chaves afirma que “o verdadeiro combate de O Continente
e o mais cruel de todos não foi travado nas coxilhas, mas no interior do Sobrado, entre
Bibiana e Luzia, entre a Terra e a Teiniaguá”
107
. Referindo-nos novamente às palavras que
Erico caracteriza como do Dr. Winter, “Bibiana odeia a nora com a mesma força com que
amava o filho”, o que explica suas atitudes por vezes radicalmente cruéis com relação à Luzia.
Depois da morte de Boli, a luta entre as duas mulheres pelo domínio do Sobrado e de
Curgo tornou-se muito mais acirrada. Em vista de um certo isolamento de Luzia, Bibiana de
fato assumiu para si as responsabilidades maternas pelo seu neto. Cada pequena permissão
necessária a Licurgo era dada pela avó, como, por exemplo, aprender a domar potros e apostar
carreiras. Ela educou o neto para que não se desfizesse das posses adquiridas por ela até
ali, para que não se desfizesse das terras conquistadas. Ensinou-lhe também que um homem
completo tinha de casar e ter muitos filhos garantia de continuidade da família, do legado
Terra Cambará.
Esses são alguns dos motivos que levaram o Dr. Winter, imigrante alemão que
acompanha de perto o que ocorre no Sobrado, a classificar Bibiana como uma mulher prática.
Fizera tudo o que fizera por uma questão de praticidade: queria as terras que outrora
pertenceram ao pai e à avó, Ana Terra, queria riqueza de posses e queria passar isso adiante
107
CHAVES, Flávio Loureiro. Op. cit. p. 81.
5
para as gerações da família que esperava virem. Para tanto, estava disposta a tudo, inclusive a
perder o filho.
Bibiana expõe seu objetivo claramente ao Dr. Winter quando diz: “Mas é que não
costumo deixar nenhum trabalho pela metade. Quando começo um bordado, termino ele nem
que leve dez anos. Se eu morrer antes de ver o Curgo homem feito, casado e com filhos, então
é porque não adiantou nada pra ninguém eu ter vindo a este mundo.” Ao que Winter conclui,
sobre Bibiana e Luzia:
Estão jogando uma carreira. [...] Não em cancha reta, mas numa cancha
cheia de curvas. A raia da chegada é a morte. que nessa carreira quem
chegar primeiro perde... [...] O Sobrado e o menino. [...] O que mantém
aquelas duas mulheres juntas na mesma casa é a esperança que uma tem de
que a outra morra primeiro. [...] Se Luzia morrer, o problema se resolve. D.
Bibiana fica com o menino e com o Sobrado e pode assim governar os dois
como bem entender. [...] D. Bibiana é uma mulher prática. Aguinaldo Silva
tomou a terra do pai dela por meio de uma hipoteca. Ela recuperou a terra
por meio dum casamento.
108
Bolívar acompanhava de perto a batalha entre a mãe e a esposa e o se sentia
confortável com isso. Estava constantemente dividido entre as duas, não sabendo de que lado
ficar. Tanto que afirmou preferir a guerra dos campos àquela que tinha de enfrentar dentro de
casa. Chegou a ter medo de ficar louco com tudo o que vivia, percebendo que, no Sobrado,
cada um estava ilhado dentro de si mesmo. Suas duas mulheres a mãe e a esposa viviam
preocupadas com seus próprios problemas domésticos e com sua disputa pessoal e ele,
Bolívar, o homem da casa, estava perdido entre as duas.
Bibiana disputava a atenção de Bolívar com a nora e usava de sua influência sobre o
filho para colocá-lo contra a esposa. Ela tinha respostas e comentários gratuitamente
grosseiros para com Luzia e, com isso, foi assumindo o posto de senhora do Sobrado e
manipulando as atitudes de Bolívar também. Assumiu a representação da grande-mãe,
108
VERISSIMO, op. cit. Passim 488.
5
simbolizada pela terra, pela natureza, pela árvore frutífera, enquanto coloca a nora como a
madrasta da história, aquela que é a grande adversária
109
.
A morte para ele representou uma fuga da vida sobre a qual não tinha controle.
Quando Bolívar estava saindo de casa para enfrentar os inimigos, Bibiana o confundiu com o
Cap. Rodrigo. Ana também cometera o mesmo engano com Pedrinho, o que demonstra a
transferência de amores feita por essas mulheres de seus maridos para seus filhos. Assim
como ela percebera que seu Capitão seria morto em combate, sabia que perderia o filho
naquele momento também. E, em sua última tentativa de protegê-lo, gritou na janela para que
não atirassem no “menino”, pois, para aquela mãe, o filho, mesmo adulto e pai de família, era
ainda um menino que necessitava de sua proteção.
A presença de Bolívar se fez sentir ainda no restante dos dias solitários de Bibiana.
Depois de Licurgo ter se tornado um rapaz feito, que passava a maior parte do tempo na
estância, ela e a nora ficavam sozinhas no Sobrado e isoladas uma da outra. Assim, Bibiana
imaginava a presença do filho fazendo-lhe companhia e chegava até a conversar com ele em
seus devaneios. Punha o prato de Bolívar na mesa para não parecer estar fazendo as refeições
sozinha, mesmo sob o olhar desconfiado das empregadas da casa.
Para ela, foi muito sofrido ter perdido o filho, mas fazia questão de agüentar o
sofrimento em função de seu objetivo claro, que continuaria lhe exigindo dedicação e lucidez:
dar continuidade à família através de Licurgo e manter-se no Sobrado. Esse Sobrado é
colocado no texto com tamanha presença e grandeza, que é certamente considerado como um
dos personagens de Erico. uma passagem em que o Sobrado aparece como uma filha de
Bibiana
110
, necessitando dos carinhos e dos cuidados da mãe. E isso faz todo o sentido, uma
vez que essa mãe representada por Bibiana realmente adota o Sobrado como fruto seu e
109
LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. Trad. Mario Krauss e Vera Barkow. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
110
VERISSIMO, op. cit. p. 540.
5
nele sua esperança de permanência da família, sua garantia de continuidade dos Terra
Cambará.
Bibiana abre mão do convívio com o resto da família o irmão, o sobrinho, a própria
filha Leonor em prol desse objetivo. Ela sabe que está em guerra dentro do Sobrado, uma
“guerra miudinha, dia a dia, hora a hora...”, para a qual a maior arma é a paciência:
Mais do que a paciência refletiu Winter as mulheres tinham uma
constância feroz no ódio. Não era um ódio que se concentrasse todo num
ímpeto para produzir um gesto de selvagem violência. Diferente do ódio dos
homens, que se fazia labareda devastadora, mas se extinguia logo, o ódio das
mulheres era uma brasa lenta que ardia, às vezes escondida sob cinzas, e que
durava anos, anos e anos...
111
Bibiana passou pelos sofrimentos e pelas desventuras da vida amparada pelo trabalho
e conformou-se com sua vida de amarguras porque, na sua opinião “a sina dos Terras é passar
trabalho”. E sabe ter herdado a força e a saúde de sua família, principalmente de sua avó, Ana
Terra: “Minha a também nunca ficou doente de ir pra cama. E passou o diabo.”
112
Ela não
tinha medo de morrer, nem tinha medo dos mortos, mas dos vivos e do que eles eram capazes.
É perceptível que Bibiana não se achava merecedora de coisas boas, de pequenas
felicidades, pois desconfiava de todas elas. Sentia-se fadada a sofrer, a passar trabalho a vida
inteira e, por conseqüência desse pensamento, nota-se, na personagem, a falta de fé em Deus e
em seus santos, nos quais outrora confiara. Chega inclusive a comparar seu Deus a Luzia, pois
vê, na criação divina, a crueldade de quem gosta de assistir ao sofrimento alheio. “Tratava os
santos de igual para igual e em certas ocasiões revoltava-se contra eles com o mesmo fervor
com que noutras lhes invocava a ajuda”
113
.
Bibiana é, na verdade, bem como constatou seu pai, Pedro Terra, uma continuação de
Ana Terra. Ana continua a existir através de Bibiana, de suas falas e de suas atitudes de
111
Idem. p. 539.
112
VERISSIMO, op. cit. Passim 537 e 538.
113
Idem, p. 532.
5
preservação familiar. A força e o diferencial dessa personagem começa a aparecer quando
ela se nega ao casamento conveniente com Bento Amaral, quando enfrenta todos os seus
problemas matrimoniais e pessoais totalmente sozinha e, por fim, quando consegue apoderar-
se do Sobrado.
Pode-se afirmar que Bibiana assume para si características Cambará de seu Capitão
Rodrigo, que de um modo feminino, tornando-as úteis na guerra que ela teve de enfrentar
dentro do Sobrado. Tais características (força, coragem, bravura) provavelmente lhe
pertenciam, mas afloraram de fato depois da morte do marido, quando Bibiana precisou
assumir as funções provedoras dele e, junto disso, assumiu também a postura de chefe da
família até o fim de seus dias.
Ela teve não apenas o controle sobre seu filho Bolívar, sobre suas ações, como
também sobre seu neto, Licurgo, sobre seus empregados, sobre o Angico, o Sobrado e, de
forma um pouco mais trabalhosa, sobre a nora. Mesmo depois de velha e com a visão bastante
debilitada, Bibiana continuou controlando tudo o que se passava dentro do Sobrado e, de
maneira mais sutil, influenciando os acontecimentos familiares.
Por isso que, com sua morte, ou seja, com a morte do “chefe da família”, todo o resto
do grupo começa também a morrer. Aquela morte acaba dispersando uma parte do que havia
sido construído aali, que teve início com Ana. É a partir de então que se começa a perceber
a decadência na qual entra a família Terra Cambará. Por mais que Maria Valéria, Flora e
Sílvia tentem dar continuidade ao legado instaurado por Ana e Bibiana, os homens
especialmente o Dr. Rodrigo Cambará contribuem consideravelmente na perda e não na
manutenção – dos bens que lhes cabiam.
A importância de Bibiana dentro d’O tempo e o Vento está justamente em sua grande
conquista e demarcação de território e de seguimento da família através de Licurgo. Ela
6
representa a ligação entre Ana Terra e todo o resto da família que irá se formar a partir de
Curgo, único elo existente para que o clã Terra Cambará tenha continuidade.
Desse modo, é através de Bibiana que toda a história narrada se faz possível, pois ela
faz com que o universo originado em Ana Terra permaneça, apesar de Luzia, constante
ameaça a essa ordem. Esse mundo iniciado por Ana vigora através de Bibiana, transmissora
dele para as outras mulheres que a seguirão, a começar por Maria Valéria, herdeira direta das
influências da tia.
Enquanto tínhamos em Ana uma mãe selvagem, que concebera seu filho na sanga,
dando vida ao mito do feminino arcaico, temos, com Bibiana o símbolo da mãe-resistência, a
mãe que, como chefe da família, conserva seu patrimônio, mantendo, além dos valores
materiais, os imateriais, transmitidos pessoalmente a Bolívar, a Licurgo, a Maria Valéria. Ela
é o elo vivo entre as gerações da família, pois convivera com a avó, Ana, e permanecera viva
a ponto de conhecer também os descendentes de seu neto, ou seja, Toríbio e Rodrigo.
Os dois tipos de mãe até aqui representados são de extrema relevância no texto, pois
um depende do outro, ou seja, não haveria uma mãe que preservasse se não houvesse a mãe
desbravadora inicialmente. Por isso também entendemos que Bibiana é uma mãe “duas vezes
Ana”, pois, além de fazer novas conquistas, mantém o que a avó adquirira e passa isso adiante
para as outras gerações que a seguem.
6
A MÃE SECA
Melpômene, Melpômene... Sim, Luzia lhe evocava a musa da tragédia.
Havia naquela bela mulher de dezenove anos qualquer coisa de perturbador:
uma aura de drama, uma atmosfera abafada de perigo. Winter sentira isso
desde o momento em que pusera os olhos nela e por isso ficara, com relação
à neta de Aguinaldo, numa permanente atitude defensiva. Numa terra de
gente simples, sem mistérios, Luzia se lhe revelara uma criatura complexa,
uma alma cheia de refolhos, uma pessoa, enfim para usar da expressão das
gentes do lugar “que tinha outra por dentro”. Ao conhecê-la, Winter ficara
todo alvoroçado como um colecionador de borboletas que descobre um
espécime raro no lugar mais inesperado do mundo. Ao contrário, porém, do
que sentiria um colecionador, não desejou apanhar aquela borboleta em sua
rede; ficou, antes, encantado pela idéia de seguir-lhe o vôo, de observá-la de
longe, viva e livre. Que mistérios haveria dentro daquela cabeça bonita?
Boas coisas não havia de ser – concluíra ele. O instinto lhe insinuava
isso. Lembrou-se de seu professor de clínica, segundo o qual em Medicina,
como em tudo mais, o instinto é tudo. Seu olho clínico, ou seu sexto sentido
fazia soar uma sineta de alarme toda a vez que ele via Luzia Silva. E sempre
que visitava o Sobrado, enquanto o velho Aguinaldo contava com sua voz
cantante histórias do sertão pernambucano, ele ficava a examinar
furtivamente, com olhares oblíquos, a menina Luzia. Que tinha ela de tão
estranho? Talvez os olhos... Eram grandes e esverdeados... Ou seriam
cinzentos? Era difícil chegar a uma definição, pois lhe parecia que eles
mudavam de cor de acordo com os dias ou com as horas. Possuíam uma
fixidez e um lustro de vidro e pareciam completamente vazios de emoção.
Winter descobrira que Luzia fitava as pessoas com a mesma indiferença com
que olhava para as coisas: não fazia nenhuma distinção entre o noivo, uma
mesa ou um bule. Pobre Bolívar! Winter achava absurdo que duas pessoas
tão desiguais estivessem para casar, morar na mesma casa, dormir na mesma
cama e juntar-se para produzir outros seres humanos. Bolívar mal sabia ler e
assinar o nome: era um homem rude. Carl não acreditava que Luzia o
amasse; para falar a verdade não a julgava capaz de amor por ninguém...
Quanto ao rapaz, era natural que estivesse fascinado por ela. Winter sabia o
quanto era difícil para qualquer homem que estivesse na presença de Luzia
desviar os olhos de seu rosto. Reconhecia que ele próprio sentia pela senhora
do Sobrado um certo desejo físico. Era, porém, um desejo sem ternura, um
desejo frio e perverso.
114
Referenciando uma das nove musas da mitologia grega, filha de Zeus e de Mnemósine
deusa protetora da memória Melpômene é considerada a musa da tragédia grega
115
. Ao
fazer a transferência desse mito ao ambiente de Santa Fé, criado por Erico, a personagem do
114
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 352-353.
115
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 8. ed. Petrópolis: Vozes, v. III, 1998.
6
Dr. Winter atribuiu à Luzia Silva o título de musa da tragédia provinciana que ele
acompanhava de perto no vilarejo.
Uma musa é reconhecidamente inspiradora das Ciências e das Artes e, no caso dessa
em específico, ela inspiraria a tragédia, entendendo-se que esse segmento artístico seja “um
poema que, por meio de personagens heróicos, através do movimento das paixões humanas,
em geral focando temas lendários e históricos, desperta altas e fortes emoções, culminando
sempre num desfecho triste”
116
. Com base nesse conceito, pode-se criar a expectativa, com
relação a essa personagem feminina, de que, em torno dela, haverá conflitos e, possivelmente,
desfechos inesperados, tristes ou, no mínimo, diferentes do que se estava tendo até então.
Assim como essa intertextualidade com a mitologia grega sintetiza a personagem de
Luzia Cambará, também é ponto marcante no texto a partir do qual Erico passa a ampliá-lo,
representando as forças universais que regem os acontecimentos de um modo geral. É a contar
daí que o autor contrasta a força de preservação até então representadas por Ana Terra e
Bibiana – e a força de destruição, que agora tem sua representante em Luzia.
No decorrer do segundo tomo de O Continente
117
, o leitor realmente se depara com um
desenho de personagem imprevisível, misterioso e, ao mesmo tempo, curioso e cativante.
Erico traz a seu texto, com Luzia, uma caracterização de personagem feminina diferente das
que haviam sido mostradas até ali, no sentido de que as idéias, as atitudes, as maneiras de
Luzia chocam-se com o estabelecido anteriormente por Ana Terra e Bibiana Terra Cambará.
Isso é percebido não apenas em seu papel de mulher, no texto, como também no papel de
esposa e, muito especialmente, no papel de mãe.
O capítulo da trilogia dedicado a essa personagem tem como título “A Teiniaguá”,
referência direta feita por Verissimo ao texto compilado por Simões Lopes Neto, intitulado
116
Enciclopédia Brasileira Globo. 10. ed. Porto Alegre: Globo, v. V, 1965.
117
VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento – O Continente II. 27. ed. São Paulo: Globo, 1995.
6
“A Salamanca do Jarau”, parte de suas Lendas do Sul
118
. O texto, publicado em 1928, teve por
fonte primeira o autor Daniel Granada e o padre Teschauer, conforme estudos de Augusto
Meyer
119
. Esse último interpreta o texto de Simões como uma apologia clara à renúncia cristã
e uma redenção pelo amor, o que conduz o leitor a uma idéia de predestinação, a qual nos
remetiam as tragédias gregas, também trazidas por Erico nesse capítulo.
Verissimo remete-se à lenda já com a personagem de Pedro Missioneiro
120
, que conta a
história dos mouros vindas ao Continente de São Pedro, trazendo junto uma fada em forma de
velhinha. Chegando aqui, fizeram um trato com o diabo, que transformou a princesa moura
numa teiniaguá, colocando, em lugar da cabeça do animal, uma pedra vermelha transparente,
que era mágica. O diabo mostrou-lhe o lugar de todas as furnas que escondiam tesouros e ela,
depois, fugiu-lhe.
O animalzinho reapareceu posteriormente, surgido do fundo de um lago, para um
sacristão. Ele, por sua vez, levou a teiniaguá para sua cela, alimentando-a e cuidando-a. Até
que o animal se transformou na princesa moura, de extrema beleza, fazendo-o apaixonar-se
por ela. Nessa paixão, ele acabou embebedando-se com o vinho da igreja, fato descoberto
pelos padres que também sentiram cheiro de mulher no quarto e, por isso, resolveram
castigá-lo. Como o sacristão não confessou o que havia ocorrido, fora condenado à morte,
mas, no momento em que iriam matá-lo, a teiniaguá surgiu, causando alvoroço e levando o
condenado consigo para a Salamanca do Jarau.
Essa intertextualidade é justificada partindo do princípio de que Erico dispõe de traços
em comum entre as personagens de Luzia Silva e da Teiniaguá ou princesa moura de
Lopes Neto. Essas semelhanças podem ser notadas a começar pelo estrangeirismo dessas
personagens. A origem de Luzia é para sempre uma interrogação não respondida, pois seu
118
LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos & Lendas do Sul. Porto Alegre: L&PM, 1998. (Coleção
L&PM Pocket)
119
MEYER, Augusto. Prosa dos Pagos. Vol. 3. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1943.
120
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 98-99.
6
suposto avô, Aguinaldo Silva, revela ao padre o fato de ter adotado a menina, ou seja, seu
parentesco real não é identificado. A própria personagem de Aguinaldo aparece sem fonte
definida, pois ninguém demonstra saber ao certo a naturalidade no forasteiro, tampouco a
origem de sua riqueza: Em Santa ninguém sabia ao certo quem era Aguinaldo Silva.
Claro, pela entonação da voz, via-se logo que era do Norte”
121
.
A falta de raízes, como se costuma dizer, é uma característica atribuída à Luzia que a
difere totalmente de Ana e Bibiana, apresentadas no texto com um passado familiar e
territorial que procuram constantemente preservar. Por isso, vê-se em Luzia o desapego à casa
construída pelo avô e a incessante vontade de mudar de vida, mudar de cidade, simplesmente,
mudar.
Tanto a Teiniaguá de Lopes Neto quanto Luzia vinham de um outro contexto
geográfico e social que não aquele no qual se passa a narrativa. A princesa moura, como já diz
sua designação, era descendente desse povo os mouros que ocupou a região da Andaluzia
(repara-se na semelhança do nome da personagem de Luzia com o nome da região:
AndaLuzia), na Espanha, e imigrou para o Rio Grande do Sul. Luzia provinha da corte,
fora educada na capital, bem diferente ao que as outras moças de Santa estavam
acostumadas:
Quando Luzia deixou o colégio e mudou-se para Santa Fé, onde passou a ser
a “senhora do Sobrado”, todos acharam que, mais do que ninguém, ela
merecia o título. E durante muito tempo a neta de Aguinaldo Silva foi o
assunto predileto das conversas da vila. As mulheres reparavam nos seus
vestidos, nos seus penteados, nos seus “modos de cidade”, mas, bisonhas,
não tinham coragem de se aproximar da recém-chegada, tomadas duma
grande timidez e duma sensação de inferioridade. Em muitas esse
acanhamento se transformava em hostilidade; noutras tomava a forma de
maledicência. Luzia era bonita, era rica, tocava tara instrumento que
pouca gente ou ninguém ali na vila jamais ouvira – sabia recitar versos, tinha
bela caligrafia, e lia até livros. Os que achavam que Santa não podia dar-
se o luxo de ter um sobrado como o de Aguinaldo, agora acrescentavam que
a vila também “não comportava” uma moça como Luzia.
122
121
VERISSIMO, Erico. O Continente II. p. 331.
122
Idem. p. 334-335.
6
Sendo tão inusitadamente diferente das outras moças da vila, Luzia despertava muito
interesse nos jovens rapazes que, assim como se sentiam atraídos por ela, tinham também
receio de uma possível aproximação ao desconhecido, alegando que “não tinham nascido para
cornos”
123
. Luzia representava uma afronta para Santa Fé, tal como o Sobrado onde residia.
Todos reparavam nela e possivelmente a invejavam por tudo o que ela era, o que sabia e o que
tinha. E por essa condição tão inatingível aos outros, alcançada naturalmente por Luzia, era
vista como mau exemplo para as outras moças da cidade.
Assim também a princesa moura despertava admiração e cobiça aos outros, pelo fato
de que “quem prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais rico que
o Papa de Roma, e o imperador Carlos Magno e o rei de Trebizonda e os Cavaleiros da
Tábula...”
124
. Convertendo essa parte da lenda ao caso de Luzia, quem a desposasse,
automaticamente passaria a ser o homem mais rico de Santa Fé, uma vez que herdaria as
terras e a fortuna de origem duvidosa de seu avô do qual era a única descendente viva
Aguinaldo Silva.
Vítima desse encantamento provocado pela beleza e pela natureza misteriosa de Luzia,
Bolívar, filho de Bibiana, apaixonou-se por ela, assim como seu primo, Florêncio. Na opinião
do primo, Bolívar sentia medo de Luzia e ele próprio sentia-se aliviado por não ter sido o
escolhido pela moça, sabendo que ela estava se casando “por capricho ou por birra. [...] Amor
não era, que Luzia não era mulher para isso.”
125
Bolívar, desde o princípio, mostrava-se “sôfrego, apaixonado, explosivo”
126
e sabia
que o objeto de seus desejos possivelmente não lhe corresponderia da mesma maneira.
Chegou a compará-la à figueira da praça de Santa Fé, sua companheira desde a infância e que,
agora, para ele, parecia uma mulher virada de pernas para cima, e “ele ia amar Luzia como
123
Idem. p. 335.
124
LOPES NETO, João Simões. Op. cit. p. 166.
125
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 349.
126
Idem. p. 335.
6
amara a figueira. Mas Luzia não era boa como a figueira. Luzia não era amiga como a
figueira...”
127
. Ele sabia que Luzia tinha valores diferentes dos seus e que ela era indiferente à
morte de Severino, ocorrida na mesma hora de seu noivado: “Um homem ia morrer na forca,
mas que era para aquela moça mimada a vida de um homem, de cem homens?”
128
.
reside mais uma característica de teiniaguá atribuída à Luzia. Conforme o texto de
Lopes Neto, a teiniaguá, que me enfeitiçou de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo
seu amor de mulher, que vale mais que destino de homem!...”
129
. Em O Continente, o destino
que estava em questão não era o de Severino, que morreu na forca, mas o de Bolívar que, com
seu noivado e posterior casamento com Luzia, abre mão da própria liberdade, da própria vida.
Ele passa da dominação materna a que sempre se sujeitou, como já relatado no capítulo
anterior desse trabalho
130
, à dominação por parte da esposa. Por vezes, sente a necessidade de
estar com Luzia não para estar com a mulher, com a esposa, mas para ter “um seio onde
repousar a cabeça cansada e chorar”
131
, atitude característica de uma criança que busca a mãe
para se proteger. Assim, ele procura transferir a imagem de mãe, de proteção, de refúgio, de
Bibiana para Luzia, que não lhe corresponde a essas expectativas.
É uma transferência frustrada não da imagem de mãe, como da imagem de todas as
outras mulheres decisivas de O tempo e o vento. Todas as outras têm a função de ventre
acolhedor, de ventre materno que consolo, e não de ventre de fêmea que não abre mão de
sua condição de mulher para ser mãe. Por isso, a atitude de Bolívar está sancionada no texto,
uma vez que todas as outras mulheres até então representadas teriam correspondido à
expectativa de assumir a função de mulher-consolo, mulher-mãe, que se doa ao marido e aos
filhos incondicionalmente. Luzia, não.
127
Ibidem. p. 345.
128
Id.
129
LOPES NETO, João Simões. Op. cit. p. 175.
130
Vide p. 35 e36.
131
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 349.
6
Nova semelhança entre as duas personagens é que a teiniaguá da lenda tinha, em lugar
da cabeça, uma pedra vermelha, transparente, com um brilho sob o sol que quase cegava. A
isso se comparam os olhos de Luzia, que luziam e enfeitiçavam, como se nas palavras do
Dr. Winter: “Luzia Silva devia ter mandinga naqueles olhos de réptil”
132
, sendo que é usada a
expressão réptil justamente em alusão à lagartixa, à teiniaguá. “Ela tem olhos de mulher
falsa”
133
, alertou um concidadão, tentando explicar a magia que o olhar da moça exercia e que
não se entendia, tal como o poder dos olhos da teiniaguá, de Lopes Neto, que “olhos de amor,
tão soberanos e cativos, em mil vidas de homem outros se não viram!...”
134
.
Os olhos de Luzia também lembram a própria cor da pele do réptil, verde: “Agora, à
luz das velas, Winter via-lhes melhor a cor: eram verdes, não havia a menor dúvida, dum tom
que o mar assume em certos dias de sol fraco”
135
. Além dos olhos, outro elemento reparado
pelo médico alemão suscita a pedra no lugar da cabeça da teiniaguá:
Achou-a perversamente linda. Estava ela sentada no sofá ao lado do noivo,
vestida de crinolina verde, de saia muito rodada com aplicações de renda;
tinha cravado nos cabelos dum castanho profundo grande pente em forma de
leque, no centro do qual faiscava um brilhante. Winter pensou
imediatamente na bela e jovem bruxa moura que o diabo, segundo a lenda
que corria pela Província, transformara numa lagartixa cuja cabeça consistia
numa pedra preciosa de brilho ofuscante. Como era mesmo o nome do
animal? Ah! Teiniaguá. A sua Musa da Tragédia havia agora virado
teiniaguá.
136
Assim como fora narrado acerca do sacristão, condenado por “ter dado passo errado
com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira”
137
, Bolívar
também, rendendo-se aos encantos de Luzia, teve sua condenação ao sofrimento, duradouro
até o fim de seus dias. As características atribuídas à teiniaguá da lenda falsa, sedutora e
feiticeira são também dadas à Luzia por outras personagens: Winter, Bibiana e o próprio
132
Idem. p. 359.
133
Idem. p. 336.
134
LOPES NETO, João Simões. Op. cit. p. 169.
135
VERISSIMO, Erico. Op. cit, p. 396.
136
Idem. p. 371.
137
LOPES NETO, João Simões. Op. cit. p. 171.
6
Bolívar. Dr. Winter, por exemplo, associou Luzia a uma bruxa ao pensar em todos os
percalços que ocorriam no Sobrado desde o casamento da moça com Boli. Bibiana
seguidamente referia-se à nora como bruxa, como feiticeira e, por fim, como louca.
Essas atribuições comprovam o quanto Luzia representava a contradição ao padrão
feminino sociológico e literário de O tempo e o vento. Sociológico porque, na sociedade rural
patriarcal idealizada por Erico, não havia lugar para moças educadas na Corte, que sabiam ler
e contestavam a sociedade tal como se apresentava. Literário porque os padrões de
personagens femininas criadas para a trilogia não condiziam com as características
diferenciadas de Luzia. Ela aparece, então, como uma afronta a tudo o que fora estabelecido
pelas outras personagens femininas do texto e representa, constantemente, a força de
destruição, contrária à de preservação das outras mulheres.
Visto estava que Luzia não se adequava aos padrões sociais da época retratada por
Erico. Nesse caso, não havendo como dar uma justificativa lógica para as atitudes e idéias
daquela estranha personagem surgida na vila, ficava mais fácil e mais conveniente taxá-la
como louca. que ela “não queria ser como as outras mulheres que levam uma vida de
escravas”
138
, então, era louca. Resolvia isolar-se em seu quarto, com a companhia de sua
cítara e de seus livros
139
, e, com isso, também era chamada de louca. Imaginava como seria
depois de sua morte, agradava-lhe falar sobre esse tema
140
, então, era louca. Duvidava da
religião cristã preponderante naquele meio social e dos ensinamentos da igreja católica
141
,
era louca.
Ou seja, quaisquer que fossem suas atitudes, desde que se desviassem um pouco do
esperado pela comunidade criada para Santa Fé, desde que estivesse fora do que a então se
acreditava ser correto, era razão suficiente para que tudo se justificasse por meio da
138
VERISSIMO, Erico. Op. cit, p. 417.
139
Idem, p. 443.
140
Idem, p. 518.
141
Id. p. 525.
6
loucura, algo ao qual não se muita explicação, atribuindo-se sua causa a demônios e
possessos”
142
. Uma vez que se utilizasse desse pretexto a loucura nada mais precisava ser
dito nem explicado. Não regras para os loucos e, nesse caso, alegando-se que Luzia era,
simplesmente, louca, o havia necessidade de se tentar compreendê-la, de entender suas
angústias ou os anseios de quem não se sente bem onde está, de quem não pertence ao lugar
onde se vê obrigada a viver, como era seu caso.
Cabe lembrar que, nos estudos de Foucault
143
, a loucura é vista como uma construção
social, ou seja, o autor explica como a sociedade sempre se beneficiou do fato de excluir
determinado grupo de pessoas de seu meio. A princípio, o motivo era a lepra, em seguida, as
doenças venéreas e, quase dois séculos depois, a loucura passou a ser a razão para a exclusão
social. Uma maneira conveniente de criticar altrem, isentando-se de culpa, era a denúncia da
loucura, proposta pelo positivismo como a própria razão do homem. Sendo assim, não se
caracteriza como uma doença do homem, mas como uma doença da própria sociedade. O
autor argumenta:
De um lado, a loucura existe em relação à razão ou, pelo menos, em relação
aos outros” que, em sua generalidade anônima, encarregam-se de
representá-la e atribuir-lhe valor de exigência; por outro lado, ela existe para
a razão, na medida em que surge ao olhar de uma consciência ideal que a
percebe como diferença em relação aos outros. A loucura tem uma dupla
maneira de postar-se diante da razão: ela está ao mesmo tempo do outro
lado e sob seu olhar. Do outro lado: a loucura é diferença imediata,
negatividade pura, aquilo que se denuncia como não-ser, numa evidência
irrecusável; é uma ausência total de razão, que logo se percebe como tal,
sobre o fundo das estruturas do razoável. Sob o olhar da razão: a loucura é
individualidade singular cujas características próprias, a conduta, a
linguagem, os gestos, distinguem-se uma a uma daquilo que se pode
encontrar no não-louco; em sua particularidade ela se desdobra para uma
razão que não é termo de referência mas princípio de julgamento
144
.
Com a gravidez, surge mais um motivo para Bibiana continuar alegando a suposta
loucura de Luzia: a nora não revela que está grávida nem ao marido e nega essa possibilidade,
142
Id. p. 425.
143
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.
144
Idem. p. 184.
7
alegando que, se engravidasse, “botava o filho fora
145
. Como durante toda a narrativa
dedicada a essa personagem, Erico não expõe o que se passa no psicológico de Luzia, ou seja,
em nenhum momento o leitor fica a par do que ela sente, do que ela pensa, não como se
tomar conhecimento dos reais motivos da esposa de Bolívar para suas sentenças e seus atos.
Quando o centro da narrativa estava nas outras grandes mulheres do texto, Ana e Bibiana, era
possível acompanhar o suposto raciocínio delas e entender a lógica de suas atitudes. Agora,
com Luzia, Verissimo faz questão de apresentar essa personagem sempre através de um olhar
alheio, que não o dela. Sabe-se da “teiniaguá através do Dr. Winter, de Bibiana, de Bolívar,
de Licurgo, mas ela mesma nunca é colocada como narradora de sua própria história.
O único momento do texto no qual se tem contato com o pensamento e os sentimentos
de Luzia se muito depois de sua morte, através da leitura de seu diário diário esse que
aparece com muitas folhas arrancadas, não se sabe por quem nem com que propósito que
revela sua insatisfação consigo mesma, com a vida que teve, sentindo-se punida pela maneira
como estava morrendo:
Estou me acabando devagarinho. Ontem ainda me olhei no espelho. Eu era
bonita, agora estou que nem caveira. Mas gosto de me olhar, e quando me
vejo assim envelhecida, acabada, horrível, fico até alegre. Sempre que me
enxergo no espelho digo pra mim mesma. “Bem-feito, Luzia, bem-feito.”
Acho que nunca gostei de mim mesma e que toda a minha vida não passou
dum suicídio lento, miudinho. não sei o que foi que fiz pra mim mesma
para me odiar dessa maneira.
146
Essa ausência de voz não é percebida apenas em Luzia, como também em Ismália
Caré, outra personagem que não corresponde às expectativas de esposa e de mãe da sociedade
patriarcal criada pelo autor. O efeito disso é que personagens como Luzia, protagonista, mas
sem voz, ficam sempre envoltas numa teia de mistério e dúvidas que não chegarão a ser
esclarecidas pelo leitor. Ele pode apenas supor e criar hipóteses através do que as outras
145
Id. p. 419.
146
VERISSIMO, Erico. O Continente II. op. cit. p. 653.
7
personagens falam a seu respeito, como é o nosso caso, mas nunca através do que realmente
se passava com “a musa da tragédia”. Isso tanto é verdadeiro, que se obtém a comprovação
por meio de uma personagem bem posterior à Luzia: Floriano Cambará, seu bisneto. Quando
ele resolve aprofundar sua pesquisa sobre a família Terra Cambará e depara-se com a figura
da mãe de Licurgo, diz sentir
um terrível silêncio em torno de sua pessoa [de Luzia]. Digo terrível porque
tudo parece deliberado, produto duma conspiração talvez tácita do resto da
família.
Falo nela à Dinda [Maria Valéria], que se mantém num silêncio de
pedra, mas de pedra antiga, o que torna o silêncio ainda mais sepulcral.
Alguns recortes de jornais fazem referência a essa estranha criatura,
que parece ter sido duma beleza invulgar. Encontro nas páginas dum
almanaque local um poema assinado por Luzia Cambará, versos mórbidos de
quem deve ter lido com paixão “Noites na Taverna”. Mas a descoberta mais
importante que fiz nestes últimos dias foi a das cartas dum certo Dr. Carl
Winter, natural da Alemanha, que veio para Santa em meados do século
passado e aqui se radicou, tornando-se freqüentador do Sobrado e médico da
família. [...] Nessas cartas, dirigidas à Luzia Cambará a quem ele se refere
mais de uma vez como “a minha musa da tragédia” encontro elementos
que talvez me permitam reconstituir a personalidade dessa dama que
cultivava a música e a poesia e que, pelo que a entender o nosso doutor,
foi educada na Côrte e vivia nestes cafundós do Rio Grande como um peixe
fora d’água.
[...] Minha imaginação começa a pintar os mais variados retratos de
Luzia Cambará. Coisa estranha, uma bisavó de trinta anos!
147
De acordo com Falcke
148
, durante muito tempo a maternidade foi considerada como
principal função feminina, não pela responsabilidade em gestar, como também em criar e
educar os filhos. Sendo assim, Luzia torna-se uma e totalmente fora dos padrões
estabelecidos para a sociedade exposta em O tempo e o vento. Isso porque ela, no princípio,
até consegue doar-se um pouco para o filho recém nascido, entretanto, sempre com uma certa
frieza, detectada pelo Dr. Winter, ou seja, algo que não era admitido por parte das mães. As
147
VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento – O Arquipélago. Terceiro Tomo. Porto Alegre: Globo, 1962, p. 749.
148
FALCKE, Denise. Mães e madrastas – quem são estas personagens?. In: WAGNER, Adriana (coord.).
Família em cena: tramas, dramas e transformações. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
7
mães deveriam ser calorosas com seus rebentos e não olhar para ele “com a mesma falta de
expressão com que fita um objeto, uma coisa. É um olhar vazio, um olhar de estátua”
149
.
Ainda segundo aquela autora
150
, existia claramente e possivelmente ainda exista a
expectativa de um amor extremo pelos filhos, um amor materno acima de qualquer coisa,
exigindo-se que as mães coloquem seus filhos como prioridades em suas vidas. Isso não
ocorre no caso de Luzia Cambará que, quando teve oportunidade, ausentou-se de seu papel de
mãe, deixando o filho com a sogra e dirigindo-se a uma não muito curta estadia em Porto
Alegre.
Anterior à viagem é um fato que, para a época em questão, era sinônimo de
descaracterização de mãe, que é o de Luzia não amamentar o filho. Ela, simplesmente, não
tinha leite. Era, como se costumava dizer, uma mãe seca, já demonstrando que não viria nunca
a ser o tipo de mãe que se esperava, e que não corresponderia às expectativas daquela
sociedade, nem as do filho. Conforme o texto de Erico, “o pequeno Licurgo crescia com
saúde, graças ao leite da ama preta. Bibiana encarregava-se do resto. Luzia vivia a ler e a
tocar cítara, e isso parecia enervar a sogra”
151
. Apesar disso, a carência desse contato materno
a amamentação fez com que a criança mamasse no peito de outra mulher, que não sua
mãe, até passado de um ano.
Não ter amamentado o filho, entregando essa função provedora a uma ama de leite,
reitera o egoísmo dessa mãe em comparação à doação de todas as outras mulheres de O
tempo e o vento. Visto assim, o filho Licurgo representa para Luzia um simples
prolongamento de si mesma e não há, por parte dela, toda a expectativa de futuro familiar
garantido através do menino, como o vê Bibiana, sua avó.
Isso incomodava Bibiana porque ela percebia claramente que Luzia não seria uma mãe
de sua estirpe, tal como ela havia sido com relação a Ana Terra. Sua nora estava
149
VERISSIMO, Erico. O Continente II. Op. cit. p. 425.
150
FALCKE, Denise. Op. cit.
151
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 428.
7
evidentemente quebrando o paradigma das mães superprotetoras, das mães conservadoras. Ela
estava encampando mesmo que talvez sem dar-se conta disso uma expectativa de vida
diferente para as mulheres/esposas/mães de Santa Fé, que ainda faziam a escolha de ser
submissas aos maridos e filhos.
Quando retornou da capital em companhia do marido, depois de terem passado
inclusive pela peste que abateu e matou grande número de pessoas naquela cidade, Luzia
desembarcou em Santa toda vestida de preto, indicação de luto. Luto esse que pode ser
entendido como o sentimento que a personagem tinha com relação a sua volta àquela vila, ao
Sobrado, onde vivia em constante guerra com a sogra, e ao seu papel de mãe.
Nessa ocasião, em que Bibiana usa do pretexto da peste para proibir que Luzia tenha
contato com Licurgo, acontece, no nosso entender, a grande desilusão da teiniaguá com
relação ao homem que escolhera para marido: ele não toma partido a seu favor e, em vista da
exaltação em que ela ficou, da raiva que sentia ao ver que ninguém estava dando atenção às
suas reivindicações, Bolívar ainda agrediu-a fisicamente, o que provocou, pela primeira vez
naquela personagem, seu choro.
Bolívar, nesse episódio, comprova o quanto é ainda dominado pela própria mãe. Ele
assume a atitude de indiferença de Bibiana com relação a Luzia. Logo em seguida dessa
humilhação, a mãe de Licurgo passa da extrema raiva à extrema tristeza, que a acompanhará a
partir de então. Ela se conta de que está perdendo a batalha contra a sogra, que,
comparando-se à Bibiana, poderia perder o marido e o filho. Para que isso não acontecesse,
viu-se obrigada a desculpar-se com a sogra, ou seja, a render-se. A carreira de Bibiana estava
definitivamente vencida.
Após esses acontecimentos narrados, “Luzia andava paradoxalmente humilde, terna e
submissa. Passava como sempre muito tempo fechada no quarto, tocando cítara ou lendo, e
quando descia falava pouco. Bibiana desvelava-se em cuidados com o neto e tomava conta da
7
casa”
152
. Assim, a ordem estabelecida por Ana Terra e preservada por Bibiana Cambará estava
garantida. A mãe de Bolívar conseguira apoderar-se da garantia de sobrevivência da família
Terra Cambará: Licurgo.
Pelas atitudes inusitadas de Luzia com relação ao filho, por o lhe dar a atenção que
as outras es davam aos filhos, por ser vista como o lado mau do Sobrado, Licurgo cresce
sob a vigilância da avó, Bibiana. E “aos quinze anos Licurgo Cambará era já um homem.
Usava faca na cava do colete, fumava, fazia a barba e tinha conhecido mulher”
153
. Sob
influência da avó e de Fandango, sua referência masculina mais próxima, o rapaz é
especialmente atraído pela vida campeira, tendo prazer em passar a maior parte do tempo
possível no Angico.
Entretanto, apesar da convivência com a avó e com o peão, Licurgo parece ter herdado
da mãe a falta de carinho, o fato de não saber expressar amor, pois
nem na cama brincava. Quando se deitava com as chinas [...] era sem
alegria. Não as acariciava nem pedia carícias. Tratava-as com rispidez dando
a entender que estava pagando e não pedia favores. Fornicava com uma
mistura de sofreguidão animal e a gravidade meio ressentida de quem está
contrariado por precisar dessas piguanchas”. Quando se despedia delas não
ajuntava nem o esboço dum sorriso aos patacões com que lhes “pagava o
serviço”.
154
Inclusive com a própria esposa, Alice, Licurgo deixou-se vencer por esse bloqueio:
Licurgo tem vontade de sentar-se na beira da cama, acariciar a testa da
mulher, beijar-lhe as faces ou então deixar a mão pousar-lhe por um instante
sobre o ventre, para sentir os movimentos da filha. [...] Beijar a testa de
Alice, dizer-lhe alguma coisa no ouvido, pedir-lhe perdão... Licurgo, porém,
continua de e imóvel, tolhido por um constrangimento invencível.
gestos que nunca fez e agora é tarde para começar.
155
152
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 455.
153
Idem, p. 493.
154
Idem, p. 504.
155
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 13.
7
A única capaz de fragilizar aquele homem formado era a sua própriae, Luzia, que
lhe causava um “misto de medo, curiosidade e estranheza”
156
:
De vez em quando a dor crispava-lhe o rosto [de Luzia] e ela começava a
gemer baixinho. Curgo, então, desviava os olhos, todo perturbado. A idéia
de que sua mãe sofria, de que tinha um tumor maligno, lhe causava uma
grande pena e ao mesmo tempo um grande remorso, pois embora soubesse
que seu dever era mostrar-se carinhoso e paciente para com ela, o que sentia
mesmo era uma certa impaciência, uma vontade de fugir da presença
“daquela mulher”, como se pelo simples fato de não -la ela cessasse de
sofrer.
[...] Agora ele descobria por que era que apesar de gostar do Sobrado não se
sentia bem no casarão. Era porque sua mãe dava àquelas grandes salas uma
certa frieza decasa de cerimônia”. Ela própria era quase uma estranha para
ele. As coisas que lhe dizia o deixavam sempre desconcertado. A voz dela
provocava uma esquisita sensação de acanhamento, e os sons mesmos do
instrumento pareciam sair não daquela caixa chata de madeira, mas da boca
de sua mãe.
157
Luzia quis tentar proteger Licurgo a sua maneira, que não era a que agradava o
menino. Ela pretendia libertá-lo daquela vida provinciana de Santa Fé, mas, sob influência da
avó e gostando tanto da vida no campo como gostava, Licurgo escolheria viver sempre ali,
onde fora criado. Sabendo disso, Luzia não tinha como tentar ganhar o filho novamente da
sogra. Nesse caso, quem teve que abrir mão dos próprios sonhos, da vida que sempre almejara
levar foi Luzia. Ela acabou sendo a maior vítima da guerra doméstica do Sobrado, sofrendo
pela morte do marido segunda e última vez em que chorou –, com a abnegação do filho à
Bibiana e com o câncer que a estava matando.
Para ela, então, a morte seria sinônimo de alívio. Ela sentia dor com o tumor que
crescia e não tinha mais forças para lutar contra todo o sistema que não lhe dava trégua.
Apesar de ser “uma mulher que tem mais coragem que muito homem”
158
e de ser capaz de
“inspirar muitas paixões”
159
, deixou-se combater pela doença, entregando de vez o comando
do Sobrado e de seu filho para sua maior rival: Bibiana Cambará.
156
Idem, p. 12.
157
Idem, p. 509-510.
158
Ibidem, p. 487.
159
Id. p. 492.
7
Licurgo, a única semente que poderia dar continuidade à família Terra Cambará,
ficava no meio da disputa entre a avó e a mãe. Para ele, Luzia era a representação da mulher
inalcançável, da mulher culta, da côrte, enquanto que Bibiana representava o que ele
conhecia, o campo, a família, a terra.
Nesse caso, talvez Erico Verissimo tenha tentado mostrar, com essa personagem, que
mulheres com uma força contrária ao estabelecido pelos grandes estereótipos femininos da
sociedade patriarcal representada pelo autor em O Tempo e o Vento, não tinham possibilidade
de êxito, estando fadadas, por exemplo, a morrer de câncer, como uma forma de castigo por
tentarem transgredir as regras estabelecidas.
Na perspectiva da personagem do Dr. Winter, essa é uma sociedade sem abertura,
fechada sobre si mesma o que será modificado em O Arquipélago. Então, tudo o que
contraria o estabelecido social é expurgado, não havendo lugar para outro discurso, como é o
caso de Luzia. O câncer por ela desenvolvido tem o caráter metafórico de representar o tumor
daquela sociedade, que, no conjunto de valores de Santa Fé, não pode se propagar.
Erico usa constantemente, no capítulo A Teiniaguá, a referência do mito da Salamanca
do Jarau, de Lopes Neto, sendo que se entende que mito seja algo permanente, resistente ao
tempo e às transformações. Transferindo essa caracterização à Luzia, vê-se com essa
personagem a intenção de que algo do que ela representou permaneça no tempo e na família
Terra Cambará, apesar de ter sido “derrotada” por Bibiana. Ela representa, no texto, a ameaça
ao legado de Ana Terra e, por não ter obtido sucesso, acabou por ser quase que excluída da
história da família, permanecendo, entretanto, como uma misteriosa armadilha a qual sempre
se tenta desvendar.
Por ter sido uma persona mostradamente original no texto, termina, justamente por
isso, isolada de todo o resto do contexto que a rodeia, cultivando sua própria solidão e
exclusão de si mesma, uma vez que se deixa vencer, abrindo mão de suas crenças, suas
7
vontades e do diferente rumo que ela poderia ter sido capaz de dar à família Terra
Cambará.
7
A MÃE SEM VOZ
Sociologicamente, instituiu-se a monogamia “casamento de um homem com uma
mulher”
160
como a maneira aceitável de formação familiar a ser adotada, com base em
leis contratuais, normas religiosas e morais, tendo em vista a garantia da transmissão
hereditária dos bens a filhos certos e legítimos. Esse sistema é cultural, e não natural, criado
por conta da relação íntima entre as formas familiares e as propriedades privadas
161
, como
inclusive já havíamos ressaltado em nossa introdução.
Entretanto, verifica-se que o adultério é uma prática tão antiga quanto a própria
humanidade, e é definido como “a busca de novas aventuras por um dos cônjuges, [...] que
implicaria a violação do dever de fidelidade pactuado entre o casal. [...] Adultério vem a ser
um rompimento unilateral desse pacto de cumplicidade”
162
.
No texto de Erico Verissimo, encontram-se desde muito cedo indícios de que a traição
por parte do homem é veladamente aceita na sociedade patriarcal retratada, como se vê:
Casara-se com a filha dum curitibano residente no Rio Pardo. Achava que
“mulher, arma e cavalo de andar, nada de emprestar”. Mas, apesar disso,
mais de uma vez tomara emprestadas mulheres de outros. E na fazenda
contava-se fizera filhos em rias chinocas, mulheres de capatazes e
agregados, e até numa escrava, a famosa Joana da Guiné.
163
Até bem pouco tempo atrás, de acordo com a jurisprudência brasileira, o adultério era
considerado crime. Porém, partindo do princípio de que “a monogamia é antinatural, pois o
corpo está programado para o adultério ao apresentar, entre suas funções principais, a da
160
ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA GLOBO. Op. cit.
161
CANEVACCI, Massimo. Op. cit.
162
BENVENUTTI, Nara Maria Faoro. Adultério: reavaliando posições. Revista Faculdade de Direito/UCS,
Caxias do Sul, n. 7, p. 47-50, mar. 1998.
163
VERISSIMO, Erico. O Continente I. op. cit. p. 135.
7
procriação”
164
, a lei também se adaptou aos acontecimentos sociais freqüentes, dentre eles, a
traição conjugal.
Exemplo dessa aceitação cultural referente à traição por parte do homem também pode
ser encontrado no texto de Erico, no qual todo um capítulo de O Continente dedicado a
Ismália Caré, a amásia de Licurgo Cambará. O relacionamento fez-se ilícito em função de
Licurgo ser casado com outra mulher, Alice, apesar de seu relacionamento com a amante ter
iniciado quando ainda era solteiro.
Mesmo que ambas as personagens Ismália e Licurgo fossem, no início do
romance, disponíveis para assumir um relacionamento sério, ou seja, ambos eram solteiros,
nunca houve a cogitação de uma união de fato por causa da diferença social entre os dois.
Licurgo pertencia a uma família tradicional de Santa Terra Cambará enquanto Ismália
era apenas membro da família de empregados do Angico, que servia aos donos do Sobrado.
A família da qual Ismália fazia parte os Caré aparece no texto concomitantemente
à família Terra Cambará. A primeira notícia que se tem deles é por via de João Caré, como se
lê:
Ali vai um desses.
Como é teu nome?
João Caré.
Onde nasceste?
Não sei. Acho que cresci do chão como erva ruim que ninguém plantou.
Tua mãe?
Morreu.
Teu pai?
Nem ele sabia.
Tens pele de mouro, mas donde tiraste esses olhos esverdeados?
Nunca vi meus olhos.
João Caré anda sozinho, de pés no chão, quase nu, mal tapando as
vergonhas com um chiripá esfarrapado. No inverno, quando o minuano
sopra, ele cava na terra uma cova e se deita dentro dela. Quando a fome
aperta e não nada que comer, João Caré mastiga raízes, para enganar o
estômago. E quando o desejo de mulher é muito, ele se estende de bruços no
chão e refocila na terra.
164
BENVENUTTI, Nara Maria Faoro. Op. cit. p. 49.
8
Pobre o se casa, se junta. João Caré um dia se junta com uma
china.
Fazem rancho de barro com coberta de capim. E começam a ter
filhos.
A única coisa que plantam na terra que não lhes pertence são os
filhos que morrem.
Os que sobrevivem se criam com a graça de Deus.
Um dia vem um homem a cavalo e grita
Quem te deu licença pra fazer casa nestes campos?
Ninguém.
Esta terra é muito minha, tenho sesmaria d’El-Rei. Toca daqui pra
fora!
João Caré junta os trapos, a mulher, os filhos e se vai.
[...] E como precisa de dinheiro para dar de comer à família, aluga a
filha mais moça a um negociante.
É virgem?
É sim senhor.
E quantos anos tem?
Deve andar pelos quinze.
Está no ponto.
É sim senhor.
Os olhos do homem cocam as pernas da chinoca.
Quanto quer por ela?
Vossa mercê faça preço.
Dois patacões e uma manta de charque.
Pode levar a menina.
Os olhos do homem cocam os peitinhos da chinoca.
Está fechado o negócio. Mas se ela não for virgem, quero de volta o
dinheiro. E te mando dar uma sumanta de rabo-de-tatu.
Minha filha, vá com o coronel, faça tudo que ele mandar.
E foi assim que nasceu Mingote Caré.
Cresceu ali mesmo no Rio Pardo, onde a mãe, china de soldado,
dormia com os dragões a dez vinténs por cabeça.
Agora vai ela levando o Mingote no colo e outro filho sem pai no
bucho. E o vento frio desse julho faz tremular seus molambos.
165
A origem da família é nebulosa, ou seja, nenhuma das personagens pertencentes à
família Caré sabe ao certo quem são seus ascendentes e descendentes. Assim como colocam
filhos no mundo, também os perdem em função da situação de pobreza na qual viviam, causa
de um certo desapego familiar. Não são como os Terra Cambará, extremamente preocupados
com a continuidade da família, da linhagem. Com os Caré acontece como no trecho: “E meio
rindo ele mostrava sua china, que tinha um filho no colo e outro na barriga. Por essa e por
outras foi que a raça dos Carés continuou.”
166
165
VERISSIMO, op. cit, p. 154-155.
166
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 157.
8
E nessa continuidade as personagens masculinas da família se sucedem: João Caré,
Mingote, Lulu, José conhecido como Juca Feio e, finalmente, Chiru Caré, que tinha a
família maior (dez filhos) e conseguira licença para instalar-se nos campos do Angico. A
partir disso, os Caré e os Terra Cambará finalmente começaram a ter contato efetivo, com
base na relação patrão/empregado.
A única personagem feminina Caré que ganha vez e considerável destaque no texto é
Ismália Ca(uma das filhas de Chiru), cujo nome intitula o quinto capítulo de O Continente
II. Ela é amante de Licurgo pela vida inteira, ou seja, assim como a família dela sempre
compareceu de forma periférica no texto, ela também aceitou a posição secundária na vida do
homem que amava, sujeitando-se à condição de amásia, sem nunca reivindicar nada, desde o
princípio, como bem observou o próprio Licurgo:
A chinoca não pedia nada, não esperava coisa alguma. Gostava dele quase
assim como uma cadelinha gosta do dono. Se por um lado ele sabia que não
teria nunca a coragem de abandonar a amante, por outro também estava certo
de que seu rabicho pela Ismália nunca, mas nunca mesmo, poderia influir em
sua afeição pela prima nem perturbar-lhe a paz do casamento.
167
Essa preocupação em não deixar o caso interferir em seu casamento se faz presente
justamente em respeito às tradições impostas pela sociedadegida e fechada da qual Licurgo
fazia parte. Ele preocupava-se com sua espécie, com a continuidade de sua família. Assim,
Bonder justifica:
“Tradição” e “traição” são duas palavras de escrita e fonética tão
semelhantes em nossa língua quanto o são interligadas em seu significado
mais profundo. Tradição é a palavra que veio representar a tarefa do próprio
instinto assumida pela consciência humana. Preservar-se como espécie, na
dimensão da consciência, é estar atento aos ensinamentos sociais que se
preocupam com a preservação do desígnio e sentido maior da nossa
existência a reprodução. São três as principais áreas que compõem a
tradição: 1) a família como estrutura artisticamente moldada para melhor
atender aos interesses reprodutivos em determinado contexto
167
Idem. p. 567.
8
socioeconômico; 2) os contratos sociais fundamentais para a manutenção de
uma convivência que propicie as melhores condições de preservação da vida
e sua reprodução e 3) as crenças engendradas para oferecer respaldo teórico
e ideológico à preservação. O animal moral tem na tradição um instrumento
fundamental para sua preservação.
168
Repetindo-nos, Licurgo afirmou que Ismália “gostava dele quase assim como uma
cadelinha gosta do dono.” Vista assim, ela não passava de um bichinho de estimação de
Licurgo do qual ele não abria mão de manter por perto no decorrer de toda a sua vida. Uma
cadelinha é sempre obediente ao dono e realmente não pede nada além de um pouco de
atenção, por vezes, nima. Uma cadelinha passa a vida sem dar incômodos ao dono,
proporcionando-lhe apenas momentos de deleite, de distração, e, assim, não é excluída do
convívio com ele.
Talvez não tivesse sido isso que a moça desejara para a sua humilde existência, mas
foi assim que as coisas procederam:
[Licurgo] Começara a desejar violentamente a rapariga desde o dia em que a
vira pela primeira vez no rancho dos Carés, no fundo duma das invernadas
do Angico. E certa manhã, após longo assédio, muitos negaceios e engodos,
conseguira levá-la para o mato. Nos últimos momentos, porém, tivera de
pegá-la à força, e desses minutos agitados e resfolgantes de luta corporal lhe
haviam ficado lembranças meio confusas e perturbadoras: o desejo que,
exacerbado pela longa espera e pela resistência de Ismália, se havia
transformado numa fúria quase homicida; os gritos da chinoca, primeiro de
protesto e finalmente de dor; os guinchos dos bugios que, empoleirados nas
árvores e excitados pela cena, haviam rompido numa gritaria endoidecedora.
Aplacado o desejo, ele ficara estendido de costas, os braços abertos
em cruz, olhando com um vago remorso para os bugios que perseguiam suas
fêmeas e ouvindo o choro manso de Ismália a seu lado. Sentia vergonha de
sua brutalidade e começava a impacientar-se pelo fato de não achar o que
dizer à rapariga. Pedir desculpas não adiantava nada, e mesmo isso não era
de seu feitio. Dar-lhe dinheiro seria brutal.
Erguera-se em silêncio, saíra do mato resolvido a não ver mais
Ismália e convencido também de que daquele momento em diante ele
passaria a votar-lhe um ódio de morte.
169
168
BONDER, Nilton. A alma imoral: traição e tradição através dos tempos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
169
VERISSIMO, Erico. O Continente II. op. cit. p. 567
8
Conforme o próprio texto diz, Ismália o se entregou facilmente para Licurgo. Ela
tinha seus pudores, tanto quanto qualquer outra das mulheres da narrativa. Ana Terra, por sua
vez, moça de família, de respeito, também se rendeu a Pedro Missioneiro sem estar na
condição de esposa. Ismália tentou relutar e acabou tendo a sua primeira relação sexual quase
como um estupro, no meio do mato. Ora, para Licurgo, Ismália era mulher para se ter no
mato, enquanto Alice era aquela para ser tomada dentro de casa, na noite de núpcias.
Entretanto, Licurgo, mesmo estando noivo de Alice, continuou referindo-se a ela
como prima, ou seja, pelo seu grau de parentesco, indicando que não a via como mulher do
modo como via Ismália. Quando cometeu o deslize de dirigir seu olhar para “o relevo dos
seios de Alice”
170
, sentiu-se pecaminoso, indecente, pois aquela que seria a e dos seus
filhos não poderia ser mulher para o prazer sexual. Essa última função era reservada
exclusivamente para Ismália, aquela com quem não tinha pudores ou recatos, com quem não
tinha responsabilidades a assumir. De acordo com Puget e Berenstein, numa relação
extraconjugal, “fixa-se a ilusão de um prazer permanente, apenas mantido fora do
enquadramento estável”
171
. Talvez por isso fosse mais agradável a Licurgo imaginar-se
satisfeito ao lado de Ismália e não de Alice.
Licurgo, então, assume Ismália como amásia desde o começo da relação dos dois, com
o objetivo de nunca deixar que o caso prejudicasse seu casamento. Ele separava bem os
sentimentos nutridos pela amante desejo, paixão e os que nutria pela esposa respeito,
carinho. Entretanto, fica claro que todos na cidade de Santa sabiam do relacionamento
paralelo mantido pelo chefe da família Terra Cambará e que não era segredo. Ele admitiu
inclusive para a avó, com quem mantinha um diálogo bastante franco:
- Pensa que sou cega, Curgo? Eu vejo tudo.
170
Idem, p. 591
171
PUGET, Janine; BERENSTEIN, Isidoro. Psicanálise do casal. Trad. Francisco Franke Settineri. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 15.
8
- Pois é verdade. A Ismália é minha amásia.
Não tivera coragem de encarar a velha.
- Mas agora vassuncê vai casar, precisa deixar a china o quanto
antes.
Ele permanecera silencioso.
- Promete?
- Não.
[...]
Seria inútil tentar explicar à avó que ele gostava da prima Alice o
suficiente para fazê-la feliz; que a achava bonitinha, prendada, e que tinha a
certeza de que ela ia ser ótima dona de casa, boa esposa e boa mãe – mas que
todas essas coisas nada tinham a ver com o que ele sentia pela Ismália.
172
Licurgo não via necessidade de deixar da amante porque tê-la era algo aceito
socialmente. Era visto como normal que um homem, naquela sociedade rural e patriarcal,
tivesse a família, com esposa e filhos e, ainda assim, uma amante. O mesmo não seria
aceito no caso de a mulher querer ter um amante. Por ser também uma sociedade machista, a
mulher, se o fizesse, seria punida de alguma forma, como acontecera com Luzia, apesar de
não haver confirmação de sua traição contra Bolívar.
Como não fazia muito esforço para esconder seu caso com Ismália, Licurgo teve a
ousadia de mandar buscar a moça para a comemoração da abolição da escravatura que estava
acontecendo no Sobrado, e na qual sua noiva, Alice, fazia-se presente. Quando soube da
chegada da amante, “tudo desaparecia: a festa, o declamador, o poema, a abolição, a noiva, a
avó, a república tudo. O que ele sentia era um desejo urgente de ver a chinoca, de apalpá-la,
abraçá-la, penetrá-la”
173
. Até mesmo seu sogro havia tomado conhecimento do romance
entre os dois antes mesmo do casamento da filha e Florêncio sabia que não se tratava de algo
passageiro.
No transcorrer dessa festa abolicionista, Licurgo conseguiu encontrar-se com a jovem
Caré, cuja presença o fazia sentir-se bem, confortável, pois “era boa a presença daquela
criatura, bom o calor de seu corpo, o contato de sua carne. Ismália não pedia nada, não
172
VERISSIMO, Erico. Op. cit, p. 566.
173
VERISSIMO, Erico. O Continente II. op. cit. p. 641.
8
perguntava nada. Era fácil estar ao lado dela”
174
. Porém, contrária à comemoração, que
representava a liberdade de um povo, a notícia dada por Ismália é quase a de um
aprisionamento: “Vou ter um filho”
175
.
Convém reparar que as palavras escolhidas para a personagem nesse momento não
foram Estou grávida”, mas “Vou ter um filho”. uma grande diferença entre as duas
sentenças, pois a primeira indica uma gravidez, mas não a concretude de colocar um filho no
mundo. Quer dizer que a mulher está grávida, mas que talvez não tenha ainda decidido se terá
ouo a criança. a segunda, usada por Ismália, afirma que a criança viao mundo, que a
escolha por ter o bebê ou não já está feita. Ela apenas informou a situação ao pai da criança.
Nesse caso, mesmo que a gravidez de Ismália tenha ocorrido acidentalmente, e pode
mesmo ter sido, pois ela não tinha um nculo legal que a unisse a Licurgo, acabou por
desejar o filho que trazia no ventre. o o rejeitou. Possivelmente a situação causou-lhe
medo, apreensão, mas não repulsa. Em nenhum episódio da narrativa a demonstração de
que, em alguma hipótese, Ismália poderia não querer ser a mãe de um filho de Licurgo
Cambará.
Mas essas são apenas suposições que se fazem cabíveis de ponderar, uma vez que,
assim comoocorrido com Luzia Silva Cambará, à Ismália também não é dada a vez para se
fazer ouvir, não lhe é dado um discurso através do qual o leitor, e a mesmo a sociedade
criada para Santa Fé, pudesse saber o que se passava com ela, o que ela sentia, o que ela
pensava de tudo o que lhe acontecia. Essa foi uma escolha feita pelo autor não porque
concordasse em calar essas personagens, mas porque, para a sociedade que estava sendo
retratada, era esse o correto procedimento: não dar lugar para o que não era moralmente
aceito, o queo era compreendido. Por isso, Ismália é a mãe sem voz dotulo desse nosso
capítulo.
174
Idem, p. 643.
175
Id. p. 644.
8
A semelhança entre as duas, Ismália e Luzia, não se apenas no campo da formação
da personagem, como também é notada pela aparência sica entre ambas a partir de uma
constatação de Bibiana, que não simpatizava com a amásia do neto, porque “o diabo da
menina tem na cara, nos olhos, no jeito, qualquer coisa que lembra a mãe do Curgo”
176
, o que
levou Dr. Winter a concluir que “é verdade. A Luzia não está tão morta como muita gente
pensa”
177
.
Então, fica evidente que Bibiana não concordava com o romance entre Curgo e
Ismália. Percebe-se também que o casamento do rapaz com a prima se por influência da
matriarca, que se preocupa com o fato de o neto já estar com vinte e nove anos e ainda não ter
se casado. Para ela, era urgente que ele tomasse Alice por esposa para poder dar-lhe bisnetos,
ou melhor, para poder dar continuidade à família Terra Cambará. Por isso, para Bibiana, o
que importava era que Alice pudesse ter filhos: “a moça tinha os quadris estreitos: não podia
ser boa parideira. Mas fosse tudo pelo amor de Deus! Ela conhecia muitas mulheres de bacia
estreita que botaram muitos filhos no mundo e só morreram de velhice”
178
.
Apesar disso, os pensamentos de Licurgo voltavam-se constantemente para Ismália.
Sentia-se constrangido na presença da prima. Então, mesmo diante da noiva, preocupava-se
em saber por onde andaria sua outra mulher e por que, às vezes, ela se demorava. E, mesmo
na guerra, quando estava sitiado dentro da própria residência, conseguiu abstrair a situação e
lembrar-se de Ismália: “Que lhe terá acontecido? [...] Provavelmente [os federalistas]
serviram-se à vontade do corpo da rapariga”
179
.
Nesses capítulos dedicados ao sítio do Sobrado, no qual Alice adoeceu e morreu,
Licurgo demonstrou sua preocupação também com a esposa, pois, afinal, apesar de não amá-
la do mesmo modo como amava Ismália, também não lhe queria mal e sentia-se muito
176
Idem, p.654.
177
Ibidem.
178
Id. p. 633.
179
Id. p. 161.
8
culpado, o que se agravara com a sentença do sogro: “Acho que vassuncê pode estar
procedendo bem como chefe político, mas está procedendo mal como chefe de família”
180
.
Talvez ele até não fosse o chefe de família ideal, mas isso não permitia que o mesmo
erro cometido enquanto marido fosse cometido por Alice. De acordo com Augusto Cesar
181
,
havia uma crença de que a mulher não podia trair para que não houvesse a quebra da idolatria
materna, porque a mulher é a gestora e representa a própria moral no lar. O que favorecia esse
raciocínio era o excessivo recato feminino – do qual Alice, Sílvia e Flora são exemplos – que,
por não ser o mesmo nos homens, não os impedia de buscar sempre a satisfação sexual.
Entretanto, sabe-se atualmente que um exemplo corruptor pode partir não apenas da
mãe como também da figura paterna, que é transmitido por Licurgo aos filhos. Isso é notado
quando a personagem do pequeno Rodrigo Terra Cambará avista, pela primeira vez, Ismália:
Mas no dia em que vendo passar na rua uma mulher morena, Toríbio
apontara para ela, dizendo: “Lá vai a amásia do papai...” – ele compreendera
com uma clareza contundente e dolorosa o verdadeiro sentido da palavra
mártir. Sua mãe era uma mártir porque padecia por saber que o marido tinha
outra mulher. Rodrigo odiara o pai durante dias, semanas, meses. Levara
muito tempo para se refazer daquele choque e poder de novo olhar o velho
de frente, falar-lhe com naturalidade e tornar a sentir por ele a antiga
afeição.
182
Mais tarde, o exemplo de Licurgo Cambará como pai refletiu-se nos filhos, pois
ambos têm a característica de mulherengos, ou seja, de ter casos com várias mulheres. Para
Toríbio, o filho mais velho, isso não era classificado como errado, visto que nunca chegara a
se casar. Mas para Rodrigo, além das aventuras amorosas vividas em seu tempo de solteiro,
experimentou também outras dessas aventuras depois de se encontrar casado com Flora.
Acabou, então, reproduzindo a atitude infiel do pai.
180
Idem. p. 14.
181
CESAR, Augusto. O problema feminino e o divórcio. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 19--.
182
VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento – O Retrato I. 24. ed. São Paulo: Globo, 1997, p. 86.
8
Como se no trecho do texto de Erico recém citado, Alice Cambará é vista como
mártir por seu filho Rodrigo e também por sua irmã, Maria Valéria. O motivo dessa
designação era o fato de ela ter sofrido “calada, bem como sabem sofrer os Terras. Não se
queixou a ninguém, continuou vivendo como se nada tivesse acontecido”
183
.
Mas deve-se questionar se Ismália também não poderia ser considerada uma mártir.
Ela também sofreu calada o fato de ter que se sujeitar a estar sempre em segundo plano na
vida do homem a quem escolheu dedicar-se. E mais, não apenas ela se viu diminuída por não
ser assumida socialmente por Licurgo, como também seu filho, fruto desse relacionamento
velado, é interditado no convívio com o pai, em seu sobrenome e nos bens, a que, como filho
legítimo de um Cambará, também teria direito.
Ismália é colocada no mesmo patamar de uma causa da qual Licurgo seria a favor,
quando um de seus amigos afirma: “O Curgo tem três amantes: a República, a Abolição e a
Ismália. Às vezes vai para a cama com as três ao mesmo tempo”
184
. Pode-se afirmar que ela
representava mais uma das posses de Licurgo. Como a família dela é empregada dos Terra
Cambará, Licurgo sentia-se no direito de assumir a posição de dono da chinoca. Olhando-se a
situação por outro ângulo, pelo ponto de vista de Ismália, ela era traída por Licurgo com
Alice. Afinal, seu relacionamento com Licurgo, como afirmamos, tivera início antes do
namoro dele com a então esposa. Entretanto, assim como Alice não cometia adultério, Ismália
também não o traía, mantendo-se fiel a Licurgo por toda a vida.
Após a morte de Alice, porém, não registro de mais nenhuma outra mulher com
quem Licurgo se relacionasse. Ou seja, então ele pôde se fazer fiel à sua companheira
Ismália Caré. Com isso, tornou o caso totalmente aparente, não havendo mais porquê
escondê-lo:
- Vai pra casa da amásia.
183
VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento – O Continente I. op. cit, p. 325.
184
Idem. p. 571.
8
A observação chocou um pouco Rodrigo. O assunto para ele era
quase um tabu.
- Então a história continua?
- Por que não havia de continuar? Esses rabichos duram a vida
inteira. E, depois, o velho ainda está no cerne...
- E ele vai todas as noites à casa dela?
Um invencível constrangimento, que começara no dia em que Bio
lhe revelara a existência daquela ligação, impedia-o de pronunciar o nome de
Ismália Caré. Mesmo agora, ao cabo de tantos anos, leituras e experiências,
verificava, um pouco decepcionado consigo mesmo, que não podia encarar o
assunto com a tolerância mundana dum civilizado.
- Quase todas as noites.
- E quando o velho vai pro Angico?
- A Ismália vai também. Te lembras daquele rancho no fundo da
invernada do Boi Osco? Pois é lá que ela mora.
185
Apesar de Rodrigo, filho de Licurgo, sentir-se constrangido com o assunto, ele próprio
também se envolvera com uma das mulheres Carés: Ondina, filha de Joaninha e de
paternidade desconhecida. Chegou a ocorrer-lhe o seguinte pensamento: “positivamente não,
Rodrigo. teu pai anda metido com uma Caré, não é direito que tu também...”
186
. Assim
como o pai, que levou Ismália para o mato, Rodrigo pensava em lugares como “o bambual
atrás da casa, o mato, o capão da sanga”
187
. A semelhança entre a situação das duas
personagens é tamanha que Rodrigo chegou a sonhar com uma certa “Ismaliondina Caré”
188
.
Mais uma vez, o pensamento machista da sociedade retratada fez-se notar na intenção de seus
homens, que escolhiam manter relações sexuais com as empregadas em lugares não
convencionais, já que a casa era reservada para as “moças de família”.
Foi o que aconteceu com a jovem Ondina, que se rendeu a Rodrigo no meio do mato,
ao que Toríbio concluiu: “Essa história de gostar das Carés parece que está na massa do nosso
sangue, hein?”. um trecho no qual Rodrigo mostrou-se descontente em pensar que o
sangue dos Cambarás pudesse se misturar com o dos Carés, como se fossem diferentes. A
questão é que naquele contexto social, realmente via-se diferença entre eles. Não de sangue,
mas de classe social. Nunca se poderia admitir que as duas famílias se unissem em casamento,
185
VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento – O Retrato I. 24. ed. São Paulo: Globo, 1997, p. 176-177.
186
Idem. p. 191.
187
Id.
188
Idem. p. 197.
9
por exemplo, pelo simples fato de uma delas representar a alta sociedade de Santa Fé,
enquanto a outra representava o lado mais pobre da cidade.
Quando se fala que Rodrigo “desonrou” Ondina, tendo sido seu primeiro homem, a
resposta vem de forma bem direta: acho que os Carés nem sabem o que é honra.”
189
E o
questionamento daquele, mesmo não sendo sincero, deve ser levado em consideração: “por
que é que a virgindade numa moça branca e rica pode ser mais preciosa que a duma
coitadinha como a Ondina?”
190
. Para essa pergunta não resposta no texto. Provavelmente
para que o leitor tome para si a responsabilidade de refletir sobre essas diferenças sociais
também narradas por Erico.
Diante desse contraponto, nota-se que tanto a família Terra Cambará quanto a família
Caré são fundamentais para a construção da fotografia de sociedade rural e patriarcal que
Erico pretende fazer. A trajetória de ambas está freqüentemente entrelaçada e as duas vão
transcorrendo paralelamente uma a outra. Nesse contraste entre os bem conceituados
Cambarás e os desafortunados Carés, esses últimos representam, no texto, o lado pobre da
cidade de Santa Fé, da Província de São Pedro, da sociedade brasileira em geral, enfim, o lado
pobre do mundo.
É a realidade que a sociedade faz questão de não enxergar, que está sempre ali, lado a
lado com a riqueza, mas que não é notada, apesar de também fazer história. É o tipo de
pessoas como os Carés que lutaram nas guerras, trabalharam nos campos, habitaram as
cidades. Entretanto, foram sempre marginalizadas.
Dentro desse quadro, Ismália Caré é uma mãe que, oficialmente, não existe ou que
não se gostaria que existisse. Ela o poderia ter tido o filho que teve porque não estava
ancorada pelo matrimônio. Mesmo mantendo um relacionamento estável por toda a vida com
Licurgo, este não era viável dentro das normas morais e culturais daquela sociedade, que
189
Idem. p. 194.
190
Ibidem.
9
exigia a legitimidade de um casamento para que, a partir de então, a mulher se sentisse
autorizada a ter filhos. Antes ou fora disso, não.
Sendo assim, a personagem de Ismália é aquela que, ao lado de Luzia, transgride o
estatuto social. Transgride a moral, os bons costumes, a religião. Esse é o motivo pelo qual ela
pode ser classificada como a mãe a quem não é dada voz, a mãe que se esconde, que não se
quer mostrar socialmente. A mãe que a sociedade rejeita, que passa reto por ela e lhe vira a
cara.
Quando estavam saciando seus desejos, tanto Cambarás quanto Carés tornam-se
iguais, sem distinções. Ambas as famílias, nesses episódios, guiam-se pelo instinto, pois,
apesar das diferenças sociais, todos são, antes de animais racionais, apenas animais. É
justamente o fator de racionalidade deles que os torna diferentes, ou melhor, que faz com que
se sintam diferentes e ajam como se fossem.
O lugar onde essas relações sexuais ocorrem, como citado, é o mato, os campos, o
bambuzal, nunca dentro de casa. Uma vez que a fecundação dos filhos se nesses
ambientes, pode-se interpretar que Ismália seja uma mãe selvagem, a mãe não civilizada, que
se entrega ao macho na natureza. Com esse caráter, renuncia conscientemente de assumir sua
função materna perante a sociedade, já que não é avaliada socialmente como uma mãe digna.
Então, entendemos que Erico tenha tentado, antes de tudo, através dessa personagem,
revelar as diferenças sociais que se formaram nessa sociedade retratada. As diferenças surgem
desde o aparecimento do primeiro Caré, sem passado identificado, ao contrário dos Terra
Cambará, que m um forte histórico familiar e continuam inclusive com a diferença de
função que as mulheres/mães assumem: as Terra Cambará são as senhoras do Sobrado, são as
matriarcas, a base sustentadora da família, enquanto as Carés são as amantes, as que nunca
são assumidas, que colocam filhos no mundo sem a identificação de seus pais, mas que são
tão fortes e tão valentes quanto as primeiras.
9
No texto de Erico, vimos que ambos os tipos de mães recém comparados são
fundacionais em relação à sociedade. Ou seja, ainda que um deles fosse legalizado e o outro
fosse clandestino, não existiria o mundo social de O tempo e o vento e, transportando-nos para
a realidade, do Rio Grande do Sul, se não existissem as duas es: a fundadora e de
preservação (Ana, Bibiana) e a transgressora excluída (Luzia, Ismália).
9
A MÃE ESTÉRIL
A primeira concepção tida de mãe é aquela que diz se tratar de “mulher, ou qualquer
fêmea, que deu à luz um ou mais filhos”
191
. A contar disso, aquela queo deu à luz nenhum
filho ou filha não poderia ser considerada como mãe. Entretanto, tem-se notícias de grande
número de mulheres que se tornam mães sem nunca terem de fato colocado filhos no mundo.
Elas são consideradas mães inclusive perante a lei pelo papel assumido com relação à
criança, que é o de educar, alimentar, amar, fazer-se presente, guiar.
De acordo com Osório, o papel materno, seja ele exercido pela mãe biológica ou não,
abarca, além das “tarefas nutrícias, as de agasalho e proteção da prole, uma função continente
ou de receptáculo das angústias existenciais de quem esteja correspondentemente no papel
filial”
192
. Por isso, não é raro vermos as “mães de coração”, ao que se entende aquelas
adotivas de crianças, que o fazem por não terem capacidade física de ter filhos ou por não
terem tido oportunidade para isso. Percebe-se que essas mães podem ser tão boas quanto as
mães biológicas ou, por vezes, até melhores.
Erico faz questão de incluir em seu texto uma mãe diferente das demais, no sentido de,
como se elucidou até aqui, não ter dado à luz nenhum filho ou filha: Maria Valéria. Na
verdade, não nenhuma personagem que a denomine como mãe, mas é exatamente esse o
papel que ela assumiu na ausência de sua irmã, Alice, que deixara dois sobrinhos para serem
cuidados: Toríbio e Rodrigo.
Essa personagem apresenta características bem incomuns se comparadas a outras
personagens femininas do texto, inclusive com relação à própria irmã, Alice, que tem o perfil
considerado ideal naquela sociedade para esposa e mãe, pois é dócil, obediente e não
questiona o que lhe é imposto (primeiro pelo pai e, em seguida, pelo marido). Maria
191
ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA GLOBO. Op. cit.
192
OSÓRIO, Luiz Carlos. Famílias hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981.
9
Valéria era uma “rapariga seca, retraída e caladona [...] que herdara da mãe (pobre da Ondina,
tão quieta, tão sem sal!) a falta de graça e do pai a teimosia.”
193
Já o Dr. Winter, personagem a
quem cabe a responsabilidade de observar os acontecimentos de Santa Fé nessa segunda parte
da trilogia – e especialmente da família Terra Cambará – e comentá-los,
Tinha uma simpatia particular por aquela rapariga que toda a gente achava
feia, mas na qual ele descobria um encanto secreto e meio áspero, muito
mais atraente para seu gosto do que a “boniteza” comum de Alice. Sempre
que a via, muito alta, tesa e esbelta, o rosto alongado, os grandes olhos
negros um pouco saltados, o nariz longo e fino, a boca rasgada de expressão
um tanto sardônica ele não podia deixar de fazer uma comparação:
“comprida e aguda como uma lança”. A própria voz de Maria Valéria tinha
algo de contundente. Em várias ocasiões, com o intuito de conhecê-la
melhor, Winter procurara levá-la a confidências, pois suspeitava de que
havia naquela criatura muito mais coisas do que seus gestos e palavras
revelavam. Não conseguira, entretanto, quebrar aquela espécie de armadura
de gelo que envolvia a filha mais moça de Florêncio Terra. Aos vinte e
quatro anos Maria Valéria tinha mentalmente quase a idade de Bibiana.
Quando as duas mulheres se encontravam, Winter divertia-se a observá-las.
Era evidente que existia entre ambas uma certa vontade recíproca a que
gentes da Província davam o nome de birra. Eram comparava o médico
duas personalidades de pederneira, que ao se chocarem produziam chispas
de fogo. No entanto ele estava certo de que, sendo necessário, qualquer uma
daquelas duas mulheres seria capaz dos maiores sacrifícios pela outra.
194
Essa é uma das melhores definições que poderiam ser feitas acerca dessa personagem.
Quando o médico afirma que ela é “comprida e aguda como uma lança”, o leitor pode ter,
então, a idéia fiel do papel que ela assumirá no texto, que é o de mais uma das fortes e
valentes mulheres criadas pelo autor para a família Terra Canbará. Maria Valéria é com todos
ao seu redor pai, cunhado, sobrinhos e com a própria Bibiana sempre muito incisiva e
categórica (como uma lança), e são esses adjetivos que lhe dão lugar de destaque em O tempo
e o vento.
Maria Valéria não era o ingênua quanto a irmã e, desde muito cedo, sempre fora
mais atenta e perspicaz que aquela em respeito aos assuntos circundantes, principalmente
quando se tratava do primo, Licurgo. Maria Valéria amava veladamente o noivo de sua irmã,
193
VERISSIMO, Erico. O Continente II. op. cit. p. 586.
194
VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 598-599.
9
mas não de uma maneira tão cega quanto Alice, pois sempre teve conhecimento, por exemplo,
do caso que o rapaz mantinha com Ismália Caré. Era uma mulher prática como Bibiana e
seu pai a admirava por isso:
era ela quem, depois da morte da mãe, tomava conta da casa. Tinha coragem,
bom-senso e espírito prático; não se preocupava com vestidos ou enfeites, e
não era dessas que vivem na frente do espelho, pensando em festas e
namorados. Sabia fazer queijos, doces e pão; era uma cozinheira de primeira
ordem e herdara as os habilidosas da mãe, sendo hoje talvez a melhor
rendeira de Santa Fé.
195
As semelhanças com Bibiana não são apenas notadas pelas outras personagens do
texto, como também pelo leitor, pois Maria Valéria demonstra atitudes firmes e decididas,
características comuns à tia. Mesmo em situações nas quais encontravam-se, como citado
anteriormente em comentário atribuído ao Dr. Winter, a sobrinha dialoga com a tia de igual
para igual, o que não era comum para o tipo de sociedade retratada por Erico. O esperado
seria que os mais novos sempre acatassem, sem argumentação, o que era dito pelos mais
velhos, algo que Maria Valéria nem sempre fazia, pois nem sempre estava de acordo.
Mesmo intrometendo-se diversas vezes nas conversas dos mais velhos e dos homens
outra atitude incomum para uma moça da época em questão isso não era, em hipótese
alguma, uma falta de respeito por parte de Maria Valéria. A maneira como se posicionava em
seu discurso não era desrespeitosa, apenas provinha de uma personalidade desenhada para ser
bastante segura de si, sabedora de suas razões e que não via impedimentos para expô-las.
É exatamente por causa dessa praticidade evidente de Maria Valéria que a tomavam
por fria e seca, como é descrita por outras personagens no decorrer do texto. Porém, não
entendemos que ela não se envolvesse com as pessoas e fatos. Apenas não fazia alarde acerca
disso e controlava suas emoções, aparentando falso distanciamento emocional. Usamos o
termo “falso” porque o texto a entender o modo como ela se sentia em relação a
195
Idem. p. 602.
9
determinadas situações, especialmente aquelas em que estava na presença do cunhado,
Licurgo, a quem não é indiferente:
Ela sobe a escada devagarinho, uma das mãos segurando o castiçal, a
outra agarrada ao corrimão. Tirar a sorte? Bobagem. Pra quê? Pra ver com
quem vais casar. Atira esta casca de laranja pra trás... Assim. Vamos ver a
letra que a casca formou. Um L. Ah! Eu bem desconfiava. Que nome
começa por um L? Licurgo... Ah! Se eu pudesse fazer parar o pensamento!
L. Licurgo. Mas o Licurgo não vai casar com a irmã dela, a Alice? Claro.
Mas a Maria Valéria também gosta dele. Licurgo escolheu a outra. Coisas da
vida... Sorte é bobagem. Licurgo. Sorte é bobagem. Alice casou. Maria
Valéria vai ficar solteirona o resto da vida. L... Licurgo.
Maria Valéria chega ao patamar, fica um instante ali parada,
sentindo as faces escaldantes.
o pensar nessas coisas me uma vergonha... Decerto estou
vermelha. Melhor é ir ver os meninos...
196
Como se lê, o amor que tem pelo primo e, depois, também cunhado, se estendeu por
toda a sua vida e, mesmo tendo oportunidade de ter se casado com Liroca, quem sempre a
desejou por esposa escolheu permanecer solteira e dedicar-se à família que provavelmente
gostaria de ter criado para si, mas que veio a adotar posteriormente, com o falecimento da
irmã: Licurgo e seus filhos. Com a morte de Alice, Maria Valéria pôde assumir a função de
senhora do Sobrado, tomando a posição que pertencia até então à Bibiana e que deveria ser
repassada para uma outra mulher tão valente quanto aquela. No caso, como observado, o
cargo não condizia com Alice, mas com sua irmã.
A adequação para assumir o comando feminino do Sobrado aflorou no decorrer do
sítio em que a casa se encontrava, em função da guerra entre federalistas e republicanos,
quando todos os seus moradores foram obrigados a permanecer trancados ali, sem que
ninguém saísse nem entrasse. Com Alice no final da gestação e bastante febril, e Bibiana
com idade avançada e fortemente afetada pela cegueira, foi Maria Valéria quem assumiu
todas as responsabilidades da casa, no sentido de cuidar do que todos iriam comer, tratar dos
doentes e das crianças e até mesmo de enterrar os mortos.
196
VERISSIMO, Erico. O Continente I. op. cit. p. 16.
9
A partir de então, ela assumiu não apenas essas tarefas práticas que a situação exigia,
como também, posteriormente a isso, assumiu a função de mãe de seus sobrinhos, educando-
os na ausência da mãe Alice. Apesar de nunca ter tido relações sexuais a partir das quais
tem início uma gravidez e, conseqüentemente, começa não apenas o nascimento de um filho,
mas também o nascimento de uma nova mãe Maria Valéria participou do último dos três
partos de Alice. Essa assistência prestada foi inicialmente reprovada pela parteira, pois, pelo
fato de M. Valéria ser ainda solteira, não era conveniente que tomasse vez nesses
acontecimentos pertinentes somente às senhoras casadas.
Dá-se, então, a quebra de paradigma por parte dessa personagem, que não se deixou
deter pelas regras sociais estabelecidas e, ainda assim, criou seu próprio espaço dentro dessa
sociedade patriarcal de O tempo e o vento. Não se rendeu ao destino imposto a todas as moças
de Santa Fé: o casamento e a conseqüente maternidade, que era o que as incluía socialmente.
Mas isso não impediu de exercer seu lado materno junto do homem que amava, mesmo que
isso tenha sido feito às avessas diante dos olhos daquela comunidade.
Assumindo, então, esse papel feminino dentro do Sobrado e do texto –, ou seja,
dando continuidade à saga das mulheres que preservam a família e o patrimônio, como Ana
Terra e Bibiana, Maria Valéria era solidária às dores e sofrimentos das que vieram antes de si,
o que a levou a afirmar, como se realmente tivesse passado ela própria por essa experiênciade
parto:
Deus fez o mundo errado. Eu queria que os homens tivessem filhos pelo
menos uma vez na vida, só pra verem como não é fácil. [...]
Ter filhos é que é negócio de mulher, eu sei continua Maria Valéria.
Criar filhos é negócio de mulher. Cuidar da casa é negócio de mulher. Sofrer
calada é negócio de mulher. Pois fique sabendo que esta revolução também é
negócio de mulher. Nós também estamos defendendo o Sobrado. Alguma de
nós se queixou? Alguma lhe disse que passa o dia com dor no
estômago, como quem comeu pedra, e pedra salgada? Alguma lhe pediu
pra entregar o Sobrado? Não. Não pediu. Elas também estão na guerra.
197
197
VERISSIMO, Erico. O Continente I. op. cit. p. 11.
9
Nesse discurso, Maria Valéria falou em nome de todas as outras mulheres que estavam
na casa e todas do texto também, que expressou uma angústia feminina geral daqueles
tempos de guerra nos quais, desde Ana Terra, as mulheres tinham a sina de esperar e sofrer
por seus homens (pais, filhos, maridos, irmãos).
Diante dessas situações, a Dinda como era tratada pelos sobrinhos era aquela que
tinha os pensamentos mais práticos como, por exemplo, o de ter de logo enterrar a sobrinha
nascida morta, antes que o processo de deterioração do defunto tivesse início. E, como assume
as funções de mãe de Toríbio e Rodrigo, tem atitudes maternais até mesmo com Licurgo, ao
se preocupar com seu sono, sua alimentação, suas decisões de líder. Não apenas podem ser
consideradas preocupações maternais como também amorosas. É o tipo de zelo que as
esposas têm por seus maridos:
- Vassuncê precisa mas é dormir.
Licurgo ergue a cabeça, quase num sobressalto.
- Dormir? – repete, como se não conhecesse a palavra.
- Vá pra cima e deite.
Curgo continua sentado, agora com o busto inteiriçado, o ar meio agressivo.
- Não adianta nada vassuncê se martirizar desse jeito – insiste a cunhada.
[...]
- Mas não estou com sono.
- Não pode deixar de estar. Faz duas noites que não dorme.
- Eu sei do que preciso.
Licurgo odeia que tomem com ele atitudes maternais. Maria Valéria
contempla-o por um breve instante e depois torna a falar:
- Vassuncê ficando acordado a situação o melhora em nada. A criança
nasceu morta. A Alice está com febre. Os mantimentos se acabaram. O
Tinoco está com pasmo.
198
Maria Valéria não precisaria ter permanecido na casa do cunhado após a morte da
irmã. Não tinha ligações com ele, mas com Alice. E, pouco antes de a esposa de Licurgo
morrer, seu pai, Florêncio, que poderia ser considerado outro motivo de sua permanência,
também falecera. No entanto, Maria Valéria escolheu ficar. Ela conseguiu desenvolver com
198
Idem. p. 161-162.
9
aquelas pessoas seu cunhado e seus sobrinhos um laço quase marital e maternal, sem
nunca chegar a sê-lo, de fato.
Então, segundo a teoria da adaptação materna de Lebovici
199
, a situação fez com que
ela construísse novas redes de esquemas para si, transformando-a em uma mãe enquanto ela
organizava o mundo dos meninos que, então, passaram a depender dela. Essas redes de
esquemas, que sofrem uma reelaboração, envolvem seu modo de ser “como mulher, mãe,
amiga, filha, neta; seu papel na sociedade; seu lugar em sua família de origem; seu status
legal; ela mesma como pessoa com a responsabilidade principal pela vida e crescimento de
uma outra pessoa”
200
.
É em conseqüência dessa escolha e dessa readaptação que Maria Valéria ganhou o
título de “solteirona”. É de fato uma opção feita, que a primeira menção tida ao seu nome
no texto é de alguém apaixonado por ela, de José Lírio, homem que lutava contra os Cambará
durante o cerco ao Sobrado: “de repente a lembrança de que Maria Valéria estava dentro
lhe varou o peito como um pontaço de lança. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi
quase um soluço”
201
. Ou seja, Maria Valéria também era capaz de suscitar amores e
admiração alheia.
Mais uma vez, a imagem dessa personagem vem associada a de uma lança,
instrumento que fere profundamente e que fora bastante utilizado em guerras no período
medieval. Não é apenas pela sua postura alta e esguia que se compara a uma lança, mas
também por sua extrema objetividade, bravura e resistência nos períodos de guerra e fora
deles. Maria Valéria era objetiva como a lança, não fazia rodeios para chegar onde desejava e
não deixava de se lançar categoricamente mesmo que apenas através de sua censura
silenciosa – contra qualquer malefício que pudesse atingir a gente do Sobrado.
199
LEBOVICI, Serge. Apud STERN, Daniel N. A constelação da maternidade. Trad. Maria Adriana Veríssimo
Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
200
Id. p. 29.
201
VERISSIMO, Erico. O Continente I. op. cit. p. 02.
1
A relação cultivada com Licurgo, seu primo, e por quem sente uma secreta paixão, é
bastante contraditória, pois, apesar de amá-lo, de cuidar de seus filhos, de viverem sob o
mesmo teto, ambos mantêm um distanciamento seguro um do outro. Maria Valéria, para não
deixar transparecer seus sentimentos reais por Licurgo, e ele, como uma forma de proteção, já
que é possível perceber, em alguns trechos do texto, que se sente agredido e ameaçado pela
presença da cunhada, pelas suas palavras:
Parece que o bafo gelado que entra no quarto não vem de fora, vem dela. E
quando esta mulher fala, ele sente sua voz como uma lixa a raspar-lhe os
nervos.
[...]
De repente, vendo as próprias unhas crescidas e sujas, encolhe os dedos para
que Maria Valéria não os veja, e fica ao mesmo tempo contrariado por ter
feito esse gesto. Por que será que ela não vai embora?
202
Maria Valéria intimidava o cunhado e não apenas ele pelo seu modo incisivo de
falar, como quem julga e condena. Sempre fez questão de expor suas idéias para quem quer
que fosse: a tia Bibiana, o pai, outros homens. Isso, no contexto narrado, era uma atitude
feminina bastante incomum, a qual os homens (principalmente) não sabiam como lidar. A
Dinda, por ser assim, demonstrava uma superioridade que incomodava especialmente o
cunhado e, por isso, Licurgo freqüentemente perdia a paciência com ela e gritava, pois não
conhecia outra maneira de agir em resposta a alguém tão desafiador e confiante. “Só grita
quem sabe que não tem razão”
203
, diz ela.
Passado o episódio do cerco do Sobrado, iniciou-se outra fase em O tempo e o vento
referente à personagem de Rodrigo Terra Cambará, filho de Licurgo e Alice. As lembranças
que ele guardava da mãe não são muitas e referiam-se basicamente a momentos de doença e
do seu velório:
E por alguns momentos teve na mente um quadro triste: o velório, em
baixo, na sala grande a chuva a bater nas vidraças, papai de preto, os olhos
202
VERISSIMO, Erico. O Continente II. op. cit. p. 663.
203
VERISSIMO, Erico. O Continente I. op. cit. p. 163.
1
vermelhos, e, estendida no caixão feito pelo Pitombo Defunteiro, mamãe
toda coberta de flores, um lenço branco sobre o rosto.
204
Rodrigo sentou-se na velha cadeira de balanço que pertencera à sua bisavó
Bibiana, apoiou a cabeça no respaldo de palhinha, e olhou ternamente para o
retrato de Alice Terra Cambará, que pendia da parede da sala, enquadrado
numa moldura cor de ouro velho. Como tudo seria melhor se ela estivesse
viva! Ficou a pensar na mãe, que morrera em 1898, quando ele tinha apenas
treze anos incompletos. Era uma criatura apagada e tristonha, que nunca
alteava a voz e que parecia votar um respeito medroso ao marido. Frágil de
corpo, tinha saúde e queixava-se com freqüência de terríveis dores de
cabeça.
205
Rodrigo fora, então, criado pela tia, que ao contrário de sua mãe, não era uma pessoa
considerada apagada, tampouco medrosa com relação a Licurgo. Nessas circunstâncias,
traçou-se uma real relação de mãe e filho entre o sobrinho e Maria Valéria, na qual o filho
busca a mãe para conselhos, consolo e segurança.
Maria Valéria permaneceu por muito tempo desempenhando essa função materna com
muito desprendimento, inclusive depois de ter os sobrinhos já crescidos. Como qualquer outra
mãe, continuou a repreender-lhes quando achava necessário, puxando-lhes as orelhas e,
também, dando-lhes palmadinhas desajeitadas de carinho, que expressar amor o era sua
especialidade. É isso que fez com que o recém formado Dr. Rodrigo Terra Cambará
afirmasse: “Só tenho uma moça que me ama e me espera. Chama-se Maria Valéria e mora no
Sobrado.”
206
Como se entende, Maria Valéria não tinha, como tiveram Ana, Bibiana e a Luzia, a
função geradora de vida, característica das mães. Não é, então, sinônimo de fertilidade, como
sua irmã, Alice, e mesmo como Flora. O que ela fez, enquanto mãe e por isso o título de
mãe estéril, por o ter gerado filhos em seu ventre –, foi o trabalho advindo depois da
gestação, depois do parir o que não lhe coube. Ela alimentou esses filhos alheios, os criou,
os protegeu, cuidando para que a família, a “sua gente” não se terminasse ali, mas que tivesse
continuidade.
204
VERISSIMO, Erico. O Retrato I. 24. ed. São Paulo: Globo, 1997, p. 59.
205
Idem. p. 85.
206
Ibidem. p. 73.
1
A presença e o zelo de Maria Valéria no Sobrado se fez notar até o final da narrativa,
ou seja, o leitor não tem notícia de sua morte, pois, no final de O Arquipélago, terceira parte
da trilogia, ela estava com idade bastante avançada, com a catarata que lhe cegara bem
como acontecera com Bibiana mas não chegou a morrer. Antes disso, ainda ajudou Flora, a
esposa de Rodrigo, a criar seus filhos e presenciou inclusive a morte do Dr. Rodrigo Cambará.
Ainda assim, era “um rochedo. [...] Que coração!”
207
. Diante dessa cena, outra, bem anterior,
se faz recordar, que diz:
O frio a deixa como que anestesiada, incapaz de sentir o que quer que seja:
tristeza, compaixão ou esperança. O que a mantém de pé a ajudar sua gente é
ainda um sentimento de dever que lhe vem principalmente do hábito. D.
Bibiana tem razão: as mulheres do Rio Grande o direitas e cumprem suas
obrigações por puro cacoete, e cacoete hereditário...
208
Realmente, a função da Dinda, nesta saga, é dar continuidade a tudo o que as outras
mulheres Terra Cambará construíram antes de sua chegada, é conservar a família e garantir-
lhe a permanência. Maria Valéria fez isso não pelo fato de ter colocado filhos no mundo
coisa que não fez – mas cuidando dos que continuavam nascendo. E esse instinto maternal por
ela desenvolvido não passa do “cacoete hereditário” herdado de Bibiana, que herdara de sua
avó Ana Terra.
Almeida afirma, em seu trabalho, que Maria Valéria não se encaixaria na tríade Ana
Terra- Bibiana- Maria Valéria, mas criaria um novo arquétipo
209
. Nós, porém, entendemos que
essa personagem, apesar de diferente das outras duas mulheres no que diz respeito à
maternidade como ato de gerar filhos, dá continuidade ao legado daquelas, transferindo-o para
as outras que vêm em seguida de si: Flora e Sílvia, apesar de servir também de testemunha da
derrocada da família Terra Cambará.
207
VERISSIMO, Erico. O Arquipélago III. op. cit. p. 995.
208
Idem. p. 324.
209
ALMEIDA, Lélia. op. cit. p. 105.
1
Nota-se, no texto, que as mães biológicas, as que deram à luz, ou acabaram morrendo
ou eram muito fracas. Já Maria Valéria herdou o status de grande matriarca porque ocupou o
espaço vazio deixado por aquelas. Com isso, o texto adquire um vulto de tragédia grega, uma
vez que cabe a essa personagem observar e presidir a decadência dos Cambará sem ter ações a
seu alcance para impedi-la. A Dinda tem o perfil trágico, pois é uma mãe que não é mãe como
as outras, é, ainda, a mãe testemunha da tragédia moral de seus filhos, que coincide com o
desabamento moral daquela sociedade retratada.
Assim, as mulheres passam para as gerações seguintes a responsabilidade perante a
família que é a de não deixar morrer esse legado feminino, não deixar com que tudo o que foi
construído até então tenha um fim. E esse papel está definitivamente muito bem cumprido por
Maria Valéria.
1
CONCLUSÃO
Nem mesmo os mitos de papel, unidimensionais e
concebidos segundo o mais estrito funcionalismo, que os obriga a repetir
indefinidamente a mesma série de ações que o leitor espera deles, nem
mesmo eles podem escapar do ‘princípio de realidade’ de pertencer a uma
família. [...] Na literatura, de ficção ou não, o lugar da família é sempre
significativo, e até se poderia conceber uma tipologia para os textos de
ficção a partir do modo como neles aparece o tópico familiar, que em muitos
autores é onipresente e, em outros, vago e até ausente, o que não deixa de ser
intrigante.
210
O escritor e ensaísta argentino Juan José Saer, no trecho destacado acima, expõe muito
bem ao leitor a importância das relações familiares em todas as obras literárias mesmo
naquelas em que não são evidenciadas. Além de intrigante, o assunto margem para que
muitos estudos sejam realizados a fim de que se possa tentar entender melhor as obras e
também as nossas próprias relações e as que nos cercam. Isso significa, em outras palavras,
que se trata de um tema inesgotável, uma vez que não ninguém com as mesmas vivências
ou mesmo ponto de vista de outra pessoa.
Apesar da vasta bibliografia existente e conhecida dedicada a estudar sob diversos
aspectos o trabalho literário do escritor gaúcho Erico Verissimo, sentimo-nos permitidos a
fazer mais um acréscimo ao acervo crítico do autor, visto que se trata de um tema não
explorado sobre sua obra: as relações de mães e filhos em O tempo e o vento.
Enquanto romance histórico, é possível enxergar nessa narrativa um retrato da
sociedade brasileira da época retratada (período entre os anos de 1745 e 1945), visto através
de uma síntese do Rio Grande do Sul, representado pela formação da cidade de Santa Fé, que
coincide com as várias gerações da família Terra Cambará. Ou seja, de uma estrutura
particular essa família o autor partiu para uma estrutura universal a formação de uma
210
SAER, Juan José. A família em trapos. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 out. 2004. Mais!, p. 15
1
sociedade, aspecto esse que comprova toda a grandeza e importância dessa trilogia para a
Literatura.
Há, no texto, importantes personagens masculinas, a começar por Pedro Missioneiro e
o Capitão Rodrigo Cambará, mas optamos por interpretá-lo a partir de uma perspectiva de
gênero feminino, tendo a função da maternidade exercida pelas personagens como ponto de
partida para nossas especulações.
A intenção, então, foi investigar qual o papel que as personagens femininas e mães
assumem diante desse panorama de formação social. Para tanto, delimitados uma questão-
problema que servisse de base referencial do estudo realizado, que foi: “como a relação entre
mãe e filho influencia na formação das personagens masculinas principais de O tempo e o
vento?”.
Para respondê-la, partimos de duas hipóteses: a) a de que a relação que as mães têm
com os filhos é determinante para a formação do tipo de pessoa que eles vêm a se formar e do
tipo de relacionamento adulto que eles escolhem para si, e b) a de que, dentro do contexto
social fotografado no texto de Erico, as personagens femininas cumpririam com as
expectativas da sociedade rural e patriarcal, com exceção de Luzia.
Ao final de cada um dos capítulos que dão corpo a esse trabalho, procuramos
adiantar ao nosso leitor as inferências feitas acerca de cada uma das personagens analisadas
(Ana, Bibiana, Luzia, Ismália e Maria Valéria) e de suas representatividades no texto de
Veríssimo, que é de tamanha importância na história da literatura brasileira por inaugurar o
romance histórico e, além disso, ser o responsável por narrar a formação de uma cultura a
gaúcha – da qual fazemos parte.
Ana Terra, a primeira das personagens femininas a ter destaque no texto de Erico e
também nesse trabalho, assume a função de mãe-geradora, mãe-terra, a partir da qual todas as
outras se formarão. Ela é a personagem desbravadora e símbolo de heroísmo feminino, pois
1
assumiu sozinha a responsabilidade pelo filho que gerou e, posteriormente, assumiu também o
posto de e da comunidade de cuja fundação participou. Foi Ana Terra quem instaurou no
texto e na sociedade fotografada o legado feminino de coragem e de obstinação. Ela é, então,
a matriz de todas as outras mães que a seguem.
Bibiana Terra Cambará aparece no texto como a própria extensão de Ana Terra.
continuidade ao legado da avó, ampliando o patrimônio da família e sendo, assim, a mãe-
preservação, aquela que luta para manter o que foi conquistado até ali. Passa também a ser
uma mãe provedora, pois perde o marido muito cedo e assume a função de chefe da família,
mantendo essa posição até o final da vida. É a mãe que manipula tudo e todos em função de
seu trabalho de conservação familiar, valor herdado da avó.
De frente com esse poder, o autor nos apresenta Luzia Silva Cambará, que, ao
contrário das outras mães, representa uma força de destruição ao que Ana e Bibiana
representavam. É uma personagem extremamente imprevisível, pois o leitor não tem como
saber o que se passa com ela, visto que, na narrativa, não espaço para seu discurso, seus
pensamentos e idéias. Assim, transmite a idéia de mãe ausente, distante do filho, ou seja, o
desenho materno fadado à exclusão da sociedade rural e patriarcal imaginada por Verissimo.
Acaba vencida por Bibiana, ou seja, uma vez mais, a soberania das mães-conservação ganha.
Em seguida abordamos a personagem de Ismália Caré, a mãe a quem também é
negada a oportunidade de manifestação, demonstrando os valores daquela sociedade, na qual
não havia espaço para quem o seguisse o que era estipulado e tido como correto
socialmente: o casamento para as mulheres. É a mãe que renuncia sua função materna perante
a sociedade e vê-se excluída dela, assim como seu filho, mas que está inevitavelmente
presente nela, fazendo parte também de sua fundação.
Encerramos o trabalho com a personagem Maria Valéria, que, na linha de Ana e
Bibiana, apesar de não ter sido mãe legítima de ninguém, apresenta também o instinto de
1
preservação da família iniciado por suas ancestrais. Representa o elo existente entre o passado
e o futuro daquela sociedade, cabendo para si a responsabilidade de testemunhar o ápice e o
declínio pelos quais a família Terra Cambará passa e, representativamente, a sociedade da
época também passou.
Com isso, concluímos que a formação da sociedade retratada por Erico dependeu
fortemente dessas personagens femininas a que demos destaque aqui, pois tanto aquelas que
corresponderam às expectativas daquela sociedade Ana, Bibiana e Maria Valéria quanto
as que não corresponderam Luzia e Ismália em função da personalidade diferenciada ou
da posição social em que se encontravam, têm papel fundacional para a formação do estatuto
da sociedade patriarcal e patrimonial de Santa Fé.
São, assim, indispensáveis no texto de Erico, e indispensável também é que levemos
em consideração os seus papéis de mães valentes e guerreiras, uma vez que queiramos
compreender melhor do que se constitui uma sociedade como esta em que vivemos no Rio
Grande do Sul e, conseqüentemente, no Brasil.
1
BIBLIOGRAFIA
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina,
1967, p. 239.
ALMEIDA, Lélia. A sombra e a chama: uma interpretação da personagem feminina n’O
Tempo e o Vento de Erico Verissimo. Porto Alegre, 1992. 147 f. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
ATHAYDE, Tristão de. Erico Verissimo e o antimachismo. In: CHAVES, Flávio Loureiro
(org.). O contador de histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre:
Globo, 1972, p. 86-102.
BADINTER, E. Um amor conquistado o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
BARBOSA, Maria José Somerlate. Saltando os “círculos de giz”: as personagens femininas e
a dinâmica de gêneros em romances de Erico Verissimo. In: BORDINI, Maria da Glória
(org.). Caderno de pauta simples: a literatura de Erico Verissimo e a crítica literária. Porto
Alegre: Instituto Estadual do livro, 2005. P. 301-333.
BENVENUTTI, Nara Maria Faoro. Adultério: reavaliando posições. Revista Faculdade de
Direito/UCS, Caxias do Sul, n. 7, p. 47-50, mar. 1998.
BERTUSSI, Lisana. Literatura gauchesca: do cancioneiro popular à modernidade. Caxias do
Sul: EDUCS, 1997.
BIDDULPH, Steve. Criando meninos: por que os meninos são diferentes? O que o pai e a
mãe podem fazer? Como torná-los homens equilibrados e felizes? São Paulo: Fundamentos,
2002.
BLEICHMAR, Norberto M. & BLEICHMAR, Célia Leiberman de. A psicanálise depois de
Freud: teoria e clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
BONDER, Nilton. A alma imoral: traição e tradição através dos tempos. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
BORDINI, Maria da Glória; ZILBERMAN, Regina. O tempo e o vento: história, invenção e
metamorfose. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. (Coleção Literatura Brasileira. Série Grandes
Obras; 1)
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 8. ed. Petrópolis: Vozes, v. III, 1998.
CANDIDO, Antonio (et. al). Personagem de ficção. 10.ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
1
CANEVACCI, Massimo (org.). Dialética da família. 5. ed. São Paulo: Editora Brasiliense,
1987.
CASEY, James. A história da família. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1992.
CESAR, Augusto. O problema feminino e o divórcio. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas
Bastos, 19--.
CHAVES, Flávio Loureiro. A terra de Erico. In:_____ Matéria e invenção:ensaios de
literatura. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1994, p. 49-60.
_____. Erico Verissimo e o mundo das personagens. In:_____ O contador de histórias: 40
anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972, p. 71-85.
_____. Erico Verissimo: o escritor e seu tempo. Porto Alegre: Ed. Universidade, 2001.
_____. História e Literatura. 3. ed. amp. rie Síntese Universitária. Porto Alegre: Ed.
Universidade, 1999.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figures, cores, números. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1999.
CIRLOT, Juan Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes Ltda., 1984.
COLLANGE, Christiane. Eu, sua mãe. Trad. Lúcia Melim. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
COLLINS, Sérgio. A família moderna e a solução dos seus problemas. Trad. Isolina ª
Waldvogel. Santo André: Casa Publicadora Brasileira, 1966.
_____. Defina uma família. Trad. Mario Fondelli. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
DORIN, Lannoy. Introdução à Psicologia. 3. ed. São Paulo: Ed. do Brasil, 1978.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Trad:
Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
_____. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
_____. Tratado de história das religiões. Trad. Fernando Tomaz e Natália Nunes. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
Enciclopédia Brasileira Globo. 10. ed. Porto Alegre: Globo, v. V, 1965.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro
Konder. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
GAIARSA, José Ângelo. A família de que se fala e a família de que se sofre: o livro negro da
família, do amor e do sexo. 3. ed. São Paulo: Ágora, 1986.
HOBSBAWM, Eric. Tradições inventadas. Antologia de textos. Lisboa: Desporto, 1988.
1
HOHLFELDT, Antônio. Érico Veríssimo. Coleção Esses Gaúchos. Porto Alegre: Tchê!
Comunicações, 1984.
KANT, Immanuel. Antropología práctica. Madrid: Tecnos, 2004.
LEENHARDT, Jacques; PASAVENTO, Sandra. Discurso histórico e narrativa literária.
Campinas: Unicamp, 1998.
LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos & Lendas do Sul. Porto Alegre: L&PM,
1998. (Coleção L&PM Pocket)
LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. Trad. Mario Krauss e Vera Barkow. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
MALINOWSKY, Bronislaw. A família no direito paterno e no direito materno. In:
CANEVACCI, Massimo (org.). Dialética da família. 5. ed. São Paulo: Editora Brasiliense,
1987.
MARBEAU-CLEIRENS, Béatrice. O sexo da mãe e as divergências entre as teorias
psicanalíticas. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989.
MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia: uma
introdução. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
MEYER, Augusto. Guia do folclore gaúcho. 2. ed. ver. aum. Rio de Janeiro: Presença/
Instituto Nacional do Livro/ Instituto Estadual do Livro-RS, 1975.
_____. Prosa dos Pagos. Vol. 3. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1943.
OSÓRIO, Luiz Carlos. Famílias hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981.
POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. Porto Alegre:
Movimento, 1974.
PUGET, Janine; BERENSTEIN, Isidoro. Psicanálise do casal. Trad. Francisco Franke
Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
SAER, Juan José. A família em trapos. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 out. 2004. Mais!,
p. 15.
SCHÜLER, Donaldo. O tempo em O Continente”. In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O
contador de histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo,
1972, p. 158-175.
STERN, Daniel N. A constelação da maternidade. Trad. Maria Adriana Veríssimo Veronese.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
WAGNER, Adriana (coord.). Família em cena: tramas, dramas e transformações. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
1
WINNICOTT, Donald W. Os bebês e suas mães. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
WOORTMANN, Klaas. A família das mulheres. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.
VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento – O Continente I. 27. ed. São Paulo: Globo, 1995.
_____. O tempo e o vento – O Continente II. 27. ed. São Paulo: Globo, 1995.
_____. O tempo e o vento – O Retrato I. 24. ed. São Paulo: Globo, 1997.
_____. O tempo e o vento – O Retrato II. 24. ed. São Paulo: Globo, 1997.
_____. O tempo e o vento – O Arquipélago I. Porto Alegre: Globo, 1961.
_____. O tempo e o vento – O Arquipélago II. Porto Alegre: Globo, 1961.
_____. O tempo e o vento – O Arquipélago III. Porto Alegre: Globo, 1961.
_____. Solo de clarineta: memórias. v. 1. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
1