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Lídia Maria Ferreira de Oliveira
A CONSTITUIÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA NA
ESCOLA
AS INFLUÊNCIAS DAS CONCEPÇÕES DE LEITORES E PRODUTORES DE TEXTO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal
Fluminense, Área de Concentração: Linguagem,
Subjetividade e Cultura, como requisito parcial
para a obtenção de Grau de Mestre em Educação.
Orientadora:
Professora Doutora Andrea Berenblum
NITERÓI
2006
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Lídia Maria Ferreira de Oliveira
A CONSTITUIÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA NA
ESCOLA
AS INFLUÊNCIAS DAS CONCEPÇÕES DE LEITORES E PRODUTORES DE TEXTO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal
Fluminense, Área de Concentração: Linguagem,
Subjetividade e Cultura, como requisito parcial
para a obtenção de Grau de Mestre em Educação.
__________________________________________________
Professora Drª. Andrea Berenblum – Orientadora
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Professora Drª. Cecília Goulart
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________
Professora Drª. Victória Wilson
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
NITERÓI
2006
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Para Mariama, filha querida, pela oportunidade de um amor tão
profundo e gostoso, e pela possibilidade de um olhar exotópico de
mim mesma.
Para José Paulo, companheiro amado, pelo vivido compartilhado.
Para Irani, Doralice, Célia, Lourdes, Cléa, Lília e Beatriz (em
memória), mulheres da minha vida.
Para meus alunos: os de ontem, os de hoje e os de amanhã, pela
possibilidade de compreensão responsiva.
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O que me move no momento em que escrevo estas linhas é a confirmação, mais uma vez,
de que a realização de tarefas difíceis nunca se dá na solidão. É justamente nesses momentos que
parentes, velhos amigos, colegas marcam presença, ajudando-nos a caminhar. Esses também são
momentos de se fazer novas amizades, criar novos laços, ampliar nossa percepção através desses
novos fios que se entrelaçam à trama que é nossa vida. Por isso quero agradecer a todos que, de
alguma maneira, contribuíram para que essa experiência não se perdesse, e se materializasse na
forma dessa Dissertação.
Obrigada,
Andrea Berenblum, companheira nesta jornada, com quem compartilhei, e compartilho, esse
trabalho. Orientadora atenta, respeitosa, firme, que sempre transmitiu a segurança e o entusiasmo
necessários para esta empreitada. Especialmente por ter me ajudado a encontrar minha própria
palavra.
Rômulo Silva, Izis Carvalho, Iglece Celestino, Eduardo Mello e Monique Plácido, jovens que me
revelaram sujeitos ativos nesta pesquisa.
Elizabeth Brito, Elizabeth Alves, Bárbara Bittencourt, Abílio Ferreira, Luiz José Soares e Eliane
Alves, colegas de trabalho, companheiros de jornada e utopia, pela confiança e o diálogo franco;
pela possibilidade de compreensão de nossas práticas.
Maria Rachel Gomes, pela disponibilidade, o carinho e o sorriso com que sempre me recebe.
À Direção do Colégio Estadual David Capistrano, pelo acesso irrestrito, além do ânimo e
interesse.
Cecília Goulart, sempre disponível e entusiasmada, pela atenção com que sempre me recebeu,
por todos os livros e textos emprestados... e pela, sempre, porta aberta...
Paulo Carrano, por ter me mostrado o caminho da juventude, imprescindível a esta pesquisa.
Wanderley Geraldi, pela generosidade da leitura, orientações e críticas ao Projeto de Pesquisa.
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Professora Victória Wilson, por ter prontamente aceitado o convite de participar da Banca de
Defesa.
Ana Lúcia Lopes, Beth Petersen, Kátia Zanvettor, Lauriana Paiva, Marcus Podestá, Mônica
Azevedo, Ondina Santos e Vanêsa Medeiros, “galera da Linguagem”, sempre presentes –
“mesmo que o tempo e a distância...” –, com os quais pude viver esse momento, com intensa
interlocução. Turma boa mesmo!
Jaqueline de Grammont, Raimunda Assis, Clareth Reis, Leomar Vazzoler e Ednalva, pela
amizade e pelo carinho, sempre. Especialmente pelos momentos de “jogar conversa fora”.
Aos Professores deste Programa de Pós-Graduação, que participam de maneira fundamental,
especialmente quando ainda estamos definindo nossos projetos.
Gustavo Gomes, colega de trabalho e de boas risadas, pela generosidade do abstract.
Selma Maria Silva, Elizabeth Viana e Sônia Monerat, amigas imprescindíveis, das quais estive
distante fisicamente durante esse tempo de Mestrado, mas que marcaram presença de modo
intenso.
Meus irmãos, pelo interesse e força, tão necessários durante esse processo. De modo especial,
Eduardo, pela interlocução, que em alguns momentos foi essencial.
De modo especial, a minha mãe, Irani e a minha tia Célia, minha mãe também, sem as quais,
certamente, eu não teria conseguido chegar até aqui. Não se pode agradecer pelo amor de alguém,
mas retribuí-lo com alegria, por todos os dias de nossas vidas.
José Paulo e Mariama, que em função desse projeto, tiveram suas vidas um tanto bagunçadas;
vocês foram, de fato, fonte de energia criativa para o diálogo tão necessário a esta pesquisa.
Às forças da natureza, que são a certeza do dia e da noite, dos tão necessários caos e cosmos, da
tempestade e da calmaria. Aprender com a natureza é aprender que tudo fala.
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“Passar cinqüenta anos sem poder falar sua língua com alguém é
um exílio agudo dentro do silêncio. Pois, há cinqüenta anos,
Jensen, um dinamarquês, vivia ali nos pampas argentinos. Ali
chegara bem jovem e desde então, nunca mais teve com quem
falar dinamarquês. Claro que no princípio lhe mandavam revistas
e jornais, mas ninguém manda com assiduidade revistas e jornais
para alguém durante cinqüenta anos. Por causa disto, ali estava
Jensen, há inúmeros anos, lendo e relendo o som silencioso e
antigo de sua pátria, e como as folhas não falavam, punha-se a ler
em voz alta, fingindo ouvir na própria voz a voz do outro, como
se um bebê pudesse, em solidão, cantar para inventar a voz
materna. Cinqüenta anos olhando as planuras dos pampas,
acostumado já às carnes generosas dos churrascos conversados
em espanhol, longe, muito longe dos “smorgasbord” natal.”
(Afonso Romano de Sant’Anna, O segundo verso da canção – fragmento)
8
R E S U M O
O objetivo geral desta investigação é compreender algumas variáveis que contribuem para
que, de maneira geral, a escola esteja formando decodificadores e fazedores de redação ao
invés de leitores e produtores de texto. Partimos da hipótese de que a maneira como a leitura
e a escrita são concebidas pelos principais atores do processo de ensino-aprendizagem da
escola – aluno e professor – exerce forte influência nas práticas pedagógicas lá desenvolvidas.
A pesquisa foi realizada em uma escola pública, e, através de questionários e entrevistas,
buscamos concepções de produtores e leitores de textos que circulam na escola a partir das
perspectivas dos alunos, dos professores de disciplinas diversas, da orientadora pedagógica e
a da responsável pela biblioteca. Tomamos como base as categorias bakhtinianas de
linguagem, signo lingüístico, compreensão, contrapalavra, alteridade e dialogia, e, com
Geraldi, os princípios de que a unidade lingüística básica é o discurso, e que leitura e escrita
são espaços ampliados de constituição humana, sendo, então, a aquisição da escrita, em
qualquer tempo, uma prática discursiva. Ainda nos apoiamos na noção de leitura como
produção (Orlandi) e nos estudos sobre o letramento (Goulart, Soares e Kleiman). Baseando-
nos em Dayrell, Carrano, entre outros, buscamos, também, refletir sobre identidade juvenil,
escola, lazer, trabalho. A pesquisa evidenciou crenças que estão na base das concepções dos
sujeitos entrevistados; revelou uma noção de língua única, inclusive pelos alunos, indicando a
desvalorização das variedades lingüísticas faladas/escritas pelos educandos. Mostrou,
também, que leitura e produção de textos não são objeto de ensino/aprendizagem, ao menos
neste nível de ensino, mas meios de se chegar aos conteúdos ou de avaliação da aprendizagem
destes. Dessa forma, esta pesquisa aponta para a necessidade de reflexão sobre o papel da
leitura e da produção de textos na vida das pessoas, e o seu lugar na escola.
Palavras-chave: Leitura; produção de texto; ensino médio, juventude.
9
ABSTRACT
The main purpose of this investigation is to understand some variables that contribute, in a general
way, for and creators of compositions instead of readers and producers of texts. We start from the
hypothesis that the way the writing and reading are conceived by the main the main actors of the
process teaching-learning strong influence over the educational practices developed there. The
research was developed in a public school and though questionnaires and interviews, we searched for
conceptions of producers and readers of texts that circulate in schools from the students’ perspectives,
teaches of different subjects, educational instructor and the librarian. We took as base the Bakhtin’s
categories, linguistics signs, understanding, counter-word, dialogism, and from Geraldi, the principles
that the base linguistics unit is the speech and reading and writing are enlarged spaces of human
constitution being this way a discoursive practice. We still leaned on the idea of reading as
productions (Orlandi) and studies about literacy (Goulart, Soares and Kleiman). Based on Dayrell,
Carrano and others we also reflected about the juvenile, identity, school, leisure, work. The rearch
evidenced beliefs that are on base of the interviewed citizens revealed a notion of single language
including students, indicating the devaluations of the linguistics varieties spoken/written by students. It
also showed that reading and text production are not object of the relationship teaching-learning at
least on this level of teaching but ways to get to the contents or the evaluation of learning of these
ones. This way, this research points to the necessity of refection about the hole of reading and text
productions in people’s and their place in school.
Key words: reading, text production, high school, youth.
10
SUMÁRIO
Apresentação..........................................................................................................12
O olhar inicial: das inquietações ao objeto de pesquisa...............................................13
1 – Ampliado o olhar: o diálogo com a teoria ........................................................16
1.1 – Leitura e escrita: atividades discursivas.............................................................16
1.2 – A produção de leitura e a produção de texto .....................................................21
1.3 – A relevância das discussões sobre o letramento.................................................24
1.4 – Oralidade, leitura e produção de textos.............................................................28
2 - Contextualizando a investigação: o campo ......................................................33
2.1 – A amostra .....................................................................................................35
2.2 – Os instrumentos de coleta de dados.................................................................38
3 – O olhar “ora abrangente, ora incisivo”: a análise dos dados...........................41
3.1 – Os alunos ...................................................................................................43
3.1.1 – De que falam esses jovens? .........................................................................50
3.1.1.1 – Identidade: juventude, juventudes... .................................................................51
3.1.1.2 – A escola como espaço sócio-cultural..................................................................53
3.1.1.5 – O trabalho como necessidade ...........................................................................67
3.1.1.6 – O lugar do lazer...............................................................................................69
3.1.2 – O que falam esses jovens sobre a leitura e a produção de textos ...................71
3.1.2.1 – A leitura..........................................................................................................72
3.1.2.1.1 - Os significados da leitura.................................................................81
3.1.2.2 – A produção de textos .......................................................................................84
3.2 – Os Professores ...........................................................................................90
3.2.1 – Leitura, produção de textos e prática docente: o que falam os professores...107
3.2.1.1 – A leitura........................................................................................................108
3.2.1.2 – A produção de textos .....................................................................................120
3.2.1.3 – Um mito: quem lê muito escreve bem..............................................................123
3.2.2 – A produção oral.........................................................................................125
3.3 – A Orientadora Educacional ......................................................................127
3.3.1 – A leitura....................................................................................................130
3.3.2 – A produção de textos.................................................................................131
11
3.4 – Responsável pela biblioteca ....................................................................133
3.4.1 – Biblioteca: um local de pesquisa.................................................................134
4 – Considerações finais.......................................................................................139
Da produção de textos – ou da ausência dela..........................................................140
Das experiências de leitura e escrita vividas pelos professores e sua relação com a prática
docente...............................................................................................................143
Finalmente...........................................................................................................146
Referências Bibliográficas....................................................................................148
Anexos..................................................................................................................152
12
Apresentação
O objetivo dessa investigação foi
compreender algumas variáveis que contribuem
para que, de maneira geral, a escola esteja formando decodificadores e fazedores de
redação ao invés de leitores e produtores de texto
. A partir das informações dadas pelos
sujeitos dessa pesquisa, buscou-se, especialmente, através de entrevistas:
a)
identificar
algumas concepções de leitores e produtores de texto que circulam na escola, junto aos
alunos, professores, orientadora educacional
1
e a responsável pela biblioteca
; b) a
nalisar
como se relacionavam as concepções dos sujeitos desta pesquisa
. A pesquisa foi assim
conduzida, pois, acreditava, e acredito, que a maneira como a leitura e a escrita são
concebidas pelos principais atores do processo de ensino-aprendizagem da escola – aluno e
professor – exerce forte influência nas práticas pedagógicas lá desenvolvidas.
O que está sendo proposto a partir da compreensão das concepções sobre leitores e
produtores de texto é que reflitamos – os professores da educação básica – sobre o que
realmente tem orientado o nosso trabalho. Acredito que para o campo de estudos sobre a
produção de leitura e de texto, agregado à prática escolar, esta pesquisa pode ser mais uma
contribuição para a reflexão sobre o tema, especialmente no que diz respeito aos atores da
relação ensino-aprendizagem.
Desse modo, no capítulo 1, realizei um diálogo com a teoria: iniciei discorrendo sobre
o fato de serem leitura e escrita atividades discursivas, apontando para o valor de uma
perspectiva sócio-histórica e da centralidade da linguagem na constituição do sujeito, além
da importância da alteridade e da dialogia nas relações pedagógicas. Explico porque a
vinculação das práticas de leitura e produção de textos à
produção
: primeiro, concordando
com Geraldi, por se tratar de devolver a palavra ao sujeito; segundo, porque é produzindo
que os seres humanos se produzem, nesse sentido, as condições para a produção humana
são fundamentais. Com Orlandi, discuto de forma mais objetiva a leitura como produção,
tanto do autor quanto do leitor. Realizo, também, uma reflexão sobre o letramento, tendo
em vista o quanto as discussões sobre tal tema tem sido produtivas, ainda que polêmicas;
pondero, ainda, sobre a relação entre oralidade, leitura e produção de textos.
1
A orientadora educacional da escola desde 2005 realiza também a função de orientadora pedagógica.
13
No capítulo 2, contextualizo o campo de pesquisa: trago a escola e um pouco do
bairro em que ela está situada a escola. Ainda, são apresentados os sujeitos da pesquisa de
forma mais objetiva, mostrando como ficou a amostra, e esclareço os instrumentos utilizados
para a coleta de dados.
No capítulo 3, os dados são analisados, tomando como ponto de partida descrições
detalhadas dos sujeitos, através de trechos de suas narrativas, de suas memórias. Foram
analisados os dados relacionados aos alunos e, a seguir, professores, orientadora
educacional e responsável pela biblioteca, nesta ordem. Na medida em que a análise foi
avançando, tentei ir destacando as relações entre as concepções desses sujeitos e algumas
crenças que ancoram essas concepções.
No capítulo 4, dedicado à conclusão deste trabalho, teço algumas considerações a
respeito da importância da rememoração das experiências de alunos e professores,
especialmente destes últimos; e sobre o lugar da produção de textos na escola e na vida
cotidiana.
O olhar inicial: das inquietações ao objeto de pesquisa
Iniciar esse texto discorrendo sobre minha própria trajetória de formação de leitora e
produtora de texto justifica-se, por um lado, porque este foi, de certa forma, um recurso
metodológico para entender porque leitura e produção de texto para mim, também, é uma
questão; por outro, porque dentro dessa trajetória está a professora de português em que
me formei. Não posso deixar de considerar como dado importante para o interesse sobre
esse tema, o fato de que sou eu mesma uma professora que leciona língua materna no
ensino médio; dessa forma, também sou uma inquieta no que diz respeito às dificuldade dos
alunos com a leitura e a escrita, de modo especial, nessa modalidade de ensino.
A leitura e a produção de textos não foram sempre encaradas por mim como uma
problemática, ao contrário, durante boa parte da minha vida ler e escrever eram atividades
“naturais”: aprendera a ler em casa, com minha mãe, por volta dos cinco anos de idade; na
escola, instituição marcante na minha vida, nos meus tempos de estudante da educação
básica e no curso superior, era “salva” por elas; nos grupos por onde passei, fosse na igreja,
no movimento popular, na militância partidária, também minha desenvoltura com a escrita
14
era uma marca; aliás, a participação em movimentos sociais marcaram de modo indelével
minha redação.
Na universidade começo a refletir sobre a escrita e a percebê-la como uma
problemática, e isso se deu, especialmente, por perceber que alguns colegas do curso de
Letras lidavam com a escrita e com a produção de textos com bastante dificuldade, além do
fato de que foi durante o curso universitário que me decidi pelo magistério, pois este, apesar
da opção pela faculdade de Letras, não era meu objetivo ao ingressar na universidade. Tão
logo definida a carreira profissional, comecei a dar aulas em um pré-vestibular comunitário –
inicialmente aulas de português, depois, por um bom tempo, aproximadamente cinco anos,
ministrei aulas de redação. Essa experiência, além de ter se configurado como um bom
campo de observação da problemática da escrita, era também um desafio, uma vez que a
relação desses pré-vetibulandos com a escrita, de maneira geral, se efetivava de forma mais
intensa apenas na escola.
Quando ingressei na rede de ensino público pude ter um contato não com alunos
somente, mas principalmente com os programas, os conteúdos das aulas de língua
portuguesa, literatura e redação, além dos livros didáticos utilizados, e com os colegas da
área de português e de outras disciplinas. A partir daí tomei contato com a realidade da
leitura e da produção de textos nas escolas de uma perspectiva diferente das anteriores.
Digo assim, pois antes o que eu tinha eram apenas impressões de quem nunca esteve
ocupando o lugar que passei a ocupar – o lugar de professora
2
, de uma profissional que se
encontra no interior de uma importante instituição social: a escola. Antes, o ponto de vista
que tinha era o de aluna de primeiro e segundo graus, e muito ingênua para qualquer
reflexão mais consistente, com pouca consciência crítica, principalmente para o assunto em
questão; depois a perspectiva era de quem acompanha de fora, ainda que com maturidade e
senso crítico um tanto apurado, mas não conseguia perceber a complexidade da questão,
principalmente dentro da escola.
Em minha prática na escola pude perceber que muitos alunos encontram-se ainda, no
Ensino Médio, apenas decodificando ou, quando muito, tentando encontrar o significado
dicionarizado das palavras, mas não o significado das palavras naqueles textos específicos
que são lidos por eles ou o significado daquele texto, e mesmo das palavras, em um
contexto mais amplo, onde certamente ele se insere. Causa espanto o fato de que alunos no
2
Os pré-vestibulares comunitários fazem parte dos movimentos sociais, então entendo que há diferença entre os militantes que atuam como
professores nestes espaços e os professores que são os profissionais no interior da instituição escola.
15
ensino médio saibam ler e escrever, tenham documentos oficiais que certifiquem isso, mas
que não consigam compreender o que lêem, estabelecer relações entre textos e contextos e,
muitas vezes, produzam de maneira muito precária os próprios textos.
Se a linguagem, mais que elemento de comunicação, é, prioritariamente, de acordo
com a concepção bakhtiniana, atividade de constituição do sujeito e do mundo, a leitura e a
escrita, dentro ou fora da escola não podem ser encaradas como mero instrumento. Ler e
produzir textos é tentar compreender, através da leitura e da escrita, o mundo que nos cerca
e o mundo que idealizamos. Tentar compreender a nós mesmos através da leitura e do texto
que produzimos, a partir do diálogo estabelecido e das contrapalavras advindas deste
processo.
A partir das reflexões motivadas pela prática, em conjunto com o estudo teórico
sobre linguagem, leitura e produção de textos, foi possível observar a centralidade das
concepções de leitores e produtores de texto no exercício de produção de sentidos a partir
do texto escrito. Acreditando que não há apenas uma concepção, mas concepções de
leitores e produtores de textos dentro da escola, fora construída a seguinte pergunta de
partida:
que concepções de leitores e produtores de textos circulam na escola?
Esta pergunta de partida não cumpriu apenas uma função metodológica nesta
investigação; antes, foi um norte, um fio condutor consistente, principalmente porque a
partir dela muitas outras, ao longo do processo de trabalho, foram surgindo, e estas
cumpriram um papel importante, não porque tenham conduzido às respostas das questões
iniciais desta pesquisa, mas, sobretudo porque as perguntas revelaram o quão complexa é a
questão escrita em nossa sociedade, pois antes de se associar à transmissão e produção de
conhecimentos, está fundada na disputa pelo poder.
16
1 – Ampliado o olhar: o diálogo com a teoria
1.1 – Leitura e escrita: atividades discursivas
“Olhar tem a vantagem de ser móvel, o que não é o caso, por exemplo, de
ponto de vista. O olhar é ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ora cognitivo e,
no limite, definidor, ora é emotivo ou passional. O olho que perscruta e quer
saber objetivamente das coisas pode ser também o olho que ri ou chora, ama ou
detesta, admira ou despreza. Quem diz olhar, diz implicitamente, tanto
inteligência quanto sentimento.” Alfredo Bosi (1999)
Uma pesquisa não é a defesa de um ponto de vista, mas principalmente um “
olhar
ora abrangente, ora incisivo
” sobre um objeto. E, concordando com Bosi (Op. cit),
“a
formulação justa de um problema já é o meio caminho andado para resolvê-lo
”. Delinear o
referencial teórico-metodológico durante a construção do projeto de pesquisa não só
contribuiu para ampliar meu olhar sobre a questão da leitura e da produção de texto,
especialmente na escola, como foi fundamental para a definição mesma do objeto de
pesquisa. Não buscava uma teoria que confirmasse o que eu “já sabia” sobre o problema,
mas sim, suportes teóricos que fossem lentes para ajudar a enxergar, e entender, o que eu
não via, e portanto, não sabia.
Bosi tece esses comentários em uma obra intitulada
Machado de Assis – O enigma do
olhar
(1999) e ainda nos fala do objeto principal de Machado: o comportamento humano.
Lembra-nos também que “
esse horizonte é atingido mediante a percepção de palavras,
pensamentos, obras e silêncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro
durante o Segundo Império. A referência local e histórica não é de somenos; e para a crítica
sociológica é quase-tudo
”. Encontramos no romance a vida, ainda que do ponto de vista
estético, mais precisamente no
mundo da arte
(VOLOSHINOV, 1976), e porque organizada,
criada pelo autor, reflete e refrata
3
gostos, hábitos, modos de relacionamento de
determinados grupos sociais, ou seja, uma determinada realidade, um determinado
momento histórico e social. Um momento histórico e social determinado e determinante, que
é constituído e que constitui.
3
Bakhtin (1995:31) afirma que “(...) Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento
de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é
ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outras palavras, tudo que é ideológico é um signo.” Faraco
(2003:50), comentando Bakhtin, nos dirá que “(...) a refração é o modo como se inscrevem nos signos a diversidade e as contradições das
experiências históricas dos grupos humanos.”
17
A perspectiva sócio-histórica ganha relevância especial uma vez que a materialidade
da linguagem – a palavra, o discurso – só pode ser analisada a partir da interação, da
intersubjetividade em uma sociedade historicamente localizada, e, parafraseando Bosi,
compreendida a partir de palavras, pensamentos, obras e até mesmo silêncios, de homens e
mulheres concretos, sob pena de, se assim não procedermos, lidarmos não com o discurso,
mas com a
língua morta
(Bakhtin, 1995:96), porque abstrata. Em Marxismo e Filosofia da
Linguagem, Bakhtin afirma que:
A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta,
não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo
individual dos falantes.
Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua
deve ser o (sic) seguinte:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação
estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as
categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a
uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística
habitual. (1995:124)
O autor ainda discorre sobre a importância da enunciação, pois, segundo ele, as
unidades reais da cadeia verbal são as enunciações
”, não palavras abstraídas de suas
totalidades, e estas unidades, adverte ele, convém que “
não sejam separadas do curso
histórico das enunciações
”. Então, entender as concepções de leitor e produtor de texto na
escola implica a compreensão da conjuntura, melhor dizendo, das
condições de produção
que conformam tais concepções, e não interpretá-las em si mesmas.
Pensar nos leitores e produtores de texto da/na escola, e nas práticas de leitura e
escrita como atividade constitutiva, e não instrumentos, tem como pressuposto a
centralidade da linguagem na constituição do sujeito, resultado de um trabalho (não
alienado), resultado de práxis. Neste sentido, gostaria de chamar a atenção para duas
expressões que, de acordo com a concepção bakhtiniana, devem acompanhar a
linguagem
:
atividade e práxis. A primeira traz consigo aquilo que poderíamos chamar de parte da síntese
do que é a linguagem: construção, elaboração, processo, criação, compreensão, produto a
18
ser alcançado. A segunda, casada com a primeira, remete-nos a uma prática responsável na
medida em que orienta uma atividade reflexiva, transformadora do mundo da vida. Esta
reflexão nos leva diretamente à
compreensão responsiva
.
Entendendo que atividade e práxis são constitutivas do processo de leitura e de
produção de texto, e que ler e produzir textos é enunciar, e assumindo que enunciar é tomar
posição, responder e se colocar para outra resposta, em um
continuum
de enunciações,
estamos indo ao encontro do conceito de
compreensão responsiva
, ou seja, “
o processo de
compreensão não pode ser entendido como passivo, como mera decodificação de uma
mensagem
” (Faraco, 2003:71), mas sim como ativo, grávido de contrapalavras, tensões
axiológicas, signos.
Bakhtin afirma que
“perguntas e respostas supõem uma distância recíproca. Se a
resposta não gera uma nova pergunta, separa-se do diálogo e entra no conhecimento
sistêmico, no fundo impessoal”
(2003:408); além disso, sendo, de modo especial, o signo
verbal o principal objeto de disputa nas sociedades organizadas, então não é possível que
sejam a leitura ou a escrita homogeneizantes, monológicas, mas, provavelmente, o que
temos é uma determinada prática – a prática escolar – que tende para a homogeneização.
A concepção de linguagem como
veículo
de comunicação fundamenta a
instrumentalização da mesma, ratificada pela teoria da comunicação que objetiva o processo
de interação subjetiva, especialmente quando nomeia os “elementos” da comunicação,
sugerindo uma relação passiva entre os interlocutores. A ênfase está na informação, como
se comunicar fosse apenas uma questão de transmitir informações, e não de construir
significados. Ao que parece, os significados são construídos
a
priori
, pelo emissor, aquele
que controla o processo e os sentidos, e ao receptor caberá apenas apreendê-los.
Tendo como base a concepção dialógica de comunicação
4
, gostaria de refletir sobre a
comunicação a partir de outra perspectiva, pois entendo que a falácia da linguagem
enquanto mero instrumento de transmissão de informações reside no fato de que
comunicamos exatamente o que pensamos e o nosso interlocutor internaliza exatamente o
que falamos; trata-se, então, apenas de codificar e decodificar informações.
A comunicação faz parte de um processo mais amplo de constituição do sujeito, é ela
mesma, também, constitutiva. O fato de a comunicação ser essencialmente um
ato
4
“Segundo esse modelo, a interação verbal é uma ação coletiva envolvendo atores sociais, ‘cujo produto final (ou seja, o texto, ou o evento de
fala resultante) é qualitativamente diferente da soma de suas partes (ou seja, enunciados individuais de falantes individuais)’” (Signorini, 1995:
175)
19
corrobora tal concepção. E porque um ato, porque constitutiva, não comunico
tudo
o que
penso em função de minha própria incompletude, então, o que penso é incompleto, está em
constante elaboração; assim como está em constante elaboração a maneira com que meu
interlocutor vai compreender e elaborar o que comuniquei. A comunicação não pode ser
colocada à parte deste processo de interação especialmente criativo, pois antes e durante a
comunicação construímos o que vai ser comunicado.
Para nos ajudar a refletir um pouco sobre isso, trago algumas palavras de Franchi:
Certamente a linguagem se utiliza como instrumento de comunicação,
certamente comunicamos por ela, aos outros, nossas experiências,
estabelecemos por ela, com os outros, laços ‘contratuais’ porque interagimos
e nos compreendemos, influenciamos os outros com nossas opções relativas
ao modo peculiar de ver e sentir o mundo, com decisões conseqüentes sobre
o modo de atuar nele. Mas se queremos imaginar esse comportamento como
uma ‘ação’ livre e ativa e criadora, suscetível de pelo menos renovar-se
ultrapassando as convenções e as heranças,
processos em crise de quem é
agente e não mero receptáculo da cultura
, temos então que apreendê-la
nessa relação instável de interioridade e exterioriedade, de diálogo e
solilóquio: antes de ser para comunicação, a linguagem é para a elaboração;
e antes de ser mensagem, a linguagem é construção do pensamento; e antes
de ser veículo de sentimentos, idéias, emoções, aspirações,
a linguagem é um
processo criador em que organizamos e informamos as nossas
experiências
(1977:19, grifos meus)
Uma vez que não existe linguagem fora da atividade (humana), não é possível pensar
na hipótese de linguagem sem atividade, não é possível conjugar linguagem e passividade. A
criatividade (a produção) é da natureza humana, assim como o é a sociabilidade. Dessa
forma, não é possível ao ser humano não produzir; não é possível produzir fora de um
grupo organizado.
A sociedade não é uma abstração ou um grupo social ideal, antes, é arena onde a
linguagem verbal, especialmente, situa mulheres e homens e é situada por estes, enredada
naquilo que não é verbal. O sentido de um enunciado não está encerrado naquilo que ele
tem de verbal, mas também naquilo que ele tem de extraverbal, que não está materializado
na forma lingüística do enunciado, mas o compõe. Voloshinov diz que
(...) A vida, portanto, não afeta um enunciado de fora, ela penetra e exerce
influências num enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão da
existência que circunda os falantes, e unidade e comunhão de julgamentos de
valor essencialmente sociais, nascendo deste todo sem o qual nenhum
enunciado inteligível é possível. A entoação está na fronteira entre a vida e o
aspecto verbal do enunciado; ela, por assim dizer, bombeia energia de uma
situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa
lingüisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único.
Finalmente, o enunciado reflete a interação do falante, do ouvinte e do herói
20
como o produto e a fixação, no material verbal de um ato de comunicação
viva entre eles. (1979: 11)
A linguagem é um trabalho (inacabado ou inconcluso) realizado pelos sujeitos;
trabalho coletivo que pressupõe, vive, se alimenta nas relações sociais; é também, segundo
Franchi (Op. cit), “
uma atividade quase estruturante, mas não necessariamente estruturada
e “
incessantemente criativa
.”
Sobre esses aspectos da linguagem, procurei entender como eles ocorriam nas
concepções de leitores e produtores de texto, ou seja, em que medida essas concepções
demonstravam serem esses aspectos solidários ou concorrentes e contraditórios, pois se na
escola percebemos muito mais uma prática homogeneizante, reprodutora – o que favorece
que o aspecto
estruturante
tenda para um fechamento, faz com que seja contraditório ao
outro – ao mesmo tempo percebemos possibilidades, pulsações de atividade criativa que
protesta, subverte essa tentativa homogeneizante – o que favorece que
estruturante
seja
possibilidade de criação e recriação constantes –, permitindo um entendimento da linguagem
estruturante
porque
incessantemente criativa
.
Considerando que a prática escolar deveria privilegiar a formação do leitor e do
produtor de texto, e ao mesmo tempo contribuir para a constituição do sujeito histórico, e
que a linguagem é responsável pela construção de um sistema de referências do mundo
(Idem), pois é com ela que damos sentido e construímos nós mesmos e nossas percepções
das coisas, dos outros, de nós mesmos, entendo que os alunos participam
ativamente
desta
prática escolar
, conformando-a, participando dela como agentes que também a mantêm, e
não apenas como aqueles que sofrem os efeitos de uma prática estabelecida por uma
instituição, pois o sujeito não é apenas constituído, ele se constitui e constitui o mundo com
o outro. Participar ativamente desta prática é colocar-se para o diálogo, para o outro.
A relação dialógica
5
é imprescindível em qualquer prática, em especial a prática
discursiva, ora pelo consenso, ora pela disputa. Pois é confrontando nossos significados com
os significados alheios que construímos conhecimento, e a escola talvez seja o espaço
privilegiado para essa relação, uma vez que o objetivo desta é produzir e transmitir
conhecimento. E é na escola também que nos colocamos para o outro, seja o professor, o
aluno, o texto do livro, do jornal, da propaganda, etc. Este outro é a possibilidade que tenho
5
Faraco, discorrendo sobre o conceito bakhtiniano de
diálogo
, adjetiva-o como palavra “mal-dita”, dado o esvaziamento do conseqüente
abuso do
uso
que esta vem tendo nos estudos da linguagem. Chama atenção de que
diálogo
é a possibilidade de “entrecruzamento das múltiplas verdades
sociais”, e “confrontação das mais diferentes refrações sociais expressas em enunciados de qualquer tipo e tamanhos postos em relação” (Op. Cit:
60)
21
de conhecer uma totalidade de mim, seja por concordância ou discordância daquilo que o
outro me faz ver.
Encarar a leitura e a produção de texto na escola como possibilidade de confronto e
conflito de significados de professores e alunos, entre professores e textos, entre alunos e
textos, entre textos e textos é pôr em destaque o diverso, a pluralidade; é o que possibilita a
produção de identidades.
Na relação alteritária professor-aluno, um é o outro do outro, ou seja, há uma
diferença de lugares, de valores, que são forjados, em grande parte, no mesmo “caldo
cultural”. Não podemos nos esquecer que enquanto a escola está formando leitores e
produtores de texto, está contribuindo para a formação do sujeito, de uma identidade, por
isso, “
(...) quando o professor corrige o aluno, ele intervém nos sentidos que este aluno está
produzindo e, no mesmo gesto, está interferindo na constituição de sua identidade. E isso
não é pouca coisa
.” (ORLANDI, 1998:205).
1.2 – A produção de leitura e a produção de texto
“O texto é um convite à recuperação da inocência da experiência: a experiência
entendida como uma expedição em que se pode escutar o ‘inaudito’ e em que se
pode ler o não-lido, isso é um convite para romper com os sistemas de educação
que dão o mundo já interpretado, já configurado de uma determinada maneira,
já lido, e, portanto, ilegível.” Jorge Larrosa
Sobre a questão da leitura e do texto é necessário esclarecer a vinculação a uma
concepção destas práticas como
produção
. Antes, porém, retomando as reflexões anteriores,
quero esclarecer que a opção pelo referencial teórico bakhtiniano está diretamente ligado a
esta tomada de posição de leitura e escrita como
produção
.
Inicialmente, trata-se de recusar as concepções que estavam em permanente disputa
nos anos 60: uma defendia o sujeito como fonte de seu dizer, e a outra, um sujeito
assujeitado às condições e limitações históricas (GERALDI, 1997:19). Na verdade, esta opção
significa reconhecer a posição de agente que tem o sujeito na história da constituição da
linguagem, do mundo e de sua própria constituição. Geraldi afirma que
Ao se propor a produção de textos como a devolução da palavra ao sujeito,
aposta-se no diálogo (que não exclui a polêmica e a luta pelos sentidos) e na
possibilidade de recuperar na “história contida e não contada” elementos
22
indicativos do novo que se imiscui nas diferentes formas de retomar o vivido,
de inventar o cotidiano. (1997:20)
Para falar de outro ponto importante com relação ao uso da palavra
produção
trago
Imbert que, em seu livro
Para uma práxis pedagógica
, alertando de que não se trata de uma
apresentação mais detalhada do conceito marxiano de
práxis
, explica que
Marx define práxis como a “atividade material” dos homens e as “relações
materiais” que eles estabelecem uns com os outros, no interior de um grupo
social. A essência da práxis se esclarece pelo conceito de produção. Produção
que não é uma criação
ex-nihilo
, porque se apóia em um conjunto de
determinações já apresentadas, mas antes criação ‘num sentido relativo, mas
essencial
,
porquanto suscita possibilidades radicalmente novas’
. Produção, além
disso, e não simplesmente produção de objetos, mas autoprodução do próprio
homem, ‘de sorte que a práxis é menos aquilo que o homem faz e como faz, do
que aquilo que o homem faz ao se fazer’. (Imbert, 2003:13) (grifo meu)
Neste sentido, privilegio o uso da palavra
produção
pelo fato de a mesma materializar
uma prática revolucionária, ativa, constitutiva de um ser que interfere conscientemente
(mesmo que esta consciência não represente uma totalidade) no mundo, e não uma prática
contemplativa.
Nessa perspectiva, ler e escrever não seriam buscar
o
sentido que tem esta ou
aquela palavra, mas sim, construir (e/ou desconstruir) significados, e construir (e/ou
desconstruir) significados é um modo de agir no tempo, na sociedade.
Os textos não “têm” significados uniformes, unívocos; os significados não estão
dados, são construídos, debatidos, disputados, negociados. Não são cristalizados, são
dinâmicos, têm movimento, tanto em direção ao já-dito quanto em direção ao a-dizer.
Orlandi, em
Discurso e leitura
(2001) inicialmente discorre sobre o que a levou a
considerar a leitura como algo produzido. E seu ponto de partida foi problematizar o conceito
de
legibilidade
.
O que torna um texto legível? O que é um texto legível?
(...) Percebi que a legibilidade de um texto tinha pouco de “objetivo” e não
era apenas uma conseqüência direta, unilateral e automática da escrita. Não
me parecia verdadeira a afirmação: “um texto bem escrito é legível”. Eu me
perguntava: bem escrito para quem? Legível para quem? Estas questões, em
si, já relativizavam o que muitos colocavam como condições de legibilidade:
as qualidades do próprio texto. A meu ver, entretanto, é a natureza da
relação
que alguém estabelece com o texto que está na base da
caracterização da legibilidade.” (ORLANDI, 2001:8-9, grifo meu)
E a
relação
que se estabelece com o texto diz respeito às condições de produção, ou
seja, qual é a relação entre o
processo
de produção de determinado sentido e o
sentido
23
(produto) em si. Isto provavelmente explicaria alguns episódios, para nós, professores,
quando, muitas vezes, rotulamos como incapacidade dos alunos a dificuldade de executar
minimamente algumas tarefas, como, por exemplo, ler enunciados de exercícios.
A leitura não é uma relação entre leitor e texto, mas sim relação entre sujeitos.
Bakhtin (1995) nos diz que a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos
socialmente organizados e que não pode haver um interlocutor abstrato. O sujeito locutor
não é uma abstração, assim como não o é o sujeito interlocutor. Ambos estão localizados
sócio-historicamente, e como bem nos disse Bosi, isso é quase tudo.
Há um leitor inscrito no texto que ao mesmo tempo em que é parte estruturante do
texto (do discurso), pois é aquele para quem o locutor se dirige, é também condição de
produção, uma vez que é seu
auditório social
(BAKHTIN, 1995: 112) e este
“não pode
ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas”
(Op. cit.: 113).Trata-
se, então, de um
leitor
potencial
para quem um texto é escrito.
Para Orlandi (Op. cit.), pode instaurar-se um confronto entre esse leitor inscrito no
texto e o leitor real, se este não coincide com aquele. Isso reforça a idéia de que as relações
que se estabelecem no ato de leitura não são relações texto-leitor, mas sujeito-sujeito,
porque os confrontos e conflitos não se dão entre formas lingüísticas e leitor, mas entre
significados ideologicamente marcados e em disputa. Bakhtin (Idem) diz ainda que
“a
palavra, como signo, é extraída pelo locutor de um estoque social de signos disponíveis”
, e é
claro que as contrapalavras do interlocutor também se originam de um estoque social
disponível.
Orlandi aponta para a necessidade de buscarmos a
historicidade
da leitura;
sugerimos o mesmo para a produção de textos. Historicidade dos textos trazidos para a sala
de aula, que são lidos, debatidos, re-escritos, e historicidade também das produções de
leitura e escrita dos nossos alunos, para que aprender faça sentido para todos os envolvidos
– alunos e professores – neste processo de produção de sentidos, que é uma aula. E uma
aula deve ser assim porque a sala de aula é lugar de interação.
Dessa forma, a produção da leitura e do texto implica, necessariamente, dialogia e
alteridade, uma vez que ambas são condição para a constituição do sujeito; alteridade
porque esta é
a
condição para a dialogia (a relação professor-aluno é
necessariamente
alteritária, mesmo que na prática não seja reconhecida como tal, o que certamente tem
24
gerado algumas confusões e frustrações) enquanto “entrecruzamento de múltiplas verdades
sociais”, dialogia como necessidade de reconhecimento de que não podemos “interpretar” o
outro a partir de “minhas” palavras, “meus signos”, mas sim a partir de suas contrapalavras,
da compreensão do processo de criação de suas contrapalavras. E é nesse entremeio que o
conhecimento se produz.
1.3 – A relevância das discussões sobre o letramento
Para além das concordâncias ou discordâncias sobre o conceito de letramento, é
inegável a produtividade das discussões em torno dele. A agudização da exclusão e a
necessidade cada vez mais urgente de participação social certamente têm sido combustível
considerável para aquecer esse debate. Em um país como o nosso, em que o analfabetismo
não é mais um problema como o era há algumas décadas, mas que o acesso ao mundo da
escrita continua negado, as questões trazidas por essas discussões são absolutamente
necessárias.
O acesso ao mundo da escrita diz respeito a um conjunto de ações que devem ser
patrocinadas e disponibilizadas de forma igual, pelo Estado, para todos, que vai desde o
reconhecimento, na prática, da pluralidade cultural e lingüística de nossa sociedade à
implantação de equipamentos públicos de difusão de bens culturais. Digo assim, pois não se
trata apenas de difusão da cultura escrita, uma vez que a formação de um produtor de
textos ou de um leitor não se dá apenas pelo acesso à cultura escrita impressa; o acesso a
todo tipo de bem cultural, a todo tipo de linguagem amplia a capacidade de interação dos
sujeitos com o mundo em sua pluralidade e complexidade.
Isso faz das discussões sobre letramento importante marco teórico para esta
investigação que busca entender como as concepções de leitores e produtores de texto
influenciam no trabalho realizado na e pela escola, especificamente nesta que é campo de
pesquisa, por se tratar de uma unidade de ensino médio, nível de conclusão da educação
básica.
É em função de alguns aspectos da realidade não serem contemplados pelo uso do
termo alfabetização, como os comentados anteriormente, que alguns autores (GOULART,
25
2003; KLEIMAN, 1995; SOARES, 2002) consideram que a noção de letramento se faz
necessária na sociedade atual. Soares, assim o expressa:
À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número cada vez
maior de pessoas aprende a ler e a escrever, e à medida que,
concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na
escrita (cada vez mais
grafocêntrica
), um novo fenômeno se evidencia: não
basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas se alfabetizam,
aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática
da leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competência para usar
a leitura e a escrita, para envolver-se com as práticas sociais de escrita: não
lêem livros, jornais, revistas, não sabem redigir um ofício, (...)... Esse novo
fenômeno só ganha visibilidade depois que é minimamente resolvido o
problema do analfabetismo e que o desenvolvimento social, cultural,
econômico e político traz novas, intensas e variadas práticas de leitura e de
escrita, fazendo emergirem novas necessidades, além de novas alternativas
de lazer. Aflorando o novo fenômeno, foi preciso dar um nome a ele: quando
uma nova palavra surge na língua, é que um novo fenômeno surgiu e teve de
ser nomeado. Por isso, e para nomear esse novo fenômeno, surgiu a palavra
letramento
.” (2002: 45-46)
Para nosso estudo, a discussão sobre letramento é pertinente uma vez que os
sujeitos desta pesquisa são adolescentes que têm, no mínimo, onze anos de escolarização,
estão no final da Educação Básica, são alfabetizados, mas encontram dificuldades para ler
determinados textos e, especialmente, escrever. Sobre essa realidade, vale trazer um
questionamento feito por Goulart:
“(...) num sentido radical e polêmico: se a alfabetização/escolarização tem
servido também como um mecanismo de controle e alienação de grandes
parcelas da população, vale a pena alfabetizar? Ou deveríamos hoje dar uma
ênfase maior ao letrar?” (2003:97)
Ao que parece a escola vem alfabetizando aqueles que por ela passam, no entanto,
de maneira geral, o letrar vem acontecendo de modo incidental, ou seja, vem
munindo
o
estudante de uma tecnologia – “o acesso à escrita” – ao invés de ajudá-lo a construir um
saber – “o acesso ao
mundo
da escrita” (GOULART, op. cit.).
Sobre essa problemática, a referência que podemos trazer para tentar entender este
processo na escola é a apresentação e reflexão de nossa realidade a partir daí, que Soares
(2002; 1995) e Kleiman (1995) fazem de dois modelos de letramento proposto por Street
(1984): o autônomo e o ideológico.
Segundo Kleiman, no modelo autônomo a escrita não estaria presa ao contexto de
sua produção para ser interpretada, o texto é um produto completo em si mesmo; e ainda,
que este modelo predomina na prática escolar, uma vez que na escola o letramento se dá
26
como se este fosse um processo neutro, cujo objetivo final é
“a capacidade de interpretar e
escrever textos abstratos, dos gêneros expositivo e argumentativo, dos quais o protótipo
seria o texto tipo ensaio”
.
Soares dirá que esse modelo é baseado na crença de que o alfabetismo (letramento)
tem,
“necessariamente, conseqüências positivas, apenas positivas”
:
sendo o uso das habilidades e conhecimentos de leitura e de escrita necessário
para se “funcionar” adequadamente na sociedade, participar ativamente dela e
realizar-se pessoalmente, o alfabetismo torna-se
o responsáve
l pelo
desenvolvimento cognitivo e econômico, pela mobilidade social, pelo progresso
profissional, pela promoção da cidadania. (1995: 11, grifo meu)
Deslocam-se as causas da exclusão social do modo de produção para o indivíduo e
promove-se o apagamento dos processos de produção lingüística de um grupo, como se o
falar deste jeito ou o escrever de outro fosse algo “natural”, e não houvesse nenhuma
relação com o poder e a luta de classes.
Soares, ao falar do modelo ideológico de letramento, declara que neste a leitura e a
escrita não são vistas como “neutras”, antes
, “são vistas como um conjunto de práticas
socialmente construídas envolvendo o ler e o escrever, configuradas por processos sociais
mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições, padrões de poder
no contexto social”
(Idem:11). Diz ainda que para Street (1984) o que define o letramento
são as formas que essas práticas assumem em determinados contextos sociais, e que isso
depende das instituições nas quais o letramento está inserido.
Segundo Soares, o significado de letramento dependerá inteiramente de como leitura
e escrita são concebidas e praticadas em determinado contexto social, “o alfabetismo é (...)
um conjunto de práticas governadas pela concepção de
o
que
,
como
,
quando
e
por
que
ler e
escrever” (Ibidem: 11). Ou seja, de acordo com as concepções do que seja ler e escrever,
teremos um determinado direcionamento não só para a questão ensino-aprendizagem da
leitura e escrita, mas também para o próprio ato de ler e escrever.
A prática escolar é excludente à medida que privilegia um determinado tipo de
discurso e marginaliza outro (ou outros). Quando a escola marginaliza, recusa, discrimina um
determinado tipo de discurso está discriminando todo um grupo que representa e se faz
representar por este discurso, que o constitui e que se constitui por ele, pois é o discurso a
marca da história de um sujeito e do grupo do qual faz parte.
27
Trago as reflexões de Moysés (1985), entendendo que, mesmo não se referindo
objetivamente a
letramento
autônomo
, podemos relacionar suas críticas àquelas trazidas por
Kleiman:
(...) Cada vez mais afastada de seu objeto, a escrita, dividindo e discriminando
os homens, pode marcar também os seus iniciados ou aqueles que chegam a
ler. Estes devem esquecer-se de que, por raízes históricas, são leitores
individuais e coletivos, porque a escola, através da alfabetização, nega essa
dupla face do leitor, nega o sentido histórico.
Como então permitir uma história da alfabetização se o que se tem feito
através do alfabetizar, é justamente esconder e camuflar a história das pessoas,
do seu trabalho e de sua produção lingüística? (p. 87)
Kleiman (Op.Cit), refletindo sobre as deficiências do sistema educacional na formação
de sujeitos plenamente letrados, diz que tais deficiências não decorrem apenas do fato de os
professores não serem representantes plenos da cultura letrada, nem das falhas nos
currículos que não os instrumentalizam para o ensino. Segundo ela, as falhas são mais
profundas, pois são decorrentes dos
próprios pressupostos
que subjazem ao modelo de
letramento escolar.
Pressupostos estes que estão muito mais voltados para o ensino de uma língua
abstrata, que só existe enquanto ideal, que na realidade não se ancora em nenhum
contexto, nem mesmo o da classe dominante, pois tal língua não admite nenhum tipo de
variação ou questionamento, é absolutamente engessada e radicalmente distante das
variedades populares, por exemplo.
Citando Paulo Freire, Kleiman (Op. Cit) ainda afirma que tal concepção de escrita está
em contradição com outros modelos que consideram a aquisição da mesma como uma
prática discursiva
que
possibilita uma leitura crítica da realidade.
Em minha prática de professora de português do Ensino Médio, muitas vezes tenho a
impressão de que os alunos se sentem estrangeiros diante de uma variedade lingüística que
não é a sua, com a qual não se identificam. E a sensação que se tem é que nunca vão se
identificar, porque, na maioria das vezes, aquela variedade parece não ter qualquer relação
com a sua, é como se tivessem que partir do zero, como se nada soubessem sobre a sua
própria língua.
Assim, precisam pensar em sua “própria língua” e “traduzir” naquela outra ensinada
na escola, o que, provavelmente, é um obstáculo para que reflita sobre a própria produção,
28
tanto de leitura quanto de textos. Moysés diz que
“ser alfabetizado tem sido ser dominado
pelo capital lingüístico que se foi levado a pensar que se iria dominar”
(Op.cit: 87). Neste
sentido é que poderemos considerar então que os alunos não têm sofrido apenas um
processo de aculturação, mas de expropriação de sua própria variedade, pois já não podem
mais falar utilizando-se dela, pois têm
“sua palavra dominada”
.
Então, aquilo que deveria ser um processo de construção de conhecimento, que
necessariamente
implicaria contrapalavras dos alunos, não o é, pois só há lugar para uma
determinada variedade, além de não haver, de maneira geral, espaço para reflexão sobre tal
situação.
1.4 – Oralidade, leitura e produção de textos
Pode-se dizer que lemos pouco, que escrevemos menos ainda, mas não se pode dizer
que não falamos. E se falamos produzimos textos. Que importância têm esses textos
produzidos oralmente na escola para a escola? Os textos dos alunos e professores,
especialmente. Que lugar tem essa modalidade de linguagem na escola?
Goulart (Op. cit.: 99), realizando uma crítica aos métodos de alfabetização que se
utilizam da oralidade como mero apoio para a escrita na compreensão fonema-grafema, diz
que
A linguagem, tanto oral quanto escrita perde seu caráter histórico-cultural
constitutivo, construído nas relações das histórias de seus produtores e se
transforma em código ilusoriamente homogêneo. A linguagem, assim, é
encarada como um objeto independente das pessoas que a utilizam, como um
sistema fechado imune aos tempos e aos espaços. Os apagamentos que essa
visão da linguagem efetua atuam, centralmente, no aprisionamento do sujeito.
A história da oralidade na escola é a história do apagamento da pluralidade, da
diversidade, em nome de um coletivo uniforme. Na escola, ela é vista como mais um
conteúdo a ser trabalhado, como veículo de transmissão de informações (do professor para
o aluno), e não como espaço de constituição, como possibilidade legítima de construção de
conhecimento. A oralidade possível na escola é a do professor, que geralmente não passa de
uma escrita dita em voz alta, de caráter autoritário e monológico, e que, por isso, veicula
uma única forma de saber. É assim que a linguagem é, neste espaço,
“um objeto
independente das pessoas que a utilizam”
.
29
No que diz respeito à linguagem e à língua, a escola historicamente tem tido a função
ensinar
a
norma-padrão e
pela
norma-padrão. Aliás, a escola tem prescrito a norma-padrão,
aludindo a uma descrição, e não praticado a discursividade da mesma e nem de outras
variedades lingüísticas.
Talvez por isso, entre outras coisas, esta mesma escola esteja formando, produzindo,
não só, mas, de modo significativo,
analfabetos secundários
6
que segundo Frago, citando
Enzensberger,
é “de memória atrofiada, atenção fugaz e dispersa, desinformado pela sobre-
informação trivial, consumidor qualificado e incapaz, acrescentaríamos, de
esboçar um discurso oral minimamente prolongado, ameno, correto e preciso,
isto é, completamente significativo.
E acrescenta ainda:
“Seu mundo, seu meio ideal, é a televisão
.” (1993: 23)
O analfabeto secundário é fruto de uma sociedade que prometia acesso à escrita a
todos. No entanto, ele não é fruto apenas de equivocados métodos de alfabetização, mas,
principalmente, fruto da marginalização de outras formas de saber, de construção de
conhecimento, de outras cosmovisões.
Kalman (2004), em “
El estudio de la comunidad como um espacio para leer y
escribir
”, diz que a disponibilidade de materiais impressos é uma condição necessária, mas
não suficiente para o acesso à cultura escrita, e podemos completar dizendo que não basta
disponibilizar a tecnologia da escrita. Ainda chama a atenção para a estreita e implícita
relação entre oralidade e escrita e, citando Heath (1983), comenta que a língua escrita vive
em um mundo de fala, de oralidade se alimenta e também através dela se difunde.
Kleiman (Op. cit.: 49), discutindo sobre a interação na aula de alfabetização de
adolescentes e adultos diz que a mesma é potencialmente conflitiva, pois
“nela se visa ao
deslocamento e substituição das práticas discursivas do aluno por outras práticas, da
sociedade dominante”
. Se por um lado,
“a aquisição de novas práticas é percebida como
necessária para a sobrevivência e a mobilidade social na sociedade tecnologizada”
, por
outro,
“essa aquisição se constitui no prenúncio do abandono das práticas discursivas
familiares”
. O abandono das práticas discursivas familiares indica um processo de
aculturação e, também, de negação dessas práticas, via desvalorização da própria variedade
6
Zumthor, citado em nota de rodapé por Soares (1995), fala de três tipos de oralidade: primária, mista e secundária. A primeira como aquela que
não teve contato algum com a escrita; a segunda procedente da existência de uma cultura ‘escrita’; e a última procedente de uma cultura
‘erudita’ (em que toda expressão está mais ou menos
condicionada
pelo escrito)
30
– muitas vezes o educando, mesmo não tendo se apropriado da prática dominante, rejeita a
sua forma de expressão por considerar (e por ser considerada) incorreta. Kleiman diz ainda
que o distanciamento entre a língua oral e a língua escrita configura uma
situação diglóssica
de línguas em conflito
. São duas modalidades que se constituíram em variedades discursivas
de uma mesma língua
, sendo que cada uma tem status e prestígios diferentes, além de
terem funções diferenciadas na sociedade.
Sobre a questão da resistência, do conflito, Stubbs (2002), quando traz a discussão
sobre língua escrita e língua falada, comenta que
A língua escrita em si mesma representa uma orientação rumo à cultura
dominante, e isso sem dúvida é uma das razões por que ela é rejeitada por
muitos alunos em sua rejeição mais geral dos modos dominantes de
educação e cultura (p. 134).
Vale lembrar, ainda, que nossos alunos do ensino médio, de maneira geral,
raramente utilizam a escrita como instrumento de reflexão mais objetiva. Isso não quer dizer
que a atividade da reflexão não faça parte da vida deles, quer dizer apenas que a escrita não
é o caminho privilegiado para isso, e que suas estratégias, portanto, podem ser outras, e
não aquela proposta pela escola.
Cunhamos as expressões
leitura ou escrita escolar
, provavelmente, porque estas não
só se originam da forma como leitura e produção de texto são praticadas nesta instituição –
e acabam tendo utilidade apenas nos espaços escolares –, mas também porque estas são
dissociadas das práticas cotidianas. Cogitamos a hipótese de que as práticas de linguagem
cotidianas que envolvem a escrita estejam diretamente ligadas à oralidade. Mas não a uma
oralidade primária, pois a existência de tal oralidade entre nós seria contraditória, dado o
nosso grafocentrismo.
E o cotidiano escolar, do que é feito? De escrita, tão-somente de escrita, sem
nenhum som, sem nenhum ritmo ou prosódia? Do que se alimenta o cotidiano escolar?
O cotidiano escolar não é somente escrita, mas principalmente oralidade. Negar a
oralidade significa negar culturas e grupos sociais; negar a oralidade é não valorizar as
culturas e os membros das classes populares. Aliás, a não valorização das classes populares
é histórica.
Valorizar a oralidade significa falar e ouvir – além de ler e escrever – as várias vozes
presentes em nossa sociedade, e ouvir essas várias vozes é principalmente levar para a
31
escola visões de mundo diferentes, não apenas sotaques ou gírias variadas. Dessa forma,
talvez possamos entender por que alguns alunos significam textos de forma tão inesperada
ou por que muitas vezes não conseguem significá-lo.
Assim, ainda que as palavras estejam no mundo, quando se pressupõe uma
ordem na leitura – a de preceder – há um sentido para a existência de uma
caracterização de vida dos alfabetizados. A partir de sua vida, como
representação de vida, como vida se faz e se fabrica com os outros, como a
linguagem, é que se caminha para a linguagem das palavras, que não uma outra
vida, porém um outro sistema de linguagem que pode ser também percebido e
adquirido de acordo com a adequação de seus usos e funções à vida das pessoas.
(MOYSÉS, 1985b: 3)
Um outro mundo é outro sistema de referências. Ainda que seja difícil para a escola
reconhecer que há em seu interior outros sistemas de referência que não o da classe
dominante, esta é uma das possibilidades que temos de realizarmos efetivamente um
trabalho significativo.
Goulart (Op. cit.), citando Franchi (1992), diz que constituir linguagem é constituir
sistemas de referências do mundo e que a constituição do sujeito, da linguagem e do
conhecimento está interligada e, neste sentido, a linguagem oral ganha relevância especial.
Diz ainda que existem interpretações diferentes para complexos saberes semelhantes, mas
isso não significa que uma interpretação, ou um sistema de referências, possa ser a
correta. Conclui afirmando que
se pode falar, porém, de interpretações mais e menos
valorizadas socialmente
.
Ao valorizarmos as diferenças a partir da valorização da oralidade – note que estamos
falando de valorizar, e não de admitir, pois a oralidade não precisa ser admitida, ela já é um
ato
, uma realidade na escola – estamos construindo reais possibilidades de diálogo, de
constituição do outro como aquele que completa meu olhar e minha compreensão sobre o
mundo e sobre mim mesma, desta forma, construindo conhecimento, e não re-produzindo
verdades.
Os modos como os alunos expressam suas vivências, crenças, sentimentos e
desejos são suas formas subjetivas de apresentar seus conhecimentos e suas
relações com o mundo. São, portanto, interpretações possíveis no/do interior
de seus universos referenciais histórica e culturalmente formados. A
linguagem tem papel fundador nesse processo, não só do ponto de vista de
construção da singularidade dos sujeitos, mas também da construção das
suas marcas de pertencimento a determinado grupo social. (Idem: 100)
Talvez, apesar das contradições – ou mesmo em função delas –, não haja lugar mais
apropriado para constatarmos as “interações e as influências mútuas” entre oralidade e
32
escrita, pois é na escola que professor e aluno precisam falar daqueles conhecimentos
produzidos historicamente por homens e mulheres e que hoje, na sua maioria, encontram-se
devidamente “armazenados” pela escrita; e apesar de tudo que se diz, é lá também onde se
realiza, muito mais que em outros locais, a leitura e a escrita. Goulart (Ibidem: 104) chama a
atenção para o fato de que, sendo a oralidade canal que garante a identidade e a memória
dos sujeitos sociais, e a escrita ser associada a determinados conteúdos referenciais,
“é
necessário pensar de que forma é possível estabelecer uma relação dialética entre essas
duas modalidades de linguagem, de tal jeito que uma não se sobreponha à outra, mas que
uma contribua com a outra para que os conhecimentos e sentidos historicamente
confrontados sejam entendidos criticamente.”
Sobre isso, Frago (1993: 88) diz que
Só a partir do desenvolvimento da oralidade como cultura e da revalorização
na escola e em outros contextos sociais de intercâmbio de informações dos
modos de expressão e pensamento característicos dessa oralidade, é possível
assentar o alfabetismo e a “literalidade”. Não a partir da oposição e do
esquecimento, menos ainda a partir do quixotiano desprezo, mas a partir do
pleno desenvolvimento de ambos os âmbitos – o da oralidade e o da escrita;
ou seja, a partir daquela interação que corresponde a uma cultura não já
apenas oral, mas tampouco apenas escrita, mas mista.
Oralidade e escrita não são categorias dicotômicas, ao contrário, são modalidades
que exercem influência uma na outra, e, mesmo que muitas vezes submetida à escrita, é a
oralidade a sua possibilidade de renovação, e se assim não fosse, a escrita não mais
figuraria na interação humana, uma vez que não se prestaria mais à atividade da linguagem,
porque isolada. É a oralidade
lócus
de constituição de todo e qualquer sujeito, e não apenas
de alguns e é também nela e através dela que todas as formas de cultura têm espaço, e não
apenas a dominante, como majoritariamente acontece com a escrita.
Relacionar a oralidade à ignorância se não é um erro estratégico, é uma intenção
perversa, pois desta forma a escola não só exclui boa parte da sociedade da participação de
uma vida escolar, como também transforma aquilo que poderia ser um processo de
produção de conhecimento em simples reprodução de informações, muitas vezes
fragmentadas e descontextualizadas, o que torna mais eficaz
“um tipo de discurso cuja
recepção não requer aprendizagem ou esforço demasiado.”
(NEVES, 1998).
33
2 - Contextualizando a investigação: o campo
Esta pesquisa foi realizada em uma escola pública da rede do Estado do Rio de
Janeiro, ligada à Secretaria Estadual de Educação
7
. Trata-se de uma escola de poucos anos
de vida – neste ano de 2006, completa dez anos –, que fora construída a partir de um prédio
já existente no bairro de Santa Bárbara, Niterói.
A escolha desta como campo de pesquisa deveu-se ao fato de ser a escola um de
meus locais de trabalho. A questão que move esta pesquisa não nasce nesta escola, uma
vez que minhas inquietações a respeito da produção de leitura e da produção de escrita são
mais antigas que o tempo em que lá me encontro
8
, mas esta tem papel importante no
desenvolvimento deste tema, pois tem se constituído como arena privilegiada de discussões
e reflexões. Além disso, levei em conta o fato de que, sendo professora do estabelecimento,
teria acesso, não só aos sujeitos, mas também a documentos ou quaisquer outras
informações necessárias, com uma certa tranqüilidade e facilidade para pesquisar.
O C. E. David Capistrano, como foi dito anteriormente, está localizado no bairro de
Santa Bárbara
9
, cujo principal acesso é pela rodovia Amaral Peixoto, uma das possibilidades
de acesso à Região dos Lagos do Estado. Originalmente, Santa Bárbara é uma região que foi
parte de uma fazenda (fazenda de Juca Matheus), que se estendia até o município de São
Gonçalo.
Há uma grande praça, em bom estado de conservação, com quadra de vôlei e
basquete, pista de skate, campo de futebol, jardins, alguns quiosques, equipamentos
urbanos. Em seu entorno estão as escolas do bairro (duas da rede municipal e o David
Capistrano), posto de saúde, Secretaria Regional de Desenvolvimento de Santa Bárbara,
creche. Fora da circunferência da praça, há alguns estabelecimentos privados de ensino
voltados para a educação infantil.
7
A rede de escolas do Estado do Rio de Janeiro encontra-se dividida entre a Secretaria Estadual de Educação e a Secretaria Estadual de Ciência e
Tecnologia. A esta cabe a gerência das escolas técnicas do Estado e institutos superiores; àquela, das escolas de formação geral e de formação
de professores de educação infantil e os segmentos do ensino fundamental.
8
Trabalho nesta escola desde março de 2001.
9
A descrição do bairro de Santa Bárbara é baseada no Projeto Político Pedagógico do colégio.
34
Organiza-se em torno de um conjunto comercial composto por pequenas lojas e um
pequeno mercado. Não há bancos, caixas eletrônicos, casas lotéricas ou agência de Correios
e Telégrafo.
O transporte urbano é precário: a comunidade é atendida por apenas três linhas de
ônibus: uma que leva ao centro da cidade, outra que vai para a zona sul da cidade, além da
terceira, que funciona em horários especiais, como no início da manhã e entre o final da
tarde e o início da noite, cujo destino é a zona norte da Cidade do Rio de Janeiro.
Sua população residente é concentrada na faixa de 0 a 29 anos; apresenta altas
taxas de alfabetização em todos grupos etários, totalizando 91,92% de alfabetizados.
Não há cinema, biblioteca ou qualquer outro local para realização de atividades
culturais. Quando estas ocorrem, são realizadas na praça ou nas escolas públicas do bairro.
Uma importante referência no bairro é a Associação de Moradores: bastante atuante
e muito respeitada. Tal associação mantém relação estreita com o David Capistrano,
participando de atividades, levando sugestões, realizando projetos no colégio, além de
participar da Associação de Assistência ao Educando da escola.
A escola é exclusivamente de Ensino Médio, funcionando em três turnos, com
aproximadamente 900 alunos. Não tem problemas causados pela falta de professores e a
quantidade de profissionais de apoio, apesar de insuficiente, não chega a ser crítica, como
acontece em algumas unidades escolares da Rede; e sobre esta insuficiência, cabe ressaltar
a falta de profissionais especializados, como bibliotecários, secretários e agentes
administrativos responsáveis pelo departamento pessoal.
Em seu aspecto físico a escola é muito bem conservada. Conta com auditório,
equipado com um palco, televisão e vídeo-cassete; sala de vídeo com televisão e DVD
10
; e
biblioteca
11
, esta funcionando diariamente, nos três turnos.
Com relação à estrutura, seu maior problema talvez seja a falta de um local para
realização das atividades de Educação Física, o que é feito na quadra da praça localizada em
frente à escola. Tal situação é um tanto desconfortável e precária, uma vez que a quadra,
além de não ter cobertura para proteger do sol e da chuva, pertence à comunidade, que
algumas vezes reclama seu uso.
10
A escola mantém um convênio com as locadoras do bairro para que professores possam alugar filmes em DVD e VHS.
11
Mais adiante, no capítulo 3, falaremos mais detalhadamente sobre a biblioteca e seu acervo.
35
A escola contava com um orientador pedagógico até o final do ano de 2004, o que
provavelmente contribuiu, e contribui ainda, para que haja uma tradição de discussões em
conjunto quanto às estratégias pedagógicas adotadas pela escola. Há uma preocupação em
assegurar que professores de uma mesma disciplina se encontrem e discutam o trabalho que
vêm desenvolvendo de forma conjunta, além de incentivo para que as diversas disciplinas
possam realizar projetos com temas comuns, além de grandes atividades previstas em seu
calendário anual, como o Encontro com as Literaturas, do qual participam as disciplinas de
línguas materna e estrangeiras, o Encontro de Talentos e a Feira de Ciências, atividades em
que, geralmente, os alunos realizam trabalhos multidisciplinares.
2.1 – A amostra
Conforme já foi dito anteriormente, esta pesquisa teve como sujeitos alunos,
professores, responsável pela biblioteca e a orientadora educacional.
Os alunos e professores foram os principais sujeitos desta pesquisa uma vez que
protagonizam o processo de ensino-aprendizagem na escola. Os discentes eram alunos da
terceira série em 2005 – e a maioria deles foram meus alunos no ano anterior – do horário
da manhã, com idade entre 17 e 19 anos, moram com os pais e apenas dois trabalham;
dentre eles há treze do sexo feminino e dois do sexo masculino que responderam aos
questionários, e três do sexo feminino e dois do sexo masculino que participaram das
entrevistas, os quais daqui por diante serão identificados de acordo com o quadro abaixo:
como A1, A2, A3, A4 e A5.
sexo idade
A1 Feminino 18
A2 Feminino 18
A3 Feminino 17
A4 Masculino 19
A5 Masculino 19
36
Dentre os docentes, dois são professores de Português, um de Física, um de Biologia
e um de História. A participação de professores de diferentes disciplinas daquela que tem
como objeto o ensino de língua materna se deu em função da compreensão de que a
linguagem verbal não é apenas um instrumento com o qual nos comunicamos, e que não
somos apenas usuários da língua, além de entendermos que é através da linguagem,
especialmente a verbal, que homens e mulheres se constituem e constituem o mundo.
Interessou-nos pesquisar a opinião destes professores e a suas concepções sobre
leitura e produção de texto, pois consideramos que a linguagem verbal não deverá ser
entendida simplesmente como um
instrumento
utilizado pelas diversas disciplinas – inclusive
a de Língua Portuguesa –, para que os conhecimentos específicos das áreas possam ser
transmitidos; mas deve, sim, ser compreendida como aquela que instaura um processo de
conhecimento que, em princípio, carrega as marcas da temporalidade e de uma determinada
sociedade. Então, o ensino de Português, Geografia ou Física não se dá, da forma que é,
apenas por questões práticas e objetivas intrínsecas a tais áreas de conhecimento, mas
também por questões históricas, sociais e políticas.
Selecionamos dois professores de Língua Portuguesa pelo fato de esta disciplina ter
como objeto o estudo da linguagem verbal e da própria língua e a formação mais objetiva do
leitor e do produtor de textos.
Optamos por duas disciplinas das chamadas “ciências duras” por entendermos que a
relação destas com a
vida
humana, ao menos na escola, realiza-se a partir de um olhar
bastante distinto, apesar de estarem na mesma área de conhecimento, a das ciências da
natureza.
A escolha pela disciplina de história se dá em função de ser o seu objeto a história da
humanidade, melhor dizendo, a história da produção humana.
Os professores têm entre trinta e sessenta e um anos de idade, e o tempo que se
encontram no magistério varia entre seis e vinte e três anos. Mas vale destacar que entre
eles há um que se aposentou em outra profissão, reingressou na universidade para cumprir
as disciplinas de licenciatura e posteriormente ingressou no magistério. Quanto à pós-
graduação, um realizou em nível de mestrado; dois em nível de especialização; e os outros
dois não o fizeram. Um dos professores atualmente está cursando uma outra graduação, em
uma área diversa à carreira. Três professores lecionam em outros estabelecimentos, inclusive
37
de nível superior, e os outros dois apenas na escola onde a pesquisa fora realizada. Todos
são funcionários efetivos da Rede do Estado do Rio de Janeiro com lotação na escola
12
. Um
dos professores morou no bairro cerca de trinta e dois anos. Dentre eles, há três do sexo
feminino e dois do sexo masculino
13
, e daqui para diante serão identificados de acordo com o
quadro abaixo:
Disciplina sexo idade
P1 Português F 43
P2 Física M 61
P3 Biologia M 30
P4 Português F 40
P5 História F 38
A funcionária responsável pela biblioteca – a partir daqui identificada como B – tem
quarenta e nove anos, é moradora do bairro de Santa Bárbara, possui ensino médio
completo, trabalha há 17 anos em escolas da Rede, no cargo de Auxiliar de Educação. Antes
de trabalhar no Colégio David Capistrano, trabalhava em outra escola também no bairro, que
fora municipalizada e todos os seus funcionários foram remanejados para outros
estabelecimentos. Esta escola atendia crianças do segmento da educação infantil e a
funcionária realizava as mais diversas funções, desde ajudar na cozinha a cuidar das
crianças.
A orientadora educacional – doravante OE – também é moradora do bairro há muitos
anos, cursou uma pós-graduação em nível de especialização, trabalha na Rede há dezessete
anos. Iniciou suas funções no Estado como alfabetizadora, oito anos depois trabalhou com
alunos de séries iniciais do ensino fundamental e dois anos após foi trabalhar no Colégio
David Capistrano, ocupando a função de orientadora educacional. Com a saída da
orientadora pedagógica da escola – que se aposentou – hoje acumula também essa função.
12
A Rede de Ensino da Secretaria de Educação do RJ comporta em seus quadros professores efetivos, contratados e ainda aqueles que são
efetivos e fazem hora-extra, que pode ser cumprida na própria escola em que o professor é lotado ou em qualquer outra da Rede.
13
A questão de gênero não tem relevância nesta pesquisa, desta forma, tais dados são meramente informativos.
38
2.2 – Os instrumentos de coleta de dados
Inicialmente utilizamos questionários (Anexos 1 e 2) respondidos de forma discursiva.
Objetivou-se, com os questionários, uma primeira aproximação do campo e dos sujeitos da
pesquisa. Objetivou-se, também, obter informações significativas a respeito das experiências
dos sujeitos com leitura e produção de texto, dentro e fora da escola; desta forma, os
questionários funcionaram também como instrumento exploratório que poderia apontar
caminhos para as entrevistas.
Os questionários foram respondidos por treze alunos e cinco professores,
durante o mês de agosto. Os alunos responderam aos questionários simultaneamente, no
horário de uma aula em que a professora cedeu o tempo necessário para que pudessem
fazê-lo. Eles não haviam sido escolhidos previamente por mim para responder aos
questionários; eu escolhera apenas a turma; o que determinou a escolha da turma foi o fato
de a maioria dos alunos terem sido meus alunos no ano anterior. Na aula cedida pela
professora, me apresentei para aqueles que não me conheciam e expliquei a todos o que era
a pesquisa, qual era o seu objetivo e como seria a participação dos alunos, além da
importância de ouvi-los, e solicitei que aqueles que quisessem participar se apresentassem.
Mais de treze alunos se colocaram à disposição, no entanto, expliquei-lhes que não poderia
trabalhar com um número grande de sujeitos. A partir daí, adotei o seguinte critério para a
distribuição dos questionários: metade seria respondida por aqueles que haviam sido meus
alunos no ano anterior e a outra metade, por aqueles que não o foram.
Os professores responderam em separado aos questionários, durante o horário em
que estavam na escola. Detalhei a pesquisa, seus objetivos e a importância da participação
deles para cada um em particular – já havia feito o convite para que tomassem parte da
investigação anteriormente, portanto, quando da distribuição dos questionários todos já se
mostravam interessados em colaborar. Todos os questionários, inclusive os dos alunos,
foram respondidos na ausência da pesquisadora.
Analisando os dados dos questionários dos alunos, foi possível observar que é a
atividade escolar o que principalmente leva-os a ler e escrever, e que a leitura, de maneira
geral, é a do livro didático, da apostila, do texto fornecido em aula; associado a isso há o
dado de que os livros que ocupam as estantes, prateleiras ou cômodas de seus lares, são,
em sua maioria, os didáticos, seguidos de enciclopédias e dicionários. Além disso, a maioria
39
considera a leitura e a escrita como uma necessidade especialmente voltadas para a
informação; por outro lado, houve alunos que não consideravam leitura e escrita tão
necessárias, é possível viver sem elas.
Para além do funcionalismo, ler e escrever são consideradas atividades relevantes por
estarem ligadas à aquisição de cultura e conhecimento, à melhoria e desenvolvimento
cultural, à melhoria do desempenho da leitura e escrita – leitura, escrita, conhecimento e
cultura legitimados.
A análise dos questionários dos professores ressaltou o caráter funcionalista e
instrumental da leitura e da escrita, além do uso em suas aulas, prioritariamente, técnico e,
até mesmo, propedêutico, o que sugere um determinado uso da leitura e da escrita, de
modo geral, na escola: de caráter instrumental e a partir de uma visão técnica. Outro dado
que chamou atenção nesses questionários é o fato de a atividade de escrita dos professores,
inclusive os de língua portuguesa, estar voltada, majoritariamente, para a atividade
profissional.
Com o grupo de alunos, esse primeiro contato sugere usos e concepções voltados
para a aceitação e ascensão social, além dessas atividades facilitarem o funcionamento de
um indivíduo em nossa sociedade. Os professores ressaltam, de modo especial, o
profissional; não entende-se com isso que a leitura e a escrita façam parte de suas vidas
apenas dessa maneira, mas que este é um aspecto importante e este está associado a um
modo de conceber a escrita e a leitura na escola, como já dito anteriormente.
É bom lembrar que os questionários foram utilizados como instrumentos
exploratórios, portanto, não era um fim, mas um começo. As evidências e lacunas
observadas a partir deles é que gerariam o principal material desta pesquisa. Percebeu-se a
necessidade de chegar o mais longe possível com os sujeitos: saber como se formaram
leitores, que influências, dentro e fora de seus núcleos familiares, tiveram; a importância da
escola nesse processo. Buscou-se saber quem era cada aluno pesquisado: o que fazia além
de estudar, o que fazia para se divertir, que tipo de música ouvia; junto aos professores,
interessou-me, principalmente, suas memórias.
Desse modo, após a análise dos questionários, utilizamos entrevistas semi-
estruturadas (ver Anexos 3, 4, 5 e 6) com o objetivo entrar em contato com o sujeito dentro
de sua singularidade – que não é solitária, mas construída com outros – e aprofundar
40
algumas perguntas já feitas, além de levantar novos questionamentos que pudessem trazer
dados que esclarecessem a questão da pesquisa:
que concepções de leitores e produtores
de textos circulam na escola?
.
Para Freitas (2003), a entrevista tem a particularidade de ser compreendida como
uma produção de linguagem, e produzir linguagem é construir significados. É uma situação
de interação verbal que objetiva a mútua compreensão, uma compreensão
ativa
do
pesquisador e dos sujeitos. Desta forma, esta ferramenta foi o principal instrumento de
coleta de dados desta pesquisa, uma vez que os sujeitos não só responderam às perguntas
da pesquisadora, mas refletiram sobre os questionamentos que se colocaram no diálogo a
partir das perguntas, trazendo à tona suas opiniões sobre leitura e produção de textos.
Além dos alunos e professores que haviam respondido aos questionários
14
,
participaram também das entrevistas a orientadora educacional da escola e uma das
responsáveis pela biblioteca. Com alunos, professores e orientadora educacional buscava,
principalmente, suas concepções de leitor e produtor de textos; junto à responsável pela
biblioteca, o objetivo eram informações sobre as práticas por ela observadas, além de
avaliações que ela, por ventura, realizasse. As entrevistas foram realizadas individualmente,
na escola, com exceção de uma das professoras, que teve a entrevista realizada em sua
própria casa.
Apenas a entrevista de um dos professores durou menos de sessenta minutos; as dos
outros, cerca de oitenta minutos. As entrevistas dos alunos duraram cerca de trinta minutos,
cada uma. Com a orientadora educacional durou cerca de quarenta minutos; e a responsável
pela biblioteca foi entrevistada durante cerca de vinte minutos. Apesar da variação do tempo
entre as entrevistas, todas as questões que haviam sido elaboradas previamente foram
abordadas, além daquelas surgidas durante as entrevistas.
Realizadas nos meses de novembro e dezembro de 2005, todas as entrevistas foram
gravadas e transcritas por mim e, durante a transcrição, procurei ser o mais fiel possível às
falas dos entrevistados, o que não foi possível apenas nos raros momentos em que algo não
era entendido; mas também estes momentos estão registrados nas transcrições.
14
Inicialmente a pesquisa teria como sujeitos apenas professores e alunos, no entanto, durante o processo de análise dos questionários e
produção do roteiro de entrevistas fora decidido incluir, também, a orientadora educacional da escola – que hoje também é responsável pela
coordenação pedagógica, por isso foi convidada a participar da pesquisa – e uma das pessoas responsáveis pela biblioteca.
41
3 – O olhar “ora abrangente, ora incisivo”: a análise dos dados
15
“O diálogo tem significação precisamente porque os sujeitos dialógicos
não apenas conservam sua identidade, mas a defendem e assim crescem um com
o outro. O diálogo, por isso mesmo não nivela, não reduz um ao outro. Nem é
favor que um faz ao outro. Nem é tática manhosa, envolvente, que um usa para
confundir o outro. Implica, ao contrário, um respeito fundamental dos sujeitos
nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não permite que se constitua.
(...) enquanto relação democrática, o diálogo é a possibilidade de que
disponho de, abrindo-me ao pensar dos outros, não fenecer no isolamento.”
(Paulo Freire)
O que buscamos construir quando nos propomos a pesquisar a partir daquilo que
aparentemente dispensa pesquisa, aquilo em que estamos imersos, que, de tão familiar,
“conhecemos como a palma de nossa mão”? Um conhecimento apenas, e não a verdade.
Conhecimento – sem pretensão de que seja definitivo – se constrói junto com o olhar do
outro, pois este revela uma importante parte que não conseguimos apreender. E pesquisar,
para mim, foi isso: ver junto com o olhar do outro.
Os dados que aqui serão descritos e interpretados são aqueles oriundos das
entrevistas, que totalizam cerca de onze horas de gravação. E é dialogando com os sujeitos
desta pesquisa e confrontando nossos conhecimentos que pretendo encontrar alguns
sentidos possíveis de se construir a partir de suas falas (carregadas de suas histórias) e de
minhas possibilidades de interpretação.
Partindo do objetivo geral, que é
compreender algumas variáveis que contribuem
para que, de maneira geral, a escola esteja formando decodificadores e fazedores de
redação ao invés de leitores e produtores de texto
, foram realizadas entrevistas objetivando
que os sujeitos falassem o que pensam sobre a leitura e a escrita, a relevância delas em
suas vidas, os usos que fazem delas, sua importância social, suas relações e experiências
com essas atividades. Parti da hipótese de que
a maneira como a leitura e a escrita são
concebidas pelos principais atores do processo de ensino-aprendizagem na escola – aluno e
15
Nas transcrições das entrevistas neste capítulo ora reproduzo também a pergunta que fiz, ora não. Transcrevo as perguntas quando considero
absolutamente necessário que o leitor tenha acesso também à interrogação por mim feita, para que possa compreender a resposta dada pelo
sujeito entrevistado ou para que possa acompanhar a linha de argumentação, tanto do entrevistado quanto da pesquisadora.
42
professor –, especialmente, exerce forte influência nas práticas pedagógicas lá
desenvolvidas
. E, ao longo desta análise de dados, outra hipótese foi se construindo:
as
concepções de leitura e escrita desses sujeitos são frutos de suas histórias e de suas
relações sociais
. Esta análise levou a uma importante constatação, que aqui antecipo e que
será discutida mais adiante:
as experiências e histórias de leitores e produtores de texto dos
próprios professores não são levadas em conta por eles mesmos quando pensam as práticas
dos alunos.
Ainda que a observação de aulas não tenha sido utilizada como instrumento de
coleta, o que poderia trazer dados dos acontecimentos-aula dos professores e alunos que
participaram da pesquisa e oportunizaria confrontar o discurso dos sujeitos com suas
práticas, as informações contidas nas entrevistas são mais que reveladoras dessas práticas,
tanto no discurso dos alunos quanto no dos professores.
Durante a fase de coleta de dados, especialmente quando das entrevistas, vivi a
importante experiência de deslocar meu olhar na escola: de professora imersa à
pesquisadora. Em fases anteriores da pesquisa, por exemplo, durante a construção do
objeto, provavelmente não tenha tido esse sucesso; aliás, neste período, a preocupação de
não conseguir o distanciamento necessário quando estivesse efetivamente pesquisando era
grande. A experiência da professora não atrapalhou a pesquisadora, ao contrário, contribuiu
muito para o sucesso das entrevistas.
As entrevistas revelaram não só o que os sujeitos pensam sobre leitura e escrita, e
suas concepções sobre estas, mas também, ou principalmente, quem são eles. As
informações sobre os sujeitos não vieram na forma de preenchimento de formulário de
dados, mas sim através de suas falas vivas nas entrevistas. Dessa forma considerei
importante também trazer neste capítulo os sujeitos dentro de suas subjetividades, através
de suas falas, e não apenas através da descrição mais objetiva, como no capítulo 2. O que
se pretende é um afastamento de uma abstração de sujeito, e uma aproximação do
“objeto
das ciências humanas
que
“é o ser expressivo e falante”
(BAKHTIN, 2003: 395).
43
3.1 – Os alunos
16
Dos alunos que participaram das entrevistas apenas um, A5, não fora meu aluno em
2004; portanto, a maioria, quatro, já eram meus conhecidos, alguns mais próximos, outros
menos. Mas, preciso reconhecer que, especialmente depois das entrevistas, o olhar que
tinha deles era apenas o meu e, prioritariamente, o da professora. A partir das entrevistas
entro em contato não com outras pessoas, mas com os sujeitos integrais, não apenas com
meus alunos. E são esses sujeitos que trago a seguir.
A1
Moradora de um bairro vizinho à Santa Bárbara, o bairro Caramujo, A1 tem dezoito
anos, vive com a mãe, uma irmã e um irmão; além de estudar no horário da manhã,
trabalha como secretária, freqüenta um curso de informática, participa de um grupo de
dança que se reúne aos domingos na igreja evangélica em que freqüenta; aliás, é a líder
desse grupo. Mas, devido a sua intenção de fazer um curso universitário, logo se afastará:
A princípio eu pretendo sair porque tá ocupando muito um tempo meu, e no
ano que vem eu pretendo fazer a faculdade e não vai ter como dar atenção
total para esse grupo. Aí eu pretendo estar me retirando, e colocando uma
substituta.
A1 gosta de dançar, e participar desse grupo, segundo ela, é uma questão de
identidade:
Esse grupo eu nunca, assim, não foi sempre eu que era líder desse grupo,
haviam outras meninas que lideraram antes de mim, eu sempre tive vontade
de... é uma coisa que eu me identifico, e sinceramente eu não me vejo
fazendo outro tipo de coisa dentro da igreja ou em qualquer outro... mesmo
que fosse... é porque eu gosto de dança e estando na igreja pra mim é
melhor ainda, porque já que eu não saio, e tal, não vou pra balada, pra
dançar fora, e tal essas coisas, então é uma coisa que eu posso fazer dentro
da igreja, é uma coisa que eu posso fazer dentro do meio em que eu vivo.
Parece que, além da escola, a igreja é outra importante instituição na qual ela es
inserida. Sobre o fato de não sair tanto, A1 revela que para se divertir costuma ir ao cinema
e à praia “
às vezes, só
”. Sobre cinema, ela gosta de comédia romântica, comédia, romance,
16
Os alunos a que nos referimos aqui são apenas aqueles que participaram das entrevistas.
44
filme de ação. Só não gosta de filme de terror; não acha muito interessante. Mas apesar
disso
O exorcista
foi um dos últimos filmes a que assistiu. Gosta de ouvir hip hop, música
gospel e romântica.
O que principalmente a escola ensinou para ela durante a educação básica foi o
respeito pelas pessoas. Na escola, mais importante que os conteúdos foi a relação que
travou com as pessoas:
Eu acho, assim, na minha opinião, o mais importante é a relação com as
pessoas, porque tem, o conteúdo, a matéria em si que os professores dá e as
disciplinas que a gente estuda, na maioria das vezes nós não vamos usar
aquilo a vida toda, na maioria das vezes, dependendo do que vc vai se formar
tem coisas que vc não vai nem ver
A2
Moradora do bairro Jardim Bom Retiro, emo Gonçalo, Município vizinho à cidade
de Niterói, A2 tem dezoito anos, casou-se recentemente e está às voltas com as obras de
sua casa, ainda em processo de construção; antes de se casar, morava em Santa Bárbara.
Para se divertir, costuma ir ao cinema – que diz gostar muito – para assistir
comédias, de preferência, andar, conhecer lugares diferentes e ir na casa da avó, todos os
finais de semana. Gosta de ouvir todo tipo de música, e é principalmente a letra da música
que chama sua atenção:
Porque, assim, só o ritmo não quer dizer muita coisa, a letra que, que dá o
significado da música, que dá um sentido pra música, não é só por causa do
ritmo que você dança que você vai gostar da música. As vezes a música tem
um ritmo legal pra você dançar, e a letra é péssima, horrível, tipo assim,
alguns funks, não sou muito chegada.
Até pouco tempo fazia curso profissionalizante de Rotinas Administrativas e Curso de
Informática. Para o ano de 2006 pretende fazer um curso de inglês. A2 não está envolvida
com nenhuma outra atividade que não se relacione com algum tipo de estudo, e tal
investimento para ela se justifica
porque, muito tempo que eu to procurando emprego, e já ta difícil, e se você
não tiver nenhuma qualificação fica pior ainda pra você poder arrumar um
bom emprego. Pra mim é muito importante por esse fato assim.
45
A família, os amigos, “
alguns fatos que nós vemos na televisão, alguma coisa que
alguém passa pra gente, experiência
”, contribuem para sua formação pessoal, além da
escola. Sobre esta, A2 diz que “
a maior parte do que eu sei hoje, eu posso dizer que eu
aprendi na escola, tanto no aspecto de vida pessoal, porque tem bastante professores que
são nossos amigos, e conversam muito com a gente. (...) quanto na questão do
conhecimento
” . E diz ainda que, algo importante que a escola lhe ensinou foi a relacionar-se
com outras pessoas.
A3
A3 mora no bairro Pacheco, São Gonçalo, com a mãe, o pai e duas irmãs. Tem
dezessete anos, freqüenta a igreja Assembléia de Deus, aos domingos, onde participa de um
grupo de canto formado por adolescentes, e outro, também de canto, de mulheres mais
velhas, este, dirigido por sua mãe.
O grupo de adolescentes com quem ela se reúne para cantar é também um grupo de
amigos: “
são parte de mim também, entendeu?
Para se divertir, geralmente assiste à televisão ou lê piadinhas no jornal. Diz não
fazer muita coisa fora de casa, não vai ao cinema, não vai a festas; bate-papo com amigos,
além do grupo da igreja, se dá na escola e com uma amiga, que é da sua turma, que
freqüenta sua casa. Poucas vezes vai à casa dessa colega. Diz que “
ama
” música, não tem
preferência: romântica, lenta, rock cristão. Mas alerta sobre esta última que “
não aquela
coisa... antiga, eu não gosto de música antiga
, não”.
A3 está envolvida em outra atividade: faz um curso de artesanato. Antes de
freqüentar o Colégio David Capistrano, ela estudava em um colégio onde as crianças são
apadrinhadas por pessoas que, provavelmente, são doadoras dessa instituição. E por ter
estudado lá, tem o direito de fazer um curso; sua turma só tem pessoas de sua idade.
É um programa voltado para pessoas pobres e, neste curso, aprende a não
desperdiçar, a reciclar. Diz que ensinam a aproveitar aquilo que as pessoas têm dentro de
casa:
46
Por exemplo, no Natal, a gente não gasta dinheiro com cartão, a gente que
faz o cartão, entendeu; num presente que você quer dar, você usa sua
criatividade. Tudo, tudo é criatividade.
E este curso não tem ensinado A3 apenas fazer artesanato, mais que isso, tem feito
com que ela faça um reflexão mais ampla sobre outras questões. Ela acha isto importante
porque
apesar de ser um curso simples, mas eu aprendo a valorizar mais as coisas
que eu tenho dentro de casa. Por exemplo, um simples jornal, a gente pensa
que é uma coisa suja, mas não, eu posso fazer várias coisas com jornal,
entendeu. Eu acho que eu aprendo a valorizar mais o que tá ao meu redor.
A3 diz que os pais não tiveram estudo completo e, que por isso, fazem tudo para que
ela e as irmãs tenham tudo o que eles não tiveram, “
fazem o impossível
”. E por isso, sente
profunda admiração por eles, que têm papel fundamental na sua formação pessoal. Destaca,
também, sua “
vontade de vencer
” como absolutamente importante. Aliás, sua vontade de
vencer está diretamente ligada aos seus pais:
A minha vontade de vencer é querer dar aos meus pais, entendeu, o meu
objetivo, a minha vontade, assim, é querer dar aos meus pais, entendeu, o
que eles me dão agora. Então isso me... me dá força pra estudar, entendeu,
eu tenho que estudar pra dar pra eles o que eles estão me dando agora.
Lutar por um objetivo, não desistir dele; respeitar o próximo; ter consciência de que
o direito de uma pessoa acaba quando o da outra começa, foi o que principalmente, e de
mais importante, A3 aprendeu na escola, ao longo desses anos.
A4
Morador de Santa Bárbara, bairro onde está localizada a escola, A4 tem dezoito anos,
mora com os pais – não revelou se tinha irmãos. Gosta de ir à praia, cinema, sair à noite no
final de semana. Durante a semana dificilmente sai. Quanto à música, gosta de MPB –
Caetano Veloso, Zé Ramalho, Gonzaguinha, Elba Ramalho –, alguns tipos de rock – segundo
ele, “
rock mais leve
”: Paralamas do Sucesso, Titãs, por exemplo – e funk. Além da escola,
faz pré-vestibular à noite, “malha” à tarde e, de vez em quando, faz
free lancer
de modelo.
Diz que realiza essas atividades porque gosta, mas sua fala sobre isso traz também um
discurso presente nos mais diversos setores da sociedade – o jovem não pode ter tempo
ocioso.
47
Acho que é importante porque é um meio que eu me sinto bem... não é um
meio envolvido, assim, se eu não direcionasse meu tempo pra fazer essas
coisas, eu estaria com a minha mente vaga, com o meu tempo vago, poderia
pensar em outras coisas que não são legais
Perguntado se realiza essas atividades para ocupar o tempo ou por que realmente
gosta, ele diz que realmente faz porque gosta, dificilmente faz alguma coisa por obrigação:
faço as coisas mesmo por curiosidade e por querer saber e aprender também
”. Participa do
Seicho-No-Ie, segundo ele uma filosofia que veio do Japão e que ensina as pessoas a
viverem, a só pensar no lado positivo, a administrar sua casa, sua família, seus
pensamentos, o que leva uma pessoa a ser cada vez melhor. Para ele, ser uma pessoa
melhor é fazer bem ao próximo, ser útil às pessoas e a sua sociedade. Para ele,
se você deseja uma coisa boa pro seu próximo, aquilo ali volta em grande
quantidade pra você. Se você faz por onde também... Que a vida é a lei do
retorno, tudo que você faz pro seu próximo, retorna pra você
A4 é um rapaz que já viajou muito – dentro do país, além de uma viagem para o
exterior, na Argentina –, o que é facilitado pelo fato do pai ser militar. Acha que viajar, entre
outras coisas, é importante para que se possa conhecer outros lugares, outras pessoas,
outras culturas, outros povos. Reconhece que muitas pessoas não têm possibilidade de viajar
por falta de recursos, mas acha que isso o é motivo para não se querer saber “
o que o
povo do lado faz
” .
Tem poucos amigos no bairro, “
mas... são todos legais
”. Relata uma conversa que
teve oportunidade de travar com jovens de sua idade, segundo ele,
“pessoas cultas”
,
moradores de Copacabana, bairro da zona sul do Rio de Janeiro; foi uma conversa que girou
em torno do tema literatura, de João Cabral de Melo Neto. São pessoas que
tão numa
parada assim de, que eles falam de cultura, de literatura, de arte
”, ao passo que os amigos
do bairro em que mora “
têm outro tipo de conversa, de sair, de badalação, farra. (...) eles
são boas pessoas, (...) mas, culturalmente, é... eles não têm tanta carga de conhecimento
quanto essas pessoas tinham
”.
Sua fala sobre a escola, lugar onde passou “
quase a vida toda
”, revela o grau de
importância dessa na sua vida e o que principalmente aprendeu:
Viver em comunidade. Viver em comunidade, viver com as pessoas, mesmo
que você não goste de seu colega, de seu professor, você tem que viver
respeitando e aceitando muitas coisas que você às vezes não concorda; as
vezes na sala tem pessoas de outras religiões, de outras idéias, são pessoas
totalmente diferentes de você, que você tem que aceitar, tem que respeitar.
(...) Então são esses conflitos que a escola me ensinou: a respeitar, passar
48
por cima de várias coisas, bater palma pro próximo, fazer trabalho em grupo.
Eu era uma pessoa muito individualista, eu queria tudo só pra mim, fazer
aquilo sozinho, eu não queria dividir com ninguém. Hoje em dia não, hoje em
dia eu vejo a sociedade como um todo, como comum, eu me sinto uma
pessoa de fato comum entre elas, eu sei que há o tempo que eu tenho que
cumprir para minha pessoa e tenho que cumprir para ela. Então isso a escola
me ensinou muito. Faz parte da minha educação viver em comunidade com
as pessoas [COM PESSOAS DIFERENTES] Pessoas diferentes, tanto de
religiões, como raça e etnias
A5
Jovem de dezenove anos, morador de Jardim República, bairro de São Gonçalo, para
se divertir A5 costuma jogar vôlei – “gosto muito de jogar vôlei” – todos os sábados, com
horário fixo. Assiste televisão, ouve música. Não gosta muito de sair à noite, fica mais em
casa. Conversa com poucas pessoas
17
; seu círculo de amizade está na igreja que freqüenta.
Com relação ao trabalho, dá aula de violão em casa, para jovens e adultos, trabalha
em festas à noite e pretendia “pegar” um emprego temporário, desses oferecidos no período
de festas de final de ano.
A5 é músico, estudou música durante um ano e meio na Escola Técnica Henrique
Lage. Parou porque estava difícil conciliar com a escola, mas pretende voltar. Diz que está
descobrindo um ritmo que “
está amando
”: o ritmo de Marcelo D2. Não curte muito as letras
dele, mas fala que a junção que ele faz de pagode, hip hop e o básico – bateria, baixo e
teclado – “
fica bacana
”. O ritmo que mais gosta é o pagode, samba: Bezerra da Silva,
Martinho da Vila, Zeca Pagodinho. Só não gosta mesmo é de rock, “
não dá pra descer
”.
Também estudou teatro, é ator profissional, está
vivendo nisso
” há uns cinco anos e,
este ano, “
graças a Deus
”, conseguiu “
dar um pulo mais alto
”: realizou um trabalho
profissional. Apresentou-se, inclusive, no Teatro Municipal de Macaé, fala disso com muita
satisfação e orgulho: “
ali foi meu primeiro trabalho profissional, meu primeiro camarim.
Adorei, adorei, foi bacana à beça
”. Trabalhou com profissionais conhecidos pelo público:
Procópio Ferreira Neto, Pratinha (filho de Grande Otelo), mas por falta de dinheiro, o projeto
teve que ser interrompido, então, porque precisa trabalhar, teve que deixar de lado a
carreira de ator, mas aguarda uma próxima oportunidade.
17
Este é o único aluno entrevistado que não foi meu aluno em 2004, conforme comentei anteriormente. Durante a entrevista, quando tive um
contato mais direto com ele, achei-o absolutamente tímido, com uma certa ansiedade característica dos tímidos que o levava inclusive a gaguejar
ou engasgar com as palavras algumas vezes – fato esse, inclusive comentado por ele durante a entrevista.
49
A partir de 2006 pretende fazer um curso profissionalizante na área da saúde,
enfermagem ou radiologia. Esses planos estão diretamente ligados com seus projetos
artísticos:
meu projeto pro próximo ano, agora, ele é um projeto diferente, que no
futuro vai me dar bagagem pra mim continuar, ou seja, o teatro, pra mim
continuar estudar, ou seja, eu tô primeiro intencionando a fazer algo, curso,
né, profissionalizando, na área do... voltada pra medicina, ou enfermagem
vou fazer ou radiologia. Por quê? Porque eu penso que, não sei se eu to certo
ou errado, no futuro, coisa mais ou menos de dois, três anos, quatro anos,
pode me dar oportunidade de eu continuar estudando e tocar esses outros
projetos que eu tenho
Percebe-se que esse projeto não nasce de uma escolha, mas sim de uma
necessidade: manter-se materialmente, ter algum tipo de estabilidade financeira. Aliás, a
trajetória de vida dos sujeitos das classes populares é marcada pela restrição de
possibilidades de escolha.
Infelizmente a minha vida não é voltada só pra escola, chegar em casa
estudar, tudo que eu quero minha mãe não pode me dar. Eu tenho que
trabalhar
Como já foi dito antes, A5 também participa de uma igreja, Comunidade Cristã
Ebenézer; nas suas palavras, não é “
de berço, evangélico
”, “
conheceu
” o cristianismo
quando tinha entre quatorze e quinze anos. Lá, já esteve envolvido com música, teatro, e
agora trabalha com crianças. Ensina a usar a Bíblia, “
ensina a palavra
”, nos cultos à noite.
A experiência com o teatro e com as crianças da igreja trouxe para ele o senso de
responsabilidade: o primeiro porque as pessoas vão ao teatro assistir a um espetáculo, e “
a
gente tem que passar um espetáculo
”; e o segundo diz respeito ao exemplo que ele deve ser
para as crianças. Tal responsabilidade,
ser exemplo
, de certa forma, é um peso, ainda que
ele se orgulhe muito disso:
as pessoas, os vizinhos me param na rua e me dizem assim: “ah, você é um
exemplo de jovem”; param a minha mãe e dizem: “olha, seu filho é um
exemplo”, então eu vejo que eu tenho uma grande responsabilidade, até
mesmo quando eu... um jovem, as vezes, pensa, “ah, fazer uma tatuagem”,
passa na cabeça do jovem, botar um piercing, mas eu paro e penso: “não,
não posso fazer isso porque eu tenho um peso, tenho uma responsabilidade.
É isso. (...) É, igual outro dia, eu vindo pra escola, aí eu entrei na padaria pra
comprar o queijo pra minha mãe, aí ela ficou esperando no ponto, aí nisso
entrou um vizinho também, aí eu saí, entrei, compre, saí, aí ele saiu logo
atrás. Aí ele ficou olhando, a gente andando. Aí daqui a pouco ele chamou:
“Ô Norma [o nome da minha mãe], vem cá!”, “O que que foi seu Rufino [que
é o nome do meu vizinho]”. Aí ele falou: “Seu filho é um exemplo, hein,
Norma”, aí ela fez uma cara... Ah, ganhei o dia, então, ganhei o dia
50
Quando fala do que a música trouxe para ele, A5 apresenta um posicionamento que
aparentemente é contraditório: através da música, aprendeu a viver em sociedade: o
estilo
”, segundo ele, das pessoas que freqüentavam a escola de música era diferente do
seu e daqueles que estava acostumado, provavelmente aqueles, por ele, considerados
“normais”.
Na escola de música, quando eu fazia, logo quando eu comecei, me
assustava, porque eu olhava para as pessoas assim, ou seja, a aparência
delas, as vezes, numa época em que os garotos usavam cabelo grande,
brincos a beça, piercing, eu olhava assim, mas quando abria a boca, assim,
quando ia conversar, a pessoa, vc via que não era nada daquilo, era só uma
fachada, ou seja, era um estilo que ele adotou pra ele, mas o que ele
aprendeu não é aquilo. Então são pessoas super, né, educadas, pessoas
respeitadoras (...)
Pode parecer contraditório que alguém com um perfil como o dele aceite pessoas tão
diferentes, no entanto, como ele mesmo diz, as pessoas só tinham aquela aparência, mas as
atitudes eram de pessoas educadas, aquele estilo era só fachada, o que elas aprenderam
não era aquilo que suas aparências sugeriam. Parece-me que ele não aceita, de fato, o
diferente; mas sim, encontra naquele diferente características por ele aceitas, que fazem
parte de seu protocolo de boas maneiras.
A escola sempre teve um papel positivo em sua vida, foi um lugar onde conseguiu
sanar muitas dúvidas, e foi importante em todas as áreas.
3.1.1 – De que falam esses jovens?
As falas iniciais desses jovens, dos momentos em que estão trazendo informações a
respeito de si e narrando suas experiências, obrigou-me buscar uma bibliografia específica
acerca de questões da juventude. Traçar um panorama sobre a juventude e tentar entender
onde se fundam suas questões, não significa tentar uniformizar, sob o chapéu da
homogeneização, pensamentos ou atitudes, mas sim apreender um cenário que influi e que,
ao mesmo tempo, esclarece os vários movimentos desenvolvidos por estes cinco jovens,
especificamente, que, em grande medida, são característicos da juventude. A intenção não
é realizar um amplo debate sobre estas questões, mas sim, percorrer os caminhos que os
olhares desses sujeitos projetam; olhar para onde eles olham e tentar entender o que vêem.
51
3.1.1.1 – Identidade: juventude, juventudes...
Uma questão que surgiu, quando das entrevistas com os alunos, foi:
quem são esses
jovens com quem estou conversando?
Apesar da convivência no ano anterior, eu muito
pouco sabia a respeito sobre eles. Somente ouvindo, perguntando, respondendo, foi que
comecei a ter uma idéia de quem eram. Hoje percebo que era com uma imagem uniforme
de aluno que eu operava; o sujeito, no meu olhar – e não no dele! –, participava em pouca
medida. Uma vez que não nos colocamos a observar os alunos como sujeitos com
identidades próprias, não questionamos
quem é
; pomo-nos a nos relacionar com um grupo
que é caracterizado pela heterogeneidade a partir e através de um olhar que tende para a
homogeneização. E dessa forma, não identificamos demandas dos jovens, mas sim
exigências da escola.
Longe de querer definir a categoria juventude, o exercício que farei daqui para
adiante tem como objetivo compreender os movimentos que este coletivo realiza e como
esses movimentos deixam marcas em seus indivíduos; como as relações que os jovens
travam nos mais diversos
espaços
e
territórios
18
por onde circulam contribuem para forjar os
sujeitos que são.
A busca realizada junto às produções teóricas em torno das questões da juventude
evidenciou que a identidade juvenil é uma questão essencial, senão fundante, neste campo
de investigação; demonstrou também que um conceito de juventude que tenda para a
homogeneização não resiste à primeira análise. Ao invés de querermos categorizar o que é
ser jovem, precisamos procurar compreender os
modos
de ser jovem. Os sujeitos desta
pesquisa, que formam um grupo bem pequeno, já apontam para uma evidente
heterogeneidade, para alguns
modos de ser jovem
.
Alguns autores (DAYRELL, 2003; DAYRELL E GOMES, S/D
19
; DAYRELL E CARRANO,
2000; CARRANO, 2000; GUIMARÃES, 2004) assinalam que não há
um único
modo de ser
jovem e que definir juventude a partir de uma determinada faixa etária e do
desenvolvimento biológico e psicológico não é suficiente, pois tais dados não abarcariam o
sentido sócio-histórico da vida de um sujeito. A maneira como cada grupo social lida com
18
Espaço dado
: cidade que preexiste aos indivíduos;
território
: espaço cotidiano construído pelos atores juvenis. (Cf. PEREGRINO & CARRANO,
2004)
19
Este texto está disponível no sítio www.fae.ufmg.br:8080/objuventude, mas não há referência à data ou onde possa estar publicado.
52
essa etapa demonstra o quanto de construção social e histórica há nas mais variadas
definições de juventude.
Guimarães (Op. cit.: 5) problematiza ainda, “
chamando a atenção, com Bourdieu,
para que “juventude” é um construto social e histórico, ou dito em sua [de Bourdieu]
maneira radical, “a ‘juventude’ é apenas uma palavra
””; neste sentido, um conceito de
juventude pode ser muito mais uma necessidade de categorização de uma determinada
sociedade do que o resultado de uma compreensão mais atenta das complexas relações
sociais estabelecidas pelos e com os jovens. Chama atenção para o fato de que os cortes
etários – que não são estados naturais –, igualmente, são construções sociais, e, por isso,
disputadas; o que corrobora a existência de “juventudes”.
Esse coletivo (ou coletivos) é plural na medida em que seus membros são também
plurais: no sentido de serem vários e no sentido de suas próprias identidades, como de
qualquer um, irem se consolidando – ainda que provisoriamente – através das relações que
estabelecem com o mundo (ou os mundos) que os cerca, a partir das experiências que cada
um vive, além dos valores, idéias e normas que conformam a sua visão de mundo (DAYRELL
e GOMES, Op. cit.).
A palavra identidade pode nos remeter tanto para aquilo que é igual, idêntico, quanto
para aquilo que pode ser diverso. Hall (2002: 84), analisando a construção das identidades
culturais, faz a seguinte provocação: “
A categoria da identidade não é, ela própria,
problemática?
”. E pergunta, ainda, se é possível, em tempos globais, um sentimento de
identidade coerente e integral. Para ele a imediatez e as intensidades das confrontações
culturais globais são elementos que questionam a continuidade e a historicidade da
identidade.
Discorrendo sobre o processo de produção do sujeito pós-moderno, Hall declara que
esse sujeito é definido por não ter uma identidade fixa, essencial ou permanente:
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (...) O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas. (Op. cit.: 13)
Lidar com a fragmentação é um desafio para qualquer indivíduo que vive em uma
sociedade onde
“os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam”
53
(Ibidem), multiplicando as formas de relações possíveis. E o desafio dos jovens é lidar já
com a multiplicidade tão característica dessa fase, não apenas em função de nossa
organização social, mas também porque as experiências vividas nos diversos grupos dos
quais participam é que produzirão suas identidades que não são e nem serão unificadas,
mas principalmente marcadas pela hibridização, pelo cruzamento de diversos sentidos
construídos nessas relações.
Os jovens que colaboraram nesta pesquisa definitivamente fazem parte dessas
juventudes, e não porque podemos enquadrá-los em algumas dessas juventudes, mas sim,
porque ocorre justamente o contrário: não é possível reuni-los em uma categoria unívoca de
juventude. Além disso, cada um deles vive os conflitos próprios daqueles que “
não são mais
crianças e adolescentes protegidos(as) e tutelados(as), tampouco adultos(as)
emancipados(as) social e economicamente
” (CARRANO, 2006: 3), e estão, efetivamente,
vivendo experiências significativas, inclusive, findo o ensino médio, tendo que tomar
importantes decisões sobre os rumos de suas próprias vidas.
As reflexões que realizam sobre suas próprias condições, que não é mera reprodução
de discursos, evidenciam o quanto eles têm a dizer e que este dizer é fruto de suas
experiências. Torna perceptível também a existência de uma tensão entre a forte tendência
de homogeneização das identidades culturais e a singularidade subjetiva. E é essa
singularidade subjetiva que traz o diverso experimentado por esses jovens, que saem
marcados dos espaços e territórios que freqüentam pelas relações alteritárias travadas e,
principalmente, pela necessidade de afirmação da própria identidade nesta dinâmica (CRUZ,
apud PEREGRINO & CARRANO, Op. cit.).
O que os identifica, o que os torna iguais, talvez seja justamente, mais que um
desejo, a necessidade de identidade, de serem únicos.
3.1.1.2 – A escola como espaço sócio-cultural
A condição humana reside na possibilidade de produção, e quando alguém tem suas
possibilidades de produção interditadas, tem, na verdade, interditada a própria possibilidade
de
ser
humano. Tal produção não é individual, mas essencialmente social, necessariamente
54
com o outro. Neste sentido, “
o pleno desenvolvimento ou não das potencialidades que
caracterizam o ser humano vai depender da qualidade das relações sociais desse meio no
qual se insere
” (DAYRELL, op. cit.:07).
De acordo com os depoimentos dos jovens sujeitos desta pesquisa, a escola foi para
eles o principal local de socialização. Isso me levou a cogitar
por que os jovens, de maneira
geral
20
,
e não apenas os colaboradores desta pesquisa
, constroem essa visão da escola
. Uma
das hipóteses que levanto é o fato de esta ser uma instituição legitimada e de legitimação.
Ainda que, de maneira geral, notadamente de uns anos pra cá, a sociedade venha
levantando sérias críticas com relação à maneira com que a escola vem desempenhando seu
papel social, é ela ainda uma importante referência, especialmente para aqueles oriundos
das classes populares. No entanto, os depoimentos desses jovens revelam importantes
espaços de socialização, o que me fez ponderar sobre a centralidade da escola como fator de
socialização.
Dessa forma, a imagem que os jovens fazem da escola não se fundamenta apenas
em suas próprias experiências, mas, provavelmente, também em um discurso socialmente
construído a respeito da escola.
Trago essas reflexões pautadas em duas evidências: a primeira, nos dados colhidos
nesta pesquisa, e a segunda, nas investigações realizadas por Dayrell (2003), Dayrell e
Gomes (S/D) e Dayrell e Carrano (2000) com jovens ligados aos movimentos rap e funk.
Com relação aos dados colhidos nesta pesquisa, estes revelam que não é a escola o único
local de socialização, e especialmente de construção de identidades, desses jovens. Com
exceção de uma jovem, todos os outros participam de grupos, principalmente religiosos. A3
faz aulas de artesanato em uma instituição voltada para educação de crianças e
adolescentes de baixa renda, portanto, não se trata apenas de freqüentar um curso de
artesanato, mas trata-se, sim, de uma série de atividades voltadas para a formação do
jovem. Também A5 é envolvido com as atividades de música e teatro. Então, além dessa
dimensão da vida desses sujeitos, há outras em suas trajetórias, trazidas por eles em suas
narrativas, que nos permitem observar a importância de outras instâncias, como as relações
que se dão, inclusive, nas ruas, ou seja, em instâncias não “institucionalizadas”. Além, é
claro da própria família.
20
Cf. DAYRELL, 2004; PEREGRINO &CARRANO, 2004; IBASE/POLIS, 2005, VARGAS GIL et alli, 2006
55
Os estudos dos pesquisadores mencionados evidenciam que a experiência vivida
pelos jovens que participam desses movimentos musicais quando não são importantes, são
fundamentais. São experiências densas que têm importante papel na construção não só de
suas identidades, mas também na elaboração de seus projetos de vida, denotando um
importante processo de aprendizagem desenvolvido no e a partir das participações nesses
grupos.
O que quero dizer com tudo isso é: a escola, de fato, é o principal espaço de
experiências sócio-culturais dos jovens ou, na verdade, há um discurso hegemônico que nos
faz acreditar nisso? Ou talvez, por ser o local público onde passam a maior parte do tempo –
todos os jovens entrevistados declararam isso –, a escola acabe sendo assim considerada no
que diz respeito à socialização dos jovens?
O cotidiano juvenil não se resume à escola, mas os jovens o carregam para
dentro
da
escola, e aqui não me refiro apenas à sua dimensão física, mas também à institucional.
Prova disso são as próprias pesquisas sobre juventude e escola, ou juventude e educação,
que têm revelado que o jovem é visto pela escola quase que exclusivamente como
estudante, e as dimensões de sujeito social e cultural são quase inexistentes. Quando essas
dimensões ganham evidência, normalmente é para trazer à tona algum tipo de diferença
entre o “mundo” adulto e o “mundo” juvenil, que se transforma em algum tipo de confronto
refratário a qualquer possibilidade de diálogo, tão saudável em momentos de conflitos,
períodos estes entendidos como momentos críticos, em que uma crise se instala.
Sposito (1996), dissertando sobre juventude, crise, identidade e escola, citando
Erikson (1976), define crise como “
ponto decisivo e necessário, momento crucial, quando o
desenvolvimento tem de optar por uma outra direção, escolher este ou aquele rumo
”; dessa
forma, afirma ela, a noção de crise configura um desafio.
O desafio talvez seja, justamente, a partir e através dos conflitos forjar uma escola
capaz de incorporar a diversidade, tanto dos jovens estudantes quanto dos outros atores
que protagonizam as mais diversas subjetividades: professores, pedagogos, diretores,
funcionários dos variados setores de uma escola.
Sendo a escola – em especial as públicas – o mais importante equipamento público
de inserção dos jovens, além de ser para muitos, especialmente para os jovens pobres, o
único lugar de acesso a bens culturais, esta precisa abrir-se para um diálogo permanente
56
com esses modos de ser jovem, e não operar com os esteriótipos que, como bem nos
lembra Sposito (1996),
“é aliado íntimo do preconceito”
, além de não permitir que
interroguemos o sujeito, como também negamos seu direito à fala e, conseqüentemente,
não escutamos o que ele tem a dizer sobre si mesmo.
Dentre o complexo de fatores que podem tornar uma instituição escolar
democrática e de qualidade se encontra o que podemos chamar de aumento
da “permeabilidade” da escola aos jovens. Isso passa pela abertura e
disposição de diálogo com as referências culturais, os valores, as crenças e os
sentidos que os jovens alunos vêm construindo para sua vida, aí incluída a
escola. Nesse sentido, conhecer os jovens é um dos pré-requisitos
fundamentais no processo de incorporação deles pela escola. Conhecer as
experiências de aumento da permeabilidade da escola a esses sujeitos,
apontando seus limites e suas possibilidades, outro. (PEREGRINO &
CARRANO, 2004)
Para os jovens, especialmente os desta pesquisa, elevar a escola, hoje, à condição de
principal espaço de experiências sócio-culturais, reconhecê-la como território, provavelmente
significa tê-la como local de ancoragem, sinal de pertença em meio a um processo não só de
construção de identidade, mas de definição dos pilares desta identidade. Este sentimento –
ter a escola como principal referência – pode caracterizar a busca por aquilo que costurará
essa subjetividade marcada pela fragmentação, pela própria natureza conflituosa da escola:
esta
“tem como uma de suas marcas históricas o conservadorismo, a manutenção das
relações de poder, enquanto as culturas juvenis, em sua maioria, têm o gosto pela
mudança”
(PEREGRINO & CARRANO, 2004).
Aproximar-se dos universos juvenis é entender, ou ao menos tentar entender, os
sistemas de referências desses jovens estudantes.
3.1.1.3 – Escola, informação e produção de conhecimentos
O conhecimento como uma das temáticas que aparecem na fala dos sujeitos desta
pesquisa ganha alguns sentidos. Com relação aos alunos, pude perceber o conhecimento
como informação, o entrar em contato com alguma coisa, da experiência como um vivido
significativo que apela para os sentidos e para os sentimentos.
57
A partir das nossas conversas, durante as entrevistas, fui refletindo sobre a questão
do conhecimento: o conhecimento escolar, do cotidiano desses alunos, da tradição de suas
famílias, de suas histórias, das informações transmitidas pelas mídias. Daí surge o
questionamento: como esses conhecimentos significam nas vidas desses jovens?
Questionando uma jovem sobre o que na escola contribuiu para sua formação
pessoal, para seus projetos, seus sonhos, ela assim respondeu:
Muito, muito, a minha educação, o modo que eu posso me... me apresentar
diante das pessoas, contribui muito em termo de conhecimento (A1)
O que essa jovem quer dizer quando utiliza a palavra conhecimento? Que sentido ela
atribui a conhecimento? Que sentido tem a palavra conhecimento para esse grupo de
jovens?
O objetivo primeiro do ingresso na escola é o da aquisição de um conhecimento
sistematizado, e este é legítimo – não só legitimado. Todos têm direito a esse conhecimento
que a humanidade construiu ao longo de sua história. É esse, certamente, o principal foco
de interesse daqueles que ingressam em qualquer nível das instituições escolares.
Algumas questões que se colocam dizem respeito aos conhecimentos, também
construídos ao longo da história da humanidade, mas que não estão organizados como o
conhecimento sistematizado pela e para escola, como, por exemplo, o conhecimento
produzido em outras cosmologias, no cotidiano, nas tradições familiares, nos territórios dos
sujeitos atores das escolas.
Esses saberes que ficam à margem do conhecimento escolar, do conteúdo
estabelecido pela lei, fazem parte das experiências vividas pelos indivíduos, fazem parte da
construção do ser humano que se produz nas relações sociais. Dayrell (Op. cit.: 6), citando
Charlot (2000) diz que
(...) a essência originária do indivíduo humano não está dentro dele mesmo,
mas sim fora, em uma posição excêntrica, no mundo das relações sociais.
Dizer que a essência humana é antes de tudo social é o mesmo que afirmar
que o homem se constitui na relação com o outro.
Na relação com o outro, o indivíduo se humaniza, constrói saberes a respeito de si
próprio, a respeito do outro e a respeito do mundo; é a partir daí que este homem vai
interagir e interferir no mundo. Ainda sobre as relações sociais Dayrell (Ibidem) diz que
58
(...) o pleno desenvolvimento ou não das potencialidades que
caracterizam o ser humano vai depender da qualidade das relações sociais
desse meio no qual se insere. Assim, concordamos com Charlot, que afirma
que todo ser humano é sujeito. Mas temos de levar em consideração que
existem várias maneiras de se construir como sujeito, e uma delas se refere
aos contextos de desumanização, nos quais o ser humano é “proibido de ser”,
privado de desenvolver as suas potencialidades, de viver plenamente a sua
condição humana (...)
Em que medida o conhecimento escolar influenciou na formação desse jovem sujeito?
Em que medida esse conhecimento traduziu-se em experiência e não apenas em
informações? Não é minha intenção realizar uma discussão conceitual sobre conhecimento e
informação, mas refletir a partir das falas desses jovens e de minhas próprias experiências.
Muito do que eles dizem sobre conhecimento entendo como informação; não que informação
não possa se traduzir em conhecimento, mas acredito que a questão passa necessariamente
pela maneira como eles se relacionam com ela.
Benjamin (1978: 67), pensando na modificação de formas épicas, diz que embora a
narrativa muitas vezes se apodere do conteúdo novo, não se deixa determinar por ele.
Reconhece o surgimento de uma
nova forma de comunicação
,
“que pertence aos
instrumentos mais importantes do domínio da burguesia no período áureo do capitalismo”
: a
informação
. Declara, ainda, que
“se a arte de narrar reveste-se hoje de raridade, parte
decisiva da culpa por essa situação cabe exatamente à difusão de informações”
. O problema
da “difusão de informações” tal qual Benjamin coloca, reside no fato de essa ser tomada
como uma atividade técnica, de certa forma, separando-se da vida, uma vez que esta não
submerge na substância do sujeito.
Não considero informação e conhecimento como categorias opostas ou que haja uma
dicotomia entre elas, ao contrário. Não é a informação, por si só, monológica, mas há uma
forma de utilizá-la que faz dela uma categoria monológica; o que pode gerar conseqüências
da mesma natureza na relação que os indivíduos travam com a produção do conhecimento.
A informação como uma categoria monológica é aquela operada como um discurso
(pretensamente) acabado, concluído, que aspira ser um espelho da realidade, e não uma
das possibilidades de interpretação da realidade. Compreender a informação como espelho
da realidade é conceber o signo lingüístico como transparente: o signo deixa de representar
o objeto para ser o objeto. Como conseqüência disso temos, por exemplo, o apagamento
das diferenças e das desigualdades; apaga-se, também, o processo de produção de
informações que é, no mínimo, conflituoso. Apaga-se o sujeito.
59
(...) o que conta, nas condições criadas pelo capitalismo, não é mais a
assimilação de uma experiência como traço cultural enraizado na tradição; o
que conta é a informação em toda sua secura e fugacidade. O homem
moderno, isolado, é bombardeado pela informação de valor
momentâneo, o que faz atrofiar-se a faculdade de trocas e comunicações
recíprocas das experiências. Uma nova sensibilidade resultante de um tipo
novo de conhecimento é engendrada. O conhecimento obtido na
experiência que se acumula e se prolonga cede lugar ao conhecimento obtido
pela vivência, impressão forte que necessita ser assimilada às pressas.
(MELO, 2003:63, grifos meus)
Nessa perspectiva, o conhecimento deixa de sê-lo e passa a ser uma impressão forte,
e como impressão é assimilado, sem a necessária compreensão. O que vai conferir ao
conhecimento um estatuto como tal é o retorno do sujeito à sua produção. Morin (2004: 53),
comentando sobre a subjetividade, declara ser muito importante, sempre, dar uma definição
de sujeito, caso contrário esta é uma palavra vazia. E essa definição, compreensão, se dá
através da relação sujeito-objeto, pois, segundo ele, na relação
“subjetividade-objetividade
há um inseparabilidade”
:
(...) O conhecimento objetivo necessita do sujeito, da interação
subjetiva e também de projeções das estruturas mentais de sujeito. O
conhecimento não é um espelho, uma fotografia da realidade. O
conhecimento é sempre tradução e reconstrução do mundo exterior e permite
um ponto de vista crítico sobre o próprio conhecimento. Por esta razão eu
disse que o conhecimento, sem o conhecimento do conhecimento, sem a
integração daquele que conhece, daquele que produz o conhecimento e o seu
conhecimento é um conhecimento mutilado. Sempre deve haver a integração
de si mesmo, o autro-exame, e a possibilidade de fazer sua auto-crítica. Para
mim, integrar qualquer conhecimento é uma necessidade epistemológica
fundamental.
Em que medida na escola o sujeito está integrado ao conhecimento – e aqui não me
refiro somente ao sujeito-aluno, mas também ao sujeito-professor, do qual mais adiante
falarei –? Que estatuto tem a informação na escola, de
“renovação do velho”
(BENJAMIN
apud KRAMER, 1995) a partir da experiência subjetiva, ou de substituição do velho pelo
novo, sendo aquele determinado por este, através da alienação da experiência humana?
A escola me ensinou muita coisa, muita coisa. A maior parte do que eu sei
hoje, eu posso dizer que eu aprendi na escola, tanto no aspecto de vida
pessoal, porque tem bastante professores que são nossos amigos, e
conversam muito com a gente. Então, tanto nisso quanto na questão do
conhecimento, então a escola foi muito importante pra mim. (A2)
(...) E o conhecimento todo que eu adquiri com o tempo que eu passei na
escola vai ser muito importante pra mim. Talvez uma coisa que eu não, que
não seja prático pra mim, que eu não vá usar agora, talvez no futuro seja
muito importante. Então, é isso, isso que é importante. (A2)
60
O que a jovem declara ter aprendido “
no aspecto de vida pessoal”
é diferente daquilo
que ela denomina
conhecimento
. Pelas falas dos jovens durante as entrevistas, isso que ela
não consegue nomear é o que há de mais significativo nas vidas dos estudantes com relação
à escola, e não o que ela denominou como conhecimento. Parece que este é um conjunto de
instrumentos colocados à disposição desses jovens para serem utilizados quando assim
solicitados.
Isto a que o sujeito aluno está integrado parece ser um saber marginal, que ronda as
atividades escolares, o que é um equívoco, pois, uma vez que é parte integrante do aluno e
faz parte das
muitas coisas que a escola ensinou
a estes sujeitos, não é uma oposição ao
saber escolar. Talvez este
saber marginal
seja uma dimensão afetiva do conhecimento,
sendo mais uma das dimensões do conhecimento compartilhado na escola.
Dayrell (S/D
21
), ao considerar que a escola enfatiza a transmissão de informações,
ressaltando que estas estão cada vez mais dominadas pelos meios de comunicação de
massa, a partir da análise de uma aula, chega a algumas conclusões que não dizem respeito
apenas a essa aula, mas ao conhecimento escolar, de maneira geral:
(...) o conhecimento é aquele consagrado nos programas e materializado nos
livros didáticos. O conhecimento escolar se reduz a um conjunto de
informações já construídas, cabendo ao professor transmiti-la e, aos alunos,
memorizá-las. (...) Da forma como está posto, o conhecimento escolar deixa
de ser um dos meios através dos quais os alunos podem se compreender
melhor, compreender o mundo físico e social onde se inserem, contribuindo,
assim, na elaboração de seus projetos. (p. 22)
O conceito de conhecimento com o qual a sociedade, de maneira geral, opera
“é uma
versão empobrecida, diluída e degradada do conhecimento”
(Op. Cit.: 23). O conhecimento
sistematizado pela e para a escola ganha o estatuto de verdade, e como tal, não é
questionado. A escola, lugar de produção de conhecimento por excelência, não exercita o
questionar, não ensina a questionar. O que é uma grande contradição, uma vez que as
ciências, por exemplo, têm se superado, se renovado na medida em que têm questionado
saberes e, de certa forma, rompido teorias comprovadas. A Física Moderna, a Ciência da
Linguagem, a Psicanálise e tantas outras são exemplo disso. Ou seja, o conhecimento se
produz na contrapalavra.
21
Este texto está disponível no sítio www.fae.ufmg.br:8080/objuventude, mas não há referência à data ou onde possa estar publicado.
61
O que os sujeitos alunos apontam em suas falas sobre o conhecimento,
majoritariamente, nos remete a uma informação inquestionável, já elaborada e acabada, ou
ainda a um instrumento que estará à disposição quando necessitado.
Contribui também com o meu trabalho, entendeu, porque eu, trabalhando
como secretária, às vezes tem coisas, assim, que eu tenho que fazer, cartas,
cartas pra mandar pra pessoas que, se eu não tivesse a formação que eu
tenho hoje, eu não conseguiria fazer, saber formular as palavras, saber me
expressar bem. (A1)
Mas pode-se observar nessas falas uma dimensão já citada anteriormente, que diz
respeito também ao que está sendo chamado aqui de conhecimento sistematizado: este
também pode fazer parte do
aspecto pessoal
da vida deles, desde que ganhe relevância,
desde que tenha um sentido em suas vidas:
(...) em algumas disciplinas, sempre comenta sobre os assuntos atuais:
geografia, história... português, enfim, a maioria das matérias, a maioria das
disciplinas comentam sobre os assuntos atuais, e contribuem pra mim poder
ficar por dentro das coisas que estão acontecendo, pra mim não ser uma
pessoa alienada, pra mim ser uma pessoa que saiba das coisas, que tem
entendimento, que possa ter uma opinião própria, entende? (A1)
(...) Porque assim, você tem curiosidade de saber como é que as coisas
funcionam, porque elas são assim, então, isso você leva pra vida pessoal.
Pôxa, é tão interessante você saber, ”ah, isso acontece assim, desse jeito, por
causa disso, daquilo outro, que isso influencia”, eu acho importante você ter
esse conhecimento, saber da onde vem as coisas, como elas mudam, o que
acontecem com elas, isso que eu acho que o conhecimento do colégio é
importante. (A2)
Considero que essas duas falas funcionam como brechas para a entrada do que
chamamos conhecimento escolar. São sinais, pistas que podem orientar o nosso fazer na
sala de aula. Mas também acredito que tornar os conteúdos escolares significativos para os
jovens seja uma tarefa um tanto complexa; aliás, a complexidade é da natureza da produção
do conhecimento, e não pelo conhecimento em si, como algo objetivado e abstrato, mas em
função das relações subjetivas e sociais. Reconhecer a multiplicidade de formas de se
relacionar com o conhecimento é necessário, dada a própria natureza multifacetada do
conhecimento e a heterogeneidade que marca especialmente a juventude. Talvez seja essa
complexidade mesma que deva orientar o fazer pedagógico.
Como foi dito anteriormente, o conhecimento para os jovens desta pesquisa também
nos remete à experiência como um vivido significativo que apela para os sentidos e para os
sentimentos, e este vivido não é apenas individual, mas prioritariamente coletivo, construído
na coletividade, nas relações sociais. O conhecimento, assim entendido, define-se pela
62
experiência, sendo esta indubitavelmente integrada ao sujeito. Benjamin (1978:69) afirma
que a intenção primeira da narrativa não é transmitir a substância pura do conteúdo, como é
o caso da informação ou da notícia; ao contrário, essa substância imerge na vida do
narrador para, em seguida, ser retirada dele próprio. Dessa forma,
“a narrativa revelará
sempre a marca do narrador”
.
Um dos jovens participantes desta pesquisa, quando solicitado que caracterizasse
uma pessoa que soubesse ler e escrever, inicialmente disse que seria uma pessoa diferente;
em seguida, lembrou-se que no questionário que respondera para esta pesquisa, colocara o
Rei Salomão. Justificou essa indicação dizendo que
“uma pessoa que sabe ler e escrever é
sábia”
. Aproveitei a oportunidade e perguntei-lhe o que ele pensava sobre conhecimento,
sabedoria:
Eu penso muito que eu tenho que usar no meu dia-a-dia, em tudo, em tudo.
Por exemplo, conheci uma jovem umas três semanas atrás, uma jovem
problemática, como eu já namorei uma jovem uns dois anos atrás, mas eu
estava com ela, não porque eu gostava dela, mas porque eu me via na
situação de ajudar ela, ou seja, de dar, de passar alguma coisa pra ela, ou
seja, exemplo, dar... eu vejo que o conhecimento ele tem significação no dia-
a-dia, tudo que eu vá fazer eu tenho que pensar, ou seja, pra mim pensar eu
tenho que ter conhecimento, discernir. (A5)
Neste depoimento, o jovem revela uma relação com o conhecimento, em que este
não é apartado de sua vida ordinária, ao contrário, é ele próprio fruto de suas experiências
e não só daquelas vividas por ele, como ele revela ao comentar o caso da jovem e da antiga
namorada – ao mesmo tempo em que é base para as experiências futuras.
Em seguida, quando lhe perguntei se considerava conhecimento e sabedoria a
mesma coisa, assim respondeu:
Conhecimento e sabedoria. Taí, eu não sei [NUNCA PENSOU NISSO]
Conhecimento não é quando a gente tem consciência sobre algum assunto,
não é isso? Sabedoria... conhecimento, pelo menos acho que a palavra diz
um pouco, você tem conhecimento sobre um assunto, sobre determinada
coisa; sabedoria... a gente fala tanto disso... (...) Eu acho que sabedoria foi o
que teve o rei Salomão, ele resolveu a situação e agradou as duas partes.
(A5)
Apesar da fala anterior a esta, em que a relação entre experiência e conhecimento
parece estabelecida, neste depoimento, a hesitação do jovem nos revela o quanto o
conhecimento objetivado –
“conhecimento, pelo menos acho que a palavra diz um pouco,
você tem conhecimento sobre um assunto, sobre determinada coisa
– está centrado
63
na informação e com ela se confunde, é apartado do sujeito, afastado do vivido, alienado da
experiência subjetiva.
Ao que parece, a experiência está alienada do homem, e um dos mecanismos
eficazes de alienação da experiência humana nos dias de hoje é o tratamento dado à
informação, principalmente quando, deliberadamente, isto é cunhado como conhecimento. A
produção do conhecimento na escola, além de não poder ser confundida com mera
transmissão de informação, deve ser devolvida aos sujeitos da escola, especialmente ao
aluno e ao professor.
3.1.1.4 – A escola como ferramenta de ascensão social
A escola – ou “o estudo” – se destaca ainda, na fala desses jovens sujeitos, como
fonte de ascensão social; aliás, um discurso corrente em nossa sociedade: estudar para ter
uma vida, um futuro melhor. Ouvimos com freqüência as pessoas dizerem que “com estudo
já está difícil, sem estudo então...”.
(...) no colégio, o curso, essas coisas todas pra mim contribuem,
futuramente, entendeu, com um futuro... um previsto futuro melhor (...)
(A1)
(...) se você não tiver nenhuma qualificação fica pior ainda pra você poder
arrumar um bom emprego. (A2)
E não se trata apenas de uma colocação no mercado de trabalho; é mais que isso,
trata-se também, ou principalmente, da realização de um sonho que muitas vezes não é
apenas do jovem, mas também de sua família. “Um bom emprego” é aquele que assegurará
mais que a subsistência; assegurará, especialmente no caso de jovens das classes populares,
algum tipo de mobilidade social, pois possibilitará condições de acesso a bens materiais e
culturais que configuram “uma vida melhor”.
Eu penso o seguinte: na minha família não tem ninguém que tem curso
superior. Um dia meu tio veio pra mim e falou: “tá vendo os seus primos,
presta atenção, me diz quantos têm uma faculdade”, aí, eu, é, não tem
ninguém, né; aí ele, “é, agora me diz quantos têm o EM completo, e aqueles
que têm, me pergunte se eles querem fazer uma faculdade”. Ou seja, na
minha família não tem ninguém que tem curso superior, e os que terminaram
o EM, você pergunta se quer entrar numa faculdade, nenhum deles querem.
64
Então ele virou pra mim e falou isso, e eu tomei isso como exemplo, não só
porque ele disse isso,
mas porque também eu penso em mudar a história da
minha família
, por mais que... bem eu sei que vai ser difícil, por mais que eu
veja que não é fácil, mas eu penso [incompreensível], que meus pais não vão
ficar novos pra sempre, vão ficar velhos, vão precisar de cuidado especial,
então eu pretendo fazer uma faculdade, batalhando [incompreensível] (A5)
O simbólico que envolve a questão da ascensão, da mobilidade, revela que o desejo
de ascender extrapola a melhoria das condições materiais de existência. Pode representar,
ainda que muito mais no imaginário que na prática, a mudança da história de uma família –
mesmo que seja apenas através de um único membro –; pode representar também a
possibilidade de retribuição do que os familiares fizeram por esses jovens:
(...) Eles [os pais] não tiveram o estudo completo, então eles fazem de tudo
pra que eu e minhas irmãs tenha, assim, tudo que eles não tiveram, então
eles fazem o impossível, então eu admiro muito isso, assim, deles, entendeu
(...) (A3)
Não se trata apenas de estabilidade financeira ou condições materiais de ter acesso a
bens materiais ou culturais, mas também de instrumentalização daquilo que representa uma
das possibilidades de entrada em um outro mundo, por exemplo, através da cultura, que em
nossa sociedade tem um valor importante. O passaporte para determinados círculos,
algumas vezes, não passará apenas pela condição econômica, mas também, pela
performance
no que diz respeito à cultura legitimada.
Ah, tem pessoas que fala, “ah, não gosto desse tipo de leitura”, mas você
não tem que saber de tudo, mas pelo menos alguma coisa, porque aconteceu
várias, assim, semana passada eu fui conversar com algumas pessoas que
tem a minha idade, têm dezenove anos, o pessoal falando assim, de João
Cabral de Melo Neto, são pessoas cultas, assim, só que não são de Santa
Bárbara, são da Zona Sul, de Copacabana, então, dependendo, são pessoas
que, pelo nível de idade, pelos fatos que vêem, tão numa parada mais assim
de, que eles falam de cultura, de literatura, de arte, eu pensei que... eu
ficava pensando em minha cabeça: “pô pessoas de 19, 20 anos falando
disso”, entendeu, então se eu não soubesse, se a escola não passasse isso
pra mim, como pessoa, eu não ia saber de nada que eles estavam falando,
quem era Cabral de Melo Neto, quem era Vinícius de Moraes, dentro da
escola eu aprendi isso, aprendi saber, aprendi um pouquinho de cada coisa.
(A4)
A escola como ferramenta de ascensão tem, ainda, outros desdobramentos: a
continuidade dos estudos, a preocupação com a família – para alguns –, especialmente
porque eles consideram que a escola é a “
a base de tudo
” (A3), que “
a formação da pessoa,
ela vem daqui, do colég
io” (A1), “
a maior parte do que sei hoje (...) aprendi na escola
” (A2),
que ela sempre teve um papel positivo (A5), além de ter ensinado
várias coisas
”, como “
ter
um auto-conhecimento
” (A4).
65
Observando essas considerações acerca da escola, percebe-se o olhar absolutamente
positivo que eles têm sobre ela. Durante as entrevistas foi o que mais chamou minha
atenção: eles gostam muito da escola. Mesmo que em suas avaliações tenham apontado
falhas ou pontos nevrálgicos das escolas que freqüentaram, ressaltaram não só a
importância prática da escola em suas vidas, mas também a relação de afetividade que
estabeleceram com a escola ao longo de suas vidas, evidenciando o quão profundamente
esta instituição marca esses jovens – a ponto de desbotar a importância dos outros grupos e
espaços de que fazem parte na formação de suas identidades, como discutimos
anteriormente .
Neste sentido, mais que objetivamente dotar os jovens de instrumentos que se
traduzam em passaporte para outras esferas sociais, a escola, de algum modo, contribui de
maneira decisiva para a construção de um imaginário na juventude que leva os jovens não
apenas a sonharem com um futuro melhor, mas, sobretudo, a construírem projetos que os
levarão até este futuro desejado.
Ingressar em um curso superior é objetivo de todos esses jovens, como podemos
constatar nos depoimentos a seguir:
no ano que vem eu pretendo fazer a faculdade e não vai ter como dar
atenção total para esse grupo (A1)
estou pretendendo fazer faculdade de psicologia (A2)
Tô terminando o EM, caso eu não faça uma faculdade, faço um... tento
primeiro um...eu tento primeiro, se eu não faço a faculdade o ano que vem,
vou fazer um curso técnico, trabalhar no curso técnico pra pagar minha
faculdade. (A4)
na minha família não tem ninguém que tem curso superior, e os que
terminaram o EM, você pergunta se quer entrar numa faculdade, nenhum
deles querem (...) eu penso em mudar a história da minha família, por mais
que... bem eu sei que vai ser difícil, por mais que eu veja que não é fácil
(A5)
No depoimento a seguir, podemos observar a relevância que o curso superior ganha
nos projetos desta jovem:
A base dos meus projetos é a leitura e a escrita. Com certeza.
POR QUÊ?
Porque o que eu decidi, a profissão que eu decidi exige muito a leitura.
66
E QUE PROFISSÃO É ESSA?
Juíza. (A3)
Não está descartado o fato de que ingressar em um curso superior parecer um
caminho “natural” para aqueles que terminaram o ensino médio, especialmente se não há
discrepância na relação série/idade; a conclusão da educação básica em idade regular ganha
uma conotação especial em se tratando de jovens oriundos das classes populares, uma vez
que, não raro, jovens pobres precisam ou dividir o tempo entre a escola e o trabalho, ou
mesmo abandonar os estudos para ingressar no mercado do trabalho e garantir sua
sobrevivência e de seus familiares.
A preocupação com a família, notadamente com os pais, foi revelada por alguns
jovens pesquisados, e chamou a atenção por dois motivos: é fato recorrente em famílias de
baixa renda que os mais novos tão logo se empreguem, além de contribuir para o orçamento
doméstico, dêem algum tipo de assistência aos mais velhos, o que faz com que essa
ocorrência ganhe certa “naturalidade”. Há, ainda, nessas falas o sentido de dívida, de
devolução do investimento feito pelos pais:
A minha vontade de vencer é querer dar aos meus pais, entendeu, o meu
objetivo, a minha vontade, assim, é querer dar aos meus pais, entendeu, o
que eles me dão agora. Então isso me... me dá força para estudar, entendeu,
eu tenho que estudar para dar pra eles o que eles estão me dando agora.
(A3)
ah, pôxa, eu penso que meus pais não vão ficar novos pra sempre, vão ficar
velhos, vão precisar de cuidado especial (A5)
O que se pressupõe a partir dessas declarações é que esses jovens estejam se
referindo à melhoria nas condições materiais das vidas de seus pais – que reflete também
afetividade pelos mesmos – e, para tanto, é necessário que eles tenham condições
financeiras de dar aos pais o conforto, a segurança, os cuidados que consideram
necessários.
O desejo de ter condições materiais de cuidar de seus familiares é aliado da
esperança (ou crença) de superação de obstáculos de qualquer ordem, fortalecida pelo
próprio fato de estarem concluindo o ensino médio, em especial sem a discrepância
série/idade, em horário matutino – em alguns casos, apesar das condições desfavoráveis. E
67
provavelmente seja isso que, principalmente, os impulsione a trilhar o caminho que
desenharam – ou que foi possível desenhar – para si mesmos.
3.1.1.5 – O trabalho como necessidade
Como já foi dito, os jovens que colaboraram com esta pesquisa tinham entre
dezessete e dezenove anos, estavam terminando o ensino médio, e pertencem a famílias de
baixa renda. Dessa forma, o trabalho ganha relevância em suas falas. Dentre os cinco que
formam o grupo, três já trabalham: uma jovem é secretária e outros dois fazem “bicos” –
um de modelo e outro de garçom –, uma quarta jovem, recentemente casada, há algum
tempo procurava emprego, mas, até então, não havia conseguido nada. Apenas uma jovem
não fez menção ao trabalho.
Nenhum questionamento sobre o trabalho fora feito durante as entrevistas, e ele
surge quando os jovens são inquiridos sobre as atividades com as quais estavam envolvidos,
além da escola, e quando falam sobre seus projetos.
Dessa forma, é citado por aqueles que já se ocupam com o trabalho – uma jovem é
secretária; um jovem dá aulas de violão em casa e esporadicamente trabalha como garçom,
e declara ainda que está tentando conseguir um emprego temporário – estávamos no final
do ano –; outro jovem, em algumas oportunidades, trabalha como modelo; uma outra
jovem, quando relata as atividades nas quais está envolvida, cita uma série de cursos
profissionalizantes que vinha fazendo: aí o trabalho não aparece como uma ocupação, mas
sim como uma busca.
Em todos esses casos, trabalho ganha o significado de
necessidade
, seja para suprir
necessidades básicas ou mesmo para garantir algum dinheiro para que eles possam adquirir
o que tiverem vontade sem ter que recorrer aos pais.
Quanto aos seus projetos, o trabalho aparece como aquilo que dará condições
materiais para a realização de seus planos, como uma ferramenta:
se eu não faço a faculdade o ano que vem, vou fazer um curso técnico,
trabalhar no curso técnico pra pagar minha faculdade. (A4)
68
Apesar de eu ter dito que gosto de teatro, de música, dou aula na igreja,
essas coisas, meu projeto pro próximo ano, agora, ele é um projeto diferente,
que no futuro vai me dar bagagem pra mim continuar, ou seja, o teatro, pra
mim continuar estudar, ou seja, eu tô primeiro intencionando a fazer algo,
curso, né, profissionalizando, na área do... voltada pra medicina, ou
enfermagem vou fazer ou radiologia. Por quê? Porque eu penso que, não sei
se eu tô certo ou errado, no futuro, coisa mais ou menos de dois, três anos,
quatro anos, pode me dar oportunidade de eu continuar estudando e tocar
esses outros projetos que eu tenho (A5)
O trabalho é problematizado de duas maneiras: primeiro quando uma das jovens fala
da dificuldade que está tendo em conseguir emprego, mesmo com as qualificações que tem,
pois já fez uma série de cursos profissionalizantes; há também um outro viés de
problematização que podemos observar nas duas citações anteriores – que, aliás, se perfila
com o pensamento da jovem: a necessidade de qualificação para se conseguir um emprego
que poderíamos chamar de razoável
22
. Então, quando o trabalho emerge em suas falas é
para apontar duas questões: a dificuldade de se conseguir uma colocação no mercado de
trabalho e a importância da qualificação profissional.
A questão do trabalho, embora não tenha tido uma centralidade nos depoimentos
desses jovens, surge como fonte de preocupação, marcada pela incerteza, comum a
qualquer jovem, especialmente aqueles que estão ou estarão em busca do primeiro
emprego, em função do encolhimento dos postos de trabalho que restringiram as
oportunidades de emprego, como pode ser visto em resultados de pesquisas divulgados
pelos meios de comunicação, por exemplo.
Outro aspecto que os depoimentos revelam é o esforço individual; inclusive, não
aparece nas falas desses jovens nenhuma menção de que esses projetos possam ter uma
base coletiva, que se origine de um projeto coletivo, mais amplo. Aqueles que fazem
referência à família, o fazem no sentido de que devem ajudar os pais, é um desejo pessoal,
como se eles tivessem um dívida. Essa apologia ao esforço individual que podemos observar
como hegemônica em nossa sociedade, infelizmente, tem gerado ilusão, especialmente nos
jovens, e conformismo com os problemas gerados pelo modo de produção em que vivemos,
que são estruturais, e não conjunturais.
22
Considero que jovens que investem em cursos profissionalizantes o fazem para não só ampliar suas possibilidades de conseguir emprego, mas
também para evitar empregos em lanchonetes, supermercados, por exemplo. Suas pretensões provavelmente estão mais voltadas para os
escritórios, clínicas dicas ou algo parecido.
69
3.1.1.6 – O lugar do lazer
O lazer, na vida dos jovens, assume um aspecto bastante significativo, ainda que não
seja o que mais o ocupe. Ganha relevância também pelo fato de ter, nesse período da vida,
importante função na formação do sujeito.
De modo geral, os hábitos de lazer desses jovens são assim configurados: alguns vão
ao cinema, à praia, saem com amigos para comer pizza, outros vão para a “balada”; uma
das jovens declarara como lazer visitas à avó nos finais de semana.
Para outros, ainda, o lazer parece se realizar de forma bastante limitada, como uma
jovem que declara que para se divertir assiste à televisão e lê
“alguma coisa do jornal,
piadinha”
, e que não vai a festas ou cinema, somente à igreja, aos domingos. Raramente vai
à casa de alguém. Outro jovem declara que joga vôlei –
“horário fixo, todo sábado
–, à
assiste televisão, ouve música e que não gosta muito de sair à noite.
Se considerarmos que ouvir música é uma forma de lazer, incluiremos para todos
esses sujeitos ainda esta atividade, assunto, aliás, sobre o qual falaram com bastante
entusiasmo, revelando a importância da música na vida deles, em especial como fruição.
O lazer tem grande importância para os jovens, de maneira geral, no entanto, os
dados desta pesquisa revelam que, com exceção da música, para todos, e do cinema, para
alguns, o lazer, para este grupo em questão, está muito pouco relacionado a eventos
culturais.
O relatório da pesquisa Juventude Brasileira e Democracia (IBASE & POLIS, 2005)
revela algumas causas de eventos culturais figurarem de forma tímida no lazer juvenil: a
pouca oferta em lugares públicos e acessíveis. Acessível na voz dos jovens da pesquisa em
questão pode significar descentralização desses eventos. Com relação aos jovens que
entrevistei isso pode ser um obstáculo de primeira ordem, uma vez que todos moram em
bairros bastante afastados do centro de Niterói ou de São Gonçalo. O bairro de Santa
Bárbara, como foi dito anteriormente, conta com uma praça onde algumas vezes são
realizados eventos culturais, mas parece não atender às expectativas desses jovens,
inclusive daquele que reside no bairro.
O relatório aponta ainda para a falta de divulgação de eventos gratuitos, dos quais a
população mais pobre, que mora distante dos grandes centros, não tem informações, o que
70
dificulta sua participação em tais atividades. Isso também pode ser aplicado aos sujeitos
desta pesquisa, uma vez que Niterói, por exemplo, conta com uma quantidade razoável de
eventos gratuitos e de baixo preço, que são divulgados, em folders produzidos pela
Prefeitura, que não chegam às mãos desses jovens, pois, de maneira geral, são distribuídos
em lugares, normalmente, não freqüentados por eles. Disso podemos concluir que não basta
o poder público ou a sociedade civil organizarem atividades culturais gratuitas, é necessário
criar condições para que, de fato, a população possa ter acesso a elas.
Como um dos obstáculos ao acesso a bens culturais é apontado, ainda, o custo para
se freqüentar cinema, teatro, espetáculos, além do próprio custo com deslocamento para os
locais onde se realizam tais eventos. Os jovens colaboradores desta pesquisa pertencem às
classes de baixa renda, o que indica que esse também possa ser um dos motivos desse tipo
de evento tornar-se quase proibido para eles.
Destaca-se, ainda, como razão para os jovens terem suas possibilidades de práticas
de lazer limitadas, a falta de segurança nos espaços públicos. Como declarei anteriormente,
esses jovens moram em locais afastados dos centros, o que aumenta drasticamente a
insegurança, a diminuição sensível de policiais nas ruas – aliás, esses, quando circulam em
bairros periféricos, de maneira geral, fazem aumentar a sensação de insegurança –, fazendo
dessa importante entrave ao lazer e à cultura.
Outro aspecto que cabe ressaltar é a hipótese de a religião também ocupar lugar de
fonte de lazer e cultura. É o que indica a fala da jovem quando fala da importância do grupo
do qual ela faz parte na igreja:
Ele não é simplesmente... é.... eu chegar lá e cantar, entendeu, faz parte
assim, porque apesar d’eu chegar e passar duas horas com eles, porque é a
hora do culto, mas é assim... são parte de mim também, entendeu, porque é,
pra você formar um grupo não é simplesmente você chegar e cantar ou
dançar com eles, você tem que ter amigo, você tem que conversar,
entendeu, é só isso só. (A3)
E ainda:
(...) E também eu faço parte de um grupo de dança na minha igreja. É só.
Domingo geralmente eu estou na igreja. (A1)
Há ainda um terceiro jovem que, pelas declarações, com exceção do jogo de vôlei, as
atividades que ocupam suas horas vagas se dão dentro de casa. Esse jovem declara ainda
ter começado a freqüentar a igreja da qual participa por volta dos quatorze anos, hoje se
71
encontra com dezenove. Não seria despropositado questionarmos sobre suas atividades de
lazer, e concluirmos que provavelmente boa parte delas se dê na igreja que freqüenta.
Reforçam nossa hipótese com relação a esse três jovens, os resultados de pesquisa realizada
em um bairro do município de Canoas-RS (SANTOS & MANDARINO, 2005). Os dados
revelaram que as atividades realizadas no interior das igrejas vão muito além dos cultos e
que as mesmas estão preocupadas, também, em atender às demandas dos jovens. A
pesquisa ressalta ainda a importância das igrejas na
“orientação e organização do tempo
livre dos jovens”
.
Segundo a pesquisadora Regina Novaes, dados da pesquisa Perfil da Juventude
Brasileira (2003) revelaram que ir à igreja nos finais de semana está entre as atividades
preferidas dos jovens
23
. O pesquisador Ronaldo de Almeida considera que uma das
principais estratégias das igrejas para atrair a juventude é a criação de espaços de lazer e
entretenimento
24
.
Dessa forma, não podemos desconsiderar a importância que tem tido as igrejas no
que diz respeito ao lazer juvenil. Além disso, participação de jovens nas mais diversas
religiões não está ligada apenas à busca espiritual; mais que isso, as igrejas têm se
convertido em importantes espaços de sociabilidade.
3.1.2 – O que falam esses jovens sobre a leitura e a produção de textos
O objetivo do percurso até aqui realizado não foi situar os jovens nesta investigação,
mas sim refletir sobre questões que dizem respeito a este grupo. A relevância disso está
diretamente ligada à concepção de linguagem como constitutiva do sujeito: o sujeito é
constituído pela linguagem ao mesmo tempo em que a constitui. E ainda, compreende-se
que o sujeito é resultado de ações históricas e sociais, mas também de suas próprias ações
e/ou re-ações sobre isso, a apreensão do mundo dependerá dos elementos de que dispõe o
sujeito para tal, além de suas própria compreensão sobre esses elementos e do próprio
mundo. Essa compreensão está atrelada à forma como se dá a relação sujeito-objeto.
Compreender o mundo significa reconstruí-lo, o que só é possível a partir e através da
experiência vivida singularmente pelo sujeito.
23
Cf. ALBUQUERQUE, 2005.
24
Cf. ALBUQUERQUE, 2005.
72
A partir dessa concepção de linguagem e de sujeito; da compreensão de que o texto
escrito é o principal recurso utilizado na escola; que este – o texto escrito – é, também, um
locus
de constituição de subjetividades; e das considerações a respeito do sujeito realizadas
acima, trabalho com a hipótese de que as concepções de leitores e produtores de texto
encontradas junto a esses sujeitos influenciam o trabalho desenvolvido na escola. Nesse
sentido, interessa saber o que pensam esses jovens sobre a leitura e a escrita, como se
relacionaram com elas ao longo de suas vidas, que significados elas têm para eles, a sua
importância em suas vidas e, principalmente, que concepções eles têm de leitura e escrita.
Considero que a maneira como encaram os atos de ler e de escrever seja
fundamental para tais práticas, e a maneira como os encaram está ligada à relação que
tiveram e têm com tais atos. Para compreender a relação que esses sujeitos estabeleceram
com a leitura e a escrita, busquei, em suas falas, suas histórias de leitores e produtores de
texto, como exercitam a leitura e a escrita, que instâncias contribuíram para formar esses
leitores e produtores de texto e, de maneira específica, como a escola contribuiu nessa
formação, e, finalmente, a importância da leitura e da escrita em suas vidas.
3.1.2.1 – A leitura
Ainda que vivamos em uma sociedade grafocêntrica, onde todos, alfabetizados ou
não, vivemos uma relação intensa com o texto escrito, onde para qualquer lado que olhemos
veremos textos e mais textos, não podemos dizer que todos têm acesso à leitura. O fato de
a escrita estar exposta de forma tão intensa não significa que, necessariamente, tenhamos
acesso a ela. É preciso que ela faça parte de nossas vidas de modo significativo. Pensando
nisso, perguntei aos estudantes se lembravam de seus primeiros contatos com a escrita, e as
respostas os levavam, ao menos inicialmente, para a escola ou a uma atividade escolar: a
alfabetização.
o que eu lembro nitidamente foi quando eu comecei a cobrir os números. (...)
(A1)
Eu fui pra escola, eu tinha... porque assim, eu não estudava numa escola
específica. Minha mãe me deixava numa crechezinha e lá a gente aprendia a
fazer essas coisas, a gente aprendia o a, e, i, o, u, essas coisas todas. (A1)
73
Eu lembro na alfabetização, quando aprendi a ler, que eu não podia ver nada,
que eu queria ler, sabe, tipo fazer um desafio: toda vez que eu andava de
carro, assim, aí passava um outdoor, eu queria ler o que estava escrito, só
que eu não tinha aquela prática, lia assim, né, juntando as sílabas
devagarinho, aí, quando passava pelo mesmo lugar, que eu conseguia ler,
então pra mim era uma felicidade. (A2)
Aquela descoberta de ler? Nossa, foi tudo, era tudo que eu olhava tinha que
ler, tudo, tudo, tudo que você possa imaginar na rua eu tava lendo, tinha, por
exemplo, se eu... (A3)
Não, não, eu tinha aquela curiosidade, o que que era isso, aí eu sempre
assim.. eu entrei muito nova pro colégio, então o despertar foi no colégio, eu
entrei no colégio tinha dois anos, aí meu despertar foi no colégio (...) é
exatamente, foi no colégio, eu passava a maioria do meu tempo no colégio,
no internato, aí, minha descoberta foi dentro do colégio. (A3)
Ah, eu ficava adivinhando o que estava acontecendo nas histórias em
quadrinho, assim. A minha mãe tinha uma necessidade de ensinar
forçadamente, eu acho que até judiamente, porque na base mesmo, se eu
não lesse aquilo ali era um tapa na mão, eu tinha que ler. Não podia ler
gaguejando, tinha que ler certinho, corretamente. Então foi um processo
muito rápido, assim, traumaticamente muito rápido, mas aprendi. (A4)
Este último depoimento sinaliza um sujeito cujo relacionamento com a escrita não
está direcionado para a prática escolar, no entanto, parece que o que há de mais importante
em suas lembranças é a maneira como a mãe o iniciou na alfabetização. Outras jovens
freqüentaram creches no período pré-escolar, onde tiveram seus primeiros contatos com a
escrita e, de acordo com seus relatos, fora como forma de instrução. Dois jovens
reconhecem, também, o contato com o texto escrito antes de terem sido alfabetizados,
como é o caso de A4, que fala das histórias em quadrinhos, e A2 que, antes de aprender a
ler, gostava de pegar os livros que ganhava do pai e contar as histórias, e lembra-se que
combinava os enredos das histórias com elementos de sua imaginação.
Alguns se declaram leitores, não lêem apenas na escola ou por obrigação escolar.
Revelam que costumam ler, de maneira geral, “revistas de fofoca”, curiosidades científicas
25
,
gibis, tirinhas de jornal, jornais – normalmente nos finais de semana:
“eu acho que domingo
é o dia que o jornal está mais completo, tem tudo”
(A2) – para
“estar informado nas
notícias”
(A4), revistas semanais, que além de trazer informações sobre a atualidade,
25
Eles denominam “revistas de fofoca” as publicações como Contigo, Quem, Caras; “curiosidades científicas” são encontradas nas revistas Galileu,
Superinteressante, por exemplo.
74
ajudam a preparar para o vestibular. Apenas uma jovem fala sobre a internet, mas parece
não conceber a leitura desse suporte como tal.
A leitura de livros parece esporádica e, geralmente, realizada para cumprir alguns
trabalhos escolares. Mas, por outro lado, cabe discutirmos um fato que chama atenção:
como já foi dito anteriormente, quatro dos cinco jovens participam de alguma religião;
desses quatro, três são evangélicos e o quarto do Seicho-no-ie. Dos três evangélicos, apenas
um declarou ler
“livros evangélicos de alguns pastores específicos, que falam sobre áreas da
vida específicas”
(A1); outro jovem quando perguntada se costuma ler livros religiosos,
declarou que
“não muito, só poucos, gosto mais de curiosidades”
(A3); e o terceiro não cita
a leitura religiosa como habitual, ainda que ele realize um trabalho de evangelização com
crianças:
“a gente ensina a usar a Bíblia, ou seja, a gente ensina “a palavra””
(A5).
O que principalmente despertou minha atenção foi o fato de nenhum dos evangélicos
declararem a Bíblia como uma leitura habitual. Conjecturo que eles pressupõem que, por se
declararem evangélicos, naturalmente entende-se que a Bíblia é um livro que faz parte de
suas leituras diárias, como fonte de reflexão ou busca de ensinamento, por exemplo; ou
ainda, de fato a Bíblia não é um livro que eles lêem com regularidade, com intuito de
refletirem sobre os textos ali inseridos, é utilizada apenas na igreja, seja no encontro dos
grupos dos quais participam ou nos cultos, quando, de certa forma, esta leitura é fonte de
uma verdade já interpretada.
O rapaz que freqüenta o Sheicho-no-ie informa que já leu alguns autores orientais,
provavelmente em função da religião, mas não fala de uma leitura regular, cotidiana, como,
por exemplo, da busca do conhecimento sobre a cultura oriental, de onde se origina esta
filosofia, que é tão diversa da cultura ocidental; tudo indica que essas leituras, quando
realizadas por ele, têm o objetivo de buscar respostas para questões objetivas, como
direções para a própria vida, resolução de conflitos pessoais.
Os jovens dizem, também, que ler não é, exatamente, um gosto, um prazer. É um
hábito
26
, uma necessidade, é importante. Quando muito, a leitura pode ser interessante.
Chamo atenção para o fato de que, como afirmei anteriormente, eles costumam ler gibis,
“revistas de fofoca”, revistas onde encontram curiosidades científicas, tirinhas de jornal, e
26
Para Carvalho (2005), a prática de leitura desenvolvida é voltada para o
hábito de ler
, que ela considera uma “conotação mecânica da leitura”.
Este tipo de prática deve ser substituída por uma outra – motivadora – “que permita desenvolver no aprendiz o
gosto de ler
, já que a ação
pedagógica que prioriza os aspectos mecânicos do ato de ler se torna inoperante” (54)
75
não me pareceu que estas leituras se incluíssem na categoria hábito ou leitura interessante,
mas, mais provavelmente, se incluiria na categoria gosto, prazer, fruição.
Isso me levou a pensar em duas categorias de leitura: a letima ou legitimada e
a ilegítima – ou marginalizada, desconsiderada, e, por isso, na sombra, esquecida –, e a
pensar que, quando formulamos uma pergunta que tenha a ver com apreciação à leitura,
eles remetem-se aos cânones, aos “monstros sagrados” da literatura, às revistas semanais,
aos jornais impressos considerados “bons para serem lidos”; aliás, sobre estes últimos,
alguns jovens desse grupo fazem referência a dois jornais assim considerados:
“O Globo é
de extrema direita, mas é bom de ser ler para estar informado nas notícias, mas o melhor
jornal, que eu acho, que fala de tudo mesmo, é a Folha de São Paulo.” (A4).
Essas leituras,
que se encaixam na primeira categoria, têm sempre um caráter instrumental: são
importantes porque ensinam alguma coisa, são importantes para o vestibular.
Olha, professora, eu vou ser sincera: eu não gosto muito de ler, sabe, mas eu
sei que ela, que a leitura tem um papel muito importante, porque quem lê
bem consegue escrever bem, entendeu, e todas as leituras que eu faço, eu
faço pensando nisso: eu tenho que ler, eu tenho que ler, eu tenho que ler,
porque quando eu vou enfrentar uma faculdade ou qualquer concurso pela
frente, eu não posso ter dúvida de escrever uma palavra ou outra, e eu tenho
essa consciência: eu leio porque realmente tem que ler, porque sinceramente
eu não gosto de ler muito, gosto mais de ler piada, revista em quadrinho,
mas livro, jornal, eu leio mesmo porque tem que ler, pra poder se atualizar,
porque sinceramente, eu não gosto de ler. (A1)
Apesar de declarar com veemência que não gosta de ler, a jovem fala de uma leitura
que realiza, mas que não considera como tal, porque apesar de dizer que gosta de ler
piadas, revista em quadrinho, afirma não gostar de ler. Ler, então, significa ler livros que
façam parte do rol de leituras consideradas cultas. Brito (2003: 127) declara que
“a leitura é
um comportamento social que se articula com os modos de inserção social do sujeito no
mundo”
.
Mesmo o rapaz que é ator e músico parece desconsiderar suas leituras para ou sobre
o teatro e a música. Isso, de certa forma, entra em choque com as categorias que antes
indiquei. Em princípio, as leituras para ou sobre o teatro e música são legítimas,
culturalmente valorizadas pelas classes dominantes, no entanto, as leituras realizadas pelo
jovem ator foram esquecidas por ele, ficaram à sombra. Uma explicação possível para isso
seria que, uma vez que a escola, de certa forma, desconsidera o jovem como um ser
integral, e centra seu olhar apenas sobre a dimensão do aluno, cria, ao mesmo tempo, uma
reação igual no jovem: aquilo que ele realiza fora da escola, fora das obrigações escolares,
76
para ele, e muitas vezes para a própria escola, não se relaciona com as questões escolares,
não tem a menor relação com os saberes construídos na e pela escola, além de não ter
valor.
Há, ainda, as letras das músicas, também desconsideradas por eles – e acrescento
que por nós, professores, também, com exceção de alguns poucos compositores como Chico
Buarque, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro, por exemplo –, apesar da
declaração dessa jovem:
Ah, eu gosto de todos os tipos de música assim, depende muito da letra, mais
pela letra da música assim, que eu gosto.
Porque, assim, só o ritmo não quer dizer muita coisa, a letra que, que dá o
significado da música, que dá um sentido pra música, não é só por causa do
ritmo que você dança que você vai gostar da música. Às vezes a música tem
um ritmo legal pra você dançar, e a letra é péssima, horrível, tipo assim,
alguns funks, não sou muito chegada. (A2)
Todos eles falaram de seus gostos musicais: A1, por exemplo, cita o hip hop (rap)
como uma de suas preferências. Vale lembrar que o rap é marcado pelo exercício da crítica
social, e, de certa forma, dá voz àqueles que vivem nas periferias. A5 destaca como um de
seus cantores preferidos Bezerra da Silva, outro cantor e compositor famoso pela ironia, pelo
tom crítico impresso em suas letras. No entanto, essas leituras parecem ser ignoradas como
tais; isto me leva a pensar que também é ignorado um saber que pode ser construído a
partir disso.
A partir do que é desconsiderado, por eles, como leitura, vale perguntar: que espaços
e territórios de leituras marcam esses jovens? Que importância eles têm? Como eles se
revelam nesses sujeitos?
Provavelmente, a principal marca seja a da escola; talvez seja mais correto dizer da
leitura que comumente chamamos de escolarizada. Esta se alia àquela que anteriormente
chamei de legitimada, que embora chamemos de leitura escolar, não é de fato da escola,
mas especialmente daqueles que detêm a hegemonia desde os áureos tempos. Regina
Zilberman (1988: 06) diz que o ensino de língua portuguesa,
[regido] pelo objetivo final de domínio do código escrito e da norma culta, pôde
ser eficiente enquanto aquele código e aquela norma eram expressão
espontânea dos grupos sociais que passavam pela escola. Esses não iam à
escola para aprendê-la pela primeira vez, mas para expandi-la e garantir sua
supremacia. Por esta razão, nunca deixou de vigorar, no Brasil, uma tradição
retórica que teve seus adeptos nos bacharéis ociosos do Império e da Primeira
77
República, criticados por poucos, como Lima Barreto, mas socialmente
valorizados, e que não desapareceu com a liquidação de nosso ancien
régime.
Esses grupos sociais, atualmente, não contam apenas com a escola para a difusão de
um determinado tipo de leitura, mas há também a grande mídia que ajuda, e muito, na
naturalização daquilo que é cultural e socialmente construído.
Mas se por um lado a escola reafirma um modo de ler, de compreender, de
interpretar, por outro, em se tratando das classes populares, tem oportunizado àqueles que
por ela passam experiências significativas de leitura:
Já, já aconteceu o seguinte: ocorrer por obrigação da escola, depois eu
gostar e passar a ser lazer. Esse ano então, foi um ano assim, que eu... me
apresentaram muitos autores, muitos escritores, né, que eu não conhecia. Ou
seja, da nossa literatura eu não conhecia nada, pelo menos esse ano me
apresentaram uma parte, uma pequena parte, e daí eu fui buscar, aí eu
peguei livros de... falando sobre a literatura brasileira, sobre essas coisas.
Esse ano, mais ou menos, ocorreu disso, obrigação, ah, tem que ler, porque
fazer trabalho, aí depois eu gostar... Um exemplo foi Vinícius de Moraes: me
apaixonei pela obra dele, pelas coisas que ele fez. Na área de leitura, eu
gosto de ler muito, não tenho o hábito, mas eu acho que, assim, o que eu
faço é pouco. (A5)
eu criei o hábito pela leitura... quando cheguei no primeiro ano, que antes,
assim, me falam assim, eu não me importava muito com esse negócio não, só
lia dever de escola mesmo. Mas do primeiro ano até o terceiro eu comecei a
escolher meus próprios livros que eu já li, que gostaria de ler. Aí eu
também... no primeiro ano, eu tinha aulas com certas professoras, Gedalva,
aí ela foi incentivando algumas coisas, um livro que eu procurasse pra ler, se
eu não entendesse eu voltasse a ela, por que não compreendi, aí fui lendo,
fui lendo, fui lendo(...) (A4)
De maneira geral os jovens acham que a escola contribuiu positivamente para os
leitores que são hoje: é a escola que dá o suporte técnico para a leitura – ensina a ler; os
professores incentivam, ajudam os alunos a ler, a interpretar, a se expressar. Mas seus
depoimentos trazem, também, avaliações menos positivas, mais críticas.
há escolas que contribuem mais, há escolas que contribuem menos. As
escolas que eu estudei, pelo menos até a sétima série, contribuiu pouco pra
isso. Foram outros... houve leitura, houve; houve dissertação de textos, essas
coisas todas, houve, mas pouco. Então eu acho que desde o iniciozinho a
criança, ela já deve é, é, no colégio, já deve começar a ensinar, entendeu,
ensinar, não, a... puxar mais pra esse lado da leitura, esse lado da escrita,
pra criança começar a criar dentro dela o desejo de ler, o desejo de escrever,
entender que pra ela ler, pra ela escrever bem ela precisa ter uma boa
leitura, mas não ler por obrigação, ler porque é necessário. Eu acho que o
papel da escola deveria ser esse, desde a infância, e até hoje ainda é, pelo
menos a minha professora de literatura incentiva muito os alunos a ler,
entendeu, as obras, e tal, ela vem passando as obras dos escritores, pintores,
78
escultores famosos, ela traz pra gente, só que a turma não dá muita
importância, eu acho que foi por causa da formação desde menor, entendeu,
porque não foi muito puxado por esse lado da leitura, da interpretação. (A1)
Acho que a escola me ensinou várias coisas, como, é... padronizar a minha
escrita, ter, ter a cabeça de ler vários tipos de textos, ter um auto-
conhecimento. Então eu acho que a escola ainda não está bem equipada,
porque não tem um incentivo de oficina de leitura; bom, nas escolas que eu
estudei não tem esse padrão. As bibliotecas, quando têm, não são totalmente
equipadas, eu acho que falta muita, muita coisa na escola. Eu acho que a
escola ajuda a formar o cidadão, a ser uma pessoa direita, com ideais, que
pensa no futuro, essas várias coisas, mas não dão, é, a base pra pessoa ser
uma pessoa ser tão culta, ter um costume de ler, ter o hábito mesmo de ler e
de escrever (A4)
As críticas presentes neste último depoimento têm como parâmetro a cultura
legitimada, tanto no que diz respeito à norma padrão da língua, quanto aos (prováveis)
hábitos daqueles cujo desempenho lingüístico mais se aproxima de tal língua padrão; assim
se justificam algumas expressões como “pessoa culta”, “padronizar a escrita”. E, se a escola
representa, majoritariamente, as manifestações culturais e sociais dos grupos dominantes da
sociedade, essa declaração ganha legitimidade.
Do depoimento anterior a este, quero destacar a observação feita pela jovem de que
a escola deve criar na criança,
“desde o iniciozinho”
, o desejo de ler e escrever. Já é lugar
comum ressaltar a importância da escola como principal agência na formação do leitor,
especialmente para as classes populares, mas esta não é a única. Considero, inclusive, que
devemos questionar essa centralidade da escola na formação do leitor. Várias pesquisas e
outros tantos testes realizados pelas diversas instâncias governamentais vêm divulgando
resultados que comprovam o fracasso da escola, especialmente a pública
27
, neste quesito.
Aliás, esta pesquisa é fruto do questionamento da qualidade dos leitores formados pela
escola.
Claro que o papel da escola, também, deve ser o de formar leitores em qualquer nível
de ensino, inclusive no superior, mas o fato é que a escola não tem dado conta disso. Se a
escola algum dia deu conta disso, o fez apenas enquanto era somente para os filhos da
classe dominante, que iam ler na variedade que podemos chamar de “variedade materna”,
que não era estranha para eles. Na medida em que ela passa a receber um grande número
de estudantes que são usuários de outras variedades, que trazem
“uma outra norma,
“inculta” por contraposição ao padrão dominante, e uma outra prática, caracterizada pela
27
Aqui vale a observação de que o sucesso na formação de leitores nas escolas privadas ou as públicas que estão a serviço de uma clientela
selecionada (como os colégios de aplicação das universidades públicas, por exemplo) não se dá única e exclusivamente em função do trabalho
realizado nestas escolas, mas também em função do
habitus
79
ênfase nos modelos de expressão oral e gestual”
(ZILBERMAN, 1988: 07), não se encontra
mais preparada, equipada para ensinar a ler e a escrever a
todos
aqueles que por ela
passam, mas apenas aqueles alguns que se reconhecem naquela variedade propagada pela
escola, pelos livros, pelos livros didáticos, pelos dicionários, pelos jornais impressos, pelos
professores, médicos, advogados, engenheiros, escritores, jornalistas.
Ao contrário do que muitos pensam, inclusive os jovens colaboradores desta
pesquisa, um leitor não é formado na escola, mas
também
na escola. Com relação aos
jovens desta pesquisa, considero que as várias instâncias formadoras de leitores que eles
participam não são consideradas como tal; já me referi a isso anteriormente. As informações
sobre essas outras agências, que não a escola, saem de suas declarações, de seus
cotidianos: as famílias, as igrejas, os cursos, os grupos, o teatro, a música, a mídia. Para
esses jovens, a cultura e o lazer parecem não contribuir de forma mais objetiva na
construção dos leitores que são, ou que poderiam vir a ser. A própria leitura na internet, se
não for para pesquisa escolar, é desconsiderada como leitura.
Então, quando esses jovens declaram que ler e escrever é muito importante, não se
referem a qualquer tipo de leitura – inclusive aquelas que eles fazem –, mas sim à leitura
canônica, à leitura de textos legitimados, realizada de uma forma também legitimada. O que
eles buscam, e creio que sem ter consciência disso, é a forma discursiva da classe
dominante, e essa busca demonstra que, de alguma maneira, eles têm consciência de que
seus falares e seus saberes são “capitais não rentáveis” na sociedade (GERALDI, 1995: 16)
Pra mim, a única importância que tem em ler e escrever é você... Assim,
tem várias importâncias, não tem uma só, mas eu... não tem uma só, e
eu acho que é importante porque você lê, você aprende o que você está
lendo, você tem conhecimento do que você está lendo, é uma forma de
você... eu acho assim, pra mim ler, eu consigo me expressar melhor
porque eu conheço as palavras, (...) (A1)
Eu acho que é muito importante, não sei por que eu acho, porque não
sei, não me lembro muito direito como é sem saber ler nem escrever.
Mas eu vejo pela minha vó, porque minha vó não sabe ler nem escrever.
Então eu acho assim, eu acho muito triste, porque ela quer pegar o
ônibus, ela não sabe ver número, entendeu (...) Eu acho, assim, muito,
muito triste mesmo, acho que toda pessoa tinha que saber ler e
escrever. (A2)
Eu acho que uma pessoa que não sabe ler e escrever é uma pessoa que
pode ser lesada por várias outras que sabem, ela fica excluída do meio
social que vive, ela fica excluída da sociedade, as pessoas olham para ela
com uma cara de pena, tipo, ‘coitado do burrinho que não sabe ler nem
escrever, tem que usar o dedão pra carimbar as certas coisas’ (A4)
80
No depoimento a seguir, esta jovem realiza uma reflexão que talvez seja o que
melhor evidencie o lugar e o papel da escrita em nossa sociedade, a ponto de ela
declarar que infelizmente, para sobrevivermos, hoje em dia, temos que saber ler e
escrever, mostrando o grau de reificação da atividade da escrita e da leitura:
É importante sim, com certeza. Infelizmente hoje em dia é valorizado
mais isso na vida do ser humano do que o Ser, entendeu, a pessoa por
dentro. Infelizmente ele tem que saber ler, tem que saber... pra ser virar
na vida, porque tudo hoje na vida é a leitura, é a escrita.
E POR QUE VC ACHA QUE TUDO NA VIDA É A LEITURA, É A ESCRITA?
Porque a valorização do mundo hoje é isso.
COMO ASSIM?
Porque, por exemplo, se você, é... pra você conviver no mundo de hoje
em dia tá muito difícil, entendeu, você tem que ter um emprego, pra
você ter um emprego você tem que ter a escrita, você tem que saber
falar, você tem que saber ler, você tem que saber se comunicar, e se
você não tiver isso você não vive, entendeu, ou melhor, você não tem
uma base pra viver, uma base pra se alimentar, pra cuidar dos seus
filhos, pra construir a sua vida. (A3)
A leitura tem valor, não pela possibilidade de ampliação de conhecimento e processos
interlocutivos que podem ser realizados apenas por alfabetizados (GERALDI, Op. cit.: 19),
mas sim, ou principalmente, porque a sua falta alija o indivíduo do acesso a bens materiais
e, também, porque aquele que não sabe ler e escrever sofre com a discriminação.
Ainda que a exclusão social tenha raízes muito mais profundas e que a
impossibilidade de acesso à escrita e ao mundo letrado seja uma conseqüência, e não uma
causa da marginalização em que vive grande parte da população, o que esses alunos
declaram não é de todo falacioso, pois, de fato, a escolaridade, ou melhor, a falta dela, tem
funcionado como uma das tantas barreiras que impedem que muitas pessoas possam
usufruir de bens materiais e culturais, por exemplo.
Todos têm que saber ler. Na sociedade grafocêntrica em que vivemos, onde a todo
momento nos é solicitada tal habilidade, saber ler significa poder participar das mais
diversas instâncias da vida pública e privada. Mas, para participar de algumas dessas
instâncias, não basta conhecer a técnica da leitura, não basta almejar o domínio da
81
variedade padrão, é necessário que estejamos atentos aos encantamentos promovidos pelo
domínio dessa variedade – elevada à norma do português brasileiro – que, ao contrário do
esperado, muitas vezes não emancipa, mas sim escraviza, promovendo o apagamento de
todas as outras variedades, como se fosse ela a grande mãe, e as outras, na verdade, filhos
que se rebelam contra a própria mãe.
O não reconhecimento das variedades populares as coloca na marginalidade e,
consequentemente, coloca também na marginalidade o sujeito portador de uma dessas
variedades. E este sujeito entende – e há mecanismos muito eficazes que constroem esse
entendimento – que para sair da marginalidade social é necessário não apenas que troque
de roupa, mas que, de certa forma, troque de alma.
3.1.2.1.1 - Os significados da leitura
Os significados que a leitura tem para esses jovens, ao mesmo tempo em que são
diversos, orientam-se para uma concepção de leitura: aquela considerada legítima. A
expressão “interpretar texto” é um jargão da escola que significa “tirar
o
sentido
do texto”,
“entender o que o autor
quis dizer
”. E esta expressão é ouvida pelo estudante – e
pronunciada pelo professor, pelo livro didático, importantes
“palavras alheias”
(BAKHTIN,
2003) – desde que este entra na escola, e o mais provável é que sejam estes os significados
que eles atribuem a essa expressão. No intuito de organizar os valores atribuídos à leitura
enquanto lidava com os dados, fui destacando os sentidos que ela tinha para eles. Ler serve
para:
se comunicar
Ah, não sei... talvez eu não saberia como seria a vida sem saber ler nem
escrever, deve ficar mais difícil pra você se comunicar, sei lá, com as pessoas,
você não sabe ler e escrever. (A2)
eu acho assim, pra mim ler, eu consigo me expressar melhor porque eu
conheço as palavras (...) (A1)
82
adquirir conhecimento
eu acho que é importante porque você lê, você aprende o que você está
lendo, você tem conhecimento do que você está lendo (...) (A1)
estou pretendendo fazer faculdade de psicologia, então pra eu ter os meus
estudos eu preciso saber ler e escrever, se não eu não vou conseguir adquirir
nenhum conhecimento. (A2)
não ser enganado
uma pessoa que não sabe ler e escrever é uma pessoa que pode ser lesada
por várias outras que sabem (...) (A4)
não ficar excluído da sociedade
Eu acho que uma pessoa que não sabe ler e escrever é uma pessoa que pode
ser lesada por várias outras que sabem, ela fica excluída do meio social que
vive, ela fica excluída da sociedade (...) (A4)
não sofrer discriminação
as pessoas olham para ela com uma cara de pena, tipo, “coitado do burrinho
que não sabe ler nem escrever, tem que usar o dedão pra carimbar as certas
coisas”, fica... eu acho que tem um tipo de preconceito com essas pessoas
que não sabem ler e escrever (...) (A4)
ser alguém na vida
pra você ser, sei lá, pra você ser, sei lá, qualquer coisa na vida aí, você precisa
ler (...) (A1)
resolver situações cotidianas
O projeto da minha casa, se eu não soubesse ler, se eu não soubesse
escrever, estaria perdida, né? (A2)
saber conversar
Então, o que que acontece, eu acho que você ler bastante, ler um pouco de
tudo, assim, se você é curioso você tem que ler tudo, tem que descobrir um
pouco de tudo, porque se não, você vai chegar no meio de uma roda de
amigos, você não vai saber conversar com eles não vai saber se expor em
certas situações, então eu acho que você tem que saber de tudo. (A4)
83
ter conhecimento do que acontece no mundo, não ficar alienado
se você sabe ler e escrever, você está a par da situação que tá acontecendo
com você, você tá a par da situação do seu país, do seu mundo, do seu meio
que você vive. Porque, se não você fica uma pessoa desligada do mundo,
você fica uma pessoa como se fosse uma marionete, você fica... você deixa
levar muitas vezes por pessoas que querem influenciar, assim, essas pessoas
que não sabem ler. (A4)
falar
certo
é uma coisa muito importante porque eu sei que falo muita coisa errada
ainda, emprego as coisas erradas (...) Então eu vejo que pra mim, ler e
escrever é importante, até mesmo pra mim saber me expressar com as
pessoas... aprender, não é? (A5)
escrever bem
Quem lê, eu acho que se pronuncia melhor, escreve melhor, aprende a
escrever. Porque tem muita coisa que você acha que sabe escrever, mas
quando você lê você vê que não é (....) É importante mesmo, é importante
ler. (A5)
eu acho que sabendo ler você sabe escrever também. (A4)
quem lê bem consegue escrever bem, entendeu?
pra escrever bem você tem que ler muito (A1)
ganhar segurança
Porque lendo eu procuro tirar a ansiedade, procuro agir natural, procuro tirar
do texto a mensagem certa, entendeu. Então pra mim tá sendo maravilhoso
(...) (A5)
ampliar vocabulário
eu consigo me expressar melhor porque eu conheço as palavras (A1)
ser valorizado socialmente
Porque, por exemplo, ser você é... pra você conviver no mundo de hoje em
dia ta muito difícil, entendeu, você tem que ter um emprego, pra você ter um
emprego você tem que ter a escrita, você tem que saber falar, você tem que
saber ler, você tem que saber se comunicar, e
se você não tiver isso você não
vive, entendeu, ou melhor, você não tem uma base pra viver, uma base pra
se alimentar, pra cuidar dos seus filhos, pra construir a sua vida. (A3)
84
De maneira geral, o modo como esses jovens significam a leitura produz uma aura
em torno da escrita que a transforma em agente de salvação (FREIRE, 1985), ao mesmo
tempo em que é reduzida quase que exclusivamente aos seus valores utilitários, reificação
tão comum a vários bens culturais nos dias de hoje. Assim, a escrita não é pensada,
entendida, significada como um bem cultural, patrimônio construído por mulheres e homens,
importante elemento de constituição e, no dizer de Geraldi (Op. cit.: 10),
“espaço ampliado
de constituição
”. Antes, passa a ser desejada, almejada como um
utensílio
para aquisição de
bens materiais.
Mas se esses significados revelam os olhares desses jovens sobre a leitura, trazem
também importantes denúncias: baixa auto-estima, marginalização das variedades
lingüísticas de seus grupos sociais, necessidade de possuir os saberes “reconhecidos”,
exclusão, discriminação. E o mais importante dessas denúncias talvez seja o fato de que
quem as faz, além de parecer não ter consciência da realidade que expõe, tem certa razão
em dizer assim a escrita, uma vez que esta tem sido utilizada como importante instrumento
de classificação tanto daqueles que dominam a técnica, como daqueles que não.
3.1.2.2 – A produção de textos
Durante as entrevistas, pude experimentar uma série de surpresas, umas agradáveis,
outras, nem tanto. Trago esse longo diálogo entre mim e esta jovem, A1, porque considero
que esse foi um dos momentos de maior singularidade que vivi durante as entrevistas.
PRAS COISAS QUE VC PROJETA PARA A SUA VIDA, VOCÊ ESTÁ
TERMINANDO O ENSINO MÉDIO, VAI FAZER FACULDADE... QUAL A
IMPORTÂNCIA DA LEITURA E DA ESCRITA?
É muito necessária, não tem nem como dispensar essas duas, esses dois
itens, não tem como dispensar. Na minha opinião, é necessário pra
qualquer... qualquer formação superior que a pessoa venha a fazer, ela tem
que ter. O mínimo que ela tem que saber é ler bem e escrever bem.
(...)
VOCÊ COMEÇOU ESSE TRABALHO SISTEMÁTICO COM A LEITURA E A
ESCRITA ANTES DE IR PRA ESSA ESCOLA?
85
Antes de ir pra uma escola em si, antes de ir, eu lembro que eu gostava, eu
gostava de rabiscar. Eu gosto de escrever. Hoje em dia eu não gosto de
escrever, porque eu tenho o contato com o computador, então, eu não gosto
de escrever na mão, eu gosto mesmo é de digitar.
MAS VOCÊ ESCREVE.
Então.
NO COMPUTADOR
Agora ler é que eu nunca gostei muito, mas escrever eu adorava escrever,
rabiscava, procurava coisa pra fazer, entendeu, sempre foi assim.
(...)
A LEITURA E A ESCRITA PRA VC TÊM SIDO MUITO MAIS DA ORDEM... É
PRÁTICO, É NECESSÁRIO, MAS ASSIM, NUNCA FOI UM GOSTAR... VC GOSTA
DE LER PIADAS, GOSTA DE LER GIBI. ASSIM, SE ALGUÉM PERGUNTA: VC
GOSTA DE LER E ESCREVER? QUAL SERIA A SUA PRIMEIRA REAÇÃO PRA
ISSO?
Aí eu falaria assim: eu gosto muito de escrever, e ler, com algumas exceções.
E QUE DIFERENÇA HÁ ENTRE LER E ESCREVER, POR QUE ISSO É
DIFERENTE PRA VOCÊ?
Olha...
O QUE VC GOSTA DE ESCREVER?
Assim, não tem um texto, um assunto que eu gosto de escrever, quando eu
falo que gosto de escrever, é escrever mesmo, fazer cópia, essas coisas
assim, eu não me importo de escrever, se tiver que escrever muito ou pouco,
não me importo. (A1)
“Eu gosto de escrever”.
De modo geral, nossos alunos não querem escrever,
reclamam muito quando solicitamos que escrevam algumas linhas. Custei a entender o que
ela queria dizer com isso. Aliás, não demorei a entender o que ela queria dizer com “
eu
gosto de escrever
”; eu não entendi. Foi necessário que ela dissesse com todas as letras:
quando eu falo que gosto de escrever, é escrever mesmo, fazer cópia”.
A perplexidade
tomou conta de mim. Esta era a primeira entrevista que a aprendiz de pesquisadora estava
realizando e esse foi um importante exercício de
suspensão de evidência
(AMORIM,
2004:26). Não esperaria, de modo algum, que o adorar escrever significasse fazer cópia.
Depois disso fiquei pensando na expressão
“escrever mesmo”
. O que significa
“escrever mesmo”
? Como pode uma jovem que vive em um centro urbano, em fase de
conclusão do ensino médio, que esteve por tantos anos na escola básica e pretende
86
ingressar no ensino superior, conceber a escrita como
fazer cópia
, como uma mera atividade
motora? Que condições levaram essa jovem a produzir essa concepção de escrita?
A jovem indica, ainda, outra possibilidade, quando questionada sobre uma escrita
cujo conteúdo seria por ela elaborado: a poesia; diz que é sempre sua primeira opção. Por
quê?
Porque eu sou uma pessoa muito romântica, entendeu?, eu sou muito
romântica, então, quando eu era mais nova, eu adorava livro de poesia, hoje
em dia eu não leio muito livro de poesia não, mas eu só pegava livro de
poesia na biblioteca do colégio pra poder ler, e a única diferença de ler e
escrever é porque eu gosto de escrever, mas... porque ler você tem que
parar, você tem que prestar atenção no que você está fazendo... escrever
também, mas eu acho que escrever é mais fácil, porque ler assim, às vezes
me dá um pouco de dor de cabeça, sono, aí são coisas que me impedem.
(A1)
Naquela que escreve ora se revela a escrevente
28
, ora a romântica que idealiza uma
determinada forma de escrever. Volto a questionar: que condições levam essa jovem a
produzir esta segunda concepção de escrita? Uma concepção claramente ancorada na crença
de que para escrever é preciso ter inspiração; logo, se um indivíduo não consegue produzir
um determinado texto é porque não foi tocado pelo “entusiasmo
29
criador”. Tal concepção
do escrito como produto da inspiração se funda no equívoco de que somente aqueles que
têm o
dom
podem produzir um bom texto, seja ele voltado para uma atividade artística ou
não. Aliás, esta jovem, que diz optar pela poesia quando elabora um texto, declara
: “(...)
mas eu não tenho o dom de escrever não, não tenho esse dom (...)”
.
Vejamos o que dizem os outros jovens participantes desta investigação sobre o ato
de escrever:
É tentar passar, assim, tentar passar tudo aquilo que você sente através da
escrita. Mesmo se tiver de forma errada, gramaticalmente errada, você
tentando passar pra’quele papel, todas suas emoções, todo seu... todo seu
aprendizado, tudo de... de escola, que se aprendeu em escola, em outras
coisas, tá passando pra’quele papel o que que é você. Se você fizer uma
redação, “quem sou eu?”, você só vai passar pro papel o que você sente, o
que você tem dentro de si. Então, pra mim, é isso. (A4)
Escrever pra mim, é passar, transmitir, saber passar, através de letras, pro
papel, tudo aquilo que você quer passar, informação, ou seja, qualquer coisa
que você queria anotar. Eu acho que escrever é importante, mas acho que a
28
Escrevente. [Do lat.
Scribente
.] S. 2 g. Pessoa que copia o que outrem escreve ou dita; escriturário, copista. (HOLANDA FERREIRA, 1986:
691)
29
Entusiasmo. [Do Gr.
Enthousiasmós
, inspiração divina] S. m. Exaltação das faculdades da alma que torna sublimes os escritores, os oradores e
os artistas. (DICIONÁRIO de Língua Portuguesa On-line, consultado em 26/04/06)
87
gente lê mais do que escreve, talvez por isso que as pessoas dão mais
atenção à leitura do que a escrita. Ah, eu acho que é isso. (A2)
Escrever pode estar relacionado, ainda, a “passar” para o papel determinado
conteúdo. Passar para o papel o que se sente, revelar quem é o sujeito que escreve e o seu
íntimo. Escrever é revelar-se, apostando-se na transparência da linguagem. Acredita-se,
também, que a escrita é uma transcrição da fala: “
tentar passar tudo aquilo que você sente
através da escrita
,
“saber passar, através de letras”.
Escrever é codificar. Transfere-se
para o outro o que se pensa, e o veículo utilizado neste caso será o papel. É clara a
influência de uma concepção de linguagem como mero instrumento de comunicação neste
conceito de produção de textos.
“ (...) o sistema lingüístico se ‘dá’ e como tal se ‘recebe’,
reduzindo-se o papel dos participantes do discurso à codificação e decodificação das
informações na mensagem onde tudo está dito e manifesto.”
(FRANCHI, 1977: 10, nota de
rodapé)
Em seus depoimentos esses jovens revelaram o quanto escrevem: muito pouco. E
essa é uma realidade para todos nós, especialmente nos dias de hoje, quando dispomos de
tecnologias que permitem que nos comuniquemos, em longa distância, através da oralidade
e das imagens, por exemplo. Escrever não é uma atividade ordinária como falar, ver, ou
mesmo como ler:
“(...) todos necessitam de um modo ou de outro saber ler certas coisas, mas
o número cai enormemente quando se conta quem necessita produzir a
escrita na proporção do que lê. Muitas pessoas podem até ler jornal todos os
dias, mas escrevem muito raramente.” (CAGLIARI, 1989: 102, apud
QUEIROZ, 2000: 17)
De fato, dentre as possibilidades de interação, a escrita ocupa um lugar de raridade
no nosso cotidiano, e quando a utilizamos, realizamos algumas simples anotações, que não
chegam a ser atividades que requeiram elaboração relativamente complexa.
Pensando nisso, uma pergunta surge: qual o objetivo do ato de escrever na escola?
Talvez seja essa pergunta, ou suas respostas, fundamentais. Para que os estudantes
escrevem na escola? Ainda que se concorde que no dia-a-dia possamos prescindir de
escrever para que entremos em interação com o outro, é inconcebível que na escola, o
objetivo principal do ato de escrever seja a comunicação, entendida como ato de
transmissão de informações. Ao menos é isso que revela a fala desses jovens: escrevem
para comunicar o que sentem, para comunicar o que aprenderam, para comunicar quem
são. Escrevem para comunicar.
88
Pode-se, ainda, escrever para anotar. O estudante anota em seu caderno ou fichário
o que o professor dita ou escreve no quadro. Escrever, na escola, pode ser tomar nota.
Tomar nota para quê
? Tomar nota não é uma atividade, em si mesma, passiva ou ativa; o
que define tal ato é a postura do sujeito diante da ação que realiza e daquilo que ele anota.
Um sujeito pode realizar apontamentos de uma aula a partir de seus interesses conjugados
às orientações do professor, por exemplo; pode também apenas tomar nota daquilo que diz
o professor, de uma forma um tanto mecânica. Pode, posteriormente, fazer uso, ou não,
daquilo que anotou. Realizar anotações na escola pode ser, de fato, uma forma de escrever
que contribui para a construção e apropriação do conhecimento.
O significado dado por A2 não evidencia um indivíduo agente do ato, um sujeito que
tenha se apropriado deste ato de escrita, ao contrário, esclarece um tipo de prática na
escola, e fora dela, que se assemelha à cópia realizada por A1. Para que os estudantes
escrevem na escola?
A2 ainda diz que durante um determinado período em que se ausentou da escola
uma semana – não escreveu. Escreve muito pouco:
eu tenho preguiça de escrever. É... escrever é importante, mas, não sei, eu
escrevo pouco, não sou muito pessoa de escrever. Tem gente que gosta de
escrever, contar a vida, escrever em diário, escrever em agenda, pra mim,
não, só escrevo quando é necessário. Por isso eu não gosto muito de
escrever. Também porque minha letra é feia. (A2)
Escrever somente quando necessário. Pode-se dizer que essa é uma prática
majoritária na sociedade. Parece que fora da escola esses jovens não têm muita necessidade
de escrever, o que, como já foi dito anteriormente, isso é comum a todos nós nos dias de
hoje. E dentro da escola, quando é necessário escrever? Provavelmente a prática de
escrever se dê quando esses jovens fazem exercícios, avaliações, trabalhos – que
geralmente são em grupo e um redator é escolhido –, algumas poucas redações.
O que, realmente, está em jogo no que diz respeito ao ato de escrever? Por que
escrever é tão desconsiderado, e não só pelos nossos jovens estudantes, mas para muitos –
como para os professores sujeitos desta pesquisa, por exemplo, como veremos mais adiante
–? Por que a recusa em escrever, e não qualquer escrever, mas um escrever que significa
dizer a própria palavra? Será de fato uma recusa ou há uma lógica que impede o sujeito de
dizer-se?
89
Tornando evidente a força dos controles sociais, há uma grande preocupação por
parte desses jovens com relação à correção: é preciso escrever certo. Escrever certo significa
estar de acordo com as regras gramaticais, como se pode observar neste diálogo com A2:
Português você usa mais, por causa da gramática, tem que saber escrever
direito. Mas o que acontece realmente é que ninguém escreve bem (...)
E O QUE É ESCREVER DIREITO?
Escrever direito é escrever certo.
O QUE QUE ISSO?
Escrever certo é você saber escrever, sem escrever de tudo muito errado,
assim, entendeu, botar letra errada, não ta concordando o verbo com o sujeito,
saber escrever corretamente. (A2)
Também pode-se observar isso nos depoimentos que se seguem:
Eu gosto de escrever certo, não gosto de escrever errado, em casa às vezes eu
tô... eu tenho a mania de pegar o caderno e saio escrevendo. Sem tema, sem
nada, eu saio escrevendo. Eu vou escrevendo pelo menos duas, três... (A5)
(...) escrever, é mais uma parte mais gramatical, eu acho que você escreve
muitas vezes como você fala como você se expressa, então, às vezes, assim, às
vezes, você se expressa de forma errada, assim, muito coloquial, não é uma
forma muito erudita. (A4)
A possibilidade de interlocução e de produção de conhecimento a partir da produção
de um texto parece nula. O que mobiliza os jovens a escrever são obrigações escolares que,
pelo que dizem, não demandam elaborações muito complexas. E o que podemos pensar
diante do fato de que estudantes em fase de conclusão do ensino médio concebam o ato de
escrever como copiar, anotar, passar para o papel, um dom, um ato cansativo?
Ainda no que diz respeito à produção de texto há uma manifestação unânime pela
preferência do ler sobre o escrever. Em suas declarações, há duas importantes justificativas
para isso: eles lidam melhor com o ato da leitura do que com o da escritura; ler ajuda a
escrever melhor.
Anteriormente falamos sobre a primeira justificativa: a maneira (ou as maneiras) com
que eles se posicionam diante do ato da leitura os leva, de modo geral, a conceber a leitura
como contactar um conhecimento que será apreendido sem muito esforço, de forma
mecânica.
90
A segunda, ainda que seja considerada uma premissa verdadeira, pode ser falaciosa,
e não pelo seu próprio significado, mas pela relação de causa e efeito que alguns – talvez
seja melhor dizer a maioria – imprimem a ela. Da maneira como se fala sobre isso, parece
que a imersão na leitura vai, necessariamente, gerar um excelente produtor de textos.
Leitura e escrita são duas atividades distintas que certamente mantém relações, algumas
vezes até estreitas, mas são duas atividades diferentes e independentes. O que forma um
escritor é a produção da escrita, ainda que aliada a outras atividades como a reflexão sobre
o cotidiano, a leitura de um texto escrito, ao assistir filmes, a apreciação de uma obra de
arte, a escuta atenta aos telejornais, entre outros. Não se desconsidera aqui a contribuição
da leitura na formação do produtor de textos, ao contrário, considera-se que a leitura é uma
possibilidade real de ampliação da competência discursiva, através do contato com
diferentes gêneros
30
, por exemplo, além da própria compreensão de mundo. No entanto, ler
não é escrever. Nas palavras de Masselo Leta (2002: 152),
“a leitura é a relação do sujeito
com o texto dos outros”
, e, trazendo à tona o subentendido, escrever é a relação do sujeito
com seu próprio texto.
3.2 – Os Professores
Inicialmente, entrevistar os professores causou-me certo desconforto. Na verdade, de
minha parte houve alguma resistência. Não eram estranhos, eram pessoas com as quais me
relacionava há algum tempo, umas com mais intimidade que outras. Acreditava que estaria
invadindo a privacidade de cada um. Kramer (1995) diz que nas ciências humanas
“não há
um sujeito que olha para um objeto. Há um sujeito que é objeto de si próprio, que reflete
sobre si mesmo e suas relações e, nessas relações, constrói seus conhecimentos”
. Indagar,
questionar suas certezas, seus conhecimentos, de alguma maneira, era fazê-los comigo
também.
E apesar de minha apreensão, os colegas foram absolutamente generosos. Mesmo
que se sentissem como eu – um tanto desconfortáveis –, a espontaneidade foi a tônica de
nossas conversas. E o que se descortinou foram homens e mulheres para além dos
professores. Homens e mulheres cheios de certezas, mas muitas dúvidas também, que não
se limitaram a responder as perguntas da colega pesquisadora, mas, principalmente, se
30
Levo em consideração que além do conteúdo temático e da construção composicional, um terceiro elemento marca os gêneros do discurso: o
estilo, que é caracterizado “pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais” (BAKHTIN, 2003: 261)
91
puseram a refletir sobre suas próprias questões, alguns mais que outros. Contar suas
histórias; falar sobre seus posicionamentos diante de algumas questões; encontrar, em sua
própria fala, uma resposta no passado para um hábito do presente; perguntar para a
entrevistadora... Isso foi a entrevista com os professores.
É um pouco disso que trago de nossa conversa, inicialmente realizando um trajeto
que permite observar cada professor dentro de sua subjetividade, olhando para suas
histórias de leitores e produtores de texto; a seguir, serão tratadas das questões que
relacionam mais objetivamente leitura, produção de texto e a prática docente.
P1
Professora de Português, há quatorze anos, P1 já trabalha, há vinte e quatro, como
professora. Antes trabalhava no ensino fundamental – primeiro segmento. No ensino médio
está há dez anos. Apenas por poucos meses trabalhou concomitantemente no ensino
fundamental e ensino médio, porque substituiu uma professora que ficara doente.
Declara que sempre quis ser professora,
“desde criança eu sempre quis; minha mãe
era professora, minhas tias eram professoras, então eu sempre quis”
. Começou a trabalhar
e depois achou que precisava fazer uma faculdade,
“mas sem muito objetivo”
:
Eu não tinha objetivo de dar aula para ensino médio, de quinta à oitava. Eu...
eu achava que eu tinha que fazer uma faculdade, pra quê, depois eu ia ver. E
comecei fazendo Pedagogia... e por uma questão, assim, de comodidade eu
mudei... mudei de curso, porque eu tive que transferir pra Niterói; eu
comecei a fazer em São Gonçalo, aí eu me casei, aí eu transferi pra Niterói,
que eu fui morar em Niterói, e em Niterói não tinha Pedagogia à noite, então
eu transferi pra Letras e fui fazer à noite. Mas eu tive uma influência muito
grande do meu professor de Português, no EM, que eu achava o máximo,
então, também não foi, assim, só por uma questão de comodidade, é... hoje
eu acho que foi até bom essa mudança, acho que eu teria me arrependido se
eu tivesse feito Pedagogia
P1 conta o que, objetivamente, a levou a ser professora: a influência da mãe; não só
porque esta era professora, mas também porque ela dizia que seria a profissão mais
confortável para se criar filhos; fora criada para isso: casar e ser mãe. Não fazia planos de
carreira, somente ao longo dos anos de trabalho é que foi tomando consciência disso:
fui vendo que marido não resolve todos os problemas financeiros da gente,
não realiza os nossos sonhos todos, né, então, a partir daí eu comecei a levar
meu trabalho mais a sério e a... não que eu não levasse de primeira à quarta,
92
é... eu sempre fui uma professora, assim, talvez assim, eu hoje acho que eu
era, assim, muito exigente com os alunos, é... muito responsável, mas, assim,
não tinha aquela visão de crescer, de... de fazer um curso de pós-graduação
Informa que não fez nenhuma pós-graduação; “
fiz vários cursinhos, assim,
promovidos pelo governo
”, buscados por ela mesma. Hoje, está fazendo graduação em
psicologia, em uma universidade particular de Niterói, para ampliar a renda. Acha, que
apesar de ser outra área, complementa um pouco a parte de literatura, “
a parte psicológica
mesmo dos textos, dos romances, dos poemas, é, que mexem muito com as emoções
”. Mas
afirma que além da questão da renda, gosta mesmo de psicologia.
P1 lê diariamente,
“todo dia um pouquinho na hora de dormir”
, está habituada a isso.
Lê assim no período em que está trabalhando porque, nas férias, lê, pelo menos, dois livros.
Ou em outras situações que fogem da normalidade de seu cotidiano:
E, a não ser assim, que eu esteja muito angustiada, muito... é... muito
necessitada de algum assunto, eu corro na livraria e eu... ou alguém me
empresta, aí eu devoro aquele livro. Se eu não tiver necessitada, eu leio
assim... pelo prazer de ler, mas assim, quinze minutinhos na hora de dormir,
diariamente. (...) As vezes, assim, eu to lendo um livro, aí surge uma
necessidade, assim, eu fico querendo, preciso, fico com sede de querer saber
alguma coisa que não está no que eu estou lendo. Então eu interrompo a
leitura, deixo lá, pego o livro que eu quero, devoro aquele livro, é... aí retorno
àquele.
Declara que não lê qualquer coisa, para ler um livro do início ao fim, “
tem que dar
prazer
”. Gosta de romance, biografia, já gostou de auto-ajuda, mas atualmente já não se
sente atraída por esse tipo de leitura. Quando comprava o jornal O Globo, gostava de ler a
revista que é publicada aos domingos, e, quando precisa de alguma informação, lê jornal na
internet, “
mas é muito difícil eu parar e ficar sentada no computador pra ler. (...) Meu sonho
era sentar diariamente no computador e ler as notícias
”. Diz que não lê jornal da maneira
que gostaria por causa da falta de tempo e por não ser disciplinada para fazê-lo.
Sobre a leitura, nos tempos em que fez a educação básica, recorda que:
como aluna de colégio, assim, de ensino fundamental e médio, eu não recebi
nenhum estímulo pra ler, não fui desestimulada, mas não recebi nenhum
estímulo. Eu me lembro que uma professora de Português adotou um livro,
é... uma vez só, no ensino médio. Acho que foi o único livro que eu li por
obrigação escolar.
Na escola em que estudara – da educação infantil ao ensino médio – não havia
biblioteca. A mãe tinha o hábito de ler literatura religiosa, “
mas livro... não
”. O pai, que
trabalhava em uma empresa de turismo, era motorista de ônibus e, “
embora ele tivesse uma
93
escolaridade baixa
”, foi sendo promovido – se tornou guia – “
pelo interesse dele de
conhecer
”, foi quem estimulou o hábito e o gosto pela leitura: “
ele sempre gostou muito de
ler, então, minha casa sempre teve livros
”. Mas a mãe comprava livros infantis que ela
gostava de “
ver
”; além disso, havia uma coleção ilustrada de Machado de Assis que ela não
lia, era muito nova, mas adorava ver as ilustrações e, conforme foi adquirindo maturidade,
passou a ler esses romances.
Então eu acho que esse contato do meu pai com os livros e eu ter acesso a
esses livros... não, não eram nada assim, pouquinha coisa, mas... foi me
fazendo, é... querer ler
Outra lembrança que colaborou para esse gosto é a de um professor de Português do
ensino médio – que também era o pastor da igreja que sua família freqüentava –, que falava
muito na importância de ler, de estudar:
e ele falava que lia muito, então, como eu o admirava muito, eu queria imitá-
lo.
Sobre condições necessárias para que um leitor compreenda um texto, ela acha que
antes de qualquer coisa precisa-se
“querer ler o texto”
; a obrigação já é um obstáculo para o
sucesso da leitura. Acredita que o gosto pela leitura deve ser estimulado desde a infância,
através de materiais que as crianças, ainda que não saibam ler, possam manusear, além de
contar com exemplos em casa:
eu acho que se as pessoas tivessem exemplos em casa, de leitores, elas, é...
seguiriam esses exemplos, como tudo na vida, você... eu acho que a leitura é
uma, é uma educação que deve vir da família
Diz que há algum tempo achava que como professora de Português e Literatura era
obrigada a descobrir uma fórmula para fazer com que os alunos lessem. E ainda demonstra
perceber que a situação é mais complexa: aponta para o que chama de “questão cultural”:
a gente recebe alunos que já vêm com essa coisa da... de gostar, de casa
mesmo, mas a maioria não, não gosta, eu acho que é... não é, não é cultural
do nosso povo mesmo porque passsa pela questão do poder aquisitivo.
Apesar de apontar para o cultural – que entendo com o significado de hábito –,
relaciona o fato de a leitura não estar inserida na nossa cultura em função de uma
impossibilidade gerada pelo fator econômico. Esse fator econômico – não ter dinheiro para
comprar livros – certamente não se refere a indivíduos, mas a classes.
94
Outros dois requisitos por ela apontados para a compreensão de um texto são a
experiência de vida e um conhecimento mínimo de gramática, segundo ela,
“da língua
mesmo”
. E esse conhecimento pode vir da família, se esta
“falar bem a língua”
, como a
escola pode ser o caminho de se aprender, de se ter acesso à gramática, para aqueles que
não têm uma família que
“fale bem”
.
Afirma, também, que a leitura é fonte de paz para as angústias dos seres humanos,
além de dar um conhecimento maior, uma visão maior de mundo, de humanidade.
Nota-se que, para essa professora, a leitura só tem aspectos positivos, e não
podemos esquecer que esta é uma visão amplamente disseminada na sociedade. Em que
leitura está se pensando quando se fala assim? A leitura do texto de qualquer pessoa, do
diário de uma jovem, de um rap ou de uma literatura canônica, legitimada?
É bom que lembremos que na medida em que a escrita e a leitura são, de certo
modo, a fixação do discurso, precisamos levar em consideração qual discurso está sendo
veiculado através da escrita e, principalmente, porquê.
P2
Trabalhando exclusivamente como professor há quatro anos, P2 tem sessenta e um
anos e uma história um pouco diferente do restante deste grupo de colaboradores da
pesquisa. Antes de se dedicar unicamente ao magistério, percorreu um longo caminho que,
de modo pontual, era cruzado pela atividade docente.
Aos vinte e três anos graduou-se em Engenharia Elétrica, na UFF, mas, durante a
graduação, ministrou aulas em um colégio em São Gonçalo. Depois de terminada a
graduação, foi para o Mato Grosso, lá permanecendo por um ano. Regressou para o Estado
do Rio de Janeiro, indo trabalhar na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta
Redonda. Lá, voltou a dar aulas, por apenas um ano, pois teve que ir trabalhar em São
Paulo, quando se dedicou apenas à engenharia, pois estava sempre mudando de um lugar
para outro. Depois disso voltou para o Rio de Janeiro, esteve por duas vezes no Paraná –
aliás, na segunda vez em que lá morou, iniciou um curso de docência superior, mas não
concluiu. Quando finalmente retornou ao Rio de Janeiro, já aposentado, mas ainda
95
trabalhando como engenheiro, resolveu reingressar na universidade para fazer licenciatura
em Física. Em um ano concluiu o curso, na Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ).
Em 1999, antes de concluir a licenciatura, já dava aulas em um curso pré-vestibular,
e, em 2000, na Escola Técnica Henrique Lage. Já se dedicando exclusivamente ao
magistério, a partir de 2002 começa a dar aulas na escola David Capistrano, onde se
encontra até hoje.
P2 declara que sempre gostou de dar aulas, e sua experiência como engenheiro
fazia-o ver a carência, no mercado de trabalho, de pessoas com
“maior base”
. Mas, além
disso, é
“uma pessoa muito eclética”
, não gosta apenas do que diz respeito à área de
exatas, mas também de Psicologia, Sociologia, História –
“gosto muito de História; não
história oficial, vou buscar história... a história bem documentada
. Diz que tem
“fome de
cultura”
, que é um
“culturomaníaco”
.
Em sua vida de estudante teve professores que foram modelos, que foram
significativos em sua vida, e acha importante que seus alunos também os tenham. Acha que
não vai ser um revolucionário,
“mas dentro daquilo que eu posso fazer em prol de alguém,
aquilo pra mim já é um ganho. Então, por que não dar aula?”
. Considera a
“transmissão do
saber” “uma coisa espetacular”
, e, nesse sentido, preocupa-se com que o aluno associe o
conteúdo das aulas de Física com seu próprio dia-a-dia.
Declara acreditar, e muito, nas múltiplas inteligências:
Eu acredito muito, hoje, nas múltiplas inteligências, eu acredito muito hoje na
nossa capacidade transcendental, (...) porque, o que que acontece com a
maioria das pessoas? Isso, há vinte anos atrás, eu conversando com um
colega meu engenheiro, falando da avaliação: vamos reunir esse pessoal e
vamos avaliar. Então, avaliar todo mundo por um patamar só? A questão dos
problemas, tô falando de Física e de Matemática, aqueles problemas
cabeludos, só aqueles – hoje eu vejo isso –, só aqueles que têm aquele tipo
de inteligência, que é a inteligência lógica, matemática, lógica, ele consegue.
Mas tem outros que têm inteligência estética, têm inteligência espacial, não
vai conseguir. Por isso que não vai existir só técnico, não vão existir somente
engenheiros, não vão existir somente... vão existir advogados, vão existir
assistentes sociais, então cada... então eu vejo que o conhecimento ele é, é,
é um, é um... é um conjunto, eu não sei se a palavra seria o conhecimento
ou um conjunto de saberes.
Não acredita que um professor possa
“enfiar na cabeça do aluno”
este ou aquele
conteúdo, entende que o professor é um mediador no processo de ensino-aprendizagem.
96
Critica, lembrando Paulo Freire, a prática de uma
pedagogia bancária
, e considera necessário
observar o conhecimento que o aluno já tem.
O magistério para ele está muito ligado à possibilidade de contribuir para o outro em
sua caminhada. Sente-se recompensado pelo simples fato de ver que alguns daqueles jovens
que foram seus alunos tiveram êxito em seus projetos ou que estão a caminho disso.
se um aluno meu, se lembrar lá na frente: ’poxa, alguém me deu um
empurrão na minha vida’, quem mais vai ganhar sou eu, entendeu. Então, o
magistério, o ensinar, pra mim, é uma coisa muito importante.
Gosta de ler livros que o esclareçam: livros de história, científicos, entre outros. Gosta
de ler sobre a história dos
“heróis populares”
, como Zumbi dos Palmares, Antônio
Conselheiro; se interessa pela história econômica do Brasil, quer entender por que a nação
brasileira encontra-se na situação atual, dentre vários outros assuntos. Lê livros de
psicologia, sociologia, filosofia, física, história, educação, além de romances como O Código
Da Vinci, sempre buscando respostas para as tantas questões que povoam seu pensamento.
Sobre os acontecimentos do cotidiano, diz que, de vez em quando, compra jornal;
normalmente lê na internet, ao menos a sinopse das matérias. Também na internet, lê o Le
Monde, porque gosta de francês e porque quer saber como o Brasil é visto por outros países,
um olhar externo.
Rememorando sua história de leitor, tentando encontrar o fio da meada da sua
formação de leitor, retorna aos tempos em que lia gibis.
“A minha mãe queimava gibi à beça
porque ela achava um absurdo ler história em quadrinhos”
; seus pais não tinham o hábito de
ler. De seus irmãos, fala de um que também é professor de física, e desde muito pequeno
adorava fazer experiências e lia muito. Ele também, bem pequeno, já gostava muito de ler,
lembra-se que estava na terceira série quando foi um dos primeiros colocados em um
concurso e ganhou um livro chamado “O filho do bandeirante”. Tinha excelente memória, e
com doze anos comprava revistas do Batman, em inglês, não se conformava em não
entender o inglês, especialmente quando ia ao cinema. Atribui sua formação de leitor a uma
vontade, a
“uma motivação interna, mesmo”
.
Em sua escrivaninha há um
“papelzinho, desse tamanho”
, que diz: “escrever também
é uma terapia”. Diz que escreve porque não confia na própria memória, além do fato da
possibilidade de reler o que se escreveu, o que significa reavaliar, fazer novas avaliações de
seu
“patrimônio cultural”
, entre outras coisas. Perguntado sobre se acha que falar e escrever
97
é a mesma coisa, responde que
“até que o falar é mais fácil, mas o falar se dispersa”
, e não
porque é mais fácil, mas porque pode mudar:
“ ‘pô, não foi bem isso que eu falei...’ (...) você fala uma coisa aqui, aí
passando na porta, quando o cara fala aqui, completamente diferente, então
você não tem como deter isso”
P3
Leciona há seis anos, tem trinta anos, é graduado e mestre em Ciências Biológicas,
na modalidade Botânica. O que o levou a ser professor foi a possibilidade de transferir
conhecimento e ainda poder ser um pesquisador. Não se conformava com o fato de que um
professor não poderia ser um pesquisador, como diziam, quando ingressou no ensino
superior.
Porque limita muito o bacharel, em ser bacharel, a pessoa fica muito limitada
a uma determinada situação, de ser só pesquisador, não de transferir
conhecimento, é de gerar, mas de transferir nada. Ele até transfere, passa
pro trabalho científico e tudo mais, mas essa... quem é que tem que ir lá
buscar essas referências, é o professor, não ? Então, poder estar atuante
nessa transferência aí, foi o que me levou ser [professor].
Sobre seus hábitos de leitura, além das leituras científicas e voltadas para a
educação, lê bastante: livros de aventura, como
O
Senhor dos Anéis
, contos, suspense. Esse
tipo de leitura proporciona descanso, relaxamento da atribulação do trabalho, o
“joga num
outro universo”
. Lê jornal diariamente, quando vai para a escola, costuma parar na banca de
jornais e lê, ao menos, a primeira página,
“pra saber o que tá acontecendo”
, e quando chega
em casa, sempre
“dá uma olhadinha
. Um dos motivos que contribui para a leitura diária do
jornal é o fato de ser assinante. As revistas que lê, geralmente estão ligadas às questões de
interesse científico ou à educação.
Gosta de qualquer tipo de leitura, é movido pela curiosidade. Diz que desde muito
pequeno foi estimulado a ler. Começou com os clássicos da literatura infantil, chegou a
ganhar algumas coleções. Em sua casa sempre teve estante de livros que funcionava,
realmente, como um local de consulta; além disso, havia a biblioteca pública do bairro onde
mora, localizada no Centro Social Urbano – local onde as pessoas tinham oportunidade de
fazer cursos, dentre outras atividades –, e enquanto sua mãe estava participando de uma
aula, a biblioteca funcionava como um local onde ele podia ficar aguardando.
98
era de meia hora ou uma hora do curso eu ficava lá na biblioteca, aí eu
adorava essa coisa de ler as histórias e tudo mais, então foi aí que eu
comecei a adquirir essa coisa do conhecimento ou a paixão pela leitura (...)
desde muito pequeninho.
Considera-se um bom leitor, e a justificativa para isso é o fato de não se prender a
um só tema, gosta de vários temas, gosta da curiosidade. Preocupa-se com a qualidade, e
não só com a quantidade, da leitura. No entanto, esta característica não fica bem
esclarecida; tem consciência da importância da qualidade da leitura que realizamos, mas não
consegue explicar porquê:
o que eu falo como qualidade é que... por exemplo, eu não.... a... a leitura
muitas vezes tá ligada realmente aquela coisa do que você tem em mente, o
que você tá... então se você começar a fugir muito daquele também...
daquele... daquele... da tua... daquela ótica, então... (...) É, pode perder um
pouco da qualidade, porque o que acontece, ver a coisa da qualidade como...
como uma referência (...)
A conjugação de tempo escasso e as tarefas a serem realizadas, o trabalho como
professor, como pesquisador, especialmente este último, tem imposto uma atividade de
escrita mais voltada para o trabalho, no entanto, quando mais novo, adorava ler sobre
mitologia e escrevia histórias a partir daí. Diz também que
“ adorava escrever fábulas”
.
A experiência com a escrita, apesar de quando mais novo ter vivido experiências
positivas com tal atividade, não foi sempre fácil. Quando esta atividade era marcada pelos
limites da obrigação escolar, do tema determinado, o trabalho tornava-se árduo; nas suas
palavras, ficava
“travado”
. Mas quando podia escrever mais livremente, era diferente:
O tema fluía, que muitas vezes o professor dizia “não, não é pra escrever
com tantas páginas assim”, porque eu exagerava, porque o tema... eu criava
a história com meio... com princípio, meio e fim, tinha vários detalhes, eu era
muito detalhista em relação a... adorava.
Ainda hoje, quando escreve sobre as pesquisas que realiza, os trabalhos nos
quais está envolvido, sente-se pouco à vontade:
de vez em quando ainda dá aquela travada, né, aí a gente fica meio que...
tipo pisando em ovos, “eu devo escrever dessa maneira, não devo, como é
que eu me coloco, será que o leitor vai ter uma, uma... vai perceber
realmente o que eu tô tentando passar”, porque o que acontece, o que a
gente escreve não é pra gente, é pra outras
pessoas lerem, né, então “será
que eu tô sendo claro o suficiente pra que outra pessoa possa entender,
possa entender o que eu to tentando passar”, né, então realmente é isso,
quando você não tem um tema livre você já fica mais livre realmente pra
você se expor; quando você determina realmente fica aquela... ainda tenho
aquela coisa do... do... “será que eu... aquilo vai realmente ser passado”.
99
O leitor ideal é aquele curioso, que tem como referência a qualidade; lê bem,
compreende o que leu, consegue sintetizar tudo e transformar aquilo que leu em um
pensamento.
“O bom leitor é aquele (...) que conseguiu compreender o que o texto quis
passar”
.
Quando da análise dos dados dos estudantes, observei a crença que eles tinham na
transparência da linguagem. Aqui, observa-se a mesma compreensão de linguagem, que,
amalgamada está a noção de transferência de conhecimento como processo sem nenhum
tipo de interferência, especialmente as subjetivas.
A concepção de produtor de texto também traz essas noções:
o bom escritor, não precisa ser aquele que seja prolixo, que escreva milhares
de coisas, mas que o que ele escreve pode ser entendido, pode ser
compreendido por outro, que ele consiga passar todas as informações dele de
uma maneira plausível, correta, dentro de um padrão, porque a gente vive
em padrões.
Uma das questões que esta pesquisa traz diz respeito ao produtor de textos escritos,
e isso só é uma questão em função da precariedade com que muitas pessoas, dentre elas os
estudantes e os egressos das escolas e universidades, vem produzindo seus textos; e esta
pesquisa não é a primeira a levantar essa questão, nem será a última. Um dos fatores que
denotam essa precariedade diz respeito à dificuldade que, algumas vezes, encontramos para
entender textos produzidos por nossos alunos. Isso talvez tenha alguma influência na
maneira como este professor, de certa forma, justifica sua forma de conceber o produtor de
texto ideal.
Quero chamar a atenção, também, para o que ele chama de
plausível, correto
, e que
é reforçado pela expressão
“dentro de um padrão”
. Já chamei atenção anteriormente, para
as questões trazidas pelos jovens participantes desta pesquisa, para o fator norma padrão.
Aceitável é o que está de acordo com a norma padrão; mas escrever de acordo com a norma
padrão, para muitos, pode ser, também, renunciar à própria constituição, à própria
subjetividade. Viver de acordo com tudo o que a sociedade propaga como padrão não é tão
fácil, não porque não tenhamos competência para isso, mas sim porque somos plurais ao
mesmo tempo em que somos únicos, e por não vivermos em uma sociedade monolítica.
P4
100
Há vinte e dois anos é professora, trabalhando nas redes pública e particular. Depois
de terminada a graduação em Letras,
“emendou
em uma pós-graduação em Docência
Superior. Inicialmente trabalhava apenas com o primeiro segmento do ensino fundamental,
depois com o segundo segmento e, após concluir a graduação, também com o ensino
médio. Atualmente atua no ensino médio e no segundo segmento do ensino fundamental,
mas neste último, como revela,
“são poucas aulinhas no meio de um mar de aulas”
. Diz que
sua idéia era apenas dar aulas de literatura, no entanto, sua vida tomou outros rumos
“e
acabou ficando mais fácil dar aulas de gramática, redação”
, de modo que hoje praticamente
trabalha apenas com gramática. Aula de literatura, apenas
“no Estado, aquela literatura com
a gramática”
. Declara que, inclusive, passou a gostar de gramática, que anteriormente não
gostava tanto.
Quando criança, sua brincadeira favorita era brincar de escolinha:
“as minhas colegas
queriam brincar de tudo, de pique... eu não, eu entrava de férias e a minha brincadeira
preferida era brincar de escolinha”
. Sempre soube que seria professora, nunca se viu
trabalhando em um banco, em um escritório ou qualquer outra ocupação; só demorou a
decidir que disciplina ministraria.
Gosta muito de ler, e se ressente pela falta de tempo para a leitura, como já tivera.
Revela que gosta de ler um livro mais de uma vez, como também assiste a filmes que já
assistiu: gosta de histórias que já conhece. Para começar um novo livro precisa de estímulo
que venha do comentário de alguém, da sinopse, não começa a ler um livro
“do nada”
.
Dificilmente lerá um livro sem uma incitação desse tipo. Gosta muito dos clássicos da
literatura, mas não se restringe a eles, lê qualquer tipo de literatura. Teve curiosidade de ler
O Senhor dos Anéis
,
Harry Poter
“pra ver o porquê que os jovens estavam lendo aquilo da
maneira que estavam lendo”
. Não tem o hábito de ler revistas; gosta de ler jornal,
“mas
matérias selecionadas, não leio o jornal todo”
, mas não diariamente, pela falta de tempo e
porque acha que
“só tem graça ler jornal de manhã, passou, passou”
, pois, com exceção das
crônicas, por exemplo, das notícias vamos tomando conhecimento ao longo do dia. Acha o
formato do jornal impresso desconfortável, além das letras minúsculas, então prefere ler na
internet.
Refletindo sobre como foi formada a leitora que é hoje, diz que a leitura sempre fez
parte de sua vida, apesar de nunca ter visto os pais lendo:
“nenhum dos dois tinha o
hábito”
. Por isso, acha sua história peculiar: ela e uma irmã ganhavam mesada do pai
101
e a primeira coisa que a gente fazia, quando nós recebíamos a mesada, era ir
pra uma lojinha das Edições de Ouro, eu nunca esqueço, que vendia uns
livros pequenininhos, uma edição popular e eram bem baratinhos, então, nós
íamos lá, todo mês nós comprávamos um livro, eu um e ela um, então nós
líamos, cada um o seu, e trocávamos porque a graça de ler não era só ler e
guardar aquilo pra gente, era a gente comentar uma com a outra. Então, eu
não sei se foi por falta de, de, de opção de outra diversão, por falta de opção
mesmo financeira, nós fazíamos isso direto. Ler, pra gente, era uma grande
diversão, e o comentário, depois, também era muito bom.
Conta que a leitura sempre fez parte de sua vida, mas não sabe explicar
“de onde
exatamente veio isso”
, lembra-se apenas desses episódios com a irmã:
E a única coisa que eu lembro, porque meus pais não levavam a gente em
biblioteca, não compravam livros; a gente...“esse livro aqui eu comprei pra
vocês lerem”; não, isso não rolava, nunca rolou; mas, tinha essa coisa entre
eu e minha irmã, talvez até por, é... por ser um divertimento mesmo e a
gente não tivesse tantas opções de divertimento assim.
Considera-se uma boa leitora, e a justificativa para isso é o fato de que além de
gostar de ler, gosta de falar sobre o que está lendo,
“embora não escreva”
. Acha importante
o comentário sobre o que leu ou está lendo, gosta de saber o que as outras pessoas têm a
dizer sobre o que estão lendo. Participa de comunidades no orkut sobre Machado de Assis e
outros autores, onde tem oportunidade de tecer considerações e ter acesso a opinião de
outras pessoas. Lembra que o comentário é uma das estratégias que utiliza com seus alunos
para despertar o interesse de seus alunos para a leitura,
“porque eu falo de minhas leituras
com muita paixão”
.
Quando estava fazendo o Curso Normal, ela e mais duas amigas escreviam muito;
inclusive tinham um caderno, a que só elas tinham acesso. Utilizavam para “conversar” na
sala de aula: falavam de suas histórias, seus problemas, angústias, escreviam poemas.
Nessa época ela e uma amiga diziam que seriam escritoras. Hoje as duas são professoras de
português, e ela não escreve:
Não escrevo, porque eu sou muito crítica. Toda vez que eu escrevo, eu
sempre acho que não está bom. Mas eu dizia, antes, no tempo que eu não
tinha esse bloqueio, que eu ia ser escritora. (...) Mas, conforme eu fui
aprendendo, conhecendo as coisas da língua, eu fui ficando muito crítica, e
eu falava: bom... se eu me arriscava a escrever alguma coisa, eu mesma
ficava procurando o que que tinha ali de valor naquele poema, que figuras de
linguagem tinha e, de repente, eu não achava exatamente o que eu queria,
Deus me livre! Aí eu fui parando, fui parando e parei mesmo. Hoje não
escrevo mais não, só redação.
102
A produção de escrita voltada para seu trabalho é sempre pontual: elabora questões
para avaliações, prepara redações para as entrevistas do início do ano letivo ou escreve
projetos para as escolas em que trabalha.
Diz que com o passar do tempo ficou exigente,
“e cada vez mais eu achava que os
outros escreviam bem, e eu escrevia menos. Então, eu realmente não sou muito escritora,
sou mais leitora.”.
Quando se põe a escrever, “sempre” acha que não está bom, que poderia
estar melhor.
Mas, em meio a essas falas que caracterizam uma não produtora de textos escritos,
revela-se uma prática de escrita bastante ativa na internet:
Se for no MSN, a única diferença minha pro que os alunos escrevem é que eu
ponho acento nas coisas, mas abrevio igualzinho a eles. É... escrevo, assim,
muito informal. [SIM, MAS...] Mas escrevo, sei que ali ninguém tá ligando
como eu tô escrevendo, mas sim do que eu tô falando; agora, quando eu vou
escrever em orkut, alguma comunidade que eu vou falar alguma coisa, eu
procuro ser altamente cuidadosa e escrever o menos possível, porque eu
tenho, às vezes, uma sensação, quando escrevo, que eu não estou falando
tudo que eu quero falar. Talvez porque eu tenha conhecido muita gente que
escreve muito bem e eu...
Nas falas dos jovens sujeitos desta pesquisa há indícios que me levaram a inferir que,
quando se referiam aos atos de ler e escrever, estavam se referindo a práticas de leitura e
escrita legitimadas, aquelas unicamente norteadas pela norma padrão. Parece que é o que
ocorre com P4: escrever é fazê-lo como preconizado pela norma padrão, e não só o padrão
gramatical, mas também um padrão estilístico. Os momentos em que pratica a escrita de
forma espontânea – e até prazerosa! –, não são considerados. Quando relata sua prática de
escrita no ambiente de algumas comunidades do orkut, provavelmente por ela consideradas
freqüentadas por pessoas “cultas”, o fantasma de uma prática norteada pela norma padrão
volta a assombrar, e seu “bloqueio” volta a se instalar. E isso acontece, possivelmente,
porque ela acredita que os membros dessas comunidades que ela freqüenta escrevam
“muito bem”
. O que significa escrever (muito) bem?
[a pessoa] que sabe escrever... caraca! Eu não sei!... A pessoa que sabe
escrever, eu acho que é aquela pessoa que escreve com segurança, é... sem
medo de tá escrevendo besteira, sem ser muito crítica com ela mesma É
aquela pessoa que quando escreve todo mundo que lê, entende e gosta,
porque está escrevendo bem, com criatividade; que faz com que as outras
pessoas parem e leiam... “puxa, que legal, que texto legal!”, eu acho que
essa é a pessoa que sabe escrever. Acho que são poucas.
103
Ainda que sejam feitas algumas ponderações, a imagem que esta professora tem
sobre quem sabe escrever, e muito provavelmente também nossos alunos, é um mito. Aliás,
ela mesma reconhece isso:
“(...) Então eu acho que um grande escritor, eu acho que nem sempre ele
vai acertar, nem sempre ele vai fazer com que todo mundo goste do que ele
está escrevendo. Sei lá, acho que esse cara não existe, não. Deve ser algum
ET”.
E neste caso o mito não tem servido como ponto de reflexão, mas sim como ideal a
ser alcançado ou como obstáculo para que um sujeito possa dizer sua palavra. Este mito
pode ser encontrado, por exemplo, nos livros didáticos: como todos sabemos, e com isso
convivemos, os exemplos de boa fala e boa escrita desses livros, somente nos últimos anos
deixaram de ser apenas os “monstros sagrados” da literatura brasileira. E mesmo nos
tempos atuais, esses exemplos se diversificaram sim, mas dentro de uma mesma variedade
lingüística, a variedade padrão. De toda forma, a imagem de bom produtor de texto, e
também de bom leitor, dificilmente coincide com os representantes das classes populares.
Esses só figuram nas páginas dos livros didáticos, atualmente, nas seções dedicadas à
variedade lingüística, e de forma bastante restrita.
Sobre o leitor ideal ela diz que
a pessoa que sabe ler é aquela pessoa que consegue ler sobre todos os
assuntos, os mais diversificados possíveis e entender o que tá lendo. Aquela
pessoa que só consegue ler sobre uma determinada coisa, ele não é um leitor
completo. Então a pessoa tem que ler sobre tudo, mesmo que ele não tenha
conhecimento do assunto, sair dali com algum entendimento.
Ainda que a imagem de bom leitor possa estar ligada à erudição, sua concepção de
leitor pode ser caracterizada como mais democrática que a imagem de bom produtor de
textos, ainda que ela acredite na possibilidade de
“um leitor completo”
– o que será “um
leitor completo”? –. Aliás, me parece haver uma contradição com relação a isso, pois
acredito que ela aponte mais para a necessidade de estarmos abertos as mais variadas
visões de mundo, do que da necessidade de acumularmos grande quantidade de
conhecimento.
104
P5
Com experiência de vinte anos no magistério, P5 já trabalhou na rede particular, mas
a maior parte desse tempo foi dedicado à escola pública. Fez o Curso Normal em uma
tradicional escola de formação de professores de Niterói, o IEPIC; licenciou-se em História,
depois retornou à faculdade para fazer o bacharelado. Fez uma especialização em Técnicas e
Planejamento de Ensino e outra em História Contemporânea.
A irmã mais velha era professora e ela a acompanhava:
“eu era a ajudante da
professora (...) e achava interessante esse ambiente escolar”
. Mas essa não foi sua primeira
opção, inicialmente gostaria de trabalhar em alguma profissão ligada à área da saúde, mas
“com o passar do tempo, eu percebi que não era aquilo que eu queria mesmo, né, havia
sangue demais, recurso de menos, e eu sentia a dor das pessoas, o sofrimento das pessoas,
então, eu optei mesmo em ser professora.”
.
Trabalha com o segundo segmento do ensino fundamental, na rede de escolas
públicas de São Gonçalo e com o ensino médio na Rede do Estado do Rio de Janeiro e já
trabalhou, inclusive, com pré-escolar.
Apesar de ser professora de História, ou talvez em função disso, já ministrou aula de
Filosofia, Sociologia, Geografia, em uma época de falta de professores para essas disciplinas
na escola David Capistrano. Lembra que neste período trabalhou com todas as turmas do
colégio – que funcionava apenas no horário diurno –, chegando a ter vinte e oito diários de
classe.
Buscando em sua história como foi formada a leitora que é hoje, chega aos pais que,
a despeito de terem tido pouco estímulo para a leitura, eram muito sensíveis no tocante à
necessidade de leitura para seus filhos. Apesar do baixo poder aquisitivo da família, o pai
levava os filhos para assistir a apresentações de teatro de fantoches, a mãe comprava livros
de histórias infantis, como Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida, O Patinho Feio.
O sonho dos meus pais era ver, e eles conseguiram isso, graças a Deus, era
ver todos os filhos deles com faculdade, com estudo, então eles
economizavam até na, na vestimenta, em algo pra eles, pra reverter em algo
positivo pra gente. Então eu sempre tive pelo menos um pouco de acesso à
leitura em função deles, em função disso. Meu pai sempre trazia historinha
em quadrinho, né, eu lembro de super herói, turma da Mônica, né, eu sempre
tive... almanaque, então, quando criança eu tive um estímulo até
interessante, não eram livros pesados, até porque com a falta, né, de livros
assim, com muita leitura, até porque eles não tinham isso, né, na vida deles,
105
né, mas eles tentaram fazer com que a gente gostasse de ler e de estudar.
Então durante o meu período fundamental [do ensino fundamental] eu tive
pouca leitura em si, né, só o que a escola me exigia mesmo.
Com relação à participação da escola nesta formação, diz que apenas no Curso
Normal teve uma leitura voltada para os grandes clássicos. Lembra-se que para estudar
nesta escola, em sua época, era necessário participar de um concurso bastante rigoroso,
onde concorriam pessoas que faziam o primeiro grau nas tradicionais escolas católicas de
Niterói. Acreditava haver, entre ela e as colegas de turma que vieram dessas escolas, uma
grande distância no que diz respeito a um tipo de vivência cultural, que buscou diminuir:
eu percebi que eu, eu ia... eu tinha que recuperar um grande fosso, né, uma
grande distância que havia entre eu e elas. E aí eu comecei a... a... a pegar
os meus horários vagos e ir pra biblioteca, né, então eu ganhei o apelido de
Museuzinho porque eu sempre tinha um livro ao meu lado(...) Então eu li
quase todos os clássicos de Machado de Assis, que eu gostava de Machado
de Assis, eu li Orígenes Lessa, e eu comecei a gostar tanto, que eu comecei a
ler até no ônibus, então é... eu não era um... não era uma pessoa, assim,
muito... popular, né, geralmente as pessoas que gostam muito de ler não são
muito populares, (...). Então eu não era uma pessoa muito popular, então,
em função disso, né, de não ter muitos amigos, eu acabei ficando amiga do
livro, e eles ficaram sendo meus companheiros.
O gosto pela leitura não é incondicional, há leituras que considera
“muito pesadas, e
você lê por obrigação”
. Exemplo disso, nas ciências humanas, são os escritos de Marx,
especialmente os mais voltados para economia:
“isso pra mim é uma leitura pesada, porque
ele é todo recheado de uma série de conceitos, não é algo que me agrade”
. Diz gostar mais
dos textos da área da história das mentalidades, ou da psicologia associada à história social:
“a leitura pra mim fica muito mais fácil, eu assimilo até melhor; na parte de História, voltada
pra economia eu tenho muita dificuldade, então eu tenho que voltar sempre aos parágrafos
anteriores pra tentar pensar sobre aquilo”
.
Em sua vida, atualmente, não há lugar para leitura de fruição. Lê com regularidade,
mas somente textos voltados para o seu trabalho:
Não, leitura de lazer, não. (...) Eu não tenho espaço, assim, eu vou pegar
uma tarde de um sábado pra fazer uma leitura, assim, sem compromissos
ligados a minha área ou ao meu trabalho, não tenho, não tenho esse espaço.
É lógico que quando você pega jornal, você acaba caindo, né, em algum
artigo que não seja da área, você acha interessante e você lê, mas não algo
assim que seja direcionado
Lê revistas especializadas em História, como as lançadas pela Biblioteca Nacional, a
revista Superinteressante e, quando
“tem condições”,
relê livros antigos de autores
consagrados ligados à sua área; quando tem acesso, lê revistas voltadas para assuntos mais
106
gerais da educação. A leitura de jornal não é diária, normalmente o faz nas quintas-feiras,
quando vem um encarte sobre turismo, e nos finais de semana.
Sua prática de leitura é marcada pelo seu trabalho, pelas necessidades de seu
trabalho, indiciando uma prática de leitura bastante pragmática. Trata-se de uma leitura
instrumental e uma noção de produção de conhecimento centrada na transferência. Os
textos são portadores de verdades, e não portadores de visões de mundo. Corre-se o risco
de não se levar em conta que os textos escritos defendem teses e, portanto, são frutos da
luta pela hegemonia na sociedade.
Ler um texto de história não significa apenas tomar conhecimento de fatos ocorridos
em determinado momento, descobertas ou teorias, mas também entrar em contato com
modos de descrição e análise de uma realidade e, também, com os pressupostos daquele
que apresenta uma versão de determinada realidade; no entanto, a subjetividade dos textos
científicos, objetivos, geralmente é ignorada.
P5 declara que gosta de escrever quando há um interlocutor específico: gosta de
escrever cartas, bilhetes, dedicatórias em livros. A escrita do tipo ensaio é realizada com
dificuldade. Lembra-se quando teve que escrever a monografia no final da pós-graduação e
foi preciso se
“adequar ao esquema”
; o resultado final desse tipo de trabalho é satisfatório,
mas o processo em si, pra mim é cansativo, né, porque você vai... eu escrevo
várias vezes, são várias idéias que eu quero colocar, eu gosto de botar um
texto bonito, palavras mais eruditas, né, eu gosto disso, então, é um trabalho
pra mim mesmo, escrever, pra mim, é um trabalho.
Suas lembranças a levam ao Curso Normal. Lembra-se de que tinha dificuldades
neste período, e o que principalmente a ajudou a superar tais dificuldades foi a exigência
dos professores; cita como exemplo a professora de História, que aplicava provas com duas
questões e pedia que os alunos concordassem ou discordassem das afirmações e
justificassem seus posicionamentos. Além disso,
ela descontava erro de português, então
você tinha que ser muito boa pra você escrever”
. Isso a obrigou, por exemplo, a ser mais
objetiva em seus textos e a se posicionar. Hoje em dia escreve, basicamente, por motivos
profissionais, como sintetizar conteúdos a serem trabalhados com os alunos.
Não se considera uma boa leitora, é muito crítica, e inicialmente diz que é uma leitora
regular. Para ela, o bom leitor é aquele que freqüenta ambientes como as livrarias do tipo
107
megastore
, e que lê uma variedade de obras, “
que sabe o que ele tá falando, ele sabe
identificar cada escritor em seu período”
. Além disso,
sempre tem no JB, né, as leituras, os livros mais importantes, né, do... do
ano, do semestre, as leituras, né, e essas leituras não estão, não estão
inseridas na minha vida, né, então eu acho que quem lê isso tudo, deve ser
um bom leitor
Ainda refletindo sobre o tema, se declara
“uma leitora por necessidade”
:
por causa da minha área, eu tenho que ler, porque sou professora, eu lido
com ser humano
Um pouco mais adiante se assume, também, uma “
leitora de massa”
:
Eu acho que sou uma leitora de massa, bem parecida com a massa brasileira,
sei ler, mas não é aquela leitura erudita.
Provavelmente o que ela chama aqui de leitura erudita se relacione com o que falam
os jovens desta pesquisa, quando consideram apenas um tipo de leitura – e com isso
também uma determinada visão de mundo – como legítima. E esse tipo de concepção se
confirma também pela maneira que se refere à lista de livros mais vendidos ou
recomendados pelo Jornal do Brasil, um jornal impresso tipicamente dirigido à classe média,
e que pressupõe um tipo de leitor e de leitura.
3.2.1 – Leitura, produção de textos e prática docente: o que falam os professores
Observar como esses professores se fizeram – e foram feitos – leitores e produtores
de textos, buscar onde se fundam as maneiras como concebem a leitura e a produção de
textos; trazer o leitor e o produtor de texto que são, foi o objetivo até aqui.
Uma vez que o pressuposto deste trabalho é que as concepções de leitores e
produtores de texto encontradas, especialmente, junto a alunos e professores influenciam o
trabalho desenvolvido na escola, a partir daqui o que se pretende é aprofundar a análise das
concepções trazidas pelos professores, relacionando-as de forma mais objetiva com o fazer
pedagógico, buscando os pressupostos básicos que sustentam suas concepções. Para tanto,
procurou-se em suas falas as formas de compreensão de texto; como entendem as
especificidades dos textos de suas disciplinas; o que entendem por ensinar a ler e a
108
escrever, e se consideram necessário, no ensino médio, ensinar ao aluno ler e escrever;
como trabalham produção de leitura e de textos com seus alunos; como acham que a escola
prepara o aluno para o domínio da leitura e da produção de texto.
3.2.1.1 – A leitura
O objetivo principal da leitura é a compreensão; aliás, esse é o objetivo de qualquer
interação. Paulo Freire diz que
“a compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”
(1985:12).
Compreensão. Que significados há para isso? Que sentidos podem ser atribuídos à
compreensão
? Como se compreende um texto escrito? Que relação pode haver entre com se
concebe a compreensão de texto e a prática docente?
A compreensão de um texto para os professores, de maneira geral, liga-se
diretamente ao que podemos chamar de
conhecimento de língua
:
tem que conhecer o mínimo da língua, não é, que ela [a pessoa] fala e do
livro que ela vai ler pra poder entender o que ela tá lendo. Porque se ela
começa a ler um livro que ela não entende nada, eu acho que ela vai
abandonar, a não ser, a não ser que ela assuma um compromisso, igual
quando você está estudando língua estrangeira, que se põe o dicionário do
lado e vai traduzindo, mas se ela não tem esse compromisso, ela abandona a
leitura. Então, ela tem que ter um mínimo de conhecimento é... gramatical,
da língua mesmo, estrutura da língua pra poder é... compreender...
compreender o texto. (P1)
eu procuro sempre a trabalhar com meus alunos, desde a sétima série, a
pegar o texto, a ler o texto parágrafo por parágrafo, a ver as palavras que
eles não estão compreendendo, a escrever do lado, o que, o que... a idéia
central daquele parágrafo (...) a importância deles terem dicionário, de ver
Jornal Nacional, de... “ah, não sei, o que significa essa palavra”, então, vamos
lá, vamos procurar no dicionário, vamos ver o que que é (P5)
primeira coisa que você tem que fazer é o levantamento do vocabulário; a
segunda coisa, aí já é mais complicado, porque o dicionário, você tá ali, né,
porque na nossa língua uma mesma palavra, ela pode ter vários sentidos; é
tentar adequar o sentido das palavras que você não sabe àquele contexto.
(P4)
Em vários momentos das entrevistas, e não apenas neste dedicado à compreensão
de um texto, o aparato gramatical da língua padrão e o desconhecimento do significado das
palavras surgem como importantes obstáculos para uma leitura proficiente. A importância
109
dada ao dicionário tem como pressuposto que o principal fator para compreensão de um
texto é o entendimento do significado das palavras e que todos os significados possíveis
estão no dicionário. Essa noção tem como base a crença de que a palavra reflete a
realidade.
Para continuar as análises acerca da compreensão, uma reflexão sobre o que entra
em jogo nesse processo é necessária. Comecemos, então, pela idéia de que a palavra reflete
a realidade. Tal percepção com relação à palavra não leva em conta que esta é um signo
ideológico (BAKHTIN, 1995), e, conseqüentemente, não se reconhece o conflito pela
determinação do significado do mesmo. Acredito ser necessário, aqui, refletirmos acerca da
palavra como um signo ideológico e na conseqüente tensão instaurada a partir dessa
propriedade da palavra.
É esta tensão que caracteriza um signo, pois, mesmo fazendo parte de uma
realidade,
“ele reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior”
(Idem: 31). O
domínio do signo é o domínio da ideologia: o que faz com que um corpo, um instrumento
seja caracterizado como signo é a percepção que se tem dele, ou seja, um sentido que não
pertence intrinsecamente ao objeto, mas que é atribuído a ele.
A atribuição de sentido não ocorre através de acordos harmônicos dentro de grupos
sociais organizados, ao contrário, especialmente tratando-se dos signos lingüísticos: o
confronto de interesses sociais – a luta de classes – é o que determina a plurivalência social
do signo ideológico:
“o signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”
(Idem:
46).
Bakhtin diz ainda que
“aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico”
,
ou seja,
“o entrecruzamento dos índices de valor”
,
faz dele um instrumento de refração e
deformação do ser”
(Idem: 47). A classe dominante tenta conter a principal característica do
signo, a plurivalência, impondo a este uma monovalência
“a fim de ocultar a luta dos índices
sociais de valor que aí se trava”
.
Mais adiante, no capítulo intitulado “Língua, fala e enunciação”, o autor dirá que
O sistema lingüístico é o produto de uma reflexão sobre a língua, reflexão
que não procede da consciência do locutor nativo e que não serve aos
propósitos imediatos da comunicação. (Idem: 92)
110
Aquilo que, normalmente, chamamos de conhecimento gramatical, aquele ligado à
norma – resultado da reflexão de alguns sobre a língua –
“é uma mera abstração, produzida
com dificuldade por procedimentos cognitivos bem determinados”
(Ibidem).
Analisando o uso da língua pelo sujeito na posição de locutor ou de receptor, Bakhtin
dirá, sobre o primeiro, que este se serve da língua para suas necessidades concretas –
“para
o locutor, a construção da língua está orientada no sentido da enunciação da fala”
(Ibidem)
–, e que para ele (o locutor), o centro de gravidade da língua reside na nova significação que
essa forma adquire no contexto. Ou seja, o locutor orienta-se pelo sentido que quer imprimir
a esta ou aquela forma, em um contexto específico.
Sobre o receptor ele dirá que
“o essencial na tarefa de descodificação não consiste
em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso,
compreender sua significação numa enunciação particular. Em suma, trata-se de perceber
seu caráter de novidade, e não somente sua conformidade à norma”
(Idem: 93).
Para o locutor e o receptor interessam, na verdade, o que a língua tem de variável e
flexível, o signo. A forma da língua é apreendida como um signo, arena de luta de classes,
“e
não como um sinal imutável e sempre idêntico a si mesmo”
(Ibidem).
Sobre a questão do signo e do sinal, Bakhtin alerta ainda que o processo de
compreensão não deve ser confundido com o processo de identificação:
“o signo é
descodificado; só o sinal é identificado”
:
Enquanto uma forma lingüística for apenas um sinal e for percebida pelo
receptor somente como tal, ela não terá para ele nenhum valor lingüístico.
(...) o elemento que torna a forma lingüística um signo não é sua identidade
como sinal, mas sua mobilidade específica; da mesma forma que aquilo que
constitui a descodificação da forma lingüística não é o
reconhecimento do sinal, mas a compreensão da palavra no seu
sentido particular, isto é, a apreensão da orientação que é conferida à
palavra por um contexto e uma situação precisos, uma orientação no sentido
da evolução e não do imobilismo. (Idem: 94, grifo meu)
E, ratificando o caráter móvel do signo, afirma que
“para o falante nativo, a palavra
não se apresenta como um item de dicionário, mas como parte das mais diversas
enunciações dos locutores A, B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua
própria prática lingüística”
. Para o falante, as formas lingüísticas estão orientadas pelas – e
para – enunciações concretas, impregnadas por contextos ideológicos concretos.
111
Abordando o processo de interação através da palavra escrita e ressaltando
“a
importância da história das compreensões do passado e a construção das compreensões do
presente”
, Geraldi (1995: 10) chama a atenção para dois importantes aspectos que, segundo
ele, são importantes e essenciais: o reconhecimento e a compreensão.
O reconhecimento do outro e dos recursos expressivos mobilizados é uma
condição necessária para que a interação aconteça, mas não é condição
suficiente. É preciso reconhecer e ao mesmo tempo ultrapassar o
reconhecimento para compreender o que se diz, o que se ouve, o que se lê.
Neste sentido, todo enunciado é co-produzido pelos sujeitos envolvidos no
processo de produção (...)
Bakhtin diz, inclusive, que
“é justamente a compreensão no sentido próprio, a
compreensão da evolução, a que se encontra na base da resposta”
(Op.citc,0: 94, nota de
rodapé), na base da interação verbal. A interação é uma relação entre sujeitos social e
historicamente localizados, portanto, a compreensão só pode se dar entre esses sujeitos, e
não entre sujeitos e significados das formas lingüísticas, especialmente quando estas são
marcadas, sobretudo, pela univocidade.
As relações sociais não são apenas mediadas pela linguagem, antes, são constituídas
por ela – especialmente pela linguagem verbal – através da atividade discursiva. A atividade
discursiva não é uma questão de recuperação de significados dos textos; mais que isso,
implica uma relação tensa, de poder, entre interlocutores, estabelecida através da atribuição
de sentido às “estáveis” formas lingüísticas.
O discurso verbal é um evento social; ele não está auto-encerrado no sentido
de alguma quantidade lingüística abstrata, nem pode ser derivado
psicologicamente da consciência subjetiva do falante tomada em isolamento.
(VOLOSHINOV, 1976: 10)
Nesse sentido, compreender é, antes de tudo, uma atividade criativa. Compreender é
responder às palavras de seu interlocutor, é recriar a partir das palavras do outro e de nossa
visão de mundo, que é constituída ao longo da vida a partir de condições materiais objetivas.
Compreender não é tentar reproduzir o sentido atribuído por outrem, mas atribuir novos
sentidos. O discurso não é uma reunião de formas lingüísticas, mas um evento
essencialmente social.
Retomando a análise, se, por um lado, o conhecimento sobre a língua e, de modo
especial, o uso do dicionário, ganha relevo na fala docente, por outro é também abordado
com certa hesitação, por alguns desses professores:
112
a segunda coisa, aí já é mais complicado, porque o dicionário, você tá ali, né,
porque na nossa uma mesma palavra, ela pode ter vários sentidos; é tentar
adequar o sentido das palavras que você não sabe àquele contexto. Eu acho
que aí mora a maior dificuldade das pessoas pra entenderem um texto,
porque, é... não consegue... se isso não for uma prática, uma coisa que se
exercite, normalmente orientada por alguém, que vá colocar o sinônimo mais
próximo, né, porque a gente costuma dizer que nem existe sinônimos exatos,
mas o que mais se aproxime pra pessoa, pra pessoa poder fazer aquele
entendimento, né, daquele contexto. (P4)
A interferência do contexto é reconhecida pelos docentes, mas parece que a
referência recai especialmente na recuperação do contexto de produção do texto pelo seu
locutor, sendo, de certa forma, esquecido o contexto da produção da leitura, ou seja, o
contexto do leitor.
Outro dado importante diz respeito, basicamente, à leitura escolar, à leitura
obrigatória, que tem caráter crucial:
Primeiro ele tem... antes de mais nada, querer ler o texto. Porque se ele vai
ler obrigado, isso já é uma barreira, um obstáculo. (P1)
O fator vontade é decisivo. Querer ler é uma atitude positiva com relação à atividade
da leitura. O interesse pela leitura que parte do sujeito leitor recupera a relação leitura e
texto, esvaziada e reificada (ZILBERMAN & SILVA, 1988), na sociedade, de maneira geral, e
na escola, de modo particular.
A leitura na escola tem um fim pragmático e imediatista. A prática de leitura na
escola, de maneira geral, tem como fim o aprendizado de conteúdos com os quais, na
maioria das vezes, os alunos – e, não raro, o professor –, não consegue relacionar com o
mundo da vida. O texto, porque afastado da corrente discursiva do qual faz parte, deixa de
fazer sentido para uma vida fora dos muros da escola e, na escola, faz sentido apenas como
suporte para um determinado conteúdo. O texto (discurso materializado) perde o caráter de
elemento de constituição de subjetividade, e fica restrito ao caráter de objeto de ensino.
Dado fundamental para entendermos as concepções dos professores sobre a
compreensão de um texto é o fato de acreditarem na possibilidade de leitura linear e em um
processo cumulativo como estratégias de leitura.
Eu, eu sou muito intuitiva, né, não tenho uma técnica (...). O que eu faço, eu
leio, vou lendo parágrafo por parágrafo, tento entender o que cada parágrafo
fala pra você ter a noção do todo, pra mim é isso aí, né, a partir daquele
texto eu começo a pensar sobre. (...)Eu não sei, esse é o meu padrão, né, eu
pego o texto e fico teorizando sobre, né, a essência dele. (P5)
113
O problema é o seguinte: existem pessoas que têm uma capacidade de
armazenar, mas a maioria só tem uma capacidade de ler linearmente, acho
que é isso. Então, primeiro ele [o texto] tem que ser bem claro.
(INCOMPREENSÍVEL) Agora, o problema é o patrimônio cultural que eles [os
alunos] trazem. (P2)
Olha, o processo de compreensão, na realidade, você tem que... que... usar
algumas etapas que é propriamente a leitura, a codificação, não é,
transformar aquele código todo em pensamento, transformar esse
pensamento em questionamento (...)o ler, realmente, é quando você olha, lê,
compreende, transforma e aí você cria uma idéia sobre aquele determinado
texto (...) (P3)
Não considero que o problema esteja tão-somente nesse tipo de concepção, mas,
principalmente, na relação de causa e efeito aí estabelecida. Em uma concepção dessa
natureza, ficam de fora importantes elementos constitutivos da produção de leitura, como a
própria noção de inconclusibilidade da compreensão. Da forma como os professores colocam
a questão da compreensão, mesmo consideradas as hesitações, esta fica configurada como
um produto acabado. Compreender tem como conseqüências não só respostas, mas também
novas perguntas, sem as quais as respostas separam-se do diálogo e entram no
conhecimento sistêmico (BAKHTIN, 2003: 408), concluído, impossível de se renovar.
Direcionando a questão da compreensão de um texto para as especificidades das
disciplinas, a tônica volta a ser o entendimento do significado das palavras, o conhecimento
do vocabulário, com ênfase para aqueles considerados característicos das disciplinas, e não
às especificidades discursivas desses campos de comunicação.
eles lêem “monarca”, mas eles não sabem que monarca é rei, entendeu, e
isso é assustador, então muitas vezes eu paro e eu tenho que trabalhar com
eles o quê, o vocabulário, explicar pra eles que monarca é rei, o que que é
parlamentarismo, o que é democracia (...) (P5)
Se as palavras são sinônimas, em princípio, poderíamos lançar mão de qualquer uma
delas. E o que fazemos é escolher, dentre tantas, uma. Essa escolha já é um posicionamento
que efetivamos a partir daquilo que consideramos bom ou mau, melhor ou pior; essa escolha
está diretamente ligada ao sentido que esta ou aquela forma lingüística pode assumir para o
sujeito falante (e também para seu interlocutor, uma vez que o
endereçamento
é parte
constitutiva do enunciado). Nesse sentido, o horizonte axiológico do sujeito falante,
horizonte este que nasce em uma determinada esfera social, é determinante.
Não se trata apenas do sentido que se pode atribuir às palavras em questão, mas o
que, de fato, elas encerram: o posicionamento deste ou daquele sujeito em um evento, em
114
um determinado momento histórico e social. Um pouco mais a frente, essa mesma
professora aponta uma questão que acredito poder ajudar a refletir melhor sobre isso:
eles têm dificuldade de tempo em História, eles têm dificuldade de
compreensão do que eu tô falando. Como é que eu posso trabalhar
democracia no período romano e na atualidade? (P5)
Provavelmente, a dificuldade não resida exatamente em compreender o que a
professora fala, mas sim, relacionar o que ela fala sobre democracia, por exemplo, com o
que os alunos vivem em suas experiências ou das experiências de outros com as quais eles
entram em contato: com que conceito (ou conceitos) de democracia a sociedade opera hoje?
Como este conceito se relaciona com a democracia grega? A complexidade dessa questão,
que é só um exemplo, evidencia que não se trata apenas de conhecer o significado –
especialmente aquele dicionarizado – das palavras. Não se trata de reconhecer um sinal,
mas sim, de compreender um signo:
“compreender um signo consiste em aproximar o signo
apreendido de outros signos já conhecidos”
(BAKHTIN, 1995: 34). Além do fato de que, com
já foi dito anteriormente, compreender é tomar posição ativa, é entrar na luta pelos sentidos
dos signos que estão em jogo, especialmente sobre aqueles que abarcam conceitos
essenciais para a sociedade.
Quanto à particularidade dos textos na disciplina de língua portuguesa, duas
questões fundamentais surgem a partir das falas das professoras: uma, qual a especificidade
de um texto dessa (ou nessa) disciplina? E a outra, que de alguma maneira se relaciona com
a origem dessa pesquisa, qual o objetivo dessa disciplina no ensino médio?
Eu acho que até hoje eu não fui fazer no ensino médio o que eu tinha que
fazer, e eu acho que não vou fazer nunca. Porque o objetivo do ensino médio
é aprofundar, é você trabalhar com questão. Não tinha nem que dar aula de
gramática, eu tinha que trabalhar com questões, com textos dentro daquilo
tudo que ele já sabia. Mas não é o que acontece. (P4)
Sinceramente eu acho que... nunca pensei, acho que ele pre... eu, eu achava,
você tá falando aí, que tem que ter um conhecimento específico. É... eu,
como a língua portuguesa é uma matéria, por exemplo, Química, Física, no
ensino médio, o aluno só tá vendo agora, quer dizer, ele vai vendo isso em
Ciências, sem saber que tá vendo, né; a Língua Portuguesa, ela é sempre
chamada de LP, o aluno vem desde a alfabetização estudando, é, então,
assim, eu acho que ele precisa saber o que ele precisa pra... pra Física e
Química, o que muda são os termos técnicos, na minhas opinião, é... mas,
talvez deva ter alguma coisa que ele precisa saber que eu não sei, que eu
não parei pra pensar. (P1)
Antes de qualquer coisa, precisamos refletir e definir qual é, ou qual deve ser, o
objeto de ensino de língua materna, e isso em qualquer nível escolar, da alfabetização ao
115
nível superior – e sobre este último não me refiro apenas ao curso de Letras. Hoje
observamos um objeto aparentemente diverso, com forte tendência à imposição e afirmação
de uma determinada variedade que traz a marca das classes dominantes a título de língua
padrão. Para além dos estudos contemporâneos da sociolingüística, da filosofia da
linguagem, da alfabetização, do letramento, entre outros, há um discurso corrente, crítico ao
ensino da gramática tradicional que, independente de sua efetivação através da prática em
sala de aula, revela a sensibilidade do corpo docente, e até do discente, para a
improdutividade do ensino de língua centrado na normatização e na nomenclatura
gramatical, tal como até hoje é largamente praticado nas escolas. Permanecer apenas na
percepção de que as estratégias de ensino de língua materna não têm se mostrado eficazes
ao propósito de que os egressos da educação básica sejam leitores e produtores de textos
proficientes, aponta para a pouca ou rara instrumentalização, especialmente teórica, dos
professores para que, seguros, possam superar a sensibilização e passar para uma ação
efetiva.
Mas será, de fato, o objeto de ensino da língua materna indefinido? Não será o caso
de admitirmos que seu objeto atual é (e sempre foi) a reafirmação da variedade de prestígio
como língua padrão, e redefinirmos qual deve sê-lo?
Aprender a ler e a escrever não é uma atividade que se restrinja a um determinado
período da vida, e a própria dinâmica da vida social, que nos coloca em contato o tempo
todo com novos produtos da criação humana, mostra que esta é uma atividade constante
em uma sociedade onde a escrita exerce papel central nas relações cotidianas. Nesse
contexto, aprender a ler e a escrever não se restringe a ter acesso a uma técnica, mas
significa também – e isso é fundamental para a constituição de um sujeito autônomo –
ampliar as possibilidades de participação nas mais diversas esferas discursivas de nossa
sociedade. Especialmente para as classes populares, o acesso a essas discursividades
impregnadas pela escrita, além de se consolidar como elemento de constituição, configura-
se como instrumento contra-hegemônico, de luta contra privilégios, discriminação,
desigualdade.
Considerar as especificidades dos textos trabalhados na disciplina de língua
portuguesa talvez seja, na verdade, refletir sobre como nos posicionamos diante do objeto
língua: se o entendemos como um legado a ser transmitido para as novas gerações ou como
um produto em processo, sempre transformando mulheres e homens e sendo transformado
por eles. Talvez isso ajude a definir a especificidade do texto na disciplina de língua
116
portuguesa e nos ajude, também, a resolver o problema do
marco zero
: professores desta
disciplina temos sempre a sensação de estarmos começando, e não dando prosseguimento
ou aprofundando às questões da língua.
Levando-se em conta que aprender a ler e a escrever não é uma atividade concluída,
pois no dia-a-dia deparamo-nos com eventos e gêneros que sempre nos exigem novas
compreensões, ensinar a ler e a escrever não pode ser uma atividade concluída e finalizada
em determinada fase do ensino fundamental.
Ensinar a ler e a escrever, para os professores, pode ser oportunizar que os não
alfabetizados, especialmente as crianças, entrem em contato com a leitura e a escrita de
forma prazerosa; pode ser também possibilitar acesso aos códigos da escrita,
“mas não pode
ficar nisso, senão vai ficar só na comunicação oral”
(P2); possibilitar a associação entre as
formas escritas e palavras que já ouvimos. De maneira geral, a opinião dos professores a
este respeito, mesmo as professoras que trabalharam com educação infantil, inclusive com
alfabetização, essa atividade é algo impreciso, de difícil definição.
Ensinar a ler e a escrever de fato é dotar o educando da tecnologia da escrita; dotar
alguém dessa tecnologia é mais que ensinar a ler e escrever sílabas, palavras, frases. É
também mostrar-lhe que as convenções escritas não se resumem a isso, mas também a
outros sinais gráficos, como os sinais de pontuação ou os acentos gráficos. É observar a
construção de parágrafo escrito, essa unidade de sentido um pouco mais complexa que uma
frase.
Mas ensinar a ler e a escrever, para além de tornar alguém um hábil manipulador de
uma tecnologia, é inserir um indivíduo no mundo da escrita, e este é formado pelas mais
diversas formas de ver o mundo real. Então não basta ler a palavra, é preciso ler o texto,
embrenhar-se por sua sintaxe e referências, entendendo-o como a materialização do
discurso, pois é este – o discurso – a unidade mínima de sentido, e não a palavra isolada de
seu enunciado, de seu contexto. É a materialidade social do discurso que faz com que um
texto tenha sentido, e não as palavras em si. Um discurso revela uma forma de compreender
o mundo, além de constituir uma dada realidade.
Cada campo da criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação
para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. (BAKHTIN,
1995: 33)
117
Que importância pode ter no trabalho de um professor do ensino médio o que ele
concebe como ensinar a ler e a escrever? Será que os estudantes no ensino médio ainda
precisam de orientação no que diz respeito à leitura e à produção de textos?
A professora que considera não ter realizado, até hoje, o trabalho que deveria no
ensino médio, porque neste nível de ensino é necessário ainda trabalhar com questões que
os egressos do ensino fundamental já deveriam ter compreendido, diz que mesmo se
tivéssemos o aluno ideal, ainda assim haveria muito a ser feito no sentido de tornar o aluno
um leitor cada vez mais competente:
A gente não ia mais ter essa questão da nomenclatura, mas a gente ia ter a
questão do aprofundamento, levar os alunos a outros horizontes (...) Dentro
da literatura, por exemplo, a gente entender e perceber, associar coisas.
(P4)
De maneira geral, os professores consideram que no ensino médio precisamos
ensinar nossos alunos a ler e escrever, e justificam isso apontando a dificuldade com que
realizam as atividades de leitura e produção de texto. Essa realidade, de alguma maneira,
ofusca o porquê, no ensino médio, ser necessário, ainda, orientar, instruir o estudante no
que diz respeito à leitura e a produção de texto porque ela sempre nos remeterá àquilo que
anteriormente chamei de
o problema do marco zero
.
Como assinala a professora acima, teríamos, sim, muito que fazer se os estudantes
chegassem a esse nível de ensino, de fato, preparados para ele, com o grau de letramento
31
esperado: há um universo novo com o qual o estudante deste nível de ensino entra em
contato e que deve ser por ele explorado, analisado, vivido; dentre tantas novidades e
assuntos já conhecidos que ganham novas abordagens, aos professores caberá orientá-lo,
inclusive no que diz respeito à leitura e escrita, e não só nas aulas de língua portuguesa,
mas também nas outras disciplinas, pois nestas, de modo especial, os estudantes entram em
contato com vários gêneros estranhos às suas experiências.
Os outros docentes parecem intuir que ainda há o que ensinar no que diz respeito a
essas duas atividades e o campo de conhecimento das disciplinas que lecionam.
Reconhecem que os alunos adentram em um universo novo em vários sentidos, desde a
lógica das relações pessoais até as especificidades de suas disciplinas, mas com relação à
questão da linguagem parecem acreditar que se trata de uma questão meramente técnica.
31
Não desconsidero aqui as polêmicas existentes sobre a expressão “graus de letramento”, mas não se pode perder de vista que os estudantes
do ensino médio vão desenvolver estudos para os quais alguns conhecimentos do ensino fundamental precisam estar sedimentados.
118
O reconhecimento, por parte dos professores, de que textos propostos para o ensino
médio não fazem parte da vida dos alunos, é uma porta para uma reflexão aprofundada
sobre a necessidade de se realizar um trabalho voltado especificamente para a produção de
leitura e de textos em qualquer disciplina. Mas as reflexões, imprescindíveis para que
possamos avançar, são atropeladas pelas demandas do cotidiano, que pedem respostas
urgentes e criam um círculo vicioso e um ambiente entorpecido, afastando possibilidades de
ir além da intuição.
E isso se reflete nas declarações que fazem alguns professores quanto ao espaço
reservado para a leitura em suas aulas:
a leitura na minha disciplina tem a coisa do... do... você... da atividade de
repente, uma coisa da curiosidade, por exemplo, um termo, uma atividade
nova que aconteça, um caso, um padrão que apareça novo, ou então
simplesmente é... surgiu uma doença nova que tá deixando o pessoal aí meio
que... então geralmente eu faço a questão que eles tragam alguns textos,
que eles procurem, tragam, a gente lê alguma coisa sobre o assunto, e aí eu
vou mostrando a eles aonde esses assuntos... se... se... dependendo da fonte
se ela tem validade ou não (P3)
eu tenho dois tempos semanais, então isso já começa com um, pra mim
sendo um problema, porque eu tenho um conteúdo, eu tenho que trabalhar
esse conteúdo, né, e com tempos muito pequenos, as vezes tem semanas em
que eu não vejo os alunos, porque cai em feriado, isso pra mim é um
complicador muito sério. (...) eu peço pra que eles, né, trabalhem com o
capítulo, eles estão lendo, estão fichando, eu sempre peço pra alguém ler
(P5)
o ideal seria mandar o aluno, eu cheguei a fazer isso, (INCOMPREENSÍVEL)
eles me doaram uma porção de livros, coloquei na biblioteca: leia. “Ah, mas
num tô entendendo”; “meu filho, você tem que pegar um dicionário e deixar
do lado...”; mas não dá tempo, porque com doze tempos... sabe o que eu fiz
nesse bimestre passado, que eu estive doente: “galera, eu quero na próxima
aula, é individual, resumo do capítulo lido” (P2)
Apesar de o texto escrito ser o principal material utilizado nas aulas, a atividade de
leitura parece pontual, além de sugerir um caráter puramente instrumental. O objetivo da
leitura é a informação a ser extraída do texto em questão, para que se possa trabalhar
determinado conteúdo. É necessário, aqui, chamar atenção para o fato de que esse tipo de
“estratégia” de leitura dificilmente gera compreensão de um fenômeno ou de um fato
histórico, uma vez que sua principal orientação é para uma assimilação do tipo “decoreba”.
Conforme apontado pelos professores, há ainda a preocupação com o famigerado
extenso conteúdo que não cabe em uma carga horária semanal, muitas vezes, exígua.
Também o desânimo é um fator, frente às reais condições de trabalho com que convivemos,
professores e alunos, com relação ao desenvolvimento da leitura e produção de textos, que
119
vai desde a formação dos professores – inclusive os de português – à disponibilidade de
material, passando pela própria formação dos alunos que chegam ao ensino médio.
todo ano eu peço que os alunos vão à biblioteca, escolham um livro e eles
leiam, e... eu não gosto de dar trabalho escrito de leitura, sobre a leitura de
um livro nem prova sobre a leitura de um livro; então, eu acho sempre que
eles vão colar, que eles vão...que eles não vão ler, e trabalho em grupo,
então, de livro, eu acho que talvez um leia no grupo, então eu fico meio
desestimulada de fazer esse tipo de trabalho. E aí eu peço que eles escolham,
cada um, cada aluno escolha um livro e conte pra turma a história do livro.
Eu acho que esse trabalho, eu não tenho certeza, eu acho que estimula,
pelo... como eu falei antes, há uns minutos atrás, é, pelo menos uma minoria
se estimula, e... porque cada um vai contar a sua história. (...) por enquanto
eu tenho feito esse trabalho e os alunos ficam pedindo que eu repita, mas,
é... eu acho que a quantidade de livros na escola não é suficiente, porque eu
não poderia permitir que uma turma, por exemplo, lesse os mesmos livros,
porque já foi contada a história pra turma, teria que ser outros, eu não sei se
seria suficiente. Então eu trabalho desse jeito, mas é uma vez por ano, né,
praticamente, eu gostaria de fazer isso mais. (P1)
Esse depoimento não revela apenas o desânimo citado anteriormente, mas também
certo espontaneísmo, que tem marcado a prática docente. E não seria equivocado dizer que
este último é resultado, entre outras coisas, da formação acadêmica dos professores no que
diz respeito ao trabalho com leitura e produção de texto com os alunos, e que ambos
refletem a quantas anda a face pedagógica das políticas públicas de educação: com certa
freqüência, as secretarias de educação dos estados materializam novas fórmulas e
estratégias para que ensinemos este ou aquele conteúdo aos alunos; e é bom que
lembremos que dificilmente os docentes aderem a essas propostas.
Os professores declaram que a escola não forma leitor, e justificam isso de várias
maneiras: a já, várias vezes, declarada, prisão ao conteúdo curricular; o tempo exíguo; a
falta de sintonia entre a escola e a sociedade de maneira geral. Esta última, inclusive,
abordada a partir de dois aspectos, como podemos observar na fala das duas professoras:
Eu acho que não. Não, porque o mundo mudou, os filhos mudaram com os
pais, os pais mudaram com os filhos, e a escola não mudou. A escola mudou
pouco em função, assim, do que o mundo mudou, de como as coisas
mudaram, é, a escola não consegue acompanhar, tanto na tecnologia quanto
no material humano. Acho que a escola mudou muito pouco, então eu acho
que não. (P4)
a impressão que eu tenho é que quando o aluno entra na escola, assim, a
vida fica lá fora, não existe vida no sentido, assim, de alegria, de prazer
dentro da escola; existe, eu acho que existe, mas, é... às vezes existe assim,
na relação entre as pessoas, nas brincadeiras do professor; na hora de
estudar mesmo, de falar da... do assunto, essa, essa... esse prazer se perde.
(...) eu acho que até nós, professores, nos habituamos a “agora eu estou na
120
escola”, o prazer e a vida ficaram lá fora, é, e eu lamento por isso, porque eu
acho que isso é devido a um sistema que a gente vive, a sociedade que a
gente vive e as exigências, é, que não batem com a vida, as exigências vão
contra a vida. (P1)
Um dos professores, que vem trabalhando com turmas de terceira série do ensino
médio, nos últimos anos, reconhece que
“os alunos acabam saindo ainda com alguma
problemática com relação à leitura e a escrita”
. E diz que isso acontece mesmo com um
trabalho conjunto dos professores, que se dá a partir da observação de um aluno ou outro
que venha apresentando dificuldades que destoem das demais. Ou seja, um trabalho voltado
para o desenvolvimento da leitura e escrita de um aluno normalmente acontece quando há
casos que discrepem do conjunto.
Apesar da queixa geral com relação à competência leitora do alunado do ensino
médio e do reconhecimento de que eles precisam ler, os depoimentos anteriormente
apresentados revelam que o espaço reservado para o ensino e a prática de leitura, com
vistas à formação do leitor – notadamente o leitor crítico –, ou não existe, ou é marcado por
um caráter embrionário, que não evolui, especialmente pela falta de um objetivo que esteja
estruturado em pressupostos baseados em uma reflexão que leve em conta teoria e prática.
Ou se quer chegar a um leitor enciclopédico, que leia de tudo um pouco, a título de estar em
contato com “os mais diversos tipos de linguagens” e dessa forma estar inserido no mundo
globalizado, onde ser “especialista em generalidades” é o mais importante – e talvez isso se
relacione com o “aprender a aprender” propagado pelos documentos oficiais voltados para a
organização curricular; ou busca-se um leitor fruto de uma representação social pautada em
uma imagem romântica, em que a leitura praticamente o coloca em contato com o divino.
3.2.1.2 – A produção de textos
A questão lançada aos professores sobre o lugar da produção de textos em suas
disciplinas ratificou uma fala comum nas escolas – e fora delas –: cabe aos professores de
português efetivarem esse trabalho. Obviamente isso não é “aprendido” em lugar algum, é
como um axioma. Mas há um outro lado: uma vez que, de alguma maneira, esse assunto
esteja sendo colocado em debate, essa “verdade” está perdendo o seu estatuto como tal:
quando aquilo que parece natural começa a ser citado, discutido, questionado, refutado,
121
significa que estamos caminhando para sua desnaturalização e, conseqüentemente,
vislumbramos possibilidades de construir algo novo, ainda que muito lentamente.
Para os professores das disciplinas diferentes daquela de língua materna, produzir
textos está basicamente restrito aos exercícios, resumos, avaliações e, esporadicamente,
alguma redação. A principal justificativa para a pouca produção escrita por parte dos alunos
nestas disciplinas é, novamente, a falta de tempo e o conteúdo extenso.
o espaço deles pra escrita? Geralmente a parte de exercício, que aí eu
termino a bateria de conteúdo e aí eu passo para a parte de exercício,
entendeu, é, a escrita, às vezes eu paro o conteúdo que eu vejo que tá muito
difícil, (...) o que eu faço, eu paro, geralmente eu paro aí, no meio, e peço,
gente, o que eu expliquei, escreve. Eu faço isso, mas com meu conteúdo,
entendeu, assim que é a minha forma de trabalhar. (P5)
As professoras de português apresentam práticas bastante distintas, como podemos
observar abaixo: uma se assemelha ao que foi dito pelos professores das outras disciplinas;
a outra, no seu relato, revela uma estratégia voltada para a formação de um produtor de
textos.
Eu dou uma proposta de redação bimestral, uma. Meus alunos escrevem mais
em questões do livro didático porque algumas perguntas que você vai
responder, você tem que mesmo desenvolver, né, uma idéia. Mas,
atualmente, eu tenho dado uma redação uma redação bimestral. È uma
proposta, esse ano especificamente eu não fiz nenhum trabalho, assim, de
estimulação, dei propostas, né, bimestrais, pra que eles desenvolvessem.
(P1)
A gente começa mesmo a escrever através mesmo de textos, opiniões,
pequenos textos, um parágrafo, até chegar a fazer uma redação. Não me
preocupo muito com a estrutura da redação, porque os alunos... ‘professora,
quero aprender redação’; então eles acham que existe uma fórmula mágica
de se ensinar redação, uma técnica que você vai escrever, se vai escrever
muito bem. (...) Eu acho que é o maior engano, “ah, o aluno tem que
escrever, no segundo, no terceiro ano, uma redação toda semana pra sair
escrevendo bem”; não vai sair escrevendo bem, não vai dominar a técnica.
Dominar a técnica eu acho que é o último passo. Primeiro você tem que...
desenvolver esse hábito da escrita, exercitar isso muito bem, fazer muitas...
pequenas coisas, porque é nas pequenas coisas que você vê os grandes
erros, os grandes defeitos, e ir consertando, trabalhando por ali. (P4)
Podemos observar ainda, nestes dois depoimentos que apesar de P4 tecer críticas
com relação à forma que normalmente o ensino de produção de texto é realizado, seu fim
acaba sendo o desenvolvimento e domínio da técnica da escrita, da mesma forma que P1.
122
Nos dois casos, a produção de textos parece não se relacionar com a interlocução, com a
interação e com a constituição de um sujeito crítico.
O que significa escrever na escola? Com que objetivo se escreve na escola? O que se
pretende quando se trabalha a atividade de escrita com os estudantes? O que, de fato,
orienta o trabalho de produção de texto nesta escola?
Vale chamar atenção para uma observação feita pelas duas professoras, lobo abaixo:
as condições objetivas para o desenvolvimento de um trabalho voltado para a formação do
produtor de textos.
quando eu comecei a trabalhar no ensino médio, eu dava mais redações, só
que eu comecei a ficar muito enrolada pra corrigir, então eu parei. (P1)
numa sala de quarenta, cinqüenta, mesmo no ensino médio, não tem como,
não tem jeito. Eu acredito ser esse o caminho, né, só que tem que ter uma
estrutura que seja, que torne isso possível, essa estrutura nunca mais vi,
nunca mais trabalhei. Uma pena. (P4)
Desenvolver um trabalho de produção de escrita com um grande número de alunos
em uma sala é praticamente impossível, uma vez que esse é um tipo de trabalho em que a
atenção individual é imprescindível. Acrescente-se a isso um outro agravante: o fato de
muitos professores trabalharem em várias escolas para composição salarial, diminuindo as
chances de organização de um trabalho exclusivamente voltado para o desenvolvimento da
escrita dos alunos.
Algo já citado anteriormente, de suma importância deve ser lembrado: também para
os professores a produção de textos não é bem recebida, é bloqueada, difícil, muito pouco
praticada; provavelmente isso seja, também, um fator para a não efetivação do trabalho de
produção dos alunos. Além disso, o que vimos até aqui com relação à escrita, inclusive com
os alunos, levou-me a considerar que se a atividade de leitura tem um fim pragmático, isso
eleva-se consideravelmente em se tratando da produção de textos. Ao menos quando lêem,
esses sujeitos acreditam que estejam produzindo conhecimento, ainda que suas concepções
de leitura sejam questionáveis, mas em se tratando da atividade de escrita, parece que essa
possibilidade não é cogitada. Pode-se, ainda, apontar a alta valorização da leitura em
detrimento da produção da escrita, acompanhada das possíveis crenças que embasam essa
idéia, como veremos a seguir.
123
3.2.1.3 – Um mito: quem lê muito escreve bem
Assim como os alunos, alguns professores acreditam que quem lê, escreve bem ou
que é necessário ler muito para escrever bem.
a própria leitura também facilita você a... a escrever, então, com o passar do
tempo, com o... o exercício da leitura facilita também você ter um pouco essa
coisa do organizar pensamento pra poder ser escrito, então você consegue
visualizar um texto antes de colocar ele no papel (P3)
eu acho que foi uma das coisas que contribuíram pra eu escrever bem é essa
minha, essa, é, é, essa minha regularidade com leitura, porque você lê, você
vai, assim, percebendo quando usar vírgula, que muitas vezes é uma coisa
assim, que você tem que usar em alguns momentos, mas outros é opcional,
então você vai até percebendo estilos, maneiras de usar (P1)
pra você escrever bem tem que ler. Não tem como escrever bem sem leitura,
porque amplia seu vocabulário, é... te desinibe, eu acho que há uma série de
fatores que faz... (P4)
Inicialmente é necessário refletir sobre o que os professores querem dizer com
“escrever bem”: escrever com correção, de acordo com a norma preconizada pela variedade
de prestígio; transcrever um pensamento ordenado; escrever com segurança, com
criatividade.
As duas primeiras acepções vão ao encontro do padrão. A questão é que o padrão de
uma língua normalmente está associado à variedade de prestígio, à variedade das classes
dominantes, e não porque haja atributos intrínsecos da língua nesta variedade que justifique
que ela ocupe o lugar do padrão, mas trata-se, sim, da disputa pelo poder. De certa forma,
defender uma escrita padronizada pode configurar uma postura ingênua diante das questões
de poder que envolvem a constituição do sujeito, língua e suas variedades. Um dos
professores, em outro momento da entrevista, quando fala de um produtor de textos ideal,
diz que
o bom escritor, não precisa ser aquele que seja prolixo, que escreva milhares
de coisas, mas que o que ele escreve pode ser entendido, pode ser
compreendido por outro, que ele consiga passar todas as informações dele de
uma maneira plausível, correta, dentro de um padrão, porque a gente vive
em padrões. (P3)
Essa fala reafirma não apenas a idéia de um padrão de língua ou de escrita, mas
também de um padrão de como pensar, para além da ordenação do pensamento. Ainda, a
124
linguagem é concebida como transparente e o autor do texto tem total controle sobre os
sentidos possíveis daquilo que produziu. Sugere-se que um produtor de textos consiga
“passar todas as informações”
e que
“o que ele escreve pode ser compreendido por outro”
.
Neste caso, se um leitor não conseguiu compreender um texto, o problema é de seu autor.
Para a terceira acepção do que seja escrever bem, encontramos uma outra definição
que também se alinha com o dito sobre as anteriores. Escrever com segurança é, segundo a
professora, escrever
“sem medo de tá escrevendo besteira”
. Não escrever besteira pode ser
entendido como estar pensando, escrevendo
dentro dos padrões
, uma vez que passível de
ser censurado ou criticado é aquilo que, de alguma maneira, chama a atenção, que foge ao
padrão.
E a criatividade? O que pode significar escrever com criatividade? Com que matrizes
discursivas se alinha a “criatividade”? Escrever é enunciar, e enunciar é uma atividade
essencialmente criadora; assumir isso pressupõe o sujeito como agente no processo de
significação, e não apenas o locutor, mas também o interlocutor. Pressupõe um sujeito
consciente do processo de significação.
No entanto, a conotação largamente conferida à criatividade na escrita é ser esse um
atributo do texto responsável pela sedução do leitor, e, portanto, torná-lo palatável; ou é
algo sem definição – então pode ser qualquer coisa e nada –, e não porque seja uma
abstração da realidade que exija um raciocínio altamente elaborado, mas porque, muito
provavelmente, não exista um texto escrito que todos aqueles que o leram tenham adorado.
Lembro aqui, conforme discutido no capítulo 1, do papel ativo do leitor na construção de
sentidos e todas as implicações que envolvem a interação texto-leitor.
Ao mesmo tempo em que os professores afirmam a máxima de que a leitura ajuda
no desempenho da escrita ou de que quem lê escreve bem, revelam suas inseguranças com
a própria escrita, sejam elas da ordem da correção ortográfica, da organização das idéias, da
comparação de suas produções com produções alheias consideradas “boas”. A contradição
de suas afirmações reside no fato de que, como pudemos constatar anteriormente, são
pessoas que lêem com regularidade, o que os define como leitores.
Contraditório é, ainda, o que podemos observar a partir desta análise de dados, na
seção dedicada ao olhar do professor sobre a leitura: o tempo que os professores destinam à
leitura – e não a busca de informações sobre um conteúdo ou o exercício de interpretação –
125
ou não existe ou é bastante reduzido. Se, de fato, acreditam que o exercício da leitura ajuda
na produção de um bom texto escrito, então a leitura precisa ser objeto de ensino, e não
instrumento de recuperação de informações dos conteúdos das disciplinas; dessa forma,
seria necessário que se reservasse tempo expressivo para a realização de tal atividade.
3.2.2 – A produção oral
Frago diz que
“o ser humano é por natureza um ser que fala. Que fala ou cala, que
ouve ou escuta. Onde há seres humanos pode haver ou não escrita, mas sempre há
linguagem. O oral é o primeiro”
(1993: 84). Pensando nisso e na dialética que há entre
oralidade e escrita, interessou-me saber o que pensavam os professores sobre o lugar e o
papel da oralidade em sala de aula.
muitas vezes eu tenho que controlar a oralidade, no sentido de que eu preciso
concluir o que eu quero explicar, né, eu faço, é... várias, é... observações, e a
cada final de observação eu digo, alguma coisa, alguém quer falar alguma
coisa, né, e aí sim começa a parte da oralidade. (...) Eu acho [importante o uso
da oralidade em sala de aula], porque se não, eu nunca vou saber o que que...
se eu estou sendo compreendida ou não (...) não é um espaço “agora nós
vamos fazer uma aula de debates, e tal”, eu não tenho, infelizmente, eu não
posso chegar a ter esse... né, momento, esse ápice, porque eles vêm com
muitas dificuldades... de compreensão de palavras, e eu preciso trabalhar isso
com eles, porque senão não vai haver debate nenhum, né, então eu deixo pra
eles discutirem quando eles podem. (...) tem que ter um momento pra ouvir
aluno, sim, mas não é um momento específico dentro de um programa,
entendeu, acho que todo momento é o momento onde há diálogo dentro da
sala de aula. (P5)
a questão oral, ela é importante, ela faz parte do conjunto, né, pra se
compreender, porque o que acontece, os termos, eles têm que ser, muitas
vezes, pronunciados pra que eles acostumem (...) aí quando você fala e
escreve, você junta essas duas atividades, e que na verdade acabam todas elas
formando um conjunto, a parte oral, a parte escrita e a parte de leitura, elas
formam um conjunto pra poder se passar e se receber como conhecimento,
então a questão da oralidade também é interessante porque o aluno expressa o
que ele tá pensando de uma maneira mais direta (P3)
Assim como a leitura e a escrita, a oralidade é principalmente tomada como
instrumento pedagógico. É um meio de se transmitir o conteúdo para os alunos, para
verificar a assimilação ou não deste e também para fixação de conteúdos; de uma maneira
126
um tanto indefinida, pode até vir a ser possibilidade de expressão do aluno. Assim
concebida, tal qual a leitura e a escrita, está destituída de sua capacidade de produção.
Pode, ainda, ser concebida como um conteúdo a ser trabalhado, e nesse aspecto,
volta-se para a variedade culta da língua, para a norma padrão, pondo em relevo o aspecto
da correção:
é muito importante a gente trabalhar a oralidade mostrando o que o mundo
culto pede como a gente fale e como a gente fala, fazendo, fazendo os
alunos observarem essa diferença (...) quando eu tô dando aula de
concordância, eu procuro ser o mais natural possível, e muitas vezes “olha,
eu já ia errando na concordância, como é que eu tenho que falar?”, né, então
a gente vai, vai trabalhando oralidade dessa forma. Eu acho que a gente não
tem que tentar mudar o modo do aluno falar, não; eu acho que a gente tem
que mostrar as diversas possibilidades da fala. Agora, quando o modo que ele
fala incomoda ele, (...) aí eu acho que a gente tem que ajudar, porque eu
acho que a pessoa tem o direito de melhorar. (P4)
De fato, melhorar é um direito. Mas o que significa melhorar, especialmente em se
tratando da forma de falar? Historicamente, “melhorar” a forma de expressar-se pela
oralidade tem sido assumir a forma de falar do invasor, do colonizador, da classe dominante.
Assumir a forma de falar desse estrangeiro tem sido ser dominado por uma determinada
visão social e cultural. A fala de um aluno pode incomodá-lo quando ele, portador de uma
variedade diferente da variedade de prestígio, se sente em desvantagem, discriminado e
mesmo envergonhado pela sua forma de se expressar, e tem consciência do quanto a
expressão oral o marca e anuncia sua origem.
Moysés (1995: 55), discutindo algumas transformações que marcam a passagem de
um mundo oral para o mundo da escrita, no século XIX, e centrando essas análises na forma
como os negros, primeiro na condição de escravos e depois na de libertos, seapropriaram”
de uma forma de expressão que não era sua declara que
(...) a estratégia de separação por etnias e por comunidades lingüísticas. Uma
separação estratégica por diferenças, feita pelo branco para que o escravo não
possa reconhecer-se no outro, para que não tenha a palavra desse outro como
ponte de expressão, que lhe permita reconhecer-se nele e em sua palavra,
fazendo-o seu interlocutor. O outro é o negro, que está junto dele, que partilha
a mesma condição, mas que não o compreende. Estão separados por
diferenças, antagonismos vindos de lutas anteriores, mas principalmente pelas
variações entre as línguas, que, o outro, o branco, explora estrategicamente,
evitando que surja a cooperação, a comunicação, para que restem na não-
compreensão, no silêncio, no isolamento. O mecanismo é o desdobramento
através das diferenças. É diferente do outro, o negro, e é diferente do outro, o
branco, que os domina e estimula as diferenças até que estas se anulem entre
si pela confrontação com sua dominação, pela interiorização da dominação do
127
branco, pressuposto da condição escrava. A essa interiorização corresponde
uma perda de identidade étnica.
Sobre isso, Berenblum (2003: 64) afirma que uma das especificidades do modelo
colonial português diz respeito à intensidade do tráfico de escravos africanos,
“e que as
formas de seleção e distribuição dos escravos dificultavam o assentamento de importantes
concentrações étnicas, culturais ou lingüísticas, fazendo com que durante a época colonial,
as línguas africanas tivessem uma penetração muito menor que as indígenas”
. Vale lembrar
que tanto os africanos quanto os índios eram ágrafos.
Quero retomar aqui uma citação de Goulart (2003), já mencionada anteriormente,
em que a autora refere-se à oralidade
“como canal capaz de garantir a identidade e a
memória dos sujeitos sociais”
. O apagamento das diferenças é na verdade, o apagamento da
história de um sujeito, e este apagamento, como bem nos mostra a história da formação do
povo e da cultura brasileira, é a anulação de uma cultura, notadamente através da imposição
de uma outra.
Dessa forma, negar a oralidade como forma legítima de expressão da inteligência
humana, por um lado, é negar todo conhecimento produzido a partir de outros sistemas de
referência, e por outro, é negar a possibilidade de constituição dos alunos – e também dos
professores –, uma vez que são negadas suas próprias contrapalavras.
3.3 – A Orientadora Educacional
Como já foi dito anteriormente, inicialmente, seriam sujeitos desta investigação
apenas professores e alunos. No entanto, depois de analisados os questionários sentiu-se a
necessidade de inserir a pessoa responsável pela orientação pedagógica da escola e uma
pessoa responsável pela biblioteca – dessa última falaremos mais adiante –. Em 2004, a
orientadora pedagógica aposentou-se, a Orientadora Educacional, doravante OE, que
sempre esteve envolvida com as rotinas da orientação pedagógica, passou a desempenhar,
também, esta função.
OE trabalha com alfabetização desde que tinha dezesseis anos, e se ocupou da
função de orientadora educacional antes mesmo de ter iniciado a graduação na área, em
escolas privadas. Depois de concluída a graduação, fez especialização em Métodos e
128
Técnicas de Ensino. Professora do Governo do Estado do Rio de Janeiro há dezessete anos,
iniciou suas funções em um Centro Integrado de Educação Pública – CIEP – como
alfaberizadora, trabalho que realizou por oito anos. Depois disso trabalhou com a segunda
série do ensino fundamental por dois anos; posteriormente, foi trabalhar na escola David
Capistrano.
Lembrando do trabalho no CIEP, diz que ele tem uma função interessante, pois
“a
gente não só trabalhava com o aluno ensinando a ler e a escrever, mas também preparando
pra vida, porque são crianças que vêm muito cruas”
. Achava importante que os alunos
tivessem uma leitura de mundo, que fossem participativos, que se inserissem no mundo.
Muitos dos alunos que alfabetizara estavam concluindo o ensino médio em 2005, de modo
que, de alguma maneira, ela pode observar que
“a sementinha”
que plantou, germinou e
cresceu.
Sua opção pela orientação educacional está diretamente vinculada à sua prática junto
às crianças das classes populares, especialmente, mas também com outras de classe média.
você nota alguns problemas que algumas crianças têm de abandono, de
dificuldade de aprendizagem por problemas pessoais, então eu acho que a
minha escolha de orientador foi mais nesse caminho, de tentar trazer um
auxílio pra esses alunos e tentar ajudá-los também, não só na transmissão de
conhecimento, mas também na parte social, na parte afetiva desses alunos,
então eu acho que tem tudo a ver.
Refletindo sobre sua relação com a leitura e a escrita, diz que, desde que começou a
trabalhar como educadora teve de reavaliar algumas concepções. Antes sua visão era de
aluna, daquilo que haviam transmitido para ela. Aliás, declara não ter sido formada uma
aluna leitora, e atribui isso ao fato de que, na época em que estudara, não havia um
trabalho na escola voltado para isso, para desenvolver o gosto, o prazer pela leitura. Em
determinado momento de sua prática como professora –
“e abro um parêntese para dizer
que 90% das coisas que a gente aprende como professor a gente aprende dentro da sala de
aula mesmo, infelizmente”
– percebeu que teria que rever questões pessoais e encarar a
leitura como algo muito importante para ela mesma. Precisou ser
“autodidata”
e aprender
uma série de coisas para atingir seu aluno
“porque quando eu me vi pela primeira vez dentro
de uma sala de aula, 90% das coisas que eu havia aprendido dentro das escolas, ali, pra
aprender a ensinar, não valeram de nada”
.
Viera de uma família em que a leitura não era valorizada, não ocupava um lugar
importante. Para ela, seus pais eram frutos de uma época em que não se queria que as
129
pessoas se esclarecessem, portanto, não havia estímulo à leitura, ao contrário. Ela sofrera o
reflexo disso, até perceber que precisava romper com este comportamento e investir na
leitura para que pudesse trabalhar com seus alunos. E neste processo, desenvolveu o gosto
pela leitura e foi percebendo a sua importância. Conclui que primeiro teve que aprender,
para depois ensinar.
Aliás, perceber a dimensão social da leitura foi importante, não só pela possibilidade
de acesso a conhecimentos e teorias pedagógicos, mas especialmente por poder
compreender algumas situações com as quais teria de lidar em seu trabalho:
E passei isso não só pros meus alunos... tentei passar, porque também é
muito complicado a gente lidar com crianças que não têm livros em casa, que
a única função do jornal, muitas vezes, era de higiene pessoal mesmo,
porque eles nem sabiam o que era aquilo, vinha enrolando mercadorias,
então, você fazer esse trabalho é muito difícil, então eu fui buscar caminhos
pra poder mostrar praquela criança que aquele... que o jornal, que a revista,
que qualquer lugar que ele lesse alguma coisa, aquilo podia transmitir algum
tipo de conhecimento.
Britto (2003: 133), analisando uma charge, cujo personagem central é um menino
que vive em um lixão de Porto Alegre, e que, através da vitrine de uma
bookstore,
observa
duas crianças que lá dentro se encontram manipulando livros, exclama o seguinte para sua
mãe:
“Mãe... ela já tá no segundo livro!”
, diz o seguinte:
O que podemos dizer é que essa criança não se formará leitora mesmo que
haja belíssimos programas de formação de leitor e uma real intenção de
incluí-la no processo, e isso não porque ela não queira ou não tenha estímulo,
mas porque está objetivamente excluída do mercado de consumo de livros e
dos espaços sociais em que os conhecimentos e capacidade relacionados à
leitura são importantes.
Alheia a essa consideração, a OE, discorrendo sobre o papel da escola, afirma que
“a
escola tem uma função, que na minha concepção é a maior de todas, que é o resgate,
porque muitos alunos são resgatados dentro da escola, então a escola, eu acho que é o
único local, pra muitos jovens, de mudança de vida”
.
Essa visão messiânica de educação escolar se irmana com outra bastante difundida
na sociedade: a de que a leitura é necessariamente uma coisa boa – já me referi a isso
anteriormente. Aliás, ambas as idéias são carro-chefe do discurso de qualquer candidato a
cargo eletivo em nossa sociedade, e não seria exagero dizer o quanto de leviano pode haver
nessas falas. Não podemos, jamais, deixar de perguntar, tanto com relação à educação
escolar quanto à leitura, porque mais importante que as respostas, talvez seja a nossa
130
capacidade para questionar. Por exemplo, antes de perguntarmos o que devemos ler,
precisamos perguntar por que ou para que ler. Não que não haja objetivos quando das
campanhas de alfabetização em massa ou de promoção de leitura; acontece que eles não
são de fato explicitados, e geralmente são camuflados em frases do tipo “dar oportunidade
de uma pessoa exercer plenamente sua cidadania” ou no próprio consenso de que a
educação ou a leitura, por si só, resolverão problemas sócio-econômicos.
O que não podemos esquecer é que as pessoas que, normalmente, são alvo desse
tipo de campanha – geralmente programas de curta duração – continuam não tendo acesso
a uma série de bens materiais fundamentais para o exercício de seus direitos, especialmente
o de viver. Que diferença pode haver entre um indivíduo analfabeto e outro alfabetizado que
para fazer uma única refeição por dia precisam chafurdar em um lixão? Não saber ler e
escrever ou realizar tais atividades de forma precária não são fatores
de
exclusão social. São
fatores
da
exclusão social.
3.3.1 – A leitura
Para ela a pessoa que lê
é uma pessoa politizada, é uma pessoa preparada pra vida e é uma pessoa
capaz de, a qualquer momento, se expor, de... de passar uma idéia, que
pode ser dela ou pode ser uma idéia de alguém que ela tenha lido e que ela
tenha gostado.
Esse comentário, de certa forma, tem base em suas próprias experiências com a
leitura, mas também se apóia no pressuposto de que a leitura é necessariamente positiva.
Mas, não se pode negar que indica, também, uma concepção de leitura como possibilidade
real de formação de um sujeito crítico. Trata-se, então, de questionar a posição do sujeito
com relação ao que seja ler ou escrever; talvez, mais que isso, qual o posicionamento das
pessoas de maneira geral, e dos profissionais da educação, em particular, sobre a escrita
mesma: se a encaram como um instrumento de comunicação ou como um bem cultural
produzido por mulheres e homens ao longo da história da humanidade.
Um posicionamento com relação a isso é de fundamental importância para aqueles
que trabalham com educação, em função da centralidade da escola no que diz respeito à
131
aquisição da escrita, porque ler não é necessariamente bom. Há pessoas que lêem muito, no
entanto, vivem em estado de alienação.
A OE acredita que um trabalho de orientação de leitura e escrita com os alunos do
ensino médio é necessário, pois considera que
“tudo na vida é processo, e até hoje,
enquanto adulto, a gente tá aprendendo a aprender
. Novamente ela vai argumentar sobre a
necessidade de se
resgatar
os alunos. Desta vez trata-se de resgatá-los para a leitura e para
a escrita.
É resgatado aquele mantido em cativeiro. Que cativeiro será esse em que encontram-
se alguns jovens e adultos? Será o cativeiro da oralidade, hoje, já tão marcada pela escrita,
mas ainda oralidade? Será a escrita a salvação?
Mas, não será o contrário? Não poderão aqueles já designados leitores serem
escravos, viverem subjugados? Não podemos esquecer que, como poderoso instrumento de
subjugação das maiorias com pouco ou nenhum poder, a leitura tem se prestado muito mais
à dominação que à libertação. Sobre isso, Grenfell (1991:28) fala de
uma falsa democratização da distribuição do saber da escrita, pois o que
acontece, na verdade, é uma distribuição das possibilidades de conservação
do poder constituído. A manutenção da ordem agora não caberá somente aos
filhos da elite, mas a todos os envolvidos no processo de produção.
Ironicamente uma “democratização” das possibilidades da manutenção do
status quo.
E para reforçar sua afirmação, cita Lévi Strauss (apud GNERRRE, 2003: 58):
a função primária da comunicação escrita é a de favorecer a escravidão...
Ainda que a escrita não haja sido suficiente para consolidar o conhecimento,
ela foi talvez indispensável para fortalecer a dominação...
A promoção da leitura é uma questão política, e a alfabetização não é
a condição
para que se tenha acesso ao mundo das letras, especialmente em uma sociedade complexa
como a nossa. Neste sentido, a leitura deve ser vista, antes de tudo, como um direito (Britto
e Barzotto, 1998).
A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem
constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder.
(GNERRE, 2003: 22)
3.3.2 – A produção de textos
132
OE, pensando na função do escrever, há algum tempo, quando as imagens não
tinham o apelo que têm hoje, acredita que o ato de escrever perdeu espaço na vida das
pessoas no dia-a-dia – e eu pergunto que espaço terá sido esse e para que pessoas? –. Mas
identifica importante característica atualmente:
eu acho que aquele que sabe escrever bem, ele passou a ter uma
importância muito grande porque não é uma coisa muito habitual, então eu
acho que a escrita veio valorizar a pessoa que escreve, ela tem um valor
acima dos outros
Anteriormente tivemos oportunidade de ver essa idéia, quase que com as mesmas
palavras, enunciada por um dos jovens participantes desta pesquisa. A escrita tem um valor;
para aquele que sabe ler e escrever “bem”, a escrita passa a funcionar como atributo que
valoriza seu portador. Certamente esse é um dos motivos que fazem do ato de escrever – e
escrever “bem”, especialmente – objeto de desejo de muitos, apagando quase que
completamente sua face constitutiva do sujeito.
através da escrita a gente passa os nossos anseios, a gente consegue... eu
acho que não existe uma outra maneira mais interessante de expressar quem
somos nós, verdadeiramente, do que a escrita porque ali o aluno se solta, o
adulto se solta, é o momento de intimidade da gente com o papel, então
muitas coisas a gente consegue até entender da gente mesmo, escrevendo.
Esta outra consideração traz uma compreensão sobre o ato de escrever que não
necessariamente se contrapõe à primeira declaração. Considero ser essa uma outra face de
tal ato, que permite trazer para a discussão uma outra possibilidade de pensarmos a
produção da escrita. Ainda que esta fala revele uma concepção de produção de texto aliada
de uma noção idealista, onde se crê que escrever é absolutamente emocional, não podemos
perder de vista que ela vislumbra uma produção real, e não aquela produção escolar,
geralmente artificial, sem nenhuma relação com aquele que a produz. Essa discussão é
pautada, também, nas experiências de produção de texto de meus alunos.
Tenho observado que em algumas atividades meus alunos têm produzido textos, e
não copiado, respondido perguntas, etc. E que momentos são esses? São momentos em que
eles narram histórias: as suas, de conhecidos, de familiares, fatos que presenciaram.
Geralmente são atividades absolutamente marcadas pela autonomia da produção. Estou
chamando de produção com autonomia aquele texto em que é perceptível a consciência de
seu autor frente ao próprio objeto – a escrita – e a atividade que está desenvolvendo. São
textos em que a intenção do autor, de certa forma, guia o nosso olhar, o olhar do
133
interlocutor. São textos que trazem questionamentos, respostas a possíveis perguntas do
interlocutor, digressões, enfim, são textos marcados pela consciência do outro, pela dialogia.
A escrita precisa servir para que possamos falar de nossos anseios, expressar quem
somos
“verdadeiramente”
, emitirmos opiniões, dizer se gostamos ou se não gostamos.
Precisamos, de fato, sentirmo-nos soltos, sem amarras, donos das nossas palavras – ainda
que de fato sejam de todos; mas se de todos, também nossas –, agentes, sujeitos.
3.4 – Responsável pela biblioteca
A responsável pela biblioteca, identificada como B, trabalha na rede estadual de
educação há 17 anos. Antes de ir trabalhar na escola onde a pesquisa foi realizada,
trabalhou em uma unidade próxima dali, no mesmo bairro. Este estabelecimento, na
verdade, não funcionava como uma escola, era a Casa da Criança, que atendia crianças em
idade pré-escolar. Lá, B diz que executou várias tarefas: cuidou de crianças, trabalhou na
cozinha, se ocupava da limpeza, não havia uma função determinada,
“fazia de tudo”
. Lá não
havia biblioteca ou mesmo sala de leitura.
Seu cargo, desde que foi admitida, é de Auxiliar de Educação. Pela descrição que ela
faz, auxiliar de educação é como um “faz tudo”, realiza funções de acordo com a
necessidade da unidade em que se está lotado. Ela informa, ainda, que este cargo a habilita
a trabalhar em alguns setores de uma unidade escolar, como inspetora de alunos, na
secretaria ou mesmo na biblioteca.
Quando foi trabalhar na escola David Capistrano, em 2002, logo foi para a biblioteca.
E isso se deu em função de problemas de saúde, e não porque estivesse habilitada para isso.
Confessa que, inicialmente, ficara apavorada, e nem tanto por causa do trabalho na
biblioteca, mas porque trabalharia com adolescentes:
“primeiro os adolescentes, né, que eu
tinha um medo terrível”
. Com relação ao trabalho na biblioteca, diz que sempre gostou de
livros, de ler e isso não a assustou muito, além do fato de que muitas pessoas a ajudavam.
Trabalhar na biblioteca não era, e não é, apenas uma questão de conhecer as rotinas
daquele setor, mas especialmente atender um público de adolescentes e jovens que lá
chegavam pedindo indicação de onde poderiam encontrar um livro que tratasse de um
134
assunto específico. Trabalhar na biblioteca significava, então, conhecer a demanda de seu
público principal, mas no início não era assim, então, ela assim se dirigia aos alunos:
eu sou nova aqui, não entendo também, procura aí. É em que matéria que é?
‘Ah, tia, é Biologia’, então, vai lá, na parte de Biologia; é Matemática, ali, vai
lá.
Atualmente sente-se segura, o convívio com os livros, a leitura,
“quando tenho um
tempinho”
, daquilo que os adolescentes e jovens solicitam a ajudou:
“a gente pega tudo,
né?”
.
Afirma que sempre gostou de ler. Lê revistas; livros,
“assim, só se me interessar
muito”
. Sua leitura regular é a de jornal e uma revista semanal que a escola recebe. Mas
essa leitura habitual é realizada na escola, em casa não tem muito tempo, lê
“alguns
livrinhos”
da igreja que freqüenta e a Bíblia.
Passou a ler com maior freqüência quando foi trabalhar na biblioteca da escola:
“também tinha que ler mais os livros porque toda hora eles: ‘onde tá isso, onde tá aquilo,
tia?’”
. Foi ganhando intimidade com os livros, ao menos os da biblioteca. Diz ainda que a
outra funcionária que foi para a biblioteca, em 2005, trabalhar no horário da tarde
“lê à beça
aqui, você precisa ver, lê jornal, lê tudo!”
.
3.4.1 – Biblioteca: um local de pesquisa
B declara que o público da biblioteca é formado pelos alunos; professores,
raramente, a freqüentam. Os professores, quando vão à biblioteca, o fazem
“sempre pra
pegar livros deles, da matéria deles”
, livros didáticos. Há na biblioteca uma estante com
livros
32
destinados exclusivamente aos professores, mas que, neste período de quatro anos
em que a biblioteca tem aberto diariamente, poucos foram emprestados.
Na entrevista com os professores, apenas uma declara pegar livros emprestados, em
geral, para as filhas. Os outros que afirmaram ir à biblioteca, o fazem para verificar o acervo
relativo às disciplinas que ministram, buscando saber se há material disponível para os
trabalhos que pretendem solicitar que seus alunos façam.
32
Dentre esses livros, estão alguns títulos de Paulo Freire, Marilena Chauí, Darci Ribeiro, Alcir Pécora, Antônio Augusto Batista, Manoel de Barros,
por exemplo.
135
Todos concordam que o acervo da biblioteca deixa muito a desejar, pois é
desatualizado, muitos livros didáticos, há poucos exemplares de alguns títulos fundamentais
– quando há esses títulos –, entre outras coisas.
O acervo, assim, é um acervo pequeno, tem... pelo menos pra área de
ciências, apesar de ter uma quantidade grande de livros, mas essa
quantidade grande de livros não é representativo, porque a quantidade está
inversamente proporcional ao número de títulos, né, porque têm muitos livros
de uma determinada, de uma determinada editora, de um determinado título,
porém tem um acervo bem interessante, não só pra, no meu caso, pra
Biologia, tem um acervo interessante também pro lado da História (...) (P3)
No entanto, P5 diz o seguinte:
Eu fui à biblioteca. Eu achei que a biblioteca, aqui do colégio, está muito
pobre; pobre em conteúdo – isso no aspecto de História – pobre em livro; eu
até, parece incrível, mas ontem eu já tava olhando assim pra minha, pro meu
material de... pro meu acervo, que eu tenho em casa, e disse assim: eu
tenho livro demais, então vou levar livro pra biblioteca. (...) eu sinto que a
biblioteca é muito fraquinha, e eu só usei o espaço da parte do vídeo. Até
mesmo a pesquisa que eu queria fazer sobre ditadura, correlacionando o
Capistrano, e eu pensei que tivesse, que houvesse material sobre o
Capistrano [
David Capistrano, que dá nome à escola
] você tá sabendo que
tem uma folha, que segundo ela [
a pessoa responsável pela biblioteca
], é
colada num quadro. Então não tem como você trabalhar com uma, uma
biblioteca sem que ela tenha o que é fundamental pra ela, que são livros, né,
isso dentro de História... por exemplo, poderia tentar trabalhar Machado de
Assis, poderia, no século dezenove, maravilha. Só que, como, eu poderia
trabalhar com isso sem ter vários exemplares? Eu não posso chegar pra um
aluno aqui, “compre tal livro”; há uma dificuldade de fazer xérox do meu
conteúdo! (P5)
As professoras de língua materna ressaltam a importância da biblioteca, declaram
que não é a ideal, mas que há lá coisas interessantes, incentivam que os alunos a
freqüentem, mas criticam a falta de obras, tanto os títulos quanto as quantidade por título.
Uma delas, inclusive, critica a quantidade de livros didáticos encontrados em suas estantes –
que, aliás, é a maior parte do acervo.
Os jovens vão até lá especialmente para fazer pesquisas,
“trabalhos e mais
trabalhos”
. B diz que eles
“pegam livros pra ler também, lêem livros, fazem pesquisa”
. Os
livros que eles voluntariamente pegam emprestados ou lêem ali mesmo na biblioteca versam
sobre doenças sexualmente transmissíveis, especialmente a Aids, ou cuidados com o corpo.
Livro por indicação do professor, para ser lido, que não configura exatamente uma pesquisa,
B diz que é uma vez por ano, apenas. É também do interesse dos alunos leituras que
136
consideram ser úteis para o vestibular, como a revista semanal que a escola recebe, que,
segundo B, eles gostam muito.
B acha que os alunos gostam da biblioteca, não vão até lá apenas para realizar as
tarefas solicitadas pelo professor, mas gostam de estar lá, de ir conversar, de pegar um livro
na estante para ficar lendo enquanto aguardam o intervalo entre uma aula e outra. De
acordo com a observação dela, aqueles alunos que são leitores
São alunos tranqüilos, né, educados, são alunos que tão bem na escola, não
é de bagunceira; eu vejo por esse lado. Todos, assim, que eu conheço, que
eu sei que lê muito, são assim.
Sua descrição do aluno leitor certamente coincide com um ideal de leitor que a
sociedade desenha: educados, saem-se bem na escola, são comportados, entre outros
predicados positivos e valorizados em nossa sociedade.
Durante esta análise de dados, observei algo que não havia me dado conta durante a
entrevista com B nem durante a transcrição. Uma pergunta que fiz para ela, acabou
expondo, para mim, uma das faces da leitura escolar – provavelmente a dominante.
Objetivando informações sobre o que iam fazer na biblioteca os jovens, ao que ela
respondeu que basicamente pesquisas, trabalhos, perguntei o seguinte:
“mas eles não
pegam livros pra eles?”
. Essa pergunta traz um não dito que eu considero revelador: outros
livros que os alunos possam retirar na biblioteca, que não por iniciativa deles, mas sim por
estímulo de alguma pesquisa ou estudo para alguma disciplina não é
para ele
.
Provavelmente é para o professor ou para a escola, ou para qualquer outra coisa, menos
para ele. De alguma maneira isso caracteriza a leitura, e também a escrita, escolar: não é
para o educando. Isso me leva a fazer outra pergunta, especialmente em função do principal
público dessa biblioteca: em que medida essa biblioteca atende a seus usuários? Essa
biblioteca tem como objetivo contribuir para formar os jovens e adultos que por ela passam
em leitores?
O jornal diário que chega à escola foi bem recebido pelos alunos,
“tá boa a leitura de
jornal, eles pesquisam o jornal todo, lê a parte toda. Lê tudo.”
. B diz que com a implantação
do jornal diário, e também do computador, a freqüência aumentou.
O computador na biblioteca não alterou a procura pelos livros, não só porque o
número é insuficiente – há apenas um equipamento, o que, sem dúvida, está muito longe de
137
atender a demanda –, mas também porque os alunos
“falam que tem professor que não
gosta de aceitar trabalho da inernet, que tem que ser feito no livro”
.
Quero finalizar chamando a atenção para o que justifica o título que nomeia esta
seção, além das próprias declarações dos sujeitos dessa pesquisa, especialmente de B.
Analisando o livro de presença da biblioteca, do ano de 2005, observei que os motivos que
levam até lá seus usuários podem ser assim interpretados: aproximadamente 90% das
atividades lá realizadas dividem-se em pesquisa, empréstimo de dicionário de língua
estrangeira ou língua materna, assistir a vídeo. A procura pelos dicionários, tanto de língua
estrangeira como os de língua materna normalmente são motivadas pelos professores; esse
procedimento para as disciplinas de língua estrangeira é facilmente entendido, e até
justificado. Para outras disciplinas, muito provavelmente, a justificativa acompanha as
declarações feitas pelos professores sujeitos desta pesquisa, no que diz respeito ao
obstáculo que representa o não conhecimento do significado das palavras e a importância do
uso do dicionário pelos alunos. Lembro que quase todos os professores sujeitos dessa
pesquisa declararam ser muito importante que os alunos conheçam o significado das
palavras e que, para isso, o uso do dicionário é fundamental.
Apesar de contarmos com um auditório equipado com videocassete e uma sala
exclusiva para DVD, a biblioteca também tem equipamento de reprodução de VHS, para
eventuais necessidades. O uso da biblioteca para exibição de vídeos, normalmente acontece
quando os outros espaços reservados para isso estão ocupados e é uma atividade realizada
pelo professor no horário de sua aula, e não uma atividade promovida pela biblioteca.
O acervo, como já sinalizado, é formado por um grande número de livros didáticos,
apostilas, enciclopédias e mini-dicionários. Há uma série de revistas disponíveis para
pesquisas dos alunos, e também alguns jornais são arquivados para esse fim. Livros de
literatura brasileira existem em número insuficiente, não só com relação à variedade de
títulos, como também à quantidade por título, como fora falado pelos professores. Livros que
abordem assuntos de interesse dos adolescentes e jovens alunos da escola são escassos,
como informou B. Livros que tenham sido enviados pelo governo do Estado ou pelo governo
Federal, através de programas de incentivo à leitura, largamente divulgados nas grandes
mídias, constituem uma parte ínfima do acervo da biblioteca.
É importante dizer também que a biblioteca está instalada em um cômodo que
originalmente era uma sala de aula, pois não fora projetado um espaço específico para esse
138
fim – e essa é uma prova, dentre tantas, da importância que tem a promoção da leitura para
o governo do Estado, e mais particularmente, para a Secretaria Estadual de Educação. Aliás,
este já é o terceiro espaço que a biblioteca ocupa na escola. Ela é uma iniciativa da
comunidade escolar – provavelmente em função da necessidade, e não do direito – e é
preservada por causa da preocupação e consciência dos gestores que passaram pela escola
e aqueles que lá estão.
Ao que parece, o principal objetivo da biblioteca é facilitar o acesso do aluno à
informações através de alguns (poucos) materiais para a realização de pesquisa escolar. O
objetivo de formação de leitor, de incentivo à leitura passa ao largo da função dessa
biblioteca – e provavelmente também das poucas bibliotecas de outras unidades escolares,
com raríssimas exceções. Dessa forma, a dimensão cultural de uma biblioteca é afetada de
tal forma que esta, praticamente, inexiste.
Para concluir, tomo emprestado algumas palavras de Silva (1986: 72), que tão bem
se encaixam nesse caso:
(...) não basta que a biblioteca execute somente as tarefas técnicas de
difusão da informação; é necessário que ela exerça influência ativa e
dinâmica no contexto envolvente, preocupando-se com a qualidade do seu
acervo e dos seus serviços, com a origem e necessidades dos usuários, com a
democratização do seu espaço, e com o planejamento de programas sócio-
culturais.
Para que esta realidade vivida pela e na biblioteca desta escola, e em várias outras,
se modifique, não basta a boa vontade da comunidade escolar. É necessário que as
secretarias de educação, de culturas e outros organismos responsáveis pelo incremento e
promoção da leitura assumam suas responsabilidades, que vão desde providenciar que as
bibliotecas possam contar com o acervo atualizado e instalações adequadas, passando pela
contratação de profissionais qualificados para a realização do trabalho que precisa ser
desenvolvido em uma biblioteca, no sentido de que a leitura possa ser usufruída como um
direito, e não como mais um instrumento necessário para a sobrevivência ou ascensão
social.
139
4 – Considerações finais
A origem desta pesquisa não foi exatamente uma questão, no sentido que pode ter
esta palavra na esfera dos estudos acadêmicos. Esta investigação foi motivada,
principalmente, pelas inquietações, desassossegos e, não raro, angústias de uma profissional
que trabalha com alunos da etapa final da educação básica, que se via – e se vê, ainda,
muitas vezes – “de mãos atadas”, “em um beco sem saída”, sufocada por um complexo de
fatores que faz da leitura e da escrita na escola, de maneira geral, atividades sem
significado, mecanizadas, desprazerosas.
O caminho percorrido nesta investigação, que se inicia na preparação da proposta de
projeto de pesquisa para esse Programa de Pós-Graduação, aponta para o emaranhado que
envolve a problemática que se tornou a leitura e a escrita. Envoltas tais atividades pela
necessidade e pela instrução, ficam destituídas da dimensão constitutiva, formadora e
transformadora do sujeito, afastando o ser humano daquilo que o caracteriza, a atividade da
linguagem, porque esta é tratada como habilidade mecânica.
É pela linguagem que o ser humano interage com o outro, produz e é produzido, e
tendo a linguagem verbal papel fundamental nas relações humanas, por se tratar do
fenômeno ideológico por excelência
(BAKHTIN, 1995: 36), além do fato de a escrita ter um
papel central nas relações sociais em nossa sociedade, ler e escrever são atividades
imprescindíveis, por um lado, pela ampliação das possibilidades de interação, e,
conseqüentemente, de constituição do sujeito; e, por outro, pelas necessidades objetivas de
sobrevivência em uma sociedade em que a escrita ganha relevo como um bem material, e
não como um bem cultural produzido pela humanidade e, como tal, direito de mulheres e
homens.
Crianças e pais das camadas populares vêem a aprendizagem da leitura como
um instrumento para obtenção de melhores condições de vida – a leitura é
avaliada em função de interesses utilitários. Já crianças e pais das classes
favorecidas vêem a leitura como mais uma alternativa de expressão, de
comunicação, nunca como exigência do e para o mundo do trabalho. Em
nossa sociedade capitalista, reforça-se essa diferenciação do valor da leitura
para dominantes e dominados, pois ela confere à escrita “um papel
discriminativo” que pereniza privilégios: para os dominados, o valor do ler-
escrever é “um valor de produtividade e não um valor que afirma o sujeito e
140
lhe franqueia a diversidade de conhecimento” (SOARES, 1988:22, grifos da
autora)
A leitura e a escrita deixam de se relacionar com o texto e com o sujeito, e ficam
estabelecidas relações com o mundo do trabalho, com o mercado. Dessa forma a
experiência com a leitura e a escrita, como atividades significativas, é absolutamente
desconectada do cotidiano, especialmente na escola. Zilberman e Silva (1988: 14) dizem
que,
“desvinculado de seu objeto, o ato da leitura torna-se intransitivo e inexplicável”
.
Aprende a ler e a escrever é valorizado
“porque a condição de leitor é requisito indispensável
à ascensão a novos graus de ensino e da sociedade”
(Ibidem). A leitura e a escrita deixam
de ser uma experiência vivida, experimentada, sentida pelo sujeito, e passam a ser, quase
que exclusivemante, um requisito indispensável à ascensão social.
Como se pôde observar ao longo da análise de dados, as concepções dos sujeitos
dessa pesquisa ancoram-se ora em crenças – “quem lê muito, escreve bem” –, ora em
questões concretas que a sociedade nos coloca, como o fato de serem leitura e escrita
instrumentos necessários à movimentação em uma sociedade como a nossa; revelou uma
noção de língua única, inclusive pelos alunos, indicando a desvalorização das variedades
lingüísticas faladas/escritas pelos educandos. Mostrou, também, que leitura e produção de
textos não são objeto de ensino/aprendizagem, ao menos neste nível de ensino, mas meios
de se chegar aos conteúdos ou de avaliação da aprendizagem destes. Dessa forma, esta
pesquisa aponta para a necessidade de reflexão sobre o papel da leitura e da produção de
textos na vida das pessoas, e o seu lugar na escola.
Da produção de textos – ou da ausência dela
De maneira geral, observamos a relação de um sujeito com a escrita através de sua
produção textual: é por ela que, comumente, se avalia seu desempenho na modalidade
escrita da língua, e é também a partir daí que aquele que não domina esta modalidade fica
mais exposto. Meu olhar mesmo, nesta pesquisa, buscou durante um bom tempo o produtor
de textos muito mais que o leitor, no entanto, aquele não se revelava. No grupo dos alunos,
apenas um declarou ter o hábito de escrever, mas ressaltou que sempre com um dicionário
do lado, e o objetivo dessa atividade realizada de forma “espontânea” era o
treino
, conforme
ele declarou. Dessa forma, dizia ele, não tinha problema para escrever na escola. Já os de
professores e a orientadora educacional, todos revelaram desconforto com tal atividade, e
141
alguns, inclusive, evitam-na. Escrever, somente por obrigação. Uma professora declara, até
mesmo, que
“somos mais leitores que escritores
e que o
“exercício da escrita não tem sido
fácil não”
.
Importante, igualmente, é o fato de que raras são as pesquisas voltadas para a
produção de textos em fases posteriores à alfabetização. Sobre isso, também, falam Masello
Leta (Op. cit) e Pavão (2004) em suas teses de doutorado, esta última, inclusive, chamando
a atenção para o fato de haver estratégias claras para formação de leitores, mas poucas
iniciativas para formação de escritores.
Os sujeitos desta pesquisa sempre que se referiram à produção de textos o faziam
com certa reverência, evidenciando, por um lado, o mito que circunscreve tal atividade e,
por outro, o quanto podemos estar, grande parte da sociedade, impedidos de nos expressar,
de dizer nossa palavra, de intervir nas decisões públicas e privadas que dependem da
palavra escrita. A preocupação primeira expressa por esses sujeitos volta-se para a correção,
para a adequação à norma padrão, para o ajuste de sua forma de expressão que se
aproxime o mais possível da forma lingüística dominante.
Todos declararam ser muito importante ler e escrever, mas ressaltaram que ler é
mais importante que escrever: através da leitura entra-se em contato com todo tipo de
conhecimento, aprende-se mais, ampliando-se a leitura de mundo. A importância dada para
a leitura, em detrimento da escrita, levou-me a supor que se desconsidera a possibilidade de
construção de conhecimento através da produção textual, e a considerar que a
predominância da cópia sobre a criação, na escola, reforça um pensamento dessa natureza.
Ler, de certa forma, é uma atividade generalizada, provavelmente porque
considerada capital para que possamos transitar, “funcionar” no tipo de sociedade que
vivemos, altamente industrializada. E isso pode ser uma ilusão: com a aquisição da escrita e
sua utilização voltada quase que exclusivamente para a leitura, indivíduos podem se
considerar inseridos de modo efetivo na sociedade, em pé de igualdade com aqueles que tm
acesso a qualquer bem material – aliás, as propagandas em torno de campanhas de
alfabetização encarregam-se muito bem de disseminar tal idéia –, no entanto, se refletirmos
por alguns instantes e olharmos ao redor, veremos que um grande número de alfabetizados
estão excluídos, sobrevivem à margem desta sociedade marcada pelo consumo e
competição.
142
Mesmo que se diga que um dos principais objetivos da escola é transmitir
conhecimento e que esta transmissão se dê especialmente através de materiais escritos, e
que por causa disso a leitura tem importância incontestável, é preciso destacar a
necessidade de investimento na produção de textos, entendendo esta como espaço para
manifestação, expressão e de constituição do sujeito, além de espaço legítimo de produção
de conhecimento. Por ser a produção textual uma forma específica de organização do
pensamento, o seu exercício de modo significativo – portanto verdadeiramente inserida na
vida do sujeito – oportunizar uma reflexão diferenciada daquela rotinizada pelos
acontecimentos cotidianos, estes tão necessários para nossa organização, mas ao mesmo
tempo responsáveis, em conjunto com outros fatores, pelo apagamento do singular, do
plural, em favor do mesmo, do coletivo voltado para o pensamento único.
A produção de textos dentro e fora da escola, para muitos sujeitos, não tem o menor
significado. Isso, aparentemente, é uma contradição em tempos de afirmação dos direitos. A
todos é concedido o direito de livre expressão. Mas como a livre expressão se o sujeito está
impedido de exprimir-se através de uma das modalidades de expressão da linguagem verbal,
a escrita? Como exercer a livre expressão se o que se permite, na verdade, é repetir idéias
produzidas por outrem? Quais são as reais condições de produção de textos que têm
mulheres e homens nessa sociedade? O que tem sido produzir textos na escola?
Em uma aula que eu ministrava, este ano, 2006, com uma turma da primeira série do
ensino médio, do horário noturno, aconteceu um fato interessante. Trabalhando o conteúdo
língua, linguagem, propus aos alunos que refletíssemos sobre a seguinte questão:
“o que é
estudar língua portuguesa?”.
Eles começaram a falar o que pensavam e eu ia escrevendo no
quadro, em forma de tópico, seus comentários:
para aprender a escrever; para aprender a
falar; para aprender a fazer redação; para aprender substantivo, adjetivo, etc
. Destaquei os
tópicos para
aprender a escrever
e
para aprender a fazer redação
, pois aquilo chamara
minha atenção, e pedi que me explicassem o que queriam dizer com aquilo, perguntando se
não era a mesma coisa, ao que eles responderam, todos, que não. Aprender a escrever
significa aprender a escrever as palavras corretamente, a utilizar a pontuação, fazer
concordâncias, etc.; aprender a fazer redação é escrever de acordo com um modelo bem
determinado: é necessário que a redação tenha introdução, desenvolvimento e conclusão,
um determinado número de linhas, tema determinado, etc.
Neste período, havia solicitado que produzissem um trabalho em que narrassem a
história de suas famílias – dos avós até seus irmãos: quem eram essas pessoas, do que elas
143
gostavam, o que faziam, como se relacionavam com elas, que importância que eles tinham
em suas vidas – e perguntei-lhes se tal trabalho se encaixava na categoria redação, ao que
eles responderam que não, aquele trabalho era uma história, e não uma redação sobre suas
famílias. Quando solicitei que fizessem esse trabalho, muitos resistiram, pareciam não
quererem falar sobre suas histórias, então, eu esperava que eles relatassem uma coisa ou
outra sobre suas famílias ou que simplesmente fizessem listas com os nomes e alguns
poucos adjetivos que se relacionassem com essas pessoas. No entanto, a maioria dos
trabalhos de fato eram narrativas, e muitas delas com marcas claras dos sujeitos que as
escreviam, como alguns que se permitiam brincar com o leitor de seu texto.
A redação há muito deixou de ser um modo de redigir, o que implicaria o
posicionamento do sujeito frente à atividade da escrita, para ser apenas um
“trabalho ou
exercício escolar que versa sobre um assunto dado, ou de livre escolha, e se destina a
ensinar o aluno a redigir corretamente, com seguimento lógico de idéias”
(FERREIRA, 1466).
Redigir corretamente, especialmente na escola tem sido utilizar uma fórmula, inclusive com
uma lista de palavras apropriadas que se deve usar nessa ocasião, de modo que versar
sobre um assunto é a última coisa com que se ocupa – quando se ocupa – aquele que vai
escrever uma redação. A preocupação é encaixar as palavras apropriadas, normalmente
oriundas de um quadro de referências estranho àquele que escreve. Dessa forma, escrever
torna-se, mesmo, uma atividade sem sentido, e isto porque o sujeito não se reconhece
dentro daquela discursividade tida como a correta para esse tipo de texto, além desse
modelo praticamente inviabilizar a possibilidade de diálogo, uma vez que, para este se
estabeleça, é necessário que um eu e um tu, situados no mundo, se instaurem.
Das experiências de leitura e escrita vividas pelos professores e sua relação com a
prática docente
No capítulo 3, apontei para o fato de que os professores não levam em conta
suas experiências de formação de leitores e produtores de texto ao longo de suas vidas
quando refletem sobre as práticas dos alunos. Tal percepção começou a tomar forma
quando da transcrição das entrevistas dos professores, pois eles foram estimulados a falar
sobre suas experiências com leitura e produção de texto e como foram formados os leitores
e produtores de textos que são hoje. Os momentos das entrevistas foram bastante
singulares e, com os docentes, foram não só ocasiões de coletas de dados e diálogo, mas
144
também oportunizaram aos entrevistados rememorar alguns acontecimentos de suas vidas
que se relacionavam com suas trajetórias de leitores e produtores de texto, inclusive,
reconhecido por alguns professores que se referiram a essa dimensão da entrevista naquele
momento:
Engraçado, eu acho que eu sempre tive essa facilidade, eu não sei de onde...
quer dizer, eu tenho uma idéia sim, é, mas... eu to lembrando agora que
quando eu fazia redação na escola, eu detestava, eu virara pra professora e
falava assim: “professora, manda eu subir e descer duzentas vezes a escada,
mas não manda eu fazer redação”; mas pura preguiça, porque quando eu
começava a fazer, eu fazia muito bem, tirava notas boas. É... quando você
me perguntou, me deu um branco, assim. De onde veio isso, eu não sei de
onde veio. Mas agora eu acho que uma coisa assim, que eu acho que teve
muita influência, esse meu professor de Português, ele era pastor da minha
igreja (...) (P1)
Você me fez lembrar, não é exatamente na internet, mas é um momento que
eu escrevo e que eu acho até que eu faço bem, mas eu também acho que a
coisa técnica ta acompanhando, é quando eu escrevo os projetos. (P4)
Inicialmente essa questão chamou minha atenção porque quando os professores
discorriam sobre seus tempos de escola básica, de certa forma, repetiam as falas dos
jovens: as lembranças dos primeiros contatos com o mundo da escrita, o encantamento das
descobertas na infância; a relação com a escrita na escola na adolescência, quando, para
alguns foi a oportunidade de um contato mais intenso com a leitura, especialmente, ainda
que guiado pela necessidade e pela instrução; no presente, quando a relação com a leitura e
a produção de textos, especialmente esta última, já está marcada por objetivos outros que
se sobrepõem à própria natureza da linguagem, desbotando-a pela precisão, pelo
utilitarismo, pela objetivação.
Acredito que a rememoração seja relevante para a prática docente, especialmente
por este se tratar de um grupo de professores em que, de acordo com seus relatos, a
maioria origina-se de famílias em que a leitura e a escrita não eram atividades fundamentais,
conforme declara a orientadora educacional, que completa afirmando que assim era,
“não
porque as pessoas da minha família não achavam aquilo importante, mas porque não era
característica deles”
. Apenas dois professores relataram a influência de um dos pais em suas
histórias de leitores; alguns relacionavam a situação econômica de suas famílias como
obstáculo para o livre acesso ao material escrito e a outras atividades culturais. Outros
citaram, ainda, os esforços realizados para conseguirem ultrapassar a barrira da
“sonegação
de material escrito às classes populares”
(SOARES, 1988), como a professora que, para
superar o que ela considerava uma das diferenças que havia entre ela e as colegas oriundas
145
da classe média, quando fizera o curso normal, ocupava quase todo seu tempo livre com os
livros da biblioteca da escola.
Os professores falam, ainda, de sua relação com a produção de texto, e alguns até se
lembram de um tempo em que escreviam sem preocupação alguma, sem censura, sem se
preocuparem com o olhar alheio, mas a maioria fala – quando fala –, hoje, de uma atividade
limitada, rara, difícil e que não faz parte de seu cotidiano. Nas raras vezes em que escrevem,
isso está ligado à obrigação profissional – e é bom lembrar que nessas ocasiões, geralmente,
trata-se de cópias – ou acadêmica, como é o caso da professora que está fazendo outra
graduação.
As histórias de formação de leitores dos alunos também são marcadas pela
sonegação de material escrito, por um ambiente familiar que não favorece experiências
significativas com as atividades de leitura e escrita; a produção de textos, geralmente, é tão
próxima do sagrado que eles preferem não se arriscar, e só escrevem quando
absolutamente necessário, normalmente na escola, onde essa prática é marcada pela cópia
ou pela anotação das palavras do professor. No entanto, apesar de terem tanto em comum,
os professores não se reconhecem nos alunos, ainda que estes forneçam importante
excedente de visão
33
que, conjugado ao vivido do professor, é uma experiência formativa
das mais relevantes.
Dessa forma, a atividade de rememoração de experiências, para a prática docente,
precisa ser elevada à categoria de método de compreensão da realidade vivida pelo
professor e pelo aluno, no presente, porque este não se explica e nem se explicita por si só.
Normalmente, quando nós, professores, nos remetemos ao passado, o fazemos para afirmar
que tudo era melhor, o alunado era mais interessado, mais responsável, não escrevia ou lia
como o fazem os alunos de hoje, etc. No entanto, essa forma de lidar com o nosso passado
não tem ajudado em nossa prática porque obscurece o que há de mais importante em
nossas histórias de leitores e produtores de texto: as experiências que vivemos. Kramer
afirma que
As histórias de vida e as histórias de leitura/escrita, no nosso caso, são um
importante suporte teórico-metodologico no qual o professor, ao lembrar de
sua vida, vai dando a ela outros sentidos, antevendo mudanças na sua
33
Excedente de visão é a possibilidade que eu tenho de ver/vivenciar no/do outro aquilo que é inacessível a ele, uma vez que eu posso “abarcar
a ela [a personagem] e sua vida e completá-la até fazer dela um todo com os elementos que de certo modo são inacessíveis a ela e nela mesma:
com a plenitude da imagem externa, o fundo que está por trás dela, a sua relação com o acontecimento da morte e do futuro absoluto, etc. (...)”
(BAKHTIN, 2003: 12)
146
prática. Isso representa reunir a pessoa e o profissional que nele foram
separados, não mais divorciando vida e trabalho. (1995:23)
E lembra, ainda, que
“o sujeito constitui a linguagem e é constituído por ela. Pela
linguagem, revivemos e re-fazemos a experiência vivida”
(Ibidem). Fazer e refazer a
experiência vivida é o que caracteriza o ser humano como um ser da produção, uma vez que
não somos determinados pela natureza. Masello Leta (2002: 184), remetendo-se a Benjamin
(1994) fala do empobrecimento da experiência do homem moderno:
a experiência
declinando, vai se tornando vivência – reação a choques da vida cotidiana – imediata, finita,
a ação esgotando-se no momento de tal realização. Já a experiência se torna infinita,
perdura, por ser compartilhada, contada ao outro”
.
Levando-se em conta que projetamos o futuro com os pés no presente e os olhos no
passado, elevar a rememoração da experiência vivida à categoria de metodologia do
trabalho pedagógico pode possibilitar que enxerguemos as reais causas de serem leitura e
escrita, na sociedade e na escola, uma problemática.
Finalmente
Voltei à academia, depois de graduada, motivada pela problemática
leitura e escrita
.
No entanto, a minha perspectiva apontava para os sujeitos alunos e professores, ainda que
eu intuísse a complexidade de tal problemática, mas tudo era muito difuso, os fios
encontravam-se de tal forma emaranhados que não era possível achar uma ponta para que
se seguisse o rastro que levasse ao centro – ou aos centros – do problema.
Minha pergunta de partida –
que concepções de leitores e produtores de textos
circulam na escola?
–, que de fato norteou esta pesquisa do início ao fim, é construída,
inclusive, a partir de minha intuição e do estudo de teorias que relacionavam sujeito,
linguagem e produção. Percebia na minha própria experiência com a linguagem e nas
observações assistemáticas em minhas aulas a importância e a centralidade da linguagem na
vida humana.
Um dos resultados dessa pesquisa é ter percebido a necessidade de redimensionar a
intuição enquanto uma categoria epistemológica do fazer pedagógico, pois é a intuição o
resultado de nossas percepções assistemáticas do cotidiano, e este não é linear, como pode
147
ser suposto, ao contrário, é na rotina que vivemos a dialética do cosmos e do caos; o
cotidiano é de uma complexidade tal que não seria exagerado afirmar que quanto mais
organizado, mais caótico, porque, de certa forma, as ações não têm início nem fim, se ligam
umas as outras como se fosse um acontecimento. E tratando-se do cotidiano escolar isso
pode ser conferido com exatidão impressionante.
A intuição é fruto do singular, que não vemos porque nossos olhos estão habituados
com e pela rotina. Necessitamos da rotina que nos organiza e a nossas ações. A questão é
que essa organização rotiniza os acontecimentos, apagando, para nós, o singular. No
entanto, é o singular o material da intuição, não conseguimos ver nos acontecimentos sua
singularidade, o evêntico, mas apenas a repetição que nos faz acreditar que nada é
produzido no ordinário, tamanha é a (quase) perfeição da realidade construída pelo
cotidiano.
De modo fundamental, a reflexão das experiências que constituíram o docente,
associada à ponderação acerca daquilo que intuímos, especialmente a partir dos
acontecimentos ocorridos na escola, dentro e fora da sala de aula, e aos estudos teóricos da
área da educação, mas não só, pois hoje podemos contar com outras áreas de
conhecimento que têm se debruçado de forma intensa sobre questões voltadas para a
educação, pode ser uma chave importante para cogitarmos a respeito das condições de
produção da leitura e da escrita na escola, ato tão necessário em uma instituição tão cara à
sociedade moderna, que tende para a homogeneização, mas, porque abriga o cosmos e
também o caos, vive a contradição, a tensão mesma, do centrípeto e do centrífugo, da
reprodução e da produção, do velho e da renovação. Retomando Alfredo Bosi (1999) e o
enigma do olhar, digo, com ele, que
Valores culturais e estilos de pensar configuram a visão do mundo do
romancista, e esta pode ora coincidir com a ideologia dominante no seu meio,
ora afastar-se dela e julgá-la. Objeto do olhar e modo de ver são fenômenos
de qualidade diversa; é o segundo que dá forma e sentido ao primeiro.
148
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152
Anexos
ANEXO 1
QUESTIONÁRIO PROFESSORES
NOME: _________________________________________________________________________
NASCIMENTO: ______________________
HÁ QUANTO TEMPO LECIONA: __________________________
1) Que motivos levam você a ler e escrever (marque quantas opções achar
necessário e especifique o que lê e/ou escreve):
( ) atividade profissional
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) atividade escolar
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) formação pessoal
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) entretenimento
_________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) necessidade cotidiano
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) outros
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
2) A leitura é uma necessidade no seu dia-a-dia? Por quê?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
3) Em sua família, que tipo de leitura é comum (jornal, revista, gibi, livro [de que tipo],
outros)?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
153
4) Há estante de livros em sua casa? Onde? Com que tipo de livros? (romances,
enciclopédias, livros didáticos, dicionários, religiosos, outros)
__________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
5) Que importância tem a leitura e a escrita para a sua disciplina?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
6) Você trabalha leitura e escrita em suas aulas? Como?
_________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
7) Caracterize a pessoa que sabe escrever.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
8) Que papel tem a oralidade em suas aulas?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
154
ANEXO 2
QUESTIONÁRIO ALUNOS
Nome: ______________________________________________________________
Nascimento:___________________
1) Há estante de livros em sua casa? Onde? Com que tipo de livros? (romances,
enciclopédias, livros didáticos, dicionários, religiosos, outros)
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
2) Em sua família, que tipo de leitura é comum (jornal, revista, gibi, livro [de que tipo],
outros)?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
3) Que motivos levam você a ler e escrever (marque quantas opções achar
necessário e especifique o que lê e/ou escreve):
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) atividade profissional
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) atividade escolar
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) formação pessoal
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) entretenimento
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) necessidade cotidiano
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
( ) outros
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
155
4) A leitura é uma necessidade no seu dia-a-dia? Por quê?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
5) Qual a importância de ler e escrever?
__________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
6) Você gosta de ler e escrever?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
7) Caracterize a pessoa que sabe escrever.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
156
ANEXO 3
ROTEIRO DE ENTREVISTA COM PROFESSORES
1. O que te levou a ser professor?
2. Depois da graduação você fez algum outro curso? Qual?
3. Você lê com regularidade? O quê? Por quê?
4. Você gosta de ler? Se sim, o que proporcionou esse gostar de ler?
5. Que motivos te levam a escrever? Você gosta de escrever?
6. O que principalmente contribuiu para o leitor que você é hoje? (o mesmo para a
escrita)
7. Você se considera um bom leitor? Por quê?
8. Como você acha que se compreende um texto?
9. Você trabalhada a escrita de seus alunos? Como? Por quê?
10. Que lugar tem a leitura para a sua disciplina? Como você a trabalha?
11. Do que você acha que um aluno precisa para ler um texto específico de sua
disciplina?
12. O que é ensinar a ler e a escrever para você?
13. Como você acha que a escola prepara o aluno no que se refere ao domínio da
leitura e da escrita?
14. Caracterize a pessoa que sabe ler e escrever.
157
ANEXO 4
ROTEIRO DE ENTREVISTAS COM ALUNOS
1 – O que você costuma fazer para se divertir?
2 – De que tipo de música você gosta?
3 – Com que outras atividades você está envolvido, além da escola? Qual a
importância delas?
4 – Como foi e como é o seu contato com a leitura e a escrita?
5 – Que importância você acha que tem ler e escrever?
6 – Como você acha que se aprende a ler e escrever?
7 – A leitura e a escrita de alguma maneira contribuem para os projetos que você
tem para a sua vida?
8 – O que você lê? Você costuma ler regularmente? O quê?
9 – De maneira geral, que motivos levam você a escrever?
10 – Caracterize a pessoa que sabe ler e escrever.
11 – De que maneira a escola contribuiu para o leitor que você é hoje?
12 – Fora da escola, o que contribui para sua formação de leitor?
13 – Que coisas têm contribuído para sua formação, de maneira geral?
14 – Você acha que a leitura é uma fonte de lazer?
158
ANEXO 5
ROTEIRO DE ENTREVISTA ORIENTADORA EDUCACIONAL
1. Qual a função da escola?
2 . Que lugar você acha que tem de ter a leitura na escola? Por quê?
3. Como você acha que se deve trabalhar a leitura na escola? (o mesmo para a
escrita)
3. Do que uma pessoa precisa para ler?
4. O que é ensinar a ler e escrever para você?
5. Como você acha que a escola prepara o aluno para o domínio da leitura e da
escrita?
6. Caracterize a pessoa que sabe ler e escrever.
7. Você acha que a leitura e a escrita devem ser trabalhadas nas diversas
disciplinas? Por quê?
8. Como você acha quer a escola tem preparado o aluno para a leitura e a escrita?
9. Que importância você acha que tem ler e escrever?
159
ANEXO 6
ROTEIRO DE ENTREVISTA COM A RESPONSÁVEL PELA BIBLIOTECA
1 – O que você fazia antes de vir trabalhar na biblioteca?
2 – Há quanto tempo você é responsável pela biblioteca nesta escola?
3 – Quem costuma freqüentar a biblioteca da escola?
4 – Que tipo de material consultam os alunos? Com que objetivos?
5 – Que tipo de material consultam os professores? Com que objetivos?
6 – Como você avalia o acervo da biblioteca?
7 – Como você caracterizaria o leitor dessa escola?
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