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CULTURA
ESCOLAR
EM MOVIMENTO:
DIÁLOGOS
POSSÍVEIS.
Andréa Serpa
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
ANDREA SERPA ALBUQUERQUE
CULTURA ESCOLAR EM MOVIMENTO:
DIÁLOGOS POSSÍVEIS.
NITEROI
2006
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ANDRÉA SERPA ALBUQUERQUE
CULTURA ESCOLAR EM MOVIMENTO:
DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre em
Educação.
Orientadora: Profa. Dra. JOANIR GOMES DE AZEVEDO
Niterói
2006
ANDRÉA SERPA ALBUQUERQUE
CULTURA ESCOLAR EM MOVIMENTO:
DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre em
Educação.
Aprovada em.............de............................de 2006.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________
Profa. Dra. JOANIR GOMES DE AZEVEDO – Orientadora
UFF
______________________________________________________________
Profa. Dra. CARMEN LÚCIA VIDAL PEREZ
UFF
______________________________________________________________
Profa. Dra. CARMEN SANCHES SAMPAIO
UNIRIO
______________________________________________________________
Prof. Dr. CARLOS EDUARDO FERRAÇO
UFES
Niterói
2006
OBRIGADA...
À minha família, obrigada por não permitir que a escola matasse meu espírito, por
acreditar em mim até mesmo quando eu tinha perdido a fé. Obrigada, por não permitir que
eu desistisse dessa briga...para que eu pudesse voltar e lutar por outras crianças. Obrigada
por tantos sins! E por sensatos nãos!
Aos meus amigos dessa longa estrada... que nem a distância, nem o tempo, nem os
estranhos caminhos e alguns buracos, fizeram partir para longe. Obrigada pela verdade
das palavras, mesmo as mais duras, e pelo aconchego dos silêncios oportunos. Obrigada
por me mostrarem a que “margem do rio” eu pertencia, quando eu me perdia...
Aos meus professores e companheiros desta jornada, obrigada por superarem as minhas
expectativas – que eram muitas – e me revirarem do avesso!
À minha orientadora Joanir, companheira sempre presente, atenta e generosa. Um
encontro valioso que o destino me reservou. Obrigada, por “tudo”.
Às minhas companheiras do Donga, obrigada por dividirem comigo seus pensamentos,
seus fazeres, seus medos, suas alegrias e tornarem esse diálogo possível.
PARA OS QUE VIRÃO
Thiago de Mello
Com quem vai no mesmo rumo,
Como sei pouco, e sou pouco,
Mesmo que longe ainda esteja
Faço o pouco que me cabe
De aprender a conjugar
Me dando inteiro.
O verbo amar
Sabendo que não vou ser
O homem que quero ser.
É tempo sobretudo
De deixar de ser apenas
Já sofri o suficiente
A solitária vanguarda
Para não enganar ninguém:
De nós mesmos
Principalmente os que sofrem
E tratar de ir ao encontro
Na própria vida, a garra
(dura no peito, arde límpida
Da opressão, e nem sabem
Verdade dos nossos erros)
Não tenho o sol escondido
Se trata de abrir o rumo.
No meu bolso de palavras
Os que virão, serão povo,
Sou simplesmente um homem
E saber serão, lutando.
Para quem a primeira
E desolada pessoa
Do singular – foi deixando
Devagar, sofridamente
De ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente –
Na primeira e profunda pessoa
Do plural.
Não importa que doa: é tempo
De avançar de mão dada
RESUMO
SERPA, Andréa. CULTURA ESCOLAR EM MOVIMENTO: DIÁLOGOS
POSSÍVEIS. Orientadora: Joanir Gomes de Azevedo.Niterói-RJ/UFF,
20/12/2006.Dissertação (Mestrado em Educação), 145 páginas.
A pesquisa e o texto, que dela resulta, trazem as reflexões tecidas com os diferentes
sujeitos em suas práticas cotidianas em um universo escolar: o CIEP Compositor
Donga. Pesquisa com o cotidiano, pesquisa-práxis, que transforma os sujeitos e o
vivido, ao mesmo tempo em que, os sujeitos e o vivido a transformam. No caminho em
busca dos indícios da produção do fracasso escolar, encontrei uma rede de relações de
alteridade e poder que constituem a cultura escolar desta escola. Reflito sobre diálogos,
práticas e silêncios que constituem o currículo real (Sacristán), o currículo praticado
(Ferraço) e nos fazem pensar sobre como as relações sociais trançadas dentro da escola
desenham, para muito além do currículo declarado, escrito, ou seja, o currículo
documento, outros múltiplos e complexos currículos presentes na formação da cultura
escolar. São vozes que se cruzam, se questionam, se combatem e se reinventam. São
práticas que disputam, negociam, estabelecem espaços, rompem fronteiras. Tentamos
capturar momentaneamente, fragmentos deste movimento, e neles buscamos pistas,
acreditando sempre na possibilidade de produzirmos também, como sujeitos que somos,
uma história de sucesso e de inclusão. Estas reflexões são tecidas a partir do diálogo
tecido entre os sujeitos da pesquisa, os companheiros da universidade, e os autores:
Paulo Freire, Homi Bhabha, Michel Foucault, Edgar Morin, Michel Certeau, Bakthin
entre outros. Autores que contribuem para lermos os múltiplos textos que atravessam
nossas práticas e discursos, produzindo nossas ações e contradições. Busquei refletir a
partir deste espaço como o fracasso escolar vai sendo construído (esta é outra de minhas
crenças) e percebido dentro da escola. Como eu o vivi, em certos momentos combati e
em outros ajudei a construir. Como os outros sujeitos viveram, sentiram e se moveram
neste espaço. Como neste caminho em busca do fracasso, encontrei o sucesso, brotando,
nascendo onde menos esperava...
As relações entre cultura, alteridade e poder, se impõem à pesquisa e assumem o leme,
exigindo que a narrativa dos acontecimentos vividos sejam revisitados em seu avesso,
vasculhando o passado e o presente, tempos que se urdem, em busca de indícios sobre
as nossas lógicas e práticas que criam a cultura escolar em movimento.
Palavras-chave: Cultura escolar, alteridade, relações dialógicas, inclusão/exclusão,
fracasso escolar.
ABSTRACT
The research and the text, which of it results, bring the reflections weaved with the
different persons in their everyday practices in a certain school universe: the CIEP
Compositor Donga. Research with the everyday life, research-praxis, which transforms
the persons and the lived, and, at the same time, the persons and the lived transform it.
In my way in search of the indications of the production of the school failure, I’ve found
a net of power and relations with the other ones which form the school culture of this
particular school. I reflect on dialogues, practices and silences which form the real
curriculum (Sacristán), the practised curriculum (Ferraço) and make us think about how
the social relations weaved inside the school draw, for far beyond the declared
curriculum, the written one, that is, the document curriculum, other multiple and
complex curriculums present in the formation of the school culture. They are voices that
cross each other, question each other, fight each other and reinvent each other. They are
practices that dispute, negotiate, establish spaces, break borders. We’ve tried to capture
momentarily, fragments of this movement, and in them we search for clues, always
believing in the possibility of also producing, as subjects of History that we are, a
history of success and inclusion. These reflections are weaved from the weaved
dialogue between the subjects of the research, the friends from the university, and the
authors: Pablo Freire, Homi Bhabha, Michel Foucault, Edgar Morin, Michel Certeau,
Bakthin among others. Authors who contribute for us to read the multiple texts that
cross our practices and speeches, producing our actions and contradictions. I’ve tried to
reflect from this school space on how the school failure is being built (this is another of
my beliefs) and perceived inside the school. How I’ve lived it, at certain moments I’ve
fought it, and in others I’ve helped to construct it. How the other persons have lived,
have felt and have moved in this space. How in this way in search of the failure, I’ve
found the success, sprouting, being born where it was less waited… The relations
between culture, relation with the other ones, and power, impose themselves to the
research and assume the helm, demanding that the narrative of the events lived be
revisited in its inside out, searching the past and the present, times that weave each
other, in search of indications on our logics and practices which create the culture in
movement.
SUMÁRIO
1. Introdução....................................................................................................................09
2. Entre as Tramas do Real .............................................................................................14
3. Metamorfoses: ser e não ser eis a questão ..................................................................24
4. A Escola : textos & contextos ....................................................................................29
5. Progressão 2002 : lógicas ao avesso e o avesso das lógicas.......................................35
6. Pedagogia do Coitado : os sentidos da escola.............................................................50
7. Progressão 2004 : Diálogos ........................................................................................63
8. Cultura Currículo & Alteridade ................................................................................104
9. Fronteiras do Diálogo: entre muros e pontes.............................................................123
10. Perdas & Ganhos.....................................................................................................136
11. Referências Bibliográficas.
11.1 Obras Citadas..................................................................................................147
11.2Obras Consultadas..................................................................................................150
12.Anexos.....................................................................................................................153
12.1. Reportagem O Globo de 10 de novembro de 2006
12.2. Reportagem Folha de São Paulo de 25 de junho de 2006
12.3. Reportagem O Globo de 28 de maio de 2006
12.4. Reportagem O Globo de 01 de novembro de 2006
12.5. Portaria de Matrícula de 13 de novembro de 2001.
12.6. Texto do Irmãos Grimm : Os filhos de Eva
12.7. Entrevista Ana Maria – Direção
12.8. Entrevista Ana Cristina – Professora
12.9. Entrevista Virna – Professora
. INTRODUÇÃO
Por que meu aluno não aprende? Minha formação, apesar de inacabada, não é
deficiente, ou pelo menos assim eu julgo.
Por que meu aluno não aprende? Minha escola, apesar de algumas políticas
públicas desastrosas, é rica em recursos pedagógicos – salas amplas, ventiladas,
iluminadas, livros, vídeos, aparelhos de som, dvd, jogos lúdicos/matemáticos,
fantoches, sala de leitura, sala de vídeo, quadra coberta, bolas, material de papelaria:
cola, tesoura, lápis de cor, massinha etc. – como a escola de “antigamente” sonhava ser
e não era. Como tantas escolas Brasil afora sonham ser e não são.
Por que meu aluno não aprende? Ele é alimentado, vestido, suprido em todo e
qualquer material que precise. Ele até recebe
1
para ir à escola.
Por que meu aluno não aprende? Por que não consigo ensiná-lo? Mas ele
aprende outras coisas? Quais? Estas bastam para determinar o sucesso de sua
aprendizagem?
O que me move nesta jornada em busca de respostas que ainda não foram dadas,
em busca de perguntas que ainda não foram feitas, é uma dor, uma escolha e uma
crença.
O que me move nesta jornada é essa profunda dor diante do fracasso. Fracasso
do meu aluno, meu, da escola, da sociedade. Fracasso de adulto diante de uma criança,
diante da morte lenta de seu amor próprio, de sua esperança. Fracasso de um ser
humano diante do futuro que lhe cabe escrever quando ele angustiado percebe (mesmo
que esta seja apenas a percepção primeira) tantas e tantas páginas riscadas, apagadas,
rasgadas. Angústia que muitas vezes pode parecer pessimismo ou fatalismo, não é. É
apenas angústia daqueles para quem os números, as estatísticas possuem rostos, olhos,
1
Bolsa Família. Beneficio social pago a família baixa-renda.
vozes; possuem histórias, histórias duras, tristes, que também eu gostaria de apagar, mas
que não se apagam apenas por que deixo de contá-las.
O que me move nesta jornada é uma escolha, a escolha que fiz por ser
educadora. Uma escolha que veio amadurecendo e ganhando forma. Ser professora não
é o que eu faço. É o que sou. O lugar que escolhi para ocupar no mundo e deste lugar
lutar para transformá-lo em um lugar melhor. Existem outros. Essa é a minha escolha.
Esse é o meu lugar. Lugar que se tece junto “com quem vai no mesmo rumo”, lugar que
se move lugar que às vezes se esconde. Dele eu falo. Nele me movo, dele parto e a ele
sempre retorno. Lugar que conquisto e transformo no meu espaço no mundo.
O que me move nesta jornada é uma crença
2
. E assim como crença mesmo, eu
assumo. Alguns diriam que se trata de um saber, ou de um conhecimento, ou de uma
questão epistemológica. Mas não se trata, apenas, disso.
Acredito que o ser humano é capaz de aprender. Acredito que qualquer ser
humano é capaz de aprender. Acredito que o ser humano determina sua própria
existência e por isso mesmo pode modificá-la. Acredito que esta mudança é coletiva,
histórica e culturalmente tecida em meio a tensões, conflitos, paixões.
Esta dor, esta escolha e esta crença me obrigaram a optar por investigar
minha/nossa prática, minha/nossa história, minha/nossa escola e descobrir neste
movimento, dos sujeitos em busca de suas respostas, dos sujeitos em busca de novas
perguntas a possibilidade de construirmos uma outra história para nós mesmos, como
educadores e como cidadãos.
Minha pesquisa se propôs a pensar o fracasso escolar a partir das experiências
das Classes de Progressão
3
, no espaço-tempo que começa com minha chegada ao CIEP
Compositor Donga (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) em setembro de 2001 até
2006. Esta opção impôs ao texto certa ordem cronológica, que às vezes é subvertida
pela dinâmica do presente vivido. O texto é marcado ainda pelo próprio caminhar dentro
do curso de Mestrado em Educação, assim os autores que foram convidados para este
diálogo, que se fazem ouvir mais em determinados momentos, silenciam em outros.
Estas vozes e este tempo conduzem as reflexões sobre nossas vivencias buscando
transformá-las em experiências.
Busquei refletir a partir deste espaço como o fracasso escolar vai sendo
construído (esta é outra de minhas crenças) e percebido dentro da escola. Como eu o
vivi, em certos momentos combati e em outros ajudei a construir. Como os outros
sujeitos viveram, sentiram e se moveram neste espaço. Como neste caminho em busca
do fracasso, encontrei o sucesso, brotando, nascendo onde menos esperava...
2
“Gosto da palavra crer. Em geral, quando alguém dia “sei”, não sabe, mas crê”. Marcel Duchamp.
Citado em Certeau, 2004, p.277.
3
Este espaço escolar será discutido e explicado ao longo do texto.
Juntar pedaços, colher pistas, rememorar, remexer o solo dessa história em busca
das grandes/pequenas coisas que compõem o mosaico da vida real, das muitas vidas que
se cruzam e se marcam, e ficam umas nas outras ecoando... Ouvir os ecos.
Esta pesquisa, como tantas outras, imagino, começa no café. Começa neste
espaço de encontro, de troca, de cumplicidade, de conforto e apoio. Neste espaço aonde
vamos para respirar, para reclamar, chorar, falar mal de tudo e de todos, exorcizar
nossos demônios e voltar, mais leves e mais fortes, para nosso dever, para o nosso
trabalho. Diálogos que nos emprenham e se tornam ações. Diálogos que produzem
outros diálogos, e, às vezes, silêncios.
O caminho escolhido me levou a retomar as conversas do café em entrevistas
com as professoras que participaram comigo das Classes de Progressão em 2004 e que
permaneceram neste espaço: Virna e Ana Cristina. Na busca para compreender melhor
esta organização escolar, e a percepção da Direção sobre estas classes, entrevistei
também a Diretora Ana Maria. Suas vozes, assim como as vozes dos autores, colegas e
professores se fazem ouvir direta e indiretamente em muitos momentos no texto, que
mesmo quando biográfico, se pretende antes de tudo plural e dialógico.
Para nós, pesquisadores em educação se torna fundamental ter a consciência de
que ao fazermos pesquisa, assumimos necessariamente uma postura dialógica diante das
enunciações do outro e de nossas enunciações.
Ao interagirmos com todas as vozes sociais que nos cercam, que acolhemos
consciente e inconscientemente no mundo, produzimos um enunciado que nos precede –
já que muitas vozes se farão ouvir em nossos textos – e um enunciado que espera
resposta – que se apresenta ao mundo não de forma passiva, mas interativa.
Estas relações dialógicas travadas entre diversos enunciados são espaços de
permanente tensão. O diálogo é este espaço de luta entre as vozes sociais, que por sua
vez são também plurais. “Bakhtin não é apenas o filósofo das relações dialógicas em
sentido amplo; o diálogo é também, no seu pensamento, a metáfora daquilo que
poderíamos considerar como sua grande utopia” (Faraco,2003,p.72) talvez este seja o
aspecto onde sua voz (ou vozes) mais se faça necessária à nossa pesquisa.
Ter o diálogo como esta grande metáfora oferece ao pesquisador as chaves que
podem abrir as portas desta ciência monológica, e nos permite olhar para dentro de nós
mesmos com a consciência de que somos todos, micro-universos de vozes que
constroem em permanentes relações com outro infinito universo de vozes, fazendo de
cada ser humano este “microcosmo heteroglótico” (Bakthin). Sendo plural, nosso
enunciado sempre se orienta a partir do que já foi dito, ou seja é uma resposta a tudo
que já foi dito, seja para apoiar ou rebater; sempre espera uma resposta, falamos sempre
para alguém; e é internamente dialogizado, é heterogêneo e se constitui de múltiplas
vozes, assimilamos infinitos enunciados alheios.
A consciência desta pluralidade e das relações que estabelecemos nos colocam,
enquanto pesquisadores e pesquisadoras, frente a frente com a realidade da pesquisa: o
que estamos realmente observando enquanto sujeitos de pesquisa? Ao falarmos (e
calarmos) de nossas vivências e experiências, ou ao falarmos (e calarmos) das vivências
e experiências dos outros, como percebemos estas relações dialógicas que
estabelecemos com o mundo? Como percebemos – se é que percebemos – as vozes
sociais, os conflitos, as tensões que são produzidas em nós e por nós neste percurso da
pesquisa?
Enquanto pesquisadores e pesquisadoras pertencemos a um grupo (ou grupos?)
que diz e que interpreta o mundo através deste complexo semiótico-axiológico
(produção de signos e valores) que Bakhtin chamou de vozes sociais. Estas vozes,
presentes nas entrevistas, nas vozes dos autores, nas vozes de nossa história, se
entrecruzam, dialogam e formam novas vozes sociais. Portanto toda pesquisa é
dialógica, mesmo quando não consciente de sua dialogicidade.
Embora atenta e preocupada com as implicações metodológicas e éticas que a
escolha de pesquisar meu local de trabalho, dialogando com pessoas com as quais vivi e
vivo diferentes processos profissionais e afetivos, poderiam ocasionar, encontrava-me
como professora completamente tomada pela necessidade de compreender o espaço que
ocupava e as relações que nele se estabeleciam produzindo ora o que chamávamos de
“fracassos” e ora de (inesperados) “sucessos”. Portanto, o local: tempo e espaço da
pesquisa, foi escolhido pelo vivido, pelos desafios que este espaço nos lançou.
Os espaços de Orientação Coletiva – prática de estudo desenvolvida durante o
curso de mestrado pelo campo dos Estudos do Cotidiano na Educação Popular – onde as
entrevistas e textos produzidos por nós alunos, são lidos e debatidos por todos os alunos
e professores do campo ao longo de todo processo, representaram um papel
fundamental para a pesquisa e produção do texto, uma necessidade político-
epistemológica
4
, uma necessidade ético-metodológica. Nossos companheiros de
jornada, alunos e professores do campo, generosamente (e tantas vezes dolorosamente
também!) propiciam ao texto esta dialogicidade onde muitas vozes se fazem presente,
onde muitas outras leituras nos permitem perceber outros sentidos em nossa própria
voz.
A Orientação Coletiva fortaleceu a crença na opção metodológica de ter no
diálogo com o cotidiano, o fio condutor da pesquisa. Essa prática, de contribuições
críticas e reflexivas, feitas por outros sujeitos, que estabelecem leituras a partir de
diferentes lugares, trazendo em suas vozes tantas outras vozes, tantos outros
interlocutores, proporcionou-me a oportunidade de que, ao trabalhar com narrativas de
4
Texto: GARCIA. R.L. e ALVES , N. A necessidade da Orientação Coletiva nos estudos sobre o
cotidiano – duas experiências. In A Bússula do Escrever. P. 255.
memória sobre o vivido, pudesse no movimento de aproximação e distanciamento dos
acontecimentos, sujeitos, dados e entrevistas permanecer atenta às armadilhas que tantas
vezes nós mesmos nos armamos, nas idealizações e polarizações maniqueístas que nos
perseguem como sombras. Isso não isenta o texto ou o dota de uma “neutralidade”, essa
ilusão científica moderna, mas nos permite, com a solidariedade de nossos colegas e
professores, uma interlocução séria e honesta com os sujeitos, narrativas e
acontecimentos, um vasculhar atento atrás das pistas escondidas nas entrelinhas da
pesquisa e do sujeito pesquisador.
Esta experiência levou-me a querer cada vez mais interlocutores, na busca
constante por mais e mais vozes, que pudessem desafiar minhas certezas, que pudessem
me auxiliar na elaboração das perguntas que ainda não havia feito. Ensinaram-me a
desconfiar das palavras, a respeitá-las e respeitar sua força ideológica e conceitual,
ensinaram-me a não usá-las de maneira leviana e descompromissada. Ensinaram-me
como é difícil sermos leitores de nós mesmos, com a mesma criticidade com que nos
tornamos leitores dos outros.
Os textos produzidos para a Orientação Coletiva onde também as entrevistas são
debatidas, foram reproduzidos e entregues aos entrevistados, debatidos informalmente,
nos espaços roubados aqui e ali, já que a dinâmica da escola nos deixa pouco tempo
para estes diálogos, mas que provocou movimentos, registros, inquietações. Assim
como também espero que este texto siga no caminho da dialogicidade, ganhando ainda
muitos interlocutores.
Esta pesquisa começa nestes diálogos e, assim, fiel a sua natureza primeira,
pretende seguir. Dialogando e convidando para conversa todos aqueles que também
sofrem a dor do fracasso, todos os que escolheram ocupar este lugar de educador no
mundo e, sobretudo, todos os que acreditam que é possível educar.
2. ENTRE AS TRAMAS DO REAL
“Eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa.”
Guimarães Rosa
Fracasso escolar. Analfabetismo funcional, ético, político e cultural. Problemas
tão antigos quanto complexos que pairam sobre nossas cabeças. Frutos de anos e anos
de uma história social injusta, com uma das piores distribuições de renda do planeta,
que ancora o país em um entorpecimento sócio-econômico e cultural nos fazendo
figurar em tristes estatísticas sobre educação, com um desempenho constrangedor nas
avaliações internas e externas.
5
Durante todo o governo militar, alinhado ideologicamente com os EUA, apesar
de suas contradições
6
, o Brasil se tornou mais um entre tantos credores do Banco
Mundial e em nome de sua ajuda desenvolvimentista tivemos – assim como outros
países latino-americanos – o aprofundamento da miséria, da fome, da ignorância, da
escandalosa acumulação de renda e do grande hiato social, separando ainda mais o país
entre os que jogam comida fora e os que não comem, os que vivem e os que
sobrevivem, os que têm direito a tudo e os que apesar de inúmeras leis – não possuem
direito algum.
Antigas relações vão ser aprofundadas, nos anos 90, com os interesses deste
bloco ideológico, alinhados com a hegemonia política do país, acreditando que
tenhamos chegado finalmente ao fim da história, cabendo, portanto apenas ajustes para
a manutenção desta ordem “ideal” do mundo.
A busca por esta ordem ideal do mundo naturalmente não é inaugurada pelo
Banco Mundial, tampouco por nossas elites formadas pelos “coronéis” (e banqueiros, e
políticos) que insistem em acorrentar o país aos séculos passados. A idéia de ordem
ideal do mundo e a naturalização de suas profundas desigualdades são fruto de uma
concepção positivista da sociedade onde, como vemos em Löwy, “(...) o discurso
positivista pode (e deve) fazer economia de todo posicionamento ético ou político sobre
o estado de coisas existentes: “sem admirá-lo”, ele se limita a constatar que este estado
é natural, necessário, inevitável e é produto de ‘leis invariáveis’”. (2003, p.25)
O Banco Mundial encontra no Brasil um parceiro ideal para implementar suas
políticas para o “desenvolvimento” do eixo sul, devido ao compartilhamento da mesma
5
Sem melhora na educação, país cai para 69º. Lugar no ranking do IDH da ONU”. Jornal o Globo, 10
de novembro de 2006. Reportagem em anexo.
6
Refiro-me aqui ao fato de que a ideologia liberal-capitalista advoga a descentralização do poder, a
prioridade do privado sobre o público, o estado mínimo, enquanto que os militares, nacionalistas e
tecnocratas, implantaram um governo forte, presente em todos os setores da sociedade, com criação de
grandes empresas estatais.
visão de mundo, da mesma concepção de sociedade defendida pelas classes dominantes
e grupos governantes.
Seus objetivos são claros: em primeiro lugar garantir o pagamento da dívida
externa, para isso acredita (?) que o investimento na educação fundamental
(principalmente nas séries iniciais) será fundamental para o alívio da pobreza e terá
como conseqüência um povo menos miserável – e também, porque não dizer, mais
conformado com a ordem “ideal” de mundo, mais apto ao consumo de novos produtos,
mais apto à utilização de novas tecnologias etc.
Segundo a lógica dos organismos internacionais, o investimento, nos segmentos
iniciais da Educação Fundamental em termos econômicos, implica em “ganhos” mais
significativos para aqueles que se alfabetizam e concluem o ensino fundamental do que
o aumento de ganho real com aumento dos níveis de escolaridade superior. Cabe
perguntar: ganhos significativos para quem? Qual país do mundo alcançou seu
desenvolvimento – com autonomia – sem investimentos em ciência e tecnologia? Quem
as produz?
Os organismos internacionais e seus parceiros nacionais entendem ganho
significativo como melhores empregos e salários, o que é amplamente questionável,
pois compreendemos o alto índice de desemprego e baixa renda, não como um simples
reflexo da baixa escolaridade, ou qualificação, mas como um processo de reestruturação
produtiva provocado pelo próprio modelo econômico capitalista e, portanto, só superado
através do rompimento com a lógica deste modelo. Não há empregos. Nem para uns,
nem para outros. Porque o sistema, este sistema, simplesmente não precisa mais de tanta
mão de obra para gerar seus lucros.
Assim, o Banco Mundial vai tecendo suas propostas para a Educação, tendo
como parâmetros uma leitura economicista (conveniente) do mundo, onde a educação é
elaborada a partir de insumos, custo x benefício, investimentos em “capital” humano.
Uma proposta de economistas que desprezam os conhecimentos pedagógicos
desenvolvidos nos países que tanto querem desenvolver, assumindo assim, uma postura
“colonizadora” e unilateral. Ou como lemos “uma proposta que possui duas grandes
ausências: o professor e a pedagogia
7
A postura assumida pelas classes dirigentes dos países do chamado primeiro
mundo, sobretudo os Estados Unidos, demonstra a reprodução – em novos termos
naturalmente – da mesma postura assumida pelos colonizadores que chegaram às
Américas. Vieram nos trazer sua cultura superior, nos civilizar, nos ajustar à ordem do
mundo. Impor, através da exploração, da escravidão, da violência, da negação de nossa
cultura e existência, o “progresso”.
7
TOMMASI, Lívia de et alii. O Banco Mundial e as Políticas Educacionais. São Paulo: Cortez, 1996
Já os nossos governos – federal, estadual e municipal – se defendem do mais que
noticiado fracasso escolar culpando o professor mal-formado e descomprometido,
incompetente para realizar os planos tão bem elaborados por seus especialistas, que,
apesar de contratados através de concurso público idealizado pelos “órgãos
competentes”, vêem seu trabalho ignorado e suas reivindicações combatidas com o
simples argumento: “para o que estão fazendo estão ganhando bem até demais”.
Depois de anos negando ao professor sua condição de intelectual, transformando
o magistério numa profissão de mulher, e por isso mesmo inferior, construindo o
fenômeno conhecido como a proletarização
8
, hoje se retiram as professoras e
professores do centro onde essas ações são produzidas e os deixam sozinhos: mal
formados, exauridos e mal pagos. Expostos a toda sorte de violência psíquica, verbal e
física, muitas vezes sem o suporte técnico-administrativo que garantam condições
físicas e humanas mínimas para a prática docente.
Discursos que advogam a necessidade de “lotar” as turmas para atender à
relação custo x benefício entre professores e alunos; propostas curriculares e
metodológicas que ignoram as diversidades e singularidades entre países e estados,
preconizando um modelo de educação básico para todos, políticas públicas que
demonstram uma profunda ignorância – ou indiferença – pela nossa produção
acadêmica e literária, não priorizando a valorização do magistério nem financeiramente,
nem intelectualmente; deixam bastante claro que os educadores são “apenas um
detalhe” nos cálculos para o sucesso da Educação. A realidade do fracasso escolar tem
desmentido isso.
9
Quando percebemos a transformação da escola pública, historicamente o
“templo do saber”, em “depósitos” de crianças pobres, quando assistimos o
sucateamento de suas instalações, a feiúra de suas paredes cinza e geladas, a
uniformidade (que tentam implantar) de sua arquitetura vazia de uma identidade
particular
10
, esse lugar que não nos abraça, não nos acolhe, não nos aninha, mas nos
prende e nos esconde dos olhos sensíveis dos “bons cidadãos”, percebemos que os
caminhos que nos trouxeram até este quadro de fracasso, são múltiplos e tortuosos.
11
O problema vem sendo discutido pelas escolas e universidades. Problema
enfrentado pelos professores que todos os dias enfileiram as trincheiras desta luta no
dia-a-dia de nossas salas de aula nas escolas públicas do país a fora, ganha a mídia e as
ruas, ora mostrando a realidade da violência, simbólica e real, sofrida por todos os que
compartilham o espaço escolar, ora mostrando a indiferença do setor público, ora
8
Sobre a questão ver: FERREIRA, Rodolfo. Entre o sagrado e o profano: o lugar social do professor.
Rio de Janeiro: Quartet,2002
9
Ver reportagem Folha de São Paulo de 25 de junho de 2006: Maior acesso não reduz desigualdade(...)
10
Refiro-me as construções modulares, feitas em larga escala, que faz com que escolas diferentes sejam
identificadas apenas como “CIEP” ou “BRIZOLÃO”, ou por um número, sem identidade própria.
Massificação e frieza aparente que é subvertida pelos sujeitos que ocupam este espaço transformando-o.
11
Ver reportagem sobre os CIEPs veiculadas pelo jornal O Globo de 28/05/06 a 02/06/06.
defendendo a iniciativa privada e o voluntariado, ora apresentando as soluções
“mágicas” e propondo a importação de modelos prontos. Soluções que não raramente
demonstram uma preocupação muito maior com os números produzidos do que com os
sujeitos produzidos, com o país produzido.
A grande mídia, jornais e televisão nos apresentam todos os dias o quanto o
fracasso da escola - apesar de todas as novas propostas, teorias e programas de educação
- são contundentes. Muitas vezes reforçando paradigmas do senso comum como a idéia
de que estas “novas” teorias contribuem – ou são responsáveis – pela perda da qualidade
do ensino, “inquestionavelmente” superior no passado.
Assistimos ano após ano às propostas de reinvenção da escola, muitas vezes em
processos desastrados e dolorosos que priorizam lutas partidárias em detrimento de
processos pedagógicos consistentes, que se dão muitas vezes de forma autoritária,
desconsiderando pais, alunos e professores alimentando a reedição de velhas
resistências e contribuindo para construção do fracasso, em outras palavras, projetos que
ao ignorar os sujeitos a quem se destinam revelam em última instancia que foram: feitos
para não dar certo.
Naturalmente, a escola
12
precisa ser reinventada, até porque ela não flutua sobre
a história, mas está vivamente inserida nela. Em suas paredes a história é escrita. Nossa
escola necessita ser realmente resignificada, a sociedade necessita refletir, discutir,
debater, enfim pensar que escola deseja, ao invés de receber a escola que lhes é
oferecida, tão estranha e tão distante, mas construir uma escola que carregue inscrita em
suas paredes um significado que seja reconhecido como nosso. Não a escola deste ou
daquele prefeito, deste ou daquele governador, deste ou daquele presidente, mas nossa,
de pais e mães, alunos e alunas, professoras e professores.
Uma escola onde se possa discutir ao invés de se digladiar. Onde a disputa, os
conflitos façam parte de um processo de construção histórica e não de um processo de
esfacelamento, de rancores e mutilação emocional.
Como superar o processo que gera uma escola acuada que se defende, como um
animal cansado de ser açoitado, cobrando a falta da presença da família (que família?)
apontando a falta de interesse, estrutura, transferência de responsabilidades, acúmulo de
funções e atribuições, falta de investimento nas instalações, capacitações e, claro,
salários, gritando por socorro?
As famílias, muito diferentes das famílias assistidas na TV, ou das apresentadas
nos livros didáticos, passaram ao longo das últimas décadas do século XX por
mudanças estruturais profundas, mudanças que a escola muitas vezes não percebe, ou
simplesmente não “aceita” como a nova realidade familiar do aluno, não se
12
Refiro-me a escola enquanto instituição social no seu sentido mais amplo. Temos o entendimento, no
entanto, que cada escola é um universo de possibilidades, práticas, tensões e lutas em si mesma.
preocupando em tentar entender, construir um diálogo possível com “esta” família, mas
negando a sua existência e, portanto, sua participação, para logo em seguida se ressentir
de sua ausência.
Querendo determinar a priori as bases desta relação, dizendo o que quer das
famílias, mas mantendo-as do lado de fora dos muros da escola, reproduzimos as
mesmas relações que o Estado mantém com as escolas. Percebemos que aqueles que se
entendem no lugar do saber, não reconhecem no outro o direito de ocupar este espaço
em uma relação democrática e igualitária, mas numa relação de subordinação,
disfarçada em “democratismo”, onde o outro participa quando e como eu determino,
para legitimar minhas ações.
As mudanças culturais, econômicas e sociais sofridas ao longo do tempo
transformaram o “modelo” familiar sem que a escola muitas vezes se dê conta ou saiba
como atender a esta nova realidade, adotando muitas vezes uma postura saudosista tão
preconceituosa quanto às gravuras dos livros didáticos
13
frente às novas estruturas
familiares que se formam. Nossa realidade rompe com este modelo e nos apresenta
grupos de convivência formados por diferentes laços de parentescos, idades, sexos, que
se apresentam diversos, mas legítimos núcleos familiares.
Presa a concepções históricas de família, tanto o modelo patriarcal português, ou
matriarcal - como encontramos em grupos negros e indígenas – a escola se ressente com
a ausência desta família – principalmente da figura da mãe, social e historicamente vista
como principal responsável pela educação da criança – se sentindo, não raramente,
perdida quando esta mãe é na verdade uma outra criança (14,15 anos) que muitas vezes
alega não saber o que fazer com o filho. Transferindo não apenas para as creches, mas
para a escola, responsabilidades que eram historicamente da família: ensinar a andar,
sentar, comer, falar, respeitar horários, espaços e pessoas. Muitos professores assustam-
se, assim como eu me assustei, com os alunos que chegam aos dez, doze anos,
demonstrando pouco domínio de “práticas sociais” que consideramos – do nosso lugar
sócio-cultural – comuns como: saber sentar-se nas cadeiras sem colocar os pés nela,
comer segurando “corretamente” a colher, utilizar o papel higiênico ao invés das
paredes, usar as palavras “por favor”, “com licença”, “obrigado”, etc. usos e costumes
que lembramos nos terem sido ensinados “de berço”.
Responsabilidade nem sempre aceita de bom grado pela escola, já
sobrecarregada com os infinitos caminhos da burocracia, com a violência sofrida, com a
dignidade maltratada.
Os professores, transformados em proletários, desprestigiados e violentados,
apesar do entendimento quase unânime de que estão entre os principais atores do
13
Que insistem, na maioria das vezes, em representar a família como um núcleo formado por: pai, mãe,
irmão, irmã . Geralmente brancos e de classe média, estereótipos claros de um ideal de família.
processo, transformam-se cada vez mais em seres humanos doentes e doentios,
acumulando doenças físicas e psíquicas que tornam seu fazer pedagógico em um jogo
sadomasoquista, sofrendo e impondo sofrimento.
14
No meio da troca de acusações e na pouco produtiva prática de “caça as bruxas”
entre governo e autoridades públicas, escola e família, a realidade do fracasso da
sociedade para com estes jovens se impõe e cobra de nós reflexões/ações mais
amadurecidas, mais profundas e mais construtivas.
Primeiro é preciso entender a realidade como muitas realidades. Uma realidade
complexa com muitos autores e muitos atores, mas com um final cada vez mais comum.
E sem soluções místicas e mágicas. Sem estas soluções salvacionistas e colonizadoras
que excluem os professores, os pais, os alunos de seus “cálculos”.
Incluídos no sistema regular de ensino e tendo a escola muitas vezes como o
único espaço de lazer, cultura e socialização, devidamente matriculados, alimentados e
vestidos, nossos alunos continuam excluídos do acesso à leitura e escrita plena, do
acesso a outros universos culturais, do acesso à construção de uma identidade e
cidadania plenas. Excluídos do imenso – cada vez maior e mais complexo – patrimônio
cultural, tecnológico e científico, acumulando assim, depois de anos e anos de
escolarização, a mesma exclusão social, o mesmo fracasso e marginalização. E quando
digo “mesmo” é porque entendo que a diferença na forma não altera a diferença do
resultado. Mudam-se os mecanismos, o tempo, mas permanecem os objetivos, manter a
sociedade estratificada e com um hiato cada vez mais profundo entre uns e outros,
criando “cidadãos” de primeira e de terceira classe.
Nas turmas de Ensino destinadas aos jovens e adultos, não são raras as queixas
na mudança do perfil dos alunos. Este “fenômeno” sentido no CIEP Compositor Donga,
foi relatado em reunião de Diretores de Unidades Escolares (U.E.) da 7ª. Cordenadoria
de Educação(CRE) com PEJA (Projeto de Educação de Jovens e Adultos) onde vários
presentes levantaram preocupações semelhantes com esta “juvenização” do PEJA. Uma
percepção empírica de um “fenômeno” restrito, não cabendo portanto, generalizações
como um fenômeno do EJA ou do Municipio do Rio
15
.
Os jovens que chegam, hoje, a estas turmas em nossa escola, não abandonaram a
escola porque foram abandonados pela vida a fora. Abandonados porque precisaram
trabalhar desde muito cedo, porque não houve uma valorização por parte dos pais,
porque moravam a quilômetros da escola mais próxima, porque foram mães e pais
precoces e tantas outras histórias que fazem parte do perfil do aluno do universo da EJA
(Educação de Jovens e Adultos), relatados em tantos livros, por tantos professores.
14
Alguns Municípios do Rio como São João de Meriti exigem uma bateria detalhada de exames,
inclusive um atestado psiquiátrico para o ingresso dos professores frente à quantidade de professores
afastados por doenças psíquicas.
15
Ver reportagem O Globo de 01 de novembro de 2006: Censo aponta migração do regular para os cursos
supletivos. Em anexo.
Os alunos que chegam não se reconhecem nos textos-depoimentos de pessoas
adultas analfabetas ou alfabetizadas depois de adultas, que fazem parte do livro
produzido pela Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, para o PEJA. Não são
emigrantes analfabetos, filhos da seca e da fome. São jovens urbanos, que conhecem a
escola de longa data.
Hoje estes jovens que chegam passaram os últimos seis, oito, dez anos,
matriculados regularmente no sistema de ensino. Viveram cinco, seis, experiências
diferentes de alfabetização, com metodologias diferentes em tempos distintos, com
professores distintos, alguns com passagem por escolas diferentes. Jovens que
freqüentaram uma das maiores redes de ensino do país – a do Rio de Janeiro
(atualmente com 1055 escolas, cerca de 40.000 alunos) – em uma das grandes capitais e
centros culturais do país, altamente letrada e desenvolvida, quando comparada a tantas
outras cidades do Brasil. Por que se tornaram alunos da Educação de Jovens e Adultos?
E como explicar que ingressem ainda na turma do ciclo inicial de alfabetização ou com
níveis baixíssimos de apropriação da língua escrita? Tempo individual? Uma questão de
ritmo de aprendizagem? Questão de privação social, cultural? Dificuldade de
aprendizagem ou de ensino?
Tenho pesquisado em minha escola e refletido sobre minha prática pedagógica
que existem questões, políticas, econômicas, sociais, que vão sendo tecidas e formando
uma rede – ou no caso um emaranhado mesmo – de fatores que interferem e contribuem
para o estado em que a escola pública (a minha especificamente) se encontra hoje em
dia. Como explicar que um ser humano, mergulhado em um ambiente letrado
16
, durante
quase uma década de sua vida, perfeitamente “normal” nos aspectos biológicos
segundo análise do órgão competentes
17
- não consiga reconhecer o alfabeto, escrever
seu nome, construir um texto simples? Ou seja, não possua as ferramentas mais
elementares da escrita e da leitura?
Não se trata naturalmente de uma busca pela padronização, nem partimos do
pressuposto que todos devam aprender da mesma maneira, ao mesmo tempo,
obedecendo a estágios ou etapas pré-determinadas geneticamente.
Acredito que os seres humanos são singulares em seu aprendizado e cada vez
mais estudos nos apontam para a necessidade de flexibilizarmos o tempo (ou
compreendê-lo como apenas mais uma arbitrariedade da mente humana, uma produção
cultural) para atender à história e às individualidades de cada aluno.
No entanto, por mais que seja possível entender a flexibilidade, uma questão
martela em minha mente: não há um limite para que um ser humano, apesar dos muitos
fatores que interferem no processo de aprendizagem, aprenda a ler e escrever?
16
Ambiente Letrado: onde são constantes e múltiplas as práticas e usos sociais da língua escrita.
17
No caso da Prefeitura do Rio os psicólogos e médicos do Helena Antippof.
Devemos simplesmente aceitar que o tempo de aprendizado dessas crianças
realmente se estende infinitamente por anos e anos? Ou isto seria apenas (ou também)
uma forma de apropriação de teorias de maneira perversa para mascarar o descaso e a
incompetência? Ou pior, de mascarar a consolidação deste projeto que tenta comprovar
que simplesmente “uns não nasceram para isso”? Ora, se “todas” as oportunidades
lhes foram ofertadas, se temos “todos” na escola, então devemos entender que uns não
aprendem simplesmente por que não foram “dotados” com esta capacidade de
aprender?! Não seria isto um retorno aos princípios positivistas, à naturalização das
diferenças como se estas não fossem frutos da produção histórica e social humana?
Com certeza, ao longo destes anos e anos de escolaridade, muitos foram os
progressos na forma de se entender este aluno, muitas teorias nos ajudam a pensar e ver
o educando não por sua negativa: o que ele não sabe, o que ele não tem, o que não
conhece, o que não consegue, mas por suas possibilidades, por seus saberes e
conhecimentos, por sua cultura, pelo que ele tem e pelo que ele é.
Uma série de aprendizagens nem sempre tão valorizadas pela escola, pais e
sociedade são sentidas e percebidas por alguns professores (e descritas por vários
teóricos), mas serão elas suficientes para garantir a inclusão real e qualitativa dessas
crianças em nossa sociedade? Será que existem competências outras que por si só sejam
suficientes para prescindir o aprendizado da língua escrita e bastarem como parâmetros
para considerar o sucesso escolar deste aluno? Quais?
Quando na universidade nos deparamos com as nossas dificuldades e dos alunos
que ingressam, tanto no conteúdo como na forma – e não somos os considerados
fracassados – percebo que não. Que não saber escrever direito me exclui, que não saber
ler no sentido mais amplo, ou ainda, nos múltiplos sentidos que o verbo admita, me
exclui. Não me exclui certamente de pensar sobre o meu fazer, mas me exclui de estar
onde o pensado ganha forma, vira ciência, onde posso pensar junto. Onde transformo
coletivamente os meus saberes em conhecimento. No meu entendimento, mais do que
uma opção, um direito primordial de cada ser humano pensante do planeta. Não o
direito de “obrigatoriamente” ter de cursar uma universidade, mas o direito de escolher
o que quer ou não. Direito de escolha que, certo tipo de conhecimento proporciona.
Por que alguns aprendem e outros não?
Por que alguns deles – ou pior, cada vez mais deles – não aprendem a ler e
escrever?
Por que eles não querem?! Não se interessam?! Ou como se costuma ouvir
diariamente dos professores “eles não estão nem aí!”não estão afim”. Estas são as
explicações mais freqüentes nos corredores – depois de esgotadas as mais óbvias como:
“também com a vida miserável que tem, vai aprender como?! A mãe é uma bêbada, o
pai um drogado! É criado pela avó que não dá conta dele! Foi abandonado! Vive num
barraco! É exposto à violência! Etc.”, ou seja, é um caso perdido. Como são produzidos
historicamente os casos perdidos?
Para alguns dos pais (e alguns professores também), e todos nós ouvimos isso
em algum ou em muitos momentos nos corredores escolares, a “culpa” seria do sistema
“que nem reprova” e passa o aluno sem saber, tornando-o assim cada vez mais
“malandro”. A escola perde seu prestígio e os pais não encontram nela a mesma
qualidade que viam – ou acreditavam existir – outrora. Alguns declaram como desabafo,
denúncia ou provocação quem sabe, que só mandam os filhos ainda para não perder a
Bolsa Família (ex Bolsa Escola).
18
Como nos lembra a professora Virna:
“Foi até o pai dele que falou...ele estava faltando há mais de
dois meses e eu já estava irritada com isso, eu chamei o pai
dele e ele me disse: é tem razão tia ele vai perder a bolsa
escola [atual bolsa família] – Eu quase soquei o pai de raiva. -
Então é isso, pai, que o está movendo vir para cá? É por isso
que ele está matriculado? Porque ele vai receber a bolsa
escola!? Acho que o senhor esta enganado. - Fiquei
irritadíssima com isso e descobri que o Alex estava lá no
Complexo do Alemão. O pai dele contou. - Mas o que ele está
fazendo no Complexo do Alemão?- Ah é que a irmã dele mora
lá o marido dela conseguiu um “bico” para ele numa obra. Eu
falei:-Tudo bem que ele vá para lá fazer obra, mas eu quero o
Alex na aula no dia seguinte (...)”
São licenças médicas
19
, abandono de turma, feriados, um calendário de reuniões
intermináveis e um fazer pedagógico incompreensível que, no final das contas, resulta
em um filho analfabeto que atravessa anos pela escola para “nada”. Um filho que teria
muito mais utilidade ganhando algum dinheiro, ajudando em casa, do que “perdendo
tempo” na escola.
Muitas idéias, percepções, preconceitos e conceitos destes jovens, professores e
pais, constroem uma cultura escolar, um imaginário rico em subjetividades e
concepções de “homem”, de “cultura”, de “valores” que formam um universo oculto
(mas intenso) que atua como pano de fundo na construção deste quadro. Universo onde
estes sujeitos se movem, travando batalhas entre concepções de mundo e tecendo muitas
realidades. Lógicas que tecem e são constituídas por realidades diferentes e diferentes
formas de se entender, viver e interpretar o vivido. Rede de conflitos e tensões. Sem
respostas fáceis. Sem obviedades. Mas com caminhos possíveis...
18
Benefício pago pelo Governo Federal as famílias consideradas “baixa renda” desde que as crianças
estejam matriculadas e sejam assíduas. Este levantamento mensal é mais uma entre as muitas funções
burocráticas atuais da escola.
19
Segundo a antiga Diretora Adjunta, Zelma, 10 anos na escola, percebe-se que em setembro as licenças
médicas sempre começam a se intensificar. Por que será?
3. METAMORFOSES
Ser e não ser eis a questão.
“(...) e assim chegar e partir”.
são dois lados da mesma viagem”
Milton Nascimento
Minha proposta de trabalho, ao ingressar no sistema público, sempre foi tentar
contribuir para que essa discussão se afastasse dos lugares comuns, das simplificações
grosseiras que muitas vezes o cotidiano (ou a leitura fácil e descomprometida deste
cotidiano) acaba produzindo para que possamos crescer em outra direção, para que
possamos olhar para este cotidiano com novos olhos, desenvolvendo novas leituras
possíveis dessa realidade, tão singular em cada escola, em cada comunidade, em cada
aluno ou aluna, mas ao mesmo tempo, cada vez mais plural, semeando novos e antigos
interlocutores para fazermos as perguntas – tantas vezes incômodas - que ainda não
foram feitas, buscar possibilidades de outros caminhos e trazer perspectivas de uma
ação mais eficiente, para uma escola que não inclua seus jovens apenas no “sistema
acadêmico
20
, mas na vida.
Ao falarmos da Rede Municipal do Rio de Janeiro estaremos sempre falando de
grandes números, grandes problemas e, portanto, de uma grande necessidade de
reflexões e de ações. Vivemos um cotidiano escolar marcado por profundas lacunas
sociais. Formado por sujeitos marcados por profundos sentimentos de perplexidade e
impotência, exigindo de nós, professores comprometidos com a transformação desta
realidade, reflexões mais consistentes que nos levem às ações mais eficientes.
Por tudo isso, o papel da escola junto à sociedade potencializa-se em seu
compromisso com o desenvolvimento destes grupos sociais, um desafio a ser realizado
coletivamente, com várias frentes de ações e reflexões.
20
SCA – Sistema de Controle Acadêmico: Programa de computador que gerencia toda vida escolar do
aluno na Rede Municipal do Rio de Janeiro.
Que idéias, teorias, ideologias e concepções – e às vezes convicções - estão por
trás da percepção que os alunos, pais e professores têm sobre educação, que contribuem
para sua permanência – qualitativa ou não – na sala de aula? Quais as diferenças entre
estas concepções para estes vários atores e autores do cenário escolar? Que lógicas
podemos perceber por trás de seus fazeres? Por trás da forma como cada um inventa o
seu lugar e nele se move? Que conflitos estas lógicas desencadeiam e como trabalhar
para que estes se tornem produtivos?
Meu objetivo primeiro, ao desenvolver este trabalho, foi refletir sobre a forma
como as diferentes opiniões/concepções sobre o processo de aprendizagem –
principalmente da língua escrita – influenciam o processo de adesão/rejeição dos alunos
que tiveram acesso à classe de ensino fundamental regularmente. Como se produz o não
querer? Este objetivo foi se ampliando à medida que caminhava (e caminho) nos
corredores da minha própria reflexão e percebia que não só as opiniões, mas os fazeres,
as práticas poderiam me dar várias pistas sobre os sujeitos. Meus passos me levaram a
pensar que o aparente “não querer” esconde “um querer”. Um “quero outra escola que
não essa”. Qual?
Precisamos refletir sobre as causas que conduzem os jovens alunos matriculados
regularmente na rede Municipal do Rio de Janeiro ao Projeto de Educação de Jovens e
Adultos (PEJA) ainda nos primeiros estágios da leitura e escrita após anos de
escolaridade, ou os conduzem para fora da escola. Buscar refletir sobre os fatores
sociais, políticos, econômicos etc. que atuam sobre a formação desta realidade subjetiva
que constituí uma realidade objetiva tão triste e nociva ao país, buscando contribuir para
a construção de novos caminhos para a transformação.
Esta ação-reflexão-ação vem seguindo por longo e tortuoso caminho, mas tem
me ajudado a construir as referências teóricas que me trouxeram até o momento. No
estudo dos filósofos, sociólogos, educadores etc. das principais
21
(ou selecionadas
como principais pela cultura onde estou inserida) correntes do pensamento ocidental,
comecei uma reflexão que levou ao estudo dos pensadores que captaram algumas das
vozes do mundo e que, assim como eu entendia, ecoavam nas vozes e pensamentos de
todos os sujeitos – conscientes ou não disto – tecendo uma rede de pré-supostos,
preconceitos, valores e crenças que orientam o modo de estar e ser no mundo e,
portanto, muitas de suas ações ou, em outras palavras, as bases epistemológicas do
chamado senso comum. Voltei-me também para o estudo da literatura especializada em
linguagem, porque mesmo entendendo que a aprendizagem não se limita a este único
aspecto, considero o ler, escrever e falar um dos pontos cruciais para o processo de
transformação do sujeito, umas das ferramentas fundamentais na mediação do sujeito no
mundo. Compartilhando com a idéia que:“Este conhecimento, acreditamos, poderá dar
21
Correntes empiricistas, racionalistas, positivistas e marxistas basicamente.
sustentação à práxis que tem por objetivo o ensino da escrita e de tecnologias das
sociedades letradas como uma das formas de se potencializar o cidadão para lidar com
as estruturas de poder na sociedade” (Kleimam, 1999, p.08)
Vários autores da escola soviética de Vigotsky, como Luria e Leontiev,
pesquisadores dos aspectos socioculturais da mente, como James V. Wertsch, Bárbara
Rogoff, Ana Luiza B. Smolka, teóricos do Letramento como Magda Soares e Ângela
Kleiman, e teóricos marxistas como Gramsci, e as idéias de Paulo Freire foram
inicialmente fonte de indagações e inspiração, levantando questões, dúvidas e respostas,
que me levaram à determinação de aprofundar o conhecimento sobre estas – entre
outras – questões tendo como perspectiva a Filosofia da Práxis.
A partir deles passei a compreender as relações que envolvem o processo de
aprendizagem como uma prática dialética e dialógica, construídas histórica e
socialmente entre os sujeitos que criam e recriam o trabalho, a língua e a realidade, na
mesma medida em que o trabalho, a língua e a realidade criada por eles os reinventa
como criaturas humanas.
Estas reflexões foram ganhando novos interlocutores que, ao mesmo tempo em
que me desconstruiam, me reinventavam abrindo novas possibilidades de leitura da
realidade e indo assim ao encontro ao meu desejo primeiro: fugir das reflexões
imobilizadoras de uma realidade fatalista, da obviedade, das análises simplórias e pouco
construtivas alternativas de mudança, “Em primeiro lugar, porque a realidade – a
plena e autêntica realidade – não é a realidade que pensamos ser real, mas aquela que
acreditamos ser real”. (Pais, 2003, p. 35)
A Modernidade
22
, que me acompanhou desde o berço, se vê de repente
desafiada e esfacelada diante do desafio de compreender o mundo – até então uma
totalidade inquestionável - por seus muitos reversos, em suas múltiplas possibilidades.
Desfez-se o chão que sustentava a sólida e frondosa árvore das certezas.
Tombada, galhos e raízes misturam-se, perdem sua ordem, seu ponto de equilíbrio, para
se tornarem indistintamente possibilidades de caminhos. Deleuze doeu
23
.
O real não é mais uno. Não se apresenta mais como uma verdade a ser conhecida
panópticamente, pelo olhar que tudo vê. Mas isto, ao contrário de nos atirar em uma
cegueira, nos mergulha em uma infinidade de cores e tons que eram imperceptíveis à
distância imposta pela forma de se entender e de se fazer ciência.
22
Chamo de Modernidade as formas de compreender o mundo e fazer ciência que desde a revolução
científica de Copérnico/Galileu Galileu vem imprimindo no mundo os discursos totalizadores do real, as
verdades científicas produzidas a partir do distanciamento e objetividade. O paradigma da verdade
absoluta capturada pela razão e sustentada pelo mito da neutralidade científica.
23
Referencia ao texto ”Rizoma” lido e debatido na disciplina Tópico do Cotidiano: DELEUZE, Giles,
GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto
Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
A realidade, então ampliada e resignificada, exige e imprime novas formas de ler
o vivido, transforma as velhas histórias em muitas outras e novas histórias, transforma o
conhecido em desconhecido, revira pelo avesso o que foi visto e sentido, recriando,
através de novas visitas e leituras, novos significados; através de novos textos, novas
possibilidades de narrativas.
Volto-me para a história passada sem, no entanto, desabitá-la. Ela segue em mim
como um livro que não se encerra na última linha, não se decifra na primeira leitura.
Uma história que cada vez que escrevo e leio, conto e reconto, ganha novos
significados, uma história que reconstruo, de memória em memória, de lembrança em
lembrança.
Nesta reconstrução, talvez eu perca (?) o frescor dos acontecimentos, a emoção
primeira, mas novos e surpreendentes sentidos se tornam mais claros com o tempo.
Percebo, não sem certa surpresa, que se torna quase impossível neste momento me
preocupar com o lugar onde a verdade se esconde: se no calor do vivido, na raiva, na
frustração, na angústia que fomentava meus dias, ou agora onde o tempo provoca uma
distância que mesmo não desprovida de emoção me permite ler a história passada,
revisando-a, passando-a a limpo e reescrevendo-a.
Esta reescrita torna-se, então, um exercício de reconstrução de significados. À
medida que rememoro, e faço uma releitura coletiva não com um, mas com muitos
interlocutores, tanto os sujeitos que viveram esta história, como os autores que me
ajudam a pensar sobre ela e os professores e colegas que lêem o texto de outros lugares,
o passado é recriado e nos oferece a oportunidade de outras interpretações presentes e
outras possibilidades futuras. Processo dialógico entre sujeitos de tempos e espaços
distintos que se urdem em busca de muitas possibilidades de leituras do que chamamos
de “real”.
Processo que não se vive impunemente. Processo de gestação, onde se sente o
desconforto de se estar crescendo demais dentro de um espaço seguro e acolhedor onde
nos encontramos protegidos, mas onde o tempo implacável não nos permite mais viver.
De onde saltamos para o desconhecido novo mundo, cheio de palavras misteriosas e
silêncios assustadores. Onde a vida recomeça de outra maneira.
Mas não apenas eu habito este mundo. Habitam em mim muitos lugares, muitas
pessoas, muitas vozes. Às vezes, solidárias à minha agonia, se arrumam em um discurso
compreensível para minha lógica cartesiana, linear. Outras vezes, insistem em maltratar-
me revirando-me pelas entranhas com suas lógicas e metáforas, que seduzem e
abandonam, que nos levam a uma embriaguez que nos torna mais lúcidos.
À medida que me aproximava da filosofia – paixão antiga – conhecendo as
diversas formas de se explicar e entender o mundo, as meta narrativas, os combates
entre as diferentes correntes teóricas, fui tentando identificá-las em mim e nos outros.
Comecei a ler o mundo com estas lentes e buscar os indícios, nas ações e discursos, a
qual corrente os sujeitos se filiavam. Mas, os sujeitos não se permitiam aprisionar.
Assim como eu não me permitia aprisionar e tanto minhas ações como os discursos que
produzia revelavam-se contraditórios, mutantes e tantas vezes inexplicáveis.
A busca que me trouxe até aqui, após vagar por entre as teorias que tentam
aprisionar o mundo, reduzindo-o a apenas ao que são capazes de explicar, encontro-me
com a possibilidade de pensar o mundo a partir dele mesmo, e isto surpreendentemente,
não me afasta, ao contrário, me aproxima do respeito pela história, torna cada vez mais
legítima a possibilidade de construir sentidos com os sujeitos, em uma dinâmica que
respeita a vida em sua complexidade, ao invés de tentar ajustá-los às explicações tecidas
do alto de um saber que paira sobre o mundo tal qual uma força metafísica, esta ciência
transmutada em mística.
Deste novo lugar, volto a antigos lugares. Com a mala ainda desarrumada, vou
buscando na bagagem o que me serve, neste momento, para visitá-los. Aqui conto uma
das visitas que faço, tendo o vivido como único roteiro possível, neste momento, para
orientar-me nesta reflexão.
4. A ESCOLA
Textos & Contextos
10 de setembro de 2001.
- Você estuda ?
- Como?
- Você está fazendo faculdade, ou já fez...
- Pedagogia e pós-graduação.
- Eu no momento só tenho turma de Educação Infantil...
- Tá ótimo.
- Humm..hum seja bem vinda.
Com esse diálogo (assim como me lembro), e um olhar que tentava me
radiografar a alma, em setembro de 2001 eu era recebida pela direção da escola e minha
história com o CIEP COMPOSITOR DONGA iniciava-se. O que eu achava muito
estranho, pois não entendia como algo podia iniciar-se em setembro, não sei dizer se
isso é fruto de minha educação cartesiana, seriada, do calendário ou de tudo um pouco.
Nunca quis trabalhar na Rede Pública. Estudei toda minha vida em escolas
particulares. Cresci à sombra do paradigma que determinava que a escola pública fosse
de qualidade inferior, sem falar na desconfiança e conceito, ou pré-conceito, que
alimentava, e ainda alimenta grande parte da nossa sociedade, sobre o funcionalismo
público no Brasil.
Havia sido educada, com direito a muitos livros sobre Qualidade Total
24
, para
me tornar dona de meu próprio negócio, no caso uma escola, o que empreendi e
sustentei durante oito anos - na mesma Boiúna
25
onde se localiza o CIEP. Sem emprego
e ciente de que a escola apesar de ter sido uma experiência pedagógica maravilhosa era
financeiramente inviável, surgiu a possibilidade de ingressar para o Magistério do Rio
de Janeiro.
Minha inscrição foi paga por uma amiga, minha sócia no projeto da escola
particular, que insistiu que meu lugar, por todo compromisso assumido por nós durante
os anos de militância no movimento estudantil, era na rede pública e me convenceu,
apesar de todo meu conflito, a tentar o concurso.
Passei e pude escolher uma escola (privilégio de poucos que ingressam na rede),
optei pelo CIEP, perto de casa, em uma comunidade que já conhecia e onde
provavelmente encontraria muitos pais e alunos da “minha” escola. Um porto seguro
(nós e nossas ilusões!)
24
Concepção empresarial , ideologicamente marcada pelo liberalismo. Ensina como gerir negócios e
pessoas apoiada em teorias psicológicas sobre motivação, empreendedorismo etc.
25
Estrada da Boiuna localidade da Taquara – Jacarepaguá – Rio de Janeiro.
CIEP Compositor Donga. Estrada da Boiúna. A mesma estrada da Boiúna em
que morei por sete anos, em que vi meus sonhos morrerem e renascerem tantas vezes e
que tanto me adoecia (sou alérgica ao clima úmido da Boiúna).
A Boiúna é uma localidade que se forma ao longo de uma estrada, localizada no
interior da Taquara, Jacarepaguá. Lá se vive uma realidade interessante já que, ao
mesmo tempo em que se situa em uma das maiores e mais violenta cidades do país, por
seu isolamento social e econômico, tem características de cidade de interior: os
moradores são antigos e é comum que os filhos e netos permaneçam na vizinhança ou
arredores, o reconhecimento entre as pessoas é bastante freqüente (o famoso: aqui todo
mundos se conhece - e sabe da vida de - todo mundo!), e não costumam sair das
imediações, até porque o sistema de transporte (apenas duas linhas de ônibus) é muito
deficiente. Depois das 22h ou 23h, dificilmente se encontra um meio de entrar ou sair da
Boiúna.
Cavalos e bois andam pelas ruas (às vezes resolvem pastar no CIEP), carroças e
bicicletas são um meio de transporte bastante utilizados, e os acidentes, comuns, já que
trafegam na estrada sem calçamento para pedestres.
Além da Boiúna (que significa grande cobra negra), outras localidades próximas
se formaram a partir das estradas paralelas e transversais como: Estrada do Curumaú,
Estrada dos Teixeiras, Estrada do Rio Grande, Estrada do Rio Pequeno, através de
ocupações de terrenos vazios e grandes casas abandonadas. Todas estas localidades são
próximas ao Parque Estadual da Pedra Branca a maior reserva florestal urbana (e não a
da Tijuca!), o que é responsável pelo clima muito úmido e frio do lugar e pela paisagem
que nos dá a impressão de estarmos em uma zona rural ou na serra. Apesar de o Parque
Estadual ser vizinho, muitos alunos o desconhecem.
O CIEP atende aos moradores de todas estas localidades, mais ou menos
próximas da escola. Todas muito “carentes”, marcadas pela violência que a miséria em
si carrega sem, contudo, apresentarem a marca do narcotráfico tão explícita e presente
em tantas outras regiões do Rio de Janeiro. Os poucos embates que às vezes acontecem
pela diferença das localidades dos alunos: moradores da Curumaú, moradores dos
Teixeiras, não chegam a representar facções, ou se organizarem em bandeiras, e a
mobilidade é permitida, desde que não se faça “bagunça”, ai o morador é obrigado a
migrar para outro lugar distante da Boiúna e arredores.
Em 1983, Leonel Brizola, então governador do Rio de Janeiro, desenvolveu o
projeto de Darcy Ribeiro inspirado na Escola Parque
26
com desenho de Oscar Niemeyer
criando 506 Centros Integrados de Educação Publica. Destes, 97 dentro da área
administrativa da Prefeitura do Rio de Janeiro foram municipalizados.
26
Centro Popular de Educação Carneiro Ribeiro – Escola Parque – Anísio Teixeira, década de 50 na
Bahia.
Construídos em grandes áreas planas, os CIEPs chamam atenção pelo tamanho.
Tudo nele é grande demais e longe demais. Idealizados para atenderem às crianças em
tempo integral, com atividades culturais, assistência médica, odontológica, social, foram
perdendo seu sentido com o passar dos anos, e gestões públicas.
Popularmente chamados de Brizolões, os CIEPs carregam a marca política dos
seus criadores e isto causou (e causa) até hoje um “desconforto” político nas gestões de
outros partidos.
Privilegiados em um primeiro momento pelos partidários dos que os
conceberam, os CIEPs sofreram alterações profundas na sua organização inicial ao
passarem para outras administrações, como seu funcionamento em horário integral e o
número de profissionais envolvidos, por exemplo.
O CIEP Compositor Donga, segundo a professora Zelma
27
, foi o último, ou um
dos últimos a serem municipalizados. O estado repassou o prédio sem o acabamento e,
por isso, durante quatro anos o diretor indicado, Paulo, esteve à frente da escola apenas
para tocar as obras, que foram interrompidas várias vezes.
Em 1995, as obras foram retomadas e em abril de 1996 o CIEP iniciou suas
atividades contando apenas com o primeiro pavimento, com 12 turmas em horário
parcial, da Educação Infantil a 2ª. série.
Em 1998, a então professora Ana Maria e a diretora adjunta Zelma formaram
uma chapa e se elegeram para a direção, parceria que permaneceria até o final de 2005,
quando a professora Zelma assumiu a direção de outra unidade escolar.
Elas narram que o início foi bastante difícil: na falta de merendeiras faziam a
comida das crianças, passaram por assalto a mão armada em horário escolar, tiveram
que dividir a escola em duas para abrigar outra unidade que estava em obras, com
professores dividindo salas para duas turmas, as brigas e confusões geradas por esta
divisão de espaço etc.
O CIEP é uma escola barulhenta. Tudo o que se passa em uma sala é
compartilhado, no mínimo, com as quatro salas vizinhas: o barulho das carteiras sendo
arrumadas para os trabalhos em grupo, a música que a professora vizinha trouxe para
ensaiar, a voz mais alta da outra professora lendo uma história para seus alunos...Um
prédio projetado para abrigar uma biblioteca talvez, mas uma escola?! Uma escola que
se pretende viva, ativa, interativa?
Hoje, o nosso CIEP tem 12 turmas de Educação Infantil
28
funcionando em
horário integral, 13 turmas de Ciclo de Formação Continuada
29
(três em horário
27
A professora Zelma era uma das diretoras adjuntas no inicio das atividades do CIEP e esteve conosco
até 2005.
28
Educação Infantil (E.I.) : educação de crianças de 04 e 05 anos de idade.
29
O Ciclo de Formação prevê que a criança entre com 6 ou 7 anos no Ano 1 do Ciclo e tenha três anos
sem retenções para concluir a alfabetização. O período vai até a criança completar 9 anos.
integral), duas Progressões
30
, quatro terceiras e três quartas-séries. quatro turmas de
PEJA I e quatro turmas de PEJA II
31
. Funciona, portanto, de 7h às 22h todos os dias.
Cerca de 1200 alunos. A equipe técnico-administrativa é formada por duas agentes
administrativas, Terezinha e Vânia, as professoras readaptadas Sandra e Maria Fátima, a
diretora Ana Maria, a diretora adjunta Kátia, a professora Carla que assumiu o cargo de
Apóio à Direção (após minha saída em maio de 2006), a atual coordenadora pedagógica
Vintheri, e recentemente pela P.O (professor orientador) do PEJA, Rose. Este grupo se
reveza para cobrir todos os horários, as várias entradas e saídas de alunos, e preencher
os intermináveis papéis que a burocracia produz (como solicitar que os mesmos dados
sejam enviados em três tipos de relatórios diferentes). Isso entre as muitas queixas que
professores, pais e alunos fazem uns dos outros (e todos com razão!). Entre matrículas,
declarações, históricos, arquivo, notas fiscais, processos, censo do Bolsa Família, etc.
procuramos por alunos fugitivos, apartamos brigas, providenciamos gelo para um
número infinito de “galos”, substituímos professores faltosos, prestamos socorro a outro
número infinito de crianças que são enviadas doentes para a escola, recebemos e
separamos merenda para que essas 1500 pessoas comam diariamente...
Além do prédio central, foi construído o prédio anexo para Educação Infantil, e
o prédio da Residência
32
(no momento desativado) que abrigava embaixo a Sala de
Leitura. Estes prédios, principalmente, vêm sendo vítimas constantes de depredação, já
que a cerca da escola e o muro baixo não impedem que muitos jovens dos arredores
invadam o pátio para seu lazer e, muitas vezes, para destruição apenas.
Como o CIEP ocupa uma grande área, se constitui em um espaço de manutenção
difícil. Coisas que parecem simples como limpeza, pintura, limpeza da caixa d água,
manutenção de jardins, números de inventário, etc. se transformam sempre em
verdadeiras odisséias dentro da escola. Tanto pela falta de apoio e investimento dos
órgãos responsáveis pela infra-estrutura, como pela falta de pessoal especializado para
administrar este edifício na gerência de obras, pinturas, vazamentos, instalações
elétricas, rachaduras etc., competência que, com certeza, foge à qualificação docente.
A relação da vizinhança com o CIEP é ponto de muitos debates, tanto
internamente como externamente. Em nossa escola as portas estão sempre abertas e a
circulação de pais e alunos (assim como de qualquer pessoa) é muito fácil. Ex-alunos e
amigos soltam pipa, jogam bola, andam de bicicleta, usam os banheiros e bebedouros da
escola. O acesso fácil é um convite para que mendigos e bêbados encontrem um lugar
30
Classe de Progressão foi criada para que as crianças que ainda não consolidaram a alfabetização
possam fazê-lo para depois ingressar na 3ª. série. As relações entre o Ciclo, Progressão e Série serão
debatidas ao longo do texto que se segue.
31
PEJA – Projeto de Educação de Jovens e Adultos. O PEJA I alfabetiza e conclui a 4ª. série. O PEJA II a
8ª.
32
Residência: Projeto Aluno Residente (PAR) - Uma mãe social mora e cuida de até 12 crianças que
vivem em sistema de internato na escola.
seco para se abrigarem (como o banheiro das crianças), gerando uma série de confrontos
e problemas (já temos poucos!) para serem resolvidos.
Esta relação de pertencimento que alguns têm com a escola parece não impedir
sua depredação: urina pelos corredores, depredação de plantas e trabalhos de alunos,
paredes pichadas, lâmpadas quebradas, portas arrombadas...
Para alguns pais, professores, alunos e para a Diretora pessoalmente, essa escola
“aberta” facilita a comunicação, a intimidade e estreita as relações da escola com os
pais, alunos e vizinhos. Além de ser garantido por lei (como argumenta a direção) já que
os prédios públicos devem dar livre acesso “ao público”. Para outros, entretanto, essa
excessiva liberdade se traduz como falta de organização e controle, não garante (o que
também está garantido por lei) a preservação dos prédios e espaços públicos, deixando a
escola – e seus habitantes – demasiadamente exposta, transformando a escola na “casa
da Mãe Joana”.
Diferentes formas de entender o mesmo lugar. Diferentes formas de habitá-lo.
Mais interessante, ainda, quando vemos que os mesmos que reclamam da ausência das
trancas sempre querem gozar do privilégio de “furar” o bloqueio. Querem que as portas
se fechem para uns, não para todos. Mas como eleger aqueles que podem ou não podem
estar neste espaço? Quem elege? Quem controla as chaves? Quem controla o poder que
disso emana?
As tentativas de impor limites e barreiras com correntes e cadeados – quando
algum acontecimento denuncia nossa exposição e fragilidade – são sempre fracassadas
em nossa escola. Assim como as várias regras e normas que são em um curtíssimo
tempo decretadas, infringidas e tornadas obsoletas, não raramente, pela própria direção.
Este é o Donga. Ou uma parte muito pequenina de um universo de caos e
possibilidades que ao mesmo tempo em que me enlouquece me desafia.
Debato-me com os horários nunca cumpridos, com os documentos fora de
prazos, com as regras inúteis, com o tamanho da burocracia que descamba ora para
estupidez ora para a insanidade, desvelando (pelo menos para mim) quais os caminhos e
estratégias para se paralisar, se tentar impossibilitar, ou pelo menos, dificultar bastante,
qualquer discussão pedagógica no interior da escola. Por trás das mãos que tecem – e
defendem – os fios da burocracia parece existir um desejo que não quer e não permite
que nos sobre tempo.
Não consigo parar de pensar que este controle, ou tentativa de controle sobre
nosso tempo, evidencia a intenção de controlar nossas ações, nossas reflexões, nosso
fazer pedagógico; controlar a possibilidade da escola encontrar-se com sua verdadeira
identidade: educar. Presos no emaranhado de papéis, comprovadamente inócuos para a
produção do sucesso escolar, totalmente inúteis como forma de controle sobre o
patrimônio público, o que temos é apenas um desvio do que seria exatamente
fundamental e prioritário dentro da escola: o fazer pedagógico e o pensar sobre este
fazer.
Cheguei ao Donga trazendo na bagagem um grande respeito pela escola pública,
compromisso ético claro com as chamadas “classes populares”
33
, compromisso
construído em alguns anos de debate e reflexões no campo da educação adquiridos em
experiências muito diversas (sindicato, escolas particulares, ongs, curso de formação de
professores etc.) e doses de pragmatismo e objetividade que fizeram parte de minha
formação. Doses que, em certa medida, me impulsionam para as ações necessárias e
contundentes que minha busca por eficiência exige, fora da medida, me impulsionam
para a intransigência e certa impaciência com indolência alheia em pensar e fazer,
admito.
Naturalmente, aquele universo me causou estranheza. Sua cultura, seus fazeres
(e desfazeres). A recepção da diretora me causou estranheza. Mas outras e mais
inquietantes perguntas me aguardavam.
Iniciei com uma turma de Educação Infantil (E.I.) de cinco anos. No final de
outubro tive uma séria crise de vesícula que me levou a uma cirurgia de
emergência...(eu sabia que não se começavam as coisas em setembro!).Voltei à escola
praticamente quando as atividades se encerravam.
5. PROGRESSÃO 2002:
Lógicas ao avesso e o avesso das lógicas.
No ano letivo de 2002, a direção da escola me comunicou que eu iria assumir
uma das três turmas de Progressão
34
, o que não me esclareceu muito, já que eu não
fazia idéia do que era Progressão. Mas os olhares e comentários das colegas me
disseram o bastante para me preocupar. Disseram-me que Progressão era a “ante-sala
do inferno”, alunos com todos os tipos de problemas sociais, psicológicos e familiares
possíveis, com longa história de fracasso na (não seria da?) escola, alguns iniciaram aos
33
Entre aspas já que entendo que não existe a classe popular, mas “as” classes populares, múltiplas e
distintas.
34
Na Rede do Município do Rio de Janeiro ao final do Ciclo de Formação as crianças que atingem os
objetivos (ou competências) seguem para 3ª série. As que não conseguem são encaminhadas para a turma
chamada de PROGRESSÃO. Onde permanecem até estarem prontas para ingressar na 3ª ou até devido a
idade (14 anos) serem encaminhadas para o PEJA.
quatro anos no CIEP. Meu trabalho seria sobreviver a eles sem apanhar (já havia
acontecido com outras professoras), tentar evitar que destruíssem a escola e tentar evitar
que se destruíssem uns aos outros.
As expectativas que tinham, pareciam ter, ou ainda, diziam ter a respeito do meu
trabalho era de que eu fosse uma boa “carcereira”, talvez pela minha voz geralmente
alta e firme, talvez pelo meu jeito de ser pouco açucarado (eu não tinha perfil de
educação infantil, me disseram) um jeito de ser com certa ginga (algumas colegas me
disseram que eu falava a língua deles), ou simplesmente porque queriam me convencer
que eu tivesse o perfil de um bom “cão-de-guarda”, função desde sempre disponível e
sem candidatos dentro da escola. Contudo, nada era simples.
Afinal, o que era o perfil do professor de Progressão? As duas outras turmas
receberam professoras com “perfis” muito diferentes do meu, mas com uma coisa em
comum, também ingressaram no mesmo concurso que eu; novas, portanto, no
Município e no CIEP. Coincidência? Ou um indício da cultura escolar que se move nas
entrelinhas criando códigos e estatutos que não estão escritos, mas que tantas vezes
exercem um poder muito mais institucionalizado que as próprias instituições oficiais?
Conversando com a diretora Ana Maria compreendo um pouco mais sobre esta cultura:
“A primeira vez que teve uma turma com..com esse..rótulo?!
Porque a partir daí se queria tirar aquele rótulo de primeira
série repetente. Aí se deu um nome a essa turma e ela ficou
rotulada do mesmo jeito...Aceleração...Progressão.No meu
entender, ela está sempre rotulada. No primeiro ano eu tive a
professora Nilza, que queria porque já tinha experiência.
Bom, a Nilza veio. Eu acho que o que a Nilza sabe fazer na
vida é dar aula para Aceleração e Progressão, porque quando
ela teve uma experiência com uma turma diferente, não deu
conta, Se “enrolou” numa 301...sabe bem é dar aula pra isso
ai e..complicado falar disso...as vezes eu acho uma coisa...Mas
existe o chamado também acordo de cavalheiros, não está
escrito em lugar nenhum, não que eu saiba, eu já até
perguntei se está escrito. Por exemplo, onde está escrito que o
professor que chegou primeiro na escola tem direito de ficar
com o primeiro turno? Então, isso é uma questão de bom
senso. Onde está escrito que o professor escolhe turma?
Também não está escrito em lugar nenhum, pode pegar o
estatuto que lá não tem isso. Mas existem esses acordos, essa
história foi sendo construída assim: eu cheguei primeiro eu
escolho na frente...
Fui apresentada ao meu grupo de alunos, reduzido pela direção da escola, já que
entendia a natureza do trabalho como uma turma “especial”. Minha turma – que era no
primeiro turno (?) foi formada com 15 crianças e jovens com idades que variavam entre
nove e dezoito anos. E este “entre” significa que era um grupo, ao primeiro e distante
olhar, improvável. Bem distribuídos nesta longa faixa etária, cada um com
conhecimentos muito diferentes sobre a escrita e uma relação de saberes sobre o mundo
mais diversificado ainda, apesar de pertencerem à mesma vizinhança e arredores,
basicamente.
Entre as meninas, quatro moradoras das Aldeias Infantis S.O.S
35
. Histórias
tristes: abandonos, maus tratos, retardo mental. Luciana, encontrada na lata do lixo, teve
seu nome dado pela própria instituição; sua data de nascimento é ignorada, dezoito anos
acredita-se, mas se comporta como se tivesse cinco. Várias vezes começou a apresentar
algum “resultado” para logo em seguida se recusar a produzir, o tempo era seu inimigo;
sua permanência nas Aldeias, única casa que conheceu, estava com os dias contados;
Rose encontrada acorrentada e comendo as próprias fezes, tem diagnóstico de retardo
mental, abandonada pela mãe, que às vezes leva para casa, em visita, os outros filhos
também moradores das Aldeias S.O.S, nunca a Rose. A mãe social luta há anos por uma
vaga no ensino especial sem sucesso; Mônica, 16 anos, quase não fala, mas sorri todo o
tempo, no recreio diverte-se como um bebê brincando de se esconder atrás da pilastra e
esperando que o colega de nove anos a assuste interminavelmente: buuuu, de um lado,
buuuu do outro, de um lado, do outro..Monique, sua irmã, apesar de parecer me olhar do
outro lado do mundo da lua, “parece normal”.
Aline, mora com a família, 10 anos, não escreve o próprio nome, não lê, não
conta além de três, mesmo olhando para o material concreto, anda suja e descabelada, o
que os colegas sempre apontam com chacota. Apenas algumas histórias...
Luciana, Aline, Mônica e Monique, hoje histórias do PEJA, quatro anos depois
ainda persistem em sua busca, contra todas as expectativas, ainda habitam os corredores
deste lugar. Luciana, saiu das Aldeias S.O.S e mora em um quartinho, conseguido com
a ajuda das Aldeias, caminha finalmente para consolidar sua alfabetização.
Amadureceu. Monique está no bloco 2 do PEJA I e deve seguir para o PEJA II. Aline
encontra-se na adolescência. Os colegas dizem que está grávida de um colega de turma:
14 anos, ex-aluno de Progressão também. A irmã mais velha a tirou da escola. Mônica
continua perdida em seu mundo sem que a escola descubra o que fazer com ela, mas
continua demonstrando imensa alegria de estar ali e comparece assiduamente.
Volto no tempo o lembro como os via: os meninos são temidos por quase todos
os professores da escola, têm cara de “bandido”, “trombadinha”. A maioria com 14 ou
15 anos. Uns escrevem, outros não. Denílson (Léo) dorme quase todo o tempo, já que
fica na rua até de madrugada, Wellington (Cris), liderança expressiva, falta muito e
quando vem não participa das atividades. Segundo me informaram, toda a família
passou pela escola, nenhum aprendeu a ler. Contaram-me que quando tinha 6/7 anos
35
Instituição internacional criada na europa pós Guerra que reuniu mães que perderam os filhos com
crianças órfãs. Atualmente as mãe sociais, são mulheres contratadas para morar em uma casa e cuidar em
média de 9 crianças que permanecem na Aldeia até os 18 anos. As casas são dispostas na forma de
aldeiamentos e administradas por um coordenador. O Donga atende quase todos os internos das Aldeias.
afirmou que não aprenderia porque não queria saber mais do que o pai e do que a mãe.
Homem de palavra. Após breve passagem pelo PEJA, abandonou a escola sem
aprender. Rogério, sorridente, hábil negociador, sedutor...fugiu da comunidade, foi
“pedido”
36
após invadir uma birosca local; outras histórias.
Alan e Gabriel vieram para o PEJA e hoje, entre idas e vindas, tentam caminhar.
A Escola havia me presenteado com um grupo de 15 crianças e jovens que
ninguém mais queria. Que estavam na escola aguardando o final dos tempos para o
juízo final e todos sabiam seu destino. Eram predestinados. Sentia-se isso exalando pela
escola. Eu sentia. Eles também.
Passados cerca de dois meses de trabalho, como não houve incidentes
envolvendo o sangue de alguém e minha turma começou a se apresentar na escola com
um comportamento, que mesmo longe do idealizado pelos professores, era muito
próximo do comportamento geral dos outros alunos “normais”, ouvi alguns elogios que
até hoje não sei dizer se me deixavam feliz, indignada ou os dois. Apesar de reclamar
muito, como muitas das minhas colegas de Progressão, apesar de ficar angustiada diante
do quadro caótico que eu pensava ser minha turma, algo me incomodava mais. A forma
como os outros sujeitos da escola: direção, professores, merendeiras etc. direta ou
indiretamente – os olhos também falam - se referiam aos meus alunos: “os animais”,
“os doentes”, “os marginais”, enfim os sem lugar, aqueles que existem quando
ninguém quer sua existência, talvez porque sua existência nos lembrasse o tempo todo
de nosso próprio fracasso, talvez porque o fato daquelas crianças e jovens existirem nos
lembrasse o tempo todo de nossa omissão, nos mostrasse o que nós preferiríamos
esquecer e esconder de nós mesmos. Ora, mas o problema era social, familiar!
Desculpávamos-nos. Tanto pior, pensava, pois então nossa omissão não era só como
professores, mas como cidadãos, nosso fracasso não era só profissional, mas humano.
Nosso silêncio, nossa passividade, nossa covardia e acomodação criavam e sustentavam
este mundo.
Nosso, porque me lembro de tantas vezes olhar para meus alunos sem enxergá-
los. Sem entendê-los em suas singularidades, mas interpretá-los todos como uma única
massa disforme, como rostos diferentes de uma única e triste realidade. Enxergá-los não
como sujeitos, como singularidades, mas como “alunos de Progressão”.
Alunos de Progressão”, assim como o “perfil” da professora de Progressão, era
uma nomeação que indicava uma generalização absurda que escondia o que havia de
único em cada um de nós. Percebi que, assim como eles, eu havia sido despersonificada
como professora. O que me distinguia não era o meu trabalho, as maneiras de ser e estar
no mundo, não era meu nome, identidade primeira de todos nós, o que eu era? Quem eu
era? Professora de Progressão. Mas isso, no universo de tantas professoras, de tantas
36
No vocabulário da comunidade “pedido” significa marcado para morrer pela “polícia mineira” local
outras Progressões significava exatamente o quê? Aluno de Progressão. No universo de
tantos alunos de tantas e tantas Progressões, ser aluno de Progressão significava
exatamente o quê? O mesmo enigma nos unia e nos identificava. Habitávamos o mesmo
lugar nenhum, subtraídos do que havia de único em cada um de nós, reduzidos a um
espaço que, mesmo estando dentro, permanecia fora. Mesmo tendo um nome, não era
um nome que traduzisse suas possibilidades, não era um nome que o dignificasse, que o
identificasse como espaço legítimo dentro da escola. A ante-sala do inferno... “Ao
entrares, perdeis toda a esperança”. Não perdi.
Assim como meus alunos, foi minha prática que, entre tantas outras coisas, me
levou até o lugar onde me encontrava. Nós ocupávamos aquele lugar porque outras
pessoas enxergavam em nós algo que nos diferia dos demais. Fomos excluídos, eu e eles
do sistema regular, do fluxo, do lugar onde o “normal” habitava. Então minha prática
apontava para a necessidade de ler este lugar, de tentar decifrá-lo, ou ele me devoraria
com certeza, pois já sentia minha identidade ser devorada. Eu agora a perdia. Engolida
pelos ecos de todas as Progressões que não conhecia, por todas as histórias fatalistas de
um passado que não vivi, a escola pública, aquela primeira que conheci, se descortinava
em minha frente como uma profecia de minha infância, como um mal-agouro...
Depois de anos organizando congressos de educação em defesa da escola
pública, da educação popular, dos oprimidos, dos injustiçados do mundo, me tornara
incapaz de perceber meus alunos. Mesmo após tantos livros, tantos cursos, tantas letras,
me tornara incapaz de descobrir meus alunos, de conhecer-lhes as entrelinhas, de
perceber seus textos de contextos. Vozes soavam de todas as partes querendo me ditar
as palavras, como eu deveria escrever a minha história, a nossa história. Eu, tantas
vezes, as repetia...como meu aluno “copista” , realizava uma prática sem significado,
que revolvia em minhas entranhas como coisa mal digerida.
Então, olhando no espelho, eu me vi. Pequena e sozinha no fundo de uma sala
imensa em um colégio imenso, com fileiras de carteiras imensas. A janela mostrando o
mundo. O quadro mostrando nada. Lembro-me de como não sabia dizer se me
incomodava mais o olhar de reprovação ou de pena que via saltar dos olhos dos meus
professores naquela tortura que era a 5ª série: “–Eu não entendi!” Insistia
corajosamente, para ouvir tudo da mesma forma pela milésima vez. E pensava, eu não
sou surda, caramba! Eu disse que não entendi e não que não ouvi! ”. Não eu não era
surda. Era burra! Podia perceber isso em cada suspiro, em cada palavra não dita. Podia
concluir isso após anos e anos sendo empurrada e puxada pelo ensino fundamental. De
repente, eu vi no espelho... eu era aluna de Progressão. Ou deveria ter sido (mas isso
não existia em escolas de freiras, só reprovação, e eu fui devidamente reprovada) se
minha família não tivesse mudado o rumo de minha história. Meus pais resolveram me
tirar da escola no meio do ano e me deixar sem estudar já que além de minha
reprovação evidente, passava muito mal com crises de enxaqueca que se agravaram no
período. Foram duramente criticados por todos. Salvaram-me. Eu percebi que havia
saída, que não era prisioneira daquele lugar terrível. Mudei de escola, ganhei auto-
estima e mudei radicalmente meu boletim.
Eu havia sobrevivido à exclusão. Havia sobrevivido à seleção e à classificação.
Havia sobrevivido ao massacre de minha auto-estima, havia sobrevivido à escola. E
agora eu voltara. Para quê? Para continuar essa briga.
A aluna que fui e a professora que me tornei travaram longas e difíceis batalhas,
enquanto meu dia a dia era uma arena de disputas invisíveis numa guerra sem
vencedores, onde nós, meus alunos e eu, devidamente escondidos dos olhos do mundo,
tentávamos sobreviver da melhor maneira possível, incomodando o mínimo possível e
com o máximo de dignidade possível, apesar de quase ninguém – e tantas vezes nem
nós mesmos – acreditarmos em nós.
De repente (na verdade um repente gestado em longas semanas de angústia) não
me sentia mais adversária, não mais professora, não mais a detentora de um saber que
os salvaria, mas apenas outro ser humano buscando sobreviver em um mundo que havia
me designado um lugar que era lugar nenhum, um nome que era nome nenhum. Um
lugar que exatamente por ser o que era, o lugar do lixo, poderia ser reinventado,
recriado, um lugar de liberdade.
Um lugar que exigia a invenção de novos códigos, de novos acordos, não os
“combinados”
37
moralistas da escola “normal”, mas práticas negociadas de
convivência, acordos que nos salvariam da insanidade com que éramos tratados, que
tornavam a sala de aula um lugar saudável para todos nós. E como eles eram hábeis
negociantes.
Nós estávamos agrupados no mesmo lugar. E durante muito tempo ocupamos
somente o mesmo lugar, onde somos colocados uns ao lado dos outros, cada qual
ocupando o “seu próprio”, neste lugar criado artificialmente para nos excluir do outro
lugar: o lugar da escola entendida como normal, regular. Mas nossa predestinação
terminava aí, porque neste lugar somos sujeitos, no lugar que nos prendia, criamos o
nosso espaço
38
. Por quê? Talvez o mesmo motivo que leva há tantos na humanidade se
reinventarem: a sobrevivência.
Criamos porque fomos deslocados, meus alunos e eu, do lugar onde estávamos
através de nossas práticas e usos, através de nossas negociações, discussões e combates
para o espaço onde aquele fazer acontecia, não apenas estávamos ali como habitantes de
um lugar, mas criávamos este lugar transformando em um espaço, reconstruímos nosso
37
Prática onde o professor estabelece com a turma uma lista de regras de comportamento que deverão ser
seguidos e as vezes as eventuais punições. Pode ser uma atividade de construção de auto disciplina como
também uma prática burocrática ou um autoritarismo disfarçado.
38
Utilizamos o conceito de Certeau para “lugar” como “configuração instantânea de posições(...)
indicação de estabilidade” e “espaço” como lugar praticado”. (Certeau, 2004. p.199)
próprio sentido de estar. Construção forjada nas tensões, no embate entre lógicas e
maneiras de ser/estar no mundo, lógicas que se expressavam neles e em mim como
maneiras de fazer nem sempre possíveis de serem traduzidas ou decifradas pelas teorias
que eu conhecia.
Transformamos o lugar, o não-lugar, o lugar nenhum que a escola nos confinou
e, por isso mesmo, um lugar livre da maioria das expectativas, normas, regras e
institucionalidades – do lugar escola – em um espaço de possibilidades, regido muito
mais pelo instituinte do que pelo instituído.
Talvez por fundarem e habitarem neste lugar (ou não-lugar) o espaço há mais
tempo, talvez por estarem acostumados a sobreviver e reinventar este espaço (lugar
praticado) ao seu modo, talvez por serem sobreviventes há muito mais tempo que eu, ou
talvez por outras possibilidades ainda ininteligíveis para mim, aqueles jovens e crianças,
de alguma maneira, conheciam a natureza daquele lugar e suas possibilidades de
ocupação/transformação, ou seja a instituição de um espaço, muito melhor do que eu
mesma. Viam algo neste espaço que os fazia comparecer dia após dia para serem
colocados diante do seu “não saber”, para serem olhados, apontados, desprezados. Meus
alunos, deficientes, analfabetos, estranhos, a seleção mais bizarra que a escola
conseguiu reunir. Meus alunos conseguiam ler algo que me escapava completamente,
conseguiam recriar no lugar que os havia negado, um espaço onde conseguiam negociar
e lutar por sua felicidade, pelos seus desejos, se apropriando de cada fenda, de cada
canto, de cada brecha, se esgueirando, escorregando, deslizando. E faziam isso com
extrema habilidade. Uma habilidade que tantas vezes nos enlouquecia confesso, pois
nos confrontava com nossas contradições e fraquezas, com nossos valores e lógicas,
com nossas verdades.
Meus alunos...após uma década discutindo e fazendo educação, me ensinaram a
ser professora. E continuam me ensinando. Talvez muito mais do que qualquer coisa
que eu fui capaz de ensinar-lhes. Eles me ensinaram, com sua resistência, com suas
táticas, com práticas astuciosas o que significava realmente ser “sujeito”. Desafiavam-
me a usar as palavras democracia, autonomia, diálogo, da mesma forma vazia e
impunemente como tantas vezes já havia feito. Desafiavam-me a compreendê-las para
além de discursos românticos e de idealizações apaixonadas. Desafiavam-me a
compreendê-las na arena humana onde sujeitos reais, múltiplos, contraditórios, plurais
encontram-se e se confrontam. Ensinaram-me que não poderia ser professora na ordem,
na ilusão harmônica provocada pelo silêncio imposto. Ensinaram-me que teria de ser
professora no caos, nas redes de interações onde, ao mesmo tempo em que trançamos
possibilidades de solidariedade neste fazer junto, trançamos conflitos, disputas.
Ensinaram-me, de uma forma muito mais viva e sólida aquilo que eu já havia aprendido
nos livros, mas custava a entender: que nada é permanente e que tudo se movimenta. E
como eles se movimentavam!
Hoje, com a ajuda dos novos interlocutores (Deleuze, Morin, Certeau, Bhabha,
Bakhtin etc.) que desafiam minha lógica, revirando-a pelo seu avesso, percebo cada vez
melhor, que meus alunos, muito mais do que eu mesma, compreendiam o fazer daquele
lugar, compreendiam o sentido do estar na escola – aquela escola – para muito além do
que eu compreendia, percebo-lhes, infelizmente só agora, toda a riqueza de um
revolucionário avesso das lógicas.
Enquanto eu buscava encontrar uma forma de devolver a harmonia
simplificadora da “ordem”, meus alunos pareciam compreender, (e assim se
organizavam!) que ordem e desordem não se excluem (Morin). Que a aparente
“desordem” que eu lia, trazia em si uma outra lógica organizadora, outros objetivos,
outras possibilidades de mover-se no mesmo espaço. O que para minha lógica de
professora era o fim, para eles, muitas vezes, era o começo.
O recreio que parecia ser o fim do trabalho pedagógico que eu tentava
desenvolver, muitas vezes, como pude perceber, era exatamente o contrário: era o inicio
da auto-organização destes jovens e crianças, era o início da negociação de regras em
torno de um objetivo comum, era o início de uma convivência social qualitativamente
superior daquela que eu conseguia em minha sala. Sem metodologias milagrosas, sem
materiais importados. Uma bola. Um olhar atento, presente e participante do educador.
Enquanto eu via e indignava-me com a perversidade dos limites – indignação
que, com a benção de Paulo Freire, me permitirei continuar sentindo enquanto houver
injustiça no mundo – eles jogavam com as possibilidades; enquanto eu via apenas o que
a escola/sociedade lhes negava, eles utilizavam-se do que lhes era oferecido para recriar
ao seu modo, sua própria escola/sociedade; enquanto eu via apenas a exclusão, eles
garantiam a possibilidade de ocupação e, portanto, de conflito, nos obrigando, mesmo
quando de olhos fechados, a ultrapassar as lógicas do mundo que criamos – ilusão de
realidade – para nos mostrar dura e cruamente outras possibilidades do real. Como
aprendi nas palavras de Certeau: “Eles metaforizavam a ordem dominante: faziam-na
funcionar em outro registro. Permaneciam outros, no interior do sistema que
assimilavam e que os assimilava exteriormente. Modificavam-no sem deixá-lo.” (2004.
p.95)
Em minha cegueira iluminista lançava sobre eles o olhar de quem se apieda de
seu destino infeliz, de suas limitações gritantes, de seu comportamento perturbador.
Insistia do alto de meu conhecimento, em salvar-lhes do destino infeliz que o mundo
capitalista, injusto e cruel havia lhes reservado. Na ilusão da organicidade
39
de minhas
39
No sentido que Gramsci emprega; um intelectual que pensa não sobre, nem para as classes populares,
mas com elas e a partir delas. Que toma as classes populares como o lugar a partir do qual pensa,
compreende e age no mundo.
práticas, era representante – ainda – do velho mundo, olhando o bárbaro novo mundo
com a aura de nobreza e a benção que só os missionários têm.
Por que não aprendiam? Por que não queriam aprender? Por que não se
comportavam como o “bom selvagem” e se mostravam gratos à nossa generosidade, à
nossa dedicação, à nossa cantilena libertadora e progressista?
E se não queriam aprender, por que insistiam, em sua grande maioria, em
comparecer pontualmente dia após dia, com chuva ou sol, já que suas famílias não
cobravam nem sequer esperavam efetivamente este comportamento e a escola não
desejava, sinceramente, sua presença? Se não gostavam da escola, e assim traduzíamos
seu comportamento, porque faziam tanta questão de estar nela?
Perguntas sem respostas ou respostas sem perguntas?
Eles, ocupantes e praticantes deste espaço/lugar a muito mais tempo do que eu
mesma, conheciam-lhe os caminhos, as rotas de fuga, as possibilidades das práticas e
buscavam incansavelmente a felicidade possível. “...amar o que se tem”.
Enquanto perdia-me em minhas angústias e conflitos por ver sistematicamente
sabotadas as minhas tentativas de aproximar aquele lugar dos demais lugares da escola,
meus alunos construíam um espaço cheio de significados incompreensíveis e invisíveis
para mim. Espaço que confrontado com o espaço legítimo – ou legitimado – ocupado
por aquela outra escola que não era para eles, fazia tremer os alicerces seculares desta
escola, como a semente do novo querendo nascer e rompendo a velha casca enrugada.
Quando fecho os olhos e tento revê-los percebo como, à sua maneira, cada um
dos meus alunos, ora individualmente, ora coletivamente, exerciam como ninguém a
arte de se fazer sujeito: “Sem sair do lugar onde tem que viver e que impõe uma lei, ele
aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira daí
efeitos imprevistos” (Certeau,2004,p.93). O efeito imprevisto e indesejável e por isso
“condenável” de expor ao mundo as feridas impostas por uma escola excludente e
preconceituosa, mostrando muito mais do que dizendo, sem demagogia, sem hipocrisia
como na letra de Renato Russo que: “...depois de 20 anos na escola não é difícil
aprender todas as manhas desse jogo sujo, não é assim que tem que ser”. E eles
deixavam claro que não aceitavam que assim fosse. Mas como transformar-se na escola
possível? Como construir a escola onde o projeto – sem corpo, sem voz – desses alunos
fosse tomado como legítimo?
Perguntas sem respostas ou respostas sem perguntas?
Eu ocupava um lugar solitário de quem está ao lado sem estar junto, enquanto
eles, apesar das brigas, das ofensas, das recusas, estavam de certo modo, estranhamente
unidos (mesmo quando não coesos) na construção deste espaço. Moviam-se entre as
minhas contradições, ocupavam cada espaço vago, habitavam cada lugar onde havia
possibilidade de transgredir a ordem que eu, representante visível e oficial de um
“poder” instituído, tentava impor.
Como pode o professor (pesquisador) tornar-se parte do real? Não da realidade
física, mas desse outro real. Como deslocar-se de sua torre onde a distância o ilude,
onde aquilo que julga conhecer se torna inútil frente ao seu desconhecimento do chão
onde a vida se desenrola, sonhando com uma realidade que não existe, que nunca
existiu? Adormecida, como a Bela, ignora a vida que se desenrola à sua volta, ignora o
tempo que passa, a mata que cresce, espera ser salva, desperta do pesadelo que a
atormenta.
O que eu via como sabotagem, má vontade e claro, como deficiência, hoje
descubro e começo a perceber como tantas vezes eram apenas astúcias
40
, táticas de
quem sobrevive nos guetos, de quem consegue ler leis que eu, por ocupar outro lugar,
viver em outra – restrita, disforme e arrogante – realidade, não conseguia.
Relembro hoje, com certo sorriso querendo brotar, as astúcias de Rogério que
prontamente realizava o que eu queria, para logo em seguida obter para si e para os
outros – que não realizavam o que eu queria aquilo que realmente lhes interessava:
geralmente jogar dama ou futebol. Deixando claro, com uma sutileza assustadora, o
quanto aquele fazer, que eu do meu lugar de autoridade impunha, era facilmente
esfacelado. Uma arte surpreendente, onde obrigados a fazer o que não queriam, faziam
desfazendo-o.
“Se é verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede
da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que
uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos
populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os
mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não
ser para alterá-los; enfim que “maneiras de fazer” formam a
contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?) ,
dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-
política.”(Certeau,2004, p. 41)
Redes de vigilância não faltam nesta instituição e eu como professora estava
oficialmente escalada para ser uma das vigilantes. Mas quem vigiava quem? Havia um
lugar privilegiado de poder ou simplesmente lugares distintos onde o poder era exercido
de maneiras distintas? Lugar de oprimidos e opressores, de dominados e dominantes.
Lugar de tensão, de conflito, de embate, onde cada força encontra nas fendas do
adversário, espaços para mover-se.
Todo o sentido que eu estrategicamente tentava dar, em vão, ao que acreditava
ser um fazer necessário, era transformado por outro fazer, que silenciosamente negava
minha autoridade, negava minha prática, negava meu saber. Os excluídos do mundo
40
Como assim a utiliza Certeau: esperteza, artes do fraco contra o forte.
excluíam-me de seu projeto de escola. Eu era a estranha naquele ninho. Quem era
opressor? Quem era oprimido? Todos nós.
Confronto-me incansavelmente com as astúcias de Jéssica, que tantas vezes
obrigada a mudar do lugar que escolhia para ocupar na sala, insistia em me mostrar que
não importava onde se sentasse, iria continuar insistindo em ser ela mesma. Mostrar-me
que não importa o lugar que nos imponham, podemos seguir fieis a nós mesmos,
desafiando o outro – no caso eu, a professora – com heróica (e insuportável) teimosia
(ou seria determinação?) em continuar habitando a si mesma, e com isso, no final das
contas, habitando o espaço que escolheu para si.
Apesar de minha lógica querer me levar para a terra firme, não havia como
abandonar este navio (na verdade uma jangadinha atirada em mar bravio). Não havia
como desembarcar. Também não havia como segurar o leme. Gostasse ou não, quisesse
ou não, soubesse ou não, estava embarcada.
Não havia como fazer um diagnóstico daquele vivido, ele não se deixava
aprisionar em diagnósticos. Precisava assumir meu lugar naquele espaço junto aos meus
alunos. Precisava colocar-me em movimento. Seguir o percurso, atravessar a correnteza
e colocar-me como viajante. Não podia mais ficar no porto vendo-os afastarem-se,
sozinhos, em uma aventura que, apesar de rica, poderia tornar-se cara.
E aqui a professora que sou, em primeira e última instância, pede licença à
pesquisadora – diálogos que se unem, se separam e se entrecruzam em uma luta de
lógicas internas, em conflitos de uma quase esquizofrenia, fruto dessa dicotomia
artificialmente criada pela Modernidade – e insiste na objetividade da ação pedagógica,
na intencionalidade de nossas práticas, na opção política de nosso fazer. Insiste em
querer apreender do real – mesmo que este se mova, mesmo que seja tentativa vã – sua
“essência” para transformá-la em excelência. Insiste não poder só pensar sobre os
fazeres, mas fazer a partir do pensado. Insiste na práxis. Assim como nas palavras de
Paulo Freire, não consigo conceber “o ensino sem a pesquisa e a pesquisa sem o
ensino”.
As lógicas dos sujeitos, vinculadas muito mais aos seus fazeres do que aos
discursos que possam ser produzidos, tantas vezes incompreensíveis para os próprios
praticantes, são na maioria das vezes, apenas indícios, pistas que seguimos sem jamais
alcançarmos a certeza de atingirmos sua compreensão, tornam meu aluno uma esfinge
que ao não ser decifrada, devora-me. Ao nos movermos no mundo deixamos marcas,
pegadas que indicam nossa forma única e particular de caminhar, impregnamos o
ambiente com nossos cheiros, com nossas manias, sempre deixamos algo de nós.
Quantas vezes, como professoras, capturamos um gesto, um olhar, um meio sorriso,
uma lágrima escondida e então compreendemos o mistério que nos tanto nos afligia?
Quantas vezes capturamos aquela conversa no recreio, aquele olhar interessado em uma
revista, em um mapa, em um bilhetinho, e encontramos a chave para uma porta que
parecia irremediavelmente trancada?
Preciso, portanto, (per) seguir estas pistas. Preciso estar com eles nesta nau e
preciso segurar este leme para que a correnteza – que é forte – não nos leve de encontro
às pedras – que são muitas. Não posso me permitir que o meu pensar/fazer torne-se um
vazio, encruzilhada onde, frente às várias possibilidades e vários caminhos, não se
consiga mais caminhar em direção alguma.
Vejo-me diante de muitos desafios, como professora, como pesquisadora, como
sujeito que vaga pelo mundo não a passeio, não como turista, mas como caminhante
consciente em busca de novos caminhos pela história, buscando compreender as lógicas
em que opero através das várias leituras de mim mesma, exercício incansável de
compreensão das contradições e em busca de coerência – trabalho difícil – mas
necessário, buscando mergulhar nas lógicas em que os sujeitos operam, mesmo quando
múltiplas, mesmo quando indecifráveis, mesmo quando tão estranhas às minhas lógicas,
por entender, até que outro novo se instaure e me prove o contrário, que esta história é
construída nas tensões e diálogos entre estas lógicas.
Tensões entre as grandes narrativas, explicadoras/organizadoras do mundo e os
pequenos poderosos fazeres constituintes do mundo. Mundo subterrâneo, que se enraíza
e cresce provocando rachaduras em todos os grandes monumentos criados pela
superfície.
Mundo que, ofuscado pelos holofotes do grande show da globalização, encena
em toda a parte seu espetáculo mambembe, diariamente, incessantemente, ocupando as
sombras, como a escuridão no céu ocupa todo o grande espaço deixado pelas estrelas, o
nada que se torna muito maior que o todo. Menos visível, talvez por isso mesmo menos
controlável. Espaço onde tudo o que existe, existiu e existirá coexiste, movendo-se,
criando, recriando, alimentando-se das sobras do mundo visível para reciclá-las em
novas e revolucionárias possibilidades de viver. Minha reflexão e prática me levam a
concordar com essa coexistência de forças assim percebida por Certeau:
“A uma produção racionalizada, expansionista além de
centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde uma
outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é
dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente,
silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com
produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos
impostos por uma ordem econômica dominante” (2004,p.39)
Neste espaço claro/escuro me movo. Reconheço-me como praticante. Caminho
entre estratégias e táticas, entre as narrativas totalizantes do mundo e as narrativas
cotidianas dos mundos e inscrevo-me. Utilizo-me das ferramentas que me permitem
resignificar meu pensar e minha prática em um pensar e uma prática que contribuam
para um projeto de mundo humanamente possível. Permito-me também me posicionar
neste tabuleiro, como sujeito que sou, como professora que sou, contra todas as lógicas
que impõem (ou tentam impor) ao outro a miséria, o preconceito, a desumanização. Sem
tolerância com o perverso, com o cínico, com o demagogo.
Neste espaço claro/escuro meus alunos se movem. E as professoras que os lêem
como “Progressão”, se movem também. Assim como as mães e pais.
Na escola, em cada sala, em cada atividade, percebemos este mover-se.
Percebemos como são construídos os silêncios que gritam e os gritos que por mais alto
que se façam ouvir não silenciam as vozes que escapam, denunciando, sabotando,
recriando, que encontram outros caminhos e formas de se fazer ouvir.
Na escola, todas as tensões que transformam a rede social em uma rede elétrica,
cheia de curtos-circuitos e choques, se fazem presentes nas relações, nas disputas, nos
jogos de poder, nas estratégias e nas táticas.
Redes onde o poder se move em todas as direções, em todos os sentidos
(Foucault), e não mais apenas verticalmente. Onde ideologias elaboradas em discursos
veiculados sob diversas e diferentes roupagens, ganhando a mídia e as ruas, são
apropriadas pelos sujeitos de múltiplas maneiras, sendo “consumidas” pelos praticantes
de formas nem sempre visíveis, nem sempre decifráveis. Certeau nos alerta que: “A
presença e a circulação de uma representação (ensinada como código da promoção
sócio-econômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam
de modo algum o que ela é para seus usuários.” (2004,p.40) e desta forma desconstrói,
em minha interpretação, a imagem do sujeito vítima dos discursos, do sujeito
determinado pela “realidade” como nos chama atenção Silva,T.T.: “Com Foucault o
sujeito não passa de um efeito das práticas lingüísticas e discursivas que o constroem
com tal (2000, p.15). Sujeito alienado de seus saberes, de sua condição humana de
criador. Certeau concebe um sujeito de saberes desconhecidos, invisíveis por sua não-
tradução em discurso, mas presentes e fortes.
Ao recusar a lógica erguida nos séculos da chamada “Modernidade”, onde o que
não podia ser explicado pela matemática de Galileu simplesmente não era ciência e não
sendo ciência não existia, vejo a possibilidade de ver reconstituído o amálgama que une
nosso fazer e o fazer dos nossos alunos, a uma lógica sim, que pode, e assim acredito,
pela garimpagem, pela reflexão e pesquisa se transformar em discurso e em ciência.
Mesmo consciente de que muitas vezes este trabalho nos levará a labirintos onde
pensando capturar as lógicas dos praticantes estas nos devorarão. Onde ao sonharmos
com respostas encontraremos apenas mais e infinitas perguntas. Perguntas sem
respostas ou respostas sem perguntas...esperando que nós as formulemos...
Por que não aprendem? Por que não querem aprender? Serão estas as perguntas
corretas? Ou a ausência de respostas a esta pergunta que cada vez mais professores e
professoras se fazem não seria a própria resposta? Estamos fazendo as perguntas certas?
O que eles não aprendem? O que aprendem? Por que não querem aprender aquilo que
julgamos essencial (e que de fato assim me parece já que ler e escrever para mim é
essencial) ? O que os alunos julgam essencial? Por trás do não querer existe um querer,
qual? Como podemos construir uma escola que se coloque ao lado dos sujeitos e não
sobre, ou pior, contra eles?
Nesta curta, mas profunda caminhada, primeiro Deleuze, depois Pais e Certeau
desafiam-me a rever as perguntas que faço, a desconfiar das respostas que dou.
Convidam-me para uma nova formação científica que não tenha medo de enfrentar uma
nova perspectiva de pesquisa: “Pesquisa complexa porque essas práticas volta e meia
exacerbam e desencaminham as nossas lógicas.” (Certeau, 2004,p.43)
Mas pesquisa necessária já que a(s) realidade(s) não é (são) simples. Desafio
feito, desafio aceito. Não por acreditar que a complexidade me permita navegar com
tranqüilidade por suas águas, ao contrario, prevejo muitos e dolorosos naufrágios, mas
como disse Paulo Freire, não posso “estar no mundo de luvas nas mãos”, ou em
qualquer lugar seguro (existe?) enquanto o mundo segue a deriva (ou por rumos
assustadores). Opção. Optei por pensar o mundo que faço. Existe outra opção digna para
qualquer ser humano? Outra opção que respeite a nossa condição de gente neste
mundo? Se existir, inscrevo-me também.
Aceitar a complexidade do real (Morin) é aceitar ver as lógicas em que opero
sendo arrancadas das entranhas, aceitar ser revirada do avesso, para reconstruir-me ou
não, frente a outras lógicas. Aceitar a existência do outro, em sua complexidade, em sua
riqueza, em sua pluralidade, em sua lógica que para mim tantas vezes foi apenas profana
e absurda. Pensar o impensável. Exercício de inventividade humana. Opção por fazer
uma ciência que “(...) exige que o observador se inclua em sua observação,o que
concebe em sua concepção; em suma que o sujeito se reintroduza de forma autocrítica
e autoreflexiva em seu conhecimento dos objetos” (Morin, 2005, p.30).
O pensável não respondeu às perguntas que fiz. Talvez o impensável responda.
Sigo então pelo caminho de ler minhas lógicas ao avesso. De procurar no avesso das
lógicas as perguntas que ainda não fiz e as respostas que ainda não encontrei...
6. A PEDAGOGIA DO COITADO
Os sentidos da Escola.
No ano de 2003, assumi uma turma da 4ª. Série, a 403 (ou seja, a mais fraca), e
descobri que poderia trabalhar no sistema de Dupla Regência
41
assumindo uma turma
do segundo ano do ciclo. Uma 1204 (ou seja, a mais fraca).
Já havia trabalhado algumas vezes com a 4ª. Série. Ciclo eu não fazia idéia do
que era. E, na verdade, parecia que ninguém na escola também. Todas as vezes que
precisávamos explicar a existência do Ciclo usávamos como referência as séries: o Ano
1 do Ciclo é o antigo C.A (classe de alfabetização) o Ano 2 do Ciclo é assim como uma
1ª. série e o Ano 3 do Ciclo é assim tipo uma 2ª. Série... “só mudou o nome, entende?!”
Os livros utilizados também seguiam esta referência. Não entregam livros
impressos para o Ciclo, na verdade não tenho conhecimento de editoras que publiquem
livros pedagógicos para a proposta dos Ciclos de Formação (o que com certeza deve ser
muito difícil de imaginar!).
Isso, somado ao fato de que os alunos depois de cursarem o Ciclo ingressariam
na 3ª. Série contribuía imensamente para que a proposta de Ciclo fosse percebida por
41
Como faltam muitos professores regentes, os professores podem “dobrar” assumir outra turma e
receber outro salário por isso. Uma espécie de contrato por serviço prestado.
toda comunidade escolar como uma simples troca de nomenclatura para justificar a
promoção automática” entre as três séries iniciais do ensino fundamental.
O meu estranhamento com o Donga e claro com a “escola pública” que eu
pensava já ter naturalizado depois da turma de Progressão, voltou a se produzir, de uma
forma diferente, mas poderosa, diante do que encontrei no Ciclo e na 4ª. Série.
Minha turma de Ciclo era composta por crianças na faixa etária dos oito anos.
Muitos, alunos nossos desde a Educação Infantil (E.I.) desde os quatro anos. Nenhum
sabia ler e escrever
42
. Alguns reconheciam algumas letras do alfabeto e escreviam o
nome. Outros copiavam qualquer coisa, sem parecer atribuir sentido a uma letra do que
escrevera (uma arte espantosa sem dúvida!).
Tempos depois, reparou Ana Cristina, professora e parceira de reflexões: “Você
se estressa mais com esta turma do que com aquela Progressão! Eles são terríveis!”.
Eu, que em minha ilusão (como me iludo!), estava retornando à “normalidade”
percebia que meu desafio era ainda maior: não produzir a Progressão.
Mas o tempo era meu inimigo. Alguns de meus alunos estariam completando 9
anos e seriam encaminhados sem piedade para a Progressão. Eu tinha um ano apenas
para desenvolver com aquelas crianças algum sentido para a escola, algum sentido para
o ler e o escrever e enviá-las para a 3ª. Série (?). Um ano que tramava contra mim não
me deixando trabalhar uma semana inteira com meus alunos. Eram festas, feriados,
cursos, reuniões e mais um incontável número de atividades (oficiais) e sabotagens ao
cronograma que pareciam não aborrecer ninguém...só às muito esquisitas que, como eu,
acreditavam estar na escola para ensinar.
Como? Como alfabetizar aquelas crianças, que aos meus olhos, pareciam não
saber andar, sentar, comer, brincar, falar? Como ensinar-lhes a ler e escrever em cento e
alguns dias letivos quando era claro que a educação que necessitavam era muito mais
ampla e ao mesmo tempo muito mais básica?
O Ciclo assustou-me. Talvez, por não esperar encontrar uma outra turma em
tantos aspectos parecida com a minha da Progressão. Talvez por saber que depois de
tanto tempo na escola (quatro anos) ninguém havia ensinado coisas que eu considerava
básicas na formação de qualquer criança que passe pela Educação Infantil. Vi como a
Progressão era produzida e eu estava nesta linha de montagem, impotente e
incompetente.
A 4ª. Série revoltou-me. Aqueles que sobreviviam à peneira do ciclo e furavam
o bloqueio da Progressão chegavam à 4ª. Série analfabetos. Muito duro? Muito radical?
Não. Muito perverso. Muito real.
42
Sempre que me referir ao ler escrever significa para mim: ler compreendendo e apropriando-se do lido,
escrever com autonomia e autoria com sentido e compreensão para o leitor.
Em uma turma de 30 alunos podia contar nos dedos, sem precisar das duas
mãos, aqueles que eram capazes de entender uma história simples. Fazer um texto com
sentido, com começo meio e fim? Era um desafio impensável. Subtração? Uma
operação difícil, e divisão (o quê?). Como chegaram até ali? Por que chegavam assim?
Como poderia aprová-los para a 5ª. Série?
Descobri, assustada, através das palavras de várias pessoas da equipe técnico-
pedagógica que “não precisava me preocupar” a 4ª. Série não reprovava. Afinal se os
alunos, na escola desde o E.I. haviam chegado até ali sem que ninguém tivesse dito
[nem feito] nada, não era justo reprová-los agora.
Entendi porque figurávamos, nas pesquisas comparativas sobre educação, atrás
da Indonésia. Porque nossa educação era apontada como pior do que a de outros países
muito mais miseráveis, muito mais violentos. Doeu. Tinha vergonha e raiva de estar ali.
E a dor virou luta, como todas as dores que valem à pena.
Uma noite, cheguei a casa profundamente angustiada e não conseguia dormir.
Sentei-me no computador e escrevi um texto, um desabafo, um pedido de socorro, não
sei bem. Chamei-o Pedagogia do Coitado. Guardei-o na minha bagagem. Consciente de
que, se o calor da emoção com que o escrevi havia deixado marcas de toda fúria que
sentia naquela madrugada, havia preservado também toda riqueza deste momento.
Ao voltar a este lugar, vasculhei minhas memórias e meus escritos. Achei-o.
Voltei a ele em outro momento dessa estrada. Em um momento que suas cores
demasiadamente carregadas – como me é próprio – pareceram-me carregadas demais.
Ele preservava, entretanto, a gênese de tudo que me fez trilhar este caminho. Merecia
fazer parte então deste momento.
Comecei a refletir sobre esta Pedagogia do Coitado. De como o conceito de
escola dual
43
mostrava sua face mais feia, mais disforme e como eu teria de me
defrontar com este monstro, que teorias pedagógicas sérias utilizadas de maneira
equivocadas por uns e maquiavélicas por outros estavam ajudando a criar e alimentar.
O texto retorna aqui, com muitas alterações que me senti obrigada a fazer para
deixá-lo mais próximo, para trazê-lo para mais perto do que vivo e penso hoje. É um
texto escrito, portanto, a quatro mãos. A professora Andréa em 2003, buscando
encontrar os sentidos da escola, e a professora Andréa em 2006 buscando (ainda!)
encontrar os sentidos da escola. Dois tempos que dialogaram e se encontraram. O
resultado é o texto que se segue:
43
Teoria da Escola Dualista elaborada por Christian Baudelot e Roger Establet que defendem que a
escola segue a divisão da sociedade capitalista criando escolas diferentes para classes diferentes. Mesmo
compreendendo que a(s) escolas(s) são mais complexas do que esta divisão, ela permanece válida para
nossas reflexões.
“Se era ou não era uma conspiração, uma ideologia ou simplesmente um
perverso jogo de interesses – diversos, não só os do poder estabelecidos pela macro-
estrutura das elites, mas também dos pequenos e corruptos interesses pessoais – eu
sinceramente ainda não sei.
Mas percebo, até porque é bastante visível para qualquer um que pise esse chão
sem salto alto, que existe um processo de embrutecimento em massa em
desenvolvimento no país. Processo onde todos nós estamos inseridos, conscientes ou
não do nosso papel e de nossas escolhas dentro deste processo.
Há alguns anos atrás, muitos educadores levantaram suas vozes contra o
terrível movimento de exclusão que sofriam as crianças das classes populares, que
eram levadas ao fracasso escolar por não se “ajustarem” a uma escola que não se
destinava a elas. Muito foi dito desde então.
A linguagem do professor que se distanciava da do aluno, o currículo sem
significado, o texto sem contexto, uma escola que não respeitava nem a pluralidade
cultural nem a individualidade do processo de aprendizagem do aluno. Uma escola que
reprovava, que punia, que excluía.
Em nome destas teorias, reformas – algumas revolucionárias e desafiadoras
outras desastrosas e desajeitadas – foram feitas. Alguns entenderam os desastres como
uma etapa (longa!) no processo de evolução (?) do fazer pedagógico, Contudo, é
preciso ler com calma como este processo foi deflagrado, avaliar com mais calma
ainda como está sendo gerenciado e principalmente quais os resultados que estão
produzindo. Afinal se entendido (e não digo que assim entendo!) como processo
“evolutivo”, tem a obrigação de superar os antigos modelos em qualidade para se
legitimar.
O Ciclo de Aprendizagem no Rio de Janeiro foi implantado desta maneira. Um
olhar antropológico mais aprofundado poderia facilmente ter avaliado que um projeto
“teoricamente” progressista
44
não pode ser desenvolvido sem uma construção coletiva
dos sujeitos que irão produzir a ação. Então observamos que um projeto que tinha por
objetivo “incluir” excluía da discussão todas as vozes envolvidas no processo, visto que
até hoje, professores, pais, coordenadores e até alunos não compreendem e não gostam
(claro!) da mudança implantada. Má vontade? Resistência ao novo? Pode ser...Ou
desconfiança de sujeitos que habitam este velho mundo há bastante tempo para
reconhecer o lugar do poder se manifestando? Reconhecer as rugas por trás do pó de
arroz? Será essa desconfiança infundada? Ou como nos lembra Sacristàn:
(...) a história da educação nos oferece uma trajetória
suficiente para que sejamos precavidos e para pensar que, se
44
Utilizo esta palavra por absoluta falta de outra melhor, mas reflito o quanto ela se desgasta e perde a cor
nesses nossos dias.
depois de tantas luzes e idéias clarividentes, a realidade
continua sendo bastante insatisfatória para os estudantes, isso
se deve ao fato de que a mudança dos discursos não se
concretiza em um projeto prático para os docentes, porque não
temos levado em conta aquelas condições inerentes à
escolarização, às formas precisas como a cultura está
encapsulada nos contextos escolares” (1996,p.35)
45
Parece que se ignorou que a escola não foi inventada por decreto. Que as
escolas (todas as 1055 da rede!) são um produto social. Que estas escolas estão cheias
de valores, normas, significados construídos, visíveis e ocultos, por muitas e muitas
gerações, que cada uma é fruto das tensões, lutas, movimentos que se desenrolaram em
seus corredores, pátios e relações e que é exatamente isso que lhes imprimiram um
sentido e uma história. História que não se reescreve à distância, por melhor e mais
bem intencionado que seja o autor. História que só se escreve junto.
Ignora-se (isso não é privilégio do projeto do Ciclo) que a “escola” existe no
imaginário das pessoas gostemos ou não, concordemos ou não, e que para mudar a
escola é preciso primeiro conhecer e respeitar este “conhecimento”, esta “idéia” que
as pessoas têm de escola. Idéia que não acredito ser homogênea, mas que confere a
esta instituição uma identidade secularmente constituída.
Não se trata naturalmente de uma defesa pela continuidade. Contudo, se eu não
respeito as expectativas que os alunos levam para as carteiras escolares, se eu não os
respeito como sujeitos que habitam e tecem este espaço, se não respeito o que eles
pensam, sentem e querem como digo defender um modelo de escola que não seja
apenas reprodutora do querer de outros? Ídolos de barro ou ouro, tanto faz. São
sempre ídolos lutando pela adoração e prostração dos fiéis.
Para mudar esta “escola” , pelo menos na direção que se aponta, é preciso
fazer com que os sujeitos – os autores e atores – participem efetivamente da
transformação desta escola. Que se sintam comprometidos com um projeto que
construam juntos, no qual acreditem, no qual se reconheçam. Projeto que sendo fruto
de um coletivo que se produz na ação, seja defendido teoricamente por sujeitos que
foram neste processo transformados e se vislumbrem nele representados. Um projeto
que não seja simplesmente sofrido, executado, engolido (mas não digerido!), mas
tecido.
Queremos construir teoricamente uma escola nova, mas se faz isso à maneira
antiga, ou seja, tratando os outros seres pensantes como inferiores e ignorantes demais
para opinarem sobre esta construção. Excluindo todos aqueles que são praticantes
desta ação do exercício de pensá-la, logo, reproduzindo a dicotomia entre o fazer e o
pensar, mantendo os pais do lado de fora dos muros da escola, sem o direito de
45
In. SILVA,Luiz Heron da.(org) Reestruturação Curricular: novos mapas culturais,novas perspectivas
educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996.
escolher a escola que querem para seus filhos, mantendo os professores como os
operários acéfalos da construção desta proposta.
O que estava errado (se assim vamos considerar) na concepção de escola que
tínhamos não era somente a perversidade da reprovação. Era ter isso como o mais
forte argumento para manter o aluno interessado (?) e submisso a todo o processo de
aprendizagem (se assim se pode chamar). Ou seja, o que estava errado – e não mudou
no imaginário das pessoas com a mudança das formas de avaliação ou reprovação – é
que na verdade não existe interesse no aprendizado pelo aprendizado. Não se busca na
escola o conhecimento. Talvez nem mesmo se acredite que o conhecimento realmente
necessário esteja lá. O objetivo final é o que interessa, e o objetivo final é exatamente
livrar-se da escola. É passar por ela. Sobreviver a ela. Conseguir um certificado –
mesmo que vazio de significado ou conteúdo – para apresentá-lo quando houver
necessidade, e não aprender. Porque aprender mesmo – todo mundo sabe – é na vida.
Então a questão, ou a questão que, a meu ver, tornava-se muito mais séria, não
é se o aluno será ou não reprovado. Se é Ciclo ou Série. A questão é que isso para ele
não é importante. O conhecimento – ou aquele conhecimento especificamente – não é
importante. Assim lemos como o descaso, o deboche e até a violência ocupam o espaço
da sala de aula. Um aluno que assiste a aula com fones no ouvido está interessado?
Um aluno que se recusa a realizar qualquer trabalho em sala está interessado? Um
aluno que passa a aula lendo revista, trocando figurinha ou simplesmente olhando as
pipas pela janela está interessado? Um aluno que copia os trabalhos prontos dos
colegas acredita que ali está algum conhecimento importante para sua vida? O aluno
que pede para que o colega ponha seu nome no trabalho reconhece algum valor no
conhecimento que a escola tem a oferecer? Práticas tão comuns do ensino fundamental
à universidade. No meu entender, pistas. O saber que a escola tanto presa não é
importante. E se ele (o aluno) ganhou a chance de cumprir com o calendário sem
necessariamente ter que se preocupar em aprender aquilo que os professores julgam
importante para ele aprender, melhor.
Melhor também para o professor descompromissado (ou alienado) que viu aí a
grande oportunidade de não precisar mais arcar com o ônus da própria incompetência,
pois não teria necessariamente que apresentar resultados ao final de um período, e
tudo virou um longo, grande e infinito processo. Processo de aborto do futuro.
Que as crianças têm ritmos diferentes, acredito muitos educadores concordem.
Mas quanto tempo uma criança precisa efetivamente para aprender a ler e escrever
decentemente?
46
Dois anos? Três anos? Cinco anos?
46
Já explicitei o sentido que isso tem para mim, sentido compartilhado por muitos pais, inclusive os
analfabetos, que começam a duvidar se os professores ainda sabem o que significa ler e escrever
descentemente, já que a escola passa seu filho analfabeto para a 5ª. série. Saberes do vivido.
Eu digo: muitos, cada vez mais, chegam até a oitava série, concluem o ensino
fundamental e não sabem. E não digo só...a UNESCO também diz. E muitos pais
também dizem. E muitos professores também dizem...quando seremos ouvidos?
Por quê? Culpa do Ciclo de Formação? Culpa da sabotagem do professor
incompetente e mal formado? Culpa do modelo de sociedade que produz cada vez mais
crianças que “não aprendem”? Culpa da família que não dando limites forma
verdadeiros “monstros” e torna qualquer prática educativa inviável?
Voltamos à caça às bruxas.
O Ciclo de Formação é teoricamente um projeto muito melhor do que o projeto
de seriação. Eu acredito nisto. Assim como acredito que todos que desejem romper com
o modelo social onde homens e mulheres são barbaramente classificados, brutalmente
homogeneizados e o refugo devidamente excluído, também acreditem.
A seriação é um projeto de organização escolar que atende perfeitamente ao
nosso modelo econômico e ideológico vigente. Ela agrupa os semelhantes (que vê como
iguais), exclui os diferentes (que também são iguais (?) em sua marginalidade) e
estabelece essa semelhança e diferença segundo um modelo pré-estabelecido
hegemonicamente pelas elites, ou seja, compreende o mundo ainda como os
colonizadores portugueses entendiam e cuidam para que os “índios preguiçosos” e os
“negros burros” aprendam apenas o que é necessário para servir melhor, só que hoje
com o nome de qualificação profissional.
Projeto que não está apenas na organização escolar, mas em nossas veias, na forma
como lançamos nosso olhar complacente sobre os sujeitos, a forma piedosa como
tentamos simplificar os conhecimentos oferecidos para que eles, “coitados”, possam
alcançar pelo menos parte de alguma coisa (ou como temos visto parte de coisa
nenhuma?). Deixamos que nos beijem os pés.
O Ciclo de Formação, implantado de forma equivocada, precipitada e
arrogante talvez não fosse a intenção de A ou B, mas o resultado hoje é uma escola que
exclui não só aqueles que possuem, pelas mil razões – proposital e sistematicamente
ignoradas – dificuldades de aprender, como exclui também aqueles que teriam
possibilidades de aprender muito mais, oferecendo uma escola cada dia menos
importante e mais desprestigiada aos olhos de pais descrentes e confusos.
Se antes – e não há nenhum saudosismo ou visão romântica deste passado cruel
– a escola fazia uma seleção e apenas alguns poucos “escolhidos” que se ajustavam ao
modelo elitista de escola/sociedade conseguiam chegar ao topo da pirâmide, hoje ela
enterra a pirâmide inteira na areia, não existe topo, pois nem os melhores (os que mais
se adaptam) e mais interessados (os que mais se ajustam) alunos conseguem ter acesso
a um ensino de qualidade que garanta a mínima chance de sobreviver ao processo de
seleção e classificação, chegando, por exemplo, à universidade.
Exatamente por esse fracasso, assistimos à sociedade civil organizada buscar
formas para “suprir” aquilo que o aluno não consegue encontrar dentro da escola
pública. ONGs, igrejas, associações de moradores, projetos independentes se
apresentam como alternativas educacionais para alunos oriundos das classes
populares que não aceitam o lugar que lhes foi reservado no mundo. Multiplicam-se as
“escolinhas” que oferecem de explicadores aos bem organizados pré-vestibulares.
O país pressionado, por órgãos externos, resolveu elevar a escolaridade de toda
população em dez anos sem, contudo, atrelar esta escolaridade a um compromisso real
com a qualidade. O poder público passou então a pressionar as escolas para que
apresentassem resultados positivos, independentes (como?) das questões sociais,
econômicas e políticas. Para isso atrelou a renda dos professores
47
e o investimento na
escola aos resultados. Positivismo puro com uma máscara demagógica de compromisso
com a qualidade.
Então o que temos hoje é um estrondoso aumento do já conhecido e antigo
“pacto corrupto” – você finge que ensina e o aluno finge que aprende, as Secretarias
de Educação fingem que não vêem, o governo finge que investe e o povo...este na
verdade não tem muito tempo de pensar nisso, precisa comer.
Passar este aluno de ano para ano (ah sim o calendário continua sendo de 365
dias e não de 1095) passou a ser responsabilidade única e exclusivamente da escola,
independente da vontade ou não deste aluno, independente das condições sociais e
econômicas, independente do querer da família, independente do apoio governamental.
E já que nosso financiamento depende disso, vale tudo.
A pressão é feita através de relatórios, consultorias e uma série de
intermináveis problemas que o professor enfrentará se “ousar” colocar o dedo na
ferida e dizer: “Mas ele não sabe! Como este menino chegou até aqui?”
Depois de um tempo o professor é devidamente convencido de que se ele
resolver gritar e romper com o pacto terá que arcar com todo o ônus e possivelmente
será o principal culpado pelo “fracasso” dos alunos, mesmo que estes estejam há cinco
ou dez anos na escola.
Por que a escola não o apóia? No Município do Rio de Janeiro, por exemplo, as
escolas que apresentam um número grande de conceitos
48
indesejáveis – I – são
penalizadas de muitas maneiras, inclusive financeiramente. No Estado não é diferente.
O que faz sentido quando lembramos da lógica dos economistas: investir no que rende
no que pode ser capitalizado. Investe-se no sucesso para apresentá-lo como sua vitrine,
e se pune o fracasso, condenando-o a assim permanecer para sempre.
47
Como o programa Nova Escola que tira do salário pífio do professor até R$ 500,00 caso a
“produtividade” ou seja conceitos positivos não sejam apresentados. Se investem nas “boas” escolas e se
tira financiamento das “más” escolas.
48
No Município do Rio os alunos são avaliados por conceitos. I = insuficiente; R= regular; B=bom; MB
=muito bom e O=ótimo. Apenas o conceito I retém os alunos no segmento.
Então, o melhor, e tão mais fácil, é transformar um I em R e um R em um B, que
pelo que podemos ver nos resultados de tantas pesquisas, tem sido a opção mais
escolhida. Matamos a ética, enterramos o futuro, vivemos infelizes, mas não seremos
nós a ficar pregados nesta cruz.
Em outras palavras, ou se mascara a realidade ou se arca com mais trabalho,
mais problemas, menos dinheiro...escolha ética cada vez mais difícil para uma classe
tão massacrada.
Para justificar tudo isso, discursos que deram origem ao que chamei de
Pedagogia do Coitado.
A vida dura, cruel, violenta, miserável do aluno se transforma em desculpa para
que tenhamos um olhar cada vez mais complacente para com os alunos “displicentes”,
“mal educados”, “desinteressados”, “descompromissados” e literalmente incapazes de
juntar um BO com LA e chegar a alguma conclusão inteligente.
Mais uma vez, as teorias servem como pano de fundo para ações equivocadas e
para construção de modelos que acabam se mostrando como um presente de grego.
Apropriadas por políticas públicas inescrupulosas são esvaziadas em seu sentido mais
profundo e depois vomitadas na escola que ou tenta limpar um pouco dessa sujeira
toda ou acaba afogada e arrastada por este engodo.
Humanizar as relações, entender o lugar de onde esse meu aluno fala, conhecer
seus problemas é desejável e construtivo. Contudo, em nome dessa história, a escola
assume uma postura que, ao contrário de permitir a este sujeito um exercício de
humanidade mais digno, mais participativo, o massacra em sua própria mediocridade,
mantendo-o na eterna dependência, reproduzindo o pior modelo de relação social que
um ser humano pode ter com o outro: uma relação de pena, de descrédito, de
menosprezo...a contramão da esperança, da fé, da crença na capacidade dos seres
humanos produzirem sua própria história, escolherem seu próprio caminho.
A escola olha para este sujeito sem a esperança de que um dia ele se tornará
cidadão. De que um dia ele irá levantar os olhos do chão para ver o mundo. A escola
olha para ele como um caso perdido. Como apenas mais um no imenso mar dessa
“massa ignorante” que se movimenta ao sabor dos ventos da mídia, que o melhor que
pode fazer por ele é ajudá-lo a ter (tirar) pelo menos um certificado.
A escola nega, assim, a sua própria natureza. Nega o conhecimento. Nega o
direito de esse sujeito ter um conhecimento de outra natureza social, histórica,
científica e filosófica. A escola o mantém prisioneiro sem seus muros e prisioneiro em
sua própria ignorância. Ela distribui conceitos deturpados de avaliações rasas e vazias
para garantir um pedaço de papel que terá tão pouco valor que talvez o próprio aluno
seja incapaz de ler.
E antes que me interpretem mal, não se trata de uma defesa da escolástica. Da
escola redentora ou conteudista que irá democratizar os “saberes historicamente
adquiridos pela humanidade”
49
. Mas a escola que se abra para que o aluno entre pela
porta da frente trazendo com orgulho seus saberes e estes possam ser, nos confrontos
com os outros sujeitos, transformados em conhecimentos, onde a cultura de cada um
possa, no diálogo com outras culturas, ampliar-se e ampliar a inserção e a
possibilidade de ação desses sujeitos sobre o mundo. Leitura de mundo, escrita da
própria história. Como nos chamou atenção Sacristàn:
“O desafio escolar, não fácil de ser realizado hoje em dia, está
não em opor essa alta cultura à cultura antropológica de
referência do aluno, mas reconciliá-las, em fazer que cada
uma delas encontre a relevância na outra” (1996,p.41)
A formação que nos impele para transformar o mundo neste lugar de fronteiras
onde ou se está de um lado ou do outro, não permite entender o lugar onde o diálogo
cria, desenha e estabelece as bases para a formação de um novo espaço. Não um lugar
de passagem de um saber popular para um saber erudito, mas um lugar que existe em
si mesmo.
Até mesmo esta diferenciação de um saber essencialmente erudito, puro,
superior e outro essencialmente popular, originalmente do povo, mostra-se como uma
leitura idealizada do que seja erudito e do que seja popular. Essas culturas, ou os
conceitos construídos em torno delas, são produtos da história humana.
A cultura popular expressa na verdade muitas culturas de diferentes tipos de
grupos populares, sendo confundida muitas vezes inclusive com o populesco, e outras
ainda com produtos que a mídia produz para consumo popular. A cultura erudita por
sua vez é uma seleção histórica (elitista, ocidental) que chega hoje, ao nosso século
como erudito, nos fazendo esquecer que nos séculos passados muitas dessas obras eram
populares, ou pior nem eram vistas e legitimadas como produtos da cultura (como
tantas obras-primas de pintores,músicos,escritores).
Quero deixar claro portando que ao refletir sobre esta Pedagogia do Coitado,
em nenhum momento defendo uma escola redentora, que democratize os saberes de
uma elite, ignorando a identidade e cultura do outro para deixá-lo perdido em um
espaço vazio, onde impossibilitado de ser aquilo que não é e jamais será permitido que
seja (por muitas estratégias não explicitas), perca a referência daquilo que é e pode
ser. O que defendo é uma escola que permita que o sujeito ocupe qualitativamente seu
lugar no mundo para lutar dignamente e eficientemente por sua cultura e sua
49
Até porque estes saberes são restritos aos saberes das elites, da história que os vencedores contaram e
com a humanidade restrita a Europa. Meu mundo é maior.
identidade, tecendo no diálogo, no debate das contradições uma existência
humanamente sustentável.
Percebemos que esta Pedagogia do Coitado está presente em todos os níveis.
Quando o aluno pobre, negro, índio, favelado etc.etc.etc. não consegue por mérito de
seus conhecimentos (quais? Os socialmente valorizados que lhe foram negados a vida
toda?) chegar a Universidade, então inventamos formas para ele (ou melhor “alguns”
deles!) garantir um “lugarzinho” de onde ele sairá (se conseguir cursar) com um
“diplominha” e terá a ilusão de poder enfim competir no tal “mercado de trabalho”
que no Brasil pelo menos, é o valor supremo e objetivo final de toda educação. O que
discordo, já que reduz o ser humano a um mero produtor/consumidor. Em
contrapartida, esse processo “redentor”, enterra o restante na lama: afinal fazer mais
o quê, com por sujeito que nem com “cota” consegue?! Tenho medo das respostas...
Uma sociedade diplomada e medíocre. Escolarizada e ignorante. Onde na
verdade apenas uns pouquíssimos privilegiados terão acesso a algum conhecimento
efetivo e significativo, e tudo continuará como antes. Hipocrisia. Um tipo de poder que
se dobra sobre si mesmo. Muda para permanecer. Moderniza-se para conservar.
Transfigura-se para preservar sua face, afasta-se de sua velha aparência sem, contudo,
perder sua essência.
Os mais jovens em sua tolice, comemoram. Acham que, com tanta facilidade,
fazem um grande negócio, quando na verdade, só parecem demonstrar o quanto
desprezam este lugar de tão pouco significado e sua tão pouca preocupação com um
possível futuro.
Muitos professores com quem convivo ressaltam, preocupados, essa aparente
embriaguez que toma conta da juventude. Totalmente viciados no aqui e agora,
meninos e meninas acabam se tornando prisioneiros de um mundo efêmero, fútil e vazio
tanto de raízes quanto de sonhos. A escola não os tornou assim, apenas se mostrou
conivente com este projeto, só insiste, contra tudo que se pensa e repensa viver seu
papel de reprodutora de todo o lixo que a sociedade – no modelo que temos – cospe em
nós. Displicente com a mudança. Covarde demais para transformar. É uma escola que
no papel – e em experiências isoladas e pontuais – atingiu um nível de reflexão e
qualidade pouco vistas nos modelos que nos são apresentados pelo mundo a fora, mas
que no mundo real, mundo vivido por sujeitos que habitam este asfalto, esta favela,
ainda é apenas um sonho distante, muito distante.
Naturalmente existem milhares de modelos de escolas neste país continente,
todas com uma distância absurda no espaço-tempo que vivem e pensam sua
existência...o país é assim. O mundo é assim. Plural.
Contudo, não se pode ignorar o que está sendo feito em uma das grandes
capitais culturais e econômicas do país. Uma das cidades mais populosas, mais
modernas, mais plurais do Brasil. Centro de referência para tantas outras cidades, com
dezenas de universidades, centros de excelência, museus, cinemas, teatros etc.
Não se pode ignorar que outras cidades e outras vozes se levantam Brasil afora
com histórias igualmente aterradoras, que os resultados medíocres se multiplicam país
afora...
Queria não ser arauto desta tragédia. Queria falar de outra escola. Uma escola viva,
pulsante, construtiva. Queria escrever sobre uma escola menos feia, menos cinza. Uma
escola cheia de cores. Mas enquanto todos estes nós que nos acorrentam a esta escola
perversa não forem desatados continuarei gritando, não só por indignação, não só
porque é o mais ético a ser feito, mas por esperança de que mais vozes se levantem e
mais braços se descruzem e mais pés tracem um novo caminho.
Sei que em muitos lugares, contra todas as possibilidades, existem educadores
comprometidos com a construção desta escola, em respeito a eles não me deixarei
seduzir pelo discurso do “querer é poder” ou “de pé no chão também se aprende a
ler”, armadilha teórica que tem municiado administradores públicos e os convidado a
não investirem em uma Educação Pública de qualidade, esperando que seus
professores aceitem os “desafios” e enfrentem sozinhos todos os problemas sociais –
causados exatamente pelo modelo econômico defendido por muitos destes
administradores – ainda como “missionários” da Educação. Afinal, sem calvário não
há redenção.
Quando falo desses lugares praticados, de entender este mundo a partir das
múltiplas possibilidades de leitura do real, quando defendo que este real é plural, não
significa ignorar que existe um projeto articulado por grupo, que é forte, que oprime e
que exclui.
Quando falo deste projeto de escola e me refiro a ela no singular, não significa
ignorar que cada escola é um espaço criado e praticado por sujeitos que se movem nas
brechas que encontram um universo em si mesmo.
Reconhecer a existência dos dois espaços, entendendo que não são espaços
herméticos e homogêneos, mas espaços que se hibridizam nos sentidos que os sujeitos
praticantes desse espaço criam para eles, onde encontramos os mesmos sujeitos
exercendo muitos e diferentes papéis, entender como este poder visível também
caminha nas sobras, ao nosso lado e dentro de nós, é fundamental para nos afastarmos
do “paradigma simplificador” (Morin,2005) e começarmos a pensar essa realidade
complexa, pensarmos que este pano de fundo onde nos movemos é tecido junto, em
cores que se completam e se contrastam. Pensar que tentar isolá-los cada um em si
mesmo esfacela meu tecido e não me ajuda a compreender como estes poderes
constroem, neste movimento, o fracasso escolar, a exclusão.
7. PROGRESSÃO 2004:
Dialogando...
“Minha tática é
Mirar-te
Aprender como és
Querer-te como és
Minha tática é falar-te
E escutar-te
Construir com palavras
Uma ponte indestrutível
Minha tática é ficar em tuas recordações
Não sei como
Nem com que pretexto
Mas ficar em ti (...)
(Tática e Estratégia, Mario Benedetti)
No ano de 2003, enquanto começava (ou continuava!) a descobrir a escola para
além da Progressão, revirando seus porões e caminhando por suas entrelinhas, o número
de alunos oriundos do Ciclo para a Progressão multiplicava-se. E a existência dessas
turmas na escola tornava-se cada vez mais incômoda.
Em 2004, a escola iniciava mais um ano letivo em uma situação que constrangia
e exigia uma reflexão profunda. As duas turmas iniciais de Progressão haviam se
transformado em quatro. Era urgente pensar como reverter este quadro na escola, antes
que a escola se transformasse em uma grande escola de Progressão. O que estava
acontecendo, de certa forma, já que algumas escolas vizinhas resolviam seus problemas
com os alunos (ou melhor resolviam seus alunos-problema) simplesmente transferindo-
os para a nossa.
Diante da situação emergencial, a direção preocupou-se ainda mais com os
critérios para a seleção dos professores de Progressão. Assim, uma equipe formada por
mim, Ana Cristina, Maria da Glória e a Coordenadora Pedagógica da escola Virna,
assumimos os quatro grupos formados.
O Grupo registrou esse momento e transcrevo aqui, integralmente, o texto
produzido que foi apresentado a CRE ao final do ano:
CIEP COMPOSITOR DONGA
PROGRESSÃO 2004
Para o ano letivo de 2004 foram formadas 4 turmas de
Progressão com alunos oriundos do Ciclo e da Progressão da
própria unidade, assim como alunos vindos de outras unidades
para esta classe especificamente. As turmas eram em geral,
bastante heterogêneas tanto no nível de desenvolvimento em
que cada criança se encontrava, como em idade – variação de
09 à 15 anos – o que na avaliação de todas as professoras
acaba gerando conflitos de interesses e dificuldade de se
estabelecer uma prática que atenda às necessidades individuais
específicas de cada faixa etária, gerando, ainda, conflitos
pessoais entre alunos e pais de alunos, pelo convívio de
“moças” e “rapazes” com crianças.
As turmas apresentavam grupos com diferentes perfis.
Foram identificadas crianças que estavam na Progressão
porque realmente faltavam atingir os objetivos esperados para
a Terceira Série, mas que apresentavam um ritmo de
aprendizagem “normal”, atendendo aos objetivos propostos;
crianças que estavam na Progressão porque apresentavam
muita resistência ao processo escolar: recusavam-se a fazer
qualquer atividade proposta, faltavam muito e não tinham o
menor apoio familiar; crianças com problemas de
aprendizagem. Algumas com “retardo mental” diagnosticado
por instituição competente.
A maioria das crianças apresentava muita dificuldade
para lidar com regras e limites, respeitar os demais – colegas e
professores – respeitar o tempo de cada atividade. Não tinham
noções básicas de higiene, não cuidavam de si nem do ambiente
ao seu redor.
A agressividade, fator que não é exclusividade da
Progressão, mas um perfil do aluno atual, é sem dúvida um dos
fatores que mais chamou atenção nos grupos. Tudo e qualquer
motivo banal era motivo para uma guerra verbal que muitas
vezes acabava em violência física.
Nosso desafio: apesar de todos os fatores favoráveis ao
fracasso, educar.
O grupo aceitou o desafio tendo como objetivo construir
uma proposta que, antes de tudo, pudesse proporcionar um
resgate da cidadania, do lugar deste aluno dentro da escola.
Buscar esta identidade perdida, sua auto-estima,
destruída por anos de fracasso – porque mesmo passando os 3
anos pelo Ciclo a não aprendizagem é clara e óbvia como
fracasso para o aluno e para o pai do aluno e o desfecho na
classe de Progressão só reforça isso.
Entendemos que era necessário tentar construir o
prazer de estar na escola, vivências significativas e situações de
linguagem que ampliassem a relação do aluno com o mundo em
diversas direções.
Optou-se por iniciar a Alfabetização do grupo
utilizando métodos de alfabetização já conhecidos, mas,
contextualizando-os, como fazia Paulo Freire.
Assim buscamos, partindo dos eixos temáticos previstos
no Projeto da Escola para o ano letivo (ex: Meio
Ambiente,Folclore,Arca de Noé etc.), construir experiências de
linguagem integradas com o resto da unidade escolar.
PROPOSTA DESENVOLVIDA
Aspectos sociais
Antes de qualquer trabalho específico de construção de
leitura e escrita e conceitos lógicos – matemáticos, foi
necessário, de forma contínua e incansável, atenção ao
desenvolvimento social dos grupos. Discutir, refletir e muitas
vezes impor limites. Conseguir disciplinar minimamente o
corpo para as atividades que exigiam maior concentração e
limite do espaço físico por parte da criança. Fazer a criança
refletir sobre seu próprio comportamento: o que faço? Por que
faço? Pra que faço? Como faço? Discutir e refletir sobre a
violência, verbal e física, sobre o desrespeito e preconceito,
sobre ação e reação. Os alunos tiveram que ser constantemente
orientados sobre como andar, sentar, comer, falar, conviver,
brincar etc. o que envolveu bastante tempo. Isso foi feito de
forma sistemática todos os dias, todos os momentos e ocasiões
possíveis.
Textos
Partir da unidade lingüística para que o aluno percebesse
a língua como um todo, leitura e interpretações orais – e escrita
posteriormente – assim como interpretações artísticas:
desenho, origami, sobre poesias, contos, histórias da literatura
infantil, folclóricas, produções coletivas e individuais dos
alunos sobre o assunto, textos imagéticos etc. Os textos foram
trabalhados a partir de livros de literatura infantil,
apresentações de contação de histórias coletivas (as 4 turmas)
vídeos, músicas e imagens.
Palavras chaves
Partindo do texto, ou de um grupo específico em torno de
um eixo temático. Construção de paradigmas, novas palavras.
Pesquisas em jornais e revistas, identificação de sons iniciais e
finais, identificação de palavras nos textos, identificação de
sílabas nas palavras, cruzadas, caça-
palavras,colunas,bingo,jogo da memória etc.
Construção Lógico-matemática
Partimos da construção do conceito do número e seu
valor relativo. Foram utilizados o Material Dourado e o
Quadro Valor de Lugar e atividades com materiais de
contagem para atingir a abstração da adição e subtração
escritas. Foi trabalhado o calendário – muitos alunos têm
dificuldade com a contagem do tempo – as datas, os marcos do
tempo. A escrita dos numerais, a história da matemática.
Para os problemas, foram propostos aqueles que os
alunos vivenciam no seu dia-a-dia, coisas relativas ao seu
próprio universo como : jogos de bolinhas de gude, compra de
doces e pipas, venda de balas, passagens de ônibus etc.
Não houve – infelizmente – uma avaliação coletiva deste trabalho proposto.
Montamos um portifólio com os trabalhos desenvolvidos pelos alunos ao longo do ano
letivo. Estes trabalhos foram apresentados ao final do ano para avaliação e enturmação
das crianças para o ano seguinte, à responsável da CRE pelo acompanhamento dos
trabalhos nas turmas de Progressão. Conseguimos, como era nosso objetivo primeiro,
reduzir uma turma de Progressão. Mas não houve, como dizia Cazuza “nem pódio de
chegada, nem beijo de namorada”. Nem vitória, nem comemoração. Só um grande
cansaço, certa melancolia e saudade pelos que ficaram pelo caminho. Uma sensação que
não sei descrever ao certo, que podia ser diferente para cada uma de nós, mas que dava
aos nossos olhares aquela cor indefinida, um silêncio com sentidos que não saberia
explicar.
O texto produzido a partir de nossas observações e discussões ao longo do ano
letivo apresenta-se como um registro-documento importante para refletirmos sobre
como nós professoras da Progressão líamos aquele lugar dentro da escola.
É interessante notar como a palavra “heterogênea” se faz presente não apenas
em nossa descrição das turmas, mas como venho observando em todos os Conselhos de
Classe, na descrição de quase todos os professores ao falarem de suas turmas. Ao
chamar atenção para a heterogenia da turma como um fator relevante – e geralmente
depreciativo – acabamos revelando, ou deixando transparecer, nossa dificuldade em
aceitar o caráter heterogêneo não só de nossas turmas, não só da escola, mas do mundo.
Nossa dificuldade em compreender uma organização que não seja simétrica em um
mundo que não esteja “ordenado” e devidamente dicotomizado em semelhanças e
diferenças.
Interessante também perceber que na lógica dessa ordenação, desta classificação
em nossa escola, ao lado da tentativa de se criar turmas homogêneas, ou seja, turmas
com crianças que apresentem um comportamento “aceitável” e um desenvolvimento
“normal”, existe a criação das turmas de Progressão, onde, como percebemos, “tudo
cabe”. A Progressão figura assim como o espaço da heterogenia extrema, uma
marginalidade que não obedece apenas ao critério da aprendizagem ou não de
determinados conhecimentos, mas também ao critério idade (9 anos ou mais) e, como
várias vezes observamos, o critério comportamento.
Este último aspecto também é evidenciado no registro-documento que
produzimos. “A agressividade como perfil do aluno atual” a dificuldade de lidar com
regras e limites, a necessidade de “disciplinar minimamente o corpo”.
A discussão sobre a disciplina acaba ganhando uma centralidade que absorve
emocionalmente, de forma tão intensa, a nós professores, que muitas vezes deixamos de
discutir qual o nosso conceito de disciplina. Para que disciplinamos nossos corpos e
nossas mentes? Quais os limites e relações entre a disciplina e o autoritarismo? Entre a
indisciplina e a resistência ao despotismo que tantas vezes sofremos não apenas na
escola, mas em tantos lugares que desejam matar nosso espírito e nossa inteligência,
domesticando nossos corpos e nossas mentes?
Não podemos pensar nesta disciplina dos corpos sem pensarmos nas reflexões
de Foucault sobre as relações de poder que estão implicadas nesta disciplinarização.
Para ele “(...) não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do
poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos” (2004,p.146). E onde esse
poder se exerce? Como ele se materializa em nossos corpos, domesticando-os,
produzindo-os, convencionando a forma, a aparência, os modos (e as modas!). Ora, se o
poder é exercido em redes, como acreditamos, ele produz esta materialidade sobre
nossos corpos de vários pontos, partindo de vários lugares e de várias maneiras. A
escola é apenas mais um dos pontos nesta teia. Mas ao contrário de um simples poder
punitivo, percebemos que o poder (não seria melhor poderes?!) se inscreve nesta batalha
estrategicamente, muitas vezes se apropriando das próprias revoluções do corpo para
continuar no controle deste. O que é anormal hoje é a vanguarda do amanhã.
A natureza, em grande parte, conservadora que percebo na escola, a ancora
muitas vezes em práticas que, mais do que uma disciplina, necessária à execução de
qualquer trabalho, preocupa-se com o controle sobre o tempo, o espaço e o corpo do
“outro”. Cria-se então, não raramente, um “choque cultural” entre o corpo tenso,
castrado, reprimido de nós professoras e o corpo dos alunos das “classes populares”,
erotizado, expansivo, curioso. Este ambiente da escola, sua arquitetura e seu mobiliário
são organizados, para conter este corpo juvenil, para prepará-lo para outros ambientes
que exigiram igualmente esta contenção.
Foucault nos orienta que “O interessante não é ver que projeto está na base de
tudo isso, mas em termos de estratégia, como as peças foram dispostas” (2004, p. 152)
, sabemos que como projeto, a escola traz em sua bagagem histórica, tanto a repressão
cristã dos Jesuítas quanto o condicionamento Taylor – Fordista. Traz uma história a
serviço de domesticar o corpo humano para um trabalho, não raramente sem
significado, sem conteúdo, um trabalho que não nos respeita como seres pensantes e
criadores, como vemos em Enguita: “Isso se traduz na submissão de homens e
mulheres, já desde a infância, a todas as características de parcialidade,
unilareralidade, monotonia, embrutecimento, etc.” (1993,p.119).
Contudo, as relações estabelecidas na escola, trazem também, a possibilidade de
transgressão, por alunos e professores, já que é tecida por sujeitos de muitos tempos e
espaços diferentes. O interessante então, para nossa reflexão como educadores, é
sabermos que peça representamos neste tabuleiro? Como, nós exercermos o poder?
Como nós o reproduzimos ou o transgredimos? Como tecemos estas redes de poder com
nossos corpos e nossas mentes e como os corpos e mentes de nossos alunos se
inscrevem, se movem e tecem estas redes? Buscar nossos sentidos.
Como podemos construir uma reflexão para além da discussão que geralmente
se transforma em um pêndulo, alternando entre uma ausência de disciplina e limites – o
que ao mesmo tempo possibilita a criação, a invenção, o novo, cria as possibilidades de
se queimar índios por diversão – e o endurecimento desta – o que aprisiona (ou tenta
aprisionar) o espírito humano, massificando seu pensamento e condicionando suas
práticas.
Talvez a resposta esteja exatamente na produção deste sentido. Do trabalho
significativo ao invés do, tantas vezes exigido, “inútil trabalho de soldado” (Freinet). O
sentido, não apenas o sentido imediato, do prêmio ou castigo, mas um sentido mais
profundo, move nossas ações, nosso interesse, nossa fazer, nosso trabalho.
Por que meu aluno, que supostamente é indisciplinado, consegue na interação
com os outros colegas, sem a necessidade de uma mediação freqüente de um adulto,
obedecer às regras que os jogos de dama ou futebol exigem?
Por que quando saímos em excursões, ou quando estão socialmente em outros
ambientes, o comportamento de muitos, na avaliação de várias professoras, é exemplar?
Comportam-se de forma razoavelmente organizada, esperam nas filas sem brigas ou
agressões, enfim, não reproduzem os comportamentos que tornam nosso dia-a-dia um
verdadeiro campo de guerra. Segundo o dicionário trabalhar é “esforçar-se para fazer e
alcançar alguma coisa”. No jogo ele esforça-se para alcançar a vitória, esforça-se pelo
prazer que a própria interação e disputa com os outros permite. Em sua vida, no seu dia-
a-dia muitos deles assumem dezenas de responsabilidades, trabalham...Mas e o trabalho
escolar? Que sentido meu aluno realmente vê no trabalho que o faça esforçar-se para
alcançar alguma coisa? E que coisa seria essa?
Percebemos que a necessidade dos limites, ou da disciplina sobre o próprio
corpo, sobre a própria vontade – a autodisciplina – é fundamental para a convivência,
para produção criativa e para produção coletiva, que exige muito mais do que regras de
disciplina, exige um profundo respeito pelo outro.
Instaurar este processo de auto-disciplinamento não é trabalho simples ou fácil.
Assim como instaurar a prática de ouvir e respeitar o outro em um mundo que nos
alimenta de várias maneiras e por muitas vias com idéias individualistas, egoístas e
pouco solidárias é confrontar lógicas poderosas. Um mundo que nos ensina a obedecer
às regras não pelo valor que elas possuam, mas porque somos vigiados: “sorria você
esta sendo filmado”. No entanto, este caminho é necessário e preciso se ambicionamos
realmente formar um cidadão. Um cidadão que tenha consciência do valor das regras
sociais, autonomia para criticá-las e organização política para enfrentá-las e mudá-las
quando necessário.
Para isso, era necessário que o papel de “carcereiro”, de “adestrador” fosse
substituído pelo de educador. Não este educador idealizado que tantas vezes assistimos
na TV, que só com o som de sua doce voz consegue a adesão pronta e interessada da
mais “terrível” das crianças. Educador gente, educador sujeito, que apesar de seus
limites, de suas crenças e preconceitos, respeita seu educando. Respeita sua inteligência,
seu espírito, sua história e sua cultura, que busca, que vai ao encontro.
Era necessário que os profissionais envolvidos no trabalho das turmas de
Progressão (e das outras também!) assumissem o compromisso não só de “tomar conta”,
não bastava mais apenas “segurá-los” ou mantê-los dentro de algum controle, era
necessário pensar um projeto que revertesse o processo do crescimento destas turmas.
Situação enfrentada por nós, como lembra a professora Ana Cristina:
“Crianças que não estavam preocupadas com o que iriam
aprender. Elas queriam uma professora, eu acho que elas já
estavam acostumadas a ter uma pessoa que tomasse conta
delas e quando elas me viram acharam que eu era mais uma,
era mais uma que estava ali para tomar conta. E a minha
turma não era uma turma grande, era uma turma pequena,
porém cheia de problemas, cheia! Não vou dizer que eram os
mais rejeitados, mas eram os que davam problemas sérios na
escola”.
A questão se colocava para todas nós envolvidas na Progressão. Como espaço
fora do espaço historicamente construído e conhecido, a classe de Progressão, criada ou
recriada como um lugar que estando dentro permanecia fora da escola, não possuía um
sentido único nem para as professoras que se assentavam na boca do vulcão, nem para
os alunos que fervilhavam inquietos.
Ana Cristina inicia sua fala ressaltando seu sentimento de que as crianças não
estavam preocupadas com o que iriam aprender, no entanto, assim como meus outros
alunos de Progressão, aqueles agora se apresentavam dia após dia, pontualmente (ainda
hoje se repete o fenômeno: os alunos de Progressão são os primeiros a chegar à escola e,
geralmente, os últimos a sair). Elas não estavam preocupadas (ou assim pareciam) em
aprender ou não estavam preocupadas em aprender o que nós professoras julgamos
importante ensinar? Que leitura estes sujeitos fazem deste espaço que ocupam? Como
percebem e como se relacionam com o professor que se apresenta?
“Estudar para passar, e não para aprender, é o processo
dominante na maioria dos alunos do meio popular, mas não
de todos. Há aqueles que não entendem por que estão na
escola, alunos que, de fato, nunca entraram na escola, estão
matriculados, presentes fisicamente, mas jamais entraram na
lógica específica da escola (...) O que significa para um aluno
aprender?” (Charlot,2005,p.52)
Charlot, eu e Ana Cristina (e milhares de educadores com certeza) vivemos as
mesmas questões. O que aquelas crianças esperavam da escola? Charlot reflete que não
entraram na “lógica da escola”, assim como nós, enquanto professoras, também
desconhecemos as lógicas que movem estes sujeitos. Mas, sem dúvida, são movidos por
alguma lógica que os impulsiona para este espaço, até porque, ao contrário de muitos
outros alunos, estes especificamente possuem bastante autonomia em seu ir e vir.
Escolhem vir. Escolhem ocupar este espaço mesmo quando possuem a liberdade de
escolher a rua. Então, eles possuem, sim, algum entendimento sobre o que é estar neste
espaço. Compartilham e atribuem um sentido que não está claro para nós, que por outro
lado temos construídos em nós o nosso próprio sentido do que seja a “escola” e que não
é igual em todo professor.
Assim como a escola (em sentido mais amplo), nós professoras temos uma
imagem construída, e invariavelmente uma série de pré-conclusões a respeito desse
aluno/sujeito que ocupa o espaço da Progressão. Contudo, este aluno não
necessariamente compartilha conosco nossas percepções nem sobre ele, nem sobre o
espaço ocupado por ele.
A Ana Cristina parece perceber, de seu lugar, que a expectativa dos alunos em
relação a ela não corresponde às expectativas ou imagem que ela tem de si como
professora. Mas como estes alunos sujeitos construíram esta imagem do professor que
“toma conta”? Como a escola se apresentou para cada um deles ao longo dos anos que
eles vêm ocupando na Progressão? Como estes alunos construíram os quadros de
referência onde se movem? Onde constroem e reconstroem uma rede de significados
inteiramente inéditos para a centenária instituição?
Estas questões, que marcaram, e ainda marcam, nosso cotidiano na escola, nos
colocam frente a frente conosco, nos obrigando a deslocar muitas vezes nossas
perguntas sobre estes alunos para perguntas sobre nós mesmas. Como nos conta a
professora Virna:
“O Iam. O Iam – o tô nervoso – o Iam lê assim: B com A BA ,
L com A LA = BALA ele lê o texto inteirinho assim: “tá me
ouvindo tia?”– Estou! Estou cansada de ouvir ele ler. Ele tem
muita dificuldade. Escrever ele não escreve Lé com Cré. Já
conseguiu aprender a ler, não sabia. E aí você colocou na
minha sala
50
aquele negócio do corpo humano pendurado,
acho que foi numa sexta-feira e quando eles chegaram e
viram aquilo foi uma curiosidade: todo mundo levantou, ficou
aquela “muvuca” em volta perguntando o que era aquilo.
Primeiro eles ficaram “aí DEBURU” tem uma aluna na sala a
Débora que eles misturam Débora com urubu, “é o seu
corpo”. Aí eu falei – é engano seu. É o meu, é o seu, é o nosso
– “Como assim tia?”– Tudo que está aqui desenhado você tem
dentro de você também não é só o corpo da Débora.. E todos
ficaram assim: caraca! Porque ali estavam aparecendo as
veias...[O sistema circulatório.] É , esses são como
canudinhos, são as veias por onde passa o sangue. Nisso eu
estou vendo o Ian parado, observando, observando...e eu
sempre julguei o Ian atrapalhado, que ele não consegue reter
informação para formar conhecimento. Aí eu virei para fazer
a chamada e ele continuou atrás de mim. O único que
continuou em pé olhando o sistema circulatório. Até que ele
falou assim: “Aqui é o pulmão!”. Eu virei para trás, eu
sempre fiquei cismada com o Iam. Ele estava apontando para
o pulmão e não tinha nada escrito que era o pulmão “Como
você sabe que aqui é o pulmão?”- “Não tia é que quando eu
tive pneumonia o médico mostrou naquele negócio que a
gente tira [referia-se a radiografia], que o pulmão fica atrás
do coração. Eu sei que aqui é o coração”. E eu “caraca” ele
retém a informação! Posso não saber como ele retém a
informação, mas ele provou que ele retém de alguma forma.
Fiquei perplexa na hora. Aproveitei e comecei a falar para ele
cada coisa, dois minutos depois ele já tinha esquecido
tudo...sou eu que não sei a forma como ele retém a
informação. Eu não descobri como ele retém, mas eu ainda
vou descobrir.
A Progressão explicitava – mais do que qualquer outro lugar que habitei – o
nosso não-saber. Não a falta de conhecimento dos alunos, mas a nossa falta de
conhecimento sobre os saberes destes alunos, sobre como eles produzem, constroem e o
mais importante, como são capazes de transferir os conhecimentos significativos para
outras situações, atribuindo-lhe sentido também. Aquele saber, o do Iam, ampliava sua
50
Eu e Virna dividimos a mesma sala. Ela de dia com a Progressão e eu que trabalho a noite com os
adultos do PEJA
leitura do mundo, permitindo-lhe novas leituras e interpretações, mesmo em situações
complexas como a leitura de uma figura do corpo humano. Complexas ao ponto de
outros alunos da turma não terem se identificado, complexas por não fazerem parte dos
conhecimentos tidos como “possíveis” de um aluno de Progressão compreender, e por
isso, tantas vezes negado. Como Iam, uma criança que carrega uma profunda
inquietação dentro de si, “reteve” ou melhor se apropriou, tornou seu um saber que a
primeira vista parecia impossível de ser adquirido? Porque o complexo parece tornar-se
simples quando faz sentido para o sujeito que se propõe a entendê-lo. Essa busca pela
significação dos saberes, pelo sentido da escola era (e ainda é!) um grande desafio. A
professora Virna expressa bem tanto nossas angústias, quanto nossas possibilidades de
educadoras diante deste desafio de compreender como o conhecimento é produzido por
cada sujeito:
“(...) seria uma coisa professor – pesquisador. Por exemplo
nas dificuldades de aprendizagem. No processo de você
entender como funciona o cognitivo dessa criança que tem
dificuldade, mas a fundo, como se fosse uma psicopedagogia,
você não tem o subsídio para entender isso, e isso faz
diferença na hora de você ensinar. Então por exemplo o Ian,
além dele ser hiperativo ele tem uma inquietação, uma
inquietação interna muito grande mesmo, ele fala assim para
mim “tia eu tô nervoso” . Eu falo assim: - Vai lavar o rosto, e
ele vai. Ele toma medicamento. Ele vai, lava o rosto e volta,
mas você vê o sofrimento dele. E você não sabe como lidar
com o sofrimento dele. É muito engraçado isso. Eu não sei se
seria uma coisa do psicopedagógico, do psicológico mesmo, eu
não sei! Você fica assim... Você acaba descobrindo, você
descobre como você vai lidar com aquela situação... [Muito
intuitivamente, intervenho]. Na intuição, exatamente isso, e
uma intuição...”
De que forma o enunciado, mais do que simplesmente pronunciado, mais do que
simples palavras, mais do que informações passadas pelo médico, conseguiu estabelecer
um diálogo real com Iam, produzindo uma aprendizagem significativa para o menino?
O diálogo que a professora se reconhece incapaz, em determinado momento, de
estabelecer. Talvez, porque o contexto que permite a compreensão do significado do
enunciado e sua apropriação fosse mais explícito para Iam naquele momento em que
sentia o ar doer ao entrar em seus pulmões. Talvez, o contexto do consultório naquele
momento produzia no enunciado uma clareza que permitia o entendimento de Iam.
Contexto que ele conseguiu reencontrar diante da figura do corpo humano.
Este contexto onde o diálogo se dá, onde os enunciados são produzidos, são
muitas vezes ignorados por nós, professores. Meu aluno não é capaz de compreender o
sentido do que digo, ou eu não sou capaz de dizer algo que faça sentido? Habitamos, eu
e meu aluno, o mesmo tempo-espaço onde o enunciado é produzido, mas
compartilhamos do mesmo contexto que dá ao enunciado sentido? Quantas vezes nós
professores nos sentimos “falando ao vento” ou “com as paredes”? Mas quantas vezes
paramos para refletir sobre o real “ouvir” do aluno? Será que o outro, ocupante de outro
lugar no mundo, nascido em um tempo distinto, em uma cultura e uma classe distinta
atribui o mesmo sentido que eu àquilo que digo?
Chamou-me atenção não apenas a constatação feita pela professora de que Iam
possuía saberes que era capaz de aprender (isso eu já acreditava). Chamou-me atenção
este momento fundamental em que a professora reconhece humildemente sua própria
ignorância. Questão que, para mim, é fundamental para tornar-se educador
simplesmente, porque, como diz Paulo Freire:
“A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Homens
que não têm humildade ou a perdem, não podem aproximar-se
do povo. Não podem ser seus companheiros de pronúncia do
mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão
homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que
caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste
lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios
absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber
mais.” (2005, p.93)
O médico de Iam sente-se e sabe-se tão homem quanto o outro. Por isso,
consegue explicar ao menino o que se passa dentro dele. Por isso, educa. Os
fundamentos epistemológicos? A crença na capacidade de Iam compreender. A
didática? O respeito, o diálogo. A metodologia? Ir ao encontro.
A professora de Iam, surpreende-se. Volta-se, reflete, tenta em vão apropriar-se
e apreender aquele momento. Reconhece seus próprios limites. Percebe que Iam não
ignora tudo, ao mesmo tempo em que se dá conta de que ela não sabe tudo. Um
movimento dialógico onde educando e educador transitam entre diferentes lugares do
saber e o lugar do não-saber perde o sentido. Ambos são aprendizes, aprendem a
dialogar.
Dos alunos que entravam para as turmas de Progressão, poucos conseguiam
deixá-la e passavam anos (três, quatro) ocupando este lugar. Por outro lado, o Ciclo
formava uma turma inteira para a Progressão. Quem estava dentro não saía e recebia os
novos alunos oriundos do ciclo, o que colocava a todos nós diante de uma realidade
bastante complexa, em turmas onde a palavra diversidade ganhava em nossas cabeças
outro sentido: perversidade. Conosco e com eles.
A turma, formada por crianças que chegavam com nove anos, confrontava-se –
de maneira quase sempre violenta – com a turma já estabelecida como “alunos de
Progressão”. As diferenças de idade e altura assustavam os pais, que não poupavam
críticas e reclamações sobre a convivência das crianças com os adolescentes,
principalmente a respeito da violência e da sexualidade, um aspecto sempre presente nas
brincadeiras, provocações, e principais queixas dos mais jovens em relação aos mais
velhos. Críticas que quase nunca sabíamos administrar, já que nem nós mesmas
estávamos seguras quanto à pertinência desta situação.
A leitura que os sujeitos oriundos do ciclo e recém-chegados na turma de
Progressão faziam da escola e deste espaço se confrontava com as leituras que os alunos
“veteranos” faziam. Este confronto, geralmente, se tornava cada vez mais acentuado na
diferença com que, não raramente, nós professoras fazíamos entre os dois grupos ou
“tipos” de alunos. A expectativa de aprendizagem das crianças mais novas se chocava
visivelmente com certo descaso para com o aluno que, já estando há mais de dois anos
na turma, permanecia no mesmo lugar (?). O raciocínio era simples: “se ele já está a
tanto tempo na escola e ainda não aprendeu não serei eu que conseguirei este milagre”.
Sim, muitas vezes falávamos como se o aluno tivesse estado todo este tempo inatingível
por qualquer tipo de aprendizado.
A lógica do ensino seriado esgueirava-se sorrateiramente por todas as brechas e
se impunha. Mesmo exorcizado, era um fantasma que insistia em assombrar-nos.
Imaginávamos o “repetente” zerando a cada ano para iniciar tudo de novo no ano
seguinte e não uma criança que esteve um ano na escola acumulando vivências e
construindo saberes. “Ele não sabia e não ia aprender (ponto). Se não atrapalhasse os
outros já era uma vitória (ponto)”. Colocávamos pontos demais, que os alunos,
lembrando-nos que somos sujeitos históricos, sempre transformavam em reticências. E,
às vezes, alguns pontos de interrogação e exclamação...
A mesma escola. A mesma turma. Muitos significados.
O estranhamento na formação das turmas era sentido não só por professoras e
alunos, mas também pelos pais. Um estranhamento bastante justificado. As turmas de
Progressão se tornavam uma contradição dentro do próprio projeto de Ciclo. Ao ser
criado, o Ciclo havia rompido oficialmente com outros critérios de enturmação
51
que
não fosse a idade. Uma das muitas críticas que ouvíamos feitas ao ensino seriado, era o
fato de termos crianças repetentes com doze, treze anos junto com crianças de sete anos
que chegavam à escola e todos os problemas e desafios que isso trazia para a já
complexa classe de alfabetização.
A diretora Ana Maria explica melhor:
“Começa por essa Portaria
52
e começa também um critério
para se agrupar os alunos. Esse agrupamento, acredito eu, ele
tem que ser assim, que além de transparente, ele tem que ser o
menos excludente possível, e uma maneira de atender a esse
objetivo é a idade, porque todos os que têm a mesma idade têm
51
Termo utilizado pela escola para o processo de escolha de turma para cada aluno, geralmente a partir de
determinados critérios. Oficialmente pela idade. Mas quase sempre ajustado levando-se em consideração
as diferenças nos níveis de aprendizado(principalmente leitura-escrita) e comportamento.
52
Portaria de matricula de 13/11/2001 em anexo.
o direito de cursar a mesma série. Então a Portaria de
Matrícula é feita a partir da idade e a idade é considerada a
partir de 28 de fevereiro do corrente ano...e a Progressão..toda
criança que tem 6 anos entra no Ciclo inicial, mas se uma
criança que, por algum motivo, nunca foi à escola e tiver 8
anos, ela também pode entrar no Ciclo inicial.”
À medida que Ana Maria ia falando lembrava-me dos meus aluno que, apesar
de ingressarem com 8 anos no Ano 1 do Ciclo encontravam-se com 9 no Ano 2, e
questionei o critério idade e o critério “competências” para entender melhor essa
organização da escola, e o destino deles. Ela continua:
“Não, vai ser por conta do que ela der conta. Nós temos um
comportamento, um objetivo mínimo a ser atingido. Se ela
entrou na escola com 8 anos e cursou o Ciclo em um ano só e
deu conta daqueles objetivos, ela vai para a terceira série.(...)
Vai fazer só até ela completar 9 anos. Na hora em que
completar 9 anos ela vai para a Progressão independente de
quanto tempo já estudou para trás, porque ela tem o direito
também de entrar na escola. Completou 8 anos em fevereiro;
em fevereiro ela vem e se matricula; nunca foi à escola, não
sabe escrever o nome, ela vai entrar numa turma de Ciclo que
tenha esse perfil, com um professor que sabe que ela [a
criança] não sabe nada. Agora, ela aprendeu tudo até o final
do ano, ela vai para a terceira série; se ela conseguiu atingir
aqueles objetivos do Ciclo.(...) Até porque a gente recebeu a
Portaria de Matrícula com essas turmas já criadas ali com
critério, sempre idade: quem estivesse com 9 anos ou mais e
tivesse ainda na segunda série deveria ser encaminhado às
turmas de Aceleração. As de Progressão vieram depois, já
junto, com o Ciclo e ai quem não conseguiu se alfabetizar no
Ciclo ganha mais um ano de Progressão”.
Compreendo assim que se por um lado existe um critério estabelecido pela
Portaria de Matrícula que tem a idade como referência para a entrada da criança no
Ciclo de Formação, este critério é subvertido na hora da saída desta mesma criança do
Ciclo. E mais distante ainda deste critério tornam-se as turmas de Progressão. Como a
diretora explica: o critério de organização das turmas pela idade tem o objetivo de ser
transparente e “menos excludente possível”, mas, quando criamos turmas como a
Progressão, este critério desaparece e o critério passa a ser, oficialmente, o critério da
competência. Se o aluno não atingiu um nível X de conhecimentos, ele é retirado do
processo e colocado em suspenso por um tempo indeterminado. O que aconteceu com o:
“alunos da mesma idade têm o direito de cursar a mesma série”? Se a criança entra
com oito anos, no meio do Ciclo, mesmo que tenha um desenvolvimento considerado
normal”, dificilmente atingirá “os objetivos mínimos a ser atingidos” por seus colegas
(mas não era Ciclo?) para ir para a terceira série. Então, irá para a Progressão, enfrentar
uma realidade bastante diferente (pela forma como a Progressão é organizada e
percebida pela escola) daquela vivida no Ciclo. O Ciclo e a Progressão, neste contexto,
tornam-se, a meu ver, um espetáculo. Vendem-se ingressos impressos: INCLUSÃO,
para uma platéia que, inicialmente desavisada ou indiferente, começa a desconfiar das
luzes que ofuscam os artistas, dos efeitos pirotécnicos que escondem (ou tentam
esconder) as muitas cores que formam a realidade. Como nos diz Certeau:
“Do mesmo modo, na medida em que os objetos que povoam o
imaginário fixam a topografia daquilo que não mais se faz,
podemos nos perguntar se, reciprocamente aquilo que mais
vemos não define hoje aquilo que mais falta.” (2005, p.43).
E o que mais vemos? A apropriação ora hipócrita e demagógica, ora ingênua e
superficial e ora incompetente de velhas bandeiras. Apropriação que as torna rotas e
desbotadas pelo uso descontrolado e vazio de significados, tanto para quem as observa,
como tantas vezes para quem as carrega. Uso de discursos – que se encerram neles
mesmos – que não se sustentam na prática. Na ação política. No fazer pedagógico.
Como tornar crível esta instituição burocrática onde tanto se diz e pouco se vê
(daquilo que se diz) de fato? Continuando com Certeau:
“É o “reino do anônimo”, uma “tirania” sem tirano: o regime
burocrático. Esse sistema de alienação universal substitui os
responsáveis por beneficiários e os sujeitos por explorados.
Opaco a si próprio, tira incessantemente vantagem de sua
indistinção e perde cada vez mais sua credibilidade.”(2005,
p.91)
Quem o construiu? Quem o sustenta?
A perda dessa credibilidade se faz sentir tanto nas palavras quanto nas ações de
pais, alunos e professoras. A maneira como arrastam suas pesadas correntes pelos
corredores, o desinteresse, o descaso, o cinismo. O cansaço de quem vê seu filho
vagando ano após ano em uma escola que não “se apresenta”, não “se explica”, não se
deixa conhecer. O jogo de culpas de quem se sabe vítima, mas não identifica com
clareza o algoz. Ele existe? Esconde-se em algum lugar? Ou habita muitos lugares, se
materializa em muitos fazeres e em muitos sujeitos, inclusive em nós?
Discutimos o quanto o poder público estabelecido desenvolve estratégias para
produzir e gerenciar o fracasso escolar. Mas será que o poder público o produz sozinho?
Se assim entendemos, então admitimos que, ao trocarmos simplesmente os
representantes do poder público teríamos, por fim, a solução. Será?
Quem são os sujeitos que se movimentam em nome deste Poder Público e sob
ele? Como agem? Como encontram soluções para o desafio diário que estas crianças
impõem? Que realidade percebem? Secretários, Diretores, Professores, Merendeiras,
Coordenadores, são os olhos, pés e mãos dessa entidade mítica que chamamos Poder
Público. Tecem de cada ponto desta rede as relações de poder que sustentam (Foucault),
dão forma e materialidade ao projeto de escola desse Poder Público. E assim como
tecem, também desfiam, enrolam, mudam os pontos, recriando outras e infinitas teias.
Rede de tensões. Rede de lutas.
Cada um de nós transformado tantas vezes em arauto de um texto sem autor, que
por isso mesmo pode tanto refletir uma “citação infinita do outro (Certeau,
2004.p.59), quanto nossas intenções mais mesquinhas, somos transmutados de sujeitos
em “ninguém” . Quem é responsável pelo fracasso? Todo mundo. Ninguém. Quem é
responsável por esta organização caótica da escola? Todo mundo. Ninguém. Quem é
responsável pelo abandono da infância, pelos discursos demagógicos da inclusão, pelos
discursos vazios sobre a cidadania deste povo faminto e miserável? Todo mundo.
Ninguém.
Embarcamos “na apertada nau humana dos insensatos” (Certeau,2004,p.60) e
seguimos à deriva, já que, o leme pertencendo a cada um, não pertence a ninguém. Pelo
menos até que possamos recuperar nosso lugar de sujeito, e assumirmos a narrativa
desta história, devolvendo ao ser humano sua identidade, seu nome.
Esta falta de credibilidade, tanto no Poder Público, quanto nas pessoas que se
apresentam deste lugar, entretanto, não silencia, não imobiliza e não se traduz como
falta de credibilidade no valor da educação. Não. O que não é crível é esta educação que
se declara inclusiva, mas mantém (ou tenta manter) pais, alunos e professoras fora do
seu projeto. Mesmo sem construir um discurso que explicite sua percepção sobre as
forças que os excluem, os sujeitos percebem que existe algo que tenta se impor,
desconsiderando-os, negando-os e, sobretudo, traindo sua confiança.
Que grupo tem o direito de definir, em lugar dos outros, aquilo que deve ser
significativo para eles?” (Certeau,2005,p.142). Como esperar uma adesão e submissão
a um projeto que entra e fecha a porta para que outros não possam passar? Como
acreditar em quem se oferece para o diálogo, mas mantém os ouvidos devidamente
tapados, e utiliza mecanismos burocráticos e estratégicos para silenciar outras vozes?
O que significa para quem a instituiu a inclusão? Existe uma única concepção
para esta – como para muitas outras – palavras/conceitos que se tornam, em tantas e
tantas vozes, apenas fogo fátuo? Luzes do espetáculo “politicamente correto”?
Luzes que, mesmo focadas na cena desse teatro do vazio, deixam transparecer
outro teatro, o das sombras. Excluídos do espetáculo da “inclusão”, os sujeitos criam,
em seu fazer mambembe, a própria arte. Criam o próprio palco, o próprio roteiro. Que
exatamente por existir nas sombras não se deixa apreender facilmente. Mostra-se aos
poucos, com desprezo pelo centro iluminado (e tantas vezes, vazio) do picadeiro.
As turmas de Progressão, pensadas, inicialmente, para durarem um ano e
reconduzirem os alunos ao fluxo normal (?) da escola, tornaram-se uma escola paralela
dentro da própria escola, que já sofre com a coexistência de duas lógicas que se opõem:
o Ciclo e a Série. Que leituras a comunidade escolar faz dessa nova escola com tantas e
tantas formas e maneiras que, coexistindo, parecem negar umas as outras?
Temos convivendo de forma confusa e contraditória, a lógica do Ciclo de
Formação, de Progressão e as 3ª. e 4ª. Séries. Questões como a enturmação – formação
de turmas – da 3ª. Série, em que alunos oriundos do 3º. Ano do Ciclo, alunos retidos de
3ª. Série e alunos oriundos de Progressão chegam de uma longa caminhada por
diferentes realidades, e vivencias em diferentes propostas (propostas, não práticas!) de
ensino-aprendizagem, e convergem para o mesmo lugar. Alguns oriundos de processos
que em sua própria lógica formam um aluno para muitas coisas, menos para o
enfrentamento com o ensino seriado, ou melhor, com práticas escolares sem sentido
herdadas e cultivadas com preciosismo por muitos professores. Confuso para o aluno
vindo do Ciclo. Cruel para o aluno vindo da Progressão. Esfinge que não desafia,
apenas devora.
Hoje, em nossa escola, este é um debate que mobiliza a direção e muitos
professores. De um lado, a proposta (que tem o apoio de grande parte do corpo docente
e da direção) de se separar as crianças oriundas do ciclo e as oriundas da Progressão,
formando turmas “fortes” e “fracas” para tornar o trabalho na 3ª. Série “possível”. De
outro lado, outros professoras, principalmente as de Progressão, questionam: Porque na
Progressão é possível trabalhar com a diversidade e na Série não? Por que na
Progressão temos que trabalhar com crianças, adolescentes, crianças “especiais”,
crianças com todo tipo de “distúrbio” e “disfunção”, crianças que aprendem
“normalmente”, crianças que não querem aprender etc. e a 3ª. Série não?
Porque a lógica da série aponta para a homogeneização, a classificação e a
seleção.
Se o meu objetivo enquanto educador é separar, segundo meus valores (nobres),
minha cultura (superior), minha moral (cristã), minha posição (a certa), minha lógica (a
única) meus alunos entre os que mais se apresentam à minha imagem e semelhança dos
que mais se afastam dela, não posso realmente abrir mão de separá-los entre os bons, os
maus e os feios. Os bons eu separo para não se “contaminarem”, o que é justo; os maus
por bom senso, assim todos juntos e isolados desenvolveriam mais todos os seus (não)
saberes, é magnânimo; Os feios? Quanto a estes, basta escondê-los dos olhos do mundo,
é piedoso.
A lógica da Série está ancorada em um porto (seguro, de preferência) onde os
sujeitos – no caso indivíduos – devem apresentar-se para serem selecionados segundo
critérios pré-estabelecidos que avaliem seu estado de “prontidão”. Não apenas nossa
escola, mas todo nosso modelo social hegemônico está marcado por esta perspectiva
epistemológica que transferiu para a análise e organização social as “leis” naturais,
acreditando que devamos compreender e aceitar com naturalidade o “fato” de que
alguns são mais fortes, mais rápidos, mais inteligentes, ou seja, melhores do que os
outros, cabendo, portanto, aos demais, conformarem-se em servir de alimento neste
ciclo.
A lógica da Série cumpre com o seu papel ao diferenciar aqueles que são “aptos”
e aqueles que não são e encontrar para cada um deles o seu devido lugar no mundo. O
que nos cabe perguntar é: quem decide quais aptidões devem ser mais valorizadas?
Quem decide quais saberes são mais importantes? Quais são as palavras “certas” e quais
são as “erradas”? Os que se assentaram no topo e querem convencer ao mundo de que
este lugar lhes pertence por direito e de que este é um direito natural e não uma
construção histórica e social. História que podemos reescrever.
A mesma escola. Muitas lógicas.
Lógicas que não se permitem aprisionar no jogo da Modernidade. Não aceitam
seu lugar em um dos campos do tabuleiro para travar um embate justo com seu
oponente. Síntese x antítese. Não. Perambulam, ora aqui, ora ali, em nossos discursos e
nossas práticas. O novo chega e entra sem pedir licença. O velho retrai-se, esconde-se,
mas quando menos esperamos se apresenta para o embate, revigorado, com força. Ora
uma lógica é luz e as outras ganham as sombras para, no momento seguinte, mudarem
de posições. Até ocuparem, como em nossa escola, o mesmo lugar. Uma, estando no
mesmo espaço que a outra não se reduz a ela. Não se deixa absorver, mas se coloca
como parte neste todo. Conflitos, tensões. Os projetos de escola e de mundo coexistem,
não só na organização curricular, não só nas práticas pedagógicas e no entendimento das
teorias. Coexistem em nós. E reclamam nossa presença, constantemente, para o
entendimento deste embate.
De que forma essa coexistência, dentro da escola, de projetos antagônicos e de
certa forma complementares um do outro, vem contribuindo para o fracasso tanto do
ciclo quanto da série? Processo de transformação? Ritos de passagem? Por mais que os
sujeitos praticantes desse espaço criem formas para superar as questões que surgem do
confronto das lógicas, formas para resolver as questões geradas pela “salada
epistemológica”
53
que se tornou a escola, estas, muitas vezes, se mostram ingênuas,
perversas ou excludentes. Por mais que tentemos separar estes projetos, eles insistem
em fundir-se neste Frankenstein. Até que ponto nossas táticas conseguem mover-se
dentro dos espaços deixados por este projeto de escola (propositalmente, assim como o
entendo) indefinido? Até que ponto esta indefinição contribui para a construção do
“fracasso” dos sujeitos envolvidos e geralmente culpados (alunos, professores,
responsáveis) nos projetos de educação que tentam ser viabilizados dentro da escola? E
a complexidade me exige questionar também: até que ponto esta definição é possível ou
53
Concepções díspares na forma de entender como o conhecimento é produzido pelos sujeitos, mas que
mesmo antagônicas convivem em nossas concepções de mundo, e na maneira como o produzimos.
desejável? Afinal, não seria este hibridismo inevitável? Será que o Ensino Seriado
concebido no passado se preserva intocável mesmo com a chegada do Ensino Ciclado e
toda discussão gerada por este acontecimento? Será que o Ensino Ciclado, convivendo
no mesmo espaço com o Ensino Seriado e tendo nele o seu ponto de chegada, consegue
se manter intacto?
A coexistência inusitada, improvável e absurda não teria transformado ambos –
Série e Ciclo – em uma terceira coisa ainda sem rosto, sem nome, sem forma definida,
um híbrido?
Apesar das minhas resistências (e vontade secreta) que tantas vezes me arrasta
para me posicionar devidamente armada em um dos campos do tabuleiro, Bruno Latour
exige que eu ocupe outro lugar e me convida (ou me inspira) a refletir para além desta
ilusória dicotomia Moderna: não existe o Ciclo ou a Série. Pelo menos em nossa
realidade o que existe, o que se formou, é o Ciclo e a Série, e nenhum dos dois existe
mais enquanto um absoluto. Sim, sua feição aos nossos olhos parece, num primeiro
momento, um monstro, como todo híbrido, mas estes híbridos que tentamos em vão
abandonar “são quase tudo” (Latour, 2005)
Se em meu “delírio de coerência absoluta” (Morin,2005) ainda teimo em
dividir para analisar, dissecando a realidade para a partir de suas partes (que não são
herméticas) compreender o todo, compreender o que significa a coexistência do Ciclo
de Formação e do Ensino Seriado dentro da escola, esfacelo aquilo que pretendo captar:
o movimento onde estas lógicas são confrontadas e recriadas pelos sujeitos, que ao se
defrontarem com elas constroem novos significados. Tecem algo que não sendo nem
Série nem Ciclo, permanece sendo os dois, reinventados.
Compreendermos o quanto esta coexistência das lógicas tem sido um fator
fundamental na construção desta imagem do espaço escolar pelos sujeitos, me parece
necessário já que alunos e professoras não se movem em um espaço autônomo (existe?),
mas, um espaço em grande parte delimitado por muitos poderes, poderes exercidos
pelas estruturas administrativas, poderes exercidos pelas ideologias historicamente
construídas, poderes exercidos pelos sujeitos em suas ações, assim: “Defende-se, em
contrapartida, a necessidade de (...) explorar as relações dialécticas entre microanálise
e macroanálise no estudo articulado de comportamentos e estruturas sociais”
(Pais,2003,p.18)
Relações dialéticas e dialógicas. Relações que rompem com concepções
estruturalistas e evolucionistas da sociedade para nos fazer refletir sobre as práticas – e
discursos produzidos sobre esta prática – dos sujeitos que, nas suas relações, tecem e
subvertem, criam e recriam, fazem e desfazem as redes sociais, mantendo com elas não
uma relação de causa e efeito, mas de possibilidades infinitas.
No jogo de construção dessas relações percebo que, ao mesmo tempo em que
existem sim, e são poderosos, os mecanismos e estratégias utilizados pelos sujeitos que
exercem o poder instituído, são igualmente poderosos os processos e táticas
desenvolvidos pelos outros sujeitos. Processos nem sempre claros, nunca fáceis de
serem lidos, mas incansavelmente presentes.
Quando assumimos as turmas de Progressão formadas, tínhamos alunos que
estavam há três, quatro anos freqüentando turmas de Progressão. Como esta realidade se
forma? Como a escola veio, ao longo do tempo, encontrando formas diferentes para
lidar com a existência destas crianças? Sabemos que no ensino seriado a repetência
retinha o aluno na 1ª. série infinitamente. E agora? Ele fica retido na Progressão
infinitamente? Qual o sentido dessa troca? A professora Ana Cristina compara esta
realidade com outra realidade vivida pelos professores do Município, a realidade das
turmas chamadas 8 anos ou mais e nos ajuda a refletir sobre a complexidade e o desafio
que se torna inserir o aluno em um fluxo contínuo (considerado o normal) dentro da
escola:
“Essas turmas de 8 anos ou mais eram crianças que ainda
não estavam alfabetizadas, mas muito diferente da turma que
eu peguei de Progressão.Por quê? Porque eram crianças que
ainda tinham interesse, eram crianças novinhas, a maioria da
turma era de 8 anos. Uma criança de 8 anos ainda está nesse
processo..de..aprender..de alfabetização mesmo. Hoje, tem o
Ciclo que eles têm 3 anos para completar essa alfabetização.
Quando era seriação, ele fez a alfabetização de 6 para 7 , não
se alfabetizou completamente, ia para essa turma de 8 anos ou
mais, que era uma 1ª série fraca, como chamávamos, que era
para você terminar a alfabetização, porque não era o Ciclo,
não era como é hoje. Algumas crianças conseguiam, ainda
eram crianças novinhas, como se fosse o segundo ano do
Ciclo. Se fosse como é hoje, elas estariam tendo a
oportunidade de dar continuidade a essa alfabetização (...)
Não chegariam a ser uma turma de Progressão. Já essa turma
que eu peguei, eram crianças que já estavam com 14 anos.
Era uma turma completamente heterogênea: tinha 8, 9, 17,
tinha de tudo, de todas as idades, de todas as necessidades, de
todos os problemas, crianças que já não tinham mais interesse
com crianças que poderiam ser recuperadas, que estariam
nessa turma de 8 anos ou mais...um trabalho completamente
diversificado, uma loucura.”
Meu aluno, na Educação de Jovens e Adultos, não tem oito anos, não é novinho,
no entanto, está nesse processo de “aprender, de alfabetização mesmo”. Enquanto luto
com as concordâncias (e discordâncias) com o computador (e a língua portuguesa) estou
nesse processo também. Será realmente a idade o que diferencia o interesse em
aprender? Ou o tempo de exposição ao fracasso? A história construída? A auto-estima
esfacelada?
“Crianças que já não tinham mais interesse”. Como mover-se sem a fé? Como
mover-se quando a luz dos olhos do mundo se apaga e nos abandona na escuridão? Eles
ainda assim se moviam. Sim, era loucura.
Loucura por que habitávamos um mundo onde aquelas crianças não cabiam.
Como os cientistas Modernos, queríamos poder nos dedicar a estudar e compreender
apenas aquilo que coubesse em nossas hipóteses, que pudesse ser encaixado nas teorias
que havíamos aprendido em anos de escolaridade. Era loucura porque eles não nos
davam as respostas que esperávamos obter, que os livros garantiam que teríamos. Eles
não se deixavam determinar. Não obedeciam aos métodos, eram indiferentes às
técnicas. Quando apostávamos em seu sucesso, eles nos negavam. Quando nos
conformávamos com o seu fracasso, eles nos surpreendiam.
Loucura porque eram espécimes, eram híbridos, eram monstros, não descritos
nos manuais, não se encaixavam nas categorias, por mais que tentássemos categorizá-
los. Por mais que tentássemos reduzi-los a um objeto, eles insistiam em permanecer
sujeitos. Cohen nos auxilia a refletirmos sobre estes “monstros” que produzimos e não
conseguimos compreender, estabelecendo uma estranha relação cindida entre o medo e
a admiração:
“O corpo monstruoso é pura cultura. Um constructo e uma
projeção, o monstro existe para ser lido: o monstrum é,
etimologicamente “aquele que revela”. “aquele que adverte”
(...) “(2000, p.27)
E o que os nossos alunos revelavam? Revelavam como as “monstruosidades
são produzidas nas relações engendradas por nossa sociedade e dentro de nossa escola.
Revelavam, como sujeitos monstruosos, que nem todos se prestam a categorizações e
provocavam assim uma crise em nossos paradigmas modernos, se recusando a ocupar
os lugares “normalmente” estabelecidos para habitarem, as fronteiras. A sua existência,
ao mesmo tempo familiar e diferente da existência das outras crianças “normais”,
revelam a monstruosidade não como um atributo “natural” do sujeito, não como uma
característica intrínseca, uma maldição, ou um desastre genético, mas como uma
produção histórica e social que “se revela” exatamente quando refletida no corpo do
monstro. A monstruosidade é um produto da “normalidade”. Uma invenção para
sustentar e legitimar a loucura e obsessão pela ordem, pela separação absoluta entre os
termos. Uma invenção para sustentar e legitimar, a “natural” supremacia de uns sobre os
outros. Tal como o retrato de Dorian Grey os monstros produzidos por nossa sociedade
revelam a verdadeira face da “normalidade” e nos advertem sobre esta ilusão.
Estas crianças expunham nossas loucuras. Conviver com elas é sempre uma
loucura. Principalmente para aqueles que determinam que a “normalidade” deve ser
criada à “sua imagem e semelhança”. Mas a maior e a grande semelhança entre todos os
humanos da terra não seria exatamente a sua singularidade? O fato de sermos tão
diferentes, e de podermos assim nos fazer?
A loucura produzida pela “normalidade” não era tanto querer produzir
semelhantes – afinal a escola é para todos, mas o acesso à elite não – mas negar-lhes a
existência como diferentes, atribuindo um valor a essa diferença.
Desde o início ficou claro para nós, professoras de Progressão, que aquele
trabalho seria um desafio e precisaria ser encarado como prioridade absoluta da escola.
Assim, ficou estabelecido junto a Coordenação (Virna, também professora do grupo) e
junto a Direção, que o grupo de professoras à frente das Progressões tivesse reuniões
semanais para troca de experiências, planejamento conjunto, elaboração de materiais e
avaliação do processo. Além disso, a prioridade na utilização da xérox e Educação
Física duas vezes por semana, acabou criando certo ciúme no grupo de professoras, que
era sempre respondido por nós com certa ironia: “quer trocar?”.
Ninguém queria. Mas a pergunta entregava nosso desconforto. Nosso desânimo.
Começamos a discutir as propostas para estas turmas. A coordenadora Virna,
apesar do entendimento teórico (discutido em muitas pós-graduações, cursos,
seminários etc.) sobre o processo de construção da escrita, sobre as questões relativas ao
letramento
54
, insistia que teríamos que “amarrar” o trabalho. Amarrar o trabalho
significava trabalhar com grupos de palavras chaves, explorar as sílabas das mais
simples para as mais complexas etc. como ela mesma (Virna) ressalta na entrevista:
“(...) pode parecer ridículo. Hoje em dia a proposta é de
letramento? É de letramento...mas deixa eu falar, uso muito
de alfabetização lá do “do tempo Dom João Charuto” , para
saber alfabetizar. Tem que saber alfabetizar. Porque se eu não
sei alfabetizar, se eu não conheço os métodos e técnicas, a
forma de alfabetizar a criança, como eu conduzo???”
As diferentes formas de compreender o processo de aquisição da língua escrita,
os diferentes caminhos metodológicos, as questões epistemológicas que fundamentam
estes entendimentos e as diferenças entre as experiências adquiridas – todas tinham anos
de sala de aula – eram fonte de permanentes conflitos e tensões, amenizadas pelo bom
relacionamento pessoal, respeito e cumplicidade entre nós naquele momento.
Solidariedade nascida da necessidade. Solidariedade de sujeitos embarcados na
mesma nau, enfrentando a mesma tempestade. Era unir-se para remar junto ou afundar
sozinho. Assim, apesar das muitas diferenças nas concepções de alfabetização, o grupo
resolveu optar pelo se “bem não fizesse mal não faria” ou como ouvimos em vários
lugares, dito por muitas professoras, o famoso “método misturinha”: vai botando de
54
Letramento é uma expressão utilizada para os “usos e práticas sociais da língua escrita”. Ampla
discussão no campo da Educação, mas que não desenvolverei neste trabalho.
tudo e misturando com farinha. Naturalmente, este foi um processo de construção,
desconstrução e reconstrução contínuo no grupo e até hoje motivo de debate entre nós,
debate que apesar de caloroso não nos imobilizou na busca improdutiva de um consenso
artificial. Era preciso agir. E penso até hoje como nosso senso de prioridade age com
mais eficiência diante das situações limites, como fica mais fácil diferenciar o que é
efêmero do que é vital. Vital era alfabetizá-los.
A ação nos movia, e todas as reflexões eram alimento para novas ações, só assim
nosso debate adquiria sentido. Buscávamos, mesmo sem a consciência disso, a práxis.
Acordamos que trabalharíamos com grupos de palavras geradoras, partindo do tema
estabelecido pelo Projeto Político- Pedagógico da escola, e dessas partiríamos das
sílabas simples para as mais complexas (?) o que eu naturalmente, como praticante que
também sou, sabotava, já que, no meu entendimento, simples é o que faz sentido e
complexo (e inútil) é o que não faz sentido para meu aluno. Como eu, cada uma
inventou com seu grupo a própria história. Éramos partes formando um todo sem,
contudo, perdermos nossa identidade de partes.
O sentimento de que estávamos indo para um “tudo ou nada” era fonte de
permanente tensão. A direção havia nos convidado pessoalmente, investido o que estava
ao seu alcance investir, havia nos confiado uma missão, da qual dependia a própria
imagem da escola perante a comunidade escolar, e perante a Coordenadoria Regional
55
.
O peso desta responsabilidade e a angústia diante da realidade eram profundamente
dolorosas. Adoecíamos. Este processo vivido por cada uma de nós de uma maneira, foi
assim narrado pela professora Ana Cristina:
- E a primeira coisa que fiz foi sentar com eles e conversar,
saber o que eles esperavam de mim. Fui perguntar e fiquei
assim uma semana só conversando, e preocupada, porque eu
só conversava [risos] Nas reuniões em que tínhamos trocas de
experiências, às vezes chegavam materiais que eu não
conseguia utilizar na minha sala e aquilo para mim (...) eu
fiquei até doente, você lembra, eu sempre conversava com
você:- Andréa estou com uma dor no estômago e você falava
para mim: - Cristina você está somatizando e coisa e
tal...Pensei em desistir muitas vezes mas, ao mesmo tempo,
não tive coragem de desistir.
Não. Nós não desistimos. E talvez este fosse, de certa forma, o principal traço no
perfil deste grupo. E não havia nada de heróico nisso. Não havia aplausos, nem
medalhas, nem pódio de chegada. O que havia era um vendaval de sentimentos que nos
arrebatava. O desânimo e a insegurança sobre nossa capacidade de fazer realmente a
diferença para aquela centena de crianças. A angústia, o medo, o desespero. A surpresa,
55
CRE – Cordenadoria Regional de Educação. O município do Rio de Janeiro é dividido por 10
Cordenadorias cada uma responsável pela coordenação e acompanhamento de um determinado numero
de escolas por região. O CIEP Compositor Donga pertence a 7ª. CRE.
a alegria, a esperança renascida. Processo humano vivido por quem assim se faz no
outro, com o outro e para o outro. Com momentos de vitórias e momentos de derrota.
Com momentos de alegrias e tristezas. Não desistimos porque acreditávamos, ora uns
mais, ora outros menos, que era possível fazer alguma coisa, senão por todos, pelo
menos para alguns.
Este fazer, apesar de ser muitas vezes encarado como missão, exigir um
exercício insano de fé, e nos levar a dizer coisas como “esse eu salvei!” era muito mais
do que simplesmente uma ação redentora. Talvez, essa superfície, esse verniz assumido
pela própria forma como o grupo foi “chamado” para assumir este desafio, esta
missão”, esconda em suas profundezas sentimentos e motivos diversos que cada uma
de nós construiu ao longo de nossa história com a educação. Motivos políticos,
emocionais, sociais etc. Assim como nossos alunos, nós optamos por comparecer à
escola, todos os dias, apesar dos pesares, e seguir. Talvez, não pelas razões apresentadas
pela diretora, talvez não pelas razões que preocupem o Estado, talvez, nem pelas razões
declaradas. Mas, com certeza, por razões muito fortes. A professora Virna reflete um
pouco sobre o sentimento que nos movia que, com certeza, movem muitos professores:
“A Progressão tinha quatro turmas. Quatro turmas
produzidas pela nossa escola! Porque uma coisa é quando
vem o cara de fora, aí você não teve influência naquele
processo educacional. Mas quando é produto nosso?! Espera
aí! Tem alguma coisa errada. Isso me dói. Me dói por quê?
Porque está contestando o meu trabalho. Meu trabalho está
uma porcaria, eu não estou me movendo e vou deixar essa
coisa se multiplicar. Porque estava se multiplicando, porque
quando começou a Aceleração aqui na escola tinha duas
[turmas]. Como é que você explica chegar a quatro
Progressões durante esse percurso? Isso não existe. E aí a
escola teve esse sentimento, embora todo mundo brinque,
fique ainda zoando, tem esse sentimento sim..por exemplo,
Maria da Glória. De manhã, ela fica, pega as produções
daquelas crianças de Ano II (do Ciclo) e vem correndo me
mostrar: aqui ó, menos um! Ou seja menos um pro que? Para
ir para Progressão. Mais um que eu salvei. Essa é uma
preocupação de todos, todos estão com essa preocupação.
Não, não vou mandar. Não, vou fazer alguma coisa, tenho que
dar um jeito para que estas crianças não cheguem à
Progressão. Isso é bom. E outra coisa, as estratégias e as
linhas de ações. Como eu falei, eu acho formidável a classe de
Progressão existir realmente para quê? Para contemplar
aquela criança que não conseguiu concretizar a alfabetização,
ok. Mas você ter uma demanda muito grande para ir para
Progressão é porque tem alguma coisa errada. Eu acho
normal, dificuldade de aprendizagem vai ter, menino de rua
vai ter, a gente vai ter todos os problemas sociais, econômicos,
políticos, eles vão existir. Agora várias turmas numa escola só.
Ou seja, num quantitativo de 500 você sempre tem 100
crianças? Eu acho que tem alguma coisa errada nisso tudo”.
Éramos nós tão diferentes assim dos demais professores da rede? O que nos
diferenciava? O que nos aproximava? O que fez com que a direção da escola fizesse
esta seleção? Opção ou falta de opção? Afinal, qual era o perfil do professor para as
classes de Progressão? Havia um consenso sobre que perfil seria este? Quais os aspectos
que nos identificavam com o projeto de Progressão em particular e que, ao mesmo
tempo, acabavam por nos diferenciar de quase todo o resto do corpo docente da escola?
O que isto significava para as relações deste grupo, dentro da instituição escolar, como
um grupo dentro de outro grupo?
O corpo docente estava preocupado? Havia um sentimento? Verdade.
Sentimento motivado por razões das mais diversas. Inclusive pela ameaça da diretora de
fazer com que o professor que enviasse muitos alunos para Progressão tivesse que
assumir a turma de Progressão no ano seguinte, o que gerou um pânico coletivo (cômico
se não fosse triste) e uma troca de acusações e cobrança de responsabilidades entre os
professores dos três anos do Ciclo, respingando até na Educação Infantil. Afinal, de
quem era a “culpa”?
Mas, éramos todos professores! Todos concursados, ocupando um lugar legítimo
dentro do corpo de professores da rede. No entanto, naquele momento, éramos
diferentes e esta diferença nos havia levado a ocupar um outro lugar dentro da própria
escola. Lugar que ninguém queria.
Discutíamos freqüentemente sobre que perfil era esse. E na verdade,
continuamos discutindo dia após dia. Questionamos cada vez mais que formação é essa
que o profissional de educação deve ter para se colocar diante dos desafios do cotidiano
e acreditar que algumas vitórias são possíveis. Por isso, esta mesma pergunta foi feita a
todas as entrevistadas.
Discuti a questão, primeiro com a diretora da escola, Ana Maria, que todos os
anos enfrenta a questão de escolher os professores para esta turma e convencê-los a
permanecer nelas.
“Para mim tem uma coisa assim no professor que eu avalio
logo, se ele é um professor que estabelece uma relação afetiva
com o aluno, e se o professor estabelece uma relação afetiva
com o aluno esse professor mostra isso logo, quando se
apresenta. Você já nota nele uma característica de um
professor que tem uma preocupação com a afetividade dentro
da sala de aula. Isso é a primeira coisa. Para mim, começa por
aí. Segundo, é aquele professor que é assíduo, pontual, que
sente alegria de estar na escola, de estar com o aluno, de que
para ele o trabalho não é um peso, mas um prazer. Aquele
professor que tem uma preocupação de estar sempre trazendo
uma novidade para sala de aula, que divide coisas da vida
dele, que muitas pessoas julgam que isso é dar intimidade ao
aluno e isso é uma diferença muito grande. Eu posso dividir
com meu aluno muita coisa da minha vida, sem ele ser íntimo
meu, não contar a minha intimidade, mas alguns problemas
que, às vezes, a gente passa, alguma coisa que nos aborrece ou
alguma coisa que nos dá muita alegria. A gente conta para o
aluno, e é isso que faz ele se sentir incluído dentro dessa
escola e fazendo parte e sendo importante para esse professor
também. Isso é o que eu considero principal também. Gostar
de planejar também. Professor que é preocupado com o
planejamento, professor que é preocupado com a filosofia da
Secretaria. Você sabe que aqui na escola nós temos
professores excelentes, mas que não fazem a menor questão,
não têm essa preocupação com a filosofia da Secretaria. Ele
ensina, ensina bem, mas ali, ao modo dele.”
Então temos na escola um professor excelente, que ensina bem, mas ali ao modo
dele (qual?). Como esta excelência é determinada? O professor ensina de um modo que
apesar de ser excelente, não serve para uma turma de Progressão. Modo que apesar de
ser excelente não atende à filosofia da Secretaria. Qual é a Filosofia da Secretaria? O
que para a Secretaria seria esta excelência? Existe uma Filosofia da Secretaria? Quando
andamos pelos corredores da nossa escola é muito difícil reconhecê-la. Então, onde é o
espaço de existência desta filosofia? Onde ela se materializa e ganha face? Temos,
naturalmente, a Multieducação como parâmetros teóricos, mas como a própria
Secretaria concretiza, viabiliza estes parâmetros teóricos e até que ponto ela mesma,
através das ações dos sujeitos, muitas vezes, os nega?
Temos, por outro lado, um professor que tem como perfil uma concepção de
ensino que passa, obrigatoriamente, pela relação que estabelece com seu aluno. Um
professor que estabeleça vínculos afetivos. Os demais professores não estabelecem
vínculos afetivos com seus alunos? Ou não estabelecem vínculos afetivos com “estes”
alunos de Progressão em particular? Ou ainda, o descaso e o desprezo também são
vínculos afetivos, também são emoções dirigidas ao outro e que provocam reações no
outro. Estabelecem uma série de vínculos entre os sujeitos, mesmo quando não positivos
ou construtivos.
O magistério é historicamente marcado por esta “afetividade”
56
, afinal a
escola era (?) a segunda casa e a “tia” uma segunda mãe. No entanto, existe dentro dessa
“casa” filhos de ninguém, crianças não queridas. Os “filhos feios de Eva” que ainda
precisam ser retirados de seus esconderijos e a “tropel” invadirem e subverterem nosso
mundo “perfeito”.
57
.
Uma ferida que expõe o que a escola tenta a todo custo esconder, ela não é para
“todos”. Nunca foi e continua sem ser. Mas diferentes (e tantas vezes indesejáveis)
sujeitos que representam esta abstração infinita “todos”, estão ali. O que fazer deles?
56
Refiro-me a feminilização do magistério, principalmente das séries iniciais, e a valorização dos
aspectos social e históricamente atribuídos ao Feminino: doçura, delicadeza, afeto, fazem parte de quase
um pré-requisito básico da profissão.
57
Ver anexo texto: Os filhos de Eva, interessante viagem ideológica pelos contos dos Irmãos Grimm.
Encontrar quem os queira, individualmente e não institucionalmente? Alguém que
acolha aquilo que o sistema produz e/ou rejeita?
O perfil do professor de Progressão seria então querê-las? Estabelecer relações
afetivas de solidariedade, carinho e respeito com crianças que causam medo e repulsa na
maioria dos adultos que olha para elas? Crianças herdeiras de anos de violência
histórica, social e econômica que aprenderam a se relacionar com o mundo de forma
agressiva e desconfiada. Crianças que nos desarrumam e nos desafiam. As professoras
parecem concordar que livrar-se do preconceito, desse medo e repulsa, era fator
primordial para se tornar professor. Não professor da Progressão, mas um professor que
ambicione se tornar educador, que se predisponha a crescer e transformar-se como
sujeito. Ou nas palavras de Virna:
Não pode ter preconceito. A primeira coisa que tem que fazer
é se livrar do preconceito, senão você passa o tempo inteiro
achando que eles não são capazes. E muita gente pensa logo
isso, eles não são capazes e ponto final, daqui eu não vou
conseguir tirá-los”.
Como construir outros laços afetivos com crianças que não desenham dias de
primavera com sol sorridente, não mandam cartinhas com coraçõeszinhos em papéis de
carta, não abraçam, não beijam? Crianças que esperam, espreitam, testam e analisam até
onde vai sua fé, seu respeito, sua coragem, sua paciência, sua paciência, sua
paciência...até onde você é mais uma professora, até onde você é um ser humano real e
não este personagem sem identidade (mais um, ninguém) criado pela instituição
“escola”.
São sujeitos que exigem sujeitos para se relacionarem. Sujeitos que olhem nos
olhos, que sejam honestos em suas convicções e coerentes em seus atos e palavras. Eles
exigem mais, eles nos expõem mais. Os outros professores e alunos não são sujeitos?
São. Mas não habitam o mesmo universo no qual, alguns alunos, da Progressão ou não,
nos desafiam a entrar, que não aceitam jogar o jogo do contente. Não seguem o roteiro e
não interpretam as personagens pré-estabelecidas no jogo das instituições.
Eles não ofertam nada assim, gratuitamente, hipocritamente, ou em um fazer tão
mecânico quanto vazio de significado. Não. Movem-se sem ingenuidade, com
esperança machucada, mas ainda assim viva, aguardando o momento. Aguardando um
outro que seja capaz de entender-lhes as entrelinhas, um outro que, não sendo
indiferente, também não se assuste com sua história feia, com seu mundo cinza, para
poder ajudá-lo a escrever, aí sim, uma nova história.
Relação difícil de entender e de estabelecer, mas que tanto nos ensina, como
verificou, nem sempre com facilidade, a Professora Ana Cristina quando
conversávamos sobre o perfil do professor de Progressão:
“Eu achava que era o professor que estava chegando mesmo.
Porque estava cheio de gás..[risos] [Porque estava cheio de
gás ou porque era melhor ele do que eu?] [risos] Com
certeza! Mas hoje eu já acho que tem que ser uma pessoa mais
madura, uma pessoa que tenha uma visão diferenciada de
educação, entendeu? Tem que ser uma pessoa como eu te
falei, disposta a se despir de alguns preconceito. É uma turma
complicada, cheia de problemas sociais que você acaba se
envolvendo sem querer, porque não dá para você colocar o
aluno lá, uma parede e você do outro lado. Não é assim. É ser
humano e ele vai mesmo é falar com você e vai esperar uma
palavra, um abraço, seu. É com quem ele conta ali, naquele
momento. Ele não te vê... ele deveria ver o professor como
quem detém o saber e troca com ele. E isso você só conquista
com o amadurecimento. Eu falo por mim, porque se eu
estivesse chegando e me dessem uma turma daquelas, ia achar
que era castigo mesmo, que estava sendo castigada de estar
aqui nessa situação horrorosa! E tendo a oportunidade de
estar ali, mesmo não sendo do meu agrado, eu tive a
oportunidade de crescer. Eu pude perceber que não adianta
falar de educação, estar a tanto tempo na educação e fingir
que não existe essa turma...que pode ser mudada. Eu acredito
na mudança, acredito na transformação. Porque se em um
ano eu consegui ter alguns frutos ...como eu te falei nessa
questão social do aluno, saber se colocar, saber expor as suas
idéias, saber ..sem agredir o outro..e vejo esse aluno um ano
depois voltando a agredir, quer dizer, é complicado. Ele tem
amizade muito grande por um professor , mas com outro ele
não se identifica!? É muito complicado para mim. Ver um
aluno que realmente dava trabalho e tudo, e que você
conseguiu mudar [aquela situação], transformar um
pouquinho [daquela situação] e, no ano seguinte, você o vê
dando os mesmos trabalhos que ele dava. Por quê? A sua
presença faz diferença para ele? Será que todos nós
professores de uma mesma escola não temos que ter uma
mesma fala, uma mesma atitude (...) Pois é. Eu fico pensando
nisso. Será que o perfil não tem que ser único? Eu tenho que
ver aquela turma... Hoje. Isso eu quero deixar assim bem
claro pra você”
Sim, hoje. Está claro. Porque somos seres humanos e somos históricos, e nos
fazemos e nos recriamos em nossa prática.
O perfil tem de ser único? Mas nós mesmas éramos pessoas tão diferentes.
Possuíamos concepções tão diferentes sobre tantas coisas! O que podemos entender por
esta mesma fala, esta mesma atitude a que se refere a professora Ana Cristina?
Talvez, o que buscássemos de unidade em nós, professoras, fosse esse mesmo
compromisso com esta criança tão maltratada, tão negligenciada pela nossa sociedade.
Talvez, o que gostaríamos de encontrar com maior freqüência em nossos colegas e
companheiros de escola fosse essa mesma indignação diante da existência dessas
turmas, a mesma vontade e a mesma crença de que esta situação pode e deve ser
mudada, e que ela não é simplesmente produzida pela incapacidade do aluno.
Talvez, o perfil de educador que buscamos encontrar seja aquele que, mesmo
consciente de todos os seus preconceitos e limitações, como todos nós temos, não se
acovarde diante desse aluno que grita por socorro, ano após ano. Um professor que
deseje ser mais e não aceite resignadamente o fracasso, mas se apresente para combatê-
lo. Não por missão, mas por ser seu dever profissional e político, um compromisso ético
de todo educador.
A professora Ana Cristina, que esteve conosco no projeto de Progressão de
2004, em 2005 retornou ao Ciclo, devido a uma avaliação da escola de que
precisávamos investir também neste segmento. Brincamos dizendo que formamos uma
verdadeira “brigada de incêndio” dentro da escola: onde há fogo se alastrando, lá vamos
nós apagar o incêndio. No início de 2006, Ana viveu uma situação que provocou uma
série de reflexões sobre esta nossa realidade dentro da escola.
Em reunião, no início do ano (2006), a direção pediu voluntários para as classes
de Progressão. Ninguém. Ana Cristina compartilhou comigo a angústia que isso
provocou nela. Por um lado, um sentimento de tristeza, ao perceber que aquelas turmas
continuavam a ser rejeitadas dentro do corpo docente e não encaradas como qualquer
outra turma da escola; por outro lado, a vontade de levantar a mão e o medo de assumir
novamente um trabalho extremamente extenuante, física e emocionalmente. O conflito
durou alguns dias, o compromisso falou mais forte que o medo, e a professora retornou
a turma de Progressão
58
.
Ao assumir esta turma, a professora avaliou que alguns alunos haviam sido
enturmados na Progressão, não por dificuldades de aprendizagem ou defasagem de
conteúdos, mas por seu comportamento, nem sempre “apropriado”. Então, reclassificou-
os
59
para a 3ª. Série.
Uma dessas alunas, Paula Karina, depois de um mês (aproximadamente) na
turma de 3ª. série, desceu e foi reclamar na secretaria – e com todo mundo que
encontrava pela frente – que gostaria de retornar à turma da professora Ana Cristina:
me botaram naquela turma, mas a minha turma é aquela ali, eu sou daquela turma
ali!”, apontava, batia o pé...
Observei, com curiosidade e devo confessar com certo divertimento, os esforços
inúteis (eu desisti logo por total falta de argumento!) para tentar convencer a aluna que
voltar para a Progressão seria um retrocesso (?). Ana Cristina conversou bastante com
Paula, (já que esta não saiu da porta da sala da Ana) e trouxe o caso para debater
comigo:
58
A Coordenadora Pedagógica Virna continua como regente da outra turma de Progressão. No ano de
2006 tivemos duas turmas.
59
Os alunos durante o COC 0 ,período que este ano foi até o final de março aproximadamente, podem ser
reavaliados e reclassificados para outras turmas, é um período em aberto no Sistema de Controle
Acadêmico e não possui correlação com o COC - Conselho de Classe.
“Sabe o que ela me disse Andréa? Professora, você pensa que
3ª. Série é bom? Olha só! E me mostrou o caderno com um
exercício pedindo para que escrevesse os numerais de 1 a
1000. Por isso, o aluno vai e quer voltar, eu não estou
preparando o aluno para isso! Eu não preparo o aluno para
isso!”
Tanto Paula Karina quanto Ana Cristina vão se constituindo assim, no confronto
com o instituído, sujeitos de ação no espaço criado para delimitá-las e sujeitos de
narração no espaço instituído que tenta silenciá-las, recriando significados para o espaço
em que se movem, como assim nos chama atenção Certeau: “O enfoque da cultura
começa quando o homem ordinário se torna o narrador, quando define o lugar
(comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento”.(2004, p.63)
Inscrevo-me ao lado delas em busca da construção dessa nossa narrativa, da
criação desse espaço (comum, coletivo) de desenvolvimento. Nossa discussão tem sido:
temos que preparar o aluno para isso? Esta é a proposta da Progressão? Preparar o aluno
para isso? Prepará-lo para 19 folhas de provas? O que sabem os professores de 3ª. Série
sobre este aluno oriundo de Progressão? O que esperam? O que fazem com a cultura
deste aluno?
O que leva este aluno, mesmo conseguindo o tão sonhado (por quem?) status de
aluno de 3ª. série (finalmente um lugar conhecido e identificado!), desejar retornar à
turma dos “renegados” ? Sentidos, significados. Um sentido que a escola tem, ou
melhor, que o aluno teceu dentro desta turma especificamente e que parece se perder, se
não completamente, em grande parte, quando ele (além de narrador) sendo leitor desse
espaço não consegue decifrar os sentidos das práticas, os sentidos dos outros sujeitos
que habitam este espaço. Pior, não consegue mais se reconhecer em um lugar para
mover-se, sentindo-se podado, encarcerado.
Paula Karina deseja voltar a uma escola que faça sentido, que tenha significado.
Um significado que ela não consegue perceber na cópia infinita de numerais. Ou que,
percebendo, não aceita. Paula gosta de falar, de contar de si, de escrever sua história, e
sabe muito bem que a cópia extensa de qualquer coisa é apenas ferramenta para
silenciá-la. Para calar sua voz, para deixar sua história, triste, incômoda pesada, fora
daquelas paredes. Paula aponta e diz “aquela é minha turma!”. Lá me ouvem, lá eu
faço sentido, lá a escola faz sentido.
Então, o espaço renegado da Progressão, torna-se o espaço potencialmente
revolucionário dentro da estrutura da escola, exatamente por romper com estas
estruturas e formar sujeitos que, como Paula, reconhecem e determinam a qual lugar
pertencem.
Ao sair de sua sala, lugar legítimo de quem sabe, lugar do saber dentro da
escola, a 3ª. Série, e dizer “isto não me serve”, Paula revira a lógica da escola pelo
avesso, e nos faz pensar que o problema da Progressão não é a Progressão. É o resto da
escola. Como ela é organizada; para além de produzir os alunos de Progressão, garantir
que eles não saiam de lá. Ou melhor, que só saiam de lá os capazes de se ajustar ao
“fluxo da normalidade”. Bonitos e limpinhos. (Copiando de 1 a 1000, realizando provas
com 19 páginas etc.)
Quando a professora engrossa o coro da aluna e questiona: “é para isso que eu
tenho que preparar o aluno?”. Coloca-se ao lado, parceira na mesma indignação que
expõe a falta de sentido da escola que exclui o aluno da sala de aula. Não de qualquer
sala de aula. Não de qualquer escola. Desta que não faz sentido. “Quem puder resolver
esta questão do sentido, da atividade intelectual e do prazer, vai ser um professor bem-
sucedido. E é muito difícil resolvê-las.” (Charlot,2005,p.60).
Sentido perdido em tantas e tantas salas. Em tantas e tantas escolas.
A construção ou o entendimento destes sentidos, dentro da pluralidade cultural
em que vivemos, dentro de uma luta constante entre diferentes projetos de mundo, não é
tecido simplesmente em cursos de formação, ou em livros, ou unicamente nas
universidades. Estes sentidos são tecidos nas relações humanas, nos atos, nos
acontecimentos vividos, nas disputas e nos embates. Em movimento continuo de ação –
reflexão – ação. Movimento que, muitas vezes, são espasmos, muitas vezes são ondas,
muitas vezes nos transtornam. Sentido que une professor e aluno numa busca por uma
ação significada, por um fazer digno de nossa condição humana. Sentido que une Paula
Karina e Ana Cristina em busca de uma razão para suas existências, um significado para
suas práticas. Sentido que nos leva a romper com qualquer discussão sobre em quem se
centra a ação pedagógica. Estes sentidos são tecidos pelos sujeitos em comunhão, em
disputas, em movimentos onde estes se reconhecem como habitantes do mesmo espaço,
co-autores da mesma história. Talvez, a busca pelo sentido da escola seja uma prática,
como ressalta Charlot, difícil, mas como nos ensinam a professora e a aluna, não
impossível.
Começamos a pensar que esta discussão sobre o perfil do professor de
Progressão não deveria ser restrita, mas, ao contrário, ser ampliada para toda a escola.
Então, o professor que tem o perfil é o professor assíduo e pontual, comprometido com
a educação do seu aluno no sentido mais amplo que a palavra educação possa ter, é uma
pessoa disposta a romper com seus preconceitos e olhar o outro com respeito, com
interesse, com atenção. Acreditar na transformação, no trabalho coletivo, pensar sobre
sua prática, problematizá-la e reconstruí-la.
Mas esse não deveria ser o perfil do professor? A pergunta martela insistente em
nossas cabeças. Ou ainda: todo professor das classes populares não deveria ter este
perfil? É viável construir um projeto comprometido com a Educação Popular, quando
dentro de uma escola com um corpo docente de 20 ou 30 professores seja quase
impossível para a Direção localizar 4 ou 6 professores que atendam a este perfil?
Questão que se torna cada vez mais grave quando pensamos um projeto de
educação que comece na Educação Infantil e se estenda pelo Ciclo até as séries. Qual o
segmento mais importante? Todos. Qual merece maior atenção? Todos.
Quando a professora Ana Cristina deixou a Progressão para o Ciclo foi porque
após muita discussão, nós professoras de Progressão, chegamos à conclusão que não era
justo que tivéssemos uma frente com professores trabalhando pela inclusão deste aluno,
enquanto o resto da escola produzia cada vez mais e mais “alunos de progressão”.
Como podemos observar no depoimento da professora Ana Cristina:
(...) Qualquer professor que trabalha com o Ciclo precisa
conhecer, nem que seja um pouquinho, a Progressão. Porque
quando você trabalha com Progressão você não consegue
ficar fechada ...num...instrumento de trabalho único, você tem
que diversificar ...não tem jeito. E o trabalho diversificado,
para alguns professores, ainda é difícil. Então, se você
conseguir, a partir do primeiro ano do Ciclo, perceber as
necessidades daquela turma e começar um trabalho
diversificado ali os resultados...e como é uma coisa que não
vai terminar ao final daquele ano, você vai dar continuidade
mais dois anos. Eu ainda acredito...eu acredito no Ciclo!
Assim com compromisso, com dedicação, porque eu acho que
para ser professor tem que ter compromisso.Sem compromisso
nada funciona, ah dizer assim...rotular o cara, está no
primeiro ano do ciclo, isso aqui é “ovinho da Progressão” ?!
Já rotulou o aluno. Você não está dando oportunidade para
ele. O primeiro ano do ciclo é “um momento” dele; no
segundo ano é um outro momento, as construções vão
acontecendo, mas você já está condenando o cara no primeiro
ano: “esse cara já é de Progressão!”. E diz isso para o aluno.
Ele já se sente um derrotado dali. Porque ele conhece a
Progressão. A Progressão só tem coisa ruim, ele está vendo lá
que na Progressão já tem adulto...e as crianças de Progressão,
eles nem sabem dizer de que série eles são...(risos)...[Eles não
estão em série nenhuma mesmo...comento]
- É série nenhuma...eu cheguei a perguntar para a Débora: “-
Débora em que série você está?” Ela não sabia dizer qual era
a série dela. E isso é normal, porque nós trabalhamos com o
ciclo, trabalhamos com série e trabalhamos com Progressão.
A criança sai da Progressão e vai para a terceira série, então
em que série ela estava? Eu acho confuso, até pra mim é
confuso. Eu não consigo entender, não tem uma
continuidade, você não acha?
Não percebemos a continuidade ou a coerência interna no projeto, ou
continuidade e coerência nas ações, não tem sentido para o aluno e não tem sentido para
o professor, nem para os pais. Mas deve ter um sentido. Qual?
Talvez, a coexistência do ciclo e da série não tenha a continuidade (cartesiana)
que buscamos encontrar. Mas, permite a continuidade de um projeto de escola que
permanece seletiva, permanece classificatória, permanece excludente. Independente se o
menino e a menina estudam no ciclo ou nas séries, ou mesmo nas Progressões (já que
até neste segmento estabelecemos critérios para dividir os alunos entre as turmas de
Progressão de forma o mais homogênea possível). Reproduzimos, ainda que com novas
estratégias, antigos modelos.
Talvez, esta aparente falta de continuidade esconda uma continuidade. É nosso
desafio tentar compreender se e como isso ocorre. Assim como na turma de Progressão,
esta aparente confusão, este espaço de contradições pode tornar-se, também, espaço de
criações. Na ausência de um sentido conhecido, podemos criar outros e novos sentidos
que se chocam diretamente com muitos dos sentidos latentes dentro da própria escola,
reinventando-a.
Os que estão fora, assim como nós (eu e Ana) estivemos um dia, olham para
estes alunos e os rotulam: “Ovinhos de Progressão”.
Ao ouvir pela primeira vez a expressão, ela incomodou-me profundamente.
Assim como incomodava a todas nós, professoras de Progressão, que passávamos horas
e horas tentando reconstruir em nossos alunos o mínimo de auto-estima para que
qualquer prática pedagógica se tornasse viável e possível. O uso constante acabou por se
tornar insuportável até que em reunião na escola, quando uma professora da Educação
Infantil teimou em utilizá-la para se referir ao seu aluno de 4 anos, explodi em
indignação: “Ovinho que só vira aluno de Progressão porque encontra professor que o
choque! Um não, muitos!”. Silêncio e constrangimento geral. O preconceito não se
desfez, mas ao menos, o pudor de falar tão descontraidamente, tão sem pudores, do
próprio descaso, do cúmulo do descompromisso, sim.
Compreendo que a fala das professoras é expressão de um saber que veio se
constituindo ao longo de anos de escola pública, onde se aprende a identificar os alunos
que trazem marcados em seus comportamentos, em suas histórias, as mesmas marcas de
tantos outros alunos que já passaram por suas mãos e fracassaram. Assim, posso
compreender e concordar com esta percepção, com este “diagnóstico intuitivo”
desenvolvido em anos de magistério, o que não posso aceitar é a escolha pela
naturalização, pela omissão.
Compreendo que as professoras simplesmente lêem esta realidade como quem
folheia uma revista velha, reconhecendo os mesmos rostos, os mesmos olhares, as
mesmas dificuldades.
Mas, como falar em inclusão sem acreditar de fato neste sujeito? Sem
reconhecer em cada sujeito sua singularidade, sem reconhecer a possibilidade de
reescrever esta história com cada um deles?
Como falar em inclusão em uma escola onde o aluno entra aos 4 anos fadado ao
fracasso? Onde esse fracasso será construído de olhar em olhar, de palavra em palavra,
durante um, dois, cinco anos! Como pode um único professor, o de Progressão, reverter
em um ou dois anos, um processo de uma vida escolar marcado pelo desrespeito e
indiferença?
Processo este que é possível. Provamos que é possível. Mas, que não
encontrando continuidade se transforma em uma profunda dor para nós professoras. Dor
de quem é traída pelo sistema. Dor de quem se sente usada e enganada. Dor de quem vê
seu aluno na porta implorando para voltar. Para voltar (?) ou para continuar crescendo,
para continuar sendo respeitado como sujeito de saberes? Onde está realmente o
retrocesso? Ana Cristina continua, como uma importante interlocutora, a falar dessas
nossas angústias:
“E eu sou uma pessoa preconceituosa. Hoje muito menos.
Porque, se puderem me dar uma coisinha arrumadinha, um
“lacinho de fita”
60
eu prefiro, mas hoje para mim já é uma
alegria participar na construção da vida dessas crianças que
estiveram comigo na Progressão naquele ano. É importante
saber que eles estão indo para a 3ª série, é importante pra
mim. É triste para mim saber que o Davi voltou para rua, é
muito triste, que saiu da escola e voltou para rua”.
Davi foi um desafio constante naquele ano na vida da professora Ana Cristina.
Todas nós, que atuávamos na Progressão e nos fizemos parceiras de jornada,
acompanhamos este processo de perto. Sua família vivia praticamente na rua, a mãe
tinha sérios problemas de alcoolismo e quase sempre ia à escola pedir um prato de
comida, suja com a própria urina misturada ao barro do chão onde havia dormido. A
família toda estava na Progressão: Davi, o irmão Daniel, as irmãs Mônica, Miriam e
Juliana. Todos se comportavam de forma acuada, olhos baixos. Andavam cobertos de
pó e com muitas feridas pelo corpo. Davi costumava catar comida na lata do lixo da
escola, mesmo quando a professora oferecia para ele outros pratos de comida. Dividia o
lixo com seu cachorro, o Negão. Negão era praticamente o sexto irmão e só não assistia
a aula, mas comparecia religiosamente todos os dias à escola. Virou um personagem do
Donga.
Ana Cristina tirou Davi do lixo. Ensinou-lhe que era gente, que tinha um nome.
Abraçava-o e exigia que viesse limpo e cheiroso para a escola, assim como ela vinha
limpa e cheirosa para ele. Davi foi, aos poucos, se transformando. Não grunhia mais as
palavras entre os dentes olhando para o chão. Olhava-nos diretamente nos olhos.
Começou a se comunicar com o mundo.
Davi foi transferido, assim como os irmãos, para outra escola. Voltou para a rua.
Voltou para o lixo. A escola não conseguia mais suportar o comportamento, a presença
daquela família, principalmente de seu irmão Daniel, que não ficava em sala nenhuma
apesar de ir à escola todos os dias. Mais suportável a presença do Negão.
60
As expressões “lacinho de fita” e aluno “danoninho” são o oposto do “ovinho de Progressão” no
glossário de nossa escola. Significam: alunos que têm um família tradicionalmente estruturada e condição
sócio-econômica um pouco melhor.
Daniel vagava pelos corredores batendo em quem passasse, correndo quando via
algum professor, e começou a incomodar demais a “ordem” da escola. Muitos
professores começaram a cobrar providências, eu inclusive, pois ele atrapalhava a aula
de muitas turmas e agredia alunos de muitos professores diferentes. Com a saída de
Daniel, todos foram transferidos.
Passando pela rua, outro dia, vi os meninos. A “profecia” seguia seu curso.
Sujos, roendo uma fruta verde, vagando pelas ruas. Sua mãe faleceu. Vivem com uma
irmã mais velha, que “cuida” deles.
Sabíamos que estávamos em guerra. Quando entramos, sabíamos que tínhamos o
desafio de reverter o fracasso contínuo e a produção crescente das Progressões, o que
produzia uma imagem negativa para nossa escola diante da vizinhança e da
Coordenadoria de Educação. Mas nossa guerra foi mudando. Agora, lutávamos por cada
aluno, por cada palavra escrita e lida, e qualquer derrota era muito sentida.
E nós havíamos perdido uma família inteira. O sentimento de alívio aumentava
ainda mais o sentimento de fracasso, de incompetência. Não havia como expressar em
palavras, não havia argumento que nos confortasse. A escola chegara ao seu limite. Ao
cúmulo de ter de fazer a escolha cruel de sacrificar uns para salvar outros. Para se
salvar. Por quê?
Porque estamos absolutamente sós. Crianças como Daniel, vagueiam de escola
em escola, indesejados, comprometendo o desenvolvimento do trabalho com os outros
trinta alunos que, afinal, têm tanto direito e necessidade de estar ali quanto ele. O que
fazer? A quem recorrer? A solução institucional qual é? Enfiá-lo em uma viatura
policial e enviá-lo a um juiz? Este provavelmente nos enviará de volta, com um
documento oficial devidamente carimbado que diz claramente nas entrelinhas:
problema seu! Aguardar notícias deles nas páginas policiais dos jornais? Reconhecer
seu rosto por trás de tarjas pretas para dizermos: nós bem que sabíamos! Profecia auto-
realizável. O que estaremos ensinando a esta criança? Que projeto de inclusão é este que
abandona professores e alunos a própria sorte sem o devido amparo profissional e
social? Engodo.
O maior desafio dessas turmas, sem dúvida, era vencer a violência. Não era
simplesmente uma questão de indisciplina, de não atendimento às regras básicas de
convivência. Era a violência explícita, o desejo de agredir, machucar, muitas vezes de
forma gratuita, os outros. Desafio que, para mim, era particularmente difícil de lidar.
Como não reproduzir e realimentar o ciclo de violência em que estes alunos
estavam mergulhados? A violência que impingiam aos colegas era gratuita, assim como
era gratuita a violência que sofriam por terem nascidos miseráveis, em um país que os
ignora sistematicamente.
E como acabar com a violência de nascerem sem lençóis limpinhos, sem
cobertores quentinhos, sem o peito de sua mãe e sem o nome de seu pai? Como acabar
com a violência de chegarem ao mundo com fome (muitas fomes) e nela viverem?
Eram crianças que batiam, batiam forte, batiam para machucar. Mas, seus braços
não tinham tanta força como tinham que ter suas costas para agüentar o açoite da vida.
Nasceram marcados, predestinados ao fracasso. A escola, ao deixá-los na Progressão
(ou na Aceleração, ou em qualquer outro lugar destinado a estas crianças), apenas
reproduzia o seu “não-lugar” na vida. O mundo lhes lembrava isto o tempo todo. Eram
os “filhos de ninguém”: não eram nada, não tinham nada, não sabiam nada, não podiam
nada...órfãos de pátria, órfãos de um país que lhes negava a cidadania, lhes negava a
infância, lhes negava a existência como sujeitos, para culpá-los, logo depois, por sua
presença “desajustada” e indesejável ao mundo. Mas, o mundo deseja realmente
“ajustá-los”, incluí-los? Onde? Em qual lugar? Afinal não precisamos desesperadamente
que eles fracassem para que possamos comemorar o sucesso de nossos filhos?
Desde criança, sempre reagi à violência com atitude. Nunca fugi de uma briga.
Meu impulso primeiro à agressão é revidar com mais agressão. Um olhar e, geralmente,
percebem que não deixo dúvidas quanto a esta disposição. Este impulso ou pulsão foi e
ainda é lapidado por boas doses de verniz de educação, muito exercício, vigilância
constante. Mas é um impulso. Por isso, minha turma de Progressão (2004), minha
segunda vivência neste lugar, virou praticamente uma arena.
Conseguia impor a ordem e manter a turma em níveis aceitáveis de convivência,
mas isso era feito sempre com enfrentamento, e não raramente, desconstruindo tudo o
que eu acreditava e tentava formar com o meu aluno. Não havia respeito, não havia
parceria.
Como costumava observar, meus alunos só conseguiam se comportar “como
gente” quando tinha alguém olhando. Na falta desta “autoridade” (?) o caos voltava a
reinar e as brigas eram certas e constantes. Tinha consciência de que se não conseguisse
desenvolver com eles autodisciplina não estaria desenvolvendo disciplina nenhuma. A
disciplina imposta, não é disciplina, é tirania. Esta tirania não ajudava a produzir seres
humanos responsáveis, disciplinados, organizados, solidários; ao contrário.
Se minha presença era o único meio de conseguir alguma ordem era porque essa
ordem não era significativa para aqueles sujeitos. Não viam nela necessidade alguma.
Desprezavam as regras básicas de convivência “combinadas” artificialmente para
aquele espaço. Entretanto, quando livres na rua ou no pátio respeitavam com certa
facilidade as regras – não escritas – que os grupos de convivência criavam para estes
espaços.
Foram meses onde entrávamos na sala “armados”, cada qual se movendo em seu
espaço, sem conseguirmos criar um espaço coletivo onde pudéssemos colocar em curso
um projeto de educação. Coexistíamos e, ao mesmo tempo, não existíamos como grupo.
A situação era insuportável. As brigas foram se tornando cada vez mais
freqüentes, e o prazer de estar naquele espaço, se tornava cada vez um sonho mais
distante, as dores de cabeça aos domingos cada vez mais constantes. Algo estava
terrivelmente errado...como mudar?
Como romper com o ciclo de violência que havia me arrastado e convertido
minha sala de aula em um campo de batalha? Como assumir meu papel de educadora?
Não havia texto, livro ou curso que me oferecesse saída para o que eu imaginava ser
meu maior fracasso como professora. A resposta estava em mim, eu sabia e precisaria
enfrentar meus fantasmas.
Tinha o entendimento que a violência antes de ser uma ação, era uma reação.
Reação à existência daquele lugar na escola, que reproduzia e lembrava ao meu aluno o
lugar que a sociedade queria que ele ocupasse. Reação ao preconceito sofrido, ao
descaso, ao desamor. Entendimento que também a professora Virna teve mesmo quando
sofria com esta violência:
“Quando todo mundo aqui fala que absurdo que é o professor
apanhar...eu tomei tapa da Monalisa, eu tomei cotovelada do
Alexandre, igual todo mundo aqui. Mas eu entendia o porquê
daquela situação. Do Alexandre eu peguei o material dele e
falei : - Você vai sair – e ele falou: - Eu não vou sair! Quando
ele puxou o material o cotovelo foi no meu peito. A Monalisa
eu falei para ela ou você senta ou a gente vai ter um problema
muito sério aqui na sala, ela falou que não ia sentar e eu fui e
fechei a porta, eu fiquei encostada na porta e ela se levantou
da cadeira e falou:-Abre a porta! E ela veio com as mãos
assim [mãos para frente] quando ela fez assim na porta para
abrir ela deu um tapa nas minhas costa.Quando ela deu um
tapa nas minhas costas a situação se reverteu: a turma se
levantou para bater nela. Eu tinha mandado o Marquinhos
pular o muro e trancar a porta por fora. Quando a turma foi
pra cima dela o que eu fiz: Marquinhos pula e abre a porta!
Eles iam matar a Monalisa! Quer dizer ao mesmo tempo em
que eu estava com raiva por ela ter me dado um tapa nas
costas eu estava preocupada com ela apanhar da turma. Eu
tive um olhar diferenciado dessa agressão, que é o que muito
professor aqui não tem. Na verdade o que aconteceu? Eu
estava mantendo ela presa, e ela não queria ficar presa. E é
lógico eu estava agredindo ela, ela não vai me agredir? Ela me
agrediu mesmo, não quero e (pah) deu um tapa nas minhas
costas.
Sabia que o fenômeno não era isolado e que nem de longe se comparava à
violência sofrida em escolas localizadas dentro de espaços geofísicos e sociais reféns do
tráfico.
Sabia que o ato violento não era contra mim especificamente (assim como
geralmente não é contra o professor especificamente), mas contra tudo o que eu
representava ali, naquele momento, contra minhas práticas autoritárias, contra minhas
imposições sem sentido, contra os limites que para muitos deles não possuem qualquer
significado ou razão de ser. Eles eram, dentro da escola, uma minoria que desejava
encontrar seu lugar de existência, que não aceitava permanecer “quietinha” para o
conforto dos “normais” e exigia ser vista: “De maneira mais profunda, o ato violento
assinala a irrupção de um grupo. Ele autentica o querer-existir de uma minoria que
procura se constituir em um universo onde ela é excedente porque ainda não se impôs”
(Certeau, 2005,p.95)
Meus alunos queriam existir. Eu também precisava existir, e precisávamos
existir juntos, em um espaço em que existiam muitos outros sujeitos além de nós.
Sujeitos que precisavam ser respeitados em sua existência também. Aprender a
conviver.
Como sair do meu lugar e tomar outro que meus alunos pudessem perceber de
outra maneira que não de adversária. Como resignificar meu papel, para mim e para
meus alunos, para estabelecer uma relação possível? Eles queriam existir e eu também.
Precisava existir como professora. Como conquistar este lugar, sem perder a autoridade
(como se eu a tivesse até aquele momento) sem que minha sala virasse um caos
incontrolável, e pior, improdutivo?
O recesso de julho chegou providencialmente. A pausa permitiu uma reflexão
profunda sobre o meu papel e a necessidade de assumir meu lugar como adulto,
responsável por criar estratégias e transformar aquela realidade dolorosamente vivida e
improdutiva em um espaço de educação. Esse era afinal “meu trabalho.” Aprender a
aprender.
Se eu desejava mudanças, precisaria mudar. Vencer a violência latente em mim.
Vencer o autoritarismo para construir uma autoridade legítima, diminuir o tom de voz
(isso então foi particularmente difícil). Aprender a ser.
Iniciei o segundo semestre convencida da necessidade de reescrever meu papel
dentro daquele grupo. Convencida da necessidade de encontrar novas formas para
estabelecer uma relação produtiva com meus alunos. Caminhava mais pela sala. Tocava
mais as crianças e falava baixo com elas. Controlei a minha ansiedade. Se queria estar
ao lado precisava me deslocar, alterar fisicamente minha posição na sala, misturar-me,
ir ao encontro, colocar-me no meio. Aprender a fazer.
Desconfiados inicialmente, com o tempo minha turma foi correspondendo a este
novo comportamento e começaram a se tornar mais concentrados, menos agressivos uns
com os outros. As brigas eram raras e pontuais. Com isso, o envolvimento com as
atividades, a produção de textos e até o trabalho coletivo, tão difícil de ser realizado no
primeiro semestre, começaram a mostrar alguma eficiência.
A mudança se operou, muito mais, através das ações, do que através das
palavras. Não falamos nada de forma explícita sobre esta nova relação uns com os
outros, mas recriamos o sentido de nossa existência naquele espaço. Então, para mim, o
ano iniciou-se de fato ali. Reencontrara-me com minha razão de ser e existir enquanto
educadora e encontrara, finalmente, um espaço onde mover-me. Partindo em busca de
uma prática possível para criar meu espaço, encontrei-me com os meus alunos, que
partiram de seus espaços (uns mais outros menos). Nesse novo espaço que inventamos
para nós, percebi que este lugar mesmo estando ali o tempo todo, só se tornou nosso
quando aceitamos ocupá-lo de outra maneira, quando resolvemos reinventá-lo, ocupá-lo
como o espaço de nossa sala de aula.
Precisei reeducar-me como professora e isso me reeducou como pessoa. Precisei
permitir e acreditar que aquela experiência tinha algo a me ensinar. Acreditar que era
possível me reinventar como gente, reescrever minha trajetória naquele espaço. As
palavras de Guimarães Rosa sobre o professor como “...aquele que de repente aprende”
ganhavam novos e mais profundos significados e entendia que mais do que simples
“trocas de experiências” meus alunos me ensinavam a fazer: a buscar novos caminhos e
novas estratégias pedagógicas; a ser: um ser humano menos preconceituoso, menos
intransigente, menos violento; a aprender: refletindo sobre minha própria prática e
existência como professora; e sobretudo, a conviver: a arte de, reconhecendo no outro a
mesma humanidade de que somos prisioneiros, acreditar na possibilidade de tecer junto.
8. CULTURA, CURRICULO & ALTERIDADE
Até aqui a história tem sido o fio condutor da visita a este tempo vivido e a este
lugar praticado. A história de sujeitos que chegam por trilhas diferentes a um mesmo
lugar. Nele chegam, dele partem, nele se reencontram e, às vezes, se perdem.
Se o texto apresentou certa linearidade, foi por comodidade narrativa, ou força
do hábito cartesiano. Uma forma para mim nesse momento necessária para se partindo
de um lugar se chegar a algum outro. Mesmo que, em algum canto de minha mente,
vozes se levantem contrárias a mais esta ilusão.
Narrativas passadas, atravessadas por histórias presentes, mostram-me como a
linearidade do tempo é uma criação arbitrária a qual nossos desejos, lembranças e
inquietações não se curvam.
Ao dialogar com os sujeitos, histórias e acontecimentos passados permanecem
presentes e outros atuais entram sem esperar o convite. Assim, coexistem no
espaço/tempo das narrativas, sujeitos de distintos momentos, distintas Progressões, mas
que se encontram, pela força de sua presença e seu significado para as professoras (e
para mim) neste momento.
Sigo segurando este corrimão do tempo de onde parti para refletir como o
espaço da Progressão gerou uma série de movimentos dentro da escola e foi sendo
discutido, criado e recriado, sendo ressignificado de acordo com os diferentes
momentos vividos, pelos diferentes sujeitos, para pensar esta escola hoje. Como este
espaço foi se constituindo ao longo de 2005 e como ele é pensado atualmente (2006) na
escola? Como estas relações foram sendo recriadas e transformadas frente às
experiências vividas? Como outras experiências e acontecimentos exigiram minha
atenção e reflexão e mesmo sem aparente correlação direta me ajudam a pensar como as
relações de inclusão e exclusão são produzidas em minha escola?
Apesar de minha recusa e resistência em ocupar qualquer função outra, além de
professora dentro da escola, o pedido de socorro feito pela Coordenação e Direção
somado à relação pessoal que mantinha com ambas acabou pesando, e aceitei a função
de Apoio à Direção.
Atuando como Apoio à Direção
61
, pude conhecer a escola de um lugar bastante
diferente. Um lugar que expõe os alicerces – e a ausência deles – sob os quais nosso
CIEP está sendo sustentado, sob o qual as relações que se desenvolvem vão sendo
urgidas.
Ao iniciar esta pesquisa, o que me movia era tentar compreender como este
espaço da Progressão havia sido produzido e era compreendido em minha escola. Era o
lugar que eu habitava e a partir dele estabelecia uma série de relações com os outros
lugares e os outros sujeitos deste mosaico.
Ao mover-me, estabelecendo outras relações, habitando outros lugares, tanto o
lugar da Progressão foi sendo ressignificado, como muitos outros lugares, e,
principalmente, as relações que os produzem, foram se impondo como questões
fundamentais para entender como a história de minha escola vem sendo escrita.
Ao tentar compreender esta cultura escolar em seu movimento tive cada vez
mais consciência de que minha pesquisa só pode ser entendida como um retrato
instantâneo deste movimento. Apenas um rápido flash em um universo de interações e
relações que ao serem capturadas dos momentos vividos, puderam ser verbalizadas,
teorizadas, registrando parte de um diálogo muito maior, com muitos outros sujeitos
ocultos, com muitas outras vozes silenciadas. Ainda assim, um retrato possível e
necessário.
Ao buscar compreender melhor a realidade (ou realidades) que vivemos, nos
deparamos com muitos sujeitos na/da pesquisa. Interagimos com eles, habitamos o
mesmo espaço-tempo que eles, compartilhamos, mais ou menos, de vários aspectos
culturais, conscientes ouo desta interação, na busca da compreensão do real. Não
somos passivos e indiferentes a eles, assim como eles, sujeitos participantes da
pesquisa, não são indiferentes a nós, à nossa pesquisa e às nossas conclusões, que ainda
que parciais e provisórias, provocam reações.
Neste caminhar, algumas questões foram se apresentando para o debate,
impostas pelo cotidiano muito mais do que por minha escolha ou vontade. A pesquisa se
impôs e me guiou, não eu a ela. Ela me mostrou quais as questões e quais desafios
exigiam reflexão e debate. Eu tentava manter o controle do leme enquanto a tempestade
dos acontecimentos vividos me cobrava respostas e a tempestade das idéias e teorias me
enchiam de perguntas (e vice-versa), nem uma, nem outra, dispostas a me poupar.
A questão da organização curricular da escola, o projeto de Ciclos que gerou a
Progressão (não o espaço da segregação, este já existia há mais tempo); as relações que
estabelecem a cultura escolar – de minha escola especificamente – e as formas como o
poder é exercido; o espaço da possibilidade que se cria no diálogo e os mecanismos de
controle do poder; as relações de alteridade, o poder e o diálogo, as relações autoritárias
61
Função gratificada: terceiro elemento responsável pela escola depois do Diretor Adjunto.
e democráticas. Estas questões foram se apresentando ao longo da pesquisa e sem pedir
licença entrando e cobrando reflexões, algumas em uma gestação dolorosa e complexa,
longe ainda de serem satisfeitas.
Tentando compreender a cultura escolar ou culturas, já que a escola é o
encontro de muitas culturas que compreendem de diferentes maneiras esta instituição
social, encontrei-me desafiada a compreender melhor como esta pluralidade forma uma
unidade e como as relações de poder e disputa pela hegemonia vão atuando tal como
uma força gravitacional que acabam por estabelecer a forma – provisória que seja –
desta escola. Por sua polissemia somos obrigados a discutir necessariamente o que
entendemos por cultura e como este conceito se relaciona com a leitura que faço desta
escola.
Nossas origens coloniais tentam nos inscrever na subserviência a uma cultura –
primeiramente européia, hoje do “colonizador” norte-americano – que se auto-proclama
superior, civilizada, elevada. E percebemos isto transpirando pelos poros da escola,
quando ainda temos um currículo idealizado por uma forma de cultura, como nos faz
pensar Sacristán: “Se o currículo – como se costuma afirmar – é uma seleção da
cultura, trata-se, entretanto, de uma cultura sui generis, uma versão particular da
cultura (...)” (1996, p.34) Uma versão estabelecida pelas classes dominantes, elites
estrangeiras, e seus mímicos nacionais que se dizem (e muitas vezes realmente se
acreditam!) superiores e propõem, entre outras estratégias, através da cultura escolar
uma regulação (e o “progresso”) da sociedade.
Eles possuem o saber. Nós somos os ignorantes. Eles possuem tecnologia,
ciência, cultura. Nós somos os místicos, folclóricos e “exóticos” nativos. Eles possuem
arte. Nós fazemos artesanato.
Paulo Freire já nos alertou há muito, para uma forma de domínio, onde o
opressor só consegue oprimir porque o oprimido o interioriza compartilhando das
mesmas idéias e concepções. O oprimido está convencido da necessidade ou
naturalidade da opressão, convencido (ou socialmente silenciado) sobre este direito do
opressor. Sobre a impossibilidade de transformar esta ordem – desumana – do mundo.
Uma cultura é superior a outra ou as classes que dominam tentam assim
estabelecer para preservar seu direito a governar o mundo? O que (e quem) determinou
que existissem culturas inferiores e outras superiores senão a força, a violência, a
truculência com que os “civilizados” invadiram, escravizaram, aterrorizaram,
subjugaram e mataram?
Quais os saberes superiores? A eficiência na capacidade de se explorar outro ser
humano até exauridas sua força e dignidade? A eficiência na capacidade de se
fabricarem armas cada vez mais letais? A eficiência de se produzirem necessidades cada
vez mais supérfluas e inúteis de um lado e a miséria, violência e fome do outro?
Os civilizados produziram a África como a conhecemos. Os civilizados
produziram o Terceiro Mundo como o conhecemos. Os civilizados financiam o que eles
mesmos apontam como Terrorismo. Os civilizados e seus saberes superiores, sua ordem
e seu progresso, estão destruindo sistematicamente os recursos naturais do planeta,
inviabilizando a vida, inviabilizando a espécie humana.
Encontramos nos discursos da Modernidade um duplo projeto para os
“selvagens”. Ou defendem e acreditam que possamos ser regulados, treinados,
capacitados para sermos produtivos, portanto úteis – em uma concepção tecnicista
pragmática – ou defendem e acreditam que possamos ser ensinados para alcançar sua
cultura superior – uma concepção eurocêntrica e humanista. Boaventura de Sousa
Santos nos desafia a pensar criticamente o conhecimento a partir deste paradigma da
modernidade:
“Tenho vindo a defender que o paradigma da modernidade
comporta duas formas principais de conhecimento: o
conhecimento-como-regulação e o conhecimento-como-
emancipação. O conhecimento-como-regulação consiste
numa trajetória entre um ponto de ignorância designado por
caos e um ponto de conhecimento, designado por ordem. O
conhecimento-como-emancipação consiste numa trajetória
entre um ponto de ignorância chamado colonialismo e um
ponto de conhecimento chamado solidariedade” (1996, p.24)
O conhecimento-como-emancipação que faz sua trajetória da colonização a
solidariedade, como percebemos, foi, na correlação de forças histórica, perdendo terreno
para o conhecimento como regulação, e este veio impondo ao longo da história sua
concepção hegemônica dentro do campo da Modernidade. Mas Santos nos propõe um
conflito ainda maior, um terceiro conflito que rompe com o movimento bipolar por onde
os Modernos caminham para ir além, onde o conflito epistemológico passa a ser um
confronto cultural.
Quando pensamos o mundo para além destas polarizações propostas pelo
pensamento moderno: uma concepção tecnicista/utilitarista de sujeito ou uma
concepção humanista/evolucionista de sujeito, podemos nos perguntar; qual a
concepção que este sujeito ignorante/colonizado – até então um objeto do olhar
estrangeiro – possui sobre si mesmo e sobre o próprio conhecimento?
Em nossa sociedade, em nossos discursos e práticas, mesmo concordando com a
presença hegemônica desta concepção do conhecimento-como-regulação, percebemos
que ao se moverem no mundo os sujeitos produzem coletivamente muitas outras
concepções e relações com o conhecimento, produzem muitos outros objetivos e fins
para o ato de conhecer. Estas outras formas de compreender e significar “o conhecer”
não excluem as concepções idealizadas no discurso moderno, mas amalgamam,
hibridizam, negociam, e se multiplicam infinitamente, e fazem isto no permanente
confronto cultural em que nosso mundo e sociedade esta mergulhado.
Confronto que tem na escola apenas uma de suas arenas. E no currículo apenas
um dos seus espaços de legitimação e superação, permanência e transcendência,
negociação. Sempre um espaço de disputa de múltiplos projetos de mundo, de sujeitos,
de sociedade.
Este confronto cultural possibilita que possamos questionar nossas próprias
lógicas e reviramos pelo avesso nossas concepções sobre o saber e a cultura. Processo
que nos permite caminhar na busca de nossa emancipação e liberdade.
Podemos começar a pensar uma escola que seja fruto, não de um projeto
iluminado, de modelos importados, ou soluções miraculosas. Mas uma escola tecida por
uma rede de saberes. Onde o aprendizado não seja apenas um objetivo final a ser
alcançado, mas o próprio percurso percorrido.
Defendo uma escola pensada não para os sujeitos, mas pelos sujeitos. E por esta
razão não me ofereço como arauto de minha escola, que vai a “luz do saber”
compreendê-la e explicá-la, mas como sujeito que vive e narra. Sujeito que não vive e
não narra sozinho, mas traz consigo – e em si – as muitas vozes e suas experiências que
narram também.
Ao compreendermos cultura não mais como a cultura, mas como “culturas”,
começamos a nos afastar das concepções que buscam pensar esta escola que vai ensinar
“tudo a todos”. Primeiro porque rompemos com a crença de que existe um “tudo”
absoluto e superior que deva ser o objetivo final de” todos” . Em outras palavras: que
tudo interessa a todos?
Estas grandes homogeneizações: tudo e todos, não nos ajudam a pensar uma
escola que respeite a pluralidade e as diferenças culturais, uma escola que seja inclusiva
de fato.
Assim entendemos que a diversidade – palavra polissêmica que precisamos
também dimensionar – deve se afastar da simples tolerância para se fundar no diálogo.
Não se trata apenas de reconhecer a (indesejável) presença do outro, conviver
(indiferentemente ou tolerantemente) com ele, desde que este se recolha a seu gueto de
existência, mas estabelecer um diálogo vivo e produtivo onde na diferença eu possa
compreender as minhas contradições e buscar superá-las, onde o outro se transforme em
parceiro nesta superação dialógica
62
, consciente de que este diálogo é fundamental já
que nenhuma teoria, projeto ou concepção de mundo é totalitário, é completo,
precisando estabelecer esta relação dialógica com o(s) “outro(s)” para que possa tanto
compreender-se melhor e mais profundamente quanto para tentar perceber e refletir
62
A Superação Dialógica é entendida aqui não como, uma síntese harmoniosa entre lógicas que se
fundem, mas um movimento, onde as muitas lógicas ou vozes confrontadas, ao se desafiarem, produzem
novas vozes, novas lógicas infinitamente, nunca definitivamente.
sobre suas próprias contradições. Entendemos que no movimento provocado pelas
negociações entre lógicas contrárias ou diferentes são produzidas múltiplas
possibilidades de ação sobre a realidade: acordos temporários, delimitação de uniões e
intercessões e a revisão de nossas próprias lógicas, que ao serem confrontadas com
questões para as quais não encontram ainda respostas são desafiadas a se superarem,
não definitivamente, mas dialógica e dialeticamente. Neste sentido a superação não
implica na eliminação ou evolução de uma lógica a outra superior, mas na sua
complexificação, na produção de outros conhecimentos.
As diferenças culturais inauguram na escola a possibilidade dos sujeitos
aprenderem uns com os outros, não como todos podem se tornar iguais – essa
demagógica ilusão liberal – mas como na diferença todos podem ampliar as próprias
possibilidades de crescimento sendo mais, sendo únicos e plurais, tecendo juntos uma
outra história para a humanidade. Quando reflito sobre este “todos” penso não só nas
relações entre alunos, mas entre professores e alunos, pais, diretores, especialistas, os
sujeitos que praticam o espaço escolar, que nele se movem, que nele tecem saberes e
disputas. Paulo Freire nos convida a refletirmos sobre estas relações:
“Se fossem iguais um se converteria no outro. O diálogo tem
significação precisamente porque os sujeitos dialógicos não
apenas conservam sua identidade, mas a defendem e assim
crescem um com o outro. O diálogo, por isso mesmo não
nivela, não reduz um ou outro. Nem é favor que um faz ao
outro.” (Freire, 2005, p.118)
Como podemos então pensar um projeto de escola e estabelecer um currículo
que não inclua os sujeitos na sua discussão?
Tenho vivido experiências onde a grande e mais visível contradição tem sido
exatamente tentar construir uma escola que forme um cidadão crítico, emancipado,
participativo utilizando para isso muitas vezes formas autoritárias, impositivas e
excludentes.
Projetos pensados para a emancipação do outro (?) para o crescimento do outro
(?) para a construção da cidadania do outro (?). Parafraseando Paulo Freire: ninguém
emancipa ninguém, os sujeitos se emancipam em comunhão, em diálogo, em interação.
Mas, se emancipam também na disputa, no conflito. A cidadania se constrói na prática
da cidadania, não apenas em discursos sobre a cidadania.
Mas não é isso que assistimos. A organização curricular, métodos e práticas são
– para muitas e muitas famílias em muitas e muitas escolas – profundos enigmas para
grande parte da sociedade: pais, alunos, professores, diretores etc. As grandes questões
são debatidas, não raramente, exclusivamente por especialistas e não envolvem, na
maioria das vezes, nem mesmo os professores. Projetos são estabelecidos e
determinados sem uma discussão ampla e democrática. O que assistimos é a reprodução
de práticas coloniais, onde o “senhor” sabe o que é melhor para os seus “servos”. Onde
o saber estabelece o poder de decidir o que é “bom” para “todos”.
63
A luta contra este conceito patriarcal, colonial que deixa entrever uma
concepção monolítica de cultura é fundamental para vivermos um currículo escolar que
seja fruto da diversidade e do diálogo. Um currículo escolar que permita neste processo
de tensões, discussões e conflitos, aos sujeitos dialogarem sobre suas próprias
contradições para escreverem juntos a escola que desejam, a escola que faça sentido.
Saímos assim deste lugar onde nos propomos a pensar uma escola “para” e nos
colocamos ao lado para pensar uma escola “com”. Isto significa subverter a ordem que
estabelece um poder vinculado a um saber, que autoriza a uns, e não a outros, pensarem
sobre o mundo que desejam, sobre a educação que desejam, sobre a escola que desejam.
Como nos ensina Freire: “Não penso autenticamente se os outros também não pensam.
Simplesmente, não posso pensar pelos outros nem para os outros nem sem os outros”
(Freire,2005, p.117).
Ao revermos nossas concepções sobre cultura, reconstruímos nossa identidade,
deixamos o lugar dos colonizados, o lugar do “negro burro”, do “índio preguiçoso”, do
português degredado”, lugar dos que não-são, não-sabem, não-têm. Lugar que nos
nega a voz em um claro processo de interdição (Foucault), desqualificando o falante e
sua voz (Gnerre) para desqualificar também sua ação sobre o mundo.
Hoje a discussão sobre a diversidade cultural vem ganhando espaço e
centralidade em diferentes setores da sociedade civil (presentes nos debates em várias
mídias, igrejas, partidos, etc.) e se apresenta como um desafio também para as escolas.
Grupos considerados minoritários se organizam e exigem a superação dos estereótipos e
preconceitos.
“A exigência de uma democracia radical reclama uma
perspectiva cultural na qual se respeite a multiplicidade, a
pluralidade e a linguagem do cotidiano “desterritorializando”
o mapa da compreensão cultural dominante “(Sacristán,1996,
p.50)
Sacristán nos alerta ainda para o perigo de se cair em um relativismo que prenda
cada grupo em seu próprio gueto de procedência o que significa dizer que “para as
classes dominadas a diversidade é frequentemente uma desvantagem, uma deficiência”.
(1996, p.50). Alerta válido e uma das principais críticas que podemos fazer a “esta”
forma de multiculturalismo
64
que, ao invés de promover o diálogo e a superação das
63
Está prometido para 2007 o segundo e o terceiro Ciclos de Aprendizagem. Sua implementação ainda
está envolta em mais dúvidas do que certezas.
64
Multiculturalismo é uma palavra polissêmica, possuindo portanto muitos e distintos sentidos. No texto
utilizamos “esta forma de multiculturalismo” , pois assumimos o conceito de multiculturalismo como
uma forma de sectarismo, não o diálogo entre as culturas, mas seu isolamento.
contradições presentes em qualquer concepção de mundo – já que são todas parciais –
promove o isolamento e a estagnação.
Reconhecer a existência de várias culturas, não significa encerrá-las cada uma
em um gueto, fragmentando a sociedade civil e acirrando ódios. Significa buscar o que
Freire chamou de “unidade na diversidade(Freire, 2005, p.154). Significa reconhecer-
lhes a importância para um estudo aprofundado da(s) realidade(s), a importância para se
estabelecer um diálogo que permita a humanidade crescer em outras direções que não
estas que nos trouxeram a este mundo de injustiças e perversidades. Um mundo de
autoritarismos. Um mundo cindido.
Paulo Freire, quando nos ensina a trabalhar respeitando o universo cultural de
nossos alunos, não propôs que negássemos o nosso, ou deixássemos cada aluno
encerrado nos conhecimentos que já trazia, ele mesmo afirma: isto seria basismo.
“Partir do “saber de experiência feito” para superá-lo não para ficar nele” (Freire,
2005, p.71). Propôs uma relação fundada no diálogo para alcançar o crescimento
conjunto. Saberes que se desafiam e se completam de lado a lado, não saberes que se
negam simplesmente ou se entrincheiram. E nós assim o propomos por entender que os
saberes, quaisquer saberes, não existem quando isolados, estão no mundo para se
encontrarem, para se desafiarem, para se reconhecerem e se negarem produzindo assim
o nosso crescimento. Saberes encerrados em si mesmos morrem asfixiados em sua
própria soberba e tornam-se, não raramente, inúteis.
A escola se apresenta como esta arena onde todas as culturas devem entrar pela
porta da frente. Onde todas são bem-vindas a sentarem-se a mesa para serem
saboreadas, experimentadas, discutidas, debatidas, refletidas e confrontadas, para que
cada sujeito possa compreender o mundo em sua pluralidade, desenvolver o respeito à
diferença, ampliando sua possibilidade de inserção na história e de ação sobre o mundo.
Devemos assumir essa arena, não com rancor, com desprezo, com mágoas. Mas
como espaço de crescimento conjunto, onde o respeito ao outro, à sua voz e à sua
cultura, não seja essa tolerância hipócrita que tantas vezes esconde indiferença e
negligência: Te aceito como tu és: pobre, faminto, ignorante. E ai mesmo te deixarei,
em respeito a ti.
Assumir o conflito, legítimo entre homens e mulheres que se movem no mundo
partindo de lugares diferentes, experimentando sabores diferentes e tristezas diferentes,
mas capazes de se encontrarem, de se reconhecerem, porque são “gentes” no mundo,
num mundo que pode e precisa ser melhor.
Durante muito tempo, e ainda hoje, quando falamos em currículo a primeira
idéia que ocorre na cabeça de muitos educadores é uma discussão sobre os conteúdos de
ensino. Discussão sempre bem-vinda e acalorada, pois definir o que ensinar, é cada vez
mais um trabalho de profunda responsabilidade e reflexão.
Mas vamos ampliar esta concepção de currículo – como seleção cultural de
conteúdos – para pensarmos neste trabalho o currículo de uma escola, como este espaço
de disputas ideológicas, pluralidade cultural e de práticas e conflitos epistemológicos.
O currículo de uma escola transpira por suas paredes e está presente nas relações
que se estabelecem. Relação entre saber e poder, entre as culturas tidas como eruditas e
as tidas como populares, relação entre os sujeitos, suas idéias e suas práticas.
Portanto o currículo não se deixa aprisionar em listas de conteúdos, ou nas
intenções transcritas nos Projetos Políticos Pedagógicos, que naturalmente representam
aspectos importantes a serem considerados nas reflexões sobre as concepções que as
escolas possuem: O que é conhecer? Como os sujeitos conhecem? O que é importante
conhecer? Como se produz/constrói/transmite o conhecimento? Mas que não bastam
para pensarmos no que realmente é vivido no dia-a-dia de qualquer escola.
Algumas experiências de reformulações curriculares que nosso país vem
assistindo
65
ampliam a concepção de currículo que deixa de ser simples produto para
ser entendido como processo. Processo, que desejamos, aconteça fundado em relações
democráticas. Processo, portanto, a partir e com o “Outro”.
Não podemos falar nesta construção democrática e nesta concepção de currículo
sem pensarmos em uma reflexão profunda sobre as práticas cotidianas e sobre as
possibilidades de uma reestruturação das relações dentro da escola. Por isso convoco a
realidade do vivido para nossa reflexão:
“No ano letivo de 2005, um pai de aluna da 4ª. série, enviou uma carta à
direção da escola tecendo uma série de considerações sobre a condução do trabalho
pedagógico, fez elogios e críticas, cobrou explicações sobre algumas práticas
pedagógicas – ou sua ausência – como deveres de casa, correção de exercícios,
utilização do livro didático, etc. A carta, em duas folhas frente e verso, muito bem
escrita – na norma culta da língua – e com um aviso de que havia sido xerocada foi
lida em Conselho de Classe provocando uma das reações mais vigorosas que já
presenciei na escola. Nos poucos anos que estou nesta escola, foi a primeira vez que
pude perceber uma manifestação coletiva de tal intensidade.
A professora da turma chorou, revoltou-se, ameaçou processar o pai por
calúnia e difamação. Questionou quem era o sujeito autor da carta, sua profissão, suas
origens, seus saberes. Sua indignação encontrou coro em quase todos os professores
presentes que se sentiram profundamente ofendidos pela carta, apesar do conteúdo da
carta em si ser, a meu ver, profundamente respeitoso. Análises e hipóteses foram
65
Refiro-me as experiências de Porto Alegre, São Paulo e Angra dos Reis, relatadas e
discutidas por Antonio Fernando de Gouveia in: SILVA, Luiz Eron da. Reestruturação
Curricular: novos mapas culturais, novas perspectives educacionais. Porto Alegre:
Sulina, 1996.
levantadas, principalmente pela forma da escrita: “- Ele deve ser militar!” dizia uma.
“– Ou religioso!” dizia outra.
A reação da Direção foi convocar o pai para uma reunião com a professora e
toda equipe técnico-pedagógica – por isso, como Apoio à Direção, estive presente –
para deixar claro que ele – pai – havia invadido um território proibido. Foi
demonstrado para o pai – em “pedagogês” claro – sua ignorância e incapacidade para
compreender as “novas” práticas pedagógicas, ao mesmo tempo em que se desfiava
todo um currículo, que legitimava e garantia a autoridade da professora, da
coordenadora e da diretora como sujeitos de saber.
O pai saiu sufocado, humilhado e pedindo desculpas. Convencido?Não sei.”
Também eu saí sufocada desta reunião. Apesar de ser reconhecida e investida
com esta mesma “autoridade” que certo saber outorga, não tive coragem em nenhum
momento de defender aquele homem contra o visível processo de assujeitamento, de
negação, de exclusão da voz do outro. Também eu saí humilhada desta reunião, por ter
sido convidada a ser platéia desta encenação cruel, para referendar e legitimar esta face
da escola. Face obscura, face feia.
Sufocada e humilhada por perceber como os contratos invisíveis, as sociedades
de discurso (Focault) a que pertencemos nos inscrevem em pactos não ditos, em
silêncios que se fazem ouvir nestes momentos, silêncios que tanto ou mais do que os
discursos, deixam explícitos seus significados, constroem sentidos.
Estava interditada por razões que se colocaram acima de minhas convicções,
acima das minhas escolhas éticas e políticas, que me assujeitavam tanto quanto aquele
homem na minha frente, de maneiras distintas, mas não menos perversas. Estava
interditada pelas relações de poder, claro, já que minha função era apoiar a Direção e
não desautorizá-la; relações afetivas tanto com a Direção quanto com a Professora e
Coordenadora, relações coorporativas sim, já que também eu, pertencia ao coletivo
professoras” e não ao coletivo “pais”. Depois de tanto tempo refletindo sobre redes de
poder e saber, sentia-me como um inseto, aprisionado em uma teia que eu mesma
ajudara a tecer.
“Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as
massas não necessitam deles para saber; elas sabem
perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o
dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra,
proíbe, invalida esse discurso e esse saber” (Foucault,
2004,p.71)
Trago em minha memória este acontecimento, pois acredito que ele é
fundamental para pensarmos como os conflitos ideológicos que atravessam os sujeitos e
suas práticas, tantas vezes são antagônicos com os discursos que este mesmo sujeito
produz. Como a dinâmica do vivido e como as relações produzidas no cotidiano nos
tomam de assalto sem que possamos – muitas vezes – reagir conscientemente e
coerentemente aos acontecimentos, exigindo, portanto, sempre este doloroso retorno,
para irmos em busca de nós mesmos.
Reflito e busco compreender os fatores que movem Professores e Direção a uma
reação corporativista e preconceituosa. Passamos anos e anos vendo nossa prática sendo
questionada, nossa competência desqualificada tantas vezes por sujeitos que não
possuem a compreensão mínima do quão complexo é nosso trabalho.
No entanto, assisti e vivi a seqüência de nossas ações e reações com profunda
preocupação, pois as reconheço como pistas de como esta escola, minha escola, espaço
onde também eu caminho, construo e transformo, reproduz as relações seculares de
colonização, discriminação e silenciamento do Outro, usando procedimentos de
interdição para negar-lhe até o direito à dúvida, e portanto ao saber.
O pai, interessado, atento a sua filha e seu desenvolvimento, tantas vezes
idealizado por esta mesma escola, questiona, pergunta, muito mais do que acusa. Mas
sua dúvida é tomada imediatamente como ofensa, não como direito.
Outros pais pronunciam-se aos palavrões na porta da escola, gritam pelos
corredores. Não incomodam, não nos ferem, não nos desafiam, não nos ofendem. Sua
reação é conhecida, ignorada, tantas vezes motivo de riso, pois representa exatamente o
papel que está estabelecido para ele: o ignorante, o “favelado”. É um “Outro” conhecido
e reconhecido. O pai “letrado” não. O pai que registra por escrito e exige ser ouvido –
carta xerocada – e respondido, não. Este “Outro” subverte.
“O Outro é citado, mencionado, emoldurado, iluminado,
encaixado na estratégia de imagem/contra-imagem de um
esclarecimento serial. A narrativa e a política cultural da
diferença tornam-se o círculo fechado da interpretação. O
Outro perde o seu poder de significar, de negar, de iniciar seu
desejo histórico, de estabelecer seu próprio discurso
institucional e oposicional” (Bhabha, 1998, p.59)
Quando o pai “estabelece seu próprio discurso” recusando-se a ocupar o
personagem que criamos para este conjunto homogêneo e estabelecido por nosso
discurso como “pais” , quando recusa o nosso roteiro, rompe com os limites que
estabelecemos. E faz isso da maneira mais ameaçadora aos nossos olhos educados,
civilizados, superiores...faz isso à nossa maneira. Não se torna igual, mas um
perigosamente semelhante.
Os discursos que produzimos sobre a diversidade, que mantém devidamente
cada diferente em seu lugar, estabelecendo um jogo onde esta diversidade é tolerada
desde que se mantenham as posições pré-estabelecidas para que possamos manter o
tabuleiro em perfeita (e ilusória) harmonia, são então esfacelados quando os “peões”
resolvem colocar o “rei” em xeque. E pior, quando fazem isso segundo as regras do
jogo. Regras que inventamos, mas que deixam de valer quando “outros” as reivindicam,
deixando claro que as regras que são para “todos”, não suportam tantos “todos” assim.
A ambivalência de nosso discurso civilizatório – civilizar o outro para que se
torne como nós – torna-se transparente assim que este “Outro”, ao invés de comportar-
se como o “Outro” discursivamente produzido por nós, comporta-se perigosamente
como “Nós”. Utiliza-se de nossos recursos, de nossa linguagem, de nosso direito a voz.
Utiliza-se de nossas estratégias. Neste sentido, o pai torna-se esta ameaça que precisa
ser urgentemente silenciada porque “A ameaça da mímica é sua visão dupla que, ao
revelar a ambivalência do discurso colonial, também desestabiliza sua autoridade”
(Bhabha, 1998, p.133).
Fica claro que no jogo democrático estabelecido nas relações da escola, este
“Outro” com quem deveríamos tecer o projeto de escola, só será admitido se não
desestabilizar nossa autoridade e se não denunciar nossas contradições, já que não
podemos admitir que este “Outro” tome nossa escola, questione nosso saber, nosso
poder.
Como tecer um currículo que privilegie a formação democrática do cidadão, sua
autonomia, sua participação, sua capacidade crítica quando reagimos de forma tão
virulenta, tão autoritária e preconceituosa à menor manifestação daquele que deveria ser
nosso parceiro na construção deste projeto? Quantas reações similares, em maior ou
menor dramaticidade, são vivenciadas no dia-a-dia de nossas escolas?
Enquanto nossos projetos – escritos – apontam para esta nova realidade, onde o
respeito à diversidade se torna um componente cada vez mais presente em todos os
discursos “politicamente corretos”, a realidade aponta para a necessidade de
aprofundarmos nossos conceitos sobre esta diversidade e para refletirmos de que modo
transformamos, ou não, estes projetos em práticas sociais.
“Essa história começa ao rés do chão, com passos.(...) Os jogos dos passos
moldam os espaços. Tecem os lugares” (Certeau,2004,p.176) . Movemos-nos entre (e
ao mesmo tempo) o concebido, o intencionado e o vivido, o tecido nas relações. Se por
um lado aquilo que desejamos e transformamos em discursos formam partes tangentes
desse currículo, por outro, não revelam todas as partes dele. As disputas, as tensões que
se desenrolam em nosso caminhar marcam outras trajetórias, inauguram outros
caminhos, alguns que conseguimos perceber, outros nem sempre. O movimento dos
sujeitos, frente aos desafios que o real proporciona, desenha uma dinâmica onde o
vivido e o concebido se aproximam e se afastam, se complementam e se negam, se
traduzem em discursos e em práticas, fundam espaços.
Percebemos que enquanto discutimos a necessidade da adequação de nossos
conteúdos e programas para contemplar as diferenças – físicas, étnicas, sociais, culturais
etc. – reproduzimos nas relações diárias os discursos de interdição e negação do outro,
as cadeias hierárquicas, as classificações e rotulações que desqualificam o outro como
sujeito de saber, sujeito de direito, cidadão.
Ao silenciar o pai, o aluno, ou tantas vezes o próprio professor, como eu me
silenciei, pratica-se um currículo invisível, que se move nas sombras, mas que constrói
uma realidade bastante tangente. Uma realidade que nega a diversidade, que nega as
diferenças sociais, culturais, que nega ao Outro o direito de dizer o mundo, de pensar
sobre ele e de expor seu pensamento.
Ao utilizarmos as antigas estratégias do poder de intimidação, ao construirmos
estas sociedades de discurso (Foucault) que empregam formas para inviabilizar o debate
democrático, negando o direito do outro a participar e compreender as questões que nos
são caras, negamos qualquer possibilidade de tecermos uma relação que permita a
construção de uma ação para a cidadania.
Ao desqualificar o outro, sua voz, seus saberes, seus conhecimentos, sua
percepção do mundo, esvazio qualquer sentido que possa existir na defesa de um
diálogo. Esvazio qualquer sentido que possa haver no uso da palavra democracia.
Esvazio qualquer sentido que possa haver no desejo de tecermos um currículo
que tenha a diferença como valor. Diferença entendida aqui como este profundo
respeito e consciência da existência do outro e da legitimidade de seu lugar no mundo,
respeito que me permite, mesmo no conflito, mesmo na disputa instaurar um espaço de
negociação, ouvir o outro e neste processo ouvir-me através do outro,
Reflexões sobre o currículo real (Sacristán), e sobre o currículo praticado
(Ferraço) nos fazem pensar sobre como as relações sociais trançadas dentro da escola
desenham, para muito além do currículo declarado, escrito, ou seja, o currículo
documento, outros múltiplos e complexos currículos. Fazem-nos pensar como os
sujeitos, à medida que praticam, vivem, disputam, movem-se neste espaço/tempo
escolar, vão escrevendo o currículo da escola, sua real trajetória: irregular, cheia de
curvas, atalhos, buracos e desvios, um terreno acidentado muitas vezes distante da
trajetória documental ou intencionada. Não raramente percebemos como nossos
discursos e textos documentais sobre o respeito às diferenças são diariamente colocados
à prova diante dos alunos que tomamos como uma alteridade absoluta, um outro que
não pertence” ao espaço escolar. Não raramente os conteúdos defendidos pelo projeto-
politico-pedagógico, não encontram seu lugar na escola para além de textos e discursos
artificiais. Lembro-me claramente de ter me recusado a trabalhar com o “tema” água e
meio ambiente enquanto os vazamentos nos banheiros da escola não fossem
solucionados. Não por não considerá-los fundamentais para a formação dessa geração
que terá como desafio literalmente salvar o planeta, mas por me sentir absurdamente
hipócrita ao discutir com meu aluno a importância da preservação da água potável
enquanto nos banheiros das crianças e dos professores milhares de litros de água
passavam da caixa d’água ao esgoto sem aparentemente incomodar ninguém.
Pergunto-me sobre os limites para nossa incoerência. Os valores democráticos
que defendemos de forma autoritária. Os valores morais tão absolutos no julgamento
dos outros e tão relativos para nosso julgamento.
Percebemos como os espaços de participação, diálogo, crítica e elaboração de
um projeto comum são espaços temidos e, portanto, espaços fortemente vigiados,
tutorados, espaços na verdade concedidos e mantidos em nome de uma democracia que
não chega a existir plenamente. Democracia que morre exatamente nas relações que se
estabelecem. Morre na hierarquização dos saberes, na negação do outro.
Pensar um currículo de uma escola que tenha o respeito à diferença como um
valor, começa exatamente no reconhecimento do outro, dos muitos outros, cada um em
sua singularidade, como autores legítimos de sua própria história. Respeito que não
reduz o outro a uma presença tolerável, que não reduz o outro a uma alegoria folclórica
ou exótica. Respeito que não silencia os conflitos ideológicos, as disputas culturais, mas
instaura um diálogo possível, uma negociação que permite que sujeitos diferentes
possam crescer juntos em outra direção que não seja o aniquilamento mutuo. Começa
no momento em que eu estabeleço uma relação realmente igualitária, não em saberes,
ou conceitos e concepções sobre mundo – isso não existe, nem deve existir para a
sanidade global – mas em importância, em autoridade, em legitimidade.
Queremos outra escola que não esta. Qual? Que sujeitos estão autorizados a
pensar e construir esta escola?
Aqueles especialistas em Educação, que aprofundam seus estudos sobre a
complexidade do ensinar e do aprender? Aqueles professores que tecem dia após dia
através de sua prática conhecimentos únicos sobre esta realidade, seus limites e
possibilidades? Aqueles gestores e administradores que conhecem os aspectos legais e
burocráticos para se viabilizar um projeto educacional em uma rede tão ampla? Aqueles
pais de alunos que desejam uma escola que ofereça aos filhos uma educação de uma
qualidade compreensível (qualidade que não pode ser determinada apenas por estes ou
aqueles sujeitos, mas no debate entre todos os sujeitos integrantes da comunidade
escolar) que permita um futuro melhor? Aqueles alunos que desejam estar em um lugar
que faça sentido? Aqueles alunos que se recusam a estar em um lugar que não faça?
Todos nós. Especialistas, professores, técnicos, políticos, pais e alunos. Todos
somos sujeitos autorizados e legítimos para a construção deste projeto. Assim como
todos somos autorizados e legítimos para construirmos a democracia no país. Ou
acreditamos nisso ou precisamos descobrir um projeto de democracia em que realmente
acreditamos. De que democracia falamos?
Possuímos saberes diferentes, percepções diferentes da realidade? Com certeza.
Mas existe uma que seja superior à outra? Ou estas percepções diferentes nos ajudam a
refletir sobre a complexidade do real?
Defender a horizontalidade e a legitimidade dos diferentes saberes, não significa
de modo algum defender seu isolamento e sua clausura em guetos de saberes. Não
significa tampouco defender a co-existência pacífica, harmoniosa e tolerante entre estas
culturas e saberes, onde todos falam e ninguém se ouve. Significa defender o conflito
respeitoso, o diálogo onde a voz do Outro possa ser resignificada por mim e a minha
voz possa ser resignificada por ele produzindo novas possibilidades de interpretação do
real que transponham o monólogo estéril e pouco produtivo na construção de
alternativas possíveis para a humanidade.
Proponho pensarmos um currículo hoje, que se permita ir muito além das
discussões – necessárias – sobre a organização em Séries, Ciclos ou Módulos. Ir muito
além das questões – importantes – da especialização das disciplinas ou da
multinterdisciplinaridade. Proponho pensarmos como as relações entre os sujeitos e seus
lugares de saber possam urdir as tramas desta realidade negando, afirmando,
resignificando ou desconstruindo esse currículo. Implica pensar o currículo praticado. E
como ele se torna complexo quando visto a contrapelo, quando visto pelos praticantes
em situações reais, sofridas e sentidas nos espaços da escola.
Tantas vezes discutimos em nossas reuniões das turmas de Progressão 2004 a
necessidade de rompermos com a “infantilização” do processo de alfabetização e
partirmos do que acreditávamos ser o “universo” dos nossos alunos. Idealizamos nossos
alunos a partir de nosso entendimento do que era ser pobre, do era ser adolescente, do
que era ser aluno de Progressão. Quantas vezes fomos surpreendidas ao perceber que
nossas concepções sobre o que era infância e sobre o que era lúdico se confundiam, e
que nossos alunos não se prestavam a idealizações? Quantas vezes foram nossos alunos
que nos ensinaram esta diferença e reescreveram, conosco, os caminhos deste currículo,
como lembra a professora Ana Cristina:
“A gente apresentava muito texto, eu lia muito texto pra eles,
eu contava muita história. Comecei a achar o caminho para
minha alfabetização pelos livrinhos de história, porque eles
ficavam fascinados. Você imagina uma criança de 16 anos
como a Kátia, o próprio irmão do Davi – que a família inteira
do Davi estava envolvida em Progressão, estava distribuída em
todas as Progressões – assim maravilhada com os contos de
fadas, que parecia que nunca tinha escutado aquilo na vida?
O que eu achava que era uma bobagem que não tinha
necessidade acabou sendo o meu foco de trabalho, eu comecei
a contar histórias e dali eu partia para a alfabetização:
palavras que fossem do interesse deles, construção de
desenhos, trabalhei muito com dobraduras, coisas que eu
sabia, eu apliquei na turma coisas que eu sabia.”
A professora constrói um caminho com seus alunos, onde costura aquilo que
sabe com aquilo que aprende com eles. O que pode ou não interessar a Kátia, para nós
uma moça de 16 anos? O que pode ou não interessar ao Davi? Acreditávamos que
aquele universo dos contos de fadas não seria ideal para a concepção que tínhamos de
partir” da realidade daquelas crianças, o que eles mostraram é que talvez soubéssemos
um pouco sobre o que era a realidade deles, mas o que sabíamos sobre seus desejos?
Não é incomum, pensarmos o currículo como um momento anterior à prática.
Esta organização cartesiana, onde: primeiro pensamos, depois realizamos, e por fim
avaliamos não o processo, mas os resultados (?). Esta concepção curricular tem nos
afastado da discussão do currículo real, do currículo praticado, vivido, disputado, tem
nos afastado do que há de substancial nesta discussão. Enquanto enveredamos nas
discussões antagônicas e polarizadas, se o Ciclo ou Série são “culpados” pelo fracasso
escolar que assistimos em tantos lugares e de tantas maneiras diversas, um projeto de
escola que não está mais fundado apenas no Ciclo ou na Série enquanto unidades
herméticas, é tecido neste espaço praticado, é tecido nas relações que se estabelecem.
Os alunos na turma de Progressão não ocupavam nem as séries nem o ciclo, mas teciam
junto a sua professora os significados para o espaço que ocupavam. Teciam com sua
professora o currículo que ia de encontro aos seus desejos. Lutavam por ele, escreviam
através de suas práticas, para o leitor atento, que escola desejavam, o que desejavam da
escola.
Ao subvertemos esta lógica podemos começar a pensar este currículo como
processo, onde o fazer / pensado – a práxis – passa a ser tomada como ponto de partida
e chegada, onde o vivido possa ser refletido, não antes – em uma idealização do real –
nem depois – em análises do real – mas durante, quando faz sentido pensar a ação para
transformá-la, quando os sujeitos produzem, ao moverem-se, os sentidos dessa escola,
quando os acontecimentos podem servir como avaliações de nossas intenções e
discursos. Esta concepção do currículo como práxis exige de nós educadores esse olhar
inquieto, atento, esse entendimento do ensino-pesquisa como uma unidade indissociável
como nos revela as reflexões da professora Virna:
“Eu estou o tempo inteiro assim: vamos decidir na
democracia, tudo eu faço eleição lá na sala e o voto é secreto.
Eu tenho a caixinha eles vão lá e botam o voto deles ali. Ai
teve a mãe da Valery que reclamou que estava tendo vídeo
toda quinta feira, ai eu expliquei o vídeo também é
pedagógico, ele incentiva nossos alunos a escreverem, e a mãe
dela reclamou. Ai eu falei para turma que eu ia cancelar o
vídeo. Uma atitude o que? Eu estava com raiva, e ai..” tia vai
acabar assim com o vídeo? Ta bom fiz a votação. Foram 27
votos contra 1. Contra. Esse contra já sabia de quem foi né?
Exatamente da menina que a mãe não queria o vídeo..ai
passou.”
A professora pretende ensinar valores democráticos para seus alunos e
estabelece uma prática com a turma. A mãe questiona uma outra prática desta mesma
turma. Pressionada a professora esquece a prática que ela mesma estabeleceu e tenta
tomar uma atitude autoritária e neste momento a turma indignada conclama a votação,
assim como em vários outros momentos mencionados na entrevista. A professora volta
atrás e restabelece a prática. A dinâmica do vivido nos mostra não uma ação educativa
planejada-executada, mas uma ação educativa em movimento sem dúvida. Educativa
para alunos e para a professora que vão estabelecendo no conflito de interesses, no
diálogo e na negociação a escola que desejam, vão aprendendo uns com os outros os
desafios do jogo democrático, em um espaço que permite que os sujeitos aprendam a
jogá-lo.
Podemos refletir: esta dinâmica do vivido é possível de ser apreendida? Será
possível pensar um currículo que tenha o vivido como elemento constitutivo, assim
como buscamos uma pesquisa e uma reflexão que tem no vivido sua matéria prima?
Mas podemos refletir também: será possível pensar um currículo real (e uma pesquisa e
uma reflexão) que não tenha o vivido como elemento constitutivo? É possível pensar
um currículo que ignore as práticas educativas a partir de sua própria dinâmica.
Será possível construir um currículo dessa escola que desejamos (ou na grande
maioria dos discursos dizemos se desejar) democrática que desejamos comprometida
com a emancipação das classes populares, que desejamos justa, sem entender este
currículo como um espaço dinâmico, onde os sujeitos produzem esta democracia, esta
emancipação?
Talvez a construção – que aqui se assemelha ao percurso, pois tem começo,
meio e fim – não seja a resposta para a compreensão deste currículo que defendemos.
Por isso prefiro pensar o currículo, como nos sugere Ferraço, em redes: “Não existe um
único currículo na escola, mas inúmeros currículos-redes, metamorfoseados, plurais,
complexos, heterárquicos e impossíveis de ser apreendidos em sua totalidade” (revista
Pátio,fev./abr./2006).
O currículo praticado defendido por Ferraço é viabilizado pelas redes que se
estabelecem na escola. O que eu defendo é uma reflexão profunda, uma observação
atenta e um debate democrático sobre como as práticas cotidianas se articulam, para que
a escola possa, no processo de discussão de suas relações (entre saberes e entre
sujeitos), de seus fazeres, de seus discursos, ir tecendo seu currículo, sem a ilusão de
capturar todo o vivido, sem a ilusão da totalidade, mas com a certeza (e esta está entre
algumas que eu me permito ter) de que o processo atento, sério, em busca dessa
compreensão nos levará a uma escola melhor.
É fundamental que, principalmente na área da educação, tenhamos cuidado ao
pré-supor, pré-julgar, pré-diagnosticar este “outro” que se apresenta diante de nós. Ter
em mente que somos sempre o “outro” de alguém também, que estará igualmente nos
pré-supondo. Criamos sujeitos em nossas mentes, fruto de nossos preconceitos e
conceitos, e muitas vezes esquecemos de ir ao encontro dos sujeitos reais para conhecer-
lhes de fato, e conscientes de que mesmo assim, conheceremos apenas partes desse
sujeito. Idealizamos alunos, pais, professores, diretores, coordenadores e sem piedade
reduzimos cada individualidade, cada singularidade, cada intersubjetividade, aos nossos
rancores, aos nossos medos, às nossas fantasias. Tentamos encaixar – ou reduzir – o
“outro” em um personagem conhecido de nossa própria narrativa. Narrativa
ambivalente onde se o “outro” diferente me assusta e me instiga o “outro” semelhante
me apavora.
A pesquisa com o Cotidiano nos obriga a duvidar de nossas idealizações e por
isso nos coloca muitas vezes de frente a sujeitos que depois de anos habitando a
escuridão de nossa “visão” iluminista, passam finalmente a ser vistos, não
absolutamente, mas em sua complexidade. O que encontramos nos desorienta, nos
desafia, nos intriga e nos faz crescer. Esta consciência nos obriga a tornar o movimento
dos sujeitos frente aos acontecimentos o lócus privilegiado para a pesquisa.
Ao rompermos com uma concepção engessada deste currículo preso em si
mesmo, arauto muitas vezes de intenções vazias, mergulharmos em uma concepção de
currículo não como estrada, mas como circuito, ou como rede, caminho sem começo e
sem fim. Processo que se pratica, se vive e se tece a múltiplas mãos. Caminhos com
muitas entradas, muitas saídas. Percurso feito por muitos sujeitos, que nem sempre (às
vezes ou quase nunca!) caminham na mesma direção.
Coloco-me assim, ao lado dos que defendem este entendimento de currículo
como prática curricular. Prática que se desenvolve nos espaços de diálogo, na escuta do
silêncio (na dialogicidade) nas redes de relações entre aqueles que inscrevem nas
paredes de cada escola todas as histórias que aquele espaço representa para cada um, o
que representa para todos nós.
Defendo a prática curricular como este espaço onde o sentido da escola é escrito
e também inscrito. Onde ela se torna real para os sujeitos que a praticam, que nela se
movem. Defendo que a prática curricular é um lócus educativo por natureza, onde os
valores, conceitos, ideais são tecidos, recriados, destruídos, resignificados. Onde a
escola se faz.
Prática nem sempre fácil, quase nunca tranqüila, nem sempre possível. Porque
vencermos nossos discursos conservadores é muito mais fácil do que vencermos nossas
práticas conservadoras. Porque assim como não posso enquanto pesquisadora despir-me
de mim mesma (mesmo que possa a cada página reiventar-me), também não posso
despir aos “outros” das projeções e leituras (sempre parciais) que faço deles. Alteridade,
diálogo e poder, quais os limites e quais os espaços possíveis para estas relações?
Este seja talvez o meu maior desafio, e a minha verdadeira busca.
O ano de 2006 iniciou-se tenso e as relações pessoais bastante abaladas.
9. FRONTEIRAS DO DIÁLOGO
Entre muros e pontes.
Ao trabalhar diretamente no processo de matrícula, as diferenças sobre: a
organização das crianças por turma, a organização do espaço escolar, a alocação de
professores por séries e turmas, etc. até então discutidas “amigavelmente”, tornaram-se
cada vez mais acaloradas e, às vezes, desrespeitosas. O que causou um grande desgaste
nas relações entre a equipe, ou mais especificamente, da equipe técnico-administrativa
com a Direção.
O Sistema de Controle Acadêmico (SCA) matricula automaticamente todos os
alunos, distribuindo-os indistintamente, já que discursivamente trabalhamos com
inclusão de todos, sem discriminações. Mas, em nossa escola instaurou-se ao longo dos
anos uma cultura de “arrumar” as turmas. Esta arrumação significa que professores se
reúnem com a Direção e a Coordenação para separarem os alunos segundo suas
avaliações e, principalmente, segundo o seu comportamento (que não raramente,
coincide com um histórico sócio-econômico-cultural bastante cruel), estabelecendo as
turmas “fortes” e as turmas “fracas”. Isso explicado com os velhos ditos populares
“Temos que separar o joio do trigo” ou ainda “uma maçã podre estraga todo o barril”.
Como isso não havia sido feito – como de costume – ao final do ano de 2005
pela Coordenadora, no início do ano, a Direção, junto com os professores resolveram
(após todas as turmas montadas) recolocar os alunos. Tivemos assim que redistribuir os
alunos (717 segundo SCA) por turma, um a um, no Sistema de Controle Acadêmico.
Um serviço que além de ser, no meu modo de ver, uma prática lamentável de seleção e
classificação, era fisicamente insano.
Esta prática (também curricular) causa quase sempre um inicio de ano
tumultuado, onde nem professores, nem alunos, nem pais sabem ao certo onde estão
seus lugares. Um processo que seguiu ao longo dos meses, com professores
“reclassificando” alunos e muitas vezes trocando alunos de sala e turno, sem mesmo
comunicar à secretaria. Prática que gera situações no seu limite cômicas, já que
chegamos ao ponto de termos alunos freqüentando nossa escola, estando matriculados
efetivamente em outra unidade escolar, explico: o pai foi ao Pólo de matricula em
janeiro, mudou as crianças de escola, mas não comunicou nem a nós, nem as crianças,
que continuaram indo para a escola que estudavam – a nossa – normalmente.
Em meio ao processo enlouquecedor de troca e destroca aluno (não só
fisicamente, mas no Sistema Acadêmico, nas fichas dos arquivos, nos diários etc.),
tentava compreender como esta cultura escolar construída ao longo de anos e anos,
tornara-se especialmente resistente sempre encontrando mecanismos para, mesmo
atravessada por novos paradigmas, por novas teorias, por novas concepções,
permanecer. A distância entre nossas intenções, nosso Projeto Político Pedagógico e
nossas práticas, nossas táticas, mais uma vez desafiavam-me a compreender como estes
espaços são tecidos, compreender o currículo praticado de minha escola.
Segundo Bakhtin (ou Volochinov, há controvérsias), compreender é tomar uma
posição, ou seja, como seres axiológicos, ao buscarmos a compreensão do discurso
(enunciado) das práticas e dos silêncios dos outros estamos necessariamente nos
posicionando diante destes textos de uma maneira responsiva.
O diálogo compreendido não com a “conversação” ou com o diálogo face-a-
face, mas com as forças que atuam sobre este diálogo, com a construção dos sentidos
através deste espaço de fronteira onde as vozes sociais se confrontam produzindo novos
sentidos.
Mesmo com a crença na construção deste espaço de diálogo – entendido não
como conversa harmoniosa, mas como um espaço de fronteira onde as vozes sociais se
confrontam – me sentia refém de minha própria indignação frente à reprodução dos
mecanismos de classificação, seleção e como já havia sido visto anteriormente, de
exclusão.
Novamente me sentia sendo rasgada ao meio. De um lado este espírito – ou
arrogância, não sei - que me impulsiona a combater violentamente estas práticas que
considero absurdas, de outro lado o compromisso ético de respeitar uma compreensão
diferente da realidade e estabelecer um espaço produtivo de diálogo.. (...) não sou eu
mesmo um outro para mim mesmo, quando sou e não sou aquele que foi construído e
sujeitado segundo o acatamento de um princípio de identidade histórica e socialmente
determinado? (Larrosa e Lara, 1998, p.9) Ser ou não ser é fácil. Ser e não ser, esta é a
questão. Habitar este entre-lugar sem saber ao certo, quando olho para vivido, de qual
margem do rio o observo e o quanto isto desfigura, transforma, ou cria este real em
mim. Viver no rio, na correnteza, deixando a segurança das margens, tornar-me este
outro em mim, sem deixar de habitar-me, negociá-los em mim, antes de afogar-me.
Práticas que na concepção da Diretora Ana Maria, a quem eu deveria apoiar,
eram históricas e na sua maneira de compreender a escola, legítimas.
“Então isso é uma questão de bom senso. Onde está escrito
que o professor escolhe turma? Também não está escrito isso
em lugar nenhum, pode pegar o estatuto que lá não tem isso.
Mas existem esses acordos, essa história foi sendo construída
assim: eu cheguei primeiro eu escolho na frente, eu cheguei
primeiro...e convencionou-se também que o primeiro turno é o
melhor, então todo mundo só quer trabalhar no primeiro
turno, se você perguntar na escola hoje quem quer trabalhar
no segundo turno, se o prefeito disser assim, a partir do mês
que vem nenhuma escola da prefeitura vai funcionar no
primeiro turno. Ele vai sofrer muito porque os professores vão
parar, ninguém quer trabalhar no segundo turno. Então uma
outra coisa assim que se convenciona assim ao longo dessa
história é que as melhores turmas estudam de manhã. Muitos
pais quando você pergunta: - Mas porque o senhor faz
questão que seu filho estude de manhã? – ele responde – Ah
porque de manhã estudam as melhores turmas. No meu tempo
já era assim, quer dizer no tempo dele, as melhores eram da
manhã. Eu não sei como isso se construiu eu não sei de onde
saiu isso eu só sei que é assim. Eu desde que eu cheguei ao
município eu sempre peguei turmas muito difíceis, eu nunca
me senti assim afrontada, sempre que eu cheguei às escolas eu
sempre soube que as turmas melhores não eram pra mim e eu
me contentava com o que eu tinha e quando eu tive também a
oportunidade de trabalhar com uma turma 301 que ela era
uma turma melhor do que a outra da outra escola, que ela era
uma 110, na outra escola uma 108...”
São muitas as convenções não escritas. Muitas outras ainda nem ditas. Práticas
que se instauram nas salas, corredores, pátios escrevendo a história de cada escola,
práticas que as tornam únicas, singulares. Algumas compartilhadas por muitas outras
escolas, mas sempre de maneira diversa.
“Onde está escrito?” Onde está escrito que as crianças devem ser classificadas
em fortes ou fracas, em possíveis e impossíveis, em com ou sem futuro, em com ou sem
jeito, em com ou sem direito à qualidade de ensino? Onde está escrito que alguns de nós
educadores simplesmente não acreditamos que aquela criança valha a pena, que é um
caso perdido? E se estivesse escrito, quem assinaria?
Dentro desta lógica, defende-se que ao agruparem por “níveis” de aprendizado
estas crianças podem ser atendidas com mais eficiência. Que as turmas muito
heterogêneas impossibilitam o bom trabalho do professor. E isto realmente acontece
quando o professor a frente de uma classe heterogênea insiste em uma prática
pedagógica pasteurizadora, homogênea e monológica. O fracasso, em muitos casos, fica
evidente.
Mas o que fracassou? A organização heterogênea da turma ou a prática
homogênea do professor?
Onde está escrito que alguns professores, por tempo de serviço, devam ser
“premiados” com turmas “boas” enquanto os recém chegados devam assumir as turmas
“fracas”? Não está escrito, mas está inscrito. Não está registrado, mas é praticado. Não
é a escola que dizemos, mas é a que muitos de nós fazemos. E é também a escola que
muitos de nós tentamos superar, refletindo e reinventando nossas nas práticas. Por isso
mesmo espaço de tensões e conflitos permanentes.
A voz de Paulo Freire ecoava em minha mente enquanto tentava compreender
porque, mesmo acreditando no processo democrático de construção da escola, era tão
difícil praticá-lo. As discussões acaloravam-se e a disputa pelo poder tornava-se cada
vez mais clara. Estavam colocados dois projetos aparentemente distintos de concepção
de escola. Projetos que coexistiam e coexistem sempre, assim como muitos outros
projetos, dentro do mesmo espaço e tempo vividos por sujeitos que estão colocados
frente a frente com o desafio de fazer este espaço ser viável pedagógica e politicamente.
Mas como tecer os caminhos desta escola com projetos tão diferentes? Como
estabelecer um diálogo que permita a construção democrática quando as disputas
políticas e as concepções de mundo, sujeito, sociedade estão colocadas em posições tão
diametralmente opostas? Como pensar com este “outro”? Freire me pergunta: e como
pensar sem ele? Como realizar com este “outro”? Freire assombra-me: e como realizar
sem ele? Percebia que falar de democracia tornara-se muito mais fácil do que praticá-la
coerentemente.
A cobrança por uma radicalidade democrática degladiava-se com a indignação,
no meu entender legítima, contra um projeto excludente. Mas como defender a inclusão
se não reconheço no outro o seu direito ao mesmo espaço, a mesma voz?
Por que era tão fácil respeitar as opiniões contrárias dos meus alunos das classes
de EJA ou dos pais de meus alunos e era (ainda é!) tão difícil respeitar as opiniões
conservadoras de minha diretora e de outras professoras?
Talvez porque, com os meus alunos e com os pais de alunos, estivesse tão segura
quanto aos espaços de poder delimitados por fios invisíveis que não precisasse instaurar
esta disputa (mesmo ciente de que ela existe). Permitia-me ser magnânima e conferir
voz ao outro. Talvez porque eles não ocupassem (aparentemente) um lugar de poder
decisório, que comprometesse o futuro de tantas e tantas crianças. Ou não ocupassem
um lugar de poder que possuísse meios tão concretos de produzir aquela escola que eu
tanto combatia. Talvez porque como “outros” representavam o que eu esperava deles.
Cambaleava por caminhos tortuosos. A busca – ilusória que seja – por coerência
me obrigava a um exercício constante e doloroso de tentar compreender como o espaço
do diálogo – esta fronteira onde milhares de vozes, que se traduzem e ecoam nos nossos
discursos, se cruzam, se apoiando ou se confrontando – pode se constituir mesmo
estando permanentemente atravessado por estas relações de poder. Por esta alteridade
tão absoluta que torna a presença do outro intolerável
O confronto, além de ser inevitável, já que a aparência de harmonia, não
raramente esconde uma tirania, uma correlação de forças muito desigual, era necessário
para a construção saudável da prática democrática fundada no diálogo que defendo, do
mundo que quero e acredito.
Encontrei em Bakhtin, por intermédio de Faraco, como pesquisador e estudioso
dos discursos de tantos outros estudiosos, um exemplo de metodologia e ética, ao ouvir
estas vozes respeitando sempre o lugar de onde fala cada autor, buscando ser fiel às
palavras, idéias e estruturas do enunciado, da voz do outro. Respeito devido, não só às
vozes dos autores, como aos sujeitos da pesquisa. Segundo Faraco (1993, p.197)
Bakhtin dialoga, instaura uma interlocução, afastando-se se de uma postura que busca
estabelecer a imposição dogmática ou uma relação acrítica com as vozes dos outros
sujeitos, se coloca em movimento: enuncia a partir da crítica aos fundamentos dos
discursos do outro e espera uma resposta.
Busca, mais do que um discurso que supere dialeticamente o outro, uma
superação dialógica. Procuro este exercício de construção epistêmica onde os discursos
possam se entrecruzar neste espaço de fronteira, onde as vozes sociais possam se
encontrar para instaurar um diálogo, onde possamos tecer uma relação dialógica, onde
estas vozes ao se confrontarem possam produzir novas vozes sociais. O diálogo eterno.
Minhas inquietações dirigem-se para esse espaço onde o diálogo com um
“outro” torna-se possível e construtivo. Contribuições que encontramos também em
Paulo Freire e que orientam nossas reflexões sobre estas relações dialógicas como
caminhos possíveis e necessários para a construção das práticas democráticas no interior
da escola, caminhos para a construção diária de práticas democráticas em nós e na
sociedade. Práticas democráticas tecidas no conflito, nas disputas ideológicas pela
hegemonia, mas fundadas no diálogo, na negociação que nos permite encontrar soluções
para nossos problemas, caminhos a serem percorridos, que nos permitem mover-nos
mesmo quando a síntese entre os termos ou o consenso não são possíveis (e quase nunca
são!).
Para crescer com este “outro” acredito ser preciso que se estabeleça uma relação
honesta, interessada, verdadeira, respeitosa. Será possível esta relação quando a disputa
pelo poder e os interesses e projetos de mundo são adversários? Mas mesmo quando
adversários, será que existe entre nós, seres humanos, esta alteridade absoluta? Quando
colocamos o outro e nos colocamos como este outro absoluto e negamos a possibilidade
de negociação não engessamos nossas próprias possibilidades de movimento?
Encontro-me cada vez mais desafiada por esta relação poder – diálogo. O espaço
fronteiriço entre o utópico e o possível, limites que sempre parecem mover-se como as
dunas do deserto. Ao longo da pesquisa, percebi que esta relação vai sendo tecida entre
os sujeitos que se movem diante dos desafios que a realidade impõe. Desafios que ora
privilegiam o diálogo, ora se dobram diante de práticas autoritárias. Seria possível
estabelecer uma relação mais equilibrada, mais constante, para a construção de um
projeto democrático de escola ou este movimento que percebo, de perdas e ganhos é
intrínseco ao próprio movimento histórico dos sujeitos em movimento e luta?
O desejo por um projeto de escola que pudesse nascer e crescer evolutivamente
se esfacela diante do real. A sentença de Certeau me atormenta como um oráculo: “o
que ganha não conserva”, mas começa a fazer sentido: não conserva porque é histórico,
porque é movediço, porque é rizomático e não linear. Porque a força dos
acontecimentos desafiam os sujeitos em momentos únicos convidando-os a articulações
únicas e respostas únicas diante das situações que se impõem.
Defendia o diálogo e os espaços de negociação possíveis. Acreditava na
necessidade de formarmos seres humanos capazes deste fazer - junto. Mas a consciência
e a defesa apaixonada destas possibilidades e necessidades seriam suficientes para
estabelecer uma relação mais interativa, democrática e respeitosa com o “outro” naquele
momento? De que forma esta relação pode se estabelecer quando se encontra
atravessada por relações de disputa e de poder tão vigorosas? Este aparente
antagonismo pode ser vencido? Podemos tecer e disputar ao mesmo tempo? Estar contra
e ao lado? O vivido me questionava e Bhabha me respondia:
“A linguagem da crítica é eficiente não porque mantém
eternamente separados os termos do senhor e do escravo, do
mercantilista e do marxista, mas na medida em que ultrapassa
as bases de oposição dadas e abre um espaço de tradução: um
lugar de hibridismo, para se falar de forma figurada, onde a
construção de um objeto político que é novo, nem um e nem
outro, aliena de modo adequado nossas expectativas políticas,
necessariamente mudando as próprias formas de nosso
reconhecimento do momento da política” (Bhabha,1998, p.
51)
Ao nos afastarmos deste antagonismo que mantém eternamente separados,
termos aparentemente opostos, começamos a pensar sobre como se dão estas relações
híbridas que inauguram um novo lugar, lugar onde temos de negociar com o outro e em
nós mesmos nossos antagonismos. Quais as possibilidades deste lugar (discursivo e
espacial) ser realmente um novo lugar ou apenas um lugar onde a conquista hegemônica
eclipsa as lutas entre os termos, silenciando as vozes minoritárias? Ou na coexistência
de ambos como perceber-lhes a diferença? Como tecemos nas relações dentro da escola
este oposto-complementar? Será que esta formação hibrida, que permite encontrar em
mim a voz do outro e encontrar no outro vozes que me sejam familiares, para
instaurarmos ai um diálogo, está sempre presente ou existem opostos-opostos
(momentaneamente que seja) irreconciliáveis, fabricados pelo mesmo real que gera os
híbridos?
Assim como o vivido me fazia acreditar nesta possibilidade de compreender o
mundo afastando-me dos opostos bipolares para fundar neste espaço fronteiriço um
novo lugar, o mesmo vivido moveu-me nesta fronteira, mostrando que não há espaço
fixo, seguro ou permanente onde possa fundar bandeiras. O vivido não permitiu que eu
transformasse os espaços (lugares praticados) – lugares projetados para os “outros” e
marcados pelas mesmas relações de alteridade – em lugares em permanente oposição, já
que uma vez concluídas as reflexões sobre estes, se moviam mantendo-se fieis a sua
natureza de não ser o estabelecido. Os lugares praticados ensinavam-me a percebê-los
neste movimento, muito mais do que uma simples intercessão entre outros lugares
determinados, lugares realmente hibridizados, onde vozes e práticas se confrontam e se
complementam. Este lugar, uma vez transformado em espaço pelos praticantes, não
aceita os limites impostos pelas fronteiras e sempre se movimenta para além destas,
instaurando sempre novos outros - lugares, novos espaços, novos limites, novas
fronteiras. O vivido desafia-nos (impiedosamente!) a encontrar um lugar praticado pelos
sujeitos (um lugar mesmo secularmente constituído e estabelecido) que não seja hibrido
e deslizante.
O cotidiano de minha escola me levou a pensar o lugar (ou os lugares
legitimados) não como uma oposição – o que seria voltar à bipolarização moderna – a
um outro - lugar (marginal), espaço do eu/nós versus o espaço dos eles/outros, mas em
espaços deslizantes que em certo momento assumem, com maior ou menor visibilidade,
os discursos que os produzem como lugares legítimos ou marginais.
Se por um lado essa cisão absoluta e a totalidade das partes – lugares ou sujeitos
– como unidades herméticas mostra-se um equívoco, podemos perceber neste
movimento do real, que a sua união em uma totalização absoluta também não seria
possível, visto que o conflito, o debate, a tensão entre as partes que formam o todo são
insuperáveis, já que sua superação seria o silenciar da história. Tanto sujeitos como
lugares (quando praticados) são essencialmente dialógicos.
Ao mover-me por vários lugares, tecendo diferentes espaços, comecei a perceber
como os discursos que fabricam a legitimidade ou a marginalidade, projeções de nossa
necessidade de cindir o mundo, são projeções as quais o real não se submete.
Um lugar e um outro - lugar, estes espaços que tendemos a reconhecer como
ordem e caos, dentro e fora, nosso e do “outro” (Ciclo/Progressão ou Ciclo/Série)
acabam produzindo, ou se revelando, espaços híbridos. Ao mudarem os sujeitos, ao
mudarem as relações mudam-se as definições do que é um lugar e do que é um outro -
lugar, ou seja, o movimento produzido pelos sujeitos e pelas relações de poder que estes
estabelecem, borram também as fronteiras como limite, estabelecendo outros limites e
novas definições do que é e do que não é legítimo ou marginal dentro da escola.
Isto me leva a perceber que só posso definir e identificar um espaço marginal,
um lugar em oposição ao lugar legitimado, a partir de seu recorte histórico e
momentâneo, mas posso, contudo, identificar nas disputas e nas relações de poder os
mecanismos que os sujeitos utilizam para produzi-los, legitimá-los, suprimi-los ou
mascará-los. Lendo-os através dos processos de lutas que os produziram, nas ações dos
sujeitos que os constituíram como nosso lugar e lugar dos outros, posso buscar
compreender quais as forças que atuam sobre estes espaços, quais projetos encontram-se
em disputa, para a escola e para o mundo.
A metáfora do caminhar então me desafia. Negando-se a me oferecer um único
caminho que eu possa fazer caminhando, me abandona nestas placas (tectônicas) que se
movem sob meus pés, formando terremotos e maremotos à medida que deslizam e se
chocam.
Bhabha também defende este espaço da negociação, propõe que nos afastemos
desta dicotomia arquitetada que encontramos desde o berço do mundo moderno:
“Quando falo de negociação em lugar de negação, quero transmitir uma
temporalidade que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou
contraditórios” (Bhabha, 1998, p.51). Fazia sentido que compartilhasse desta idéia já
que compartilhava deste projeto que busca escrever a história com os “outros”. Fazia
sentido que compartilhasse desta idéia já que acreditava que a alteridade é sempre uma
projeção que faço do “outro”, uma ilusão que construímos para explicar um outro que
temo (e desejo) de repente perceber igual (ou semelhante) a mim.
Os momentos vividos em 2004 assombram-me em 2006. Momentos de tantas
lutas, tantas reflexões, tantos diálogos e tantos fazeres. Eu e Virna com nossos violões
buscando seguir pelo caminho percebido tão intuitivamente, contando histórias. Ana
Cristina percebendo que suas crianças e seus adolescentes, para além de nossas pré-
concepções sobre a pobreza e sobre a infância, desejavam os contos de fadas, a
princípio tidos por nós como muito distantes do “mundo” daquelas crianças e jovens.
Obrigadas tantas vezes a nos despir-nos do que sabíamos – ou pensávamos saber – para
tecermos novos saberes, para descobrir, cada uma com sua turma, e apenas com sua
turma, outros caminhos. Caminhos que às vezes se cruzavam em práticas coletivas –
quando juntávamos todas as Progressões para sessões de contação e cantação de
histórias – que transbordavam invadindo o Ciclo e as Séries – toda a escola passou a
querer também – às vezes eram caminhos únicos de cada turma. Caminhos que tantas
vezes pensei ser o começo de uma outra história em nossa escola...o que aconteceu?
Daniel e Davi saem da escola e seguem pelo mundo, criando outras articulações,
utilizando-se de outras táticas com outros sujeitos, escrevendo outras histórias.
Seguimos neles? Não sabemos. Talvez. Com certeza eles seguem em nós, em mim, em
Ana Cristina. Seguem aqui.
Mas a escola que tecemos durante todo aquele ano começa a esgarçar-se como
pano velho, ao mudarem os sujeitos de lugares, ao mudarem seus fazeres, uma outra
escola começa a ser tecida, uma escola que se afasta, dia a dia, pouco a pouco da escola
que fizemos, com nossos erros e acertos, acontecer.
Os Corredores Culturais – mostra aberta aos pais dos trabalhos dos alunos, com
danças, músicas, maquetes, cartazes, etc. – que aconteciam para finalizar o trabalho do
bimestre ou de um tema importante no projeto da escola, acontecem cada vez mais
raramente até que se extinguirem em 2006. Os violões silenciam-se.
Talvez esta sensação de perda, talvez esse esfacelamento (como eu sentia) de
alguma coisa que para mim era tão cara, fosse responsável por meu distanciamento
daquela escola que estava sendo construída. Talvez este novo lugar que passei ocupar
no grupo dirigente da escola, após ter ocupado tantos outros lugares dentro da mesma
escola, tivesse me levado a perceber e sentir esta escola de outra maneira. Percepções
que me colocavam, frequentemente, contra as práticas e discursos que, no meu
entendimento, não contribuíam para a construção de uma escola de qualidade e para a
inclusão dos alunos.
O vivido desafiava-me a permanecer fiel às minhas crenças e saberes. A partir
de determinado momento, tornou-se impossível permanecer ao lado. Por isso, solicitei
minha dispensa da função de Apoio à Direção, que foi prontamente aceita, e retornei
(muito feliz!) para a sala de aula. Não havia espaço no projeto de escola que estava
sendo encaminhado (ou desencaminhado?!) para mim, e não havia em mim, espaço para
aquele projeto da escola. Neguei-me à negociação. O chão deslizava levando-me para
outro caminho, em outra direção.
Mesmo sentindo-me aliviada, sentia que falhara de alguma forma. O diálogo,
naquele momento, perdeu. Não havia em mim a possibilidade de estar junto, de ficar ao
lado. Talvez por intolerância, talvez por coerência. Talvez por impaciência, talvez por
ética. Talvez simplesmente porque perdera a esperança de conquistar um espaço
legítimo de diálogo. Talvez por fidelidade a mim. Talvez por tudo isso um pouco.
Como costumo fazer – após encher os ouvidos das minhas pobres colegas com
minhas inquietações – procurei nas páginas dos livros, no diálogo com vozes distantes,
alguma espécie de conforto (hábito quase religioso!) para meu conflito:
“Como criaturas literárias e animais políticos, devemos nos
preocupar com a compreensão da ação humana e do mundo
social como um momento em que algo está fora do controle,
mas não fora da possibilidade de organização” (Bhabha,
1998, p.34)
Talvez Bhabha não tivesse a intenção de me confortar (mas a palavra é como um
pássaro: depois que deixa o ninho não tem mais pouso certo) no entanto a possibilidade
de organização soava-me como uma palavra de esperança para tudo o que eu achava
fora de controle.
Porque eu não conseguia trabalhar democraticamente na diferença? Porque as
diferenças geradas naquele momento se tornaram tão caóticas para mim que não
conseguia enxergar uma possibilidade de organização, a ponto de preferir não lutar?
Covardia ou estratégia? A história se impunha novamente. O real movia-se. Perdas e
ganhos.
Percebia, não sem certo aborrecimento, que não conseguia abandonar uma
concepção fixa do lugar do outro, como um lugar em oposição ao meu. Se em relação
ao meu aluno de Progressão consegui de certa forma afastar-me, se não por completo ou
sempre, mas em algum momento desta representação binária de nossas identidades e
colocar-me ao lado, naquele instante colocava este novo “outro” (no caso a Direção) em
um lugar oposto ao meu. Mas se “Como princípio de identificação, O Outro (...) é
sempre ambivalente, desvelando uma falta” (Bhabha,1998,p.86) o que exatamente esta
relação evidenciava que eu não conseguia (consigo) ver?
Enquanto escrevia sobre diálogo, inscrevia-me no silêncio arrogante que não
acredita no outro como interlocutor digno. Também eu movia-me tecendo relações de
intolerância que produziam um currículo que se afastava de minhas “melhores”
intenções. Também eu produzia idealizações e projeções sobre este “outro” e ao me
afastar dele, afastava-me de mim mesma.
Todo este processo me convidou a aprofundar a compreensão de como estas
relações vão se desenvolvendo, em momentos nunca eternizados, mas sempre
deslizantes dentro da escola. A forma com estabelecemos estas relações em diferentes
tempos históricos que desenharam realidades complexas e mutáveis. O que torna a
narrativa do cotidiano esta viagem vertiginosa. Viagem cheia de atalhos, barreiras e
desvios. Viagem em que nem sempre conseguimos manter o controle do leme.
Percebia que todo o caminho de reflexão percorrido em busca do entendimento
deste “outro” ganhara novos contornos. Até então pensara o aluno, ou o pai como este
outro. Ao mudar-me de lugar (da sala de aula para a secretaria) e ao mudar-me de
função (professora para Apoio à Direção), estabelecia com os mesmos sujeitos de antes,
relações diferentes. Ao movimentar-me a partir de outro lugar dentro da mesma escola,
tornara-me diferente, quisesse eu ou não, pois as relações estabelecidas através deste
novo fazer colocaram-me de outra forma tanto para aqueles que me conheciam, como
para mim mesma, inaugurando uma nova relação. Havia trilhado um longo e tortuoso
caminho em um curto espaço de tempo dentro de minha escola. Desde minha chegada
em 2001 com minha passagem rápida pela turma de Educação Infantil, já havia sido
professora das turmas no Ano II e Ano I do Ciclo, professora da 4ª. série, professora de
duas Progressões em tempos distintos, professora do PEJA e Apoio a Direção.
De onde estava – na secretaria – possuía agora conhecimentos diferentes sobre a
mesma escola. Conhecia a forma como as crianças e professores eram escolhidos,
selecionados e colocados lado a lado; conhecia como esta prática desorganizava a escola
desde sua saída no ano letivo e seguia causando não só esta classificação e exclusão
absurda, mas uma série de problemas, a meu ver, desnecessários; conhecia as práticas
instituídas para estabelecer as relações com pais, alunos e professores fundadas ora no
descaso, ora no autoritarismo, ora no paternalismo; conhecia como os caminhos
burocráticos produziam entraves desnecessários para a construção da qualidade desta
escola.
Possuía atribuições diferentes dentro do mesmo espaço ao mesmo tempo em que
conservava outros conhecimentos adquiridos dos antigos lugares ocupados. Conseguia
compreender porque em todos os anos que estive em sala de aula, minha lista de
chamada jamais expressava a realidade de minha turma, porque os nomes na lista de
avaliação eram uns e na chamada eram outros. Conseguia compreender como o tempo
de trabalho na secretaria era gasto fazendo e refazendo documentos que simplesmente
se perdiam nos infinitos caminhos da burocracia.
Compreendia a produção das Classes de Progressão a partir de novos dados.
Compreendia a história deste espaço fracionado dentro da escola a partir de outras
informações que confirmavam algumas e negavam outras percepções deste tão
multifacetado real. E compreendia isto não a partir da sala de aula da Progressão, mas
de um outro lugar, também deslizante, que acabei ocupando dentro da escola. Minhas
funções de Apoio à Direção, que na verdade eram muito mais Apoio à secretaria da
escola, me colocavam frente a frente com esta escola visível em números da Educação
Infantil ao PEJA, me colocavam nesta fronteira entre as relações tecidas por
professores, pais, alunos e as instancias dirigentes, a Direção, a Coordenadoria, a
Secretaria de Educação, me colocava em um lugar de onde podia observar o movimento
produzido por estas interações e disjunções entre os sujeitos. Lugar que projetava luzes
diferentes sobre velhas e conhecidas pinturas, tornando-as inéditas. Ao ler a história
destas turmas através das tabelas geradas pelo Sistema Acadêmico, através dos dados de
suas fichas de matrícula, ela adquiria novas cores.
A professora Ana Cristina e a professora Virna assumiram no ano letivo de 2006
as duas turmas de Progressão que existiam na escola. A professora Virna iniciou o ano
como Diretora Adjunta. Por uma total incompatibilidade de tempo, não tive durante este
ano muito contato com a professora Virna, que por motivos pessoais se afastou da
Direção da escola depois de poucos meses no cargo.
A professora Ana Cristina sinalizou que estava se sentindo muito sozinha em sua
turma. Hoje, não existem mais (oficialmente instituídas) as reuniões de planejamento,
não existem mais a cumplicidade, o fazer junto, como existiu em 2004. Também ela
percebe com tristeza este movimento de perdas e ganhos, ou no caso, de ganhos e
perdas.
O número de turmas de Progressão (duas) não é mais uma ameaça, não é mais
um problema que expõe a escola, ou seja, está dentro dos níveis “aceitáveis”. Tornou-se
um incêndio controlável dentro da escola, perdeu seu caráter de acontecimento e,
portanto, seu poder mobilizador.
Ofereci-me para discutir com Ana Cristina e entrar em sua turma para
desenvolver atividades diferenciadas: cantar e contar histórias. Pensar junto estratégias
para desenvolver com as crianças. Este trabalho, infelizmente, durou pouco. No
primeiro semestre, pela necessidade de assumir minhas outras funções “burocráticas”
dentro da escola, e no segundo por haver retornado para sala de aula. Mas foi recebido
muito bem pelas crianças que me recebiam com alegria e pediam histórias conhecidas,
já que a maioria delas me conhece das “cantações e contações” anteriores. Este
movimento dentro da escola começou quando eu desde professora do E.I., e
posteriormente, a professora Virna desenvolvemos algumas atividades de Cantação de
Histórias (cantação mesmo, porque histórias cantadas ou musicadas). Esta parceria
ocasional em alguns momentos de festa na escola, estreita-se com nossa articulação em
2004 quando professoras das Progressões em busca de atividades que seduzissem
nossos alunos e termina por gerar uma parceria extra-escolar com a formação do
CONTART
66
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Se, enquanto sujeitos, continuávamos (eu e algumas professoras) nos movendo e
buscando práticas que fizessem sentido, se continuávamos tentando pensar e fazer um
currículo como grupo, como escola institucionalmente organizada, sentíamos (e nos
ressentíamos) com o que nos parecia ser uma profunda desarticulação desta escola.
Mas a escola então só era articulada quando havia uma articulação do grupo
dirigente, formado não só pelas professoras que ocupam os cargos de Direção, mas por
nós professores que também nos comprometíamos com a articulação desta escola?
Professores que como eu dividiam com a Diretora Ana e com a Coordenadora Virna
funções que iam desde fazer compras no Mercadão de Madureira, auxiliar na
organização da secretaria em momentos de emergência, gastar nosso tempo de lazer e
recursos para ver esta escola brilhar. O processo de articulação/ desarticulação
dependeria então desta organização, em certo momento, de um grupo que assumisse a
escola como um projeto? E os outros sujeitos? Onde estavam os outros professores, pais
e alunos que pareciam tão indiferentes com este silêncio que oprimia nossa escola?
O que levou o grupo – professores, pais e alunos – que em tantos outros
momentos participaram para a realização das festas, excursões, corredores culturais se
manterem silenciosos e passivos diante desta escola que se silenciava? Será que este
silêncio só incomodava a uns poucos ou incomodava mais a uns do que a outros?
Muitos professores que se incomodam com esta falta de articulação na escola optam
apenas por deixá-la, como percebemos em 2006, um grande entra e sai de professores,
66
CONTART: CONTA & CANTA.(www.contart.com.br)
com algumas séries tendo mais de dois professores ao longo do ano. Alguns que ficaram
já anunciam sua saída.
Talvez fosse necessário que esta articulação se expandisse e que mais sujeitos se
integrassem neste processo de pensar e fazer esta escola. Talvez em nossa ânsia de fazer
esta escola acontecer acabamos ignorando os outros sujeitos que mesmo estando
envolvidos, não estavam realmente comprometidos neste processo. O que amplia minha
questão inicial sobre qual escola meus alunos desejam para qual escola nós, pais, alunos
e professores desejamos? E o que estamos dispostos a fazer para torná-la real?
10. PERDAS & GANHOS
Atendendo a uma solicitação da Diretora, que desejava participar de concurso
sobre gestão eficiente, fiz um levantamento sobre a história – a registrada oficialmente
no SCA – das classes de Aceleração (2000/2001) e Progressão na escola. Os seguintes
dados foram apresentados por mim e pela diretora no Conselho de Classe do primeiro
bimestre:
Histórico das Classes de Aceleração e Progressão.
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Total U.E 379 545 635 651 696 649 717
Total alunos
Progressão
76 74 120 94 117 87 63
% 20% 13,57% 18,89% 14,43% 16,81% 13,40% 8,78%
Histórico das Classes de Progressão 2006 – Professoras Virna e Ana Cristina
Situação Quantitativo
Alunos oriundos do 2º. Ano do Ciclo outra U.E. 04
Alunos que cursaram a Educação Infantil no CIEP 15
Alunos que cursaram todo o Ciclo na Escola 38 (incluso os 15 do E.I)
Alunos oriundos de outras unidades para Progressão 10
Alunos oriundos em 2005 (Progressão) outra U.E. 4
Alunos oriundos em 2005 (ciclo) outra U.E. 2
Os dados demonstram que o número de alunos da escola aumentou quase 90%
nos últimos seis anos, enquanto que o quantitativo de alunos matriculados nas turmas de
Progressão apresentou sua menor incidência no mesmo período, o que de certa forma
deixou claro que ao contrário de uma percepção que nós (eu e algumas professoras)
tínhamos de que a escola produzia Progressão demais, na verdade este número vem
caindo.
Contudo, o dado que mais chamou a atenção da Diretora e mais foi debatido no
Conselho de Classe, foi o número de alunos que estão na escola desde a Educação
Infantil. Eu, Ana Cristina e Virna já havíamos sinalizado que a maior parte dos alunos
de Progressão era “cria nossa”. Já na percepção da Diretora Ana Maria, a escola tinha
muitos alunos oriundos de outras Unidades Escolares por isso não conseguíamos acabar
com estas turmas na escola.
Assim como os dados da história destas turmas me surpreenderam, o dado que
mais chamou atenção da Diretora foi o fato de quase 40 alunos serem alunos da escola
praticamente desde que o CIEP existe, e 15 destes desde a Educação Infantil.
Apesar de ser uma antiga discussão entre nós professores de Progressão e
Direção, os números deixaram claro que aquelas crianças que estavam a tantos anos em
nosso CIEP eram o resultado de nosso trabalho, ou da ausência dele.
Após a apresentação dos dados, algumas professoras me procuraram para
conversar e tentar justificar aqueles números, contando um cem número de histórias
sobre as possibilidades para aquele fracasso escolar.
Uma professora que havia trabalhado como psicóloga na própria Rede
Municipal do Rio de Janeiro, avaliando crianças com dificuldades de aprendizado,
contou-me alguns casos sobre crianças com problemas de visão e neurológicos que
foram ignorados por anos pela escola, como o caso de um menino já com 14 anos que
tinha um tumor pressionando o nervo ótico que não lhe permitia ter um campo de visão
perfeito e que o levaria fatalmente a morrer se não tivesse sido identificado. Outra,
lembrando outras discussões que tivemos, tentava justificar que quando chamava uma
criança de “ovinho da Progressão” era porque ela conhecia aqueles 38 alunos. Já havia
assistido há tantos casos que já sabia quando ia acontecer outra vez. Outra professora
(formada em História) conversou sobre as origens sociais e culturais que justificam o
fracasso desses alunos.
Parecia que os números não perturbavam apenas a Direção. Intrigou-me
(agradavelmente) o fato de que nenhuma delas me procurou para dizer que
matematicamente aquele número era “aceitável”, já que a relação percentual com o total
de alunos que ingressaram na escola e conseguiram concluir a 4ª. Série era infinitamente
superior aos que ficaram nas turmas de Progressão. Ao contrário. Muitas começaram a
discutir quem eram as professoras da Educação Infantil, as alfabetizadoras neste período
na escola. Outras se defendiam prontamente dizendo que nem estavam na escola nestes
anos todos. Os números incomodavam. Não era “aceitável”, mesmo para a mais
conservadora das professoras daquela escola. Fiquei surpresa. Talvez não existisse
mesmo a tal alteridade absoluta.
Por mais que nos afastássemos em certos momentos, por mais que às vezes me
sentisse abandonada, testemunha de um crime que só a mim maltratasse, percebi
naquele momento que não. Que mesmo afastadas por lógicas e práticas diferentes e
tantas vezes contrárias, eu e muitas professoras da minha escola, compartilhávamos
naquele momento de alguma coisa. Podíamos explicar, justificar, discutir, mas de
alguma maneira estava claro que aquelas 38 crianças nos incomodavam. Por motivos
diferentes, de maneiras diferentes. Mas ninguém naquela sala se levantou e disse: -
Tudo bem! Se pensou, não sei. Mas não disse. E este silêncio me pareceu extremamente
significativo. Ele instaurou um diálogo. O não dito trazia em si todo um texto sobre a
relação daquelas educadoras comigo, colega e pesquisadora (um outro ao mesmo tempo
desejado e temido), sobre a relação com aquelas crianças, incomodamente quantificadas
e identificadas, e sobre a relação com a própria impotência diante desta realidade.
Refleti sobre o contexto que produzia tanto os silêncios quanto as vozes, refleti
sobre esta força que os números exercem sobre nós. Força historicamente construída, é
verdade, mas ainda assim fascinante. Várias vezes, nestes espaços de discussão, – pouco
aproveitados e mal planejados em minha escola que fique claro – discuti, esbravejei,
reclamei, mas nunca havia obtido reações tão intensas e uma busca pela continuidade
deste diálogo, como ocorreu frente aos números.
Mas assim como nós, os números também produzem silêncios. Silêncios
produzidos em um contexto e que produzem um texto. O que os números não dizem
sobre o CIEP Compositor Donga?
Os números deixam de dizer que não apenas nas turmas de Progressão
encontramos alunos mal alfabetizados, sem domínio das ferramentas elementares da
leitura e da escrita, incapazes de interpretar um texto simples ou ordená-lo em seqüência
lógica, sem haver construído conceitos de número, cartografia e localização, medidas,
tempo etc. ou seja, sem os conhecimentos básicos que deveriam possuir para podermos
dizer que fazemos uma escola de qualidade, uma escola digna, que respeite o direito do
aluno à educação. Os números não dizem que alunos, como os 38 da Progressão,
encontramos nas 3ª. e 4ª. Séries, que os encontramos no 3º. Ano do Ciclo.
Os números deixam de dizer que somos pressionadas para não aferir conceitos I
– insuficiente – mesmo quando o aluno não alcança os objetivos traçados; deixam de
dizer que esta pressão é vertical e nos afoga em seu efeito cascata, e que é muitas vezes
mascarada com discursos pedagógicos que tentam justificar o injustificável, num
exercício cada vez mais hipócrita de descomprometer-se com a educação e
comprometer-se cada vez mais com a política de produção estatística. A Secretaria de
Educação – que não é uma totalidade homogênea, mas uma realidade hegemônica –
pressiona a Coordenadoria – também formada por sujeitos distintos com concepções
distintas de escola – que pressiona a escola que pressiona o professor para a produção
de resultados – Em palavras simples: avaliações irreais e conceitos irreais produzindo
números irreais que escondem a(s) realidade(s) produzida(s) na escola e não nos deixam
pensar profundamente sobre ela. Parece solucionar-se o problema do fracasso escolar
apenas não olhando para ele. O que não vemos não existe.
Uma máscara que esconde não apenas o processo de avaliação, como toda a
discussão sobre autonomia do professor e da escola frente à sua realidade que é única e
singular. Uma máscara que não permite que a escola seja pensada com transparência em
sua pluralidade com diferentes modos de pensar e entender avaliação. Não permite – ou
tenta não permitir – que os critérios de avaliação e conceituação sejam discutidos de
forma séria e os casos de fracasso escolar analisados em sua especificidade e pensados a
partir deles mesmos, em busca de soluções específicas.
Os números transformam a realidade do fracasso em uma totalidade que longe
de oferecer alguma possibilidade de ação, escondem a singularidade e a multiplicidade
dos fatores que produzem, caso a caso, os alunos que permanecem na Progressão.
Dificultando assim uma ação efetiva e competente junto a estes alunos. Eles nos
mantêm em uma distância – científica e moderna – que dificulta nossa compreensão e
nossa ação no mundo onde nos movemos.
Apesar de se constituírem como um dado tangente da história do CIEP, os
números não bastam para refletirmos sobre como as relações de poder autoritárias e
produzidas verticalmente, sob a máscara da democracia, são desenroladas no cotidiano
escolar e vividas, com movimentos de resistência, com astúcias, com movimentos
irregulares e antagônicos, por professores, pais, alunos, diretores, coordenadores,
técnicos etc. e como estas relações vão sendo tecidas fio a fio, tramando as tranças desta
realidade. Os números não bastam para refletirmos sobre estes “outros” alunos, que
tanto nos incomodam. Um fracasso que para muitos não é “aceitável” mesmo quando
“compreensível” e até mesmo esperado.
Quando iniciei esta pesquisa, acreditava que os números me ajudariam a mostrar
o que eu via e tanto me incomodava: o fracasso escolar sendo produzido por nosso
descaso, por nosso preconceito, ou por nossa incompetência. Neste caminho, ao chegar
neste ponto da estrada, percebo que os números não responderam ao que eu queria
saber. Mas me ajudaram a perceber que ao olhar simplesmente para esta totalidade – 38
– que eles mostram não encontro as respostas que procurava. Que as respostas que
procurava descubro quando vou ao encontro de cada um dos sujeitos representados na
porcentagem. Descubro quando vou ao encontro de suas histórias únicas, ao encontro de
seus medos e desejos, que são únicos. Quando caminho ao lado, quando me ofereço (e
me permito) parar para ouvir, para compreender.
Como superar as mil razões que causam o fracasso destas crianças? Conhecendo
as mil razões (sociais, políticas, econômicas, biofísicas, culturais) ou as razões que
fazem que especificamente a Aline não aprenda? Entendendo todo o contexto histórico
e político que impõe esta existência cruel ao Davi? Ou entendendo, sobretudo, o Davi,
sujeito singular em seus limites, possibilidades e sonhos? Ambos. Partes indissociáveis
do mesmo real.
Acredito que temos a obrigação ética de continuar denunciando e buscando
incansavelmente desmascarar os complexos mecanismos que articulam – de muitos
lugares e por diversos sujeitos (Foucault) – esta rede de poderes, que cria barreiras
perversas, para que avancemos em nosso fazer pedagógico e possamos realmente
oferecer uma escola de qualidade para a Aline, para o Davi, para o Ian...
Contudo acredito que encontraremos soluções possíveis, mesmo que pontuais,
ao considerarmos estas crianças e jovens como o ponto de partida e chegada de nossas
reflexões. Ao considerarmos o fenômeno do fracasso escolar não apenas planando sobre
ele, mas procurando em cada história as pistas para sua elucidação.
Infelizmente, as discussões geradas no primeiro momento não tiveram mais
espaço e o CIEP passou a viver um período de (aparente) ostracismo. Meu retorno à sala
de aula (turma 1104) a saída da Virna da função de Coordenadora Pedagógica e certo
distanciamento da Direção tornaram a escola um “coletivo de salas de aula”. Nosso
CIEP (apesar de sua importância social para as comunidades que o circundam) só teve
um evento – Festival de Poesias – porque foi tomado como bandeira, organizado e
financiado pela professora Sandra (professora readaptada). As festas habituais do
calendário e eventos importantes para a vida social de toda vizinhança como Dia das
Mães e Festa Junina não foram realizadas, e os Corredores Culturais previstos ao final
de cada projeto desenvolvido, nem foram mencionados. Os Centros de Estudos – espaço
quinzenal, sem alunos, previsto em calendário oficial para reunião pedagógica dos
professores – muitas vezes tomado equivocadamente, a meu ver, para tratar de assuntos
administrativos como horários, problemas com a merenda, documentos etc., só teve no
ano de 2006 inteiro, um único momento realmente planejado, com uma proposta clara
de estudo. A desarticulação da equipe técnico-pedagógica encontra coro na
desarticulação do corpo docente e pais, já que nenhum dos segmentos da escola se
manifestou coletivamente para organizar estes eventos (ou cobrar sua ausência) que
foram desenvolvidos individualmente por cada professor com sua turma, conforme o
desejo (ou não) de cada um.
Hoje as turmas de Progressão não possuem mais um projeto articulado como em
2004, não existem mais reuniões coletivas de planejamento e as trocas de experiências
não encontram mais o espaço constituído naquele ano. Ainda converso e discuto
bastante sobre as práticas pedagógicas possíveis e os limites de nossa ação docente com
a professora Ana Cristina, que sempre se mostra aberta ao diálogo, mas não existe uma
sistematização destas experiências como antes. Sempre a incentivo a escrever sobre sua
prática, trocamos sugestões e discutimos os comentários sarcásticos e preconceituosos
de algumas colegas em relação a estes alunos.
Chego a este ponto da viagem com a mala cheia de recordações, com aquela
melancolia de saudade fresca, com aquela preguiça que sempre acompanha a chegada
de uma longa jornada.
Parti com algumas dúvidas que foram sendo devidamente substituídas por outras
à medida que a própria pesquisa me obrigava a refazer as perguntas. Parti com algumas
certezas que foram sendo arrancadas – não facilmente e sem luta já que eram certezas
construídas historicamente – e substituídas devidamente por desconfianças.
Nesta viagem no tempo em busca de tentar compreender este lugar que pratico
tenho vivido momentos bastante ricos, porém conturbados. Como Bhabha ressalta:
“Relembrar nunca é um ato tranqüilo de introspecção ou retrospecção. É um doloroso
re-lembrar, uma reagregação do passado desmembrado para compreender o trauma do
presente.” (1998, p.101) . Minha escola é para mim este microcosmos onde vejo
refletidas as alegrias e dores do mundo, enquanto caminho por suas histórias, e por
minhas lembranças, resignifico meu lugar neste espaço, e este espaço no mundo.
Nesta volta é especialmente difícil lembrar o quanto conquistamos em certos
momentos e como perdemos isto tão rapidamente. Como as parcerias foram
desarticuladas, e projetos esvaziados de sentido. Como o tempo foi cruel com a
articulação político-pedagógica de minha escola. Tento fugir da nostalgia para olhar o
presente, pensar o futuro, mas em alguns dias a esperança se esconde de tal forma que
não consigo encontrá-la. Dias nublados.
Mesmo consciente de minha ingenuidade frente à tentativa inútil de prender o
tempo, de guardar, de preservar as conquistas que pertencem apenas ao seu próprio
tempo, meu peito se ressente com o desmoronar (mesmo provisório) de tantos sonhos.
Mesmo consciente de que a complexidade do real caminha exatamente nesta
mistura entre ordem e desordem e de que este momento (embora a mim pareça) não é
apenas o caos, mas traz em si outra possibilidade de organização (Morin), mesmo
consciente de que a dinâmica do cotidiano é constituída não por caos ou ordem, mas por
ambos, forças eqüipolentes que apresentam visibilidades diferentes em momentos
distintos, vivo um tempo de luto. E me permito vivê-lo, mesmo acreditando que a vida
segue, e seguirá sempre, porque até mesmo o mais incansável dos guerreiros às vezes
apenas se senta e chora. Outras lutas virão.
Parti em meio ao fogo cruzado, na troca de acusações entre os vários sujeitos
que agem direta ou indiretamente sobre a escola. Parti destas macro-micro relações
entre vozes e concepções de mundo, sujeito e educação, que se combatem e se negam, e
neste processo acabam lançando, umas sobre as outras, algumas luzes sobre o que
muitos prefeririam deixar nas sombras.
Desde o início deixei claro que não gostaria de participar da caça às bruxas, que
pretendia compreender a produção do fracasso escolar partindo de sua própria
complexidade. Acredito que mesmo que não tivesse feito essa escolha, o cotidiano a
teria feito.
Reencontro com estas escolhas que fiz, rompo dolorosamente com outras, e
ainda sou assombrada por outras tantas. As vozes sociais que me habitam jogam-me de
um lado a outro buscando sempre um consenso que nunca virá, uma coerência absoluta
que nunca virá, uma unidade que nunca virá. A consciência da incompletude humana
ganha novos e profundos sentidos, misto de esperança e angústia.
Como concluir uma história que não tem fim? Como colocar um ponto final
quando a grande e primeira conclusão que percebemos ao pesquisar o movimento do
cotidiano é exatamente a sua natureza provisória, fluida, rizomática? No entanto
terminar, mesmo que provisoriamente, é preciso. Terminar, mesmo consciente que o
final deste trabalho, é o meio e o inicio de tantos outros...
Acredito que todo este processo, que tiveram a paciência de acompanhar, me
autoriza a dizer que ao buscarmos compreender (parcialmente sempre) a complexidade
do cotidiano, buscar apreendê-lo em seus momentos tão instantâneos, tão volúveis e
passageiros, não podemos ficar nas margens. É preciso lançar-se. É preciso estar em
movimento. Por isso pesquisamos com o Cotidiano e não sobre ele.
E o que o cotidiano me ensinou? Quais perguntas ele respondeu? Quais ele me
ensinou a fazer? Quais continuaram ainda sem resposta esperando que um dia alguém
encontre a pergunta certa?
Ensinou-me que não posso fazer pesquisa com o Cotidiano lendo uma realidade
cindida, que não posso pesquisar os macro-poderes ou os micro-poderes, mas que
preciso pesquisá-los juntos, compreendendo como as relações de poder – esta rede onde
os sujeitos se movem – são tecidas nestas relações.
Ensinou-me que não posso criar um hiato no mundo separando os seres
humanos entre vilões e mocinhos, que a história não caminha “naturalmente” do mais
simples para o mais complexo e não, ela não necessariamente, evolui.
A pesquisa com o cotidiano mostrou-me que não poderia estabelecer categorias
para definir quais os “culpados” pela construção do fracasso escolar, os culpados pela
exclusão. O cotidiano mostrou-me como aparentes vilanias podem emancipar o sujeito
muito mais do que aparentes condescendências. Como nós, sujeitos em movimento
produzimos, ao mesmo tempo, experiências de fracasso e de sucesso, sem que tenhamos
muitas vezes controle ou consciência dessas produções, por isso a importância de cada
professor se tornar pesquisador de sua própria prática e escrever sua própria história
como exercício de conscientização, como exercício de avaliação e construção de novas
práticas.
Ao iniciar o movimento de pesquisa, ao produzir textos onde as nossas vozes de
professoras (minha e de minhas colegas) ecoam, onde nossas angústias e dúvidas
tomam esta materialidade que a palavra escrita proporciona, inicia-se também o
movimento de escuta, de recriação, de reinvenção de nós mesmas como outras
professoras, como outras pessoas, umas mais, outras menos, outras ainda de forma não
visíveis, mas nem por isso inexistentes.
O cotidiano nos ensina a não esperar um “gran finale”, onde a pesquisa uma vez
concluída irá “iluminar” do alto de seu saber todas as trevas da ignorância dos demais
mortais, mas a perceber como as fibras da pesquisa vão se urdindo com os sujeitos em
suas práticas e em seus discursos, transformando a realidade, não após, mas durante o
próprio processo da pesquisa. Pesquisa-práxis que transforma e se transforma no e com
o outro, que se conclui a cada passo do caminho, para no passo seguinte recomeçar e
encontrar outros caminhos. “É por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não
aplicará uma prática; ela é uma prática.(Foucault, 2004, p.71)”
Talvez a grande conclusão deste trabalho, deste processo, desta busca, seja a
necessidade que temos, de nos fazermos pesquisadores do movimento, do encontro. De
nos fazermos professores do movimento e do encontro.
Nos diálogos estabelecidos com as professoras, companheiras nesta jornada,
vamos percebendo como muito mais do que este “olhar” do professor “sobre” o aluno,
sobre sua história triste, sobre sua realidade cruel, sobre seu futuro “inexorável”, o que
tantas vezes faz a diferença entre o “querer” e o “não querer” do aluno é este “ir ao
encontro”. Estar ao lado, mergulhar no universo de lógicas e práticas que mesmo
distantes das nossas, podem ser compreendidas e negociadas. Estar ao lado sem deixar
de ser sujeito, sem deixar de ser professor, mas buscando esta prática dialógica de
“ouvir” o outro respeitando o seu lugar de sujeito, e exigindo, sim, ser ouvido como
sujeito.
Virna pára e “ouve” o Ian. E aprende. Como professora-pesquisadora, desconfia
que para além dos silêncios e “não-saberes” desta criança, existe um “saber”. Aprende
que existe a possibilidade do aprendizado, para ele e com ele. Mesmo quando nós,
professoras, não sabíamos muito bem qual a chave que abriria esta ou aquela porta, a
escuta atenta, nos possibilitava algumas vezes encontrá-la, talvez não para todas as
crianças da Progressão, mas para o Iam. E a experiência da busca, da escuta, faz com
encontremos sempre novas possibilidades, outras chaves que abriram outras portas que
pareciam impossíveis de transpor.
Ana Cristina sai de seu lugar e vai ao encontro. Passos difíceis, passos incertos,
mas mesmo assim caminha. Deixa, tantas vezes, a segurança de uma prática conhecida e
vai de encontro ao outro, para reinventar-se como professora, reinventar sua prática
fundando-a exatamente no diálogo. Era preciso conversar. Era preciso instaurar o
diálogo e acreditar na potencialidade e possibilidade pedagógica que este diálogo funda.
Diálogo que rompe com as fronteiras das turmas de Progressão e toma outros lugares da
escola.
O movimento do cotidiano, no entanto, nos arrasta, nos desafia a permanecer em
terra firme. Os sujeitos movem-se de seus lugares, instauram novas práticas, vêm as
conquistas de um momento ruírem no momento seguinte. Percebemos então como a
urgência de soluções “amenizadoras” em um determinado momento perdem-se logo em
seguida do “incêndio” controlado.
Em 2004, frente à realidade constrangedora das quatro turmas, a equipe
dirigente da escola – Ana Maria e Virna basicamente – comprometem-se com um
projeto político-pedagógico, não necessariamente revolucionário, nem original, mas um
projeto sério em busca de uma prática comprometida com aquelas crianças. Para isso,
criam e garantem, mesmo em meio às críticas e pressões, as possibilidades físicas e
materiais, para que este projeto se torne viável dentro da escola.
Nem soluções mágicas, nem saídas importadas: trabalho. Trabalho no sentido
mais profundo que esta palavra pode ter. Sujeitos transformando a realidade e se
transformando a partir desta realidade. Transformando com o outro e tendo a diferença,
não como barreira, mas como possibilidade dialógica, como combustível para enfrentar
as contradições, sem que elas se tornem imobilizadoras. Sem um salvador, até porque
“Cabe àqueles que se batem e se debatem encontrar, eles mesmos, o projeto, as táticas,
os alvos de que necessitam” (Foucault, 2004, p.151)
Os critérios de escolha das professoras, na contramão da cultura escolar
estabelecida, de se deixar estas turmas para “as que chegam”, preocupou-se, com a
experiência, com um fazer pedagógico, de certa forma, reconhecido. Preocupou-se com
o comprometimento, com o envolvimento afetivo destas professoras. Preocupou-se em
buscar exatamente quem estivesse disposto a embarcar, sem ilusões, mas com firmeza,
nesta jornada.
Os resultados obtidos neste processo, mais do que o objetivo claro de acabar
com pelo menos uma das quatro turmas, apontam para a importância deste movimento
solidário entre professoras, coordenação e direção.
Ao nos reencontrarmos com este período em particular na história da escola,
percebemos a importância do fazer junto. A importância de assumirmos coletivamente a
inclusão destas crianças, como uma possibilidade, a despeito de nossos medos e
preconceitos. A importância de assumirmos a luta contra as barreiras institucionais,
contra as dezenas de discursos que, dentro e fora da escola, defendem o fracasso
inexorável da criança. Quando nós, sujeitos, adultos, professores assumimos este
compromisso com a infância, acreditamos a despeito da dor, das incertezas, dos erros,
na possibilidade da construção do sucesso, criamos a possibilidade da inclusão. Mas não
criamos sós. Criamos com o outro. Criamos porque vamos ao encontro. Porque nos
permitimos encontrar. Porque acreditamos neste criar conjunto. Transformamos o lugar
do fracasso, através de nossas práticas, no espaço da possibilidade.
Entretanto, não criamos esta possibilidade de inclusão para todos. Perdemos o
Davi, perdemos o Daniel, perdemos a Aline, perdemos o Wellington. Perdemos 38
crianças. Não são dados facilmente aceitáveis. Para nós, e até mesmo para aquelas que
tantas vezes dizem ou “parecem” não se importar, estas perdas, estes fracassos, são
dolorosos. Talvez esta consciência tímida ou latente, de ser sujeito no e com o mundo,
fique doendo quietinha, fininha dentro do peito, mesmo quando tentamos ignorá-la.
Ao longo desta jornada, a angústia da “salvação” para todos, foi sendo
substituída pela consciência dos limites do nosso fazer e do nosso querer. Limites que
não estão apenas no “outro” seja o outro institucional, esta mística que criamos em
torno do poder visível e localizado, mas tantas vezes em nós mesmos. Limites que estão
em nossas crenças (tantas vezes muito mais poderosas que nossos saberes), em nossos
preconceitos, em nossa ausência. Limites criados pela nossa adesão/rejeição às classes
populares, às suas práticas, às suas lógicas. Limites criados pela forma como optamos
de ser/estar no e com o mundo e a compreensão de que existem milhares de maneiras
possíveis de ser/estar no e com o mundo além da nossa, formas legítimas.
Limites que aprendemos a respeitar e romper, limites que sabemos serem
móveis, volúveis, o que sempre tempera de esperança o nosso fazer. Afinal, eu como
professora das turmas de Progressão que fui, e professora do PEJA, que ainda sou, vejo
todos os dias o quanto o futuro “é tempo de possibilidades” (Freire), para alunos e
professoras – como praticantes que são – se reencontrarem e fundarem outra escola. A
escola do encontro, a escola do diálogo, a escola da inclusão. A escola tecida com o
outro. A escola que queremos e podemos ter.
A conclusão é seguir. Seguir dialogando, com o outro, através de sua voz e de
seu silêncio, através de minha voz e de meus silêncios, encontrar o caminho para os
diálogos possíveis, mesmo quando a história me levar para alguns lugares silêncios.
Seguir dialogando com minhas/nossas contradições e limites, para compreender melhor
como nós os produzimos, seguir duvidando destas nossas certezas e encontrar em
nossas práticas, pistas sobre este nosso fazer. Sem ilusões, sem buscas totalizadoras,
encontrar o caminho possível para este diálogo e para estas práticas. Encontrar o
caminho possível por onde seguir caminhando nesta busca por uma outra escola, muito
melhor, para nossas crianças.
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12.2 Reportagem Folha de São Paulo de 25 de junho de 2006: Maior acesso não reduz
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12.3. Reportagem jornal O Globo de 28 de maio de 2006 sobre os CIEPs.
12.4. Reportagem jornal O Globo de 01 de novembro de 2006: censo escolar aponta
migração dos jovens para o antigo supletivo.
12.5.Portaria de Matrícula de 13 de novembro de 2001.
12.6.Texto do Irmãos Grimm : Os filhos de Eva
12.7. Entrevista Ana Maria – Direção
12.8. Entrevista Ana Cristina – Professora
12.9 Entrevista Virna – Professora
Livros Grátis
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Milhares de Livros para Download:
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