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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
CATADORES DE “LIXO QUE NÃO É MAIS LIXO”: Um estudo da
dimensão do reconhecimento social a partir de sua experiência de
organização coletiva no Rio Grande do Sul.
Fernando Canto Michelotti
Porto Alegre
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
CATADORES DE “LIXO QUE NÃO É MAIS LIXO”: Um estudo da
dimensão do reconhecimento social a partir de sua experiência de
organização coletiva no Rio Grande do Sul.
Autor: Fernando Canto Michelotti
Orientador: Prof. Dr. Raúl Enrique Rojo
Dissertação submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, como quesito
parcial para a obtenção do grau de mestre em
Sociologia.
Porto Alegre
2006
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AGRADECIMENTOS
“Os livros são a melhor coisa que há, quando bem utilizados”, afirma Ralph W.
Emerson
1
; em que consiste a sua correta utilização? “Não servem para outra coisa, senão
para inspirarem”. Exageros à parte, espero, na construção desta dissertação, ter sabido neles
e não somente neles – me inspirar e agora, humildemente, a fazer servir também de inspiração
para o desenvolvimento de outros trabalhos que possam dar conta de trazer à tona questões
sobre as quais não pude refletir. Agradeço, portanto, especialmente àqueles que me
inspiraram, me concedendo parte de seu tempo, de suas batalhas travadas no cotidiano, para
dividirem comigo suas realizações, suas angústias, seus projetos e seus sonhos. É com um
profundo respeito por cada um dos colaboradores que lhes dedico este trabalho!
Faço um agradecimento especial ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no conjunto das pessoas que o compõem, mas
especialmente a alguns de seus professores, que, neste curto período de dois anos, foram
fundamentais para o meu desbravamento sociológico e crescimento profissional:
Ao meu orientador, Prof. Raúl Enrique Rojo, agradeço a paciência que demonstrou ao
respeitar o meu próprio processo de amadurecimento teórico, em que acredito ter sido um
desafio velado, muito mais do que uma cobrança explícita, o qual me tenha servido de
estímulo constante. E especialmente por ter me conduzido à teoria com a qual desenvolvi esta
pesquisa.
À Profª. Soraya Cortes, atual coordenadora do Programa, agradeço pelo estímulo
destes dois últimos anos e, mais ainda, por ter tido a generosidade em me mostrar que este era
um caminho que eu também podia percorrer. Todo o processo que culmina nesta dissertação
se tornou possível graças ao apoio que me proporcionou desde o primeiro encontro.
À Profª. Sônia Larangeira, agradeço por ter acompanhado, nas inúmeras aulas que
tivemos, todo este processo de construção da dissertação com muita tranqüilidade e respeito,
espero ter sabido imprimir neste trabalho nuanças que revelem “a diversidade daquilo que
parece ser único”.
E à profª. Cinara Rosenfield e ao prof. Marcelo Kunrath, agradeço pela confiança que
senti em poder compartilhar momentos de dúvidas e incertezas que, por vezes, extrapolaram o
âmbito sociológico. Encontrei na prática didática de vocês, elementos os quais certamente
1
In GUTMANN, Amy (Org.). Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto
Piaget, 1994. p. 36.
4
quero levar à minha e na prontidão “terapêutica” que tiveram comigo, elementos que
suavizaram e que tornaram mais prazeroso o trabalho de concepção deste estudo. Agradeço,
de forma especial, à profª. Cinara por haver assumido o desafio de oferecer uma disciplina de
estudos dirigidos que se mostrou fundamental para o rumo que tomou este trabalho e que fez
toda a diferença.
Desejo agradecer ao prof. Josué Pereira da Silva, do Departamento de Sociologia da
UNICAMP, por haver prontamente acedido ao convite de compor a banca examinadora deste
trabalho. E novamente à profª. Cinara e ao prof. Marcelo, desta vez, por haverem aceitado
compô-la.
É imprescindível mencionar aqui o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq) pela bolsa que me foi concedida no período correspondente ao
segundo ano de mestrado, com a qual me foi possível concluí-lo em regime de dedicação
exclusiva.
Aos colegas de mestrado com os quais aprendi muito mais do que pude ensinar,
agradeço pelo acolhimento com que fui recebido, pelos momentos (des)contraídos que
passamos juntos e por grandes amizades que certamente ficarão. Marina, por todos os
momentos de angústia “sociológica” que dividimos! Clóvis, pelo companheirismo desde o
momento da seleção! E Carlos, Fabiano, Jandir, José, Luís Fernando, Marco, Marcos, Milton,
Richardson e Tânia, pelos sempre agradáveis papos de intervalo! Da turma de mestrado
2005/I, quero deixar também registrado um obrigado ao Lucas Azambuja, que soube me
trazer idéias decisivas nas poucas conversas que tivemos e a Carla Heyde pelo entusiasmo de
compartilhar comigo momentos importantes do meu trabalho.
Gostaria de fazer um agradecimento especial a alguns “psicamigos” que, pelos
caminhos inusitados da vida, me conduziram ao contato com os catadores e com os quais
pude viver momentos de grandeza ímpar ao longo dos meses que convivemos, Sissa, Cristina,
Daniela, Christian e Janice! Valeu pelo companheirismo e pelo “psicaprendizado”! Também
aos catadores da unidade de triagem da Restinga com os quais obtive, nesses dois últimos
anos de intensa convivência, um outro tipo de aprendizado, que se mostrou ser uma
importante fonte de revisão de meus pensamentos e de questionamento constante de minha
prática.
Quero registrar, de forma não-nominal para não correr o risco de ser injusto, minha
gratidão aos professores, colegas e profissionais de saúde coletiva com os quais tive contato
nesses últimos 4 anos. De certa forma, vocês todos me deram estímulo e confiança
necessários para buscar novos horizontes e empreender essa “guinada” profissional, a qual
5
percorro com satisfação e entusiasmo! Em especial, à profª. Nara R. Zardin e à profª. Salete
Pretto, pelo apoio em um momento crucial na trajetória que empreendi nesses últimos anos.
No âmbito familiar, um muito obrigado a todos aqueles que sempre foram e aos que
hoje são parte das minhas famílias “Michelotti e Canto, Rodrigues e Lopes”, que souberam
compreender tão bem minhas ausências e apoiar, mesmo de longe, minha empreitada,
demonstrando sempre muito respeito pelas minhas opções. Especialmente ao “Michelotti”,
pelo incansável esforço de haver-se “debruçado” sobre as correções de português em prazos
ingratos. Não posso esquecer de fazer também um singelo agradecimento à família Accorssi,
com a qual temos uma enorme dívida de gratidão por toda a ajuda obtida em momentos
difíceis.
E especialmente à Luana por todo amor e confiança que construímos ao longo desses
cinco anos, pela paciência e compreensão que teve comigo nesses dois últimos anos de
mestrado e nos momentos difíceis que foram os de elaboração do texto final desta pesquisa.
Sem ti, muitos dos sonhos a que aspiro e das realizações que materializo não teriam todo o
sentido que têm!
O percurso de uma vida e de uma dissertação é feito de encontros, alguns casuais,
outros mais duradouros, outros ainda mais longos, não menosprezo nenhum, aprendi com
cada um deles e, hoje, se finalizo este trabalho, e o faço com muito prazer e gratidão, é
porque, de certa forma, cada uma das pessoas acima mencionadas (e não nominalmente
mencionadas) pôde me ajudar neste processo de crescimento pessoal e profissional. Para isso,
entrei em contato, pessoalmente e por e-mail com tantas outras, agradeço muito a cada uma
delas, porque sempre obtive respeito e presteza aos meus apelos, inclusive da própria profª.
Nancy Fraser que, via e-mail, engrandeceu o meu árduo trabalho de amadurecimento teórico
com gentileza e generosidade.
Espero que este trabalho sirva como um instrumento de reflexão, um laço de diálogo e
de comunicação entre as coletividades aqui analisadas e, quiçá, possa suscitar discussões entre
grupos de estudiosos da teoria da qual eu parti para tal análise e que, de posse dos dados
empíricos, me esforcei para trazer-lhe contribuições.
Obrigado, acima de tudo e de todos, por uma luz e uma força Maior que, acredito,
inspira a cada um de nós!
6
“Uma folha de papel em nossa mesa é um convite ao texto;
uma folha de papel, amassada e jogada na rua, é lixo.
Trata-se do mesmo papel – só que mudou de lugar.
Será que a questão do lixo é, pois, apenas uma questão de como ver as coisas?”
Scliar, Moacyr (1999:11).
“Como fazer falar o silêncio
sem que ele fale necessariamente
a linguagem hegemônica que o pretende fazer falar?”
Santos, Boaventura de Sousa (2000:30).
7
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES.......................................................................................................9
LISTA DE SIGLAS..................................................................................................................10
RESUMO..................................................................................................................................11
ABSTRACT..............................................................................................................................12
INTRODUÇÃO........................................................................................................................13
Considerações metodológicas...................................................................................................21
1. DA FILOSOFIA MORAL AOS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS VIA TEORIA
SOCIAL: O (não-)reconhecimento como um dos parâmetros para a (in)justiça social...........24
FRASER E HONNETH: Confluências e dissidências ao teorizar sobre o reconhecimento....27
1.1. NANCY FRASER E A ADOÇÃO DE UMA PERSPECTIVA ANALÍTICA
DUALISTA: Das primeiras elaborações teóricas às reformulações conceituais......................33
1.1.1. Anos 1990: Um contexto de particular dissociação entre cultura e economia...............34
1.1.2. O "dilema da redistribuição/reconhecimento": O argumento inicial..............................37
1.1.3. Uma abordagem supostamente dicotomizada: Algumas considerações críticas............42
1.1.4. Repensando o reconhecimento: O modelo do status......................................................48
1.1.5. Consolidando sua influência weberiana: A adição da representação como a dimensão
política do poder........................................................................................................................57
2. O PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO DOS CATADORES: Reconhecer-se como um
coletivo para ser reconhecido legalmente e mediante este vir a se reconhecer coletivamente.60
2.1. UMA EXPERIÊNCIA FEITA PARA ELES, COM ELES OU POR ELES?....................61
2.1.1. Agentes externos em prontidão: afastar os catadores das ruas mediante a implementação
de alternativas associativas para os "futuros empreendedores sociais"....................................62
2.1.2. Recuando alguns passos e resgatando quem ficou para trás: viabilizar meios de
compartilhar o processo com os catadores................................................................................78
8
2.1.3. Empreendendo uma auto-organização coletiva: seguir os caminhos propostos por uma
federação ou por um movimento social..................................................................................105
3. O PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO COLETIVA DOS CATADORES COMO UM
MEIO DE (RE)DISCUTIR A CATEGORIA DO RECONHECIMENTO SOCIAL.............120
3.1. ACRESCENTAR CONTORNOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS AO STATUS: Novas
bases para se (re-)pensar o reconhecimento............................................................................121
3.1.1. A reivindicação de um STATUS ECONÔMICO a despeito se serem socialmente
valorizados como "AGENTES AMBIENTAIS"....................................................................123
3.1.1.1. FARRGS: O reconhecimento como "reciclador"......................................................124
3.1.1.2. MNCR: O reconhecimento como "co-gestor"...........................................................138
3.1.2. A reivindicação de um STATUS POLÍTICO a despeito se serem socialmente tachados
de "ARRUACEIROS"............................................................................................................155
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................168
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................172
ANEXO 1................................................................................................................................187
ANEXO 2................................................................................................................................192
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. Teoria crítica do reconhecimento..............................................................................28
Figura 2. Quadro da "Matriz teórica das injustiças econômicas e culturais"............................41
Figura 3. 1ª lente fraseriana.......................................................................................................42
Figura 4. 2ª lente fraseriana.......................................................................................................55
Figura 5. 3ª lente fraseriana.......................................................................................................59
Figura 6. Quadro do eixo "Educação" do plano de ações 2004-05 da FARRGS...................126
Figura 7. Organograma de organização do MNCR para a região sul.....................................155
Figura 8. Lente do reconhecimento aplicada ao caso empírico..............................................167
Figura 9. Lente analítica fraseriana modificada......................................................................169
10
LISTA DE SIGLAS
ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental
ADS – Agência de Desenvolvimento Solidário
ASMARE – Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável
AVESOL – Associação do Voluntariado e da Solidariedade
CAMP – Centro de Assessoria Multiprofissional
CBO – Classificação Brasileira de Ocupações
CEBs – Comunidades Eclesiais de Base
COOPAMARE – Cooperativa de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis
COPESUL – Companhia Petroquímica do Sul
CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
CUT – Central Única dos Trabalhadores
DMLU – Departamento Municipal de Limpeza Urbana
FARRGS Federação das Associações dos Recicladores de Resíduos Sólidos do Rio Grande
do Sul
FAG – Federação Anarquista Gaúcha
FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador
FMSS – Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social
INPS – Instituto Nacional de Previdência Social
METROPLAN – Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional
MNCR – Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis
MST – Movimento dos Sem-Terra
OAF – Organização de Auxílio Fraterno
ONG – Organização não-Governamental
OP – Orçamento Participativo
PET – Poli(tereftalato de etileno)
PP – Polipropileno
PT – Partido dos Trabalhadores
RS – Rio Grande do Sul
SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
UFBA – Universidade Federal da Bahia
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UT – Unidade de triagem
11
RESUMO
De uma acurada análise das transformações societais contemporâneas, incluídas no
que Nancy Fraser denomina de uma era “pós-socialista”, surge das mãos da autora a chamada
perspectival dualism que logra para si a incumbência de se tornar uma possibilidade de
interpretação alternativa para os emergentes conflitos culturais, seus decrescentes interesses
materiais e os possíveis remédios adotados para contorná-los. Este modelo começa a tomar
forma a partir da publicação, em meados da década de 1990, de um de seus textos mais
influentes e discutidos: “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-
socialista”. Partindo do referencial teórico desenvolvido pela autora desde então, o presente
trabalho pretende discuti-lo tomando a experiência de organização dos catadores de materiais
recicláveis no estado do Rio Grande do Sul como sua base empírica. A análise se centra na
formação de dois grupos diversos que resultaram desse processo, cuja ação social por eles
empreendida foi vista aqui como fruto de diferentes reivindicações de reconhecimento social,
expressas na ênfase dada às dimensões econômica e política. Ao procurar alargar o escopo da
categoria do reconhecimento à possibilidade de integrar novas dimensões que a constituam
intrinsecamente – status econômico (“reciclador” e “co-gestor”) e status político (“militante”)
–, esta pesquisa coaduna o intuito de revelar aspectos que sirvam para evidenciar a dinâmica
de construção do reconhecimento por ambos os grupos, bem como os padrões culturais que a
possam constranger e/ou favorecer, e de propor desdobramentos conceituais que advieram,
em grande parte, do diálogo que se estabeleceu entre os dados empíricos e as premissas
conceituais que embasam a teorização da autora.
12
ABSTRACT
From an accurate analysis of the contemporary societal transformations, included in
what Nancy Fraser calls a “post-socialist” age, appears from the author’s hands the
“perspectival dualism” that brings to itself the commitment of becoming a possibility of an
alternative interpretation to the emergent cultural conflits, its decrescing material interests
and the possible remedies used to get round them. This model begins to get shaped from the
publication, in the middle of the the 90’s, of one of her most influencial and discussed papers:
“From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a postsocialist age”. Starting
from the theoretical referential developed by the author since then, the present work intends
to discuss it taking the experience of organization of the scavengers of recyclable materials in
Rio Grande do Sul as its empirical basis. The analysis concerns the formation of two different
groups that resulted from this process, in which the social action enterprised by them was
seen in this research as a consequence of different claims for social recognition, expressed in
the enphasis given to the economic and political dimensions. In the attempt to enlarge the
purpose of the recognition’s category to the possibility to integrate new dimensions that can
constitute it instrinsically economic status (“recycler” and “co-manager”) and political
status (“militant”) this research combines the purpose to reveal aspects that can serve to
evidence the dynamic of construction of recognition by both groups, as well as the cultural
patterns that can constrain and/or favourize it, and to suggest conceptual unfoldments that
came mainly from the dialogue between the empirical data and the conceptual premises that
provide Fraser’s theorization.
13
INTRODUÇÃO
Preza-se iniciar com alguns esclarecimentos que se acredita sejam fundamentais para
guiar o leitor na compreensão deste trabalho. Para isso, mesmo que algumas considerações
mais teóricas igualmente sejam feitas, esta introdução é vista como uma oportunidade
bastante plausível para reconstituir boa parte dos passos e das transformações pelos quais
passou este trabalho até culminar nesta dissertação, tornando-os inteligíveis ao leitor.
Por se tratar, no entanto, de um processo composto de múltiplos desdobramentos que
elevam, por conseguinte, o risco de se cair em divagações, o mesmo é reconstituído em seus
aspectos mais significativos, sem se perder de vista a ênfase sociológica com a qual este
trabalho é concebido. Assim, enganar-se-ia quem cogitasse poder encontrar aqui relatos de
uma trajetória feita de percepções individuais, pois não é propósito levar o leitor a aventurar-
se pelos tortuosos caminhos da subjetividade – muito embora não sejam eles desconsiderados,
apenas não serão enfatizados.
A aproximação com o universo dos catadores ocorreu quando nem mesmo havia a
intenção de serem tomados como objeto de estudo e quando nem sequer se havia tido algum
contato com a teoria do reconhecimento. Mesmo ainda desprovido de uma base teórica acerca
desta temática, tornava-se cada vez mais perceptível o quanto o seu correspondente empírico,
que, como afirma Souza (2000:180), é passível de ser constatado em situações negativas, ou
seja, “quando as pessoas sofrem visivelmente por sua falta”, estivesse latente, ou mesmo
pulsante, em seus depoimentos.
No confronto com a realidade em que vivem os catadores, os sentidos de quem deles
se aproxima vão sendo impregnados por fortes sensações, imagens e impressões do descaso,
desrespeito e desvalor que os acompanham. O contexto de exploração socioeconômica que
igualmente envolve a atividade desses indivíduos tem-se mostrado hábil em entrelaçar essas
percepções com tamanha pungência, que facilmente se podia ouvi-las sendo reproduzidas em
grande parte dos relatos de homens e mulheres que, a despeito disto, ainda tentam manter a
dignidade de uma atividade ocupacional que, para muitos deles, é a única alternativa de
sobrevivência.
Apesar dessa tentativa se estender individualmente por várias décadas, somente nos
anos 1990 é que vem se verificando um significativo incremento em sua organização coletiva,
facilitado pelo contato com entidades religiosas, pela postura “ecológica” que diversas esferas
14
governamentais passaram a assumir e também pela atuação de vários órgãos da sociedade
civil organizada que, de certa forma, assessoraram projetos que resultaram na fundação de
muitas das atuais associações/cooperativas de catadores.
O surgimento desses grupos, e de outros tantos que enfrentam condições similares,
insere-se em um contexto de mudanças provocadas por processos de reestruturação
econômica que não somente precarizaram as condições de emprego existentes, mas que
implicaram também em processos de desassalariamento da força de trabalho (GORZ, 1995).
No cenário de informalidade crescente que daí resultou, a “catação” passou a se constituir em
uma atividade vista como possibilidade última de sustentabilidade para setores sociais de
baixa renda em países em desenvolvimento (MARTINS, 2004). Para viabilizar tal alternativa
e assegurar acesso ao lixo, cuja destinação final, apesar do risco iminente de privatização, é de
responsabilidade do poder público municipal, tem-se buscado estruturar essa atividade do
ponto de vista legal.
Mesmo a organização econômica da atividade do catador de materiais recicláveis em
associações/cooperativas e sua recém-conquistada legalização não isentam essa ocupação de
seguir oscilando entre o reconhecimento e a desconsideração
2
e sendo moldada por fatores tão
díspares que vão desde a consciência ecológica da população (a qual abastece os catadores da
matéria-prima com a qual lidam e que, para uma parte da sociedade, com ela se confundem)
até as especulações cambiais do dólar, as quais acabam por interferir diretamente em seus
parcos rendimentos.
Fruto do acúmulo que começou a ser gerado desde a primeira revolução industrial com
a instauração da “era dos descartáveis” (CARMO; OLIVEIRA & MIGUELES, 2004), um
montante de entulhos o-biodegradáveis abastece em ritmo acelerado, mesmo empregando
um volume cada vez menor de trabalho, os anseios de uma sociedade de “capitalismo
consumista” (LASH & URRY, 1998:15), cuja satisfação dos desejos então despertados por
uma abundância de objetos e artefatos é rapidamente convertida em lixo. Enquanto para a
população que vorazmente consome tal “abundância” e prontamente descarta os restos que
dela resultam, “rapidez e distância indicam a intensidade da repulsa” (LEGASPE, 1996:5);
para os catadores, em contrapartida, a referência desse lixo impregna-se de tal forma em seus
corpos “que o olhar sempre está atento ao que possa representar sobra (que se torna sinônimo
de matéria-prima) e sobrevivência” (FISCHER, 1989:42).
2
Para Taylor (1994), a desconsideração seria o reverso do reconhecimento e reflete uma conjunção entre direitos
e valores, já que sua reparação não pode ser plenamente efetivada por meios exclusivamente legais.
15
Em virtude de um meio de sobrevivência historicamente execrado, os catadores têm
configurado uma categoria à margem das benesses usufruídas pela sociedade e sem acesso,
segundo Martins (2004), tanto a políticas de inclusão social quanto sofrendo discriminações
diversas, de ordem socioeconômica e simbólica, uma vez que eles próprios acabam por
assimilar os padrões que os tacham como uma categoria social dotada de “características sub-
humanas” (UNESCO, 2001), outrora conhecida por denominações pejorativas, como lembra
Gonçalves (2001), de “burro sem rabo”. Confundidos, freqüentemente, com a matéria-prima
da qual extraem sua sobrevivência, a auto-imagem desses indivíduos reflete, em geral, o
estigma dos “não-sujeitos” ou “pré-cidadãos” (TELLES apud FESTIVAL, 2004:4).
Dada a generalizada rejeição social à sua forma de vida que com freqüência implica
em viver na rua e ao seu ofício que requer estar em contato permanente com o lixo –, o
catador é vítima de um elevado grau de exclusão e está relegado às zonas mais “selvagens” da
cartografia urbana isto é, às lixeiras, às ruas e aos guetos onde vende os seus produtos a
intermediários e aí, em certas ocasiões, inclusive habita onde é “permanentemente
hostilizado por sua presença incômoda aos outros” (RODRÍGUEZ, 2002; DIAS, 2002a:82).
A presença desse segmento social no espaço urbano vem de um longo histórico de
exclusão, de não direito à cidade, onde medidas higienizadoras do passado seguem sendo
constantemente revisadas de forma a expulsá-los para as periferias. Se a complexidade e
intensidade do processo de catação variam de local para local, as condições de trabalho são,
em geral, desumanas, o preconceito ainda impera e o incentivo e apoio do poder público ainda
são escassos ou intermitentes (ASMARE, 2004).
Para quem se propõe a acompanhar a luta que esses indivíduos travam cotidianamente,
surgem nítidas, por certo, problemáticas empíricas de forte impacto sensorial, especialmente
ao se adentrar cada vez mais em seu universo. Já para quem se propõe a estudá-las, o desafio
reside justamente no fato de que elas podem ser analisadas mediante múltiplas possibilidades
de abordagem.
Em conseqüência do vínculo que se havia previamente estabelecido com os catadores
de uma das unidades de triagem de Porto Alegre, foi-se entabulando, aos poucos, uma
convivência com um outro grupo de catadores que dizia representá-los, membros do
Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). A partir da articulação
que se deu entre várias dessas associações de catadores com um movimento social, Mayer
(2005) destaca ter sido possível constatar o início de uma marcha desses trabalhadores em
direção à esfera pública, que pode ser mais bem traduzida como uma reivindicação pelo
16
reconhecimento da dignidade
3
de indivíduos sujeitos a todo tipo de reconhecimento recusado.
Em meio a esse convívio, descobriu-se que não existia, na cidade, apenas um, mas dois
grupos diferentes embora tenham feito parte de um mesmo que assumem para si,
mesmo não possuindo a representação legítima por parte de um contingente significativo de
trabalhadores espalhados pelas ruas da cidade, a função de organização e luta pela melhoria
das condições de vida e de trabalho dos catadores.
emergiu toda uma nova problemática – ou seria somente uma outra forma de
encará-la? que foi ganhando contornos diversos na medida em que o círculo de contatos ia
se expandindo e na medida em que outras facetas que envolviam seus esforços coletivos iam
sendo reveladas, especialmente no que diz respeito à forma de conduzirem suas demandas e
de se inserirem politicamente. Começou a vir à tona, assim, o quanto as organizações
vinculadas a esta categoria têm se tornado base de uma luta social com repercussões e
desdobramentos político-ideológicos diversos e que, mesmo em seu interior, não representam
necessariamente uma homogeneidade de perspectivas e orientações.
Despertado o interesse de invocar um olhar que desse a tal contexto matizes
sociológicos, a categoria do reconhecimento social emergiu como uma possibilidade lógica de
exploração teórica. Porém, como abordar sociologicamente a problemática empírica que
envolve esses grupos mediante o uso da categoria do reconhecimento social, quando esta é
desenvolvida sob uma forte carga normativo-filosófica?
Sem que se tente uma resposta precipitada a este questionamento, deve-se tê-lo como
um horizonte a ser desvelado ao longo da pesquisa, visto que, até então, o que se constituía de
uma vivência em âmbito prático, sem quaisquer fins científicos, passou, em momento
posterior, a se configurar numa pesquisa exploratória. Se a relação que se estabelece entre
pesquisador e pesquisando ao se desenvolver uma pesquisa social é incontestavelmente social
pelo próprio caráter intersubjetivo que a permeia, neste caso, a relação já havia sido travada e,
aí, veio desembocar num processo de pesquisa em que surgiu o interesse em vislumbrar de
que forma, então, se desenvolveria uma problemática sociológica.
A partir da vivência com esses grupos, pareceu fundamental trazer para o centro da
análise o papel desempenhado por suas lideranças como uma forma de contribuir para reverter
entendimentos de que as alternativas para a melhoria da qualidade do trabalho de coleta e
triagem de materiais recicláveis só podem ser vislumbradas à luz de um conhecimento técnico
3
Segundo Mayer (2005), a noção de dignidade que aqui se utiliza se refere à esfera pública e às sociabilidades
secundárias que a caracterizam. Considerando que um tipo de sociabilidade (primária ou secundária) para
cada regime de interação (hierárquico ou igualitário), no âmbito das sociabilidades secundárias, as demandas se
expressariam por respeito aos direitos e deveres de cada um definidos legal ou estatutariamente.
17
da questão por quem detém o poder decisório, visto que “o catador, por sua vez, não questiona
esta relação, pois, em geral, não tem conhecimento de sua importância neste processo”
(STREB & BARBOSA, 2004:17). Se esse é o cenário que ainda impera em grande parte do
país, cujo risco analítico é o de resvalar em uma “vitimização” ou “culpabilização” dos
próprios catadores, não foi esta a opção que se quis adotar neste trabalho. Teve-se a intenção
de difundir uma outra faceta, que diz respeito à sua crescente organização coletiva e à busca
de serem socialmente reconhecidos pelos diversos papéis que podem assumir nesse processo.
O estudo empírico será, portanto, realizado com base no processo de organização de
dois grupos de catadores do Rio Grande do Sul que representam o Estado em âmbito nacional,
embora ambos possuam uma maior atuação na região metropolitana de Porto Alegre: a
Federação das Associações dos Recicladores de Resíduos Sólidos do Rio Grande do Sul
(FARRGS) e o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Ambos
foram vistos sob a perspectiva de suas lideranças, de forma que mesmo que os assuntos
abordados aqui digam respeito ao coletivo de catadores que se supõe que estes grupos estejam
representando, não se deve negligenciar o fato de que esta análise partiu de um discurso ainda
bastante ausente se considerados justamente aqueles que se julgam estar representados.
Quanto ao MNCR, embora suas lideranças não considerem prioritário expressar suas
demandas e conflitos via sistema político-institucional, mesmo que este se constitua em palco
para suas repercussões, e busquem estabelecer formas alternativas de exprimi-las, como
mediante ação direta, é perceptível o quanto esta, de idêntica maneira, é justamente a que lhes
viabiliza reuniões com órgãos governamentais, o que os fazem buscar um amparo legal que
legitime, face à sociedade, a sua visão da realidade. Contudo, como uma de suas lideranças
faz questão de ressaltar, (...) o nosso trabalho mesmo é de ação direta, que é de
reconhecimento, que é de valorização, a gente faz isso no dia-a-dia na rua, buscando nossos
próprios meios para ser reconhecido, então, a parte da lei é uma e a parte de ação direta é
outra, que, às vezes, funciona junto ou, às vezes, funciona paralelo” (A.).
a FARRGS possui um histórico muito mais vinculado à presença de agentes
religiosos e favorecida pela implantação de um sistema de gerenciamento dos resíduos sólidos
pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) de Porto Alegre e, segundo a sua
atual coordenadora, se presta bastante a “(...) fazer esse elo de ligação entre os órgãos
públicos e o catador(B.), o que tende a provocar uma redução do caráter conflitual de suas
ações, embora surjam tensionamentos em determinadas conjunturas políticas.
Concomitante a essa proximidade prática, que ajudou na definição de um recorte mais
específico desse universo empírico, o conhecimento acerca da teoria do reconhecimento ia, da
18
mesma forma, progredindo e desvelando aspectos teóricos importantes que contribuíram para
formular uma problemática de pesquisa, a qual, em um primeiro momento, se pensou pudesse
ser a de estabelecer uma relação entre a dimensão do reconhecimento social e os processos de
institucionalização que as coletividades selecionadas poderiam estar engendrando. Contudo,
não as imprecisões conceituais que teimaram em persistir, mas, principalmente, o próprio
trabalho de campo fez, aos poucos, com que novos questionamentos emergissem e fossem se
transformando no mesmo ritmo em que a familiaridade com a prática e com a teoria também
aumentava.
Todo esse processo, por sua vez, tornou inconsistentes as antigas hipóteses, deixando-
as fora de pauta, não passíveis de serem empiricamente constatáveis. Uma série de novas
questões havia aflorado deste contato com o campo, talvez até prévias a qualquer tentativa de
relacionar categorias, e demandava um retorno à teoria, um repensar da própria problemática
sociológica para que se pudesse mais bem servir aos propósitos de continuidade da pesquisa.
Afinal, de qual reconhecimento se estaria falando quando se perde de vista a dimensão
individualizante de sua ocupação? Que articulações este reconhecimento poderia estar a
sustentar junto às evidentes carências socioeconômicas? Estariam estas sendo deslocadas na
viabilização política de seus projetos ou submersas em meio aos potenciais ganhos
simbólicos? Enfim, como se articulariam as dimensões cultural, econômica e política na
construção analítica de uma reivindicação de reconhecimento por essas duas diferentes
coletividades?
Todas estas são questões que passaram a permear este momento de repensar o rumo do
trabalho, embora não se tenha tido a pretensão de responder direta e exaustivamente a cada
uma delas. É necessário ponderar, no entanto, que, mesmo que se faça um recorte analítico,
“consciente do fato de que cada definição constrói o seu objeto e seleciona dimensões dos
fenômenos em relação ao ponto de vista do observador” (MELUCCI, 2001), todos esses e
muitos outros questionamentos foram se fazendo presentes. Com isto, o risco de divagações,
por sua vez, foi uma constante durante boa parte da pesquisa, até porque, mesmo que se
instruísse o olhar, todos esses questionamentos, ainda que sutil e implicitamente, teimavam
em se manifestar, de forma contundente por vezes, no trabalho de campo.
Com o uso desse referencial, este estudo procurou distanciar-se de grande parte das
análises correntes que fazem referência ao processo de formação desses grupos de catadores
calcado substancialmente em fatores socioeconômicos como alternativas de trabalho e renda
4
.
4
Para um exemplo desta perspectiva, adotada em um estudo sobre uma associação de catadores de Belo
Horizonte-MG, ver Cardoso & Carvalho Neto (2003).
19
De modo geral, tem-se buscado compreender a lógica e a dinâmica desses processos quase
que exclusivamente pela perspectiva da natureza dos recursos e incentivos, através de
abordagens racionalistas e instrumentais. Em confronto com isso, Melucci (2001) ressalta que
os atores sociais não lutam somente por bens materiais ou para aumentar sua participação no
sistema, lutam por projetos simbólicos e culturais, por um significado e uma orientação
diferentes da ão social. Sem negligenciar a importância de estudos que ressaltam o aspecto
econômico dessa nova ocupação ou as estratégias políticas dos diversos atores sociais
comprometidos com os rumos dela, esta pesquisa pretendeu lançar um olhar “cultural” sobre
esses processos através da categoria do reconhecimento social por acreditar que possa
contribuir para elucidar outras dimensões que não somente aquelas que os vêem como
demandantes, em um jogo de barganha política, de reivindicações (re)distributivas.
Antes, porém, uma decantação terminológica preliminar se faz necessária, pois, como
costuma ocorrer com os conceitos que se prestam aos mais diversos usos, uma certa diluição
retórica da especificidade do conceito de reconhecimento pode obscurecer o uso que dele aqui
se faz. Com o intuito de fundamentar teoricamente a argumentação a ser apresentada em torno
da noção de reconhecimento social, discute-se, no capítulo 1, a perspectiva adotada por Nancy
Fraser, filósofa e cientista política norte-americana que, desde meados da década de 1990,
tem-se dedicado a esta temática. Preocupada em resgatar a dimensão econômica supostamente
perdida nos conflitos de cunho cultural e, mais recentemente, expandi-los para uma análise
dos processos políticos que os engendram, a autora oferece subsídios que permitiram se
pensar teoricamente sobre as especificidades de cada uma dessas dimensões frente à
construção de um status que venha a possibilitar aos agrupamentos sociais em estudo, acessar
as condições objetivas, intersubjetivas e de poder para participarem de forma legítima nas
deliberações que lhes digam respeito. Mesmo que os grupos não travem uma luta cultural
stricto sensu, pela afirmação de uma identidade cultural, trazer para o centro da análise a
perspectiva do reconhecimento foi uma forma de abordar aspectos vinculados ao status que
permeia a sua ação social, bem como caracterizar teoricamente este status de forma a mais
bem compreendê-lo.
Busca-se, a partir desse recorte teórico, contextualizar a suposta autonomia da
dimensão econômica desta atividade envolvendo-a no crescente discurso em prol das questões
ambientais e ecológicas, que atinge esses grupos diretamente e contribui para moldar, em
última instância, sua própria discursividade, através mesmo de sua apropriação como forma
de tornar eficazes e legítimas suas próprias reivindicações político-econômicas. Conforme
consta no site internet de uma conhecida associação de catadores de Belo Horizonte, são esses
20
“‘mediadores na relação entre as sociedades e o meio ambiente’ que, com seu trabalho
informal, sustentam o mercado da reciclagem no terceiro mundo” (ASMARE, 2004). Para
isso, procurou-se confrontar uma das facetas do atual ativismo ambiental que diz respeito à
instrumentalização do discurso ecológico para fins econômicos à precária situação
socioeconômica dos catadores de rua que, segundo Legaspe (1996), sustentam os altos índices
alcançados pelo mercado “ecorresponsável” (MOTA, 2005:5).
No capítulo 2, propõe-se uma descrição dos fatos e eventos que se julga essenciais
para reconstituir e caracterizar parte da história que corresponde aos últimos 20 anos de
organização dos catadores em Porto Alegre e os desdobramentos que advieram no cenário
estadual e nacional, com especial ênfase no surgimento de grupos que passaram a aspirar para
si a legitimidade de representar tanto aqueles que começaram a trabalhar em associações
quanto os que continuaram a executar sua atividade nas ruas, de forma ainda mais informal.
Como se verá, o desencadear desse processo na capital do Rio Grande do Sul se deu
muito em função do vínculo que os agentes religiosos foram estabelecendo com os catadores
da localidade que ficaria mundialmente conhecida em 1989 como a “Ilha das Flores”
5
. Esse
ano marca igualmente o início da gestão municipal do Partido dos Trabalhadores (PT), que se
estendeu por 16 anos ininterruptos (1989-2004), e que implementaria já no início dos anos 90,
devido à urgência em dar uma solução à problemática do lixo, o chamado “Sistema de
Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos”, sob responsabilidade administrativa do
DMLU, que passará a interferir diretamente nos rumos desse processo.
O propósito maior do capítulo 2 é ir realçando a paulatina formação de lideranças que
se deu em meio a todo um coletivo que começa a ser agrupado por agentes externos e que, ao
longo do processo, consegue se organizar a fim de constituir agrupamentos mais autônomos.
Na medida em que o capítulo avançar, a ênfase recairá mais especificamente sobre o objeto
empírico, onde se pretende apresentar particularidades de cada uma das coletividades em
estudo mediante o uso de alguns dados do trabalho de campo que serão incorporados ao texto
quando se acredita que contribuam para revelar diferenciações e similitudes que as
caracterizem.
Com um pressuposto indutivista passando a assumir um papel preponderante como
orientação-guia para a conformação que o trabalho adquiriu em seus últimos momentos, o
contato com o campo de pesquisa irá permitir que, no capítulo 3, se comece a discutir
5
Este é o título de um curta-metragem dirigido por Jorge Furtado e filmado junto à Ilha Grande dos Marinheiros,
em Porto Alegre, e que retratou de forma peculiar a situação de miserabilidade vivenciada pelos seus moradores,
os quais disputavam entre si os restos do que costumava sobrar após terem servido de alimento aos porcos.
21
alternativas para o modelo teórico adotado, as quais serão sistematizadas nas considerações
finais. Ao discutir esta temática à luz dos dados coletados empiricamente, a hipótese teórico-
empírica cedeu lugar a reflexões de cunho mais teórico e isto significou sugerir modificações
à estrutura teórica da autora, de forma a englobar uma pluridimensionalidade de níveis
analíticos. Com isto, este trabalho assumiu um caráter mais teórico do que estava previsto de
início, e acabou trazendo, assim, contribuições para suscitar novas abordagens em outros
contextos empíricos que dêem conta de enriquecer o material teórico, a tal ponto que possa
servir aos propósitos analíticos a que o conhecimento sociológico aspira.
Para finalizar, o autor sente-se na obrigação de compartilhar o quanto hesitou em
assumir um certo tom de narrativa em boa parte da introdução, muito pelo risco latente de
soar enfadonho ou tornar-se uma proposta incongruente tendo em vista a construção de um
trabalho que almeja ser sociológico. Entretanto, se acredita haver percebido a tempo o quanto
tal postura poderia resultar limitada, considerando que todo o caráter científico que o
envolveu não é dado a priori, mas fruto de um processo que necessita ser explicitado e
incorporado à escrita com vistas a torná-la inteligível. Sem dúvida que, somente assim, ao se
exporem no trabalho as ferramentas e os passos que foram seguidos para a sua construção, ele
se torna, de forma legítima, verossímil ao leitor e suscetível ao escrutínio público. Na
seqüência, acrescentam-se algumas questões relativas à metodologia empregada.
Considerações metodológicas
Com o intuito de fundamentar metodologicamente a argumentação feita neste trabalho,
foram adotados três métodos de coleta de dados em particular: entrevista semi-estruturada,
observação participante e coleta de documentos.
Com relação ao primeiro deles, a escolha do tipo de entrevista e dos entrevistados não
se deu de forma aleatória. Considerou-se, para tanto, que esta modalidade de entrevista serviu
melhor aos propósitos desta pesquisa ao permitir que as perguntas tivessem “mais espaço para
sondar além das respostas e, assim, estabelecer um diálogo com o[s] entrevistado[s]” (MAY,
2004:148), os quais foram selecionados não somente por ocuparem posições de liderança,
mas porque, durante o trabalho de campo, foram detectados como sendo informantes-chave,
com posições de destaque nesses grupos.
O contexto que envolve a realização da entrevista é um aspecto importante do
processo, de forma que a aproximação prévia que se havia dado eminentemente com o MNCR
22
veio a facilitar bastante esta etapa da pesquisa. Mesmo não se tendo um contato mais estreito
com os coordenadores da FARRGS, eles se mostraram dispostos a colaborar desde o primeiro
contato, frisando a importância de que houvesse um comprometimento da parte do
pesquisador em dar um retorno ao final da pesquisa, situação da qual eles se ressentem de
nem sempre ocorrer. A realização da pesquisa mostrou, de fato, não ser, conforme argumenta
Minayo (1996:114), “simplesmente um trabalho de coleta de dados”, mas “uma situação de
interação na qual as informações dadas pelos sujeitos podem ser profundamente afetadas pela
natureza de suas relações com o entrevistador”.
No conjunto, foi realizado um total de oito entrevistas e, dentre os entrevistados, estão
três coordenadores da FARRGS: a coordenadora geral, a secretária (atual coordenadora
geral da gestão 2005-08) e o tesoureiro, todos cargos ocupados durante a gestão 2002-05
(totalizando 1h59 min de fita gravada); e cinco representantes do MNCR: uma liderança
reconhecida no cenário nacional (membro da Comissão Nacional do Movimento e da Equipe
de Articulação) e quatro das principais lideranças do Estado (totalizando 2h17min de fita
gravada). O total de 4h16min resultou em 88 páginas transcritas (folha A4, Times New
Roman, 12, espaçamento entre linhas de 1,5, formatadas segundo os padrões ABNT). O
ANEXO 1 traz as perguntas efetivamente realizadas com cada um dos colaboradores, bem
como o tempo de gravação com cada um deles. E o ANEXO 2, o modelo do termo de
consentimento livre e esclarecido utilizado ao início de cada entrevista. Vale ressaltar que a
maioria dessas lideranças testemunhou grande parte do processo de organização dos catadores
no Estado, o que veio a ser um significativo acréscimo para que o mesmo fosse mais bem
compreendido.
A observação participante, enquanto técnica que permite ao pesquisador realizar a
coleta de dados através de sua participação na vida cotidiana do grupo (BECKER, 1994)
“envolvimento que despe o investigador do seu conhecimento cultural próprio enquanto veste
o do grupo investigado” (ITURRA, 1986:149) –, foi utilizada particularmente nas atividades
promovidas pelo MNCR, tendo sido, para o caso da FARRGS, restrita à participação em um
curso que fazia parte do Programa Estadual de Formação de Lideranças, em agosto de 2005.
Quanto ao MNCR, lista-se, a seguir, uma série de eventos:
- Reuniões periódicas do Comitê Regional do MNCR, realizadas na sede da FAG e na
Via Campesina, em Porto Alegre, de outubro de 2004 a setembro de 2005;
- 1º Encontro Estadual do MNCR, realizado em Gravataí, em novembro de 2004;
- Reunião de avaliação do Encontro Estadual com a Coordenação Estadual, em Porto
Alegre, em novembro de 2004;
23
- II Congresso Latino-americano de Catadores, realizado em São Leopoldo, em janeiro
de 2005;
- Encontro de formação política, com lideranças de diferentes associações do Estado,
com ênfase nos aspectos econômicos que envolvem o ciclo da reciclagem no atual
panorama do capitalismo globalizado e o impacto que traz para a vida dos catadores,
realizado em São Leopoldo, em julho de 2005;
- Fórum do bem-estar animal, promovido pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da
Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre, em agosto de 2005, que contou
com a participação de membros do MNCR;
- Seminário “Educação, Resíduos Sólidos e Cidadania: o futuro de Porto Alegre”,
promovido pela Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre, em novembro de
2005, o qual teve a presença de representantes tanto do MNCR quanto da FARRGS.
No que concerne à coleta de documentos, foi possível de se ter acesso ao plano de
ações 2004-05 da FARRGS e a um “Guia de Reciclagem 2005”, publicação da ABES-RS e
da FARRGS. Do MNCR, alguns documentos, tais como sua cartilha de formação, folheto de
“músicas e gritos de guerra”, “proposta para convênio de cooperação mútua entre o município
de Porto Alegre e associações de catadores ligadas ao MNCR”, atas correspondentes a três
reuniões do MNCR com representantes do poder público municipal (gestão 2005-08) e outros
informativos e programas de eventos realizados. Outros panfletos e materiais de divulgação
de ambos os grupos foram obtidos mediante visita a um centro de documentação de uma das
ONG’s que vem assessorando a FARRGS. Para a concepção deste trabalho serão igualmente
utilizados artigos de jornais e informações coletadas em sites internet relacionados ao assunto.
Estes dados não expressam o conteúdo principal do trabalho, mas serão acrescentados em
algumas partes dele, especialmente quando se julgar que contribuam para a análise específica
que esteja sendo feita.
Por fim, aprecia-se concluir com algumas palavras, das quais se fez uso na
elaboração do projeto desta pesquisa, que dizem respeito à trajetória do pesquisador no
decorrer desses dois últimos anos de convivência com os catadores e que se expressam na
própria modalidade “qualitativa” de investigação adotada, a qual está alicerçada em uma
postura de busca do sentido dos fenômenos no espaço da intersubjetividade, ou melhor, “no
espaço do encontro entre a subjetividade que se inscreve na vivência dos informantes e na
vivência do próprio pesquisador, através das compreensões e interpretações compartilhadas”
(UCHIMURA & BOSI, 2002:1567).
24
1. DA FILOSOFIA MORAL AOS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS
VIA TEORIA SOCIAL: O (não-)reconhecimento como um dos parâmetros
para a (in)justiça social
Para que se possa, na atualidade, discorrer sobre a categoria do reconhecimento social,
não obstante ela ainda estar em plena fase de amadurecimento teórico e suscitar controvérsias
e ambigüidades entre autores, é preciso se reportar a algumas das transformações sócio-
políticas do pós-guerra especialmente quanto à conquista dos direitos sociais, aos moldes
em que são descritos por T. H. Marshall (1967), em países altamente industrializados, e às
mudanças paradigmáticas na agenda dos chamados “novos movimentos sociais” –, de forma a
permitir que se estabeleça um vínculo entre esses processos, em termos das circunstâncias que
os geraram, e as implicações que tiveram para a teoria social.
A noção de igualdade foi o leitmotiv a animar as lutas sociais que, ao longo do século
XX, foram sendo travadas por grupos economicamente desfavorecidos que reivindicavam
acesso aos direitos sociais. Esta noção, no entanto, é bem anterior a esse período, tendo sido
fruto das revoluções democrático-burguesas que se instalaram no continente europeu a partir
do século XVII e que asseguraram o reconhecimento de uma igualdade formal entre os
indivíduos. Desde então, a dinâmica moderna esteve calcada em um ideário liberal visto
essencialmente através das lentes da igualdade e da liberdade. Ao colocar a ênfase na
primeira, mesmo às custas de certas limitações à última, o pensamento marxista exerceu
grande influência para que se reconhecesse que a liberdade, por si só, não bastava para
alcançar uma igualdade social. Isto significava ter que admitir que o “mercado” não se
constituía no meio mais adequado para propiciar a redução das disparidades socioeconômicas
entre os membros de uma sociedade, a qual somente poderia ser alcançada, sob a ótica liberal,
através de políticas públicas sustentadas pelos Estados nacionais modernos. Em termos gerais,
tal como afirma Neves (2002), estava assim estabelecido o argumento que serviu para que um
grande número de países ocidentais pusesse em prática medidas de caráter social que vieram a
desembocar em diferentes regimes de Welfare State, com “combinações qualitativamente
diferentes entre Estado, mercado e família” (ESPING-ANDERSEN, 1991:108).
A difusão dessas idéias terminou por se constituir como fundamento de um contrato
social que veio a se tornar realidade na medida em que o aumento das riquezas produzidas ao
longo dos “trinta gloriosos anos” que se seguiram à II Guerra Mundial possibilitou a adoção
25
de medidas que as redistribuíssem. Para isso, a consolidação dos princípios keynesianos
permitiu a instauração de um pacto social que se expressou no Estado provedor e nas leis que
garantiram, dentre outros benefícios, a previdência social, financiada pela renda do trabalho, e
a assistência social, financiada pelo imposto de renda (BAJOIT, 2004). O acesso aos recursos
materiais pelos membros de uma determinada sociedade, e a conseqüente diminuição da
desigualdade social entre eles, se tornou, então, uma questão básica em qualquer composição
social com pretensões de ser justa, e passou a configurar, conforme argumenta Neves (2002),
como um dos critérios de definição para o próprio conceito de justiça social.
Esse mesmo princípio igualitário universalista, sustentado pelo movimento operário e
difundido pelo modelo de Bem-Estar Social para legitimar uma postura redistributiva, foi, no
entanto, quando visto de outro ângulo, desatento às transformações que vinham se dando no
âmbito das relações pessoais e restrito no reconhecimento ao direito de todos de poderem
participar das decisões que se davam no âmbito da esfera pública. A mudança de orientação
político-normativa, ocorrida, em parte, pela emergência dos novos movimentos sociais, teve o
intuito de provocar alterações em tal horizonte ao favorecer o surgimento de conflitos
culturais em meio à progressiva queda tanto da importância político-econômica do socialismo
quanto da crença generalizada em promessas emancipatórias de “grandes narrativas”, fossem
estas envoltas em um invólucro liberal ou revolucionário
6
.
O processo de renovação político-teórico que daí adveio, vivenciado pelo que se
convencionou chamar de “nova esquerda”, acabou por contribuir não apenas para romper a
camisa-de-força que o marxismo tradicional havia imposto à análise da cultura e de seu papel
na transformação social, como também para trazer mudanças conceituais significativas ao
campo específico da análise cultural (DAGNINO, 2000). Tal fenômeno, enquanto ainda se
desenvolvia nas décadas de 1960 a 80, não ocorreu sem que se houvesse tido o cuidado em
estender essas reformulações igualmente ao terreno da economia política. Mesmo estando
com algumas das demandas socioeconômicas, propiciadas pelo Welfare State, supostamente
garantidas, as lutas por reconhecimento da diferença que emergiram durante esse período
ainda aspiravam, embaladas por um certo tom emancipatório, a enfrentar os problemas de
identidades discriminadas sem abandonar aqueles cujas soluções persistissem relacionadas à
redistribuição de riqueza e poder. Outrossim, dada à conjuntura do período, ainda era
verificável uma certa contigüidade harmônica na condução dos princípios igualitaristas e das
6
Pertencentes ao ideário iluminista, liberais e revolucionários m uma posição em comum: subordinam a vida
social aos preceitos da razão. Acreditam ambos no fim das desigualdades e das formas arbitrárias de autoridade e
de poder mediante o triunfo final de uma ordem regida por princípios universalistas (TOURAINE, 1998).
26
demandas de reconhecimento dos grupos que tentavam mudar o imaginário acerca do lugar
pouco confortável que a sociedade costumeiramente lhes havia reservado.
Nos anos 1990, entretanto, Fraser (2002a:61) destaca que a nova esquerda não era
mais que uma lembrança e o marxismo era considerado letra morta por vários teóricos”, bem
como questionado em seu potencial emancipatório por uma grande parte desses novos
movimentos sociais. Em tal contexto, Silva (2005) argumenta que a crítica feita por alguns
desses movimentos ao controle do Estado de Bem-Estar Social sobre a vida das pessoas
acabou contribuindo, ainda que não tenha sido esta a intenção original, para deslocar as
reivindicações de natureza socioeconômica do centro da agenda política. Presa fácil do
Zeitgeist pós-socialista” (FRASER, 2005a:298), essa crítica não apenas favoreceu a
emergência das reivindicações que giravam basicamente em torno de eixos de identidade e
diferença, mas convergiu, de igual modo, com os ataques aos direitos sociais pelas políticas
neoliberais a partir da década de 1980, fortalecendo-os.
A partir daí, como reflexo dessa mudança de perspectiva, houve uma significativa
projeção de temáticas que se propunham a reabilitar grupos sociais discriminados, expressas
pela ênfase dada às políticas afirmativas, ao multiculturalismo e aos direitos culturais, os
quais vieram, em um grande número de países, a se tornar o principal eixo do debate público.
Embasando esses conflitos, que não mais podiam ser reduzidos à conquista de benefícios
econômicos, reside a premissa básica de que o reconhecimento é fundamental para o processo
de formação da identidade pessoal. Ao considerar o surgimento empiricamente observável
desses conflitos identitários, os quais intentaram reverter padrões culturais considerados
hegemônicos, Taylor (1994) os associa a mudanças na topografia moral assumida pelas
sociedades ocidentais no último quartel do século XX. Entretanto, quando tomadas de forma
geral, sem precisar a sua natureza, o autor argumenta que as lutas por reconhecimento se
referem a fenômenos trans-históricos, dotadas de configurações que se moldaram de acordo
com os distintos processos sociais.
Ao querer abarcar as recentes transformações culturais sem perder de vista a histórica
ênfase igualitária, as reivindicações de alguns grupos têm buscado transcender os contornos
identitários e resgatar a luta pelo direito de existir enquanto cidadãos iguais aos demais
membros da sociedade, capazes ainda, desde que sustentadas tais reivindicações em pilares
igualitários, de aportar contribuições singulares à sociedade, mediante uma maior participação
no capital simbólico da cultura (PERTILLE, 2000), condizente com o que Neves (2002)
afirma se tratar de demandas por uma “cidadania simbólica”. Para este autor, que aborda o
reconhecimento como sendo uma das dimensões da cidadania, não se deve desvinculá-lo de
27
outras lutas sociais pela ampliação do espaço de exercício da cidadania nem das relações de
poder em vigor na sociedade. Desta forma, inserir o reconhecimento na esfera da cidadania
significa lhe dar um estatuto que além da auto-estima pessoal ou dos direitos de um grupo
específico: significa que o reconhecimento passa a ser ancorado institucionalmente e
concebido como um dos critérios de justiça na sociedade e, assim, assegura uma vinculação à
dimensão redistributiva, a qual, segundo Silva (2000), já está englobada na noção de
cidadania.
O impacto empírico do “reconhecimento” no mundo contemporâneo terminou por
acarretar repercussões sociais, políticas e ideológicas sobre a formulação da teoria social. Essa
profunda transição no cenário sócio-político, retratada através dos acontecimentos acima
mencionados, será responsável por nutrir o debate que se instaurará entre comunitaristas e
liberais em torno da polêmica acerca de quais seriam os parâmetros a serem considerados
válidos para uma definição de justiça social. De forma sucinta, esse é o panorama teórico-
prático que envolve o texto que será desenvolvido a seguir, limitado aqui a dois dos principais
filósofos e pensadores sociais da teoria do reconhecimento, os quais se encontram, por assim
dizer, no meio caminho entre essas tradições, sendo que somente um destes autores servirá
aos propósitos desta dissertação.
FRASER E HONNETH: Confluências e dissidências ao teorizar sobre o reconhecimento
Influenciada pelos acontecimentos acima mencionados e por outras transformações
societais por demais complexas para serem todas aqui expostas, a teoria social acabou por
sofrer uma atenuação nas rígidas fronteiras que separavam, analiticamente, política, cultura e
economia. Neste sentido, um contexto de acentuada sensibilidade a valores morais, como
sugerido não apenas por Taylor (1994) mas fazendo parte igualmente da perspectiva de
Honneth (2001), resguardadas as devidas especificidades de cada autor, foi também propício
ao afloramento de alternativas teóricas que prometessem novas formulações e diagnoses para
os problemas das sociedades capitalistas ocidentais e que, assim, mantivessem resquícios de
um determinismo econômico o mais distante possível de seu horizonte de interpretação.
Com o intuito de formular um construto teórico que desse conta de captar tais
especificidades e, ao mesmo tempo, se tornar uma nova possibilidade de interpretação crítica
para esses fenômenos, Nancy Fraser e Axel Honneth adotam, a partir dos anos 1990, uma
perspectiva analítica com uma forte ênfase, respectivamente, pragmática, baseando-se em
28
aspectos político-filosóficos kantianos, e sociológica, baseando-se em aspectos da filosofia da
consciência hegeliana, para contribuírem, se bem que de formas distintas, ao desenvolvimento
da então incipiente categoria do reconhecimento social. Tal disposição teórica, imersa em um
contexto de crescente desinteresse por questões de igualdade socioeconômica, ou mesmo, de
um profundo questionamento sobre a forma de lidar com elas, começa a se constituir no que
se convencionou chamar “the Cultural Turn” (RAY & SAYER, 1999).
essa guinada cultural sofrida pelo marxismo ocidental assimilou tanto repercussões
práticas provenientes do acirramento de políticas neoliberais em meio à crise do Estado de
Bem-Estar Social keynesiano quanto influências do ponto de vista acadêmico, no fenômeno
de “culturalização” da nova esquerda, na perspectiva assumida pelas análises pós-modernistas
e pós-estruturalistas e em desdobramentos no interior da teoria crítica. É justamente nesta
última, conquanto sem se limitar aos seus preceitos, que viria a ecoar um dos correlatos
teóricos da virada cultural anteriormente mencionada, o qual tomará um grande impulso a
partir do trabalho desenvolvido por Fraser e Honneth: a chamada “teoria crítica do
reconhecimento”, vinculada ao que posteriormente ficaria conhecido, mais especificamente,
por “the 1990´s Recognition Theoretical Turn” (FRASER, 2004a).
A figura abaixo se propõe a resumir o quadro teórico em que essa teoria esenvolta
sem, com isso, inferir que haja uma total submissão da mesma aos preceitos das outras três
evita-se, assim, que ela seja vista como fruto de uma relação de causalidade direta ou que
elas se limitem ao escopo da teoria crítica do reconhecimento. Pretende-se apenas, ao resumir
as idéias expostas acima, apresentar de forma visual uma certa dinâmica de influência que
esses pressupostos possuíram para a sua constituição.
Figura 1.
TEORIA CRÍTICA DO
RECONHECIMENTO
TEORIA CRÍTICA
GUINADA CULTURAL
TEORIA MARXISTA
29
Empreendendo análises diversas aos mesmos moldes de uma grand theorizing
(FRASER & HONNETH, 2003) capaz de, assim, apreender o capitalismo não somente
enquanto um sistema econômico, mas como uma forma de vida, os dois autores tomam para
si, cientes dos riscos que daí advêm, o desiderato frankfurtiano de promover o que, em
alemão, se costuma chamar Zeitdiagnose: “um grande painel que [lhes] permita se situar
historicamente e se orientar politicamente”
7
(FRASER, 2004a:381). Afinal, como argumenta
Honneth (1999), a teoria crítica, sempre ciente de seu contexto de origem bem como de suas
possibilidades de aplicação prática, pode cumprir a tarefa que dela se espera se tiver à sua
disposição uma teoria da história capaz de esclarecê-la sobre a sua própria posição e papel nos
processos sociais, viabilizando um diagnóstico do tempo capaz de revelar o “delineamento de
tendências do desenvolvimento histórico do presente” (NOBRE, 2005:3), que é uma tarefa
característica do campo crítico ao qual esta teoria está intimamente relacionada.
Mattos (2004a) destaca que reside em ambos os autores o desejo de elevar a categoria
do reconhecimento a um patamar de possível reconstrução do pensamento crítico, que ofereça
meios de estabelecer uma postura elucidante em relação às atuais sociedades ocidentais. Ao
mesmo tempo, ambos se concentram em rejeitar uma visão economicista que relega ao
reconhecimento o papel de um mero epifenômeno da redistribuição, em teorizar o lugar da
cultura no capitalismo e pensar padrões de justiça social. Para isso, sustentam argumentos a
partir de diferentes limites que cada um deles supõe existir nas perspectivas teóricas de
Foucault e Habermas.
Mesmo que se possa evidenciar certa confluência em suas perspectivas, como as que
foram brevemente apontadas acima, é importante também que se chame a atenção para o
manejo diferencial de alguns instrumentos conceituais que acabam compondo arranjos
teóricos dissonantes entre os autores. Afinal, por mais similares que pareçam as alternativas
de reflexão que cada um deles traz para pensar questões cruciais da sociedade contemporânea
e de fato, Deranty (2003) afirma que, para ambos, o liberalismo permanece sendo formal e
conceitualmente inadequado enquanto não levar em conta as dimensões sociais da autonomia
–, suas posições resultam divergentes quanto à melhor forma de fazê-lo, o que os leva, como
argumenta Silva (2005), a formularem duas versões da teoria crítica: uma com tendências
mais universalistas, centrada na idéia de participação paritária (Fraser), e outra mais
comunitarista, centrada no conceito de luta por reconhecimento (Honneth). A diferença reside
em que Fraser a normatividade da autonomia fundada na participação social, enquanto
7
Todas as citações literais oriundas de textos escritos em língua estrangeira foram livremente traduzidas pelo
autor para uso neste trabalho.
30
Honneth a vê fundada na auto-realização, no completo desenvolvimento das capacidades
individuais.
Será feita a seguir, a título de ilustração, uma exposição de alguns dos pressupostos
que orientam as opções teóricas de Honneth, na crença de que os mesmos possam evidenciar
particularidades que, por comparação, ajudem na compreensão da perspectiva de Fraser,
sendo esta que depois será mais bem desenvolvida para uso neste trabalho. Será feita uma
menção ulterior a Honneth quando se apontar limites ao dualismo proposto inicialmente por
Fraser em seu texto de 1995, a qual se revestirá do breve intuito de indicar uma possibilidade
alternativa de análise.
Axel Honneth, partindo de desígnios habermasianos voltados para o entendimento e
para a reprodução simbólica da sociedade, percebe nestes uma lacuna que tende a limitar a
percepção de um dos principais aspectos constitutivos da intersubjetividade da ação social,
qual seja, a de que esta é o resultado de permanentes conflitos sociais. Para o autor, a base da
interação é o conflito, e sua gramática, a luta por reconhecimento, de forma que a ausência de
um caráter conflitual na teoria crítica ajuda a perpetuar um “déficit sociológico” (HONNETH,
2003b) capaz de obscurecer a lógica constitutiva de qualquer ação. Desta forma, mesmo que,
na passagem de Horkheimer a Habermas, a teoria crítica tenha ganhado em termos
normativos, ela “perdera em ancoragem na realidade social, enfraquecendo-se a relação da
teoria com a prática dos atores envolvidos” (SILVA, 2004:180).
Com o conceito hegeliano de luta por reconhecimento, desenvolvido à luz de uma
psicologia social empiricamente sustentada, Honneth (2003a) supõe ter encontrado os insights
normativos ausentes na perspectiva teórica de Foucault ideais para elaborar um conceito
de luta moralmente motivada que lhe permita reintroduzir a noção de conflito na teoria crítica,
sem cair em um modelo atomístico e egoístico no qual predomina a idéia de autopreservação
herdada da tradição de Maquiavel e Hobbes. Desta forma, para o autor, pensar a sociedade
através da combinação dos conceitos de luta e de reconhecimento seria deixar de lado esse
ponto de vista abstrato – de descrever e analisar quais os obstáculos simbólicos que se
oporiam a uma prática discursiva pautada pela intercompreensão e passar a conceber as
relações sociais de dominação a partir de uma dinâmica de grupos que buscam a afirmação de
sua identidade e autonomia, ou seja, seu reconhecimento (PERTILLE, 2000).
Na medida em que formas de desrespeito (maus-tratos e violação, privação de direitos
e exclusão, degradação e ofensa) deixam de expressar apenas o infortúnio de indivíduos
isolados e passam a expressar a experiência compartilhada de muitos outros, emerge o
potencial para uma ação coletiva voltada para o alargamento dos padrões de reconhecimento.
31
Honneth faz essa conexão entre as experiências individuais e as experiências de grupo a partir
de uma releitura dos trabalhos de Marx, Sorel e Sartre. Com a adoção de um modelo
monístico, sustentado em bases morais
8
moral-theoretical monism –, ele reinterpreta o
ideal socialista da redistribuição econômica e o classifica como uma subvariante da luta por
reconhecimento (SILVA, 2000; 2005).
No que se refere a Nancy Fraser, a autora, inspirada por rápidas e profundas mudanças
sociopolíticas características de uma era pós-socialista, e agravada por intensos processos de
globalização (FRASER, 2002b), se propõe a desenvolver questões normativo-filosóficas
capazes de sustentar possíveis desdobramentos políticos resultantes de uma abordagem sócio-
teórica dualista. Nesta visão, cada prática é tratada como sendo fruto simultâneo de relações
econômicas e culturais, ou seja, em que ambas promovem perspectivas através das quais
qualquer instituição ou prática social pode e deve ser analisada. Partindo de um pressuposto
que evite que cada uma das dimensões se subordine à outra e, assim, preserve a integridade
delas, a autora conduzirá sua trajetória acadêmica com a idéia de desenvolver uma abordagem
interpretativa dualista que forneça uma visão crítica alternativa aos emergentes conflitos
culturais e aos possíveis remédios adotados para contorná-los.
O modelo sócio-teórico resultante, o qual apresentará profundas divergências ao
monismo de Honneth, denominar-se-á “perspectival dualism” e será exposto com maior
detalhamento ao longo do presente capítulo. Ao assumir esta empreitada teórica, sua
pretensão será a de integrá-la às orientações e aplicações práticas, ciente da necessidade de
historicizar esta relação de forma a torná-la capaz de resultar na exata combinação marxiana
entre “o projeto intelectual de compreender o mundo e o projeto político de mudá-lo”
(FRASER, 2004b: 1106):
No campo da filosofia moral, a tarefa é imaginar um conceito de justiça que
englobe ambos, que acomode as reivindicações defensáveis por igualdade
econômica e as reivindicações defensáveis por reconhecimento da diferença. Em
teoria social, a tarefa é entender as complexas relações entre economia e cultura,
classe e status na sociedade contemporânea. (...) Na prática política, finalmente, a
tarefa é fomentar um engajamento democrático que cruze a fronteira das duas
correntes para construir uma orientação programática de base ampla que integre o
melhor das políticas de redistribuição com o melhor das políticas de
reconhecimento (FRASER, 2002c:9).
Da sucinta exposição de seus respectivos pressupostos teóricos, é importante que, no
momento, se retenha o quanto subjaz ao esquema conceitual desenvolvido por cada um deles
8
Mattos (2004a) chama a atenção para o que o autor denomina de monismo moral como sendo a tese de que
toda ação humana, seja em contextos econômicos, políticos ou culturais, está desde sempre inserida numa
moldura, ainda que opaca e inarticulada, que pressupõe escolhas e avaliações morais como sua causa última.
32
uma divergência marcante com relação à forma com que os aspectos culturais e econômicos
tendem a se relacionar nas sociedades capitalistas modernas, de onde derivam duas instigantes
questões-guia que, de forma distinta, orientam seus desdobramentos teóricos:
Deve o capitalismo, como existe hoje, ser compreendido como um sistema social
que diferencia uma ordem econômica não diretamente regulada por padrões
institucionalizados de valor cultural de outras ordens sociais que o são? [tal como
sugere Fraser] Ou deve a ordem econômica capitalista ser entendida como
conseqüência de um modo de valoração cultural que é guiado, desde o início, por
formas assimétricas de reconhecimento? [tal como sugere Honneth] (FRASER &
HONNETH, 2003:5).
Longe da intenção de alcançar um denominador comum entre essas posições, tarefa
que certamente exigiria um aprofundamento teórico-filosófico que extrapola os limites desta
dissertação, opta-se pela divisão analítica entre as dimensões econômica e cultural sem se
reduzir somente a elas – por se acreditar que, mesmo imbricadas na realidade, ambas revertem
efeitos com um certo grau de autonomia sobre a vivência dos grupos sociais, especialmente
em se tratando daqueles em condição de subordinação.
Sem se limitar a eles, Smith (2001:112) destaca que um status de “pária” pode ser
associado a grupos que compõem diferentes estratos econômicos, o que faz com que essa
teoria “alert[e] os pesquisadores sobre a possibilidade de que classe e status possam, às vezes,
se interseccionar” e, outras vezes, “operar de forma relativamente autônoma”. Com tal
pressuposto, abordar teoricamente a problemática que envolve grupos que sofrem de
múltiplas injustiças sociais requer a adoção de uma perspectiva que leve em consideração as
lógicas de ação regidas por distintas ordens analíticas que, juntas, ajudam a compor o atual
mosaico das sociedades ocidentais: a estrutura econômica capitalista e a ordem de status que a
acompanha (e, como a própria autora virá depois a acrescentar, também as relações de poder
que a sustentam).
Por se apresentarem, apenas analiticamente, como distintas ordens de subordinação, a
injustiça advinda do não-reconhecimento é acompanhada pela má-distribuição e vice-versa,
de forma que não se assume aqui uma absoluta autonomia entre elas nem a precedência de
uma sobre a outra, mas apenas que ambas as lógicas de ação se influenciam entre si, em graus
diversos, determinando combinações variáveis em cada contexto histórico. Em consonância
com estes pressupostos, Rodríguez (2002) adota, ao estudar o universo dos recicladores na
Colômbia, uma perspectiva que permita analisá-lo tanto econômica quanto culturalmente, que
esteja atenta, por um lado, à exploração econômica derivada da estrutura do mercado da
reciclagem e da conduta dos seus atores dominantes o setor industrial e os intermediários
33
e, por outro, à exclusão social de que são alvos, sem negligenciar que os efeitos econômicos
da estrutura do mercado da reciclagem sobre esses indivíduos que sobrevivem do lixo ainda
são acentuados pelo estigma e pela exclusão que sofrem. Em síntese, a exploração econômica
cria as condições de indigência que lhes provocam a exclusão social e esta, por sua vez, os
confina a espaços urbanos e a nichos econômicos que permitem que o mercado explorador se
perpetue.
Dessa perspectiva, se um grupo é socialmente “marcado” como detentor de um status
de baixa estima social, cujos padrões de estigmatização possam estar institucionalizados em
múltiplas esferas político-legais como vem a ser, por inúmeras razões, o caso do objeto
empírico em questão, seja por proibição de circulação em vias públicas seja por serem
tratados como caso de polícia –, os indivíduos estarão sujeitos a ter menos oportunidades de
acesso a recursos que lhes permitam alcançar uma vida digna e mais dificilmente vão
acumular as condições necessárias para reconhecerem a si próprios e para serem socialmente
reconhecidos como atores politicamente relevantes.
1.1. NANCY FRASER E A ADOÇÃO DE UMA PERSPECTIVA ANALÍTICA
DUALISTA: Das primeiras elaborações teóricas às reformulações conceituais
A tarefa de expor a obra de um(a) autor(a), mesmo não se almejando fazê-lo de forma
exaustiva, supõe uma reconstituição teórica que abranja um considerável período de sua
trajetória acadêmica. Pois é este o intuito ao se procurar revelar aqui particularidades que ao
longo dos anos foram permeando a perspectiva de Nancy Fraser, cujo modelo teórico é
repleto de reformulações conceituais advindas, em grande parte, do diálogo estabelecido com
outros(as) autores(as) e, fundamentalmente, da premissa crítica com que embasa a sua própria
teorização.
Embora o objetivo não seja o de se fazer uma “sociologia autoral” ou expor um quadro
teórico-explicativo total do conjunto de suas proposições, acompanhar sua trajetória de
produção intelectual foi uma forma de acompanhar as mudanças que estão se processando à
medida que a teoria do reconhecimento procura se consolidar como uma alternativa crítica de
análise das atuais sociedades capitalistas. A exposição feita a seguir igualmente servirá aos
propósitos de contribuir para uma discussão posterior acerca dos riscos e das ambigüidades
que o dualismo assumido por Fraser enfrenta em sua tarefa de rediscutir a teoria crítica.
34
1.1.1. Anos 1990: Um contexto de particular dissociação entre cultura e economia
Se comparada a uma fase de “conciliação” que as questões econômicas e culturais
vivenciaram no ordenamento das demandas atribuídas aos novos movimentos sociais de até
fins dos anos 1980, a década de 1990, em contrapartida, viu aflorar tensões entre correntes
divergentes, surgidas no próprio seio dessas lutas sociais, que contribuíram para consolidar
uma nova configuração, na qual as duas dimensões não apenas se distanciaram, mas passaram
a manter relações conflituosas: “Talvez sua expressão mais sintomática tenha sido a sensação
de alienação mútua experienciada na época entre sindicatos e partidos trabalhistas, de um
lado, e multiculturalistas e movimentos ‘pela diferença’, de outro” (FRASER, 2004a:375).
Se, de início, a autora mais facilmente podia correlacionar conceitos como fizera em
seu primeiro livro, publicado em 1989, Unruly Practices: Power, discourse and gender in
contemporary social theory estes, por uma necessidade analítica informada por grandes
transformações sociais, tiveram depois que ser distinguidos em termos de “redistribuição” e
“reconhecimento”.
Esta peculiar condição de desconexão que se deu na relação entre cultura e economia
foi, para a autora (2004b), fruto do declínio e conseqüente alteração em uma onda
historicamente específica de energia ativista: a onda que emergiu no final dos anos 1960 e
teve em torno de 20 anos de expressão nos vários novos movimentos sociais, incluída a
primeira fase da segunda onda feminista
9
. Outro aspecto notório no desacoplamento entre
essas dimensões foi o quanto esse cenário prosperou como reflexo de um desenvolvimento
histórico maior: a simultânea ascensão das políticas de identidade, de um lado, e de um
neoliberalismo econômico globalizado, de outro. Conforme assinala Bauman (2003:81), “não
nada de acidental nessa coincidência”. Afinal, se, ao longo da década de 1980, se pensar
em termos de identidade ainda possuía um caráter progressista, de ruptura com o economismo
vulgar levado a cabo pela esquerda, na década seguinte, em contrapartida, havia ficado
impossível ignorar a crescente onda chauvinista de direita travestida em políticas identitárias.
E este processo acabou ganhando forças devido ao retrocesso dos prospectos distributivos em
9
Com relação à segunda onda feminista, Fraser (2004b) a distingue historicamente em dois diferentes
momentos: a “fase dos novos movimentos sociais”, quando as demandas por redistribuição igualitária dos
recursos econômicos estavam em primeiro plano, e a “fase das políticas identitárias”, quando as demandas pelo
reconhecimento das diferenças culturais tomam a dianteira, ou seja, se a primeira fase do feminismo pós-guerra
ainda lutava para, de fato, engender(imprimir um recorte de gênero) ao imaginário socialista, a segunda fase
efetivamente redefine a justiça de gênero como um projeto eminentemente de reconhecimento identitário. Para
acompanhar o desenvolvimento de uma terceira “fase transnacional” do feminismo, em que a autora vislumbra a
possibilidade da união de aspectos comuns às duas anteriores, ver Fraser (2005a).
35
meio a um descrédito em termos de viabilidade e legitimidade das políticas econômicas
keynesianas, então demonizadas, como argumenta Fraser (2004b:1110), de “big government”:
No contexto do fim do século, a virada para o reconhecimento se uniu em perfeita
comunhão com um neoliberalismo hegemônico que não quer nada mais senão
reprimir toda a memória do igualitarismo social. O resultado é uma trágica ironia
histórica. Ao invés de alcançar um vasto, mais rico paradigma que pudesse
englobar ambos, redistribuição e reconhecimento, parece que nós trocamos um
paradigma truncado por outro um economismo truncado por um culturalismo
truncado (FRASER, 2004b:1111-12).
Nesse ponto, como argumenta Mattos (2004a), Fraser parece concordar parcialmente
com o diagnóstico do cientista político Ronald Inglehart (1971; 1997) de que, atualmente, se
vive uma revolução silenciosa, propiciada em grande medida pelas demandas dos novos
movimentos sociais, na qual uma decrescente ênfase em valores materiais, relacionados à
economia política, em favor de valores vagamente definidos como “pós-materiais”. Por meio
de um raciocínio neomaslowiano, esse autor argumenta que na medida em que as sociedades
industriais se desenvolveram, com a escassez absoluta superada e as necessidades básicas
satisfeitas, as preocupações públicas puderam se elevar ao patamar de uma escala definida por
valores “pós-materiais”. Estes se caracterizariam pelo seu conteúdo não material, gerando
lutas que não têm por fim a redistribuição de renda. Assim, o respeito para com a natureza e o
interesse pela qualidade de vida muito mais do que pela quantidade de bens materiais
adquiridos são vistos como protótipos dos valores pós-materiais
10
. Honneth (2001; 2004)
também aponta um trabalho de Albert Hirschman
11
em que este autor destaca uma mudança
teórica no caráter normativo da atual ordem política ao sugerir que, de forma crescente, as
disputas sociais estão assumindo o caráter de conflitos “indivisíveis”, que, em contraste aos
“divisíveis”, se refeririam a disputas que não mais podem tratar questões distributivas de
acordo com princípios igualitários.
Fraser, porém, não comunga totalmente com a perspectiva adotada por Inglehart, nem
com a perspectiva marxista ortodoxa que atrela as considerações de ordem cultural ao prévio
estabelecimento de formas economicamente estruturadas que não aos moldes capitalistas.
10
Esses valores, por sua vez, predisporiam os cidadãos a apoiarem movimentos com temáticas ecológicas, que
não digam respeito ao progresso humano medido apenas em termos materiais. Neste sentido, Buttel (2001)
aponta para o fortalecimento de um “novo paradigma ecológico”, imbuído de uma ética que se contrapõe à visão
de progresso material irrestrito e irresponsável. Este novo paradigma configura-se na articulação de valores pós-
materiais, como a prudência, a sobriedade ecológica, a ênfase na qualidade de vida e a preocupação com riscos
ambientais. Em contraponto a essa visão, que de certa forma é associada a países centrais, Martínez-Alier
(1995) lança dúvidas sobre a noção de que o ambientalismo é essencialmente um fenômeno de países ricos e de
classes sociais abastadas.
11
HIRSCHMAN, A. Wieviel Gemeinsinn braucht die liberale Gesellschaft? Leviathan, 22(2):293-304, 1994.
36
Inglehart, apesar de criticar as abordagens economicistas que relegam os aspectos culturais a
um plano indevidamente secundário, acaba por fazer com que sua análise padeça, segundo
Souza (2000:161), de um “economicismo filosófico”. Afinal, a idéia sica por trás do seu
argumento é a de que a necessidade material imediata concentra de tal modo os esforços dos
seres humanos na sua superação que não deixaria espaço para a persecução de valores não
materiais. De forma paradoxal, o que Fraser percebe nas novas demandas dos movimentos
sociais por reconhecimento cultural é justamente a minimização e não-tematização das
questões referentes às injustiças econômicas em uma ordem social globalizada e marcada por
uma crescente concentração de renda, que se exacerba na maioria dos países do mundo,
inclusive em países centrais como os Estados Unidos
12
.
Resguardando certa reticência a esta virada cultural, Fraser passa, então, a identificar
uma mudança desconcertante no cenário de reivindicações políticas, no qual as lutas
identitárias se tornam a forma conflitual por excelência enquanto as lutas por questões
econômicas, quando não em franco declínio, tendem a ser dissociadas daquelas que são
culturalmente motivadas. Passando a ter que considerar essas dimensões como passíveis de
apresentarem fins contraditórios, foi do tensionamento gerado entre os dois tipos de
reivindicações que daí resultam, que, em 1995, pela primeira vez, Fraser cunhou o “dilema da
redistribuição/reconhecimento” em um de seus textos mais influentes e discutidos: From
Redistribution to Recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist’ age
13
, onde chamou a
atenção para um provável impacto negativo das questões de reconhecimento sobre a estratégia
de movimentos sociais particulares e introduziu sua concepção bidimensional de justiça.
Nesse texto, um esforço da autora no sentido de tornar operacional a temática do
reconhecimento de uma forma tal que lhe permita conjugá-la às demandas redistributivas,
estando estas particularmente negligenciadas nas análises correntes em meio ao eclodir dos
conflitos “pós-socialistas”. Segundo a autora, a era pós-socialista caracteriza-se por acirrar
uma série de sintomas relacionados ao processo contemporâneo de decadência do ideário de
esquerda, tais como: a ausência de qualquer visão alternativa crível para a presente ordem; o
12
Fraser (1996a) menciona que a 7ª edição do Human Development Report, cujo enfoque foi a relação entre
crescimento econômico e desenvolvimento humano, teria demonstrado que os EUA estariam adentrando uma
categoria de países onde a estratificação econômica teria se acirrado nos últimos 50 anos, com o rendimento per
capita nacional estando, no mínimo, quatro vezes maior se comparado à média salarial do pobre (CROSSETTE,
1996). Os capítulos deste relatório estão disponíveis em: http://hdr.undp.org/reports/global/1996/en/. Por aqui,
um estudo de Figueirêdo, Netto Junior & Porto Junior (2005) mostrou redução no índice de desigualdade de
renda do brasileiro, com variações de acordo com a região do país; porém, evidenciou, também, um aumento
significativo no índice de polarização, com um conseqüente esvaziamento das classes de renda intermediárias.
13
Este texto foi reeditado em 1997 para compor um dos capítulos do livro Justice Interruptus:Critical
reflections on the ‘postsocialist’ condition” e teve sua primeira versão em língua portuguesa publicada em 2001.
37
fracasso em conectar uma política identitária e uma política igualitária; e, servindo de pano de
fundo, um renascimento do liberalismo econômico. O que passa, portanto, a configurar como
uma de suas maiores preocupações, tanto em termos teóricos quanto políticos, é a desconexão
que possa estar se consolidando entre duas importantes dimensões, outrora facilmente
conjugáveis, dos conflitos sociais: a econômica e a cultural. Seu objetivo, conforme destaca
Yar (2001), passa a ser, então, o de fornecer uma base de distinção analítica entre elas de tal
maneira que suporte uma combinação coerente dentro de um projeto político de esquerda.
1.1.2. O “dilema da redistribuição/reconhecimento”: O argumento inicial
Em uma tentativa de elucidar essas reviravoltas do cenário político contemporâneo, a
autora (2001a) inicialmente se propõe, no referido texto, a distinguir duas compreensões de
injustiça: socioeconômica e cultural (imbricadas na realidade, mas, por motivos heurísticos,
analiticamente distinguíveis) e seus respectivos remédios: redistribuição e reconhecimento
14
.
As injustiças socioeconômicas estão enraizadas na estrutura político-econômica da
sociedade e se expressam na exploração, privação e marginalização a que são ou estão
submetidos os grupos; e as injustiças culturais se dirigem a padrões sociais de representação,
interpretação e comunicação tidos como consensos cristalizados permeados por preconceitos
e se expressam em formas de dominação cultural, não-reconhecimento e desrespeito em
representações públicas e/ou em interações cotidianas. Ambas as injustiças estão enraizadas
em processos e práticas que sistematicamente valorizam alguns grupos em detrimento de
outros.
Com essa distinção, entretanto, a autora não pretende sustentar que os insultos no
âmbito do reconhecimento não gerem efeitos socioeconômicos ou, inversamente, que injúrias
redistributivas não provoquem efeitos simbólicos. Mesmo assim, devido ao fato de que, para
ela, cada uma dessas injustiças tem raízes causais distintas, remédios diferentes lhes devem
ser recomendados. O remédio para a primeira diz respeito a algum tipo de mudança na
estrutura político-econômica. Como medidas para isso, pode-se pensar na redistribuição de
renda, na reorganização do trabalho, na submissão de investimentos à tomada de decisões
democráticas ou na transformação de outras estruturas básicas. o remédio para a segunda,
14
Ambos os termos possuem uma referência tanto filosófica quanto política. Filosoficamente, se referem a
paradigmas normativos desenvolvidos, respectivamente, pela tradição liberal (teorias da justiça distributiva) e
pela filosofia hegeliana e seus atuais desdobramentos; politicamente, se referem a constelações típico-ideais de
reivindicações trazidas para a esfera pública por uma série de atores políticos e movimentos sociais.
38
por sua vez, implica no reconhecimento da diversidade cultural e na reavaliação positiva de
identidades discriminadas e estereotipadas, bem como dos produtos culturais de grupos
marginalizados ou, ainda, na desconstrução e transformação de padrões societais capazes de
lhes permitirem uma possibilidade alternativa de auto-interpretação.
Feitas essas primeiras distinções, torna-se perceptível o quanto, no interior de cada um
desses remédios, uma variação significativa segundo seu espectro de ação, cujo ponto de
contraste é a relação entre resultados oferecidos pelo Estado vs.os processos que os produzem.
E, não obstante essas variações internas, a adoção de diferentes combinações deles pode surtir
efeitos contraditórios, afinal, “[n]o primeiro caso, a lógica do remédio é de homogeneizar os
grupos sociais. No segundo caso, ao contrário, é de valorizar a peculiaridade do grupo,
reconhecendo sua especificidade” (FRASER, 2001a:259). É importante destacar, no entanto,
que, para a autora, nem todas as políticas de reconhecimento culturalmente orientadas
impedem ou interferem com medidas progressivas de reestruturação econômica e vice-versa,
como será comentado adiante.
Fraser, então, constrói um continuum dos grupos sociais baseando-se no tipo de
injustiça ao qual eles estariam mais vinculados. Para isso, primeiramente, ela toma alguns
deles como tipos ideais capazes de elucidar, analiticamente, qual a injustiça que os estaria
acometendo. Classe, na concepção altamente estilizada e ortodoxa adotada com vistas a
sustentar a viabilidade de sua análise, é um modo de diferenciação social enraizada na
estrutura econômica da sociedade. Uma classe existe apenas em virtude de sua posição nessa
estrutura e de sua relação com outras classes, sendo a injustiça desse arranjo essencialmente
um caso de distribuição, em que mesmo os déficits de reconhecimento de classe derivam da
economia política. No outro pólo, reside a sexualidade menosprezada, diferenciação social
arraigada na estrutura cultural-valorativa dominante na sociedade. É diferenciada como uma
coletividade culturalmente marginalizada em virtude dos padrões sociais heterossexistas e
homofóbicos de interpretação e não em virtude da divisão do trabalho.
Em seguida, com o intuito de fornecer uma ancoragem empírica ao seu construto
teórico, ela o complexifica com as chamadas “coletividades ambivalentes”, localizando-as no
meio do seu espectro conceitual. Estas contêm simultaneamente uma face político-econômica,
que as levam para o âmbito da redistribuição, e uma face cultural-valorativa, que as levam
para o âmbito do reconhecimento. Ao contrário de classe e sexualidade, que ocupam, cada
uma em seu extremo, as duas pontas do espectro conceitual, a autora sugere as lutas por
questões de gênero e raça por acreditar que ambas estão sujeitas tanto às injustiças
socioeconômicas quanto às culturais.
39
Pensadas assim, essas coletividades têm de afirmar tanto o princípio da igualdade
quanto o da diferença, e, desta forma, passam a ter de enfrentar o dilema sustentado pela
autora
15
. É importante frisar que elas sofrem de ambas as injustiças em formas nas quais
nenhuma delas é um efeito indireto da outra, como acontece nos tipos ideais anteriormente
apresentados, mas em que ambas são primárias e originais, dotadas de relativa independência.
Longe de se manterem isoladas, no entanto, se mesclam para se reforçarem mutuamente,
ainda mais porque normas culturais heterossexistas-androcêntricas e racistas-eurocêntricas
repercutem institucionalmente no aparelho estatal e na economia, da mesma forma que as
desvantagens econômicas impedem a participação igual na produção da cultura e no acesso à
mesma, tanto no cotidiano como nas esferas blicas. O resultado é um ciclo vicioso de
subordinação cultural e econômica que necessita ser duplamente remediado.
Com o propósito de construir uma abordagem que escape do dilema “pós-socialista”
da igualdade/diferença, Fraser dedica-se a duas diferentes medidas que, capazes de assumir
repercussões políticas diversas de acordo com a dosagem adotada, resultam em um tratamento
conceitual mais refinado da problemática da redistribuição e do reconhecimento. Por medidas
afirmativas entendem-se aquelas voltadas para a correção de resultados indesejáveis de
arranjos sociais sem perturbar o arcabouço que os gera. Por medidas transformativas, em
contraste, entendem-se as que são orientadas para a correção de resultados indesejáveis
precisamente pela reestruturação do arcabouço genérico que os produz.
Evidencia-se, então, que a transformação se opõe à afirmação como a profundidade se
opõe à superficialidade, que enquanto os remédios de reconhecimento de caráter afirmativo
tendem a promover diferenciações entre os grupos existentes (Multiculturalismo dominante -
MD), os remédios de reconhecimento transformativos tendem, no longo prazo, a
desestabilizar as diferenciações para permitir reagrupamentos futuros (Desconstrução
16
- D);
e, enquanto os remédios de redistribuição afirmativos tendem a estigmatizar a diferença,
somando o insulto da falta de reconhecimento à injúria da privação (Estado de Bem-Estar
liberal - EBEL), redistribuição transformativa, em contraste, pode promover reestruturação
profunda das relações de produção e ajudar a rever algumas formas de não-reconhecimento
15
Mesmo que Fraser (1995) se refira a gênero e raça como “bivalent collectivities”, a tradutora (2001a) opta por
“coletividades ambivalentes”. No momento, mantém-se esta conversão semântica por se acreditar que ela melhor
explicita a interferência mútua que resulta quando esses grupos dão conta de remediar o dilema com medidas
que, para a autora, parecem conflitantes. Na exposição de seus trabalhos mais recentes, onde, como afirma Zurn
(2003a), este caráter tem gradualmente se atenuado, opta-se por uma tradução fiel à original.
16
Pinto (2000) destaca que esta noção foi desenvolvida primeiramente por Jacques Derrida e teve grande
centralidade entre os pensadores da chamada democracia radical, entre os quais Ernesto Laclau e Chantal
Mouffe.
40
(Socialismo
17
- S). Dependendo da dosagem com que tais remédios são adotados, eles podem
oscilar entre os pólos afirmativo e transformativo, determinando as quatro diferentes
combinações indicadas acima. A partir daí, a autora faz algumas suposições preliminares
acerca da (in)compatibilidade de algumas dessas combinações. Duas delas tenderiam a se
enclausurarem na sua própria contradição e reforçariam o dilema anteriormente mencionado:
A política de redistribuição afirmativa do EBEL parece em conflito com a política
transformativa de reconhecimento da D, que onde a primeira tende a promover
diferenciação de grupo, a segunda tende a desestabilizá-la. De forma semelhante, a política de
redistribuição transformativa do S parece em conflito com a política afirmativa de
reconhecimento do MD, que onde a primeira tende a minar a diferenciação de grupo, a
segunda tende a promovê-la. Outras duas, no entanto, ofereceriam possibilidades promissoras
de combinação: A política de redistribuição afirmativa do EBEL parece compatível com a
política de reconhecimento afirmativo do MD; ambas tendem a promover diferenciação de
grupo. Semelhantemente, a política transformativa de redistribuição do S parece compatível
com a política transformativa de reconhecimento da D; ambas tendem a minar as diferenças
existentes entre grupos.
Como forma de testar empiricamente as hipóteses formuladas em tais cruzamentos e
equacionar a dúvida acerca de qual desses pares de remédios prescritos subverteria o dilema,
Fraser relaciona os sujeitos paradigmáticos do dilema da redistribuição/reconhecimento
apontados por ela gênero e raça com as duas possibilidades mais promissoras de
combinação. Enquanto a combinação resultante do eixo afirmativo constitui um cenário
problemático, já que tende a acirrar especificidades putativas culturais
18
, a do eixo
transformativo se mostra a mais profícua em desestabilizar e/ou eliminar diferenciações entre
grupos, promover igualdade social e favorecer a construção de coalizões entre coletividades
17
Para fins de esclarecimento, reproduzo um trecho do texto de Fraser (2001a:269) em que ela explicita a
relação que quer estabelecer com o ideário socialista: “Hoje, é claro, muitas características específicas do
socialismo do tipo ‘realmente existente’ são problemáticas. Virtualmente, ninguém continua a defender uma
economia controlada na qual haja pouco espaço para o mercado. (...) Para meus propósitos não é necessário
assinalar o conteúdo preciso da idéia socialista. É suficiente invocar a concepção geral de reparar injustiças
redistributivas pela profunda reestruturação da ordem político-econômica em oposição a realocações
superficiais”.
18
Para a autora (ibid, p.270), mesmo que as redistribuições afirmativas normalmente pressuponham uma
concepção de reconhecimento universal baseada no valor moral igual das pessoas, como um “comprometimento
oficial de reconhecimento”, sua prática tende, contudo, a iniciar uma dinâmica estigmatizante de
reconhecimento, que contradiz tal comprometimento. Esta pode ser entendida como o “efeito prático de
reconhecimento” inerente à redistribuição afirmativa. Para Dubet (2001:12), alguns desses efeitos perversos não
podem ser ignorados, especialmente os efeitos de dependência e de estigmatização e, sobretudo, que tais
políticas são, muitas vezes, mais favoráveis àqueles que menos precisam: “A análise dos mecanismos de
transferências sociais mostra que, freqüentemente, são as classes médias as principais beneficiárias no setor da
educação ou da saúde, por exemplo”.
41
diversas
19
. Assim, a autora finaliza propondo que o projeto de transformar as estruturas
profundas da economia e da cultura parece ser uma orientação político-programática capaz de
fazer justiça a todas as atuais lutas contra injustiça: “Ela não supõe um jogo de soma zero”
(FRASER, 2001a:282). O quadro abaixo se propõe a resumir as principais idéias contidas
neste seu argumento inicial:
Figura 2.
Essa foi, portanto, a leitura das tendências atuais inicialmente efetuada pela autora. É
para essa matriz teórica, daí a importância de apresentá-la aqui, que muitos(as) autores(as)
dirigirão suas críticas, especialmente quanto à opção por um sistema de dualismo analítico, e
será, justamente, a partir de um estimulante debate com eles(as) que Fraser derivará muitas de
suas reformulações conceituais. A figura abaixo servirá como instrumento para que se possa
acompanhar visualmente a perspectiva teórica da autora, bem como de que forma as
reformulações feitas por ela vão sendo vistas e trabalhadas pelo autor deste trabalho. A
proposta aqui é a de que sejam vistas como diferentes lentes em construção, em que as
dimensões serão completadas e complexificadas na medida em que o trabalho avançar.
Contudo, estas lentes, sem as restringir ao esquema da autora, serão também utilizadas para
permitir o desenvolvimento de outras dimensões analíticas que, inspiradas pelo trabalho de
campo, se acredita serem fundamentais para compreensão do objeto sociológico em estudo.
19
Ao idealizar um modelo de Bem-Estar Social pós-industrial Universal Caregiver–, Fraser (1996b:235) se
propõe a desmantelar certos padrões androcêntricos mediante o estabelecimento de uma igualdade de gênero em
que as diferenças que reforçam relações de trabalho desiguais para as mulheres sejam primeiramente
reconhecidas, para serem, então, suprimidas, “induzindo os homens a atuarem mais como grande parte das
mulheres já o fazem hoje”.
INJUSTIÇA
REMÉDIO
SUJEITO
DOSAGEM
RESULTADO
CLASSE SOCIAL
EXPLORADA
AFIRMAÇÃO
ESTADO DE BEM-ESTAR
LIBERAL
ECONÔMICA
REDISTRIBUIÇÃO
TRANSFORMAÇÃO
SOCIALISMO
COLETIVIDADES
AMBIVALENTES
AFIRMAÇÃO
MULTICULTURALISMO
DOMINANTE
CULTURAL
RECONHECIMENTO
SEXUALIDADE
MENOSPREZADA
TRANSFORMAÇÃO
DESCONSTRUÇÃO
42
Figura 3.
1.1.3. Uma abordagem supostamente dicotomizada: Algumas considerações críticas
Pode-se perceber que, e seu artigo de 1995, Fraser, mesmo fazendo questão de
ressaltar o caráter meramente analítico assumido pela dualidade de sua perspectiva, acaba por
conceber uma grande tensão na possibilidade de integrar o paradigma do reconhecimento e o
da redistribuição. Parece claro que, na forma como a autora os aborda, onde o primeiro tende
a promover diferenciação, o segundo tende a miná-la, ou seja, indivíduos que sofrem destas
injustiças precisam, ao mesmo tempo, reivindicar e negar as suas especificidades.
Conforme afirma Martuccelli (1996), no entanto, nada pode ser mais contraditório do
que querer mobilizar um recurso identitário para instaurar uma indiferença identitária cuja
finalidade entra em oposição com os recursos aos quais apela. Ao querer integrar as injustiças
socioeconômicas à dimensão de um reconhecimento que tenda a promover uma valorização
das especificidades e diferenciações grupais, a autora acaba menosprezando a possibilidade
do reconhecimento verdadeiramente se constituir enquanto uma dimensão que vá ao encontro
das necessidades das coletividades ambivalentes, qual seja, o de servir não como
instrumento de reversão de padrões de dominação cultural, não-reconhecimento e desrespeito,
mas também como um meio de garantir uma redistribuição material mais eqüitativa. Para
Silva (2000), isto fica ainda mais evidente quando a autora opta por associar as duas
categorias analiticamente distintas aos respectivos tipos ideais de movimento social,
CLASSE
SOCIAL
IDENTIDADE CULTURAL
REDISTRIBUIÇÃO
RECONHECIMENTO
43
implicitamente admitindo, com isso, que a noção de reconhecimento não contempla os
problemas socioeconômicos.
Parece evidente seu esforço em resgatar a dimensão econômica perdida nos conflitos
pós-socialistas (o qual mesmo sendo louvável foi questionado na forma de fazê-lo por vários
autores
20
). Entretanto, tendo isso em mente, a autora deixa de dar um maior refinamento ao
tema do reconhecimento e acaba concebendo-o de um modo tal que dificilmente possa, em
condições diversas, se articular com as injustiças econômicas. Com isso, se contenta com uma
perspectiva mais “culturalista” do reconhecimento, “como sinônimo de uma esfera de
representação lingüística e simbólica” (YAR, 2001:302), que é justamente a qual ela critica.
Em resposta a isso, Yar (2001:289) sugere que o reconhecimento seja abordado
mediante uma concepção multiaxial e metateórica que, assim, o torne apto a englobar
ambas as dimensões, sendo visto como um momento internamente constitutivo de qualquer
prática orientada à redistribuição: “Em outras palavras, reconhecimento não pode ser
confinado ao espectro das demandas culturais, mas constitui, de fato, uma sinopse metateórica
da justiça social que contém ambos os momentos cultural e econômico”. Para Yar (2001:292),
“a organização da vida econômica é sempre permeada com valores morais sobre direitos e
autorizações que não pode ser analiticamente distinguida das demandas de reconhecimento
discerníveis em outras (culturais) esferas”. É importante destacar que o autor não está
criticando a perspectiva dualista com a qual Fraser pretende abordar teoricamente os
fenômenos sociais muito embora ela possa reforçar um caráter de oposição entre as
demandas culturais e econômicas –, ele só vê problemas ao calcar uma noção de justiça, que é
fundamentalmente moral em sua concepção, nessa distinção, quando, na verdade, ao invocá-la
como tal, romper-se-iam automaticamente quaisquer fronteiras analíticas que separariam
reconhecimento e redistribuição. Uma teorização alternativa proposta por Yar (2001) sugere
que as interferências entre as duas dimensões não sejam compreendidas como tensionamentos
entre si, tais como vistos por Fraser, mas como tensões entre diferentes tipos ou ordens de
20
Hennessy (1999), ao resenhar Justice Interruptus, argumenta que, mesmo tratando-se de uma perspectiva
crítica, ao adicionar o prefixo “pós-”, Fraser indica uma relutância em endossar a análise de classe que consiste
na própria assinatura do socialismo e deixa de expor as razões pelas quais ela não se constituiria em um ponto
viável de análise para a teoria social, apresentando os vínculos entre política de redistribuição e classe de uma
forma tal que acaba por obscurecer as causas das desigualdades socioeconômicas sob o regime capitalista. Para a
autora, conceituar economia política em termos de distribuição priva a oportunidade de se revelar que, sob o
capitalismo, há, e historicamente sempre houve, conexões complexas entre as desiguais relações de produção e a
construção de identidades, conhecimentos e cultura. Ao resenhar o mesmo livro, Dupuy (1997:678) põe em
dúvida o tratamento dispensado por Fraser às políticas wholly culturally based em sua capacidade de
questionar a estrutura de classes do capitalismo. Ou seja, para ele, a autora não explicita satisfatoriamente de que
forma a adoção de remédios de desconstrução de estereótipos culturais poderia contribuir na transformação das
relações na esfera econômica.
44
demandas de reconhecimento, tais como abordadas por Honneth, onde cada uma corresponda
a uma dimensão diferente das necessidades humanas que, tomadas em seu conjunto,
compreenderiam as precondições para a auto-realização humana. Nesta mesma linha teórica,
outro autor, Sayer (2005), que vem desenvolvendo estudos em “economia moral”, havia
demonstrado o quanto qualquer direcionamento à esfera econômica de organização da vida
social não pode escapar dos preceitos e valores fundamentalmente morais que o constituem.
Ao introduzir um caráter basicamente cultural ao tema do reconhecimento, como ela
mesma evidencia ao assumir que “remédios de reconhecimento para injustiças culturais-
valorativas aumentam a diferenciação entre grupos sociais” (FRASER, 2001a:265), seu
modelo torna-se, assim, capaz de gerar uma interferência mútua quase que digna de produzir
um dilema intratável. Para superá-lo, ela elabora uma resposta única para dar conta de sanar
todas as possíveis interferências, buscando nos remédios transformativos para ambas as
reivindicações a sua solução, mas, com isso, anulando qualquer referência ao contexto do qual
emergem as injustiças. Sob uma perspectiva multiculturalista, Blum (1998) inverte o tom
desta crítica “culturalista” e associa o caráter de diferenciação cultural que o reconhecimento
suscita (isento de reivindicações econômicas) ao nome de Charles Taylor, argumentando que
Fraser, justamente por estar vinculada a uma leitura mais “igualitária”, perde de vista
justamente esta importante contribuição proposta pelo autor canadense.
Ao revisitar criticamente o dilema que emana da combinação de uma política de
reconhecimento, tomada como promotora de um intenso processo de “balcanização”
21
societal
(capaz de acentuar as diferenças entre grupos sem gerar uma contrapartida motivacional para
uma ação comum), e uma política de redistribuição, tomada como promotora de uma falsa
homogeneização societal (capaz de ignorar a atual diferenciação social enquanto promove
uma discriminatória solidariedade), Zurn (2003a) afirma que as coletividades ambivalentes
não necessariamente enfrentariam este suposto dilema, reflexo do comprometimento teórico
que a autora assume com uma abordagem demasiadamente objetivista de suas identidades,
que não capta as diferentes dinâmicas existentes no interior de cada grupo. Para Zurn, nem
todas as políticas de reconhecimento destinadas a reverter injustiças de gênero e sexualidade
estão vinculadas a uma tendência inexorável de promover diferenciação grupal (Aqui o autor
utiliza as duas primeiras formas de reconhecimento sugeridas por Honneth relações
primárias e jurídicas – para desconstruir tal falácia). Se existe uma tensão prática nos conflitos
por justiça social, Zurn (2003a:13) propõe que, dada a adição de medidas que oscilam em
21
Balcanização: Ato ou efeito de balcanizar, fracionar (uma região, país ou outra unidade política) em unidades
menores, ineficazes e muitas vezes em conflito entre si (MICHAELIS, 1998).
45
gradações diversas sobre o sistema econômico e sobre os padrões culturais, o dilema
enfrentado pelos grupos que sofrem de ambos os tipos de injustiça é, muito antes, entre as
tendências de differentiation dos remédios afirmativos e as de dedifferentiation dos
remédios transformativos, sem que, com isso, as esteja remetendo, respectivamente, ao
âmbito do reconhecimento e da redistribuição.
Valendo-se de uma crítica anterior, realizada por Fraser com relação à perspectiva
dicotômica assumida por Habermas
22
, Young (1997) irá questionar a falta de autocrítica da
própria Fraser na categorização bifocal em que resultou seu trabalho. A autora põe em dúvida
a existência do dilema, se realmente vivenciado na prática dessas coletividades ou se
circunscrito a tergiversações teóricas oriundas de gabinetes acadêmicos. Reconhece que
existem correntes multiculturalistas que pendem suas análises para a primazia das injustiças
culturais, moldando o cenário político contemporâneo quase que isento de preocupações
socioeconômicas; porém, não está certa sobre a real extensão dessas inquietações, ainda mais
da forma como Fraser as desenvolve teoricamente. Mesmo que, por ventura, este fenômeno
ocorra, ainda assim Young (1997:148) pondera que a solução dicotômica proposta pela autora
“é pior que a doença”, que rotula as lutas por reconhecimento como um fim em si mesmo,
quando, na verdade, muitas das coletividades ambivalentes as estarão concebendo como
meios também para a aquisição de justiça político-econômica. Pode-se dizer que a crítica
ensejada por Young reveste-se de inquietações quanto à carga demasiadamente teórica que
transparece no esquematismo analítico proposto por Fraser Swanson (2005) também reitera
o caráter excessivamente abstrato que o envolvera –, incapaz de esmiuçar possibilidades
múltiplas de categorização em cada uma das grandes categorias a que ela se atém, categorias
estas que, não obstante serem postas como mutuamente excludentes (SAWICKI, 2000),
pretendem-se exclusivas para darem conta de todas as formas de opressão e injustiça.
Basicamente, o tom da crítica diz respeito ao enfoque que primazia a uma separação entre
economia e cultura e não ou pouco as conseqüências culturais sobre os fenômenos
econômicos e vice-versa.
Neste ponto, Butler (1998:40) argumenta que, ao tratar a questão da sexualidade como
sendo “meramente cultural”, Fraser ignora que as lutas culturais para transformar o campo
social da sexualidade são, mesmo que por motivos analíticos, indissociáveis da esfera
econômica o cultural é a própria condição de existência do econômico –, que incluem
22
“What´s critical about Critical Theory? The case of Habermas and gender”. In: FRASER, Nancy. Unruly
Practices: Power, discourse and gender in contemporary social theory. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 1989. p. 113-43.
46
críticas ao próprio sistema capitalista de reprodução social dos indivíduos: “[A]mbos gênero e
sexualidade fazem parte da ‘vida material’ não apenas por causa do modo como servem à
divisão sexual do trabalho, mas também porque a normativa de gênero serve à reprodução
normativa da família”. Hennessy (1999) ainda afirma que os motivos heurísticos que a autora
usa para desenvolver seu argumento acabam produzindo um efeito histórico: a emergência
das identidades sexuais como um dado ontológico, sustentado no binômio homo-
heterossexualidade. Como conseqüência, uma série de questões dentre elas, a forma como
as identidades sexuais têm sido historicamente imbricadas na divisão de gênero do trabalho e
no aprofundamento do processo de acumulação capitalista – é abandonada. Mesmo que Fraser
refute uma separação ontológica entre cultura e economia, Swanson (2005) considera que ao
descrever as causas últimas dos fenômenos em termos exclusivamente culturais ou
econômicos, sua análise acaba extrapolando os propósitos analíticos nos quais se sustenta. E
de um outro ponto de vista crítico, Phillips (1997) e Sawicki (2000) sugerem que a autora
acaba, de certa forma, priorizando as injustiças econômicas em detrimento às culturais ao
utilizar um parâmetro econômico como forma de mensurar o potencial emancipatório das
demandas por reconhecimento.
Para Feldman (2002:16), um dos méritos do trabalho empreendido por Fraser é que, ao
invés de se conformar com uma divisão entre uma “real” política de classe e uma “suspeita”
política de identidade, a autora explora ambas as tensões, econômica e cultural, existentes no
interior dos agrupamentos sociais, advogando, como solução menos problemática, a
combinação de uma política socialista de redistribuição com uma política desconstrutivista da
identidade: “Assim, Fraser é capaz de endossar uma política de profundidade sobre uma
política rasa, sem endossar com isso uma ‘real, material’ política de classe e economia sobre
uma ‘meramente cultural’ política de cultura e identidade”. Para o autor, o que, de fato,
permanece pouco desenvolvido em seu argumento é o papel particular do Estado e sua
capacidade de determinação política nas lutas por redistribuição e reconhecimento. Segundo
Feldman (2002:411), o “poder estatal torna-se um tipo de ‘ponto cego’ no modelo teórico da
redistribuição/reconhecimento que, mesmo decisivamente rejeitando a redução marxiana da
sociedade civil ao capitalismo, manteve a priorização marxiana da sociedade civil sobre o
Estado”. Mesmo que Fraser considere as repercussões tanto econômicas quanto culturais do
poder estatal sobre a sociedade, Feldman pontua que, ainda assim, a análise dela resulta em
um displacement of politicsdecorrente da redução de sua capacidade analítica a injustiças
que perpassam majoritariamente a sociedade civil enquanto possivelmente minimiza a
importância do papel político do Estado na dinâmica de inclusão/exclusão social dos
47
agrupamentos sociais
23
. Sua análise acaba, desta forma, negligenciando o próprio papel do
Estado na produção em primeira instância de classificações que contribuirão, que mantidas
em relação com a ordem política, na legitimação de padrões de estigmatização e invisibilidade
sofridos majoritariamente por coletividades sem voz política. O Estado somente é visto como
um meio através do qual processos culturais e econômicos se desenvolvem e não, tal como
indica Stevens, apud Feldman (2002:411), como “uma fonte crucial de opressão e rigor em si
mesmo”.
Young (1997) e Zurn (2003b) também ressaltaram a omissão dela ao desconsiderar
questões de cunho político, como cidadania, participação política e também aquelas
concernentes a instituições e práticas legais, e/ou sua pretensão de querer vê-las sempre
incorporadas em estruturas culturais ou econômicas. Neste sentido, McCarthy (2005) ressalta
que não é somente a ordem política, mas também a ordem legal que está sendo
desconsiderada, ao ser tratada instrumentalmente para o fim último de assegurar a conquista
de demandas redistributivas e de reconhecimento. Ferree & Gamson (2001) igualmente
pontuaram que existem distintas questões de justiça a serem consideradas na relação política
que se estabelece entre indivíduo e comunidade que não se limitam teoricamente aos eixos de
reconhecimento cultural dos atores e de redistribuição de seus bens. No que concerne à
dimensão política, este capítulo retomará esta discussão adiante.
Na apresentação de vários dos(as) autores(as) que trabalharam de forma crítica sobre o
material publicado por Fraser originalmente em 1995, intencionou-se mostrar um panorama
com diferentes percepções e enfoques acerca de onde possivelmente residem algumas das
fragilidades conceituais desse seu primeiro construto teórico. Como foi discutido nesta seção,
é possível perceber que, após ter-se separado as categorias da redistribuição e do
reconhecimento por motivos analíticos e se ter dado, como visto por vários autores, um
tratamento culturalista” à última, tornou-se difícil querer vê-las integradas ou deixar de vê-
las de forma antitética. É necessário pontuar que, neste texto, também houve a ausência de
uma discussão acerca da suposta necessidade de incluir uma terceira dimensão política ao
seu esquema (com a qual, completaria sua influência weberiana).
23
Fraser (2003) advoga que o “perspectival dualism” com que desenvolve seu trabalho é superior a quatro outras
alternativas: o modelo marxista tradicional base/superestrutura; o reverso deste, expresso em uma perspectiva
culturalista; o antidualismo s-estruturalista, no qual qualquer proposta de separação entre cultura e economia,
mesmo que de forma analítica, é vista como uma falsa dicotomização; e o dualismo substantivo, no qual cultura
e economia aparecem como esferas sociais dotadas, cada uma delas, de lógica própria e não intercambiável. Para
Feldman (2002), entretanto, ecos do modelo marxista podem ainda ser encontrados no tratamento dispensado por
Fraser ao Estado e ao poder político. Esta é, de modo geral, uma crítica que não é endereçada somente a ela.
Alexander & Lara (1996) e Silva (2000; 2004; 2005) afirmaram que a perspectiva teórica de Honneth se
limita, em termos habermasianos, ao mundo da vida, faltando-lhe os elementos capazes de lidar com o Estado.
48
Mais recentemente, essas categorias ganharão novos contornos analíticos, mesmo que,
para Feldman (2002), estes contornos ofereçam ganhos em nuança e complexidade, mas
perdas em elegância teórica e simplicidade. Ao apresentar sua Tanner Lecture on Human
Values (1996a), publicar versões revisadas da mesma (1998b; 2001b; 2002c; 2003), editar
novos trabalhos (2000; 2001c; 2001d; 2001e; 2002a; 2002b), dar seguimento ao debate (1997;
1998a) instaurado com estudiosas dos movimentos políticos progressistas Iris M. Young e
Judith Butler – e convir com outras alterações amadurecidas no contexto de sua argumentação
com Axel Honneth (FRASER & HONNETH, 2003), Nancy Fraser começa a rediscutir alguns
dos pontos expostos anteriormente. À medida que o capítulo avançar, se poderá perceber que
a autora vai abandonando sua ênfase no dilema vivenciado por coletividades que sofreriam de
ambas as injustiças (socioeconômicas e culturais) em prol do desenvolvimento de um modelo
de status que esteja atento aos padrões institucionalizados de valor cultural que impeçam os
indivíduos de ascenderem à condição de pares na esfera pública.
1.1.4. Repensando o reconhecimento: O modelo do status
Em sua Tanner Lecture, proferida em 1996, Fraser segue desenvolvendo teoricamente
e expandindo analiticamente as possibilidades de compreensão dessa nova constelação do
horizonte político contemporâneo, a qual nem sempre é tão bem interpretada nas análises
correntes, que, para ela, grande parte destas se equivoca com diferentes níveis analíticos e
confunde separações que deles provêem com os próprios dados empíricos. Mesmo reiterando
a distinção analítica entre os paradigmas da redistribuição e do reconhecimento, a autora, de
forma ainda mais explícita do que no exposto em seu artigo de 1995, fará questão de sublinhar
a falácia teórica presente na antítese adotada por análises que tomam para si essa crescente
onda política de polarização entre a dimensão cultural da diferença e a dimensão social da
igualdade. Isto faz com que, de forma errônea, correntes orientadas exclusivamente às
reivindicações por reconhecimento no interior dos movimentos feminista, gay e anti-racista
sejam tratadas como se fossem a estória inteira, tornando invisíveis, “correntes alternativas
dedicadas a corrigir formas econômicas de injustiça que são específicas de gênero, sexo e
raça, e que os tradicionais movimentos de classe ignoraram” (FRASER, 1996a:6).
É possível verificar que ela procura ampliar a definição conceitual das políticas de
redistribuição e de reconhecimento, favorecendo um entrelaçamento entre economia e cultura
que não as reduza, respectivamente, a uma política de classe e a uma política de identidade.
49
Assume justamente o contrário, ou seja, com base no fato da situação vivenciada pelas
coletividades bivalentes se constituir mais em uma norma do que propriamente em uma
exceção para virtualmente todas as outras coletividades, cultura e economia são “dimensões
de justiça que podem atravessar todos os movimentos sociais” (FRASER, 1996a:6). Incluída
nessa revisão, portanto, uma releitura dos tipos ideais anteriormente utilizados pela autora
para exemplificar as formas puras de injustiça.
Classe passa, então, a ser vista sob um prisma bivalente de análise, já que seus
membros também sofrem sérias injustiças culturais
24
, “[a]s escondidas injúrias de classe”
(SENNET & COBB, 1972). Segundo a autora, as dimensões de reconhecimento de classe são,
atualmente, suficientemente autônomas para demandarem remédios próprios, de forma que,
vista como primordial, uma política de reconhecimento possa servir não aos seus próprios
propósitos, mas ajude a alavancar medidas de cunho redistributivo
25
. Evidencia-se claramente
esta reformulação conceitual no seguinte trecho:
Igualmente, pessoas pobres e pertencentes à classe trabalhadora podem precisar de
uma “contra-identidade política”, capaz de suportar suas lutas por justiça
econômica; elas podem precisar construir comunidades e culturas de classe de
forma a neutralizarem as injúrias escondidas de classe e forjarem a confiança
necessária para que se levantem por si mesmas. Assim, uma política de classe em
termos de reconhecimento pode ser necessária tanto para si quanto para fazer com
que uma política de redistribuição decole (FRASER, 1996a:20).
Com relação aos grupos que sofrem de discriminação sexual, também estes passaram
por uma revisão, de modo a englobar aspectos econômicos para lidar de forma completa com
as injustiças decorrentes de suas sexualidades menosprezadas, o que veio a aproximá-los
analiticamente do tratamento dispensado às coletividades bivalentes
26
. É importante destacar
que certamente nem todas as coletividades oprimidas serão bivalentes da mesma forma, nem
24
De fato, Edward P. Thompson (1997) havia demonstrado que as históricas lutas de classe sempre
englobaram uma dimensão de reconhecimento, de defesa por uma cultura de classe e pelo estabelecimento de
relações de dignidade no trabalho. No entanto, Ray & Sayer (1999) argumentam que muitos estudos atuais
tropeçam no perigo de considerar classe exclusivamente no nível da experiência subjetiva e do discurso,
desconsiderando o quanto a economia formal molda e diferencia materialmente os indivíduos sem qualquer
referência às suas identidades.
25
A abordagem do reconhecimento como um meio para a conquista de ganhos econômicos e não somente como
um fim em si mesmo incorpora, de certa forma, alguns dos argumentos expostos na crítica formulada por Iris
Young (1997). Já na edição seguinte da New Left Review, Fraser (1997) fez questão de contra-argumentar vários
outros pontos levantados por ela, como re-situar o corrente desacoplamento entre cultura e economia, presente à
ideologia pós-socialista, na própria vivência dos grupos sociais. Fraser, longe de querer adicionar elucubrações
dicotômicas ao seu construto teórico, reitera nos níveis filosófico, sócio-teórico e político, a adoção de uma
perspectiva dualista, assumida em seu texto de 1995, e faz críticas à tendenciosa confusão feita por Young
entre o que é uma distinção analítico-metodológica e o que é uma distinção real entre domínios de ação diversos.
26
Assim se deu também em outro artigo, escrito por Fraser (1998a) em resposta a Judith Butler (1998), onde a
autora rebate suas críticas, mas, de certa forma, acaba agregando alguns dos pontos levantados por Butler. Outras
ponderações críticas ao trabalho de Butler são encontradas em Smith (2001).
50
no mesmo grau. A proporção precisa de desvantagem econômica e degradação cultural deve
ser, para cada caso, empiricamente determinada “no espírito do pragmatismo informado por
insights da teoria crítica”
27
(FRASER, 2001b:56).
No que diz respeito às estratégias de reconhecimento necessárias aos distintos
períodos e contextos, Fraser (1996a) passa, então, a dispensar julgamentos feitos apenas em
nível teórico, que estes serviriam de justificativa para a adoção às escuras de remédios que
acentuariam a priori o caráter de diferenciação dos indivíduos ou grupos selecionados. Abre-
se, como efeito, uma pluralidade de possíveis abordagens para as políticas de reconhecimento.
Ao explicitamente fazer isso, a autora começa a rever pontos pouco explorados por ela no
texto de 1995, quando havia definido que, independentemente das situações vivenciadas pelos
grupos, o melhor remédio para os conflitos contemporâneos residia sempre na conjugação das
políticas transformativas de reconhecimento e de redistribuição, apostando na descontrução e
no socialismo como formas únicas de satisfazer as demandas das coletividades bivalentes.
E não razão para assumir que todos eles precisam a mesma coisa em cada
contexto. Em alguns casos [os grupos não-reconhecidos] precisam ser desonerados
de uma excessiva distinção atribuída ou construída. Em outros casos, eles precisam
ter a, até então desconhecida, característica distintiva levada em conta. Ainda em
outros casos, eles precisam inverter a relação com grupos dominantes e
avantajados, eliminando a distinção destes últimos, as quais são falsamente
aclamadas como universais. Alternativamente, eles podem precisar desconstruir os
próprios termos nos quais as diferenças atribuídas estão sendo elaboradas.
Finalmente, eles podem precisar tudo que foi mencionado acima, ou vários deles,
em combinação um com o outro e com a redistribuição (FRASER, 1996a:35).
Isso ajuda a demonstrar o quanto Fraser provocou alterações na perspectiva com que
aborda o reconhecimento, que, até então, ela havia sustentado uma diferenciação muito
clara em termos de afirmação e transformação, e sempre guardara severas críticas ao primeiro.
Com vistas a engendrar uma sustentação teórica compatível com as alterações provocadas em
seu argumento, a autora reformula o modelo de reconhecimento que, se anteriormente se
aproximava de uma abordagem mais “culturalistae identitária, passa a se constituir em um
modelo de status, capaz de, só assim, evitar os problemas da reificação e do deslocamento
28
.
27
Como pondera Bauman (2003:73-4), “[n]em todas as diferenças têm o mesmo valor, e alguns modos de vida e
formas de união são eticamente superiores a outras; mas não forma de definir qual é o que, a menos que seja
dada a todas a oportunidade de defender e fundamentar seu pleito. A forma de vida que poderá emergir ao fim da
negociação não é uma conclusão determinada de antemão e não pode ser deduzida segundo as regras da gica
dos filósofos”.
28
Para Fraser (2000; 2001e; 2002b), uma nova constelação no cenário sócio-político atual estaria favorecendo a
emergência de dois problemas em particular: do deslocamento e da reificação. O primeiro se dá quando a
política de reconhecimento desloca a de redistribuição e favorece a promoção de desigualdade econômica. o
segundo, deixa transparecer que as lutas por reconhecimento estão servindo mais para encorajar a intolerância e
o separatismo do que promover uma respeitosa interação em contextos gradativamente mais multiculturais.
51
Mesmo que a autora (2004a) afirme que, desde 1995, defendesse um modelo não-
identitário de reconhecimento, cuja intenção tenha sido a de estabelecer uma abordagem que
abrangesse uma igualdade redistributiva (capaz de apaziguar os ânimos de correntes de
esquerda que rejeitavam a priori as reivindicações por reconhecimento ao considerá-las
meramente superestruturais) e que evitasse a reificação de identidades grupais (capaz de se
contrapor a correntes de direita que davam suporte político a essa nova onda identitária
29
), foi
somente em Rethinking Recognition, de 2000, que ela explicitamente conceitua seu status
model of recognition”. Esta concepção acabou por revelar uma particular compreensão da
política de reconhecimento: uma política capaz de estabelecer uma igualdade de status ao
provocar mudanças em nível institucional. Desta perspectiva, não-reconhecimento torna-se
“uma relação social institucionalizada, não um estado psicológico” (FRASER, 1998a).
Transcreve-se aqui o que a própria autora quer dizer ao re-conceituar reconhecimento em
termos de status:
O que é realmente importante aqui, não é a demanda pelo reconhecimento da
identidade de um grupo específico, mas a reivindicação pelo reconhecimento das
pessoas de interagirem socialmente como parceiros completos, capazes de
participar com outros como pares na vida social (FRASER, 2004a:377).
Nesse ponto em particular, pode-se notar uma série de características cio-teóricas
que passam a moldar o trabalho da autora. Ao conceituar não-reconhecimento em termos de
subordinação de status e não de estigmatização identitária, Fraser se afasta de uma corrente da
teoria crítica que analiticamente aproxima o reconhecimento social à auto-realização, aos
efeitos psicológicos que estão envolvidos no processo de formação identitária, e se volta
teoricamente para uma análise que se proponha a elucidar os padrões institucionalizados de
valor cultural que impedem a participação dos sujeitos na vida social. Desta perspectiva, fica
claro que, para Fraser, alterações em nível institucional mais facilmente tenderiam a provocar
mudanças nas relações sociais.
Mesmo que seu modelo de status possua uma inegável raiz weberiana, em seu livro
publicado em co-autoria com Axel Honneth, Fraser faz um esforço preliminar de desenvolver
um novo conceito de status que dê conta de abranger processos de intensa hibridização
cultural, nos quais diferentes formas de subordinação assumem contornos mais complexos e
mutáveis se comparados àqueles das sociedades tradicionais às quais Weber se referia.
29
É importante destacar que, para Fraser (2003), quando o reconhecimento é visto sob o prisma identitário, ele
pode estimular intolerância e dominação intragrupo, que a possibilidade de um suposto desvio do padrão pode
ser visto como deslealdade pelos próprios pares, servindo, de forma paradoxal, como um veículo de não-
reconhecimento.
52
A autora constrói a sua teoria social evidenciando que as injustiças de status estão
relacionadas com a moderna estrutura do capitalismo e não desapareceram com a mudança da
sociedade tradicional para a sociedade moderna, apenas modificaram os padrões que fundam
o status social. Afinal, se, em uma sociedade tradicional, o conceito de status era expresso
pelo ideal de honra, essencialmente derivado dos papéis sociais, isto não significa dizer que
atualmente não o seja, o que mudou na sociedade moderna foi a estrutura dos papéis sociais,
da ordem cultural. Naquela sociedade, esta última era indiferenciada, eticamente monista e
caracterizada pela inexistência de qualquer horizonte cultural alternativo. Segundo Fraser,
dois grandes processos sociais contribuíram para modernizar o status, os quais permitiram
uma ampliação dos padrões culturais que regulamentam as diferentes arenas de ação social: o
mercado e o crescimento de uma sociedade civil plural.
A lógica do mercado propaga a idéia de não ser regulada por padrões de valores
culturais, mas, sim, governada por padrões de maximização dos ganhos pelos imperativos do
auto-interesse. O que a própria autora faz questão de ressaltar, mesmo que nem sempre tenha
sido compreendida
30
, é que o mercado coexiste com uma ordem valorativa, ou seja, não
uma esfera econômica autônoma que opere independentemente de uma ordem valorativa,
mas, sim, que esta pode ser instrumentalizada para os propósitos de eficiência do mercado. A
idéia de que Fraser aborda a economia como uma esfera autônoma é uma constante em vários
dos artigos que criticam a sua perspectiva. Em um deles, Torres Júnior (2005:100) argumenta
que a leitura que a autora propõe acerca das injustiças distributivas decorre de uma visão que
as insere em uma perspectiva “a-cultural” e estranha à dimensão do reconhecimento,
implicitamente admitindo com isso que o mercado, enquanto instituição fundamental das
sociedades modernas, não possui uma moldura moral que o envolva, sendo, por isso,
considerado valorativamente “neutro”. Entretanto, em momento algum a autora descarta a
existência de uma ordem valorativa que envolva o mercado e que influencie as relações
econômicas que se nele se estabelecem. Ela se mostra atenta aos efeitos valorativos que
recaem sobre a ordem econômica, inclusive ao considerar que a constituição desta última é
culturalmente dependente, mesmo que parcialmente dependente quando de sua ação, como
acontece quando fatores econômicos interferem na vida social sem se importar com padrões
culturais vigentes.
30
A despeito da forma com que sua perspectiva teórica foi, muitas vezes, interpretada, Fraser não pretende isolar
as duas dimensões e se concentra em evitar o que considera um essecialismo habermasiano entre integração
sistêmica e integração social ao elaborar um instrumento de distinção analítica capaz de elucidar uma única e
mesma luta social que, em sua visão, compartilha simultaneamente ambas as dimensões, mas em proporções
diversas. Entretanto, para Heidegren (2004:367), a autora acaba tendo que “substancializar sua intenção de criar
uma distinção puramente analítica mais do que ela provavelmente deseja e está pronta para admitir”.
53
A economia, para a autora, tem de ser vista não como “uma zona livre de influências
culturais, mas de instrumentalização e re-significação cultural” (FRASER, 1998b:8), o que
faz com que se relativize a visão clássica e bastante difundida sobre o mercado como sendo
uma esfera distinta e autônoma da sociedade, onde indivíduos atomizados possuem uma
racionalidade instrumental motivada unicamente pelo interesse pessoal, o qual é denominado
por Zelizer (1989; 1992), outra autora que desconstrói essa visão, de modelo utilitarista ou
modelo de mercado ilimitado. Resulta disso uma relação assimétrica, que, como havia
concluído Granovetter (1985) ao estabelecer os pressupostos da “nova sociologia econômica”,
enquanto todas as atividades econômicas possuem uma dimensão cultural, estão embedded
em padrões culturalmente construídos, o mesmo não pode ser dito com relação à existência de
um caráter diretamente econômico em todas as atividades culturais.
o crescimento de uma sociedade civil plural também permitiu uma ampliação dos
padrões culturais que regulamentam as diferentes arenas de ação social. Como resultado, tem-
se a constituição de uma ordem eticamente plural, onde os padrões e horizontes de valores são
bem mais contestados e estão abertos a mudanças. Há uma diferenciação entre distintas
instituições não-mercadológicas que adquirem, cada uma delas, algum tipo de autonomia e
desenvolvem padrões de valores culturais que regulamentam o processo social de interação
(MATTOS, 2004a).
Junto a tal perspectiva, a autora passa a correlacionar as demandas por reconhecimento
e por redistribuição ao padrão normativo da “participação paritária”, o qual é encarado como
uma “receita para o diálogo e a participação democrática” (BAUMAN, 2001:146), e que
pretende ser um substituto para a noção liberal de igualdade. Seguindo este princípio, a justiça
“requer acordos sociais que permitam que todos os (adultos) membros da sociedade interajam
uns com os outros como pares” (FRASER, 2002a:67). Zurn (2003b:14) destaca que a
paridade à qual Fraser se refere é um padrão deontológico de justiça e não uma especificação
teleológica acerca da boa vida
31
, de tal forma que esta norma apela a uma concepção de
justiça que possa ser aceita por pessoas que aderem a visões doutrinárias divergentes, desde
que concordem em assumir termos eqüitativos de interação sob condições de pluralismo
valorativo.
31
Fraser se aproxima da tradição kantiana ao querer mostrar que a categoria do reconhecimento pode ser mais
bem explicada de acordo com um padrão universal de justiça participação paritária –, aceito por todos a partir
do pressuposto racional de igual valor do ser humano. E, com isso, se afasta da tradição hegeliana, que nesta
não qualquer alusão à possibilidade de os cidadãos se reunirem para deliberar em conjunto acerca de como
deveriam ser qualificadas as finalidades coletivas (MATTOS, 2004b). Para Torres Júnior (2005), entretanto, a
norma deontológica da simetria participativa é incapaz de fazer com que o conceito de reconhecimento enfrente
o desafio maior de uma teoria crítica da sociedade, que é o de revelar as bases morais e normativas que dão
sentido às lutas sociais e que nos permitiriam avaliar certas condições institucionais como injustas.
54
Para que, de fato, esta paridade se efetue, pelo menos duas condições devem ser
obedecidas. A primeira é uma condição “objetiva”, no sentido de uma distribuição de recursos
materiais de tal forma que assegure independência e “voz” aos participantes e a segunda é
“intersubjetiva”, isto é, requer dos modelos institucionalizados de valores culturais que estes
expressem o mesmo respeito a todos os participantes e assegurem oportunidades iguais para
se alcançar estima social. A primeira enfoca preocupações tradicionalmente associadas com a
teoria da justiça distributiva, especialmente as questões relacionadas à estrutura econômica da
sociedade e aos diferenciais de classe, definidos economicamente. A segunda enfoca
preocupações recentemente ressaltadas pela filosofia do reconhecimento, especialmente as
questões relacionadas à ordem de status da sociedade, definidas culturalmente. Fraser (2002c)
faz questão de ressaltar que nenhuma das condições é meramente um efeito epifenomenal da
outra. Pelo contrário, cada qual tem a sua relativa importância. A questão, neste caso, é
teorizar acerca de, ao menos, duas diferentes ordens de subordinação existentes nas
sociedades capitalistas: estrutura de classe
32
, que impede a alguns os recursos necessários para
que interajam com outros como pares; e hierarquia de status, que nega aos indivíduos os
padrões culturais de reconhecimento que lhes possibilitariam uma igual participação.
Nesta perspectiva, as sociedades aparecem como campos complexos que abarcam pelo
menos dois modos analiticamente distintos de ordenamento social: um modo econômico, em
que a interação é regulada pelo entrelaçamento de imperativos estratégicos (institucionalizado
no mercado), e um modo cultural, em que é regulada por padrões institucionalizados de valor
cultural (os quais podem funcionar através de uma diversidade de instituições, entre as quais,
parentesco, religião e direito). O resultado é uma concepção bidimensional de justiça que
engloba, resguardadas as devidas especificidades, a redistribuição e o reconhecimento.
Pode-se notar como, para Fraser (1996a:26), a concepção de reconhecimento se refere
a padrões estruturados e institucionalizados pela sociedade: “[U]ma sociedade cujas normas
institucionalizadas impedem a participação paritária é moralmente indefensável, distorcendo
ou não a subjetividade do oprimido”. Sem desmerecer, obviamente, o papel do indivíduo
como receptor último desta injustiça, Fraser opta, no entanto, por captar os padrões sociais
capazes de manterem os indivíduos presos a valores de caráter negativo que os impeçam de
atuarem como pares na vida social. Para ela, o importante é avaliar “quão justos são os termos
que regem a interação e que são institucionalizados na sociedade” (FRASER, 2004a:378).
32
Diferentemente de Marx, Fraser não adota o conceito de classe a partir dos mecanismos de exploração
presentes na divisão do trabalho, uma vez que isso não pode ser resolvido através do reconhecimento
e da
redistribuição, mas tão somente por meio da abolição de classes. A ênfase dada por ela recai sob as
conseqüências normativas da divisão de classes que impedem a participação paritária (MATTOS, 2004b).
55
Nas sociedades contemporâneas, os parâmetros de não-reconhecimento passam a assumir,
qualitativamente, uma variedade de formas, presentes em uma pluralidade de espaços.
Mesmo que as dimensões econômica e cultural revertam efeitos com um certo grau de
autonomia sobre a vivência de diversas coletividades, fica mais evidente, a partir das
reformulações propostas pela autora, o quanto as insuficiências socioeconômicas, longe de se
manterem isoladas, representam igualmente uma forma de subordinação social que necessita
ser remediada, pois reverte efeitos reais sobre a ordenação das hierarquias de status nos mais
variados indivíduos e coletividades. Desta forma, sua perspectiva de status, se comparada ao
conteúdo “supostamente dicotômico” que envolvera sua estrutura teórica no que diz respeito
ao tratamento dispensado ao tema do reconhecimento em seu texto de 1995, passa a favorecer
uma separação entre cultura e economia que não termina por solidificá-los ontologicamente e
torna possível de se vislumbrar prováveis inter-relações empíricas. Já em consonância com
seus mais recentes trabalhos, a figura abaixo se propõe a ilustrar este maior entrelaçamento
conceitual, expressando-o na superposição das lentes e em sua nova “roupagem” de status:
Figura 4.
Para os propósitos deste estudo, é particularmente importante o tratamento que Fraser
dispensa ao reconhecimento em seus últimos trabalhos. Ao afastar-se de uma perspectiva mais
identitária, a autora desenvolve conceitualmente o reconhecimento segundo uma ótica que
contemple os padrões institucionalizados que negam aos indivíduos e grupos as condições
objetivas e intersubjetivas que deveriam usufruir para poderem participar das decisões que
REDISTRIBUIÇÃO
RECONHECIMENTO
STATUS SOCIAL
CLASSE
SOCIAL
56
lhes dizem respeito. Ao priorizar uma análise dos imperativos capitalistas de valoração, esta
perspectiva permite elucidar uma faceta das injustiças sociais de ordem do status a qual se
revela nos padrões institucionalizados de (des)valor cultural que impedem os indivíduos de
participarem como pares na vida social. Aqui se incluem todas as normas, leis e códigos que
forçam os indivíduos ou grupos a passarem por constrangimentos na interação a que se vêem
submetidos quando do contato com uma ordem dominante dada e, geralmente, inquestionável.
Se daí resultam danos psicológicos (mesmo que reais em suas conseqüências), não são esses
que, para Fraser, uma teoria crítica do reconhecimento deve considerar, devido ao risco em
resvalar numa análise sectária e calcada em princípios éticos não-universalistas. Para Souza
(2003:38), interessa à autora construir subsídios conceituais que lhe permitam ir além da
descrição fenomenológica das situações que conferem ou não reconhecimento, especialmente
no seu sentido “atitudinal”, tentando desvelar o ancoramento institucional que lhe outorga boa
parte de sua opacidade e eficácia, permitindo que “nossa vida cotidiana seja perpassada por
distinções, hierarquias e princípios classificatórios não percebidos enquanto tais”.
Para os fins analíticos desta pesquisa, a perspectiva assumida por Fraser, no que diz
respeito a tomar os padrões sociais de (des)valorização como um meio de melhor apreender as
injustiças de não-reconhecimento, é uma das opções adotadas para este trabalho, que,
assim, o discurso dessas coletividades se torna capaz de ser analisado sem se perder de vista a
relação que estabelece com os próprios padrões da atual sociedade capitalista que, em última
instância, é o cenário onde esses grupos buscam ser reconhecidos. Evita-se, assim, imputar
aos indivíduos a causa última e única de seus discursos e descolar estes do contexto maior em
que opera a própria legitimidade social que os sustenta.
A teoria de Fraser, conforme argumenta Silva (2005), tem o mérito de recuperar para a
agenda teórica e política a noção de redistribuição, bem como apontar caminhos para uma
reelaboração crítica do conceito de cidadania social. a noção de paridade de participação,
no entanto, não parece ter a mesma força mobilizadora que o conceito honnethiano de luta por
reconhecimento. Mesmo que o padrão ideal retórico-argumentativo da participação paritária
não seja usado como instrumento de análise neste trabalho, foi importante apresentá-lo aqui,
pois faz parte de suas mais recentes reformulações teóricas, não podendo ser desconsiderado
do conjunto de sua obra. Ele carece, porém, de maior fundamentação teórica a ponto de poder
vir a servir como uma categoria analítica. Segundo McCarthy (2005), a pouca ênfase dada por
Fraser aos aspectos político-legais, expressa na ausência de contestação acerca do significado
que termos como igualdade e autonomia assumem na tradição liberal, pode explicar o fraco
desenvolvimento em que resultou este seu princípio normativo. Para Caillé, apud Neves
57
(2005:85), ao adotá-lo, Fraser implicitamente admite que o liberalismo é o regime mais
adaptado à exigência de reconhecimento, o que significa que aceita os seus fundamentos
individualistas, reduzindo o espectro de uma teoria da justiça aos direitos individuais, “sem
levar em conta as lógicas sociais simbólicas e morais que perpassam as interações sociais”.
Ao aproximar, por conseguinte, sua visão acerca dos déficits de reconhecimento aos
padrões sociais de atribuição de status e não aos padrões de estigmatização identitária, Fraser
começa a trazer mais próximo do centro de sua análise, também o papel do Estado e sua
dimensão política, quando passa a considerar que “[e]m alguns casos, não-reconhecimento é
‘juridicizado’, codificado expressamente em leis formais; em outros, é institucionalizado
mediante políticas governamentais, códigos administrativos ou práticas profissionais”
(FRASER, 2000:114). A análise de Fraser privilegia a percepção de padrões socialmente
estabelecidos que impedem os membros de uma determinada sociedade de terem a
possibilidade legítima de, se caso assim o queiram, interagirem no “jogo político” que
também lhes diz respeito. O modelo de status assim pensado para dar conta das injustiças de
não-reconhecimento centra o foco em grupos que têm como uma de suas reivindicações
participarem das esferas políticas de decisão e deliberação. De certa forma, mesmo que a
autora assuma a importância do reconhecimento de um status político dos indivíduos, será
buscando teorizar acerca dos impasses institucionalizados moldados por recentes fenômenos
político-sociais em escala mundial que Fraser começará a discutir a possibilidade de inserir
uma terceira dimensão – política – em seu construto teórico, como será apresentado a seguir.
1.1.5. Consolidando sua influência weberiana: A adição da representação como a
dimensão política do poder
Será discutindo acerca das arenas necessárias para que a participação paritária tenha
êxito que Fraser começará a pensar em incluir uma terceira dimensão ao seu construto. Afinal,
o escopo necessário para que a paridade funcione deve ser ajustado à arena em questão, de
forma que múltiplos enquadramentos são necessários para não obstruí-la. O significado da
paridade fica, assim, condicionado ao tipo de participação que se requer e, em cada arena,
participação significa uma coisa diferente. Essa preocupação havia sido explicitada por ela,
ao acrescentar aos outros dois problemas enfrentados nessa nova constelação no cenário
político (deslocamento e reificação), o que ela denomina pelo “problema do enquadramento
desajustado” (FRASER, 2001e; 2002b), referente ao risco de a globalização estar a subverter
as capacidades do Estado para reparar ambos os tipos de injustiça.
58
O re-ordenamento espaço-temporal promovido pela globalização, com fronteiras
maleáveis e uma multiplicidade de interações transculturais, começa a ser percebido por
Fraser como um processo em direção a uma profunda reorientação no enquadramento
territorial tomado como referência para a adoção dos padrões de justiça. Para a autora, seu
modelo dualista se constituiu em uma perspectiva datada, referido ao período histórico do
pós-guerra, ao aparecimento do Estado de Bem-Estar, às críticas e limitações impostas pelos
movimentos pós-fordistas e à emergência dos conflitos políticos de caráter eminentemente
cultural que deram conta de findar com a subsunção ao economismo de grande parte das
análises vigentes até a década de 1970: “Simplificando, o modelo de redistribuição/
reconhecimento respondeu à desestabilização do paradigma do pós-guerra, que reduzia as
demandas políticas aos canais redistributivos do Welfare State keynesiano” (FRASER,
2004b:1116).
Atenta, entretanto, a transformações da ordem sociopolítica e, ao mesmo tempo,
consolidando sua influência weberiana, Fraser (2004a; 2004b) contesta, em entrevistas
recentes, a própria bidimensionalidade assumida em seu modelo prévio e passa a propor que
uma adequada teoria da justiça tenha que se tornar tridimensional. “Representação, em
conformidade, constitui uma terceira dimensão, uma dimensão política da justiça social, junto
à dimensão (econômica) da redistribuição e à dimensão (cultural) do reconhecimento”
(FRASER, 2004a:380). Para a autora, somente a inclusão da dimensão política ao construto
anterior poderia dar conta de problematizar questões referentes às estruturas governamentais e
à legitimidade na tomada de decisões na esfera pública.
A necessária interconexão entre as lutas por redistribuição e por reconhecimento
requer que as questões de representação política sejam redirecionadas ao nível global, onde
grande parte das decisões que incluem os rumos políticos nacionais é tomada e as quais
afetam populações as mais diversas com conseqüências também distintas em termos de justiça
social. A vulnerabilidade financeira e migratória das fronteiras nacionais, os processos de
integração econômica internacional e o acirramento da desigualdade social sob formas
inéditas (entre elas o alastramento do desemprego estrutural), a redefinição do papel do
Estado e sua conseqüente retração no plano da intervenção social, adicionada às crescentes
limitações fiscais da ação pública, compõem um panorama crivado de restrições para a
preservação dos elementos descritivos da cidadania, em que um deles é de particular interesse
aqui, o que diz respeito à “índole estatal-nacional da cidadania” (GURZA LAVALLE,
2003:77). Esta se refere à existência de um vínculo constitutivo entre a cidadania e a
edificação do Estado-nação, graças à construção histórica de coincidência dupla: entre o
59
território e um poder centralizado único, de um lado, e, do outro, entre a população
constituída como comunidade política e o Estado enquanto encarnação presuntiva dessa
comunidade concebida em termos culturais ou de identidade nacional.
Se a cidadania nacional ainda poderia, no período do pós-guerra até aproximadamente
a década de 1970, ser considerada um enquadramento indiscutível para se pensar os padrões
de justiça, hoje, argumenta Fraser (2005b), ela já não é mais. Para a autora, somente a
inclusão da dimensão política ao construto anterior poderia dar conta de problematizar
questões referentes às estruturas governamentais e à legitimidade na tomada de decisões na
esfera pública. Com isso, atinge-se o que de mais recente a autora vem desenvolvendo em
termos de dar continuidade às suas análises sobre a sociedade contemporânea, agora vista sob
o ângulo de um novo processo de permeabilidade das fronteiras às crescentes interações
transculturais e aos fluxos monetários migratórios. Acrescenta-se, na figura seguinte, a
dimensão política às duas anteriores:
Figura 5.
É importante que, deste capítulo, se retenha as diferenciações dimensionais ensaiadas
visualmente mediante a concepção de lentes através das quais os grupos poderão ser vistos.
Elas compõem instrumentos analíticos que auxiliarão na construção sociológica do tipo de
reconhecimento social ao qual esses grupos podem estar se vinculando, sem se inferir, com
isso, que esta análise se preste a defini-los em termos empíricos.
CLASSE
SOCIAL
REDISTRIBUIÇÃO
RECONHECIMENTO
STATUS SOCIAL
REPRESENTAÇÃO
PODER
60
2. O PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO DOS CATADORES: Reconhecer-
se como um coletivo para ser reconhecido legalmente e mediante este vir a
se reconhecer coletivamente
Este capítulo se propõe a expor não apenas o desencadeamento como também explorar
os contornos assumidos pelo processo de organização dos catadores no Rio Grande do Sul
(RS) no que diz respeito ao envolvimento que eles travaram com uma série de agentes
individuais e institucionais, com especial ênfase nas conseqüências que isto gerou para a sua
própria organização coletiva.
Mesmo que o propósito maior não seja de caráter histórico, nem priorize um
detalhamento dos fatos em si, expor o quanto essa experiência envolveu diferentes agentes
sociais é uma forma de tornar visíveis os desdobramentos estaduais e nacionais que advieram
mesmo com a instalação, inicialmente em Porto Alegre, de uma dinâmica que pouco envolveu
os catadores. Se, de princípio, havia sido menosprezada a sua mais ampla participação e
possíveis contribuições ao processo, o modo como este se desenrolou acabou por possibilitar
a emergência de lideranças que tiveram de aprender a lidar com as múltiplas interfaces
socioeconômicas e políticas que lhes foram sendo reveladas. A descrição da forma como se
deu esse processo de organização, muito embora não seja o foco central da pesquisa, assume
uma importância vital, pois ajuda a elucidar as circunstâncias que culminaram na formação
dos dois grupos em estudo
33
.
A próxima seção pretende, assim, chamar a atenção para aspectos que evidenciam a
forma como os catadores foram sendo inseridos no processo e o quanto eles foram igualmente
se reconhecendo como atores coletivos legítimos, capazes de assumirem a condução de seus
empreendimentos associativos e de travarem as suas próprias lutas, mesmo que as condições
para esse suposto protagonismo tenham sido inicialmente viabilizadas por outros agentes.
33
As informações que foram utilizadas para a reconstituição de partes dessa história foram retiradas basicamente
de Silveira (2002), Lorenzetti (2003) e Martins (2004); do contato com os catadores da Associação de
Trabalhadores Urbanos pela Ação Ecológica da Restinga, bairro de Porto Alegre, de março/2004 a
outubro/2005; das entrevistas realizadas com membros da FARRGS e do MNCR; e do diário de campo que
resultou da presença do pesquisador em encontros promovidos por ambos os grupos e de outras atividades que
versaram sobre esta temática no âmbito municipal. A constatação de uma certa discordância de datas e nomes
nos trabalhos citados acima resultou em algumas omissões talvez mesmo, em eventuais enganos –, as quais
não chegam a comprometer o objetivo do capítulo.
61
2.1. UMA EXPERIÊNCIA FEITA PARA ELES, COM ELES OU POR ELES?
Como estratégia didática em prol de uma melhor compreensão acerca do processo de
organização dos catadores e sua inserção nos vários espaços de poder e negociação, que
envolveram e continuam a envolver uma multiplicidade de agentes, optou-se por expô-lo em
quatro fases distintas: 1985-94; 1995-99; 2000-03 e 2004-05.
Permeando esse recurso cronológico, estará um outro, expresso através do uso das
preposições para, com e por, em itálico, que servirão para detectar as diferentes maneiras
como se deu o processo de organização dos catadores e que representam, respectivamente,
três dos seus aspectos:
- ao vivenciarem o processo como “espectadores”,
- ao participarem como “coadjuvantes” e
- ao atuarem como “protagonistas”
34
.
Cada um dos recursos se prestará, assim, para revelar as formas diferentes com as
quais os catadores foram sendo inseridos (e se inseriram) no processo. A alternância entre os
recursos prepositivos será retratada por três seções distintas que indicam a predominância de
cada um deles ao longo do período compreendido por esta exposição. É preciso, no entanto,
ressaltar que não existe necessariamente uma concordância entre o início de uma nova fase
cronológica e sua concomitante associação a um novo recurso prepositivo, o qual poderá
perpassá-las em ocasiões diversas, reaparecendo quando se julgar pertinente.
O propósito de reconstituir cada uma das fases em separado, mesmo sem almejar
esgotá-las, é o de poder revelar o quanto em cada uma delas os próprios catadores foram, aos
poucos, ampliando suas possibilidades de gerenciar a parte que lhes diz respeito dentro do
universo de empreendimentos que o lixo abarca, de enfrentar tensionamentos que surgem
quando ele se torna tão rentável e de lidar da forma que mais lhes convém com os
atravessamentos político-ideológicos que emergem ao optarem por certas lutas e abdicarem de
outras.
34
A palavra protagonismo é constituída por duas raízes gregas: proto, que significa “o primeiro, o principal”;
agon, que significa “luta”. Agonistes, por sua vez, significa “lutador”. Protagonista quer dizer, então, de acordo
com a sua raiz etimológica, lutador/ator principal. Embora faça parte de um linguajar teatral bastante corriqueiro
e tenha sido difundido através do conceito de “protagonismo juvenil” (COSTA, 1994), para o qual existem
críticas devido ao modo individualizador com que, muitas vezes, acabou sendo empregado (CASTRO, 2002),
este termo é igualmente utilizado tanto na política quanto na sociologia para falar da pessoa que lidera um
movimento ou uma transformação social (LIMA, 2005). Mesmo que o estudo tenha sido concebido a partir do
contato com as lideranças de dois diferentes grupos de catadores, não se está considerando que, necessariamente,
ambos estejam aspirando à construção de um projeto político alternativo. O termo é empregado aqui, portanto,
para destacar os momentos em que se julga que os catadores, coletivamente, tenham participado de forma mais
ativa e com maior autonomia nos processos que envolveram a sua própria organização.
62
Acredita-se, ao recompor partes do percurso vivenciado pelos catadores no decorrer
dos últimos 20 anos, ser possível verificar os momentos em que eles foram adquirindo a
autonomia que lhes faltara de início para que pudessem coordenar experiências que haviam
sido instituídas por outros agentes, como a de seguir dando continuidade à Federação estadual
que congrega diversas de suas associações no RS e, igualmente, para que eles mesmos
pudessem empreender novas, como a que redundou, mais recentemente, na formação de um
movimento social em nível nacional, que se organizou com o intuito de adquirir a autoridade
necessária para interferir na cadeia econômica da reciclagem e, com isso, gerar benefícios
para toda a categoria.
Faz-se menção aqui às noções de autonomia e de autoridade (FERREE & GAMSON,
2001) no sentido de que as coletividades que serão constituídas no decorrer do processo
poderão viabilizar as condições intersubjetivas para serem socialmente reconhecidas mediante
a recusa em perpetuarem relações de subordinação junto aos demais agentes, garantindo o
direito de se expressarem sem sofrer constrangimentos por parte de outrem, e mediante a
conquista da possibilidade de interferirem nas decisões que lhes dizem respeito. Uma vez que
esses grupos não adquiram uma “voz política” (PHILLIPS, 2001) ou se lhes forem negados os
meios de acessar recursos econômicos condições objetivas terão minimizadas as chances
de converter seus esforços coletivos no reconhecimento que julgam lhes ser o mais propício.
2.1.1. Agentes externos em prontidão: afastar os catadores das ruas mediante a
implementação de alternativas associativas para os “futuros empreendedores sociais”
A primeira fase compreende o período de 1985 a 1994 e o seu início pode ser
creditado às tentativas feitas por parte de agentes ligados às Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) de desempenharem o papel indutor de um processo de organização para os indivíduos
que viviam em situação precária às margens do rio Guaíba, os quais se viam obrigados a se
deslocarem diariamente até o centro da cidade para que pudessem adquirir o material do qual
retiravam o seu próprio sustento e o de seus familiares. Segundo Wendhausen & Lima
(1989:126), a ocupação daquela região veio a sofrer grande expansão nas décadas de 1940-50
devido à viabilização de um acesso rodoviário, o qual favoreceu a transformação de áreas
inundáveis, aparentemente isoladas, em uma “zona urbana periférica paupérrima”. Em um
trabalho dessa época, assim se expressa Fischer (1988:27) acerca do contato que forçosamente
acabou por se estabelecer entre os catadores e os que já tinham as ilhas como sua residência:
63
Estes catadores que moram nas ilhas estão vivendo uma mistura de cultura porque
essas ilhas foram conectadas por pontes que eliminaram aquele isolamento dos
ilhéus, daqueles nativos que tinham através da pesca uma identidade muito forte, a
união – vamos todos pescar, quem fica em casa, quem constrói a rede, quem
distribui a rede, aquela rede que unia os ilhéus e os pescadores agora tem uma
nova turma: a rede dos catadores. Aquele progresso que entrou e que dividiu
culturalmente está hoje num processo de aproximação entre os ilhéus e os catadores
porque o rio não dá mais peixe.
Para dar início ao trabalho, os representantes da Igreja Católica daqui tiveram forte
inspiração de uma experiência semelhante que estava começando a dar seus primeiros passos
na cidade de São Paulo, dirigida a moradores de rua
35
. A respeito desta experiência paulista,
F., um dos agentes religiosos do qual se fará menção mais adiante, pois que exercerá um papel
fundamental em grande parte do processo vivenciado no RS, tece o seguinte comentário:
(...) De forma organizada, os catadores no País iniciaram esse processo nos anos 80,
1983 e 1984. Na Praça da Sé, em São Paulo, a população de rua sobrevivia da
catação de materiais. Houve um encontro com agentes da Pastoral da Igreja
Católica, da OAF [Organização de Auxílio Fraterno], da Pastoral de Rua, e desse
encontro de saberes – o saber do catador, do morador de rua, com o saber da
organização, com o desafio de dignidade a ser construída nasceram as
organizações associativas e cooperativadas dos catadores. A partir dessa
experiência, esse movimento se alastra para outras regiões do País, seja para o Sul,
seja para o Nordeste, seja para o Norte (CÂMARA, 2001).
Com isso, os agentes daqui assumiram a tarefa de começar a organizar e de certa
forma, neste início, mesmo a coordenar um processo associativo para aqueles que residiam
na zona das ilhas, a despeito do caráter individual com que a atividade vinha sendo exercida.
Desta aproximação, nasceu a primeira entidade de catadores da cidade, a então denominada
Associação das Mulheres Papeleiras e Trabalhadoras em Geral, na Ilha Grande dos
Marinheiros. Por haver se constituído para aqueles que não tinham nenhum histórico de
atuação nesse ramo, esta foi uma das associações que apresentou um grau bastante baixo de
cooperação interna, onde se viu reproduzida uma das características do trabalho autônomo,
que é a atuação individual no processo de coleta e de separação dos materiais recicláveis. O
fato de, desde o início, não ter sido dada aos catadores a oportunidade de poderem coordenar
a associação, cargo ocupado por representantes da Igreja ou por intermediários comerciais,
pode ter sido um fator agravante para que se instalasse um processo individualizador.
35
Esta iniciativa, exemplo de uma experiência bem-sucedida, resultou, em 1989, na primeira cooperativa
autônoma de catadores do Brasil, a Cooperativa de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis
(COOPAMARE). Segundo Rodríguez (2002), experiências de associações e cooperativas autogestionadas se
tornaram comuns em escala mundial ao final dos anos 80 e começo dos anos 90, precisamente na época em que a
política econômica nitidamente voltava-se para a internacionalização e o neoliberalismo (Outras informações
podem ser acessadas em seu endereço eletrônico: www.coopamare.org.br).
64
Nos anos que se seguiram, surgiu, também por impulso da atuação da Igreja, mas,
desta vez, a partir de um trabalho para os indivíduos que catavam em um lixão da zona
norte da cidade, ainda uma outra associação, a de Mulheres Papeleiras Santíssima Trindade.
Segundo Abreu (2001:35), os catadores dos lixões possuem um forte senso comunitário e a
presença majoritária de mulheres tende a facilitar o trabalho social, que “elas ouvem mais,
acreditam mais na possibilidade de transformar sua vida e bebem menos que os homens”. Por
certo, o trabalho em um depósito de lixo se mostrou bastante diferenciado em relação à
experiência com o grupo da Ilha dos Marinheiros, que este costumava apenas buscar o seu
material no centro da cidade, enquanto, no aterro, os indivíduos literalmente viviam “em cima
do lixão” (MARTINS, 2004:89). Por ser um termo que traduz muito a realidade passada, e
atual, de grande parte dos indivíduos que seguem se dedicando a esta atividade, acrescenta-se
aqui uma definição dada por Buarque, apud Gonçalvez & Abegão (2004:3), do que vêm a ser
os lixões da sociedade moderna:
Os lixões são depósitos de lixos existentes nas grandes cidades onde milhares de
homens, mulheres e crianças vivem e lutam desesperadamente entre si para
encontrar restos que possam comer ou vender. Tanto o lixo como os que dele
vivem, nos lixões, são produtos nitidamente originados pela modernidade, cujos
consumidores produzem um excesso de lixo e a concentração de renda um excesso
de pobres. As sociedades pobres não têm tanto lixo; as justas não têm tantos pobres.
Durante o processo de organização no lixão, os religiosos ensaiaram o que ficou sendo
uma tentativa de empreender um trabalho em moldes coletivos, porém vários dos catadores
que começaram não conseguiram se adaptar e acabaram se afastando. Isto abriu precedentes
para que moradores desempregados da região, mesmo aqueles sem histórico de catação,
vissem, no trabalho associativo ainda incipiente, a oportunidade de formarem um grupo
ligado à comunidade do bairro para atuarem. Como o próprio nome revela, a associação
foi sendo constituída basicamente por mulheres e, conforme afirma Lorenzetti (2003:5),
“existe até hoje uma família que participa desta associação desde o começo”, o que pode
haver favorecido a implementação de um processo envolvendo uma parcela minoritária e
seletiva daquela localidade. Segundo Rodríguez (2002), é bastante significativo o caráter
familiar que se encontra em várias dessas associações. De uma forma geral, o núcleo familiar
que se constitui em torno delas é formado basicamente por mulheres de diferentes faixas
etárias e homens na sua maioria jovens, geralmente filhos ou irmãos mais novos.
Antecipando já alguns dados em relação às unidades de triagem de resíduos sólidos de
Porto Alegre, que serão mencionadas mais adiante, Silveira (2002:119) relata que, atualmente,
muitas delas mantêm “como tônica a clara predominância feminina (correspondendo a 67%
65
do total de participantes)”, inclusive na ocupação dos cargos de direção. Segundo atesta
Romaní (2003:43) “(...) a tarefa do(a) catador(a) tem a ver no imaginário social com as idéias
de limpar e cuidar, mais associadas com as mulheres”. Deriva daí um recorte de gênero que
acaba por se refletir numa nítida divisão sexual do trabalho, no qual às mulheres “mais
operárias” e que optam por não assumirem os postos de chefia cabe a triagem do material e
aos homens o carregamento das bombonas (tonéis em que vão sendo depositados os materiais
à medida que são separados pelas mulheres) e a posterior prensagem do material para que
sejam acondicionados em fardos, prontos para a comercialização.
Essas funções, no entanto, não são definidas de forma gida, mas fruto da dinâmica
que se estabelece em cada unidade de triagem, de forma que, para Silveira (2002:127), o fato
de homens ficarem com tarefas que requerem maior força física e as mulheres com as que
exigem delicadeza não representa desigualdade como dominação ou subjugação, pois não se
constata entre eles uma “hierarquização valorativa das tarefas”. Martins (2005), contudo,
salienta a permanência de diferenças nos rendimentos, a favor dos homens, em algumas UTs.
Considerando que a “divisão sexual do trabalho segue a divisão sexual na sociedade”
(MARTINS, 2004:75), é possível supor que toda a dinâmica de trabalho e de relações que
envolvem o cotidiano dessas mulheres a despeito de Silveira (2002) ter admitido que a
forma como as atividades são exercidas nas UTs não resultar, por si só, em desigualdade nas
relações de gênero entre os catadores – e que extrapolam o âmbito da UT, possa estar
contribuindo para reproduzir, em última instância, padrões sociais de dominação que
conferem às mulheres um status inferior. Em um estudo realizado em duas associações de
catadores, onde havia predomínio de mulheres, Mayer (2005) destacou que a reivindicação
por respeito pela parte delas não se resumia ao reconhecimento de direitos constitucionais,
mas, antes, implicava em uma demanda por respeito à sua condição de gênero, expressa na
própria luta que empreendiam, no âmbito privado, contra a violência doméstica. Estes dados
estão em consonância com Phillips (2001:8), quando a autora afirma que o objetivo de muitos
dos grupos que demandam reconhecimento social não é tanto no sentido de serem igualmente
valorizados, mas justamente pelo “reconhecimento da especificidade do grupo de forma a ser
capaz de desafiar uma ordem de gênero que estabeleceu o padrão masculino como norma”.
Retomando o caso das duas associações acima mencionadas, o propósito maior ao se
descrevê-las foi o de evidenciar a influência decisiva que os agentes religiosos exerceram no
fomento a um processo de organização para os catadores, o qual, longe de possuir um caráter
estritamente econômico, teve, como comentou, ao ser entrevistado por Martins (2004:85), um
dos agentes que deu início ao processo, o intuito maior de “dar visibilidade aos papeleiros”,
66
fazendo com que passassem a ser valorizados pela sociedade. Isto envolvia ter que agir sobre
o modo como se apresentavam e/ou eram vistos, a tal ponto de E. (sexo femin., 36 anos,
grau incompl., FARRGS) ressaltar a importância do trabalho que uma agente religiosa H.
veio a desenvolver com um outro grupo de catadoras no sentido de reverter (...) como é que
eu vou te dizer assim, que as mulheres andavam quase nuas dentro da associação, era um
processo assim meio que de prostituição e ela conseguiu, sendo das comunidades eclesiais de
base, reverter e formar um grupo, tanto que hoje é uma outra associação, né”.
A rigor, pode-se mesmo argumentar, como o havia feito Rodríguez (2002) em um
estudo sobre a interação dos recicladores da Colômbia com alguns membros de uma
organização religiosa, que os agentes daqui também desempenharam o papel catalisador
externo – do “animador social” –, o qual tende a se fazer presente nas experiências de
desenvolvimento em comunidades marginalizadas, cuja participação, como sugere A. (sexo
masc., 25 anos, grau incompl., MNCR), foi fundamental nesse início de processo, que
(...) quando a gente junta um grupo que nunca trabalhou junto, né, tem que se juntar e tem
que ter um agente externo que vai estar resolvendo os pequenos problemas sociais que se
vêem ali”. O caso colombiano igualmente serviu para elucidar que, junto aos benefícios
trazidos pela organização, emergiram certos conflitos quando a autonomia requerida pelos
recicladores entrou em confronto com as expectativas de quem os havia apoiado desde o
início, no caso, uma fundação de jesuítas. Quanto ao desenrolar até então do processo em
estudo aqui, ainda muito pouco se vislumbrava em termos de autonomia ou mesmo de
demanda por participação pelos próprios catadores.
Em um segundo momento, compreendendo ainda a mesma fase, essas experiências de
organização se estenderam da tutela exclusiva dos agentes religiosos para abranger os
técnicos governamentais quando, a partir de 1989, a “Frente Popular” coligação de partidos
liderada pelo PT – assume a prefeitura de Porto Alegre e incorpora a proposta de dar
continuidade ao processo de organização que vinha sendo desenvolvido para os catadores
mediante o desenvolvimento do “Sistema de Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos”,
sob responsabilidade do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU).
Esse programa teve como um de seus eixos a geração de trabalho e renda através da
implantação de várias unidades de triagem (UTs)
36
em distintas comunidades periféricas da
36
Essas UTs são popularmente conhecidas como “galpões de reciclagem”. No entanto, mantém-se aqui a
denominação de unidades de triagem por se acreditar que ela seja mais apropriada para expressar a atividade de
beneficiamento primário (triagem e enfardamento para comercialização) que elas exercem. os locais que
realizam alguma atividade de beneficiamento secundário são denominados de (micro-)usinas de reciclagem.
67
cidade, as quais passaram, mediante a implantação do sistema de coleta seletiva
37
, a receber
cargas contendo o que pode ser mais bem identificado como um “lixo que não é lixo”
38
(CURITIBA, 2006). Essa iniciativa começa beneficiando, em 1990, um único bairro e se
expande rapidamente de modo que, em 1996, todos os 150 bairros da cidade passaram a ser
atingidos pelo sistema de coleta “porta a porta”. Mesmo sendo considerado um programa
controverso no que se refere à forma como integrou a coleta seletiva a essas UTs e resultou,
por conseguinte, oficialmente ilegal e “desviante” a coleta efetuada pelos catadores de rua, o
êxito obtido por ele ultrapassou as fronteiras municipais e influenciou experiências
semelhantes em todo o país, além de render ao governo municipal reconhecimento em escala
internacional.
Devido à expansão do programa e com o intuito de dar um destino “ecologicamente
correto” ao progressivo volume de material coletado, recursos públicos foram destinados para
viabilizar a construção de uma série de novas UTs em diferentes locais da Capital, que foram
sendo concebidas em moldes arquitetônicos que lhes permitiram uma melhor adaptação à
coleta seletiva. Mesmo que ela tenha sido assumida para ser uma política de gestão ambiental
dos resíduos sólidos, é questionável o quanto do estímulo à construção de um maior número
de UTs que se sucedeu poderia, de fato, estar relacionado aos benefícios ambientais gerados
pela expansão desse sistema. Não obstante seja possível estabelecer uma relação entre esses
fatores, sua combinação está longe de derivar de uma equação política que tenha sido solúvel
por uma causalidade ecológica única, porquanto outras razões, de ordem socioeconômica,
fizeram com que, num curto espaço de tempo, surgissem várias dessas UTs na Capital.
O projeto de implantação das UTs teve, de fato, a pretensão de se caracterizar por um
duplo eixo, tanto com relação à problemática urbana da destinação de resíduos potencialmente
recicláveis (eixo ambiental), quanto à geração de trabalho e renda para os segmentos
especialmente vulneráveis ou excluídos do mercado de trabalho formal (eixo social). Para
assegurar sua sustentabilidade, ações as mais diversas foram empreendidas para mobilizar a
opinião pública a aderir ao sistema, garantindo que a quantidade e a qualidade do material
coletado pudessem realmente se reverter em efeitos positivos tanto no sentido ecológico
quanto na renda dos trabalhadores. No que diz respeito ao eixo social, este programa se
37
Este é o sistema que recolhe somente os materiais inorgânicos que podem ser reutilizados como matéria-prima
na indústria da reciclagem. Com isso, todos aqueles supostos resíduos descartáveis que seriam jogados em lixões
ou enterrados em aterros sanitários deixam de ser lixo e retornam ao ciclo da cadeia produtiva (MOTA, 2005).
38
Este é o nome dado ao programa socioambiental implantado em outubro de 1989 pela prefeitura municipal de
Curitiba, cujo modelo serviu de referência para a experiência de Porto Alegre. Segundo Dias (2002a), desde o
início do programa, os catadores de rua da cidade opuseram-se a sua implementação, em função de a destinação
preferencial dos materiais inorgânicos ser para o sistema municipal da coleta seletiva, o que resultou em uma
significativa redução na quantidade de material disponível e, por conseguinte, redução em seus rendimentos.
68
prestou a servir de alternativa de emprego nos assentamentos promovidos pelo governo
municipal, os quais foram dirigidos principalmente aos indivíduos que moravam em áreas de
interesse para obras de infra-estrutura urbana (caso dos indivíduos que são transferidos da
Vila Tripa, localizada nas imediações do aeroporto, para o bairro Rubem Berta) ou em zonas
de risco (caso do loteamento Cavalhada que foi concebido para aqueles que moravam à beira
do rio Guaíba), este último mais bem retratado no depoimento abaixo:
A história que eu conheço mais é da Cavalhada, assim, era um grupo que morava
na beira do Guaíba, aqui perto do Beira-Rio e era uma área de risco, cada vez que
chovia, dava enchente e levava todas as coisas que os catadores tinham, então a
prefeitura fez um deslocamento do pessoal, foi para o loteamento Cavalhada.
Como 90% do pessoal trabalhava com material reciclável, né, coletando no centro,
colocado em transferência lá no loteamento Cavalhada, ele fica mais ou menos uns
20 Km quase do centro de Porto Alegre, ficava inviável para ele sair de lá para vir
até o centro coletar os materiais, então (...) para ter o trabalho, para eles serem
transferidos para lá e, juntamente com essa transferência, ter um local de trabalho,
então, houve uma grande discussão com o DMLU para ter esse equipamento
grande aí. Já tinha sido implantada a primeira associação, (...) nas ilhas dos
Marinheiros e já estava mais ou menos meio que funcionando, então, foi uma
proposta que foi mais bem aceita, né (A., MNCR).
Mesmo que a existência de experiências prévias tenha facilitado a implementação do
programa, o trabalho dos catadores ainda se caracterizava por ser exercido individualmente.
Isto deu margem para que surgissem descompassos no que diz respeito à expectativa do poder
público quanto ao início imediato de uma sistemática coletiva “bem-sucedida”, como se ela
fosse naturalmente ocorrer mediante uma formalização da atividade desses indivíduos em
moldes associativos a qual, segundo supunham os agentes governamentais, lhes permitiria,
por si só, que se constituíssem, e, mesmo, passassem a pensar, como um grupo coeso –,
desconsiderada a pouca familiaridade que os catadores tinham com esse formato de trabalho.
Ao considerá-las separadamente, cada uma das atuais 14 UTs (número que consta no
site internet oficial do DMLU) teve uma história própria e bastante vinculada à região onde
foi construída, cujo detalhamento aqui extrapolaria os objetivos deste estudo. De forma geral,
considerando o fato dessas UTs terem começado a agrupar em um mesmo local a dispersão
que vinha caracterizando o exercício dessa atividade, levanta-se a seguinte questão: tal
agrupamento favoreceu uma maior adesão, ou mesmo um engajamento, dos catadores ao
projeto que se iniciava?
39
39
Segundo uma “tipologia de relação com o trabalho autogeridoproposta por Rosenfield (2003:400), entende-
se por engajamento a postura que o trabalhador assume quando possui um projeto político claro e associa a
autogestão com uma perspectiva revolucionária capaz de constituir novas relações entre capital e trabalho. a
adesão se caracterizaria pela vinculação integral/parcial ao projeto de autogestão como uma alternativa concreta
de geração de trabalho e renda, assumindo um caráter muito mais instrumental do que propriamente ideológico.
69
Aqui, da mesma forma, não cabe estipular uma relação causal direta, nem uma
comparação precipitada com os anos que antecederam à entrada dos gestores públicos em
cena. Por isso, a seguir, será feita a apresentação de alguns dados que se referem a certas
características internas e externas dessas associações e que podem ajudar a delinear alguns
caminhos exploratórios para a questão acima sugerida.
Primeiro, um número expressivo de pessoas que ali se instalaram não necessariamente
possuíam um histórico de trabalho como catadores e, quando possuíam, traziam consigo o
padrão individual que os tem caracterizado. Trata-se, em grande parte das vezes, de pessoas
desempregadas que residem nas proximidades da UT e que, sem perspectiva de adquirir
algum outro emprego, se vinculam às associações com a mesma rapidez com que, depois, as
deixam, caso surja “algo melhor”. Porto et. al. (2004:1511) comentam que, dentre as
perspectivas de melhorar de vida que tinham os catadores que atuavam em um aterro
metropolitano do Rio de Janeiro, sair do aterro e conseguir emprego “com carteira assinada”
era uma das almejadas. Esta constatação encontra eco entre os catadores da UT da Restinga,
cuja vontade de trabalhar em outro local, recorrente no depoimento de muitos dentre eles, era
condicionada à oferta desse “verdadeiro emblema da cidadania” (NEVES, 2002:206). Desta
forma, não é de se estranhar que ele figure no horizonte de conquistas de grupos que vêem no
acesso a esse benefício a possibilidade de assegurar um nculo maior entre os catadores e as
UTs, uma vez que lhes seriam providas condições dignas de trabalho: (...) a gente pretende
já, em objetivo finalista, estar chegando a isso mesmo, a esse ponto assim, né, de
benefícios, INSS, carteira assinada, aposentadoria, né, pra finalizar com isso mesmo (C.,
sexo masc., 18 anos, grau compl., MNCR), embora as conseqüências advindas junto a tais
conquistas possam, quando vistas de outro prisma, lhes soar paradoxais: “É que, na realidade,
na realidade, carteira assinada seria assim uma forma de patrão, teria um patrão, então
teria o fulano que seria patrão do cicrano, então naquela forma de patrão, aquele
negócio de exploração!” (T., sexo masc., 34 anos, 1º grau incompl., MNCR).
Na realidade, sem que a ausência desse benefício se constitua em uma razão exclusiva,
outros motivos também levavam a que a rotatividade na associação mencionada acima, o que
não é muito diferente do que se conhece das demais, fosse bastante alta, gerando sérios
problemas para o seu funcionamento. R. (sexo masc., 49 anos, grau incompl., FARRGS),
pertencente a uma associação da região metropolitana de Porto Alegre (a qual parece menos
atingida por essa problemática por ser considerada bem-sucedida economicamente, o que não
a isenta de ser considerada controversa, segundo a opinião de muitos catadores, pelo caráter
familiar e empresarial que teve de assumir para tanto), aponta uma série de questões que
70
possam estar contribuindo para isso, cujo relato deixa transparecer a trajetória individual que
muitas das potenciais lideranças optam por seguir:
(...) a maioria das associações, elas geram poucos recursos, tem uma remuneração
muito baixa e isso dificulta a continuidade das pessoas na associação, tem muita
rotatividade, (...) pessoal muito, muito sem qualificação, né, sem instrução pra ter
um nível um pouco, de entendimento um pouco maior para ser uma liderança que
consiga ajudar as associações, (...) então quando uma pessoa começa a se destacar
um pouco, geralmente ela não dura muito tempo dentro da associação porque ela
começa a enxergar um outro universo e vai para outra coisa, acaba não ficando, e
aí precisa de nova liderança.
É igualmente freqüente, entretanto, encontrar catadores que desempenham a função
durante uma boa parte ou toda a sua vida. Em conversa com os catadores da Restinga, muitos
se autoproclamavam como acomodados e imputavam para si a culpa de permanecer ali por
tantos anos, admitindo, assim como no caso carioca, que “(...) seu ‘esforço próprio’, em geral,
não é suficiente para tanto (...) [sustentar] a crença nas possibilidades de realizá-los [os sonhos
de melhorar de vida]” (PORTO et. al., 2004:1511). Do mesmo modo, Ely (2005) comenta
que, durante uma atividade de formação que reuniu coordenadores de distintas UTs, as
condições precárias nas quais eles julgavam se encontrar eram raramente associadas a fatores
sociais, mas sendo fruto de trajetórias individuais “desviantes”, especialmente quanto ao fato
de terem sido relapsos ao abandonarem os estudos, o que os levava a uma percepção também
individual da causa da situação: “eu não me esforcei o suficiente”. Segundo a autora, isto
tem ajudado a reforçar a idéia de que merecem ficar onde estão e, em última instância, tal
condição de subordinação mais facilmente tem se reproduzido e se legitimado.
O fato de pessoas com diferentes formações profissionais acabarem trabalhando em
torno da triagem de materiais contribuiu para que se formasse, nas UTs, um grupo de bastante
heterogeneidade interna e de difícil conformação identitária. Para Silveira (2002:115), no
entanto, o sistema socioambiental posto em prática em Porto Alegre favoreceu a consolidação
da categoria do “reciclador” como uma nova identidade profissional, a qual se estende tanto
aos ex-catadores quanto àqueles que se propuseram a iniciar atividades nesse ramo. Ao longo
do trabalho, serão tecidos outros comentários no que diz respeito à denominação catador/
reciclador.
Mesmo se constituindo em uma alternativa de renda para boa parte dos indivíduos,
particularmente os estratos populacionais com níveis mais baixos de escolarização (trata-se de
uma ocupação que não requer, de início, uma qualificação específica), muitos daqueles que se
integraram a uma das associações existentes se mostraram relutantes em se adaptarem a uma
71
nova ordem de funcionamento (ou, para aqueles que não eram previamente catadores, a uma
atividade pouco digna aos olhos da própria vizinhança), com regras outras que não mais as da
rua (ou não mais as de um emprego com carteira assinada) e que deveriam ser estabelecidas
de forma coletiva, aos moldes cooperativos (cujos princípios se inspiram em valores de
igualdade, democracia participativa e solidariedade). O incentivo a um trabalho nesses moldes
provocou reações as mais diversas e resultou em um processo de adaptação que se mostrou
bastante conflitante, porque, como sugere A. (MNCR), quando as pessoas trabalham
individualmente, cada um faz a sua própria lei”, quando trabalham no coletivo, tem que
ter leis novas que façam com que toda a comunidade consiga trabalhar sem ter muita
divergência dentro do grupo”.
A experiência em uma das UTs demonstrou, de fato, que as tentativas coletivas de
deliberar acerca dos rumos da associação (e a própria crença no cooperativismo autogerido)
têm se tornado uma tarefa difícil e um aprendizado longo demais para as necessidades
imediatas que emergem. Ao analisar uma delas, Nardi et. al. (2006) comentam que, mesmo
havendo a repartição por igual da renda obtida com a produção, imperam níveis hierárquicos
que centralizam poder, reproduzindo relações autoritárias e ferindo o princípio da igualdade
de direitos entre os sócios. Se não há, como havia previamente argumentado Silveira (2002),
tamanha “hierarquização” na relação de gênero, tal constatação não pode ser estendida à
relação que se estabelece, em grande parte das vezes, entre coordenação e demais associados.
Ao estudar uma outra UT da Capital, Martins (2004:133) exemplifica como essa relação se
reflete no cotidiano da associação:
Existe, visivelmente, uma divisão que separa os coordenadores dos outros
catadores: isso fica claro não só nos momentos de trabalho, mas também nos
intervalos de lanches e na volta do almoço. O grupo da coordenação anda sempre
em conjunto e fala como se fosse uma pessoa, enquanto os outros trabalhadores
se referem ao grupo “delas” como uma diferenciação baseada em hierarquia.
Somado a esta dinâmica interna, ainda o baixo retorno financeiro que acaba por
favorecer uma reduzida adesão ao projeto que, quando ocorre, se pela necessidade de
sobrevivência, “sendo raro o engajamento por motivos políticos” (NARDI, 2006, no prelo).
Para concluir os comentários acerca das características internas das associações, reproduz-se
aqui um trecho da entrevista com a ex-coordenadora geral de um de seus grupos organizados,
que é membro de uma das UTs da Capital:
72
(...) essas pessoas que entram para a reciclagem, algumas delas são catadores,
cataram e tal, outras foram excluídas do mercado de trabalho, o domésticas, ex-
faxineiras, ex-babás, ex-pedreiros, então assim, o que que acontece? Quando tu
trabalhas com carteira assinada, tu tens uma cabeça, sabe que tu tens um chefe,
quando tu entras para um coletivo, tu tens que trabalhar muito isso para formar
um grupo. Por exemplo assim, aqui na associação (...), nós temos um objetivo de
até o ano que vem, (...), leve o tempo que for, nós vamos formar uma direção de
catadores que hoje não existe, porque as pessoas entram, saem, entram, saem, e
acham que vão enriquecer no primeiro s e pouco e sabe...então assim, é um
desafio. Na verdade, ser catador de materiais recicláveis é um desafio constante
todo dia (E., FARRGS).
No que diz respeito à relação com o poder público municipal, este assumiu o
financiamento das UTs e mantém com as associações um convênio que lhes permite a
utilização do espaço e dos equipamentos. Mesmo que todas elas tenham sido juridicamente
constituídas, com autonomia administrativa e operando mediante estatutos e regimentos
internos específicos (onde são definidas suas normas de gestão e funcionamento), isto é,
tenham se constituído como gestoras das UTs, sendo vedada por lei a interferência estatal em
seu funcionamento (princípio garantido pela Constituição em seu inciso XVIII do art. 5º),
cabe à prefeitura um regime de controle bastante grande, já que o funcionamento delas
depende totalmente do fornecimento de material recolhido pela coleta seletiva e, por sua vez,
a quantidade e a qualidade do material coletado não estão só sob gerência do poder público.
Ao ser outorgada autonomia administrativa às associações, cabe a elas firmarem os
acordos comerciais que lhes sejam melhores. Neste sentido, desde o início, não houve sequer
tentativas pela parte do governo (ou por parte delas, coletivamente) de estabelecer quaisquer
relações que as pudessem proteger mutuamente da rede de venda intermediária que lhes provê
um retorno financeiro precário e pouco estável, dada à circunstância de total informalidade na
qual são assentados muitos dos acordos. Afinal, como as UTs não podem emitir notas fiscais,
necessárias ao fluxo contábil das indústrias recicladoras formalizadas, e nem conseguem
armazenar grandes quantidades de material, elas se vêem obrigadas a manter uma relação de
dependência com essa rede, de forma a garantir a comercialização (CABRAL, 2001). A falta
de um suporte do poder público tem gerado rios problemas para o seu funcionamento,
considerando que a sustentabilidade da atividade de triagem de resíduos nas UTs acaba
ficando à mercê do jogo de relações econômicas que se estabelece entre catadores e
intermediários (comumente chamados de sucateiros ou atravessadores), o qual, na prática, tem
se desdobrado de forma bastante conflitante e, em grande parte, desfavorável aos primeiros.
As constatações apontadas acima ajudam a revelar que não basta a instalação muitas
vezes “de cima para baixo” de projetos aos moldes “solidários” para assegurar que eles se
desenvolverão mediante princípios coletivos, sem uma rede de apoio permanente, tanto de
73
outras associações ou entidades quanto do poder público municipal. Mesmo que essas
“economias populares” se constituam em formas de resistência mediante as quais as classes
populares criam e exploram um nicho econômico para sobreviverem, Rodríguez (2002:334)
argumenta que, quando consideradas dentro do conjunto da economia urbana, torna-se
evidente que estão longe de serem autônomas, já que são fonte de produtos, serviços e mão-
de-obra barata para o setor moderno da economia, daí “este tipo de atividade possa, por isso
mesmo, facilitar, mais do que impedir, a exploração das classes populares”.
Ao realizar uma pesquisa em uma cooperativa autogerida bem-sucedida (do ramo da
metalurgia pesada), localizada na região metropolitana de Porto Alegre, Rosenfield (2003)
salienta o papel decisivo assumido pelo sindicato não apenas na introdução à alternativa
autogestionária, mas fundamentalmente no estabelecimento de relações estreitas com o
processo como um todo, bem como a participação de instâncias governamentais. No caso dos
coletadores de lixo em Ahmedabad, Capital do Estado de Gujarat, na Índia, Bhowmik
(2002:375) apresentou um estudo onde demonstrou que a forte interligação do sindicato
(Sewa) com as cooperativas criadas por aqueles que pertencem às castas mais baixas “os
mais pobres entre os pobres” urbanos, com mais baixo status, e com uma predominância de
mulheres e crianças – foi o que lhes garantiu a sustentabilidade de seus empreendimentos.
Em termos de Brasil, ainda no que diz respeito à questão dos catadores, Jacobi &
Teixeira (1997:14) discorreram sobre a experiência de constituição da ASMARE (Associação
dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável), em Belo Horizonte, cujo sucesso
se deu devido à interação entre população de rua, igreja e poder público. A posse, em 1993, de
novos gestores municipais (“Frente BH Popular”, coligação liderada pelo PT), muitos dos
quais, pessoas que vinham apostando no potencial de organização dos catadores, criou as
condições governamentais propícias para que fosse firmado um convênio que previu o repasse
de recursos financeiros. Com isso, o poder público municipal assumiu o papel de indutor das
condições estruturais necessárias para viabilizar o funcionamento de um projeto aos moldes
associativos. Os autores também destacaram o papel exercido pela Pastoral da Rua (cujos
membros já haviam participado de uma experiência junto à população de rua na cidade de São
Paulo, mencionada previamente) em tornar visível a problemática vivida pelos catadores aos
olhos da sociedade civil organizada, “articulando a solidariedade externa e fortalecendo um
tecido social interno que se consolid[ou] substancialmente na medida em que as parcerias de
trabalho se efetiva[ram] e ganha[ram] visibilidade pública”. Em termos práticos, houve pela
arquidiocese a solicitação de que em cada uma das paróquias, os padres orientassem os seus
fiéis a separarem o seu lixo doméstico, destinado-o aos catadores.
74
Mesmo que a presença dos agentes religiosos tenha sido imprescindível na indução
desse processo mediante a construção de laços de confiança com os catadores, Jacobi &
Teixeira (1997:23-24) reforçam que o poder público foi quem, de fato, criou, através do
fornecimento de recursos financeiros, humanos e de infra-estrutura material, as condições
necessárias para que a ASMARE se tornasse “uma instituição de visibilidade nacional e que
muito tem contribuído para que outras experiências surjam em diversos outros municípios do
Brasil”. Ao discernir entre quatro tipos diferentes de intervenções comumente acessadas para
se tentar resolver a problemática dos “vasculhadores de lixo” e dos sistemas informais e
formais de gerenciamento dos resíduos sólidos ao nível dos industriais, dos intermediários,
do poder público e dos próprios catadores Nas & Jaffe (2004) também apontaram que a
existência de vínculos intersetoriais, envolvendo os próprios catadores, foi fundamental para o
sucesso da iniciativa que resultou na constituição da ASMARE.
No RS, existe a experiência do Vale dos Sinos, onde a prefeitura de Dois Irmãos, após
ter sofrido punições da parte de órgãos ambientais estaduais, assumiu a responsabilidade de
fornecer condições de infra-estrutura, manutenção de equipamentos e repasse de recursos
financeiros, além de garantir o suprimento de resíduos domiciliares através da coleta seletiva,
tudo de forma a viabilizar o funcionamento de um centro de reciclagem que viesse a permitir
um tratamento ecologicamente adequado aos resíduos produzidos na cidade. Para efetivar a
implementação desse centro, Adams (2005) relata a presença fundamental de um consultor
R. – que já tinha certa experiência no ramo, pois que havia trabalhado anteriormente para uma
organização ecológica (no caso, a empresa “Vida Produtos Biológicos”, de José Lutzenberger,
em Novo Hamburgo).
Considerando o montante de catadores que puderam aderir ao projeto, e tomando
como comparativo a experiência mineira citada acima (que, em sete anos de funcionamento,
contava com 210 associados, número que aumentou para 350 em 2002), a experiência de
Dois Irmãos pode ser considerada mais fechada”, que o número de participantes, segundo
Martins (2004:110), é de “19 recicladores, havendo, entre estes, 15 homens e quatro
mulheres” (um número baixo mesmo se comparado às UTs da Capital), sendo que, em termos
quantitativos, este número não se alterou muito durante o período que vai desde a sua
fundação em 1994 até os dias atuais. Esse centro de reciclagem foi inicialmente concebido
como uma microempresa, gozando de autonomia administrativa e política, e primando por
uma divisão igual dos ganhos econômicos entre todos os trabalhadores, os quais têm uma
renda bastante superior à média das UTs de Porto Alegre (VIDAS, 2005), até que, em 1999,
75
veio a se tornar uma associação com características técnicas de uma usina de reciclagem.
Sobre o aporte financeiro garantido pelo poder público, R. (FARRGS) comenta:
(...) um dia uma pessoa da prefeitura de Estância Velha veio me perguntar: - R., o
nosso operador da usina está falando que a prefeitura deveria dar uma ajuda
financeira, isso é real? A situação é mesmo essa e tal? Eu disse: - É real, acho que
grupos assim, nas cidades menores, assim, onde tem, tem mais dificuldade, que
nem Novo Hamburgo era uma cidade rica, não tinha tanto catador na rua também,
precisa de apoio financeiro sim!
No que diz respeito à sustentabilidade desses empreendimentos solidários, Rodríguez
(2002) havia ressaltado, sem restringir sua constatação ao caso colombiano, que a ausência
de vínculos entre as próprias cooperativas, e entre estas e o Estado e o setor capitalista impede
uma base econômica realmente capaz de sustentar a engrenagem da reciclagem movida pelos
catadores, que a constância desses laços é condição imprescindível para o sucesso dessas
associações no longo prazo. Na verdade, constata-se uma rede de dependência constituída em
torno da reciclagem, que envolve, diretamente, a sociedade como um todo. Some-se a isso,
conforme argumenta Rosa (1996), que a discursividade dominante em relação à destinação e
ao tratamento do lixo ainda se centra, tradicionalmente, em aspectos normativos sanitaristas
ou, mais recentemente, em questões de preservação ambiental, e termina por tornar
secundárias questões relativas à sobrevivência hodierna dessas associações. Por essas e outra
série de questões, uma maior adesão/engajamento por parte dos catadores associados às UTs
da Capital esteve bastante comprometida nessa fase e pouco ainda se vislumbrava em termos
de um protagonismo do catador em sua inserção na cadeia da reciclagem.
A primeira metade da década de 1990 parecia, de fato, sinalizar uma aproximação
ainda muito frouxa entre as associações, limitada à realização de atividades de caráter
eminentemente festivo
40
. Outras relações ficavam restritas a eventuais encontros entre as
pessoas responsáveis pelas diversas associações. Afora isso, as coordenações mantinham
relações com o poder público municipal de forma isolada e eminentemente para tratar de
assuntos ligados à situação de cada associação em particular. Com isso, era recorrente a
instalação de uma relação personalista, na qual a proximidade pessoal era indício de ganhos
ou favores atendidos, os quais se revestiam de um caráter “clientelista” e facilmente eram
concebidos, para usar uma expressão de Neves (2002:210), “não como ‘direitos’, mas como
‘dádivas’, ou meras formalidades para uso midiático”. Sem restringir tal comportamento ao
40
Conforme relata Lorenzetti (2003), a primeira experiência de aproximação das associações foi fruto da
iniciativa dos agentes ligados à Igreja Católica que, de 1987 a 1994, reuniram os catadores associados, na época
do Natal e, cada ano, em uma associação diferente, para participarem de uma comemoração conjunta.
76
contato com o poder público, esta relação igualmente garantia a conquista de parcerias com
órgãos privados ou outras entidades da sociedade civil organizada.
A entrada definitiva desse outro agente externo governamental fez com que os
religiosos que haviam acompanhado o processo desde o início intentassem constituir um
espaço de debate e articulação de propostas que auxiliasse os catadores no que diz respeito ao
relacionamento que poderiam e deveriam manter com o poder público municipal. No
confronto de opiniões entre este último e as entidades religiosas que vinham lidando com os
catadores, Martins (2004:160) relata haver críticas e questionamentos mútuos, direcionados,
respectivamente, à maneira “antiga” e “doutrinária” de atuação da Igreja e ao “trabalho sem
fundamentação na base”, exercido autocraticamente pelo poder municipal.
O envolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) marca a
entrada de outro agente nesse processo e cria as condições físicas necessárias para a formação
do chamado “Fórum dos Voluntários”. Este espaço se constitui basicamente com o propósito
de oferecer assistência a projetos de alfabetização e pós-alfabetização para os catadores. No
relato de um estudo de caso realizado a partir de um dos cursos de extensão ministrado em
uma das associações da Capital, Rosa & Couto (2001:30) afirmam que essas experiências
buscaram uma maior aproximação entre a Universidade e os grupos pertencentes às classes
populares, “visando contribuir para a reflexão sobre a constituição de currículos alternativos
que [pudessem] instrumentalizar esses grupos em suas lutas por maior participação social”.
Neste momento, esse Fórum acabou servindo muito mais como um espaço de assessoria
educacional voltado às associações de catadores que já haviam sido instaladas na Capital.
De 1990 a 1992, um dos agentes religiosos que mais começava a se envolver nesse
processo – F.
41
– se afasta das associações de Porto Alegre, ao ser chamado para organizar um
encontro internacional sediado em outro município do RS e, ao regressar desta experiência,
traz consigo uma nova visão para nortear o trabalho dos agentes externos enquanto assessores
de uma estruturação organizacional para os catadores. Inicia-se, assim, uma tímida aposta na
organização autônoma das associações, de que seria o próprio grupo quem deveria liderar o
seu processo de organização, apoiado externamente somente no que fosse preciso. Entretanto,
a julgar pelo que ainda lhes era considerado necessário adquirir alfabetização, formação,
capacitação técnica, para captação de recursos, etc. –, parecia estar longe a perspectiva de
uma organização em moldes verdadeiramente autônomos. E, de fato, até então, vários dos
41
Segundo Lorenzetti (2003), nessa época, este agente já emergia como um importante catalisador externo e uma
das figuras-chave desse processo de organização não somente na Capital como também no interior. Atualmente,
é coordenador do Centro SESC Comunidade (RS), onde é responsável pelo desenvolvimento de projetos sociais.
77
dirigentes das associações não eram catadores, cuja coordenação seguia sendo, em grande
parte, desempenhada por agentes externos. Os assessores católicos entrevistados por Martins
(2004:132) relatam que, durante este período de trabalho, a participação nas decisões dentro
das UTs era, de modo geral, muito fraca, agravada pelo fato de que “não havia uma liderança
reconhecida por eles”, de forma que restava aos próprios agentes da Igreja e de outras
entidades fazer a representação externa das associações junto a compradores e outros órgãos.
Entre 1993 e 1994, alguns catadores, já lideranças em suas associações de origem, são,
então, chamados para participar das discussões do Fórum dos Voluntários. A convocação teve
por objetivo começar a envolvê-los em um processo de organização que se pretendia mais
abrangente e que poderia interessá-los de forma direta. Com o decorrer das discussões, foi
ficando cada vez mais perceptível que, para que houvesse um salto qualitativo que pudesse
agregar valor ao trabalho que as UTs vinham fazendo com os materiais recicláveis, se fazia
urgente incentivar uma maior qualificação profissional, técnica e de gestão organizacional,
afinal, como sugerem Rosa & Couto (2001:41), quando discorrem sobre as possíveis causas
do fracasso de um curso de alfabetização, o qual não oferecia nenhuma forma de certificação,
“[n]a vida desses trabalhadores, tudo é muito informal. Muitos não têm diversos documentos,
como carteiras de identidade, de trabalho, certidão de casamento, não são inscritos no INSS”.
Neste momento, surge um primeiro conflito, bastante semelhante àquele previamente
apontado por Rodríguez (2002) no caso colombiano. Outro agente religioso, pioneiro deste
processo, discorda da crescente disposição em integrar os catadores ao Fórum e defende que
as duas categorias catadores e agentes externos continuem a se organizar em separado. A
manutenção de uma posição intransigente termina por afastá-lo definitivamente deste grupo
42
.
Este fato acaba contribuindo para abrir um espaço maior ao envolvimento dos catadores,
especialmente no que concerne às lideranças que já começavam a ser identificadas.
O incentivo à implementação de uma experiência mais participativa veio a se tornar o
germe do processo de formação, no ano seguinte, de um outro Fórum, concebido em moldes
semelhantes, porém que pudesse melhor garantir um espaço de articulação entre os próprios
catadores, de forma a que estes passassem a ser assessorados pelos agentes externos somente
no que fosse preciso. Isto acaba conduzindo ao que se está considerando aqui o início de uma
nova fase.
42
Segundo consta em Martins (2004:132), após ter se retirado, ele voltou a esse trabalho para investir na
formação de lideranças e, desde 2003, vem coordenando na Casa da Juventude Marista um curso destinado a 30
catadores, ministrado mensalmente. Inspirado pelo “sucesso” do MST que, na sua opinião, ocorreu pela
formação sistemática de lideranças, o assessor propõe fazer do movimento de catadores “os sem-terra do meio
urbano”. No trabalho de campo, não se verificou a existência de nenhuma proximidade entre as atuais lideranças
do MNCR e este agente religioso, nem sequer houve alusão alguma ao curso.
78
2.1.2. Recuando alguns passos e resgatando quem ficou para trás: viabilizar meios de
compartilhar o processo com os catadores
Essa segunda fase compreende o período de 1995 a 2000 e se caracterizou pelo início
de uma aliança entre as associações constituídas, em que se destaca a formação de um
segundo Fórum, que se mostrou um importante espaço de articulação das coordenações e dos
agentes externos rumo a um novo processo, que lhes parecerá inevitável, e que culminará,
mais adiante, na fundação de uma entidade formalizada em termos jurídicos, cuja abrangência
estadual permitirá que ela represente as associações de catadores constituídas no RS, desde
que devidamente filiadas.
Durante o encontro festivo realizado no final de 1994, F., que permaneceu vinculado
ao processo, sugeriu que todos os agentes, incluindo os catadores, se esmerassem em torno da
formação de um novo espaço de debate que fosse destinado aos dirigentes das associações e
que os reunisse de forma periódica, propiciando um momento de troca de experiências para a
discussão de problemas e para a busca de soluções em comum.
Estabelecido o espaço, em uma sala cedida pela Faculdade de Educação da UFRGS,
esse viria a ficar conhecido como o Fórum das Associações de Reciclagem”, já que passou a
reunir não somente os agentes externos, mas fez, igualmente, com que estes, quinzenalmente,
se reunissem com os coordenadores das associações, muitos dos quais catadores. Cada uma
das associações contava, minimamente, com uma direção composta por um presidente e um
tesoureiro, os quais podiam, caso se interessassem, se tornar seus representantes no Fórum.
Nesse momento, algumas lideranças já se destacavam, especialmente aquelas que vinham
acompanhando os passos que haviam antecedido a criação do Fórum: um catador pertencente
à Associação de Trabalhadores Urbanos pela Ação Ecológica da Restinga e outro, da
Associação do Aterro da Zona Norte, todas localizadas em Porto Alegre. Participavam
também como catalisadores externos: H., uma agente religiosa vinculada às CEBs, que vinha
desenvolvendo um trabalho na Associação de Reciclagem Ecológica Rubem Berta, um
professor do Instituto de Educação da UFRGS e F., que seguia acompanhando o desenrolar
desse processo como voluntário, ainda ligado à Igreja.
As primeiras reuniões do Fórum abordaram temáticas as mais diversas, porém todas
remetiam a problemáticas comuns: a relação de dependência que tendia a se estabelecer com
os intermediários com os quais as associações firmavam relações comerciais, a dinâmica
interna das associações, especialmente no que diz respeito à desconfiança dos associados
79
quanto à atuação de suas direções e, também, a relação que mantinham (ou a falta de relação)
com o poder público municipal. A troca de experiências propiciada por essa instância foi
fundamental para a visualização ampla dos diversos fatores envolvidos no sistema municipal
de coleta seletiva e na atividade de beneficiamento primário realizada pelas UTs. A partir daí,
foi possível identificar um aspecto do sistema em operação que necessitava de mudanças: o
DMLU realizava a coleta seletiva dos materiais e destinava uma parte a cada associação,
segundo critérios próprios, em forma de cargas. Como a composição dos materiais recolhidos
não era a mesma em toda a cidade, algumas associações recebiam resíduos considerados mais
nobres, enquanto outras recebiam materiais de baixa qualidade, com menor valor comercial.
Este tema foi debatido de forma intensa no Fórum, resultando em um pacto entre os
coordenadores das associações, no qual se redefiniu a distribuição dos materiais entre as
mesmas. O acordo foi, então, repassado para o órgão público responsável, que reorganizou a
distribuição dos materiais.
Este pacto serviu como uma primeira referência para o estabelecimento de parâmetros
para uma atuação em conjunto. A mudança de uma situação em que os catadores estavam
acostumados a apenas se defenderem dos constrangimentos a que eram submetidos, para uma
outra, em que passam a reivindicar não uma distribuição mais equânime de materiais entre
as UTs como também melhores condições de trabalho, pode ter representado os primeiros
frutos advindos do trabalho prévio que os agentes externos haviam feito para eles. Se a
iniciativa de constituir um novo Fórum havia tido um caráter reativo, principalmente em
virtude de uma condição de dependência aos agentes externos e de exploração econômica por
parte dos intermediários, não se pode menosprezar o caráter “propositivo” que igualmente
passou a envolvê-lo, visto que, até aquele momento, não existia um contato maior entre as
associações que lhes houvesse permitido uma ação coletiva.
Podem, até aqui, ser vislumbradas duas características que se alinham com cada uma
das fases cronológicas previamente sugeridas: a primeira, que diz respeito ao momento em
que algumas associações foram constituídas, se expressou na adaptação dos indivíduos a um
trabalho que forçou relações de convivência e de deliberação coletiva; e a segunda, em que as
associações iniciaram um processo de aproximação através do estabelecimento de reuniões
regulares com a participação de seus dirigentes, onde problemáticas comuns não foram apenas
explicitadas como igualmente debatidas e, na medida do possível, solucionadas.
Até esse momento, no entanto, a atuação sempre esteve bastante calcada na presença
de lideranças, sendo a convocação para uma atuação coletiva ainda pouco provável,
porquanto o envolvimento dos catadores das diversas associações, e da própria comunidade
80
ao seu redor, demonstrava ser um processo gradual, cujo avanço parecia demandar um
trabalho dentro de cada uma das UTs, as quais apresentavam diferenças bastante acentuadas.
Enquanto havia associações que conseguiam imprimir uma dinâmica democrática ao tratarem
dos assuntos comuns, dos processos eleitorais e da definição de planos e metas, gerando um
incentivo maior à participação, outras carregavam um histórico viciado em termos da
presença marcante das mesmas lideranças, que mantinham um regime autoritário na definição
das prioridades, gerando apatia e desinteresse pelo trabalho coletivo. Muitas delas, por outro
lado, possuíam ainda características mistas, onde a dinâmica desses elementos sofria
variações de acordo com múltiplos fatores. Esse trabalho nas UTs passou, então, a se
constituir em uma etapa prioritária, especialmente devido à dinâmica instável que havia no
interior delas, acrescida à pouca familiaridade com o trabalho associativo e à alta rotatividade,
além de outros fatores citados anteriormente.
Essas características tendiam a prejudicar o fomento a uma ação mais coletiva e
criavam um abismo entre as lideranças, que atuavam (e se afastavam) de forma crescente, e os
catadores de sua própria base, que desconfiavam das intenções que os cercavam a ponto de
boicotarem o próprio processo de organização. Em relação a isto, Lorenzetti (2003:12)
comenta que muitos “[t]emiam perder aquilo que haviam conquistado e não ter capacidade
para levar adiante um projeto de maior envergadura”. O fato é que a presença ocasional
dessas lideranças, e o respectivo distanciamento que isso vinha provocando em relação aos
que seguiam trabalhando nas UTs, já não bastava para manter um vínculo capaz de sustentar a
legitimidade coletiva que se almejava para esse processo (na verdade, um dilema histórico e
que, neste processo, não se encerra aqui, visto que acompanha o seu desenrolar até os dias
atuais). A partir dessa constatação, a necessidade de capacitação do coletivo emergiu como
única forma capaz de fazê-lo se apropriar desse processo e, assim, lhe permitir visualizar o
quanto poderia render em termos de melhorias proporcionadas ao conjunto das associações.
Nesse momento, viveu-se o que se está considerando aqui um período de
efervescência “participativa” e “in(formativa)”, quando as UTs viram multiplicadas as ofertas
de apoio e parceria, ocasionadas, em parte, pelo esforço que suas lideranças empreenderam
para dar visibilidade social ao seu ofício e pela conseguinte “descoberta” da existência dessa
categoria e sua incipiente organização. Diversas entidades se mostraram dispostas a
contribuírem para os catadores, especialmente em se tratando daqueles que trabalhavam em
associações. Estas, por sua vez, fazem parte de uma política governamental, de forma que o
desenrolar dos acordos não ocorreu sem que tivesse havido certos tensionamentos. Não
81
obstante a existência de conflitos
43
, os quais nunca assumiram proporções públicas explícitas,
esse período se caracterizou pela realização de uma série de encontros, cursos, capacitações,
etc., que culminou em um seminário que lançou as bases para a formação, em 1998, de uma
futura federação (associação de entidades para um fim comum), fato a ser comentado mais
adiante.
Ainda em 1997, aprovada a decisão, pelo Fórum das Associações de Reciclagem, de
angariar apoio para a realização de cursos de capacitação para os catadores, houve a
realização de um encontro organizado pelo Fórum e subsidiado por parceiros externos, dentre
eles, a FMSS, cujo objetivo foi o de estabelecer diretrizes para a criação de um projeto de
qualificação das UTs. Como conseqüência desse encontro, seguiu-se um curso técnico de
reciclagem de materiais plásticos, ministrado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (SENAI), com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), cuja
metodologia submetia os poucos catadores que o puderam usufruir à incumbência de repassar
os conhecimentos adquiridos ao restante dos associados. Concomitantemente, constituiu-se
uma equipe multidisciplinar com o propósito de ministrar um curso de gestão organizacional,
desta vez envolvendo todos os catadores de todas as associações durante um período mais
extenso.
A mobilização provocada em torno da constituição dos dois Fóruns (“dos Voluntários”
e “das Associações de Reciclagem”), haja vista o contato periódico que os catadores passaram
a experienciar com agentes externos ao universo das associações, parecia favorecer a captação
de recursos para subsidiar capacitações e propiciar condições para a realização de estudos de
viabilidade econômica que, uma vez assentados em bases mais científicas, lhes garantissem
maiores oportunidades de conquistar futuras parcerias e incrementar seus ganhos, à medida
que diversificassem, de forma coletiva, os tipos de produtos finais para comercialização.
Esse momento de intensa capilaridade ajudou a que, durante o processo, fosse
elaborado um diagnóstico de como avançar no ciclo da cadeia da reciclagem a ponto de
ensaiar uma tentativa coletiva de abalar o mercado “oligopsônico” que os oprimia. Segundo
Gonçalves (2003:143), este se caracteriza pela existência de um pequeno grupo de empresas
que compra o material de forma a lhe permitir impor as condições e os preços ao grande
número que o vende. Colocada a problemática nesses termos, é possível se questionar de que
forma esse setor consegue o que Legaspe (1996:137-38) chama de uma “inversão histórica do
43
Lorenzetti (2003) aponta a existência de um conflito político-partidário que se deu entre a municipalidade,
então sob administração do PT, e a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho (FMSS), ligada à RBS, grupo de
comunicação afiliada da Rede Globo no Estado, quando da entrada dessa fundação em um projeto para promover
melhorias em uma das associações de catadores.
82
capital”, onde os valores de mercado passam a ser determinados não pelo possuidor da
mercadoria, mas, inversamente, pelo seu comprador, ou seja, em última instância, como o
setor consegue manipular o controle sobre o que não lhe pertence? Partindo de um estudo
sobre a cadeia de reciclagem de papel em São Paulo, o autor sugere respostas a esta questão:
Primeiro, eles são proprietários (na maioria das vezes) de extensas fontes de
matéria-prima virgens, caso dos fabricantes de papéis, derivados de metais ferrosos
e não ferrosos (alumínio) e o setor industrial do vidro. Por serem proprietários de
gigantescas fontes de matéria-prima virgem ou, ainda, grandes importadores e
consumidores do produto que utilizam para “abastecer” suas indústrias, eles
determinam ao mercado o quanto estão dispostos a pagar pelos produtos reciclados,
seja para os que foram coletados pela Prefeitura, ou para os processados pelo
mercado informal, neste último caso fica para os catadores receberem importâncias
desprezíveis pelo trabalho despendido. Segundo, em virtude da existência de uma
cadeia de coleta de materiais clandestinos, muito bem estruturada e adaptada no
nosso país, que possibilita manter a reserva de produtos reciclados em níveis
estáveis e excelentes para a indústria. A estrutura formada pelos catadores e os
depósitos clandestinos, incorporada ao setor industrial, o condiciona a controlar o
preço do material reciclado do comércio varejista, bem como do comércio
atacadista, permitindo que as indústrias paguem pelo material reciclado menos que
seu custo real e operacional, tanto para os catadores como para a Prefeitura, por
este motivo a Prefeitura se obrigada, inúmeras vezes, a jogar nos Aterros
Sanitários toneladas de materiais reciclados prontos para serem incorporados ao
processo produtivo por não conseguir vendê-los para ninguém.
Como havia evidenciado Birkbeck (1978) ao desenvolver um estudo em relação ao
mercado da reciclagem em Cáli, na Colômbia, os catadores trabalham como se de fato fossem
empregados do setor industrial que utiliza materiais recicláveis como matéria-prima, embora
não se reconheçam e nem sejam reconhecidos como tais. Neste estudo, mesmo que não
tenham sido perceptíveis relações de conflito entre os catadores na “briga” pelo material, o
autor relata que não chegavam a se firmar laços de confiança suficientes para que eles
empreendessem um trabalho coletivo.
Com a identificação do problema maior a ser enfrentado pelas associações como sendo
de natureza econômica, a capacitação técnica e em gestão organizacional serviu para
evidenciar a necessidade de se criarem locais específicos que permitissem a estocagem de um
volume maior de materiais, para que, assim, fossem capazes de interferir, de forma decisiva,
na negociação com os compradores, afinal (...) onde a gente tem uma unidade só, a gente
possa ser menos explorado, porque explorado a gente vai continuar, mas que seja menos
explorado, que a gente consegue agregar preço, juntando material, né, de todos (T.,
MNCR). Parecia ficar claro que somente a implementação de centrais únicas de venda para
um grande número de associações ofereceria a oportunidade de romper, se não com a lógica
do setor industrial, ao menos com a dependência primeira em relação aos intermediários.
83
Uma postura de passividade começava, então, a ser revertida na possibilidade viável
de co-autoria em projetos coletivos, donde o mais significativo foi o desejo em conceber um
pólo alternativo de plásticos, que, a longo prazo, resultaria na construção de diversas micro-
usinas de reciclagem de plásticos, espalhadas de forma estratégica por diversas regiões do RS.
Estas passariam a funcionar como núcleos aglutinantes da produção das UTs ao seu redor e
ofereceriam condições materiais de processar um beneficiamento secundário que, por fim,
agregaria um valor maior ao produto final.
A escolha do material plástico havia se dado tendo em vista a constatação de que,
dentre os demais materiais, era o que mais crescia em volume e em preço dentro das
associações. Vale lembrar que, nesta época, o sistema municipal de coleta seletiva havia
atingido 100% de cobertura. Sem se limitar, no entanto, aos dados das associações, boa parte
do processo foi levada adiante com base em indicadores obtidos em estudos que avaliaram,
muito cautelosamente, os parâmetros de sustentabilidade para um empreendimento
econômico de tamanha envergadura. Neste momento, além dos apoios mais antigos, os
catadores contavam com um leque bastante significativo de novas entidades e indivíduos
que haviam se somado ao processo.
A vontade de pôr em prática tal projeto, que garantiria às UTs dividendos econômicos
correspondentes à comercialização de um material mais bem processado, desencadeou um
longo processo de discussão que se estendeu do âmbito do Fórum para ganhar os espaços das
associações e, igualmente, os espaços comunitários. As lideranças passaram a exercer papel
fundamental ao buscarem pluralizar esse debate para além da esfera técnico-governamental e
ao respeitarem os processos de deliberação coletiva que ocorriam. Sem homogeneizar o
processo como um todo, a dinâmica que se instaurou no interior de cada associação refletiu o
comprometimento que os catadores tiveram para com ele, que se deu ora sob a forma de
formulação de propostas, ora limitado à apropriação de informações. Um fato significativo foi
a reivindicação de que, ao ser implantada, a micro-usina viesse a ser gerida pelos próprios
catadores, a qual emergiu, justamente, das discussões que foram feitas com eles e, junto a
isso, viera a necessidade de mais bem se capacitarem para esse trabalho “mais especializado”.
Cabe recordar aqui o enxergar um outro universo”, mencionado previamente por R.
(FARRGS), que resultou no afastamento de alguns dos catadores que, após terem adquirido
essa capacitação, obtiveram empregos no setor privado. A despeito de contradições, das quais
esse processo não esteve imune, a oportunidade de vivenciarem a concepção de um projeto
com propósitos claros de melhoria para a categoria associada contribuiu com a grande adesão
que se teve, onde se viu serem desenvolvidos aspectos bastante fortes de organização coletiva,
84
principalmente, conforme afirma Lorenzetti (2003:16), se considerada “a história de vida
destas pessoas”.
A proposta de realizar tal empreendimento significou um esforço a mais por parte das
lideranças, sejam agentes externos ou catadores, mas que acabou sendo recompensado com o
desenvolvimento de uma prática associativa mais forte. Através das articulações que,
gradualmente, começaram a ser estabelecidas entre as várias associações contatadas, mesmo
que muitas as tenham feito por um motivo estritamente ligado à comercialização de seus
materiais, foi ficando possível vislumbrar um fortalecimento da categoria na medida em que
questões não restritas à dimensão econômica passaram a se configurar como justificativas
inclusive para a promoção de encontros e eventos, tais como a capacitação técnica, as
discussões políticas e a realização de manifestações culturais e festividades que ajudaram a
reforçar a auto-estima de seus membros. Isso tudo favoreceu a aquisição de uma visão mais
“global” de sua atividade, tanto em termos de negócio quanto em termos de organização
social, contribuindo para que os catadores não se mantivessem preocupados somente com a
associação da qual faziam parte, mas generalizando um sentimento de solidariedade entre as
associações, que redundou, por exemplo, em mobilizações coletivas quando da ocorrência de
incêndios posteriores em algumas delas.
Toda essa mobilização contribuiu de igual modo para gerar uma aproximação dos
catadores com o processo que estava em curso na época, tanto em nível municipal (a partir de
1989) quanto estadual (a partir de 1999), do Orçamento Participativo (OP). Esta aproximação
lhes conferiu a possibilidade de intervir na destinação do orçamento público, especialmente
no que concerniu à viabilização de verbas para a implementação do projeto da micro-usina.
Nos anos em que o projeto esteve em fase de elaboração, as lideranças sensibilizaram um
grande número de pessoas a participarem das assembléias, sendo, ano após ano, conforme
relata Lorenzetti (2003:18), “a categoria organizada que mais representantes consegu[iu] levar
às reuniões” e, desta forma, “prioriz[ou] suas demandas”. Em conseqüência, somando os
esforços do poder público aos esforços das lideranças em envolver os catadores no processo,
foi possível estabelecer uma certa dinâmica de decisões que extrapolou o caráter individual e
corporativo que até então vinha e, de certa forma, continua sendo uma marca dessa categoria.
O processo de implantação de uma primeira micro-usina, a ser sediada no bairro da
Restinga, em Porto Alegre, serviria como um projeto-piloto, capaz de mensurar a viabilidade
de expandir essa experiência, aos mesmos moldes, para o restante do RS. Entretanto, ao final,
essa iniciativa que, além de contrariar certos interesses, sofreu desgastes bastante grandes ao
longo do processo, terminou por não ser implementada. Por não haverem sido coletados dados
85
suficientes, não se entrará em detalhes acerca das possíveis causas que levaram ao fracasso
e à privatização dessa iniciativa. Apresento, no entanto, por considerá-los relevantes, os
argumentos usados por R. (FARRGS) para explicar o porquê da interrupção do processo:
(...) acabou não acontecendo acho que por uma falha muito grande, assim, porque
a categoria dos catadores é uma categoria pouco, pouco instruída, no caso assim,
pouca escolaridade e pouca visão empreendedora, né, como grupos, né! Tem
pessoas, mas como grupo não! E não se investiu nisso mais profundamente, acho
que essa foi a maior falha, porque no momento em que a usina estava quase pronta
e nós [da associação de Dois Irmãos] participávamos da discussão sobre a usina e
a gente se negava a entrar nesse processo, participava sim, mas não se incluindo,
participava porque a gente aqui tinha alguma experiência de moer materiais e
sabe o quanto nós passamos de dificuldades para chegar ao ponto que nós estamos
hoje em termos de capacitar as pessoas, né, para poder realmente chegar com um
material que tenha um mínimo de qualidade (...) E outra coisa era essa gestão toda
porque não bastava ter material de uma associação, tinha que ser muitas
associações, então, administrar todas essas coisas, em termos de direção, em
termos de negócio mesmo, em termos de participação no fornecimento dos
materiais, o aconteceu essa capacitação e deu no que deu, né! No momento em
que a usina começou a ficar pronta, ninguém, as associações estavam assim meio
apáticas em termos de participação, sempre perguntando mas como vai ser? Como
vai ser? Que lucro vai dar isso? Sem conseguir se colocar dentro de pensar junto a
viabilidade daquilo, então, acho que tem um processo um pouco da assessoria
também que centralizou demais assim essas informações e achava tudo fácil.
Em relação a essa tentativa frustrada, vale também ressaltar os argumentos levantados
por Rodríguez (2002) e Bhowmik (2002) para o caso, respectivamente, dos recicladores
colombianos e das catadoras indianas e por Rosenfield (2003) para o caso de uma cooperativa
metalúrgica autogerida da região metropolitana de Porto Alegre, comentados previamente, em
que todos os autores expuseram a importância de uma intervenção governamental no suporte
a iniciativas de empreendedorismo social. Em termos proporcionais, os catadores vêm
representando o segmento de menor remuneração na cadeia da reciclagem em comparação
aos intermediários e às indústrias recicladoras. Em decorrência disto, Martins (2004) afirma
que a reciclagem não deve ficar refém da iniciativa apenas de grandes empresas privadas, sem
uma regulação estatal que redistribua os ganhos entre os diversos setores produtivos
envolvidos. Em relação ao caso aqui mencionado, ficou visível que, enquanto se contava com
a presença do poder público municipal (e estadual), viu-se aflorar um processo amplo de
discussão e debate entre os catadores, que assumiu consistência coletiva justamente no
momento em que eles estavam mais respaldados, quando este processo assumiu os contornos
de “uma política municipal” (LORENZETTI, 2003:19), além de estar contando com a
participação engajada de algumas de suas lideranças e dos agentes externos que os vinham
acompanhando. Porém, é igualmente importante se destacar que este fator não foi suficiente
para garantir êxito no resultado final que o projeto se propunha alcançar.
86
No entanto, mesmo que o resultado não tenha sido aquele que os agentes envolvidos
almejavam, rendeu frutos ao processo de organização dos catadores, que perduram até os dias
atuais. Um desses, o qual se passará a tratar mais detalhadamente aqui, foi a constituição de
um arranjo mais formalizado, previamente mencionado, que veio a se cristalizar em 25 de
novembro de 1998, justamente no momento em que, mais amadurecida, a articulação entre as
associações já tinha se estendido a outras regiões do Estado, com a fundação da Federação das
Associações dos Recicladores de Resíduos Sólidos do Rio Grande do Sul (FARRGS).
Então, em 1998, tinham mais outros grupos, mais outras associações formadas
aqui na cidade e a discussão era a de se construir uma federação, uma entidade
que buscasse esses grupos de Porto Alegre e os outros grupos do Estado todo que
estavam se formando também. Nessa década de 90, foi a década que deu o
arranque, como em Porto Alegre começou o processo de organização dos
catadores com o equipamento e tudo mais para agregar valor, né, então, os vários
municípios aqui do RS também adotaram esta mesma técnica, esta mesma tática de
formar grupos, e então, em 98, a gente começou a discussão para formar uma
entidade que fosse de guarda-chuva aí, de retaguarda para as discussões que se
tinham no ambiente dos catadores. Porque quando foi no princípio era só mesmo o
material que era entregue e os catadores lutam por várias coisas, né, não é
somente o material que é o seu sustento, ou seja, ele não vive disso, (...) então
tem que ter um grupo que faça isso, que somente o catador como pessoa não
poderia, então precisaria ter essa entidade (A., MNCR).
O estímulo para a fundação dessa entidade veio muito do processo que se desenrolou
na Capital (cabe destacar aqui o trabalho de formação que uma liderança religiosa H.
desenvolvia junto a um grupo de catadoras), mas, igualmente, da possibilidade de estabelecer
parcerias intermunicipais, as quais podiam atrair um maior número de apoiadores externos, e
de conseguir melhorias para as UTs no Orçamento Participativo. De certa forma, tanto a
constituição da FARRGS quanto o que teria se tornado a primeira micro-usina de reciclagem
de âmbito regional gerida por catadores, têm histórias que, desde a nascente, dividiram, em
vários de seus momentos, o mesmo leito, embora acabem confluindo para uma foz diversa. O
propósito de formação da Federação foi o de suprir a falta de uma instância jurídica que
garantisse uma gestão comum dos recursos econômicos que viessem a ser destinados ao
projeto, bem como o de oferecer uma certa unidade para a condução deste e de outros
empreendimentos que viessem a se concretizar, de forma a romper, condizente com o objetivo
da micro-usina, a relação de dependência que os mantinha atrelados aos intermediários.
(...) a Federação ela teve assim um pouco o intuito de ser um instrumento jurídico
para começar a busca de recursos para alguns projetos, principalmente a história
da usina de Porto de Alegre, da reciclagem de PET, depois, também, uma outra
usina de PP. Então precisava um pouco este instrumento, né, para viabilizar essa
questão mais empreendedora (R., FARRGS).
87
Isso demonstra o quanto lhes interessava formar uma unidade de representação que se
propusesse a servir ao papel de “(...) gestora dos processos de negociação de preços” (CURSO
apud MARTINS, 2004:135)
44
, mas que, ao mesmo tempo, não ficasse limitada ao âmbito de
execução de um único projeto, afinal, como havia ficado evidente, em 1997, durante a
realização de um seminário que acabou se configurando em um evento pró-Federação, eram
muitos os desafios e os objetivos a serem perseguidos pela categoria (a qual, nesse momento,
já começava a mostrar sinais de organização coletiva), dentre eles:
1) construir um projeto comum; 2) disputar o mercado em expansão; 3) construir
uma política de reciclagem e fortalecer esta atividade; 4) negociar com governos e
empresas; 5) captar recursos; 6) ganhar visibilidade, reconhecimento e respeito; 7)
melhorar a qualidade de vida dos catadores; 8) melhorar a renda de todos; 9)
unirem-se e manterem-se informados; 10) organizar os catadores; 11) criar
instrumentos para buscar benefícios para as diversas associações de catadores
(LORENZETTI, 2003:14).
A origem da FARRGS remonta, na verdade, não apenas ao ambiente que envolveu a
realização desse seminário, mas aos diversos eventos que, a partir da instalação do Fórum das
Associações de Recicladores, foram sendo desencadeados. Ao longo dos anos, expandiu-se a
abrangência desse Fórum mediante a adesão de associações de outros municípios da região
metropolitana até que, em 1998, ele passou a contar com a participação de membros de
associações provenientes do interior do Estado. O relato de R., que, como foi comentado
anteriormente, é membro de uma associação da região metropolitana, ilustra a existência de
um processo em expansão justamente antes da fundação da Federação: (...) havia um fórum,
primeiro foi um fórum municipal e, depois se alastrou um pouco para a região e, depois
convidaram eventualmente pessoas e associações mais distantes para participarem das
reuniões, né, em Porto Alegre”. A constituição dessa rede regional se alinhou com vários dos
objetivos mencionados acima, já que passou a permitir que essa entidade exercesse o papel de
(...) agregar os catadores e fazer com que eles se organizassem entre eles, (...)
entre os galpões de reciclagem, não ficasse só dentro, mas saísse e expandisse para
o lado de fora para que eles pudessem lutar pelos seus direitos e também captar
recursos para que fosse feito principalmente formação para os catadores (...) e
equipamentos para dentro dos galpões, que eles eram muito pobres nesse sentido
de recursos, entendeu! Então foi que foi fundada a Federação (B., sexo femin.,
59 anos, 2º grau incompl., FARRGS).
Na verdade assim, a Federação além de vamos dizer assim, de tentar agregar os
catadores, fazer com que eles façam um processo coletivo juntos, né, enquanto
associação, os grupos, por exemplo assim, quando eu entrei em 98 para a
44
Trata-se de uma documentação produzida em parceria com a FARRGS, a qual o autor não teve acesso (Curso
de geração trabalho e renda, Programa Peti. Porto Alegre: FARRGS, 2002).
88
reciclagem, alguns grupos de reciclagem tinham equipamento sobrando, sem
necessidade de uso, e tinha outros que não tinham nenhum, tem galpões que, por
exemplo assim, a direção da associação vai atrás, consegue, vamos dizer assim,
equipamentos, estrutura para o galpão e a idéia da Federação quando surgiu é que
para esses galpões que nunca conseguiram, embora tendo uma coordenação, mas,
que nunca conseguiram fazer um projeto, sabe! (E., FARRGS).
Como estratégia financeira, a criação da FARRGS serviu para impulsionar parcerias
não apenas com órgãos governamentais, mas que envolveram outras instituições, empresas
privadas, de caráter industrial ou comercial, universidades e demais órgãos da sociedade civil.
Silveira (2002:123) destaca o fato de que essas parcerias foram sendo construídas de modo
diverso pelas diferentes associações de catadores, “não se subordinando a uma lógica única do
‘projeto como um todo’”, o que, para o autor, é um forte indicativo do potencial de atuação
autônoma que a experiência permitiu desencadear.
No pêndulo entre uma atuação associativa mais isolada e, ao mesmo tempo, um desejo
de uma cooperação coletiva, capaz de os aglutinar numa unidade e, com isso, ultrapassar,
como destaca Lorenzetti (2003:11), “tendências corporativas até hoje encontradas em algumas
associações”, o potencial autônomo do processo pode ser questionado se considerados os
laços de dependência estabelecidos com outros segmentos sociais e também no que diz
respeito à participação dos catadores, os quais ainda não pareciam, neste momento, o estar
protagonizando. Afinal, segundo comenta uma das entrevistadas, que foi sua coordenadora
geral durante a gestão 2002-05, a fundação da FARRGS se deu em decorrência da presença
de agentes externos:
(...) eu costumo dizer que a Federação ela não surgiu da idéia dos catadores, na
verdade, (...) assim, a Federação surgiu de uma liderança, H., que era
coordenadora da Federação, ia se candidatar à coordenação da Federação e um
técnico, F., que hoje ele está no SESC, na época ele era técnico contratado pela
Federação, e a idéia desse técnico e dessa liderança era formar uma instância
que pudesse ir atrás, vamos dizer assim, dos direitos dos catadores, né, porque na
verdade assim, tinham 14 associações no Estado em 1998, cada uma lutava por si
com muitas dificuldades, e a Federação vinha para somar pelos direitos tanto
no poder estadual como no municipal e parcerias, né, então, na verdade, foi pra
que a Federação fosse um instrumento dentro da cadeia produtiva do plástico e
pudesse fazer uma integração entre os catadores (E., FARRGS).
Pelo relato, fica claro que mesmo que o trabalho da Federação estivesse sendo feito
com a presença dos catadores, ainda lhes era reservado um papel coadjuvante no que concerne
à elaboração de uma proposta de condução da entidade, que, segundo comenta R.
(FARRGS), “naquela época era uma pessoa que pensava praticamente tudo, a direção ficava
muito à margem”, o que fazia com que, para ele, a entidade fosse comandada demais por
89
assessores. De fato, H. acabou sendo designada para a coordenação geral, eleita para o
período de gestão que correspondeu de novembro de 1998 a agosto de 2002 (gestão esta que
foi prematuramente interrompida devido ao seu falecimento em março de 2002, cujas
conseqüências advindas serão tratadas mais adiante). Na opinião de E. (FARRGS), mesmo
que ela “(...) não catasse, mas ela era uma liderança que buscava não para a Rubem
Berta, mas para todos os galpões, recursos, projetos, discussão com o poder público”. A
dinâmica impressa por essas duas lideranças externas, que estiveram envolvidas de modo
direto na formação da Federação, acarretou, mesmo que não fosse essa a intenção, em uma
certa centralização das decisões.
Esse histórico de formação acaba por se refletir diretamente nas formas diversificadas
pelas quais a entidade passou a ser vista por muitos catadores. Por um lado, para aqueles que
não compartilham do modo como ela foi fundada e, particularmente, do modo como ela vem
sendo historicamente conduzida, esse passado contribui para perpetuar impressões de
desconfiança, expressas na idéia de que a entidade possa estar infiltrando indivíduos que ali se
encontram para mascarar interesses de outros segmentos sociais. O depoimento abaixo, de um
catador que pertence a outro grupo, é elucidativo acerca desse posicionamento:
(...) na base da Federação, na FARRGS, tem pessoas que são empresários, eram
assessores de governo, formaram uma microempresa, tudo, compraram
equipamento, pegaram subsídios públicos também e montaram uma empresa
privada, ao longo do processo viram que era uma vantagem constituir uma
associação e fechar o mero de associados...então tem um grupo pequeno de
associados que tem uma indústria que beneficiam, tem uma renda elevada, ...são
os recicladores, não tem a menor identidade com o grupo de catadores...são
trabalhadores também, mas são trabalhadores com outra perspectiva,
né...perspectiva de ser uma espécie de microempresários industriais...eles são
empresários mais solidários, eles partilham entre si, mas entre si que é um pingado
de gente, entre si é um grupo familiar, um pouquinho mais, bota uma que outra
pessoa, (...) e eles fazem a defesa ideológica disso aí, né (G., sexo masc., 30 anos,
2º grau incompl., MNCR).
Por outro lado, da parte de muitos de seus associados, reside uma dose bastante grande
de indiferença, de descrença em relação aos meios que a Federação, de fato, usufrui para
poder reverter situações precárias em melhorias para as associações que são filiadas. Isto fica
evidente nas queixas recorrentes que as lideranças evocam no que concerne à dificuldade de
renovação de quadros, dificuldade esta que, segundo um deles, é fruto da própria falta de
recursos para sustentar o trabalho da coordenação, e à escassa participação dos catadores nas
assembléias, fruto, segundo outra entrevistada, da falta de consciência em relação à
importância do processo, que para sua ex-coordenadora geral, já começou às avessas:
90
(...) o problema da FARRGS hoje é a renovação de quadros, não conseguimos
renovar, eu até acho que se tivesse recursos teria mais pessoas disponíveis para..só
que quando a coisa é mais difícil!! Então, quando a gente pergunta assim: -
Queremos a FARRGS? – Queremos!...todo mundo: – ah a FARRGS não pode
terminar!...Quem vai assumir? quem é que vai contribuir? Contribuir com 1 real
por mês, por pessoa, é uma dificuldade, né! (...) das associações você não consegue
arrancar praticamente nada. (...) Então a gente não consegue criar nem um fundo.
Bom, mas então vocês querem a continuidade, mas as coisas não caem do céu,
alguém tem que andar de ônibus, tem que comer, tem que viver, né. (...) daí fica
aquele dilema assim: s não contribuímos porque a Federação não faz nada, mas
a Federação não consegue fazer nada porque não tem recurso! Então, o que vem
primeiro, o ovo ou a galinha? (R., FARRGS).
Os desafios, os maiores desafios que a gente tem é a integração dos catadores,
entendeu, é um dos desafios, (...) e também fazer com que o catador acredite nele
mesmo, né, que ele tem poder, que ele tem força, e fazer com que o catador
participe, é muito difícil o catador não...ah vai tu! ou vai qualquer um! Entendeu,
assim, não tem consciência! (B., FARRGS).
(...) ela o foi, vamos dizer assim, pensada pelos catadores, e porque que eu digo
isso, porque, na verdade, os catadores vêem a Federação como se fosse
uma....ah...um outro...tivesse num outro patamar que não fosse uma coisa deles,
então, na verdade assim, se o processo fosse construído de baixo para cima, com a
decisão, com os custos que iria ter essa entidade, o tempo, né, os objetivos, a
missão, e tudo, né, os catadores se apropriariam disso, mas como foi uma demanda
de cima para baixo...hoje eles reconhecem, participam do processo todo, mas é
muito complicado, a gente patina muito na questão da Federação (E., FARRGS).
com relação ao poder público, o conjunto das lideranças entrevistadas demonstrou
que o processo de constituição da FARRGS fez com que os governantes (...) sent[issem] o
peso, né, dos catadores, sent[issem] o peso da organização e, assim, não mais tivessem
razões para diluir o debate entre as UTs, que a partir de então podiam (...) discutir com
uma entidade que representa o todo(B., FARRGS). Por ser uma entidade que congrega um
número grande de associações no RS, os órgãos públicos “(...) necessitam da figura da
FARRGS, para quê? Para que eles também consigam junto, é mais uma entidade a fazer
projetos, (...) então a gente tem um bom relacionamento, até porque a manutenção de uma
boa relação com eles, a qual faz (...) com que a gente seja visto, reconhecido, entendeu!” (B.,
FARRGS), pode se reverter em possibilidades de acesso a recursos financeiros. O problema,
segundo B. (FARRGS), é o de que os catadores são chamados pelo poder público para
discutir questões que lhes interessam somente (...) quando tem algo que os beneficie e,
assim, o recurso “(...) quando chega para o catador, já chega bem pequenininho, né!”.
Essa, no entanto, não foi uma situação vivenciada da mesma forma em todos os
governos, que (...) uma das coisas que a gente percebe é que em alguns governos nós
tivemos mais espaço(E., FARRGS), ou seja, “[t]em prefeituras que tu tens um acesso às
informações e acesso ao diálogo, tem outras que a gente não tem reconhecimento”, o que
91
pode variar muito, segundo B. (FARRGS), em função da própria relação que se estabelece
entre os representantes do poder público e os catadores que estão à frente da Federação,
considerando que a (...) Federação não é a entidade, mas também as pessoas que fazem
parte da entidade”. Entretanto, mesmo que haja (...) a possibilidade da gente fazer algum
projeto, no caso assim com o governo”, esta parceria com o poder público tem pouco se
concretizado porque (...) enquanto a gente tiver dívidas, entidade endividada não consegue
recursos do Estado, nem federal, nem estadual, nem municipal” (R., FARRGS). A questão do
endividamento da Federação será mais bem abordada na próxima fase.
Somada à impossibilidade temporária de firmar parcerias com o poder público, a qual,
malgrado as limitações impostas, não interrompe outras formas de apoio, E. (FARRGS) relata
as dificuldades que surgem no que concerne à troca constante de diretores do DMLU e à visão
político-partidária com que a problemática do lixo é muitas vezes abordada e que acaba
desconsiderando, ou ainda menosprezando, o que já foi implementado:
(...) na verdade assim, quando fala em resíduos, todo mundo quer dar pitaco, sabe,
todo mundo tem mil idéias maravilhosas, mas não leva em conta o que existe.
Por exemplo assim, o antigo diretor do DMLU, (...), que agora mudou de novo o
diretor, deu várias entrevistas nos jornais, televisão, dizendo que iria implantar
mais 14 associações no governo do Fogaça [prefeito de Porto Alegre, eleito para a
gestão 2005-08 pela coligação PPS/PTB] em 4 anos para acabar com o
desemprego, que, na verdade, existem 14 galpões no município e que estão
quase fechando!!! Então, tu tens que manter e melhorar o que existe, né, e vai
melhorando, isso não quer dizer que tu não faças as coisas, mas melhora as
condições do que existe, pra quê que tu vais construir mais 14 galpões se tem
galpões caindo aos pedaços? (...) por exemplo assim, em Porto Alegre, embora a
coleta seletiva seja referência nacional, né, tem problemas, não é porque é do
partido anterior que é 100% o!! Tem sérios problemas mesmo, hoje a gente
costuma dizer que Porto Alegre perdeu o controle da coleta seletiva, sabe, mas
isso, esses governantes que estão aí agora, não admitem! Sabe, o problema é do
governo anterior, né! E a gente vai fazer outras coisas para mostrar o que nós
vamos fazer, não o que existia, e é muito complicado, sabe, é muito
complicado porque quem sai perdendo são os catadores, são as organizações.
Mesmo que a Federação não se intitule como partidária, destacando isto até mesmo em
seu estatuto, onde consta “(...) que os coordenadores não podem, vamos dizer assim, se deixar
participar de debates, coisas políticas”, E. (FARRGS), pessoalmente, não se isenta de tecer
alguns comentários que parecem enaltecer alguns aspectos no que diz respeito ao modo como
as gestões municipal e estadual foram conduzidas em anos anteriores (o que, de certa forma,
pode expressar uma certa gratidão a quem deu início ao processo) e aspectos negativos no que
concerne ao modo como o são atualmente, lhes revertendo, segundo ela, desde oportunidades
de acessar recursos públicos e de serem “lembrados” até de serem simplesmente “ignorados”:
92
(...) Em anos anteriores, o pessoal precisava de um galpão, se organizava e ia para
o orçamento participativo estadual demandar um galpão de reciclagem, precisava
de equipamentos, demandava no orçamento participativo, hoje, sabe, com essa
troca de governo aí, e assim, a Federação, os galpões de reciclagem, eram,
vamos dizer assim, eram visitados, lembrados, sabe, para te dizer hoje assim, com
esse governo que está aí, nada contra, mas pra te dizer assim, hoje, o nosso
governador Germano Rigotto [governador do RS, eleito para a gestão 2003-06 pelo
PMDB], ele vai a Montevidéu conhecer uma cooperativa de reciclagem, sendo que
no estado tem 52 associações organizadas, que tem uma Federação, e ele vai e
depois volta aqui e uma entrevista fantástica [em tom irônico] que não conhece
experiência melhor, sabe!! [em tom de indignação] então, assim, está faltando é
vontade política de saber o que existe no estado, nos seus municípios, eu digo a
mesma coisa para as prefeituras, tem prefeituras que, independente de ser A, B ou
C fazem um ótimo trabalho e dão continuidade ao trabalho que existia, então acho
que isso tinha que prevalecer e não prevalece, sabe! (...) no governo anterior tinha
fóruns que a Federação participava a nível estadual e a nível municipal. Hoje se os
catadores quiserem discutir as políticas municipais, a questão da coleta seletiva,
melhoras, ou os galpões se reúnem à parte e chamam a prefeitura, porque se
esperar pela prefeitura não acontece nada. (...) e o retorno do que é tirado da
demanda ou demora muito ou simplesmente engavetam lá e acabam esquecendo.
Sobre a relação com o DMLU, é interessante observar, como havia salientado Martins
(2004), que a referência sobre a criação da entidade é apontada pelo órgão tão-somente como
uma possibilidade que a categoria teria de intervir a seu favor nas transações econômicas
ocorridas durante a venda dos materiais, não havendo menção à capacidade de organização e
capacitação dos trabalhadores para outros fins. Em um estudo que se propôs a analisar a
viabilidade da reciclagem feita nas UTs de Porto Alegre e região metropolitana (TURRA;
ETCHEPARE & KINDLEIN, 2002:7) e em um relatório que se propôs a abordar distintos
aspectos das políticas públicas de gestão ambiental em cidades do mercosul (FAGGETTI,
2002:107), os autores igualmente reforçaram essa concepção ao limitarem a constituição da
FARRGS ao objetivo de “fortalec[er] a categoria na negociação da venda do material às
indústrias”. Entretanto, a partir do pouco que foi comentado acima acerca dessa entidade
parece ser possível começar a desconstruir a visão de querer enquadrá-la como sendo fruto de
uma proposta única, quando se viu, e os relatos abaixo podem ainda reforçar este aspecto, que
o processo que se instaurou contou com a participação dos catadores e lhes permitiu
vislumbrar muito além do que o trabalho que eles executam pode, à primeira vista, representar
para si, em termos de ganhos financeiros, e para a sociedade, em termos de ganhos
ambientais:
(...) na verdade assim, porque a própria questão assim do nosso trabalho que não é
receber o lixo, triar, vender e simplesmente, né, o nosso papel enquanto
lideranças, enquanto mulheres, homens, né, na sociedade, né, discutindo, propondo
idéias, né, então eu acho que teve, posso dizer assim que teve um crescimento
muito grande nisso (E., FARRGS).
93
(...) hoje a gente está unido (...) nós somos um grupo de catadores, não estamos
batalhando para um, estamos batalhando para todos, discutindo políticas que
beneficiem o catador, mas que sejam favoráveis a todos e não a um pequeno grupo
(...) para que além de tu ganhares o teu dinheiro ali dentro do galpão, que tu
também te sintas íntegro! entendeu, uma pessoa íntegra, que ele é digno duma boa
moradia, que ele é digno duma saúde, que ele é digno de um atendimento como
qualquer pessoa, entendeu...ser cidadão! (B., FARRGS).
Antes de se iniciar propriamente a próxima fase cronológica, é importante que se teça
alguns comentários acerca do posicionamento que a FARRGS adota quanto à escolha de um
dos termos: catador ou reciclador. A princípio, este último poderia parecer mais condizente
para se referir à entidade, que foi assim que ela se autodenominou desde a fundação.
Entretanto, mesmo em se tratando de um termo que encontra eco em vários trabalhos que o
utilizam para se referir àqueles que exercem suas atividades exclusivamente em UTs, público-
alvo da FARRGS, nas entrevistas com algumas de suas lideranças, ficou claro que não há uma
identificação com um ou com outro em particular, cuja diferença é apenas terminológica: “(...)
não temos essa, ainda não definimos, a gente deixa para cada um ter a sua autonomia de se
chamar ou catador ou reciclador” (B., FARRGS).
Na verdade, o termo catador será consagrado com a sua legalização como ocupação
em 2001, cuja escolha foi fruto de um acordo feito entre representantes de vários estados do
país que consideraram o termo reciclador impróprio por ter uma conotação empresarial: (...)
a gente veio conhecer depois no nosso congresso essa terminologia reciclador que, na
verdade, reciclador, quem faz é a indústria, que faz o processo de lavagem, moagem, faz,
na verdade, o processo industrial, e entramos num consenso, de catadores de materiais
recicláveis”, mesmo assim, acrescenta em seguida: (...) embora exista essa terminologia (...)
ninguém determina: - tu tens que a partir de agora ser catador de papel! Sabe, isso vai de
cada um (E., FARRGS). Quanto ao termo ainda constar no nome da Federação, E.
(FARRGS) comenta que não houve mudança devido aos trâmites burocráticos, porque, para
ela, a gente se enquadrou, e não justifica empreender um processo desgastante
considerando que “(...) mudou a forma de se apresentar, mas em vista não mudou nada”.
Apresentar-se como catador ou reciclador, mesmo que possa parecer aparentemente
“indiferente”, de fato não o é para todas as lideranças. Vê-se que o último termo carrega uma
carga simbólica positiva em termos de ganhos subjetivos advindos de sua utilização como um
meio de driblar a vergonha e a desvalorização, o que faz com que R. (FARRGS), pertencente
à usina apontada por Martins (2004:41) como sendo de “maior produtividade e melhores
resultados econômico-financeiros no Rio Grande do Sul”, sugira aos seus colegas de trabalho
que o adotem: Não falem que vocês trabalham no lixo. Falem que vocês estão trabalhando
94
na reciclagem! A partir daí, se as pessoas perguntarem ‘o que é isso’, vocês terão condições
de falar sobre o que fazem. Assim podem superar, aos poucos, o preconceito (ADAMS,
2005:25). Para complementar a discussão acerca do uso desses termos, outros comentários
serão tecidos mais adiante, no momento de expor o posicionamento sustentado pelo MNCR.
A partir das informações e dos depoimentos citados acima, espera-se ter sido possível
retratar o processo de constituição dessa entidade, que, na época, convergiu os esforços de
catadores provenientes de diferentes UTs, bem como ter sido possível introduzir algumas de
suas características e dos impasses os quais ela vem enfrentando. Na próxima fase, dar-se-á
ênfase à sua entrada no cenário nacional e às ambigüidades resultantes da emergência de um
novo coletivo, o qual, de início, se propôs a dividir com ela o espaço de organização dos
catadores, embora o desenrolar dessa relação tenha se dado de forma mais conflitante
(E.,FARRGS) do que, a princípio, poderia se esperar, já que, com o tempo, “o grupo começou
a se rachar” (A., MNCR).
A terceira fase, de 2000 a 2003, teve como marco fundamental a inserção da FARRGS
no processo de construção de um primeiro congresso nacional de catadores, cuja mobilização
que o antecedeu propiciou as condições organizacionais minimamente necessárias para que,
durante o evento, fosse germinada a idéia de um novo coletivo: o Movimento Nacional de
Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). A Federação, ela participou da fundação do
Movimento, fez toda a articulação, foi uma das entidades que fez a articulação para que
acontecesse o Congresso e dali surgiu o Movimento(R., FARRGS). A articulação prévia ao
Congresso teve seu ponto alto durante o Encontro Nacional de Catadores de Papel,
realizado em Belo Horizonte, em novembro de 1999, onde foi lançado o desafio de sua
construção. Em entrevista com A. (MNCR), ele relatou que este encontro contou com (...) a
participação da entidade Federação, que, naquela época, era a que representava todos os
catadores aqui do Estado, e ali a gente decidiu junto que iríamos fazer esse Congresso, então
marcamos data, né, para acontecer em 2001!”.
Essa iniciativa, contudo, não foi pioneira, que A. (MNCR) comenta que, em 1992,
houve um seminário realizado em Santos-SP, onde se havia igualmente cogitado a realização
de um evento deste porte. Porém, na ocasião, pelo encontro não ter reunido (...) a força
máxima dos catadores do RS, (...) participou um técnico , mas sim uma
predominância de “(...) em torno de umas 15 entidades que eram de apoio para os catadores”,
o Congresso (...) foi largado de mão, porque como a representação era muito pouca, não
tinha como tocar isso”. Transcreve-se, a seguir, um trecho do discurso proferido por F. na
audiência pública que veio a ocorrer pela ocasião do Congresso, com a Comissão de Direitos
95
Humanos da Câmara dos Deputados, no qual ele reconstitui, de forma sucinta, o processo que
antecedeu a realização do Congresso, ressaltando a importância dos encontros promovidos
pelos agentes religiosos para que os próprios catadores chegassem a ter a iniciativa de
demandá-lo:
(...) Em 1992, numa atividade desenvolvida pelo Fórum de Estudos da População
de Rua, iniciamos o trabalho de reconhecimento de uma categoria considerada
marginal, vagabunda, que nada tem a propor à sociedade. A partir dessa primeira
experiência, desse seminário de estudos, foram organizados outros dois seminários,
o terceiro deles em Minas Gerais, Belo Horizonte, em 1999. No seminário de 1999,
em que foram realizados estudos sobre a realidade da rua, estavam presentes vários
catadores de diversos estados. Os próprios catadores, naquela oportunidade, nos
desafiaram se seria possível construir um espaço, um momento nacional de
encontro da população de rua e dos catadores (CÂMARA, 2001).
Nos anos seguintes, para garantir uma frente de mobilização que tivesse legitimidade
nacional e que resultasse também em uma ampla adesão dos catadores e moradores de rua ao
evento, o país foi mapeado de modo a identificar as entidades que, desde os anos 1980,
estiveram apoiando esses segmentos
45
. Selecionadas as entidades, elas, junto com algumas
associações de catadores que já tinham sido formadas pelo país, ficaram responsáveis pelo
trabalho prévio de divulgação e de viabilização do Congresso. Pela distribuição geográfica, a
região sul ficou a cargo da FARRGS, porque (...) Paraná e Santa Catarina não tinham
representação nenhuma nessa instância [Seminário de 1999]” (A., MNCR), o sudeste a cargo
da COOPAMARE e da OAF, exceto Minas Gerais que foi mobilizada pela ASMARE e pela
Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, enquanto as regiões norte, nordeste e
centro-oeste foram articuladas pela Cáritas brasileira junto com a ASMARE (CATADORES,
2002). O sucesso obtido nesse trabalho de articulação foi devido em muito ao que havia se
dado na primeira fase, em que ocorrera um processo de agrupamento dos catadores, para o
qual estes haviam igualmente contado com o apoio externo daqueles que (...) passaram a
organiz[á-los], alguns municípios, ou os próprios catadores mesmo se juntaram com o apoio
de algumas ONG’s, ou algumas igrejas começaram esse processo de organização, formar
associação e cooperativas para os catadores” (A., MNCR).
É importante, assim, que não se descole a realização desse Congresso dos vários
acontecimentos que o antecederam, a maioria deles impulsionada por agentes governamentais
e religiosos localizados em três Estados em particular SP, MG e RS –, que contribuíram
45
Com relação à proximidade dos catadores com os moradores de rua, A. (MNCR) comenta que (...) tem uma
maioria dos catadores que moram na rua, que o tem casa e tudo mais e acabam indo pra rua e o único
trabalho alternativo é catar! Então, a gente atua junto com os moradores de rua. A parte mais forte dessa
vinculação com os moradores de rua é em São Paulo e Belo Horizonte, que tem a Pastoral de Rua”.
96
para que esse processo assumisse, tão rapidamente, uma outra dimensão. Se, em meados dos
anos 1980 e ao longo da década de 1990, um processo ainda incipiente de organização havia
ficado restrito a horizontes mais “locais” (...) naquele tempo a gente pensava no local,
ou seja, no território, né, como tipo o município só, ou s éramos isolados(C., MNCR);
(...) recebia o lixo, ainda era chamado lixo naquele tempo, recebia o lixo e não tinha
mais nada assim em relação à comunidade, né, não sabia de mais nada, vivia em relação
ao trabalho” (A., MNCR) –, cujos esforços dos agentes “animadores” ainda eram para ensaiar
tentativas de lhe infundir um caráter “empreendedor”; a realização, de 4 a 6 de junho de 2001,
em Brasília, do I Congresso Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis
46
veio para
imprimir contornos mais políticos ao processo, especialmente no que diz respeito à
constituição de uma organização social que lhes facilitasse o acesso a benefícios legais.
Afinal, conforme relata F., que, na época, seguia assessorando a FARRGS e acompanhava de
perto as dificuldades que esses indivíduos encontravam para se “enquadrarem” legalmente:
“[O]s homens acaba[vam] se registrando na categoria de serviços gerais e as mulheres como
empregadas domésticas, o que não tem nada a ver com a profissão” (JUNGES, 2001).
(...) na ocasião lá do I Congresso Nacional, nós víamos que não tinha como
encaminhar um processo de aposentadoria para esse trabalhador, uma porque era
muito precário, não tinham pagado o INSS a vida inteira, não tinham feito a
contribuição social e outra porque não existia enquanto profissão, ou seja, se
aposentar como o quê? Como auxiliar de limpeza! Limpeza do que? De uma
firma? Não era de uma firma, de um lixão? Limpeza de lixão??? Limpeza de rua?
Não era! Então, não se aceitava a idéia de sequer uma pessoa que tivesse mais de
sessenta e cinco anos poder buscar algum tipo de benefício social mesmo que ela
tivesse trabalhado cinqüenta anos da vida dela naquilo ali (G., MNCR).
(...) a partir dali a gente viu a necessidade, viu que vários grupos tinham muitas
demandas, alguns não tinham conquistado nada, viviam no lixão e tudo mais, nem
sabiam qual era a sua profissão, não sabiam que aquilo era trabalho, aquela coisa
toda, né, várias pessoas muito sofridas, alguns eram indigentes, não tinham nem o
seu nome reconhecido e tudo mais. rias pessoas relataram que várias pessoas
tinham morrido no lixão porque as máquinas do lixão vinham e passavam por
cima, ficavam enterradas ali mesmo, nem eram tirados os corpos e tudo mais. Não
tinham discussão nenhuma com as suas prefeituras, nos seus municípios e como
tinham vários grupos avançados, como o exemplo aqui de Porto Alegre, Belo
Horizonte e São Paulo, tinham grupos, associações reconhecidas pela prefeitura e
tudo mais, a gente viu que tinha que formar um grupo, ou sei como é que se diz,
uma entidade, que fosse representativa para todos os catadores em nível de Brasil.
Uma entidade não poderia ser porque o que vinha, a luta que vinha mais adiante
não é uma luta mais institucional, mas uma luta social, que era de valorização e
reconhecimento dos catadores (A., MNCR).
46
Segundo F. (CÂMARA, 2001:12), esse congresso, realizado durante a Semana de Meio Ambiente, contou
com a presença de catadores provenientes de 18 estados brasileiros, totalizando cerca de 1.600 congressistas, dos
quais 91,8% eram catadores, diferentemente do que acontecia em encontros desse porte, onde costumeiramente
havia “muito mais técnicos, assessores e agentes presentes do que o próprio sujeito da atividade”.
97
Tanto no depoimento de alguns dos entrevistados durante a realização do trabalho de
campo quanto em artigos (MOTA, 2005), livros (CONCEIÇÃO, 2005; GONÇALVES, 2003)
e publicações diversas (CATADORES, 2002) é bastante evidente a importância que esse
congresso assumiu ao permitir que essas pessoas muito sofridas” começassem a vislumbrar a
possibilidade de se constituírem como um coletivo organizado em nível nacional
47
, capaz de
lutar pelo reconhecimento de uma atividade que vinha sendo exercida muitos anos.
Afinal, mesmo que os catadores, individualmente, estivessem movimentando mais de 50
anos o recém-descoberto mercado da reciclagem, somente a estruturação de um coletivo lhes
parecia, de fato, significativo o bastante para mostrar ao poder público o quanto eram capazes
de participar de forma ativa no ciclo de limpeza urbana das cidades brasileiras e, assim, virem
a conquistar a posição de “co-gestor” (G., MNCR) nos programas de coleta seletiva.
A incorporação de demandas com caráter mais político-legal à pauta de reivindicações
acabou por revelar outras dimensões que não somente aquelas que, como de praxe nesses
eventos, vinculavam o valor da atividade exercida por eles ao âmbito ecológico e à
capacidade de geração de renda para grupos socialmente excluídos, sem fazer menção alguma
à autoridade que lhes poderia ser investida de influenciar sobre os rumos de sua “prestes a se
tornar” ocupação. Mesmo que a dimensão central adotada por estudos que fazem menção à
exclusão social seja, basicamente a econômica, e, mais precisamente ainda, a do mercado de
trabalho, Nascimento (1998) reforça que a dimensão política é igualmente essencial ao
processo de exclusão, pois a ausência de direitos coloca os indivíduos em situação de
precariedade e, sobretudo, de dificuldade em mudar sua condição econômica.
Ao apresentar uma ntese sobre o potencial da sociedade civil organizada para reagir
frente às múltiplas formas de exclusão social a que estão submetidos, Scherer-Warren
(2004:59) afirma que os trabalhadores informais, aqueles que enfrentam situações de
desemprego ou vivenciam uma condição de subcidadania, executando atividades consideradas
no limite da legalidade, mas que apresentam alguma regularidade ou continuidade em suas
“táticas de sobrevivência”
48
, podem vir a formar manifestações de rua – ou a chamada
47
Rodríguez (2002) comenta um caso semelhante na Colômbia, embora com dez anos de antecedência, que foi a
criação da Associação Nacional de Recicladores (ANR) que entrou em funcionamento em 1991, cuja fundação
se deu a partir da realização do I Encontro Nacional de Recicladores. O risco de privatização da prestação de
serviços públicos, especialmente o serviço de recolhimento de lixo em Bogotá, foi um dos motivos que levou os
recicladores a se organizarem em uma rede nacional, descentralizando-a em representatividades regionalizadas.
48
Em um estudo realizado por Natalino (2003), o autor revelou que os “carrinheiros” catadores que trabalham
individualmente puxando seus carrinhos – desenvolvem “táticas de sobrevivência” capazes de reverter um
estigma negativo para com o seu ofício, as quais dependem justamente da forma com que eles estabelecem a
relação com os supostos “clientes”, indivíduos com os quais firmam um acordo verbal que lhes permite
assegurar que o material em questão seja doado somente para eles. No entanto, tal situação se limita a ser uma
estratégia individual que não chega a se configurar em um formato, reativo ou propositivo, de caráter coletivo.
98
“política de rua”, conforme descrita por Asef Bayat –, se organizando através de redes locais
constituídas por indivíduos que compartilham uma mesma situação de precariedade.
Em outro trabalho, porém, Scherer-Warren (2003:84) argumenta que esses atores o
se limitam às redes passivas às quais a noção acima faz referência, mas podem vir a se
articular através de redes politicamente ativas, não se restringindo, portanto, à política de rua
meramente reativa, mas sendo “partícipes de um movimento de massas politizadas, com
críticas à sua condição de subcidadania, estratégias de ação politicamente construídas e com
uma utopia de transformação”. Segundo consta em uma publicação que se seguiu ao
Congresso, editada pelo próprio Movimento em parceria com o Fórum Nacional de Estudos
sobre a População de Rua:
Nesta nova visão dos homens, mulheres e crianças que viviam e trabalhavam nas
ruas, não havia mais espaço para as práticas tradicionais que tratavam o catador e
morador de rua como cliente eterno da assistência social. No lugar da caridade,
entrava em cena o reconhecimento destas pessoas como cidadãos de fato, com
sonhos e formas de organização distintas. No lugar do drama solitário, também,
entravam em cena as propostas coletivas que apontavam para a ruptura de velhos
modelos e o nascimento de um novo movimento urbano (CATADORES, 2002:10).
No trecho acima, pode-se verificar uma tentativa desse coletivo de se afirmar deixando
para trás uma situação de eterna” assistência, cuja importância lhes era dada apenas como
“demanda para o serviço de assistência social” (STREB & BARBOSA, 2004:17), para dar
lugar a uma luta social que desembocasse no comprometimento do Estado e da sociedade na
construção de parcerias com as associações/cooperativas, de forma a garantir o que para eles
era visto como reconhecimento de sua condição de cidadãos. Durante a realização do
Congresso houve, de fato, uma grande mobilização por parte das lideranças presentes em
torno da aquisição de um status legal para a sua atividade, pela sua inclusão em programas
municipais de coleta seletiva, pela criação de linhas de financiamento que permitissem
equipamentos próprios às associações/cooperativas e pela criação de mecanismos tributários
que incentivassem a indústria nacional da reciclagem (GONÇALVES, 2003).
Visto como um desdobramento da fase anterior, o Congresso se prestou a ser um
momento de reivindicação especialmente para aqueles que trabalhavam de forma associativa,
bem como de incentivo para que o processo de reciclagem fosse “desenvolvido, em todo o
país, prioritariamente, por empresas sociais de catadores” (CATADORES, 2002:18), ou seja,
incorporando aqueles que permaneciam nas ruas. Esta última citação faz parte da “Carta de
Brasília” que foi entregue ao Congresso Nacional, junto a um anteprojeto de lei que requeria a
regulamentação da profissão. Esta Carta revelou o empenho dos participantes em articular a
99
importância ecológica que já virou quase um slogan” dessa atividade, fato que será retomado
mais adiante neste trabalho, às dimensões social e econômica, expressando-as na necessidade
de que os projetos do poder público viessem a ser, de fato, construídos com os catadores. As
reivindicações tratavam eminentemente da obtenção de uma condição legal que fosse capaz
de assegurar as conquistas em diferentes esferas, através da legalização da ocupação em vel
nacional e de legislações municipais que garantissem a inclusão dos catadores em sistemas de
coleta seletiva, afinal, como salientou F., “(...) [e]liminam-se os lixões, proíbe-se os catadores
de catarem sobre os lixões, mas não se dialoga com o catador sobre a possibilidade de ele ser
um gestor dessa atividade” (CÂMARA, 2001).
O reconhecimento legal da ocupação, “(...) uma das bandeiras de luta” (E., FARRGS)
e que serviu de maior motivação para a realização do Congresso, terminou, no ano seguinte,
se efetivando
49
, mesmo que não da forma como se almejava (...) porque se eu enquanto
catadora quiser pagar o meu INSS, é a mesma coisa, eu vou pagar o mesmo valor que um
autônomo e a idéia se ela tivesse regulamentada, era ter um custo abaixo do autônomo pra
gente poder pagar
50
(E., FARRGS). Esta conquista se deu, em grande parte, devido à
“pressão política” exercida não durante o evento, mas que continuou a ocorrer nos meses
seguintes através da ação de alguns dos 30 membros eleitos para compor a Comissão
Nacional do Movimento, que se comprometeram em seguir realizando reuniões e articulações
com deputados, senadores e representantes ministeriais.
Para G. (MNCR), um dos escolhidos para compor a Comissão Nacional, a legalização
da ocupação (...) signific[ou] politicamente muitas coisas, né, reconhec[eu] que décadas
existia esse trabalho não pago, não remunerado”, mas, mais do que isso, permitiu que se
criasse um (...) status comum de existência desse trabalhador”, porque (...) a maioria se
identificava enquanto catador, a maioria trabalhava em lixão naquela época, (A.,
MNCR), (...) então ficou uma linguagem no Brasil todo e dali nasceu o Movimento(T.,
MNCR). G. (MNCR) ainda acrescenta que a opção por incluir o termo “catador” na
49
A ocupação de catador de materiais recicláveis encontra-se normatizada na CBO94, revogada pela portaria
397 do Ministério do Trabalho e Emprego em 09/10/2002.
50
Está tramitando na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 5649/2005, que regulamenta as profissões de
coletador (que presta serviço subordinado a empresas ou à administração pública direta ou indireta), catador (que
realiza individual, familiar ou coletivamente, com fins profissionais e sem subordinação jurídica, a cata manual e
espontânea) e reciclador (que trabalha com fins profissionais, de forma autônoma ou subordinada, em centrais de
reciclagem, constituídas e mantidas por cooperativas de trabalho ou por empresas privadas ou coletivas com ou
sem fins lucrativos). Como justificativa para o projeto, o autor argumenta a favor da “visibilidade institucional”
que a lei traria para os indivíduos que exercem essa atividade de utilidade pública, com “a conseqüente
diminuição do preconceito” mediante a garantia dos direitos trabalhistas e previdenciários desses profissionais,
permitindo tanto aos recicladores, quando autônomos, quanto aos catadores de se registrarem nas “Delegacias
Regionais do Trabalho” (CÂMARA, 2005). Não há, entretanto, qualquer menção quanto a valores inferiores a
serem pagos pelos catadores no que diz respeito a sua contribuição previdenciária.
100
Classificação Brasileira de Ocupações havia sido consensual para evitar o que considera um
contrabando ideológicoda parte de empresários, do poder público e daqueles que batem
no peito que são recicladores”, mas que, na verdade, possuem uma consciência de classe
mais empresarial”, que estimulam o uso do termo “reciclador” para inculcar nos
trabalhadores a idéia de que podem deixar de se verem como uma (...) massa que está
excluída, para se tornarem, individualmente, (...) empresários do lixo (...) elev[ando] a
consciência do catador ao nível do empresariado”. Entretanto, como algumas lideranças da
FARRGS haviam comentado, a mera diferenciação terminológica pode não representar muito
e resultar aparentemente insignificante, que (...) muitas pessoas acabaram reproduzindo o
termo reciclador, mas tendo consciência de que é catadorou seja, (...) reciclador, catador,
tanto faz, ”, o conteúdo desde último ganha sentido para o MNCR desde que indivíduo
que o utilize “(...) se entenda como parte de uma classe, né!” e isto, segundo G. e A.
(MNCR), é visível corporalmente: (...) o catador sabe quem é catador, olha na cara, olha
nas mãos, olha, sabe, no estilo de quem mete a mão no trabalho, isso está bem marcado
mesmo”, “(...) nós nascemos no seio da pobreza, no seio da miséria, nós temos isso dentro do
nosso corpo, nosso organismo é formado disso, né, e nós temos isso também desde os nossos
antepassados, que vieram dos escravos, dos índios, que eram explorados aqui no nosso país”.
A delegação que participou do Congresso era, em sua maioria, composta por catadores
que faziam parte da FARRGS e que estavam dispostos a apostarem na criação de um novo
coletivo, menos formalizado, cujas facilidades de articulação e comunicabilidade advindas
poderiam propiciar agilidade e resolutividade para interferir em processos políticos que
necessariamente extrapolariam o âmbito estadual e que poderiam ganhar força mediante uma
mobilização nacional que fosse feita com a participação deles. No retorno, entretanto, mesmo
que houvesse a expectativa de um esforço por parte de todos aqueles que estiveram para
difundir esse embriãono Estado, este trabalho acabou por se restringir a um pequeno grupo
de catadores que assumiu para si a função de (...) multiplicar o que que seria o Movimento
dentro de todo o Estado”, ou seja,
(...) a partir daí a gente começou a criar, começamos a discutir, começamos a
debater firmemente o que seria o Movimento, o que que nós queríamos e tudo mais
(...) a gente foi em rias bases de catadores que nós sabíamos que tinha, né, em
vários municípios que tinha e começamos a fazer a discussão sobre o que que era o
Movimento dos Catadores, apesar de que nós mesmos não sabíamos direito o que
que era, porque uma coisa criada um dia antes assim, vamos dizer, então foi uma
construção bem coletiva assim, (...) a partir disso, imagina, foi uma briga dentro
das bases para a gente explicar o que que era catador, o que que era reciclador,
porque, naquela época, se entendia que catador era aquele...o mais baixo de tudo,
o mais baixo de tudo, assim, era o mendigo, era o cara que estava na rua, (...) não
101
tinha aquela questão de solidariedade no fundo, foi um processo de trabalho
enquanto Movimento que a gente começou a entrar, conversar com cada catador, e
ele entender que tinha que ser solidário com o outro (A., MNCR).
Enquanto um dos representantes do MNCR advoga ter sido instituída uma construção
bem coletiva desde o início, E. (FARRGS) relata que esse trabalho acabou se limitando a um
grupo pequeno de catadores devido ao fato de que, diferente do que ocorreu em outros estados
do país, aqui, no RS,
(...) os dirigentes que foram tirados para o Movimento eram integrantes da
Federação, eram diretores da Federação, o que que acontece, esses integrantes
do Movimento Nacional dos Catadores aqui do RS, (...) um dos representantes que
é o representante do Movimento no estado, que é o G., ele quis levar o movimento e
essa foi a divergência com a própria Federação, com os catadores, de o
quererem continuar participando desse movimento, porque na verdade, o G., ele
faz parte do movimento anarquista, ele é um dos coordenadores do movimento
anarquista e uma das metas do movimento anarquista é infiltrar dirigentes dentro
do Movimento dos Catadores e aí os catadores não quiseram isso, sabe!
Mesmo com certas divergências instaladas, este e outros trabalhos que vinham sendo
desenvolvidos nas associações vieram a sofrer um abalo maior com o falecimento, em março
de 2002, de uma das principais lideranças externas, H., justamente no momento em que ela
coordenava a FARRGS, quando se pôde perceber a forte relação de dependência que os
catadores de muitas UTs haviam estabelecido com ela, que ficou ainda mais evidente em
virtude do processo de isolamento vivenciado por várias associações, para as quais, pertencer
a um movimento social ainda não tinha qualquer significado. Segundo Lorenzetti (2003), a
ausência dessa liderança deixou um lapso de união, de coesão frente a um ideal, e abriu a
possibilidade para o surgimento de conflitos mais sérios, entre pessoas ou grupos que
começaram a disputar o espaço antes ocupado por ela. O primeiro deles foi a própria disputa
interna que surgiu pela direção da Federação. De acordo com o que constava no estatuto, no
entanto, a entidade passou a ser interinamente coordenada pelo seu Secretário, G., que era
membro da Comissão Nacional do Movimento, o que significou quase que uma fusão entre os
dois grupos, sem que isto tenha significado que todos os membros compartilhassem os
mesmos princípios, (...) vamos dizer assim, divergindo mas se respeitando(E., FARRGS),
em que, neste momento, um deles basicamente passou a se prestar aos propósitos jurídicos
que ao outro não era permitido.
O ano de 2002 marca também o começo do que R. (FARRGS) refere como sendo uma
mega dívida que, atualmente, deve (...) estar em torno dos 25 mil reais e que
acabou se acumulando em decorrência da má administração com que a Federação foi
102
conduzida em gestões anteriores, quando o assessor [F.] tinha várias pessoas contratadas”,
o que gerou problemas relativos ao não-pagamento (...) de previdência social, de imposto de
renda, (...) fundo de garantia, todos os impostos federais, taxas”, agravados pelo fato de não
ter havido o repasse da última parcela da verba do “Coletivos de Trabalho”
51
, programa do
governo do Estado do RS ao qual a FARRGS estava vinculada. Essa dívida acaba, segundo o
ex-tesoureiro, por ocasionar às atuais gestões um impasse, se nós vamos angariar recursos
para pagar a vida e gastar as nossas energias nisso ou [se] nós vamos continuar fazendo
alguma ação que ajude no dia-a-dia a melhorar a condição dos trabalhadores”, o qual, em
última instancia, tem ameaçado a própria sustentabilidade da entidade.
Com novas eleições, em agosto de 2002, escolheu-se como coordenadora, E., ligada à
Associação da Santíssima Trindade, em Porto Alegre. Contudo, conforme argumenta Martins
(2004), o acirramento de conflitos internos, agravados pelo seu crescente endividamento,
levou todos os membros da coordenação a que pedissem demissão de seus cargos alguns
meses após a posse, em fevereiro de 2003. Segundo R. (FARRGS), isto ocorreu justamente no
período em que estourou a dívida financeira e (...) aí, a E., que era coordenadora, pediu
demissão, todo grupo pediu demissão, ficou um impasse assim até abril, em abril teve
assembléia, que daí não se fazia prestação de contas, se enrolava, enrolava e daí um pessoal
ligado ao Movimento foi lá e pegou a coordenação”.
Com a demissão de todos os membros, esta nova coordenação, que assumiu em 30 de
abril daquele ano, não foi vista com bons olhos por outros catadores, que consideraram um ato
autoritário. A “eleição” não foi sequer tida como legítima pela maioria dos catadores filiados
à FARRGS, que alegaram que (...) eles não registraram a ataporque senão (...) iam ter
que assumir também a dívida, (R., FARRGS) de forma que, assim, havia o argumento
necessário para anular o processo e convocar nova assembléia. Nos meses que se seguiram,
instalou-se uma verdadeira “campanha” da parte de lideranças provenientes de diversas UTs
que mobilizaram diferentes regiões do RS para tentar desapossar a coordenação que havia
assumido em abril, o que culminou, por fim, na realização de uma assembléia considerada
“tensa” (EDITORIAL, 2003) em 24 de setembro de 2003, a qual teve a participação de 150
representantes de 44 UTs do Estado
52
e que acabou por (...) reconduzir a E., porque daí o F.
51
Este programa teve por objetivo promover a inserção de trabalhadores, excluídos do mercado de trabalho, na
perspectiva da auto-sustentabilidade e da autogestão. Para tanto, ele articulava duas dimensões, uma
emergencial, que minimizava as conseqüências da vulnerabilidade social e outra estratégica, voltada a ações
educativas, que buscava melhorar o perfil ocupacional dos trabalhadores (ACCORSSI, 2004).
52
A assembléia contou ainda com nove entidades de apoio, entre elas a Central Única dos Trabalhadores (CUT)
do RS, CAMP, METROPLAN, CÁRITAS, UFRGS, Central dos Movimentos Populares e várias ONG’S
(TRABALHADORES, 2003:1).
103
saiu, e se recompôs a coordenação, porque algumas pessoas tinham saído, não quiseram
mais continuar naquela coordenação, daí nessas que a gente entrou (R., FARRGS).
Conforme consta em um documento redigido na primeira reunião de trabalho da coordenação
reeleita, “[n]a ocasião [da assembléia], foi definido que devido ao não registro da
Coordenação Provisória eleita em 30 de abril de 2003, fica reconduzida a coordenação
anterior, eleita em 22 de agosto de 2002, bem como preenchidos os cargos vagos”, e nele
consta também os nomes dos onze componentes da coordenação (COMUNICADO, 2003:2).
Dessa coordenação, a qual encerrará o mandato em 2005, foram entrevistados para
este trabalho: a coordenadora geral (E.) Porto Alegre; a secretária (B.) Canoas, e o
Tesoureiro (R.) – Dois Irmãos. Estas são consideradas três das lideranças mais atuantes,
citadas inclusive por membros do outro grupo, convidadas a palestrarem em encontros e
eventos diversos
53
e cujos contatos constam em um documento recentemente produzido pela
entidade, o plano de gestão 2003-05, o qual será comentado adiante. Além desses, outros três
catadores assumiram os cargos de vice provenientes, respectivamente, de Porto Alegre,
Erechim e Cachoeirinha e mais cinco passaram a integrar o conselho fiscal provenientes
de Dois Irmãos, Santa Maria, Alvorada, Caxias do Sul e Viamão.
Na verdade assim, essa retomada em 2003, foi um marco na história da
Federação, porque além de nós fazermos, nós retomarmos nossa entidade que
estava, eu costumo dizer que ela estava na UTI, (...) a gente aposta muito nessa
retomada da Federação, a gente vem fazendo formação e tentando multiplicar as
lideranças que existem, para quê? Para que, vamos dizer assim, se aman ou
depois, a E. ou a B. vier a morrer, a Federação, o processo não cai, sabe, pode até
estremecer, mas não cai como caiu daquela vez que a gente tinha uma única
liderança (E., FARRGS).
Várias pessoas, entre funcionários do DMLU e agentes religiosos, mencionaram, em
entrevista a Martins (2004:142), a presença de ativistas do movimento anarquista infiltrados
na coordenação que assumira em abril. Um dos agentes religiosos – trata-se justamente
daquele que tinha se afastado do processo na primeira fase salienta inclusive a intromissão
desses anarquistas, na sua opinião “politiqueiros que não são papeleiros”, em eventos
nacionais da categoria, devido ao lugar de destaque que um deles passou a ocupar após o
Congresso. Ainda de acordo com esse agente, mesmo que esse grupo tenha tentado
53
Para mencionar alguns exemplos, dentre tantos outros: E. participou como painelista no Seminário “Os
Desafios da Coleta Seletiva no Rio Grande do Sul”, realizado em Porto Alegre, em 2005; B. participou como
painelista no Seminário “Educação, Resíduos Sólidos e Cidadania: o futuro de Porto Alegre”, realizado em Porto
Alegre, em 2005; e R. participou como painelista no VII Seminário Nacional de Resíduos lidos, realizado em
São Paulo, em 2004. Ao comentar a experiência, R. relata: “Eu tive no ano passado, a E. também, em São Paulo,
né, teve um congresso da ABES, a gente foi, expôs trabalhos e participou também do debate, né, da Política
Nacional de Resíduos. Isso com freqüência, até a gente é mais solicitado que consegue estar presente, né”.
104
“desestabilizar” a FARRGS, o processo de recondução aos cargos da antiga coordenação “(...)
foi uma lavada; parecia que eles [os ‘anarquistas’] tinham força, mas não tinham”, cuja
opinião condiz com a de R. (FARRGS), que ele também afirma tratar-se de “(...) um grupo
não representativo, ninguém reconhecia eles”, de forma que, após a sua saída, a FARRGS
pôde, segundo o ex-assessor religioso, voltar a “fazer um trabalho sério, de profundidade”
(MARTINS, 2004:143). A inclusão destes depoimentos algumas pistas para esclarecer o
porquê da inexistência de contato entre esse agente e os atuais dirigentes do MNCR no RS,
fato este mencionado previamente.
Essa coordenação considerada “ilegítima” era formada por vários dos catadores que,
após essa assembléia, irão romper definitivamente os laços com os integrantes da FARRGS e
se dedicar apenas ao núcleo estadual do MNCR, bem como procurar expandir possíveis
articulações ao cenário nacional, que no RS, se instalará um clima de disputa “velada”, em
que nenhum dos dois grupos interfere nas decisões tomadas pelo outro, mesmo que se vejam
forçados a ter que dividir o mesmo espaço e as mesmas atenções, ou seja, (...) no ponto em
que ajude os catadores, pra nós está tudo beleza, né, não interfere em nada!” (A., MNCR).
Em termos práticos, A. relata que a ruptura entre eles e a Federação se deu muito em
decorrência desta última ter se restringido à organização dos catadores que estavam em
associações já formadas”, porque como declara R. (FARRGS), (...) s entendemos que
catador individual não tem futuro”, enquanto o Movimento teria se proposto a “(...) organizar
os catadores na sua essência, ”, o que incluía pensar uma estrutura organizacional para
aqueles que optassem por trabalhar nas ruas ou ainda para aqueles que não tivessem outra
opção senão permanecer nelas, de forma a estender as conquistas a toda a categoria,
independentemente da existência de um vínculo associativo/cooperativo.
(...) o fato é que a maioria, a massa, os 99,9% da população catadora vive de catar
nas ruas ou nos lixões ainda em condições mais básicas, na parte mais inicial do
ciclo, inclusive, catando e entregando para sucateiros logo adiante, né,
intermediários. O Movimento vem para reconhecer (...) para buscar conquistas
para esse setor, sem confundir com o setor reciclador (G., MNCR).
Se, no cenário nacional, o Congresso de Brasília teve um significado bastante grande,
como descrito anteriormente, para o contexto do RS, as conseqüências advindas dele foram
ainda mais particulares, que será muito em decorrência dos acontecimentos que se lhe
seguiram e de divergências político-ideológicas que se instalarão que se dará uma cisão entre
aqueles que permanecerão na FARRGS e aqueles que decidirão se desligar dela para assumir
a coordenação do MNCR, tornando-o muito mais “(...) combativo mesmo” (C., MNCR).
105
Após a realização da assembléia, no final de 2003, as lideranças da FARRGS que a
reassumiram também optam por romper relações com aqueles que passam a representar o
MNCR no RS devido, em parte, pela linha política adotada, a qual resulta, segundo R.
(FARRGS), em uma prática pedagógicaincompatível entre os dois grupos, ou seja, (...)
eles não devem concordar com a nossa e nós não podemos concordar com a deles”, de forma
que a entidade deixa de assumir o papel de “braço jurídico” do Movimento para o qual havia
inicialmente se prestado.
2.1.3. Empreendendo uma auto-organização coletiva: seguir os caminhos propostos por
uma federação ou por um movimento social
A quarta e última fase compreende o período que começa em 2004, quando os dois
grupos se separaram definitivamente e se estende até 2005, ano em que, no RS, ocorreu o II
Congresso Latino-americano de Catadores de Materiais Recicláveis e no qual se esperava
fosse ocorrer também o II Congresso Nacional, ambos promovidos pelo MNCR, e que acabou
adiado, provocando mal-estar e desconfiança, desta vez, em representantes da FARRGS. Esta
é a fase na qual se está considerando que essas coletividades puderam vivenciar um maior
“protagonismo”, mesmo que esta experiência tenha ficado restrita majoritariamente à atuação
de suas lideranças.
No caso da FARRGS, muito em função da posse de uma equipe composta somente
por catadores, eleita legitimamente em assembléia, momento em que se oficializou a saída de
F. da coordenação, o qual vinha, já algum tempo, se afastando do processo. A participação
exclusiva de catadores passou a ser considerada uma exigência para a própria composição da
coordenação, ou seja, segundo E., um dos critérios que a Federação “(...) não abre mais mão é
que os dirigentes dela sejam catadores, estejam trabalhando no processo de catação”. Na
verdade, o limite entre “ser” e “estarcatador não parece tão bem definido, visto que não é
imposto tempo mínimo de trabalho na “catação” nem há qualquer impedimento para se tornar
elegível mesmo quando o indivíduo tenha um histórico de atuação em outro ramo. Em última
instância, o que prevalece é o vínculo com alguma das associações filiadas, desconsideradas
as eventuais cooperativas, já que “(...) no entendimento jurídico as duas entidades não
casam”, sendo que, para as cooperativas, (...) se estudou a possibilidade de fazer convênios,
do pessoal entrar por convênios, que isso não permite a participação nas eleições, na
direção, né” (R.).
106
Segundo informação recolhida em um curso de formação de lideranças da FARRGS,
existem, no total, 52 associações filiadas (embora nem todas estejam com a documentação em
dia), que representam, aproximadamente, 2 mil trabalhadores no RS (BREVE, 2004). A
filiação à Federação é restrita às associações, sendo vedada a filiação individual. Devido ao
fato, já mencionado anteriormente, de que as próprias associações são, em sua maioria,
dirigidas por mulheres, isto termina se refletindo na majoritária participação feminina na sua
coordenação. No que diz respeito à gestão 2003-05, a coordenação era composta por sete
mulheres e quatro homens (COORDENAÇÃO, 2003:3). Já na gestão 2005-08, cuja eleição de
seus membros ocorreu no dia 5 de outubro de 2005, em Porto Alegre, durante a realização da
assembléia geral ordinária da FARRGS, a qual contou com a participação de 32
representantes de 16 associações filiadas, a coordenação geral continuou a cargo de uma
mulher, enquanto a vice-coordenação passou também a ser exercida por uma mulher, os
demais cargos do conselho de coordenação (secretário e tesoureiro, além dos respectivos
vices) foram assumidos por homens e, no conselho fiscal, houve uma predominância feminina
(4 mulheres e 1 homem), de forma que houve uma distribuição relativamente mais equânime
em se tratando de gênero. Foi possível verificar, no entanto, uma certa centralização regional
da atual diretoria, proveniente em sua grande maioria da região metropolitana de Porto Alegre
e, em segundo, da região da Serra.
Retoma-se aqui, novamente, a conturbada assembléia de 2003, porém, no momento,
com o intuito de destacar o fato de ela ter contado com uma ampla participação de entidades
de apoio, tendo sido o assessoramento que algumas delas seguiram oferecendo à FARRGS o
responsável pela concretização de um primeiro plano de ações que demandou o levantamento
da (...) questão da missão, dos objetivos e dos desafios que a gente tem enquanto catador a
nível estadual(E.), cujo material resultante foi, primeiramente, aprovado por representantes
de várias das associações filiadas à Federação, em dezembro de 2003, para que, então,
pudesse servir de guia para as ações que a entidade pretendia realizar até o final de 2005.
(...) nessa retomada, a gente fez o primeiro plano de ação da Federação, porque a
gente tinha bons pensamentos, o que queria, aonde é que queria chegar, mas nada
escrito e a gente conseguiu uns parceiros com as entidades de apoio que liberaram
seus técnicos e nos ajudaram a construir, né. (...) então assim, eu acredito que
nessa questão de parcerias, hoje, né, a gente pode, a gente não está mais sozinho,
sabe, embora as decisões sejam nossas, mas hoje, vamos dizer assim, a gente
constrói as coisas juntas, não é imposta, vocês tem que fazer! (E.).
A elaboração desse plano e todo o processo que adveio após a retomada da Federação
fazem com que R. enfatize, com orgulho, que “(...)hoje é ao contrário, hoje nós, recicladores,
107
nós estamos conseguindo dar direção na coisa”, mesmo que admita que, para isso, ainda
dependam muito (...) de entidades de apoio em termos de operacionalizar as coisas, ”. A
função de operacionalização acaba sendo dirigida, de acordo com Martins (2004), para três
tipos diferentes de “parceiros”: governamentais, que diz respeito àqueles que garantem o
fornecimento dos materiais recicláveis, a infra-estrutura física dos galpões, a manutenção dos
equipamentos e, em alguns casos, recursos adicionais para treinamento; não-governamentais,
tais como entidades sociais, educacionais ou religiosas, que propiciam a qualificação dos
catadores e colaboram em outras tarefas de apoio; e parceiros de outras instituições privadas,
como empresas, de caráter industrial ou comercial, que dão sustentação a projetos específicos
nas UTs, além do fornecimento preferencial dos resíduos dessas instituições (um exemplo é o
Carrefour, em Porto Alegre, que entrega parte do material reciclável para as UTs da Capital
em sistema de revezamento. Como foi visível no caso da UT da Restinga, essa carga, entregue
trimestralmente, era ansiosamente aguardada devido ao incremento financeiro que lhe trazia).
Apesar da relação estreita com esse rol de apoiadores, o plano de ações previa driblar
um de seus maiores desafios, qual seja, justamente o de superar a dependência do poder
público, ONG’s e entidades religiosas para que pudessem, finalmente, adquirir a “autonomia e
a auto-organização” necessárias para instituir “estratégias próprias para a viabilização
econômica” da atividade (FARRGS, 2003), ou seja, (...) dar condições para as associações
venderem diretamente para a fábrica(E.). Para isso, uma das metas era a de criar centrais
que pudessem potencializar “processos coletivos de comercialização” e, desta forma,
“melhorar os ganhos dos recicladores” (FARRGS, 2003). É perceptível uma afinidade de
propósitos entre esta ação estruturante”, que é parte de uma estratégia de regionalização, e a
experiência que tinha sido quase concretizada com a micro-usina de plásticos da Restinga,
bem como uma similaridade em seus resultados, já que, até então, ambas não se efetivaram.
A “lição” com o fracasso da primeira tentativa, no entanto, ficou latente para algumas
de suas lideranças, que o maior investimento da entidade passou a ser na questão da
formação dos catadores associados, mais especificamente (...) investir na formação humana
e, também, como empreendedor” (R.). A pouca ênfase que foi dada a esta questão ao se tentar
implantar a micro-usina de plásticos, significou, para um dos membros do conselho de
coordenação, a maior falha(R.), de modo a se tornar quase que um pré-requisito para o
sucesso de qualquer projeto que viesse a ser implementado nesses ou em outros moldes: (...)
o processo de formação é anterior a tudo (R.). Segundo a coordenadora geral da gestão
2003-5, E., a (...) Federação veio para fazer esse papel, sabe! Para formar os catadores,
capacitar os catadores para que eles possam junto com outros catadores fazerem, levantar as
108
necessidades e fazerem os projetos para uso comum”, de forma que, assim capacitado para
acessar e gerir os recursos financeiros, o catador tivesse também autonomia para gerenciar a
sua UT.
(...) a gente trabalha muito com isso e tem dado resultado positivo, as lideranças
que participaram do ano passado, a gente fez um encontro, um reencontro esse
ano, agora em julho, e eles disseram assim olha, nós estamos vendendo,
antigamente nós vendíamos para sucateiros, estamos vendendo direto para a
indústria, então quer dizer, e por quê? Porque acreditaram no processo, foram
para dentro dos galpões e multiplicaram isso, sabe! (E.).
A despeito da existência de uma dívida financeira que, em certa medida, prejudica a
atuação dos coordenadores, estes priorizaram, na re-organização que vinham empreendendo
após sua retomada, aproveitar as facilidades advindas com as parcerias que se mostraram
interessadas em ajudá-los no sentido de convertê-las em processos “educativos” com ênfase
em uma metodologia participativa(R.). Se, antes, não tinham entidades de apoio”, nesta
fase, os coordenadores podiam, junto com elas, (...) montar um curso de formação [e] (...)
coloc[á-lo] em andamento”, afinal, mesmo que ele dependesse (...) de recursos de pessoas
que os organiza[ssem]” (R.), parecia ser o único meio capaz de fortalecer a entidade e garantir
a sua continuidade mediante a emergência de novas lideranças, (...) lideranças que ainda
estavam abafadas” (E.), fundamentais para fazer avançar a organização (a porque, nas
entrevistas, E. e R., haviam frisado que não permaneceriam na próxima gestão). Na opinião de
E., o investimento que passou a ser feito no processo de formação e capacitação, cujo público-
alvo era composto majoritariamente por mulheres, foi o que fez surgir
(...) grandes lideranças aí com potencial, com crescimento, embora não tendo
grau, mas tendo potencial de tocar a entidade, sabe, seriamente, então eu acho que
o grupo cresceu muito mesmo. (...) as mulheres deixaram de ser meramente donas-
de-casa, meramente mães de família, hoje elas estão no mercado, lutando,
reivindicando os melhores preços, falando de...sabe então, eu acho que...e não
deixamos de ser as mães, as donas-de-casa, mas crescemos muito nisso.
Mais do que circunscrever esse processo ao âmbito exclusivo dos cursos de formação,
nota-se que as lideranças têm primado por participar de uma série de encontros e eventos que
se prestam a várias funções, desde promover a entidade, que (...) é muito fácil tornar
visível a Federação, fácil em termos, a gente poderia ter muito mais, se tivesse mais pessoas,
ela tem uma aceitação muito fácil” (R.), até garantir que haja uma representação mínima feita
por catadores em alguns desses espaços de discussão, tais como o Fórum Lixo & Cidadania,
passando, passando pelo fato de se sentirem orgulhosos ao serem convidados a divulgar,
inclusive internacionalmente, o trabalho que executam:
109
(...) a Federação, ela foi uma das entidades convidadas a participar de um
seminário internacional!! De Experiências, formas de experiências de agregar
valor a associações de catadores, e o Estado do RS, através da Federação, foi
convidado para participar nesse seminário em Buenos Aires. Então inclusive a
gente pôde ver que tinha dez países, sabe, e do RS, do país, do Brasil, foi a única a
nossa experiência que estava , sabe...então [em um tom mais empolgado] para
gente é um reconhecimento, sabe, das lutas, dos desafios que a gente tem, ter
chegado lá!! (E.).
(...) no Fórum Lixo & Cidadania, nós estamos sempre presentes, né, até numa
época que a Federação não se fazia representar, estava naquela situação enrolada
ali, nós aqui [da Associação de Dois Irmãos] começamos a participar, né, pra pelo
menos algum catador estar presente. O Movimento, a representação do Movimento
não vai, participaram acho que uma vez, em duas reuniões, mas tempos atrás, e
não tem participado, né (R.).
A opção do MNCR de não participar ativamente dessas instâncias, mesmo que, em
certas ocasiões, alguns de seus integrantes se façam presentes
54
, é justificada por G. por se
tratarem de (...) espaços estéreis, que não têm poder, na realidade, de instrumentalização
das propostas dos catadores, (...) é um espaço onde estão vários atores sociais, mas cada um
querendo a sua fatia no bolo desse nicho de mercado da reciclagem”. A perspectiva
assistencialista que, para o Movimento, tende a nortear as decisões que são tomadas nesses
espaços acaba por lhes tirar a autonomia frente às entidades técnico-governamentais, já que se
trata de espaços onde não (...) deixa de existir a dependência do saber”. Para G., a idéia de
constituir um movimento social em que as decisões sejam tomadas por catadores é tida nesses
espaços como “(...) uma proposta interessante e tal, mas que tem seus obstáculos, seus
complicadores”. Em uma tentativa de se contrapor a isso,
(...) a gente procura fazer com que o catador organizado no Movimento, ele
formular dentro do bojo do Movimento as propostas, desenvolver tecnicamente as
alternativas com os apoios que temos, né e levar essa proposta diretamente a quem
é de dever responder por isso, que é o poder público local, os setores do governo,
os setores que são responsáveis por essa área, né. A gente tenta fazer essa
interlocução direta acabando com os espaços intermediários que empoderam
54
O Fórum Lixo & Cidadania faz parte de um programa nacional que começou por iniciativa da UNICEF,
“Criança no Lixo Nunca Mais”, a partir de um fato ocorrido na cidade de Olinda, em 1994, o qual escancarou a
realidade de pessoas que viviam nos lixões do país. Este fato teve grande repercussão na mídia por ter envolvido
a hospitalização de várias crianças que foram intoxicadas por terem ingerido lixo, no qual se suspeitou haver
carne humana devido à presença do lixo hospitalar que era totalmente depositado a céu aberto (ABREU, 2001).
Para combater tais situações, o Fórum se constituiu como uma instância organizada de discussão que ocorre
tanto no âmbito municipal, estadual quanto nacional e que reúne organizações não-governamentais, entidades
religiosas, órgãos governamentais e instituições de ensino que atuam nas áreas relacionadas à gestão “social” dos
resíduos sólidos. Embora o MNCR não participe das reuniões que envolvem os eventos municipais do Fórum,
consta, na programação de dois desses encontros nacionais, a participação de G. como palestrante da conferência
“Catadores de materiais recicláveis no ambiente urbano: novas configurações de espaço e de subjetividades”,
atividade ocorrida no Festival Lixo & Cidadania, no ano de 2003, em Belo Horizonte e como debatedor do
painel “Cidadania em Jogo: Catadores de materiais recicláveis e moradores de rua no mundo globalizado”,
atividade que fez parte do 3º Festival Lixo & Cidadania, ocorrido em 2004, na mesma cidade.
110
outros em vez de empoderar os próprios catadores. Por isso a gente não participa
muito de certos espaços que tem aí, que...não vamos perder tempo! Entende?!
Então, muita enrolação e não vão direto ao ponto (G.).
A fundação do MNCR significou a possibilidade de se constituir um coletivo que,
junto à legalização da “profissão catador” (T.), começasse a empreender outras conquistas, de
caráter mais político, porque, segundo C., “(...) naquela época eram bem precárias as coisas
assim, não tinha nenhum exemplo de estar, de repente, fazendo a sociedade rever que aquele
catador poderia ter sido reconhecido, né”.
(...) então, com o espelho do MST de Brasília, né, que participou junto dentro do
Congresso e ajudou a formular e tudo, a gente viu que a nossa grande força
poderia ser de s termos um movimento, criar um movimento social, aonde, por
incrível, ninguém, de nenhum dos 2 mil catadores que tinha, nenhum votou contra,
ou seja, foi uma instância assim que...então por isso que o Movimento nasceu
desde o seu embrião, ele nasceu com uma baita duma força, porque todos os
grupos de catadores estavam presentes e votaram a favor disso (A.).
A auto-organização, protagonizada pelos próprios trabalhadores(G.), foi um dos
princípios pactuados durante o I Congresso Nacional para assegurar a voz do catador(C.):
Na área política, nós nos constituímos enquanto grupo pelo nosso princípio de auto-
organização que não necessita de ter pessoas para estar pensando por nós, (A.). Para
efetivá-lo, o Movimento julgou imprescindível vinculá-lo à independência de classe”, tanto
em relação aos apoios técnicos que poderiam quererse aproveitar” da organização do
Movimento quanto no sentido de não depender de (...) braços políticos para toc[á-lo]”, os
quais poderiam manipular os catadores a tal ponto de eles acabarem (...) explorando os seus
próprios companheiros(A.). Em relação a matrizes ideológicas e/ou correntes partidárias, G.
ressalta que apesar do Movimento ser (...) aberto a todo e qualquer catador que queira
participar, independente do partido do qual ele faça parte”, há um acordo interno entre os
seus militantes de que (...) o espaço político-social do Movimento não é um espaço de
propaganda partidária”, de forma que mesmo
(...) os anarquistas que estão dentro do movimento não fazem propaganda
nenhuma dentro do movimento, eles fazem fora, os petistas que estão também, a
gente briga com eles, porque é difícil fazer com que eles não tragam as
bandeirinhas deles, uns trazem e ficam na volta querendo entrar, né, então, tudo
isso aí é muito difícil, tanto os outros partidos de direita que estão aí.
A concretização de seus princípios, no entanto, especialmente no que diz respeito à
auto-organização, tem se dado de forma paulatina, tal como afirma G.:
111
(...) no começo foi necessário dividir mesmo a sala, porque os catadores ainda
eram muito espectadores dos técnicos, o que os técnicos falam a gente pensa,
entendeu? Se torna muito dependente, os catadores não falam, só os técnicos
falam. No que a gente separou as salas, fazendo outro tipo de discussão, aí o
catador começou a se expressar e começou a desenvolver inclusive o raciocínio
estratégico, aí hoje não tem problema se tem que divergir, se pensa diferente se
não pensa, se está de acordo, se não está (...) à medida que a gente começa a criar
algum grau de autonomia e confiança no fato, o catador não carrega carrinho
no lombo, porque tem a liberdade de se manifestar também.
O estabelecimento de alianças pontuais, (...) que é quando são táticas”, para fins
específicos, e de alianças estratégicas”, mais duradouras, com (...) apoiadores militantes
(G.), cuja seleção é feita com base não tanto na (...) própria instituição em si (...), a gente vê
mais a pessoa que está na frente disso
55
(A.), foi, entretanto, apontado como fundamental
por todas as lideranças entrevistadas, especialmente no que concerne à (...) questão das leis,
códigos, tudo mais, essa parte toda (...) que nós não temos como prática do dia-a-dia” (A.). É
perceptível que a busca por uma maior instrumentalização para lidar com as relações
assimétricas que tendem a se estabelecer nas ocasiões em que, como afirma V. (sexo masc.,
49 anos, grau incompl., MNCR), (...) tu vais trocar idéias com os governos, com outras
lideranças ”, onde se reconhece que (...) a gente realmente precisa de pessoas que tenham
estudo e que apóiem e que nos informem para nós termos argumentos pra discutir com eles”.
Entretanto, para que eles se apropriem dessas informações sem perpetuar uma relação de
dependência, G. relata que o MNCR prioriza “(...) um apoio que é emancipador”:
(...) aquele apoio que respeita os princípios do movimento, de independência de
classe, de auto-gestão dos catadores, do protagonismo dos catadores e, sobretudo
aquele apoio que, nessa linha, ele contribuir para o fortalecimento do catador
na perspectiva de deixar até de existir enquanto apoio em alguns casos, ou seja, de
que ele vá apoiar o suficiente para capacitar e qualificar o saber e o protagonismo
do catador de forma a não mais ser necessário como técnico de apoio, né. O que
não significa deixar de ser companheiro, que uma vez que o saber é socializado,
seguem todos como iguais e como companheiros na luta, ou seja, a união continua.
Pela própria proposta emancipatória que carrega e pelos meios que utiliza, além da
flexibilidade, baixa especificação de papéis e atuação no limite da legalidade, um movimento
social, como afirma Sobottka (2003:54), não pode “ser engessado por regulamentos e normas
burocráticas”, de forma que a solução para esse dilema foi, muitas vezes, encontrada pela
constituição de uma organização formal, capaz de acolher exigências legais com relação a
55
No item 5 das “Bases de Acordo do MNCR”, que se refere às parcerias, diz que é necessário “[b]uscar
informações sobre a idoneidade (ética) dos que propõem parcerias, sua trajetória e se estão de acordo com os
conceitos e princípios do MNCR”, que são, além dos que foram comentados, a solidariedade de classe e a
democracia direta.
112
recursos financeiros, responsabilidade contratual e mesmo como referência institucional, para
a qual se cunhou o termo “organizações de movimentos sociais”. Enquanto estiveram juntas,
parece adequado enquadrar a FARRGS como se prestando a tal papel, “o suporte necessário
para a estabilização das atividades e da mobilização, como garantia de sua continuidade como
movimento”, mesmo que, com o endividamento que se seguiu, ela pouco o tenha cumprido.
A partir de 2004, entretanto, quando a ruptura entre a FARRGS e o MNCR já havia se
consolidado, é possível verificar, tomando os termos empregados por Sobottka (2003:56), a
mudança de uma “organização do movimento social” para uma “organização para o
movimento social”. A primeira se refere ao momento em que a FARRGS ainda fazia parte do
MNCR e, além de se prestar a ser um instrumento jurídico, com ele se confundia no sentido
dos membros que compunham a ambas e do histórico de formação que compartilhavam, a
despeito de divergências ideológicas que se instalaram após o Congresso. A segunda diz
respeito a organizações, em sua maioria ONG’s ou entidades religiosas, as quais, mesmo
estando a serviço do MNCR, no sentido de manter um compromisso com os seus princípios e
propiciar uma viabilidade técnica para suas ações, dele se diferencia.
A busca de uma nova entidade que, quando necessário, representasse juridicamente o
MNCR os colocou em contato direto com o universo tecnoburocrático das ONG’s, o qual não
se deu sem as suas contradições, tendo em vista que (...) quando nós nos criamos, quando
nós tínhamos equipamentos para o trabalho e grupo organizado, começou a surgir vários
ditos apoiadores para vir e nos ajudar, sendo que quando nós estávamos na rua
desorganizados, ninguém apareceu, né!(A.). Desta “proliferação” de entidades, A. afirma
que, ao final, restaram poucas, (...) várias, lógico, fugiram”, porque a exigência era a de que
(...) elas [tinham] que se enquadrar dentro dos princípios do Movimento e não o Movimento
se enquadrar dentro do princípio de cada uma ONG ou cada apoiador”.
De uma forma geral, suas lideranças vêem essas organizações como parasitas do
povo”, especialmente no que diz respeito àquelas que se somam com a perspectiva de tirar
vantagem, (...) que precisam ter um público alvo para se manterem, precisam da pobreza
(...) ela é um nicho de mercado”, sobre as quais G. comenta (...) nós vamos ter entidades
(...) que têm cem mil reais de orçamento mensal para trabalhar com os catadores, quer dizer,
elas não vão aceitar que o movimento se autonomize demais em relação a elas, pra perder
esse orçamento! Senão como é que elas vão sobreviver?
[E]ssa auto-organização denomina que o catador, ele mesmo vai se organizar, ele
mesmo vai tocar a sua própria linha de trabalho, sem ter algum apoiador, né, que
alguns apoiadores são de fé mesmo, mas tem alguns apoiadores que vêm e querem
113
mandar no grupo, inclusive tirar a sua renda dali, uma renda muito superior em
cima do trabalho e da mão-de-obra dos catadores (...) [por isso] nós sermos a
instância de representação dos catadores e não alguma instituição ou alguma
ONG que não têm o seu pé no barro, que não têm a sua mão no lixo (A.).
Condizente com o princípio mencionado por A. e de forma a evitar o que G. considera
uma fragmentação em ilhas de isolamento”, onde as associações se tomam o (...) centro do
universo daquele grupo de catadores”, o MNCR tem optado por centralizar os convênios e/ou
acordos em torno de uma única instância associativa, controlada por catadores, que se preste
não somente a um papel jurídico, mas também aos propósitos de estar a serviço do coletivo:
(...) se por um lado, nós não podemos deixar de ter uma figura jurídica que nos
garanta processo comercial, institucional, né, até porque nós queremos tudo isso
aí! Por outro, nós tentamos buscar uma modalidade organizativa que não ficasse
fechada dentro de um grupinho da associação, rompesse o isolamento de uma
associação. E nós optamos por pegar uma delas e transformar numa entidade
que tivesse capacidade de dar cobertura jurídica necessária para todos (....) e isso
garante com que o poder sobre a entidade essa, jurídica, ela esteja na mão dos
próprios trabalhadores e não de um grupo técnico e nem de um grupo outro
fragmentado. Então, essa é a alternativa que nós temos apontado aí, nós
estamos utilizando essa entidade do Movimento para fazer convênio com distintas
cidades, diferentes locais, com uma estrutura material que está sendo comum a
todos, um caminhão que vai para a zona da fronteira pertence a essa entidade, um
caminhão que vai para o Vale do Gravataí ou para o Vale do Rio Pardo pertence a
essa entidade, e, no final de contas, essa entidade, ela pertence ao Movimento e o
Movimento está composto por todos esses. Também pode daqui a pouco deixar de
estar em Gravataí e ir para o litoral, né, essa é a idéia. Do equipamento que...do
patrimônio que pertence a todos ou todos que não é um grupinho de um distrito,
mas é um conjunto de pessoas maiores, um projeto socializado mesmo (G.).
As decisões que burocraticamenteprecisam ser tomadas têm ficado a cargo de uma
Coordenação Estadual”, subordinada a uma Comissão Regional, enquanto assuntos relativos
a recursos e infra-estrutura, são tratados (...) por todos, ou seja, em última instância, quem
vai decidir para onde vai cada real que entra para dentro do Movimento são os próprios
catadores(G.). Para evitar que o todos se resuma, de fato, a alguns poucos e vire o (...)
movimento de uma pessoa só que articula com os outros”, o MNCR tem aproveitado a
captação de recursos, facilitada pela articulação nacional e pela atual conjuntura política, para
realizar encontros e eventos que procuram fazer com que os catadores interajam entre si e,
igualmente, conheçam “(...) os princípios do Movimento, a base de acordo e tudo mais” (A.).
Sem se limitar ao âmbito local, mas com o intuito de assumir, de fato, sua abrangência
nacional, criou-se, em 2004, uma Equipe de Articulação, equipe executora do Movimento
(A.), composta por 6 representantes regionais G. é o representante da região sul, formada
por mais 4 homens e 1 mulher –, com o intuito de “acelerar o processo de organização da
114
categoria em todo o país” (ROCCO, 2004b). Afinal, a Comissão Nacional do Movimento, que
conta com 30 representantes, é (...) muito custosa para estar se reunindo”. Como A. faz
questão de ressaltar: (...) tudo formado por catador, né!”. Essas comissões foram também
uma estratégia de pluralizar o debate entre os estados do país, até porque desde que o MNCR
surgiu, segundo consta em um informativo produzido por catadores do Estado do RJ, a
sensação dos catadores “é de que a liderança do movimento ficou muito centralizada no Rio
Grande do Sul, em São Paulo e em Minas Gerais” (ROCCO, 2005).
A constituição de uma equipe de articulação se deu muito em decorrência da criação,
em 2003, do “Comitê Interministerial da Inclusão Social de Catadores de Lixo” (DIÁRIO,
2003), em cujo decreto que o instituiu não se fez menção alguma à participação dos catadores,
sendo a equipe uma forma de (...) agilizar um pouco melhor(A.) a auto-organização para
que eles também se incluíssem no processo, o qual ofereceria um canal de diálogo direto com
o governo federal, mesmo que, para G., essa instância seja (...) uma estrutura um pouco, um
pouco estéril também”, porque “(...) na realidade não tem efetivado políticas”:
(...) é um momento em que alguns ministérios com todas as suas coisas que têm
para fazer, param de fazer, vêm, se sentam, para ver qual o problema dos
catadores, ou seja, tentativa de contemplar dizendo que ah não, s temos algum
momentinho para vocês também. Então é um espaço que tem sua certa importância
e tal, que podemos falar alguma coisa, reclamar diretamente para o ministério,
mas que, na realidade, no...como é que é...na balança, o que pesa mais é a nossa
capacidade como povo, base de se movimentar e de pressionar desde baixo, se
percebe que essas reuniões interministeriais são dois, três, quatro [catadores] que
vão, levam a posição do movimento, mas o que consegue ter, de fato, mais
resultado é a relação que s travamos com as instituições desde o movimento de
massa, né.
A criação desse Comitê gerou protestos do outro grupo que deslegitima a forma como
o processo foi encaminhado e pelo fato de haverem sido ignorados: (...) esse negócio de tu
encaminhares um comitê interministerial não respeitando as organizações que existem no
Estado, para mim não me serve(E.). Mesmo controverso desde a sua criação e pouco crível
no que concerne à possibilidade de estabelecer políticas que gerem melhorias concretas para a
categoria dos catadores (muito embora esteja envolvido no debate em torno do anteprojeto de
lei da “Política Nacional de Resíduos Sólidos”), este Comitê possibilitou a aproximação dos
catadores com uma série de outros atores sociais e mais facilmente puderam captar recursos
para a viabilização de projetos, tal como afirma A., (...) quando a gente começou a discutir
com eles [governo federal] conseguimos avançar na parte de equipamentos, reconhecimento,
aquela coisa toda e conseguimos também fazer com que outros agentes viessem para esse
meio, um deles a Petrobrás, né, e vários outros (A.). A opção do MNCR por adentrar
115
espaços político-institucionais e estabelecer parcerias, entretanto, não se dá sem as suas
ambigüidades, (...) porque fica aquela coisa meio contraditória, né, se de repente tu és
independente, dentro, né, de um espaço institucional, daí é contraditório”, como segue
comentando C.:
(...) tem um caso exemplar também da questão da Petrobrás, né, tipo sabe que,
de repente, isso pode virar meio uma coisa meio contraditória, mas ao mesmo
tempo, é um benefício, uma luta que a gente já fez há um longo tempo atrás, né, e a
gente pode meio que ficar sabendo que, de repente, pode ser uma coisa meio do
governo também, nós demos algumas coisas para os catadores, né, e agora
queremos reeleição e tal, né!
Como fruto desse período de intensa articulação, este coletivo conseguiu obter alguns
êxitos, realizou uma série de encontros e eventos estaduais e municipais em vários estados do
país, propôs a realização de oficinas durante os Fóruns Sociais Mundiais, estabeleceu parceria
com o Ministério do Desenvolvimento Social, Fundação Avina e Fórum Nacional Lixo &
Cidadania. Dentre as principais realizações, estão as duas edições do Encontro Latino-
americano de Catadores (2003 em Caxias do Sul, RS e 2005 em São Leopoldo, RS). Neste
último em particular, E. comenta alguns conflitos surgidos durante a sua realização, devido ao
fato de, mais uma vez, a FARRGS ter se sentido excluída do processo:
Nós fomos barrados, s não participamos, então assim oh...porque esse era um
congresso latino-americano de catadores!!! Como se os outros catadores que
fossem ligados à FARRGS, ou que não fossem ligados à FARRGS não pudessem
participar porque são diferentes, sabe, (...) e são tudo trabalhadores iguais,
levantam de manhã cedo, sobrevivem disso (...) então esse processo que está aí
para mim não é legítimo!!
Mesmo que, para os dirigentes da FARRGS, a fundação do MNCR tenha se dado de
forma legítima, principalmente com relação às (...) bandeiras de luta, os princípios dele”,
atualmente, a maneira como a sua organização vem sendo conduzida no RS não lhes parece
mais ser feita com propósitos coletivos, tendo se tornado palanque para estrelismos(E.).
Para E., isto fica ainda mais evidente pelo fato de que, em 2005, mesmo tendo sido aguardada
a realização do II Congresso Nacional de Catadores, o qual poderia vir a ocasionar alterações
nos membros que compõem a Comissão Nacional, ele não foi realizado, de forma que (...)
por não ter esse congresso, sabe, a gente se sente amarrado”.
(...) na verdade assim se tu me perguntasse: Mas e não dá para repensar esse
Movimento? Dá, só que para trocar esse dirigente só num próximo congresso
nacional, e tu sabes o que o Movimento Nacional está fazendo? Encontros Latino-
americanos, sabe, pra não fazer congresso nacional para o trocar os dirigentes
116
e isso é uma...palavra, né...sacanagem, tchê! [indignada] porque vamos
dizer assim oh, o estado do RS podia se organizar pra ir para o congresso e dizer
Olha! os dirigentes que estão nós o queremos mais, queremos A e B que o
catadores e estão trabalhando e que vão, sabe, o se comprometer com os
princípios do Movimento, né, o lutar pelo coletivo. Não! Não podemos fazer isso
porque não tem um encontro nacional, sabe.
Embora não pareça existir qualquer canal de diálogo entre essas duas coletividades,
nem sequer, devido ao próprio histórico que elas dividiram, parece haver o interesse da parte
delas de o fazer agora, foi possível, no trabalho de campo, vislumbrar um momento que as
fizeram compartilhar juntas de uma mesma concepção sem com isso, inferir que esta seja a
única –, que se expressou em um discurso comum (...) contra a privatização dos meios de
produção(C.), embora, nas entrevistas, tenha sido um tema mais enfatizado pelos membros
do MNCR, como na seguinte fala de A. que afirma que (...) nós não abrimos mão é de ter o
material reciclável para nós, ou seja, de ele não ser privatizado e entregue a uma empresa,
”. Lutas contra a privatização dos serviços públicos de limpeza são, de fato, recorrentes em
várias das manifestações levados a cabo por catadores organizados em diversas regiões do
Brasil, como relatou Jacobi & Teixeira (1997) no caso de Belo Horizonte e, igualmente, do
exterior, como já havia mencionado Rodríguez (2002) no caso da Colômbia.
Em Porto Alegre, devido ao risco iminente de que aqui aconteça de forma ainda mais
abrangente (atualmente, 87% dos serviços do DMLU são terceirizados [DIÁRIO, 2006]),
esta foi a tônica do debate que se instaurou durante o Seminário “Educação, Resíduos Sólidos
e Cidadania: o futuro de Porto Alegre”, realizado na Câmara de Vereadores em novembro de
2005, protagonizado por catadores que pertencem aos dois grupos, MNCR e FARRGS (além
de contar com a presença de uma outra catadora, conhecida liderança da Vila Pinto, que,
atualmente, não está vinculada a nenhum dos dois), onde foi notável o quanto esta questão
propiciou uma convergência no discurso de todos os catadores presentes, que, a despeito de
suas divergências, uniram-se para “derrubar” a argumentação dos representantes do DMLU.
A discussão, entretanto, não parece ter chegado, naquele momento, a acordo algum, tendo o
debate sido interrompido pelo intervalo e não tendo sido retomado à tarde, fato que rendeu
críticas à organização do evento por parte de representantes do MNCR que julgaram a parte
da tarde meramente expositiva, dominada pela fala dos técnicos e improdutiva em termos de
resoluções “concretas” e debates “consistentes”.
Foi possível, neste seminário, vislumbrar uma mobilização coletiva em torno da
construção de uma pauta comum dirigida para contra-argumentar o discurso do DMLU, que
reproduzia, na ocasião, o próprio discurso do poder público municipal. A autoridade que lhes
117
é requerida para influenciar na elaboração (ou no veto) de políticas públicas que lhes dizem
respeito depende, em grande parte, da união que as várias entidades, institucionalizadas ou
não, aceitarão empreender, no sentido de serem politicamente direcionadas para fins comuns,
sem que isso signifique ter que abrir mão de seus princípios. No caso do seminário acima
mencionado, argumentar contra a privatização do serviço de coleta seletiva municipal lhes
pareceu uma causa suficientemente convergente.
Essas são constatações que merecem destaque devido à ênfase dada, no início, em
relação ao que diz respeito à construção de um “protagonismo” por parte desses indivíduos. A
emergência de lideranças e o seu reconhecimento social como atores legítimos demanda,
primeiramente, que se reconheçam como um grupo, que vençam coletivamente os
constrangimentos aos quais estão sujeitos e que sejam capazes de “encontrar sua própria voz”
(PHILLIPS, 2001:9). Considerando o processo de organização dos catadores em estudo, foi
significativo o quanto a conformação dessas coletividades, que, para os propósitos deste
trabalho, é relacionada à dimensão cultural do reconhecimento, esteve acompanhada de uma
estruturação econômica prévia e de uma formalização legal subseqüente. Enquanto a
legalização da ocupação foi favorecida pelo processo prévio de estruturação econômica que
resultou na constituição da FARRGS, o MNCR, em contrapartida, pôde utilizar os benefícios
trazidos por ela para se fortalecer coletivamente.
Na realidade, quando a gente conseguiu essa conquista de ser reconhecido como
catador, na realidade foi ali que surgiu o Movimento, a gente teve duas conquistas
nessa mesma etapa, a idéia tinha sido formada, mas ali que a gente conseguiu
mesmo formar o Movimento, né porque a gente conseguiu reunir parece que 1500
pessoas em Brasília, né, e ali a gente conseguiu reunir de rios estados do
Brasil, né, então ali foi que começou a formar o catador, a gente determinou
catador pra todo o Brasil, se unindo, que antes a gente não sabia definir direito se
era catador ou papeleiro, ou carroceiro ou coisa assim, daí a gente ali definiu,
tinha o reciclador que a gente dizia, mas dali a gente começou a dizer que era
catador e (...) a primeira das conquistas do Movimento foi ser reconhecida como
profissão catador, pode já se dizer profissão catador (T.).
Na análise de uma unidade de triagem que pertence ao MNCR, Mayer (2005) acentua
a reivindicação pelo reconhecimento de sua ocupação como condição para pertencer a um
sistema de estratificação ocupacional definido pelas normas legais, pressupondo-se, para isso,
que são considerados cidadãos todos aqueles indivíduos que se encontram inseridos em
algumas das ocupações reconhecidas e definidas legalmente. O autor ainda destaca que o não
reconhecimento de sua ocupação significará ser remetido a uma condição de subcidadão, o
que, por seu turno, representa a marginalidade, a invisibilidade social, a naturalização da
informalidade que irá culminar em trajetórias que caracterizam processos de discriminação e
118
exclusão social. Se este último termo diz respeito ao ato de excluir, de colocar à margem um
determinado grupo social, o conceito sociológico, conforme Nascimento (1994) refere-se a
um processo social de não-reconhecimento do outro, rejeição ou ainda intolerância.
O depoimento de B. a esse respeito pode melhor elucidar tal constatação: Para nós,
nós achamos assim que é um reconhecimento, né, de valorização da classe, a gente pode
chegar ali e dizer assim eu sou catadora! O catador pode ir no INSS e dizer assim: eu
sou catador, eu quero um carnê para eu descontar como catador!”. Ainda segundo B., isso
faz com que se insiram, de fato, dentro (...) desse contexto social que está , fizemos parte
das profissões que existem em todo o Brasil, né”. Enquanto G. fez questão de destacar que o
processo que culminou com a legalização da ocupação (...) signific[ou] politicamente muitas
coisas, né,”, R. comentou que, mesmo que ela tenha facilitado a previdência, né, que antes
não previa”, em termos práticos, não se traduziu em ganhos econômicos, até porque (...) o
reconhecimento de uma profissão, ele não se dá por decreto, o reconhecimento de uma
profissão, de uma atividade, se pelo trabalho que você consegue fazer com aquela
população para enxergar a importância dela. Nada acontece por decreto!”. De fato, mesmo
com o reconhecimento legal, A. acrescenta que (...) se a gente não se reconhecer enquanto
pessoa, enquanto cidadão, ninguém vai reconhecer!”, afinal, a legalização da ocupação por si
só não garante que “(...) agora tu tens mais livre acesso dentro da sociedade”.
Em última instância, ambos os grupos serviram aos propósitos de agregar os catadores,
para que, juntos, pudessem se fortalecer não só perante o poder público mas também perante a
sociedade, e empreender um “processo coletivoque extrapolasse o caráter “corporativo” que
menciona Lorenzetti (2003), cujas melhorias dependiam exclusivamente que (...) a direção
da associação [fosse] atrás(E.), o que reforçava uma relação personalista com os órgãos
públicos e/ou privados.
Neste processo, foi visível como a legalização foi um instrumento de reconhecimento
para o coletivo, especialmente no que diz respeito à formação do MNCR. E embora este
último grupo a tenha utilizado para construir um status comum(G.), este não é único no
conjunto dos catadores, de forma que não se pode menosprezar que igualmente gerou
repercussões para o outro grupo, no sentido de que (...) o ganho que teve foi o
reconhecimento, assim, da luta que o catador teve para que ele pudesse ser visto como
catador e como uma profissãoe, através do (...) reconhecimento do catadorgerar também
uma agregação de valores, entendeu!” (B.).
O propósito maior com este capítulo foi o de oferecer uma base empírica que sustente
a argumentação teórica que será apresentada a seguir, cuja viabilidade se deu mediante o
119
contato com esse processo de organização, na sua configuração mais atual. Sem desmerecer,
no entanto, o valor intrínseco que lhe condiz, esta exposição, por mais detalhada e minuciosa
que tenha almejado ser em alguns de seus trechos, não chega a captar toda a dinamicidade e
as nuanças que caracterizaram tal processo.
Caso, no entanto, se fosse comentar o processo inteiro em poucas palavras, fiel à
tentativa de contemplar todos os contornos “prepositivos” que o conformaram, dir-se-ia se
tratar de uma experiência vivenciada de forma “quase cíclica”, ou seja, sem que o ponto de
partida seja necessariamente o mesmo que o de chegada. Partindo de uma situação individual
de informalidade absoluta, onde esta categoria ainda era (...) bem desconhecida na
sociedade, né, desorganizada e ao mesmo tempo, bem precarizada, setor informal(C.), os
grupos conseguiram se constituir e investir em atividades econômicas mediante uma certa
formalização que lhes garantiu subsídios para tanto, já que, neste período, (...) havia uma
discussão em torno de uma organização dos catadores, né, e, de repente, se resolveu
formalizar isso em termos jurídicos e se escolheu o caminho de Federação(R.), para, em
seguida, alguns dentre eles e tendo outros propósitos, voltarem a se render às condições de
poderem agir informalmente, (...) porque movimento social não é legal, né, é uma coisa
contra governo(T.), (...) ele tem mais caráter de discutir, de brigar, de lutar pelas coisas
(A.), por isso (...) não para registrar, se for registrar eles conseguem facilmente
processar qualquer um, processar até o Movimento” (T.).
Por esse processo, porém, ser tão mais intenso, rico e, ao mesmo tempo, feito de
momentos de extrema singeleza, maiores mesmo do que o que foi possível descrever aqui,
acredita-se que ele somente possa, de fato, ser retido por aqueles que o vivenciaram (e ainda o
vivenciam cotidianamente). Transformado em texto, corre-se o risco de esvaziá-lo; contudo,
espera-se, ao menos em parte, ter instigado e introduzido o leitor a se familiarizar com ele.
120
3. O PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO COLETIVA DOS CATADORES
COMO UM MEIO DE (RE)DISCUTIR A CATEGORIA DO
RECONHECIMENTO SOCIAL
Faz-se necessário, para que se possa seguir adiante, tecer alguns breves comentários
acerca do que foi exposto até o momento de forma a esclarecer o tratamento que se procurará
dispensar, neste capítulo, à perspectiva teórica e aos dados empíricos. A maior incumbência
será de os conseguir enlaçar com vistas a atingir propósitos teóricos.
A apresentação inicial que se faz a seguir se presta também como uma tentativa de
esclarecer más interpretações que possam ter-se originado em decorrência da aparente
desconexão dos dois primeiros capítulos. Estes, porém, são ambos parte de um processo que,
como relatado na introdução, não prescindiu do empírico para ensaiar uma tentativa de
(re)discutir uma das vertentes da teoria do reconhecimento. Ao almejar empreender uma
discussão teórica que, em consonância com a perspectiva de Nancy Fraser, torne viável uma
separação analítica entre as dimensões que, ao longo deste trabalho, virão a conformar a
própria categoria do reconhecimento social, o que interessa primeiro, tal como fez Neves
(2005) em um estudo sobre o movimento anti-racista no país, resguardadas as devidas
especificidades, é estendê-la a uma análise empírica de situações sociais em que os discursos
pautados no reconhecimento atuam, para que, sim, se possa retornar à teoria de forma a
rediscuti-la.
O propósito do primeiro capítulo foi o de oferecer um panorama da perspectiva teórica
adotada por Fraser, especialmente no que concerne à separação conceitual entre distintas
dimensões da realidade social, onde a autora sugere que elas sirvam de lentes através das
quais as coletividades possam ser vistas, ao invés de definidas através delas. De seus últimos
escritos, é importante ressaltar a ênfase que ela aos padrões culturais que negam aos
indivíduos as condições objetivas e intersubjetivas que deveriam usufruir para poderem
participar das decisões que lhes dizem respeito. Ao permanecer restrito à perspectiva teórica
da autora, este trabalho abandona qualquer pretensão de abordar o reconhecimento como uma
categoria de base moral, ou seja, não se intenta adentrar aqui em uma discussão acerca da
moralidade que permeia de forma intrínseca as questões redistributivas ou representativas.
Já o segundo capítulo serviu basicamente para apresentar o processo coletivo de
organização dos catadores até que eles próprios tivessem conquistado as oportunidades de
121
poderem assumir um certo protagonismo na condução dos respectivos agrupamentos que dele
resultaram. Pode-se dizer que o fortalecimento deste protagonismo se deu muito em
decorrência de processos que o antecederam e que ajudaram a conformá-lo, tais como a
estruturação econômica dos catadores em associações/cooperativas promovida por agentes
externos e, em especial, devido à legalização de sua ocupação.
Com o avançar deste capítulo, tornar-se-á claro de que forma os grupos de catadores
que resultaram do processo de organização ocorrido no RS, tomados como base empírica
deste estudo, irão permitir vislumbrar inter-relações analiticamente distintas na medida em
que se determinar o status que conforma o tipo de reconhecimento ao qual cada um deles
possa estar se vinculando, bem como mediante atenção aos padrões com os quais se
confrontam ao tentarem legitimá-los socialmente.
Na medida em que a conjugação do “teórico” com o “empírico” tiver se prestado aos
propósitos de rediscussão e adequação conceitual, o resultado será a concepção de uma grade
pluridimensional, apresentada, ao final, quando se julgar que os argumentos tiverem sido
suficientemente explicitados.
3.1. ACRESCENTAR CONTORNOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS AO STATUS:
Novas bases para se (re-)pensar o reconhecimento
Esta seção será construída em torno da pretensa incorporação das dimensões política e
econômica à categoria do reconhecimento, cuja perspectiva de abordagem tem-se limitado
eminentemente a um viés culturalista, no qual recaem muitas das críticas à perspectiva de
Fraser, como mencionado no primeiro capítulo.
Se Fraser tendia, em seus primeiros escritos, a engessar cada uma das dimensões em
separado, como se fossem únicas e suficientes em si mesmas, mais recentemente, no entanto,
ela acaba subordinando-as umas às outras. Afinal, mesmo quando a autora incorpora a
dimensão política ao seu construto teórico dual, ela o faz instrumentalmente para que sirva
aos propósitos de fornecer “o palco no qual as lutas por distribuição e reconhecimento são
encenadas” (FRASER, 2005b:75), desconsiderando o quanto a própria cultura é um terreno
legítimo de luta política, profundamente imbricado às desigualdades socioeconômicas. Existe
um laço constitutivo entre essas dimensões que se revela quando a cultura é entendida como
concepção de mundo, como conjunto de significados que integram as práticas sociais, os
quais não podem ser entendidos adequadamente sem a consideração das relações de poder e
122
das lógicas econômicas que estão embutidas nessas práticas. Enquanto a compreensão da
configuração dessas relações de poder não é possível, como argumentam Alvarez; Dagnino &
Escobar (2000:17), “sem o reconhecimento de seu caráter ‘cultural’ ativo, na medida em que
expressam, produzem e comunicam significados”, os aspectos simbólicos das atividades,
artefatos e relações são, conforme afirmam Ray & Sayer (1999), combinados de diferentes
formas com atividades instrumentais dirigidas ao propósito externo de reprodução da vida
social. Neste sentido, pode-se supor que cultura, política e economia se referem originalmente
a diferentes lógicas e propósitos de ação e não a diferentes esferas da vida social, de forma
que nenhuma ão social pode ser tida como puramente cultural, política ou econômica, mas,
como argumenta Swanson (2005:88), “fundamentalmente constituída, não apenas afetada ou
influenciada” pelas três.
A partir de tais pressupostos, argumenta-se que a perspectiva teórica da autora oferece
pistas teóricas que permitem, e este é o propósito maior do trabalho, pluralizar seu construto
teórico mediante a incorporação de outras dimensões que se supõe sejam igualmente
constitutivas dessa que é uma de suas principais categorias, junto à redistribuição e à
representação.
Embora o trabalho não se proponha a limitar a análise desses grupos à perspectiva
cultural do reconhecimento, acredita-se que ela esteja incluída não apenas neste capítulo,
como tenha também sido contemplada no anterior, quando ao se fazer menção à “emergência
de lideranças”, “sendo reconhecido como ator legítimo”, “capaz de assumir a condução de
seus empreendimentos associativos e de travar as suas próprias lutas” e “protagonismo”, se
está fazendo referência ao substrato prévio, necessário para suportar uma discussão sobre as
outras duas dimensões, ou seja, o de se constituir primeiramente como um coletivo, o qual, no
caso dos catadores, esteve imbricado particularmente à estruturação econômica de sua
atividade em associações/cooperativas e ao reconhecimento político-legal de sua ocupação.
Conforme argumenta Phillips (2001), muitas dessas coletividades não estão clamando
por uma validação pública de suas próprias identidades, mas o que realmente almejam é
serem reconhecidas como um coletivo dotado de preocupações distintas, dignas de terem
acesso aos meios de pronunciá-las e, se necessário for, de legitimá-las legalmente. Neste
sentido, a argumentação acerca da dimensão cultural não foi concebida sob uma perspectiva
identitária, mas mediante um enfoque que tomou a auto-organização coletiva empreendida
por elas, tal como sugeriu Mayer (2005) ao se referir à aproximação das associações entre si e
destas com um movimento social, como uma marcha desses trabalhadores em direção à esfera
pública, que foi forjada somente quando essas coletividades neutralizaram as injúrias que as
123
acometiam e adquiriram “a confiança necessária para que se levant[assem] por si mesmas”
(FRASER, 1996a:120), cuja importância prévia para a aquisição do reconhecimento social se
encontra em consonância com Phillips (2001:9) quando a autora afirma que
[e]sta auto-organização é central os indivíduos alterando percepções externas
sobre o que são ou almejam ser e reivindicando o direito de se definirem e a
reivindicação maior é a de que nenhuma das injustiças nem seus remédios possam
ser adequadamente abordadas sem o completo envolvimento do grupo em questão.
(...) Grupos em condição de subordinação devem ser capazes de encontrar sua
própria voz, falar por si próprios, serem reconhecidos como participantes ativos,
eles não podem mais ser tratados como um “problema” para que um outro grupo
social resolva.
Para resumir o caráter “protagonista” com o qual se está envolvendo essa dimensão,
conclui-se com a fala de uma liderança do estado do Rio de Janeiro que, durante um encontro
interestadual, assim se expressou: “Se a gente não buscar o reconhecimento, a gente não será
reconhecido” (ROCCO, 2005).
Mesmo diante de uma pluralidade de temáticas que pode ser englobada pela dimensão
cultural, a discussão feita no capítulo anterior serviu de substrato prévio para a tentativa que
será feita neste capítulo de incorporar novas dimensões à categoria do reconhecimento social.
Tal dimensão, entretanto, será igualmente retomada quando se discorrer sobre os padrões
culturais que sustentam muitos dos discursos que interferem, ou mesmo auxiliam, diretamente
na construção de um status por esses grupos.
É importante ressaltar que essas delimitações “dimensionais” estão sendo feitas por
propósitos teórico-analíticos, de forma que elas se entrecruzam muito mais do que este
trabalho será capaz de evidenciar.
3.1.1. A reivindicação de um STATUS ECONÔMICO a despeito de serem socialmente
valorizados como “AGENTES AMBIENTAIS”
Será dado destaque, nesta seção, a duas dimensões em particular – econômica e
cultural expressas, respectivamente, pelo tipo de reconhecimento que os dois grupos
almejam que lhes seja concedido, mesmo que com contornos diversos entre eles, e por uma
das formas que se supõe que essa demanda por reconhecimento possua maior aceitação social,
a qual se julga ser facilmente assimilada pelos próprios dirigentes desses grupos, mesmo que
isto possa acabar por distanciá-los do enfoque econômico que imprimem a tal reivindicação.
124
3.1.1.1. FARRGS: O reconhecimento como “reciclador”
A partir da reconstituição de alguns dos fatos que contribuíram para o histórico de
formação da FARRGS e mediante as entrevistas realizadas com as suas lideranças, bem como
o contato com materiais informativos produzidos mediante a colaboração da própria entidade,
foi perceptível o quanto a razão de sua existência e as atuais motivações demonstradas pelos
seus coordenadores são dirigidas no sentido de dar uma maior visibilidade social à atividade
dos catadores.
O histórico da FARRGS esteve bastante vinculado ao processo de estruturação
econômica que se deu mediante a implantação de UTs em distintas regiões do RS, tendo sido,
desde a fundação, vista como um instrumento para viabilizar essa questão mais
empreendedora(R.). De fato, há, para os seus dirigentes, uma relação muito estreita entre a
aquisição dos meios materiais que lhes possibilitem avançar no ciclo da reciclagem, de forma
a explorar economicamente este nicho de mercado ainda em fase de expansão e não perdê-lo
para outros setores, e a visibilidade social de sua atividade.
Nos depoimentos de B., ex-1ª secretária e atual coordenadora geral, a qualificação do
reconhecimento social se alinha nitidamente com a dimensão econômica, como será visível
nos trechos citados a seguir, que dão conta de vislumbrar que a justificativa para a busca de
uma valorização passa desapercebida com relação a processos de caráter cultural ou político
(mesmo este último, de certa forma, é condicionado à dimensão econômica, que a relação
que se estabelece com o poder público se eminentemente pelo fato de ele ser visto como
potencial (...) parceiro nos projetos sociais”), sendo tal justificativa mencionada junto à
obtenção de recursos econômicos:
[Ao ser questionada sobre o que havia motivado a formação da FARRGS] (...) para
que eles [os galpões] pudessem lutar pelos seus direitos e também captar recursos.
(...) ter um órgão que ajudasse o catador a ser, ter valorização e também nesse
sentido também agregar valores aos seus produtos, porque senão cada um vendia e
vende não sabe quanto que um vende, não sabe por quanto que o outro vendia.
[Ao ser questionada acerca de qual era a luta da FARRGS] Pelo reconhecimento do
catador, é um, agregação de valores, entendeu!
(...) além de discutir o papel do catador, a gente discutir também o...[pausa] a
melhor agregação de valor aos materiais, discutir o processo de gestão e
planejamento dentro dos galpões de reciclagem (...) e também captar recursos
para que possam equipar os galpões de reciclagem.
A captação e o gerenciamento de recursos, porém, lhes parece depender de indivíduos
que estejam preparados para assumir uma postura de empreendedores. A ênfase na formação,
por conseguinte, recaiu na necessidade de capacitá-los para que venham a se tornar tais como
125
as lideranças já o são. Pelo que consta nos materiais in(formativos) da entidade, vê-se, de fato,
haver um destaque bastante grande quanto à necessidade de priorizar certas ações
estruturantes”, como as de envolver as associações filiadas em “processos de capacitação nas
regiões”, com especial ênfase para o desenvolvimento de um “Programa de Formação para
Lideranças” (FARRGS, 2003), mediante encontros que incentivem a qualificação profissional
“(...) na busca da construção de uma alternativa sustentável de trabalho, (...) para um
trabalhador autônomo que se organiza e se articula de forma solidária” (CURSO apud
MARTINS; 2004:136). Para isto, conforme comenta E., a formação teria que ajudar a definir
(...) qual o nosso papel enquanto catador no gerenciamento da coleta seletiva, (...) quais os
atores que envolve, a questão da comercialização, como fazer com que a gente possa estar
conseguindo melhores preços dentro dessa questão”.
A ênfase que passou a ser dada à questão da formação pôde ajudar a revelar uma outra
faceta que diz respeito a um certo distanciamento que se acredita existir entre as lideranças,
que se autoproclamam mais empreendedoras, e aqueles que continuam a se dedicar apenas ao
trabalho “braçal” das UTs, cujos efeitos adversos, em termos de desestabilizar uma unidade
de grupo e inviabilizar processos econômicos coletivos, esses cursos se propõem a reduzir.
(...) o triste da coisa é que os catadores não estão enxergando caminhos que são
um pouco mais complexos, né, da gestão coletiva de equipamentos, como a usina
de Porto Alegre, ou a usina de Caxias do Sul, que estão construídas e que não
estão operando, que poderia agregar valor, que, pra isso, você tem que ter uma
visão empreendedora, gerencial, muito maior, e que não é fácil de alcançar com
esse tipo de gente que está aí, né! (R.).
O curso todo, então, parece ser concebido para que, a partir dele, as futuras lideranças
enxerguem possibilidades de transformar uma visão individualizadora acerca desse processo
em algo pensado para o coletivo e, para que isso aconteça, precisam, primeiramente, deixar de
serem indivíduos desmotivados e dotados de pouca visão empreendedora para se tornarem
agentes ativos nas suas respectivas UTs. A crença que subjaz implícita nessa concepção é a de
que bastaria que fizessem alguns cursos de capacitação para que se tornassem como tais,
desconsiderando a existência de quaisquer outros fatores sociais. Isto acaba por reforçar
padrões sociais, principalmente da parte do poder público municipal, que os tomam por
dependentes e incapazes de gerenciar a sua própria associação, apesar da oportunidade
aparentemente desperdiçada dada pelo curso. Ely (2005) havia previamente comentado que
tais padrões acabam sendo facilmente assimilados pelos próprios catadores.
126
Em momentos de observação participante, foi possível verificar que existe uma tensão
constante entre “estimular um sentimento de coletividade” e, ao mesmo tempo, “desenvolver
o potencial individual das lideranças”, que se expressa nas próprias temáticas escolhidas para
serem desenvolvidas nos cursos. Entretanto, a perspectiva adotada pelos atuais coordenadores,
a qual se aproxima mais da possibilidade de desenvolver potencialidades individuais, acaba
por ser privilegiada. Isto pode ficar mais claro ao se tomar o eixo da “Educação”, reproduzido
no quadro abaixo, que consta do “plano de ações 2004-05”, concebido, em grande parte, pelos
dirigentes, que revela o quanto há de privilégio para as atividades que são consideradas
“produtivas” (...) a gente sempre discutiu muito essa questão da produtividade(R.) em
detrimento de atividades que viessem a fortalecer laços de solidariedade no interior das UTs e
entre elas:
AÇÕES ESTRUTURANTES
ATIVIDADES PROPOSTAS
Promover, em convênio com entidades de apoio, cursos para
grupos de associações sobre: gestão, capacitação cnica,
educação ambiental, tecnologias produtivas, novos jeitos de
produzir, comercialização, classificação de materiais.
Processos de Capacitação
nas Regiões
Incentivar a produção cultural, o empreendedorismo, a
formação de novas lideranças e a articulação entre galpões
como movimento social.
Produção de Materiais
Didáticos
Elaborar e publicar cartilhas do reciclador com linguagem
acessível.
Formação de
Lideranças da FARRGS
Desenvolver programa de formação para lideranças da
FARRGS (coordenadores e responsáveis pelas regiões) que
articule os processos formativos regionais e seja capaz de
analisar o sistema produtivo da reciclagem do Estado.
Figura 6. Fonte: FARRGS, 2003.
Quando da oportunidade que se teve de observar o andamento de um dos módulos que
fazia parte do “Programa Estadual de Formação de Lideranças”, em agosto de 2005, cujo
tema central era a comercialização e agregação de valor
56
, foi possível verificar o quanto o
curso havia sido estruturado em torno dos palestrantes convidados, com uma dinâmica
bastante expositiva e que destinava pouco espaço para atividades que envolvessem
diretamente os participantes.
56
Este Programa, que iniciou em 2004, estava em sua segunda edição. Na programação de 2005, ele foi
dividido em 4 módulos, que foram sendo desenvolvidos na seguinte ordem temática: “Processo Produtivo do
Lixo e Identidade do Catador”; “Gerenciamento Integrado de Resíduos”; “Gestão Interna e Legalização”; e
“Comercialização e Agregação de Valor”. O segundo encontro, o qual se menciona aqui, teve como foco a
relação das UTs entre si, com a Federação e com o poder público, e contou com “a participação de 31 lideranças
e 18 Associações de Recicladores vindas de 22 municípios do Estado” (CAMP, 2005).
127
O processo de concepção do curso, no que se refere à definição das temáticas a serem
abordadas e dos palestrantes a serem convidados, acaba sendo bastante entregue aos órgãos
apoiadores, que, pela própria autoridade com que são investidos, influenciam e participam
diretamente na configuração final que ele assume. Ao comentarem sobre a presença desses
órgãos, os coordenadores não relatam aparentemente qualquer preocupação com possíveis
interferências que eles possam estar ocasionando, até porque muito do que está sendo feito
fica condicionado à existência de apoio. Em última instância, lhes sobra pouca margem para
instituírem critérios de seletividade, afinal, são justamente eles que viabilizam a realização
dessa “ação estruturante”.
(...) a questão da formação, para isso, nós conseguimos esporadicamente um
projetinho aqui, um projetinho ali, para esse ano, a gente tem dois projetos, três,
oito mil reais ao todo, para manter assim basicamente as despesas, e a questão da
formação daí, a gente conseguiu, então, através da Copesul, e mais algumas
entidades, né, que nem a Resol cede a casa, o Camp cede as pessoas, telefone,
toda rede de infra-estrutura, a ADS também ajuda, e o resto vem da Copesul, a
viagem, as passagens do pessoal para vir, os instrutores (R.).
Durante a realização do curso mencionado acima, a única dinâmica de grupo proposta,
conduzida por uma agente externa que fazia parte da ONG que acompanhava o curso, foi feita
em um momento considerado de “descontração”, após o almoço e antes do início da próxima
palestra, e consistia em responder “através de uma brincadeira de completar frases de
improviso” a algumas questões, tais como, “sinto-me mais feliz quando...”, “quando estou em
um parque, eu gosto de...”, “ser ambientalmente responsável é...”, “conscientização ambiental
é...”, “eu me sinto integrado ao meio ambiente quando...”. Sem desmerecer o objetivo a que se
propunha, a proposta em si foi diluída em meio às atividades que soavam mais “sérias” e nem
sequer foi terminada devido à premência de tempo. Complementando essas atividades, houve
a realização de um roteiro de visitas à empresa SIL (Soluções Ambientais) de Minas do
Leão e à UT de Charqueadas, atividades que são amplamente elogiadas por R. – (...) não tem
processo melhor! pela capacidade de propiciar um aprendizado prático, onde o catador
pode ter um entendimento melhor acerca das diferentes fases do ciclo da reciclagem.
R. comenta que, na usina de Dois Irmãos, (...) cada ano nós temos uma viagem de
conhecimento”, sendo uma prática bastante freqüente se comparada a outros locais onde (...)
tem gente que trabalha dez anos ali na associação, nunca pisou num outro galpão”. Para
exemplificá-la, ele relata: (...) agora nós temos duas tardes, quarta-feira de tarde termina o
serviço aqui, aí nós visitamos uma tarde três associações e uma cooperativa, né e a outra nós
fomos em uma reciclagem de Novo Hamburgo, também uma cooperativa e visitamos três
128
indústrias, duas que compram matéria-prima de nós”. Assim, as visitas não ficam restritas às
associações de catadores, mas servem também como uma forma de se apropriar do processo
de “(...) continuação, extrusão, injeção e tal
57
e, para isto, (...) fomos na Copesul, nós fomos
na Gerdau, fomos na Riocel”. Essa experiência lhe parece ainda mais importante porque (...)
nivela a gente um pouco, com outros setores, reconhecendo os que trabalham e sendo
reconhecidos por eles como um “colega profissional”.
O objetivo dos cursos de formação tem sido basicamente o de instrumentalizar os
catadores para o trabalho associativo, abordando assuntos que vão desde a criação dessas
associações, confecção de estatuto e regimento interno, obtenção de licenciamento de acordo
com os padrões de conformidade ambiental que constam nas legislações vigentes, até formas
de gerir o beneficiamento e a comercialização dos materiais: (...) esses encontros da
Federação são locais de pesquisa também, aonde o catador vai dizer Quanto que o galpão
do fulano está vendendo? Quanto que está se pagando pela PET? A gente tem um universo de
informações que faz com que os catadores se apossem delas(B.). Tudo parece ser planejado
para que o catador, aos moldes do que parece acontecer com as lideranças (...) a gente,
eu, nessa visão, eu trabalho muito isso dentro da Federação –, adquira (...) uma visão
comercial, de mercado”, porque senão vai perder espaço (...) frente à concorrência de
empresários aí que cada vez mais estão tomando mais espaço junto aos municípios no
gerenciamento de resíduos, vem com o pacote todo, com o poder econômico e tal, né” (R.).
Pode-se notar que o catador deve empreender uma atitude pragmática o suficiente para
se adaptar às exigências que forem necessárias para sobreviver em um mercado cada vez mais
competitivo, interiorizar os valores e as normas sociais necessários para tanto e adquirir os
recursos para que possa se tornar autônomo a ponto de não precisar mais ser economicamente
“ajudado”, sendo que esta última situação, como conclui E., deriva do fato de o catador ainda
ser (...) muito imediatista e não tem recurso para fazer um capital de giro”. Não obstante
isto, R ainda reforça que (...) muitos grupos patinam nessa classificação dos materiais e
botam muitos materiais fora por falta de conhecimento, então, tudo isso, reduz renda, né,
material mal classificado, não tem capacidade de negociação, né, tem uma série de coisas”.
É preciso ressaltar que, em um material informativo que foi entregue durante o curso
citado acima, constavam críticas ao modelo de progresso desenfreado que, ao desrespeitar a
natureza e a importância da biodiversidade para o equilíbrio ecológico, provoca “um descuido
com o aspecto ambiental em função de interesses financeiros (busca do lucro)”. Para evitar
57
Tanto a “extrusão” quanto a “injeção” são processos industriais de transformação de plásticos (PIRES, 2005).
129
isto, a ênfase é dada à importância de um maior incentivo à reciclagem, como uma solução
viável do ponto de vista econômico, além de ser ecologicamente correta, para reverter o
problema da falta de matéria-prima, mesmo que esta prática, como afirma Legaspe
(1996:157), não questione “o modelo econômico, ela na verdade o reforça, porque o incentiva
e o patrocina, sendo o modelo capaz de manter o consumo como produto de satisfação dos
cidadãos urbanos”. Alguns outros comentários acerca do caráter “eco-econômico” da
reciclagem serão tecidos mais adiante.
Para que o mercado da reciclagem seja igualmente assumido pelos próprios catadores,
R. destaca que (...) o desafio é fortalecer o associativismo, né, e ele precisa se tornar mais
empreendedor porque senão vai perder mesmo muito mais espaço”, sendo que, como sugere
Gonçalves (2001), cuja fala pode ser tida como representativa muito mais de um discurso
sobre a reciclagem do que de uma prática, “o gerenciamento de resíduos deve envolver
sempre e de forma institucionalizada os catadores de materiais reaproveitáveis”
58
. Em um
trecho do guia “Do lixo à cidadania: Estratégias para a ação”, produzido pelo Fórum Nacional
Lixo e Cidadania em parceria com a UNICEF, também consta a seguinte asserção:
A organização é o exercício mais eficaz para fortalecer a cidadania. No Programa
Nacional Lixo & Cidadania, a organização dos catadores é considerada, portanto,
como uma necessidade prática, não apenas do ponto de vista de promoção da
cidadania, mas voltada também para a ação cooperativista que valorize esses
profissionais da coleta seletiva como agentes ambientais e econômicos (ABREU,
2001:30).
Segundo Teixeira & Malheiros (2004:8), o sentido de envolver os catadores reside no
fato de que eles próprios “consideram que a partir do momento em que se torn[am]
cooperativados, pass[am] a se considerar mais bem valorizados profissionalmente”. Além de
serem mais bem vistos pela sociedade, os autores ainda acrescentam que isto ocorre porque,
dentro das UTs, eles passam a se sentir tanto sócios quanto donos, e “fazem de tudo, desde
executar o trabalho administrativo até a atividade de catar lixo nas ruas”. Conforme relatado
no capítulo anterior, o trânsito entre essas diferentes funções não se dá, entretanto, sem as
suas ambigüidades e contradições, expressas, por exemplo, nas relações “conflitantes” que se
estabelecem entre associados e dirigentes.
58
Um exemplo prático se refere a um projeto de saneamento ambiental recentemente elaborado em conjunto
pelos Ministérios das Cidades e da Saúde para a seleção de propostas de implementação de projetos de resíduos
sólidos urbanos nas regiões metropolitanas, onde consta, como uma de suas diretrizes gerais, a necessidade de
que elas apresentem alternativas de geração de emprego e renda mediante a inclusão social dos catadores,
“inclusive com a organização de cooperativas e associações” (PROJETO, 2005).
130
O trabalho em um grupo organizado, vinculado a uma cooperativa ou associação
destacado por Paul Singer como a “solução para os problemas dos catadores” (CATADORES,
2002:6) –, parece favorecer o reconhecimento do catador como um agente econômico, já que
oferece, como reforça Mota (2005), condições de estabelecer vínculos mais sólidos com a
sociedade, viabilizando a construção de parcerias e a prestação de serviços, gerando
oportunidades de comercialização com preços e prazos mais favoráveis e possibilitando um
diálogo com governos e empresas.
A visibilidade que esses empreendimentos chegam a obter em termos econômicos
pode ser demonstrada em uma reportagem (LIXO, 2003) que enfatizou a experiência de uma
conhecida liderança de Porto Alegre que, em anos anteriores, fez parte da coordenação da
FARRGS –, atual coordenadora do Centro Ambiental da Vila Pinto, quando ela participou,
em 2000, da feira de Hannover, onde apresentou seu galpão de triagem como um dos 600
projetos mais inovadores do mundo. A matéria ainda ressaltava que ela havia feito contato
com empresários chineses que se interessaram pelo seu trabalho e que enviariam recursos para
construir um cinema comunitário em seu bairro, de forma que ela concluía que “[o] Brasil
está no Terceiro Mundo porque ainda não descobriu o mercado do lixo, que é aberto e
promissor”.
A inserção econômica dos catadores, de forma coletiva, favorecida pela adoção de
modelos de associativismo/cooperativismo, teve um papel fundamental como uma forma de
reconhecimento dos catadores que passaram a ganhar maior visibilidade social, o suficiente
para subsidiarem a construção de UTs em várias localidades do país, tendo sido, em grande
parte, incentivadas pelos próprios governos municipais. Conforme consta em um guia de
reciclagem elaborado pela ABES-RS em parceria com a FARRGS: “As associações e
cooperativas de catadores foram a alternativa encontrada, aproximadamente quinze anos,
para garantir a prestação de serviços sociais e uma relação articulada com fornecedores,
compradores e poder blico” (PIRES, 2005:7). Como foi exposto até então, este modelo
somente parece sustentável para a FARRGS se concebido sob um prisma “empreendedor”,
mesmo que ainda não se trate de uma realidade para a grande maioria de catadores que segue
nas ruas e em lixões, para os quais somente o acesso às associações/cooperativas viria a (...)
humanizar mais esse trabalho” (R.).
Essa visão carrega um certo paradoxo, visto que mesmo que se trate de um
investimento no coletivo, o sucesso dela parece depender, em grande parte, de uma postura
individual arrojada da parte de suas supostas lideranças. Não obstante a importância desse
profissional capacitado, cabe recordar aqui, no entanto, os argumentos utilizados por R. para o
131
fracasso da micro-usina da Restinga, comentado no capítulo anterior, em que um deles foi
justamente o fato de haver indivíduos capazes de empreenderem processos econômicos
coletivos e não grupos, já que: (...) a categoria dos catadores é uma categoria pouco, pouco
instruída, né, no caso assim, pouca escolaridade e pouca visão empreendedora”.
Foi perceptível nos depoimentos de E., que, mesmo quando os questionamentos eram
dirigidos aos benefícios coletivos gerados pelos processos de formação em andamento, houve
referências explícitas à sua própria vivência como coordenadora geral da Federação. Em
grande parte das vezes, ela terminava por se remeter aos ganhos em termos de experiência
pessoal: “(...) hoje, eu, embora não tendo a 5ª série, eu hoje consigo decifrar algumas
palavras técnicas que antes eu ficava com medo de falar, porque não conseguia falar aquela
palavra bonita e hoje eu sei que se eu falar do meu jeito, eu vou conseguir falar” (E.). Mesmo
em se tratando de um trecho um pouco longo, ele contribui para revelar o significado que
esses processos vêm tendo para o reconhecimento de lideranças que passam a se considerar
instrumentalizadas para lidarem com o universo econômico da reciclagem:
(...) sexta-feira passada, um repórter estava dizendo assim, porque que tu achas
que caiu o preço dos materiais? Eu disse uma das coisas que caiu o preço dos
materiais foi a queda do dólar, diz ele assim, como o dólar?? [faz cara de
surpresa] e eu disse assim, porque o nosso material a gente separa, prensa e vende,
né, e as indústrias compram esse reciclado, ele está no mercado e com o lar
baixo, as indústrias em vez de pagar o PET, vamos dizer assim oh, beneficiado,
lavado, beneficiado a 2 reais, elas podem pagar 2,30 e comprar matéria virgem,
sabe, então, para elas, com o dólar baixo compensa mais comprar fora e aí, com
isso, os depósitos, as empresas ficam lotadas e o preço cai [rindo]. Aí diz ele assim,
ah...tu sabes que eu não tinha pensado nisso!! E da onde tu obténs essa
informação? Eu disse, da prática, sabe, aí diz ele assim, que série tu tens? Eu
tenho a série, sabe, então, quer dizer e, antigamente, pra ti saber disso tu tinhas
que ter, sabe, grau para saber disso e hoje não, sabe! Então assim, e é uma
coisa que a gente tem que estar sempre por dentro, eu disse para ele assim oh, nós
somos catadores mas a gente jornal, procura estar atualizado, porque que os
compradores o querem levar o teu produto, melhorar a nossa qualidade, então
esse processo de formação que nós fizemos, né, e a gente procura trabalhar com os
técnicos, parceiros nossos, das entidades, mas também com os próprios catadores,
por exemplo assim, embora não tendo grau, , eu tenho currículo no CNPq lá,
e sabe, tenho potencial para ir num grupo, acompanhar, ajudar a se organizar.
Sob a perspectiva do que foi dito até aqui, a construção de um status econômico por
esses indivíduos que vivem do lixo está bastante vinculada à assimilação de normas sociais
dominantes, no que diz respeito à atitude que se deve adotar frente às regras econômicas de
funcionamento, mesmo ao operar sob uma perspectiva “solidária”. É possível verificar, com
isso, que o reconhecimento social é construído e divulgado mediante um discurso que vincule
os catadores ao espaço confinado de uma UT, subordinando-o a um grupo, mediante a
formação de uma associação/cooperativa. Tirá-los da rua é a ordem do dia, seja porque
132
possam, segundo consta no guia comentado acima, feito em parceria com a FARRGS, estar
“dificult[ando] o trânsito nas grandes cidades e compromet[endo] os sistemas oficiais de
gerenciamento de resíduos sólidos”, seja porque possam estar “ocasion[ando] problemas
ambientais graves” (PIRES, 2005:6-7). Poderia mesmo se dizer que a construção de um status
fica atrelada à vinculação a um grupo devidamente formalizado (ainda neste capítulo serão
tecidas considerações sobre o reverso desta situação, expressa no não-reconhecimento social
dos catadores de rua), sem que, necessariamente, haja uma subordinação ao grupo, no sentido
de que se possa desenvolver potencialidades individuais. A reivindicação por reconhecimento
social parece, portanto, ser calcada na construção do que está se denominando aqui como
reciclador”.
A consolidação do reconhecimento social, aos moldes empreendedores vistos acima,
tem sofrido certas interferências econômicas e políticas. Mesmo que o processo de formação
de lideranças da FARRGS esteja em andamento desde 2004, ele entra em choque com a falta
de recursos próprios para que os coordenadores possam se dedicar a ele, já que (...) a gente
não tem remuneração para nós nos afastarmos do trabalho, por exemplo, então cada vez que
a gente se afasta do trabalho, ou a associação sustenta ou você não tem renda, né, tem a
questão das despesas, deslocamento, tudo isso, ”, e ainda acrescenta, (...) que nem a E.
que, tempos atrás, estava praticamente tempo integral disponível, passou meses sem receber
nada que diga respeito a alguma renda fixa, que ela recebia o que R. chama de um
quebra-galho (...) ela ganha uns acho que 170 reais por mês, assim, uma ajuda de custo”.
Esta ajuda de custocorresponde ao valor médio recebido pelos associados em muitas UTs
da Capital, sendo que, durante os meses em que se esteve em contato com a UT da Restinga,
foi possível presenciar que, seguidamente, os associados receberam um valor mensal inferior.
Com essa “problemática” financeira instalada, o processo de regionalização tem-se
tornado quase que insustentável e acaba favorecendo uma centralização das ações nas mãos
de poucas lideranças que, por sua vez, vêem as potencialidades desse processo serem abaladas
a tal ponto que não parece haver menção à importância em si do trabalho de formação, no que
diz respeito à sua provável capacidade de mobilizar o coletivo de catadores: (...) eu fui
participar de uma reunião na semana retrasada, em Caxias do Sul...bom, perdi o dia, né!
Não recebi! Se a associação aqui não sustenta nessas coisas, né, não tem, tiro a passagem, a
alimentação, mas e daí?(R.). Devido à escassez de recursos e às dificuldades que daí advêm
para os dirigentes, que são, em última instância, os maiores propulsores dessa capacitação em
moldes “empreendedores”, o processo acaba severamente prejudicado. Como atestam ambos,
133
(...) é um caminho no meio do lodo, (R.), (...) tu andas te arrastando, sabe, não tem
como continuar o processo” (E.).
A contribuição mensal de cada uma das associações filiadas, no valor de R$ 1,00 por
pessoa por mês, a qual deveria manter a Federação em funcionamento, possibilitando aos
dirigentes pagarem as despesas mínimas de manutenção da entidade (que, no momento, não
possui sede própria), (...) não acontece, se tem 5 ou 6 associações contribuindo é muito!”, o
que faz com que E. recorde o próprio modo arbitrário como a entidade foi fundada, (...) foi
decidido ah vai ser assim, assim, assim e pronto!”, para explicar o porquê dessa irrisória
participação que se estende até os dias de hoje. Segundo ela, esse descaso acaba por se refletir
diretamente na desconfiança que muitos dos associados das UTs de onde os coordenadores
provêm têm quanto às freqüentes saídas dessas lideranças de seus locais de trabalho, afinal,
como ela mesma chega a afirmar, (...) às vezes tu ficas uma semana fora da associação sem
trabalhar (...) inclusive se deixar, a Federação consome a gente sábado e domingo”, o que
provoca um desgaste na relação entre eles:
(...) para eles [os outros associados], tu estás aqui, tu estás trabalhando, se tu não
estás, tu não estás trabalhando, né, e como a Federação ela o pode remunerar
os seus coordenadores, tu não tens como passar meses sem receber, sabe, o quê
que acontece, tem associações que liberam, não tem problema e tem outras que
complicam, e isso, o que que acaba acontecendo, acaba tendo um estresse muito
grande, sabe, e queimando lideranças aí, então assim, eu pra te dizer bem
francamente assim (...) que eu não vou continuar (...) o processo vem se arrastando
e tal, mas eu, eu acredito que a Federação, ela é importante, vem fazendo um bom
trabalho, deve continuar, mas eu estou abrindo mão! (E.).
Sob a ótica de seus coordenadores, essa situação crítica parece ser favorecida por duas
circunstâncias em particular, uma pelo fato de que existem condições legais que impedem que
a Federação os remunere e outra, pela escassa contribuição financeira da parte dos associados,
os quais, segundo E., (...) não sabem aonde querem chegar com a Federação”. Com isto, R
conclui que (...) não é difícil tornar visível a Federação, o difícil mesmo é sustentar ela”. A
sustentação econômica está tão complicada em sua opinião que ele chega a sugerir para a ex-
coordenadora geral que ela pare (...) de sair muito nessas coisas assim [eventos], porque a
gente está criando uma expectativa e daqui a pouco, se as coisas não continuarem, né?”.
A despeito da existência de imposições legais e da escassez de recursos financeiros,
houve, recentemente, a eleição de uma nova coordenação, para a qual, E. e R., de fato, não se
candidataram – muito embora E. relate apelos da parte de alguns dos associados que a
consideram como a espinha dorsalda Federação e que chegavam a propor (...) ah, mas a
gente muda os estatutos, vamos achar um jeito de pagar os coordenadores!”. Esta eleição
134
significou a opção coletiva por dar continuidade à entidade, que antes da realização da
assembléia, E. chegou mesmo a comentar que se, por acaso, durante a mesma, (...) não tiver
lideranças, sabe, se elas não quiserem assumir por essa questão do custo, (...) da viabilidade
econômica dela, pode-se fechar, a assembléia seja para fechar a Federação, esse é um risco
que se corre”. R. acrescenta à instabilidade econômica, que chegou a ameaçar a continuidade
da entidade, outras dificuldades de contornos mais políticos que não deixam de lhes aportar
também um cenário de incerteza, para o qual ele já começa a vislumbrar opções de saída:
(...) infelizmente ainda nós estamos passando por situações assim de mudança, aí
complementa com os processos políticos, né, públicos, mudança de gestão, por
exemplo, Porto Alegre, tem situações aí, Novo Hamburgo, e outras aí, Alvorada,
onde a mudança de gestão na prefeitura muda a relação com a associação ou a
visão sobre o tratamento de resíduos, coisa assim, é bastante complicado. Eu acho
que nós não podemos fugir, em termos de futuro então, nós não podemos fugir de
uma articulação entre nós, que faça circular informações, que estimule a
formação, né, que busque até crescer na questão da cadeia produtiva, essa questão
da comercialização coletiva é uma coisa assim que é bem complicada de fazer, mas
ela é necessária pouco a pouco.
A saída de R., tesoureiro da gestão 2003-05, da coordenação da FARRGS coincide
com algumas críticas feitas por ele durante a realização do trabalho de campo quanto à
validade desse suposto (...) instrumento jurídico de representação”. Utilizar a Federação,
entidade que representa o todo(B.) entendendo o todo como o segmento dos catadores
organizados em associações –, como um instrumento de obtenção de recursos econômicos foi
bastante questionado por R., considerando não o fim que se almeja, de angariar recursos, mas
o fato de não estar se prestando adequadamente para tanto e, ultimamente, ter-se tornado um
processo desgastante, afinal representar quem não quer ser representado, não vale a pena,
né! O que as associações esperam é um pai, uma mãe, né, e não é por ”. Para R., (...)
apesar dos processos de formação serem muito mais efetivados, porque antes não havia
praticamente”, eles não conseguem atingir os objetivos para os quais se propunham devido ao
fato de serem feitos de forma pontual, sem nenhum “processo de acompanhamento”.
Mesmo participando dos cursos de formação que estão sendo ministrados atualmente,
o ex-tesoureiro sugere alternativas para contornar a baixa eficácia de alguns deles, alternativas
estas que derivariam de uma reformulação da própria entidade. Isto faz com que ele venha a
propor uma nova configuração para a Federação reciclagem em redea qual se ajustaria
melhor aos moldes empreendedores que o trabalho nas UTs deve assumir e, ao mesmo tempo,
seria capaz de capacitar profissionalmente os catadores, permitindo que eles aprendessem
(...) a pescar com aquilo que tem na mão, o rio que está ”, adquirindo, por fim, o que não
135
deixa de ser igualmente almejado pela atual coordenadora geral, (...) sua autonomia dentro
do seu galpão” (B.).
Eu acho que essa é a tarefa principal, que é dar instrumentos para o trabalhador
da reciclagem poder se autogerir, né, autogerir, administrar seus conflitos na
relação dentro da associação e crescer profissionalmente para agregar mais
valores aos materiais, né (...) e daí eu venho pensando assim se de repente a gente
pensasse alguma coisa assim, reciclagem em rede, né, participa quem quer, você
arruma recursos através de uma entidade que consegue fazer esse processo de
capacitação da mesma forma sem esse desgaste da representação (...) porque se
nós dissermos ah nós não somos Federação, somos em rede, né, nós temos uma
rede de associações, tem uma equipe que, que pode socorrer as associações
para fazer uma capacitação, né, referências, telefone, tal e tal, e-mail, tem um e-
mail central aí, presta assessoria e não fica desgastando com representação, igual
nós não podemos pegar recurso, então, pega e faz um projeto via igreja, ou Camp,
ou qualquer entidade aí (R.).
Sem a preocupação com a questão da representação, que, para R., tem-se tornado um
empecilho, essa assessoria poderia (...) ajudar o pessoal a planejar melhor o seu espaço, a
questão da produtividade, os seus conflitos internos, a questão da comercialização, controles,
transparência, prestações de contas internas para não gerar nenhum conflitoe isto teria um
impacto diverso daquele provocado por entidades externas que não possuem conhecimento
concreto acerca da realidade dessas UTs e, assim, mais dificilmente poderão estabelecer um
vínculo com os trabalhadores: É diferente de alguém de uma entidade que vai e que não
vive isso do que a gente poder chegar e ajudar um grupo, ”. Mesmo que essa “troca” traga
certos benefícios porque, como ele faz questão de reforçar, seria (...) catador falando para
catador”, uma relação de dependência que tende a se perpetuar, que a metodologia e os
assuntos abordados não se parecem diferenciar muito do formato adotado atualmente por
outras entidades, cujo foco prevê a “ajuda” de um agente externo que se julga capaz de
diagnosticar problemas – em sua maioria, vistos sob um viés econômico – e apontar soluções.
(...) os catadores precisam, a gente está perseguindo muito essa coisa assim, eu
acho que processo de formação, de acompanhamento nas associações, nós fizemos,
eu e a O. [R. menciona o nome da esposa que trabalha na usina de Dois Irmãos]
aqui, fizemos, mas daí nós como pessoas contratadas, né,s fizemos vários
trabalhos assim , ou por solicitação do município ou por alguma entidade que
está precisando de reforço (...) essa gente [faz menção à usina de Dois Irmãos] está
crescendo, mas ele cresce porque eu estou aqui, a O., que temos mais condições de
ajudar, tu ajudas ele a crescer aqui em relação à reflexão, traz um problema de lá,
traz uma reflexão e tu reforças ele aqui dentro, (...) para ele conseguir se tornar
um multiplicador, fortalecer isso, né, então, eu acho que o processo de formação
ele não pode ser acadêmico, o processo de formação ele tem que ser do dia-a-dia
(...) agora a maioria, isso que s estamos em um outro nível, a maioria das
pessoas em outras associações, eles o têm esse poder de chegar, muitas vezes
são até analfabetas até que vão para o curso, não conseguem nem anotar as coisas
e depois não conseguem trazer (R.).
136
As dificuldades financeiras, segundo relato dos coordenadores da FARRGS, são
agravadas por conta da entrada do MNCR no cenário nacional, (...) hoje tudo é Movimento,
né, tudo é Movimento(R.), sendo canalizadas para este último quaisquer oportunidades de
firmar parcerias com órgãos governamentais federais, pela própria conjuntura política que,
segundo E.
(...) libera [recursos] para quem é ligado ao Movimento e quem não é ligado ou
quem...sabe, não recebe! (...) porque está um dirigente daqui do Estado que foi
eleito legitimamente num congresso e que, agora, ele diz para quem é que vai e
para quem é que não vai o recurso! Então, isso gente, sabe, é o cúmulo dos
cúmulos! [indignada] (...) inclusive assim, porque o movimento ele foi construído,
sabe, para beneficiar todos, independente se é filiado à Federação ou o, se
estavam organizados ou não, e hoje está uma discriminação aí, sabe.
De fato, houve, em 2004, a assinatura de um convênio do MNCR com o Governo
Federal, através do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no valor de R$
1, 4 milhão. A liberação da verba foi feita por meio de um convênio entre o ministério e a
OAF, que administrou os recursos com parceiros do MNCR nas 5 regiões do país. O objetivo
do projeto, apresentado ao ministério pela Comissão Nacional e Equipe de Articulação, foi o
de capacitar 700 lideranças, cobrir gastos com o deslocamento de pessoal e material didático.
Junto a este, houve ainda a estimativa de que se destinassem R$ 50 mil para investimentos em
capacitação e equipamentos de segurança com recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia
(ROCCO, 2004a), sendo que, em 2003, durante o Festival Lixo & Cidadania, tinha
havido o lançamento do edital do Fundo Nacional do Meio Ambiente que previu o repasse de
R$ 4 milhões para capacitação de cooperativas e associações
59
.
Em 2005, durante o II Congresso Latino-americano de Catadores, houve o lançamento
do edital de seleção pública de propostas para o Ministério de Ciência e Tecnologia e do
projeto “Cadeia Produtiva de Reciclagem”, que previu o repasse de R$ 965.759,92 pela
Petrobrás, para a formação de lideranças e a organização de 17 entrepostos de
comercialização somente no RS, cuja execução no Estado ficou a cargo do núcleo estadual do
MNCR com o apoio da Fundação Luterana de Diaconia (BUCHWEITZ, 2005). Em meio a
59
O MNCR também já havia assinado, em 2003, um convênio com o Governo do Estado do RS – “Programa de
Frentes Emergenciais de Trabalho” (PFET) que fornece bolsa-auxílio e bolsa-alimentação no valor total de R$
280,00 por seis meses e também qualificação profissional, cujo repasse de recursos estava atrasado, o que
motivou um ato público em frente ao Palácio Piratini no último dia do Encontro Estadual do MNCR, em
novembro de 2004 (ANDRADE JR., 2004). Já R. diz ser contrário a esta postura de requerer auxílios do
governo, o que acaba resultando em críticas à atual coordenação da FARRGS: (...) tem gente que critica a
nossa coordenação porque nós não buscamos bolsas no governo do Estado, (...) olha eu me nego a fazer isso!
Acho que, em situações extremas sim, mas eu quero que os catadores tenham instrumento de trabalho”.
137
este montante de recursos a que o MNCR está tendo acesso, E. declara ter dúvidas com
relação ao destino final dessa verba pública, afinal
(...) tem projeto que foi encaminhado para a Petrobrás, que veio caminhão e que
está com um cara que se intitula catador e que, na verdade, é um atravessador! E
ninguém fiscaliza isso, sabe, está assim que é uma beleza [em tom de ironia] (...) e
eu sinceramente assim, o processo de transparência do Movimento, de recurso que
vem do Movimento pelo governo federal não tem transparência, te digo isso bem
claramente! Se for botar numa (...) se fizer uma CPI do Movimento dos Catadores
vai ser vergonhoso pra todo mundo, porque vão se lembrar dos catadores aqui
do RS, sabe, mesmo que a gente não seja ligado ao Movimento Nacional
diretamente assim, então sabe, esse tipo de coisa, eu sinceramente, eu prefiro que o
Lula [presidente, eleito para a gestão 2003-06 pela coligação PT, PL, PC do B,
PMN e PCB] perca, sabe, que pare de financiar os movimentos para que nós
possamos lutar, sabe, ou a gente faz essa união junto de novo ou cada um por si,
vai o Movimento lá, vai a FARRGS lá, porque é um absurdo isso hoje que está
assim (E.).
Segundo consta em um informativo dos catadores do Rio de Janeiro, o convênio do
MNCR com o Ministério do Desenvolvimento Social “atende às orientações do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, quando criou, em setembro de 2003, o Comitê Interministerial de
Inclusão Social dos Catadores de Materiais Recicláveis” (ROCCO, 2004a).
Eu sinceramente, olha, nada contra o governo Lula, mas eu estou rezando que o
governo Lula caia, sabe, porque assim oh, votei em todas as vezes que ele se
candidatou, acredito na...como é que se diz, nas metas dele sabe, que assim oh,
esse negócio de tu encaminhares um comitê interministerial não respeitando as
organizações que existem no Estado, pra mim não me serve! (...) este modo como
está este encaminhando político, como está o Movimento dos Catadores não serve
(E.).
A despeito das críticas aos atuais encaminhamentos políticos, E. admite que (...) hoje
os catadores nacionalmente estão tendo legitimidade e estão tendo recurso”. A Federação, no
entanto, acaba por sofrer um certo isolamento dos processos que se dão em nível nacional. Foi
visível, no trabalho de campo, que, de uma forma talvez ainda mais acirrada, continua a
divergênciaentre os dois grupos: (...) [outros estados] eles não abriram, sabe, eles não
se enfrentam para não abrir a ferida e aqui no RS, nós nos enfrentamos, sabe, botamos as
coisas a limpo e vamos e não está bom, então o que que acontece, acaba vazando para
outros (E.), (...) e como isso tem influência em nível federal, o reconhecimento do
Movimento prejudica a questão da Federação, e a situação da Federação ela é única aqui no
estado do RS, em outros estados não existem essas organizações, por estado” (R.).
A construção analítica feita a partir dos dados coletados a respeito da FARRGS à luz
da teoria do reconhecimento permitiu concluir que as atuais impossibilidades político-
138
econômicas de estabelecer parcerias de grande porte (conjuntura político-governamental e
situação de endividamento) e os impasses financeiros que as suas lideranças vêm enfrentando
por limitações legais e pelo “descaso” de grande parte dos associados acabam por interferir na
construção de um status econômico”, considerando que este se sustenta na ênfase dada ao
associativismo/cooperativismo e em uma postura individual empreendedora, cujas bases lhes
servem de argumentos para serem socialmente reconhecidos como “recicladores”.
3.1.1.2. MNCR: O reconhecimento como “co-gestor”
No que diz respeito ao MNCR, mesmo que seja igualmente perceptível uma demanda
de reconhecimento em conformidade com a dimensão econômica, ela pode ser considerada,
quando comparada à FARRGS, mais propriamente direcionada ao poder público do que à
sociedade. Sem que se desconsidere a importância que o reconhecimento social tem para o
MNCR, se percebe que a conquista prévia de um reconhecimento da parte do poder público
serve, neste caso, como um meio para fazer com que a sociedade (...) reve[ja] que aquele
catador poderia ter sido reconhecido, né” (C.). Outrossim, mesmo que um caráter econômico
envolva a ambas, fins que, por vezes, se cruzam, mas que são sustentados por concepções
distintas.
A partir da reconstituição de fatos que contribuíram para o histórico de formação do
MNCR e mediante entrevistas realizadas com suas lideranças, bem como o contato com uma
série de documentos listados na introdução, foi possível verificar o quanto a existência dessa
organização e as motivações demonstradas por suas lideranças são dirigidas no sentido de dar
uma maior visibilidade social aos catadores, (...) para mostrar que nós também temos direito
a conviver dentro da sociedade, temos caráter para isso(V.), o que dependeria de que se
legitimasse socialmente (...) uma outra forma de estar e viver no mundo em coletividade,
partilhando aí o resultado dessa produção que é coletiva, né, individual e coletiva” (G.).
Em termos mais imediatos, no entanto, um dos (...) objetivos estratégicos(G.) para
que todos os catadores, inclusive aqueles que estão na rua, possam começar a usufruir dessa
produção coletiva é obter a (...) valorização do trabalho através do pagamento pelo serviço
prestado, pelo poder público”, que (...) acabar com a exploração, né, totalmente(T.), da
forma como o MNCR diz almejar, (...) é um processo complicado, que é muito a longo
prazo”.
139
Há, de fato, para as suas lideranças, uma relação muito estreita entre a aquisição dos
meios que lhes possibilitem (...) qualificar o trabalho e pagar o custo operacional que está
embutido neste serviço(G.), de forma a evitar que o mercado da reciclagem seja, cada vez
mais, assumido por empresas privadas, e a luta que eles empreendem para que (...) o povo
seja reconhecido” (V.).
O serviço ao qual as lideranças fazem referência aqui é o da coleta de lixo, mais
especificamente o serviço de coleta de materiais potencialmente recicláveis, diariamente
recolhidos das ruas por um contingente de “coletadores informais” existentes na Capital, cujo
número, excetuando-se aqui os chamados recicladores, que Costa & Sattler (2000)
consideram como sendo as pessoas que trabalham nas UTs, foi estimado por estes autores em
1.140. segundo os dados fornecidos pela Assessoria às Unidades de Triagem do DMLU, e
apresentados por Martins (2004), existiriam, aproximadamente, 1.500 trabalhadores
informais, descontados os mais de 600 que estão em UTs. Em relação à coleta, a autora
relatou que de um total de cerca de 180 Ton/dia de materiais, 60 Ton/dia (20% do total
diário) são recolhidas pela coleta seletiva “oficial”, sob administração do DMLU, e levadas
para as UTs, enquanto a maioria, cerca de 120 Ton/dia, é recolhida pelos catadores de rua.
Como afirma Legaspe (1996:57), para o caso de São Paulo,
são os catadores que interferem na paisagem urbana do Centro quando eles
funcionam como um exército de lixeiros, percorrendo rua por rua, várias vezes ao
dia, ou ainda, quando ficam estacionados em um grande calçadão e esperam que
cada loja os chame para fazer o serviço do lixeiro, que neste caso eles não são
remunerados pela Prefeitura para tirar o lixo e dar um fim nele, como é o caso das
empresas que recebem por volta de US$ 20 por tonelada recolhida de lixo.
Mesmo não sendo remunerados, em uma avaliação técnico-econômica e social acerca
dos sistemas de coleta seletiva de resíduos sólidos urbanos existentes no Brasil, realizada, em
1999, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, cujo relatório final incluiu dados sobre
a atividade de “catação” em várias cidades brasileiras, os catadores de rua não puderam ser
considerados como “desnecessários economicamente”, constatação a qual Oliveira (1997)
havia refutado. Gonçalvez & Abegão (2004) comentam que, apenas na cidade de São Paulo,
os catadores “salvam” cerca de 750 Ton/dia de materiais recicláveis, que deixam, assim, de ir
para os aterros, economizando para a prefeitura cerca de R$ 45 mil na coleta e operação dos
mesmos e, ao longo do período de um ano, fazendo-a economizar aproximadamente R$ 15
milhões. A despeito de sua informalidade, os catadores são apresentados, no referido
relatório, como uma possível fonte social de lucratividade, ao que parece, menos para eles
140
próprios, já que a execução de sua atividade sem remuneração parece um dado inquestionável
no trecho abaixo, o qual ilustra particularmente que, para além dos benefícios ambientais, sua
importância reside nos resultados gerados em termos propriamente econômicos, em especial
para o poder público municipal:
Eles (cerca de 1.000 carrinheiros circulam diariamente) contribuem, assim, para o
programa “lixo que não é lixo”, desde que executam a coleta sem ônus para a
Prefeitura Municipal de Curitiba ou para a empreiteira. Com isso, além de reduzir
os gastos da limpeza pública, geram empregos com o material que encaminham
para as empresas, economizam recursos materiais e contribuem, também, para
ampliar a vida útil do aterro sanitário (PUC apud AZEVEDO, 2004:81-82).
Esse processo, que Legaspe (1996:8-9) denomina de “reciclagem clandestina”, termo
adotado a partir da perspectiva da “Prefeitura e [de] todos os demais órgãos do Governo [que]
não entendem a coleta de lixo por terceiros como uma atividade legal, ou ainda como um
serviço”, está sendo o maior responsável pelos altos índices de reciclagem que o país vem
conquistando. Segundo Zampetti (2005), estima-se que os catadores sejam responsáveis por
90% dos materiais que suprem as indústrias recicladoras, a despeito da informalidade em que
operam e a despeito do fato de que, conforme afirma V., (...) a nossa classe é uma classe
muito desprivilegiada, é uma classe que não aparece, né, e sendo que fizemos a parte mais
difícil de toda a limpeza de Porto Alegre, assim como em todo o Brasil, né, e não somos
reconhecidos”.
Com o intuito de gerar (...) postos de trabalho para os catadores (G.), o projeto
firmado com a Petrobrás previu justamente o desenvolvimento de um estudo sobre o custo do
posto de trabalho na coleta seletiva em comparação com o custo dos postos de trabalho na
indústria, no comércio e no setor de serviços. O objetivo teria sido o de levantar informações
para embasar as negociações com o Governo Federal no que diz respeito à participação dos
catadores nos sistemas de coleta seletiva (A reivindicação é a de que o Governo Federal
invista 170 milhões de reais e gere 39 mil postos de trabalho em 199 cidades localizadas em
22 estados, repassando o recurso diretamente para as associações/cooperativas, sem editais e
licitações)
60
.
Foi possível perceber que para grande parte dos entrevistados (...) reconhecer os
catadores significa lhes prover as condições para que eles possam (...) organizar uma
estrutura digna de trabalho”, como fica evidente no depoimento de A. que afirma que a
valorização (...) é porque o catador ele faz o trabalho de limpar a cidade, de encaminhar de
60
Essas informações foram coletadas, em abril de 2006, no site internet do MNCR: www.mncr.org.br.
141
forma correta os materiais recicláveis e tudo mais, então a valorização parte disso, que é a
prefeitura reconhecer, né, esse trabalho que ele faz”. Esse reconhecimento significa receber
do poder publico municipal, principal responsável pela limpeza urbana, os rendimentos
correspondentes ao serviço prestado, ou seja, responsabilizá-lo por pagar (...) cada tonelada
de material reciclado recolhido pela (...) coleta seletiva solidária que os catadores
organizam nas ruas há muito tempo”:
Taticamente, está colocada a responsabilização do poder público, porque, pela lei
ele é o responsável pelo destino do lixo, né, principalmente o poder público local,
municipal (...) então s entendemos que está o alvo, que o poder público ele
tem que ser de alguma forma co-responsabilizado e é pelo serviço de coleta, ele é o
responsável e é com ele que nós temos que tratar de obter o pagamento pelo
serviço prestado, reconhecimento, a valorização, a estrutura necessária para
desenvolver o trabalho, né (G.).
A conquista desse reconhecimento, no entanto, deve ocorrer sem que isso se qualifique
num vínculo empregatício, que, como G. faz questão de salientar, (...) nós não queremos
ser empregados pelo poder público”, ou, como reforça T., não na lógica de patrão”, mas
sim (...) que o catador seja o seu próprio patrão”. Os benefícios de operar em um sistema
formal, porém, não parecem estar tão distantes de seu horizonte de luta visto que a condição
de autônomopode garantir (...) um dia poder se aposentar pelo pagamento do INPS”, de
forma que, como havia sido comentado por uma das lideranças do MNCR, (...) a gente
pretende já, em objetivo finalista, estar chegando a isso mesmo, a esse ponto assim, né, de
benefícios, INSS, carteira assinada, aposentadoria, né” (C.).
A reivindicação de que seja o poder público a ser responsabilizado por pagar o serviço
de coleta prestado pelos catadores de rua, como foi visível nos depoimentos de várias das
lideranças do MNCR, parece operacionalizável no que diz respeito à fonte de arrecadação de
tais recursos mediante os impostos pagos pela sociedade, correspondentes à taxa de limpeza
pública urbana. A adoção desses parâmetros econômicos é explicitada nos trechos a seguir:
(...) principalmente o poder blico local, municipal, através dos impostos, né, tem
o recurso necessário para dar o destino correto (G.).
(...) porque a prefeitura recebe, né, através dos impostos de cada um dos cidadãos
que produz o seu resíduo, ela recebe para fazer isso, então nós também teríamos
que ter essa parte (A.).
(...) eles [prefeitura] não pagam o DMLU para fazer a coleta seletiva? A sociedade
não tem um encargo social onde desconta pro DMLU? Nós fizemos toda essa
reciclagem, todo esse serviço, nós fizemos de graça, e não somos reconhecidos, né!
O que o DMLU tem mais do que nós? O diretor do DMLU é um cidadão que nem
nós, o gari que trabalha atrás de um caminhão é que nem nós, que ele tem um
142
salário fixo e nós não! Nós temos que sair de manhã e ir à luta para termos comida
dentro de casa e ele não, ele tem uma carteira assinada e um salário fixo no fim do
mês, mas por quê? Porque o município recebe uma contribuição da sociedade
aonde consegue repassar pro DLMU para andar de bom carro, de bom caminhão,
né, e nós como não temos esse repasse, temos que depender dos nossos braços, do
nosso cavalo, dos nossos carrinhos, que eu acho o cúmulo uma pessoa, um ser
humano ter que puxar 300, 400 kg no peito aí como se fosse um animal (V.).
Mesmo que, com isso, se perceba um alinhamento entre a demanda de reconhecimento
que os catadores requerem do poder público e a perspectiva redistributiva que Fraser imprime
à dimensão econômica, faz-se necessário, segundo Phillips (2001), empreender um trabalho
de precisão conceitual com vistas à correta utilização do termo “redistribuição”. Phillips vai
argumentar que nem todas as reivindicações socioeconômicas devem verdadeiramente ser
abrangidas dentro da perspectiva redistributiva. Esta deve ser reservada somente para aquelas
reivindicações que desafiam os critérios utilizados na distribuição de recursos e de poder. Diz
a autora (2001:3): “Eu sugeriria que nós reservássemos o termo para movimentos que buscam
redistribuição ao invés de ganhos, e que se comprometem ativamente com o que consideram
ser as injustiças provenientes da atual distribuição”.
Phillips conclui que, de forma geral, qualquer demanda que não envolva algum tipo de
taxação poderia mais facilmente ser enquadrada como redistributiva, mesmo que esta não
tenha sido a intenção original. Desta perspectiva, a aproximação com a dimensão econômica
em moldes redistributivos fica mais visível quando as lideranças adotam um outro discurso
que não somente aquele que concerne à arrecadação de impostos, mas se referindo à (...)
questão da responsabilização dos grandes geradores, as indústrias que são as produtoras
também se responsabilizem (...) paguem por este serviço que os catadores executam, ”, até
porque, como G. exemplifica,
(...) nós entendemos que a Petrobrás, o Ministério, ou os bancos que têm no Brasil,
todos esses, eles têm uma dívida histórica com os catadores, toda a sociedade tem
uma dívida histórica com os catadores, nessas cadas e décadas de trabalho.
Mais do que com os catadores, tem com o povo! São os que têm concentrado a
riqueza do país nas suas mãos e a administração dessa riqueza. Então, a
Petrobrás, quando a gente firma uma parceria, né, com a Petrobrás, para um
projeto nosso, s estamos entendendo que é uma doação da Petrobrás, mesmo
assim uma parcela pequena do pagamento da dívida social que a Petrobrás tem
com o próprio povo brasileiro, com essa parcela do povo que são os catadores
Em um dos documentos produzidos pelo MNCR, que é a cartilha de formação política,
onde constam os princípios e as bases de acordo do Movimento, igualmente consta a seguinte
afirmação: “Queremos firmar com os poderes públicos contratos que nos garantam o repasse
financeiro pelo serviço prestado à sociedade e, cobrando das empresas privadas, produtora
143
industrial dos resíduos, o devido pagamento pela nossa contribuição na reciclagem”. De
forma que
a Petrobrás como indústria geradora de derivados de petróleo, ela extrai petróleo,
ela é responsável pela matéria-prima das resinas plásticas, né, e nós somos quem
mais reciclamos plásticos no mundo aí, os catadores, então nada mais justo do que
responsabilizar em primeira instância quem é o responsável pela produção da
matéria-prima. Então, esses estão sendo responsabilizados de alguma forma (...)
eles têm obrigação social com o setor que processa o final da cadeia produtiva
(G.).
Sem se querer adentrar aqui numa discussão mais aprofundada com os argumentos
levantados por Phillips, os quais, de uma forma geral, sinalizam aspectos importantes, soa,
entretanto, precipitado enquadrar, por exemplo, um convênio estabelecido entre os catadores e
a Petrobrás, fruto, na opinião de G., de uma luta de negociação”, como uma conquista em
termos redistributivos, tendo em vista que tal constatação careceria de uma maior
fundamentação teórico-empírica. Por certo, este convênio lhes parece propiciar (...) o
reconhecimento de que nós somos responsáveis pela destinação correta dos resíduos que eles
produzem”, o que contribui, segundo G., para que a própria Petrobrás reconheça, ao apóia-los
economicamente, a “(...) parcelinha da dívida que se tem histórica, né e igualmente a
existência de um trabalhador que está vinculado a ela pela cadeia produtiva, vinculada ao
(...) setor que processa o final da cadeia produtiva, porque eles fazem o princípio”, mesmo
que “(...) talvez essa não seja a posição deles publicamente”.
A reivindicação de que o poder público reconheça os catadores, principalmente em se
tratando daqueles que “seguem as regras do Movimento” (V.), como profissionais capacitados
para empreenderem uma ação conjunta com a prefeitura, “visando à estruturação do trabalho
de coleta, separação e preparação de materiais recicláveis para fins de encaminhamento para
reciclagem” é a base de um convênio proposto pelo MNCR para a inclusão dos catadores de
rua, “organizados junto às entidades existentes”, ao sistema de coleta seletiva de Porto
Alegre. Mesmo que o convênio se proponha a se contrapor a um outro, existente, proposto
pelo DMLU, na seção que se refere às responsabilidades das associações, é visível a forma
“conciliadora” com que o catador de rua tende a ser inserido no sistema de coleta seletiva
em funcionamento, sem que este seja perturbado: “Organizar e desenvolver o programa de
coleta seletiva a partir dos catadores de rua organizados junto à unidade, estando estes
devidamente uniformizados, identificados e com roteiro predefinido que não convirja com o
roteiro da coleta mecanizada realizada pelo DMLU”. Entretanto, longe de se estabelecer
uma relação “tranqüila” entre o MNCR e o DMLU, Nardi (2006, no prelo) afirma existir uma
144
disputa entre eles no que diz respeito, mais particularmente, à “definição das formas de
organização do trabalho nos galpões”.
A proposta de manter um convênio com o poder público municipal vem, segundo
T., de longa data: (...) a gente debateu um monte de vezes, desde o início do Movimento a
gente está debatendo isso com o governo e a gente não consegue arrancar nada porque eles
sempre tocam um pro outro, um governo, outro governo, e aí vão sempre enrolando a gente.
Não obstante isso, aproveitando a mudança de gestão político-partidária municipal após 16
anos de gestão do PT e considerando que o (...) partido [novo] não quer tocar o mesmo
processo, eles querem fazer uma coisa nova, mas eles não sabem como fazer (A.), a
assinatura imediata desse convênio foi uma das pautas de reivindicação de um ato promovido
pelo MNCR, realizado na Capital, no dia 09 de junho de 2005. Esse ato, que faz parte da
estratégia de ação direta do MNCR, é motivado, segundo comentam A. e G., porque as
lideranças acreditam tratar-se de uma forma alternativa, não menos legítima, de forçar o poder
público a os “ouvir”:
(...) o modo de ação direta, a gente tira ele como última instância de reivindicação,
né, a gente primeiro mais pela parte da discussão, da representação, por parte
do governo, do município, Estado, sei com quem é que a gente está negociando
(...) quando a gente não consegue fazer pelas vias mais institucionais, mais de
discussão mesmo com as prefeituras, daí a gente pegar e fazer as mobilizações com
os catadores, botar todos na frente da prefeitura, se for encarar desta forma, né,
pra todos esses gritar os seus direitos para serem reconhecidos e a partir daí
forçar então o reconhecimento dos catadores.
(...) é quando a gente consegue botar milhares de pessoas nas ruas e atrapalhar um
pouco o funcionamento da sociedade como ela está hoje, injusta e desigual, é
quando a gente consegue travar esse sistema, é que a gente consegue ter força e
expressão mesmo, se não for assim, a gente não tem força.
Mesmo que C. declare que o Movimento (...) esperava também receber pau direto,
né, que era a dita direita”, houve, na ocasião, a realização de uma reunião em presença do
prefeito, vice-prefeito e mais cinco representantes governamentais, na qual se teve como
encaminhamento, que o governo não acedeu positivamente à proposta naquele momento, a
sugestão de se criar uma comissão de trabalho com ambas as partes (lideranças do MNCR e
representantes governamentais) para que se desse seguimento às discussões iniciadas. Ao
tecer alguns comentários acerca dessa reunião, C. reforça a importância da ação direta para
viabilizar encontros com representantes governamentais ao que T. acresce se constituir
numa oportunidade de (...) divulgar também o Movimento perante a sociedade–, mesmo
que a posição do MNCR seja a de descrença com relação ao sistema político representativo.
145
(...) os políticos de hoje em dia eles prometem várias coisas que vão fazer grandes
projetos, isso e aquilo, tudo mais, né, mas muitas vezes não sabendo (...) porque o
próprio político ele não tem conhecimento mesmo do que é a sociedade, sabe, é um
decidindo por todos, né, e essa questão da ação direta, quando a gente faz
contra isso, trancando todas as ruas, fazendo piquete, ou, né, alguma coisa assim,
tem uma forma muito grande de estar demonstrando isso porque pára todos os
setores, pára o comércio, pára a exportação, né, a exemplo se a gente pegar uma
avenida principal, e aí tem como eles jogar com a gente e ai vamos decidir isso
hoje, vamos encaminhar um grupo de trabalho para estar discutindo e resolvendo
esses problemas de vocês e ouvindo vocês (...) eu acredito que, em primeiro lugar,
acho que tem aquela coisa assim, eles estão botando a boca em público, vamos
acalmar eles, vamos discutir duma vez, vamos tentar resolver! Por segundo lado,
eles consideram como uma classe trabalhadora! Tem seu certo respeito! Mas é o
seu certo respeito e ao mesmo tempo também é o, né, é o vamos atender pra o
dar problemas!
No relato abaixo, T. explicita o circoque, geralmente, se arma nessas reuniões para
que o governo possa seguir enrolando”, sem dar qualquer tipo de encaminhando prático às
suas reivindicações. Isto acontece tanto ao desmarcarem reuniões pré-agendadas quanto ao
convocarem pessoas diferentes a cada reunião e que não possuem a autoridade necessária para
tomar decisões (inclusive durante observação participante, ocorreu de as lideranças do MNCR
optarem por se retirar de uma reunião quando perceberam que haviam sido designados outros
representantes governamentais, diferentes daqueles que vinham discutindo, o que fez V.
comentar que, na próxima, provavelmente estariam se reunindo com o porteiro ou a senhora
do cafezinho”):
(...) então eles chamam para discutir e vem com um troço assim meio armado,
na realidade, está tudo armado, né, desde o começo, então eles chamam para a
primeira reunião, vamos discutir, vamos ver o que vocês querem, a segunda
reunião, ah..vocês querem isso, isso e aquilo, que foi o que foi falado, então vamos
para a terceira reunião, ah..a terceira reunião, ah..eu me lembro bem vocês
queriam isso, isso, como a gente vai fazer? Quarta reunião, ah..me lembrei..tá é
tudo isso aí mesmo que vocês querem..quinta reunião..olha! sinto muito, mas eu
acho que vocês têm que fazer uma outra coisa..aí foi um ano! Aí, então, a gente
vai de novo pra rua, então vamos reunir novamente, vamos começar com a
primeira reunião de novo!! Até chegar o terceiro ano e quando chega o terceiro
ano, eles pegam e dizem: A gente não pode fazer nada porque vai mudar o
governo e a gente não pode deixar dívida para o governo que vem!! Eles sempre
enrolam a gente!
Segundo consta na ata da primeira reunião, G. fez questão de salientar “que ao fazer a
reciclagem [os catadores de rua] estão fazendo um trabalho gratuito para o município”, de
forma que o MNCR reivindicava a “assinatura do convênio, para subsidiar este trabalho”, o
qual vem sendo pago a “pessoas terceirizadas”. Na quarta reunião que se seguiu com a
comissão de trabalho já constituída, o diretor-geral do DMLU declarou “que se entregarem
áreas para os catadores, corre-se o risco de não darem conta da demanda”, o que poderia
146
redundar em reclamações da parte da população caso a prefeitura optasse pelo convênio. A
solução encontrada pelos representantes governamentais foi a de sugerir a implementação de
um teste, “como um piloto de 10 ruas para início”, como uma forma de avaliar a viabilidade
de expandi-lo posteriormente, o qual, dependendo do sucesso obtido, poderia vir a resultar em
um convênio em moldes semelhantes aos que são feitos com as associações de catadores e
as creches comunitárias. Mesmo encarada pelas lideranças do MNCR como uma alternativa
“arriscada”, tendo em vista a possibilidade de “boicote”, até quando se estendeu o trabalho de
campo, embora ela ainda não tenha sido posta em prática, tem sido dado seguimento às
negociações.
Na relação que se trava entre catador de rua e poder público, este último é visto pelo
MNCR como um adversário muito forte”, devido ao fato de que (...) entendendo que o lixo
é responsabilidade dele, ele define quem são os operadores desse processo, né, de coleta, de
destino final, e isso tem uma relação com o setor privado, com as empreiteiras, com algumas
outras estruturas de serviços que estão sob controle total do poder público, né”.
Para evitar que o poder público municipal exclusividade aos serviços de coleta
prestados pelo setor privado, o que é fácil de acontecer na opinião de G., porque (...) gera
recursos, né, retorno dos próprios recursos investidos”, e inviabilize aos catadores o acesso
ao lixo, praticamente último recurso de sobrevivência como expresso na fala de um dos
catadores durante uma das reuniões com os representantes governamentais: “A nossa meta é a
sobrevivência. Tenho 56 anos e não sei fazer outra coisa. Passarei a ser um problema para
os órgãos públicos se não puder trabalhar, vê-se que a tentativa de estabelecer uma
relação com o poder público que force este a reconhecer que o catador pode e deve ser co-
gestordos serviços municipais de coleta seletiva, porque, segundo A., (...) quem realmente
sobrevive disso somos nós, então somos nós que sabemos como fazer o processoao que G.
complementa reforçando que (...) taticamente é isso que se quer, né. Ele ser co-gestor do
serviço de coleta e destino final dos materiais, tanto o seco quanto o orgânico”.
Mesmo que esse tenha sido um discurso bem mais presente ao se entrevistarem as
lideranças do MNCR, R. também diz tratar-se de uma demanda da FARRGS, muito embora
ela tenha sido menos recorrente nos depoimentos de seus coordenadores. Da forma como o
ex-tesoureiro a apresenta, pode-se notar que a justificativa de tal reivindicação é posta muito
mais de acordo com as vantagens econômicas que ela seria capaz de trazer para os órgãos
públicos e por comparação ao serviço prestado por empresas privadas do que servindo como
base para a construção de um status econômico que se expressaria no reconhecimento do
poder público para com os catadores:
147
(...) hoje o Movimento fala isso e nós também falamos que as prefeituras deveriam
contribuir, porque assim, se estivesse aqui uma empresa particular de empresários
trabalhando, a prefeitura com certeza estaria pagando porque iria fazer um
processo de licitação e tal, sempre a reciclagem ela gera uma economia para o
município em termos econômicos diretos, assim, porque é um volume menor de
materiais que precisam ser enterrados, esse é o benefício direto que a prefeitura,
em cidades onde os catadores recolhem materiais na rua, a prefeitura já tem
menos gastos na coleta e na destinação também. E se um outro agente fosse fazer,
ele cobraria, então, a prefeitura deveria repassar um recurso, né, dar um subsídio
por prestação de serviço, eu sou contra de dar tanto sem medir nada, eu acho que
sempre tem que dar tanto prestando um serviço de tanto, que a gente se sinta
valorizado naquilo que faz, estimulado inclusive, né, a tanto mais vocês fizerem,
quanto mais vocês aproveitarem, mais a gente tem vontade de contribuir com
vocês.
Na análise feita a partir dos dados provenientes do MNCR, a construção do status em
sua dimensão econômica se sustenta em uma postura que oscila do “confronto” a
“negociação” de tal forma a que possa garantir às lideranças a autoridade política de
“pressionarem” o poder público para reconhecer os catadores como agentes capacitados para
co-gerenciarem os serviços municipais de coleta seletiva, evitando um acirramento dos
processos de privatização de modo que também os permita, condizente com elementos mais
redistributivos, começarem a usufruir o resultado dessa produção que é coletiva, (G.).
Em última instância, para o MNCR, a obtenção desse subsídio mediante convênio com o
poder público poderia mais facilmente resultar também em um reconhecimento social dos
catadores, como se evidencia na fala de T. que julga que o convênio poderia ajudar
(...) que a gente não seja tachado assim como ah...um catador, ele vai ser um
bandido, se ele chegar ali na minha lixeira! que tem muitas lixeiras que são
cadeadas, né, então que a sociedade mesmo reconheça que a gente está fazendo
esse trabalho e que liberem o lixo, que o tem utilidade mais nenhuma para eles,
que liberem para a gente.
A reivindicação de ser socialmente reconhecidos – considerando aqui ambos os grupos
parece mais suscetível de ocorrer quando se estabelece alguma relação formal entre o
catador e o poder público e para que isso ocorra, segundo declara um representante da UFBA,
cujo argumento consta no relatório de um encontro de lideranças do MNCR, “a mobilização
precisa ser feita de forma organizada junto com o poder público, porque assim a sociedade
percebe que o catador é um trabalhador realmente inserido na economia e na política”
(RELATÓRIO, 2006). Tal constatação será desenvolvida a seguir através de uma interlocução
com alguns autores que discorrem acerca de exemplos de parcerias estabelecidas entre esses
segmentos e que, ao mesmo tempo, permitem revelar padrões culturais, sustentados por um
discurso ecológico, que auxiliam/interferem na construção de um status econômico.
148
Em um projeto de coleta seletiva realizado pela prefeitura de Cascavel, no Estado do
Paraná, envolvendo 88 catadores, Romaní (2003:37) relata que a parceria feita com o poder
público favoreceu os catadores para que fossem percebidos pela sociedade como agentes
importantes “dentro do processo de melhorias ambientais”, especialmente em se tratando
daqueles que eram cadastrados no programa oficial e que passaram a receber a denominação
de “agentes ecológicos”, o que parecia, assim, lhes garantir uma maior aceitação social de sua
condição e do serviço “ecológico” que passaram a prestar, como se evidencia no trecho citado
abaixo:
O trabalho envolvendo os catadores representou um impacto no modo com que eles
se percebiam e eram vistos pela sociedade. A própria substituição da expressão
"catador" por "agente ecológico" sugere uma posição mais pro ativa dos catadores.
Eles passam a ser vistos como agentes de transformação que detém a
responsabilidade e o poder de colaborar para o sucesso de um programa que, no
fundo propicia uma melhor qualidade de vida. Através da profissionalização do
grupo com a uniformização e a instrumentalização técnica [cursos de segurança no
trânsito, alfabetização, educação sanitária e ambiental e cursos profissionalizantes:
panificação, costura e datilografia] e operacional, a identificação com crachás e a
formalização da parceria com a Prefeitura, eles se sentem mais integrados à cidade.
A própria população passa a dar mais valor ao trabalho desenvolvido por eles
(ROMANÍ, 2003:30).
Martins (2004:88) relata que, durante o trabalho de organização em Porto Alegre, os
agentes religiosos enfatizavam o papel de “agentes ambientais” (GRIMBERG, 2004) que
os catadores assumiam, “o que proporcionava às pessoas predominantemente de classe média
que freqüentavam as igrejas uma outra visão sobre esses trabalhadores, antes vistos como
marginais e desocupados”.
Mesmo que, no caso de Cascavel, o poder público não tivesse o intuito de gerar uma
situação de exclusão para com os catadores que continuaram na “informalidade” (cerca de 2/3
do universo total de catadores que trabalham na cidade), ao indagar pessoas da comunidade
sobre a opinião que guardavam dos catadores e dos agentes ecológicos, Romaní (2003:40)
comenta que a maioria delas manifestou a mesma posição. Para ilustrá-la, cita-se aqui uma de
suas entrevistadas, que diz: não para julgar pela aparência, mas eu confio mais nos
catadores uniformizados, pois sabemos que tem alguém para responder por eles”. Esta fala
evidencia que a confiança que passou a ser depositada nos catadores, na verdade, não é
dirigida a eles, mas sim ao órgão público municipal. com relação aos catadores, em um
depoimento de uma das agentes, torna-se claro que a formalização de uma parceria com o
poder público local foi o que lhes garantiu uma maior visibilidade social, a qual resultou, em
última instância, no próprio acesso aos direitos sociais previamente negados: trabalhar aqui
149
é uma grande honra, o povo agora sabe quem somos e eu tenho acesso a escolas e postos de
saúde”, constatação comprovada por outro agente que afirma que “usar o uniforme e o crachá
traz respeito”.
No relato de uma experiência de outro projeto social para catadores de Guaratinguetá,
no Estado de São Paulo, Aímola (2003) condiciona esta suposta transformação de “lixeiros”
em “agentes ambientais” à realização de um roteiro mínimo de atividades, que compreende
certos passos imprescindíveis para que ela ocorra e que envolvem não somente a aquisição de
apoios e parcerias com o setor público ou privado, mas o estímulo à organização associativa e,
principalmente, à participação dos catadores em atividades de capacitação:
Com o apoio do Senac, do Sebrae e de várias outras organizações, foi realizado o
primeiro curso de capacitação profissional para os catadores. A metodologia e o
material utilizado foram fornecidos pelo Compromisso Empresarial para a
Reciclagem (Cempre), firmando assim o conceito de que os catadores formam uma
categoria profissional e ressaltando o caráter de utilidade pública dos serviços por
eles prestados. A estrutura do curso foi dividida em sete módulos: relações
humanas, limpeza pública, saúde do catador, trânsito, reciclagem, princípios do
cooperativismo e aspectos práticos da cooperativa. A partir de então, os catadores
passaram a ser chamados de agentes ambientais. Tal denominação teve dois
propósitos: 1) enfatizar o relevante papel dos catadores na preservação ambiental; e
2) ao tratá-los como uma categoria profissional, buscava-se também eliminar o
estigma que é atribuído a pessoas que sobrevivem dos materiais recicláveis
retirados do lixo. (...) Assim, não sentem mais vergonha de sua atividade, pois
surgiu a consciência da relevância da profissão e sobretudo porque a comunidade os
trata como “amigos” [devido ao nome dado à cooperativa “Amigos do Lixo”]. (...)
Hoje eles são cidadãos (AÍMOLA, 2003:6;8;13).
No que se refere à capacitação, Jacobi & Teixeira (1997:32) comentam que o curso
ministrado pelo CEMPRE para os catadores da ASMARE, de Belo Horizonte, teve uma dupla
finalidade, tanto no sentido de “formar nos catadores uma consciência ambiental, informando-
os sobre os benefícios que as suas atividades trazem para o meio ambiente da cidade”, quanto
no sentido de instrumentalizá-los para “uma melhor compreensão a respeito da lógica de
funcionamento do mercado”, especialmente aquela que lhes diz respeito diretamente, que é a
do mercado da reciclagem.
Embora tenha ganhado nova roupagem com o fortalecimento do que Buttel (2001)
chamou de um “novo paradigma ecológico” e mediante a emergência de uma nova onda
mundial de preservação do meio ambiente que daí adveio, a reciclagem é, antes de qualquer
alusão ecológica, como atesta Legaspe (1996:120), um “instrumento econômico”. Ao analisá-
la como um produto das relações econômicas capitalistas, o autor (1996:10) revela o quanto
muitos dos programas que surgem para estimular a reciclagem, assim como boa parte da
propaganda ecológica estampada “nas caixinhas que envolvem os produtos” o chamado
150
“marketing ambiental” –, servem antes aos propósitos de “ocultar” interesses por trás de uma
“demagogia ecológica” (GONÇALVES, 2003:75). Neste sentido, Legaspe (1996:32) critica a
forma como a reciclagem vem sendo conduzida, os altos custos que estão envolvidos e os
baixos rendimentos revertidos para os catadores, quando são justamente estes que sustentam
os altos índices obtidos com a reciclagem no país, julgando-a como a mais pura construção
capitalista, travestida de ecologista e falando na defesa do meio ambiente
61
. Os reais
beneficiados pela coleta dos produtos reciclados “se constituem num grupo muito pequeno de
comerciantes e industriais que sabem que a matéria-prima bruta obtida do lixo é uma fonte de
especulação muito lucrativa”. O fato de que existe, por trás da reciclagem, um tremendo jogo
de poder e de interesses econômicos conflitantes fica evidente, conforme afirma Conceição
(2005:23), no excesso de tributação sobre o produto reciclado, que contraria qualquer alusão a
uma política ecologicamente sustentável, eis “a prima fácies do eco-capitalismo”.
A problemática ambiental não é ideologicamente neutra nem é alheia a interesses
econômicos e sociais. Sua gênese -se num processo histórico dominado pela
expansão do modo de produção capitalista, pelos padrões tecnológicos gerados por
uma racionalidade econômica guiada pelo propósito de maximizar os lucros e
excedentes econômicos a curto prazo, numa ordem econômica mundial marcada
pela desigualdade entre nações e classes sociais (LEFF, 2002:62).
A reciclagem vista como possibilidade de recuperação lucrativa dos resíduos
sólidos para o circuito de consumo das mercadorias, nos conduz a uma
desmistificação com relação aos ganhos ambientais por ela proporcionados, já que
(...) o seu principal estímulo é a obtenção de lucro e não a preservação ambiental,
que para sociedade que está sob a égide do capital é uma situação contraditória,
pois como preservar e estimular o consumo ao mesmo tempo? (LEAL et. al.,
2002:179).
Não obstante isso, o enfoque na questão ecológico/ambiental é uma constante que
encontra eco nas mais diversas publicações que se referem ao trabalho dos catadores, desde
artigos jornalísticos, passando por material publicitário de incentivo à coleta seletiva e sites
internet
62
que abordam esta temática, até trabalhos acadêmicos.
As 50 toneladas diárias de lixo seco recolhido pelo DMLU e as outras tantas
carregadas informalmente constituem um mercado onde as negociações envolvem
centavos disputados como ouro por catadores, associações e atravessadores e
têm como grande beneficiário o ambiente (RECICLAGEM, 2004:6).
61
Mota (2005:4-5) afirma que, atualmente, trabalhar com materiais recicláveis os quais já foram relegados à
condição de “mercadoria de segunda” (LEGASPE, 1996:120) e conduzir programas de gestão socioambiental
podem gerar impacto positivo na imagem das empresas. Várias delas investem pesado para criar perante os
clientes a imagem de que são “ecorresponsáve[is]”, assumindo o “compromisso ambiental” necessário para se
adequarem aos inúmeros processos de certificação que já existem, tais como a Avaliação do Desempenho
Ambiental ISO 14031, a Rotulagem Ambiental ISO 14020, a Auditoria Ambiental ISO 14010, e tantos
outros (TURRA; ETCHEPARE & KINDLEIN, 2002).
62
Para citar alguns: www.cempre.org.br; www.reciclaveis.com.br; www.lixoecidadania.org.br; www.lixo.com.br.
151
(...) Não temos como erradicar o problema [dos catadores ambulantes] porque tem
fundo estrutural. Temos de organizar a coleta informal e investir na educação
ambiental destas pessoas diz Mario Diniz, diretor da divisão de projetos sociais
do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (RECICLAGEM, 2004:6).
A presença cada vez maior de catadores de lixo, por um lado, permite o
aproveitamento de quantidades cada vez maiores de materiais (PIRES, 2005:6).
(...) a importância do trabalho desenvolvido por estes profissionais, no que se refere
aos benefícios ambientais gerados (...) Analisando-se todos os materiais coletados
pelos catadores, vê-se que o papel deste é de suma relevância no contexto
ambiental, ainda que os mesmos e a sociedade em geral não se em conta deste
fato (...) A realidade mostra que a atividade desempenhada por estes profissionais é
de suma importância, uma vez que os mesmos contribuem para o ciclo da
reciclagem de alguns materiais constituintes dos resíduos sólidos domiciliares e
comerciais (...) educação ambiental junto à população, incentivando-a a participar
do ‘dia do agente ecológico’ slogan a ser atribuído aos catadores (COSTA &
SATLLER, 2000:387; 394;396;397).
Ao abordar a questão da implantação de projetos sociais para catadores é recorrente se
salientar o quanto a sustentabilidade desses projetos depende da colaboração de diferentes
segmentos da sociedade e, para isso, a ênfase na persuasão e no convencimento à participação
recai ora em um apelo à solidariedade dos moradores para com a situação desses indivíduos e
de suas famílias, principalmente no que concerne à erradicação do trabalho infantil nos lixões,
ora em um apelo à questão ecológica. Em um trecho de um guia produzido pelo Fórum
Nacional Lixo e Cidadania em parceria com a UNICEF, consta a seguinte afirmação ao se
fazer menção à importância da coleta feita pelos catadores de rua:
A catação de alimentos e de materiais para comercialização também acontece nas
calçadas das cidades brasileiras por catadores de rua – homens, mulheres e crianças
que interferem, diariamente, no ciclo da limpeza urbana, interceptando materiais
que seriam levados aos lixões ou aos aterros. Eles contribuem, assim, para amenizar
os efeitos negativos do nosso desperdício e para reduzir a poluição ambiental que o
lixo provoca (ABREU, 2001:18-19).
Neste sentido, a questão ecológica parece ser instrumentalizada como um subterfúgio
de ganho de dignidade e aceitabilidade da figura do catador, o qual não é mais encarado como
um mendigo ou um indigente, mas um prestador de serviços à causa ambiental, devidamente
regulamentado e “uniformizado”, o que o torna um autêntico “agente ambiental”, capaz até de
amenizar os efeitos negativos do consumismo. É particularmente notável a necessidade de
legitimar os catadores como uma categoria profissional cujo serviço prestado possui um
caráter de grande utilidade pública, passível de ser reconhecido pela “importância ambiental”
que carrega, o que “impõe a necessidade de valorizar a sua profissão” (ABREU, 2001:34-35).
152
No curso citado acima por Jacobi & Teixeira (1997:32), os autores relatam que a
metodologia empregada previa que os catadores desenvolvessem novos padrões de
comportamento ambiental”. A assimilação dos ditos “padrões” parece bem visível no
depoimento de uma das catadoras que pertence à ASMARE: “Eu e minha família sabemos
quantas árvores o nosso trabalho economiza, esses dias visitamos o aterro e soubemos
também que muito lixo não foi pra lá devido ao nosso trabalho, o nosso trabalho contribui
também para aumentar a vida do aterro e limpar a cidade” (JACOBI & TEIXEIRA, 1997:26).
Embora a dimensão econômica ainda seja preponderante na construção de um status
pelos dois grupos em estudo nesta pesquisa, é possível notar o quanto esses “padrões” são
facilmente assimilados por ambos como forma de legitimar face à sociedade e ao poder
público a reivindicação de que sejam reconhecidos profissionalmente, como demonstram
alguns dos depoimentos de lideranças de ambos os grupos, a começar por G. que afirma que a
luta do MNCR é pela “(...) valorização e reconhecimento do trabalho histórico do catador de
material reciclável na luta pela preservação do meio ambiente”. Em relação a esta questão,
assim também se expressa A.
(...) o nosso trabalho é de que? É de triar esse material, de tirar esse material que
iria para a natureza, s triamos e demos um outro...nós fizemos um outro
encaminhamento, não aquele do aterro sanitário, onde vai acumulando grandes
quantidades que vai, por fim, poluindo o meio ambiente, destruindo a natureza, nós
fizemos a inversão desse trabalho, então é nessa parte que nós temos que ser
valorizados.
Esses padrões são igualmente perceptíveis em uma publicação da Rede Independente
de Catadores de Materiais Recicláveis do RJ, onde, ao serem comentadas as repercussões do
último Congresso Latino-americano, consta a seguinte afirmação: “O encontro revelou que a
maioria dos catadores ainda sofre com a discriminação e a falta de reconhecimento do seu
papel ambiental” (ROCCO, 2005). Em uma publicação do MNCR em parceria com a Pastoral
da Rua, igualmente constava referência aos catadores como sendo “agentes ambientais natos”
(CATADORES, 2002). Em um material informativo da FARRGS, a entidade é apresentada
como sendo
(...) resultado de um processo de articulação e organização de trabalhadores
extremamente explorados, que passaram a tomar consciência de sua autonomia,
dignidade e possibilidade de recuperar os materiais recicláveis, de forma ecológica,
preservando a natureza, garantindo a sustentabilidade e qualidade de vida a todos
(Curso, apud Martins; 2003:135).
Ao fazer a defesa do modelo associativo de reciclagem, R. também argumenta que
153
(...) outro benefício, acho que uma associação gera é em termos ecológicos,
ambientais, a consciência, por isso s fizemos muito, eu brigo muito com grupos,
brigo no bom sentido, para que estabeleçam mais a relação com a comunidade,
para mostrar pra comunidade a importância do nosso trabalho, tu buscar o
reconhecimento mas para também aquela comunidade ser sempre mais estimulada
a cuidar mais do meio ambiente, a separação do lixo, o cuidado que tem com o lixo
para não jogar em qualquer lugar, e outras coisas, a preservação da água, das
árvores, do ar, não queimar lixo por exemplo. Então eu acho que uma coisa bem
organizada ela gera muitos benefícios para uma comunidade, isso para s aqui é
muito claro. Quantas pessoas já passaram por nós aqui que mudaram de visão.
Em entrevista com a ex-1ª secretária e atual coordenadora da FARRGS, foi-lhe pedido
que qualificasse mais bem as motivações que estariam por trás da demanda de que a
sociedade reconhecesse o catador, ao que ela prontamente respondeu:
Que nós prestamos um grande serviço para o meio ambiente! Que nós prestamos
um grande serviço para a comunidade, que o nosso trabalho seja reconhecido, não
como um simples lixeiro, mas simplesmente como tra-ba-lha-dor do meio
ambiente!! Seja um idealizador de uma categoria que trabalha para defender e
preservar a natureza, né!
Toda essa “ecologicização” dos discursos em torno do catador pode estar favorecendo
a aquisição de um reconhecimento social desses indivíduos como profissionais. Entretanto,
argumenta-se aqui, quando vista do ângulo dos grupos em estudo, pode estar limitando, como
no caso da FARRGS, a possibilidade de serem economicamente mais empreendedores, já que
esse discurso tende a deixá-los “atrelados” ao poder público. Já quando é este que assume a
função de organização dos catadores, acaba, por sua vez, geralmente por restringir o número
de catadores, em oposição aos princípios de “igualdade de classe” (T.) e de solidariedade com
os quais o MNCR almeja legitimar as suas propostas de convênio com o poder público,
desvinculando-as de quaisquer condições redistributivas e/ou de caráter político. Segundo
comenta A.
(...) o nosso trabalho é esse, da gente conseguir equacionar isso que acontece hoje,
hoje temos grupos de catadores, ou recicladores que ganham mil reais, enquanto
que temos catador que ganha 20 reais por mês (...) fazer com que ninguém ganhe
mais, ou muito mais do que outros, assim como ninguém, né, ganhe tão pouco que
não consiga sobreviver, como acontece hoje.
O que, de fato, muitas dessas experiências “bem-sucedidas” que envolvem setores
públicos e/ou privados em prol do estabelecimento de um sistema de coleta seletiva que
integre os catadores omitem é que, a despeito da propalada visibilidade social que adquirem
por terem incorporado alguns catadores, elas acabam por limitar o número de participantes e
excluem desse processo tantos outros, que continuam em lixões, atuando informalmente,
154
meros “candidatos a agentes” e que passam a ser vistos como clandestinos e ilegais ao
seguirem exercendo a atividade de “catação”.
Não obstante isso, Jacobi & Teixeira (1997:26) relatam que o “ganho ambiental”
acaba igualmente se tornando um “instrumento político” nas mãos dos catadores que fazem
uso desse discurso como argumento ao solicitarem recursos econômicos. Em uma entrevista
concedida na presença de uma representante de uma ONG francesa que oferece apoio
financeiro para projetos, o presidente da associação de moradores da Vila dos Papeleiros de
Porto Alegre, declara sobre o lugar onde ele e mais cerca de 212 famílias literalmente se
amontoaram para viver: “Moramos num lugar onde um cachorro não quer viver. Mas temos
utilidade. Quanto mais papel apanharmos, menos árvores vão ser derrubadas” (O SUOR,
2003, p. 33). Associar a atividade exercida pelo catador com o meio ambiente pode, como
atestam Carmo; Oliveira & Migueles (2004), ser a chave para reverter significados sociais
negativos, incluindo-o não apenas econômica, mas, fundamentalmente, social e
simbolicamente: “[A] atribuição de significados positivos ao trabalho com a catação, através
de um discurso de defesa do meio ambiente, parece ser uma pré-condição para a inclusão
simbólica daqueles envolvidos com esta tarefa”.
A partir da discussão empreendida acima, a “transformação” do catador em “agente
ambiental” tem, de fato, contribuído para consolidar perante a sociedade e o poder público o
caráter profissional dessa categoria, mesmo que este status esteja favorecendo uma inclusão
muito mais no plano simbólico do que propriamente esteja contribuindo para viabilizar as
condições intersubjetivas nos moldes econômicos que a FARRGS e o MNCR almejam que os
catadores sejam reconhecidos, respectivamente, como “reciclador” e “co-gestor”. A
combinação das dimensões cultural e econômica é, conforme declara A., fundamental, visto
que (...) reconhecimento e valorização, eles andam juntos, porque não basta pegar, olhar
e dizer: - Olha lá, o fulano é um catador, está encaminhando de maneira correta os meus
resíduos, o material reciclável, não está mais poluindo (...) tem que valorizar ele, que é aqui
na parte mais da grana”.
155
3.1.2. A reivindicação de um STATUS POLÍTICO a despeito se serem socialmente
tachados de “ARRUACEIROS”
Será dado destaque, nesta seção, a duas dimensões em particular – política e cultural –
expressas, respectivamente, pelo tipo de reconhecimento que as lideranças do MNCR
almejam construir perante o grupo, mesmo que não prescindam de legitimá-lo socialmente, e
por uma das formas que se supõe que essa demanda por reconhecimento seja deslegitimada
do plano político, mediante a difusão de padrões que contribuam para perpetuar (...) aquela
visão ainda de bagunceiros, né, são ainda pessoas que vão para as ruas fazer baderna(T.),
o que os diferencia até mesmo dos catadores que atuam junto ao sistema “oficial” de coleta,
visto que os primeiros “optam” por seguir atuando ilegalmente, tanto em termos de grupo,
como movimento social, quanto em termos individuais, como catadores de rua.
O MNCR tem primado por se firmar no cenário nacional mediante a constituição, nas
mais diversas instâncias, de comissões formadas somente por catadores, sendo que, de forma
hierarquizada, cada uma delas fica subordinada às decisões daquela que estiver acima. Com
isso, em última instância, os responsáveis por “dar a linha política” do Movimento são os
representantes da Comissão Nacional dos Catadores, que permanecem sendo os mesmos que
foram empossados, em 2001, durante o I Congresso Nacional. Reproduz-se, na figura abaixo,
o organograma de organização do MNCR, o qual possui a mesma conformação para todas as
regiões do país:
Figura 7.
COMISSÃO NACIONAL DOS CATADORES
COMISSÃO REGIONAL
COORDENAÇÃO ESTADUAL
EQUIPE DE ARTICULAÇÃO
COMITÊ REGI
ONAL
BASES ORGÂNICAS
156
Mesmo que o MNCR almeje uma legitimidade coletiva ao conceber a sua “pauta de
reivindicação” e crie estratégias para ampliar o número de lideranças que possam vir a se
tornar aptas a ajudar a organizar os catadores, sem depender em demasia de outros agentes
externos (...) queremos o povo organizado com a bandeira do povo–, V. relata que o
grupo ainda se limita a (...) muito pouca gente para organizar muita população (...) a gente
não está dando conta!”. Entretanto, dependendo do projeto que se está desenvolvendo, o
MNCR opta por centralizar o andamento do processo. Neste caso, V. cita a parceria com a
Petrobrás, na qual (...) nós estamos tendo esse cuidado, com menos militantes”, para evitar
que se dê margem para que os próprios apoiadores, ou mesmo outros agentes externos,
possam ter motivos para, ao final, concluírem: “oh, eu disse que não dava certo, apostamos,
perdemos dinheiro aqui e não deu certo!”.
A ênfase no papel exercido pelas lideranças acaba, a despeito de ser motivada pela
tentativa de unir os catadores, “(...) formando-se um corpo só, né” (T.), se convertendo em um
certo distanciamento entre os dirigentes e o restante dos catadores, cujo nivelamento demanda
que estes últimos passem, primeiro, por um processo de formação fundamentalmente político
para que venham a conhecer “(...) os princípios do Movimento, a base de acordo e tudo mais
(A.). Para as lideranças do MNCR, faltaria aos catadores, de modo geral, uma “consciência de
classe” e uma “postura de militantes” que lhes possibilitasse enxergar, de forma crítica, a
situação de exploração na qual se encontram e da qual somente terão condições de sair
mediante a tomada de consciência para fortalecer a organização coletiva dos catadores. Junto
com a falta de equipamentos para o trabalho”, a questão da falta de formação é uma das
(...) partes mais problemáticas que tem nos grupos(A.). Na fala de T., citada abaixo, pode-
se perceber que esse processo de formação é vivenciado por todos aqueles que assumem a
posição de militantes e que passam a ficar, assim, responsáveis por repassar as informações
seja às “bases orgânicas” constituídas (como são chamadas as UTs que seguem os
princípios do MNCR) seja aos catadores de rua:
(...) a gente sempre faz uma formação política entre nós mesmos e o que a gente
quer é que todo mundo conheça política, o eu, como animador, né, mas que
sim simplesmente aquele catador que está puxando o carrinho lá, aquele carrinho
de supermercado, também tenha uma linha política e que conheça o Movimento
politicamente e que ele entenda o que é a sociedade politicamente.
Conforme consta no relatório do encontro das 700 lideranças que foram capacitadas
durante o ano de 2005, mediante uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, e que ocorreu em Brasília, em março de 2006, um dos objetivos a serem
157
alcançados pelo grupo do RS, no curto prazo, foi o de dar prioridade para que houvesse
“[m]ais formação de militantes; [c]onquistar mais bases de militância” (RELATÓRIO,
2006:16), sendo que as duas prioridades andam juntas, visto que, como salienta V., (...) tu
tiras um líder da base, tu rebentas com a base, ”, ambas servem, então, de estratégias para
que o Movimento se fortaleça internamente. A proposta do MNCR, segundo afirma V., é a de
(...) conhecer as lideranças de cada lugar, né, de cada vila, pegando as lideranças,
pegando pessoas que tenham a vocação pra coordenar alguma organização, algum
povo que está atirado em algum canto, né, então, ele está pegando essas lideranças
e com essas lideranças está fazendo uma formação (...) uma das prioridades do
Movimento é selecionar e capacitar o pessoal que vai fazer parte dele, e eu acho
que isso é uma coisa importante (...) eu acho que aí depende muito do Movimento
com a organização do povo, porque falar em Movimento é muito fácil, organizar o
povo é difícil! Então eu acho que tem que primeiro organizar o povo e uniformizar
o povo pra se destacar da pessoa que não é organizada, então aí o Movimento vai
começar a se integrar dentro das regiões e ficar destacado como Movimento, ah
não...aquele pessoal é do Movimento, vamos ajudar porque o pessoal é o pessoal
que trabalha, pessoal que tem dignidade, pessoal de respeito, pessoal que pára pra
conversar, entendeu!
O local que serve de suporte jurídico estadual, mencionado por G. no capítulo 2,
tem servido inclusive para ser um espaço para onde são dirigidos os catadores que, por um
período mais longo, estão em processo de formação política (T.) para se tornarem (...)
militantes de cada base, né, para estar articulando, organizando, se alastrando mais dentro
dos municípios” (C.). Longe de se limitarem ao enfoque político ou a questões de trabalho, no
entanto, esses encontros, mesmo quando realizados em um curto espaço de tempo, não se
limitam a abordar tais questões, porque senão, A. exemplifica, “(...) quando eu chego em casa
eu esqueço de tudo!”, mas procuram envolver a questão da pessoa, né, mais emocional (...)
fazer com que as pessoas, os catadores se entend[am] enquanto catador”, desenvolver laços
de solidariedade entre os participantes mediante o uso de uma metodologia participativa; do
contrário “(...) a gente não consegue constituir nada que seja palpável”. Em relação a isso, A.
acrescenta que o Movimento social que a gente propôs era de ser uma coisa que a gente vai
carregar aonde a gente vai, dia-a-dia, noite, tal, fim de semana, para tudo que é lugar que a
gente a gente seja o Movimento dos Catadores”, de forma que, em sua opinião, (...) a
parte que realmente faz com que o Movimento funcione é a partir do nosso sofrimento que
nós tivemos, do que nós não queremos para os nossos filhos”.
Durante a realização do trabalho de campo, foi possível verificar que as relações que
se constroem entre os militantes (e, de uma forma geral, entre estes e as outras lideranças) são
bastante calcadas em laços de confiança, sendo que o comprometimento pessoal exigido para
com as questões do Movimento acaba fortalecido pelas próprias relações de parentesco
158
existentes. Nas reuniões do Comitê Regional, que ocorrem em Porto Alegre, em média, uma
vez por semana, é comum que assuntos que digam respeito à comunidade ou à família
venham à tona em meio às discussões de caráter político, instaurando inclusive um clima
bastante informal.
Foi igualmente possível se perceber que as reuniões eram conduzidas por homens,
havendo uma presença mínima de mulheres que, quando presentes, participavam pouco dos
debates e, havendo a necessidade, ficavam responsáveis por cuidar das crianças. Durante o
trabalho de campo, não foi possível identificar nenhuma mulher que estivesse assumindo um
papel de destaque em nível de Rio Grande do Sul. Essa situação, entretanto, pode vir a mudar
tendo em vista que o MNCR esteve, no ano de 2005, envolvido no processo, mencionado
anteriormente, de capacitação de 700 lideranças em 23 estados do Brasil, dentre as quais,
“ficou explícita a forte presença das mulheres” (RELATÓRIO, 2006:2). Por enquanto, vê-se
que o trabalho dos militantes, especialmente no RS, que, segundo T., “(...) é tido como um dos
guerreiros, né, na política e nos movimentos sociais”, fica restrito à atuação masculina.
Foi possível verificar também que há a busca por uma certa unificação do discurso que
provém das lideranças em relação àquele proveniente dos militantes, no sentido de também se
prepararem para atuar em espaços públicos, tanto em reuniões com as bases, quanto com
representantes governamentais, para evitar, conforme relata V., que estes últimos (...) nos
tir[em] do ar porque a gente não tem a informação suficiente para discutir com eles”. Com
isso, é visível uma movimentação “nos bastidores” desses encontros como forma de
manterem o controle sobre a informação que está circulando, bem como as lideranças estarem
suficientemente instrumentalizadas para representarem o Movimento. Em conseqüência,
um comprometimento pessoal bastante grande dessas lideranças que, em grande parte das
vezes, “abrem mão” do tempo disponível para a sua vida privada para poderem estar presentes
nas atividades que seguem quase que diariamente. A realização de reuniões é semanal, mesmo
que o contato entre os militantes seja ainda mais freqüente, onde se destaca a presença de um
Coordenador de Formação do Movimento, com grau de instrução universitário que participa
ativamente dos eventos promovidos pelo MNCR tanto no Estado quando nos eventos
nacionais, cujas opiniões são bastante respeitadas pelo grupo. Em uma das reuniões com os
representantes governamentais, inclusive, estes o convocaram para idealizar algum projeto,
ajudar o governo a “pensar, criar algum projeto piloto” e um deles se referiu a ele como o
“pensante” do grupo. Neste aspecto, vê-se uma valorização de um saber técnico que esteja
integrado às questões sociais e que não negligencie o caráter político que as envolve.
159
Essa formação política, em última instância, procura (...) multiplicar o número de
bases orgânicas do Movimento, bases de trabalhadores que estão muito mais preocupados
em processar a organização do Movimento, dar consciência, dar base na sua luta, do que
propriamente em formar uma associação, uma cooperativa, burocraticamente com as
preocupações todas que tem dentro (G.). Afinal, para os militantes do MNCR, a adoção
dessas associações/cooperativas como sendo o centro do universo dos catadores tende a
dispersar outros esforços coletivos, canalizando-os para algo que, como G. afirmou durante
um curso de formação política no qual se esteve presente, não passa de uma pseudo-
alternativa, afinal (...) se unir em cooperativas é solução para o quê dentro do sistema
econômico atual?
(...) isso, muitas vezes, apontou para a idéia de que ali é quase como uma empresa,
né, a lógica predominante do capitalismo, é uma empresa, com caráter social, mas
é uma empresa, em que seus membros buscam desenvolver cada vez mais as suas
funções internas, de venda, de trabalho, e isso promoveu muitas vezes um
isolamento em relação à grande maioria que está fora do espaço da cooperativa ou
associação (G.).
Para G., esta visão que o próprio poder público insiste em perpetuar condiz com a
cisãoque eles querem estabelecer entre catadores associados e catadores de rua, a qual se
nutre de uma confusão ideológicaque tenta (...) elevar a consciência do catador ao nível
do empresariado”, o que acaba por fazer com que o próprio MNCR a expresse através do uso
dos termos catador e reciclador, que contêm significados ideológicos distintos (mesmo que
uma grande parte das lideranças entrevistadas esteja vinculada a uma estrutura associativa):
(...) de que nós também podemos ser empresários do lixo, e ao sermos
empresários do lixo, nós deixamos de ser aquele povo que está nas ruas e nos
lixões e criamos uma cisão, uma ruptura entre os que têm privilégios de ter
talvez alguma estrutura de apoio do poder blico ou das empresas, , e aquela
massa que está nas ruas. Por isso que nós temos uma ruptura entre os que se
chamam recicladores, e que tem um galpãozinho, um local de triagem e os que se
chamam catadores, que é a massa que está excluída, né.
Existe, de fato, uma baixa adesão das associações da Capital ao MNCR, sendo que E.
relata que, recentemente, uma delas optou por se desligar porque (...) inclusive os dirigentes
do Movimento iam lá interferir na decisão do coletivo, não respeitavam a associação”,
enquanto na versão dos dirigentes haviam sido eles que optaram por abandoná-la dada a
resistência da coordenação da UT ao trabalho do MNCR, seu suposto vínculo com o DMLU e
especulações sobre o envolvimento de seus integrantes com atividades ilícitas na comunidade.
160
No trecho a seguir, E. argumenta que o trabalho do MNCR é, muitas vezes, feito sem que se
estabeleça um diálogo com as bases e fica centrado demais na decisão das lideranças,
desvinculando a prática do Movimento das reais necessidades das associações, usando estas
como “fachada” para divulgá-lo.
(...) eu sinceramente assim, se tiver que ir, sabe, ir a Brasília de novo, passar sete
dias lá, sabe, reivindicando uma proposta dos catadores, eu com certeza vou,
agora se é para fazer palanque para estrelismos aí, não conta comigo!!! Eu acho
que o catador não pode servir como massa de manobra, sabe, não pode mesmo (...)
por mim eu vou com todo mundo, mas se a gente discutir o que a gente vai querer
lá, o que a gente vai enfrentar, se a gente vai ter que correr, sabe, isso para mim é
um movimento! Não como é feito hoje! Sabe, que traz as pessoas, com crianças,
vamos levar criança, vamos aparecer, mostrar os catadores, filhos de catadores!
[em tom de ironia] mas aí não dá estrutura, sabe! E acha que porque é catador tem
que dormir no chão, sabe, já passou essa fase!
A “divisão” de trabalho entre os catadores ditos informais e aqueles que estão a
serviço do DMLU não se apresenta sem as suas contradições. Vê-se que é de forma
maniqueísta e suscetível de gerar conflito entre os próprios catadores (associados vs. de rua)
que este assunto vem sendo abordado nos mais diversos veículos de divulgação.
Em termos acadêmicos, esta constatação é corroborada por Lorenzetti (2003:22)
quando o autor conclui seu estudo argumentando que “as Associações de Catadores de Porto
Alegre passam por dificuldades em obter material em quantidade e qualidade justamente pela
concorrência destes catadores autônomos”. Silveira (2002:124) afirma que a concorrência
pelo lixo que se estabeleceu entre o DMLU e os carrinheiros e condutores de carroça não é
uma “competição saudável”, visto que estes últimos fomentam uma catação clandestina que
age no sentido de “desviar” a coleta seletiva, contribuindo para debilitar o sistema oficial e
perpetuar um regime de trabalho que, como reforça Singer (2005:10), “além do mais é ilegal
pois o lixo tem dono, que em geral é o poder público municipal”. Ao apresentar os dados
correspondentes ao volume de 180 Ton/dia de material potencialmente reciclável que a coleta
seletiva de Porto Alegre recolhe, Martins (2004:35) reforça essa suposta dicotomização
quando relaciona esse somatório à existência dos “(...) dois grupos, da coleta oficial e da
informal”. Segundo classificação que consta nos relatórios da COMLURB (Companhia
Municipal de Limpeza Urbana) do Rio de Janeiro, e citada em Carmo; Oliveira & Migueles
(2004), haveria quatro diferentes tipos de catadores, sendo que um deles é denominado de
“catador predatório de rua”, cuja atividade é realizada antecipadamente à coleta oficial do
caminhão da prefeitura e que acaba causando distúrbios, que eles “[g]eralmente rasgam os
sacos de lixo para pegar o que julgam interessante, deixando o restante espalhado”.
161
Para não ficar restrito a alguns autores, mas remeter tal constatação a padrões mais
institucionais, reproduz-se aqui um trecho do guia comentado previamente, produzido pelo
Fórum Nacional Lixo e Cidadania em parceria com a UNICEF, que assim se expressa, ao se
referir à coleta feita pelos catadores de rua: “Atuando ao lado dos serviços municipais, esse
exército de trabalhadores informais desvia entre 10% e 20% dos resíduos urbanos para um
circuito econômico complexo, que passa por intermediários e termina nas empresas de
reciclagem” (ABREU, 2001:33).
Em termos de mídia impressa (os quais contribuem para revelar contornos do próprio
poder público), um artigo do jornal Zero Hora (RECICLAGEM, 2004:6-7) apresenta uma
matéria com a proposta de ilustrar o caminho percorrido pelo lixo seco na capital e aproveita
para destacar os obstáculos que ameaçam o processo”. Ao nomear cada uma das etapas, faz
referência à existência de uma suposta segunda etapa, a qual denomina de O desvio”, para
descrever o fato temido pela moradora citada na matéria, que é o de que o seu lixo seja
saqueado por catadores”, e termina expondo estratégias para evitar tal situação. A matéria
também realça que, para a moradora, eles deixam a rua toda suja”, e, para o DMLU, eles
são tidos, igualmente, como um problema para a limpeza das ruas da Capital”. Esta última
constatação não deixa de ser paradoxal, considerando que, conforme relatam Costa & Sattler
(2000), os catadores de rua em Porto Alegre continuam sendo os grandes responsáveis pela
coleta de cerca de 125 Ton/dia, valor correspondente a aproximadamente 3 vezes o total da
coleta seletiva organizada pelo DMLU, que corresponde a 40 Ton/dia.
Em outra reportagem do mesmo jornal (METADE, 2005:54), a matéria atribui o
declínio do volume recolhido pela coleta seletiva à existência de uma verdadeira briga pelo
lixo secoinstalada entre catadores de rua e DMLU, sendo que este fica em desvantagem,
que, desde 2002, um exército de catadores e microempresários, inclusive de cidades
vizinhas, invade a capital (MARIANO, 2003:32). Segundo o diretor-geral deste último, a
ação dos catadores resulta em um duplo prejuízo para o município: “Além de reduzir o volume
de lixo destinado aos 14 centros de triagem cadastrados pela prefeitura, os carrinheiros e
carroceiros descartam na rua os resíduos que não lhes interessam, sujando a cidade”. Para
evitar essa clandestinidade, em reportagem para outro jornal (SELISTER, 2005:10), ele
havia mencionado que a solução é incentivá-los para que eles se organizem em
cooperativas, tirando-os da rua e dando condições dignas de trabalho”. Esta posição, mesmo
que se faça menção a ela através de depoimentos pessoais, parece expressar um caráter muito
mais institucional, visto que é recorrente entre os indivíduos que assumem a direção geral do
162
DMLU. Acrescenta-se o relato de outro de seus diretores, ao proferir uma palestra sobre a
“Gestão dos Resíduos em Porto Alegre”:
Do ponto de vista ambiental, da reciclagem de materiais, esta situação é boa, mas
sob o aspecto social é uma realidade que precisaria ser melhorada, pela estrutura
social bastante degradante, de exploração elevada, que persiste na coleta feita pelos
catadores que não estão organizados em associações. Seria, portanto, necessário ter
um projeto na administração para inclusão desses trabalhadores. (...) Em Porto
Alegre hoje 600 pessoas que têm essa renda absorvida e que deixam de
representar um problema e passam a ser uma solução social (CAMPANI, 2002).
Esse parece ser o posicionamento que a atual gestão municipal (cujo prefeito se elegeu
pela coligação PPS/PTB) demonstra ter acerca dessa questão, o qual não difere muito daquele
sustentado pela gestão anterior (PT). De fato, segue vigente a normativa que consta no
capítulo III (parágrafo único) da Lei Complementar nº 234/90 (que instituiu na cidade o
código municipal de limpeza urbana), que sugere que o lixo seco coletado seletivamente seja
“destinado preferencialmente a núcleos de catadores devidamente organizados e cadastrados
no DMLU”
63
. Para G. (MNCR) esta visão que o poder público insiste em perpetuar condiz
com a cisãoque eles querem estabelecer entre catadores associados e catadores de rua, a
qual se nutre, como havia sido comentado, de um contrabando ideológico”. A isto se
acrescenta outro trecho que sintetiza alguns dos argumentos nos quais se assenta a
problemática sob a ótica do poder público e, muito provavelmente, de grande parte da
sociedade:
Na disputa pelo lixo seco, a argumentação da Prefeitura em relação aos catadores
de rua é, dentre outros aspectos, que eles causam problemas relativos ao trânsito na
cidade. Sobre essa questão, houve, por parte da EPTC e do DMLU, uma tentativa
frustrada de se imporem horários à circulação dos carroceiros que catam resíduos.
que não existe uma organização dos catadores informais, que trabalham
autonomamente, por grupos familiares. Além disso, os catadores utilizam o
trabalho de menores, inclusive para a condução das carroças, e, ademais, ao
recolherem o resíduo seco, executam a separação nas ruas, abandonando o rejeito
não aproveitável em “qualquer esquina”. Nesses casos, os condomínios que fazem
acertos com os catadores informais podem ser multados, por estes colocarem restos
de lixo em locais indevidos. Ainda segundo cnicos do DMLU, essa possibilidade
faz com que, em alguns condomínios, os moradores se desestimulem e até deixem
de separar seus resíduos. Efetivamente, observa-se um claro conflito entre a coleta
informal e a oficial (MARTINS, 2004:160).
63
A Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte é um dos poucos exemplos, considerando as capitais do país,
em que os catadores de rua conseguiram incluir no capítulo referente ao saneamento básico uma normativa que
os coloque como atores privilegiados junto ao serviço de limpeza urbana da cidade. Para Jacobi & Teixeira
(1997:20), esta conquista significou “um reconhecimento institucional do trabalho dos catadores”.
163
Como foi visível a partir dos trechos citados acima, a instalação de um “confronto”
entre a ordem a ser zelada pelo poder público e a “desordem”
64
provocada pela presença, cada
vez em maior número, de carrinheiros catadores que trabalham individualmente puxando
seus carrinhos e condutores de veículos de tração animal (VTAs) estaria favorecendo a
emergência de um discurso sobre os catadores de rua que se assenta em padrões mantidos
pelo poder público municipal e amplamente divulgados pela dia local e que, de forma
generalizada, os associam à imagem de baderneiros, sujos, desorganizados, irresponsáveis,
exploradores da mão-de-obra infantil, causadores de maus-tratos aos animais, etc., culpando-
os pela baixa adesão da sociedade à coleta seletiva. Essas expressões são confirmadas por V.
(MNCR), que afirma que (...) a gente quando sai para rua essas lideranças do
governo municipal dizer carroceiros e carrinheiros são tudo ladrão, são maconheiros, são
isso, são aquilo, são arruaceiros!”.
No que diz respeito à proteção aos animais, já existe uma norma específica, que consta
em um “Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta”, expedido no mês de agosto de
2002, em Porto Alegre, pela Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, no qual o
condutor de veículos de tração animal (VTAs) fica sob fiscalização da Empresa Pública de
Transporte e Circulação (EPTC), a qual é responsável pelo emplacamento obrigatório desses
veículos, e do Batalhão Ambiental, que pode ser acionado através de denúncia e apreender o
VTA, caso sejam verificados maus-tratos ao animal. Um site internet de proteção aos animais
convoca o poder público a tomar providências urgentes nessa questão, considerando o “caos”
que estes “carroceiros” ocasionam nas vias públicas e por se tratarem, em geral, de pessoas
que “(...) são agressivas quando chamada sua atenção, o que deixa sem alternativa o cidadão
que paga impostos para poder circular com seu automóvel pelas vias públicas” (PORTO,
2006).
uma lei municipal que impede a circulação de carroças na área central de Porto
Alegre das 6h às 20h, com horários restritos à circulação nas principais avenidas da Capital e
proibição expressa para a Avenida Castelo Branco, via de acesso à cidade
65
. A circulação de
64
Em um estudo que avaliou o impacto da política de resíduos lidos de Belo Horizonte na atividade que os
catadores organizados exercem cotidianamente, Dias (2002b) se contrapõe a essa aparente imagem de desordem
argumentando que os catadores se destacam, dentre os personagens que compõem a população de rua, por terem
na catação de materiais recicláveis uma atividade regular, com uma territorialização e uma rotina de trabalho
bastante definidas.
65
Houve a tentativa de que se aprovasse, na cidade de São Paulo, o projeto de lei 171/2004 (que acabou sendo
vetado) que dispunha algumas regras para a circulação de trabalhadores que usavam carretas/carroças movidas a
braço, obrigando-os a se cadastrarem e a se credenciarem no órgão municipal competente, a participarem de
cursos de “higiene, manipulação de resíduos e orientação no trânsito” e a utilizarem carretas/carroças
padronizadas (as quais poderiam ser financiadas pela iniciativa privada ou facilitadas através de financiamento
de crédito popular), as quais deveriam contemplar espaço para publicidade (PROJETO, 2005).
164
carrinhos movidos à força humana, no entanto, pode ser feita pela cidade em qualquer horário
(CARROCEIROS, 2005). A esse respeito, houve uma manifestação no dia 09 de junho de
2005 (comentada previamente), em que os catadores de rua também reivindicavam a liberação
quanto à circulação de carroças no centro, além de exigirem a liberação de pontos de coleta
solidária, cuja doação de material pela comunidade vinha sendo punida pelo poder público.
Conforme consta na ata de uma das reuniões dos membros do MNCR com os representantes
governamentais, o “DMLU havia ameaçado com multa aos proprietários dos locais que
continuassem entregando o lixo aos carroceiros e catadores. O mesmo deveria ser entregue
apenas ao DMLU”.
Durante o ato, houve um acidente provocado por um catador que resultou em danos
materiais para uma fonte localizada em frente à prefeitura, que é patrimônio histórico da
cidade, de forma que, no dia seguinte, praticamente todos os jornais da cidade noticiavam o
ocorrido, mencionando brevemente os motivos da manifestação enquanto enfocavam o
“grande congestionamento no centro” (VANDALISMO, 2005), que exigiu “muita paciência
dos motoristas” (PAPELEIROS, 2005). Em relação ao acidente com a fonte, abusavam do uso
de fotografias e de expressões, tais como “prejuízo histórico” (CARROCEIROS, 2005);
“vandalismo na fonte Talavera” (VANDALISMO, 2005); “desastre”, “desrespeito com a
História”, “dia trágico para a cidade” (AZEVEDO & ETCHICHURY, 2005), “depredação”
(PAPELEIROS, 2005).
Em relação à forma como esse acontecimento foi tratado pelos mais diversos meios de
comunicação, V. relata que “(...) eles denegriram e não nos deram direito à resposta”, sendo,
para o MNCR, um dos espaços mais difíceis de acessar devido aos altos custos envolvidos
para alugar um espaço no jornal e dar uma informação”, de modo que ele declara que (...)
essas coisas do governo, município, câmara de vereadores, assembléia, nós temos espaço,
sabe, temos assento livre, o meio de comunicação é que está sendo mais difícil”. Segundo
C., os meios de comunicação se referem ao catador de modo isolado, sem fazer referência à
sua capacidade de organização, o que acaba por reforçar as constatações mencionadas acima,
que (...) ao invés de falar em Movimento, eles falam como catadores ou alguma coisa
assim, né, mas ao mesmo tempo eles mostram catadores, mas não como um Movimento em si,
organizado, daí fragmenta, o pessoal da sociedade pensa, ah os catadores e tal, mas não
reconhece que tem um Movimento, que é uma ferramenta de luta dos catadores”.
Em um trabalho de grupo realizado durante o encontro das 700 lideranças, a proposta
foi a de que houvesse o relato de alguns dos problemas que mais afligem os catadores, bem
como a identificação de suas raízes, inimigos e aliados. Dentre os vários mencionados, citam-
165
se os “conflitos constantes com a prefeitura que os desrespeita (perseguição da prefeitura,
questão esta, presente em vários grupos), ameaças de morte por parte da polícia assim como
dos atravessadores (falta de segurança geral)”, ao que um dos palestrantes do encontro
acrescentou, “[q]uando o poder público entra em contato com os catadores é através da
polícia, fiscalização e limpeza urbana” (RELATÓRIO, 2006:6;12). De fato, V. havia se
queixado que o poder público “(...) trata o povo, a sociedade pobre das vilas aí, simplesmente
como um caso de polícia, eu creio assim e vejo assim, ”. Segundo Jacobi & Teixeira
(1997:7) existe em relação a esses indivíduos, principalmente em se tratando daqueles que
compõem a população de rua, “um comportamento preconceituoso quase sempre justificado
pela aparência e pela condição na qual se encontram, e quase sempre acusados de serem
drogados, alcoólatras ou marginais”.
Então o nosso reconhecimento é que a gente seja reconhecido e que a gente o
seja tachado como um animal, porque, às vezes, eles dão mais bola para um
cachorro do que um catador que está ali catando, porque se tu passares com um
carrinho ali na frente de um carro, tu podes até ser atropelado, agora um cachorro
se ele passar ali na frente, o cara vai bater o carro, mas vai frear! Isso é o que a
gente quer, o reconhecimento do catador perante a sociedade e que, lógico, que a
renda seja distribuída em partes iguais, que nenhum catador seja explorado (T.).
Embora o MNCR se diga como representante dos catadores de rua, E. comenta que a
relação que se estabelece entre eles oscila entre um arbitrarismo da parte dos primeiros e um
desconhecimento/indiferença da parte dos últimos:
(...) eu te digo bem francamente assim oh, se tu for, vamos dizer assim, vai
conversar com os catadores de rua, da vila dos papeleiros, eles não têm isso claro,
o que é o Movimento, o que o Movimento vai trazer, o Movimento liga para eles: -
olha! tem um acampamento aqui, tem que vir aqui tantas pessoas!..ai, gente, sabe!!
Para os militantes, investir na formação política é a maneira mais coerente de fazer
com que o Movimento adquira legitimidade coletiva para as suas ações, (...) porque se não
tiver líderes, não tiver conhecimento com pessoas que organizem o povo”, as possibilidades
de conquistarem o reconhecimento que lhes permita influenciar nos processos políticos que
lhes dizem respeito se reduzem significativamente. Antes, no entanto, de serem reconhecidos
tanto socialmente quanto pelo poder público como líderes capazes de influenciar nesses
processos, os catadores precisam ter a legitimidade do próprio grupo para empreenderem suas
lutas”, afinal (...) não adianta tu saíres para a rua reivindicar um direito, se não tem uma
entidade que te apóie, tem que ter! (...) então, nós organizados dentro do Movimento, nós
temos ele como apoio, é uma entidade apoiando” (V.).
166
Mesmo em se tratando da construção de um reconhecimento intragrupo, ele possui
contornos sociais que o projetam para o exterior, especialmente para os processos políticos,
que é onde devem ser desconstruídos os padrões que contribuem para deslegitimar a
participação dos catadores junto ao seu próprio grupo, o que acaba prejudicando a construção
de um trabalho de “militância”.
Diferente de ser liderança, o status de militanteé construído mediante a ênfase na
formação política, no comprometimento pessoal para com o Movimento, mesmo que, para
isso, haja uma certa subordinação aos ideais coletivos calcados nas bases de acordo existentes,
na consolidação de laços de confiança com outros pares, capazes de sustentar um intenso
trabalho de articulação que extrapola o âmbito das associações/cooperativas, mesmo que
muitas vezes (...) a base não reconhe[ça] isso(A.), e significa também estar pronto para
atuar em espaços de poder e negociação nas mais diversas instâncias.
Não se trata da demanda pelo reconhecimento da identidade específica do grupo, mas
opta-se aqui por confrontar a construção desse status aos padrões culturais que negam aos
indivíduos e grupos as condições intersubjetivas necessárias para que possam interagir
socialmente como pares na vida social, mesmo quando a participação a que se esteja fazendo
referência diga respeito aos encontros, reuniões, seminários e demais atividades promovidas
pelo próprio MNCR. A partir da discussão empreendida, a difusão de padrões culturais
abordados acima podem estar prejudicando as possibilidades de o catador viabilizar as
condições intersubjetivas nos moldes políticos que as lideranças do MNCR almejam para que
venha a ser igualmente reconhecido entre os seus pares como “militante”.
Propõe-se, na figura abaixo, para finalizar em consonância com as lentes apresentadas
ao longo do capítulo 1, uma visualização do modo como a perspectiva teórica foi incorporada
a este trabalho. A figura faz um recorte mais específico na categoria do reconhecimento
social, a qual foi utilizada para analisar a construção de um status por ambos os grupos, em
sua múltipla dimensionalidade, bem como indicar à qual segmento social essa reivindicação
tem-se eminentemente destinado, sem, com isso, inferir que seja o único. Ela permite também
destacar os padrões culturais que podem contribuir para deslegitimar a construção dessa
demanda por reconhecimento na forma como ela é concebida por esses grupos.
Espera-se que a utilização dessa ferramenta como forma de sistematizar visualmente a
construção teórica que resultou da análise dos dados empíricos possa, apesar do risco de
simplificação, auxiliar na compreensão do uso que se fez, neste trabalho, da categoria do
reconhecimento social, em sua tentativa de abordá-la sociologicamente.
167
Figura 8.
RECONHECIMENTO
STATUS SOCIAL
DIMENSÃO
CULTURAL
DIMENSÃO
ECONÔMICA
DIMENSÃO
POLÍTICA
PODER
PÚBLICO
SOCIAL
DIMENSÃO
ECONÔMICA
DIMENSÃO
POLÍTICA
SOCIAL SOCIAL
GRUPO
GRUPO
“RECICLADOR”
“CO-GESTOR”
“PROTAGONISMO
“MILITANTE”
“AGENTES
AMBIENTAIS”
“ARRUACEIROS”
LEGALIZAÇÃO
DA OCUPAÇÃO
ORGANIZAÇÃO EM
ASSOCIAÇÕES/COOPERATIVAS
168
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É imprescindível, a título de considerações finais, que se faça o resgate de algumas das
elaborações anteriores, que, à luz dos dados empíricos analisados, permitirão ser-lhes
agregadas outras, de caráter mais teórico.
Com seus mais recentes desdobramentos conceituais, Nancy Fraser uma imensa
contribuição teórica ao explorar as possibilidades de se pensar a justiça tridimensionalmente,
não somente em termos econômicos, mas igualmente em termos culturais e políticos.
Entretanto, mesmo que a autora se refira, em seus textos mais recentes, aos possíveis
entrelaçamentos analíticos dessas três dimensões, sua estrutura teórica guarda, ainda assim,
uma forte vinculação de classe em termos estritamente econômicos, status em termos
culturais e poder em termos políticos. Tal concepção, de certa forma, está plenamente
condizente com as distintas ordens de estratificação às quais cada um dos três remédios
redistribuição, reconhecimento e representação – está vinculado, pelo menos no que diz
respeito à sua constituição intrínseca.
Dependendo, todavia, da perspectiva que se quer adotar, tal pressuposto pode acabar
por engessar cada uma dessas três dimensões como se fossem dadas, únicas e suficientes em
si mesmas, além de dar margem ao risco latente de subordiná-las instrumentalmente umas às
outras.
Ao ser considerada em termos relacionais, argumenta-se aqui, torna-se uma
perspectiva que suscita uma dupla implicação teórica: uma delas parece ficar satisfeita com a
estrutura teórica sugerida pela autora, a outra, a princípio, careceria de subsídios analíticos
para tal. A primeira se refere ao possível relacionamento que as distintas lentes mantêm entre
si, isto é, tomando as reformulações conceituais da autora, pode-se perceber uma maior
facilidade em correlacionar conexões e interferências entre o reconhecimento, a redistribuição
e a representação, bem como relacionar estas às respectivas ordens de subordinação social.
Neste sentido, a própria autora (2000:109) argumenta que, quando concebidas de modo
apropriado, as lutas por reconhecimento “podem ajudar na redistribuição de poder e
riquezas”.
ao se pensar na possibilidade de aprofundar a análise no interior de cada uma delas,
podendo-se vir a estabelecer, por conseguinte, relações ainda mais teoricamente refinadas e
que possam mais bem apreender inter-relações empíricas, o construto teórico na forma como
169
é proposto pela autora tenderia, entretanto, a limitar tais pretensões. Afinal, parece lhe faltar
subsídios para que ele expresso, neste trabalho, na forma de lentes forneça meios de se
pensar cada uma dessas lentes no confronto teórico com sua própria dimensão e com as outras
duas, isto é, tomando o caso do status para exemplificar, capaz de possibilitar que se pense
sobre ele tanto culturalmente, quanto econômica e politicamente. Tal exercício teórico pode
contribuir para se compreender não somente as condições culturais que perpetuam injustiças
econômicas e políticas, mas permitir apreender as próprias injustiças culturais em sua múltipla
dimensionalidade interna.
Partindo, portanto, do processo de organização dos catadores de “lixo que não é mais
lixo” no RS, especialmente no que concerne à construção analítica de uma reivindicação por
reconhecimento social por ambos os agrupamentos que dele resultaram, propõe-se aqui uma
modificação na estrutura teórica fraseriana, a qual, mesmo que, nesta pesquisa, tenha se
limitado ao reconhecimento social, viabilizou multiplicar as dimensões abordadas pela autora
de forma a ter permitido abordar-se sociologicamente a categoria do reconhecimento social,
sem limitá-la à dimensão cultural, bem como sugerir o mesmo ao construto como um todo.
Figura 9.
CLASSE
SOCIAL
REDISTRIBUIÇÃO
RECONHECIMENTO
STATUS
SOCIAL
REPRESENTAÇÃO
PODER
DIMENSÃO
CULTURAL
DIMENSÃO
CULTURAL
DIMENSÃO
CULTURAL
DIMENSÃO
ECONÔMICA
DIMENSÃO
ECONÔMICA
DIMENSÃO
ECONÔMICA
DIMENSÃO
POLÍTICA
DIMENSÃO
POLÍTICA
DIMENSÃO
POLÍTICA
170
Somente visto dessa forma, argumenta-se aqui, tal construto pôde servir aos propósitos
de análise dos grupos em estudo, justamente por haver propiciado uma pluralização dessas
dimensões de forma a serem consideradas em relação aos mais diversos status almejados para
viabilizarem o reconhecimento “reciclador”, “co-gestor” e “militante” que não é dado a
priori, mas construído teoricamente mediante o esforço de costurar” (CORTES, 1998) o
trabalho empírico, a curiosidade científica do pesquisador e a teoria do campo de
conhecimento com a qual este último se propôs a dialogar.
O recorte analítico desse trabalho deu conta de elucidar apenas uma parte da realidade
e o modelo em questão, bem como as combinações que dele podem resultar não têm a
pretensão de serem capazes de explicar o todo. Por isso, é preciso afirmar que a grade
conceitual resultante não foi construída com o propósito de envolver, vestir a realidade; pelo
contrário, mesmo tendo sido concebida a partir das leituras teóricas, da mesma forma o foi
através do contato com o campo empírico. Sem nunca se haver constituído em um objetivo
que tenha sido instituído a priori, a pluralização conceitual com a qual este trabalho é
finalizado foi, na verdade, muito mais um produto da própria forma como se deu o
processamento dos dados empíricos à luz da teoria do reconhecimento.
Espera-se que a concepção dessa grade tenha podido tanto apontar contribuições ao
modelo teórico adotado quanto permitir uma certa compreensão da dinâmica que, atualmente,
esses grupos imprimem às suas lutas. Assim como espera-se que a utilização, neste trabalho,
da proposta de uma grade analítica fraseriana modificada” possa ter eco em outros trabalhos
que se relacionem com essa perspectiva teórica e que busquem aproximar, analiticamente,
distintas ordens de estratificação às quais indivíduos e coletividades estão subordinados e às
quais também, por distintos meios, lhes oferecem resistência. É importante salientar, portanto,
que esse construto teórico não se limita a este objeto de estudo, muito embora tenha sido ele a
servir de inspiração. Refletir acerca das diferentes combinações conceituais dessa grade, tanto
a partir de outros contextos empíricos quanto com apoio em outros autores, poderia, de fato,
se constituir em um exercício ainda mais frutífero teoricamente
66
.
66
Devido aos prazos impostos à concretização deste trabalho, não foi possível explorar outras possibilidades
teóricas, como as que permitiriam vincular esta perspectiva a uma teoria das distinções sociais de Bourdieu, cujo
resultado poderia contribuir para revelar, como afirma Souza (2003), o próprio potencial legitimador de
diferenças que está implícito à teoria do reconhecimento. Um aprofundamento teórico que as interseccione pode
se constituir em uma alternativa teórica frutífera para futuros trabalhos, especialmente no que concerne ao
conceito de status. No que diz respeito a este último, Fraser (2004a:378) comenta em entrevista recente suspeitar
que várias idéias de Bourdieu provarão serem úteis neste aspecto: “[P]or exemplo a noção de campo, onde
diferentes padrões valorativos predominam; e a noção de diferentes formas de capital econômico, social,
simbólico. Eu gostaria, em algum momento, de voltar-me para estas idéias para desenvolver de forma
sistemática uma nova concepção de status, melhor adequada às atuais condições”.
171
Muitas inquietações surgiram no decorrer da pesquisa. É pouco provável, entretanto,
que se tenha podido aqui abordar cada uma delas. A tentativa empreendida por esses
catadores de sustentarem um coletivo organizado facilmente se mostra um terreno com
tensionamentos múltiplos tanto intra quanto intergrupos e um palco de atravessamentos de
interesses diversos, sejam públicos, privados ou emancipatórios que, combinados à recente
visibilidade do lixo como atrativo de mercado, tem provocado direcionamentos, por vezes até
contraditórios entre si, na condução de suas demandas, ganhos ou utopias.
Uma inquietação em particular, contudo, merece atenção suficiente para constar nas
reflexões finais deste trabalho, a qual remete à persistência de um vínculo, historicamente
construído, entre cidadania e trabalho assalariado, quando se considera, como já afirmou Gorz
(1995:138), que “a sociedade do trabalho assalariado está morta” e que a vida dos indivíduos
já deixou de ser dominada pelo tempo de trabalho, mesmo “que as relações sociais continuem
sendo dominadas pelos imperativos de valorização do capital”. É com uma lúcida citação
deste autor que se finaliza este trabalho, não em tom de profecia, nem de desesperança, mas
de imensa preocupação com a vida de milhões de pessoas que, ao sabor das decisões
econômicas que se engendram pelos meandros dos jogos políticos, ainda se questionam (...)
quais são as prioridades que tem o ser humano perante a sociedade” (V.).
Quanto mais o discurso social e político dominante se obstina em fazer do emprego
o fundamento da coesão social e do sentido da vida de cada um, mais se sentirão
estranhados ou socialmente excluídos todos aqueles e aquelas, virtualmente
majoritários, para quem o emprego é sempre precário, temporário, à mercê do
arbítrio patronal e das flutuações do mercado. Se se quer restabelecer a coesão
social e o sentimento de cada um de pertencer à sociedade como cidadão de pleno
direito, é necessário começar por reconhecer que a sociedade do trabalho
assalariado está morta e que é a atividade, e não apenas o trabalho-emprego, que
deverá fundar o estatuto, os direitos e o valor social reconhecido aos indivíduos
(GORZ, 1995:137).
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187
ANEXO 1.
G. (tempo de gravação: 30 min.)
- Para começar contextualizando, tu poderias me falar um pouco sobre qual é a luta do movimento?
- Quanto ao reconhecimento da ocupação de catador de material reciclável na CBO (Classificação
Brasileira de Ocupações), também foi uma luta do movimento?
- Mas existem grupos que se autodenominam recicladores, não?
- Do que que o movimento não abre mão?
- O que o movimento considera como apoiador?
- Como que o movimento a atuação do Estado, do gestor, na formulação das políticas públicas
para os catadores?
- E o movimento consegue estar sendo chamado para formular e debater isso? Está mantendo um
diálogo com o poder público?
- Como o movimento vê a possibilidade de adentrar o espaço institucional? E qual é a relação do
movimento com os partidos políticos?
- Considerando a perspectiva de autonomia que o movimento vislumbra, como este acaba lidando
com a questão jurídica?
- Qual seria a motivação, a importância do movimento estar fazendo parcerias com o Ministério,
Petrobrás, etc?
- E se a Petrobrás pedir para colocar o logo dela na bandeira do movimento? Como fica?
- Você considera que essas parcerias estariam no campo da redistribuição de renda ou mais na
questão do reconhecimento, da valorização do catador?
- Que tipo de reconhecimento o movimento está buscando?
A. (tempo de gravação: 48 min.)
- Para começar, tu poderias me contar um pouco da história do movimento?
- Esta organização ocorreu a nível nacional?
- Pode-se constatar disso que o poder público teve um papel importante nesta organização...
- Catador ou reciclador?
- Desculpa interromper, mais isso em nível nacional?
- E nessa trajetória, como foi ficando a Federação?
- Com relação à inserção da ocupação catador de materiais recicláveis no CBO, foi uma luta do
Movimento, contribuiu para isso que tu estavas comentando?
- Atualmente, o Movimento está buscando uma maior formalização do trabalho do catador?
- E qual a importância do Movimento estar conquistando, cada vez mais, espaços institucionais?
- Em termos de resultados concretos, a ação direta ou a via institucional da negociação, qual tem
surtido maior efeito?
- Como que o Movimento a atuação do gestor público, nas três esferas, na formulação das
políticas públicas para os catadores, está havendo espaço para a voz do catador ou as decisões vem
de cima para baixo?
- E o Movimento tem conseguido firmar parcerias com ONG’s?
- Que tipo de reconhecimento o Movimento almeja, espera conseguir com a sua luta?
- Diante disso, o Movimento ainda é a melhor forma para adquirir esse reconhecimento?
- Do que que o Movimento não abre mão?
- E o Movimento quer transformar suas conquistas em lei?
188
- Justiça para o Movimento tem a haver com esse reconhecimento ou mais com questões materiais,
de redistribuição de renda?
- Qual a motivação de buscar parcerias com ONG’s, instituições religiosas ou mesmo com o Estado?
V. (tempo de gravação: 22 min.)
- Gostaria de iniciar te perguntando pelo que o MNCR luta?
- E de que forma o Movimento vai ir atrás desse reconhecimento?
- Do que que o MNCR não abre mão?
- Como que o MNCR está vendo a atuação do(s) governo(s) na formulação de políticas ou projetos
para os catadores? O Movimento está sendo chamado para debater junto?
- E quando vocês levam essa pauta de reivindicação eles estão dando atenção?
- Então, está tendo importância sentar com eles para discutir?
- E vocês estão sentindo um respeito da parte deles?
- Essa é a grande luta do Movimento?
- Nesse sentido, me parece que o Movimento está buscando isso através de uma certa formalização
da atividade, de forma a garantir os direitos trabalhistas?
- Como que o Movimento vê as possibilidades de ocupar os espaços mais institucionalizados, qual a
motivação disso?
- Nesses anos de luta do MNCR, desde 2001, tu achas que ele tem contribuído para mudar a imagem
do catador perante a sociedade?
- Na realidade, o Movimento acaba sendo aquele que bota a cara para bater...
- E isso, como o senhor disse, acaba sendo visto pela sociedade com maus olhos?
- ...sem slogan partidário na bandeira do MNCR?
- E do ponto de vista jurídico como que o MNCR se desdobra? Nas parcerias firmadas, etc.?
- Existe a proposta de criação de uma entidade jurídica única em Gravataí, que poderia facilitar,
não?
- E quem são os apoiadores do Movimento?
- Na atua opinião, o Movimento luta por redistribuição de renda, questões mais econômicas,
reconhecimento e valorização do catador ou as duas?
- A parceria que o MNCR firmou com a Petrobrás está trazendo reconhecimento para os catadores?
- E pra finalizar, tem algum espaço que o Movimento não consegue adentrar?
- Tu achas que os meios de comunicação têm ajudado a denegrir a imagem do catador?
- ...me lembro até do episódio com a fonte no centro da cidade no dia do ato de vocês...
C. (tempo de gravação: 18 min.)
- Pelo que que o movimento luta?
- A questão do reconhecimento do catador como uma ocupação na CBO, foi uma conquista?
- E trouxe ganhos concretos?
- E nesse sentido da mídia, como é que tu achas que ela está tratando o catador?
- Do que que o Movimento não abre mão?
- E como é que tu achas que o Movimento pode adquirir reconhecimento para o catador?
- O Movimento opta pela ação direta, tu achas que tem resultados concretos?
- E tu achas que há alguma perda com relação à sociedade?
- Tu achas que está tendo um respeito por parte do poder público municipal em relação aos
catadores organizados?
- Mas o que está sendo discutido dá para vislumbrar um encaminhamento prático?
- Tu achas que vocês são chamados também para formular ou mais para legitimar decisões tomadas
previamente?
189
- Isso é comum aos diferentes órgãos do governo, DMLU, EPTC, etc.?
- Considerando as articulações do Movimento em nível municipal, estadual e nacional, tem algum
espaço institucional que o Movimento quer adentrar mas tem tido dificuldade?
- Ceder em alguns momentos, mas cercado de cuidados?
- Em termos partidários, o MNCR não tem interesse a se vincular a algum partido em particular?
- Na tua opinião, o que precisa mudar em termos de prefeitura, governos ou outros espaços
institucionalizados?
- Para finalizar, que tipo de reconhecimento o Movimento almeja?
- E o Movimento luta por uma formalização da categoria? A garantia de carteira assinada e direitos
trabalhistas?
T. (tempo de gravação: 19 min.)
- Qual a luta do MNCR?
- ...tem um segundo propósito?
- Mas está dentro do que o MNCR quer?
- Falando em termos de formalização, como a recente inserção do catador como uma ocupação no
CBO, isso é uma luta do Movimento?
- Ao se constituir como um movimento social, como fica a viabilidade legal do MNCR ao fechar
convênios e parcerias com instituições que demandam um “CNPJ”?
- Com relação à ação direta, tu achas que ela é o meio mais eficaz para provocar resultados?
- E nesses ainda poucos anos de caminhada do Movimento, tu percebes uma mudança da sociedade
com relação ao catador?
- Tu achas que na esfera municipal, o governo tem chamado o Movimento para discutir junto os
assuntos que dizem respeito aos catadores?
- Estás te parecendo que o poder público municipal tem demonstrado ultimamente um maior
respeito?
- Com relação a vínculo partidário, o Movimento se abstém?
- E do que que o Movimento não abre mão?
- ...te ouvindo falar, me parece uma luta pela valorização do trabalho do catador, mas eu gostaria de
te perguntar que tipo de reconhecimento tu achas que o Movimento está buscando?
- Como é que o Movimento a possibilidade de estar adentrando espaços mais institucionalizados, tipo
participando de um comitê interministerial lá em Brasília, qual a motivação disso?
- Tu achas que o Movimento está tendo voz política aqui em Porto Alegre?
- O Movimento busca mais reconhecimento, redistribuição de renda ou os dois?
- Pra isso, o MNCR quer garantir a conquista de direitos legais, tipo carteira assinada, etc.?
- Ou seja, quer um reconhecimento pelo trabalho, quer os direitos trabalhistas, mas não na lógica de
patrão, de exploração?
B. (tempo de gravação: 11 min.)
- Na sua opinião, o que que motivou a formação da FARRGS?
- Tentar adquirir uma certa autonomia?
- E atualmente a FARRGS congrega galpões de todo o Rio Grande do Sul?
- E como que a FAARGS vê a atuação do poder público na formulação de projetos para os
catadores? Existe um diálogo com o governo do estado ou...
- Pelo que a FARRGS luta?
- Em que sentido esse reconhecimento?
- E como que está sendo o diálogo da Federação com as prefeituras?
- E qual a importância de manter essas discussões com as prefeituras?
190
- E estão chamando a Federação para discutir junto?
- E nesse sentido, houve mudanças com o fato de existir um coletivo organizado?
- E para os catadores, também houve mudanças?
- A Federação se refere aos recicladores, eu vejo a senhora, e não a senhora, se referir aos
catadores, tem alguma diferença?
- Mas qual é a diferença entre um e outro?
- E quais são os objetivos da FARRGS?
- E quais são as maiores dificuldades?
- Resumindo, a FARRGS vai lutar mais por ganhos materiais ou por reconhecimento?
- E a FARRGS mantém relações com outros grupos de catadores?
- Faz pouco o catador foi reconhecido como ocupação...
- Qual a importância de estar legitimado na lei?
- Esse fato de existir legalmente gerou algum outro ganho?
E. (tempo de gravação: 52 min.)
- Quais foram as motivações para a formação da FARRGS?
- E a H. não era catadora então?
- E tu consideras que desde de 1998 até agora, a Federação tem sido assumida cada vez mais por
catadores?
- Tu poderias me falar um pouco sobre essa opção de tocar uma Federação, um espaço mais
institucionalizado, legalizado, no sentido de eventuais vantagens que isso possa estar
proporcionando...
- Com a inserção do catador na CBO2002, que foi uma grande luta coletiva no Congresso de
Brasília de 2001, tu percebes melhorias na condição de ser catador?
- E essa é uma luta de vocês?
- E a Federação opta por algum deles em particular?
- Qual a importância da FARRGS estar participando de encontros, tipo esse de Florianópolis,
seminários, etc?
- E a questão do diálogo com o poder público, assim...
- Está difícil a comunicação com o poder público?
- Como que a FARRGS a atuação da prefeitura na questão da formulação das políticas públicas
municipais para catadores no sentido de participação, digo, vocês tem sido chamados para o
debate?
- Mas então se eles vão lá, se reúnem e chamam, a prefeitura aparece?
- Nesse sentido, pode-se dizer que está tendo um respeito do poder público pela questão dos
catadores?
- E como que a Federação a possibilidade de adentrar espaços mais institucionais, ou fazer
parcerias com associações religiosas, ong’s, etc.?
- E qual a importância dessas parcerias? Seria no sentido de viabilizar recursos econômicos ou
mais...
- A formação me parece ser um dos principais focos de atuação da Federação, né?
- Eu sinto na tua fala um processo de crescimento pessoal, de reconhecimento, mas se pode dizer
que este processo também está vinculado à formação de um coletivo?
- Como que tu achas que a sociedade de uma forma geral está vendo o catador?
- Do que que a FARRGS não abre mão?
- Que tipo de reconhecimento a FARRGS está buscando?
- A FARRGS representa apenas catadores que estejam em galpões, é isso?
191
- Tu poderias me falar um pouco da relação que a FARRGS mantém com outros coletivos de
catadores organizados, como por exemplo, o MNCR, com o qual manteve uma relação mais ou
menos...
- Ou seja, não está havendo diálogo...
- Deste comitê interministerial a FARRGS não faz parte?
- Desculpe voltar no assunto, mas no município de Porto Alegre, a relação do PT com a FARRGS
foi...
- Estão sendo desigualmente distribuídos os recursos?
- E me diz uma coisa, para que eu consiga maiores sobre a fundação da FARRGS, eu conseguiria
aonde? No DMLU?
- Contra quem a FARRGS luta?
R. (tempo de gravação: 56 min.)
- Quais foram as motivações para a criação da FARRGS?
- Por que a opção por este caminho em particular?
- Como tu vês a participação dos catadores nesse começo da FARRGS?
- A sustentação econômica da FARRGS está complicada?
- Como anda a questão dos apoios financeiros?
- Poderias me falar um pouco sobre a relação que vocês estão tendo com o poder público?
- Então, não existe outra Federação de recicladores em outro estado brasileiro?
- A partir de sua fala eu poderia extrair que um grande montante de recursos econômicos está sendo
atualmente drenado mais especificamente para o Movimento do que propriamente para a
Federação?
- Voltando à questão da dívida da Federação, ela começa quando?
- Como anda a participação da FARRGS em eventos, como, por exemplo, o Fórum Lixo &
Cidadania?
- E qual a importância para a Federação de estar presente nestes locais?
- Ou seja, a Federação não se sustenta sozinha, mas mediante a contribuição das associações da qual
fazem parte a coordenação, é mais ou menos isso?
- Mas quanto a esta programação o senhor se refere a sua usina aqui ou à Federação como um todo?
- Na sua opinião, o status jurídico da Federação ajuda na questão da captação de recursos?
- ...me parece que o senhor está questionando a validade concreta dessa instância representativa,
desse instrumento de representação formal que acaba...
- Mais no sentido de uma assessoria?
- Ou seja, a necessidade de um status jurídico está bem questionável nesse momento?
- Trazendo esta questão, como se dá atualmente a relação com o Movimento, considerando o fato de
terem iniciado suas trajetórias praticamente juntos?
- Do que a FARRGS não abre mão, digo, quais seriam seus princípios, seus pilares de sustentação?
- Pode se dizer que a FARRGS está cada vez mais sendo coordenada e administrada por catadores?
- E que tipo de reconhecimento que a FARRGS busca?
- E quanto à classificação do catador na CBO de 2002...
- Certo, e qual é a importância disso, ou quais seriam as possíveis vantagens?
- Em termos da formulação de políticas públicas para os catadores, em diferentes instâncias, a
Federação está sendo chamada para estes espaços?
- Para a gente ir finalizando, gostaria que o senhor fizesse algumas especulações sobre o futuro da
FARRGS?
- Com relação aos catadores de rua que o senhor acabou de mencionar, o quê a FARRGS vislumbra
para todo esse contingente que não está dentro de associações e cooperativas?
192
ANEXO 2.
___________________________________________________________________________
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Eu, __________________________________________, concordo em participar da
pesquisa de mestrado do aluno Fernando Michelotti do Programa de Pós-graduação em
Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que tem o intuito de discutir
questões referentes ao universo de reconhecimento social dos catadores de materiais
recicláveis de Porto Alegre e seu processo de organização coletiva. O pesquisador se
compromete a não revelar nomes e, caso haja interesse, a dar retorno da pesquisa após a sua
conclusão.
Porto Alegre, ________ de _______________ de 20_______.
________________________________________
Assinatura
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