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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
A CONSTRUÇÃO LINGÜÍSTICA DO RISO
NAS CRÔNICAS DE JOSÉ SIMÃO
Maria Teresa Rego de França
SÃO PAULO
2006
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOLOGIA E LÍNGUA
PORTUGUESA
.
A CONSTRUÇÃO LINGÜÍSTICA DO RISO
NAS CRÔNICAS DE JOSÉ SIMÃO
Maria Teresa Rego de França
Tese apresentada ao programa de Pós-graduação em
Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para obtenção do título
de Doutor em Letras.
Orientadora: Profª Drª Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira
Andrade
SÃO PAULO
2006
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BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
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A meus pais, Manoel e Iracy.
A meu marido, José Luiz.
A meus filhos, José Luiz, Flávio e Tatiana
.
A meus netos?
AGRADECIMENTOS
À querida orientadora, Profª Maria Lúcia da Cunha Victório de
Oliveira Andrade, meu profundo agradecimento, não pelas minuciosas
leituras e sábios comentários com os quais fui contemplada, mas também pelo
reconfortante apoio a mim oferecido, em um momento especialmente difícil
da minha vida.
Meus reiterados agradecimentos à ProAna Rosa Ferreira Dias,
minha orientadora no mestrado, cujas críticas e sugestões, sempre perspicazes,
apontaram-me, neste novo trabalho, caminhos mais coerentes.
5
À Profª Lineide do Lago Salvador Mosca, de quem tenho muito
orgulho de ter sido aluna e cuja vivacidade pessoal e dinamismo profissional
me são admiráveis, meus agradecimentos pela fecundidade de suas
observações.
RESUMO
Subjaz a este trabalho o objetivo de analisar como o riso e o risível são construídos
lingüisticamente. A fundamentação teórica baseia-se em Bergson, Propp, Bahktin,
Todorov, Raskin e Attardo. Inicialmente, procedemos a uma retomada histórica, buscando
conhecer como o riso e o risível foram explicados por vários pensadores e teóricos de
diferentes épocas. De Aristóteles a Freud, pudemos constatar o domínio de três grandes
correntes teóricas: a psicológica, a sociológica e a psicanalítica. Somente quando a
Lingüística se fixa como ciência, já no século XX, o fenômeno do riso passa a ser estudado
sob a perspectiva estritamente lingüística. No segundo capítulo, procedemos à
contextualização do corpus e buscamos verificar como a produtividade do humor o dizer
muito com pouco se constrói em outra mídia. Se a comicização extratextual revelou-se
típica nos textos analisados, também pudemos detectar que o humor de José Simão
constantemente se realiza via paródia e apresenta características do cômico grotesco.
Explicitar e exemplificar a Teoria Semântica do Humor, proposta por Raskin - para quem
todo texto risível envolve a sobreposição de scripts e a presença de um gatilho que permite
a passagem do modo rio (bona fide) para o modo joke telling (non-bona fide) foram as
6
ações que nortearam a elaboração do nosso terceiro capítulo. Já o quarto capítulo foi
dedicado exclusivamente ao humor das palavras, ou seja, ao humor verbal cuja motivação
inicial decorre de se explorarem os aspectos sonoros, significantes. O último capítulo,
dedicado à análise, permitiu-nos constatar como a clássica divisão de Cícero (humor da res
e humor da verba) permanece atual: as piadas trocadilhescas e as situacionais bem o
comprovam.
Palavras-chave: crônica; riso; humor de ação; humor de palavras; paródia.
ABSTRACT
The aim of this paper is to analyse as the humor and the laugh are linguistic made. The
theory’s statement is based on Bergson, Propp, Bahktin, Todorov e Attardo. Firstly we
made a historical retrospective, trying to know as the humor and the laugh were explained
by several thinkers and theorists throughout the different ages. From Aristotle to Freud we
could realize the domain of the three remarkable current theories: the psychological, the
sociological, the psychoanalytic. Only when the Linguistic was considered as a science -
which happened just on the XX century - the humor´s phenomenon started to be studied
from a proper linguistic side of view. On the second chapter, we focused the corpus and
we tried to verify how the humor’s productivity - as to say lots in few words - is made in
another media. We noted that extratextual comic action was the typical one in the studied
texts and we also realized that José Simão’s humor is often parodist and so it shows typical
characteristics of the grotesque comic. To explain and to give some examples of the
“Semantic Theory of Humor” proposed by Raskin - to whom all the humor texts involves a
overlap of scripts and the presence of a trigger which provides the passage from the bona
7
fide to the joke telling mode were the actions that leaded the elaboration of the third
chapter. The fourth chapter was dedicated specifically to the humor of the words, it is to
say: the verbal humor which bases come from the sonorous aspects of the words. The last
chapter, dedicated to the final analysis, let us realized as the classic division of Cicero
(humor of res and humor of verba) remains between us: the jokes and the punners can
prove it.
Key words: chronicles; laugh; humor of action; humor of words; parody.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................1
CAPÍTULO 1 - AS TEORIAS SOBRE O RISO: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS
1.1 O riso como objeto de estudo....................................................................................10
1.2 O riso segundo Platão...............................................................................................15
1.3 O riso na concepção aristotélica...............................................................................16
1.4 Cícero e o bom humor latino....................................................................................18
1.5 O riso segundo Quintiliano.......................................................................................21
1.6 O riso ecoa na Idade Média......................................................................................24
8
1.7 O riso no Renascimento............................................................................................29
1.8 A teoria bergsoniana.................................................................................................31
1.9 A contribuição de Freud: o riso como economia psíquica.......................................38
1.10 A comicidade para Wladimir Propp....................................................................40
1.11 Humor oriental: breve incursão...........................................................................48
1.12 Algumas conclusões............................................................................................56
CAPÍTULO 2 - APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DO CORPUS
2.1 José Simão: Jornalista, humorista ou colunista social?.............................................61
2.2 A seleção do corpus...................................................................................................70
2.3 As crônicas de José Simão: um gênero híbrido ........................................................72
2.4 A visão carnavalesca do mundo nas crônicas de José Simão....................................82
2.4.1 O cômico grotesco..................................................................................................82
2.4.2 As festas medievais e a visão carnavalesca do mundo...........................................92
2.5 Paródia, paráfrase & cia............................................................................................95.
2.6 Paródia e comicidade...............................................................................................104
2.7 Estratégias parodísticas............................................................................................111
2.8 Riso e contexto........................................................................................................119
2.8.1 Comicização diegética, extradiegética e extratextual...........................................123
2.8.2 Relação cômica, espirituosa e humorística...........................................................125
2.9 Algumas conclusões................................................................................................128
CAPÍTULO 3 - O HUMOR DE AÇÕES
3.1 Afinal, o que é humor?............................................................................................133
3.2 A teoria semântica do humor...................................................................................135
3.3 O modo do humor....................................................................................................137
3.4 A sobreposição de scripts........................................................................................141
3.5 Os gatilhos para a mudança de scripts.....................................................................142
3.6 O humor sexual........................................................................................................151
9
3.7 O humor étnico........................................................................................................171
3.7.1 O script das distorções lingüísticas......................................................................172
3.7.2 O script da parvoíce..............................................................................................176
3.7.3 O script da sovinice e o da esperteza................................................................... 182
3.8 O humor político......................................................................................................187
3.9 Algumas conclusões................................................................................................195
CAPÍTULO 4 - O HUMOR DE PALAVRAS
4.1 Os chistes retóricos de Freud: uma releitura...........................................................200
4.2 Os chistes retóricos: forma evoluída de humor?.....................................................218
4.3 Trocadilhos: teorias lingüísticas..............................................................................223
4.3.1 As diferentes taxionomias....................................................................................225
4.3.2 Taxionomias baseadas em fenômenos lingüísticos..............................................225
4.3.3 Taxionomias sistemáticas.....................................................................................228
4.3.3.1 A taxionomia de Milner.....................................................................................228
4.3.3.2 A taxionomia de Hausmann..............................................................................234
4.3.4 Taxionomias baseadas na estrutura superficial....................................................236
4.3.5 Taxionomias ecléticas...........................................................................................247
4.4 Trocadilhos e ambigüidade......................................................................................249
4.5 Trocadilhos e contexto.............................................................................................254
4.6 Algumas conclusões................................................................................................262
CAPÍTULO 5 - ANÁLISE DO CORPUS
5.1 Palavras iniciais.......................................................................................................264
5.2 Textos analisados.....................................................................................................271
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................293
10
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................300
ANEXOS......................................................................................................................305
11
INTRODUÇÃO
A questão do riso e do risível sempre permeou as nossas indagações. Textos
engraçados, jocosos, debochados ganhavam de imediato o nosso interesse, despertavam as
nossas reflexões e nos induziam à busca de explicações. O riso nos parecia um enigma a ser
desvendado. Afinal de que ri o homem? De ações humanas não condizentes em
determinadas situações? Do jogo de palavras? Do ilógico da situação? Intuíamos algo de
insidioso no riso.
Um outro dado intrigante dizia respeito à relação locutor/leitor/objeto do riso. O
orador, ou seja, aquele que desvela o risível de um determinado objeto se coloca numa
posição superior em relação a este mesmo objeto? O velho aforisma “rindo se corrigem os
costumes” não subsume essa pretensa superioridade do orador, na medida em que
pressupõe que aquele que desvela o ridículo de determinadas ações ou situações pode
conscientizar o Outro?
De que mecanismos lingüísticos se vale o locutor para levar o seu interlocutor
ao riso? Os mecanismos que formalizam o riso devem primar pelo ineditismo ou o? O
riso é socialmente circunscrito ou pode apresentar algumas categorias universais? Enfim,
como se constrói o riso?
12
Diante de assunto tão instigante e tão abrangente, urgia que norteássemos a
nossa pesquisa e uma retrospectiva histórica das teorias sobre o riso se nos afigurou o
caminho mais lógico. Para tanto, recorremos, inicialmente, a Attardo (1994) e Alberti
(1999) cujas obras se mostraram indispensáveis para quem pretende se debruçar sobre
assunto tão atual e ao mesmo tempo tão antigo: o riso como objeto de especulações
filosóficas remonta à Antigüidade. Com Aristóteles, Cícero e Quintiliano aprendemos as
duas grandes categorizações do riso: o das ações e o das palavras.
Aprendemos também que as tentativas de se estabelecerem as categorias do
risível foram notoriamente marcadas, até o século XX, pela inspiração aristotélica, uma vez
que se pautaram pela distinção entre comédia e tragédia, considerada a primeira um gênero
menor, pois menos nobre. De Bakhtin, na obra A cultura popular na Idade dia e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais, publicada originalmente em 1965
1
, nos
veio a certeza de que ecos do riso medieval – riso grotesco e alegre – podem ser ainda hoje
perceptíveis nas debochadas paródias modernas.
Do racionalismo tipicamente renascentista, não a busca de explicações para
os aspectos fisiológicos do riso (Joubert), mas, pela segunda vez na história (Demócrito
asseverara), a constatação quanto a suas propriedades terapêuticas. Com Hobbes, Kant e
Schopenhauer temos, grosso modo, a continuação da linha platônica, ou seja, a idéia de que
o riso encerra agressividade, pois quem ri desvela as fraquezas e defeitos do ser risível e,
assim procedendo, coloca-se como um ser superior.
De modo geral, as pesquisas e especulações sobre o riso apresentam, até o limiar
do século XX, um caráter marcadamente filosófico, e mesmo Bergson, ao publicar em
1900
2
, sua famosa obra O riso, verdadeiro tratado sobre o assunto, revela a influência
1
Historicamente, julgamos fundamental anotar a data da primeira publicação, muito embora tenhamos nos
servido para a elaboração desta tese da edição brasileira de 1996, conforme indicam as referências
bibliográficas finais.
2
Novamente, adotamos para a nossa pesquisa uma publicação brasileira, bibliograficamente referida no final
desta tese.
13
platônica, na medida em que muitas das leis
3
propostas pelo autor para explicar a
comicidade decorrem da antinomia corpo x alma. Já Freud, na obra Os chistes e sua
relação com o inconsciente, datada de 1905
4
, ao buscar interpretar os sonhos, procede a
instigante análise dos chistes retóricos, uma vez que o elemento verbal é a face mais
observável da símbologia dos sonhos.
Chegamos assim ao século XX, em cuja segunda metade, uma eclosão dos
estudos lingüísticos: a Linística se torna uma ciência autônoma e os estudos sobre o riso
ganham em especificidade. Conhecer como as diferentes teorias lingüísticas abordaram e
analisaram o fenômeno do riso passou, conseqüentemente, a ser o nosso segundo objetivo
específico.
Descobrimos Wladimir Propp, filólogo russo, que publicara, em 1946
5
, a obra
Comicidade e riso e - embora seus exemplos tenham sido tirados exclusivamente do
folclore russo e da obra de Gogol é patente em seu trabalho a influência de estudiosos
alemães. É curioso que, inclusive, as referências e as críticas à teoria bergsoniana
6
o
escondam uma série de semelhanças entre os dois. Convém realçar ainda a vaidade
confessa de Propp quanto ao método indutivo por ele adotado: o autor não assume como
sói acontecer – um paradigma analítico prévio. Não. Ele parte do concreto, dos dados
empíricos, dos efeitos cômicos observados, para chegar à teoria e isso nos parece invejável
como método inicial de pesquisa.
Se a retrospectiva histórica possibilitou uma visão mais ampla sobre o fenômeno
do riso, ela também criou em nosso espírito a necessidade de um contraponto, até porque
pouco se nos revelou sobre o humor oriental. Buscando, pois, endossar a nossa hipótese de
que o humor e o riso (usaremos indistintamente tais palavras) possuem mecanismos
3
Bergson afirma que o risível é facilmente criado quando a alma se rende aos imperativos do corpo. O corpo
sobrepujando a alma é, pois, uma das leis da comicidade. Uma personagem que, por exemplo, apresenta um
tique nervoso, facilmente se torna cômica.
4
Também aqui, em respeito à cronologia, anotamos a data da primeira publicação. Para a consecução desta
tese foi usada uma edição espanhola, cujas especificações aparecem nas referências bibliográficas finais.
5
O procedimento anterior foi reiterado: fizemos questão de registrar a data da primeira publicação. As
referências bibliográficas da edição que nos serviu de apoio encontram-se no final deste trabalho
6
Embora tais críticas sejam freqüentes, a percepção de que muitas semelhanças entre os dois autores nos
propiciou uma série de comparações, que serão anotadas no primeiro capítulo desta tese.
14
universais, realizamos uma breve incursão no humor oriental, mais exatamente naquele
realizado pelos zen-budistas. A obra de Hyers (1974) não nos serviu de roteiro, mas
também nos confirmou que estávamos no caminho certo: a dessacralização do sério e do
sacro é inerente ao humor, tanto no Ocidente quanto no Oriente.
Munidos, pois, de valiosas e inúmeras informações provenientes da
retrospectiva realizada, elaboramos um quadro com as categorias analíticas propostas.
Intuíamos que tal quadro, mais do que representar um guia para as nossas análises,
significava um registro que possibilitaria comparações e conclusões futuras. Na verdade,
não nos movia ainda o procedimento analítico, mas a certeza de que os ensinamentos
antigos sempre trazem a chave para solucionar as indagações presentes.
Apresentados autor e obra, procedemos, no segundo capítulo, à apresentação
do corpus selecionado, a saber: todas as crônicas publicadas pelo jornalista José Simão na
Folha de S. Paulo, nos meses de agosto a novembro de 2004 (mais exatamente até o dia
04/11), as quais versaram sobre três assuntos veiculados à exaustão naquele ano: os Jogos
Olímpicos, na Grécia, as eleições para prefeito e para a vereança, ocorridas em todo o
Brasil, e as eleições à presidência dos EUA. Queremos apenas registrar que algumas
crônicas pouquíssimas – publicadas anteriormente ao mês de agosto e que, de certa
forma, inspiraram a escolha do corpus desta pesquisa, foram mantidas, bem como as
observações que sobre elas fizemos.
Inspirados em Propp, assumimos, a partir deste capítulo, um constante diálogo
entre o corpus e a teoria, um incessante ir e vir em que observação empírica e teoria se
alternavam e de completavam. Pudemos não só constatar a atualidade das categorias
clássicas propostas por Aristóteles e recuperadas por Cícero, mas também associar o riso de
ação à questão da narratividade e o riso de palavras à da argumentatividade. Isso nos
favoreceu a percepção do caráter fragmentário das crônicas de José Simão, visto que, se as
piadas subsumem pequenas narrativas envolvendo ações estapafúrdias dos colunáveis, os
comentários jocosos, feitos à situação enunciativa, tendem a criar o efeito risível por meio
dos jogos de palavras.
15
Na verdade, a questão dos gêneros se anunciava, mesmo porque as crônicas
mais nos pareciam uma colagem bastante criativa de neros menores: piadas, slogans,
comentários, manchetes, verbetes de dicionário, pequenas notícias, enquetes. São crônicas
tão fragmentadas que a unidade temática parece decorrer da própria necessidade de se
criarem os efeitos cômicos. Aliás, a par da questão dos gêneros, a própria noção do cômico
precisou ser revista. A da crônica também: a obra Estética da criação verbal, de Bakhtin,
publicada inicialmente em 1979
7
, foi revisitada; as obras de Antonio Candido (1980) e
Maingueneau (2001) também.
Associar o cômico grotesco bakhtiniano à moderna teoria da paródia requereu
que relêssemos Sant’Anna (2004) e nos reportássemos a Hutcheon (1989
).
De fato, se a
paródia literária é intertextual, a paródia levada a cabo por José Simão é extratextual: é um
rebaixamento alegre da realidade noticiada, no qual, via de regra, as caricaturizações
grotescas dos atores da notícia são fontes de riso.
Contudo, se o cômico grotesco só pode ser entendido dentro de sua época, como
bem nos apontou Bakhtin, é inegável que sua influência a ela não se limita. Martins (1995),
a propósito da paródia surrealista, destaca-lhes algumas estratégias que se revelam
correlatas àquelas comumente usadas no grotesco medieval, tais como as descrições
grotescas, os oxímoros, o gosto pelos trocadilhos, o uso constante da paronomásia. Enfim,
estratégias lingüísticas que, além de facilitarem a construção do desequilíbrio cômico,
geralmente sintetizam subversões dentro do próprio código lingüístico.
Ainda neste capítulo, movidos pela curiosidade de melhor entender as
motivações do riso e pela necessidade de perceber o real papel do contexto para a
consecução do primeiro, houvemos por bem observar a construção do risível em outra
mídia. A obra de Almeida (1999), em que o autor analisa as HQs francesas, intituladas Les
Frustrés, propiciou-nos insights importantes. Ao analisar a narratividade típica de tais HQs,
7
O rigor histórico nos obriga a redundâncias: as referências da edição de que lançamos mão encontram-se na
bibliografia final.
16
Almeida não destaca que a produtividade do humor o dizer muito com pouco é
altamente inferencial, mas também analisa a questão das instâncias discursivas nelas
envolvidas.
Se, numa história em quadrinho, a função comicizante está a cargo dos
personagens, a comicização é diegética: as histórias narram-se a si mesmas. Se tal função é
fruto da perspectiva de um narrador, a comicização se diz extradiegética. Ambas,
comicização diegética e extradiegética, realizam-se no nível do enunciado, visto que
ocorrem no mundo representado. a comicização extratextual, ou seja, aquela que diz
respeito ao nível da enunciação, decorre da percepção do leitor, o que significa dizer que
decorre da interação autor/leitor. Em outras palavras, a comicização extratextual é típica do
corpus em questão.
Realizada a retrospectiva histórica, apresentados autor e corpus, o terceiro e
quarto capítulos foram dedicados às teorias estritamente lingüísticas. A SSTH (Semantic
Script Theory of Humor) ou teoria semântica de Raskin (1985) revelou-se,
indubitavelmente, a mais elucidativa e abrangente. Ter ciência de que o texto humorístico
trabalha com sobreposição de scripts, perceber que os gatilhos não subsumem a pista
para que o leitor mude do modo bona fide para o non-bona fide, saber que tal pista envolve
um cálculo, uma previsão feita pelo locutor em relação ao leitor, foram alguns
conhecimentos que se mostraram imprescindíveis para quem, como nós, buscava
compreender a construção do riso e do risível.
Aprender com Raskin (op.cit) que o humor trabalha com oposições básicas,
algumas de natureza mítica, praticamente universais, e que elas fundamentam estereótipos e
preconceitos comumente presentes em piadas, permitiu-nos uma compreensão mais realista
do próprio fenômeno do riso. Deu-nos segurança para afirmar que o riso é essencialmente
dicotômico, o que talvez justifique o fato de, historicamente, ter sido associado a um
engano, a um deslocamento, ao elemento surpresa. E - por que não dizer? à própria
maldade.
17
Perceber como o humor sexual, o ético e o político, segundo a divisão
raskiniana, desvelam a pretensa superioridade de uma personagem sobre outra, ou a do
locutor sobre as personagens (como ocorre na comicização extratextual, típica, por
exemplo, das crônicas de José Simão) pode ser o caminho para entendermos o que
reputamos ser uma característica prototípica do risível: aquele que ri se coloca numa
posição superior ao objeto do seu riso. Os antigos já haviam feito tal afirmação.
Se a teoria scriptural esclarece os mecanismos semânticos indispensáveis ao
humor verbal, é indiscutível que os exemplos analisados por Raskin (1985) focalizaram,
essencialmente, pequenas narrativas cômicas, ou seja, as piadas, razão pela qual adotamos
para este terceiro capítulo o título “O humor de ações”.
Como forma de marcar a oposição entre o humor verbal de ações que em
geral reporta ações jocosas e/ou estapafúrdias e aquele deflagrado, intencionalmente, por
meio de um jogo fônico, ou seja, de brincadeiras com os significantes, intitulamos o quarto
capítulo de “O humor de palavras”. Nele, fundamentalmente, discutimos diversas teorias
sobre os trocadilhos.
Ler e reler a Teoria dos Símbolos, de 1977
8
, acompanhar a capacidade de
Todorov para simplificar e sintetizar com tanta clareza a teoria freudiana dos chistes
retóricos foi uma experiência gratificante. A percepção de que os trocadilhos ou os jogos
fônicos trabalham basicamente com a presença de dois elementos ocorrendo, assim, a
antanáclase ou a paronomásia – ou com a ausência de um deles – realizando a condensação
por silepse ou por contaminação facilitou-nos o árduo trabalho de estabecermos algumas
categorias analíticas.
Com base em Attardo (1994), entramos em contacto com diversas teorias que,
para classificar os trocadilhos, priorizavam: 1º) ora os fenômenos lingüísticos neles
envolvidos (homonímia, polissemia, por exemplo); 2º) ora a ocorrência do trocadilho no
eixo sintagmático ou paradigmático (a teoria todoroviana pode ser aqui considerada); 3º)
8
Tal data diz respeito à primeira edição da obra e não àquela por nós adotada.
18
ora a questão da distância fonêmica necessária para que duas palavras consubstanciem, de
fato, um trocadilho; 4º) ora a mistura das perspectivas anteriores: são as chamadas teorias
ecléticas que, segundo Attardo, encerram a melhor perspectiva para quem se dedica a
assunto tão rico e abrangente.
Antes de procedermos à analise do corpus selecionado embora tenhamos ao
longo desta tese procedido a constantes análises, visto que endossamos a metodologia
sugerida por Propp buscamos resolver uma questão que, a nosso ver, ficara pendente: um
jogo de palavras, uma brincadeira verbal pode ser considerada uma piada ou, melhor
dizendo, pode se configurar como uma narrativa mínima? Para solucionar tal dúvida,
recorremos a Morin (1971) e às suas funções narrativas: a de normalização, a interlocutória
e a disjuntória.
Queremos ainda ressaltar que encontramos respaldo para muitas das nossas
conclusões em Possenti (2001), em especial no que diz respeito à questão da dependência
do discurso do riso ao contexto. Dito de outra forma: endossar o aforisma bergsoniano de
que “o nosso riso é sempre o riso de um grupo” implica negar a universalidade do humor e
das estratégias lingüísticas necessárias a sua construção e interpretação? E mais: em que
medida tal questionamento nega a nossa hipótese básica de que tais estratégias podem ser
consideradas universais?
Essa volta ao ponto de partida, que as indagações acima representam, leva-nos
a supor que é chegado o momento de buscarmos as respostas. Vamos a elas?
19
“O recuo até as teorias do riso na Antigüidade tem
ainda a vantagem de evitar alguns equívocos na
leitura contemporânea de textos teóricos. Se não
se conhecem as recorrências na história do
pensamento sobre o riso, corre-se o risco de se
salientar, em muitos autores teses que não lhes são
exclusivas, ou, ao contrário, de não identificar
questões cuja importância está ligada a tradições
teóricas hoje esquecidas”. (Alberti, 1999:8).
20
CAPÍTULO 1 - AS TEORIAS SOBRE O RISO: PERSPECTIVA
HISTÓRICA
1.1- O RISO COMO OBJETO DE ESTUDO
A constatação de que o riso é um traço distintivo da natureza humana tem
levado filósofos, antropólogos, lingüistas, etnólogos, entre outros, a questionamentos sobre
a essência e as motivações do riso. O interesse que o assunto desde sempre despertou talvez
explique não a existência de uma vasta bibliografia a respeito, bem como a coincidência
de algumas categorias de análise, oriundas de diferentes teorias.
Ao elaborar um panorama das pesquisas sobre o humor, Attardo (1994) faz
observações imprescindíveis, principalmente com relação às perspectivas de análise. Em
outras palavras: até o Renascimento, o humor é analisado de uma forma globalizada,
mesmo porque o conhecimento ainda não se subdividira em disciplinas estanques. De fato,
as teorias renascentistas são marcadas por uma visão global do humor, como elemento
integrante da discussão sobre a comédia:
Os teóricos da Renascença (....) são os últimos a proporem teorias “globais” sobre o humor, isto
é, teorias que tentam levar em consideração todos os aspectos do fenômeno, sob um ponto de
vista de integração holística. Em outras palavras, o humor é uma parte integrante da discussão
sobre a comédia como um gênero literário e oratório, como ocorreu não com as teorias
clássicas, mas também com as medievais
9
(op.cit., p.45).
Contudo, como decorrência da especialização que se forjara no bojo do século
XVI, assistimos, nos séculos seguintes, à gradativa cisão do Conhecimento e as teorias
sobre o humor passam a ser elaboradas dentro de campos específicos: o da sociologia, o da
9
The Renaissance theorists examined in the previous section are the last to propose “global” theories of
humor that is, theories that try to account for all the aspects of the phenomenon in an integrated holistic
approach. In other words, humor is an integral part of the discussion about comedy as a literary and oratory
genre in their treatment, as it was in the Classical theories and their Medieval continuations.
21
psicologia, o literário, o filosófico, etc. A visão unitária e globalizadora, típica da
Antigüidade e que persistira até o Renascimento, fora perdida. De qualquer forma, do ponto
de vista estritamente lingüístico, pouco se revelou sobre o humor, mesmo porque a
Lingüística só se definiu como disciplina autônoma, a partir do século XX.
Essas observações talvez nos ajudem a entender não a oscilação entre duas
categorias de análise - ou seja, uma mais global que pode ser associada às teorias clássicas
do riso e outras, mais específicas, que isolam tal fenômeno dentro dos respectivos campos
de conhecimento de cada disciplina - mas também a nossa própria dificuldade em
estabelecer tais categorias.
Na introdução da obra em que apresenta análises lingüísticas de piadas,
Possenti (2001) faz uma distinção, que nos parece fundamental. Para o autor, a diferença
entre um estudo lingüístico de piadas e estudos de outra natureza reside na pergunta a que
se busca responder. Se a preocupação é de natureza sociológica, psicológica ou
antropológica, por exemplo, a pergunta norteadora é por quê? Já se a preocupação é
estritamente lingüística, a pergunta-chave é como?
Portanto, segundo o autor, é a perspectiva, é o ponto de vista que distingue um
estudo lingüístico de outro estudo qualquer. Embora tal afirmação não seja inédita
(Saussure se referira à “mirada”), é profundamente pertinente, uma vez que nos o
norte para a análise do corpus. Devemos, pois, como lingüistas, tentar responder como o
riso é deflagrado. Anote-se, ainda, que Possenti é claríssimo quando identifica as fontes da
sua postura analítica, conforme se pode constatar no trecho:
A melhor maneira de estabelecer a diferença entre um tratamento lingüísticos da piada e outra
abordagem qualquer dos mesmos textos talvez seja utilizar os termos de Raskin, segundo o qual
a lingüística explica o “como” e não o “porquê” do humor. Ou, nos termos de uma distinção
clássica e retomada por Jameson, a propósito de textos literários, em O inconsciente político,
não se tentará aqui explicar o que as piadas significam, mas como funcionam. (op. cit.,p.15-6)
22
Insistindo na idéia de que muitos estudiosos do humor se atêm mais à
interpretação do que propriamente à explicitação do funcionamento lingüístico das piadas,
Possenti é irônico quando aponta esse desvio como sendo usual nas análises de textos
humorísticos, especialmente nas piadas, como bem o demonstra a crítica que o autor faz a
Chiaro:
Chiaro fez, embora em menor grau, o que sempre fizeram psicólogos e outros “ólogos”: supõe
que o funcionamento das piadas é óbvio (já que todos as entendem), e dedica-se às explicações,
às interpretações, enfim, ao que elas significam. Não sei por quais razões todos estes
explicadores imaginam que tratar de fatores lingüísticos é chato e tratar de fatores psicológicos,
sociológicos, culturais etc. é charmoso
. (op. cit., p 20).
A constatação de Possenti de que a Lingüística tem a ganhar se as piadas
forem consideradas textos dignos de análise, levou-nos de imediato à associação com a
própria história do riso, visto que este foi sempre considerado um gênero movido por
sentimentos menos nobres, menores. Esse desinteresse pelos mecanismos lingüísticos do
riso pode ser considerado um reflexo deste preconceito maior, ou seja, o de se considerar o
humor um gênero menor.
As citações anteriores serviram para ilustrar a dificuldade que, como vimos,
não é um privilégio nosso – em se estabelecerem critérios de análise em campo tão
imiscuído como o do humor e o do riso. Constatada tal dificuldade, retomamos, neste
ponto, as explicações de Attardo (1994) para quem, grosso modo, Aristóteles, Cícero e
Horácio subsumem o paradigma a partir do qual os debates sobre o riso são colocados
durante toda a Renascença. Todavia, tal constatação não nos autoriza afirmar que os
teóricos renascentistas simplesmente reproduziram as teorias clássicas do humor, até
porque, embora suas raízes sejam inegavelmente clássicas, foram responsáveis por
inúmeras e originais contribuições:
Aristóteles, Cícero e Horácio são os três pensadores que determinam o paradigma do debate; as
teorias renascentistas endossam ou refutam as idéias deles, mas, de qualquer forma, precisam
levar-lhes em consideração. Todavia seria extremamente simplista entender o Renascimento
como mera reprodução das idéias clássicas sobre o humor. Apesar de os autores do
23
Renascimento estarem profundamente ligados à imitação dos clássicos, seus trabalhos também
apresentam pensamentos originais, alguns desvios das normas clássicas e sínteses com
diferentes pontos de vista sobre o humor.
10
(op.cit.,p.45)
Portanto, em virtude da especialização ocorrida e do fato de que a Lingüística só
se configura como disciplina autônoma a partir do século XX, as modernas teorias sobre o
humor, ou seja, as teorias pós-Renascimento e pré-século XX, apresentavam-se sempre sob
o viés de algum campo específico do conhecimento. Nesse sentido, a classificação adotada
por Attardo (1994:47) foi reveladora. Ele distingue três grandes famílias teóricas, conforme
podemos observar no quadro que se segue:
QUADRO I – AS TRÊS FAMÍLIAS TEÓRICAS (Attardo, op.cit., p.47)
CAMPO COGNITIVO CAMPO SOCIAL CAMPO PSICANALÍTICO
Incongruência Hostilidade Liberação
Contraste Agressão Sublimação
Superioridade Liberação
Triunfo Economia
Derrisão
Depreciação
As famílias teóricas contidas no campo Cognitivo têm esta designação porque,
grosso modo, entendem o humor como a cognição (percepção) de uma incongruência, de
uma incompatibilidade, o que, de certa forma, as associa ao campo da psicologia. McGhee,
citado por Attardo (op.cit., p.48), fornece uma explicação eficaz sobre a essência de tais
teorias, quando afirma:
10
Aristotle, Cícero, and Horace are the three thinkers who determine the paradigm of the debate; the
Renaissance theorists agreed or disagreed with them, but needed to take these works into account in any case.
Despite this, the view of the Renaissance as a mere repetition of the classical theories of humor is simplistic.
While these author´s works are deeply rooted in the Renaissance imitation of the classics, their work also
contain some original thoughts, some deviations from the norms, and some syntheses of different points of
view.
24
A noção de congruência ou incongruência se refere à relação entre os componentes de um
objeto, evento, idéia, expectativa social e assim por diante. Quando o arranjo dos elementos
integrantes de um evento é incompatível com o que é tido como normal, ou seja, com o padrão
esperado, o evento é percebido como incongruente.
11
Attardo (op.cit.) inclui Kant (1724-1804), Schopenhauer (1788-1860) como
representantes deste grupo, bem como os aproxima de Aristóteles, que afirmara ser o
humor alguma coisa ruim, porque deslocada, e não por conter necessariamente alguma
maldade.
as teorias incluídas no campo Social encerram o lado negativo e agressivo do
humor, pois exploram a superioridade de quem ri sobre o objeto do riso, que, ao ser
rebaixado, funciona como o antimodelo. Para essas teorias, o riso é um corretivo social.
Elas estão associadas à sociolingüística, justamente porque enfatizam os aspectos
interpessoais e sociais da relação humorística. Lembrando que tanto Platão quanto
Aristóteles fizeram menção ao lado agressivo do humor, Attardo inclui Hobbes (1588-
1679) neste campo, autor este que, embora concorde com a pretensa superioridade do
ridente em relação ao objeto do riso, condena-a com veemência, mesmo porque o escárnio
e o desprezo não se coadunam com os seus ideais de paz e obediência.(Cf. Skinner,
2002:79)
Finalmente, temos as teorias do campo psicanalítico, cujo mais famoso
representante é Freud. Concorde tais teorias, o humor é liberador, uma vez que, por meio
dele, descarregam-se as tensões e a energia psíquica. Na verdade, “o humor nos libera das
inibições, das convenções e das leis” (Attardo,1994:50). Tal liberalização ocorre, inclusive,
em termos de comportamento lingüístico, o que se torna notório, sobretudo nos jogos de
palavras, os quais, comumente, dão origem ao humor em decorrência da desobediência ou
desrespeito às normas conversacionais e/ou lingüísticas.
11
The notion of congruity and incongruity refer to the relationships between components of an object, event,
idea, social expectation, and so forth. When the arrangement of the constituent elements of an event is
incompatible with the normal or expected pattern the event is perceived as incongruous.
25
Uma última observação se torna necessária e se prende ao fato de que, se a
teoria bergsoniana do humor está inclusa no primeiro grupo, ela também pode ser incluída
no segundo, dada a sua concepção do riso como corretivo social. Aliás, essa possibilidade
de dupla classificação, dependendo do aspecto que se destaque na teoria ou nas idéias de
determinado autor ou filósofo, é recorrente nos comentários de Attardo e se, por um lado,
indicia a limitação de qualquer taxionomia, por outro, reforça a riqueza do tema em
questão.
1.2 - O RISO SEGUNDO PLATÃO
unanimidade entre os estudiosos na aceitação de que as primeiras
especulações sobre o riso remontam a Platão (427-347 a C) que, em Filebo, deixa entrever
a sua concepção do riso como algo negativo. Filebo, para quem a volúpia e o prazer são
essenciais, discute com Sócrates, mas é depois substituído por Protarco e a discussão se
centra na natureza do bem: o bem é o prazer, como supõe Filebo, ou o bem é a sabedoria?
Na verdade, segundo Platão prazeres verdadeiros e prazeres falsos. Os falsos
são uma afecção mista, pois misturam dor e prazer. Tal mistura tem larga tradição no que
tange às paixões da alma, conforme registra Alberti (1999:41):
A mistura de “prazer” e “dor” nas paixões da alma aparece no livro IV de A República de
Platão e marca toda uma tradição teórica referente às paixões, segundo a qual as afecções da
alma são regidas pelos fundamentos do “prazer” (o apetite concupiscível) e da “dor” (o apetite
irascível): ou desejamos aquilo que nos agrada ou recusamos aquilo que nos desagrada.
E é justamente quando busca caracterizar as afecções mistas puramente
espirituais que Sócrates, no referido diálogo, relaciona-as aos estados de alma despertados
pelas comédias, que também misturam dor e prazer. Partindo de três pressupostos, a saber:
“que a inveja e a malícia são uma dor da alma, que o invejoso se regojiza com os
infortúnios alheios, e que a ignorância e a estupidez são males”, Sócrates conclui pela
natureza insidiosa do riso e do risível. (Alberti, op.cit., p.41). O ser risível é, pois, vítima de
26
uma ilusão, pois não segue aquilo que pregou o oráculo de Delfos, ou seja, o conhecer-se a
si mesmo.
Ao se referir às pessoas que são objeto do riso, Sócrates ressalta uma condição:
a de que sejam fracos, pois os poderosos, os fortes não o risíveis, mas temidos. com
relação àquele que ri, ele os divide em pessoas amigas ou inimigas. Se rir das desgraças dos
amigos fracos é injusto, tal não ocorre quando nos deleitamos com as desgraças de
inimigos, até porque não os invejamos: “Regozijar-se com os males dos inimigos, porém,
não constitui nem injustiça nem inveja.” (apud Alberti, op.cit.,p.42)
Parece-nos claro agora porque, para Platão, o riso encerra um duplo erro, ou
seja, se aquele que é objeto do riso desconhece a si mesmo, aquele que ri não é movido por
um prazer verdadeiro, visto que ao seu prazer subjaz a inveja, entendida como uma dor da
alma. Em verdade, há em Platão uma condenação ética do riso, pois este não é movido nem
pelo belo, nem pelo justo. Ademais, como vimos, o riso se prende ao cotidiano, ao
mesquinho, ao próximo: não há qualquer grandiosidade nele. Não nos surpreende, pois, que
Platão o tenha condenado.
Para Keith-Spiegel (apud Attardo,1994:19), Platão não só é o representante
prototípico das teorias da ambivalência/incongruência mas também das teorias da agressão,
mesmo porque, como dissemos anteriormente, para ele, os fracos são ridículos justamente
porque não podem se vingar dos deboches sofridos.
1.3 - O RISO NA CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA
É também consenso entre os estudiosos que foi Aristóteles (388-322 a.C) o
teórico do riso que maior influência exerceu sobre as gerações posteriores. É axiomática a
afirmação aristotélica de que “o homem é o único ser vivente que ri”
12
e de que o riso é,
pois, privilégio espiritual. Tanto isso é verdade que, segundo Aristóteles, o nascituro se
12
In De partibus animalium, livro III,cap.X.
27
tornava um ser humano, depois do 40º dia de vida, ou seja, por ocasião do seu primeiro
riso. (cf. Bakhtin,1996, p. 59).
A valorização do homem decorrente desta capacidade de rir é uma crença
aristotélica que vigorou por muitos séculos. O próprio Rabelais, no século XVI, revela
acatar o dito de Plínio, para quem o riso de Zoroastro, imediatamente após o seu
nascimento, já prenunciava que este teria dotes divinos: fora premiado com a sabedoria.
Para exemplificar o seu conceito de riso e de ridículo, Aristóteles se vale da
imagem da máscara que, embora seja coisa feia e distorcida, desperta o riso, sem causar
dor: “a máscara, por exemplo, que estimula o riso, é algo feio e distorcido, mas não causa
dor”
13
(apud Attardo, p.19-20). Essa afirmação seria suficiente para percebermos que o
riso, na concepção aristotélica, é visto de forma mais amena, mais positiva - se comparado
à de Platão - embora o estagira ainda lhe condene os excessos.
Se para Platão o riso pode ser associado a um exagero da alma, para Aristóteles
o riso representa um estímulo à boa vontade do ouvinte. Acresça-se a essas informações o
fato de que Aristóteles reconhece que o riso tem princípios estéticos e pode ser usado,
inclusive, como argumento para o orador desde que não resvale na bufonaria.
Attardo endossa a posição de John Morreall
14
, segundo a qual Aristóteles, ao
analisar a vivacidade e a surpresa que as metáforas podem encerrar, antecipou a teoria da
incongruência, na medida em que percebeu que nos trocadilhos o orador dizia algo
inesperado, inadequado, mas cuja verdade era reconhecida pelo ouvinte, ou para usar as
palavras do próprio Aristóteles (apud Attardo,1994, p.20): “Em todas essas piadas, se a
palavra é usada com um segundo sentido ou metaforicamente, a piada é boa se ela conjuga
os fatos”.
15
13
In De Poética,1449 a.
14
In The Philosophy of Laughter and Humor, de 1987 (apud Attardo,op.cit.p.20).
15
In all these jokes, whether a word is used in a second sense or metaphorically, the joke is good if it fits the
facts.
(III, 11 1412b).
28
De qualquer forma, Attardo (op.cit.) observa que, embora Aristóteles tenha sido
o primeiro a perceber que os trocadilhos jogavam com a leitura do sentido literal das
metáforas (e isto é feito de passagem, quando Aristóteles se dedica ao estudo delas), o
cerne do seu trabalho, como também o fora o de Platão, é a distinção entre comédia e
tragédia, distinção essa que representou o paradigma para as discussões ocorridas entre os
teóricos do riso nos séculos posteriores.
Importa-nos neste sentido destacar uma obra que se tornou famosa não só
porque, supostamente, ela é um sumário dos pensamentos aristotélicos sobre a comédia,
mas, sobretudo, porque ela seria a ponte que possibilitara a Cícero o acesso a um grande
número de mecanismos humorísticos presentes, provavelmente, no segundo livro da
Poética, que se perdera. Referimo-nos ao Tractatus Coislinianus, um pequeno texto grego
encontrado em um manuscrito no qual havia prefácios às comédias de Aristófanes. O texto
recebeu tal designação porque o manuscrito pertencia à coleção de Coislin, da Biblioteca
Nacional de Paris.
Se o referido tratado subsume ou não a teoria aristotélica e, até mesmo, se
existiu ou não um segundo livro da Poética não são questões que preocupam Attardo. O
que ele destaca é o fato – inegável – de que Cícero foi influenciado por tal fonte e que a sua
famosa divisão entre o humor das palavras e o humor das ações é bastante similar àquela
reportada no tratado. De qualquer forma, convém frisar que inúmeros tratados gregos sobre
comédia chegaram aos romanos, e o próprio Cícero confessa ter conhecimento de vários
deles.
1.4- CÍCERO E O BOM HUMOR LATINO
A primeira sistematização sobre o riso e o risível é atribuída a Cícero (106-43
a.C.), cônsul romano cujo histórico bom humor foi considerado excessivo por muitos dos
seus contemporâneos.
16
Para ele, duas grandes modalidades de riso: o verbal e o
16
Muitos amigos o apelidarem de “palhaço”. O estóico Catão de Útica o chamava de “cônsul ridículo”.
(Cf. Minois, 2003:81)
29
referencial ou, em outras palavras, o que decorre das palavras e o que decorre das coisas
e/ou ações:“Cícero introduziu a distinção entre o humor verbal e o referencial (envolvendo
ou não a representação fonêmica/grafêmica do elemento humorístico respectivamente)”.
(Attardo,1994: 27)
17
.
Cícero refere a alegoria, a metáfora, a antífrase ou ironia, a antítese, as palavras
com duplo sentido, a alteração ligeira de palavras e até e o risível que decorre de se
entender uma palavra ao da letra como pertencentes ao humor verbal, ao humor das
palavras. no risível de coisas ou ões (humor referencial), ele destaca as anedotas
(fabella) e a caricatura (imitatio).
Ele reitera a posição de Aristóteles, segundo a qual o riso é suscitado por uma
torpeza moral ou por uma deformidade física. Ademais, o riso de palavras pode ser
potencializado, segundo ele, quando encerra uma expectativa traída (Alberti,1999:61), pois
o riso dela decorrente sintetiza uma das categorias essenciais do risível: o engano. Para
Cícero, o ouvinte que ri dessa expectativa traída, ri de seu próprio engano” (apud Alberti,
p.61). Em verdade este mesmo recurso - o da expectativa traída - também é usual no risível
de coisas, (que compreende o risível de ações), entre as quais podemos citar os disfarces e
as trocas de papéis, expedientes comuns às comédias, e que sintetizam enganos.
O que nos parece fundamental registrar é que, independentemente da inspiração
aristotélica que o Tractatus Coislinianus poderia confirmar, a taxionomia proposta por
Cícero consubstanciou a primeira taxionomia lingüística do humor e isto por si
atestaria a originalidade de tal contribuição. Ademais é sempre bom frisar que a distinção
entre o humor verbal e referencial é recorrente em inúmeras teorias modernas. A este
respeito, as palavras de Attardo (1994:28) são taxativas:
Se compararmos a taxionomia (de Cícero) às taxionomias contemporâneas sobre o humor, é
espantoso constatar que pouquíssimo progresso foi feito. Mais espantoso ainda é constatar que
17
Cicero introduces the distinction between verbal and referential humor (involving the phonemic/graphemic
representation of the humorous element and not doing so, respectively).
30
muitos autores que apresentam taxionomias desconhecem o fato de que a distinção entre humor
verbal e referencial foi introduzida há cerca de dois mil anos;.
18
Além do mais, Attardo (op.cit.,p.28) reitera a importância de Cícero, uma vez
que, se o orador latino não foi o criador de tal distinção (a se confirmar a essência do
Tractatus Coislinianus como compilação da Poética aristotélica), ele foi totalmente inédito
ao propor um teste empírico para discernir os dois tipos básicos de humor: “...além do
mais, Cícero foi completamente original em propor um surpreendente e moderno teste
empírico para a oposição verbal/referencial”.
19
Para cero (LXII, 252 e LXIV, 258), a resistência à tradução parece ser a
técnica empírica que nos permitiria assegurar se o efeito de humor depende das coisas e
ações ou das palavras. Se, de um lado, o efeito humorístico resiste à paráfrase ou à
tradução, ele depende do conteúdo semântico; mas se, por outro lado, tal efeito não subsiste
após a tradução, ele depende da forma do texto. O primeiro diz respeito ao humor das
ações; o segundo, ao das palavras.
Aquelas {piadas, brincadeiras} cujo espírito subsiste independentemente das palavras que
empregamos {para traduzi-las} pertencem à brincadeira de coisa; aquelas que perdem seu
encanto uma vez mudadas as palavras, devem às suas próprias palavras todo o seu encanto.
Essas piadas também perdem o seu encanto se lhe mudamos os termos: são, portanto,
brincadeiras de palavras, não de coisas.
20
De qualquer forma, a importância de Cícero também não deve ser
supervalorizada, até porque ela se deve ao fato de que O Orador foi um dos poucos tratados
18
If we compare the taxonomy to contemporary taxonomies, it is amazing how little progress has been made.
It is even more amazing that so few of the authors who introduced taxonomies of humor seem to be aware
that the distinction verbal/referencial was introduced two millennia before; furthermore, Cicero is completed
original in proposing a surprisingly modernal empirical test for the verbal/referential opposition.
19
furthermore, Cicero is completed original in proposing a surprisingly modernal empirical test for the
verbal/referential opposition.
20
Ceux dont l´esprit subsiste, indépendamment des mots qu`on emploie, appartiennent à la plaisanterie de
chose; ceux qui perdent leur sel, une fois les mots changés, ne doivent qu´à ces mots mêmes tout leur
agrément. (LXII,252) Comme ces plaisanterie, elles aussi, perdent leur agrément si l´on en change les
termes, ce sont donc des plaisanteries de mots, non de choses (LXIV, 258).
31
que sobreviveram, e, consoante opinião de Attardo (op.cit.), se vários tratados antigos
tivessem nos chegado às mãos, as palavras de Cícero sobre o riso encerrariam, talvez,
lugares comuns.
Antes de observarmos as contribuições de Quintiliano sobre o riso, convém
lembrar que tanto este quanto cero estudam o riso sob uma perspectiva retórica, ou seja,
como um expediente persuasivo e neste sentido é interessante a observação de cero, para
quem o bom orador se utiliza do risível movido apenas por boas razões, diferentemente do
bufão que o faz de forma ininterrupta e inconseqüente (Cf Alberti , p. 59).
Se, para Cícero, o humor das ações inclui anedotas e caricaturas (imitações), o
humor verbal inclui ambigüidades, paronomásias, interpretações literais, uso de provérbios,
alegorias, metáforas e antífrases ou ironia. De qualquer forma, se fôssemos incluir Cícero e
Quintiliano na classificação das famílias teóricas, diríamos que ambos transitam entre as
teorias da incongruência e as de caráter social, estas por força ou em decorrência da
atividade oratória intensa que ambos exerceram, especialmente Cícero, para quem o riso era
arma poderosa para a derrisão dos adversários (Verres que o diga).
1.5 - O RISO SEGUNDO QUINTILIANO (35-100 d.C)
A propósito da sedução provocada no ouvinte toda vez que um orador deixa
escapar um dito espirituoso, como se o o houvera planejado, Quintiliano (s/d {1995})
não destaca os objetos do riso, mas também as formas de suscitá-los. Reitera ainda a
divisão de Cícero, ao afirmar que provocamos o riso de duas maneiras: ou pelo que
fazemos (ações) ou pelo que dizemos (palavras), mas vai além, ao asseverar que o objeto
do riso pode ser encontrado em três lugares, a saber: em nós, nos outros, e nos elementos
neutros:
A aplicação do humor na oratória pode ser dividida em três troncos e para isto três coisas a
partir das quais podemos procurar despertar o riso ou fazer graça: a partir dos outros, de nós
mesmos e das coisas intermediárias. No primeiro caso, nós reprovamos, ou refutamos, ou
destacamos, ou retorcemos, ou ridicularizamos os argumentos dos outros. No segundo, nós
32
falamos de coisas que dizem respeito a nós mesmos de uma maneira bem humorada e, para citar
as palavras de Cícero, dizemos coisas que sugerem algo absurdo. Para isso certos ditos que
são vistos como tolos, se eles nos escapam involuntariamente, mas serão vistos como graça, se
usados ironicamente. A terceira espécie consiste, como Cícero também nos disse, em frustrar
expectativas, em usar palavras com sentido diferente daqueles que lhes são próprios. Além do
mais, as coisas que despertam o riso podem ser ditas ou feitas.
21
(Quintiliano, Livro VI.
III.23-25 p.451)
Algumas considerações devem ser feitas a partir da citação anterior.
Concordamos in totum com Attardo (1994) que afirma ter sido Quintiliano responsável por
uma série de antecipações das modernas questões lingüísticas sobre o humor, em especial a
questão da intencionalidade, claramente perceptível no texto em tela. Para Quintiliano, as
nossas palavras serão percebidas como asneiras, se as proferirmos involuntariamente
(melhor diríamos: impensadamente); serão percebidas como engraçadas, se o ouvinte
perceber que, como falantes, estamos encenando, isto é, que temos a intenção de produzir a
graça (o que, parece-nos, não exclui que a asneira possa ser também intencional).
Uma outra antecipação diz respeito à teoria da expectativa frustrada que vem à
tona, quando Quintiliano se refere ao elemento neutro, ou intermediário, uma vez que este
envolve a polissemia e a ambigüidade, questões centrais nas discussões hodiernas sobre o
humor. Além disso, segundo Attardo (op.cit.,p.32), Quintiliano não preservou a divisão
entre riso de ações e de palavras, conforme apresentada no Tractatus Coislinianus, mas
percebeu como algumas figuras são fontes potenciais de humor. O orador romano referiu
ainda a ironia e a paródia.
21
The application of humour to oratory may be divided into three heads: for there are three things out of
which we may seek to raise a laugh, to wit, others, ourselves, or things intermediate. In the first case we
either reprove or refute or make light of or retort or deride the arguments of others. In the second we speak of
things which concern ourselves in a humorous manner and, to quote the words of Cicero, say things which
have a suggestion of absurdity. For there are certain sayings which are regarded as folly if they slip from us
unawares, but as witty if uttered ironically. The third kind consists, as Cicero also tell us, in cheating
expectations, in taking words in a different sense from what was intended, and in other things which affect
neither party to the suit, and which I have, therefore, styled intermediate. Further, things designed to raise a
laugh may either be said or done.
33
Por último, Attardo (op.cit.) reverencia a modernidade lingüística de
Quintiliano, quando o aproxima de Raskin, em cuja obra Semantic mechanisms of humor
(1985:127), este, com base em análises de piadas, propõe três oposições semânticas básicas,
a saber: real/irreal, normal/anormal e possível/impossível. Embora Quintiliano tenha
sugerido a oposição certo/errado e/ou verdadeiro/falso como forma de o dizer
diferentemente criar o humor por frustrar a expectativa do ouvinte (de fato, tal frustração
nos parece agradável porque envolve o elemento surpresa), Attardo muita semelhança
entre as categorias de Quintiliano e as de Raskin.
Observemos como o trecho de Quintiliano – em que a palavra sal significa o que
faz rir desvela a associação do riso ao fingimento, à simulação, bem como nos permite
relacionar o terceiro lugar do riso, ou seja, o dos elementos neutros, à proferição de algo
absurdo.
Na verdade, todo o sal de uma palavra está na apresentação das coisas de uma maneira contrária
à lógica e à verdade: conseguimos isto unicamente seja fingindo sobre nossas próprias opiniões
ou a dos outros, seja enunciando uma impossibilidade
(apud Alberti,1999, p. 66).
Antes de ouvirmos o riso que ecoa da Idade Média, é imprescindível que
façamos algumas considerações. A primeira delas resvala na impressão remanescente das
linhas anteriores de que a Antigüidade Clássica foi benevolente com o riso. Ledo engano!
Apesar de terem-no analisado e percebido com muita propriedade, os grandes filósofos não
o julgaram uma atitude nobre, tanto é que a idéia da contenção, do não-exagero sempre o
acompanha, como se aqueles intuíssem no riso a força capaz de desequilibrar o ideal de
moderação, preconizado sobretudo pelos filósofos helenos.
Um outro aspecto a ser comentado emana das próprias assertivas de alguns
filósofos, como por exemplo, Platão, para quem era inconcebível que os deuses rissem,
que o riso é uma emoção grosseira, própria do mundo sensível. Além disso, o riso tem uma
natureza ambivalente, que inquieta, até porque subsume emoções diferentes, como o prazer
e a dor (Cf. Minois, p.50 e p.70). Também para Aristóteles, cuja visão do fenômeno do riso
é mais amena que a de Platão, o riso deve ser parcimonioso. A própria valorização da
34
tragédia como a representação de homens superiores, em contraposição à comédia, que
representa homens inferiores, já revela a posição aristotélica.
Se os filósofos gregos domesticaram o riso, na medida em que este deveria ser
sutil, equilibrado - excelente a metáfora usada por Minois (2003:72), segundo a qual o riso
era um cão selvagem que foi transformado em cão de caça isso não significa dizer que
entre o povo o riso era condenado. Muito pelo contrário. O próprio Aristóteles, em Ética a
Nicômaco, constata e critica o poder do riso entre os cidadãos gregos:
Como o gosto pela pilhéria é muito difundido, e a maior parte das pessoas tem nos gracejos e
nas pilhérias uma fonte de prazer maior que o necessário, confere-se aos bufões uma reputação
de pessoa de espírito, só porque eles agradam.
(apud Minois, 2003:73)
Interessante é que entre os latinos, Cícero confiou mais no poder persuasivo do
riso do que seu seguidor e admirador, Quintiliano. Para Cícero, o orador tem todo o
interesse em fazer o seu auditório rir, porque, sendo-lhe simpático, não tem maiores
possibilidades de despertar-lhes e/ou desviar-lhes a atenção, bem como de embaraçar e
enfraquecer o adversário. Apesar do pragmatismo inerente à retórica do riso, Cícero prega a
elegância e a moderação no uso dela. para Quintiliano, o riso deve ser usado com
circunspecção e reserva, porque pode se revelar insidioso e incontrolável.
1.6 - O RISO ECOA NA IDADE MÉDIA
Se, como vimos, para os filósofos e estudiosos da Antigüidade o riso é um traço
que distinguia o homem dos outros animais (o homem é o único animal que ri), para a
teologia medieval o riso é o que distingue o homem de Deus. O fato de que nenhuma
passagem bíblica atesta o riso de Cristo reforça a aproximação do riso ao pecado. Grosso
modo, sob a ótica medieval, o riso é, portanto, condenável. O filme O nome da rosa,
baseado na obra homônima de Umberto Eco, revela esta visão do riso como algo insidioso,
que deveria ser evitado.
35
Mas vozes discordantes a este respeito. A. Martins (2003:62) explica o mau
humor atribuído a Cristo - ou pelo menos a ausência de riso reportada por quase todos os
estudiosos - como uma herança de certas vertentes do cristianismo que priorizaram a cruz
em detrimento da ressurreição.
É que a morte truculenta daquele que se transformou no herói ocidental por excelência teve, para
grande parte dos cristãos, o dom de impor-se como o fato central de sua vida, considerando que
o martírio dos seguidores do primeiro século se junta ao mesmo quadro e o intensifica. Uma
tendência de cristalizar esse estado parece ser o que orientou o cristianismo, vindo daí seus
aspectos depressivos e totalmente desprovido de qualquer alegria, pois foi obliterado da
totalidade da visão cristã o fato de que a onipresença do herói assassinado tem de ser redimida
pela ressurreição...
Na verdade, a autora duvida da afirmação corrente de que Cristo nunca riu e se
pergunta como uma pessoa tão mal humorada se preocuparia com a quantidade de vinho
nas bodas em Cana? Ou mesmo, como Cristo se dava tão bem com as pessoas das mais
variadas classes sociais, especialmente com as crianças, se era como a tradição nos
garante – tão avesso ao riso?
Martins discorda tamm do fato de que Cristo vestia-se com andrajos, até
porque houve uma disputa ferrenha entre os Seus algozes pela posse de Seu manto.
Agiriam assim se o manto fosse, de fato, andrajoso? Em suma, a autora rejeita
veementemente este Cristo pobre, mórbido e triste que o cristianismo, de modo geral, nos
legou e questiona:
Como é possível que um símbolo de união na pluralidade, uma força de amplitude tão grande,
possa ter gerado formas religiosas tão tristonhas e sem humor, a ponto de transformar-se, sob
muitos aspectos, numa religião da morte e do martírio? Certas vertentes sem alegria do
cristianismo parecem ter preferido o cadáver ao ressuscitado e, deliberadamente, impedido o sol
de entrar e brilhar para aquecer o interior obscuro das velhas igrejas.
(A.Martins, 2003:64)
Na verdade, o que subjaz às indagações de A.Martins pode ser sintetizado na
seguinte questão: o sagrado e o humor são excludentes? Obviamente para ela a resposta é
36
negativa. Em prol da sua convicção, reporta-se às festas medievais, nas quais o humor, via
ridicularização, instituía uma nova ordem social em que o sagrado e o profano se
complementavam, conforme atesta a autora:
Nesse período a população, juntamente com figuras do baixo clero, caía numa grande farra, em
que o ridículo de figuras centrais e importantes, como a nobreza, os bispos e até o papa, era
exposto através de sátiras. Havia até paródias do ritual da missa, representadas por um bispo
menino, eleito especialmente para a ocasião. Juntamente com um rei palhaço, essas figuras
expunham ao ridículo aquilo que na rotina dos dias, era entendido como ordem e
autoridade
.(op.cit.p.64-5)
Bakhtin (1996) também nos revelou que a vida do homem medieval foi pródiga
de riso e que tal riso emanava do interior das igrejas, na medida em que a própria Igreja
Católica permitia, em determinadas festas religiosas, que o sagrado fosse dessacralizado.
Bakhtin destaca ainda que o fato de o cristianismo ter condenado o riso, principalmente
pela figura de São João Crisóstomo, para quem o riso é uma criação diabólica, generalizou
a idéia entre o alto clero e as esferas do poder oficial de que o Bem e a Verdade
poderiam ser expressos pela seriedade. Como se explica, pois, que a Igreja Católica
permitisse a realização de festas como as dos Loucos, das quais tanto o Halloween
americano quanto o Carnaval brasileiro são reminiscências, conforme atesta Harvey Cox
(apud A.Martins, p.64-5)?
Na realidade, concorde Bahktin (op.cit.), a própria Igreja, embora não mais
permitisse que tais festas ocorressem dentro de seus ambientes sagrados, fazia vistas
grossas para o que ocorria em seu entorno. As festas dos loucos das quais participavam
clérigos e estudantes e nas quais se festejavam algumas efemérides religiosas (tais como o
dia de Santo Estevão, o de Ano Novo, dos Inocentes, da Trindade e de São João) ganharam
as ruas e tavernas e eram freqüentes ainda nos séculos XV e XVI, sobretudo na França.
Tais festas, embora religiosas, se caracterizavam por serem degradações
grotescas do mundo oficial de tal sorte que havia nelas inversões paródicas dos cultos
religiosos, dos quais as pessoas participavam, mascaradas ou fantasiadas, e nos quais a
37
liberdade era total: glutonaria, embriaguez, licenciosidades, tudo era permitido ao povo,
que tomava as ruas e extravasava livremente sua primitiva alegria.
Bakhtin registra que, em uma carta, datada do século XV e subscrita pela
Faculdade de Teologia de Paris, referências e críticas explícitas não às festas dos
loucos, mas também aos seus defensores. O curioso em tal documento é que a condenação
nele subsumida é precedida pela apologia daqueles que defendiam tais festas, o que nos
permite entender as conseqüências benéficas destas para o sentimento religioso do homem
medieval. Por que as brincadeiras e as bufonarias típicas de tais festas eram importantes?
Declarando que a tolice, a brincadeira é a segunda natureza do homem e que o
riso deve ser, pelo menos uma vez por ano, manifestado livremente, o autor da apologia
compara os homens a tonéis de vinho e o riso à necessidade de que tais tonéis sejam, vez ou
outra, destapados, para evitarem-se explosões. Mas o mais interessante é o que se almeja
com tal permissão, a qual reputamos catártica: o fato de os homens respirarem, lhes permite
uma volta mais convicta aos braços do Senhor (op.cit., p.65).
Essa propriedade terapêutica do riso havia sido apontada em outras épocas,
inclusive por Demócrito, mas esta transformação do material em espiritual e vice e versa (e
versa e vice) encerra a ambivalência pica do cômico grotesco, cujo estágio material,
vivenciado exaustivamente em tais festas, prenunciava simultaneamente o fim e o
renascimento. Importa assinalar que tais festas perduraram por nove séculos, conforme nos
provam as interdições por ela sofridas: a primeira datada do século VII, por ocasião do
Concílio de Toledo; a última ocorrida em 1552, por decisão do Parlamento de Dijon.
Bakhtin (1996) reporta ainda um outro tipo de festa típica das praças públicas
medievais: a festa do asno, animal que é, talvez, “um dos símbolos mais antigos e mais
vivos do ‘baixo’ material e corporal, comportando ao mesmo tempo um valor degradante e
regenerador” (op.cit., p.67). A simples descrição feita por Bakhtin nos provocou o riso.
O episódio bíblico da fuga de Maria com o menino Jesus para o Egito é a origem da festa,
mas é o asno e seu zurro que representam o interesse central dela. Na verdade, essa festa
38
correspondia à celebração de missas em cuja bênção final o padre emitia três zurros,
seguidos pelos urros da platéia, digo, dos fiéis. No decorrer da missa, havia a emissão de
zurros ao término de cada uma das partes.
Uma outra festa popular de presença marcante na Idade Média e existente ainda
à época de Rabelais é a do riso pascoal, que se prende à antiga tradição de se permitirem o
riso e brincadeiras maliciosas dentro da própria igreja, por ocasião da Páscoa. Vejamos
como Bakhtin a descreve:
Do alto do púlpito, o padre permitia-se toda espécie de histórias e brincadeiras a fim de obrigar
os paroquianos, após um longo jejum e uma longa abstinência, a rir com alegria e este riso era
um renascimento feliz. Essas brincadeiras e histórias alegres de tipo carnavalesco referiam-se
essencialmente à vida material e corporal. O riso era autorizado, da mesma forma que o eram a
carne e a vida sexual (interditas durante o jejum). A tradição do risus paschalis persistia ainda
no século XVI, isto é, enquanto vivia Rabelais
(op.cit., p.68).
Havia ainda as festas dedicadas aos protetores das igrejas, geralmente nelas
enterrados, em cuja homenagem promoviam-se banquetes. Nessas ocasiões, a comida e o
vinho eram fartos e o brinde feito ao santo, patrono da igreja, nos deixa entrever o
espírito histriônico que, entre os dominicanos espanhóis, presidia tais comemorações: viva
el muerto. Brinde que, diga-se de passagem, revela a relação naturalmente festiva com o
tempo, com a alternância das estações, com a morte e o renascimento, com o passado e com
o devir: em suma, riso prototipicamente grotesco.
Destarte, o que importa agora notar é que durante todo o período medieval, o
riso foi tido como algo não-sério, arraigado à esfera do terreno, do cotidiano mesquinho, o
que de certa forma ratifica o que nos deixaram entrever os filósofos antigos que não o
concebiam como uma atividade nobre e superior. A exceção entre os antigos deve ser feita
a Demócrito, o único filósofo que ria e que associava o riso à sabedoria, segundo
testemunho de uma carta atribuída a Hipócrates (Cf Alberti, 1999:78). Na realidade, o riso
tem para Demócrito uma função moral e ética bem definida, pois encerra uma condenação
do objeto do riso.
39
1.7 - O RISO NO RENASCIMENTO
Skinner (2002), historiador e filósofo inglês, buscando estabelecer conexões
entre as concepções filosóficas de Hobbes e a cultura renascentista, procedeu a
interessantes conclusões sobre o riso. Embora, de modo geral, os teóricos renascentistas
repitam as idéias clássicas sobre o riso, a inovação deles pode ser entrevista na valorização
dada ao elemento surpresa e ao inesperado como causador da admiração.
Um outro aspecto também destacado por eles subsume, basicamente, a tentativa
racional de catalogar os vícios que suscitam o riso, que se acreditava que ridicularizar
alguém seria uma forma de corrigi-lo. Nesse sentido, todos os comportamentos
extravagantes, que feriam os padrões da mediocritas, eram vícios potencialmente micos.
Não é de se estranhar, portanto, que a figura do avarento, a do presunçoso, a do
vangloriador sejam usuais nas comédias do Renascimento. Na verdade, tais personagens
refletem a concepção aristotélica segundo a qual qualquer marca constrangedora, desde que
não envolva dor, torna as pessoas ridículas.
É, pois, apenas em 1579, com a publicação do Tratado do riso, contendo sua
essência, suas causas e seus maravilhosos efeitos, curiosamente pesquisados, refletidos e
observados, que Laurent Joubert, médico e conselheiro do rei, analisa cientificamente a
fisiologia do riso, que ele considera uma paixão, e o avalia positivamente. Os comentários
de Alberti (1999:81) sobre tal obra revelam como o autor buscou aliar uma concepção
clássica de riso – o riso como paixão – ao espírito cientificista, típico da Renascença:
Apesar de outros textos da Renascença se ocuparem do assunto, o livro é sem dúvida um dos
mais significativos, além de provavelmente o único em francês (e não em latim!) no período. O
riso interessa a Joubert, e a outros autores da época, do ponto de vista da medicina, o que
pressupunha, naquele universo, o conhecimento não dos órgãos do corpo mas também das
faculdades da alma. Como a alma é movida pelo objeto do riso, qual a paixão em causa e como
se produzem os maravilhosos efeitos fisiológicos do riso são algumas das questões de que ele se
ocupa tenazmente.
40
Na realidade, segundo designação de Alberti (op.cit., p.86), Joubert buscou
explicar o “curto-circuito” do riso, ou seja, como “a matéria risível penetra na alma através
dos sentidos da audição e da visão e é prontamente transportada para o coração, sede das
paixões, onde desencadeia um movimento próprio à paixão do riso, que se estende para o
diafragma, o peito, a voz, a face, os membros, enfim para todo o corpo.”
De qualquer forma, se para Aristóteles o riso era o não-trágico, o que não podia
causar nem dano, nem dor, para Joubert o riso não podia causar piedade, nem remorso.
Posição semelhante é adotada por Bergson (2001:4) quando afirma que “para produzir um
efeito pleno, a comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do coração.”
Já Hobbes (1588-1679), provando, pois, a sua inspiração clássica, não só afirma
que o riso é suscitado pelo orgulho e que encerra um sentimento de superioridade de quem
ri em relação ao objeto risível, mas também, ao especificar os objetos do riso ou as ocasiões
em que este ocorre, recupera os lugares propostos por Quintiliano: o homem ri das próprias
ações, das fraquezas do outro e dos ditos ou atos engraçados.
Portanto, Hobbes, à semelhança de Platão e de quase todos os filósofos
ocidentais, também associa o riso a uma alegria inferior. Homens superiores, que têm a
noção do belo, não se deleitam nem se sentem superiores com os vícios e as fraquezas
alheias. É como se o riso fosse próprio aos homens de segunda categoria. Hobbes também
sobrevalorizou a questão da admiratio, pois, para ele, o riso só ocorre diante do inesperado:
a repetição, o já visto, o usual não o provocam.
Segundo o historiador Skinner (2002), Hobbes era versado nas teorias retóricas
clássicas e renascentistas e não tinha ciência do valor persuasivo do riso, mas também o
adotou com muita propriedade nos últimos capítulos do Leviathan, para satirizar a Igreja
Católica, servindo-se do argumento do ridículo. Foi a crença de que o riso pode ser usado
como uma arma potente em debates legais e políticos” que despertou a atenção de Skinner
(2002:9) para o fenômeno do riso.
41
1.8 - A TEORIA BERGSONIANA DO RISO
Também Bergson (1859-1941), ainda dentro de uma perspectiva de raízes que
diríamos aristotélicas - já que a sua teoria sobre o riso se pauta em comédias - busca, de
forma bastante impressionista, determinar os procedimentos de fabricação da comicidade e,
para tanto, analisa esta última sob três aspectos: a comicidade da situação, a das palavras e
a do caráter. É curioso que, de pronto, tal subdivisão nos reporta à divisão (clássica)
proposta por Quintiliano, que nos remete a Cícero, que nos remete aos antigos filósofos
gregos.
Reafirmando o truísmo de Aristóteles de que o homem é “um animal que sabe
rir”, o autor acrescenta que o homem é o único animal que faz rir. Se adicionarmos a estas
duas premissas o fato de que o homem é também o único animal que sabe fazer rir,
teremos chegado à função do humorista, ou seja, aquele que cria conscientemente o risível.
Mas voltemos a Bergson (2001) que, antes de considerar a divisão proposta,
dedica todo o primeiro capítulo da sua obra a nos mostrar o que ele entende por comicidade
em geral. Segundo a nossa apreensão, ele enuncia não as três premissas básicas da
comicidade, bem como algumas leis gerais que serão reiteradas e exemplificadas, ao longo
da obra.
A segunda premissa bergsoniana – sim, porque a primeira é o endosso da
premissa aristotélica - afirma que a comicidade não prescinde da indiferença, uma vez que
ela se dirige à inteligência pura. Portanto, rir dos outros requer que anestesiemos as nossas
emoções e paixões. Além do mais e a terceira premissa se anuncia o nosso riso não
pode ser um ato solitário. A nossa inteligência se dirige à outra e a necessidade de que
convivamos na mesma sociedade se impõe. Dois aforismas bergsonianos sintetizam as duas
últimas premissas, a saber: “O riso não tem maior inimigo que a emoção” (op.cit.,p.3) e
“Nosso riso é sempre o riso de um grupo” (op.cit.,p.4).
42
Estabelecidas estas três premissas, Bergson aponta algumas leis, alguns
princípios constituintes da comicidade, que identificamos aos seus procedimentos de
fabricação do cômico. Primeiramente, ele reporta o efeito da rigidez (p.7) que subsume
uma inadequação que é tanto ou mais risível quanto maior o grau de distração da pessoa
envolvida, ou quanto maior for a sua inconsciência. Em suma, a rigidez moral ou física
(um defeito não subsume rigidez do corpo?) é mica porque reflete a inconsciência, o
gesto mecânico que contraria o movimento incessante da vida: é, pois, uma distração
imperdoável cuja sanção será o riso. A passagem que se segue sintetiza com muita
propriedade a importância de o ser humano estar sempre atento, como forma de manter-se
flexível, consciente, em suma, vivo:
O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção constantemente vigilante, a
discernir os contornos da situação presente, é também certa elasticidade do corpo e do espírito,
que nos dê condições de adaptar-nos a ela. Tensão e elasticidade, estão duas forças
complementares entre si que a vida põe em jogo
. (Bergson, 2001:13)
Interessante é que o estado de vigilância, referido por Bergson, reflete, a nosso
ver, uma concepção positivista da existência, uma vez que qualquer distração implica correr
risco de não sobreviver. É, pois, extremamente importante notar que, sob esta perspectiva, o
riso é um remédio moral (e social): tem muito de maldoso, mas pode despertar “o doente”,
preservando com isso os valores sociais. O velho aforisma “rindo se corrigem os costumes”
continua, pois, atual.
Essa propriedade curativa do riso, cujo objetivo é manter a coesão social, pode
ser entendida como uma resposta de Bergson a Durkheim que, em 1897, ao publicar O
suicídio, revela que este gesto extremo emerge do rompimento dos elos de solidariedade
social. Ao publicar O riso, três anos mais tarde, Bergson revela-o como a reação
inconsciente por meio da qual os desvios sociais são sancionados, mantendo assim a
hegemonia social (Cf. Minois, 2003:521).
43
Também é patente em Bergson o reflexo da filosofia platônica quando o autor, a
propósito de ilustrar o efeito cômico decorrente das limitações que o corpo impõe ao
espírito, exemplifica a comicidade de uma cena em que as belas frases de um orador são
constantemente interrompidas pelas fisgadas de um dente cariado. A este respeito, a citação
a seguir é reveladora não como endosso do que afirmamos, mas também e, sobretudo,
porque recupera a “nobreza” da tragédia, opondo-a à trivialidade da comédia:
.... o poeta trágico tem o cuidado de evitar o que possa chamar nossa atenção para a
materialidade de seus heróis. Tão logo intervenha a preocupação com o corpo, é de se temer
uma infiltração cômica. Por esse motivo, o herói de tragédia não bebe, não come, não se aquece.
(Bergson, 2001:39)
Realmente, esta sobreposição do corpo à alma (o corpo sobrepujando a alma),
que é risível e condenável justamente porque inverte a situação ideal, ou seja, o predomínio
do espírito sobre o corpo, pode ser vista como uma outra lei da comicidade e Bergson
observa uma expansão desta lei, quando, por exemplo, ao ridículo profissional também se
acresce o ridículo físico:
Há, portanto, um parentesco natural, naturalmente reconhecido, entre essas duas imagens que
estamos aproximando uma da outra, o espírito a imobilizar-se em certas formas, o corpo a
enrijecer-se segundo certos defeitos.
(op.cit.,p.42)
Na verdade, voltamos à idéia do engessamento, da rigidez, do mecânico
sobreposto ao vivo, idéia da qual Bergson novamente se servirá para explicar a comicidade
de situações, principalmente aquelas situações típicas dos vaudevilles
22
. Partindo, pois, do
pressuposto de que “a comédia é uma brincadeira, uma brincadeira que imita a vida”
(op.cit.,p.50), o autor associa os mecanismos geradores do riso nas comédias às
brincadeiras infantis, até porque estas se caracterizam pelo mecanicismo e pela alegre
ingenuidade.
22
Comédia leve e muito movimentada, que originariamente comportava cenas cantadas e passou, em seguida,
a caracterizar-se pelos qüiproquós, e por situações imprevistas e intrigas complexas (Dicionário Aurélio).
44
A primeira associação é feita com um brinquedo antigo, denominado caixa de
surpresa, que gera o riso pela repetição: a criança abre a caixa e um boneco de mola se
estica todo, como quem quer sair. A criança o reprime, fechando a caixa. Ao abri-la
novamente, o boneco se esticará outra vez e assim por diante. De fato, o que gera o riso é
previsível, é o próprio mecanismo da repetição.
Interessante é que, embora a constatação bergsoniana se nos afigure
impressionista, o recurso mico apontado é comum, mas eficaz. A cena do filme Tempos
modernos, em que Chaplin repete gestos mecânicos, numa rapidez crescente, com intuito
de acompanhar os movimentos da máquina (ele mesmo transformado em uma), é
antológica. Cenas repetitivas entre palhaços de circo causam gargalhadas nas platéias toda
vez que o gesto mecânico é realizado. Aliás, a platéia, via de regra, sustém o riso na
expectativa da repetição.
Uma segunda associação é feita por analogia com o teatro de marionetes e
fantoches, uma vez que determinadas personagens se crêem livres, mas, na verdade, são
manipuladas por outras como se fossem bonecos movidos por cordas. Em suma, tais
personagens se tornam mais risíveis quanto mais inconscientes forem. A questão da
distração de si mesmo, da inconsciência não está aqui recolocada? Acreditamos que sim.
Acreditamos também que Bergson destaca a superioridade e até uma certa maldade
daqueles que riem em relação ao objeto do riso, quando anota: “Tanto por instinto
natural quanto porque todos preferem - em imaginação ao menos enganar a ser
enganados, é do lado dos espertos que o espectador se põe” (op.cit.,p.57).
Finalmente, Bergson se reporta ao efeito bola de neve, que pudemos associar ao
que modernamente conhecemos como efeito dominó. Também esse recurso é largamente
usado em filmes cômicos e em desenhos animados, quando, por exemplo, ocorre uma série
de ações estapafúrdias desencadeadas por uma pequena causa ou, ao contrário, quando uma
grande causa desencadeia uma sucessão de ações cujo efeito é - inexplicavelmente!-
insignificante. De fato, esse descompasso entre a causa e a conseqüência encerra uma
45
expectativa frustrada, e isto, de certa forma, nos remete a Cícero (Alberti,1999, p.61) que já
aludira a tal estratégia para a consecução do riso.
Entretanto, torna-se mister ressaltar que para Bergson (op.cit.,p.63), “a
desproporção entre a causa e o efeito, quer se apresente em um sentido, quer se apresente
em outro, não é a fonte do riso”. Para ele, a comicidade decorre porque as séries de ações
mecânicas e fortuitas representam ou a coisificação do homem e/ou uma distração da
própria vida. O caráter corretivo do riso como repressor dessas distrações é reafirmado:
A comicidade é este lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa, aspecto dos
acontecimentos humanos que, em virtude de sua rigidez de um tipo particular, imita o
mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim o movimento sem vida. Exprime, portanto,
uma imperfeição individual ou coletiva que exige correção imediata. O riso é essa correção. O
riso é certo gesto social que ressalta e reprime certa distração especial dos homens e dos
acontecimentos
(Bergson, 2001:64-5).
Sempre observando que a rigidez - o mecânico sobreposto ao vivo - é a lei
fundamental do cômico, o autor destaca como a repetição de frases feitas e estereotipadas é
apropriada para criar um personagem risível. Também para que uma frase isolada seja
cômica se faz necessário que tenha sido pronunciada automaticamente, o que é perceptível
ou pelo absurdo que tal frase encerra, ou pelo seu excesso de obviedade. Na verdade, as
mesmas leis que informam o cômico de situações, subjazem ao mico das palavras, a
saber: a repetição – da qual o uso de jargões e clichês representa um exemplo - a inversão e
a interferência de séries.
Embora afirme que a inversão de palavras é um dos procedimentos menos
interessantes, o autor não lhe nega a fertilidade cômica. Para Bergson, tal recurso busca,
basicamente, dar um outro sentido a uma frase pela inversão de algumas funções sintáticas:
o que é sujeito passa a objeto e o que é objeto, a sujeito, por exemplo. Além do mais, pode
ser um meio bastante eficaz para se rebater jocosamente uma pergunta indesejada,
conforme se nota no exemplo dado, a propósito do diálogo entre dois inquilinos,
46
personagens de uma comédia de Labiche
23
: “- Por que o senhor joga a sujeira do seu
cachimbo no meu terraço?” Ao que a voz do inquilino responde: Por que o senhor põe o
seu terraço debaixo do meu cachimbo?” (op.cit.,p.89).
De qualquer forma, se uma reversão da situação, feita pelo jogo sintático, o
riso também decorre da concretude de raciocínio que tal inversão sintática desvela. Uma
outra forma de fazer vir à tona a rigidez de raciocínio de um personagem - o que,
indubitavelmente, encerra uma outra aplicação do princípio do mecânico sobreposto ao
vivo, agora no campo das palavras - é a sua incapacidade de não ir além do sentido literal e
que Bergson assim enuncia: “Obteremos efeito cômico se fingirmos entender uma
expressão no sentido próprio quando ela é empregada no sentido figurado” (op.cit.,p.85). A
piada abaixo, citada por Bergson, é uma feliz ilustração de tal concretude de raciocínio:
Todos se lembram deste diálogo entre mãe e filho em Faux Bonshommes: “Meu filho, a Bolsa é
um jogo perigoso. Você ganha num dia e perde no dia seguinte.” “Então vou jogar dia sim,
dia não
(op.cit., p.87).
Como exemplo de interferências de série, Bergson reporta os trocadilhos e os
jogos de palavras e o autor as define como a ação de “dar à mesma frase dois significados
independentes que se superpõem” (p.90). Como nos dedicaremos à exploração dos
trocadilhos em outro ponto da nossa tese, limitar-nos-emos agora à definição dada.
Cumpre-nos apenas destacar um dos mecanismos fundamentais do cômico de
palavras, ao qual Bergson denomina transposição e que ele, basicamente, associa à
mudança de tom, conforme se no trecho a seguir: “Obtém-se o efeito cômico transpondo
para outro tom a expressão natural de uma idéia” (p.92).
Interessante é que a partir dos exemplos dados pelo autor, pudemos deduzir que
a transposição de tons subsume, grosso modo, um deslocamento que geralmente caminha
23
Eugène Labiche (1815-1888), comediógrafo francês, autor de mais de cem vaudevilles e comédias de
costumes, entre as quais destacamos: Um chapéu de palha na Itália (1852), A viagem do senhor Perrichon
(1860) e A cigarra entre as formigas (1876).
47
do mais solene, mais positivo, para o mais trivial e negativo, sempre com intuito paródico.
Talvez tenha sido esta “transposição descendente” (expressão nossa), típica do cômico, que
levou muitos estudiosos ao estabelecimento do binômio comicidade/degradação. A
descrição do alvorecer citada por Bergson (p.93) é bastante ilustrativa: “O céu começava a
passar do negro ao vermelho, parecido com uma lagosta cozinhando”.
Mais interessante ainda é a constatação de Bergson segundo a qual o
“deslocamento de tons” (termo nosso) pode realizar uma transposição em sentido inverso,
ou seja, espera-se um tom familiar e ouve-se um tom solene. De qualquer forma, o
deslocamento sempre reverte a expectativa do leitor/espectador, pois o improvável se
anuncia. Imaginemos, a guisa de exemplo, uma situação escabrosa ou de extrema
corrupção, sendo contada como se honesta fora. Provavelmente, o efeito será cômico.
Também quando se refere à comicidade de caráter, Bergson faz observações
valiosas. Reafirmando a premissa básica de que o riso é essencialmente um corretivo social,
o estudioso explica-lhe o papel social, quando expõe como a cristalização de certas
peculiaridades inerentes a determinadas categorias profissionais poderia levá-las a se
separarem do todo social em que se acham inseridas: “Ora, o riso tem justamente a função
de reprimir as tendências separatistas. Seu papel é corrigir a rigidez, transformando-a em
flexibilidade, readaptar cada um a todos, enfim aparar arestas”. (Bergson, 2001:132).
Bergson denomina esta comicidade decorrente da cristalização do caráter de
certas profissões de comicidade profissional e fica evidente para s, seus leitores, porque
os médicos de Molíère, por exemplo, são cômicos: na verdade, o enrijecimento de certos
hábitos mentais foi tamanho que eles procederam a uma inversão de valores, prenúncio de
uma auto-segregação o recomendável socialmente. Portanto, é essa miopia profissional
que o riso condena. Nossa afirmação encontra respaldo na seguinte passagem:
As profissões úteis são manifestamente feitas para o público, mas as que têm uma utilidade
mais duvidosa podem justificar sua existência supondo que o público foi feito para elas: é
essa ilusão que está por trás da solenidade. A comicidade dos médicos de Molière provém em
48
grande parte disso. Eles tratam o doente como se este tivesse sido criado para o dico, e a
própria natureza como se ela fosse um apêndice da medicina
(Bergson, 2001:133).
O recurso cômico destacado a seguir é - parece-nos - uma decorrência natural do
anterior, uma vez que a maneira mais comum de se caracterizar uma profissão é pelo uso
excessivo ou exclusivo do seu jargão, conforme atesta Bergson (op.cit.,p.134) :
Mas o meio usual de levar uma profissão à comicidade é confiná-la, por assim dizer, dentro da
linguagem que lhe é própria. É fazer o juiz, o médico e o soldado aplicar às coisas usuais a
língua do direito, da estratégia ou da medicina, como se fossem incapazes de falar como todos.
Segundo nos parece, a personagem, que apesar de ter condições intelectuais não
sabe adaptar a sua linguagem à situação enunciativa, desvela uma certa inconsciência, uma
certa miopia em relação a si mesma e aos outros, e isto a torna facilmente ridícula. Salvo
algum engano nosso, esta falha de perspectiva caracteriza o vaidoso e o presunçoso, que
como vimos, são tipos cômicos catalogados pelos estudiosos renascentistas. De fato,
algumas categorias do riso parecem ser universais.
1.9 - A CONTRIBUIÇÃO DE FREUD: O RISO COMO ECONOMIA PSÍQUICA
Interessante a opinião de Attardo (1994:56) para quem a importância maior de
Freud reside não tanto nas conclusões a que este chegou sobre o riso, mas nos efeitos que
estas conclusões deflagraram no mundo acadêmico. A sua teoria do humor como
“economia da nossa energia psíquica” foi pródiga em suscitar debates: “Mais interessante
do que as especulações de Freud são as reações dos acadêmicos às suas análises sobre as
técnicas das piadas”
24
.
Para Todorov (1996), embora Freud tenha endossado não só a diferença entre
humor verbal/ referencial, bem como o método da tradução, ambos propostos por Cícero, o
médico vienense nunca os discutiu explicitamente. Ainda segundo Todorov, os vinte
24
More interesting than Freud´s speculations are the reactions from subsequents scholars to Freud´s anlysis
of the techniques of jokes.
49
diferentes mecanismos freudianos responsáveis pelo humor
25
operam tanto no nível do
verbal (dicto) como no referencial (res) e podem, na verdade, ser reduzidos a dois: a
condensação e o deslocamento.
Isso posto, Todorov assevera que condensação toda vez que um significante
nos leva ao conhecimento de mais de um significado , ou seja toda vez que o significado
excede o significante”. Já o deslocamento encerra uma mudança na forma de se considerar,
“um desvio do processo mental”, segundo Freud (1996:1055), uma vez que começamos
com um tema e um desvio na pista mental estabelecida nos desloca para outro tema,
diferente do inicial.
O deslocamento proposto por Freud não coincide com o elemento surpresa tão
valorizado pelos teóricos do riso? Quando Jo Simão, a respeito do cantor Zeca
Pagodinho, afirma que este não é ético, nem anti-ético, mas etílico (manchete da crônica de
16/03/2004, em anexo), não está criando o riso pelo deslocamento, pelo desvio que gera a
surpresa? Acreditamos que sim.
Além disso, para Todorov, a condensação corresponde ao eixo paradigmático
o da verticalidade o que significa dizer que apenas uma expressão lingüística está
presente no texto, ao passo que o deslocamento, corresponde ao sintagmático o eixo da
horizontalidade e isso equivale a dizer que as duas expressões lingüísticas se encontram
presentes.
Essa correspondência o leva a afirmar que a condensação, porque implica
evocação de sentidos, abarca todos os tropos, inclusive a metonímia; o mesmo não se pode
afirmar em relação ao deslocamento, até porque não sentido evocado, que os dois
sentidos estão presentes. Portanto, se a condensação é evocativa, o deslocamento é
basicamente relacional.
25
Freud parafraseou inúmeras piadas, usando o mecanismo de redução, e agrupou-as em vinte categorias de
acordo com a técnica humorística usada nelas. De qualquer maneira, ele mesmo reconheceu que não havia
limites precisos entre tais categorias, já que elas não eram estanques, nem absolutas
.
50
Enfim, para Todorov, os mecanismos simbólicos descritos por Freud não são
técnicas específicas do discurso humorístico: eles integram o próprio simbolismo
lingüístico e são os mesmos classificadas pela tradição retórica. Portanto, embora
destaque a importância de Freud, cuja teoria leva a uma melhor compreensão do discurso
do humor, Todorov insiste no papel que a linguagem aí desempenha.
Não nos parece outra a posição de Possenti (1993: 41) para quem, se os chistes
são máquinas de prazer - segundo a concepção freudiana - não cabe ao lingüista
pronunciar-se sobre os mecanismos psíquicos envolvidos nesse processo, mas sim analisar
como os mecanismos lingüísticos produzem tal prazer.
Parece-nos, portanto, que confirmamos uma das nossas afirmações iniciais, ou
seja, a de que até o século XX, o fato de a Lingüística não ter ainda circunscrito com
precisão um corpus específico, gerou uma série de interferências e intersecções com outras
disciplinas e se isso, por um lado, a enriqueceu, pois lhe ampliou os horizontes, por outro
lado, exigirá sempre um cuidado redobrado dos lingüistas. Acreditamos ainda que o papel
da linguagem - que a teoria bergsoniana oferece com relação à comicidade - representa um
contributo mais amplo para as análises lingüísticas do humor do que a própria teoria
freudiana sobre o riso.
1.10 – A COMICIDADE PARA WLADIMIR PROPP
Embora o autor em questão pertença ao século XX, houvemos por bem destacá-
lo nesta primeira parte principalmente porque, embora filólogo, a sua obra Comicidade e
riso, publicada em 1946, traduz ainda uma visão global do tema e isso o aproxima de
Bergson, a quem Propp cita, inclusive, reiteradas vezes. Por visão global entendemos o fato
de que a obra não explora, predominantemente, os aspectos lingüísticos da comicidade.
Aliás, parece-nos, não poderia ser diferente, até porque, como sabemos, o boom da
Lingüística ocorreu na segunda metade do século XX.
51
Isso posto, queremos ressaltar algumas semelhanças na forma como ambos
Bergson e Propp – abordaram a questão da comicidade. Ambos endossam a premissa
aristotélica da humanidade do riso. Ambos são platônicos na medida em que percebem que
o descompasso entre elemento corpóreo e espiritual (moral para Propp) é uma forma
importante de comicidade. Ambos trabalham de forma bastante didática, ilustrando suas
afirmações e premissas com exemplos: o primeiro os tira das comédias francesas; o
segundo, das obras russas, sobretudo as de Gogol. Também para os dois o riso representa
uma sanção. Obviamente, a obra proppiana é mais minuciosa e avança mais questões, mas
de forma geral, grossíssimo modo, há entre elas inúmeras coincidências, sendo que a
principal, como já afirmamos, é a visão do riso como fenômeno global.
Uma das primeiras críticas feitas por Wladimir Propp (1895-1970) relaciona-se
ao fato de que a divisão do cômico em dois aspectos, ou seja, o vulgar e o sutil, o inferior e
o superior, envolve uma diferenciação social decorrente de uma visão marcadamente
burguesa. Identificar a farsa com a comicidade vulgar, destinada à plebe rude e associar a
comicidade fina ao gosto das pessoas cultas são posturas discriminatórias usuais aos
críticos. Tais posicionamentos são rechaçados por Propp (1992), mesmo porque excelentes
autores, como Shakespeare, nunca desprezaram uma boa farsa.
Propp (op.cit.,p.21) rechaça ainda a postura de alguns críticos para os quais o
cômico grosseiro, além de ser ligado à gula, à bebedeira, à expulsão das fezes e da urina (ou
justamente por isso) representa uma estética inferior. De qualquer forma, o podemos nos
esquecer que Propp é um pensador marxista e isso marca a sua teoria e a conseqüente
valorização daquilo que é o popular, inclusive algumas espécies menos aristocráticas” de
humor. Nesse sentido, destaque-se a sua crítica lúcida, irônica - contra a diferenciação
feita por muitos críticos entre comicidade “fina” e “vulgar”:
O desprezo pelos bufões, pelos atores do teatro de feira, pelos clowns e os palhaços e, em geral,
por qualquer tipo de alegria desenfreada é o desprezo pelas fontes e pelas formas populares de
riso
(op.cit.,p.23).
E mais adiante:
52
Ninguém poderá negar a existência de brincadeiras de mau gosto, de farsas triviais, de anedotas
equívocas, de variedades vazias e de burlas idiotas. Mas a vulgaridade é encontrada em todos os
setores da produção literária. Mal nos aprofundamos na análise do material, logo verificamos a
absoluta impossibilidade de subdividir o cômico em vulgar e elevado
(op.cit.,p.23).
De qualquer forma, muitas das afirmações de Propp endossam algumas
assertivas não só dos filósofos antigos e renascentistas, mas também do próprio Bergson. À
premissa aristotélica de que o riso é exclusivo do homem, Propp acrescenta que outros
animais podem se tornar risíveis, mas desde que se veja neles algum arremedo de ações
humanas. Talvez seja por isso que o bicho mais engraçado é definitivamente o macaco:
“ele, mais do que todos, lembra o homem”. (op.cit.,p.38)
São interessantes, inclusive, as semelhanças entre os exemplos dados. Bergson
(2001), ao ratificar a inerência do risível ao ser humano, cita o exemplo de um orador que
espirra no momento mais patético do seu discurso, para ilustrar como o riso decorre “do
fato de nossa atenção ser levada da alma para o corpo” (op.cit.,p.38). Já Propp (1992) cita o
exemplo de um orador em cujo nariz uma mosca pousa e é afastada repetidas vezes,
provocando um deslocamento da atenção do público. Nas palavras de Propp (op.cit.,p.42):
“A atenção se transfere de um fenômeno de ordem espiritual para um fenômeno de ordem
física” e este deslocamento prepara o riso.
Comparemos como a dicotomia físico/espírito, geradora do riso, é enunciada por
ambos. Se, para Bergson (op.cit.,p.38), torna-se “cômico todo incidente que chame nossa
atenção para o físico de uma pessoa quando o que esem questão é o moral”, para Propp
(op.cit.,p.46) a comicidade “não está nem na natureza física, nem na natureza espiritual do
doente. Ela se encontra numa correlação das duas, onde a natureza física põe a nu os
defeitos de natureza espiritual do doente”
26
. Parece-nos, pois, que embora tente refutar a
premissa bergsoniana, as palavras de Propp, de fato, não a invalidam. Talvez a invertam.
26
A palavra doente se refere, na citação, a pessoas obesas, que só podem ser consideradas ridículas, segundo
Propp, se a obesidade decorrer de um defeito moral: da gula ou da preguiça (ou de ambas), por exemplo.
53
A propósito dessa submissão do elemento espiritual às vicissitudes do corpo, ou
melhor dizendo, a submissão do corpóreo às vicissitudes do espírito (residiria aqui a
inversão?), Propp destaca que Gogol foi o escritor que talvez tenha melhor descrito
personagens cômicas cuja característica era a glutonaria e os demais prazeres da mesa,
como a bebida. Essa supremacia dos elementos corpóreos sobre os espirituais é
determinante para os comentários feitos por Propp, inclusive sobre a caricatura: na verdade
são os órgãos dos sentidos que se prestam à comicidade, desde, é obvio, que tais órgãos
sejam destacados pelo exagero de traços.
Aliás, com relação ao exagero, que só é cômico, quando desvela defeitos (p.88),
Propp afirma que três vias que o realizam: a caricatura, a hipérbole e o grotesco. A
caricatura exagera um pormenor, a hipérbole exagera o todo e o grotesco, que é o grau mais
elevado de exagero, extrapola o real e invade o domínio do fantástico. O autor ainda divide
o grotesco em cômico e terrível: o primeiro encobre os defeitos, mas o segundo anula o
princípio espiritual no homem. De qualquer forma, para Propp, o grotesco é um exagero
estético e artístico, nunca documental: “O grotesco é possível apenas na arte e impossível
na vida. Sua condição sine qua non é uma certa relação estética com os horrores
representados” (op. cit.,p.92).
a força do riso como arma moralizadora, visão comum aos clássicos e a
Bergson, é reiterada por Propp (1992:46), quando assevera: “O riso é uma arma de
destruição: ele destrói a falsa autoridade daqueles que são submetidos ao escárnio”. Talvez
por isso que a hiperbolização satírica seja uma forma comum, nas histórias russas, de se
descrever a figura do inimigo, com intuito de depreciá-lo. Observemos como a
hiperbolização satírica é eficiente para ridicularizar o inimigo do herói: “Ele é tão gordo
que anda com dificuldade. Sua cabeça é como um caldeirão de cerveja. No banquete ele
agarra de uma vez todo um cisne ou uma rosca inteira de pão e os abocanha”
(op.cit.,p.91).
Um outro ponto em comum que notamos entre Bergson e Propp - embora este
sempre busque contestar aquele - diz respeito à questão da distração (palavra usada pelos
54
dois teóricos). Pequenos reveses no cotidiano são cômicos porque revelam a falta de
previsibilidade, a ausência da observação como, por exemplo, um indivíduo que escuta a
conversa de outros atrás de uma porta e se apóia tanto nesta (a distração é excesso de
concentração, segundo Propp) que a porta se abre, desmascarando-o, o que, de certo modo,
implica uma punição pela sua bisbilhotice. A esta ação, que se torna cômica porque mal
sucedida, Propp (op.cit.,p.97) denomina malogro da vontade:
O malogro da vontade é resultado de alguma inferioridade oculta na pessoa, que de repente se
revela e acaba suscitando o riso. Numa certa medida a culpada desses defeitos é a própria
pessoa.
Há, contudo, necessidade de que o desmascaramento ocorra (no caso, a porta se
abre) para que a distração se concretize, mas a sanção do espectador dependerá das
motivações internas da personagem: se estas forem boas, provavelmente o estulto
despertará a nossa piedade; se estas forem malévolas, o nosso desprezo. A esse respeito,
são elucidativas as palavras de Propp (op.cit., p.114): “O bobo dos contos russos têm
qualidades morais e isto é mais interessante que aquilo que se chama intelincia”. Na
realidade, são essas motivações morais que o tornam simpático ao observador.
O malogro da vontade, facilmente identificável no exemplo anterior, está
associado a um certo automatismo (mecanicismo bergsoniano) que, por ser contrário à
razão, leva o ser risível tanto a praticar ações insensatas quanto a dizer coisas absurdas: são
os chamados alogismos, que Propp reputa ser uma das formas mais comuns de comicidade.
Kant (apud Propp, p.108) afirmava que o que suscita uma sonora gargalhada “deve ser
algo contrário à razão”.
Quando Propp explica o alogismo de ações como um contraste entre aquilo que
se quer atingir e os meios usados para tal, ele o exemplifica com a figura de um palhaço
que entra no picadeiro puxando, por uma corda enorme e grossa,....uma cadelinha! Grandes
causas redundando em pequenos efeitos, ou ao contrário, pequenas causas gerando efeitos
impensáveis contrariam a lógica e, tanto Bergson quanto Propp, referem esse mesmo
descompasso, apenas com diferentes designações.
55
Curiosa, porque ideologicamente marcada, a referência de Propp (p.105) à
incapacidade que têm os americanos “de se divertirem de maneira mais inteligente”, que
comumente procedem a brincadeiras de mau gosto tais como: colocar uma cobra na botina
do vizinho. De qualquer forma, Propp anota a tendência a nos solidarizarmos com os
brincalhões, principalmente se suas brincadeiras se voltam contra tipos desagradáveis e
maldosos (O caráter moralista do riso ainda persiste).
Também o qüiproquó é analisado por Propp e, embora não fale em
interferências de séries como Bergson, o princípio por ele apontado é o mesmo, apenas a
designação é diferente, talvez mais didática. Aliás, bem de acordo com a sua crítica inicial,
segundo a qual os teóricos propõem a teoria sem exemplos, ou seja, trabalham
dedutivamente, quando o ideal é trabalhar indutivamente: dos exemplos para a teoria.
O que é o qüiproquó senão uma inversão de papéis ou na terminologia
proppiana: “um no papel do outro”, ou a ocorrência de “muito barulho por nada”? A
concretude dos exemplos e a transparência das designações fazem da teoria de Propp um
arsenal que munições a todos aqueles que se dedicam a entender o riso em seus vários
aspectos, sobretudo os cômicos.
Com relação aos instrumentos lingüísticos responsáveis pela comicidade, Propp
destaca o paradoxo, os trocadilhos ou calembures, as tiradas entre as quais ele cita a boa
palavra, o chiste e a pilhéria e algumas formas de ironia. Valer-nos-emos destas
explicações no momento de analisarmos o corpus.
Uma última coincidência, talvez a mais importante para nós, envolve a questão
da contextualização do riso. Tanto Bergson quanto Propp são taxativos ao considerarem o
riso como fenômeno circunscrito à determinada época e a determinado conjunto social. A
famosa premissa bergsoniana de que o nosso riso é sempre o riso de um grupo, parece se
tornar irrefutável no exemplo que se segue:
56
Ao leitor talvez já tenha ocorrido ouvir, em viagem de trem ou à mesa de hospedaria, histórias
que deviam ser cômicas para os viajantes que as contavam, pois que os faziam rir com muito
gosto. O leitor terá rido como eles se pertencesse à sociedade deles. Mas não pertencendo, não
tinha vontade alguma de rir. Um homem a quem perguntaram por que não chorava num sermão
em que todos derramavam muitas lágrimas, respondeu: “Não sou desta paróquia.”
(Bergson,
2001:5).
Também Propp é incisivo em afirmar que desconhecer as normas de conduta
social, agir em desacordo com elas representa uma transgressão, um defeito que será
submetido à sanção do riso. Didaticamente, o autor oferece-nos um exemplo bastante
interessante não porque reforça a sua assertiva, mas também porque nos permite
depreender como surgem algumas estereotipias, típicas da comicidade:
Se todo povo possui suas próprias normas exteriores e interiores de vida, elaboradas no decorrer
do desenvolvimento de sua cultura, será cômica a manifestação de tudo aquilo que não
corresponde a essas normas. É por causa disso que os estrangeiros, tão freqüentemente, parecem
ridículos. Eles parecem cômicos apenas quando se destacam e diferenciam por suas estranhezas
do lugar para onde vieram. Quanto mais ressaltadas as diferenças, mais provável a comicidade.
(Propp, 1992:62)
Se bem avaliamos, a conclusão que as citações nos permitem desvela uma nova
coincidência entre os autores: também para Propp o riso é um antídoto contra a dispersão
social, na medida em que condena aquele que transgride determinados valores sociais.
Bergson já o dissera.
Com Propp chegamos ao século XX e a algumas conclusões. Primeiramente,
exceção feita a Demócrito (460-352 a.C) e a Joubert (1529-1582), o riso até o século XIX
geralmente decorre de uma atitude negativa, e teóricos do pensamento ocidental ora o
associam ao torpe, ora ao engano, ora a um falso prazer, ora a defeitos. Sob este aspecto, o
século XX, derrubando os baluartes do cartesianismo, representou uma reviravolta na
concepção do riso.
57
O riso vai ser analisado e valorizado pelo seu potencial transgressor, porque
pode demolir verdades positivistas e cartesianas, enfim, porque pode propor uma outra
visão, além da estratificada. Joaquim Ritter (1903-74), filósofo alemão, citado por
Alberti (1999) entende que o Dasein, designação dada à ordem totalizante, integra a ordem
positiva essencial, mas também o seu oposto, ou seja, o nada. “É da essência da ordem e do
sério abrigar uma metade do Dasein a existir sob a forma de oposto”, esclarece Alberti
(op.cit., p.11), a propósito da teoria ritteriana. E acrescenta:
Como o sériopode apreender o nada de modo negativo isto é, justamente enquanto nada -,
a relação que a metade excluída continua mantendo com o universo do sério permanece secreta,
(....) Ela só se torna visível e audível, para o sério, através do riso e do cômico.
Se bem entendemos, o riso representa este lado oposto, não-oficial, não-
normativo, e talvez mais essencial do Dasein. Na verdade, o riso pode ser mais verdadeiro,
porque sua força provém do inconsciente, do nonsense, do lúdico. A este propósito, as
palavras de Alberti (1999:23) são esclarecedoras:
O riso e o risível remetem então ao não sentido (nonsense), ao inconsciente, ao o sério, que
existem apesar do sentido, do consciente e do sério. Saber rir, saber colocar o boné de bufão,
como diz Ritter, passa a ser situar-se no espaço do impensado, indispensável para apreender a
totalidade da existência.
Portanto, se a partir do século XX, a relação do riso com o inconsciente,
inaugurada por Freud, constituir-se-á o alvo preferido dos teóricos ocidentais sobre o riso,
persiste até então, segundo avaliamos, uma enorme lacuna nos estudos relativos ao humor.
A que nos referimos? Ao estranho fato de que nenhum teórico do Ocidente tenha feito
qualquer menção, nima que fosse, à questão do riso e do risível na cultura oriental.
Parece-nos que a noção ritteriana de Dasein nos levou a um insight, visto que os conceitos
do yang e do yin também subsumem as faces opostas e totalizadoras da Existência em
algumas culturas do Oriente.
58
Se os ocidentais riem do infortúnio, da ignorância, do imprevisto, do que riem
os orientais? Teria o humor as mesmas motivações no Oriente e no Ocidente? Haveria
pontos de intersecção que poderiam servir de reforço para a nossa tese sobre uma certa
universalidade do humor?
1.11 - HUMOR ORIENTAL: BREVE INCURSÃO
Movidos inicialmente pela curiosidade inerente a todo pesquisador e tendo
sempre como fito a busca de elementos comprobatórios da nossa hipótese principal, ou
seja, a questão da universalização das técnicas, estratégias e temas do humor, deparamo-nos
com uma obra intrigante que nos levou a revelações insuspeitadas: Zen and the comical
spirit, de M Conrad Hyers, publicada em 1974.
Nessa obra, Hyers recorre à arte pictórica e à literatura, sobretudo chinesas,
para mostrar como o budismo hindu foi transformado em zen-budismo chinês e,
posteriormente, japonês, e como o espírito cômico é o elemento fundador de tal distinção.
Para ilustrar sua tese, recupera um conto tradicional que associa a origem do zen-budismo a
um sorriso.
Segundo tal conto, Buda
27
estava reunido com seus discípulos, quando um
príncipe (rajá)
veio até ele e lhe ofereceu uma bela flor dourada, pedindo-lhe que fizesse
um sermão. Buda subiu ao local de sermões, mas não emitiu uma palavra para a ansiosa
assistência: ele, simplesmente, aceitou a flor de sândalo. Nenhum dos presentes entendeu o
significado do seu gesto, exceto Kãsýapa, um simples discípulo, que, por meio de um
sorriso, demonstrou ter aprendido o ensinamento. O sorriso, na doutrina zen, simboliza
ainda hoje a súbita intuição da verdade: é a expressão de um insight.
27
Segundo a tradição, o príncipe Sidarta Gautama, nasce em 560 a.C , no reino dos Sakyas. Insatisfeito com a
futilidade da vida real, abandona o reino e, disfarçado de mercador, transforma-se em um peregrino, travando,
assim, conhecimento com as enfermidades, o sofrimento e a morte. Em busca de respostas para o sofrimento,
torna-se discípulo dos primeiros Brâmanes. Sem respostas para as questões essenciais, isola-se por seis anos.
Alcança a iluminação depois de permanecer imóvel por sete semanas, debaixo de uma figueira, resistindo à
Mara, o gênio do mal. A partir daí, com 35 anos, assume o nome de Buda e começa a sua pregação que
dura até sua morte, aos 80 anos. (Cf http://www.conhecimentosgerais.com.br/religiões/budismo.html).
59
Interessante é que, se a doutrina Zen subsume o choque entre a grandiosidade do
budismo hindu e o humanismo materialista dos chineses e japoneses (Cf. Hyers, p. 24), isto
não se revela apenas nas primeiras piadas compiladas sobre o zen-budismo, mas, sobretudo,
nas pinturas chinesas antigas. Se de um lado, temos nelas o Buda, tipificado na figura
imponente de Bodhidharma
28
, temos por outro lado, o Buda tipificado por Pu-tai, o monge
nômade, que, apesar do seu enorme tamanho, é comumente retratado como um dançarino
alegre e lépido, em suma, feliz.
Esta oposição entre as duas representações do Buda reflete, na verdade, a
própria essência dual do zen-budismo: de um lado a seriedade, a circunspecção; de outro, a
alegria, a tolice bia. As palavras de Hyers (op.cit., p.26) confrontam com propriedade os
significados das duas figuras que integram o zen-budismo e cujas representações são
recorrentes na arte chinesa:
Um é o epítome da seriedade determinada; o outro, do constante sorriso. Um está sentado em
plácida quietude da meditação; o outro está levemente dançando uma dança popular. Um sugere
o ápice do zelo e da obrigação; o outro, a despreocupação da jovialidade, senão da frivolidade.
Um tem a aparência de um mestre ou sábio; o outro, a de uma criança, um palhaço, ou tolo.
29
Se Bodhidharma (Anexo 1), cujos celhos franzidos, sobrancelhas hirsutas e
olhar penetrante lhe conferem uma fisionomia ameaçadora, simboliza a seriedade e a
circunspecção, sua contraparte, Pu-tai é a própria representação da pachorrice, da
indolência. Enganam-se os que pensam ser a figura de Pu-tai, em relação à do Buda, uma
frívola representação da indisciplina contra a ordem. Tal representação subsume, na
realidade, a harmonia necessária entre o sagrado e o cômico, partes dialéticas de um todo,
que é a própria vida:
28
Bodhidharma foi o último dos 28 patriarcas hindus, responsável por ensinar o budismo na China, no século
VI. Na verdade, é considerado o fundador do zen-budismo, doutrina esta que não representa uma religião
independente, mas, antes, um novo estilo de espiritualidade dentro do budismo.
29
The one is the epitome of resolute seriouness; the other of buoyant laughter. The one is seated in the placid
stillness of meditation; the other is airily dance a folk-dance. The one
suggests the extremities of earnestness
and commitment; the other the carefreeness of gaiety, if nor frivolity. The one presents the visage of master or
sage; the other of the children or clown or fool.
60
O que é simbolizado como a dialética entre o sagrado e o cômico - ou violência e frivolidade
não é uma nova dualidade zen, mas uma nova unidade, uma dinâmica harmonia rítmica (...). Se
o espírito cômico proporciona um efeito contrapontual, como ocorreu, isto não é um movimento
antagônico, ou simplesmente discordante, mas uma parte integral da unidade e totalidade da
composição da vida, como o Tao que se expressa no interrelacionamento entre o yin e o yang.
30
(Hyers, op, cit., p.47)
A concepção ritteriana do Dasein retorna insofismável à nossa mente.
Pu-tai, conhecido no Ocidente como o Buda Sorridente, é representado em
amuletos para dar sorte. Historicamente, ele foi identificado com um monge nômade
chamado Keishi (916), que carregava, em um enorme saco de linho branco, tudo o que
possuía e acreditava-se ser ele uma aparição incógnita do Buda. Nas pinturas, é
representado tendo uma barriga enorme e um largo sorriso estampado na face e aparece
sempre em companhia das crianças, a quem presenteia com frutas e doces.
De acordo com a lenda, Pu-tai recusara a designação de mestre Zen, bem como
as restrições da vida no monastério e se decidira pela vida nômade, levando o saco de linho
branco que em algumas pinturas representa o próprio lar - às costas, distribuindo
lembranças para as crianças e brincando com elas nas ruas, como um Papai Noel oriental.
Representa, pois, o filósofo alegre que descobriu a sabedoria, a liberdade e o sorriso com as
crianças. Dizem que toda vez que Pu-tai encontrava um monge devotado, ele estendia a
mão e, com jeitinho de criança, pedia uns trocados (Interessante a associação feita por
Hyers entre o comportamento infantil de Pu-tai e as palavras bíblicas: “A não ser que você
se torne como uma criança, você nunca entrará no reino dos céus” Mateus,18:3).
Na pintura Zen, a figura do palhaço aparece constantemente e outros dois, bem
populares, são Han-shan e Shih-te, respectivamente um tolo e um mendigo louco (Anexo
2). Eles têm a aparência de vagabundos, a conduta dos loucos e o comportamento dos
30
What is being symbolised by the dialectic of the sacred and the comic or fierceness and frivolity in Zen
is not a new duality, but a new unity, a dynamic rhythmic harmony, (…).If the comic spirit provides a
contrapuntal effect, as it were, it is not an antagonistic movement, and therefore simply discordant, but as an
integral part of the unity and wholeness of the composition of life, like the Tao manifests itself in the
interrelationship between yin and yang.
61
brincalhões. Han-shan aparece, por vezes, vestido com roupas esfarrapadas, com um ninho
de casca de árvore como chapéu, e sapatos enormes para os pés - o epítome do palhaço. É
também representado carregando um rolo de pergaminho em suas mãos, provavelmente no
lugar do sutra, o conjunto de aforismas budistas. Conta a lenda que seu amigo Shih-te,
figura igualmente bizarra, foi uma vez surpreendido, em um monastério, sentado ao lado da
imagem do Buda, com quem, além de estar conversando animadamente, partilhava das
oferendas que ali tinham sido deixadas pelos fiéis.
Para Hyers, estas duas figuras cômicas representam a irresponsabilidade infantil,
a auto-indulgência, a sabedoria dos tolos que, por não se prenderem a normas, desfrutam da
autêntica liberdade. Feitas estas referências históricas, torna-se transparente a afirmação de
Hyers (op. cit., p.48) segundo a qual “se Han-shan e Shih-te simbolizam a Sabedoria dos
Tolos, Pu-tai simboliza a Sabedoria das Crianças”.
31
Servindo-se de uma linguagem quase literária por metafórica Hyers (op.cit.
p. 43) não associa a figura do palhaço, símbolo da total liberação, ao humor, mas
também interpreta-lhes as momices como um retrocesso à irresponsabilidade infantil ou
como rebeldia, socialmente tolerada, contra a autoridade e a virtude:
A realização de uma liberação autêntica, como em toda a tradição zen, é atestada pelo humor e o
símbolo desta liberação é a figura paradoxal do palhaço. (...) O palhaço em muitas culturas, de
fato, simboliza a emancipação e a liberdade, não necessariamente num sentido refinado e
espiritual. Freqüentemente, suas momices (cambalhotas) são simplesmente pulos retroativos à
irresponsável liberdade das crianças, ou a uma tolerada rebelião contra a virtude e a
autoridade.
32
31
If Han-shan and Shi-te symbolize the Wisdom of Fools, Pu-tai symbolises the Wisdom of Children.
32
The realisation of an authentic liberation, as in so much of Zen tradition, is attested by humour; and the
symbol of that liberation is the paradoxical figure of the clown. (…) The clown in most cultures, in fact,
symbolises emancipation and freedom, even though not necessary in the most refined or most spiritual sense.
Often his antics are simply a
retrogressive leap into the irresponsible freedom of the child, or a socially
tolerated rebellion against virtue and authority.
62
Em suma, para Hyers (op.cit.,p. 55), o tolo, o palhaço é sempre um
emancipador, o que nos leva a afirmar que o próprio humor – a face não séria do Buda , que
o palhaço representa – também o é. (Voltamos a Freud novamente?)
Interessante como a descrição que Hyers faz do palhaço e das suas atitudes
libertárias leva-nos, intuitivamente, à aparente falta de padrão e de circunspecção (dizemos
aparente porque a transgressão é autorizada) que o jornalismo praticado por José Simão
desvela, em decorrência das inversões jornalísticas realizadas, tanto no tocante à seleção
das notícias como na forma de apresentá-las: o sério (a notícia) aparece travestido de não-
sério, como se uma brincadeira fora. Analisemos a citação de Hyers (1974:55):
Sob a perspectiva do palhaço, que recusa limitações e cerceamentos com total seriedade, o fosso
que protege o castelo do rei e o reino é o mesmo que aprisiona o rei. Desta forma, os padrões
organizados da racionalidade, da ordem e da virtude que usamos para organizar a nossa
experiência são confundidos e deturpados pelo palhaço cujas roupas de retalhos coloridos,
incoerentes trajes, acessórios curiosos e comportamento bizarro coloca tudo em suspensão ( de
ponta cabeça?). A forma se transforma em caos, o senso em nonsense, a inibição em
espontaneidade, a rigidez em casualidade. O palhaço não deseja se enquadrar, na verdade, ele
recusa qualquer cerceamento, qualquer padrão ou estrutura do mundo convencional. Ele
representa uma nova ordem de ser. O palhaço faz tudo errado: suas roupas, seus pertences, seu
decoro, sua lógica, sua fala, seu movimento. Apesar disto, em seus erros, existem acertos de
outra ordem. Em sua tolice, há um outro nível de sabedoria.
33
Um outro dado curioso deve ser mencionado. A face séria/sagrada do Buda,
aquela que podemos identificar com as representações de Bodhidharma, é enfatizada pela
presença de imagens simbólicas representadas, sobretudo, por animais. O que representam
33
From the perspective of the clown, who refuses to take any limitations and demarcations with absolutely
seriousness, the moat that protectes the king’s castle and his kingship is also the moat that imprisons the king.
Hence, the neat pattern of racionality and order and value which we use to organize experience are confused
and garbled by the clown whose motley patches, incongruous garb, curious accessories, and bizarre
behaviour place everything in suspension. Form is turned into chaos. Sense into nonsense, inhibition into
spontaneity, rigidity into randomness. The clown does not fit into, indeed refuses to fit into, the patterns and
sctrutures of the conventional world. He represents another order of being. The clowns gets everything
wrong: his dress, his appurtenances, his decorum. His logic, his speech, his movement; yet in this wrongness
is a rightness of another sort. In this foolishness is another level of wisdom.
63
o dragão e o tigre, por exemplo, senão a força e o temor que nos desperta a figura
monumental e circunspecta do Bodhidharma? Por outro lado, se o espírito cômico é a outra
face do Buda, que animais poderiam simbolizá-la? É comum que a pintura zen mostre
sapos, macacos
34
(grifo nosso), galinhas. O próprio espírito cômico se materializa quando o
Buda é caricatamente representado como um sapo-boi. (Anexo 3).
Neste sentido, falar em zen-budismo, segundo Hyers (op.cit.), é sempre correr
um risco porque destacar esse lado alegre, ou seja, o espírito cômico que lhe é inerente,
como bem o atestam as pinturas e a literatura oriental, não significa em hipótese alguma
negar a sacralidade e a espiritualidade da doutrina, como muitos supõem. Ao contrário, é
uma forma de revelar-lhe a identidade, de entendê-la como a transformação do budismo
hindu que, difundido em outras plagas, incorporou novas visões de mundo, outras
experiências de vida, transformando-se, na China e no Japão, em zen-budismo.
De qualquer forma e isto importa ser dito a concretude, o lugar comum, a
cotidianidade tão inerente à cultura dos chineses e japoneses, em hipótese alguma implica
pouca espiritualidade. Ao contrário, é uma outra forma de espiritualidade que integra o
sagrado ao cotidiano, a grandiosidade à simplicidade, expressando, desta forma, sua
natureza ambígua, excêntrica e bem humorada. Sob este aspecto, alguns haicais chineses
e/ou japoneses são a expressão perfeita desta excentricidade, típica do zen-budismo.
Vejamos:
Sentado como o Buda,
Mas picado por mosquitos
Em meu Nirvana.
35
(Demaru, apud Hyers, p.28)
34
A designação que o jornalista José Simão se atribui, ou seja, a de Macaco Simão, nos parece
completamente adequada. Macaco é universalmente ligado à alegria, a micagens, à imitatividade pueril.
35
Sitting like the Buddha,/ but bitten by mosquitoes/In my Nirvãna
.
64
Do buraco
Do nariz do grande Buda
Sai uma andorinha.
36
( Issa, apud Hyers, p.24)
Como esta fusão sagrado/cotidiano se explica? Se para a meditação dos mestres
hindus era imprescindível o silêncio absoluto do monastério, os monges chineses e
japoneses podiam chegar a um estado de esclarecimento não só quando estudavam os
sutras. Como eles participavam de todas as atividades, desde plantar, limpar, cozinhar e
como, acima de tudo, eles valorizavam tais atividades, a oposição entre o sublime e o
humano (que o budismo hindu revela) apresenta-se integrada no zen-budismo.
Mesmo quando cuida de flores ou de animais, um monge zen-budista pode estar
meditando, pode estar aprendendo. Se nos reportarmos à nobreza da tragédia x a
simplicidade da comédia, esta celebração do lugar comum, da simplicidade do cotidiano,
que os monges chineses e japoneses perpetraram, será identificada claramente com a
comédia e com o humor.
Na verdade, o humor dessacraliza o sagrado, geralmente associado ao sério.
Segundo D.T. Susuki (apud Hyers, p. 32), o zen-budismo é a única religião ou ensinamento
que encontra lugar para o sorriso. No zen-budismo, há, de fato, hora para rir e dançar, bem
como há tempo de chorar e prantear. Para muitos estudiosos, a essência do zen-budismo é o
humor.
Aliás, como bem nos revelam os haicais citados, a integração sagrado /cotidiano
é essencialmente cômica (“o haicai, ele mesmo, é uma realização cômica”
37
), em especial
porque nela se anuncia o nonsense, como bem o atestam os exemplos apresentados.
36
Out from the hollow/Of the Great Buddha’s nose/ A swallow comes.
37
....the haiku itself is a comic achievement ( Heyers,op.cit., p.73)
65
Por tempos distintos e caminhos opostos, supomos ter chegado, senão às
mesmas constatações, a uma série de similitudes entre o humor ocidental e o oriental. Se a
perspectiva ritteriana do Dasein nos sugeriu a questão do mico e do humor como a face
oposta e necessária do Sério, o Tao, unidade integrante e totalizadora da vida, nos sugeriu o
interrelacionamento entre o yang e o yin (Cf. citação na p.50 desta tese). Assim como ao
sério subjaz o não-sério, o yang não existe sem o yin. O antagonismo pressuposto ou
explicitado – é fundamental ao humor (Raskin bem o destacou).
Uma outra similitude diz respeito à própria figura do palhaço, símbolo do
cômico e do humor. Se, no mundo ocidental, os bufões e os parvos são os palhaços oficiais,
no Oriente, palhaços são os monges nômades avessos à vida dos monastérios os tolos e
os mendigos. Insensatez, alegria, puerilidade são suas características. Mantos puídos,
chapéus estranhos, sapatos enormes, roupas excêntricas. No Oriente e no Ocidente.
Um outro dado relevante nos reporta à questão do nonsense como forma de
humor, visto que, se o homem ocidental levou séculos para valorizá-lo, mais exatamente só
depois de Freud, o zen-budismo parece tê-lo adotado como técnica cômica desde sempre. É
o que nos revelam os haicais citados. É o que nos revela a capacidade de integração dos
opostos, perpetrada pelos zen-budistas e sintetizada no binômio sagrado/cotidiano.
Obviamente, o ocidente sintetizará binômios semelhantes, mas muitos séculos depois
(Bakhtin os revelará). Não nos parece gratuito o boom de haicais ocorrido na década de
60/70. Uma redescoberta da cultura oriental?
Embora Hyers (op.cit) tenha ilustrado a sua obra com um pequeno número de
narrativas cômicas, tiradas da tradição zen, pudemos verificar como a surpresa é um
elemento recorrente em todas elas, o que, de certa forma, confirma-a como elemento
indispensável ao humor de todas as épocas. Quintiliano, Hobbes e Bergson o
observaram. A título de ilustração, traduzimos uma destas pequenas narrativas apresentadas
por Hyers (1974: 120), não para confirmar a importância do elemento surpresa, mas
também para destacar uma característica comum às piadas orientais: o final parece convidar
o leitor à reflexão.
66
Keichu era um mestre zen do período Meiji. O governador de Kyoto pagou a
Keichu a honra de uma visita. O governador foi anunciado ao mestre zen por
um serviçal que leu o cartão de apresentação do governador: “Kitagaki,
governador de Kyoto”. “Eu não tenho nenhum negócio com este sujeito”
dardejou Keichu ao serviçal e recusou-se a receber o visitante. “Diga a ele que
caia fora!” Quando isto foi comunicado ao governador, este, ao invés de ficar
enfurecido, pegou uma caneta e rabiscou as palavras: governador de Kyoto”
e deu o cartão de novo ao atendente. Quando Keichu leu o cartão, ele
exclamou: “Oh, é aquele Kitagaki! Eu quero vê-lo!”.
Pequenas causas grandes efeitos? Tal solução humorística não é inédita, mas
eficaz. Nos dois lados do mundo.
1.12. ALGUMAS CONCLUSÕES
Se, como vimos, o humor dentro do pensamento ocidental, sempre ou quase
sempre, se realiza pela observação das mazelas humanas e encerra uma certa maldade de
quem o desvela, o mesmo talvez não possamos afirmar com relação ao humor oriental,
especialmente no que diz respeito ao cômico inerente ao zen-budismo, cujo nonsense
parece encerrar uma certa ingenuidade (os haicais, por exemplo) ou, por vezes, um convite
à reflexão.
Na verdade, se a breve incursão pelo humor oriental nos permitiu reforçar uma
série de semelhanças, contribuindo para a confirmação da nossa hipótese central, é
impossível negar que novas questões vieram à tona e serão posteriormente consideradas, se
o rigor da análise assim o exigir. Uma delas é a própria questão do haicai como gênero
poético, o que lhe determina possivelmente o tipo de humor.
De qualquer forma, o que queremos ressaltar é que o humor tem uma natureza
dúbia: ele une o sagrado ao profano, ele veste o sério de não-sério, ele ridiculariza o status
67
quo. É sua natureza antitética que o integra. O sério prescinde do humor, mas a recíproca
não é verdadeira: o humor pressupõe o sério. Daí a sua linguagem altamente alusiva, repleta
de subentendidos, baseada em inferências, em jogos de linguagem que desvelam aspectos
lúdicos.
Além dessas avaliações, uma outra bastante imediata é a de que até o século
XX, as teorias sobre o riso não são estritamente lingüísticas, mesmo porque a própria
Lingüística só se configura como ciência autônoma a partir da segunda metade do século
XX. Todavia, tal amplitude de visões, advindas dos diferentes ramos do saber, embora
possa deixar o objeto da nossa pesquisa mais amplo e menos definido, com certeza, o torna
mais rico e mais instigante.
Finalmente, a certeza de que muitas categorias já estabelecidas pelos antigos
serão resgatadas nas nossas análises, até porque muitas delas acabavam redundando nos
elementos lingüísticos, à revelia das indagações iniciais que ora tinham cunho filosófico,
sociológico, psicanalítico ou simplesmente literário.
De fato, a clássica divisão de Cícero entre o riso de palavras e o de ação de
inspiração aristotélica – continua pertinente e atual e é a partir dela que tentaremos associar
as demais categorias propostas pelos autores abordados no panorama histórico. Para tanto,
elaboramos o quadro abaixo, que não servirá de norte para as nossas primeiras análises,
mas também para direcionarmos os próximos passos da nossa pesquisa.
Convém ressaltar que este quadro representa apenas o ponto de partida e o
contraponto não para a revisão e/ou exclusão de algumas categorias nele incluídas, bem
como para possíveis inclusões de outras, que poderão se fazer mais pertinentes ao longo da
nossa pesquisa. Buscamos, pois, neste primeiro momento, relacionar nele todas as
categorias aventadas pelos diferentes autores. Não nos move ainda a preocupação
estritamente analítica, com vistas a uma taxionomia mais definitiva.
68
QUADRO II - CATEGORIAS INICIAIS DE ANÁLISE
HUMOR VERBAL HUMOR REFERENCIAL
Ou Ou
HUMOR DE PALAVRAS (DICTO) HUMOR DE COISAS (RES)
Trocadilhos O engano
Duplo sentido A expectativa traída
Jogos de palavras O inesperado
A paródia Atitude parodística
A ironia A surpresa
Ditos alógicos Ações alógicas: a miopia de si mesmo
O exagero/a falta de equilíbrio O desequilíbrio: o defeito físico ou moral
A repetição Atitudes mecânicas e repetitivas: a rigidez
moral ou física
O contraste e a inversão Atitudes deslocadas
Mudança de tom: do sério para o jocoso A distração de si e social
Dizer obviedades A inconsciência
A hipérbole A submissão aos apelos corpóreos
A imitação da fala A caricatura
Uso do jargão profissional Inadequação entre a fala e a situação
O inesperado/ a surpresa verbal O qüiproquó
Presença de linguagem chã Valorização do baixo material
Condensação (significante com mais de um
significado)
Deslocamento: desvio do tema Grandes causas/pequenosefeitos /
pequenas causas/grandes efeitos
Uso de calembures, tiradas, chistes e
provérbios
69
O que nos cumpre agora reforçar é a questão da importância que adquire em
nosso trabalho a assunção de que o riso é contextualizado. Em outras palavras, endossar as
posições de Bergson e Propp quanto a este aspecto implicaria, necessariamente, negarmos
as nossas hipóteses iniciais, ou seja, a de que ao riso e/ou à comicidade subjazem categorias
universais? Obviamente, a nossa resposta é não, mas como comprová-la? Uma primeira
tentativa - talvez a mais prática e mais imediata é procedermos à apresentação do corpus
a ser analisado.
70
“Para resolver o problema da comicidade não
podemos nos limitar à obra dos clássicos e aos
melhores exemplos do folclore. Foi necessário
conhecer a produção corrente das revistas
humorísticas e satíricas, incluindo-se os
folhetins publicados em jornais. As revistas e
a imprensa refletem a vida cotidiana, que,
como a arte, está dentro do âmbito de nossa
atenta pesquisa. Foi indispensável levar em
consideração também o circo, o teatro de
variedades, a comédia cinematográfica e as
conversas ouvidas em diferentes lugares...”
(Propp, 1992: 17)
71
CAPÍTULO 2 - APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DO CORPUS
2.1 - JOSÉ SIMÃO: JORNALISTA, HUMORISTA OU COLUNISTA SOCIAL?
COMO QUEM FICA PARADO É POSTE....JoSimão, o colunista mais engraçado da cidade,
não pára um minuto em busca da melhor piada. Dono de uma língua afiada e uma gargalhada
inconfundível, ele diverte os seus leitores dezesseis anos com sátiras hilárias sobre gente
famosa
. (Erika Sallum, Revista Veja São Paulo, 17/12/2003, p.26).
São essas as palavras com as quais a jornalista Érika Sallum, em gina inteira,
apresenta o objeto da sua reportagem: o colunista José Simão cuja foto ocupa todo o espaço
da página ao lado. Tal foto mostra o jornalista imitando um macaco: mão esquerda aberta
apoiando o queixo, mão direita passando por detrás da cabeça e segurando a orelha
esquerda, boca aberta, olhos atentos e arregalados. (Anexo 4)
Nem as palavras, nem a foto poderiam ser mais felizes: a jornalista captou, a
nosso ver, a essência do riso provocado por José Simão. Partindo de um dos bordões usados
pelo colunista, ela destaca não o caráter parodístico a própria foto procede a uma
inversão: é o homem que imita o macaco bem como a natureza iminentemente alegre do
riso por ele criado, que se reflete em palavras como: engraçado, piada, gargalhada, diverte,
sátira.
A coluna de José Simão é publicada diariamente, desde 1987, no Jornal Folha
de S. Paulo, embora seja veiculada em mais dezenove jornais brasileiros. Em recente
entrevista à Revista Veja São Paulo, o jornalista se define como um “jornalista-humorista”
até porque a sua inabilidade com o desenho impediu-o de realizar o sonho de ser chargista:
“Na verdade queria ser chargista. Mas, como não desenho bulhufas, faço caricatura escrita.
Virei um jornalista-humorista. Intelectual,claro, mas com humor de sobra” (Sallun, 2003:
28-9).
72
Dono de um estilo inconfundível, ele tem como objeto do riso as pessoas mais
iminentes da sociedade brasileira, preferencialmente as do mundo político, artístico e
desportivo: em outras palavras, os colunáveis da mass media. Personalidades internacionais
também são citadas nos seus textos, mas em menor escala, dependendo das notícias do dia.
Embora o seu estilo se caracterize pela recorrência a alguns bordões e
expressões, o jornalista-colunista-humorista confessa, na referida reportagem, que alguns
deles não são criações suas. De Ibrahim Sued (1924-1995), famoso colunista social, adotou
a expressão Bomba! Bomba!, transformando-a em Buemba! Buemba!, porque essa nova
versão revela o caráter melodramático, exagerado, inerente aos mexicanos e tão ao gosto
dos brasileiros, segundo José Simão.
Quanto à expressão hoje amanhã, que tão adequadamente sintetiza a
atividade jornalística – as notícias de hoje só serão publicadas amanhã – afirma tê-la ouvido
de uma mulher nas ruas da Bahia, ao passo que o bordão quem fica parado é poste é
proveniente de uma antiga marchinha carnavalesca. De um leitor, recebeu a famosa
expressão, com a qual freqüentemente encerra as suas crônicas: vou pingar meu colírio
alucinógeno, mas, entre todas, a preferida é o is sofre, mas nóis goza, inspirada em um
bloco carnavalesco de Olinda.
Para o colunista, tal expressão sintetiza a liberdade, o superar a opressão, porque
mostra a vingança do povo injustiçado (Sallum, 2003:29). Interessante frisar que a desforra
catártica que o Carnaval pode representar para o povo (mas nóis goza), uma vez que a
alegria, nesse curto espaço de tempo, subverte a opressão do cotidiano oficial (nóis sofre),
remeteu-nos, de pronto, ao papel desempenhado pelas festas religiosas medievais.(A
“segunda vida”
38
bakhtiniana se insinuava... A carnavalização também. Bakhtin seria,
indiscutivelmente, revisitado).
38
Segundo Bakhtin (1996:5), as festas religiosas representavam hiatos de alegria, de descontração na vida do
homem medieval, mesmo porque, naquelas ocasiões, a rigidez das relações sociais era relaxada.
73
A questão da crueldade, freqüentemente associada ao discurso do riso, é
colocada inteligentemente pelo jornalista, ao declarar:
Como uma criança, eu posso ser cruel às vezes. Mas jamais baixo-astral. Nunca sou grosseiro
nem escrevo sobre a vida pessoal de ninguém, a menos que ela tenha importância no noticiário
do dia. Não suporto maldadezinha gratuita sem inteligência
(Sallum, 2003:30).
Tal citação é digna de nota porque revela que José Simão prioriza a função do
jornalista à do humorista, visto que a “importância no noticiário” é o critério primeiro para
a seleção da notícia (pelo menos é o que se afirma). Além disso, duas observações podem
ser feitas, sobretudo se nos reportarmos a Hyers (1974). A primeira diz respeito à
positividade da figura do palhaço, que este autor associa ao mundo infantil e cuja liberdade
de dizer, por não estar presa a convenções e etiquetas sociais, pode redundar, por vezes, em
“crueldades” (ou em verdades?), mas com um adendo: a alegria é constante (mas jamais
baixo-astral).
Diríamos mais. O jornalista José Simão - que é conhecido do leitor e que
tem instituído aquilo que Amossy (2005) designa ethos pré-discursivo - reforça a sua
imagem de jornalista/humorista, ao construir um ethos discursivo irônico, por meio do qual,
ao mesmo tempo em que se afirma como ético (Nunca sou grosseiro, nem escrevo sobre a
vida pessoal de ninguém), condiciona a sua ética a um interesse maior: o da notícia (a
menos que ela tenha importância no noticiário do dia).
Em outras palavras: o jornalista valoriza atitudes éticas de forma tão taxativa
que o leitor nunca supõe que ele irá prescindir delas. Tal mudança inesperada de rumo gera
o humor. Ethos discursivo e institucional saem, pois, reforçados. As palavras de Amossy
(op.cit., p.136) sobre o “imbricamento” (termo nosso) entre ethos discursivo e institucional
(ou pré-discursivo) são mais do que providenciais: O status institucional do escritor como
ser no mundo e a construção verbal do locutor como ser do discurso se recobrem e se
reforçam mutuamente”.
74
com relação à conclusão do texto em tela (Não suporto maldadezinha
gratuita sem inteligência) em que a ironia decorre, neste contexto, do descompasso que se
cria entre os níveis semântico (maldade tem carga semântica negativa) e morfológico (o uso
do diminutivo é geralmente afetivo, positivo), resta-nos uma dúvida que,
independentemente da resposta a que se chegue, subsume a maldade inerente ao humor: o
autor aceita maldadezinha gratuita, se inteligente, ou toda maldadezinha gratuita não é
inteligente ?
De qualquer forma, é munido de “maldadezinha inteligente” (gratuita ou não)
que ele atinge seus alvos prediletos do mundo político nacional, entre os quais temos, com
freqüência: a então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, designada como prefesteira; o
então governador paulista Geraldo Alckmin, alcunhado de Picolé de Chuchu, pois,
segundo José Simão, tal tipo de picolé é sem gosto, sem cor e sem cheiro (Sallum, 2003:
29) e o presidente Luís Inácio Lula da Silva. Aliás, a dicção não muito clara do presidente
levou o colunista a incluir, nas frases que funcionam como a abertura das suas notícias, a
expressão locativa: Direto da República da Língua Plesa, como podemos verificar em
muitas crônicas do corpus.
No tocante às personalidades do mundo artístico televisivo, as suas farpas se
voltam contra algumas apresentadoras, em especial Luciana Gimenes a quem ele se refere
como Lucianta Gimenez, alusão claríssima às inúmeras impropriedades ditas pela
apresentadora durante o programa diário, levado ao ar pela rede TV. Já a apresentadora da
rede Globo, Ana Maria Braga, que diariamente comanda um programa dirigido ao público
feminino e que tem como colaborador um papagaio de nome Louro José, é chamada por
José Simão de Anameba Brega. Trocar Braga por Brega é uma clara alusão ao caráter
popular do programa.
No mundo dos esportes, a sua “maldadezinha inteligente” é comumente dirigida
contra Galvão Bueno, comentarista esportivo da rede Globo, a ponto de, na ocasião em que
este fez alguns programas ostentando uma tipóia, pois havia quebrado o braço ao cair de
um cavalo, José Simão ter aberto a sua coluna diária com a seguinte manchete: Socorro! O
75
cavalo caiu do Galvão! (Folha de S. Paulo, 20/01/2004). Tal inversão, paródica por
excelência, ao mesmo tempo em que revela a ascendência do animal sobre o homem,
procede ao rebaixamento da capacidade intelectiva deste, sintetizando assim a opinião
pouco benevolente do humorista em relação aos comentários estapafúrdios – e pouco
inteligentes – freqüentemente emitidos pelo comentarista durante as transmissões.
Também o automobilista, Rubem Barrichelo, é um alvo recorrente e os
comentários maldosos sempre incidem em um ponto-chave: o fato de que, embora
freqüentemente divida o podium com o alemão Schumacher, seu companheiro de equipe, o
brasileiro nunca se sagrou campeão da Fórmula1. A piada que se segue é uma das
inúmeras, lançadas por José Simão, entre as que versam sobre esse tema:
E diz que o Rubinho vai escrever a biografia do Schumacher com o seguinte título:
Schumacher Sempre Primeiro, Segundo Barrichelo.(07/04/2004)
Manter-se atualizado, para escrever a coluna de 35 linhas, representa para o
jornalista uma maratona diária que envolve a leitura de, pelo menos, cinco jornais, 100 e-
mails que lhe são enviados por leitores de todo o Brasil, inúmeros contactos que envolvem
desde pessoas famosas ao porteiro do seu prédio ou até os clientes da padaria da esquina,
bem como um zapear por diversos canais de televisão. Na verdade, todo esse trabalho faz
da sua coluna fonte de variadas informações, que geralmente são transmitidas de forma
sintética, como lembretes/memorandos do já-ocorrido, antes de serem comentadas. Aliás, o
bordão jornalístico usado por José Simão hoje amanhã sintetiza com felicidade a função
do jornal, diferenciando-o de outras mídias de tempo real (TV, rádio, internet...) para as
quais o hoje é o agora.
Como os comentários pressupõem um leitor bem informado, neles muitas
alusões que contam com a necessidade de outras informações ou detalhes não sintetizados
na notícia. Irwin & Lombardo (2004:84) em um artigo intitulado “Os Simpsons e a alusão:
76
o pior ensaio escrito” (o título nos deixa entrever que os autores foram tocados pelo
humor dos Simpsons), partindo da premissa (indiscutível!) de que a sátira, o sarcasmo, a
ironia e a caricatura se servem constantemente da alusão, definem esta como “uma
inferência intencional cuja associação transcende a mera substituição de um referente”.
Tal definição acarreta duas conseqüências óbvias, segundo os autores. A
primeira: cabe ao Autor a intencionalidade da inferência. A segunda: o Destinatário pode
realizar ou não a inferência, bem como pode fazer outras associações não previstas pelo
Autor. A estas, os referidos ensaístas denominam “associações acidentais”. Um outro
conceito usado pelos autores vem sob a designação de “alfabetização cultural” e reporta o
dado de que a alusão sempre pressupõe a referência a eventos e valores que fazem parte de
uma cultura comum. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), muito apropriadamente, incluem
a alusão entre as figuras de comunhão (grifo nosso).
Irwin & Lombardo (2004) fazem ainda duas observações que nos pareceram
relevantes para se entender o papel desempenhado pela alusão no discurso do risível. A
primeira diz respeito ao prazer que sente o leitor ou telespectador quando desvenda uma
alusão: “Sentimos um prazer especial em entender alusões, maior do que quando
entendemos afirmações diretas” (op.,cit. p. 86). A segunda é que elas são fontes do lúdico,
visto que representam um convite ao jogo: “Gostamos de alusões por causa de sua
qualidade lúdica. Há uma certa brincadeira envolvida na alusão, e somos, em certo sentido,
convidados a brincar também” (op,cit., p.86-7).
Os autores (op.cit., p.87) não só insistem no fato de que elas são responsáveis
por criarem maior intimidade entre autor e público (ou entre o jornalista e seus leitores),
mas também reiteram-lhe o caráter lúdico, conforme se lê no seguinte passo:
A clara vantagem das alusões que contam com as informações que nem todos possuem é que
elas fortalecem a ligação entre autor e público. Autor e público tornam-se intimamente ligados:
tornam-se, na verdade, membros de um clube que conhece o “aperto de mão secreto”.
77
Refletir sobre o conteúdo da citação acima nos levou à constatação óbvia de
que o uso da alusão pode envolver elitismo e exclusão. De fato: “Cultivar a intimidade com
alguns é, às vezes, excluir outros” afirmam os autores (op,cit.,p.88). Se nos reportarmos ao
caráter jornalístico do corpus a ser trabalhado, embora reconheçamos a pertinência da
citação, parece que nos quedamos diante de uma incompatibilidade: como um texto cuja
intenção é a divulgação da notícia pode se pretender elitista? Ou excludente?
Talvez o conceito de leitor modelo, segundo Eco (1986), nos ajude a resolver tal
incompatibilidade. Para este teórico, o Autor Modelo realiza uma dupla estratégia textual,
pois ele pressupõe e institui a competência do próprio Leitor-Modelo. O autor, como um
estrategista, calcula os movimentos de seu leitor, com uma grande diferença: ele é um
estrategista que torce para que o outro (o leitor) vença. Portanto, segundo Eco:
.... prever o próprio Leitor-Modelo não significa apenas “esperar” que exista, mas significa
mover o texto de modo a construí-lo. O texto não apenas repousa numa competência, mas
contribui para produzi-la.
(op.cit., p. 40)
O que nos parece relevante, sobretudo com relação às alusões propostas por José
Simão, as quais geralmente condensam o gatilho para o riso, é que, às vezes, a resolução
delas passa pela necessidade de que o leitor domine outras informações, que não as
rememoradas pelo autor. Contudo, o que nos parece transparente é que o autor confia em
que seu leitor buscará tais informações, se já não as detiver. O leitor “pressuposto e
instituído”, ciente de que os jogos de palavras e as brincadeiras verbais relacionam-se a
acontecimentos recentes, saberá localizar as alusões e buscará meios de resolvê-las.
Parodiando Eco, esta competência foi instituída pelo autor. E acrescentaríamos: sancionada
pelo leitor. O contrato foi bilateralmente aceito.
Mas voltemos aos assuntos preferenciais das crônicas, nas quais os fatos e
celebridades nacionais também dão lugar aos acontecimentos e personalidades
internacionais, que passam a merecer os comentários jocosos do cronista. De qualquer
forma, o apelo popular é a tônica (são as notícias que estão na boca do povo) e isso se
revela, inclusive, no fato de que sua coluna ganha, por vezes, ares de comemoração
78
(debochada, obviamente) de efemérides. Nesse aspecto, todas as datas populares nacionais
e mundiais são geralmente lembradas.
A crônica de 31/12/2003, por exemplo, estampava a seguinte manchete: A
Grande virada! Vou virar abóbora! e comentava os fatos passados e os votos futuros,
subsumidos estes na pretensa fala do presidente à nação: PAFIÊNFIA E
PERFEVERANÇA!, exortação que justifica o porquê vivemos na Republica da Língua
Plesa. Interessante é que José Simão, para fechar essa crônica, lançou mão de um recurso
comum aos antigos almanaques populares e às agendas atuais: a colocação de pensamentos
ou frases de cunho filosófico, oriundas de pessoas famosas, à guisa de conselho animador.
Eis o pensamento do ano do nosso autor:
Se em 2003 até Saddam saiu do buraco, espero que em 2004 a gente também consiga.
(31/12/2003)
Se, de um lado, o tom solene pretendido com o uso de tal pensamento pode
sugerir a seriedade filosófica, o conteúdo dele reverte, de imediato, essa pretensão: o
cômico se anuncia. A ambigüidade, o duplo sentido que a expressão sair do buraco
assume, concentra o gatilho para o riso. De fato, Saddam Hussein foi, literalmente,
encontrado vivendo em um buraco. Talvez tenha tido mais sorte, que foi de tirado,
diferentemente de nós, brasileiros, cuja situação política era cada vez mais lamentável.
Quem sabe se, com a virada do ano, as coisas melhorariam? Brasileiro: profissão
esperança?
a crônica do dia 07/03/2004 lembra a comemoração ao Dia Internacional da
Mulher com a seguinte manchete: Buemba! Amanhã é o Dia Internacional da Perereca!
em que o cômico decorre não do processo metonímico de rebaixamento pelo qual a
mulher é identificada apenas à região do baixo corporal, mas também pelo fato de que tal
região foi designada pelo vocábulo perereca, termo extremamente popular e
79
malicioso.(Novamente a associação com o cômico grotesco se estabelece em nosso
espírito).
Bem, se como dissemos, as celebridades são o foco de suas crônicas, todo
escândalo que as envolve é explorado à exaustão pelo colunista. O polêmico episódio
ocorrido entre Zeca Pagodinho, cantor popular, e as cervejarias Schincariol e Ambeve,
amplamente divulgado e debatido em todas as dias, rendeu uma série de piadas e
comentários na coluna de José Simão. A capacidade de síntese que o humor pode, por
vezes, operar, se patenteia no seguinte trecho:
E o Pagodinho falou que tava com saudades da velha Brahma. Ou como disse um cara na
Internet: o bom filho a casa ENTORNA! (16/03/2004)
O “provérbio” em questão (o bom filho a casa ENTORNA) recupera, via alusão,
a famosa polêmica, pois Zeca Pagodinho, mesmo sem ter terminado o contrato de garoto-
propaganda com a cervejaria Schincariol, surpreendeu a todos, ao participar de uma
propaganda televisiva da cerveja Brahma, que é produzida pela Ambeve. Na referida
propaganda, ele cantava trecho de música cujo verso “voltei ao meu amor antigo”, reiterava
não só a sua preferência, que é pública, pela Brahma, bem como debochava, de certa forma,
da propaganda feita anteriormente para a Schincariol.
O episódio ficou conhecido como “a guerra das cervejas” e a Schincariol
conseguiu, por meio de uma liminar, suspender a exibição da propaganda feita para a
Brahma. Além disso, a Schincariol fez uma nova propaganda na qual amigos bebiam a
Nova Schin em torno de uma mesa, atrás da qual a câmera focalizava um mural com o
cardápio do dia: traíra assada. Traíra, como se sabe, é uma gíria cujo significado é traidor.
Acresça-se a essas explicações o fato de que Zeca Pagodinho é, sabidamente, um
consumidor contumaz da cerveja Brahma.
80
O caráter produtivo (dizer muito com pouco) do humor é evidente no uso do
provérbio final, uma vez que o uso do verbo entornar abre várias possibilidades de leitura:
reitera o excessivo apego de Zeca Pagodinho à bebida, bem como nos remete à parábola
bíblica do filho pródigo (o bom filho a casa torna), sintetizando jocosamente toda a
situação. Mas, como o bom filho a casa ENTORNA, a velha Brahma que se cuide!
A questão da ética (ou da não-ética) permanece sutil e maldosamente –
colocada, visto que entornar significa derramar e, por extensão, derrubar. Houve aí o que
chamamos de reversão: se a volta do filho pródigo tem biblicamente conotações positivas, a
volta de Zeca Pagodinho representa um perigo para a Brahma, sua velha casa: a qualquer
momento, ele pode entorná-la.
2.2 - A SELEÇÃO DO CORPUS
Para a seleção do corpus, pautamo-nos por dois critérios fundamentais. O
primeiro, de teor quantitativo, buscou, num primeiro momento, abarcar o maior número
possível de crônicas, vez que em decorrência das primeiras pesquisas, o tema se nos
afigurava ilimitado. A primeira crônica é, pois, datada de 31/12/2003 e a última, de
04/11/2004. À medida que entrávamos em contacto com o corpus, e já com algum respaldo
teórico, fomos percebendo que algumas técnicas se repetiam, mas adaptadas a novos fatos,
a novos contextos.
Percebemos mais: que até determinadas construções e determinados
comentários reapareciam esporadicamente. Seria o humor limitado? Restringir-se-ia a
poucas técnicas? estrita dependência entre o humor e o contexto? Na realidade, ao nos
aprofundarmos nas pesquisas e ao mergulharmos no corpus, novas questões, além das
iniciais, surgiram, dúvidas se ampliaram, algumas certezas poucas - se consolidaram.
Houvemos por bem proceder a um segundo recorte e, para tanto, já cientes de que, de modo
geral, as crônicas de José Simão se fixam nos fatos do momento, selecionamos o corpus
definitivo com base em alguns assuntos candentes.
81
Quais foram tais assuntos? Num ano de eleições para prefeitos e vereadores no
Brasil e para presidente nos EUA, além de um evento mundial, como as Olimpíadas, na
Grécia, a escolha pareceu-nos óbvia. Como o início das Olimpíadas coincidiu com o início
da campanha eleitoral, o corpus selecionado abrangeu as crônicas publicadas entre os
meses de agosto e início de novembro de 2004, o que nos permitiu acompanhar, os dois
eventos, inclusive, o fecho do processo eleitoral.
Ademais, é mister destacar que, embora as eleições, especialmente as nacionais,
e as Olimpíadas constituam o assunto predominante nas crônicas escolhidas como corpus,
os exemplos das técnicas e estratégias de construção do humor poderão o ficar limitados
aos trechos que veiculam tais assuntos, especialmente se estas nos parecerem inéditas e/ou
intrigantes. Portanto, a delimitação maior diz respeito a datas. Aliás, queremos ressaltar
ainda que alguns exemplos, colhidos anteriormente à tal delimitação, serão mantidos, o
que pode explicar a presença de alguns trechos – poucos - com datas anteriores a agosto de
2004.
Isso posto, queremos voltar à questão que, de certa maneira, se anunciava no
item anterior: afinal, como poderíamos classificar os textos de José Simão? São crônicas?
São meros comentários? A que gênero tais textos pertencem? Dado o caráter fragmentário
dos textos que, grosso modo, se voltam basicamente para os colunáveis do mundo político,
artístico, esportivo, sempre com o intuito de ridicularizá-los, seja debochando das gafes
cometidas, seja surpreendendo-os em situações inusitadas, a nossa dedução é que a coluna
de José Simão criou, talvez, um gênero híbrido, misto de efemérides, notícias, coluna
social, verbetes de dicionários, slogans em que tudo parece funcionar como pretexto para o
humor.
O que nos podemos afirmar neste momento é apenas que tal coluna é um espaço
bastante diferenciado dentro do jornal, não porque não se caracteriza como um gênero
jornalístico tradicional, mas principalmente porque a busca do risível desobriga o
jornalista/humorista de formalismos lingüísticos e noticiosos, garantindo-lhe uma liberdade
subversiva e regeneradora.
82
Compete-nos a partir de agora buscar responder à questão apresentada e, para
tanto, faremos, em princípio, o levantamento de alguns possíveis gêneros e sub-gêneros
presentes nos textos. Procederemos ainda a uma revisão bibliográfica referente ao gênero
crônica, com intuito de, ao cabo, refutar ou endossar tais textos como pertencentes a tal
gênero.
2.3 - AS CRÔNICAS DE JOSÉ SIMÃO: UM GÊNERO HÍBRIDO
Ao analisar a evolução deste “gênero menor”, Candido (1980) destaca que a
efemeridade da crônica está intrinsecamente relacionada ao veículo que a difundiu: o
jornal. Nascida folhetim, cujo objetivo primeiro era a crítica política, de teor argumentativo,
a crônica foi se tornando descompromissada à medida que o jornal passou a ser o mais
acessível meio de comunicação de massa.
Se como folhetim era “artigo de rodapé” sobre questões políticas, sociais
artísticas e literárias do momento, a crônica, aos poucos, foi adquirindo uma certa leveza,
típica da escrita que brota ao sabor da pena, despretensiosamente, mesclando aos fatos mais
comezinhos, o humor e a poesia. Atentemos para a concepção de Cândido sobre a fórmula
ideal da crônica moderna:
Creio que a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e um toque humorístico, com seu
quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica
consigo mesma.
(op.cit., p.7)
Mas, enganam-se aqueles que pensam que tal despojamento de forma e de
conteúdo tirou-lhe a profundidade. Absolutamente. É justamente neste equilíbrio entre o
poético e o humorístico que a crônica adquiriu a sua característica mais marcante. Por meio
de uma linguagem despojada, permeada por gírias e marcas de oralidade, com jeito de
conversa fiada, na qual o humor geralmente está presente, o cronista dissemina sua visão de
mundo, ao narrar ou comentar fatos do cotidiano.
83
Todavia, uma primeira observação se faz imprescindível. Esta fórmula
moderna” de crônica é típica da geração de Rubens Braga, Carlos Drummond, Paulo
Mendes Campos, Fernando Sabino e, ainda hoje, exercida com maestria por nomes como o
de Carlos Heitor Cony. Uma outra observação a ser feita relaciona-se ao tipo de humor
nelas presente, em perfeita sintonia com a poesia que delas emerge. É um humor elegante,
reflexivo, diríamos, machadiano.
o humor escrachado, deselegante, de um Stanislaw Ponte Preta e o de um
José Simão não guardam qualquer lirismo e, conseqüentemente, qualquer compaixão, o que
lhes impede uma visão benevolente do ser humano bem como a reflexão filosófica
decorrente de tal visão. Em suma, se a crônica é considerada um gênero menor porque
observa a vida “ao rés do chão”, a crônica cômica, escrachada, sintetiza um rebaixamento
maior, pois não nela qualquer consideração filosófica que a eleve: a vida e a visão que
desta se tem permanecem ao rés do chão. Sem qualquer desmérito.
A que chegamos? A uma variação da crônica tradicional que parece nos provar
que compaixão e cômico não combinam. Especulações filosóficas com comédia também
não. Seria a crueldade inerente ao deboche, à crônica escrachada, em suma, ao cômico?
Matheson (2004:121), a propósito da análise que faz sobre o humor presente em Os
Simpsons, é taxativo quando assevera:
..... eu apenas disse que o programa deixa de ser engraçado quando se afasta da crueldade por
muito tempo. Parte de meus motivos para essa afirmação é a minha crença de que toda comédia
(diferente de todo tipo de humor) se baseia na crueldade
.
A associação com Bergson (2001), embora este não refira o termo crueldade, é
imediata, que para ele, riso e emoção são antagônicos (“O riso não tem maior inimigo
que a emoção”). De nossa parte, assumiremos uma posição intermediária não porque o
riso é a expressão de uma emoção, mas também porque a crueldade não se encontra nele
sempre presente. Entendemos, pois, que, se o cômico nunca é totalmente benevolente;
pode, sim, com freqüência, chegar à total falta de benevolência e se tornar cruel. Não
84
subsumiria o humor-negro, por exemplo, a ausência de qualquer resquício de benevolência,
de piedade?
Entendemos também que as crônicas de José Simão estão naquele patamar do
cômico mais autêntico, mais popular, mais ao rés do chão, pois se o debochar de tudo e de
todos, por um lado, revela falta de piedade, revela, por outro lado, uma constante alegria,
cuja risada - sempre reproduzida no rarará - que ele costuma destacar, provém da ausência
de especulações morais, éticas, ou filosóficas. É o rir pelo rir, é um riso alegre, sem ranços
pessimistas, de bem com a vida. É um riso carnavalesco. É o riso grotesco da acepção
bakhtiniana.
Caber-nos-ia agora perguntar: se o tom da crônica se tornou diferente da
fórmula moderna tão bem sintetizada por Candido, que outras modificações em relação à
crônica tradicional, poderemos destacar? O assunto? A linguagem? A atitude enunciativa?
Vejamos o primeiro item. Desde as primeiras análises do corpus, algumas observações
tornavam-se recorrentes, sobretudo com relação ao caráter extremamente fragmentário dos
assuntos bem como dos diferentes gêneros e/ou sub-gêneros presentes nas crônicas.
Maingueneau (2001:59) afirma que todo texto pertence a um gênero de
discurso, mas que os critérios para categorizá-los são bastante heterogêneos, pois a
categorização ora se pauta pelo conteúdo do texto (uma conversa amorosa tem conteúdo
emocional), ora pela sua organização textual (a narrativa), ora pela sua periodicidade (um
jornal).
Afirma ainda que as tipologias que envolvem a orientação comunicacional de
um enunciado, classificam-no ora com base nas funções sociais, ora com base nas funções
da linguagem (A primeira tipologia lingüística foi a de Jakobson, ao propor a classificação
pela predominância de uma das funções, a saber: emotiva, conativa, referencial,
metalingüística, fática, poética). Portanto, com base nas funções sociais, a piada seria um
gênero lúdico, enquanto a conversa telefônica seria um gênero de contacto. Por outro lado,
85
se analisados quanto à predominância da função de linguagem, um trocadilho é
metalingüístico e a conversa telefônica, emotiva, caso encerre uma confissão, por exemplo.
Se, como vimos, a categorização dos gêneros pode oscilar, dependendo do
critério adotado, é inabalável a certeza de que “dominar vários gêneros de discurso é um
fator de considerável economia (op.cit.,p.63), até porque subjaz a esse domínio um
conhecimento mais amplo das práticas sociais. Portanto, quanto mais competentes formos
em termos de gêneros discursivos, melhor sea nossa comunicação. Além do mais, como
cada gênero prevê o domínio de uma série de normas e deveres, e até de uma rotina,
transgredi-los é uma forma de indiciar ao destinatário que, certamente, há mais informações
do que as explicitadas.
Buscando responder à questão da origem dos gêneros, Maingueneau faz
observações que para nós foram fundamentais. A primeira delas recupera o fato de que os
gêneros foram originalmente conceituados dentro do campo poético e literário,
desprezando-se, de certa forma, as outras produções verbais. Isso implica uma outra
constatação: as grandes obras literárias e poéticas funcionam como modelos e como
paradigmas para as que as sucedem. Contudo, se as atividades sociais estão em constante
evolução, os gêneros que as informam também estão. Disso decorre aquilo que
Maingueneau (op,cit.,p.65) denomina rotina, ou seja, a propriedade que permite aos
gêneros, sem filiação na tradição, se estabilizarem, embora sejam sujeitos a variações
constantes:
Em contrapartida, quando se trata não de obras singulares, mas de relatórios de estágio, de
reportagens esportivas televisionadas, de cursos universitários etc., não existe tal filiação a obras
consagradas: trata-se de rotinas, de comportamentos estereotipados e anônimos que se
estabilizam pouco a pouco, mas que continuam sujeitos a uma variação contínua. A arenga de
um camelô ou a redação de um fait divers seguem uma rotina, adaptada às circunstâncias; não se
baseiam em nenhum texto-modelo. Por outro lado, alguns gêneros muito ritualizados obedecem
a um modelo definitivamente estabelecido, do qual não é possível afastar-se (por exemplo, a
missa
) Maingueneau (2001:65, grifo nosso).
86
Se bem inferimos, tanto as rotinas (que entendemos como prenúncio de um
novo gênero) quanto os próprios gêneros incluem o estabelecimento de um contrato
comunicacional e, por conseguinte, regras e deveres entre os co-enunciadores. Desse modo,
tanto um gênero tradicional, quanto uma rotina estão sujeitos a modificações, embora
alguns gêneros sejam mais resistentes. À medida que um gênero se contamina com outro(s)
ele poderá originar uma nova rotina (ou pelo menos modificará aos poucos a anterior), que,
se estabilizada, constituirá um novo gênero? Temos a impressão de que a resposta é
positiva.
Aonde queremos chegar? O fato de as crônicas de José Simão se apresentarem
sui generis, se comparadas ao modelo das crônicas tidas por Antonio Candido como a
fórmula ideal, nos permite afirmar que houve uma mudança de gênero ou que a crônica é
ainda uma rotina em busca de estabilização? Se, como nos afirma Maingueneau, os gêneros
do discurso estão sujeitos a condições de êxito, a manutenção dessas condições significa
dizer que o gênero não se alterou? E mais: quais são tais condições?
Reiterando que os gêneros de discurso são atividades sociais, o autor destaca-
lhes as seguintes condições de êxito, a saber: a ciência da finalidade de um dado gênero por
parte do enunciador e do co-enunciador; o papel que cada um deve assumir; o lugar e o
momento da comunicação, o suporte material e a organização textual. Se exemplificarmos
com uma crônica de José Simão, diríamos o quê em relação ao reconhecimento da
finalidade de tal gênero jornalístico? Qual é o objetivo da crônica: fazer comentários
políticos? Narrar fatos sociais? Contar piadas? Informar? Polemizar? Divertir? Que papel
cabe a cada parceiro na co-enunciação?
A considerarmos as condições acima citadas, parece-nos que um diferencial
entre as crônicas tradicionais e as de José Simão se prende ao papel dos co-enunciadores,
ou seja, diz respeito ao contrato estabelecido entre cronista e leitor, até porque a efetiva
colaboração dos leitores é – inusitadamente – parte da organização textual de suas crônicas.
Tal colaboração (o próprio cronista a confessa) é comumente marcada pelo uso das aspas
ou pelo uso de expressões “introdutoras de narrativa”, como se lê nos exemplos:
87
E um amigo meu disse que está no espírito olímpico: ouro nos dentes e chumbo no pau
(15/08/2004).
E um leitor disse que o Rubinho é mais veloz que o Schumacher. Pra botar o macacão e
sair do carro! (20/10/2004)
E uma amiga me disse que o pingolim do marido dela é milionário: jamais fica duro.
(06/10/2004)
Um outro detalhe importante refere-se à diversidade de neros menores
presentes nas crônicas tais como piadas, adivinhas, provérbios, fofocas, cujo traço comum é
o fato de informarem as relações cotidianas, do que decorre o caráter eminentemente oral
deles e da própria crônica de José Simão. São os gêneros primários bakhtinianos. A este
propósito, convém salientar a distinção entre gêneros primários e secundários:
Importa (...) levar em consideração a diferença essencial existente entre o gênero de discurso
primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo). Os gêneros secundários do
discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, aparecem em
circunstâncias de uma comunicação social, mais complexa e relativamente mais evoluída,
principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de sua formação,
esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as
espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma situação verbal espontânea
(Bakhtin,
2000:280, grifo nosso).
Bastante elucidativo é o comentário feito por Charaudeau e Maingueneau
(2004:250), quando afirmam que a divisão gênero primário/secundário, proposta por
Bakhtin, parte de um ponto de vista comunicacional presente na troca verbal. De qualquer
88
forma, os autores reafirmam a relação dos gêneros primários à esfera da vida cotidiana, e os
secundários, à da literatura, à das produções elaboradas.
Diante do exposto a que conclusões poderemos chegar? Primeiramente, que a
crônica brasileira, nascida jornalística, ganhou em um determinado momento status
literário, sobretudo porque passou a ser escrita por autores que exerciam a função de
jornalistas. Em outras palavras: a nossa crônica jornalística, quando perpassada de lirismo,
torna-se literária. Se, como sabemos, o cômico foi sempre considerado um gênero menor,
perguntamo-nos o que ocorre se a crônica jornalística é contaminada pelo espírito cômico?
O que isso subsume: mudança de gênero ou de estilo?
Não nos parece difícil afirmar que José Simão, dadas as constantes inovações,
criou um tipo de crônica cujo estilo revela e anuncia mudanças no próprio gênero da
crônica jornalística escrita, até porque reproduz a forma de transmissão oral de notícias,
seguidas de comentários hilários, semelhante àquela praticada nas festas públicas pelos
bufões medievais. Com uma coincidência: as notícias, deboches e fofocas incluíam,
geralmente, os fatos do momento e os notáveis da corte. Observemos o texto que se segue:
BUEMBA! Buemba! Macaco Simão urgente! O braço armado da gandaia nacional! Direto
do Churrasco Grego! Ouro! Ouro para o Brasil! Robert Scheidt ganha ouro em vela! Nós
vamos ganhar ouro em iatismo, hipismo e onanismo. E vela é um esporte super popular no
Brasil, todo mundo pratica. Vela no Piscinão de Ramos! E com esse nome os gregos vão
pensar que o Brasil foi colonizado pelos vikings! (24/08/2004).
O papel do cronista como aquele que apregoa, jocosamente, as últimas notícias
é perceptível pelo intenso alarido que as expressões e bordões iniciais dos seus textos
sugerem, cujo efeito é acentuado pelo uso da caixa alta (BOMBA) e pela seqüência das
frases interjeitivas de pequena extensão, sobretudo antes de ser dada a notícia bombástica: a
primeira medalha de ouro do Brasil nas Olimpíadas (Robert Scheidt ganha ouro em vela!).
89
Obviamente, à notícia se seguem comentários irônicos (E vela é um esporte super popular
no Brasil, todo mundo pratica) e sugestão maldosa (Vela no Piscinão de Ramos!) que
subsumem o que Freud denomina deslocamento o que, de certa forma, obriga o leitor a
rever o texto: aquilo que parecia um alarido de alegria é, na verdade, uma manifestação
barulhenta, sim – mas de espanto!
com relação ao aproveitamento de gêneros menores, podemos citar a crônica
do dia 08/08/2004, por exemplo, que à moda de efemérides, estampa na manchete a sua
homenagem ao dia dos pais: Buemba! Hoje é dia do paitrocínio, cuja contaminação (pai+
patrocinador) nos permite entrever o estereótipo inverídico de que o pai é o chefe da
família, aquele que arca com as despesas da casa. A palavra pai será, pois, o mote para
vários assuntos da crônica, especialmente a crítica ao então ministro da Fazenda do governo
Lula, Antônio Palloci, o PAILOCCI (ou Palofi, concorde pronúncia presidencial):
E o pai do ano é o Palofi. Foi um pai para os bancos. O PAILOCCI! E o dia dos pais é tão
sem graça que nem tem muita piada!
O referido ministro, apesar de ser do partido dos trabalhadores, continuou a
política neo-liberal do governo anterior, do que decorre o epíteto: um pai para os bancos,
ou melhor, um “paitrocinador”, que é esta a função tradicional dos pais, segundo o
cronista. De qualquer maneira, um governo que patrocina os bancos é, certamente, o
padrasto dos trabalhadores: em suma, é pai do filho errado. De fato, o índice de desemprego
– para um governo que prometeu criar milhares de vagas – é assustador.
Um outro gênero, bastante comum, é aquele que associamos às adivinhas.O
enunciador interpela o leitor com perguntas que subsumem desafios, despertando-lhe a
curiosidade e a expectativa, como numa adivinha tradicional. Mas, diferentemente desta, a
resposta dada não tem, neste exemplo, relação lógica com a pergunta. A pergunta envolve
um script, no caso o das Olimpíadas, a resposta envolve outro, ou seja, a marcha dos sem
90
terra. Obviamente, o leitor co-enunciador conhece a rotina (segundo Maingueneau) e
aguarda a resposta que, provavelmente, deflagrará o humor.
E sabe quem vai ganhar ouro em marcha atlética? Um membro do MST! (11/08/2004)
Também se tornou constante, à época das eleições, a citação de slogans de
candidatos nas crônicas. A hilaridade de alguns é tamanha que a simples divulgação em um
jornal como a Folha de S. Paulo se nos afigura maldosa, não porque revela o engano do
candidato, mas porque torna nacionalmente blica a incompetência lingüística do mesmo.
De qualquer forma, tal divulgação parece ser um deboche a todo o processo eleitoral, visto
que reflete a condição intelectual de muitos dos nossos candidatos a cargos públicos.
E o candidato a prefeito de Aracati: “Com a minha e as fezes de vocês, vou ganhar a
eleição” (12/08/2004).
O hilário do slogan é que o candidato revela conhecimento de técnicas de
marketing o trocadilho costuma ser estratégia sedutora eficaz mas desconhecimento de
combinações simples da língua, no caso, o uso do plural. Além disso, se como assevera
Maingueneau (2001:171), “o slogan está associado, sobretudo, à sugestão e se destina,
acima de tudo, a fixar na memória dos consumidores potenciais a associação entre uma
marca e um argumento persuasivo para a compra”, poderíamos dizer que “o tiro saiu pela
culatra”: o produto, embora fixado na memória dos consumidores (ou até por isso),
provavelmente não será adquirido.
O gênero pichação é também reportado, desde que proporcione ao leitor o
prazer do riso:
91
E tem um candidato com a foto dele num jegue. escreveram: “O candidato é o de
cima!” (12/08/2004).
Embora uma das características das crônicas de José Simão seja a mescla de
textos seus com citações de textos alheios, o que lhes confere (às crônicas) um caráter
bastante fragmentário e uma aparente desorganização textual, é curiosa a colocação dos
dois slogans na mesma crônica e num mesmo segmento textual. A questão da
interdiscursividade se coloca claramente acima, pois à necessidade de o pichador esclarecer
quem era o candidato, corresponde uma visão ideológica (da elite) de que proliferam
candidatos pouco dotados intelectualmente (jegue), os quais não teriam competência
política.
Nesse sentido, o primeiro texto, aqui analisado (fé/fezes), ilustra a ideologia
imanente do segundo. Aliás, na crônica, a ordem é a inversa, o que pode significar um
reforço para a nossa interpretação, pois se trabalha com o raciocínio dedutivo: parte-se do
geral, já aceito, para o caso particular: a burrice (quase colocamos “jeguice”) do candidato a
prefeito de Aracati.
Poderíamos citar ainda a inclusão de trechos característicos de inúmeros outros
gêneros discursivos (não primários) tais como piadas, enquetes, notícias comentadas,
entradas de dicionário, mas supomos serem os exemplos dados, suficientes para que
constatemos o ineditismo das crônicas de José Simão. Contudo, apesar de a miscelânea de
gêneros lhes conferir um caráter acentuadamente fragmentário, a co-autoria, um caráter
inovador, e de ser a consecução do riso o objetivo maior do contrato estabelecido entre os
co-enunciadores, talvez seja ainda precoce dizer que estamos diante de um novo gênero.
Mas, de qualquer forma, não nos parece improvável dizer que o gênero crônica continua
em transição, transitoriedade (genérica) que fundamenta não só a famosa frase de Mário de
Andrade, a propósito do conto, mas a frase correlata, a propósito daquela:
92
Se “conto é tudo que chamamos conto”, como dizia Mário de Andrade, tal definição se aplica
ainda com mais propriedade à crônica moderna brasileira.
(In: Prefácio da obra Elenco de
cronistas modernos: 1974)
As palavras de Bakhtin (2000), para quem o estilo é parte constituinte de um
gênero, e para quem a mudança do primeiro implica mudança e renovação do segundo,
podem nos servir de aval. A inserção de gêneros primários como fator modificador e
transformador dos gêneros tradicionais é apontada no seguinte passo:
Quando a literatura, conforme as suas necessidades, recorre às camadas correspondentes (não
literárias) da literatura popular, recorre obrigatoriamente aos gêneros do discurso através dos
quais essas camadas se atualizam. Trata-se, em sua maioria, de tipos pertencentes ao gênero
falado-dialogado. D a dialogização mais ou menos marcada dos gêneros secundários, o
enfraquecimento do princípio monológico de sua composição, a nova sensibilidade ao ouvinte,
as novas formas de conclusão do todo, etc. Quando estilo, gênero. Quando passamos o
estilo de um gênero para o outro, não nos limitamos a modificar a ressonância deste estilo graças
à sua inserção num gênero que não lhe é próprio, destruímos e renovamos o próprio gênero
(op,cit., p.286).
2.4 - A VISÃO CARNAVALESCA DO MUNDO NAS CRÔNICAS DE JOSÉ SIMÃO
2.4.1 - O CÔMICO GROTESCO
Um outro aspecto, que a apresentação dos assuntos e temas usuais nos textos de
José Simão nos permitiu apreender, diz respeito ao próprio discurso do riso, já que a leitura
de algumas crônicas do corpus nos remeteu, intuitiva e imediatamente, ao espírito
carnavalesco tão bem analisado por Bakhtin na obra A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Buscar nos ensinamentos de Bakhtin
confirmar ou negar nossa intuição inicial é a tarefa a que nos dedicaremos a partir de agora.
Em tal obra, como vimos no primeiro capítulo desta tese, o pensador russo faz
uma análise profunda sobre o riso medieval e renascentista e critica a maneira como o
cômico grotesco,inerente à obra rabelaisiana, foi pouco entendido pelos críticos e
93
estudiosos dos séculos posteriores, que o analisaram sob prisma distorcido, uma vez que
desconsideravam o contexto que o forjara. Na realidade, os críticos desconheciam a
essência do cômico grotesco como elemento integrante da cultura e da vida popular
medieval.
Bakhtin (1996:28) frisa que realismo grotesco não se identifica com
“naturalismo grosseiro” e esclarece que o vocábulo grotesco se relaciona ao termo italiano
grotta (gruta), uma vez que, em escavações feitas nos subterrâneos das termas de Tito, em
Roma, no final do século XV, foram descobertas estranhas pinturas ornamentais.
Obviamente, tais pinturas foram consideradas surpreendentes e estranhas, porque
destoavam do equilíbrio clássico da época, conforme se depreende do seguinte passo:
Essa descoberta {a das pinturas ornamentais} surpreendeu os contemporâneos pelo jogo insólito,
fantástico e livre das formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e transformavam
entre si. Não se distinguiam as fronteiras claras e inertes que dividem esses “reinos naturais” no
quadro habitual do mundo: no grotesco, essas fronteiras são audaciosamente superadas
(Bakhtin,1996: 28).
O que importa ressaltar é que este ‘estranhamento’ inicial revestiu-se de um
caráter negativo que perdurou até a segunda metade do século XVIII quando, segundo
Bakhtin, ocorrem as primeiras tentativas que concretizam uma compreensão mais profunda
e mais positiva do grotesco. Na realidade, enquanto perdurou o reinado do cânon clássico, o
grotesco foi visto como estilo bárbaro, degenerescente.
De fato, tal avaliação sintetiza um erro crasso, que gerou, inclusive, a
incompreensão profunda que a obra de Rabelais sofreu ao longo dos séculos e que decorre
do que podemos afirmar ser a premissa básica desta obra bakhtiniana: “O cânon grotesco
deve ser julgado dentro do seu próprio sistema” (op.cit., p.26).
Partindo, pois, do pressuposto de que Rabelais foi pouco entendido pelos
críticos das gerações posteriores, principalmente porque estes desconsideravam e
desconheciam a exuberância cômica vital, que emanava das praças públicas medievais,
94
Bakhtin busca desvelar o realismo grotesco e, conseqüentemente, o próprio cômico
medieval, destacando-lhe duas características básicas.
A primeira delas diz respeito ao fato de que ele – o cômico grotesco – é
presidido pelo princípio material e corporal, ou seja, os elementos materiais e corporais
estão perfeitamente integrados ao cosmos e tal integração é altamente positiva. Disso
resulta que as imagens ligadas ao corpo, à satisfação das necessidades naturais sejam
relativas à comida, à bebida, à vida sexual estão em profunda consonância não com a
própria vida, mas com a própria morte já que ambas se completam, pois todo fim representa
a semente do recomeço, da renovação. Desse princípio resulta, também, o caráter alegre,
exuberante e festivo do realismo grotesco que não subsume a energia de um indivíduo
particular, mas a universalidade do povo, entidade coletiva, genérica.
A segunda delas reporta a concretude como seu traço marcante, ou seja, tudo
que é abstrato, espiritual, é rebaixado ao plano material e corporal, mas o rebaixar não tem
aqui valor negativo, ao contrário: é a aceitação cristalina de que os níveis corpóreos mais
baixos sintetizam não só a aproximação com a Terra, com a morte, mas com a própria vida
que a Terra também subsume e que, aliás, o baixo-ventre também representa. Essa
ambivalência inerente ao rebaixamento é fundamental para que se entenda o cômico
grotesco, que traz no seu bojo a idéia do devir, da renovação e - por que não dizer? - do
otimismo.
Apenas para ilustrar queremos destacar um exemplo dado por Bakhtin que nos
chamou sobremaneira a atenção porque tal exemplo é uma metáfora claríssima do realismo
grotesco. Referimo-nos às risonhas velhas grávidas, imagens grotescas, feitas em terracota
e que podem ser vistas no Museu l’Ermitage, em Leningrado, segundo o autor. A unidade
morte/nascimento, velhice/juventude que tais figuras subsumem, é acrescida da alegria que
o riso, que se lhes estampa nas caras, desvela. Enfim, uma síntese imagética bastante
adequada não porque personifica a ambivalência da vida (e da morte), mas
principalmente porque tal ambivalência é marcada pela alegria.
95
Curioso: é sobretudo nas caricaturizações ou descrições que José Simão faz de
personalidades notáveis que se revela com mais clareza a influência do cômico grotesco nas
suas crônicas.Vejamos a descrição que ele faz da apresentadora Ana Maria Braga, da rede
Globo, logo depois que esta se submeteu a uma cirurgia para aumentar os seios:
A Ana Maria Braga ficou parecendo um anão de jardim segurando duas melancias
(03/08/2004).
Que a imagem dada é grotesca é indiscutível, até porque disforme. Que a teoria
bakhtianiana pode explicar o grotesco desta imagem também. Primeiro, a estranheza
decorre do fato de um elemento do sexo masculino (anão) ter seios fartos, o que já nos
remete a um ser mutante. Segundo, a pouca estatura pode sugerir maior aproximação
com a terra e, portanto, a sugestão de morte (Aliás, parece ser senso comum de que, ao
envelhecer, diminuímos de tamanho). Mas, por outro lado, a presença do feminino, dada a
expressão duas melancias, metáfora de seios fartos, nos remete a um recomeço, ao início da
própria vida. Também o contraste entre a pequenez e a abundância bem como a falta de
limites nítidos entre o masculino e o feminino indicando o devir e a transformação - são
prototipicamente grotescos. E cômicos.
Interessante ainda é notar que as caricaturizações grotescas são disformes, são
deselegantes, mas não expressam tristeza, nem pessimismo. Ao contrário, nelas uma
primitividade pueril, bastante expressionista, exagerada, cuja essência alegre o ilustrador
das crônicas de José Simão tão bem consegue apreender: basta que observemos algumas
delas (vide anexos) para que tal afirmação se comprove. Verifiquemos ainda como as
descrições dos principais candidatos à prefeitura de São Paulo - feitas após o primeiro
debate televisivo entre eles - corroboram as nossas observações:
96
E a Martaxa? Ela parecia uma gata angorá sem bigodes. E foi bem simplesinha. Deixou a
perua em casa. Tava despossuída! (07/08/2004)
E a Erundina? A vovó Donalda. (....) Eu acho que ela devia desistir da candidatura e criar
uma banda de heavy metal chamada IRON DINA! (07/08/2004).
E o Brimo Maluf? O Maluf roubou a cena! Pra não perder o costume, ele roubou o show.
(....) O Steve Martin das Arábias! (07/08/2004).
E o Serra, o Vampiro Brasileiro? Ganhou no quesito Melhor Close: parecia foto de
passaporte tirada em cabine de shopping. Aquela que a luz estoura e o olho arregala. E
ainda por cima tem uma nuvem preta em cima da careca! E reparou que ele fala como
professor dando aula para classe vazia? Enfim, tava a cara da larva da dengue!
(07/08/2004).
Primeiramente, julgamos revelador o fato de todos os participantes, exceção
feita a Maluf, serem comparados a animais, o que indicia um certo rebaixamento. A então
prefeita Marta Suplicy, oriunda de família rica e tradicional de São Paulo, é descrita como
uma gata angorá à qual faltava uma característica essencial aos felinos: os bigodes.
Obviamente, a palavra bigode concentra uma alusão ao autoritarismo da prefeita, ao seu
“lado masculino”, pelo qual ela era sempre criticada e que, por razões políticas, não seria
conveniente que fosse tão “visível” em um debate.
97
Essa dualidade entre a aparência e a essência é reiterada na expressão tava
despossuída, aporque a candidata - sabidamente rica, elegante e extremamente vaidosa -
deixou a perua em casa, ou seja, a sua essência. Note-se que um felino sem bigodes
também não é completo, também está “despossuído”. A discrição e sobriedade do tailleur
branco com o qual a candidata se apresentara no debate deu azo a muitos comentários na
época: o modalizador simplesinha bem o revela.
Em suma, se para Freud (1996:1072) a alusão é talvez a estratégia mais comum
à elaboração dos chistes, acreditamos que ela é extensiva a todo o discurso do humor. O
termo, despossuída condensa, pois, uma dupla alusão: a primeira – já explicitada – é
referente à aparente simplicidade apresentada no debate e a segunda, ao objetivo que tal
falsa imagem buscava atingir, ou seja, uma maior identidade com o seu eleitorado que, se
acredita, sejam, de fato, os despossuídos.
Já a associação da candidata Luiza Erundina a uma pata velha, a Vovó Donalda,
personagem secundária de desenhos infantis, desvela total puerilidade, que se acentua com
a sugestão para que ela faça parte de uma banda de heavy metal. Ora, uma senhora pesada,
gorda e velha (a Vovó Donalda) participando de uma banda de heavy metal chega a ser
histriônico, beira o nonsense, mas não deixa de ser jocoso, até pela inversão proposta: uma
velha agindo como jovens é mote de várias comédias. Aliás, parece ser esta a avaliação do
cronista em relação a esta candidatura: anacrônica e risível.
ainda a brincadeira verbal contida na expressão IRON DINA
39
que, a nosso
ver, além de explorar a semelhança sonora com o nome da candidata, trabalha com o
significado que tal expressão, se traduzida, revela: se iron é palavra inglesa que significa
ferro, dino é, popularmente, a forma abreviada de dinossauro: uma dinossaura de ferro, ou
seja, uma IRON DINA. A ser plausível tal interpretação, tanto a candidatura anacrônica
quanto a figura pesada estarão jocosamente reforçadas.
39
É comum que José Simão destaque com caixa alta brincadeiras verbais que requerem mais atenção do
leitor.
98
Bem mais imediata é associação da expressão IRON DINA ao nome artístico de
uma famosa banda inglesa de metal pesado, surgida na década de 80: a banda Iron Maiden.
Curioso é o fato de que a expressão Iron Maiden, cuja tradução é Donzela de Ferro, pode
sugerir uma outra motivação semântica e, de novo, não muito bondosa para a escolha
feita pelo cronista: Luíza Erundina, além de ter aparência pesada, nada feminina (iron), é
solteirona (maiden) convicta.
De qualquer maneira, o candidato descrito de forma mais grotesca parece ser
José Serra que, numa dupla alusão, é comparado à larva da dengue o que nos remete não
à campanha nacional contra tal doença, instituída quando o candidato era ministro da saúde
do governo de Fernando Henrique Cardoso, mas também ao tamanho de sua cabeça, que
parece mais avantajada, devido à escassez de cabelos (uma nuvem preta em cima da
careca) e ao fato de o candidato ter perdido alguns quilos desde o início da campanha.
Ainda para mostrar, ironicamente, como o candidato ganhou no quesito Melhor
Close o que, de imediato, associa o debate a um desfile carnavalesco (tem gata sem bigode,
tem Vovó Donalda, tem a larva da dengue), o cronista exagera o tamanho e a expressão
espantada do olhar de Serra, associando-os àquelas fotos feitas, às pressas, em shoppings,
cujas máquinas tornam o fotografado mais feio do que é. Em suma, o candidato,
designado desde as últimas eleições como Vampiro Brasileiro, é quase totalmente careca, é
cabeçudo e tem olhos arregalados. (Realmente, o desenho do mosquito que ilustrou a
referida campanha contra a dengue era uma larvinha magra como toda larva com uma
enorme cabeça que, por careca, ressaltava os olhos. Enormes, por sinal).
Com respeito ao candidato Paulo Maluf, embora o cronista não tenha se servido
de imagens divertidas e estranhas para caracterizá-lo fisicamente, é inegável que ele
apreendeu outros traços, sobretudo aquele relativo à pronúncia estereotipada de
descendentes de turcos: brimos, ao invés de primos. Já a expressão roubar a cena e mesmo
roubar o show que, num primeiro momento, podem ser percebidos pelo leitor como um
elogio ao candidato, concentram - dada a insistência do verbo roubar - a real intenção do
autor: o roubo é para este candidato, um hábito (para não perder o costume). É óbvio que a
99
alusão conta com o conhecimento que o leitor tem, ou deve ter, sobre a idoneidade moral
do candidato, constantemente envolvido em denúncias sobre desvios de verbas públicas.
A citação de Possenti (2001:39) ressalta exatamente o trabalho de ida e vinda
realizado pelo leitor de uma piada, que tendo apreendido o duplo sentido de uma
ambigüidade, deflagradora do riso, deverá privilegiar o menos óbvio, em detrimento do
mais imediato:
Tipicamente, uma piada contém algum elemento lingüístico com pelo menos dois sentidos
possíveis. E o leitor não tem apenas que verificar quais são esses sentidos. Mais que isso, cabe-
lhe descobrir que, havendo mais de dois, o mais óbvio deles deve de alguma forma ser posto de
lado, e o outro, o menos óbvio, é aquele que, em sentido muito relevante, se torna dominante.
Há, ademais, a questão do epíteto atribuído ao candidato (Steve Martin das
Arábias), que se, por um lado, subsume a admiração do cronista pela performance do
candidato
40
, reportando-lhe também a origem, reforça, por outro, a idéia de que o debate
fora um show. Melhor dizendo: uma comédia, pois, como se sabe, Steve Martin é artista
cômico famoso. De qualquer forma, se nos ativermos às descrições feitas dos participantes
não é improvável afirmar que tal comédia parece ser destinada ao público infantil, ou a
eleitores que são assim considerados pelos candidatos, na avaliação do cronista.
Importa ainda notar que o rebaixamento inerente à descrição dos participantes –
uma vez que foram associados a animais – não envolve qualquer tom de tristeza ou
pessimismo. Ao contrário, é brincadeira, é nonsense, é quase fábula, é pura alegria.
Interessante que é justamente essa alegria – inerente ao cômico grotesco - que os estudiosos
do riso desconheceram. Isso explica porque o mico romântico e o moderno se tingiram
de pessimismo. Na realidade, estes movimentos desconheceram a essência do cômico
medieval e por isso foram incapazes de analisar o riso de Rabelais de forma adequada.
40
algumas expressões locativas que encerram avaliações positivas, por exemplo: negócio da China, ser
das Arábias.
100
Ainda sob a perspectiva bakhtiniana, o grotesco romântico ou, melhor dizendo,
a visão dos românticos sobre o grotesco exclui a alegria e inclui o temor, justamente porque
considera a vida instintiva como inferior, negando dessa forma o princípio básico do
realismo grotesco: a valorização do aspecto material e corporal. De fato, o grotesco
romântico é solitário, é pessimista; pode ser libertador, mas nunca regenerador. É ausente
nele a visão festiva e carnavalesca da existência, constituinte do realismo grotesco, a qual é
indissociável das festas populares, das feiras das praças públicas, nas quais o povo
transgredia as duras normas da vida social, como se a vivesse às avessas.
Não é essa reversão saudável, não é essa atitude de virar o mundo às
avessas que se patenteia no tratamento dado por José Simão aos candidatos? As eleições
são um show e os candidatos passam a ser seus motivos carnavalescos. O mundo oficial foi
virado, via humor, de ponta cabeça.
Também para Bakhtin (1996), o próprio motivo da loucura, grotesco por
excelência porque ambivalente, é tratado de forma distinta pelos românticos. Se “no
grotesco popular, a loucura é uma alegre paródia do espírito oficial” (op.cit., p.35), para os
românticos ela é responsável pelo isolamento do indivíduo, sendo, pois, sombria. Parece-
nos, portanto, que a alegria que emana das crônicas de José Simão, haja vista as descrições
analisadas anteriormente, decorre exatamente da falta de sensatez, da reversão da realidade
em fábula e fantasia, ou seja, do espírito paródico.
Bakhtin destaca ainda como o motivo das máscaras, essencialmente dual e cuja
origem popular se perde na história da humanidade, apresenta diferenças substanciais de
tratamento. Se, no grotesco popular, ela é o próprio símbolo da metamorfose e da
possibilidade de novas vidas, para os românticos ela, por vezes, dissimula um vazio
existencial e o nada. A propósito do motivo das máscaras, que Bakhtin reputa como o de
maior complexidade simbólica dentre os inúmeros outros da cultura medieval, o trecho que
se segue é elucidativo, sobretudo porque revela as inúmeras faces com as quais tal
complexidade se apresenta:
101
O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável. Basta lembrar que manifestações como a
paródia, a caricatura, a careta, as contorções e as “macaquices” são derivadas da máscara. É na
máscara que se revela com clareza a essência profunda do grotesco
(op.cit., p.35).
Torna-se imperioso anotar nesse ponto que, à medida que mergulhávamos na
teoria bakhtiniana, a nossa impressão inicial, ou seja, a de que as crônicas de José Simão
têm muito de realismo grotesco, foi se tornando cada vez mais consistente. Talvez tenha
sido por isso que o motivo das máscaras de imediato nos despertou a atenção, uma vez que
não apenas José Simão se auto-denomina macaco Simão, mas principalmente porque ele
assume “tal máscara” e macaqueando, imita, caricaturiza e parodia a realidade observada.
Tudo de forma rápida, por meio de comentários curtos e sempre variados, como se pulasse
de galho em galho. O mais interessante é que o macaco ri (atitude humana), instaurando
assim a ambivalência, inerente ao grotesco e inerente à mascara que o expressa.
Vale citar aqui o trecho de J.Almeida (1998:15), que talvez subsuma o que
afirmamos a propósito dos alvos e das macaquices presentes nos textos de José Simão:
De gargalhada em gargalhada, o Macaco Simão atira na cabeça de personagens que figuram o
panorama político, social e televisivo nacional, enquanto vira cambalhotas e piruetas enlaçadas
pelo rabo. Atira em todos aqueles que passam debaixo de sua árvore; em alguns acerta, mas
outros tiros se perdem apenas no exercício de atirar. Afinal, as colunas são diárias.
Aliás, a própria superfície textual das crônicas revela este macaquear contínuo e
a mudança constante dos alvos que JoSimão busca atingir, principalmente pelo uso de
enunciados que, iniciados pelo conector aditivo E seguido de novo sujeito-alvo, sugerem o
pulo para um novo assunto, um novo galho. É o que se observa, por exemplo, no trecho da
descrição dos candidatos à prefeitura, citado anteriormente, trecho no qual a forma
interrogativa, usada retoricamente, envolve e desperta a curiosidade do leitor, que fica na
expectativa do comentário cômico, jocoso: E a Martaxa? E a Erundina? E o brimo Maluf?
E o Zé Serra, o Vampiro Brasileiro?
102
Mas voltemos ao grotesco medieval que, segundo Bakhtin, é indissociável das
festas populares que grassavam na Idade Média. É mister frisar que a concepção que
possuíamos sobre a vida medieval sofreu uma reviravolta, pois aquela visão corrente de que
a Idade Média correspondera a uma época obscura, marcada pelo ascetismo e pela
sobriedade, revelou-se-nos equivocada. Desconhecíamos a alegria exuberante e libertária
das suas festas. Bakhtin reporta algumas delas: a festa do asno, a dos loucos, a do riso
pascal e conhecê-las é, indubitavelmente, uma forma de melhor compreendermos a cultura
que as forjou e o riso que delas emana.
2.4.2. AS FESTAS MEDIEVAIS E A VISÃO CARNAVALESCA DO MUNDO
Uma das características dessas festas medievais, conforme já pudemos anotar, é
o uso das fantasias, que também subsume uma possibilidade de renovação, ou de inversão
da hierarquia vigente: bufões eram travestidos e sagrados como reis; bispos e papas, reis e
rainhas eram eleitos (e fantasiados) com o intuito de despertar o riso. Essa inversão
hierárquica segundo a qual o alto e o baixo se alternam se reflete inclusive no uso invertido
das roupas: as roupas o usadas do avesso, as peças de baixo são colocadas na cabeça.
Simbolicamente, uma nova ordem se estabelece no transcurso de tais festas.
Na verdade, essa inversão benfazeja, realizada pelo riso, é essencialmente
parodística: tudo que é oficial, tudo que é temido, pode-se tornar cômico, inofensivo. O
bufão desautoriza o que é oficial, contando tudo de forma jocosa; os trechos e sentenças do
Velho e Novo Testamentos ganham tradução maliciosas, ligadas ao baixo material e
corporal; obscenidades, grosserias vêm naturalmente à tona, parodiando de forma chã
expressões de usos mais formais.
Esses exemplos típicos mostram como se procuravam as analogias e consonâncias, mesmo as
mais superficiais, para travestir o sério e obrigá-lo a tomar ares cômicos. Por toda parte, no
sentido, na imagem, no som das palavras e dos ritos sagrados, procurava-se e encontrava-se o
calcanhar-de-aquiles que permitisse convertê-los em objeto de derrisão, a particularidade, por
mínima que fosse, graças à qual se estabelecia a relação com o “baixo” material e corporal
(Bakhtin,1996:75).
103
Essa vocação parodística é, pois, constitutiva do cômico grotesco medieval. O
mundo é virado do avesso e uma nova ordem, universal e libertária por excelência, se
estabelece. Nas palavras de Bakhtin: “Para os parodistas, tudo, sem a menor exceção, é
cômico; o riso é tão universal como a seriedade; ele abarca a totalidade do universo, a
história, toda a sociedade, a concepção do mundo” (op.cit.,p.73).
É imprescindível, diante do exposto, que algumas analogias sejam feitas. A
primeira delas centra-se na oposição mundo sério x não-sério, que o cômico grotesco
desestrutura. Parece-nos, pois, que a total liberdade presente nas crônicas de José Simão
encerra uma atitude do Jornal Folha de S. Paulo que pode ser, grosso modo, comparada
àquela atitude que a Igreja Católica revelava, quando permitia a realização de festas
profanas no seu interior.
Obviamente, tal grau de liberdade jornalística pode redundar em alguns
problemas e, à semelhança das festas medievais, que foram sendo proibidas ao longo de
séculos, não somente em virtude da mudança de paradigma ideológico, mas até porque
causaram problemas, o jornal respondeu inúmeros processos por difamação. Mas não é
este o fato mais importante. O que importa destacar é a subversão, esta, sim, essencialmente
grotesca que a coluna de José Simão concretiza, principalmente ao rebaixar personalidades
do mundo oficial e sério (ao menos em tese) via parodização.
A consecução desse rebaixamento catártico exige não a observação atenta do
contexto político-social, com o fito de comicizá-lo, mas uma linguagem livre do
cerceamento formal, típico dos outros espaços do jornal, e livre dos tabus lingüísticos,
especialmente os lexicais. Tudo que se refere ao baixo material, à sexualidade poderá vir à
tona sem restrições: não o que recalcar. Não se estranhe, portanto, a presença constante
de vocábulos chulos, bem como a reprodução de slogans dos candidatos à vereança e à
prefeitura, sobretudo aqueles cujos referentes por igualdade ou semelhança sonora -
reportam-nos ao campo da sexualidade:
104
E em Araranguá, Santa Catarina, tem o candidato Pinto como slogan: “Não deixe o Pinto
na mão”. É a pornocampanha! (05/08/2004).
E em Tupaciguara, Minas, tem um candidato chamado Kundum, com o trepidante slogan:
“ Não enfie seu voto em qualquer um, enfie em Kundum” (1º/09/2004).
Temos a impressão de que o que se nos afigurara inicialmente como intuição
resta comprovado: as crônicas de José Simão são, na essência, grotescas, pois recuperam
características inerentes ao cômico medieval: são parodísticas por excelência, procedem a
inúmeros rebaixamentos, exploram a linguagem e as comparações ligadas ao baixo
material e corporal. Expressam, acima de tudo, uma visão alegre e carnavalesca, cujo
alarido e exuberância desregrada nos remetem às festas populares medievais. Representam,
de forma análoga ao papel que as festas medievais desempenhavam na vida medieval, um
espaço no jornal, em que a transgressão e a liberdade adquirem conotação catártica,
sancionada apenas pela alegria.
De qualquer forma é mister frisar tal paralelo não descarta a ciência de que,
se o grotesco medieval foi sistematicamente rejeitado porque “julgado” fora do seu
contexto, como bem nos revelou Bakhtin (1996) – é inegável que o espírito carnavalesco e
paródico que lhe é inerente, não se circunscreveu à época medieval. Aliás, a possibilidade
do diálogo entre a cultura medieval e a das fases subseqüentes é uma vertente
extremamente rica da contribuição bakhtiniana: quando se ilumina uma época, todas as
demais ganham novas nuances e geram novas perspectivas.
Buscar, pois, entender como a parodização inerente ao grotesco medieval
reaparece e informa outros movimentos artísticos e culturais, com o fito de reforçar as
analogias estabelecidas, levou-nos a um resgate do próprio Surrealismo. As razões que
105
motivaram este percurso foram inspiradas pelas afirmões de Martins (1995:23) que
podem ser aferidas no seguinte trecho:
À imagem do que aconteceu com períodos literários pretéritos, com destaque para o Barroco, a
poética surrealista apresenta-se, em nosso entender, como a vanguarda onde mais floresceram as
manifestações parodísticas, nas suas mais variadas modalidades – Paródias de textos individuais,
Paródias de códigos e convenções que regem os gêneros e os modos literários; e, finalmente,
Paródias de determinados discursos sócio-culturais ou ideológicos.
Aliás, suspeitamos ser praticamente impossível, nos dias atuais, compreender o
discurso humorístico e talvez, a partir de agora, o próprio discurso surrealista sem nos
reportarmos a Bakhtin. A citação de Martins (op.cit., p.227) confirma essa nossa suspeita:
A compreensão do discurso surrealista é, em nosso entender, codificada por uma retórica
carnavalesca (ou gramática paródica, de que também fala Bakhtine) que se manifesta, dum
modo genérico, na inversão de várias formas de discursos hegemônicos.
Isto posto, parece que nos compete agora duas tarefas essenciais. A primeira diz
respeito à necessidade de resgatarmos alguns pontos teóricos concernentes ao conceito de
paródia. A segunda se prende à própria associação fundadora deste item: recensear as
técnicas e estratégias lingüísticas integrantes da paródia surrealista portuguesa levar-nos-á,
por certo, a uma visão mais abrangente do espírito parodístico presente nas crônicas de José
Simão.
2.5 - PARÓDIA, PARÁFRASE & CIA
Historicamente, o termo paródia se liga ao cômico, que durante culos ficou
estigmatizado como um gênero pouco nobre, considerado por muitos um sub-gênero.
Segundo Aristóteles (in Poética), Hegemenon de Thaso, no século V a.C. foi quem deu
origem à paródia, quando inseriu em um texto, pretensamente épico, homens comuns, sem
qualquer heroicidade.
106
Associá-la também ao interlúdio cômico que ocorria entre atos de um drama ou
tragédia, minimizando catarticamente as agruras da condição humana que nestes eram
representadas, é ainda manter-lhe a condição de gênero inferior. Aliás, a própria etimologia
da palavra paródia parece reafirmar a sua condição parasitária e marginal. Paródia é uma
ode que se faz ao lado de outra ode (para ode) principal. Pode ser entendida como um
contracanto.
Embora seja tão velha quanto o próprio fazer literário, apenas modernamente,
sobretudo a partir de Bakhtin, o seu caráter híbrido, simultaneamente destrutivo e
regenerador, foi entendido. Genette, citado por Martins (1995), por exemplo, diante da
escassez das referências aristotélicas
41
, propõe o seguinte quadro para a distribuição dos
gêneros aristotélicos e preenche a quarta casa, a casa vazia”, justamente com a paródia.
Observemos:
Modo
Objecto
Dramático
Narrativo
Superior Tragédia Epopéia
Inferior Comédia ? Paródia
A respeito deste preenchimento, o comentário de Martins (1995:41) merece,
pela pertinência, ser citado:
Num ensaio intitulado Introduction à l’Architext, G.Genette (1979) elabora uma bem
fundamentada reflexão - embora não isenta de reparos (....) - sobre a teoria dos modos literários
e dos seus quatro tipos de imitação (géneros). Apesar de reconhecer que o modo narrativo
inferior é um “genre plus mal déterminé”, e que, embora fosse ilustrado com várias obras
literárias, não chegou a se nomeado por Aristóteles, G.Genette (1979:19) não hesita em
preencher a “casa vazia” com o gênero paródico, esquematizando assim o sistema aristotélico
dos gêneros”.
41
Como vimos, na página 18, o segundo livro da Poética nunca foi encontrado.
107
O que nos parece interessante no quadro apresentado por Genette é que ele
contempla tudo o que foi afirmado acima sobre a origem da paródia: gênero inferior
surgido de uma “degradação” do gênero épico, provavelmente uma narração cômica.
ao conceituar a hipertextualidade como a relação entre um texto derivado
por transformação ou por imitação – e o texto derivante, Genette (apud Martins, op., cit., p.
43), afirma que isto pode ocorrer privilegiando-se uma das seguintes intenções, ou
regimes: a lúdica, a satírica, a séria. Ademais para ele – e isto nos pareceu o mais curioso–
a paródia é uma transformação lúdica por excelência! Com um adendo: relativa a textos
curtos, breves (A visão é, obviamente, estruturalista).
Reproduzimos a seguir o quadro das “práticas hipertextuais genettianas” (apud
Martins, op.cit., p.43) não só para que o leitor observe o grau de detalhamento a que chegou
Genette, mas também para que constate a questão que nos tem intrigado: a paródia não tem
para este autor natureza necessariamente cômica, conforme propusera Bakhtin (1996).
Regime
Relação
Lúdico Satírico Sério
Transformação Paródia Travestissement Transposition
Imitação Pastiche Charge Forgerie
Esta relação entre paródia e cômico intrínseca e inquestionável a nosso ver
é apontada por Sant’Anna (2004:9) quando destaca a importância social e literária da
“teoria da carnavalização” bakhtiniana:
Preocupado em caracterizar os efeitos cômicos de diversas obras literárias, ele {Bakhtin} acabou
extrapolando e em vez de se limitar apenas ao estudo da paródia, acabou dando uma grande
contribuição aos estudos socioliterários modernos, formalizando os princípios básicos da teoria
da carnavalização
(grifos nossos).
Além de reiterar o papel fundamental de Bakhtin para o estudo da paródia,
Sant’Anna (op, cit., p.9), chama a nossa atenção para a contribuição de um outro formalista
108
russo Iuri Tynianov que, 10 anos antes de Bakhtin, se debruçara sobre tal estudo.
Embora Bakhtin nunca tenha citado Tynianov “mistério” que para Sant’Anna pode ser
explicado pela violenta censura existente na Rússia à época
42
a coincidência entre os
estudos de ambos é notória: “tanto Bakhtin quanto Tynianov trabalharam apenas com os
conceitos de paródia e estilização”.
Como a tese de Sant’Anna parte do princípio de que uma relação contrastiva
não só entre paródia e paráfrase bem como entre estilização e apropriação e, ademais, que
estabelecer oposições é uma forma de melhor revelar a tipicidade de cada um desses
conceitos (“ ...o conceito de paródia poderia ser devidamente trabalhado quando posto
em tensão com o conceito de paráfrase”)
43
, o autor propõe, inicialmente que a estilização é
comum a ambas, ou seja: se a estilização é favorável ao texto matriz, ocorre a paráfrase; se
contrária, a paródia. Sob esta perspectiva, paráfrase e paródia são efeitos que podem
redundar da estilização, esta, sim, uma técnica.
O quadro abaixo (Sant’Anna, op.cit.,p.36) permite-nos visualizar este modelo
triádico. Confirmemos.
(1)
Texto original
(2) (3)
Paráfrase.............
...............................................................................Paródia
Pró _________________Estilização ___________________ Contra
Frisando que este primeiro modelo representaria uma contribuição para a
proposta diádica de Tynianov e Bakhtin, Sant’Anna discute os três conceitos
apresentados, considerando-os, agora, sob o ponto de vista do desvio que eles representam.
Dentro desta nova perspectiva, se o desvio mínimo, em relação ao texto original, identifica
42
O próprio Bakhtin lançou mão de pseudônimos como forma de fugir à censura.
43
Embora Sant’Anna (2004:16) esteja se referindo a um ensaio sobre o Modernismo, feito em 1972, a
premissa é recorrente em outras obras do autor, inclusive nesta, que nos serve de referência.
109
a paráfrase e o desvio total, a paródia, um desvio tolerável caracteriza a estilização. A
estilização não mais subsume a linha divisória entre paráfrase e paródia, conforme a direção
que ela tome (considerando-se o modelo anteriormente dado), mas uma possibilidade de se
introduzir um tratamento pessoal no discurso (op.cit., p.39), sem que este desvio
descaracterize o texto original.
Na verdade, a estilização não sufoca a individualidade de quem “traduz” o texto
original: o novo texto tem as marcas do tradutor, sem perder as marcas originais. O
exemplo, no campo da música, talvez seja providencial, visto que é bastante comum que se
façam arranjos vários para a mesma música. Qual a condição fundamental para que a
estilização não se torne paródia? Que o texto original seja perceptível, apesar das
intervenções criadoras. Ou seja; que o desvio seja tolerável. A síntese de Sant’Anna em
relação aos três conceitos é brilhante:
De um outra maneira ainda poderíamos dizer: a diferença entre esses termos está em que a
paródia deforma, a paráfrase conforma e a estilização reforma (...).Sem dúvida, a paródia
deforma o texto original subvertendo sua estrutura ou sentido. Já a paráfrase reafirma os
ingredientes do texto primeiro conformando seu sentido. Enquanto a estilização reforma
esmaecendo, apagando a forma, mas sem modificação essencial da estrutura.
(Sant’Anna,
2004: 41)
A diferenciação feita com base na amplitude do desvio leva Sant’Anna à
percepção de que a paráfrase e a estilização fazem parte de um conjunto que se opõe à
paródia. Tal percepção integra o terceiro modelo proposto pelo autor, modelo este que
contempla o conceito de apropriação, de entrada relativamente recente nos estudos
literários, visto que sua origem ocorreu nas artes plásticas. Sant’Anna o associa à técnica da
colagem, também chamada assemblage (ajuntamento, reunião), que, na realidade, subsume
um recurso antiqüíssimo em arte, ou seja, o do deslocamento.
Embora estejamos cientes de que o conceito de apropriação se liga, de início, às
artes plásticas em geral, parece-nos - e arriscamos uma opinião - que o deslocamento pode
ser, grosso modo, também associado a um desvio verbal. O próprio Sant’Anna (op. cit., p.
110
44), após ilustrar como a técnica da assemblage aparece em quadros e esculturas modernas,
esclarece:
Ora, essa técnica artística tão moderna, na verdade usa de um artifício velhíssimo na elaboração
artística: o deslocamento. Deslocamento que está muito próximo daquele estranhamento e do
desvio de que falamos anteriormente no princípio deste trabalho. Tirado de sua normalidade, o
objeto é colocado numa situação diferente, fora do seu uso.
A respeito deste artifício que corresponde, possivelmente, àquilo que Hobbes
classificava de insólito ou de inédito e que julgava fundamental para gerar o riso, A.Martins
(2003), servindo-se de um filme de Dali, não exemplifica tal conceito, mas reitera a
perspectiva hobbesiana na medida em que também faz a associação deslocamento/riso,
conforme se depreende no texto:
Na verdade, colocar o objeto fora de seu lugar devido é um dos principais recursos do humor,
algo assim como um guarda-chuva dentro de uma geladeira ou, como bem realizou Salvador
Dali, uma vaca dormindo numa cama, dentro de um quarto bem mobiliado. O deslocamento, a
coisa fora do lugar convencional, mas colocada em outro que instigue o nosso pensamento, faz
rir. (
A. Martins, op.cit., p.59)
De qualquer forma, tanto Sant’Anna (2004) quanto A.Martins (2003) ainda
estão no campo das artes plásticas, pois se referem à colocação de objetos em lugares
indevidos. A nossa questão reside no fato de que talvez possamos entender como
deslocamento a colocação, na seqüência lingüística, de uma palavra indevida, ou a emissão
de uma resposta inesperada que, dada a estranheza, motivariam o riso.
Dentro desta perspectiva, o deslocamento é uma estratégia constante no discurso
do humor, sobretudo pelo seu potencial lúdico, de mudança de rota: o leitor espera algo e
ocorre o inesperado. O próprio jogo entre o modo bona fide e non-bona fide, típico do
humor, sintetiza, a nosso ver, um deslocamento: o leitor/ouvinte pensa que é uma coisa, e é
outra; está num modo de comunicação e tem que se deslocar para outro; quando pensa que
está sendo enganado, descobre que tudo pode ser verdade, principalmente se considerarmos
as críticas sociais a que o humor, por vezes, procede.
111
Aguilera (2004), em um artigo no qual comenta a biografia do cineasta Billy
Wilder (1906-2002), reporta-se à cena final do filme Quanto mais quente melhor em que a
personagem representada por Jack Lemmon, ainda disfarçado de mulher, revela ao
milionário, que por “ela” se apaixonara, a sua real identidade sexual: travestira-se de
mulher apenas para fugir da Máfia. A resposta “Ninguém é perfeito”, dada pelo milionário
apaixonado, encerra, a nosso ver, um claro exemplo de deslocamento, devido à total
imprevisibilidade da resposta, cujo efeito é, inevitavelmente, a geração do humor.
Ainda no mesmo artigo e a propósito da verve humorística que contaminava até
os artistas que trabalhavam sob a direção de Wilder, Aguilera (2004) reproduz um caso
contado por Ray Milland, que protagonizou Farrapo Humano, em 1945. Tal caso, a nosso
ver, também serve como ilustração de deslocamento verbal. O ator conta que recebera uma
correspondência de um fã com os seguintes dizeres:
Caro sr. Milland, sou fã devotado de cinema e alcoólatra crônico. Nunca fui tocado
por qualquer filme como fui por “Farrapo Humano”. Depois de ver seu retrato
magistral de um bêbado nesse filme, resolvi abandonar o ... cinema.
Se nos voltarmos para as crônicas de José Simão, veremos que a estratégia que
estamos designando como deslocamento verbal é responsável por inúmeros efeitos de
humor e, basicamente, subsume uma inesperada mudança de script. É o caso, por exemplo,
do trecho em que o cronista noticia e comenta as propostas de Paulo Maluf, apresentadas no
debate televisivo ocorrido entre os candidatos à prefeitura paulista:
E ele disse que vai acabar com a taxa do lixo, a taxa da luz e a taxa do motoboy. E a taxa
do colesterol? Se ele acabar com a taxa do colesterol, eu voto nele! (07/08/2004)
112
Para ridicularizar o excesso de promessas do candidato aliás todas as taxas
citadas (lixo, luz e motoboy) foram impostos criados na gestão da prefeita Marta Suplicy
o cronista aventa a possibilidade (ou a impossibilidade?) de que o candidato prometa acabar
com uma taxa de natureza totalmente diversa, que nada tem a ver com tributos: a taxa do
colesterol. Obviamente, esse deslocamento semântico, pelo inesperado, gera o riso e, além
do mais, insinua que, para ganharem votos e serem eleitos, candidatos são capazes de tudo
prometer. Até absurdos. Lembremo-nos de que absurdos e alogismos são fortes aliados do
humor.
Isso posto, voltemos ao conceito de apropriação que, concorde Sant’Anna
(2004), encerra uma radicalização da paródia. Se, portanto, a relação entre paráfrase e
paródia é de oposição, isto é, a primeira é um pró-estilo, a segunda, um contra-estilo, a
relação entre paródia e apropriação envolve gradação. As palavras de Sant’Anna
(op.cit.,p.46) servem-nos de endosso:“se o autor da paródia é um estilizador desrespeitoso,
o da apropriação é o parodiador que chegou ao seu paroxismo”. Segue-se o terceiro
modelo, conforme desenhado na página 47, da obra em questão:
Conjunto das similaridades Conjunto das diferenças
Cientes de que os três modelos não são definitivos e que suas aparentes
contradições refletem abordagens que priorizam critérios distintos, buscamos, com base nas
proposições de Sant’Anna, elaborar um paralelo entre paráfrase e paródia. Nele não haverá
preocupação em distinguirmos estilização e apropriação, visto que as entendemos como
gradações, consoante o terceiro modelo proposto. Ei-lo:
Paródia
Apropriação
Paráfrase
Estilização
113
X
Paráfrase
Paródia
- mantém o paradigma dado -inaugura um novo paradigma
- intertextualidade das semelhanças -intertextualidade das diferenças
- reforça o existente - deforma o existente
- é jogo de espelhos: é tautológica - é espelho invertido: cria novas
perspectivas
- continua a ideologia dominante - interrompe/reverte/contesta a ideologia
dominante
- efeito de condensação (“resume” o texto
dado)
- efeito de deslocamento (subverte o texto
dado)
- fala do mesmo, reproduz a voz do outro - contesta a voz do outro (pode até anulá-
la na apropriação)
Na realidade, conforme verificamos, se o espírito paródico emana das
crônicas de JoSimão, detectar como ele se concretiza/realiza textualmente é essencial. E
foi justamente esse voltar-se para o corpus que gerou a necessidade de tal paralelo. Diante
de trechos, como os que se seguem, muitas dúvidas surgiam: estávamos diante de textos
parafrásticos ou paródicos? Aliás, as crônicas de José Simão parafraseiam ou parodiam o
quê? Vejamos:
E o candidato Danilo Dávila, de Curitiba, teve zero voto. Ou seja, nem ele votou nele. Teve
um surto de consciência. (05/08/2004)
E diz que o Serra Vampiro Anêmico ta sendo chamado de Gangorra: onde ele senta
todo mundo levanta. (12/10/2004)
114
Diz que a Marta vai ser processada por propaganda enganosa. Ela está com 15 anos no
outdoor. (27/10/2004)
E um leitor mandou uma idéia digna do Duda Mendonça para alavancar a campanha da
Marta: contratar o Agourão Bueno para transmitir a campanha do Serra. ele chega em
segundo lugar! Rarará! (08/10/2004)
Estratégia comum para a criação do humor são os comentários maldosos,
muitas vezes, feitos sob forma de paráfrases, o que acentua o humor neles contido, visto
que uma paráfrase é, em tese, um recurso para a correção do enunciado dito anteriormente.
Paráfrases maldosas são ainda paráfrases ou são paródias? A valer o paralelo proposto,
torna-se fácil afirmar que estamos diante de paródias parafrásticas? Ou de paráfrases
parodísticas? Uma outra dúvida, que remanesce: a paródia não tem, necessariamente,
natureza mica, derrisória? E mais: a intertextualidade, característica essencial da paródia
não pode ser extratextual?
2.6- PARÓDIA E COMICIDADE
Martins (1995:61-3), após extenso levantamento bibliográfico, propõe alguns
traços definidores da paródia, sintetizando-lhe as principais características semântico-
pragmáticas. Uma primeira diz respeito à natureza intertextual da paródia, que implica,
necessariamente, a existência do texto parodiado para que haja o texto parodiante. Uma
outra característica envolve a sua natureza parasitária, uma vez que a Paródia desfigura
os textos ou obras que tomou (´roubou’) para alvo de seu discurso derrisório, alimentando-
se, textofagicamente, de textos originais anteriores que manipula, reescreve, degrada”
(op.cit.,p.62) (grifo do autor).
A grande questão ou a grande dúvida que as constatações de Martins fizeram
emergir em nosso espírito diz respeito à intencionalidade da paródia, pois é justamente
neste ponto que o autor aborda aquilo que, linhas acima, antevíamos como polêmico, e
que pode ser assim colocado: a intenção cômica integra a natureza da paródia? De fato, o
115
próprio Martins (p.63) refere-se à controversa questão do ethos paródico e buscará analisá-
la, em consonância com a perspectiva pragmática adotada.
Martins (op.cit., p.54) faz, então, menção à teoria ecumênica da paródia,
defendida por Linda Hutcheon, autora que, segundo ele, propõe um alargamento do ethos
paródico moderno, que não deve ficar restrito à derrisão cômico-satírica, como sempre nos
pareceu. Aliás, o próprio Martins reafirma o consenso existente entre os atuais estudiosos
de que entre a paródia e o cômico não uma relação necessária: “a Paródia não implica
necessariamente a presença do cômico”. (op.cit.,p.63)
Hutcheon (1989
)
insiste, ao longo de toda a sua obra, na distinção entre paródia
e sátira. Destacando que a ironia tem uma dupla função - a semântica e a pragmática - a
autora propõe que, apesar de a ironia ser comum tanto à sátira quanto á paródia, é da não-
diferenciação destas funções que decorre a confusão entre sátira e paródia, conforme se lê:
Mas este contraste semântico entre o que é afirmado e o que é significado não é a única função
da ironia. O seu outro papel de importância maior a nível pragmático é freqüentemente
tratado como se fosse demasiadamente óbvio para justificar discussão: a ironia julga. Contudo,
nesta ausência de diferenciação entre as duas funções parece-me residir uma outra chave da
confusão taxionômica entre paródia e sátira
(op.cit.,p.73).
Mais adiante, baseada ainda na ironia como tropo de dupla função, a autora
busca esclarecer a diferença (para nós ainda nebulosa) entre sátira e paródia. Ou melhor,
busca dirimi-la, ao afirmar que a afinidade da ironia com a paródia se realiza no nível
estrutural (semântico, intertextual), ao passo que, com a sátira, a afinidade se no nível
pragmático:
Por outras palavras, nestas duas funções diferentes, embora obviamente complementares, do
tropo retórico da ironia poderia residir essa outra chave da confusão terminológica entre paródia
e sátira. Visto que ambas se servem da ironia, ainda que por meio de afinidades diferentes (uma
estrutural, a outra pragmática), são com freqüência confundidas uma com a outra. Isto à
ironia uma importância crucial da definição e distinção entre os dois gêneros.
(Hutcheon,1989:75)
116
Na realidade, e Hutcheon depois o afirma, a diferença entre ambas é o alvo a
que se dirigem: a sátira é extramural, moralizadora, ética; a paródia, intramural, auto-
reflexiva, aética: um texto que se volta para outro. A primeira lança mão da função
pragmática da ironia, a última, da sua função semântica. Isso se coaduna perfeitamente com
o seu conceito de paródia como uma imitação transcontextualizadora, que tanto pode
desqualificar a obra parodiada quanto prestar-lhe homenagem, dependendo da intenção.
Martins (op, cit., p.58), nos passos de Hutcheon, recupera tal polêmica quando,
reconhecendo a proximidade e as freqüentes confusões entre os dois gêneros, associa a
sátira ao plano da res e a paródia ao plano da verba, destacando o objetivo intratextual (e
intertextual), próprio da última, e o extratextual, próprio da primeira.
Por outras palavras, há uma distinção essencial entre os dois gêneros – enquanto a sátira se situa
no plano da res cómica, a Paródia restringe-se ao nível da verba mais ou menos cômica (....). Ou
seja, os objetivos da sátira são de natureza extratextual, pois ela é animada por intenções sociais
ou morais (ridicularizar defeitos de instituições, usos ou costumes, para os corrigir), enquanto a
paródia é de natureza intratextual.
Distinção ainda polêmica, sobretudo porque a ela subjaz o paradigma
tradicional, de cunho estruturalista, para o qual a paródia é vista como estratégia
intertextual, apenas. De qualquer forma, mesmo reiterando que “ao contrário do gênero
satírico, a Paródia não implica necessariamente a presença do cômico” (op, cit., p.59),
Martins não se furta a apontar a existência de modalidades híbridas, como a sátira paródica
e a paródia satírica, bem como não se furta a citar uma série de autores para os quais
paródia e comicidade sempre se imbricam.
Diante do exposto, julgamos oportunas algumas considerações. Em primeiro
lugar, parece-nos indiscutível que a paródia é uma estratégia intertextual/ intratextual que
constantemente redunda no humor, ou no lúdico. Não nos parece provável que uma paródia
seja feita com uma linguagem “séria”, sem derrisão, sem duplos sentidos, sem
rebaixamentos, enfim, sem um mínimo de comicidade. Aliás, a sua natureza é
117
inexoravelmente dupla: a derrisão não é percebida, se o leitor não tiver a competência
paródica, isto é, se não associar o texto parodiante ao parodiado.
Concordamos que a paródia, primeiramente, realiza o cômico no plano verbal,
tendo, pois, cunho intertextual ou intratextual. Concordamos também que a sátira aborda a
res, o mico das ações, o extratextual. Contudo não concordamos que a paródia se limite
ao intertextual. Se assim fosse, seria um mero exercício de estilo, uma brincadeira formal
para iniciados. Não teria caráter crítico, transgressor, pragmático, argumentativo.
A síntese que Martins (1995:69) apresenta sobre a Teoria Literária da Paródia é
providencial e oportuna. O autor aponta, ao fim e ao cabo, duas teorizações principais: a
primeira, ele denomina de concepção restrita ou minimalista e corresponde àquela que
é sustentada desde a antiga tradição retórica, mas que se prolonga até ao formalismo
estruturalista contemporâneo (v.g.,G.Genette): concebe-se a Paródia como um discurso limitado
a uma técnica de citação intertextual, transcontextualizadora e irônica...”
Já a segunda corresponde àquela que envolve uma concepção dilatada, que
ratifica a concepção bakhtiniana de paródia como um fenômeno literário e cultural mais
amplo. Expostas tais concepções, o autor conclui:
Por conseguinte, em nosso entender, a dificuldade reside em encontrar um ponto de equilíbrio
entre estas duas tendências principais, isto é, não diminuir a Paródia a um mero processo de
imitação (sic) irônica e caricatural, por um lado; nem, por outro, dilatar de tal modo o campo da
Paródia que ele englobe, indevida e perigosamente, outros fenômenos e discursos, acabando por
se ver manifestações parodísticas em todo o lado... Pela nossa parte, circunscreveremos a
Paródia a uma multifacetada e complexa prática literária, embora com alcance para-literário, isto
é, como discurso polimórfico, caracterizado por inegáveis e significativas articulações poético-
literárias, mas também artísticas, históricas e culturais.
(Martins,1995:69)
Por fim, parece que chegamos ao que Sant’Anna expusera, a saber: se a
paródia tem origem inegavelmente literária, ela não mais se restringe à literatura.
Deslocamentos lingüísticos e culturais perpetrados pela paródia ou se quisermos adotar a
118
designação de Bakhtin pela inversão carnavalesca marcam a transformação constante a
que estamos sujeitos. Nesse sentido, se a paráfrase coincide como tão bem nos explica
Sant’Anna – com a automatização, a paródia possibilita deflagrar a desautomatização
lingüística e cultural.
Contudo é inegável que aquilo que se tornou paródia, em paráfrase se
transformará. Sant’Anna (2004) exemplifica não só o espírito paródico inerente aos anos 60
bem como o espírito parafrástico que o sucedeu, dando a moda como exemplo. Fala sobre
os hippies que dessacralizaram a moda, quando abriram os baús de seus avós (op.cit., p.77)
e se apropriaram de casacos, saias, calças e chapéus para usá-los cotidianamente em
combinações inusitadas. Da mesma forma, os jovens daquela década se apropriaram de
vestimentas primitivas de índios, hindus e negros bem como de roupas de soldados que
lutaram no Vietnã e, rompendo limites inclusive de vestimenta masculina x feminina
revitalizaram toda a moda.
Obviamente, o sistema reage e tudo aquilo que é dessacralização, inversão,
contracultura e contra-estilo começa a ser imitado e parafraseado: torna-se um novo estilo
que logo vira mera reprodução, a qual gera no seu bojo a necessidade de nova
“revolução”. Parece-nos, pois, e talvez até sejamos redundantes que, ao longo deste
item, o conceito de paródia restou alargado, uma vez que, se partimos da concepção
estruturalista de Genette
44
, chegamos à concepção interdiscursiva e dialógica bakhtiniana,
passando superficialmente pela proposta de alargamento do ethos paródico, segundo
Hutcheon.
Um outro dado que nos parece oportuno registrar diz respeito às categorias a
serem estabelecidas para a análise do nosso corpus. Explicamo-nos melhor: se
considerarmos que a paródia é estratégia estritamente intertextual, a única estratégia
parodística do nosso corpus seria a paronomásia, sobre a qual falaremos adiante. Por outro
lado, se identificarmos – e identificamos – como paródia também a reversão cômica/satírica
44
Para Genette, a paródia literária se restringe à deformação lúdica de textos relativamente breves (vide
página 97 desta tese).
119
do texto parodiado em parodiante, resta-nos perguntar: as crônicas de José Simão parodiam
o quê?
A respeito deste último questionamento, a citação de Sant’Anna (2004:68-9)
não nos indica que estamos no caminho certo, mas, sobretudo, explicita, aquilo que
ocorre nos textos jornalísticos de José Simão, cujo espírito paródico se centra nos
comentários debochados das notícias consumidas pelo seu leitor. Aliás, a técnica de
informar (talvez, rememorar) sinteticamente o acontecido o furo (que equivale ao texto
parodiado) é uma maneira didática de realizar o texto parodiante. Observemos a citação,
sobretudo as partes grifadas:
A paródia nos jornais de classe A e B (de maior poder aquisitivo) fica restrita às charges
políticas, a um ou outro comentário humorístico eventual. A paródia ocupa pequeno espaço
nesses jornais “sérios”. Ela vai se caracterizar nos jornais marginais, nos semanários, em
publicações não diárias. Assim, alguns jornais podem se especializar nesse tipo de linguagem
parodística comentando o texto dos jornais “sérios”, debochando de um texto anterior, numa
atividade intertextualizadora. Alguns jornais desse tipo não evitam parodiar-se a si mesmos nem
se contradizer. A notícia aí se desvia tanto do fato ocorrido, “deforma” tanto a realidade,
“degrada” de tal forma o original, que se situa no terreno da caricatura”. É curioso e
sintomático que os jornais parodísticos não sejam diários. Eles carecem que o texto a ser
parodiado tenha sido publicado anteriormente ou tenha se acumulado na memória do leitor
durante uma semana ou mais. Ele vive da notícia já consumida. Ele não dá o “furo”, ele debocha
do “furo” ou valoriza um aspecto só do todo.
(grifos nossos)
Isso posto, procederemos à análise de um trecho de José Simão para mostrar
que a paródia jornalística nunca fica restrita apenas ao plano verbal, intertextual o que é
comum à paródia de cunho literário mas que a sua verve e o seu caráter crítico (satírico
ou irônico) decorrem do fato de ela ser necessariamente “extramural”, uma vez que o texto
parodiante corresponde à fábula bem humorada de um acontecimento já noticiado.
Observemos como o cronista, via paródia, serve-se do cômico, do lúdico e da
fantasia para avaliar a atuação de Antony Garotinho como secretário da Segurança Pública
do Rio de Janeiro.
120
E o Garotinho? Ca o Capitão Bolinha? Diz que vai combater os bandidos com
estilingue. Ele é um misto de Bebê Johnson com Balas Juquinha! Só serve para segurança
infantil (14/10/2004)
Como Rio e violência parecem ser as duas faces de uma mesma moeda, o
cronista cria na manchete o termo Riolência para designar tal simbiose (RIOLÊNCIA!
Garotinho ataca de estilingue!). Interessante é que, na manchete, Garotinho é revelado
como um secretário despreparado para combater a criminalidade, visto que, infantil e
ineficazmente, usa um estilingue para atacá-la, fazendo, de fato, jus ao próprio nome.
Tal idéia é reiterada no trecho em que o cronista indaga sobre o paradeiro do
Secretário da Segurança, implicitando-lhe a ausência por meio das interrogações (E o
Garotinho? Cadê...?) e a incompetência por meio da designação paródica de Capitão
Bolinha, que tem muito de caricatural não porque nos remete à figura obesa de Antony
Garotinho (bolinha) como também à de um desastrado personagem de uma antiga HQ
brasileira (Bolinha). Ademais, o uso do diminutivo parece dirimir qualquer conotação de
autoridade que pudesse remanescer no vocábulo capitão.
De fato, a expressão diz que (Diz que vai combater os bandidos com estilingue)
sugere que nem como Capitão Bolinha, personagem infantil que o cronista promoveu a
capitão, o secretario convence. Isso dá margem à jocosa afirmação do cronista que o
associa a um bebê famoso (Bebê Johnson), conhecido por todos, mas inofensivo, cujas
balas – contrariamente àquelas que combatem ladrões - são doces da marca... Juquinha!
45
E
novamente o uso do diminutivo, aliado a palavras que nos remetem à infância (estilingue,
bebê Jonhson, balas), reiteram a ingenuidade do capitão Bolinha, digo, do Secretário da
Segurança, Antony Garotinho.
45
Antiga marca de bala cuja principal característica era o tamanho diminuto e o formato quadrangular.
121
Impossível não ver neste texto a reversão bem humorada inerente ao espírito
paródico, o qual, inclusive, justifica o comentário final: um capitão deste porte e com tais
armas (estilingue e guloseimas) serve para segurança de festa infantil ou, dito de outra
maneira, não serve para nada, até porque, em bailes infantis (se é que existem), bastaria a
presença das mães para garantir a segurança.
Portanto, o que nos cumpre observar é o fato de que o cronista conta com a
informação adquirida pelo leitor, à qual aquele se reporta sinteticamente antes de
parodiá-la, como ocorre no texto em questão. A paródia, neste sentido, diferentemente do
que afirma Sant’Anna (vide última citação), pode ocorrer com mais freqüência em jornais
“sérios”, da classe A ou B, mesmo porque, em tese, estes leitores são mais bem informados
e, talvez, mais assíduos: bastam poucas referências para que eles acionem as informações
necessárias para fruírem o humor paródico.
2.7- ESTRATÉGIAS PARODÍSTICAS
Conforme proposta anteriormente feita, buscaremos neste item recensear as
principais técnicas e estratégias parodísticas, conforme apresentadas por Martins (1995),
para quem o movimento surrealista contrasta com os outros movimentos da vanguarda
européia (Futurismo, Cubismo e Dadaísmo) do início do século XX. É relevante e digno de
registro o fato de que, enquanto estes abjuravam o passado para negar a Tradição, o
Surrealismo conta com esta memória para destruí-la e, sob este aspecto, ele é
essencialmente paródico, o que, o torna sui generis em relação aos demais.
De fato, o surrealismo se funda numa filosofia transformadora e tem como meta
não uma transformação literária e artística, mas uma transformação da própria práxis
vital. É, pois, acima de tudo, um movimento transformador, libertário, crítico. Seu alvo?
Todo discurso hegemônico, cerceador da liberdade individual. Suas armas? A sua escrita
paródica, carnavalesca. A citação de Martins (1995:165) sintetiza com maestria as relações
entre os ideais surrealistas e a estética que os informou:
122
Em coerência com esta postura crítica, essencial para compreendermos os ideais estético-
filosóficos que animavam os surrealistas, concluímos desde já que sua escrita poética e
doutrinária, indissolúvel da paródia intertextual e arquitextual, não hesitou em ultrapassar os
muros do literário, com o objetivo de minar, subverter e destronar carnavalescamente todas as
manifestações dos discursos sociais hegemonizantes desde o discurso sócio-cultural ao
político-ideológico, sem esquecer também o discurso ético-religioso -, isto é, os principais
discursos ideológicos do Poder instituído, que, de modos diferentes, cerceavam a liberdade do
indivíduo.
Na realidade, são as relações entre paródia e surrealismo que nos interessam, até
porque o espírito parodístico parece ser uma das facetas mais marcantes do humor moderno
e, quiçá, do humor de todas as épocas. Observar, pois, como o surrealismo português
atualizou o humor paródico permitir-nos-á reiterar, talvez, uma série de analogias
estabelecidas entre o espírito anárquico e libertário, presente nas crônicas de José Simão, e
o grotesco medieval, segundo a concepção bakhtiniana. Pode também enriquecer o nosso
conhecimento sobre essa competência exclusivamente humana que é o humor.
Portanto, embora Martins recupere as técnicas e estratégias lingüísticas da
paródia surrealista e as ilustre com trechos de escritores portugueses, é inquestionável que o
conhecimento de tais técnicas poderá configurar a recorrência delas em outros discursos.
Entre as figuras usuais ao discurso paródico surrealista, Martins destaca as seguintes: o
oxímoro, a antífrase (ironia), a repetição, a hipérbole caricatural, a descrição grotesca, a
contaminação e a escrita fonética.
Segundo Martins (op.cit., p. 228), “o oxímoro é uma figura tipicamente
carnavalesca, constituída pela oposição antitética ou contradição violenta de termos ou
realidades”. a antífrase, designada como “intervenção deformadora”, realiza a reversão
paródica, ao alterar negativamente uma ação, ou os qualificativos de um episódio ou
personagem.
Apesar de este autor analisar textos literários, com facilidade podemos constatar
como o uso de tais figuras colabora para o processamento da paródia. Na realidade, o
último debate, anterior ao primeiro turno das eleições, fora avaliado não pelo cronista,
123
mas pelo público como um verdadeiro não-debate. Um marasmo: muita “educação”, pouca
discussão. A manchete da crônica bem o revela: Debatédio! Prefiro tratamento de canal!
Diríamos mais: a inconsistência do debate já se anuncia na contaminação Debatédio, que
reputamos um oxímoro, visto que reúne na mesma palavra, designativa de uma realidade,
termos antagônicos: debate, que é debate, nunca será um tédio!
Ao reportar como as contaminações e a escrita fonética informam a escrita
poética surrealista, Martins (1995:139) observa:
Neste convicto ade recriar a palavra poética, a escrita surrealista não se inibiu de ensaiar
novas palavras, recorrendo a curiosos processos de criação lexical, desde a inesperada
aglutinação de lexemas, até métodos aparentados com uma escrita fonética.
Observemos, ainda, como no corpo da referida crônica, a notícia, rememorada
sinteticamente, via pressuposição (E o debate na Band?), funciona como a memória
(tradição) indispensável à carnavalização, na medida em que é no comentário da notícia que
a reversão paródica se concretiza.
E o debate na Band? Um debate bronha! Lexotan com Dormonid! Que tédio! O primeiro
momento mais emocionante foi quando o Nascimento bocejou. O segundo momento mais
emocionante foi quando Todos bocejaram. Eu quero sexo, sangue e Doritos com bacon.
Não quero propostas. Quero OFENSA MORAL! (07/08/2004)
Comentar que O primeiro momento mais emocionante foi quando o Nascimento
bocejou (O jornalista Carlos Nascimento foi o mediador do debate) e que O segundo
momento mais emocionante foi quando TODOS bocejaram não exemplifica a avaliação
contida na contaminação (Debatédio), mas o faz por meio de uma antífrase.
Primeiro, porque o termo emocionante significa exatamente o contrário do que
diz: o debate foi, de fato, entediante. Segundo, porque, mesmo que nos ativéssemos apenas
124
ao sentido literal, e entendêssemos que emocionante significa exatamente o que diz,
considerar que o primeiro momento mais emocionante foi marcado inicialmente pelo
bocejo de um - o jornalista - e seguido, no segundo momento mais emocionante, pelos
bocejos de Todos o que inclui os próprios candidatos é, no mínimo, - o que dizer?
irônico! Ou melhor, é duplamente irônico. Emocionar-se e bocejar são atitudes antagônicas.
Sobre o poder subversor da ironia, convém anotar o comentário de Brait (1996:106):
Qualquer que seja a dimensão da ironia – frasal ou textual -, desencadeia-se um jogo entre o que
o enunciado diz e o que a enunciação faz dizer, com objetivos de desmascarar ou subverter
valores, processo que necessariamente conta com formas de envolvimento do leitor ouvinte ou
espectador.
Também a repetição da qual o trecho acima citado pode funcionar como
exemplo - é uma figura que se destaca na retórica carnavalesca, sobretudo via reiteração de
imagens e metáforas. É comum, nas crônicas de José Simão, que períodos inteiros se
repitam anaforicamente (E uma amiga minha disse...), ou frases-refrão (Rarará!) num
encadeamento que, se não chega a lembrar um bailado grotesco e rabelaisiano (Cf.
Martins, op.cit., p.229), anuncia, de forma ininterrupta e torrencial, os fatos e os atores das
notícias selecionadas.
Uma outra figura apontada como cômico-carnavalesca é a hipérbole caricatural
e esta talvez seja a mais facilmente perceptível na paródia jornalística perpetrada nas
crônicas de José Simão. Basta que nos lembremos, por exemplo, das descrições
caricaturais, por vezes até bastante infantis dos candidatos às eleições, cujos traços
marcantes são evocados, inclusive, nos nomes com os quais o cronista os designa: a
magreza e a pouca vivacidade do governador Geraldo Alckmin motiva, por exemplo, o
epíteto Picolé de Chuchu.
a cabeça avantajada de José Serra, aparentemente redimensionada pela falta
de cabelos, justifica a designação de Larva da dengue (vide p.88). Basta ainda que nos
lembremos dos olhos circundados por profundas olheiras e da constante palidez do
candidato, acentuadas em época de campanha eleitoral, para que o epíteto Vampiro
125
Anêmico se imponha como um reforço caricatural.
46
A relação do exagero com o lúdico que
tais caricaturizações desvelam é reiterada no trecho abaixo:
Este procedimento retórico, integrante do prazer lúdico que perpassa a escrita surrealista,
enfatiza o seu efeito carnavalesco e fantástico, recorrendo, por exemplo, à utilização de números
hiperbólicos ou de descrições exageradamente caricaturais, numa exuberância por vezes
torrencial
(Martins,1995:230).
Na verdade, tal exagero desemboca quase que inevitavelmente na descrição
grotesca, ou naquilo que parece ser comum tanto ao cômico medieval quanto à paródia
surrealista: a estética do feio. Aliás, se bem concluímos, o riso privilegia o feio. A própria
poesia surrealista foi definida por Alexandre O´Neil (apud Martins,op.cit., p.230) como a
poesia do feio.
Embora estas estratégias sejam comuns tanto à estética do grotesco medieval
quanto à do grotesco surrealista, duas outras estratégias usuais à paródia surrealista e
destacadas por Martins, nos despertaram sobremaneira a atenção: a paronomásia e o uso
irônico e subvertido de expressões cristalizadas, tais como os provérbios e ou expressões
idiomáticas. A paronomásia, figura típica da carnavalização surrealista, é comumente usada
para deflagrar o cômico verbal, conforme exemplifica Martins:
De entre as várias figuras picas deste discurso carnavalesco surrealista, enumeremos e
ilustremos as seguintes: uma das várias fontes do cômico verbal surrealista tem origem na
paronomásia. (...) dela temos abundantes exemplos na escrita surrealista, como pudemos
comprovar, por ex., ao nível proverbial. A aproximação de parônimos, além de potenciar
reflexões de ordem metalingüística, como em céu/seu, concepção/conceição, violeta/ violenta,
autor/actor, caçador/caçador, halo/elo, preso/preço, entre tantos outros exemplos, é muitas vezes
geradora do cômico verbal.
(op.cit., p. 227)
O que nos pareceu sumamente interessante foi a percepção da natureza
parodística da paronomásia, no sentido de que as transgressões sonoras que ela perpetra,
46
Estamos olvidando aqui as alusões relativas ao fato de que o candidato foi Ministro da Saúde, conforme já
o dissemos anteriormente.
126
prevêem que o leitor recupere o som alterado (ou nível mínimo de inversão), sob o risco de
a paródia não ocorrer. Na realidade, é extremamente comum que provérbios e expressões
cristalizadas sejam reescritos parodicamente, via paronomásia.
47
Não nos espanta, pois, que
este tipo de jogo verbal seja recurso caro aos surrealistas, conforme exemplifica Martins
(1995:140) em nota de rodapé:
Um dos jogos de palavras mais praticados pelos surrealistas consiste na reescrita paródica dos
provérbios populares, protótipo das formas lingüísticas fixas e cristalizadas de que apresentamos
apenas alguns elucidativos exemplos: “Quem vê cara não vê brasões”, “De noite nem os gatos se
distinguem”(....) “Rabo escondido com o gato de fora” (...)
Desconstruir parodicamente um provérbio popular corresponde a assumir uma
atitude dessacralizadora, visto que se desarticulam e até se anulam a autoridade e sabedoria
que lhe são intrínsecas. Carnavalizar, pois, os provérbios, via jogo de palavras pela
substituição de grafemas/fonemas (paronomásia) como ocorre em Quem não deve não
treme, ou via inversão sintática dos termos do provérbio matriz, como em Água quente tem
medo de gato escaldado ou O rabo escondido com o gato de fora, costuma ser fonte do
lúdico e do humor, em decorrência do deslocamento que tais procedimentos realizam e do
estranhamento que geram. De qualquer forma, são destruições-construtoras, visto que, ao
destruírem o estagnado, abrem perspectivas para as inovações.
A mudança do provérbio bíblico O bom filho a casa torna para O bom filho a
casa ENTORNA, conforme analisamos (páginas 69-70 desta tese), é um bom exemplo das
possibilidades humorísticas que a reversão paródica pode realizar. Supomos também que,
mesmo quando a rigor não há alterações de grafemas ou fonemas, não é improvável
falarmos em reversão paródica, especialmente se um provérbio bíblico ilustra uma situação
“profana”. É o que ocorre, por exemplo, no texto que se segue:
47
Estamos assumindo aqui que a paronomásia não designa apenas o trocadilho feito com a presença dos dois
termos foneticamente semelhantes (trocadilho sintagmático). Retornaremos a esta questão no momento
oportuno.
127
E aquela Cicciolina cearense, a Rainha do Sexo Explícito? O nome dela é Débora Soft.
Soft é ela, hard é o marido, que tem que fazer show de sexo explícito. E diz que ela é
adepta do “ é dando que se recebe”! (11/08/2004)
O cronista com o fito de revelar e criticar o absurdo de algumas candidaturas à
vereança e às prefeituras, ora faz brincadeiras verbais com os nomes dos candidatos, ora
com os seus slogans, os quais (slogans), em tese, deveriam sintetizar-lhes as metas de
atuação. De fato, a candidata Débora Soft, proprietária de casa de sexo explícito e streaper,
era candidata à vereança em Fortaleza. Seu slogan? Vote com prazer.
48
A reversão paródica ocorre porque o cronista degrada, dessacraliza um
provérbio bíblico, na medida em que este é transposto para uma situação totalmente
profana, servindo-lhe perfeitamente de síntese. O É dando que se recebe – síntese da
caridade e esperanças cristãs - passa a sintetizar a própria profissão das trabalhadoras do
sexo. Nos dois sentidos: no carnal e no financeiro. A dupla função dessacralizadora e
inovadora que os jogos de palavras possibilitam operar é destacada por Martins (1995:
142), a propósito do discurso paródico surrealista:
Tal como noutras manifestações da escrita surrealista, cremos que os vários jogos de palavras
praticados por esta vanguarda tinham uma dupla funcionalidade, como é próprio do discurso
paródico: ora denegavam clichês e convenções tradicionais; ora apontavam inovadores
caminhos para a linguagem literária (...)
Interessante é frisar como os jogos verbais, presentes nos comentários
favorecem a reversão paródica, na medida em que o ludismo que encerram tem a
propriedade de transformar o sério (a notícia) em não-sério, o oficial em não-oficial.
48
Informações tiradas de um trecho da crônica publicada em (06/08/2004):
Em Fortaleza tem uma candidata a vereadora sensacional: Débora Soft! Faz striptease e é proprietária de
casa de sexo explícito. Sacanagem por sacanagem, vote na Débora Soft! E o slogan dela é “Vote com
Prazer”.
128
Observemos, sob este aspecto, como as duas estratégias acima citadas – o uso de provérbios
e a contaminação – colaboram para a consecução do riso.
O Fidel caiu, se estropiou todo, se levantou e fez UM DISCURSO! (.....) E como disse o
outro: ele se veste de verde, mas caiu de maduro! (28/10/2004)
E o problema não foi o Fidel ter caído, o problema é que não apareceu ninguém pra
segurar. Isso que eu chamo de INFIDELIDADE! Rarará! (28/10/2004)
De qualquer forma, parece-nos importante frisar que os textos analisados vão ao
encontro das distinções propostas por Hutcheon (1989) e endossadas por Martins (1995),
justamente porque se a paródia intertextual prevê modificações lexicais (torna por entorna),
sonoras (INFIDELIDADE), a paródia extratextual, pragmática, interdiscursiva pode,
segundo nos parece, até dispensá-las. As palavras de Martins (op.cit., p.189), ainda a
propósito da reversão carnavalesca que a paródia de provérbios realiza, podem nos servir de
aval:
A irreverência carnavalesca, que origem à análise da destruição festiva do texto proverbial,
tem um significado muito mais amplo que a mera subversão lingüístico-literária dos digos
(fônicos, lexicais, sintácticos, retóricos e semânticos) que regem o texto proverbial. A subversão
paródica desta forma emblemática da sabedoria e cultura tradicionais representa uma
manifestação da heteroglossia ou polifonia, isto é, instaura a pluralidade de discursos ou vozes
(dialogismo), anulando ou destronando assim a ideologia normativa, mais ou menos totalitária e
dogmática. Neste sentido, a linguagem carnavalesca dos surrealistas consegue, através da
peculiar utilização do texto proverbial, atingir um estatuto supra-textual, tendo como objectivos
discursos extra-literários
. (grifos nossos)
129
Realçando em vários momentos da sua obra o caráter destruidor-construtor do
surrealismo e da própria paródia surrealista, Martins finaliza o seu texto reportando a tese
de Gilles Lipovetsky apresentada na obra L´Êre du Vide (Essais sur l´individualisme
Contemporaine ), de 1983, segundo a qual o cômico, que foi integrado pela arte e pela
literatura, será integrado na cultura de massas contemporânea, como, por exemplo, na
moda, na música, na publicidade e - por que não dizer - até no jornalismo? O autor citado
por Martins (1995) denomina este tipo de humor de narcísico, que pode abarcar desde o
humor underground e hard à fantasia delirante e ao nonsense. É o que Gilles também
designa como a cultura do espontâneo que, de forma deliberada, confunde o sério e o
frívolo.
2.8 - RISO E CONTEXTO
Apresentados autor e corpus, feitas algumas análises que nos remeteram a um
humor marcadamente grotesco (segundo concepção bakhtiniana), quedamo-nos diante de
uma questão fundamental a ser discutida e que pode ser assim enunciada: estrita
dependência entre comicidade e contexto, como as nossas primeiras análises parecem
indicar? Se esta dependência existe de fato, podemos supor que ela seja mais acentuada em
textos midiáticos, como os do nosso corpus?
Partindo, pois, do pressuposto de que observar a construção do riso nos
diferentes produtos da indústria cultural representaria não uma forma de responder à
questão acima colocada, mas também uma maneira de melhor entender o discurso do riso,
procedemos à leitura da obra de Almeida (1999), que versa sobre a comicidade da HQ
francesa intitulada Les Frustrés, narrativas humorísticas em quadrinhos, criadas por Claire
Bretécher e publicadas de 1973 a 1985 na revista semanal francesa, de tendência
esquerdizante, Le Nouvel Observateur. Na verdade, cada narrativa correspondia a uma
página de 12 quadrinhos. Posteriormente, toda a série publicada ao longo dos 12 anos foi
transformada em 5 volumes.
130
Inicialmente, Almeida destaca o caráter marcadamente produtivo das HQs de
Claire Bretécher, decorrente de alguns traços bastante característicos. Bretécher elabora
basicamente dois tipos de HQ: a totalmente icônica, com exceção do título, e aquelas em
que a linguagem verbal e a icônica se complementam. Nestas, a produtividade é conseguida
não pela ausência de balões que indicam as falas dos personagens, mas também pela
ausência dos filetes que indicam a voz do narrador. Estes recursos, ou melhor, a ausência
deles dá aos quadrinhos de Bretécher maior leveza, já que as falas se inscrevem diretamente
sobre as vinhetas e é como se a história se narrasse a si mesma.
Para substituir a ausência dos balõezinhos, a desenhista adota um recurso
bastante simples e econômico: vincula-se o ato de falar ao personagem, em cuja fisionomia
a boca mostra-se aberta. Quando há réplicas na mesma tira, estas são vinculadas aos
personagens pelo posicionamento, pois são escritas acima de cada um deles. Mas, se a
linguagem icônica resultou, dado o uso criativo e original dos recursos acima aventados,
mais econômica do que é, como se realiza a produtividade da linguagem verbal, no
discurso humorístico?
Segundo Almeida (op.cit.), o humor, expresso em linguagem icônica, ou
verbal, ou misturando-se as duas é, na essência, altamente produtivo porque, se podemos
associá-lo à relação custo/beneficio, consegue-se muito com pouco. Dito sob outra
perspectiva que não a econômica: o humor é produtivo porque altamente inferencial. Mas é
produtivo, porque, sobretudo, se baseia em transgressões: inferir a transgressão pressupõe o
conhecimento das normas, sejam estas comportamentais, sejam linísticas.
A titulo de ilustração, podemos citar as próprias narrativas de Les Frustrés que,
via de regra, surpreendem personagens progressistas, críticos, politizados e contestadores
bem próximos da imagem que a revista tinha dos seus leitores em situações nas quais a
atitude por eles tomada contradizia a ideologia que professavam. Nesse sentido, a HQ
Eugene! (Anexo 5) mostra como a mulher que resolve nunca mais chorar por um homem e
tornar-se independente está ainda presa a ele, quando se depara com a necessidade de abrir
uma garrafa de vinho! (Bergson explicaria pelo alogismo das ações!) Pior ainda: para
131
comemorar a sua independência afetiva. Tal descompasso é exemplarmente sintetizado nas
palavras de Almeida (1999:65):
.....o protótipo do leitor do Le Nouvel Observateur seria o intelectual francês de esquerda que,
vivendo num país desenvolvido, numa sociedade de consumo de tipo capitalista, se surpreende
às vezes diante de um conflitante desajuste entre seu posicionamento ideológico, de um lado, e
seu comportamento burguês, de outro
.
Portanto, para Almeida, a comicidade se instaura a partir da bitextualidade, ou
seja, a partir do confronto comportamento padrão X desvio (p.128). O primeiro é virtual, é
esperado, é o normal. O segundo é real (mostrado), inesperado, transgressor. (É fácil
entendermos agora porque Hobbes afirma que o humor deve ser sempre inédito). Na
verdade, a transgressão é inédita, porque foge do padrão, do esperado. Assim a questão da
produtividade se coloca claramente: quem transgride, conhece a norma, que é pressuposta.
Ou seja, o humor desvela a transgressão, que é transgressão mediante a inferência do
código, da norma. Com um adendo, o texto cômico cria a expectativa da norma, para
depois refutá-la.
Dizer que o cômico decorre da observação de um desvio de comportamento é reconhecer que o
observador possui em sua memória um conjunto de hipóteses relativas a um padrão de
comportamento a partir do qual determinadas condutas seriam discrepantes.
(Almeida,1999:27).
De qualquer forma, a linguagem do cômico é altamente inferencial, isto é, no
contrato humorístico, o riso é deflagrado se as inúmeras pistas deixadas pelo
autor/locutor forem preenchidas adequadamente pelo interlocutor. Ninguém entende, por
exemplo, metade da piada. Ou nós a entendemos na íntegra e rimos, ou não a entendemos e
fingimos que ela é engraçada. Portanto, a piada, a troça, o trocadilho exigem também que o
autor/locutor tenha previsto com precisão alguns caminhos, talvez mais do que o faria em
um texto não humorístico. O texto humorístico nos parece neste aspecto o do
planejamento - mais fechado do que o literário: o autor é mais controlador; o leitor, mais
controlado.
132
O que convém ainda destacar e Almeida o destaca é que a transgressão
cômica pode ocorrer como desvio em relação ao contexto social, mas pode representar
também um desvio dentro do próprio código lingüístico. O primeiro é, na nomenclatura do
autor citado, um desvio negativo; o segundo, um desvio positivo, conforme se observa no
seguinte passo:
Nas frases espirituosas trata-se de um desvio positivo, pois revela, sobretudo, uma habilidade do
indivíduo espirituoso em lidar economicamente com o material verbal, suscitando, a partir do
seu uso, ambigüidades, associações, alusões, como ilustra a citada “estou rezando 1/3 para
encontrar ½ de levar você para ¼”. Ao valorizar esse comportamento, o espírito estaria
desvalorizando (ou desrespeitando) o código de comunicação. Com efeito, nos jogos de
palavras, em geral, a habilidade do comunicante implica a desvalorização do padrão de uso da
língua que, em situações de comunicação comum, procura restringir a ambigüidade
(Almeida,1999:128-9).
Em suma, Almeida distingue dois tipos básicos de humor: o que decorre da
observação de um comportamento discrepante e aquele que decorre principalmente do jogo
de palavras. Cícero chegara à conclusão semelhante quando observara o humor
decorrente do jogo de palavras e o decorrente das ões. Todavia, não é incomum que os
textos cômicos, sobretudo os mais longos, que se realizam por meio de uma narrativa,
joguem com os dois tipos.
Neste ponto, o que nos chamou sobremaneira a atenção foi o fato de que
Almeida associa o desvio negativo a uma relação cômica (desvio de comportamento) e o
desvio positivo a uma relação espirituosa. Segundo o autor, o contrato cômico subsume um
distanciamento crítico do leitor em relação ao personagem, ao passo que o contrato
espirituoso estabelece uma cumplicidade entre autor e leitor, já que entre ambos se
estabelece uma troca: como o primeiro proporciona prazer ao leitor com ditos espirituosos,
este o agracia com o seu reconhecimento (Cf. p.144). As constatações acima nos
despertaram para a necessidade de se verificar como a comicização se processa nos
diferentes níveis discursivos.
133
2.8.1- COMICIZAÇÃO DIEGÉTICA, EXTRADIEGÉTICA e EXTRATEXTUAL
Chegamos, assim, a um ponto fundamental na teoria adotada por Almeida
(1999): a questão das instâncias discursivas envolvidas no discurso do riso que, a nosso ver,
se alia à questão do enunciado e da enunciação. Para o autor, a comicização é extratextual,
quando decorre da percepção do leitor; é extradiegética, quando é fruto da perspectiva do
narrador, e é diegética, quando envolve a relação entre os personagens. Ou seja, a
comicização extratextual diz respeito à enunciação; as outras duas, ao enunciado.
Como a comicização extradiegética não ocorre em Les Frustrés, até porque,
como já dissemos, as histórias narram-se a si mesmas, Almeida se dedica apenas às outras
duas. No que tange à comicização diegética, afirma:
A comicização é diegética quando a função comicizante é desempenhada por uma instância
desse nível. Criticado por seus pares, o personagem torna-se ridículo no seu próprio meio, aos
olhos dos outros personagens, o que realça o seu isolamento
(op.cit., p.146).
Porque não cabe ao autor ou ao leitor a função comicizante, uma vez que ela
ocorre no mundo representado, a comicização diegética pode gerar uma fragmentação no
espírito do leitor que se identifica ou com a personagem comicizante, ou com a comicizada.
De qualquer forma, o leitor percebe o antagonismo e tende a se identificar com a
personagem comicizante, segundo Almeida, para quem na comicidade diegética autor e
leitor “outorgam” a uma das personagens a função de criar o cômico, de ridicularizar:
A comicização diegética seria um sistema de delegação de competência, em que a função
comicizante do autor (e do leitor) é, ao menos, parcialmente transferida ao personagem
comicizante. Desta forma, a presença do autor e do leitor escomo representada no texto pelo
personagem investido da função comicizante
. (op. cit., p.149).
Almeida reporta ainda um tipo especial de comicização diegética, designada
como metalepse, que pode ocorrer quando um personagem, subvertendo as normas do
134
contrato ficcional, passa do mundo textual para o extratextual, desestabilizando o leitor. O
autor ainda reproduz uma tira humorística (p.149) de Jacovitti, famoso chargista italiano, na
qual um personagem, cujo braço se alonga por toda a extensão da tira, segura uma valise
pesadíssima e vocifera contra outros oito, que se limitam a olhá-lo, enquanto cada um
pronuncia uma palavra da seguinte frase: NÓS....SÓ....ESTAMOS....AQUI....PARA.......
PREENCHER....ESTE.....DESENHO... (Anexo 6). Efeitos cômicos à parte, a metalepse se
funda, indiscutivelmente, na transgressão.
A seguir, Almeida destaca três características da comicização extratextual que,
para ele favorecem a identificação. A primeira diz respeito a uma clara caracterização dos
universos ficcional e não-ficcional, que faz com que a personagem ou a situação alvo se
situe num campo (diegético) diferente daquele (extratextual) em que a diminuição, a crítica
e o ridículo são formulados.” (op.cit., p.151).
Em decorrência disso, temos um segundo aspecto, que nos parece fundamental
quando buscamos entender a força do riso, ou o riso como arma: como o processo de
comicização não se realiza no âmbito das personagens, cria-se uma cumplicidade entre
autor/leitor que cabe a estes a percepção do ridículo da personagem ou da situação alvo.
Arriscaríamos dizer que, na comicização extratextual, autor e leitor riem da personagem,
que é tanto ou mais cômica na medida da sua inconsciência.
O último aspecto diz respeito ao caráter coeso do investimento psíquico do
leitor (p.151) Se na comicização diegética o leitor pode, por vezes, ainda ficar dividido
entre o par comicizante/ comicizado, na extratextual o leitor é levado a se identificar com a
personagem cômica (= comicizada), até porque inexiste a personagem comicizante.
Embora aceitemos que, em termos de identificação, na comicização extratextual
há maior possibilidade de o leitor se identificar com a personagem cômica, não descartamos
a possibilidade de que o autor e/ou leitor assim não procedam. Parece-nos, pois,
indispensável transcrever a fala de Almeida (1999:152), que, após insistir nas
características de tal forma de comicização, acrescenta:
135
Na comicização extratextual, o personagem cômico representa unitariamente o outro, aquele que
torna possível a constituição do eu e que permite, graças à sua diferença, o deslocamento do eu
para o lugar do outro, num processo de identificação. O leitor pode tanto assumir a sua visão
comicizante e distanciada do personagem cômico quanto identificar-se com ele, alternadamente.
(grifos do autor).
2.8.2. - RELAÇÃO CÔMICA, ESPIRITUOSA E HUMORÍSTICA
A par destas distinções que, a nosso ver, envolvem basicamente diferentes
estratégias de envolvimento, na medida em que o autor joga sempre, como o dissemos,
com as inferências a serem realizadas pelo leitor, sejam estas no nível do enunciado, sejam
no da enunciação ou, dito de outra forma, sejam a partir do diegético, sejam a partir do
trabalho no nível extratextual, Almeida relaciona aos níveis de comicização três tipos de
relação que se estabelecem entre os sujeitos (autor/leitor/personagens): a relação cômica, a
espirituosa e a humorística.
Importa dizer que tais distinções representam uma recorrência presente em
quase todas as obras que versam sobre o riso. Importa também dizer que quase sempre as
distinções não se mostram tão claras e nem tão convincentes. De qualquer forma, não
descartamos a hipótese de que possam lançar alguma luz neste mundo tão rico e tão repleto
de sutilezas, que é o mundo do risível.
Isso posto, voltemos às distinções propostas por Almeida para quem a relação
cômica se estabelece no nível do enunciado, do mundo representado, e a comicidade da
personagem é proporcional à sua inconsciência. Diríamos que a relação cômica se funda na
identidade entre autor, leitor e personagem comicizante, no sentido de que todos eles
sentem prazer em depreciar a personagem comicizada. A relação cômica envolve, portanto,
uma certa malignidade, claramente depreendida no trecho que se segue:
A primeira (característica da comicidade) prevê que o efeito cômico será tanto maior quanto
mais o indivíduo observado (ou representado) for incapaz de perceber o seu próprio ridículo. Ela
sublinha o isolamento do indivíduo ridículo e, ao mesmo tempo, a projeção, sobre ele, do olhar
136
depreciativo das outras instâncias. Com efeito, ao sugerir a exclusão do indivíduo cômico de um
circuito de informações (e ele o percebe seu próprio ridículo) e ao depreciá-lo, a relação
cômica privilegia o enunciado, pois coloca em relevo o conteúdo representado
(op.cit.,p.129).
a relação espirituosa, segundo o que pudemos depreender, privilegia a
enunciação: a comicidade (melhor dizendo, o risível) não depende da depreciação contra
um terceiro, mas decorre da habilidade do autor em dizer de forma a causar prazer no
leitor/ouvinte. Digamos que é uma cumplicidade mais positiva que se estabelece. A citação
abaixo, com base em Freud, autoriza o que afirmamos neste parágrafo:
A segunda (característica da comicidade) preconiza que o indivíduo espirituoso procura fornecer
prazer ao ouvinte, criando assim uma cumplicidade entre eles. (Freud, 1930, p.154). Mas, para
fazê-lo, o indivíduo espirituoso não é obrigado a depreciar um terceiro. O que está em jogo é
principalmente sua habilidade em dizer; a depreciação pode ser secundária, apenas um meio de
se atingir aquele primeiro objetivo. Neste tipo de espírito, portanto, os fatores de comicidade
convergem sobretudo para o nível da enunciação
(Almeida,1999:129).
O autor ainda destaca o caráter produtivo e econômico da relação espirituosa,
uma vez que esta sempre remete a dois comportamentos, ou melhor dizendo, a duas
transgressões: a que se opera no nível da enunciação (os comentários habilidosos que
geralmente subvertem a norma lingüística) e a própria atitude transgressora, presente no
mundo narrado, que tais comentários desvelam. Lembremo-nos dos chistes retóricos que,
essencialmente, subsumem comentários linísticos, extremamente habilidosos, que
desvelam comportamentos inesperados.
Por último, Almeida associa a relação humorística à possibilidade de o leitor se
identificar com a personagem cômica sem, contudo, abdicar da crítica (ou da autocrítica )
que este lhe desperta. Na verdade, tal identificação confere ao leitor a possibilidade de
alternar e integrar posições, aparentemente díspares: ele é o crítico e o criticado, é o
comicizante e o comicizado, é o Eu e é o Outro. Convém salientar que a relação
humorística se opera via comicização extratextual e representa a comicização típica de Les
Frustrés (op.cit., p.150). É mister realçar que é a compaixão, é a crítica benevolente, é a
137
complacência que a identificação entre autor/leitor/ personagem faz vir à tona. Seria este o
propósito do humor?
Talvez o último parágrafo de Almeida possa nos dar alguma resposta.
Permitimo-nos transcrevê-lo:
Esta é a dimensão mais nobre e terapêutica do humor, pois, além de constituir-se como um
mecanismo de prazer, tem a vantagem de combater a exacerbação da vaidade, da ambição e do
sentimento de levar-se tão a sério, mostrando ao homem a medida do seu próprio consolo, e
dimensionando seu sucesso na proporção da sua própria dor
(op.cit., p.153).
Estamos ainda dentro do paradigma segundo o qual rindo se corrigem os
costumes? De qualquer forma, antes de nos voltarmos para teorias estritamente lingüísticas
sobre o riso, resumiremos os conhecimentos advindos deste texto, a partir do qual
elaboramos os quadros que se seguem:
QUADRO I - NÍVEIS DE COMICIZAÇÃO (ou a construção do risível)
Comicização Os sujeitos
envolvidos
Tipos de relação objetivo/paixão despertada
Extratextual autor/leitor
pers. Comicizada
Humorística identidade com a
personagem benevolência,
compaixão
Diegética Personagem
cômica
x
pers. comicizante
Cômica depreciação/ridicularização
da personagem cômica
138
QUADRO 2 - AS RELAÇÕES DO RISÍVEL
Tipo
Sujeitos envolvidos
Objetivo
Nível discursivo
Cômica
Personagens
Depreciação
Textual/diegético
Espirituosa
Autor/leitor
Mútuo prazer
Extratextual>diegética
Humorística
Autor = leitor=
pers.cômica
Benevolência
Diegética>extratextual
2.9 - ALGUMAS CONCLUSÕES
Que conclusões relativas à construção do risível podemos deduzir das pesquisas
que embasaram este capítulo? Primeiramente que, desde a apresentação do autor e do
corpus, verificamos que estávamos diante de uma crônica sui generis, porque, embora se
afirme um jornalista humorista, percebe-se que a preocupação maior de José Simão não é
tanto reportar as notícias, mas sim debochar das personalidades e acontecimentos do mundo
político, esportivo e artístico.
Portanto, se as notícias são pretexto para o debochar, satirizar, escrachar,
ironizar e/ou comicizar a nossa vida político-social, é claramente perceptível, desde as
primeiras análises, que tal derrisão se realiza de forma lúdica, irreverente, alegre.
Transformar a notícia em piada, ou seja, o sério em não-sério, comentar as notícias por
meio de brincadeiras lingüísticas, virar o mundo oficial às avessas, enfim, “carnavalizar” a
realidade são estratégias que desvelam o espírito carnavalesco, sempre presente nas
crônicas de José Simão.
139
A associação entre este espírito carnavalesco e aquele que presidia as festas
medievais, concorde perspectiva bakhtiniana, foi imediata: as crônicas de José Simão são
paródicas. Elas recuperam muitas das características do cômico grotesco medieval,
especialmente no que tange à alegre derrisão da realidade. De fato, os colunáveis são
caricaturizados geralmente de forma grotesca, exagerada, antitética, disforme e, quase
sempre, bastante pueril. Aliás, a estética do feio, segundo designação de O’Neil, citado por
Martins, (1995:230), é nelas predominante.
Um outro dado relevante diz respeito ao próprio conceito de paródia que não se
restringe a recriações intertextuais. Como bem aventou Santana (2004), a paródia
jornalística (ou o jornalismo paródico?) pressupõe a realidade noticiada como o texto a ser
parodiado. Pressupõe também que o leitor deva conhecer tal realidade para que resolva as
alusões e inferências inerentes ao discurso do humor. Isso, de certa forma, levar-nos-ia à
conclusão de que o humor é totalmente circunscrito e, portanto, não universal. Como ainda
retornaremos a esta questão, queremos apenas registrar, neste ponto da nossa pesquisa, que
a contextualização, ou melhor, a necessidade dela não é prerrogativa do discurso do humor.
Além do mais, como destacado, é muito comum que José Simão recupere
sinteticamente a notícia antes de parodiá-la. Menos do que uma forma de minimizar
dificuldades relativas a uma improvável falta de informação do leitor, tal estratégia é por
nós entendida como a primeira regra do jogo lúdico que se estabelece entre cronista e leitor.
É como se o cronista dissesse: o jogo é sobre tal assunto, ou sobre tal coisa. Eis aqui
algumas pistas. Quais seriam então as outras regras do jogo? O desvendamento das alusões
e inferências da parte do leitor. Obviamente, nem sempre o leitor desvenda todas as
possibilidades e pode até fazer inferências o autorizadas (“associações acidentais”,
concorde Irwin & Lombardo), mas isso não deve lhe impedir o riso, sobretudo porque a
notícia sintetizada pelo cronista o encaminhou para algumas alusões a serem
interpretadas.
140
Queremos ainda observar que entender como o riso se processa em um texto
cujas características constituintes não são estritamente verbais (a HQ Les Frustés) nos
permitiu aclarar uma questão que há muito nos intrigava: é a perspectiva de quem desvela o
risível que determina a intencionalidade e o propósito do discurso do riso, bem como
calcula as inferências necessárias para a sua consecução. Tal afirmação não rejeita, em
hipótese alguma, a interatividade inerente à linguagem, ao contrário, reforça-a, na medida
em que o cálculo do Eu se constitui e é constituído pelo Outro.
Nesse sentido, discernir as diferentes instâncias que operam a comicização foi
uma forma de entender porque o riso pode despertar paixões tão diversas. Se ele se realiza
no vel do enunciado, parece-nos agora mais claro que possa despertar o nosso
distanciamento. Afinal é apenas uma personagem cômica. Se a comicização é extratextual,
talvez a proximidade maior com o autor já nos predisponha a nos envolvermos com os seus
jogos lingüísticos e a sermos mais benevolentes (melhor diríamos, menos maldosos) com
aquelas personagens com as quais ele se “identifica” bem como desprezarmos aquelas que
ele deprecia.
De qualquer maneira, se adotarmos as categorias propostas por Almeida (1999)
para analisarmos as crônicas de José Simão, podemos afirmar que estas, à semelhança do
que ocorre em Les Frustrés, privilegiam a comicização extratextual. O olhar do autor
observa e destaca as atitudes “deslocadas” de personagens da vida real e, ao comentá-las,
cria o risível. Não há crítica ou zombaria de uma personagem contra a outro. o há, em
suma, o par comicizante/comicizado da narrativa diegética. É puramente a função
comicizante do autor, instância extratextual, que por meio de jogos e transgressões do
código lingüístico, mais do que revelar desvios de comportamento, seduz o leitor,
proporcionando-lhe prazer e instaurando a cumplicidade.
Portanto, se nos perguntássemos se a criação do risível nos textos de José Simão
se estrutura por meio de relações cômicas, espirituosas ou humorísticas, parece-nos que tais
crônicas podem ser consideradas, de acordo com a classificação de Almeida, não como
humorísticas, mas também como espirituosas. Mas, por outro lado, se atentarmos para o
141
fato de que tais crônicas não buscam qualquer identificação entre autor/leitor/personagem
(como é o caso de Les Frustrés), mas, pelo contrário, ridicularizam e depreciam as
personagens, poderíamos classificá-las como cômicas. Mas, enfim, a que chegamos?
Segundo nos parece, o humor não exclui o cômico. Ele apenas o supera e, ao
superá-lo, relativiza-o. Nesse sentido, parece-nos lícito dizer que nem sempre relações
cômicas chegam a ser relações humorísticas, mas que toda relação humorística embute o
cômico. Isso talvez explique porque, embora muitos teóricos insistam em estabelecer tais
distinções, não eles, mas quase todos nós, incidimos no uso metonímico da palavra
humor (o continente pelo conteúdo) como sinônimo de cômico e vice versa, que é usual
falarmos em cômico (o conteúdo pelo continente) para nos referirmos ao humor. Talvez o
uso freqüente da palavra comicidade, de caráter mais genérico, represente uma tentativa de
designarmos com mais segurança, até porque - desculpem-nos a metáfora o terreno é
escorregadio.
Apresentados autor e corpus, percebida a comicização extratextual como atitude
enunciativa usual às crônicas de José Simão, aceita a premissa de que o humor por ele
praticado recupera, como bem podemos inferir a partir das conclusões de Almeida, a antiga
dicotomia humor de palavras – que ele associa à relação espirituosa – e o humor de ações –
que ele associa à relação cômica - buscaremos, a partir de agora, explicar o humor de um
ponto de vista estritamente lingüístico.
Queremos frisar que usaremos as palavras comicidade, humor, riso, como
sinônimos, não porque não nos move tal preocupação terminológica, mas, sobretudo,
porque tais nuances não nos parecem fundamentais para que entendamos a essência deste
fenômeno estritamente humano que é o riso. Queremos também reiterar que, a nosso ver,
tanto a paródia extratextual como a intertextual são marcadas pelo cômico. Isso significa
dizer que o uso da paródia sempre implica o riso e que não nos parece possível, pois, que
uma paródia seja séria.
142
“Lendo as análises de Aristóteles sobre o
assunto, tem-se a impressão de que os gregos de
23 séculos atrás riam como nós, com as mesmas
nuances e pelas mesmas razões”. (Minois,
2003:18)
143
CAPÍTULO 3 - O HUMOR DE AÇÕES
3.1- AFINAL, O QUE É O HUMOR?
Raskin (1985), buscando responder à questão O que é o humor?, propõe uma
fórmula bastante interessante na medida em que esta contempla uma série de fatores
necessários para a consecução do humor, os quais, de forma isolada ou em combinações
distintas, eram sempre reportados pelos estudiosos do riso. Alguns desses elementos
serviam, por vezes, até para que estudiosos negassem a possibilidade de que o humor
pudesse ser, de fato, categorizado ou estudado. Croce (apud Raskin, p.6), por exemplo,
afirmou que o “humor é indefinível como o são todos os estados psicológicos”.
A fórmula de Raskin para a qual HU = HUmor considera os seguintes
elementos: S (Speaker = falante), H (Hearer = ouvinte), ST (STimulus = estímulo), E
(Experience = experiência), P (Psychology = psicologia), SI (SItuation = situação) SO
(SOciety = sociedade). Quando a função do humor é bem sucedida, temos que X = F
(Funny = engraçado); quando não, temos X= U (Unfanny = sem graça), portanto:
HU ( S,H,ST,E,P,SI,SO) = X onde X= F ( FUNNY) ou X=U (UNFANNNY)
Como a Experiência, a Psicologia e a Sociedade tanto do falante quanto do
ouvinte têm papel fundamental para se criar a Situação de humor e, ademais, como para
todo humor verbal o estímulo é sempre um Text (T), Raskin concorda que uma brincadeira
verbal = VJ (verbal joke)
49
pode ser assim formulada:
VJ ( S,H,T,Es,Eh,Es,h, Ps,Ph,SI,SO s,h) = F
Curioso é que a fórmula proposta por Raskin contempla quase todas as correntes
teóricas sobre o humor: a corrente sociológica, a psicológica, a pragmática. Interessante
49
Obviamente existe o humor espontâneo, não intencional, mas este não é objeto de nosso estudo.
144
também que tal fórmula privilegia as três premissas básicas do humor, apresentadas por
Raskin (Cf.op.cit., p.3-5) a saber: 1ª) o ato humorístico é uma competência estritamente
humana (lembremo-nos da afirmação aristotélica) e requer minimamente dois participantes:
falante e ouvinte; 2ª) a existência de um estímulo é condição essencial para que a interação
humorística ocorra; 3ª) todo ato de humor ocorre dentro de certa cultura, própria de certa
sociedade.
Isso posto, Raskin se volta para um outro ponto que, embora não explícito nas
fórmulas acima, subjaz a elas: a questão da intencionalidade do humor. É revelador o fato
de estudiosos conceituados terem apontado a existência de dois tipos de humor: um humor
espontâneo, natural, oposto a um humor artificial. Para Viktoroff (apud Raskin,op.cit.,
p.26), o primeiro tipo ocorre por si mesmo e é percebido como engraçado, enquanto o
segundo é especialmente criado para produzir efeitos cômicos (grifos nossos).
Também Auboin (apud Raskin, op.cit., p.27) incide, de certa maneira, na mesma
distinção, quando afirma ser o cômico produzido pelo intelecto e o ridículo pela impressão
afetiva. O primeiro requer, portanto, a compreensão do ouvinte; o segundo, a percepção.
Raskin fala em humor não intencional em oposição a humor intencional e explica:
De maneira bastante simplista, o primeiro tipo ocorre quando alguém diz alguma coisa (ou
alguma coisa acontece) e o observador percebe isso como engraçado, o que é inesperado para o
falante. O último ocorre, quando o falante quer ser engraçado e, de fato, faz um esforço para sê-
lo.
(op.cit.p.27
)
50
Portanto, a que chegamos? Primeiro que ao texto que se pretende humorístico
subjaz (como a qualquer comunicação) uma intenção, diferentemente do riso espontâneo
que pode brotar de uma percepção quanto a uma atitude ou fala não premeditada, percebida
como engraçada em determinada situação. É indiscutível que, quando o texto humorístico
aparenta ser não-premeditado, ele busca “representar/encenar” essa ingenuidade que, em
50
In somewhat simplistic terms, the former kind occurs when somebody says something (or something
happens) and the observer perceives it as funny, usually unexpectedly for the speaker. The latter occurs when
the speaker intends to be funny and actually makes an effort to be so.
145
tese, caracterizaria a situação de humor espontâneo. Sob este aspecto, muitas personagens
cômicas são risíveis justamente para quem lhes observa a inconsciência das falas e/ou das
ações, mas tal inconsciência é ilusória, porque premeditada pelo narrador.
Convém destacar aqui que, embora tenhamos ciência de que o humor surge
espontaneamente em interações face a face, são os textos verbais intencionalmente risíveis
o objeto dos nossos estudos. Na verdade, ao humor verbal intencional sempre subjaz a
intenção de ridicularizar, debochar, ironizar, brincar, mas as formas podem ser as mais
diferentes: uma piada, uma adivinhação, uma charada, um trocadilho.
De qualquer maneira, se os fatores inerentes à interação humorística bem como
a questão da intencionalidade foram contemplados, a questão estritamente lingüística
remanesce. Buscando, pois, responder o que é engraçado e como o humor se constrói
lingüisticamente, Raskin formula aquela que nos parece ser a mais completa teoria
lingüística sobre riso: a Teoria Semântica do Humor, ou a teoria baseada nos scripts.
Segundo o próprio Raskin, sua teoria, além de ter alcance universal, prima pela
neutralidade com relação às outras que buscam entender o humor, visto que não põe em
xeque a validade das premissas apresentadas pelas outras teorias:
A teoria do humor baseada nos scripts fornece um paradigma universal totalmente neutro em
relação as principais teorias sobre o humor, pois não se envolve com a verdade ou falsidade das
premissas apresentadas por elas.
(Raskin, 1985:132)
51
3.2 - A TEORIA SEMÂNTICA DO HUMOR
Ainda para Raskin (1985), a sua teoria semântica contempla todas as demais,
uma vez que, enquanto estas destacam aspectos específicos do humor, a teoria dos scripts
52
51
The script-based theory of humor provides a universal framework which is completely neutral with to the
major theories and non-committal as to the truth or falsity of theirs claims.
52
O conceito de script adotado por Raskin coincide com o de Teun A. van Dijk (1992), para quem um script
subsume os conhecimentos semânticos, socialmente partilhados, que são acionados pelo usuário da língua
para a compreensão de um dado evento.
146
buscará responder a questão primeira: quais são as condições necessárias e suficientes para
que um texto seja considerado engraçado? Como o humor verbal intencional se constitui o
objeto dessa teoria, obviamente poderíamos também acrescentar: quais mecanismos
lingüísticos formalizam tais condições?
A hipótese principal da teoria raskiniana é a de que um texto carreia o humor
quando duas condições são preenchidas: 1º) o texto é compatível, em parte ou na totalidade,
com dois scripts diferentes, ou seja, uma sobreposição de scripts; 2º) estes dois scripts
sobrepostos apresentam algum tipo de oposição e é desta oposição que decorre o humor.
Convém notar que, se apenas a primeira condição estiver preenchida, não
teremos ainda um texto humorístico, mas apenas ambíguo, e a ambigüidade, embora
inerente ao humor, por si não o produz. É, pois, imprescindível que as duas condições
sejam satisfeitas, ou seja, que haja sobreposição de scripts com oposição parcial ou total
entre eles.
De imediato, o que nos parece relevante é que piadas com total sobreposição de
scripts são inusuais (senão inexistentes), até porque os gatilhos elementos responsáveis e
sinalizadores, que permitem ao ouvinte passar de um script ao outro seriam, dada a total
sobreposição, pouco perceptíveis, e isto dificultaria (para não dizer impediria) o trabalho
cooperativo do ouvinte/leitor. Em outras palavras: a percepção mínima de um engano é
imprescindível ao riso.
Ao propor a teoria semântica do humor e ao associá-lo ao modo de comunicação
non-bona fide, Raskin está, na verdade, organizando teoricamente a questão da brincadeira
verbal, da ambigüidade, da sobreposição de scripts, necessários à criação do humor. Em
suma, segundo palavras de Raskin, o humor necessita que passemos do modo bona fide
para o non-bona fide de comunicação.
147
3.3 - O MODO DO HUMOR
Se, no primeiro modo de comunicação, o falante e ouvinte estão comprometidos
com a verdade e a relevância do que se comunica um modo sério, que prevê o
atendimento às máximas de Grice), no segundo modo, o non-bona fide, tais máximas são
desprezadas, porque não se acredita na relevância e na verdade do que está sendo
comunicado, embora a primeira comunicação, que coincide com o primeiro script, funcione
como pretexto para que se crie o efeito do riso.
Interessante como as conclusões de Raskin (1985) reforçam não a idéia da
competência humorística que entender o humor verbal envolve superar dificuldades
(devemos passar do modo bona fide normal para o non-bona fide) bem como a própria
questão que Grize (1990:42) denomina de princípio de generosidade, ou seja, a
predisposição inerente ao ser humano para dar sentido às palavras, para atribuir coerência
ao que lê ou ouve.
Explicando melhor: se alguém começa a contar uma piada, uma anedota, mas
não “avisa” ao seu leitor/ouvinte que está no modo non-bona fide de comunicação
53
, o
ouvinte, dependendo da sua competência humorística, poderá, num primeiro momento,
hesitar e até não entender a piada. Contudo, ao perceber a incoerência na comunicação, ou
seja, o descompasso entre o modo do falante e o seu próprio, buscará outra maneira de
interpretar o texto ouvido, desvendando-lhe, possivelmente, o efeito risível. As palavras de
Koch (2002), no prólogo da obra Desvendando os segredos do texto, vêm irrefreáveis à
nossa mente: “Este livro pretende ser um pequeno farol a orientar essa constante caça ao
sentido que caracteriza a espécie humana...” (grifos nossos)
53
É indiscutível a existência de expressões introdutoras do humor (ouça esta, por exemplo), mas, às vezes,
faz parte da interação ou da intenção do falante não avisar que o ouvinte deverá passar para o modo non-bona
fide. Quando isso ocorre, podemos afirmar que o trabalho interpretativo do ouvinte será maior, mas talvez
mais gratificante, porque surpreendente.
148
Sob este aspecto, parece-nos sobremaneira interessante comentar que a
percepção do próprio engodo (estar no modo bona fide), a mudança de rota (passar para o
modo non-bona fide) e o conseqüente “desvendamento do enigma” são atividades que
causam prazer, pois encerram um componente lúdico e de gratificação, mesmo porque até a
percepção de que é necessária uma outra leitura depende de que tenhamos interpretado ou
percebido alguma pista. A associação do humor com o lúdico é apontada por Raskin
(1985:104):
A mudança fácil da comunicação bona fide para o modo de contar piadas como a mais acessível
e aceitável forma de comunicação non-bona fide se fundamenta no conceito básico de jogo, que
é prontamente assumido pelas pessoas como a forma mais natural de comportamento...
54
Um outro aspecto interessante com relação à interpretação do humor verbal
reporta o fato de que tal interpretação encerra um crédito de confiança ao falante, pois,
entre o ouvinte achar que o primeiro está mentindo ou brincando, muito provavelmente
escolherá a segunda opção, de maior aceitabilidade social:
No caso (....) em que o ouvinte não espera uma brincadeira, uma piada, ele, inicialmente, tenta,
entender a interação de acordo como as normas do modo bona fide. Somente após ter
interpretado e ter percebido que a interação dentro das normas da comunicação bona fide falhou
é que ele procurará uma outra possibilidade de interpretação do texto e isso o encaminhará para
o modo de contar piada, porque em nossa cultura contar piadas é socialmente um
comportamento mais aceitável do que, por exemplo, mentir ou encenar.
(op.cit.,p. 101)
55
De fato, entre buscar interpretar a fala do outro como piada ou como mentira, a
primeira possibilidade só será rejeitada se a atribuição de coerência resultou infrutífera. Em
síntese, quando o homem prioriza a brincadeira em detrimento da mentira está reiterando a
54
The easy shift from bona fide communication to joke telling as the most accessible and acceptable form of
non bona fide communication may be underlaid by the basic concept of play, which is readily assumed by
people as a natural form of behavior…
55
In the case (...), the hearer does not expect a joke and will initially interpret the speaker`s utterance as
conforming to the requirements of bona fide communication. After his attempts to interpret the utterances
within this mode fail, he will have to look for an alternative way to interpret it, and this will bring him into the
joke-telling mode because, in our culture, joke telling is a much more socially acceptable form of behavior
than, for instance, lying and a more frequent form of behavior than, for instance, playing acting.
149
sua característica de ser social: o modo joke telling é altamente cooperativo, requer a
participação do outro, enquanto a mentira é exclusivamente individual. O caráter
cooperativo do contar piadas é reiterado pelo autor:
Em outras palavras, contar piadas, diferentemente de mentir, envolve uma série de ações
cooperativas e, em decorrência disto, a última é considerada pelo ouvinte quando a opção de
contar piada foi explorada e rejeitada.
56
.
(Raskin,1985:104).
O que podemos deduzir até então? Que o contar piadas é uma forma de
interação social privilegiada, uma vez que tal atividade não prazer a quem a propõe,
mas, sobretudo, a quem a desvenda. O ato físico de rir pode, assim, ser entendido como a
chancela de interação bem sucedida não para o ouvinte, mas também para o falante
Parece, pois, inegável que fazer o outro rir também nos causa prazer.
De qualquer forma e Raskin bem o destaca - pessoas pouco humoradas não
são hábeis em apreender os gatilhos do humor porque interpretam seriamente a
ambigüidade premeditada, inerente às piadas. Na verdade, falta-lhes competência para o
humor, vez que persistem no modo bona fide, quando o esperado é que elas interpretem o
texto pelo modo non-bona fide de comunicação.“Em outras palavras, elas (as pessoas
pouco humoradas) se comportam de acordo com o princípio cooperativo da comunicação
bona fide”. (Raskin, op.cit.p.128)
Os quadros abaixo, transcritos de Raskin (1985:103), permitem-nos um
paralelo bastante didático, visto que, se a comunicação bona fide leva em conta as máximas
de Grice, a comunicação non-bona fide deve desrespeitá-las.
56
In other words, joke telling is a cooperative enterprise while lying is not and, as result, the latter is
considered by the hearer only after the joke-telling option has been explored and rejected
150
Modo bona fide
(i) Máxima da quantidade: Dê toda a informação necessária.
(ii) Máxima da qualidade: Diga apenas aquilo que você acredita ser verdadeiro.
(Seja sincero).
(iii) Máxima da relação: Seja relevante.
(iv) Máxima do modo: Seja sucinto.
Modo non-bona fide
(i) Máxima da quantidade: Dê somente a informação necessária para a piada.
(ii) Máxima da qualidade: Diga apenas aquilo que é compatível com o mundo da
piada.
(iii) Máxima da relação: Diga apenas o que é relevante para a piada.
(iv) Máxima do modo: Conte a piada eficientemente.
Em suma, adotar o modo non-bona fide estabelece entre falante e ouvinte um
outro tipo de interação lingüística para a qual nem a verdade, nem a relevância das
informações são esperadas. Ao contrário, é um modo lúdico, de adivinhação, onde o prazer
do riso decorre da competência de entender pistas, captar gatilhos, mudar de scripts. O
151
humor parece representar, segundo Raskin (op.cit., p.104), “a mais aceitável forma de
comunicação na nossa sociedade depois da comunicação bona fide
57
Que dizer então das crônicas do nosso corpus, que aparecem num espaço do
jornal onde o modo non-bona fide está, praticamente, institucionalizado? Dentro desta
perspectiva, as informações, as notícias trazidas da realidade subsumem o modo bona fide
de comunicação, mas se tornam jocosos em decorrência dos comentários feitos pelo
cronista no modo non-bona fide. E aí parece acontecer algo inerente ao humor: a reversão.
Dizemos que o espaço institucionalizou o modo non bona fide, porque a
expectativa de que o leitor conheça os fatos sobre os quais incidem os comentários. O
conhecimento dos fatos é o pressuposto para que o humor seja entendido, ou seja, para que
o modo joke telling se realize. Nesse sentido, podemos entender o fato a ser comentado
como real, o possível, ao passo que o comentário seria o segundo script, o irreal, o
impossível. De qualquer forma, e parece ser esta uma das características do humor, o que
emerge, via inversão, via paródia ou deboche é, geralmente, o absurdo da própria realidade.
3.4 - A SOBREPOSIÇÃO DE SCRIPTS
Para ilustrar a questão da sobreposição de scripts, Raskin (op.cit.,p.100)
recupera a seguinte piada:
“O doutor está em casa?” perguntou o paciente com a voz rouca e abafada. –“Não,!”
sussurrou a jovem e bela esposa do médico. E acrescentou: – “Entre logo”.
58
57
Humor seems to be the next most socially acceptable form of communication in our society after bona-fide
communication.
58
“Is the doctor at home?” the patient asked in his bronchial whisper. “No,” the doctor young and pretty
wife whispered in reply. “Come right in.”
152
Segundo as explicações de Raskin, nessa piada a sobreposição de dois
scripts: um relativo a uma consulta médica (DOCTOR) e outro relativo a uma possível
aventura amorosa (LOVER). Na verdade, é a percepção da sobreposição de scripts de
naturezas diversas que cria o humor, na medida em que o ouvinte/leitor percebe o engano
existente entre os personagens: o homem tem a voz rouca e abafada porque está doente,
mas a resposta sussurrante da mulher, convidando-o para entrar, mesmo na ausência do
marido, aciona o gatilho para a mudança de script.
É claro que, lingüisticamente, as pistas e as sinalizações para que o leitor passe
para o modo non-bona fide já haviam sido estrategicamente colocadas: o fato de um
homem perguntar a uma mulher se ela está sozinha em casa, a voz rouca e abafada dele, a
beleza e juventude da mulher, o tom de voz do seu convite.
Na verdade, se nos ativermos às máximas conversacionais de Grice, mais
especificamente à máxima da quantidade, tanto as informações sobre a juventude e beleza
da mulher do médico podem ser consideradas excessivas, quanto a sua resposta final pode
ser considerada exígua: ambas violam, embora em proporções inversas, a referida máxima.
O que nos parece bastante sugestivo não é apenas o fato de que o humor
trabalha com a oposição de scripts, mas, sim, a constatação de que o primeiro script
pertence ao modo bona fide (um homem provavelmente com gripe forte ou bronquite vai
procurar o médico) e estabelece a seriedade necessária para que percebamos a não-
seriedade do segundo (a atraente esposa do médico entende a rouquidão da voz como um
convite libidinoso). Sem tal oposição (ou tal engano, como diriam os clássicos), o humor
não se realizaria.
3.5 - OS GATILHOS PARA A MUDANÇA DE SCRIPTS
Embora tenhamos referido superficialmente a questão do gatilho, julgamos
pertinente apresentar a conceituação de Raskin, segundo a qual o gatilho (trigger) é o
153
elemento que possibilita a troca entre os scripts superpostos. O gatilho encerra, de fato, o
elemento disparador do humor.
Do nosso ponto de vista, o gatilho pode ainda ser comparado a uma ponte, vez
que não só possibilita que o leitor passe para o modo non-bona fide, geralmente presente no
segundo script, como também lhe permite o retorno ao script inicial (mais identificado com
modo bona-fide) como forma de percepção do próprio engano.
59
Em suma, disparado o humor, via gatilho, encontrada a nova significação,
ocorre o que nos permitimos chamar de efeito bumerangue: rever o primeiro script é uma
forma imediata de validar o segundo, além do que supomos nos dê prazer. Talvez não
seja tão absurdo afirmar que entender o humor é uma atitude que se assemelha à resolução
de enigmas e charadas. Disparado (e apreendido) o gatilho, o leitor monta o quebra-cabeça
e rearranja todas as informações: é como se resolvesse uma charada, atividade
provavelmente prazerosa.
Como Raskin também afirma que os scripts podem ser parcial ou totalmente
superpostos (grifos nossos), uma dúvida brotou, de imediato, em nosso espírito: scripts
totalmente superpostos apresentam gatilhos? Na verdade, estamos aqui retomando um
questionamento já apresentado anteriormente: se os scripts são totalmente superpostos,
talvez não tenhamos a piada, pois não pistas para o leitor perceber dois percursos. As
afirmações que se seguem são esclarecedoras, mas não nos parecem conclusivas:
No caso de uma sobreposição total, os dois scripts são perfeitamente compatíveis com o texto da
piada e não no texto nada que possa ser percebido como estranho, redundante ou ausente em
relação a um outro script. Assim como ambigüidades igualmente prováveis, piadas envolvendo
total sobreposição de scripts não são freqüentes
(Raskin, 1985:106)
60
.
59
Estamos pensando em termos de comicização extratextual: a apresentação da notícia corresponde ao modo
bona fide; o comentário, ao non-bona fide.
60
In the case of a full overlap, the two involved scripts are both perfectly compatible with the text of the joke,
and there is nothing in the text which can be perceived as odd, renundant (sic) or missing with regard to
either script. Just as equiprobable ambiguity, jokes involving full overlap are not frequent
154
Em outras palavras, se o gatilho é o elemento “desestabilizador” que permite as
idas e vindas do leitor interpretante, ou a mudança de rota, ou de modo (lembremo-nos da
associação com a ponte como elemento que permite a transição de um a outro script), com
a conseqüente percepção de que um dos scripts é mais compatível com o texto todo do que
o outro na piada citada anteriormente, por exemplo, o gatilho permite-nos perceber que
Love é um script mais facilmente compatível com todo o texto do que Doctor parece-
nos lógico supor que a ausência de gatilhos redunda na equivalência dos scripts. Ou, ao
contrário, que a sobreposição total destes redunda na ausência de gatilhos, o que deixaria o
leitor diante de uma situação difícil, talvez paralisante. Como desvendar uma piada sem
qualquer pista?
O próprio Raskin afirma que os gatilhos encerram ou uma ambigüidade ou uma
contradição e que o efeito do gatilho é justamente esse: “ao introduzir o segundo script ele
cria uma sombra no primeiro e na parte do texto que o introduziu {o gatilho}, impondo-lhes
uma nova interpretação, diferente daquela que parecia a mais óbvia.”
61
(Raskin, op.cit.,
p.114). Diante disso, partiremos da premissa de que a sobreposição de scripts representa
sempre um eclipse parcial (termo nosso), deflagrado por um gatilho perceptível.
Os gatilhos podem, pois, subsumir ambigüidade no nível sintático, situacional,
fonético e, para Raskin, todos os trocadilhos são criados com gatilhos ambíguos. O autor
refere ainda a quase ambigüidade de alguns gatilhos que ocorre, por exemplo, quando
palavras são intencionalmente mal empregadas ou aparecem truncadas. Exemplo de quase
ambigüidade seria não a truncagem, mas a união de palavras com base na exploração
sonora como a que ocorre na piada abaixo a respeito da polêmica criada pelo cantor Zeca
Pagodinho com relação a contratos publicitários com cervejarias (vide p.69 desta tese):
E se ele gostasse mesmo da Brahma, ele teria cantado: Não beba uma Brahma,
beBAVÁRIAS! Enfim um Drahma! (16/03/2005)
61
The usual effect of the trigger is exactly this: by introducing the second script it casts a shadow on the first
script and the part of the text which introduced it, and imposes a different interpretation on it, which is
different from the most obvious one.
155
O que nos chamou atenção neste jogo fônico foi o fato de que a leitura da pista
foi orientada pelo locutor, mas tal orientação não deixa de ser maldosa, uma vez que se,
sonoramente, beBAVÁRIAS é o oposto de beba uma, os caracteres maiúsculos expressam
o nome de outra marca de cerveja, (be)BAVÁRIAS, o que, em última instância, é o
gatilho/pista que dispara a idéia de uma outra traição. Sob este aspecto, a grafia da palavra
drama do comentário final (Enfim um Drahma!) revela-nos que o drama agora é da
Brahma: parece haver uma infidelidade intrínseca em Zeca Pagodinho como garoto
propaganda de marcas de cerveja.
Na verdade, segundo o colunista, o que importa para o cantor é beber, e isto, de
certa forma, fora anunciado no título da crônica (Buemba! Pagodinho não é ético, é
etílico) e é reiterado no comentário final que, em forma de conselho, descarta jocosamente
qualquer questão ligada à ética: E avisa pro Zeca Pagodinho que a melhor cerveja do
mundo é a gelada! Sendo gelada, tanto faz! Há, pois, no texto acima, o imbricamento de
dois scripts: um, o mais óbvio, a questão da quantidade, ou do excesso de ingestão da
bebida – Zeca Pagodinho é, sabidamente, um bom copo – e o segundo, o da traição.
o outro tipo de gatilho trabalha não com a ambigüidade, mas com a
contradição. Temos, como exemplo, a piada do condenado que, ao ser encaminhado para a
execução, em uma segunda-feira, comenta que a semana está começando de maneira
agradável. Obviamente a idéia de começo contida tanto na fala dele quanto no advérbio
segunda-feira – traduzem, ironicamente, a idéia do fim.
Um condenado a caminho da execução numa segunda-feira comenta: “Bem, essa semana
está começando de modo agradável.”
62
62
A rogue who was being led out of execution on a Monday remarked: “Well, this week´s beginning nicely”.
156
Para finalizar a questão dos gatilhos ambíguos e contraditórios, analisemos o
trecho da crônica publicada por ocasião da prisão de Sérgio Naya, dono da construtora
responsável pela construção de um edifício residencial que desabou no Rio de Janeiro.
E o Sérgio Naya foi preso. E sabe o que a polícia gritou pra ele na hora da prisão? A
CASA CAIU! E sabe por que o Naya foi preso? Porque a polícia tava em greve. É
verdade, eles estão em operação padrão e examinando minuciosamente todos os
documentos. E pegaram o Naya. A polícia funciona quando está em greve.
(16/03/2005)
A dupla piada (em forma de dois pares de perguntas e respostas) condensa, a
nosso ver, os dois tipos de gatilhos apontados por Raskin. A expressão popular A CASA
CAIU, cujo significado é de que algo chegou ao fim, dispara o humor, porque o réu, Sérgio
Naya, foi processado pelo desabamento com vítimas fatais de um prédio construído
pela firma da qual era o proprietário. Tal expressão tem, portanto, duplo sentido: a ordem
de prisão dada pelos policiais encerra, jocosamente, não só uma maneira informal (e pouco
séria) de dar ordem de prisão, mas o próprio motivo desta.
Já no par seguinte, o humor é disparado em virtude de uma contradição. Quando
a polícia ordem de prisão a qualquer criminoso, ela está desempenhando o seu papel.
Contudo, quando o leitor é levado à informação de que a polícia agiu porque tava em greve,
cria-se em seu espírito uma contradição: como alguém trabalha, se está em greve? Curioso
é que o próprio uso da forma oral tava (por estava) traduz a idéia de desleixo,
especialmente se atentarmos para o fato que, à exceção do pra (em lugar de para), usado
constantemente por José Simão, o tava é a única forma oral neste trecho.
De fato, a polícia só prendeu o criminoso, que estava tentando embarcar para os
EUA, porque a greve da Polícia Federal - em forma de operação tartaruga levava os
policiais a observarem com mais vagar e, consequëntemente, com mais atenção, os
157
passaportes dos passageiros. O próprio locutor não explica a contradição como bem
podemos observar na seqüência do texto – mas também a comenta.
Portanto, o uso da expressão É verdade, no início da explicação, não afiança
ao leitor que aquilo que parece impossível é verídico, bem como reforça o cúmulo
embutido em tal situação. Mais interessante é que a informalidade com a qual a ordem fora
dada já trazia em si uma pista relativa à pouca seriedade da polícia. Bandido e polícia estão
no mesmo patamar? Se o primeiro não leva a sério a vida alheia, o segundo não leva a sério
a própria profissão (Que país é este?).
De qualquer modo e isto é fundamental tanto os gatilhos ambíguos quanto
os contraditórios produzem o mesmo efeito, a saber, levam o leitor a uma revisão
interpretativa. Esta segunda interpretação pode ser deflagrada só pelo gatilho, mas é comum
que ela tenha sido sub-repticiamente preparada por meio de pistas que se tornam óbvias
e claras pós-percepção (acionamento) do gatilho.
Merece atenção redobrada a ntese a que Raskin (1985:127) chegou após
análise de centenas de piadas, sobretudo no que tange à natureza das oposições dos scripts.
Num primeiro nível de oposição, Raskin destaca como a questão da Realidade X
Irrealidade se estabelece, num esquema condicionante/condicionado, entre os scripts
opostos ou superpostos, de tal forma que se o primeiro é atual, o segundo é,
necessariamente, não-atual; se o primeiro é normal, o segundo é anormal e, finalmente, se o
primeiro é possível, o segundo é impossível.
Além desses três tipos básicos de oposição, Raskin observou ainda a constante
oposição de alguns traços essenciais, freqüentemente evocados nas piadas, a saber: se o
primeiro script se associa ao bem, o segundo se associa ao mal; se o primeiro se associa à
vida, o segundo, à morte. Da mesma forma, se o primeiro não se relaciona ao sexo, o
segundo está ao sexo relacionado; se o primeiro não é associado ao dinheiro, o segundo o é.
Finalmente, se o primeiro se refere a uma superioridade social ou a física, o segundo
158
desvela posições contrárias. Enfim, se bem concluímos, o humor trabalha, essencialmente,
com oposições, com contrastes.
O quadro abaixo busca resumir com fidelidade a síntese proposta por Raskin
(op.cit.,p.127), após a análise de um número incontável de piadas.
QUADRO I – AS OPOSIÇÕES SCRIPTURAIS BÁSICAS
CONDICIONANTE CONDICIONADO
Se o primeiro script é: então o segundo é:
- atual - não-atual
- normal - anormal
- possível - impossível
Se o primeiro script se relaciona a: então o segundo se relaciona a:
- o bem - o mal
-a vida - a morte
- a alta estatura/posição social - a baixa estatura/posição social
Se o primeiro script não se relaciona a: então o segundo se relaciona a:
- o sexo - o sexo
- o dinheiro - o dinheiro
Bastante pertinente é notarmos que, grosso modo, as oposições apontadas nas
piadas parecem envolver a dicotomia fundamental dos valores humanos em termos de
idealização e de realidade. Nesse sentido, a primeira coluna trabalha com valores positivos
(e ideais) e a segunda, com os negativos (reais). Se, como vimos anteriormente, disparado o
gatilho o que ocorre normalmente no segundo script, propiciando a releitura do primeiro-
os valores positivos contidos no primeiro serão contaminados pelos valores negativos,
159
contidos no segundo, não nos parece difícil concordar com os antigos quanto à maldade
essencial do humor.
Das observações acima decorrem duas constatações óbvias: primeiro que parece
inerente ao humor a inversão de valores que a própria necessidade de mudança do modo
bona fide para o non-bona-fide subsume; segundo, que o gatilho, também chamado punch
line, deve aparecer no segundo script, preferencialmente (não exclusivamente), no final
deste. Terceiro, que o gatilho surpreende o leitor porque, a partir dele, o leitor se conta
do próprio engano, ou melhor dizendo, revê a interpretação do script inicial, que de forma
intencionalmente enganosa lhe havia sido proposto. As palavras de Raskin (op.cit.,p.146)
garantem a pertinência das nossas observações, em especial das duas últimas::
Nos termos da teoria dos scripts, a punch line encerra, ou ao menos implica, o gatilho. E o
gatilho é mais efetivo quando efetua a troca depois que o primeiro script está firmemente
estabelecido. Isso cria o elemento de surpresa tão valorizado por muitos pesquisadores do humor
e explica por que tantas punch lines vêm no final do texto.
63
Está explicado lingüisticamente não porque a colocação do gatilho no final
do texto pode ser mais eficaz, mas principalmente porque a questão do engano, da surpresa,
do lúdico e até da maldade são associadas ao riso por quase todos os teóricos do humor. O
humor carreia na sua essência e na sua formulação as marcas do contraditório: critica, mas
é ameno; engana, mas desvela verdades; brinca, mas é sério; pode ser maldoso, mas causa
prazer.
Enfim, se para a criação do humor intencional é imprescindível ao falante “o
impulso de fazer a piada” (Raskin, op.cit., p.140), também lhe cabe a responsabilidade de
apresentar os seguintes elementos que, em síntese, reportam tudo o que foi exposto até
então, a saber:
63
In script-based terms, the punch line contains, or at least implies, the trigger, and the trigger is most
effective when it effectuates the switch after the first script is firmly established. This creates the element of
surprise valued by so many researchers of humor, and it explains why so many punch lines come at the very
end of the text.
160
a) a troca, a comutação do modo bona fide para o modo non-bona fide de
comunicação;
b) o texto da piada;
c) dois scripts parcialmente superpostos compatíveis com o texto;
d) uma relação de oposição entre os dois scripts;
e) um gatilho - óbvio ou implícito – que realiza a relação de oposição.
Neste ponto, torna-se imperioso registrarmos algumas observações de Possenti
(2001) para quem, se é claro que quase todas as teorias sobre o riso se voltam para os
efeitos do humor, uma teoria lingüística deve ir além, pois cabe a ela não percebê-los,
mas, precipuamente, explicar como, via linguagem verbal, eles se realizam. Sob esta
perspectiva, à teoria lingüística compete “a descrição dos gatilhos e das razões que fazem
um texto ser compatível com mais de um script(op .cit., p. 23). Em outras palavras, não é
(deve ser) o efeito do humor em si o objeto da Lingüística, mas o como ele é produzido
verbalmente:
Nesse sentido, o efeito de humor deve ser considerado como não especificamente lingüístico,
sendo a língua apenas um meio entre outros para provocar esse efeito de sentido. Para um
lingüista, seja esse meio mais ou menos relevante, é evidentemente o que mais interessa.
Isso posto, passaremos à análise dos assuntos ou temas comuns às piadas e, que,
se bem avaliamos, envolvem, grossíssimo modo, os valores básicos da existência, quer do
ponto de vista moral (o bem, o mal), quer do ponto de vista físico (sexualidade, aparência)
e material (o dinheiro, a posição), responsáveis estes, em última instância, pela própria
questão da sobrevivência (a vida, a morte). Obviamente, esses valores básicos são
apresentados de forma dicotômica, contemplando-se, assim, as oposições real x irreal,
normal x anormal, ou ainda, possível x impossível, já apresentadas anteriormente.
Raskin aponta três tipos específicos de humor: o sexual, o étnico e o político.
Observar como as categorias dicotômicas acima expostas são neles trabalhadas é o que nos
cumpre agora.
161
3.6 - O HUMOR SEXUAL
O humor de cunho sexual foi mais amplamente pesquisado por adeptos da teoria
da supressão/libertação que, como vimos, endossam a tese de que o humor é uma via,
socialmente aceitável, para a liberação da sexualidade, energia historicamente reprimida.
Diferentes culturas em diferentes épocas criaram diversos gêneros textuais, em prosa ou e
verso, para que esta energia vital, que a sexualidade representa, viesse à tona sem
representar riscos.
É o caso, por exemplos, das chastushkas, que existem na Rússia, mais ou
menos um século, mas que foram “redescobertas” pelos intelectuais russos na década de 60,
tornando-se, para eles, símbolo de dissidência, de forma semelhante ao papel
desempenhado pelas piadas políticas da época.
De fato, as chastushkas apresentam um caráter transgressor: são estrofes de
quatro linhas, não necessariamente rimadas, embora o esquema rímico A-B-A-B lhes seja
comum, cujo cunho sexual, redunda, com freqüência, em obscenidades. Tudo leva a crer
o que nos parece o mais transgressor que o de autoria feminina, mesmo porque tais
estrofes eram cantadas ou declamadas por mulheres que, embriagadas, divertiam-se nos
eventos familiares das vilas e pequenas cidades russas. Convém lembrar que nem todas as
chastushkas tinham caráter obsceno, embora as não-obscenas não sejam numericamente
significativas, a se considerar a compilação feita, em 1978, por Kabronsky. (Cf. Raskin, op.
cit., p.172)
Segundo os estudiosos, há correspondência entre as chastuskas e os limericks
anglo-saxões, embora estes sejam produzidos por e para homens. De qualquer forma, as
chastushkas obscenas fazem referências explícitas ao ato sexual, a pênis e vaginas.
A título de curiosidade, transcrevemos uma chastushkas na sua língua original,
o que nos permitirá a verificação da sua estrutura rímica e, a seguir, apresentaremos a
tradução proposta por Raskin (op.cit., p. 171) com o intuito não só de verificarmos a
162
presença da linguagem obscena, mas sobretudo para apreendermos a naturalidade pitoresca
com que a questão sexual é nela tratada, especialmente porque é vista sob a perspectiva
feminina.
Devki v ozere kupalis’
Xuj rezinovyj našli.
elyj den’ oni ebalis’-
Daže v školu ne pošli.
The girls were bathing in the lake
And found a rubber prick {dildo}.
They fucked {themselves with it} for the whole day
So that they even missed school.
( Kabronsky, 1978.39)
Garotas estavam se banhando no lago
E encontraram um pinto de borracha.
Elas fizeram {tanto} sexo com ele durante todo o dia
Que acabaram perdendo as aulas.
Também os limericks
64
anglo-saxões têm origem folclórica e a sua musicalidade
se realiza em um quinteto, cujas rimas seguem o esquema AABBA. Da cidade irlandesa de
Limerick de onde provavelmente surgiram lhes vem o nome, e inicialmente era comum
que o topônimo geográfico que fechava o primeiro verso, reaparecesse no fecho do último.
Os primeiros limeiriques ingleses não tinham cunho nem sexual, nem
humorístico e muitos folcloristas e literatos associavam a sua origem às canções de ninar.
Foi Edward Lear (1812-1888) quem, em 1846, ao escrever o seu primeiro Book of
Nonsense percebeu-lhes o potencial jocoso em decorrência do qual os limeiriques se
64
Adotaremos a grafia limeirique já dicionarizada.
163
tornariam mundialmente conhecidos. Observemos como o jogo de palavras, o nonsense
65
e
o humor se fazem presentes no limeirique abaixo:
There was a young fellow named Hall,
Who fell in the spring in the fall;
‘Twould have been a sad thing
If he’d died in the spring,
But he didn’t – he died in the fall.
Havia um jovem chamado Hall,
Que caiu na fonte, no outono;
{ou: Que caiu, na primavera, na cachoeira;}
Isso seria algo triste,
Se ele tivesse morrido na fonte,
{ou: Se ele tivesse morrido na primavera,}
Mas ele não morreu {na fonte ou na primavera} – ele morreu na queda.
(Tradução de Mattoso, p.2 de 11)
Os limeiriques capitularam, ao longo dos tempos, ao uso de uma linguagem
chula, mais em consonância com a sua temática que se tornou licenciosa, obscena,
conforme atesta Mattoso:
Quanto à temática, o limerick abusa do fescenino, isto é, a infusão do chulo no cômico, seguindo
a tradição transgressiva e clandestina da poesia popular, ou seja, o desafio ao proibido, em
parceria com a sátira de costumes
(Mattoso www. roteirosonline.com.br/limeirique).
No Brasil, o limerick ganhou adeptos e o poeta e letrista paraibano Bráulio
Tavares foi quem, em 1982, rebatizou o gênero com o nome de limeirique em homenagem
65
Lembremo-nos de que a relação humor/nonsense é bastante comum aos haicais (Cf. p. 54 desta tese).
164
ao lendário cantador da Paraíba, Limeira, conhecido como o “poeta do absurdo”. Vale a
pena transcrever a proposta estética de Bráulio Tavares (apud Mattoso, p. 2 de 11) sobre os
limeiriques, não só porque ela resgata os principais cultores do limeirique anglo-saxão, mas
também porque as características nela apresentadas nos permitem alguns paralelos com o
humor praticado por José Simão, especialmente no que tange ao uso de expressões
escatológicas, à constante sexualização dos referentes, à invenção de algumas palavras e/ou
a própria distorção gráfica e sonora de outras, à miscelânea de temas e assuntos. Isso sem
considerar a questão do nonsense e da linguagem extremamente popular, marcas bastante
comuns no discurso que se pretende humorístico.
Então eu me avoco o direito de criar, para a literatura brasileira, o gênero intitulado
‘Limeirique’, e que consiste em versinhos curtos (seguindo ou não a forma de limerick europeu-
americano) onde estejam presentes os seguintes elementos: (1) incursão pelo terreno fescenino-
escatológico; (2) pródiga utilização do nonsense; (3) exploração das rimas invulgares e da
distorção gráfica e sonora das palavras para acomodá-las no verso; (4) invenção de palavras; (5)
mistura heterogênea de informações culturais (política mais geografia, mitologia mais
matemática, rock mais espiritismo, haute couture mais zoofilia, etc.). Tudo isso são coisas
presentes tanto no ‘limerick’ estrangeiro (cujos maiores cultores o Carroll & Edward Lear)
quanto na poesia de Zé Limeira, ou pelo menos nos versos atribuídos a ele.
Neste ponto das nossas considerações, é fundamental frisar que o constante
apelo à sexualidade, que tanto as chastushkas russas quanto os limeiriques anglo-saxões ( e
os de versão tupiniquim) desvelam, parece ser uma tendência universal do humor. Se a
sátira e a comédia se voltam para a humana cotidianidade, é quase fatal que a questão da
sexualidade maliciosa seja nelas trazida à tona. O que, indiscutivelmente, não ocorria na
tragédia, gênero nobre, filosófico, superior.
A título de curiosidade, queremos destacar uma pesquisa feita por Gil (1991: 83)
que, a propósito de classificar piadas conforme o assunto nelas dominante, verificou que
entre 881 piadas colocadas sob a rubrica de comportamento ético, 501, ou seja, cerca de
dois terços delas, se referiam a questões ligadas “explicitamente ao sexo e à sexualidade.”
165
Isso posto, cremos poder endossar a definição de humor sexual proposta por
Raskin (1985), segundo a qual esta espécie de humor contém, explícita ou implicitamente,
referências a relações sexuais, ou ao sexo em geral. Obviamente, as referências sexuais
envolvem uma gama de possibilidades que vai desde perguntas e trocadilhos inocentes, que
podem ser proferidos em reuniões diante de pessoas de qualquer idade, àquelas piadas
consideradas muito sujas.
Reafirmando que a teoria baseada na oposição dos scripts contempla o humor de
cunho sexual, Raskin, tendo analisado inúmeras piadas, propõe uma subdivisão básica para
a categorização deste tipo de humor, a saber: 1ª) piadas criadas pela oposição clara de dois
scripts, sendo mais comum que o primeiro o seja relacionado ao sexo, ao passo que o
segundo o é. 2ª) piadas criadas com material totalmente sexual que implica ou sugere a
realidade não sexual e a oposição sexual/não sexual.
Além dessa primeira divisão mais geral que, grosso modo, trabalha
respectivamente com a implicitude ou com a explicitude de informações sobre sexo, Raskin
as subdivide com base em um outro critério, a saber, se a piada conta ou não com a
presença de um script sexual específico, que reforça a natureza sexual implicitada nela.
Também o humor que trabalha com a explicitude sexual é subdividido em dois tipos:
aquele que apresenta uma oposição não-sexual e aquele que trabalha com uma oposição
sexual específica.
Chegamos assim aos quatro tipos de humor sexual propostos pela teoria
raskiniana e, como a diferença entre tais tipos parece-nos, por vezes, extremamente sutil,
julgamos pertinente não apenas ilustrá-los, mas também acrescentar-lhes comentários e
informações.
a) oposição sexual/não sexual: aberta e inespecífica
166
Neste primeiro tipo, o sexo é evocado de forma geral e inespecífica: não há, via
de regra, na piada, qualquer palavra ligada diretamente ao sexo, como se observa no texto
que se segue:
Um professor da área médica pergunta a sua jovem aluna qual é o órgão que tem
capacidade de triplicar de tamanho. A garota enrubesce e, dando uma risadinha, exclama:
Hee, hee”. “Não seja estúpida!” grita o professor, enfurecido. “É o pulmão! O hee-hee
só pode aumentar duas vezes de tamanho.” ( apud Raskin, op.cit., p.151).
Como se percebe, nenhuma palavra do texto é vocábulo do campo sexual, nem o
texto, em princípio, trabalha com qualquer informação sexual específica. Apesar destas
aparentes limitações, a piada tem inegavelmente teor sexual. Interessante que a oposição de
scripts envolve um inicial não relacionado ao sexo, ao qual se superpõe e se opõe um
segundo relacionado ao campo sexual.
Para Raskin, este primeiro tipo é básico e, de certa forma, reaparece em todos os
demais. Fundamental neste primeiro tipo de humor sexual é o papel do duplo sentido e da
alusão, corroborando inclusive a inerente implicitude de tais textos. Ademais, é comum que
o gatilho seja uma palavra homônima, responsável por combinar um significado sexual a
outro não sexual ou, ainda, que seja alusões a obscenidades.
Observemos como um simples comentário sobre jogo de futebol pode
“inocentemente” implicitar a questão da sexualidade pelo uso de expressões homônimas
que possibilitam a dupla leitura:
E que buemba! Brasil x Colômbia. Marcação homem a homem termina pau a pau. O duro
é ficar acordado para ver gente dormindo no campo! Não balançou a torcida.(15/10/2004)
167
Obviamente, o cronista jogou com duas expressões comuns aos jogos de
futebol: marcar homem a homem e terminar pau a pau. Interessante como a oposição
paralelística entre duas expressões duplas não revela como o jogo foi travado, mas a
própria equivalência do resultado, visto que não houve gols. De qualquer forma, o uso de
tais expressões não nos parece ingênuo, uma vez que a expressão pau a pau também carreia
o significado popular da palavra pau, ou seja, o de órgão sexual masculino. Há uma
sugestão de homossexualidade
66
implícita em tal construção. Se o futebol é tido como um
jogo viril os comentários que se seguem bem o mostram os nossos jogadores deixaram
a desejar: dormiram em campo e nem balançaram a torcida. Um verdadeiro fiasco!
b) oposição sexual/não-sexual: clara e específica
A diferença básica entre este tipo e o anterior é que neste a oposição sexual/ não
sexual - básica, como vimos - é reforçada pela presença de uma oposição secundária,
evocada por um outro script de natureza especificamente sexual. Talvez a piada abaixo nos
ajude a entender a sutil diferença entre este tipo e o anterior. Vejamos.
Uma garota retorna da escola uma hora antes do horário usual. A mãe {surpresa} lhe
pergunta como conseguira aquilo e ela responde que João a trouxera de bicicleta. O irmão
{mais surpreso ainda}, de imediato, comenta: “Mas {como?}, João dirige bicicleta de
mulher!” (Apud Raskin, op.cit.,p.155)
É patente que este segundo tipo também trabalha com a alusão que, no exemplo
em tela, nos remete àquela oposição geral, típica desta teoria: normal x anormal,
possível/impossível, real/irreal, ou seja, a simples alusão de que a bicicleta é para mulheres
constitui o gatilho responsável por acionarmos um outro tipo de conhecimento, que Raskin
66
Entendemos que a sugestão de homossexualidade funciona neste texto mais como uma crítica ao fraco
desempenho da seleção brasileira. Isto nos impediu de inserir este exemplo no segundo tipo de humor sexual,
como proposto por Raskin.
168
considera ser de natureza mítica, porque o exagero que ele encerra não se coaduna com a
realidade: o tamanho descomunal do órgão sexual masculino supre a ausência da barra da
bicicleta para mulheres.
Reputamos ser este um dos pontos mais ricos e profícuos da teoria raskaniana
sobre o humor sexual, porque estes scripts específicos, que incrementam a oposição básica,
são marcados, quase sempre, por uma visão distorcida, exagerada, anormal. São piadas em
que se valoriza o tamanho das genitálias, sobretudo das masculinas, as façanhas ou
maratonas sexuais, as exposições de órgãos sexuais, a experiência e a ignorância sexuais, e
até o sexo proibido ou os chamados tabus: zoofilia, traições, homossexualismo,
prostituição, felação, perversões....
Esses scripts sexuais específicos parecem captar um número limitado de
estereótipos sexuais, aceitos por todos os envolvidos na atividade de produzir e consumir
humor, e que primam pelo exagero. Para Raskin, os scripts sexuais específicos têm
natureza mítica não só porque superdimensionam a realidade, mas, sobretudo, porque estão
presentes em quase todas as culturas, de diferentes épocas. Falos exagerados parecem
simbolizar a sobrevivência e a potência da espécie e, neste sentido, supõe-se que
correspondam a uma aspiração ancestral, atávica, mítica.
Curioso é notar que estes scripts são binários, pois trazem em seu bojo o traço
oposto. O da ignorância sexual, por exemplo, aparece em piadas que envolvem crianças,
virgens, padres e, se a presença da ignorância é considerada normal e é esperada, a ausência
dela é inesperada e anormal para tais grupos. Da mesma forma, mas dicotomicamente,
enquanto o exagerado tamanho da genitália masculina corresponde ao ideal, é a pequenez
da genitália feminina que se valoriza. Como decorrência, tanto o pênis pequeno, quanto a
vagina grande constituir-se-ão excelentes motivos para chacotas, vez que não
correspondem àquela aspiração mítica.
Interessante a pesquisa de Possenti (2003) que ao buscar provar que as piadas
trabalham com os mesmos estereótipos presentes em outros tipos de texto e que não um
169
discurso humorístico, mas um discurso que, via humor, explora tais estereótipos constata
como, em anúncios de jornais, por meio dos quais se oferecem serviços sexuais, os mesmos
estereótipos são acionados.
Se a estereotipia sexual nos leva a enfatizar a idéia de que os scripts específicos
subsumem aspirações/preocupações universais, acreditamos que a presença constante de
tais estereotipias não nos permite invalidar a existência de um discurso do humor, pelo fato
de que elas são exploradas em outros discursos, no caso, o da propaganda. Retornaremos a
esta questão em momento oportuno. Finalizemos agora a divisão raskiniana quanto aos
tipos de humor sexual.
c) Oposição não-sexual no humor sexual explícito
Este grupo desenvolve um movimento em sentido contrário ao do primeiro
grupo, ou seja, um elemento do mundo não sexual é incluído em uma piada com conteúdo
sexual explícito. Nas palavras de Raskin (op.cit.,p.161), “o ouvinte é lembrado do mundo
não sexual, enquanto ainda se encontra imerso no mundo sexual
67
. Talvez a piada russa,
do século XIX, possa tornar claro este terceiro tipo de humor.
Um oficial foi nomeado para fazer parte de uma guarnição, que ficava em local esquecido
de Deus. Depois de algum tempo, o oficial perguntou a seu ajudante, que estava lá,
alguns anos, como eles faziam sexo, já que por lá não havia mulher. O ajudante lhe aponta
um velho camelo adiante. O oficial, surpreso, pergunta-lhe se também os oficiais
recorriam ao camelo e recebe resposta afirmativa. Depois de muita hesitação, o oficial
decide tentar, mas, à noite, retorna para o alojamento totalmente desarrumado, sujo e
frustrado. “Como vocês conseguem fazer? O camelo não parece estar acostumado. Ele me
jogou no chão as três vezes que eu tentei”. “Nós usamos o velho camelo para ir à vila que
fica a seis milhas daqui, senhor!”, respondeu-lhe o serviçal. (Apud Raskin, p.161)
67
(Here), the hearer is reminded of the non-sexual world while being still immersed in the sexual world.
170
d) Oposição sexual específica no humor sexual explícito
Neste último tipo, as piadas, além de conterem a oposição sexual/não-sexual,
são marcadas, fortemente, por um script sexual especifico. Observemos como a piada
abaixo, de cunho sexual explícito, é ainda marcada pelo script específico que valoriza o
tamanho avantajado do falo.
Uma mulher judia foi violentada por um cossaco no campo. Quando seu marido tentou
confortá-la, ela gritou: “Vá embora! Eu sabia que você foi circuncidado, mas eu não
imaginei que o tivessem cortado tanto!”( piada russa , apud Raskin, p.166.)
Apenas um lembrete: se nos reportarmos às chastushkas obscenas (vide p.151-2
desta tese), com segurança podemos afirmar que elas representam textos deste quarto
grupo.
Buscaremos, a partir de agora, ilustrar com trechos retirados das crônicas apenas
os dois primeiros tipos de humor sexual proposto por Raskin, até porque, como notamos,
piadas explicitamente sexuais (terceiro e quarto grupos) bem como notícias sobre sexo e
sexualidade não costumam ser o objeto das suas crônicas. Há, quando muito, notícia sobre
pesquisas de cunho sexual e, mais importante do que a própria notícia, são os comentários
maliciosos, por meio dos quais a sexualização dos referentes tem-se delineado como
estratégia freqüente. É o que se constata no jogo de palavras dar duro/ encarar um duro,
em que, à guisa de paráfrase do trecho 40% das inglesas preferem fazer faxina a fazer sexo,
o cronista brinca com o duplo sentido atribuído à palavra duro, conforme se lê em:
171
E deu numa pesquisa que 40% das inglesas preferem fazer faxina a fazer sexo. Ou seja,
eles preferem dar duro do que encarar um duro! E 40% dos homens preferem ver futebol a
fazer sexo. Isso porque na Inglaterra eles não têm o Galvão. Senão eles iam preferir os
gritos das mulheres deles! Ou seja, sexo é sempre a segunda opção na Inglaterra!
(12/09/2004)
Como a pesquisa tamm revela que os homens ingleses preferem o futebol ao
sexo, o cronista aproveita para dar mais uma alfinetada em Galvão Bueno, que seria um
“santo remédio” para os ingleses, visto que lhes tiraria o prazer de ver futebol, em
decorrência dos comentários impertinentes, continuamente emitidos por esse locutor
esportivo. Convém observar que o trecho em questão pode, perfeitamente, ser analisado
também como humor étnico, visto que subjaz a ele a crença de que o comportamento sexual
dos brasileiros é diferente.
Dentro do corpus pesquisado esta foi a única notícia diretamente ligada à
questão da sexualidade, o que comprova não só a afirmação feita anteriormente, mas
também nos leva a pensar que, para a sexualização dos referentes, o texto funciona como
pretexto. Queremos observar ainda que as análises dos dois primeiros grupo serão
precedidas pelo resumo das características levantadas em cada um deles, conforme se
segue.
Primeiro grupo
Especificidades:
1- movimento do não-sexual para o sexual;
2- sexualidade implícita (o assunto da piada/ou do texto não é sexo);
3- gatilhos com base na alusão e no duplo sentido.
172
Exemplo:
E o Uri Geller, o entortador de garfos, saiu em defesa do Michael Jackson. sei, o Uri
Geller anda garfando o Michael Jackson. (20/01/2004)
José Simão reporta a defesa feita por Uri Geller paranormal famoso e
midiático, que entortava garfos e colheres, diante das câmaras, apenas com a força do
pensamento diante da possível condenação do cantor Michael Jackson. A notícia em si
não tem originalmente cunho sexual, pois a intenção primeira é, em tese, noticiar o apoio
do prestidigitador ao cantor.
Portanto, é apenas no comentário que o riso se deflagra, dada a presença do
gatilho (o verbo garfar) que não implicita tendências homossexuais do acusado (e do
próprio Uri Geller) mas também reativa na mente do leitor a causa pela qual Michael
Jackson responde a processo: as constantes acusações de pedofilia. Mais lúdico ainda é o
fato de que o leitor percebe que o epíteto colocado (entortador de garfos) já estava
preparando o terreno para a piada-comentário, visto que garfar, é uma variação para o
verbo comer, ambos expressões gírias para o ato sexual.
A partir da percepção do gatilho contido no verbo garfar, o leitor revê todo o
texto e tal revisão é lúdica, porque o engano, a que fora calculadamente conduzido, é por
ele desfeito e isto, com certeza, lhe dá prazer. Obviamente, a construção do risível, feita via
comicização extratextual (vide p.123 desta tese) aproxima locutor/leitor que riem nem tanto
do personagem comicizado, mas do jogo lingüístico que lhe desvela as agruras.
173
A sexualização dos referentes com intuito de se deflagrarem ou se acentuarem
os efeitos risíveis de uma notícia - sem qualquer conotação sexual - é realizada de forma
eficaz e muito criativa no seguinte texto:
E aquele Batman que furou a segurança e apareceu no parapeito do Palácio de
Fuckingham? O site Kibeloco disse que ele estendeu a faixa: “Robin, volta pra mim, me
perdoa”. E diz que quando Batman olha pro Robin, ele pega o Batmóvel, vai pra bat-
caverna e bate uma! E sabe por que o Batman é apaixonado pelo Robin? Porque amor de
morcego é um amor cego! (15/09/2004)
Mesmo que o leitor desconheça o fato de que um inglês, fantasiado de Batman,
tenha driblado a segurança do palácio de Buckingham, em Londres, e tenha pendurado, em
uma das sacadas, uma faixa cujos dizeres sintetizavam o protesto contra as decisões
judiciais que restringiram contacto entre pais divorciados e seus filhos, julgamos que o
resumo da notícia foi reportado por José Simão.
Aliás, a notícia teve tratamento VIP na Folha de S. Paulo, no dia 14/09/2004,
visto que saiu em primeira página, sob a seguinte manchete: BATMAN INVADE PALÁCIO
DE BUCKINGHAM. O inglês, Jason Hatch, de 33 anos, passou 5 horas exibindo os
músculos, acenando e dando socos para o ar, até ser detido pelos policiais. Segundo consta,
um grupo de militantes do grupo “Pais pela Justiça” distraíra os guardas possibilitando que
Hatch escalasse o prédio. Entre tais militantes, havia um fantasiado de Robin que chegou,
inclusive, a ser preso.
O que nos parece digno de nota é que, mesmo se os envolvidos não estivessem
fantasiados de Batman e Robin, o simples fato de Hatch ter driblado a segurança e ter
escalado o prédio do palácio real inglês permitiria ao cronista, por analogia, associar a
notícia a Batman, o homem morcego e, conseqüentemente, a Robin, seu ajudante. O que
queremos destacar é que um fato insólito como este, em que a realidade vem marcada
174
com as cores da fantasia, representa um “prato cheio” para o humor: José Simão nunca o
desprezaria.
De fato, o autor consegue fazer os comentários risíveis não porque sexualiza
os referentes, mas porque, lançando mão da paródia, relembra os heróis da famosa HQ,
como heróis gays. A sexualização dos referentes se inicia com o próprio trocadilho: o
palácio de
B
uckingham passa a ser o palácio de
F
uckingham, numa alusão aos constantes
escândalos sexuais que marcaram a monarquia inglesa.
Citar a piada do site Kibeloco, segundo a qual os dizeres da faixa sintetizam
não um pedido de desculpa, mas a declaração pública do amor homossexual de Batman
por Robin (Robin, volta pra mim, me perdoa), representa o mote para a desmistificação do
herói. Se, como se afirma freqüentemente, uma piada leva à outra, as que se seguem, são,
lingüisticamente geniais.
Pegar o Batmóvel, ir para o batcaverna e bater uma representa a estruturação de
um paralelismo verbal, no qual o último elemento realiza a mudança de script, porque se,
sonoramente, bater mantém alguma semelhança sonora com o nome do herói (
bat
man),
semanticamente um estranhamento, algo que o leitor desconhece no mundo usual de
Batman e que a linguagem chula tão bem subsume (bater uma punheta) e resume (bater
uma). O herói se humanizou: é agora conhecido pela sua homossexualidade e pelos males
do amor não correspondido: homossexual apaixonado, dado ao onanismo. Herói ou anti-
herói?
A citação de Sant’Anna (2004:75-6) mostra com muita propriedade como a
tendência à dessacralização marcou os anos 60, atingindo, inclusive, os heróis infantis,
símbolo dos comportamentos idealizados e do bom mocismo. Tais heróis são humanizados
ao extremo, e nos parece óbvio que se tornem heróis histriônicos ou anti-heróis, fadados,
pois, à comédia:
175
Se tomarmos um outro tipo de manifestação, os chamados comicse “estórias em quadrinho”,
vamos constatar uma coisa curiosa. A década de 60 assistiu ao surgimento de inúmeras
publicações, tentando desmistificar os heróis de histórias infantis. Dentro do clima de
contracultura reforçou-se o anti-herói. Tentou-se acabar com o aspecto angelical dos super-
heróis, mostrando que são não apenas pessoas normais, mas, ao contrário, de tão normais são
iguais a qualquer pessoa. Na televisão surgiu uma nova versão de Bat Man e Robin, onde se
introduziu uma humanização dos tipos, às vezes, perto da comédia
.
Por outro lado, uma série de
revistas tipo Mad reforça o aspecto satírico e grotesco, desmistificando a linguagem cotidiana.
Segundo grupo
Especificidades:
1- movimento do não-sexual para o sexual;
2- sexualidade ainda implícita (o assunto da piada ou do texto não é sexo);
3- presença de scripts sexuais específicos como reforço (alusões);
Exemplo:
Ereções 2004! Baiana do Prona bate um bolão. É que tem uma candidata em Salvador,
uma morena supergostosa, chamada Milena. E o slogan é “Tudo pelo esporte”. E o
outdoor é a gostosa de shortinho com as pernas abertas com uma bola colocada bem na
frente da periquita. Então o esporte dela é bola na rede. PIMBA NA GORDUCHINHA!
Devia ser candidata a Morena do Tchans! E ela é tão gostosa que já tem homem roubando
o outdoor pra fazer de papel de parede! (12/08/2004)
Texto marcado, desde a chamada, pelo apelo sexual, já que as eleições – assunto
da notícia passam a ser ereções 2004, decorrendo daí a presença de vocábulos ligados à
sexualidade, a saber: supergostosa, pernas abertas, periquita. Embora o texto noticie as
estratégias eleitoreiras adotadas pela candidata Milene à vereança de Salvador e eleição,
em princípio, não é assunto de cunho sexual – o que importa no texto de Zé Simão parecem
ser, de fato, os comentários, até porque é por meio deles que o humor é deflagrado.
176
Curioso neste trecho é que o humor se realiza pelo imbricamento de três scripts
básicos: as eleições, o futebol e o sexo, e o faz de tal forma que, se o autor joga com
metáforas esportivas, para reforçar o aspecto sexual, a questão eleitoral vai se revelando
como mero pretexto, o que, em suma, parece coincidir com a própria farsa política que a
baiana do Prona sintetiza.
É inegável a criatividade das associações feitas entre bater um bolão, bola na
rede e pimba na gorduchinha, nas quais toda uma alusão não à boa performance
sexual da candidata, mas também um convite para que a fantasia do leitor o leve a pôr a
bola na rede ou em, outras palavras, a acertar a gorduchinha, que assume agora um outro
sentido. Em suma, estamos falando de colocar votos em urna ou de relações sexuais?
Parece que o slogan “Tudo pelo esporte”, tudo justifica, inclusive usar o futebol e a
sexualidade para o cumprimento de um dever cívico. Afinal, estamos no Brasil. Em tempo:
a construção do humor é genial. A notícia é péssima.
Em suma: a questão sexual é tão presente no texto que apenas o fato de o
assunto da notícia não ser de cunho sexual justifica o enquadramento deste texto no
segundo grupo proposto por Raskin. Cumpre ainda notar que a alusão final reitera a
sexualização dos referentes, na medida em que tal outdoor, ao ser usado como papel de
parede, provavelmente, inspirará atitudes sexuais solitárias. A masturbação pode ser
considerada um script sexual específico?
Ocorre-nos esta pergunta por que a diferença entre o primeiro e o segundo grupo
parece ser, concorde Raskin, apenas a presença de um script sexual específico neste último.
Como nos dois grupos a questão da sexualidade vem implicitada, via duplo sentido ou
alusão, e como a questão da anormalidade/anormalidade sexual (a questão dos scripts
específicos) não é imutável, torna-se, por vezes, difícil, encaixar um texto ou uma piada
num ou noutro grupo.
Sob este aspecto, o primeiro texto seria mais ligado a um script específico,
embora a temática sexual no caso, a da homossexualidade seja menos óbvia: apenas
177
um vocábulo (garfando) que a realiza, ao passo que o segundo, com um número
significativamente maior de vocábulos remissivos à questão da sexualidade, envolve,
aparentemente, a relação sexual tida como normal, ou seja, a que ocorre entre homem e
mulher. De qualquer forma, perguntamo-nos: até que ponto se consideram normais as
façanhas sexuais femininas (Baiana do Prona bate um bolão)? E a masturbação sugerida na
frase final? Dito de outra forma: até que ponto tais assuntos não são tidos como tabus?
Diante do exposto, cremos não haver problema em considerarmos que, grosso
modo, os dois primeiros grupos podem ser caracterizados pelo fato de que, se o assunto, em
princípio, o é sexual, ele será comentado como se o fora. Em outras palavras, ocorrerá a
sexualização dos referentes
68
e é desta estratégia que decorre o humor. Aliás, segundo nos
parece é a questão da sexualização dos referentes que distingue os dois primeiros tipos, dos
dois últimos, visto que, nestes, o assunto da piada ou do texto, já é nitidamente sexual.
Portanto, conforme expusemos acima, não nos deteremos nos dois últimos tipos
de humor sexual, não só porque julgamos que os exemplos dados por Raskin já são
suficientes para entendermos a sutil distinção por ele proposta, mas, sobretudo, porque
o dissemos o assunto sexo não é comumente o alvo da notícia, como o é de uma piada,
por exemplo. Isso, contudo, não nos impede de fecharmos os dois grupos remanescentes no
que diz respeito às suas especificidades e a eles voltarmos, se a análise de alguma piada
presente no corpus porventura o exigir.
Terceiro grupo
Especificidades:
1- movimento do sexual para o não-sexual;
2-sexualidade explícita (o texto já fala sobre sexo);
3-um script não-sexual confronta e reforça o sexual
68
Entendemos por sexualização de referentes, o tratamento sexual, malicioso, que é dado a um assunto não
sexual com o intuito de se criar o humor.
178
Quarto grupo
Especificidades:
1- do sexual para o mais sexual, ou seja, o sexual reforçado por um script específico;
2- sexualidade explícita (o assunto é claramente sexual);
3- scripts sexuais específicos como reforço (lembremos apenas que os scripts específicos
são aqueles considerados míticos, pois envolvem façanhas sexuais, tamanho exagerado ou
diminuto das genitálias masculinas e femininas respectivamente, sexo proibido, etc.)
Uma observação: a piada do oficial que entende mal a explicação do seu
ajudante e a da mulher judia, que foi violentada por um cossaco (ver p.159 e 160 desta
tese), servem como exemplos do terceiro e quarto grupos, respectivamente.
Cientes de que toda classificação não abarca a infinitude de possibilidades
lingüísticas por meio das quais o discurso do humor pode ser construído, cientes também de
que toda classificação é sempre limitada, queremos apenas registrar que dela nos
serviremos sem qualquer radicalismo, movidos pelo intuito que nos parece subjacente a
qualquer classificação: o de buscar um rumo plausível, uma certa coerência de análise,
diante de tanta riqueza e de tantas bifurcações.
O que nos compete neste ponto é responder a uma questão que, ao longo da
pesquisa, tem nos intrigado e que diz respeito à propagada propriedade catártica do humor,
em especial, no que tange à sexualidade, uma vez que, inspirados em Freud, muitos
estudiosos apontam o humor como uma das vias mais aceitáveis (e socialmente seguras)
para transgressões e liberação sexuais. Parece não ser outra a posição de A.Martins
(2003:36):
Os condicionamentos culturais, as imposições e interdições também aqui dificultam o fluir,
impedem a descontração. A piada de cunho sexual redime e libera esses aspectos, abrindo a
possibilidade de contacto com um domínio em que não entra apenas a mera expressão do desejo,
179
mas a possibilidade de realização mais ampla do indivíduo. Onde está sisudamente escrito
“Proibido”, o humor faz rir e lê “Permitido”.
Possenti (2003), negando a premissa de que o discurso humorístico é
responsável por trazer à tona todo um conteúdo sexista, relativo a fantasias recônditas ou a
estereótipos sexuais, busca inverter tal lugar comum, ao afirmar que as piadas não
constroem tal discurso: elas apenas o exploram.
Estudos do humor e humoristas reafirmam constantemente a tese de que “este tipo de discurso”
veicula sentidos censurados ou proibidos, que não teriam vindo à existência sem a vitalidade do
“discurso humorístico”. No entanto, verifica-se com relativa facilidade que piadas e outros tipos
de textos humorísticos constroem-se sobre lugares comuns e estereótipos. Não constroem
discursos, elas os exploram. Essa característica fica bem clara quando se trata de etnias ou
populações com identidade definida (argentino é orgulhoso, baiano é preguiçoso, judeu/turco é
argentário, inglesa é fria etc), mas também está em piadas que versam sobre aspectos da
sexualidade
(Possenti, 2003:1).
Parece-nos óbvio que a criação dos estereótipos sexuais bem como a catarse que
as piadas podem provocar, ao abordar tais temas, não são inerentes ao discurso do humor.
Todavia, parece-nos óbvio, também, que o discurso humorístico insiste nesses conteúdos.
Haveria alguma razão que justificasse ou explicasse tal insistência?
Somos levados a crer que sim. O próprio Raskin revelara que, em termos de
sexualidade, o discurso humorístico costuma se estruturar ou buscar reforço nos chamados
scripts específicos, os quais sintetizam aspirações senão universais, ao menos atávicas
em relação ao tamanho dos órgãos genitais, ou às interdições e façanhas sexuais, entre
outras.
A declaração colhida por José Simão pode nos revelar como tal “ideologia
sexual” aparece nas frases, por vezes, as mais cotidianas (as mais impensadas?):
180
E olha o pensamento de um antigo jornalista baiano: “Transar com uma mulher só é trair
todas as outras”. Adorei. Pensamento para lotar motel. Devia ser slogan de motel.
(03/08/2004)
Realizar façanhas sexuais parece ser um desejo sempre presente no imaginário
masculino, principalmente para aqueles mais velhos (antigo jornalista) cuja ação nem
sempre corresponderá à vontade, mas cuja jactância tanto pode ser ilusória quanto risível,
na medida em que, respectivamente, ele transa com todas para não trair nenhuma, ou não
transa nem com uma, para não trair as outras. O contexto parece sugerir a primeira opção,
mas o caracterizador antigo não se nos afigura ingênuo.
Ademais, o comentário do cronista, ou seja, a associação da fala do jornalista a
um slogan de motel remete o leitor à idéia de marketing, de autopromoção, sintetizando
uma atitude bastante machista. Deve-se registrar, ainda, nesse trecho, a sobreposição de
dois estereótipos: um, de cunho sexual, como vimos, e o outro que, embora envolva etnia
(jornalista baiano), reforça o primeiro (ou a ilusão do antigo jornalista). O próprio José
Simão se incumbe de reforçar o lugar comum entre os brasileiros de que da terra de
Gabriela Cravo e Canela, bem como dos seus habitantes emana sensualidade. E
“sacanagem” também:
E tudo na Bahia é sensual e sacanagem, até comercial de escola de inglês: Duas línguas
dão mais prazer do que uma”. Concordo! Vou estudar línguas na Bahia! Rarará!
(03/08/2004)
181
Portanto, embora concordemos com Possenti no que tange à não-filião dos
estereótipos sexuais e étnicos ao discurso humorístico (se nos reportarmos a Bakhtin, o
nosso discurso, qualquer discurso, traz sempre o discurso do outro: temos a ilusão
discursiva), queremos reiterar que a presença constante da sexualidade no discurso do
humor atravessa os séculos. É dado por Cícero (apud Minois, 2003, p. 81) o exemplo que
se segue:
Quintus Opimius, que fora um debochado na juventude, caçoa de Egilius, que tem aparência -
enganosa – de efeminado: “Oh, minha pequena Egília, quando irás à minha casa, com tua roca e
teu fuso?” “Na verdade, eu não ouso: minha mãe me proibiu de freqüentar mulheres de
reputação”
.
3.7 -
O HUMOR ÉTNICO
Concorde Raskin (1985), no humor de cunho étnico, predomina a oposição
possível x impossível, que geralmente se traduz nas piadas pelo contraste entre os valores
negativos do OUTRO e os valores positivos do EU. Ou, dito de outra forma: a
desvalorização do DIFERENTE que é o que a piada explicita subsiste porque é oposta
aos valores (implícitos, subjacentes) do IGUAL. Sob este aspecto, o humor étnico tende a
desmerecer, a depreciar aquele que é considerado diferente. Aliás, elogiar se bem
registramos – não é da natureza do humor.
Assim como ocorre no humor sexual, o humor étnico trabalha com estereótipos,
ou seja, com determinados scripts específicos que são convencionais, imaginários e
mitológicos (grifos do autor).Tais scripts não são adquiridos simultaneamente à
competência lingüística do falante: são, concorde Raskin, similares ao conhecimento
enciclopédico (Cf op.cit., p.180). Quais são, portanto, os scripts e oposições comumente
evocadas no humor étnico?
Raskin destaca basicamente quatro tipos de scripts, a saber: 1º) aquele baseado
em distorções lingüísticas; 2º) o da parvoíce (dumbness) 3º) o da avareza (stinginess); ) o
182
da astúcia (craftiness). A estes, o autor acrescenta um quinto item, sob a rubrica de scripts
específicos não-padronizados.
3.7.1 - O SCRIPT DAS DISTORÇÕES LINGÜÍSTICAS
Se, como vimos, o humor étnico se volta para o diferente, é perfeitamente
compreensível que o script das distorções lingüísticas seja tão freqüente neste tipo de
humor. A língua é um fator de identidade, de união dos iguais e, em conseqüência disto, de
segregação do outro, do estrangeiro que não a domina, ou mesmo do concidadão que, por
questões geográficas ou sócioculturais, não a domina a contento: sua linguagem não
corresponde aos usos, normas e expectativas lingüísticas de uma dada comunidade. Nas
palavras de Raskin (op.cit., p.181), “as distorções lingüísticas se baseiam na simples
oposição identidade lingüística X diferença lingüística e nada mais”.
É extremamente comum, em obras literárias, em novelas e programas
televisivos, que a comicidade de um personagem decorra do uso de distorções lingüísticas
pretensas ou o. Dizemos pretensas, pois nem sempre tais distorções são lingüisticamente
pertinentes, o que, de qualquer forma, não impede a realização do humor.
69
Muitas vezes,
como bem anota Raskin( op.cit.,p.181), tais distorções são improcedentes, ou seja, são pura
estereotipia:
Algumas destas distorções são baseadas em fato lingüístico e levam em consideração as reais
diferenças fonológicas e fonéticas entre as duas línguas em questão. Contudo, em inúmeras
outras vezes, são fictícias e representam estereótipos míticos que existem na mente dos falantes
monolíngues a respeito de outra língua,
A dificuldade lingüística de alguém que em país estrangeiro não domina a
língua pode resultar em confusões homéricas e geralmente rende uma boa piada. É o caso,
por exemplo, de um inglês que, tendo recebido a notícia de que sua mulher morrera em
Londres, quer, antes de sair de Paris, comprar um chapéu preto, porque o teria tempo de
69
O programa humorístico Casseta e Planeta, produzido pela Rede Globo, explora comicamente a figura de
Seu Cleisson, cuja pronúncia distorcida não considera a realidade lingüística.
183
comprá-lo em Londres, antes do funeral. Dirige-se, então, a uma farmácia, perto do hotel e,
misturando ao seu inglês reminiscências do latim com rudimentos de francês, consegue
dizer para o proprietário que quer um capote noire, sem imaginar que capote em francês
significa camisinha. O farmacêutico, intrigado, pergunta-lhe a razão para a camisinha ser
preta. À tentativa de resposta: Oh, ma femme est morte, segue-se: My wife is dead.
Admirado, o farmacêutico exclama: Oh, monsieur. Quelle delicatesse! (apud Raskin,op.cit.,
p.183).
Contudo, costuma ser mais acessível a piada que explora distorções de
pronúncia na mesma língua, até porque é mais compreensível – embora não menos risível
que o indivíduo tenha dificuldade com línguas que não domina como é o caso, por
exemplo, da piada que circulou pela Internet por ocasião da visita do presidente Lula aos
EUA. Conta-se que ele deixou o tradutor americano atordoado, quando pediu, pelo
interfone do hotel, que lhe trouxessem tu ti tu tu, ou seja, dois chás: um para ele e outro
para a primeira dama (two tea to two). Independentemente disto, a distorção lingüística é,
segundo Raskin, uma oposição secundária, um reforço para a oposição principal.
Exemplos de distorções lingüísticas, quer se realizem pela reprodução de erros,
quer pela imitação de sotaque, ou por pronúncias e entonação errôneas sobejam nas
crônicas de José Simão e se revelam uma estratégia simples, porém eficaz do discurso
humorístico. Selecionamos alguns exemplos.
E mais uma da minha morenanta predileta, Lucianta Gimenez: Vamos apresentar aquela
mulher que POUSOU nua”. Pousou? sei, ela tava voando pelada e caiu no programa
da Lucianta! Pouso de emergência! (21/08/2004)
Luciana Gimenez, apresentadora de programa diário na Rede TV, é um dos
alvos prediletos das farpas de José Simão, em decorrência das inúmeras impropriedades
lingüísticas que ela freqüentemente comete. O texto acima não revela a frágil
184
competência lingüística da apresentadora, mas também a “maldadezinha inteligente” do
cronista, na medida em que as contaminações morenanta e Lucianta associam ao tipo físico
(morena) e ao nome da moça (Luciana), o substantivo anta, à guisa de sufixo, e todos
sabemos o significado da expressão popular ser uma anta ou agir como uma anta.
Desnecessário dizer que o duplo uso do “sufixo” se coaduna perfeitamente com a expressão
E mais uma, até porque frisa a constância das dificuldades lingüísticas da apresentadora.
Um outro exemplo de distorção lingüística para a criação do humor não tão
óbvio como o anterior, mas extremamente criativo, porque crítico pode ser observado no
trecho abaixo:
E olha a evolução dos conceitos: O Estado Sou Eu (Luís 14). O Estado Somos Nós.
(Lênin). O Estado somos Eu (Lula). Rarará! ( 27/08/2004)
Bastante interessante nesta piada é que o grave erro de concordância, que a
fala do presidente Lula encerra, mais do que desvelar as suas dificuldades gramaticais – das
quais toda a nação brasileira tem ciência e as quais, em princípio, não o desmerecem
implicita a sua ideologia, e é justamente a percepção deste outro script que torna o texto
irônico e criativo. Lula, primeiro presidente operário, representava para os seus eleitores
uma possibilidade histórica de mudança, a possibilidade de um governo que fizesse jus ao
conceito de democracia e de justiça social. Representava, em suma, que milhões de
brasileiros passariam a ser cidadãos de direito e de fato.
Mas, a esperança logo se transformou em decepção, pois o governo do PT, que
Lula representa, e que, em tese, teria alguma inspiração comunista, levando-o a se
identificar com as massas (nós) e, conseqüentemente, com a definição de Lênin (O Estado
somos nós), acabou se revelando como um engodo: a definição de Lula (O Estado somos
eu) reproduz a ideologia centralizadora que a definição de Luís XIV encerra (O Estado sou
eu). Com uma agravante: comete-se nela um erro grave de concordância, que - dupla
185
ironia! - parece ser a única marca verdadeira de Lula, pois de resto é o Eu que predomina.
Em detrimento do nós.
Uma outra estratégia muito comum ao discurso humorístico de José Simão e
que associamos à questão das distorções lingüísticas diz respeito aos comentários
debochados e jocosos que o cronista faz diante de declarações nas quais o declarante
enuncia o óbvio. Às vezes, a declaração é tão óbvia que nem merece comentário: é o caso
da declaração de Bush, logo abaixo. Curioso: dizer o óbvio nos parece uma forma de
inconsciência e, como nos ensina Bergson (vide p.35 desta tese), explorar a inconsciência
alheia é uma fórmula quase eterna de se criar o humor. Os parvos que o digam!
E o Bush disse no debate que todos os terroristas suicidas serão condenados à pena de
morte! (09/10/2004)
E o Galvão faz escola. No jogo Flamengo X Santos, O Sérgio Noronha disse: “O
Ricardinho fez um belo passe de calcanhar, de costas”. Todo passe de calcanhar não é de
costas?Ou o Curupira já tá jogando? (26/09/2004)
Olha a pérola do Lula nos discurso do Dia Internacional da Mulher: “Minha mãe era uma
mulher que nasceu analfabeta” (10/03/2004)
186
3.7.2 - O SCRIPT DA PARVOÍCE
É um dos tipos mais comuns do humor étnico e como subjaz a ele o binômio
IDENTIDADE x ALTERIDADE, é óbvio que o Outro é aquele que faz tudo errado, já que
o parâmetro do Eu é o correto. Portanto, a essência de tais piadas é a parvoíce, a
inabilidade, a falta de educação, a inaptidão, etc, etc: características risíveis do Outro, que é
diferente do nosso grupo, cujos valores, internalizados, dispensam ser explicitados no
texto. É comum, ainda, que o script da distorção lingüística apareça reforçando a oposição
identidade/alteridade.
Se, como muito apropriadamente afirmou Cláudio Paiva, coordenador do
programa TV Pirata, citado por Travaglia (1990: 69), “não humor a favor”, parece-nos
inquestionável que o humor étnico é o que mais desvela a pretensa superioridade de quem
ri em relação àquele tornado o objeto do riso, superioridade esta destacada por Platão,
quando, em um dos seus diálogos, Sócrates assevera que não é injusto rir dos inimigos (Cf.
p.16 desta tese).
O script da parvoíce se funda na oposição BEM x MAL e tem a propriedade de
reforçar os elos entre o falante e o ouvinte, visto que estes fazem parte do grupo do Bem,
que não é tolo, nem irracional, características, enfim, típicas do grupo-alvo, subsunção do
Mal (Desfazer do Outro é uma forma de auto-elogio?). Sobre tal script, observemos as
palavras de Raskin (op.cit.,p.186):
O script da PARVOÍCE opõe o grupo étnico ou grupos ao(s) qual (quais) o(s) falante(s) e o(s)
ouvintes(s) pertence(m) como o não-tolo, razoável, natural, pessoas normais, ao grupo-alvo que
é considerado como tolo, não-razoável, irracional, irregular, etc; é uma espécie típica de
oposição bem x mal.
70
70
The script of DUMBNESS opposes the ethnic group or groups to which the speaker and hearer(s) belong
as the non-dumb, reasonable, natural, regular people to the targeted group which is depicted as dumb,
unreasonable, irrational, irregular, etc; it is a typical good/bad kind of oppositeness
187
Convém lembrar que o script da parvoíce aparece em quase todas as sociedades.
Para os britânicos, por exemplo, os irlandeses, via de regra, são considerados estúpidos.
Assim como os belgas o são pelos franceses. Assim como os flamengos o são para os
belgas. Assim como os portugueses o são no Brasil.
É exatamente tal script que José Simão explora para debochar do episódio da
política nacional que envolvia a contratação de um espião para investigar os passos de Luiz
Gushiken, homem de confiança do presidente Lula, e que comandava o grupo da Telecom
Itália.
E a Kroll pediu ao espião português: “Vá e faça uma varredura completa”. ele se
vestiu de faxineiro e ficou varrendo a sala do Gushiken, ouviu a conversa toda e relatou
pra Kroll. A segurança do governo é tão frágil que até espião português faz sucesso. E ele
espionava e-mails. Mas e-mail em Portugal se chama carta-voadora. Rarará! (05/08/2004)
Na realidade, havia uma disputa no ramo da telefonia entre o Grupo
Opportunity, de Daniel Dantas e a Telecom Itália: ambos queriam assumir a Brasil
Telecom. Segundo se noticiou, o economista Daniel Dantas contratou a Kroll para espionar
a Telecom Itália. Denunciada a espionagem, a Polícia Federal realizou a Operação Chacal,
prendendo cinco funcionários da Kroll, multinacional americana, sediada em Londres.
Tiago Verdial, o espião português, foi investigado e constatou-se que a Kroll
grampeara a Telecom Itália. Como a Polícia Federal gravara conversas entre o espião e seu
chefe, outras informações vieram à tona: e-mails de Luiz Gushiken foram revelados, soube-
se que o presidente do Banco do Brasil, Cássio Casseb, tivera seus passos monitorados e
que havia altas autoridades envolvidas.
Rememorado o escândalo, noticiado exaustivamente à época, voltemos ao texto
de José Simão. Como o script da parvoíce é nele realizado? Na verdade, segundo nos
188
parece, é a concretude do raciocínio, revelada pelas ações do espião, que nos permite tachá-
lo de bobo, de parvo. É como se o seu entendimento tivesse estacionado na fase infantil,
cuja compreensão se prende ao visível, ao palpável. Nesse sentido, fazer uma varredura é
entendido ao pé da letra, significando exatamente o que diz: pegar uma vassoura e varrer.
O humor da piada não decorre apenas do preconceito de que o português não é
bem dotado intelectualmente, mas, sobretudo, nos revela que geralmente este tipo de
estereotipia se constrói pelo ilógico das ações: uma incongruência entre a atitude do
personagem (vestiu-se de faxineiro e ficou varrendo a sala) e o que o script social espera
dele (fazer espionagem eletrônica). Diríamos ainda que é a falta de perspicácia do
personagem que gera o riso maldoso e superior a ser compartilhado entre o cronista e o
leitor.
Se tal estereótipo grassa entre nós e se aproveitá-lo para debochar da situação
reportada era forma propícia de se criar o riso, parece indiscutível que o objeto do riso não
é exatamente a burrice do português - mera piada - mas a burrice do próprio governo
brasileiro, representado na figura de Gushiken, cujas negociações escusas vieram à tona.
Em suma, quando um parvo engana o outro, quem é o parvo-mor?
Convém ainda registrar que o caso do espião português da Kroll rendeu
inúmeras piadas, das quais transcrevemos apenas mais três, todas por sinal, construídas
pelo ilógico das atitudes.
E aquele famoso espião português leva a profissão a sério. Diz que ele desceu no
aeroporto e o taxista perguntou: Vai para onde, dr?”. “JAMAIS SABERÁS!”
(07/08/2004).
189
E durante a minha ausência teve aespião português. Espião português é aquele que usa
crachá. Espião português é aquele que abre crediário nas Casas Bahia e no item profissão
escreve: espião português. (04/08/2004)
E continuo fascinado com o espião português. Ele já tem até fã clube e diz que entrava no
bate-papo da Internet com o nome verdadeiro! Sendo que todo mundo entra com apelido!
( 05/08/2004)
Um outro ponto que nos chamou a atenção diz respeito a uma certa
universalidade de algumas piadas, visto que apenas se muda a nacionalidade do grupo-
étnico rotulado como parvo ou estúpido e, certamente, a do grupo rotulador. A piada-
adivinha, apresentada por Raskin (op.cit., p.186), é nossa velha conhecida, embora, na
versão tupiniquim, o grupo-alvo sejam os portugueses. Confirmemos.
Quantos ucranianos são necessários para trocar uma mpada? Cinco. Um para subir na
mesa e encaixar a lâmpada no soquete e quatro outros para fazer a mesa girar. (piada
soviética)
Parece não ser outro o caso da piada a seguir (Raskin,1985:188) cuja estrutura,
em forma de pergunta/resposta, pode ser preenchida por qualquer outro grupo-alvo, desde
que este faça jus à estereotipia aceita pelo grupo agressor, no caso, a da irracionalidade,
sintetizada pelas ações mecânicas, impensadas (esta piada poderia ser, perfeitamente,
adaptada pelos brasileiros contra os portugueses).
190
Como você pode queimar a orelha de um belga? Chame-o ao telefone quando ele estiver
passando roupa. (piada francesa)
Interessante nesta piada é o fato de ela ser reforçada por um outro script
secundário, pois, segundo Raskin, nela uma alusão de que os belgas, diferentemente dos
franceses, são poucos sofisticados tecnologicamente. É também a presença de uma segunda
oposição (sobreposta à da parvoíce) que este autor afirma existir na piada abaixo:
Quantos porto-riquenhos são necessários para enterrar um porto-riquenho? Cinco. Quatro
para carregarem o caixão e um para carregar o transistor. (piada americana)
Se o hábito de carregar o transistor é peculiar aos porto-riquenhos (o nordestino
também é conhecido pelo mesmo hábito), a oposição secundária e mais sutil desvela
que a músicas tocadas em rádio não são adequadas para enterros. Na realidade, a
exuberância dos latinos gera o riso dos americanos.
Recuperando Bergson (2001:4), para quem “o nosso riso é sempre o riso de um
grupo”, talvez possamos afirmar que, embora o humor étnico seja praticamente universal
debochar do outro, do diferente, parece ser a forma mais usual de se reforçar a própria
identidade é o tipo que mais requer conhecimentos partilhados, ou informações
contextuais e contextualizadoras, sobretudo para entendermos determinadas piadas ou
deboches, principalmente se não fazemos parte do grupo agressor ou do grupo-alvo.
A existência do estereótipo étnico de que argentino não “é flor que se cheire”
(São prepotentes, vaidosos, egoístas... Sul americanos com fumos de europeus!...) sustenta
o comentário maldoso e jocoso do texto abaixo, em que o cronista concorda com os dizeres
elogiosos à candidata Marta, apenas para desvalorizar-lhe o marido. Argentino, é claro!
191
Aliás, parece ser somente por isso que ela faz jus, na avaliação do cronista, ao slogan
expresso no cartaz.
E adoro aquele cartaz da Marta: “Marta uma mulher de coragem”. Concordo, precisa
mesmo de coragem para casar com um argentino. Rarará! (02/09/2004)
Os paraguaios também não escapam do preconceito étnico e, se bem avaliamos,
o adjetivo paraguaio se tornou, entre os brasileiros, sinônimo de produto falsificado ou
de qualidade duvidosa. Tal script étnico garante o deboche, presente nos comentários dos
textos que se seguem: o primeiro, relativo à notícia transcrita; o segundo, relativo ao
marasmo da seleção brasileira no jogo Brasil e Colômbia pela disputa de uma vaga para a
copa de 2006.
E essa aqui: “Paraguai faz a sua primeira greve de cinema contra pirataria”. A notícia
foi falsificada! (30/10/2004).
Aliás, a única coisa que balançou foi o rabo-de-cavalo do Ronaldinho Gaúcho. Que tá com
cara de Michael Jackson paraguaio! (15/10/2004)
Embora o script étnico da parvoíce trabalhe normalmente com nacionalidades
diferentes, e com ações em que o diferente é facilmente identificado como o errado,
julgamos que alguns estereótipos regionais nem sempre tão negativos existentes dentro
do mesmo país, podem ser integrados neste item. É o caso, por exemplo, dos estereótipos
192
que temos em relação à Bahia e aos baianos, aos quais José Simão alude com freqüência: o
povo baiano quando não festa, descansa. Na rede, segundo os paulistas.
O comentário a respeito do final das suas férias passadas na Bahia e a
comparação de José Simão sobre a eternidade que representou a campanha eleitoral
reforçam, respectivamente, tais estereótipos:
E eu só voltei da Bahia porque botaram a rede pra lavar! (04/08/2004)
Esta campanha foi mais comprida que o Carnaval na Bahia. (31/10/2004)
Raskin (1985) ainda observa dois outros scripts extremamente comuns no
humor de cunho étnico, os quais, de modo geral, funcionam como reforço ao da parvoíce.
São eles: o da sovinice e o da esperteza.
3.7. 3 - O SCRIPT DA SOVINICE E O DA ESPERTEZA
O primeiro é do conhecimento de todos e tem rendido personagens literárias
inesquecíveis. Os judeus, por exemplo, são historicamente tidos como sovinas. o
segundo pode ser identificado com aquele que entre nós recebeu o rótulo de “a lei do
Gerson”, ou seja, refere-se àquelas pessoas que sempre querem levar vantagem em tudo,
sem preocupações éticas. Convém apenas realçar que o grupo étnico que aponta o Outro
como esperto ou sovina, não se considera como tal: representa (ou julga representar), por
óbvio, o pólo positivo da oposição.
193
Sob esta ótica, parece haver na comicização extratextual certa cumplicidade
entre o cronista e o leitor: se debochamos dos corruptos e dos que desconhecem a ética é
porque somos diferentes deles. O debochar pressupõe a autoridade moral de quem
debocha? É esta autoridade, é esta superioridade moral que subjaz à afirmação platônica de
que podemos rir dos inimigos? Tudo nos leva a crer que sim. Vejamos como o script da
esperteza ajuda a criar o efeito humorístico na piada que se segue:
E os Irmãos Bacalhau já lançaram uma pesquisa: “Voacha que o Controle Nacional
contra a Corrupção vai funcionar?”. 10% responderam “não”. 90% receberam uma
graninha e disseram “sim”! (21/10/2004)
Tal piada se funda na sobreposição de dois scripts: o primeiro refere-se à
realização de uma pesquisa, com sua pergunta central, suas respostas e suas estatísticas. O
segundo, cujo gatilho coincide com a frase final, é a expressão da Lei de Gerson, a síntese
da esperteza nacional. O efeito humorístico se acentua porque a piada, além de sugerir que
estamos em um país de maioria corrupta, dada a forma pela qual os perguntados chegaram
ao sim, debocha de tal atitude usando aquela que talvez seja a mais irônica das figuras
retóricas: a do cúmulo. É o cúmulo, é o ápice da falta de ética voreceber propina para
responder que acredita no controle nacional da corrupção. O antagonismo discurso x prática
política, comum ao mundo político, já fez escola entre o povo. É o que a “pesquisa” revela.
Ainda com relação a este segundo script, a leitura de uma piada, anotada por
Raskin (1985:192) como sendo de origem soviética, despertou-nos surpresa e
questionamentos. Surpresa, porque tal texto coincidia com um exemplar por nós coletado
para um trabalho didático, cujo intuito era pesquisar como o estereótipo do operador de
direito é recuperado discursivamente nas piadas. De fato, a única alteração dizia respeito ao
grupo-alvo: o judeu e o não-judeu, que aparecem no texto compilado por Raskin, são
substituídos por um advogado e um médico no texto por nós compilado.
194
A piada, na versão raskiniana, mostra os personagens, ainda nervosos, pois
envolvidos em um acidente automobilístico: seus carros haviam se chocado em um
cruzamento. O judeu (na nossa versão, o advogado) oferece, gentilmente, um gole de
bebida alcoólica para o não-judeu (ou o médico) para relaxarem, enquanto ambos esperam
a polícia chegar. O não-judeu aceita de pronto a bebida, toma um gole e, agradecendo,
devolve-a para que o judeu também desfrute dela. Este se nega a beber, dizendo que, antes
de qualquer coisa, iria aguardar que a polícia chegasse para autuar o culpado. (Afinal
bafômetros existem para quê??)
os questionamentos emergiram porque tal coincidência nos remeteu, de
imediato, para a questão da autoria. Como podemos asseverar que uma piada tem origem
francesa, ou russa, ou brasileira, se, como vimos, o intercâmbio o traslado de um país
para o outro - parece ser uma potencialidade do gênero piada? E mais: basta, portanto,
substituirmos o grupo-alvo por outro, de distinta etnia, para que uma nova piada seja
criada? A este respeito, é indispensável que registremos as conclusões de Raskin
(1985:207) para quem uma piada é verdadeiramente étnica quando cumpre determinadas
requisitos, a saber:
1- a oposição principal ou uma das oposições importantes deve envolver um script étnico
verdadeiro;
2- um script verdadeiramente étnico não pode ser removido, sob pena de tornar a piada
incompreensível;
3- o indivíduo/personagem envolvido na piada deve ser membro do grupo-alvo;
4- em piadas verdadeiramente étnicas, o grupo-alvo (ou o indivíduo que o representa)
pode ser substituído por outro grupo étnico que partilha o mesmo script.
A primeira impressão que tivemos, após a leitura de tais requisitos, é que o autor
estava destacando o óbvio, mas aquilo que, inicialmente, se nos afigurou como
redundância, foi, aos poucos, revelando a sua profundidade: o humor étnico é de fato étnico
se desvela traços do caráter de um povo, de uma raça, de uma etnia.
195
Tal raciocínio nos encaminhou para conclusões aparentemente contraditórias: se
ao humor étnico subjazem alguns scripts comuns como o da parvoíce, o da esperteza e o da
sovinice, se estes podem ser associados a diversos grupos-étnicos, o humor étnico não se
caracteriza pela especificidade (como seria de se esperar), mas pela universalidade. Por
outro lado, para que estes scripts universais ganhem a especificidade, é o OUTRO que deve
registrar a diferença. Em outras palavras, a minha medida é o OUTRO, mas, também, em
compensação, o OUTROganha individualidade porque se opõe ao EU. Parece-nos que a
controvertida questão da estereotipia poderia ser aqui explorada.
Como discutir esta importante questão nos afastaria dos nossos objetivos nesse
trabalho, queremos apenas registrar a indagação que restou irrespondida: os estereótipos
que o OUTRO nos atribui integram, ou não, a nossa identidade? Em termos de discurso
humorístico, trabalharemos com a resposta afirmativa.
Não a questão da universidade de alguns scripts, bem como a do intercâmbio
destes entre diferentes grupos-alvos encontram respaldo nas palavras de Raskin (1985:194):
Os três mais populares scripts do humor étnico, a saber: PARVOÍCE, AVAREZA E ASTÚCIA,
são amplamente independentes da língua e da nação, no sentido em que eles podem ser achados,
virtualmente, em qualquer ngua e em qualquer grupo étnico; (também) os pares dos grupos-
alvos étnicos são os mais variáveis (...)
71
Raskin (op.cit.) aponta o uso distorcivo da linguagem como o script mais frágil
para a caracterização de determinada etnia: para o autor, este é um script secundário que
deve reforçar um verdadeiramente étnico. Insistir na presença de vocábulos e expressões
lingüísticas próprias de um determinado povo, não garante, por si só, o verdadeiro humor
étnico. O personagem deve ter um ethos característico, adequado. Ou se atribui a ele um
71
The three most popular scripts in ethnic humor, DUMBNESS, STINGNESS and CUNNINGNESS, are
largely language-and nation- independent in the sense that they can be found virtually in any language and
with any ethnic group, and the pairs of originating and targeted ethnic groups are highly variable,(…)
196
ethos concorde a visão compartilhada pelo grupo agressor? (De novo, a dúvida: a
identidade prevê a estereotipia?).
O humor étnico também pode ser reforçado por scripts especificamente sexuais
e é comum, por exemplo, que diferentes grupos étnicos sejam conhecidos pela excessiva
atividade sexual ou pelo tamanho das genitálias. Os franceses, por exemplo, são tidos como
aqueles “que fazem tudo por amor”. os africanos são considerados bem dotados quanto
ao tamanho das genitálias, diferentemente dos japoneses. Por outro lado, se as alemãs são
tidas como portadoras de vaginas avantajadas, diz-se que as orientais primam por terem
genitálias diminutas..
Um ponto bastante curioso dentro deste tópico do humor étnico é a atenção
especial concedida ao humor judaico, que o autor lhe destaca alguns scripts particulares,
típicos, nem sempre acessíveis a outras etnias, como por exemplo, o da MAMA JUDIA, o
da LÓGICA JUDAICA, o do próprio ANTI-SEMITISMO, via script do POGRON
72
. Se,
como nos afirma o autor, estes scripts adicionais são responsáveis pela originalidade do
humor judaico, o que nos parece mais interessante é a incrível força reversiva que o rir de si
mesmo encerra (O humor produz seu próprio antídoto?) A este propósito, as palavras de
Raskin (op.cit., p.212) são esclarecedoras: “quando os judeus contam piadas sobre eles
mesmos, a SOVINICE torna-se absurda e irreal, a ASTÚCIA mal sucedida e as
ESPERTEZA exagerada”.
73
Embora Raskin não o tenha explicitamente afirmado, parece-nos lícito supor
que o “rir de si mesmo” pode ser avaliado como uma forma mais evoluída de humor. A este
respeito, a crítica assinada por Bia Abramo, em 07/08/2004, na Folha de S. Paulo, é
bastante elucidativa. A colunista, a propósito do humor praticado em duas séries cômicas
televisivas A diarista e A grande família não valoriza o mesmo tipo de humor que,
72
- Pogron. Palavra de origem russa,que significa massacre, destruição. Em uma segunda acepção, conforme
registra o Dicionário Aurélio ( p.1593): Ataque organizado contra uma comunidade judaica, com grande
destruição e, geralmente, morticínio, insuflado ou tolerado pelas autoridades oficiais.”
73
... when the Jews tell jokes about themselves, STINGINESS becomes absurd and unreal, CUNNINGNESS
unsuccessful, and SMARTNESS exaggerated.
197
em tese, Raskin privilegiou, bem como aponta o deboche como o tipo de humor
prototípico da cultura brasileira, ao afirmar:
OK, deboche é uma possibilidade de humor, sim, e muito constitutiva da cultura brasileira, mas
não deve ser a única. (....) O problema do deboche é que ele sempre faz rir do outro e quase
nunca de si mesmo, que é uma fonte mais rica e variada de situações humorísticas.
A avaliação de Abramo (2004) parece-nos bastante procedente as crônicas
debochadas de José Simão bem o demonstram mas o que nos parece importante
acrescentar é que o tipo de humor que um programa televisivo ou um cronista praticam
depende intrinsecamente da intenção que os preside. Sob este aspecto, o rir de si mesmo
pode ser altamente catártico, mas não nos parece veicular alegria.
Gostaríamos ainda de acrescentar que se o humor sobre os judeus é riquíssimo,
se seus scripts específicos são originais, se o rir de si mesmo é uma forma de reversão
talvez mais evoluída, acreditamos que o mesmo ocorre com o humor de outras etnias ou
povos. A única diferença, se houver, será em termos da quantidade de piadas ou do
conhecimento que temos delas.
3.8 - O HUMOR POLÍTICO
Concorde Raskin (1985:222), o humor político é abrangente: tanto pode ser
dirigido a líderes, partidos e instituições políticas como pode atingir todas as idéias
políticas de uma dada sociedade, ou seja, o seu regime. Supomos que o regime comunista
foi alvo de inúmeras piadas entre os americanos, bem como o foi o regime capitalista entre
os soviéticos.
Possenti (2001) reputa o humor político como aquele cuja criticidade é
constante, diferente dos demais tipos nos quais ela é esporádica. Por outro lado, as piadas
políticas são transitórias, visto que a mutabilidade é inerente a quase todos os cenários
políticos. Isso nos leva a supor que o humor político é altamente dependente do contexto,
198
sobretudo porque a alusão a determinados fatos, a determinadas características de um
político é estratégia integrante deste tipo de humor.
Para Raskin (1985:222), o uso da alusão é um complicador e, embora não
justifique, nem exemplifique, o autor afirma que mesmo piadas que se servem da alusão
podem ser trasladadas para outros países ou épocas:
A complicação mais freqüente em uma piada política é a alusão a um evento particular, a um
slogan, a um maneirismo, a um traço, etc. Por esta razão, algum humor político tende a ser
acessível apenas aos contemporâneos que vivem em um certo país, ou mais freqüentemente, em
uma certa região, ou cidade. Para todos os outros acredita-se que o internalizaram os
scripts aludidos, e a piada estará perdida. Algumas piadas nessa categoria, entretanto, são
livremente intercambiáveis de um país a outro e (até) de uma época para outra.
74
Como, normalmente, a piada política apresenta estrutura mais simples do que as
de cunho sexual ou étnico e como normalmente trabalha com o binômio REAL X IDEAL
(Cf Raskin, p.222), é plausível entrever nessa dualidade básica, quase maniqueísta,
explicações para uma certa universalização decorrente da não-estrita dependência ao
contexto, conforme podemos depreender da citação dada anteriormente
De fato, em relação aos seus dirigentes políticos, o que sonham todos os homens
de todas as épocas? Que aqueles sejam honestos, que se empenhem eticamente pela defesa
da ideologia e dos direitos da comunidade. Ou seja: todos sabemos como um bom político
dever ser. Este é o script básico, subjacente, internalizado. Contudo, o humor político
decorre justamente da oposição entre o que um político deve fazer e o que, de fato, ele faz.
Obviamente, o primeiro script é tido como bom/correto e o último como errado/impróprio.
Dentro desta linha de raciocínio, a alusão a um fato particular carreia, no humor político, o
aspecto negativo, a impropriedade. É nela que o leitor vai encontrar a chave do riso.
74
The most frequent complication in a political joke is an allusion to a particulary event, slogan, manneirism,
trait,etc. For this reason, some political humor tends to be accessible only to the contemporaries living in a
certain country and often in a certain region or city all the others are likely not to have internalized the
script(s) to which the allusion is made, and the joke will be lost on them. Many jokes in this category,
however, are freely interchangeable from one country to another and from one epoch to another
199
A que queremos chegar? Ao fato de que o leitor, mesmo que não tenha todas as
informações contextuais necessárias para ler as alusões, sabe localizá-las, percebe que
em determinada expressão uma sobrecarga de informações e levanta hipóteses sobre “o que
mais” existe ali, ciente que nela reside a impropriedade, a pista do discurso humorístico.
Parece-nos, pois, que um leitor com maior competência lingüística e textual está mais
preparado para buscar as soluções. Se, como muito bem afirmou Perelman e Olbrecht-
Tyteca (1996), as alusões são figuras de comunhão, visto que se baseiam na identidade, no
partilhamento de experiências entre falante e ouvinte, é inquestionável que elas subsumem
um cálculo do falante em relação às informações do ouvinte e o gatilho para ativar estas.
Se nos reportarmos às crônicas de José Simão, ao dado de que seus comentários
são sempre ligados aos acontecimentos do momento, que o suporte das suas crônicas é o
jornal e, mais ainda (como já vimos), que ele, via de regra, recupera sinteticamente a
situação a partir da qual se criará o humor, a dificuldade de o leitor “ler” a alusão
contextual se minimiza.
Mas voltemos à citação de Raskin, motivadora das nossas considerações sobre a
alusão. A que, de fato, chegamos? Quais ou como seriam as piadas livremente
intercambiáveis de um país a outro e de uma época a outra, se ele mesmo afirma que o
humor político se prende a eventos particulares e isso complica a leitura da alusão?
Aventamos duas hipóteses: ou este humor intercambiável se pauta na oposição básica
(comportamento deôntico x não-deôntico) de determinado político, ou o referido político
é/foi tão famoso que a simples referência a seu nome implica o contexto que o
imortalizou. (Estamos falando de estereotipias?) Ficaremos com a primeira hipótese, até
porque, segundo pensamos, ela abrange a última.
com relação à questão específica dos conhecimentos contextuais e ou
culturais necessários para o deslindamento das alusões, que podemos designar como o feixe
das ambigüidades (termo nosso), parece-nos inegável que para as piadas - assim como para
qualquer outro tipo de texto que lance mão de alusões - informações contextuais e culturais
são necessárias. Requerer domínio de algumas informações não é, portanto, característica
200
exclusiva do texto humorístico. Aliás, tal domínio beira o mínimo, como nos explica
Possenti ( 2001:39):
Explico: a piada freqüentemente está relacionada com outro texto, ou com alguma informação, e
exatamente aquela, mas o que se deve saber sobre as coisas de que os textos falam é muito
pouco, em geral bastam alguns conhecimentos vaguíssimos. Dificilmente se exigirá um
conhecimento exato e exaustivo para entender qualquer piada, porque ela usualmente aciona um
estereótipo.
Mais adiante, o autor reitera a crença de que, contrariamente ao que prega o
senso comum, as piadas se caracterizam pela universalidade, uma vez que trabalham com
reduzido número de tópicos (E de estereótipos, poderíamos acrescentar):
É verdade, pois, que as piadas são culturais, amesmo em sentido estrito. Mas, menos do que
poderia parecer, se com isso se quer dizer que para cada grupo social ou país os fatores
relevantes são muito específicos. Às vezes, ao contrário do que se diz correntemente, poder-se-á
ser levado a pensar que as piadas são quase universais...não no sentido de que quase todos os
povos produzem piadas, mas no sentido de que elas versam sobre poucos tópicos, sempre os
mesmos, e apenas variam como decorrência de certas especificidades lingüísticas. ( 2001:43-4)
Minimizada a importância do contexto, aventada a universalidade do humor,
atentemos para as duas modalidades básicas de humor político, propostas por Raskin
(1985): ou se denigre a imagem de um grupo, de uma figura política, de uma instituição ou
até de uma idéia política, ou se desmascara/denuncia um determinado regime político por
meio de alusões a eventos que durante a sua vigência foram pouco divulgados. As alusões a
determinado evento, a características físicas e de personalidades, a expedientes políticos,
inclusive ao uso de slogans, são as formas usuais deste primeiro tipo de humor, cujo alvo
são políticos importantes ou aqueles que, por alguma razão, estão em destaque em dado
momento.
Denegrir, pois, uma figura política é, indubitavelmente, a forma mais popular e
universal de humor político e se funda na oposição bom/mau que, a nosso ver, envolve o
binômio ideal/real. Mostrar um político importante como ignorante, além de ser um script
201
recorrente nesse tipo de humor, é uma forma de revelá-lo como inapto para o cargo.
Observemos a piada que mostra o pretenso discurso do presidente Lula, na abertura das
Olimpíadas 2004:
E o Lula iniciando seu discurso de saudação aos nossos atletas olímpicos: “Ooooo!
Ooooo! Ooooo”. E o assessor: “Presidente, esses são os anéis olímpicos, o discurso
embaixo”. (18/08/2004)
Não pudemos nos furtar a uma gostosa gargalhada após a leitura desse texto.
Inquestionavelmente, a piada denigre a imagem do presidente e o revela como uma pessoa
pouco traquejada para eventos de tal porte. A piada conta ainda com o argumento do senso
comum de que o indivíduo com pouco estudo não tem condições para exercer cargos de
tanta responsabilidade. De qualquer forma, o humor se realiza porque o engano do
presidente revela a concretude de seu raciocínio, ou a sua atitude alógica.
Se a essência do humor político é, como vimos, o ataque crítico aos dirigentes,
representantes, eventos e instituições; se o corpus escolhido, como sabemos, privilegiou
três assuntos entre os quais as eleições, é cil se inferir a nossa extrema dificuldade em
selecionar alguns trechos para análise, tão profusas e criativas são as estratégias
encontrados para a “denigrição”. Analisemos algumas.
É bastante comum no discurso humorístico de José Simão a analogia entre dois
eventos totalmente distintos em que um (o mais concreto, o mais imediato) serve como foro
para o outro, que subsume o tema (aquilo que se quer destacar, ironizar). Usando uma
estrutura matemática como suporte, poderíamos dizer que um raciocínio analógico pode ser
assim representado, a saber: A está para B, assim como C está para D.
202
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996:424), considerando uma analogia proposta
por Aristóteles
75
, esclarecem as relações entre foro e tema da seguinte forma:
Propomos chamar de tema o conjunto dos termos A e B, sobre os quais repousa a conclusão
(inteligência da alma, evidência) e chamar de foro o conjunto dos termos C e D que servem para
estribar o raciocínio ( olhos do morcego, luz do dia). Normalmente o foro é bem mais conhecido
que o tema cuja estrutura ele deve esclarecer, ou estabelecer o valor, seja valor de conjunto, seja
valor respectivo dos termos.
A associação entre a passagem de vários furacões, comuns em determinada
época do ano, especialmente na América Central, serve de foro (mote) para o
“esclarecimento” do tema, ou seja, as eleições à prefeitura de São Paulo. Ou mais
exatamente: à destruição provocada pelos candidatos contra a cidade que pretendem
governar.
E essa onda de furacão?Aliás, quem inventa os nomes pros furacões? Jeane, Ivan, Arlete,
Suzette! Em Sampa nós também temos furacão. Furacão Marta: passou e arrasou a av.
Rebouças. Furacão Maluf: passou por Cayman e atingiu São Paulo. E o furacão Serra:
não levanta nem papel picado do chão. Rarará! É mole? É mole, mas sobe! (21/09/2004)
Recuperar, pois, a relação analógica entre foro e tema nos levaria à seguinte
construção: Os furacões estão para a América Central, assim como o Marta está para a
Avenida Rebouças, assim como o Maluf está para as verbas paulistas, assim como José
Serra.....está...?! Não está!..., construção na qual, obviamente, o humor fez suas
destruições... Se Marta e Maluf foram criticados pelas suas obras”, a primeira porque a
Avenida Rebouças virou um túnel no cruzamento com a Avenida Faria Lima, o segundo
porque, segundo se fala, desviou dinheiro público para o paraíso fiscal das Ilhas Cayman,
parece-nos que o deboche maior se centra no candidato Serra, pois é um ser (furacão) cujos
75
Assim como os olhos dos morcegos são ofuscados pela luz do dia, a inteligência de nossa alma é ofuscada
pelas coisas mais naturalmente evidentes. Aristóteles (apud Perelman, e Olbrechts-Tyteca op.cit.,p.424)
203
predicados não o ratificam, aliás o denegam (nem levanta papel do chão). Afinal Serra é ou
não candidato?
76
O processo de desmerecimento das figuras políticas perpetrado por Simão,
busca as mais variadas estratégias, entre elas o jogo verbal, por meio do qual o cronista cria
palavras cuja sonoridade não reproduz ou se aproxima do nome pelo qual o político é
conhecido como também alude a um fato ou ação que o desmerece. Tal tipo de trocadilho
ou brincadeira verbal são as chamadas contaminações.
Como os jogos verbais são parte integrante do nosso pximo capítulo,
queremos encerrar estas considerações sobre o humor político apresentando mais dois
exemplos dessas junções sonoro-semânticas que tão bem revelam o espírito, criativo,
histriônico e paródico de José Simão. Observemos as contaminações (Pittanic e
Martamorfose) nos textos e a síntese alusiva que encerram:
E eu quero saber quanto o Serra pagou pro Maluf apoiar a Marta. E quanto o Duda pagou
pro Pitta declarar que vai votar no Serra. Voto Pittanic, afunda qualquer um. E sabe por
que a Marta está fazendo comício-relâmpago? Por que aonde ela chega o tempo fecha!
Rarará! (19/10/2004)
Segundo avaliamos, mesmo que o leitor não disponha de informações precisas
sobre a campanha para a prefeitura de São Paulo, ele facilmente perceberá a brincadeira
contida na contaminação voto Pittanic, até porque ela é explicada a seguir, visto que o uso
do verbo afundar deflagra de imediato a associação Pittanic/Titanic. O que julgamos
extremamente feliz nas contaminações bem feitas é a capacidade de síntese que elas
76
Obviamente, existe uma alusão à morosidade de José Serra em decidir-se candidato, o que fez com que
sua campanha demorasse a decolar. Ele parece ter sucumbido às indicações do seu partido em detrimento de
suas pretensões políticas que, segundo se comentava, eram maiores do que ser prefeito de São Paulo. De
qualquer forma, mesmo que não domine esta informação, o leitor tem condições de processar a piada.
204
encerram: com muito pouco, muito é dito. Com uma vantagem: de forma inteligente,
brincalhona e irônica.
E vocês viram a diferença da Marta da vida real e da Marta do outdoor? É a
MARTAMORFOSE! E eu vou lançar uma nova campanha: “Diga um projeto do Serra e
ganhe um chocolate”. (24/10/2004)
Um dado bastante revelador e que convém ser destacado diz respeito à natureza
essencialmente dúbia do humor. Se, por um lado, pode ser considerado crítico porque
dessacraliza, entre outras coisas, instituições e autoridades, mostrando-lhes o lado humano
e nem sempre ético, o que em tese nos levaria a endossar o antigo aforisma de que “rindo se
corrigem os costumes”, revela, por outro lado, sua natureza extremamente preconceituosa,
fundada em estereotipias.
Com relação a este último ponto queremos comentar como o tratamento cômico
dado à candidata Marta Suplicy exagerava não tanto os seus predicados políticos, mas a
própria questão da feminilidade, superpondo a figura da mulher à da política o que, sem
dúvida, subsume uma visão preconceituosa quanto ao papel da mulher. Evocativa das
freqüentes cirurgias plásticas e do constante uso de botox que revelam a preocupação da
candidata com a sua aparência, a contaminação MARTAMORFOSE sintetiza um dos
motes do cronista e foi explorado à exaustão nas crônicas analisadas.
As palavras de Brait (1996:15) sobre a dupla natureza do humor nos servem de
aval:
O deslindamento de valores sociais, culturais, morais ou de qualquer outra espécie parece fazer
parte da natureza significante do humor. Assim sendo, uma manifestação humorística tanto pode
revelar a agressão a instituições vigentes, quantos aspectos encobertos por discursos oficiais,
cristalizados ou tidos como sérios. Mas pode também confirmar, transmitir ou instaurar
preconceitos. Nesse último caso eso, por exemplo, as anedotas que têm por protagonistas
205
determinadas raças ou religiões, homossexuais, mulheres etc. A observação das figuras políticas
femininas brasileiras como vão sendo construídas por uma grande parcela da imprensa pode
ilustrar perfeitamente a tendência cultural para explorar a figura feminina, quer por seus
estereótipos ligados à família, ao sexo, à feminilidade, confirmando o predomínio da imagem da
mulher sobre a imagem da figura política
.
3.9 - ALGUMAS CONCLUSÕES
Nesse final de capítulo torna-se relevante que alguns pontos sejam destacados.
Primeiramente, que a teoria scriptural raskiniana esclarece em termos semântico-
lingüísticos aquilo que a tradição clássica já consagrara e que, ao longo dos séculos,
nenhum estudioso do riso denegou: o humor subsume uma dicotomia, um engano, um
deslocamento, uma surpresa, no sentido que somos levados a pensar de um modo para
descobrirmos que o modo de pensar deve ser outro.
A própria terminologia adotada por Raskin encerra a dicotomia essencial do
humor: o modo bona fide (ou da boa fé) e o modo non-bona fide (ou da má fé). O primeiro
é o modo sério, do real; o segundo, o não sério, o joke telling. De toda maneira, importa
reiterar que o riso e o humor decorrem do confronto entre os dois modos, o que significa
dizer que, para a consecução do humor, os dois modos estão implicados.
Sob este aspecto, a constatação raskiniana de que algumas pessoas têm uma
melhor competência humorística pode ser explicada porque estas pessoas percebem com
mais rapidez que o locutor mudou do modo bona fide para o non-bona fide. Dito de outra
forma: tais pessoas são mais ágeis em captar as pistas ou apreender os gatilhos que, por
indiciarem a contradição dos scripts, possibilitam a deflagração do riso.
Além do mais, a teoria raskiniana revela-se bastante fértil, sobretudo no que
tange à proposição de scripts fundamentais ao homem e que envolvem a questão da
sexualidade, a da alteridade e a do poder, questões que, concorde Raskin, informam o
humor sexual, étnico e político, respectivamente. Como o autor ainda subdivide estes três
206
grandes tipos de humor e como eles podem ser combinados, torna-se fácil prever como as
possibilidades do humor são ampliadas.
De qualquer forma, convém ressaltar que subjazem aos três tipos de humor da
concepção raskiniana scripts fundamentais, que sintetizam, grosso modo, a polarização
axiológica na qual se debatem os homens de todas as épocas. O humor de cunho sexual, por
exemplo, não contrapõe alguns scripts míticos, atávicos e universais (falos enormes,
vaginas diminutas, atividade sexual exacerbada) à nossa real sexualidade, mas também
deixa vir à tona alguns scripts que desvelam tabus sexuais, desejos proibidos, perversões.
Na verdade, a sexualidade prototípica do humor comumente se pauta pelo binômio
NORMAL x ANORMAL e aparece de forma explícita ou implícita.
Já o humor de cunho étnico se funda, geralmente, na oposição IDENTIDADE X
ALTERIDADE, sendo que o diferente, o que não compartilha os nossos valores é quem
merece o nosso desprezo, tornando-se assim o objeto do riso. Obviamente, os scripts de
cunho étnico desvelam o uso de um outro binômio, ou seja, SUPERIORIDADE X
INFERIORIDADE, que quem ri se coloca em posição superior àquele que é o objeto do
riso. Quem debocha do erro de linguagem cometido pelo outro julga, por óbvio, saber o
certo, assim como quem ri de algumas parvoíces parece estar imune a elas.
Também ao humor político subjaz uma oposição que poderíamos sintetizar no
binômio DEÔNTICO X NÃO-DEÔNTICO ou, talvez, de forma mais simples, no binômio
Correto X Incorreto, visto que todos temos internalizada uma imagem do homem público
ideal, à qual opomos as atitudes não louváveis dos homens públicos reais. Aliás, se bem
avaliamos, o aforisma “rindo se corrigem os costumes” talvez esteja mais relacionado ao
humor político não só porque os “desvios” dos homens públicos são mais facilmente
observáveis – diferentemente dos desvios sexuais, por exemplo - mas porque a crítica
despertaria nos políticos, em tese, o desejo de melhora. Na verdade, no humor político,
aquele que ri e aquele de quem se ri integram a mesma comunidade, o que, via de regra,
não ocorre com o humor de cunho étnico.
207
Fundamental é ainda reiterar a afirmão de Raskin segundo a qual a sua teoria
contempla todas as famílias teóricas anteriores (vide gina 13 desta tese), privilegiem elas
quer o aspecto psicológico, quer o sócio-interacionista, quer o catártico, ou psicanalítico.
De fato, o humor pode representar incongruências, hostilidades, sublimação, apenas para
citarmos uma das características apontadas em cada uma das diferentes famílias.
Importante foi também constatar que o humor praticado por José Simão embora
apresente, como vimos, os três tipos propostos por Raskin, privilegia, pela própria natureza
do corpus crônicas de um jornal de alta circulação o humor político e o sexual. Melhor
dizendo: privilegia os dois primeiros tipos de humor sexual da categorização raskiniana,
uma vez que, via alusão ou duplo sentido, o cronista constantemente sexualiza referentes
que, em princípio, não se ligam à sexualidade.
Apresentadas as conclusões, passaríamos tranqüilamente ao próximo capítulo se
uma questão inquietante não remanescesse em nosso espírito. O fato é que a teoria
semântica de Raskin, conhecida pela sigla SSTH (Semantic Script Theory of Humor)
abrange e explica, como vimos, o humor lingüístico, nas duas modalidades que, desde
Cícero, vêm sendo endossadas pelos estudiosos: o humor das coisas e o das palavras. Na
verdade, o que queremos ressaltar é que o título do capítulo, que ora encerramos, pode não
ser o mais adequado, uma vez que a teoria dos scripts não se restringe ao humor das ações.
Não obstante, manter tal título reflete a nossa opção em privilegiar o tipo de
texto dominante na própria análise feita por Raskin, ou seja, o texto da anedota, o da piada,
que entendemos ser uma pequena narrativa desveladora de comportamentos ou ações
risíveis, na qual a mudança de script sintetiza, via de regra, um desencontro/descompasso
entre duas personagens. De qualquer forma, é imprescindível destacar, a SSTH é - ainda e
indubitavelmente - a teoria lingüística que melhor explica esta competência exclusivamente
humana a que chamamos humor.
A citação de Attardo (1994:27) não registra a posição inovadora de Raskin
(1985), mas também registra como a divisão ciceroniana é ainda acatada por estudiosos de
208
renome, embora variem as terminologias por estes adotadas. Serve-nos também como
fundamento para mantermos não o título do presente capítulo, mas a própria divisão
didática que a tal título subjaz. Confirmemos:
Na terminologia de cero, as piadas (facetiae) podem ser “sobre o que é dito” (dicto) ou sobre
“a coisa” (re). Essa distinção foi tacitamente usada por uma vasta maioria de pesquisadores do
humor. Entre aqueles que usam tal distinção com uma terminologia diferente estão Morin (1966)
“referencial vs semântica”, Eco (1983) “jogo situacional vs jogo com palavras”, Guiraud (1976)
“boas palavras vs trocadilhos”, Hockett (1973) “prosaico vs poético”. A distinção é também
usada por Freud (1905), Piddington (1933), Milner (1972), Todorov (1976), Pepicello e Green
(1983), e muitos outros (...) A utilidade dessa distinção foi discutida por Raskin (1987), que usa
“humor lingüístico” para se referir ao humor de dicto.
77
77
In Cícero terminology jokes (facetiae) can be “about what is said” (dicto) or about “the thing” (re).This
distinction has been tacitly used by a vast majority of humors researchers. Among those who use the
distinction with a different terminology are Morin (1966) referential vs semantic”, Eco (1983) situational
play vs play on words”, Guiraud (1976) “bon mots vs puns”, Hockett (1973) “prosaic vs poetic”. The
distinction is also used by Freud (1905), Piddington (1933), Milner (1972), Todorov (1976), Pepicello and
Green (1983), and many others . ( …) The utility of the distinction has been discussed by Raskin (1987), who
uses “linguistic humor” to refer to de dicto humor.
209
“O funcionamento do chiste é análogo ao do sonho; é
isso que leva Freud, após ter estudado um, a se voltar
para o outro. O chiste, no entanto, tem uma vantagem
sobre o sonho, pelo menos a meu ver, que tem passado
praticamente despercebida: ele é mais facilmente
acessível à observação. Enquanto, com relação ao
sonho, devemos nos apoiar nas interpretações e
associações do sonhador - que dificilmente controlamos
-, no chiste dispomos de uma matéria verbal fixa e
incontestável, assim como do testemunho social,
comum aos sujeitos de uma mesma cultura, acerca da
maneira como esses ditos devem ser
interpretados...”(Todorov, 1996: 310)
210
CAPÍTULO 4 - O HUMOR DE PALAVRAS
4.1 - OS CHISTES RETÓRICOS DE FREUD: UMA RELEITURA
Destacando, inicialmente, que a analogia de funcionamento entre os chistes e os
sonhos foi responsável pelo envolvimento de Freud também com os primeiros, Todorov
(1996:310) busca definir o que entende por chiste:
O chiste, como seu nome (em francês) indica, é um produto da linguagem (mot d´esprit,
literalmente, “dito espirituoso”). Toda afirmação relativa a ele deve poder se fundar numa
observação quanto à sua natureza verbal.
O autor faz, a seguir, minuciosa análise da classificação proposta por Freud
sobre os chistes e, de maneira contundente, revela-nos como tal classificação é, por vezes,
bastante contraditória. Embora nunca lhe negue o valor, o que, de certa forma, coincide
com a avaliação de Attardo (1994), ele nos alerta para a necessidade de sermos cautelosos
quanto ao endosso da metodologia adotada por Freud.
Ainda, segundo Todorov, Freud parece misturar dois tipos de classificação: a
lingüística e a psicogenética, uma vez que, do ponto de vista da psicogênese do chiste,
Freud os divide em três grupos, a saber: 1- os jogos de palavras; 2- palavras nas quais
encontramos algo conhecido; 3- o contra-senso. A grande dúvida de Todorov diz respeito à
correspondência entre esta divisão psicogenética e a divisão entre chistes de pensamentos e
chistes de palavras, divisão esta que, embora Freud não explicite, está pressuposta em sua
teoria.
Na realidade, Todorov se questiona acerca da própria divisão entre chistes de
palavras e chistes de pensamentos e atualiza tais designações, quando associa a primeira ao
conceito de significante e a segunda, ao de significado. Ademais, o autor se pergunta se, de
fato, tal divisão pode ser dicotômica:
211
Designaríamos hoje a oposição entre “expressão verbal” e “idéias” pelos termos significante e
significado. É possível dizer, portanto, que a oposição se situa entre um chiste que se concretiza
unicamente no significante e um chiste que se concretiza unicamente no significado?
(op.cit.,p.315.)
Todorov não só aponta a inconsistência de dicotomia acima referida, bem como
conclui que as vinte categorias propostas por Freud podem ser reduzidas, na verdade, a dois
procedimentos básicos: a condensação e o deslocamento. A condensação - como a própria
palavra sugere - é um excesso de significado condensado em um único significante,
conforme nos assevera o autor:
Poderíamos dizer que há condensação sempre que um único significante nos induz ao
conhecimento de mais de um significado; ou, mais simplesmente, sempre que o significado é
mais abundante do que o significante
(op.cit.,p.316).
Além disso, a condensação subsume uma ausência, que apenas um termo é
colocado no eixo paradigmático. Na realidade, a condensação ou a sobredeterminação (na
terminologia freudiana), são inerentes aos símbolos lingüísticos e não apenas aos oníricos.
Como para Todorov a condensação é “o nome de um processo cujo resultado é a densidade
simbólica do chiste, densidade co-extensiva a qualquer simbolismo lingüístico”,
(op.cit.,p.318), torna-se fácil entender por que o autor inclui, neste item da classificação
freudiana, os seguintes tropos: metáfora, metonímia, sinédoque, antífrase e a própria
comparação.
Apenas para ilustrar, recorremos a dois trechos de José Simão. Por ocasião da
Campanha do Desarmamento, ocorrida em 2004 e idealizada pelo governo com intuito de
se diminuir a violência no país, por meio da compra de armas em mãos da população,
descobriu-se que, no interior de Pernambuco, estavam fabricando armas caseiras para
vendê-las nos postos de compra do governo. Na verdade, tal atitude não só desmoralizava a
própria campanha governamental, como também desvelava a enorme dificuldade financeira
de grande parte da nossa população. Desvelava, ainda, o sempre precário índice de
cidadania existente. Decorre desse fato, o comentário do cronista:
212
E o Scafi me perguntou se eu tava de férias ou tava fabricando arma em casa pra
vender pra Campanha do Desarmamento. E uma amiga disse que vai entregar a pistola do
marido prum museu (03/08/2004).
no comentário um duplo efeito cômico. O primeiro sintetiza um deboche à
Campanha do Desarmamento e à resposta da população perante tal campanha (parece que
cada governo tem os cidadãos que merece) e, o segundo, o comentário malicioso que o
termo pistola condensa, que a um significante corresponde um excesso de significado:
pistola = arma, e pistola, óro sexual masculino, na linguagem gíria. Ademais, se a palavra
pistola representa o gatilho para o humor, o vocábulo museu reforça-lhe o efeito jocoso,
pois mandar/entregar para o museu é expressão popular que se refere ao destino de tudo
aquilo que perdeu a função ou a utilidade.
Além desse exemplo, queremos apresentar um trecho da crônica, datada de dia
1º/10/2004, cuja condensação não revela a avaliação do cronista em relação ao ato de
votar, mas também capta o desânimo da população diante dos pleitos políticos: E começou
a contagem deprecívica: faltam três dias pra você procurar o título e encarar a urna
eletrônica, aquele microondas cívico! Interessante é que Todorov acaba, ginas adiante,
denominando este tipo de condensação de contaminação.
De qualquer forma, o que intriga Todorov é o fato de que, ao classificar os
chistes de pensamentos, Freud não mais se refira à condensação. Na opinião de Todorov, a
designação freudiana omissão não inclui a condensação, mas também relaciona esta à
própria alusão, mesmo porque, para Freud, toda alusão se funda numa omissão A
justificativa se baseia nas próprias palavras de Freud (apud Todorov, p.319): “No fundo,
toda alusão comporta uma omissão, a saber, a da seqüência de pensamentos que resulta na
alusão”.
213
De fato, segundo Todorov, a única diferença entre o que Freud denomina
condensação e aquilo que este designa como alusão é que a primeira é uma evocação
simultânea (paradigmática), ao passo que a segunda é sucessiva (sintagmática). Na verdade,
tanto a sobredeterminação, como a alusão designações freudianas são entendidas por
Todorov como condensação, que subsumem o extravasamento do significado de um
significante.
ao comentar a unificação
78
, categoria que Freud inclui tanto nos chistes de
pensamentos quanto nos de palavras, Todorov é mais incisivo, pois, além de frisar a
oscilação da concepção freudiana sobre tal categoria, também revela como Freud a torna
contraditória na medida em que a aproxima da condensação.Todorov serve-se dos critérios
da ausência e da presença para dirimir tal confusão:
A confusão é ainda mais importante na segunda nova característica da unificação, quando Freud
aproxima unificação de condensação. Esta última, como vimos, consistia no fato de um
significante qualquer evocar mais de um significado. A condensação é a relação entre a frase
presente e uma ou mais frases ausentes (que a primeira simboliza segundo este ou aquele
processo). Trata-se de uma relação in absentia. A unificação, ao contrário, sejam quais forem as
hesitações sobre sua definição exata, é uma relação entre duas ou mais unidades, todas presentes
(...) Trata-se, portanto, de uma relação in praesentia
(Todorov,1996:322).
De qualquer forma, o que nos parece mais interessante é a síntese proposta por
Todorov com base no critério de ausência e de presença para discernir o que é condensação
daquilo que ele chamará, ginas adiante, de deslocamento. Parece-nos, pois, com base no
critério da presença, acima citado, que podemos entender o pensamento do dia, proposto
78
Freud caracteriza, inicialmente, como unificação o jogo de palavras do qual decorre uma certa surpresa e
cita como exemplo uma frase atribuída a Schleirmacher (apud Todorov, p.322), a saber: Eifersucht ist eine
Leidenschaft die mit Eifer sucht was Leiden schaft, que pode ser traduzida literalmente como: O ciúme é uma
paixão que com zelo procura aquilo que gera o sofrimento. Mais livremente poderíamos traduzi-la: O ciúme é
uma paixão masoquista, pois procura com afinco o próprio sofrimento. Um outro exemplo freudiano, citado
por Todorov (apud p.320), ilustra com mais propriedade o efeito humorístico decorrente deste jogo de
palavras: O mês de janeiro é aquele durante o qual fazemos promessas aos nossos amigos, e os outros meses
são aqueles durante os quais nenhuma delas se realiza.
214
por José Simão, na crônica datada de 1º/10/2004, como exemplo de deslocamento:
Patrimônio é um conjunto de bens, matrimônio é um conjunto de males.
Também a inclusão do deslocamento na categoria freudiana de falhas de
raciocínio é questionada por Todorov, para quem tal técnica é essencial e abrangente. Para
Freud, o deslocamento subsume uma mudança do acento psíquico, um desvio do
pensamento, ou seja, a um discurso segue-se uma resposta cujo curso destoa da colocação
inicial. O deslocamento (no caso, um quiasmo) se configura de forma inquestionável no
pretenso diálogo em que José Simão zomba da falta de perspectiva de Fidel Castro, que não
reconhece a falência do seu regime:
E falaram pro Fidel: “A situação em Cuba está tão ruim que até as universitárias estão
virando prostitutas”. E o Fidel: “Nada disso. A situação é tão boa que até as prostitutas
estão virando universitárias” (22/09/2004).
Na realidade, Todorov não nega a perspectiva freudiana do deslocamento,
apenas a enriquece, justamente porque destaca o duplo contexto de enunciação do chiste,
ou seja, aquele que envolve o das réplicas entre as personagens, bem como aquele
estabelecido entre o narrador/leitor ou, no caso do nosso corpus, entre autor/leitor. Portanto,
se para Todorov (op.cit., p.326), o deslocamento é, na verdade, a incoerência entre um
discurso e uma resposta, o trabalho de reinterpretação do leitor está, digamos, previsto
nesta técnica.
Além disso, segundo pudemos concluir, o deslocamento é técnica comum em
tiras humorísticas e HQs, e pode ser ilustrado toda vez que ocorre o que designamos de
“diálogo frustrado”ou “não-diálogo”, ou seja, uma personagem A fala de um assunto X, e a
fala ou resposta do interlocutor, ou seja, da personagem B, revela que não houve, de fato, a
comunicação: este se reporta a um assunto Y. Em suma: fica patente ao leitor que o efeito
perlocucionário foi frustrado.
215
Aliás, se bem avaliamos, o efeito mico decorre não da percepção do leitor
quanto à quebra de expectativa no nível diegético (entre as personagens), mas também da
conseqüente surpresa (e prazer) que tal desvio de rota acarreta no seu espírito. A título de
endosso, lembremo-nos de que o elemento surpresa sempre foi valorizado pelos antigos que
o relacionavam ao humor.
De qualquer maneira, vai-se delineando em nossas observações aquilo que era
evidente para Cícero: um humor de palavras e um humor de ações e desta forma, o
deslocamento pode se realizar tanto pelo jogo de palavras, como pela incongruência das
ações de determinada personagem. Mas arriscamo-nos a afirmar algo mais: se o primeiro é
comum à comicização extratextual e à diegética, o segundo parece ser típico da
comicização diegética. Portanto, pela própria natureza do corpus escolhido, provavelmente,
a nossa atenção tenha se voltado para o alvo certo, ou seja, para o jogo de palavras como
um elemento de sedução do leitor no jogo em que ambos - autor e leitor - transformaram a
interação.
Cabe aqui um parêntese. É digno de nota o fascínio que os chistes têm exercido
não apenas sobre os lingüistas, mas especialmente sobre os psicanalistas. Também Jacques
Lacan rendeu-se a eles, na medida em que suas palestras eram pontilhadas por jogos
verbais, conforme atesta Pierrakos (2003), sua estenotipista oficial que, durante 12 anos,
registrou-lhes os seminários ministrados:
A língua lacaniana tinha uma outra característica: o uso bastante freqüente, para não dizer
compulsivo, do chiste. Jogos de palavras, inversões de letras ou palavras que produzem sentidos
burlescos, trocadilhos, salpicavam o discurso de Lacan. Citemos a famosa poubellication, as três
virtudes teologais: a foire, lasciat ‘ogni speranza et l’archiraté, a sibériétique (para a cibernética
gelada) e a lituraterre entre outras
. (op.cit., p.33-4)
79
79
Em nota de rodapé (op.cit.,p.33-4) as palavras criadas (diríamos as contaminações) foram assim explicadas:
1ª) publication + poubelle = publicação + lixeira; 2ª) foi = fé, foire = feira; 3ª) charité = caridade; archiraté =
supererrado; 4ª) Sibérie = Sibéria, cybernétique = cibernética; 5ª) littérature par terre= literatura por terra.
216
Sugestivo é ainda o questionamento feito pela “batedora de Lacan”, como
Pierrakos se autodenomina (não sem uma pitada de derrisão), com relação à referida
compulsão lacaniana pelos chistes:
Não se pode deixar de apreciar estes achados, que descendem diretamente dos virtuosismos da
época surrealista, mas podemos nos perguntar em que eles eram necessários aos raciocínios e
demonstrações que constituíam o eixo dos seminários. E podemos nos perguntar, também, como
as pessoas que eram compelidas a reler Freud, devendo estar atualizadas com os escritos
freudianos, não foram buscar nestes textos alguns indícios?
(Pierrakos, 2003:34)
Na realidade, o que nos pareceu sugestivo na citação anterior diz respeito não só
à critica incipiente que nela se desvela, mas também ao fato – para nós gratificante – de que
a associação humor/estética surrealista é bastante pertinente. Aliás, parece-nos simples,
agora, inferir a razão desta pertinência: o surrealismo representou, por certo, um mergulho
no inconsciente. O fascínio de Lacan pelos chistes bem o comprova.
É imprescindível ainda que registremos como Pierrakos (2003:35), ela mesma
uma psicanalista, passa a criticar abertamente Lacan, ao afirmar que o uso de chistes e
jogos verbais, por vezes crípticos, era uma maneira narcísica e sedutora de Lacan dominar a
platéia dos seus concorridos seminários.
E mais: recuperando a divisão freudiana entre chistes inofensivos (harmlos) e
chistes agressivos ou tendenciosos, a autora afirma que enquanto os trocadilhos produzidos
por Raymond Queneau e Frédéric Dard, por exemplo, marcavam-se pela alegria (op.cit.,
p.34-5), as criações chistosas lacanianas eram marcadas pela derrisão. E, retoricamente, se
pergunta:
Estarei indo longe demais ao dizer que as brincadeiras, os trocadilhos e a inversão de letras ou
palavras de Lacan eram raramente harmlos e que, pelo contrário, seu objetivo era extremamente
ofensivo e agressivo?
217
Isso posto, fechemos o parêntese e voltemos às análises de Todorov que, ao
criticar a perspectiva lacaniana de associar a condensação à metáfora e o deslocamento à
metonímia - perspectiva esta que se tornou lugar comum pelo endosso generalizado que
recebeu, inclusive de lingüistas - recupera os critérios de ausência (a questão da evocação)
e presença (sentidos dados no texto) para marcar tais distinções:
Vê-se (...) como são parciais as tentativas feitas nas pegadas de Lacan, de juntar os dois
conceitos freudianos, condensação e deslocamento, a categorias retóricas como a metáfora e a
metonímia (...) A condensação engloba todos os tropos, tanto a metáfora quanto a metonímia,
assim como outras relações de evocação de sentido; o deslocamento não é uma metonímia, não é
um tropo, pois não é uma substituição de sentido, e sim uma correlação de dois sentidos co-
presentes.....
(Todorov, 1996: 330).
A importância de tais critérios é reiterada adiante:
Permanece a necessidade de manter uma distinção fundamental, que não exerce nenhum papel
em Freud: a das relações que se estabelecem entre as partes presentes de um enunciado e das
relações que se formam entre essas mesmas partes, assim, como outras, ausentes
(op.cit.,p.331).
Finalmente, Todorov ainda analisa os trocadilhos e os jogos de palavras o que,
para nós, se reveste de grande importância, dado o número excessivo deles nas crônicas de
José Simão. Discordando do preconceito mais ou menos comum entre alguns estudiosos de
que os jogos de palavras são superiores aos trocadilhos, uma vez que os primeiros
trabalham com significados e os segundos com significantes, Todorov rejeita tal distinção,
quando conclui:
Portanto no discurso o há relação entre significantes sem relação entre significados: não
diferença, nesse sentido, entre “trocadilhos” e “jogos de palavras”; tudo o que podemos observar
é a maior ou menor riqueza da relação semântica, a maior ou menor motivação da relação entre
significantes
(op.cit., p.334).
218
Sempre lamentando o desconhecimento retórico de Freud - “Nunca
lamentaremos demasiado a ignorância de Freud com relação à retórica” Todorov (op.cit.,
p.334) lança mão das figuras como a paronomásia, a antanáclase, a silepse, as
contaminações e os trocadilhos para explicar as relações entre significado e significante,
em suma, para explicar os mecanismos responsáveis para a consecução dos chistes, ou mots
d´esprit.
A paronomásia reúne, na mesma frase, palavras com sons quase idênticos, mas
com sentidos totalmente diferentes. Na verdade, a paronomásia é sintagmática: “A técnica
consiste em aproximar na cadeia sintagmática duas palavras cujos significantes se
assemelham, mas cujos significados são independentes.” (Todorov, 1996: 332). É comum o
uso deste recurso nas crônicas de José Simão com intuito de se criar o efeito cômico.
Por ocasião da “guerra das cervejas” (vide p.69-70 desta tese), vieram à luz
muitos artigos nos quais se comentava se a atitude do cantor Zeca Pagodinho fora ou não
ética, uma vez que este fizera a propaganda para outra marca de cerveja, antes de ter
terminado o seu contrato com a Schincariol. O comentário do cronista é um exemplo feliz
de como o uso da paronomásia pode ser comicamente eficaz, principalmente se temos
ciência do apego do cantor à cerveja: E ele não é ético nem antiético, é etílico (16/03/2004).
O mesmo recurso pode ser apontado no trecho que se segue:
E diz que a melhor coisa do jogo Brasil e Venezuela foi quando caiu o áudio do Galvão
Urubueno. Caiu o áudio para o gáudio dos telespectadores (12/10/2004).
Como sabemos, o cronista esportivo Galvão Bueno, da Rede Globo, é um dos
alvos prediletos de José Simão, a ponto de este, inclusive, ter-lhe feito uma “deferência”, ou
219
seja, a de mudar a forma de designá-lo: de Galvão Bueno
80
para Galvão Urubueno.
Ademais, é bastante curiosa a construção da paronomásia áudio/gáudio, principalmente
porque o último vocábulo destoa da linguagem extremamente popular, usual nas crônicas
em questão. De qualquer forma, o cronista se aproveita dos problemas ocorridos na
transmissão do jogo (ausência de som), para reiterar a sua avaliação sobre o comentarista,
que - ironicamente é o silêncio deste que deixa o telespectador feliz. O cronista,
sobretudo.
Outros efeitos cômicos, resultantes da mesma estratégia, podem ser notados em:
E adorei a declaração do Shwarzenegger: “O pênis não é um músculo”. Ele disse que o
pênis não é um músculo porque o dele deve ser MINÚSCULO! Rarará! (13/10/2004)
E mais notícia sobre padre praticando pedofilia? Então não é mais pedofilia, é
PADREFOLIA! Sacranagem! E aí perguntaram pro Michael Jackson o que ele queria ser
quando crescer. Padre! Rarará! (17/09/2004)
Interessante é que, nos trechos grifados, o uso das paronomásias (músculo/
minúsculo e pedofilia/padrefolia) coincide com o comentário debochado do cronista a
respeito de assunto colocado no enunciado anterior, o que nos faz pensar que tal jogo de
palavras empresta à avaliação do cronista um tom peremptório, de verdade definitiva, até
porque parece não admitir réplica.
80
Na crônica do dia 27/08/2004, época de Olimpíadas, o cronista afirma: E o Galvão Bueno ganhou novo
apelido: AGOURÃO Bueno! na crônica seguinte (28/08/2004), José Simão esclarece e confirma a origem
da deferência: E sugestões para o Brasil ganhar mais medalhas: 1) incluir outras modalidades, como
palitinho, truco, reco-reco, pega vareta e bronha! 2) proibir o AGOURÃO Bueno, secador oficial das
Olimpíadas, de narrar os jogos. (...)
220
Notamos nesses exemplos, sobretudo no último, como a estrutura dual da
paronomásia embute, por vezes, a associação causa/conseqüência que é reforçada,
inclusive, pela própria entonação. Mais interessante ainda é que o tom descendente, típico
da apódose
81
, coincide com o elemento deflagrador do riso. Há, pois, um duplo fecho: de
sentido e de entonação. Uma última observação: criar a contaminação padrefolia para fazer
par com pedofilia é genial; inventar sacranagem no lugar de sacanagem também.
Também a antanáclase, que envolve a repetição da mesma palavra, com
diferentes sentidos, apontada por Todorov como um outro recurso eficiente para a geração
do humor, aparece constantemente no corpus escolhido. A citação de Todorov, segundo a
qual “a diferença entre paronomásia e antanáclase é a existente entre a semelhança e a
identidade” (op.cit.,p.335) é providencial até porque nos facilitou a seleção de algumas
antanáclases presentes nas crônicas em questão. Vejamos alguns delas, cuja criação foi
motivada por ocasião do último pleito municipal:
E um amigo meu levou a cola e na hora de votar percebeu que era a lista do
supermercado: dois yogurtes, um mamão e três quilos de café. E um outro amigo meu
cheirou a cola e ficou indeciso entre o Maluf e a Dra Havanir. E eu nem lembro em quem
votei porque peguei a cola emprestada (05/10/2004).
Aproveitando-se do fato de que a mídia, sobretudo a televisiva, aconselhava o
uso da cola eleitoral visando facilitar o voto eletrônico, o cronista joga com dois sentidos
(presentes) da palavra cola não só para revelar o pouco envolvimento que o processo
eleitoral tem despertado nele (E eu nem lembro em quem votei porque peguei a cola
emprestada) e na população (alguns confundem a cola eleitoral com a lista do
supermercado, este um papel talvez bem mais importante), mas também para debochar de
81
“Muitas frases se dividem em duas partes: a primeira, que termina pelo tom mais alto, recebe o nome de
prótase, e a segunda, marcada pelo tom descendente, o de apódose. A prótase é a parte que cria a expectativa,
a curiosidade, a tensão; na apódose se desfaz esta tensão. Esta estrutura é um fator importante da
expressividade e pode ser observada nos provérbios e frases dirremáticas, (...)” N. Martins (1997:175
).
221
alguns candidatos, já que por estar drogado (E um outro amigo meu cheirou cola) e,
provavelmente, não-consciente, o amigo do cronista ficou indeciso entre votar no Maluf e
na Dra Havanir: o primeiro, um candidato sabidamente envolvido em uma série de
processos de corrupção; a segunda, uma candidata histriônica.
Um outro exemplo bastante criativo aparece por ocasião das Olimpíadas, a
propósito de uma informação impertinente (entre inúmeras outras, segundo o cronista) feita
por Galvão Bueno a respeito de uma escultura do Centauro.
E o Galvão ainda deu uma informação que abalou o planeta: “O pênis do centauro mede
45 cm.” Centauro de Itu! Quero ver quem vai centauro em cima! (17/08/2004)
O jogo verbal feito por José Simão não ridiculariza o comentário do locutor,
via ironia (a informação abalou o planeta), mas também parece sugerir que o próprio
locutor deva testar a procedência das suas afirmações (Quero ver quem vai centauro em
cima!), mormente se considerarmos que Galvão Bueno é sempre rechaçado nas crônicas de
José Simão. De qualquer forma, o jogo centauro = ser mítico, metade cavalo, metade
homem e centauro, que evoca, pela semelhança sonora, o verbo sentar, pode ser
considerado uma antanáclase degradada (grifo nosso), visto que se funda em um erro”
ortográfico.
Mas, resta-nos ainda o comentário sobre as demais categorias propostas por
Todorov, a saber: a silepse, as contaminações e os trocadilhos. Se, conforme pudemos
constatar, tanto a paronomásia quanto a antanáclase se pautam pelo critério da presença
ambos os termos que realizam o jogo de palavras aparecem na cadeia sintagmática a
silepse, segundo Todorov, é basicamente paradigmática que um significante condensa
vários sentidos, o que caracteriza uma relação de ausência, se considerarmos que só um
significante aparece na cadeia sintagmática.
222
Definindo, pois, a silepse como a “possibilidade de uma palavra ter vários
sentidos simultaneamente dentro de uma mesma frase” (op.cit., p.336), Todorov se
questiona sobre um quarto elemento, que o cruzamento de dois critérios deve originar
quatro possibilidades e não três como as que temos até então (paronomásia, antanáclase e
silepse). O trecho que se segue, além de reiterar a crítica a algumas indefinições da teoria
de Freud, apresenta claramente a busca deste quarto elemento. Vejamos:
Acabamos de distinguir, com base na análise dos exemplos de Freud, duas categorias mal
definidas por ele: a oposição entre identidade e semelhança dos significantes; a oposição entre
ocorrência única e ocorrência múltipla de um significante idêntico ou semelhante (no caso em
que há mais de um significado). Mas um sistema combinatório de duas dimensões produz quatro
termos: pois bem, até agora só encontramos três: ocorrência única do mesmo, silepse; ocorrência
múltipla do mesmo, antanáclase; ocorrência múltipla do semelhante, paronomásia. Onde está a
quarta categoria, a ocorrência única do semelhante? Ela existe? Como imaginá-la?
(op.cit.,p.336-7).
Interessante é que ao buscar tal resposta, Todorov não só resgata o termo
retórico contaminação, mas também o identifica ao tipo de condensação realizada pela
expressão familionária no chiste, famoso, citado por Freud (Parece que esta forma de
sobrecarga é também comum aos sonhos). A explicação da quarta categoria merece, pela
clareza, ser citada:
O significante “familionária”, ocorrência única, remete a dois significados, familiar e
milionário, cujos significantes não são idênticos, mas semelhantes. Para sugerir os dois
significados, fomos obrigados a construir um significante composto, que abriga partes de ambos.
O termo lingüístico para designar essa duas construções é contaminação (ou ainda mot-valise).
(op.cit., p.337)
Portanto, o encontro deste quarto elemento leva-nos a uma conclusão imediata:
tanto a silepse quanto a contaminação fazem parte de uma categoria maior: a da
condensação e basicamente se realizam no eixo paradigmático. Ilustremos tais “sub-
categorias” com alguns comentários feitos por José Simão a propósito das Olimpíadas/2004
e do início do processo eleitoral à prefeitura e à vereança nas cidades brasileiras.
223
E diz que em natação levamos nabo sincronizado (28/08/2004).
Ereções 2004!O Pleito Caído! E a Marta Botoshop, misto de botox com Photoshop, diz que
vai fazer o CEU da Saúde: ótimo manda todos os doentes para o céu e tá resolvido
(28/08/2004).
E diz que o Brasil vai ganhar ouro em Assalto à Distância. E o Maluf em Assalto
Ornamental! E o Henrique Meirelles vai levar ouro em revezamento de denúncias.
(15/08/2004).
Alguns comentários se fazem necessários. O primeiro é a presença da silepse
como elemento deflagrador do riso, que a expressão levamos nabo sincronizado, além de
evocar a expressão levar/ganhar medalha em nado sincronizado - dada a semelhança
sonora entre nado/nabo - subsume o comentário escrachado do cronista, uma vez que levar
nabo é metáfora popular que, de certa forma, eufemiza a expressão chula tomar no cu. De
nado mesmo, nada.
O segundo comentário envolve não as silepses ereções e pleito caído,
designações usadas pelo cronista durante todo o processo eleitoral, mas cujas evocações e
associações revelam a incongruência das eleições; pois, se, num primeiro momento, estas
são associadas a ereções, no segmento lingüístico subseqüente tal pleito é considerado
caído.
Se bem inferimos, as eleições podem significar ereções e, portanto, prazer,
apenas para os candidatos, que uma certa frustração em relação ao governo Lula tem
224
acentuado o descrédito nos políticos e, conseqüentemente, nos pleitos que os elegem. Desse
exemplo emerge também a questão da sexualização dos referentes, assunto a que nos
dedicamos anteriormente.
Ainda nesse primeiro trecho, o que nos chama atenção é o fato de José Simão
explicar a própria contaminação criada por ele para nomear a candidata à reeleição, Marta
Suplicy, prefeita de São Paulo na época em que a crônica foi produzida. A designação
Marta Botoshop condensa duas alusões: ao uso constante de botox e às fotos estampadas
em out-doors, em que a então candidata aparecia bastante renovada.
Mas supomos haver mais, principalmente se acreditarmos - e acreditamos – que
é comum a combinação humor/maldade (ou “maldadezinha inteligente”, segundo o próprio
cronista). Botoshop remete também, dada à identidade sonora, a boto, associando melhor,
ao bico do boto. A referência à boca proeminente da prefeita em virtude das aplicações de
botox é recorrente em JoSimão, pois, na crônica datada de 13/03/2004, ele comparara
a prefeita à namorada do Pato Donald. (E a Marta já botou tanto botox que com o bico
da namorada do Pato Donald). De bico de pato a bico de boto: efeitos do botox.
Finalmente, um último comentário. É comum, nas crônicas do autor, o
cruzamento de diferentes scripts, ligados aos assuntos do momento, com o objetivo único
de se criar o efeito cômico. Tal sobreposição de scripts é ilustrada claramente no último
texto, porque o cronista usa frames do assunto olimpíada para comicizar os escândalos
perpetrados por nossos políticos.
Dessa forma, se o Brasil vai ganhar ouro em assalto à distância, alusão ao
número excessivo de seqüestros aqui ocorridos, o Maluf será o campeão em assalto
ornamental, alusão a todas as peripécias e artimanhas em que se envolveu tal político para
provar que não é o correntista de conta vultosa, registrada em seu nome, na Suíça. Também
Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, teve seu nome envolvido em uma série
de denúncias, justificando o palpite do cronista:...vai levar ouro em revezamento de
denúncia. Convém lembrar que, para Freud (1996:1072):
225
A alusão talvez seja o meio mais usual e mais adequado para se criar o chiste e constitui o
fundamento da maioria dos chistes de curta duração, os quais costumamos introduzir em nossa
conversação e os quais não podem subsistir por si mesmos, se descontextualizados.
82
.
Uma última distinção feita por Todorov diz respeito aos trocadilhos os quais,
segundo ele, encerram a evocação de dois significados cujos significantes são apenas
semelhantes, embora não se realize a contaminação. Para que isso ocorra, a necessidade
de que, por exemplo, numa locução/expressão/provérbio bastante conhecidos, o significante
2 substitua o significante 1 por um parônimo. Todavia, quando Todorov cita o exemplo de
Freud: “Viajei tête a bête com eleparece-nos que este exemplo de trocadilho se faz no
eixo sintagmático, uma vez que ambos os significantes permanecem.
Por outro lado, cremos, ainda que, quando José Simão encerra seus comentários
com relação à polêmica entre Zeca Pagodinho e as duas cervejarias concorrentes, o
provérbio final O bom filho a casa entorna (16/03/2004) pode ser entendido - concorde as
explicações de Todorov - como um trocadilho. Na verdade, a nossa dúvida pode ser assim
resumida: se Todorov (op.cit., p.336) afirma que a silepse, a contaminação e o próprio
trocadilho preenchem a quarta casa a da ocorrência única do semelhante como se
explica o exemplo citado no parágrafo anterior? Há dois tipos de trocadilhos?
De nossa parte, acreditamos que alterações em construções muito conhecidas
sejam elas provérbios ou expressões idiomáticas - podem ocorrer tanto no eixo
sintagmático quanto no paradigmático, ou dito de outra forma: eles podem se realizar tanto
via paronomásia quanto via silepse. Exemplo desta última afirmação se prende ao fato de
que a expressão salto ornamental foi substituída por assalto ornamental, bem como no
provérbio houve a mudança do verbo de torna para entorna. Segundo as explicações de
Todorov, classificaríamos tal estratégia como silepse ou trocadilho?
82
La alusión es quizá el más corriente y manejable de todos los médios del chiste y constituye el fundamento
de la mayoria de los chistes de corta vida que acostumbramos a introducir en nuestra conversación, los
cuales no pueden subsistir por si mismos ni soportan ser desarraigados del terreno em que nacen.
226
Quando Todorov define a silepse como “a possibilidade de uma palavra ter
vários sentidos simultaneamente dentro da mesma frase” (op.cit.,p.336) e o trocadilho
como a substituição de um termo - de uma locução ou de um adágio - por outro
foneticamente semelhante, mas diferente quanto aos sentido (assalto ornamental por salto
ornamental? ) de forma que o contexto possibilite ao leitor a percepção da mudança, está
abordando duas técnicas diferentes? Todavia, se o leitor precisa ir além do que está escrito
ou dito, não estamos diante de uma silepse? E quanto ao trocadilho paradigmático, ele não
se funda na possibilidade de se apreender o termo original? A nosso ver a classificação
silepse é redundante, visto que ela está presente em todo tipo de condensação.
Parece-nos, portanto, que voltamos às considerações iniciais. Os chistes
retóricos são ditos espirituosos, e qualquer análise deles passa pela sua natureza verbal,
melhor dizendo, fonético-fonológica. Os dois mecanismos básicos para que os construamos
são a condensação e o deslocamento. O primeiro mecanismo envolve essencialmente um
trabalho que parte do eixo paradigmático e tanto a contaminação, quanto a silepse
(capacidade de evocação) bem como trocadilho paradigmático (grifo nosso) podem
realizá-lo.
Na verdade, a condensação é a evocação de vários significados a partir de um
significante, do que decorre a afirmação de que ela se pauta pela ausência. o
deslocamento é sintagmático e o jogo verbal se realiza com a presença dos elementos.
Como exemplo de deslocamento temos a antanáclase e a paronomásia e o próprio
trocadilho sintagmático (grifo nosso), ou seja, aquele que modifica um dos termos de
expressão conhecida, substituindo-o por um parônimo (tête a bête, por exemplo).
Pode parecer redundância, mas queremos frisar a característica que acreditamos
ser constitutiva dos ditos espirituosos, sejam eles classificados como silepse, contaminação,
trocadilhos, antanáclase ou paronomásia (a se manter a classificação todoroviana): eles
subsumem uma brincadeira verbal cujo gatilho é acionado pelo significante. Isso implica
dizer que o leitor deve ter a “possibilidade” de perceber tal brincadeira, que se torna eficaz,
227
ou seja, cria um efeito de humor, quando o leitor recupera, pela semelhança sonora, o
elemento ausente e o compara ao elemento presente.
De qualquer forma, como o humor verbal pode decorrer de gatilhos de outra
natureza (a sintática, por exemplo) parece-nos razoável entender - e assumir - a explicação
de alguns estudiosos que preferem a designação genérica trocadilho apenas para os jogos
de palavras que se estabelecem a partir de brincadeiras com os significantes. Sob este
aspecto, convém frisar que é a percepção da brincadeira verbal por parte do ouvinte/ leitor
o ponto-chave para a nossa restrição quanto ao termo silepse, segundo a explicação de
Todorov. Uma metáfora é também uma silepse, mas ela não subsume, necessariamente,
uma brincadeira sonora. É, pois, a nosso ver, a possibilidade de que o leitor recupere o
termo original (assalto ornamental por salto ornamental) o que difere um trocadilho de
uma silepse, entendida esta sob a perpectiva todoroviana.
Em outras palavras, não refutamos a concepção de que um trocadilho
paradigmático seja uma silepse, ou seja, que concentre outros significados. O que
questionamos – partindo-se da premissa que conseguimos penetrar na densidade do texto de
Todorov é que nem toda silepse se realiza via uma brincadeira sonora. E a percepção da
brincadeira sonora é, segundo pensamos, condição fundamental para a existência de um
trocadilho cujo intuito é criar um efeito de humor.
Tringali (1988:141), ao definir trocadilho como “um jogo espirituoso de
palavras para se fazer efeito”, embora não avente a questão da silepse e contaminação
todorovianas, acrescenta à paronomásia e à antanáclase um outro recurso que ele denomina
de reunião de sílabas (parece-nos estranha esta última designação) e aponta todos os três
como caminhos para a consecução do trocadilho. Ademais, todos os exemplos apresentados
por este autor reforçam o jogo fônico que os caracteriza. Apenas para ilustrar esta última
informação, transcreveremos o exemplo do que Tringali designou reunião de sílabas” que,
a nosso ver, envolve a questão da segmentação, sobre a qual falaremos adiante.
Observemos no texto como a brincadeira sonora (e visual) cria o efeito humorístico:
228
Quando um dia, Eduardo Prado disse a uma professorinha, mostrando-lhe uma cabana no
campo: “- Ali se vive de amore.” Ao que a jovem que se chamava Alice respondeu: - E
do ar do prado também.”
Isso posto, cumpre-nos ainda registrar que, embora Attardo, Todorov e Freud
associem os chistes das palavras ao humor do dicto, e o chiste de pensamentos ao humor
das coisas e ações (res), parece-nos inegável que a divisão de Cícero era mais abrangente,
até porque explicar o humor passava não apenas pelos jogos verbais, mas também pelas
ações jocosas ou hilárias praticadas pelas personagens de uma anedota, ou de uma
comédia, por exemplo.
Aliás, como vimos anteriormente, a preocupação com a comicidade da comédia,
diríamos, da narrativa cômica, permeou as indagações de estudiosos de várias áreas que
buscavam entender o riso. Ademais se para a consecução do efeito cômico fosse
imprescindível o verbo, Carlitos teria existido? É, pois, a constatação de que existe um
humor mudo, que pode ser transmitido por gestos ou reproduzido pela linguagem, que nos
leva a valorizar o humor das ações, embora estejamos cientes de que apenas em
representações imagéticas (tiras, charges e até HQs da qual o texto de Bretécher é um
exemplo interessante), bidimensionais (cinema mudo) ou tridimensionais (teatro, mica),
ele possa se realizar sem a mediação da linguagem verbal e, ainda assim, com muitas
restrições. Diante do exposto, podemos afirmar que o humor das palavras nos remete ao
domínio do audível, ao passo que o das ações, ao do visível.
4.2 - CHISTES RETÓRICOS: FORMA EVOLUÍDA DE HUMOR?
Quando estava escrevendo a obra A interpretação dos sonhos, Freud submeteu
os manuscritos à apreciação do amigo Wilheim Fliess e este, ao perceber o excessivo
número de piadas relatadas, duvidou que os pacientes de Freud as tivessem contado e supôs
serem de autoria do próprio Freud.
229
Este foi obrigado a confessar que apreciava e colecionava piadas sobre judeus e
que o riso também era objeto de suas reflexões, dada a semelhança que ele percebia entre o
trabalho simbólico que a mente executa enquanto sonhamos e aquele que ela realiza quando
criamos os chistes. Entender a técnica dos últimos era, pois, uma forma de melhor entender
os mecanismos da mente.
Ademais, Freud foi movido pela convicção de que o riso era uma forma,
socialmente aceitável, que nos permite extravasar conteúdos sexuais e ou agressivos.
“Algumas das técnicas preferidas dos chistes são as mesmas que os sonhos empregam para
enganar o censor interno”, afirma Gay (1993:383), para explicar a convicção freudiana
sobre o papel do riso.
Além disso (ou talvez por isso), para o médico vienense, o fazer piadas gera um
prazer especial e os chistes se associam a regressões na medida em que permitem a vinda à
tona de conteúdos recalcados que, por polidez, aprendemos a reprimir. Gay (1993:384),
comentando Freud, assevera:
Assim, Freud via o chiste, fosse ele hostil ou obsceno, como sinuoso e bem disfarçado agente de
gratificação. Com astutos rodeios, ele escapa às barreiras políticas, sociais e religiosas
construídas para restringir, ou inibir totalmente, conversas sérias sobre assuntos delicados.
Como a sociedade treina seus filhos para controlar a agressividade, os chistes representam uma
saída bem vinda, talvez a única, para os desejos reprimidos.
Se a questão do prazer e da catarse inerentes à concepção freudiana do humor
estão muito bem colocadas na citação de Gay, resta-nos ainda abordar a questão da
evolução do humor. Afirmar que o homem é o único animal que ri já se tornou um truísmo.
Mas inexiste unanimidade entre os pesquisadores quando se fala na aquisição de tal
capacidade: ela é natural, instintiva, ou tem caráter evolutivo?
Parece-nos bastante pertinente reportar aqui a teoria evolutiva do humor acatada
por Rapp (apud Raskin, 1985), até porque a entendemos como um endosso à idéia exposta
230
na citação anterior, na medida em que os trocadilhos e chistes representam uma forma mais
elaborada, e, neste sentido, mais “evoluída” de humor. Expliquemo-nos.
Rapp defende a idéia de que algumas formas modernas do humor nada mais são
do que reminiscências daquele grito ancestral e atávico, que expressava a satisfação (e
descarregava a tensão) do homem das cavernas, quando este derrotava um inimigo. Em
outras palavras, o grito primitivo se civilizou ao longo das eras, mas os resquícios dos
diferentes estágios de evolução podem ser ainda perceptíveis nas três famílias teóricas (vide
p.13 desta tese) as quais Rapp associa ao ridículo, aos jogos de palavras e ao rir de si
mesmo, respectivamente. Em suma, o humor moderno traz em sua evolução genética as
marcas de uma batalha.
Partindo de tal premissa - ao riso subjaz uma batalha - o ridicularizar alguém
corresponderia ao humor mais primitivo, análogo àquele sentido pelo homem ancestral ao
vencer o adversário. Obviamente, o vencedor era tomado por um sentimento de
superioridade, e desfrutar os infortúnios do derrotado caso este ainda estivesse vivo
desvela o mesmo sentimento de maldade que existe quando rimos dos defeitos e
imperfeições físicas e morais do Outro. Gagos, fanhos, manquitolas, parvos, loucos são,
ainda hoje, motivos de ridicularizações. (Aristóteles já o percebera).
Sob este aspecto, é interessante a pesquisa feita por Chandler (apud
Raskin,1985) com crianças na faixa de 8 anos de idade. Perguntadas sobre qual a melhor
piada ouvida durante as férias, todas, sem exceção, reportaram aquelas em que a
personagem estava em uma situação de infortúnio. Mais interessante ainda é observar que
neste primeiro grupo evolutivo, a ridicularização do infortúnio e dos defeitos alheios (do
perdedor) desvela a maldade/superioridade do vencedor. (Não nos parece gratuita a
presença da maldade nos desenhos televisivos infantis).
De qualquer forma, este humor maldoso e primitivo (ou os resquícios dele)
causa deleite não nas crianças e se, na concepção de Rapp, representa uma evolução da
luta física, Leacock (apud Raskin, 1985, p.22) é taxativo ao afirmar que tal tipo de humor
231
é anterior não à própria linguagem escrita, mais à própria linguagem, sendo, pois, um
humor que se expressa por ações:
Dessa maneira, ele {o humor primitivo} era mais velho do que a linguagem escrita, e sem
dúvida mais velho do que a própria linguagem, pertencendo à fase dos grunhidos e latidos que
deram origem à linguagem. Ele se expressava em ações, não em palavras.
83
(grifo nosso)
Tal afirmação nos parece extremamente reveladora, sobretudo porque corrobora
a divisão assumida por nós de que um humor mais ligado às ações e um humor mais
ligado às palavras ou, como o dissemos: um humor visível e um humor audível, o que,
obviamente, não impede que ambos com freqüência se imiscuam.
Se o primeiro estágio evolutivo do humor esclarece uma certa maldade e mesmo
uma certa superioridade que intuímos ser, por vezes, inerentes ao humor, o estágio
seguinte, segundo Rapp, encerra um grau maior de polidez, visto que a batalha física se
transforma em duelo verbal do qual as charadas, as adivinhações, os trocadilhos são
representantes: “O duelo toma a forma de charadas, quebra-cabeças, trocadilhos, respostas
espirituosas e outras formas de humor verbal.”(Raskin,1985:23).
84
Comentando algumas pesquisas sobre o humor infantil, Raskin (op.cit.,p.21)
endossa a idéia de que o humor verbal é menos acessível às crianças pequenas: os jogos
verbais, porque dependem da capacidade de discernir ambigüidades, requerem um maior
grau de abstração. Isso talvez explique o gosto que as crianças têm pelo humor mais
primitivo, menos abstrato e menos polido e – poderíamos acrescentar – centrado nas ações.
De qualquer maneira, o que se nos afigura interessante é o fato de que, em
alguns exemplos de humor verbal, a superioridade - típica do primeiro estágio - sutilmente
se mantém. A charada, por exemplo, não guarda em si a idéia de competição e não
pressupõe uma superioridade mental, vez que o locutor (protagonista), deliberadamente,
83
In such a form it was older than written language, and no doubt older than language itself, belonging in the
age of grunts and barks out of which language arouse. It expressed itself in action, not in words.
84
The duel took the forms of riddles, conundrums, puns, repartees, and other forms of verbal humor.
232
esconde algo que cabe ao seu interlocutor (antagonista) decifrar de pronto, gerando neste
último uma espécie de tensão?
o terceiro estágio pode ser explicado pela sublimação da agressividade, e
Rapp, endossado por Raskin (op.cit.), o associa ao autocontrole. Este estágio
corresponderia, assim, ao humor do perdedor por excelência, ou seja, àquele a quem se
negou algo indispensável. A negação procede ou do vencedor ou das próprias imposições
sociais. Entendemos que este tipo de humor se revela na capacidade que o homem tem de
rir das suas frustrações ou das limitações que a sociedade lhe impõe. É um humor que
poderíamos reputar estóico: rir das próprias mazelas é uma forma de conviver com elas.
Parece que as palavras de Raskin não nos desmentem:
Para o indivíduo que sofre com as repressões decorrentes dessas imposições {sociais}, o humor
supressivo é a melhor terapia, a melhor forma de ignorar o sistema. É interessante notar que o
humor supressivo requer uma pitada de liberdade, uma não saudável combinação da repressão
com alguma possibilidade de rir da repressão e ainda assim conviver com ela
(op.cit.p.1985)
.
85
Em suma, os diferentes estágios evolutivos do humor parecem comprovar a
idéia de que a intenção de injuriar deve ser sempre contida, e, neste sentido, encobri-la,
disfarçá-la por meio de jogos verbais ou sublimá-la por meio de uma dose de estoicismo
são formas mais civilizadas de externá-la. É clara agora a frase axiomática de Grotjahnn,
com a qual Raskin (1985:24) encerra o item sobre a evolução do humor: “Quanto melhor o
disfarce, melhor a piada”
86
. A questão do disfarce e da desambigüização (ou do
acobertamento /desvendamento) será considerada adiante.
Dois pontos nos parecem sumamente importantes na teoria de Rapp. Primeiro,
que o humor tem um caráter agressivo inquestionável: “Não humor a favor”, como bem
85
For the individual who suffers from the repressions resulting from these impositions, the suppression
humor is the best therapy, the best way to get it out of his system. It interesting to note that the humor of
suppression requires a modicum of freedom, a certain unhealthy combination of repression and of some
possibility to laugh at it and still get away with it.
86
The better the disguise, the better the joke.
233
afirmou Paiva (apud Travaglia,1990:69). O que pode variar é o grau de agressividade ou a
dissimulação que se faz dele. Nesse sentido, o humor de ação - mais primitivo - é
abertamente maldoso, agressivo. Sobretudo contra o outro. humor verbal, cujo foco é o
próprio jogo de palavras, não exclui a agressão, apenas nos distrai dela. Por outro lado, o rir
das próprias mazelas pode parecer superior, mas não deixa de ser uma auto-agressão, típica,
por exemplo, do self disparaging, ou seja, da auto-depreciação.
O segundo ponto a destacar diz respeito à aparente amenidade do humor de
palavras, visto que neste o aspecto lúdico se sobressai. Talvez seja por isso que Freud o
tenha valorizado tanto, especialmente as suas técnicas. E é exatamente sobre as técnicas de
brincar com as palavras, ou seja, sobre a construção dos chistes e/ou trocadilhos, que
falaremos agora. Convém apenas notar que, embora sejam usados com freqüência e
facilidade no campo do humor, não são exclusividade deste.
Mas, afinal, o que são, em termos lingüísticos, os trocadilhos e/ou chistes?
87
4.3 - TROCADILHOS: TEORIAS LINGÜÍSTICAS
Do ponto de vista lingüístico, os trocadilhos são fenômenos que envolvem o
significante. De um ponto de vista menos específico, trocadilhos representam brincadeiras
faladas, que devem ser lidas em voz alta. Resta implícito, por conseguinte, que os
trocadilhos ou jogos de palavras devem ser “audíveis”, devem envolver jogos fônicos. De
qualquer forma, o fato de serem reconhecidos mais pelo aspecto lúdico transforma-os em
poderosa arma para o humor. Gay (1993:384) bem o registra:
Sob a defesa de que não devem ser levados a sério, os chistes podem vingar um insulto,
voltando-o espiritualmente, contra o agressor, esvaziar o pomposo e o soberbo, tornando público
seus defeitos ocultos, criticar uma autoridade normalmente protegida contra desafios.
87
Entendendo que os trocadilhos e chistes são jogos verbais, usaremos as duas palavras, a partir de agora,
como sinônimas. São acima de tudo ditos espirituosos que tanto podem se realizar no eixo sintagmático, como
paradigmático, por deslocamento ou por condensação, mas cuja característica fundamental é o fato de
embutirem “brincadeiras” sonoras.
234
Sob este aspecto, a piada chistosa é catártica porque, além de driblar a
autoridade, o sério, subverte o respeito e vazão, de forma aparentemente ingênua, à
agressividade e à libido. Acreditamos que o aspecto lúdico, que os jogos de palavras
encerram, confere aos chistes o ar de ingenuidade necessário para que digamos “coisas
feias e desrespeitosas” de forma amena, de forma socialmente aceitável. (Até na dicotomia
forma-conteúdo, o riso é contraditório, retórico, dialético).
E foi justamente a percepção de que os chistes e trocadilhos subsumiam uma
poderosa técnica de driblar interdições sociais que levou Freud a considerá-los como
agentes de gratificação. Embora produzam um prazer substituto, favorecem a catarse. Mais
importante ainda: com pouco dispêndio de energia psíquica. Novamente, as palavras de
Gay (1993:384) são providenciais:
Qualquer que seja seu objetivo, Freud analisa o chiste bem sucedido como uma economia de
recursos internos. Pois as proibições que a sociedade impõe e os indivíduos internalizam
exigem, para a sua manutenção, um dispêndio contínuo de energia que o chiste, ou outras fontes
de riso, reduz. Trata-se de maneiras econômicas de gozar mais uma vez os prazeres de que os
humanos civilizados foram obrigados a abrir mão, devido à socialização
.
Uma outra característica a ser destacada diz respeito à intencionalidade que lhes
é subjacente: os trocadilhos são exemplos típicos de fala consciente, metalingüística, não
casual. Sob esse prisma, os trocadilhos representam um uso artístico da linguagem, mesmo
que por meio deles se deflagre o humor.
Isso posto, cumpre-nos, a partir de agora, percorrer as principais teorias
lingüísticas sobre os trocadilhos. Move-nos a intenção não de nos situarmos em relação
às pesquisas realizadas, mas, fundamentalmente, a de adquirirmos conhecimentos
necessários à consecução desta tese.
235
4.3.1 - AS DIFERENTES TAXIONOMIAS
Para Attardo (1994:111), a pesquisa sobre trocadilhos é vasta, porém inconclusa
e ainda se revela como um campo promissor para estudiosos de várias áreas. Os dados de
tais pesquisas, feitas freqüentemente sob viés antropológico, permitem afirmar serem os
trocadilhos fenômenos universais.
Constatando que o interesse da lingüística pelos trocadilhos geralmente se
manifesta sob forma de taxionomias, Attardo (op.cit.) destaca quatro grandes grupos
taxionômicos conforme tenham como base: a) os fenômenos lingüísticos; b) a estrutura
lingüística; c) a questão da distância fonêmica; d) o ecletismo.
Como a paronímia e a homonímia são conceitos recorrentes em quase todas as
taxionomias citadas, julgamos oportuno recuperá-los. Dois termos são parônimos, quando
sua representação fonêmica é similar, mas não idêntica. Dois termos são homônimos
quando suas representações - gráfica (homógrafos) ou fonêmica (homófonos) - são
idênticas, o que significa dizer que, basicamente, são pronunciados da mesma forma e, sob
este aspecto, o significado “correto” a ser recuperado pelo ouvinte é totalmente dependente
do contexto textual ou extratextual.
E é justamente o jogo com a identidade e/ou a similaridade fônica que constitui
uma das técnicas básicas dos trocadilhos. Melhor dizendo: é justamente tal similaridade ou
identidade que permite ao locutor “enganar” o seu leitor, ou brincar com este, que elas
subsumem pistas ou desvios interpretativos. Na realidade, grosso modo, podemos dizer que
os trocadilhos são brincadeiras verbais deflagradas a partir do significante.
4.3.2 - TAXIONOMIAS BASEADAS EM FENÔMENOS LINGÜÍSTICOS
Uma taxionomia baseada em fenômenos lingüísticos tentará descrever todos os
fatos lingüísticos que podem ocorrer nos trocadilhos, mas nunca conseguirá, por óbvio, ser
236
exaustiva. Attardo (op.cit.) destaca, neste grupo, a taxionomia de Duchàcek’s por reputá-la
a mais completa.
Duchàcek’s (apud Attardo, p.113) aponta a homonímia (incluindo a
homofonia, a homografia e a paronímia), a polissemia, a antonomia, a atração morfêmica
(delirium tremens > delire d´um homme três mince)
88
, a tendência à motivação ( souffrante
para allumette)
89
e a contaminação (o conhecido termo familionário, da piada contada por
Freud, nos Chistes retóricos) como os principais fenômenos lingüísticos envolvidos nos
trocadilhos.
De qualquer forma, embora a taxionomia proposta seja bastante elaborada,
Attardo (op.cit., p.114) aponta-lhe algumas impertinências, uma vez que as categorias
apresentadas se baseiam em critérios gramaticais diferentes: homonímia e paronímia, por
exemplo, são fenômenos lexicais; já a tendência à motivação envolve fatores psicológicos.
Jogos de palavras que poderiam ser classificados segundo a taxionomia de
Duchàcek’s são freqüentes no nosso corpus. Os exemplos de contaminações abundam:
E a Martaxa? O debate foi um Debate na Marta. Todos só queriam debater nela.
(07/08/2004)
Não há qualquer dificuldade para o leitor perceber a brincadeira contida na
contaminação Martaxa: a então prefeita Marta Suplicy sobrecarregou a população
paulistana com uma série de novas taxas, da qual a mais conhecida talvez tenha sido a taxa
79
Traduzir a expressão latina delirium tremens para delire d’um homme três mince (delírio de um homem
muito magro) encerra uma brincadeira verbal restrita ao idioma francês, uma vez que, via de regra, é difícil
encontrarem-se palavras que mantenham a similaridade fônica, quando traduzimos o trocadilho para outro
idioma.
89
Não consideramos um trocadilho a associação entre souffre (enxofre) e allumette (fósforos), pois não
entre tais lexemas qualquer similaridade sonora. Em nota de rodapé, o editor esclarece a motivação
extralingüística para o possível uso neste pretenso trocadilho: antigamente, os fósforos continham enxofre.
237
do lixo. É este mesmo fato que justifica o uso de uma outra contaminação (martalidade) na
crônica do dia 22/09/2004:
“Taxa de martalidade”: números de paulistanos que morreram quando receberam as
contas da prefeitura.(22/09/2004)
Indiscutivelmente, o humor tende ao exagero, mas a produtividade de tal
contaminação (taxa de martalidade por taxa de mortalidade) é inegável. Aliás, como
dissemos no início desta tese, a então prefeita Marta era um dos alvos preferidos das
“maldadezinhas” do cronista. Usar nomes próprios para criar as contaminações parece ser
um recurso comum, como se observa também na piada abaixo, a propósito de uma pretensa
solução dada pelos homossexuais cubanos, sabidamente discriminados no regime de Fidel
Castro. Vejamos:
E tinha uma boate gay em Cuba chamada El Periquiton.O Periquitão. E aí o Fidel mandou
fechar. Em represália os gays abriram uma outra boite gay chamada Gayvara! Rarará!
(22/09/2004)
Muito interessante é que a mudança do nome da boate de El Periquiton para
Gayvara (a contaminação) mantém a malícia comum ao humor sexual, mesmo porque se
periquitão é uma designação popular e hiperbólica para o órgão sexual masculino, este
também é evocado na expressão Gayvara, visto que a palavra vara é outra expressão gíria
que cumpre a mesma designação. Nomear uma boate gay, evocando o nome do
companheiro de Fidel, poderia mesmo ser entendido como represália ao gesto
preconceituoso do ditador.
238
4.3.3 - TAXIONOMIAS SISTEMÁTICAS
Segundo Attardo (1994), essas taxionomias consideram categorias lingüísticas
muito amplas e não específicas dos trocadilhos, que podem servir para classificar outros
fenômenos lingüísticos. Uma taxionomia bastante produtiva dentro deste segundo grupo é
aquela que considera os eixos sintagmáticos e paradigmáticos como base para as
classificações, o que, de certa forma, nos remete a Todorov.
Também para Attardo (op.cit.), os trocadilhos paradigmáticos envolvem os dois
sentidos de uma expressão lingüística, embora apenas um deles esteja presente no texto,
cabendo, pois, ao leitor /ouvinte encontrar o segundo termo no seu estoque de homônimos
ou parônimos. os trocadilhos sintagmáticos são, para este autor, mais problemáticos,
porque não há coincidência entre as definições propostas por diversos estudiosos. De
qualquer forma, fundamental aos dois tipos de trocadilhos é o fato de eles sempre
trabalharem com os dois sentidos de uma expressão linística: o sentido dado e o sentido-
alvo.
Entre as várias teorias sistemáticas, Attardo (op.cit.,) expõe mais
detalhadamente a de Milner , de 1972 e a de Hausmann, de 1974.
4.3.3.1- TAXIONOMIA DE MILNER
Destacando que a taxionomia de Milner prevê três classes de trocadilhos -
paradigmáticos, sintagmáticos e quiásticos - e que tanto os trocadilhos paradigmáticos
quanto os sintagmáticos trabalham com inversões de natureza a) fonológica; b) morfológica
c) sintática d) lexical e) situacional, Attardo (op.cit.p.115) lista uma série de exemplos
propostos por Milner e a nossa intenção, ao transcrever alguns deles, é comentar não as
dificuldades que tivemos com tal classificação, mas também enriquecer o nosso repertório
com o maior mero possível de técnicas trocadilhescas. Iniciaremos pelos trocadilhos
paradigmáticos.
239
a) Como exemplo de inversão fonológica paradigmática, temos:
Diplomacy: The noble duty of lying for one´s country.
90
(Milner, apud Attardo).
Neste verbete, houve uma definição humorada, pois, se a diplomacia é um dever
nobre, ela não se casaria com o mentir (lying), mas com o morrer (dying). É a percepção da
troca fonêmica de /d/ por /l/ que deve ser resgatada pelo leitor/ouvinte para que o risível se
estabeleça.
b) Para ilustrar a troca paradigmática morfológica, Milner (apud Attardo) cita
um exemplo Genius is 1% inspiration and 99% perspiration
91
que nos pareceu estranho
porque se, para este autor, os trocadilhos paradigmáticos trabalham com a ausência de um
termo, não conseguimos perceber que ausência cabe ao ouvinte preencher no trocadilho,
cuja criação é atribuída a Einsten. Em outras palavras, que termo, como leitores, devemos
descobrir? Um comentário: este é de fato, a nosso ver, um trocadilho sintagmático realizado
via paronomásia, conforme definida por Todorov (1996).
c) o exemplo, que Milner indica como inversão sintática paradigmática, a
saber: All teachers of children who are mentally retarded
92
, claramente o identificamos
como uma ambigüidade, uma vez que o relativo who tanto pode ter como antecedente
professores (all teachers) ou as crianças (children). É, pois, a ambigüidade, o engano, que
gera o riso. Não vemos também neste exemplo um trocadilho paradigmático; aliás, nem
consideramos tal exemplo um trocadilho: não há nele um jogo sonoro entre palavras.
d) Como exemplo de inversão paradigmática lexical, Milner (apud Attardo,
1994:115) nos fornece o seguinte exemplo: His sins were scarlet but his books were read
93
.
Embora reconheçamos a presença do trocadilho, não o reputamos unicamente
90
Diplomacia: o nobre dever de mentir pela pátria.
91
O gênio é (resulta de) 1% de inspiração e 99% de transpiração.
92
Todos os professores de infantes que são mentalmente retardados...
93
Seus pecados eram escarlates (graves), mas seus livros eram lidos (vermelhos).
240
paradigmático. Em outras palavras, se a identidade sonora entre read (lidos) e red
(vermelhos) garante a classificação proposta por Milner, ou seja, de que este trocadilho é
paradigmático, parece-nos inegável que os sintagmas were scarlet/were read colaboram na
construção do jogo, apesar de não haver uma notória semelhança sonora entre estes.
Exemplos como este talvez justifiquem as oscilações classificatórias.
e) Muito estranho ainda nos pareceu o exemplo de inversão paradigmática
situacional: Traffic warden giving a ticket to her own son
94
. Uma policial de trânsito multar
o próprio filho pode até ser engraçado, pode até representar o mulo do azar ou da
responsabilidade, mas não nos parece exista aí um trocadilho.
Apenas para ilustrar, anotaremos ainda alguns exemplos propostos por Milner
para os trocadilhos sintagmáticos. Como trocadilho sintagmático com inversão fonológica,
Milner nos oferece o seguinte exemplo:
You’ve had tee many martoonis.
95
Neste trocadilho, provavelmente um comentário jocoso entre jogadores de golfe,
a sugestão de que ambos estão alcoolizados, o que se infere não em decorrência da
inversão entre tee (buraquinho onde a bolinha de golfe deve ser encaixada) e too, mas ainda
porque a palavra criada martoonis evoca a bebida Martine.
Parece-nos que o “correto” seria a afirmação: You’ve had too many marteenis,
(por martines) onde o uso do too trabalharia não com o pressuposto de que ambos
beberam (too = também) mas que beberam demais (too = demais), fato que talvez explique
o própria erro da afirmação, ou seja, a inversão da ordem dos termos (tee por too), como
resultado da embriaguez. De fato, ambos “encaixaram” muitos martines, mas bolinhas de
golfe (tee) mesmo, certamente nenhuma.
94
A policial de trânsito multou seu próprio filho.
95
Você “encaixou” muitos martines?
241
Também, quanto ao exemplo que Milner (apud Attardo, p.116) apresenta como
inversão sintagmática situacional - A dog taking his master for a walk
96
- alguns
comentários podem ser feitos. Pode ser risível tal situação? Sim, que o nonsense é uma
possibilidade de humor. Na realidade, a inversão sintagmática sintática (inversão das
funções sujeito/objeto) cria uma situação engraçada, porque anormal. Contudo, se
entendemos que para haver um trocadilho deve existir alguma semelhança sonora - mínima
que seja – perguntamo-nos: qual a similitude sonora entre dog e master? Não concordamos,
pois, que exista aí um trocadilho.
Constatando que é difícil diferenciar o que Milner aponta como trocadilho
sintagmático (o segundo elemento tamm está presente na cadeia sintagmática) daquilo
que ele aponta como trocadilho quiástico, Attardo (op.cit.), apesar de reconhecer que a
taxionomia de Milner é pouco extensiva, reputa-a a mais sistemática.
Alguns exemplos propostos por Milner ajudam-nos a entender a estrutura do
quiasmo, ou seja, as repetições que na cadeia sintagmática seguem o esquema xyyx e cuja
designação decorre da forma da letra grega “chi” (X), que nos leva à idéia de cruzamento,
de inversão.Seguem-se as classificações com os respectivos exemplos:
a) inversão quiástica fonológica:
Yesterday the dear old queen gave an audience to the queer old dean.
97
Interessante neste trocadilho quiástico é a dupla inversão que os fonemas da
língua inglesa permitiram realizar. O fenômeno da troca dos fonemas, sobretudo os iniciais,
é chamado de spoonerisms
98
pelos lingüistas (queer por dear e dean por queen). O que nos
parece extremamente feliz neste trocadilho é que ele concentra outra inversão, referente
esta aos fonemas finais: queen (rainha) passa a queer (decano). Com um adendo: o termo
96
Um cachorro levando seu dono para passear.
97
Ontem a querida e velha rainha deu uma audiência para o bizarro e velho decano.
98
Spoonerism = the transposition of initial or others sounds of words, as in blushing crow for a crushing
blow
(
Webster`s Universal College Dictionary p.760 )
242
old representa, de forma quase visível, o eixo em torno dos quais as inversões se
processam.
Em termos de metrificação e de similicadência, também a construção deste
trocadilho é brilhante. Na verdade, diríamos, que é um trocadilho quase literário, o que
talvez justifique que o tenhamos encontrado para ilustrar o verbete sobre spoonerism que
figura na página 519, do Novo Dicionário Barsa das Línguas Inglesas e Portuguesa. Mas
de qualquer forma, parece-nos inegável que um trocadilho bem feito é sempre fonte de
prazer para quem o cria e para quem o lê, e isso talvez justifique a inclusão de muitos deles
em estudos sobre o humor.
b) inversão quiástica morfológica:
Girls who do not repulse men’s advances are often girls who advance men’s pulse.
99
c) inversão quiástica sintática:
The fair sex: Yes. The sex fair: No.
100
d) inversão quiástica lexical:
Mind your till and till your mind.
101
e) inversão quiástica situacional:
The house in the garden, the garden in the house
102
.
99
Garotas que não rejeitam o avanço dos homens são, freqüentemente, garotas que avançam neles.
100
O belo-sexo? Sim! O sexo delicado? Não!
101
Cuide do seu dinheiro e enriqueça a sua mente.
102
A casa no jardim, o jardim na casa.
243
Embora reconheçamos neste último exemplo a presença de um quiasmo, não
vislumbramos nele qualquer centelha evocativa de humor: em suma, não o reputamos um
dito espirituoso. Nem todo trocadilho é, portanto, espirituoso. A idéia do prazer, do lúdico
reaparece. A questão da economia psíquica, inerente aos chistes, segundo Freud, emerge
num insight: o trocadilho espirituoso deve trazer no seu jogo significante/significado a
chave, a centelha, o gatilho que deflagra o humor. A esta questão retornaremos em
momento oportuno.
Na verdade, parece-nos indiscutível que esta terceira categoria (a dos quiasmos)
é a mais facilmente perceptível pelo ouvinte/leitor, sobretudo porque, via de regra,
homonímia (e homofonia) entre os dois termos que realizam a inversão, como podemos
notar nos exemplos b, c e d, anteriormente citados. Portanto, o quiasmo – trocadilho
sintagmático - tanto pode ser construído via antanáclase, como via paronomásia. Pode,
inclusive, como se constata no exemplo a, usar as duas vias, simultaneamente (dear old
queen/ queer od dean), onde a dupla reversão paronímica se realiza em torno do homônimo
old.
nos trocadilhos paradigmáticos, devido à presença de um termo de maior
concentração evocativa, a pista a ser dada pela semelhança sonora entre o termo expresso e
o termo-alvo é crucial. Parece-nos, pois, que é a questão da paronímia, que tanto pode
ocorrer no eixo paradigmático (este tipo de ocorrência é que Todorov designa -
estranhamente - de trocadilho) quanto no sintagmático (paronomásia), um dos fatores
complicadores, pois nem sempre a semelhança sonora é suficientemente perceptível para
que o ouvinte/leitor resgate o termo similar e perceba a espirituosidade do trocadilho.
Aliás, a nosso ver, é o próprio conceito de paronímia que oscila entre os
estudiosos. Consideramos parônimos apenas oposições como descrição e discrição,
estático e extático, ou também oposições como leito/leite
103
? E na oposição
103
Todos estes pares aparecem no Dicionário Aurélio (1999:1503) como exemplos de parônimos. O primeiro
par (descrição/discrição) aparece descontextualizado; os dois últimos, nos seguintes exemplos: Todas nove
nos braços o tomaram, criando-o com seu leite no seu leito (Camões) e Há um pinheiro estático e extático
(Rubem Braga).
244
careca/perereca podemos considerar a existência de parônimos, visto que semelhança
sonora entre tais termos? A definição de parônimo, que figura na gina 1503, do
Dicionário Aurélio, parece não desabonar a nossa pretensão. Parônimo: Diz-se das
palavras que têm som semelhante ao de outras.
Parece-nos, pois, que, quando Milner considera a frase Genius is 1% inspiration
and 99% perspiration como troca paradigmática morfológica e não como troca
sintagmática fonológica, ele priorizou outro critério que não o da semelhança fônica, que o
levaria à assunção de inspiration e perspiration como parônimos.
104
Julgamos importante
também enfatizar, neste ponto, a observação de Klinkerberg, citado por Attardo (op,cit.,p
117), para quem a inclusão de uma terceira categoria (os quiasmos) representou uma forma
de salvaguardar a fraca oposição entre trocadilhos paradigmáticos e sintagmáticos (grifos
nossos).
Sob este aspecto, os exemplos apresentados por Hausmann (apud Attardo,1994)
nos pareceram menos problemáticos.
4.3.3.2 - A TAXIONOMIA DE HAUSMANN
Hausmann (apud Attardo, op.cit.) denomina os trocadilhos paradigmáticos de
verticais e os sintagmáticos de horizontais e trabalha, na sua classificação, sobretudo com
os conceitos de homofonia e paronímia, admitindo a paronímia tanto sintagmática quanto
paradigmática, como podemos constatar nos dois últimos exemplos abaixo. Isso nos parece
bastante revelador não porque pode englobar o conceito de silepse de Todorov, mas
especialmente porque reforça a assunção de que o trocadilho paradigmático prevê que o
leitor recupere o que foi mudado ou, como veremos adiante, perceba o gatilho para o riso.
De grand vins et des petits vains
105
(homofonia lexical sintagmática: vins e vains são
homófonos em Francês)
104
Parece-nos que a questão da paronímia está tão imbricada com a questão do prescritivismo gramatical que
até nos olvidamos, muitas vezes, da sua definição primeira, ou seja, a semelhança sonora entre palavras.
105
Grandes vinhos e pequenas ilusões.
245
Un alibi pour la Lybie
106
(homofonia sintagmática baseada no sintagma).
Lard military
107
(homofonia paradigmática baseada no sintagma) Arte militar? Militar
gordo?
Du fric pour les flic.
108
(paronímia sintagmática).
Marché coma ( commun)
109
(paronímia paradigmática)
Mesmo ciente de que toda taxionomia, por mais abrangente que seja, nunca
esgotará as possibilidades que o uso da língua permite e de que o uso dos eixos
sintagmáticos e paradigticos não configura recursos exclusivos dos trocadilhos, Attardo
não deixa de reconhecer a contribuição de tais taxionomias para o estudo do humor.
De nossa parte, temos a afirmar que, apesar de toda limitação inerente a
qualquer classificação ou taxionomia, os exemplos apresentados até então, bem como as
classificações propostas ampliaram, sobremaneira, o nosso campo de visão e nos
permitiram identificar - e quiçá analisar - com mais segurança, alguns trocadilhos presentes
no nosso corpus.
De qualquer forma, um ponto fundamental a destacar diz respeito à procedência
de nossas dúvidas: de fato, a paronímia, que pode ser a chave para explicar as oscilações
que ocorrem nas diferentes taxionomias apresentadas - permanece em aberto. Sob este
aspecto, as taxionomias voltadas para o estudo das estruturas superficiais em muito
contribuíram para a dissipação de nossas dúvidas.
106
Um álibi para a Líbia.
107
Um monte de banha militar. (arte militar ou militar gordo?)
108
Grana para os tiras/dinheiro para a polícia
109
Marcha comum (ou mercado comum?)
246
4.3.4 - TAXIONOMIAS BASEADAS NA ESTRUTURA SUPERFICIAL
Tomar contacto com as taxionomias baseadas na estrutura superficial
representou para nós aquela feliz coincidência, conhecida de todo pesquisador no momento
em que um novo dado confirma um insight, ou seja, uma intuição tida em algum momento
da sua pesquisa. No nosso caso, tais teorias nos remeteram à questão da paronímia (e
conseqüentemente, da paronomásia) e confirmaram que as nossas dúvidas e indagações
eram procedentes.
De fato, qual é a distância fonêmica máxima para que dois segmentos
lingüísticos ainda sejam considerados parônimos? Em outras palavras: o que nos garante
que estamos diante de um trocadilho fundado na semelhança sonora? O que, por exemplo,
nos assegura que os trechos sublinhados abaixo se configuram como trocadilhos, conforme,
ato contíguo à leitura, os identificamos?
Sampa Urgente! Muda tudo. Sai a perereca e entra o careca. E já estão dizendo por aí que
a Marta perdeu por falta de votox! (03/11/2004).
Travesti é um monumento ao silicone. o é tecnologia de ponta, é tecnologia de peito
(23/09/2004).
E tem um candidato em Floripa que começa assim: “Sou casado e tenho nove filhos”. É
candidato a vereador ou a reprodutor? (23/09/2004).
247
Se pensarmos apenas em termos de mudança sonora, o segundo trocadilho
parece representar aquele que joga com um número menor de alterações: ponta > peito,
mas estranho: soa-nos o menos melódico. De perereca para careca, bem como de vereador
para reprodutor há mais modificações sonoras, mas – também estranho - parecem-nos mais
próximos melodicamente. Foram, pois, questões desta natureza que pudemos entender com
mais propriedade quando tomamos ciência de algumas conclusões a que chegaram os
estudiosos que analisaram os trocadilhos do ponto de vista fonético-fonêmico.
Embora não tivesse a intenção de elaborar uma taxionomia dos trocadilhos,
Hausmann organizou-os com base em princípios tão pertinentes que abriu uma perspectiva
bastante interessante, cujo desenvolvimento posterior redundou na teoria da Distância
Fonêmica, já aludida. (Cf Attardo:1994).
Para a Teoria da Distância Fonêmica, tanto os trocadilhos baseados em
homônimos quanto aqueles baseados em parônimos são variações superficiais do mesmo
fenômeno: a diferença que existe entre eles é apenas quantitativa. Termos homônimos
apresentam uma variação fonêmica igual a zero, como, por exemplo, cola (droga) e cola
(substância adesiva), e cola (recorrer a anotações). Termos parônimos apresentam variações
fonêmicas, como, por exemplo, no trocadilho apresentado por Hausmann (apud Attardo,
op.cit.,p.121), cuja diferença fonêmica entre as palavras Vatican e vaticancan são apenas
dois fonemas /Kã/.
Mas, cumpre-nos perguntar: qual sea maior distância fonêmica possível entre
dois segmentos de modo que ainda possam ser considerados como os termos parônimos de
um trocadilho? Após considerar a necessidade de um limiar para a distância fonêmica,
Attardo endossa a posição de Hausmann, conforme se patenteia no trecho abaixo:
A discussão levará ao postulado de um limiar para a diferença fonêmica entre duas palavras (ou
mais seqüências) envolvidas em um trocadilho. Em outras palavras, duas seqüências não podem
diferir em ummero arbitrariamente alto de fonemas e, ainda assim, serem consideradas como
248
um possível trocadilho. A maior distância apresentada por Hausmann é a de quatro fonemas, e
desta forma, somos tentados a assumir que este é o maior limite
.(Attardo, op.cit.,p.121)
110
O exemplo que se segue não ilustra a questão da distância fonêmica máxima,
ou seja, a de quatro fonemas, mas também nos revela como, por vezes, o jogo
trocadilhesco, quando baseado em expressões idiomáticas ou provérbios
111
, parece deter
uma certa autonomia sentica: usar a expressão Rapatriés sur le volet (deportado a dedo)
por Trié sur le volet (escolhido a dedo) é, sem sombra de dúvida, uma possibilidade
espirituosa de denunciar alguma atitude pouco democrática contra presos políticos.
De qualquer forma, importa ressaltar que, se ficamos reticentes para considerar
o primeiro texto (Sai a perereca e entra o careca) como trocadilho, a distancia fonêmica
proposta por Hausmann foi providencial. Mas, e quanto ao trocadilho do texto: É candidato
a vereador ou a reprodutor? Como justificá-lo, se a distância fonêmica entre o termos
supera – e em muito - o limite de quatro fonemas? Haveria outros fatores intervenientes?
Apesar de reconhecer a pertinência e a propriedade dos princípios adotados por
Hausmann para construir uma taxionomia dos trocadilhos, Attardo (1994), apontando
algumas lacunas na teoria da Distância Fonêmica, faz observações importantes.
Primeiramente, destaca que uma análise fonológica rigorosa não deve contemplar apenas a
diferença numérica entre fonemas dos dois termos do trocadilho: deve analisar também os
diferentes traços fonêmicos que os compõem. E justifica:
110
The discussion will lead to the postulation of a “threshold” for phonemic difference between the two
words (or other strings) involved in a pun. In other words, two words
cannot differ in an arbitrarily high
number of phonemes and still qualify as a possible pun. The highest distance presented by Hausmann is that
of four phonemes, and thus one might be tempted to assume that as the highest limit.
111
Esta foi uma das nossas dificuldades quando lemos Todorov para quem o conceito de trocadilho se
restringe a expressões e/ou adágios populares e, embora este autor exemplique o trocadilho com parônimos
(tête a bête), ele o considera paradigmático. para outros autores, com os quais concordamos, por exemplo,
Hausmann e Milner, os trocadilhos também podem ser paradigmáticos, mas não só. Daí a importância
atribuída por nós à teoria da Distância Fonêmica, que, embora lacunar, nos ofereceu pontos de apoio para que
analisássemos com mais tranqüilidade a questão crucial dos trocadilhos: a da paronímia. Dizemos crucial
porque, se os termos são homônimos (homógrafos ou homófonos), o trocadilho (antanáclase ou quiasmo) é
facilmente perceptível, o que não ocorre com os trocadilhos sintagmáticos realizados com parônimos
(paronomásia) e até - por que não dizer? com os trocadilhos paradigmáticos para os quais a semelhança
sonora entre o termo presente e o ausente (evocado) é a chave do riso.
249
O modelo {da Distância Mínima} deveria também levar em conta o fato de que duas palavras
que diferem em dois traços em dois diferentes fonemas serão percebidas como mais distantes do
que duas palavras que diferem em dois traços no mesmo fonema
....(Attardo, op.,
cit.p:122)
112
Uma outra observação - que reputamos sumamente importante - diz respeito ao
chamado efeito bathtub, ou seja, efeito banheira. E o que este efeito subsume? A imagem
de uma pessoa deitada em uma banheira (bathtub), cujas partes visíveis são a cabeça e os
pés, é providencial para aclará-lo, até porque com as palavras ocorre algo semelhante: as
sílabas iniciais e finais são as mais salientes e as mais lembradas pelos ouvintes/falantes.
As aliterações e as rimas são prova disso.
113
( Cf Attardo, p.123)
Portanto, se as posições iniciais e finais são “privilegiadas” pelo ouvinte, se a
vogal, como sabemos, é o centro da sílaba, uma forma de preservar alguma similaridade
sonora entre dois termos - mesmo que a distância fonêmica seja superior ao limite de quatro
fonemas - seria manter os mesmos sons vocálicos iniciais e finais dos termos que se
queiram parônimos? Tudo nos leva a crer que a resposta é afirmativa, sobretudo se
recuperarmos um dos trocadilhos já apresentados anteriormente, a saber:
E tem um candidato em Floripa que começa assim: “Sou casado e tenho nove filhos”. É
candidato a vereador ou a reprodutor? (23/09/2004).
Se considerássemos apenas a distância fonêmica, conforme proposta por
Hausmann, não afirmaríamos aí a existência de um trocadilho. Contudo, a nossa
sensibilidade auditiva, selecionara-o, desde o início, como tal. O que nos parece bastante
112
The model should also account for the fact that two words differing in two features in two different
phonemes will be perceived as more distant than two words differing by two features in the same phoneme.
113
Estamos considerando que, em Português, as aliterações sintetizam, usualmente, o jogo com os sons
iniciais das palavras, ao passo que, nas rimas, combinações com os sons finais são mais freqüentes.
250
gratificante, neste ponto de re-análises, é que intuição e teoria se complementaram:
sabemos explicar agora por que o texto em pauta é, de fato, um trocadilho.
Na verdade, as “saliências” iniciais e finais foram preservadas pelo uso de
sílabas cujas vogais são as mesmas (VEreaDOR//REproduTOR). Acresça-se ainda a este
efeito bathtub, a similicadência existente entre os dois termos e que decorre não da
igualdade numérica de sílabas (ve- re-a-dor/ re-pro-du-tor) mas também do fato de que as
últimas sílabas são tônicas e que, portanto, apesar da mudança de som sonoro /d/ para surdo
/t/, elas rimam.
Por outro lado, podemos também afirmar que uma forma de criar parônimos é
mudar apenas o fonema inicial de uma palavra (a “cabeça” do efeito bathtub), até porque a
mudança será rapidamente ouvida” e facilmente o ouvinte/leitor recuperará o termo-alvo,
caso o trocadilho seja paradigmático. Não é diferente o que ocorre no trocadilho grifado
abaixo, quando a propósito da péssima partida realizada entre Brasil e Colômbia, no
processo de disputa para uma vaga no campeonato mundial de 2006, o técnico Parreira,
assessorado por Zagallo, declarou-se satisfeito com a performance do Brasil.
A revolta do cronista contra o péssimo futebol apresentado (tô de saco cheio)
bem como as suas farpas contra o apresentador da rede Globo, Galvão Bueno, também são
dirigidas a Zagallo, ex -técnico da seleção brasileira de futebol, que passa a ser Gagallo
(não sei se foi Zegalo, anteriormente), conforme se depreende do seguinte trecho:
E avisa pro Gagallo que “Galvão na Globo” e de Saco Cheio” também tem 13
letras.(15/10/2004)
De Zagallo para Gagallo a mudança fônica produz uma alusão bastante
maldosa: O Zagallo está senil e incompetente, em outras palavras, está ga. Como ambos
251
Parreira e Zagallo dirigem a seleção brasileira e como zero a zero pro Parreira é o
empate da vitória
114
, o tom agressivo do cronista se explica.
Bastante irônica é ainda no texto a alusão à conhecida superstição de Zagallo,
para quem o número 13 é sinônimo de sorte. Usar, pois, as expressões Galvão na Globo e
de saco cheio, ambas com treze letras, além de ser uma forma debochada de dizer que
Galvão Bueno faz jus ao epíteto de Agourão Bueno (como cronista o designa em muitas
crônicas) ironiza também o próprio Zagallo, visto que o resultado do jogo ocorrido no
dia 13 de outubro não correspondeu a sua crença. A seleção brasileira precisa de mais
ação e de menos superstição: o tô de saco cheio se justifica.
Também no trecho que se segue, embora estejam presentes os dois termos
(violência e RIOLÊNCIA), a criação do parônimo se faz apenas pela mudança do primeiro
fonema. Vejamos:
E a violência no Rio? A RIOLÊNCIA! E a manchete do “The Independent”:”Rio é a
capital da cocaína e da carnificina”. Capital da cocaína, carnificina, gente gostosa,
caipirosca e Barra Fashion. Bem, é mais animado do que Zurich. E diz que está mais
perigoso que Bagdá, é o BagRio! E uma carioca disse que se sente moradora do Oriente
Médio.(14/10/2004)
De qualquer forma, a contaminação criada (RIOLÊNCIA) por meio de tal
mudança fônica sugere, com propriedade, como o Rio é conhecido atualmente, sobretudo
no exterior: o Rio é a capital da violência. O trocadilho, traduzido do jornal The
Independent, não diz coisa distinta: Rio é a capital da cocaína e da carnificina.
114
O trecho foi recortado da mesma crônica. Convém apenas salientar que Parreira é o técnico que detém o
maior número de empates no comando da seleção brasileira de futebol.
252
Como o assunto da violência é um assunto extremamente sério e o humor não
se casa aparentemente com seriedade quebrar a circunspecção instaurada pela voz do
jornal americano torna-se necessário, daí porque, acreditamos, o locutor passa a caracterizar
o Rio também pelas suas coisas amenas como gente gostosa, caipirosca e Barra Fashion: a
contradição da grande cidade está registrada e a própria violência amenizada.
A leveza do humor (ou aquela propriedade de dizer coisas sérias de forma
jocosa, segundo Freud) foi restaurada e o comentário irônico (Bem é mais animado que
Zurique) possibilita outras comparações jocosas e exageradas sobre a Riolência, digo, a
violência, conforme se infere da contaminação BagRio e da declaração da carioca de que se
sente em pleno Oriente Médio.
Uma última sugestão bastante pertinente para o aperfeiçoamento do modelo
teórico-analítico da distância fonêmica envolve aquilo que os anglo-saxões designam como
eye dialect, ou seja, aqueles trocadilhos que jogam com uma representação gráfica inusual,
o que gera uma outra leitura, facilitada, pois, pela visão. Na verdade, segundo Attardo
(op.cit., p.123), esta possibilidade lúdica se funda no fato de que o sistema grafêmico e o
fonêmico não são totalmente independentes. Para que o fenômeno do eye dialect ocorra, é
necessário que o leitor/ouvinte confronte a distância entre as duas representações.
Para ilustrar o fenômeno do eye dialect, Attardo reporta a grafia inusual, criada
por Queneau
115
, com intenções humorísticas, com base na pronúncia da frase La gosse a
mis les bouts (A garota se perdeu): Lagoçamilébou. Parece-nos que, quando na crônica do
dia 15/09/2004 (Cf. p.163 desta tese), José Simão cria uma série de piadas aproveitando-
se da piada que o site Kibeloco
116
fizera sobre “o caso” existente entre o inglês, que
colocara uma faixa no palácio de Buckingham, e um dos manifestantes, que estava vestido
de Robin a última pode ser considerada, a nosso ver, como um exemplo de eye dialect.
115
Raymond Queneau (1906-1976), escritor francês, autor de Zazie no metrô (1959), tormou-se famoso não
por ter criado o grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentialle) do qual participaram Georges Perec e
Ítalo Calvino, mas, sobretudo, porque propunha o brincar com as palavras. Zazie no metro - obra da qual o
exemplo acima foi retirado, tornou-se um filme cômico (1960), sob a direção de Louis Malle, patenteando,
assim, a relação brincadeiras verbais/ humor.
116
O site humorístico Kibeloco foi criado pelo publicitário Antônio Pedro e tem média de 100 mil visitantes
por dia, segundo informações do próprio criador.
253
Na verdade, a resposta Porque amor de morcego é um amor cego envolve um jogo verbal
que trabalha, simultaneamente, com a sonoridade e a segmentação, envolvendo as palavras:
Amor/morcego/amor cego. Observemos o texto grifado.
E sabe por que o Batman é apaixonado pelo Robin? Porque amor de morcego é um amor
cego! (15/09/2004)
Um mês depois, a propósito do casamento de Carla Perez, dançarina que fora
promovida a apresentadora de TV, o cronista, com base em uma situação hipotética uso
do ponto eletrônico até para casar debocha da incapacidade intelectual da moça: ela
consegue errar mesmo usando o ponto eletrônico e, o que é pior, mesmo para dizer um
simples sim. Dentro dessa perspectiva, alterar a grafia do sim para çim (um dos primeiros
ensinamentos no processo de alfabetização é que não temos qualquer palavra grafada com ç
inicial na Língua Portuguesa) para desvelar a “dificuldade” de Carla Perez é mais do que
deboche: é pura maldade. Embora o autor antecipe o eye dialect, quando constata que ela
disse sim”, mas com ç, o deboche ganha força quando lemos Çim, dada à estranheza da
grafia. Observemos:
E até a Carla Perez usou ponto eletrônico no dia do casamento com o Xandy. “Agora você
diz sim”. E aí ela disse “sim”, mas com ç: “ÇIM”. Rarará. (15/10/2004)
Também constatamos a presença do mesmo fenômeno no comentário com o
qual José Simão torna visível literalmente - a aludida falta de ética do cantor Zeca
Pagodinho no episódio publicitário da guerra das cervejas (vide p.69 e 70 desta tese).
Queremos apenas ressaltar que, embora tenhamos explorado o trecho que se segue, o
enfoque atual não coincide com o anterior.
254
Não beba uma Brahma, beBAVÁRIAS! Enfim um Drahma!(16/03/2004)
Em um tom imperativo-exortativo (não faça isto, faça aquilo), que normalmente
se coaduna com a proposição de atitudes éticas e corretas, o cronista realiza a inversão
irônica, comum ao humor: exorta, de fato, a falta de ética, justamente por meio do jogo
gráfico-fônico beBAVÁRIAS (não beba uma, beba várias). Além disso, o próprio trocadilho
Brahma/Drahma (em que a grafia Drahma com h constitui um outro eye dialect) faz alusão
àquilo que pode se constituir em um novo drama da Brahma, ou em uma nova traição, ou
seja, a possibilidade de que o cantor passe a fazer propaganda de uma outra cerveja, não
envolvida na questão: a Bavária.
Para comprovarmos nossa interpretação, basta que nos lembremos de que a
guerra das cervejas envolvia as marcas Brahma e Schincariol e, neste sentido, exortar, via
eye dialect, não o aumento do consumo da marca Brahma (beba várias) mas embutir
neste consumo um nova marca (beBAVÁRIAS) representa o auge do oportunismo e a
ausência de qualquer princípio ético. Aliás, se bem registramos, exaltar explicitamente o
correto é moralismo, nunca humor.
Uma observação que nos pareceu bastante reveladora, prende-se ao fato de que
a percepção de um trocadilho em qualquer elocução induz os falantes a não a considerarem
como algo sério, apesar de eles desconhecerem as regras que tornam adequada a escolha
das duas seências constituintes do trocadilho, bem como desconhecerem como os dois
sentidos do trocadilho são trazidos simultaneamente. Eis a citação:
Os falantes estão atentos ao fato de que, se uma elocução contém um trocadilho, ela não deve
ser levada a sério, embora os falantes não estejam cientes nem das regras que presidem a escolha
das seqüências adequadas para realizá-lo, nem daquilo que caracteriza tais seqüências como
255
similares e nem mesmo como o duplo sentido da elocução é construído
.
117
(Attardo
1994:142),
Talvez isso se explique pelo fato de que a intenção de brincar com as palavras,
inerente aos trocadilhos, assim que percebida, predisponha o ouvinte/leitor ao riso. Sob este
prisma, o trocadilho funciona como um sinal para que o ouvinte mude de modo, ou seja,
assuma o modo non-bona fide de comunicação.
Uma última observação. Cientes de que a metanálise é o fenômeno da falsa
segmentação (o que, para nós, também inclui uma segmentação “errônea” ou inusual), mas
cientes também de que num corpus jornalístico esta segmentação é perceptível para o leitor
graças ao jogo gráfico-fônico, consideramos a metanálise como um tipo de eye dialect.
Dentro dessa perspectiva, considerando-se os três últimos exemplos analisados, apenas o
ÇIM, emitido pela apresentadora Carla Perez, não seria uma metanálise.
De qualquer forma, e Attardo (1994:132) bem o observa, um trocadilho não é
necessariamente pontual, ou seja, centrado em uma só palavra: ele pode tanto trabalhar com
as unidades menores – morfemas e fonemas – como com as unidades maiores - sintagmas e
expressões cristalizadas, por exemplo.
Claramente o alcance dos fenômenos lingüísticos envolvidos nos trocadilhos excede as palavras
tanto em direção às unidades menores e mais simples (morfemas e fonemas) como também em
direção às maiores (sintagmas, expressões congeladas);
118
Apesar disso, parece haver uma explicação de ordem psicolingüística,
comprovada em pesquisas, para o fato de o maior número de trocadilhos jogar dentro dos
limites do morfema lexical: os falantes se sentem mais confortáveis em manipular unidades
plenas de significação. Talvez isso decorra do fato (ou redunde nele?) também comprovado
117
Speakers are aware that if an utterance contains a pun it is not to be taken seriously, however, they are not
at all aware of the rules that govern the choice of appropriate strings for punning, of what qualifies as
“similar” strings, or how the two senses of the utterance are brought together.
118
Clearly the range of linguistc phenomena involved in puns exceeds the word both in direction of smaller
units, simpler units (morphemes, phonemes) and in the direction of larger units ( syntagms, frozen expression,
etc…);
256
pelas pesquisas, de que a ambigüidade sintática é mais difícil de ser processada, conforme
se lê em Attardo (1994:103):
As pesquisas em psicolingüística têm mostrado que a ambigüidade sintática é mais difícil de ser
processada do que a lexical. Com base nesse dado, parece-nos lógico supor que as piadas
verbais tendem a se basear mais na ambigüidade lexical do que no processo mais difícil da
ambiidade sintática.
119
Sob esse aspecto, podemos afirmar que a metanálise exige mais do
leitor/ouvinte, o que talvez justifique o uso do trocadilho sintagmático criado por José
Simão no texto já citado: amor de morcego é um amor cego. A presença dos dois elementos
(as duas segmentações) facilita a leitura (e o insight prazeroso) do leitor.
Tal brincadeira lingüística é usual no corpus escolhido e pode ser observada no
título da crônica (Ereções 2004! de mais ou fede menos?), publicada em 30/10/2004 em
que José Simão debocha da religiosidade eleitoreira do candidato José Serra, que assistira
missa na igreja de São Judas, justamente no dia do santo padroeiro, ocasião em que os fiéis
lotam o referido templo.
É engraçado como o tema da religiosidade (ou melhor, da falta dela) permeia
toda a escolha lexical e se faz presente inclusive na sigla CEU, alusão aos centros
educacionais construídos nas periferias, obra prioritária da gestão Marta. Curioso ainda
como a fala da então prefeita assume um tom peremptório, quase profético, bem de acordo
com o espírito do texto e com a personalidade forte dela (O CEU virá para o centro e vai
cobrir toda a cidade), justificando, assim, o questionamento final do cronista. De qualquer
forma, a crítica maior parece incidir no candidato Serra, visto que vampiro -
definitivamente – não costuma freqüentar Igreja. Verifiquemos:
119
Research in psycholinguistics has show that syntatic ambiguity is more difficult to process than lexical
ambiguity. On these grounds it seems logical to predict that verbal jokes will tend to be bases on lexical
ambiguity, rather than the-harder-to process syntactic ambiguity.
257
Essa é a campanha da fé de mais e fé de menos. Serra foi pra missa de São Judas e causou
tumulto. Claro um vampiro no altar! As cruzes devem ter enlouquecido. E olha a Marta no
comício: “O CEU virá para o centro e vai cobrir toda a cidade” O quê? Messias do
Apocalipse. E amanhã é dia da Alforria Eleitoral. (30/10/2004)
4.3.5 - TAXIONOMIAS ECLÉTICAS
Considerando que os trocadilhos se constroem em torno de uma ambigüidade e
que qualquer item lingüístico pode ser usado para criá-la, endossamos a conclusão de
Attardo (op.cit., p112) para quem toda taxionomia será insuficiente para descrevê-los:
“Nenhuma taxionomia pode classificar todos os possíveis fatores da ambigüidade
lingüística, portanto, nenhuma taxionomia dos trocadilhos pode ser exaustiva.”
120
.
Na realidade, todas as taxionomias apresentadas possuem um certo grau de
ecletismo e a mais eclética é a de Vittoz-Canuto, de 1983, autor que, tendo como corpus
trocadilhos retirados de anúncios de magazines francesas, baseou-se nas cinco grandes
categorias lingüísticas (fonética, fonêmica, morfológica, sintática e semântica), mas
também recorreu à oposição entre os eixos sintagmáticos e paradigmáticos, bem como
incorporou elementos da taxionomia da distância fonêmica.
No anexo 7, reproduziremos apenas o quadro 3.3 da taxionomia eclética de
Vittoz-Canuto (apud Attardo,1994, p.127) com intuito de darmos idéia do grau de
detalhamento a que ele chegou com relação aos parônimos, a ponto de Attardo (Cf p.126),
jocosamente, insinuar que, se fizesse a citação integral de tal taxionomia, haveria
necessidade de se reproduzir todo o sumário do livro.
120
No taxonomy can classify all the possible factors of ambiguity in language, so no taxonomy of puns can be
exhaustive.
258
Brincadeiras à parte, é inquestionável a abrangência da síntese que tal quadro
desvela com relação às múltiplas possibilidades fonético-fonológicas que presidem a
realização dos trocadilhos, sobretudo em termos de paronímia. É extremamente fácil
ilustrá-las a partir do nosso corpus, mas julgamos suficiente apenas rememorar alguns
exemplos já analisados. Usar Martamorfose por metamorfose corresponde à substituição de
um ou mais fonemas em posição interna da palavra; usar Gagallo por Zagallo sintetiza uma
mudança do fonema inicial e passar de Galvão Bueno para Galvão Urubueno exemplifica a
adição de mais de dois fonemas.
Se até então privilegiamos os aspectos fonético-fonológicos dos trocadilhos, a
questão agora emergente diz respeito à ambigüidade que lhes é intrínseca/constitutiva e isso
nos conduzirá, inexoravelmente, a considerações quanto aos aspectos semânticos e
contextuais envolvidos na gênese dos trocadilhos e na recepção deles. Curioso é notar que o
preconceito contra os trocadilhos recorrente na literatura sobre o assunto advém
exatamente dos aspectos que até então temos privilegiado.
Digna de nota é a posição de Todorov (1996:333) ao refutar com veemência o
preconceito que muitos estudiosos nutrem contra os trocadilhos, por julgarem que eles
representam mera semelhança fonética entre palavras, diferentemente dos jogos de
palavras nos quais, para eles, a semelhança entre os significantes redunda numa duplicação
semântica. Em outras palavras, para alguns estudiosos, a gratuidade fonética dos
trocadilhos é inferior à carga semântica dos jogos de palavras.
Todorov (op.cit.,p.333-4) não recoloca a questão em parâmetros lingüísticos
pertinentes, bem como a esclarece de forma exemplar, na medida em que afirma que toda
relação entre significantes acarreta relações entre significados. Portanto, a oposição
trocadilhos x jogos de palavras com base na insignificância fonética” x a significância
semântica” (grifos nossos) não se sustém. É uma oposição que nega conhecimentos
fonético-semântico-discursivos elementares, como se depreende no trecho:
Em todo caso a oposição é artificial: a relação dos significantes, e essa não é a menor das lições
de análise dos trocadilhos, provoca sempre uma relação de significados. As palavras “Césare
259
“cesura” não têm nenhum sema em comum, segundo o dicionário. Porém a significância de que
os signos são providos no vocabulárioo é idêntica ao sentido da obra no discurso, para usar a
terminologia de Benveniste (Beauzée diria acepção e sentido). Na frase de Hevesi, César e
cesura se tornam antônimas; o essencial (enxotar os Césares) opõe-se ao insignificante (eliminar
as cesuras). A estrutura sêmica de uma palavra, vista da perspectiva do discurso, não é a
intersecção de um número finito de categorias elementares; toda aproximação pode fazer surgir
um sema novo no interior da palavra: a lista de semas que constituem o sentido nunca é fechada
(o que também quer dizer: não é possível deduzir o sentido da significância). A prática poética
nos habituou a esse fato: basta que duas palavras rimem, ou sejam simplesmente contíguas,
para que nelas surja um efeito semântico. Portanto no discurso não há relação entre significantes
sem relação entre significados; não diferença, nesse sentido, entre trocadilhos” e “jogos de
palavras”; tudo o que podemos observar é a maior ou menor riqueza da relação semântica, a
maior ou menor motivação da relação entre significantes.
(Todorov, 1996:333-4)
.
121
4.4 - TROCADILHOS E AMBIGÜIDADE
É pacífica a idéia de que todo item lexical descontextualizado é ambíguo e que
até preposições são polissêmicas. Na realidade, a ambigüidade (e obviamente a polissemia)
pode abarcar todos os níveis lingüísticos. Fenômenos não lexicais podem ser ambíguos, por
exemplo, a transferência de referentes anafóricos, como em Paulo dormiu com sua mulher.
José também.
Como a ambigüidade lingüística é a norma e não a exceção, cabe ao contexto -
lingüístico ou situacional - reduzir o nível de ambigüidade a zero ou a um grau que não
comprometa o objetivo da comunicação. A este fenômeno, os lingüistas anglo-saxões
denominam “desambiguação” (disambiguation).
Diante disso, a questão que se coloca é a seguinte: se a ambigüidade é inerente à
linguagem, se o trocadilho, em todas as suas formas, também joga com mais de um sentido
o que difere um trocadilho de uma construção ambígua qualquer? Constatamos haver
121
Todorov cita uma piada usada por Freud, a qual basicamente demonstra a difícil e jocosa situação de um
poeta italiano que, embora antiimperialista convicto, foi obrigado a elogiar um imperador alemão em
hexâmetros. O trocadilho, alvo do estudo freudiano, e comentado por Todorov na citação é o seguinte: “Não
podendo enxotar os Césares, ele pelo menos eliminou as cesuras.”
260
ambigüidade na construção acima citada, mas não a consideramos um trocadilho. A
resposta nos vem de Attardo (op.cit., p.133) quando afirma que, no contexto de uma
sentença, a ambigüidade, inerente às unidades lingüísticas, se reduz e, se houver coerência
e coesão sentenciais, ela desaparece. com os trocadilhos ocorre algo interessante: eles
“preservam os dois sentidos da unidade lingüística e existem como produto da
desambiguação sentencial ou textual.”
122
Cremos que os comentários de Booth (1974:26) sobre os trocadilhos vêm ao
encontro da mesma constatação, ou seja, a de que a reconstrução do outro sentido - irônico
ou metafórico - de um trocadilho se realiza mediante a presença do sentido original, que
não deve, pois, ser esquecido: quando s reconhecemos um trocadilho nós precisamos
ainda manter o sentido original sem modificações como parte da reconstrução”
123
Isso significa dizer que o efeito humorístico que pode advir do trocadilho
decorre justamente da percepção da incompatibilidade existente entre os dois sentidos: o
leitor não deve descartar, de imediato, um sentido em detrimento do outro; ele deve
confrontá-los. Aliás, se não nos enganamos, é no exato momento da percepção da
incompatibilidade entre os dois sentidos, que o gatilho do riso é acionado e o riso é
deflagrado. É um momento de economia psíquica. E de prazer: a brincadeira sonora ganhou
significação. Ela foi desvendada. Um outro requisito também indispensável aos trocadilhos
humorísticos é que eles são planejados (conscientes) e usados com o objetivo de se criar o
humor. É uma brincadeira calculada.
Além disso, segundo Attardo (1994), os trocadilhos devem manter alguma
informação implícita, evitando assim a total desambiguação da elocução. Em outras
palavras, se a ambigüidade persiste após a contextualização (já que o contexto é uma força
desambiguadora), não poderemos afirmar que ela a ambigüidade é aquela tida como
inerente à linguagem, mas que ela é “maquinada”, ou seja, é construída intencionalmente de
122
Puns, however, preserve the two senses of a linguistic unit; therefore, puns exist only as a byproduct of
sentential and/or textual disambiguation.
123
when we do recognize the pun we must keep the original meaning unmodified as part of the
reconstruction.
261
forma que os dois sentidos se mantenham. É, pois, do confronto entre o sentido previsível e
o imprevisível que decorre o efeito humorístico de um trocadilho, conforme
concluíramos anteriormente.
Em suma, a ambigüidade humorística é complexa não porque joga
conscientemente com dois sentidos de uma palavra, de uma sentença, etc, mas porque
subsume uma incompatibilidade, um antagonismo entre eles. Além do mais, apesar da força
desambiguadora que o contexto exerce, informações que poderiam zerar a ambigüidade são
deixadas, propositalmente, implícitas.
Na verdade, os trocadilhos humorísticos têm uma ambigüidade calculada que
deve ser mantida até o final do processamento do texto. Talvez seja a percepção da
criatividade e engenhosidade de tal cálculo que nos faça render homenagem não só a quem,
em tese, o criou, bem como à nossa perspicácia em desvelá-lo: sob esta ótica, o humor nos
proporciona dupla satisfação.
Ainda segundo Attardo (op.cit.), há três possibilidades para o processamento da
desambiguação de um trocadilho. Primeira: o primeiro sentido torna-se inadequado e é
abandonado. Segunda: o primeiro sentido se revela melhor do que o segundo, e este é,
conseqüentemente, deixado de lado. Terceira e última hipótese: ambos os sentidos são
aceitos; eles coexistem.
Para os estruturalistas, dois são os elementos responsáveis por trazer a
ambigüidade e depois revelá-la: o conector e o disjuntor, segundo a terminologia
greimasiana, ou embrayeur /desembrayeur, segundo designação de Charadeau. Se o
conector é simplesmente o elemento ambíguo por meio do qual os dois sentidos se fazem
presentes na elocução e o disjuntor corresponde ao elemento “que causa a passagem de um
sentido para um outro dos sentidos previamente descartados pelo processo de
desambiguação” (Cf Attardo, p.135), podemos supor que, dependendo do tipo de
trocadilho, conector e disjuntor podem, em tese, coincidir.
262
Contudo, embora a concomitância entre o conector e o disjuntor o gatilho
para a troca semântica do script, na terminologia raskiniana não seja uma hipótese
inválida, estudos m mostrado que a proporção desta ocorrência é significativamente
inferior à daquela em que o conector precede o disjuntor. O quadro abaixo pode confirmar
estas informações:
Table 2.7: Study A: Distinct vs Non –Distinct Disjunctor (Attardo,op.cit.,p.105)
Distinct Non-distinct Total
Italian 33 5 38
American 50 15 65
Apenas para avaliar a pertinência da última asserção (a co-ocorrência
conetor/disjuntor é menos usual), vamos analisar o processo de desambiguação necessário
para fruir dois trocadilhos do nosso corpus. O primeiro, um trocadilho sintagmático,
realizado via antanáclase; o segundo, um trocadilho paradigmático.
E a Marta pediu licença. Pois ela tem que pedir licença, por favor e mil desculpas. Rarará!
(14/10/2005)
A primeira sentença parece, no momento inicial da leitura, reportar o fato de
que a prefeita Marta Suplicy licenciara-se da prefeitura logo após o primeiro turno.
Portanto, o contexto situacional nos leva a desambigüizar o termo pedir licença (o
conector) e entendê-lo como o ato de pedir autorização para o afastamento temporário do
cargo. Contudo, quando lemos a segunda parte do texto ou, mais exatamente, o termo
(pedir) por favor (disjuntor) temos que interromper o processo de desambigüação, revisar o
sentido anterior e adotar um outro: pedir licença significa agora um gesto de polidez e é
correlato a pedir por favor e pedir desculpas. Aliás, a própria estrutura paralelística reforça
essa leitura.
263
O que nos parece e - arriscamos uma conclusão - é que, quando se fala que o
humor subsume um engano, ou que surpreende, ou que deve ser inédito, tudo isso se liga,
de certa forma, não só ao que uma piada conta, ou ao assunto que um trocadilho refere, mas
à própria estrutura calculada que os informa: o trocadilho brinca planejadamente com a
capacidade interpretativa do leitor, submetendo-o a avanços e recuos, a erros e acertos, a
revisões e revelações. E o leitor gosta. Os trocadilhos são lúdicos. São combinações
espirituosas. São mots d’esprit como dizem os franceses.
Bastante curioso no jornalismo feito por José Simão é o fato de que, mesmo que
o leitor não tenha muita informação a respeito do assunto, ele pode, ainda assim e quase
sempre, desfrutar do gozo humorístico, até porque normalmente a notícia principal é
retomada (E a Marta pediu licença) e depois comentada (Pois ela tem que pedir licença,
por favor e mil desculpas). Melhor dizendo: o leitor se dá conta que esdiante de um
trocadilho quando lê o comentário, pois, é neste, que, via de regra, o duplo sentido se
configura e se desvela, ou por meio da antanáclase, ou da paronomásia.(Estamos aqui
abordando o trocadilho sintagmático, apenas).
Aliás, é, via de regra, também nos comentários, que as outras possibilidades de
leitura emergem e que o leitor percebe as alusões e busca desambigüizá-las. É claro que
isso envolve, da parte do leitor, o movimento de retrocesso e da própria percepção do
engano, afinal pedir licença não significa apenas afastar-se do cargo. Traz à tona a sugestão
de que a prefeita tem o dever (pois ela tem que) de ser mais polida (tem que pedir licença,
por favor...).
Na verdade, o cronista alude, via trocadilho, ao fato de que a prefeita, dado o
gênio impetuoso - demonstrado publicamente em algumas ocasiões - indispôs-se várias
vezes com políticos e jornalistas, diante de cujos questionamentos nem sempre ela seguiu
os ditames da etiqueta. quanto ao pedido potencializado de desculpas (mil desculpas),
parece-nos facilmente inferível qual é o seu destinatário: o povo paulista, visto que o
mandato de Marta Suplicy não foi o que se esperava. Prova disso? A prefeita não conseguiu
se eleger.
264
Passemos agora à análise de um trocadilho paradigmático retirado da “seção”
Cartilha do Lula, na qual o cronista, todos os dias, insere verbetes que, apesar de
representarem aquilo que muitos chamam, popularmente, de trocadilhos infames (o
preconceito contra os trocadilhos talvez tenha origem neste tipo de trocadilho), são
tecnicamente bem construídos.
E atenção! Cartilha do Lula. Mais dois verbetes pro óbvio lulante.”Cleptomaníaco”:
companheiro que é fã do Eric Clapton. “Esfera”: pitbull que virou poodle. (29/09/2004)
Sob a aparência de uma brincadeira quase infantil, tais trocadilhos sugerem que
o raciocínio do dono da cartilha (aliás, a designação cartilha é bem maldosa, pois evoca o
grau de instrução do presidente que mal terminou o curso primário) não ultrapassou a fase
concreta, a fase do óbvio lulante (já temos aqui um trocadilho paradigmático): os
significados inclusos na cartilha dele são motivados e deduzidos por semelhança sonora,
talvez – o humor sabe – para facilitar-lhe a vida.
À semelhança das crianças em processo de alfabetização que não dominam as
convenções ortográficas, o verbete esfera é escrito como é falado e o leitor percebe que
“foi enganado”, quando avança na seqüência lingüística e se dá conta da incompatibilidade,
entre esfera (que nos levaria, provavelmente à idéia de círculo) e cachorros bravos (pitbull)
que se tornaram ceis (poodle). Isso o faz retroagir e buscar o outro significado (ex-fera)
para dirimir a ambigüidade ainda remanescente.
4.5 - TROCADILHOS E CONTEXTO
Neste ponto, não temos como nos frustrar a uma questão sempre presente nos
estudos sobre o humor, a qual, inclusive, já aventamos: o humor é cultural, ou seja, depende
do conhecimento que o leitor tem do contexto para que o processo de desambigüação
265
ocorra a contento? Como vimos, tanto Bergson (2001) quanto Propp (1992) afirmam que
desconhecer determinados costumes, ou não dispor de determinadas informações sobre um
grupo social impedem ao leitor (o desconhecedor) a percepção do efeito risível, pretendido
numa piada ou em um trocadilho humorístico.
Em suma, para estes autores, o riso é circunscrito, contextualizado, partilhado
apenas por aqueles que vivem em determinada sociedade. Se nos reportarmos ao trocadilho
anteriormente analisado, tal afirmação não se sustém. Ou melhor e sem radicalismos se
sustém em parte. O que queremos dizer? Será, por exemplo, que um leitor pouco informado
não perceberá, embora lhe faltem informações a respeito do gênio da prefeita, o duplo
sentido da expressão pedir licença e a alusão à falta de educação da candidata?
Supomos que sim, como também supomos que os trocadilhos possibilitam,
mesmo a um leitor mal informado, a apreensão do efeito risível. Talvez nem todas as
associações /inferências (Aliás, quais seriam todas? Impossível precisar) possibilitadas pelo
contexto sejam realizadas, mas a percepção do jogo lingüístico já predisporá o leitor ao riso
e à busca de significações.
Contudo é mister afirmá-lo um grau mínimo de conhecimentos partilhados
é imprescindível, visto que, afinal, estamos analisando os efeitos do humor ligados ao
jornal, mídia cuja finalidade precípua é a divulgação de fatos e acontecimentos. Neste
ponto, achamos interessante a estratégia utilizada por José Simão que, como bom jornalista,
recupera de forma sintética (e geralmente humorada) as notícias, para, a seguir, como
excelente cronista, comentá-las de forma talvez mais humorada ainda, porque é comum que
tal comentário ocorra sob forma trocadilhesca.
Obviamente, todo jornal tem seu público-alvo. Obviamente, todo jornalista faz a
estimativa do seu leitor e, sob este aspecto, pudemos perceber que muitos trocadilhos, que
geralmente aparecem como comentários, além de exigirem atenção do leitor ao jogo
lingüístico, exigem-lhe alguns conhecimentos elementares de outros idiomas para que o
efeito risível se concretize. Eis um exemplo:
266
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O braço armado da gandaia nacional. Direto
das ereções do Tio Sam no Império da Mãe Joana! Socorro! Help! Não tô entendendo
nada. Chama a Lucianta Gimenez pra me explicar. É mais cil entender um filme
iraquiano dublado em curdo do que entender eleição americana. Agora não depende mais
da Flórida. Agora embolou em OHIO. ENTÃO OHIO QUE OS PARTA! (04/11/2004)
De que informações contextuais o leitor precisaria dispor para entender tal
texto? O jornalista recupera como se tudo fosse uma grande brincadeira - o fato de as
eleições americanas (ereções do Tio Sam) serem complicadas (é mais cil entender um
filme iraquiano dublado em curdo do que entender eleições americanas), fato que a
expressão Mãe Joana, bastante conhecida popularmente, indiciara. Além do mais, ao
afirmar que Agora o depende mais da Flórida informa”, via pressuposição, que isso
ocorreu. (Um leitor bem informado recuperará o fato de que nas últimas eleições
americanas houve problemas com a apuração dos votos na Flórida, reduto republicano).
De qualquer forma, mesmo que a informação sobre a Flórida não seja exata, não
importa, pois ela não é decisiva para a consecução do efeito humorístico, até porque a
informação dada em Agora embolou em Ohio permite, aa um leitor pouco informado,
perceber que, se houve complicações eleitorais na Flórida, agora elas ocorrem em Ohio
e, por menor que sejam os seus conhecimentos geográficos, tal leitor perceberá que Flórida
e Ohio se equivalem: são regiões americanas.
Até a “alfinetada” em Lucianta Gimenez poderia passar em branco em termos
de interpretação. Embora o programa televisivo que ela comanda seja repleto de confusões
o que, em tese, a torna uma expert neste assunto - as eleições americanas escapam às
explicações: são, de fato, na avaliação debochada do cronista, o Império da Mãe Joana.
Também a contaminação Lucianta nos permite supor que, mesmo sendo especialista em
confusões, a apresentadora não conseguirá dar qualquer explicação a respeito.
267
Parece-nos, pois, que a informação relevante - Ohio decidirá a complicada
eleição americana é apreendida sem grandes dificuldades pelo leitor, mesmo que ele não
domine outras informações ligadas ao assunto. (Por razões didáticas, acabamos de supor o
modelo do leitor não-ideal. O nosso leitor – ideal - nos desculpará). O mesmo não podemos
dizer sobre o uso do trocadilho que encerra o comentário jocoso: para que o efeito risível
seja processado é imprescindível que o leitor conheça a pronúncia americana, ou seja, que o
h seja aspirado.
dispondo desse conhecimento lingüístico, o leitor/ouvinte perceberá
(“ouvirá”) a ambigüidade do trocadilho (Ohio que os parta) e inferirá o conseqüente
descaso do cronista que a “descoberta” da expressão volitiva (o raio que os parta) expressa.
Que a eleição é entre Bush e Kerry, como se no título da crônica, é bom saber, mas isso
não é fundamental ao processamento do trocadilho. Fundamental é que o leitor tenha algum
conhecimento da língua inglesa para a resolução da (muito bem) calculada ambigüidade.
A que conclusões podemos chegar? Que os mots d’esprit (humor do dicto, na
designação aristotélica), se comparados às piadas (humor de res), são necessariamente mais
“contextualizados” pelo fato óbvio de que exigem redobrada atenção aos aspectos
lingüísticos/idiomáticos, sob o risco de o efeito risível não se processar, mesmo que o leitor
disponha de todas as informações contextuais, embora, como vimos, estas sejam
importantes, mas não indispensáveis a ponto de o leitor nada conseguir entender.
Aliás, não é incomum a ouvintes/leitores que não tenham entendido a graça de
um dito ou de uma piada, por desconhecimento de alguma informação do contexto,
perceberem que algo lhes falta, embora não precisem o quê. Não é incomum também que,
às vezes, façam suposições/inferências bastante próximas daquilo que lhes falta para o
processamento da desambiguação (Estamos pensando no leitor de jornais, especialmente).
Reconhecemos que selecionar tal trocadilho pode não ter sido uma opção feliz
justamente porque o processo de desambigüação requer conhecimentos relativos a dois
268
idiomas. Todavia, se, por um lado, é certo de que um “trocadilho bilíngüe” requer mais
atenção do leitor/ouvinte, por outro lado, não nos parece improvável afirmar que, em
termos de conhecimentos lingüísticos, o que se exige neste trocadilho é muito pouco: saber
que o h inicial é aspirado em língua inglesa.
Sob este aspecto, embora cientes de que a atividade metalingüística inerente aos
trocadilhos representa um maior grau de dificuldade para a interpretação – a dificuldade das
crianças com o humor verbal talvez decorra disso, como já anotado (vide p.221 desta tese) -
nem sempre um “trocadilho monolíngue” é menos sofisticado ou exige menos do leitor.
Aliás, se não incorremos em falsa generalização, a simples percepção de um trocadilho
nos predispõe ao riso e, segundo Raskin (1985), já nos alerta de que devemos sair do modo
bona fide de comunicação (convenção social não acessível aos pequemos, mas que rende
muitas piadas por eles protagonizadas).
Possenti (2001:150), além de mostrar que o chamado humor de crianças nem é
feito por elas, nem para elas, mas sobre elas, destaca como neste tipo de humor a
exploração de jogos verbais é quase inexistente, não porque o humor em geral não
prescinde de um grau de verossimilhança, mas também porque o humor verbal se realiza
por meio de uma exploração mais sofisticada da linguagem, incompatível, em tese, com a
concretude do pensamento infantil:
Por isso, dificilmente piadas de crianças que se baseiam numa exploração mais sofisticada da
linguagem. Nelas não é constante a manipulação de significantes, a exploração de estruturas
sintáticas complexas, de duplos sentidos em geral
(grifos nossos).
Talvez seja o maior grau de sofisticação do humor verbal a justificativa para a
maior dificuldade do leitor no processo de desambiguação. Talvez tal sofisticação também
explique o senso comum de que os falantes têm preferência pelo humor referencial,
segundo apontaram algumas pesquisas relatadas por Attardo (1994:102), conforme se pode
verificar no quadro transcrito a seguir:
269
Table 2.3: Study A: Referencial vs verbal jokes
Referential Verbal Total
American 235 65 300
Italian 262 38 300
Total 497 103 300
De qualquer forma, o dado que mais nos interessa diz respeito à nossa hipótese
inicial de que existem recursos universais para a consecução do humor, o que a própria
divisão entre o humor verbal e o referencial parece confirmar, uma vez que esta divisão foi
reconhecida e perdura desde a antigüidade (humor do dicto x humor da res).
Sob esse aspecto, as palavras de Attardo (op.cit., p.95), embora se refiram
inicialmente à forma como o conector e o disjuntor se comportam nas piadas, não só coloca
taxativamente a distinção que reputamos fundamental para o discurso do humor, bem como
reforça a posição que tomamos com relação aos trocadilhos, ou seja, o fato de eles, antes de
qualquer outra característica, subsumirem brincadeiras sonoras (fônicas). Confirmemos:
duas espécies de piadas que se comportam diferentemente de acordo com a natureza do
disjuntor e do conetor. De um lado, nós temos as piadas “referenciais”, e de outro as piadas
“verbais”. As primeiras se baseiam exclusivamente no significado do texto e não fazem qualquer
referência à realização fonológica dos itens lexicais (ou outras unidades do texto); as últimas,
além de serem baseadas no significado dos elementos do texto fazem referência à realização
fonológica do texto.
124
Attardo (op.cit.p.95-6) ainda acrescenta a informação de que as piadas verbais
são mais dificilmente traduzíveis, porque a não-correspondência lingüística entre os
124
There are two kinds of jokes that behave differently as far as the nature of the disjunctor and connector
goes. On one side, we have “referential”jokes, and on the other, we have “verbal” jokes. The former are
based exclusively on the meaning of the text and do not make any reference to the phonological realization of
the lexical items (or of other units in the text), while the latter, in addition to being based on the meaning of
the elements of the text, make reference to the phonological realization of the text.
270
códigos requer recriações por vezes bastantes sofisticadas para que a piada-trocadilho
subsista. Observemos como o autor enuncia tal distinção:
A primeira {piada referencial} pode ser traduzida interlingüisticamente e intersemioticamente,
enquanto a tradução da segunda {piada verbal}, quando não é impossível, requer
correspondências não sistemáticas entre os códigos, ou recriações sofisticadas da mesma espécie
de correlação significado/som.
125
Imaginemos a dificuldade de se traduzir um texto como o que se segue, não
pelas alusões presentes, mas, sobretudo, porque tais alusões se realizam por meio de um
jogo verbal que funde informações contextuais com expressões idiomáticas.
E uma leitora me disse que a Marta é um Suplício e vai mandá-la às Favres. E uma outra
disse que não vai votar na Marta nem morta! Mas e se ela ganhar? Tudo bem. PASSA
RÁPIDO! Rarará! (07/08/2006)
Contudo, se em termos de traduzibilidade, os trocadilhos revelam-se
extremamente dependentes de um contexto, não nos parece improvável afirmar que tal
dependência é muito mais lingüística do que contextual. Em outras palavras, se um
conhecimento contextual mínimo é fundamental para se entender qualquer texto de
qualquer época, um bom domínio do idioma local (estamos pensando no leitor estrangeiro)
é imprescindível, sobretudo se o texto trabalha com o trocadilho humorístico, ambíguo por
excelência.
A avaliação de que Marta é um Suplício, bem como a de que a leitora vai
mandá-la às Favres associa jocosamente o nome da candidata aos seus dois maridos: o ex,
Eduardo Suplicy e o atual, Luís Favres. Mesmo que o leitor domine essas informações
125
The former can be translated interlinguistically and intersemiotically, while the translation of the latter is
either impossible or must rely on unsystematic correspondences between the codes, or on sophisticated
recreation of the same kind of meaning/sound correlation.
271
contextuais, se ele o perceber a ambigüidade presente na brincadeira verbal dada pela
proximidade sonora entre os nomes dos maridos e as expressões idiomáticas (ser um
suplício e mandar às favas), que serviram para a avaliação negativa da candidata, o gatilho
para o humor não será acionado. A este respeito é oportuno registrarmos a opinião de
Raskin (1985:116) para quem “os gatilhos ambíguos criam todos os trocadilhos e piadas
simples similares”
126
.
o gatilho final, sintetizado na expressão PASSA RÁPIDO, endossa a
pertinência da afirmação raskaniana, visto que tal expressão trabalha com a seguinte
ambigüidade: ao mesmo tempo em que subsume o conformismo dos eleitores, caso a
candidata Marta seja reeleita, refere uma das suas realizações à frente da prefeitura. A
operação “Passa Rápido” buscou diminuir o tempo despendido pela população dependente
dos transportes públicos, cujos itinerários foram agilizados, em virtude da construção de
corredores viários.
Para Raskin, os trocadilhos o geralmente gatilhos óbvios, pois extremamente
acessíveis e populares (para quem é falante da língua que os expressa) Se, por um lado, é a
acessibilidade deles, que os transforma facilmente em um tipo desprezível de humor
127
, por
outro lado, é esta mesma acessibilidade que lhes garante a sobrevivência. De qualquer
maneira, a qualidade de um trocadilho depende não tanto do gatilho que ele dispara, mas,
sobretudo, da boa colocação dos outros elementos necessários à criação da piada. Isso
talvez explique porque os trocadilhos do texto anterior podem ser considerados infames por
uns, mas extremamente produtivos por outros, entre os quais nos incluímos. Querer deles
um humor elegante é desconhecer-lhes a natureza popular.
Para alguns falantes, a simples exposição a palavras ou frases homônimas ou
polissêmicas constitui um convite a fazer uma brincadeira, uma piada. Fazedores
compulsivos de trocadilhos (punners), como parece ser o caso de Jo Simão, ao
126
Ambiguous triggers create all puns and similar simple jokes.
127
Aliás, se bem avaliamos, as objeções feitas por Todorov (vide p. 248-9 desta tese) contra aqueles que
julgavam os trocadilhos inferiores, dada a sua pretensa “gratuidade” fonética, combatem o mesmo
preconceito.
272
responderem se desejam comer a coxa ou o peito do frango, podem causar embaraço a um
anfitrião, ao responderem, maliciosamente, que preferem comer as morenas (dark meat) às
branquinhas (white/ light meat). Trocadilho pouco elegante, de mau gosto, mas eficaz.
4.7 - ALGUMAS CONCLUSÕES
.
Munidos de conhecimentos fonético-fonológicos advindos de diferentes teorias
lingüísticas tão bem subsumidas por Attardo (1994) e de posse de novos conhecimentos
advindos da síntese brilhantemente feita por Todorov (1996) com base nos chistes retóricos
de Freud, pudemos elaborar algumas categorias de análise, cuja meta precípua buscou
privilegiar aquilo que reputamos ser a característica essencial dos trocadilhos: o fato de
serem brincadeiras sonoras intencionais.
A grande dúvida que encontramos em adotar in totum a categorização proposta
por Todorov centrou-se, exatamente, na questão da silepse que, dada a visão abrangente
deste autor, não contemplaria o conceito de trocadilho por nós adotado. Houvemos, pois,
por bem, propor um outro esquema, embora Todorov seja, indiscutivelmente, o teórico que
nos serviu de guia.
O quadro que se segue busca sintetizar a primeira fase do processo que nos
levou à assunção de cinco grades categorias para os trocadilhos, a saber: “silepse”/alusão
sonora ( termo único mas que deve ter alguma semelhança sonora com o termo-alvo, daí a
presença das interrogações), a contaminação (familionário), a antanáclase, o quiasmo e a
paronomásia.
273
TROCADILHOS
Identidade sonora Semelhança sonora
Ocorrência única
“silepse” com alusão
sonora?
Contaminação/
Ocorrência múltipla Antanáclase/quiasmo Paronomásia
Como o conceito de trocadilhos sintagmáticos e paradigmáticos se mostrou
recorrente nas teorias lingüísticas abordadas por Attardo, sentimo-nos suficientemente
seguros para a proposição de um segundo esquema com base nesta divisão. Convém apenas
assinalar que tais esquemas se complementam: a ocorrência do único (feitas as ressalvas
anteriores) corresponde ao eixo paradigmático e a do múltiplo, ao eixo sintagmático.
TROCADILHOS PARADIGMÁTICOS E SINTAGMÁTICOS
SINTAGMÁTICOS (deslocamento) PARADIGMATICOS (condensação)
Antanáclase e quiasmos (ocorrência do
mesmo)
Trocadilho paradigmático (ocorrência do
único com semelhança sonora evocativa do
termo-alvo)
Paronomásia ( ocorrência do semelhante) Contaminação (mot valise /junção de sons
diferentes)
274
CAPÍTULO 5 - ANÁLISE DO CORPUS
5.1 - PALAVRAS INICIAIS
Antes de iniciarmos a análise das crônicas escolhidas, cumpre-nos resolver uma
dúvida que nos assaltou por diversas vezes, sobretudo no decorrer dos dois últimos
capítulos, e que pode ser resumida da seguinte forma: qual o mínimo de narratividade
necessária para que um texto de humor verbal ou referencial seja considerado uma piada?
Se piadas são, tradicionalmente, pequenas narrativas cômicas nas quais sobreposição de
scripts, concorde Raskin, e nas quais é comum que apareçam ao menos duas personagens
(segundo nossas observações), como considerar piadas os comentários jocosos e
trocadilhescos que recheiam as crônicas de José Simão?
Queremos, pois, comentar um texto que nos pareceu essencial para entendermos
o humor das piadas-comentário trocadilhescas ou referenciais - criadas por José Simão.
Referimo-nos ao estudo de Violette Morin, datado de 1966, e publicado no Brasil em 1971.
Na verdade, tal texto, além de reforçar a divisão básica do humor (res e verba), lança luzes
sobre a questão da narratividade mínima, necessária para que consideremos um texto como
piada.
Morin (1971) analisou cerca de 180 historietas cômicas, publicadas na revista
France Soir, que não excediam o total de 40 palavras cada. A autora, perguntando-se como
textos risíveis tão breves podiam ser considerados narrativas (e conseqüentemente piadas),
concluiu que elas apresentavam três funções narrativas , a saber: função de normalização, à
qual cabe situar os personagens, a função locutora de deflagração, que apresenta a questão
a ser resolvida e, por fim, a função interlocutória de disjunção, que dá uma solução cômica
para a questão apresentada. Segundo a autora, é esta última função que bifurca a narrativa,
possibilitando-lhe a existência como narrativa disjunta:
A bifurcação é possível graças a um elemento polissêmico, o disjuntor sobre o qual a história
deflagrada (normalização e locução) tropeça e se volta para tomar uma direção nova e
275
inesperada. É a existência necessária deste disjuntor que tende a fazer classificar
indiferentemenete todas estas historietas nas espécies de jogos de palavras
. (op, cit., p.176)
Embora desmereça os jogos de palavras, afirmando que a France-Soir “arrisca-
se pouco a este suicídio” (Cf. p.177) e constatando que raramente tais historietas são
jogos de palavras” e que freqüentemente são “jogos de signos”
128
, Morin procede a uma
minuciosa classificação das historietas a partir de dois tipos de disjunção: a semântica e a
referencial, que, em tese, corresponde à divisão ciceroniana de humor das palavras e humor
das coisas. Após observar como a disjunção se articula, chega a três tipos básicos de
articulação: a bloqueada, a regressiva e a progressiva.
1º tipo: ARTICULAÇÃO BLOQUEADA
Observemos dois exemplos propostos por Morin (op.cit.):
1º) Disjunção semântica (inversão de signos)
Um faquir, pachorrentamente estendido sobre sua cama de pregos, acaricia seu porco-
espinho.(p.179)
2º) Disjunção semântica (inversão de signos)
Um carneiro encontra outro carneiro com ar fatigado. É que contei 147 pastores antes de
dormir. (p.179)
3º) Disjunção referencial
128
Raskin (1985) já apontara a pretensa – e insustentável, a nosso ver - superioridade dos aspectos semânticos
e a conseqüente desvalorização dos aspectos significantes dos signos, defendida por alguns estudiosos, entre
os quais Morin parece se incluir.
276
Um marido procura sua mulher ao longo de um rio e encontra alguém que a viu. O
marido: Se o senhor a viu, não deve estar longe. O fulano: Sobretudo porque a correntez
não está muito forte. (p.184)
Historietas cômicas que se encaixam neste primeiro grupo apresentam uma
equivalência entre uma narração normal (o homem, deitado no divã, acaricia um gato, ou
um pastor conta os seus carneiros antes de dormir) e uma parasita. Na verdade, segundo a
autora, a questão do bloqueio se explica porque as duas narrações coexistem, subsumindo
uma oposição simétrica, em que uma sustenta (e bloqueia) a outra.
2º tipo: ARTICULAÇÃO REGRESSIVA
historietas com este tipo de articulação se caracterizam por apresentar uma
seqüência unilinear, cuja forma é conseqüente, mas cujo sentido é absurdo. Dito de outra
maneira: a coerência da narrativa é respeitada até o fim, mas ocorre um “tropeço”, ou seja,
um engano de natureza “semântica” ou “referencial”, bifurcando a narrativa. Vejamos
alguns exemplos:
Disjunção semântica
O canibal chega à sobremesa: “Já estou farto desses “suisses” (=queijo/cidadão).
Amanhã vou querer um “esquimau”. (=picolé/esquimó) (p.187)
Disjunção semântica
O pai de dois gêmeos vai visitar o médico. “Mas por que gêmeos?”. O doutor: -“ Na
base, existem dois “facteurs” ( = Razões/empregados dos correios).(p.187)
277
Disjunção referencial
Um escocês sabe pela manhã que o trem em que viajava sua esposa sofrera um acidente.
Ele hesita diante do quiosque e o compra o jornal. –“ Comprarei a edição da tarde que
trará a lista das vitimas”. (p.192)
Além do mais, parece haver uma destruição da narração normal pela narração
parasita. Segundo Morin (1971:193), na articulação regressiva, “a interlocução responde
formalmente à locução, mas enganando-se de significação sobre um elemento referencial
da narrativa. É trocando as motivações deste elemento disjuntor que ela parasita o sentido
da narrativa normal”
.
3º tipo: ARTICULAÇÃO PROGRESSIVA
neste grupo, “a narrativa normal não tropeça em um signo enganando-se de
significado, mas em um ou vários signos, enganando-se de significações” (op.cit., p.196), o
que, de certa forma, justifica-lhe a própria articulação progressiva, seqüencial, não-pontual,
diferentemente, por exemplo, daquela que ocorre com signos lingüísticos de mesmo
significante mas de significados distintos, típicas do grupo anterior. Observemos alguns
exemplos dados por Morin (op.cit.):
Disjunção semântica
O convalescente escocês {está} diante do médico. O médico: É à sua constituição que você
deve seu restabelecimento. O doente: Então não lhe devo nada? (p.196)
278
Disjunção referencial
O dono ouve à noite barulho na loja; desce e encontra um ladrão. -“Que está procurando?
O ladrão: -“Dinheiro!” O dono: “Então procuremos juntos e dividamos.”
(p.199)
As narrativas com articulação progressiva apresentam uma aparente “refutação
reabilitadora”, visto que a réplica disjuntora acolhe de forma “inocente” a função
normalizadora, dando-lhe uma seqüência conciliatória. Tal procedimento é perceptível na
última piada citada: o dono parece acolher a pretensão do ladrão. Contudo, em termos de
conteúdo, este tipo de piada encerra, na opinião de Morin (op.cit.,p.201), uma agressividade
latente muito mais explosiva, mais feroz, do que a que costuma ocorrer na articulação
regressiva, cuja maldade é mais explícita, declarada.
Para finalizar, Morin (1971:202) recupera o conceito todoroviano de anomalias
semânticas e o confronta com a anomalia disjuntora, típica da narratividade das historietas
cômicas. Como em tal trecho, a autora não só reporta a oposição narrativa séria x narrativa
cômica, mas também esclarece o “sentido fechado” das piadas x o “sentido aberto” das
narrativas sérias (literárias?), e como ainda explicita o caráter destruidor do riso, houvemos
por bem registrá-lo:
Na narratividade normal, digamos “séria” em oposição a “cômica”, a anomalia é um elemento
constitutivo da expressão narrativa e carrega poeticamente (.....) uma finalidade em si, a
presença de uma “combinação anômala” de semas “de um morfema em outro” para retomar os
termos de Todorov, é uma taça de sombra na lógica da língua, o suporte de um sonho re-
organizador. A coerência narrativa do sintagma encontra-se reforçada por ele. Na narratividade
disjunta ao contrário, a anomalia substitui uma incoerência por duas coerências e impõe um fim
de narrativa que é o fim de tudo (...) A anomalia disjuntora não é esclarecedora mas destruidora.
(grifos nossos)
Feita esta breve retrospectiva, cabe-nos registrar as associações daí decorrentes.
A primeira é cristalina: a teoria scriptural raskiniana não abarca mas também explica a
279
questão da narratividade disjunta da concepção moriniana. Em outras palavras: não está a
bifurcação narrativa contemplada na mudança scriptural e vice-versa? Se nos reportarmos à
citação anterior, não podemos associar a anomalia disjuntora ao gatilho raskiniano, na
medida em que, se aquela abre duas possibilidades coerentes (mas excludentes), este
propõe a sobreposição dos scripts? E mais: até a designação anomalia disjuntora” não
condiz com o estranhamento que o gatilho encerra, ou com a perspectiva destruidora que
este instaura?
Então, o que de novo? Sem entrar no rito dos tipos de articulação
propostos, o que se nos afigurou profundamente esclarecedor foi, na realidade, não a
percepção de que subjaz uma “estrutura triádica” (termo nosso) à narrativa humorística
mínima, mas também que nem sempre as três funções que a integram vêm explicitadas.
É o que ocorre no primeiro texto anteriormente citado (Um faquir,
pachorrentamente estendido sobre sua cama de pregos, acaricia seu porco-espinho), em
que apenas a função interlocutora da disjunção se faz presente. Concorde Morin, não a
função normalizadora (um faquir é insensível ao que o pica), mas também a função
locutora de deflagração (um homem normal, pachorrentamente estendido sobre o divã,
acaricia seu gato) estão subentendidas.
Se à função normalizadora compete, pois, situar o personagem, à função
locutora de deflagração apresentar a questão a ser resolvida e à função interlocutória de
disjunção propor uma solução mica para a questão apresentada, não nos parece difícil
reconhecer que muitas das piadas de José Simão trocadilhescas ou não recuperam
essencialmente a mesma estrutura. As variações, se existem, são devidas à natureza do
corpus, sendo comum que a notícia, ou a síntese dela, corresponda à função de
normalização. Como geralmente o leitor já tem conhecimento dos fatos noticiados e como
José Simão costuma “disparar” vários comentários-piadas ou várias piadas-comentários
com base no mesmo fato, não é incomum que esta primeira função fique subentendida.
280
Na verdade - Morin bem o destacou - a única função que nunca ficará
implicitada é justamente aquela que dispara o humor, ou seja, a função disjuntória, o que
significa afirmar recuperando a teoria raskiniana que não piada sem gatilho, isto é,
sem disjuntor. Seja ele semântico ou referencial, concorde Morin. Encerre ele um jogo
situacional” ou um “jogo com as palavras”, segundo designação de Eco (Cf p.198 desta
tese). É, pois, a estrutura triádica das piadas que os exemplos a seguir buscam revelar.
E o “Jornal Nacional” completa 35 anos. E o Cid Moreira, 135! Ele cobriu a guerra de
Tróia e transmitiu corrida de biga.( 12/09/2005)
Não nos parece difícil perceber que, se o segmento inicial apresenta a notícia (E
o “Jornal Nacional” completa 35 anos), se o segundo deflagra uma questão na medida em
que um estranhamento é colocado (E o Cid Moreira, 135!), o terceiro a “soluciona”, via um
comentário hiperbólico, debochado. Ter coberto a guerra de Tróia e ter transmitido corrida
de biga enfatizam jocosamente não a idade de Cid Moreira, um dos apresentadores mais
antigos da Rede Globo, mas, metonicamente, a própria “velhice” do Jornal Nacional.
Observemos ainda mais dois exemplos em que a estrutura triádica está
totalmente explicitada: no primeiro ocorre uma disjunção semântica (viceado por viciado);
no segundo, uma disjunção referencial, segundo terminologia moriniana.
.
E o Teletubbie Rubinho é vice-campeão. Ele ta VICEADO em vice! Aquando vence é
pra ganhar segundo lugar. (28/09/2004)
E em Sampa tem tanto seqüestro que um cara botou o adesivo no Fiesta: “Não me
seqüestrem. Estou cheio de dívidas”. (10/08/2004)
281
Entendemos agora, com muita clareza, por que é freqüente, no corpus analisado,
a criação de piadas estruturadas na relação causa/conseqüência, expressas em forma de
orações principal e consecutiva. De fato, se a oração principal transmite a notícia (função
normalizadora), ela cumpre também a função de exagerá-la (função deflagradora), criando
a expectativa para a solução engraçada e/ou inesperada que virá (função disjuntora).
Feitas estas associões, iniciaremos a análise das crônicas que compõem o
corpus. Como adotamos, de certa forma, a metodologia empírica sugerida por Propp (vide
p.3 desta tese), ou seja, um constante ir e vir da teoria para o corpus e deste para a teoria,
limitar-nos-emos neste ponto a três textos apenas, o que, além de ser conforme as
estratégias do humor - sabidamente repetitivas - impedir-nos-á excessivas redundâncias. Se
determinar o número de textos foi tarefa simples, selecioná-los constituiu, sem dúvida, uma
tarefa hercúlea. Quais os mais representativos? Quais apresentam efeitos de humor os mais
criativos? Difícil saber.
5.2 – TEXTOS ANALISADOS
PRIMEIRO TEXTO: MANCHETE
EREÇÕES 2004! RUBINHO PARA VICE-VEREADOR (29/09/2004)
A começar pelo título, a “maldadezinha” inerente ao humor se anuncia. Num
país em que a campanha para prefeitos e vereadores chegava ao auge, que o primeiro
turno ocorreria no dia 03 de outubro, o cronista, a propósito do nome de um candidato a
vereador na região de Interlagos, ser Rubinho, reitera uma das suas críticas favoritas: o fato
de nosso corredor de fórmula I, Rubens Barrichello, ter subido inúmeras vezes no pódio,
mas sempre como vice, nunca como campeão mundial.
282
Na verdade, o efeito de humor decorre do cruzamento de dois scripts o das
eleições e o das corridas automobilísticas. Palavras como ereção (por eleição), vice,
vereador, e inclusive, Rubinho, pertencem, em tese, ao script eleição. Mas quando o leitor
atenta para o termo composto vice-vereador o gatilho do riso é acionado. Vereador não
tem vice, quando muito tem suplente. O Rubinho não é, portanto, um candidato a cargo
político. É um candidato a suplente! De campeão de Fórmula 1!
Passar de um script a outro, ou do modo bona fide para o non-bona fide, na
terminologia de Raskin (1985), requer do leitor um conhecimento não estritamente
lingüístico, mas isto o significa dizer que tal conhecimento é o relevante para o
entendimento da piada ou para a percepção do efeito de humor: o uso de estereótipos é um
elemento facilitador na criação do risível, como bem o atesta Possenti (vide citação na
página 190 desta tese).
Como é comum nas crônicas de José Simão, o tema contido no título (Rubinho é
candidato a vice) é reiterado no corpo do texto, conforme podemos observar no trecho que
se segue:
E o site Kibeloco resolveu lançar o Rubinho para vice-vereador. Ele vai atrás do
desenvolvimento social. Ele vai atrás dos seus interesses. Ele vai atrás do alemão. Porque
a pressa é inimiga da perfeição.
Se reiterar o conhecimento estereotipado é redundância inerente ao discurso do
humor, cabe aos elementos da superfície textual “inovar” o mesmo discurso. Portanto, se o
Rubinho, pretenso candidato a vereador, observa com competência o seu jargão político e
vai atrás do desenvolvimento social, o Rubinho, corredor de fórmula 1, parece observar
um jargão que revela, no mínimo, a sua incompetência, pois vai atrás do alemão. Se
entendemos e entendemos que jargões e slogans políticos buscam sintetizar os
objetivos, os planos e até as convicções dos candidatos, Rubinho, corredor, será um eterno
candidato a vice. Do alemão Schumacher.
283
Nesse sentido, o uso do provérbio (a pressa é inimiga da perfeição) dado o
seu caráter de peremptoriedade, de verdade eterna e atemporal, como explicação para o
slogan (ir atrás do alemão) reitera o deboche de que Barrichello é vice-campeão por
convicção. O efeito cômico se acentua na medida em que o corredor brasileiro acata uma
máxima, uma filosofia de vida diametralmente oposta àquela que é imprescindível ao
sucesso na sua profissão, na qual, ironicamente, a pressa é amiga da perfeição. Interessante
que, a todo comentário maldoso, segue-se a expressão onomatopaica rarará que, ao
explicitar o riso, parece amenizá-lo.
Na verdade, o humor criado por José Simão vai emendando deslocamentos.
129
Propor as pistas para o desvendando de uma piada não impede o cronista de trabalhar em
cima do mesmo script. Essa continuidade confere ao seu texto uma certa oralidade, típica
daqueles repentistas que vão encaixando comentários sobre comentários ou uma piada em
outra, usando o mesmo tema.
A mesma estratégia – a do uso de estereótipos e as variações em cima do mesmo
tema - reaparece nas piadas relativas à abertura da Bienal. Dizemos piadas porque as
entendemos como uma narrativa mínima, segundo Morin (1971).
E a abertura da Bienal? Dessa vez o Lula não falou de improviso. O Lula leu de
improviso! Rarará! Eu não sei como o Lula não falou que Bienal é um evento que acontece
todo ano. E é cada instalação maluca: tem um Fusca pendurado que parece anúncio de
lava rápido. E como agora tudo é arte, na hora da limpeza os serventes ficam perguntando
para os artistas: “E esse prego é arte?”. E o artista: “É” o servente deixa e pergunta
pro artista: “E essa estopa é arte?”. “Não”. Então o servente varre e pergunta: “Essa
vassoura quebrada é arte?”. E o artista: “Não, mas você me deu uma grande idéia: agora
é arte.”
129
Estamos entendendo deslocamento como “um desvio no processo mental’’ segundo palavras de Freud
(1996: 1055), ou seja, como a mudança na forma de se considerar.
284
Interessante é que o tema do improviso já se anuncia com a atitude do presidente
Lula (O Lula leu de improviso!) Já o comentário do cronista revela uma certa incredulidade
com o acerto inesperado do presidente ( Eu não sei como o Lula não falou que a Bienal é
um evento que ocorre todo o ano ) e joga com o pressuposto de que o presidente sempre
comete erros primários. Aliás, se bem lembramos o script das distorções lingüísticas – quer
sejam erros gramaticais, quer sejam obviedades – representa, indubitavelmente, uma forma
de se opor ao outro e de rejeitá-lo.
O tema da improvisação, recuperado na piada a respeito da Bienal, reforça o
senso comum de que arte moderna é tudo aquilo que o artista afirma ser arte. Quando uma
vassoura quebrada passa a ser considerada - improvisada e divertidamente - uma obra de
arte, o estereótipo do artista plástico como alguém fora dos padrões se torna procedente.
A piada que se segue, embora preconceituosa como toda piada sexista, que se
funda no senso comum de que artista plástico costuma ser homossexual, é coerente dentro
da série de estereotipias. Até a avaliação do cronista (essa é verídica) busca asseverar a
fidedignidade do fato:
E essa é verídica: tinha uma bicha no Ceará que tinha uma casa de tolerância, um puteiro,
e a polícia estourou e foram todos para a delegacia. E o delegado: “E aí, veado, vem cá”.
E a bicha: “Veado não, artista plástico”. Rarará!
Até então, exploramos, na crônica em pauta, o humor das ações que, grosso
modo, revela-nos personagens risíveis, porque são movidas por atitudes ilógicas ou pouco
conscientes. São os chamados alogismos, segundo Propp. Para Fernando Almeida (1999), a
comicidade se instaura a partir da bitextualidade, ou seja, decorre do confronto entre
comportamento padrão x desvio. É mister frisar que, segundo este autor, os desvios podem
encerrar transgressões não às normas sociais, mas também ao próprio código lingüístico.
285
De qualquer forma, a transgressão é risível porque conta com o conhecimento que o leitor
ou espectador tem da norma, do padrão.
A esse propósito queremos fazer alguns comentários quanto ao uso da palavra
ereção (por eleição), designação adotada desde o início do processo eleitoral e que,
obviamente, condensa outros significados. De qualquer forma, o que queremos destacar no
protesto do cronista - que talvez sintetize o cansaço do povo com toda a política e os
processos eleitorais nela envolvidos - é o caráter lúdico que nele se revela. Observemos:
Ereções 2004! O Pleito Caído! Chega de pleito! Queremos blunda!
Partindo, pois, de uma associação sonora (que denominamos trocadilho
paradigmático), o cronista estabelece, num crescendo, um verdadeiro jogo sonoro-
semântico, que culmina com a criação da palavra blunda, criação que se nos afigura como
resultado de uma brincadeira lingüística quase infantil. O recurso da analogia é comumente
usado pelas crianças nas suas primeiras manifestações faladas e, portanto, pleito está para
peito, assim como bunda está para....blunda! Total nonsense. Pura brincadeira. É inegável
que o cronista está trabalhando com o estereótipo de que brasileiro se sente mais atraído por
glúteos do que por seios, mas isto não nos impede de reiterar o caráter lúdico, não-sério do
trecho em tela.
É certo que subjaz à criação desta brincadeira o deboche ao fato de que, nos
debates políticos, muitos dos candidatos diziam “ter peito” para melhorar a situação da
cidade. Sob este aspecto, a semelhança sonora entre pleito/peito – ambos caídos – implicita
a descrença do cronista (que é também a nossa) de que nada vai mudar. Talvez o lúdico seja
ainda o melhor remédio.
É ainda o espírito lúdico - diríamos paródico - que preside a concretude das
comparações, com base em traços físicos facilmente caricaturizáveis, sobretudo quando se
286
afirma que o Serra é genérico do Drácula (aparência funérea), o Enéas é genérico do Bin
Laden (a barba escura e comprida). Alíás, a repetição do caracterizador genérico o é
gratuita, até porque sugere que tais políticos não sejam confiáveis, visto não serem
autênticos.
Mas o humor das palavras também pode ser realizado por meio de outros jogos
lingüísticos, como por exemplo, o quiasmo usado pelo cronista para comentar uma notícia
que fora publicada no dia anterior.
E essa notícia: “Marido agride mulher e é morto por cão”. Para que tem um marido
cachorro, nada como ter um cachorro amigo!
Se, no exemplo acima, ocorre o deslocamento que se baseia no critério da
presença dos elementos (marido cachorro e cachorro amigo) ocorre também a
paronomásia, ou seja, duas palavras semelhantes quanto à sonoridade, mas que por
adquirirem no texto significados bem distintos (marido e amigo) traduzem o risível, até
pelo inesperado. Mais curioso é que parece haver, implicitamente, a reversão do provérbio
que afirma ser o cão o melhor amigo do homem: o cão foi, literalmente, o melhor amigo da
mulher. O espírito paródico se anuncia.
Um outro exemplo de jogo sonoro, característico dos trocadilhos, decorre de
supressões fonéticas comuns à nossa pronúncia, como, por exemplo, a não emissão do
r
final, nas formas do infinitivo (FOR > FÔ), e do
n
nos gerúndios ( DENO = DENDO). É
com bases nestes hábitos fonéticos, comuns à nossa fala, que o risível se constrói pela
sexualização dos referentes, visto que o slogan do candidato DENO, implicita o que de fato
ocorre com o povo, quando os políticos resolvem melhorar a cidade, ou seja: Para
melhorar a cidade, se fodendo. Esta nossa leitura torna-se possível, especialmente
porque os verbos usados são impessoais.
287
Em Caraguatatuba tem outro chamado Deno, com o slogan: “Para melhorar a cidade,
se FÔ DENO!”
Confirma-se ainda o senso comum de que a política não é atividade exercida
com seriedade em nosso país, basta ver a enxurrada de slogans políticos, geralmente
maliciosos, enviados a José Simão, e que, de fato, mais parecem proceder de uma antologia
humorística do que de campanhas políticas. É, pois, pertinente a expressão Micareta dos
Picaretas com a qual o cronista, logo no início do texto, designa as eleições e os políticos
nela envolvidos. De fato, pleito com tais candidatos e com tais slogans nos remete à
surrealidade carnavalesca. Com uma diferença: trata-se de um Carnaval extemporâneo (a
micareta).
ainda as perguntas endereçadas ao leitor, as quais por representarem
desafios/adivinhas, cujas respostas serão sabidamente jocosas, criam a ilusão de maior
interatividade e, à semelhança das perguntas retóricas, seduzem o leitor, pois não lhe
despertam a curiosidade, mas o preparam para o prazer do riso.
E sabe porque a Justiça proíbe prender nas vésperas de eleições? É que senão falta
candidato para ser eleito. Rarará!
Convém lembrar que a função de normalização nem sempre está explícita nas
piadas: ela pode ser pressuposta na própria questão. Não é diferente o que ocorre no trecho
dado. A questão E sabe por que a Justiça proíbe prender às vésperas de eleições?
afirma a existência de tal proibição. De qualquer forma, é naquilo que Morin designa como
função disjuntora, que o humor é acionado, vez que tal resposta (É que senão falta
candidato para ser eleito) soluciona humoristicamente a questão lançada.
288
A mesma estratégia - a das adivinhações - fora usada para ironizar os
constantes envolvimentos do cantor Michael Jackson em casos de pedofilia:
“Sabe o que o Tio Michael Jackson falou às crianças no dia de Cosme e Damião?” “Pega
o doce no meu saquinho, pega!”
É inegável tanto para Morin (1971) quanto para Raskin (1985), bem como para
Fernando Almeida (1999) que o gatilho para o riso está na capacidade de evocação que a
palavra saquinho concentra. É a partir dela que o leitor retoma o já-lido e o enriquece com
outras associações. Há, então, uma reversão semântica. Se tio, Cosme e Damião, doce são
palavras que, de imediato, nos reportam ao mundo infantil, a palavra saquinho à qual se
liga um pedido insistente (pega, pega) coloca a questão em outro patamar: passamos do
mundo infantil para o do adulto pervertido, ou do modo bona fide para o non-bona fide .
Interessante é que a crônica é datada de 29 de setembro, dois dias depois da
comemoração de Cosme e Damião, protetores das crianças. Mais interessante ainda é que o
pedido insistente do tio encerra o nome de uma brincadeira de crianças: o pega-pega. A
maldadezinha inerente ao humor é aqui recuperada. Aliás, não é maldadezinha: é
“maldadezona”. De qualquer forma, sem moralismo. Parece-nos.
Como as estratégias lingüísticas usadas na seção Cartilha do Lula são
recorrentes e como analisamos os verbetes nela incluídos (vide p.254 desta tese),
encaminhemo-nos para a outra crônica selecionada.
289
SEGUNDO TEXTO: MANCHETE
RUBINHO URGENTE! A CULPA É DA GALOCHA! (26/10/2004)
Texto em que basicamente o cronista, mais do que inconformado, se mostra
revoltado com a performance de Rubens Barrichello no Prêmio Brasil de Fórmula 1,
ocorrido em São Paulo, no autódromo de Interlagos, no dia 24/10/2004, e para o qual havia
uma grande expectativa de o piloto sagrar-se campeão, até porque largaria na pole position.
O primeiro rebaixamento a que o humor procede já é perceptível na comparação
usada para expressar o pensamento do dia, a saber: Pensamento do dia: torcer pelo
Rubinho é coito interrompido. um nítido contraste entre o que ‘pensamentos do dia’
costumam transmitir e o que, de fato, este encerra: o tom não é filosófico, nem a mensagem
é otimista. Sobrepor um script de cunho sexual (coito interrompido) para metaforizar a
incapacidade de Barrichello em dar prazer aos seus torcedores, representa uma forma crua
de desmerecê-lo, bem de acordo com o espírito paródico e grotesco, já desvelado nos
estudos bakhtinianos, conforme apontamos.
Aliás, é interessante notar que o verbo berrar e a expressão pole position (A
Globo passou 48 horas berrando: “Pole position! pole position”) também estão
impregnadas pelo script sexual, pois sugerem uma mulher (A Globo) histérica em busca de
uma relação satisfatória, ou seja, que o corredor consiga satisfazer as espectativas dela, que
chegue na pole position, ou seja, que o “coito” não seja interrompido. Obviamente, que a
gritaria sintetiza uma alusão às narrações de Galvão Bueno que, ao lado de Barrichello, é
alvo freqüente para as gozações do cronista.
O humor chega à derrisão, quando a tristeza do corredor é explicada pelo fato de
ele ter ficado em terceiro lugar, embora desejasse o....segundo! Bastante pertinente é nos
reportarmos aqui à afirmação de Bergson, segundo a qual as ações repetitivas, porque
mecânicas, são facilmente risíveis. Parece não ser outra a explicação para que JoSimão
290
tenha elegido tanto Galvão Bueno quanto Barrichello como figuras risíveis: um só “berra” e
o outro é sempre vice.
Curioso é nesta crônica a insistência neste mesmo fato por mais dois ou três
parágrafos, o que reforça a nossa leitura inicial: além de ridicularizar o corredor, o cronista
estava expressando a sua raiva pelo insucesso de Barichello. Mais curioso ainda é como a
busca de explicações para o fracasso se configura como um mote do texto, que pode ser
sintetizado na pergunta: de quem é a culpa?
As respostas a esta questão encerram uma série de deslocamentos, de nonsenses,
até de absurdos, que são risíveis justamente porque vão, num crescendo, aumentando o grau
de alogicidade: a culpa é do pneu e da garoa provável, até porque pelo que se sabe,
Barrichello gosta de pista bem molhada), a culpa é da galocha, ou da galocha por cima da
sapatilha (piloto usa galocha???) para chegar ao mais maldoso: Eu acho que a culpa é
daquela peça com capacete que fica entre o volante e o banco. Interessante como o gatilho
subsumido na palavra peça deflagra a mecanização do humano, ápice da repetitividade.
De um culpado (Rubinho) ao outro (Galvão Bueno), a passagem é imediata e a
contaminação Urubueno diz tudo: E o Galvão Urubueno seca tanto que secou até a pista!.
Em inúmeras crônicas, JoSimão refere o azar que Galvão Bueno, como um Midas do
infortúnio, concentra. É este estereótipo que fundamenta a piada-comentário, cuja estrutura
triádica se constrói por meio de uma relação consecutiva e que pode ser assim explicitada:
O Galvão é azarado. O Galvão seca tudo e tanto...que até a pista secou!
Culpado ou não, Galvão é agora o alvo dos deboches do cronista e a
impropriedades dos seus comentários (aliadas ao seu azar) passam a ser a nica: basta que
ele faça uma afirmação positiva sobre qualquer um dos pilotos, para que a situação deste
piore. Isto justifica o comentário final: não agourou o Montoya! Que além de ganhar
ainda deu uma garrafada na cabeça do Rubinho, referindo-se a um incidente no pódio,
quando o piloto espanhol, inadvertidamente, bateu com a garrafa de champanhe na cabeça
de Barrichello.
291
É tal seqüência de “azaração” que justifica a solução final, “ingenuamente”
proposta pelo cronista, e que pode ser assim sintetizada: se os dois primeiros colocados -
Raikkonen e Montaya - fossem afastados da corrida, Barrichello... teria vencido! Dizer o
óbvio, sobretudo na comicização extratextual, é inegavelmente uma forma de desfazer do
objeto do riso. Ademais, como seus adversários não deixaram de participar, e como
Barrichello, portanto, não venceu, vale o consolo final, em que o cronista destaca e “elogia”
a atitude ética do corredor brasileiro: Mas pelo menos é um piloto honesto: não passa
ninguém pra trás!
Cabe frisar que o hipotético afastamento do primeiro colocado - o Montoya
(tivesse) tido uma diarréia tem nuances grotescas, visto que submeter um vencedor às
premências do baixo corpóreo (ter uma diarréia) é uma maneira de dessacralizá-lo.
Ademais, reversão por reversão, ironia por ironia, um piloto que não passa ninguém para
trás pode ser tudo, menos piloto! Literalmente.
Se aentão predominou o humor das ações, a tônica será, a partir do quinto
parágrafo, o humor trocadilhesco, focado no fato de Duda Mendonça, marqueteiro oficial
da então candidata Marta, ter sido surpreendido, apostando em rinhas de galos no Rio de
Janeiro e, em decorrência disso, ter sido preso em flagrante. Se tal contravenção foi
explorada à exaustão pela mídia dita séria, imaginemos a potencialidade disto para o
jornalismo humorístico: José Simão “deitou e rolou”, a começar pela forma como deu a
notícia:
Ereções 2004! PENAlidade máxima: o marqueteiro da Marta foi pego numa briga de galo.
Coitado do Duda. Tava entediado com a briga de perua com urubu e foi pra rinha de galo.
Granjear votos pra Marta. E pegou mal. Ou seja, os galos brigam e a perua paga o pato?
Rarará! E uma amiga minha não gosta de briga de galo, prefere briga de pinto. E se eu
fosse o Duda eu botava os galos pra brigar na careca do Serra. E sabe como chama o
instituto de pesquisa do Duda? GALLUP! (26/10/2004)
292
Destaquemos inicialmente a senha existente entre o cronista e seus leitores e que
o uso da caixa alta confirma (PENAlidade). Dizemos senha porque, segundo analisamos,
toda vez que o cronista calcula que o jogo sonoro (no caso, o gatilho para o riso) corre
algum risco de não ser percebido pelo leitor, ele o destaca graficamente. É exatamente o
que ocorre em mais dois momentos desse texto, conforme veremos adiante.
A expressão PENAlidade máxima, além de encerrar o gatilho que torna a
narrativa disjunta (penalidade = sanção e PENAlidade, porque a sanção é relativa à briga
entre bichos de pena) não só destaca o perigo que os deslizes dos políticos e/ou de seus
correligionários representam, sobretudo em ano eleitoral, mas também, por evocar o pênalti
do script futebolístico, sugere a iminência de uma desvantagem e um prenúncio de derrota
para a candidatura de Marta Suplicy.
De fato, Duda ter sido surpreendido como um contraventor (O marqueteiro da
Marta foi pego numa briga de galo) representa munição certa para José Serra, o adversário
político da prefeita. Interessante como o uso da interjeição coitado, parece refletir como o
cronista ficou penalizado (desculpem-nos a coincidência) com a situação (ou azar?) do
marqueteiro. Mas é a primeira impressão. Ilusória por sinal, visto que o comentário-
explicativo que se segue direciona o texto para a dessacralização alegre, satírica, parodística
(Tava entediado com a briga da perua com urubu e foi pra rinha de galo), visto que todos
os envolvidos são bichos de pena.
Conforme pudemos constatar, associações freqüentes entre homens e animais
são comuns nas crônicas do corpus e parecem refletir uma tendência atávica ao homem e
que a estética do grotesco, com seus constantes rebaixamentos, tão bem desvela. Cumpre
notar que a Fisiognomia, cuja pretensão é extrair das aparências físicas um conhecimento
moral sobre o homem” é um saber antigo cuja origem remonta às constantes analogias entre
homens e animais (Cf. Sodré e Paiva, 2002, p 22).
293
Contudo é curioso que se, por um lado, tal associação atribui ao texto um tom de
fábula, tal fábula não enseja qualquer ensinamento moral: há, pois, no trecho, um duplo
rebaixamento paródico. Marta é a perua, José Serra, o urubu. E a disputa entre eles é tão
pouco envolvente que o próprio marqueteiro da prefeita sentiu necessidade de emoções
mais fortes, que a briga de galos representa. Está montado todo um cenário onde a
animalidade passa a ser a tônica. Aliás, a respeito da tendência que o grotesco possui para a
animalidade, é providencial anotarmos as palavras de Sodré e Paiva (2002:21-2):
É antiqüíssima ( ...) a identificação mítica e figurativa entre o homem e o animal, fazendo-se
presente nas fábulas e em sistemas morais. Muitas vezes, a identificação passa pela referência ao
excremento como metáfora para o rebaixamento frente a valores tidos como excelsos ou para
uma radical ausência de qualidades (consciência moral, sexualidade civilizada, alimentação
regrada, máscaras identitárias, etc), isto é, o grau zero da condição humana. ( ... ) Noutras vezes,
trata-se da analogia pura e simples entre o homem e o animal.
(grifos nossos)
Deflagrado o humor a partir da brincadeira verbal com a palavra PENAlidade, o
cronista emendará uma serie de outras piadas cujos gatilhos nos remetem sempre ao mundo
das aves de pena. D o uso da expressão popular pagar o pato que, de certa forma,
“rebaixa” a seriedade contida na expressão formal penalidade máxima. Na mesma linha, a
palavra granjear - cuja sonoridade lembra granja – reflete como o brincar com as palavras
vai, num crescendo, acentuando o risível da situação.
Interessante como o pular de um galho a outro que o Macaco Simão realiza
(fomos influenciados pela animalidade grotesca inerente ao humor?), pode ser explicado
pela estrutura triádica das piadas, visto que a função interlocutória disjuntória (Morin), que
“fecha” a piada anterior, funciona como a função normalizadora, que abre a piada que se
segue. Tal encadeamento e economia de funções conferem ao texto de José Simão um
movimento ininterrupto que não raramente evoca o torneio característico dos repentistas
nordestinos, cujo fôlego parece ser, por vezes, inesgotável. Exemplifiquemos nossas
afirmações:
1ª Piada
294
Vai haver penalidade máxima no pleito eleitoral (função de normalização),
pois o marqueteiro da Marta foi surpreendido apostando em briga de galo (colocação do
problema, ou função interlocutória de deflagração)
Ele estava entediado com a briga da perua com o urubu e foi para a rinha de galo (solução
cômica, sintetizada pela função interlocutóriaa disjuntória).
2ª Piada
O Duda Mendonça estava entediado com a briga entre a perua e o urubu e foi para a rinha
de galos. (função normalizadora)
Pegou mal ele ir granjear votos para a Marta (obviamente este trecho é marcado pela ironia,
já que o granjear votos implicou em prejuízo para a candidata).
Os galos brigam e a perua que paga o pato? (solução cômica baseada na brincadeira verbal)
Na realidade, o que pudemos constatar é que uma mesma informação serve para
o desencadeamento de várias piadas: E uma amiga minha não gosta de briga de galo,
prefere briga de pinto. É claro para nós que a função de normalização, embora elíptica, é
facilmente resgatável e diz respeito ao fato de Duda Mendonça freqüentar brigas de galos.
É claro também que substituir a expressão briga de galo por briga de pinto sintetiza o
gatilho para a mudança de scripts, instaurando o discurso da malícia (E uma amiga minha
não gosta de briga de galo, prefere briga de pinto), que implicita existir da parte de tal
amiga uma tendência para relacionamento sexual com rapazes bem novos.
Confirmando observações feitas no capítulo 2 (vide p.79), queremos registrar
que, no trecho sob análise, reaparece o que associamos às adivinhas, ou seja, o cronista
lança uma pergunta para que o leitor aguarde a resposta cômica que certamente virá. É o
que ocorre em: E sabe como se chama o instituto de pesquisa do Duda? cuja resposta,
GALLUP!, deflagra o riso, dada a semelhança sonora entre o nome do instituto de pesquisa
mundialmente conhecido (Gallup) e a palavra galo, um dos motes do texto.
Com base em Morin, entendemos agora por que motivo tais “quase-adivinhas”
se nos afiguravam como piadas: elas sintetizam uma narrativa cômica mínima, na qual a
295
função de normalização está pressuposta na pergunta feita, pois, ao se perguntar qual o
nome do instituto de pesquisa do Duda, afirma-se que este possui algum (verdade ou não,
pouco importa). Nessa linha de raciocínio, a pergunta concentra as funções normalizadora e
interlocutória e a resposta, a função disjuntória.
Aproveitando-se ainda do mesmo assunto, o da briga de galos, José Simão não
reitera o senso comum, vigente entre os brasileiros, de que na Bahia tudo é mais liberal
(na Bahia nada é proibido) – e que poderia ser considerado como humor étnico, se
observarmos as divisões propostas por Raskin (1985) como também faz referência a dois
galos de briga famosos nas mais de 30 rinhas baianas: ACM e Bin Laden. Se fazer analogias
entre homens e animais é, como vimos, uma forma de paródia geradora do risível, o
inverso, ou seja, dar nome aos galos, inspirando-se em políticos cuja maior característica
parece ser a capacidade de resistência, é mais do que jocoso. Beira o hilário. A inversão da
inversão?
Neste ponto, o cronista recupera aquilo que consideramos como o tema do texto,
sintetizado na questão: de quem é a culpa? Se a culpa pelo terceiro lugar não foi
diretamente atribuída a Barrichello, mas indireta, absurda e debochadamente à galocha que,
a bem da verdade, piloto nem usa (Rubinho Urgente! A culpa é da galocha!), o culpado
pela situação constrangedora de Duda Mendonça tem, ironicamente, nome certo: o
presidente Jânio Quadros que, nos idos da cada de 60, em “defesa da moral e dos bons
costumes” proibira o jogo de bicho, o uso do biquíni nas praias e lança-perfume nos bailes
carnavalescos.
Mas estranha e maldosa similaridade: galocha e Jânio Quadros não servem
como “des-culpas”: são ultrapassados e anacrônicos. A maldade inerente ao humor fez, até
então e em suma, mais quatro vítimas: Barrichello, Duda Mendonça, Jânio Quadros e a
...galocha! Deslocamento típico do humor.
A seguir, fazendo uso de um raciocínio analógico, que de certa forma sintetiza
todos os deboches feitos a Duda Mendonça e a Jânio Quadros, o cronista sugere que, assim
296
como o marqueteiro ficou prejudicado pela proibição da briga de galo (na realidade, Jânio
proibiu o jogo de bicho), o vice do Serra, cujo nome é Gilberto Kassab, também seja
flagrado cheirando lança-perfume: Marta e Serra ficariam, de novo, empatados.
Traço comum nas crônicas que precederam as eleições foi a apresentação de
slogans enviados por leitores de diversas regiões do país. A hilaridade deles é tamanha que
a designação País da Piada Pronta, presente na abertura de muitas crônicas, se justifica
plenamente. Imbuído do espírito parodístico, que reputamos inerente aos humoristas em
geral, JoSimão também cria slogans e motes para a campanha eleitoral em curso. Tais
produções representam, na verdade, paródias extratextuais, visto que a criação de tais
slogans rebaixa ou a realidade política em geral ou a de um político específico e, não
necessariamente, um texto por este produzido, o que caracterizaria a paródia intertextual,
segundo perspectiva genettiana já vista.
Satirizando, pois, a postura do candidato Serra que, via de regra, só reafirmava a
continuidade dos projetos implantados pela então prefeita e candidata, Marta Suplicy, o
cronista, ao criar seu slogan (“Diga um projeto de Serra e ganhe um chocolate”) está
praticamente afirmando que nenhum chocolate será distribuído. Por quê? Porque Serra ou
o papagaio de pirata, como José Simão em muitas outras crônicas o designa (vide a
manchete da crônica de 1º /09/04, por exemplo) não tem projetos!
Como a analogia requer um certo equilíbrio quanto ao tratamento dado aos
candidatos, um slogan para a candidata Marta também é criado: “Votem em mim porque
com o Serra a gente numKASSAB.” Obviamente, existe no trocadilho numKASSAB uma
alusão às oscilações políticas de Gilberto Kassab, que fora, inclusive, aliado de Paulo
Maluf, quando este fora prefeito. Se, como assevera Raskin, a simples percepção de um
trocadilho nos induz ao riso, não é improvável afirmar que a sátira dirigida à candidata é
mais amena, ou menos maldosa. De fato, enquanto a contribuição do cronista para a
campanha de Serra configura-se como a anticampanha, o slogan de Marta a favorece, até
porque desfaz do adversário.
297
Como é de praxe, no penúltimo parágrafo das crônicas, provavelmente desde
que o presidente Lula foi eleito, José Simão cria verbetes, à guisa de ‘colaboração’, para a
Cartilha do Lula. Geralmente tais verbetes recorrem a uma palavra-chave, relativa a um dos
eventos explorados na crônica do dia. Na realidade, o cronista partindo da semelhança
sonora entre tal palavra–chave e as que constituem os novos verbetes, propõe explicações
inspiradas nos assuntos noticiados.
Como, na crônica em tela, um dos assuntos principais foi o envolvimento de
Duda Mendonça com a briga de galo, palavras que apresentam semelhança sonora com
galo figuram como verbete: daí galicismo e galante, por exemplo. Se a semelhança sonora
determina as escolhas dos verbetes, a brincadeira verbal se completa com explicação
semântica destes. No primeiro, temos o trocadilho chamado por Todorov de contaminação
(gali + cismo = cismo com galo, aposto nele): “Galicismo”: companheiro que tem mania
de apostar em galo. No segundo, o significado da palavra galante até se mantém, mas o
verbete proposto valoriza o local onde a galanteria ocorre: “Galante”: companheiro que
vai paquerar em briga de galo. Que, ironicamente, não é o lugar mais apropriado para
paqueras.
Indiscutivelmente, tal seção se funda no script da parvoíce e da distorção
lingüística, subsumindo estereótipos e preconceitos que, embora integrem a maldade típica
do humor, são necessários à transformação do Outro, no caso o presidente Lula, o autor da
cartilha, em objeto risível. De qualquer forma, a concretude de raciocínio que os verbetes
desvelam, dão a esta seção um tom infantil, reforçado pela presença constante do humor
realizado via brincadeiras e jogos verbais, sabidamente lúdicos. Além do mais, caracterizar
um personagem não pelas suas impropriedades lingüísticas, mas pelo registro de seu
vocabulário ou jargão típicos (companheiro) ainda representa uma forma simples, mas
eficaz, de se construir o humor. No caso, tanto o humor de cunho étnico quanto o político.
298
TERCEIRO TEXTO: MANCHETE
DIA DAS BRUXAS! VOU VOTAR DE VASSOURA! (31/10/2004)
Nesta crônica, José Simão brincará (parece ser esta a melhor palavra) com
informações advindas de três scripts, a saber: 1º) realização do segundo turno para a
prefeitura de São Paulo; ) o fato de tal pleito ter impossibilitado o final de semana
prolongado dos paulistanos, visto que o feriado de Finados caíria na terça-feira seguinte; 3º)
a coincidência entre o dia do pleito e a data comemorativa do Halloween.
Irônico é o uso decorrente do verbo engarrafar (Engarrafou tudo: eleição,
feriadão e Halloween), para anunciar não apenas a concentração de eventos, mas que o
engarrafamento comum às estradas paulistas, em feriados longos, não ocorrera, em virtude
das eleições. Realmente, tirar o paulistano da praia, impedindo-o de descer a serra em um
feriadão só podia significar mesmo que as bruxas estavam soltas!
Aproveitando-se, pois, da data do Halloween, JoSimão debocha do pretenso
nacionalismo que condena a realização de tal festa (coisa de americano), propondo uma
outra, bem brasileira em que todos, à moda do Saci, pulem em uma perna só. Situações
absurdas e alógicas comumente criam o risível, por vezes o hilário, como neste caso.
Talvez a festa do Saci durasse 5 minutos!
Na verdade, a sugestão subsume um deboche ao nacionalismo míope que
valoriza coisas sem importância. A brincadeira verbal que se segue, pode até ser
considerada infame, de mau gosto, razão pela qual, como vimos, muitos estudiosos
desprezam os trocadilhos, mas é inegavelmente criativa: E todos os anos umas sapatas
amigas festejam o Halloween com uma festa chamada Rala-o-Hímen. Rarará!
299
Criar um trocadilho em língua portuguesa (Rala-o-Hímen) que, além de se
aproveitar da semelhança sonora da expressão Halloween, consegue explicitar a relação
sexual existente entre as lésbicas (convictas, já que são virgens), pode não ser elegante, mas
lingüisticamente é um gatilho bem construído. Aliás, o humor em geral e o humor sexual
em especial dificilmente se casam com a elegância.
Se, como vimos, as caricaturizações grotescas do candidato Serra sempre
resvalavam em seres necrófilos, como o urubu, ou hemofílicos como o vampiro, o mote
para que a então prefeita fizesse parte do divertido Halloween
130
a que, neste texto, as
eleições foram associadas, partiu de uma semelhança sonora entre o nome da prefeita Marta
e a personagem Mortícia, da família Addams
131
. Se Marta passa a ser Martícia Addams,
Serra continua a ser o Vampiro Anêmico.
Interessante como a crônica estabelece uma série de diálogos intertextuais com
filmes, dos quais A famíla Addams é o primeiro. Interessante também como a divertida
paródia do Halloween em que as eleições se transformam parece evocar um tempo
primitivo, atávico, de alegria pueril, que, intuitivamente, associamos às festas e feiras
medievais. A Marta votar de vassoura e o Serra ser prefeito da noite de Terror do
Playcenter é pura carnavalização. Deboche lúdico. Fantasia.
Caracterizar o cabelo do Supla, filho roqueiro da então prefeita, como cabelo
“Hora do espanto” (mais uma referência a filme, este, sim de terror) bem como explicar
qual a técnica usada para que os cabelos se lhe arrepiem (Diz que o Supla enfia o dedo na
tomada pra arrepiar cabelo), remete-nos, de imediato, àquelas cenas hilárias, corriqueiras
em desenhos infantis, em que os personagens levam choques e ficam de cabelos,
literalmente, em pé. Ou, por vezes, viram folhas de papel, quando algo como um rolo
compressor os atinge. E as crianças, gostosamente, riem. Nós também. Maldades próprias
do humano. E do humor.
130
A festa do Halloween é comemorada na noite do dia 31 de outubro e representa, tradicionalmente, a vigília
da festa de Todos os Santos.
131
O filme A Família Addams é inspirado nos cartoons de Charles Addams, nos quais a morte era
comicamente tratada.
300
Aliás, em feriadões interrompidos o que nos resta fazer a não ser assistir a
filmes e comer pipoca? Como pipoca se faz, apertando-se uma tecla do microonda, e como
votar também inclui apertar uma tecla da urna eleitoral, a nova associação está feita: E hoje
a gente encara o microonda eleitoral. Já disse que vou apertar duas teclas: Descongelar e
PIPOCA! E em pleno feriadão.
São, portanto, duas as associações que o mot-valise (a contaminação
todoroviana) urnágio eletrônico encerra e que subsumem a engraçada sugestão que o
cronista ao governador Geraldo Alckmim: colocar a urna eleitoral nos pedágios
rodoviários (urnágio) significava uma dupla solução: não permitiria que os paulistanos
aproveitassem os feriados in totum, mas também garantiria os votos tucanos, até porque
havia o temor de que uma debandada dos paulistanos (permite-se justificar o não-
comparecimento às urnas) prejudicaria José Serra, primeiro colocado nas pesquisas.
Ademais, como uma piada leva à outra, e como benesses políticas nunca são gratuitas
embora assim o pareçam, em especial em épocas eleitorais o ágio estaria estipulado:
Aperte Serra (ágio) e passe livre (pretensa benesse).
Ainda dentro do script eleição, José Simão fez duas piadinhas. Uma - mais
jocosa exagera (o que é próprio do humor) a propalada feiúra do candidato, registrada
nas inúmeras descrições grotescas às quais tivemos oportunidade de aludir. Bem, se a feiúra
de Serra é a premissa maior e se uma eleitora o chama de lindo (fato ocorrido no momento
em que José Serra chegou à seção eleitoral onde vota), qual poderia ser a debochada
conclusão do cronista? A eleitora desrespeitou a Lei Seca!
Já a outra piada, no início da crônica, é mais mordaz e, a nosso ver, mais crítica,
especialmente porque traz à tona o que muitos sentimos em relação aos últimos pleitos
eleitorais: um profundo descrédito nos candidatos e na política que aqui se pratica. A
embriaguez parece ser a única solução, grotesca por sinal. (Abaixo a Lei Seca! Quero votar
embriagado! Prefiro ressaca do que remorso!)
301
Curioso como o tratamento dado à candidata Marta é sempre mais ameno. Aliás,
se as comparações, se as descrições cômicas, se as brincadeiras verbais revelam algum
traço de subjetividade – é claro que revelam - temos quase certeza, após a leitura de
dezenas de crônicas, de que o único candidato em quem José Simão jamais votaria seria no
tucano José Serra.
Sob este aspecto, a piada envolvendo a candidata petista nos parece menos
óbvia, se comparada àquela sobre a feiúra de Serra, piada escrachada em sua concretude. A
piada relativa à Marta é uma daquelas narrativas crônicas mínimas, em que o gatilho
aparece no final, obrigando o leitor a rever informações ingenuamente colocadas antes.
Morin fala em narrativas cômicas com articulação regressiva, conforme se na página 267
desta tese, apesar de que, segundo entendemos, tal retrocesso é fundamental à interpretação
do leitor.
Portanto, quando o leitor chega ao comentário final Votando com o inimigo -
paródia intertextual feita, via trocadilho paradigmático, com o título do filme Dormindo
com o inimigo - é que ele entende porque votar no Jardim Europa significa votar com o
inimigo: o eleitorado de Marta é predominantemente da periferia. Aliás, é em virtude desse
movimento retroativo que a avaliação do cronista (Pior é a Marta que vota no Jardim
Europa) se torna clara para o leitor.
Comentadas as eleições à prefeitura paulistana, o cronista se dedica a satirizar a
campanha presidencial americana e a propósito de um outdoor veiculado pelos
republicanos e assinado por Mônica Lewwinsky, antigo affair do presidente democrata, Bill
Clinton, nova brincadeira verbal vem à tona. Chamar a antiga secretária de Clinton de
Chupinsky evoca, maliciosamente, dada a associação com o verbo chupar, a forma sexual
como a secretária Mônica e o presidente se relacionaram sexualmente (felação).
E mais: o efeito bumerangue que o gatilho deflagra faz com que todo o texto do
outdoor passe a ter conotação sexual, especialmente o trecho grifado: “Neste ano eu voto
nos republicanos. Os democratas me deixaram com um gosto ruim na boca. Assinado:
302
Mônica Lewinsky” (Não conseguimos definir se a ingenuidade americana é de menos, ou
se a malícia brasileira é demais).
Como o exagero é também um forte aliado do humor as caricaturas grotescas
bem o revelam é comum, em José Simão, que uma situação absurda sirva de contraponto
para outra, também absurda, como forma de reforço. É o que ocorre em: E avisa pro
Ministério Público que é mais fácil achar o Bin Laden vestido de coroinha do que a grana
do Maluf.
Interessante é também a seção denominada Antitucanês Reloaded, a Missão, em
que José Simão faz campanha contra o tucanês, ou seja, a linguagem politicamente correta
do PSDB, o partido do ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso. Se a Cartilha do Lula é
uma irônica colaboração ao lulês, à linguagem óbvio lulante (cujas características
tivemos oportunidade de comentar), o objetivo da Missão Antitucanês é, como o próprio
nome sugere, um combate à linguagem elegante, fina, eufêmica dos tucanos. Portanto, toda
designação que prima pela rudeza ou pela grosseria, representa uma forma de combater o
tucanês.
É ainda muito comum que os leitores de vários lugares do Brasil colaborem com
o cronista e lhe enviem os mais estranhos nomes, geralmente designativos de
estabelecimentos como bares, forrós, barracas de praia e até de cemitérios. Os nomes são,
por vezes, tão fantasticamente grosseiros ou tão chãos que o próprio cronista os associa ao
estilo mirabolante, surreal, de Dias Gomes, famoso dramaturgo brasileiro. Não é diferente o
que ocorre neste texto em que a casa de forró é chamada CHUPANA IA e uma barraca
de praia é grotescamente nominada Armazém do Zé Peidão.
Como as crônicas de José Simão não são publicadas às segundas-feiras, é
freqüente que as editadas aos domingos recuperem não os fatos veiculados na semana,
mas também as piadas-comentários ou comentários-piadas. Por essa razão não
comentaremos aqui a seção da Cartilha do Lula, cujos verbetes já foram analisados
anteriormente.
303
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encerrada a pesquisa, feitas as análises, temos a impressão de que conseguimos
comprovar as hipóteses que aventáramos, a saber: que há categorias do riso que são
universais e que a construção do risível prevê a repetição de determinados procedimentos
lingüísticos, embora adaptados a diferentes situações comunicativas. Procederemos, pois,
às principais conclusões advindas dos diferentes capítulos e que favoreceram a confirmação
das nossas hipóteses.
No primeiro capítulo, baseados na divisão proposta por Cícero e desenvolvida
por Quintiliano – o humor das palavras (verba) e o humor das coisas (res) no qual se inclui
o das ões elaboramos um quadro que, de certa forma, ajudou-nos a organizar uma série
de pequenas sub-categorias destacadas por Bergson (2001) e por Propp (1946). Na
realidade, este primeiro quadro representou uma tentativa didática de direcionarmos a nossa
pesquisa e de nos localizarmos diante do enigma que a construção do risível se nos
afigurava ser. Esta volta aos saberes antigos também representou uma precaução que
supomos ser necessária a todo pesquisador para que não incorra em conclusões
pretensamente originais.
Queremos apenas esclarecer que quando propusemos a divisão entre humor de
palavras e humor de ação, baseamo-nos não só no fato de que Cícero incluía as anedotas no
humor das coisas, mas também que, nos primeiros contactos com as crônicas do corpus,
intuíramos duas formas distintas de se construir o humor verbal: uma focada no jogo de
palavras, a outra, nas anedotas, ou seja, nas piadas nas quais o cronista transforma as
notícias e cujo intuito é debochar das ações dos políticos e dos colunáveis midiáticos.
Para a assunção destas duas grandes categorias iniciais, uma citação de Attardo
(1994:27) sobre a taxionomia de Cícero foi especialmente inspiradora, porque tendo
304
procedido a algumas análises do corpus, observamos que as subdivisões taxionômicas
ciceronianas mantinham-se atualíssimas:
Mais tarde Cícero reelaborou sua taxionomia, estipulando que o humor referencial (in re) inclui
anedotas (fabella) e caricatura (imitatio). O humor verbal inclui ambigüidade (ambigua),
paronomásia (parvam verbi immutationem LXIII, 256), falsas etimologias (interpretatio
nominis), provérbios, interpretação literal de expressão figurada (ad verbum non ad sententiam
rem accipere), alegoria, metáforas, antífrase e ironia (ex inversione verborum).
132
As nossas hipóteses iniciais pareciam ser bastante pertinentes.
Reler Sant’Anna (2004), no segundo capítulo, foi uma forma de confirmar
nossas impressões de que as crônicas de José Simão podem ser consideradas paródias
extratextuais, visto que as notícias servem de pretexto para que os comentários jocosos se
sucedam e para que o riso seja deflagrado. Aliar à percepção de que um tom alegre e
satírico marca, via de regra, os comentários-piadas nos quais o humor decorre dos
constantes rebaixamentos a que são submetidas as notícias e os seus atores, levou-nos a
Bakhtin e à certeza de que tais crônicas trazem ecos do cômico grotesco. Elas
dessacralizam o sério, carnavalizam a notícia, são marcadas por vezes por uma
primitividade pueril. Em suma: são alegres.
Marcas dessa alegria são, pois, as descrições grotescas, as associações dos atores
das notícias a animais, as designações caricaturescas, quase pueris, hiperbólicas,
engraçadas. As notícias mais parecem fábulas. Nada mais é sério. Aliás, a relação atitude
dessacralizadora/humor não é, como pudemos constatar em Hyers (1974), prerrogativa do
humor ocidental. Budas transformados em sapos, e candidatos a prefeito, em urubus ou
peruas sintetizam, a nosso ver, verdadeiros oxímoros: lá e cá.
132
Cicero’s further elaborates his taxonomy by stipulating that referencial humor (in re) includes anecdotes
(fabella) and caricature (imitatio). Verbal humor includes ambiguity (ambigua), paronomasia (parvam verbi
immutationem LXIII, 256), false etymologies (interpretatio nominis), proverbs, literal interpretation of
figurative expression (ad verbum non ad sententiam rem accipere), allegory, methaphors, and antiphrasis or
irony (ex inversione verborum).
305
Portanto, as conclusões a que chegamos neste segundo capítulo nos permitiram
reafirmar a procedência das nossas hipóteses: a construção do risível se vale de estratégias
recorrentes, atemporais, das quais a paródia (extratextual, no caso), com toda a
dessacralização que ela envolve, é um exemplo. De qualquer forma, até então a questão
estritamente lingüística não havia sido abordada.
Descobrir, pois, a teoria raskaniana significou algo como colocar os pingos nos
is. Levou-nos a entender porque, historicamente, a construção do riso e do risível era
associada ao engano. De fato, o riso tem uma natureza semântica dicotômica. Ele joga com
oposições sicas, tendo, pois, uma estrutura dual, que a própria sobreposição de scripts
desvela.
Ademais, o que é a competência humorística senão a capacidade de o locutor
calcular as pistas necessárias para que o seu leitor/ouvinte mude do modo bona-fide para o
non-bona fide? O que é a competência humorística do leitor/ouvinte senão a capacidade de
apreender o gatilho e perceber o engano a que fora intencionalmente conduzido? Convém
lembrar que estamos nos referindo ao tipo de comicização que Almeida (1999) denominou
extratextual, ou seja, aquela típica do nosso corpus e que privilegia a enunciação.
De qualquer forma, e isso nos parece importante ser comentado, muitas vezes,
entrevíamos nas crônicas a comicização extradiegética, no sentido de que o cronista
funciona como o narrador que desvela, via diálogo entre personagens, as agruras e os
enganos destes. Geralmente tais textos são piadas criadas pelo cronista ou enviadas pelos
leitores.
Essa foi uma das razões pelas quais mantivemos a divisão humor de ações e de
palavras, embora estejamos cientes de que Raskin, na sua teoria, não faz tal distinção e
subsume os dois tipos sob a rubrica de humor lingüístico. De qualquer forma, e isto é
fundamental notar, quase todos os textos analisados por Raskin reportam piadas, ou seja,
306
pequenas narrativas em que, geralmente, o leitor é levado ao riso porque observa o engano
de uma das personagens.
Também com relação aos tipos de humor propostos por Raskin, as análises
evidenciaram a presença constante deles, especialmente do humor sexual na modalidade
implícita, uma vez que um assunto que não tem teor sexual passa a ser tratado como se o
tivesse, justamente pela ambigüidade que o gatilho deflagra. Sob este aspecto uma
sobreposição scriptural bastante usual nas crônicas é aquela que associa futebol e
sexualidade, como tivemos oportunidade de analisar.
Constatamos também que para a construção do humor étnico, especialmente na
modalidade das distorções lingüísticas, o alvo preferido do cronista, além dos artistas e
locutores televisivos, são os políticos, especialmente os mais proeminentes. Não é sem
razão, portanto, que o presidente Lula é um dos que mais inspiram as crônicas de José
Simão, em decorrência, de seus erros gramaticais e das suas famosas obviedades, como por
exemplo, aquela subsumida no discurso proferido (de improviso) no Dia Internacional da
Mulher: Minha mãe é uma mulher que nasceu analfabeta.
Uma outra subdivisão do humor étnico bastante corriqueira nas crônicas diz
respeito ao script da parvoíce, ou seja, aquele que se caracteriza pela mecanização das
ações, ou melhor, pela repetitividade delas. Obviamente o dizer alógico, o dizer
obviedades, o dizer impropriedades poderia ser também aqui considerado Galvão Bueno
que o diga! contudo preferimos incluir neste item não os deboches feitos a Barrichello
mas, principalmente, aqueles comentários que se baseiam em estereótipos étnicos, como
por exemplo: português é burro, argentino é metido, tudo que vem do Paraguai é falso.
Mas é indubitavelmente o humor político que predomina nas crônicas, visto que
o deboche, o denegrir uma autoridade - características deste tipo de humor requerem que
as atitudes dela não tenham sido éticas, corretas (imaginemos, pois, como o campo é fértil).
Acreditamos que seja esta uma das razões para que o aforisma rindo se corrigem os
costumes nos leve a supor uma pretensa superioridade ética do humorista, mas com
307
relações a questões políticas. Não nos parece que tal aforisma possa ser aplicado ao humor
sexual, por exemplo.
Entendido o mecanismo básico do humor, concorde teoria raskaniana,
constatados os diferentes tipos bem como suas intersecções e variações freqüente, por
exemplo que o script das distorções lingüísticas reforce o humor político), passamos à
última parte da nossa pesquisa, ou seja, àquela relativa ao humor das palavras.
Tomar ciência do fascínio que os chistes retóricos exerceram em estudiosos
como Freud e Lacan, entender tais chistes como uma forma evoluída de humor - já que nos
permitem agredir brincando - levou-nos à necessidade de verificar como se realizam
lingüisticamente. Entramos em contacto com várias teorias e de cada uma aprendemos e
apreendemos um pouco. E o que as pesquisas nos revelaram? Que conclusões nos
possibilitaram?
Travar conhecimento, mesmo que indiretamente, via Attardo (1994), com a
teoria de Milner, com a teoria da distância fonêmica de Hausman, com a taxionomia
eclética de Vittoz-Canuto, possibilitou-nos comparações e conclusões que julgamos
importantes. Passamos a assumir que o humor de palavras é aquele que subsume uma
brincadeira verbal cujo gatilho é acionado pelo significante, pelo aspecto sonoro das
palavras. Tornou-se claro para nós porque os autores relacionados neste parágrafo sempre
incidiam na questão da homonímia e, sobretudo, na da paronímia.
Se muito do humor trocadilhesco se faz pela presença de termos semelhantes (a
paronomásia) ou iguais (antanáclase) na cadeia sintagmática, é notória nas crônicas
analisadas a presença do que Todorov chamou, genericamente, de condensação e, de modo
mais específico, de silepse. Como nem toda condensação (e obviamente nem toda silepse) é
trocadilhesca, vale dizer, encerra uma brincadeira verbal calculada, entendemos chamar
este último tipo de trocadilho de paradigmático.
308
Na realidade, aquilo que denominamos de trocadilho paradigmático é, a nosso
ver, essencialmente humorístico, porque paródico. O termo presente na cadeia
paradigmática deve suscitar, jocosamente, o termo-alvo, ou seja, aquele que se quer evocar.
Neste sentido, o termo criado deve conter ou subsumir a pista sonora para que o leitor faça
as inferências necessárias e frua do prazer que tal descoberta lhe proporciona. O trocadilho
paradigmático deve, a nosso ver, ser uma degradação sonora e criativa do termo-alvo.
Talvez seja o reconhecimento do leitor da extrema criatividade inerente a este tipo de
humor que tenha levado Gilles Lipovetsky, citado por Martins (1995), a denominá-lo de
narcísico (vide página 119 desta tese).
Obviamente tal estratégia humorística decorre do oportunismo criativo ou da
criatividade oportuna (a economia psíquica freudiana?) de se criar uma palavra que não
indicie o termo-alvo, mas que o indicie ludicamente, diante de uma dada situação, e esta
competência – parece-nos – é privilégio de poucos.
De qualquer forma uma última questão remanesce: o fato de aceitarmos que a
criatividade do humor de palavras está vinculada à situação enunciativa não contradiz as
nossas conclusões de que, mesmo não dispondo de todas as informações, o leitor é capaz de
perceber alusões contidas em um trocadilho e desvendá-las? Como afirmamos e
acreditamos ter provado (vide p 254-7 desta tese), uma coisa é certa: o leitor pode não
dispor de todas as informações contextuais necessárias e pode, inclusive, não desvelar todas
as alusões evocadas, mas a percepção da brincadeira sonora certamente ocorrerá,
predispondo-o a buscar respostas.
Verificar, ao longo desta pesquisa, que o humor construído por José Simão
retoma a divisão ciceroniana (humor de ações e de palavras) bem como recupera
procedimentos linísticos usados pelos antigos (caricaturas, paronomásia, provérbios
antífrase e ironia, etc), além de constatar que as motivações para o riso parecem ser eternas
e universais significou muito para nós: significou que trilhamos o caminho certo.
309
Quando Fávero (2003:52) destaca algumas características da sátira menipéia
133
,
ela se refere à sabedoria daqueles sátiros antigos, cuja busca da verdade lhes justificava
a opção pelos problemas sóciopolíticos, o gosto pelas cenas de escândalo, pelas condutas
excêntricas, pelos discursos e declarações inoportunas, isto é, por toda espécie de infração à
marcha dos acontecimentos e às normas estabelecidas, incluindo-se também as violações do
discurso.
Se é a busca da verdade ou não o que subjaz às farpas de José Simão, sátiro
moderno, é questão que não logramos desvendar, mas que os assuntos, os interesses e as
transgressões lingüísticas afiguram-se-nos, coincidentemente, os mesmos, é impossível
negar. É o que nos assevera a citação acima. É o que cremos ter conseguido provar.
133
Literariamente (a sátira menipéia) é originária dos escritores da escola cênica que haviam preferido viver
desprezados e escarnecidos para poder ridicularizar e cobrir de desprezo as normas que detestavam.
Assumiam, assim, uma função de palhaço, mas lutavam por um fim elevado....” (Fávero, 2003:52)
310
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