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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM DIREITO
ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO ALEITAMENTO MATERNO: SAÚDE DA
CRIANÇA E LIBERDADE ECONÔMICA
NEWTON JOSÉ DE OLIVEIRA DANTAS
PIRACICABA - SP
2005
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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM DIREITO
ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO ALEITAMENTO MATERNO: SAÚDE DA
CRIANÇA E LIBERDADE ECONÔMICA
NEWTON JOSÉ DE OLIVEIRA DANTAS
Dissertação apresentada ao programa de
Pós-graduação em Direito, como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Mestre em Direito. Área de concentração:
Direitos Fundamentais.
Orientador: Prof. Dr. Dimitri Dimoulis
Piracicaba – SP
2005
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Dantas, Newton José de Oliveira
D192a Aspectos constitucionais do aleitamento
materno: saúde
da criança e liberdade econômica / Newton José
de Oliveira
Dantas. - Piracicaba, 2005.
230 f. ; 30 cm. ; v1, v2 - anexos
Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade Metodista de Piracicaba, 2005.
Bibliografia: f.218-229
Orientador: Prof. Dr. Dimitri Dimoulis
1. Direitos fundamentais. 2.Infância e juventude.
3. Aleitamento materno. 4 Direito à saúde. 5. Direito a
liberdade. I. Autor. II. Título.
CDD
362.7
ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO ALEITAMENTO MATERNO: SAÚDE DA
CRIANÇA E LIBERDADE ECONÔMICA
NEWTON JOSÉ DE OLIVEIRA DANTAS
Trabalho defendido em __________, com nota _____ , em ___ de __________ de
2005, pela Banca Examinadora constituída por:
___________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Dimitri Dimoulis
___________________________________________
Prof. Dr. Paulo Affonso Leme Machado - UNIMEP
___________________________________________
Prof. Dr. Claudius Rothemburg– PUC/SãoPaulo
UNIMEP
Piracicaba - SP
2005
A minha filha Isadora, pela compreensão e pelo
amor a mim dispensados, e a quem eu dedico
todo o meu amor, carinho e admiração.
Agradecimento
Ao mestre, Prof. Dr. Dimitri Dimoulis, orientador por excelência,
cientista por natureza e crítico imbatível, que, não obstante admirável e rara cultura
jurídica, jamais se voltou aos seus alunos com arrogância ou vaidade, fazendo da
humildade os passos de sua carreira.
RESUMO
A NBCAL - Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e
Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (Portaria 2.051/01, do
Ministério da Saúde e Resoluções RDC ANVISA n° 221/02 e RDC ANVISA n°
222/02), visando contribuir para a adequada nutrição dos lactentes e das crianças de
primeira infância, trouxe limitações à liberdade econômica, conquanto regulamentou
e limitou a promoção comercial, e orientou o uso apropriado dos alimentos para esta
faixa etária, trazendo, assim, proteção e incentivo ao aleitamento materno, nos
termos das recomendações da Organização Mundial da Saúde. Tais atos normativos
são claros e objetivos, podendo, apenas, cogitar-se de eventual
inconstitucionalidade material diante da restrição imposta à livre iniciativa. O
presente trabalho sustenta que, mesmo sendo a liberdade econômica direito
fundamental, a sua restrição legislativa é justificada diante da colisão com o direito à
saúde da criança, também direito fundamental. Na sistemática constitucional,
utilizou-se o princípio da proporcionalidade como mediador dos direitos colidentes,
concluindo-se pela adequação e necessidade das restrições e pela
constitucionalidade da Portaria 2.051/01, do Ministério da Saúde e Resoluções RDC
ANVISA n° 221/02 e RDC ANVISA n° 222/02.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Infância e Juventude; Direito à Saúde;
Direito à Liberdade Econômica; Aleitamento Materno; Princípio da
Proporcionalidade; NBCAL; Portaria 2.051/01 do Ministério da Saúde;
Resoluções ANVISA RDC 221/02 e RDC 222/02.
ABSTRACT
NBCAL - Brazilian Rule for the Marketing of Food for Products for Breastfeeding
Babies and Infants, Pacifiers and Nursing Bottles (Administrative Order N° 2.051/01,
by the Ministry of Health and Resolutions RDC ANVISA no. 221/02 and RDC
ANVISA No. 222/02), aiming at contributing for the adequate feeding of
breastfeeding babies and infants, brought limitations to the economic freedom,
although it has regulated and limited commercial promotion, and oriented as for the
proper use of food products for this age group, thereby protecting and stimulating
breastfeeding, in the terms of de recommendations from the World Health
Organization. Such rules are clear objective, and any unconstitutionality may only be
considered in view of the imposed restriction of free initiative. This paper sustains
that, even though economic freedom is a fundamental right, its legal restriction is
justified in view of the collision whit the child’s right to health, also a fundamental
right. In the constitutional system, the principle of proportionality was used as a
mediator of colliding rights, and the conclusion favored the adequacy and need for
restrictions and constitutionality of Administrative Act N° 2.051/01, by the Ministry of
Health and Resolutions RDC ANVISA No. 221/02 and RDC ANVISA No. 222/02.
Keywords: Fundamental Rights; Childhood and Young Age; Right to Health; Right to
Economic Freedom; Breastfeeding; Principle of Proportionality;
NBCAL; Administrative Act 2.051/01 by the Ministry of Health; Resolutions
ANVISA RDC nº 221/02 and RDC nº 222/02.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 10
1. O ALEITAMENTO MATERNO E SEUS CONSECTÁRIOS ................................. 13
2. NORMA BRASILEIRA DE COMERCIALIZAÇAO DE ALIMENTOS PARA
LACTENTES E CRIANÇAS DE PRIMEIRA INFÂNCIA, BICOS, CHUPETAS E
MAMADEIRAS.......................................................................................................... 22
2.1 Origem da NBCAL .............................................................................................. 22
2.2 Apresentação do conteúdo da NBCAL................................................................ 33
2.3 Casos concretos de violação à proteção do aleitamento materno ..................... 43
3. DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS CRIANÇAS. ................................................ 48
3.1 Direitos Fundamentais....................................................................................... 49
3.1.1 Breve histórico ................................................................................................ 50
3.1.2 As diversas dimensões dos direitos fundamentais ......................................... 60
3.1.3 Processo de incorporação de tratados e convenções internacionais e a
emenda constitucional nº 45/04 .............................................................................. 64
3.1.4 Conceito e espécies ........................................................................................ 68
3.1.5 Restrição e configuração legislativas dos direitos fundamentais.................... 79
3.1.6 Direitos fundamentais: necessidade para a solução do conflito entre saúde e
liberdade econômica ............................................................................................... 82
3.2 Doutrina da Proteção Integral.............................................................................. 85
3.2.1 Origem da doutrina da proteção integral e a promoção, proteção e apoio do
aleitamento materno ................................................................................................. 85
3.2.2 Doutrina da proteção integral no Brasil ............................................................89
3.3 Direito à Saúde ................................................................................................. 100
3.3.1 Evolução histórica da saúde no Brasil ........................................................... 101
3.3.2 Classificação do direito à saúde (Teoria do Status) ...................................... 104
3.3.3 Conceito e natureza jurídica da saúde ...........................................................105
3.3.4 Direito à saúde: norma meramente programática ou dever?. ........................112
3.3.5 O dever do particular na promoção, proteção e recuperação da saúde ....... 123
4. A LIBERDADE ECONÔMICA .......................................................................... 127
4.1 Introdução .........................................................................................................127
4.2 A ordem econômica .......................................................................................... 131
4.2.1 Conceito de ordem econômica: Estado Liberalista e Estado
Intervencionista........................................................................................................131
4.2.2 A ordem econômica no Brasil........................................................................ 135
4.2.3 A justiça social e a dignidade humana na ordem econômica ....................... 138
4.2.4 Princípio da livre iniciativa ............................................................................. 145
4.2.5 Princípio da livre concorrência ...................................................................... 154
4.2.6 Princípio da defesa do consumidor ............................................................... 156
5. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA GM 2.051/01 E DAS
RESOLUÇÕES RDC ANVISA Nº 221/02 E RDC ANVISA Nº 222/02 ................... 161
5.1 Princípios e regras ........................................................................................... 161
5.2 Colisão de princípios e sua solução ................................................................ 164
5.3 Análise dos atos normativos ............................................................................ 174
5.3.1 Área de proteção de um direito fundamental .................................................177
5.3.2 Intervenção na área de proteção de um direito fundamental ........................ 179
5.3.3 Justificativa constitucional da intervenção ............................................................ 182
5.3.3.1 Fundamento legal da portaria 2.051/01 e das resoluções RDC ANVISA
221/02 e RDC ANVISA nº 222/02........................................................................... 183
5.3.3.2 Conformidade constitucional da portaria 2.051/01 e das resoluções RDC
ANVISA nº 221/02 e RDC ANVISA nº 222/02 ........................................................ 183
5.3.3.3 Clareza e concretude da portaria nº 2.051/01 e das resoluções RDC ANVISA
nº 221/02 e RDC ANVISA nº 222/02.............................................................................. 189
5.3.3.4 Respeito ao princípio da proporcionalidade................................................ 190
5.3.3.4.1 Adequação .............................................................................................. 191
5.3.3.4.2 Necessidade............................................................................................. 193
5.3.3.4.3 Proporcionalidade em sentido estrito........................................................200
5.4 Conclusão da análise dos atos normativos ...................................................... 203
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 211
REFERÊNCIAS ......................................................................................................215
ANEXOS EM SEPARADO.
10
INTRODUÇÃO
Diante da importância do aleitamento materno, e atentas às
recomendações internacionais e aos direitos fundamentais das crianças, também
incorporados na teoria da proteção integral, foram implementadas políticas públicas
de incentivo à amamentação natural, através da edição da Norma Brasileira de
Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância,
Bicos, Chupetas e Mamadeiras, atualmente consubstanciada na Portaria GM
1
2.051,
de 08 de novembro de 2001, e nas resoluções RDC ANVISA
2
221 e RDC
ANVISA nº 222, ambas de 05 de agosto de 2002.
Estes instrumentos legais, com o objetivo precípuo de manter a prática
ótima do aleitamento materno, limitam a liberdade econômica na medida em que
apenas permitem a propaganda condicionada de certos produtos e proíbem, na
totalidade, a propaganda de outros.
O presente trabalho analisará esses dois direitos através da regra da
proporcionalidade, respondendo-se a vários quesitos (área de proteção de um direito
fundamental; intervenção nesta área; justificativa constitucional da intervenção;
fundamento legal; conformidade constitucional; clareza e concretude; adequação e
necessidade), que determinarão a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da
NBCAL, problema jurídico ainda não enfrentado pelo Poder Judiciário ou pelo
Ministério Público, em sede de inquérito civil.
1
Portaria do Gabinete do Ministro da Saúde. (anexo)
2
Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. (anexo)
11
O capítulo primeiro destina-se a demonstrar a importância do
aleitamento materno no desenvolvimento da criança, evidenciando-o como
integrante do direito à saúde.
No segundo capítulo, será feita uma abordagem da origem, do
conteúdo e do amparo legal e constitucional da NBCAL, demonstrando o seu caráter
de política pública, os seus objetivos, a sua abrangência e as limitações
promocionais que interferem na área de proteção do direito de liberdade econômica.
Foram levantados casos concretos de violação à proteção do
aleitamento materno, e, através dos mesmos, demonstrar-se-á que os inquéritos
civis instaurados, perante várias Promotorias de Justiça, firmaram termo de
ajustamento de conduta, sem, contudo, analisarem o cerne da questão, qual seja, a
colisão de direitos fundamentais, sequer cogitando do princípio da
proporcionalidade.
Ao capítulo terceiro ficará reservada a análise dos direitos
fundamentais das crianças, especificamente o direito à vida saudável, que pode ser
mantida através do aleitamento materno, à luz da teoria da proteção integral,
constitucional e infraconstitucionalmente adotada, iniciando-se o tema, com breve
enfoque dos direitos humanos originados na Declaração da Virgínia e com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sempre procurando fazer uma
análise crítica daquelas disposições com as características dos direitos
fundamentais.
Alocado o direito à saúde da criança na categoria dos direitos
fundamentais, bem delineados no texto constitucional e no Estatuto da Criança e do
Adolescente, será estudado o dever do Estado diante de tal direito, pois, ao contrário
da atual Constituição, que, no seu artigo 196, erigiu a saúde a direito de todos e
12
dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos, e ao acesso universal igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, os textos
constitucionais anteriores apenas tratavam a saúde como forma de medidas
legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade
infantil.
A Ordem Econômica (art. 170, CF) seestudada no capítulo quarto,
no qual o Constituinte atenta para os objetivos fundamentais da República (art. 3°,
CF), bem como adota os fundamentos da soberania, cidadania, dignidade da pessoa
humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político (art.
, CF), para concluir pelo Estado Democrático de Direito.
O último capítulo destina-se, exclusivamente, à analise da dicotomia
entre o direito à saúde e o direito de liberdade econômica, invocando-se os
argumentos da adequação e da necessidade (elementos do princípio da
proporcionalidade), de forma a justificar a intervenção legislativa, ainda que por
políticas públicas que limitam a ordem econômica, priorizando a saúde e
chancelando a constitucionalidade da Portaria n° 2.051, de 08 de novembro de
2001, e das Resoluções RDC ANVISA n° 221 e RDC ANVISA n° 222, ambas de 05
de agosto de 2002.
13
1. O ALEITAMENTO MATERNO E SEUS CONSECTÁRIOS
A International Baby Food Action Network IBFAN, entidade não
governamental, vem desenvolvendo importante papel no cenário brasileiro em prol
do aleitamento materno, participando ativamente no terceiro setor como coadjuvante
nas políticas públicas, mormente naquelas ligadas à área materno-infantil.
Tal atuação despertou interesse diante das funções desenvolvidas
junto à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, de forma preventiva e difusa,
no sentido de assegurar a proteção integral da criança.
Aprofundando-se no tema, descobriu-se a extensão mundial e a
importância da matéria. Mais do que simples ideologia, a prática da alimentação
natural, longe de rmulas infantis e instrumentos que possibilitem a sua introdução,
revelou-se verdadeiro direito fundamental, conquanto ligado à vida saudável da
criança e, por muitas vezes, como garantidor da própria vida. A espécie humana
está geneticamente programada para receber os benefícios da amamentação, por
isto evoluiu e manteve sua existência ao longo dos anos. O aleitamento materno
contribui para a saúde biológica e emocional tanto da mãe quanto do filho.
3
Conforme recomendada pela OMS, em alguns países, a taxa de
prevalência de aleitamento materno, exclusivo até o sexto mês, está em ascensão
no Brasil, embora a taxa de duração mediana de aleitamento materno exclusivo seja
extremamente baixa, apenas vinte e três dias contra 180 dias recomendados pela
OMS.
4
3
GUGLIANI, E.R.J. O aleitamento materno na prática clínica. Jornal de Pediatria, v. 76, supl. 3, p.
238-252, 2000 apud CARVALHO, M. R.; TAMEZ, R. N. Amamentação: bases científicas. Rio de
Janeiro: Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 57.
4
BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria de Política de Saúde da Criança. Prevalência de
aleitamento materno nas capitais brasileiras e no Distrito Federal. Brasília: Ministério da Saúde. 2001
14
Estudos científicos mostram a importância do aleitamento materno para
a saúde da mãe e da criança. Estima-se que a vida de seis milhões de crianças, a
cada ano, poderia ser salva se adotadas as recomendações da OMS/UNICEF no
sentido de manter-se o aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade e
complementado até dois anos ou mais. O processo, segundo a área dica, é de
fácil percepção, que a amamentação natural previne diarréias e infecções
respiratórias agudas.
5
Sabe-se, ademais, que a introdução de líquidos, que não o leite
materno, nos primeiros seis meses de vida da criança, pode interferir negativamente
na absorção de nutrientes e em sua biodisponibilidade, culminando com a
diminuição da quantidade de leite materno ingerido, decorrendo, daí, menor ganho
ponderal e aumento de risco para infecções, diarréias, desidratação e alergias.
6
O leite humano é um alimento completo, resultante da combinação
única de proteínas, lipídios, carboidratos, minerais, vitaminas e células vivas, cujos
benefícios nutricionais, imunológicos, psicológicos e econômicos são bem
reconhecidos e inquestionáveis.
7
Sua composição percentual é, principalmente, de
água (88%), carboidratos (principalmente a lactose 7%), lipídios (principalmente
triglicerídios 3 a 4%), proteínas (principlamente lactalbumina e caseína 1,5%),
íons (sódio, potássio, cloro, cálcio e fosfato), vitaminas e anticorpos (imunoglobinas),
sendo que, durante a lactação, um aumento acentuado do número de
plasmócitos e linfócitos no tecido conjuntivo em torno das unidades secretoras.
apud CARVALHO, M. R.; TAMEZ, R. N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro: Editora
Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 17.
5
VENÂNCIO, Sônia Isoyamaet al. Freqüência e determinantes do aleitamento materno em
municípios do Estado de São Paulo. Revista de Saúde Pública, v. 36, p. 314, 2002.
6
Iden
7
NASCIMENTO, Maria Beatriz Reinert do. Mães saudáveis, bebês saudáveis. Disponível em
<http://www.saudesc.org.br/saude_criança_bebessaudaveis.html>. Acesso em: 26 fev. 2004.
15
Essas células sintetizam imunoglobulinas (IgA), que desempenham papel importante
na defesa imunológica do recém-nascido.
8
A OMS recomenda a introdução de outros alimentos, além do leite
materno, após o sexto mês de vida, embora não haja vantagem alguma para a
criança a introdução de outros alimentos, ao contrário, pode-lhe ser prejudicial. Uma
revisão sistemática
9
desta organização, publicada em 2002, avaliou os efeitos da
saúde, crescimento e desenvolvimento de crianças amamentadas exclusivamente
até os seis meses, comparadas com outras que receberam leite materno exclusivo
apenas até os terceiro e quarto meses, quando, então era introduzida alimentação
complementar. Foram realizados vinte estudos, nove em países em
desenvolvimento e 11 em países desenvolvidos. A conclusão foi de que as crianças
que mamaram exclusivamente até os seis meses adoeceram menos de infecção
intestinal, tiveram menos hospitalização por infecções respiratórias, engatinharam
mais cedo e tiveram maior chance de estarem caminhando aos 12 meses, além de
não apresentarem ficits de crescimento, tanto em países desenvolvidos como em
desenvolvimento.
10
Estudo citado em pesquisa científica, desenvolvida pelo Instituto de
Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, através do Departamento
de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo,
intitulado Freqüência e determinantes do aleitamento materno em municípios do
Estado de São Paulo, apontou que as crianças que não recebiam leite materno
tinham riscos 14,2 vezes maiores de morrer por diarréia, 3,6 vezes maiores de
8
CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 07-08.
9
KRAMER, M. S., KAKUMA, R. Optimal duration of exclusive breastfeeding (Cochrane review). The
Chrocane library. Oxford: Update Software; 2002 apud CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel
N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed., 2005, p.
16.
16
mortalidade por doenças respiratórias e 2,5 vezes maiores por outros tipos de
infecções, comparadas àquelas que recebiam aleitamento materno exclusivo.
11
Pesquisas, no Peru e nas Filipinas, mostraram que a prevalência de
diarréia dobrava quando água ou chá eram oferecidos às crianças menores de seis
meses, quando comparadas àqueles que apenas recebiam o leite materno.
12
Esses dados, considerando as condições sócio-econômicas brasileiras,
ganham maior importância. Basta, para tanto, observar que a pobreza não permite
que as pessoas tenham acesso à rede de água e esgoto canalizados, bem como à
água potável. É justamente com a água contaminada que as mães pobres lavam as
mamadeiras e prepararam as fórmulas infantis para alimentarem os seus filhos que,
sem sistema imunológico adequado diante do desmame materno precoce, contraem
infecções, desenvolvem diarréias crônicas, seguidas de desidratação e chegam a
óbito.
13
Importante, ainda, notar que essas famílias possuem outros filhos e,
para alimentarem a todos, diluem menor quantidade do alimento em em maior
proporção de água, propiciando, mais uma vez, a alimentação inadequada.
A este círculo vicioso denominou-se epidemiologia da desnutrição,
sendo tratado como questão social em trabalho decorrente de tese de doutorado.
14
10
CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 16.
11
VENÂNCIO, Sônia Isoyama. et al. Freqüência e determinantes do aleitamento materno em
municípios do Estado de São Paulo. Revista de Saúde Pública, v. 36, n.3, p. 314,2002.
12
BROWN, K. H., BLACK, R. E. ROMANÂ, G.L., KANASHIRO, H. C. Infant feeding practices and
their relatioship with diarrhea and other diseases in Hauscar (Lima), Peru. Pediatrics, 83:31-40, 1989
e POPKIN, B. M., ADAIR, L AKIN, J. S., BLACK, R., BRISCOE, J. , FLIEGER, W. Breastfeeding and
diarrheal morbity. Pediatrics, 86:874-82, 1990 apud CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N.
Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed., 2005, p.
16.
13
GOLBENBERG, Paulete. Repensando a desnutrição como questão social. 2. ed. São Paulo :
Cortez, 1989, p. 149.
14
Ibid. p. 15-16.
17
No mesmo sentido, afirmou-se que as chuquinhas ou mamadeiras são
meios de contaminação, porque os líquidos ou leites artificiais podem ser preparados
de forma não higiênica, usando água contaminada, diluindo excessivamente o pó,
atrapalhando, dessa forma, a proteção imunológica fornecida pelo leite materno.
Esta contaminação se dá por bactérias porque, com sua forma rosqueada, as
mamadeiras tornam-se muito difíceis de serem higienizadas, principalmente entre o
bico e a garrafa. Pesquisadores no Japão compararam a quantidade de bactérias da
garganta de crianças sadias amamentadas e outras alimentadas com fórmulas.
Detectou-se que 4,3% das crianças amamentadas e 36,0% das alimentadas
artificialmente apresentavam bactérias patogênicas em suas gargantas, com maior
freqüência da bactéria Streptococcus.
15
Da mesma forma, as chupetas são um perigoso meio de infecção pelo
acúmulo de bactérias, podendo levar à diarréia, desidratação e morte de bebês. A
maior parte da produção científica nacional e internacional afirma que a introdução
de chupeta e mamadeiras é a principal causa de desmame precoce, atuando
negativamente na oclusão dentária, nas estruturas moles e duras do sistema
estomatognático, por fim, na saúde e, principalmente, na vida das crianças.
16
Podem, ainda, interferir no aleitamento exclusivo, porque crianças que
fazem uso de mamadeiras e chupetas, geralmente, vão ao peito com menos
freqüência, o que pode interferir na produção de leite, sendo certa a relação entre o
uso de chupetas e mamadeiras e a menor duração do aleitamento materno.
17
A priorização do aleitamento materno ainda é difundida por várias
15
CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 103.
16
Ibid. p.104.
17
VICTORA, C. G., TOMASI, E., OLINTO, M.T.A., BARROS, F.C. Use of pacients and breastfeeding
duration. Lancet, v. 341, p.404-6, 1993 apud CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N.
18
pesquisas, que, em suma, afirmam que o recém-nato necessita de cuidados
especiais, tais como boa higiene, local aquecido e introdução do aleitamento
materno já na sala de parto, preferencialmente. As vantagens para o lactente e para
as mães têm sido objeto de comprovação científica, detectando-se a diminuição do
risco de contrair doenças agudas e crônicas, ainda, com importantes reflexos
psicológicos e imunológicos.
18
Estudos na América Latina demonstraram que, aproximadamente, 55%
das mortes, no primeiro ano, são evitáveis pela amamentação exclusiva nas
crianças de 0-3 meses e pela amamentação parcial durante o resto da infância.
Entre as crianças de 0-3 meses, 66% das mortes o evitáveis através da
amamentação exclusiva, concluindo a pesquisa que o número atual de mortes
evitáveis é de 52.000 para a região.
19
Do ponto de vista fisiológico, o organismo do recém-nascido está
completamente apto para digerir o leite materno e absorver todos os nutrientes
necessários ao seu adequado crescimento e desenvolvimento.
20
Assim, o
aleitamento materno também é apontado como importante fator no desenvolvimento
craniofacial adequado, permitindo ótimo exercício da musculatura orofacial,
estimulando as funções de respiração e deglutição, o que não acontece quando a
mamadeira é utilizada. Isto porque, quando o bebê suga corretamente o seio
Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed., 2005, p.
103.
18
ALTO, Luciane A Monte; SOVIERO, Vera M; ALVES, Urânia; RAMOS, Maria Eliza B. Aleitamento
materno no rescimento e desenvolvimento de recém-nato. Disponível em
<http://www.tatianavieira.odo.br/recen_nato.htm> . Acesso em: 26 fev. 2004, p. 1. No mesmo sentido:
KRAMER, Paulo Floriani. Características do Padrão de Aleitamento Materno em Crianças de 0 a 36
meses de Idade Disponível em < http://www.terravista.pt/meço/5688/artigo%20paulo%20Kramer.htm.
>. Acesso em: 26 fev. 2004, p. 1.
19
BETRAN, A. P. et Al.. Ecological study of effect of breastfeeding on infant mortality in Latin América.
BMJ 2001; 323:303.In: IBFAN Periódico: Atualidades em amamentação, maio de 2003, 29, p. 2,
Editores: Marina Ferreira Rea e Adriano Cattaneo, preparado por The Geneva Infant Feeding Baby
Food Action Network-IBFAN.
20
CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed. 2005, p. 39.
19
materno, ocorre um perfeito vedamento da passagem de ar pela boca, o que o
obriga a realizar a sucção e a deglutição sempre respirando pelo nariz.
21
A mamadeira, por sua vez, favorece a entrada de ar pela boca e força
a respiração bucal, sendo certo que o seu uso ensejará o mau desenvolvimento dos
maxilares gerando maior probabilidade de uso de aparelhos ortodônticos, enquanto
que o aleitamento materno propicia o crescimento harmonioso da face e da
dentição. É certo, ainda, que o uso de mamadeiras induz à introdução de outros
alimentos que possibilitam a má nutrição do bebê, bem como leva ao uso de
chupetas, que pode provocar um desvio no crescimento dos maxilares, provocando
“maloclusões” ou “má oclusão” (mordida aberta anterior).
22
Não bastasse, constatou-
se que a chupeta é mais um marcador de dificuldades na amamentação e causa
verdadeira de desmame precoce.
23
Essas alterações e um grande número de
distúrbios são conseqüências do uso de mamadeiras, chupetas e dos substitutos do
leite materno e quem “respira mal, vive mal”.
24
Aliás, o recém-nascido normal apresenta sucção reflexa como resposta
a qualquer objeto que lhe toque os lábios, apresentando reflexo de sucção desde
a trigésima segunda semana de gestação, o qual é modulado pela formação
reticular do tronco encefálico. Assim, quanto antes o bebê tiver contato com a mãe,
melhores serão os desenvolvimentos dos reflexos motores que garantirão uma
21
ALTO, Luciane A Monte; SOVIERO, Vera M; ALVES, Urânia; RAMOS, Maria Eliza B. Aleitamento
Materno no Crescimento e Desenvolvimento de Recém-nato. Disponível em
<http://www.tatianavieira.odo.br/recen_nato.htm,> . acesso em: 26 fev. 2004, p. 2. No mesmo sentido:
KRAMER, Paulo Floriani. Características do Padrão de Aleitamento Materno em Crianças de 0 a 36
meses de Idade. Disponível em <http://www.terravista.pt/meço/5688/artigo%20paulo%20Kramer.htm.
> Acesso em 26 fev. 2004, p. 1.
22
Ibid. p. 3 .
23
KRAMER, M. S. et al. Pacifier use, early weaning, and cry/fuss behaivor: a randomized controlled
trial. JAMA 2001; 286:322-6 In: IBFAN Periódico: Atualidades em amamentação, maio de 2003, nº 29,
p. 3. Editores: Marina Ferreira Rea e Adriano Cattaneo, preparado por The Geneva Infant Feeding
Baby Food Action Network-IBFAN.
24
CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 89-90.
20
amamentação adequada. Ademais, estudos comportamentais e hormonais
demonstram a importância dos primeiros contados do bebê com a mãe e do toque
da boca da criança com o mamilo e a aréola. Este contato físico é primordial para o
relacionamento mãe e filho. Afirma-se que a e, estimulada pelo contato com o
seu bebê, apresenta alterações neuro-endócrinas positivas, dedicando mais tempo a
ele, sempre de forma carinhosa. na criança, estímulos nas terminações
nervosas periorais e intra-orais, que modulam regiões do tronco encefálico,
aprimorando, dessa forma, o reflexo de sucção e permitindo uma amamentação
quantitativamente melhor, trazendo-lhe, inclusive, efeito analgésico.
25
Relacionou-se o aleitamento materno exclusivo à ausência de
parasitoses, sendo que nenhuma criança em aleitamento materno apresentou este
diagnóstico.
26
Um estudo de duzentos e catorze casos de diarréia em um hospital de
Adis Abela, Etiópia, mostrou que os ovócitos de Cryptosporidium foram encontrados
nas fezes de 7% das crianças, nenhuma amamentada exclusivamente mostrou
evidência desta infecção.
27
O risco da Síndrome de Morte Súbita foi reduzido à
metade nas crianças amamentadas.
28
Por fim, foram apontados os benefícios do aleitamento materno à
qualidade de vida, demonstrando que os adolescentes amamentados, quando
crianças, apresentavam pressão sangüínea mais baixa fator, este, de proteção
para doença cardiovascular. O estudo revela, pois, os efeitos benéficos da
25
CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2ª. ed., 2005, p. 13.
26
COSTA MACEDO, Leda Maria; REY, Luis. Aleitamento e parasitismo intestinal materno-infantil.
Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 33, n. 4, p. 1, 2000, p. 1. Disponível em <
http://www.iqp.com.br/MedHoje7/pages/aleitamento01.htm.> . Acesso em: 26 fev. 2004.
27
ARDRAN, G. M., KEMP, F.H., LIND, J. A. Cinematographic study os breastfeeding. B. J. Radiol.,
31:156-162, 1958 apud CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: ba.ses
científicas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara ; Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 103.
28
KLPS, MC Vea; PD, Turner, DK, Pepler. The role of btreastfeeding in sudden death syndrome.
Journal of Human Lactation 16(1):13-20,2000 In: IBFAN Periódico: Atualidades em amamentação,
21
amamentação em longo prazo.
29
dezembro de 2001, 26, p. 3. Editores: Nancy-Jo Peck e Tessa Martyn, preparado por The Geneva
Infant Feeding Baby Food Action Network-IBFAN.
29
A, Singhal; TJ, Cole; A, Lucas. Early nutrition in preterm infants and later blood pressure: two
cohorts after randomised trials. In: IBFAN Periódico: Atualidades em amamentação, dezembro de
2002, 27/28, p. 4. Editores: Marina Ferreira Rea e Adriano Cattaneo, preparado por The Geneva
Infant Feeding Baby Food Action Network-IBFAN.
22
2 NORMA BRASILEIRA DE COMERCIALIZAÇAO DE ALIMENTOS PARA
LACTENTES E CRIANÇAS DE PRIMEIRA INFÂNCIA, BICOS, CHUPETAS E
MAMADEIRAS
2.1 Origem da NBCAL
A importância do aleitamento materno começou a ser discutida há,
aproximadamente, 32 anos
30
, quando se notou a queda dos seus índices e o
aumento da mortalidade infantil com círculo vicioso de diarréia, desidratação e
desnutrição, mormente nos casos de alimentação com mamadeira em condições
inadequadas. A isto se denominou “síndrome do bebê de mamadeira”.
Esta correlação foi demonstrada pela pediatra Cicely Williams, em
Singapura, em 1939, durante a palestra intitulada Milk and Murder, quando, então,
foram denunciadas mortes infantis, asseverando-se que a “propaganda enganosa
sobre alimentação infantil deveria ser punida como a mais criminosa forma de
perturbação da ordem pública e que estas mortes deveriam ser consideradas como
assassinatos”
31
. A importância do aleitamento materno chegou à ONU quando
Cicely Williams assumiu, em 1948, a diretoria de Saúde Materno Infantil da
Organização Mundial da Saúde.
Na década de 70, a necessidade da amamentação passou a ser
preconizada por outros médicos. Derrick Jellife, do Instituto de Alimentação e
Nutrição da Jamaica, acabou por criar o termo desnutrição comerciogênica, assim
30
SOKOL, Ellen J., Manual del código: guia para la redácion de medidas para la aplicación del
Código Internacional de Comercializaciónde Sucedâneos de la Leche Materna. La Paz: Stiching
ICDC, 1997, p. 5.
31
WILLIANS, Cicely D. Palestra proferida no Clube Rotariano de Singapura, 1939 apud Sokol, Ellen
J., Manual del código: guia para la redácion de Medidas para la aplicación del Código Internacional de
Comercialización de Sucedâneos de la Leche Materna. La Paz: Stiching ICDC, 1997, p. 5.
23
denominada a influência da indústria na saúde infantil, demonstrando os problemas
causados pela alimentação através de mamadeiras
32
. Antes, porém, no final dos
anos 60, Catherine Wennen, pediatra holandesa, durante trabalho desenvolvido na
Nigéria, fez publicar artigo sobre propaganda e outras práticas promocionais das
indústrias de leite
33
.
Em novembro de 1970, em reunião realizada a pedido do Dr. Derrick
Jelliffe, na Colômbia, o Grupo Consultivo sobre Proteínas e Calorias da ONU - PAG
Protein-Calorie Advisory Group - e representantes do UNICEF, da Organização
para Alimentação e Agricultura (FAU), da indústria de alimentos infantis e pediatras,
discutiram as práticas da comercialização de seus produtos e o declínio da
amamentação, culminando em um relatório completo, mas nunca divulgado. Outros
debates se realizaram chegando-se à elaboração da Declaração do PAG 23, em
junho de 1972, revisada em novembro de 1973.
Todavia, tal declaração disciplinou, de forma modesta, apenas dois
itens sobre a comercialização, limitando-se a consignar que qualquer coisa que
pudesse desencorajar a amamentação deveria ser evitada, e que a promoção de
produtos para as mães nos hospitais, logo após o parto, era imprópria
34
. Assim, ao
contrário do que se pretendia, esta Declaração acabou incentivando a introdução de
substitutos do leite materno em países antes não explorados pelas indústrias;
promovia o subsídio do governo para fórmulas infantis e a distribuição gratuita para
32
JELLIFFE, D.B., Commerciogenic malnutrition?, Food Technology, 1971, p. 25. apud Sokol, Ellen
J., Manual Del Código: guia para la redácion de medidas para la aplicación del Código Internacional
de Comercializaciónde Sucedâneos de la Leche Materna. La Paz: Stiching ICDC, 1997, p. 5.
33
The Decline of Breastfeeeding in Nigeria, Tropical and Geographical Medicine, 1969, pp.93/96.
apud Sokol, Ellen J., Manual del código: guia para la redácion de medidas para la aplicación del
Código Internacional de Comercializaciónde Sucedâneos de la Leche Materna. La Paz: Stiching
ICDC, 1997,p. 5
34
Protein-Calorie Advisory Group of the United Nations, Promotion of Special Foods (infant formula
and processed protein foods) for Vulnerable Groups, PAG Statement nº 23, 18 de julho de 1972 apud
Sokol, Ellen J., Manual del digo: guia para la redácion de medidas para la aplicación del Código
24
famílias pobres; e permitia a promoção de produtos, procurando demonstrar ao
consumidor a existência de alimentação, supostamente, nutritiva para crianças.
As tentativas de regulamentar a comercialização dos substitutos do
leite materno continuaram e, em 1972, a IOCU – Internacional Organization of
Consumers Unions, atualmente denominada Consumers Internacional (CI), propôs a
redação de um código de práticas para a publicidade de alimentos infantis à
Comissão do Codex Alimentarius
35
, que suscitou a sua incompetência para o
assunto, apontando a Organização Mundial da Saúde e o UNICEF como
legitimados.
A importância do aleitamento materno ganhou maiores proporções
quando, em 1973, a revista britânica New Internacionalist publicou matéria baseada
em dados dos pediatras David Morley e Ralph Hendrickse, enfatizando a promoção
comercial como responsável pelo declínio da amamentação e aumento da
desnutrição infantil
36
.
Iniciou-se, assim, uma campanha para mudar as práticas de
comercialização das indústrias de substitutos do leite materno. Tomando
conhecimento deste movimento, a War on Want, organização o governamental,
sediada em Londres, fez publicar um relatório demonstrando os métodos
promocionais dos fabricantes de fórmulas infantis e seus efeitos negativos,
mormente na África
37
.
Internacional de Comercialización de Sucedâneos de la Leche Materna. La Paz: Stiching ICDC, 1997.
p. 6.
35
Comissão pertencente às Nações Unidas, que trata dos padrões internacionais de qualidade e
rotulagem de produtos alimentícios.
36
GEACH, H. “The Baby Food Tragedy”. Agosto de 1973, apud Sokol, Ellen J., Manual del código:
guia para la redácion de medidas para la aplicación del Código Internacional de Comercializaciónde
Sucedaneos de la Leche Materna. La Paz: Stiching ICDC, 1997. p. 6.
37
MÜLLER, Mike; ‘War on Want’. The baby killer. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1995.
Anota-se, outrossim, que, embora pesquisados, não foram encontrados dados que mostrassem a
oposição das indústrias de fórmulas infantis aos argumentos expostos contra os seus produtos.
25
A Assembléia Mundial da Saúde reconheceu o declínio da
amamentação, pela primeira vez, em 1974, quando passou a estimular os Estados
Membros a “rever as atividades de promoção de vendas de alimentos infantis e
introduzir medidas corretivas adequadas para a publicidade, incluindo códigos e
legislação quando fosse necessário”
38
. A problemática, então, atingiu importância
mundial, recomendando-se normatização.
Enquanto isto, a imprensa continuava a divulgar relatórios de grupos
independentes, principalmente aqueles voltados para o terceiro mundo, a exemplo
do Arbeits-gruppe Dritte Welt Grupo de Atuação para o Terceiro Mundo, que,
utilizando-se do mesmo relatório publicado pela revista New Internacionalist, voltou-
se contra a indústria suíça Nestlé, através do livro “A Nestlé Mata Bebês”.
39
Inconformada, a empresa propôs ação em face daquele grupo,
buscando a sua responsabilização pela difamação. Foram realizadas três
audiências, sendo a primeira em novembro de 1975, quando se formou um conselho
agregando oito empresas de alimentos infantis, denominado International Council of
Infant Food Industries ICIFI.
40
Este conselho foi responsável pela elaboração do
Código de Ética
41
, que também não fez qualquer restrição ao comércio e à
propaganda de substitutos do leite materno, possibilitando que as práticas
promocionais continuassem, desde que fosse mencionado o aleitamento materno
como primeira opção para a alimentação infantil.
Na Suíça, o interesse da sociedade era grande em relação à ação
promovida pela Nestlé, chegando a ponto de contar com o depoimento de vários
38
Resolução nº 27.43 da Assembléia Mundial da Saúde, Genebra, 1974. (anexo)
39
HELSING, Elisabet; TRAYLOR, Julianne Cartwright. WHO and the Right to Food: Infant Nutrition
Policy as a Test Case In: Food as a human right. Tokyo: The United Nations University, 1984, p. 219-
232.
40
Empresas integrantes do ICIFI: Cow & Gate, Dumex, Meiji, Morinaga, Nestlé, Snow Brand, Wakado
e Wyeth.
26
profissionais da área de saúde, de localidades diversas, muitas vezes feitos às
próprias expensas, contra as táticas promocionais realizadas pela empresa para
convencer as mães a adotarem mamadeira, deixando de praticar o aleitamento
materno
42
.
A sentença foi proferida em junho de 1976 e o Arbeits-gruppe Dritte
Welt foi considerado culpado, pois não conseguiu provar que a Nestlé “matava”
crianças, no sentido penal da palavra, contudo, consignou-se que a empresa deveria
repensar suas práticas publicitárias, nos países em desenvolvimento, para evitar
futuras acusações de conduta imoral e antiética
43
.
Ainda nesse ano, nos Estados Unidos, foi proposta ação em face da
empresa norte-americana, Bristol Meyer, que terminou com acordo extrajudicial
44
.
A trigésima primeira Assembléia Mundial da Saúde recomendou que os
Estados Membros dessem a mais alta prioridade” para a prevenção da nutrição
em bebês e crianças pequenas, apoiando e promovendo o aleitamento, adotando,
inclusive, as ações legislativas e sociais para facilitar a amamentação de mães que
trabalham, bem como regulamentando a venda e a promoção inadequada de
alimentos infantis que podem ser utilizados para substituir o leite materno
45
.
A OMS e o UNICEF, em outubro de 1979, realizaram a Reunião
Conjunta sobre a Alimentação de Lactentes e Crianças Pequenas, da qual
participaram representantes de governos, de organizações não governamentais, de
indústrias e especialistas em nutrição, pediatria, sociologia, saúde pública e
comercialização, debatendo temas como o estímulo e apoio à amamentação
41
ICIFI- International Council of Infant Food Industries. Code of Ethics and Professional Standards for
Advertising, Product Information, Advisory Services for Breastmilk Substitutes, Zurique, 1975.
42
SOKOL, Ellen J., Manual del digo: guia para la redácion de medidas para la aplicación del
Código Internacional de Comercializaciónde Sucedâneos de la Leche Materna. Stiching ICDC, 1997,
p. 07.
43
Ibid. p. 08
27
complementar; educação; treinamento e informação sobre alimentação de lactentes
e crianças pequenas; melhoria da condição social e da saúde da mulher; e
comercialização e distribuição adequada de fórmulas infantis e alimentos para
desmame. Uma das recomendações finais foi a de que deveria haver um código
internacional de comercialização de fórmulas lácteas e outros produtos usados como
substituto do leite materno
46
.
O Código Internacional sugerido foi apresentado à trigésima terceira
Assembléia Mundial da Saúde, em 1980, que lembrou as resoluções AMS 27.43 e
AMS 31.47, reafirmando que:
o aleitamento materno é ideal para o desenvolvimento harmonioso
físico e psicossocial da criança, que é preciso ação urgente dos
governos e do Diretor-Geral para intensificar as atividades de
promoção do aleitamento e o desenvolvimento de ações
relacionadas ao preparo e uso de alimentos de desmame com base
em produtos locais, e que necessidade urgente de revisão pelos
países das atividades de promoção de vendas de alimentos para
bebês e para introduzir medidas corretivas apropriadas, incluindo
códigos de publicidade e legislação, bem como medidas adequadas
de apoio social para as mães que trabalham fora de casa durante o
período de lactação
47
,
por fim, endossou a declaração e recomendações feitas pela Reunião Conjunta da
OMS/UNICEF, no sentido de elaborar código internacional de “mercadização” de
substitutos do leite materno, e solicitou ao Diretor-Geral da Assembléia que fosse
submetida à Diretoria Executiva, a versão do código, então apresentada, para as
considerações necessárias e, após, fosse encaminhada à trigésima quarta
Assembléia Mundial de Saúde para aprovação e implementação como regulamento
44
Ibid p. 07
45
Resolução 31.47 da Assembléia Mundial da Saúde, Genebra, 1978 (anexo)
46
OMS/UNICEF, Reunião Conjunta OMS/UNICEF sobre a Alimentação de Lactentes e Crianças
Pequenas: Declaração e Recomendações, Genebra, 1979, p. 29.
47
Resolução 33.32 da Assembléia Mundial da Saúde 33.32.(anexo)
28
ou recomendação, nos termos dos artigos 21, 22 e 23 da Constituição da
Organização Mundial da Saúde, e não como convenção
48
.
Submetido à votação, o Código Internacional de Mercadização de
Substitutos do Leite Materno
49
foi adotado em 20 de maio de 1981, pela Assembléia
Mundial da Saúde, na forma de recomendação
50
, que concitou os Estados Membros
a darem total e unânime apoio à implementação das disposições daquele código,
como expressão da vontade coletiva dos membros da Organização Mundial da
Saúde, e a transformarem-no em legislação, regulamento ou outra medida nacional
adequada
51
.
Outras resoluções da Assembléia Mundial da Saúde seguiram-se,
sempre instando os Estados Membros a implementarem, na forma antes
mencionada, o código de proteção ao aleitamento materno, não raras vezes
esclarecendo terminologias e o âmbito de abrangência das recomendações da OMS
e UNICEF, como se verifica das resoluções AMS 35.26 (1982), AMS 37.30 (1984),
AMS 39.28 (1986), AMS 41.11 (1988), AMS 43.3 (1990), AMS 45.34 (1992), AMS
47.5 (1994), AMS 49.15 (1996), AMS 54.2 (1998), AMS 55.25 (2002) e, a mais
recente, AMS 58.32 (2004).
Posteriormente, em agosto de 1990, a Declaração de Innocenti
52
reconheceu que a amamentação é o meio de nutrição ideal para o bebê,
48
SOKOL, Ellen J., Manual del código: guia para la redácion de medidas para la aplicación del
Código Internacional de Comercializaciónde Sucedâneos de la Leche Materna. La Paz: Stiching
ICDC, 1997, p. 11-15.
49
“Mercadizar significa promover a venda de um produto no mercado em condições competitivas,
adequadas e atraentes para o consumidor. Igual a merchandising”. Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa: Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 1897. Ainda assim,
terminologia original utilizada pela Assembléia Mundial de Saúde, daí o nome do Código Internacional
de Mercadização, correspondente, outrossim, à terminologia “comercialização”, mais usual.
50
Nos termos do art. 23 da Constituição da Organização Mundial da Saúde (anexo)
51
Resolução 34.22 da Assembléia Mundial da Saúde, Genebra, 1981. (anexo)
52
A Declaração de Innocenti, Florença/Itália, 1990, foi elaborada e adotada pelos participantes da
reunião de formuladores de políticas da OMS/UNICEF sobre “A amamentação nos Anos 90: Uma
Iniciativa Global”, patrocinada pela USAID Unidet States Agency for International Development e
pela SIDA – Swedish Internacional Development Authority
29
descrevendo os seus benefícios. É um compromisso incisivo que fixou metas para
os governos implementarem o Código Internacional de Comercialização de
Substitutos do Leite Materno, assumido pelos Estados representados no Encontro
Mundial de pula pela Criança
53
, realizada em setembro do mesmo ano, em Nova
Iorque, sendo, depois, também acolhida pela quadragésima quinta Assembléia
Mundial da Saúde
54
e, também, pela Convenção dos Direitos da Criança, em 1990.
O UNICEF endossou essa Declaração em maio de 1991, através da
Resolução 1991/22 do seu Conselho Executivo e, em seguida, deu início ao
programa IHAC Iniciativa Hospital Amigo da Criança, instituindo a aplicação de
“Dez Passos para o êxito da Amamentação” em hospitais do mundo
55
.
Diante desse contexto mundial, o Brasil, atento ao disposto no art. 11.1
do Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno
56
,
passou a desenvolver medidas visando garantir o direito à vida e ao
desenvolvimento físico e mental adequado da criança, através da amamentação.
53
Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento das Crianças nos
anos 90 e Plano de Ação para Implementação. Compromisso assumido por 71 presidentes e chefes
de Estado, além de representantes de 80 países durante o Encontro Mundial de Cúpula pela Criança,
realizado nos dias 28 e 29 de setembro de 1990, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque,
através do qual os líderes mundiais se comprometeram a melhorar a saúde de crianças e mães,
combater a desnutrição e o analfabetismo e erradicar as doenças que vêm matando milhões de
crianças a cada ano.
54
AMS 45.34 (1992), item 2. “INSTA aos Estados Membros:
(1) que dêem plena expressão no plano nacional para os objetivos operacionais contidos na
Declaração de Innocenti da seguinte forma:
(a).........................................................................................................................................................
(b)..............................................................................................................................................................
(c) agindo para efetivar os princípios e o objetivo do Código Internacional de Mercadização de
Substitutos do Leite Materno e resoluções subseqüentes relevantes da Assembléia Mundial da Saúde
na sua totalidade;
(d) ..........................................................................................................................................................
55
Projeto apresentado durante reunião da Associação Internacional de Pediatria em Ancara, Turquia,
em junho de 1991.
56
“Os governos devem tomar medidas para implementar os princípios e o objetivo deste Código,
conforme seja adequado à sua estrutura social e legislativa, adotando até legislação ou regulamentos
nacionais, ou outras medidas pertinentes. Para este fim, quando necessário, os governos devem
solicitar a cooperação da OMS, do UNICEF e de outras agências das Nações Unidas. As políticas e
medidas nacionais, incluindo leis e regulamentos, que forem adotadas para implementar os princípios
30
Segundo recente artigo publicado na revista IBFAN International
Report/ Cases Studies, sobre o tema Using international tools to stop corporated
malpractice does it work? Checks and balances in the global ecomomy”, intitulado
de Brazil building ever stronger regulations
57
, em 1979, antes da Assembléia
Mundial de Saúde adotar o Código Internacional (1981), como antes mencionado, o
Governo brasileiro iniciou uma discussão sobre o tema com o apoio da Organização
Pan-americana de Saúde e UNICEF, formando, em 1981, um corpo técnico nacional
para estudar a forma de adoção do Código no sistema jurídico brasileiro. Neste
mesmo ano, foram apresentadas duas propostas, uma para proibir a propaganda de
fórmulas infantis no rádio e na televisão, e a segunda para regulamentar a
apresentação, promoção e propaganda dos alimentos substitutivos do leite materno.
Mas tais medidas não foram aprovadas pelo Ministério da Saúde.
Os trabalhos foram reiniciados em 1987, após efetivo desempenho de
uma rede não governamental (IBFAN – International Baby Food Action Network) que
mapeou, em 1985, as infrações cometidas pelas indústrias em relação ao Código
Internacional no Brasil.
Formou-se, então, uma comissão de estudos para implementação
daquele Código, ligada ao departamento de alimentos e nutrição do Ministério da
Saúde, composta por representantes do governo (Ministério da Saúde e da
Agricultura), da sociedade civil (inclusive entidades não governamentais), das
indústrias, da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos, da Sociedade de
Pediatria Brasileira, da Federação Brasileira de Nutrição, da Associação Brasileira
e o objetivo deste Código, devem ser amplamente divulgados e devem se aplicar da mesma forma a
todos os envolvidos na produção e mercadização de produtos abrangidos por este Código.”
57
BRADY, Mike; BRADY, Sonia de Oliveira. “Brazil building ever stronger regulations”. In: IBFAN
International Report/ Cases Studies - Using international tools to stop corporated malpractice does
it work? Checks and balances in the global ecomomy”, Cambridge: Baby Milk Action, jan/2004, p.26.
31
de Saúde Pública, da Confederação Nacional do Comércio, do Conselho Nacional
de Defesa do Consumidor, do UNICEF e da própria IBFAN.
Um ano mais tarde, o Conselho Nacional de Saúde do Ministério da
Saúde, em 20 de dezembro de 1988, aprovou as Normas de Comercialização de
Alimentos para Lactentes.
A Resolução CNS (Conselho Nacional de Saúde) 05, de 2O de
dezembro de 1988
58
, portanto, foi o primeiro instrumento legal para efetivação das
recomendações do Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite
Materno.
Em 12 de outubro de 1992, após novos debates com aqueles mesmos
seguimentos governamentais e não governamentais, essa norma foi revisada,
culminando na edição da Resolução CNS nº 31/92 do Ministro da Saúde, que
implementou a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes -
NBCAL.
Atualmente, as recomendações da OMS/UNICEF estão incorporadas
na Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes, Crianças de
Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras, formada pelo conjunto da Portaria
GM
59
2.051, de 08 de novembro de 2001, e das resoluções RDC ANVISA
60
221 e
RDC ANVISA 222, ambas de 05 de agosto de 2002, que revogou a Resolução
CNS 31/92.
Paralelamente aos debates sobre as recomendações e forma de
implementação do Código Internacional, O Ministério da Saúde, em 1981, instituiu o
PNIAM - Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, e, desde 1998,
tem se voltado para programas de promoção, proteção e apoio ao aleitamento
58
“Normas para Comercialização de Alimentos para Lactentes” (anexo)
59
Portaria do Gabinete do Ministro da Saúde. (anexo)
32
materno para reduzir a desnutrição, a mortalidade infantil e melhorar a qualidade de
vida das crianças através do aumento dos índices de amamentação.
Por fim, de se frisar que, em 08 de julho de 1992, por iniciativa do
então deputado federal, Jo Maria Eymael, foi apresentado o Projeto de Lei
3059/1992, cuja ementa dispunha sobre a obrigatoriedade de uso de tarja com
expressão que ressalte a importância do aleitamento materno nas embalagens e
propagandas dos produtos utilizados no aleitamento artificial.
Na justificativa do referido projeto, foi argumentado o “abuso das
propagandas, que levaram milhões de mães brasileiras a abandonarem o
aleitamento natural”, atrelando-se o aleitamento artificial a distorções sociais
profundas, resultando em alto índice de mortalidade infantil no Brasil. Chamou-se,
ademais, a atenção para a necessidade de suprir-se a lacuna legislativa na área de
saúde pública, em particular a saúde infantil, seguindo-se, para tanto, as orientações
da OMS.
61
Durante a sua tramitação, de acordo com o procedimento legislativo
constitucional, o Projeto de Lei nº 3059/92 sofreu emenda no Senado Federal, em 18
de março de 1996, para excluir a expressão “propaganda”, porque este termo, no
contexto do artigo, estava em dissonância com a Resolução 31/92 do Mistério da
Saúde, antes mencionada, e com as determinações da Assembléia Mundial de
Saúde, prevalecendo, apenas, a necessidade de inscrição de tarja advertindo a
importância do aleitamento materno nas embalagens dos produtos utilizados no
aleitamento artificial.
60
Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. (anexo)
61
Projeto de lei nº 3059/92. Diário do Congresso Nacional (Seção I), 26 de junho de 1993, p. 13619.
33
Aprovada a emenda, o mencionado Projeto de Lei encontra-se, desde
11 de maio de 2000, pronto para a ordem do dia e, até 09 de fevereiro de 2005, não
foi colocado em pauta.
Embora louvável a iniciativa do Deputado da bancada do PDC/SP em
prol da proteção da saúde materno-infantil, é de se consignar que o projeto
apresentado não atende às recomendações da OMS/UNICEF, sendo por demais
sucinto e desprovido de abrangência e técnica necessárias, tanto que procura
regulamentar a matéria em apenas um único artigo.
62
Basta superficial exame dos
atuais atos que normatizam a comercialização de alimentos para lactentes e
crianças de primeira infância, bicos, chupetas e mamadeiras (NBCAL) e as
orientações da Organização Mundial de Saúde, para se ter noção de eventual
ineficácia do projeto comentado, caso aprovado e promulgado pelo Congresso
Nacional.
2.2 Apresentação do conteúdo da NBCAL
No Brasil, Estado Membro da 34ª Assembléia Mundial de Saúde, a
proteção ao aleitamento materno, como dito no item anterior, está incorporada na
Portaria 2.051/01, do Ministério da Saúde, e nas Resoluções 221/02 e 222/02, da
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a quem coube, por sua vez, a
fiscalização da rotulagem e dos meios de promoção dos produtos abrangidos pela
62
Redação final do Projeto de Lei nº 3059/92:
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º. As embalagens e propagandas de produtos utilizados no aleitamento artificial
devem estampar tarja com expressão que ressalte a importância do aleitamento materno.
34
Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de
Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras - NBCAL.
A Constituição Federal atribuiu aos Ministros de Estado a competência
para exercerem a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da
Administração Federal, na sua respectiva área (artigo 87, parágrafo único, inciso I).
A organização dos ministérios está prevista na Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, e
no Decreto n° 4.118, de 07 de fevereiro de 2002.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária ANVISA é autarquia
criada pela Lei n° 9.782, de 26 de janeiro de 1999, com regimento interno aprovado
pelo Decreto n° 3.029, de 16 de abril de 1999, desempenhando a função de agência
reguladora, independente administrativamente, com responsabilidade centralizada
em uma Diretoria Colegiada composta por cinco membros. No quadro da
Administração Pública, localiza-se na denominada Administração Indireta, vinculada
ao Ministério da Saúde através de contrato de gestão.
Sua origem constitucional repousa nos artigos 197 e 198, caput, que
criaram o Sistema Único de Saúde (SUS), integrando as ões e serviços de
saúde, cabendo ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle.
A execução destas ações e serviços integrados em uma rede
regionalizada e hierarquizada deve ser efetivada, diretamente, pelo Poder Público
ou, então, por terceiros, admitindo-se, inclusive, pessoas físicas ou jurídicas de
direito privado.
Ao SUS foram repassadas, entre outras, a competência para controlar
e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde”,
“executar as ações de vigilância sanitária”, além de fiscalizar e inspecionar
35
alimentos e bebidas, conforme disposto no artigo 200, incisos I, II e VI, da
Constituição Federal (grifo nosso).
A lei n° 8.080/90, de 19 de setembro de 1990, regulou o Sistema Único
de Saúde repetindo essas atribuições constitucionais e afirmando a sua
competência para a vigilância nutricional e orientação alimentar.
Ao conjunto de ações definidas nos artigos 6° e 15 a 18 da Lei n°
8.080/90 deu-se o nome de Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (art. 1° da
Lei n° 9.782/99)
63
, ficando a ANVISA responsável em assegurá-lo mediante
atividades de regulamentação, controle e fiscalização de produtos e serviços que
envolvam risco à saúde pública, sempre com finalidade institucional de proteger a
saúde da população, competindo-lhe, ainda, disciplinar sobre a embalagem dos
alimentos e bebidas, conforme artigos 6°e 8°da lei que a criou
64
.
A lei n° 9.782/99, nesses termos, reforça a competência da União para
definir a política nacional e o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, e para
normatizar, controlar e fiscalizar produtos de interesse para a saúde, cujas
atribuições serão do Ministério da Saúde, no tocante à formulação daquela política e
das diretrizes gerais do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e, da ANVISA, no
63
Lei n° 9.782/99. Art. 1º. O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária compreende o conjunto de
ações definido pelo § 1º do art. e pelos arts. 15 a 18 da Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990,
executado por instituições da Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, que exerçam atividades de regulação, normatização, controle e
fiscalização na área de vigilância sanitária.”
64
Lei n° 9.782/99. “Art. 6°. A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde
da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos
e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e
das tecnologias a eles relacionadas, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras.”
“Art. 8º. Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar
os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:
I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e
tecnologias;
II - alimentos, inclusive bebidas, águas envasadas, seus insumos, suas embalagens, aditivos
alimentares, limites de contaminantes orgânicos, resíduos de agrotóxicos e de medicamentos
veterinários;”
36
que se refere à normatização, ao controle e à fiscalização dos produtos de interesse
para saúde.
65
No âmbito da sua competência, o Ministro de Estado da Saúde, à
época, Barjas Negri, editou a Portaria 2.051, de 08 de novembro de 2001,
estabelecendo os novos critérios da Norma Brasileira de Comercialização de
Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e
Mamadeiras, conforme anexo que a acompanha, com diretrizes gerais, entre elas a
proibição de promoção comercial ou promoção condicionada a certas advertências,
assim como a necessidade de rotulagens específicas para cada grupo de produto
abrangido pela Norma.
O artigo 5° do Anexo vinculado na Portaria n° 2.051/01 remete as
condições da promoção comercial e a rotulagem dos produtos à regulamentação
específica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, consubstanciada nas
Resoluções n° 221 e 222, de 05 de agosto de 2002, da sua Diretoria Colegiada.
Compete, ainda, nos termos do artigo 14 do referido Anexo, aos órgãos
do Sistema Único de Saúde, no qual se inclui a ANVISA, sob orientação nacional do
Ministério da Saúde, a divulgação, aplicação e vigilância do cumprimento da NBCAL.
A autorização legal para a edição das medidas consolidadas na
NBCAL, dessa forma, fica esclarecida e determinada na Constituição Federal, que
criou o Sistema Único de Saúde; na Lei n° 8.080/90, que o regulamentou, e na Lei
9.782/99, que definiu o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e criou a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária. As resoluções da ANVISA (n° 221 e 222) ainda
foram editadas por expressa determinação de ato normativo do Ministro da Saúde
(Portaria n° 2.051/01), a quem compete orientação, coordenação e supervisão dos
65
Art. 2° da Lei 9.872/99.
37
órgãos e entidades da administração federal na área de saúde, conforme disposto
no artigo 87 da Constituição Federal.
Dessa forma, a NBCAL revela a atuação do Estado na prática de
políticas públicas amparadas na Constituição Federal e nas legislações de saúde, e
também em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente e digo de
Defesa do Consumidor, portanto, de caráter cogente. Seu objetivo é contribuir para a
adequada nutrição dos lactentes e das crianças de primeira infância, porquanto
regulamenta a promoção comercial e orienta o uso apropriado dos alimentos para
esta faixa etária, trazendo, mais proteção e incentivo ao aleitamento materno, nos
termos das recomendações da OMS.
As Resoluções da ANVISA voltam-se para as infrações de promoção
comercial e rotulagem dos produtos, enquanto a Portaria do Ministério da Saúde
centra-se em aspectos gerais, proibitivos e orientadores, destinados às pessoas que
atuam na área de saúde e nos setores de industrialização e comercialização, dos
produtos, fabricados ou não no país, assim considerados: fórmulas infantis para
lactentes e fórmulas infantis de segmentos para lactentes; rmulas infantis de
segmento para crianças de primeira infância; leites fluidos, leites em pó, leites
modificados e similares de origem vegetal; alimentos de transição e alimentos à
base de cereais indicados para lactentes e/ou crianças de primeira infância, bem
como outros alimentos ou bebidas, à base de leite ou não, quando comercializados
ou de outra forma apresentados como apropriados para alimentação de lactentes e
de crianças de primeira infância; fórmulas de nutrientes apresentadas e/ou indicadas
como apropriadas para alimentação de lactentes e de criança de primeira infância;
fórmulas de nutrientes apresentadas e/ou indicadas para recém-nascido de alto risco
e, por fim, mamadeiras, bicos, chupetas e protetores de mamilo.
38
Neste diapasão, deve-se atentar para as regras de promoção comercial
e de produção de material educativo, entendido como tal o material escrito ou áudio-
visual destinado ao público em geral (folhetos, livros, artigos em periódico leigo, fitas
cassete, fitas de vídeo, internet ou qualquer outra forma que vise orientar sobre a
adequada utilização de produtos destinados a lactentes e a crianças de primeira
infância), bem como de material técnico-científico (elaborado com informações
técnico-científicas comprovadas sobre produtos ou relacionadas ao domínio de
conhecimento da nutrição e da pediatria, destinado a profissionais e pessoal da
saúde).
Relativamente à possibilidade de promoção comercial, a NBCAL divide
os produtos por ela abrangidos em dois grupos. O primeiro, que comporta as
fórmulas infantis e de segmento para lactentes, as fórmulas de nutrientes
apresentadas e/ou indicadas para recém-nascido de alto risco e as mamadeiras,
bicos, chupetas e protetor de mamilo, e que jamais pode ser objeto de promoção
comercial em quaisquer meios de comunicação, inclusive no que diz respeito às
estratégias promocionais para induzir venda ao consumidor no varejo, como
exposições especiais, cupons de descontos ou preço abaixo do custo, prêmios,
brindes, vendas vinculadas a produtos, ainda que não cobertos pela Norma, como
sói acontecer em farmácias, supermercados e lojas de departamentos.
A segunda categoria de produtos admite a promoção comercial, mas
se sujeita à regulamentação específica, publicada pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Resolução RDC 222/02). É o caso das fórmulas infantis de
segmento para crianças de primeira infância, leites fluidos, leites em pó, leites
modificados e similares de origem vegetal; alimentos de transição e alimentos à
base de cereais indicados para lactentes e/ou crianças de primeira infância, bem
39
como outros alimentos ou bebidas, à base de leite ou não, quando comercializados
ou de outra forma apresentados como apropriados para alimentação de lactentes e
de crianças de primeira infância.
Na promoção comercial dos produtos que a admitem devem constar as
advertências: “O Ministério da Saúde adverte: O aleitamento materno evita infecções
e alergias e é recomendado até os dois anos de idade ou mais.” e “O Ministério da
Saúde adverte: Após os seis meses de idade continue amamentando seu filho e
ofereça novos alimentos.”, conforme o produto promovido, nos termos do item 4.2.1
e 4.2.2 da RDC 222/02.
As embalagens e rótulos dos produtos seguem específicos requisitos,
trazendo advertências e limitações de ilustração, ou seja, apresentação visual do
produto
66
.
66
Resolução – RDC 221/02, item 5.1.4. “Os rótulos de chupeta, bico e mamadeira devem exibir no
painel principal, ou nos demais painéis, em moldura, de forma legível, de fácil visualização, em cores
contrastantes e em caracteres idênticos, em corpo, à designação de venda do produto, além de
atender à legislação específica, a seguinte advertência:
‘O Ministério da Saúde adverte:
- A criança que mama no peito não necessita de mamadeira, bico ou chupeta.
- O uso de mamadeira, bico ou chupeta prejudica a amamentação e seu uso prolongado,
prejudica a dentição e a fala da criança’
Item 5.1.5 Os rótulos de protetores de mamilo devem exibir no painel principal, ou nos demais
painéis, em moldura, de forma legível, de fácil visualização, em cores contrastantes e em caracteres
idênticos, em corpo, à designação de venda do produto, além de atender à legislação específica, a
seguinte advertência:
‘O Ministério da Saúde adverte:
- O uso de protetor de mamilo prejudica a amamentação’.
Item 5.1.6 Além do conteúdo indicado no item 5.1.1, o rótulo de chupeta, bico, mamadeira ou protetor
de mamilo pode conter outras informações, estando, entretanto, vedado incluir:
(a) Ilustrações, fotos ou imagens de crianças;
(b) Quaisquer figuras, ilustrações ou personagens infantis que se assemelhem a lactentes e
crianças de primeira infância, humanos ou não, que estejam utilizando, ou não, mamadeiras,
bicos e chupetas;
(c) Frases ou expressões que possam pôr em dúvida a capacidade das mães de amamentar
seus filhos ou sugiram semelhança do produto com a mama ou mamilo;
(d) Expressões ou denominações que identifiquem o produto como apropriado para uso infantil,
tais como a palavra baby’ ou similares, exceto quando utilizadas como marca registrada da
empresa ou do produto;
(e) Informações que induzam o uso do produto baseado em falso conceito de vantagem ou
segurança;
(f) A promoção do produto ou de outros produtos de que trata este Regulamento, pertencentes
ao fornecedor ou outros fornecedores.
40
Os materiais educativo e técnico-científico devem conter informações
claras sobre os benefícios e a superioridade da amamentação em relação a outras
formas de alimentação, orientação sobre alimentação adequada da gestante e da
nutriz, efeitos negativos do uso das mamadeiras, dos bicos e das chupetas e
implicações econômicas decorrentes da opção pelos alimentos utilizados em
detrimento do leite materno ou humano, além dos prejuízos causados ao lactente
pelo desnecessário e inadequado uso de tais alimentos, destacando, inclusive, a
possibilidade de alterações de crescimento e desenvolvimento crânio-oro-facial e
das funções orais
67
.
Importante notar que também são proibidas doação ou venda a preços
reduzidos dos produtos abrangidos pela NBCAL, quaisquer que sejam, às
maternidades e a outras instituições que prestem assistência à criança.
Às pessoas ligadas ao comércio, tais como representantes dos
fabricantes ou importadores dos produtos ora analisados, não é permitida a
comercialização nas unidades de saúde, salvo para contatos com pediatras e
nutricionistas, devendo se limitar aos aspectos técnico-científicos, com as restrições
impostas à elaboração do material respectivo. A estes profissionais poderá ser
distribuída amostra, restrita a uma unidade do produto quando do seu lançamento.
Ao consumidor final não podem ser prescritas fórmulas infantis e de
segmento para lactentes, senão por médicos ou nutricionistas, e, em hipótese
alguma, poderá ser fornecida amostra de qualquer tipo de produto.
A violação desses regramentos sujeita os infratores às sanções
previstas na Lei 6.437/77, que regulamenta a atuação dos fiscais da Vigilância
Vide também Resolução RDC 222/02, itens 4.3, 4.4, 4.5, 4.6, 4.7, 4.8, 4.9, 4.10, 4.11,4.12, 4.13,
4.14, 4.15, 4.16, 4.17, 4.19 e seus subitens.
41
Sanitária, cujas penalidades serão aplicadas de forma progressiva, de acordo com a
gravidade e a freqüência da infração, podendo, inclusive, chegar à apreensão do
produto, imposição de multa e interdição do estabelecimento. Não pode ser
esquecido que a conduta também pode ser criminosa, de acordo com a regra do
Código de Defesa do Consumidor que exige estrito cumprimento das normas
técnicas de comercialização de produtos, sem prejuízo de eventual condenação à
reparação civil de danos causados ao destinatário dos produtos, quando
comprovada conduta, nexo de causalidade e resultado.
Diante de tal conteúdo, é inquestionável que a NBCAL tenha imposto
limitações à liberdade econômica, de forma que as empresas não mais possam
dispor de total liberdade para a apresentação e colocação de seus produtos no
mercado, como antes ocorria, ao contrário, devem ostentar advertências que alertem
os consumidores sobre as conseqüências de sua utilização, inibindo, assim, a
compra.
Essa limitação é de fácil visualização, porque a venda do produto está
intimamente ligada à sua embalagem
68
e à maneira como o mesmo é disposto no
mercado, trabalho este reservado ao marketing desenvolvido pelas agências de
publicidade, que não foram esquecidas pela NBCAL
69
, com a precípua função de
chamar o público alvo ao consumo.
Com o objetivo de demonstrar a influência da embalagem no
comportamento do consumidor brasileiro, em dissertação de mestrado apresentada
ao Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Universidade de
67
Resolução RDC 221, item 6.4, (b). ((anexo)
68
VENDRAMINI, Luiz Carlos. A new packaging look bursts forth in Latin America, Package
Engineering Magazine, Chicago: Cahners Publishing, abril, p. 40, 1975.
69
Portaria nº 2.051/01, Art. 22. Os fabricantes deverão informar a todo o seu pessoal de
comercialização, incluindo as agências de publicidade que contratam, sobre esta Portaria e as
responsabilidades no seu cumprimento. (anexo)
42
São Paulo
70
, afirmou-se que a embalagem sempre foi considerada como uma das
melhores formas de se divulgar o produto e teve seu poder de persuasão
substancialmente aumentado com o sistema “auto-serviço”
71
, já que o vendedor, que
se encarregava do processo de convencimento do consumidor, desapareceu,
assumindo, o produto, tal função. O produto fala por si.
Assim, a “embalagem, sob o ponto de vista mercadológico, tem como
objetivo último vender o produto e, portanto, funciona como ferramenta de vendas”
72
,
revelando-se a principal forma de se identificar a marca no local de compra e de se
decidir por um produto: “Se a embalagem é bonita, chama a atenção, a gente pára
pra ver e acaba levando”
73
. É, sem dúvida alguma, um poderoso meio de
comunicação e convencimento que, quando elaborado adequadamente, conclui Luiz
Carlos Vendramini, influencia o comportamento do consumidor.
As conseqüências de eventual conduta passiva das empresas no
mercado, também lhes trazem dificuldades adversas no campo econômico, fazendo
com que, para evitar tal situação, as mesmas adotem estratégias de concorrência e
crescimento, podendo gerar, inclusive, comportamento oportunista com divulgação
de informações incorretas, incompletas ou dúbias que exaltam as vantagens dos
produtos, dando-lhes maiores propriedades do que realmente possuem, fato que,
aliado a outras técnicas de marketing, convencem as pessoas a consumi-los sem a
sua efetiva necessidade, fixando-lhes, subliminarmente, a marca do produto que
será, finalmente, decisiva na escolha do consumidor.
70
VENDRAMINI, Luiz Carlos. A Influência da embalagem e o comportamento do consumidor.
Aspectos e considerações do marketing e merchandising em ação. 1987.Dissertação ( Mestrado)
Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo - USP , 1987.
71
Expressão utilizada pelo autor para se referir aos estabelecimentos self-service.
72
Op. cit. p. 31.
73
Op. cit. p. 40.
43
Este comportamento abusivo é explicado na tese de Livre Docência em
Economia, apresentada ao Departamento de Economia da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo
74
, ao afirmar que o
número de empresas, especificamente de leites infantis modificados, é reduzido,
contando, no Brasil, com apenas cinco empresas deste segmento entre os anos de
1998 e 1999, o que faz com que este mercado tenha estrutura concentrada, com
elevada barreira à entrada de outras empresas e com forte interdependência entre
as existentes.
Neste contexto, as empresas acabam desenvolvendo acirrada
concorrência para proteger sua imagem e garantir espaço no mercado com
crescimento absoluto, agindo, pois, da forma mencionada nos parágrafos anteriores.
Caso contrário, serão eliminadas do mercado.
2.3 Casos concretos de violação à proteção do aleitamento materno
Estudos do UNICEF United Nations Children´s Fund - demonstram
elevado índice de mortalidade infantil em função da alimentação inadequada. Com
base em dados desta instituição, o jornal francês Le Mond Diplomatique, de
dezembro de 1997, informou que, naquela época, um milhão e meio de crianças
morriam a cada ano em razão dos efeitos diretos ou indiretos da alimentação por
mamadeira.
A mortalidade infantil pode ser minimizada quando assegurado o
aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade e, complementado, até
74
CYRILLO, Denise Cavalli. Reconstruindo Instituições: O caso da Norma Brasileira para
Comercialização de Alimentos para Lactentes 2001 (NBCAL).Tese (Livre Docência em Economia),
Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da
Universidade de São Paulo, 2001, p. 28-29.
44
dois anos ou mais
75
, consoante recomendação internacional da OMS Organização
Mundial de Saúde
76
, segundo a qual, a prática da amamentação, atualmente, salva
a vida de seis milhões de crianças a cada ano, prevenindo diarréias e infecções
respiratórias agudas
77
. Trata-se, portanto, referida recomendação, de uma diretriz
para que Estados Membros possam garantir os direitos fundamentais das crianças,
como o direito à saúde, assegurando-lhes dignidade através de boa nutrição,
mormente aleitamento materno adequado.
O Brasil, Estado Membro da 34ª Assembléia Mundial de Saúde, adotou
essa recomendação e editou, primeiramente, a Resolução CNS 05/88, substituída
pela Resolução CNS 31/92 e, posteriormente, pela Portaria 2.051/01, do Ministério
da Saúde, e pelas Resoluções 221/02 e 222/02, da ANVISA Agência Nacional de
Vigilância Sanitária.
No Estado de Santa Catarina foram documentados casos específicos
de violação da Resolução 31/92, vigente à época, solucionados mediante
compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais, conforme artigo 5º, §
6º, da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985
78
.
O procedimento 065/95, instaurado na Promotoria de Justiça de
Defesa do Consumidor da Comarca de Florianópolis, apurou que a empresa Lacesa
S/A Indústria de Alimentos, de nome fantasia PARMALAT, desrespeitava o artigo
daquela Resolução, não incluindo, no seu leite esterilizado integral vitaminado
com ferro, a advertência visual de que o produto não deveria ser utilizado na
75
OMS/UNICEF, Innocenti Declaration on the Protection, Promotion and Support of Breastfeeding,
Florença, Itália, 1º de agosto de 1990.
76
Código Internacional de Mercadização de Substitutos do Leite Materno da OMS/UNICEF. Adotado
pela 34ª Assembléia Mundial da Saúde, em 21maio de 1981- AMS 34.22 (1981).
77
World Health Organization. Breast-feeding. The technical basis and recommendations for action.
Geneva; 1993.
78
Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (vetado) e
dá outras providências.
45
alimentação de lactentes nos seis primeiros meses de vida, salvo sob orientação
médica ou de nutricionista. Além disso, fazia publicidade atribuindo ao produto a
qualidade de “indispensável para o crescimento do filho”, “saudável como nenhum
outro”, mencionando, também, a frase: “bastam dois copos por dia para o filho
crescer forte saudável”.
Em abril de 1996, novo caso foi registrado na Promotoria de Justiça de
Joinville, agora contra a Indústria Hiborn do Brasil S/A, fabricante dos produtos Lillo.
O procedimento instaurado nesta Promotoria, além de investigar o emprego de
materiais inadequados na confecção de chupetas e mamadeiras, apurou a
existência de estratégias promocionais para induzir vendas ao consumidor no varejo,
tais como exposições especiais, cupons de descontos, prêmios, bonificações,
vendas vinculadas a produtos não cobertos pela norma, embalagens ou
apresentações especiais. Segundo consta no procedimento 55/96, a empresa
chegou a criar o “Kit de mamadeiras Meu Joguinho”, com a imagem de um bebê,
mais uma vez violando a resolução.
Comprovou-se, mais, a publicidade por meio de folhetos promocionais
sem as advertências impostas na Resolução CNS nº 31/92, feita pelo Supermercado
Angeloni, na comarca de Joinville
79
.
Na capital de Minas Gerais, o procedimento administrativo 14/98,
perante o PROCON Programa de Defesa do Consumidor, coordenado pela
Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor, coibiu a publicidade, em televisão,
veiculando a imagem de mamadeira, obrigando a Drogaria Araújo S/A a cumprir os
estritos termos do artigo 4º da Resolução CSN 31/92, retirando a peça publicitária de
79
Procedimento de ofício 220/96. Centro das Promotorias da Coletividade. Requerido:
Supermercados Angeloni
46
circulação, e aplicando multa administrativa, consoante art. 57 da Lei nº 8.078, de 11
de setembro de 1990
80
.
Esses casos apresentaram, em comum, violações expressas à norma
que visa garantir nutrição adequada às crianças, e foram solucionados com base no
Código de Defesa do Consumidor, sem, contudo, invocar o fundamento primeiro que
é constitucional: direito à saúde.
Ao contrário desses casos, verificou-se junto ao procedimento
administrativo 2104/989, que tramitou perante o PROCON de Florianópolis, que
atuou em parceria com a organização não governamental IBFAN – International
Baby Food Action Network/Brasil e com a Vigilância Sanitária Municipal, a menção
aos fundamentos constitucionais estatuídos nos artigos 5º, XXXII e 170, V, e artigo
48 das Disposições Transitórias, ressaltando o caráter de ordem pública e de
interesse social da Resolução nº 31/92.
Conquanto importante solução tenha sido dada aos casos
mencionados, denota-se que não foram confrontados os princípios fundamentais da
criança e o princípio da liberdade econômica, que poderiam ser equalizados através
do princípio da proporcionalidade.
A relação desses princípios foi logo acenada na Reunião Conjunta
OMS/UNICEF sobre Alimentação de Bebês e Crianças Pequenas
81
, realizada em
Genebra, nos dias 09 a 12 de outubro de 1979, quando, então, recomendou-se
fosse desenvolvido um código internacional para assegurar a alimentação infantil em
favor da vida e da saúde das crianças, declarando que:
80
Dispõe sobre a proteção do consumidor e outras providências digo de Defesa do
Consumidor.
81
Endossada pela 33ª Assembléia Mundial de Saúde, em maio de 1980 – MAS 33.32 (1980).
47
As práticas inadequadas de alimentação infantil e suas
conseqüências constituem um dos principais problemas mundiais e
são um sério obstáculo ao desenvolvimento social e econômico.
Sendo, em grande parte, um problema criado pelo ser humano,
devem ser consideradas uma desonra para a nossa ciência e
tecnologia e para nossas estruturas sociais e econômicas, assim
como uma mácula para o que chamamos de realizações
desenvolvimentistas. Não é apenas problema exclusivo do mundo
em desenvolvimento: também ocorre em muitas partes do mundo
desenvolvido
82
.
82
Sokol, Ellen J., Manual del código: guia para la redacción de medidas para la aplicación deldigo
Internacional de Comercialización de Sucedâneos de la Leche Materna, La Paz: Stiching ICDC,
1997, p. 1.
48
3 DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS CRIANÇAS
A Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e
Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras, reporta-se,
exclusivamente, à garantia e incentivo do aleitamento materno como forma de
garantia de uma vida materno-infantil saudável.
O núcleo de proteção dessa norma, evidentemente, é o direito à saúde,
assim considerado direito fundamental. Todavia, não deixa, por outro lado, de
apresentar uma área de intervenção na livre iniciativa, porquanto regulamenta a
promoção comercial, limitando-a ou excluindo-a, conforme o produto, como
explicado em item anterior. Mais uma vez, então, depara-se com outro direito
fundamental, qual seja: liberdade econômica.
Dessa forma, pretende-se, no presente capítulo, apresentar a origem
dos direitos fundamentais, demonstrando que estes direitos subjetivos, por se
encontrarem no mais elevado patamar de hierarquia das fontes do direito a
Constituição Federal revelam extremo grau de importância, não podendo, via de
regra, sofrerem restrições.
83
Ainda nesta linha, será demarcado, na Constituição Federal, o direito à
saúde, com enfoque específico ao aleitamento materno, traçando-se um paralelo
com a legislação da infância e juventude (Estatuto da Criança e do Adolescente),
ressaltando-se a similar linha de raciocínio do Constituinte e do legislador
infraconstitucional no tocante à doutrina da proteção integral.
83
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 249.
49
Este capítulo, particularizado, servirá para justificar a intervenção
estatal na área de proteção regulamentada pelo direito à liberdade econômica.
3.1 Direitos fundamentais
A doutrina alemã apresenta três teorias a respeito dos direitos
fundamentais: 1. Histórica, que cuida de explicar o surgimento de tais direitos; 2.
Filosófica, voltada para a sua fundamentação e, por fim, a 3. Sociológica, que se
encarrega do estudo dos direitos fundamentais na sociedade. Reunidas estas três
características, já que há existentes pontos de intersecção, formulou-se a Teoria dos
Direitos Fundamentais e da Lei Fundamental. Nela, destaca-se a importância de um
dos seus elementos, a fundamentação, que serve como marco na determinação da
constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma ou para se saber por
que se deve obedecer à Constituição. Esta teoria fica mais restrita quando os
direitos em discussão reportam-se, isoladamente, à liberdade, à igualdade e aos
direitos de prestação, quando, então, tem-se a teoria particular de cada um desses
direitos, que se contrapõe à teoria jurídica general de los derechos fundamentales
de la ley fundamental.
84
Esse estudo torna-se primordial neste trabalho, que o seu cerne é a
colisão de dois direitos fundamentais. O conflito será solucionado através da
proporcionalidade que demanda a análise da fundamentação acima referida,
levando à afirmação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da portaria e
das resoluções apresentadas em item anterior.
84
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 27-35.
50
3.1.1 Breve histórico
Essas breves notas sobre a perspectiva histórica dos direitos
fundamentais são de grande importância não para um mecanismo hermenêutico
como também pelo fato de que estes direitos levaram ao surgimento do Estado
constitucional, cuja estrutura e essência residem exatamente na positivação e na
proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem.
Não deixa de ser, como se verá, uma limitação do poder.
85
Revela, ainda,
importância, conquanto os direitos humanos, na sua conceituação e amplitude, se
universalizam, de forma que sua natureza atravessa fronteiras geográficas e
sistemas de governo, idelologias e teorias econômicas, sobrepondo-se a tudo.
86
O movimento de positivação ou codificação do direito é resultado do
desenvolvimento do racionalismo iluminista, base do pensamento jusnaturalista, que
entendia a necessidade de se criar um sistema a ser posto pelo Estado. A idéia
primordial desta proposição era a simplificação e racionalização formal do direito
para assegurar as expectativas de direito em uma economia capitalista em
expansão, além de fornecer ao Estado um instrumento eficaz de intervenção na vida
social, sem retirar a proteção do particular.
87
A “Declaração dos Direitos da Virgínia”, de 12 de janeiro de 1776, e a
“Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” da França, de 1789, são
exemplos de direito natural positivados, expressão de autoridade (porque vale pelo
85
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 42.
86
GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 140.
87
SWENSSON JÚNIOR, Lauro Joppert. A afirmação histórica dos direitos humanos em Norberto
Bobbio. Cadernos de Direito caderno do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Metodista
de Piracicaba. Piracicaba, v. 3, n° 5, p. 217, dez. 2003.
51
que for posto e feito pelo Estado) e de razão (porque, embora direito emanado do
Estado, é expressão da própria razão).
88
Estudos demonstram que a origem mais próxima dos direitos
fundamentais reporta-se a esses textos internacionais, embora haja sustentação no
sentido de que as suas primeiras manifestações apareceram no direito da Babilônia,
aproximadamente, 2.000 a.C.
89
O certo, porém, é que somente se pode falar em
direitos fundamentais quando reunidos três indispensáveis elementos: Estado,
indivíduo e texto escrito que regula as relações entre ambos,
90
embora não se
descarte a possibilidade da existência de territórios sem a efetiva existência de um
Estado, mas que, ainda, assim, faz valer, em prol da população que o habita, seus
direitos fundamentais.
A afirmação dos direitos humanos nesses territórios é decorrente do
próprio processo de consolidação da Declaração Universal, que ingressou na esfera
internacional, concretizando a Doutrina dos Direitos Fundamentais, com base nos
direitos naturais, de forma a torná-los inalienáveis aos homens e superiores ao
Estado
91
ou a qualquer território ocupado, ainda que não se constitua na legítima
expressão de Estado. Isto porque os direitos humanos “transcendem para o Direito
Público Internacional, figurando nas declarações conjuntas dos povos civilizados
88
Idem op. cit. p. 217.
89
Segundo citação feita por MARIA GARCIA, Limites da Ciência: a dignidade da pessoa humana: a
ética da responsabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 147, os direitos do homem
“Alcança os tempos mais recuados das Revoluções Paralelas como refere Georgers Gustof: inscreve-
se no desenvolvimento da doutrina do direito natural, herdada da Antigüidade, firmada na tradição
estóica e formulada pelos teóricos de Roma. Mais anteriormente ainda, no Egito do século IV de
nossa era, Amenófis IV pretende uma reforma religiosa, fundamentadora da estrutura social,
´associada a uma ideologia universalista de fraternidade humana, justificada pelo fato de que todos
os homens têm um mesmo pai´” . Ainda MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais:
teoria geral, comentários aos arts. a da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina
e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 24.
90
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações:
Caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, 2, p. 11, jan.
2001.
91
SOUZA, Sérgio Augusto Guedes Pereira de. Os direitos da criança e os direitos humanos. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2001, p. 41.
52
como condição para manutenção da ordem e da harmonia internacionais.”
92
Daí a
possibilidade de organizações mundiais, como a ONU, fazerem as vezes de Estado
e garantir a concretização dos direitos fundamentais nos territórios sem governo
reconhecido. No mesmo sentido, destaca-se que os direitos fundamentais também
são direitos humanos, ainda que destinados a entes coletivos (grupos, povos,
nações, Estado).
93
É nessa linha de pensamento que a nova ordem internacional revelou
o reconhecimento incondicional dos direitos humanos, de forma que todas as
organizações de âmbito internacional, pós Segunda Guerra Mundial, trazem
consignada em seus documentos constitutivos a preocupação com os direitos de
liberdades fundamentais do homem, consubstanciados em uma série de
declarações, pactos e convenções, todos materializados em um conjunto de órgãos
e agências encarregados de sua execução.
94
Norteado por esses elementos caracterizadores dos direitos
fundamentais, um exame crítico da Declaração de Direitos da Virgínia, emanada dos
“representantes do bom povo”, em 12 de janeiro de 1776, quando ainda contavam
treze colônias inglesas na América,
95
revela que ela se consubstanciava na
igualdade e liberdade do homem, acenando para a existência de direitos
personalíssimos, que não poderiam ser privados ou renunciados, assim
92
MALUF, Sahid. Curso de direito constitucional. São Paulo: Ed. Sugestões Literárias, v.2, 1970, p.
314.
93
SARLET, Ingo Wolfgang, A eicácia dos dreitos fndamentais. 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 34-36.
94
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteção dos direitos humanos na ordem interna e
internacional. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1984, p. 84.
95
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações-
Caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 11, jan.
2001.
53
compreendidos: o direito à vida, à liberdade e à propriedade
96
, como objetivo de
alcançar o bem comum e o mais alto grau de felicidade e segurança.
Revela mais, a vida, como direito fundamental, é logo percebida no
artigo da Declaração de Direitos da Virgínia
97
, mormente pelas características da
inalienabilidade e irrenunciabilidade, porquanto, como dito, vedava qualquer forma
de pacto, presente ou futuro, que limitasse ou permitisse a sua livre disposição,
impedindo, inclusive, a intervenção do governo neste âmbito sem o consentimento
do titular do poder
98
.
Denota-se, ainda, do referido texto, que os pressupostos político-
jurídicos dos direitos fundamentais começaram a ser delineados nessa época:
indivíduo, Estado e supremacia do direito (considerados como soberanias: soberania
do indivíduo autonomia, soberania do Estado e soberania do direito supremacia
do Estado de Direito), dada à idéia da necessidade de garantia dos direitos pelo
Estado, mediante a existência de um mecanismo sociológico e politicamente eficaz
em todo território.
99
O reconhecimento dos direitos dos indivíduos é a marca do Bill of
Rights da Virgínia, que utilizou a expressão “todos” referindo-se ao ser humano,
96
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º
da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas,
2003, p. 27-28.
97
“Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes, possuem alguns direitos
inerentes, dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade quando
entram no estado social: estes são o direito de gozar a vida e a liberdade, com os meios de adquirir e
possuir propriedade, de procurar e obter felicidade e a segurança.”
98
Art. da Declaração da Virgínia: “Qualquer poder de suspender as leis ou sua execução, exercido
por qualquer autoridade sem consentimento dos representantes do povo é um atentado aos seus
direitos e não pode ser exercido.”
99
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações-
Caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 11, jan.
2001.
54
expressão antes nunca utilizada, nem mesmo no direito romano ou grego, conforme
breve exposição histórica apresentada no texto já citado.
100
O Estado não é esquecido. A preocupação com a forma de governo
democrático, dotada de um sistema de limitação de poderes é proeminente nos
artigos 2º, 3º, 5º e da Declaração, visando, assim, “limitar o poder do rei, proteger
o indivíduo contra a arbitrariedade do rei e firmar a supremacia do Parlamento”
101
.
Por fim, a supremacia do direito escrito abstrato, que traz a certeza do
direito e a garantia de abrangência geral (a todos os indivíduos), também é notada
na Declaração da Virgínia, a exemplo dos direitos nela própria previstos.
A idéia de direitos fundamentais positivados no texto da Virgínia foi
encampada pelos demais Estados, seguindo-se, após, a Declaração Norte-
Americana, consubstanciada na Constituição Federal dos Estados Unidos da
América, aprovada na Convenção de Filadélfia, em 17 de setembro de 1787, que,
todavia, somente passou a consagrar os direitos fundamentais em 1791, com o
advento das dez primeiras Emendas à Constituição, às quais outras foram
acrescentadas até 1975.
102
A despeito das declarações antecessoras (Virgínia e França), as
declarações americanas incorporaram virtualmente os direitos e liberdades,
guardando características da universalidade e supremacia dos direitos naturais, com
eficácia reconhecida perante a população e com vinculação do poder público,
100
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações-
Caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 11-12, jan.
2001.
101
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 13.. ed. São Paulo: Malheiros,
2001.p.142.
102
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações:
cadernos do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, 2, p. 12, jan.
2001.
55
somente sendo incorporada com status constitucional a partir da declaração de
1791, como acima mencionado.
103
Em 27 de agosto de 1789, a Assembléia Constituinte francesa adotou a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, durante a Revolução, marcada
pelo “excesso de uma violência descontrolada denunciada por Edmund Burke
(Reflexões sobre a Revolução Francesa. 1790)”.
104
Trata-se de um texto sucinto,
composto por dezessete artigos que enfocam os princípios básicos que evidenciam
a dignidade humana (liberdade, igualdade, propriedade e legalidade) e a existência
de garantias individuais. A precisão com que foi redigida faz com que a Declaração
francesa seja até hoje aplicada, inclusive orientando a jurisprudência.
105
A Declaração dos Direitos dos Homens é fruto do idealismo (social e
moral) e da filosofia humanitária reinante no cenário político do século XVIII, com a
nítida intenção de afastar o sofrimento causado ao povo pelas regras opressivas do
absolutismo e do sistema feudal, preocupando-se em defender o indivíduo contra o
Estado. A proclamação destes direitos surge “quando a fonte da lei passa a ser o
homem e não mais o comando de Deus ou os costumes”, representando “um anseio
muito compreensível de proteção, pois os indivíduos não se sentiam mais seguros
de sua igualdade diante de Deus.”
106
Logo, no preâmbulo, foram reconhecidos os direitos naturais do
homem, considerados inalienáveis e “sagrados”. A vida, a liberdade e a igualdade
são asseguradas de forma elegante pelo artigo primeiro: “Os homens nascem e
103
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos Direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 52-51.
104
GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 148.
105
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 13.. ed. São Paulo: Malheiros,
2001. p.144. No mesmo sentido: MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria
geral, comentários aos arts. a da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e
jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 28-29.
56
permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais podem ser
fundamentadas na utilidade comum”.
A soberania, pressuposto do direito fundamental, está evidente quando
a nação é considerada como elemento único no exercício do poder, não podendo
qualquer indivíduo exercer autoridade que não emane diretamente dela (artigo
terceiro). Para a “Declaração Francesa”, o titular dos direitos fundamentais é o
homem, assim considerado o ser humano.
A supremacia do direito escrito é bem marcada no artigo dezesseis,
que demonstra a necessidade de se ter uma constituição escrita, considerando o
seu conceito normativo como o texto legal que assegure a garantia dos direitos e a
separação dos poderes como conteúdo mínimo.
Neste sentido, reportando-se aos elementos dos direitos fundamentais,
afirma-se que as relações entre o indivíduo e o Estado são reguladas por texto
escrito, papel este,
desempenhado pela Constituição que declara e garante
determinados direitos fundamentais permitindo ao indivíduo conhecer
sua esfera de atuação, livre de interferências estatais e, ao mesmo
tempo, vincular o Estado a determinadas regras que impedem as
invasões da esfera privada
.
107
Os direitos fundamentais, seguindo o caráter universal da Declaração
Francesa de 1789, foram abarcados por organismos de várias nações, culminando
com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948,
precedida da Carta das Nações Unidas de 1945.
108
106
LAFER, Celso. A Reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 123.
107
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações -
Caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 11, jan.
2001.
108
Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA, a Declaração francesa é mais abstrata e “universalizante” do
que a Declaração de Virgínia, atribuindo-lhe a caráter de mundialismo, no sentido de que os
57
Composta de trinta artigos, a Declaração Universal de 1948, além dos
valores sicos universais (vida, liberdade e igualdade), cataloga direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais, indissociáveis da dignidade humana,
109
chegando a afirma o direito à saúde e ao bem-estar, inclusive à alimentação
adequada, resguardando o direito a cuidados e assistências especiais à
maternidade e à infância
110
, valores estes também visados pela NBCAL (Norma
Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira
Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras).
Tamanho o valor da Declaração Universal, chegou-se a afirmar que foi
a partir dela que se teve certeza histórica de que a humanidade (toda ela)
compartilha de certos valores comuns, entendendo-a universal e concluindo que “os
direitos do homem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos
positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como
direitos positivos universais”.
111
Outros Pactos e Convenções internacionais foram elaborados e
firmados por vários países
112
, procurando sempre fazer com que os direitos
princípios enunciados no texto da Declaração pretendem constitucional positivo, 13. ed. São Paulo:
Malheiros, p.145 e 149.
109
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. a
da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 36-37.
110
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), art. XXV 1. Toda pessoa tem direito a um
padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação,
vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança,
em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de
subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças,
nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
111
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Tradução. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992. p. 28 e 30.
112
“A Declaração Universal de 1948 abriu efetivamente caminho à adoção de sucessivos tratados e
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos”, demonstrando, assim, uma efetiva
diversidade de meios e identidade de propósitos, e exercendo fundamental papel de interpretação na
proteção internacional dos direitos humanos. CANÇADO, Antonio Trindade. O Legado da Declaração
Universal e o Futuro da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: PERRONE-MOISÉS,
Claúdia (org.). O Cinqüentenário da declaração universal dos direitos do homem. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1999. p. 22.
58
fundamentais reconhecidos pela ONU fossem adotados por todos os Estados. Aliás,
neste aspecto, o próprio preâmbulo da Declaração Universal fixa o seu objetivo em
promover o reconhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais mencionados pela Carta da ONU, donde se conclui pela característica
de instrumentalidade deste documento.
Importância e influência da Declaração Universal nos pactos e
convenções que se seguiram a atenção nesses documentos, sempre voltada para
a dignidade humana, - fizeram com que fosse preservado o conteúdo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos que “compreende um conjunto de direitos e
faculdades sem as quais um ser humano não pode desenvolver sua personalidade
física, moral e intelectual”.
113
Note-se que diante deste conceito, a criança tem
assegurado o direito à saúde e ao adequado desenvolvimento físico e mental.
Guiado por este objetivo e frente às recomendações internacionais,
como a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924, e a
Declaração sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1959, a Convenção
sobre os Direitos da Criança veio positivar e especificar os direitos fundamentais
das crianças
114
, em 20 de novembro de 1989, através da Resolução L 44 (XLIV)
da Assembléia Geral das Nações Unidas, ratificada por cento e noventa e dois
países
115
até 14 de novembro de 2003, entre eles o Brasil.
113
CASSIN, René. El Problema de la realización de los derechos humanos en la sociedad universal.
Viente Años de Evolución de los Derechos Humanos. Instituto de Investigaciones Juridicas, 1974, p.
397, apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional Internacional. 4. ed. São
Paulo: Max Limonad, 2000, p. 142.
114
Para efeitos da Convenção sobre os Direitos da Criança “entende-se por criança todo ser humano
menor de 18 anos de idade, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade
seja alcançada antes.” (Art. 1º).
115
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para Infância. Disponível em <http://unicef.org.br >. Acesso
em: 11 fev. 2005.
59
A Convenção sobre os Direitos da Criança nada mais é do que uma
resposta à necessidade de a comunidade internacional garantir e aperfeiçoar o
conteúdo da Declaração de 1948, articulando-o, especificando-o e atualizando-o,
pois, em seu preâmbulo, a referida Convenção reporta-se à Declaração Universal e,
em seguida, apresenta os seus problemas como “especificação da solução dada aos
problemas dos direitos do homem”. A proteção particular e os cuidados especiais à
criança tornam-na ius singulare com relação a um ius commune”, revelando uma
especificidade originada da proteção genérica: o homem.
116
No Direito brasileiro, os direitos fundamentais estiveram presentes na
Constituição do Império (1824) e nas Constituições Republicanas de 1891, 1934,
1937, 1946, 1967 (1969) e 1988.
A atual Constituição brasileira apresenta um rol específico desses
direitos nos artigos a 17, sob a rubrica do Título II: “Dos direitos e garantias
fundamentais”, mas não esgota a sua enumeração, podendo ser encontrados outros
tantos em topografia diversa do texto constitucional, a exemplo do disposto nos
artigos 201, 203, 205, 208 e 227, ressaltando-se o direito à vida (art. 5º, caput, da
Constituição Federal) e, como direitos fundamentais sociais, a saúde e a proteção à
maternidade e à infância (artigo da Constituição Federal), além do direito
individual das presidiárias permanecerem com seus filhos durante o período de
amamentação (artigo 5º, inciso L, da Constituição Federal).
O constituinte atribuiu aos direitos humanos especial significado,
colocando-os, na sua maioria, no início da Constituição Federal, ressaltando, ainda,
a sua imediata aplicação e a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos,
116
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992, p. 35.
60
com estrito dever de observância, como se verifica nos incisos e parágrafos do art.
5° do texto constitucional.
117
Tal conduta é elogiada pela doutrina pátria, afirmando-se que os
direitos fundamentais receberam o status merecido ao longo da evolução
constitucional, resultado de uma discussão de redemocratização do País após mais
de vinte anos de ditadura militar. Neste diapasão, a mais significativa inovação foi a
do art. 5º, § 1º, da CF, que atribui às normas definidoras de direitos e garantias
constitucionais aplicação imediata. Esta maior proteção fica ainda mais clara com a
sua inclusão nas cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, CF, impedindo a supressão dos
preceitos relativos aos direitos fundamentais pelo Constituinte derivado.
118
Diante dos inúmeros direitos fundamentais e do objetivo proposto, o
presente trabalho ficará limitado à análise dos direitos fundamentais da criança,
especificamente os direitos à saúde e à amamentação
119
, todos voltados para o
desenvolvimento físico e mental em condições de dignidade, respaldados no direito
social de proteção à maternidade e à infância.
3.1.2 As diversas dimensões dos direitos fundamentais
Desde o surgimento dos direitos humanos, como asseverado no item
referente ao seu histórico, várias transformações e enfoques foram renovando os
direitos existentes e acrescentando outros, assim como garantias, no que
concerne aos seus titulares, eficácia e efetivação. Fala-se, então, em quatro
117
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 1.
118
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 73-77.
119
Neste trabalho, entende-se o direito à amamentação como direito fundamental, conforme razões
expostas em item próprio.
61
dimensões, as quais, logicamente, são decorrentes da própria mutação história
destes direitos.
120
Não se afasta a discussão terminológica deste momento de mutação.
Alguns autores chamam-na de dimensões, outros, ao contrário, de gerações, e o
ponto de tal divergência reside no fato de que, na verdade, os direitos humanos
sofreram um processo progressivo cumulativo e não de alternância ou substituição.
Falar-se em gerações, leva-se à idéia de que os direitos de cada época apresentam-
se estanques e somente se referem à época em que surgiram, quando, na verdade,
se aplicam a todas as gerações de pessoas, de forma expansiva e complementar,
encontrando-se em visível estado de positivação tanto nas constituições como no
Direito Internacional. Esta é a posição que se perfilha na mais moderna doutrina.
121
Os direitos de primeira dimensão são aqueles decorrentes do
pensamento liberal-burguês do século XVIII, com raízes na doutrina iluminista e
jusnaturalista, inspirado por Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Direitos sempre
individualistas em face do Estado, mais conhecidos como direitos de defesa,
deixando claros os limites do indivíduo e da não intervenção do Estado. Assim, são
apresentados como direitos negativos, pois visam uma abstenção do poder público e
não uma conduta positiva. Nesta classificação encontram-se os direitos à vida, à
liberdade, à igualdade perante a lei e à propriedade.
122
Os da segunda dimensão caracterizam-se pela positividade, que os
direitos surgiram com o impacto da industrialização e os graves problemas sociais e
120
Neste sentido: A.E. Perez Luño, RCEC nº 10 (1991) apud SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos
direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p.
53.
121
A complementaridade das dimensões é adotada por V. Brega Filho, in E. Riebel, in: EuGRZ, p 11
apud SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 34-36. Também assim entendida, no direito pátrio, por
BONAVIDES, Paulo Curso de direito constitucional. 13. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 525.
122
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 54-55.
62
econômicos dela decorrentes. Proliferam-se os movimentos reivindicatórios no
século XIX seguidos do reconhecimento progressivo de direitos atribuídos ao
Estado, fazendo com que o mesmo assumisse comportamento ativo na realização
da justiça social. Trata-se, portanto, como dito, de uma dimensão positiva onde não
mais se quer a não intervenção do Estado, mas sim a sua atuação para promoção
do bem-estar social.
123
Não mais se trata de liberdade do e perante o Estado, e sim
de liberdade pelo e através do Estado. São direitos caracterizados pela entrega de
prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho,
entre outros, revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as
liberdades materiais concretas, que foram congraçadas em várias constituições do
século XX. de se atentar que os direitos de segunda dimensão vão além de
meras prestações de cunho positivo, culminam por abranger as liberdades sociais, a
exemplo da liberdade de sindicalização, do direito de greve e reconhecimento de
direitos fundamentais dos trabalhadores. Devido a esta especificidade que os
diferencia dos direitos da primeira dimensão cunho social é que eles foram
rotulados de direitos de segunda dimensão, iniciando outra fase da história. Insta
frisar que, apesar de intitulados direitos sociais, ainda assim são individuais, não se
confundindo com direitos coletivos e/ou difusos, estes de terceira dimensão.
124
Por fim, a terceira dimensão reporta-se aos direitos de solidariedade e
fraternidade. Desprendem-se do homem-indivíduo para destinarem-se à proteção de
homem enquanto entidade familiar, povo, nação diga-se grupos humanos.
Caracterizam-se, assim, como direitos de titularidade coletiva ou difusa.
125
123
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Cia
das Letras, 1988, p. 127.
124
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 55-56.
125
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Cia
das Letras, 1988, p. 131
.
63
Afirma-se, também, que os direitos de terceira dimensão possuem por
destinatário “o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação
como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.
126
Esses direitos de terceira dimensão nasceram da necessidade de
novas reivindicações fundamentais do ser humano, decorrentes do sobressalto
tecnológico, bem como do estado de beligerância e do processo de descolonização
do segundo pós-guerra, seguido de suas conseqüências. Assim se revelam o direito
à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à
qualidade de vida, direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e
cultural e o direito de comunicação.
127
Fala-se, por fim, em direitos de quarta dimensão como uma tendência
que ainda aguarda reconhecimento no âmbito do Direito Internacional e das ordens
constitucionais. A existência desta quarta geração estaria embasada na globalização
dos direitos fundamentais visando à perfeição do Estado de Direito, como o direito à
democracia e à informação, não se esquecendo, porém, do grande avanço da
ciência em experiências genéticas, dando origem à manipulação genética, mudança
de sexo que se mostram com nítida intenção de iniciar nova dimensão: a quinta.
128
Do exposto, conclui-se que, diante da complexidade do seu processo
de formação histórica e social, os direitos fundamentais mostram-se indissociáveis
uns dos outros e passam por transformações, revelando a sua afirmação como tais,
quer sejam em textos internacionais, quer sejam em textos constitucionais,
integrando-se ao conteúdo essencial democrático do Estado.
129
Assim,
126
BONAVIDES, Paulo , Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 523.
127
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 57-58.
128
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 59.
129
Ibid. p. 60-66.
64
direitos do homem, democracia e paz são três momentos
necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem
reconhecidos e protegidos não democracia; sem democracia, não
existem condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos
.
130
3.1.3 Processo de incorporação de tratados e convenções internacionais e a
emenda constitucional nº 45/04
Embora a Declaração Universal não esteja representada em tratado ou
convenção internacional, e a despeito da consagração dos direitos fundamentais na
Constituição Federal e de outros direitos subjetivos no Estatuto da Criança e do
Adolescente, com o fim de realçar a importância deste documento, se afirmou a
sua “força jurídica obrigatória e vinculante” porque “constitui a interpretação
autorizada da expressão ‘direitos humanos’ constante dos artigos (3) e 55 da
Carta das Nações Unidas”
131
, cujo compromisso de assegurar sua obediência foi
assumido pelos Estados signatários. Ademais,
a natureza jurídica vinculante da Declaração Universal é reforçada
pelo fato de na qualidade de um dos mais influentes instrumentos
jurídicos e políticos do século XX ter se transformado, ao longo de
mais de cinqüenta anos de sua adoção, em Direito costumeiro
internacional e princípio geral do Direito Internacional.
132
A posição hierárquica dos textos internacionais, sempre discutida pela
doutrina, fazia a distinção material dos tratados e convenções. Se se tratasse de
direito material, sua inserção no Direito brasileiro seria sob status constitucional ou
130
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992, p. 1.
131
ANTONIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, na obra Direito das organizações internacionais. 2.
ed. atual., Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 27, discorrendo sobre a natureza da Carta da ONU,
informa que tal documento “não é um tratado como qualquer outra convenção multilateral nem
tampouco uma ‘constituição’; é um tratado sui generis, a ser interpretado como tal, que dá origem a
uma complexa entidade internacional que passa a ter ‘vida própria’.”
65
supraconstitucional, o que se dava através do § do art. da Constituição
Federal, caso contrário, sua posição legal se dava como legislação ordinária.
133
A essa tese denominou-se pré-compreensão intercionalista, pois se
tratava de uma corrente preocupada com a proteção dos direitos humanos,
colocando-os a salvo de eventuais abusos do legislador nacional, não podendo uma
lei posterior restringir ou abolir tratados relativos a direitos humanos.
134
Parte da doutrina, todavia, acenava em sentido contrário e justificava a
divergência de entendimento embasada em três elementos. O primeiro fundava-se
no fato da Constituição de 1988 ser omissa quanto à validade dos tratados e dos
demais textos internacionais, ao contrário da tendência de outros textos
constitucionais modernos
135
. O segundo elemento, de ordem normativa, é a absoluta
prevalência das normas constitucionais em relação às regras de direito internacional
público, decorrente da própria natureza do poder constituinte, criador das normas de
maior força jurídica e política no âmbito de sua soberania. Esse entendimento é
confirmado por dispositivos constitucionais próprios, que estabelecem a competência
do STF para decidir sobre a validade de tratados internacionais, declarando ou não
a sua constitucionalidade (art. 102, III, b). Assim, conclui a doutrina, que, se o
Supremo Tribunal Federal, que exerce a guarda da Constituição, conforme artigo
132
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4. ed. São Paulo:
Max Limonad, 2000, p. 151.
133
PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Constituição e direito internacional: precedências possíveis no
Brasil e no mundo globalizado. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 204. No mesmo sentido:
ROTHENBURG, Walter Claudius. A convenção americana de direitos humanos no contexto
constitucional brasileiro. Boletim Científico, Escola Superior do Ministério Público da União, ano 1 n.
4, p. 76, jul/set. 2002. TAVARES, Andre Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 393-397; e PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 86;
134
DIMOULIS, Dimitri; SABADELL, Ana Lúcia. Tribunal penal internacional e direitos fundamentais:
problemas de constitucionalidade. Cadernos de direito. Cadernos do Curso de Mestrado em Direito
da Universidade Metodista de Priracicaba, v. 3, n. 5, p. 246, dez. 2003.
135
Neste sentido, algumas Constituições são citadas por TAVARES, André Ramos. Reforma do
Poder Judiciário no Brasil pós-88: (des)estruturando a justiça: comentários completos à EC n. 45/04.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 40-42, como as constituições da Argentina, de Portugal, dos Países
Baixos e a do Peru.
66
102, caput, pode declarar a inconstitucionalidade de um tratado, é certo afirmar que
na classificação constitucional dos textos internacionais, ele é inferior às normas da
Constituição. O terceiro elemento, por fim, é justamente o entendimento do STF,
136
abaixo apontado.
Tal divergência, como dito, chegou ao Supremo Tribunal Federal e o
entendimento firmado era o de que, mesmo em se tratando de direito fundamental, a
incorporação do tratado ocupava o status de lei ordinária. Assim foi decidido no HC
n. 72.131-1 RJ, de 20/11/1995, publicado no DJ de 01/08/2003, Min. rel. Marco
Aurélio de Mello, quando se decidiu sobre o pacto de São José da Costa Rica, que
proibia a prisão civil em alienação fiduciária.
Em decisão mais recente àquela, a Suprema Corte brasileira, através
do relatório do Ministro Moreira Alves, explicou-se que o art. 5º, § 2º, da Constituição
Federal pretendeu constitucionalizar os tratados internacionais sobre direitos
humanos promulgados anteriormente à Constituição de 1988, uma vez que os
posteriores a ela não poderiam ser equiparados à emenda constitucional.
137
Depreende-se, portanto, que, para a jurisprudência e parte da
doutrina nacional, o tratado firmado pelo Brasil, para ter força obrigatória na ordem
jurídica interna, necessitava de ratificação do Presidente da República após
referendo do Congresso Nacional, integrando ao Direito Positivo brasileiro como lei
ordinária, mas não afastava a responsabilidade do Governo perante a comunidade
internacional.
138
136
DIMOULIS, Dimitri; SABADELL, Ana Lúcia. Tribunal penal internacional e direitos fundamentais:
problemas de constitucionalidade. Cadernos de direito: cadernos do Curso de Mestrado em Direito da
Universidade Metodista de Piracicaba, v. 3, n. 5, p. 245-246, dez. 2003.
137
Recurso Ordinário do HC n. 79.798-7/RJ, 29/03/2000, publicado no DJ de 22/11/2002.(anexo)
138
TAVARES, André Ramos. Reforma do poder judiciário no Brasil pós-88: (des)estruturando a
justiça: comentários completos à EC n. 45/04. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36-39.
67
Malgrado esse entendimento, a discussão da posição hierárquica de
documentos internacionais no direito brasileiro tomou novos contornos e suscitou
outro questionamento em razão da Emenda Constitucional n° 45, de 08 de
dezembro de 2004, que incluiu o § 3° no artigo 5°, disciplinando que
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
Denota-se do referido dispositivo constitucional que somente está
regulada a posição hierárquica dos tratados e convenções sobre direitos humanos
aprovados naqueles termos, após a vigência da Emenda Constitucional 45/04.
Equivocada a idéia de que, com esta emenda, estaria ratificada a posição
constitucional dos tratados anteriores sobre direitos humanos, como preconizado
pelos autores mencionados em nota própria. A interpretação vai além de simples
silogismo, pois são necessários três requisitos para erigir um tratado de direito
humano a título de emenda constitucional: 1. Aprovação formal via emenda
constitucional; 2. são considerados incorporados após aprovação formal; e 3. a
incorporação se como emenda constitucional, portanto, eventual conflito com
cláusula pétrea será resolvido através da eliminação da contradição e não da
harmonização, como ocorre com as normas constitucionais originárias.
139
Indaga-se, portanto, sobre a situação dos tratados internacionais de
direitos humanos integrados no sistema jurídico brasileiro pelo rito anterior. Devem
permanecer com o status de lei ou passaram, automaticamente, a ter o status de
emenda constitucional pelo fenômeno da recepção?
139
Ibid. p. 42.
68
É cediço que para uma norma ser recepcionada pela Constituição ou
por uma Emenda Constitucional, deve ser verificada a sua compatibilidade material,
de forma a permitir a sua absorção, conferindo-lhe o status que a nova Constituição
ou Emenda der à respectiva matéria. Neste sentido:
se a nova ‘regra’ constitucional continua a permitir que os tratados e,
agora, também as convenções, versando (e adotando) direitos
humanos, possam ser incorporados ao Direito positivo brasileiro,
total compatibilidade com esses documentos que, anteriormente, ,já
haviam sido editados como Direito vigente no Brasil. que, a partir
de então, seu status passará, automaticamente, a ser o de emenda
constitucional (e, pois, necessariamente, nesses casos, o de norma
constitucional), não porque não poderão ser alterados senão por
nova emenda, mas também porque não poderão ser abolidos ou
restringidos, em hipótese alguma (proibição do retrocesso)
.
140
Conclui-se, dessa forma, que, a partir de 08 de dezembro de 2004,
todos os tratados sobre direitos humanos que foram internalizados no ordenamento
jurídico brasileiro e que ocupavam a posição de lei ordinária foram recepcionados
pela Emenda Constitucional ora estudada e apresentam-se, agora, pela
compatibilidade material, com o status de Emenda Constitucional.
141
3.1.4 Conceito e espécies
140
Ibid. p. 48.
141
Quanto à recepção mencionada por André Ramos Tavares, Sarlet adverte que “No que diz com as
restrições de direitos fundamentais oriundos de normas internacionais, ainda que não se cuide de
matéria de cunho constitucional, poder-se-ia cogitar, ao menos em tese, da aplicação de disposto no
art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n° 4.657, de 4 de setembro de 1942), de
acordo com o qual ‘as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de
vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os
bons costumes’. Aqui, embora não se trate de restrição efetuada pela Constituição à recepção de
normas internacionais, cuida-se de limites expressos ao reconhecimento da eficácia interna de
normas alienígenas no âmbito do direito positivo nacional.” SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos
Direitos Fundamentais. 5. ed. rev. atual. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 147.
69
Primeiramente, insta consignar que, entre o conceito de norma de
direito fundamental e o conceito de direito fundamental, existe uma tênue diferença,
no sentido de que a todo direito fundamental uma norma que o assegure, donde
se conclui que o conceito de norma de direito fundamental abarca o próprio conceito
de direito fundamental, não se confundindo, ainda, a norma, com seu enunciado,
que nada mais é do que a representação escrita da norma. “Una norma es, pues, el
significado de um enunciado normativo”.
142
Diante da evolução histórica apresentada e da sua finalidade, os
direitos fundamentais foram conceituados como prerrogativas e instituições capazes
de assegurar uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.
143
Esta idéia encontra semelhança na definição de que direitos
fundamentais são
un conjunto de faculdades e instituiciones que, em cada momento
histórico, concretan las exigências de la dignidad, la libertad y la
igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente
por los ordenamientos jurídicos a nível nacional e internacional.
144
Embora estejamos diante de uma definição aberta, ampla, o seu
conteúdo deve ser buscado com o auxílio da análise de expressões sinônimas de
direitos fundamentais, citadas pelo próprio autor, e da forma como são empregadas,
tais como: direitos naturais, direitos individuais, direitos subjetivos, direitos públicos
subjetivos e liberdades públicas. Ainda se refere-se aos direitos fundamentais, outro
142
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 47-53
143
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
144
LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. Madrid:
Tecnos, 1999, p. 49.
70
autor, como direitos humanos, direitos do homem, liberdades fundamentais e direitos
humanos fundamentais.
145
A própria Constituição de 1988 utiliza-se de uma diversidade
semântica, usando termos diversos para se referir aos direitos fundamentais. A
exemplo, encontram-se, no texto constitucional, expressões como: 1. direitos
humanos no at. 4º, inc. II; 2. direitos e garantias fundamentais na epígrafe do Título II
e art. 5º, § 1º; 3. direitos e liberdades constitucionais no art. 5º, inc. LXXI; e 4.
direitos e garantias individuais no art. 60, § 4º, inc. IV). Em que pese a esta
divergência de terminologia, de se levar em consideração a opção pelo termo
direitos fundamentais feita pelo Constituinte na epígrafe do Título II, quando se
refere aos Direitos e Garantias Fundamentais, deixando claro que este termo
genérico abrange todas as categorias ou espécies de direitos fundamentais,
inclusive os direitos e deveres individuais e coletivos expostos no Capítulo I, os
direitos sociais do Capítulo II, a nacionalidade, os direitos políticos e o regramento
dos partidos políticos, respectivamente nos Capítulos III, IV e V.
146
Estas espécies de direitos fundamentais acolhidos pela Constituição
brasileira demonstram diversas funções exercidas pelo direito fundamental, de
acordo com as diretrizes da doutrina e jurisprudência alemã, sendo certo que o
Constituinte brasileiro inspirou-se na Lei Fundamental alemã e na Constituição de
Portugal de 1976. Vale ressaltar que direitos fundamentais também são direitos
humanos, ainda que os seres humanos sejam representados por entes coletivos
(grupos, povos, nações, Estado). Todavia, faz-se uma distinção acadêmica quando
os direitos fundamentais estão positivados no texto constitucional de um
145
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 33.
146
Ibid. p. 34.
71
determinado Estado e os direitos humanos guardam relação com o direito
internacional.
147
Dentre essas inúmeras denominações, manifestou-se que o critério
mais adequado para determinar as diferenças das terminologias seria a corrente
positiva, de forma que os direitos humanos revelam contornos mais amplos e
imprecisos que a noção de direitos fundamentais, de forma que estes possuem
sentido mais preciso e restrito, na medida que constituem o conjunto de direitos e
liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de
determinado Estado, portanto, pode-se dizer que são direitos limitados
espacialmente e temporalmente. Sua denominação seria, dessa forma,
fundamentada no seu caráter estruturante do ordenamento jurídico do Estado de
Direito.
148
A propósito das garantias das liberdades individuais, Loewenstein
alude a determinados âmbitos de auto determinação individual
nos quais o Leviatã não pode penetrar e, embora submetidas a
interpretações que variam com a diversidade de ambientes onde
vigoram, tais garantias fundamentais são o núcleo inviolável dos
sistema político da democracia constitucional regendo, como
princípios superiores, a ordem jurídica positiva, ainda quando não
estejam formulados em normas constitucionais expressas
.
149
Assim, liberdade é um
referencial da existência humana, da vida e da convivência em
conjunto do homem, tendo como pólo oposto o detentor da
autoridade, para a obtenção do necessário ponto de equilíbrio...
147
Ibid. p. 34-36
148
LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. Madrid:
Tecnos, 1999, p. 46-47.
149
LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constituición, Barcelona: Editora Ariel, 1986, p. 390 apud
GARCIA, Maria. Desobediência Civil, Direito Fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p.
178
72
pode-se proceder à experiência da regressão a fim de encontrar o
momento em que, titulares da sua liberdade, os homens passam a
obedecer, delineando-se desde então o âmbito específico em que se
juridiciza esse fenômeno no quadro da convivência social, dada
como sociedade política
.
150
Reportam-se, ainda, ao surgimento de uma nova concepção de direitos
fundamentais, com a previsão de direitos sociais, através das primeiras
Constituições Republicanas alemã e espanhola a de Weimar (1919) e a da
Espanha (1931), além da Constituição do México (1917), a Constituição russa de
1918, e subseqüentes Constituições soviéticas. Só, então, em 1934, a Constituição
brasileira consubstanciou direitos fundamentais sociais.
151
Outro enfoque, porém, é dado aos direitos fundamentais quando
conceituados como “direitos subjetivos dos indivíduos que vinculam (e limitam) o
exercício do poder do Estado através de disposições de nível constitucional,”
152
possibilitando aos seus titulares impor os seus interesses em face dos órgãos
obrigados.
153
Esta definição alberga elementos materiais e estruturais, semelhantes
à definição de Carl Schimitt, segundo a qual “direitos fundamentais são somente
aqueles direitos que pertencem ao mesmo fundamento do Estado e que, portanto,
são reconhecidos como tais na Constituição”.
154
Robert Alexy, por sua vez,
acrescenta a este conceito, o elemento formal, que aponta a forma de positivação do
150
GARCIA, Maria. Desobediência civil, direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994,
p. 29
151
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves apud GARCIA, Maria. Desobediência civil, direito fundamental.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 165.
152
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações-
Caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 13, jan.
2001
153
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p. 2. No mesmo sentindo Alexandre de Moraes. Direito
Constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 55.
73
direito fundamental, por exemplo, designando um capítulo aos direitos
fundamentais.
155
Dessa forma, cada carta constitucional pode dispor sobre os direitos
fundamentais, prevendo e reunindo-os de acordo com a sua estrutura
organizacional, agrupando-os em capítulo específico ou deixando-os esparsos no
texto. Trata-se, na verdade, de elemento meramente formal relativo à disposição de
tais direitos na Constituição, sem qualquer interferência na sua aplicação, senão na
forma de interpretação a ser adotada levando em conta a forma de positivação dos
direitos fundamentais.
Afora tal análise dos elementos conceituais formais, é certo que,
tomando-se como paradigma a Declaração francesa de 1789, os direitos
fundamentais, na sua gênese, visavam à proteção das pessoas contra a arbitrária e
totalitária intervenção estatal. Mas não se trata de simples limitação particular à
atividade estatal, e, sim, do efetivo exercício da soberania, consolidada na vontade
popular, como elemento integrante do próprio direito fundamental (soberania
individual, ou seja, exercício do direito a título subjetivo) em busca do bem comum,
princípio este, contemplado no art. da Constituição Federal brasileira, que afirma
ser a República Federativa do Brasil um Estado Democrático de Direito, tendo como
fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade de pessoa humana, os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político.
Assim, além de considerados direitos fundamentais na Constituição de
1988, os direitos humanos assumem a posição de
154
SCHMITT, C Grundreche und Grundpflichten. 1932, e, do mesmo autor Verfassungsrechtliche
Aufsätze. 2. ed. Berlin, 1973, p. 190 apud ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales.
Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 63.
74
elementos integrantes da identidade e da continuidade da
Constituição, formando a base do ordenamento jurídico de um
Estado de Direito democrático, considerando, por isso, ilegítima
qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-lo (art. 60, §
4°)
.
156
A Constituição brasileira optou pelo sistema misto de princípios, o qual
fundamenta a construção do ordenamento jurídico interno e, paralelamente,
enumera uma série de direitos e garantias detalhados no texto constitucional. Este
sistema misto
157
coexiste com dois outros que dão uma noção mais fechada para os
direitos fundamentais. O primeiro, que é o sistema das cláusulas gerais, corresponde
apenas ao enunciado de grandes princípios e, o segundo, o denominado sistema
casuístico, é marcado por leis especiais que proclamam liberdades ou direitos mais
concretos e individualizados.
A importância dos direitos fundamentais, indissociável do seu conceito,
é destacada pela Teoria Estruturante do Direito, que atribui relevância às garantias
conquistadas durante anos e normatizadas com caráter de obrigatoriedade
(verbindlich normiert), fixando os seus conteúdos, funções e limites, concluindo-se,
outrossim, que não “Sistema Político civilizado” sem os direitos fundamentais,
que funcionam, na Constituição, como o centralizador e fomentador dos objetivos
estatais: paz, Estado Social de Direito (sozialer Rechtsstaat) e democracia.
158
No mesmo sentido, afirma-se a teoria dos direitos fundamentais, de
Robert Alexy, como teoria estruturante porque investiga o conceito de direitos
fundamentais, sua influência e fundamentação no sistema jurídico, possibilitando a
155
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 27-35 e p. 65.
156
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p. 1-2.
157
LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Derechos humanos, estado de derecho y constitución. Madrid:
Tecnos, 1999, p. 65.
75
formação da base desses direitos através da jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal.
159
Esses objetivos estatais são atingidos com diversas funções que os
direitos fundamentais cumprem no ordenamento jurídico, dando origem a variadas
classificações, podendo, pois, ser entendidos como: 1. direitos de defesa; 2. normas
de proteção de institutos jurídicos e 3. garantias positivas do exercício de
liberdades.
160
Enquanto direito de defesa, os direitos fundamentais protegem o
particular contra interferências ilegítimas do Poder Estatal, quer seja do Legislativo,
Executivo ou Judiciário. No caso de violação desses direitos, o indivíduo dispõe de
meios legais para fazer valer os seus direitos, consistentes, basicamente, na
pretensão de abstenção, de revogação, de anulação, de consideração – assim
entendido o dever do Estado de levar em conta a situação do eventual afetado,
fazendo as devidas ponderações e, por fim, através de uma pretensão de defesa
ou de proteção, que impõe ao Estado o dever de agir contra terceiros.
161
Essa idéia de direito de proteção
162
apresenta duas vertentes. Primeiro,
obriga o Estado a observar os direitos específicos de cada titular específico,
deixando-o ileso de intervenções inconstitucionais e/ou ilegais. Segundo, visa
garantir os direitos fundamentais contra agressão originadas de terceiros. Essa
forma de proteção será satisfeita através dos órgãos estatais, de forma que o Estado
158
MÜLLER, Friedrich. Teoria moderna e interpretação dos direitos fundamentais: especialmente com
base na teoria estruturante do direito. (Manuscrito. 3ª parte).
159
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 39.
160
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p. 2.
161
Ibid. p. 3
162
Expressão utilizada como sinônimo de direito de defesa por MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos
Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3. ed. rev. e ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p.
11. No mesmo sentido SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev.,
atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 211.
76
deixa a posição de adversário para assumir a postura de guardião dos direitos
fundamentais.
163
Por outras palavras, o Estado se obriga não a controlar o excesso,
mas, também, a suprir a omissão do próprio Estado quando houver intervenção
indevida de terceiro. Assim, se abstém de praticar ingerências nos direitos
fundamentais, além de se obrigar a protegê-los contra intervenção de particulares.
Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência da Corte Constitucional
alemã classificaram o dever de proteção em: 1. dever de proibição (consistente no
dever de se proibir determinada conduta); 2. dever de segurança (dever de proteção
do indivíduo contra intervenção de terceiros mediante adoção de medidas diversas)
e 3. dever de evitar riscos para o cidadão (editando medidas de proteção ou de
prevenção especialmente em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico).
164
como normas de proteção de institutos jurídicos, os direitos
fundamentais apresentam-se como garantidores de institutos constitucionalmente
previstos que dependam de disciplina normativa, através da intervenção do
legislador, para a sua concretização. Nesse diapasão, não se pode conceber,
destarte, por si só, o direito à herança ou à propriedade, sem a intervenção do
legislador disciplinando-os normativamente.
165
Neste mesmo rol, são encontrados os
direitos previdenciários, os de proteção da criança, da família e da saúde, que
também necessitam da intervenção legislativa para sua concretização.
163
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p.11. No mesmo sentido: SARLET, Ingo Wolfgang, A Eficácia dos
Direitos Fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005,
p. 211.
164
RICHTER, Ingo; SCHUPPERT, Gunnar Folke, Casebook Verfassungsrecht, 3. ed., München: C. H.
Beck, 1996, p. 35-36 apud MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de
Constitucionalidade. 3. ed. rev. e ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p. 12. No mesmo sentido: ALEXY,
Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 430.
165
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p. 4-5.
77
O direito fundamental, neste caso, assinala autêntica garantia
constitucional, exigindo a obrigação de implementar medidas positivas com vista a
garantir e proteger, efetivamente, a sua fruição, sendo que o meio de realização
desta proteção pode se por “meio de normas penais, de normas procedimentais, de
atos administrativos e até mesmo por uma atuação concreta dos poderes
públicos.”
166
Por fim, não raras vezes, determinado direito fundamental não pode ser
concretizado por ausência de elementos materiais e normativos. Para tanto, deve
ser invocada a função de garantia positiva do exercício de liberdades, última função
do direito fundamental, como antes mencionado. Neste diapasão, denota-se a
impossibilidade de se fazer valer o direito à saúde, se o Estado não cumprir o
programa traçado constitucionalmente, deixando de propiciar estrutura física básica,
medicamentos e instrumentos necessários às consultas e às intervenções médicas
ou, então, deixa de regulamentar o sistema de saúde através de atos normativos,
possibilitando a descentralização do sistema.
Incumbe ao Estado, destarte, além de não intervir na esfera da
liberdade pessoal dos indivíduos - função que lhe é clássica - o dever de colocar-
lhes à disposição os meios materiais e implementar condições fáticas que
possibilitem o efetivo exercício dos seus direitos fundamentais.
167
O Estado assume
verdadeira postura ativa, no sentido de colocar prestações de natureza jurídica e
positiva.
168
Forma-se, então, a chamada relação trivalente
169
entre um titular de
direito fundamental, o Estado e a ação positiva do Estado.
166
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 212.
167
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p. 6.
168
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
5. ed. rev., atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 211-212.
78
A moderna dogmática dos direitos fundamentais discute a possibilidade
de obrigar o Estado a fornecer ao titular o direito de dispor de prestações para
satisfação do direito constitucional que lhe é assegurado.
Como é cediço, a função dos direitos fundamentais, enquanto direitos
de defesa, às vezes, não é suficiente para assegurar a pretensão de eficácia
emanada do texto constitucional. Por exemplo, podem faltar, para a perfeita
concretude do direito, os elementos material ou normativo. Não se cuida apenas de
“ter liberdade em relação ao Estado (Freiheit vom...), mas de desfrutar essa
liberdade mediante a atuação do Estado (Freiheit durch...)”.
170
Esta situação leva a
entender o direito às prestações positivas, que devem ser dispostas pelo Estado.
No direito brasileiro, porém, esta discussão é minimizada pelo fato do
Constituinte ter reservado um capítulo aos direitos sociais, que também vinculam o
Estado às prestações necessárias para sua efetivação. A exemplo, encontra-se o
direito à educação, à assistência social, à previdência social e o direito à saúde,
sempre dependentes da satisfação de uma série de pressupostos de índole
econômica, política e jurídica.
171
Ainda assim, fala-se em direitos fundamentais sociais como aqueles
que exigem, do poder público, certas prestações materiais, através da
implementação de políticas sociais que possibilitem a concretização dos direitos
constitucionais.
172
Destarte, direitos fundamentais são direitos subjetivos e elementos
fundamentais da ordem constitucional, pois asseguram a implementação por seus
169
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 431.
170
KREBS, Freiheitsschutz durch Grundreche, p. 617 (624) apud MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos
fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p. 7.
171
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle decConstitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004, p. 7.
79
titulares, exigindo efetiva atuação estatal, bem como formando a estrutura do
ordenamento jurídico do Estado, através das funções de defesa, proteção das
normas, proteção dos institutos e garantias positivas do exercício de liberdades,
além de bem distinguirem os direitos sociais, merecedores, da mesma forma, de
prestações positivas.
É neste sentido que os direitos fundamentais
não restringem, mas sim ampliam, aprimoram e fortalecem o corpus
dos direitos humanos já reconhecidos; revelam novas dimensões de
implementação dos direitos humanos e contribuem para clarificar o
contexto social em que todos os direitos humanos se inserem
.
173
Aliás, como afirmado na doutrina, um das bases da democracia é a
garantia de certos direitos fundamentais do homem, além da valorização do
indivíduo e da personalidade humana integrada, assim como o compromisso entre
idéias opostas para uma solução pacífica.
174
3.1.5 Restrição e configuração legislativas dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais, no plano infraconstitucional, podem se
concretizar levando em consideração três aspectos materiais: 1. ausência de
restrição; 2. restrição (intervenção ou limitação); e 3. configuração (conformação).
175
Essas últimas modalidades se manifestam através de lei, daí dizer-se em normas
172
CURY, Ieda Tatiana. Direito fundamental à saúde: evolução, normatização e efetividade. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 03.
173
CANÇADO, Trindade, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos:
fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 41-42.
174
GARCIA, Maria. Democracia, hoje. Um modelo político para o Brasil. In: ______. (coord.) A
democracia e o modelo representativo. São Paulo: Celso Bastos Editor, Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional, 1997, 41/82.
175
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 27.
80
legais restritivas e normas legais conformadoras. As normas restritivas limitam
posições que, prima facie, se incluem no domínio de proteção dos direitos
fundamentais. As outras, conformadoras, pretendem complementar, densificar,
concretizar o conteúdo aberto, abstrato ou incompleto dos preceitos constitucionais
garantidores de direitos fundamentais.
176
Dentro desse espectro de limitações ou intervenções em direitos
fundamentais, destacam-se as hipóteses de reserva de lei ordinária (simples reserva
legal ou simples restrição legal), reserva de lei qualificada (reserva legal ou restrição
legal qualificada) e reserva de lei geral.
177
A reserva de lei ordinária autoriza o legislador infraconstitucional a
impor restrições a direitos fundamentais, sem qualquer pressuposto. Mas é evidente
que a competência do legislador não é ampla, mas sim vinculada, material e
formalmente, à própria Constituição e aos direitos fundamentais.
178
Nesses termos,
pode-se citar, como exemplos, as limitações aos direitos individuais de
inviolabilidade de liberdade de consciência e de crença, ficando assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e as suas liturgias; é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência
social religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; e ninguém se
levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou
sem fiança (art. 5º, incisos VI, VII e LXVI, CF, entre outros).
179
A segunda espécie de reserva, denominada reserva de lei qualificada,
é a autorização para concretizar restrições, exigindo, para tanto, determinados
176
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucioanal e teoria da constituição. Coimbra: Almedina,
2000, p. 1131.
177
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 34-35.
178
Ibid. p. 34.
81
pressupostos ou objetivos a serem atingidos,
180
ou seja, a Constituição não se limita
a exigir que a limitação seja prevista em lei, mas, também, que possuam condições
especiais a serem perseguidas. Assim ocorre com o art. 5º, CF, que garante o livre
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer.
181
A reserva de lei geral assemelha-se à reserva de lei ordinária, porém,
não ao objetivo específico. Sua existência é discutida por Karl August Bettermann e
Robert Alexy, afirmando, o primeiro, que a lei geral não tem a função de restrição ou
limitação direta, mas, sim, caráter acessório indireto.
182
Alexy, por sua vez, rejeita a
reserva de lei geral ao afirmar que a “Lei Fundamental” renunciou, expressamente,
às cláusulas restritivas gerais ao dotar as diferentes garantias de direitos
fundamentais com restrições muito variadas.
183
Afora a reserva geral, o assunto foi tratado sob outro aspecto,
enfocando-se os direitos fundamentais sem expressa previsão legal. A constituição
foi silente neste aspecto. Todavia, não se nega a existência de abusos decorrentes
do titular do direito fundamental, gerando, assim, verdadeiro conflito com outro
direito fundamental. A Corte Alemã, instada a pronunciar-se sobre o tema em caso
relacionado com as recusas à prestação de serviço militar, manifestou que
Apenas a colisão entre direitos de terceiros e outros valores jurídicos
com hierarquia constitucional pode excepcionalmente, em
consideração à unidade da Constituição e à sua ordem de valores,
179
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 33.
180
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 35.
181
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 37.
182
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 36.
183
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 117.
82
legitimar o estabelecimento de restrições a direitos não submetidos a
uma expressa reserva legal
.
184
Conclui-se, assim, que somente uma colisão de direitos fundamentais
legitimaria o estabelecimento de restrição a um direito não submetido à reserva legal
expressa, quando, então, poder-se-ia justificar esta intervenção em direitos de
terceiros ou em outros princípios de hierarquia constitucional.
185
Diz-se, ainda, que toda restrição será válida se, de alguma maneira
justificada constitucionalmente, afirmar-se que ela é uma necessidade que se impõe
em razão da unidade da Constituição e da harmonização dos direitos e bens por ela
protegidos, sempre submetidos a controles formal (competência, procedimento,
forma) e material (princípio da proporcionalidade e proteção do núcleo essencial).
186
3.1.6 Direitos fundamentais: necessidade para solução do conflito entre saúde
e liberdade econômica
Logo no primeiro capítulo do trabalho enfocou-se a importância do
aleitamento materno, anotando as suas bases anátomo-piso-fisiológicas, a
bioquímica, os elementos nutricionais e sua incrível capacidade imunológica.
Demonstrou-se, ainda, como uma equipe multidisciplinar pode atuar como
ferramenta para o êxito do manejo clínico da lactação.
Por fim, concluiu-se que, para que haja o efetivo aumento da
prevalência da amamentação, esses conhecimentos devem ser aliados a uma
184
BVerfGE 28, 243 (26). Cf. também, ALEXY, Theorie der Grundrechte, p. 108 apud MENDES,
Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e ampl., São
Paulo: Saraiva. 2004. p. 40.
185
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 40.
186
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 37-39.
83
estratégia de políticas públicas, voltadas para a saúde coletiva e, principalmente,
com normas de comercialização de alimentos infantis.
O objetivo final é contribuir para que gerações futuras cresçam e se
desenvolvam de forma mais saudável, pois o meio de
alimentação da criança nos primeiros meses de vida continua sendo
um dos grandes problemas de saúde pública. O número de mortes
que resultam de práticas inadequadas supera de longe a mortandade
causada por guerras mundiais. Além do elevado número de mortes,
a alimentação inadequada da criança nos primeiros meses de vida
também resulta em custos elevados com o tratamento de patologias
associadas e expõe a criança ao risco de subnutrição, que pode
afetar definitivamente o seu desenvolvimento mental e a sua
qualidade de vida
.
187
A proteção pretendida, embora amparada em textos legais, destacou, à
primeira vista, dois direitos constitucionais em tensão: o direito à saúde e o direito à
liberdade econômica - ambos direitos fundamentais - que para proteção, incentivo
e promoção do aleitamento materno houve a edição de atos normativos do Ministério
da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Tais atos, porém, limitam a liberdade do fabricante, comerciante e
distribuidor de fabricar, comercializar e promover os seus produtos como melhor lhe
aprouvesse.
Flagrante, portanto, o autêntico conflito de direitos fundamentais, cuja
solução será sugerida em capítulo próprio, utilizando-se de metodologia alemã
adaptada ao direito brasileiro.
Para tanto, necessário se faz entender o que é direito fundamental
dentro das teorias existentes, principalmente a Teoria dos Direitos Fundamentais, de
187
Trecho extraído do prefácio assinado por Alberto Carvalho da Silva, Professor Catedrático de
Fisiologia e Professor Emérito, Faculdade de Medicina da USP; Professor Honorário, Instituto de
Estudos Avançados, USP; e Consultor do Banco Mundial em Programas de Nutrição, ao livro
84
Robert Alexy. A história do direito fundamental foi apresentada, remontando-se à
Declaração de Virgínia, de 12 de janeiro de 1776, seguindo-se a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão da França, de 1789, explicitando a natureza
jusnaturalista desses direitos. Chegou-se, assim, à Declaração Universal de 1948
que, além de valores básicos universais (vida, liberdade e igualdade), abarca direitos
civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, indissociáveis da dignidade humana,
afirmando o direito à saúde e o bem estar, inclusive à alimentação adequada e do
resguardo dos direitos de cuidado e assistência à maternidade e à infância.
Pacificou-se que direito fundamental é um direito subjetivo que vincula
e, ao mesmo tempo, limita o exercício do Poder Estatal, consignado em texto
constitucional. Essenciais à estrutura da Constituição, tornam-se elementos
integrantes da identidade e da continuidade da Constituição. Seus importantes
elementos levaram à criação da Teoria Estruturante do Direito, que atribui relevância
às garantias conquistadas durante anos e normatizadas com caráter de
obrigatoriedade.
Os objetivos estatais são alcançados através de diversas funções que
os direitos fundamentais cumprem no ordenamento jurídico, dando, assim, origem a
várias classificações, como direitos de defesa, normas de proteção de institutos
jurídicos e garantias positivas do exercício de liberdades.
Com base nesse estudo, mormente nas classificações dos direitos
fundamentais, se feita a análise dos direitos colidentes (saúde e liberdade
econômica), quando, então, procurar-se-á alocar cada um deles, verificando-se a
existência ou não de reservas legais, de justificativas das intervenções estatais e da
proporcionalidade do ato normativo, que levarão à constitucionalidade ou
Amamentação: bases científicas, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S/A, 2. ed., 2005, de autoria de
Marcus Renato de Carvalho e Raquel N. Tamez.
85
inconstitucionalidade da NBCAL - Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos
para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras.
3.2. Doutrina da proteção integral
3.2.1 Origem da doutrina da proteção integral e a promoção, proteção e apoio
do aleitamento materno
Impossível falar-se em Doutrina da Proteção Integral sem antes se
reportar à Convenção sobre os Direitos da Criança. Com a afirmação dos direitos
humanos ou direitos fundamentais, conforme mencionado no item anterior,
reconheceu-se a dignidade não do homem enquanto pessoa única, mas de toda
a família - nela integrada a criança, ficando expressa a necessidade de proteger a
infância e promover-lhe os cuidados e a assistência especial
188
, assegurando-lhe,
dessa forma, desenvolvimento pleno e adequado, respeitada a sua condição
peculiar de ser em formação, preparando-lhe para o exercício da cidadania adulta.
Nesse sentido afirmou-se que
A Convenção sobre os Direitos da Criança incorporou toda a gama
de direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais
e proveu-lhes o respeito e a proteção de todos os direitos das
crianças, sendo o ponto de partida para o completo desenvolvimento
188
Neste sentido: Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança (1924); Carta das Nações
Unidas, de 1945; Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; Declaração sobre os Direitos
da Criança de 20 de novembro de 1959; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966);
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); Regras Mínimas para a
Administração da Justiça Juvenil das Nações Unidas (“Regras de Beijing” Res. 40/33 da
Assembléia Geral das Nações Unidas, de 29/11/85); Declaração sobre os Princípios Sociais e
Jurídicos Relativos à Proteção e ao Bem-Estar da Criança (Resolução da Assembléia Geral n. 41/85,
de 03 de dezembro de 1986) e Declaração sobre a Proteção da Mulher e da Criança em Situações de
Emergência e de Conflito Armado (25/05/2000).
86
do potencial individual em uma atmosfera de liberdade, dignidade e
justiça.
189
O aparecimento de diversos textos internacionais (Declaração de
Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança; a Declaração dos Direitos da Criança
adotada pela Assembléia Geral dos Direitos em 20 de novembro de 1959; a
Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e os
estatutos e instrumentos das Agências Especializadas e organizações internacionais
voltadas para o bem estar das crianças) determinou um progresso dessas normas
esparsas, contidas em textos não específicos do bem estar das crianças, levando,
assim, à tentativa de uma legislação específica e adequada a tais conceitos. O
raciocínio foi deixar uma norma genérica dotada de regras especiais para criar uma
norma conceitual, de objetivo único, compatível com diversas culturas e sociedades,
encampando os termos da Convenção. Definiu-se, então, a base do que seria a
“doutrina da proteção integral da criança”.
190
O cerne dessa doutrina está na atribuição de prerrogativas e privilégios
concernentes à seguridade social, educação, trabalho e convívio, assegurando às
crianças o dever de beneficiar-se e dispor de oportunidades e serviços, através de
lei ou por outros meios, permitindo o seu desenvolvimento saudável e normal, tanto
no plano físico, intelectual, assim como em condições de liberdade e dignidade,
sendo que, em todos os dispositivos legais criados com estas intenções, será
considerado, fundamentalmente, o superior interesse da criança.
191
189
MATERSON, Jan. Sub-secretário Geral das Nações Unidas para os Direitos Humanos, durante a
cerimônia de assinatura da Convenção, em 26 de janeiro de 1990. Disponível em <
http://www.unesco >. Acesso em: 26 fev. 2004.
190
SOUZA, Sérgio Augusto Guedes Pereira de. Os Direitos da criança e os direitos humanos. Porto
Alegre : Fabris Editor. 2001, p. 71-72.
191
SOUZA, Sérgio Augusto Guedes Pereira de. Os direitos da criança e os direitos humanos. Porto
Alegre : Fabris Editor. 2001, p. 72.
87
Concebida à luz da Declaração sobre os Direitos da Criança, de 20 de
novembro de 1959
192
, a Convenção dos Direitos da Criança, adotada pela ONU em
20 de novembro 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990
193
, tem
esse objetivo bem marcado em seus cinqüenta e quatro artigos. Acolhe a idéia de
desenvolvimento integral da criança, atribuindo-lhe a condição de sujeito de direitos,
e não objeto de intervenção do direito, exigindo-lhe, ainda, proteção especial e
absoluta prioridade, dando, assim, origem ao que, doutrinariamente, denominou-se
“Doutrina da Proteção Integral”.
194
A proteção da criança, na Convenção de 1989, está contida em um
espectro variável de direitos e garantias, partindo do direito à igualdade e chegando
à garantia da reserva legal, do estado de inocência, do amplo direito de defesa, do
juiz natural, do duplo grau de jurisdição e da privacidade.
195
Neste diapasão, ficou
reconhecido o direito inerente à vida”,
196
devendo o Estado assegurar, ao
192
Destaque feito à Declaração de 1959 porque faz menção específica à “proteção e cuidados
especiais” da criança, bem como afirma, no PRINCÍPIO 2º, que “A criança gozará proteção especial
e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe
facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e
em condições de liberdade e dignidade. (g.n.), enunciado, este, adotado integralmente na
segunda parte do art. do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não se rechaça, evidentemente, a
importância dos demais textos internacionais mencionados na nota acima. Ressalta-se, ainda, a
extensão do preâmbulo da referida Declaração quando afirma que a Humanidade deve à criança o
melhor de seus esforços” . Sem dúvida alguma, constitui evidente pacto de responsabilidade
humana universal que, aliás, foi bem compreendida pelo Constituinte de 1988, ao consignar que É
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação...(g.n.), entre outros tantos direitos
fundamentais (Art. 227 da Constituição Federal).
193
Decreto de ratificação nº 99.710, de 21/11/90.
194
ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do adolescente: doutrina e jurisprudência. São Paulo:
Atlas, 1998, p. 21; CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários
jurídicos e sociais. 6. ed. São Paulo: 2003. p. 15, ; CURY, GARRIDO & MARÇURA. Estatuto da
criança e do adolescente anotado. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 19.
No mesmo sentido: MENDEZ, Emílio Garcia & COSTA, Antônio Carlos Gomes da Costa. Das
necessidades aos direitos.o Paulo: Malheiros, 1994, 71.
195
Artigos 2º a 40 da Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 1989. (anexo)
196
“Artigo 6º - 1. Os Estados-partes reconhecem que toda criança tem o direito à vida.
2. Os Estados-partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.”
(g.n.)
88
máximo”,
197
a sobrevivência e o desenvolvimento da criança, proporcionando-lhe,
para tanto, o “melhor padrão possível de saúde”.
Sintetizando a doutrina da proteção integral, já se afirmou que ela deve
“ser entendida como aquela que abranja todas as necessidades de um ser humano
para o pleno desenvolvimento de sua personalidade”,
198
ou seja, a proteção integral
da criança busca propiciar e garantir o desenvolvimento saudável e integridade à
criança e ao adolescente.
199
A plena satisfação desses dois direitos fundamentais (vida e melhor
padrão possível de saúde), indissociáveis por natureza, pois sem saúde não vida
digna e sem vida não o que ser protegido, é importante, pois obriga os países
partícipes da Convenção a adotarem medidas necessárias para reduzir a
mortalidade infantil, combater a desnutrição, assegurar às mães adequada
assistência pré e pós-natal, assegurar o conhecimento básico de saúde e nutrição
das crianças, as vantagens do aleitamento materno e a adoção de medidas
eficazes e adequadas para abolir práticas prejudiciais à saúde da criança.
200
A importância da proteção da criança ganhou relevo com a Declaração
Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento das Crianças nos
Anos 90, fruto do Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado nos dias 28 e
29 de setembro de 1990, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, que colheu
o compromisso de lideres mundiais na melhoria da saúde e da nutrição de crianças
e mães, intitulando a saúde e a adequada nutrição como causas da morte de
197
A expressão (“ao máximo”), utilizada no item 2 do artigo da Convenção sobre os Direitos da
Criança, epigrafado na nota 63, a perfeita idéia de proteção integral, devendo o Estado empenhar
todos os esforços para garantia de uma sobrevivência longeva e perfeito desenvolvimento da criança.
198
ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. o Paulo: Saraiva,
1994, p. 2.
199
DE PAULA, Paulo Afonso Garrido. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional
diferenciada.o Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 27.
200
Artigo 24, itens 1; 2, a, c, d, e; e 3, da Convenção sobre os Direitos da Criança
89
milhares de crianças
201
, instituindo, ainda, plano de ação para sua efetivação. Mais
do que isso, compromissou os seus signatários a implementarem a Convenção
sobre os Direitos das Crianças. Como ação básica na estratégia de erradicação
da fome e da desnutrição infantil, afirmou a necessidade de uma alimentação
familiar segura e adequada, mediante promoção, proteção e apoio ao aleitamento
materno e às práticas complementares de alimentação
202
.
3.2.2 Doutrina da proteção integral no Brasil.
O Brasil, todavia, não necessitou dessa advertência formulada no
Encontro Mundial de Cúpula pela Criança. Antes de ratificar a Convenção sobre os
Direitos da Criança (24.09.90), até mesmo antes da adoção desta Convenção pela
própria ONU (20.11.89), os direitos fundamentais dos infantes estavam consagrados
na Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988.
O artigo 227 da Magna Carta, pois, diante de todos os precedentes
internacionais humanitários já mencionados, e voltado ao valor máximo da vida
humana: a dignidade, atribuiu à família, à sociedade e ao Estado o dever de
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão,
tal como preconizaria a Convenção sobre os Direitos da Criança um ano mais tarde.
201
Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento das Crianças nos
Anos 90, item 10.
202
Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento das Crianças nos
Anos 90, item 13 e 14.
90
Note-se que, em momento algum, é retirada da criança a sua
existência como pessoa, ao contrário, afirma a doutrina da proteção integral, que se
trata de pessoa em condição especial de desenvolvimento, assegurando-lhe,
também, direitos fundamentais, como explicitado no parágrafo anterior.
Assim, enquanto pessoa, a criança tem os seus direitos assegurados,
inclusive os fundamentais, e mantém uma relação com o Estado, que a qualifica,
dando-lhe status, conforme asseverado por George Jellinek na sua teoria do status.
Esta relação pode se dar em várias dimensões: status pasivo (o
indivíduo encontra-se em uma relação de submissão ao Estado, dentro da esfera do
dever individual), status negativo (relação na qual o indivíduo age com liberdade
liberdade individual -, vedada a intervenção estatal), status positivo (relação na qual
o Estado confere ao indivíduo o status civitatis – ‘status de la civilidad’
203
, garantindo
prestações e atividades, bem como facilitando as medidas jurídicas para sua
satisfação) e, por fim, status activo (relação em que o Estado outorga ao indivíduo
capacidades que estão fora das suas liberdades naturais, como o direito ao
sufrágio).
204
Nessa classificação, o art. 227 da CF revela um direito de status
positivus ou social, que permite à criança exigir prestações do Estado. Sua essência
reside na obrigação de atuação estatal em favor da melhoria das condições de vida
da população, por outras palavras, traduz-se em política social,
205
principalmente em
favor da criança que possui absoluta prioridade.
Tão clara a adoção da doutrina da proteção integral na Constituição
Federal que o seu artigo 227 “é reconhecido na comunidade internacional como a
203
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 256.
204
Ibid. p. 247-261.
91
síntese da Convenção da ONU de 1989, ao declarar os direitos especiais da criança
e do adolescente, como dever da família, da sociedade e do Estado”.
206
A mobilização para a reforma do sistema aplicado às crianças e aos
adolescentes foi de caráter, inegavelmente, democrático e humanitário, tanto que a
Constituição Federal destaca a priorização dos direitos humanos, cuja proteção
configura um dos cinco fundamentos do Estado Democrático de Direito da Nação
Brasileira.
207
A Convenção de 1989 foi, sem vida, o instrumento que chamou a
atenção dos movimentos sociais relativos, requisitando a implementação de políticas
públicas para melhorar as condições de vida da infância.
208
A partir de então, o sistema jurídico infanto-juvenil iniciava profunda
transformação. O Código de Menores de 1979
209
deu lugar ao Estatuto da Criança e
do Adolescente, em 13 de outubro de 1990, obedecido o período de vacatio legis de
noventa dias. A criança e o adolescente não eram mais objeto de intervenção dos
direitos e interesses dos adultos, mas sim sujeito de direitos, devendo a
interpretação da lei levar em consideração a sua “condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento”.
210
A Doutrina da Situação Irregular lugar à Doutrina da
Proteção Integral.
211
Note-se que, somente no século XX, surgiram as primeiras leis
específicas para menores, isto em decorrência da decadência dos estabelecimentos,
205
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução do estudo do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 250.
206
PEREIRA. Tânia da Silva. A proteção da infância e adolescência no Brasil. Revista de Direito
Civil, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 60, p. 22-39 1992.
207
MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção constitucional de crianças e os direitos humanos.
Barueri: Manole, 2003, p. 55.
208
MENDEZ, Emílio Garcia & COSTA, Antônio Carlos Gomes da Costa. Das necessidades aos
direitos. São Paulo: Malheiros, 1994, p.72.
209
Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. (anexo)
210
Art. 6º do Estatuto da criança e doaAdolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).
92
que abrigavam adolescentes e adultos, em manifesta promiscuidade, leis, estas,
consubstanciadas na doutrina da situação irregular. De caráter visivelmente
assistencialista, inspirou os primeiros códigos de menores nos países latino-
americanos (Argentina, em 1921; Brasil em 1923; México em 1927; Chile 1928;
212
e
Venezuela em 1939). A sua essência era a livre intervenção estatal para tutelar as
crianças e adolescentes abandonados, quer sob o aspecto material, quer sob o
aspecto moral.
213
Diante deste contexto surgiram os primeiros tribunais de menores e a
figura do juiz de menores, com competência penal e tutelar (diga-se assistência
social), cabendo-lhe, ainda, resolver as deficiências do sistema.
214
Todavia, como se vinha discorrendo, com base na Convenção
Internacional dos Direitos da Criança das Nações Unidas de 1989, instalou-se uma
nova pedagogia das garantias em substituição à pedagogia da discricionariedade.
215
O Estatuto da Criança e do Adolescente, atendendo ao novo
dispositivo constitucional, confirmou a Doutrina da Proteção Integral e transcreveu,
ipsis litteris, o artigo 227 da Constituição, incluindo, assim, na legislação
infraconstitucional, a prioridade absoluta na efetivação dos direitos fundamentais das
crianças e dos adolescentes, conforme se verifica no seu artigo 4º.
no seu artigo 1°, o Estatuto deixa evidente a adoção da doutrina da
proteção integral das crianças e dos adolescentes, afirmando tal disposição na
211
MENDEZ, Emílio Garcia & COSTA, Antônio Carlos Gomes da Costa. Das necessidades aos
direitos. São Paulo: Malheiros, 1994, p.51.
212
Ibid. p. 18
.
213
OLIVEIRA, Rodrigo Augusto de. Ato infracional e direitos fundamentais: um novo paradigma para
a aplicação de medidas sócio-educativas. 2004. Dissertação (Mestrado em Direito) Curso de Direito -
Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba. 2004, p. 18.
214
MÉNDEZ, Emilio García. Derecho de la infancia en América Latina: de la situación irregular a la
protección integral. Colômbia ; Santa Fé de Bogotá: Fórum Pacts, 1994, p. 17-18
215
MENDEZ, Emílio Garcia. Infancia, ley y democracia: una cuestión de justicia, 1988. p. 18. ;
MENDEZ, Emílio García; BELLOF, Mary. Buenos Aires: Temis, 1988. p. 27.
93
condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, com direitos próprios e
especiais.
216
Por se acharem nesta condição peculiar, de maior vulnerabilidade, é
que se procurou criar um sistema que permitisse à criança e ao adolescente
desenvolverem suas potencialidades humanas em plenitude. “Crianças e
adolescentes são pessoas que ainda não desenvolveram completamente sua
personalidade”.
217
Daí a legislação específica.
Não se restringiu, porém, a afirmar tais direitos, garantiu também,
através do artigo 3º, “o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade”, cujas oportunidades e facilidades devem ser
asseguradas por lei ou por outros meios que instrumentalizem o alcance desses
direitos como, por exemplo, as medidas de política pública, que podem se expressar
através de atos normativos do Poder Executivo, que possuem a finalidade de
estabelecerem parâmetros para fiel execução da lei.
Ao referir-se a “outros meios” o legislador quis deixar claro que a lei
não é a única forma de garantir os direitos fundamentais das crianças. A
concretização desses direitos não se esgota na edição de leis, mas se
operacionaliza, também, através de políticas blicas e atitudes efetivas da
sociedade.
218
e219
Por sua vez, as políticas públicas são implementadas através de
atos administrativos decorrentes do poder normativo do Estado.
216
LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. São Paulo:
Malheiros, 2003, 7. ed., p. 13.
217
MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e os direitos humanos.
Barueri: Manole, 2003, p. 109.
218
COELHO, João Gilberto Lucas Coelho. Comentário ao artigo do Estatuto da Criança e do
Adolescente. IN: CURY, Munir. (coord.) Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado:.
Comentários jurídicos e sociais, 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 36.
219
A expressão “programática”, aqui, é utilizada para designar o conjunto de medidas a serem
praticadas, de forma obrigatória. O princípio constitucional da prioridade absoluta não é norma de
eficácia contida de caráter programático, mas sim de eficácia plena e imediata. Ora, afirmando
direitos constitucionais, o art. 227 da Constituição federal deve ser analisado em consonância com o
94
Cita-se, como exemplo do poder normativo da Administração, o decreto
regulamentar, privativo do Chefe do Executivo, e as “resoluções, portarias,
deliberações e instruções, editadas por autoridades que não o Chefe do
Executivo”.
220
Vale relembrar que a NBCAL é formada pelo conjunto de uma portaria
do Ministro da Justiça e de duas resoluções da ANVISA, órgãos integrantes da
Administração Pública no âmbito do Executivo, e tem por objetivo o incentivo do
aleitamento materno, como forma de reduzir a mortalidade infantil, garantindo o
direito à vida, à saúde e ao desenvolvimento físico e mental da criança.
Seguindo o estudo dos artigos do Estatuto da Criança e do
Adolescente, verifica-se que os direitos fundamentais previstos na Constituição
Federal são mais uma vez afirmados pelo Estatuto, no Título II, que reservou o
Capítulo I ao direito à vida e à saúde, disciplinando-os nos artigos a 14, com
menção expressa ao aleitamento materno no artigo 9º.
Conclui-se, dessa forma, que a Doutrina da Proteção Integral, de
origem imediata constitucional, foi bem entendida pelo legislador ordinário que, em
dois artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (artigos e 4º), conjugou os
termos proteção integrale absoluta prioridade”, respectivamente, referindo-se,
no primeiro, ao conjunto de direitos atribuídos às crianças e aos adolescentes, que
exige, primordialmente, não um comportamento negativo do Estado, mas uma
postura positiva de implementação “programática”
221
e
222
da satisfação dos direitos
fundamentais, de forma obrigatória e não meramente sugestiva ou exemplificativa.
artigo 5º, parágrafo 1º, CF, que atribui imediata aplicação às normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais. Assim, é dever do Estado garantir o efetivo acesso à saúde materno-infantil,
no presente caso, implementando as políticas públicas necessárias através dos órgãos competentes.
220
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Atlas. 1993. p. 71.
221
VERCELONE, Paolo. Comentário ao artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente. In:
CURY, Munir. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais, 6.
ed. São Paulo: 2003. p. 35.
222
A expressão “programática”, aqui, é utilizada para designar o conjunto de medidas a serem
praticadas, de forma obrigatória, não se confundindo com as normas constitucionais programáticas
95
Fala-se, então, em uma pretensão política de proteger juridicamente a
criança e o adolescente, diante de um sistema que lhes atribui a titularidade de
interesses subordinantes frente à família, à sociedade e ao Estado, os quais, não
raras vezes, sob o pretexto de proteger a criança, acabam por negar os seus mais
básicos direitos. Tal proteção é integral porque atinge a totalidade das relações,
inclusive, interpessoais.
223
A idéia de proteção integral está estritamente ligada aos direitos
fundamentais, entre eles os sociais, fixados na Constituição Federal. Trata-se, na
verdade, da proteção integral aos direitos fundamentais das crianças e dos
adolescentes, que, por sua vez, não se materializará sem a efetivação dos direitos
sociais (saúde, educação, profissionalização e alimentação). Daí a necessidade de
implementação de políticas públicas para concretização desses direitos, com o fito
de alcançar a proteção integral da infância e juventude
224
, de forma igualitária.
Importante destacar a série de perguntas formuladas por Paulo Afonso
Garrido de Paula
225
, que esclarece a essência da proteção integral e insere, no seu
contexto, sem dúvida alguma, o direito à saúde e a obrigação do Estado em garanti-
lo:
Em resumo, proteger de quem? Da família, da sociedade e do
Estado. E proteger como? Através de direitos e garantias expressos
pelo legislador mediante um sistema jurídico que revele, pelo seu
valor intrínseco, crianças e adolescentes. E proteger o quê? Os
que, se o tiverem lei infraconstitucional consoante roteiros de ação gizados na Constituição, não
são aplicáveis, resumindo-se em normas desprovidas de valor normativo com aplicação possível. O
princípio constitucional da prioridade absoluta não é norma de eficácia contida de caráter
programático, mas sim de eficácia plena e imediata. Ora, afirmando direitos fundamentais, o artigo
227 da Constituição Federal deve ser analisado em consonância com o artigo 5º, parágrafo 1º, CF,
que atribui aplicação imediata às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.
223
DE PAULA, Paulo Afonso Garrido. Direito da Criança e do Adolescente e Tutela Jurisdicional
Diferenciada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 23-24.
224
MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção constitucional de crianças e os direitos humanos.
Barueri: Manole, 2003, p. 136-137.
225
DE PAULA, Paulo Afonso Garrido. Direito da criança e doaAdolescente e tutela jurisdicional
Diferenciada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 24.
96
interesses fundamentais da criança ou adolescente à vida, saúde,
educação, liberdade, lazer, convivência comunitária, integridade
física, mental, espiritual etc.
A segunda expressão (absoluta prioridade), por sua vez, traduz a
obrigatoriedade, nas prioridades do Governo, de assumir e concretizar os direitos
fundamentais das crianças e dos adolescentes, que devem ser rigorosamente
observados através das tarefas do Estado, mormente através da formulação e
execução de políticas públicas, tais como, por exemplo, de ensino, trabalho, saúde e
segurança social, além de outras primazias enumeradas no artigo do Estatuto da
Criança e do Adolescente
226
. Aliás, esta é a função de uma constituição dirigente.
227
A efetivação do interesse juridicamente protegido da criança ou do
adolescente ganha frente em relação aos interesses adultos, ocupando espaço
primordial no mundo jurídico, isto porque a rapidez das transformações do
dinamismo da criança exige a imediata concretude dos seus direitos, sob pena de
torná-los ineficazes se mais tarde realizados. A presteza nestes direitos é condição
de validade para que se dêem no tempo certo, assegurando o desenvolvimento
pessoal e garantindo a integridade, sob pena de conseqüências irreparáveis,
representadas, muitas vezes, pela morte ou debilidade física ou mental. Nesse
conjunto de necessidades infanto-juvenis, que precisam ser priorizadas,
pressupõem-se condições materiais e fundamentais como a alimentação, saúde,
educação, liberdade, cultura, lazer.
228
226
DALLARI, Dalmo de Abreu. Comentário ao artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente. In:
CURY. Munir. (coord.) Estatuto da criança e do Adolescente Comentado. Comentários jurídicos e
sociais, 6. ed. São Paulo: 2003. p. 37-44.
227
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.; participantes Agostinho Ramalho Marques Neto...
[et al.]. Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Resenha do Prefácio da
2ª edição, item 06, da obra Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, 2. ed.:
resenha de um prefácio (Eros Roberto Grau).
228
DE PAULA, Paulo Afonso Garrido. Direito da Criança e do adolescente e tutela jurisdicional
Diferenciada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 39-40.
97
E outra não foi a intenção do Constituinte de 1988 ao dispor sobre o
objetivo fundamental da República, assim considerada a garantia do
desenvolvimento nacional, com a erradicação da pobreza e redução das
desigualdades sociais, visando ao bem de todos. Esta finalidade constitucional
específica revela a necessidade de realizar inúmeras tarefas de incumbência ao
Estado, tanto de caráter econômico, como social, entre elas a promoção da
infância,
229
incluídas a alimentação adequada e saúde.
Este dever de desenvolvimento nacional, não apenas econômico-
financeiro, mas também humano, guiado pelas liberdades fundamentais, do qual não
pode mais o Estado se afastar,
230
é justamente alcançado com a implementação de
políticas públicas, que, por estarem previstas no texto constitucional, tornam-se
instrumento jurídico normativo colocado à disposição da República para atingir os
seus objetivos constitucionais.
231
Neste sentido, exatamente, conceituou-se política pública como
instrumento de ação do Estado e de seus poderes constituídos, em
especial o Executivo e o Legislativo, de caráter vinculativo e
obrigatório, que deve permitir divisar as etapas de concreção dos
programas políticos constitucionais voltados à realização dos fins da
República e do Estado Democrático de Direito, passíveis de exame
de mérito pelo Poder Judiciário.
232
É de se frisar que, apesar de flagrante o caráter programático das
disposições do artigo 3° da Constituição Federal, acima analisado, como também o
229
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004, p.
97-102 e 171-240.
230
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 67.
231
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Os direitos fundamentais são absolutos? A tendência
inflacionária do processo de positivação e o paradoxo da dispersão dos enfoques. Caderno do Curso
de Mestrado em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, v. 3, n. 5, p. 238, dez.
2003.
98
são, via de regra, os dispositivos constitucionais que tutelam direitos sociais, tais
normas não perdem os seus efeitos jurídicos obrigatório e vinculante.
233
A distinção entre as normas programáticas e as demais normas
decorre da sua densidade normativa. Assim, existem normas mais densas,
completas, concretas, que não deixam qualquer margem de interpretação. Outras,
porém, mostram-se mais abertas, deixando um espaço discricionário para que o
aplicador possa concretizá-las. Essas que possuem um menor grau de densidade
necessitam de normas inferiores que afirmem o seu sentido e modo de execução,
ficando a autoridade estatal competente incumbida deste dever, adotando as
estratégias necessárias,
234
como a formulação de políticas públicas a serem
implementadas, tal como acima descrito.
A doutrina da proteção integral refere-se, portanto, a todos os direitos
inerentes às crianças e adolescentes, observada e respeitada a peculiar condição de
pessoa em desenvolvimento, e que devem ser garantidos através de lei ou de
políticas públicas integradas entre a família, a sociedade e o Estado,
235
concretizando a finalidade das normas constitucionais.
O Estatuto da Criança e do Adolescente está estruturado em três
grandes sistemas de garantia: a. sistema primário, voltado para as políticas
públicas de atendimento (art. e arts. 85/87); b. sistema secundário, que visa ao
atendimento de crianças e adolescentes vítimas, em situação de risco pessoal ou
social decorrente de ação ou omissão da sociedade ou do Estado; falta, omissão ou
abuso dos pais ou responsável e, ainda, em razão da própria conduta da criança ou
232
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004, p.
97.
233
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução do estudo do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 80.
234
Ibid. p. 78-79.
99
adolescente, como disciplinado nos arts. 98, 101 e 136, I); c. sistema terciário,
referente às medidas cio-educativas para adolescentes autores de atos
infracionais (arts. 103 e 112).
236
Desses sistemas, merece destaque o primário, que o Estatuto da
Criança e do Adolescente dispôs, de forma harmônica, o acionamento de cada um
deles, ficando, o primeiro, no âmbito preventivo. Assim, devem ser acionadas, com
prioridade, as políticas públicas de proteção à infância e juventude e, gradualmente,
se necessário, os demais sistemas, como se fosse uma engrenagem destinada à
concretização da teoria da proteção integral.
Resume-se, pois, a proteção integral, na doutrina que afirma a criança
e o adolescente como pessoas em desenvolvimento, sujeitas à vulnerabilidade,
razão pela qual devem ser-lhes proporcionadas, com absoluta prioridade, todas as
facilidades e oportunidades para a sua plena formação, garantindo-lhes, inclusive,
os direitos fundamentais e promovendo a proteção igualitária,
237
agindo sempre de
forma preventiva e deixando o Sistema de Justiça (terciário: medidas sócio-
educativas) para aplicação em casos excepcionais.
Diante do exposto, conclui-se que, na verdade,
o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do
homem, não é era mais fundamentá-los, e sim o de protegê-los... o
problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e,
num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e
quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento,
se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim
235
PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p.
25-26.
236
SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção
integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003. p. 61.
237
COSTA, Antônio Carlos Gomes. Pedagogia y Justicia. In: MENDEZ, Emílio García; BELLOF,
Mary. Buenos Aires: Temis, 1988, p.60. No mesmo sentido: BRUNOL, Miguel Cillero. El interes
superior del nino em el marco de la convención internacional sobre los derechos del nino, p. 77. In:
MENDEZ, Emílio García; BELLOF, Mary. Buenos Aires: Temis, 1988, p.27.
100
qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que,
apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente
violados.
238
.
O desenvolvimento saudável, dentro dessa perspectiva da doutrina da
proteção integral da criança, é de suma importância, que se apresenta como pilar
para uma vida harmoniosa em um meio de espectros variáveis. Mais do que isso, a
extensão dos benefícios médicos, psicológicos e outros semelhantes são essenciais
para atingir o mais elevado grau de saúde, a começar pelo natural meio de
alimentação: aleitamento materno.
Importante frisar que uma população esclarecida e a atuação estatal,
através de órgãos competentes, são os meios de se atingir o melhor grau de saúde.
Ora, o Estado tem o dever de implementar a saúde da sua população, o que se
por meio de medidas sanitárias e sociais adequadas, conforme ficará demonstrado
no próximo item.
3.3 Direito à saúde
Denota-se do texto constitucional a proteção à vida. Tal direito, porém,
foi adjetivado , tornando-se direito à qualidade de vida. Durante a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, a Declaração de Estocolmo/72 ressaltou que
o homem tem o direito fundamental a “[...] adequadas condições de vida [...]”. Na
Declaração do Rio de Janeiro/92, afirmou-se que os seres humanos “têm direito a
uma vida saudável” (Princípio I).
239
238
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 25.
239
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro, 12. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Malheiros, 2004, p. 47.
101
Assim, não basta viver, é necessário que se resguarde a qualidade de
vida. Visando ao controle deste objetivo, a Organização Mundial de Saúde,
anualmente, apresenta uma classificação dos países com qualidade de vida
mediana. Os critérios para esta definição são três: 1. saúde; 2. educação; e 3.
produto interno bruto.
240
Disso decorre que esta “qualidade de vida é um elemento finalista do
Poder Público, onde se unem a felicidade do indivíduo e o bem comum, com o fim
de superar a estreita visão quantitativa, antes expressa no conceito de nível de
vida”.
241
Assim, vários são os fatores que interferem na saúde dos homens,
como a seguir detalhado.
3.3.1 Evolução histórica da saúde no Brasil
Em breve retrospecto jurídico, verifica-se que o direito à saúde
somente foi reconhecido como direito social fundamental na Constituição de 1988,
demonstrando um atraso na adoção constitucional do direito à saúde em relação à
evolução da legislação sanitária internacional.
242
A Constituição imperial (1824), embora permeada pelo liberalismo, em
momento algum normatizou o direito à saúde, fato explicado em razão do contexto
histórico-político do Brasil no século XIX, que,
240
Ibid. p. 48.
241
LÓPEZ RAMÓN, Fernando. El derecho ambiental como derecho de la función pública de
protección de los recursos naturales, Cuadernos de Derecho Judicial, XXVIII/125-147, 1994, apud
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro, 12. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 48.
102
recém declarado independente, iniciava a construção de uma nova
sociedade nos trópicos. Escassos eram os hospitais e os serviços de
vigilância sanitária – para não dizer inexistentes. Entender a saúde, à
época, era visualizá-la como uma (des)graça das divindades. Não
cabia ao Estado interferir nessa questão, quanto mais um Estado
liberal como aquele apregoado pela Constituição do Império
.
243
Mesmo no início do período republicano (1891)
244
, a saúde não era
reconhecida constitucionalmente, vindo, porém a tomar novos contornos com a
industrialização do país quando associada à força de trabalho, que deveria ser a
máxima possível, livre de doenças. Daí a concepção liberal de saúde com a forma
de repor o indivíduo ao trabalho
245
.
As preocupações sanitárias foram retratadas na Constituição de 1934,
que estampava um pretenso Estado Social de Direito. Contudo, não mencionou a
saúde com princípio constitucional, mas apenas revelou, pela primeira vez, a
preocupação na adoção de medidas legislativas e administrativas tendentes a
restringir a mortalidade e a morbidade infantil, e de higiene pessoal para impedir
a propagação das doenças transmissíveis, conservando-se, ainda, a saúde
mental.
246
A Carta de 1937, assim como a Constituição de 1946 silenciaram sobre
o tema. Mas logo, em seguida, o cenário internacional começou a experimentar a
242
SCHWARTZ, Germano André D. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 43.
243
SCHWARTZ, Germano André D. A efetivação do direito à saúde. Revista do Direito do
Departamento de Direito da UNISC. Programa de Pós-Graduação em Direito Mestrado. Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas: Santa Cruz do Sul: Editora da UNISC. N.13, p.115-128, jan/jun, 2000.
244
SCHWARTZ, Germano André D. Direito à Saúde: Efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 44.
245
SCHWARTZ, Germano André D. A efetivação do direito à saúde. Revista do Direito do
Departamento de Direito da UNISC. Programa de Pós-Graduação em Direito Mestrado. Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas: Santa Cruz do Sul: Editora da UNISC. N.13, p.115-128, jan/jun, 2000.
246
Constituição de 1934. Art. 138. “Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das
leis respectivas:
.................................................................................................................................................................
f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade
infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis;
g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais;”.
103
concretização dos direitos humanos, em especial do direito à saúde, de forma mais
incisiva, o que acabou resvalando na legislação brasileira.
A exemplo, a saúde passou a ser considerada como fenômeno social e
protegida como direito fundamental na Constituição italiana, em vigor a partir de 01
de janeiro de 1948, na Parte I (Direitos e Deveres do Cidadão), Título II (Relações
Ético-Sociais), artigo 32:
A República tutela a saúde como direito fundamental do indivíduo e
interesse da coletividade, e garante tratamentos gratuitos aos
indigentes. Ninguém pode ser obrigado a um determinado tratamento
sanitário, salvo disposição de lei. A lei não pode, em hipótese
alguma, violar os limites impostos pelo respeito à pessoa
,
revelando efetiva responsabilidade do Estado, não o impedindo de intervir em
desfavor deste direito individual, mas obrigando-o a uma prestação gratuita perante
os menos favorecidos economicamente.
O reconhecimento internacional, todavia, se deu com a criação da
OMS Organização Mundial da Saúde, em 1946
247
, e com a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, em 10 de dezembro de 1948, que proclamou, no seu artigo
25, o direito universal a um padrão de vida suficiente para assegurar ao indivíduo e a
sua família “a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao
vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais
necessários”, afirmando, ainda, que toda pessoa tem “direito à segurança no
desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de
perda de meios de subsistência por circunstâncias, independentes da sua vontade”.
247
Constituição da OMS Organização Mundial da Saúde. Disponível em
<http://www.onuportugal.pt/oms.dc>. Acesso em: 30.set. 2005
104
O Brasil, mesmo diante da Declaração Universal, da qual era
signatário, e de toda mudança nas constituições de outros países
248
, manteve texto
singelo de proteção à saúde na Constituição de 1967, enfocando-a como objeto de
políticas públicas, limitando-se a estabelecer a obrigação de implementação de
planos nacionais de saúde, cuja competência era da União, mas nunca a
reconhecendo como princípio.
Hoje, de acordo com o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde é
direito (fundamental) de todos (universal) e dever do Estado (com prestações
negativas e positivas), garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário
às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
3.3.2 Classificação do direito à saúde (Teoria do Status)
Reportando-se à teoria do status, de Georg Jellinek
249
, o indivíduo
mantém uma relação com o Estado que o qualifica, ou seja, para o autor status é
uma relação do indivíduo com o Estado, qualquer que seja a sua natureza. Esta
relação pode se dar em várias dimensões: status pasivo (o indivíduo encontra-se em
uma relação de submissão ao Estado, dentro da esfera do dever individual), status
negativo (relação onde o indivíduo age com liberdade liberdade individual -,
vedada a intervenção estatal: ‘Al miembro del Estado le corresponde, pues, um
estatus em el cual es señor, uma esfera libre del Estado, que niega el Imperium
250
),
248
A exemplo as constituições espanhola, guatemalteca e portuguesa, conforme citadas por
SCHWARTZ, Germano André D. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 46.
249
Apud ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos
y Constitucionales, 2001, p. 247.
250
Ibid. p. 251.
105
status positivo (relação na qual o Estado confere ao indivíduo o status civitatis
‘status de la civilidad’
251
, garantindo prestações e atividades, bem como facilitando
as medidas jurídicas para sua satisfação) e, por fim, status activo (relação em que o
Estado outorga ao indivíduo capacidades que estão fora das suas liberdades
naturais, como o direito ao sufrágio).
252
Nessa classificação, a saúde revela um direito de status positivus ou
social, que permite ao indivíduo exigir determinadas prestações por parte do Estado.
Sua essência reside na obrigação de atuação estatal em favor da melhoria das
condições de vida da população, por outras palavras, traduz-se em política social.
253
A preocupação do Constituinte de 1988 é bem diversa do de 1934, que
se voltava para a saúde como fator de produtividade e não como direito do cidadão,
tanto que mereceu destaque nos artigos 5º a 7º, 21 a 24, 30, 127, 129, 33, 134, 170,
182, 184, 194, 195, 197 a 200, 216, 218, 220, 225, 227 e 230. A criança, neste
espectro jurídico, recebeu proteção específica no artigo 227, com a mencionada
Doutrina da Proteção Integral, incorporada também pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente.
3.3.3 Conceito e natureza jurídica da saúde
Nesse contexto, é fácil observar que a abordagem da saúde no direito
passou por uma transformação conceitual e, atualmente, é entendida como direito
social fundamental “própria ao Estado do Bem-Estar Social, além de propô-la como
251
Ibid. p. 256.
252
Ibid. p. 247-261.
253
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução do estudo do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 250.
106
inserida no novo âmbito dos direitos humanos de geração, ou seja, como
vinculada ao caráter de solidariedade, que os identifica.”
254
Embora não se concorde com a classificação da saúde como direito de
3ª geração, mesmo porque, na verdade, conforme doutrina dominante, os direitos
fundamentais não se dividem em gerações, mas são analisados em dimensões
diversas
255
, a categoria mencionada, no parágrafo anterior, também encontra
amparo em outra obra que entende que o direito à saúde entrelaça-se em todas as
gerações. Assim, seria de primeira geração porque é um dos componentes da vida,
seja como elemento agregado para sua existência, seja como elemento agregado à
sua qualidade. Dir-se-ia de segunda geração porque o art. 6° da Constituição
Federal o prevê como direito social, passando a exigir do Estado prestações
positivas, apontando as vertentes curativa e preventiva, extensiva a toda e qualquer
pessoa. Assim, coletiva, a saúde adquire a característica de direito transindividual
(coletivo e difuso), além de deixar transparecer a idéia de solidariedade, portanto,
direito de terceira geração na busca da melhor qualidade de vida. De quarta
geração, porque o direito à saúde envolve, atualmente, questões de biotecnologia e
bioengenharia. E, por fim, os direitos de quinta geração - aqueles relativos à
revolução cibernética - dado que a busca da melhor qualidade de vida pressupõe
que o indivíduo possa ter acesso a todos os instrumentos de satisfação de seu
particular estado de bem-estar.
256
254
MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997, p. 187.
255
“O termo gerações não se justifica não apenas pelo preciosismo de que as gerações anteriores
não desaparecem com o surgimento das mais novas. Mais importante é que os direitos ‘gestados’ em
uma geração, quando aparecem em uma nova ordem jurídica que já traz direitos da geração
sucessiva, assumem uma outra dimensão, pois os direitos da geração mais recente tornam-se um
pressuposto para entendê-los de forma mais adequada – e, conseqüentemente, também para melhor
realizá-los”. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 2. ed.
São Paulo: Celso Bastos, 2001. p.39.
256
SCHWARTZ, Germano André D. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 53-55.
107
Não obstante tal discussão e o entendimento particular de que o direito
à saúde encontra-se dentre aqueles de 2ª dimensão, a sua efetivação depende,
evidentemente, de se saber o que é saúde.
Nesse sentido, afirma-se que o direito à vida apresenta duas vertentes.
A primeira assegura a todos o direito de permanecer vivo até que sobrevenha uma
causa de interrupção natural. A segunda busca garantir um nível mínimo de vida
compatível com a dignidade humana, comportando, assim, o direito à alimentação
adequada, à moradia, ao vestuário, à saúde, à educação, à cultura e ao lazer.
257
se demonstrou, em estudo específico, a existência de épocas em
que o cotidiano da pessoa e do meio ambiente em que vive influenciavam no
conceito de saúde. Hipócrates dizia, no culo V a.C., que o médico não erraria ao
tratar as doenças de determinada localidade se compreendesse, adequadamente, a
influência da cidade e do tipo de vida de seus habitantes sobre a saúde.
258
Do
mesmo modo, na primeira metade do século XVI, Paracelso frisou a importância do
mundo exterior na saúde utilizando-se da sua experiência como mineiro para
demonstrar a relação de certas doenças com o ambiente de trabalho.
259
Durante a
Revolução Industrial, Engels, após análise das condições de vida de determinados
trabalhadores, concluiu que tais condições, aliadas à cidade e ao ambiente de
trabalho são responsáveis pela qualidade de saúde da população.
260
257
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2..ed.. rev. ampl. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 399.
258
HIPPOCRATES. The Medical Works of Hippocrates: A New translation from de Original Greek
Made Especially for English Readers by the Collaboration of John Chadwick and W.N. Mann.
Springfield, III. Thomas, 1950, p. 90-111 apud DALLARI, Sueli Gandolfi. Os Estados brasileiros e o
direito à saúde. São Paulo: Hucitec. 1995. p. 17.
259
PARACELSUS. On Miner´s Sickness and Other Miner´s Disease. In: PARACELSUS. Four
Treatises of Theaphrastus von Hohenheim Called PARACELSUS. Baltimore, Johns Hopkins Press,
1941, p. 43-126 apud DALLARI, Sueli Gandolfi. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo:
Hucitec. 1995, p. 18.
260
ENGELS. F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global, 1986 apud
DALLARI, Sueli Gandolfi. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec. 1995. p. 18.
108
Outra corrente entendia a saúde como a ausência de doenças, tendo
como marco os trabalhos de Descartes (1596-1650), que traçou uma comparação
entre o corpo humano e a máquina, através da qual poderia descobrir uma forma de
garantir a saúde.
Este caráter mecanicista, que entendia a doença como circunstância
que exigia reparo especializado, foi mantido no século XIX, sendo coroado com as
pesquisas de Pasteur e Koch, os quais, fundados na teoria da etiologia específica
das doenças, explicavam a causa daqueles “defeitos que exigiam reparo
especializado”.
261
Essas duas correntes, ao que parece, foram unificadas e deram origem
ao conceito de saúde formulado pela OMS Organização Mundial da Saúde, no
preâmbulo da sua Constituição (1946),
262
que, considerando ainda as marcas do
pós-guerra, asseverou que a saúde é o completo bem-estar físico, mental e
social e não apenas a ausência de doença ou outros agravos”. Neste conceito,
pode-se perceber a preocupação com as variáveis que influenciavam na saúde da
pessoa (meio ambiente, condições de trabalho e de vida), - quando o conceito se
refere ao bem-estar físico, mental e social assim como a idéia de ausência de
doença, o que se tornou possível com a descoberta de microrganismos causadores
de doenças e seu isolamento, seguido do desenvolvimento dos remédios, a exemplo
das pesquisas de Pasteur e Koch.
Note-se que a saúde não se confunde, em momento algum, com a
integridade física da pessoa. Enquanto esta suporte à vida, instrumentalizando-a,
261
DALLARI, Sueli Gandolfi. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec. 1995. p.
18. No mesmo sentido WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira. Rio
de Janeiro: Lumen Juris. 2004, p. 119.
262
Constituição da OMS Organização Mundial da Saúde. Disponível em
<http://www.onuportugal.pt/oms.dc>. Acesso em: 30.set. 2005
109
a saúde é analisada no aspecto social e traduz um direito preventivo e reparador
263
,
visando permitir que a pessoa mantenha o seu corpo íntegro (integridade física e
psíquica), quer seja impedindo a ação de agentes nocivos, quer seja expurgando-os,
tanto assim que a Constituição da OMS afirma que “A posse do melhor estado de
saúde que o indivíduo pode atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo
ser humano.”
A Constituição de 1988 não se distanciou desse conceito. Mais do que
isso, orientou o seu intérprete, através de princípios e diretrizes correlatos, sobre o
que se deve entender por saúde, a exemplo do princípio do acesso universal e
igualitário e do princípio da dignidade da pessoa humana, com a finalidade de
reduzir as desigualdades sociais e promover o bem-estar de todos (artigos 1°, III e
artigo 3°, III e IV), tornando obrigatória a sua viabilização e assegurando a sua
aplicação imediata (artigo 5°, XXIII, LXXI e § 1°, CF). Vejamos.
Sabe-se que a saúde, como dito anteriormente, está relacionada com a
ausência de doenças e com o bem-estar físico, mental e social. Para correta
implementação deste direito (saúde), o Constituinte determinou a realização de
políticas públicas sociais e econômicas, garantindo o acesso, universal e igualitário,
às ações e serviços destinados à sua promoção e proteção, conforme artigo 196 da
Constituição Federal.
Esse princípio (acesso universal e igualitário) exprime valores sociais
fundamentais do homem e revela a essência do princípio fundamental do Estado
Democrático de Direito, que busca assegurar a todos o exercício dos direitos sociais,
o bem-estar e a igualdade, sempre fundado na dignidade humana, sendo que
apenas a vida saudável é compatível às exigências da dignidade humana.
263
Segundo Sulei Gandolfi Dallari, trata-se de um direito ao cuidado”. Os estados brasileiros e o
110
Conclui-se, portanto, que a saúde é reconhecida igualmente a todos, é
obrigatória e possui aplicação imediata, revelando-se, diante do artigo 5°, § 1°, da
Constituição Federal, verdadeiro mandado de otimização, exigindo dos órgãos
estatais a maior eficácia e efetividade possível dos direitos fundamentais.
As diretrizes constitucionais, por sua vez, vão orientar a
operacionalização do direito à saúde e se mostram através do sistema de
seguridade social, com a universalização da cobertura e do atendimento, e com a
afirmação do caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa (a
exemplo da ANVISA na edição das resoluções discutidas), devendo ser
implementadas ações e serviços públicos destinados a garantir o direito à saúde,
com participação da comunidade (artigos 194 e 198 da CF).
Incluem-se, ainda, no conceito de saúde, ainda que não
exclusivamente, nos termos do artigo 200 da Constituição Federal, as
atividades de controle e fiscalização de procedimentos, produtos e
substâncias de interesse para a saúde, de participação na produção
de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e
outros insumos sanitários
;
as atividades de
execução das ações de vigilância sanitária e epidemiológica e de
saúde do trabalhador; de ordenação da formação de recursos
humanos na área de saúde; de participação na formulação da
política e da execução das ações de saneamento básico; de
incremento do desenvolvimento científico e tecnológico na área da
saúde; de fiscalização e inspeção de alimentos, bebidas e água para
o consumo humano e de controle do teor nutricional dos alimentos,
de participação no controle e fiscalização da produção, transporte,
guarda e utilização de substâncias e produtos psico-ativos, tóxicos e
direito à saúde. São Paulo: Hucitec. 1995, p. 19.
111
radioativos; e de colaboração na proteção do meio ambiente, nele
compreendido o do trabalho
.
264
Comporta, por fim, no seu conceito, a garantia do artigo 227 da
Constituição Federal, no sentido de assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à saúde, fincando reservada a aplicação de percentual
dos recursos públicos na sua efetivação.
Diante desses princípios e diretrizes constitucionais, a saúde, na
Constituição de 1988,
implica na definição de uma política pública que vise seu cuidado,
sua defesa e sua proteção (C.F., art. 23, II e 24, XII), ou seja, reforça-
se, como requisito da legalidade, a obrigação de prestar serviços de
atendimento à população (C.F., art. 30, VII) que incluam ações para
a promoção, proteção e recuperação da saúde
.
265
Assim, a Constituição não se limitou a prever um Sistema Único de
Saúde. Preocupou-se, mais, em fixar princípios e regras para a concretização da
saúde, conforme artigos 198 e 199.
Como asseverado, embora o preceito enfatize a perspectiva do direito
à saúde enquanto direito a prestações públicas (ações e serviços de promoção e
recuperação), não exclui a primeira perspectiva do cidadão não ter a sua saúde
agredida por ações do Estado ou de particulares. Há, pois, um direito a prestações
negativas do Poder Publico e da sociedade que devem se abster de praticar atos
que ponham em risco a saúde.
266
264
DALLARI, Sueli Gandolfi. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec. 1995, p.
18. No mesmo sentido WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira.
Rio de JaneiroLumen Juris. 2004, p. 122-123.
265
Segundo Sueli Gandolfi Dallari, trata-se de um direito ao cuidado”. Os estados brasileiros e o
direito à saúde. São Paulo: Hucitec. 1995, p. 32.
112
3.3.4 Direito à saúde: norma meramente programática ou dever?
A questão posta em discussão é se o Estado, a teor do artigo 196 da
Constituição Federal, tem contra si um direito subjetivo oponível pelo indivíduo, que
o obrigue a determinadas prestações.
Primeiramente, é certo que a necessidade de definição de políticas
públicas pelo Estado torna o artigo 196 da Constituição Federal uma norma
programática que se limita a enunciar um fim público a ser alcançado pelo Estado.
Todavia, tal fato não lhe retira a característica primordial de direito
público subjetivo, vinculando o Estado numa relação de dever perante os titulares
do direito à saúde, como afirmado no artigo 227, caput, da Constituição Federal.
Sem embargo de posterior aprofundamento da questão, cumpre, desde
logo, colocar que
Somente em alguns casos é que os direitos sociais conferem aos
cidadãos (a todos e a cada um) um direito imediato a uma prestação
efetiva, sendo necessário que tal decorra expressamente do texto
constitucional. É o que sucede designadamente no caso do direito à
saúde (art. 64).
267
Isto porque a concepção de um sistema público de saúde se insere no
contexto constitucional de uma Estado Social. Este Estado de perfil social, não mais
mero garantidor de direitos e liberdades, mas, sim, autor de prestações positiva na
área dos direitos fundamentais sociais, exige a implementação de mediantes
266
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira. Rio de Janeiro Lumen
Juris. 2004, p. 123.
267
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, V. Fundamentos da constituição. Coimbra:
Coimbra Editora, 1991, p. 130.
113
políticas e ações estatais consoante programa traçado na Constituição Federal.
Fala-se, então, em direitos através do Estado e não contra o Estado.
268
Embora se tenha negado qualquer tipo de eficácia às normas
programáticas, a doutrina, atualmente, reconhece tal efeito a todas as normas
constitucionais ainda que em graus diversos,
269
sendo que esta irradiação de efeitos
ou “força normativa”
270
tem relevante importância na afirmação de alguns direitos
fundamentais, como o direito à saúde, fato este advindo das situações jurídicas
subjetivas criadas pelas normas programáticas.
271
Essas situações jurídicas subjetivas decorrem da existência de um
ordenamento jurídico, que comporta normas jurídicas em geral e normas
programáticas, permitindo que os sujeitos desfrutem dos direitos por elas criados.
Assim, a relação jurídica pressupõe a existência de uma relação
intersubjetiva entre duas ou mais pessoas ligadas através de uma hipótese
normativa capaz de gerar conseqüências obrigatórias.
272
Desta intersubjetividade própria da relação jurídica, decorrem a
garantia do sujeito ativo - segundo Miguel Reale
273
, beneficiário principal da relação,
e a obrigação do sujeito passivo (positiva ou negativa), responsável pela satisfação
do interesse, que dependendo da sua natureza, caracteriza-se pelo binômio direito-
dever. Ao sujeito ativo (titular do interesse reconhecido pela norma) confere-se a
268
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira. Rio de Janeiro Lumen
Juris. 2004, p. 113.
269
SILVA. José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 117.
270
Segundo HESSE, Konrad, A Constituição adquire “força normativa” na medida em que realiza a
sua pretensão de eficácia, traçando uma relação de “dever ser” entre “Constituição real”
“Constituição jurídica”. A Força normativa da constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. p. 15-16.
271
REIS, José Carlos Vasconcellos dos. Algumas Reflexões sobre o Direito à Saúde na Constituição
de 1988. Revista da Faculdade de Direito ndido Mendes. Nova Série. Rio de Janeiro: Sociedade
Brasileira de Instrução SBI, Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, v. 1, n. 1., p.
66, dez., 1996.
272
Ibid. p. 67.
273
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27.ed. São Paulo: Saraiva. 2003.
114
possibilidade de exigir do sujeito passivo (titular do dever) que se comporte da
formar necessária. É justamente este direito-dever que exige melhor análise no
âmbito das relações jurídicas decorrentes das normas constitucionais de caráter
programático.
Por instituírem um programa a ser cumprido pelo Estado, sem
indicarem as medidas específicas a serem adotadas para a consecução deste fim ou
as prestações devidas, as normas programáticas acabam investindo os seus
titulares “em uma posição jurídica menos consistente do que as normas de conduta
típicas, de vez que não conferem direito subjetivo em sua versão positiva de
exigibilidade de determinada prestação”.
274
O seu objetivo, a priori, não é criar um
direito subjetivo através da regulamentação de uma determinada matéria, mas sim
regulamentar e direcionar a atuação estatal.
Ao determinar a conduta a ser tomada pelo Estado, a norma
programática insere o sujeito ativo numa situação jurídica subjetiva positiva,
permitindo, assim, que sejam exigidas as prestações devidas. Não se trata, na
verdade, de uma situação genuína de direito subjetivo, mas de uma forma de
qualificar uma situação jurídica que, se não tivesse sido protegida pela Constituição,
consistiria mero interesse de fato. Em razão da norma programática, este mero
interesse de fato passa a se revestir de interesse constitucionalmente protegido e,
portanto, juridicamente relevante, que transcende o interesse de um único indivíduo
para atingir a categoria do interesse público sem, contudo, se dissociarem, posto
274
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma
dogmática constitucional transformadora. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 109-110, apud REIS,
José Carlos Vasconcellos. Algumas reflexões sobre o direito à saúde na Constituição de 1988.
Revista da Faculdade de Direito Cândido Mendes. Nova Série, Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira
de Instrução – SBI, Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, v. 1, n. 1., dez., 1996.
115
que o interesse do indivíduo se ampara no interesse público, possibilitando, assim,
que o seu titular insurja-se contra a indevida atuação do Estado.
275
A esta possibilidade de insurgência do particular contra o Estado,
Crisafulli
276
referiu-se como interesse legítimo, definindo-o como “vantagem que
deriva para determinados sujeitos como resultado do cumprimento de uma norma
que impõe ao titular de um poder a observância de certas modalidades e condições
de exercício”, demonstrando, assim, que a norma programática também irradia
efeitos na órbita jurídica.
Assim, o interesse legítimo representa a satisfação do interesse
individual através do atendimento do interesse público, revelando a existência de
uma conduta reflexa do Estado, que não importa na criação de um direito subjetivo
propriamente dito, senão de um efeito reflexo do direito objetivo, conquanto o
indivíduo passa a ter benefícios decorrentes da busca do interesse geral (público),
que norteia a conduta do Estado gizada pela norma programática. Quando o Estado
descumpre este mandamento constitucional a que está obrigado, ocorre violação do
direito objetivo e não do direito subjetivo, porque o que o indivíduo possui é apenas
interesse legítimo, que exige do Estado uma contraprestação reflexa decorrente do
dever geral de obediência ao Direito.
277
Ao lado deste entendimento, que traz eficácia e exigibilidade para as
normas programáticas, tem-se, também, que a teoria dos princípios foi aperfeiçoada
por Vezio Crisafulli, que distinguiu e lapidou as funções interpretativa, integrativa e
programática dos princípios, dando sustentação à tese de eficácia das normas
275
REIS, José Carlos Vasconcellos dos. Algumas Reflexões sobre o Direito à Saúde na Constituição
de 1988. Revista da Faculdade de Direito ndido Mendes. Nova Série, Rio de Janeiro: Sociedade
Brasileira de Instrução – SBI, Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes. v. 1, n. 1., dez.,
1996
276
CRISAFULLI, Vezio. La Constituzione e le sue disposizioni di princípio. Milano: Dott. A Giuffrrè
Editore, 1952 apud José Carlos Vasconcellos dos Reis, op. cit., p. 74.
116
programáticas, afirmando que as mesmas possuem elementos característicos dos
princípios gerais e, portanto, de aplicação imediata, apesar da programaticidade.
278
Em sentido semelhante
Os dispositivos constitucionais que enunciam ditos direitos
fundamentais não comportam somente força normativa e, por
conseqüência, uma norma; mas em virtude de seu valor, como
fundamental por óbivio, assumem verdadeira condição de princípios,
sendo fundamento de posições jurídico-subjetivas, isto é, norma(s)
definidora (s) de direitos e garantias, mas também de deveres
fundamentais
.
279
Em que pese a este entendimento que afasta, a primeira vista, em
análise superficial, a idéia de criação de direito subjetivo, como acima mencionado,
as normas programáticas podem consagrar a existência de direitos que se revelam
como condição mínima de existência da dignidade humana, impondo ao Estado o
dever de abster-se de qualquer ingerência lesiva ao titular do interesse, assim como
de prover, efetivamente, prestações positivas
280
. São os chamados “mínimo
277
Cf. José Carlos Vasconcellos dos Reis. op. cit.
278
LEITE, George Salomão (org.). Dos Princípios constitucionais: considerações em torno das
normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 38-40.
279
Ibid. p. 45
280
Nesse sentido, colacionam-se algumas decisões: Entre normas constitucionais aparentemente
conflitantes, é certo que prevalece aquela cujo bem tutelado tenha maior relevância. Assim, é
insofismável a necessidade de proteção à vida, bem maior. Sobretudo quando a previsão
constitucional assegura criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, ....´ (grifei, art. 227, caput, CF). Ao julgador não é lícito , com efeito, negar tutela a esses
direitos naturais de primeiríssima grandeza sob o argumento de proteger o Erário... Parece também,
desse modo, a alegação de que a liminar não poderia ser concedida porque não está cientificamente
comprovada a eficácia do tratamento por transplante de células mioblásticas. É que basta a
perspectiva, a esperança passível de concreção, a real possibilidade, enfim, de que se tenha a
melhora no estado de saúde do agravado para que se imponha a tutela, no mínimo, do direito à
saúde e à vida.” (Agravo de Instrumento nº 97.0005111-3, da Comarca de Criciúnma, rel. Des. Sérgio
Paladino, em 18.9.97). Decisão encontrada no site www.tj.sc.gov.br
Ainda assim: “AGRAVO REGIMENTAL. SAÚDE. DISTROFIA MUSCULAR DE DUCHENE. LESÃO
PROGRESSIVA DAS FIBRAS MUSCULARES. PATOLOGIA INCURÁVEL. MORTE PREMATURA.
EXPECTATIVA DE VIDA EM TORNO DE VINTE ANOS. TRATAMENTO EM CLÍNICA
ESPECIALIZADA NOS EUA. TRANSPLANTE DE CÉLULAS MIOBLÁSTICAS. CONTROVÉRSIA
CIENTÍFICA QUANTO AOS RESULTADOS MATERIAIS. MENOR IMPÚBERE. FAMÍLIA DE
117
existencial” ou “mínimos sociais”
281
ou “mínimo social” ou “direitos constitucionais
mínimos”.
282
Assim, imagine-se, como mínimo social, a alimentação adequada, da
qual ninguém pode estar desprovido. Em se tratando de criança, esta alimentação
adequada deve atender a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento,
acolhendo, pois, a diretrizes do UNICEF/ONU e outros documentos internacionais
que recomendam o aleitamento materno até seis meses de idade e complementado
até dois anos ou mais, como dito em capítulo anterior.
Este mínimo necessário para a dignidade humana são autênticos
direitos fundamentais e não carecem de reconhecimento na Constituição, que se
inferem, implicitamente do ordenamento jurídico como um todo (da declaração de
direitos, dos princípios da igualdade, do devido processo legal, da livre iniciativa e da
dignidade da pessoa.
A idéia de mínimo existencial apresentada por Rawls nos faz imaginar
um sistema formado por quatro setores que se desenvolvem harmonicamente, cada
qual com a sua competência. O ponto inicial é a existência de justiça social. Para
tanto, pressupõe-se a liberdade de cidadania, centrada e incorporada na
constituição, abrangendo liberdade de consciência e de pensamento, a liberdade
ESCASSOS RENDIMENTOS MATERIAIS. Sendo a saúde direito e dever do Estado´ (CF, art. 196;
CE art. 153, torna-se o cidadão credor desse benefício, ainda que não haja serviço oficial ou
particular no País para o tratamento reclamado. A existência de previsão orçamentária própria é
irrelevante, não servindo tal pretexto como escusa, uma vez que o Executivo pode socorrer-se de
créditos adicionais. A vida, dom maior, direito natural, não tem preço, mesmo para uma sociedade
que perdeu o sentido de solidariedade, num mundo marcado pelo egoísmo, hedonista e insensível.
Contudo, o reconhecimento do direito à sua manutenção prioridade, tratando-se da saúde de uma
criança não tem balizamento caritativo, posto que carrega em si mesmo o selo da legitimidade
constitucional e está ancorado em legislação obediente àquele comando.” (Agravo regimental
decorrente do Agravo de Instrumento nº 96.012721-6, de Araranguá. Rel. Xavier Vieira). UBALDO,
Edson. Responsabilidade do Estado pela Saúde da Criança. Revista da ESMESC Escola Superior
da Magistratura do Estado de Santa Catarina, ano 4, v. 5, p. 321, nov. 1998.
281
Ao estudar as instituições básicas da justiça distributiva, Rawls afirma o estabelecimento de
instituições básicas através de quatro setores, ficando o mínimo social (bem-estar) ao encargo do
setor de transferência. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. trad. almiro Pisetta e Lenita Maia Rímoli
Esteves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 303-324.
282
Expressões sinônimas citadas por Ricardo Lobo Torres em Teoria dos Direitos Fundamentais”.
Renovar, 1999.
118
individual e a igualdade dos direitos políticos.
283
Esta é, então, a estrutura de uma
instituição básica de justiça distributiva, com fundamento em uma constituição que
assegura as liberdades de cidadania. Neste contexto, é pressuposta a forma
habitual de despesas básicas, além da necessidade do governo manter
oportunidades iguais de educação e cultura. Reforça, também, a igualdade de
oportunidades nas atividades econômicas e na livre escolha de trabalho. Por fim, o
governo garante um mínimo social, seja através de um salário-família ou de
subvenções especiais em casos de doença e desemprego.
284
O setor de transferência, integrante do sistema anteriormente
mencionado, é encarregado de gerenciar o mínimo social, dentro da idéia de que as
necessidades sociais são analisadas e recebem um peso apropriado, respeitando as
outras reivindicações. Por outras palavras, enquanto o setor alocação procura
manter a competitividade, preservando as condições econômicas e sociais, o setor
de transferência garante um certo nível de bem-estar e atende às exigências dos
necessitados.
285
É nesse sentido que se coloca, neste trabalho a saúde, em si,
inclusive com alimentação adequada, como mínimo social diante do bem-estar que
ele visa manter.
O fato de esses artigos constitucionais apresentarem um núcleo
mínimo exigível para a dignidade humana, qual seja: a saúde, diga-se, direito
fundamental, traçando planos diretores para o Estado, faz com que essas normas
programáticas alterem a essência das situações jurídicas subjetivas, transformando
o interesse legítimo em direito público subjetivo.
283
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução. Almiro Pisetta e Lenita Maia Rímoli Esteves. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 213.
284
. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução. Almiro Pisetta e Lenita Maia Rímoli Esteves. 2,
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 304.
285
. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução. Almiro Pisetta e Lenita Maia Rímoli Esteves. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 305.
119
Justamente porque direcionadas à proteção do mínimo existencial,
trata-se de normas programáticas diante das quais os indivíduos são
investidos, não apenas num interesse legítimo, como simples reflexo
do direito objetivo e do interesse público nele tutelado, mas num
verdadeiro direito público subjetivo
.
286
Dessa forma, a saúde, como decorrência do próprio direito à vida
287
,
exige o cumprimento de prestações negativas e positivas atribuídas ao Poder
Público, assegurando a vida saudável no grau máximo.
288
E, em assim sendo, a
saúde é mais do que direito fundamental positivado na Constituição Federal, é um
dever do Estado - como, aliás, se depreende do seu artigo 196, mas não do
Estado, apresenta-se, também, como uma dever de respeito, proteção e promoção
atribuído ao particular em geral, vinculado como destinatário dos direitos
fundamentais
289
, por conseguinte as normas garantidoras da saúde devem ser
cumpridas por todos, ainda que limitem outros direitos, no âmbito de sua “eficácia
horizontal”.
Neste contexto, o direito à saúde pode ser classificado como direito
fundamental de defesa (negativo) e de prestações (positivo). Entende-se como
direito fundamental negativo aquele que não admite a ingerência do Estado e de
286
REIS, José Carlos Vasconcellos dos. Algumas reflexões sobre o direito à saúde na constituição de
1988. Revista da Faculdade de Direito Cândido Mendes. Nova Série,. Rio de Janeiro: Sociedade
Brasileira de Instrução – SBI, Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, v. 1, n. 1, p. 78,
dez. 1996.
287
Nesse sentido, o STF reconheceu que o “direito à saúde (...) representa conseqüência
constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional
de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, o pode mostrar-se indiferente ao
problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave
comportamento institucional.” (AgRg no RE 271.268-8-RS, rel. Min Celso de Mello, j. 12-9-2000,
Boletim de Direito Administrativo, p. 641, ago. 2001. apud André Ramos Tavares, op. cit. p. 399).
288
RUIZ, Manuel Maria Zorrilla. Perspectiva Constitucinal Del Derecho a La Proteccion de La Salud.
Estúdios de Deusto, Revista de la Universidad de Deusto. Bilbao: Universidad de Deusto, ano 2 v. 48
n. 1 p. 108, 2001.
289
REIS, José Carlos Vasconcellos. Algumas Reflexões sobre o Direito à Saúde na Constituição de
1988. Revista da Faculdade de Direito Cândido Mendes. Nova Série, Rio de Janeiro: Sociedade
Brasileira de Instrução – SBI, Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, v. 1, n. 1, p. 66,
dez., 1996.
120
terceiros na esfera individual, afastando toda e qualquer conduta violadora do
direito.
290
No âmbito aqui discutido, poder-se-ia considerar a saúde como direito de
defesa, conquanto não é permitida a intromissão do Estado, com medidas
legislativas e políticas públicas prejudiciais à saúde (que seriam inconstitucionais)
291
,
tampouco a intervenção do particular na saúde dos indivíduos, a exemplo da
promoção comercial de produtos potencialmente lesivos, incumbindo ao Estado a
implementação de políticas públicas que impeçam tal prática.
Esta natureza defensiva do direito à saúde ainda recebe proteção
constitucional máxima ao ser considerado cláusula pétrea, de modo que nem
mesmo uma emenda à Constituição poderá abolir ou impor restrições
desproporcionais e invasivas do núcleo essencial do direito à saúde
292
.
Por outro lado, direito positivo ou de prestações é o direito à efetiva
atuação em favor do titular do direito. Neste diapasão, o direito à saúde exige auxílio
material do Estado, como por exemplo, fornecimento de determinado tratamento
médico, exame laboratorial, medicação e meios adequados para alimentação de
crianças, mormente para aquelas que se encontram cerceadas do acesso ao leite
materno construindo-se bancos de leite humano, isto porque,
relaciona-se diretamente com a dignidade da pessoa humana e o
direito à igualdade, que pressupõem o Estado-garantidor, cujo dever
290
SARLET, Ingo Wolfgang. Contornos do Direito Fundamental à Saúde Pública na Constituição de
1988. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Porto Alegre: Procuradoria de Informação,
Documentação e Aperfeiçoamento Profissional. v. 25, n. 56, p. 51, 2002.
291
Para fundamentar tal posicionamento, Ingo Walfgang Sarlet, op. cit. P. 54, invoca o “princípio da
vedação de retrocesso”, segundo o qual o legislador infraconstitucional não pode “desconstituir pura e
simplesmente o grau de concretização que ele próprio havia dado às normas da Constituição,
especialmente quando se cuida de normas constitucionais que, em maior ou menor escala, acabam
por depender destas normas infraconstitucionais para alcançarem sua plena eficácia e efetifidade, em
outras palavras, para serem aplicadas e cumpridas pelos órgãos estatais e particulares.”
292
SARLET, Ingo Wolfgang. Contornos do direito fundamental à saúde pública na Constituição de
1988. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Porto Alegre: Procuradoria de Informação,
Documentação e Aperfeiçoamento Profissional. v. 25, n. 56. p. 55, 2002.
121
é assegurar o mínimo de condições básicas para o indivíduo viver e
desenvolver-se
.
293
Isso nos leva à afirmação de que o Estado de perfil social não possui
apenas a incumbência de mero garantidor de direitos e liberdades individuais, mas
sim, assume o dever de prestações positivas na área dos direitos fundamentais
sociais, a serem implementadas mediantes políticas e ações estatais, conforme
determinado no texto constitucional.
294
Daí a classificação do direito fundamental de
prestações ou de quota-parte, que se distinguem dos demais por exigirem
comportamentos estatais positivos, sem obstar a contra-posição de indivíduo-Estado
porque, na verdade, não são, em si, direitos contra o Estado, mas que se efetivam
através do Estado.
295
Nesta relação indivíduo-Estado-direito de prestações, uma
complementação do papel estatal que, então, passa, efetivamente, a agir para
garantir um direito fundamental, quando, antes, tinha que se abster de qualquer
ação para garantia dos direitos de liberdade.
Conclui-se, portanto, que o artigo 196 da Constituição Federal, direito
fundamental, é norma programática que gera um direito subjetivo, como antes
explicado, sendo que as políticas públicas de saúde são o meio através do qual
aquele direito subjetivo se efetiva, havendo sempre inúmeros instrumentos e
garantias referentes ao direito à saúde, legitimando o próprio indivíduo a buscar a
efetivação deste direito. Assim, sempre existirá “a previsão formal - escrita na
293
TAVARES, André Ramos. op. cit., p. 600.
294
HESSE, Konrad. Elementos de direito Constitucional da República Federal da Alemanha. 20. ed.
Tradução Gilberto Ferreira Mendes. Porto Alegre: Ségio Fabris, 1998, 170.
295
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 1987, p. 50.
122
Constituição do Estado ou da União de uma instituição que deverá efetivar a
garantia do direito à saúde, inclusive pelo Poder Judiciário”.
296
Verifica-se, ainda, que os direitos fundamentais revelam dupla
perspectiva, que podem ser considerados tanto como direitos subjetivos
individuais, quanto elementos objetivos fundamentais da comunidade. Dessa forma,
os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos
subjetivos de defesa do indivíduo contra atos estatais, mas, além disso, constituem
decisões valorativas, de natureza jurídico-objetiva, da Constituição, com eficácia em
todo ordenamento jurídico, fornecendo diretrizes para os poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário. Segundo Luño, os direitos fundamentais passaram a
apresentar um complexo de valores constitucionais, objetivos e básicos, com fins
diretivos da ação positiva dos poderes públicos e não apenas garantias negativas
dos interesses individuais.
297
Essa perspectiva objetivo-valorativa dos direitos fundamentais leva à
eficácia dirigente que estes direitos desencadeiam em relação aos órgãos estatais.
Justamente neste sentido é que se afirma que os direitos fundamentais contém uma
ordem dirigida ao Estado atribuindo-lhe a obrigação permanente de concretização e
realização dos próprios direitos fundamentais, impondo ao legislador a concretização
de determinadas tarefas, fins ou programas genéricos,
298
como as normas de caráter
programático.
Insta anotar que, justamente na área da saúde, é que a efetivação do
direito assume as mais trágicas situações, não sendo raro o caso em que a falta de
296
DALLARI, Sueli Gandolfi. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec. 1995, p.
116.
297
LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1999, p. 20-21.
298
Nesse sentido, v. a lição de K. Hesse. In: EuGRZ 1978, p. 433 apud SARLET, Ingo Wolfgang, A
eficácia dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2005, p. 161.
123
prestação material ceifou a vida de titulares do direito diante da escassez de
recursos e o desafio da efetividade do direito fundamental por falta de elementos
normativos sociais, devendo, assim, o legislador ater-se aos critérios previstos na
norma constitucional, editando atos normativos concretizadores.
299
3.3.5 O dever do particular na promoção, proteção e recuperação da saúde
Além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos
fundamentais exercem sua eficácia vinculante também perante a esfera privada. A
isto denomina-se eficácia privada, eficácia externa, eficácia em relação a terceiros
ou eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
300
Nada mais é do que a incidência
dos direitos humanos no espectro das relações sociais entre os particulares, de
forma que além de exigir que os particulares obedeçam aos direitos fundamentais,
pode-se cobrar deles a participação na implementação desses direitos.
301
Como mencionado, a Constituição brasileira de 1988, no seu artigo
196, consagrou a saúde como direito fundamental social, asseverando que
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
299
Ibid. p. 314.
300
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional, p. 603 apud SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia
dos direitos fundamentais, 5. ed. rev., atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2005, p. 371.
301
LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das
normas principiológicas da constituição.o Paulo: Malheiros, 2003, p. 47.
124
Por promoção, entende-se o vínculo estabelecido entre a qualidade de
vida e saúde, entendendo-a, não apenas como a cura, mas também a prevenção de
doenças. É, na verdade, um sistema que se constrói e que se modifica, influenciado
por todos os demais sistemas sociais. Esta qualidade de vida possui uma série de
direitos afins, como alguns especificados no art. 3° da Lei n° 8.080/90, como dito
em item anterior, além do próprio art. 225, CF, que atrela a qualidade de vida com a
do meio ambiente.
O caráter protetivo da saúde está, indiscutivelmente, ligado à redução
dos riscos de doenças e outros agravos, o qual somente poderá ser atingido através
da implementação programática de um sistema de medidas.
Por fim, a saúde como recuperação é verificada em momento posterior
ao infortúnio e exige políticas básicas, de natureza curativa.
Todas essas ações promoção, proteção e recuperação explicadas
por Germano Schwartz
302
- são definidas pelo artigo 197 da Constituição Federal
como ações e serviços de saúde de relevância pública.
Embora possa parecer clara a interpretação desse artigo, dele decorre,
imperceptivelmente, a vinculação do particular na concretização do direito à saúde,
quer seja promovendo, protegendo ou recuperando a saúde.
A lei n° 8.080/90, de 19 de setembro de 1990, regulou o Sistema Único
de Saúde, repetindo as atribuições constitucionais e afirmou, no artigo 2°, § 2°, que
“O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da
sociedade”.
O Estado e a sociedade, portanto, devem abster-se de praticar atos
que ponham em risco a saúde, assumindo, porém, a obrigação de fiscalizar e
125
controlar atividades que sejam nocivas à saúde, de modo a proteger o ser humano
contra o risco de doenças e outros agravos. Por outras palavras, pode-se afirmar
que não é permitida ao Estado a prática de atividades nocivas, também como lhe
compete zelar para que particulares também não as exerçam.
303
Frise-se que, para além da sua condição de direito fundamental, a
saúde é também dever. Tal afirmativa decorre, no que diz respeito ao Estado,
diretamente da dicção do texto constitucional, sem o reconhecimento de um
correspondente dever jurídico por parte do Estado e dos particulares em geral, o
direito à saúde restaria fragilizado, especialmente no que diz respeito a sua
efetivação. Assim, o direito à saúde pode ser considerado como constituindo direito
de defesa, impondo ao Estado,
304
assim como ao particular, a realização de políticas
públicas que busquem efetivação deste direito para a população, credora de
prestações materiais e normativas.
Fala-se em prestações materiais e normativas, porque os direitos
fundamentais revelam dupla perspectiva, na medida em que podem ser
considerados tanto direitos subjetivos individuais, quanto elementos objetivos
fundamentais da comunidade. O seu sentido não se mostra como reverso da
medalha do direito subjetivo, mas, sim, que às normas que prevêem direitos
subjetivos é outorgada uma função que transcende este caráter subjetivo,
comportando o reconhecimento de conteúdos normativos, com funções distintas aos
direitos fundamentais.
302
SCHWARTZ, Germano André D. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 98-99.
303
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira. Rio de Janeiro: Editora
Lúmen Juris, 2004, p. 123.
304
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2001, p. 95-98.
126
Neste diapasão, partindo do pressuposto de que tanto as normas de
direitos fundamentais que consagram direitos subjetivos individuais, quanto as que
impõem apenas obrigações de cunho objetivo aos poderes públicos podem ter a
natureza ou de princípios ou de regras meramente objetivos. Este desdobramento,
sob a perspectiva objetiva-valorativa dos direitos fundamentais, demonstra como se
desencadeia a relação com dos órgãos estatais. Assim é que se afirma que os
direitos fundamentais possuem uma ordem dirigida ao Estado, no sentido de que a
este incumbe a obrigação permanente de concretização e realização dos direitos
fundamentais. Vale ressaltar que tal relação direito fundamental subjetivo-objetivo
não afasta a existência de norma de cunho impositivo que consagra o direito
subjetivo individual, impondo ao legislador a concretização de determinadas tarefas,
fins ou programas mais ou menos genéricos.
305
Da leitura do artigo 196 da Constituição Federal, é certo, portanto, que
a promoção, proteção e recuperação da saúde, de forma universal e isonômica, é
dever do Estado e do particular, podendo aquele editar leis e atos administrativos
para impor obrigações, e este, de agir positivamente em prol da saúde, quer seja
fazendo ou deixando de fazer alguma coisa. É o que ocorre com a Portaria n°
2.051/01, do Ministério da Saúde, e com as Resoluções RDC ANVISA n° 221/02 e
222/02, segundo as quais o Estado, através de seus órgãos competentes, exige que
as empresas ajam de forma a promover e proteger a saúde das crianças, porquanto
incentivam o aleitamento materno, diminuindo os riscos de infecções, diarréias,
desidratação e morte.
305
SARLET, Ingo Wolfagang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev., atul. e ampl. Porto
127
4. A LIBERDADE ECONÔMICA
4.1 Introdução
A liberdade econômica, neste trabalho, assume importante papel diante
do tratamento dispensado pela Constituição Federal, devendo ser dimensionada
sem se perder de vista as demais normas, que o texto constitucional apresenta
regras e princípios que traduzem realidades ideológicas diversas
306
, a exemplo da
dignidade humana e do sistema capitalista no ordenamento econômico.
No âmbito estrito do Direito Econômico, visto como reflexo da realidade
de uma sociedade, o sistema não se desenvolverá sem conflitos. Ao mesmo tempo
em que se defronta com diferenças e divergências sociais, incorpora, tal direito, um
papel político que objetiva o bem-comum da sociedade, transitando pelas mais
distintas esferas sociais. Assim, imprescindível a sua dupla função de garantidor da
iniciativa econômica privada e de implementador do bem-estar social.
307
Estas funções são melhor esclarecidas quando se entendem os valores
constitucionais diante de uma tripla dimensão. a dimensão fundamentadora do
conjunto de disposições e instituições constitucionais, assim como do ordenamento
jurídico como um todo. Constitui-se de valores fundamentais (superiores), formando
um núcleo básico e informador de todo o sistema jurídico-político. A dimensão
orientadora traça metas e fins predeterminados, validando qualquer medida editada
para o fim especificado nesta dimensão e, por outro lado, tornando ilegítimas
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 155-165.
306
TOLEDO, Gastão Alves de. O Direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 114.
307
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 66.
128
aquelas que se orientem em sentido axiológico diverso.
308
Assim, denota-se que o sistema constitucional econômico comporta
preceitos fundamentais que deverão direcionar sua interpretação, sem se perder de
vista a diferença entre preceito e preceito fundamental. Enquanto o primeiro refere-
se a qualquer norma, no sentido estrito, contemplando, inclusive regras de princípios
que formam o corpo constitucional, o segundo preceito fundamental comporta
parcela dos próprios princípios constitucionais, bem como regras norteadoras
(“cardeais”) de um sistema constitucional, essencialmente, pelo conjunto normativo
assecuratório dos direitos humanos. São estes critérios que tornam possível o
controle jurisdicional acerca da constitucionalidade das normas restantes, porquanto
se analisa sua conformidade, ou não, com os valores constitucionais.
309
Assim, a Constituição revelou-se dirigente, porque orientadora do
Estado e voltada à justiça social, bem como por ser delimitadora dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam:
construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalidade e
reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
310
Para alcançar estes objetivos, o Constituinte adotou os fundamentos da
soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa, e o pluralismo político, consoante disposto no artigo 1° da
Constituição Federal, que afirma ser a República Federativa do Brasil um Estado
308
LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. Madrid:
Tecnos, 1999, p. 288.
309
TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. São Paulo: Saraiva,
2001, p. 122.
129
Democrático de Direito.
A dignidade da pessoa humana, os valores sociais e a liberdade
(sociedade livre e justa), logo se vê, assumiram posição de destaque nos artigos 1°
e 3° da Carta Magna. A liberdade é ainda enfatizada no artigo 5°. Os valores sociais
foram desdobrados em valores sociais do trabalhador e da livre iniciativa (inciso IV,
art. 1°, da Constituição Federal).
Todas essas diretrizes (dignidade humana, valor social dos
trabalhadores, valor social da livre iniciativa e sociedade livre e justa) são
conjugadas em um artigo quando a Constituição dispõe sobre a ordem
econômica e financeira , tanto que referendadas pelo art. 170, Constituição
Federal.
311
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento
diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e
de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de
qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de
órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei
. (grifo nosso)
A estrutura adotada pelo Constituinte, sempre voltada para o bem-
estar, fixou uma direção para todo o complexo normativo, abrangendo os objetivos
310
Artigo 3° da Constituição Federal.
311
TOLEDO, Gastão Alves de. O Direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 163.
130
da República - entre tantos, a promoção do bem de todos -; os artigos que
fundamentam a Ordem Econômica na existência digna (artigo 170 e seguintes); e o
artigo 193, que aponta como objetivo da Ordem Social o bem-estar. Ao estampar no
seu preâmbulo e em todo o complexo de normas o bem-estar, denota-se a
determinação de condutas adequadas à consecução da vida digna e o afastamento
daquelas contrárias a este objetivo.
312
Segundo se afirma, a Constituição de 1988 foi a primeira, na história do
constitucionalismo pátrio, a destinar um título próprio aos princípios fundamentais na
parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais.
Assim agindo, o Constituinte expressou de forma clara e inequívoca a sua intenção
de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e
informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que
também integram aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da Constituição
material. Da mesma forma, reconheceu o princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana (art. 1
o
, inciso III, da CF). Conclui-se que, mesmo fora do âmbito
dos princípios fundamentais, o valor da dignidade da pessoa humana foi objeto de
previsão por parte do Constituinte, seja quando estabeleceu que a ordem econômica
tem por fim assegurar a todos a existência digna (art. 170, caput. CF), seja quando,
no âmbito da ordem social, instituiu o planejamento familiar nos princípios da
dignidade humana e da paternidade responsável (art. 226, § 6º), além de assegurar
à criança e ao adolescente o direito à dignidade (art. 227, caput). Impossível, pois,
negar que o princípio da dignidade humana mereceu a devida atenção na esfera do
Direito Constitucional.
313
312
BORGES, Alexandre Walmontt. Preâmbulo da constituição & a ordem e econômica. 2ª tiragem.
Curitiba: Juará, 2004, p. 57-58.
313
SARLET, Ingo Wolfagang. A eficácia dos direitos fundamentais.. 5
.
ed. ver., atual. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 107-111.
131
Destarte, é de suma importância o estudo do princípio da Liberdade
Econômica à luz do princípio da dignidade humana, dos valores sociais e do ideal de
uma sociedade livre, justa e solidária, que são “idéias-chave no Direito Econômico
nacional, que devem presidir a elaboração, compreensão e interpretação de todas
as regras jurídicas próprias desse ramo do direito”.
314
Neste sentido, o presente capítulo visa ao conhecimento da Ordem
Econômica na Constituição Federal, analisando-se os seus sentidos (liberal e
intervencionista) e a sua transformação de acordo com as necessidades sociais. Em
seguida, serão estudadas a dignidade humana, a livre iniciativa, livre concorrência e
defesa do consumidor para, após, passar-se à análise da constitucionalidade da
NBCAL - Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e
Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras.
4.2 A Ordem Econômica
4.2.1 Conceito de ordem econômica: Estado Liberalista e Estado
Intervencionista
A expressão ordem econômica pode ser entendida sob três
aspectos
315
. O primeiro refere-se ao modo pelo qual uma determinada economia se
desenvolve. Trata-se de uma concepção fática, sem qualquer conotação normativa
ou valorativa, exprimindo o mundo do ser diante dos fatores econômicos concretos
inerentes à sociedade organizada. O segundo aspecto designa o conjunto de
normas (ou regras de conduta), de qualquer natureza, analisada sob o aspecto
314
RIOS, Roger Raupp. Ordem econômica, sociabilidade e os “Mass Media” na Constituição da
República de 1988. Disponível em < http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina.htm >
132
sociológico, que regula o comportamento dos sujeitos econômicos. Por fim, a
expressão ordem econômica é utilizada como ordem jurídica da economia,
concepção esta que norteará o presente estudo.
Neste diapasão, ordem econômica é
conjunto de normas que define, institucionalmente, determinado
modo de produção econômica. Assim, ordem econômica, parcela da
ordem jurídica (mundo do dever-ser), não é senão o conjunto de
normas que institucionaliza uma determinada ordem econômica
(mundo do ser)
316
,
opondo-se, assim, ao entendimento primário, segundo o qual a ordem econômica
não passava de uma busca da otimização de ações e resultados econômicos na
realidade fática, que poderia até mesmo existir sem a tutela jurídica.
317
quem afirme, ainda, que “Ordem Econômica (ou ordenamento
econômico) é o conjunto de elementos que agem e interagem no âmbito da
economia de um país, independentemente do maior ou menor grau de normatização
a que estejam submetidos”
318
os agentes ou sujeitos econômicos privados ou
públicos que, direta ou indiretamente, realizem a produção, distribuição, circulação,
ou consumo de bens e serviços. Dessa forma, pode ser aquilatada a intensidade da
presença do Estado na economia, tanto na função participativa ou protagonista ou,
ainda, regrador dessa atividade diante da mencionada intensidade normativa.
Em sentido semelhante, conceituou-se ordem econômica como a
expressão de um certo arranjo econômico, dentro de um específico sistema
econômico, preordenado juridicamente, e ordem econômica constitucional como o
315
MOREIRA, Vital. A Ordem jurídica do capitalismo. Coimbra: Centelha. 1973. p. 67-71.
316
GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na constituição de 1988 – Interpretação e Crítica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 74.
317
SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: estado e normalização da
economia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 2000. p. 31.
133
conjunto de normas que integram uma determinada ordem econômica concreta,
dispondo sobre a forma econômica a ser adotada.
319
A ordem econômica, como parcela integrante da ordem jurídica, em
decorrência da complexidade crescente das relações econômicas, foi incorporada no
direito a partir da primeira metade do século XX, ganhando realce com a
Constituição de Weimar (1919),
320
que deu nova aparência ao capitalismo,
substituindo a ordem jurídica liberal por uma ordem intervencionista
321
, fazendo
inserir valores e princípios de dignidade humana, bem como mecanismos de
controle, incentivos e projeções, criando, assim, o que se denominou ordem
econômica constitucional.
322
Houve, assim, uma mudança de concepções
ideológicas, passando-se da concepção liberal-democrática para a social-
democrática.
323
Dessa forma, inaugurou uma fase inédita de estruturação do Estado
alemão, enfocando o seu papel ativo no desenvolvimento social, visando a busca de
uma sociedade com “justiça social”.
324
Esta passagem do liberalismo para o intervencionismo é visível,
porquanto é certo que as Constituições Liberais deixavam a organização da
economia às próprias leis, fazendo com que a mesma ficasse dispersa entre os
inúmeros agentes que nela interferiam, sem apresentarem normas expressas de
318
TOLEDO, Gastão Alves de. O direito constitucionale econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 109.
319
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 87.
320
Segundo Eros Roberto Grau, (op. cit. P. 60), a Constituição de Weimar, 1919, era programática e
apresentava um jeto ideológico de amortecimento dos conflitos de classes, encaminhando, ainda,
para uma organização coletivista Conselhos Operários e Conselhos Econômicos introduzindo,
assim, um modelo de organização econômica corporativista.
321
Para Eros Roberto Grau (op. cit. p. 63.) a ordem econômica é usada para referir uma parcela da
ordem jurídica, que, além da ordem econômica, também comporta uma ordem pública, uma ordem
privada e uma ordem social.
322
SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: estado e normalização da
economia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 2000. p. 31.
323
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A Ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 9.
324
GUEDES, Marco Aurélio Peri. Estado e ordem econômica e social: A experiência constitucional da
República de Weimar e a Constituição de brasileira de 1934. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 02.
134
regulamentação das atividades econômicas e impedindo, outrossim, a intervenção
do Estado na economia.
O intervencionismo, ao contrário, atribuiu ao Estado a dupla função, na
economia, de suprir as deficiências do sistema de mercado e de implementar
objetivos de política econômica, mantendo o bom funcionamento do mercado e dos
mecanismos de concorrência, assegurando o bem-estar social (Welfare State).
325
As Constituições liberais não precisavam de regras explícitas para
disciplinar a ordem econômica, pois o sistema econômico existente (mundo do
ser) estava amparado na propriedade privada, na liberdade contratual e em algumas
normas infraconstitucionais confirmadoras do capitalismo concorrencial, formando
assim a ordem econômica liberal.
326
Esta ordem econômica liberal, porém, influenciada principalmente pelo
direito fundamental da dignidade humana, sofreu transformação e adotou a postura
de instrumento de implementação de políticas públicas para busca do bem-estar.
Assim, na condição de ordem econômica, parcela da ordem jurídica, reconhecida
constitucionalmente, este conjunto de normas (mundo do dever ser) passou a
aprimorar o mundo do ser, através de valores antes não existentes, visando garantir
a sua sobrevivência. É o que ocorre com a previsão expressa da valorização do
trabalho humano e da livre iniciativa no artigo 170 da Constituição Federal. Daí
afirmar-se “A ordem econômica liberal é substituída pela ordem econômica
intervencionista.” Esta nova ordem comporta normas de ordem pública e de
intervenção.
327
325
BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de direito econômico. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p.
79-85.
326
GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na constituição de 1988 Interpretação e crítica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 75.
327
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 Interpretação e Crítica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 76 e 77.
135
Note-se, contudo, que esta transmutação não significa um rompimento
absoluto das duas ordens econômicas (liberal e intervencionista), senão, como dito
acima, um aperfeiçoamento da ordem econômica diante das necessidades
individuais sem se desligar das exigências do capitalismo. Neste contexto, fica
afirmado o aspecto social da ordem econômica
328
que, como se verá abaixo, na
maioria das Constituições brasileira foi tratada em único título “da ordem econômica
e social”.
Diante desse processo de transformação (ordem econômica
liberal/ordem econômica intervencionista), passou-se a considerar Constituição
Econômica
o conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os
elementos definidores de um determinado sistema econômico,
instituem uma determinada forma de organização e funcionamento
da economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem
econômica.
329
Quanto à interpretação, afirma-se que as constituições pós-liberais, ao
lado da função de tutela ou de garantia, possuem a função de promover, de forma
que o ordenamento jurídico não se presta apenas a controlar o comportamento dos
indivíduos, mas também de dirigir este comportamento para certos objetivos
preestabelecidos, alcançando-os através de ações de política pública. Vale dizer,
trazem, em si, particularmente, normas programáticas também na área
econômica.
330
4.2.2 A ordem econômica no Brasil
328
Ibid. p .76.
329
MOREIRA, Vital. Economia e constituição apud .GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na
constituição de 1988 – Interpretação e crítica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 81.
136
No Brasil, a expressão "ordem econômica e social" foi rubricada na
Constituição de 1934,
331
permanecendo até a de 1967, com exceção da Constituição
de 1937 que apenas fez menção à "ordem econômica",
332
silenciando-se quanto à
ordem social. A Constituição de 1988, por sua vez, apresentou tais ordens
separadamente: a ordem econômica no Título VII e a social no Título VIII,
333
contudo, pela primeira vez, adotou o título específico: VII Da ordem econômica e
financeira.
334
O regramento constitucional econômico brasileiro, atualmente, mostra-
se “multifacetado”, estando a ordem econômica constitucional, considerada em seu
sentido estrito (Título VII), destinada a estabelecer as linhas principiológicas e as
regras gerais que presidem sua interpretação, bem como da ordem econômica em
sentido amplo, ambas fundamentando a ordem jurídico-econômica nacional.
335
Ademais, de se frisar que princípios e objetivos fundamentais não
podem ser interpretados separadamente, sendo, ambos, como se disse, de
grande relevância para elucidar a interpretação da atuação ou intervenção do
Estado na esfera econômica, haja vista sua densidade normativa (princípios e
preceitos), tomados, pois, como vetores primordiais na exegese do texto legal.
336
Os artigos 170 a 192 da Constituição Federal brasileira tratam,
especificamente, da ordem econômica e financeira, fundada na livre iniciativa e em
330
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 51.
331
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003,
p.97.
332
Ibid. p.116-117
333
Segundo Eros Roberto Graus, (op. cit. p. 73) a divisão ou a junção da ordem econômica e da
ordem social representa modismo jurídico e reproduz um equívoco semântico que supõe econômica a
produção e social a repartição, porque toda norma, ainda que de natureza econômica, também é
social na medida que voltada à ordenação social.
334
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003, p.
128.
335
TOLEDO, Gastão Alves de. O Direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 111.
137
princípios como a livre concorrência e a defesa do consumidor, além de outros
tantos, a exemplo dos previstos nos incisos do artigo 170.
337
Tais princípios apresentam valores ora de caráter liberalista, ora
socialista que, na verdade, instituem um compromisso de duas proposições
ideológicas,
338
procurando, assim, minimizar as injustiças decorrentes das opressões
sociais e econômicas do regime liberal clássico, forçando a criação, pelo legislador,
de instrumentos jurídicos para a defesa e emancipação, bem como de condições
infraconstitucionais de desenvolvimento de uma ordem sócio-econômica justa.
339
É certo que a Constituição adotou o sistema de produção capitalista,
sustentado nos princípios da propriedade privada, da liberdade de contratação, da
livre iniciativa e da livre concorrência, porém, direcionou o capitalismo para um fim
específico: a formação de um Estado Social,
340
/
341
dando, assim, amparo
constitucional para a atuação normativa e reguladora do Estado na atividade
336
TOLEDO, Gastão Alves de. O Direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 165.
337
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
I- soberania nacional;
II- propriedade privada;
III- livre concorrência;
IV- defesa do consumidor;
V- defesa do meio ambiente;
VI- redução das desigualdades regionais e sociais;
VII- busca do pleno emprego;
VIII- tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”
338
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 9. ed. São Paulo: Malheiros, 666-
667.
339
SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: estado e normalização da
economia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 2000. p. 93.
340
Eros Roberto Grau (op. cit. p. 321-333), questiona se a ordem econômica na Constituição de 1988
era condizente com uma nova realidade social e se estava apta a instrumentar mudanças sociais
voltadas à construção desta nova realidade. Ao concluir o seu raciocínio, afirma que “Por certo pode,
a ordem econômica na Constituição de 1988 Constituição dirigente, dinamismo instrumentar a
busca da realização, em sua plenitude, do interesse social”, mais do que isso, afirma que a ordem
econômica na Constituição de 1988 define opção pelo sistema capitalista que, apesar de aberto,
descreve um modelo de bem-estar.
138
econômica em busca do bem-estar.
342
Ao editar a NBCAL - Norma Brasileira de Comercialização de
Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e
Mamadeiras, o Estado não se valeu da sua ação normativa e reguladora, como
também cumpriu o dever de adotar políticas públicas que assegurassem o efetivo
direito à saúde.
Nesse diapasão, resta a análise da dicotomia de interesses travados
entre o direito fundamental da saúde e a liberdade econômica, não se esquecendo
de que o texto constitucional referente à ordem econômica está adequado a uma
social democracia, onde a adoção do capitalismo, com apropriação dos meios de
produção e liberdade de iniciativa, mescla-se com os princípios da função social da
propriedade, defesa do consumidor, respeito ao meio ambiente, tudo com o fito de
buscar uma justiça social, onde a dignidade da pessoa e a redução das
desigualdades o a conotação social àquela economia. Desviado tal fim, permite-
se ao Estado a intervenção para as correções necessárias, seja como agente
normativo, como agente regulador ou no exercício de funções de fiscalização,
incentivo e planejamento. Esta a visão hermenêutica da ordem econômica
constitucional.
343
4.2.3 A justiça social e a dignidade humana na ordem econômica
A justiça social, na Constituição, é enfocada como fonte de inspiração
341
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003, p.
129
342
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 55.
343
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 145.
139
para alcançar a existência digna, revelando-se, também, objetivo fundamental da
República, conforme artigo 3° da Constituição Federal que afirma a existência de
uma sociedade livre, justa e solidária, pugnando pela redução das desigualdades
sociais e regionais.
344
O seu significado não é preciso, mas vem sendo mencionado desde a
Constituição de 1946.
345
Pode-se, porém, entender justiça social como uma das
formas de se expressar o desejo de obtenção de uma melhor distribuição da renda
nacional com vistas à diminuição das desigualdades sociais, relacionando-a, ainda,
com a existência do mínimo necessário à satisfação das necessidades humanas,
346
mencionado em item anterior. Por esta razão, é justamente considerada ponto de
partida para dignidade humana e existência digna nos artigos 1° e 170 da
Constituição Federal, concretizando tais dispositivos legais.
Aliás, se a expressão existência digna está estritamente ligada ao
princípio da dignidade da pessoa humana, considerada na sua individualidade, a
justiça social remete-nos a uma dignidade coletiva, de forma que o basta alguém
possuir digna existência se o seu próximo não possui dignidade alguma.
347
Daí a
correlação com a distribuição igualitária da renda nacional, com a diminuição das
diferenças sociais e com o oferecimento de idênticas oportunidades, impondo que a
todos sejam garantidas condições mínimas de subsistência.
348
Em razão do fundamento constitucional da justiça social, pode-se
afirmar a aplicação do princípio da dignidade humana diante das relações entre
344
TOLEDO, Gastão Alves de. O direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 169.
345
Ibid. , p. 114, p. 353-354.
346
TOLEDO, Gastão Alves de. O direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 172. No mesmo sentido: SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A ordem
constitucional econômica. 2, ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 90.
347
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art. 170
da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 181.
140
particulares e não em face do Estado, que fundamentada na natureza
igualitária e na idéia de solidariedade, que dele decorrem.
349
Dessa forma, a dignidade humana, inspirada na justiça social, é
elemento essencial para solução de conflitos entre princípios e/ou direitos
constitucionais, ainda que fundamentais, quer seja entre Estado e particulares ou
entre particulares apenas, diante da importância que lhe foi atribuída pela
Constituição Federal, sem embargo de toda sua evolução histórica como direito
fundamental, donde decorrem direitos subjetivos.
Assim, afirma-se que “os diretos humanos refluem, na sua essência, a
um único princípio a dignidade da pessoa o qual lhes fundamento e
justificativa [...]” considerando-se, tal princípio, como “a dignidade da pessoa humana
correspondente à compreensão do ser humano na sua integridade física e psíquica,
como autodeterminação consciente, garantida moral e juridicamente”.
350
A dignidade, portanto, abrange valores físicos e psíquicos, como a
saúde e outros de ordem material, para os quais deve-se voltar a Ordem Econômica,
ou, por outras palavras, a existência digna (integridade física e psíquica do ser
humano) é o seu objetivo, embora permitida a livre iniciativa e liberdade de
concorrência.
Assim, já se afirmou que
no âmbito da indispensável ponderação (e, por conseguinte, também
hierarquização) de valores, inerente à tarefa de estabelecer a
concordância prática (na acepção de Hesse) na hipótese de conflitos
entre princípios (e direitos) constitucionalmente assegurados, o
princípio da dignidade da pessoa humana acaba por justificar (e até
348
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003, p.
139.
349
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 173.
350
GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana - a ética da responsabilidade.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 196 e 211.
141
mesmo exigir) a imposição de restrições a outros bens
constitucionalmente protegidos, ainda que se cuide de normas de
cunho jusfundamental
.
351
Seguindo-se, a expressão dignidade humana é empregada na
Constituição em dois momentos. O artigo , III, refere-se à dignidade como
fundamento da República Federativa do Brasil e, também, como fim da Ordem
Econômica, no artigo 170, caput.
Em qualquer desses sentidos, a dignidade é tida como valor intrínseco
do ser humano, traduzindo a noção de igualdade de todas as pessoas, exigindo a
promoção das condições de uma contribuição ativa para o reconhecimento e
proteção do conjunto de direitos e liberdades individuais e coletivas. Implica, assim,
na obrigação geral de respeito pela pessoa (pelo seu valor intrínseco como pessoa)
diante de um feixe de deveres e direitos relativos aos bens indispensáveis para o
desenvolvimento humano.
352
Isso significa que o Brasil, Estado Democrático de Direito, é entidade
política constitucionalmente organizada e estruturada na dignidade humana, ao lado
da soberania, cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e do
pluralismo político, sendo certo, ainda, que a atividade econômica deve nortear-se
pela existência digna de que todos devem gozar,
353
conforme os ditames da justiça
351
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed., ver. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 114. O
autor ainda menciona J.González Pérez, La dignidad de la persona, p. 91 e ss., que, cuidando da
dignidade como limite dos direitos alheios, inclusive citando decisões do Tribunal Constitucional da
Espanha no sentido de o exercício dos direitos fundamentais encontrar seus limites nos direitos
fundamentais e na dignidade de terceiros. No mesmo sentido, destacando que o princípio da
dignidade da pessoa (por ser a dignidade, em princípio, irrenunciável) atua até mesmo como limite ao
exercício de direitos próprios, vide M.A. Alegre Martinez, la dignidad de la persona..., p. 81 e ss.. Pela
doutrina italiana, ver F. Bartolomei, La dignità umana..., p. 23 e ss., desenvolvendo o ponto no que diz
com as restrições da liberdade pessoal em prol da dignidade.
352.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pesssoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1983. ed., ver. e amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 51-53.
142
social.
Percebe-se, pois, que onde não houver respeito pela vida e pela
integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para a
existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim,
onde a liberdade e autonomia, a igualdade, e os direitos fundamentais não forem
reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da
pessoa humana, esta, por sua vez, não passará de mero objeto de arbítrio e
injustiça.
354
Na verdade, a justiça social, entendida como a “possibilidade de todos
contarem com o mínimo para satisfazerem às suas necessidades fundamentais,
tanto físicas como espirituais, morais e artísticas”,
355
serve de instrumento para a
concretização de uma vida digna, no mundo em que o trabalho e a livre iniciativa são
fundamentos.
356
A este fim público, portanto, encontram-se obrigados o Estado e os
particulares, de forma que qualquer atividade econômica que o vise à promoção
da dignidade humana estará violando, duplamente, a Constituição Federal.
357
Vale ressaltar que a dignidade humana, como dito anteriormente, não
se apresenta como direito fundamental, mas sim como princípio fundamental, sendo
que esta terminologia que lhe é dada possui a função específica de limitar a criação
de tantos outros direitos fundamentais com apoio em qualquer outra disposição
contida na constituição, especialmente nas normas de caráter organizacional e
353
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 Interpretação e crítica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 217.
354
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed., ver. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 59.
355
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Econômico. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004. p.
128-129.
356
RIOS, Roger Raupp. Ordem econômica, sociabilidade e os “Mass Media” na Constituição da
República de 1988. < http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina.htm >
143
programático, que não são poucas. E isto porque
Á luz das considerações tecidas, parece razoável o entendimento de
que o citado preceito constitucional se refere às disposições contidas
no Titulo I, arts. 1º a 4º (Dos Princípios Fundamentais), onde também
se encontram delineados os contornos básicos do Estado Social e
Democrático de Direito que identifica a nossa República. Neste título,
além do regime da democracia social (ou simplesmente
democrático, para utilizar terminologia menos sujeita a
controvérsias), consagrado pela nossa Carta, encontram-se
expressos os fundamentos, objetivos e princípios fundamentais que
regem o Estado brasileiro, seja em vel interno, seja na esfera das
relações internacionais. Somente nesta acepção, salvo melhor juízo,
as expressões ‘regime’ e ‘princípios’ podem ser inseridas no contexto
de um conceito material.
358
Assim, se por um lado tem-se violações à Constituição quando se
desvia desse fim, não mesmo certo é afirmar que, direcionado pela dignidade
humana, o Estado tem o dever de promover medidas tendentes a tornar efetivo este
princípio fundamental – dignidade humana -, que, por sua vez, abrange a existência
de vida saudável.
Isso porque a concretização da justiça social ou justiça distributiva
pressupõe a criação de condições materiais e procedimentais, como a
implementação de políticas sociais (saúde, educação, entre outras), políticas
compensatórias (previdência e assistência sociais), políticas de fomento (industrial,
agrícola, etc.) e reformas estruturais (urbana, agrária, etc.).
359
Neste sentido, o conceito de dignidade humana como
qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano e
357
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito econômico. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004. p.
218.
358
SARLET, Ingo Wolfagang. A eficácia dos direitos fundamentais.. 5. ed. rev. , atual. e ampl.. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 107-108.
359
RIOS, Roger Raupp. Ordem econômica, sociabilidade e os “Mass Media” na Constituição da
República de 1988. Disponível em < http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina.htm >
144
o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos
.
360
São esses princípios, pois, que guiam a ordem econômica e devem
orientar a atuação do Estado Social, no qual o interesse comum prevalece sobre o
interesse individual,
361
levando, dessa forma, a uma nova leitura da livre iniciativa no
direito pátrio.
Como já se advertiu,
Concebida como referência constitucional unificadora de todos os
direitos fundamentais, o conceito de dignidade humana obriga a uma
densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido
normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do
homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à
defesa dos interesses pessoais tradicionais, esquecendo-a nos
casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir uma ‘teoria do
núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de
direitos econômicos, sociais e culturais
.
362
Na verdade, o desenvolvimento econômico não é um fim em si mesmo,
devendo, outrossim, estar relacionado com a melhoria da qualidade de vida das
pessoas e com as liberdades de que podem desfrutar. Foi nesta linha de raciocínio
que a Constituição disciplinou a ordem econômica, fundando-a no capitalismo e
360
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed., ver. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 59-60.
361
Segundo Toshio Mukai, esta base teórica é a adotada por Goldschmidt e Buwert. In: Participação
do Estado na Atividade Econômica Limites Jurídicos. São Paulo: RT, 1979, p. 35. No mesmo
sentido: “é o princípio da dignidade da pessoa humana que confere unidade de sentido e legitimidade
à ordem constitucional, existindo redobradas razões para constituir o fim mesmo da ordem
econômica.” PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado
do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 174.
362
CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa anotada.
Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 70.
145
orientando-a com o fim de assegurar existência digna a todos, conforme artigo 170
da Constituição Federal.
363
4.2.4 A livre iniciativa
A expressão liberdade, ao longo da história das civilizações teve várias
atribuições conceituais, ora confundindo-se com poder (autoridade), ora
distanciando-se deste, como afirmado por Celso Lafer e José Afonso da Silva,
respectivamente. A expressão, contudo, pode ser entendida como “ato voluntário,
como ausência de coação ou interferência externa, como possibilidade de escolha,
como possibilidade de autodeterminação”. Seu horizonte é ampliado de acordo com
o âmbito de aplicação. Dentro da ordem econômica,
liberdade seria a possibilidade de escolher seus próprios caminhos
profissionais ou suas próprias atividades econômicas, com ausência
de coação ou interferência do Estado; seria a possibilidade de
iniciativa, sem interferência do Estado no jogo de mercado, como
meio de se atingir o máximo de eficiência na produção e de justiça na
repartição do produto
.
364
Mais do que isso, é elemento fundamental sobre o qual se ampara a
Ordem Econômica e Financeira porque nele se encontram os valores que
personalizam a capacidade de cada indivíduo, pois pressupõe-se que todo homem é
dotado, o suficiente, para escolher o seu trabalho ou atividade econômica. Isto
implica em imputar ao homem a racionalidade visando atingir a própria felicidade,
363
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 83.
364
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A Ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 64-65.
146
embora possa incidir em erros.
365
Fala-se, ainda, que a liberdade constitui uma dimensão essencial da
pessoa, razão pela qual assume um valor superior no ordenamento jurídico. Esta
liberdade, dita substancial, sofre diversos desdobramentos de acordo com o direito
fundamental a que esta ligada. Assim, foi classificada em cinco grandes grupos por
José Afonso da Silva: 1. liberdade da pessoa física (direito de ir e vir, de
permanecer, de ficar e de circular); 2. liberdade de pensamento, abrangendo a
opinião, a religião, a informação, a artística e a comunicação do conhecimento; 3.
liberdade de expressão coletiva (reunião e associação); 4. liberdade de ação
profissional, comportando a livre escolha de trabalho, ofício ou profissão e o seu
correspondente exercício e, finalmente, 5. liberdades de conteúdo econômico e
social, aqui incluída a livre iniciativa, a liberdade contratual, a liberdade de ensino e
de trabalho.
366
A Constituição Federal tratou da livre iniciativa em dois momentos. No
art. 1º, observa-se que a livre iniciativa é mais do que um princípio da ordem
econômica, como previsto no art. 170 do texto constitucional, é, sim, um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil, vale dizer, como um dos
fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito, revelando-se um dos fins da
estrutura política brasileira.
367
Como visto no item anterior, a ordem econômica visa à garantia de
uma existência digna, pautando-se nas diretrizes da justiça social e fundada em
princípios da organização econômica, sistematizando o setor empresarial com o
365
TOLEDO, Gastão Alves de. O Direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 174.
366
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem Econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 75/76.
147
objetivo de reduzir as desigualdades e anomalias diversas, através de medidas que
deveriam corrigir as contradições de interesses privados.
A liberdade de iniciativa, afirmada no art. 170, caput, da Constituição
Federal e no seu parágrafo único, assegura “a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo
casos previstos em lei”.
368
A iniciativa, na acepção devida, é imaterial. Comporta a idéia de uma
situação que não pode reduzir o trabalho nem o capital, mas também exige a soma
de conhecimentos necessários para, reunida mão-de-obra e capital, possa haver o
lançamento da empresa e o seu desenvolvimento. É esta a liberdade assegurada
pela Constituição Federal.
369
O seu conteúdo, porém, não se limita a tal aspecto, é endossado por
uma idéia vasta, assumindo todas as demais formas de organização econômica,
individuais ou coletivas, a exemplo das cooperativas (art. 5º, XVIII, e art. 174, §§ 3º e
4º, CF), além da iniciativa pública (arts. 173, 177 e 192, II, CF).
370
Destaca-se a sua densidade normativa, porquanto garante a faculdade
de criar e explorar uma atividade econômica a título privado, sem sujeição a
qualquer restrição estatal, salvo em virtude de lei.
371
Daí a sua densidade normativa
positivada que somente se curva diante de disposições legais, formal e
materialmente constitucionais.
Destarte, embora se fale em livre iniciativa, tal liberdade nada mais é
367
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003, p.
246.
368
Art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988.
369
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A Ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 65.
370
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003, p.
247.
371
ARAÚJO, Luís Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 4.
ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 375.
148
do que um direito subjetivo sujeito a limitações do legislador infraconstitucional,
que a expressão “salvo casos previstos em lei” demonstra a presença de reserva
legal.
Assim, impossível, invocando a liberdade de iniciativa, a exploração do
ser humano, o fechamento de empresas sem justificativa, a concorrência até
extenuar o adversário etc, mesmo porque tal liberdade está direcionada a realizar a
justiça social e o bem-estar coletivo. Está, ademais, guiada pela dignidade humana e
pelo princípio da valorização do trabalho humano, que, embora princípios, possuem
a prioridade de orientar a intervenção estatal na economia, fazendo valer os valores
sociais do trabalho.
372
Trata-se, outrossim, de direito fundamental não previsto na categoria
daqueles do artigo 5° da Constituição Federal, mas assim considerado por ser uma
extensão do direito à liberdade nele previsto, entendido em seu sentido amplo,
373
envolvendo as liberdades de indústria, de comércio, de empresa e de contrato.
374
Afirma-se, ainda, como direito fundamental, por ser um meio de
materializar a dignidade humana, realizando o homem, plenamente, ao assegurar-
372
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003, p.
251-252.
373
Semelhante raciocínio é feito por Manoel Afonso Vaz ao estudar o art. 61 da Constituição
Portuguesa, na obra Direito Econômico e a Ordem Econômica Portuguesa, Coimbra: Coimbra, 1984,
p. 86 e 87: “A inclusão do preceito sobre a iniciativa econômica privada, no âmbito dos direitos
econômicos quer significar a consagração da iniciativa econômica privada como direito fundamental
dos cidadãos [...] É certo que o direito à iniciativa econômica privada não é entendido formalmente
com um ‘direito de liberdade’, tal como são entendidos os ‘direitos e liberdades e garantias pessoais’,
os ‘direitos, liberdades e garantias de participação política’ e os ‘direitos, liberdades e garantias dos
trabalhadores’ consagrados no título II da parte I da Constituição. Tal pretende significar que o direito
à iniciativa econômica privada não pode hoje ser entendido, à maneira liberal, como um direito
‘absoluto’, inviolável, de conteúdo naturalmente determinado, ou seja, como um direito ‘de defesa’do
cidadão perante o poder que não permite limitações à sua esfera de afirmação e realização [...]
Todavia, e no entanto, o direito à iniciativa econômica privada é, a nosso ver, ainda um direito
fundamental de natureza análoga aos ‘direitos de liberdade’, quando pretenda defender um âmbito de
afirmação e realização autônoma do indivíduo enquanto tal [...] Sendo assim, é-lhe aplicável, por
força do artigo 17° da CRP, o regime jurídico dos ‘direitos, liberdades e garantias’ expressos no artigo
18° da Constituição“.
374
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 68-69.
149
lhe o direito de projetar-se através de uma realização transpessoal.
375
Por outras palavras, é o direito subjetivo através do qual se
consubstanciam e se realçam valores do homem, incentivando-o a desfrutar da
capacidade individual de que é dotado para a escolha da profissão,
376
podendo ser
traduzida no direito subjetivo que todos têm de se lançarem ao mercado de
produção de bens e serviços por conta e risco próprios.
377
Sua origem remonta ao rompimento do sistema feudal e dos
princípios do mercantilismo (séculos XVII, na Inglaterra, e XVIII, no resto da Europa),
demonstrando suas raízes liberais, que a liberdade de iniciativa representava, à
época, o destino da vida do homem, focando a individualidade de cada um e
revelando a expressão da sua capacidade.
378
Até a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a livre iniciativa foi vista
como garantia absoluta de usar e trocar bens com autonomia jurídica e, portanto,
com plena liberdade de regular e controlar as relações econômicas de acordo com a
própria conveniência, d a “garantia de desenvolver livremente a atividade
escolhida”.
379
Contudo, a suposta harmonia natural dos interesses
380
do Estado
Liberal, premida pelo desenvolvimento do sistema de produção, não suportou as
necessidades sociais
381
(melhores condições de vida aos trabalhadores, p.ex.),
375
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito econômico. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p.
117. No mesmo sentido: FARIA, Werter R. Constituição econômica: liberdade de iniciativa e de
concorrência. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1990, p. 107
376
TOLEDO, Gastão Alves de. O Direito onstitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 174.
377
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem Econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 161.
378
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito econômico, São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p.
116.
379
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 9. ed. São Paulo: Malheiros, p.
673.
380
Expressão utilizada por José Afonso da Silva, op. cit., p. 673.
381
Conforme já explicado no item anterior, relativamente à transformação da ordem econômica liberal
para a ordem intervencionista.
150
fazendo com que a liberdade de iniciativa econômica se condicionasse a certos
mecanismos voltados à realização da justiça social.
É com este fim específico que deve ser analisado o princípio da livre
iniciativa, mormente diante de uma Constituição preocupada com a justiça social e
com o bem estar coletivo, como a de 1988.
Denota-se, portanto, que, embora direito fundamental, a livre iniciativa
fica condicionada, limitada ao princípio fundamental da dignidade humana, tendo
assim de considerar os valores sociais, entre eles o bem-estar coletivo. Tem-se,
pois, a máxima de que o fim condiciona o meio.
Tal raciocínio é de fácil aceitação porque a livre iniciativa é
desdobramento do direito de liberdade e a todo exercício de liberdade corresponde
uma responsabilidade. Até mesmo a liberdade jurídica, reconhecida como qualidade
humana, sofre tal limitação.
Neste sentido
“Se as normas servem para motivar condutas, cabe indagar de que
maneira e até onde se concilia essa funcionalidade normativa com os
atos livres do ser humano, com essa qualidade humana: a liberdade.
Qualidade que se não é apenas inerente à criatura humana, somente
por esta pode ser pensada e ideada. Desde a liberdade total, natural
e parcialmente circunscrita pelo domínio da lei segundo Rousseau
até ‘um mínimo de liberdade’ admitido no âmbito do direito e da
moral.
382
Diante desse contexto, a liberdade de iniciativa econômica privada
significa o exercício de uma liberdade humana voltada para o “desenvolvimento da
empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de
gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo
151
mesmo”,
383
sendo legítima apenas quando exercida no interesse da justiça social e
ilegítima quando destinada à satisfação exclusiva do lucro e das ambições pessoais
dos empresários.
384
De forma mais incisiva, conceituou-se a livre iniciativa como a
“liberdade dos privados de disporem dos recursos materiais e humanos”, ou seja,
“liberdade dos privados de organizar a atividade produtiva e, conseqüentemente, é a
liberdade dos privados de decidir o que produzir, quando produzir, onde produzir”
385
ou, então, como liberdade de iniciar, gerir e atuar em uma atividade econômica
386
,
devendo, porém, o agente econômico, ao optar por fazer ou não fazer algo livre
que é subordinar-se aos condicionamentos que lhe são impostos, consistentes,
inclusive, “na obrigação de realizar dados negócios, de não os realizar, de os
celebrar com dado conteúdo ou dada forma.”
387
É, de fato, o suporte econômico das empresas, que se projeta em
vários ângulos do ordenamento jurídico, servindo, ainda, de base para o processo
de desenvolvimento.
388
Estes conceitos expostos parecem mais adequados para o
entendimento da Ordem Constitucional Econômica. Note-se que, a priori, a liberdade
é ampla, somente após estudo do texto constitucional é que se encontram as
382
GARCIA, Maria. Considerações sobre a relação entre liberdade jurídica e a norma permissiva. São
Paulo: Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 3, n. 12,
jul./set., p. 53,1995.
383
Cf. Vittorio Ottaviano, “Il governo deléconomia: i principi giuridici”, in Trattrato di Diritto
Commerciale e di Diritto Pubblico dell’Économia, v. 1°: La Costituzione Econômica. apud José Afonso
da Silva, op. cit. p. 673.
384
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9. ed. São Paulo: Malheiros, p.
673.
385
GALGANO, Francesco. Il dirito privato fra le códice e Costituzione. p. 125. apud PRATA, Ana. A
tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p. 199.
386
CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa anotada.
Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 328.
387
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p. 199.
388
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora todo, 2003, p.
249-250.
152
limitações existentes e bem justificadas: o ideal de alcançar uma sociedade livre,
justa e solidária.
Mais do que isso, é através desta livre iniciativa social
389
, da qual
decorrem políticas públicas constitucionalmente legitimadas, que serão fornecidas
prestações positivas à sociedade
390
, alcançando-se o objetivo constitucional previsto
no preâmbulo do Texto.
391
Dentro deste conceito de livre iniciativa social, conclui-se que tal
liberdade pode, portanto, ser limitada através de reserva legal.
392
Assim, afirma-se
que as leis podem restringir a liberdade econômica, porém, devem ater-se ao
conteúdo essencial dos direitos fundamentais, atuando como limite negativo em face
do legislador e garantindo a proteção da pessoa humana.
393
De um modo ou de outro, o âmbito de limitação do princípio da livre
iniciativa pelo Estado e sua intervenção na economia sempre será
constitucionalmente circunscrito, de forma que, se de um lado permite tal
intervenção, do outro, impõe regras delimitadoras da ação estatal.
394
Essas limitações são de fácil visualização. A primeira, como dito, é a
reserva legal do parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal. Em seguida,
389
Expressão adotada neste trabalho para conceituar a liberdade de desenvolvimento da empresa e
do trabalho humano, sempre voltada para a consecução da dignidade humana e busca do bem
comum.
390
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 Interpretação e crítica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 234.
391
Nesse sentido: “a livre iniciativa, fundamento da ordem econômica, informa a indispensabilidade
de sempre se estar vigilante em relação à preservação desta liberdade, tomando-se em consideração
um ponto de vista eqüitativo, mais consentâneo com os ideais democráticos e de justiça social,
também fundamentos do Estado brasileiro.” PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da
ordem econômica: o significado do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos
Tribunais. 2005. p. 167.
392
Sobre restrição e configuração legislativa dos direitos fundamentais vide item próprio (3.1.4) e,
especificamente, sobre a reserva legal do art. 170, parágrafo único, CF, vide item específico no
decorrer do trabalho (5.3.3.2).
393
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 163.
394
TOLEDO, Gastão Alves de. O direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 177.
153
como dito anteriormente, seguem-se os fundamentos norteadores do caput do
mesmo dispositivo (valorização do trabalho humano e livre iniciativa, visando
assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social, todos
estudados). Por fim, encontramos as limitações principiológicas do art. 170, incisos
I/IX, CF, que foram analisados de acordo com a pertinência com o trabalho (livre
concorrência e defesa do consumidor).
Destarte, as exigências impostas pela Portaria do Ministério da Saúde
n° 2.051/01 e pelas Resoluções da ANVISA n° 221/02 e 222/02, embora limitadoras
da livre iniciativa, estão amparadas na Constituição Federal, conquanto revelam
verdadeiras medidas de políticas públicas tendentes a garantir o desenvolvimento
sadio das crianças, mantida a sua dignidade e alcançado o bem comum: justiça
social.
Trata-se, portanto, de um conjunto de atos normativos que vale prima
facie, incluindo-se no domínio de proteção dos direitos fundamentais (direito à saúde
e liberdade econômica), mas, contudo, deve submeter-se ao exame dos seus exatos
limites.
Nesse diapasão, afirma-se que eventual restrição a esse direito prima
facie implicará uma modificação normativa ou factual, justificada na Constituição ou
não contrária a ela, de um ou de alguns dos elementos configuradores do direito
fundamental, vistos, tais como: 1. sujeitos dos direitos fundamentais (titulares e
destinatários); 2. âmbito de proteção material, definido e delimitado com base no
objeto de proteção e nos limites que tenha o direito fundamental; e 3. a justificação
constitucional dos limites, que se funda na reserva de lei, no princípio da
proporcionalidade e no conteúdo essencial do direito fundamental.
395
395
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 28.
154
4.2.5 Princípio da livre concorrência
A livre concorrência é contemplada na Constituição Federal como
principio decorrente da própria liberdade de iniciativa (fundamento da ordem
econômica e da República), já que inconcebível um Estado Democrático assegurar a
livre iniciativa, mas não assegurar que o mercado se desenvolva sem entraves
jurídicos justificáveis, de forma a manter a produção, a circulação e o consumo de
bens e serviços. A livre concorrência reporta-se aos agentes da ordem econômica,
colocando-os em posição de igualdade em uma situação de liberdade econômica.
396
Conceituada como “a abertura jurídica concedida aos particulares para
competirem entre si, em segmento lícito, objetivando o êxito econômico das leis de
mercado”,
397
na verdade, representa, por outras palavras, “livre jogo das forças de
mercado, na disputa da clientela”,
398
vencendo aquele que tiver maior poder de
persuasão, papel, este, atribuído, no caso em estudo, ao marketing das empresas
dos produtos abrangidos pela NBCAL. Aliás, o abuso do poder econômico é tão
previsível que até regramento constitucional existe para coibi-lo (artigo 173, § 4°,
Constituição Federal. “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise [...] à
eliminação da concorrência”).
Note-se, mais, que o sistema adotado na Constituição Federal não é
voltado à proteção do consumidor, embora também previsto como princípio da
ordem econômica. O texto constitucional traz como regra a livre concorrência,
396
TOLEDO, Gastão Alves de. O direito constitucional econômico e sua eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 194.
397
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003, p.
255.
398
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 221.
155
desencadeando uma rivalidade entre as empresas para conquista do mercado, sem
ater-se aos interesses do consumidor, senão ao de conquistá-los. A intervenção
legal nesta concorrência é exceção e se efetivará conquanto houver abusos.
“Frustra-se, assim, a suposição de que o mercado esteja organizado, naturalmente,
em função do consumidor.”
399
O princípio da livre concorrência não tem, em si mesma, um fim, mas,
sim, um caráter instrumental, através do qual são extraídas importantes conclusões,
por exemplo: o preço dos produtos e serviços será estipulado pelo livre jogo do
mercado, regido pelo sistema da oferta e procura. Diante deste regramento, as
empresas, visando à captação de consumidores, tendem a oferecer mais, e cada
vez mais, benefícios ao consumidor.
400
Justamente nesse sentido é que as empresas de fórmulas infantis,
mamadeiras e chupetas se respaldam na livre concorrência para disputar os
consumidores, apresentando vendas casadas, embalagens especiais e flagrante
abuso dos meios de propaganda, atuação esta em prejuízo do aleitamento materno
e conseqüente saúde da criança, necessitando de um regramento como o da
NBCAL.
Note-se a inversão de valores e a afirmação, antes mencionada, de
que ordem econômica não é voltada, à primeira vista, para a proteção do
consumidor. As empresas, como dito alhures, se preocupam com o fim mediato de
lucro e não com fim imediato constitucional do direito à saúde.
399
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 – interpretação e crítica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 230.
400
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 223. No mesmo sentido:
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 126.
156
Para evitar tais abusos, a Constituição prevê os fundamentos da justiça
social e da existência digna, bem como a atribuição ao Estado da tarefa de zelar
pela regularidade do mercado, mediante edição de regras que possam garantir a
competição das empresas de forma não abusiva e ilusória do consumidor, com
atividades normativas e reguladoras, a exemplo da NBCAL.
Como bem ressaltado, ainda
que a competitividade no mercado, por mais importante que possa
ser, não é valor absoluto que justifique, por si só, o sacrifício de todos
os outros relevantes valores que compõem a ordem constitucional
econômica, dentre eles a própria expansão e universalização da
dignidade entre as pessoas e a busca incessante da justiça social,
fins constitucionalmente adotados e que não são meros preceitos
enxertados em uma carta de intenções.
401
Ora, considerando-se que a Constituição comporta valores de
inspiração liberal e socialista, necessária a sua harmonização, nunca se esquecendo
de que a ordem econômica tem a finalidade de justiça social, pressupondo a
distribuição igualitária da renda, de forma a garantir a todos e a cada indivíduo
condição de existência digna, embora organizada sob o regime capitalista, com
atuação precípua do particular, que possui liberdade de iniciativa e livre
concorrência, permitindo-se, porém, a intervenção estatal para coibir e corrigir
abusos.
4.2.6 Princípio da defesa do consumidor
A finalidade do ordenamento econômico constitucional é propiciar o
justo equilíbrio entre as empresas através da equação oferta e procura (livre
157
iniciativa e livre concorrência). Igual finalidade também é buscada em relação ao
consumidor.
402
A dignidade da pessoa, mais uma vez, ressaltada como fundamento
constitucional e diretriz de interpretação constitucional, vem cumprir a dupla função
do princípio da defesa do consumidor, quais sejam: 1. de instrumento para
assegurar a todos existência digna, e 2. de objetivo particular a ser alcançado,
justificando a reivindicação de políticas públicas.
403
É um princípio que, no contexto, se concretiza juntamente com as
regras inscritas nos art. 5°, XXXII, art. 24, VIII e art. 150, § 5°, todos da Constituição
Federal, representando uma ideologia contemporizada que afeta todo o exercício da
atividade econômica, atribuindo ao Estado a função de zelar pelo consumidor,
amparando-o com eventual indenização em caso de danos.
A proteção principiológica do consumidor decorre do seu próprio
conceito, que o coloca em posição de hipossuficiência em relação ao produtor do
bem ou serviço. Neste diapasão, a sua defesa deve ser promovida através de
normas específicas e de medidas dotadas de caráter interventivo.
404
A relação de consumo pode ser considerada perfeita quando regida
pela boa-fé entre produção e consumo, e imperfeita quando presente o abuso para
garantir maior lucratividade.
405
No mundo econômico, a disputa acirrada pela conquista do
consumidor, provoca um intenso sistema de propaganda geradora de novos hábitos
401
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art. 170
da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 227.
402
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 230.
403
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 interpretação e crítica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 252-253.
404
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 interpretação e crítica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 255.
158
de consumo (por vezes publicidade enganosa e abusiva
406
), deixando bem
estabelecido o potencial de grave lesividade a que está exposto o consumidor,
407
o
qual, muitas vezes, por exemplo, deixa de seguir orientação de alimentação natural
e saudável (aleitamento materno) para valer-se de alimentos artificiais,
desnecessários, de elevado custo final e sem a mesma eficiência nutricional.
Devida a essa vulnerabilidade do consumidor, exige-se a interferência
do Estado nas relações privadas, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor
(Lei n° 8.078/90
408
), que fortalece o indivíduo enquanto consumidor, dando maior
solidez ao princípio da dignidade humana e à solidariedade, que também são
observados no âmbito econômico. Isto implica no respeito à saúde, segurança,
proteção de seus interesses econômicos, melhoria na qualidade de vida,
transparência e harmonia nas relações de consumo.
409
Por outro lado, como mencionado no estudo do princípio da livre
concorrência, os mecanismos do mercado, naturalmente, são voltados à direta ou à
dissimulada obtenção de lucro, priorizando-a, inclusive, em relação à saúde do
consumidor. A exemplo, pode-se citar a atuação de famosa rede de hipermercado
na comercialização de alimentos perecíveis com prazos vencidos, que foi objeto de
405
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 141.
406
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 141.
407
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art. 170
da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 231.
408
Legislação esta que representa uma política nacional, reconhecendo a vulnerabilidade do
consumidor no mercado; a necessidade de ação governamental, no sentido de proteger efetivamente
o consumidor, além prever direitos básicos como a proteção à saúde; direito de informação adequada
e clara sobre diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade, preço e risco que apresentam; e direito à proteção contra a
publicidade enganosa e abusiva, entre outros direitos. Nesse sentido: SILVA, Américo Luís Martins da
Silva. A Ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 145-146.
409
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 234. No mesmo sentido:
SILVA, Américo Luís Martins da Silva. A ordem constitucional econômica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 141.
159
ação civil pública na comarca de Vinhedo, publicada recentemente em revista
jurídica especializada.
410
Farta, ainda, a exemplificação de abusos de poder econômico de toda
ordem, mormente pelas “agressivas políticas de marketing que a todo instante
geram novas necessidades para o consumidor”,
411
necessidades, estas, muitas
vezes, criadas pelas próprias empresas, as quais pretendem satisfazê-las. Este
círculo vicioso pode se dar através da informação (pressupostamente independente)
ou pela propaganda (dependente e parcial).
Sabe-se, ainda, que o no gerenciamento de empresas se faz pelas
necessidades econômicas da própria empresa e não pelas necessidades vitais ou
essenciais dos cidadãos. O ser humano perde esta qualidade para transformar-se
em mero receptor da demanda empresarial, fazendo, assim, surgir a sociedade do
consumo de massa. A demanda acumulativa de capital da empresa é medida
através das vendas e da aceitação de seus produtos ou serviços. O ato de consumo
se exaure em si mesmo, sem se cogitar do que ou para que se consome,
submetendo-se à lógica do desejo e não da necessidade.
412
Inegável, portanto, as dificuldades para assegurar a defesa do
consumidor, tanto no aspecto político e econômico, como no jurídico, exigindo, pois,
a imposição de políticas sociais corretivas, a exemplo da NBCAL, que objetiva sanar
as distorções do marketing e fomentar a saúde através do aleitamento materno,
garantindo a existência digna da criança e justiça social.
410
CARNEIRO, Eliana Faleiros Vendramini; DANTAS, Newton José de Oliveira. Hipermercado.
autuação da vigilância sanitária. Infração de natureza gravíssima e reincidência. Diversas
irregularidades. Perigo de dano à saúde pública. Revista de direito do consumidor, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n. 49, jan/mar.,p. 345-358, 2004.
411
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art. 170
da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 232.
412
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 184.
160
Note-se que a proteção do consumidor inserida na Constituição
Federal, por se revelar de extrema importância para o consumidor e para a própria
dignidade da pessoa, não pode ficar apenas no campo normativo.
413
Deve, sim,
extrapolar este limite e atingir a seara de um “princípio-programa”, tendo por objeto
uma ampla política pública (public policy).
414
Insta frisar, ainda, que o princípio constitucional da defesa do
consumidor demonstra, efetivamente, que determinada política pública pode garantir
os direitos do consumidor, não se fixando apenas no Código de Defesa do
Consumidor, mas permitindo outras políticas, como textos legais debatidos neste
trabalho.
Dessa forma, a política de proteção do consumidor deve harmonizar-se
com os interesses dos agentes econômicos e com os do consumidor, mantendo-se o
desenvolvimento econômico e tecnológico, viabilizando os princípios nos quais se
funda a ordem econômica, sem embargo da coibição e repressão dos abusos
praticados no mercado de consumo.
415
413
Ibid. p. 185-186.
414
COMPARATO, Fábio. A proteção do consumidor na constituição brasileira de 1988, Revista de
Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 80, p. 70. No mesmo sentido: Newton de
Lucca, Direito do consumidor, p. 35, ambos apud TAVARES, André Ramos. Direito constitucional
econômico. o Paulo: Método, 2003, p. 186.
161
5. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA GM 2.051/01 E DAS
RESOLUÇÕES RDC ANVISA N° 221/02 E RDC ANVISA N° 222/02
5.1 Princípios e regras
Primeiramente, de determinar o que vem a ser princípios. No
contexto doutrinário, a distinção é feita tomando-se por parâmetro o conceito de
regra. Várias teorias foram desenvolvidas para conceituar princípios. Umas
enfocavam o caráter quantitativo, outras o qualificativo. Tal estudo, porém, não será
objeto deste trabalho, senão a adoção da definição exposta por Robert Alexy, por
apresentar um critério de ponderação, possível de determinar a reserva do que é
jurídica, social, e economicamente possível, delimitando, assim, os direitos prima
facie (aqueles previstos na Constituição) e definitivos (direito escolhido após a
ponderação) e os princípios.
Neste diapasão, considera-se o princípio mandatos de otimização
(mandamentos de otimização), porque são normas que ordenam que algo seja
realizado da melhor forma possível, diante das possibilidades jurídicas e
circunstâncias concretas existentes. Assim, podem ser cumpridos em diferentes
graus, sendo que as medidas decorrentes do seu cumprimento estão estritamente
ligadas às situações fáticas e jurídicas.
416
Estas situações jurídicas referem-se às
possibilidades abertas pelo direito, cuja área é delimitada pelo conjunto de princípios
e regras.
417
415
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado do art. 170
da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 239. No mesmo sentido:
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 187.
416
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 86.
417
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 44-45.
162
As regras, por sua vez, são normas que podem ou não ser cumpridas.
Se válidas, deve-se fazer o que elas exatamente exigem, sem extrapolar seus
limites. Enquanto os princípios são mandamentos que ordenam a realização de algo,
as regras são determinações inseridas no âmbito fático e juridicamente possível.
418
A diferença também é demonstrada sob o aspecto lógico e
deontológico, asseverando-se que as regras possuem uma descrição fática com
previsão da conseqüência jurídica de sua incidência, enquanto que os princípios não
trazem esta situação jurídica de hipótese de incidência, mas sim um valor, de forma
que adquire positividade, ou seja, validade jurídica objetiva.
419
Citando Dworkin, afirma-se que as regras são aplicadas de modo all-or-
nothing, no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida,
ou a regra é válida e aceita juridicamente, ou ela não é considerada válida. Os
princípios, por sua vez, não impõem uma determinada decisão, mas apresentam
fundamentos que devem ser conjugados com outros fundamentos oriundos de
princípios diversos. Assim, enquanto as regras instituem obrigações definitivas, que
não aceitam normas contrapostas, os princípios instituem obrigações prima facie,
porquanto podem ser superadas ou derrogadas em razão de outros princípios
colidentes.
420
Essa forma de aplicar as regras (“tudo ou nada”) é contestada, pois
elas também necessitam de um prévio processo de interpretação, por vezes longo e
complexo como o dos princípios, que demonstre quais as conseqüências que serão
implementadas. Isto ocorre, contudo, diante do caso concreto, de forma que as
418
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 87.
419
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 2. ed. rev. e
ampl, São Paulo: Celso Basto Editora, 2001, p. 52.
420
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed.
São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36.
163
regras, em vez de se estremarem, se aproximam. Conclui-se, diante do exposto, que
a única diferença entre regras e princípios é o grau de abstração que se
anteriormente à interpretação. No caso, o grau de abstração dos princípios é maior
em relação às regras, que não se vinculam abstratamente a uma situação
específica.
421
Denota-se, portanto, que o espectro de interpretação e aplicação dos
princípios é muito mais amplo que o das regras. Aqueles buscam o melhor
cumprimento possível de um determinado interesse. Estas, apenas o fazer ou não
fazer, sem a nuance da otimização.
422
Daí falar-se que a diferença entre princípios e regras é qualitativa e não
de hierarquia, com pesos e graus diversos, embora ambos sejam normas. A ordem
jurídica, dessa forma, compreende normas que se situam em patamares diversos,
de acordo com o seu maior ou menor grau de abstração ou concretude,
demonstrando a existência de um ordenamento jurídico escalonado. Na base deste
ordenamento, com maior grau de concretude, encontram-se as normas individuais,
como a sentença, que disciplina determinada e específica situação jurídica. O grau
de abstração vai crescendo atranscender as regras e atingir os princípios, que,
por sua vez, estão em diversos níveis de abstração.
423
O entendimento do princípio somente se dá quando se consegue
encontrar os seus limites através da contraposição a outros princípios e à realidade
421
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed.
São Paulo: Malheiros, 2005, p. 40.
422
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed.
São Paulo: Malheiros, 2003, p. 29. Segundo o autor, quando dois princípios entram em conflito,
deve-se atribuir uma dimensão de peso maior a um deles. Por isso, assevera-se que os princípios
entram em conflito no plano concreto, e a solução desse conflito insere-se na problemática da
aplicação.”
423
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 2. ed. rev. e
ampl, São Paulo: Celso Basto Editora, 2001, p. 52-53.
164
a que se refere.
424
A exemplo, no presente trabalho, a liberdade econômica vem
limitada por vários outros princípios e fundamentos que traçam o seu objetivo, como
antes mencionado. Da análise desse conjunto, é extraído o conteúdo do princípio da
liberdade econômica no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, tem-se que os princípios constitucionais, especialmente
os direitos fundamentais, possuem uma condição de abertura normativo-material,
possibilitando a expansão da sua capacidade e do seu comando, conforme a
situação concreta a ser dirimida, o que, doutrinariamente, é definido como eficácia
irradiante.
425
5.2 Colisão de princípios e sua solução
No item anterior foi feita a necessária distinção entre princípios e
regras, pois a solução de conflitos entre princípios e regras e a colisão entre
princípios apenas, encontram formas diversas de solução. Enquanto o confronto de
princípios e regras se através da introdução de uma cláusula de exceção, a
colisão de princípios segue metodologia diversa
426
, como será, abaixo, demonstrado.
Fala-se em colisão de princípios quando duas normas trazem
resultados inconciliáveis, ou seja, concretizam dois juízos normativos que se
contradizem. Quando dois princípios se colidem, um precisa ceder lugar ao outro,
não significando, isto, porém, que o princípio afastado é inválido. O que ocorre, na
424
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 86-87 e 99. No mesmo sentido: DERANI, Cristiane. Direito ambiental
econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 45-46.
425
LEITE, George Salomão (Org.). Dos Princípios constitucionais: considerações em torno das
normas principiológicas da constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 37.
426
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 87-88.
165
verdade, é a prevalência de um sobre o outro diante do caso concreto, devendo ser
sopesados na justa medida.
427
Por outras palavras, surge a colisão quando algo é proibido por um
princípio e permitido por outro. Neste caso, um tem que ceder ao outro
428
ou, então,
pode ocorrer uma limitação mútua. No caso, em estudo, a promoção comercial é
permitida pelo princípio da liberdade econômica, porém, é limitada em certas
circunstâncias e proibida em outras (como propaganda de chupetas, bicos e
mamadeiras) em razão do direito à saúde da criança, ambos direitos fundamentais.
Não há, porém, a determinação imediata de prevalência de um
princípio sobre o outro, mas sim a aplicação de sistema de ponderação entre os
princípios colidentes, do qual, então, diante de determinadas circunstâncias
concretas, decorrerá a prevalência de um deles.
429
Está prevalência não se na
dimensão de validade do princípio, que é pressuposta quando se fala na sua
colisão. Isto porque se não houvesse validade, sequer se cogitaria de conflito porque
somente existe colisão de princípios válidos. A priorização de um princípio, portanto,
é decorrente do seu peso
430
em relação aos interesses protegidos pelo princípio que
a ele se contrapõe.
Essa idéia de peso é sustentada por Dworkin, no sentido de que os
princípios, ao contrário das regras, trazem, em si, uma dimensão de peso que se
427
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 46-47.
428
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 89.
429
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed.
São Paulo: Malheiros, 2003, p. 29. Segundo o autor, “quando dois princípios entram em conflito deve-
se atribuir uma dimensão de peso maior a um deles. Por isso, assevera-se que os princípios entram
em conflito no plano concreto, e a solução desse conflito insere-se na problemática da aplicação”. (p.
44). No mesmo sentido: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de
Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 89.
430
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 89
166
exterioriza quando em colisão com outro princípio. Nesta hipótese, o princípio com
peso relativo maior se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade.
431
De forma mais pormenorizada, explica-se que, na verdade, não são os
princípios portadores de peso, mas, sim, às razões e aos fins a que eles fazem
referência é que deve ser atribuída uma dimensão de importância e preponderância.
Assim, é a decisão que atribuiu aos princípios um peso em função das condições do
caso concreto, o que se em razão da atuação do intérprete, revelando o juízo
valorativo do aplicador.
432
O chamado conflito autêntico de direitos fundamentais somente ocorre
quando um direito individual afeta diretamente o âmbito de proteção de outro direito
individual. A doutrina divide esta colisão de direitos em sentido estrito e amplo,
referindo-se, o primeiro, apenas aos conflitos de direitos fundamentais e, em sentido
amplo, aos conflitos que envolvem direitos fundamentais e outros princípios ou
valores de caráter coletivo. A colisão dos direitos fundamentais, por sua vez, pode se
dar entre princípios idênticos ou não. É certo, ainda, que em razão de haver a
restrição de um direito fundamental em relação a outro, a colisão somente deve ser
suscitada em casos excepcionais, sob pena de banalizar a limitação de direitos, em
princípio, não limitáveis.
433
Daí falar-se em “limites imanentes” ou “limites dos limites” (Schranken-
Schranken). Não se pode chegar ao equívoco de afirmar que as restrições são
ilimitadas. Os direitos, liberdades e garantias são restringíveis, mas estas restrições
são limitadas e seus limites decorrem da própria Constituição Federal, e referem-se
431
Taking Rights Seriouly, 6ª tir., p. 26 apud ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à
aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 43.
432
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed.
São Paulo: Malheiros, 2005, p. 51.
433
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 77-82.
167
tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental,
quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições
impostas.
434
Afirma-se, ainda, que os limites imanentes podem ser considerados
um fenômeno diverso da colisão de direitos fundamentais, se adotado tal fenômeno
para justificar a restrição legislativa dos direitos fundamentais que não possuem
reserva de lei. Assim, em tese, o legislador pode instituir restrições não previstas na
Constituição porque esses limites são imanentes ao sistema dos direitos
fundamentais e à Constituição. Esta dogmática preconiza que os limites derivam de
uma ligação interna entre os diferentes direitos fundamentais e antevê a existência
de tensão entre eles e/ou entre bens constitucionais, quando de suas
materializações na vida social.
435
Isso porque o entendimento dos direitos fundamentais enquanto
garantias institucionais, tal como previstos na Constituição Federal, tem por
finalidade assegurar formas preexistentes de determinadas áreas da vida social.
436
Como se disse, os direitos fundamentais surgiram em face da
repressão e do abuso estatal, colocando o indivíduo em posição de segurança,
possibilitando-lhe impedir a atuação arbitrária do Estado (prestação negativa) ou
exigir a satisfação dos interesses mínimos de sobrevivência e dignidade (prestações
positivas).
As intervenções e limitações, portanto, devem ocorrer por meio de lei
ou por outro ato nela respaldado, denominando-se, tais intervenções, de limite legal,
434
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 41.
435
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 40.
436
SCHLINK, Bernhard. Liberdade mediante resistência estatal Reconstrução da função clássica
dos Direitos fundamentais. Tradução inédita Leonardo Martins.
168
ou seja, aquele que o Estado impõe, legalmente, aos indivíduos. Diante dos direitos
fundamentais, afirma-se que os mesmos contêm reserva legal (Vorbehalt des
Gesetzes)
437
ou, em outros casos, reserva qualificada, falando-se, ainda, em reversa
geral de lei, como antes mencionado em item próprio.
Esta reserva, apenas administrativa na época em que o Superior
Tribunal prussiano começava a impor o controle da polícia, em data não esclarecida
nas fontes pesquisadas, não vinculava o legislativo. Tratava-se de critério que
descrevia a ão necessária para atuação estatal, mas não informava detalhes para
a sua execução. O Tribunal Administrativo prussiano, a exemplo, passou, então, a
analisar a legalidade das medidas, dada a falta e a regulamentação pormenorizadas
das competências, através da sua proporcionalidade, tomando por base, para tanto,
dois requisitos: a adequação (Geeignetheit) e a necessidade (Erforderlichkeit).
438
O Tribunal Constitucional alemão seguiu no mesmo sentido e, a partir
da sentença de 11 de junho de 1958 (BverfGE 7, p. 377 (409s0s), reuniu os três
elementos no princípio da proporcionalidade em sentido lato: idoneidade,
necessidade e proporcionalidade stricto sensu.
439
Dessa forma, vinculou-se também o Legislativo aos direitos
fundamentais, transformando a reserva legal em reserva da lei proporcional
(Vorbehat des verhältnismässigen Gesetzes). Com esta reserva qualificada, o
437
SCHLINK, Bernhard. Liberdade mediante resistência estatal: Reconstrução da função clássica
dos Direitos Fundamentais. Tradução inédita Leonardo Martins.
438
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. o
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 36. Ainda: SCHLINK, Bernhard. Liberdade mediante
resistência estatal Reconstrução da função clássica dos Direitos Fundamentais. Tradução inédita
Leonardo Martins.
439
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. o
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 79. No mesmo sentido: ÁVILA, Humberto. Teoria dos
princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 104-
105.
169
indivíduo viu-se protegido das intervenções administrativa e legal, injustificadas ou
desproporcionais, nos direitos fundamentais.
440
na década de 1960, com o conceito firmado na jurisprudência do
Tribunal Constitucional Federal alemão, com os primeiros contornos dogmáticos, o
princípio da proporcionalidade resultaria da própria substância dos direitos
fundamentais. Pouco mais tarde, o mesmo tribunal afirmava que, embora não
positivado na constituição, o princípio da proporcionalidade teria status
constitucional.
441
A idéia da proporcionalidade foi muito bem entendida e reproduzida por
Peter Lecher, em sua tese de livre-docência. Para o autor, a proporcionalidade
tratava de um princípio constitucional coexistente com o princípio da necessidade
que tinha por fim impedir o excesso na medida estatal legislativa que interferisse na
liberdade individual. Assim, a liberdade individual era resguardada quando fosse
proibido o excesso da medida estatal. Dessa foram foi construída a dogmática do
Übermabverbot (Proibição de excesso), cujos elementos seriam a necessidade
(Erforderlichkeit) e a proporcionalidade (Verhältnismäbigkeit).
442
O entendimento da intervenção e do limite interventivo é aplicável, do
mesmo modo, quando ao Poder Executivo é atribuída a função discricionária a
respeito das prioridades políticas e das preferências estatais na consecução dos
440
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 116. No mesmo sentido: SCHLINK, Bernhard. Liberdade
mediante resistência estatal Reconstrução da função clássica dos direitos fundamentais. Tradução
Leonardo Martins, LL.M.
441
“BVerfGE 19, p. 342 (348). Esta decisão foi repetida no início da década de oitenta, mais
precisamente na Decisão sobre o controle abstrato da Lei do Censo, de 1983: BVerfGE 65, 1, 44
(Volkszählungsurteil)” e BVerfGE 23, p. 127 (133) apud MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade
como critério de controle de constitucionalidade: problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição
constitucional brasileiros. Cadernos de Direito: – cadernos do curso de mestrado em direito da
UNIMEP, n. 5, p. 18, dez. 2003.
442
MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade:
problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição constitucional brasileiros. Cadernos de Direito
cadernos do curso de mestrado em direito da UNIMEP, n. 5, p. 19, dez. 2003.
170
direitos de prestação, ou seja, na concessão de tutelas de prestação estatal. Não se
questiona a aplicação, de forma vinculativa, dos direitos fundamentais também aos
órgãos integrantes da Administração direta e aos entes que compõem a
Administração indireta.
443
A proporcionalidade, neste caso, vem, não de forma arbitrária, mas sim
na medida em que a atuação do Estado seja conforme com a dependência do
indivíduo às necessidades desta atuação e da possibilidade de, por meio dela,
viabilizar a existência da prestação devida,
444
podendo-se admitir uma maior ou
menor intensidade do seu controle.
445
Pode-se transpor tal raciocínio para o presente trabalho, uma vez que a
criança tem direito à saúde, com absoluta prioridade, devendo tal direito ser
assegurado por lei ou qualquer outro meio, vale dizer, políticas públicas, como
citado. Para a concretização deste direito, norma programática, a autoridade
administrativa deverá utilizar-se dos meios necessários e adequados, legitimando,
assim, a sua ação, sob pena de, não atendendo aos limites da intervenção ou
agindo de forma desproporcional, intervir, injustificadamente, em direito fundamental,
no caso a liberdade econômica.
Note-se que a proporcionalidade, aqui, está exatamente delimitando a
discricionariedade do legislador através da necessidade da atuação estatal, para
garantir o direito à saúde da criança, e da sua adequação, no sentido de possibilitar
a existência deste direito, mesmo porque a “proporcionalidade é imanente à
essência dos direitos fundamentais, que, enquanto expressão da pretensão geral à
443
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 117.
444
SCHLINK, Bernhard. Liberdade mediante resistência estatal Reconstrução da função clássica
dos Direitos Fundamentais. Tradução Leonardo Martins, LL.M.
445
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 118.
171
liberdade do cidadão perante o Estado, podem ser limitados somente na medida em
que sejam indispensáveis à defesa do interesse público.”
446
Na doutrina brasileira, conceituou-se proporcionalidade como
uma regra de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais,
empregada especialmente nos casos em que um ato estatal,
destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de
um interesse coletivo, implica a restrição de outro ou outros direitos
fundamentais.
447
O seu objetivo é fazer com que nenhuma restrição a direitos
fundamentais tome dimensões desproporcionais, o que se através do exame da
adequação do ato impugnado, da necessidade e da proporcionalidade em sentido
estrito, embora os Tribunais brasileiros insistam em negar tais elementos,
confundindo a regra da proporcionalidade com a razoabilidade, entendendo
proporcional tudo aquilo que não excede o razoável,
448
quando, na verdade, a
expressão razoabilidade enseja, de forma mais restrita, apenas a idéia de
adequação, idoneidade, aceitabilidade, traduzindo aquilo que o é absurdo, ou
seja, aquilo que é admissível, sendo considerado, às vezes, como subprincípio da
proporcionalidade.
449
Pressupõe-se, ainda, a existência de uma relação de meio e fim, ou
seja, de uma medida concreta destinada à realização de uma finalidade. Sem esta
relação, impossível a aplicação da regra da proporcionalidade, pois a sua essência
446
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. o
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 37.
447
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798,
p. 22, abr 2002
448
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798,
p. 22, 32, 34, abr 2002.
449
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. o
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 38. Segundo a autora, essa forma de decisão é a adotada nos
sistemas norte-americano e italiano.
172
está, justamente, na forma como são utilizados os meios e como é definido o fim a
que se destina a medida.
450
O critério adotado para a análise da constitucionalidade da Portaria GM
2.051/01 e das Resoluções RDC ANVISA 221/02 e RDC ANVISA 222/02
seguirá forma pré-ordenada, iniciando-se pelo exame da adequação, seguida da
necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, eis que tais elementos
relacionam-se, entre si, de forma subsidiária, e eventual conclusão dos primeiros
pode levar à desnecessidade do estudo dos demais pela afirmação da
inconstitucionalidade do ato impugnado. Isto porque a necessidade é considerada
como parâmetro de avaliação da proporcionalidade somente quando houver mais de
um meio idôneo ao fim pretendido.
Não se duvida da divergência que pode advir da análise ora proposta,
dada à racionalidade
451
a que está sujeito o critério adotado. Porém, o resultado,
com certeza, será juridicamente fundamentado e possibilitará a crítica por outros
autores, mesmo porque a análise final de inconstitucionalidade incumbe ao Poder
Judiciário, o qual decidirá de forma fundamentada, nos termos do artigo 93, inciso
IX, da Constituição Federal.
Como se disse, para decidir se determinada intervenção na área de
um direito fundamental é permitida ou constitui violação, portanto, contraria a
Constituição Federal, devem ser analisadas as normas que garantem o direito, os
interesses e as condições de atuação do Estado. O roteiro adotado é o elaborado
450
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed.
São Paulo: Malheiros, 2003, p. 106.
451
Cabe destacar a diferença das expressões razoabilidade e da racionalidade. Enquanto o primeiro
se refere ao equilíbrio e medida existentes entre o meio e o fim pretendido, o segundo afirma a idéia
de decisão provida de razão, ou seja, de conformidade com um critério racional. Neste sentido:
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 39.
173
pela doutrina alemã, adaptado ao direito constitucional brasileiro, conforme sugerido
pela doutrina pátria, respondendo-se às seguintes perguntas:
452
A. O comportamento contemplado pela medida situa-se na área de
proteção de um direito fundamental?
B. A medida em questão intervém na área de proteção de um direito
fundamental?
C. A intervenção é justificada constitucionalmente (intervenção
permitida) ou trata-se de uma violação de direitos fundamentais (intervenção
proibida)?
a. A medida possui fundamento legal? A medida aplica a lei
(fundamento legal) em conformidade com a Constituição?
b. A medida é clara e concreta?
c. A medida respeita o princípio da proporcionalidade?
d. A medida respeita todas as disposições da Constituição?
A pesquisa inova no mundo jurídico porquanto identifica uma
colisão de direitos fundamentais prima facie, cotejando-se o direito à saúde,
identificando o desenvolvimento sadio e adequado da criança como bem
constitucionalmente protegido, e o direito de liberdade econômica, direcionado pela
livre iniciativa. Discussão, esta, não encontrada após exaustiva procura nos tribunais
brasileiros, senão os casos solucionados junto às Promotorias de Justiça, conforme
mencionado no início deste estudo, mas que, em momento algum, procedeu-se a
este tipo de exame, racionalmente fundamentado, agindo-se sem qualquer análise
452
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações-
Caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 28-29, jan.
2001; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 78 e MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e
controle decConstitucionalidade. 3. ed. rev. e ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 108-109.
174
da possibilidade ou não de limitação legal da liberdade econômica em prol da saúde
da criança, garantida através do aleitamento materno e implementada através de
atos administrativos que revelam verdadeiras medidas de políticas públicas.
5.3 Análise dos atos normativos
A Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e
Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras é um conjunto de atos
normativos, consubstanciado na Portaria GM 2.051/01 e nas Resoluções RDC
ANVISA n° 221/02 (relativa a chupetas, bicos, mamadeiras e protetores de mamilos)
e RDC ANVISA n° 222/02 (relativa a alimentos para lactentes e crianças de primeira
infância).
Várias são as matérias disciplinadas, sempre com o objetivo de garantir
a adequada nutrição dos lactentes e das crianças de primeira infância. O presente
trabalho, porém, se limitou a analisar apenas os artigos referentes à regulamentação
da promoção comercial (propaganda e publicidade), um dos meios adotados para
atingir aquele objetivo (art. 1°, inciso I, da Portaria n° 2.051/2001).
Os dispositivos legais que regulamentam a promoção comercial, tanto
na Portaria quanto nas Resoluções, estabelecem as mesmas limitações e
proibições, apenas diferenciando o tipo de produto disciplinado. Assim,
desnecessária uma análise individual de cada artigo, pois os argumentos defendidos
neste estudo são os mesmos para todos os produtos.
O primeiro grupo, que comporta as fórmulas infantis e de segmento
para lactentes, as fórmulas de nutrientes apresentadas e/ou indicadas para recém-
nascido de alto risco e as mamadeiras, bicos, chupetas e protetor de mamilo, jamais
175
pode ser objeto de promoção comercial em quaisquer meios de comunicação,
inclusive no que diz respeito às estratégias promocionais para induzir venda ao
consumidor no varejo, como exposições especiais, cupons de descontos ou preço
abaixo do custo, prêmios, brindes, vendas vinculadas a produtos, ainda que não
cobertos pela Norma, como sói acontecer em farmácias, supermercados e lojas de
departamentos.
O segundo grupo de produtos admite a promoção comercial, mas se
sujeita à regulamentação específica, publicada pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Resolução RDC nº 222/02). É o caso das fórmulas infantis de segmento
para crianças de primeira infância, leites fluidos, leites em pó, leites modificados e
similares de origem vegetal; alimentos de transição e alimentos à base de cereais
indicados para lactentes e/ou crianças de primeira infância, bem como outros
alimentos ou bebidas, à base de leite ou não, quando comercializados ou de outra
forma apresentados como apropriados para alimentação de lactentes e de crianças
de primeira infância.
Nos produtos que admitem promoção comercial devem constar as
advertências: “O Ministério da Saúde adverte: O aleitamento materno evita infecções
e alergias e é recomendado até os dois anos de idade ou mais” e “O Ministério da
Saúde adverte: Após os seis meses de idade continue amamentando seu filho e
ofereça novos alimentos”, conforme o produto promovido, nos termos do item 4.2.1 e
4.2.2 da RDC 222/02.
As embalagens e rótulos dos produtos seguem específicos requisitos,
trazendo advertências e limitações de ilustração, ou seja, apresentação visual do
produto.
176
Os materiais educativo e técnico-científico devem conter informações
claras sobre os benefícios e a superioridade da amamentação em relação a outras
formas de alimentação, orientação sobre alimentação adequada da gestante e da
nutriz, efeitos negativos do uso das mamadeiras, dos bicos e das chupetas e
implicações econômicas decorrentes da opção pelos alimentos utilizados em
detrimento do leite materno ou humano, além dos prejuízos causados ao lactente
pelo desnecessário e inadequado uso de tais alimentos, destacando, inclusive, a
possibilidade de alterações de crescimento e desenvolvimento crânio-oro-facial e
das funções orais
453
.
Importante notar que também são proibidas doação ou venda a preços
reduzidos dos produtos abrangidos pela NBCAL, quaisquer que sejam, às
maternidades e a outras instituições que prestem assistência à criança.
Às pessoas ligadas ao comércio, tais como representantes dos
fabricantes ou importadores dos produtos ora analisados, não é permitida a
comercialização nas unidades de saúde, salvo para contatos com pediatras e
nutricionistas, devendo se limitar aos aspectos técnico-científicos, com as restrições
impostas à elaboração do material respectivo. A estes profissionais poderá ser
distribuída amostra, restrita a uma unidade do produto quando do seu lançamento.
Ao consumidor final não podem ser prescritas fórmulas infantis e de
segmento para lactentes, senão por médicos ou nutricionistas, e, em hipótese
alguma, poderá ser fornecida amostra de qualquer tipo de produto.
Vide também Resolução RDC 222/02, itens 4.3, 4.4, 4.5, 4.6, 4.7, 4.8, 4.9, 4.10, 4.11,4.12, 4.13,
4.14, 4.15, 4.16, 4.17, 4.19 e seus subitens.
453
Resolução RDC 221, item 6.4, (b).
177
5.3.1 Área de proteção de um direito fundamental
Cada direito fundamental destina-se a regulamentar uma situação ou
uma relação real, um conjunto de fatos que acontecem por razões que podem
ser biológicas ou sociais.
454
Não raras vezes, a área de proteção é determinada através de um
sistema ou, às vezes, até mesmo extraído do próprio confronto com a suposta
restrição. A doutrina, visando a essa sistematização, recomenda a análise da norma
constitucional sob dois aspectos: 1. identificação dos bens jurídicos protegidos e a
amplitude dessa proteção (âmbito de proteção da norma), e 2. verificação das
possíveis restrições contempladas na Constituição, expressamente, e identificação
das reservas legais.
455
Assim, o direito de liberdade econômica trata da proteção ao livre
exercício da atividade econômica, assegurando a liberdade de produzir, apresentar
e vender produtos sem intervenção.
Dentro dessa área de regulamentação do direito fundamental,
encontra-se a área de proteção, ou seja, aquilo que efetivamente está sendo
protegido pelo texto constitucional, sempre menor e mais específico que a área de
regulamentação. Exemplificando, a liberdade econômica, norteada pela livre
iniciativa, garante a apresentação do produto por qualquer meio publicitário. A livre
escolha do marketing, mais especificamente da propaganda, caracteriza a área de
proteção do direito fundamental.
454
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações-
caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 24, jan.
2001. No mesmo sentido: MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério de controle de
constitucionalidade: problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição constitucional brasileiros.
Cadernos de Direito – cadernos do curso de mestrado em direito da UNIMEP, n. 5, p. 24, dez. 2003.
178
Dessa forma, a publicidade e promoção comercial de alimentos para
lactentes e crianças de primeira infância, bicos, chupetas e mamadeiras estão
abrangidas pela área de proteção.
Embora se fale em livre escolha, há de se frisar que esta liberdade vem
circundada e norteada por fundamentos e princípios de ordem social que apontam a
finalidade da ordem econômica, não podendo ser ignorada na interpretação e
aplicação da norma constitucional. A existência digna e a justiça social, como
marcados em item anterior, foram enfatizadas já nos primeiros artigos do texto
constitucional e, agora, na ordem econômica voltam a ganhar destaque.
Se adotada a teoria do peso dos princípios, esses fundamentos
(existência digna e justiça social), aliados aos princípios da defesa do consumidor,
serão determinantes na priorização do direito à saúde em relação à liberdade
econômica, que a saúde é pressuposta da existência digna, não como se falar em
dignidade se ausente o mínimo necessário para tanto.
A justiça social também se apresenta como corolário da existência
digna, tal como a saúde, pois entendida como a “possibilidade de todos contarem
com o mínimo para satisfazerem às suas necessidades fundamentais, tanto físicas
como espirituais, morais e artísticas”,
456
serve de instrumento para a concretização
de uma vida digna, no mundo em que o trabalho e a livre iniciativa o
fundamentos.
457
455
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 14-15.
456
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito econômico. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004. p.
128-129.
457
RIOS, Roger Raupp. Ordem econômica, dociabilidade e os Mass Media” na Constituição da
República de 1988. Disponível em < http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina.htm>
179
5.3.2 Intervenção na área de proteção de um direito fundamental
A intervenção na área de proteção do direito fundamental pode ser
conceituada como a “ação ou omissão do Estado que impossibilita, em parte ou
totalmente, um comportamento correspondente a um direito fundamental”.
458
Neste
ponto, começam a surgir os problemas jurídicos e a colisão de interesses, dos quais
decorre a impossibilidade de ampla concretização de um direito fundamental, que
leva o prejudicado a pleitear a tutela jurisdicional para assegurar o direito que julga
ser amplo e irrestrito.
Esta intervenção se através de uma invasão normativa do Estado,
direta ou indiretamente, que atinja a liberdade garantida, e não de um simples
comportamento particular, pois a intervenção privada é cuidada pelo direito
infraconstitucional, ao contrário da intervenção estatal em direito fundamental que se
disciplina no âmbito constitucional.
459
A intervenção estatal na área de proteção de um direito fundamental,
na hipótese em estudo, está presente. A portaria do Ministério da Saúde e as
resoluções da ANVISA, ora em discussão, limitam a publicidade de alguns produtos
e vedam, totalmente a de outros.
A intervenção é logo verificada uma vez que, para garantir o direito à
saúde da criança, o Estado interveio na ordem econômica, de modo que o
comerciante, o distribuidor, o fabricante e o importador tiveram limitado o direito de
458
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações-
cadernos do programa de pós-graduação em direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 25, jan.
2001;
459
MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade:
problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição constitucional brasileiros. Cadernos de Direito
cadernos do curso de mestrado em direito da UNIMEP, n. 5, p. 25, dez. 2003.
180
liberdade econômica, no sentido de apresentar, vender e promover os seus produtos
como melhore lhes aprouvessem.
Note-se, como se disse em item anterior, que a NBCAL divide os
produtos por ela abrangidos em dois grupos. O primeiro, que comporta as fórmulas
infantis e de segmento para lactentes, as fórmulas de nutrientes apresentadas e/ou
indicadas para recém-nascido de alto risco e as mamadeiras, bicos, chupetas e
protetor de mamilo, jamais pode ser objeto de promoção comercial em quaisquer
meios de comunicação, inclusive no que diz respeito às estratégias promocionais
para induzir venda ao consumidor no varejo, como exposições especiais, cupons de
descontos ou preço abaixo do custo, prêmios, brindes, vendas vinculadas a
produtos, ainda que não cobertos pela Norma, como sói acontecer em farmácias,
supermercados e lojas de departamentos.
A segunda categoria de produtos admite a promoção comercial, mas
se sujeita à regulamentação específica, publicada pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Resolução RDC 222/02). É o caso das fórmulas infantis de
segmento para crianças de primeira infância, leites fluidos, leites em pó, leites
modificados e similares de origem vegetal; alimentos de transição e alimentos à
base de cereais indicados para lactentes e/ou crianças de primeira infância, bem
como outros alimentos ou bebidas, à base de leite ou não, quando comercializados
ou de outra forma apresentados como apropriados para alimentação de lactentes e
de crianças de primeira infância.
Na promoção comercial dos produtos que a admite devem constar as
advertências: “O Ministério da Saúde adverte: O aleitamento materno evita infecções
e alergias e é recomendado até os dois anos de idade ou mais.” e “O Ministério da
Saúde adverte: Após os seis meses de idade continue amamentando seu filho e
181
ofereça novos alimentos.”, conforme o produto promovido, nos termos do item 4.2.1
e 4.2.2 da RDC 222/02.
As embalagens e rótulos dos produtos seguem específicos requisitos,
trazendo advertências e limitações de ilustração, ou seja, apresentação visual do
produto
460
.
Os materiais educativo e técnico-científico devem conter informações
claras sobre os benefícios e a superioridade da amamentação em relação a outras
formas de alimentação, orientação sobre alimentação adequada da gestante e da
nutriz, efeitos negativos do uso das mamadeiras, dos bicos e das chupetas e
implicações econômicas decorrentes da opção pelos alimentos utilizados em
detrimento do leite materno ou humano, além dos prejuízos causados ao lactente
pelo desnecessário e inadequado uso de tais alimentos, destacando, inclusive, a
460
Resolução RDC 221/02, item 5.1.4. Os rótulos de chupeta, bico e mamadeira devem exibir
no painel principal, ou nos demais painéis, em moldura, de forma legível, de fácil visualização, em
cores contrastantes e em caracteres idênticos, em corpo, à designação de venda do produto, além de
atender à legislação específica, a seguinte advertência:
‘O Ministério da Saúde adverte:
- A criança que mama no peito não necessita de mamadeira, bico ou chupeta.
- O uso de mamadeira, bico ou chupeta prejudica a amamentação e seu uso prolongado,
prejudica a dentição e a fala da criança’
Item 5.1.5 Os rótulos de protetores de mamilo devem exibir no painel principal, ou nos demais
painéis, em moldura, de forma legível, de fácil visualização, em cores contrastantes e em caracteres
idênticos, em corpo, à designação de venda do produto, além de atender à legislação específica, a
seguinte advertência:
‘O Ministério da Saúde adverte:
- O uso de protetor de mamilo prejudica a amamentação’.
Item 5.1.6 Além do conteúdo indicado no item 5.1.1, o rótulo de chupeta, bico, mamadeira ou protetor
de mamilo pode conter outras informações, estando, entretanto, vedado incluir:
(g) Ilustrações, fotos ou imagens de crianças;
(h) Quaisquer figuras, ilustrações ou personagens infantis que se assemelhem a lactentes e
crianças de primeira infância, humanos ou não, que estejam utilizando, ou não, mamadeiras,
bicos e chupetas;
(i) Frases ou expressões que possam pôr em dúvida a capacidade das mães de amamentar
seus filhos ou sugiram semelhança do produto com a mama ou mamilo;
(j) Expressões ou denominações que identifiquem o produto como apropriado para uso infantil,
tais como a palavra baby’ ou similares, exceto quando utilizadas como marca registrada da
empresa ou do produto;
(k) Informações que induzam o uso do produto baseado em falso conceito de vantagem ou
segurança;
(l) A promoção do produto ou de outros produtos de que trata este Regulamento, pertencentes
ao fornecedor ou outros fornecedores
182
possibilidade de alterações de crescimento e desenvolvimento crânio-oro-facial e
das funções orais
461
.
Assim, impossível negar que a interferência da Portaria 2.051/01 e das
Resoluções RDC ANVISA 221/02 e RDC ANVISA 222/022 no direito
fundamental de liberdade econômica.
5.3.3 Justificativa constitucional da intervenção
A justificativa constitucional da intervenção revela a análise da
constitucionalidade formal e material dos limites dos direitos fundamentais. Estará
justificada a intervenção se for reconhecida a existência de um limite constitucional
concretizado pelo legislador infraconstitucional (formal) ou se for reconhecido que o
limite emanou de autoridade competente, buscando-se, assim, o seu vínculo com os
direitos fundamentais (material).
462
As intervenções consideradas permitidas enquadram-se, via de regra,
em uma das seguintes situações:
463
1. quando o comportamento não se situa na área de proteção do direito
fundamental;
2. quando a própria Constituição, expressamente, autoriza que uma lei
restrinja o direito fundamental, doutrinariamente chamado de “reserva legal”;
Vide também Resolução RDC 222/02, itens 4.3, 4.4, 4.5, 4.6, 4.7, 4.8, 4.9, 4.10, 4.11,4.12, 4.13,
4.14, 4.15, 4.16, 4.17, 4.19 e seus subitens.
461
Resolução RDC 221, item 6.4, (b).
462
MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade:
problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição constitucional brasileiros. Cadernos de Direito
cadernos do curso de mestrado em direito da UNIMEP, n. 5, p. 28, dez. 2003.
463
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações-
caderno do programa de pós-graduação em Direito da Unimep, Piracicabc Constitucionalidade. 3. ed.
rev. e ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 78.
183
3. quando dois direitos fundamentais ou um direito fundamental e um
princípio de interesse geral ou bem constitucionalmente protegido entram em conflito
no caso concreto.
O caso em estudo amolda-se perfeitamente tanto na segunda quanto
na terceira hipótese porque é identificada a colisão de dois direitos fundamentais: 1.
Saúde da criança e 2. Liberdade econômica. O aleitamento materno, bem
juridicamente protegido, que garante a saúde da criança, é preservado pela portaria
e resoluções analisadas, invadindo, outrossim, a área de proteção de direito
fundamental diverso.
Por outro lado, a liberdade econômica possui reserva legal no art. 170,
parágrafo único, da Constituição Federal, porquanto limita o livre exercício de
qualquer atividade econômica nos casos previstos em lei. Daí a dicotomia entre
direito à saúde e liberdade econômica.
A intervenção, assim, necessita ser examinada sob dois aspectos: 1.
se possui fundamento legal e 2. se este fundamento legal está em conformidade
com a Constituição Federal, o que se fará nos itens seguintes.
5.3.3.1 Fundamento legal da portaria 2.051/01 e das resoluções RDC ANVISA
221/02 e RDC ANVISA 222/02
O fundamento legal para a edição das medidas consolidadas na
NBCAL tem origem na Constituição Federal, que criou o Sistema Único de Saúde;
na Lei n° 8.080/90, que o regulamentou, e na Lei 9.782/99, que definiu o Sistema
Nacional de Vigilância Sanitária e criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
184
As resoluções da ANVISA (n° 221 e 222) ainda foram editadas por expressa
determinação de ato normativo do Ministro da Saúde (Portaria n° 2.051/01), a quem
compete orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da
administração federal na área de saúde, conforme disposto no artigo 87 da
Constituição Federal.
5.3.3.2 Conformidade constitucional da portaria 2.051/01 e das resoluções RDC
ANVISA 221/02 e RDC ANVISA 222/02
A presença de fundamento legal, que levaria os atos normativos à
conformidade com a Constituição Federal, está estritamente ligada à concretização
dos direitos fundamentais, no plano infraconstitucional, considerando três aspectos:
1. ausência de restrição; 2. restrição (intervenção ou limitação); e 3. configuração
(conformação).
464
Essas últimas modalidades se manifestam através de lei, daí
dizer-se em normas legais restritivas e normas legais conformadoras. As normas
restritivas limitam posições que, prima facie, se incluem no domínio de proteção dos
direitos fundamentais. As outras, conformadoras, pretendem complementar,
densificar, concretizar o conteúdo aberto, abstrato ou incompleto dos preceitos
constitucionais garantidores de direitos fundamentais.
465
Nesse diapasão, foram abordadas as hipóteses de reserva de lei
ordinária (simples reserva legal ou simples restrição legal), reserva de lei qualificada
(reserva legal ou restrição legal qualificada) e reserva de lei geral.
466
Ainda assim,
464
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 27.
465
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina,
2000, p. 1131.
466
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 34-35.
185
falou-se, também, em direitos fundamentais sem expressa previsão legal de
restrição, afirmando-se que, embora a constituição tenha se quedado silente, neste
aspecto, não se nega a existência de abusos decorrentes do titular do direito
fundamental, gerando verdadeiro conflito com outro direito fundamental.
Ademais, afirmou-se, neste âmbito, que somente uma colisão de
direitos fundamentais legitimaria o estabelecimento de restrição a um direito
fundamental não submetido à reserva legal expressa, quando, então, poder-se-ia
justificar esta intervenção em direitos de terceiros ou em outros princípios de
hierarquia constitucional.
467
Enfatizou-se, outrossim, que toda restrição será válida se justificada,
de alguma forma, constitucionalmente, afirmando-se que a restrição é uma
necessidade que se impõe em razão da unidade da Constituição e da harmonização
dos direitos e bens por ela protegidos, sempre submetidos aos controles formal
(competência, procedimento, forma) e material (princípio da proporcionalidade e
proteção do núcleo essencial).
468
No caso em estudo, denota-se que o direito fundamental de liberdade
econômica encontra cláusula de reserva simples, consoante disciplinado no art. 170,
parágrafo único da Constituição Federal, segundo o qual “É assegurado a todos o
livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização
de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. (grifo nosso).
Assim, a liberdade econômica, além de ser direcionada pelos
fundamentos da dignidade e da justiça social - fontes limitadoras do exercício deste
467
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 40.
468
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 37-39.
186
direito fundamental - ainda encontra restrições possíveis com amparo
constitucional.
469
Não bastasse esta restrição legal, a liberdade econômica confronta
com o direito à saúde, também direito fundamental, fazendo surgir colisão ou
conflito, cuja solução deverá advir da análise dos mencionados aspectos formal
(competência, procedimento, forma) e material (princípio da proporcionalidade e
proteção do núcleo essencial). Fala-se, assim, na situação em que dois direitos
fundamentais ou um direito fundamental e um princípio de interesse geral ou bem
constitucionalmente protegido entram em conflito no caso concreto.
Quanto à competência, como se disse em item anterior - na
apresentação da NBCAL - a Constituição Federal atribuiu aos Ministros de Estado a
competência para exercerem a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e
entidades da Administração Federal, na sua respectiva área (artigo 87, parágrafo
único, inciso I). A organização dos ministérios esprevista na Lei 9.649, de 27 de
maio de 1998, e no Decreto n° 4.118, de 07 de fevereiro de 2002.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária ANVISA é autarquia
criada pela Lei n° 9.782, de 26 de janeiro de 1999, com regimento interno aprovado
pelo Decreto n° 3.029, de 16 de abril de 1999, desempenhando a função de agência
reguladora, independente administrativamente, com responsabilidade centralizada
em uma Diretoria Colegiada composta por cinco membros. No quadro da
Administração Pública, localiza-se na denominada Administração Indireta, vinculada
ao Ministério da Saúde através de contrato de gestão.
469
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional e econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 137.
187
Sua origem constitucional repousa nos artigos 197 e 198, caput, que
criaram o Sistema Único de Saúde (SUS), integrando as ões e serviços de
saúde, cabendo ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle.
A execução destas ações e serviços integrados em uma rede
regionalizada e hierarquizada deve ser efetivada, diretamente, pelo Poder Público
ou, então, por terceiros, admitindo-se, inclusive, pessoas físicas ou jurídicas de
direito privado.
Ao SUS foi repassada, entre outras, a competência para “controlar e
fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde”,
“executar as ações de vigilância sanitária”, além da de fiscalizar e inspecionar
alimentos e bebidas, conforme disposto no artigo 200, incisos I, II e VI, da
Constituição Federal (grifo nosso).
A lei n° 8.080/90, de 19 de setembro de 1990, regulou o Sistema Único
de Saúde repetindo essas atribuições constitucionais e afirmando a sua
competência para a vigilância nutricional e orientação alimentar.
Ao conjunto de ações definidas nos artigos 6° e 15 a 18 da Lei n°
8.080/90 deu-se o nome de Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (art. 1° da
Lei n° 9.782/99)
470
, ficando a ANVISA responsável em assegurá-lo mediante
atividades de regulamentação, controle e fiscalização de produtos e serviços que
envolvam risco à saúde pública, sempre com finalidade institucional de proteger a
470
Lei n° 9.782/99. “Art. 1º. O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária compreende o conjunto de
ações definido pelo § 1º do art. e pelos arts. 15 a 18 da Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990,
executado por instituições da Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, que exerçam atividades de regulação, normatização, controle e
fiscalização na área de vigilância sanitária.”
188
saúde da população, competindo-lhe, ainda, disciplinar sobre a embalagem dos
alimentos e bebidas, conforme artigos 6°e 8°da lei que a criou
471
.
A lei n° 9.782/99, nesses termos, reforça a competência da União para
definir a política nacional e o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, e para
normatizar, controlar e fiscalizar produtos de interesse para a saúde, cujas
atribuições serão do Ministério da Saúde, no tocante à formulação daquela política e
das diretrizes gerais do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e, da ANVISA, no
que se refere à normatização, ao controle e à fiscalização dos produtos de interesse
para saúde.
472
No âmbito da sua competência, o Ministro de Estado da Saúde, à
época, Barjas Negri, editou a Portaria 2.051, de 08 de novembro de 2001,
estabelecendo os novos critérios da Norma Brasileira de Comercialização de
Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e
Mamadeiras, conforme anexo que a acompanha, com diretrizes gerais, entre elas a
proibição de promoção comercial ou promoção condicionada a certas advertências,
assim como a necessidade de rotulagens específicas para cada grupo de produto
abrangido pela Norma.
471
Lei n° 9.782/99. “Art. 6°. A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da
saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de
produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos
insumos e das tecnologias a eles relacionadas, bem como o controle de portos, aeroportos e de
fronteiras.”
“Art. 8º. Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar
os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:
I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e
tecnologias;
II - alimentos, inclusive bebidas, águas envasadas, seus insumos, suas embalagens, aditivos
alimentares, limites de contaminantes orgânicos, resíduos de agrotóxicos e de medicamentos
veterinários;”
472
Art. 2° da Lei 9.872/99.
189
O artigo 5° do Anexo vinculado na Portaria n° 2.051/01 remete as
condições da promoção comercial e a rotulagem dos produtos à regulamentação
específica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, consubstanciada nas
Resoluções n° 221 e 222, de 05 de agosto de 2002, da sua Diretoria Colegiada.
Compete, ainda, nos termos do artigo 14 do referido Anexo, aos órgãos
do Sistema Único de Saúde, no qual se inclui a ANVISA, sob orientação nacional do
Ministério da Saúde, a divulgação, aplicação e vigilância do cumprimento da NBCAL.
Dessa forma, fica demonstrada a presença de fundamento legal da
portaria e das resoluções.
5.3.3.3 Clareza e concretude da portaria GM 2.051/01 e das resoluções RDC
ANVISA nº 221/02 e RDC ANVISA nº 222/02
Neste âmbito, inexistem notas dignas de ressalvas. Os textos legais
analisados são evidentemente compreensíveis. Note-se que tanto a portaria como
as resoluções dividem os produtos abrangidos pela NBCAL em grupos, de acordo
com a importância no desenvolvimento seguro e adequado do lactente e da criança
de primeira infância e, de acordo com este mesmo critério, limita a promoção
comercial de alguns produtos e veda a de outros.
Ademais disso, a Portaria e as Resoluções apresentam definições
específicas sobre expressões técnicas, afastando quaisquer dúvidas que porventura
pudessem surgir.
190
5.3.3.4 Respeito ao princípio da proporcionalidade
Os princípios e a regra da proporcionalidade, de fato, guardam estreita
conexão, no sentido de que a proporcionalidade, com os seus elementos
(adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), possibilita que os
princípios sejam deduzidos, priorizados ou tornem-se prevalentes em relação a
outro, o que pode ser dar, inclusive, com o confronto com as próprias restrições.
473
A obediência ao princípio da proporcionalidade exige o exame das
medidas administrativas sob três aspectos: 1. adequação; 2. necessidade
474
e 3.
proporcionalidade em sentido estrito
475
, cuja ordem a ser seguida é esta
preestabelecida, pois, como já mencionado, esses elementos se relacionam entre si.
A intenção é, através desses requisitos, estabelecer uma relação entre
meio e fim para aplicação de um dos princípios colidentes, tornando possível o
controle do excesso.
476
Adequação, expressão utilizada em uma sentença alemã (BverfGE 30,
292 [316]
477
, cuja tradução poderia ser melhor entendida se utilizado o verbo fördern,
significando, assim, o ato de fomentar, de promover. Adequado, então, é o meio
através do qual um objetivo (um fim) é fomentado, promovido, ainda que tal fim não
seja completamente atingido.
478
473
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 111-112.
474
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 46.
475
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 111-112.
476
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 47.
477
Referida decisão encontra-se em BverfGE 30, 292 [316], mencionada por Gilmar Ferreira Mendes,
in O Princípio da Proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. p.
371 apud SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91,
n. 798, p. 36, abr 2002.
478
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798,
p. 36, abr 2002. No mesmo sentido: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação
dos princípios jurídicos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 108-113.
191
Esta adequação demonstra a existência de uma relação prognóstica
entre as conseqüências fáticas da utilização da medida e o fim pretendido,
permitindo, dessa forma, o exame da necessidade.
479
Fala-se, também, em “princípio da idoneidade”, como sinônimo de
adequação, ao referir-se à avaliação da qualidade instrumental do meio utilizado
para alcançar o fim pretendido, exigindo, assim, uma adequação de meio e fim.
480
Determinada a adequação da medida, deve ser examinada a sua
necessidade. Aqui, o que se procura saber é se existe outro meio capaz de atingir o
mesmo fim, com a mesma intensidade e com menor limitação.
481
Analisa-se,
portanto, primeiramente, a igualdade de meios e, após, o meio menos restritivo.
482
5.3.3.4.1 Adequação
A importância do aleitamento materno no desenvolvimento da criança
foi discutida em itens anteriores e ressaltada pela OMS/UNICEF, cuja
recomendação para adoção de um Código Internacional foi adotada em Assembléia
Mundial da Saúde.
O Brasil, Estado Membro da 34ª Assembléia Mundial de Saúde,
incorporou tais recomendações e editou a Portaria 2.051/01, do Ministério da Saúde
e as Resoluções RDC 221/02 e 222/02, da ANVISA.
479
MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade:
problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição constitucional brasileiros. Cadernos de Direito
cadernos do curso de mestrado em direito da UNIMEP, n. 5, p. 33-34, dez. 2003.
480
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 126.
481
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798,
p. 38, abr 2002.
482
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed.
São Paulo: Malheiros, 2003, p. 114.
192
Essas recomendações contidas em instrumentos internacionais foram
adotadas pela Constituição Federal, que, previu a saúde como direito fundamental e
adotou a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, reafirmada pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Tais instrumentos são aptos a fomentarem, a promoverem o objetivo
previsto, qual seja a proteção do aleitamento materno e garantia de saúde e,
conseqüente vida digna das crianças e defesa do consumidor, fundamentos e
princípios constitucionais.
Os meios de propaganda são poderoso arsenal na persuasão do
consumidor, como já mencionado.
Assim, na medida em que os atos administrativos discutidos limitam e
impedem a promoção comercial, está sendo efetivada a prestação estatal na
garantia de direitos fundamentais da criança e do consumidor, advertindo-os sobre
os prejuízos do consumo daqueles produtos. É, de fato, um meio adequado de
torná-los mais atentos aos riscos dos produtos e à necessidade de preservação da
saúde das crianças.
Advertidos e esclarecidos neste sentido, os pais, ao invés de
ministrarem fórmulas infantis, mamadeiras, bicos e chupetas, poderão analisar
melhor a forma de alimentação desejada para o seu filho, contribuindo para maior
ganho ponderal e diminuição do risco para infecções, diarréias, desidratação e
alergias, que, muitas vezes, culminam na morte da criança, dada as precárias
condições de vida, males estes explicados no primeiro capítulo deste trabalho.
Vale reforçar que grande volume de dinheiro é gasto na promoção de
comercial de fórmulas infantis. A indústria o agiria dessa forma se a propaganda
não fosse, efetivamente, aumentar o consumo de fórmulas. Estudos em Bangladesh,
193
Polônia, África do Sul e Tailândia têm confirmado que informações da indústria,
entendidas e vistas pelas mães como promovedoras das fórmulas infantis
desencorajam o aleitamento materno, aumentando, de fato, o uso daquelas fórmulas
objeto do marketing.
483
Ainda assim, vários estudos têm mostrado o efeito negativo da
distribuição de amostra de fórmulas nas maternidades para as mães, conduta esta
vedada pela NBCAL. Uma análise de seis estudos experimentais (cinco em países
industrializados e uma nas Filipinas) mostrou que as mães que receberam amostras
de fórmulas nas maternidades tiveram uma chance maior de introduzi-las no
primeiro mês e de interromper a amamentação aos quatro meses.
484
Destarte, as medidas de política pública adotadas - Portaria e
Resoluções mencionadas - são adequadas ao fim a que se propõem.
5.3.3.4.2 Necessidade
O significado dado à expressão “necessidade”, como mencionado, é
aquele que traduz uma premente necessidade social”, de forma que qualquer
intervenção em direito fundamental deve há de ser proporcional ao fim almejado.
485
Poderiam ser citadas outras possíveis alternativas que atingissem essa
necessidade social, porém, sem a mesma intensidade e menor poder de limitação. A
483
INTERAGENCY GROUP ON BREASTFEEEDING MONITORING. Cracking the Code, 1997 e
TAYLOR, A. Monitoring the Internatrional Code of Marketing of Breastmilk Substitutes: an
epidemiological study in four countries. Br Med J, 316:1117-22, 1998 apud CARVALHO, Marcus
Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases científicas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara
Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 21.
484
PÉREZ-ESCAMILLA, R., POLLIT, E., NNERDAL, B., DEWEY, K.G. Infant feeding policies in
maternity wards and their effect on breast-feeding success: an analytical overview. Am J Publ Health
84:89-97, 1994 apud CARVALHO, Marcus Renato; TAMEZ, Raquel N. Amamentação: bases
científicas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A. 2. ed., 2005, p. 21.
485
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. o
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 82.
194
este título cita-se a possibilidade de: 1. proibição de horário comercial, como no caso
do tabagismo e bebidas alcoólicas; 2. vedação de qualquer figura ou ilustração nas
embalagens; 3. venda somente prescrição médica e com receituário controlado; 4.
venda do produto somente em farmácias, impedindo, assim, o sistema self-service;
e 5. elevação dos tributos incidentes sobre os produtos, visando, dessa forma,
menor consumo dada a oneração do valor de venda final.
Todavia, para responder a essa pergunta - existem outros meios
menos gravosos para proteção do aleitamento materno? o raciocínio deve se
voltar para aquele que está tendo o seu direito fundamental limitado, pois através da
restrição também se pode chegar ao conteúdo efetivo do direito alegado.
486
Nesse diapasão, qual é o meio de melhor persuadir o consumidor
utilizado pelas empresas no propósito de vender os seus produtos?
O marketing exerce esse poder de persuasão sobre o consumidor,
influenciando o seu comportamento, dispondo, para tanto, de várias ferramentas,
inclusive a propaganda e a publicidade.
487
Seu escopo é criar, promover e fornecer
bens e serviços a clientes, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Seu conceito
gerencial consiste na “arte de vender produtos”, mas também de atrair e reter
clientes
488
. Este processo segue um trajeto chamado gerenciamento de marketing,
que comporta o “planejamento e a execução da concepção, a determinação do
preço, a promoção e a distribuição de idéias, bens e serviços para criar trocas que
486
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 14-15
487
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução Arão Sapiro. São
Paulo: Makron Books, 2001, p. 14.
488
KOTLER, Philip. Administração de Marketing: a edição do novo milênio. 10. ed. São Paulo:
Prentice Hall, 2000, p. 76. No mesmo sentido: KOTLER, Philip e ARMSTRONG, Gary. Princípios de
Marketing. Trad. Arlete Simille Marques e Sabrina Cairo. 9. ed. São Paulo: Prentice Hall, 2003, p. 03.
195
satisfaçam metas individuais e organizacionais”.
489
O objetivo principal para uma
empresa é alcançar um volume de vendas lucrativo.
490
A força do marketing, até mesmo incentivado pela concorrência
491
(a
mais acirrada de todos os tempos
492
) é a poderosa estratégia das empresas para
colocarem os seus produtos no mercado, funcionando como instrumento de
persuasão do consumidor, fazendo com que este adquira produtos sem a sua
efetiva necessidade, fixando-lhe, subliminarmente, a sua marca, que será decisiva
na escolha do produto.
A embalagem também faz parte desse processo de convencimento e
assume a função de vender o produto, ajudando na persuasão do consumidor e
servindo de meio de comunicação, através do seu design e cor, de forma a fazer
com que o produto seja percebido.
493
A sua importância é revelada em uma
pesquisa que concluiu que “um comprador médio gasta vinte minutos na loja,
olhando vinte produtos por segundo”.
494
Na hora da compra, no corredor do
supermercado, a embalagem atua como vendedor silencioso.
495
Junto com a embalagem, integrando o processo de marketing, a
promoção é utilizada como forma de comunicação e instrumento de influência na
aquisição do produto. A promoção é o elemento que serve para informar, persuadir e
489
KOTLER, Philip. Administração de marketing: a edição do novo milênio. 10. ed. São Paulo:
Prentice Hall, 2000, p. 25 e 30.
490
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução Arão Sapiro. São
Paulo: Makron Books, 2001, p. 11.
491
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Trad. Arão Sapiro. São
Paulo: Makron Books, 2001, p. 35. Para os autores, “O ambiente competitivo de uma companhia
obviamente é a maior influência nos seus programas de marketing.”
492
KOTLER, Philip e ARMSTRONG, Gary. Princípios de marketing. Tradução Arlete Simille Marques
e Sabrina Cairo. 9. ed. São Paulo: Prentice Hall, 2003, p. 474.
493
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução Arão Sapiro. São
Paulo: Makron Books, 2001, p. 259.
494
SCHREIBER, Eliot. Retail Trends Shorten Life of Package Design. Marketing News, 5 de dez. de
1994, p. 7 apud ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução
Arão Sapiro. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 259.
495
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução Arão Sapiro. São
Paulo: Makron Books, 2001, p. 259.
196
lembrar que o produto existe. Afeta, diretamente, os sentimentos, crenças ou
comportamento do consumidor e pode apresentar-se sob cinco formas: venda
pessoal, propaganda, promoção de vendas, relações públicas e publicidade.
496
Para driblarem a concorrência, as empresas acabam mudando preços
(preços promocionais), lançam novos produtos, implementam sua cobertura de
distribuição e intensificam suas promoções.
497
Para se ter uma idéia da importância do assunto ora discorrido,
dados que informam que a divisão de comida para bebê da Nestlé, maior fabricante
de alimentos do mundo, fazendo marketing de relacionamento com clientes, na
França, durante a alta estação de turismo, fornece paradas de descanso ao longo
das principais rodovias para famílias com crianças pequenas. Amostras dos
produtos Nestlé são oferecidas aos bebês, fraldas gratuitas estão disponíveis, e
promotoras de venda oferecem assistência aos pais. Em um período de dois meses,
a companhia distribuiu 600.000 refeições para 120.000 visitantes.
498
A necessidade do produto, criada pela empresas, é explicada pelos
profissionais de marketing como sendo a “motivação” da pessoa na aquisição do
produto. Esta motivação exige a idéia de necessidade intensa que leva a pessoa a
adquirir determinado bem. Possui cunho fisiológico ou psicológico e é explicada
através de três correntes (Teoria de Freud, Teoria de Maslow e Teoria de
Herzberg).
499
496
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução. Arão Sapiro.
São Paulo: Makron Books, 2001, p. 446-447, 449 e 490. Anotam os autores que a “importância da
propaganda é comprovada pelo volume de dinheiro gasto com ela. Em 1994, nos Estados Unidos, as
despesas totais com propaganda ficaram acima de 150 bilhões de dólares, quase três vezes a
quantia gasta em 1980.”
497
KOTLER, Philip. Administração de marketing: a edição do novo milênio. 10. ed. São Paulo:
Prentice Hall, 2000, p. 253.
498
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução Arão Sapiro. São
Paulo: Makron Books, 2001, p. 12 e 31.
499
KOTLER, Philip. Administração de marketing: a edição do novo milênio. 10. ed. São Paulo:
Prentice Hall, 2000, p. 194.
197
Para Sigmund Freud, autor da teoria psicanalítica, forças psicológicas,
que formam o comportamento das pessoas, são basicamente inconscientes e
levam-nas a satisfazer uma necessidade, razão pela qual a pessoa pode não
entender a sua motivação na aquisição do produto. Quando esta satisfação não é
possível de ser alcançada diretamente, o subconsciente desenvolve outras maneiras
mais sutis para alcançá-la
500
. Daí falar-se em compras desnecessárias criadas pelas
empresas, as quais, após atraírem o consumidor, continuarão no processo de
marketing para retê-los nesta cadeia. Pesquisas, aliás, informam “que cada produto
é capaz de criar uma série única de motivos nos consumidores”
501
.
O processo de marketing, entretanto, comporta, também, a obrigação
de alertar o consumidor sobre os perigos e riscos dos produtos, entre outras
advertências. Fala-se, então, em marketing ético, porque desenvolvido de forma
ética e socialmente responsável. As empresas admiráveis são aquelas que atendem
aos interesses do consumidor e não apenas ao seu interesse – o lucro. Neste âmbito
do marketing ético são inseridas questões relacionadas à venda, propaganda (como
a propaganda enganosa), qualidade e segurança do produto, e embalagem
(rotulagem adequada)
502
.
Outra parte da doutrina refere-se ao marketing de responsabilidade
social como aquele que impõe à empresa a prática de ações necessárias para
alcançar o seu objetivo (lucro), sem, contudo, ferir os melhores interesses sociais.
Cita-se, neste sentido, o exemplo de uma fábrica de papel que poderia estar
500
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução. Arão Sapiro.
São Paulo: Makron Books, 2001, p. 125.
501
KOTLER, Philip. Administração de marketing: a edição do novo milênio. 10. ed. São Paulo:
Prentice Hall, 2000, p. 194.
502
KOTLER, Philip. Administração de marketing: a edição do novo milênio. 10. ed. São Paulo:
Prentice Hall, 2000, p. 724.
198
oferecendo aos seus clientes de jornal uma impressão de qualidade, por preço
razoável, mas para fazer isto ela estaria poluindo o ar e a água próximos à fábrica.
503
Tanto assim deve ser, que o art. 22 da Portaria n° 2.051/01 exige que
os fabricantes informem a todo o seu pessoal de comercialização, incluindo as
agências de publicidade que contratam, sobre suas determinações e as
responsabilidades no seu cumprimento.
Entretanto, o que se observa pelos relatórios de monitoramento
promovidos por uma entidade não governamental, é que as empresas de alimentos
infantis, bicos, chupetas e mamadeiras não praticam o marketing ético e socialmente
responsável, resultando, assim, inúmeras infrações à NBCAL que vão atingir,
diretamente, a criança, afastando-lhes uma vida saudável e nutricionalmente
digna.
504
Assim, não resta outro meio ao Estado para incentivar o aleitamento
materno e garantir a saúde da criança, na mesma intensidade em que as empresas
promovem os seus produtos - produtos estes que impedem a efetiva concretização
do direito fundamental à saúde -, senão aproveitar-se desse mesmo meio de
comunicação para informar e alertar os consumidores sobre a superioridade e os
benefícios do aleitamento materno.
Não agindo os empresários dessa forma, o Estado assume o dever que
lhe é atribuído (prestação positiva) e supre a omissão das empresas na mesma
intensidade com que elas divulgam os seus produtos.
503
ETZEL, Michael; WALKER, Bruce J. e STANTON, Willian J. Marketing. Tradução. Arão Sapiro.
São Paulo: Makron Books, 2001, p. 13.
504
AMAMENTAÇÃO Marketing irresponsável prejudica direito. Infrações à norma. 83, novembro
de 2004, Revista do IDEC, p. 16/22 e integra do estudo disponível em <http://www.idec.org.br.>
199
Destarte, o Estado implementa medidas de políticas públicas, garante a
saúde da criança, responde à doutrina da proteção integral, e promove a existência
digna, no âmbito da saúde pública, e a justiça social.
Mais do que isso, voltando-se à teoria dos pesos dos princípios,
505
verifica-se uma estreita relação entre os interesses protegidos e os efeitos
pretendidos pelo direito à saúde e à liberdade econômica.
A liberdade econômica, sem dúvida, visa garantir a liberdade das
pessoas na escolha da profissão e no modo de desenvolvê-la. Todavia, tal
liberdade, apesar de ser direcionada pela existência digna, justiça social e defesa do
consumidor, tem um interesse mediato, qual seja, o lucro.
506
Este fim, objetivo do
capitalismo, jamais pode se sobrepor ao dever do Estado e aos interesses das
pessoas na garantia da saúde pública.
O direito à vida saudável, mormente considerada a criança como
pessoa em condição peculiar de desenvolvimento
507
, é, outrossim, um interesse
imediato, visto que o aleitamento materno, como já apresentado no primeiro capítulo,
reduz os índices de mortalidade e doenças infantis, garantindo uma vida adulta
saudável.
É importante, ainda, observar a prioridade do direito à saúde sob ótica
do dano em potencial. A criança estará exposta a dano irremediável ou, ao menos,
505
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed.
São Paulo: Malheiros, 2003, p. 29. Segundo o autor, “quando dois princípios entram em conflito deve-
se atribuir uma dimensão de peso maior a um deles. Por isso, assevera-se que os princípios entram
em conflito no plano concreto, e a solução desse conflito insere-se na problemática da aplicação.” (p.
44). No mesmo sentido: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de
Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 89
506
KOTLER, Philip. Administração de marketing: a edição do novo milênio. 10. ed. São Paulo:
Prentice Hall, 2000, p.45. Segundo o autor, a principal meta do marketing é atingir o maior objetivo da
empresa: o lucro.
507
Art. 6° do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90) “Na interpretação desta Lei
levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e
deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento.”
200
com a possibilidade de seqüelas, se não atendidas as suas necessidades prementes
(v.g. capacidade imunológica propiciada pelo leite materno), enquanto que o
empresário poderá buscar seu lucro dentro das mais variadas possibilidades de
mercado. Nesta dicotomia, afiguram-se danos de ordens diversas: vida e saúde, que
são a base do futuro social, ou o enriquecimento empresarial, fruto de uma
economia temporária.
Conclui-se, portanto, que a Portaria 2.051/01, do Ministério da Saúde e
as Resoluções RDC 221/02 e 222/02, da ANVISA são adequadas e necessárias
para a proteção do direito fundamental à saúde.
5.3.3.4.3 Proporcionalidade em sentido estrito
A última análise a ser feita sobre o meio interventivo reside na sua
proporcionalidade estrita. Busca-se, neste tópico, uma dosimetria da restrição, ou
seja, sopesar a intensidade da restrição no direito fundamental atingido e a
importância do direito fundamental que com ele colide e que justifica a intervenção.
Desproporcional em sentido estrito sea adoção de medida que não tenha peso
suficiente para justificar a limitação do direito fundamental.
508
Através dele é feito um juízo de valor sobre os bens ou interesses
constitucionais colidentes, avaliando-se as vantagens e desvantagens jurídicas para
tais bens, bem como do propósito perseguido pelo Estado com a intervenção.
509
Não
se nega validez jurídica ao princípio e até reconhece-se as vantagens de sua
508
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798,
p. 40, abr 2002.
201
aplicação, porém, alerta-se para eventuais efeitos colaterais indesejáveis, se a
aplicação for desmensurada.
510
Neste sentido, tem-se entendido a proporcionalidade em sentido estrito
como razoabilidade, assim definida “como a demonstração ponderada ou sensata do
uso da razão”. Assemelha-se à eqüidade na medida em que o julgador deve
apresentar as vantagens e desvantagens da sua decisão. Mas difere-se, dela, por
não se circunscrever apenas à demonstração de tais razões. Mais do que isso, a
razoabilidade procura a sensatez e a ponderação dos critérios empregados.
511
Todavia, rio problema é apontado na utilização deste requisito,
geralmente adotado por autores que se ocupam com a aplicação da regra da
proporcionalidade perante a Corte Européia de Direitos Humanos
512
, qual seja, a
subjetividade de que é dotado, além da interferência na separação de funções dos
poderes, isto porque ponderar em sentido estrito equivale a tomar decisões políticas
e não jurídicas, ferindo, inclusive, o regime democrático.
513
Ademais, incorre no risco
de substituir a decisão legislativa pela avaliação subjetiva do juiz.
514
Fala-se na ameaça à separação dos Poderes, mais precisamente ao
equilíbrio entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, isto porque o exame dos
atos legislativos pelo Judiciário poderia enfraquecer o Legislativo, resultando em um
509
MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade:
problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição constitucional brasileiros. Cadernos de Direito
cadernos do curso de mestrado em direito da UNIMEP, n. 5, p. 36, dez. 2003.
510
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 193.
511
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Recursos hídricos: direito brasileiro e direito internacional. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 135.
512
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798,
p. 35, abr. 2002.
513
MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade:
problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição constitucional brasileiros. Cadernos de Direito:
cadernos do curso de mestrado em direito da UNIMEP, n. 5, p. 37, dez. 2003.
514
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 50.
202
“Estado de juízes” ou “governo de juízes”.
515
O problema seria de
“superexpansão”
516
ou “vício da expansão”
517
, denominado na doutrina alemã de
oberdehnung,
518
cuja conseqüência seria o “relaxamento” na aplicação da lei,
519
concedendo excessivos poderes ao Judiciário no controle de atos do Legislativo e
do Executivo.
Não bastasse, a aplicação do princípio da proporcionalidade ensejaria
a relativização da lei no caso concreto, ferindo, assim, os princípios da segurança
pública e da igualdade. A segurança jurídica está estritamente ligada à hierarquia
constitucional dos princípios e respalda-se nas formalidades processuais e no
processo penal, que orientam a condução dos órgãos de persecução penal, de
forma que a igualdade de tratamento e a previsibilidade das decisões normativas
são imperativos inafastáveis para obtenção dessa segurança. Procura-se, destarte,
manter o juiz vinculado a determinados conteúdos normativos e determinados
procedimentos para tomar a decisão.
520
Ainda, assim, os bens jurídicos não foram constitucionalmente
hierarquizados
521
e esta função seria, então, repassada ao legislador
infraconstitucional ou à autoridade administrativa competente, que valorizariam um
interesse em prejuízo de outro ao editar uma lei ou medida interventiva.
515
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 194-196.
516
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais, 2. ed. rev. e
ampl. São Paulo: Celso Bastos, 2001, p. 80.
517
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 391.
518
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 196.
519
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais, 2. ed. rev. e
ampl. São Paulo: Celso Bastos, 2001, p. 80.
520
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 197-198.
521
MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade:
problemas de sua recepção pelo direito e jurisdição constitucional brasileiros. Cadernos de Direito:–
cadernos do curso de mestrado em direito da UNIMEP, n. 5, p. 37, dez. 2003.
203
Embora não seja o caso da Constituição brasileira, não se ignora a
possibilidade da própria ordem constitucional indicar os critérios de avaliação ou de
ponderação a serem adotados. Porém, Pieroth e Schilink advertem que nem sempre
a doutrina e a jurisprudência seguem esta regra, podendo haver subversão dos
dispositivos constitucionais.
522
de se consignar, ainda, que tal escolha se mostraria extremamente
árdua porque os direitos fundamentais possuem antecedentes históricos bastante
variados, percorrendo os séculos XVII, como o direito de liberdade, e XX, como os
direitos de personalidade na esfera íntima (p.ex. proteção de dados pessoais), os
direitos sociais e os chamados direitos de terceira e quarta gerações, impedindo,
assim, a sua hierarquização, pois cada um desses direitos foram surgindo em
tempos diversos, de acordo com as necessidades da sociedade.
523
Tal argumento é tratado por Steinmetz como objeções metodológicas
de bens, que coloca a questão dos bens enquanto método, enquanto procedimento
racional.
524
Diante desses argumentos, não será considerada a proporcionalidade
estrita como requisito para aferição da legitimidade da intervenção estatal, adotando-
se apenas a adequação e a necessidade.
5.4 Conclusão da análise dos atos normativos
522
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. . ed. rev. e
ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 50.
523
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 47 et seq., 85 et seq.
524
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 198-199.
204
Até este item, desenvolveram-se os quesitos propostos pela doutrina
alemã, adaptados ao direito constitucional brasileiro
525
, consubstanciados na regra
da proporcionalidade. Resta agora, saber, se diante do conteúdo encontrado, a
Portaria 2.051/01 e as Resoluções RDC ANVISA n° 221/02 e RDC ANVISA 222/02
são constitucionais.
Já se viu que princípios são mandamentos de otimização, que ordenam
que algo seja realizado da melhor formal possível, diante das possibilidades jurídicas
e circunstâncias concretas, enquanto que as regras são meras determinações que
podem ou não ser cumpridas e, nesta última hipótese, devem seguir exatamente o
que é ditado, sem extrapolarem os seus limites.
526
Viu-se, também, que tanto o
princípio como as regras são normas e podem entrar em conflitos, surgindo colisão
de princípios ou colisão de regra e princípios, cujos sistemas de solução são
diversos.
A colisão entre os princípios da liberdade econômica e da saúde
ficaram bem determinados. Como dito, o presente trabalho analisa a NBCAL
Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de
Primeira Infância, trata-se de um conjunto de normas formado por uma Portaria do
Ministério da Saúde e duas Resoluções da ANVISA. Referido ato normativo traz a
classificação dos produtos em dois grupos.
Todas as restrições de apresentação, exposição, embalagem, forma de
comercialização, propaganda e publicidade têm um único escopo, o de
525
DIMOULIS, Dimitri. Dogmática dos direitos fundamentais: conceitos básicos. Comunicações:
cadernos do programa de pós-graduação em direito da Unimep, Piracicaba, ano 5, n. 2, p. 28-29, jan.
2001; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal.
controle de constitucionalidade. 3. ed. rev. e ampl., São Paulo: Saraiva. 2004. p. 108-109.
526
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 87
205
contribuir para a adequada nutrição dos lactentes e das crianças de
primeira infância por intermédio da regulamentação da promoção
comercial e orientações do uso apropriado dos alimentos para
lactentes e crianças de primeira infância, bem como o uso de
mamadeiras, bicos e chupetas; promoção ao aleitamento e incentivo
ao aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses de vida;
e proteção e incentivo à continuidade do aleitamento materno até os
dois anos de idade, após a introdução de novos alimentos na dieta
dos lactentes.
527
Trata-se, na verdade, de medidas de políticas públicas implementadas
pelo Estado para garantir o efetivo direito de prestação à saúde, fazendo valer,
ainda, a proteção integral da saúde, diga-se, direito fundamental.
Opondo-se a esse direito fundamental e limitado por ele, é facilmente
identificado o direito de liberdade econômica. Como visto no item anterior, a Ordem
Econômica visa à garantia de uma existência digna, pautando-se nas diretrizes da
justiça social e fundada em princípios, via de regra, de ideologia capitalista,
sistematizando o setor empresarial e reduzindo as desigualdades e anomalias
diversas através de medidas que corrijam as contradições de interesses privados.
A liberdade de iniciativa, a exemplo da valorização do trabalho, é o
esteio da ordem econômica, afirmada no art. 170, caput, da Constituição Federal e
no seu parágrafo único, sendo chamada a cumprir a função de fundamento jurídico
constitucional. É um direito fundamental que ganhou realce na Constituição
brasileira, valorizando o trabalho humano, a existência digna, a defesa do
consumidor, mas também dando relevo à livre iniciativa, ou seja, garantindo a
qualquer pessoa o direito de exercer a profissão escolhida, desde que atendidos os
requisitos legais, assim como assegurando “a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo
527
Art. 1° da Portaria do Ministério da Saúde n° 2.051, de 8 de novembro de 2001.
206
casos previstos em lei”.
528
É a liberdade de produzir o que quer, vender como quer,
expor e promover os seus produtos sem a interferência estatal.
Nesse pequeno cotejo dos princípios, fica identificado o conflito entre a
saúde e a liberdade econômica, porquanto aquela vem limitar a liberdade na ordem
econômica.
Na metodologia empregada, verificou-se se houve intervenção na área
de proteção de um direito fundamental; se a medida em questão é amparada
constitucionalmente ou se se trata de uma intervenção proibida; se possui
fundamento legal e se a lei (fundamento legal) está em conformidade com a
Constituição Federal. Estudou-se, ainda, a clareza e a concretude da medida e se
atende ao princípio da proporcionalidade.
O comportamento analisado, efetivamente, está abrangido pela área de
proteção do direito fundamental de liberdade econômica. Tal direito garante a livre
iniciativa, embora não absoluta, pois cercada e direcionada pela existência digna e
justiça social, além da valorização do trabalho humano. Neste âmbito, não se
questiona o direito de apresentação do produto por qualquer meio publicitário. A livre
escolha do marketing, mais especificamente, da propaganda e publicidade,
caracteriza a área de proteção do direito fundamental, que estritamente ligado à
venda do produto.
A Portaria n° 2.051/01 do Ministério da Saúde e as Resoluções RDC
ANVISA n° 221/02 e RDC 222/02 tratam de medidas de políticas públicas que
restringem a livre iniciativa da pessoa - extensão da liberdade do art. 5° da
Constituição Federal, porque a propaganda e a publicidade, que são partes do
processo de marketing (processo de persuasão do cliente, visando colocar o produto
528
Art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988.
207
no mercado, atraindo e retendo-o para reiteradas compras) são limitadas para
alguns produtos e proibidas para outros, como para a fórmula de nutriente
apresentada e/ou indicada para recém-nascido de alto risco, chupetas, bicos e
mamadeiras (art. 4° da Portaria 2.051/01).
Portanto, o comportamento contemplado pela medida analisada
intervem na área de proteção do direito fundamental da liberdade econômica. A
síntese conclusiva, de agora em diante, passará para o estudo da legitimidade ou
não da intervenção que, conseqüentemente, afirmará constitucionalidade ou
inconstitucionalidade da Portaria e das Resoluções.
Embora de caráter limitador, a intervenção é justificada e possui
amparo constitucional. A Portaria e respectivas Resoluções emanaram de
autoridades competentes para a sua edição, vinculando-se, assim, materialmente,
aos direitos constitucionais. São consideradas intervenções permitidas e
demonstram a existência de colisão de dois princípios fundamentais: o aleitamento
materno, bem constitucionalmente protegido, incorporado no direito à saúde, em
confronto com o direito de propaganda e publicidade, itens disciplinados pela livre
iniciativa, vale dizer, pela liberdade econômica.
O fundamento legal para a edição da NBCAL tem origem
constitucional, que criou o SUS – Sistema Único de Saúde, na Lei n° 8.080/90, que
o regulamentou, e na Lei n° 9.782/99, que definiu o Sistema Nacional de Vigilância
Sanitária e criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. As Resoluções, por sua
vez, são determinações expressas do Ministro da Saúde (Portaria n° 2.051/01), a
quem compete orientar, coordenar e supervisionar os órgãos e as entidades da
administração federal na área de saúde (art. 87 da Constituição Federal).
208
O SUS Sistema Único de Saúde tem suas bases repousadas no art.
197 e 198 , caput, da Constituição Federal, integrando as ações e serviços de
saúde, cabendo ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle, tais como controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de
interesse para a saúde, além de fiscalizar e inspecionar alimentos e bebidas (art.
200, Constituição Federal).
Assim, a intervenção é justificada constitucionalmente, ou seja, é uma
intervenção permitida que possui fundamento legal e aplica a lei de acordo com a
Constituição Federal. Mais do que isso, é uma medida clara e concreta. Os textos
normativos estudados são claros e de fácil compreensão. São normas que bem
esclarecem os seus objetivos, o seu âmbito de abrangência, inclusive destina um
artigo para explicar as expressões por ela utilizadas, como se fosse um glossário.
A proporcionalidade, por fim, restou como critério definidor da
constitucionalidade da Portaria e das Resoluções à vista das respostas aos quesitos
anteriores. Ora, se às duas primeiras perguntas a resposta foram afirmativas,
conclui-se que intervenção a um direito fundamental. O intuito do trabalho é
legitimar tal intervenção. As respostas aos quesitos de intervenção permitida com
fundamento legal e aplicação de lei constitucional, clara e concreta, foram todas
positivas.
Ultimando o estudo, falta apenas a conclusão a respeito da
proporcionalidade. Se a regra da proporcionalidade não foi obedecida, a medida
interventiva será inconstitucional, por outro lado, se adequada e necessária, ficará
justificada a limitação do direito de liberdade econômica e respectiva liberdade de
iniciativa.
209
A adequação reside no meio de fomentar, promover o fim perseguido,
qual seja, no presente caso, a garantia e incentivo do aleitamento materno,
priorizando o direito à saúde da criança, destacado constitucionalmente, bem pela
doutrina da proteção integral.
A relação de meio e fim ficou demonstrada, porquanto através dos atos
normativos emanados de autoridades competentes possuem eficácia jurídica para
proteger e alcançar o objetivo pretendido: garantia da saúde da criança.
Falta, destarte, apenas a análise da necessidade. Será que existem
outros meios, menos gravosos, que alcancem o mesmo objetivo, com a mesma
intensidade e com menor poder lesivo?
A resposta a esse quesito desviou-se para a órbita da Administração e
Gerenciamento de Marketing. Foram analisadas obras especializadas dos mais
citados profissionais desta área.
A conclusão apontou que a influência do processo de marketing,
realmente, tem grande poder de persuasão. Atrai e retém o consumidor em compras
que se tornam reiteradas e desnecessárias. A embalagem, a cor, a propaganda, a
publicidade, tudo faz parte deste processo denominado marketing.
No presente caso, a atuação das empresas faz com que es, com
completa capacidade de promover o aleitamento materno do seu filho, optem pelo
fornecimento de alimentação artificial, utilizando-se de instrumentos (mamadeiras e
bicos) para ministrarem estas fórmulas. Seus filhos, então, ao invés de crescerem
saudáveis, são passíveis de imunodeficiência orgânica, ficando sujeitos ao círculo
vicioso de infecções, diarréias, desidratações e óbitos, além de desenvolverem o
hábito de usarem chupetas, que causa formação crânio-oro-facial (como
destacado no primeiro capítulo).
210
Destarte, o Estado, no dever de efetivar prestações positivas, tem que
intervir na economia através de atos necessários que priorizem o direito à saúde em
relação ao direito de liberdade econômica, o qual, aliás, deve ser interpretado pelo
fundamento da existência digna e da justiça social, além de fazer valer o princípio do
consumidor.
Relativamente ao princípio do consumidor, vale reportar ao que se
apreendeu sobre o marketing ético e responsável. O empresário pode utilizar-se das
técnicas para apresentação e venda do seu produto, porém, não deve valer-se de
meios enganosos, abusivos, ilusórios ou deixar de fazer as orientações necessárias
ao seu público alvo, inclusive da superioridade do aleitamento materno. O marketing
deve ser socialmente responsável, isto quer dizer, aceito pela sociedade sem que,
para obter o lucro pretendido, tenha que sacrificar outros direitos que a ele se
sobrepõem.
Portanto, é dever do empresário alertar o consumidor sobre eventuais
riscos dos produtos comercializados, demonstrando-se, hoje, essencial a
implementação de políticas públicas pelo Estado pela inércia daquele.
Finalmente, se o comportamento contemplado pela Portaria e pelas
Resoluções situa-se na área de proteção de um direito fundamental; se os atos
normativos em questão intervêm na área de proteção desse; se essa intervenção é
justificada constitucionalmente; se os atos normativos possuem fundamento legal,
são aplicados em conformidade com a Constituição, claros e concretos, e respeitam
o princípio da proporcionalidade, há de se afirmar que a Portaria n° 2.051/01 e as
Resoluções RDC ANVISA n° 221/02 e RDC ANVISA n° 222/02 são constitucionais.
211
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao alinhavar estas considerações finais, sabendo que a reflexão sobre
o tema de uma dissertação se desenvolve a cada dia e não tem seu termo final no
mero depósito de um texto escrito, confesso que não foi o acaso que me conduziu à
escolha do aleitamento materno, sob o aspecto jurídico, para contribuir para a
comunidade científica, além da conscientização social. Enquanto Promotor de
Justiça da Infância e Juventude, pude manter contato com uma organização não
governamental IBFAN International Baby Food Action Network, cuja função é a
redução do índice de mortalidade infantil e de doenças seguidas de diarréias e
infecções respiratórias agudas, que poderiam ser evitadas com aleitamento materno,
prática incentivada e defendida por esta rede mundial.
Não se trata de assunto isolado no Brasil, que apresenta altos índices
de mortalidade infantil, mas sim de tema mundial debatido, orientado e
recomendado, como de especial atenção, pelo UNICEF/OMS. Legislações
protetoras do aleitamento materno já são aplicadas em 107 países, os quais, de uma
forma ou de outra, tratam da sua importância, tais como: Bahrein, Burkina Fasso,
Camarões, Costa Rica, Filipinas, Guatemala, Índia, Irã, Líbano, Madagascar, Nepal,
Panamá, Peru, República Dominicana, Sri Lanka, Tanzânia, Uganda, Uruguai,
Zimbábue, Alemanha, Áustria, Bangladesh, Bélgica, China, Colômbia, Dinamarca,
Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Indonésia, Irlanda, Itália, Laos,
Luxemburgo, México, Nigéria, Noruega, Omã, Papua-Nova Guiné, Portugal, Reino
Unido, Senegal, Seychelles, Tunísia, Vietnã, África do Sul, Argentina, Austrália,
Chile, Dominica, Equador, Ilhas Cook, Jamaica, Kuwait, Lesoto, Macau, Malásia,
Malavi, Nova Zelândia, Quênia, Suazilândia, Suécia, Tailândia, Tongo, Trinidad e
212
Tobago, Zâmbia, Arábia Saudita, Argélia, Benin, Canadá, Cuba, Emirados Árabes
Unidos, Etiópia, Guiné-Bissau, Hungria, Iêmen, Israel, Líbia, Mongólia, Paraguai,
São Tomé e Príncipe, Sudão, Turquia, Zaire, Bahamas, Brunei, Butão, Catar, Chipre,
Singapura, Coréia, Formosa, Granada, Guiana, Honduras, Hong Kong, Japão,
Maldivas, Samoa Ocidental, Santa Lúcia, o Vicente e Granadinas, Suíça,
Vanuatu, Venezuela, além de outros tantos países que aguardam aprovação final
de projeto de lei (Armênia, Bolívia, Botsuana, Burundi, Cabo Verde, Congo, Costa do
Marfim etc)
529
.
O recente país, surgido de guerra civil, Timor-Leste, em plena
reconstrução, se preocupou com o aleitamento materno e contratou consultoria
internacional, em parceria com o UNICEF/ONU, no sentido de elaborar projeto de lei
de proteção, incentivo e apoio ao aleitamento materno, visando garantir uma infância
saudável e uma vida adulta digna ao seu povo, dado o estado de miserabilidade
pelo qual passa. O projeto de lei foi elaborado em novembro de 2003 e encontra-se
no Parlamento, para discussão e aprovação, conforme se pode verificar das versões
português/inglês, em anexo.
A despeito da proposta do trabalho ter seguido uma linha de debate
entre direitos fundamentais, não foi possível deixar de reconhecer a importância da
dignidade e da justiça social, fundamentos da República Federativa do Brasil, que
comportam a própria condição da vida humana, garantindo às pessoas o mínimo
social necessário para sobreviverem, entre eles, a saúde, colocando-as em posição
529
SOKOL, Ellen J. Em defesa da amamentação: manual para implementar o código internacional de
mercadização de substitutos do leite materno, por Isabel Allain. São Paulo : IBFAN International
Baby Food Action Network, 1999. p. 139 –140.
213
de proteção pela ordem jurídico-constitucional. Tão importante, que foi denominada
de “coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana”.
530
O princípio da saúde foi logo identificado como direito fundamental,
extensivo a todos e dever do Estado, que, com prestações negativas e positivas,
deve implementar políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doenças e agravos. O seu acesso deve ser universal e igualitário, com ações de
promoção, proteção e recuperação.
A criança, neste espectro jurídico, recebeu proteção específica no
artigo 227 da Constituição Federal, com a instituição da Doutrina da Proteção
Integral, incorporada, também, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que, no
seu artigo 9°, impõe ao Poder Público, às instituições e aos empregadores a
obrigação de proporcionar condições adequadas ao aleitamento materno, primeira
forma de garantir o desenvolvimento adequado do indivíduo. Forma, aliás, menos
dispendiosa, mais segura e de maior interesse social.
A Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e
Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeira NBCAL revela a
atuação positiva do Estado e demonstrou essencial no país, diante da força da
economia, embora esta também devesse exercer o chamado marketing ético e
marketing de responsabilidade social.
Identificou-se, pois, um conflito de direitos fundamentais, saúde e
liberdade econômica, dado que a NBCAL limitou o processo de marketing das
empresas, regrando a promoção e a publicidade comercial. Em casos como este,
apenas um direito deve prevalecer. Vários são os sistemas de solução, porém optou-
530
C.L. Antunes Rocha. Princípio da Dignidade da Pessoa, p. 32, apud Sarlet, Ingo Wolfgang.
Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 144.
214
se pelo princípio da proporcionalidade, que, diante da adequação e necessidade dos
atos normativos, priorizou o direito à saúde.
Embora a liberdade econômica se revista de importância constitucional,
sua proteção visa afastar danos mediatos e de menor gravidade, em comparação
com a proteção do direito fundamental à saúde, bem de efeito imediato e patrimônio
de toda uma sociedade.
Por fim, detalhada pesquisa jurisprudencial foi feita na fase preliminar
deste trabalho e nenhuma decisão foi encontrada no sentido de debater o
aleitamento materno sob o manto dos direitos à saúde e à liberdade econômica.
Apenas alguns termos de ajustamento foram localizados no Estado de Santa
Catarina, porém somente enfocando o Código de Defesa do Consumidor. A
contribuição pretendida com este trabalho, é a de que, em futuras lides, o mesmo
sirva como meio de inspiração para a análise judicial do caso concreto, eis que o
tema é de maior profundidade que a mera defesa do consumidor.
215
REFERÊNCIAS
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Constitucionales, 2001.
ALTO, Luciane A Monte et al. Aleitamento materno no crescimento e
desenvolvimento de recém-nato. Disponível em
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83, novembro de 2004, Revista do IDEC, n.83, p. 16-22, nov. 2004.
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Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987
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