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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
ARRISCANDO CORPOS
P
ERMEABILIDADE, ALTERIDADE E AS FORMAS DA SOCIALIDADE ENTRE OS
RIKBAKTSA (MACRO-JÊ) DO SUDOESTE AMAZÔNICO
A
DRIANA ROMANO ATHILA
2006
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ARRISCANDO CORPOS
P
ERMEABILIDADE, ALTERIDADE E E AS FORMAS DA SOCIALIDADE ENTRE
OS
RIKBAKTSA (MACRO-JÊ) DO SUDOESTE AMAZÔNICO
POR
A
DRIANA ROMANO ATHILA
T
ESE DE DOUTORADO APRESENTADA AO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
E
ANTROPOLOGIA (ANTROPOLOGIA), INSTITUTO
DE
FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS, DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO,
COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À
OBTENÇÃO DO TÍTULO DE
DOUTOR EM
ANTROPOLOGIA SOCIAL
O
RIENTADOR: PROF. DR. MARCO ANTÔNIO TEIXEIRA GONÇALVES
RIO DE JANEIRO
JUNHO DE 2006
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ARRISCANDO CORPOS
PERMEABILIDADE, ALTERIDADE E E AS FORMAS DA SOCIALIDADE ENTRE OS
RIKBAKTSA (MACRO-JÊ) DO SUDOESTE AMAZÔNICO
ADRIANA ROMANO ATHILA
Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio Teixeira Gonçalves
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Antropologia Social.
Aprovada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Marco Antônio Teixeira Gonçalves (Orientador)
_________________________________________________
Prof. Dra. Elsje Maria Lagrou
__________________________________________________
Prof. Dra. Esther Jean Langdon
___________________________________________________
Prof. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
___________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto
RIO DE JANEIRO
JUNHO DE 2006
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Athila, Adriana Romano
“Arriscando Corpos”: Permeabilidade, Alteridade e as Formas da
Socialidade entre os Rikbaktsa (Macro-Jê) do sudoeste Amazônico/
Adriana Romano Athila. – Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2006.
1v.,501f.:il.; 07 cm.
Orientador: Marco Antônio Teixeira Gonçalves
Tese (doutorado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 454-472.
1. Ameríndios. 2. Socialidade. 3. Etno-história 4. Escatologia. 5.
Parentesco. 6. Ritual. I. Gonçalves, Marco Antônio Teixeira. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia. III. Doutorado.
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RESUMO
ARRISCANDO CORPOS
PERMEABILIDADE, ALTERIDADE E AS FORMAS DA SOCIALIDADE ENTRE OS RIKBAKTSA
(MACRO-JÊ) DO SUDOESTE AMAZÔNICO
ADRIANA ROMANO ATHILA
Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio Teixeira Gonçalves
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.
O cosmos Rikbaktsa dissemina atributos relacionados à “humanidade”,
sobretudo a capacidade de “agência”. Vivos e mortos, seres metafísicos, vegetais,
animais e coisas podem ter - e normalmente têm – “agência”, de formas variadas e em
múltiplos contextos, tornando qualquer distinção definitiva entre a sociedade dos vivos,
natureza e sobrenatureza impraticável, não-pertinente e decididamente pouco produtiva.
Por outro lado, esta “partilha” de atributos permite e, de certa forma, compele a
interações contínuas entre estes seres e domínios: relações que podem ser predatórias,
mas também produtivas e curativas. No contexto de um mundo povoado por
semelhanças e proximidades – mas não identidades absolutas - o “corpo” dos vivos
demonstrou ser um diferencial importante. Do dormir ao acordar, o “corpo” é exposto a
riscos, seja através das relações envolvidas na socialidade aldeã, posturas corporais,
atitudes mentais e alimentação, seja nos sonhos ou no que eles prenunciam. Enquanto se
têm “corpo”, deve-se buscar obediência a uma infinidade de recomendações, uma ética
individual com o intuito de “manter a vida”. Sobreviver indica o êxito da construção
corporal Rikbaktsa, apesar deste ser um processo que nunca se completa. Mesmo os
ritos que operam mais intensamente esta construção são permeados pelo risco e
projetam-se no tempo, encontrando-se abertamente sujeitos ao insucesso. A contínua e
quase inevitável interação entre seres metafísicos – incluindo-se os mortos - e vivos é,
assim, um incremento fundamental da “labilidade” ou “reversibilidade” das categorias
de identidade/alteridade, solidariedade/inimizade e até mesmo parentesco entre grupos e
pessoas. O resultado é uma extrema diferenciação interna, constituída de "negociações"
ativas entre semelhanças e distinções. A “socio-cosmologia” Rikbaktsa permite-nos
desconfiar tanto de uma alteridade que seja conceitualmente absoluta e do movimento
que a expulsa providencialmente para além do socius, quanto na possibilidade de sua
neutralização ou extinção de qualquer domínio considerado. Refiro-me aqui mais
precisamente à convivência aldeã e à co-residência, mas o mesmo vale para ocasiões
rituais ou guerreiras e até para as relações Rikbaktsa com outros tipos de seres,
dimensões em que jamais assumem a feição de uma totalidade indiferenciada. Se a
etnografia Rikbaktsa não tem senão provisoriamente um centro a partir do qual
podemos descrevê-la, sua socialidade não é por isso menos “consistente” ou “efetiva”.
Esta tese procura explorar esta complexa teoria que concerne à interação, geração,
produção e destruição de corpos e pessoas em um mundo povoado por sujeitos que
abrangem o que se costuma compartimentalizar em diferentes reinos, espaços e
posições.
Palavras-chave: Socialidade Ameríndia; Alteridade; Escatologia; Corporalidade; Ritual
RIO DE JANEIRO
JUNHO DE 2006
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ABSTRACT
RISKING BODIES
Permeability, alterity and the Sociality forms among the Rikbaktsa (macro-Jê) of
Southwest Amazonia
ADRIANA ROMANO ATHILA
Guider: Prof. Dr. Marco Antônio Teixeira Gonçalves
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Antropologia Social.
The Rikbaktsa cosmos is filled with attributes associated with ‘humanity’, above
all the capacity for ‘agency.’ The living and the dead, metaphysical beings, plants,
animals and things can – and normally do – possess agency, in varying forms and
multiple contexts, making any definitive distinction between the society of the living,
nature and supernature impractical, non-pertinent and decidedly unproductive. On the
other hand, this ‘sharing’ of attributes allows – and to a certain extent compels –
continual interactions between all these beings and domains: relations which may be
predatory, but also productive and curative. In the context of a world peopled by
similarities and proximities – but not absolute identities – the bodies of the living
proved to be an important differential factor. Asleep and awake, the ‘body’ is exposed
to risks, whether through the relations involved in village society, body postures, mental
attitudes and alimentation, or in dreams or what they foretell. While the person has a
‘body,’ he or she should look to obey an endless variety of recommendations, an
individual ethics which aims to ‘keep life’. Survival indicates success in constructing
the Rikbaktsa body – albeit a process that is never complete. Even rites which invest in
this construction more intensely are steeped in risk and stretch across time, finding
themselves openly subject to failure. The continual and almost inevitable interaction
between metaphysical beings – including the dead – and the living is therefore a basic
factor in the ‘labiality’ or ‘reversibility’ of the categories of identity/alterity,
solidarity/enmity and even kinship among groups and people. The consequence is inside
differentiation filled with active ‘negotiations’ between similarities and distinctions.
Rikbaktsa sociocosmology teaches us to be wary of both an alterity which is
conceptually absolute and the providential expulsion of such alterity beyond the socius,
or indeed the possibility of neutralizing and extinguishing alterity from any given
domain. Here I refer more precisely to village life and co-residence, but the same is true
for ritual occasions or warfare, or indeed for Rikbaktsa relations with other types of
beings, a dimension which never assumes the aspect of an undifferentiated totality.
Although Rikbaktsa ethnography provide no more than a provisory centre from which it
can be described, their sociality is no less ‘consistent’ or ‘effective’ as a result. This
thesis mean to exploit this complex theory involving interaction, generation, production
and destruction of bodies and people in a world populated by subjects that encompass
what are usually compartmentalized into different kingdoms, spaces and positions.
Key-words: Amerindian Sociality; Alterity; Eschatology; Corporality; Ritual
RIO DE JANEIRO
J
UNHO DE 2006
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KAZOTSA BO:
KAZO BOBATA BO
G
ERALDINO PATAMY BO
8
“¿Fue nuestra visión demasiado estrecha,
demasiado parcial,
demasiado apresurada?
¿Fueron nuestras conclusiones demasiado rígidas?
Tal vez.
Pero ese vagar (…) me ha cambiado
más de lo que creí.”
E. G. de la Serna
9
AGRADECIMENTOS
Passou-se uma vida. E não seriam poucos aqueles a quem devo tanto e sem os
quais um trabalho desta duração não chegaria ao fim. Esta tese é também para eles. De
verdade.
Durante o doutorado fui, por dois anos, bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e, nos dois anos seguintes, ocupei a
bolsa de “Doutorado nota 10” da Fundação de Apoio à Pesquisa do estado do Rio de
Janeiro. A pesquisa de campo não seria possível sem a dotação de “Field Research” que
recebi da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research.
O Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, através de todos seus professores e funcionários, é
inestimável em tudo o que diz respeito à minha formação. Claudinha e Denise, da
secretaria, estiveram sempre do meu lado, ajudando-me de formas institucionais e
“para”-institucionais diversas, principalmente com incentivo, carinho e paciência com
minhas desventuras disciplinares.
Agradeço especialmente à professora Regina Novaes, às sempre queridas
Rosilene Alvin e Yvonne Maggie e ao professor Reginaldo dos Santos que, além de
ministrar cursos “inesquecíveis”, gentilmente integrou minha banca de qualificação ao
lado do professor Carlos Fausto, do Museu Nacional. A Carlos Fausto agradeço,
redobradamente, as sugestões – que levei-as todas comigo para o campo – assim como o
privilégio de ler seus trabalhos, para mim fonte exemplar de erudição e inspiração
etnológica. A Ricardo Ventura Santos agradeço o apoio e a tranquilidade que sempre
me passou. A Beth Conklin agradeço o interesse e a extrema gentileza em enviar-me um
video sobre os Rikbaktsa, que acabou por extraviar-se. Nádia Heusi salvou-me com os
mapas.
Cesar, Cris e o pequeno Thomás, Flavio, Marcela e Luiz são colegas brilhantes e
a quem, apesar do afastamento, gostaria de agradecer sinceramente. Não esqueço da
presença deles na minha primeira palestra sobre os Rikbaktsa, em um momento ainda
difícil. Agradeço também à grande mestra Bruna Franchetto, mulher e profissional
admiráveis, a quem devo tanto quanto respeito.
Rosana, Neiva, Laura Moutinho e Marcia Lima são as amigas que, de um modo
ou de outro, estão sempre comigo. “A caixa de Pandora” escrevi para você, Lau. Ulisses
(Sissinho), Luciana (Lú) e Evaldo são queridos que sempre dividiram tudo e não
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deixaram-me desistir quando estava perdida. Como não pudesse extender ainda mais
meu atraso, a tese “vai” sem o capítulo que prometeram e que, certamente, teria
abrilhantado este trabalho. À querida amiga Vera agradeço nossas risadas infinitas e
eficientes em mudar a perspectiva das coisas. Torço por ela.
Levinho, como sempre, foi crucial para a realização do sonho antigo de trabalhar
entre os Rikbaktsa. Atestada a feliz coincidência entre minhas intenções e as demandas
do Museu, providenciou tudo para o que seria a minha primeira viagem de campo.
Continuo – afinal, já lhe “devo” desde o mestrado - a não ter como retribuir-lhe a ajuda
e o incentivo.
Moacir dirigiu para nós até o porto do Coroado, no rio Juruena, e acompanhou-
nos nos dois primeiros dias no campo, salvando-nos de grandes apertos; uma companhia
a toda prova. Edu, Théo, a meiga Loyuá e Ana foram, além de sempre amorosos e
prestativos, fundamentais. Edu e Ana, que dedicam a vida ao trabalho com índios,
receberam-me em sua casa, em Cuiabá. Ana acompanhou-me à Pé-de-Mutum e às
aldeias do Arinos, dividindo comigo, e as múltiplas borboletinhas amarelas, meu
primeiro banho no Juruena. Não esqueço quando fiquei sozinha no porto da aldeia Pé-
de-Mutum olhando a voadeira que a levaria de volta a Cuiabá. Este foi o início da
minha pequisa e devo tudo a ela.
O Núcleo de Apoio Juína não é mais do que o empenho, a dedicação e até os
“riscos” diários pelos quais passam Antônio Carlos, Adegildo e Cavalcante, e foi mais
do que eu merecia durante a pesquisa. Neles tive apoio institucional e também uma
família que não me faltou quando precisei. A Cavalcante, companheiro generoso de
muitas idas e vindas, totalmente dedicado aos Rikbaktsa, devo agradecimentos especiais
e um grande pedido de desculpas pela demora em terminar este trabalho, que não seria o
mesmo sem ele. “Cava”, esta tese é para você também, que me ajudou sempre
e
incentivou de todas as formas.
Em Juína, agradeço aos funcionários do hotel Panorama: a querida e amiga D.
Emília, a atenciosa Gisa e a doce Lidiane cuidaram de mim na “doença e nas esperas” e
intermediaram contatos com meus familiares. As funcionárias do Museu Salesiano e a
“italo-brasileira” Rina generosamente permitiram que eu fotografasse bem de perto as
antigas plumárias Rikbaktsa. À enfermeira Antônia agradeço o cuidado e dia feliz com
sua família. Ao padre Balduíno Loebens, que já carrega uma vida entre os Rikbaktsa,
meu respeito e agradecimento pela gentileza com que me tratou quando nos
conhecemos, na inauguração da escola da aldeia Primavera.
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Martinha, Maria e Betinho, Lurro e Ana, Ricardo e Marcelo são meus amigos da
vida inteira. Bruno, Tânia e a princesinha Clara, Serginho, Mirinha e Laurinha, só luz.
D. Graça, S. Aércio, Aercinho, Zé, Sophia e Antônio são como a minha família. Dani e
Gisinha são minhas amigas de sempre, companheiras de hashi, de alegrias e de choros.
Amo vocês.
A Marcelo Maciel agradeço infinitamente por tudo: compreensão de mim e de
meu trabalho, doses generosas de confiança e elogios que delicadamente conduziram-
me até o fim. Ana Paula, David e Callum Rodgers são amigos que, por sorte, conquistei
recentemente. Através de suas traduções, David divide comigo e tem o dom de melhorar
tudo o que eu escrevo. O abstract é dele e sem sua ajuda esta pesquisa não seria
possível. Peter e Sonja, os belgas mais loucos e brasileiros, são meus amigos do
coração, sempre dispostos a ajudar e a quem devo tanto que não poderia, nunca,
recompensá-los. Klinton, mesmo longe, é meu amigo querido. Claudia é simplesmente
demais para mim. Por ela só posso aqui declarar meu amor e admiração.
Aloir Pacini é amigo leal, carinhoso, atento e generoso, que sempre retribui
minhas divergências – que não são poucas - com sorrisos fraternos. A cada retorno do
campo fazia uma parada “estratégica” em Cuiabá, onde montávamos, os dois, “fóruns”
sobre os Rikbaktsa, de modo que devo a ele qualquer análise que eu tenha feito, sendo
meus todos os equívocos. Esta tese é “para” e “por” ele, que alimentou minhas
esperanças em trabalhar com os Rikbaktsa com presentes valiosos, como a flauta de
Mapazazi. Foi uma alegria vê-lo subir o porto da Pé-de-Mutum para partilharmos, em
um momento rápido mas infinito, esta realização. Aloir e seus irmãos jesuítas Roque,
Felício, Peter, a querida Jô e outros que injustamente não posso recordar o nome, mas
aos quais sou igualmente grata, receberam-me generosamente e por várias vezes em sua
casa em Cuiabá. Deram-me abrigo ao corpo e, principalmente, ao coração. Aloir e a
querida Maria cubriram-me sempre de mimos, frutas frescas e muito amor.
Sem Maristela e Mirinha, minhas queridas cunhadas, jamais poderia ter a
tranquilidade de me ausentar de casa por tanto tempo. Mirinha, Juliano e a linda Clara
foram e continuam sendo só luz, além de protetores generosos para mim e para
Maurício. Sem eles tudo teria sido inconcebivelmente mais difícil e talvez não chegasse
ao fim. Marcos, Carla, Taiana e Eduardo são também incentivadores constantes. Pelo
carinho e a dedicação que têm conosco, junto com S. Abelardo e D. Cléia, são agora
minha família. Para minha sogrinha querida o agradecimento especial que ela merece,
pelo cuidado e por tudo que me ajudou neste fim de tese solitário e misturado a uma
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mudança de estado. André e Aline, Marcito e Ana e Marcita, são como meus amigos
também. Estiveram sempre preocupados comigo.
Meus amores e a luz maior são meus sobrinhos, Vitinho, Carol, Dédé, Vi, Dani,
Tati, Babinha, Lipe e Lôlô, que ajudaram até quando “atrapalharam”, trazendo-me paz,
alegria, leveza e a certeza de que eu não estava sozinha. Tia Norma, D. Helena e S.
Alberto, Mônica e Oswaldo e Lena são queridos da minha família, sempre dispostos a
ajudar no que for preciso e torcendo por mim. Meus tios Sandra e Haroldo, o exemplo e
o apoio que nunca me abandonaram. Para minha mãe querida, amor incondicional,
quero dizer que, enfim, tudo que ela queria aconteceu. Cercou-me de confiança,
dissimulando a preocupação em ver a filha ir para o “desconhecido”, fato que depois
aprendeu a desejar por ver em mim a felicidade que ela sempre quis. Para meus irmãos,
Marquinho e Nique, queria dizer que só eles, juntos e comigo, aliviam um pouco da
falta do nosso pai. Peço desculpas pelas minhas ausências. Amo vocês e prometo tudo
vai passar.
Com os Rikbaktsa só tenho dívidas e o privilégio de estar com eles. Anfitriões
gentis e generosos, receberam-me em sua casa, confiando a mim sua comida e suas
crianças, os homens respeitosamente permitindo o incômodo de ter uma mulher no
mykyry. Por todo o dia dividindo tarefas, conversas e muitos risos, não me deixavam
chorar. Devo citar especialmente Isidoro Rerõmuitsa, homem inteligente, admirável e
em quem confio de olhos fechados. Sinto saudades de ouvi-lo chamar-me por
“Romano”, com a alegria de sempre. Agradeço a ajuda inestimável e atenção dos
queridos Maria Isabel Mazitsik e Pudata, Aristóteles Maniumytsa, Alenir Amyiba e
filhos, Albano Mutsi e Elisa Mautsuk, do alegre prof. Mathias Tsibatsibata e Dolores
Piavo, Antônio Penuta, Tarcísio Butamy, Ivo Byiruk, Nicolau Meo, Lourdes Wahuny e
Angelo Koi (eis a “verdade da minha pesquisa”), Apute e Kapadrasto, que cortou meus
cabelos. Agradeço a Donato Bibitata e ao saudoso João Batista Skawata (in memoriam)
que, paradoxalmente, quando chegavam à Pé-de-Mutum iam sempre juntos me visitar
para nos inteirarmos dos nossos progressos, eles na Universidade de Barra do Bugres e
eu na minha pesquisa. Agadeço a Paulinho Skiripi Nambikwara pelo incentivo. S. Darci
Bazazik e Mônica Nidy receberam-me em sua casa na aldeia Barranco Vermelho. Edgar
Inipy e Lucinete Mukda ajudaram sempre. Béia (Beatriz Mohã) e Dito (Benedito
Aknabui) são especiais para mim. Trouxeram-me meu marido e mel “selvagem”, foram
companheiros de viagem e até tiveram a gentileza em covidarem-me a um jantar em
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Juína. Agradeço-lhes para sempre. Salvador Tsetsemy brindou-me com cantos e
sabedoria.
No Arinos passei uma temporada maravilhosa. Rosa Naudy e Vicente Bitsezyk,
só deram-me alegria. Vicente foi, além de tudo, meu principal informante, homem sábio
e paciente com minhas “bobagens”. É, com justiça, o grande responsável por este
trabalho, insento, é claro, de todas as incompreensões e equívocos, que são só meus.
Com Maria Piktsuwy (a D. Maria, do “véio da ilha”), Cleidinha Tsakta (que me deu
flores), Leide Mazik, Diva Apitã e Adílio Petã passei fins de tarde maravilhosos,
cantando e sendo mimada de formas diversas. Deixo também meu agradecimento ao
doce Pedro Paulo Busõe (in memoriam).
Na aldeia Pé-de-Mutum devo a todos a paciência com a qual me toleraram,
importunando com pedidos para “ir junto” e com minha presença que, tenho certeza,
embora jamais tenham sequer insinuado, não lhes deixava de ser incômoda. Agradeço a
bela festa de aniversário, para a qual ganhei pães e frangos, em uma colaboração que
deixou-me sensibilizada e muito feliz. Filomena Zukmy e seus filhos acolheram-me
primeiro e digo sempre que ela é kaye bobata. Agradeço-lhe sinceramente por tudo.
Tenho toda a família do honrrado Paulo Tsikdi no meu coração, especialmente “Shina
(minha companheira de sempre) e as crianças. Tabawy, seus filhos e netinha,
especialmente Clemer Mapedata e a minha professorinha de Rikbaktsa “Nete” foram
maravilhosos comigo. Neuza Tebe e Mamita cantaram lindamente. Arnildo Jokmabaj,
Silvia Tapyk e filhos, especialmente Silmarinha TsoΦi e Cleumar Hoktsyk, só deram-me
carinhos. Ao professor Eriberto Nabita, sua esposa Maria Luíza Adezazi e filhas, devo
muitos conhecimentos e apoio. Francisco Pikze incentivou-me sempre e também
acompanhou-me em viagens a algumas aldeias. Deixo o meu agradecimento a ele e à
sua querida família. kajetsy Mariana Hokmawy e kazotsy Pudai foram adoráveis.
Geraldino Patamy e Ana Maria Zabawy são meus queridos, e tenho lágrimas em
lembrar de tudo o que vivemos. Sua casa foi a minha casa e eles dividiram tudo comigo,
com generosidade que jamais mereci. Seria injusta se não dissesse a Helena Zydyk do
amor que lhe tenho. Ela, que tem a minha idade, foi sempre a minha “mãezinha”. Punha
sua rede ao lado da minha, ensinava-me a língua, amparava-me nas “pinguelas” e
guiava-me nos meus tropeços pelo mato, como mãe zelosa. Ela, Ana Maria e Geraldino
foram tudo para mim.
Marco Antônio Gonçalves é meu orientador desde sempre. Orientar-me por
tanto tempo e em meio aos reveses que fazem parte da vida, foi tarefa tortuosa que ele
14
sempre cumpriu com inteligência, serenidade e a liberdade de quem acreditou e
permitiu que eu “andasse” sozinha, resgatando-me e “levantando-me” nos meus muitos
tropeços, mediando e acertando o tom das minhas idéias desordenadas. A ele agradeço
sinceramente e peço perdão por “obrigá-lo” a tantos incômodos e concessões. Elsje
Lagrou é dona de inteligência poética e incisiva, para mim o exemplo e a imagem da
gentileza e do crédito no meu trabalho. Sem Marco, Els e Marie, com certeza, eu não
estaria aqui e queria muito que eles soubessem disso. Dedico esta tese a eles.
Finalmente, devo tudo a Maurício. Só consigo pensar que chegamos, sempre
muito juntos, até aqui. Muito mais generoso do que eu sempre consegui ser, deixou os
Wari’ e viajou meio mundo para me ver nos Rikbaktsa. Se não tivesse vindo, não sei
como seria. A ele todo o meu amor e a imagem mágica da cabeça de queixada e das
conversas que dividimos com Geraldino Patamy, como das sessões de canto na noite da
Pé-de-Mutum. Sei que ele entende. Também não sei como tudo teria sido sem o seu
apoio e o seu amor.
15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 24
As Expectativas, os Planos e o Campo: à Espera de um Grande Rito ........................ 24
Mortos e Corpos ......................................................................................................... 37
De Reversões, Separações e Múltiplas Formas ............................................................ 49
Durações, Desvios e Intensidades Etnográficas ........................................................... 57
Etruturando ................................................................................................................. 63
CAPÍTULO I: PREÂMBULO SOBRE SER OU NÃO SER GENTE .................................67
Sobre Inimigos, Dúvidas e Perspectivas ................................................................... 67
Inimigos, Gentes e Brancos ........................................................................................ 89
CAPÍTULO II: PROXIMIDADES, DISTÂNCIAS VIRTUAIS E O TEMPO ................... 97
Um Pouco do Espaço Rikbaktsa ................................................................................. 98
A Guerra da Borracha .............................................................................................. 114
Desejando Relações ................................................................................................ 118
Ir e Ficar, Dar e Tomar ........................................................................................... 126
-Rara, -Ypyky: Criar,Cuidar e Tomar ...................................................................... 133
Redistribuindo ....................................................................................................... 150
De Postos a Aldeias: a Geração Barranco Vermelho ............................................ 156
Sobre Cosmologias e Alterações ........................................................................... 166
CAPÍTULO III: MORTOS, CORPOS E SOCIUS ............................................................ 177
Quando Alguém Morre ....................................................................................... 177
Outros Myhyrikoso ............................................................................................. 183
Das Formas de Existir no Socius: Risco Produtivo e Produção Arriscada ................ 188
Sobre o Xamanismo e a Comunicabilidade de Seres e Corpos ............ 228
CAPÍTULO IV: DISPUTANDO CORPOS, CONSTRUINDO O
PERTENCIMENTO .......................................................................................................240
A Importunidade Modelar ........................................................................................ 240
Provocações Etnográficas ....................................................................................... 253
Da Geometria Social do Espaço Aldeão ................................................................. 255
Mitos e Metades: Makwaraktsa e Hazobiktsa ........................................................ 261
Alguns Termos e suas Aplicações Usuais .............................................................. 295
Sobre Terminologias e Afinidades ........................................................................ 301
16
Nomigenituras .........................................................................................................312
A Caixa de Pandora ..................................................................................................330
Dos Elos que Fazem Pessoas e Segmentos: Pertencer, Casar e Morrer .......................374
O Inimigo Mora ao Lado ...........................................................................................387
CAPÍTULO V: ARRISCANDO CORPOS .................................................................. 393
De “se comer e se beber”: A Festa do Gavião-real e o Ciclo Ritual Rikbaktsa ......... 396
Sobre Gaviões, Caças e Comestibilidade ................................................................. 402
Quando Caçador Mata um Gavião-Real ................................................................. 422
A festa do Gavião-real e os Ritos de Furação de Dente ......................................... 436
CONCLUSÃO: MORRER, VINGAR E CAÇAR: O QUASE ETERNO
RETORNO DOS MYHYRIKOSO
.......................................................................................... 445
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 454
ANEXO 1: TERRAS INDÍGENAS E SITUAÇÃO FUNDIÁRIA ................................... 473
ANEXO 2: ATIVIDADES E ESTAÇÕES ......................................................................... 475
ANEXO 3:ALDEIAS E POPULAÇÃO .................................................................... 477
ANEXO 5: CROQUI DA ALDEIA PÉ-DE-MUTUM (BAIZIK PYRYTSA) .................... 479
ANEXO 4: RELAÇÕES “-PEHEDE TABAWY ........................................................... 488
ANEXO 6: ESPÉCIES E COMESTIBILIDADE .............................................................. 493
ANEXO 7: CADERNO DE FOTOS E LEGENDA ........................................................... 498
17
CONVENÇÕES
Utilizo a grafia do termos Rikbaktsa (em itálico) baseada principalmente na
análise fonológica de Boswood (1971) e convenções de escrita elaborada pela autora em
trabalhos subseqüentes. Incluo algumas consoantes indicadas aqui, de modo a que as
palavras possam aproximar-se mais à realização pelos falantes. Quanto às vogais, tento
adaptá-las ao máximo ao português. Os sons aproximam-se a:
a – como “a” em ave
e – como “é” em sério ou como “e” em medo
i – como “i” em livro
y – vogal central alta não-arredondada (), que se pronuncia como um “u” em susto,
retirando-se o arredondamento labial.
u – como “u” em susto
p – como “p” em pato ou com aspiração, como “p” na palavra inglesa picture
t – como “t” em tempo ou com aspiração, como “t” na palavra inglesa time
k – como “c” em casa; com aspiração, como “k” na palvra inglesa key; entre duas
vogais iguais ou antes de consoante sonora, como “g” em gaivota
b – como “b” em bala
d – como “d” em tarde
r – como “r” em fera; em início de palavra ou depois de “k” há uma pequena vogal
diante de “r”, que não está na proposta de escrita por ser falada automaticamente, como
a palavra Rikbaktsa, que pronuncia-se “(e)Rikbaktsa”
h – fricativa glotal, como “h” na palavra inglesa hot
m – como “m” em mulher
n – como “n” em neném
ts – como “tch” em Tcheco-Eslováquia
s – como “ch” em chave
z – “tap” pós-dental sonoro, ligeiramente africado; som semelhante ao de “r” em fera,
mas a ponta da língua deverá vibrar, ao invés de no alvéolo, entre e até um pouco após
os dentes com certa abertura e com ligeira africação, visto que, apesar de semelhante,
difere um pouco da fricatica dental sonora [“θ”, como o “th” da palavra inlgesa that]. Na
audição pouco treinada é muito fácil confundir este som com “r”, “t” ou até “d”.
j – como, guardada a especificidade da vogal seguinte, o “i” em iatista.
18
w – como, guardada a especificidade da vogal seguinte, o “w” na palavra inglesa wife
χ˜- fricativa uvulo-velar sonora “nasalizada”; acrescento esta consoante porque utilizo
uma palavra na qual ela me parece ser relevante, não sendo tal som classificado por
Boswood enquanto realização de nenhum fonema da língua. (χ˜uitak – macaco coxiu)
Φ – fricativa bilabial ou labio-velar sonora, às vezes com ligeira nasalização; acrescento
esta consoante, que Boswood considera como realização do fonema /w/, por ser muito
marcada na fala, como na palavra aΦwi – “quati”, que em muito distancia-se de “Awi”
nome próprio, o que, levando em consideração o caráter rudimentar de meu
aprendizado, apenas talvez indicasse para ela um traço fonêmico. Quando nasalizado,
pode confundir-se na audição com os sons do Rikbaktsa “h” seguido de “w”, como nas
palavras “taФuatsĩ – contas pretas de tucum e tsiΦui – “peixe-cachorro”.
Diante das variações da fala Rikbaktsa, é bastante difícil distinguir “y” de “a”,
i” de “e” e “u” de “o” quando em sílabas átonas, quando tendem a “centralizar” a
pronúncia das vogais. Há a série nasal das vogais, mas são comuns sobretudo antes de
“m” e “n”, quando invariavelmente pronunciam-se nasalizadas.
Vale destacar aqui os casos constantes de fusão silábica, que tornam a escrita
muito difícil e repleta de equívocos dos quais, certamente, não estarei livre. Freqüente
na língua, a fusão transforma duas sílabas em uma só. Onde há fusão potencial ela
ocorre de fato, somente preservando-se as duas sílabas na fala muito lenta e cuidadosa.
Assim, entre vogais ou entre vogais das quais unicamente a segunda não seja
uma vogal central (y), “r” e “h” são, normalmente, omitidos: wahoro (casa), pronuncia-
se “waho”, com um leve alongamento de “o”; abahik (agora, já), pronuncia-se “abaik”.
Aproveito para dizer que este é o caso da palavra mais usada nesta tese: myhyrikoso
(assombração), que pronuncia-se “myrikoso”, onde a queda de “h”, por sua vez, funde
também as vogais “y”, que passam a comportar-se como uma só. Okyry
(folha/“remédio”), pronuncia-se “oky”.
Antes de “y”, “w” pode cair, formando um glide para vogal posterior alta:
Tabawy. (nome próprio feminino), pronuncia-se “tabau”
Entre consoantes surdas, “i” ou “u podem perder a sonoridade ou ser omitidos:
isukpe (costas dele), pode pronunciar-se “iskpe” .
Em palavras com três ou mais sílabas, vogais adjacentes poderão fundir-se:
tsiasendyk (um ser metafísico), pronuncia-se tsasendyk.
19
A glotal é muito usada, mas não é fonêmica. Ocorre antes de pausa, se a sílaba
final for aberta e em expressões onomatopaicas, que podem formam alguns verbos.
Segundo Boswood (idem) o acento significa uma gradação de intensidade, sendo
a sílaba que leva a marca, mais intensa do que a não acentuada. À princípio o acento
pode ser previsto, embora haja predições diversas e que incluem critérios variados,
como o semântico. Moore (2002)
1
suspeita que o acento seja ainda uma questão em
aberto, dada a dificuldade em postular as fronteiras entre as palavras excepcionalmente
compridas da língua Rikbaktsa – notadamente considerando-se sua filiação ao tronco
macro-Jê. Ainda segundo Moore, não está claro se estas formas - principalmente as
verbais, repletas de sufixos e prefixos, acrescento eu - são de fato afixadas ou seriam
formas livres.
Uma outra tendência é que, quanto mais longas as palavras mais “curtas” sejam
pronunciadas as vogais. Enfim, uma realidade lingüística bastante complexa e onde
ainda há muito o que ser feito para uma escrita eficiente, que tentei registrar o melhor
possível. Desta forma, procurei ao máximo segmentar as palavras em morfemas,
notadamente os verbos, dos quais inexiste forma de infinitivo, e também raízes
nominais, que raramente apresentam-se sem seus respectivos prefixos de posse, sufixos
de gênero e número e outros sufixos derivacionais, como tamanho, por exemplo. Nestes
casos, faço uso do hífen. Vale notar ainda os sufixos de gênero e gênero plural para
certas classes de verbo. Segue-se uma lista das abreviações mais utilizadas:
sg – singular
pl – plural
masc – masculino
fem – feminino
neu – neutro
neg – negativo
nom - nominalizador
obj – objeto
trans – transitivo
intrans – intransitivo
hort – hortativo, que nos Rikbaktsa é a forma mais comum do imperativo.
1
Gostaria de agradecer sinceramente a generosidade de Moore, que me disponibilizou seu projeto de
pesquisa sobre a língua Rikbaktsa que, lamentavelmente, não se concretizou.
20
n-pass – não passado
pass - passado
cont – continuativo
pont – pontual/ “de uma vez”
intenc – intenciona
aux – auxiliar
est – estativo.
Refere-se à forma disseminada “-r-”, que pode e é aplicada a praticamente
qualquer classe de palavra, de verbos, mas também adjetivos. Esta partícula, um infixo,
significa “plenitude” da qualidade indicada na raiz à qual está referida, indicando
também a idéia de “excesso”, de ser ou estar “muito”: ka-my-beze-beze-r-ta (1sg-trans
n-pass-matar[um só]-matar[um só]-est-masc sg) significa “eu sou matador” (mato
muito). Reparo ainda a repetição da raiz beze ao invés de aplicarem –siba, que seria a
raiz “adequada” para quando se mata mais de uma ou muitas “caças”. Interpreto isso
como um modo de enfatizar o “atributo” e também de indicar que o que se mata são
“pessoas”.
Outro comentário interessante, é que em muitos casos estas qualidades só
existem sob esta forma que esgota a totalidade do “ser”. Muitas vezes também não há
palavras que definam as qualidades opostas, definidas apenas pela negação. As formas
negativas são menos afixadas do que as afirmativas.
Por exemplo: ts-sapy-r-na (3sg-lugar-est-neu) [aproveito para dizer que,
segundo a tendência de contração, pronuncia-se sempre “tsapyina”] é a “beleza”, a
“adequação”, enquanto do “feio” e “inadequado” diz-se somente batu i-sapy (não 3sg-
lugar) [pronuncia-se “batsisapy”].
Para posições genealógicas uso a notação inglesa e suas combinações: M = mãe,
F = pai, S = filho, D = filha, Z = irmã, B = irmão, y (minúsculo) = mais novo, e
(minúculo) = mais velho.
Alguns comentários sobre a classificação do Rikbaktsa
A ambigüidade ronda os Rikbaktsa desde os primeiros contatos, muito antes que
se pudesse construir, mais solidamente, o que se vem designando hoje por
“ameríndios”. O padre Dornstauder – empreendedor das expedições que tentavam
21
contatá-los amigavelmente em meados do século XX - supunha, primeiramente, serem
um grupo Tupi, Parintintin ou Kawahib (1975)
2
. Os Tapayúna, que a esta época
coabitavam o noroste de Mato-Grosso, eram também considerados como,
provavelmente, um grupoTupi (Arruda 1992: 151).
Praticavam uma forma complexa de canibalismo, a qual não arrisco-me a
assemelhar ou diferenciar (qualificando-o como “exo” e/ou “endo”). Ocorria entre os
clãs Rikbaktsa relacionados mas eventualmente em conflito (mas não com relação
àqueles grupos Rikbaktsa com os quais não “falavam” e nem “guerreavam”, que os
havia), e o canibalismo mais propriamente guerreiro, cometido contra outras etnias,
sendo as vítimas preferenciais e mais recentes, os Cinta Larga, os Menky e, por pouco
tempo, os brancos, incorporados a este sistema.
A classificação da língua Rikbaktsa apresentou por muito tempo uma série de
incongruências com relação a troncos e famílias. Sua classificação no tronco Macro-Jê
não fora, desta forma, imediata e, ainda hoje, pode ser tida como não-definitiva
3
. Lévi-
Strauss (cf. Steward 1948) sugere que tribos localizadas ao longo do rio Arinos e
Juruena - não podemos nos certificar tratar-se dos Rikbaktsa - falavam dialetos Tupi
parecidos com o Kamayurá. A língua destes grupos seria bastante semelhante à dos
Apiaká e o comportamento sugeriria que seriam um grupo Tupi.
Antes de trabalhos preliminares do SIL, em 1962, não se tinha qualquer
conhecimento sobre a língua, a não ser algumas listas de palavras feitas pelo padre
Dornstauder e por Fritz Tolksdorf, que conviveu com eles nos postos de atração e
assistência. Este material era, entretanto, insuficiente para que se estabelecessem
relações seguras entre o Rikbaktsa e qualquer outro segmento lingüístico maior do
Brasil. A partir de dados colhidos por Joan Boswood, entre 1967 e 1970, com o apoio
do convênio SIL/Museu Nacional, a profundidade das análises lingüísticas começa a se
modificar.
Em 1971, produz um estudo detalhado da fonologia e morfologia da língua
Rikbaktsa, onde realiza um acurado trabalho comparativo entre a mesma e
características atribuídas a línguas Jê e Tupi (Boswood 1971). Algumas evidências que
a aproximariam dos Tupi eram a posição geográfica desta tribo, em meio a vários
2
Com o contato um pouco mais avançado, achava pelas palavras que eram Jê e pela aparência
Nambikwara, em razão dos botoques de orelha (Pacini 1999: 47)
3
Denny Moore (2002) considera alguns cognatos utilizados para esta classificação como “duvidosos” e
acentua a necessidade de estudos comparativos mais substanciais entre a língua Rikbaktsa e outras
línguas do tronco macro-Jê para que tal classificação venha a consolidar-se.
22
grupos de língua Tupi, assim como alguns aspectos culturais, entre outros, a presença de
canibalismo e, evidentemente, semelhanças lingüísticas.
Ao lado destas razões, contudo, apresenta-nos uma série de outras que situariam
a língua como aparentada das línguas Jê. A autora produz o similar lingüístico do que
seria a própria ambigüidade etnográfica, se consideramos como pré-determinados e
excludentes os modelos antropológicos que mais tarde viriam gradativamente a
consolidar-se para a análise dos Jê (Da Matta 1976; Carneiro da Cunha 1978; Melatti
1970) e dos Tupi (Viveiros de Castro 1986). Boswood pergunta-se: “haveria alguma
contra-evidência (...) para demonstrar a possibilidade de que esta tribo possa ser, não
de origem Tupi, mas Jê?” (Boswood 1971: 6).
Em termos fonológicos, Boswood atesta uma série de equivalências entre o
Rikbaktsa tanto em relação às línguas Tupi, quanto às Jê. Se a morfologia Rikbaktsa
assemelhava-se mais às línguas Tupi do que às Jê, a lista de vocabulários demonstrava
haver claramente uma ascendência Proto-Jê, o que afirma um ano mais tarde em outro
trabalho (Boswood 1972). A partir da reconstrução do Proto-Jê feita por Davis (1966
apud idem), constata a grandeza de 38% de cognatos comuns entre a proto-língua e o
Rikbaktsa, enquanto para línguas de outras sub-famílias este número chegaria a 60%, no
máximo. O Maxakalí e o Karajá, por exemplo, partilhariam cerca de 25% de cognatos
com o Proto-Jê (cf. Boswood 1972: 70).
A expectativa da autora, assumida também por Irvine Davis (1966; 1968
apud idem), é a de que com o avanço dos estudos sobre o Proto-Jê e o próprio
Rikbaktsa, se pudesse não apenas localizar melhor o último no quadro das línguas Jê,
como, quem sabe, providenciar a inclusão das línguas Tupi no filo Macro-Jê. Moore
(2002) destaca o caráter provisório da classificação do Rikbaktsa, tendo em vista que ela
foi realizada sob a base de estudos que considera ainda preliminares nos diversos
campos da língua.
23
LISTA DE ABREVIATURAS
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CONOMALI - Companhia Colonizadora Noroeste Mato-Grossense Ltda.
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
MIA – Missão Anchieta
SIL – Summer Institute of Linguistics (Wycliffe Bible Translators)
SPI – Serviço de Proteção aos Índios
SUDAM - Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia.
TI – Terra Indígena
TIs – Terras Indígenas
INTRODUÇÃO
Prevendo a existência de muitos mistérios
etnográficos, ocultos sob o aspecto trivial de tudo
o que vê, o etnógrafo fica à espreita de fatos
sociológicos significativos.” (Malinowski 1978
[1922]:50)
To say that an event is culturally described is not
to say it is culturally prescribed (Sahlins
1995:251)
AS EXPECTATIVAS, OS PLANOS E O CAMPO: À ESPERA DE UM GRANDE RITO
Meu interesse pelos Rikbaktsa começou ainda em 1996, quando terminavam
meus estudos de especialização em lingüística e iniciavam-se os do curso de mestrado.
Se eram pouco estudados, algumas informações preliminares já me estimulavam
particularmente.
Tratava-se de um grupo macro-jê que apresentava metades exogâmicas, com a
interessante associação entre patrilinearidade e uxorilocalidade, de organização espacial
difusa, mas com casa dos homens, apresentando frondosas “formas institucionais e
cerimoniais” acompanhadas de um “discurso cosmológico complexo” (Viveiros de
Castro 1986:23)
4
, praticante do canibalismo guerreiro, pelo menos até o início dos anos
60, falante de uma língua que por algum tempo aventou-se pertencer à família Tupi.
Enfim, deparava-me, pelo menos aparentemente, com uma cadeia de ambigüidades
sutilmente arrematada por sua localização geográfica atual, que os situa em um ponto ao
4
Utilizo aqui algumas definições seminais sobre o modelo Tupi construídas por Viveiros de Castro
(1986). A etnografia Rikbaktsa pretende contribuir às discussões sobre a relação entre a complexidade do
discurso cosmológico – seja dos Araweté, dos Tupi ou dos ameríndios em geral (Overing 1976) – e o
baixo investimento sobre “categorias e instituições sociais” (Viveiros de Castro 1986:23-4). Apresenta
uma possibilidade de articulação positiva entre estes elementos, em contraste com concepções que
tomam-nos enquanto contraponto ou efeito homeostático um do outro. Esta maneira de tratar o problema
interessa particularmente quando o referido modelo Tupi tem implicações importantes na construção de
um possível modelo para entender as sociedades Jê, que sugere torná-las uma espécie de “α traço” Tupi,
com relação mais especificamente aos pares de “traços” “discurso”/”instituição”, “palavra”/”ritual(ação)”
e “cosmologia/sociologia” (idem:24). Assim, onde os Jê têm (-) ênfase no discurso, (+) ênfase têm os
Tupi, invertendo-se os valores no que diz respeito ao caráter institucional, ou seja, onde (–) discurso, (+)
instituição e, por conseguinte, onde (-) instituição, (+) discurso, e assim por diante com relação aos
demais “traços”. Procuro discutir estas idéias etnograficamente no Capítulo IV, embora elas estejam
onipresentes à construção desta etnografia como um todo.
25
extremo noroeste do estado de Mato Grosso (cf. Anexo 1), em uma região referida
como tipicamente Tupi (Steward 1948:883; Galvão 1960:6,10,15-16).
Tão confusa quanto curiosa decidi, então, integrar-me a um estudo das línguas
Jê, aproveitando a grande quantidade de materiais produzidos pelo convênio
SIL
5
/Museu Nacional a partir de 1959. Os trabalhos sobre a língua Rikbaktsa abrangiam
desde as primeiras listas de palavras, tentativas de análise fonológica e classificação da
língua, até incursões sobre sua morfologia e sintaxe (Tremaine 1962, 1976, 1981;
Mitchell 1966; Tremaine & Boswood 1968; Boswood s/d, 1971, 1973, 1974a, 1974b,
1978). O resultado desta empresa foi um trabalho sintético sobre os estudos existentes
sobre o Rikbaktsa, um esboço de gramática protocolarmente produzido a partir daqueles
materiais coletados por terceiros (Athila 1996).
Ainda em 1996, enviei-lhes o trabalho lingüístico e uma carta na qual declarava
minhas intenções. A ausência de resposta e a exigüidade dos prazos institucionais
obrigaram–me ao abandono temporário daquele projeto. Finalmente, em 2001, meados
de meus estudos de doutorado, surgiu a oportunidade de visitá-los por ocasião da
organização de uma coleção de arte plumária Rikbaktsa - o que fazem de maneira
peculiar e notavelmente bela - para o Museu do Índio do estado do Rio de Janeiro. Em
contrapartida, deveria realizar para eles um censo de suas aldeias naquele ano. Após 45
dias em sua cordial companhia, reafirmei minha antiga intenção e recebi um convite
para que voltasse a visitá-los e desenvolvesse meus estudos entre eles.
Apesar da experiência breve, voltei para casa com algumas impressões bastante
contudentes acerca da socialidade (cf. Strathern 1999:169) Rikbaktsa. Observei uma
ampla circulação de bens e serviços, marcada pela generosidade e solidariedade.
Aparentemente mais dadivosos até que os gentis Piaroa, a distribuição da caça e de
outros recursos produzidos por homens e mulheres para além do grupo imediatamente
familiar era praticamente uma regra, independente da noção de “propriedade” (Overing
1986a :149-50).
Ao mesmo tempo, contudo, entre o “dar” e o “receber” interpunha-se uma
espécie de resíduo. Algo que era diferente da já célebre “obrigação” de retribuir (Mauss
5
O Summer Institute of Linguistics faz parte da organização americana Wycliff Institut, fundada em
1934. Seu objetivo é o estudo científico das línguas, para uso posterior na construção de “bíblias” nas
línguas nativas. As lingüistas do SIL, principalmente Joan Boswood e Sheila Tremaine, acompanharam
todo o processo de “contato”, “pacificação” e “reorganização” dos Rikbaktsa, sendo esta última atuante
ainda hoje. Ainda que fora dos limites das terras indígenas, pelo que observei, o SIL continua, pelo
menos, empreendendo e financiando publicações na língua Rikbaktsa para uso didático.
26
2003 [1950]:188). Um aposto à retribuição que acabava por qualificar o caráter
“daquilo” que havia sido dado e, evidentemente, de “quem” o teria feito. O “dom”,
freqüentemente e quase como regra, revertia-se em descontentamentos, comentários e
conflitos que, se disseminados em tácitos burburinhos, em algum momento podiam
eclodir de forma violenta.
Durante a noite uma mulher desfiara - contra e na ausência de uma outra - uma
série de acusações importantes que idicariam uma ruptura de relações, para na manhã
seguinte e sob meu olhar surpreso, visitá-la, oferecendo-lhe, visivelmente penalizada,
ajuda e alguma comida. Se alguém recebia uma ave de um parente de outra aldeia – um
ato, sem dúvida tido como generoso – isto não acontecia sem que, em algum momento,
se comentasse sobre a ausência de penas importantes na ave recebida, ou seja, sobre a
retirada destas penas por parte do doador. A quantidade, o tamanho ou a parte de peixes
e caças distribuídas no cotidiano da aldeia eram também fatores usualmente submetidos
a esta espécie de etiqueta paradoxal.
Aliás, não é possível fazer algo em uma aldeia Rikbaktsa, notadamente no que
diz respeito às atividades em busca de recursos no mato, nas roças ou em outras aldeias,
sem que todos fiquem sabendo de seu destino, direta ou indiretamente através de
comentários circulantes. Isto acaba por criar, indiretamente, uma espécie de controle
sobre os possíveis circuitos de troca ou partilha daqueles recursos. Não apenas, mas
também por isso, devem-se sempre explicações ao entrar em casas ou ao cruzarem-se
pela aldeia.
A pergunta típica quando se vê alguém é “- amo!?”. Gloso este termo por
“então?”, “por quê?”, mas desconheço um possível sentido literal, referindo-se muito
mais a uma atitude em direção ou desejo de saber onde se vai, de onde se veio ou o que
se têm a dizer. A resposta é obrigatória, ainda que se seja bastante evidente.
Diz-se o que vai fazer, por exemplo “pi-muru bo” [“vou tomar banho”] (1sg
(trans.); “banhar”; para/em direção), huktsatatsa bo” [“vou pegar patauá”] (patauá;
para/em direção), izo bo” [vou pegar lenha] (lenha; para/ em direção). Ou então,
mahani!”, que quer dizer apenas “nada”; que não se fez e nem se vai fazer nada e
também que não se têm nada a dizer. “- amo!?” e “-mahani!” correspondem a um
diálogo breve mas que se ouve insistentemente durante todo o dia nas casas e no pátio
da aldeia. Este diálogo deixa a todos mais tranqüilos e, então, pode-se seguir adiante ou
conversar normalmente.
27
Sucediam-se, assim, outras formas cotidianamente institucionalizadas de
apropriação do “dom”, tanto por parte dos pretendidos donatários quanto dos supostos
doadores. Isto acontecendo entre pessoas e unidades domésticas que exibiam diferentes
graus de comprometimento aldeão e reciprocidade, do mínimo “necessário” ao fato de
se viver – ou permanecer vivendo - em uma aldeia Rikbaktsa, até aquele caracterizado
por intensa partilha de atividades, trocas e visitações consuetudinárias. A visitação,
aliás, é a forma sintética do “dom”.
O ato silencioso ou declarado de compelir ao oferecimento era modalidade
recorrente e das que mais me surpreendia. Visitas providenciais adentravam à casa na
hora em que alimentos valorizados eram servidos ou em que se tratava de caças recém-
recebidas. Crianças também podiam trazer algum recurso que, apenas naquele
momento, decidira-se dividir, visando evidentemente alguma forma de contrapartida.
Certa vez em que preparávamos mingau de castanha-do-pará com araras durante
a noite - extremamente apreciado – dirigiu-se à casa uma menina munida de uma cuia
de pequenos peixinhos. Estes, como já era do conhecimento de todos, haviam sido
pescados desde a tarde, não tendo sido, à princípio, destinados enquanto “dom”, embora
trocas até bastante “generosas” fossem usuais entre os dois domicílios envolvidos.
Podia-se aguardar o oferecimento em silêncio ou ainda estimulá-lo, comentando
o quanto tal ou qual comida ou caça era apreciada. A ironia era o tom preferencial do
diálogo institucionalizado nestas ocasiões, observadas principalmente entre mulheres,
mas que também podiam envolver homens. No decorrer do trabalho de campo passei a
denominar esta prática de etiqueta tsi-kani-zyba (3sg-pouco-só), a etiqueta do ter
um pouco de algo” – daquilo que se pede diretamente ou sugestivamente -, diante de
uma situação compelativa.
A praxe incluía a utilização de um termo de chamamento que indicasse a
proximidade entre as pessoas, seguido de uma sentença onde se dizia que tal pessoa
tinha algo – sementes, arroz, frutas e etc. – mas que, apesar disso, não lhe havia dado ou
oferecido. Seguía-se uma pequena pausa, possivelmente preenchida com risos, e o
“mau-anfitrião” respondia que tinha apenas um pouquinho da coisa solicitada (tsi-kani-
zyba!) ou, em caso de êxito do solicitante, alguma quantidade da coisa lhe era,
finalmente, dada.
Reparações na distribuições podiam ser buscadas, sempre expressas através do
tom irônico. Certa vez em que uma anta havia sido morta e muitas de suas partes
moqueavam na casa em que vivia, uma mulher adentrara e, a rir, dizia que havia
28
recebido apenas uma costela: “oh! Ka-zoposte astuba piku i-pek-ty ka-bo nyny-niy!
Astuba zyba! Nepyk! “A filha de meu –zopo (homem da outra metade) só deu para mim
uma costela da anta, disse! Apenas uma! Acabou!”. Não recebeu mais carne para levar,
mas ganhou um bom pedaço, já preparado, para comer naquele momento.
Era sensível a intensificação de relações preexistentes quando havia carne de
caça na casa. Todos visitavam-se, comentavam sobre as visitas, sobre quem teria ido
buscar o quê, como mandioca (moko), caldo de gordura (tutã-sawy) ou grandes pedaços
de carne (-ni). Permaneciam mais na aldeia, se “pediam” e se “trocavam” coisas e
“serviços”, de uma forma ainda mais acentuada do que a habitual. Esta “efervecência
social” generalizada não deixava de representar uma oportunidade singular para que
comentários sobre a iniqüidade dos “dons” e “repartições” do presente e, algumas vezes,
também do passado, fossem professados.
Se, ao ser visitado, o anfitrião tem por obrigação dar algo – como comida (-
zisahawy) ou bebida (tumy) - à sua visita, seja ela parente próximo, distante ou afim,
esta é uma obrigação que pode ser manipulada de modo “perverso” por ambas as partes
envolvidas na situação. O cotidiano Rikbaktsa é rico destas ocorrências que demonstram
que a “inimizade” é algo além ou aquém de um “negativo” da troca.
A “inimizade” não significará, necessariamente, a ausência de “trocas”. Por
outro lado, o estabelecimento de “trocas” entre as pessoas, sua convivência estreita não
atuará, necessariamente, no sentido de “desfazer” inimigos. Esta propriedade é apenas
parcialmente manifesta. Nem tudo ali estará a contento, perfeitamente harmônico e
equilibrado. E esta “distorção” pode ser, ainda, intensionalmente produzida e
manipulada por ambas as partes envolvidas nas relações de troca.
Se há algo que trocas anunciam, é que nunca se extinguem naquele momento,
mas que isto acontece também por outros motivos que não a admitida propriedade de
que um dom gera sua retribuição, com um tom de progressão infinita. Admite resíduos
de insatisfação que até contrariam a obrigação da contraprestação. E estes resíduos são
constitutivos do caráter das trocas, ao menos entre os Rikbaktsa. Assim tudo se
perpetua, em uma generosidade generalizada mas que jamais alcançará as expectativas
ideais formais.
Processos de envenenamento/feitiço têm lugar, notadamente, nas tarefas
conjuntas e visitações cotidianas, em pleno exercício da socialidade solidária aldeã.
Desta forma, anfitriões podem apropriar-se desta obrigação e ministrar venenos a seus
convidados através da comida ou bebida oferecidas. Coisas “fora de lugar” (batsisapy),
29
como o estalar de mãos de pilão (harahara-irikdo – na verdade, “pênis do pilão”),
funcionam em mitos, nos ritos e no cotidiano, como possíveis “sinais” que indicam a má
intenção dos anfitriões.
Isto vem a contrastar com a noção de que estas ameaças e ataques são
eminentemente originados no exterior e dirigidos aos de fora (cf. Rivière 2001:40),
representando um diferencial e complicador de limites comunitários, de interior e
exterior entre os Rikbaktsa. Se as ocorrências de feitiçaria são preferencialmente
imputáveis àqueles de relações mais próximas, a própria “relação”, a “proximidade”, o
“andar junto”, o “visitar” funcionam como condição básica na atribuição da
responsabilidade por este tipo de infortúnio.
À falta de algum termo ou conceito adequado, vim a caracterizar tais relações
sociais enquanto de “vinculação dupla”
6
. Na definição de seu caráter era difícil imputar,
entre a generosidade e a insatisfação e até hostilidade, uma relação de “comando” ou
“determinação” de qualquer um destes atributos. Seria pelo menos inexato dizermos que
o socius Rikbaktsa compunha-se de relações de harmonia e generosidade tanto quanto o
seria considerá-lo como marcadamente hostil.
Componentes tais abrangiam ainda os parâmetros de classificação de grupos e
pessoas. A aparente ambigüidade e vulnerabilidade das relações sociais fossem elas, em
sua definição formal, de afinidade, consangüinidade, vizinhança ou ainda inimizade
assentava-se em uma franca instabilidade e reversibilidade das posições “afetivas” que
conduziam àquelas classificações em contextos diversos.
Noções como a de harmonia tanto quanto aquelas referidas à inimizade
constituíam concomitantemente as relações entre as pessoas. No cotidiano e também,
pelo que me diziam, nos ritos Rikbaktsa. Eram muitas vezes igualmente acionadas
dentro de um contexto e com relação a mesmos segmentos e pessoas, sem que disto
sobreviesse a idéia de ambigüidade.
Era impreciso qualificar univocamente as relações sociais ou nelas identificar
sobredeterminações que as viesse a caracterizar de modo inequívoco. Também não
havia uma homologia entre estas noções e uma possível classificação de grupos,
pessoas, posições – como as de afinidade/consangüinidade e inimigo/aliado – e de
espaços, do tipo interior/exterior. Distinções tais eram pertinentes em algum momento
mas as fronteiras entre seus termos e conteúdos eram pouco claras.
6
A inspiração tangencial porém não-literal do termo são as noções de “vinculação”, “comando/
precedência” e “recursividade” tomadas da sintaxe gerativa (cf. Chomsky 1981).
30
Perdía-se, com isso, a possibilidade de definição do socius Rikbaktsa como
exclusivamente orientado pela pacificidade e cordialidade (Overing & Passes 2000:17).
Tampouco seria um caso de predação modelar, determinando-se e submetendo-se ao
que tem logrado ganhar estatuto de regra indiscutível nas cosmologias ameríndias
(Viveiros de Castro 1993:184).
Se Clastres (1978) inaugura a cronologia da questão de se postular um modo de
ser”(idem:185,188,199) para os ameríndios, seus mais diversos desenvolvimentos
pareceram sempre lançar a alteridade alhures e não no próprio socius. Se não graças à
seminalidade do “exterior”, tudo se limitaria à pouca diferenciação interior. Overing
(1976, 1986a, 1989) dá seguimento a estes estudos, com as noções de um “mesmo
indiferenciado no interior pacífico da sociedade. Concentra valores que considera
fundamentais à orientação e reprodução social neste interior, mas não deixa de alijar a
diferença e, de certa maneira, todo o dito “mal”, para algum “outro lugar”, com o qual
apenas xamãs estariam habilitados em lidar.
Os estudos Jê aparecem como um desenvolvimento particular desta questão
(Carneiro da Cunha 1978; Da Matta 1976; Melatti 1976). Mas a sofisticada
diferenciação interna acabava, sempre, por neutralizar-se, como a expressão de uma
reciprocidade e simetria sem resíduos entre os diferentes segmentos sociais. Toda a
diferença, se vista como parte de um sistema perfeito, tornava-se assim um meio de
produzir o equilíbrio. A distinção, de caráter absoluto, deslocava-se ao “exterior” e para
fora do alcance das relações mundanas. Os “mortos” são tratados como completamente
“outros”, enquanto as diferenças entre os “vivos” podem extrair-se a partir de
“redundâncias” ou “compensações equilibradas”.
Nem virtualmente, nem potencialmente e nem alhures. Tudo o quanto fosse
acionado pela cosmologia Rikbaktsa figurava ali mesmo, naquele “coletivo” (Latour
2004a:7). Estava na proximidade ontológica de seres e coisas como, justamente pela
possibilidade constante deste contato intenso, na propriedade flexível – com ares de
reversibilidade eterna – de classificação destas relações, pessoas e domínios.
Dentro deste quadro e conforme havia entendido, os ritos eram situações
privilegiadas para observarmos o caráter das relações sociais porque, de acordo com
minhas primeiras observações, potencializavam esta “vinculação dupla”. Marcados por
interações intensivas, colocavam ainda em questão a posição dos indivíduos. Os ritos
logravam permitir uma maior visibilidade do pertencimento a grupos sociais, como clãs
e metades, dados que, naquele momento, pareciam-me mais diluídos nas situações
31
cotidianas. Evidentemente, ritos de tal expressão não aconteceriam sem que houvesse
solidariedade e acionamento de lealdades intra e inter-aldeães.
Parâmetros nativos fundamentais para o término e o julgado êxito destes ritos
eram, justamente, a capacidade em reunir pessoas, grupos e aldeias, através de uma
recepção adequada, com comida suficiente e “animação”. Simultaneamente, a
contrapartida estava no fato de que apareciam, inclusive nos mitos, como ocasiões
privilegiadas para efetivação de vinganças, geração de conflitos e até como causadores
ou incrementos de processos de doença e morte.
Se algo não ocorria conforme o prescrito – se o beiju “estufava” (-pytok/
“estufar), se alguém encontrava com alguma pessoa designada a tarefas determinadas,
se tropeçavam durante as danças ou até se alguém se “assustava” (-pyby-r-
“medo/susto-estativo”) com a série de performances de gentes e seres que há nos ritos
Rikbaktsa ou até com ruídos provocados pela atitude descuidada de se deixar cair uma
panela ou bater uma porta – isto podia conduzir à doença e talvez à morte.
Todos estes eventos são assim considerados e destacados das demais ocorrências
que integram o fluxo da vida, justamente porque os Rikbaktsa dotam-nos da capacidade
de desviar o curso esperado dos acontecimentos
7
. Dissonâncias tais produzem efeitos
diretos sobre a integridade “física” e também, como tratam-se de estados inseparáveis
no caso Rikbaktsa, sobre a integridade “mental” ou “espiritual” da pessoa afetada.
O “susto”, especificamente, tem a propriedade de, tanto em ocasiões festivas
quanto no cotidiano, inaugurar ou concorrer para o adoecimento. É um momento fértil
para intervenções corporais não-desejadas. Durante o “sonho” pode-se “assustar”, como
quando se está doente, se dorme-se, pode-se “assustar”. Também se pode estar sadio e
assustar-se, notadamente nos casos em que se está sentido “fraqueza” ou “cansaço” (-
ku-byri-zomo/força-neg-aproximar). Crianças e até adultos podem “assustar” e isto os
torna vulneráveis a “ataques” (i-tsipa-izi-boro “3sg-braço-3sg. pass. obj.-morder”),
como dizem em português. “A criança pula, revira, chora muito”. A isto podem juntar-
se outros patógenos, segundo a etiologia nativa. Alguns destes “ataques” chegam a não
ter cura.
Apesar de, àquela altura, desconhecer exatamente os meios e as razões para que
tais coisas acontecessem, as informações sobre os ritos eram contundentes e
7
Como acontece a outras cosmologias, é notável a importância do “evento” – dentro daquilo que cada
qual distingue como pertinente – como algo que impulsiona e simultaneamente “opera” e “traz ao
mundo” pensamentos e idéias, em uma dialética duplamente constitutiva (cf. Gonçalves 2001a).
32
estimulantes. Assim, planejei meu trabalho de campo de modo a presenciar as várias
etapas que constituem os dois ciclos rituais que podem acontecer anualmente, durante as
estações seca (umurũe zeky/“seco” “quando, se [ficar]”) e chuvosa (hyritsik zeky/
“chuva” “quando, se[ficar]”)
8
.
Retornei aos Rikbaktsa em outubro de 2002 e, em menos de 15 dias ocorreriam
duas mortes de gaviões-reais ou harpias. Cada qual redundaria em um rito específico
8
Sobre a caracterização destes ciclos, refiro o leitor ao belíssimo trabalho de Eriberto Nabita (1997) –
professor Rikbaktsa do 3º grau indígena -, que conseguiu expressar seu significado para além de sua
dimensão ritual, imergindo-os na vida Rikbaktsa. A distinção chuva x seca, embora faça algum sentido
em termos ambientais, é para além disso, uma distinção importante em seu ciclo de vida. Este contraste
agrega significados que encampam mas em muito ultrapassam o caráter estritamente ecológico-alimentar.
Como não trato desta dimensão, gostaria de dar algumas informações importantes sobre sua “estratégias
de subsistência”, que aparecerão diluídas no decorrer da tese (ver também Anexo 2). Os Rikbaktsa
excursionam em grande parte da estação seca, na busca por uma variedade de recursos, não apenas frutas,
mel e caças, mas pontas de flechas, penas, conchas, animais para criação (como reservatórios de penas) e
até “inimigos”. O preparo das roças – as familiares (-tsuhu) e as comunitárias (waratok) - ocorre
preferencialmente no início da estação seca e precede estas movimentações, que podem durar meses.
Jamais os ouvi refirerem-se a este período enquanto de “carência” ou “penúria” alimentar e ainda menos a
qualquer motivação deste tipo para suas movimentações territoriais (para uma versão discordante, ver
Pacini 2000:177). Notadamente caçar, mas também pescar, coletar e até colher frutos e víveres em antigas
roças longínquas são atividades características da estação seca que trazem consigo também uma
determinada imagem de fartura. Canoas chegam lotadas de recursos e muitos parentes que acompanham
estas excursões podem retornar munidos deles ou ainda enviá-los por intermédio de outrem àqueles que
não puderam acompanhá-los. Na estação chuvosa, em contrapartida, os movimentos não são tão
sistemáticos, tendo menor alcance. Durante a estação chuvosa, tida como mais longa que a seca, se se
plantou adequadamente e tudo correu bem, a roça estará crescida e pronta para a colheita, que se inicia
com o milho, pelos idos do mês de dezembro. A caça é tida como abundante, mas não contrastam esta
abundância com uma suposta “carência” da estação seca. Na chuva, dizem, é quando animais folívoros de
consumo preferencial, os macacos, estão mais gordos e muitas frutas que servem de alimento a tantos
outros animais de maior porte chegam ao seu amadurecimento. Não há apenas uma estratégia em se lidar
com um regime de chuvas e modificações mais ou menos evidentes em características ambientais. Estas
alterações ou ciclos só serão favoráveis ou desfavoráveis conforme as próprias estratégias de subsistência,
ou como prefiro chamar, “estratégia de vida” de cada grupo humano em particular. O caráter linear de
qualquer variabilidade deve ser investigado de forma relativa, tanto ao ambiente e à ênfase do sistema
alimentar em questão, quanto, dentro deste, à especificidade das espécies disponíveis no ambiente
considerado. É caso de determinação complexa e, quase sempre, é sobre o modo de vida preferencial de
cada população que devemos nos concentrar se quisermos entender algo sobre “escassez” ou
“abundância” de uma ou outra atividade por estação do ano. Não há, aqui, relações ambientais
necessariamente obrigatórias e mesmo que as houvesse, esta dimensão não seria por si só capaz de
determinar o modo pelo qual os grupos humanos tratam e significam uma atividade e a possível flutuação
ou não de seu rendimento no decorrer do tempo. Um exemplo disso é a ênfase dos amazônicos sobre a
caça, mesmo em grupos, digamos assim, “estatisticamente” horticultores (cf. Viveiros de Castro
2002a:342-343). No que diz respeito à caça, o estudo de Beckerman (1994) admite exceções, mas indica
uma maior produtividade da caça na estação seca. Este fato, embora não seja desmentido pela importância
da caça durante as excursões da estação seca, vai de encontro ao discurso Rikbaktsa sobre a estação
chuvosa, quando os ritos preconizam não apenas a abundância como também a qualidade das caças,
especialmente dos macacos que dizem estar deliciosamente gordos nesta época. Asserções deste tipo
devem ser tanto mais relativizadas quanto mais avançam os estudos que direta ou indiretamente abordam
os “modos de vida” amazônicos. Em contraste com os Piro da amazônia peruana, que caracterizam a
estação chuvosa como aquela em que passam fome (cf. Gow 1989:574), quanto mais os estudos
multiplicam-se mais encontram-se grupos neste aspecto semelhantes aos Rikbaktsa, como os Shipibo
(Bergman 1980), os Nambikwara (Aspelin 1975), os Wari’ (Leite 2004) e os Parakanã (Fausto 2001).
Muitos outros grupos poderão ainda obter produtividade semelhante em atividades diversas no decorrer
das estações, visto que esta produtividade não pode ser univocamente relacionada à sazonalidade.
33
que, em uma descrição muito breve, envolve a preparação da carne e de determinados
acompanhamentos e sua distribuição generalizada, concomitante à furação das penas da
ave. Após uma análise preliminar podia dizer que, em meio a uma multiplicidade de
acontecimentos, a conseqüência mais palpável deste rito era a produção das próprias
penas da ave – aquelas valorizadas e empregadas em flechas e em outros artefatos
plumários -, no sentido de que somente após sua realização as mesmas poderiam ser
utilizadas.
A festa do Gavião-real parecera-me bastante peculiar. Transcorria em uma
esfera, digamos assim, “cotidiana”. Não havia flautas
9
, danças ou a exuberante
ornamentação corporal característica dos demais ritos dos quais lera ou ouvira a
descrição por parte dos Rikbaktsa. Tentava observar o mais que pudesse, mas certas
questões não me abandonavam. Refletia sobre se era ou não umRito” e qual seria a
sua relevância. Ou então, quê rito era aquele, que era “espalhado” e, em sua
pulverização, confundia-se com o cotidiano da aldeia? Acontecia no porto, no pátio, na
casa dos homens e nas casas, às vezes concomitantemente, e era entremeado por
brincadeiras das crianças e algumas atividades diárias.
Fiquei bastante sensibilizada e com expectativas de que isto seria o prenúncio de
que muitos outros e maiores ritos iriam interpor-se ao meu olhar ansioso. Insistia em
perguntar, como se os ritos fossem prescrições (Sahlins 1995:251), se haveria “festa” -
que é como os Rikbaktsa traduzem para o português “myikaha” - naquele ano e no
próximo. Todos me respondiam que provavelmente haveria, que em dezembro
aconteceria a colheita do milho, dando início às pequenas festas que, em um cresciendo,
culminariam em seu fechamento no ápice da estação chuvosa (algo em torno do mês de
maio).
Em meados de dezembro deixaria brevemente a aldeia, ainda sem que a dita
“festa do milho” acontecesse. “Talvez em janeiro”, diziam-me, porque o milho ainda
não estava bom. Trancorridos dezembro e janeiro, soube que a festa não aconteceu,
9
Os Rikbaktsa produzem uma diversidade de aerofones composta, de acordo com a definição “técnico-
ocidental”, por clarinetes, buzinas de sinalização, flautas pã, flautas propriamente ditas e diferentes tipos
de assobios . O que menciono como “flauta” por toda a tese refere-se sobretudo a “clarinetes”, mas
também a uma espécie de flauta propriamente. Para os Rikbaktsa estes dois instrumentos constituem, em
termos gerais, uma mesma modalidade (berekezektsa/beregezektsa) e que eles próprios traduzem para o
português enquanto “flauta”. Em português denominam vários tipos de taquaras, como aquelas utilizadas
para fazer peneiras (tekoiktsa) e também a pá de mexer chicha (itsidik), feita de taboca, de “flauta”. Há
uma associação necessária entre os tipos de bambu e a garganta (-tsoberezek), enquanto um duto pelo
qual se faz passar o ar. Volto a este tema no Capítulo V e, daqui para frente, utilizo o termo “flauta”,
deixando desde já o leitor ciente desta particularidade.
34
porque o milho havia estragado, assolado por uma praga. Com isso, as perspectivas para
que se iniciassem as festas da estação chuvosa, para minha preocupação, ficavam
prejudicadas.
Não é que, como já fora assinalado com relação aos ameríndios (Overing
2003:297), houvesse de minha parte restrições ao estudo do cotidiano propriamente
dito. Inicialmente, os grandes ritos Rikbaktsa – ou a expectativa em presenciá-los -
pareciam circunscrever e serem fundamentais para o sentido da minha experiência.
Pensar em minha pesquisa sem eles, confesso, causava-me pânico e incerteza.
Ancorei-me, afinal, na expectativa sob os ritos da estação seca, de derrubada de
roça. Mas, o quê ainda não sabia, naquele ano eles também não viriam a acontecer.
Durante todo o campo nutri, admito, esperanças em ver “algo”. A logística exata -
incluindo etapas de campo que viriam a cobrir, afinal, todos as épocas do ano –
encontrou-se com a indeterminação dos acontecimentos.
Pouco a pouco pude redimensionar a relação entre os esperados “grandes ritos” e
o dito “cotidiano”. No dia-a-dia Rikbaktsa interpõem-se temas, questões e situações que
demonstraram-se centrais à sua sociocosmologia. Não poderia deixar de mencionar
ainda a sugestão cautelosa de Elsje Lagrou – especialista em grupos de língua Pano -
que, ao me ouvir falar sobre a festa do gavião e sua imersão na vida ordinária, ainda
recém-chegada do campo, interpelou-me com a observação do quanto haveria de
ritualizado no próprio cotidiano. A autora já destacara esta dimensão da experiência
social em sua caracterização da arte feminina Kaxinawa como algo profundamente
implicado nas matérias do mundo espiritual ou no contato com a “yuxindade” (Lagrou
1996:224).
Isto demonstraría-se, como espero deixar transparecer no decorrer desta tese,
irrepreensivelmente verdadeiro para o caso Rikbaktsa. Imediatamente pude lembrar-me
do tratamento concedido às aves das quais as penas lhes desperta interesse. Depois de
caçadas podem ser dadas a um homem mais velho para que as retire ritmadamente,
aquelas das asas e do rabo, depois as do peito, colocando-as, em seguida e
separadamente, sob a peneira feita por ele, para que sequem. Revivesceram-se também
as inúmeras menções aos mitos e aos acontecimentos pitorescos das festas e imitações,
durante o preparo diário de mingaus e chichas.
Muito do que contavam-me acerca dos ritos observava na vida da aldeia. Uma
multiplicidade de convenções que integra a etiqueta das relações, mas também os
comportamentos individuais. Formas de expressão diversas submetem-se a
35
recomendações – por vezes severas, por vezes jocosas – que interpõem-se
energicamente aos indivíduos. Tudo isto despertara a desconfiança de que ali, no
exercício diário da socialidade, havia uma espécie de “jogo” e, como é requerido por
esta situação, alguma “coisa” vinha sendo “arriscada”.
É preciso enfatizar, aliás, que os ritos são também, e talvez principalmente,
“vida”. São feitos de histórias de pessoas, de seres metafísicos, de interações potenciais
entre quase tudo e quase todos e também do desempenho de tarefas que reproduzem e
concomitantemente constituem, com dinamismo, o rito em si mesmo. Serão para mim
referência constante, porque este feixe de experiências era evocado a todo tempo.
Mesclavam-se às tarefas e conversas habituais, na elucidação de infortúnios e como
parte de outros tipos de nexos.
Menções às ocasiões festivas, particularmente ricas e significativas,
sobrevinham-se ao preparo diário de comidas ou bebidas, aos modos de dividir e
desempenhar tarefas coletivas, à correspondência entre a adoção ou não de
determinados comportamentos sociais e suas redundâncias respectivas e às abundantes
brincadeiras e imitações que compõem, enfim, o “viver” em uma aldeia Rikbaktsa. São
parte inextrincável da história de vida e do conjunto de afetos e desafetos de alguém,
situações que tornam ainda mais evidente a constância e a inevitabilidade das conexões
entre os vivos, como entre estes e os demais seres do cosmos.
A vida, quando acontece no cotexto ritual, é referencial, explicativa e, muitas
vezes, instituinte dos eventos e processos que têm expressão cotidiana. O inverso é
também verdadeiro, até porque os ritos Rikbaktsa não são pontuais, admitindo longa
duração e misturando-se, efetivamente, à vida ordinária. Não há contraposições,
desmentidos e nem há no rito operações – de ordem material ou “espiritual” –
totalmente estranhas ou de natureza essencialmente “superior” aos acontecimentos
cotidianos.
10
10
Talvez por esta razão Robert Hahn (1976), que trabalha entre os Rikbaktsa no início da década de 70,
não conseguisse “enxergar” elaboração ritual entre os Rikbaktsa. Esta percepção vem marcada em todo o
texto e tanto contrasta com a profusão de artefatos plumários, “flautas” e outros aerofones, comidas.
pinturas e imitações de seres metafísicos, mitológicos e também “mundanos”. O fluxo cotidiano das
festas por um lado, e as expectativas em torno de uma determinada noção de rito, por outro, podem ter
sido em parte responsáveis por esta visão. Para o autor, a série de “regras” – não conceitua desta forma,
mas cita alguns ditames sem credibilidade – que podem ser quebradas passam a idéia de um
“primitivismo” de formas sociais. Passa ao largo dos contrastes entre as pinturas corporais das metades,
tarefas diferenciais das mesmas, como fazer flautas e experimentá-las, sem abstrair qualquer tipo de
padronização ou “orientações ideais” dos ritos.
36
Ou seja, o entendimento da socialidade não pode ser desarticulado e acaba por
alcançar o entendimento dos contextos rituais. Não porque os ritos tenham anterioridade
explicativa ou propriciem o cotidiano de alguma forma. Não há exclusivamente durante
os ritos ou de suas preparações espíritos supremos, de cuja reverência ou desagrado
possa resultar na harmonia ou desarmonia social das aldeias como um todo (Bowden
1984:451). Cotidiano tanto quanto as festas são “ativos” mais do que “corroborativos”
ou “restauradores” de alguma ordem ou estado ideal de coisas. Vida ordinária e rito,
longe de se comportarem enquanto formas distintas entre as quais fica estabelecida uma
relação de comando, apresentam muito mais continuidades do que descontinuidades,
interpenetrando-se.
As diferenças são de tom e intensidade. De modalidades mais do que de
natureza. Neste caso, a adoção de qualquer divisão muito rígida seria tão pouco
produtiva quanto viria a obscurecer esta sofisticada articulação (Malinowski 1978
[1922]:138). Extensas referências a seres metafísicos que compõem a cosmosociologia
Rikbaktsa, a alegria, as comidas, danças e o caráter e estado atual das relações aldeães e
inter-aldeães são algumas correspondências evidentes. Mas a correferência entre
cotidiano e rito abrange aspectos imediatamente menos visíveis.
Os já mencionados comportamentos inadequados ou situações desfavoráveis
ocorridas durantes as festas dificilmente têm resultado direto. Comportam-se, antes,
como a origem de certos decursos. Propagam seus efeitos potenciais, até por anos, vindo
a manifestar-se contra as pessoas em sua vida diária. Nesta duração temporal,
normalmente associam-se a outros eventos e fatores que tornam os indivíduos ainda
mais sujeitos à efetivação de sua potência nociva. Estes “insumos” poderão ter lugar,
inclusive, em novos contextos rituais, somando-se em uma cadeia de cuja a etiologia
está alhures.
Dizem os Rikbaktsa que é necessário um certo tempo entre uma ação
inadequada e seu decorrente prejuízo. Na maioria das vezes é preciso “esquecer” (-
spirik-tshokza) destas ocorrências impróprias, noção que, como veremos (cf. Capítulo
III), tem conotações bastante importantes no que concerne às possibilidades de interação
e exposição do corpo a agentes patológicos ou predatórios de diversas ordens.
O “esquecimento” torna-se central, particularmente quando estão em relevo
relações que tematizam a alteridade, como tem se demonstrado pertinente a outras
cosmologias ameríndias (cf. Taylor 1993, para os Jivaro). Veremos, porém, que o
37
“esquecer” não corresponde a qualquer modo de desmemoriação. Ele não é senão um
estado temporário e transitório, marcando a posteriori o devir de algum infortúnio.
Por enquanto é sufuciente sabermos que há riscos nos ritos, mas estes não são
tão diferentes daqueles aos quais submetem-se no cotidiano, confundindo-se ou
articulando-se em muitas ocasiões. Neste sentido, não há sacríficio - de porcos (Bowden
1984:451) ou do que quer que considerem como “bens” - capaz de forjar pactos que
aplaquem ou dissipem estes perigos diários. Também não há ritos capazes de “reafirmar
o contrato entre humanos” e seres metafísicos (cf. Piedade 2005:140), no sentido de
garantir-lhes a saúde. Não há indícios, sequer, de que haja algo como um “contrato”
entre estas partes.
Se, indubitavelmente, os Rikbaktsa procuram praticar e conhecem muito bem as
condições de uma “economia política cósmica” (idem:130), esta não está concentrada
em momentos pontuais e especificamente performados com o intuito de promovê-la ou
adequá-la ao bem-viver social. Sanções, doenças e perigos incidem tanto ou até mais
sobre as pessoas do que sobre algo como o “bem-estar comum”. Uma vez ocorrida
alguma impropriedade, nada poderá deter sua ameaça e poucas coisas impedirão seus
efeitos. Eles poderão, contudo, ser amenizados.
Mas, enfim, o quê e qual a grandeza daquilo que arrisca-se na socialidade
Rikbaktsa, sob todas as suas manifestações?
MORTOS E CORPOS
Em minha segunda viagem a campo, passei a viver em uma casa habitada por
um homem e suas duas esposas. Este domicílio era central, porque, além deste homem
ser exímio artesão de plumária e sábio de cantos, histórias e execução de “flautas”, vivia
em uma aldeia de conformação peculiar. Reunia em torno de si, contrariamente à
professada tendência uxorilocal, seus filhos casados como também outros homens
casados com mulheres de seu clã e de relações próximas, que não seus genros. Mas o
aspecto que interessa neste momento não é diretamente sociológico.
Desde as primeiras noites na casa, comecei a reparar uma certa preocupação
com o “sono” e com alguns de seus efeitos. Havia muitas conversas sobre os
acontecimentos noturnos, como latidos insistentes de cães, portas que se abriam e
panelas que se batiam. Às vezes comentavam ligeiramente sobre algum sonho.
38
Podia observar a presença de recomendações sobre o que comer à noite e a
evitação clara em dormirem durante o dia. À noite deveriam abster-se de comidas como
anta, macaco, peixes grandes, mandioca, bananas grandes e qualquer comida quente.
Comidas adequadas seriam bananas e peixes pequenos, sempre frios, e chichas de
frutas, como patauá ou açaí.
A idéia era evitarem o que chamam em português de “sonhar feio”. A forma
verbal usada para descrever este acontecimento trazia um prefixo que indicava pessoa,
mas também objeto. Quando alguém sonhava feio se dizia, por exemplo, Adriana “zi-
tsõtyspyk-ky (3sg obj-sonho-cont), marcando que se havia sido uma espécie de
“objeto” do seu sonho e que, de certa maneira, estava sendo. Quanto ao sonho, podiam
dizer que ele não havia sido bom (i-tsõtyspyk-sapy-byi-ta/3sg-sonho-bom-neg-masc sg).
Cada vez mais esta idéia foi se reafirmando na nossa convivência. Reparavam
quando eu apresentava pequenos hematomas na pele e teciam comentários, dizendo em
português, que eu deveria ter sido pega por “bicho”, ou na língua, por myhyrikoso. Eu
perguntava do que se tratava um myhyrikoso e eles diziam que era “gente” mesmo,
intercambiando ou transitando, sem dificuldade, estas duas designações.
O sono e, principalmente, o sonho parecia ser algo ruim para eles. Antes de ir a
campo, li que o -hyrikoso era para os Rikbaktsa algo que traduziram como “espírito” ou
“alma”, modo também empregado para referirem-se à fotografia (ka-hyrikoso/ “minha
fotografia”) , e myhyrikoso, “assombração” ou “fantasma”, embora eu não goste muito
destas traduções
11
. Entretanto, desconhecia a importância onírica, ritual e sobretudo
cotidiana destes aspectos dos mortos.
Saí desta viagem com a certeza de que os sonhos eram bastante reais, dimensões
onde interagiam com estas “assombrações”, nas quais encaixavam-se os mortos e
também outros seres metafísicos que partilham deste atributo de serem considerados
myhyrikoso
12
. Sofriam muitas vezes agressões efetivamente físicas. Pedras lhes eram
jogadas, punhos de suas redes sacudidos. Sonhos de muitas pessoas eram contados
como ocasiões em que as mesmas agiam como bichos, urrando como porcos em suas
redes. Tudo isso atribuído ao fato de sonharem feio, o que relacionavam algumas vezes
também à ingestão noturna daqueles tipos de alimento.
11
Um outro termo menos comum para se dizer “alma” é hyrizik ka-rara-wy – alma – "minha coisa de
criação do olho” e veremos a importância do “olhar” nos “infortúnios” ocorridos entre os Rikbaktsa.
12
Observo que myhyrikoso e –hyrikoso são termos dificilmente empregados no plural.
39
Ainda mais. Viam estes mortos, ouviam suas palavras e isto podia ser o
presságio de doenças, morte ou de futuros encontros pelo mato, quando seriam raptados
por eles e levados para sua aldeia. Às vezes os vivos eram devolvidos, e às vezes não.
Em outros casos eram simplesmente comidos... os ossos podiam ou não ser encontrados
depois.
Estes myhyrikoso vivem praticamente junto dos vivos, mas em um mundo
invertido. Quando é dia para nós é noite para eles, e também relativamente mais seguro
para os vivos. De dia, portanto, estes “seres” normalmente dormem. Ocasionalmente, os
vivos podem ouvi-los durante o dia, porque os myhyrikoso podem sonhar que já está
amanhecendo. A situação oposta, ou seja, quando nós estamos a dormir e talvez a
sonhar, é a ocasião propícia para suas investidas, já que nossa lua é o seu sol. Dias de
tempo ruim, inspiram sempre algum receio, e evitam tanto quanto é possível
desempenhar tarefas quando o tempo está nublado (my-na-depyk-r-na/trans npass-aux-
sujo-est-neu, “está sujo [muito]”). Estes são sinais de que há despertar dos mortos, em
seu tempo reverso.
O céu nublado normalmente antecede as histórias vividas recentemente ou mitos
que tematizem infortúnios. Funciona como o prenúncio de que os myhyrikoso, como
outros seres metafísicos “predadores”, estão por perto e causarão algum prejuízo.
Quando vamos encontrar um myhyrikoso, quando ele se aproxima de nós, ficamos
tontos(-spirik-zomo) e nossa visão também escurece temporariamente. Quando
retornarmos à “consciência” e retomamos a “visão” é que podemos vê-los ou entendê-
los enquanto myhyrikoso.
São normalmente vistos pelos vivos como animais, o que chamam também de
sparitsa e, apenas por sua agência, podemos enxergá-los sob a figura humanizada. Toda
a caça, a princípio, pode ser um myhyrikoso. Esta associação é tão regular que mortos e
caças em geral podem ser referidos por uma mesma palavra, sibahatsa, embora insistam
se tratarem de coisas diferentes e se ouça predominantemente referências ao
myhyrikoso. Parecia que, se através da caça, vivos arriscam-se a predar os mortos,
quando mortos, seriam eles a certamente predarem os vivos. Talvez, pensava eu, estes
domínios estivessem praticamente em um processo de predação mútua. Senão isto, os
corpos dos vivos e os seres da esfera dos mortos estariam, pelo menos, em relação
estreita, constante e arriscada.
Quase dois meses depois, quando retornei aos Rikbaktsa, estava
lamentavelmente de luto. Aquilo que era uma desconfiança hipotética, passou a fazer
40
parte da minha própria experiência cotidiana com eles e acabou por tornar-se questão
central desta pesquisa. Mais até pela freqüência com que este assunto e outros a ele
associados são evocados do que por minha própria vontade, pelo menos naquele
momento.
Afinal, diferentemente do que nos acontece cá, lá fala-se muito sobre a morte.
Todos, mesmo aqueles com os quais não tinha relações estreitas, queriam saber detalhes
sobre a perda que me assolara. E eu me exercitava em fazê-lo, sem choros ou emoções
maiores. Os mais próximos perguntavam-me regularmente se eu estava com medo, se
tinha recebido visitas, se eu sabia para onde meu parente tinha ido.
Não os presenciei diretamente, mas os relatos densos e detalhados de parentes
próximos sobre alguns ritos funerários me deixavam abalada e, por vezes, até acanhada.
Eram feitos de pesares e tristezas, mas também de detalhes sobre o aspecto e odor do
morto nos muitos dias em que o caixão segue pelas aldeias rio abaixo, de acusações
violentas aos familiares, disputas pelo local de enterramento, trocas de bens contadas
com “ares” de espoliação e, em outros momentos, ironização de pessoas e eventos.
É tentativo incorrer em uma representação alegórica e peculiar da morte e do
luto. A sensação que eu tinha era de que aquele universo me era tão distante – pela
assepsia sublimatória com que procuramos tratar nossos mortos, transformando-os, de
acordo com a crença, diretamente em espírito ou em lembrança idealmente cada vez
menos evocada -, mas também tão próximo, por minha própria condição de enlutada.
Se no Brasil ouve-se regularmente e sob a forma de conforto que a vida continua
sem a pessoa que se vai, nos Rikbaktsa é praxe que mortos nos visitem, especialmente,
nos primeiros meses depois de sua morte, mas também naquele momento em que
morrem. É muito comum que alguém que se julgue vivo até então, apareça para algum
parente de uma outra aldeia e que, um ou dois dias depois, chegue uma notícia
confirmando sua morte.
Sonhamos com eles, contam-nos coisas, mas devemos evitar responder-lhes,
pois isso geraria represálias. Não se pode falar com eles sem que, de alguma maneira, a
eles nos “misturemos”, sem que sejamos, digamos, “contaminados” e, também nós,
estejamos um pouco “mortos”. Seja lá o que isto signifique
13
– isto será discutido mais
13
Refiro-me aqui especificamente a uma visão que equaciona o “perigo” e as possíveis assunções de
posição nestes encontros e diálogos a uma questão de “humanidade” / “animalidade” ou de “predador” /
“presa” (cf. Viveiros de Castro 2002b:397).
41
ou menos implicitamente no decorrer desta tese - esta é a fonte central de infortúnios,
doença e morte do corpo.
A possibilidade de exceção fica por conta daqueles que são mencionados como
“xamãs” e que podem, sabem e querem falar com os mortos, porque nem todos desejam
isto. Ainda assim, há sempre a possibilidade de que os mesmos sofram represálias,
atribuídas a distrações ou desrespeito a alguma recomendação que deveria ter sido
seguida. As tarefas ou as contingências do xamanismo são consideradas “perigosas”.
Pelo que pude apurar, xamãs também sentem “medo” e podem ficar doentes. Suas
habilidades não são, desta forma, incondicionais ou definitivas.
Nem todos os myhyrikoso são vingativos, dizem, mas não consegui recolher
muitas exceções. A violência direta ou o medo caracterizavam estes encontros. Muitas
pessoas ficam marcadas por toda a vida, dizem, e jamais restabelecem-se totalmente.
São apontadas como de saúde mais frágil, vulnerável e até mesmo como mais sujeitas a
“ausências” e confusões mentais (-kedepyk).
Principalmente ruídos noturnos mas também diurnos ouvidos pelo mato são
providos de significado. Conferem-lhes intenção e agência, sendo interpretados como
ruídos de mortos e outros seres metafísicos, assobios, choros, “chamados” ou “avisos”
de que parentes morreram ou morrerão. À noite, eu me acostumara a ter conversas na
rede abruptamente interrompidas pelo silêncio, ao ouvir-se o canto agudo e gutural
qualificado como “choro” de uma pequena coruja a que chamam sazo.
Tida como bicho de criação (karara) de myhyrikoso, dizem que “é gente
também, só que virou e fica sentada na árvore” (Helena Zydyk). Os xamãs dizem que
seu ruído não é mais que o som dos próprios mortos, que estão com sede e fome e com
saudade.
Quando se ouve o sazo, “-Uh!, Uh!, Uh!”, pode ser, conseqüentemente, o aviso
da morte de parentes, o anúncio de predações próximas. “Eles estão chamando os
outros, que gostam de andar quando a noite está clara, lua cheia” (Helena Zydyk). O
sazo anda no chão” (Helena Zydyk), uma característica atípica de alguns dos “bichos”
que são sparitsa, como o boadatatsa (uma espécie de macaco completamente branco),
ou de pássaros que eram, na verdade, “mortos”.
Fatos inusitados usualmente antecedem as mortes, como prenúncios dos
infortúnios fatais. “- Sparitsa abriu a porta”, conta-me uma mulher. “- Só mexia no fogo
e na panela ...”. Ela vinha ver e não encontrava nada. Então ouviu um ruído, não sabe se
de coruja, passarinho ou gente que “como criança” estava chorando em cima da casa. “-
42
Quando tem alguém doente eles ficam chorando”, acrescenta. Em outra noite ouviram
choro, como de criança. Foram verificar e era sparitsa embaixo do ingá. Logo depois
morreu um homem da aldeia.
De uma outra vez, ao voltarem de buscar lenha, encontraram todos bichos de
criação (-raratsa) da aldeia presos dentro da casa, inclusive uma arara cabeçuda muito
arisca. Contam que era um “aviso”, porque logo depois veio a notícia de que uma
mulher a quem eram próximos havia morrido afogada com duas filhas, na aldeia da
Segunda Cachoeira.
Assim, há formas ou indícios de comunicação entre estas esferas. É comum que
os próprios mortos façam visitas transmigrantes a seus parentes, no momento de sua
morte, quando estes ainda desconhecem o fato.
Com relação a uma mulher que morreu ainda jovem, deixando o marido e uma
filha, disseram inicialmente que havia morrido de malária e depois seguiu-se o relato
dos eventos que culminaram em sua morte. Pouco antes da fatalidade, a mulher havia
sonhado feio” com seu pai, já falecido. Por esta razão, resolvera não “andar” na
tentativa de não encontrar com myhyrikoso e evitar possíveis infortúnios.
Ela estava sozinha
14
. Tinha chorado por toda a noite. Primeiro foi na roça
rapidamente. Depois, quando voltou, acendeu fogo embaixo da rede para fazer chicha.
Mandou que a filha fosse pegar água, porque tinha sede. Tremia muito. Foi encontrada
morta, engasgada com uma banana inteira e com a rede completamente vomitada.
Acham que ela engasgou “só de medo”. No momento de sua morte, uma mulher que
estava na lagoa viu a onça “parda”, “espírito”, olhando para ela e rindo. Era a mulher
que havia morrido.
Depois de notória a morte, estas “visitas” são usuais ainda por meses, mas
mesmo após anos elas poderão eventualmente acontecer. Em uma noite em que
efetivamente me assustei muito, meu anfitrião assegurou-me de que eu tinha, na
verdade, recebido a visita de meu falecido parente. Nesta noite, lembro-me bem, as duas
portas da casa abriram-se. Houve balançar de panelas e os cachorros latiram muito.
Asseverando-me do evento, designou sua esposa mais jovem, de quem eu muito me
afeiçoara, para que pussesse sua rede ao lado da minha. Este virou o comentário da
14
É usual que nos relatos sobre mortes particularmente associadas a myhyrikoso as pessoas estejam sós.
Se na casa, que tenham mandado todos da casa fazerem coisas ou buscarem algo para si, por terem fome
ou sede. Tudo se passa como se elas mesmas estivessem a “provocar” esta situação de vulnerabilidade.
Quando todos saem, então, os acontecimentos têm lugar.
43
refeição que os homens, que já estavam na casa dos homens desde o fim da madrugada,
compartilhavam na casa em que vivia, quase todas as manhãs.
Era tentadora a comparação com os “tambores” ouvidos por Goldman (2003)
durante um rito funerário do candomblé em ilhéus. Qual o significado daquela minha
experiência apodítica composta, entre outros traços, pelo forte ruído de panelas?
Assumindo a noção de que “crença” seria algo mais adequadamente traduzido enquanto
um determinado “saber sobre o mundo” (Gow apud Goldman 2003:449), perguntava-
me: - eram aquelas panelas também “panelas dos mortos” ou as “panelas dos vivos”
revolvidas pelos mortos?
Com o tempo pude observar as descrições exemplares sobre visitas noturnas de
pessoas falecidas ocorridas durante a vigília como durante os sonhos. Afora outros
detalhes e episódios que podem somar-se a estas ocorrências, todas elas apresentavam
um “núcleo” bastante semelhante, como no caso transcrito de meu diário:
Filó disse que sonhou com o myhyrikoso de Pedro (um falecido
próximo) esta noite. Que ele estava na porta da casa e disse “oh, katsy, mana!
Quanto tempo que eu não te vejo!”. Pegou o copo amarelo (me apontou), que
era da casa dele e que havia sido “trocado” com a esposa durante a
lamentação. Perguntou o que tinha (pra comer), mexeu nas panelas e depois foi
embora ...” (aldeia Pé-de-Mutum, 27/02/2003)
Mas voltemos ao meu anfitrião. Homens como ele e muitos outros, são
considerados xamãs, porque têm a ciência das plantas e, ainda mais, a faculdade de
poder relacionar-se com os mortos. É preciso dizer que nem todos aprofundam-se nesta
faculdade. Tanto homens como mulheres podem especializar-se nesta modalidade, que
inclui a possibilidade de “ressuscitar” mortos, trazê-los de novo à dimensão dos vivos.
A pessoa reanimada, contudo, só pode conviver com aquele que a “ressuscitou” ou
“encomendou” sua “volta”. Ninguém mais pode vê-la e lhe é vedado, portanto, circular
pela aldeia ou participar de atividades comunitárias. Há histórias sobre isso e
comentários sobre pessoas que dizem suspeitar terem sido trazidas de volta à vida.
O sonho é um modo freqüente de comunicação entre xamãs e mortos, um lugar
onde podem consultá-los e até ver o que está acontecendo em outros lugares. Contam
que alguns xamãs antigos sabiam sonhar “claro”. Podiam prever investidas dos Cinta
44
Larga e pelo sonho enviar vento (zopoktsa), fazê-los dormir pesado e mesmo derrubar
árvores sobre eles, exterminando-os.
Contudo, se não têm um propósito determinado, estas pessoas evitam ainda mais
o sono, principalmente diurno. O canto freqüentemente é utilizado para evitar os sonhos
não-desejados ou algum “pensamento/sentimento” que pudesse deixá-los ainda mais
vulneráveis à intervenção dos mortos. A “raiva” e o “medo” – como o “susto” - são
sempre citados, contudo é preciso dizer que, principalmente este último, como já sugeri
anteriormente, é uma categoria que inclui o que seria para nós uma gama de estados e
situações diferentes e que consideram particularmente perigosos.
À noite alguns destes xamãs especialmente relacionados aos mortos podem lhes
dar comida, principalmente chicha. Isto é bastante comentado, mas nunca vi. Os mortos
podem reclamar muito, jogar longe, “judiar” dos xamãs. Este é um momento em que
ninguém os acompanha (todos têm muito medo), e dizem ouvir apenas os barulhos e as
vozes.
Um homem contou uma história de que foi com Mabe – uma mulher Rikbaktsa
que vive hoje junto aos Iranxe - levar copo de chicha para myhyrikoso. Ele ficou
embaixo da mangueira, enquanto ela os chamou “- uh!, uh!”, os mortos responderam “-
uh!”. Conversaram com ela, ele ouviu, mas não viu. Alvejaram paus na mulher, queriam
agredi-la e a derrubaram no chão. Ela dizia: “- Não faz isso comigo! Tem gente aí!
(refería-se ao homem escondido). Tamanha a violência, o pau quase pegou no homem.
Ele justificou dizendo que “eles ficaram com raiva porque ela demorou a trazer chicha.
O homem comenta que quando falavam mal desta mulher – que fora casada com
um Iranxe executado no Barranco Vermelho em certa ocasião - ela mandava o finado
marido aparecer como onça parda para as faladeiras; “- Ele mostrava a língua e dente
para dar medo. Mas era espírito”. É através desta faculdade que os ditos xamãs são
consultados à morte de alguém, e podem descobrir se aquela pessoa morreu por
vingança, feitiço, e pelas “mãos” de quem, se de vivos ou de pessoas já mortas.
Cada vez mais pude entender que muitos mortos, na verdade, persistem e
dividem boa parte dos momentos cotidianos com os vivos. Promovendo pequenos
ataques violentos, em riscos que lhes roubam a saúde, a vida, a integridade do corpo e
até mesmo o corpo, dado o número de pessoas que tão somente “desaparecem”.
Destaco não apenas a importância dos “mortos” – tomados usualmente por
“outros” nas cosmologias sul-americanas e especialmente em grupos Jê (Carneiro da
Cunha 1978) -, mas sua menção e dimensão pessoal e cotidiana. Entre os Rikbaktsa, os
45
“mortos” incluem-se dentro das diretrizes sociais, no sentido de que os mesmos podem
ter “agência”, mantendo-se em relação ou ameaça de relação constante e,
principalmente, participando da construção da socialidade dos vivos, via sua
centralidade nos processos de vida, construção e destruição corporal.
O medo e, portanto, a relação com parentes mortos é algo que ultrapassa o
acontecer dos ritos funerários e pode acompanhar os Rikbaktsa por toda a vida. O
contato com o morto não se extingue necessariamente quando ele se torna “outro”,
“caça” ou o que quer que seja. Na maioria dos casos e guardadas as limitações
temporais e geracionais que permitem ou impedem sua lembrança, este é um processo
que não se completa. Perdura enquanto houver alguma geração ou alguém capaz de
identificá-los e com isso evocar suas “visões”, partilhar com eles “experiências”.
Não há muitos mecanismos marcados para o “esquecimento” dos mortos que
sejam duradouros, como evitar andar por suas trilhas, despojar-se de coisas que façam
lembrar ou, como marquei, tão somente não falar sobre ele e sobre sua morte. Veremos
posteriormente que as práticas funerárias, entre outras ênfases, direcionam-se mais para
que o “morto” não seja capaz de reconhecer seus parentes muito próximos, sua casa e
suas coisas nos seus respectivos lugares, alterando-os. Uma espécie de tentativa de
“dissimulação”. Quanto àquilo que cabe aos “vivos”, busca-se evitar o contato ou, se ele
for inevitável tanto quanto parece ser, postergá-lo ao máximo e, finalmente, tentar
resguardar-se durante o mesmo.
Por paradoxal que pareça, o discurso Rikbaktsa e as relativamente poucas
práticas pós-funerárias marcadas enquanto tais não demonstram muito interesse e nem
apresentam artifícios “eficazes” que conduzam à “des-pessoalização” e
“desmemoriação” total dos mortos. Assim, a relação entre vivos e mortos marca-se, por
um lado, pela ruptura com a vida (seus bens serão redistribuídos através de “trocas” e
“pilhagens”, ficando nas mãos de parentes mais distantes; ele não mais terá um “corpo”;
sua família pode abandonar a casa ou a aldeia); mas também pela continuidade. O
“morto”, seu myhyrikoso, será “visto” sob diversos aspectos, “sonhado” e terá ainda
“agência” sobre o corpo e o mundo dos vivos, direcionado por comportamentos que
visam, não a desmemoriação ou alterização completa dos mortos, mas a evitação do
contato com eles, sempre associados a seu aspecto “pessoalizado”.
Uma “continuidade” que é, contudo, bastante peculiar e completamente diversa,
em dinâmica e em significado, à ênfase na permanência de mortos em cultos aos
ancestrais nas sociedades africanas. Distante da “identidade”, a morte, ou melhor, os
46
“mortos” - que não são mais do que aqueles aos quais os Rikbaktsa são capazes de
“evocar” e não exatamente o destino de qualquer um que se vai -, fazem parte de um
campo onde há disjunções, como se tem assumido para os ameríndios, mas estas
distinções não conseguem superar ou neutralizar as intersecções que quase sempre
permanecem.
Acrescenta-se a este fato que, entre os Rikbaktsa, as relações entre os próprios
“vivos” não correspondem a um reino constituído pela “identidade”. Isto vem a atenuar,
de certa forma, o grau das possíveis distinções entre estes dois modos de existência,
reforçando ainda o caráter processual que a política da alteridade ganha neste contexto
etnográfico, seja ela exercida entre os “vivos” ou entre eles e os “mortos”.
Desta forma, a relação entre “vivos” e “mortos” caracteriza-se, como de resto o
é toda relação social em vida, pela diferenciação, pela divergência e pelo desequilíbrio.
O viver cotidiano, a produção da socialidade, inclui e pode ser sumarizado no produzir e
arriscar de corpos, através de múltiplas formas, sobretudo na possibilidade de contato e
na interação efetiva com estes mortos e outros seres metafísicos. Para que se mantenha a
própria “vida” e, em paralelo, o socius tal qual é concebido pelos Rikbaktsa, é
necessário um conjunto de saberes sobre o cosmos e seus componentes, que vige, entre
outras coisas, sobre a efetivação e a qualidade daquelas interações.
Como venho sugerindo, não é hipérbole considerarmos que o “corpo” (-nury)
dos vivos aparece como o centro de todas estas relações. Um meio privilegiado de
contato mas que se constitui simultaneamente por esta maneira. Isto significa dizer que
cada qual deverá inteirar-se daqueles saberes e suas variáveis, almejando a capacidade
de submetê-los a uma maestria individual. O objetivo é, desta forma, modular estas
interações potenciais que lhes podem, por um lado, permitir e, por outro, roubar-lhes a
saúde e o corpo. Manobras e aprendizados que alcançam expressão de uma autêntica
política que deve ser exercida sobretudo cotidianamente, já que confunde-se com a
dinâmica que impulsiona a vida e o socius.
A idéia de que “you are a body, or you are dead” (Latour 2004b:205) é
perfeitamente adequada, com a ressalva de que os “mortos”, neste caso, para além de
não serem “coisas” (idem:212) (trad. minha) em si mesmos, ocupam mais do que o pólo
inerte de uma oposição da “vida”. Constituem, antes, uma entidade central que “afeta” o
corpo e a partir da qual este corpo em constituição e aquisição progressiva
(idem:207,210) “aprende” ou intenta aprender “ser” e, mais importante, “como ser” por
ela afetado (idem:205).
47
Lembro, contudo, que não me refiro a uma entidade essencial e limitada. A
plasticidade composta de misturas e intersecções fazem destas “entidades” – “mortos”,
“vivos”, “corpos” – algo inter-referencial. Neste sentido, enquanto tais, “mortos” são
fonte de diferença, mas uma diferença que não é absoluta. Esta “diferença” frutifica e
ganha sentido apenas na sua possível, efetiva e diversificada articulação com o “corpo”
de uma ou mais pessoas (idem:210). Por isso mesmo o oposto também acontece. Afinal,
não há “corpo” ou “vida”, no que é possível apreendê-los, para além desta e de outras
interações que interpõem-se ao indivíduo Rikbaktsa.
A infinidade de recomendações que indicam a interrelação perpétua entre estes
aspectos que venho apresentando sempre foi algo notável, como nos trechos abaixo,
retirado de um de meus diários:
Coisas curiosas: 1 - um cachorro (tsiku parini- tsiku [ralado na pele]
parini [onça]) que estava dormindo de dia e, segundo Vicente, sonhando dentro
da casa, foi acordado. Justificaram que ele “sonha com bicho” e depois quando
vão no mato o “bicho” pega eles todos. 2 Galo que cantou fora de hora.
Muzuza. (mau agouro). Esperaram ele cantar e o tocaram para a “sujeira”,
longe da casa e do pátio da aldeia. 3 – Buzi, uma qualidade de castanha (pitsi) -
Comem estas castanhas que me pareceram estragadas à princípio, mas que são,
na verdade, aquelas que têm muita gordura e que não ardem. Chamam-nas de
buzi, tsapyrta!, acham gostoso. Dizem também que se se come delas, não se
fica velho, como acontece com a castanheira. 4 - Se sentar na linhada do
espinhéu não se pega peixe. Ele só passa por cima. (...) Dizem que se menina
pequena (wytyk tsibik) brinca muito com tapõrõriktsa (ouriço de seringa) o
peito fica grande, o que não é apreciado, e menino, se brinca muito, o testículo
fica grande. E assim segue o mundo Rik. ... cheio de “correspondências”
inusitadas entre “seres” e “coisas”.” (aldeia São Vicente, 4/05/03) “Se canhar
(negar, ser egoísta) bóia sofre também de criança, de primeiro filho, às vezes a
criança morre na barriga. Dizem que as meninas novas não entendem, acham
que é mentira. Depois que já têm filho 3 ou 4 vezes, acostuma. (aí pode canhar).
Se não varre casa o neném também fica cabeludo, não nasce logo, agente sofre.
O guri de 12 anos, a mãe manda buscar água, lenha e ele não vai, de preguiça.
Quando casa, a mulher dele sofre com criança. Tudo que mandam tem que ir.
Eles explicam. Às vezes a criança morre na barriga da mãe. Manda uma vez e
48
tem que ir. “batu spirikpo!”, se diz de alguém que não respeita estas
recomendações, algo como “não aprendeu”
15
e que dizem em português “não
respeita”. Menina nova também não pode ficar na porta da casa, trabalhar na
porta, porque também sofre com criança, que fica “atravessada”. (aldeia São
Vicente, 21/04/03)
As relações gentis e solidárias, como as solicitações atendidas e os dons
oferecidos à visitação de alguém não são apenas um contraponto da “solidão” e da
“tristeza”, um modo de fuga a estes “estados” (Teixeira-Pinto 1997:185). Tais estados, é
verdade, freqüentemente instauram-se quando a socialidade se retira, funcionando como
intensificadores dos riscos que alguém corre. O que é temido de fato será, desta forma,
ao que estas situações poderão conduzir ou favorecer; interações indesejadas com uma
sorte de seres metafísicos que provocarão diretamente ou serão prenúncio de doença e
morte.
A grande questão aqui é evitar ou postergar, o quanto se conseguir, a predação.
Não se pode dizer que a contrariedade no que diz respeito à se “estar só” (-zyba) é maior
do que o medo de conseqüências trazidas por este estado, mas não apenas por ele. A
solidão é paradoxal e traz consigo dois aspectos: é buscada como meio de fugir ao
feitiço e de seu campo fértil constituído pelas relações cotidianas e solidárias mas pode
ser também imposta a alguém e aos seus como sanção importante.
Doença e morte obedecem, sempre, a motivações complexas e abertas a
domínios e planos etiológicos diversos, que variam, inclusive, com seus narradores e
com o quê estes sabem, desejam ou não nos contar em diferentes momentos. É como se
fosse sempre possível acrescentar ou omitir fatos e detalhes que culminariam na morte
de alguém. Narrativas sobre morte surpreendem por uma riqueza descritiva e de eventos
com relativa duração temporal, que podem referir-se a meses e até anos. Morrer é um
“processo” composto de episódios diversos que, gradativamente, “fragilizam” o “corpo”
de alguém. Neste sentido, a “alterização” da pessoa precede a “morte” do corpo, tanto
quanto não se completa com ela.
15
Diz-se de um homem que é “sábio”, “ti-spirikpo-r-ta”, um “estado” indicado pela partícula estativa
r”, disseminada na língua Rikbaktsa, e de cuja negação é expressa pelo “não” “batu”, seguido da
palavra composta, “spirik-po”. Eu mesma dizia sempre ikza my-spirikpo-ko,[Eu (fem) (estou) trans np-
aprender-continuativo] “Eu estou aprendendo”. Conotações e o significado de outras expressões
derivadas da palavra/conceito spirik serão exploradas no Capítulo I.
49
DE REVERSÕES, SEPARAÇÕES E MÚLTIPLAS FORMAS
“(…) não agüento isso, a redução da
socialidade à sociabilidade. Estes termos se tornam
imbuídos de conotações positivas ou negativas, quando
se trata de guerra ou conflito. (…) tudo isso sai da idéia
de que a sociedade é algo inerentemente solidário. (…)
Essa idéia de que é uma boa coisa ter relações sociais, a
idéia de que conflitos e guerras, de alguma forma,
fragmentam algo”.
(Strathern 1999: 169) (grifo
meu)
Dentro desta tecitura que venho tentando compor, me aturdia o fato de que
vários problemas em discussão no âmbito da etnologia sul-americana – notadamente
aquela praticada aqui no Brasil - podiam ser evocados e evidenciados em narrativas,
comportamentos e nexos cotidianos das aldeias nas quais trabalhei. Das discussões em
torno da natureza da socialidade ameríndia sobrevêm a noção de que haveria uma certa
“espacialização” conceitual ou metodológica. Alguns aspectos relacionados a ela vêm
sendo equacionados a determinadas correntes de estudo (cf. Viveiros de Castro
2002a:333-336) de cujas preocupações e discordâncias sobre quais seriam, enfim, os
fundamentos desta socialidade acabam por constituir temas, modos de tratá-los e
redutos especiais. Alegadamente mais ou menos virtuais, alguns deles fazem-se
presentes e até determinantes por intermédio de uma espécie de ausência onisciente,
como é o caso da “afinidade potencial”, algo que, enquanto tal e enquanto alegado
princípio fundamental da socialidade ameríndia, não existe senão à distância e no
“exterior” do socius (Viveiros de Castro 1993:173).
Espaços e temas que eu observava estarem, entre os Rikbaktsa, em intersecção e
por isso em construção contínua, submetidos permanentemente a uma sorte tal de
misturas e entrelaces que tornava-se muito difícil recortá-los ou fixá-los, mesmo que
operativamente. Um fato que me serve também como uma metáfora apropriada para
ilustrar o que desejo destacar aqui é que, nos Rikbaktsa, o “feitiçeiro” e o “enfeitiçado”
estavam dentro da mesma aldeia, em domicílios muito próximos ou até dentro da
mesma casa, sobretudo nas visitações e companhias solidárias. E com eles, a inimizade,
a vingança, as atitudes violentas e o contato perigoso com os mortos e outros seres
50
metafísicos. Fatores tais eram, desta forma, inseparáveis dos exercícios mais tênues de
sua socialidade mais generosa.
Tudo isto confere uma estrutura e um modo de escritura bastante peculiar a esta
tese. Mesmo quando tacitamente, ela é permanentemente orientada a determinadas
discussões sobre os ameríndios. A experiência de viver entre os Rikbaktsa me fez, a
todo tempo, questionar sobre estes problemas, estimulando-me a entender sua
pertinência e a investigar sobre os arranjos apresentados por aquelas pessoas que me
conduzissem a respostas possíveis. É desta maneira que procuro utilizá-la aqui.
Em decorrência disto, as questões colocadas nesta introdução repetem-se
insistentemente durante toda a escritura, retornando em níveis diversos de abstração,
como se os pontos de partida e de chegada fossem os mesmos. Por vezes, não o
“esforço” mas a preocupação em marcar diferenças e modos alternativos de entender
problemas que estão na ordem do dia, parecerá mais importante até que a própria
etnografia Rikbaktsa. Ambos são aspectos indissociáveis deste trabalho.
Esta preocupação é confessa enquanto uma espécie de condutor etnográfico que
simultaneamente dá e ganha novos sentidos, um pano de fundo que surgiu ao largo do
trabalho de campo e que torna a descrição orientada e inteligível em uma direção
determinada. Evidentemente, controvérsia tal só pode e, acima de tudo, só vale ser feita
se através ou em razão da etnografia Rikbaktsa. Neste sentido, não há redutos absolutos
e incontestáveis, verdades últimas ou possibilidades “mais verdadeiras”.
É notável que a diversificada e corrente disputa, mais ou menos tácita ou
proclamada aqui e ali e com especial ênfase nas peculiaridades que constituem as
relações sociais neste continente, vem influenciando sensivelmente a produção
etnológica contemporânea. Permeia a escolha de alguns temas centrais às etnografias e
artigos científicos e redunda no decorrente abandono de outros, sujeitando seu modo de
escritura e argumentação. Se neste caso, como acredita Geertz, a controvérsia traduz-se
na vitalidade deste campo intelectual (Geertz 2001:94), estas formas diversas em tratar
do problema indicam, pelo menos, que ainda se está longe de encerrar o debate ou de
encontrar para ele uma solução geral capaz de consolidar-se e resolver “versões
alternativas” (Latour 2004b:220) (trad. minha) e, naturalmente, discordantes.
Não é preciso uma aproximação muito detida deste universo para que sejamos
confrontados com uma variabilidade de noções e usos levantados a partir de uma
riqueza etnográfica que, cada vez mais, torna evidente a particularidade e também a
diversidade do continente sul-americano. As especificidades encontradas de cultura a
51
cultura, ao invés de impeditivas, parecem revigorar o interesse etnológico na tarefa de
proposição de associações possíveis e mais ou menos constantes.
O terreno da diferença vai sendo minado gradativamente, conduzindo a pontes
que logram atravessar regiões, pessoas e mundos. Neste reduto, entretanto, parece
coexistir uma certa confusão entre termos e sentidos, principalmente quando se trata de
“sociabilidade” e o que se tem chamado de “socialidade” ameríndia. Uma confusão que,
entre discussões etimológicas, vem revelando conteúdos e posições tão importantes
quanto bem definidos.
Strathern (1999:169) adota o termo “socialidade” por ele não corresponder à
palavra “sociabilidade”, no sentido britânico de experiência de comunidade, empatia.
Para a autora, este sentido seria totalmente equivocado, conduzindo a uma espécie de
“sentimentalização” nociva a um entendimento adequado da noção de relação social.
Mais do que apostar na inadequação do conceito moderno de sociedade para alguma
região etnográfica específica, como a Melanésia, Strathern admite uma reavaliação
contextual constante deste e de outros termos como “natureza” e “cultura” (idem:165).
Por outro lado, tomar o sentido formal das relações por seu sentido “sentimental”,
conduz a equívocos, como a “redução, por exemplo, da reciprocidade ao altruísmo
(idem:169).
Isto que para Strathern deve ser diligentemente evitado, para outros autores
como Overing & Passes (2000), concentra exatamente a essência do termo
socialidade”, que também o adotam, em um sentido simetricamente diferente. Dentro
desta visão, o universo ameríndio opera com noções completamente distanciadas de
qualquer conteúdo abstrato, impessoal e coercitivo, longe do contexto das teorias
contratuais e do domínio do Estado (idem:13). Alternativamente a “socialidade”,
consideram o termo “convivialidade” ainda mais adequado à sua descrição. Assumem
que os ameríndios conferem, antes de mais nada, valor positivo e predominante à
intimidade e à agência individual, pautada em noções como “paz” e “igualdade”,
colocando em evidência o caráter eminentemente “afetivo” da socialidade ameríndia
(idem:14).
Entre um e outro caminho, adoto o termo “socialidade” no sentido que mais se
aproxima ao de Strathern, mas com algumas observações acerca de seu argumento que
aqui expus sumariamente. No meu entender, a sentimentalização das relações em si
mesma não seria tão problemática quanto o fato de se postular um sentido e um valor
obrigatório, condicional e determinante para ela. Adotar uma definição inequívoca e
52
valorativa sobre o sentido da socialidade ameríndia implica em assumir que ela
“acontece” obrigatoriamente de tal ou qual modo. Não deixa também de condenar as
demais idéias e/ou sentimentos que podem ser diferentemente enfatizados por
sociedades diversas, a uma posição negativa e residual em relação à dinâmica das
relações sociais.
Questionamentos preliminares em torno da socialidade Rikbaktsa e o modo pelo
qual venho sugerindo caracterizar sua dinâmica social são inteiramente adequados à
discussão destes problemas sociológicos. Neste ponto, evoco novamente a “vinculação
dupla” de suas relações sociais. Se ela promove comportamentos e também ideais algo
semelhantes àqueles cobertos pelos aspectos “afetivo” e “convivial” das interações
aldeães, a indulgente ausência de ortodoxia dos caminhos que vão da potência ao ato
não deixariam também de contradizê-los.
A sociologia Rikbaktsa permite-nos interrogar sobre a plausibilidade e os limites
de qualquer enunciado que atribua à sociedade ameríndia alguma “função” inequívoca e
única. E, em caso positivo, se esta “função” pode chegar a ter um significado
predeterminado e universalizado. E esta asserção inclui, mas não se limita, a questionar
sobre o arranjo que define a socialidade ameríndia pelo atributo da “convivialidade” e
da harmonia.
Diversificar o espectro de idéias e práticas capazes de conduzir ao “êxito social”
seria tão importante quanto admitir que nem sempre o discurso nativo enfatiza tal
aspecto ou qualifica-o como “função” de sua experiência social. E que também não irá
fazê-lo sempre de uma mesma forma, malgrado a coesão e a continuidade possam ser,
muitas vezes, resultados indiretos desta experiência. Como observou Wagner
(1991:160), algumas destas idéias ou modos de tratar o problema da sociedade, elevados
à categoria de “afirmações” e “paradigmas”, seriam muito mais uma preocupação dos
antropólogos do que daqueles que eles estudam:
“For what is described is the manner in wich social scientists work to
make their subjects interesting, statistically variable and problematic. It is by no
means clear that the subjects think of themselves in this way, or think of their
social interactions as interesting because they can be mapped into paradigms of
social groupings and individual variability.” (id.:ib.)
Entre os Rikbaktsa não há mecanismos dedicados a verter instrumentalmente a
53
“raiva”, o “ciúme” ou a “avareza” em fatores positivos da vida comunal. Generosidade
e conflito estão implicados nos comportamentos dos indivíduos e, nem um nem outro,
constituem caracterizações “naturais” de “coisas” ou “qualidades primárias” (Latour
2004b:212). São conseqüências usuais das relações que não necessariamente as obriga
ou as impede. Particularmente o “conflito” e a “insatisfação”, como a forma precária ou
incompleta da reciprocidade, nem sempre representarão uma “condição” limitante à sua
socialidade (Overing & Passes 2000:14).
A guerra, a vingança e a predação podem ser, também e até ao mesmo tempo em
que a solidariedade generosa, formas de “êxito social”, se são equacionadas como partes
motoras, produtoras e, em algum momento, agregadoras de algumas sociedades. Pois
que a quebra de uma relação entre os Rikbaktsa usualmente remete à construção de uma
outra, tanto quanto a fissão conflituosa intra-aldeã pode verter-se em uma nova aldeia
que se manterá em relação com a quase totalidade das demais. Com o tempo e também
com a participação em atividades e ritos coletivos, rompimentos poderão ser refeitos ao
mesmo tempo em que novas rupturas poderão advir da intensificação das relações
sociais.
Por esta mesma razão, não há uma preocupação do discurso Rikbaktsa em
equacionar atributos tais das relações enquanto “opostos polares” (Teixeira-Pinto
1997:33). Se, como admitem, é algo reprovável ser “egoísta” (-sorek), isto não ocorre
em razão de ser esta uma atitude qualificada, digamos, por “anti-social”. Seus efeitos
recairão possivelmente apenas sobre a vulnerabilidade do próprio indivíduo, sua vida e
sua saúde, embora a “fuga” ou “evitação” deste estado delicado acabe por constituir um
“insumo” que o impulsiona na direção de estabelecer relações generosas com os seus.
Por outro lado e na mesma medida, privar da generosidade de alguém poderá significar,
apesar de ser uma situação encampada pelos protocolos e orientações sociais
recomendáveis, o adoecimento e a morte.
Os próprios Rikbaktsa, como veremos, descendem do bicho-preguiça
(zarakuruk) que negou-se a dividir as frutas de uma árvore com seus companheiros.
Esta atitude altera o curso dos eventos e a composição dos seres do mundo, mas não
extingue e nem cria a sociedade. Antes a transforma. Talvez encerre uma certa “versão”
ou “possibilidade” dela, enquanto cria uma outra. O animal é considerado nas narrativas
ordinárias como nos mitos, o “avô” (-diri) dos Rikbaktsa, embora, durante os conflitos
ocasionados por seu egoísmo, tenha perdido o seu rabo. Entrementes, de misturas entre
seres diversos, substâncias e o sangue que jorrara de seu rabo arrancado, produziram-se
54
os Rikbaktsa.
Separar estes aspectos possíveis das relações sociais, obrigatoriamente, em
domínios diferententes e antagônicos, faz com que comportamentos igualmente
humanos e portanto, sociais, possam ser considerados como ambígüos. E, em algum
momento, que eles sejam dispostos conforme “funções” ou “características”
diametralmente e efetivamente “agregadoras” ou “disruptivas”. Em um território onde
animais, plantas e forças, que podem ser os mais violentos, são concebidos como
diferentes dos homens apenas em grau, não em natureza (Descola 1998:25), não é
descabido reconsiderar a oportunidade em generalizar para os ameríndios o sentido e o
caráter de certas qualidades humanas ou dos seres em geral; fixá-las como
definitavamente disruptivas ou anti-sociais, enquanto outras não.
Considerando-se que “ciúme, “raiva”, “solidão”, “ferocidade”, “briga”,
“adoecimento” e “morte” podem ser etnograficamente constituídos enquanto situações
negativas e ameaçadoras, estas atitudes e emoções não obedeceriam, obrigatoriamente,
a significados idênticos entre os ameríndios. E nem haveria uma coincidência necessária
entre possíveis generalizações ameríndias destes estados e as elaborações que os
mesmos recebem no pensamento ocidental.
Apesar de não serem, como qualquer comunidade humana, “mônadas
semânticas” (Geertz 2001:75), “violência”, “ferocidade”, “ciúme” não são, para os
ameríndios, mais do que categorias que não existem separadas de uma “tradução”
possível e de uma situação etnográfica determinada. Categorias tais possivelmente
guardam nexos mais complexos e diversificados com a socialidade de algum povo do
que seu confinamento-padrão a uma espécie de anti-centro ou àquilo que “a socialidade
não deve ser”.(cf. Overing & Passes 2000:6).
Há atualmente um consenso em torno da inadequação dos conceitos científicos
sociológicos e etnológicos que fizeram a tradição da Antropologia clássica, para o
entendimento das sociedades ameríndias. Atestada foi a sua renitência em serem
explicadas através destas categorizações. Estéreis foram também as comparações
intercontinentais que definiam os ameríndios como um “negativo” das sociedades
articuladas com grande visibilidade sociológica (Seeger et al. 1987[1979]; Overing
[Kaplan] 1976).
Entretanto, um dos aspectos mais produtivos destas considerações é justamente
aquele que rompe com a concepção de que haveria apenas um modo possível de
articular-se sociologicamente. As etnografias deste continente foram gradativamente
55
revelando também a trama sutil e a estreita capacidade de articulação da qual os ditos
“esquemas simbólicos” eram dotados (cf. Gonçalves 2001a:23-4).
Quando admitimos que nem tudo tem o mesmo conteúdo sempre, seja em
contextos iguais ou distintos, e nem deve obedecer a uma lógica formal, pré-concebida,
podemos contemplar, no lugar de ambigüidades e paradoxos, uma diversidade de
associações e posições dinâmicas. Começa a se delinear uma relação menos ortodoxa e
mais dialética entre possíveis “centros”, “interiores” e “exteriores” de algum socius.
Providencia-se uma aproximação mais criteriosa e abstrata, que permite-nos diminuir o
abismo ou a antinomia (talvez criados por nós) entre o que os nativos consideram como
bons ou maus atributos humanos – se couber tal contraste - e o modo como organizam-
se socialmente.
Entre os Rikbaktsa, a proximidade e a estreiteza de laços, apesar de socialmente
recomendada, redundará possivelmente em conflitos e envenenamentos, mas não se
resume a eles. Veremos que há também uma ética profundamente comprometida com a
vida que pontua a “beleza”, o “dever ser” e a adequação das coisas e dos seres dentro de
um fluxo esperado, porém não garantido.
Predação e feitiçaria articulam-se ao espaço “doméstico” e à generosidade
cordial que também lhe é peculiar, como temas igualmente importantes e constituintes.
No mitos como no cotidiano, o conflito e a tematização da alteridade é sempre uma face
das relações de partilha entre seres que, se marcados por distinções importantes,
apresentam algum tipo de semelhança e proximidade.
A vingança, veremos, não deixa de ser um “motor” social, e a solidão é mais um
dos estados que poderão propiciá-la. Apesar de não ser algo essencialmente
recomendável, sob alguma perspectiva virá então a incrementar a perpetuação do
socius. Em outras situações, ainda, a solidão, enquanto um estado transitório, será a
terapêutica recomendada ou, como nos casos de suspeita de feitiço, ser buscada como
forma de também preservar a vida.
Em contrapartida, entre os Yanomami, a vingança é a forma exclusiva de
resgatar à sociedade aquele que sofre e está em estado a-social de solidão (Alés 2000).
Casos paradigmáticos da diversidade de arranjos e propósitos em torno dos quais
determinadas qualidades humanas poderão atuar. Neste domínio, talvez fosse mais
produtivo assumir a sociedade como um lugar onde tudo o que é relevante para um dado
grupo humano é particularmente equacionado.
Segundo Viveiros de Castro (1993:185), o mecanismo da diferença, por
56
excelência, é a “predação canibal, da qual a afinidade é uma codificação específica,
mesmo que privilegiada” e ambas, enquanto modos de atualizar a predação
generalizada, constituiriam a “modalidade prototípica da Relação nas cosmologias
ameríndias” (idem:184). Em um desacordo no sentido de se tomar a predação
generalizada como a medida e o sentido de toda relação entre os ameríndios está a idéia
de Teixeira-Pinto (1997:40). O autor adverte para o fato de não se confundir a
existência de um “idioma da predação generalizada”, atuante e produtivo entre os
ameríndios, com umidioma generalizado da predação”, de presença apenas suposta
até o presente momento dos estudos.
Ainda assim, todos parecem concordar que “violência” e “predação” são algo
pelo menos primordialmente “exterior” ao socius. A vertente “convivial” sobre a
socialidade ameríndia admite-as mesmo como “condições” - lógica ou
cosmologicamente - necessárias para o estabelecimento de uma sociedade tranqüila e
harmoniosa. Mas, ao mesmo tempo, elas não participam senão indiretamente da
construção cotidiana da sociedade ameríndia. Tudo que é afim, canibal, violento, não
poderia encompassar a sociedade, sob pena dela perder seu caráter social (Overing &
Passes 2000:7).
Entretanto, este estado harmonioso de coisas têm se demonstrado bastante
instável entre os ameríndios. A tranquilidade e a harmonia precisam ser artesanalmente
construídas a cada dia. Este trabalho constante só seria necessário se admitimos que há
muitas conexões entre o que se tem caracterizado como o “interior” amistoso do socius
e seu “exterior” ou sua “origem” canibalística e violenta. É bastante improvável que
logica, cosmologica ou socialmente qualquer um destes temas – incluindo-se aqui as
idéias de harmonia ou mesmo de compaixão, como demonstrou Conklin (2001) - seja
necessariamente “expurgado” de seu cotidiano e da construção de suas relações, ou dele
participem apenas com efeito exemplar de “negativos”.
Não se trata de negligenciar a importância da vida social diária, mas de
diversificar o sentido das possibilidades etnográficas desta experiência social cotidiana.
Tratar a “convivialidade” como o tom e a razão última da vida ordinária, cria uma
antinomia entre “sociologia” e “cosmologia”. A vida social aparece regida
prioritariamente por um princípio, qual seja, a “convivialidade”, e a cosmologia
determinada por outro, a “predação”. Ao fim e ao cabo, sociedade e cosmologia não
apenas obedeceriam a estes diferentes princípios, como os mesmos configurariam
disposições antagônicas.
57
Por outro lado, ter como “dado o pressuposto” (cf. Lagrou 2003:203) de que a
“predação” e a “afinidade” – notadamente esta última capaz de assumir significados tão
distintos e contornos muito precários, pelo menos entre os Rikbaktsa – providenciam
um nexo explicativo único de tudo o que acontece no socius não resolve o problema,
mas o reverte. Sociologia e cosmologia, como as demais instituições nas quais a cultura
pode ser segmentada, são mais artifícios analíticos, tanto de pesquisadores como
também das classificações nativas, do que propriamente devidas ao fluxo das coisas
(Malinowski 1978[1922]:138; Bateson 1967:188-9). A natureza destas alegadas
“separações” deve estar disposta a conexões, justaposições e referências mútuas, como
algo que as impulsiona e coloca permanentemente na ordem das discussões.
Isto porque em algumas sociedades ameríndias, como acredito ser o caso dos
Rikbaktsa, conflito, violência, solidariedade e beleza são, dentro de seu sentido
etnográfico, “temas” e articuladores mitológicos e rituais mas também cotidianos. Isto
aponta cada vez mais para a idéia de que não há fronteiras impermeáveis, por virtuais
que sejam, entre possíveis “centros” e “interiores” de algum socius e o que lhe seria, a
princípio, “periférico” e “exterior”.
DURAÇÕES, DESVIOS E INTENSIDADES ETNOGRÁFICAS
Por oito meses, divididos em 3 estadas, vivi entre os Rikbaktsa. Na primeira
viagem, de reconhecimento, permaneci por um mês e meio viajando e recenseando a
população das então 32 aldeias de três das quatro micro-regiões ocupadas atualmente
por eles
16
, aos longo dos rios Juruena, Sangue e Arinos. Na ocasião, não visitei a TI
Escondido, no baixo Juruena, onde há a aldeia denominada Babaçu, com uma
população de, então, 20 pessoas e da qual dispunha de um censo recém-realizado
17
. Na
maior parte deste período fiquei baseada na aldeia Pé-de-Mutum (baizikpyrytsa), que
localiza-se na TI Japuíra, no médio curso do rio Juruena. Na TI Erikpatsa estive por
16
Para os dados sobre nome, números de habitantes e localização das aldeias, ver Anexo 3.
17
Realizar um censo deste tamanho e neste período de tempo entre populações indígenas não é tarefa
fácil. As diversas modalidades de adoção, casamento e aparenteamento e as visitações constantes
complexificam-se ainda mais quando se chega aos Rikbaktsa na época das expedições da estação seca.
Por esta razão e como mais um agravante, muitos estavam excursionando e, conseqüentemente, fora de
seu domicílio. Neste ponto devo agradecer, novamente, ao antropólogo e amigo Aloir Pacini que, tendo
visitado a aldeia Babaçu por ocasião de um laudo antropológico de contextação fundiária por parte do
município de Cotriguaçu no mesmo mês em que estive em campo, gentilmente, forneceu-me seus dados
de censo. Preciso agradecer-lhe ainda, por ter, solidariamente, auxiliado na elicitação de pontos obscuros
de meus dados relativos à população Rikbaktsa em geral.
58
duas semanas, ficando baseada na aldeia do Barranco Vermelho e depois na aldeia
Primavera, também conhecida como “Primeira”. Destas bases, seguia para outras
pequenas aldeias, à pé, de canoa ou motor de pôpa.
Na segunda viagem, com duração de dois meses e meio, passei uma semana na
aldeia Barranco Vermelho, enquanto aguardava o transporte para a aldeia Pé-de-Mutum,
onde decidira sediar minha pesquisa. Contando então com 80 habitantes, a “Pé-de-
Mutum” era onde eu havia conseguido firmar laços mais sólidos. Apesar do difícil
acesso – só se pode chegar de barco, através de longa viagem pelo rio Juruena ou de
carro e depois barco, passando por áreas de fazenda nas quais apenas veículos da
FUNAI podem atravessar - possuía uma constituição interessante do ponto de vista
sociológico e era a mais populosa do complexo de aldeias do médio Juruena e do baixo
rio do Sangue. Na terceira viagem, com duração de quatro meses, passei três meses na
aldeia Pé-de-Mutum e um mês em uma pequena aldeia do rio Arinos, a São Vicente.
A questão do idioma Rikbaktsa mereceria uma interessante tese específica,
capaz de transmitir a complexidade de fenômenos envolvidos entre o falar, o não-falar e
o compreender dos mais diversos grupos etários e dos diferentes sexos. Isto, para não
citar a peculiaridade do português falado, com “traduções” dos conceitos nativos e
entonações próprias encontradas também na língua Rikbaktsa. Em tempos onde
testemunhamos alterações como a conversão, o desaparecimento de ritos e a dissipação
de tantos saberes entre ameríndios que, contudo, mantém seus idiomas maternos, os
Rikbaktsa apareceriam, no mínimo, como um paradoxo.
Na casa dos homens (mykyry), chamada também de “rodeio”, onde fazem
plumárias, flechas, degustam caças das quais contam os pormenores das caçadas e
também lugar, entre outros, onde ensina-se mais intensamente todas estas atividades aos
mais jovens, o idioma Rikbaktsa é predominante. Dentro das casas, pode-se ouvir tanto
o Rikbaktsa quanto o português, a depender de sua composição incluir ou não membros
de mais idade.
A adesão aos ritos é também maciça e todos participam, assumindo as posições e
tarefas respectivas. O que se ouve é que nem todos são capazes de conduzir ritos,
principalmente aqueles da estação seca, que exigem domínio não apenas da língua, mas
de um corpo de conhecimentos, que inclui os nomes Rikbaktsa de cada participante, e
de aptidões, como sonhar adequadamente. Diz-se que apenas os mais velhos e alguns
homens de meia-idade estariam aptos a fazê-lo. É também verdadeiro, ainda que talvez
por outras razões que se somam hoje ao pouco domínio do Rikbaktsa por parte de
59
alguns indivíduos, que apenas homens experientes e com status elevado – poucos em
relação ao todo – são capazes de encabeçar ritos maiores; serem anfitriões, reunindo em
torno de si uma quantidade considerável de recursos de diversas ordens, inclusive
humanos.
Tentando resumir o mais que posso um quadro um tanto heterogêneo, diria que
os Rikbaktsa são, em sua maioria, bilíngües. Aqueles nascidos durante os primeiros
contatos missionários e que foram alijados de suas aldeias quando ainda crianças (cf.
Capítulo II) não falam a língua nativa – estes são minoria - ou trataram de “reaprendê-
la”, ao retornarem ao convívio das aldeias. Alguns velhos pouco falam e pouco
entendem do português. A maior parte dos jovens, crescida e educada nos arredores do
Posto missionário Barranco Vermelho, que mais tarde tornaría-se aldeia, apesar de
compreenderem perfeitamente a língua Rikbaktsa, evitam nela expressar-se. O mais
preocupante, contudo, é que os filhos destes jovens, de uma maneira geral, não têm sido
socializados na língua materna, principalmente aqueles que vivem em famílias
nucleares, longe de avós e bisavós. Desta forma, seu contato com o idioma nativo é
muito menos constante do que o recomendável. Mesmo assim, pude gravar alguns
cantos, que os tinha gravados com homens mais velhos, entoados por um menino de
seis anos de idade
18
.
Isto me faz considerar que tais “situações” lingüísticas são igualmente
encontradas, com maior ou menor ênfase numérica em cada um destes “grupos”, a
depender da constituição das aldeias. Por esta razão os métodos utilizados foram
heterodoxos. Se inicialmente julgava eu que apenas os mais velhos poderiam trazer-me
informações interessantes, a convivência me fez constatar que a sociocosmologia
Rikbaktsa é algo partilhado por todos. Na educação das crianças, nos modos de
comportar, agir e interpretar, enfim, jamais observei “lapsos de entendimento” no
exercício de sua socialidade. Era notável o arregalar dos olhos das crianças ao ouvirem
falar de sparitsa ou myhyrikoso.
Com relação aos informantes, este campo “tipicamente” obscuro das etnografias
(Clifford 1980:523), a pedagogia marcadamente experiencial Rikbaktsa vai de encontro
a este tipo de figura. Alguns, como eu sabia, estavam acostumados a reproduzir e
elicitar sentenças como uma herança do trabalho com o SIL, mas o regime era
18
Noto que para tal, deixei-o sozinho com o gravador dentro da casa pois, apesar desta criança ser
bastante próxima a mim, ficara envergonhada em cantar na minha frente. Aliás, todas as crianças deste
domicílicio são falantes de Rikbaktsa, como o são seus pais e avós, que pouco fazem uso do português.
60
totalmente diferente do protocolo antropológico. Nos tempos mais recentes, quando
tarefas, como a tradução de textos maiores, eram realizadas, as famílias eram
transferidas para a chácara do SIL em Cuiabá.
Poucas vezes alguém parou a vida para conversar apenas comigo. Confesso que
cheguei até a tentar institucionalizar esta espécie de relação, oferecendo algum tipo de
“troca” ou “pagamento”. Não obtive, com isso, qualquer resultado.
Definitivamente, aqueles que se tornaram por esta via indireta meus melhores
“informantes” eram também aqueles com quem convivia intensamente e com os quais
estreitei laços, através da divisão de tarefas cotidianas e rituais. Tal era o caráter
informal das situações, que o uso do gravador, lamentavelmente, parecia mais
constrangedor do que útil. Os casos de cantos e toques de flauta, em contrapartida,
tinham sua gravação apreciada, e consegui promover algumas sessões para gravá-los.
Após a execução das peças, contudo, o gravador era desligado, de modo que procurava
registrar tudo que conseguia em meu diário de campo
19
, que me acompanhava onde
quer que eu fosse.
Em contrapartida, participava de tudo o quanto podia: idas ao mato com
finalidades múliplas, como coletar, caçar, apanhar lenha; lavar louça (uma das ocasiões
em que mais se aprende com as mulheres da aldeia sobre toda a população); atividades
comunitárias, como capinar, captar recursos de diversas ordens diretamente definidos
como de aproveitamento comunal. Incluo nesta categoria tudo o quanto é necessário
para o preparo de chichas e alimentos respectivos e obrigatórios a estas tarefas, o que
não é pouco, abrangendo também tarefas de ritos; visitas ocasionais e mais longas a
outras aldeias, para citar alguns exemplos significativos.
Minha família nas duas aldeias em que trabalhei mais longamente foi composta
de homens da metade makwaraktsa (arara amarela). Mais especificamente, todos
referiam-me a Geraldino Patamy, um homem mais velho, tido como sábio e notável
artesão. Por quase todo campo morei com ele e suas duas esposas tsikbaktsatsa
20
, na
aldeia Pé-de-Mutum, no médio curso do rio Juruena.
Esta aldeia possuía constituição especial porque nela, contrariando a orientação
uxorilocal, como já comentei, Geraldino vivia cercado por seus filhos casados e
19
São, ao todo, seis diários de campo, totalizando mais de 500 páginas, após a digitação.
20
O tsikbaktsatsa é um clã da metade makwaraktsa e, portanto, Geraldino casara-se em segundas núpcias
com uma mulher e depois com a “irmã” mais nova desta mulher, ambas pertencentes à sua metade, em
um casamento formalmente caracterizado por “endogâmico”.
61
algumas outras famílias proximamente aparentadas. Havia também dois homens da
metade hazobiktsa de quem eu era relativamente próxima.
Quando já estava com minha vida e a pesquisa estabilizadas nesta aldeia, de cuja
Geraldino era figura central, o mesmo resolveu visitar o filho em uma pequenina aldeia
mais distante, no rio Arinos. Apesar de apreensiva com mais esta reformulação
significativa de meus planos, pois agora já conhecia suficientemente bem aquelas
pessoas, suas posições clânicas e histórias, optei por segui-lo e submeter-me ao que
viesse, em um outro lugar de acesso ainda mais complicado e pouco povoado
21
.
Através dos laços de proximidade que Geraldino mantinha com seu sobrinho,
Vicente, fui por ele convidada a sediar-me em uma outra pequena aldeia do Arinos, de
apenas duas casas e sete habitantes, distante da aldeia do filho de Geraldino cerca de
uma hora abaixo do mesmo rio. Nesta aldeia morara um homem recentemente falecido
da metade hazobiktsa e que havia me acompanhado no barco em minha primeria
viagem de campo. Sua viúva, filhos e filhas, ainda solteiros, permaneciam na aldeia,
mas fiquei sediada na casa do sobrinho de Geraldino.
Inicialmente a estadia deveria ser de apenas alguns dias, mas acabou
extendendo-se por um mês, em uma experiência muito rica. Acho que Vicente foi para
mim alguém que mais tenha se aproximado do que chamamos “informante”.
Demonstrou em poucos mas valiosos momentos, fluência com respeito à plumária,
língua Rikbaktsa, ritos, histórias e, notadamente, na ciência das plantas (okyry) e na
taxonomia de animais.
Conviver com uma família recém-saída do luto possibilitou entender ainda
melhor a íntima proximidade que mantém com mortos e obter informações mais
detalhadas sobre os ritos funerários. Um outro ponto interessante era também a
observação de que, independente da densidade populacional das aldeias, seu cotidiano
apresentava, igualmente, traços muito claros da vinculação dupla das relações sociais.
Apesar da proximidade entre as casas e as pessoas, “dons” ou sua abstenção
acompanhavam-se de “comentários” de insatisfação, com situações da referida etiqueta
tsikani zyba em evidência.
21
No curso do rio Arinos eram apenas duas as aldeias. Uma delas, a aldeia Castanhal, com apenas uma
casa, composta pelo filho de Geraldino, sua esposa, filhos solteiros, uma mulher viúva com suas filhas e
alguns visitantes ocasionais. A outra era a aldeia São Vicente, composta por duas casas. Em uma delas
morava o sobrinho de Geraldino, Vicente (FB) e sua esposa (BZ), em um caso de endogamia
disseminadamente comentada. Na outra, a viúva e os filhos de um homem então recentemente falecido da
metade oposta à de Geraldino e seu sobrinho, de quem este era “pai de criação”. Posteriormente, a casa do
homem falecido fora abandonada e todos passaram a morar em uma única e nova casa. Um dos objetivos
da viagem de Geraldino ao Arinos era, inclusive, auxiliar na construção desta nova casa.
62
Além disso, a referência a pessoas de outras aldeias era tão constante e
constituinte das atividades cotidianas que, neste aspecto, os Rikbaktsa pareciam pairar
sobre quaisquer divisões geográfico-espaciais. De onde eu estivesse parecia ser possível
acessar as histórias sobre terceiros. Algumas vezes parecia até ser mais fácil saber de
algo, principalmente se relacionado a experiências com os mortos, vinganças,
“homicídios” e assuntos intrincados como filiação, a partir do ponto de vista de “outros”
do que através das próprias pessoas.
Intermediada, então, pela ligação com estes dois homens makwaraktsa, fui
sempre tratada enquanto uma mulher pertencente a esta metade, com termos de
chamamento e parentesco segundo esta posição e tarefas rituais típicas desta metade,
quando isto cabia. Geraldino disse-me estar pensando em um nome para mim, mas não
cheguei a conhecê-lo ou recebê-lo pelo fato de, como citei anteriormente, não ter
ocorrido a ocasião propícia para a nominação de adultos, ou seja, o fechamento dos ritos
da estação chuvosa.
Nunca fui proibida ou mesmo advertida com relação à minha entrada na casa
dos homens (mykyry). Evitava fazê-lo não por qualquer proibição expressa ou sanção
cabível, mas pelo fato de que mulheres não ficam por lá e, ainda mais, importunando
com perguntas. Isto seria uma ocorrência totalmente extraordinária
22
. Embora não tenha
sofrido represálias, quando estava lá dentro tinha a nítida impressão de que crianças
eram, mais do que o usual, “enviadas” para acompanharem ou chamarem seus pais a
alguma tarefa ou refeição doméstica.
Para permanecer no mykyry escolhia momentos que considerava muito
importantes, solicitando sempre permissão prévia. Optei por episódios como o rito do
gavião-real e a confecção de plumária e cestarias. Jamais me negaram o pedido.
Contudo, seu comportamento diante da minha presença era provavelmente um tanto
22
Não posso esquecer a minha indignação quando, depois de 3 meses de estadia na aldeia Pé-de-Mutum,
fui visitada por meu marido. Aquele espaço restrito “para mim” ou “por mim” no meu desenho de
pesquisa era integralmente ocupado por ele, que passava o dia no mykyry tendo acesso ao que eu julgava,
naquele momento, serem informações das mais valiosas e inacessíveis por outras vias. Transcrevo aqui
trechos do meu diário sobre isto: “Os homens estão no mykyry, simplesmente, cantando todos os cantos
que existem! (...) – na verdade, descobri que só ouviam uma fita. Fiquei louca da vida porque o
Maurício, há pouco mais de um dia na aldeia, estava lá com eles. Senti crises e mais crises, em um misto
de ciúme, desespero e raiva de ser mulher. (...) Maurício me contou que quando me viu hoje na porta do
mykyry assustou-se e, por alguns momentos, pensou no que eu fazia ali!!!” (aldeia Pé-de-Mutum,
11/3/2003). Resgatei definitivamente esta sensação, que vez por outra me
acometia no campo, ao fazer a
etnografia do rito do Gavião-real (Capítulo V). No momento da escritura e da análise pude, então, ter a
certeza da “delícia” de ser etnóloga (mulher), o que certamente terá suas “dores”. Tentei, com isso,
ampliar o meu “campo de visão” dos fenômenos, transitando entre espaços e percebendo sua rica inter-
relação, como procurei fazer no caso da festa do gavião.
63
diferente daquele que eu sabia ou julgava ser o usual, principalmente pelas rotineiras
brincadeiras de cunho “jocoso-sexual” que acontecem entre os homens, não apenas mas
inclusive neste espaço.
Desta forma, meus materiais são compostos por textos coletados diretamente em
português e outros traduzidos com ajuda do próprio informante. Alguns textos e
conversas eram ainda elicitados e traduzidos com o auxílio de terceiros, embora não
exatamente se configurassem enquanto “tradutores”. A língua Rikbaktsa é de
aprendizado difícil, notadamente no que concerne à sua morfologia verbal, composta
por muitos afixos que aglutinam-se às raízes verbais e variam de acordo com situações
diversas em relação à transitividade, tempo, gênero, número, marcas de “sujeito” ou
“objeto”
23
. Isto acentua-se ainda na medida em que ouve-se muito português na aldeia,
principalmente entre os mais jovens e crianças e, desta forma, a comunicação não é
ideal mas viável.
Um conhecimento “formal” da língua facilitou-me, tanto quanto possível, a
realização de análises instrumentais de conceitos-chave da sociocosmologia Rikbaktsa,
apesar do exíguo tempo para um aprendizado substancial de seu idioma. Gostaria de
enfatizar, contudo, que este trabalho tentou incluir todo tipo de material ao qual tive
acesso. Seria extremamente empobrecedor, por outro lado, se me limitasse aos dados do
idioma nativo, produzido por um certo grupo de pessoas, quando o que me preocupava
eram as dinâmicas vivas da socialidade Rikbaktsa. Isto que muitos podem conceber
enquanto precariedade procurei verter em virtude, nem sempre com o sucesso desejado.
ESTRUTURANDO
Esta tese encontra-se subdividida em cinco capítulos, todos eles entrelaçados e
que, de certa maneira, representam aspectos diversos de uma mesma questão: a
importância fundamental de mortos e outros seres metafísicos para a produção do corpo,
das relações e organização sociais que constituem o socius Rikbaktsa.
O Capítulo I “PREÂMBULO SOBRE SER OU NÃO SER GENTE” é uma espécie de
introdução sobre o sentido Rikbaktsa de humanidade e de alguns critérios de
classificação de seres e coisas em sua sociocosmologia, que serão também o
23
O lingüista Denny Moore (comunicação pessoal), do Museu Emílio Goeldi - que tentou sem sucesso
que uma aluna fizesse pesquisas entre os Rikbaktsa - disse-me que, segundo as análises feitas pelo SIL, o
idioma apresentaria palavras surpreendemente longas e anômalas para o tronco Macro-Jê, composto
predominantemente por línguas isolantes (cf. Moore 2002).
64
background desta tese. Tento introduzir o sentido das distinções e das posições de
alteridade que conduzem a esta classificação e que tornam possível o mundo Rikbaktsa
tal como o descrevo.
Esforço-me por entender e instrumentalizar, neste primeiro momento, alguns
conceitos que estarão em jogo no encontro com seringueiros, padres, índios e tantos
outros “agentes” com os quais os contatos se tornariam cada vez mais intensos a partir
da década de 60, objeto mais sistemático do Capítulo II “PROXIMIDADES, DISTÂNCIAS
VIRTUAIS E O TEMPO”.
A conexão entre estes dois capítulos é evidente. Tratando-se de uma população
pouco estudada, julguei que não havia como partir para qualquer análise etno-histórica
se a ela não fossem antepostas algumas idéias que marcariam uma possível
compreensão das condutas respectivas ao contexto dos contatos entre os Rikbaktsa e
outras populações. Dentro deste esforço, destaco particularmente as noções Rikbaktsa
de feitiço, sua origem e veículos usuais e terapêuticas adequadas como fundamentais a
uma possível compreensão, adesão ou rejeição a certos agentes e práticas do contato.
Procurei fazer algo semelhante com a noção nativa de “criação” em seu “encontro” com
a busca jesuítica por crianças, o que veio a desnaturalizar o espaço da “orfandade” e
permitiu explorar novos sentidos para esta prática tratada muitas vezes com ares de
automação ou razão prática. Tais análises autorizam ou desautorizam determinadas
versões e nexos históricos ao mesmo tempo em que apontam para possibilidades
diferentes de explicação do estado atual da sociologia Rikbaktsa, através do
multilateralismo e dialogismo das “fontes”.
No Capítulo III “MORTOS, CORPOS E SOCIUSaprofundo a noção apresentada
na Introdução e no Capítulo I de que o mundo Rikbaktsa vive sobre o cunho da
possibilidade constante de interações que não terão um sentido único, podendo ser tanto
produtivas, quanto destrutivas. Neste caminho, descrevo as idéias relacionadas à morte,
aos aspectos dos mortos e a certas nuances dos protocolos funerários e do xamanismo
que serão caros à sua dinâmica social. Postos os “agentes”, analiso o caráter processual
e vulnerável dos empreendimentos de construção/destruição corporal, destacando seu
aspecto cotidiano e sugerindo a idéia de “risco corporal” como algo indissociável da
própria existência da pessoa no socius.
Nesta instabilidade de corpos como de posições de alteridade, tento imergir em
alguns aspectos peculiares da “sociologia” Rikbaktsa conforme acredito serem eles
profundamente comprometidos com estas idéias, tema do Capítulo IV “DISPUTANDO
65
CORPOS, CONSTRUINDO O PERTENCIMENTO”. Procuro abordar um dado aspecto da
“fabricação” constante de pessoas, de seu pertencimento a grupos sociais de
caracterização e constituição dinâmica.
Há concepções “oficializadas” sobre “metades”, sobre a responsabilidade da
produção de corpos e preferências matrimoniais. Compõem um inventário de idéias,
vocabulários e temas, uma espécie de “tabuleiro” onde se conformam e se lançam, com
igual força, concepções concorrentes, no duplo sentido que este adjetivo pode ter. Isto
porque nem sempre estas concepções opõem-se propriamente, mas podem, entre si,
manipularem-se e serem cooptadas, adicionando-se. As discussões sobre a paternidade
dos indivíduos, em um sistema social composto por metades exogâmicas patrilineares,
junta-se à intervenção das mulheres no que diz respeito ao controle cultural de produção
de pessoas, subvertendo e revertendo o caráter e a direção daquela “fabricação”, dentro
da própria patrilinearidade.
Finalmente, no Capítulo V “ARRISCANDO CORPOS”, procuro concluir através de
uma etnografia do rito do “Gavião-real” e das múltiplas perspectivas que entrelaçam-se
neste evento. A idéia é que tenha, então, conseguido juntar tudo aquilo do que venho
falando desde a “INTRODUÇÃO” desta tese. É a possibilidade de vermos, em plena ação,
a sociocosmologia Rikbaktsa e a ritualizada e dinâmica produção cotidiana da vida e de
sua socialidade, tidas como condição e resultado deste rito, mas não apenas dele. O rito
do Gavião-real é, na verdade, um modo de demonstrar que ali como no dia-a-dia, ao
mesmo tempo em que relações são produzidas, enfatizadas ou desfeitas entre os homens
e entre estes e outros tipos de seres, produz-se também a “vida” e os próprios “corpos”.
Mais ainda, que o “risco” e a incerteza que dele deriva é, necessariamente, uma
dimensão inseparável desta produção.
A “C
ONCLUSÃO: O QUASE ETERNO RETORNO DO MYHYRIKOSO é a de que as
proximidades cosmo-ontológicas não-identitárias e a decorrente possibilidade constante
de interações entre seres diversos, incluindo aqui “vivos”, “mortos” e “coisas”,
compõem o “risco” aos corpos e, simultaneamente, geram, reproduzem e alteram o
socius Rikbaktsa. Esta condição Rikbaktsa do “estar no mundo” inviabiliza, igualmente,
a cristalização permanente da lealdade ou inimizade entre pessoas nos moldes de grupos
sociais específicos, como clãs e metades, de conteúdo e caráter sempre mutável,
negociável e discutível a partir de algum ponto de vista do sistema social. O resultado é
um “interior” repleto de diferenciação como de hábeis transações ativas entre os
66
indivíduos, um procedimento que em muito se aproxima daquele adotado entre os
Rikbaktsa e os demais seres do cosmos.
A sociologia como a cosmologia Rikbaktsa, desta forma, estão definitivamente
inter-relacionadas e submetidas ao sabor de uma experiência social rica em eventos
capazes de conduzir a alterações sobre o estatuto dos seres e das coisas. A dinâmica de
formação e fissão de grupos, aldeias e sua distribuição territorial é apenas uma das
contundentes expressões desta lógica que estende-se à construção arriscada dos corpos e
à instabilidade das relações sociais.
Contudo, se a etnografia tanto quanto a sociologia e cosmologia Rikbaktsa
parecem não ter senão provisoriamente um centro a partir do qual podemos descrevê-las
em sua recursividade quase infinita, sua socialidade não é por isso nem menos
“consistente” ou menos “efetiva”, abrindo um caminho para refletirmos acerca de uma
possível teoria sobre a socialidade ameríndia.
CAPÍTULO I
PREÂMBULO SOBRE SEROU NÃO-SERGENTE
I suspect that Rikbakca believe in the possibility of procreation
between the members of at least some different species. (…)
Rikbakca discern a universe of social beings of which their own
society is a part, tied to other parts by largely forgotten history.
(Hahn 1976:112)
Quando dicha juventud cuenta leyendas, habla de Kamo y el
Kamo vuela, nada, desaparece bajo tierra sin que se especifique
necessariamente si es de pronto pájaro, pez o difunto. (...) Esta es
una manera de ver que no resulta posible para nosotros en virtud
de nuestro concepto de hombre, pero que llega a serlo a través de
una más amplia representación de lo humano.” (Leenhardt
1961:39)
Isso é normal. Pois não há uma única maneira de um corpo
existir no mundo.” (Latour 2004c:407)
SOBRE PERSPECTIVAS, INIMIGOS E DÚVIDAS
Os Rikbaktsa foram chamados de “orelhas de pau”, devido aos grandes discos
auriculares masculinos (spioke), feitos em madeira, e também por “Canoeiros”
24
,
conforme denominação dos seringueiros que adentravam as terras da região dos rios
Arinos, Sangue e Juruena, de modo mais sistemático a partir de 1942. O termo
Rikbaktsa - onde rik = gente, bak = reiterativo/completamente, tsa = plural/masculino -,
reafirmado pelos diversos agentes de contato há algumas décadas e no qual se
reconhecem, tem uso preferencial
25
entre estes índios, e é aquele que aqui adoto
regularmente
26
.
24
Os Rikbaktsa não possuíam originalmente canoas maciças, habitando cabeceiras de rios e andando
pelos matos. Contudo, eram freqüentemente vistos pelos seringueiros e colonos atravessando os rios e
córregos em canoas de casca (-tsaraha), onde chamava a atenção o fato de, diferentemente dos regionais,
puxarem-na pela proa.
25
Adotam os termos “canoeiros” ou “rikbaktsa”, mas dizem que isto é mais usado quando se está fora da
aldeia. Lá dentro são maku (homem) e wytyk (mulher).
26
A grafia, segundo as convenções da Associação Brasileira de Antropologia (1953), é Rikbaktsá
(Rodrigues 1986:133). Suprimo o “acento” que não corresponde a qualquer regra mais abstrata da língua
ou realização fonética dos falantes. Também pouco me utilizo das flexões de gênero/número Rikbak
tatsa (fem. sing.), -za (fem/pl.) e –ta (masc., sing.), por julgar que tal coisa apenas dificultaria a leitura do
68
Somando cerca de 1.000 indivíduos, distribuem-se em 32 aldeias, localizadas em
três TI
27
dispostas ao longo de três municípios do estado de Mato Grosso, a saber,
Brasnorte, Juara e Cotriguaçu. A maioria das aldeias concentra-se à margem direita do
rio Juruena, com a dispersão das demais pelos rios do Sangue, Arinos e margem
esquerda do Juruena, na TI. Escondido.
Apesar de não ser exatamente uma auto-denominação, a história das relações
interétnicas contribuiria em grande parte para que o termo fosse capaz de designá-los
enquanto um grupo discreto. Se desta forma os Rikbaktsa diferenciam-se de outros
índios e dos brancos, não é suficiente mencionar que, como já alertava Marcel Mauss
em sua instrutiva “introdução à etnografia” (Mauss 1971 [1947]:31) e têm-se
demonstrado ser também o caso das sociedades indígenas sul-americanas (Viveiros de
Castro 2002b:371-2), o etnônimo Rikbaktsa corresponde à designação de “humanos”,
“gente mesmo”
28
.
As dificuldades em entender, para além da semântica, a extensão e aplicação do
classificador “gente mesmo” entre os Rikbaktsa, nos dizem, já na partida, que a relação
entre as pessoas e seres que compõem seu mundo é bastante peculiar. Uma forma
sofisticada de capturar o que é “humano”, que não se constrói em contraste com a sua
negação.
Uma decorrência importante disto que aqui prenuncio, mas que espero poder
consolidar etnograficamente no decorrer desta tese, é que a classificação de “humanos”
não serve a possíveis distinções entre seres e domínios, sendo incapaz de traduzi-las
adequadamente. Menos ainda aplica-se, em momento algum, a alguma distinção
texto, utilizando o termo genérico no plural Rikbaktsa.
27
A primeira área legalmente atribuída aos Rikbaktsa foi a Reserva Erikpatsa, localizada entre os rios
Juruena e do Sangue, demarcada e homologada pela FUNAI em 1968. Foi, em grande parte, resultado de
um esforço dos missionários jesuítas para concentrá-los em um único porém reduzido território,
facilitando o acesso para a assistência, segundo o critério da proximidade ao Internato de Utiariti. Desta
forma, buscam “transferir” os Rikbaktsa de outras micro-regiões pelas quais espalhavam-se ao longo dos
rios Juruena, Arinos e Aripuanã, cobertas, em parte, pelas atuais TI Escondido e Japuíra, processo
concluído no ano de 1973. A TI Japuíra, contígua à Erikpatsa, localiza-se entre os rios Juruena e Arinos, e
demandou um conflituoso processo de luta, contado hoje como uma “saga” pelos Rikbaktsa. A TI
Escondido, a única à margem esquerda do Juruena e ainda ao extremo noroeste do estado de Mato
Grosso, foi demarcada em 1998. Esta TI sofreu, no ano de 2003, um processo por parte da Cotriguaçu
Colonizadora S/A, contestando o fato irrefutável da ocupação atual e “imemorial” da terra pelos
Rikbaktsa, provavelmente com fins indenizatórios.
28
Ouvi algumas vezes os termos Rikbak-ta e Rikbak-tatsa quando tratavam de algum indivíduo em
particular e, notadamente, nas cédulas de identidade expedidas pela FUNAI. Como explico na nota
anterior, aqueles termos distinguem o gênero do indivíduo. Também acuso o termo para feminino plural
rikbakza ou, o que é mais comum, rikbak-kykyry, sendo kykyry “mulherada”, termo muito usado no
cotidiano.
69
absoluta, onde seres tais serão entrecortados e alocados inequivocamente em posições
de humanidade/sujeito/predador e não-humanidade/objeto/presa.
Tem sido admitido para os ameríndios que onde há “ponto de vista” há também
“sujeito” (Viveiros de Castro 2002b:373). Esta associação consolida-se na mesma
medida em que amplia-se o conhecimento etnográfico da região. Seu significado e
alcance, contudo, admite distinções etnográficas importantes que não invalidam o
atributo perspectivo das cosmologias ameríndias, mas o investigam à fundo em sua
especificidade.
As etnografias têm posto em relevo o caráter relacional e reversível de qualquer
par de “posições” que possa ser traduzido enquanto uma relação entre “sujeito” e
“objeto” (cf. Lima 1996:40;Vilaça 1998:43). Em algum momento, contudo, será
indispensável que algo se cristalize e, nesta relação, alguém deve, necessariamente,
admitir ou lhe ter imputada a condição de “objeto”. Esta condição viria ainda a
significar, em algumas etnografias, a “não-humanidade” (Vilaça 1998:60). Em uma
relação perspectiva, de alteridade, a “humanidade” é atributo que se nega ao “outro” na
mesma medida em que se o afirma para aquele que alega e detém “ponto de vista”.
À luz da cosmologia Juruna, Lima (1999) propõe uma maior diferenciação entre
os pólos da “humanidade” e da “não–humanidade”. Complexifica a noção de hierarquia
envolvida neste tipo de operação, admitindo, entretanto, que tal noção é fundante, uma
espécie de condição ao perspectivismo. Desta forma, ainda segundo Lima, a perspectiva
incorre na hierarquia, uma vez que “o ponto de vista da definição da alteridade
pertence aos próprios termos” (idem:49), mas ela não pode ser dada “a priori (id.:ib.).
Apesar de necessária, a assimetria é “reversível” e, por princípio, qualquer (tipo de) ser
é capaz de “impor seu ponto de vista a outrem” (idem: 48).
Indico desde já que, para os Rikbaktsa, em sua experiência cotidiana e até
xamânica, o “ponto de vista” não é algo a se “afirmar” a partir de uma posição ou de um
corpo. É, antes disso, algo a se arriscar e a se alterar a partir de posições hesitantes e
corpos heterogêneos porque inacabados por princípio e jamais idênticos por
experiência. Há uma diferença irredutível interna às categorias ou domínios, como
“vivos” ou “humanos”, que em outros exemplos etnográficos é tratada como passível de
extinção ou pelo menos apagamento em alguns contextos, notavelmente naqueles
relacionados à socialidade cotidiana (Vilaça 1998).
Entre os Wari’, então, enquanto em alguns momentos a diferença entre afins e
consangüineos é marcada e até determinante, como no canibalismo funerário, em outros
70
é possível que ela restitua-se em corpos “idênticos” (idem:37), porque partilham de uma
mesma visão sobre o mundo e si mesmos: vêem-se todos irremediavelmente como
humanos” (id.:ib.) e portanto “predadores” (idem:56). Por esta razão, se a sociedade
Wari’ sustentava diferentes perspectivas durante o citado rito funerário – entre
“mortos”, “aqueles que comem” e “aqueles que choram” -, após sua passagem poderá
recompor-se enquanto “todo indiferenciado” (id.:ib.).
Neste sentido, apesar de indubitavelmente desejável (Viveiros de Castro
2002b:378), é sobretudo difícil manter as perspectivas irremediavelmente separadas no
cosmos Rikbaktsa. Não é possível articulá-las de modo a que constituam “blocos” ou
“domínios” absolutamente homogêneos.
Pensar na subjetividade como qualidade “(multi)natural” (idem:379) no contexto
ameríndio praticamente impõe-se como exigência à possibilidade de construção de
qualquer etnografia dos povos desta região. Isto posto, um passo que me parece
importante é que através de experiências etnográficas particulares possamos diferenciar
cada vez mais os usos da noção de “subjetividade”, preenchê-la de delicados matizes.
Isto inclui a possibilidade de que, em uma relação, o fato de alguém ou alguma
coisa proclamar ou intentar ter “subjetividade” nem sempre venha a objetificar efetiva
ou alegoricamente o outro termo. Ainda que esta “objetificação” seja um movimento
momentâneo ou que, um tanto paradoxalmente, este seja o único meio de reconhecer ao
“objeto” que em algum lugar ou outra dimensão não-aparente, ambos são “sujeitos” à
sua moda, porque capazes de um ponto de vista sobre o mundo.
Como veremos ao longo desta tese, a instabilidade ontológica Rikbaktsa faz com
que posições e submissões nos mais variados campos, que vão do contato entre “vivos”
e “mortos” à caça e às relações de gênero, tenham sempre sua porção enganosa ou de
imprecisão. O “sujeito” parece sempre ser menos do que um “sujeito” deveria ser,
enquanto o “objeto” sempre mais do que aquilo que sua passividade semanticamente
constitutiva nos faria supor. Uma posição encontra-se sempre no devir de tornar-se a
outra. E aqueles que são os maiores interessados neste mecanismo - que pelo menos nos
Rikbaktsa se confunde com uma intrincada política que torna o socius possível -
parecem bem saber disso.
Não apenas o xamã é capaz de transitar por diferentes perspectivas
29
(Vilaça
1998:13,14,17); Viveiros de Castro 2002b:358, Sáez 2004:231, 241), tradutor,
29
Lagrou destaca a ampliação cada vez maior desta idéia, destacando que a “capacidade de mudar de
percepção” tem se demonstrado enquanto um atributo da própria ontologia das sociedades ameríndias
71
imperfeito mas insistente, entre mundos (Carneiro da Cunha 1998:11). Talvez apenas
ele possa fazê-lo voluntariamente sem que lhe sejam fatais os prejuízos sobre o corpo.
Mas, certamente, também ele não estará completamente à salvo. A capacidade “de
perspectivar a si mesmos”, que entre os Juruna distingue os “vivos” dos “mortos” (Lima
1999:50), entre os Rikbaktsa é um atributo perseguido por e que pode ou não ser
“adquirido” ou “manifesto” pelas mais variadas categorias de seres. Examinando as
experiências cotidianas do “vivos” em termos “estatísticos” poderia dizer ainda que,
neste ponto, os “mortos” têm levado considerável vantagem sobre os “vivos”.
A noção ou possibilidade de haver o “ponto de vista” do todo (idem:49) existe
entre os Rikbaktsa e corresponde, para os vivos, à maestria em manter a própria vida.
Se, a tempo, consegue-se compreender que uma ave que vive nas copas de árvores não
poderá aparecer saltitando no chão, se sabe-se identificar os prenúncios de um encontro
com os “mortos”, se vê-se “primeiro” a “assombração” de um morto, se um caçador
nota prematuramente o emagrecimento de sua “presa” até então, se vai-se à aldeia dos
mortos e consegue-se retornar, será possível, quem sabe, evitar a “doença” e a “morte”.
Ou seja, fugir às formas reconhecidas de predação dos “mortos” sobre os “vivos”;
formas estas que, como veremos, não lhes são privativas.
Entretanto, é preciso acrescentar que esta forma totalizada de ver o mundo não
equivale a uma modalidade “absoluta” (idem:50). Em primeiro lugar porque, como
disse, ela não pertence a ou caracteriza privativamente nenhum ser ou domínio. Depois,
o que tem total relação com a plausibilidade desta sua disseminação, este é um atributo
essencialmente cambiante e arriscável. Este intenso trânsito ou sua franca possibilidade,
caracteriza todos os graus e posições de alteridade entre os Rikbaktsa.
Os Cinta Larga, Iranxe e Menky, etnias mais recentes em sua memória de
inimizades, são, no dizer Rikbaktsa, watsõro-wy-tsa (atacar-nom-pl), palavra que mais
se aproxima daquilo a que chamamos “inimigos” e que tem como base o verbo
composto na-watsõro, “ir atacar”. O “inimigo” é, na verdade, aquele ao qual se vai
atacar, guerrear, o “atacado”.
Estes ditos “inimigos” e também outros índios com os quais têm atualmente
relações relativamente pacíficas, como os Kayabi, Enawenê-Nawê, Nambikwara e mais
as novas etnias que chegam a seu conhecimento, entretanto, dividem com os próprios
Rikbaktsa a classificação de wahorotsa (sendo wahoro – casa; tsa – pluralizador), algo
(Lagrou 1998:28).
72
como “aqueles que moram em casa (de um certo tipo)”. Wahoro é ainda o conceito
nativo mais próximo de “grupo” ou “aldeia”. Não há, na língua Rikbaktsa, outro termo
que melhor expresse esta idéia (ver também Hahn 1976:76)
30
.
Se, por um lado, os “inimigos” são entidades opositivas, por outro, partilhariam
com os Rikbaktsa e com outros índios, em um universo mais amplo, a característica de
wahorotsa. Mas as proximidades não param por aí.
Em um passado ancestral, referem-se ao que seriam diversos grupos de “gentes”
com os quais guerreavam, caracterizando-as, para além da categoria wahorotsa,
enquanto grupos que tinham nomes de animais e seres do tempo presente. Estes grupos,
entre outros atributos humanos, possuíam flechas, discos auriculares e também alguns
dos artefatos plumários que hoje seriam feitos exclusivamente pelos Rikbaktsa. Outro
traço bastante comum é que falassem a mesma língua. Muitos povos diferentes são ou
foram rikbaktsa em um determinado momento do tempo
31
.
Há tempos, segundo dizem, os inúmeros e relativamente pequenos grupos
Rikbaktsa andavam muito pelo mato. No período da seca, como acontece hoje,
intensificavam-se as andanças e excursões em busca de recursos de diversas ordens, de
taquaras para fabricação de ponta de flechas a “inimigos”.
Ficavam muito quietos, prestando atenção, na busca intencional a outros grupos
de “gente” para atacarem. Quando encontravam, retornavam e reuniam-se com os
demais grupos Rikbaktsa, com os quais traçavam estratégias de ataque.
Assim, havia a gente hozipyryktsa “os veados”, que eram iguais a veados, mas
que, em sua fala dirigida a mim, “é gente mesmo, não é bicho” (Geraldino Patamy).
Havia a gente tsikbaktsatsa, “os arara vermelha”, que segundo contam, falavam outra
língua e foram os inventores da myhara, a grinalda com cobre-nuca que hoje é também
a peça mais elaborada da sofisticada plumária Rikbaktsa. E daí por diante. Não é rara a
idéia de que muitos outros artefatos plumários caracteristicamente Rikbaktsa tenham
30
Atualmente os grupos locais são normalmente denominados na língua portuguesa, obedecendo a lógicas
variadas, que vão desde o nome de alguma árvore que considerem importante ao nome próprio de algum
de seus residentes. Já durante os primeiros registros de localização e denominação dos múltiplos sub-
grupos Rikbaktsa, estes traduziam-se, na verdade, pelo nome de homens considerados como referenciais e
na pessoa de quem cada respectivo aldeamento intermediava o contato com os brancos. Este modo de
conceituar grupos locais foi rapidamente identificado à idéia de “turmas”, francamente empregada no
vocabulário da época (cf. Dornstauder 1975). Desta forma, as aldeias eram designadas por nomes
próprios, por exemplo, as “turmas” de Mapazazi , de Aikoé, de Matsi, de Zapemy e etc, identificadas a
locais de moradia determinados.
31
Hahn diz claramente aquilo que acredito ser um traço evidente da classificação de povos e seres do
mundo, tanto da história quanto da atualidade rikbaktsa:Some Rikbakca classify many foreign peoples as
“rikbakca
” or as “originally rikbakca (...).” (Hahn 1976:11) (grifo do autor).
73
seu aprendizado e produção realizados a partir de pilhagens feitas a estes outros povos
que habitavam a mata e com os quais encontravam e guerreavam mais sistematicamente
durante os deslocamentos da estação seca.
Schultz (1964:216), que fica quatro meses entre os recém-contatados Rikbaktsa,
em 1962, glosa a palavra barikatsa como “inimigo” ou “índio hostil”. Depreende este
significado a partir do que lhe contara Mapazazi, um de seus informantes, que disse ter
tirado seu enfeite de penas de um índio barikatsa em sua última expedição para pegar
taquaras
32
. A semelhança entre a história do informante de Schultz e aquelas que ouvi
sobre as andanças e “aquisições” de artefatos plumários apontam para o fato de que
Barikatsa seria provalvelmente o etnônimo de um outro povo – provavelmente os
Tapayúna (Hahn 1976:30)
33
- e não uma palavra que significasse exatamente “inimigo”.
Na categorização de wahorotsa incluem, desta maneira, os povos contra os quais
guerreavam – todos eles, de uma forma ou outra, “gente”. Ao mesmo tempo, aqueles
tomados por “brancos”, que é como referem-se a nós em português, são
inequivocamente excluídos daquela designação.
Não que os brancos, evidentemente, não pudessem ser “atacáveis” ou associados
a “inimigos” dos Rikbaktsa em algum momento da história. Inicialmente, contudo,
permaneceram à parte de qualquer associação a categorias conceituais de seu universo.
Relatos da época da pacificação dão conta de que os Rikbaktsa chamavam os brancos
por um termo da própria língua portuguesa, “seringueiros” (Tolksdorf
1996[1960]:162)
34
.
Brancos surgem nos relatos quando, nestas andanças da estação seca,
procuravam por facões, o que, por outro lado, não deixaria de identificá-los aos outros
tipos de gente a partir dos quais pilhavam algum tipo de recurso. Vicente Bitsezyk conta
que os filhos de seu –zopo (homem de metade oposta
35
) começaram a treinar guerra.
Foram em uma expedição procurar facão. Ficaram duas semanas ou um mês e aí
32
Tolksdorf menciona também a designação Baricaca., mas não especifica se este é um modo dos
Rikbaktsa chamarem quaisquer outros índios ou a designação de alguma etnia (Tolksdorf
1996[1962]:192, 193).
33
Segundo Hahn, os Barikaca, seriam os "Beiço-de-Pau", também conhecidos por Sisakmahwakca (Hahn
1976:30), na minha compreensão, Si-saki-maфwy-tsa, 3pl-boca-madeira usada pelos Rikbaktsa para fazer
disco auricular – pl. Não confirmo este fato e desconfio ligeiramente da construção gramatical que,
diferentemente do Português, deveria ser mais provavelmente Si-maфwy-saki-tsa. O próprio Hahn (idem)
dá conta de que missionários apresentaram ou mencionaram para os Rikbaktsa outras etnias, segundo suas
próprias impressões, gerando alguns etnônimos, como aconteceu aos Nambikwara, chamados de
wytykboborotsa, algo como “gente que come de terra”.
34
As exceções desta designação seriam apenas o padre Dornstauder e Tolksdorf, ambos figuras centrais
no contatos pacíficos com os Rikbaktsa.
35
Estes termos e classificações serão abordados no Capítulo IV.
74
encontram um grande peixe (zoazoata), acha que talvez fosse peixe-boi (pediu que eu o
descrevesse). Seu -zopo disse aos filhos que não flechassem este bicho, mas eles não
obedeceram. Muzuza(cf. Introdução): o bicho não morreu e levou a flecha. Depois de
seis meses não acharam nada. Nem branco, nem facão. Vicente Bitsezyk era o mais
novo quando lhe contaram sobre esta viagem, da qual não participou.
Depois foram em outra excursão e mataram um peixe grande que tinha uma
pintura preta no olho”. Seu –zopo flechou-o com lança bem na guelrra. Quando tentou
suspender viu que era muito grande. Não conseguiu. Colocou cipó na guelrra e o
arrastou para o seco. Todos comeram e ainda sobrou. Não lembra o nome deste peixe.
Só lembra que era da largura de um tonel de gasolina. Trouxeram ele no xiri
36
. Estavam
há três dias sem comer. Cozinharam o peixe e só tinha gordura. Sua costela é como de
porco.
Quando saíam para estas excursões, que eram também de “guerra” diziam assim:
- Tupa-kta t - (vamos-imp. exort.) – “Vamos então!”
- Uta tsihi! – (1sg masc ir) “Eu vou junto!”
- Uta tsihi nawatsõro! “Eu vou junto para ir atacar!”
Não matavam muitos de uma só vez. Matavam três e voltavam para casa. Depois
de um mês queriam voltar de novo. Iam sogros, genros e companheiros de caça
(tserebaha). Assim mesmo iam para a guerra, com seus “companheiros”. Não precisava
ir muita gente, podiam ser em quatro pessoas. Se era para passar mais tempo iam doze
ou mais. A mulherada ficava na casa com os rapazes novos. Se os rapazes tinham
interesse em aprender, iam junto. Nestas expedições mais longas é que matavam mais
pessoas. O pessoal do rio do Sangue quase acabou com os Iranxe. “Se não fosse o padre
João tinham acabado com todos”, diz Vicente Bitsezyk (cf. Capítulo II).
Isto acontecia na época da seca. Na época da chuva não gostam de andar. Mas
na seca gostam de “fazer guerra” (si-nawatsõrony sakparawy!). Primeiro, eles não
queriam brigar, mas os Cinta Larga quiseram ... “então tá, vamos matar e morrer”, me
diz Vicente. Depois, quase foram exterminados por eles, completa.
36
Recipientes feitos de palha de inajá (tsawara pa), chamados tonihĩ ou peryk, mas normalmente
referidos como “xire”. Talvez esta designação venha de outra língua das muitas com as quais tiveram
contato no Posto/aldeia Barranco Vermelho e no internato de Utiariti (cf. Capítulo II), como aconteceu
para o termo “zamata” (myspi), “tipóia de carregar criança”, que é um termo da língua Pareci.
75
Os Cinta Larga permanecem na memória das diversas gerações como os
inimigos por excelência. Xamãs eram, ainda, auxiliares privilegiados nestes ataques.
Podiam colocar seus sonhos a favor dos Rikbaktsa e com eles prever ou produzir efeitos
sobre inimigos. Vicente Bitsezyk descreve um evento que resulta em uma explicação
que bem caracteriza Rikbaktsa e inimigos, suas possíveis distâncias e proximidades e
que aponta ainda a historização desta categoria.
Em uma pequena aldeia havia um velho que gostava de sonhar. Sonhara que os
Cinta Larga viriam daí três dias e acabariam com eles. “Sonhava bem, sonhava
clarinho, como nós aqui conversando, e estava certo” (Vicente Bitysezyk).
Os Cinta Larga se afastaram da estrada e pediram para que as crianças ficassem
quietas. Eram uns vinte Cinta Larga com suas famílias, inclusive mulheres. O sonhador
Rikbaktsa os deteve pelo sonho. “Mandou-os” parar embaixo de uma figueira grande. E
assim fizeram. Ficaram embaixo da figueira arrumando suas flechas.
Isto aconteceu enquanto o homem sonhava às cinco da tarde. Ele acordou e disse
que os Cinta Larga estavam chegando. Estavam há um dia da aldeia Rikbaktsa. Então
ele dormiu de novo. Às onze horas da noite, mandou o vento (zopoktsa), ou o “tempo”,
como gostam de dizer. Itsotyta era o nome deste xamã
37
. Ele mandou o vento e também
que dormissem muito pesado, embaixo da figueira. Meia-noite o vento veio derrubando
paus até chegar nos Cinta Larga. Por fim, derrubou a figueira que, caindo em cima
deles, matou a todos. Apenas um sobreviveu, mas estava todo quebrado e muito
machucado.
O xamã Rikbaktsa então acordou e falou para a “turma” ficar tranquila, porque
não havia mais perigo. Mandou que fossem até a figueira. Avisou que havia um
machucado. Foram ver. “Parecia derrubada de roça”. A figueira também tinha caído.
Tiraram o Cinta Larga machucado, balançando o braço, acabaram de matar. Não
acharam mais ninguém, estavam todos “estufando”.
Agora os Canoeiros podiam crescer. Não tinha mais inimigo ... os Canoeiros
cresceram... acabou com o Iraque”, diz Vicente Bitsezyk, rindo. Salvador Tsetsemy
um homem Rikbaktsa mais maduro - também sonhou de guerra com branco. “Quando a
gente sonha bonito, tem que cuidar muito, para defender o pessoal. Hoje não tem bom
não (refere-se aos xamãs). Estudam mais erva do mato”.
37
Reparo na associação entre o nome pagé (Itsotyta) e sonho (-tsotyspyky/ onde spyky “por enquanto”),
embora não tenha chegado a um maior esclarecimento.
76
Depois que “cresceram”, “os Canoeiros começaram a matar os próprios
parentes. Aí o pagé vai e diz que não pode matar... Agora o Cinta Larga diz que gosta
de Canoeiro (...) Os Cinta Larga matavam muita mulherada no mato, quando iam
rachar lenha. Tinham raiva, matavam. Depois (e só depois disso, na versão Rikbaktsa)
os Canoeiros criaram raiva deles. Matavam eles também. Imitavam jacamim, tucano,
macuco, coruja, mutum, para que os Canoeiros fossem até lá caçar e então, matá-los.
(não esquece das histórias). Não dá para ficar amigo. Batu harereziuwy! (neg. amigo)”.
Com branco, brigavam só porque queriam facão, mas depois “amansaram”.
De modo algum destaco aqui que a classificação Rikbaktsa de “inimigo” só
tenha sentido dentro do universo dos wahorotsa. A idéia, contudo, é a de que este é seu
ambiente, digamos, “típico”. Em contrapartida, a qualidade de “humanidade” não
parece ser pensada pelos Rikbaktsa como uma prerrogativa exclusivamente sua em seu
mundo de conflitos, embates e inimizades.
Na verdade, a “humanidade” em si mesma, sua posse ou negação não é um
grande diferencial no conjunto de interações às quais submetem-se. Qualquer ser ou
coisa pode “ter”, “ser” ou tão somente "lograr ser" humano. Aqui não é ela o atributo
disputado em uma relação de dois pólos, na qual aquele que é, ainda que
provisoriamente, contemplado relega ao perdedor uma necessária objetificação (Vilaça
1992:51).
Aquilo que se come ou se caça não tem exatamente um status definido e
raramente chega a perder completamente sua agência (cf. Capítulo V). Confesso que
procurei distinções etnograficamente significativas entre os atributos de "humanidade",
"agência", "intencionalidade" e "subjetividade" (cf. Souza 2003:15) e suas possíveis
relações com uma dada perspectiva de ver as coisas e o mundo. Entretanto, não poderia
fazê-lo sem que à sistematicidade didática da minha categorização se interpusessem
protestos etnográficos.
Não por identidade (Vilaça 1998:56) mas por algum aspecto partilhado, em
diversos momentos que não a morte ou a prática do xamanismo, seres entre os quais há
distinções podem compartir uma mesma visão de mundo. Esta condição os impede de
aventarem para si a exclusividade do atributo de humanidade. Desta forma, a existência
de “presa” ou “predação” não incorre necessariamente na não-humanidade. Não que
inexistam diferenças e gradações. Muito pelo contrário. A diferença e a alteridade são
algo tão marcado entre os Rikbaktsa e outros seres quanto o são entre os próprios
77
Rikbaktsa. Isto faz com que estas diferenças não se prestem enquanto “matéria” da
noção de humanidade ou de sua contra-noção, a não-humanidade.
Havia poucas evidências que autorizassem alguma imagem ou conceito de
algum ser que fosse “plenamente animal” (Vilaça 1998:56) ou “coisa” que fosse
puramente coisa, “puro objeto”. Como tenho sugerido, muitos dos ditos “animais” são
myhyrikoso ou são “suas criações” (si-rara-tsa / 3pl-criar-pl)
38
, o que lhes dá em alguns
casos propriedades se não idênticas, bastante semelhantes àquelas possuídas por seus
“donos”.
Se eu perguntava sobre os já citados myhyrikoso, se eram “bichos”, como me
diziam muitas vezes, retrucavam dizendo-me, que eramgente mesmo!”. Contando-me
uma história sobre uma festa na qual a irmã do gavião-real (wohorek ikhitsita)
organizara com o intuito de vingar-se da sucuri que o matara, o informante diz o
seguinte sobre a anfitriã:
Mandou pãritsikzo (urutau) convidar os peixes, porque não tinha gente
antigamente, só peixe.” (Geraldino Patamy)
Quem opera a vingança é o filho do gavião-real que havia sido morto pela
sucuri, uma ave gerada de modo pouco convencional, a partir da chocagem feita pela
própria irmã em ovos de uma variedade de pássaros. No fim, conclui de modo
indeterminado, como é o “estilo” Rikbaktsa de contar histórias:
38
Há pelo menos três sentidos possíveis para o termo “siraratsa”. O mais geral deles inclui uma
variedade de possibilidades de seres (entenderemos isto à medida em que as explicações avancem, de
modo que sempre estarei referindo-me a este tema). Desta forma, embora os “bichos”possam ser muitas
coisas diferentes, em um cosmos socializado, se não são criações dos “vivos” ou algum outro tipo de ser,
provavelmente serão criação de alguém. Em poucos casos à primeira visão dos “bichos”será possível
saber de antemão de que tipo de ser se trata. É preciso observá-los e até evocar eventos passados. Outra
acepção compreende animais criados por myhyrikoso como “companheiros”, como é o caso do sazo
(corujinha). Entre eles estabelece-se uma relação de contigüidade quase absoluta.Uma terceira associação
possível provavelmente relaciona-se ao fato de que em algumas descrições das aldeias dos mortos cria-se
- mas não come-se, como de resto é a atitude Rikbaktsa perante a seus animais de criação - porcos e
outros animais, animais estes que, apenas intuo, são, entre outros, caçados pelos vivos. Entretanto este é
um terreno incerto e do qual se sabe apenas pela experiência que é, muitas vezes, de terceiros. Isto é,
aqueles que foram levados, conseguiram retornar e quiseram ou puderam lembrar-se e contar. Estes,
inclusive, uma vez tendo sido cooptados temporariamente pelos mortos e, presumidamente, por sua
perspectiva, ao mesmo tempo em que enxergam as “criações” dos mortos enquanto porcos, seus
cachorros enquanto onças e vêem as carnes que assam no girau enquanto “humanas”. Esta diversidade de
possibilidades sobre a maioria das quais não se pode sustentar certeza prévia é aquilo que mais se
aproxima a uma noção de “animal” entre os Rikbaktsa. No Capítulo V retomo especificamente este tema,
que será tratado por toda a tese e para o qual eu não poderia agora formular uma resposta, senão muito
imprecisa.
78
Ele escolhia (o gavião-real vingador) as mulheres mais bonitas e levava
para o ninho dele, para comer ... porque naquela época não tinha bicho para
se comer, então pegava gente ... (Ou gente que era peixe? Perguntava eu,
silenciosamente, para o meu diário) ... não tinha bicho, só gente, por isso o
gavião aproveitava e comia criança pequena.” (...) “Isso aconteceu muitas
vezes. Iam ver o ninho do gavião e olhavam as fezes. Depois viram que ele só
levava as mulheres bonitas para o ninho ... as kykyry passaram a dar a mão
umas às outras, para irem junto. Quando o gavião foi puxar, acabou largando,
porque vinham tudo. Levou só uma só, as outras conseguiram sair. Durante
muito tempo isso acontecia. As mulheres até se pintavam de barro (o barro é
capaz de dissimular a percepção, principalmente de caças e seres da esfera dos
mortos em relação aos vivos, tirar odores) pra ele não ver. Mataram ele por
isso.” (idem)
Eu pergunto: Quem matou ele?
Pode ser outros wahorotsa, os Bororo ... não sei”.
Depois disso, não sabe mais contar ... “se mudaram para outra aldeia, outro
lugar”. Esta história, que conta com atributos que hoje caracterizam os Rikbaktsa –
como a etiqueta das festas, suas “fases” e características, desde os convites e comidas à
sua efetivação, a administração de venenos aos convidados-inimigos – e inclui também
outras personagens, como o jacaré e outras aves que hoje são associadas por eles direta
ou indiretamente aos myhyrikoso.
Expressa, entre outras questões, uma certa flutuabilidade no modo de descrever
bichos e gentes. Pode-se interpelar que tal “separação” só existe atualmente, mas não é
possível dizer que ela exista, senão sob forma bastante fluída. Se a história desta suposta
“separação” entre os seres foi largamente esquecida, conforme diz Robert Hahn no texto
que escolhi como epígrafe, as associações são constantes e vertem qualquer pleiteada ou
alegada divisão em dúvida. Uma dúvida que é frutífera e é parte do cotidiano.
Não é, portanto, alguma coisa que se imponha somente à morte de alguém,
quando se passaria para um outro tipo de corpo, de perspectiva, de posição ou de
quantum de “alteridade”. Tampouco é aplicada somente aos “vivos”, ou aos “bichos”,
aos “mortos” ou ainda aos demais seres metafísicos.
79
Se pudesse sintetizar o viver cotidiano Rikbaktsa em uma máxima, diria que “a
dúvida é sempre um benefício”. Como afirma Leenhardt para os melanésios e
polinésios, há uma “incerteza geral” com relação à “autencidade” dos seres dos quais se
aproximam (Leenhardt 1961 [1947]:41) (trad. minha).
Se basta um olhar para declarar a humanidade (idem:39) e se o humano
ultrapassa as conhecidas representações físicas do homem (idem:40), é preciso, então,
saber sempre avaliar e tentar agir de acordo com todas as possibilidades do “ser” e do
“não ser”, em várias esferas da vida. De ser caça, bicho ou myhyrikoso – nem sempre
aquilo que se caça ou que se come está, necessariamente, “morto”, no sentido de ser
“presa” e não possuir mais “agência” e. g. capacidade de revide sobre seu suposto
“predador” -; de ser um sonho, uma experiência ou ainda um “aviso”; de ser “parente”
ou “inimigo” (cf. Capítulo IV); de ser um “dom” gentil e solidário ou um veículo de
enfeitiçamento, de ser ou não, exclusiva ou compartilhadamente, pai de uma criança (cf.
idem).
No mundo Rikbaktsa tudo que se vê pode, por princípio, merecer classificações
diversas. Dos animais caçados (si-baha-tsa/ 3sg -“apanhar/capturar”-pl) ao corpo do
inimigo, todo contato é permeado pela dúvida e pelo perigo da retaliação. Diferenças
existem, mas só podem ser explicadas se “humanizadas”, “memorializadas” e, de certa
forma, “historicizadas”. O mundo vivido só é possível neste “aquecimento” e
“memoriação”.
Sobre a relação entre corpo, perspectiva e humanidade, é impreciso aplicar aqui
a idéia de que “vivos” ou “humanos” ou “parentes” têm, todos, um mesmo “tipo de
corpo” (cf. Viveiros de Castro 1996:128;Vilaça 1998:14) e que ele redunda em uma
única perspectiva sobre o mundo. O que se pode afirmar é que, dentro do espectro de
seres que poderão flutuar por estas categorias, a ênfase é em torno de que os “vivos”
Rikbaktsa poderão, a qualquer momento, “perder” seus “corpos”. E também que
principalmente “mortos”, uma vez em relação com os “vivos”, têm a capacidade de
modificar não apenas definitivamente mas também temporariamente a perspectiva
destes últimos. Por fim, que os “vivos” temporariamente afetados poderão “ver” como
os “mortos” e, em algum momento, retornar à perspectiva que anteriormente
sustentavam sobre o mundo.
É evidente que a política das perspectivas confunde-se, em última análise, com o
mecanismo da manutenção ou perda da vida e, com ela, de uma dada perspectiva. Mas
os Rikbaktsa exercem-na de um modo que se concentra muito mais neste estado
80
temporário, de transição entre perspectivas, de “ida” enquanto há possibilidade de
“retorno”, do que em algum aspecto dicotômico
39
. Não apenas a assimetria é reversível
(Lima 1999:48), como há possibilidades momentâneas de simetria – rasgos de simetria
intersticial - sem que a assimetria seja totalmente abandonada
40
.
Não é preciso morrer completamente ou ser xamã para participar de outra
perspectiva sobre o mundo. A possibilidade de intervenção e modificação “corporal” –
que poderá ser temporária ou definitiva – introduz outras variáveis na perspectiva e
acaba por levar às últimas conseqüências a complexificação da variável “corpo”.
É fundamental que se admita a vulnerabilidade do corpo e a responsabilidade
dos indivíduos sobre o trânsito de substâncias e a qualidade das interações que
comporta. No caso Rikbaktsa, isto é uma prerrogativa para que se possa entender a
política das relações entre vivos, no exercício cotidiano de classificações mutáveis sobre
a posição das pessoas com as quais vivem (cf. Capítulo IV), mas também entre “vivos”
e “mortos” ou outros seres metafísicos, das quais depende o destino dos homens e do
socius.
Poderes e intervenções mais “ordinários”, que estão aquém da morte e do
xamanismo, podem modificar a visão que se têm sobre o mundo. Isto porque,
justamente, alteram o corpo – em seu sentido mais circunstanciado – daquele que vê e
daquele que é visto. Se é verdade que a perspectiva está no corpo, é válido lembrarmos
que, ao menos entre os Rikbaktsa, os corpos (sejam eles de vivos, humanos, afins ou
consangüíneos) jamais serão exatamente idênticos como estarão sempre abertos à
possibilidade de intervenção e, portanto, a modificações na perspectiva dos e sobre os
seres.
O “tipo de corpo” deve ser aqui ainda mais especificado e admitir variações,
para além do fato de sua incapacidade em refazer-se, ou seja, de sua mortalidade. A
existência dos myhyrikoso não está no tipo de corpo que, por ventura, ocupem, mas em
uma “essência” que pode e deve ser abatida pelos vivos. Deste ponto de vista, não seria
39
Este “uso” da noção de perspectiva os aproxima bastante dos Kaxinawa, conforme o estudo realizado
por Lagrou (1998), ao mesmo tempo em que os afasta, para citar alguns exemplos, dos Juruna (Lima
1996) e dos Wari’ (Vilaça 1998). É necessário destacar, contudo, a menor ênfase discursiva Rikbaktsa em
torno do dualismo opositivo, mesmo com a ressalva de que para os Kaxinawa ele só faça sentido e seja
produtivo se admitir a mistura, a comunicabilidade e até a reversibilidade entre os pólos (idem:25-6). Este
ponto ficará mais claro no Capítulo IV, quando serão abordados os sentidos das metades e da reprodução.
40
Erikson (2000) descreve algo semelhante para os Matis, com relação ao caráter parcial de suas
metamorfoses, que não são totais e irreversíveis, apesar de “sérias” (idem:44). No caso Matis, pode-se
mudar semrenunciar à sua própria identidade” (idem:45), embora para o caso Rikbaktsa fosse mais
apropriado dizer antes que a tenuidade das diferenças é aquilo que permite estas operações liminares.
81
distintivo se os corpos que ocupam podem refazer-se infinitamente ou se podem tomar
imediatamente para si outros corpos de animais.
Neste reduto, admitir a indeterminação e a plasticidade, com todo o desconforto
que isto traz para quem deseja descrever um modo de vida, foi sempre muitíssimo mais
produtivo. Ainda mais porque, como gostaria de destacar, esta indeterminação não se
confunde aqui com o vazio. Ela é, antes, a possibilidade de vários estados de "ser" e
que, enquanto tais, exigirão critérios para algum tipo de interpretação (ainda que não se
possa saber sobre sua fidedignidade) sobre os eventos presentes e/ou do passado,
incluindo histórias de vida, condutas, pensamentos, alimentação ou sonhos. Ou seja, a
indeterminação provoca, em paralelo ao estabelecimento de um diálogo contínuo entre
noções cosmológicas e sociológicas, um esforço de avaliação de práticas e suas
projeções e continuidades na vida social.
Mais do que afirmarem-se unilateralmente enquanto humanas frente às demais,
as personagens dos mitos Rikbaktsa preocupam-se antes em partilhar ou alegar ter com
elas a partilha de “humanidade”. Ao fim e ao cabo, aquilo que importa não é o que
efetivamente se é em relação a algo ou alguém que não o é, mas a possibilidade de, em
algum momento, partilhar uma dada condição, apesar de eventuais dissemelhanças.
Esta condição que passa a relacionar as personagens, pode ter conseqüências
tanto desejáveis quanto indesejáveis para ambos os lados. Aspectos tais da relação
podem ser diferencialmente enfatizados e até revertidos no decorrer de um mesmo mito.
O bom termo das personagens míticas depende diretamente de sua habilidade em
manipular as situações a seu favor, a partir do convencimento à relação. Ou seja, a partir
do momento em que “convencem” o outro de que partilham esta dada condição,
dialogando com ele e guiando-o, melhor seria dizer impelindo-o, para uma direção
desejada. Este artifício funciona tanto para “predar” quanto para evitar uma predação
iminente; diga-se, para deixar de ser “presa”, sem com isso se constituir em “predador”
41
. Notadamente neste último caso, poderá ser até dispensável que a perspectiva dos
pretendidos “predadores” seja alterada.
41
Volto a referir-me aos Matis e evocar o grito emitido por eles quando dizem-se metamorfoseados em
jaguares: “iii”, que na linguagem “humana” seria “vou comer tripas”, tripas que sugerem terem sido
deixadas por caçadores humanos (Erikson 2000:44). Erikson denota-o como algo ambíguo e indicador da
posição subordinada destes animais. Neste trânsito parcial de perspectivas, os Matis identificariam-se
proveitosamente ao mesmo tempo em que distinguem-se destes animais durante suas metamorfoses
(id.:ib.). Deixo claro, contudo, que esta distinção não tem o caráter de “humanidade” X “não-
humanidade” entre os Rikbaktsa, aproximando-se dos Matis mais em suas possíveis formas de
“apropriação” das perspectivas do que pelo significado que concedem à diferença entre elas.
82
Uma passagem constantemente referida no cotidiano Rikbaktsa é a história da
menina (wytyktsibik) que “era tornada” cansada (-kubyrizomo) pelo binapokoso, o
“cerne do pau”, sendo conduzida a “sentar” nele. Ela me fora contada a partir de uma
outra personagem que é o urutau ou mãe-da-lua, pássaro a que chamam de arõn tõn tõn,
uma espécie de onomatopoese de seu canto.
“Tapara (antigamente) não tinha roupa. Dizia que não podia sentar no
binapokoso (cerne do pau). Kykyry (mulherada) vinham carregando castanha. A
menina viu binapokoso e sentou. O pau falou para ela: “-senta direito”, que era
para ela não “errar”. Sentou direito, aí ele falou: “-fica quieta, não mexe”.
Mas a menina não percebia. Só ele que sabia. É um cerne muito bonito,
tsapyrna (belo, adequado)! A menina vê bonito, arrasta e senta. De guri não;
ele não queria saber. Homem não ficava cansado, só menina. O pau fazia ela
cansar, quando a menina ia chegando perto. Aí binapokoso contava história pra
arõn tõn tõn, contava tudo que viu da menina e eles davam risada. Zyk! Ele
fazia meninada cansar!” (Vicente Bitsezyk)
O binapokoso atrai a menina através de sua beleza e ela acaba fazendo algo
contra o que dão recomendações constantes: senta-se em meio a uma tarefa coletiva,
neste caso, o transporte de castanha. A menina olha para ele e, então, ele atua sobre ela,
fazendo-a cansar e ter a vontade de sentar. Não atua sobre os meninos (makutsibiktsa).
É um jogo de intenções e seu controle, uma situação onde há interações mais ou menos
provocadas entre o que seriam “reinos diversos”. Fala-se aqui de mulheres, de um
pedaço de madeira que é animado, que é “gente”, possuindo beleza e agência, e de um
pássaro, todos em relação e, mais ainda, a menina, de certa maneira, sendo “paciente”
das intenções do binapokoso.
A mitologia Rikbaktsa está repleta ainda de tamanduás não-dentados e pássaros
que, engenhosamente, livram-se da predação de jaguares, manipulando o ponto de vista
que eles têm sobre o mundo, através mais de sua reafirmação do que de sua negação.
Fazem “A” parecer “B” aos olhos do temido predador, então enganado, convencendo-o
a abraçar um destino fatal ou a, pelo menos, deixar de predá-los, como se fazia supor
desde o início.
O tamanduá-bandeira troca sua bosta feita de cupins pela da onça, convencendo-
a de que também tinha uma bosta “bonita” (tsapyrna), sendo capaz de comer grandes
83
caças e mastigar seus ossos e que, portanto, não podia ser sua “presa”. Ficaram
“amigos”, diz o mito. Tsĩtsĩtõtsa
42
(uirapurus) estavam cortando franja um do outro e a
onça quis também. Eles concordaram, mas a enganaram e, depois de cortarem seu
cabelo, furaram seus olhos. Arrancaram os dois olhos e depois voaram. Ela ficou cega.
Como não enxergava, o bohõro (curiangô) cagou na boca dela e sentou no alto da
árvore. A onça ficou com ânsia e vomitou. Por isso que até hoje a onça vomita na
estrada. Depois, a onça cega procurou o jaboti (wiktsabo) e o capoeirinha (uhurutsa).
Disse que se fossem gente
43
, consertariam o olho dela. Colocaram irariktsa, semente de
tucumã, utilizada para fazer colares bem grossos. Não deu certo. Colocaram uma resina
de Jatobá (mytsarerik) velha. Depois de matar veado, o “olho” da onça caiu. Com isso o
capoeirinha conseguiu comer a caça da onça. Então pegaram o olho do veado e
colocaram outra resina mais nova. O olho não caiu mais. A onça ficou com o olho do
veado. Até hoje a onça é amiga da capoeirinha. A onça é que mandou capoeirinha
dormir no alto para não ter medo, porque antes dormia só no baixo. Hoje, dorme no alto.
Ao final, jaguares são magistralmente conduzidos à morte, à cegueira ou a
deixarem de predar. É curioso que nos mitos que tematizam a predação aquele ou aquilo
que está prestes a ser comido possa sempre interpor-se ao seu “predador”. Solicita-o e
usualmente o convence, munido de segundas intenções, que deve comê-lo não
diretamente, mas de tal ou qual modo. Obtém com isso sucesso efetivo em burlar uma
predação que parecia inescapável. Ao fim, o extermínio, a predação poderá, contudo, vir
de onde, pelo menos nós, menos esperaríamos, como na história sobre o homem e o
dedo da onça, também contada por Vicente Bitsezyk:
O homem colocava a mão no cupinzeiro, era armadilha de zuruktsa
44
.
Tsĩtsĩ(uirapuru) cantou e aí a onça já sabia que era gente na armadilha. A
onça pegou o braço dele e saiu fácil! O homem disse primeiro para moqueá-lo,
42
Quem me contou esta história foi Vicente Bitsezik.
43
Esta passagem é recorrente nos mitos: “se você fosse gente, faria tal ou qual coisa”, o endereçado
responde sempre “-mas eu sou gente”. É um diálogo entre sujeitos, onde a humanidade é uma moeda de
barganha e modo de “convencimento” do “outro”, mas nunca há muita insistência. É uma questão de
“concordância” e também de “agir como”, de “atitude”, mas que acontece prontamente. Assim também
ocorre com o “parentesco” no socius e nos mitos. Neste últimos diz-se: “- mas você não é meu parente,
senão me fazia “isto” ou “aquilo”; o endereçado responde “- sou sim” e daí tudo segue a ordem desejada.
Isto ocorre também nos intercursos entre vivos e mortos, onde, para além de outras pré-condições para
que vivos encontrem com mortos, que são de responsabilidade dos primeiros, é fundamental a agência do
morto sobre o vivo, para que formas animais “transformem-se” em parente morto da “vítima”, sendo por
ela reconhecidos.
44
Zuruktsa é uma espécie de onça preta de tempos antigos, porque dizem que “não existe mais”, distinta
da “onça preta” a parini nioktsrõrõ.
84
antes de comer (porque assim era melhor e mais gostoso). Aí a onça fez girau,
amarrou com cipó e colocou o homem lá. Fez fogo com pauzinho pequenininho.
Ele mijava e a corujinha sazo
45
lambia, achava que era gordura! tsitutãrta!
(está gordurosa!) Depois ele cagou e sazo lambia achando que era gordura. Aí
sazo achou que já estava bom, foi chamar a onça pintada
46
. Gritou e nada ...
gritou e nada ... aí outra onça é que foi chamar. Respondeu-o. O homem ficou
com medo, mandou sazo apanhar cipó e ele correu. Sazo gritou que “a mistura
deles fugiu”. A onça sentia cheiro de fumaça nos bichos por onde passava.
(estava perseguindo sua “mistura” e no caminho encontrava diversos bichos para
os quais perguntava o paradeiro do “homem”).
O sapão (põrõpõrõ) jogou veneno no olho da onça. A aranha (urusyk)
mostrou dente para onça. Depois disso, a onça chegou na casa do homem e
ficou lá ... a onça ficou só rodeando. O homem cortou o cabelo, banhou, pintou
com jenipapo para a onça não conhecer e depois foi no mato de novo. Trepou
no pé de inajá para apanhar. A mulher queria ir com ele, mas ficou. Quando
estava no alto, tocou macuco, a onça veio e o viu e falou de novo: “minha
mistura!” O homem disse que ele não era a mistura, batu a-ka-mykzoi! A onça
disse que sabia que era ele. Aí o homem enganou. Disse para ela ficar lá
embaixo que ele ia cortar o pé de inajá – caiu só o najá na onça e ela morreu. O
homem ficou lá em cima, desceu devagar e viu que a onça estava morta. Deixou
o najá lá, sujo de sangue. Levou só um pouquinho para a mulher. A mulher
assou, achou gostoso, mas disse que era pouco, que queria mais. ... Até que o
homem contou a história para ela. Depois de um mês ele foi ver a onça. Viu um
monte de bicho morto, onça, anta, porco, tatu. Tudo que passava lá, morria.
45
É o urutau-pequeno, conhecido como myhyrikoso ou sparitsa i- karara, bicho de criação de mortos e
outros seres metafísicos. Tabawy diz que sazo chama os outros (seres da esfera dos mortos)”. Sazo
também chora quando os homens vem de tardinha no mato, especialmente aqueles que têm relações
“privilegiadas” com estes seres. Sparitsa carrega sazo dentro do cesto trançado. Rodeiam a casa – choram
aqui e ali. “mytsa-ni skyryk (traz / carrega nossa carne)”, me diz Tabawy. Sazo provoca medo e muitas
histórias de aproximações da casa e “choros”, como se abordasse intensional e dirigidamente às pessoas,
para infelicidade delas. Um homem que é xamã disse a uma mulher que sazo para nós é coruja, mas que
para eles, os xamãs, não. São os mortos que estão com sede e fome, com saudade. Acrescentou que seu
ofício era perigoso, que tinha medo e podia ficar doente.
46
Aqui o informante diz que era onça pintada ao invés de zuruktsa, ou seja, parini zubakata, “onça
grande”, conhecida também como parini ipodydykta (onça listrada). A distinção central entre estas duas
onças, como entre todos os animais que classificam enquanto parini deve-se mais a características,
digamos assim, superficiais, do que de natureza. Todas são, sem exceção, seres do domínio dos mortos,
myhyrikoso. Nenhuma onça é comida e, ao encontrá-las ou saber de sua existência a rondar a aldeia ou as
trilhas, a tarefa obrigatória é a de matá-las, retirar a cabeça e furar seus dentes. Entenderemos melhor este
procedimento no Capítulo V.
85
Porque tinha um dedo da onça que estava vivo, sem apodrecer
47
. O homem
trouxe o dedo e experimentou. Quando arara passava ele apontava o dedo e a
arara morria, não precisava flechar.
Um dia foi com a mulher pegar castanha, levou o dedo e falou para a
mulher para ela usar na arara. Ele subiu para pegar castanha nova, a mulher
apontou o dedo para o marido e o marido morreu. Aí o dedo não funcionou
mais
48
. Ela jogou fora. Nepyk! (acabou!)”
O caráter inusitado dos mitos Rikbaktsa é marcante. Na história do gavião-real
que vingará a morte de um outro gavião-real pela sucuri, o pássaro que consegue
desempenhar as “provas” de força é aquele que menor e mais fraco parecia. É como se,
a todo momento, atitudes, como a predação, pudessem partir de qualquer tipo de ser,
impedindo que determinadas expectativas ou qualidades conceituais definitivas sejam
atreladas a estes seres. Há certa insistência na desestabilização de categorias, conceitos e
posições. Uma insistência que semeia a dúvida e a insegurança em torno dos eventos e
dos encontros que compõem o fluxo da vida. Mortos podem aparecer tanto como onças
quanto como borboletinhas brancas que voam à noite.
Ocorrência que não deixa também de relacionar-se ao traço reverso do mundo
dos myhyrikoso (cf. Introdução). Há sempre a idéia de que coisas convencionais ou
indicadas para uma esfera não funcionam adequadamente na outra. Assim, em um mito,
a taquarinha leve (pikuwy) foi a única capaz de abrir a barriga de uma anta (piku) que
era um myhyrikoso e havia predado um menino. Ossos (poiktsa), a ponta de flecha
jurupará (zayta) ou a concha (tutãra), objetos que reconhecem ser cortantes, não tiveram
sucesso. Flechas também costumeiramente desviam deste tipo de ser, sendo sempre
necessárias muitas tentativas para que se possa abatê-los.
Esta é uma característica que nos faz entender quem são exatamente as
personagens das histórias Rikbaktsa, inclusive sobre as caçadas atuais, que sempre
47
Lembro que esta onça fora morta, mas sua cabeça não foi cortada e nem seu dente furado pelo homem
da história. Assim, se o corpo da onça apodreceu, seu dedo ainda continha “agência”. Na análise do rito
do gavião-real (cf. Capítulo V) veremos como uma bem-sucedida furação de dentes e de penas de alguns
bichos que, como a onça, são considerados myhyrikoso, é etapa fundamental para seu abate completo.
48
Aqui há dois pontos: um deles é o fato da mulher ter apontado o dedo para o marido. O outro é o fato
de que a onça, com o corpo jogado e sem o dente furado, não fora realmente abatida. Há uma agência que
permanece e que tem seu “destino”, a predação dos vivos, matar sua vítima. Afinal, um “destino” que se
cumpre através de um “outro”, com o concurso da esposa do homem, que já dava sinais de insatisfação
com a quantidade de inajá trazido pelo marido e não hesitou em matá-lo.
86
podem ser myhyrikoso. O abate acontece de modo igualmente inesperado, como através
de enganos aos quais os até então predadores potenciais são conduzidos ou ocorrências
que pareceriam aleatórias mas que lhes são fatais.
A história de um ser chamado hoktsoikhazata que, tudo indica, é um ser
metafísico, contada por Vicente Bitsezyk é exemplar neste sentido. Primeiro explica-me
sobre suas características “mistas”: ele é comprido como uma cobra, só que o rabo fica
levantado, como de escorpião. Na cabeça tem como chifres (hara-ni-tsa/cabeça-
espinho-pl). Depois, segue com a história.
Um caçador saiu cedo para caçar na estrada, no morro, que não era muito alto.
Foi sozinho (atitude bastante incomum no cotidiano) porque tinha muita coragem.
Quando chegou na beira da estrada, não tendo encontrado nada, resolveu imitar o bicho.
Imitou-o várias vezes, só no final ele respondeu. Ficou alegre, pensando se tratar de
macacos, “- vou matar!”, pensou ele. Aproximou-se mais.
O caçador só olhava para cima e o bicho enganchava com o rabo nas árvores
mas, na verdade, andava no chão. O bicho voltava para trás, e ele não o viu. Seguiu
em frente, matou um ou dois macacos-mouro (eremeza) e levou para casa.
Lá chegando, os homens da aldeia perguntaram: “- está cansado?”, ao que ele
respondeu que não. Contou do bicho, disse que assoviava como macaco-prego (boa), na
beira da estrada. Um homem já conhecia, achava que podia ser hoktsoikhazata, que era
perigoso, comia gente. Tinham que ter cuidado pois podia ser atraído para a casa.
Daí a três ou quatro dias voltou ao mesmo lugar e assoviou, duas ou três vezes,
aí ele respondeu. O bicho continuava a andar no chão e a enganchar o rabo na árvore
para enganar o homem e comê-lo. O homem viu que o bicho era grande e fugiu. Matou
mais dois macacos-mouro e voltou para casa.
Chegando lá, no mykyry, mentiu para os homens, dizendo que não havia achado
nada. Depois confessou que tinha corrido dele. Os homens disseram que se fossem eles
teriam matado. Ele replicava dizendo que o bicho era grande. E os homens, por outro
lado, diziam que tinham coragem.
Resolvera, então, fazer flecha. Muitas; umas 70. Passaram dias fazendo flechas,
um feixe grande. Um outro homem resolveu ir atrás do bicho. Aquele que havia corrido
duas vezes não foi mais, mas explicou o lugar onde o bicho respondia, instruiu-o a fazer
feixes de dez flechas, amarrados com embira fraca. Na estrada tinha botsik (abacaxi do
mato), que tem espinho como “anzol grande para piava”. Quando chegou no botsik
deixou um feixe no pau próximo. De 50 em 50 metros deixava um feixe, até o lugar do
87
bicho. Pensou, pensou. Aí arrumou coragem. Chamou várias vezes e por último ele
respondeu. Lembrou-se de não olhar para cima, pois o bicho enganava, fingindo ser
macaco, senão ele o comia.
O bicho farejou o cheiro do homem e chegou rapidinho. O homem flechou-o
mas as flechas caíam do lado. E assim ia ... quando o homem pegava o feixe de flechas,
o bicho já estava lá e assim sucessivamente aconteceu para cada feixe. Não conseguia
matá-lo e já havia gasto quatro feixes de flechas. Quando faltavam duas flechas, corria
para o outro feixe. Tinha que ser forte, corajoso, ter resistência para correr, sem tempo
de descansar. No último feixe, já estava perto da aldeia e ficou com medo, pensou na
criançada. Foi então para o último feixe, o do botsik ... Flechou e nada ...
Até que o espinho do botsik pegou bem no olho do bicho. Ele não se mexeu,
ficou paralizado, Vicente acha que pegou no olho direito. Aí o homem aproveitou e
matou o bicho, flechando-o.
Ver primeiro ou ver o que o outro vê – sem que, idealmente, se perca a própria
perspectiva - é algo fundamental para o bom termo de interações predatórias. A
capacidade de “enxergar adequadamente” é uma qualidade central desta política de
perspectivas a qual venho tentando descrever. Neste sentido, enxergar enquanto o outro
não consegue fazê-lo é uma prerrogativa da caça e também meio de obter vantagem nas
iterações entre estes seres e domínios, igualmente predatórias. A história de
hoktsoikhazata demonstra a fragilidade do bicho ao ser alvejado em um dos olhos. A
partir daí as flechas passaram a alcançar-lhe.
Em muitas histórias, o “ver” (-iktsa) coisas, seres e pessoas é uma atitude
fundamental que propicia mudanças no corpo, na alma e na vida ou morte daqueles
envolvidos. Em um mito que explica o porque da pessoa não voltar mais a viver depois
da morte
49
, a perda deste “atributo” deve-se ao fato de um homem que acabara de
retornar e tendo seu “corpo” ainda em transformação, ver a esposa de um “tio” próximo
tendo relações com outro homem
50
(cf. Holanda 1994:126-130). Por saudade e
atendendo a pedidos de alguém próximo, o morto poderia voltar e, através de
transformações operadas por substâncias e alimentos específicos, conquistar um corpo
semelhante àquele que tinha quando vivo. Quando, no sonho, o tio pede que retorne,
49
Dizem que alguns xamãs – mas não todos – podem fazer esta “operação”. Só comentam, mas ninguém
poderá saber. Dizem que Salvador Tsetsemy fez isso com sua falecida primeira esposa, que ele a engana,
dizendo que não casou novamente. Quando o marido de uma mulher morreu, ele ofereceu a ela o
“serviço”, mas ela não quis, porque ninguém pode “saber” ou “ver” o morto ressuscitado.
50
Ser surpreendido tendo relações é considerado batsisapy (“feio”, “não-adequado”), seja com o marido,
seja com outro homem. É também uma sanção para mulheres que sentam na mão de pilão.
88
parece que o homem voltará como um pássaro, um inambu ou macuco (hukyrari), que
dá seu assobio característico quando desce ao chão. Depois o narrador o descreve:
O sobrinho era como uma criança e feito uma onça-pintada com pêlo
no sovaco, pernas e braços, como ainda um toquinho de rabo e umas presas já
meio grandinhas. O tio foi chegando perto, mas com medo. Abriu mais os
braços e os pés da onça-pintada e passou polvilho de mandioca-mansa: os
cabelos e os braços e os pés ficaram de gente; bateu as presas para dentro:
como de gente também. Só agora o tio levou o sobrinho para sua casa.
(idem:128)
Depois do testemunho interdito, de tristeza ele quis ir embora. A partir de então,
também todas as demais pessoas não poderiam mais voltar.
Em uma outra história, uma mulher vê a outra trocando de pele e por esta razão a
sanção foi nunca mais poderem trocar a pele, sendo obrigados a envelhecer. As cobras –
seres da esfera dos myhyrikoso - é que ficaram no lugar deles.
Se o “ver”, “ser visto” ou “não ser visto” é fundamental, funcionando como um
veículo de transformações, as perspectivas sob o mundo, as coisas e os seres estarão
sempre abertas a mudanças. Entretanto, sua fusão ou coincidência total e definitiva não
deixará de significar a predação completa. Lembrando sempre que é possível ver como
um myhyrikoso e retornar ao ponto de vista original dos vivos, ainda que carregando
talvez sinais presentes e muito provavelmente futuros deste encontro sobre a integridade
mental/corporal.
O homem quase conduziu hoktsoikhazata até a aldeia. Ia comer todo mundo,
principalmente crianças. Ao desviar da flecha, o bicho caiu na direção do espinho de
botsik, e nesta ocasião o homem aproveitou para flechá-lo. Se não fosse isso, explica-me
Vicente, as flechas não o matariam de forma alguma.
Ainda sobraram três flechas ... ele descansou e voltou à aldeia, de tarde, cansado.
Chegou lá e foi no mykyry, contou todos os detalhes. Todos foram ver o bicho.
Mulheres, crianças. Matou o macho, ficou só a fêmea ...Segundo Vicente esta história
depois passou para o branco, “- é a história do dragão”, diz ele. Arremata dizendo que é
por isso que tem medo de morro. Seres como hoktsoikhazata, como outros myhyrikoso,
gostam de morro (hara s-akparawy!/ morro 3pl-gostar) e de lugares bonitos.
89
É adequado entender os seres – onde incluem-se também artefatos e outras
matérias que poderíamos associar a “coisas” – dentro do que chamamos de
“humanidade”. Então, como veremos no decorrer desta tese, cobrinhas são flautinhas da
sucuri, brincos masculinos tornam-se em chifres de veado, lascas de pau são animados e
vertem-se em “namorados”. Mas o aspecto desta generalização que desejo abordar aqui
não é o que “se é” ou “não se é” mas a possibilidade de dominar e reconhecer
perspectivas diversas dentro da própria “humanidade”.
INIMIGOS, GENTES E BRANCOS
Mas, e quanto aos brancos? Na língua Rikbaktsa, apenas por aproximações
podemos encontrar um termo semelhante a algo como “estrangeiro”, bipyri. Sua
aplicação atinge de modo genérico exclusivamente a brancos e, em alguns momentos,
com mais ou menos discussão e unanimidade, a crianças mestiças, filhas de pai branco.
Ao que pude entender, o vocábulo bipyri deriva originalmente da história de
hyritsik bipyri, um ser metafísico associado especificamente ao trovão e à chuva
(hyritsik) e, como muitos outros, à água (-tsik) de maneira geral. Não surpreende o fato
de que a hyritsik bipyry passaram também a atribuir a posse originária da arma de
fogo
51
.
Por outro lado, a relação com os brancos teria sido marcada pelo uso letal ou
indiscriminado da arma de fogo. Desde o início, inclusive brancos que não desejassem
conflitos, reforçaram e se valeram de seu poder incontestável, como um artifício que
lhes garantisse a viagem e o pouso. Brancos usavam tiros não apenas para matar, mas
também como indicativo de superioridade e possível garantia de não-ataque por parte
dos índios.
Comentando sobre tiros disparados de forma vil sobre um árvore, Tolksdorf, um
personagem fundamental dos primeiros anos de contatos pacíficos, acaba por corroborar
a associação possível com hyritsik bipyri:
Quisemos, com isso, apenas mostrar aos índios que somos mais fortes
do que eles e que, quando atacarem os civilizados, estes se defenderão com
trovão e raio e os matarão. Por enquanto a nossa própria segurança era a
51
A este mesmo ser atribuem a posse de machados de pedra (wywyk-nury/”machado”-“corpo”).
Especialmente depois de trovoadas se deve procurá-los embaixo das árvores.
90
nossa preocupação principal. Pelas nossas armas de fogo eles tinham um
respeito terrível, aqui como em outras aldeias pelas quais passamos.”
(Tolksdorf 1997 [1959]:58)
No mito, hyritsik bipyri encontra um homem que, sem sucesso, tentava morrer a
todo custo, pois sua esposa não gostava dele e o rechaçava. A mulher impedia que
dormisse na rede, obrigando-o a deitar no chão. Em uma destas noites, uma minhoca lhe
entrou pelos ouvidos e começou a comer seus miolos.
Ainda ignorando este fato, o homem incursionou pelo mato, submentendo-se
inutilmente a todo tipo de perigo. Nem onça lhe atacava. Subia no galho de árvore e ele
não quebrava.
Foi quando viu uma água parada, repleta de esqueletos de bichos, e resolveu se
atirar nela, pois ali certamente haveria algum grande predador. Assim aconteceu e o
homem fora morto por hyritsik bipyri que, ao ver se tratar de “gente”, ressuscitou-o. O
homem pode então lhe contar sobre a esposa e também sobre dores e doenças que sentia
em seu corpo.
Hyritsik bipyri disse a ele que ia “matá-lo” novamente, “desmaiá-lo” e que ia lhe
tirar as doenças. Quebrou a cabeça do homem ao meio. Viu que o miolo dele estava
pequeno, por causa da minhoca. “Tirou” as doenças dele e juntou um pouquinho de
carne ao miolo para aumentar. Depois fez massagem nele, soprou e ele reviveu. Hyritsik
bipyri (como faz um xamã) mostrou a ele as “doenças” que tirou. O homem ficou bom,
forte.
Então hyritsik bipyri disse ao homem que se vingasse de sua mulher. Deu a ele
esta “arma”, como trovão. O homem voltou à aldeia da esposa, entrou na casa e
disparou a arma na esposa e em seus parentes. Depois ela caiu no fogo, e ele não quis
salvá-la, deixou-a queimar completamente. Aos parentes da esposa, reanimou-os, fez
massagem, soprou.
Depois saiu com a “arma” para ver outros wahorotsa. Matava-os. Encontrou
ainda outros wahorotsa fortes, que disparavam muitas flechas na sua direção. Deu
apenas um disparo e matou a todos. Assim ele foi indo, não sabem bem para onde, até
que perdeu a arma para outros índios ... depois a arma de fogo veio parar na mão do
branco, não sabem como ...
A despeito da diferença de poderio (além da arma de fogo é dono de saberes do
âmbito xamânico), hyritsik bipyri certamente é um ser metafísico que, com algumas
91
ressalvas, age de modo muito familiar ao homem Rikbaktsa. Extrai as doenças de seu
corpo e as ostenta, como faria um especialista, e pratica algo que os Rikbaktsa crêem
hoje em dia poder ser feito por alguns daqueles que são “xamãs” ou que podem ser ditos
“xamãs” justamente por fazê-lo: a ressuscitação de um morto.
A motivação da primeira “ressuscitação” do homem teria sido também o
reconhecimento da “humanidade” de sua “presa”. Esta atitude, como veremos, é típica
do cotidiano Rikbaktsa, e muitas presas das quais têm suspeição de “familiaridade” ou
“pessoalidade” – porcos que seriam, segundo alguns sintomas, identificados como
mortos Rikbaktsa - são abandonadas nas imediações das estradas do mato.
A irreversibilidade do pensamento vingativo de hyritsik bipyri diante da esposa
do homem é também algo familiar tanto à prática social quanto à mitologia Rikbaktsa,
onde mulheres são descritas como perversas e enganadoras dos homens (cf. Capítulo
IV). Mulheres contra as quais, ao fim e ao cabo, vinganças são cometidas. Atitudes que
vão desde a transformações em seres diversos, até muito comumente à morte.
A posse de arma de fogo – a princípio um diferencial gritante entre os wahorotsa
e bipyri – não seria originalmente nem dos brancos e nem dos Rikbaktsa. Seria uma
questão de guerras e “aquisições”, e flutua em um tempo cuja a cronologia é
irrecuperável. Enfim, o par rikbaktsa ou wahorotsa / bipyri não poderia ser exatamente
qualificado por algum tipo de oposição exclusiva, definindo para cada qual domínios
impenetráveis.
Homens e mulheres brancos são designados, na verdade, por duas expressões
idênticas a termos de parentesco ou chamamento na língua nativa, mas que têm hoje
uma conotação sensivelmente diferente em seu discurso. ka-eki e ka-diri, “minha irmã
mais velha/mulher da mesma metade” e “meu avô/qualquer parente masculino de
geração acima do pai”, respectivamente, são termos pelos quais chamam brancas e
brancos, em um misto de zombaria e negatividade.
Quando fui aos Rikbaktsa pela primeria vez, não podia dar um passo sem que
ouvisse adultos e crianças chamando-me por ka-eki. Ainda hoje aqueles mais próximos
podem fazê-lo de modo a me provocar risadas e irritação.
Ser “gente” ou “gente mesmo” é, então, estar próximo, distante, juntar-se ou
opor-se a quem ou o quê? A “humanidade” é um “divisor de águas”, ou seja, vincula à
sua atribuição outras posições ou categorias? Define, além disso, correspondências
espaciais do tipo “interior” e “exterior”?
92
Lamentavelmente, não tenho uma resposta inequívoca para ilustrar este capítulo
inicial. Este trabalho é, justamente, uma tentativa de entender um universo que se
demonstrou tão repleto de proximidades e gradações quanto de diferenças. Um universo
no qual gentes, animais e seres metafísicos, caracterizados pela possibilidade
permanente de interação - buscada, evitada, mas muitas vezes indelével -, limitam-se
por fronteiras muito tênues e que se demonstraram quase sempre reversíveis.
Questionar-me a respeito disso, mais do que alocar seres em categorias e
domínios predeterminados foi, contudo, fundamental para tentar entender os Rikbaktsa
e seu significado dentro do contexto ameríndio. A impressão que se tem é a de que a
etnografia nunca chega a ter um centro, um ponto de partida ou de chegada, algum
domínio a partir do qual conceitos possam ser estendidos. Um exercício tautológico de
aproximações e afastamentos que não chegam a um termo definitivo.
“Ser” humano ou “ter” humanidade não demonstrou ser propriedade privativa de
alguma categoria de seres ou propriamente uma questão fundante para o pensamento
Rikbaktsa sobre as coisas e o mundo, o que me parece algo ainda mais importante. A
predação é, antes de tudo, um modo de relação fundamental na cosmologia Rikbaktsa,
mas, isoladamente, “ser ou não ser humano”, em si, não é aqui suficiente para definir
posições do tipo “predador” ou “presa” (cf. Lima 1996; Vilaça 1998; Viveiros de Castro
1996).
Para entender termos deste tipo, devemos recorrer a uma lógica que demonstrou
mais instabilidade do que posições afirmadas. Devo ainda dizer mais uma vez que a
distribuição de seres e coisas por tais categorias raramente assumiu caráter perene. A
“humanidade”, constatada ou suposta, aparece antes, como condição da própria relação,
uma espécie de capacidade de “agência” que possibilita e até constrange ao
estabelecimento de interações entre diferentes categorias de seres e coisas, todas elas
muito próximas.
Se retornamos à tentativa de entender o significado e o alcance da categoria
“inimigo” e sua possível relação com o atributo “humanidade”, por si só, é interessante
o fato da noção de “inimigo” ser, em algum nível, “conciliatória” do par mínimo
necessário à sua instauração. Pois que para os Rikbaktsa, seus inimigos costumazes
partilham ou partilharam com eles, além de artefatos e em muitos casos, o próprio
idioma Rikbaktsa, a importante qualidade de wahorotsa, mais do que diferenciam-se por
quaisquer outras qualidades.
93
O “inimigo” não é associado primordialmente ao “de fora”, ao “outro”, ao
“afim”. Estes, apesar de lugares possíveis para sua alocação, não o são de forma
privilegiada em detrimento de outros, como o espaço da proximidade ou da
consangüinidade. Veremos ainda que o conteúdo de todas estas “categorias” e “classes”
poderá ser extremamente variável (cf. Capítulo IV), impossibilitando por esta razão a
agregação de significados definitivos.
Sobretudo, jamais ouvi referirem-se a seus “inimigos”, incluindo àqueles já
mortos ou outros tipos de seres metafísicos, como exatamente “não-humanos”. Isto é
também válido para animais de cuja a caça é praticamente cotidiana. Se por vezes
demonstravam interesse em qualificá-los enquanto “gente”, não pude observar o
contrário: não havia o propósito de negar à presa um estatuto de humanidade.
A insistência, se a havia, era sobre a humanidade dos seres. Durante a queima de
pelos de coatás (eremetsa), à minha afirmação de que suas coxas e braços pareciam de
gente, as mulheres sempre interviam dizendo “é gente mesmo!”, "ereme rikbaktsa-tu!".
O “-tu”, que indica geralmente subordinação, tem também o sentido de uma condição,
do tipo, “estando”, “sendo” gente.
Como já mencionei, os Rikbaktsa possuem um modo genérico de referirem-se
aos bichos, si-rara-tsa (3pl-criação-pl), o que na língua Rikbaktsa significa “criações
deles”. Este termo tem uso restrito e quanto mais nos aprofundarmos na metafísica
mundana Rikbaktsa mais poderemos compreender que ele não se opõe propriamente à
idéia de “humanidade” ou tampouco impede que seres classificados sob esta égide
possuam, em algum momento, atributos convencionalmente associados à humanidade.
Distinções internas aos Rikbaktsa eram observadas pelos jesuítas durante os
contatos inciais. Notou-se que os wahoro aliados designavam-se, na escrita de
Dornstauder, como kütsa, enquanto das que não eram aliadas diziam ser megutzato
(Dornstauder 1975:178), termo que fora interpretado por Dornstauder como “outra
gente”, utilizado para referirem-se a outros grupos Rikbaktsa não-aliados. Para os
Rikbaktsa do alto Juruena, com os quais jesuítas inicialmente mantiveram contato, por
exemplo, os grupos que viviam mais ao norte e com os quais Dornstauder reparava certa
indiferença ou pouca relação, eram ditos megutzato. Isto conduziu a uma interpretação
deste termo como significando “outra gente”. Posteriormente, Pacini sugere que a
distinção kütsa / megutzato talvez pudesse ser aplicada a diferentes clãs Rikbaktsa
(Pacini 1999:73).
94
Há problemas em trabalhar com este tipo de dado pela dificuldade da língua e da
escrita, ainda mais acirrada em um tempo de contatos iniciais. Mas há possibilidade de
tratar-se aqui de uma distinção feita entre kytsa “eles/pessoal”, -ktsa “pessoal”, na fala
hortativa masculina, ou ainda katsa “nós” e mekywatu “diferente, que é como outro”
52
.
Ainda que tais designações pudessem sugerir naquela época alguma sorte de
distribuição clânica no espaço, marcam atualmente uma distinção sem conteúdo fixo, do
tipo “eles” (kytsa), com sentido de “o pessoal”, ou também ka-tuk-kytsa, “gente/eles
comigo”, e mekywatu “diferente”. Distinção esta que pode ser aplicada, por exemplo,
quando se contrastam os conjuntos das metades. Estas distinções, contudo, não
traduzem contraste entre humanidade e não-humanidade. Mekywatu, “diferente”, em
nenhum momento, poderá significar “não-humano”.
Há contextos diversos onde se pode aplicar o kytsa, ktsa ou ainda katsa e, em
nenhum de seus usos o atributo de humanidade está em questão, embora esteja, de certa
maneira, subentendido. Pode ser um chamamento geral dirigido a pessoas que estão
fazendo alguma tarefa juntas e também um hortativo, por exemplo “Oh, kytsa! ... Aikdy-
ty-naha-ktsa!” (Gente! rápido-imp-pl-hort pl!) “Gente! .. Depressa, gente!”. Sempre que
se chega à casa de alguém – o que supõe relações de proximidade – diz-se
obrigatoriamente uma espécie de aviso genérico: “- oh, kytsa! uta myz-zomo-ko-kta!”,
ou seja, “gente! eu(masc) estou me aproximando, chegando (gente! 1sg/masc aux-
aproximar-cont-hort masc sg!).
Também quando eu me aproximava da casa dos homens (mykyry) da aldeia onde
permaneci, independentemente dos segmentos sociais aos quais os homens ali presentes
pertencessem (como clãs e metades), eu dizia invariavelmente, “Oh, kytsa! Ikza myz-
zomo-ko-ky!”, ou seja, “Gente! Eu (fem) estou chegando, me aproximando!” (gente!
1sg fem aux-aproximar-cont-hort fem). Kytsa, nestes casos que denotam relações de
proximidade e vizinhança é um termo marcado mas que não contrasta diretamente com
mekywatu.
Contudo, quando se têm a intenção de enfatizar dados do tipo “metade” dos
indivíduos, uma outra construção semelhante porém mais específica é a distinção que
um falante faz entre katsa tsiwata, “iguais a, como nóse ka-zopo mekywata-tu “meu
zopo (que, entre outros significados, será sempre um homem de outra “metade”) é
52
Uma outra possibilidade é de tratar-se, simplesmente, de “kytsa” e “my-kytsa-tu”. Embora não tenha
ouvido ou averiguado este último termo, ele me parece gramatical, e significaria não um contraste, mas
apenas “nosso pessoal (sendo)”.
95
diferente”. Aqui, katsa (“nós”) e ka-zopo (“meus zopo”) referem-se claramente ao
pertencimento dos indivíduos a diferentes macro-segmentos sociais, ainda que sejam
eles co-residentes e provavelmente afeitos e aliados. Este contraste, de maneira análoga,
não poderá ser referido ao escopo da “humanidade”.
No mundo Rikbaktsa, enquanto tudo e todos têm algum grau de “humanidade”,
e na medida em que um de seus atributos fundamentais é a “agência”, há mais partilha
do que separação entre pessoas, seres metafísicos, animais, plantas e também
artefatos
53
. Nenhum espaço ou posição é capaz de “salvaguardar” ou “encerrar” alguém
ou alguma coisa em qualquer classificação definitiva.
Não há investimento no aprofundamento drástico das diferenças entre a natureza
das gentes, das coisas e dos seres segundo seu distanciamento físico, posição,
parentesco ou outro classificador. Em contrapartida, a ênfase concentra-se nos diversos
gradientes de proximidade físico-conceitual e daí a possibilidade de relação entre estas
entidades.
É importante destacar que de forma alguma digo aqui que o mundo Rikbaktsa é
indiferenciado. Pelo contrário, a identidade completa é algo que não existe nele
(Deleuze 1968), que é talhado de modo a que diferenças irredutíveis sejam, contudo,
irremediavelmente comunicáveis. O estabelecimento de diferenças ou perspectivas não
tem na “humanidade” critério mais significativo do que algum outro. Justamente por ser
ela o dado partilhado que promove a possibilidade de haver interação; de haver o que se
poderia chamar de “presa” e “predador”, caso os “sujeitos” aí alocados não teimassem
em se misturar e, inusitadamente, trocar de lugar, sem que isso signifique para nenhum
deles a morte ou o trânsito definitivo a uma outra forma de existência.
As bipartições existem no universo Rikbaktsa, para o que bastaria citar a
existência de metades idealmente exógamas em sua organização social. Mas estas
oposições, como veremos (cf. Capítulo IV e V), não ocorrem à despeito de
inconsistências de reciprocidade (Gonçalves 2001a:354).
A oposição simétrica é evidente nos discursos sobre a organização social,
quando estão em questão as tarefas, as características e os ordenamentos rituais aos
quais as metades estariam submetidas. É, sem dúvida, um ideal, mas algo que, desde a
“geração” de um indivíduo até sua história de relações, envolve riscos, controvérsias e
alterações (cf. Capítulo IV).
53
Sobre a relação contígüa entre artefatos, corpos e pessoas ver Lagrou (2002:48).
96
A fascinante beleza equilibrada com a qual compõem a arte plumária, inclusive,
trama insistir em que a peça produzida é a simples expressão das asas e do rabo de uma
única ave “naturalmente” simétrica. Ganha “ares de natureza”, mas que os Rikbaktsa
escolheram construir minuciosamente em sua arte, através de um longo, ortodoxo e
multicentrado processo (às vezes arriscado) de captura, escolha, junção e composição
cuidadosa de materiais híbridos, provenientes de aves diversas e até de pessoas de
segmentos sociais diversos
54
. Sobre esta matéria heterogênea, que intercruza variadas
classificações nativas e relaciona uma diversidade de pessoas sem as quais é impossível
terminar a obra, administram uma “forma” que induz à percepção simétrica, mas que é
de uma materialidade e composição completamente originais e atentamente construídas.
Oposições há, mas encontram-se sempre minadas pela possibilidade de diluição,
uma condição de suscetibilidade que depende, entre outros fatores, da ação e da
percepção de homens e mulheres. Enquanto um caso particular e extremo da distinção,
as bipartições simétricas operam em determinados contextos mas não conseguem,
sozinhas, traduzir as relações e interações complexas entre “humanidade”, “natureza” e
“sobrenatureza”, como entre “homens” e “mulheres” ou mesmo entre as “metades”
Rikbaktsa (cf. Capítulo IV).
Distinções entre “reinos” ou “domínios” que eventualmente possam ser
alegadas, não trazem grande rendimento quando se procura entender a dinâmica de seu
mundo interativo. Mortos e outros seres metafísicos não habitam um "outro" mundo,
senão o "outro" do mesmo mundo dos vivos. Esta condição de partilha coloca-os em
constante estado de hesitação, ao mesmo tempo em que invoca e quase os obriga a
contínuas relações que, se envolvem espíritos e perspectivas, têm no "corpo" dos vivos,
segundo sua permeabilidade e distinções as quais pretendo aqui apresentar em algumas
de suas formas, o centro e o objeto de barganhas e prejuízos.
54
Lagrou (2002:42) destaca algo semelhante ao que digo, quando caracteriza como pertencente à
“comunidade” o traje feito das penas da harpia pelos Kaxinawa, em razão da festa do gavião-real.
CAPÍTULO II
PROXIMIDADES, DISTÂNCIAS VIRTUAIS E O TEMPO
O que está em jogo é a compreensão de que cada grupo
social ordena a objetividade de sua experiência como o
precipitado de uma lógica diferencial e dotada de
significado e, assim, faz da percepção humana uma
concepção histórica” (Sahlins 2004 [1976]:154)
É sempre difícil descrever uma população, falar algo acerca do que podemos
saber sobre seus encontros e deslocamentos espaciais no tempo. Optei aqui por tentar
entrelaçar doses de etnografia ao que costumamos chamar de história. Este é também
um modo de pensar a história como uma tentativa de contemplar pelo menos parte da
complexidade de interações entre agentes sociais, circunstâncias contextuais e
determinações múltiplas que certamente a compõem. Um modo de entender tudo isto a
partir de uma perspectiva que associa aspectos da “cosmosociologia” e da percepção
Rikbaktsa da identidade/alteridade abordados até aqui, àqueles mais propriamente
exógenos. Estes últimos têm sido freqüentemente descritos como fatos inelutáveis frente
aos quais as populações se “conformam”.
Têm total relação com o modo de circulação, ocupação e “negociação” do
espaço, não apenas a disposição dos múltiplos grupos locais Rikbaktsa e a singularidade
de suas interações, mas também o repertório de noções nativas um tanto tangenciais de
“humanidade” e “inimizade”, assim como as concepções de “vida”, “morte” e sua
articulação na própria escatologia Rikbaktsa. Noções estas das quais, entre outros
fatores aqui tratados, deriva aquela forma de juntarem-se, separarem-se e distribuirem-
se no decorrer do tempo, entre eles mesmos e entre personagens diversas.
Tão indiscutível quanto o fato de que o contato com os brancos intensifica ou
altera o significado de algumas práticas nativas (Viveiros de Castro 2002a:342) é o
pressuposto de que a alteração é constitutiva dos sistemas sociocosmológicos. Neste
sentido, movimentos espaciais, fissões ou fusões de subgrupos, aproximações e
afastamentos em aspectos e direções diversos devem ser contemplados enquanto parte
de uma dinâmica que não é nem determinada unilateralmente por aquele contato e
muito menos inaugurada por esta circunstância (idem:339).
98
Por outro lado, é interessante que a descrição e o entendimento mais satisfatório
das situações e fatos da socialidade aldeã não possa prescindir do forte aspecto multi-
local e diacrônico de seus movimentos espaciais. A etnografia, tratando-se aqui do
modo de percepção de si e dos outros – de inimigos e mortos a outros seres metafísicos
-, seu modo de organização social, não apenas inclui o “tempo” mas, igualmente, marca
o destino de seus percursos propriamente históricos.
Encontros com os brancos e outras etnias, invasão categórica de seus territórios,
epidemias, feitiço, conquista de almas tencionada por credos diversos, embates e mortes
são algumas faces deste estado intenso de coisas. A construção de uma certa cronologia
para tudo isso é menos importante do que a tentativa de trazer à luz algo acerca de como
e porque ocupam hoje uma dada região de um modo determinado, e de como esta
ocupação parece ser sempre revigorada pelo tempo e pela dinâmica das relações
cotidianas entre pessoas e grupos.
UM POUCO DO ESPAÇO RIKBAKTSA
Há trabalhos que abordam a história Rikbaktsa de modo detalhado, notadamente
no que concerne aos episódios localizados no período de tentativas de contato por parte
de Jesuítas e protestantes
55
. Segundo a profundidade temporal permitida pelos registros,
ocupavam uma vasta região da bacia do rio Juruena, algo entre 30 e 50 mil km² (cf.
Dornstauder 1975:28). Esta extensão é, pelo menos, dez vezes maior do que região
atualmente ocupada por suas TI.
Sua área de dispersão, no início do século XX (Hahn 1976:27), configurava-se
entre alguns limites determinados. Ao sul, pela barra do rio Papagaio, ponto de partida
da exploração seringueira em 1952 (cf. Dornstauder 1975:11). Ao norte, nas
proximidades do Salto Augusto, no alto Tapajós. A oeste, nas imediações do rio
Aripuanã e a leste, até o rio Arinos, próximo ao rio dos Peixes, em área limítrofe àquela
ocupada pelos Kayabi. Regiões como o Aripuanã, no extremo noroeste do estado de
Mato Grosso, além de serem atualmente evocadas como origem de determinados
indivíduos e suas parentelas, é lugar de muitos acontecimentos míticos e expedições
realizadas pelas gerações antecedentes.
55
Para maiores informações, remeto o leitor especialmente ao trabalho de Pacini (Pacini 1999), que é a
compilação de preciosas informações acerca da localização de grupos e análise do processo dos contatos
leigo, protestante e, sobretudo, jesuítico.
99
Apesar desta extensa área de circulação, não são diretamente registrados por
quaisquer expedições científicas e viajantes que atravessaram a região. Inclui-se aí a
expedição ao rio do Sangue realizada pelas “Linhas Telegráficas”, em 1915
56
(Rondon
1946). Talvez estivessem encobertos por outros etnônimos (como Nambikwara, Apiaká
ou Kawahib
57
) ou ainda pela classificação de “índios bravos”.
O fato de então habitarem as cabeceiras e não as margens dos córregos pode ter
sido também crucial para a ausência de registros mais antigos. As menções aos “orelhas
de pau” ou “canoeiros” começam a acontecer apenas a partir de 1952
58
, geradas,
notadamente, a partir de encontros com a frente de expansão seringueira que avançava
em direção ao baixo curso do rio Arinos (cf. Dornstauder 1975:21).
Grupos indígenas circunvizinhos, contudo, inimigos Rikbaktsa por regra, dão
conta de sua presença na região. Tiveram relações em algum momento hostis com os
Iranxe, Pareci, Nambikwara, Tapayúna (Beiço de Pau), Munduruku, Kayabi, Apiaká e
também com os Suruí e os Cinta Larga (cf. Hahn 1976:30; Arruda 1992:150-153; Pacini
1999:3). Os Iranxe e, principalmente, os Cinta Larga – com os quais tiveram embates e
sofreram deslocamentos territoriais importantes na margem esquerda do rio Juruena -
dominam o repertório de conflitos inter-tribais atuais
59
.
A esta altura já está claro que os Rikbaktsa distinguem pelo menos duas macro-
subdivisões em sua organização social e que funcionariam, à princípio, como metades
exogâmicas (cf. Hahn 1976:58). Estas metades são compostas por um número desigual
56
Dornstauder, em 1959, localiza uma “maloca” Rikbaktsa em um pequeno afluente do rio do Sangue (cf.
Pacini 1999:101b), no mesmo local que, em 1915, a Comissão Rondon identifica uma “maloca” sem
especificar a etnia (Rondon 1946:23).
57
Tanto os Kayabi quanto os próprios Parintintin chamavam os Rikbaktsa por Kauaíp, o que conduziu ao
pensamento de que poderiam tratar-se de um grupo Tupi. Nas primeiras expedições jesuíticas com intuito
de realizar contatos pacíficos seguia, entre índios Iranxe e Kayabi, um Parintintin especialmente trazido
para atuar como “intérprete”.
58
Procurei em toda a bibliografia e nenhum autor especifica esta referência de 1942, utilizada por Pacini
(1999). Usam-se suposições mas não fontes bibliográficas. 1952 é o ano do ataque mais antigo a
seringueiro, registrado por Dornstauder.
59
A equipe de profissionais da FUNASA, ao que pude testemunhar, enfrentava no ano de 2003 uma certa
resistência por parte de algumas aldeias. Entre algumas “desventuras” do atendimento, a versão corrente é
que, na concepção Rikbaktsa, a mesma seria, de alguma maneira, associada aos Cinta Larga, para quem
também presta serviços. Em certa ocasião, estes mesmos profissionais tentavam fazer com que um
punhado de mulheres e crianças Rikbaktsa afirmassem que agora eram “amigos” dos Cinta Larga, ao que
não deram resposta, apenas balançando a cabeça, sugerindo a negativa. Umas das execuções mais
recentes é, contudo, de um índio Iranxe casado com uma mulher Rikbaktsa, que morava na aldeia do
Barranco Vermelho com seus filhos e com o qual mantinham algumas relações de afinidade (cf.Capítulo
IV). Em parte, os tempos de adminstração jesuítica do Barranco Vermelho favoreceram esta situação. A
esposa Rikbaktsa do homem executado, mais de 15 anos depois do ocorrido, mantém-se em uma aldeia
Iranxe e, em visita, não dorme na casa de seus parentes (cf. Pacini, comunicação pessoal). Têm hoje e,
por enquanto, relações amigáveis com os Pareci, Kayabi do rio dos Peixes e Enawenê-Nawê, aos quais
chamam de Salumã.
100
de clãs, e cada qual é referida pelo nome do clã a que consideram central: Makwaraktsa
(Ara ararauna), a arara canindé, a que chamam de “arara amarela”, e Hazobiktsa (Ara
chloroptera), uma espécie de arara vermelha, a que chamam de “arara cabeçuda”.
Há, contudo, alguns complexificadores que atingem tanto a compreensão de sua
composição quanto das natureza das relações matrimoniais e para-matrimoniais entre
estes segmentos. A ausência de prescrições matrimoniais positivas, a negociação e
mutabilidade potencial no campo das relações de afinidade e consangüinidade e a eterna
discussão acerca da paternidade de muitos indivíduos são alguns deles. Fatores de tal
ordem, entre outras decorrências, conduzem à permanente reelaboração de distâncias,
proximidades, compatibilidades e incompatibilidades entre clãs de uma mesma metade
ou de metades diferentes, atuando em uma direção sempre inversa à de qualquer regra
mecânica.
É preciso dizer ainda, que a estes macro-segmentos não correspondem quaisquer
associações distintivas de tipo territorial, espacial ou lingüístico-dialetal. Diferenças são
transitoriamente perceptíveis, aqui e acolá, em alguns traços da plumária, na
onomástica, na distribuição e partilha de tarefas, na configuração das lealdades e
conflitos cotidianos e, sobretudo, na esfera dos ritos, que são uma espécie de
potencialização dinâmica daquelas situações. Fronteiras, tanto entre estes grupos quanto
entre os diversos wahoro são tão flexíveis quanto descentradas.
Todavia, o pertencimento clânico, a regra de descendência e, com maior ou
menor discussão, as teorias conceptivas, são marcadamente patrilineares. A residência
uxorilocal é, ao menos atualmente e quiçá também no passado, mais um princípio ou
tendência temporária, do que um comportamento efetivo. Quando evocada ou praticada
opera uma combinação interessante entre as diretrizes patricentradas do pertencimento
clânico e filiação, bastante elucidativa da dinâmica social Rikbaktsa.
Dentro do escopo dos relatos disponíveis, seus aldeamentos compunham-se de
uma ou mais casas (wahoro) que abrigavam vários núcleos familiares especialmente
relacionados. Em algumas regiões havia uma “casa de ritual”
60
(patamy), mais afastada
60
Há menção a uma construção atual na TI Escondido designada por unowytsa, que Pacini glosa como
“moradia do bom espírito” (cf. Pacini 1999:137), mas cuja a tradução é algo como “aqueles ou gente da
noite”. A referência é a seres metafísicos e, principalmente, aos aspectos dos mortos, potencialmente
predadores, que vivem em um mundo invertido e por isso andam à noite (cf. Introdução, Capítulo III).
Segundo Pacini (comunicação pessoal) a unowytsa do Escondido foi construída em um lugar que voltaria
a ser habitado, com o objetivo de se reconciliarem com o “espírito dos mortos” e de todos os seres que
habitariam a região. É construída por indivíduos que sabemos serem xamãs, embora tal função seja
mencionada apenas em alguns contextos específicos. Em das aldeias em que trabalhei havia também uma
outra construção, sem paredes, bem à entrada da aldeia, além do próprio mykyry. Esta construção
101
dos wahoro, utilizada por vários deles para ocasiões coletivas importantes como a
nominação e execução de pena de morte (Holanda 1994:297)
61
.
O wahoro foi, durante o processo de pacificação, chamado por “maloca”, em
uma extensão do termo corrente do SPI (Pacini 1999:7). Usualmente o espaço reservado
a cada família dispunha-se em subdivisões marcadas por “fogos” respectivos.
Internamente ao wahoro poderia haver ainda um espaço retangular, demarcado
por paus fincados, destinado a encontros e atividades masculinos, e ao pouso de
visitantes e rapazes solteiros, o mykyry (Schultz 1964:237). Em uma outra disposição, o
mykyry consistia em um tipo de habitação separado mas próximo à casa maior, sem
qualquer posição predeterminada.
Fabricação de flechas e artefatos plumários, atividades caracteristicamente
masculinas, cocção e degustação notadamente de cabeças de caças valorizadas marcam
o espaço do mykyry. Maxilares de queixadas, cabeças de macaco e ossos de aves são
pendurados por entre os esteios. Também crânios de inimigos, quando comidos, eram
ali dependurados.
A configuração prototípica de um wahoro é diretamente influenciada pela
uxorilocalidade. Compõe-se de um homem, sua esposa ou esposas; se vivos, o pai e mãe
de sua primeira esposa; filhos e filhas solteiras; filhas casadas e seus maridos; filhos e
filhas de sua filha.
Variações significativas podem ocorrer, contudo, segundo a idade e o prestígio
destes homens e o fato de sua mulher ter ou não pais vivos. Assim, homens estimados
podem não praticar a uxorilocalidade
62
, e isto provocará a possibilidade de agregação de
parentes patrilaterais, como por exemplo, irmãos mais novos e suas parentelas.
Atualmente são múltiplas as composições das aldeias. A grande tendência,
observada sobretudo em aldeias maiores, é a singularização dos núcleos familiares. A
uxorilocalidade pode ser temporária, embora mantenham-se estreitas as relações entre
sogro, cunhados e genro após a separação física do wahoro. Em muitos casos a
destinava-se a “curas” coletivas, mas também, em outros momentos, a festas comunitárias. A descrição
lembra bastante aquela feita por Holanda (1994:297) da casa de ritual (patamy), por só ter um esteio
central, sem paredes. No cotidiano, evitam-se brincadeiras ou gritos das crianças em seu interior.
Disseram-me, contudo, que era diferente da unowytsa construída no Escondido, e que era também um
mykyry.
61
Não há, atualmente ao menos, espaço ou ocasião marcada para que uma criança seja nominada. A troca
ou o recebimento de um novo nome, entretanto, exige ocasião específica, acontecendo somente durante as
festas da estação chuvosa. Para a execução ouvi descrições em que ela aconteceu ou finalizou-se no
próprio pátio da aldeia, onde pudesse ser coletivamente testemunhada.
62
Este ponto será abalisado no Capítulo IV.
102
uxorilocalidade verte-se em patrilocalidade, como mencionado, quando estão em
questão destacados homens mais velhos e seus filhos. O fato da esposa ter ou não pai
vivo e com quê grau de prestígio continua, contudo, a ser um dado importante nesta
situação.
Há ainda aldeias compostas por apenas um wahoro, de constituição bastante
semelhante àquela prototípica. Nestes casos, as motivações podem ser particularmente
interessantes. Aqui permito-me uma breve digressão mas que parece ser, ao mesmo
tempo, totalmente pertinente à tarefa de entender a diacronia Rikbaktsa.
Hoje, como no passado, a movimentação, agregação e cisão de grupos locais no
espaço é, em grande parte, influenciada pela qualidade das relações intra-aldeãs, e
também aquelas referenciadas ao coletivo das aldeias Rikbaktsa. Uma dinâmica global
extremamente sujeita ao evento, mais do que a regras predeterminadas.
Um wahoro singular ou uma pequena aldeia afastada de aldeias maiores, pode
resultar de algum tipo de sanção temporária imposta pela coletividade. Uma espécie de
repreensão por atitude reprovada e que poderá extinguir-se com o tempo.
Comportamentos como homicídios injustificados, deslealdades públicas – roubo,
engano, traição – das quais resultem prejuízo coletivo ou morte, são os casos mais
comuns.
O grupo afastado poderá, depois de algum tempo e caso seja sua vontade,
retornar à convivência mais intensa, na aldeia que havia deixado ou em alguma outra. O
mais comum é que estas pequenas aldeias se consolidem, agregando pessoas através de
casamentos ou outras relações de proximidade.
Uma segunda determinação para este tipo de retiro é uma das mais recorrentes e,
sobretudo, apropriadas ao “espírito” notadamente perverso da solidariedade aldeã
Rikbaktsa (cf. Introdução). O desejo ou cautela de alguém em retirar-se à convivência
aberta ou veladamente conflituosa, fonte fecunda de desentendimentos, feitiços e
homicídios. Ao mesmo tempo em que cada uma destas motivações, em particular, é
capaz de conduzir diretamente à morte de alguém, juntas, podem integrar também um
processo que inicia-se na contenda e terminará no infortúnio fatal. A solução é o
afastamento físico, transferindo-se de uma aldeia mais populosa a locais menos
acessíveis, ou a mudança para outra alguma outra aldeia.
É fundamental ter-se em mente esta dinâmica de produção, alteração e extinção
de grupos e a respectiva distribuição espacial que virá a ser uma de suas conseqüências.
Este dado torna mais significativo o fato de que, à época das primeiras tentativas de
103
contato pacífico, em 1957, foram encontrados 52 wahoro Rikbaktsa, dos quais 15
permaneciam ocupados em 1962 (cf. Pacini 1999:7). O número de habitantes variava
entre 15 até 70 ou 80, acomodados em três casas grandes (Tolksdorf 1996 [1959]:57,
59).
Migrações, principalmente durante a estação seca, marcavam sua movimentação
territorial. Apenas doentes e alguém que os cuidasse permaneciam nos wahoro (Hahn
1976:64). Com destinos bastante determinados, as expedições buscavam, entre outros
recursos, “suprimentos de guerra” (idem:27), como taquaras, pontas de flecha jurupará -
usada para matar animais grandes e gente (Holanda 1994:291)-, madeiras e penas para
seus arcos e flechas e artefatos plumários (Hahn 1976:64). Sabendo onde encontrá-los,
seguiam caminho acampando em locais diversos, caçando, coletando frutas silvestres
para as chichas, plantas curativas e capturando filhotes de aves valorizadas para criação.
É muito difundida a idéia de autonomia destes sub-grupos no que concerne ao
que se covencionou chamar de domínio “político”. Sua configuração foi
apressadamente confundida com a ausência de unidade política (Boswood 1971:1).
Admite-se, por outro lado, relações pela via de alianças matrimoniais, ritos ou até
conflitos inter-grupais (Arruda 1992:156). É verdade que, nas questões relativas à
“chefia’, que são também aquelas às quais costumamos designar por “políticas”, os
Rikbaktsa demonstraram-se sempre um tanto atomizados (Clastres 1978).
No decorrer do tempo, missionários e os próprios órgãos oficiais exigiram e
fomentaram intensamente a idéia de “chefia” em cada aldeia e para os Rikbaktsa em
geral. Mesmo assim, ainda hoje não há consenso nem quanto à obediência e nem quanto
à correspondência entre o prestígio alcançado por alguns homens e seus respectivos
“cargos”.
O prestígio mais ou menos generalizado de alguns homens mais velhos pode
gerar obediência, respeito ou medo de vários segmentos da população de um ou mais
grupos locais então aliados ou não. Em acréscimo, o patente caráter coletivo de muitas
atividades, ou seja, sua propriedade potencial de reunir vários wahoro de uma mesma
região ou de localização diversa, expressa-se desde ritos e excursões sazonais, até a
produção da plumária.
Não obstante, esta reunião de diferentes grupos - que não significaria
necessariamente sua união - não é vista senão como uma situação provisória. O que a
pluralidade de pequenos aldeamentos expressa, de certa forma, é um desejo de que cada
qual saiba e cuide dos “seus”, até quando isto for possível. Porém, o frágil limite deste
104
cuidado é a distância freqüentemente inaugurada tanto por conflitos abertos quanto por
desconfianças dissimuladas no seio da vizinhança e até da co-residência. Uma outra
conseqüência indireta disto é que o destino destas pessoas ou famílias distanciadas pode
ser o de agregarem-se a outros wahoro.
Se estas "unidades" aparentam atomização têm, por outro lado, constituição
mutável. Esta característica vai de encontro, justamente, à idéia de isolamento ou
ausência da noção de alguma totalidade para além dos próprios grupos locais.
Traços inquestionáveis de autonomia juntam-se aqui à delicadeza dos laços
aldeãos e à grandeza alcançada pelas relações entre os grupos locais. Apesar das
mudanças corriqueiras na localização dos wahoro, muitos deles permaneciam
interligados (Dornstauder [1958] apud Pacini 1999:47). Os índios eram capazes de
indicar, com precisão, os locais e as distâncias entre aldeias das diferentes micro-
regiões, incluindo aquelas com as quais não tinham relações amigáveis (Tolksdorf
[1959]:54). Havia entre estes grupos locais, de região a região, uma grande circulação
de “bens” e “pessoas” através de pequenas migrações e visitas usuais, como também
pelas grandes expedições da estação seca, que podiam reunir mais de um wahoro.
Os inter-casamentos e encontros cerimoniais também não devem ser vistos, de
forma alguma, enquanto momentos pontuais e excepcionais. Notadamente no caso
Rikbaktsa, tanto casamentos quanto outros ritos, como os da estação seca e chuvosa ou
os funerários, além de admitirem longas durações, são francamente capazes de alterar
temporária ou definitivamente a composição dos grupos locais. Visitações diversas, com
caráter mais ou menos duradouro a depender das fases dos ritos, geram novas alianças,
lealdades como também rupturas.
Desejo afirmar aqui a intensidade dos laços solidários e até conflitivos entre os
diferentes grupos locais Rikbaktsa. A relativa rapidez com que difundiu-se a notícia dos
primeiros contatos amigáveis com os jesuítas, à margem esquerda do rio Arinos,
corrobora minha afirmação. Propagou-se por uma extensa “rede” que relacionava este
grupo a outros mais distantes, como os do Escondido, no baixo curso do rio Juruena (cf.
Dornstauder 1975:184, Pacini 1999:210).
Ataques combinados, concomitantes e multi-localizados aos seringueiros
apontam nesta mesma direção (Pacini 1999:206). Esta sistematicidade, apenas possível
pela qualidade das interações entre aqueles grupos, representou um diferencial entre
armas de fogo, flechas incendiárias e bordunas durante algum tempo (Moura e Silva
apud Dornstauder 1975:6). O fato é que os Rikbaktsa apresentavam e apresentam uma
105
geografia muito peculiar de encontros cerimoniais, casamentos, rivalidades e conflitos.
À época dos primeiros contatos pacíficos eram ainda praticantes do canibalismo
guerreiro, particularmente dirigido a outras “etnias”. Eventualmente, contudo, execução
e repasto poderiam acontecer internamente, sob a forma de uma espécie de punição
exemplar, dirigida a homens de comportamento desaprovado e testemunhada por
indivíduos de várias aldeias (Holanda 1994:298).
Vistas desta maneira, a dispersão tanto quanto a reunião destas unidades
aparecem como momentâneas porém contínuas, intensificando-se em ocasiões
específicas (Pacini 1999:50, 206). Relações de dupla vinculação mantinham os grupos
encerrados em um mesmo conjunto de trocas matrimoniais, materiais e cerimoniais,
pregnante de contra-prestações de bens e pessoas mas também de vinganças e
rivalidades. Grupos então em conflito não eram convidados para determinadas festas e
outros sequer se tinham visto frente a frente (cf. Dornstauder 1975:184).
Diferenças mais significativas vinham se acumulando, resolvendo-se muitas
vezes em mortes. Confrontando por um lado, aliando unidades por outro, foi gerada
uma configuração espacial que acabava por congregar grupos mais ou menos associados
em micro-regiões determinadas de seu território. A distribuição espacial destas
rivalidades ficou notória, e é sabida a existência de agregados dos wahoro Rikbaktsa,
relativamente marcados e em disputa com outros conjuntos igualmente definidos.
Assim, aliavam-se e opunham-se os Rikbaktsa médio Juruena e os do
Escondido; os do Arinos e os das imediações do rio do Sangue, e estes com os do alto
Juruena (cf. Arruda 1992:156; Pacini 1999:50, 206), além dos Rikbaktsa “arredios” do
Aripuanã (cf. Arruda 1992:188), temidos pelos Rikbaktsa do alto e médio Juruena e
conhecidos por suas expedições até regiões que provavelmente corresponderiam aos
estados do Amazonas e do Pará (cf. Tolksdorf 1997 [1959]:61)
63
.
Desta forma, brigas e disputas atuaram lado a lado com grandes reuniões
cerimoniais, determinando junções e separações que redundaram em uma dinâmica
própria de distribuição e flutuação espacial. Quanto à dimensão dos grupos, a
efervecência social, intensificada por casamentos e festas, poderia aumentar
efetivamente a extensão de uma aldeia, mas esta situação não era mais do que
temporária.
63
Há registro da chegada a um dos posto de assistência de um casal fugido dos Rikbaktsa mais “bravos”,
que circulariam mais ao norte do rio Arinos (Tolksdorf 1996[1960]:165).
106
Fatalmente, os grupos de parentesco retomavam distância, através da própria
dinâmica dos conflitos que poderiam conduzir as disputas até a morte (cf. Arruda
1992:251-252). Rivière descreve uma situação semelhante entre os Trio e observa que
não se poderia afirmar exatamente se, nestes casos, a mobilidade espacial permitiria a
neutralização das “tensões sociais” ou se, por outro lado, as “tensões sociais” é que
teriam impulsionado a mobilidade dos grupos (Rivière 2000:253).
Nota-se, contudo, uma tendência de que a aldeia ou os grupos que a compõem
não se estabeleçam definitivamente em um determinado lugar. É bastante comum tanto
a mudança para outros locais, quanto o retorno, após algum tempo, a áreas outrora
habitadas.
Deslocamentos poderiam acontecer, como hoje, também pela morte de
parentes
64
ou pelo esgotamento temporário de recursos naturais. Entretanto, em sua
maioria, remeteriam à suspeita de feitiçaria e acusações em torno de roubo, avareza,
ciúmes conjugais ou mau temperamento (Hahn 1976:81). Sanções a estas atitudes
estendiam-se desde a fofoca, a evitação e a quebra das relações de troca, até o homicídio
(Hahn 1976:71).
Hahn (1976:71) observa a ocorrência de múltiplos “incidentes de matança em
larga escala”, descritos precisamente pelos índios. As motivações gerais eram,
igualmente, "mau" comportamento social, ciúme e vingança. Flechadas, golpes,
machadadas, bordunadas, juntam-se ao “envenenamento”, que é a forma de feitiço mais
notória entre os Rikbaktsa.
Assim, conflitos de mesma natureza levariam tanto a deslocamentos territoriais
quanto aos homicídios, indicando que as migrações provavelmente atendiam também a
uma forma de evitação deste desfecho. Quando usamos a perspectiva histórica das
micro-regiões que entredisputavam-se, vêm à consideração fatos bastante significativos
a este respeito.
Como veremos, ainda após a nominada “pacificação”, alguns grupos recusavam-
se ao contato, rechaçando, inclusive, aproximações com o restante das aldeias (Hahn
1976:3). Com os grupos situados à margem esquerda do rio Aripuanã, os Rikbaktsa do
baixo Juruena tinham relações hostis, apesar dos laços de parentesco; com um outro
grupo, ao noroeste do Bararati, não falavam nem guerreavam (Schmidt apud Pacini
1999:134).
64
Esta é mais uma analogia com os Trio e, segundo Rivière (op. cit.:261), esta é uma prática comum nas
Guianas.
107
Apesar de ignorarmos a natureza precisa destes “laços de parentesco”, esta
informação indica, ao menos, que o estado conflitivo quase permanente não seria nem
indiscriminado, nem aleatório. Sugere também ser a “relação” uma espécie de
“condição” para a guerra.
Os costumeiros conflitos clânicos poderiam acontecer mesmo por ocasião de
“fuxicos” (sokpehe) femininos, chegando à execução pública de um homem (Holanda
1994:297-8). Se os outros clãs tomassem conhecimento do comentário maldoso,
reuniam-se em três ou quatro homens e dirigiam-se para a aldeia do clã de origem dos
“fuxicos”, com a finalidade de matar um ou dois homens com “veneno de flecha” e
comê-los na casa ritual
65
.
Traziam o morto, colocavam-no na casa ritual e o comiam, segundo as etiquetas
prescritas de preparação e repasto. Se vivo, traziam-no e amarravam seus braços na
cruz, porque ele “não prestava para viver entre eles”. Depois de amarrado, um homem
mais velho virava para a vítima e dizia: “- você não presta! Você vai morrer! a gente vai
comer tudo de você, e não vai sobrar nada de carne!”. Todos ficavam quietos e a esposa
e filhos da vítima choravam, “com dó”. Depois desta récita, tocavam a buzina de guerra
(purawy) - a mesma utilizada nas festas de derrubada de roças novas e nos desfechos
das festas da estação chuvosa - e matavam a vítima com lança (tanurã).
Desatavam a vítima, que caía ao chão. Seu rosto era coberto com embira. O
corpo era cortado com a ponta de flecha jurupará
66
, usada para caça de grandes animais
e para a “guerra”, e concha (tutãra) de caramujo-do-mato. Faziam fogo, assavam a
carne e dançavam. Antes de comer matavam um tentenzinho (tsõtsõ) e cada homem
chupava o miolo
67
para dar mais fome e não desperdiçar a carne do morto.
Apenas parte da carne era consumida e o restante dependurado em um varal
exterior à casa ritual, onde “secava”. Uma variedade de abelhas e marimbondos eram
criados dentro e fora da casa ritual, de modo que chupassem o sangue e comessem os
65
Como dito em outra ocasião, na casa ritual davam-se nomes e executavam-se as penas de morte
(Holanda 1994:297). No centro da casa ritual havia um pau em cruz onde os dois braços da vítima eram
amarrados com embira pau-de-novato (posuktsa).
66
A ponta de flecha jurupará (zayta) é um artefato extremamente valorizado pelos Rikbaktsa. É um dos
produtos em busca dos quais migram na seca Juruena abaixo, em direção ao Escondido, pois dizem
existir nesta região. Possuir uma ponta de flecha jurupará parece ser uma questão de status (Pacini com.
pessoal).
67
O miolo, notadamente o do inimigo, nos relatos históricos, e o do macaco, nos relatos atuais, é
considerado como uma das mais saborosas partes da carne.
108
pedacinhos de carne que eventualmente caíssem no chão. Como acreditavam, o
marimbondo carniceiro e as abelhas xupé levariam o sangue e misturariam ao mel
68
.
Cumpridas estas etapas, distribuíam o restante da carne pelas outras aldeias.
Homens de outros clãs, “resmunguentos” ou muito “brabos” podiam também virem a
ser mortos. Mulheres não eram mortas e, quando casadas com um executado, recebiam
novos maridos
69
.
Todas as formas de canibalismo ficavam limitadas aos homens mais velhos e
também às mulheres mais velhas, que não produziam mais filhos. Homens com filhos
pequenos não podiam comer da carne, como também os mais jovens, sob a pena de
morte por quedas das árvores ou por mordidas de cobra. Há relatos de que seus futuros
filhos poderiam nascer com corpos incompletos ou ter pouco tempo de vida.
Merece menção o fato das mulheres não serem mortas nesta espécie de “endo”
70
-
canibalismo e de que novos maridos, e portanto alianças, lhes fossem arranjados após à
execução. Para além da possibilidade do canibalismo figurar como contrapartida de não-
casamento ou ausência de reciprocidade, isto poderia significar uma assimetria nas
relações entre os clãs ou ao menos alguma insatisfação com parceiros de troca (Viveiros
de Castro 1993:191).
Contudo, o canibalismo Rikbaktsa parece ser algo mais do que um mecanismo
homeostático para corrigir “desequilíbrios” ou “negações” matrimoniais. Como afirma
Viveiros de Castro (1993) para os Tupinambá, o “sacrifício do inimigo (é o), momento
de congregação de numerosas aldeias aliadas em torno de um afim exterior, para
devorá-lo...” (idem:189). No caso Rikbaktsa, proscrito da cognação e do próprio
complexo inter-aldeão, o executado, submetido à vexação, seria agora a realização de
uma potência antes sublimada mas jamais extinta: quem sabe, um “afim exterior” que
vivia “dentro”, para quem o comeria.
Apesar da escassez de dados, poderíamos dizer que os personagens alocados
nestas posições - inimigos, aldeias aliadas, afins exteriores - pela própria cosmologia
Rikbaktsa, conforme vem sendo descrita, estariam bem menos “definidos” na execução
68
É interessante repararmos que, durante os processos de construção/transformação do corpo, não se pode
comer mel de determinadas abelhas, o que talvez indicasse uma forma indireta de canibalismo, como
veremos mais abaixo, proibido para homens jovens.
69
Segundo a informante de Holanda, “não matava as mulheres porque as mulheres é que aumentam os
homens” (Holanda 1994:298).
70
Declino um pouco em designar este canibalismo de “endo” e o praticado, por exemplo, com Cinta
Larga e Seringueiros como “exo”, por isso coloco ambos entre aspas. São poucos os dados sobre isso e,
embora faça sentido que estas práticas sejam de graus diferentes, é prematuro qualificarmos de modo
oposicional as relações entre estes conjuntos.
109
da casa ritual e nos desdobramentos supra-locais do rito canibal. Esta heterogeneidade
sincrônica de perspectivas seria, possivelmente, também temporal, e poderia não tardar
para aquele que comia ou observava o destino exemplar daqueles que não se “prestavam
a viver dentro”, estar nesta ou em outra posição, conforme os grupos relacionados.
Em outra referência a Viveiros de Castro, aqui o “fantasma canibal” parece não
apenas rondar por “fora” mas irromper em algum lugar no “interior” do socius
(Viveiros de Castro 1993:191). É idéia que articula no mito mas é prática que também
divide o que teríamos a princípio como um “grupo”, de forma mais evidente no ritual,
mas também na vida cotidiana. Ainda mais. Não sabemos exatamente qual destes
espaços é seu ponto de partida ou chegada, se há sobredeterminação entre estas
“dimensões” ou modo de caracterizá-las sem provocar mais equívocos do que
esclarecimentos.
Consideramos, até este ponto, aldeias separadas, com distâncias provavelmente
percorridas à pé. Observamos, entretanto, que um eixo co-existente destas disputas pode
estar ainda mais interiorizado
71
, redefinindo fronteiras, posições, relações e inimigos.
Neste sentido, Schultz destaca a animosidade das relações entre os moradores de dois
wahoro praticamente contíguos e proximamente aparentados, no alto Juruena.
Afirma Ipatôto - segundo a classificação do autor, parente consangüíneo de
Mapatáti -Mapatáti brabo”, acrescentando ainda, que desejaria vê-lo e a seus homens
todos mortos (Schultz 1964:269). Os Homens de Mapatáti, por sua vez, teriam
assassinado um índio do interior da região, que diziam ser parente de Ipatôto. Entre um
e outro surgia ainda a disputa velada por uma das esposas de Mapatádi, ao que este
último jura Ipatôto de morte pelas mãos do irmão, um reconhecido matador, Tapiama.
Em contrapartida, Hahn registra, no último grupo do Escondido a transferir-se
para a Reserva Erikpatsa, que um homem velho, um sênior de seu grupo, lhe contara
primeiramente que todos os seus parentes “afins” (zopotsa) teriam morrido. Em outra
ocasião, este mesmo homem lista, destes parentes, todos que havia matado (Hahn
1976:58). É fácil conceber tal situação quando pensamos na conjugação potencialmente
perversa entre metades exogâmicas patrilineares, na regra uxorilocal e nos ferrenhos
antagonismos entre clãs. Um homem casado, por definição, habitaria entre aqueles que
não são de seu clã e, portanto, em um terreno de inimizade potencial.
71
Alés cita, entre os Yanomami, ataques e agressões a vizinhos e também co-residentes (2000:145).
110
Inimizade potencializada se consideramos, como mencionei anteriormente, a
composição prototípica destas aldeias. Nelas poderiam coabitar ainda outros clãs
igualmente antagônicos, via a articulação entre casamento, regra uxorilocal e
patrilinearidade, visto que não há prescrições matrimoniais positivas e efetivas entre
clãs ou mesmo entre as metades. Se consideramos a possibilidade de múltiplas
combinações, cada aldeia poderia, a princípio, ter uma composição clânica bastante
diferenciada.
Assim, um grupo Rikbaktsa mata um homem porque ele queria se casar com
uma determinada mulher, enquanto o pai dela e outros se opunham à união (idem:61).
Casos destes são comuns, tanto com relação a homens com os quais não desejavam que
desposassem "suas" mulheres, quanto com relação a maridos "acidentalmente"
flechados durante caçadas por seus "cunhados" (cf. Capítulo IV).
A partir destes registros podemos melhor entender a sofisticada dinâmica da
socialidade Rikbaktsa
72
. Segundo o desenho deste contexto, a afirmação de Arruda de
que “as outras pessoas são companheiras quando do mesmo grupo, () ou aliadas e
inimigas quando pertencem a outros grupos” (1992:388) é adequada, conquanto sugira
inadvertidamente uma precisão de “espaços” e “limites” entre pessoas, grupos e
posições.
Pertencer ou não a algum grupo, de certo, marca relações de companheirismo e
inimizade. Porém, como sugeri anteriormente, este grupo, enquanto entidade
“inclusiva”, pode ser de composição extremamente mutável (remeto o leitor ao Capítulo
IV). Isto é tão mais verdadeiro quanto maiores os aldeamentos, pois, a princípio, mais
diferenciada poderá ser sua composição. Observamos que esta mutabilidade pode
chegar a um mínimo em aldeias que confundem-se com famílias extensas, sem,
contudo, extinguir-se, devido a um ideal uxorilocal e também às adoções, que podem
atingir as diversas gerações que as compõem. Não obstante, recolhi um exemplo de
fatricídio pelo fato de que um irmão queria ficar definitivamente com a esposa do outro.
Assim, haveria uma grande veiculação de pessoas e famílas por aldeias,
conforme “casamentos”, “separações” e mortes de parentes próximos. E é em uma
consonância estrutural, que não se pode alterar os membros do que se considera como
72
O objetivo é aproximar as guerras e conflitos de uma dinâmica cultural constitutiva, ao mesmo tempo
em que as afastamos, ao menos enquanto determinantes, de fatores ecológicos ou momentos históricos. A
este respeito ver Fausto (1999:255-7), que aplica um raciocínio semelhante com relação às interpretações
sobre o sentido e a explicação da guerra, tendo como exemplo os Yanomami.
111
“grupo” sem que isto atinja significativamente a distribuição das hostilidades, simpatias
e das posições entre as partes direta e indiretamente envolvidas.
Parece que, entre os Rikbaktsa, os planos político, cosmológico e ritual muitas
vezes confundem-se ou podem expressar-se plenamente no plano local (Viveiros de
Castro 1993:174). Contudo, seria pelo menos difícil assentarmos estas dimensões, mais
analíticas do que concretas, em espaços e posições determinadas. Neste sentido, tanto
espacialmente quanto composicionalmente, as aldeias e suas interações “hostis” ou
“amigáveis” parecem ser arranjos relativamente provisórios.
Levamos em conta o fato de que cada aldeia poderá comportar, então, uma gama
destes “grupos” diferentes e que podem combinar suas relações de modo variável, em
configurações também variáveis, segundo os contextos e contendas. Desta forma, as
relações cotidianas aldeãs abrigariam potencialmente diversos graus de conflito e
solidariedade diferencialmente dispostos e negociados pela rede de micro-relações que
as caracteriza.
Abrimos aqui um parêntese para falar dos “matadores” Rikbaktsa. Sabemos que
alguns índios eram especialmente designados para atacar inimigos, ocupando um lugar
de destaque na organização social (Pacini 1999:107). Pacini destaca que aqueles que são
os matadores de inimigos” ou os que cometem homicídios por ocasião de algum
conflito interno geralmente procuram lugares mais isolados, temendo a vingança “em
forma de violência física ou mesmo por feitiços (veneno)” (Pacini 1999:210).
Neste campo, uma distinção importante é a de que os Rikbaktsa, apesar do ethos
guerreiro, são indivíduos extremamente cordiais e com apurado senso de humor. Os
homens são, notadamente, pais atentos e amorosos, cuidando sempre das crianças,
quando necessário. Pude observar alguns indivíduos os quais sabia serem “matadores” -
o que é uma condição não tão incomum - e por vezes via tais características de certo
modo até mais apuradas. Pacini (comunicação pessoal) sugere que “tranqüilidade” e
“afabilidade” seriam espécies de prerrogativas para “escolha” de homens para este tipo
de tarefa, por conta da relativa aceitação que devem ter no socius.
Desta forma, os matadores não são precisamente pessoas instáveis (Fausto 1999:
268), com “instintos agressivos”, nos quais um comportamento chamado “violento” é
incentivado desde a mais tenra idade. São, ao contrário, indivíduos que aparecem na
classificação do grupo como tranqüilos, pacíficos e ponderados. Como os demais
Rikbaktsa, são serenos, cordiais e afetuosos.
112
Evoco a esta altura a noção Jívaro que diferencia o estatuto e a legitimidade do
“homicídio” propriamente dito daquelas mortes atribuídas a retaliações vingativas
(Harner 1984:172). De acordo com Harner, matar ou ofender membros da tribo seria
algo tão socialmente desaprovado quanto a punição de qualquer pessoa que venha a
praticar este mesmo ato, sob a forma de uma retribuição devidamente justificada
(id.:ib.). Acredito que esta distinção possa auxiliar-nos na direção de um
questionamento, sem esgotar, contudo, a complexidade e a peculiaridade destas ações
entre os Rikbaktsa.
Schultz repara no comportamento dito “ambíguo” de Tapiama, irmão do chefe
Mapadadi que, a algum descrédito do autor, é apontado pelos seringueiros como uma
espécie de “chefe geral” das malocas do Juruena. Diz ser este índio “introvertido e um
tanto apático, mas ao mesmo tempo amistoso”. Entretanto, seria apontado pelos demais
índios e seringueiros como “o matador da tribo, i.e., o executor das ordens de
Mapadadi” (Schultz 1964:264). Dornstauder relata ser um homem chamado
Matereocutipá, “experimentado matador de gente”(Dornstauder 1975:118). Segundo o
missionário, este homem mostrava-se muito afável e risonho. Posteriormente veremos
que o mesmo Matereocutipá acompanharia os seringueiros ao massacre dos Cinta
Larga.
Estes comportamentos, no caso Rikbaktsa, não seriam expressões de
“imperativos ético-polares” (Pinto 1997:33). Isto ocorre na medida em que ações
“violentas” nem sempre são pensadas enquanto tais e, ainda mais, como o lugar do não-
social, do instinto ou da instabilidade. Grande parte das vezes, são marcadamente
racionalizadas e julgadas, tanto quanto as mudanças de aldeia o seriam.
Arruda parece sugerir que a eclosão de conflitos internos estaria relacionada a
algum desequilíbrio momentâneo causado por uma desarticulação ou “descontrole”
social (1992:425). Em sua concepção bastante funcional, estes “atos violentos
permitiriam a “restauração da ordem”, numa “configuração modificada” (idem:456).
Entretanto, todas estas ocorrências parecem ser fidedignas à própria
característica socio-política Rikbaktsa, na medida em que as oposições e diferenças
entre facções sempre fizeram parte e, à sua maneira, articularam a sociedade Rikbaktsa.
Não são totalmente apagadas pela cognação, figurando como condições de seu aparato
ritual e de sua socialidade.
Neste sentido é que, se opositivas e facciosas, constituem, contudo, o reduto da
“relação”. Lembro da informação de que os Rikbaktsa não “falavam” e nem guerreavam
113
com alguns de seus sub-grupos. Devo aqui reinvocar as idéias expostas na Introdução de
que a “inimizade” é algo a mais ou a menos do que a ausência de trocas. Aqui, a
“relação” parece ser, ela mesma, uma espécie de condição para o conflito. Esta é,
também, uma chave para o entendimento das movimentações e da disposição Rikbaktsa
nas últimas cinco décadas de alta temperatura histórica.
É bastante difícil quantificar “guerras”, sobretudo as internas, mas também as
estabelecidas entre os Rikbaktsa e outras etnias. Enfrentamentos com os Kayabi, Iranxe,
Menky e Cinta Larga são generalizados
73
. Viviam, de um modo ou de outro, em um
estado permanente de guerras, mortes, e raptos.
De acordo com Pacini (1999:216), o objetivo destes enfrentamentos era a
aquisição de mulheres e instrumentos
74
- seus próprios e também conquistados de outros
grupos, como os brancos - e crianças para adotar, inclusive brancas (Hahn 1976:31).
Antes do primeiro contato pacífico em 1957, a regra das relações com outras tribos ou
brancos era a inimizade. As menções dos próprios Rikbaktsa a este período descrevem
mortes, antropofagia, seqüestro e outras formas de roubo” (Hahn 1976:31) (trad.
minha).
Ao nível de aldeias e pessoas, são comuns as descrições de mútuos ataques
fortuitos que ocorreriam em virtude da movimentação territorial peculiar às atividades
cotidianas. Em um sentido mais amplo, destaca-se especialmente sua ocorrência durante
as costumeiras expedições coletivas da estação da seca que, entre outros objetivos que
permanecem a motivá-las, tinham na busca de “inimigos”, uma preocupação central e
modo de estabelecimento, ganho ou perda de “limites” territoriais.
Por esta mesma razão, conflitos tornariam-se particularmente intensos a partir da
década de 50, com a generalização da ocupação seringueira. Seringueiros, inclusive,
muitas vezes apropriaram-se dos desentendimentos inter-tribais em sua estratégia
aniquiladora de usurpação territorial.
73
Para alguns exemplos da época da “pacificação”, temos conflitos com os Kayabi (cf. Tolksdorf
[1959]:55), com os Iranxe (cf. idem:77) e Cinta Larga (idem[1963]:216, 217).
74
Através de relatos da presença de certos instrumentos em gerações ascendentes, como machado de ferro,
bem como o domínio de seu manuseio por mais velhos, Hahn estima que os Rikbaktsa já tivessem
encontrado os brancos na virada do século XIX (Hahn 1976:31).
114
A GUERRA DA BORRACHA
No início da década de 40, com a 2ª Guerra Mundial, a demanda internacional
incentiva uma nova empreitada em busca da borracha Amazônica, caracterizando o 3º
ciclo da borracha. Deste período em diante, esforços desenvolvimentistas, subsidiados
pelo governo brasileiro, intensificam ainda mais os deslocamentos humanos e a
exploração econômica do látex nas terras do noroeste de Mato Grosso. Mais tarde
processo semelhante aconteceria com a agro-pecuária.
Para Hemming (1995:301), o período conhecido como primeiro boom da
borracha não teria sido tão catastrófico para a população nativa quanto o freqüentemente
descrito, estando os aspectos negativos da ocupação “limitados” à ocorrência de
epidemias. Segundo o autor, o que houve foi a penetração em um território inexplorado
e não uma invasão propriamente dita.
Entretanto, em 1860, Chandless registra um grupo de índios Munduruku no
baixo Juruena, próximo à nascente do Tapajós, que fornecia comida aos seringueiros
(Chandless apud idem:277). Já a esta época, seringueiros ocupavam terras um pouco
mais ao norte da área na qual tradicionalmente circulavam os Rikbaktsa. Desde o início
do século XX, sabia-se da presença de índios nas cachoeiras arredias do rio Arinos (cf.
Dornstauder 1975:35).
Em um território incontestavelmente habitado e severamente disputado por
etnias diversas, a invasão seringueira no noroeste de Mato Grosso alcançou efeitos
efetivamente adversos. A imprecisão das estatísticas torna difícil a avaliação do número
de mortos (Pacini 1999:180). Epidemias, agravadas em sua letalidade pelo colapso das
atividades de subsistência (cf. Black 1994:72-3) e modificações em diversos aspectos de
sua organização social, como nos padrões de mobilidade e estrutura demográfica
(Santos & Coimbra Jr 1994:189), fizeram ainda mais vítimas que os embates diretos
entre índios e seringueiros.
A “marcha para o oeste”, como ficou conhecida a empreitada, incluiu o
estabelecimento de empresas e companhias que, não sem resistência por parte das
populações que habitavam a região, desejavam explorá-la ao mesmo tempo em que
colonizá-la (cf. Arruda 1992; Pacini 1999). Este surto desenvolvimentista, que marcaria
a década de 60, ancorou-se jurídica e economicamente na SUDAM e no Banco de
Crédito da Amazônia. As ações abrangiam diferentes setores econômicos, como a agro-
115
pecuária, extração de madeiras e minérios, viabilizadas pela abertura de novas estradas e
a fundação de focos de urbanidade.
Desde 1952, a subvenção governamental multiplicou a construção de seringais,
com suas feitorias e barracões espalhados a partir do rio Papagaio e daí ao alto curso do
rio Juruena, rio do Sangue, nascente e barra do rio Arinos (Dornstauder 1975:11, 12,14).
As áreas de interesse, desta forma, atingiam em cheio o território ocupado e também
disputado entre os Rikbaktsa e outras populações indígenas, como os Cinta Larga,
Kayabi e Iranxe.
Em paralelo à exploração seringueira, grandes empresas visavam ainda a
povoação do noroeste do estado de Mato Grosso, como a CONOMALI, instalada em
1955. Desta forma, além de seringueiros, garimpeiros e caçadores de pele (cf. Tolksdorf
1996 [1961]:179), também colonos, notadamente provenientes dos estados da região sul
do Brasil, circulavam e procuravam estabelecer-se na região.
Os embates eram inevitáveis. No caso Rikbaktsa, a prática seringueira possuía,
ainda, um agravante. A safra principal acontecia, justamente, na época da seca, quando
também os índios excursionavam por grandes distâncias, aumentando
significativamente as possibilidades de encontros indesejáveis (cf. Tolksdorf
1996[1958]:40). Durante as chuvas, em contrapartida, a maioria dos seringueiros
retornava às cidades (cf. idem).
Já em 1953, após ataques a algumas feitorias, matam e moqueam um
seringueiro, no rio Arinos (Dornstauder 1975:15). Em 1954, outro seringueiro é morto e
depois desenterrado para que fosse comido (cf. idem:16). Ainda em 1959, há notícia de
mortes de seringueiros (Tolksdorf 1996:81).
Em ocasiões posteriores, ao acorrerem aos postos de assistência, lembravam-se
perfeitamente das vítimas, dos locais de execução e de suas possíveis motivações,
narrando-as com detalhamento (cf. Tolksdorf 1996 [1960]:145). Este constitui um traço
distintivo das execuções Rikbaktsa, também aplicado às mortes de seringueiros.
Propagam-se pelo tempo, minuciosamente recontadas, sobretudo, em ocasiões festivas.
Mulheres, inclusive, podiam me narrar, circunstanciadamente, histórias de execuções
passadas.
Mortes de ambos os lados, desassossego nos percursos fluviais, pelas matas e
feitorias. Não era incomum que pelos pequenos povoados se cultivasse a idéia, já
freqüente através de uma história indígena feita de Devassas, conseqüentes Guerras
Justas (Perrone-Moisés 1998:123,124) e Comissões de Inquérito para aferição de
116
indianidade (Athila 1998:96,97), de que índios deviam ser exterminados pela razão de
impedirem o “progresso” nos recônditos do Brasil (Carneiro da Cunha 1998:17).
No noroeste de Mato Grosso da década de 60, “progresso” identificava-se à
exploração do látex e, em torno dela, o crescimento de novas cidades (Tolksdorf
1996[1959]:83) em locais tidos como inabitados. A borracha é considerada como uma
guerra em miniatura”, “cruel” (Tolksdorf 1996[1959]:54), “uma luta pelo lucro, a
custo do homem pequeno”, na qual, por mais que houvesse sangue dos dois lados “o
fuzil vence a flecha.” (idem:104).
Índios estavam aquém da humanidade e eram como caça para muitos
seringueiros e garimpeiros. Atiravam indiscriminadamente a qualquer barulho ou
movimento no mato, enquanto nas feitorias ou em deslocamentos pelo rio (Tolksdorf
1996[1959]:43, 49). Roubos ou quaisquer delitos menores por parte de índios eram
punidos quase sempre com a morte (Tolksdorf [1959] 1996:91).
A composição dos trabalhadores da seringa era bastante peculiar. Muitas vezes
presidiários, cumpriam suas penas através do trabalho nos seringais ou eram fugitivos.
Estes e todos os demais, entretanto, praticamente escravizados por dívidas(Tolksdorf
1996 [1959]:45) que garantiam o lucro aos seringalistas (Dornstauder 1975:37). Muitos
queriam desistir, sendo, porém, sumariamente persseguidos por gente que representava
os interesses dos patrões (Tolksdorf 1996 [1960]:130). Miséria, insatisfação
(Dornstauder 1975:36) e crimes entre eles próprios caracterizavam o ambiente da
seringa
75
.
Morte de índios em encontros pelo rio ou pelo mato, ataques a acampamentos
povoados apenas por mulheres e crianças (Dornstauder 1975:17), abuso de índias e
também rapto de outras tantas (Tolksdorf 1996 [1959]:99) multiplicam-se pelas fontes
documentais. Em uma região onde não havia uma atuação do órgão tutelar
76
, os
seringueiros instalavam-se, eventualmente mantendo relações de “troca” relativamente
75
A despeito de serem muito novos a esta época, alguns informantes dão conta da violência que
caracterizou as relações entre os próprios seringueiros. Contam sobre confliros notórios entre seringalistas
e suas “corporações”, como "os do "Amorin" contra "os do Paraná". Citam também Junqueira e Marcos
Luz. Contam como um seringueiro "amotinado" foi morto e dacapitado dentro do escritório do
encarregado do seringal.
76
Arruda defende a hipótese de que eram justamente as áreas nas quais o SPI/FUNAI não atuava as
“escolhidas” pelos jesuítas, com o que poderiam atuar mais “livremente” (Arruda 1992:84). De qualquer
forma, em muitos momentos da “pacificação” houve uma conjugação de “forças” – sempre mais pujantes
por parte dos jesuítas - entre estas duas instituições, incluindo aí também seringalistas, e seus
“encarregados”, que chegaram a confundir-se com os próprios “encarregados dos postos de assistência,
em alguns momentos.
117
pacíficas, mas na maior parte das vezes incendiando roças e malocas, matando índios
(Dornstauder 1975:30; Arruda 1992:89) e abusando de suas mulheres.
Muitos seringais estabeleciam-se em áreas habitadas pelos Rikbaktsa
77
, alguns
deles sendo, posteriormente, transformados em postos de atração e assistência
(Tolksdorf 1996[1958]:34). Isto determinava a proximidade entre as feitorias e futuros
postos e as aldeias, favorecendo o adverso e quase inevitável contato permanente entre
índios e seringueiros.
Grandes porções de terra podiam ser arrendadas ao governo, notadamente no
caso dos seringalistas (Tolksdorf 1996 [1959]:72). Nos casos de requisição e aquisição
de terras ao governo e companhias colonizadoras, o mecanismo era, no mínimo,
curioso. Sobrevoada a terra, caso o comprador manifestasse interesse, assegurava-se a
venda através de qualquer quantia que figurava como uma “entrada”. Feito isso,
iniciavam-se os trabalhos de medição.
Ignorado o protocolo de saber-se serem as terras habitadas por índios ou não, o
Estado ficava desobrigado a destinar-lhes área de Reserva
78
. O lotes, limitados
oficialmente a até 10.000 hectares, por meios não-convencionais poderiam alcançar de
100 ou 200 mil hectares (cf. Tolksdorf 1997 [1959]:44, 95). A conivência e corrupção
de funcionários do SPI de Mato Grosso foi, por vezes, importante aliada destas
usurpações. Há fontes que indicam a cobrança de propina para que se pudesse,
livremente, demarcar terras no rio Arinos no final da década de 60 (Tolksdorf
1996[1959]:70, 87)
79
.
As múltiplas equipes de agrimensura eram forte e sofisticadamente armadas,
decididas a tudo” (Tolksdorf 1996 [1958]:36). Quase sempre encontravam aldeias,
mas os índios ou afugentavam-se ou eram sumariamente massacrados, sem que o
governo fosse ao menos avisado de sua presença (idem[1959]:45). Índios já contatados
eram, todavia, empregados na abertura de picadas para seringais (idem[1958]:33).
A ausência de resoluções oficiais em todos os âmbitos era completa. Tanto em
termos fundiários e de auxílio à subsistência de postos, como enquanto um possível
77
Em andanças pelo mato, na TI Japuíra, reconhecem e mostram-me, constantemente, as picadas feitas
por brancos das “turmas” de seringalistas, como as de “Maurilho” e as de “Junqueira”.
78
Há registro de venda de terras no rio Tatuí pela CONOMALI para compradores Belgas, sem dizer que
eram, na verdade, habitadas por índios Kayabi (cf. Tolksdorf 1996 [1962]:200).
79
Referindo-se ao aparente “descaso” do SPI, notadamente, da sede de Mato Grosso, diz Tolksdorf,
personagem fundamental da assistência Rikbaktsa nos postos de atração: “Provavelmente deixam agora
os índios com a sua sorte, quer dizer: acabem com eles tranquilamente, depois somos livres deles e não
precisamos mais cuidar deles. (...) Logo querem empurrar sistematicamente para o extermínio deles
(Tolksdorf 1996[1959]:97).
118
“modulador” da grandeza, violência e corrupção que acompanharam o processo de
colonização de Mato Grosso (Tolksdorf 1996[1959]:96-7).
A alternativa ficava entre a expulsão dos índios de suas terras ou o seu
extermínio, para o que sempre parece ter havido franca disposição. Inicialmente
habitando as cabeceiras dos córregos, os diversos grupos locais Rikbaktsa foram sendo
paulatinamente “empurrados” para as margens dos rios.
DESEJANDO RELAÇÕES
Em 1957, em plena usurpação de suas terras, ocorreu o dito primeiro contato
pacífico das equipes de atração comandadas pelo jesuíta João Dornstauder (Pacini
1999:28). É indiscutível a prevalência jesuítica através das diretrizes da Missão
Anchieta e, mais ainda, nos esforços pessoais do padre João. Viajando a diferentes
wahoro, encontrava seus habitantes, consolidando relações e atendendo aos doentes, ao
mesmo tempo em que realizava um mapeamento meticuloso de seus locais de
circulação e moradia.
Ainda assim, devo dizer que o contato com tantos e tão disseminados grupos não
poderia ser tarefa simples. Trabalho detalhado e de longo prazo, envolveu outros
personagens importantes, como Fritz Tolksdorf - alemão e um misto de comerciante e
encarregado de posto, que flutuou sem consenso entre as missões jesuítica e protestante
-, índios de outras etnias
80
, colonos, comerciantes e até seringueiros.
Destaco ainda, o desejo, nem sempre generalizado ou coincidente, dos grupos
locais Rikbaktsa em estabelecerem relações com os brancos. Neste sentido, é importante
a disposição que cada grupo contatado apresentava em viajar com o padre Dornstauder
em busca de outros wahoro, nem sempre seus aliados. Inclui-se aqui o emprego de uma
diplomacia extrema que perdurou por mais de uma década, até que, como veremos, a
pluralidade Rikbaktsa fosse convencida a compactar-se em um único e exíguo território
de Reserva. É claro que o contextos de epidemias, mortes, deslocamento violento de
seus territórios e a criação de novas demandas e dependência, sobretudo pelos jesuítas,
mas também por seringueiros, atuaram neste mesmo sentido.
Muito foi escrito sobre este processo (cf. Dornstauder 1975; Arruda 1992; Pacini
1999) que aqui abordo apenas tangencialmente. Merece especial destaque o detalhado e
80
Registra-se um Iranxe que participa deste processo na esperança de encontrar sua irmã, raptada pelos
Rikbaktsa (Pacini 1999:38).
119
meticuloso trabalho de Pacini (1999), referência e fonte fundamental nesta matéria. Sua
análise permite-nos entender muito sobre a setorizada e intrincada organização social,
política e cerimonial Rikbaktsa durante este período e os efeitos da depopulação,
catequização e da territorialização deflagrada pelo contato entre índios e brancos.
Há indícios de que os Rikbaktsa desejassem relações com os brancos, incluindo
as pacíficas. Dentes, pedaços de cartucheira e pequenas partes de objetos de
seringueiros - alguns mortos, outros pilhados ou trocados - misturavam-se aos fartos
colares de contas e sementes dos homens e mulheres Rikbaktsa (Dornstauder 1975:18).
Desejavam negociar facões e machados (Dornstauder 1975:15), instrumentos
conhecidos há, pelo menos, duas gerações (Hahn 1976:31). Muitas vezes aproximavam-
se com intenção pacíficas, recebendo disparos (cf. Pacini 1999:43). Grande parte de
seus enfrentamentos tinha o caráter de revide, vingando-se sistematicamente de ofensas
anteriormente sofridas por parte de seringueiros.
Enquanto os Tapayúna (Beiço de Pau) queimavam barracões de seringa
(Tolksdorf 1996[1959]125), os Rikbaktsa os “visitavam”, levando algumas coisas e
deixando outras (Tolksdof 1996[1960]:164). Este comportamento encontra-se
provavelmente relacionado à observação dos procedimentos das equipes de
“pacificação”. Chegavam a pousar em feitorias e, não raramente, à despeito das
supostas relações cordiais, os seringueiros abordavam suas mulheres à noite (Tolksdorf
1996 [1960]:143).
Construir casas próximas às feitorias, outras vezes, foi a prática adotada.
Dornstauder, quando possível, mandava queimá-las, em uma tentativa de evitar aquilo
que já se tornara corriqueiro: a “mistura” indiscriminada entre índios e seringueiros
(Tolksdorf 1996[1961:175). No início dos anos 60, muitas feitorias abrigavam crianças
órfãs, embora não se possa saber se raptadas ou "doadas" pelos Rikbaktsa (cf. Tolksdorf
1996[1961]:176). Alguns grupos de seringueiros já traziam consigo, a esta altura, a
expressão física do contato, “quase índios ou descendentes” (Tolksdorf
1996[1961]:177).
A marca do processo de atração foi a criação de postos de assistência indígena,
tratados emblematicamente por PAIs (cf. Pacini 1999). Os postos eram implantados ao
longo da região de circulação dos índios, obedecendo, geralmente, ao lugar de antigos
wahoro ou, paradoxalmente, de barracões de seringueiros que eram desativados ou até
doados à frente de pacificação pelos empresários seringalistas.
120
Após algumas expedições e o rastreamento acerca de movimentações
costumeiras, o jesuíta Dornstauder cria três postos de assistência mas também de
atração nos rios Arinos, do Sangue e na margem direita do Juruena. Um pouco depois a
missão luterana funda um posto situado na margem esquerda e bem mais abaixo do rio
Juruena, denominado Escondido.
Considero esta informação importante porque, em certa medida, foi o “sucesso”
ou o “fracasso” destes postos o que acabou por determinar a conformação territorial
atual dos Rikbaktsa. Exemplar disto foi a transformação tão gradativa quanto complexa
do Posto Barranco Vermelho na atual “aldeia Barranco Vermelho”
81
, onde restos de
materiais e das antigas fundações do posto e o esboço das “quadras” e “ruas” ainda
podem ser identificados.
Após nove meses de tentativas e sete expedições, Dornstauder estabelece o
primeiro contato pacífico com um grupo Rikbaktsa do rio do Sangue, em 1957. A partir
deste, uma série de outros grupos vinham a seu encontro no barracão de seringa de José
Rosa, posteriormente transformado no Posto Santa Rosa, no rio Arinos.
Neste primeiro encontro, os Rikbaktsa ofereceram chicha, como é a etiqueta
(Dornstauder 1975:107). Cordiais ao extremo, surpreenderam os Kayabi e Iranxe que
ajudavam na pacificação, e que, com medo e desconfiança, permaneceram insones
durante a pernoite na casa de solteiros e visitantes (mykyry) (Dornstauder 1975:111).
Inaugurado este canal, os Rikbaktsa, aos poucos e de diversas wahoro, cada vez mais
eram levados ou recorriam espontaneamente aos Postos. Buscavam facões, roupas,
mantimentos e, prioritariamente, remédios e assistência aos doentes, que aumentavam
em progressão significativa.
Aqueles que contam histórias de seus wahoro afirmam serem poucos os que se
salvaram. Dado o grande polimorfismo para expressarem a idéia de morte, em algum
momento eu não entendia ainda que o monossílabo pў, dito sob a forma de vogal
alongada, era mais um dos diversos modos de referirem-se à morte de alguém. Foi
quando uma mulher mais velha contava-me que, de seu wahoro, só ela e o irmão mais
novo haviam sobrevivido. Dizia: ka-zo, pў..., ka-barikta, pў..., ka-tse pў...("meu pai,
morto ..., meu marido, morto ..., meu filho, morto...") e daí em diante, citou uma fileiras
81
Esta “transformação” intensifica-se a partir de 1977, quando as irmãzinhas de jesus retiram-se da área.
Muitas outras aldeias, entretanto, vão sendo gradativamente criadas na proporção direta em que se
diminuía ou extinguia a presença e o controle dos religiosos. Lentamente, retoma-se uma conformação
organizacional que cada vez mais lembra as descritas pelos registros históricos, ainda que não possamos
saber exatamente as contingências desta configuração.
121
de parentes perdidos, vítimas de epidemias. De cada wahoro sobrava, muitas vezes,
apenas uma ou duas pessoas, algumas vezes, ainda crianças.
O que chamou-se de “pacificação” foi, na verdade, um fenômeno complexo que
perdurou por muitas expedições, dons, trocas, cuidados, epidemias e mortes. Interesses
diversos estavam envolvidos nas tentativas de conciliação. Desde a intervenção
missionária em conflitos que ficavam mais sérios a cada dia, a salvação de “corpos” na
intenção e promessa da conquista de “almas”, à paz necessária, porém oportuna, para a
invasão definitiva de terras e sua livre exploração.
Arruda (1992) observa a busca indiscriminada da MIA por recursos financeiros e
de pessoal para que a estrutura dos postos pudesse ser mantida, com instrumentos,
comida e remédios. Concorrem com financiamento a própria CONOMALI, Benedito
Bruno, seringalista e à certa época também prefeito de Diamantino (Pacini 1999:54), o
Banco da Amazônia, SPI e mais tarde a FUNAI (Arruda 1992:118). Alguns dos
colonizadores e comerciantes visavam apropriar-se da diplomacia de Dornstauder em
contatar os índios, tendo como objetivo, muitas vezes, a facilitação de seu extermínio
(Tolksdorf 1996[1958]:34).
O projeto civilizatório da MIA prescrevia etapas bastante pontuais. Em um
primeiro momento, atração, “transformação” e “educação” parcial nos postos de
assistência. Depois, o ensinamento de ofícios agrícolas e industriais, o que aconteceria
notadamente com as crianças indígenas no internato de Utiariti e, com sua desativação
gradativa a partir de 1969, no posto do Barranco Vermelho (cf. Pacini 1999:4, 170,
172).
Durante os primeiros anos de contato, o padre João excursionava
constantemente, conhecendo novas aldeias e viajando com os próprios Rikbaktsa com
intenção de disseminar a idéia de que não deveriam mais atacar os seringueiros, na
mesma medida em que os mesmos não mais os atacariam. Neste caminho, recolhia
doentes e crianças que teriam perdido suas parentelas, sobreviventes de epidemias que
dizimavam aldeias inteiras.
Muitos Rikbaktsa lembram-se e apontam os lugares das expedições do padre
João, principalmente no rio Arinos. Ao lado da grande quantidade de mortos, são
citados os “brindes” e a "senha" da pacificação "- canoeiro bom, seringueiro bom”. Um
deles disse-me que Deus castigava se continuassem a matar. Uma mulher que habitava
originalmente o Aripuanã - região dos últimos grupos a serem contatados, já na década
122
de 70 – disse-me que o padre João os "persseguia", deixando coisas onde quer que
fossem.
Contou-me sobre a morte de seus pais e sobre as correrias ocasionadas pelos
encontros cada vez menos fortuitos com seringueiros e com as equipes de “pacificação”.
Transcrevo abaixo o trecho de meu diário.
Ela estava na casa do avô, no rio Arinos. Os pais foram visitar os tios mais
para o rio Juruena, próximo ao “corregão”, onde está a aldeia Cerejeira hoje em dia.
Morreram no caminho, um olhando para o outro. Não deu para enterrá-los, pois já
estavam putrefatos. Só trouxeram para ela os colares, que ela “deu”. Foi criada por
uma parente de sua mãe, que não tinha filhos. A primeira vez que ela encontrou o pe.
João, correram e ela perdeu-se da mãe. Dormiu sozinha no mato. A mãe ensinava que
deviam correr um em cada direção, se houvesse ataque de seringueiros. De outra vez, o
avô foi caçar mutum cedo e encontrou com o pe. João e sua turma sentados. Disse que
o pe. João olhava-o fixamente enquanto ele pensava se corria com ou sem o mutum.
Quando o pe. piscou, seu avô saiu correndo. A esta altura, mulheres e crianças já
haviam corrido da aldeia. Eram vários núcleos pequenos. Disse que na maloca
morriam muitos. Diziam que iam morrer naquela noite ou naquele momento e morriam
de fato. Era como se eles adivinhassem.” (aldeia Pé-de-Mutum, 27/02/2003)
Neste ponto, não poderia deixar de mencionar a figura de Tolksdorf. De origem
alemã, foi personagem importante que, enquanto responsável intermitente por postos e
outras instituições dedicadas ao acolhimento, tratamento e, de certa maneira,
“civilização” de índios, transitou entre jesuítas, SPI e protestantes
82
. Atuava como um
misto de voluntário da "pacificação" e funcionário - a maior parte do tempo em caráter
“oficioso” - do SPI.
Contrariando as diretrizes fixadas por Dornstauder com relação a qualquer tipo
de negociação envolvendo artefatos indígenas (cf. Dornstauder 1960 apud (Tolksdorf
1996[1960]:165), colecionava-os e ainda emitia-os ao Museu Göttinguen, na Alemanha.
Destacou-se na implementação do posto Santa Rosa, no rio Arinos, entre 1959 e 1961,
lá permanecendo durante as incessantes viagens de Dornstauder. De modo mais ou
82
Tolksdorf havia, já em 1939, viajado para as nascentes do rio Xingu, travando contatos com índios.
Empreendeu algumas viagens ao Kayabi, aos Tapayúna (Beiço de Pau) e também aos Rikbaktsa,
acompanhando o padre João.
123
menos intermitente, cuidava de doentes, construía benfeitorias e abria roças para a
subsistência daqueles que estivessem no posto. De 1961 até 1962, também com algumas
flutuações, passou a atuar no posto Escondido, gerenciado pela missão luterana.
A diversidade étnica, portanto, caracterizaria os postos de assistência.
Estrangeiros, outros brancos e índios de diversas etnias - algumas recentemente
conciliadas - eram presenças contínuas. Uma "ONU em miniatura", segundo as palavras
de Tolksdorf (1996 [1960]:203).
A circulação de não-índios pelos postos era impressionante. Seringueiros
fugidos de feitorias, famílias buscando alimentos, remédios e atendimento (Tolksdorf
1996[1962]:195). Instalados em regiões de pleno interesse mas também de poucos
recursos, postos eram referências para todos aqueles estabelecidos ou apenas de
passagem pela região. A proximidade proibitiva entre postos, feitorias e barracões de
seringa, por sí só, já seria suficiente à intensidade das movimentações e contatos
interétnicos.
A composição diversa dos postos foi poucas vezes favorável. Em 1959, no posto
Santa Rosa, seringueiros da mesma firma conveniada com a frente de pacificação,
passavam de barco e resolvem parar, ameaçando mulheres e moças Rikbaktsa com suas
armas e abusando das mesmas (Tolksdorf 1996 [1959]:113; Dornstauder 1959 apud
idem). Algumas delas eram índias doentes que acorreram ao Posto em busca de
tratamento.
Em outra ocasião, um homem ligado à firma Benedito Bruno que auxiliava o
posto, violenta uma índia em suas instalações. Outras vezes eram as índias, movidas
pela curiosidade, a visitarem acampamentos de seringueiros, já que a muitos deles se
podia chegar à pé (Tolksdorf 1996 [1959]:116). Um dentista vindo de um povoado
próximo ao posto Santa Rosa, a gleba Arinos, chegou a tocar em uma índia sob o
pretexto de exame, em reação ao que todas elas refugiaram-se no mato (Tolksdorf
1996[1960]:162).
É preciso mencionar ainda, que os postos promoviam a junção de indivíduos
oriundos de diversos sub-grupos Rikbaktsa, cada qual buscando garantir acesso a seus
possíveis recursos (Pacini 1999:105). Mantidos antagonismos, homicídios intra-tribais
poderiam acontecer, dentro ou fora do ambiente dos postos. Em 1962, dois homens
foram mortos na aldeia de Mapadata e jogados no rio. Este acontecimento fora
atribuído a outro grupo Rikbaktsa que ainda não havia sido “pacificado” (Tolksdorf
1996[1962]:200).
124
Por outro lado, conflitos intertribais convertiam-se e desconvertiam-se ao
apaziguamento, com a mesma velocidade do aumento da pressão colonizadora.
Algumas vezes ficavam mais acirrados, como no caso dos Cinta Larga (Arruda
1992:99,100). No contexto multiétnico dos postos não seria diferente.
Um índio Kayabi tentava inistentemente derrubar o esconderijo para caça de
aves de uma mulher Rikbaktsa no posto Santa Rosa (Tolksdorf 1996[1960]:152). Neste
mesmo local, novamente alguns Kayabi que trabalhavam em troca de presentes
entraram em conflito com os Rikbaktsa. Isto seria bastante previsível no início da
década de 60, se levamos em consideração o histórico recente de inimizades entre estes
dois grupos (Arruda 1992:167).
Seringueiros serviram-se, sempre que possível, das sabidas rivalidades
intertribais, especialmente entre os Cinta Larga e os Rikbaktsa. São estes últimos que
contam de ataques promovidos aos seringueiros pelos Cinta Larga, como preâmbulo de
violentos revides dos quais participaram, pelo menos, enquanto guias dos seringueiros.
Na margem esquerda do alto Juruena, os brancos ligaram o rádio dentro da casa,
os índios acharam que era gente e flecharam. Depois disso levaram balas. Nesta ocasião
mataram o “chefe” dos Cinta Larga
83
. Os índios levaram apenas seu corpo. Mais tarde,
um seringueiro é morto e tem seu corpo mutilado pelos mesmos Cinta Larga, em um
local próximo, na altura da corredeira “água brava”.
Embora pareça inusitado, um homem, ainda criança no início dos anos 60, diz
ter participado, ao lado dos brancos, de uma expedição aos Cinta Larga com o intuito de
vingar a morte do tal seringueiro. Segundo sua narrativa, sua mãe era a única mulher a
fazer parte da expedição, que contava também com outros homens Rikbaktsa.
Sabedores da patente rivalidade entre os dois grupos e considerando o domínio que
tinham acerca do ambiente a ser percorrido, seringueiros recrutam os índios para que os
acompanhassem nesta empreitada.
Andaram no mato por um mês. Os seringueiros portavam armas pesadas, nos
moldes de metralhadoras. A comida ia acabando e então os seringueiros perguntavam
como os índios faziam quando iam atacar inimigos, se voltavam quando a comida
acabava. Eles responderam que não voltavam. Atacavam o inimigo, comiam da sua
comida para, finalmente, fazerem mingau e comerem sua própria carne.
83
Meu informante comenta que "eles (os Cinta Larga) têm chefe, diferente de nós (os Rikbaktsa)".
Contrasta também que, entre os Cinta Larga era possível reconhecer o "chefe" por sua pintura , o que
também não aconteceria entre eles.
125
Depois de muito tempo de viagem, houve um dia em que o galo cantou às 11 da
manhã – fora de seu tempo (batsisapy) – e sua mãe disse ser este um sinal da
aproximação do inimigo. Depois o tempo fechou completamente, ficou tudo “sujo”
(mynadepykrta). Também ouviram pássaros “cantando feio” e “chorando”
.
84
Mais tarde, ouviram os Cinta Larga tocando cabaça e souberam que, de fato,
estavam perto. Viram uma velha e uma menina. A velha estava com faixa de embira na
cabeça; ia pegar lenha. Ela os viu, mas ficou imóvel. Levou um tiro na testa e caiu. A
menina saiu correndo, seu tio foi atrás, queria pegá-la para criar, mas não conseguiu.
Entendi que foi morta com um tiro no pescoço. Os seringueiros penduraram a
mulher em uma árvore pela perna, através de uma corda e racharam seu ka-tõro
(vagina) ao meio. Ele era pequeno e tentava não olhar para os mortos, que sua mãe
apenas lhe anunciava. Encontraram, então, a aldeia, uma espécie de acampamento, mas
estava vazio. Os Cinta Larga, a esta altura, já haviam fugido.
Esta é uma versão possível para a imagem chocante da reconstituição da brutal
investida de seringueiros aos Cinta Larga, divulgada pela imprensa internacional e que
ficou conhecida como "o massacre do paralelo 11". Sabemos que teria ocorrido por
volta de 1963, comandado principalmente por gente de Antônio Junqueira, seringalista e
pecuarista que, impunemente, cometeu uma série de crimes contra índios e regionais
(cf. Costa 1985:236; Hahn 1976:39 e Arruda 1992:101)
85
. Também estariam implicados
os encarregados do barracão de Arruda e o gerente Francisco Amorim (cf. Pacini
1999:159).
Tolksdorf (1996 [1959]:103) dá conta do acontecido, dizendo terem os
seringueiros de Junqueira matado uma maloca inteira de índios Cinta Larga nesta
ocasião. Cita crianças que foram baleadas pela boca. Referindo-se a expedições aos
Cinta Larga promovidas pela MIA, Pacini (1999:159) diz não se saber ao certo quantas
teriam efetivamente ocorrido. Teriam sido várias. Muitas com intenção de estabelecer
contatos pacíficos; muitas com o apoio de seringalistas, mas nem todas com
representantes dos mesmos. Dados referentes ao citado massacre não são muito claros,
"são divergentes e difíceis de encaixar", diz o autor (Pacini 1999:160).
84
Todos estes “sinais” são tidos como “mau agouro”, o que os Rikbaktsa chamam de muzuza.
Caracterísiticas tais acompanham sempre o acontecimento ou a premonição de infortúnios, como a
investida predatória de seres metafícos (cf. Capítulo III).
85
Anos mais tarde estaria envolvido na implantação do município de Aripuanã, usurpando áreas ocupadas
tanto pelos Cinta Larga quanto pelos Rikbaktsa (cf. Arruda 1992:101). Sempre no dia três de dezembro,
os próprios Rikbaktsa, incentivados pelo padre Balduíno Loebens, comemoram com refeições coletivas e
muitas histórias, a expulsão dos seringueiros de Junqueira da ilha de Fontanillas, dentro da TI Rikbaktsa,
e a retomada da atual TI Japuíra.
126
De um lado havia religiosos desejando a “pacificicação” dos grupos, retirá-los
dos territórios de forma “pacífica”, e de outro, seringalistas ansiosos por este
deslocamento, fosse ele efetivado por via consensual ou de forma violenta. A questão
era a liberação das terras e dos caminhos para extração e escoamento da produção de
látex.
Um fato consensual, todavia, é que, em 1962, um homem chamado
Matereocutipá foi aos Cinta Larga com a esposa e outros Rikbaktsa. Segundo o que
teriam dito aos padres, seu objetivo era encontrar a aldeia e depois levarem os jesuítas
até ela para que realizassem contatos (Pacini 1999:159). Corria pelo barracão de seringa
que teriam, na verdade, ido atacar os Cinta Larga.
A partir daí, os registros do posto Barranco Vermelho (cf. Pacini 1999:159),
localizado alto Juruena, fornecem algumas informações. A viagem, que perdurou até o
Aripuanã, só havia encontrado duas aldeias novas dos Cinta Larga. Viram apenas uma
velha, morta com tiro e pendurada à uma árvore, e uma moça, que teria avisado a todos
e fugido em seguida, história bastante semelhante. Neste ponto, seringueiros teriam se
separado dos Rikbaktsa. É neste vácuo de tempo que o real massacre de uma aldeia
inteira teria, provavelmente, acontecido.
Há, contudo, um dado interessante e que associa-se ao relato de meu informante.
O mesmo Rikbaktsa chamado Matereocutipá e sua esposa Tubarata, habitantes do posto
Barranco Vermelho, contam a Tolksdorf (1996 [1963]:216-17) em 1963 que teriam,
frente a promessas do encarregado de Junqueira e com o conhecimento de um jesuíta,
conduzido os seringueiros até os Cinta Larga, juntamente com outros dois índios.
Atacaram uma "maloca" grande, durante a madrugada - tática usual Rikbaktsa -
matando mais de 40 índios. Conta ter participado da investida, pilhando vários objetos
dos Cinta Larga.
IR E FICAR, DAR E TOMAR
Em 1961, Dornstauder identifica ainda algo em torno de nove focos de habitação
dos Rikbaktsa pelos matos, alguns constituídos por vários wahoro (Dornstauder apud
Pacini 1999:101). A maioria deles localizada ao extremo noroeste do estado, na região
do Escondido, entre o Aripuanã e o Juruena (Schultz 1964:214). Quando não
estabeleciam-se nas adjacências dos postos ou dos atrativos barracões e feitorias de
seringueiros, restavam-lhes as perambulações pelo mato (cf. Pacini 1999:14,149).
127
Em 1962, Schultz visita os Rikbaktsa do alto Juruena na estação seca e constata
que a maioria dos índios estava ausente dos wahoro
86
, excursionando para a busca de
hastes para flecha (idem:213). Nesta época andavam mais pelas matas do interior e
apenas alguns nas matas que beiravam o Juruena (idem:214), dentro das possibilidades
já limitadas de circulação.
A atuação do padre João voltava-se, sobretudo, para expedições e visitas a
grupos locais, e não à vida cotidiana nos postos de assistência (Pacini 1999:80). Mas era
nos postos que a maior parte dos doentes era tratada efetivamente e de modo mais
continuado. Eram estes os referenciais de assistência aos Rikbaktsa, oásis raramente
fartos, em meio a um ambiente profundamente hostilizado pela ocupação de brancos.
Deste modo, os Rikbaktsa foram, por diversas razões, aglutinando-se nas
cercanias dos postos, notadamente na estação seca, quando faziam suas excursões de
coleta (Pacini 1999:66). Muitas vezes não compreendiam os plantios, a organização e
disciplina implementados pelos brancos. Encontravam-se continuamente ameaçados de
expulsão (Tolksdorf 1996[1962]:186, 188), por não trabalharem ou ajudarem segundo
as expectativas dos encarregados.
Quando alguns adaptavam-se, outros chegavam aos postos, principalmente
trazidos por Dornstauder, mas também por outros Rikbaktsa ou por vontade própria.
Novamente intensificavam-se as práticas educativas e regulamentadoras de conduta, em
acordo com aquilo que, segundo acreditavam os brancos, era imprescindível para que
pudessem ser tratados e sobrevivessem no dia-a-dia dos postos (Tolksdorf
1996[1960]:158, 162).
Tolksdorf , que fica responsável pelo posto Santa Rosa do rio Arinos, sentiu de
perto as dificuldades provenientes da contradição entre manter um posto que dedicava-
se, concomitantemente, ao acollhimento e ao sustento dos índios. Embatia-se com
86
O desconsolo de Schultz aproxima-se muito da minha impressão, quando cheguei pela primeira vez às
aldeias em plena estação seca do ano de 2002. A maioria dos velhos de todas as 32 aldeias e suas famílias
estavam excursionando ao Escondido, para coletar taquaras de flecha (orobiktsa), pontas de flecha
jurupará (zayta), fruta patauá (hutsatatsa) para chichas, “remédios-do-mato” (okyry) e conchas (tutãra)
para enfeites de casamento no rio Arinos. Como de costume, caçam muito; macacos, antas, mutuns e
outras aves para consumo e para a aquisição de penas para enfeites que serão usados em ocasiões festivas.
Partiram naquele ano em canoas, e pelo caminho iam parando e revendo o lugar de origem de muitos
deles, antigas ocupações, fazendo furação de penas das aves caçadas (Pacini, comunicação pessoal e
informantes). À sua volta pude perceber a atmosfera diferente da aldeia: mulheres, juntas, na quebração,
furação e lixação de cocos para contas de colares, quebrando conchas e lixando-as em forma de peixes; os
homens velhos e jovens fazendo flechas, peneiras, aparando penas e trançando algodão para artefatos de
plumária, tudo isso regado a muita chicha de “patuá”. Muitos aparentados de outras aldeias, juntavam-se
na mesma aldeia, participando destas atividades. Enfim, tudo aquilo que pode acontecer cotidianamente,
mas ao mesmo tempo e em proporções maiores.
128
línguas diversas, práticas e costumes relativos ao modo de subsistência e sistema
alimentar, na maioria das vezes, conflitantes com seus ideais de ordenação e
regulamentação (cf. Tolksdorf 1996 [1960]:153, 159). Nesta medida, os índios são
freqüentemente citados como crianças nas quais jamais se completaria o processo de
civilização (Tolksdorf 1996[1960]:150).
Aos poucos eram estabelecidos e iam, tanto quanto permitido pelas imposições
disciplinares de leigos e religiosos, mas também em detrimento delas, pintando-se,
tocando suas “flautas” à noite e dançando, tanto homens quanto as mulheres (Tolksdorf
1996[1960]:64, 144, 147). Excursionavam a outras aldeias perpetuando as costumeiras
relações de troca, retornando com taquaras para flechas e outros recursos (Tolksdorf
1996[1962]:202).
Desta forma, diz Tolksdorf:
O aspecto daqui já se parece quase com o da maloca deles, também a
vida e atividade totalmente como na sua terra. Mas completamente como ali, até
este ponto é que não deixo chegar.” (Tolksdorf 1996[1960]:151).
Contudo, além das questões estruturais e da “etno-heterogeneidade” dos postos,
a heterogeneidade entre os próprios grupos Rikbaktsa e suas divergências,
proporcionariam um diferencial importante em relação à estrutura dos wahoro.
Lamentações pelos mortos eram feitas (Tolksdorf 1996[1960]:154), mas já não
contavam com as visitas generalizadas e trocas que as caracterizam. Muitas vezes, havia
poucas pessoas – entre parentes e não-parentes – que fizessem parte das relações
efetivas do morto, algo fundamental neste tipo de rito.
Assim, alguns mortos eram enterrados com absolutamente todos os seus
pertences (Tolksdorf 1996[1960]:142). Outros, como um menino recém-chegado ao
posto, que queimou-se em sua aldeia quando vestia blusa, teve uma sepultura feita pelos
Kayabi (Tolksdorf 1996[1960]:162). Um outro, chamado de “menino feio” – não tinha
nome e provavelmente tratava-se de criança sem pais – foi enterrado pelo próprio
Tolksdorf (Tolksdorf 1996[1962]:195)
87
.
87
Dizem que alguns – “aqueles que não prestam” - não são chorados. Mas, no socius Rikbaktsa todo e
qualquer indivíduo, de algum ponto de vista, poderá ser considerado "aliado" ou "inimigo” (cf. Capítulo
IV). A ausência de "lamentação", que prefiro, no caso Rikbaktsa, denominar de "reclamação", parece ser
totalmente determinada pela ausência de laços entre mortos e vivos que poderiam participar do rito (cf.
Capítulo III). Isto era francamente possível no contexto da "pacificação", quando nos postos
129
Em muitas aldeias abandonadas pelo mato, encontravam-se ainda corpos pelas
redes e dentro das casas, como se tivessem tido que deixá-las às pressas (Tolksdorf
1996[1960]:158). Em certas ocasiões, doentes em estado muito grave preferiam ficar no
mato, como Mamuitsa, encontrado em uma velha maloca agonizando e que preferiu ali
ficar, a despeito da possibilidade de se tratar no posto (Tolksdorf 1996[1960]:164).
Muitos "chefes" dos wahoro já contatados por Dornstauder, quando muito doentes,
fugiam da equipe de pacificação, mesmo quando esta já era identificada e diferenciada
dos seringueiros. (Tolksdorf 1996[1960]:158).
Atitudes deste tipo não parecem despropositadas, sugerindo, ao contrário, algum
tipo de cautela ou receio. Chamo atenção, neste ponto, para a patente desconfiança
mantida pelos Rikbaktsa em torno das comidas dos brancos (Tolksdorf [1959]:103,
121). Não comiam bolo ou qualquer preparação que lhes fosse estranha (Tolksdorf
1996[1960]:147), em contraste, por exemplo, com os Kayabi (idem:153).
É interessante relacionarmos este dado, ainda, à rejeição de remédios por via
oral, ao passo que injeções eram aceitas e até demandadas (Tolksdorf 1996[1959]:110).
Por outro lado, confiando ou não nos remédios dos brancos, muitas vezes associavam
aos mesmos terapias próprias, como a imposição de mãos e pés às partes afetadas,
unções de cinzas e de folhas (Tolksdorf 1996[1962]:188).
A co-existência destas práticas, sugere, ao menos, a reconsideração de algumas
afirmações acerca das motivações que conduziram os Rikbaktsa aos postos. Teriam sido
impelidos por doenças contra as quais os recursos nativos não obtinham sucesso, por
eles classificadas como totalmente exógenas? Enquanto tais, estas doenças eram
associadas exclusivamente aos brancos (Pacini 1999:179)?
Não a doença em si, mas o número e a velocidade das mortes constituíam,
certamente, uma situação nova. Uma outra versão, que aqui adoto, aposta que os
próprios sistemas nativos de explicação, ao menos em um primeiro momento, fossem
aplicados à compreensão da singularidade daqueles eventos (cf. Langdon 1994:125).
Era iminente a possibilidade de estarem sendo vítimas de feitiço e diversas eram
as fontes potencialmente suspeitas. Havia os brancos, ou ainda através deles ou não, os
outros Rikbaktsa presentes nos postos. Não poderiam ser descartados, também, vizinhos
próximos ou companheiros de seus próprios wahoro, fontes usuais de feitiçaria. Estas
encontravam-se, na maioria dos casos, indivíduos de diversos wahoro, de diferentes regiões.
130
possíveis opções parecem ter orientado cuidadosamente suas condutas em relação às
partes envolvidas na situação do contato
88
.
A solidariedade aldeã e a boa-vizinhança não são exatamente impeditivas à
prática do feitiço, constituindo, ao contrário, ambientes privilegiados para tal, embora
não exclusivos. É claro que muitos dos índios que conviviam nos postos não eram
necessariamente aliados, mas seguiam nas expedições aos wahoro junto com as equipes
de pacificação, podendo despertar dúvidas. Outros, como os kayabi e os Iranxe, eram,
até pouco tempo, inimigos declarados dos Rikbaktsa.
A rejeição à comida, que na socialidade cotidiana é um dos principais veículos
de feitiço, aponta para a complexidade da conjunção entre os sistemas etiológico e
terapêutico de doenças nativo e exógeno. A atribuição de mortes à ingestão do corpo de
um seringueiro morto na margem esquerda do Juruena poderia ser mais um exemplo de
operação desta lógica.
É bastante provável que nesta situação de encontros, epidemias e mortes, os
Rikbaktsa não excluíssem as etiologias nativas da linha de causalidades possíveis. “(...)
Agora Ricóteti responsabiliza o cacique da aldeia abandonada pela sua doença. Pois é
que a doença tem de vir algures.” (Tolksdorf 1996[1959]:110). A hipótese de que tudo
ou parte do que estavam passando fosse resultado de feitiços por múltiplas fontes parece
não ter sido abandonada.
A este respeito é importante mencionar alguns relatos sobre mortes neste
período. Freqüentemente me eram descritas através de sintomas considerados anormais,
semelhantes àqueles identificados nas várias etapas que conduzem indivíduos à morte
através da feitiçaria. Morriam repentinamente em suas redes. Apenas viravam para o
lado e morriam.
Uma mulher Rikbaktsa, que habitava o Arinos, conta que o padre João aplicava
injeções nos doentes, mas não adiantava. Morriam um atrás do outro. De seu wahoro
restaram ela, um primo, uma tia e sua "mãe de criação".
Outra, que de seu wahoro sobraram apenas ela e o irmão. O irmão ficou com
preguiça de sair da casa com seu tio para ir ao mato e lá ficou sozinho. Amarrou sua
88
Vilaça (1996:122) descreve algo semelhante com relação aos Wari' de Rondônia. Em um primeiro
momento de contato menos intenso com brancos, mas quando as epidemias já os atingiam, relacionavam-
nas ao feitiço e envenenamento praticado entre os próprios sub-grupos Wari'. Posteriormente, com os
contatos intensificados, passam a atribui-las a "venenos poderosos fabricados pelos brancos". A
particularidade Rikbaktsa é que, atualmente inclusive, estas diferentes etiologias de mesma natureza não
necessariamente excluem-se, podendo ainda serem associadas a explicações exógenas, aprendidas dos
brancos (cf Capítulo III).
131
rede lá em cima do esteio e viu Harãmy, um ser metafísico e predador dos vivos (cf.
Capítulo III), fazendo fogo embaixo dele. Isto não seria um bom prenúncio. Quando o
tio retornou, trouxe dois cestos pesados, cheios de seriva. Pediu para que a sobrinha as
cozinhasse, porque estava com fome. Não demorou, sua garganta começou a fechar e
ele começou a gritar como porco. Então, morreu.
Isto acontecia a muitos deles, sucessivamente. Espreguiçavam-se, diziam que
morreriam e morriam. "Parecia guerra", diz a mulher. Completa com a afirmação de
que sobreviveu apenas porque era feia, pois se fosse bonita tinha "ido" também. Mas ido
com quem? E para onde?
Sintomas como esturros de porcos, mortes repentinas (quando se está bem, faz-
se uma série de tarefas duras e, de repente, morre-se), sentir fome e a própria visão de
seres metafísicos, são claramente identificados à proximidade e agência daquelas
entidades predadoras - que podem ser também parentes mortos-, sobre o corpo do
indivíduo ou de alguém a ele identificado. Interagem através dos "sonhos" ou encontros
em situações atípicas, como quando se está sozinho no mato ou na casa. Uma mulher
diz que seu avô fora levado por myhyrikoso quando estava na rede, mas depois foi
devolvido. Isto aconteceu pouco antes do contato maciço com os brancos, quando
começou a morrer muito canoeiro (Silvia Tapyk).
O ambiente mais comum destas interações é, portanto, quando o próprio
indivíduo não observa a ética cotidiana recomendada - o irmão da mulher, por exemplo,
tem preguiça de ir ao mato com o tio e vê harãmy -, quando se está envenenado, leia-se,
enfeitiçado ou, o que é mais freqüente, quando há uma conjunção destas duas coisas.
A "beleza" (tsapyrna) é também uma prerrogativa para as interações com estes
seres predadores. Nos mitos, o gavião-real, um animal que relaciona-se aos myhyrikoso,
escolhe apenas mulheres bonitas para predar em seu ninho. O próprio povo Rikbaktsa
atual se concebe como descendente de mulheres feias, enquanto que as bonitas e seus
filhos, predados por seres metafísicos, teriam permanecido em outros domínios do
cosmos.
Talvez recorressem à terapêutica do brancos pela mortalidade dos mais velhos,
que são também aqueles que melhor dominam a ciência de restabelecer a saúde dos
corpos. Talvez, simplesmente, não tivessem energia para fazê-lo naquele momento,
segundo seu próprio modo.
Mas não podemos deixar de considerar a possibilidade de que muitos Rikbaktsa
tenham procurado o cuidado dos brancos por temerem ainda mais o cuidado
132
potencialmente perverso dos "seus", enquanto suspeitos de feitiço. Em contrapartida,
talvez tenham rejeitado ou modulado um ou outro tipo de ajuda prestada pelos brancos,
por razões semelhantes. A idéia de que os padres trouxeram as doenças não era
incomum, sendo encontrada até entre um dos últimos grupos Rikbaktsa a serem
contatados, já na década de 70 (Hanh 1976:33).
Para se ter uma idéia da expressão que este tipo de etiologia pode alcançar,
utilizo-me aqui de avaliações recentes do CIMI acerca das causas de morte Rikbaktsa na
década de 90
89
. Segundo a instituição, 30% das mortes são atribuídas à "malária e outras
doenças", 50% a "acidentes", 10% ao "veneno" (quando o doente se sente enfeitiçado) e
10% a "causa desconhecida". Levando-se em consideração que tanto doenças quanto
acidentes podem ser causas ou parte de processos de feitiço e/ou vingança - os
homicídios não aparecem nesta avaliação - e que "causas desconhecidas" bem podem
dizer respeito a processos da mesma espécie ainda não elucidados ou dos quais não se
deseja falar, estimo que parte significativa das mortes Rikbaktsa podem ser direta ou
indiretamente relacionadas ao complexo de vingança e feitiçaria.
Se lembramos ainda das idéias discutidas no Capítulo I, vale a pena ressaltar a
proximidade e a labilidade classificatória, mas não ontológica, entre parentes próximos,
parentes distantes aliados, não-parentes, índios de outras etnias e os brancos.
Modalidades peculiares da alteridade, mas todas elas potencialmente suspeitas.
Levando em consideração a pressa dos jesuítas em conceituar o discurso
Rikbaktsa nos termos das crenças católicas, Dornstauder traz um outro dado interessante
à esta questão. Diz o padre que "Tapema (um homem Rikbaktsa) foi ver se não eram os
seringueiros Rikbaktsa voltados do céu para a terra" (cf. Dornstauder 1975:14). Dada a
presença quase ininterrupta de seringueiros nos postos e considerando a possibilidade de
que os mesmos fossem antigos Rikbaktsa reencarnados, quiçá, em busca de
vingança/relação com seus parentes, como é atribuído a onças e outros grandes
mamíferos, esta possibilidade era patente.
Procuravam, a seu modo, compreender, explicar e agir frente à novidade dos
eventos, e isto não seria diferente com a maneira de conceber pessoas, gupos e relações,
ainda que durante um período de extraordinária estruturação. Tolksdorf menciona
diversas vezes o modo pelo qual foi incluído nas redes de troca e distribuição,
recebendo parte do que coletavam e caçavam (Tolksdorf 1996 [1960]:146). Ele
89
Estas informações estão em Pacini (1999:175), que não cita fonte formal.
133
certamente terá se beneficiado disto no que diz respeito à aquisição de artefatos. A
tentativa era a de assimilar alguns brancos ao sistema clânico, através da atribuição de
um nome rikbaktsa.
Cada vez mais familiarizavam-se e orientavam-se pelos postos de assistência.
Quando morriam homens de status elevado, que tinham em torno de si sua família
extensa a habitar em um wahoro, seu grupo muitas vezes passava aos postos. Eram
inúmeras as casas abandonadas e queimadas pelo mato (Tolksdorf [1959]:106,107).
Muitos dos ali fixados eram também sobreviventes esparços de famílias vitimadas por
epidemias
90
(idem:87).
Foi principalmente neste espaço heterogêneo, uniformemente qualificado pelos
missionários como “orfandade”, que arregimentaram crianças para a educação e
civilização no internato jesuítico de Utiariti. Tanto nos diários como nos folders da MIA
(ver Pacini 1999), há registro de crianças órfãs supostamente entregues a Dornstauder,
sendo devidamente encaminhadas ao internato. Isto aponta para alguns questionamentos
importantes.
Por quê, à diferença de outros grupos, como por exemplo os Pareci (Arruda
1992:94), os Rikbaktsa “entregavam” suas crianças?
-
RARA, -YPYKY: CRIAR, CUIDAR E TOMAR
São registradas, tanto à época da pacificação quanto atualmente, uma série de
práticas de adoção que tornaria a entrega de órfãos, no mínimo, paradoxal. Para além do
costume de criarem crianças raptadas a outros wahorotsa, meninos são criados por tios
paternos, netos por avós e avôs maternos - mesmo com mãe viva -, irmãs tomam por
seus, filhos de outras irmãs falecidas
91
. Vi um caso em que o avô materno cuidou das
filhas de sua filha após a morte do marido, destacando-se aqui o fato das meninas não
pertencerem à mesma metade de seu avô materno.
Merece menção, ainda, casos como a chamada “tutoria por grupos de idade
(Pacini 1999:24) que acontecia no mykyry, enquanto os meninos eram preparados para a
90
Em 1960, Dornstauder chega ao posto com o que teria restado de três aldeias atingidas pela gripe: seis
homens, 11 mulheres, 22 crianças (Pacini 1999:107).
91
A grande dificuldade em realizar o censo demográfico, no que dizia respeito à constituição das “casas”,
era a quantidade significativa de casos de “adoção”, como de "tutoria". Aos poucos começava a entender
esta dinâmica de filiação de pessoas, que representa uma prática efetiva atualmente.
134
vida adulta
92
. Por outro lado, dezenas de crianças consideradas órfãs e, em alguns casos,
meninos não adaptados ao mykyry ou desobedientes, seriam mandados ao internato
jesuítico de Utiariti (Pacini 1999:24).
Uma hipótese de explicação atribui papel central a Dornstauder, o “padre João”.
O jesuíta é, sem dúvida, figura de grande destaque, inclusive do ponto de vista dos
índios, durante os episódios dos contatos iniciais. Sua importância foi decisiva nos
desdobramentos das relações entre os Rikbaktsa e brancos, a partir de então
estabelecidas predominantemente com a intermediação da MIA, na pessoa dos padres
que “encarregaram-se” dos índios em diferentes momentos do tempo.
De Dornstauder dizem que este seria um “parente” dos Rikbaktsa, baseado em
uma certa crença de que os mortos podem voltar à existência terrena como Rikbaktsa ou
não (Arruda 1992:353). A informação mais próxima disto, com bases etnográficas, é a
de que mortos mantém-se como agentes da socialidade Rikbaktsa, encontrando os
vivos, tanto sob suas formas corpóreas em vida - por isso seriam reconhecidos - quanto
na forma de animais.
Como demonstro no decorrer da tese, não apenas esta “volta” – na verdade, certo
aspecto dos mortos nunca “se vai” realmente - é inevitável, como grandes predadores e
outros animais podem não ser mais do que um modo de vivos interagirem com os
mortos Rikbaktsa ou não-Rikbaktsa
93
, como também com outros seres metafísicos não-
pessoalizados.
Na versão que não sabemos o quê deve-se exatamente aos índios e o quê a uma
interpretação religiosa, quando mortos, os Rikbaktsa subiriam (ao “céu”) e aí ficariam
por um tempo relativo ao número de tatuagens e o tamanho de seus discos auriculares,
retornando então como “civilizados” (Schmidt apud Pacini 1999:59). Não confirmo esta
“teoria” como exatamente “nativa” e não a ouvi com esta versão, aproveitando para
dizer que as variações parecem caracterizar o contar das histórias (pamyksohowy) e
todas as formas de saber Rikbaktsa
94
. Concentrei-me nos aspectos dos mortos que eram
92
Reparo, contudo, que não há, entre os Rikbaktsa, classes de idade nominadas, sistematicamente
constituídas e articuladas enquanto grupos inciatórios que revezam-se no tempo, como no caso Xavánte
(Mayburi-Lewis 1984: 296-301). A tutoria pode acontecer por parte de qualquer homem mais velho com
relação aos rapazes solteiros, mas é bastante comum que estabeleça-se entre o rapaz e seu -zopo, que
poderá até ser o MB, mas também qualquer outro homem de metade diferente àquela do rapaz que integre
a categoria –zopo (cf. Capítulo IV).
93
Um Rikbaktsa foi certa vez atacado e travou luta com uma onça no Barranco Vermelho, que soube
depois ser um seringueiro, segundo ele “bonzinho”, que havia morrido naquele lugar (descrevo
detalhadamente a série de eventos que redundam neste “acontecimento” no Capítulo III).
94
Passado algum tempo em campo, comecei a reparar uma característica dos saberes Rikbaktsa: embora
partilhem de uma cosmo-ontologia e tecnologias - como por exemplo, o fazer da plumária ou
135
os maioritariamente evocados pelos Rikbaktsa em sua vida cotidiana e no momento da
minha pesquisa de campo (cf. Capítulo III).
Certa vez, ao me perguntar sobre o meu conhecimento acerca de onde estaria um
parente meu já falecido e se eu sonhava com ele, ouvi a seguinte coisa de um homem
idoso e de prestígio. Disse-me que sonhou muito com seu pai falecido, que ele estava
em uma aldeia como a dos vivos e depois foi para a “cidade”. De sua falecida mãe,
ignorava completamente o paradeiro. Não sabia para onde ela havia ido, não sonhou
mais com ela. Nos inúmeros casos de encontros com aspectos dos mortos, reconhecidos
enquanto tais, estes permaneciam pessoalizados, conforme eram em vida.
De um modo ou de outro, pelo corpo de histórias produzidas pelos Rikbaktsa,
parece que, de fato, teria sido identificado ao falecido Muigynani. Contudo, devemos
reconsiderar a alegação de que teria voltado para "ajudá-los". Esta versão assemelha-se
por demais às idéias cristãs de santidade e ressurreição. Central é que a identificação
com o parente Rikbaktsa dá origem ou é incorporada a uma série de mitos, “sagas” de
Muigynani e do padre João contra inimigos, não apenas seringueiros, mas os Cinta
determinados ordenamentos nos ritos -, há sempre alguém capaz de contextar ou acrescentar informações,
seja sobre uma pintura corporal ou seja o assunto a existência de clãs ou suas tarefas durante os ritos. A
impressão é que discute-se tudo (não entre duas pessoas, mas isoladamente), e não raramente discorda-se
de um terceiro, mais do que se têm um corpo de saberes estático. Tomo aqui dois exemplos que me
parecem representativos. O primeiro deles era a reação de alguns homens frente à cristalização de
histórias Rikbaktsa no livro de Holanda (1994). As histórias eram reconhecidas, mas havia sempre algo a
acrescentar ou alterar, discordando ainda sobre a caracterização de alguns personagens traduzidos de
maneira geral como “pai-do-mato”, classificação que adotam apenas para o ser “metafísico” a que
chamam de morebe, um homem criador e flechador de araras, que as disputa com os Rikbaktsa. Como
eles, morebe tem esposa e também procura predá-los, ter relações sexuais e mesmo dividir a paternidade
dos filhos com as esposas dos Rikbaktsa. As pinturas corporais são um outro exemplo modelar. Apesar de
ter tido contato com alguns trabalhos não publicados feitos por outros antropólogos, onde havia pinturas
fixas para clãs e metades, este assunto não é consensual. Há características das pinturas que levam ao
reconhecimento de determinados grupos, como os clãs e principalmente as metades. Há contrastes, como
traços mais grossos (metade hazobiktsa) e traços mais finos (metade Makwaraktsa), há também pinturas
faciais que podem ter certa regularidade e até gerar “apelidos” para os clãs, mas nem tudo nos desenhos é
distinção e representação da organização social (cf. Capítulo IV). O mesmo é válido para as pinturas
corporais. Sempre disseram que “antigamente” ou “primeiro”(tapara ba) havia mais distinção entre as
pinturas, mas que a grande questão era “roubarem” as pinturas dos outros clãs, porque achavam mais
bonitas. Dizem o mesmo no que concerne aos cocares. “Antigamente” eram específicos dos clãs, mas
alguns, por serem muito bonitos, foram roubados por outros clãs, sem mencionar o fato de que,
originalmente, tais artefatos foram também roubados de outros grupos de “gente”, como mencionei no
Capítulo I. Foram no mínimo interessantes as discussões que presenciei também em torno de algumas
pinturas de “guerra”, feitas apenas com tintura de jenipapo, quando homens Rikbaktsa iam à
administração regional da FUNAI em Cuiabá manifestar seu desagrado com a troca arbitrária de
funcionários do Núcleo de Apoio Juína, entre outras reinvidicações. Diziam para alguns homens – que
tinham sido pintados por mais velhos – que suas pinturas estavam “erradas”, tudo isso rindo bastante. As
pinturas diferenciavam-se mais pelas metades do que por clãs, domínio no qual não apresentavam
regularidade absoluta. Novas idéias para pinturas eram também sugeridas na hora, como vi para o caso de
um homem da metade Makwaraktsa que sugeriu um desenho a outro homem da metade hazobiktsa que
pintava um indivíduo que dizem ser seu filho e também de um homem da metade makwaraktsa
falecido.
136
Larga e até onças:
“(…) foi reconhecido como o falecido Mùignani, pelo modo como
colocava os “brindes” nas expedições de atração, escolhendo lugares
estratégicos e inesperados pelos próprios índios, como se tivesse “mentalidade”
de Rikbaktsa. (…) E foi com base nessa interpretação que deixaram-se
encontrar, conseguindo, através do Pe. João, pacificar os brancos.” (Arruda
1992:353)
Grünberg (1970:131) registra ainda sua identificação enquanto um “autêntico
xamã”, o que não era difícil, pois administrava-lhes remédios e cuidava deles durante os
episódios de doenças. Este papel de “curador” teria sido fundamental para o êxito da
atração (Pacini 1999:66).
Era fácil que tal tipo de associação fosse feita. Também Tolksdorf, de certa
forma, assumiu este papel, conjungando aos remédios técnicas nativas, como a
imposição de mãos, na medida em que os índios sentiam-se melhor com isso (Tolksdorf
1996 [1959]:120). Acabava, desta forma, ratificando o modelo, seguido ainda hoje pelo
padre jesuíta que os acompanha atualmente, com relativo distanciamento. Embora seja
prática tão disseminada quanto controversa, o domínio da ciência de plantas e
substâncias curativas parece ser uma entrada privilegiada para os quadros de prestígio e
respeito entre os Rikbaktsa. O momento de intensa mortalidade era favorável e os
brancos rapidamente o perceberam.
Por isso mesmo não creio que crianças fossem-lhe confiadas exatamente por
causa disso, ou pelo menos, não no sentido em que os trabalhos apontam. Não apenas
Dornstauder, mas também Tolksdorf recebia crianças. Uma criança foi deliberadamente
entregue a Tolksdorf ao que ele comenta,“sabiam que eu aceitava criancinhas
abandonadas”. Ambos adaptavam-se facilmente ao estereótipo de xamãs como de
tutores.
Com relação ao jesuíta, ele apenas conduzia as crianças a Utiariti. Não as
acompanhava ou ensinava. Ainda que alguma espécie de “tutoria” fizesse parte das
expectativas Rikbaktsa na entrega de seus filhos, nem de longe poderia ser comparada a
entrega-las à responsabilidade dos mestres jesuítas e das irmãzinhas de jesus.
Entretanto, também seringueiros poderiam recebê-las, assim como índios já
contatados, como os Muduruku e Apiaká (cf. Tolksdorf 1996 [1962]:212). A
137
orfandande e até a expulsão destas crianças pelos Rikbaktsa eram comumente citadas
pelos receptores como as motivações da "doação".
A "criação" têm implicações diversas que vêm sendo tratadas ao longo desta
tese. Aproveito para abordar aqui alguns destes aspectos importantes para uma
compreensão mais adequada desta prática. Considerada um modo íntimo e muito
próximo de ligação entre pelo menos dois indivíduos, seres ou coisas, o criar, cuidar (-
rara “criação” utilizado para gentes e animais ou também –ypyky “criar”, utilizado
notadamente para crianças adotadas) é um conceito fundamental na vida Rikbaktsa.
É modalidade identificada entre os animais, entre estes e seres metafísicos, entre
os vivos e alguns animais e até entre vivos e alguns de artefatos. Expressa trânsito de
"agência" ou de propriedades entre aqueles vinculados desta maneira.
Abrange desde a criação doméstica - à qual é concedido grande valor, não
podendo ser morta ou consumida-, passando pela vinculação entre seres metafísicos e
animais, aplicada cotidianamente na classificação de eventos e infortúnios, até a
operacionalização destas idéias no domínio mitológico. Tudo se passa como se a coisa
ou ser criado fosse metonimicamente identificado a seu criador. Este princípio pode ter
implicações diferentes, segundo a perspectiva pela qual se deseje ou consiga ver cada
situação.
Um primeiro exemplo é uma situação comum nos mitos. Algo que pareça
criação aos olhos de quem a cria pode, muitas vezes, não ser ou parecer desta forma a
outra pessoa. Assim, um menino que ganha uma larva como presente de um ser
metafísico, a cria em suas orelhas, mas a larva não é vista como tal por seus parentes,
que a matam na intenção de salvar o menino. Ao ser morta, o menino acaba por morrer
também. Provavelmente o mesmo aconteceria caso os parentes não intervissem. A larva,
como presente de seres metafísicos e como algo de estreita relação com o menino,
traduz uma interação entre vivos e seres metafísicos que, para quem tem corpo,
significará a doença e sua possível evolução fatal.
No socius, a idéia do mito é também o caminho para um entendimento adequado
- no sentido Rikbaktsa - dos eventos cotidianos. Na medida em que consideram larvas
abrigadas em bernes, como possivelmente uma extensão de seres metafísicos, podem
significar, ao mesmo tempo em que a doença do corpo que as abriga, o aviso de que
algum parente poderá morrer no futuro
95
.
95
Helena Zydyk conta do berne que teve na cabeça, antes de seu pai morrer: “- Ele tava só “goerando”
(agourando) meu pai, muzuza!”. Ainda sobre a morte do pai, diz que em outro momento viu sparitsa de
138
Da mesma forma, o encontro ou visitação de algum animal ou ser que seja
considerado criação de um ser metafísico, como quatis, um tipo específico de coruja e
cachorro-do-mato, entre outros, pode significar o prenúncio de morte, como se a própria
criação fosse também capaz de dar início aos processos corporais que conduzem os
vivos à doença e à morte. Digo aqui tudo isto, porque, emblematicamente, os Rikbaktsa
denominam as crianças órfãs como harãmy-kuka ("neto" ou "neta", próximo(a) de
harãmy). Harãmy, já citado anteriormente, é um ser metafísico predatório
especialmente pregnante de histórias cotidianas e mitológicas e -kuka, um radical que
indica um certo tipo de relação entre indivíduos com, pelo menos, duas gerações de
diferença, como netos para nós.
Lembrando da pratilinearidade Rikbaktsa, "netos" podem ser estritamente
genealógicos. Para um homem, ka-tse-kuka (1sg-filho-kuka), serão filhos e filhas de
filhos homens, ou ainda filhos e filhas de outros homens da geração de seus filhos,
pertencentes à mesma metade. Para uma mulher, ka-tse-kuka serão, igualmente, estas
mesmas pessoas, não obstante o respeito de todos à exogamia de metades signifique que
tais indivíduos serão de metade diferente àquela da mulher
96
. Os recíprocos serão
também termos que aplicam-se independente das metades, para os homens, ka-diri (1sg-
avô) e para mulheres ka-eky.
Contudo, o que mais nos interessa é que ka-tse-kuka pode ser também uma
forma genérica usada por velhos e velhas para chamar crianças que têm relações
próximas, indepedente de pertencerem ou não a uma mesma metade. Neste sentido, um
harãmy-kuka é, de certa forma, uma criança que, no sentido geral que o termo pode ter,
se não é particularmente relacionada a ninguém do socius, é associada, ainda que
jocosamente, a este ser metafísico, que pertence a uma outra esfera de existência.
Não seria difícil permitirem que crianças nesta situação fossem, sumariamente,
levadas e até que desejassem isso. Este sentido da orfandade, se levado em
consideração, introduz novos ângulos ao significado da adoção, ou melhor, da não
adoção. Se a criança adequa-se a esta categoria, então não será criada, pois este
"benefício" é dirigido apenas a alguém a quem, de alguma forma, pode-se atribuir
algum tipo de laço ou relação.
quati no mato.
96
No Capítulo IV tratarei dos termos empregados para filhos ou filhas de filha, designados
diferencialmente, como também para variação dos recíprocos com relação à idade daqueles que alguém
chama de -diri. Concentro-me aqui no que parece importante para entendermos a questão da criação e da
não-criação, ou seja, a orfandade.
139
Por outro lado, a inconstante dinâmica de estabelecer e negar relações entre os
Rikbaktsa demonstra-nos que evocar conexões é algo quase sempre feito quando
desejado ou permitido por ambas as partes. Isto parece valer tanto para indivíduos
Rikbaktsa, quanto para outros índios e brancos. Sob esta perspectiva, a criação não
deixaria de ser, de certa forma, um modo de cooptação do "outro".
Circunstâncias diferentes resultaram, igualmente, na retirada de crianças do
âmbito dos wahoro ou dos postos. Tais contextos ultrapassam a orfandade em qualquer
de suas acepções, na mesma medida em que o ato de criar alguém têm conotações
diversas, que superam e independem do fato de uma criança ter ou não pais vivos.
A primeira destas situações, a qual acredito ter sido a mais corriqueira, foi a
praticada de forma quase unilateral, pelos próprios jesuítas. A clara predileção por
salvar, educar e civilizar tábulas rasas ao invés de adultos, jamais fora ocultada.
Representou um grande estímulo à prática de que, ao visitarem aldeias repletas de
doentes e agonizantes, os jesuítas recolhessem as crianças que eles próprios
consideravam órfãs (cf. Hahn 1976:34).
Em muitos casos, estas crianças não tinham, efetivamente, idade suficiente para
reconhecer parentes, sendo praticamente sobreviventes únicos de um ou até de vários
wahoro de uma dada região. Em outros casos, o caráter recente dos contatos e a extrema
reestruturação de grupos e espaços dificultou aquele reconhecimento, em um primeiro
momento.
Mesmo considerando que o padre João não parece ter sido impedido de receber
ou tomar crianças, acho importante mencionar alguns dados atuais. Muitas destas que
eram crianças adotadas na época dos contatos, algumas até por regionais e estrangeiros,
são hoje adultos reconhecidos por suas parentelas, que conhecem sua história e a de
seus pais. Alguns, uma vez retornando às aldeias, são, ainda que tardiamente, adotados
por famílias, recebendo nomes e sendo inseridos às práticas e segmentos sociais
respectivos.
Do ponto de vista formal, não paira mais dúvida sobre a parternidade de um
indivíduo que tem pai e mãe vivos, do que sobre a paternidade daqueles que foram
retomados ao grupo (cf. Capítulo IV). Não conheci qualquer indivíduo, fosse ele
oriundo do internato jesuítico de Utiariti - para onde as crianças eram usualmente
levadas - ou de casas de regionais, que não soubesse sua história e que não tivesse sua
parentela. Para tal já bastaria a importância relativa da genealogia stricto sensu e da
permanente possibilidade de, a partir de outros critérios, estabelecer relações no socius
140
Rikbaktsa (cf. idem).
Talvez processo semelhante não pudesse ser feito no contexto dos primeiros
anos de contato, pela desordem e pela dificuldade em entender os múltiplos e
complexos agregados dos wahoro, em franco abandono e deslocamentos. Talvez, em
um misto de possibilidade de sobrevivência e oportunidade de conversão, acabasse por
não haver o empenho certamente necessário para reintroduizir estas crianças em meio a
suas parentelas. Talvez, ainda, os próprios Rikbaktsa não quisessem fazê-lo naquele
momento.
Casos que me parecem um pouco distintos são aqueles caracterizados pelo
abandono voluntário de crianças, geralmente relacionado a mortes. Assim, uma mulher
que recentemente ficara viúva, abandona no mato a criança recém-nascida, que é levada
em adoção (Tolksdorf 1996[1960:156). Também é registrado o enterro da criança viva,
juntamente com a mãe que morrera no parto e seu "resgate" pelo padre João. Outros,
diante de mortes, fogem para mato - comportamento anteriormente descrito - deixando
órfãos nos postos (cf. Pacini 1999:134).
Acredito em motivações diversas para o abandono de crianças, que vão desde
um medo maior de serem assolados por doenças, no caso de abandonos nos postos, até
considerarem não haver meios ou razões para criá-las, passando por outros aspectos.
Um outro fator característico da entrega de crianças aos brancos e, dentre eles, aos
jesuítas, é que ela certamente significaria o estabelecimento de relações com a
alteridade e o acesso a recursos valorizados a seu modo.
Há, ainda, a possibilidade de combinações múltiplas que conjugam a ausência de
pai ou mãe vivos e a evitação de que estas crianças fossem adotadas por parentes. A
distância tanto quanto a proximidade de parentes, conforme venho insinuando, é
marcada pela desconfiança. Neste sentido, soma-se à doação de crianças como algum
modo de relação com os brancos, o fato de que, em muitos casos, eles não seriam menos
desejáveis enquanto preceptores do que alguns parentes. Mais uma vez evoco uma tal
noção de "alteridade" que permitiria, em algum momento, uma equação entre parentes
Rikbaktsa e brancos.
Fundamentalmente no discurso sobre terceiros é corrente a idéia de que crianças
sem pais sofrem maus-tratos e uma certa “escravização” por parte de todos,
especialmente das mulheres que as criam. Algo um pouco semelhante pode ser
observado em torno de crianças surdo-mudas (cf. Tolksdorf 1996[1962]:189 e alhures;
Pacini 1999:178-9) com o adendo de que estas, quando adultas, não são consideradas
141
enquanto cônjuges potenciais ou geram descendentes
97
.
Hahn repara que crianças de criação não eram bem tratadas, particularmente
aquelas com as quais não houvesse conexão genealógica (Hahn 1976:88-9), sem dedicar
maior atenção a este modo de formular estas relações e comportar-se respectivamente às
mesmas. Este é um dado importante para entendermos o caráter da “criação”, visto que
o desconhecimento de laços de tipo genealógico é algo comum de ser alegado entre os
Rikbaktsa, mas difícil de imaginar em termos efetivos, a não ser se consideramos uma
organização social que não exatamente desconhece, mas enfatiza muito mais a pouca
profundidade e o curso das relações sociais do que a posição e o universo de referência
dos indivíduos ao nascimento (cf. Capítulo IV).
A criação de crianças (i-ypykyhy 3sg-criança/"sua criança de criação") é
paradoxalmente acompanhada das histórias sobre a solidariedade perversa, maus-tratos
e sobrecarga de tarefas. A exacerbação destas práticas atribuídas aos “tutores” chegou a
ser apontada como causa de morte de uma criança. Este é também um "tema"
importante na distribuição de “desafetos” e comentários cotidianos sobre terceiros.
Uma criança ou um jovem pode ser, no decorrer da vida, adotado por mais de
uma pessoa ou família. Crianças com pai ou mãe vivos podem ser "adotadas" por
diversas pessoas. A história das relações destes indivíduos pode ser tão difusa que, em
gerações subseqüentes, o reconhecimento ou desconhecimento de irmãos enquanto
"parentes próximos" seja diferencial
98
.
97
Situação tão modelar quanto ambígüa é a de um homem denominado Tohoza, citado por Tolksdorf
(1996:197) como “bobo” e por Hahn como “quase surdo” e “tratado como o escravo da família” (Hahn
1976:88-89) (trad. minha). Registra, sem confirmá-lo, rumores de que Tohoza teria sido amante de uma
das mulheres casadas daquele domicílio. Tohoza reside ainda atualmente com esta mulher hazobiktsa
(arara cabeçuda) e seu marido tsikbaktsatsa (arara vermelha), ambos em idade avançada, sendo
responsável por parte significativa dos serviços domésticos. Não é regularmente nominado – Tohoza é um
apelido, nome de um pequeno roedor (caxinguelê / Sciurus) que aparece nos mitos como o “cunhado” dos
Rikbaktsa e que já ouvi ser jocosamente aplicado também a um adolescente
e não casou-se. Embora
não tenham esclarecido as ligações propriamente genealógicas, Tohoza vivia na época do contato em um
wahoro do qual apenas outras duas pessoas tsikbaktsatsa (arara vermelha) sobreviveram. Eram elas uma
mulher e um homem que veio a ser filho de criação e posteriormente marido daquela mulher com quem
Tohoza vive atualmente. Ao me ouvir dizer que ele era bonzinho, uma mulher retrucou, contando-me que
antigamente ele vivia sozinho, apanhava seriva, pacuzinho, castanha e banana e que era muito brabo, não
gostando que mexessem nas coisas dele. Que até hoje ele pega facão, flecha e tenta matar e que teria feito
isso várias vezes com o homem com quem vive. Por outro lado, já ouvi também, por parte de outras
pessoas, que Tohoza foi muito maltratado pelo casal e que apanha. É brincadeira comum dizer para as
meninas solteiras que ele será seu “marido”, causando reboliço e reprovação.
98
Neste sentido, era notável o caso de duas meninas que perderam a mãe muito cedo. A mãe e duas de
suas irmãs, por sua vez, foram criadas/adotadas por famílias diferentes. Uma destas irmãs da mãe, que
morava em outra aldeia, era reconhecida enquanto tal. A outra, apesar de viver atualmente na mesma
aldeia em que as meninas e de ter clã identificado ao da mãe, não era, contudo, reconhecida enquanto
irmã "biológica" de sua mãe. Sempre é possível que haja outras razões para este desconhecimento, como
o estabelecimento de desafetos. Não é incomum, como veremos (cf. Capítulo IV), que indivíduos em
142
É preciso também considerar casos, que não são poucos, de crianças que são
filhas de outro homem que não o marido da mãe, apesar de criadas por ele. Tal situação
pode ser abertamente reconhecida ou não. Dúvidas veladas ou insinuadas sobre a
paternidade são as mais comuns (cf. Capítulo IV). Este é um distintivo extremamente
capaz de induzir a dispersão de crianças após a morte da mãe, ou a "doação" destas
crianças por um homem após a morte de sua esposa.
Um dado interessante é que mulheres e homens podem também chamar estas
crianças por termo idêntico ao empregado para filhos e filhas biológicas (ka-ste 1sg-
filha/ ka-tse isg-filho) e serão tratados por seus respectivos termos recíprocos, "pai” (ka-
zo / 1 sg-pai) e “mãe” (ka-je / 1sg-mãe), demonstrando afeição e harmonia nas relações
em muitos momentos.
Vejo isto como um indicativo de que a conjunção entre a criação de crianças e o
"afeto" é apenas uma combinação possível dentre outros tipos de associação evocada
pelas práticas de adoção. Este enquadramento da questão torna-se importante na medida
em que conduz a um outro conjunto de motivações para a entrega de crianças que não
aquele defindo exclusivamente por uma espécie de similitude ou afinidade simpática e
identitária entre índios e Dornstauder ou outros “receptores”. Pelo contrário, a adoção
pode, em diversos aspectos, associar-se muito mais a práticas de relacionamento com a
"alteridade".
Desta forma, aparece um outro aspecto da criação de crianças, que vem a ser o
forte componente matrimonial que a caracteriza, tanto para homens quanto para
mulheres. Embora haja distinções entre a "criação" e a "criação com fins nomeadamente
matrimoniais", estas duas modalidades – lexicalmente indiferenciadas - muitas vezes
acabam por confundir-se.
Assim, meninas e também meninos de criação podem verter-se em cônjuges
daqueles que os criam, de seus filhos "legítimos" ou de outros parentes. O primeiro caso
desperta comentários: “- i-ypykyhy i-barikta!” (3sg-criança de criação 3sg-marido /
"seu marido é seu (próprio) filho de criação"), comentam as mulheres sobre uma outra
que casara com seu filho de criação
99
. Talvez parte da explicação para os maus-tratos -
mesma posição genealógica sejam diferencialmente classificados por alguém, por este tipo de motivação.
99
No amplo repertório Rikbaktsa de termos e situações jocosas há a brincadeira entre homens e mulheres
que se chamam de "mãe" e "filho", respectivamente, ka-je e ka-tse. Neste âmbito, tal tratamento indica,
ironicamente, que há interesse sexual por parte dos indivíduos. É também bastante notório que mulheres
casem-se com homens muito mais jovens do que elas, o que pode ser atribuído, em parte, às práticas de
adoção. Em certa aldeia comenta-se sobre o relacionamento de um homem com a esposa e também com a
mãe da esposa. Fui a este domicílio durante o censo, mas não convivi nesta aldeia e não teria como
143
ou ditos maus-tratos - impostos ora por "padrastos", ora por "madrastas" às crianças de
criação estivesse no receio da possibilidade real em se alterar o caráter das relações de
criação do "cuidado" ao "casamento".
Homens, especificamente, "recebem" meninas casáveis, como se fossem
crianças de criação. Esta "entrega" de meninas não está condicionada à morte de pai ou
mãe, mas algo deste tipo pode acontecer após a morte de um homem. Nesta ocasião, a
mãe oferece as filhas a um ou mais homens casáveis e de prestígio. Aqui parece
encaixar-se a "doação" de uma criança por uma índia velha a um branco, que a havia
tratado e curado (Tolksdorf 1996[1962]:190). Ele poderá desposá-la, como também
algum filho seu poderá fazê-lo.
Meninas ainda pequenas são "criadas" pelo homem até que alcançem a idade
para que o casamento seja consumado. Há uma fala típica, que marca este "dom" onde
termos para "criança de criação" e "namorada" sugerem equivalêcia: "- ikia ka-ste tsi-
akse, a-pykyhy, a-hokihi (você 1sg-filha 2sg (pres)-trocar/tomar
100
2sg-criança de
criação / 2sg-namorada)”, "você toma minha filha, sua criança de criação, sua
namorada", disse a mulher que ficara viúva a meu informante. A menina, que aceitou,
acabou por casar-se com seu filho, mas ele me diz que se quisesse, poderia ter sido sua
esposa.
Outras vezes, através da adoção de seus filhos, mulheres eram desposadas,
talvez, involuntariamente. Há muitas histórias de envenenamento e mortes de mulheres
que negam-se a casar ou ter relações com homens mais velhos. Em alguns casos é
preciso que outros homens mais velhos atuem no sentido de impedir que um velho
“tome” para si alguma mulher mais nova ou pode haver mesmo uma espécie de
“negociação” entre eles.
A "adoção" – neste caso limitada a crianças - foi também praticada entre etnias
inimigas, como a Cinta Larga, simultaneamente à ingestão de seus corpos e à ostentação
de seus crânios. Quando roubavam crianças, invariavelmente, meninas eram destinadas
à metade hazobiktsa e meninos à metade makwaraktsa
101
.
Estes indivíduos não são considerados senão enquanto Rikbaktsa. Ao mesmo
confirmar esta informação.
100
O radical verbal -akse têm implicações interessantes. Este verbo traduz algo como troca, troca brusca
(como o ato de tomar), e é também aplicado para "casamento", trocas de coisas, de víveres, de choro
ritual por utensílios do morto como de nomes entre pessoas. Abordarei este conceito e suas implicações
no próximo capítulo.
101
Entre outras motivações de cunho reprodutivo, esta é uma das alegações dos Rikbaktsa para o fato de
que, uma vez tendo-se a patrilinearidade como regra, a metade makwaraktsa tenha sempre sido superior
em número à hazobiktsa. Voltarei a este ponto no Capítulo IV.
144
tempo, aqueles que têm memória, reconhecem e reiteram sua origem. Não obstante,
qualquer referência genealógica estará provavelmente apagada dentro de algumas
gerações, sem que haja algum mecanismo ou traço capaz de distingui-los ou a seus
descendentes.
Livres de impedimentos, poderão alcançar posições de prestígio. Zapemy, que se
tornaria o famoso Mapazazi e do qual utilizo uma fala logo abaixo, é um desses
exemplos notórios. Ele e uma outra mulher eram crianças Cinta Larga, capturadas
quando pequenas. A mulher foi ainda pega por um branco e depois devolvida aos
Rikbaktsa quando moça.
Isto define um modo determinado de controlar e lidar com as relações com o
"exterior" e a alteridade (Erikson 2004). Os indivíduos provenientes de outras etnias
não são marcados enquanto grupo ou merecem algum tipo de designação distintiva. A
"proximidade" entre o "ser" e o "outro" podem estar na base do desinteresse em operar
uma dada apropriação da “alteridade”, conquanto nenhum Cinta Larga ou Iranxe adultos
possam tornar-se Rikbaktsa. Neste sentido, a ênfase da diferença recai sobre o processo
de formação do indivíduo, dos "saberes" aos quais ele for submetido e demonstre
aprendizado e das relações que for capaz de estabelecer. Proximidades e distâncias
serão afixadas no decorrer da vida da pessoa e estarão sujeitas a alterações, mas uma
possível proveniência “externa” do indivíduo não será jamais evocada a justificá-las. É
como se “todos” fossem também um pouquinho “outros”.
Parece-me importante o contraste com situações semelhantes ocorridas entre os
Matis (Erikson 1996), onde a “alteridade” é também constituinte do socius, embora não
o seja em um mesmo sentido. Relações tais com a alteridade, apesar de
dessubstanciadas, devem manter seus contornos de marcação. Certas diferenças em
alguns contextos serão englobadas em outros níveis identitários e designativos,
enquanto outras tomarão seu lugar. No caso Matis é fundamental destacar que "alguns"
daqueles que vivem como "todos" são, sob certa perspectiva, "outros" e, em
contrapartida, daqueles que vivem como "outros" alguns poderão não sê-lo.
Como venho sugerindo, não há designação que predetermine inequivocamente
comportamentos e posições de alteridade no socius Rikbaktsa. Isto acaba por contrastar
o roubo de crianças de outros wahorotsa com a resistência em admitir adultos de outras
etnias em sua coletividade (Pacini 1999:168).
O mesmo, contudo, não se aplica a crianças que são filhas de pai branco. Destas
há sempre discussões maiores em torno de sua legitimidade, de seu nome e de suas
145
atitudes. Certa vez ouvi de uma mulher Rikbaktsa que se tivesse filho com branco
mataria, "porque não é gente"
102
(Silvia Tapyk), mas as coisas não acontecem
exatamente assim.
Há um destes casos em andamento e que me pareceu bastante interessante.
Refere-se a um menino que é filho de uma mulher viúva da metade makwaraktsa. Esta
tem filhos de seu falecido marido da metade hazobiktsa, como de outro homem
makwaraktsa. Teve, porém, um filho com um branco, que até os cinco anos de idade
não recebera nome Rikbaktsa.
Em algum momento, porém, soube que uma mulher hazobiktsa o havia
nominado com um nome hazobiktsa, o que diferencia este caso da "adoção" de crianças
de outras etnias, quando homens eram sempre "adotados" pela metade makwaraktsa.
Sua mãe não se lembrava do nome e, quando lhe perguntei sobre por quê o nome não
tinha sido dado pelo sênior makwaraktsa de sua aldeia, ela me disse que este só saberia
(só poderia dar) nomes de seus "parentes", ou seja, dos makwaraktsa.
A situação desta criança é algo que se definirá no tempo, se seu nome será
reconhecido ou não, se ela se relacionará com outros indivíduos e sobre quê base
classificatória. Até minha última experiência em campo, todos o chamavam de kadiri,
termo utilizado quando se referem a brancos do sexo masculino. Uma possibilidade é a
de que ele venha a perpetuar o clã zerohopyryktsa, sem descendentes masculinos
102
Esta "domesticação" do inimigo - na memória mais recente, os Cinta Larga por excelência - sugere
uma espécie de "predação produtiva" e é difícil não remetê-la à idéia de "predação familiarizante" (Fausto
1999). Para Fausto, a predação e familiarização estão necessariamente articuladas, mas parece haver um
sentido necessário, no qual a "familiarização" aparece enquanto "derivada" da "predação", como
“transformação” de uma idéia de predação ontológica, anterior e localizada no "exterior" do socius
(idem:266,269). Embora aqui não seja o lugar mais apropriado para esta discussão, retorno a ela no
Capítulo V, é distintivo o fato da adoção/familiarização ocorrer entre os
Rikbaktsa tanto com relação aos
"de fora" quanto aos "de dentro". Entretanto, há uma peculiaridade interessante entre estes dois aspectos
da adoção que torna difícil da identificação de "lugares" ou a "origem" primeira de uma certa idéia ou
prática. Se animais predáveis e criados são cuidados com esmero e não podem ser mortos ou comidos
(principalmente aves), se crianças raptadas a outras etnias não são especialmente designadas ou
repreendidas, podendo alcançar posições de prestígio, crianças Rikbaktsa adotadas, por outro lado, são
alvo de atitudes controvertidas, na prática ou no discurso de terceiros, que podem chegar à morte. Quando
crianças morrem, a falta de "cuidado adequado" por parte de seus pais é apontada publicamente no rito
funerário. Neste caso, que inimigo seria aqui o substituto de quem? Seria a relação entre os Rikbaktsa,
outras etnias e animais o protótipo da relação de predação/alteridade que é familiarizada, o que define
uma predação negativa, ou a adoção/criação praticada entre os próprios Rikbaktsa seria, sem desejar
inverter os pólos, uma hipérbole de que, para que haja predação é necessária uma extrema familiaridade,
uma interioridade. Mortos predam vivos sobretudo quando têm com eles relações de proximidade e
intimidade, que perduram na memória dos vivos. Relações são aqui condição de conflitos como dos casos
de feitiço e creêm-se mais aplacados quanto mais estiverem distanciados os indivíduos. Neste sentido,
brancos parecem não participar, ao menos preferencialmente, deste sistema, posto que uma alteridade sem
ou com poucas possibilidades de relação parecem não interessar muito aos Rikbaktsa. Sem duvidar
exatamente da articulação entre predação e familiarização, esta possibilidade etnográfica nos faria, ao
menos, reconsiderar se há um sentido e um termo que necessariamente comande esta relação. A partir daí
a familiarização pode ser tida como algo para além de uma contrapartida positiva da idéia de predação.
146
atualmente, uma vez que sua nominadora se reconhece enquanto membro deste clã da
metade hazobiktsa, embora outros contextem este fato, atribuindo a ela uma mistura
entre umahatsa e tsuãratsa, ambos igualmente clãs da metade Hazobiktsa.
São significativos os casos de mulheres que têm filhos com brancos, embora o
oposto não aconteça. Esta é uma afirmação forte, mas o fato é que não soube de nenhum
caso para homens, nem dentro e nem fora das aldeias
103
, enquanto que para mulheres há
alguns exemplos. Ainda que haja esta possibilidade, o contraste é marcante, no
cotidiano como no discurso. Já ouvi muitos homens dizerem, inclusive, que no futuro os
Rikbaktsa não mais existirão em razão da freqüência com que as mulheres têm filhos
com brancos. Intercursos entre mulheres Rikbaktsa e brancos ou índios de outras etnias
durante viagens ocasionais são reclamações costumeiras por parte dos homens.
Pacini (1999:147) registra o fato de que "algumas mulheres Rikbaktsa que
passaram por Utiariti diziam: [- Canoeiro muito brabo. Não presta para casar]”. O
caráter "manipulador" das mulheres no socius será retomado no Capítulo IV. Cônjuges
brancos não foram incorporados à vida aldeã. No caso de casamentos interétnicos isto
pode ocorrer, embora com restrições e reservas
104
.
Sem deixar de ser associada a tudo isto que descrevo aqui, a criação pode
corresponder, ainda, a uma espécie de sanção imposta àqueles que não cuidam
adequadamente de seus filhos. Uma sanção que toma, muitas vezes, ares de compaixão.
Mães podem tirar de filhas crianças filhas de casamentos endogâmicos, alegando temer
que a criança não seja bem tratada. Parentes próximos, geralmente homens de prestígio
e/ou temidos, podem tirar crianças de outros, com este tipo de motivação. Nestes casos,
as crianças serão entregues porque, como acontece para outros aspectos da relação entre
duas pessoas de prestígio diferenciado, não se pode negar certas coisas, sob penas
maiores.
O padre João, se era tido como grande xamã, também não poderia furtar-se desta
espécie de contraparte do respeito e do reconhecimento entre os Rikbaktsa. Havia laços
103
Há o caso de uma troca de irmãs entre os Rikbaktsa e os Aikanã (Tubarão). O homem Rikbaktsa, que
sofreu feitiço na aldeia Rikbaktsa, mora com a esposa em sua aldeia, no estado de Rondônia.
104
Houve alguns casos gerados no passado pela convivência interétnica no internato de Utiariti e também
no posto Barranco Vermelho, como com os Iranxe, Nambikwara e Kayabi. Uma mulher filha de uma
Rikbaktsa e de um Iranxe executado pelos Rikbaktsa na década de 80, é casada com um Rikbaktsa e
permanece sendo designada enquanto Iranxe, sem nome Rikbaktsa. Um exemplo diferente disto é o de
uma mulher que casou-se recentemente com um Munduruku. Vivem em uma casa um pouco separada das
demais e não têm filhos. O Munduruku ganhou nome Rikbaktsa, mas não participa rotineiramente do
mykyry ou de atividades coletivas e tem suas atitudes com relação a não-divisão de recursos de roça, caça
e pesca extremamente criticadas pelas mulheres.
147
importantes entre ele e os Rikbaktsa, mas é preciso complexificar um pouco a
compreensão de sua natureza, raras vezes consensual. Pois que não se pode afirmar um
fato de modo isolado, como aquele que coloca Dornstauder como parente e grande
xamã Rikbaktsa, deslocando-o de tudo mais que isto vem a significar em seu universo.
Tomar uma criança em criação evidencia, então, uma crítica a atitudes
inadequadas de parentes próximos. É assim que Bettio recolhe uma fala de Mapazazi,
bastante demonstrativa desta, como de outras noções implicadas na criação, sobre as
quais venho aqui discorrendo (cf. Bettio apud Pacini 1999:156).
Eu criei. Eu gosta de criá os filhos dos outro, né, porque a mãe morreu,
o pai dele também morreu [...] Mãe dela zangava com ela. Eu tem dó de minha
prima. Eu falá pra minha mãe: - Tem que criá ela, filha de minha tia. Mãe dela
não tá cuidando bem. Daí que minha mãe tiraro ela de irmã dela [...] Criá ela.
Depois outro. Também tinha pai. Pai dele não gostava dele. [...] Daí eu criá de
novo. Tava soltero ainda, também. Não tinha casado. Eu criava ele. Criava ele.
Treis, quatro, cinco, cinco ano tá com nóis. Depois tem outro. Tem Luiz
Kikpazazi, Adalberto, Albano, tem. Eu casei com mãe dele.(citando um dos
casos em que os seringueiros levavam crianças) “Eu criei de novo. Eu tinha
casado de novo. Faz dois ano, seringueiro apareceu lá em casa e levaro ele.
Pediro pra mim. – gurizada não tinha mãe. Levaro [Aitsabudo e Gaspar) (...)
Renato quando tá pequeno ainda quase morrero dois veis. Doença que tem,
lombriga, né. [...] Renato, surdo, né, ele ficou. Ficaro até ... Agora cresceu, né.
Eu não vô dá mais pra outro não. Tá trabaiando bem. [...] Alice não cuidava
direito. Criava berne. [...] Esses dia pai dele queria levá ele de volta. Eu não
deixá não. Quando era pequeno não queria cuidá deireito.” (grifo meu)
Esta fala sintetiza a miríade de perspectivas que podem ser encontradas e,
inclusive, convergir nos casos de adoção. Demonstra que a ausência de pai vivos não é
um critério exclusivo e que fatores de outras ordens - entre eles, o julgamento sobre o
cuidado adequado, interesses matrimoniais e até a valorização da capacidade de trabalho
daquele que será adotado - constituem estímulos igualmente importantes quando uma
criança é entregue, tomada ou permanece adotada por uma mesma família. Permitir a
adoção e, principalmente adotar alguém pode significar, então, a expansão de relações e
lealdades, um sinal ao mesmo tempo em que uma das formas de acumulação potencial
148
de prestígio que poderá ser ou não, com maior ou menor sucesso, efetivado. Ato que,
certamente, espera gerar algum tipo de contrapartida entre os envolvidos, o que fica
ainda mais claro quando consideramos seus aspectos matrimoniais.
Não é a orfandade o sentido primeiro - não que o haja - e tampouco a identidade
ou simpatia entre as partes envolvidas a impulsionar univocamente a entrega de crianças
ou a conformidade diante de sua tomada a pais e mães. Talvez julgassem, frente às
possíveis argumentações do padre João, que não podiam ou deviam negá-las.
A familiaridade com o procedimento de "tomar" crianças e as implicações da
adoção parecem ter informado tanto o desejo de entregar crianças quanto a aquiescência
em lhes ver levadas por Dornstauder. Mais do que órfãos supostamente desamparados, o
que mais me sensibilizava durante a pesquisa era entender porque filhos de pais vivos,
alguns deles homens prestígio, foram para o internato de Utiariti.
Se “tomadas” ou “entregues” por terem Dornstauder como “parente”,
“guerreiro” ou “grande curador”- com o quê tudo isso possa significar em sua
socialidade -, ou apenas em razão do verdadeiro colapso populacional, organizacional e
produtivo que viveram alguns grupos Rikbaktsa, o fato é que crianças eram levadas para
lá.
Utiariti integrou o imaginário salvacionista dos jesuítas. A ida de crianças para o
internato é uma das etapas do mito da pacificação e preservação, ao menos física, dos
Rikbaktsa:
Mas a quem podem recorrer, na pacificação, quando os seringais não
se mantinham e também necessitavam de socorro? O recurso era apelar para o
Internato de Utiariti, a única salvação naquele momento.” (Moura e Silva
apud Dornstauder 1975:9) (grifo meu).
Arruda concorda com esta interpretação, concebendo a instituição como a “única
alternativa de sobrevivência” (Arruda 1992:104). O internato funcionava como um
centro educacional, mas também como unidade produtiva, com roças e produção de
bens para venda (idem:187). Utiariti era o centro da MIA, instalado em um antigo posto
das linhas telegráficas (Hahn 1976:34). Os internos, de oito etnias (Pacini 1999:169),
eram em torno de 1000, além dos tantos habitantes temporários, em tratamento médico
ou aprendizado de ofícios (Hahn 1976:34).
A população Rikbaktsa era bastante flutuante. Em meados de 1960, 100 crianças
149
estavam em Utiariti (Pacini 1999:24). No final do ano, eram 44 as crianças e
adolescentes e quatro os adultos (idem:50). Em 1970, Hahn encontra 40 crianças
Rikbaktsa e alguns adultos (Hahn 1976:35).
Por outro lado, é também Arruda quem define para Utiariti um “trabalho
aculturativo planejado”, qualificando o internato como “etnocida” (Arruda 1992:112).
As crianças eram o alvo principal, já que pensavam poder atuar mais facilmente sobre
elas do que sobre adultos já “formados”. Havia segregação dos índios por sexo e idade
(idem:105), e a junção dos mesmos com crianças de outras etnias e alunos regionais. O
contato inter-tribal era intenso (Hahn 1976:26).
Condições para padres e índios eram diferenciadas (Arruda 1992:185),
notadamente no que diz respeito à alimentação. Tanto Arruda (idem:186) quanto os
próprios Rikbaktsa descrevem a aplicação de castigos físicos àqueles que não se
enquadravam à disciplina.
Uma mulher que hoje mora na aldeia do Barranco Vermelho, conta que ao
chegar em Utiariti, quando ainda criança, imediatamente retiraram todos os seus colares
e “enfeites” plumários, dizendo que eram “sujos”. Escovaram suas costas. Castigos
como “bater” e “deixar sem almoço” eram comuns. Meninos não podiam falar com
meninas e os que reclamavam eram “marcados com papelão”. As irmãs tomavam-lhes
conta durante o sono. Caso dormissem com o corpo indisciplinado - pernas abertas para
as meninas, por exemplo - “apanhavam”; “judiaram muito”, acrescenta Mônica Neidy.
Os relatos sobre este período são bastante regulares:
Apanhei mas também bati muito em Utiariti. Tinha coisas boas e ruins.
(..) Morria muita gente em Utiariti ... três, quatro por dia com sarampo e
catapora. A gente era escravo, só que comia e bebia.” (Benedito Aknaby)
Irene Tykaywy, proveniente dos grupos Rikbaktsa do Aripuanã, disse-me ser órfã
de pai e mãe quando foi levada ao internato. Logo depois menciona, porém, que ao
retornar de lá fora criada por sua "tia" Apute, que hoje mora na aldeia Cerejeira.
Contou-me que apanhava por estar “com dor de dente” ou “falar na língua”, porque era
proibida a expressão no idioma materno. Seu marido, já falecido, também passou por
Utiariti. Lá bateu em um mestre
105
, trancando-o no quarto. Ficou de castigo e sem
105
“Mestre Odilo”. Arruda cita este caso como o que, definitivamente, teria “democratizado” um pouco,
uma série de práticas de segregação no Internato (1992:187).
150
almoço, até que foi mandado de volta à aldeia. Durante este período, muitos meninos
que também não se adaptavam a Utiariti chegavam fugidos ao Barranco Vermelho
(Pacini 1999:50).
Assim, ficavam separados de seus lugares de origem por anos. A visita a
parentes era uma espécie de prêmio por bom comportamento, ocorrida nas “férias”. Em
Utiariti eram ministradas aulas de Português, Matemática, Geografia, História, Religião,
etc. Aprendiam ofícios, como tricô, culinária e corte e costura, para as meninas e
carpintaria, pecuária, mecânica e apicultura, para os meninos (Pacini 1999:171). Além
disso, todos trabalhavam nos roçados e as meninas “cozinhavam e lavavam as roupas de
todos (incluindo irmãs e padres)” (Arruda 1992:187). O objetivo era formar “pessoas”
civilizadas e trabalhadores para a economia regional (idem:183)
106
.
Utiariti deveria ser a realização de um ideal. O lugar de construirem uma geração
com atributos de civilização que cresceria isolada do fervilhamento dos embates entre
índios e brancos, das doenças, das mortes e do intenso processo de desfazer e refazer
dos grupos em deslocamentos tão mais freqüentes quanto necessários.
REDISTRIBUINDO
Em um balanço da redistribuição espacial pós-contato, temos que 37 dos 52
wahoro mapeados por Dornstauder foram abandonados até 1962 (cf. Dornstauder
1975:29). A morte de tantos, de acordo com as práticas funerárias Rikbaktsa, já seria,
por si só, capaz de alterar locais de residência. Seja pelo abandono de casas e lugares
antes habitados pelo morto, por um lado, ou, por outro, pela própria dinâmica das
visitações que acompanham sua "lamentação". Visitações por ocasião da morte de
alguém podem verter-se em estadias mais ou menos permanentes de indivíduos
provenientes de outros wahoro, bem como provocar o deslocamento de indivíduos do
wahoro anfitrião.
Depois de restabelecidos ou retornavam a suas aldeias (Saake 1964) – quando
isso era possível – ou iam gradativamente construindo suas casas um pouco mais para o
interior do mato (Tolksdorf 1996[1960]:156), mas em geral, nos arredores dos postos de
assistência. Com relação aos mesmos, a diversidade étnica, a heterogeneidade entre os
próprios grupos Rikbaktsa, cada vez mais condensada e a estrutura disciplinar e de
106
Arruda (1992:182-188) descreve os maiores absurdos cometidos contra os índios em Utiariti, segundo
seus relatos que, ainda que mereçam certa relativização, são bastante uniformes.
151
subsistência não eram os únicos fatores em relação aos quais confrontaría-se a
reinvenção da disposição e dinâmica social entre os wahoro. Seu caráter provisório, ao
menos do ponto de vista dos missionários jesuíticos, proporcionaria ainda mais
deslocamentos, junções e separações.
Localizados em regiões determinadas, cada posto teve participação diferenciada
e mutável no decorrer do tempo enquanto centro de atração ou manutenção de pessoas.
Assim foram criando-se e extinguindo-se, influenciando, de certa forma, os movimentos
e concentrações populacionais Rikbaktsa. No caso jesuítico, a proximidade ou maior
facilidade de acesso ao internato de Utiariti foi um critério determinante para a
longevidade daquelas fundações.
Grupos locais circunvizinhos iam cada vez mais deslocando-se do médio
Juruena e rio Arinos para o sul, no alto Juruena. Ainda que muitos não desejassem este
deslocamento, eram "convencidos", por um lado, pelo fluxo crescente de brancos -
maior à medida em que se consolidava a idéia de que os índios estariam "pacificados" -,
e por outro, pelas limitações na assistência e promessas de melhores recursos naqueles
postos menos distantes de Utiariti. Em poucos anos, o posto Barranco Vermelho
concentraria todos os esforços da assistência jesuítica.
É nesta perspectiva totalizante que deve-se entender, inclusive, a atuação da
missão evangélica neste processo. Desde o fim de 1960 já havia missão evangélica na
região do Juruena abaixo da boca do rio Arinos. A expectativa era a de que houvesse
conflitos com a missão jesuítica (Tolksdorf 1996[1961]:167), mas o que houve foi uma
espécie de divisão de áreas de atuação.
Tolksdorf, nesta época, fornecia algum suporte para a missão ou se interessava
por ela. Apesar de também protestante, não tinha por objetivo converter índios. O pastor
evangélico, vez por outra, aparecia no posto jesuítico do rio Arinos, o Santa Rosa, como
vimos, referência singular para todos aqueles que por interesses diversos circulavam
pela região (Tolksdorf 1996[1961]:169,172).
Em finais de 1961, Tolksdorf retira-se daquele posto e acaba adoecendo
gravemente. Julgando que nem SPI e nem a Igreja Católica agiam adequadamente,
resolve, então, auxiliar a missão evangélica nascente. Avisou ambas as instituições de
sua decisão, mas segundo ele, não houve providências acerca dos índios da região do
Santa Rosa, que ficavam “para lá e para cá” (Tolksdorf 1996[1961]:173).
Sem o conhecimento e consentimento dos índios nenhuma missão poderia
estabelecer-se. Começa, desta forma, suas interações com os grupos Rikbaktsa da região
152
mais próximos àquela que se tornaria centro da atuação protestante (Tolksdorf
1996[1961]:176). Note-se aqui a particularidade dos grupos Rikbaktsa de cada micro-
região. Aos poucos, os índios começam a acorrer ao posto evangélico, mas também o
pastor, como o padre João, tinha presença intermitente (Tolksdorf 1996[1961]:181).
Pouco tempo depois há boatos de que os Jesuítas haviam fechado o Posto Santa
Rosa (Tolksdorf 1996[1962]:182). Desde 1961 o padre João dizia que era difícil mantê-
lo, por se tratar de local de grande circulação de brancos. A idéia era torná-lo posto de
produção, o que também não chegou a bom termo. Abusos cada vez maiores vinham
acontecendo, na ausência de pessoal adequado que tratasse do Posto (Pacini 1999:100).
A assistência, e com ela muitos grupos Rikbaktsa, foi sendo deslocada para o
posto do Barranco Vermelho, no alto Juruena e também para o posto de atração Japuíra,
criado em fins de 1962 na margem direita do rio Juruena, mais acima da desembocadura
do rio Arinos. O local era freqüentado há muito tempo pelos Rikbaktsa (Dornstauder
1975:190) e o objetivo era uma tentativa de primeira concentração dos sub-grupos que
viviam no baixo Juruena, nas imediações do rio Aripuanã, Morerú e Bararati, na região
do posto Escondido. O objetivo final era, da mesma forma, a concentração de todos os
sub-grupos Rikbaktsa no posto Barranco Vermelho e, em 1972, os jesuítas negociaram
com fazendeiros a entrega das terras ocupadas pelos índios (Hahn 1976:35).
Em outubro de 1962, Tolksdorf em viagem constata o abandono do posto Santa
Rosa. Alguns Kayabi que lá estavam dizem que há um ano não viam o padre João.
Cerca de um mês depois o padre chegaria ao posto para fechá-lo definitivamente. Os
meses se passam e novamente Tolksdorf encontra-se sozinho no posto evangélico e sem
recursos, de remédios à alimentação. Começam as críticas ao pastor e algumas mortes
por falta de recursos (Tolksdorf 1996[1962]:194).
Em 1962, quando finalmente o pastor estabelece-se no posto com a esposa e
filhos (Tolksdorf 1996[1962]:207) - uma “tolice” para Tolksdorf - as desavenças e
críticas apenas acentuam-se, culminando com sua saída de em abril de 1963. Os relatos
são de que os índios, não tinham “confiança” e criaram “aversão” ao pastor e a sua
esposa, manifestando o desejo de ir embora quando Tolksdorf saísse (Tolksdorf
19996[1962]:208). Não se ocupavam adequadamente do doentes do posto e das malocas
do entorno e praticavam hábitos de alimentação diferenciados daqueles impostos aos
índios (id.:ib.). Disputa e discordância em torno destes comportamentos e disposições
com relação aos índios fomentaram conflitos entre o pastor e sua esposa e as
153
pesquisadoras do Summer Institute of Linguistics, estabelecidas próximas ao posto
Escondido (idem:210)
107
.
Em algum momento o pastor Richter sai definitivamente do posto Escondido.
Tolksdorf cria um posto próximo chamado posto do Fritz, mas ainda em 1964 retorna
ao mesmo posto Escondido, temporariamente abandonado (Tolksdorf 1996[1970]:222).
Entre 1966 e 67 Tolksdorf retorna à Alemanha para tratamento de saúde, deixando no
posto um auxiliar.
Em 1967 intensificam-se as interferências jesuíticas. O padre João, através de
inúmeras promessas, tenta levar alguns adultos e crianças para os postos jesuíticos, mas
o encarregado não permite. Pouco depois um empregado do posto Escondido sai com
alguns índios em direção aos centros da missão jesuítica, levando incrementos. Segundo
Tolksdorf, o índios não queriam sair do Posto e até os Kayabi queriam ficar (Tolksdorf
1996[1967]:223).
Em 1968 já havia rumores de que o Posto do Escondido seria transferido aos
jesuítas, ao que Tolksdorf opõe-se; “se for entregar, só para a FUNAI ou outra missão
evangélica” (Tolksdorf 1996[1969]:223). Em abril de 1969 Tolksdorf é surpreendido
por uma correspondência dos jesuítas solicitando a sua saída na primeira oportunidade.
A missão evangélica havia, sem o seu conhecimento, entregue efetivamente o posto
Escondido aos jesuítas desde o final de 1968.
Na versão de Tolksdorf, os índios que trouxeram a tal correspondência
desejavam ficar no Escondido e os demais demonstraram-se muito tristes: “Entrega
para os Padres, sem perguntar a mim nem os índios” (Tolksdorf 1996[1969]:224).
107
Pesquisadores do Summer Institute of Linguistics começam a atuar entre os Rikbaktsa em 1961,
incialmente de forma associada com a missão evangélica. Após conflitos, transferem-se para mais acima
da margem esquerda do rio Juruena, próximo à desembocadura do rio Arinos. Com a saída do pastor
evangélico, retornam ao local do posto Escondido. A partir da concentração da população na reserva
Rikbaktsa, passam a se estabelecer na aldeia da Segunda Cachoeira. Hoje mantém-se em uma chácara na
cidade de Cuiabá, com visitas ocasionais às aldeias. Algumas famílias Rikbaktsa moraram nas
acomodações do SIL em Cuiabá por um bom tempo, trabalhando na tradução de textos bíblicos. Seu
interesse central eram os estudos lingüísticos, atuando de forma localizada e um tanto distanciados das
questões assitenciais gerais. O estudo da língua Rikbaktsa serviria à tradução da bíblia que, segundo
acreditam, deve ser traduzida em todas as línguas do mundo. O SIL foi o responsável pela proposta de
escrita Rikbaktsa, produzindo algumas cartilhas e um dicionário experimental, com o auxílio dos índios.
A bíblia está terminada. Ao me ver estudar, um homem experiente veio mostrá-la a mim. É algo
realmente impressionante. Para ele, a bíblia é pamyksohowy, uma história, como aquelas que contam na
casa dos homens e também como o livro de mitos compilados pelo padre Adalberto Holanda. Diz que
ali muitas histórias sobre peixes, como aquelas do repertório Rikbaktsa e que eu poderia estudá-las. Na
verdade, foram os próprios pesquisadores-missionários que perceberam e fixaram esta tradução. É notável
o estilo da escrita, ao modo das narrativas Rikbaktsa. São dialógicas e utilizam-se de protocolos da
socialidade Rikbaktsa, como os diálogos de visitação, que mencionei no capítulo anterior. Arruda
(1992:137, 138) menciona o uso dos mitos para a evangelização através de um depoimento do CIMI.
154
Nesta ocasião, o local contava com 23 índios (Pacini 133). Ao que parece, os
Jesuítas, já ao assumi-lo, planejavam fechá-lo. Sempre houve um contraste entre a
assistência concedida aos grupamentos do baixo Juruena e Arinos, em relação àqueles
do alto Juruena e rio do Sangue, muito mais próximos a Utiariti. Havia um certo
desinteresse da missão jesuítica em manter a assistência mais abaixo do rio Juruena.
Mortes entre índios e brancos, dificuldade de acesso.
Notadamente na região intermediária entre a atuação jesuítica e evangélica,
havia um grande vácuo. A transferência do posto Escondido para a administração dos
jesuítas para ser, logo em seguida, fechado, apenas sacramenta este processo.
Outros fatores de ordem logística interfeririam no desinteresse jesuítico em
manter um posto para baixo do rio Juruena. Na década de 60, uma mudança de
orientação na catequese religiosa alteraria significativamente a dinâmica do contato
clerical com populações indígenas
108
. A partir daí a Igreja passaria a destacar, ao menos
idealmente, a legitimidade e importância da diversidade das culturas. O objetivo da
catequese não mais seria a substituição de uma mentalidade (a dos índios) por outra (a
dos missionários), mas o estabelecimento “diálogo”, ao menos aparente (idem:131,
132).
Neste sentido, ao internato de Utiariti restaria apenas a extinção. À medida em
que vai sendo gradativamente desativado a partir de 1968, o posto do Barranco
Vermelho fortalece-se e o "substitui" nos desdobramentos da catequese Rikbaktsa. A
longa distância entre este novo centro operacional da assistência religiosa e o posto
Escondido - cerca de 300 km -, bem como os gastos com isto acarretados (Hahn
1976:37), teriam sido as razões determinantes para o que chamo de “subimento” dos
Rikbaktsa do Escondido, Aripuanã (arredios) e Japuíra para o território que seria mais
tarde oficializado como a "Reserva Erikpatsa". Assumir o posto Escondido, fechá-lo,
transferir os Rikbaktsa para a região do posto Barranco Vermelho e, simultaneamente,
esvaziar Utiariti são várias faces de uma única questão.
O tema da transferência dos Rikbaktsa para o posto Barranco Vermelho é outro
ponto controverso da história Rikbaktsa. Ao assumir o posto Escondido, Pacini afirma a
intenção prévia da MIA, que já "tinha planos de transferir os Rikbaktsa para a
Reserva" (Pacini 1999:133). Mais à frente, diz que, posteriormente à assunção do posto
108
Isto aconteceu no Concílio Vaticano II (1962-1965), especificamente com o Decreto Ad Gentis
evocado no estatuto da pastoral indigenista e, mais tarde, em 1968, na II conferência do Episcopado
Latino-Americano (cf. Arruda 1992:132).
155
pelos jesuítas, “constatou-se que muitos Rikbaktsa queriam subir, pois estavam mal
atendidos e distantes dos outros parentes” (Pacini 1999:134).
Arruda (1992:176) ressalta a contrariedade dos Rikbaktsa neste processo. Para o
autor, a possível interrupção da assistência da MIA à região do Escondido teria sido
decisiva à disponibilidade dos índios em subirem o rio Juruena. É indubuitável que o
objetivo da MIA sempre foi o fechamento do posto e que não deixaria de utilizar os
recursos à sua disposição no convencimento dos índios. À despeito destas evidências, a
conclusão relativamente demorada da operação, bem como as reais possibilidades de
manutenção dos índios em um território francamente invadido, aponta-nos também
outras motivações.
Segundo Hahn, o deslocamento do último grupo teria sido provocado por uma
invasão de garimpeiros ao posto Escondido, em busca de mulheres e comida, em 1973
(Hahn 1976: 37). Os índios teriam então, queimado suas casas, cortado as fruteiras e
deslocado-se para o interior da floresta. O Escondido é citado como foco de
“resistência” à MIA por conta dos parentes “brabos”, índios que recusavam a
aproximação da estrutura jesuítica, mas que estavam também sob a influência da missão
protestante, desde 1961.
De um lado, a insistente pressão jesuítica, de uma forma ou de outra, forte aliada
das efetivas invasões exploratórias e colonizadoras dos brancos. De outro, vários e
pequenos grupos Rikbaktsa, ainda como blocos relativamente associados pelos rios do
Sangue, Arinos e baixo Juruena. Até 1974, alguns grupos do Aripuanã mantiveram-se
em seus wahoro.
O abandono de territórios não deve ser tido como uma atitude pontual e
imediata. Ficou claro que as movimentações Rikbaktsa tinham tempo e sentido, que
incluíam um profundo conhecimento de uma extensa área não apenas de recursos, mas
de ocupação humana, dentre ela grupos Rikbaktsa aliados, não-aliados e outros
wahorotsa.
Mas o que constituiria o dado mais importante era a perspectiva de que, uma vez
migrando para o Barranco Vermelho, a multiplicidade de grupos Rikbaktsa ficasse
concentrada e aproximada, em uma região circunscrita. Como vimos, estas
aproximações eram, antes disso, apenas circunstanciais e temporárias. Alguns
indivíduos sequer conheciam-se pessoalmente.
As aproximações não se deram nem à revelia e nem pelo "convencimento"
direto. Se fatores contextuais concorreram neste sentido e se havia reais e primordiais
156
intenções da MIA em concentrar a população, esta concentração não aconteceria se
desvinculada de um processo cuidadoso de construção e reafirmação de laços,
conduzido pelos próprios Rikbaktsa, com significativa duração temporal.
Ainda em 1971, aqueles já estabelecidos no Barranco Vermelho iam ao
Escondido fazer festas com o objetivo de chamar parentes à subirem o Juruena (Pacini
comunicação pessoal), como também convidavam-nos para festas no próprio Barranco
Vermelho (Pacini 1999:135). As últimas famílias, no total de 61 pessoas
109
,
completariam este processo apenas em 1974.
DE POSTOS A ALDEIAS: A GERAÇÃO BARRANCO VERMELHO
O entreposto Santo Inácio do Barranco Vermelho ou posto Eremitsauquê
110
(eremetsa-hokihi coatás-"namorada" ou eremetsa-hoke coatás-"buraco"), e em área
contígua, a colônia Habetiquê, foram criados inicialmente com o objetivo centralizar a
administração da MIA junto aos Rikbaktsa. Principalmente a colônia, constituiria ainda
uma possível fonte de produtos agrícolas para auxiliar a estrutura de Utiariti e de outros
"empreendimentos" jesuíticos (Pacini 1999:142, 143).
Primordialemente, o entreposto deveria abrigar os índios adultos, pois as
crianças seriam destinadas a Utiariti. Além de receber àqueles advindos dos wahoro
atingidos por epidemias e de outros postos, o Barranco Vermelho acolhia os que
retornam em algum momento do internato e se tornaria, pouco a pouco, o novo pólo da
catequese jesuítica.
Há algum tempo havia promessas inócuas do SPI para que fossem demarcados
500.000 hectares de terras para populações indígenas na imediações do rio Arinos. Não
obstante, como vimos, não havia qualquer coibição de demarcação das terras vendidas,
ao mesmo tempo em que funcionários realizavam operações escusas (Tolksdorf
1996[1959]:44, 70). Em 1960, o SPI menciona a discussão dos limites de uma possível
Reserva Indígena, segundo demanda de Tolksdorf. Em 1962, Tolksdorf segue ao Rio de
Janeiro para tratar da "Reserva da terra para os índios" (Tolksdorf 1996[1962]:196).
109
Eram as famílias de Фolja, Moreno, Sykmy e Zukta, que mudaram-se em 1973 (cf. Pacini 1999: 136).
Observo que estes homens, atualmente, residem cada qual em uma aldeia. Фolja foi vítima de um
acidente fatal em sua canoa, quando retornava de uma festa na aldeia da Segunda Cachoeira. Moreno
mora na aldeia Cerejeira. Sykmy na aldeia da Beira. Zukta retorna ao Escondido, fundando uma aldeia,
depois que a região foi parcialmente retomada.
110
Nome de um antigo wahoro localizado no mesmo local do Barranco Vermelho e que fora abandonado
anos antes em razão da ocupação seringueira (cf. Pacini 1999:142).
157
Embora SPI e padres vivessem em desentendimentos contínuos (Tolksdorf
[1959] 1996:43), estes foram também consultados com respeito a possíveis limites para
uma Reserva (Tolksdorf [1960]:134). E são os mesmos jesuítas que, passada quase uma
década e, ao que tudo indica, com os desacordos resolvidos, negociam as terras da
Reserva Erikpatsa, oficializada pelo Governo Federal em 1968. Lembro que pouco
depois, em 1970, os jesuítas recebem a administração do posto Escondido através da
FUNAI.
A intenção da MIA era reservar os Rikbaktsa, concentrá-los cada vez mais em
um território único e no qual não houvesse penetração sistemática de brancos. Houve
várias propostas para a formação da Reserva, o que incluía compra de terras e doações,
até que os jesuítas optassem, definitivamente, pelas terras das quais a base era o próprio
posto do Barranco Vermelho
111
. Após a extinção de Utiariti as antigas orientações
missionárias são mantidas através da estrutura deste posto. Ao contrário daquilo que
pregavam as novas diretrizes da catequese, sua rotina, organização e hierarquização
traziam uma marca fortemente “aculturativa” e, em muitos sentidos, como acredito,
ainda mais acirrada do que em Utiariti
112
.
Seu funcionamento era completamente centralizado na figura do padre (Pacini
1999:143). Este atuava enquanto mediador de contato e fluxo de pessoas, distribuidor de
recursos agrícolas e sua conversão em produtos beneficiados e salários para
funcionários da colônia, tanto brancos quanto índios de outras etnias (Pacini
1999:146)
113
. Era intensa e diária a convivência entre os índios e padres, irmãos e
irmãzinhas de jesus e voluntários que ensinavam ofícios técnicos, como acontecia no
internato de Utiariti.
O posto Barranco Vermelho trazia, desta forma, um diferencial tanto em relação
ao internato quanto aos demais postos de assistêcia. Nos moldes do internato, seu
alcance era, contudo, potencializado porque abrangia a integridade da vida de aldeias e
famílias. Com relação aos postos, sua situação e organização não mais seria provisória e
111
A Reserva Erikpatsa é criada pelo decreto Federal nº 63.368 de 8.10.68, ocupando algo em torno de
3% do território anteriormente ocupado pelos Rikbaktsa (cf. Pacini 1999:155).
112
Hahn (1976:46)(trad. minha) menciona a impressão de que a educação escolar conduzida pelas irmãs
era "fortemente autoritária" no Barranco Vermelho: "(..) elas tratam as tradições Rikbaktsa geralmente
ignorando-as ou denegrindo-as, ou no melhor dos casos, como não mais do que curiosidades.”.
113
É inevitável que, em um contexto de alegada reforma de estratégias de catequese, compare-se a forma
de organização do Barranco Vermelho àquela adotada para os primeiros aldeamento jesuíticos do século
XVI: "Da administração das aldeias são inicialmente encarregados os jesuítas, responsáveis, portanto,
não apenas pela catequese ("governo espiritual") como também pela organização das aldeias e
repartição dos trabalhadores indígenas pelos serviços, tanto na aldeia, quanto para moradores e para a
Coroa ("governo temporal")." (Perrone-Moisés 1998:119).
158
precariamente estruturada, com atenção a uma população incerta e flutuante. Tratava-se
de uma base institucionalizada, um lugar acerca do qual os jesuítas poderiam realizar
planos, servindo-se dele para fins diversos
114
.
Gradativamente fundaram-se construções em alvenaria: dormitórios para
religiosos e trabalhadores leigos, refeitório, capela, enfermaria, cozinha e escola. Foram
feitos uma rua para as casas Rikbaktsa e campo de pouso. Havia criação de gado bovino
e roças planejadas. Uma central de rádio encarregava-se de manter contato diário com
outras instituições jesuíticas (Hanh 1976:43).
A casa dos homens (mykyry), não prevista nos planos originais (Pacini
1999:144), passa a existir, com compartimentos individualizados para cada jovem -
alguns com portas fechadas (Hahn 1976:44) - e posicionada “estrategicamente” (Arruda
1992:189) ao lado da casa dos padres. Afastada das casas das famílias, solteiros,
casados e viúvos não a freqüentavam para atividades como a produção de flechas,
plumária e outros artefatos, degustação de caças e todas as interações masculinas
típicas
115
. Eram os rapazes solteiros vindos de Utiariti aqueles que mais a utilizavam, na
maior parte dos casos, para pernoitar.
Os jesuítas criam também uma cooperativa para trocas de artefatos plumários e
produtos de plantio e extravismo por bens manufaturados trazidos de Cuiabá (Hahn
1976:41). Sua gestão ficava por conta de um casal criado em Utiariti, que quase não
expressava-se na língua nativa, dificultando e desencorajando as negociações com
aqueles que ainda eram praticamente monolingües (idem).
Serviços prestados para a missão nos ofícios, construção e limpeza de ruas eram
pagos pelos missionários (Hanh 1976:45,46). Neste sentido, rapazes e moças educados
em Utiariti foram de grande valia para a logística da missão que perdurava no Barranco
Vermelho. Quando não os brancos, eram eles a ocupar cargos e desempenhar funções
para os quais os demais Rikbaktsa ainda não eram considerados adequados.
114
Ainda hoje é comum que seminaristas jesuítas façam, como parte de seu "aprendizado", "estágio" nas
aldeias. Isto ocorre, notadamente, entre as etnias nas quais a igreja tenha instalado-se ou conduzido
primeiros contatos. É de espantar ainda que, entre missionários de outras ordens, como os Salesianos,
atividades ou "passeios" sejam organizados, onde pessoas das cidades próximas "visitam" aldeias
Rikbaktsa. Isto autoriza o fato de que, ao me dirigir a um armarinho da cidade de Juína para comprar
alguns presentes, a atendente me dissesse que connhecera uma das aldeias Rikbaktsa, próxima a
Fontanillas, em uma destas ocasiões.
115
Como veremos no Capítulo IV, a existência de uma casa dos homens (mykyry) não significa que
atividades desempenhadas ali - como a plumária - não possam ser também realizadas no espaço
doméstico, isto é, na casa (wahoro) ou no pátio da aldeia, do lado de fora das casas.
159
A outra face da catequese continuaria a ser um projeto claramente civilizatório,
de educação, disciplinarização e construção de trabalhadores cristãos. Calendários
rígidos vigiam sobre as atividades semanais. De segunda a sexta-feira, trabalho nas
atividades do posto e colônia e também estudo. Caça e pesca, sendo principalmente a
primeira uma atividade quase diária dos Rikbaktsa, tinham sua prática restrita aos
sábados. Domingo para atendimento religioso e “livre” para recreação e transações com
a cooperativa (Hahn 1976:44).
Atividades de coleta, centrais tanto à socialidade cotidiana quanto à alimentação
Rikbaktsa - notadamente no que concerne à produção de bebidas (tomy) - eram
desconsideradas pela planilha. A tendência expressa na condução jesuítica do Barranco
era a sedentarização progressiva e alteração significativa da dieta. Restrições à caça, por
um lado, e por outro, incentivo a plantios exógenos e à domesticação de animais não
usualmente criados ou consumidos, como galinhas
116
, porcos, gado e perus (Hahn
1976:44).
No que diz respeito à idealização de sua estrutura e funcionamento, o posto tinha
como objetivo abrigar os índios, mas também tornar-se cada vez mais uma unidade de
produção auto-sustentável. Desde as missões do período colonial, por uma série de
razões, haveria uma separação entre o local de trabalho e a permanência em aldeias de
"índios de pazes" (Perrone-Moisés 1998:118) que, se próximos, não confundiam-se com
os centros de catequese e povoações coloniais. Ainda que admitindo-se a intensa
flutuação das leis que recaíam sobre sua administração - se religiosa ou secular -, tal
característica acabava por corroborar com a patente possibilidade de desintegração das
aldeias e retorno aos matos, mas também com uma relativa autonomia dos aldeamentos
que se mantinham.
No caso do Barranco Vermelho, há a intenção de fazer operar a protocolar
distinção entre "colônia" e "entreposto". O entreposto, enquanto uma espécie de lugar
para os índios ou "aldeia" e a colônia enquanto a sede do trabalho, onde haveria maior
contato com não-índios. Esta distinção, entretanto, dificilmente realizou-se para além da
esfera nominal. Placas, espaços e denominações, não impediram nem o trânsito
multiétnico e nem que a imputação do trabalho, e de todas as demais ortodoxas regras
116
As galinhas não eram comidas pelos Rikbaktsa, que roubavam-nas dos brancos apenas para comer
seus ovos e utilizar suas penas em artefatos plumários (Hahn 1976:45). Atualmente, galinhas são uma
espécie de alimento extraordinário, valorizado "prêmio" em competições de futebol ou "dom" de almoços
comunitários com algum propósito especial, como reuniões e aniversários.
160
disciplinares que o acompanhavam, invadissem e se confundissem com o domínio
destinado à própria "aldeia".
Além do mais, índios eram ainda "disputados" entre barracões e feitorias de
seringa e centros de assistência religiosa (Pacini 1999:147). Com relativa facilidade,
seringueiros podiam entrar no posto e não era raro que fossem atendidos em casos de
doença e lá permanecessem. Aliás, epidemias e mortes continuam a atingir os índios
(Pacini 1999:147-8), com destaque para a malária, surgindo também os primeiros casos
diagnosticados de tuberculose.
Não podemos esquecer de que, em paralelo a isto, a ocupação de áreas
circunvizinhas ao Barranco Vermelho acelerava-se a amplo ventos. Novos
empreendimentos, de fazendas e estradas até novas cidades, vão sendo construídos,
alguns deles forjados em parte pelas mãos dos Rikbaktsa. Eram, desta forma e conforme
seu desejo, franqueados ao trabalho fora da Reserva, com o acompanhamento dos
missionários
117
.
Se, por um lado, segmentos divergentes passariam a compactar-se
territorialmente, a ainda tímida tendência a separações manifestava-se desde os
primeiros tempos da Reserva. De certa maneira, um impulso na direção de "ajustes"
territoriais de um estado de disposições sociológicas. A recusa em viver segundo a
estrutura jesuítica não é, senão, o outro lado das motivações de tal disposição dos
núcleos Rikbaktsa.
Nem sua presença no Barranco Vermelho fora generalizada e, como não poderia
deixar de ser, tampouco a junção de seus sub-grupos seria efetiva ou harmoniosa (Pacini
1999:135). Tendo em conta tais divergências a missão nomeia um Rikbaktsa como uma
espécie de "capitão" geral - o já citado Mapazazi, chamado à época de Zapemy -, bem
como fomenta chefias menores em aldeamentos mais populosos (Arruda 1992:189).
Cargos tais, como já mencionei anteriormente, eram estranhos à tradição
"política" Rikbaktsa. É certo, porém, que Zapemy desfrutava de algum respeito e
facilidade em transitar entre segmentos diversos, incluindo-se aí os próprios padres,
evidentemente. Ainda que não houvesse unanimidade imediata ou seu reconhecimento
117
Muito adequadamente, Hahn observa uma valorização supra-econômica das relações entre os
Rikbaktsa - geralmente oriundos de Utiariti - e os não-índios. Motivadas antes por ânsia de "status" e
aspiração a uma certa versão de "identidade” (Hahn 1976:47) (trad. minha), eram caracterizadas pela
iniqüidade extrema, em todos os níveis. A insistência em mantê-las ocorreria à despeito deste tipo de
transação ser sempre mais vantajosa no âmbito da cooperativa da própria Reserva.
161
não conduzisse ao tipo de efetividade idealizado pelos jesuítas, seu "índice de rejeição"
era bastante satisfatório.
A noção mais aproximada de "chefia", no caso Rikbaktsa, relaciona-se, na
verdade, a uma capacidade não pontual que alguém tem em provocar respeito, abarcar
pessoas, relações e possuir saberes determinados, uma habilidade quase diplomática em
reunir, conviver e sobreviver em meio às divergências, que se faz e desfaz no tempo. A
legitimidade Zapemy estaria, desta forma, aberta ao evento e hoje, já falecido, é
considerado um homem de status elevado
118
.
Para muitos Rikbaktsa, ao menos inicialmente, a presença no Barranco
Vermelho era eventual. Visitavam parentes, buscavam algum recurso e, notadamente,
atendimento à saúde. O acesso à atenção à saúde, aliás, possibilita, em grande medida, a
catequese cristã, sendo utilizado como uma espécie de moeda de troca pelas almas
Rikbaktsa
119
.
Pequenos aldeamentos foram espalhando-se pela margem direita do rio Juruena,
alguns mais e outros menos subordinados aos ditames do posto jesuítico. Já em 1965
acontece o primeiro desmembramento registrado, com a criação da aldeia de Naik,
chamada mais tarde de aldeia da Segunda Cachoeira (Pacini 1998:154,167).
A este propósito, Hahn descreve no início da década de 70, alguns grupos que
mantinham-se afastados, fora do circuito de demandas criadas pelos jesuítas, de modo a
que apenas eles mesmos pudessem atendê-las (Hahn 1976:42). Outros, apesar de
espacialmente separados, mantinham-se atrelados à orientação missionária. Este era o
caso da aldeia Nova, onde o encarregado era ainda um brasileiro (Hahn 1976:83). Para
ambos, o posto - que concentrava um número maior de índios (Pacini 1999:156)- não
118
O genro de Zapemy é, atualmente, aquele que ocupa a posição formal de maior autoridade entre os
Rikbaktsa, frente à condução de algumas questões internas mas, sobretudo, nas interfaces com a
sociedade nacional, órgãos e instituições de toda natureza. Não é preciso ressaltar que é pessoa
extremamente aceita e respeitada e que sua posse não têm relação de transmissão, ao menos direta, por
parte de seu sogro. O que desejo enfatizar aqui é que a habilidade em exercer, mesmo que precariamente,
algum tipo de chefia é algo sob o crivo da experimentação. Depende de qualidade, esforço e performance
"pessoais". A associação com Mapazazi não deixa de ser importante, porém, de modo algum é
determinante. Basta algum comportamento desaprovado pela coletividade ou pelos mais velhos e, mais
cedo ou mais tarde, todo o prestígio se verterá em críticas ferrenhas, das quais a deposição é o ápice.
Antes dele, outros já ocuparam posições semelhantes, como o próprio filho de criação de Mapazazi, que
fora destituído conforme explico aqui.
119
Arruda (1992:169) destaca este aspecto central da relação entre Jesuítas e os Rikbaktsa, desde as
tentativas de primeiros contatos e “pacificação”. Refletindo sobre a permanência dos índios no Posto do
Barranco Vermelho, o autor afirma que o atendimento à saúde parecia aos Rikbaktsa quase como a
única alternativa ao desaparecimento, argumento insistentemente usado pelos missionários para
convencê-los a irem para lá (para o Posto Barranco Vermelho).” (grifo meu).
162
poderia deixar de ser uma referência como fonte de recursos e lugar de visitações mais
ou menos duradouras a parentes, como é o protocolo.
O Barranco é, evidentemente, citado por Hahn como mais influenciado pelos
jesuítas e contando com cinco pequenos aldeamentos mais ou menos adjacentes, ditados
pelo plantio de "seringa" ou "arroz", diretamente submetidos aos padres. Ao todo
somavam 60 habitantes. Quando lá esteve, oito pessoas estavam visitando o posto. Na
aldeia Nova, "capitaneada" por um brasileiro, seus 43 habitantes não pareciam guardar
relações genealógicas muito próximas.
Havia a aldeia da Primeira, com 65 habitantes e a da Segunda, com 30. Hahn
observa a intensa flutuação na composição populacional desta última, no curto período
de um ou dois anos (Hahn 1976:81). Divergências entre pessoas de domicílios diversos
teriam operado cisões, gerando remanejamentos para outras aldeias e a fundação de
novos pequenos aldeamentos. "Ciúme sexual, roubos, avareza e mau temperamento"
eram as acusações alegadas (Hahn 1976:81) (trad. minha).
Um aldeamento fora ainda abandonado pela morte de uma das esposas de um
homem, lá enterrada e a casa queimada. São descritos ainda outros nove pequenos
núcleos populacionais, contando entre cinco e oito pessoas, compostos por um ou dois
casais. No Escondido eram 14 habitantes, com apenas um homem solteiro e mais dois
aldeamentos isolados, um com 23 e outro com oito habitantes. A população total,
segundo o autor, era de 285 habitantes
120
(Hahn 1976:77).
Alguns Rikbaktsa - oito indivíduos - encontravam-se fora da área da Reserva,
todos oriundos de Utiariti. Estabeleciam-se na fazenda AGROSAN, a leste do rio do
Sangue, ou no povoado de Fontanillas (Hahn 1976:40), fundado para ser a base dos
trabalhadores de uma estrada que partiria de Aripuanã a Cuiabá, a MT 170.
Fontanillas fora criada em 1970 em terras anteriormente usurpadas dos
Rikbaktsa por seringalistas e que foram também alvo de disputa entre estes e os Cinta
Larga. A construção da rodovia incluía a instalação de uma balsa em frente ao posto,
que ligava a margem direita do rio Juruena à cidade de Fontanillas, onde intentava-se
posteriormente a fundação de uma ponte, como parte da rodovia
121
.
120
Alguns dos aldeamentos citados por Hahn permanecem atualmente, como o próprio Barranco
Vermelho e as aldeias Nova, Primeira (chamada também de Primavera) e Segunda, com a ressalva de que
sua composição alterou-se significativamente.
121
Mais tarde os Rikbaktsa impediriam que a MT 170 cruzasse a Reserva, deslocando-a para o sul do rio
Juruena, fora da terra indígena (Pacini 1999:162). Uma família Rikbaktsa atualmente habita justamente
onde construiu-se a ponte sobre o rio Juruena, fora dos limites da área Rikbaktsa. Este local possui um
pequeno estabelecimento que é também parada de ônibus e caminhões, no qual é intenso o comércio e o
163
Se os índios são permanentemente apontados pelos padres como inaptos à
subsistência, nos moldes impostos pela rotina do Barranco Vermelho, não se pode
deixar de mencionar a relativa efetividade da organização do trabalho missionário por
um certo tempo. A apreciação que os Rikbaktsa têm em planejar e dividir tarefas entre
grupos e pessoas, como característica tanto do cotidiano quanto marcadamente dos ritos,
pode ter, digamos assim, facilitado a instauração de uma rotina no Barranco.
Ecos desta concepção podem ser também identificados nas noções mais
análogas à própria chefia, expressa mais claramente na posição de homens de status e
anfitriões de festas. Estes, além de serem capazes de mobilizar recursos de ordens
diversas, sabem organizá-los, delegando tarefas a homens e mulheres das duas metades
e cuidando para que tudo corra a contento.
Desta forma, o Barranco Vermelho e os demais núcleos populacionais
concentrados na Reserva compunham-se de uma certa heterogeneidade. Grupos locais
separados e outros em contato mais sistemático com a missão. Dos índios vindos de
Utiariti, nem todos órfãos, se alguns adotavam as rotinas da missão ou lhe serviam
diretamente, também é verdade que retomavam o contato com seus grupos familiares.
Todos, contudo, devem ser considerados como possuindo composição
potencialmente mutável. Abriam-se a desavenças e outros eventos considerados
relevantes pelos Rikbaktsa, como a evitação de conflitos abertos e vinganças e a morte
de parentes próximos, e que têm como uma de suas expressões os deslocamentos
populacionais.
A educação de Utiariti e os eventuais comportamentos divergentes daqueles que
vinham de lá, foram mais um fator a ser encampado pelos conflitos entre pessoas e
grupos Rikbaktsa. A assunção de posições hierarquizadas e valorizadas no contexto da
gestão jesuítica era, na maioria das vezes, incompatível com a habilidade e os critérios,
digamos assim, "sociológicos" necessários à efetividade de suas tarefas em uma
totalidade tão diversificada. Desta forma, conflitos clânicos e traições conjugais
juntavam-se a, por exemplo, desvio de verbas ou favorecimentos diferenciais nas
negociações da cooperativa, resultando em cisões e até em homicídios.
Um outro aspecto desta mesma questão eram os casos de maus tratos de índios
recém-contatados por parte de jovens vindos de Utiariti (cf. Hahn 1976:82). Em uma
analogia encontrada em outros grupos sul-americanos (cf. Gow 1991 para os Piro),
contato com não-índios e até com índios de outras etnias, como é o caso dos Enawenê-Nawê, do alto
Juruena, eventualmente presentes para a compra de castanhas-do-pará.
164
índios monolíngües e seguidores dos "costumes" foram associados a um estado de
"brutalidade" por parte de parentes já contatados, no caso Rikbaktsa, designados pela
expressão "índio pelado" (Hanh 1976:45)
122
.
O internato de Utiariti é citado não apenas como fonte de casamentos
interétnicos
123
e de outros casamentos ocorridos fora das regras prescritas entre os
próprios Rikbaktsa, mas como formador de uma uma geração criada com outros
parâmetros, muitos batizados, casados conforme o cerimonial católico, alguns
esquecidos de sua língua materna. Arruda designa por “geração Utiriariti” (Arruda
1992), aquela que retorna ao Barranco Vermelho, segundo o autor, demonstrando
inadequação “aos modos tradicionais de viver” (idem: 191).
Se isto é verdadeiro, não é menos importante que a gestão jesuítica do Barranco
Vermelho, de forma mais intensa e com maior duração temporal, procuraria
sacramentar de modo maciço todos aqueles valores. Valores que, de uma forma ou
outra, com maior ou menor impacto e conseqüências, tomavam contato com todos os
segmentos da população.
Por esta razão, destaco que a "geração Barranco Vermelho" é aquela na qual
alguns traços do projeto civilizador jesuítico apresentam maior visibilidade. Ali, os
alvos já não eram apenas algumas crianças e doentes fora de seu ambiente e afastados
de suas parentelas. Impunha-se, além da convivência interétnica, intra-tribal de grupos
antagônicos e da língua portuguesa, uma disciplina rígida para a formação de
trabalhadores e cidadãos civilizados. A educação monolingüe e a convivência diária e
massiva com o português, seja no desempenho e aprendizado de tarefas, seja no
atendimento à saúde e em transações comerciais, somaram-se a e superaram
sobremaneira as possíveis influências dos jovens criados em Utiariti.
Gradativamente, então, o posto, com toda esta heterogeneidade, passa a ser
referido como aldeia do Barranco Vermelho (Pacini 1998:166). Em 1977, as irmãzinhas
de jesus retiram-se de lá, e com elas parte da condução estrutural da "assistência"
Rikbaktsa. Este fato parece ter sido decisivo para a consolidação do estado de aldeia do
Barranco Vermelho (Pacini 1998:166). Em 1981, o próprio Mapazazi, antes "capitão"
122
Jamais ouvi esta expressão registrada por Hahn em pleno período de efervecência jesuítica no
Barranco Vermelho. Nem mesmo em relatos sobre o Barranco ou sobre Utiariti.
123
Alguns casamentos deste tipo que pude reparar são com Nambikwara e Iranxe. Há também uma
mulher Rikbaktsa casada com um Munduruku, mas este casamento não tem qualquer relação com
Utiariti.
165
do Barranco Vermelho, funda uma nova aldeia chamada Novo Paraíso
124
(Pacini
1998:162). Em 1990, após conflitos com alguns segmentos, o último jesuíta e equipe
deixam a TI Erikpatsa, mudando-se para a cidade de Fontanillas. Mantém até hoje
relações intensas com os Rikbaktsa, visita suas aldeias e, em algumas ocasiões reza
"missas" no idioma nativo
125
.
Cada vez mais os Rikbaktsa conquistariam autonomia, inclusive econômica e
administrativa (Arruda 1992:192), na mesma medida em que os religiosos iam
retirando-se de suas aldeias. A condução do sistema de educação, tendo em sua maior
parte homens à sua frente, e sua participação no atendimento à saúde têm possibilitado
uma compatibilidade cada vez maior daquelas ações com os processos usuais de
socialização (idem:195).
Hoje os Rikbaktsa retomaram a região do Japuíra e do Escondido. Há escola na
maior parte das aldeias, todas com professores exclusivamente indígenas. Observo que
muitas destas escolas foram implantadas nas estruturas dos mykyry, que existem em
algumas aldeias, com função muito semelhante. Muitos velhos ou indivíduos que não se
adaptaram à estrutura dos Postos, pouco falando português, permanecem orientando
aqueles mais jovens, com "cantos", “festas”, ensinamentos sobre flechas, arte plumária,
“histórias” e mitos. "Aulas" como tais podem fazer parte da programação dos
professores, embora estas atividades sejam mais propriamente desenvolvidas no mykyry
ou nas casas, no contato cotidiano entre aqueles que dominam estas técnicas e os que
desejam aprendê-las.
Há alguns locais de contato mais sistemático entre os Rikbaktsa e os brancos.
Não poderia deixar de incluir aqui as viagens cada vez mais freqüentes para a cidade de
Juína, através de veículos da FUNAI e da FUNASA, para recebimento de
aponsentadorias e auxílio maternidade, compras, tratamentos médicos ou tão somente
passeios bastante apreciados. Na rodovia MT 170, na ponte sobre o rio Juruena, distante
cerca de dez km do limite sul e fora da TI Erikpaktsa, mora uma família Rikbaktsa e um
bar comercia alguns produtos, inclusive castanha eventualmente vendida pelos índios.
124
Décadas mais tarde, no ano de 2001, o genro de Mapazazi dá este mesmo nome a uma nova aldeia
fudada por ele.
125
A exemplo de Tolksdorf e Dornstauder, o padre Balduíno Loebens relaciona-se de um modo muito
particular ao sistema de cura e curadores Rikbaktsa, de uma forma pela qual não poderia analisar nesta
oportunidade. É figura importante da história Rikbaktsa, tendo trazido os últimos índios do posto
Escondido e apoiando reivindicações diversas, onde a questão fundiária da retomada das TIs Japuíra e
Escondido destacam-se.
166
Na margem esquerda do Juruena, quase em frente à foz do rio Arinos - no qual
criaram-se duas aldeias a partir da retomada da TI Japuíra, em 1985 - há uma balsa que
dá acesso à cidade de Juruena. Na casa da balsa mora uma mulher Rikbaktsa com seu
marido branco, responsável pela balsa. Ali comerciam fundamentalmente peixes,
trocados ma maior parte das vezes por combustível para voadeiras.
Fazendas limítrofes e na margem esquerda do Juruena tornam-se cada vez mais
locais procurados para venda de peixe, castanha e outros produtos e também para
compra de mercadorias exógenas. Não é preciso dizer que o baixo valor do peixe ou
castanha, por um lado, e por outro, o alto valor das mercadorias fornecidas pelos
brancos, tornam estas relações comerciais extremamente desleiais. Os campos das
fazendas podem ser também utilizados, com o consentimento dos proprietários, como
locais de caça e coleta. A isto corresponde, antes de uma necessidade objetiva
ocasionada pela escassez de recursos das TIs, um desejo de relacionar-se e realizar
viagens e incursões, ainda que pequenas.
Os assentamentos da margem esquerda do Juruena são um caso à parte. Cada
vez mais vertem-se em pequenas cidades no noroeste de Mato Grosso. A partir de
algumas aldeias da TI Japuíra é possível alcançá-los, à canoa e mais em trecho à pé, em
poucas horas. Posso observar, em alguns anos, o contínuo aumento da freqüência com a
qual os Rikbaktsa visitam estas povoações, seja para jogar futebol, adquirir mercadorias
em pequenas vendas ou serem recebidos nas casas de não-índios, vendo televisão e
desfrutando de sua "hospitalidade".
S
OBRE COSMOLOGIAS E ALTERAÇÕES
É verdade que valores religiosos estiveram indissociáveis da concepção jesuítica
de "assistência", alcançando todos os seus setores. Misturavam-se a um sistema
educacional latu sensu, composto de um ortodoxo regramento de atividades diárias que
procurava universalizar a predeterminação de tempo e espaço para cada aspecto da vida
dos índios. Mas o aspecto "civilizador" da missão jesuítica revelou-se, na maior parte
das vezes, mais importante do que a própria comunicação das idéias da catequese
religiosa strictu sensu.
Desde a vida nos postos de atração, havia ênfase no regramento das condutas,
ensino de noções de higiene, alimentação e atendimento à saúde. Pequenos ritos como
hasteamento de bandeiras ou assistência de missas incompreendidas conviviam com as
167
pequenas danças e "tomadas" de chicha, músicas de flauta e outras manifestações, quase
cotidianas entre os Rikbaktsa. Na verdade, Dornstauder pouco conviveu com os índios
nos postos de atração, geridos por brancos. Sua presença pulverizava-se em viagens
múltiplas aos wahoro, com o objetivo central de trazer os índios aos postos e retirá-los
dos conflitos com os brancos.
O canibalismo guerreiro e mortes entre segmentos rivais aconteciam, aqui e ali,
longe das vistas de jesuítas e encarregados. Os índios dos postos encontravam-se, de
todas as formas e por diversos motivos, limitados na sua busca de inimigos. Aqueles
dos wahoro, em fuga constante, muitas vezes não tinham tempo de cortar
adequadamente o cadáver no momento da execução, fugindo de brancos e armas de
fogo. Apesar da precariedade de dados disponíveis, o preparo do corpo e da cabeça,
como tudo que diz respeito aos repastos Rikbaktsa, certamente exigiria uma série de
protocolos, desde o tratamento e cocção ao consumo, realizado apenas por poucos
indivíduos mais velhos.
Se, evidentemente, havia pressão de brancos para que o canibalismo e também o
infanticídio fossem abandonados, pelo menos o primeiro aconteceria em um ambiente
totalmente diferente dos locais dedicados ao contato e controle mais intenso dos
brancos. Isto é, longe dos postos e feitorias.
No processo do canibalismo, o comer efetivo era uma etapa última,
desempenhada por um número restrito de pessoas. A ênfase maior era na busca de
inimigos, sua execução, corte e preparo, como na efetivação de vinganças. O "deixar de
comer" estaria aqui relacionado mais ao fato de não poder matá-lo - a invasão dos
brancos alterou significativamente até a possibilidade de busca de outros wahorotsa
inimigos-, manuseá-lo e consumi-lo adequadamente do que a qualquer questão relativa
a uma possível conversão
126
.
A etnomedicina Rikbaktsa também não ofereceria grande impedimento a esta
desistência. Apenas um número limitado de pessoas mais velhas poderia participar do
repasto, tidas normalmente como imunes a possíveis prejuízos ao corpo advindos da
ingestão de inimigos. Algo semelhante acontece com relação a certas partes de caças
proibidas ao consumo generalizado, por serem consideradas especialmente perigosas.
126
Reparo que, com relação à morte de onças - que não são consumidas mas devem ter sua cabeça cozida
e seus dentes furados para que o "espírito" vingativo de mortos que encarna não passe a outros animais -
quando não há indivíduos aptos a preparar seu corpo e dentes, assim como a chicha que corresponde a
este rito, o animal é apenas morto e enterrado. Algo semelhante ocorre em torno da carne do gavião-real,
que não pode ser morto e diretamente consumido sem que suas penas sejam furadas por motivos
semelhantes, exigindo ainda manuseio, preparo e consumo ritualmente marcados (cf. ver Capítulo V).
168
A ingestão do inimigo e a ostentação de sua cabeça no mykyry parece ter sido
facilmente abandonada. Um homem de cerca de 70 anos diz ter visto as cabeças dos
Cinta Larga e dos Menky dependuradas na casa dos homens, mas não chegou a comê-
los, por inaptidão etária.
Inimizade, vingança e morte, contudo, à despeito de qualquer doutrina exógena,
estão disseminadas no cotidiano Rikbaktsa. Complementando as relações
potencialmente conflitivas da convizinhança, a vulnerabilidade de sua sociologia a uma
escatologia que intercepta o mundo dos vivos, compelindo-os de diversas formas à
interação com seres predatórios (cf. Capítulo III em diante), mantém seus corpos em
risco constante.
Em certos pontos, a cosmografia Rikbaktsa não entra exatamente em conflito
com a jesuítica. Se há um "céu" Rikbaktsa ou algum lugar que esteja acima da terra ou
“sob as nuvens” (biok-pe), como o denominam, ainda que ele tenha significados muito
diferentes daqueles assumidos pelo catolicismo, o que os jesuítas podem associar ao
"inferno" Rikbaktsa é a própria e inescapável vida terrena das "almas" daqueles que
"não são bons", morrem e permanecem a assombrar e predar os vivos.
Mas no socius tanto quanto no cosmos Rikbaktsa, quem seria "bom" ou "ruim",
a não ser de uma perspectiva determinada?
Se todos tentam ser "bons", no sentido Rikbaktsa, cumprir com rigor as
orientações de conduta, como a divisão de recursos, a solidariedade desinteressada, o
desempenho adequado de tarefas e etc, haverá sempre resíduos que conduzirão cada
qual, quando não a conflitos e vinganças efetivadas por outras pessoas em vida, à
doença como à morte do corpo. Porque estão vivos têm corpos em risco permanente.
A morte e a própria escatologia Rikbaktsa, como veremos (cf. Capítulo III),
formam um conjunto irredutível que condena à falência qualquer possibilidade ou
versão de salvação cristã. O cristianismo - incluindo-se aqui jesuítas, salesianos e
protestantes, todos em maior ou menor grau relacionados aos Rikbaktsa de modo tão
generalizado quanto volátil - é a possibilidade de realizarem atividades urbanas e nas
aldeias, fonte de recursos e de relações comerciais, compartição de vivências, ódios ou
afetos com relação a alguns de seus representantes.
Entre compatibilidades e incompatibilidades de cosmologias e condutas, a
ausência no cosmos ou na mitologia Rikbaktsa de qualquer ser ou entidade suprema e
criadora e a liminaridade transitória de sua visão de humanidade, permitiu que até hoje
“Deus” e “Jesus” sejam ou vistos como humanos que tiveram muitas vivências e
169
histórias, ou entidades cuja existência não concorre exatamente com a de nenhum outro
ser. Ouve-se muito pouco acerca deles no cotidiano da aldeia e a menção e o significado
que podem assumir são extremamente diferenciais, dependendo de quem se trata.
É possível ouvir que desejam, por exemplo, que "deus os ajude" ou que os "bons
vão para o céu". Entretanto, isto não parece impedir a efetividade de uma cosmologia e
uma escatologia as quais continuam a informar as condutas cotidianas e a integrar os
nexos explicativos da doença e da morte, entre outros tipos de infortúnio (cf. Capítulo
III). Afinal de contas, "se os bons vão para o céu", os "maus" permanecem na "terra" a
assombrar (e predar) os vivos. O resultado disto são prejuízos corporais, doença e
morte, que são também, por outro lado, produtores dinâmicos de sua socialidade
cotidiana.
Ainda que este não seja o espaço para uma avaliação adequada destas questões,
o fato é que, nos trabalhos disponíveis, são principalmente os casamentos interétnicos e
em violação do ideal exogâmico aqueles que ganham um "peso" de corrupção cultural
(cf. Arruda 1992:195-6). Este "abalo" da organização social é, simultaneamente,
considerado como uma espécie de "sintoma" de mudanças importantes. Pacini, de certa
forma, valoriza o fato de que o Barranco Vermelho não teria gerado casamentos
interétnicos mas sim Utiariti (Pacini 1999:146).
Em primeiro lugar, endogamia e casamento interétnico são aspectos diferentes
de práticas matrimoniais. Em muitos momentos poderão até representar movimentos em
sentido contrário, se consideramos as noções de alteridade Rikbaktsa, o que faria do
casamento interétnico em si uma espécie de "exogamia".
Apesar da extrema convivência interétnica no posto do Barranco Vermelho, a
questão sobre se casamentos interétnicos teriam lá sido originados ou em Utiariti, não
parece ser central ou capaz de amenizar o caráter francamente aculturativo mantido e
exacerbado nas diretrizes da catequese naquele posto. Se a representatividade numérica
destes casamentos não é significativa, sua expressão sociológica, tanto com relação à
etnia dos cônjuges quanto ao fato de que desobedeceriam regras prescritas, também
deve ser relativizada.
Reconsiderar o significado dos casamentos fora da suposta prescrição enquanto
algo que não se deve exatamente a uma corrupção do sistema de parentesco ou prática
de indivíduos "aculturados" é um caminho interessante (cf. Capítulo IV). Na medida em
que, na maior parte dos casos, são possibilidade legítima ou passível de legitimação no
170
tempo, representam, antes, um modo dinâmico e específico de conceber distâncias e
proximidades entres pessoas, clãs e metades.
É consenso que não se deve casar com filhos de ka-tsy, ou seja, um termo usado
para pessoas de uma mesma metade, de mesma geração ou mais jovens, mas também
como modo geral de refirem-se a pessoas de uma mesma metade, quando não há
diferenças marcantes de status ou relacionamento mais determinado. Estes casamentos
seriam considerados, à princípio, como batsisapy, “feios”, “fora de lugar”, em contraste
com casamentos wasani “corretos” ou tsapyrna “belos”. Quando ocorrem, podem
causar comportamentos que vão desde a “raiva” dos outros e “tristeza” para os mais
velhos até o emagrecimento do casal ou sua infertilidade, em alguns casos de extrema
proximidade clânica. Mas tudo isso pode alterar-se com o tempo e com o aumento do
status dos cônjuges.
Uma das explicações mais recorrentes para a contrariedade a casamentos
endogâmicos é que, durante os ritos, esposas, maridos e filhos estarão todos pintados de
forma semelhante e dentro de um mesmo grupo de tarefas, o que consideram
enfaticamente batsisapy, “feio”. A justificativa é quase estética, mas o ser “batsisapy”
ou seu contrário, “tsapyrna”, o ser “belo”, como já sugeri alhures, atinge algo além da
nossa concepção ocidentalizada da beleza.
O contraste entre estes dois termos, ao qual me deterei mais cuidadosamente no
próximo capítulo, traduz a idéia de que há combinações adequadas, corretas,
recomendáveis e que indicam o “dever ser” usual dos acontecimentos e outras que, ao
contrário, são inadequadas, indesejadas e devem ser evitadas. Ele pode ser aplicado,
para além do domínio matrimonial e pinturas corporais, a artefatos plumários,
“sentimentos”, posturas sociais e corporais, como também à edibilidade de animais e
aos encontros indesejados que se têm com seres metafísicos da categoria dos
myhyrikoso e dos sparitsa.
Mas talvez o dado mais curioso por enquanto seja o comentário que inverte a
usual argumentação estatística para a ocorrência de casamentos “endogâmicos”
127
,
disseminada em alguns trabalhos. “Antes não tinha mulher certa pra casar não ... tinha
pouca mulher certa, o jeito era casar com primo da gente mesmo” (Olga Aikdapa), me
diz uma mulher de pouco mais de trinta anos. Hoje em dia isto não aconteceria, porque
há muiro rapaz “certo” para as moças e não haveria porque casar-se com parentes da
127
Exploro o sentido da endogamia na organização social Rikbaktsa no Capítulo IV.
171
mesma metade, embora esta ocorrência seja mais comum do que anuncia o ideal de
exogamia.
Não apenas por isso, mas em razão das idéias que cercam as possibilidades
matrimoniais, como a paternidade múltipla, a distância “mitológica” entre clãs de uma
mesma metade e até o desconhecimento e a distância espacial entre os cônjuges,
desacredito na possibilidade de determinação entre endogamia e razões estatísticas. É
notado o fato de que a violenta depopulação tenha influenciado diretamente o
funcionamento desta estrutura (Pacini 1999: 212), mas é inadequado traduzir estas
mudanças nos termos da “desarticulação” ou “degeneração” de um sistema que
demonstra uma dinâmica própria, para além das ortodoxias formais.
Filiação patrilinear, paternidade múltipla e práticas de adoção - e aqui é
importante a inclusão de crianças com pais vivos na categoria de "adotados" - são outros
recursos que vêm contribuir para uma reavaliação desta questão. A incerteza sobre o
"lugar" dos indivíduos na organização social Rikbaktsa não seria privilégio de filhos de
casais endogâmicos, homens de outras etnias e de brancos
128
. Há maior ou menor
resistência em incorporá-los, mais ou menos comentários jocosos sobre seu estatuto,
mas, enfim, todos permanecem, nominando seus filhos, de um modo ou de outro,
tomando parte nos ritos, assumindo funções como as de professores, agentes de saúde e
até de representantes Rikbaktsa, em alguns momentos.
Insisto que o fato mais representativo com relação ao tema da mudança,
contudo, foi o extremo controle dos modos de reprodução da vida que jesuítas
pretenderam impor aos índios, primeiro às crianças em Utiariti e depois, mais
firmemente, a todos os Rikbaktsa, dentro de sua própria Reserva. Pacini refere-se ao
Barranco Vermelho como uma "nova fase da pacificação", caracterizada por um
verdadeiro "processo de administração do ritmo da vida dos Rikbaktsa, regrando-a
(cf. Pacini 1999:154).
A partir dos primeiros contatos com os brancos, a ocorrência de epidemias
129
- a
estimativa é de que cerca de 50% (cf. Pacini 1999: 175) a 75% (Arruda 1992: 244) da
população tenha morrido em apenas uma década -, a ajuda encampada pela catequese e
seu desdobramento na tarefa de “educação” e “civilização”, as invasões violentas pela
128
Este tema, recorrente por toda a tese, será aprofundado no Capítulo IV.
129
Arruda vê as divergências entre jesuítas e protestantes como um agravante decisivo da enorme difusão
das epidemias, em um contato inicial que, para o autor, foi “desordenado” e “competitivo”. Para Pacini
(1999: 213), contudo, as mortes em massa não são exclusivas da pacificação religiosa mas de um
processo complexo que poderia ter alcançado resultados ainda mais drásticos.
172
seringa e a redução dramática das extensas áreas nas quais circulavam resultaram, para
os Rikbaktsa, em um quadro peculiar.
Alguns trabalhos abordaram de modo mais ou menos central a magnitude destas
desventuras da época da pacificação e na primeira década subseqüente, na estrutura
demográfica, matrimonial, composição clânica, fundiária, lingüística e da cultura
material do grupo, em um intervalo temporal relativamente curto (cf. Dornstauder 1975;
Hahn 1976 e 1979/82; Arruda 1992 e 1999; Pacini 1999). O canibalismo, que os teria
fixado nos relatos como os selvagens idealizados a serem sistematicamente
“promovidos” e “civilizados” pelas missões religiosas em fins dos anos 50 até 1973 (cf.
Pacini 1999: 10), estava abandonado.
Hahn, que é importante interlocutor para o período mais institucionalizado do
Barranco Vermelho, menciona aspectos duais da população Rikbaktsa. Segundo o autor,
haveria forte oscilação entre dois pólos definidos: a aceitação completa de brasileiros e
rejeição de "tradições" e a manutençaõ de tradições e "exploração dos modos
brasileiros à maneira Rikbaktsa" (Hahn 1976:46) (trad. minha). Arruda apropria-se
deste modo de ver a questão em sua tese que, à propósito, intitula-se "Mudança e
Tradição" e reedita a célebre antítese entre "estrutura" e "evento".
Este tipo de polarização, contudo, obscurece mais do que explica tanto a
complexidade quanto a riqueza de uma situação que não tem mais contradições e visões
divergentes do que aquelas que caracterizariam as respectivas perspectivas de
indivíduos diversos sobre sua cultura. Isto é ainda mais verdadeiro quando estão em
consideração eventos exógenos (Sahlins 2004[1991]:323) tão acelerados e paradoxais
quanto aqueles envolvidos nas situações do contato. Deslocamentos espaciais,
epidemias, novas tecnologias e línguas, e alterações na subsistência no que ela tem para
mais além da sobrevivência física, não estão livres e só são significativas do ponto de
vista destas populações através da forma pela qual tudo isto é acolhido em um "esquema
cultural particular"(Sahlins 2004[1991]:324).
Isto não significa dizer, se não ficou claro, que mudanças na ordem cultural não
possam ser provenientes de eventos endógenos. O outro lado desta afirmação é que,
independente do que convencionamos chamar de "contato", nenhuma cultura pode ser
cristalizada e atemporal ou isenta de alguma dose de “incoerência”. Deste ponto de
vista, a introdução de fatores tais capazes de promover mudanças não é, de forma
alguma, privilégio de brancos e colonizadores.
173
De certo modo, a atuação da MIA permitiu a invasão seringueira, que tinha
como algo inevitável. Ao menos no discurso missionário, diante desta contingência, a
única alternativa era tentar “conciliar” as duas partes, evitando conflitos e, pouco a
pouco, afastando índios e seringueiros. O resultado perverso, além das epidemias que
rapidamente os atingiram de modo fatal, foi a liberação do território indígena para a
exploração (Pacini 1999: 24, 172, 211 e alhures).
O que denomino de "mito jesuítico da pacificação" é bastante claro neste
sentido. A guerra da borracha é o contexto que engatilhou os conflitos interétnicos. A
isto junta-se a inoperância do SPI. Entram, então, os jesuítas como pacificadores e
salvadores de corpos, senão de almas. Os seringalistas são vistos como bons aliados,
enquanto que os seringueiros, vitimados pela miséria imposta pelo meio – e não pelos
seringalistas e seus encarregados – são a origem e causa de todo o mal (ver
especialmente Moura e Silva apud Dornstauder 1975). A partir de epidemias e mortes
cria-se, no vácuo da volição e da compreensão Rikbaktsa, o espaço da orfandade, da
qual a única e inevitável solução seria Utiariti. A Reserva Rikbaktsa é também citada
comumente como um “dom” jesuítico. Precária porém o que se pode conseguir
bravamente em meio ao fato indelével da colonização.
Ao fim e ao cabo, o que se chama “processo de pacificação” bem poderia ser
uma coletânea de histórias sobre a violência de aspectos múltiplos da colonização.
Missionários de diversas ordens deslocam índios de seus territórios originais a locais
que a si fossem mais cômodos. O intuito manifesto era o de preservá-los, mas o
resultado efetivo foi a liberação de terras a colonizadores e exploradores de todo o tipo.
É corrente a idéia de que os Rikbaktsa estariam extintos sem a atuação, principalmente,
dos jesuítas.
Nestes intensos movimentos, entretanto, a agência dos próprios Rikbaktsa não
poderia ser desconsiderada. Sozinhos ou acompanhando brancos, lançavam-se ainda em
expedições a outros grupos locais, com o intuito de convencê-los à relação. O efeito “em
cadeia”, onde “um grupo pacificado facilitava a pacificação do outro” bem o
demonstra (Moura e Silva apud Dornstauder 1975:9). Antes disso já havia sinais de que
alguns grupos desejavam esta relação.
Enquanto jesuítas e protestantes disputaram localizadamente a autoria e o
empreendimento da “pacificação” e restabelecimento físico dos Rikbaktsa, a grande
questão é a de que a pacificação fez-se por agentes múltiplos, ainda que marcada lá e cá
por empenhos pessoais determinados. Neste contexto de "disputa", o fluxo dos índios
174
pelos diferentes postos, administrados por missões diversas, brancos e também por
barracões e feitorias de seringa, era tão contínuo quanto mutável (Hahn 1976:38),
mantendo-se tal característica até a década de 70.
Tolksdorf sempre se interrogava sobre a validade de, no processo de “pacificar”,
deslocar os índios de aldeia a aldeia, em viagens de persuasão ou reconhecimento de
postos. Isto certamente significaria mais um incremento no contato com doenças que
rapidamente ganhavam caráter epidêmico (Tolksdorf 1996[1960]:154,168). Depois de
alguns meses na Alemanha, quando retorna ao Posto Santa Rosa, surpreende-se com o
número de sepulturas. Dos quatro mortos que deixara, agora havia pelos menos mais 20.
Achava que apenas com assistência adequada muitas destas mortes poderiam ter sido
evitadas.
Durante sua ausência o posto estivera sob a responsabilidade de Paraíba,
enquanto o padre João realizava uma expedição aos Cinta Larga (Pacini 1999:99).
Aumentava a convivência indiscriminada entre índios e seringueiros tanto no Posto
quanto no barracão de seringa, para onde Paraíba fazia visitas regulares levando índios
com ele. Neste período, no diário do Posto Santa Rosa, Paraíba só mencionava os
Rikbaktsa “quando trabalhavam ou morriam” (Pacini 1999:98).
Mais uma vez criticara o trabalho do padre João, porque depois de “amansados
os índios ficariam à própria sorte nos Postos. Perguntava-se se apenas as almas
interessavam, pois de nada adiantaria pacificar índios para o “extermínio” e o
abandono”(Tolksdorf 1996[1961]:168). A verdade é que, não fosse o deslocamento
para Utiariti – onde a maioria dos enviados eram crianças “moldáveis” – não havia in
loco, isto é, nos próprios postos, pessoal qualificado e idôneo como também recursos
para que a assitência pudesse ser mantida.
O projeto integracionista da MIA - do qual Utiariti seria uma de suas etapas
fundamentais - teve impactos negativos, como depopulação e desestabilização dos clãs
no território tradicionalmente ocupado (Pacini 1999:24). Comparando a atuação da MIA
e do SPI enquanto agentes dos primeiros contatos, Arruda faz uma avaliação negativa
da primeira (Arruda 1992:114).
Segundo Pacini (1999: 207), a própria dinâmica da pacificação seria a
responsável pela formação de uma identidade Rikbaktsa maior. Em diversos momentos,
vários pesquisadores destacam a imposição em se construir uma unidade e fazer
coexistir a multiplicidade de grupos Rikbaktsa, muitos dos quais rivais. Entretanto,
suponho que tanto a unidade quanto a fragmentação Rikbaktsa não estejam na sua
175
organização física, embora a limitação espacial possa atuar com um catalizador positivo
ou negativo de todas estas diferenças.
É assim que, de certo modo, rivalidades e conflitos entre clãs e pessoas não
desapareceram e, tão logo foi possível uma reorganização espacial por um território
maior, novamente ocorreu uma dispersão pelas três TIs pertencentes à etnia. O mesmo
vale para sua “solidarização” relativa, mantida com toda sua segmentação e
especificidades que viemos apresentando, nos momentos em que se torna necessária.
Também a relação entre os Rikbaktsa e os jesuítas é freqüentemente referida
como baseada em uma série fatal de imposições aos índios, que teriam vigência sobre
sua maneira de se portar, organizar e relacionar. Mykyry individualizado, apenas
sábados para a caça e pesca, missas, contatos no dia-a-dia e educação nas mãos de
religiosos e nomeação de “encarregados” por parte dos padres, são descritos como
exemplos de mudanças que se dão à revelia da “agência” Rikbaktsa e que atingiriam
algo de essencial e irreversível em sua cultura. Contudo, se a mudança pode ser decisiva
para alguns aspectos que variam de cultura a cultura, representando para cada qual uma
desarticulação mais ou menos definitiva, isto não seria exatamente verdadeiro para
muitos outros
130
.
Ao recuperarem gradativamente sua autonomia, fica cada vez mais evidente que
as micro-relações de troca e hostilidade, que sedimentavam os múltiplos grupos
Rikbaktsa em um território imenso, não desapareceram hoje. Têm expressão cada vez
maior nos padrões de aldeamento, desde sua composição e tamanho, até sua dispersão
pelo território.
A este respeito, já no início da década de 70, Hahn observava muito
oportunamente a “aparente flexibilidade das tradições Rikbaktsa”, constatando
evidências de que a adoção de costumes externos pode ser, ela mesma, uma tradição
Rikbaktsa” (Hahn 1976: 50) (trad. minha). O caráter inclusivo das concepções
Rikbaktsa de identidades, diferenças, humanidade, distâncias e proximidades é bastante
útil para darmos um passo a mais em direção à adequacidade da afirmação de Hahn. É
certo que sua cosmologia evidencia menos a criação - seja do mundo, seja de costumes
e artefatos - e mais o fluxo temporal e a apreensão a partir do "outro". Mas este "outro"
130
Viveiros de Castro & Carneiro da Cunha (1986) demonstram para o caso Tupinambá, a labilidade do
canibalismo em si mesmo, sendo sua proibição pouco significativa para a articulação do socius. Em lugar
da devoração “real”, a dinâmica fundamental e que inseria esta sociedade na temporalidade, garantindo
sua articulação e reprodução no “futuro” era, na verdade, a vingança. Apenas a extinção deste
mecanismo, teria levado à sua desintegração.
176
não significa muito se não for etnograficamente redimensionado, o que equivale
permitir-lhe conteúdos específicos e dinâmicos de sociedade a sociedade ou na
diacronia.
Com relação ao processo que cada vez mais desmembra as aldeias grandes e
artificialmente criadas em torno dos Postos, Arruda parece explicá-lo a partir da idéia
que sugere uma fragilidade da estrutura organizacional multifacetada Rikbaktsa. É
como se, por esta peculiaridade, esta mesma estrutura houvesse sido, de fato, extinta
pela atuação esmagadora da MIA (Arruda 1992: 215) e viesse assim tentando refazer a
si própria. Entre o binômio "vítimas" e "resistentes" pode e deve haver, contudo,
interações dinâmicas (Carneiro da Cunha 1998:18).
Assim, quando Arruda os visita, na década de 80, ocupavam seis aldeamentos.
Em abril de 1989, eram 23 aldeias, com cerca de 600 índios (Holanda 1994: 11). Em
2001 eram 917 índios estabelecidos em 32 aldeias, número de aldeamentos que se
manteve pelo menos até o ano de 2003. Quantos mais aldeamentos terão hoje se
formado, enquanto outros tantos terão tido sua composição alterada?
Intencionalmente ou não, a atuação da Missão Anchieta marcou-se por atitudes
sistemáticas de cuja avaliação nos conduziria a uma provável desarticulação cultural e
política. Contudo, no meu entender, a distribuição espacial Rikbaktsa atual não é nem
propriamente "nova" e nem "ressurgida". Realiza não mais do que um ajuste geográfico
à forma pela qual os mesmos parecem ter sempre pensado e se articulado no espaço -
não importando se mais ou menos aglutinados fisicamente - que é indissociável de sua
organização social, clânica e política. Enfim, características que apontam para um modo
de desempenhar sua socialidade que, como acredito, não desapareceu em qualquer
momento, desde a atração aos períodos posteriores aqui analisados.
CAPÍTULO III
MORTOS, CORPOS E SOCIUS
Será demasiado simples dizer, como
insistem optimistas teimosos, que o espaço
dos mortos começa necessariamente onde
acaba o espaço dos vivos, e vice-versa ...”
(José Saramago)
QUANDO ALGUÉM MORRE
Se o cosmos Rikbaktsa dissemina “humanidade” e “agência” a vivos, mortos,
seres metafísicos, vegetais, animais e coisas, torna-se impraticável a aplicação de uma
distinção definitiva entre a sociedade dos vivos, natureza e sobrenatureza. Por outro
lado, esta partilha reverte-se, igualmente, na probabilidade contínua de contato entre
estas entidades, que pode ter conseqüências predatórias mas também produtivas e
curativas.
É importante destacar que aquilo que chamamos de "morte", os Rikbaktsa
conceituam com referência a uma dada forma de existência, mas a associam a outra e
não a qualquer forma de aniquilamento ou esterilidade (Leenhardt 1961[1947]:61). O
que tomam por "mortos", podem ser indivíduos pessoalizados, dos quais os vivos sabem
a história e mantiveram relações. Correspondem a uma determinada face desta outra
existência, aquela com a qual interagem mais diretamente, mas não a única.
Há mortos dos quais nunca mais se soube ou ouviu falar, outros dos quais se
sabe o destino e outros dos quais algumas pessoas podem encontrar e acompanhar suas
vidas. Um homem conta que, passados dois meses da morte de seu pai, ele ficou doente,
com saudade e chorava como criança. Aí ele sonhou com ele. Dormiu “pesado” e
conversou com o pai. Depois disso, o pai não apareceu mais.“Foi para a cidade ... não
pareceu mais” (Geraldino Patamy). Quanto à sua mãe, ele diz não saber, “se virou
bicho, myhyrikoso” (idem). Nunca sonhou, não sabe onde ela está. Kazopo (homens
próximos de metade oposta) e “sobrinhos” também apareceram no sonho. Viu também
um dos netinhos, filho de seu filho, que morrera recém-nascido. Diz-me que o vê
sempre e que “agora está rapaz, continua crescendo” (idem). O pequeno – uma outra
criança que morrera prematuramente - nunca viu.
178
Há ainda os “mortos” enquanto uma unidade relativamente mais abstrata,
composta por aqueles ascendentes mais velhos, marcados pelo aparentamento, mas não
necessariamente pela pessoalização do ponto de vista dos informantes. Assim, quando
escurece durante o dia e ouvem o ruído de trovões, dizem ser aqueles que já morreram
que estão cantando para aqueles que morreram agora.
São os parentes recebendo o filho, aqueles que morreram novos.
Conversam, perguntam porque a pessoa veio tão cedo: “- porque a minha
família era muito ruim para mim, tratava mal, reclamava, a mulher era chata,
brigava muito comigo ... Conta tudo para mãe e para o pai, diz que não quer
voltar. Aí cantam ...” (Vicente Bitsezyk)
Os velhos cantam para estes mortos novos, mulheres seguram na fibra atada
(pikzare) à braçadeira (pazaze) dos homens, como os vivos fazem nas danças da estação
chuvosa. “Sakbahatsa mykarikinaha (os mortos estão dançando), quando acabam de
dançar mandam a chuva, Hyritsik myriwonaha (chuva /mandam) (...) Avô, avó, ka-eki
(1sg-mulher velha, avó), ka-diritsa (1sg-avô-pl), estes é que estão dançando” (Vicente
Bitsezyk).
Todos concordam que há, na verdade, dois aspectos das pessoas que são
liberados do corpo após a morte, com maior ou menor consenso sobre seu destino.
Como dizem, todo mundo tem “petok hyrikoso”
131
(“dois sombra/alma”). Quando a
131
O discurso Rikbaktsa não enfatiza o fato de que todos os seres têm –hyrikoso, que possui-lo seja um
atributo diferencial entre humanos e não-humanos ou, ao contrário, algo que marque algum domínio claro
de sobrenatureza ou além do humano. Não há divisões entre animais que têmhyrikoso e animais que não
têm, como é pertinente para alguns grupos, como os Wari’ (Conklin 2001:193). Rikbaktsa têmhyrikoso,
como a sucuri (urototok), ser metafísico exemplar, também o possui, o que pode eventualmente ser
visualizado quando lhes aparece o arco-íris (tsokmy), que dizem ser sua “sombra” (i-hyrikoso). Ter –
hyrikoso, almas, sombras ou duplos é uma condição partilhada pelos seres, a “fonte” do risco da vida e do
mundo, porém esta não é uma condição marcada ou enunciada enquanto algum “princípio”, como é o
caso, por exemplo, do yuxin kaxinawa (Lagrou 1996:198). Funciona como um elemento subentendido,
em um cosmos onde tudo possui agência e pode interagir. O adoecimento e a morte do “corpo” em sua
interação, principalmente, com as assombrações mais ou menos pessoalizadas (myhyrikoso) e outros seres
que com elas dividem sua “dimensão” e sua característica predatória são as distinções marcadas. Uma
distinção adequada, entretanto, é (1) entre animais que “têm” – hyrikoso e, dentro destes, (2) animais que
podem sermyhyrikoso (assombrados) e (3) animais que, com certeza, “são” myhyrikoso, independente
de qualquer “corpo” ou traço de “corporalidade”. A questão aqui não é ter alma ou sombra, mas ser ou
não “assombrado”, com todas as implicações que isto tem entre os Rikbaktsa. Apesar de haver diferenças
conceituais tênues e também um “quase” terceiro termo, este contraste é muito semelhante ao encontrado
entre os Juruna, entre animais que têm “alma” e animais que são “alma” (Lima 1999:45) e também entre
os Kaxinawa, entre animais que “têm yuxin” e animais que “são yuxin” (Lagrou 1998:49-50).
Particularmente entre estes últimos, os critérios de classificação para os animais que são “alma”
assemelham-se bastante aos Rikbaktsa, como seu caráter noturno enquanto algo atípico e de contato
179
pessoa morre, uma parte dela my-dony (intrans/pres-subir) “sobe” e a outra ni-tare
(intrans pass-ficar), “ficou”, como “bicho”, “gente”. Geraldino Patamy me diz que o -
hyrikoso é que fica no chão. O -nury, palavra que é utilizada para dizer “corpo” e
também “lado direito” (nury), é que sobe. Como o próprio Geraldino dissera-me que
todos têm dois hyrikoso, e que um deles “sobe”, disso só posso entender que o próprio –
nury possui um hyrikoso, uma sombra” que “sobe”, tanto quanto o hyrikoso que “fica”,
em um processo que desencadeia-se durante os ritos funerários, às vezes até mesmo
após o enterro da pessoa.
O –nury diz respeito a um aspecto da “pessoa” – aqui inextrincável da
“corporalidade”, pelo menos enquanto se está vivo - que dissocia-se à sua morte. E é
evidentemente significativo que seja associado ao “lado” direito ou ao que é “direito”.
Ele ocupa uma posição não apenas de “preeminência”, mas de contraste de “vitalidade”,
“atividade” e até “firmeza” com relação ao lado “esquerdo” (waza). Explico o porquê.
No tornozelo direito amarram as tornozeleiras de endocárpio de pequi (-pyry-
kara-tsa/-pé-criar-pl ), as “criações do pé”, que durante as danças devem ser forte e
seguramente batidas na terra (wytyk) através do pé, enquanto o pé esquerdo, livre de
adornos, quase não pisa e praticamente deve “flutuar” no chão. Ruídos do arrastar do pé
esquerdo são duramente reprovados (batsisapy) – o que descobri por experiência
própria - e completamente proibidos durante qualquer dança. Tatuagens que visam o
amadurecimento e fortalecimento do “corpo” são, desta forma, feitas no próprio “corpo”
ou –nury, ou seja, seu lado direito. O mesmo acontece para os casos em que arranham a
lateral direita do tronco dos meninos, durante o rito de furação das presas de uma onça
(cf. Capítulo V), para que cresçam, “estiquem”.
O –nury configura-se como se fosse um canal por onde ocorrem as intervenções
e alterações do corpo/pessoa enquanto se está vivo, aquele onde há propriamente
“agentividade”. O que é “esquerdo”, em contrapartida, como nas danças, é tido como
aquilo que pende “involuntariamente”, o que exige, ao menos na dança e nos processos
mais incisivos de construção corporal, um contra-movimento seguro e acertivo do que é
“direito”. Desta forma, o “esquerdo” deve voluntariamente ser “construído” enquanto
“involuntário” e “não-agentivo”, pois qualquer “matéria” poderá admitir
“agentividade”. Assim, os olhos de harãmy wazazawy, um ser metafísico que tem ou
tinha (porque foi exterminado) olhos compridos e que balançam, foram facilmente
perigoso, podendo causar doença e morte.
180
cortados pelo homem – o que significou seu abate. Entretanto, após o corte puderam
receber um certo quantum de “agentividade”, sendo jogados pelo homem de um lugar
alto e enrolando-se/misturando-se em galhos de árvore, transformando-se em um
passarinho (ver mais abaixo).
Tudo o que é “waza” não deverá ser enfatizado sob a pena disso gerar um
contra-estímulo ou enfraquecimento em sua contraparte, aquilo que é “nury”. O que
constrói-se e arrisca-se na existência no socius é o –nury, este aspecto, que também é
ligado ao –hyrikoso de alguém, e que à morte, já não mais importa, pois ele “sobe” e,
como veremos, a partir de então, não haverá mais contatos “pessoalizados” (e
perigosos) com ele.
Outra palavra associada à noção de “corpo”, aplicada ao corpo/pessoa em sua
totalidade no socius é -tyryk. Seu uso parece referir-se, dentro do possível, a um aspecto
mais próximo àquele da fisiologia biomédica, com a ressalva de que não há como
considerar nenhuma dimensão “corporal” enquanto algo completamente independente
da “pessoa”. Quando estão sentindo o “corpo” todo dolorido dizem preferencialmente
ka-tyryk-tsapy-r-ta (1sg-“corpo”-doer-est-masc/sg) e não ka-nury.
Em nenhum momento, contudo, aquele que está morto é designado por alguma
palavra específica. Referem-no, se for o caso de alguma forma de “contato”, por
myhyrikoso de “fulano”, pelo termo de parentesco/chamamento (cf. Capítulo IV) ou, em
português, por “finado”. Se o –nury, e o hyrikoso a ele associado “sobe”, o -hyrikoso
que “fica” aqui, mora na aldeia, no oco da pedra. Grandes formações de pedra, tanto em
lugares altos, quanto submersos no rio, são moradas típicas de myhyrikoso. Moram
também em wahoro (casa, aldeia), mas é no oco da pedra. Brancos – mortos - também
habitam este lugar.
Logo Geraldino “emenda” na história de Antonieta, que ouviria algumas vezes
no decorrer do campo:
Myhyrikoso (sparitsa, como bicho) escureceu a vista dela (sintomas
notórios do contato com estes seres). Depois que escureceu, o pai dela
apareceu.”
(pergunto eu) Mas o pai dela é sparitsa ou myhyrikoso?
“O pai é sparitsa e é myhyrikoso. Ele é que escureceu vista dela.” (...)
181
(pergunto eu) E como era esta casa para onde o pai levou ela?
A casa dos myhyrikoso é como aqui. Com panela, bóia. Jacu, pai de
Ismael, primeiro marido de Pedrina, a mãe de Strode, a mãe de Olga, todos
estavam na casa (todas estas pessoas citadas já são falecidas). Ficaram alegres,
só que é na pedra. Depois de dois dias trouxeram ela de volta. O pai trouxe,
como daqui à roça. Estava sentada e fraca (sintomas apresentados após o
encontrou com os “mortos”). Depois de 2 semanas ficou boa. (...) A casa deles é
na pedra alta. Dá para ver o rio de lá.”
A partir daí Geraldino Patamy passou a citar lugares onde há sparitsa e o
myhyrikoso wahoro. Habitam na dita “área velha (Reserva Erikpatsa), no córrego do
Cristóvão e outros lugares, como nas terras altas do rio do Sangue e no paredão de pedra
do rio Arinos. “Onde tem muito cemitério (gente enterrada) também”. Surgem, então,
ocorrências acontecidas durante uma expedição à TI Escondido, no alto Juruena
No Escondido, onde kapadrasto fez casa, também deve ter, mas eu não
vi. Kapadrasto é que viu Harãmy (um ser metafísico associado aos myhyrikoso).
Estava chupando mel embaixo da rede dele. Chupou todo o mel de nós. Foi de
noite. Ele contou e a gente mudou (mudaram o acampamento de lugar)”.
(Geraldino Patamy)
Resta abandonado o assunto sobre o “-hyrikoso mydony”, aquele que sobe.
Outros relatos, aparentemente com mais traços de cristianização, acrescentam que a
alma melhor” vai para cima, onde ficam as nuvens (biok). A “ruim” fica aqui embaixo;
quando mata muita gente” (Vicente Bitsezyk, mas também outros).
O ponto pacífico entre as possíveis versões para o que acontece quando,
finalmente, alguém morre é que, aqui em baixo, estes -hyrikoso ficam a interagir com os
vivos, segundo venho sugerindo. O –nury não é mais mencionado. O -hyrikoso nitare,
aquele “que ficou”, é também aquele aspecto dos mortos constantemente refererido, que
envolve-se em infortúnios, encontros e sonhos. Tem participação tão ativa na vida
Rikbaktsa que seu “peso” cotidiano suplanta o interesse em se falar sobre o aspecto dos
182
mortos “que sobe”. Há descrições sobre isto
132
, mas a impressão que tenho é que este
aspecto dos mortos não interage, ao menos não “pessoalmente”, com os “vivos”.
Relatos sobre “morte” e sobre “mortos”, como o de Geraldino Patamy, acabavam por
descambar em infortúnios datados e pessoalizados.
É sempre necessária a relativização do significado tanto cosmo-topográfico
quanto valorativo das asserções sobre “céu” e “assombrações terrenas” e pessoas “boas”
e “más”, principalmente diante da catequese religiosa
133
. Mesmo assim, é fato que todo
rikbaktsa, até os “mortos” mas notadamente os “vivos”, pode ser entendido sob estas
duas perspectivas, que espelham também os matizes de sua experiência social, para o
que bastaria lembrarmos da vinculação dupla que caracteriza o socius.
Os mortos jovens dizem ter partido, inclusive, porque eram maltratados no seio
de sua família, por filhos e esposas, algo que, veremos em seguida, é bastante coerente
com o que acontece aos parentes do morto durante os ritos funerários. Estes “mortos
queixosos” são, contudo, os mesmos que desejam o encontro com os que ficam, por
vingança (-tsapusarik) mas também por saudade (-mypokzitsa) de seus filhos, esposas e
132
É preciso notar que há muitas descrições detalhadas, principalmente no trabalho de religiosos, como o
feito por Holanda (1994), sobre este “céu” Rikbaktsa e sobre os caminhos e descaminhos que a “alma”
passa até atingi-lo. São encontros com seres/animais diversos, onde estes tentam seduzir a “alma nova” e
podem, a partir disso, ou predá-la/”matá-la” ou fazer com que se transforme em seres semelhantes àqueles
que lhe abordam. Com isso, a “alma nova” não poderá “subir” e encontrar com seus “parentes”. Poderia
aqui transcrever estes “estágios” ou até analisá-los mas, apesar de constituir um interessante caminho,
pricipalmente quando consideramos os sentidos nativos da conversão, optei por não fazê-lo. Privilegiei o
aspecto que também as pessoas – novos, velhos, mais ou menos “convertidos” - com as quais vivi
pareciam privilegiar, a partir, evidentemente, das experiências que pudemos dividir. Se nem todos
conhecem as bravatas da “alma” no seu caminho para alcançar o “céu”, o contato “terreno” com os
myhyrikoso era evidente e partilhado, independente de gênero e idade, como da “crença” em Deus ou
Jesus. Por mais que eu perguntasse sobre este “céu” (biokpe), os relatos encaminhavam-se sempre na
direção da “terra”, com informações muito mais consistentes e abundantes. A confluência de fatores que
concorrem para isto ficou um pouco mais clara em uma das muitas vezes em que encontrei o antropólogo
e também Jesuíta Aloir Pacini para trocarmos idéias sobre os Rikbaktsa em Cuiabá. Ele se surpreendia
por não terem me contado todos estes detalhes da “viagem da alma”, apesar de constatar a profusão de
informações que eu tinha sobre a morte e os mortos que são myhyrikoso e sobre a vida Rikbaktsa em
geral. Não é de surpreender o interesse dos jesuítas neste tipo de tema, e daí uma diferenciação de ênfase
nas experiências de campo, tanto por parte do pesquisador quanto por parte dos índios, sabedores que são
das vinculações daqueles que vivem entre eles. Isto parece também justificar o meu interesse confesso no
tema, digamos assim, oposto. Ou seja, concentro-me no aspecto dos mortos que permanece a atuar quase
que cotidianamente com os “vivos”, aquele que se mantém enquanto uma espécie de “agente” de sua
socialidade, tema central desta tese.
133
Ouvi muitas vezes sobre explicações atribuídas aos padres sobre “mortos bons” e “ruins”. Os
primeiros iriam para o céu e os segundos seriam, “ao pé da letra”, o que chamamos de “assombração”.
Assim, se a pessoa for “boa”, não a iriam encontrar depois da morte, a vagar pelo mundo dos vivos. Algo
que, segundo os padres, só aconteceria àqueles ruins. Rezar também apareceu como a recomendação para
que os “mortos” se afastassem. Evidentemente, no socius Rikbaktsa o conflito parece ser constituinte e
inevitável, tanto quanto os encontros com mortos, motivados por saudade, vingança ou outros
“descuidos”. Há, invariavelmente, um dado aspecto dos mortos que habita o mundo dos vivos,
independente de qualquer característica moral dos mesmos. Pode-se ou não encontrá-los.
183
outros parentes. É verdade que esta “saudade” será um tanto ambivalente, porque
poderá significar o adoecimento ou a morte.
Desta forma, o que designo como "outra" modalidade de existência, encerra
muitas distinções mas não pode ser definida por descontinuidades e contrastes negativos
e absolutos com a existência e o socius dos vivos. De certa maneira, uma é condição da
outra. O canal entre a metafísica e a sociedade dos vivos, que ora uns pretendem
bloquear e ora outros buscam enfatizar, não pode, contudo, ser desfeito. Ambas
guardam e até procuram intersecções recíprocas, produzindo-se e destruindo-se
mutuamente.
OUTROS MYHYRIKOSO
Um homem saiu para caçar araras com seu companheiro de caça (-tsere baha)
(cf. Capítulo IV) e ouviu gritos “como de gente”. Saiu correndo. Ao contar a história,
uma mulher diz também ter ouvido e imita, ao que o homem comenta: “- Vão levar você
para ser esposa ... vai ver que é onça”. Na caçada viu um vulto e pensou que era seu
companheiro. Tinha arara e ele ouviu o assovio desta “assombração” a que chamam
morebe
134
, que também caça assoviando, tem esposa e predileção por araras. Anda com
uma arara amarela no ombro (makwara). Ele a viu andando abaixada. Depois não viu
mais arara. Ficou abaixado escutando, bem escondido. Depois resolveu ir atrás, mas não
viu mais ninguém. À tarde é assombrado nesta região de muitas araras e de terras altas
no rio do Sangue. Morros, paredões e buracos de pedra são tidos como moradas típicas
de seres metafísicos e myhyrikoso de mortos.
Em uma outra ocasião, este mesmo homem diz que mataram três araras e que
morebe pegou todas. Aconteceu perto do “morro”, no mesmo lugar próximo ao rio do
Sangue. De lá é possível ver o rio.
Também neste lugar Suzana e Luíza viram um outro ser metafísico a que
chamam harãmy. Vários deles. Seu comportamento parece de porco mas são como
indiozinhos muito pequenos. Ficam assoviando. Comparam seu tamanho ao de crianças
entre seis e dez anos. Citam algumas da aldeia como parâmetro.
O encontro aconteceu no tempo do cacau. Todos estavam com flecha. Eles
bateram palmas para os filhos de Suzana que estavam em cima do pé de cacau.
134
Uma borboleta grande que tem a asa tomada por uma imagem que ser parece com um olho de coruja é
também chamada morebe.
184
Pensaram que eles (os guris) eram macacos e queriam flechá-los. Só cheirava a coco e
fedido. Disseram que é sparitsa (cf. Introdução). As mulheres e os filhos saíram
correndo. À noite era “só coruja”. Quando chegaram em casa passaram urucum nas
crianças e tocaram fogo na estrada. Tawamy e Teresa Zomu, ambos já falecidos, que
moravam no rio do Sangue, também contavam sobre estes seres.
Teresa Makby conta um caso de Morebe. Diz que era morebe, porque era alto e
harãmy é baixinho. Jogaram pedras. Viram assombração perto da montanha alta com
pintura de paca, mas era onça, assombração. Isto tudo perto do rio do Sangue. Por isso
Martinho resolveu mudar a aldeia de lugar.
Este local do rio do Sangue é um cerrado aberto e baixo onde há uma pedra
muito muito alta ao fundo. Dizem que de cima da pedra é possível ver fazendas, as
cidades de Castanheira, Juína e Juara. “Lá só tem assombração (...) Lá é o lugar deles.
É fedido, tsitoskartsa, irariktsa (tucumã) ... cheiro de coco, catinga, fedido” (Teresa
Makby). Os indiozinhos cheiram a coco, e este cheiro é considerado mau odor e também
um indício de que há myhyrikoso por perto.
Comentam o mesmo para um paredão de pedra que há no rio Arinos, há cerca de
sete horas de caminhada da aldeia S. Vicente. É sparitsa wahoro (casa de sparitsa).
Solicitei que me levassem até lá. Disseram que teríamos que ir muito cedo, para que não
anoitecéssemos por lá e também em um dia de tempo bom. Do contrário era muito
perigoso. Há muitos myhyrikoso, bichos, onças e porcos. Quando se vai aproximando do
local, sabe-se, porque tais animais surgem em grande quantidade. Eles vão “mandando”
bichos, coatá (ereme), tatu (piu), irara (ozo), cachorro-do-mato (tsomykmy), onça
pintada (parini zubakata) e por último a onça preta, grande
135
(parini nioktsĩrõrõ).
Todos estes seres pegam coco para comer. Às vezes não se acha coco ou os
vemos pelo chão. São os sparitsa que pegam. Se não comessem coco não cheirariam
assim, explicam-me. Também cheiram a podre (tsihororna), porque comem carne
humana moqueada. Dizem que quando ocorrem pequenos acidentes pelo mato, tiram
estes pedacinhos de carne para que possam comê-los.
135
É interessante notar a noção de “ordem” crescente na classificação de animais e também dentro de
espécies de “mesmos” animais para os Rikbaktsa. Toda a vez que me contavam sobre os bichos como
tipos de tucano ou de onça, esta cassificação obedecia uma certa ordem. Podia ser macho/fêmea, às vezes
nomeados diferentemente, mas principalmente havia uma relação de “tamanho” e “chefia” ou
“submissão” dos animais uns aos outros, dentro de sua concepção.
185
É perigoso e por isso é bobagem levar criança para estes lugares de sparitsa e
myhyrikoso, porque ela chora e aí ele mata e ainda come a criança. Choro de criança
parece atrai-los particularmente. É perigoso também os homens irem sem arma.
Embora digam que ambos são iguais a “gente
136
, “comem gente” e “bebem
chicha”, ditinguem entre morebe e harãmy. Morebe encontram geralmente quando vão
caçar araras. Ele é alto, usa spioke (discos auriculares, como o dos homens Rikbaktsa),
tem arco e flecha enfeitado com pena (o que os distingue dos arcos e flechas Rikbaktsa)
e tem esposa. Uma característica que associam a morebe e que se faz presente em sua
imitação durante as festas é que come mingau quente até terminar, sem que se queime
(algo que também não acontece aos Rikbaktsa).
Foi visto no Escondido, no baixo rio Juruena. Um rapaz flechou arara e caiu
perto de Morebe, deixou lá. Foi embora com medo. Estas histórias multiplicam-se no
cotidiano de caça Rikbaktsa. Disputam araras com morebe e têm para si que muitas
araras que alvejam desaparecem, porque seriam recolhidas por Morebe, exímio
flechador de araras. Este contato é sempre perigoso e evitado, cercado de medo (-pyby).
Quando vêem morebe a vista escurece (“ele não é preto, mas parece preto
Teresa Makby), como em um sonho. Ele se aproxima, conversa com a pessoa, engana.
Diz que está com a mulher da gente. Agente acaba indo com ele, anda direto, até
anoitecer. Se agente falar com ele, ele leva e não devolve” (Francisco Pikze).Vicente
diz que certa vez um parente pousou com a mulher de morebe que estava grávida.
Contou para todos que a mulher tem “catinga, fede, dá dor de cabeça na gente”.
Lembro que todos estes são sintomas da aproximação de myhyrikoso.
Harãmy parece uma boneca ou criancinha. Não tem enfeite algum, em
contraste com morebe. Usa apenas tanga de buriti (-rikpidiwy), como os Rikbaktsa, e
tem a franja tonsurada enquanto o cabelo é comprido atrás, à moda dos homens
Rikbaktsa. É “brabo”, “como criança”. Tem homem e mulher. Uma variedade tem o
olho comprido e pendente (harãmy hyriziktsa [“olhos”] ou wazazawy [“balanço”]). Eles
têm predileção por filhotes de coatá (ereme-tse-tsibik / coatá-filho-pequeno).
Harãmy de “olho comprido” é remetido a uma história passada entre cunhados,
quando ficava em cima de uma pedra alta e sempre pedia para um deles o filhote do
coatá caçado (o fígado [–py] do filhote é especialmente apreciado por eles). Um dia o
cunhado pegou no olho de harãmy e cortou ele fora. Seu olho caiu e ele morreu. O
136
Em alguns contextos de fala, quando tais seres estão em contraste com os myhyrikoso pessoalizados,
frisam que eles não são, entretanto, como as “assombrações” dos parentes.
186
homem jogou o olho lá de cima da pedra. Ele enrolou na árvore e virou um passarinho
chamado pabo-pabo(não identificado)
137
.
Não é bom chupar ossos à noite, mesmo de peixe, “porque Harãmy imita a
gente”. “Zogmy fez isso com a cabeça de peixe e ele (harãmy) imitou. Repetiu o gesto e
novamente ouviu. Harãmy pegou o facão e correu atrás dele. Nunca mais fez isso.
(Rosa Naudy). A imitação pode ser fatal na correspodência íntima entre seres metafícos
e corpos Rikbaktsa. A imitação gera a relação e, com ela, a possibilidade desta
intervenção e interação, muitas vezes fatal para vivos. Tanto quem imita quanto quem é
imitado pode sofrer conseqüências.
Crianças de forma alguma podem imitar harãmy, o que causaria sua morte. Por
esta razão evitam ao máximo que as crianças chorem à noite. Porque “harãmy vem na
porta e imita” (Helena zydyk). Com isso, a criança não cresce direito e pode morrer.
Há diversas histórias cotidianas que envolvem indivíduos Rikbaktsa em
particular e estes seres. Algumas são de domínio público e integram o repertório de
mitos que dizem ter acontecido em um passado não tão distante. Na história mais
notória que envolve harãmy, uma mulher está sozinha na casa com uma criança. A
criança começa a chorar e vai para o lado de fora da casa, ao entardecer. Harãmy pega a
criança e arranca seu braço
138
. Espeta um espinho e ostenta o braço na porta da casa.
Depois o joga em cima do telhado da casa. A criança é levada por ele e depois
encontram apenas seus colares. Por isso dizem que harãmy não gosta de colares e
procuram usá-los muitos, como as mulheres que antigamente cobriam-se até o púbis de
colares de coco e as crianças, com mais ornamentos quanto menores fossem
(Dornstauder 1975:119).
Quando vão ao mato à noite para fazer pipi não o fazem sem alguma espécie de
lamparina, tição de fogo ou lanterna. Dizem que harãmy os acompanha e, se estão sem
alguma luz, passa a mão na ka-tõro (1sg-púbis) da mulher ou ka-tsihirik (1sg-nádega)
da pessoa. “Não presta, batsisapy (“não-lugar”/inadequado), fica feio”. Dizem também
137
Extrair os “olhos”, mais uma vez, aparece como um modo de extermínio deste tipo de ser.
Entrementes, como apresentei para o significado do lado “esquerdo” (waza), aquele que não tem ou,
idealmente, não deve ter “agentividade”, qualquer “matéria” é passível de ser “ativada”. O “olho” recebe
a ação do homem, mistura-se, enrola-se em uma árvore e redunda em um outro ser.
138
Esta história é o tema do canto (mysakibarekwy) “Yambok i-tsipa” (Nome próprio 3sg-braço/o braço
de Yambok), que é sempre referido para as crianças. Particularmente àquelas que choram ao entardecer,
dizem que a deixarão lá fora, para que harãmy as leve.
187
em português que “madura” (mykoro), no sentido rikbaktsa, fica queimado, aquece-se, o
que é muito ruim
139
. Podem adoecer e até morrer
140
.
Cada qual tem sua própria historiografia com estes seres, eventos que tiveram
lugar nas festas como nas andanças cotidianas pelo mato ou no rio. Ocasiões em que se
“assustaram”, “foram perseguidos”, “tiveram medo” e etc.
A sucuri (urototok) é mais um destes seres que não se deve “ver”, ter contato.
Todos os peixes são seus animais de criação e dizem que também porcos podem sê-lo.
Se encontram com ela muzuza (cf. Introdução). Se ouve-se seu ruído é um aviso. Um
tempo depois morre alguém.
Citam a ilha em frente à aldeia Castanhal como morada de myhyrikoso e da
sucuri. Os “garimpeiros” que mergulharam viram que é “só parede de pedra”. Como
temos visto, este tipo de formação é amplamente associada aos myhyrikoso. Nesta ilha
há “porcos de criação” que são da sucuri. Um homem já morto e que era xamã levava
milho para eles. Explicam que primeiro os “garimpeiros” criavam porcos lá. Depois
foram embora e levaram tudo. Mesmo assim alguém viu porcos por lá. Estes já eram
esta criação dos sparitsa. Depois disso, ainda apareceram myhyrikoso na ilha, por duas
vezes.
Certa vez na aldeia do Barranco Vermelho, Vicente Bitsezyk viu a sucuri. Sua
cabeça rodou, via os buritis caíndo. Segurou no pau. Ela esturrou. Quando o barulho
passou levantou água, mas não molhou o mato. Pouco depois a água baixou e veio o
“tempo”, vento, chuva. Foram embora com medo. Isto aconteceu um pouco antes de
muitos morrerem de sarampo no Barranco Vermelho. Quando isso acontece fica-se
variado”, “tonto”, como bêbado. Levantou dois metros de água. Parecia que o mato
estava caindo, mas é só impressão. Quando ela passa volta ao normal.
O arco-íris, tsokmy, também é associado à sucuri. Vicente foi pescar com
Haroldo no Escondido, às cinco da tarde (o horário em que os myhyrikoso começam a
andar). Veio o arco-íris e ele disse (Haroldo) que ia atirar nele. Foram perseguidos.
Quando chegaram na margem, quase pegou eles. Veio uma grande onda. Se fosse no
139
Temos visto que. para diversas situações, alimentos quentes são sempre evitados e até proibidos,
especialmente durante processos intensos de construção “corporal”. Dos xamãs dizem que a “alma” (-
hyrikoso) ficaria “queimada” se ingerissem alimentos quentes e não seria mais capaz de sonhar
adequadamente. O calor é associado também ao estado de “estufar” (-pytok), ao qual consideram muito
perigoso. Massas em estado de fermentação – como pães – não podem ser comidas cruas.
140
Tolksdorf, que trabalha junto aos Rikbaktsa nos Postos de assistência na época do contato (cf. Capítulo
II) repara que uma criança trazia um boneco feito de algodão torcido no pescoço ao qual denominavam
harãmy tsibik (Tolksdorf 1979 [1959]: 65). Nas festas podem talhar bonecos em madeira que dizem ser
harãmy.
188
meio do rio tinham morrido. Aí afundou, a água ficou calma, veio o tempo, vento,
chuva. Ficaram com medo de ir embora. Foram só depois da chuva. Aí que o arco-íris
levantou, como fogo. É i-hyrikoso (3sg-sombra), a cobra mesmo fica no fundo, o arco-
íris é como o seu espectro. Vieram embora devagarzinho, com medo. Quando a sucuri
está há muitos peixes. Ela gosta também de loca de Pedra.
Também dizem que urototok mora na aldeia Japuíra. Uma grande parede de
pedra fica submersa no rio. A filha de Sykmy mergulhou na Japuíra para banhar e não
voltou. Acharam uns três dias depois, estufada (-pytok)
141
, branca, sem sangue algum.
Pegaram e enterraram.
A filha de Bibitata estava andando no mato com a “turma”. A tia mandou ela ir
na frente, ela pegou a rede e foi. Aí sumiu. Sparitsa de veado vermelho a levou
(hozipyryk tsaririta). Comeram ela completamente. Depois acharam só a caveira, no dia
seguinte. A cabeça estava quebrada. Tinha também macaco mouro na imediações (mas
não era mouro, era sparitsa). Aí enterraram os ossos dela.
No outro dia ele foi com os sobrinhos pegar macacos. Sua flecha enganchou e
pediu para o sobrinho subir e pegá-la. Ele subiu e os sparitsa que mataram a menina
vieram, como porcos, pararam na árvore, esturrando, por causa do cheiro. O menino
jogou a flecha. O tio veio se aproximando e os sparitsa foram embora. Quando levam e
matam uma pessoa chamam todos para comer, porco, caetetu, macaco, quati.
DAS FORMAS DE EXISTIR NO SOCIUS: RISCO PRODUTIVO, PRODUÇÃO ARRISCADA
Se algo é capaz de dintinguir vivos e seres metafísicos neste mundo de
semelhanças e proximidades, não é qualquer tipo de "alma" ou "espírito", mas o "corpo"
que os vivos possuem. Ele é um diferencial, representando uma franca arena de relações
e embates com mortos e outros seres metafísicos, como também com artefatos e
componentes diversos do ambiente Rikbaktsa que estabelecem com os corpos algum
tipo de associação
142
.
Produzir os corpos dos vivos envolve desde processos marcados de construção à
incessante produção que está implicada em cada dia de existência e persistência no
141
Como mencionei na Introdução, esta característica de estar “estufado” – que é algo que sempre
comentam sobre pessoas e animais mortos - pode ser atribuída ao beiju produzido nos ritos e é
considerada prenúncio de infortúnio.
142
A produtividade que o tema da “corporalidade” assume entre os ameríndios e, dentro dele, a
capacidade de singularização que concedem ao “corpo”, conforme nota Gonçalves (2001:27-31), norteia
completamente minhas discussões, que estendem-se por toda esta tese.
189
socius. Esta produção, se assim entendida, é arriscar-se, estar-se quase que
constantemente submetido ao contato potencialmente predatório de seres que, por outro
lado, “usam” a “corporalidade” mas não têm sua modalidade de existência aprisionada
ao aspecto perecível dos corpos. Sejam estes corpos aqueles porventura e
momentaneamente ocupados por eles, sejam eles apenas uma “forma” pela qual são
vistos por vivos. Podem, portanto, ser “trans”-formados sem que com isso percam seu
estatuto.
Uma onça é um ser metafísico, talvez um parente morto, mas a morte, o
apodrecimento ou até o desaparecimento do corpo que se vê não é capaz de exterminá-
lo. Salvo a correta condução de ritos e condutas adequadas, se transformará em uma
nova onça. Um porco abatido é um ser metafísico se seu corpo transforma-se aos olhos
do vivo, "emagrecendo” após o abate. Um pássaro que apresenta comportamento atípico
é finalmente identificado a um parente morto se pode tomar sua forma, mais uma vez
transformando-se aos olhos do vivo com quem interage. No caso específico de mortos e
outros seres metafísicos, o “corpo” ou a evocação de “corporalidade” que apresentam
aos vivos é outra coisa e menos que uma distinção (cf. Viveiros de Castro 2002b:395).
É um modo de engano e não muito mais do que isso: um meio importante de estabelecer
relações que, de outra forma, seriam diligentemente evitadas pelos vivos.
A possibilidade de produção corporal dos vivos, de uma forma ou de outra,
estará relacionada, justamente, à qualidade daquelas interações. Sobreviver é o signo do
êxito da construção corporal Rikbaktsa, que nunca se completa. Ritos que marcam esta
construção de forma mais intensa são sondados pelo risco e arrastam-se pelo tempo,
podendo ser quase sempre revertidos e sujeitos ao insucesso.
Neste sentido, entre outros processos corporais, aqueles que incluem a furação
de orelhas, escarificação ou a tatuagem, antes de representarem um acréscimo ou sinal
de que está "pronto" indicam, por um longo período, que aquele corpo está em plena
alteração e risco. As intervenções e desenhos não são suficientes para operar as
transformações desejadas, apenas iniciando ou intensificando a possibilidade de que
ocorram as alterações pretendidas como, por exemplo, o aparecimento ou
aprimoramento de aptidões guerreiras, xamânicas ou matrimoniais.
Outro aspecto importante é que todos incorrem, igualmente, em restrições
alimentares severas. Estas regras atingem os tipos de alimento, estado (o “quente” é
sempre evitado), modo de ingeri-lo (indiretamente, aos “pedacinhos” e com o uso de
“taquarinha”) e quantidade (em excesso ou “pouquinho”) e de relações (meninos não
190
podem encontrar ou ouvir conversa de mulheres até que tudo se complete).
Isto vem a, mais uma vez, reafirmar a indissociação entre a noção de “corpo”
(em um sentido individualizado, “limitado”), processos e transformações ditos corporais
e a construção da pessoa entre os ameríndios (cf. Seeger et al., 1987: 2-3). Revela
também a relação extremamente estruturada entre comida, culinária e o cosmos que é
singularmente significativa entre os Rikbaktsa (cf. Lévi-Strauss 2004[1964] e 1968).
O que significa o “corpo” rikbaktsa, sua particularidade mutável e sua
incompletude é algo que compreende experiências, saberes, posturas, sonhos, atributos
que são individuados e que advém de fontes múltiplas de interação. Algo que, como
destacou Csordas, não corresponde ao “corpo per se”, mas toma a
incorporação[embodiment]” como uma “condição existencial na qual o corpo é a
fonte subjetiva ou o terreno intersubjetivo da experiência” (Csordas 1999:181) (trad.
minha).
O corpo não existe fora ou aparte da experiência social, ao mesmo tempo em que
é seu lugar e condição. Mais que um meio “expressivo” é “operativo”. Mudanças
“físicas”, como veremos, são inseparáveis de alterações na “pessoa” e o inverso é
também verdadeiro, sem que haja fronteiras ou limites pontuais entre estes “aspectos”
que se “auto-constituem”. Um constructo para o qual não posso ter uma definição
imediata e que será tão mais esclarecido quanto mais pudermos nos familiarizar com a
sociocosmologia Rikbaktsa.
Um homem que furou a orelha antes dos ditos “primeiros contatos”, o fez por
volta dos doze anos de idade, na região do Escondido (hoje TI Escondido). Naqueles
tempos “não tinha branco” mas, mesmo assim, um homem mais velho de sua metade
não quis furar a orelha. Quem furou sua orelha foi seu “-zopo” (homem de metade
oposta, em geral, mais velho [cf. Capítulo IV]). Todos diziam que ele era muito novo, o
“-zopo” ficou com “dó” (-pokzitsi), mas ele quis assim mesmo
143
. Primeiro beliscaram
forte sua orelha, ele aguentou, então furaram. Seguraram sua cabeça. A partir desta
furação, o rapaz idealmente passa a viver no mykyry, onde aprofundará seus
conhecimentos em plumária, no fazer de peneiras e flechas, em caçar e pescar. Todas
estas são prerrogativas para o casamento.
A furação da orelha só pode acontecer ao fim dos ritos da estação chuvosa. Ao
término da festa, os rapazes que desejarem furar as orelhas são orientados a comer
143
Reparo, entretanto, que o disco auricular (spioke) deste homem, hoje com cerca de 70 anos é espesso,
porém não-alargado.
191
bastante, o quanto agüentarem. Antes da orelha ser furada ficam dois dias sem comer
nada, para ver se aguentam a fome. Isso em razão da guerra. Os mais velhos querem
saber se o rapaz está pronto, se agüenta ficar sem comer e sem beber água. Caso possam
continuar, no final da tarde furam a orelha.
A madeira do spioke é muito leve (maΦwy) e é encontrada pelos brejos.
Primeiro a orelha é furada com o espinho de tucum. Depois o espinho de tucum é
substituído por um pauzinho. Só então serão introduzidos os discos de madeira, que vão
sendo gradativamente alargados.
Depois de dois dias é que perguntam se alguém tem fome. Se não, devem
agüentar mais um dia. Podem beber água de vez em quando. Não podem sentar, apenas
andar e deitar. Então colocam chicha crua de milho, em uma cabacinha pequena
(pikdaotsibik). O milho deve ser socado por alguma mulher da família do rapaz.
Pegavam água na corredeira e tomavam de uma só vez. Vomitavam (-pyspyka /
“vômito”) tudo. Com isso, “limpavam o estômago”.
Recebem comidas boas, como batata, milho e beiju. Podem comer mas não
podem ficar com toda a comida. Comem só um pedacinho. Não podem “canhar” a
comida, têm de dividir e dá-la a quem quer que a solicite, senão a orelha estoura
(myspidydyk “nossa orelha estoura”). O mesmo acontece à mulher quando tatua ao
redor da boca. Além de cobrir o rosto com a peneira até cicatrizar, não pode negar
comida. Deve oferecer café, chicha e tudo o que houver na casa. Não pode ser egoísta
(batu -sorek).
Ficam por um mês no mato. Durante o período que se segue à furação não
podem encontrar com a mulherada ou namorar. Não podem brincar. Devem permanecer
quietos e sem fazer movimentos bruscos, até que cicatrize. Cerca de um mês depois,
começam as “brincadeiras”. São muitos os “jogos” entre homens e mulheres,
envolvendo a imagética da caça (-wak/ “caçar”) e do sexo (-boribori). Fingem “flechar
antas”, “destripá-las” e carregam montes de folhas, como se fossem as partes da caça. A
mulherada fica imitando bichos, como porcos, queixadas, jacamim, macaco e gavião.
Ficam sem roupas ou colares. Os homens flecham, com flecha de pano na ponta. A
mulher fica em pé na frente da árvore, como se fora um pau com mel (izopetetsa). Os
homens podem reparar, mexer nela – como se estivessem procurando mel -, mas não
podem contar para ninguém ou ficar comentando.
A ética que deve ser seguida por rapazes e moças que têm a coxa direita tatuada
durante o rito do Gavião-real, com o objetivo de amadurecimento de seus corpos é
192
também ortodoxa. Os desenhos mais comuns, tanto em homens quanto em mulheres,
são os de pacu (wahara) e pacuzinho (idikwy), mas também grafismos que definem
como sendo “costelas de gente” (i-pektsa) (vi este desenho apenas em um rapaz) e um
peixe pequenininho (mydazeze). Não há qualquer correspondência entre estes desenhos
e o pertencimento clânico ou às metades Rikbaktsa
144
.
A festa do gavião é também ocasião na qual os pais podem decidir apenas
“arranhar” seus filhos pequenos, sem a formação de desenhos – são arranhadas barras
verticais e paralelas na tíbia - e sem tintura, para que não chorem tanto, fiquem mais
brandas e obedientes. Como vimos, nos ritos de furação das presas da onça
escarificações na lateral direita do tronco podem ser feitas nos meninos mais novos,
aproximadamente de oito a 12 anos, para que cresçam mais rápido e tenham coragem.
Estas podem ou não ser tingidas, mas não são consideradas propriamente como
“tatuagem” (-tsudawy). Diz-se delas apenas que se “arranhou” (-puhare [arranhar] ou -
tsiku [raspar]), enquanto para a tatuagem há um verbo específico (-tsuda) de cuja a
tatuagem, algo que tem desenho, é uma espécie de substantivação, pelo acréscimo da
partícula –wy (-tsudawy).
A cada festa do gavião, devem arranhar novamente as coxas, para que a pintura
do desenho fique cada vez mais forte, em paralelo ao que acontece ao corpo da pessoa.
Tatuagens escuras
145
são apreciadas e significam, entre outras coisas, o sucesso destes
processos corporais no tempo. Uma moça de minhas relações já havia arranhado sua
tatuagem de pacu (idikwy) por quatro vezes.
Basta citar algumas das recomendações do período que sucede o risco do
desenho para ficar claro que ali apenas se inicia uma ação que deve ser continuada e que
terá um andamento intimamente dependente do indivíduo tatuado. Em certo sentido,
apesar de riscada por outrem, é também a própria pessoa quem vai fazer a sua tatuagem,
torná-la efetiva, “escurecê-la” no decorrer do tempo, com maior ou menor êxito.
Não são permitidos banhos completos ou tomar banho com muitas pessoas. O
desenho não deve ser molhado. Alimentos quentes ficam proibidos, assim como andar
no sol, pois o calor prejudica completamente este e qualquer outro procedimento de
144
A ênfase deste tipo de procedimento afasta-se bastante de uma perspectiva que vê a arte como
espelhando a organização social ou com a tarefa de “representar” a sociedade e “dar” identidade (para
uma discussão ver Lagrou 2002).
145
Para tingir podem utilizar castanha ou seringa queimadas. A foligem mais fina que fica grudada na
panela é raspada e guardada em um coquinho. Deixam bem tampado para que não estrague. Quando
precisam, já têm. Guarda-se junto do dente de cotia. Até por dez ou 50 anos pode-se guardar. Citam
também a folha arykyitsik, para passar na tatuagem feminina ao redor da boca.
193
construção corporal, como furação de orelhas e narizes, como também a integridade dos
corpos, por exemplo, de exímeos caçadores.
Meninos não podem caçar, mexer com flechas ou sequer pegar em taquaras, pois
a tatuagem ficaria “branca”. Pode-se comer qualquer caça, mas em termos de peixes, só
é permitido o tucunaré (mutsidi). Risos são evitados ao máximo, pois isso acarretaria
risco à saúde
146
. Relações sexuais, terminantemente proibidas, têm sido uma das causas
mais freqüentes para explicar a tonalidade fraca dos desenhos.
Algumas das atividades praticadas fora da casa são permitidas, mas devem ser
breves, não demorando mais do que o tempo necessário à tarefa. Para as meninas,
tarefas como pilar arroz ou outro tipo de alimento, como chichas (tumy) e paçocas (-
piwadik), ficam proibidas, porque não podem segurar a mão-de-pilão (harahara irikdo –
literalmente o “pênis do pilão”). Líquidos devem ser ingeridos na cabaça ou em copos
opacos. Não podem pegar no machado, no facão, em furadores e nem ralar colares.
Falam com as pessoas em geral, mas não podem ficar junto a outros
escarificados ou perguntar a eles sobre o seu estado. Uma recomendação atual
interessante, que vale para meninas e meninos e também no caso da furação de narizes,
é que não joguem futebol. A cada novo sangramento da tatuagem procuram aquele que
fez o desenho. Esta pessoa, então, esfrega a folha queimada utilizada para tingir o
desenho (arikyitsik). Tanto mais freqüência se passa a folha, tanto mais escura ficará a
tatuagem. Desta forma, o fato de escorrer muito sangue de uma tatuagem é apreciado.
As tatuagens faciais feitas nas meninas recém-púberes não podiam ser “olhadas”
por ninguém – o “olhar” tido como operador fundamental de transformações, como
apontei anteriormente (cf. Capítulo I) – até que estivessem completamente cicatrizadas.
A menina devia portar uma peneira em seu rosto por todo tempo, evitando que as
tatuagens fossem diretamente visualizadas por alguém.
Todas estas recomendações são relativamente duradouras e visam evitar o
“embranquecimento” ou coloração fraca das tatuagens. Isto viria a significar que aquele
corpo não foi adequadamente maturado, que não resistiu aos riscos envolvidos em uma
durée e que ainda apresenta vulnerabilidade.
146
O sentido desta recomendação encontra-se no mito sobre a tatuagem operada pela sucuri em um
homem.O homem conquista sua tatuagem escura, feita com as presas da sucuri, porque resiste às suas
cócegas, sem rir. Antes dele, um outro homem havia sido devorado por não suportar as cócegas e cair no
riso. O “riso” é, desta forma e durante os processos de construção/risco corporal, um propiciador de
possíveis predações.
194
Porém, de certa forma e apesar de todo estes “esforços discursivos”, as tatuagens
Rikbaktsa – sejam elas da coxa, as do peito masculinas e ao redor da boca e canto dos
olhos, ostentada por algumas mulheres como prerrogativa matrimonial – sugerem
regularmente este caráter provisório. Se são visíveis a olho nu, sua imagem é de difícil
captação por lentes não especializadas. Isto porque nunca são realmente escuras e
transparecem algo não-definitivo. Aquelas feitas na coxa, como outros tipos de
escarificação, devem ser, digamos assim, “reiteradas” por quase toda vida da pessoa.
Mais do que marcas consolidadas de algum estado ou status, são canais ativos de
construção mas que apontam para a possibilidade constante de destruição corporal. Sua
coloração clara, na língua Rikbaktsa expressa pela expressão “batu i-juhy”ou “ela não
cozida”
147
, que vem ainda sem marcador de “estado” “r, indica que algo naquela
culinária de corpos ainda está por fazer e não está estabelecido
148
.
O que mais podia ouvir eram as razões para que a tatugem de um ou outro
estivesse fraca, todas oriundas do desrespeito a alguma daquelas recomendações e ainda
de outras que não coube aqui reproduzir. Embora não tenha feito uma estudo específico,
tudo aponta para que tatuagens “não-cozidas” sejam mais regra do que exceção, uma
espécie de indicador do caráter provisional da construção corporal.
É certo que, a todo tempo, o que está a arriscar-se com o corpo é a direção das
transformações que condensam-se e intensificam-se nestes ritos. Não apenas os xamãs,
mas aqueles que querem ser “fortes”, crescer adequadamente, maturar seus corpos e,
junto com eles, outras qualidades da pessoa Rikbaktsa, devem resistir a tentativas de
predação por parte de seres metafísicos que, de um modo ou de outro, têm um certo
grau de alteridade.
As possibilidades de alterar o curso destas transformações, contudo, ultrapassam
o contexto pontual de um rito. Do dormir ao acordar diário, o corpo corre riscos, seja
através das relações envolvidas na socialidade aldeã, posturas corporais, atitudes
mentais e alimentação, seja nos sonhos ou no que eles prenunciam.
O corpo Rikbaktsa remete a uma totalidade complexa e não
estacionária
149
(Pollock 1996:322). Um feixe de distinções muito tênues entre fisiologia,
147
Também pode-se dizer –juhybyri para tatuagens ou cores pálidas.
148
A mesma expressão é empregada para falarem sobre o colorido das penas da arara-vermelha
(tsikbaktsa), que apreciam muito, em contraste com o colorido relativamente opaco das penas da arara-
cabeçuda (hazobiktsa). Assim dizem que “tsikbaktsa tsi-juhy-r-ta”, a arara-vermelha “está” “cozida”,
“tem cores vivas”, o que traduzem para o português também como penas que estão “maduras”, qualidade
incontestavelmente valorizada e comentada quando caçam araras.
149
Para uma discussão interessante sobre esta e outras “concepções” sobre o “corpo” ver Lock &
195
substâncias, afecções (Viveiros de Castro 2002b:380), pensamentos, posturas corporais,
noções estéticas, socialidade, interações metafisicas e, conseqüentemente, também
história. Sua suscetibilidade inclui processos que têm origem externa, intermediados por
substâncias e “sentidos” etnograficamente definidos, como a audição, visão e o tato
(McCallum 1996:352,355-58), mas que, em alguma medida, dependem também de um
componente individual capaz de modular mas não determinar completamente estas
interações e suas conseqüências positiva ou negativamente avaliadas.
Enquanto se tem “corpo”, deve-se buscar obediência a uma infinidade de
recomendações, uma verdadeira ética individual com o intuito de represar a vida.
Contudo, a despeito de ser praticada, será sempre falível, pois que, necessariamente,
todos da sociedade dos vivos são mortais e perderão seus “corpos”. Por outro lado, é
este conjunto de saberes e ações que acabará por criar e dar vida, procurando conduzir a
própria socialidade Rikbaktsa.
Desta forma, o “corpo” Rikbaktsa não será “pronto”, delimitado por fronteiras
demarcadas e impermeáveis. Muito antes que um indivíduo seja gerado, seu corpo
poderá estar em risco através das atitudes e até dos sonhos dos futuros pais, inclusive
quando ainda pré-púberes. A paternidade, o modo pelo qual cada corpo é construído,
seu pertencimento a grupos sociais específicos, sua aptidão ao casamento e seu
adoecimento espelham uma dinâmica da experiência social que deverá ser
cotidianamente reconstruída e reafirmada e que é potencialmente mutável.
Se levamos ao extremo a afirmação de Viveiros de Castro (1987:32) de que
mudanças corporais conduzem a concomitantes alterações na identidade social dos
indivíduos, chegamos, no caso Rikbaktsa, a uma concepção identitária muito peculiar e
mutável. Cada corpo será, simultaneamente, resultado e causa de uma extensa rede de
relações sociais no tempo e guardará, com uma série de seres, pessoas e coisas
interações de cunho metonímico. O corpo é, praticamente, um objeto mnemônico em
constante atividade.
O corpo de um indivíduo precede sua "materialidade" e destina-se à
imaterialidade. Desde a possibilidade da geração, à geração em si, o crescimento, a
maturação e a destruição completa dos corpos, tudo isso enfim, passa por atitudes
cautelosas e com referenciais múltiplos. A socialidade Rikbaktsa não está além da
Scheper-Hughes (1987), com a ressalva de que, em alguns momentos, fica a impressão de que há divisões
a priori em algum “corpo” – talvez em algumas noções etnográficas sobre ele - e, portanto, que alguma
instância de análise, como por exemplo as “emoções”, deva ser evocada como se ela pudesse “unificar”
algo que estaria necessariamente “disjunto”.
196
maestria em lidar com todos estes aspectos das interações, confrontando uma infinidade
de “seres” e “sujeitos”, dos quais depende tanto sua “produção” quanto seu insucesso.
A ação e o evento são fontes fecundas de produção de novos e singulares corpos,
como acontece entre os Pirahã
150
(cf. Gonçalves 2001a: 27, 31), que trazem inclusive
esta marca em seu nome próprio. Entretanto, é como se os Rikbaktsa multiplicassem, no
decorrer e ainda em vida, a possibilidade constitutiva de relação entre os eventos – onde
incluem-se ações propriamente ditas e também qualidades “ativas”, como
“sentimentos”, “pensamentos”, “odores”, “visões” e “sonhos” - e a
produção/transformação de seus corpos. Há “marcas” e até “nomes” (como o sutsukwy
cf. Capítulo IV) que indicam a singularidade dos corpos, dos humores e das aptidões.
Mas dificilmente a especificidade mutável dos corpos se esgotará em algum
acontecimento original ou momento preciso de tempo. Qualquer evento concorre e
soma-se a outros que determinarão o estado permanentemente vulnerável e sempre
inacabado dos corpos dos vivos.
Os mortos, para além de constituírem mais um “sujeito” no mundo Rikbaktsa,
são particularmente importantes. Com a peculiaridade de permanecerem
“pessoalizados” em tudo o que envolve interações reconhecidas entre eles e os vivos e
uma vez que episódios tais têm expressão quase cotidiana, subsiste a possibilidade
latente de que não tornem-se completamente “outros”. Na verdade, não parece haver
grande investimento da escatologia Rikbaktsa em assim fazê-lo. Uma vez parte da
experiência dos vivos, em encontros e sonhos, serão identificados e é este
reconhecimento que traz o perigo destas “conjunções”, muitas vezes fortuitas e algumas
vezes definitivas, entre vivos e mortos.
Mortos não apenas desejam a “relação” – inevitavelmente predatória – com os
vivos, como perpetuam cadeias de desafetos e vinganças geradas em vida. Se não se têm
mais corpo, se estará em situação de vantagem contra aqueles que ficam. Vinganças
post-morten podem ser aplicadas aos corpos de desafetos bem como aos demais corpos
de indivíduos a eles identificados. Mas não funcionam como um mecanismo de soma-
zero. À vingança, a hostilidade não cessa e perdurará tanto tempo quanto alguém for
150
Para além da produção corporal, Gonçalves resgata em amplitude o atributo criativo-transformativo da
ação. Entre os Pirahã a ação, a experiência, “presentifica o cosmos" (2001:31), criando e alterando
permanentemente um mundo que por esta razão jamais alcança seu termo (idem:32).
197
capaz de lembrá-la e de a ela associar infortúnios e adversidades
151
. E isto não é, de
forma alguma, uma característica privativa da vingança.
Em português, os Rikbaktsa referem-se à vingança usualmente pela palavra
desconto”, “descontar”. Fausto (2001) chamara atenção para o fato de ser tão comum
entre os ameríndios este tipo de tradução para o vocábulo, apontando outros casos
etnográficos em que isto ocorre (Journet 1995:189; Vilaça 1992:96;Verswijver
1992:173, entre outros apud idem:324). Destaca o quanto a inserção deste conceito no
âmbito das trocas – que supõe-se algo equilibradas e saldadas – é problemática ou
imprecisa (idem:325).
Na língua Rikbaktsa, contudo, por um lado há uma tênue distinção entre
vinganças que envolvem homicídios e infortúnios outros, a vingança propriamente dita,
que diz-se “tsapusarik”, e uma certa modalidade de “desconto”, harape. Harape usa-se,
por exemplo, quando se vai à uma festa bonita e animada e o convidado diz que irá,
então, fazer ele mesmo uma festa para “descontar” aquela que acabou.
Não há variação livre entre estes termos e seus contextos de aplicação. Quando
contavam sobre histórias de “mortos” que “descontavam” em seus desafetos “vivos” eu
sempre perguntava se tratava-se de tsapusarik ou harape. Eram inequívocos: tsapusarik.
Também não podemos dizer que harape inclui uma idéia de saldo enquanto tsapusarik
não. Festas poderão ser incessantemente “descontadas” e seus “donos” desejarão
sempre superar seus anfitriões anteriores.
Por outro lado, estas duas modalidades que expressam alguma noção de troca ou
equivalência, e digo “alguma” porque ambas não são nem equilibradas e nem finitas,
distinguem-se de um outro termo empregado mais geralmente para expressar trocas
“econômicas”, mas também uma diversidade de outras relações. A raiz verbal –akse é
empregada para significar “casar”
152
, trocas de recursos diversos (cocos, furadores de
colar, colares, flechas) e serviços entre as pessoas (lavar louça, lixar colares), classes
que serão, ainda, intercambiáveis. Dizem que uma tradução possível é “ficar com”,
embora os usos deste “ficar com” (alguém ou algo [de alguém]) sejam amplos por
151
Como também entre os Nuer, “uma vendeta jamais termina” (Evans-Pritchard 1978:166). O contraste
fica por conta daquilo que Evans-Pritchard observa entre os Azande, onde a vingança não prestava-se a
“reedições” temporais, sendo um eficiente mecanismo de extinguir hostilidades que eram sempre
localizadas e pontuais (cf. Evans-Pritchard 1960 [1951]: 42). Faço a ressalva de que tanto a “vingança” –
sua evitação e seu temor - quanto possíveis “resíduos” seus não deixam de ser, embora perversamente,
bastante contundentes em termos de possibilitar as relações costumeiras Rikbaktsa, conforme expliquei na
Introdução.
152
Casamento se diz –sukza: iksukzata, “eu sou casada”; sukza-byi-ta “solteiro”; mas a operação que
resulta no “casamento” é sempre referida como –akse.
198
demais. Incluem emakse, se alguém fica no lugar ou troca de lugar com outra pessoa
em alguma tarefa, para quando dão o próprio nome para alguém, assumindo ou
acumulando um novo nome (cf. Capítulo IV) e para qualificar a operação que se dá
entre o “choro” funerário de pessoas que vêm de longe para “lamentar” o morto e - nada
mais adequado e “justo” segundo o discurso Rikbaktsa - levam seus pertences pessoais
ou coisas de sua casa.
Já havia apontado na “Introdução” que entre os Rikbaktsa a inimizade não
corresponde exatamente ao negativo da troca, da mesma forma que a “troca” (-akse)
apenas raramente significará um equilíbrio das relações de reciprocidade. A “distinção
lingüística” expressa aqui a “verdade prática” (Fausto 2001:326), mas não para
diferenciar entre “formas equilibradas” e “formas projetivas” de reciprocidade (id.:ib).
Tsapusarik, harape e –akse são categorias que aplicam-se a formas distintas de
relação mas nenhuma delas pressupõe equilíbrio ou finitude em si mesmas. Se “troca” é,
antes de tudo, “relação”
153
, entre os Rikbaktsa ela não poderia caracterizar-se por algo
que não existe em seu socius. Neste sentido, poderíamos dizer que a noção de “troca”
enquanto reciprocidade segura, perfeita e equilibrada não seja senão um momento fugaz
das relações ou simplesmente não possa ser solidamente identificada, nem na “língua” e
nem na “prática” rikbaktsa.
Mas o que aqui nos interessa é que, de certa maneira, seja por vinganças quase
intermináveis seja pelo simples impulso de aproximação, mortos estão franqueados,
pela experiência dos vivos, a permanecerem enquanto “agentes” de sua socialidade, da
qual também participam outros seres metafísicos, plantas e animais. Entre todas estas
“entidades” não há diferenças absolutas de natureza. A diferença é muito mais uma
questão de posição, de perspectiva e até de tempo, do que definidora de domínios
exclusivos. Esta singularidade permite que, entre elas, a possibilidade da relação e
também da transformação seja constante.
Tão semelhante quanto esclarecedora da noção de permeabilidade entre
“mundo” e “corpos” e das quase eternas intersecções entre “vivos” e “mortos” é a
passagem de Leenhardt, sobre a proximidade destas “categorias” entre os melanésios:
Si el melanesio no ha podido delimitar su cuerpo y circunscribirlo para
separarlo del mundo, no debe sorprendernos comprobar que también distingue
153
Volto a este ponto no Capítulo IV.
199
mal entre estos dos opuestos que parecen evidentes: el viviente y el muerto.”
(Leenhardt 1961[1947]: 37)
O fato dos vivos possuirem corpos que perecem e que são também construídos
segundo uma história de relações específicas, marca uma distinção central e até seu
destino escatológico. Sua sabedoria está em dominar a permeabilidade a estas relações,
reconhecer “sinais” e outros indicativos e “agir” em acordo com interpretações
adequadas deste ambiente complexo. O objetivo é evitar-se a predação a todo custo;
parcial, se sobre a forma de doenças ou completa, se sob a forma da morte. É quando
então, “perde-se” a distinção central entre estas entidades; o próprio corpo.
É importante reafirmar que desde sonhos, o respeito a determinados sistemas de
atitudes, a adequação de “sentimentos” e até a fabricação de artefatos e de peças de
plumária, todas estas situações podem tornar-se campos férteis a interações com mortos
e outros seres metafísicos. São terreno de riscos corporais impingidos àqueles
diretamente envolvidos como também àqueles que lhes são corporal e socialmente
relacionados.
Em contrapartida, mortos não arriscam corpos e apenas em situações
extraordinaria e ritualmente marcadas serão exterminados pelos vivos. O abate do corpo
de animais acerca dos quais se tem a certeza de encarnarem seres da dimensão dos
mortos - há muitos dos quais somente duvida-se - não é nem o momento e nem o meio
apropriado de exterminá-los. Todo o processo desencadeia-se no abate daquele corpo
mas é centrado no período que o sucede. Dentes ou penas destes animais deverão ser
furados, segundo determinadas regras e por determinados indivíduos, para que se possa
realmente exterminar a “agência” do animal abatido, o myhyrikoso a ele associado
154
.
Caso contrário, ou ainda se algo fora da ordem acontecer, e. g. o entornar da chicha ou o
estourar do dente durante a furação do dente de onças, fortalecido, o myhyrikoso seguirá
sua modalidade de existência, podendo confrontar-se novamente com os vivos, na pele
ou na imagem de novos animais.
Isto porque matéria do morto é de outra natureza. Uma "essência" do que nem
sempre se pode ver, mas se pode sentir ou interagir, embora não se deva ou deseje fazê-
lo. Esta essência tem pouco ou nenhuma relação com o corpo físico do animal alvejado.
154
Voltaremos a este ponto no Capítulo IV.
200
À morte de alguém, a partir de um certo momento identificado ou confirmado
por aqueles que podem ver e ouvir os mortos com total clareza, o corpo do morto
também não mais importa, mas sim o corpo daqueles que ficam e que eram de suas
relações, tenham estas aspectos “positivos” ou “negativos”. Há vários riscos “corporais”
com os quais parentes próximos ou mais distantes convivem, notadamente, nos
primeiros meses que se seguem à morte de alguém.
Tanto “afetos” quanto “desafetos” correm tais riscos. Os primeiros porque o
sucesso de qualquer tentativa de contato do morto – tentativa esta que é quase uma
praxe -, a despeito de ser ela amorosa e pacífica, resultaria em prejuízos ao corpo. Os
segundos pelo mesmo motivo, com o diferencial de que aqui a intenção do
“morto/pessoa” em causar prejuízos àquele com quem tentará estabelecer contato é
patente.
Ou seja, quem está vivo não pode ver e, ainda mais, falar com os mortos sem
que disto resulte o prejuízo do próprio corpo. Independente do caráter da relação,
quando ela envolve vivos e mortos implicará sempre em doenças e, em sua
potencialização, na própria morte do indivíduo. Entretanto, se a morte opera ou implica
na “alterização” dos que se vão (Viveiros de Castro 2002b:395), isto não significa dizer
que estes não trouxessem, antes disso, alguma bagagem de discórdia e a encarnação da
diferença.
Fundamentalmente, em um conflito que envolve dois termos, enquanto um deles
possuir corpo ou tiver corpos a ele identificados, a relação – e portanto, a vingança -
será possível, ganhando ares de continuidade. São comuns os casos de vinganças
praticadas no post-morten, diretamente contra os desafetos “vivos” ou contra aqueles
próximos a suas relações, como filhos e esposas.
O corpo dos vivos será, então, o centro desta interação, que mais assemelha-se a
uma disputa. Através de múltiplas e detalhadas atitudes e pensamentos adequados pode-
se “barganhar” tais intervenções, amenizando ou retardando a predação completa e
inevitável.
Em contrapartida, do sucesso desta negociação depende também a produção,
crescimento e maturação dos corpos que se dão sob esta égide ambígüa ou, mais
apropriadamente, à despeito dela. Ter corpo, transformá-lo, maturá-lo, é resistir e
triunfar sobre as ameaças de intervenções desta outra esfera da existência. O que os
mortos parecem anunciar é que, quando já não mais se têm materialidade no socius, não
201
se têm mais corpo, permanece apenas uma espécie de essência predatória das relações
sociais.
Desta forma, a própria escatologia Rikbaktsa recomenda a proximidade e a
retidão nas relações sociais mas, simultaneamente, afirma que a conseqüência perversa
desta solidarização será a origem de inevitáveis predações futuras. Este aspecto duplo
das relações, fundado em uma escatologia da proximidade é, na minha interpretação,
algo que impulsiona por um lado, o profundo comprometimento solidário da vida aldeã
Rikbaktsa, e por outro, a franca instabilidade e reversibilidade das posições “afetivas”
que conduzem às classificações de indivíduos e grupos neste mesmo contexto.
A mutualidade, um dos pilares fundamentais do viver em conjunto, aqui não
acontece, porém, no sentido de uma homogeneização completa daqueles que convivem
(Overing 2003:300). Se é meio de construção de simpatia e similaridade não deixa de
ser, também, o ambiente no qual as dissimelhanças manifestam-se com maior
facilidade. Não é apenas a ausência ou a negação da reciprocidade aquilo que concede o
caráter indesejável ou distintivo das relações e das pessoas nelas envolvidas. Como
transparece nos mitos, nas exegeses dos conflitos e em longas e detalhadas histórias
sobre mortes e feitiços, a reciprocidade, a visitação, a gentileza e a convivalidade são
também ocasiões para vinganças, envenenamentos e homicídios.
Totsimy, um homem velho do clã e da metade hazobiktsa (arara cabeçuda) vive a
querer casar com várias mulheres, mas os homens não permitem
155
. Atribuem a ele a
autoria de diversos casos de feitiço contra esposas ou pretendidas esposas. O mais
notório foi o de Tseba, que teria sido vitimada por ele. Ele colocou sua rede na casa
dela, o que sela o casamento entre os Rikbaktsa, mas a mulher “jogou a rede”, ato que,
por outro lado, marca as separações. Mais tarde a mulher casou-se com um outro
homem, mas começou a ter diversas crianças defeituosas. Sem cabeça, de pé virado,
sem braço. Só teve filhos sadios depois que os xamãs lhe deram remédio. Totsimy lhe
jogara seu veneno (i-myrawy) - nos Rikbaktsa sinônimo de feitiço - com raiva e
maldade.
Também atribuem a Totsimy a morte da esposa de um parente, com os quais o
próprio Totsimy residia, em uma pequeníssima aldeia no rio do Sangue. A mulher o
xingou (“- vai ver que ela não queria andar com ele”) e ele jogou veneno no café dela
quando foi visitá-lo. Nunca mais ficou boa. Ela tomou o café e não conseguiu engolir.
155
Recolhi pelo menos o caso de cinco mulheres às quais ele pretendia tomar, sem sucesso. Alegam que
ele trata mal as esposas, lhes nega comida e panelas, quando não as mata.
202
Não demorou ela ficou tonta, sua vista escureceu, depois jogou o café sem que Totsimy
visse. Foi embora e primeiro ficou boa, mas o veneno já havia passado para o corpo
dela. No outro dia ela já começou a ficar doente, escarrar sangue. Então seu marido
pegou remédio para ela e ela melhorou um pouco. Depois o marido também morreu. A
mulher espirrava sangue pelo nariz e pela boca. O veneno fazia sair sangue pelos olhos
e pelo nariz.
O inimigo senão também do presente, certamente do futuro, mora ao lado, nas
esferas de proximidade das relações sociais aldeãs. Uma vez que se tenha desafetos para
com alguém, a distância geográfica amenizará mas não será, de modo algum, capaz de
desfazer a contenda. Se a socialidade atua como um terreno de risco e visitas, das
cotidianas àquelas “obrigatórias” que ocorrem durante festas e ritos funerários, serão
ocasiões onde esta possibilidade é reincidente.
O artifício de distanciarem-se no território e com isso subtrairem-se às relações
aldeãs é comum, reduzindo bastante as possibilidades de vingança entre dois indivíduos
vivos. Postura semelhante pode ser adotada durante o agravamento de algumas doenças,
limitando o número de pessoas que tratam e interagem com doente, o que pode chegar a
seu isolamento em uma pequena casa mais afastada do espaço da aldeia
156
.
Já havia reparado, por exemplo, o hábito de fecharem a porta da casa, limitando
as visitas, quando havia alguém doente na casa. A partir de um episódio de mordida de
escorpião (pikzaha) fica evidente a intrincada amplitude das causalidades e dos
agravantes de infortúnios, revelando as associações que há entre corpos, socius e seres
diversos. Trancrevo um trecho de meu diário de campo sobre o episódio:
Rosa tomou mordida de escorpião. Quando isso acontece tem-se que
ficar quieto, porque o escorpião não gosta de barulho. Maria comenta que ela
devia ter passado a bosta dele na mordida (é o mesmo princípio terapêutico-
metonímico entre o ferimento do bagre e a terra do córrego que deve curá-lo).
De fato, Rosa permaneceu quieta. Maria disse ainda que o escorpião que nos
morde, quando é “parente”, não acontece nada, mas quando não é, agente
156
Se a doença é tida habitualmente como algo essencialmente contrário ao socius (cf. Pollock 1996:326),
não posso deixar de notar que nos Rikbaktsa o contato com este mesmo socius funciona também como
agravador destes processos, podendo estar ele mesmo em sua gênese. Por este e por outros motivos que
venho explicando, é difícil, portanto, fixarmos valores em uma equação do tipo
doença:antisociedade:“selvageria”/saúde:êxito social:aldeia, como no caso dos Kulina. A proximidade
ontológica que impele a contatos permamentes entrecorta qualquer possibilidade de isolamento completo
de domínios. O trânsito intenso entre seres e coisas, como entre esferas de um mesmo mundo, faz da
perigosa ambigüidade (idem) propriedade disseminada e algo com o que se precisa lidar cotidianamente.
203
morre. Rosa contou que ficou com “reumatismo” na mão uma vez. Acha que foi
porque estava “sapecando” gavião-real e depois colocou a mão quente na
água fria. O escorpião, sua mordida, deixa, depois da dor, a mão com
“choques”. Dizem que isso só passa se deixarmos a mão para formigas brabas
morderem. “- Aí elas chupam todo o resto do veneno”. Quando Adílio foi
mordido, aos 12 anos, Shina e Ali só faziam barulho. Olga, então, retirou-se
com ele para um “acampamento” mais afastado da casa, para que melhorasse.
Se ouvia qualquer barulho de “pessoa que não é bom pra gente, não é bom
para cuidar da gente”, ele morria de dor. Paulo carregou-o para o mato. Só
ferrou (o bicho) ele e se escondeu. Se agente o mata depois que ferra, é mais
fácil a cura.
Benedito, da Cabeceirinha, quase morreu com isso. O escorpião é
advindo de um piolho da cabeça de alguém (parente ou não), ou seja, o piolho
vira escorpião, “aí é que é brabo, não tem jeito não”.” (aldeia São vicente
28/04/03)
Não poderia deixar de destacar a possibilidade impressionante, embora
inteiramente coerente com a dinâmica do mundo Rikbaktsa, da operação de certas
transformações e “contágios” predatórios entre seres. Uma comunicabilidade que
intermedia gentes, piolhos e escorpiões, tornando sua picada ou o contato com eles
ainda mais fatal.
Se qualquer forma de relação que envolva o par “vivo”/”morto”, ainda que
deslocada de conflitos objetivos, implica inevitavelmente em predação parcial ou
completa, à morte violenta parece ser ainda mais provável que qualquer vingança
“pendente” se torne efetiva. Contendas originadas em vida permanecem e têm episódios
após a morte de algum dos envolvidos.
Assim acontece a explicação da morte de uma mulher que se relacionava com
dois homens, afogada no rio. O marido, segundo afirmam agora, empurrou da canoa a
ela e à filha do casal, filha que disseram ser apenas do próprio marido. Primeiro
acharam que ela havia morrido afogada. Depois os xamãs descobriram e o homem
acabou também por confessar o homicídio. O homem fora devidamente isolado da
aldeia em que vivia, indo constituir uma pequena aldeia, mais afastada da primeira,
onde ainda vive com filhas e filhos casados e uma nova esposa.
204
Depois de mortes assim violentas, como dizem em português, os mortos
“descontam”, se vingam, como vimos, tsapusarik. Passado um tempo, um espinho de
ouriço-cacheiro (irizik) entrou no olho do homem, deixando-o cego, o que atribuíram à
esposa assassinada.
E seguem com outras histórias de vingança post-mortem. “Descontaram no filho
de Béia, que matou o marido de Janete. Depois quebrou a perna. E com Gilson (que
matara um homem) foi o mesmo” (Rosa Naudy). Primeiro não mencionou o que teria
acontecido a ele, mas depois disse ter tido uma queda muito séria. É a própria pessoa
que morre que “desconta” diretamente sobre aquele que o prejudicou ou então em
pessoas identificadas ao agressor:
“Barreiro vivia brigando com o marido de Dazia. O marido de Dazia,
Tsozopaha disse que a filha de Barreiro não ia crescer. Tsozopaha caiu da
árvore quando foi pegar diri (bugio) e morreu (o que é contado como um
infortúnio relacionado a Barreiro). Descontou (tsapusarik) na filha de Barreiro.
Caiu um raio nela e ela morreu. As crianças correram tudo, ela “pesou” (não
conseguiu correr). Quando chega a nossa hora agente “pesa” ... (se diz mytsa-
kyry-ky-naha / “nós (incl.) se arrastando”), “não consegue correr” (Rosa Naudy)
A vingança e as querelas que a originam constituem a robustez de um elo
mundano – um vínculo feito paradoxalmente de conflito - que não se desfaz com a
morte, com o desaparecimento do corpo. Desta forma, por vingança ou por mera
vontade de aproximação, há indícios ou sintomas-padrão quando mortos ou outros seres
desse “outro” do mesmo mundo dos vivos os encontram. Dizem que se “perde o medo”
(my-pyby-byi-naha). Por esta razão a pessoa fica sem “ação”, ou melhor, sem “agência”.
Quando a “agência” a abandona completa e irreversivelmente, acontece a morte do
corpo e a predação se completa.
A simples proximidade destes seres deixa a pessoa “pesada” e parada, a visão
escurece e ela pode se sentir tonta
157
. Este estado é descrito como –spirik-zomo- (-
spirik/ “chegar, aproximar”), termo utilizado também para quando perde-se os sentidos.
157
Um Rikbaktsa que viajara à chapada dos Guimarães contou que lá é morada de myhyrikoso. Os
argumentos que apontam nesta direção são: grandes buracos na pedra e alguns fatores atípicos como a
água que passa dentro do buraco e o lugar no qual o carro sobe sozinho. Quanto ao buraco, disse que era
só chegar perto que sua vista “escurecia”.
205
É recomendável notar algo sobre o radical spirik, que coloquei em negrito. Ele aparece
associado a outros radicais em conceitos rikbaktsa bastante importantes e que sugerem
determinadas analogias.
Assim temos -spirik-ts-hokda (-spirik-3sg-perder”) para dizer “esquecer”. Já
mencionei na Introdução que o “esquecer” é citado pelos Rikbaktsa como algo
importante para que os infortúnios efetivamente aconteçam, a partir do momento em
que se tem um “aviso” de sua possibilidade ou que se dê algum acontecimento
inadequado (batsisapy) que igualmente poderá conduzir a ele.
Se durante os ritos encontram com alguém designado a uma tarefa específica,
algo que é proibido e trará mau-agouro (muzuza) à pessoa, sua morte ou acidentes que a
envolvam não acontecerão naquele momento. O mesmo para sonhos que indiquem que
se está prestes a encontrar com algum myhyrikoso ou aparições que sinalizem a morte
de alguém. Nestas ocasiões mantém-se atentos. Evitam ao máximo movimentar-se e,
principalmente ir ao mato ou realizar alguma tarefa sozinhos (-zyba). Desta forma, nas
narrativas sobre infortúnios é muito comum dizerem que fulano “esqueceu” e então
acidentou-se, adoentou-se e até morreu.
Temos também “aprender”, que na língua rikbaktsa diz-se “–spirik-po” (-spirik/
“acender (diz-se do fogo que acende), eclodir, acordar (diz-se quando acordamos -
popo”). Quando se está aprendendo diz-se “ikza my-spirikpo-ko” (1sg. fem.- intras.
pres.-aprender-cont.) “eu estou aprendendo”, ou quando alguém está ensinando, ou seja,
provocando o aprendizado em alguém, se diz “ka-zo zik-spirikpo-ko”, (1sg-pai 1sg obj-
aprender-cont.) “meu pai está me (ensinando) fazendo aprender”.
Quando alguém não respeita alguém ou alguma determinação social, como
crianças que desobedecem aos mais velhos ou uma pessoa que se casa com alguém de
sua própria metade, diz-se “fulano batu spirik-po!” (“não aprendeu”). Se pode dizer
também de um “sábio” ti-spirik-po-r-ta (3sg-spirik-eclodir-est.-masc. sing.), porque é
alguém que aprendeu muitas coisas
158
.
158
Para “sábio” pode-se dizer também ti-hyrinymyry-r-ta. Para saber propriamente diz-se -hyrinymyry,
sendo –nymyry, também “aprender” ou até “sentir” (como em “ficar sem sentir a pele”, -piak-nymyry-
byi/“pele”-sentir-neg). Aqui teríamos talvez outra noção importante, mas que não consegui explorar, que
é a de “hyri”. É um radical que também não aparece sozinho mas integra muitas palavras da língua
rikbaktsa como hyrikoso (“sombra”/ “espírito”/”fotografia”), hyrizikkararawy (espírito”, podendo ser
hyrizik “olho”/ karara “minha criação”/ -wy “coisa associada com”), myhyrikoso (“assombração”), hyrizik
(“olho”, podendo ser –hyri/-zik “virar”), hyri-koro (“perigo”, podendo ser –hyri/-koro “queimar”) e hyri-
ty-wa (parecer com alguém, ser “como alguém”). Talvez o “hyri”, como vou sugerir para –spirik, pudesse
ser um outro aspecto da pessoa, algo como sua “percepção”, o que seria bastante coerente com a noção
rikbaktsa de saber e sdo aprendizado como experiência ligada aos “sentidos” (-hyrinymyry/ “fazer a
percepção sentir”) e até da visão e do olho como o lugar da percepção e da possibilidade de
206
Hahn (1976) descreve o estado de inconsciência como spirik-satyk, para o autor
“fechamento da consciência” (idem:101). Toma –spirik por “consciência”, reparando
também como este radical era importante com relação à observância da “tradição”, do
“respeito” a determinações sociais, sem contudo, desenvolver a questão (id.:ib.).
Os Rikbaktsa jamais me forneceram tal tradução. Na verdade, não é possível
falar-se isoladamente de “–spirik” para qualificar algo ou alguém. O radical aparece
sempre afixado e então poderá funcionar como verbo ou estado de alguém. Os conceitos
aos quais relaciona-se conduzem-nos a uma certa noção de que –spirik- é um importante
componente da pessoa. Pode “eclodir” dentro dela, ou seja, quando ela “aprende” (-
spirikpo). Ou pode alterar-se quando myhyrikoso aproximam-se, um estado
extremamente perigoso e que denota vulnerabilidade de seu corpo. Igualmente perigoso
é quando a –spirik da pessoa se “perde” e ela “esquece-se” (-spiriktshokda). Então as
promessas de infortúnios e de predação poderão completar-se.
Dependendo da pujança do ser que se aproxima, o próprio tempo pode fechar
completamente (my-na-depyk-r-ta / “fica muito sujo, nublado”), como ouvi dizer sobre
o prelúdio de encontros com onças (parini) perigosas e também com a sucuri (urototok),
considerada um myhyrikoso supremo.
Quando finalmente enxerga-se o myhyrikoso de mortos conhecidos, ele mente,
engana a pessoa dizendo que a mãe ou algum outro falecido está para lá, que é para que
ela siga com ele. Os outros correm ou apenas seguem seu caminho e a pessoa fica para
trás. Quando se dão conta, a pessoa já está perdida, podendo ou não ser novamente
encontrada, a depender do êxito ou falência da tentativa de predação. Quando o
myhyrikoso vai embora, a visão fica novamente clara. Isto acontece também no encontro
com outros seres como morebe, harãmy e animais que são sparitsa.
Outros sinais funcionam como advertência do encontro iminente. Há uma
determinada composição, uma ordem ou estado esperado dos seres e das coisas, já
citada em muitos trechos, a que os Rikbaktsa designam t-sapy-r-na, a “beleza”.
“transformação” parcial ou completa do corpo como de perspectivas, que nada mais são do que modos
perceptivos (-hyrizik). Como já mencionei, “ver primeiro”, “ver e não ser visto” é algo fundamental para
o bom termo de possíveis interações entre vivos e os myhyrikoso. Voltar a enxergar-se como vivo é sinal
de que a predação não se completou, ao mesmo tempo que nos indica que o olho e a visão são o lugar
destas transformações. O “espírito” ou “alma” dos vivos seria, então, a “coisa de criação” do olho, da
visão. Se vivos, é no olho que ela reside e ali também “arrisca-se” em sua existência atrelada a um corpo
(-nury). O “perigo” é então que o –hyri da pessoa se “queime”, no sentido rikbaktsa de “queimar”, como
algo que não é desejável e que gera prejuízos ao corpo. Deixo assunto tão importante para nota porque,
apesar de não ter muita segurança nestes nexos, eles me parecem fundamentais, e não poderia deixar de
apontá-los.
207
Quando esta expectativa se contraria fica estabelecida sua negação, “batu i-sapy”, na
contração da fala Rikbaktsa, batsisapy. O feio”, o “ruim”, aquilo que “não presta”,
como já ouvi muitas vezes, pode atuar também como um prenúncio de que algo não vai
bem e se está correndo algum tipo de risco em um futuro bem próximo ou até distante.
O contraste entre estas duas expressões merece atenção particular, senão pela
difusão de seu uso cotidiano, por sua abrangência e relevância, digamos assim,
conceitual. Artefatos, comidas, pinturas corporais de pais e filhos, músicas, situações,
imagens, posturas sociais e corporais, podem ser qualificadas enquanto “tsapyrna”.
Um significado limitado porém possível desta expressão seria “estado sublime”
de algo ou alguém. Isto porque a “beleza” propriamente dita não é mais que uma
espécie de tradução intercultural de um caso particular da aplicação deste termo, uma
locução verbal que pode traduzir tudo o quanto seja capaz de sensibilizar positivamente
a percepção e experiência Rikbaktsa. É composta por um prefixo de 3sg suj “t(i)”; a raiz
sapy”, que foi primeiro traduzida pelos brancos como “bom”, mas que significa
também algo como “lugar”; uma partícula estativa, o “r”; e um sufixo de gênero e
número neutro, o “na”.
Sua forma negativa, a expressão “batu isapy, composta por um advérbio de
negação “batu”, um prefixo poss. de 3sg, o “i” e novamente a raiz “sapy”, que assumo
como significando “lugar”, funciona como um não-estado, um signo da impropriedade
de algo, dentro do amplo espectro anteriormente sugerido.
Teríamos aqui um contraste entre aquilo que está no “lugar”, que é adequado, e
que pode ser aplicado com um sentido em parte semelhante ao que chamamos de “belo”
e também de “gostoso” e, por outro lado, algo que é fora do “lugar” e que, da mesma
forma, pode aproximar-se do que chamamos de “feio” e “ruim”.
O cotidiano como os ritos Rikbaktsa são pregnantes de preocupações excessivas
acerca de recomendações e diretrizes a serem seguidas. Durante os ritos, como é
também o caso da festa do gavião-real, segmentos sociais determinados devem executar
tarefas específicas, em uma ordem fixa e comidas devem ser cozidas de acordo com
exigências bastante ortodoxas. Para o caso de rito maiores, pessoas que não estejam
envolvidas diretamente em alguma tarefa ritual não podem cruzar o caminho das outras.
Não se deve também tropeçar durante as danças. Tudo aquilo que contraria estas
determinações, pode ser encaixado na categoria de coisas “batsisapy”.
Bastam alguns dias em uma casa para que sejamos advertidos de que, desde
sentimentos/comportamentos que consideram como inadequados, como “egoísmo”
208
(tsorekrta), a “raiva” (tsakarta), a desobediência a qualquer pedido de alguém mais
velho, que caracteriza-se como “desrespeito” (batu spirikpo), a atitudes cotidianas
igualmente condenáveis, como fazer qualquer coisa sozinho durante o dia ou sair
sozinho à noite, sonhar inadequadamente, comer determinadas partes de caças ou de
frutos, tudo isso é batsisapy e, por esta razão, tem a propriedade de ser perigoso ao bom
termo da saúde do corpo de alguém ou mesmo de seus futuros descendentes.
Meninas solteiras, que ainda não produziram filhos, parecem ser o alvo mais
comum destas “recomendações” cotidianas. A pena é a de que, no futuro, seus filhos
nasçam com muita dificuldade e sofrimento
159
, ou com algum tipo de defeito físico,
doenças e até mesmo mortos. Isto é dito em um tom que mistura a jocosidade à ameaça.
A quebra de regras e recomendações, entre outras ocorrências, é descrita como
batsisapy. Em uma escatologia marcada pela proximidade entre os que, a princípio, “se
vão” e aqueles que permanecem vivos, a categoria de coisas batsisapy é apontada não
apenas como sinal mas também como catalizador das interações entre vivos, mortos e
seres metafísicos. Tudo que está “fora do lugar” e não é “adequado” ocasiona a
potencialização destas intervenções de que venho tratando, capazes de construir corpos
maduros e fortes – como no caso das tatuagens e escarificações - como de destrui-los
por meio da doença, da morte e do desaparecimento, que não é incomum.
Retornando às visões dos mortos, elas ocorrem apenas quando algo está fora de
seu “curso esperado” ou “lugar”. A descrição de algo batsisapy, como regra, antecede a
narrativa sobre a ocorrência de infortúnios que envolvam o narrador ou terceiros.
Assim, se alguém vai realizar alguma tarefa em horário inadequado – como o
entardecer, hora em que os mortos começam a acordar -, se segue sozinho ou afasta-se
do grupo pelo mato, se vê pássaros que vivem em galhos altos a voarem baixo, cantos
ou ruídos de “animais” em horários inoportunos, se bichos tipicamente noturnos são
encontrados durante o dia, tudo isso é considerado “batsisapy” e, em conseqüência
disso, bastante perigoso.
Da mesma forma, matrimônios “endogâmicos”, o não ofererecimento de comida
a parentes próximos, a inconsistência entre a pintura corporal de um filho e de seu
suposto pai nos ritos (o que denunciaria justamente a não-paternidade), tudo isso é
159
Langdon auxilia a percepção do quanto esta associação entre “dor”, “sofrimento” e “parto” – tão
próxima à nossa sociedade - fazem parte de uma dada experiência e construção cultural (cf. Langdon
2003:99-100).
209
batsisapy, e por esta razão pode ter conseqüências perigosas, sujeitando indivíduos a
intervenções de seres metafísicos que podem ser fatais.
Tudo se passa como se corpos, pensamentos, posturas e substâncias, se não
dispostas segundo determinados padrões de “adequação”, representassem um risco
contínuo em seu contato. É um mundo de coisas, seres e relações em construção e
vigilância permanente. A “adequação”, onde inclui-se a “beleza”, o estado qualificado
de tsapyrna, é exatamente o bom termo do mundo e dos corpos, sempre marcado, por
um lado, pelo esforço de construção e por outro, pela instabilidade e pelo risco. O
grande investimento, então, é na produção deste estado ideal do ser, e isto pode ser
aplicado às diversas dimensões da vida Rikbaktsa.
Eventos apenas raramente podem ser isolados desta macro-cosmo-lógica inter-
referencial. Acontecem, ainda, em uma durée, de sorte que remetem a histórias e
“sinais” anteriores que virão a somar-se, culminando em algum tipo de infortúnio. A
história que conto a seguir ilustra exatamente esta conexão global, com a peculiaridade
de incluir os brancos dentro desta dinâmica.
Há alguns anos atrás, Vicente Bitsezyk sofreu um ataque de onça pintada, na
verdade, um sparitsa ou myhyrikoso de um seringueiro que morreu na aldeia do
Barranco Vermelho, nos tempos de gestão jesuítica. Para contá-la, remeteu à morte de
um apacanim (Zikarapopo/Spizaetus tyrannus), uma espécie de gavião associada à
Harpia.
Dependendo da ave caçada, como veremos no Capítulo V, as penas maiores do
apacanim como da harpia deverão ser ritualmente furadas. Entre decorrências diversas,
um dos efeitos deste rito será a produção de novas flechas que serão trocadas por
flechas antigas entre o caçador e homens que saibam fazê-las.
Vicente fez flechas novas e as trocou com Pedro Bosõe
160
, homem de metade
oposta e seu enteado. Disse a ele que a flecha era para matar “bicho grande”, caso
contrário, deveria ser devolvida a ele. Pedro foi com a esposa retirar seringa (tapõrõtsa
soporo). O tempo estava feio. Ouviu um tatakau (galinha-do-mato/ Formicarius
colma) cantar e foi atrás com chumbeira. A esposa ficou na estrada com arco e flecha.
Pedro ficou a olhar o pássaro em cima da árvore. O cachorro
161
se aproximou, mas
160
Este homem é falecido atualmente.
161
Cachorros são sensíveis aos myhyrikoso e, não raro, são vítimas de suas agressões noturnas.
210
circulou Pedro, ficando atrás dele. Quando Pedro olhou para baixo vira uma onça. Ela
ficou a fitá-lo. Foi atirar nela, porém não saiu nenhuma bala
162
.
A onça correu. Pedro gritou pela esposa para que lhe trouxesse flechas e ela foi
ao seu encontro. Contudo o bicho havia desaparecido. Naquela época, ainda moravam
na aldeia Divisa. Passou um tempo.
Em sábado também de tempo feio, a mãe de Pedro disse que havia sonhado
feio
163
, recomendou para que ninguém saísse. Mesmo assim, a mulherada quis sair
para pegar fruta (wiharatsa). Em um outro dia, Pedro foi com a esposa pegar lenha, não
sabia que Vicente tinha ido na frente. O tempo também estava ruim; chuviscava.
Vicente seguia pela estrada e só encontrava na sua frente feses frescas que reconheceu
como sendo de onça. Quando chegou à lenha, encontrou urina e fezes circulando a
árvore. Mas não viu nada. Vicente também “sonhara feio” (zitsõtyspyk) com o
myhyrikoso do seringueiro morto. Resolveu voltar, quando encontrou Pedro e contou-
lhe o acontecido.
Em um outro dia o padre Balduíno
164
foi buscar os homens para uma reunião no
Barranco Vermelho. As mulheres permaneceram na Divisa. Neste dia, ao escurecer, a
mãe de Pedro mandara Rosa e Maria irem fechar o galinheiro, pois criavam perus e
frangos. O galinheiro era distante e estavam lá ao anoitecer. Enquanto isso, acontecia a
reunião no Barranco Vermelho. Quando a reunião acabou, resolveram que fariam baile.
Vicente não queria ficar, pois as mulheres tinham ficado sozinhas na aldeia Divisa
165
.
Pedro também queria ir embora e assim os dois retornaram juntos à Divisa.
Ao chegarem, até ouviram barulho no galinheiro, mas seguiram para casa. Já em
casa, a mãe de Pedro, esposa de Vicente nesta época, “apurou” Vicente para que fosse
162
Como venho assinalando, este ponto é comum a todas as histórias de caças que são myhyrikoso e mitos
sobre seres deste tipo (como gavião-real branco, macaco-prego da noite e outros). flechas resvalam, não
“funcionam”. São sempre necessárias muitas tentativas para se abater este tipo de seres. Há, além de uma
“imunidade”, certa idéia de que uma “paralisação” atinge a pessoa nesse momento que poderá ser
decisivo.
163
Remeto o leitor à Introdução.
164
O padre jesuíta Balduíno Loebens acompanha os Rikbaktsa há décadas. Participou de diversos
episódios importantes, como o “subimento” dos Rikbaktsa da região do Escondido, no baixo Juruena para
a então colônia do Barranco Vermelho (cf. Capítulo II) e, quase duas décadas após, da retomada das
terras que correspondem atualmente às TI Japuíra e Escondido. Para além de atividades propriamente
religiosas (é falante do Rikbaktsa e realiza cerimônias na língua nativa), destacou-se notadamente no
atendimento à saúde. Neste campo práticas e conhecimentos pouco ortodoxos foram disseminados entre
os Rikbaktsa, de modo que é preciso muita cautela ao nos aproximarmos deste tipo de dado. Estuda e
conhece “remédios do mato”, o que já é suficiente para que seja considerado como “xamã”, embora
provavelmetne não atue no sentido de falar, alimentar e relacionar-se com os myyrikoso. Atualmente
mora na cidade de Fontanillas, na margem oposta àquela da aldeia Primavera.
165
Isto sempre indica alguma vulnerabilidade. É sobretudo quando todos saem para alguma tarefa
coletiva que as abordagens dos myhyrikoso acontecem.
211
até lá. Ele saiu sem facão, nem arma e nem lanterna, demonstrando total imprevidência.
Como citei anteriormente, não saem à noite, mesmo que para lugares muito próximos à
casa, sem laterna ou lamparina.
Quando chegou ao galinheiro, o bicho estava escorado na tela e avançou nele.
Antes disso, já havia pulado nele embora sem sucesso. Vicente não pode ver a direção
em que ele tinha ido e correu justamente ao seu encontro. Ele lutou com o bicho, que
tentava morder sua garganta. Ele colocou a mão na boca do bicho, foi quando sentiu
suas presas. Viu que era um bicho grande. Quando percebeu o tamanho do bicho, o
empurrou com toda a força.
Por sorte a onça caiu em um buraco cavado por Rosa (então “criada” pela esposa
de Vicente) e pela esposa de Pedro para fazer de “breve
166
. Os outros ouviram e
Vicente fora socorrido. Estava em choque e pedia para que o matassem, pois não
aguentaria viver. Disse a Pedro que pegasse a arma, pois o bicho era grande. Ficou
sendo cuidado, enquanto Pedro foi ao buraco com a chumbeira. Quando foqueou, o
bicho estava de cabeça baixa, lambendo o sangue de Vicente. Quando saíram da casa
para acudir Vicente, apesar de possuírem três lanternas, não as conseguiam encontrar.
Pedro atirou contra a onça, mas não saiu nenhum tiro da arma que, contudo era
novinha
167
.
A onça chegou a pular, mas providencialmente ficou na parede do buraco. Pedro
foi então pedir ajuda a Tomas, marido de Angelina. Primeiro ele atirou no olho do
bicho
168
, que ficou totalmente desorientado. Depois deram vários tiros nele. Esturrava
alto.
Naquela noite não dormiram. De manhã foram até lá e tiveram que chamar
muitas pessoas para retirar o bicho do buraco. Fizeram tudo aquilo que se prescreve
nestes casos (cf. Capítulo V). Tiraram as presas. Furaram. Um de seus dentes já estava
quebrado e isto é uma das identificações de um bicho que é sparitsa ou myhyrikoso, e
dos mais brabos. Um sinal de que já escapara várias vezes das “intervenções” dos vivos,
o que lhe faz ainda mais bravo
169
. “Depois que morreu, emagreceu ... ficou magrinha”,
166
Como chamam “banheiros”.
167
Mais uma vez destaco que armas de qualquer tipo sempre falham nas histórias de encontros, ataques e
outras desventuras que emvolvem os myhyrikoso.
168
Os olhos (-hyriziktsa) são, como já apontei em nota e citei na história sobre harãmy wazazawy e de
hoktsoikhadata e do abacaxi-do-mato, parte central do “corpo” (-nury) e da possibilidade de sucesso nos
ataques a myhyrikoso.
169
Embora trate disto no Capítulo V, chamo atenção para a analogia entre o modo de produção corporal
dos vivos – a partir da sobrevivência de intervenções dos myhyrikoso - e a “consolidação” ou
“perduração” dos myhyrikoso, enquanto tais.
212
disse Vicente, apontando para mais um dos “sintomas” que revelam que um bicho é, na
verdade, myhyrikoso.
Depois disso Vicente ficou um mês no Barranco Vermelho, em tratamento.
Ficou fraco (-kubyri), não podia comer nenhuma carne de bicho grande ou mesmo
peixes grandes. Só mesmo peixes pequenos
170
. Quando dormia, sonhava com a
esposa da “onça”, que lhe perguntava sobre o marido sumido há dias ... que seus
filhos estavam querendo carne. Tomava muitos banhos comremédio do mato
(okyry). Não queria viver. Por isso, me disseram Rosa e a esposa de Pedro, ficou
assim”, “nervoso
171
. Não respondem a ele. Certa vez quase matou o cachorro, pois ele
matou uma de suas araras. Só sai de casa com facão ou “22” (arma de fogo). A onça
machucou-o só do lado direito (nury). Disseram que por esta razão (que em vistas do
sentido apresentado para o lado “direito” parece mais que suficiente) Vicente
emagreceu e não engorda
172
.
Pergunto à esposa de Pedro se o seringueiro não gostava de Vicente. Ela me
responde que sim, que gostava dele. Pergunto, então, porque ele o queria matar e ela diz
que é “assim mesmo!Não vê a nossa parentada?”. Associaram ainda o aparecimento de
varas de porcos a rondar a aldeia a esta história.
Sobre esta história é interessante notar que há, na verdade, um longo processo
acontecendo. São várias atitudes não-recomendáveis, acontecimentos e abordagens
parciais que atingiram não apenas a Vicente como também à coletividade. Estes eventos
vão sobrepondo-se e terão seu ápice no ataque da onça, que havia sido o ponto de
partida da nossa conversa. Nestes sinais e nestes pequenos e grandes “ataques”, os
myhyrikoso rondam a vida e o socius Rikbaktsa.
Nexos sofisticados que decorrem de uma complexa interação entre planos, seres,
pessoas e histórias de encontros e vinganças pontuam o fluxo acidentado do socius e dos
“corpos” rikbaktsa. Ao contrário do que descreve Pollock para os Kulina (cf. Pollock
170
Reparo que o itinerário terapêutico é totalmente Rikbaktsa, com as restrições que pretendem, ao
menos, “afastar” a vulnerabilidade da pessoa aos myhyrikoso. Este ataque, ainda que não tenha sido fatal
no que diz respeito à fisiologia “biomédica” (cf. Hahn & Kleinman 1983:306 apud Langdon 2003:91) do
“corpo” de Vicente, denota que há um processo corporal em curso que poderá, a qualquer momento, ser
fatal. Ficar fraco (-kubyri) é também, mais do que uma conseqüência dos ferimentos visíveis causados
pelo ataque da onça, um dos sintomas daqueles que têm contato com os myhyrikoso. É como se se
estivesse a “morrer” ou morrido “um pouco”.
171
Há relatos de que pessoas que são levadas ou têm contato muito estreito com os myhyrikoso ficam
mais instáveis ou “variadas” (-kedepykrna), como gostam de dizer.
172
A “arranhação” feita por uma “onça viva” ou myhyrikoso no lado direito do “corpo” tem aqui o efeito
contrário àquele pretendido pela arranhação que se faz neste mesmo lugar frente à furação do dente de
uma onça e o conseqüente abate de seu –hyrikoso, ou seja, uma “onça morta”. Abordo esta prática no
Capítulo V.
213
1996:325), não há qualquer categoria de doença propriamente isolável na descrição de
sua etiologia ou que não gere especulação sobre suas causas, principalmente por parte
de terceiros.
E isto ocorre sobretudo retroativamente. Serão buscadas posturas alimentares
incorretas, atitudes indevidas, “sentimentos inadequados”, venenos ministrados por
alguém, intervenções de mortos e outros seres metafísicos. Tudo isso pode concorrer e
aparecer ao lado, por exemplo, de doenças diagnosticadas pelos brancos, como gripe,
tuberculose ou pneumonia
173
. A doença e a morte transitam, desta forma, entre muitos
planos de causalidades possíveis e cumulativas, forças “predatórias” provenientes de
fontes diversas, que vão dos próprios indivíduos e quiçá seus co-aldeãos, a “mortos” e
seres “metafísicos”.
O longo relato que culmina com a pneumonia de uma criança inicia-se quando,
após uma noite em que os cachorros latiram e rosnaram muito
174
, ao acordar, uma
mulher me diz que não dormira muito bem. Conta-me que myhyrikoso “puxou suas
orelhas” no sonho. Ela chorou (no sonho) e pediu a um parente próximo que o
espantasse. Mas não sabia de quem era o myhyrikoso. Depois disso, uma outra mulher
bem mais velha porém muito próxima, ouvira um ruído de onça perto do córrego (“que
chora como gente
175
” [Helena Zydyk]), quando foi ao mato com outras mulheres. As
mulheres ficaram com medo – afinal, “onça também é sparitsa, come gente” (idem) -,
mas a velha não
176
. Comenta, então, que bicho do mato, quando morre sozinho, sem
machucado ou ser caçado, é “espírito, myhyrikoso” (idem):
173
Isto demonstra a “permeabilidade” múltipla e complexa entre a “biomedicina” e as noções nativas de
“doença”, “corpo” e, por conseguinte, de terapêuticas a elas adequadas, conforme nota Langdon
(2004:45,48). Impõe-se, desta forma, dinamismo e heterodoxia à classificação de doenças e seus
respectivos tratamentos (cf. Langdon 1994:118) e sem que isto signifique algum tipo de “contradição”
(idem:128) ou incoerência dos narradores.
174
Indícios tais, quando ao fim de tarde ou noturnos, serão possivelmente identificados à presença de
seres metafísicos pela aldeia. Podem ser mortos reconhecidos ou não, ou outros seres, como harãmy e
morebe. Tais seres integram muitos mitos Rikbaktsa, mas não são tão somente mitológicos, pois que
existem no mundo, estando os Rikbaktsa sujeitos a encontrá-los ou serem encontrados por eles, sob o
risco de interações predatórias. Os mortos identificados, notadamente, provocam latidos nos cachorros e
têm com eles relações normalmente agressivas. Alvejam-lhes pedras e chutes. Assim, contam que um
cachorro que hoje encontra-se na aldeia São Vicente teve a perna quebrada por um parente morto.
Primeiro ele (seu myhyrikoso) tocou o cachorro para a estrada, depois bateu nele” (Rosa Naudy). Quem
atribuiu a autoria das agressões foi Sykmy, um homem mais velho e que consegue ver os mortos. Quando
o homem em questão adoeceu, ficou na aldeia Castanhal, onde o episódio acontecera, morrendo depois na
cidade de Juína.
175
Estes “choros”, descritos às vezes também como “assobios”, disseram que era serok (flautinha de
bambu) de sparitsa.
176
A idéia de que velhos não têm medo de uma série de coisas das quais os mais novos têm é recorrente.
É como se eles não fossem mais tão suscetíveis quanto pessoas mais jovens o são ou se a morte do corpo
lhes fosse um destino “adequado”. Velhos eram os únicos que podiam comer a carne de inimigos e há
214
Valério já viu uma vez. Foi com a mãe dele pegar castanha, ele estava
na frente e viu um caetetu tremendo na beira, perto do mato. A cabeça e a perna
(apenas) estavam na estrada. Quase deu tiro nele. Se matasse, muzuza. Ia goerar
(agourar). Quando é myhyrikoso, depois de morto ele fica “magrinho”, como
gente. No caso de Valério, era espírito do pai dele. Com Paulo aconteceu algo
semelhante. Ele carregou um filhote de queixada bonito, estava pesado. Deixou
na estrada. Quando ele olhou (o porco) estava magrinho. Deu medo nele, deixou
o porco lá. Trouxe só arara. Aí Clenildo (filho de Paulo) ficou doente,
pneumonia. (- quando foi isso? eu pergunto) Isso foi agora. Clenildo está em
Juína (cidade onde tratam doentes mais graves).” (Helena Zydyk)
A importância de mortos e seres metafísicos contrasta ainda com o fato de não
haver, na cosmologia rikbaktsa, nenhum “ser” ou “espírito” totalmente supremo ou
puramente transcendente. A metafísica rikbaktsa é eminentemente mundana e mortos
serão quase sempre pessoalizados ou provocarão impulso de identificação, terão forma
e, principalmente, intenções de relação. Intenções deste tipo serão traduzidas, sob a
ótica dos vivos, em inevitável predação. Falo aqui de mortos mas refiro-me àquele
determinado aspecto deles “que fica”, um certo modo de existência que partilham com
outros seres que participam igualmente da socialidade dos vivos.
Desta forma, como venho dizendo, a cosmologia Rikbaktsa inclui outros seres
metafísicos, como também animais relacionados aos mortos ou nos quais estes podem
transfigurar-se, cuja relação com os vivos implica, igualmente, em alguma forma de
predação destes últimos. Entretanto, não há “heróis culturais” ou “mitológicos”
propriamente. Parafraseando o comentário de Gow para os mitos Piro, a idéia de que
não há como saber “qual começo é o verdadeiro começo” (Gow 1997:43) é igualmente
aplicável aos mitos e ao cosmos Rikbaktsa.
Em um mundo algo diferente, contudo, já existente, há transformações e
separações de seres e grupos que vieram a originar o mundo e a gente Rikbaktsa como
são hoje. “Tomadas” e “empréstimos”, principalmente de artefatos, entre eles e seres
metafísicos ou outros grupos de “gentes” (wahorotsa) juntam-se a atitudes,
muitas partes de caças totalmente interditas que são destinadas unicamente a eles, com por exemplo, um
corte traseiro da anta ( piku i-japok). Ouvi várias vezes das mais velhas que não tinham mais medo da
morte e também de cortar e tratar de caças à noite, o que é evitado, dentro do possível.
215
comportamentos e interações entre todas estas entidades, digamos assim, “comuns” e
não divinizadas. Neste emaranhado de relações altera-se o curso dos acontecimentos e a
característica dos seres e, como parece, este movimento continua a acontecer.
Todas estas entidades podem, assim, interagir com os vivos em qualquer
momento da vida ordinária (nas caçadas, nas incursões pelo mato, nos sonhos como no
ambiente doméstico), segundo algumas ocasiões e critérios. Neste sentido, não haverá
momentos marcados, como ritos, nos quais se possa “agradá-las” ou “ofendê-las” mais
do que nas situações propiciadas pelo próprio dia-a-dia, composto pelo risco como pela
deferência. Definitivamente, os ritos Rikbaktsa não são conciliatórios. Não há pactos a
serem refeitos - sejam eles transcendentais ou entre os próprios indivíduos - que
garantam a “harmonia”, a “saúde” e a “fertilidade” nem mesmo temporariamente, idéias
comuns em outras circunstâncias etnográficas.
Entre os Rikbaktsa são as situações da vida social e, dentro delas, a inadequação
de práticas individuais, que colocam os corpos e uma certa modalidade de existência em
jogo. Não há qualquer espécie de rito capaz de intervir de modo pontual e infalível na
“ordenação” e “reprodução” da sociedade, da harmonia, dos corpos, enfim, do “dever
ser”.
A contínua interação entre seres metafísicos – incluindo-se aqui os mortos - e
vivos é, assim, um incremento fundamental da labilidade ou reversibilidade das
categorias de identidade/alteridade, solidariedade/inimizade e, por esta razão, até de
parentesco/não-parentesco entre grupos e pessoas. Concorrendo para esta situação,
conflitos e vinganças em vida podem estender-se ao post-morten, atingindo não apenas
indivíduos envolvidos diretamente nas contendas quanto outros a eles identificados.
Vivos e mortos se retro-alimentam em ódios e cadeias vingativas que não se encerram
em grupos discretos do tipo “consangüíneos”/”afins”, metade A/ metade B.
A proximidade impõe-se como parâmetro essencial da classificação Rikbaktsa.
Em um mundo onde não há identidade absoluta mas também não há diferença absoluta
entre os seres, é incessante a reconsideração de espaços, distâncias de domínios e de
pessoas. Este impulso em direção à desconstrução impossibilita a consolidação de um
“estatuto” cosmológico isolado do socius ou sua cristalização permanente de grupos
sociais específicos.
A inimizade está implicada na alteridade, mas a alteridade é algo mundano no
socius Rikbaktsa. Encontra-se presentificada na rotina dos vivos, nas contingências que
rondam as relações sociais cotidianas, nos perigos que se impõem à construção e
216
maturação dos corpos, enfim, na manutenção da vida. Não duvido tanto do caráter de
“alteridade” dos mortos, mas do caráter de “identidade” daqueles que estão vivos e
relacionam-se socialmente. Diferenças internas ao socius não são passiveis de
neutralização total.
A este respeito, os protocolos funerários Rikbaktsa nos apresentam uma situação
curiosa. Em lugar de afirmarem que quem está ali sendo “chorado” e “reclamado” é
agora “outro”, pertence ao domínio da não-pessoa, indivíduos em posições diversas
parecem querer solidarizar-se com o “morto” contra aqueles que estão vivos e faziam
parte de suas mais próximas relações. Aqui a “compaixão” é pelo morto e exprime-se
através da rivalização com aqueles que estão vivos.
Isto talvez vise a minimização do grande perigo que alguém, quando morto,
representa para aqueles que ficaram. Contudo, não podemos esquecer que é também
expressão de uma espécie de potencialização do componente conflitivo das relações
sociais. Aqueles que são convidados aos protocolos funerários e que portanto, tinham
relações mas não conviviam permanentemente com o morto, parecem afirmar
energicamente, que aquele que se vai – se é que, de fato, se vai - não está mais próximo
ou mais distante do que aqueles que são aqui deixados. Muito pelo contrário, todos
querem alegar o quanto podem as boas relações que tinham com o morto, de forma
ufanista.
Faço o relato de alguns momentos de ritos funerários do passado, conforme me
foram relatados para, em seguida, falar um pouco de como eles acontecem hoje. Na
verdade, veremos, não há diferenças tão significativas no que concerne às idéias centrais
que ali operam. Se o morto é enterrado em redes ou em caixões, se em geral morrem nas
cidades e seu corpo deve ser transportado, há determinados componentes
imprescindíveis dos ritos funerários.
Primeiro, quando se têm a notícia, que deve ser trazida por alguém de metade
oposta à do morto, algum velho pode cantar por toda a madrugada. Às quatro da manhã
começavam a chorar (tsimy-puka-naha- nós estamos/vamos chorar). Como antigamente
ficavam nas cabeceiras dos rios, seguiam a pé para a aldeia do morto. Às vezes
andavam por dois dias. Iam chorando pelas estradas entre aldeias.
Quando o morto tinha muitas “coisas” (tsi-namy-r-ta), “trocava choro por
panela, pagava (kapuka i-morosuk-ty tsi-pi-akse-naha), uma transação efetuada com a
esposa do morto. Para as mulheres muitos colares eram trocados, também bens advindos
dos brancos, cocar, flecha, “porque era longe”, diz Geraldino Patamy. Ritos funerários
217
determinam, assim, um intenso trânsito de recursos e relações, algo bastante semelhante
ao que pode acontecer em outros tipos de ritos.
Ornavam-se muito mais antigamente. “Reclamavam muito” (mymy-bektsak-
naha/ -bektsak “reclamar” ). Sob meu olhar curioso, queixa-se porque hoje em dia os
convidados “esquecem de reclamar”. É importante reter esta informação, relacionando-
a a fatos que relatei anteriormente, sobre os mortos queixosos de seus parentes
próximos.
Filomena Zukmy conta sobre a morte de seu “tio”(MZH), antes do “contato
pacífico”, em uma outra aldeia, distante aproximadamente um dia de caminhada da sua.
No caminho, homens iam à frente e a criançada vinha depois. As crianças levavam
“xirinho”
177
(tonihĩ) com rede e tudo. Iam para aprender, as mães iam atrás. As meninas
gritavam às vezes, porque não sabiam. Os homens voltavam para trás, para repreendê-
las e então elas esperavam as mães, para imitá-las. Chegando na aldeia do morto, a mãe
dizia para as crianças ficarem quietas e sentadas porque havia muitos velhos
“feiticeiros” presentes. Ritos funerários, eram e são, como toda as oportunidades em que
intensificam-se as relações sociais, ocasiões propícias para envenenamentos/feitiços.
O morto, a depender de seu status, era pintado com a pintura de seu clã, ornado
com myhara e com braçadeira hoktsozik ou pony-pony (hokpoiktsa).Não parece
morto, estava bonito, parece dormindo (Filomena Zukmy)
178
”. O mesmo comentário
faziam acerca do corpo de um homem que morrera mais recentemente, enforcando-se.
Disseram que estava corado e não parecia morto, para depois acrecentarem detalhes
como o cheiro desagradável, o inchaço e as marcas no seu pescoço. Ao anoitecer, o
morto era enterrado na rede e com os ornamentos, como cocares, braçadeiras e
colares
179
.
Os convidados amarravam a rede na casa do morto e ficavam lá por uns 3 dias.
Nesta ocasião disseram para que sua família ficasse morando na aldeia do morto por uns
tempos. Disseram que tinham deixado todas as suas coisas na aldeia e o tio disse não ter
problema, porque lá tinha tudo.
177
Recipientes de palha de inajá ou outra palmeira.
178
Geraldino Patamy me disse uma vez que primeiro se dorme e depois se morre.
179
Há relatos de que, no passado, em certo momento, o corpo dos mortos poderia ser queimado. Isto
acontecia ou dentro de sua própria casa, ou dentro de uma pequena casinha para onde era transferido
quando sua morte era dada como certa. Isto era verdadeiro e conjugava-se à prática do abandono de
aldeias após a morte de alguém. Este abandono acontece ainda hoje. A família muda o lugar de moradia
ou então, pelo menos, constrói uma nova casa. Hahn observa que em algumas aldeias da Reserva
Erikpatsa havia cemitérios onde todos os mortos eram queimados (Hahn 1976:103), mas nunca ouvi
menção a este fato.
218
Roças “grandes” eram plantadas com banana (tomado), batata-doce (zodo), bata-
doce vermelha (zodospu), mandioca (moko), cana-de-açúcar (urukuza) e vários
tubérculos, como warokoirikdo (um bem comprido, como pênis) e bauri. Também
plantavam araruta (tawatsa), amendoim (pitsipyryk) e cará-liso e cabeludo (iktata e
iktataza). E assim ficaram lá por um ou dois anos, até que o pe. João começou a “atacá-
los” (cf. Capítulo II).
Há cerca de quatro anos atrás, quando houve a notícia da morte de um homem da
metade hazobiktsa, muitos que estavam indo em viagem ao Pará retornaram para o rito
funerário. Comentam repreendendo que muita gente não quis ficar até o “final”, como é
o costume rikbaktsa. Quando morre alguém, se chora de dia e de madrugada. Se alguém
avisar que está se vindo de outras aldeias, continua-se chorando, parentes e não-
parentes.
Este homem ficou sendo chorado por cinco dias, o caixão vai descendo o rio
Juruena em uma voadeira e sendo chorado em algumas aldeias (um outro homem, mais
velho e com grande prestígio, foi chorado por uma semana). Além da viagem de Cuiabá
para Juína, ficou um dia nas aldeias do alto Juruena e depois mais três dias nas aldeias
da TI Japuíra.
Na madrugada em que recebeu a notícia da morte, Geraldino Patamy (-zopo do
homem morto
180
) cantou. Nesta mesma noite o morto foi como onça à casa de sua “tia-
paterna” (-zawy). Viram só sua cabeça (da onça). Ficaram muito quietos. A onça acabou
indo embora, mas deixou tufos de pelo presos à prateleira. As crianças da casa
confirmam o acontecido, referindo-se aos tais tufos.
Na noite em que o homem morrera, seu myhyrikoso atravessara também a casa
de seu –zopo, abrindo as duas portas. Seu myhyrikoso voltou a esta casa depois de um
tempo e falou com Geraldino enquanto este estava despertando do sono, mas ele não lhe
respondeu. Às vezes os mortos vêm porque têm saudade (-mypokzitsa), outras vezes
porque têm fome (-arapa). Mas o certo é que, por algum tempo, virão à casa daqueles
que lhe eram relacionados de diversas formas.
Contam também de uma mulher que podia mandar que os mortos fizessem estas
temidas visitas, como forma de represália contra aqueles que falavam mal dela.
180
Remeto o leitor ao Capítulo IV. -zopo é um homem de metade oposta com quem se relaciona
especialmente. Embora isto não seja exatamente relevante aqui, mantenho as informações sobre metades
nesta descrição, apenas para dizer que, à exceção da exigência de que a notícia da morte seja dada por
alguém da metade oposta à do morto, não há qualquer outro tipo de norma deste tipo a ser seguida no
decorrer dos ritos funerários. Todos podem reclamar e também “tomar” bens do morto ou de sua família.
219
Mandava seu falecido marido Iranxe aparecer como onça para estas pessoas. Ele
mostrava a língua e o dente para causar medo, mas era myhyrikoso.
Mortos comunicam-se no sonho, quando os vivos dormem “pesado”. Quando se
está sonhando com eles e acorda-se, vê-se certinho. Ele está lá, mas é visto como onça.
Quando acostumados, pode-se vê-los com a forma que tinham em vida. Então a vista
escurece, mudamos do dia para a noite e vice-versa, ficamos tontos e o morto aparece.
Primeiro, o caixão do homem morto ficou embaixo de uma mangueira, na aldeia
da Curva. Os xamãs que podem ver, disseram que ele estava lá, olhando tudo, e que ele
não podia ficar. Os xamãs têm papel fundamental nos ritos funerários. Ficam
“acompanhando” o que acontece com o morto, com sua sombra. Contam para a família
quando o –hyrikoso finalmente se vai do corpo. Investigam sobre as causas de morte.
Intermediam no que é possível a relação entre os que ficam e o morto.
Em algum momento o caixão do homem “estourou” e ouviram também 3 gritos
na beira do rio. Na aldeia da Segunda, uma mulher também ouvira o morto gritar,
adormeceu e sonhou com ele. Ele se identificou, estava em cima da casa. Ela puxou sua
perna, aí ele “voou para cima da outra casa. A mulher então o pegou e levou para o
córrego. Tratou de acordar.
Relacionam o “estourar” à saída do –hyrikoso do morto, do –nury e, para
infortúnio dos vivos, do outro hyrikoso. Tudo indica que isto é gradativo, já que podem
ocorrer diversos estouros durante os ritos funerários até aquele que será considerado o
definitivo. Dizem que após a morte de um outro homem, ao final da lamentação, ele
“estourou” e foi não sabem para onde. Acham que a partir daí virou onça da mais
perigosa, por isso tem que enterrar no fundo. A filha correu e viu um buracão. “Ele” já
tinha ido. Ficou o buraco, enterram-no de novo.
Pelas cinco horas da tarde o corpo seguiu para a aldeia Pedra Bonita, onde
pernoitou. Assim o caixão veio descendo o rio Juruena, e parando em algumas aldeias
para que fosse chorado e para que novos convidados se juntassem ao funeral, até a
aldeia em que o homem morava e na qual foi sepultado.
Houve uma grande polêmica acerca do lugar do enterro. A disputa foi entre a
aldeia da Segunda (onde está enterrada a mãe do homem), a aldeia Japuíra (onde ele
morara algum tempo e onde dizem ter uma amante de quem gostava muito e por conta
do que alguns atribuem seu enforcamento) e a aldeia onde mora sua família mais abaixo
do Juruena. Sua esposa não quis que fosse enterrado nem na aldeia da Segunda e muito
menos na aldeia Japuíra e sua vontade acabou prevalecendo.
220
Há caçada durante a lamentação. No rito em questão mataram sete queixadas e
uma anta. A esposa e os filhos do morto não comeram. Alguns gritam muito
181
.
Passados dois anos do rito, a filha do morto, à pedido da audiência que ria
compulsivamente, como em uma pantomima, imitou várias vezes os trejeitos e os
ornamentos de um homem que gritava muito durante a lamentação de seu pai. Contam
que ele estava com facão na mão e às vezes ficavam com medo dele. De uma outra
mulher comentam que levou a gordura da anta.
A cabeça do morto deve ficar para onde nasce o sol, caso contrário, a família
também pode morrer. Todos cortaram o cabelo, senão outras pessoas e a própria família
pode morrer, o morto pode “roubar” sua sombra. Tem-se que passar terra do enterro no
corpo dos filhos, também para que consigam dormir à noite, senão não dormiriam.
Podem passar também barro, capaz de retirar odores característicos e confundir a
percepção. Tudo isso gera o não-reconhecimento dos seus por parte do morto.
Reclamam muito com a família do morto durante a lamentação. Neste sentido
choros são entrecortados e até superados pelas veementes reclamações bramidas contra
os co-residentes do morto. Acusam-nos de “zangar” com ele e de tratá-lo mal. Chegam
a ameaçá-los com facão. Dizem que dá medo. O filho do homem morto ficou muito
ressentido com os convidados.
Outro homem, de metade oposta à do morto, demonstrava-se tão bravo com a
esposa (mulher do mesmo clã e metade do “reclamante”) do morto que queria recolher-
lhe os filhos. Reclamaram muito com a esposa. Um homem que traria o caixão na
voadeira chegou a dizer que não havia combustível para trazê-lo até a aldeia da esposa,
no médio Juruena, mas não era verdade.
Quando acontece coisa com parente, esses mais brabos, que parente
falava dele, vão de tudo, arco e flecha, facão, tsorek (cocar), se tiver capacete
(myhara), vai de capacete” (Lucineide Tezok).
O papel dos convidados ou “reclamantes” é, justamente, falar mal das pessoas
que supostamente falavam mal do morto, não o tratavam bem ou não gostavam dele.
Mas as “vítimas” das reclamações são, sobretudo, aqueles mais próximos a ele. Podem
181
O modo pelo qual as pessoas portam-se durante os ritos funerários, no futuro, verte-se em comentários
jocosos ou reprobatórios. Se fulano gritou muito, se seu cocar estava feio, com penas ralas, se levou
muitas coisas da casa ou pedaços de caça, tudo isso é devidamente comentado, mesmo depois de passados
anos.
221
ser parentes ou “não-parentes”; reclamam da mesma forma. Se a pessoa morre de
doença grave, chora-se o morto, mas não pode-se olhá-lo. Senão fica-se doente também.
As coisas do morto são trocadas, dizem que também para não lembrar. Roupas
podem ser trocadas ou dadas. Se tiver filho grande, pode ficar com ele. No rito em
questão, avisaram à família que não desse nada de valor para ninguém, porque pediriam.
Disseram que não “aceitassem”. Poderiam, antes, “trocar”. E muitos trocaram copos,
pratos e roupas por outros novos. Alguns ganham roupas ou alguma outra coisa em
troca de ajuda no roçado.
Artefatos como o colar peitoral, feito de diversas camadas superpostas de dentes
de macaco (principalmente de prego e coatá) ou também feito de dentes de gente
182
dentes de Menky”, como o do –zoziky (FBe) de Geraldino Patamy -, chamado
boatsapu (“dente de prego”), byzoiy (“lua”) ou “meia-lua”, não podem ser enterrados
com a pessoa, se ela o tiver
183
. Dizem que o morto não gosta, “porque coatá, prego, é
gente mesmo, vira gente” (Geraldino Patamy). Este colar deve ficar com os parentes do
morto ou, se eles desejarem, podem trocá-lo com outros parentes. O mesmo acontece
para os que são feitos com dente de gente (mytsapu – “nosso dente”).
Nos depoimentos há sempre a idéia de que estas “trocas” – das quais já falei
anteriormente – acontecem no limiar de verdadeiras “pilhagens”
184
. Do contrário,
ninguém precisaria ser “avisado” de que as pessoas “pediriam” coisas. Lembro ainda
que os “pedidos”, dentro da etiqueta social rikbaktsa (cf. Introdução), são praticamente
um constrangimento a um “dom” que não estaria inicialmente destinado a ser “doado”.
São quase seqüestros dos quais obriga-se o “doador” ao consentimento.
Em certo momento, o morto gritou na estrada e bateu vento (zopoktsa), mandado
por ele. Quando enterraram e escureceu ele jogou “trem pesado, como pedra”, os
cachorros latiam muito. Um homem sonhou e disse que não era nenhum bicho, mas o
182
Para estes utilizam todos os dentes da pessoa, inclusive os mais largos.
183
É bastante incomum alguém ter boatsapu atualmente. Poucos homens sabem fazê-lo, como Geraldino
Patamy (aldeia Pé-de-Mutum) e Abelardo Awi (da aldeia Primavera, conhecido também como “homem
gordo”). Um homem de metade oposta e de outra aldeia viera até Geraldino para que ele o ensinasse a
fazê-lo e esta foi a única vez em que pude acompanhar sua confecção. Mulheres e crianças também
podiam usar o boatsapu. Os femininos poderiam ter fileiras suficientes para que alcançassem o púbis. Dos
masculinos dizem, em tom de brincadeira, que são tão compridos ou largos quanto maior for o peito do
homem. Algumas pinturas corporais feitas com jenipapo, para “guerra”, incluem em torno do pescoço e
no peito um belo desenho que se assemelha ao boatsapu.
184
Sobre isso reparo a ocorrência ou a acusação de que roubos aconteçam durante outros tipos de ritos.
Falando sobre festas, uma mulher rikbaktsa me diz que as “kykyry batu spirikpo!” (Olga Aikdapa) (“as
mulheres não respeitam”) e que quando eram convidadas roubavam coisas da casa, como colares,
furadores, sementes e etc.
222
myhyrikoso do homem morto. No outro dia, estourou novamente. Ouviram um barulho
grande, acham que foi o caixão embaixo da terra. Ficaram quietos.
No dia seguinte da lamentação ele gritou novamente na estrada. Os homens
tinham bebido. Um deles pegou o arco e flecha e foi para a estrada, o -hyrikoso do
morto “subiu”, espera-se.
Muitas controvérsias foram geradas a partir da morte deste homem. Além das
disputas pelo lugar de enterro, os parentes próximos dizem que outros rikbaktsa
pegaram dinheiro que estava com ele e levaram apenas “10 reais” para a família.
Acusam parentes da mesma metade do morto de terem pego o dinheiro e seus
documentos.
Alguns meses após sua morte, Mamita, -zopo do morto e irmão de sua esposa,
sonhou com ele. Ele veio à aldeia Pé-de-Mutum dizendo que não havia morrido e que ia
levar alguém dali com ele. Que todos iam ficar tristes. O homem contou seu sonho e
depois, quando “esqueceu”, ocorreu um acidente com um outro homem da aldeia, que
por pouco não foi fatal. Relacionaram imediatamente ao sonho.
Tudo isso reforça a idéia de que a “lamentação” é, igualmente, “reclamação”.
Pode ser um simulacro de tristeza e piedade, onde se enfatiza a “tomada de partido” do
morto. Não se deixa de querer, com isso, isentar aqueles que estão vivos e que ali estão
a “reclamar”, de culpas ou querelas passadas. Estes, por algum ângulo, sempre poderão
ter causado, pensado ou falado mal daquele que morreu. Ao mesmo tempo, é
ritualmente permitido e recomendado que se fale mal dos vivos. Este tipo de exposição
é completamente não-recomendada no cotidiano e quando por ventura ocorre, aí se
poderá encontrar a origem de homicídios ou ameaças. Desta forma, “responsabilidades”
são apropriada e ritualmente “deslocadas” para outrem durante as “lamentações”, que
melhor se caracterizariam enquanto “reclamações funerárias”, ao menos sob a
perspectiva da família do morto.
Se a “alterização” dos mortos teima em não se completar, para os Rikbaktsa
mortos são tão “outros” quanto “afins” ou “consangüíneos” o podem ser. O fato mais
importante, contudo, é que todas estas posições, algumas de conteúdo, como veremos
(cf. Capítulo IV), bastante variável, são relacionáveis. Congregam-se e ameaçam-se
mutuamente mas também produzem a sociedade dos vivos, que em nenhum momento
configura-se enquanto uma totalidade indiferenciada.
Fica instaurada a importância da "relação" e da "proximidade", em um mundo
onde há transações ativas entre semelhanças e distinções. Um mundo em relação, onde
223
quase tudo parece interagir e ser possível. Robert Hahn, que primeiro compreendeu a
natureza relacional e dinâmica do mundo Rikbaktsa através de suas negociações de
laços de parentesco, nota, apropriadamente, que pareciam crer na possibilidade de
reprodução entre espécies diferentes.
Corroboro com esta afirmação não apenas em seu caráter metafórico e
mitológico, como também naquele efetivamente “produtivo”. Mas talvez fosse mais
adequado reconsiderarmos o caráter da diferença entre "espécies", ou melhor, se a
grandeza da variabilidade que há é capaz de constituir espécies propriamente ditas.
Espécies de gentes, de bichos, de espíritos de mortos, de seres metafísicos, não haveria
entre elas alguma possibilidade de trânsito ou associação?
É uma outra teoria complexa de interação, geração, produção e destruição de
corpos, seres e pessoas em um mundo povoado por sujeitos que abrangem o que
costuma-se compartimentalizar em diferentes reinos, espaços e posições. Um mundo
onde negar tarefas demandadas por adultos pode gerar prejuízos ao nascimento futuro
dos filhos, tanto quanto larvas (wyinypu) que infestam a árvore da qual retiram a
entrecasca para fazerem bolsas para guardar penas (tsanipe) e, dizem, venenos, podem
virar (-zik)
185
peixe jejuno (huruk). -“ tsanipe-wyinypu huruk myzik” (sorveira-coró
jejuno intr.não-pass-virar / “coró de sorveira vira peixe jejuno”) me disse Vicente
Bitsezyk. Isto para não reinvocar o caso dos piolhos de gente e dos nocivos escorpiões,
entre tantas outras metamorfoses plausíveis.
Uma metonímica de corpos e seres evidenciada até nas ocorrências
aparentemente mais simples que podem afligir os corpos e os humores. O simples
“toque” em alguma folha (okyry) que tenha determinadas propriedades poderá transmiti-
las àquele que a tocou. Se meninas novas tocarem na folha (okyryri) utilizada para tingir
o algodão dos artefatos plumários, um corante que deixa fibra com cor púrpura, ela terá
muito sangue (-spu), mentruação (-spu), algo que não é desejado
186
.
Do “brinquedo” (-wakyrijutsa) rikbaktsa que produz um assobio, feito de quatro
ouricinhos estourados de seringa (tapõrõiriktsa), colados com cera de jatobinha
(mytsaik) e atravessados por uma linha dupla de algodão, dizem que se menina pequena
brinca muito o peito fica grande logo e para o menino, o testículo fica grande. Quando
185
my-zik é um verbo intransitivo que denota algo como transmutar, usado para lagarta que torna-se
borboleta, nos mitos para gente que vira porco, tendo-se em consideração ainda, as enormes
possibilidades de que coisas de espécie, à princípio, diferente, possam uma “tornar-se” em outra, idéia
particularmente explorada no Capítulo IV.
186
Remeto o leitor à sessão “A caixa de pandora”, do Capítulo IV.
224
arrancam mandioca (moko) nova, cortam só um pedacinho. Se não for assim, quando
caírem, quebrarão a perna. A castanha deve ser ralada em um ralador de castanheira
(pitsi sarapa), pois o ralador de zinco ou máquina faz os dentes caírem. Dizem que isto
aconteceu a uma determinado homem.
Mas, sem dúvida, a alimentação é terreno privilegiado para contemplar tal
interrelação. Comer arara e papagaios em demasia, garantem, provoca o rápido
envelhecimento, fica-se “envergado”. Citam como exemplo Geraldino e Apute. Se
comem rabo de peixe ficam com preguiça (-dika-), porque o peixe só fica parado. A
mulher não pode comer a castanha do inajá senão a criança fica com nariz entupido. É
assim porque o “narizinho” dele é todo tapadinho. Se comem Tatakau (galinha do mato)
só encontram marimbondo quando vão ao mato, porque esta ave come muito
marimbondo e os entoca para fazê-lo. Também não podem chupar o osso da coxa do
boa (macaco-prego):dói o osso da nossa perna, não consegue andar” (Rosa Naudy).
Demais macacos pode-se chupar sem problemas.
O caso de erupções cutâneas em adultos e crianças é notável neste sentido.
Comentários dos mais comuns são sobre crianças que possuem feridas (mysuk) pelo
corpo e, principalmente, na cabeça.
Feridas são incontestavelmente associadas ao consumo de certos itens tanto pelo
pai quanto pela mãe da criança durante a gestação e também após seu nascimento,
enquanto for pequena. São eles, a carne de japuíra (tsirik) e ovos (-karetsa) de aves
diversas, e ainda mais crus, como os ovos roxos do macuquinho (tsuãra )- estes não se
pode nem pegar na mão e depois passá-la na cabeça da criança -, e também de jaboti
(wiktsabo). Este comportamento alimentar inadequado é descrito sempre em tom de
crítica contundente, como um descuido com a criança que está sendo produzida pelo
casal.
O consumo de ovos é notadamente relacionado a qualquer tipo de ferida
187
. O
efeito pode demorar, mas aparecerá quando a pessoa tiver seus filhos. Os de jaboti, por
exemplo, só podem ser comidos por pessoas mais velhas. Vi uma menina desprezar
completamente os ovos de um jaboti, ao matá-lo, dizendo-me que dá “ferida braba,
furúnculo” (Lucineide Tezok). Isto tanto para ovos de dentro do ventre quanto para
aqueles por ventura vistos pelo mato. Se adultos encontram ovos de jaboti, além de não
187
Certa vez uma mulher contou-me que se ao ouvir o canto de um pássaro chamado Udok ele fosse
imitado, poderíamos também pegar furúnculo, em mais um exemplo da permeabilidade corporal tratada
aqui.
225
comê-los, devem procurar e matar o animal. Crianças são repreendidas até ao brincarem
com estes ovos, o que ocasionaria também feridas. Se crianças comem este ovo, seus
próprios futuros filhos terão feridas pelo corpo e cabeça.
O remédio para a ferida é o wiktsabo okyry, feito da embira uma árvore chamada
tsubita, onde o jaboti costumeiramente fica. Mas se a pessoa experimentou e tem quatro
ou cinco filhos, a partir daí as crianças que nascerem não terão mais feridas, porque o
sangue (-spu) terá ficado bom (tsapyrta). A este respeito, dizem ainda haver pessoas de
cujo o “sangue” não presta, batsisapy, e os filhos ficam cheios de feridas. Um
informante cita uma prima que só ficava doente, mas que ao receber “sangue” da
enfermeira branca, que era “bom”, não ficou mais doente.
O consumo de ovos de tracajá (wiktsabohai), contanto que cozidos, e de sua
carne, contudo, é bastante apreciado, não admitindo qualquer sorte de associação com
feridas e furúnculos. Por outro lado, o tracajá de “pescoço torto” (wiktsabohai-za)
onde o sufixo –za indica que este animal é “como” wiktsabohai, mas “não é”
wiktsabohai; ele tem pintura de onça no pescoço (referindo-se à pele do animal)”
(Rosa Naudy) e onças não são comidas em qualquer hipótese - não é comido, porque
também dá ferida, mas seus ovos são consumidos sem restrições.
Outro ponto interessante são os atributos associados ao jaboti, que indicam com
maior precisão a intrincada correlação entre corpos e seres de que venho tratando.
Nestas passagens veremos como jabotis e até cobras têm atitudes bastante peculiares.
Fazem festas concomitantemente aos Rikbaktsa, feitiços, realizam convites e, em maior
ou menor medida, vingam-se daqueles que, antes, eram convidados potenciais de suas
festas. Cumprem protocolos de socialidade e podem interagir com os Rikbaktsa de
diversas formas e com resultados paradoxais.
A cobra pode matar por seu veneno ou por ser myhyrikoso- qualidade atribuída
mais geralmente àquelas que não são venenosas - e não é animal edível sob qualquer
forma, mas passível de interação, sempre indesejada. O jaboti, cujo o consumo de ovos
e adoção de atitudes inadequadas pode causar graves prejuízos ao corpo, dizem, por
outro lado, que também cuida da pessoa quando ela está doente:
Agente não vê, ele fica embaixo da rede e não sai. Aperta nossa cabeça.
Quando agente sara, ele vai embora. Agente não percebe que ele está cuidando
da gente. Quando ele está enterrado, dizem que está fazendo feitiço. No tempo
de tsõrõrõ (angelim de saia, que marca o início da estação chuvosa), quando a
226
flor do angelim sai, ele sai também. Não pode mexer nele quando está
enterrado, senão ele castiga agente, nos faz ficar doente. Como o sapo (o sapão
wõrõwõroktsa ou sapo das enchentes) também, se agente mexer, ele “castiga”.
Eles pensam como nós (katsa mytsaty-wa), melhor do que nós, “pensa
bom”.”(Vicente Bitsezyk).
Quando chega a época das flores de angelim, estes seres convidam para a festa,
como fazem também os Rikbaktsa, por conta das numerosas festas da estação chuvosa.
Todos os bichos são convidados, tatu, macaco e cobra
188
. O jaboti convida sapo, macaco
da noite
189
. Se alguém não vier à festa será alvo de veneno. Ao acabarem as flores –
época do fechamento das festas da estação chuvosa, entre maio e junho -, quando se
acha macaco morto é que o jaboti convidou-o para a festa e ele não veio; tendo morrido
pelo feitiço do jaboti. Isso acontece apenas uma vez por ano:
Uma vez achei muito macaco da noite morto. Meu –zopo (homem de
metade oposta) disse que era feitiço de jaboti – o feitiço vai só no pensamento,
isto é que é “pensamento bom!. (Os jabotis matam jabotis também? Pergunto
188
Cobras, sem exceção, são myhyrikoso. Não são comidas e devem ser mortas. Há uma variedade de
cobras classificadas diferentemente. Cobras pequenininhas podem cantar – “elas cantam o próprio nome
kõekõetsa” (Vicente Bitsezyk) - quando morre algum velho. Estas cobrinhas voam longe e podem furar a
pessoa. Em uma história, estas cobrinhas são flautinhas para a sucuri (urototok). A Myha ou cobra-cega
avisa mortes que vão acontecer. A variedade que é da cor preta avisa quando branco vai morrer,. A
variedade mais avermelhada, que tem olhos pequenininhos, avisa quando Rikbaktsa vai morrer. Sua
mordida é fatal. Esta não se pode matar. É como aqueles porcos emagrecidos, dos quais se têm a certeza
de serem myhyrikoso. Outras cobras, que não a myha, se pode e até se deve matar. Cobras mortas podem
ser dependuradas no teto da casa dos homens.
189
Há algumas variedades que consideram como macacos-da-noite e a característica central desta
classificação é o fato de serem animais noturnos e, enquanto tais, seres que, sem dúvida, pertencem à
dimensão dos mortos, como myhyrikoso e sparitsa. É importante notar que mesmo macacos diurnos
podem ser sparitsa, ou seja, myhyrikoso sob a forma de animal ou criação dos mortos, o que lhes confere
propriedades idênticas aos próprios mortos. Os macacos noturnos, apesar de diferenciados, integram
juntamente com outros animais noturnos, a categoria myhyrikoso/sparitsa e não são comidos de forma
alguma. Têm por eles o temor do encontro. É esta a idéia que associam à expressão “macaco-da-noite”.
Embora possam variar de acordo com informantes, citam o Boazatatsa, que também é sparitsa – “anda
no chão, é igual a prego, mas não é prego, ele é branquinho, cara igual à de bicho. Ele “leva” a gente e
mata e come a gente, não devolve não” (Vicente Bitsezyk). Pode encontrar a pessoa quando ela está
sozinha no meio da estrada (ske , trilhas dentro da floresta). Enche a boca dela de folhas de árvore e a leva
para a casa dele, no oco da pedra. Pode-se sonhar antes com ele e depois encontrá-lo. Há também o
Unoboatsa, “macaco prego da noite”, “que come agente, gosta de tempo de lua cheia. O sol brilha para
myhyrikoso quando é assim” (idem). Também integram a este conjunto o tsidik, um pequeno macaco
noturno e o akwany, citado por todos com temor por subir nos puhos das redes à noite e chupar o sangue
da pessoa.
227
eu.) O jaboti não mata “companheiros” (outros jabotis) só outros.” (Vicente
Bitsezyk)
Vicente contrasta imediatamente o jaboti com a cobra:
A cobra também é assim. Tem a cobra venenosa e a que não é
venenosa. A cobra venenosa morre e a que não é venenosa come ela, come de
uma vez. Cobra também convida seus companheiros (outras cobras), se
companheiro não vem, quando acaba a festa, caça o companheiro e mata.
Cobra não, (comparando-se com o jaboti) mata companheiro, briga, mata e
come de uma vez. A cobra venenosa é que morre, a que não, não
myhyrikoso). Agora está chegando a festa dela, fim de abril até metade de maio,
quando acabam as flores do angelim de saia, ai acaba, elas voltam para o seu
lugar.”
Este trecho bem o demonstra o mundo ativo e interativo também habitado pelos
Rikbaktsa. Como vimos, se as festas de cobras e jabotis acabam, não se extingue aí a
possibilidade de encontros e da relação.
228
SOBRE O XAMANISMO E A COMUNICABILIDADE DE SERES E CORPOS
As proximidades entre as distinções que muitas vezes tomam a aparência de
ambigüidades, não estão apenas na classificação dos seres, nas relações e posições
sociais mas apresentam-se consistentemente também no difundido xamanismo. Ele não
é muito mais do que estes casos de cura, feitiço e de saber relacionar-se aos mortos,
sendo mais um importante artifício tanto quanto insumo na sofisticada e vulnerável
micro-política contínua da qual depende o socius Rikbaktsa.
Muito foi dito na etnologia sul-americana acerca da visão e do relacionamento
peculiar que os xamãs têm de mortos e caças. Propositalmente enfatizo um outro
aspecto das relações entre mortos e socius, aquele que se realiza no cotidiano rikbaktsa,
que atinge os “homens comuns”, digamos assim, e que constitui um mecanismo
fundamental de produção de pessoas, seus corpos e de seu socius. Venho tocando
apenas tangencialmente na questão do xamanismo, de maneira pouco profunda porém
constante. Não porque ele não seja importante, mas me pareceu ser tão disseminado
quanto também uma potencialização com relativo maior êxito de toda esta ética “socio-
corporal”, que é sobretudo cotidiana, e que é o objeto central desta tese. Talvez por isso,
Christinat, que visita os Rikbaktsa na década de 60, apesar de ter reparado o extenso uso
que faziam de plantas e raízes declara que os xamãs não existiam (Christinat 1963:14-
15).
Se xamãs são consultados frente a infortúnios ou à morte de alguém, lembro que
nem sempre isto será necessário, pois que as próprias vítimas poderão testemunhar a
visão e o contato dos mortos que lhe causaram ou tentaram lhes causar algum tipo de
dano, à exceção de quando as pessoas desaparecem. O “esclarecimento” do xamã parece
mais necessário nos casos de feitiços e homicídios praticados entre os póprios vivos.
Evidentemente, esta informação não deixará de alimentar as cadeias de vinganças entre
vivos e mortos.
Aquilo que define alguém enquanto um xamã é o conhecimento de substâncias,
suas combinações e efeitos sobre o corpo/pessoa que, se advindas de folhas, raízes e
caules, são normalmente referidas enquanto “remédios-do-mato” (okyry). Este termo
designa uma variedade de substâncias, utilizadas para os fins mais díspares e segundo
preparações diversas. Podem ser feitos chás, aplicações tópicas da folha inteira ou
triturada, chás, misturas raladas, banhos ou queima das folhas embaixo da rede do
doente, de modo a que ele possa inalar os vapores produzidos por esta via.
229
O princípio dos okyry, que propicia suas propriedades, usos e contra-usos, é a
mesma intercomunicabilidade de seres e coisas sobre a qual venho insistindo. Esta
relação constante opera através tanto de qualidades “sensíveis” como também sobre
nexos “orgânicos” atribuídos entre seres e coisas. Não é diferente das noções que
determinam que, para o espinho de bagre, deve-se esfregar no ferimento o olho do
próprio bagre ou areia onde ele se enterra: como dizem em português, este é o “remédio
dele”.
Em alguma medida os okyry relacionam-se a características sensíveis que
atribuem às próprias folhas ou raízes – como seu formato ou aspecto – ou a animais em
sua relação com a flora. Para cada okyry que gere um determinado efeito haverá outro
que seja capaz de causar um contra-efeito. O apurado conhecimento destas propriedades
e combinações já é suficiente para caracterizar alguém como xamã.
Os okyry operam a cura de doenças propriamente ditas, tanto no sentido
“ocidental” quanto “nativo” do termo, coisas que, como vimos, acabam muitas vezes
por confundir-se nos itinerários de adoecimento e da morte
190
. Neste mote inclui-se a
provocação de efeitos desejados por alguém em outrem, efeitos estes que podem vigir
sobre diversos aspectos da pessoa e ser utilizados para fins diversos.
Desta forma, os okyry são capazes de influenciar uma gama de processos
corporais/pessoais, causalidades de doença e operação de curas. Na mesma “classe” das
coisas que curam, contudo, há aquelas que podem causar debilidade e que podem ser
administradas sem o conhecimento da pessoa.
Quando se anda com o xamã pelo mato, tem-se que andar devagarzinho, senão
“perde-se” o okyry(-hokda). Não se pode ter pressa ou brincar enquanto ele identifica os
remédios. Às vezes marcam com galhos quebrados os okyry mais importantes. Não se
pode ter pressa ou brincar.
Há o okyry para criança nascer sem cabeça, o harayke okyry. O boa okyry (okyry
de prego) é usado apenas pelos velhos que não têm mais filhos, para que conservem o
vigor sexual. Dizem em tom jocoso, que usam quando irikdo nira! (“seu pênis
morreu”). Há o que é aplicado como “castigo” a alguém para que a mulher tenha filhos
190
Estes tratamentos podem também conjugar-se com os cuidados dos “brancos”, mas há casos em que as
pessoas são deixadas exclusivametne aos cuidados dos xamãs. A certo ponto da doença, não permitem
mais que a pessoa seja levada para a cidade. Este é o caso de uma mulher jovem da aldeia da Curva.
Vicente Bitsezyk diz que ela não fica boa nunca. “Ficou variada (-kedepyk), escuta choro de criança”.
Em outra ocasião, um xamã disse-me que os remédios de branco não resolvem e reclamou dos jovens
aspirarem à condição de “enfermeiros” (agentes de saúde indígena) (Amawi, conhecido também por
Kapadrasto).
230
gêmeos ou três filhos (cf. Capítulo IV). O wiktsabohai okyry é para a criança que “
caga” e se chama assim porque a folhinha dele é igual ao casco do tracajá.
O bitsik okyry (okyry de tucano) é usado pelo homem para tomar banhos, quando
ele está “normal” e quer ficar “forte” (-paik). Há muitos remédios “fortificantes” para os
homens. Tomam banhos com o umura okyry e também com o Tsamydoho okyry (okyry
de tatu canastra) para engordar (-bobo) e também ficarem fortes.
Uma variedade de okyry faz com que crianças possam engordar (-bobo).
Também há okyry para escolher o sexo da criança que se deseje gerar. Para se ter filho
menino ou menina usa-se folhas diferentes de uma a mesma planta, cada qual com uma
forma específica. Aquela que é comprida propiciará filhos homens e a mais curta,
meninas. A folha deve ficar embaixo da pessoa, que deve permanecer quieta e sem
balançar na rede. “Quando a gente esquece, já pega o filho” (Rosa Naudy), pode ser um
ano depois ou mais tempo.
Há também o baraziza ujata okyry, para quando alguém está variado, meio
doido (-kedepyk), um efeito possível do encontro com os myhyrikoso. Deste usa-se a
raiz e não a folha. Passa-se no corpo e depois toma-se banho. Há um okyry para pessoa
“murchar”. A folha é toda murcha e a pessoa fica “só couro” (-piak zyba). Há também
folhas “alegres” da mesma planta, ainda viçosas. Estas não se pega, pois não operam o
efeito desejado. O Piku okyry (“remédio” de anta) se dá quando a pessoa anda e só vira
o pé. O myharek sakisakihuiwy okyry, curou a família de um homem, que sofria de
horríveis dores de cabeça e da sensação de ferroadas de bichos pelo corpo.
Indicaram um okyry para quando a criança está demorando a nascer, um dos
grandes infortúnios para as mulheres e as crianças rikbaktsa. Chama-se ereme-a
towahokta okyry (okyry de embira de rabo de coatá
191
). Esta planta tem uma embira que
vai enrolando como rabo de coatá, mas que serve de corda de arco, esticando-se. Toma-
se o chá deste cipó. O próprio xamã pode tomar o parinitsapu paha hui (madeira de
onça), usado contra o medo (-pyby), quando ele se sente seguido por onças e outros
myhyrikoso e têm medo.
E segue-se por aí com uma infinidade de outros okyry mais “ortodoxos” - para
pneumonia, anemia, dor de garganta e etc – que mereceriam um estudo à parte.
191
Veremos no capítulo IV como homens e mulheres que estão em idade reprodutiva evitam comer rabos
do coatá e de outros macacos que enrolam o rabo, por conta de dificultar tanto a concepção quanto o
nascimento da criança.
231
Desta forma, okyry servem a uma amplitude de efeitos. Podem ser administrados
para que alguém fique “forte” ou “murcho”, para que se produza o sexo dos filhos ou
para que alguém só queira ter relações sexuais o dia inteiro. Todas estas substâncias que
advém de arbustos e árvores são chamadas okyry. “Remédios” nativos, em geral, podem
ser referidos também como –huiwy
192
.
Há ainda outra classe de substâncias poderosas e letais advindas de folhas mas
também de outras matérias, também utilizadas por xamãs, como penas, sementes e
coisas não identificadas por ninguém, que classificam como “veneno” (myrawy).
Alguns okyry podem também ser referidos enquanto myrawy e, na verdade, como
pudemos acompanhar por uma rápida passagem pelos usos dos okyry, não há tanta
distância entre um e outro. Pertencem ambos a uma mesma “ciência” das combinações e
dos efeitos intentados pelo xamã ou outro que conheça algo acerca destas propriedades
e será uma questão de ênfase ou desejo dele aplicar estas substâncias de uma ou de outra
forma.
Desta maneira, a idéia de “veneno” é completamente interligada a certas noções
de morte, feitiço, doenças e ao ofício dos xamãs. É notável o polimorfismo para
expressar a idéia de morte. Pode-se dizer sakibyryryk, “ressecar a boca”, natabezeta,
“ser morto” (quando, por exemplo, se é atingido por um pau ou outra coisa),
nihyrikosozata, “tornou-se alma, almou-se”, hinipў “dormir” ou tão somente pў,
“terminar”.
Contudo, observo relações interessantes entre um determinado termo usado para
referirem-se à “morte” ou “morrer” - aqueles que incluem o radical “ra” - e o que se
traduz como “pagé”, “veneno” e “doença”. As correlações morfológicas apontam para o
fato de que estas propriedades e estados partilham de um mesmo nexo de definição e
causalidades. O -ra remete à etiologia das doenças e pode ser tido, a depender de sua
afixação, como sinônimo de “adoecimento” como também de morte “definitiva”.
Assim, um modo muito empregado para também referirem-se à morte é ni-ra;
“3sg. intrans. pass.(teve)-ra”/“morreu” ou my-ra-ka(cont.)1sg. intrans. pres.(tendo)-
ra” “estou morrendo”. Para “veneno”, vimos que temos –myrawy (ka-myrawy/1sg-
veneno “meu veneno”), sendo ra-wy (ra-nom) “coisa de causar ou associada a ra”. Por
192
Este termo pode carregar uma possível associação com “pau ou madeiras” (hui), embora a gramática
oficial nos diga que o sufixo nominalizador –wy (“coisa associada com”), deva ser aplicado somente a
“verbos”, como por exemplo em “agulha”, wowo-wy, onde -wowo (“furar”) e –wy (nominalizador, “coisa
de”). No caso de “hui” o nominalizador adequado seria o –do, como acontece, por exemplo às
“narigueiras” rikbaktsa, tsunu-do ou tsunu-dodo, onde –tsunu (“nariz”) e –do (nominalizador, “coisa de
“).
232
sua vez, da doença se diz ka-myrawy-tsapywy “1sg- veneno – doído”; “(estou doente)
meu veneno doído” ou ainda –ra i-zomo-ko ra 3sg-chegar-cont”; “(estou adoecendo)
ra” está está chegando”.
A doença, o feitiço, o veneno estão definitivamente interligados e indicam que
há etapas, desde a sua aproximação e ameaça até sua instauração completa, que podem
culminar na fatalidade. Vimos anteriormente como a doença e a morte só podem ser
descritas através de um somatório de eventos e causalidades que se dão no tempo,
afastando-se completamente da noção de serem fatos isolados ou pontuais (Langdon
2003:97).
Neste caminho, feitiços juntavam-se a descuidos pessoais, “sustos” e até a
doenças conforme foram classificadas pelos brancos e que foram incluídas neste sistema
de causalidades múltiplas (Langdon 1994:136). Desta forma, o adoecimento inclui
também eventos diversos daqueles usualmente associados à “doença” em termos
biomédicos. Remete a uma “construção sociocultural e subjetiva” (Langdon 2003:96),
onde a experiência do indivíduo é uma importante aliada de noções nativas partilhadas
(cf. idem:96, 99; Langdon 1994:115).
Estados de “sonolência”, “cansaço”, “susto” ou o “sonho” propiciam interações
ou intervenções de myhyrikoso como potencializam os efeitos do “feitiço”. Tudo isto
poderá estar relacionado na explicação de “ataques” (cf. Introdução), doenças e mortes,
a depender do contexto e também de quem é o ouvinte:
O pai de Domingas (homem makwaraktsa) morreu assim (de “susto”).
A filha mexeu na bacia, ele se assutou de repente e morreu. Estava fraco.
Comeu arroz separado no prato, na casa de Tropeiro (homem hazobiktsa), da
aldeia Beira-rio, que nunca ofereceu nada. Antes ele foi em Boera. Passeou
com Ana (sua última mulher). Tomou chicha enganado, enfeitiçado com cólicas
por Sykmy (homem makwaraktsa, muito próximo a Zapemy). Envenenou ele.
Depois que faleceu disseram (os xamãs). Aqui ninguém faz isso (refere-se à
aldeia Pé-de-Mutum). Só lá na Beira (aldeia Beira-Rio). Sykmy é feiticeiro. Ele e
sua mulher não gostam de parente. Zapemy (o homem em questão) ficou muito
mal e morreu assim que encostaram no porto para ir para Juína, na Primavera.
Assustou com a filha, aí piorou, vomitava sangue. Comeu arroz envenenado.
(Silvia Tapyk)
233
Prossegue, “antigamente, na maloca, os homens faziam feitiço para as mulheres que
não queriam namorar. Jogavam praga e a mulher morria” (Silvia Tapyk).
Xamãs serão, desta forma, os “donos” dos “venenos” (myrawy-tsihitsa). Frisam
que para se envenenar alguém não é necessário falar com sparitsa
193
. Assim, pode-se
dizer que fulano ou fulana fala com os mortos, com sparitsa e myhyrikoso, que são
capazes de fazer viver novamente um morto, mas isto não desautoriza àqueles que
“apenas” lidam com substâncias e não falam (ou dizem não falar) com mortos, da
mesma forma que aqueles que não se utilizam (ou dizem não se utilizar) de seus
conhecimentos para “envenenar” outras pessoas. Qualquer uma destas modalidades ou
aspectos do xamanismo não deixará de vincular-se a alguma medida de “poder”
(Langdon 1996:27) e isto acontece dentro de limites e concepções caras à
sociocosmologia Rikbaktsa (idem:23).
As divisões clássicas entre modalidades de xamanismo, como entre “xamãs” e
“feiticeiros”, que enfatizam limites e diferenças entre suas práticas, interpenetram-se no
discurso rikbaktsa sobre o xamanismo. Não há palavras para diferenciar práticas
xamânicas, admitindo-se que, embora haja apenas um mesmo princípio para estes
campos de atuação, há distinções e status diferenciados. Estes “especialistas” irão lidar
com um mesmo universo ou, dependendo de sua alçada, com “sub-universos” que
estarão contidos em um universo maior.
Assim, em primeiro lugar, é preciso conhecer a ciência das substâncias, de suas
combinações e de seus efeitos, da qual “venenos” (-myrawy) e “remédios” (-huiwy) são
saberes diferentes, mas que a integram igualmente. Junto com isso está a capacidade de
sonhar adequadamente, ver claro no sonho e sonhar, acima de tudo, sem que isto
redunde em infortúnios para si. Tudo isso requer graus de relação com mortos/ animais,
mas que dependerão das habilidades de cada um. Entretanto, se um xamã fala com
mortos isto significará que ele também possui a ciência das substâncias. Esta relação
mais constante com seres metafísicos é, inclusive, parte do desenvolvimento daquela
ciência, um modo de ampliar seu conhecimento e sua efetividade, pois saberá quem fez
“feitiços” ou está a vingar-se e quais são os “remédios” adequados àquelas situações,
estando estes “agentes” “vivos” ou “mortos”.
193
Uma expressão que ouvi foi “Harãmyzo iwahorowytsa, o que significaria algo como como “aqueles
companheiros da casa do pai de harãmy Não posso asseverar sobre o significado desta tradução,
principalmente no que concerne a “harãmy-zo”, sendo harãmy os indiozinhos metafísicos de que já tratei,
não tendo nenhuma outra menção, em mitos ou em meus “dados” a qualquer tipo de “pai”. Talvez esta
seja uma forma genérica para se referirem ao mundo dos myhyrikoso, mas nunca ouvi esta expressão em
outro contexto.
234
Com relação aos indivíduos que “curam” e “àqueles” que jogam veneno, há um
estado permanente de dúvida, pois podem confundir-se em muitos momentos. Xamãs
que são curadores reconhecidos e que falam com “mortos” podem eles mesmos vingar-
se ou reparar alguma considerada impropriedade cometida ou ter seu relato como
subsídio para tal. De uma mulher que estaria tendo relações amorosas com vários
homens, suspeita até de “envenená-los”, diziam que lhe aplicaraim uma espécie de
okyry, como “sanção”.
Uma mesma prática pode ser “aprovada” ou “desaprovada”, a depender de seu
contexto de aplicação. Isto amplia sobremaneira o espectro de indivíduos que podem
aplicar “substâncias” enquanto “venenos”, incluindo, ao lado dos reconhecidos
“feticeiros” (xamãs que não curam e só envenenam), aqueles que sabem e demonstram-
se solícitos em curar pessoas. Hesitações tais, sobre a natureza daquilo ou de quem se
está lidando, ultrapassam o âmbito do xamanismo – veremos isto especialmente nos
capítulos IV e V - constituindo desafios cotidianos que impulsionam mas não deixam de
intensificar tensões no socius.
Quando é o caso, a relação entre xamãs e mortos ou outros seres metafísicos,
embora particularmente próxima e menos arriscada, não acontece sob o controle
absoluto dos primeiros. Contam que certa vez um xamã foi fazer “pipi” à noite e os
sparitsa brigaram com ele. Colocam folha
194
na sua boca, como fariam com qualquer
outro rikbaktsa:
“Depois eles trazem até à casa, cada um carregando, na perna, na
cabeça e fazem massagem para ele “voltar”, só para judiar”. Aí, na manhã
seguinte ele melhora.” (Vicente Bitsezyk)
É certo, contudo, que quem não é xamã não pode ver como ele. O xamã pode ver
e falar com mortos segundo sua capacidade e vontade. Ele “conhece remédio, passa no
corpo, aí ele sabe” (Vicente Bitsezyk).Quando alguém mata a mulher, ele descobre,
ele sabe ver” (Vicente Bitsezyk).
As visões que os não-xamãs têm não podem ser voluntariamente provocadas.
Devem, ao contrário, ser evitadas tanto a visão quanto a interação, a conversa. Contudo,
194
Sparitsa e myhyrikoso colocam “folhas de coco” (tsawaratsa) na boca das pessoas que capturam, à
moda da caça. Os Rikbaktsa fazem algo semelhante com a anta. No corpo do inimigo colocam embira
(penoro). Dizem que sparitsa enche a nossa boca de coco apenas “para judiar”.
235
diz Vicente, “se você também não é pagé e sonha bem clarinho, também pode
descobrir que (alguém) não morreu, foi “matado
195
.
Saber sonhar, como no caso do xamã que sonhou com a aproximação dos Cinta
Larga, é um atributo essencial. Como acontece aos demais rikbaktsa, o sonho é um
modo central de interação com myhyrikoso e com os sparitsa. Deste modo ele pode
descobrir de homicídios a remédios. Vicente diz:
sparitsa vem no sonho, conversa, acompanha no mato, dá comida
196
. O
sparitsa é companheiro do pagé (...) Ele é que manda. Quando chama eles, os
sparitsa, eles vem, obedecem a ele, agora nós não, encontra fácil”
Um companheiro um tanto ambígüo, pois esta relação, como qualquer outra do
socius rikbaktsa, não é estável. O paradoxal da narrativa de Vicente é que ela nos dá a
entender que, por não terem a habilidade xamânica, os “não-xamãs” encontram muito
mais com os sparitsa. Ao xamã é dado “controlar” a freqüência e o propósito destes
encontros.
É atitude tão cautelosa quanto adequada “relativizar” a “autoridade” do xamã
sobre tais seres. Seu poder estará sujeito a reversões em momentos tidos como de
fragilidade, como “fazer pipi” sozinho à noite sem lamparina e desobedecer outras
recomendações, como por exemplo, as alimentares. Também são muito comuns os
casos em que o xamã é agredido pelos mortos.
O xamã daquela história a que me referi há pouco sofreu muito, segundo
Vicente. Brigou com sparitsa e finalmente morreu, “foi levado”. Gostam de dizer que
agora só há xamãs que curam doenças. Aqueles que chamam sparitsa não existem mais:
não tem para chamar sparitsa, tem só bom, para saber como a pessoa morreu, falar
com a família” (Vicente Bitsezyk).
O aprendizado inclui queimar a palma da mão no prato de barro (mypewy) ou na
pedra de beiju (-rikpe)
197
, para ficar “leve, sonhar claro”. ka-tsyhyry (1sg-mão)
195
É adequado dizer que, como observou Lagrou (1996) para os Kaxinawa, todos que sonham partilham,
em algum grau, do atributo xamânico (idem:207-208). No caso Rikbaktsa que, à diferença dos Kaxinawa,
não fazem uso de bebidas fermentadas ou rapés, os “sonhos” têm ainda maior peso na mesma medida em
que diluem as diferenças entre “xamãs” e “não-xamãs”.
196
Este é um ponto interessante. “Dar comida” é etiqueta de relações entre pagés e “mortos”, sob todas as
sua formas pessoalizadas ou não, como sparitsa e seres metafísicos. Etiqueta esta que muito se aproxima
daquela cotidiana e ritual entre anfitriões e visitantes.
197
Isto lembra o procedimento de aprendizado xamânico Yawalapití, onde o aprendiz deve submeter-se,
entre outras experiências, a segurar cacos de cerâmica incandescentes (cf. Viveiros de Castro 1977:231).
236
niyuhuwatsikta, como dizem, é “tornar cozida” a mão. Mulheres que fizerem isto não
serão mais capazes de terem filhos, assim como rapazes novos. Neste sentido, xamãs
que falam com mortos devem ser, prototipicamente, velhos e velhas. Lidar com coisas
perigosas parece ser sempre “esterelizante” para os Rikbaktsa. O perigo, o risco, incide
na capacidade de gerar, ou de gerar adequadamente novos seres.
O que se almeja é sonhar e ter a “sombra” ou “espírito” (-hyrikoso) sobre
controle, para ir onde quiser. Quando se é capaz de “sonhar claro” é como se fosse de
dia. O -hyrikoso (sombra) sai, anda, vai longe. Para tal, não se pode comer comidas
pesadas” (myrikoso-byi-tsa), como anta, macaco, mandioca e banana. Comidas “leves”
(myrikoso-tsa), como banana ourinho (tomado ipekpyrykta), peixinhos pequenos e
chicha de frutas podem ser comidos. Mesmo assim, frios. “Aí a gente sonha bem. (...)
Mypubyi-ty mykozo (‘vê claro”) (Vicente Bitsezyk). Se os alimentos são ingeridos
quentes “queima (a sombra) e não sonha mais, hyrikoso koroba (queima
completamente)”.
Não presenciei sessões xamânicas. Elas, de fato, não são muito comuns e só
acontecem em casos extremos. Na maioria das vezes o xamã sonha e depois faz as
recomendações particularmente a tal ou qual pessoa.
Acontecem sempre à noite. Durante a sessão as pessoas não devem andar pela
aldeia porque há muitos “sparitsa, corujas, espíritos” e então aumentam as chances de
encontrá-los. Por esta razão é importante que todos façam pipi antes, para não
precisarem ir ao mato, o que seria igualmente perigoso.
Muitas pessoas podem permanecer junto ao paciente, que pode ser também mais
de um, mas todos ficam em apenas um local. Deve haver, contudo, muita disciplina por
parte da “assistência”. No Escondido, “sparitsa jogou Roberto” (Cleidenaura Tsakta),
porque ele não queria se sentar. Kapadrasto, que atuava como xamã, ficou bravo.
O xamã passa toda a noite com o doente (zik-kykpy/1sg.obj-adoecer/
“adoecido”), faz massagem, “procura” a doença (myrawy). Uma menina que recebeu
tratamento em uma destas sessões me diz que dói bastante. “Ele puxa a doença, arranca
e mostra” (Cleidenaura Tsakta). Nas sessões xamânicas a coruja – sazo, tida como
criação de myhyrikoso - canta pertinho. Os sparitsa acompanham o pagé. No dia
seguinte todos vão ao mato. O pagé mostra remédio e eles apanham (não ele).
Quando falávamos sobre um homem reconhecido como “feiticeiro”, remeteram
ao caso da filha de Bibitata, que estava doente há uma semana. Um xamã fora até ela
para consultá-la. Tinha pneumonia, dizem. Ele fez massagem na menina e tirou a
237
doença dela (uma “massa” perto do pulmão). Ela ficou branca. No dia seguinte ele fez
consulta de novo e ela sarou. A doença poderá ser também “retirada” da pessoa. O xamã
a retira e mostra, dizendo que retirou a doença que estava dentro da pessoa: “nawahi
(afirmativo) myrawytsapui (“doença”) -ke (“dentro”)! / Eis a doença de dentro!
É comum dizerem que o branco pode descobrir a “doença”, mas não cura a
pessoa. Acaba só com a dor ou sintoma
198
. Um tempo depois, tudo retorna. A pessoa
aparece com a mesma doença. Com o xamã isto não acontece. Tira a doença
definitivamente, fala o que é, mostra o remédio e a pessoa fica curada. Podem ser
necessárias várias consultas.
Os xamãs não utilizam qualquer artefato ou indumentária específica para as
sessões. Durante o atendimento o paciente não tem sensações diferentes. Ou seja, não se
fica tonta ou vê escuro, como no caso dos contatos diretos com os myhyrikoso. A casa
onde a sessão acontece não pode ter paredes de táboa, só de palha ou plástico. Na aldeia
Pé-de-Mutum há uma choupana sem paredes que foi utilizada em uma destas sessões
199
.
Para a sessão a choupana dever ser parcialmente fechada, mas não com madeira, apenas
com palha
200
ou também plástico, embora as pessoas possam se sentar em táboas de
madeira. Os xamãs fazem massagens e podem passar fumo(wotsyk).
Outra técnica é pressionar mãos e sobretudo pés descalços e com barro no local
onde o paciente aponta a dor. Isto pode ser feito por algumas pessoas que, embora não
reconhecidas enquanto xamãs, têm algum conhecimento, como eventuais “visitantes” de
alguém que está adoentado. Vi isto acontecer com duas mulheres que, em momentos
diferentes ao longo do dia, adentraram à casa onde uma mulher estava doente na rede há
dois dias, sem comer e mantendo a porta fechada.
Quando os xamãs “tiram” a doença, cantam para que ela não “volte”. Ele
pergunta à pessoa onde ela sente dores ou incômodos. Ela responde, mas deve falar
198
Vicente Bitsezyk, conhecedor de muitos okyry e apontado por outros como xamã, ainda que não tão
experimentado, diz que as doenças vêm da “bóia do branco”. Todas as coisas doces são culpabilizadas:
muito açúcar que as crianças comem. Bala, picolé – todos os “trem” doce. Por esta razão, antigamente,
quando não tinha branco, o corpo não doía. Só agora isso acontece e é por causa da alimentação,
principalmente do açúcar. No próximo capítulo há´o registro de que uma aldeia inteira morreu por conta
de açúcar envenenado pelos seringueiros. Em outra ocasião, ouvi um homem dizer que durante os ritos,
quando comem apenas da sua comida (dizem comida “natural”, em português), ninguém adoece.
199
Observo que em outros momentos esta casinha, que dizem ser também mykyry, foi utilizada para
“arrasta-pés”, festas feitas pelos mais jovens. Também pode ser usada no cotidiano para descanso de
alguma tarefa. (cf. Anexo 4)
200
No mito que tematiza a vingança do gavião-real sobre a sucuri, há a idéia de que os convidados
ficaram desesperados quando a situação da vingança era iminete e começaram a tentar escapar da casa de
todas as formas. Tentavam sair até pelo barrote da casa. Alguns “peixes-convidados” conseguiram fazê-lo
mas trazem hoje a marca de terem passado pelos barrotes, são peixes sem muita carne.
238
muito “devagar” e baixo. O próprio xamã deve ser muito sutil em seus movimentos e
falas, pois qualquer descuido ou ato brusco poderá ser fatal.
Após a sessão xamânica devem ser observadas uma série de regras relacionadas
à alimentação, para que a doença não retorne ou se tenha prejuízos ao corpo. A pessoa
fica “fraca” (-kubyri) por algum tempo. As recomendações são análogas àquelas
observadas em outros processos “corporais”, como escarificações e tatuagens. Não
podem comer gordura (-tutã) e algumas caças devem se evitadas, senão a doença volta.
Alimentos quentes ficam proibidos. A comida deve ser ingerida bem devagar durante
todo o tempo de tratamento.
Como nos demais processos corporais, a cura xamânica submete-se a reversões e
insucessos. Para que chegue a bom termo será necessária a concorrência do próprio
paciente no tempo. Mesmo a qualidade de ser xamã é algo reversível, sujeita a medos,
agressões e vulnerabilidades às vezes tão comuns quanto aquelas às quais os indivíduos
que não são “xamãs” estarão submetidos. Conhecimentos e experiências que são da
alçada do xamã poderão ser também partilhados com outros não-iniciados
Como já foi dito, e aqui insisto, entre os Rikbaktsa não é preciso morrer ou ser
xamã para se "ver", por exemplo, como um morto. Isto acarreta alterações "corporais"
obrigatórias, mas que podem ou não ser fatais e permanentes, como a doença seguida de
morte ou o desaparecimento do corpo por completo. Aqui não há “transladação” sem
que haja “transformação” e nem o contrário (cf. Sàez 2004:244), mesmo que estas
operações não ocorram senão parcialmente.
E transformações as há também cotidianamente, seja nos sonhos, na
alimentação, nas atitudes sociais, nas posições dos indivíduos (cf. Capítulo IV). Mediá-
las e dirigi-las é o grande dilema da vida Rikbaktsa. Não há xamã capaz de resolvê-lo
definitivamente ou sozinho, ou seja, sem a concorrência dos próprios indivíduos no
cumprimento de recomendações que eles tão bem conhecem, porque quase todos já
viram o mundo com “outros olhos”.
A organicidade de sua macrocosmologia é aquilo que vem iluminar e diluir esta
espécie de ambidestria social, que contraria e permite a continuidade sempre alterada do
coletivo. Neste sentido, do ponto de vista do socius Rikbaktsa, o corpo dos vivos é um
lugar primacial de articulação de domínios múltiplos. Ponto de fuga de concretude
notavelmente fluida porque potencialmente interpenetrável na experiência diária pela
ação, desejo ou substâncias de todos os tipos de seres que habitam o cosmos Rikbaktsa,
incluindo-se outros humanos como parentes e não-parentes, convizinhos ou não.
239
Entre os Rikbaktsa, o parentesco ou uma dada noção de parentesco como
“humanidade”, “proximidade” e “convivência” não é capaz de, sozinha, definir ou
construir o corpo dos vivos ou ser responsável pela partilha de uma única e determinada
perspectiva de se "ver" o mundo (Souza 2003:13, 15,16), ou seja, aquela que é a
"humana" (id.:ib.). É porque o corpo jamais encontra-se definitivamente construído e
está em constante risco que pode também admitir perspectivas diversas sobre o mundo,
partilhá-las, em algum momento, com outros tipos de seres, sem que a “humanidade” –
sua perda ou aquisição – esteja em questão.
Se, contudo, dissociamos o “parentesco” daquelas noções de “proximidade” e
“convivência”, que sem dúvida contribuem para seu estabelecimento mas têm também
outras implicações na cosmosociologia rikbaktsa
201
, admitindo ainda uma diversidade
de graus dentro deste conjunto, arrisco-me a dizer que chegaríamos a algo muito
próximo do fugidio sentido Rikbaktsa de humanidade que aqui venho tentando
transmitir. Assumido este risco, os “humanos” não seriam, então, exclusivamente os
“vivos” ou os Rikbaktsa, mas os seres com os quais se partilha uma relação de alguma
“proximidade”, independente do sentido e do “valor” que ela tenha.
Por outro lado, o morto não apenas é dono de uma dada perspectiva, como
poderá simultaneamente dominar a perspectiva que os vivos têm dele e do mundo e
vice-versa. Assim alguns vivos, xamãs e não-xamãs, poderão também fazê-lo e, assim,
resistir às intervenções dos mortos.
Diferenças e semelhanças não-privativas costuram todos estes seres e domínios.
O feiticeiro não é prototipicamente o “de fora”, o “estrangeiro” ou o “afim”, mas
aqueles que privam dos contatos mais íntimos. Desta forma, como proceder quando a
inimizade singra o parentesco e a convivência, sendo o parente dito afim ou
consangüíneo e estando ele vivo ou morto?
201
Algumas, como tenho demonstrado, de certa maneira, contrárias aos esforços “organizatórios” do
próprio parentesco (cf. Lévi-Strauss 1993:367-368). Remeto o leitor também ao próximo capítulo.
CAPÍTULO IV
DISPUTANDO CORPOS, CONSTRUINDO O PERTENCIMENTO
Fiquei à procura de grupos que
trocassem mulheres, mas tais grupos não existem.
Existem pessoas.”
(Mellatti 2002:193)
A IMPORTUNIDADE MODELAR
Ao invés de recorrer a intrincadas equações de um modelo formalmente lógico –
aproveito para advertir, se ainda não está claro, que este não é meu objeto - permito-me
explicar mais alguns aspectos sobre a sociologia Rikbaktsa através de uma passagem
que, tenho certeza, não é original ou particular. Sua apresentação é um pouco longa,
mas julguei ser esta a forma mais adequada de expressar um certo “tom” de sua
organização social. Principalmente, se a consideramos sob uma perspectiva que
interessa particularmente ao problema etnográfico que venho tentando formular até
aqui: aquele da relação íntima entre a instabilidade de categorias e posições sociais e
cosmo-ontológicas e a permeabilidade de corpos que estão sempre a construír-se,
arriscar-se e disputar-se entre os próprios Rikbaktsa e, notadamente, entre estes e uma
série de outros tipos de seres ativos. Um mecanismo que, combinando cosmologia e
sociologia, acaba por corresponder ao exercício dinâmico de sua socialidade, sob
variadas modalidades e contextos, abrangendo ocasiões festivas e, sobretudo, a vida
cotidiana.
Evitei diligentemente fazer perguntas diretas às pessoas sobre o seu
pertencimento a clãs e metades e até sobre genealogia. No início porque ainda não as
conhecia bem e depois, privava de intimidade suficiente para que isto soasse como
descortesia. Também, porque dados deste tipo, quando desvinculados das situações
sociais efetivas em que poderiam surgir, não pareciam muito produtivos. Forneciam
mais hesitações do que afirmações rigorosas.
Com relação à profundidade das genealogias, os Rikbaktsa demonstravam pouco
interesse e, rapidamente, se não tinham conhecimento direto ou hesitavam sobre a
posição de alguém, buscavam associá-lo a outros mais conhecidos em termos do
pertencimento a metades e idade, suplantando a informação genealógica estrita. O que
chamo de “metade”, sublinho, é um segmento amplo e que admite tanto indivíduos que
241
tenham reconhecidas estreitas posições “genealógicas”, quanto tantos outros com
relação aos quais estas são – por razões diversas – ignoradas ou obscuras.
Nem sempre as atribuições às quais chegavam apresentavam uma coerência
formal. Pessoas das quais eu dominava as relações genealógicas e que teriam posições,
à princípio, análogas eram diferentemente consideradas, até do ponto de vista de um
mesmo indivíduo. O pertencimento admitia discussão, discordância e até evasivas. Na
maioria das vezes em que eu tentava esclarecer estas situações, a sensação era de
frustração na incapacidade que eu tinha em “modelar” estas relações.
Deste modo, termos de parentesco ou chamamento poucas vezes necessitavam
ou estavam limitados a determinadas conexões genealógicas, entre outros
complicadores. O que parecia acontecer era justamente o oposto do que Evans-Pritchard
mencionava a respeito da propriedade dos Nuer em perceber e discorrer sobre as
categorias de parentesco sem referi-las a qualquer indivíduo em particular, enquanto um
sistema abstrato (Evans-Pritchard 1960:152).
Evidentemente, este contraste não decorria de uma ausência de capacidade de
abstração Rikbaktsa, mas de uma certa ênfase ou modo de ver o universo das relações
sociais. Este tipo de informação aparecia quase sempre misturado a outros temas e
ninguém dispunha-se a tratá-lo separadamente. A classificação de pessoas segundo
termos ou categorias dependia de fatores de ordem variada e que nem sempre são
atributos fixos, como a proximidade, o interesse e até a metade a que pertence o
indivíduo ao qual se pretende ou se é interpelado a “classificar”.
Por esta razão, se as pessoas indagadas podiam proclamar os termos empregados
para chamar tal ou qual pessoa de sua aldeia, isto podia exigir, algumas vezes, algum
tempo de raciocício. Dizer depois de um certo tempo que “não se chama” alguém era
também uma resposta possível, embora com motivações variadas e nem sempre devidas
ao fato de se desconhecer ligações genealógicas ou analogias capazes de conduzir à
aplicação de alguma categoria. No que concerne ainda à atribuição, por exemplo, de
metades e clãs, com as gradações que esta classificação admite, era muito comum que
ela se tornasse mais explícita até no discurso sobre terceiros, sem que houvesse uma
coincidência necessária entre as diferentes fontes de atribuição. Ou seja, a classificação
de metade e sobretudo clânica que alguém atribuía a si mesmo nem sempre concordava
com aquela que lhe era atribuída por outrem.
A cada conversa difusa eu retornava ao censo das aldeias e ia preenchendo,
gradativamente, e dentro do possível, as lacunas do quebra-cabeças sobre clãs, metades
242
e um esboço de genealogias interrompidas. É evidente, contudo, que este era um reduto
no qual tinha interesse especial pela razão de que, à medida em que perscrutava sobre
ele, demonstrava-se mais e mais indissociável de outros temas e campos que não o do
parentesco strictu sensu.
Vamos, então, à passagem. Certa vez conversava com um homem da metade
makwaraktsa sobre a festa do gavião-real, a qual citei na Introdução e será objeto do
nosso próximo capítulo. Nesta festa, veremos posteriormente com mais rigor, há
marcações bastante contundentes no que concerne à divisão de algumas tarefas entre
homens e mulheres dos dois macro-segmentos que costumam designar pelo nome dos
dois dos sub-grupos que consideram principais: os hazobiktsa (“arara cabeçuda”) e os
makwaraktsa (“arara amarela”). Estes macro-segmentos são citados na escassa literatura
antropológica sobre o grupo como “metades” e também irei assumi-lo, com a ressalva
de que procurarei definir o significado e a dinâmica que esta forma de organização
ganha no socius.
Havia participado por duas vezes deste rito, quando pude reparar que o
desempenho de algumas tarefas seguia padrões determinados. Embora fosse difícil
depreender uma norma única e sintética, algumas associações delineavam-se.
Estava claro, por exemplo, que as mulheres hazobiktsa cuidavam de tudo o que
concerne ao preparo do mingau feito com a carne da ave. Pegavam água no rio para o
seu cozimento, ralavam as castanhas gradativamente adicionadas ao caldo da ave e
providenciavam beiju, mandioca ou bananas, acompanhamentos também utilizados na
prova deste caldo e do próprio mingau. Tarefas masculinas como receber a ave morta a
partir das mãos de seu caçador, ainda no porto da aldeia, e entregá-la a alguém que lhe
retire as penas consideradas importantes, já no pátio, pareciam ser relativas e opositivas
ao segmento ao qual pertencesse o caçador. Outras tarefas, como por exemplo, “furar as
penas”, “auxiliar nesta furação” e “distribuir o mingau pelos domicílios”, sugeriam
ainda, de um a outro rito observado, algo como uma alternância no que diz respeito à
pertinência dos homens a metades respectivas.
Para o caso dos ritos anuais, relativamente regulares, os quais ainda esperava
mas não havia visto (cf. Introdução), as informações que envolviam os segmentos
sociais Rikbaktsa não eram muito encorajadoras. No decorrer de uma mesma conversa,
recebia informações opostas sobre o papel desempenhado pelos diferentes clãs e
metades durante as festas. Afirmações podiam desfazer-se no momento seguinte,
quando tentava conduzir o informante a fixá-las em alguma norma. Outras, quando
243
confrontadas, eram contraditas ou permaneciam indeterminadas sem que qualquer
investimento fosse feito pelos informantes. Nem no sentido de me explicar-me
divergências e tampouco no sentido de consolidar sua “versão” dos fatos.
Foi no contexto de ansiosamente formalizar regras para o rito do gavião-real e
das usuais perguntas recheadas de situações fictícias que fazemos com o intuito de
desambiguar nosso entendimento das coisas que, finalmente, comecei a aprender algo
sobre a sociologia Rikbaktsa. Procurava pontuar melhor as diretrizes do rito e seu
caráter. Se, de fato, as atribuições que o compunham obedeciam a regras relativas à
metade do caçador da ave enquanto outras seriam fixas ou alternadas.
Meu informante dizia, de partida, que as tarefas devem ser desempenhadas
relativamente à metade à qual o caçador pertencesse. Eu, então, durante sua fala e
pautada em minhas observações anteriores, ficava a frisar se o caçador era
makwaraktsa, se quem pegava a ave era hazobiktsa e assim por diante. Partimos de uma
ave hipoteticamente caçada por um homem makwaraktsa. Isto fora propositadamente
proposto por mim, por ser esta a metade de meu informante e também o oposto do que
havia presenciado nas duas vezes em que um mesmo homem, hazobiktsa, matou as
harpias. A partir desta caçada presumida meu informante passaria a descrever as etapas
do rito. Coloco entre parênteses as minhas interpelações, com a advertência de que
outros iniciandos com intenção de fazer etnografias não sigam o meu exemplo. Ele diz:
Ele mata e traz (- o caçador makwaraktsa). Deixa na beira da roça ou
do porto, se veio de canoa. Se tem cabeçudo, vai pegar na beira da roça (- e se
não tiver cabeçudo na aldeia?) Vai amarelo. Traz. Depois dá de novo para outro
amarelo tirar a pena (-mas pode ser o mesmo que matou a ave?). Não.” (Vicente
Bitsezik)
Assim o homem prosseguia, não sem que eu o interrompesse a todo momento
com as minhas indagações sobre clãs e genealogias. Bastante aborrecido, a casa
esvaziando-se na medida em que a tensão aumentava, finalmente desabafou quando
estávamos apenas os dois:
Você não está entendendo nada. Tem que viver aqui por muitos anos
pra entender como é!”. (Vicente Bitsezik)
244
Começou, então, a desfiar descrições com tom de reclamações que enfatizavam
não a ortodoxia do pertencimento das pessoas, mas a importância das relações
familiares aldeãs e até inter-aldeãs entre aquelas pessoas que estavam participando do
acontecimento. Se um homem saísse para caçar, chegava na aldeia e dava o gavião ao
seu cunhado – como é muito comum ocorrer entre cunhados no cotidiano –, depois de
retiradas as penas mais importantes entregavam a ave para a família e este dava o
gavião para as mulheres de suas relações, “primas”, “irmãs” e por aí vai, que tratariam
da preparação das comidas rituais.
Indiscutível é que, principalmente se levamos em consideração as regras ideais
de exogamia entre as metades e moradia uxorilocal, estas pessoas, no fim das contas,
pertecerão a determinados segmentos aos quais estas tarefas estariam idealmente
circunscritas. E, na verdade, não é que não houvesse tais regras. O desrespeito a
algumas delas acarretaria graves conseqüências.
O que meu informante desejava me ensinar não era que não as havia, mas que a
flexibilidade e até a “razão de ser” das divisões de tarefas é forjada por relações “reais”
entre pessoas “reais”, que são aparentadas de um determinado modo e, segundo este
modo, têm atitudes respectivas, são mais ou menos distanciadas, estarão ou não
presentes, se visitarão ou não, na casa, na casa dos homens, na aldeia, enfim, em todos
os espaços que concorrem para o rito.
Clãs e metades podiam ser utilizados como idioma destas relações, organizá-las
em certa medida e até constituir-se ou ganhar visibilidade no decorrer deste rito.
Contudo, era um erro admitir anterioridade destas categorias com relação a uma série de
outras perspectivas e acontecimentos ali enredados Traduzindo para o vocabulário
antropológico, o homem oportunamente alertara para antes entender a “dinâmica” social
dos eventos, mais do que pontuar relações obrigatórias.
*
Ainda em campo, relia diversos trechos da tese de Robert Hahn (Hahn 1976)
sobre o parentesco Rikbaktsa. Apesar de proclamar-se justamente contrário a tal
empresa, minha desapontada vista d’olhos buscava alguma possibilidade de atribuirmos
“regras” ou “modelos” para o casamento, para os termos de chamamento e
categorização de relações sociais entre os Rikbaktsa. Hahn discutia e desacreditava,
insistentemente, na validade de modelos de parentesco para além dos contextos
etnográficos nos quais foram produzidos, opondo-se a qualquer consideração a priori
245
sobre a determinação de níveis primários, como uma dada concepção de “genealogia”,
na classificação de pessoas. Para o caso Rikbaktsa demonstrou como informações de
variados tipos podiam determinar diferencialmente, segundo o momento e o interesse,
as atribuições de parentesco ou não-parentesco de mesmos indivíduos. Tais
classificações admitiam, desta forma, alterações significativas e eram remetidas a certos
decursos temporais ao longo dos quais eram negociadas, consolidadas ou abandonadas
pelos indivíduos.
Sua discussão torna-se especialmente interessante quando consideramos a
natureza da definição regular e a abrangência explicativa das genealogias ao mesmo
tempo em que pretende-se discutir o caráter do próprio parentesco enquanto objeto de
estudo no qual, diferentemente de posições como as de Needham (1971)
202
, ele deposita
legitimidade antropológica. Para Hahn não haveria “como” e nem mesmo “por que”
distinguir um sistema de parentesco em “si mesmo” - e.g. um conjunto de “termos
genealógicos” - de um outro conjunto formado por uma diversidade sincrônica e
diacronicamente variável de termos de relacionamento que os Rikbaktsa utilizam para
“chamarem”/designarem (-pehe) pessoas (Hahn 1976:12,13). O termos de parentesco
Rikbaktsa têm, desta forma, usos diversos igualmente constituintes e que não obedecem
ou definem-se primordialmente por uma dada “necessidade” (Schneider 1965:72) ou
função, digamos assim.
A análise de diversas situações na atribuição de determinados termos e relações
por seus informantes a outros indivíduos o conduziu a uma conclusão singular. O que se
convenciona denominar de genealogia certamente era capaz de promover relações,
permiti-las ou justificá-las em alguns contextos sociais, mas em outros, não constituía
qualquer impeditivo para efetivação de relações, classificação e reclassificação de
pessoas segundo algumas categorias que, à princípio, seriam vetadas até pelo próprio
discurso genealógico. Termos poderiam ser aplicados ainda quando desconhecidas
quaisquer ligações genealógicas diretas entre as pessoas (Hahn 1976:15).
A pouca importância devotada à “continuidade genealógica”, um diferencial
ameríndio frente às sociedades linhageiras africanas (cf. Descola 1989:1522), ganharia
202
Needham (1971) não critica nem o vocabulário dos estudos de parentesco (idem:7) e tampouco a noção
juralista de sociedade, definindo-a como alocação e transmissão de direitos de geração a geração
(idem:3). Tenta desconstruir o parentesco enquanto objeto privilegiado, legítimo, específico e
caracterizado por um tipo exclusivo de fenômeno, instituição, práticas ou idéias (idem:4-5). O campo do
parentesco de então seria, segundo o autor, equivocadamente constituído por generalidades erroneamente
estabelecidas e suas conseqüentes tipologias, que acabavam por uniformizar ou “distorcer” as sociedades
ou os fenômenos que procuravam analisar (idem:10,12,17, 29, 30,31).
246
aqui contornos ainda mais contrastantes. Se em algumas circunstâncias a genealogia era
evocada de modo a legitimar determinadas relações, em outros momentos, estava
completamente ausente de influência, indo contra à idéia de ser um ponto de partida ou
um atributo permanentemente dominante das relações sociais:
Only occasionally will a Rikbakta deny the appropriateness of a given
category because of improper genealogical base; but even here it is not clear
what difference this distinction makes in practical relations between the
individuals concerned.” (Hahn 1976:13)
Além do mais, não consistia em um conjunto estático e exclusivo. Era, ao
contrário, sensivelmente alterada e misturada a atributos e informações de outra
natureza. Ficava analiticamente difícil identificar nos vocabulários e narrativas sobre o
parentesco entre pessoas, referências ditas genealógicas e não genealógicas. Era
possível que não pudessem ou quisessem traçar relações genealógicas dentro das
metades e até mesmo dentro dos clãs (Hahn 1976:59). Por outro lado, sabidas estreitas
relações genealógicas entre pessoas, estas podiam negar este fato, dizendo que não
“chamavam” tal ou qual pessoa
203
, enquanto consideravam-se parentes próximos de um
“irmão” daquela mesma pessoa a que negavam relacionar-se.
A partir destas premissas, não haveria qualquer genealogia que fosse descolada
de comportamentos, de interesses e, sobretudo, capaz de determinar ou comandar
exclusivamente, por definição, as relações sociais. Neste sentido, genealogias nem
definem diretamente termos de parentesco e nem poderiam ser tomadas como algo
“dado” em seu conteúdo; um pano de fundo comum, igualmente reconhecido e então
“manuseado” por todos
204
.
Se, por um lado, são relativas a circunstâncias, por outro lado, não se reduzem a
estas mesmas circunstâncias (cf. Karp & Maynard 1983:492). A genealogia não é tão
somente a expressão de um “fato” natural e nem limita-se a fornecer um vocabulário
para as relações que poderá ser manipulado pelo indivíduo, exclusivamente segundo
203
Hahn menciona a pouca freqüência desta situação, mas a define, em si mesma, como uma forma de
relação: “Não-relação por arranjamento é, ela mesma, uma relação que nega as expectativas de várias
relações possíveis” (Hahn 1976:190) (trad. minha).
204
Aqui uma sobrinha nem sempre é filha da irmã ao passo que a filha da irmã nem sempre é sobrinha
(Viveiros de Castro 2002b:384). O “fato”, o “real” e o “objetivo”, que atuam muitas vezes como
sinônimos de genealogia, são fugidios à cristalização e à evidência. Termos de parentesco e chamamento,
se neles procura-se relações dadas a partir de noções formais de procriação, poucas vezes podem
prescindir de histórias e do tempo.
247
seus interesses. Ela deverá ser, antes, um cruzamento mediado pelas noções do grupo de
geração, paternidade, maternidade, classificação de relações sociais e sua respectiva
construção ou disrupção cotidianas, tanto quanto do interesse ou não em seu
estabelecimento ou continuidade. Um cruzamento que, portanto, não pode ser
compreendido fora de uma dinâmica que é não apenas sincrônica, mas também
diacrônica.
Desta forma, determinadas versões ou possibilidades genealógicas, ou seja,
certos nexos com referência genealógica, se conhecidos, podem ser também acionados
enquanto modos de se relacionar a alguém, como uma opção descritiva dos sujeitos,
quando indagados sobre a natureza de sua relação com tal ou qual pessoa. Mas não são,
absolutamente, um modo exclusivo ou necessário para que se alegue ou constitua laço
de parentesco.
Aliás, a disputa entre Hahn e as diversas teorias sobre parentesco estaria,
justamente, na recusa do autor em eleger algum nível analítico enquanto anterior ou
dominante na definição das relações sociais (Hahn 1976:10-14). Atitude deste tipo não
permitiria um entendimento adequado, ao menos da sociologia Rikbaktsa, ainda que
Hahn tenha pretensões mais universalizantes. Sem eleger um ponto de referência
primário para a descrição do fenômeno do parentesco, termos ou categorias deixam de
ser consideradas enquanto “extensões metafóricas” umas das outras.
Tylor ([1881]1912), em sua comparação generalizada com fins evolucionistas e
evolucionários (idem:518), esboçava explicações que enfativazam de certo modo uma
razão eminentemente “cultural” para o estudo do parentesco. Ainda que fosse para
ancorá-las por um lado, em uma espécie de “moral familiar natural” de kindness e por
outro, na necessária coerção para o bom termo da sociedade (idem:476, 478,480), esta
não deixaria de representar uma via de análise menos generalista do que aquela que
mais tarde estaria estabelecida, composta por leis e princípios baseados porém retirados
de contextos propriamente culturais.
Falando mais apropriadamente, não é recente uma dada versão dos estudos de
parentesco que considera o que se convencionou chamar genealogias, desenhos e listas
de termos de parentesco como “material morto” (Malinowsky 1978 [1922]: 20). Um
esqueleto vazio das construções abstratas” que opunha-se à “carne e o sangue da vida
nativa” (idem:29).
248
Gonçalves (2000b:189,190), em resenha ao estudo do parentesco Tikopia
realizado por Firth
205
– aluno e discípulo de Malinowski – aponta para o fato da
Antropologia ter consagrado uma certa “vertente formalista” dos estudos de parentesco
como o “dever ser” da disciplina (cf. Peletz 1995:344). Isto, em detrimento de uma
abordagem “cultural” e “sentimental” dos termos e da atualização das relações sociais
em contextos específicos, que define enquanto uma “proposta substancialista” do
parentesco (Gonçalves 2000b:190). A flexibilidade no emprego de termos de
chamamento e sua decorrente não-correspondência absoluta a relações sociais, um
investimento na consangüinidade e a consideração de variáveis como a proximidade e a
co-residência conduziriam Firth a, a partir do parentesco, explorar facetas outras da vida
Tikopia (idem:186, 190)
206
.
Não admito exatamente este tipo de divisão absoluta entre, por um lado, algo
que seria o “real” (Barnes 1980:301) das relações e por outro, uma “abstração
enganosa” de modelos. A idéia é, com os riscos que isto envolve, tentar praticar a
sugestão de Ladislav Holy (1996) com relação ao direcionamento dos estudos
contemporâneos sobre a questão. Busco neste capítulo entender algo acerca de como os
Rikbaktsa conceitualizam as relações (idem:7) que o campo antropológico tem, entre
muitas discordâncias e discussões sobre sua natureza e conteúdo, chamado de
“parentesco”. Por outro lado, o modo peculiar e aparentemente irredutível pelo qual não
apenas conceituam, mas fazem, desfazem e refazem laços sociais longe está de indicar
para o parentesco a perda de centralidade na descrição etnográfica e no debate
antropológico dos nossos tempos (id.: ib.)
207
.
Para além das terminologias, categorias e tipologias, o parentesco aparece como
um fato sociológico. Preocupações tais como o modo pelo qual homens integram a
“sociedade”, como exercitam a socialidade, enfim, o que os faz referirem-se a si
mesmos em algum momento enquanto um conjunto relacionado, admitindo concepções
de sociedade e respostas diferenciadas através do tempo, encontram-se presentes desde
205
Para uma outra resenha de “Nós, os Tikopias” que insinua, entre outros aspectos, uma relação entre o
método etnográfico de Firth e um possível mote para análise do parentesco entre os índios sul-americanos
ver Sztutman (1998).
206
Neste sentido, o próprio Hahn (op. cit) diz localizar sua posição nos estudos de parentesco entre dois
extremos da antropologia de seu tempo – Scheffler & Lounsbury (1971), por um lado, e por outro,
Needham (1971), passando por Leach (1945, 1958) – aproximando-se mais de Firth (1930, 1936) e
também Bloch (1971) (idem:15).
207
Howell & Melhuus (1993:39) sublinham a substituição da ênfase dos estudos de parentesco até a
década de 70, por estudos sobre a “pessoa”, na década de 80: “(...) Parentesco, antes um tema central, é
notável somente pela sua ausência nos estudos etnográficos.” (idem:46) (trad. minha).
249
a gênese dos estudos formais do parentesco. A constituição do gênero enquanto
categoria e idioma de relações sociais
208
, a desnaturalização do parentesco e sua
abertura a um leque de cosmologias possíveis sobre o tema (Wagner 1981[1975],
Schneider 1984), a denúncia da falácia e a operatividade da noção de primitivismo
(Kuper 1988), estudos sobre a centralidade sociológica da construção de pessoa entre os
melanésios (Strathern 1988), entre muitas outras abordagens que vão surgir a partir da
década de 70 (cf. Peletz 1995), vêm configurar modos de organização e também de
descrição alternativos de povos diversos, incluindo como objeto as próprias sociedades
ocidentais. Entre “modelos” perfeitos ou inconsistências e equívocos etnográficos
(Schneider 1965:69,75), adoto o caminho do meio.
Entendido deste modo, como sugeri, o parentesco Rikbaktsa vem vultosamente
associar-se ao tema da construção e do arriscar de corpos e da dinâmica cotidiana de
produção de lealdades e conflitos. Noções que revelam a fisiologia nativa e também a
habilidade social das pessoas, dentro da amplitude que isto pode ter entre os Rikbaktsa.
O corpo, no sentido pelo qual o venho tratando, o que envolve a própria pessoa,
suas características e relações é algo que se pode “fazer” antes do nascimento, antes até
da relação sexual entre homens e mulheres, chegando ao extremo de prescindir dela. Por
outro lado, admite alteração permanente, em qualquer época da vida de alguém.
Associa-se, desta maneira, a atributos relativos ao parentesco que vigem evidentemente
sobre a posição das pessoas e das relações que deseja-se e deve-se ou não estabelecer
com elas. Atributos estes que poderão ser diferencialmente considerados mesmo dentro
da sincronia, a partir de pontos de vista de diferentes pessoas sobre um terceiro.
Relações de parentesco, desta maneira, não são propriamente prescritas ao nascer ou
algo que obrigatoriamente mantém-se pela vida de alguém (cf. Barnard & Good 1984:
188).
Desta vez e neste sentido, os Rikbaktsa são também um pouco como os Nuer (cf.
Evans-Pritchard 1978)
209
. A distância ou a proximidade entre as pessoas, seu
pertencimento a um ou outro segmento, em algum momento estruturam homens e
grupos, mas é variável e dependente de fatores outros como interesses, lealdades e
conflitos momentâneos. A ressalva é a de que aqueles transparecem ainda mais fluidez,
208
Para alguns exemplos ver Mead (1935) e estudos da década de 70 em diante, tais como Rosaldo &
Lamphere 1974, Reiter 1975, MacCormack & Strathern 1980, Collier & Yanagisako 1987, entre outros.
209
Sobre a discussão entre o caráter situacional, representacional e operacional das linhagens e das
relações espaciais Nuer, como sobre outras possibilidades de leitura da obra por outros autores, ver Karp
& Maynard (1983).
250
porque mesmo ao nível de comunidade local nem todos seus membros podem
relacionar-se por “sangue”, “adoção” e “casamento”, chamando-se e admitindo serem
parentes”. (Evan-Pritchard 1960:4,8) (trad. minha). Parentesco nem sempre é sinônimo
de “segurança” ou sobre um sentimento de se estar exatamente em ummundo
conhecido e amigável
210
(idem:156) ( trad. minha).
Não apenas há categorias capazes de relacionar qualquer par de pessoas entre os
Rikbaktsa, como afirmou Hahn (Hahn 1976:59), mas pode haver inconsistência entre
termos utilizados para designar uma mesma pessoa, se consideramos diferentes pares
diante dos quais ela se coloque em relação. O uso dos termos atua mais em um sentido
de inclusão do que de exclusão de possibilidades.
Isto ficará especialmente claro quando nos aproximarmos do “hibridismo”
classificatório que advém como possibilidade da múltipla paternidade. Como veremos,
em algum contexto ele pode ser um importante propagador de relações, ao invés de
significar apenas uma forma de “depreciação” de outrem, confusão ou lacuna
classificatória. Oferece, também, um espaço a ser preenchido com a destreza de alguém
em ampliar lealdades.
Indivíduos como aqueles que têm alegados pais em metades diferentes são
apontados, por esta razão, como de difícil classificação por categorias de parentesco,
como por aquelas clânicas e de metades. Estando todas estas instâncias integradas,
poderá haver conseqüências importantes com relação, por exemplo, ao caráter
endogâmico de seus casamentos e à forma pela qual vão referir-se aos parentes de seus
cônjuges.
Seu comportamento, principalmente durante algum rito, enquanto membros de
uma ou outra metade, não é capaz de eliminar ambigüidades. De modo geral, serão
menos valorizados no discurso de terceiros e em algumas situações cotidianas e rituais
concretas, a depender da fase e do curso que darão à sua vida.
Em contrapartida, demonstram-se potencial e efetivamente “polivalentes”, no
sentido da ampliação de seu quadro de relações. Isto não chega a ser uma propriedade
exclusiva da paternidade múltipla, embora o hibridismo na constituição de uma pessoa,
sob certa perspectiva, seja mais um caminho para a difusão e intensificação de
determinadas relações.
210
Ainda que Evans-Pritchard admita a possibilidade de ocorrência de conflitos ao nível local,
principalmente em aldeamentos muitos extensos (Evans-Pritchard 1960:2), este não é um tema
privilegiado em sua etnografia, conforme notam também Karp & Maynard (1983:486).
251
Esta capacidade, como tenho sugerido, é algo valorizado como uma habilidade
em concentrar e expandir relações fundamental à qualidade da vida e status que alguém
poderá alcançar no socius Rikbaktsa. Mas como aqui as relações são de vinculação
dupla, sua ampliação revela uma espécie de destino mundano ambígüo, onde o ideal é
também imponderável, resultando simultaneamente em efeitos contrários àqueles
intentados.
Destaco um trecho de meu diário de campo, escrito quando investigava sobre as
categorias de parentesco e chamamento (-pehe)com algumas pessoas:
“Fiz as pehe com Geraldino e, ao contrário de Helena, tive a impressão
de que os critérios “genealógicos” conforme os concebem, dominam, e era a
esta genealogia que ele parecia recorrer, ao pensar “relações” no sistema. (...)
Muitas vezes e em muitos campos, flexibilidade parece ser a palavra de ordem
aqui, à despeito da estrutura social e de idéias sobre ela estritamente
estruturadas. Parece que é por dominarem tão bem as regras do “dever ser”,
que podem tão bem “burlá-las”, constituindo com isso, não falsas
possibilidades, mas “caminhos” legítimos.” (aldeia Pé-de-Mutum,
12/04/2003).
A “ambigüidade” classificatória pode ser salutar sob a perspectiva de sua
polivalência, e ela parece se reproduzir no socius Rikbaktsa por diferentes meios que
não apenas a paternidade múltipla. A amplitude de relações poderá significar, contudo,
além de status e acesso a bens de múltipla natureza, o alargamento dos horizontes de
conflitos e cadeias de vingança. Seria por um lado praticamente impossível e, por outro,
pouco esclarecedor dissociar o tema e a constituição do parentesco Rikbaktsa tanto das
noções de sociologia, cosmologia e até fisiologia nativas quanto da subjetividade (Gow
1997:42) que emana e ao mesmo tempo modula todas estas instâncias.
Se é que podemos assim denominá-las, as “limitações” do parentesco strictu
sensu, ao menos enquanto modelo inequívoco que explica um modo de organizar-se
socialmente, demonstram-se totalmente comprometidas com a escatologia e a
fabricação arriscada de corpos Rikbaktsa, que se expressa na vida e é “ativa”. A relação
vívida com os “mortos” aproxima os “vivos”, impelindo-os à socialidade, em suas
múltiplas formas. Mas esta aproximação conduz inevitavelmente a conflitos internos a
este segmento, que também dividem e afastam pessoas e grupos. Com isso, alteram-se
252
proximidades e distâncias e, com eles, termos de chamamento, a ênfase no
pertencimento clânico e até a hesitação sobre o pertencimento à metade dos indivíduos.
A proximidade dos mortos e o fato de que injúrias em vida podem ser vingadas
depois da morte, com facilidade ainda maior, constitui a essência da duplicidade e
reversibilidade dos vínculos sociais entre os Rikbaktsa. Para além disso, estando os
mortos sempre próximos, interagindo ou tentando interagir com os vivos, a única forma
sob a qual expressa-se esta relação é a predação, mesmo que deslocada de contendas
objetivas e identificáveis.
Não apenas a escatologia, mas também ela, se interpõe e mistura-se a fatores
mais comumente associados a marcadores sociológicos, como regras de filiação, clãs e
metades. O parentesco aparece como algo que é, ao mesmo tempo, causador e resultante
da construção de sua socialidade. Leva em consideração e abarca muitos outros aspectos
da cultura, como por exemplo a própria escatologia e as noções de fisiologia nativas.
Dinamismo e complexidade heterogênea intrincadas compõem o parentesco Rikbaktsa e
seu fazer - e desfazer- no tempo.
No plano metafísico temos os “mortos” disputando a precedência e predação
sobre os corpos dos vivos. Deslocando o eixo desta disputa para o terreno mundano,
para além do corpo ser alvo de peleja entre os “vivos” através de conflitos, feitiçaria e
homicídios, sua “autoria” é também posta em pauta pelas mulheres através das
atribuições de paternidade. Um terreno no qual não há “vencedores” senão temporários,
e que podem ser homens de segmentos diversos, outras mulheres e até seres metafísicos.
Neste cenário, a fabricação da “continuidade” acontecerá através do
pertencimento às metades mais do que por sobre uma genealogia estrita. É procedente
considerar os macro-segmentos makwaraktsa e hazobiktsa como marcados pela
distinção, ditinção esta que configura-se oposicionalmente em alguns contextos. Mas
um outro aspecto não menos importante é que têm a propriedade e conferir algum tipo
de continuidade – embora nem sempre definitiva e algumas vezes discutível - em um
universo de relações tão instáveis e pouco marcadas sob a ótica de uma genealogia
formal.
É como se o dado “metade” indicasse a ligação necessária entre indivíduos que
assim se sentem aproximados, tendo sempre em consideração que, mesmo neste
universo há conflitos, cismas ou apenas “descorbertas” que ocasionarão reclassificações
das posições de parentesco e talvez de pertencimento. Se ditos e reconhecidos como de
uma mesma metade, o que inclui mais o interesse de ambas as partes do que o
253
reconhecimento profundo da genealogia ou até do pertencimento clânico, haverá
solidariedade entre estes indivíduos, em algum momento.
O reconhecimento desta proximidade ampla, providenciado pela metade
partilhada, não estará completamente à salvo de alterações. Observando a
impossibilidade de avaliar o caráter ultimado das categorias de relacionamento entre as
pessoas, Hahn impressiona-se quando um homem lhe relata que alterou o modo de
chamar a um outro quando “descobriu” se tratar de alguém da mesma metade e não da
metade oposta:
Thus Zarapadi tells me that he revised his relational category with
Radkobwi when he discovered that Radkobwi was a member of the opposite
rather than the same section. This was the only instance of such change of wich I
was informed, but I imagine instances to occur commonly and to be forgotten."
(Hahn 1976: 191) (grifo meu)
Por outro lado, as especulações sobre as distâncias e proximidades entre clãs e
metades, suas origens e derivações, acabam por demonstrar que os Rikbaktsa são todos
eles misturas tão peculiares quanto voláteis mas que possuem algumas matérias em
comum. Neste sentido, “genealogias”, “terminologias”, “clãs”, “seções” ou “metades”
combinam-se à cosmo-escatologia e às noções de fisiologia nativas e passam a ter um
significado bastante específico no universo Rikbaktsa. Isto de forma alguma faz com
que se perca de vista sua propriedade organizatória ou sociológica propriamente dita.
Há fontes outras de socialidade, melhor compreendidas à medida em que admite-se que
não há forma preferível ou moralmente ajustada de “fazer-se sociedade” (cf. Needham
1962:17-19) (trad. minha).
PROVOCAÇÕES ETNOGRÁFICAS
Esta discussão em torno das formas de socialidade me faz coligir algumas idéias
que venho construindo até aqui. Expliquei a gênese deste modo de analisar o parentesco
Rikbaktsa ou alguns de seus aspectos relevantes para o tema desta tese. Não obstante
tais aspectos tenham importância central na dinâmica de seu socius, deixei claro que não
iria aplicar modelos ou buscar reconstrui-los por fusões ou enxertos. Não porque não o
quisesse – embora confesse certa inabilidade particular em fazê-lo – mas porque esta
254
atitude poucas vezes demonstrou-se oportuna. E talvez não o seja, mesmo admitidos
outros escopos de construção da etnografia Rikbaktsa. Todavia, não pretendo afirmar tal
impossibilidade, o que exigiria um outro tipo de investigação.
É evidente que por se tratar pelo menos oficialmente de um grupo macro-jê, os
Rikbaktsa causavam algumas expectativas que procurei mencionar na Introdução desta
tese. Contrastes foram apontados aqui e ali e eu não deixaria de reuni-los, aproveitando
para me concentrar um pouco mais sobre sua plausível associação com uma distinção
clássica da etnologia sul-americana. Os Rikbaktsa são mais do que bons, privilegiados
para pensar na distinção usualmente tomada como absolutamente opositiva entre grupos
Tupi e Jê. Através de alguns traços etnográficos oportunos explico o porquê.
Não são híbridos. Sob forte risco, ainda assim vou insistir neste ponto. Talvez
sinalizem a possibilidade de um novo caminho que, junto a outros esforços etnográficos
que vêm se delineando (cf.Cohn 2004
211
, Gordon 2003), possibilite a reconsideração do
caráter das diferenças entre os ameríndios como a conveniência em adotar modelos
opositivos dos quais grupos Tupi sejam tomados como contraponto de grupos Jê e vice-
versa. Um movimento datado que, no meu entender, talvez por força de meu objeto de
estudo, surtiu efeitos importantes em um certo modo de entender os Jê.
Não é também questão de demonstrar que os Jê não possuem um sistema
“fechado” (Viveiros de Castro 2002c:454), de subssumir as distinções em uma reedição
sofisticada do modelo Jê ou, ainda, de considerar que Tupi e Jê têm fontes diversas de
retroalimentação (Fausto 2001:304). É algo que atinge diretamente a problemática Jê X
Tupi, mas que ao mesmo tempo a ultrapassa. Trata-se mais de conceder movimento
ainda maior às noções de espaços e posições, de “interior” e “exterior”, de
“consangüinidade” e “afinidade”, de “mutualidade” e “predação”. Entre a “mutualidade
íntima” e a “reciprocidade predatória” (Viveiros de Castro 2002c:455), talvez admitir
para os ameríndios semelhanças irredutíveis a identidades plenas, e diferenças
irredutíveis a distinções absolutas.
Uma decorrência disso é que estas mesmas categorias de “consangüinidade”,
“afinidade”, “interior”, “exterior”, “mutualidade”, “predação” e outras que podem lhes
ser progressiva e homologicamente associadas, apesar de constituirem um vocabulário
211
Especialmente o trabalho apresentado por Cohn na reunião da ANPOCS de 2004, soma-se e parece
atender a parte significativa das hesitações em torno deste tema que me acompanhavam desde meu ensaio
teórico e projeto de pesquisa elaborado em 2002 e intitulado “O inimigo mora ao lado: violência,
harmonia e sociabilidade entre os Rikbaktsa (macro-Jê) do sudoeste amazônico”. Pensar em como
abordar os Rikbaktsa, adotar tal ou qual modelo e a importunidade em fazê-lo foi o motor do próprio
projeto de pesquisa.
255
que auxilia na comunicação de determinadas idéias, não será constituído por “categorias
puras”. Não agrego a estas categorias uma fileira de significados ou hierarquizações
fixas ou trato-as como epifenomênicas de algum outro plano transcendente.
Chegaríamos a um campo sem aspectos previamente determinantes ou submissos,
composto por dialéticas etnográficas particulares que encontram-se e distinguem-se de
outras.
Outra conseqüência é a possibilidade de se tratar a institucionalização
sociológica – e não consigo entender os Rikbaktsa como ausentes desta “classificação” -
associando a ela a fluidez e a abertura ao evento, o que tem neste caso total relação com
o modelo ideal Jê mas não apenas com ele. Neste sentido, os Rikbaktsa não são nem
uma versão “sociologicamente frouxa” dos Jê, nem mais sociologicamente marcada dos
Tupi.
Desta maneira, os questionamentos etnográficos que se seguem, ao mesmo
tempo em que pretendem descrever a sociologia Rikbaktsa, devem ser tomados
enquanto provocações. É claro, provocações com expectativas de contribuição para um
alargamento do entendimento dos ameríndios através da valorização das divergências
etnográficas enquanto caminhos outros, possíveis e legítimos de condução analítica. Isto
feito a partir do que os próprios Rikbaktsa dizem e desdizem de seus clãs e metades,
casamentos, parentes e não-parentes, amigos e inimigos, mortos e vivos, e em múltiplos
contextos e de perspectivas diversas.
Um universo feito de gradações e reversibilidade insubmisso a regras ou
princípios ortodoxos. No qual a perícia de seus habitantes em lidar com as dúvidas e
possibilidades de reversões, com “isto” e “aquilo” ao mesmo e a um só tempo, revelou
uma notável operatividade sociológica.
DA GEOMETRIA SOCIAL DO ESPAÇO ALDEÃO
Chama atenção a peculiaridade geográfica e cultural dos Rikbaktsa, como um
grupo Macro-Jê cercado de grupos Tupi (Steward 1948). Como já mencionei (cf.
Capítulo II), alguns de seus inimigos clássicos eram Tupi e Tupi-Mondé - mais
recentemente, principalmente os Cinta Larga - mas também Suyá (Jê), Pareci (Aruak),
Iranxe e Menky. Sua localização atípica torna-se mais interessante quando nos
aproximamos de alguns contrastes etnográficos que os colocaria enquanto contraponto
do próprio padrão Jê.
256
A disposição das aldeias Rikbaktsa é um desafio à imagética geométrica formal
(cf. Anexo 4). Ares de aleatoriedade, ou pelo menos sem um formato padrão,
contrastam com as notórias aldeias semi-circulares ou circulares dos Jê centrais e do
norte (cf. Maybury-Lewis 1984). A ausência de um pré-ordenamento espacial é também
verificada nos acampamentos temporários (cf. Hahn 1976:63). Inútil imputar centros e
periferias, rotas marcadas de uma lado a outro, confluências e separações exatas, mesmo
ao mato circundante ou à outra margem do rio. Todos eles são reconhecidos e
socializados, ocupados e entrecortado por rotas ou estradas (ske) utilizadas pelos
Rikbaktsa e/ou por outros que reconhecem, sejam animais, brancos e seres metafísicos;
rotas estas que, não raro, são compartilhadas.
Não é adequado, contudo, subestimar a organização espacial Rikbaktsa sob a
égide do fortuito. A distribuição das casas atende muito claramente a um panorama das
relações aldeãs, exprimindo com maestria a homologia entre proximidades e distâncias,
digamos assim, sociais que se deseja ter ou que se tem em um determinado momento
com os demais habitantes de uma aldeia. Isto confere a cada aldeia - como se para tal
não bastasse a variedade no número de casas que a compõem – feições particulares. A
dispersão entre as casas, que pode torná-las reunidas ou afastadas em direções diversas,
aparece muitas vezes como um objetivo ou uma conveniência. Sublinho ainda o
resultado extremo deste afastamento, que é mudança definitiva para outra aldeia ou até a
formação de uma nova povoação.
Assim, na aldeia em que trabalhei havia alguns casos marcados e reveladores
desta lógica espacial. O primeiro deles era o de um casal composto por uma mulher
Rikbaktsa e seu marido Munduruku. Apesar da casa ser relativamente próxima à do
homem que criou a mulher – a quem o Munduruku tratava por sogro (-sizohi) – era
visivelmente retirada do espaço comum da aldeia, com acesso mais dificultado. A roça
do casal, próxima à casa é, contudo, do outro lado de um córrego e diretamente
inacessível às demais casas, um afastamento espacial que expressa uma “contrariedade”
social.
Os comentários sempre foram de que este homem e também a mulher não
participavam adequadamente das divisões de recursos entre os habitantes da aldeia e, de
fato, ambos eram pouquíssimos vistos a transitar ou visitar outras casas, uma das
condições e meio mais eficiente de integrar e permanecer nos circuitos de troca. À
exceção do fato do Munduruku jogar futebol em algumas tardes, nem ele e nem a
257
esposa participavam efetivamente das tarefas comunitárias ou integravam o circuito de
visitações e compartilhamento de atividades
212
.
O fato de existirem conflitos abertos entre as pessoas pode ser um outro motivo
que evidentemente dispersa as casas da aldeia. Uma jovem casada que mudara-se para a
aldeia de seu pai, construiu sua casa distante das demais, por ter relações abertamente
conflituosas com outras duas jovens daquela aldeia. Seu marido havia namorado uma
delas por um tempo, sendo esta uma relação que contrariava ainda o ideal de exogamia
de metades. De certa forma, as duas jovens que não a esposa eram, portanto, parentes do
rapaz em questão. E assim segue-se a ocupação do espaço aldeão, em uma composição
de movimentos de aproximação e afastamento ocasionados pela conformação das
relações sociais.
Além das casas, como mencionei em ocasiões diversas, há o mykyry, a casa dos
homens solteiros e viúvos e lugar de encontro de homens adultos. Como se já fosse
possível adivinhar pela alegada dispersão das casas, o mykyry não ocupa lugar
geometricamente central na aldeia ou mesmo obedece a qualquer localização específica
e obrigatória, como é recorrente entre os Jê.
Funciona como lugar para planos, decisões importantes e conversas informais,
mas também para a preparação e conserto de arcos e flechas, artefatos plumários,
peneiras, “flautas”, de confecção exclusivamente masculina, e realização de algumas
etapas rituais. Apesar de marcadamente masculino, isto não significaria uma oposição
definitiva e excludente entre este espaço e os demais componentes da aldeia, como
casas e atualmente as escolas. O Mykyry articula-se com tais espaços de formas outras
que não a absolutamente opositiva.
Em minha segunda viagem a campo recebi algumas recomendações de Isidoro
Rerõmuitsa, então chefe da associação Rikbaktsa. Aguardávamos a voadeira no porto,
os homens encostados a uma pedra e eu, sozinha, do outro lado dela. Explicou-me que,
como naquela situação, homens e mulheres ficavam separados para algumas coisas, que
eles eram assim mesmo e que isto não significava nenhuma espécie de rejeição. Eu
deveria evitar, então, ficar no meio dos homens, pois isso faria com que pensassem mal
212
Mesmo assim, preciso comentar que, ao serem visitados por mim e outras mulheres com o objetivos de
convidá-los ao meu aniversário, doaram uma galinha, um “bem” bastante valorizado entre os Rikbaktsa.
Todos comentaram. Em uma outra ocasião escrevi em meu diário de campo;As velhas comentaram
ontem sobre a “postura” de Manoel Disty Munduruku, pois seu milho está bom e ele não permite que
tirem. Vera, quando solicitada, só deu milho bichado.” (aldeia Pé-de-Mutum, 26/11/2002).
258
de mim. Aconselhou-me a não sentar na rede de um homem, pois isso sugeriria alguma
intenção de intimidade de minha parte.
Não esqueci tais recomendações. Utilizava-as até para ponderar minha logística
de trabalho. Mas quando julgava adequado trangredi-las não cheguei a enfrentar
qualquer tipo de constrangimento ou repreensão. Com a convivência, algumas mulheres
ofereciam-me as redes de seu maridos. Eu aproveitava para perguntar sobre o conselho
de Isidoro e diziam-me que, naquela situação, não havia problema algum no uso das tais
redes.
Também comentei alhures sobre a minha presença no mykyry e sobre o fato de
que, precisamente, não há penalidades expressas para mulheres que adentram este
espaço. Elas apenas não o adentram, senão rapidamente. Levam algo caso lhes seja
solicitado, como chicha (tumy) ou mandioca (moko), embora o mais comum seja que os
homens venham à casa para buscar algum recurso. Algumas vezes crianças de ambos os
sexos acompanham seus pais e avôs nas atividades do mykyry. Eles aproveitam a
oportunidade para ensinar-lhes alguma tarefa.
Praticamente todas as atividades típicas do mykyry são também factíveis no
chamado espaço “doméstico”
213
. Não apenas qualquer artefato plumário - mesmo
aqueles mais engenhosos e que envolvem riscos corporais em sua produção - pode ser
feito dentro das casas ou ter o tear para sua confecção apoiado em suas paredes
externas. Discussões importantes podem acontecer no pátio da aldeia e, por definição,
são abertas a todos, porque geralmente envolvem aspectos organizatórios do dia-a-dia,
como capinar as áreas comuns, ir à roça, tratar de comidas e bebidas relativas a estas
tarefas. Assuntos mais constrangedores – como vi para o caso do uso indevido que um
rapaz vinha fazendo da motoserra e do combustível da aldeia – podem ser tratados
dentro da casa, e não é raro até que alguma mulher próxima às partes seja designada
enquanto mediadora destes conflitos potenciais que poderiam gerar alguma forma
violenta de resolução.
A relação não-privativa entre o mykyry e a maior parte das tarefas e funções que
lá têm lugar pode contribuir para o fato de que nem todas as aldeias abriguem este tipo
de construção e tenham nela diferentes tipos de atividades. Assim, há casas dos homens
que abrigam jovens solteiros, em aldeias que praticamente não utilizam o mykyry para
confecção de plumária, como aldeias onde o mykyry é institucionalmente utilizado para
213
À exceção dos jovens solteiros que devem dormir no mykyry, o que nem sempre acontece.
259
este fim, como para a fabricação de flechas, reunião de homens e degustação de caças,
sem contudo, servir de pouso para rapazes solteiros.
Uma aldeia pode ainda prescindir definitiva ou temporariamente de mykyry.
Neste último caso, aquele mesmo espaço é utilizado para outros fins que demonstrem-se
necessários, sem que isto incorra em profanação do que, aliás, já antes não carregava
ares de muita sacralização. Escolas e até famílias podem estar temporariamente
abrigadas no espaço antes destinado ao mykyry.
Qual não foi minha surpresa ao saber posteriormente que a pequena e modesta
casa onde eu passava o dia com uma família em minha primeira viagem de campo
tratava-se do mykyry da aldeia Pé-de-Mutum
214
. Uma mulher separada e seus filhos do
clã makwaraktsa o ocupavam devido a conflitos de promessas violentas entre um dos
filhos da mulher e o dono de uma casa na qual ela e os filhos residiam, de um homem
também makwaraktsa. Decidiu-se que o homem mudaria de aldeia, indo fundar uma
nova ocupação em um ponto extremo e pouco habitado do território Rikbaktsa e a
mulher permaneceria lá, onde atuava como agente de saúde. A mulher desocupara a
casa onde morava, sendo alocada, então, no mykyry da aldeia. No ano seguinte, uma
nova casa foi construída para ela, em um outro lugar da mesma aldeia e o mykyry fora
devidamente reativado.
Esta história permite-me também destacar rapidamente algo que já mencionei
nos capítulo anteriores: a importância dos conflitos, principalmente aqueles que
evoluem para discussões ou tentativas abertas de agressão, não somente para a
organização do espaço aldeão, como também para o movimento de fissão e formação de
novas aldeias. Lembro igualmente da contribuição significativa que a morte de parentes
próximos, feitiços de que se crê ter sido alvo ou suspeita-se haver risco em sê-lo para o
estado da ocupação espacial Rikbaktsa (cf. Capítulo II). Tudo isto vem dar sentido,
inclusive, à interrelação das aldeias como um todo no tempo, uma vez que após o
confinamento a uma região reduzida (cf. idem) progressivamente fissionam-se e
fundem-se, enfim, alteram-se a localização como a composição dos aldeamentos e
grupos sociais.
214
Nesta primeira viagem eu passava o dia com uma família composta por uma mulher separada, dois de
seus filhos solteiros e seu neto. Por se tratar de casa muito pequena e temporária não havia lugar para a
minha rede e eu dormia em uma casa de madeira e alvenaria construída pelo chefe de posto. Certa vez, ao
deixarem-se sozinha na casa – na verdade, o mykyry - a cuidar do fogo de chão, quase incendeei a tal
casa, ao que apenas riram muito.
260
Retornando de modo mais incisivo à disposição e ao sentido do espaço aldeão,
vale dizer que, durante as festas, dançam no mykyry mas também no interior das casas e
em seus arredores. Um indicador seguro do êxito dos ritos, aliás, é o comentário de que
paredes internas das casas tenham sido desmanchadas, de modo a acomodar a animação
e a adesão dos participantes.
Imitações de seres metafísicos e personagens das histórias Rikbaktsa são
realizadas dentro das casas e, principalmente as mulheres, têm esta expectativa. Morebe,
um ser metafísico que tem destreza com as flechas e disputa araras com os Rikbaktsa
durante as caçadas, adentra a casa e coloca a mão dentro das panelas, comendo mingau
quente (lembrando que comidas quentes são evitadas ao máximo), sem contanto
queimar-se. Há sustos e brincadeiras constantes durante os ritos – como ficará claro no
Capítulo V – que desenrolam-se em espaços múltiplos, como a casa, o pátio ou espaço
entre as casas, matos circundantes, o rio e também o mykyry.
Qualquer espécie de rito, dos menores àqueles de grande vulto, não pode
renunciar a uma articulação sofisticada entre todos estes espaços. A extraordinária
quantidade de comidas e bebidas que devem ser produzidas segundo algumas normas e
em sincronia com outros acontecimentos ou constituindo em si mesmas “etapas rituais”
já bastaria para provomer esta articulação. A participação das mulheres, recebendo,
buscando, processando, distribuindo e organizando recursos diversos, dançando e
tocando “flautas” sozinhas ou dançando atadas ao braço dos homens, a depender do
caráter do rito em questão, todos estes momentos são expressamente marcados e de
importância central ao desenrolar dos acontecimentos.
Estas são algumas considerações que acabariam, se não por extinguir, diluir ou
reconsiderar a valência do tradicional contraste absoluto atribuído aos Jê entre as esferas
políticas, públicas e cerimoniais, masculinas por excelência, e a vida doméstica, privada
e cotidiana, feminina, em contrapartida (Da Matta 1976; Maybury-Lewis 1984). Há
hierarquizações, como veremos para o caso da concepção da importância diferencial dos
clãs enquanto participantes das festas, mas de forma alguma ela incide de modo a opor
definitivamente e sem costuras os espaços ou o gênero. Não há como caracaterizar o
doméstico enquanto essencialmente privado ou oposto e periférico ao cerimonial e nem
como despojá-lo ou suprimi-lo seja na efetivação dos ritos, seja na etnografia que deles
fazemos. Este é um ponto em torno do qual minha explicação por todo o trabalho vem
flutuando e cuja etnografia do rito do gavão-real será capaz de causar impressões mais
críveis.
261
MITOS E METADES: MAKWARAKTSA E HAZOBIKTSA
El clan es la vida, es la sangre
(Mauss 1971[1947]:267)
Até este ponto mencionei por diversas vezes as metades Rikbaktsa, a
makwaraktsa, “arara amarela” (Ara ararauna) e a hazobiktsa, arara cabeçuda” (Ara
clorophtera), uma arara de tom vermelho predominante, mas que tem penas verdes nas
asas e cores mais opacas que a tsikbaktsa ou “arara vermelha” (Ara macao), no dizer
Rikbaktsa
215
. Makwaraktsa e hazobiktsa são nomes de clãs específicos ao mesmo
tempo em que nomeam tais macro-segmentos, com regra de recrutamento patrilinear.
Assumi, inicialmente, o cunho marcadamente matrimonial destes segmentos, no
sentido de que casamentos internos aos mesmos seriam proibidos, enquanto seriam
permitidos no outro segmento, mas não especialmente prescritos (Hahn 1976:61).
Segundo uma definição formal, a exceção possível trata-se da restrição de casamento,
mesmo que na outra metade, com parentes próximos à mãe de alguém, como por
exemplo, para um homem, a filha da irmã e a prima paralela. Sabia também, pelo
trabalho de Hahn, que o emprego destes termos não era “genealogicamente”
obrigatório. Assim termos tais que indicam proximidade e distanciamento sexual de
parentes maternos, ou podiam ser estendidos a pessoas de mesma metade mas distantes
da mãe, como também eram usualmente substituídos por outros que sinalizassem o
distanciamento e a conseqüente possibilidade formal de estabelecimento de relações de
intimidade.
Havia também registro de que a metade arara amarela (makwaraktsa) seria
associada a homem (maku), enquanto a cabeçuda (hazobiktsa) à mulher (wytyk) (Hahn
1976:95), mas não encontrei maiores ecos desta concepção, nem nos mitos, nem em
artefatos, senão talvez em um certo modo de incorporar crianças capturadas de
inimigos. Como já mencionei, meninas eram tomadas como da metade hazobiktsa e
meninos como da metade makwaraktsa.
Ainda segundo o autor, casamentos endogâmicos aconteciam, mas eram
francamente condenados, considerados inadequados, fora de lugar, “feios” (batsisapy),
215
Observo que não há na taxonomia Rikbaktsa a “espécie” arara. As designações da arara amarela
(makwara), arara vermelha (tsikbaktsa) e da arara cabeçuda (hazobiktsa) não têm qualquer relação
semântica traçável entre si, como no caso de outros animais, como gaviões (wohorektsa), onças
(parinitsa), veados (hozipyryktsa), tatus (piutsa) e etc. Algo semelhante acontece com os macacos,
categoria do português onde incluem um sem número de animais, para além dos primatas, como pequenos
roedores e a preguiça. Para o caso da preguiça veremos o porque logo adiante.
262
conforme o significado central desta categoria analisado em outra ocasião (cf. Capítulo
III). Um outro dado era que a relação entre o que poderíamos chamar de cunhados (-
tsere), mas que nos Rikbaktsa pode ser um tanto mais e um tanto menos do que isso,
não estando vinculado necessariamente ao casamento da “irmã”, não poderia, em
qualquer hipótese, ser estabelecida entre homens de uma mesma metade.
Parti para os Rikbaktsa, então, com a idéia de que estes segmentos eram de certa
forma matrimoniais e exclusivos, e compostos por sub-segmentos fixos. Equanto
Arruda (1992, 1999) trazia, além desta divisão central, um quadro didático com uma
listagem de clãs a elas aproximados (Arruda 1999:48), Hahn (1976) considerava apenas
a divisão entre makwaraktsa e hazobiktsa, mencionando alguns segmentos
possivelmente associados a ela, mas com ares mais de mitologia do que de grupos
diferenciados e compostos efetivamente pelos indivíduos(idem:59). Declara-se incapaz
de atribuir qualquer tipo de constância em termos de tarefas, funções ou pinturas
especializadas por segmento, como também em relação à nominação e a prescrições
internas de qualquer tipo, e.g. proibições alimentares
216
:
I have not been able to elicit strong or consistent associations here; nor
do I know whether theses associations are prescribed or are simply historical or
sociological fact; nor have I observed consistent ceremonial or political
functions of contemporary clans. Clan members are also said to paint
themselves differently in ceremonies, but I have also been unable to observe any
consistencies in this matter.” (Hahn 1976:59)
Por todo o campo preocupei-me em entender o que eram estas metades, como se
constituíam e funcionavam, em suas “ricas interconexões” (Overing & Rapport
2000:226) (trad. minha). Apareciam com referência a mitos diversos, mas não obtive
explicações absolutamente congruentes, nem sobre o pertencimento de determinadas
pessoas a clãs respectivos – em alguns casos este assunto podia parecer mais um tema
de discussão - e nem sobre o próprio número de clãs que compunha cada metade.
Recebia nomes diversos, e mesmo aqueles clãs mais notórios, como os que nominam as
216
Uma única vez vi um homem tsikbaktsatsa deixar de comer arara amarela (makwara), dizendo
jocosamente ser “parente”. No mesmo tom jocoso, dizem que se fica “tonto” (sintoma da aproximação de
myhyrikoso) quando se come arara “cabeçuda”, mas comem a cabeçuda e todas elas. Araras de um modo
geral, notadamente sob a forma de mingau (zaro), são itens alimentares de predileção.
263
“metades”, deviam ser considerados cuidadosamente, porque, justamente, estas divisões
podiam encampar a classificação de outros clãs associados.
Comecei buscando ortodoxia, fosse no desempenho de tarefas rituais, fosse em
uma suposta “representatividade” da profusão de objetos produzidos pelos Rikbaktsa,
como cocares (-tsorek), lanças, flautas e outros aerofones e artefatos, com relação à sua
organização social. Minhas perguntas não davam em muita coisa.
A predominânica de cores podia identificar alguns destes artefatos às metades,
como o amarelo e o vermelho, um modo possível de referirem-se, ainda, às metades em
português. Mas fui entendendo que estes objetos, apesar de pessoais, eram “feitos” de
matérias, trabalho e relações advindos de homens e mulheres, de clãs como de metades
diversos. Embora pudessem ser associados a um ou outro grupo, não tinham posse
permanente ou constituíam “patrimônio” de qualquer clã ou metade. Sem contar a
variedade de cocares utilizados pelos mais diversos clãs e também pelas metades;
misturas intensas, belas e frondosas de pássaros diversos, poucas vezes relacionados a
alguma qualidade mitológica original ou específica à qualidade clânica daquele que os
porte.
Pelo contrário, o grande investimento da plumária Rikbaktsa não estaria na
acumulação, no “culto” ou na “representatividade direta” de qualquer artefato. A ênfase
recaía no seu processo de fabricação e ajustes
217
, rondado por riscos, habilidades de
artesão e também na sua capacidade de concentrar relações e lealdades e, com isso,
matérias e recursos múltiplos sem os quais é impossível produzir uma peça de plumária.
Desta forma, sua produção admite a autoria e exige a habilidade de um artesão não
apenas em tecer, amarrar e combinar materiais diversos segundo o que considera “belo”
e “adequado” (tsapyrna), mas também em reafirmar e expandir relações: uma espécie
de habilidade “social” que deve somar-se àquela propriamente “artística”. Tudo isso,
que não se reduziria apenas ao universo de uma metade ou sequer ao universo
masculino, se em êxito pleno, conduziria ao belo resultado, tão valorizado nos mais
diversos tipos de rito.
Ainda durante o censo que realizei, um acontecimento me ajudaria mais tarde a
perceber um outro caminho para entender o sentido de clãs e metades, marcando minha
217
Ajustar os –tsorek, torná-los mais belos é, inclusive, uma etapa bastante marcada durante os ritos, uta
ka-tsorek pi-kymy “eu (masc.) aprontei meu -tsorek”. Em uma clareira, os –tsorek vão sendo arrumados e
dependurados em embira, como se fosse em um varal. Esta “etapa” repete-se com relação à afinação das
flautas, tanto durante ritos quanto quando resolvem tocá-las cotidianamente, quando perguntados sobre o
que estão fazendo com as flautas, dizem katsa tsi-siuka-ziu-ku “nós estamos (fazendo) elas tocarem
bonito”.
264
incursão no tema dinâmico de clãs e metades. Nesta ocasião, uma mulher residente da
aldeia Cabeceirinha, na TI Erikpatsa, ao me perguntar sobre meu clã, mencionou que o
marido pertencia ao clã zuruk, que come carne de gente moqueada” (Cecília Mabe),
uma espécie de onça completamente negra.
A taxionomia Rikbaktsa descreve seis espécies de animais que qualificam como
onças. Todos eles não são comestíveis e são diretamente identificados aos myhyrikoso.
Devem ser caçados e obrigatoriamente mortos, ter a cabeça arrancada e as presas
furadas segundo certos protocolos rituais (cf. Capítulo V). Do contrário permanecerão a
vingar-se sobre os vivos. Neste grupo incluem a onça preta, a que chamam parini
nioktsĩzita ou nioktsĩrõrõ que, contudo, não é o mesmo que zuruk. Zuruk é certamente
uma referência aos tempos ancestrais, quando este personagem tenta moquear e predar
um homem, mas que afinal, acaba sendo morto pelas mãos da esposa e pelo “dedo” de
zuruk (remeto o leitor ao Capítulo I). Dizem que não existe mais hoje em dia.
Mais tarde, quando trabalhava na aldeia Pé-de-Mutum, um homem surpreendeu-
se com esta classificação clânica, que inicialmente disse-me desconhecer. Fora, então,
perguntar a seu pai e este momento foi também aquele em que começaria a entender um
pouco mais sobre clãs e metades.
Primeiro o homem tentou localizar o indivíduo, quem ele era, onde morava, com
quem era casado, seu clã ou metade. Falou-me, em português que “zuruktsa” era o
apelido” do clã bitsiktsa (tucanos), em razão da pintura facial lembrar este animal.
Deu-me ainda dois outros possíveis “apelidos”. Parinihukakaraktsa, uma forma a que
chamam o pé de buriti (Mauritia flexuosa L.) e também “abektsa”, que não explicou,
mas que pode ser uma referência à gemelaridade, repudiada e considerada infecunda
pelos Rikbaktsa.
A este respeito é conveniente notar a rejeição que tinham a crianças
gêmeas (bektsa), quando ambas eram abandonadas no mato e a mãe cortava os cabelos,
como nos ritos funerários
218
.
Atualmente associado à metade makwaraktsa, o clã bitsiktsa é dos mais
controvertidos. Ouvi homens e mulheres makwaraktsa dizerem que os Bitsiktsa não são
muito importantes, só ajudam na festa quando não tem ninguém. “Antigamente não
eram convidados para as festas e não tinham raiva de não serem convidados. Não
aumentavam”, me diz Vicente Bitsezyk, homem makwaraktsa. Hoje em dia passaram a
aumentar. Conheci um homem que vim posteriormente saber ser bitsiktsa, mas que
218
Durante a gestação evitam a ingestão de alimentos gemelados (Holanda 1994:322), de modo a não
contribuir para aquilo que é considerado infortúnio (muzuza).
265
nunca mencionou este fato, identificando-se para mim enquanto makwaraktsa, sendo
ainda casado com uma mulhere hazobiktsa
219
. É importante fixar a informação de que o
clã bitsiktsa, atualmente associado à metade makwaraktsa, tem contudo algum
distanciamento com relação aos demais clãs desta mesma metade.
Nos diários dos postos de assistência escritos por Tolksdorf (1996 (1960):142)
há informações históricas muito oportunas sobre os bitsiktsa. No seu entendimento, os
bitsiktsa constituiriam uma “metade”, em contraposição aos “araras”, nos termos de
bitsik X tsikbaktsa. Não menciona hazobiktsa. No seu vocabulário primário e em seu
modo adaptado de escrever, Tolksdorf distingue ainda os “xibatza” (arara vermelha),
maquat” (arara amarela) e “xiro tura” (arara), que desconheço. É preciso notar ainda
que muito pouco era entendido da língua naquele momento e o vocabulário é repleto de
equívocos, mesmo para termos simples, pela própria execução da língua que
caracteriza-se por mutias contrações silábicas. Mateoreocutipá teria dito a ele (do que
ele pode entender) que estes grupos distinguem-se por ornamentos de penas das
respectivas aves.
Talvez isto fosse válido para bitsiktsa em relação aos “araras” (makwaraktsa,
tsikbaktsatsa e hazobiktsa) de uma maneira geral. Se pensamos a divisão makwaraktsa /
hazobiktsa, a não ser pela predominância de cores, seria difícil distinguir ornamentos
através de “penas” de araras. Certa vez ouvi falarem sobre um enfeite específico dos
bitsiktsa, mas hoje em dia são pensados como “parte” - embora mais distinta do que os
demais clãs - dos makwaraktsa. Bitsiktsa é sempre um “objeto” de discussão, um
contraponto para falar de si. Será difícil saber ao certo, a não ser que a posição dos
219
Havia rumores de que ele teria uma filha com uma outra mulher da metade hazobiktsa.
Lamentavelmente este homem fora assassinado em 2005, por um homem makwaraktsa de sua geração,
ou seja, um “-tsy”,que morava na mesma aldeia, ambos sendo professores e também alunos do 3º grau
indígena. Embora estes homens fossem muito próximos e andassem bastante juntos, já havia ameaças de
morte mútuas, sem que se soubesse de nenhum motivo objetivo para tal. Estavam na cidade de Juína e,
parece, haviam bebido. O homicida atirou com uma arma portada pela própria vítima. Talvez a vítima
planejasse, antes, matá-lo. Inicialmente desconheciam o assassino. Protestaram nas ruas da cidade de
Juína atribuindo o assassinato a garimpeiros e madeireiros, uma ameaça constante e sabida por todos. Só
depois descobriram tratar-se de homicídio cometido por um homem Rikbaktsa próximo e da mesma
metade da vítima. A atitude foi publicamente condenada, mesmo pela família do homicida. Por precaução
prenderam-no em uma pequena cidade, retirando-o da aldeia, onde correria o risco patente de execução.
As famílias do assassino e vítima uniram-se e ajudaram-se mutuamente. O filho da vítima assumiu a
função do pai, passando a lecionar na aldeia Cerejeira, onde assassino e vítima eram os únicos
professores. E assim nasce ou quiçá reproduz-se uma contenda, que pode arrastar-se pelo tempo e incluir
também “vinganças” post-morten. Homicídios com características semelhantes – ou seja, entre homens de
uma mesma metade e até de um mesmo clã -, infelizmente, são recorrentes. O antropólogo Aloir Pacini,
que me transmitiu a notícia, partilha da minha impressão de que, além de qualquer outro motivo possível
para o crime, pela própria posição cosmo-sociológica dos bitsik, há rivalidade entre eles e os demais clãs
Rikbaktsa, especialmente com os makwaraktsa, no discurso dos quais os bitsik não são “importantes”,
sendo considerados praticamente dispensáveis nos ritos.
266
Bitsiktsa é, como outros aspectos do parentesco Rikbaktsa, algo bastante incerto e que
admite história e variados discursos.
Outro dado de Tolksdorf é que Matereocutipá teria dito a ele que estes grupos,
tucanos e araras só se casariam entre si e nunca internamente. Arruda (1999:48) localiza
os bitsiktsa como parte da metade hazobiktsa, o que pelo menos atualmente não se
verifica, enquanto cita zuruktsa como um clã diferente de bitsiktsa e pertencente à
metade makwaraktsa
220
. Matereocutipá fala de bitsik e tsikbaktsa (a arara vermelha),
quando atualmente tsikbaktsatsa é pensado como clã “associado”, embora relativamente
distanciado, ao clã makwaraktsa. Makwaraktsa é um designador genérico segundo o
qual todos os clãs “aliados” desta mesma metade podem autodenominar-se atualmente.
Hahn, que trabalha entre os Rikbaktsa em 1971, assume a divisão entre as duas
araras vermelhas, a tsikbaktsa e a hazobik, dizendo que ouvira falar de outros dois clãs,
entre eles o bitsik, sem entretanto associá-los a um ou outro segmento, deixando em
suspenso se tais segmentos eram referências histórico-mitológicas ou algo relativo aos
dias atuais (Hahn 1976:59). Pacini (2000:1) chega a dizer em uma nota inicial que os
bitsik seriam “belicosos” – talvez em um entendimento equivocado da mesma passagem
do trabalho de Hahn que aqui cito, utilizada também por ele como referência - e teriam
sido exterminados no período de pacificação.
Este dados devem ser apreendidos, em primeiro lugar, levando em consideração
a possibilidade de equívocos de entendimento. Entretanto, o que considero fundamental
à etnografia é que ela contemple o aspecto histórico ao qual certamente o parentesco em
geral e especificamente o parentesco Rikbaktsa submetem-se. Mencionar o dinamismo
do sistema, os diferentes graus de proximidade e distanciamento inter e intra-metade,
sua intensa dependência do estado atual das relações sociais e a variabilidade dos
discursos conforme a posição dos narradores é algo igualmente necessário. O fato
comum é que os bitsiktsa constituíam e de certo modo ainda constituem um grupo que
se distingue dos demais, mesmo dentro da distinção makwarakta e hazobiktsa que hoje
é a operante.
220
Por mais que não possamos considerar as questões clânicas Rikbaktsa como assunto “fechado”,
Arruda cita o que em minha pesquisa surgiu enquanto “apelidos” que designariam um mesmo clã, como
clãs diversos dentro das metades. É interessante também que a metade makwaraktsa seja aquela sob a
qual paira a maior parte das controvérsias sobre clãs, onde, veremos, transparece haver mais divisões
internas do que na metade hazobiktsa. Até neste sentido da composição desigual de clãs e nos
arrajamentos de proximidades e distâncias internas diferenciados não podemos afirmar uma simetria ou
complementaridade perfeita e equilibrada destes segmentos.
267
Dentro deste universo de diferenciações, então, cada clã poderia ter “nomes” e
“apelidos”. Certas alcunhas definiam-se pela atribuição de semelhanças entre as
pinturas clânicas faciais e algum ser, como é também o caso do clã makwaraktsa, que
em razão de sua pintura bem no meio do nariz, lembra o “tucaninho” podendo ser
também chamado de bitsikpyryk.
Através da discussão zuruktsa/bitsiktsa surgiu também que certos “apelidos”
correspondiam a determinadas associações entre clãs de uma mesma metade e não a
clãs diferentes. Agregavam segmentos, a partir da referência a algum momento comum
aos clãs nestas transformações mítico-históricas. Indicavam semelhanças, distinções,
proximidades e distâncias através da inserção destes segmentos na temporalidade. De
um problema, o homem zuruktsa passou a apontar possíveis soluções.
As narrativas sobre clãs e metades eram sobre transformação de seres e gentes,
mas tais transformações não eram lineares e nem unânimes ou de domínio generalizado.
O dinamismo e a discursividade do tema ressaltavam-se para além de alguns
classificadores fixos. Então, clãs tinham nomes mas eram também designados por
formas outras.
Apesar das versões, discussões e imprecisões ou talvez por esta mesma razão,
clãs e metades relacionavam-se efetivamente com a cosmologia Rikbaktsa (Mauss
1971:272), uma vez que ela demonstrava-se, como venho insistindo, extremamente
flexível e aquecida. Quiçá pela diferença - entre seres, entre clãs e até entre metades -
nunca admitir significados tão absolutos, não houvesse como chegar-se a segmentos
sociais tão consistentes e incontamináveis entre si.
Clãs e metades são quase como mitos: permitem pensar sobre pessoas e sobre o
mundo, organizam-no de diferentes maneiras tanto quanto admitem versões diversas e
não haverá como desautorizar qualquer uma delas. Determinados aspectos são
partilhados e unânimes. Para citar segmentos que são de domínio público, todos
concordam que makwaraktsa (arara amarela), tsikbaktsatsa (arara vermelha) e
mybaiknytsa (coatá-macho) carregam marcas opositivas em relação aos hazobiktsa
(arara cabeçuda), umahatsa (figueira), tsawaratsa (coquinho), buroktsa (pau leiteiro) e
tsuãratsa (macuquinho). Isto não significa que esta oposição seja absoluta ou que ela
seja suficiente para definir tais segmentos.
Como tenho insistido, em muitos momentos as metades não comportam-se como
“blocos”, apresentando cisões e afastamentos dos segmentos internos. Se há grupos que
são de domínio público, o pertencimento dos indivíduos poucas vezes será
268
unanimemente exclusivo a um clã e algumas vezes transitará entre metades. Em razão
das noções sobre a paternidade, o pertencimento envolverá discussão e tomará
eventualmente formas de “acusação”, hesitações, todas no discurso de terceiros, dúvidas
que teimam em não se resolver definitivamente.
Se ainda não mencionei, nunca ouvi a própria pessoa definir-se enquanto tendo
pais de clãs diferentes da mesma metade, para não dizer sobre pais de metades
diversas
221
. Igualmente, jamais ouvi alguém falar – no caso de casamentos
“endogâmicos” - sobre a proximidade de seu próprio cônjuge ou de qualquer outro
problema advindo deste fato. Muito pelo contrário. Neste reduto podem surgir
justificativas que vão desde a alegação das pessoas não se conhecerem antes (algo que
obviamente só é possível para casamentos ocorridos no período pré ou durante o
contato), de sugerirem uma relativa distância entre os clãs da metade e até, como uma
vez ouvi, de alegarem “preferência” ou “gosto” (-akparawy) por tal combinação
matrimonial. Por estas relações tão estreitas, o tema de clãs e metades Rikbaktsa não
pode ser dissociado da paternidade, das noções de endo e exogamia e nem mesmo da
logística e da performance ritual.
Há vários planos, temporalidades e histórias que falam sobre possíveis e
diferentes momentos dos Rikbaktsa, gente na verdade, no mundo. Dispor estes
acontecimentos em uma linha única e cumulativa é tarefa inglória. Mas quando
mencionam clãs e metades a história primariamente evocada é a que Holanda
denominou “O segredo da preguiça” (cf. 1994:132). A preguiça (zarakuruk ou diri) é
referida em histórias diversas como avô (-diri) dos Rikbaktsa. Sua participação merece
destaque nestas histórias, porque é um personagem ambígüo, um ancestral que orienta
mas também conduz os Rikbaktsa a “equívocos” – diga-se, eventos que divergem das
expectativas originais dos atores - que resultariam no mundo como ele é hoje.
Descrevo aqui a história e outras associações sobre o tema que dela derivam
conforme pude recompô-las depois de diversos momentos em que falávamos sobre os
clãs e metades. Meu aprendizado foi, como manda a pedagogia Rikbaktsa, parcial e
gradativo. Retornava ao meu diário e tentava organizar as conversas esparças, para
depois devolver estas informações aos informantes e pedir mais explicações. Era preciso
que eu demonstrasse algum domínio e conhecimento dos fatos, que fosse capaz de
221
Hahn observa a mesma renitência em falar-se ou admitir-se para si a condição de múltipla paternidade
(Hahn 1976:132).
269
contrastá-los com outras informações, para que avançassem mais um pouco
222
. Os
informantes são principalmente Vicente Bitsezyk e Geraldino Patamy, ambos homens
makwaraktsa e isto certamente terá influenciado o caráter das informações. Digo isto
porque, de fato, este terreno é de muitas incertezas, de discussões e de dúvidas.
Perguntei para Helena Zydyk, que havia acabado de me contar que pouco antes
de seu pai morrer vira muitos quatis (aфwitsa) a passarem no mato de uma só vez, se o
coatá também era sparitsa, ou seja, animais que servem como prenúncio de morte ou de
encontro com mortos. “Coatá é também gente, mas quando tá canhando fruta,
arrancaram o rabo dele. O velho (refere-se ao marido, Geraldino Patamy) é que sabe
contar bem”, ela me responde.
Geraldino Patamy, quando perguntado sobre as categorias de relacionamento
entre ele e as pessoas da aldeia freqüentemente respondia-me sobre o clã destas pessoas.
Falava de “transformações” e de “nomes” que as gentes sofreram. Neste contexto me
diz que mybaiknytsa é “nome” e que “bitsitsiyktsa” é apelido. Mas que “arara é todo
mundo”. “Elas brigaram com macaco preguiça (zarakuruk) e arrancaram o rabo dele e
aí virou mybaikny. Este apelido é de arara vermelha”.
O conflito acontecera em razão da preguiça ter descoberto um pé carregado de
frutas muito gostosas, que os Rikbaktsa não conheciam. Enquanto os homens iam caçar,
a preguiça fingia ficar na rede. Esperava um pouco e ia em buscar das frutas. Trepava
no pé e comia tudo sozinha, sem nem deixar as cascas no chão. Os homens
desconfiaram. Mandaram primeiro macuquinho (tsuãra) (“inambu-
saracuíra”/Crypturellus variegatus) tentar espiar a preguiça ... mas ele nada conseguiu.
222
Este modo de ensinar, para o antropólogo extremamente penoso, ficou claro durante a minha
participação no rito do gavião-real. Antes de me dizerem qualquer coisa, me perguntavam o que eu
achava que eles estavam fazendo e o que estava, então, escrevendo. Contando com a sorte de
concordarem com as minhas impressões –nem sempre foi assim -, explicavam-me mais coisas acerca dos
eventos percebidos por mim. Outro modo de aprender é também pela participação e erro. Tocar (errado)
flauta com as mulheres me fez aprender, pela reclamação, que deveria “responder” à flauta da pessoa que
estava na minha frente, ainda que não tenha conseguido fazê-lo, senão com obra do acaso. Bater
exclusivamente com o pé direito no chão, enquanto tentava tocar a flauta, também o aprendi pela
reclamação. Mesmo nestes casos é preciso que considerem que valha reclamar com a pessoa. Não havia
um discurso pronto e acabado sobre o mundo, que pudesse ser linearmente proferido e gravado por horas.
Toda a narrativa Rikbaktsa é uma conversa. Algo que exigiria um estudo específico. É sempre dialógica,
exigindo um ouvinte participativo, que faça perguntas e interjeições de concordância, não-concordância e
de espanto diante dos fatos, que ria nos momentos devidos, enfim, que ajude tangencialmente e
ritualizadamente “conduza” o contar das histórias. Termos que expressam interjeições e concordância
devem ser utilizados: “yh (“concordância/sim”); “tok!” (“concordância/espanto/fim de um assunto);
“hute!” (“espanto/não acredito?”); “Φok!” (“concordância/espanto”); “paze!” (“não brinca!”). Mesmo
diálogos matinais entre homens podem vir marcados de certas ritualizações. É comum que dois homens a
conversar intensamente estejam lado a lado mas não se olhem diretamente. É sempre difícil transportar
esta experiência para o modo linear de escrita, associar a “desordem da experiência” e a “ordem da
escrita”, conforme destacou Jackson (1996:5) (trad. minha).
270
Depois mandaram tohoza (“caxinguelê”/Sciurus). Depois de enganar a preguiça, tohoza
descobriu o que ela fazia todos os dias enquanto os homens iam caçar. Tohoza avisou
aos outros que o avô comia as frutas sozinho todos os dias. Resolveram ir atrás da
preguiça.
Quando chegaram ao pé de frutas cercaram a preguiça que se viu descoberta. Os
homens gritavam pela preguiça, mas mesmo assim ela não jogava as frutas. Foram até
ela, dizendo que a derrubariam com fruta e tudo. Subiram, balançaram os galhos e a
preguiça desceu um pouco. Arrancaram seu rabo fora e jogaram no chão. Zarakuruk
wahorozyk é o nome do pé da fruta da preguiça, onde ela ficava pendurada e comendo
as frutas. A fruta mesmo chama-se (zarakuruk ywyk) e é comestível. Alguns disseram
que ela não existe mais, só antigamente. Um homem experiente disse-me, porém, que
ela existe e me apontou um pé de zarakuruk wahorozyk em uma andança pelo mato.
Daquela árvore escorreu o sangue do rabo da preguiça, arrancado por seus
companheiros. Os homens apararam o sangue em uma panela de barro (mypewy)
acharam bonito” e resolveram se pintar com ele. Esta qualidade de beleza e adequação
aparece aqui como em outras ocasiões em que procuram explicar a ordem e as tarefas de
clãs e metades. Da mistura entre os homens, o sangue que escorria do rabo da preguiça e
outras substâncias, surgiram as três araras, o coatá-macho (mybaikny) e a fêmea (ereme)
e uma série de pássaros. Dizem, os próprios Rikbaktsa.
A criação dos seres se dá a partir das seguintes misturas e/ou ordem:
1 tõntõ (anacã/Deroptyus accipitrimus): homem + sangue da preguiça + pau em brasa
no rosto.
2 tsikbaktsa (arara vermelha/Ara macao): homem + sangue da preguiça + sol, explicam
que a tsikbaktsa vive no sol
3 hazobik (arara cabeçuda/Ara clorophtera),: homens + sangue da preguiça + um pouco
de sol + sombra. Porque foi para a sombra o sangue não secou adequadamente, a
hazobiktsa vive na sombra, é considerada mais feia.
4 makwara (arara amarela/Ara ararauna): homens + fubá + sangue da preguiça (na
frente) + jenipapo (nas costas) + sol
5 piykyi (um pássaro pequeno, grená com branco/ não identificado): homem + sangue
da preguiça. A fêmea passou fubá de milho e ficou mais esbranquiçada. “Banhou no
restinho do sangue e pegou sol o dia inteiro” (Vivente Bitsezyk).
271
6 bahaza (uma espécie de periquitinho/não identificado Psittacidae):homem + um
pouco de sangue no peito
7 baizik (mutum-cavalo/Crax tuberosa)
8 huihuiy (passarinho do mato, da roça/ não identificado)
9 Kĩrehĩ (espécie de periquito/não identificado)
10 tsãra (maracanã guaçú / Ara severa)
11 nimytsik (jacamim / Psophia crepitans)
12 mybaikny
223
(coatá-macho/ Ateles) - Um homem grudou o rabo da preguiça nas
costas de outro homem e virou o coatá macho.
13 ereme (coatá fêmea/Ateles) mulher + palha de açaí+ pena de mutum-cavalo na
cabeça + pintura de cinza
O carvão misturado aos homens é tido como a origem de todos os pássaros
pretos. As cinzas, destaco, produzidas a partir do carvão, misturadas aos outros homens,
como a origem de todos os pássaros brancos, o que pode ser entendido diante da
classificação de cores Rikbaktsa, que inclui em uma mesma categoria (ibaraza) tons
como o amarelo, branco, azul muito claro e cinza. O fubá, destaco, aparece como meio
de tranformações corporais em outras histórias, como a da origem dos diferentes tipos
de porcos que também junta-se em algum momento à história dos clãs.
Reparamos que os seres aqui listados são aves e os coatás, mas eu diria mais
apropriadamente que são tipos de gentes. Todos são feitos a partir de homens, mas que
têm avô preguiça e aves e roedores como companheiros de caça. Destes, apenas quatro
são também nomes de clãs Rikbaktsa, incluindo aqueles que consideram centrais. Ou
seja, a história associada à uma “origem” dos Rikbaktsa e de seus clãs não encapsula
tudo o que existe, até porque não há um ponto zero do mundo em sua cosmologia. Nela,
as coisas e seres existem e são tomadas ou o que é novo advém, antes, de
transformações.
Uma outra idéia que considero importante é que a diferença parece muitas vezes
como algo que é quase “estético”, se me permitem a metáfora que no caso dos conceitos
rikbaktsa de “belo” (tsapyrna) e “feio” (batsisapy) pode certamente ter sua valência
ampliada às explicações sobre o mundo e tudo que há nele. A diferença, desta forma,
223
Mybaikny é a designação do coatá-macho desta história e o nome de um dos clãs da metade arara
amarela (makwaraktsa). Coatás podem ser referidos também por eremetsa, conforme as fêmeas são
também exclusivamente referidas. Vicente Bitsezyk diz que mybaikny é o macho de qualquer animal. Que
esta referência é utilizada normalmente para o macho do gavião-real (wohorek ikhitsita).
272
não é exatamente ontológica, dada a partir de matérias ou seres completamente isolados
e dissemelhantes.
Tudo vai sendo feito em um mundo sem criadores únicos mas repleto de
misturas que se dão de forma circunstancial, quase acidental. Primeiro, a partir de
“atitudes”, como o egoísmo da “preguiça” e os conseqüentes “conflitos” e “vingança”
dos homens, que arracaram seu rabo. Depois, a partir de “gentes”; porque há homens,
mulheres, que são também inicialmente aliados da preguiça e que fazem parte da
ontologia de todos os seres ali criados, porque partilham algumas substâncias comuns.
Dentro destas substâncias comuns, reconfiguradas a partir do conflito, além do sangue
da preguiça. determinante não-exclusivo de todas estas transformações-criações, há o
sol, a sombra, o carvão, a cinza, a palha de açaí e o fubá de milho
224
. Há também o fogo,
sem haver menção sobre quem o trouxe. Vicente Bitsezyk comenta a história:
A arara cabeçuda (hazobiktsa) deveria ter a pintura bonita que nem a
arara vermelha e amarela ... a gente diz que ela é piku tsitsi (bosta de anta). Ela
banhou no sangue ... não aguentou ficar no sol. A amarela passou fubá de
milho. O tõntõ, era para ele ser o principal também, mas quis logo banhar no
sangue. Os outros ficaram com raiva, e bateram na sua nuca, por isso ficou
pelado atrás. Ficou pequeno mesmo. A cara dele é preta ... foi pau em brasa que
jogou.
Sem maior investimento e referindo-se também à história da preguiça, Hahn
(1976:60) registra que posteriormente à criação das araras e do coatá-macho, houve
outras associações que redundariam nos clãs de seu tempo. Entre a arara vermelha
(tsikbaktsa) e zuruk – um grande animal que associam à onça” (id.: ib.) (trad. minha) -,
mybaiknaukatsa, e também com duas outras árvores, tsarytatsa (pau torcido) e
woholjuktsa (wohoreytsa). A outra arara vermelha (a cabeçuda) juntou-se ao jenipapeiro
(zerohopyrytsa).
224
Que aliás é algo que os Rikbaktsa dizem não saberem produzir originalmente, quando comiam apenas
cogumelos e frutas. Aprenderam a plantar milho (wanatsitsa), cará (iktata) e batata-doce (zodo), em todas
suas variações, com as formigas carregadoras matsiriktsa, que “eram” gente e que mostraram um grão de
milho para a esposa e ela gostou. Só então começaram a comer o milho e a plantar. Isto aponta na mesma
direção de que a história dos clãs ou seres dos quais vêm os Rikbaktsa acontece em um dado momento de
um mundo já existente.
273
Segundo meus informantes, os makwaraktsa ou arara amarela são associados a e
por isso têm o apelido de wohoreyktsa
225
, descrita como uma fruta amarelinha e
pequena que existe hoje, como também de bitsikpyryk, o tucaninho, em razão de sua
pintura facial lembrar este pássaro. Outra designação é a de uidatakaoktsa
226
, uma
árvore pequena e que dá sementes, mas não frutos comestíveis, nem por eles e nem por
bichos, sendo utilizada como lenha.
Os clãs tsikbaktsatsa e mybaiknytsa são associados ou podem ser referidos por
bitsitsiyktsa
227
(“uma árvore que dá uma frutinha amarelinha”, “imbirici”), o que de
certa forma, dentro do universo de uma mesma metade, os separa do clã makwaraktsa.
Lembramos também da posição algo distanciada dos bitsiktsa, mas que ouvi ora serem
associados aos bitsitsiyktsa e ora separados, tanto dos bitsitsiyktsa quanto dos
makwaraktsa e até das duas metades. Os hazobiktsa, em contraposição, não são
bitsitsiyktsa. Também não há classes de condensação entre os Hazobiktsa. Os clãs desta
metade podem ser referidos todos enquanto “hazobiktsa”.
Dentro da metade makwaraktsa temos então as seguintes aproximações e
distâncias, “nomes” de clãs em negrito:
1 makwaraktsa (arara amarela)
uidatakaoktsa(árvore)
2 tsikbaktsatsa (arara vermelha)
4 bitsiktsa (tucano)
zuruktsa (onça metafísica)
wohoreyktsa(árvore
)
3 mybaiknytsa (coatá-macho)
parinihukaka (árvore)
bitsikpyryk (tucaninho) bitsitsiyktsa(imbirici-grande),
formado por 2 e 3
abektsa
Dentro da metade hazobiktsa temos os seguintes segmentos:
1 hazobiktsa (arara cabeçuda)
2 umahatsa (figueira ou figueirão)
3 umahapyryktsa (figuerinha)
225
Há variação se estiver em questão um indivíduo específico, que seja do sexo feminino. Mulheres são
referidas como wohoreokoro.
226
Como na nota anterior, há variação se estiver em questão um indivíduo específico, que seja do sexo
feminino. Mulheres são referidas como uidatakaokoro.
227
Geraldino patamy fornece-me ainda dois outros tipos de imbirici. Além do bitsitsik, que é “grande”, há
o bitsitsikza, de folha pequenininha” e o bitsitsikhabobo, um que tem o pé bem baixinho”. Todas estas
árvores relacionam-se ao bitsitsik e aos bitsitsiyktsa.
274
4 tsawaratsa (coquinho)
5 tsuãratsa (macuquinho)
6 buroktsa (pau leiteiro)
7 zerohopyryktsa (jenipapo)
Há contrastes entre a diposição e composição clânica das metades feita por mim
e por outros autores. Primeiro para o discutido clã bitsiktsa. Pacini (comunicação
pessoal) inclui o clã bitsik na metade hazobiktsa, como o faz Arruda (1999:48). Mas
ambos não associam bitsik a zuruktsa, tratado como um clã diferente, ambos os autores
situando este último na metade makwaraktsa. Holanda (1994:297) diz que o clã
bitsiktsotsa surgiu quando, no tempo do imbirici bitsitsiyktsa) um grupo Rikbaktsa
mandou eles fazerem roça e então ficaram sendo o grupo bitsiktsotsa.
O clã myroktsa, que não foi registrado por mim, para Pacini (comunicação
pessoal),“peito” ou “enfeite dorsal”
228
e para Arruda –zotsa “pau torcido”, cada autor o
associa a metades diferentes, sendo hazobiktsa e makwaraktsa, respectivamente.
Holanda (1994:297) registra que o clã myroktsa não teria mais representantes e também
não ouvi menções a este clã sob nenhuma perspectiva.
Pacini (comunicação pessoal) cita ainda o clã tsarytsa, traduzindo-o como pau
torcido e o situa na metade makwaraktsa. Cita o clã “wohorektsa”, situando-o na
metade makwaraktsa, como faz Arruda (1999:48), mas nenhum dos dois associam esta
designação ao clã makwaraktsa. Hahn (1976) não fornece lista de clãs, considerando
apenas makwaraktsa e hazobiktsa, mas menciona algumas daquelas misturas,
aproximações e transformações de que falei. Alguns nomes surgem nestas operações e
podem ser identificados a clãs, mas não espeficica ou os inclui em uma outra metade. A
arara vermelha juntou-se com o coatá-macho e com uma árvore tsarytsata “pau
torcido”, e que a arara amarela juntou-se com outra árvore, a “woholyuktsa” (idem:60).
Nenhum dos autores distingue entre os possíveis “apelidos” de clãs, ou formas
de agrupamento que indicam distâncias e proximidades. Também não citam a posição
ambígüa dos bitsiktsa, um dado que me parece bastante importante e que só vem a
228
my-rok-tsa, my (1pl) – erok (peito)-tsa (pl.), “nosso peito”. Dizer que –zotsa é o “pau torcido” parece
constituir um equívoco, pelo menos de tradução. –zotsa se diz também com relação a vários “pais” de
alguém, zo “pai”, tsa “plural”). “pau torcido”, tsarytsa é clã citado por Pacini, como associado à metade
makwaraktsa. Também não o registrei, nem em menções, nem nenhum indivíduo que pertencesse a este
segmento.
275
reafirmar que há distanciamentos e diferentes gaus de diferença, mesmo dentro das
metades.
O sentido do “apelido” (-naro itsatsihi), este outro modo de designar a um nome,
expressa as diferentes maneiras de se referirem a mesmos segmentos. Remete-nos
também ao fato de que há um processo de transformações, aproximações e
distanciamento a partir de uma origem comum, pelo menos à maioria daqueles
segmentos, mas que se deu em sentidos diversos, por combinações peculiares.
Levando esta idéia às últimas conseqüências, makwaraktsa e hazobiktsa, como
muitos da série de seres que povoam o mundo seriam, em um momento ancestral,
também associados, porque vieram do sangue da preguiça, considerada o avô (-diri)
229
de todos os Rikbaktsa e de homens que eram seus companheiros e também mulheres.
De certa maneira, tudo já existia mas fora transformado, criando novas classes de seres.
Destaco ainda o fato de que avô (-diri), como os termos para esposa (-wytyk/-oke) e
marido (-barikta/-maku) serem os únicos termos de relacionamento que não são port-
manteau do dado de metades. Se na diacronia há segmentos diferenciados, em algum
momento todos podem ser simplesmente “araras” ou “gente” que um dia brigou com a
preguiça que canhava frutas (zarakuruk) e arrancou seu rabo.
Nas narrativas sobre o clã Bitsik, além do tema dos “nomes” e “apelidos” de clãs
que levam à sua concepção mítico-histórica, surgira um outro fator fundamental na
concepção atual de clãs e metades. Sua hierarquização, entre mais ou menos
importantes acontece em acordo com as funções nas festas, onde makwaraktsa e
hazobiktsa asumem funções centrais, de “donos” (hitsa). Demais clãs serão “ajudantes”
(ikahapyryktsa/ “menores” de festa). Estas mesmas designações servem pessoalmente
para o “dono” da festa, o anfitrião, e aquele que nomeia enquanto seu “ajudante”, que
pode tanto se um homem des mesma metade, algo como um sobrinho, quanto de outra,
como um genro.
Também neste sentido, a história da preguiça egoísta, apesar de não nos fornecer
uma explicação didática e capaz de encampar tudo o que existe, demonstrou ser uma
espécie de gatilho para que os Rikbaktsa falassem mais acerca de sua concepção do que
significariam clãs e metades.
Sempre insistem em dizer que makwaraktsa, tsikbaktsatsa e hazobiktsa são os
segmentos mais importantes. E esta classificação refere-se essencialmente a questões
229
Lembro que ka-diri (“meu avô”) é também um modo comum – com ares de jocosidade e depreciação -
de referirem-se aos brancos.
276
cerimoniais. A participação e a organização de festas (e toda a socialidade que elas
envolvem) é algo privilegiado na classificação de clãs e metades, uma expressão
fundamental da lógica que os articula. Ouve-se bastante, de homens e mulheres
makwaraktsa, que os hazobiktsa são mais importantes, porque nas festas vem à frente e
dão sempre início às tarefas, como rachar lenha, por exemplo.
O incidente com o rabo da preguiça é, assim, evocado para explicar esta divisão
de tarefas, pinturas e sua ordenação. Mais uma vez o critério utilizado é o da “beleza”
(tsapyrna), conceito que traduz a “adequação” e o “dever ser” no mundo Rikbaktsa:
Desde que arrancaram o rabo da preguiça é que foram vendo quem
tinha pintura, quem dançava. Experimentaram no final de festa (refere-se ao
fechamento das festas da estação seca e chuvosa). Primeiro hazobiktsa, segundo
makwaraktsa, depois bitsitsiyktsa
230
. Experimentaram assim e aí ficou bonito,
tsapyrtsa! Os amarelos experimentaram ir na frente, mas não ficou bonito.
Depois foram ver quem ia experimentar o mingau – mybaiknytsa
231
fez direito,
no final da festa.”
Demonstrando que estes arranjos não são prescrições, diz que os bitsitsiyktsa
(tsikbaktsatsa e mybaiknytsa) ajudam a baldear lenha, no fim da festa, mas podem
também ajudar os hazobiktsa a derrubar lenha, mostrá-la, quando eles conhecem lenha.
Sem fugir à sua posição paradoxal, os zuruktsa (bitsiktsa) são difíceis de ajudar em
alguma coisa. “Não é muito próximo de ninguém dentro dos amarelos. Eles só esperam,
se alguém precisar”, diz Vicente Bitsezyk.
Para determinadas danças, como a que mulheres de metade oposta dançam
atadas ao braço dos homens (-tsipa mynakari/ “ir dançar (no) braço”) e lhes fazem
pedidos, como peixes valorizados e outros itens, explica de modo semelhante,
estendendo o parâmetro da “beleza” para tudo o mais que envolve o ordenamento e a
performance nos ritos:
230
Reparo que aqui aparece claramente o segmento bitsitsiyktsa, como diverso dos makwaraktsa.
231
Atribuem a um mebro do clã mybaiknytsa a tarefa de “provar o mingau”, experimentá-lo (-akpy)
durante o fechamento dos ritos da estação chuvosa. A distinção entre experintar o gosto de comidas e
bebidas (-de) e experimentar propriedades das coisas, se estão adequadas (-akpy) será melhor explorada
no Capítulo V.
277
“Experimentaram “parente” com “parente”, não ornou – batsisapy – Aí
resolveram que iam dançar com não-parentes, aí ficou bom, tsapyrtsa. Ficou
bom até hoje .... (fico tentada a dizer que se julgarem que não fica mais bom de
tal ou qual jeito, poderá mudar novamente) Aí escolheram quem ia arrumar
flauta no final da festa, ficou o cabeçudo. Figueira, macuquinho ajudam,
quando não tem hazobiktsa. Tinha que tocar a flauta. Aí cabeçudo tentou
experimentar, mas não deu certo, não ornou. Aí deram para o amarelo e deu
certo. Se não der certo, faz de novo até ficar bom. Assim vai, até acabar...”
Experimentar (-akpy) é fundamental onde mais que “regras”, há “adequações”;
há a beleza no sentido Rikbaktsa do termo. Não há ordem ou regra anterior a ser
reproduzida, mas experimentações para que se escolha aquilo que “funciona”, o que é
“belo” e “adequado”
232
. Questões da organização social, seu “dever ser” ou suas
restrições não raramente são explicadas deste modo.
Neste sentido, o próprio casamento Rikbaktsa é algo que se dá no tempo, um
ajuste entre famílias e segmentos que, gradativamente, irá se institucionalizando ou não.
Há também nele um sentido de experiência, que poderá ou não ter sucesso. Assim, um
rapaz pode transferir-se para a aldeia de uma pretendida esposa e, depois de um tempo,
retornar, sem que a “experiência” tenha tido o resultado pretendido.
Há um momento marcado, quando o rapaz tem sua rede retirada do mykyry,
transferindo-a para a casa de sua futura esposa. Isto sela definitivamente a união. Ela
idealmente mas não necessariamente acontecerá em outra aldeia que não a natal. O rito
pode acontecer também para o casamento entre um homem e uma menina, que tenha se
casado ainda pequena, tomada como “criança de criação” (-ipykyhy). Neste caso eles
vivem juntos até que julguem que a menina tenha idade suficiente para ter relações.
Um par de mulheres ou um homem e uma mulher, na madrugada, entra no
mykyry e conversa com o rapaz. O casamento é mais um processo de aprendizagem, de
alguém com o segmento da noiva. Assim, o homem já namora, vai aprendendo a caçar,
pescar, fazer peneira e plumária, atributos imprtantes para que o casamento ocorra. A
conversa acontece de repente. Os parentes são consultados, se é de seu agrado e
marcam.
232
Gonçalves destaca entre os Pirahã este mesmo sentido da “experiência”, de testes e experimentos
sujeitos ao insucesso e que vão de encontro à idéia de que a cosmologia e a socialidade são,
respectivamente, o mero enunciado e a reprodução de um “dever ser” (Gonçalves 2001a:33).
278
Neste momento, dizem, o homem deve pensar. Se quer se casar realmente, se
quer tentar ou se não, se sente-se preparado o suficiente. Recebe orientações. Vai vendo
os parentes que vão ajudar e assim, ele vai tendo experiência. O rapaz pode ir para outra
aldeia, inclusive também seus parentes. Uma série de conhecimentos são necessários,
saber fazer peneira, xiri de palha nova de inajá, andar no mato. Há inclusive um
belíssimo artefato plumário (taΦuatsi Tutãratsa) que poderá ser usado por mulheres
casadas ou solteiras que farão a transferência do noivo para a casa da noiva
233
. Fica
claro que o casamento envolve, assim, o acerto e a experiência entre o homem, o que
pode incluir também seu “grupo”, e os parentes da esposa. E que, enquanto tal poderá
não acontecer, mesmo que tudo esteja “sociologicamente” adequado, digamos assim.
Para clãs e metades, a motivação de determinados arranjos foi a beleza. Vicente
insistiu que para tudo era assim. Para as pinturas, ordens ou desempenho de tarefas.
Citou como exemplo as diferentes penas de pássaros (arara amarela, arara vermelha,
mutum-cavalo, mutum-carijó) que igualmente compunham uma bela braçadeira longa
(pony-pony). Não eram tanto os conteúdos das diferenças que importavam, mas sim o
233
Seu cobre-costas é semelhante a uma cortina feita de conchas (tutãratsa) esculpidas em formato de
peixes que fazem muito barulho quando as mulheres andam na madrugada, procedendo à transferência da
rede dos homens do mykyry para a casa da noiva. Assim todos ficam sabendo, comentam. A peça é
belíssima e composta também por várias voltas de colares grossos de tucumã (taΦuatsi). Apresenta
também um cobre-nuca de roletes de taquara decorados, chamados flecha (orobiktsa) e ossos da canela do
gavião-real (wohorek ektsapu), para intermediárias da metade hazobiktsa, ou com pingentes de penas à
moda dos brincos masculinos e enfeites os mais diversos – como sementes, conchas, miçangas de brancos
e até botões, como pude observar – para as intermediárias da metade makwaraktsa. Este colar pareceu-me
uma espécie de síntese do casamento e até do socius Rikbaktsa, como toda a peça de plumária não deixa
de ser. Uma construção cuidadosa que vai sendo feita no tempo, com a ajuda de mulheres e homens de
diversos segmentos. Esta com a peculiaridade de ser feita com a participação ainda mais ativa das
mulheres. O taΦuatsi tutãratsa é a peça da plumária que melhor evidencia a consecução feminina, por
diversas razões de sua constituição. É praticamente feito por elas, em um universo de artefatos dos quais
se diz serem feitos exclusivamente por homens. Os cordões de tucumã, muitas voltas que caem sobre o
peito, são feitos exclusivamente por mulheres. O mesmo para os peixes esculpidos em madrepérolas. Elas
quebram as conchas (tutãratsa), e lixam-nas cuidadosamente uma a uma. Depois serão presas a fios de
algodão torcido também por mulheres. Homens participam minoritariamente, com os pendentes de penas
ou os roletes de taquara, ambos padrões feitos exclusivamente por eles. Toda a montagem da peça fica
por conta de mulheres de diversos segmentos/metades. O que acompanhei tinha dez voltas de colares
grossos de tucum finamente lixados, dez fios pendentes de algodão com 19 a 23 peixinhos em cada um
deles. Pingentes diversos com sementes, miçangas e botões, por se tratar de um colar makwaraktsa. O
“fazer” do tutãratsa, como também o chamam, inclui, assim, etapas diversas: 1- ir pegar os coco, o que
acontece sempre em conjunto com alguém, ou trocar, ou “ganhar”. O mesmo vale para conchas e
sementes. 2 - quebrar, cortar, lixar, enfiar (admitindo-se trocas de bens e serviços nestas fases) 3 - colher
algodão, preparar, torcer, ou ganhar ou trocar (idem), 4 - penas (trocadas, catadas), 5 - cera vegetal (em
um tutãra do qual acompanhei a confecção foi usada uma cera que trocaram com outros wahorotsa), 6 -
dias no rodeio fazendo pingentes ou roletes (para os homens), 7 - contas, miçangas, botões, também
ganhos, trocados, de outros segmentos e de brancos, 8 - até o “fazer” pontual, sua montagem, arrasta-se
por vários dias e poder ser, como o foi no caso em que acompanhei, dividido. A íntima relação que vejo
entre o produzir da plumária e produzir do próprio socius Rikbaktsa ficará mais clara no Capítulo V.
279
fato de, por sobre suas diferenças, sua combinação ser bela e adequada, “ornar”, como
especialmente Vicente sempre gostou de me dizer em português
234
.
A diferença, contanto que combinada adequadamente, é desejável. A identidade,
por outro lado, é considerada “feia” e “inadequada”, lembramos das práticas
relacionadas à gemelaridade.
235
. A ocorrência de casamentos intra-metades não tem
qualquer eco entre as pinturas de pais e filhos, que se mantém iguais. O que não se pode
admitir é a identidade absoluta dentro dos grupos domésticos. Uma identidade que além
de inadequada, se generalizada, impossibilitaria a performance de determinados ritos.
Todas estas contingências dos casamentos “endogâmicos” não são diretamente
mencionadas. Deles diz-se recorrentemente que são “batsisapy” durante as festas.
Assim, as pinturas dos clãs eram todas idênticas no início. Mas depois tiveram
que pensar na festa. Parecia que todos eram filhos de mesmas pessoas. Mas não eram.
Ficava “feio” (batsisapy). Pintaram com o próprio sangue da preguiça. Primeiro os
makwaraktsa, que tem a pintura pequena (tsibik), depois os tsikbaktsa, depois os
hazobiktsa, de pintura larga (tsiakiarna). Assim iam decidindo dialogicamente como
seriam as pinturas.
É certo que há traços que distinguem metades, como as alegadas pinturas mais
“grossas”, dos hazobiktsa e “mais finas”, dos makwaraktsa, e tais segmentos não se
confundem em nenhum momento. Há também pinturas faciais que identificariam os
clãs. Mas é necessário não esquecer que, também pela “beleza”, internamente às
metades, um clã pode tomar a pintura do outro, como inúmeras vezes me foi
mencionado. A mesma motivação que originou os arranjos é, desta forma, capaz de
alterá-los. Tarcísio Butamy diz que os clãs “roubaram” as pinturas entre si, aqueles que
não achavam suas pinturas bonitas, “sem graça
236
, como um que pintava toda a face de
urucum. Disse que antigamente cada clã tinha seus próprios ornamentos e que o arara
vermelha tinha os enfeites mais bonitos (de pena de tucano). Depois todos quiseram
imitar” e os “acessórios” não distinguem mais.
A distinção que enxergam entre as pinturas das metades dão o sentido de
beleza/adequação ao espetáculo, agregando sentido à associação e separação dos
234
Para coisas batsisapy e muitas brincadeiras entre nós, Vicente dizia o que se transformaria em um
jargão: “- Ah, batsisapy! Não orna não!”.
235
A este respeito é conveniente notar novamente a rejeição a crianças gêmeas (bektsa). Há, inclusive,
substâncias (okyry) que podem ser aplicadas a alguma mulher como “castigo”, para que ela tenha filhos
gêmeos ou três filhos. Durante a gestação evitam também a ingestão de alimentos gemelados (Holanda
1994:322), de modo a não contribuir para aquilo que é considerado infortúnio.
236
Como dizem em português das chichas não-adoçadas.
280
indivíduos, que até então viviam juntos, em grupos diferentes. Nos ritos um homem
deve estar pintado como e ficar ao lado de seu filho e de seu pai e, em contrapartida, sua
esposa e seu sogro, devem estar no grupo oposto.
Este mosaico de alternâncias entre tarefas, saberes e metades, este contraste de
diferenças, dão a “beleza” e “adequação” aos ritos, mas podem também ser revertidas,
se necessário. Vicente fala sobre o fato de, tradicionalemtne, os hazobiktsa fazerem e
afinarem as “flautas”, enquanto os makwaraktsa as experimentam. Descreve também os
protocolos que ordenam metades na festa da derrubada de árvores (iweweta) para
abertura de uma nova roça, que ocorre no início da estação seca amazônica, a partir de
julho:
“Quando acaba de afinar as flautas o cabeçudo vai entregando um por
um (as flautas) para o amarelo, até acabar. O que sobra fica para o cabeçudo.
Na derrubada também é assim. Na festa de amarelo, cabeçudo vai na frente. O
dono da derrubada vai escolher um cabeçudo para ir na frente. À noite sentam e
combinam. Quem sabe vai cantar de noite até 3 da madrugada. Aí todos sentam
lá fora, para ouvir o canto de perto. Não pode brincar. Aí vão falando o nome
do pessoal do cabeçudo, o de quem vai derrubar e o do ajudante e a árvore que
vai derrubar. Quando acaba passa para os amarelos, pode mandar derrubar
taúba que é grosso, chamar duas pessoas para ajudar, pode ser bitsitsiytsa. Às
4:30 passa para a rapaziada ou mulherada. Pras kykyry árvores mais finas. Às
5:30 tocam purawy (buzina de sinalização) e o dono explica que é perigoso, que
quer que tomem cuidado. É perigoso matar na derrubada. Se morre, acaba a
alegria. Grita muito, não sabe aonde vai. Às nove horas o dono de festa com a
mulher traz a merenda. Todos comem e bebem.”
De antemão digo que há exceções e que o fato de atribuições serem ritualmente
e até cotidianamente atribuídas a uma e outra metade – como é o caso de fabricar X
experimentar “flautas” – não significará que alguém não venha a alterar esta
correspondência. Primeiro se souber e depois se desejar. Estas possibilidades, como
acabei de mencionar, advém da própria natureza das tarefas e atributos das metades.
Eles não “nasceram” com eles, como vimos, mas foram demonstrando-se “adequados” a
eles, através da experimentação conjunta, instituindo-se pelo critério da “beleza”. Este é
o mesmo critério que fará de um hazobiktsa um excelente flautista, porque tocará
281
bonito. Mantém-se como horizonte um determinado modo de organizar os ritos, mas
dentro disso, exceções são sempre possíveis.
Este fato me surpreenderia em uma noite, quando um homem tsuãratsa resolveu
fazer “flautas”, durante as conversas costumeiras que aconteciam ao anoitecer do lado
de fora da casa de Geraldino Patamy, o sênior da aldeia Pé-de-Mutum. Estas conversas
eram quase como ritos diários.
Geraldino e algum outro homem deixavam o mykyry ao anoitecer, trazia seu
feixe de flechas e arco e o apoiava na parede externa de sua casa, ao lado esquerdo da
porta. Do lado oposto, mulheres e crianças desde o entardecer ficavam a ralar e furar
colares, conversar e comer alguma coisa, como castanhas ou chicha. E assim, a maioria
aldeões ia se chegando e procurando seus “lugares”, mulheres de um lado e homens do
outro, até a noite se estabelecer. Os assuntos poderiam cruzar-se entre homens e
mulheres e ambos se respondiam, permanecendo em lados diferentes da casa. Depois de
uma ou duas horas de escuridão todos começavam a se dispersar, salvo, se havia
convites de Geraldino para que adentrassem à casa, com o devido oferecimento de
algum alimento. Então, ele recolhia seu feixe de flechas e seu arco e entrava dentro da
casa, para pouco antes do alvorecer tornar a levá-los aos mykyry.
Em um desses dias, ao anoitecer, resolveram fazer e experimentar “flautas”:
Paulo (tsuãratsa) trouxe flautas (beregezektsa) (4). Está cortando em
tamanho decrescente. As flautas são transportadas como caça. São amarradas
com embira e vêm às costas daquele que vai fazê-las. É utilizado bambu do mato
ou taquarinha do mato (beregezektsõtsõ). A flauta, o bambu é furado com
flecha. Paulo afina a ponta. Há água no bambu. Fura e assopra para liberar o
orifício. Amarra a taquarinha com embrira e aperta a tensão do nó para afinar
a flauta, dar seu tom. Agora Salvador, Geraldino (ambos makwaraktsa) e
Eriberto (hazobiktsa) experimentam as flautas. (aldeia Pé-de-Mutum,
19/11/2002)
Eriberto Nabita é uma exceção à regra de que os hazobiktsa fazem “flautas” e os
makwaraktsa as experimentam e tocam. Contudo, ele experimenta e toca “flautas” mas
não sabe fazê-las
237
.
237
Hazobiktsa podem tocar flautas, mas esta é uma “atribuição” relacionada aos makwaraktsa. Nos ritos,
depois de feitas, as flautas são sempre dadas aos makwaraktsa e os hazobiktsa ficarão com as que
282
A heterodoxia Rikbaktsa eclodia dentro de arranjos institucionalizados. Em uma
outra noite de conversas ao lado de fora da casa de Geraldino, seu irmão mais velho,
Salvador Tsetsemy o visitava, pois chegara de uma viagem ao Aripuanã, da qual trouxe
um purawy. Já havia lido que o purawy era uma buzina de sinalização, que soava nos
ataques a inimigos, na festa da derrubada de árvores, um artefato que me parecia
bastante importante e, confesso, “masculino”. Naquela noite pude ver o purawy
passando de mão em mão, de homens e de mulheres e de crianças, que tentavam soprá-
lo sem cerimônia. Salvador me ofereceu o purawy para que eu mesma fizesse minha
tentativa. Disse que as mulheres podiam tocá-lo, se conseguissem. Antes, disse-me,
apenas os hazobiktsa tocavam o purawy, que hoje é um artefato que acompanha aqueles
que são os “donos” de festas, inclusive mulheres, ou que estão conduzindo alguma
empresa importante.
Um outro traço distintivo dos clãs são determinados perfis a eles associados,
como as expectativas diferenciadas de “fertilidade”. De um modo geral os clãs da
metade hazobiktsa são tidos como menos populosos, desde que deles têm notícia
238
. Sob
a perspectiva Rikbaktsa, esta diferença numérica não significa, em nenhum momento,
qualquer tipo de colapso demográfico atípico.
Dentro dos hazobiktsa, apenas o clã umahapyryktsa é considerado muito fértil,
os homens produzindo muitos filhos. O tsawaratsa é tido como especialmente infértil.
Os homens não fazem muitos filhos. “Só um ou dois. Às vezes duas meninas” (Vicente
Bitsezyk), o que evidentemente não contribui à reprodução nem do clã, nem daquela
metade, revertendo-se ainda, em tese, para o aumento da metade makwaraktsa.
Os clãs apresentam compatibilidade de sangues (-spu) semelhantes ou mais
afeitos. Desta idéia deriva a adequação de possíveis combinações matrimoniais,
lembrando sempre que estas explicações não têm de forma alguma caráter de
prescrição. Ainda mais se tomamos em consideração a freqüência com que se atribui
“misturas” clânicas à constiuição de um indivíduo. Desta forma, estes perfis intuem
diferenças entre estes segmentos, versando sobre as dificuldades ou adequações entre
cônjuges e sobre as misturas preferenciais, sub-distinções dentro do ideal exogâmico:
“sobrarem”. Isto é mais significativo nos ritos da estação seca, quando há menos flautas.
238
Quando vão atribuir clãs a homens brancos de suas relações dizem observar se eles têm muitos filhos
ou não, sendo este um dos critérios para definir seu pertencimento a um ou a outro segmento.
283
Amarelo procura mais hazobiktsa (arara cabeçuda). Se casa com
umahatsa (figueira) eles brigam muito ... eles têm sangue muito nervoso:
tsisakparza!” as mulheres são brigonas. Assim mesmo eles casam só para
brigar. Amarelo com hazobiktsa dá mais certo.” (Vicente Bitsezyk).
Os makwaraktsa em geral são ditos mais tranqüilos, por isso experimentariam
tudo, como as “flautas” feitas pelos hazobiktsa e o mingau nas festas. Os bitsitsiyktsa
combinam mais com os umahatsa, porque têm o sangue mais forte, os dois têm
(Vicente Bitsezyk). Novamente aparece posição controvertida do clã bitsiktsa, e Vicente
me diz que as mulheres hazobiktsa
239
não queriam casar com eles, porque não eram
importantes”. “O mais certo era bitsik com umahatsa, porque bitsik também é nervoso,
aí combina melhor. Quando está bem certo, combina: tsapyrna” (Vicente Bsitsezyk). É
comum, ouvir-se que os umahatsa são “ruins” e que os hazobiktsa, mais tranqüilos.
No domínio destas incompatibilidades surgem também impressões sobre os
casamentos intra-clânicos:
Quando makwaraktsa casa com makwaraktsa não pode brigar, ter
ciúme, tem que deixar namorar com outra, deixar o marido solto, senão é feio,
batsisapy, e nem homem pode brigar com a mulher, porque tem que ficar alegre
com a sua família.”
Diz que a mulher é “fraca” e “não agüenta, fica doente”. Desta forma, se brigam
com a mulher estariam brigando com a própria família. Se a pessoa briga então é porque
não considera como sua família, me explica Vicente. Ouvi relatos que relacionavam
“doenças” e a “magreza” de casais à prática de casamento intra-clânico. Caracterização
esta que não é empregada com pouca freqüência o caso de casamentos intra-metade,
porém entre clãs diferentes.
No cotidiano é patente a condenação mais incisiva de casamentos intra-clânicos
do que daqueles entre clãs diferentes de uma mesma metade. Objeções e comentários
pejorativos surgem sobretudo na fala de terceiros e não deixam de ecoar sobre o estado
e a intensidade de relações entre pessoas e domicílios. Isto não significaria dizer,
entretanto, que onde as relações são intensas estaría-se à salvo daqueles comentários.
239
Mais um fator que coloca os bitsiktsa como associados aos makwaraktsa.
284
Neste sentido, o contexto ritual indubitavelmente é um facilitador na
ressurgência deste tipo de tema. Nas festas, um distintivo comum a qualquer
modalidade de casamento intra-metade e que não é de menor importância, é uma
determinada noção de espacialidade e beleza que ali se concretiza e ganha visibilidade.
“Feio” e “inadequado” são as pinturas semelhantes de pais, filhos, esposas e sogros,
como mencionei em ocasiões diversas, mas também o fato de ocuparem espaços
semelhantes, de não estarem distribuídos entre seus respectivos e idealmente diferentes
grupos, desempenhando funções concomitantes e referenciadas, porém separadamente.
Sempre que falávamos sobre casamentos “endogâmicos” era usualmente evocada a
inadequação das pessoas nesta situação.
Clãs aparecem também em uma outra história sobre a transformação de
consangüíneos em diferentes tipos de porcos (pazahare my-zik/ “virar porco”), à qual é
também atribuída a origem dos próprios porcos. Dizem que antes disso não existiam
nem porco e nem onça, o que é notável. Tal qual na história da preguiça egoísta, aqui
também as filhas egoístas de um homemo transformadas na mesma medida em que se
tornaram outros seres:
Quando a mãe morreu a criançada ficou só com o pai. O pai matava pássaro,
mutum, arara para os filhos.(...) Macaco também. Eram 3 meninas solteiras. Elas
preparavam as carnes, mas não davam para o pai. O pai foi só juntando as penas, jacu,
arara... Ele foi e disse que as filhas não arrumavam nada para ele. Só elas que comiam.
Depois ele não aguentou. Fez um montão de pena de pássaro, saiu escondido.
Um pouco longe da casa, fora da estrada, onde o pessoal não andava, fez
curral só de pena, casinha. Quando aprontou tudo chamou as filhas e levou para o
curralzinho, como casinha. Aí ele mandou que elas socassem milho. Elas levaram o
fubá de milho. Explicou para elas que elas ficariam lá, se separariam dele. Aí ele pegou
o remédio do mato de porco( parahaze okyry), pegou uma filha, mandou a filha
abaixar para que ele passasse o remédio-o-mato. Em algumas filhas ele passou o fubá
no queixo para ficar branco.
Quando acabou tudo, elas só ficavam de quatro. Disse para que ficassem lá,
esturraram e ele foi “soprando”. Elas foram virando bicho e entraram no cercado.
Elas tinham um irmão homem que ficou com o pai. Ele o levou, aí fechou a porta e foi
embora. As irmãs ficaram presas, esturrando. Isso aqui é onça, porco, foi o mesmo
remédio que fez esta mudança. Antes disso não existia porco e nem onça. “- Fiquem
285
aí” (disse o homem). Daí uns 15 dias a gente volta. Tinha bastante feridinha no pé do
guri. Disse para ele que não contasse nada.
Depois de alguns dias ele foi ver. Chegou perto e começaram a esturrar.
Quando ele chegou, viram que era o pai e não fizeram nada. Perguntava: “oi,
criançada, como estão” e voltava. Depois tornava a visitá-las. Quem sabe eu vou lá,
vou comer um ... aí ouviu cada esturro brabo! Levava sempre o guri. Estava primeiro
só “criando” - foram aumentando em número, muito rápido -, para então matar. Saiu
um e ele fechou aporta, ele flechava e ia, antes de esfriar o sangue ele soprava e o
porco crescia ainda mais. Cortava, distribuía. (...) Não é gente não, é porco. Botava
num xire e carregava. O guri, que tinha frieira nos pés (i-pyry-wiwi-tsa), também. Ia
embora. Chegava na casa e distribuía para a família (irmão/sobrinha), ficavam
alegres. Levavam a cabeça no mykyry, assavam, comiam. Conversavam sobre a
caçada. Ele mentia, dizia que era longe, que tinha matado só um porque estava
sozinho. Acabava a carne ele voltava. Deixava o guri em cima do pau. Os bichos
esturravam. Sabiam que era o pai. Não podia deixar mais do que 3 saírem, porque era
perigoso, podiam matá-lo. Quando saía um já fechava a porta. Saía pequeno, ele
soprava e ele crescia. Fazia igualzinho. Tratava, punha no “xire” (peryk - cesto para
transportar coisas e caças), levava e distribuía.
Aí perguntavam onde ele achava porco, se tinha bastante. Perguntaram para
onde os porcos foram, o dono do porco mentia, dizia que iam pela estrada, os homens
iam e não achavam nada. Aí voltavam de tardinha, sem nada. “-
Acharam?”(perguntava o dono dos porcos aos homens) “-Não! Deixa pra outro dia, a
gente vai!” Depois disso foi no mato espiar de novo, levou o filho, chegaram, abriram a
porta e foi tudo como antes. Distribuiu, comeram a cabeça no mykyry. Quando acabou
a carne, o dono do porco (parahazetsa tsihi). saiu para andar e deixou o guri na casa.
Foi caçar no mato, em outro lugar. Um rapaz resolveu ir lá sondar o guri. (...) não sabe
se era parente ou se era casado. “- cadê papai?”, perguntou o homem, “- foi no mato”,
respondeu o guri. “- vai voltar quando?”, “- não sei, de tarde”. “- Onde seu pai mata
porco?” “- Porque?”. (primeiro ele disse que não queria contar) “-lá mesmo!”. “-
Como, se a gente anda e não acha nada! Fala a verdade!” “-Ah!, papai tá criando
porco!” “- Onde? Tem muito? Leva agente lá?” “-Ah, papai vai zangar!” “-não,
agente mata um só e volta!”, “- Mas eu não posso andar (por causa da frieira)!” “-
Mas agente te leva!” “- Então tá!”.
O menino levou o homem nos porcos. Chegando lá esturraram, ficaram bravos
porque não reconheceram o cheiro do pai. O menino disse que o pai deixava ele no pau
e não no chão, por causa da frieira. Também que o pai abria e deixava sair só um,
matava os pequenos e que depois os soprava e ficavam grandes. O homem não
286
acreditou, deixou sair porco e até onça. Estranharam porque não era o pai deles,
acabaram com o homem, comeram todo ele, não sobrou nem osso. Ficou limpo onde o
homem morreu. O guri ficou no pau, não podia andar. Reconheceram o irmão, que
não podiam matar. Roeram o pau até ele cair e levaram ele embora para o córrego. Aí
foram um bando de porcos, caçar haraky. Davam o carangueijinho para o irmão
comer.
O pai voltou cedo e não achou o guri.”-Quem levou? O rapaz!”. O pai já
sabia, correu, estava tudo triste, sem barulho, viu só limpeza de homem, parecia
capinado com enxada! Ele foi atrás, para ver se o filho estava junto. Seguiu por
estradão que os porcos fizeram. Já escutou esturrando, o homem gritou para eles.
Primeiro esturraram, depois pararam, viram que era o pai, fizeram roda e colocaram o
pai no meio. Conversaram. Perguntou do homem, os porcos contaram que o tinham
comido.
Ele falou que agora ele não ia mais levá-los para a casinha, que eles seguiriam
cada um para seu lugar. Deviam escolher seu lugar no mundo, explicou, disse que
tinham que saber fugir, senão morreriam. “-Tá bom”. Aí o homem viu que alguns
eram mais fortes, aumentavam muito rápido.
Muito porco, magrinho, pequeno. O homem foi separando. Primeiro estavam
todos grudados com o pai deles (“- tem muita gente atrás de vocês, se não souberem o
lugar certo, você morre”). Onde o sol nasce não tem perigo, você escapa, onde o sol
morre têm perigo, morre muito, porque eles atalham a caça. O sol nasce o porco vai na
direção do poente.
Só que sempre matam poucos porque escapam para o lado do sol nascente.
Explica que tem que voltar para trás, para onde vieram, por isso o porco nunca vai
para a frente, sempre dá a volta, para trás, quando ouvem tiro. O homem explicou tudo
como era, para eles não morrerem muito. Aí dividiu tudinho.
1º bitsitsiyko. Porco miúdo tem muito, tinha catinga forte bitsitsiyktsa.
2º wohoreoko – porcão, que não é pouco, é muito (makwara, catinga fraca,
parece anta, sirubarna)
3º witsibaoko (parente de amarelo, mas um pouco fora) Porco também, muito
gordo, grandão, catinga fraca. (com raiz alta) witsiba – paxiúba, agente faz casa com
ele. A raiz é só espinho.
4º tsawaraka (pouco porco, um pouco catingoso, pequeno. O porco grande tem
pouca catinga e os pequenos mais.
5º uidataoko – não tem muito também não, o que aumenta mais é o bitsitsiyktsa,
dá medo deles, fedido, tsitoskartsa.
287
Aí distribuíram, cada um para seu lugar. De onça ele não falou nada, está
sempre acompanhando porco, por isso que é assim, onça fica junto, come. “- Agora
vocês podem ir embora” (disse o homem). Dividiu. Só não mandou porco para onde o
sol some, porque é perigoso, morre muito ... mesmo quando vão para a direção do
poente, os porcos voltam (explica-me)”
240
.
Prossegue com as características dos tipos de porcos:
“Tsawaraka e wohoreoko têm queixo branco. É como gente, têm estes
clãs , mas só estes. Do lado dos cabeçudos tem só tsawaraka (com pouquinho).
(...) Aí o homem não ficou mais sendo dono do porco. Trouxe o menino de
volta. Voltou. Ficou triste porque perdeu os porcos. Depois de um tempo eles
voltaram. Primeiro não existia porco, só caetetu, veado cinzento.”
Wohoreoko, tsawaraka e bitsitsiyktsa ficam à esquerda de onde o sol nasce e
wiktsikbaoko à direita de onde o sol nasce. Os porcos gordos ficam no meio – “o miúdo
fica do lado, para não matar o gordo” – estes são difíceis de matar. São os chefes.
Fogem primeiro. Ficam também todos estes tipos misturados, os porcos machos
(“cachaços”) também ficam no meio, para que não sejam mortos.
Além do fubá de milho, que reaparece como catalisador de mudanças, há
influência de certos dotes xamânicos do pai, que no caso Rikbaktsa relacionam-se ao
conhecimento de substâncias (folhas, penas e cinzas) que podem operar transformações
de toda sorte, corporais, psicológicas, curativas e etc. Desta forma surgiram tipos
diversos de porco como as onças, tendo os porcos a particularidade de dividirem-se em
“clãs” ou “sub-grupos”, como os Rikbaktsa (com exceção do witsibaoko) com atributos
próprios.
Em que medida porcos ou alguns deles e mortos misturam-se é também algo que
a história levanta. Porcos podem ser mortos e abandonados na beira da estrada se
240
Mesmo com diferenças significativas e com uma maior riqueza de detalhes, é inevitável a comparação
deste mito Rikbaktsa com os mitos sobre a origem dos porcos-do-mato analisados por Lévi-Strauss,
notadamente, o par de mitos Munduruku e kayapó-kubenkranken ([1964]2004:111-112). No mito
Rikbaktsa, entre outros contrastes, observo que o conflito que gerou a transformação se deu entre o que
seriam, à princípio, “consangüíneos” (filhas solteiras de um homem em uma sociedade patrilinear e
uxorilocal) e não entre “aliados” (idem:115). O papel do homem frente aos porcos é também peculiar. De
certa forma, atuava como seu protetor e, após o incidente de saírem todos do curral, ensinou-os a fugir à
“predação”.
288
desconfiam que são, na verdade, mortos ou algum tipo de parente. Mortos são também
enterrados com a cabeça para o sol nascente, caso contrário, a família também poderá
morrer. Certamente isto virá a relacionar-se com o terreno arriscado da caça, neste caso,
de porcos, onde, reafirmo, corre-se sempre o risco de indesejadamente matar algum
morto. No final das contas, porcos surgem de gentes e como uma espécie de “resultado”
pelas caças processadas que as filhas negavam ao pai. Mortos são gente que se
“transformará” em alguma medida e que, como enfatizam nos ritos funerários, sofreu
vingança ou maus-tratos, notadamente dos seus. Para não falar das onças; por
excelência, formas portadoras de mortos.
Gostaria de concluir esta tentativa de exprimir um pouco dos sentidos possíveis
dos clãs e metades Rikbaktsa e, mais ainda, daqueles implausíveis, evocando o trecho
de Marcel Mauss que fiz de epígrafe: “El clan es la vida, es la sangre.” (Mauss
1971[1947]:267). O leitor poderá estar a perguntar-se sobre o descompasso do que
venho explicando até aqui e a idéia de Mauss. De acordo com ela, o clã é a
circunscrição do “sangue” e sangue é para Mauss o lugar de uma “identidade” que
jamais atenta contra si. Homicídios internos aos clãs devem-se tão somente a acidentes
(idem:269).
A idéia de Mauss prontamente chamou a minha atenção pelo contraponto que
poderia representar a este caso etnográfico. Entretanto, se consideramos o sentido
Rikbaktsa de vida, do fluxo entre seres, entres gentes e da instituição de “sangues”,
compostos de uma semelhança que nunca deixa de abrigar também a diferença, a frase
parece-nos cada vez mais procedente, conquanto não se preste a uma definição
exclusivista dos clãs. Não preciso depreender que se tudo que há são diferenças, conflito
e homicídios podem ocorrer ou serem jurados dentro das metades ou dos clãs.
Estes grupos podem admitir conteúdo variável no tempo, mas também na
sincronia do discurso de indivíduos diversos. Da mesma forma, podem assumir
significados diversos, muito além ou aquém, por exemplo, do sentido matrimonial ou da
posição de alguém ao nascer. A contextualização das relações pode conduzir a
avaliações diferenciadas das lealdades, distâncias e proximidades entre grupos ou
indivíduos.
Se as histórias ligadas aos clãs são parciais e não explicam os detalhes de tudo,
deixam claro ao menos algumas coisas. Que as diferenças entre clãs e metades existem,
mas são circunstanciais e não-absolutas, porque, em alguma medida, todos têm alguma
semelhança em sua constituição. E também, que este caráter de sua constituição remete
289
a um dado período de determinadas transformações ocorridas entre estes seres e
matérias.
As noções sobre “origem” e “constituição” híbridas dos segmentos sociais
juntam-se, ainda, à variabilidade cosmo-fisiológica da constituição dos indivíduos
atuais. A gama de relações que se pode ter com eles a partir das possíveis e variadas
perspectivas, afasta-nos definitivamente da idéia de que a genealogia estrita poderia
fornecer um modelo único e eficiente para definir relações ao nascimento, quando o
próprio nascimento é algo controvertido. Desta forma, uma abordagem dos clãs e
metades Rikbaktsa que não deixasse explícito seu caráter histórico e dinâmico, seria
ainda mais imprecisa do que o que descrevo aqui pode fazer crer.
Tratar este segmentos – sejam eles clãs ou metades – como absolutamente
fechados e fixos, submetidos à genealogia strictu sensu, com regras e organização
ortodoxas é algo, além de improcedente, infactível. Mas há regras e, principalmente, há
nos discursos uma divisão central marcada pelos makwaraktsa e pelos hazobiktsa, pelos
amarelos” e pelos “cabeçudos”, respectivamente. São importantes distinções
filosóficas, ainda que de um conteúdo, sob muitos aspectos, notavelmente mutável.
Esta divisão que parece ter precedência, mas de cujo o conteúdo não é
permanente, comporta uma série de outras divisões e associações internas. Esta
“flexibilidade” é mais um fator importante no “equilíbrio” e complementação precários
entre as “metades”. Isto diferencia-se da ortodoxia usualmente imputada aos jê.
Possibilita também a eclosão de conflitos e misturas onde, à princípio, pela “regra”
ideal, isto não apareceria. Pois parece não haver aqui qualquer relação obrigatória, no
sentido de estritamente prescrita. Por mais que durante o campo a divisão entre
makwaraktsa e hazobiktsa tenha se demonstrado operante, investigações mais
profundas, como a própria etnografia do rito do gavião real, afastavam a idéia de que
esta oposição fosse, privativamente, capaz de explicar o socius Rikbaktsa, traduzindo de
modo perfeito a relação entre homens e seres ou “natureza”.
Descrevo a seguir uma história exemplar neste sentido. Com ela pretendo
finalizar provisoriamente este item que não deixará, contudo, de estar em questão nas
próximas seções deste capítulo. Uma história composta de homicídio e de execução,
mas onde se pode vislumbrar um pouco do fluxo das relações de todo o tipo que
compõem o socius Rikbaktsa. Há nela vários componentes. Envolve relações
interétnicas e de inimizade, concepções de paternidade e pertencimento, a dinâmica de
casamentos endogâmicos, os comentários de terceiros que tão bem demonstram as
290
fortes expectativas da socialidade aldeã, a solidariedade entre indivíduos de metades
opostas e os juramentos de vingança entre indivíduos da mesma metade, proximamente
aparentados, e o sentido histórico de todas estas relações.
O caso se passou no fim da década de 80, na aldeia do Barranco Vermelho. Na
primeira noite em que passei na aldeia do Barranco Vermelho, ainda em minha primeira
viagem de campo, surpreendentemente, Mônica Neidy, esposa do então capitão relatou-
me este caso que se tornaria célebre, descrito também por Arruda (1992: 466-470).
Contudo, utilizo-me aqui principalmente do depoimento de Silvia Tapyk, colhido um
ano mais tarde na aldeia Pé-de-Mutum, e também de informações colhidas em outros
contextos, as quais considerei importantes para meu corrente propósito.
É necessário dizer que esta é uma versão destes fatos que não presenciei, que
inclui o comentário de terceiros sobre atitudes e responsabilidades, mas sobre os quais
ouvi referências múltiplas. O evento fatídico que culminaria na execução de um Iranxe
tornou-se notório e teria conseqüências importantes até sobre as relações entre os
Rikbaktsa e os jesuítas, encerrando de certa maneira, a demorada transição do posto
Barranco Vermelho à aldeia Barranco Vermelho (cf. Capítulo II).
Dos quatro Iranxe envolvidos, três eram filhos de uma mulher Rikbaktsa (Ilson,
Ilton e Nestor), Cecília Mabe (metade hazobiktsa) e de seu marido Aníbal Iranxe. Pela
teoria da concepção Rikbaktsa os filhos de Mabe eram apenas Iranxe, não sendo
tangencialmente considerada ou discutida uma possível identidade Rikbaktsa para estes
rapazes. O fato primário aconteceu com o marido de Maria Luíza (mybaiknytsa),
Luizinho (makwaraktsa). Ele teve um envolvimento com a esposa de Nilton Nikta
(metade hazobiktsa), Maria Lúcia.
Luizinho e Nilton eram compadres pelo batismo dos filhos. Luizinho era “caixa”
da associação Rikbaktsa e resolveu fugir com a Maria Lúcia, a filha e mais um “iranxe”
que tinha relações com a menina, que hoje tem um filho deste “iranxe”. Quando o
dinheiro acabou – depois de quatro meses mais ou menos – voltaram, cada um para seus
cônjuges. Mas Maria Luíza (makwaraktsa) e outros que eram contra Luizinho
(makwaraktsa) - entre estes Gilson (hazobiktsa), casado com uma das filhas de Mabe -,
acusado de ter roubado uma caixa de dinheiro, resolveram matá-lo. Alguns acrescentam
que uma série de pequenos conflitos vinha se estabelecendo, ocasionados por eventos
pouco extraordinários como o espancamento de um cachorro.
Beberam muito e foram quebrando as coisas dele e então Gilson e os cunhados
“iranxe”, todos estavam bêbados. Maria Luíza estava em outra casa. Ouviu a bagunça e
291
depois viu o marido esfaqueado. Falou com Darci (umahatsa) e Roque (hazobiktsa).
Antes de falecer, Luisinho atirou em Nestor, que morreu nesta ocasião.
O filho de Luizinho acertou Ilson na cabeça com uma enxada, e ele está
paralisado até hoje. Depois disso os iranxe saíram e Isidoro (hazobiktsa) disse que não
iria perdoar nem Roque (hazobiktsa), pai de Gilson e nem o próprio Gilson, pelo que
haviam feito. Jogaram suas armas na água e os velhos decidiram que Isidoro mataria
Aníbal, que tinha, por sua vez, matado One (makwaraktsa) há algum tempo atrás.
Aníbal não morava na aldeia. Ficou lá um mês, querendo construir casa e estava
“jurado” na aldeia iranxe pela morte de outro parente. Depois da morte de Luisinho,
Aníbal refugiou-se em uma ilha, sem levar consigo nem a própria rede.
Em busca de socorro, feridos das duas partes vão juntos à cidade de Fontanillas,
acima do rio Juruena, na margem oposta à TI, onde são encaminhados ao hospital pelos
missionários. O ato dos religiosos, por sua vez, provoca reprovação na parte vitimada,
por ter assistido igualmente vítimas e assassinos. Os parentes da vítima clamam por
vingança e a situação torna cada vez mais evidente a série de facções antagônicas que
compunham a aldeia, fazendo emergir a luta, para Arruda “fratricida”(1992: 467), entre
clãs e metades.
Inicialmente compõe-se uma espécie de “tribunal” para a apuração dos fatos, do
qual participam um sênior reconhecido, e dois parentes das duas partes envolvidas, a
saber, a “gente” de Roque e do homem assassinado, notando excluir-se qualquer parente
dos Iranxe, à exceção de seus afins. Em caráter final é decidido, então, que o Iranxe
mais velho, portanto o sogro e pai dos homicidas, seria executado, o que ocorreu após
seu retorno de seu “esconderijo” na ilha.
Aos Rikbaktsa envolvidos, a pena foi a expulsão da aldeia, juntamente com suas
famílias, levando apenas alguns pertences pessoais, arco e flecha e instrumentos de
trabalho. Armas de fogo teriam sido apreendidas até que a pena de quatro anos longe
das demais aldeias e sem sua ajuda fosse cumprida. Estariam ainda proibidos de
desencadear qualquer tipo de vingança ou ameaça, ao que seriam também executados.
Em outro momento Aníbal retorna ao Barranco, mas Isidoro já estava sondando.
Anibal voltou por causa da arma. Isidoro (hazobiktsa) falou para Roque (hazobiktsa)
que se Aníbal viesse, ele deveria agradá-lo e oferecer café, que se não o fizesse seria
morto também.
Aníbal veio e Roque assim o fez. Relutou em tomar o café. Estava desconfiado.
As pessoas estavam todas armadas e escondidas. Isidoro estava dentro da casa. Foi
292
avisado da presença de Aníbal, saiu e falou para Aníbal que agora ele ia morrer, que seu
filho já tinha matado parente dele. Deu tiro na barriga, quebrou o braço dele. Depois
deram mais tiros e mataram com revólver. Riram dele e judiaram, disseram para ele
correr. Disseram para enterrá-lo raso, não no fundo, enterraram e deixaram a perna de
fora. Colocaram só pano no rosto.
Quando mataram Aníbal, seu filho Ilson estava sondando no banheiro e viu tudo,
mas Isidoro não sabia, senão não teria tinha matado. Isidoro matou Aníbal com arma.
Gilson era para ser morto também, mas fugiu para o mato e voltou depois que
“esqueceu” (cf. Capítulo III). Ele não fica quando tem dois ou três parentes, ele sai. O
filho de Aníbal que viu tudo, contou tudo para a parentada dele. Isidoro não anda
desarmado.
One (makwaraktsa) era pai de Rosália Tabawy, primeiro marido de Tebe
(hazobiktsa). Ele foi morto por Aníbal também no Barranco Vermelho. “Lá os Iranxe
mataram as parentadas todas, agora é que está aumentando” (Silvia Tapyk).
Maria Luíza estava grávida e logo veio para baixo do Juruena, para a aldeia
Jatobá. Depois foi com seu tio Adalberto, para a aldeia Nova. Eriberto (hazobiktsa)
gostava de Maria Luíza (mybaiknytsa) de tempos e foi atrás dela. Ela não queria, porque
era casado. Ele disse que largava a mulher. Ela disse que não queria, porque ele ía judiar
de seus filhos (makwaraktsa). Mas ele os trata bem até hoje e estão casados.
Até hoje Maria Luíza não pensa em ir no “Barranco”, por causa da mulher de
Nilton. O casal mora atualmente na aldeia Cabeceirinha.
Silvia Tapyk diz que algumas mulheres “não ligam para ficarem com os
maridos, outras ligam”. Ela ainda relaciona-se com Nilton, mas não com sua esposa.
Maria Luíza é makwaraktsa, como Luizinho, mas mybaiknytsa. “Casou com primo. Nós
não somos assim, isso é com os outros”, completou Silvia, que é da metade
hazobiktsa
241
.
241
Mencionei que misturas e impressões negativas sobre casamentos endogâmicos são correntemente
assunto de terceiros e nunca auto-atribuições. Mas esta afirmação de Silvia, que é uma mulher da metade
hazobiktsa, me fez considerar algumas hipóteses para pesquisas posteriores. Vimos que há muito mais
diferenciações dentro da metade makwaraktsa do que na hazobiktsa e que estas diferenciações podem vir
a formar certos “blocos” que consideram-se mais afastados, gerando parte significativa das explicações
sobre casamentos inta-metades. Parei para pensar e vi que, em termos de casamento efetivo, só conheço
um caso de homem da metade hazobiktsa casado com uma mulher de sua própria metade. Nas aldeias em
que trabalhei mais profundamente e também em conversas sobre terceiros, só me vêm à mente casos de
homens amarelos casados com mulheres tsikbaktsatsa, mybaiknytsa e até makwaraktsa. Seria algo a ver a
relação entre estes cismas internos à metade makwaraktsa e a profusão de casamentos intra-metade,
vendo, em primeiro lugar, se este é um fato com expressão estatística. Lamentavelmente, durante o campo
não consegui ter esta percepção ou me questionar sobre isso. Isto não anula o caráter não recomendável
293
Este incidente teve algumas repercussões importantes. Roque, então capitão da
aldeia Barranco Vermelho, foi deposto da atribuição. Ele e seus filhos, incluindo aquele
casado com a mulher “iranxe”, mudaram-se mais para o interior da TI Erikpatsa,
fundando uma nova aldeia, onde moram ele seus filhos e filhas solteiros e casados.
Dizem que se ele cometer alguma outra impropriedade será executado. Um missionário
e uma enfermeira, que moravam na TI Erikpatsa retiraram-se da aldeia, indo morar na
outra margem do rio Juruena
Mabe casou-se com um rapaz iranxe bem mais novo do que ela e mora com os
iranxe. Conforme mencionei, Mabe visita os Rikbaktsa em 2004, por ocasião de
comemorações jesuíticas e diz a Pacini (comunicação pessoal) que pretendia ficar um
tempo na aldeia, com seus parentes. Chegando lá, contudo, Mabe não dorme na casa de
parentes e acaba por retornar aos Iranxe com o grupo de jesuítas.
Se o socius organiza-se também em torno de “clãs”, “metades”, “afins” ou
“consangüíneos”, sua lógica não poderá estar aprisionada exclusivamente a segmentos.
Já citei a imprecisão de “espaços” e “limites” entre pessoas e grupos que confere
intensas alterações ao conteúdo de “facções” aliadas ou inimigas, para além das
possibilidades de transformação no estado das relações entre os próprios macro-
segmentos. Lealdade ou inimizade equacionam-se ao pertencimento ou não a
determinados contingentes, mas a flutuabilidade atingirá tanto o conteúdo dos clãs e
metades como também sua distribuição e composição por aldeias. Disposição tal que
terá repercussões importantes sobre a socialidade aldeã.
Uxorilocalidade, concentração ou distribuição do prestígio de seus habitantes,
adoções, tudo isto sugere uma diferenciação que potencialmente intensifica-se em razão
proporcional ao adensamento dos aldeamentos, mas que não se anulará em aldeias
menores. “Casamentos”, “separações” e mortes de parentes próximos e de mães e pais,
“conflitos” e “suspeitas de feitiço” alteram significativamente a composição de clãs,
metades, hostilidades e lealdades que uma aldeia comporta. Ao mesmo tempo, estas
operações trarão consigo efeitos sobre as demais aldeias ou sobre a distribuição
territorial, quando for o caso de se fundar uma nova povoação.
destes casamentos, por sobre qualquer justificativa de distanciamento entre os cônjuges, pois serão, sob
alguma perspectiva, batsisapy (“feios”), embora isto possa importar cada vez menos com o tempo.
294
O “plano local” (Viveiros de Castro 1993: 174), ainda que temporariamente,
expressa uma riqueza de distinções. Idealmente, uma aldeia deverá ter constituição tal
que permita operações cotidianas, como a caça praticada por homens de diferentes
metades – embora a esposa possa acompanhar o marido em alguns casos -, e também
ritos extraordinários, como o do gavião-real e a furação de presas de onça, ambos
requerendo para sua ocorrência, homens de diferentes metades. Matar uma onça e
desfazer-se de sua cabeça com os dentes intactos, veremos, não é recomendável.
Esta composição mutável, aliada às intensas perambulações e visitas entre
aldeias, contribuem para que um mapeamento de relações independa, em certa medida,
da co-residência. Ao que pude entender, há uma “história de relações” de “todos com
todos”, independente dos locais de moradia e até independente dos atritos aguçados pela
partilha do cotidiano.
Comentei alhures e aqui repito, que ao chegar em uma aldeia que abrigava
praticamente uma família, imaginava ter “perdido” o “tom” do cotidiano Rikbaktsa,
achando que ali ele não poderia ser “visto”. Com a convivência, deparei-me com
questões muito semelhantes, incluindo-se aí um mapeamento mental de relações
conflituosas, de simpatias e antipatias. Ele subsiste, alimentado pelo fato de que as
pessoas dividiram experiências e até aldeias em algum momento do tempo, e também
pelas freqüentes ocasiões de visitação mutua inter-aldeã, em ritos – como as festas e os
funerários – ou com outros propósitos.
Sob a perspectiva aldeã, cada aldeia comporta uma diversidade destes “grupos”,
que combinam suas relações de modo variável, em configurações também variáveis,
segundo os contextos, lealdades e contendas. Neste âmbito as relações cotidianas
abrigariam potencialmente diversos graus de conflito e solidariedade diferencialmente
dispostos e negociados pela rede de micro-relações que as caracteriza, incluindo pessoas
dos mais variados clãs e metades em arranjos peculiares.
Concluo esta seção com uma história sobre mordida de escorpião. Helena Zydyk
me dizia que o remédio para a mordida de escorpião é a pena de pássaro-boi, porque ele
come escorpião, demonstrando a metonímica entre seres, seus hábitos e ambiente em
homologia com doenças, sua terapêutica e intervenções corporais. O escorpião já
mordeu Geraldino, ela me conta. Daí o assunto evolui para agouros (muzuza) e feitiço.
A mordida de escorpião sofrida por Geraldino fazia parte de uma série de
infortúnios que são, de certa forma, associados ao seu deslocamento para a aldeia Pé-de-
Mutum, pois há pouco mais de uma década ele morava na aldeia Primavera. Primeiro
295
um espinho entrou em um de seus olhos, praticamente cegando-o, depois levou a tal
mordida. Pesa sobre esta conversa uma desconfiança velada de Geraldino ter sido alvo
de feitiço, o que lhe teria feito afastar-se no território, separando-se de outros
“agregados familiares”, abrigos de seus “suspeitos” potenciais
242
. As desventuras de
Geraldino na “área velha” – como chama a TI Erikpatsa – são associadas a infortúnios e
mau-agouros, comparadas à história de um irmão de Helena que morreu no tempo da
maloca” porque “achou matrinxã no seco”, algo evidentemente “fora de lugar”,
batsisapy. “Muzuza. Ficou doente e morreu”, conclui também.
ALGUNS TERMOS E SUAS APLICAÇÕES USUAIS
243
Nesta mistura e partilha de “naturezas”, que ora opõe e ora dilui oposições entre
clãs e metades, entre afins e consangüíneos, preciso falar um pouco sobre alguns termos
do parentesco que poderiam ser essencialmente relacionados à “afinidade”. Aproveito
para oferecer uma lista de termos básicos e alguns de seus usos comentados, quando
julgar esclarecedor
244
.
Devemos ter em mente que o emprego efetivo destes termos não depende
inteiramente de posições genealógicas estritas ou de seu conhecimento, considerando
também que seu uso por uma metade ou em referência ao outro segmento,
potencialmente generaliza-se pelos diferentes clãs de uma mesma metade. Quaisquer
distinções no uso deste termos, mesmo aqueles que significam por exemplo
proximidade íntima e distanciamento sexual no seio da metade oposta, serão mais uma
questão de interesse e do estado atual de relações entre pessoas do que da aplicação de
normas ortodoxas ou de cálculo genealógico.
À falta de determinação estritamente genealógica acrescenta-se um outro ponto:
há variadas maneiras de se referir a uma mesma pessoa, designações que poderão
significar maior ou menor interesse na relação, maior ou menor proximidade e que serão
242
Sobre o afastamento como possibilidade de não-relação e interrupção de um processo de
veneno/feitiço/doença/morte, há um caso ocorrido com o próprio pai de Helena Zydyk, já falecido. Ele,
me conta Helena, tinha veneno (myrawy) que era preto, como semente. Uma certa mulher, com raiva dele,
pegou o veneno, que guardava em uma cabacinha, e queimou, jogou no fogo, fora da casa. Estourou,
pegou nela e seu pescoço quase apodreceu. Ela mudou-se de aldeia, pois não conseguia dormir. Segundo
Helena, se ela tivesse permanecido próxima ao homem, certamente morreria.
243
A base destas caracterizações é o detalhado trabalho de Hahn (1976), mas também minhas prórpias
observações e pesquisas sobre aplicação destes termos.
244
Para um estudo pormenorizado de todas as flutuações na aplicação destes termos e de outros que dele
derivam, remeto o leitor ao trabalho de Hahn (1976), referência contínua e única sobre o tema.
296
negociadas ou escolhidas pelos indivíduos. Assim um par de mulheres da mesma
metade, uma delas mais velha que a outra, tem o seguinte espectro de designações:
- “–eky / “–tsy(“mulher mais velha de mesma metade”/”mais novos de
mesma metade”) – esta é uma relação bastante generalizada, que indica partilha de
metade e diferença de idade, mas um relação que não é muito próxima.
- ytsitsik e –puky (mulher da mesma metade, não-linear ou “tia paterna”/mulher
da mesma metade, não-linear ou ”sobrinha paterna”) – este par de termos será
empregado quando houver relação de proximidade ou afeto estreito entre estas duas
mulheres.
Lista de termos
-je – “mãe”, “mãe de criação”. Segundo Hahn (1976:133), homens podem referir-se a
alguma mulher de metade oposta como –je, se quiser evitar intimidade sexual com ela
e/ou estabelecer outros tipos de relações que denotarão proximidade, relações –je-za (-
“mãe”/pl.fem.). Com o tom de jocosidade, contudo, os Rikbaktsa podem usar
justamente esta forma para denotar o oposto, ou seja, ouvi várias brincadeiras que
envolviam amantes chamadas de “-je”.
-zo – “pai”
245
. Hahn diz que há poucas razões para não considerar –zo como
genealogicamente definido, no sentido da genealogia Rikbaktsa. Ou seja, uma pessoa
poderá ter vários –zo, tantos quantas relações extra-maritais sua mãe tiver tido durante a
gestação. Este conjunto é referido como –zotsa (-“pai”/“pl”). O marido da mãe é
costumeiramente referido como “-zo-bobata” (“pai”/“principal, verdadeiro”). Mas não
se atribui tal termo a alguém que não haja participado da formação da pessoa.
-ste – “filha”, para mulher “filha adotiva”.
-tse – “filho”, para mulher “filho adotivo”.
-tsy - Para homens e mulheres e entre homens e mulheres de mesma metade, mesma
geração ou mais novos que ego, não lineares, o que incluirá todos os não lineares mais
novos que ego de diferentes clãs de uma mesma metade. Reparo que esta aplicação não
se altera em razão de um indivíduo ter pais em diferentes clãs de uma mesma metade.
As exceções na metade oposta ficam por conta dos casos de “half-sibling” (Hahn
245
Hanh cita algo que eu mesma havia percebido. É mais comum que crianças de criação refiram-se às
mães adotivas enquanto “mãe” (-je), do que aos pai adotivos enquanto “pai” (-zo) (Hahn 1976:132).
297
1976:127), quando se considera a paternidade múltipla, mas será também questão de
interesse no reconhecimento desta “mistura” e desta “relação”. Em um contexto mais
informal pode ser também um modo geral de designar-se alguém da mesma metade,
independente de geração. Lineares, sejam da metade oposta, sejam da mesma seção não
serão –tsy.
Desta forma algumas categorias que poderão estar cobertas por –tsy são:
1 – Para homens e mulheres, filhos de irmão ou homem próximo, primo paralelo
patrilateral. Filhos de –tsy masculinos.
2 - Para mulher, uma “–puky”, filha do irmão ou primo paralelo patrilateral próximo.
-ziky Para homem, homem mais velho, mesma metade, “irmão mais velho” x “ka-
tsy.”
-zotsy/-zoziky- referem-se à geração do –zobobata de alguém, mais novos e mais
velhos, respectivamente, que este –zo. Homens aos quais os Rikbaktsa cham “tios”, em
geral, são –zotsy ou –zoziky. Um –zopo também poderá ser referido em português como
“tio”, com a particularidade de ser aqui um “tio materno” ou homem da metade de sua
mãe.
-zawy – Para homem, mulher mais velha, mesma metade, não-linear. “irmã mais
velha”, também “tia paterna”, mantendo a observação que homem e mulher poderão
pertencer a diferentes clãs de uma mesma metade.
-okaha Para mulher, homem mais velho, mesma metade, “irmão mais velho”,
mantendo a observação que homem e mulher poderão pertencer a diferentes clãs de uma
mesma metade.
-ytsitsikPara mulher, mulher mais velha, mesma metade, não-linear ou também “tia
paterna”. mantendo a observação que ambas poderão pertencer a diferentes clãs de uma
mesma metade.
-pukyPara mulher, mulher mais nova, mesma metade, não-linear ou “sobrinha
paterna”, mantendo a observação que ambas poderão pertencer a diferentes clãs de uma
mesma metade.
-ekyPara mulher, mulher mais velha, mesma metade, não-linear
- ekiPara homens e mulheres, “mulher velha”, “avó”.
-ekitsy/ekiekypouco empregado. Usado na distinção etária entre alguém mais novo
ou mais velho que a avó de alguém
298
-diri – “avô”, irmão do avô, parente masculino de geração ascendente que não a do pai
de alguém.
-diritsy/-diriziky é comumente empregado para definir a distinção etária entre
alguém mais novo ou mais velho que o avô de alguém.
- tsekukaneto/a por intermédio de filho “-tse”. Observo que para este termo é
relevante, se na fala feminina ou masculina, o dado da metade da criança. Para homem
marcará o pertencimento da criança à mesma metade. Para mulher, o oposto, supondo-
se que tenha sido observada a exogamia de metades.
-steokaneto/neta por intermédio de filha “-ste”. Aqui a relação inverte-se. Para
homem marcará o pertencimento da criança à outra metade. Para mulher, supondo-se
que tenha sido observada a exogamia de metades, marcará que a criança pertence à
mesma metade de sua avó.
-hyrytsa Crianças de –tsy. Em geral, crianças de –tsy, quando adultos, serão também –
tsy, porque da mesma metade. Plural de –ste e –tse (Hahn 1976:134)
-bykyhy modo de se referirem a crianças lineares
- ypykyhy – “criança de criação”
- ypyktsa – “pai de criação”
- ypyktatsa - “mãe de criação”
-pyktsa/- barikta/-maku “marido”. Hoje em dia a palavra privilegiada é-barikta,
mas que antigamente era relacionada mais a “namorado”. –maku era o termo mais
utilizado antigamente para se dizer “marido”. Noto que, apesar da regra de casamento
exogâmica, nenhum destes termos é relacionado ao dado “metade”.
-sukza/-oke /-wytyk“esposa”/”mulher”. Se diz de uma mulher casada –sukzata, de
casamento sukzawy. Antigamente se dizia de esposa –wytyk, preferencialmente. Hoje o
termo mais utilizado é –oke. wytyk (não prefixada) significa também terra. wytyk admite
també, prefixos e sufixos verbais, significando “enterrar” (animal ou pessoa morta) e
ainda “cemitério” de alguém, lugar onde alguém está enterrado, e.g.” ka-je-wytyk”,
(1sg-mãe-terra) “cemitério da minha mãe”, lugar onde ela está enterrada. Noto que,
apesar da regra de casamento exogâmica, nenhum destes termos é relacionado ao dado
“metade”.
- zoho - “namorado”. Ouvi -zoho também para carnes cozidas ou preparadas por
alguém.
299
- aksoho - “amante”. Não prefixado, significa também “conversa”.
- tsuk – “namorado/a, co-residente, cônjuge”. -tuk ou –tukky são usados rambém para
co-residentes e parentes.
- hwahwa – “pessoa cortejada”
- hokihi“namorada”.
- harerewaby –“ amante”, harere “(”palavra”) -waby (“ouvir”). Aquele que ouve e
aceita as nossa palvras ou pretensões.
-harereziuwy Ser “amigo”, aquele de quem se ouve belas palavras. Pode ser
empregada como uma relação alternativa a todo o sistema.
-zikidopara homem, filha da irmã, filha da prima paralela, filha da irmã do pai,
relação feminina de seção oposta, socialmente próxima, sexualmente distante. De
acordo com Hahn (1978), algumas ZDs e FZDs são chamadas ka-zikido, mas outras são
chamadas de diferentes termos e, ainda, algumas mulheres que não são ZD ou FZD são
também chamadas ka-zikido (idem: 52). Equações de tipologias de parentesco
comumente utilizadas para comparar terminologias e sistemas sociais não podem ser
consistentemente aplicáveis neste caso (id.:ib.). Em um sentido MBD = ZD = FZD.
Apesar destas mulheres não precisarem ser rotuladas de maneira idêntica, todas são
tratadas do mesmo modo. A idéia central da categoria –zikido é a de que, dentro da
metade oposta, o casamento deverá ocorrer com filhas de mulheres da própria metade e
não por filhas de mulheres relacionadas à mãe da pessoa. Há uma opção pelos graus de
proximidade e intimidade sexual: de “namorada” a “-jetsy”, quando uma mulher é
considerada enquanto parente da mãe, ou “por” mãe, definindo distanciamento sexual,
mesmo que a genealogia não dê respaldo ao uso deste termo.
-jetsyTermo de relacionamento geral entre homens e mulheres de metade oposta que
indica que, apesar da diferença de metades, há relações próximas entre estas pessoas. Eu
– supostamente uma mulher makwaraktsa – e mulheres da metade hazobiktsa com as
quais tinha relações próximas nos tratávamos por ka-jetsy.
- sizohi – “pai da esposa”
-hwapyry“mãe de pessoa cortejada”
- sohi“genro”
300
-tseoke“esposa do filho”. Não há formas específicas de designarem “noras” senão
esta, ou então, se observada a exogamia, -zoposte, mas este termo poderia indicar a
possibilidade de envolvimento entre o pai do filho e a esposa do filho.
-zopo – Para homem,“irmão da mãe” (o que inclui uma gama de possibilidades, como –
je-okaha” categoria de homens mais velhos da mesma metade que a mãe), qualidade
de membro de seção oposta. Tem conotação de “doador” de mulheres, mas também é
mais do que isso, porque independe da ocorrência de casamentos. Os –zopo de um
homem, principalmente, são estimados e admirados e podem ter com ele relações
bastante próximas, tendo a proximidade genealógica como um intensificador destas
relações. Este segmento depende basicamente de casamentos do passado, mas estas
trocas não carregam qualquer obrigação de continuidade (Hahn 1976:260).
-zikidi – Recíproco de –zopo. Para homem, “filhos da irmã” (-zawy-tse). Tem
conotação de “receptor de mulheres”, mas também independe da ocorrência de
casamentos.
-tsere
“cunhado”. Nem sempre o marido da irmã e o irmão da esposa são –tsere. São
necessários outros atributos para que a relação entre estes homens se configure enquanto
“-tsere”. Homens relacionados por intermédio de mulheres, ainda que não sejam
estritamente irmão da esposa ou marido de irmã poderão ser –tsere ou –tserebaha,
companheiros” ou “companheiros de caça”. Hahn destaca em várias ocasiões a
qualidade de membro de seção oposta como condição si ne qua nonido estabelecimento
desta categoria, como também meus informantes. O –tsere seria um desenvolvimento
não obrigatório das categorias de –zopo e –zikidi. Um tipo de relação facultativo até
com relação ao casamento. Não é, desta maneira, uma categoria na qual alguém se
inscreve ao nascer ou um “ajuste” terminológico que se procede após ao casamento. É
relação construída no tempo, com o interesse e a colaboração entre as duas partes e
somente e apenas se elas acordarem em assim se referirem uma à outra. Homens que
são –tsere demonstram satisfação em sê-lo, referem-se enquanto companheiros.
-parePara mulher, irmã do marido, esposa do irmão. Em contraste com a categoria –
tsere, esta relação não parece agradar a maioria das mulheres. É sempre obscuro e até
difícil de pronunciarem este termo, sempre empregado com restrições. Há muitas
brincadeiras sobre punições oficiosas para as mulheres que se negam a chamarem outras
desta maneira.
301
SOBRE TERMINOLOGIAS E AFINIDADES
For we should not expect to find kinship and the
assigniment of categories to be a science, revised solely on the
basis of internal consitency and consistency with empirical fact.
Rather we should expect to find kinship and its categories to be
tools of social action. With such an expectation we should then
examine how this tool is used and what are its user’s intentions.
(Hahn 1976:262)
Gostaria de me ater um pouco mais sobre as categorias de –zopo/-zikidi e –tsere.
Comecemos pelo par –zopo/-zikidi. Hahn demonstra que não haverá relações mais
intensas com um –zopo genealogicamente mais próximo do que com outro mais
distante. A convivência doméstica não terá peso diferencial para a intensidade das
relações –zopo/-zikidi (Hahn 1976:258).
Dificilmente um –zikidi filho da irmã irá conviver com umzopo irmão da mãe
no ambiente doméstico, a não ser por breves períodos. Este homem estará a maior parte
da vida da criança e do rapaz ou na aldeia de sua esposa ou no mykyry de sua aldeia. A
convivência possível entre homens tratados por –zopo e –zikidi será dentro do mykyry,
onde um rapaz conviverá tanto com eles, quanto com homens de sua metade.
Dentro do ambiente doméstico, o outro homem que poderá ser –zopo ou –zikidi
de alguém, como o avô materno, será, antes, chamado de –diri (avô). Após o casamento,
um homem conviverá, então, com o pai da esposa e seus filhos solteiros, que poderão
ser seus –zopo ou –zikidi, mas que mais uma vez serão chamados mais provavelmente
de –sizohi (pai da esposa) e –tsere (cunhado), respectivamente. Ou seja, a convivência e
a proximidade genealógica atuam no sentido de verter as relações –zopo/-zikidi em
outras categorias de termos.
Em uma definição ampla, os –zoptsa podem ser definidos como “aqueles que
estão com a nossa mãe”, “my-je tukkytsa”, conquanto for respeitada a exogamia de
metades:
Even if one’s mother’s brother and sister’s son rarely share one’s
residence, these constitute only a small part of one’s –zopo’s and –zikidi’s. In
fact one’s –zopo
’s and –zikidi’s constitute almost half of the males in the entire
302
society, including settlements other than one’s own.” (Hahn 1976:260) (grifos do
autor)
Segundo a regra, filhos de –zopo, serão –zopo e de –zikidi serão –zikidi
246
.
Depois de duas gerações este sentido estaria invertido, mesmo que não ocorram
casamentos efetivos. Vicente chamava a Tomás e o pai – ambos homens hazobiktsa
falecidos – de ka-zopo, mesmo Tomás sendo mais novo do que ele. Aos seus filhos com
uma mulher makwaraktsa ele chama de ka-zikidi.
Sob o ângulo genealógico, a regra de alternância é clara mas sua prática e outros
apectos encapsulados por esta categoria de relação não têm tanta nitidez. Se por um
lado, quem é –zikidi se tornará –zopo em algum momento do tempo e vice-versa, por
outro, não haveria como encontrar definições puramente genealógicas para este par
247
(idem:152)
Um agravante desta impossibilidade é a facilidade com a qual o princípio
propagador de relações zopo/zikidi é violado. Isso acontecerá sobretudo sobre a
perspectiva matrimonial. E é importante colocar mais uma vez em relevo que esta
relação recíproca é mais e também menos do que “ceder” ou “receber” mulheres. Um –
zopo e um –zikidi, por definição, pertencerão a metades diferentes e para este atributo
não haverá negociação, ainda que a direção de casamentos tenha sido alterada. Hahn
cita o caso de um par de irmãos onde um era –zikidi para um dado homem e outro era –
zopo para este mesmo homem.
Assim, uma relação –zopo/-zikidi altera-se apenas em dois casos bem marcados.
Pode haver diferenças nas expectativas de relação com afins dentro da família natal e
dentro da família marital. O casamento e o local de residência ocasionalmente
aproximam alguns –zopo e –zikidi antes mais distanciados. O outro caso é quando
deliberadamente altera-se o sentido das trocas entre -zopo / -zikidi, então um –zopo
passará a ser designado por –zikidi (id.: ib.).
Dizem sobre esta violação o mesmo que para os casamentos intra-metades:
batu spirikpo”, alguém “não respeitou”, como dizem em português, “não aprendeu”,
246
my-zopo-tse pehe ka-zopo my (1pl-zopo-filho “chamar” 1sg-zopo “a gente”) my-zikidi-tse pehe
kazikidi my (1pl-zikidi-filha “chamar” 1sg-zopo “a gente”).
247
Hahn atribui a esta impossibilidade modelar o fato de ter partido para estudar as categorias de
chamamento Rikbaktsa, como um problema etnográfico, abordando os “usos” destas categorias. Nesta
empresa, não conseguiu chegar a algum nível analítico que viesse a determinar estes usos. Eles eram
multi-orientados e poderiam variar de ênfase conforme interesses e contextos, não havendo qualquer
razão para optar por um determinante enquanto regra generalizada em detrimento de outro.
303
em uma tradução mais aproximada da expressão. Regras são para serem aprendidas e
este é um processo em grande parte dependente do indivíduo e do modo como ele vai
construir suas relações:
Hazobiktsa, desde o começo o pai fala para tratar de ka-zopo. O
tsuãratsa ele trata o amarelo de ka-zopo. O pessoal da Figueira (umahatsa)
trata de ka-zopo também, como hazobiktsa.” (Vicente Bitsezyk)
É uma ação continuada, passível de desvios e de insucesso. Para isto bastaria
dizer que as permutas do passado não trazem com elas obrigação de continuidade,
embora mantenha-se a relação –zopo/-zikidi. O traço matrimonial e de continuidade de
alianças fica diluído o suficiente para não esgotar o significado da categoria –zopo/-
zikidi, embora ambas representem o terreno das possibilidades matrimoniais.
Todos os –zopo são classificados como “doadores de mulheres”, fruto de trocas
no passado e potencialmente no futuro. Se levamos em consideração a uxorilocalidade,
estes homens serão, além de doadores de mulheres, “receptores de homens”. E Hahn
demonstra muito bem como os protocolos matrimoniais, as trocas de bens e serviços e
cooperação, os “recursos” humanos aos quais um homem tem acesso com o casamento
de suas filhas – se levamos a uxorilocalidade em consideração – não advém das relações
entre –zopo e – zikidi (idem:260). Estas práticas não devem-se a um sistema de atitudes
que primariamente corresponda a estes termos e que contamina, digamos assim, a esfera
matrimonial.
Homens com muita influência têm muitos –zikidi, e com pouca, são –zikidi de
muitos. Desta forma, ser –zopo de alguém é algo de mais status do que ser –zikidi. A
admiração e o respeito marcam este tipo de relação. Citam com muito orgulho
ensinamentos recebidos de seus –zopo, como também os –zopo falam com satisfação
sobre seus –zikidi. Para Hahn, o significado da categoria –zopo está mais na análise do
processo político, no comando sobre recursos e na habilidade em utilizá-los do que
propriamente na genealogia ou na convivência doméstica (idem: 261).
Um -zopo deve cuidar de seu –zikidi, orientá-lo. Poderá intervir em processos de
construção corporal, mas isto não será obrigatório Quando elaborei meu projeto de
pesquisa julgava que a intermediação de pessoas da outra metade para os processos de
intervenção/construção corporal era uma regra. Isto integraria adequadamente o modelo
de metades opositivas e complementares que aos poucos e por perspectivas variadas
304
desfigurava-se diante das minhas observações.
Uma vez insiti com Vicente, que sempre citou com satisfação muitos
ensinamentos recebidos de seu –zopo, sobre o papel do mesmo na condução daquelas
intervenções corporais. Ele me disse que seu –zotsy, do segmento bitsitsiyktsa, foi quem
furou sua orelha e que “ka-zopo não é nada” ou pelo menos, segundo entendi, não é
essencial para estes procedimentos. Rosa Naudy (makwaraktsa) – esposa de Vicente
(makwaraktsa), seu FB – define aqueles que são –zopo-tsa (zopo-pl) de alguém:“quem
não é nada nosso, não é parente, a gente chama assim”.
Homens da mesma metade conduzem furações e escarificações com tanta
freqüência quanto os –zopo de alguém podem fazer. Tudo será uma questão de saberes,
aptidão e proximidade das pessoas nesta relação. A única recorrência observada é que o
próprio pai não conduz processos desta natureza em seus filhos, para os quais há sempre
participação de outros, que sejam do mesmo clã ou metade do pai de alguém.
Segundo Vicente, não é “feio” (batsisapy) e nem é “falta de respeito”
(batuspirikpo) chamar as pessoas por –zopo e -zikidi, mesmo que o casamento não tenha
ocorrido. Como vimos, se efetivamente ocorrer casamento, estes homens passarão a
tratar-se como “sogro” (sizohi) ou “cunhado” (tsere). Na verdade, a relação zopo/zikidi
só “existe” entre quem não efetivou matrimônio, embora seja uma “prerrogativa”, ainda
que flexível - por isso não a única -, do mesmo. A não ocorrência de casamentos entre
estes segmentos não é, de forma alguma, entendida enquanto violação. De um jeito ou
de outro, o universo de –zopo e –zikidi será aquele mais unanimemente marcado, senão
pela afinidade efetiva, pela oposição das metades.
Esta relação ocorre, então, entre homens de diferentes metades, no tempo e
invertendo-se a relação a cada duas gerações, sem que seja necessária ocorrência de
trocas efetivas. A qualquer tempo, a direção das supostas trocas poderá ser invertida,
justamente por trocas efetivas, e com ela o respectivo uso dos termos. Altera-se a
relação entre dois homens e seus descendentes, sem que se altere a relação entre os
segmentos como um todo.
Fica a idéia que além de pares de homens, certos segmentos serão um para o
outro –zopo e –zikidi, e isto vale para homens e mulheres. Para os makwaraktsa e para a
sua geração, Vicente define como ka-zopo – hazobiktsa, umahatsa, zerohopyryktsa,
umahapyryktsa. Como Ka-zikidi – tsuãratsa, tsawaratsa e buroktsa. Neste sentido,
mulheres podem opcionalmente chamar outras como zoposte, ou seja, filhas de homens
que são –zopo para seu segmento. Esta é uma maneira de marcar que não são parentes
305
por mãe - e.g. –jetsy, um termo também possível -, que não há ou não se deseja ter
aproximação com esta pessoa.
Ivan (hazobiktsa) é ka-zopo de Vicente (makwaraktsa)
248
. Quando as filhas de
Ivan já estavam todas casadas, ele pediu para Vicente que deixasse Rosa (para Vicente
“BD” e “W”) com ele para ajudar, lavar coisas, que também tinha dinheiro para ajudar,
mas que agora não tinha mais filhas para dar a ele. Rosa seria uma segunda esposa para
Ivan, homem que goza de grande prestígio. Vicente alega que ele devia ter falado antes,
ou seja, antes que ele mesmo desposasse Rosa.
Ser ou não um –zopo é uma “possibilidade” mais do que uma regra. Aplica-se
tanto ao domínio genealógico, quanto fora dele. Uma definição estritamente genealógica
da categoria –zopo/-zikidi só limitaria o universo de pessoas aptas a ocupá-la. Ainda
mais se pensamos na hipótese da mãe de alguém não ter irmãos e de suas irmãs não
terem filhos (idem:153).
Desta forma, –zopo, -zikidi e –tsere são termos que definem por excelência as
diferenças entre metades. São mais que termos correspondentes a posições
genealógicas, conceitos que extrapolam e até independem da dimensão matrimonial.
Desta maneira, se a definição destes termos é intricada às questões da afinidade, esta
categoria de pessoas ou posições não é totalmente coincidente, como expliquei sob
diversas outras perspectivas, com o universo da afinidade.
-zopo/-zikidi parecem existir mais na ausência de trocas do que na sua efetuação.
zopo/-zikidi podem ter relações mais ou menos intensas e isto não dependerá da
proximidade genealógica e nem da efetivação de casamentos. Enfim, -zopo/-zikidi
definiraim, antes, um domínio de não-parentesco, um campo de alianças potenciais, mas
que também não parece empenhar-se muito em efetivá-las.
O par –zopo/-zikidi possui , assim, um fator genealógico fundamental, mas,
como demonstra Hahn, há sobretudo fatores sociais na definição desta categoria que,
como sempre, não podem ser vistos como derivados ou subordinados ao fator
genealógico. Se este outro conjunto de aspectos esperados de uma relação do tipo –
zopo/-zikidi são atendidos, isto acabará por operar a alteração desta categoria de relação.
E então chegamos à categoria –tsere.
248
A primeira esposa de Vicente era também uma mulher makwaraktsa, que recebeu Rosa
(makwaraktsa), filha do irmão de Vicente, para criar. Depois de sua morte, Vicente ficou com Rosa,
praticando o grau máximo de incesto e endogamia que pude observar entre os Rikbaktsa.
306
Afora outros tipos de ligações, é preciso não apenas ser marido da irmã ou irmão
da esposa, mas estabelecer uma relação de cooperação e interesse, o que em igual
medida, transformará umzopo ou –zikidi em –tsere um do outro. A soma dos fatores é
aqui fundamental: genealogia, aliada à cooperação e ao interesse. Assim, a direção da
relação –zopo/-zikidi poderá inverter-se e tornar-se a nova direção “tradição”, até que
seja novamente “desrespeitada” e daí por diante. Tudo isto envolvendo também
interesses e status individuais (Hahn 1976:155-6).
Com a efetivação dos casamentos chegamos à categoria –tsere, “cunhados”.
Mas não necessariamente. Se o casamento ocorre não é o suficiente para o
estabelecimento deste tipo de relação entre WB/ZH. Para isto é necessário verter este
vínculo em convivência estreita e afetiva, cooperação e companheirismo, notadamente
em atividades como a caça. Diz Vicente: “Se ele traz caça, bicho, ajudar, comprar
coisas, gostar da pessoa, brincar com os filhos”, neste caso, podem ser –tsere um do
outro. Do contrário, continuarão sendo ou –zopo e –zikidi, para o caso dos casamentos
exogâmicos.
Entre pais de famílias, filhas podem ser “oferecidas”. Isto é sempre algo
dialógico e que envolve relações temporais e contextuais entre segmentos. Então
poderão tratar-se também de katsere. Pode ocorrer, se a esposa não liga, entre homens
que tem relação “intermediada” por mulheres, como amantes. Tratam-se sizohi
(“sogro”) e sohi (“genro”) ou então de -tsere. Isto significa dizer que o estabelecimento
de relações –tsere entre homens, poderá ainda prescindir do fator genealógico strictu
sensu e até do casamento. As relações –tsere são desejáveis conquanto devam ser
cuidadosamente forjadas com o tempo e a cooperação cotidiana.
Em contraste com o caso masculino, há certa regularidade e mesmo um
“costume” das mulheres em se “negarem” a chamar “esposas de irmão” ou “irmã de
maridos” de “cunhada” (-pare). Isto vem somar-se a outros casos típicos daquilo que
denominei “solidariedade perversa”. Chamar alguém por –pare ou negar-se a fazê-lo é,
de qualquer forma, um tema e, ainda, de certa recorrência. Os motivos vão desde
“vergonha” (-sikpyby)
249
à “raiva” (-okkani), todos eles devidamente qualificados em
desaprovações de comportamentos, estando em alta serem as “cunhadas” ciumentas,
egoístas, pouco generosas, que falam mal e também tratam mal e são infiéis, no caso, a
seus “irmãos”.
249
Que entre os Rikbaktsa é mais a afirmação de uma ação inadequada voluntária, que neste caso toma
ares de uma certa “hostilidade” com relação ao “outro”.
307
Mulheres negam-se a fazê-lo, tendo a noção de que o deveriam, como uma
espécie de obrigação. Se recusam-se a chamar esposas de “irmãos” (-tsy, -okaha) por –
pare, acabam “mordendo a boca”. O caso de Helena (tsikbaktsatsa) e Mariana
(zerohopyryktsa) é exemplar. Antes de Mariana de casar-se com seu –okaha ela a
chamava de ka-jetsy, uma categoria que expressa proximidade com alguém da outra
metade. Depois do casamento ela a chama de cunhada só em português. Deveria chamá-
la de ka-pare, mas parece não querer esta relação completamente. Noto a interessante
inclusão do “português” como significante nas categorias de chamamento, no modo de
definir relações.
Como venho insistindo, o parentesco é algo que se dá no tempo, alterando-se e
admitindo reelaborações mais costumeiras do que se poderia supor em uma sociedade
institucionalizada ao modo de clãs e metades, com aspectos cerimoniais mas também
matrimoniais. Especialmente entre os Rikbaktsa, atributos constituintes da socialidade
cotidiana, como a cooperação, o companheirismo e a afetuosidade no trato das pessoas
de diferentes metades caracterizam e contribuem decisivamente para o estabelecimento
de relações –tsere, como também para outros tipo de relação, incluindo aquelas que
denotam maior proximidade, seja entre indivíduos de metades diferentes como de
mesma metade.
Não há como equacionar de maneira perfeita uma metade ou uma categoria ao
universo da afinidade, às possibilidades matrimoniais, bem como não há como
preencher tal categoria necessariamente com significados tais como tensão e temor,
mais do que cooperação e companheirismo. Ainda menos, não há como atribuir a
alguma destas categorias – como metades, clãs, cunhados, -zopo/-zikidi -, isoladamente,
o papel de matriz central de reprodução de relações sociais.
Conjugando o aspecto histórico a que todos os arranjos de parentesco
encontram-se submetidos à notável ênfase dos Rikbaktsa na efetividade cotidiana das
relações, encontraria durante o trabalho de campo uma situação peculiar. Hahn como
outros informantes meus afirmam que não se pode chamar de -tsere um homem da
mesma metade (Hahn 1976:161-2). Desta forma, o casamento é prescindível, o dado
genealógico também – podem ser –tsere tanto irmãos, quanto primos paralelos, de
esposas como de amantes -, mas não o atributo da diferença entre metades.
Curiosamente, Hahn utiliza o caso de um homem makwaraktsa que não
chamava o “irmão da esposa” por -tsere apesar da intensa relação de cooperação que
308
mantinha com ele (idem:162), por serem ambos da mesma metade. Este seria um limite
claro à aplicabilidade do termo.
Qual não foi a minha supresa de, mais de trinta anos depois de Hahn, encontrar o
informante do qual ele utilizara o exemplo – um homem makwaraktsa casado em
segundas núpcias com duas mulheres tsikbaktsatsa – a chamar seu –zotsy e “irmão” de
suas esposas, por –tsere. Refiz a pergunta de todas as formas e ele confirmou-me o fato
peculiar.
Estaria ultrapassado um dos poucos limites à flexibilidade do parentesco
Rikbaktsa? Algo que, aliás, associa-se perfeitamente à sua cosmo-mitologia sobre a
origem de clãs, metades e seres, onde as diferenças não se desenredam das
semelhanças? Onde não há distância absoluta entre o que viria a ser um “afim” ou um
“consangüíneo”, mas trânsito entre posições e atitudes?
As tão citadas violações, aquelas trazem para o seio da própria metade relações
que deveriam estar em um outro universo, distinto daquele dos “parentes” de alguém,
não ocasionam, automaticamente, violações de outros princípios ou relações. O sistema
como um todo não se reajusta a uma violação e isto o faria colapsar (Hahn 1976:268).
Posições de “afinidade” que se tinha anteriormente ao casamento serão mantidas
ou, pelo menos, qualquer alteração não será praticada automaticamente após o
casamento ou em razão de sua ocorrência pontual. Também não se poderá aplicar novas
categorias aos parentes da esposa ou do marido em função de casamentos endogâmicos.
Estes mantém-se designados como o eram antes do enlace.
Da mesma forma, não se deixa de chamar alguém de –zopo ao proceder a um
casamento endogâmico. Não se ajustarão, em contrapartida, os termos pelos quais são
designados os parentes de mesma metade. Muitos destes serão designados de forma
idêntica pelos cônjuges. Um homem que seja casado com uma mulher de mesma
metade, portanto, manterá o conjunto de termos com os quais designa seus parentes, que
serão também os dela.
Isto seria impossível se a genealogia fosse um princípio absolutamente
predominante na organização das relações sociais. Diante da violação, não há grandes
penas, categoriais ao menos. As penas serão, antes, sociais, até corporais, e ainda
dependerão significativamente do status do indivíduo no decorrer de sua vida.
Pesquisava sobre os termos utilizados pelas pessoas casadas em violação e não
podia, de um modo geral, ver alterações muito significativas. Filhos mantinham-se
pertencendo à metade de seus pais e não deixavam de ter para si um universo de afins
309
ou, como prefiro dizer, um “rascunho” parcial deste universo, porque a aplicação dos
termos que designam as mais variadas relações dentro da outra metade praticamente
independe da ocorrência efetiva de casamentos.
Às vezes a endogamia transparecia ser uma espécie de manipulação perversa do
sistema de metades, um modo de não “dever”, “distribuir” ou “relacionar-se” com
outros segmentos. Era como se o “sistema” de parentesco – a aplicação de termos, a
distinção entre consangüíneos e afins - fosse praticamente independente do casamento
“exogâmico”. Ou, como prefiro dizer para não causar a idéia equivocada de que há
fixidez no emprego dos termos, quaisquer mudanças nas categorias de relacionamento
entre as pessoas não se deviam à prática da endogamia, embora ela pudesse aproximar e
afastar pessoas e segmentos, alterar o quadro e o sentido das relações sociais dos
envolvidos. Isto sem esquecermos ainda que, por outro lado, se mulheres são
“patrimônio” do clã, elas não geram filhos, imediatamente ao menos, para o clã ou
metade, como também não levam à diante a “família”.
A noção de que os homens de uma metade “cuidam” e têm ciúme da mulheres
de seu segmento contribui à pertinência deste possível aspecto da endogamia. E isto não
era uma questão de clãs específicos, de proximidades genealógicas. Tentei investigar
algo sobre isso mas não cheguei a resultados mais sólidos. Soube, contudo, que homens
podem vetar a escolha de maridos como impedir que alguém tome em casamento
mulheres de sua metade, se não estão de acordo.
Também a relação –tsere assume, deste modo, seu caráter de dupla vinculação.
Dentro do companheirismo preconizado entre homens que são –tsere, eclodirá também
o homicídio. Contaram-me que Totsimy (hazobiktsa) envolveu-se em um caso de
homicídio direto
250
há muito tempo atrás, matando um homem da metade oposta, seu –
tsere baha ou companheiro de caça.
Primeiro matou um queixada. Depois mandou o homem destrinchar o animal,
como é o costume entre companheiros de caça que alternam “tarefas”. Enquanto o
homem destrinchava o porco, pegou-o com flecha. O homem tentou correr, mas ficou
enganchado no pau podre. Totsimy deixou o corpo lá mesmo para o urubu comer.
Insistiram no fato de que ninguém recolheu o corpo de lá. Talvez não fosse um homem
de fato bem quisto, pois um outro acabou de matá-lo. Ao que soube, este homem estava
interessado em uma mulher da metade hazobiktsa, mas de um outro clã que não o de
250
Digo “homicídio direto” porque Totsimy é citado como envolvido em vários homicídios viabilizados
por venenos.
310
Totsimy. O homicídio foi atribuído ao “ciúme”, pois Totsimy não aprovava uma possível
relação entre o homem e a citada mulher de sua metade. Tratava-se de Mariana
(zerohopyryktsa). “Tem homem que não gosta que pegue a mulher dele”, disse-me a
própria Mariana.
Mariana, por sua vez, contou-me que seu –okaha, único filho de seu pai, foi
flechado também por seu –tsere, um homem tsikbaktsatsa que caçava queixada com ele.
A história parece até a mesma, não fossem os clãs invertidos e a, talvez, não intenção
em matar. Ostsere caçavam porcos juntos. Mataram muitos porcos e depois seu –
okaha (de Mariana) foi cortar a carne. O companheiro chamou-o várias vezes e ele não
respondeu. Acabou flechando-o por engano (!). Isto aconteceu na “maloca” do
Escondido (região onde hoje em dia é a TI Escondido), com os “wahorotsa”, diz
Mariana.
Tsasendyk é um ser metafísico cuja a história de “trans”-formação é bastante
significativa neste sentido. Vicente Bitsezyk conta que ela se deu a partir de uma caçada
entre um homem e seu cunhado, ou sogro e genro, enfim, companheiros de caça (-tsere
baha). Eles foram longe e fizeram acampamento. Mataram macacos e fizeram girau.
Foram caçar novamente e trouxeram mais macacos. Um deles achou remédio-do-mato,
tsasendyk okyry (remédio-do-mato de tsasendyk) e passou por todo o corpo. Ficou
anestesiado, não lembrava de nada.
Quando chegou no acampamento estava alegre. Tomou muita chuva, estava com
frio, ia fazer fogo e foi deitar na rede ... logo dormiu, colocou a perna na beira da rede,
só que quando mexeu um pouquinho a perna caía no fogo. O cunhado ia lá e ajeitava,
mas a perna caía de novo. Quatro vezes isto aconteceu. A perna estava assando. Aí
queimou tudo nikorokorokorobaik, zyk!
A perna caiu. Quando isto aconteceu, o outro homem pegou um pedaço de pau e
deixou na rede em seu lugar. Ficou com medo e correu. Escondeu-se para que o homem
não o matasse. Aquele que tinha perdido a perna afiou o osso da canela
251
com uma
pedra e foi fincar na rede, mas Katsere só achou o pau, o outro homem já havia fugido.
Então ele pegou seu arco e deu quatro flechadas. “- Ah! ah! ah! ah!’... foi
gritando. O homem que estava escondido pensou que ele tinha ido embora. Pegou os
macacos e voltou para a casa. Lá contou para a família de seu -tsere. Disse para a
esposa que o marido não voltava mais, porque virou “bicho”. Os homens resolveram
251
Os Rikbaktsa chamam a canela de –ek-tsapu, ou seja, dente da perna, sendo o dente associado a
objetos cortantes, como a faca, que é chamada de sokoro-tsapu, dente de cotia.
311
matá-lo. Foram no outro dia, com flecha. Ouviram ele gritando. Ele corria atrás de
ereme, mas não matava. Ele tinha uma redinha nas costas. A turma jogou flecha por
todos os lados, mas não acertavam. Ele sumia no rastro e não acharam. Foram embora e
desanimaram. Vicente diz: “Tsasendyk é forte. É índio mesmo, não é “pai-do-mato”
não
252
. Tem faro bom, por isso ninguém pega ele não. Tem redinha nas costas.”
A vinculação dupla das relações sociais aponta uma possível resposta entre o
“engano” ou a “intenção” em matar umtsere. Estas histórias vêm também a somar-se
com a caracterização da caça enquanto atividade perigosa, terreno de incerteza, onde se
pode topar tanto com “inimigos” mortos – os myhyrikoso (cf. Capítulo V) e também
seres metafísicos de mais variados tipos – quanto com aquele “vivos” e que são parte
das relações cotidianas, sobretudo aquelas de proximidade e companheirismo. Não é
difícil, ainda, que alguém seja flechado por engano e este esquívoco atribuído a
impressões confusas causadas por seres metafísicos, como morebe e harãmy, que
configuram vultos, presenças enganosas de bichos e roubam araras alvejadas pelos
Rikbaktsa.
Tabawy conta-me sobre uma discussão entre o filho e seu –tsere. Este último
estava zangando com seu filho porque ele ficava andando à noite. O filho disse que
quebraria o dente de seu –tsere. Comentou que no tempo da “maloca” um rapaz fora
avisar sobre um morto em outra aldeia. Os homens que estavam no mato pensaram que
era myhyrikoso, porque ele vinha correndo de braços abertos. Acertaram-lhe com a
borduna, que cortou o lado direito (cf. Capítulo III) do pescoço e do peito. O rapaz caiu
morto. Quando acenderam o fogo viram que era um parente. “Por isso não deve andar
de noite não” (Tabawy). Afinal, quem anda à noite é myhyrikoso ou relacionado a ele.
Um outro homem, conta, levou um corte de facão no rosto. Só desmaiou mas não
morreu. Um tempo depois morreu de doença.
Temos, por um lado, homens que podem ter ciúme das mulheres de sua metade.
Por outro, a distância requerida entre um par de indivíduos para uma “violação” efetiva
não é a estritamente genealógica, mas a “cosmológico-afetiva”. Exemplos vão desde o
lastro à violação que o distanciamento de clãs dentro da metade makwaraktsa pode
representar às justificavas de natureza relativamente “arbitrária”, como a “preferência”
252
Refere-se à esta história registrada por Holanda (1994), com um desenho do personagem e sua canela
de chifre, mas na qual este ser metafísico vem denominado como “pai-do-mato”, conforme acontece
também com outros seres. O único que denominam “pai-do-mato” em português, mas que não tem
qualquer relação com o nome na língua Rikbaktsa é morebe..
312
dos makwaraktsa por mulheres tsikbaktsatsa, o que ouvi de uma mulher cujo o filho e o
padrasto, ambos makwaraktsa, eram casados com mulheres tsikbaktsatsa.
Proximidades e distanciamentos podem ou não estar conjugados à proximidade
residencial. A co-residência não é capaz de apagar totalmente diferenças ou distâncias
entre as pessoas, embora ou talvez por isso mesmo, intensifiquem-se as relações entre
aqueles que partliham a casa, as atividades cotidianas ou o aldeamento.
O tempo é outro fato que contribui para amenizar o caráter de violação de uma
dada relação. Atua na sua re-classificação enquanto violação mais ou menos grave de
alguma regra ou princípio, até que este dado esteja praticamente ausente enquanto um
atributo relevante na socialidade cotidiana e, imagino, se também não nos ritos, a
depender do status e da idade dos indivíduos envolvidos. Lembremos que –diri (“avô”)
não inclui o pertencimento do indivíduo a uma ou outra metade, embora não o faça
alterar seu estilo de pinturas e o desempenho de tarefas rituais junto àqueles de sua
metade.
Isto inclui ainda a real possibilidade de que este homem seja, ele mesmo, “dono”
de festas. E esta posição não é imediatamente negada àqueles que praticam casamentos
endogâmicos, porque independem de qualquer atributo matrimonial. Se um homem é
sábio, portador de conhecimentos suficientes para conduzir ritos, se é notável artesão de
plumária, se consegue reunir em torno de si variados segmentos e com eles estabelecer
relações intensas de trocas de recursos diversos, mobilizando diferentes aldeias – na
verdade, todos estes atributos são interdependentes – então poderá adequadamente
dirigir um rito com sucesso
253
.
“NOMIGENITURAS
O mecanismo onomástico Rikbaktsa assemelha-se à descrição de Maybury-
Lewis (1984: 296-301) para os Xavánte, embora menos institucionalizado. Marca-se a
passagem dos indivíduos para novas classes de idade ou status sem, entretanto, serem as
classes de idade Rikbaktsa sistematicamente constituídas, nominadas e articuladas
enquanto grupos inciatórios marcados que revezam-se no tempo.
Por esta razão, a troca de nomes, embora usual, não é automática, porque não há
um sentido obrigatório para ela. Dependerá de outros fatores que não a idade
253
Remeto o leitor ao “Anexo 5” onde, à guisa de ilustração, descrevo as relações –pehe de uma mulher
casada em endogamia, com comentários.
313
propriamente, mas a posição de prestígio, a fase da vida do indivíduo e/ou o fato de doar
o próprio nome a uma outra criança. Estas “motivações” podem ainda confundir-se. Não
há, desta maneira, nomes diretamente associados a idades determinadas. Pode-se
encontrar uma mulher da metade makwaraktsa chamada Mawy, tanto com 70 anos,
quanto com meses de idade.
O pai da criança é que dá seu nome, “ele faz a criança”, esta é a resposta direta à
pergunta sobre quem dá os nomes Rikbaktsa. Esta, entretanto, é uma definição bastante
parcial nos dois sentidos. Tenho apontado e posteriormente me deterei mais sobre a
relação entre a mãe e a “produção” de seus filhos sob múltiplas perspectivas que
indicam uma metonímica bastante semelhante ao que ocorre entre pais e seus filhos.
Conquanto dizer que o pai dá nome a seu filho seja totalmente pertinente, mais exato é
considerarmos que nomes Rikbaktsa relacionam-se exclusivamente à linha paterna,
sendo privativos pelo menos das metades.
A descrição que faço a seguir corresponde integralmente a histórias de
nominações investigadas por mim. Como sugeri, há uma grande defasagem entre o
discurso sobre fenômeno e sua prática. Como fosse exaustivo descrever caso a caso e se
possa neles identificar determinados padrões e limites normativos à nominação, optei,
desta forma, por descrever “princípios” depreendidos destas situações.
A depender de serem assim lembrados, alguns nomes são associados a clãs
específicos, principalmente àqueles clãs ao quais devotam destaque maior. Contudo, o
dado que prevalece é o da metade paterna. Nomes poderão ser em parte “inadequados”
a um determinado momento de discussão acerca da paternidade dos indivíduos, quando
alega-se que estes têm pais de diferentes metades. Não são, contudo, alterados por este
motivo.
Em primeiro lugar porque a paternidade Rikbaktsa tem a propriedade de ser
discutida, posta em dúvida, enfatizada como também desmarcada por contextos e
interesses. Mas isto ocorre muito mais na direção da agregação de uma possibilidade do
que na exclusão de outra. Os pais que porventura tenham “oficialmente” nominado
crianças, supondo-se ainda que estivessem casados com suas mães durante a gestação,
não deixarão de ser seus pais.
A morte de uma pessoa pode até tornar mais evidente, mais comentada e mais
robusta a relação entre seus filhos e outros pais possíveis para eles, principalmente
quando se trata de homem de metade oposta. Afora os casos de mulheres viúvas ou
solteiras em que a paternidade teima em não se determinar e é a mulher quem decidirá
314
pelo menos a qual metade a criança pertencerá. Neste caso, de acordo com as
possibilidades que ela apresenta, solicita a alguém mais velho que escolha um nome
adequado para o filho.
A única ocasião em que se pode “oficialmente” mudar ou receber um nome é o
fechamento dos ritos da estação chuvosa
254
. Uma criança, contudo, pode ter seu nome
escolhido antes do nascimento. Tanto homens quanto mulheres, conquanto lembrem-se
de nomes adequados à metade da criança, podem nominá-la. O mais comum é que o
homem mais velho e próximo, pertencente à mesma metade da criança, o faça ou
também o próprio pai. Mas a nominação Rikbaktsa admite uma variedade de
possibilidades, principalmente quando está em questão a troca de nomes de adultos.
Sugestões de nomes adequados por quem os lembrar poderão ser acolhidas. Conversam
sobre a fonte, ou seja, sobre a pessoa que era associada ao nome.
Um velho contou-me que ele mesmo lembrou de um novo nome e trocou,
durante o fechamento dos ritos da estação chuvosa. Isto para logo depois dizer-me que
teria sido Naik, homem hazobiktsa e seu cunhado já falecido, quem o havia colocado
um nome makwaraktsa.
Um outro caso interessante foi o de uma criança que era filha de uma ligação
dita endogâmica entre dois jovens recém-saídos da puberdade, em período de
legitimação, mas que ainda não havia se configurado enquanto casamento.
A situação, as possibilidades e o desfecho escolhido pelos Rikbaktsa para a
nominação desta criança foram curiosos. Relembro ainda que dados sobre clãs e
paternidade, apesar de poderem sempre ser cristalizações contextuais ou mesmo de
perspectivas de informantes, não perdem por isso sua significância.
A mãe da criança era do clã makwaraktsa e o pai mybaiknytsa
255
. Os avós
paternos, por sua vez, eram também casados contrariamente à exogamia de metades.
254
Arruda afirma que as festas em geral são ocasiões propícias para a nominação e que ela pode ocorrer
independente de sua realização (Arruda 1998: 331). A escolha de um nome pode e normalmente ocorre
independente da realização de qualquer rito. Veremos que poderá ser discutida a “adequação” do
nominador nos casos mais controversos, e eu mesma presenciei o momento em que, sendo solicitada
informalmente, uma mulher “lembrou” de um nome para sua neta. Também poderão ser “negociadas” as
trocas de nome entre “parentes”, fora do contexto ritual. Contudo, a nominação efetiva da criança e,
notadamente, de um adulto, só poderá ocorrer no fechamento das festas da estação chuvosa. O fato da
festa da derrubada, que ocorre no início da estação seca, incluir o chamamento de nomes Rikbaktsa e a
designação de árvores determinadas a cada qual pelo dono da festa não incorre em nominação. Nesta
ocasião, o dono da festa deve sonhar com as árvores que deverão ser derrubadas e com as respectivas
pessoas que deverão fazê-lo, deverá conhecer seus nomes, mas não designa novos nomes para estas
pessoas.
255
Não poderia deixar de comentar a breve discussão que houve sobre o caráter endogâmico da relação
entre estes dois jovens, sobre se eram ou não parentes, isto por parte de pessoas muito próximas aos
315
Ambos pertenciam à metade makwaraktsa. A mulher era uidatakaoktsa e o homem
mybaiknytsa, já falecido. Como soubera de diversos casos de crianças e adultos
makwaraktsa que haviam sido nominados pelo sênior da aldeia, um homem
makwaraktsa, e por ser também a criança nascida mybaiknytsa, ou seja, pertencente à
metade makwaraktsa, julguei que o velho iria nominá-la. Contrariamente, ele solicitou à
avó paterna da criança que o fizesse.
Um nome pode ser passado a outro parente, mas sem nenhuma regra
estritamente genealógica. Uma velha tsikbaktsatsa deu seu nome a uma menina
makwaraktsa, assumindo para si um novo nome. Embora clãs de uma mesma metade, o
simples fato de que sejam diferentes, indicará certa distância genealógica.
É possível que algumas pessoas não troquem de nome mais do que duas vezes
ou permaneçam com o mesmo nome de nascimento. Este era o caso de uma mulher
franzina e de muito baixa estatura que teve sua fertilidade propositalmente extinta pelo
pai desde a pré-adolescência. Desfrutava de status pouco relevante, apesar de ser a mais
nova das esposas de um homem de prestígio, casado em segundas núpcias com duas
mulheres de sua própria metade.
Em certa medida, é necessário algum “mérito” individual socialmente
reconhecido para que a troca de nomes aconteça, como o casamento, filhos, o
estabelecimento de prestígio, em uma combinação que pode envolver a reunião de
pessoas em torno de si, a maestria na produção de artefatos, enfim, a sabedoria em
domínios diversos e também a prática de homicídios. Mas nenhuma destas situações
funcionam ao modo de prerrogativas que tornam imediata ou obrigatória a troca de
nomes.
Hahn trata os nomes rikbaktsa como “meios de identificação pessoal e
descrição”, nomes de família que não obedeceriam ao critério genealógico e que
podiam ser dados por qualquer um que vivesse próximo à criança, prescindindo de
cerimônia (Hahn, 1976: 95,96) (trad. minha). Em sua perspectiva, nomes não serviriam
noivos. Colocavam o fato em dúvida, dizendo que sabia-se lá se o noivo era “amarelo mesmo, não era
misturado”. Depois de pública a gravidez, ambos permaneceram sendo referidos como “solteiros”, sendo
pouco vistos. Havia uma clara cerimônia na entrada do rapaz na casa do sogro durante toda a gestação.
Assim que a criança nasceu, o sogro mandara o rapaz acompanhar um funcionário da FUNAI a uma
viagem de dois meses para o Aripuanã, em Rondônia, em busca de índios isolados que acreditavam poder
ser algum grupo Rikbaktsa. Na ocasião o sogro foi categórico, dizendo ao funcionário que o rapaz era
solteiro. Quando o rapaz retornou, foi com a “esposa” e a “filha” à aldeia do irmão do sogro, em um
ponto extremo da TI Japuíra, no rio Arinos. Cada vez mais iam se constituindo enquanto casal, como,
aliás, acontece mesmo nos casos de casamentos “adequados”. E assim segue o socius Rikbaktsa. Tudo é
sobremaneira processual. Com o tempo, dados relativos à paternidade poderão aparecer e, quem sabe,
mudar o rumo das classificações, legitimando determinadas posições e desautorizando outras.
316
a associações sólidas em termos da organização social e seriamquase casuais
(idem:96) (trad. minha).
Certamente a atribuição ou a transmissão de nomes não obedece a critérios
genealógicos fixos ou estritos. Nomes são lembrados e isto exigirá algum tipo de
relação – incluindo-se aqui elos genealógicos - entre o memorioso e a pessoa portadora
do nome no passado. Além do mais, nomes podem ser passados de pais para filhos, de
tias paternas para sobrinhas e assim por diante. As relações atuais serão sempre mais
enfatizadas, mas por seu intermédio se poderá chegar a algum tipo ligação genealógica
com aqueles que já morreram e eram os antigos portadores do nome em questão.
Assim, um homem makwaraktsa me diz que seu “tio” materno (-zopo), da
metade e do clã hazobiktsa chamava-se Nabita e era avô de Eriberto Nabita, homem da
metade e do clã hazobiktsa, que atualmente é casado em segundas núpcias com uma
filha de criação do citado homem makwaraktsa. E prossegue dizendo que sua tia
materna (-zawy), mulher da metade e do clã hazobiktsa, chamava-se Atupi, nome que
Eriberto Nabita dera a uma de suas filhas. Uma outra criança, Edenilda Hokmawy,
nascida em 2003, ficou com o nome antigo de Mariana (zerohopyryktsa),zawy de seu
pai, Paulo Tsikdi (tsuãratsa). É evidente que nem sempre poderão ser traçadas ligações
genealógicas entre aqueles que portavam os nomes e seu receptores, mas este é um
daqueles contextos no qual o dado genealógico poderá ser evocado e terá “peso”,
denotando “proximidade” entre aquelas pessoas.
Nomes podem ser também ser atribuídos a outros wahorotsa ou “etnias”. O
nome próprio Apiwo, que pertence a um homem da metade makwaraktsa, é atribuído a
outros wahorotsa, que foram encontrados comendo maze (jatobá) e por isso passaram a
chamá-los mazezuktsa (gente ou povo do jatobá). Depois de encontrados mataram todos
e ficaram com 3 crianças. Talvez sejam os Suruí, dizem. Contudo, a relação entre a
aquisição de um novo nome e um homicídio ou morte de “inimigo” refere-se mais
usualmente ao merecimento de um novo nome do que a tomar-se efetivamente o nome
daquele que foi morto.
Antes do advento dos nomes em Português, o uso cotidiano dos nomes
Rikbaktsa ficaria restrito às crianças (Hahn 1976:96)
256
. Os adultos eram mais
256
Parentes mais próximos – notadamente avós e avôs, chamam bastante as crianças pelo nome rikbaktsa.
Alguns adultos podem excepcionalmente serem referidos assim. Três mulheres da aldeia Pé-de-Mutum
eram comumente referidas deste modo (Tabawy, Tebe e Manihã) e dois homens eram referidos pelo
nomes rikbaktsa com certa freqüência (Mamita e Pudai), de modo que não há proibição, não sendo usual
entretanto.
317
comumente chamados por tecnônimos, categorias relacionais ou apelidos
257
. Observei
grande constrangimento pronunciá-los
258
, mas talvez isto possa ser explicado pelo igual
constrangimento de alguns em falarem a língua materna. Ouvi os velhos chamando seus
netos pequenos pelo nome Rikbaktsa, mas adultos utilizam os nomes em português e
freqüentemente os termos de chamamento que considerem adequados à relação.
Arrisco a interrogar-me sobre se a relação entre vivos e mortos não tem na
nominação mais uma demonstração do caráter de continuidade entre estas formas de
existência. Uma continuidade paradoxal, que parece adivinhar que aquilo que extingue a
vida – ou seja, o contato indelével com os myhyrikoso – é, de certa maneira, uma
condição do próprio socius. Assim, nomes vêm de vivos mas, sobretudo e em última
instância, todos eles teriam pertencido a indivíduos mortos. Designam analogias com
animais, vegetais e artefatos, embora nem todos tenham referentes lexicais claros.
Alguns insistem em dizer que os nomes antigos não são abandonados
259
. Durante o
censo, homens e mulheres citavam mais de um nome. Sempre é possível relacionar este
fato à cristalização valorizada do nome que as carteiras de identidade expedidas pela
FUNAI para fins diversos vêm a representar.
Para Bettio (1989) o nome perpetuaria pessoas e esta é de fato a primeira
impressão evocada pelo contraste entre os nomes recolhidos no mais recente senso
populacional disponível (Athila 2001) e os nomes citados pelos registros de Postos de
Assistência produzidos no período do contato. Com freqüência, eles estão repletos de
nomes utilizados atualmente. Reparo, entretanto, que esta repetição se dá por famílias e
clãs diversos de uma mesma metade, diferentes patrilinhas portanto, ocorrendo em
aldeias e regiões também bastante diferentes. Nomes não poderão ser, desta forma,
associados a lugares de origem ou famílias específicas, pelo menos atualmente
260
.
257
Apelidos são muito usados entre os Rikbaktsa. Algumas pessoas são referidas exclusivamente por eles.
Segundo me disseram, todos têm apelidos. Não há uma palavra específica para isso. O apelido é algo
relativo ao dono do nome, mas que não é o nome. Isto fica claro também com relação a nomes e
“apelidos” de clãs, devido a pinturas ou outras características que considerem relevantes. Explicaram-me
isto através do meu próprio apelido em português: “ka-je ka-pehe nioktsĩrõrõ” (1sg-mãe 1sg-chamar “cor
preta’) “minha mãe me chama preta” ka-naro i-tsatsihi nioktsĩrõrõ (1sg-nome 3sg-dono “cor preta”)
“preta é o “dono do meu nome”, meu apelido”. Certa vez comentaram que não banham e muitas vezes
não se apresentam sem as roupas por medo de ganhar “apelido” de acordo com a “aparência” dos órgãos
sexuais. Na intimidade, brincam muito dizendo sobre o tamanho do pênis dos homens – o mais lisonjeiro
é o apelido piku, que refere-se à anta - ou alguma característica da vagina das mulheres.
258
Durante o censo, era quase impossível conseguir os nomes indígenas em algumas casas. Em uma das
aldeias, entretanto, constituída por apenas uma casa grande, um sênior, através de um “intérprete”
respondeu a todos os nomes dos parentes paternos de sua casa, sem demonstrar qualquer
constrangimento.
259
Arruda afirma que nomes antigos são abandonados (Arruda, 1992: 333).
260
Parece ser pelo menos plausível que houvesse algum tipo de associação entre nomes e território no
318
A pouca profundidade genealógica também faz supor que no caso dos nomes, os
mortos não são mais do que fonte impessoalizada. Não há real intenção em ligar-se
pessoalmente vivos e mortos. Nomes são designados já despidos de pessolidade. Não há
um investimento em contar histórias sobre os donos antigos de nomes e sobre as
relações que se tinha com eles, mas sim em poderem lembrar seus nomes
261
. .O “nome
da pessoa não pode esquecer! Batu spiriktshokdany!, diz Vicente Bitsezyk, acrescentado
que não há problema em serem pronunciados. A exceção fica para a situação em que
estes nomes são “trocados” com parentes vivos. Nesta ocasião, a proximidade entre os
indivíduos envolvidos na nominação e seus núcleos familiares é fundamental.
Segundo os ditames oficiais, o pai “faz a criança”, lhe dá um nome, ao menos
nos casos regulares. Mas, como venho sugerindo, há outros modos simultâneos de
produzir aspectos fundamentais dos indivíduos, de seus corpos. Estes modos nem
sempre passarão pela paternidade e pela nominação formais e demonstram a intensa
comunicabilidade entre seres, coisas e suas propriedades na construção arriscada dos
corpos Rikbaktsa, de fronteiras fluidas e permeáveis (Busby 1997:275).
Concordo com a idéia de que o parentesco não é simples expressão dos “fatos”
da “procriação” (Firth 1936:226). Mas proponho tomarmos as noções Rikbaktsa de
“procriação” com seus “fatos” peculiares, como as diferentes possibilidades de geração
e nascimentos, misturas, transformações e perspectivas. Noções estas que resultam “do”
e “no” seu mundo; da aldeia, do mato, dos domínios para além do social, ou melhor, do
que são “os vivos” capazes de enxergar em seu estado regular. Se nem sempre são
capazes de enxergar, bem sabem existir e, o quanto conseguem, incluem estes
conhecimentos no cálculo e na prática de suas relações e atitudes cotidianas.
Tenho citado protocolos diversos que deverão ser seguidos por rapazes e moças
para que permaneçam à salvo de quaisquer alterações sobre seus corpos e o de seus
filhos futuros, sequer ainda gerados. Posturas sociais, como negar-se a fazer algo
quando demandado por mais velhos, podem trazer dificuldades ao nascimento de uma
criança e até sua morte. Recomendações alimentares seriam tão mais numerosas quanto
mais tempo pudesse ficar entre os Rikbaktsa.
passado, antes da drástica e forçada “reorganização” territorial dos sub-grupos Rikbaktsa.
261
Algo que me fez pensar nisto foi o contraste entre o que ocorreu comigo entre os Wari’, que acolheram
meu marido em sua pesquisa de campo. Sem que me conhecessem senão por fotos, deram-me o nome
Tokohwet pio’ e disseram-lhe que este nome havia pertencido a uma velha muito estimada, que havia
morrido de tuberculose. Além dos nomes Rikbaktsa não poderem ser dados desta forma, especialmente a
brancos, nunca ouvi este tipo de referência sobre qualquer nome usado por eles.
319
Indícios vigorosos do fazer e arriscar corpos nos quais redunda o “estar” no
mundo Rikbaktsa. Evidências de que raramente um corpo arrisca-se sozinho, porque
não existe sozinho. E entre os Rikbaktsa, literalmente, nem a paternidade e nem
qualquer outra “fonte” de geração de seres é exclusiva. Vimos um certo aspecto disto
nas concepções sobre clãs e metades, todos eles advindos de misturas peculiares de
seres e coisas preexistentes, que condenam a diferença à semelhança e vice-versa.
A tenuidade de fronteiras corporais, especialmente entre mãe, pai ou “pais” e
filhos, faz com que eles funcionem por muito tempo como apenas um grande corpo. A
gestação e o nascimento de uma criança acabam por potencializar, por outro lado, as
constantes interações entre seres e coisas que caracterizam o cotidiano Rikbaktsa. Ou
melhor, exigem regulações ainda maiores destas interações para um fazer adequado do
seu corpo, considerado particularmente vulnerável.
Para que uma criança nasça sem dificuldades e possa viver, construir seu corpo
cumulativamente, é fundamental que tanto o pai quanto a mãe observem recomendações
muito claras e difundidas. Os esforços deverão ser bilaterais. São tantas, que havemos
de questionar como é possível se estabelecer uma teoria nativa exclusivamente
patrilinear de concepção.
Pacini (2000) destacara no diário de um posto de assistência aos Rikbaktsa
recém-“pacificados”, a menção a acusações mútuas de falta de cuidados entre o pai e a
mãe de uma criança que morrera. A mulher acusa o marido de ter trabalhado muito,
enquanto a criança estava doente; e de ter tido relações com outras mulheres. Ele a
acusa de não haver cuidado bastante da criança, dando-lhe certas frutinhas.” (PAI
Regis:35-36 apud idem:109).
Em campos diversos, como na confecção da plumária e de outros artefatos
rituais, como em alguns tipos de “flautas”, os Rikbaktsa enfatizam muito mais o
processo de sua produção do que o resultado final. Peças são sempre produzidas sob a
supervisão precisa de homens que tenham excelência em sua confecção, “especialistas”
reconhecidos em algum tipo de peça. Eu mesma testemunhei dissoluções de carreiras
inteiras de trançados, a partir de “erros” apontados por tais experts.
Como veremos no próximo capítulo, algumas penas utilizadas em peças de
plumária e flechas – como as do gavião-real (wohorek ikhitsita) e do apacamim
(zikarapopo) – deverão ser “produzidas” através de práticas específicas. Serão somente
“utilizáveis” após ritos de furação das penas e edibilidade da carne destas aves, ritos que
envolvem grande risco corporal, mas também a produção e maturação de corpos. São
320
guardadas como tesouros em bolsas de entrecasca vegetal (tsanipe), dizem, juntamente
com pós, plantas e outras penas que podem ser utilizadas em feitiços.
É marcadamente o “produzir” da plumária que é repleto de regras e
recomendações, como de perigos que podem conduzir o indivíduo até mesmo à morte.
Assim acontecerá também com a produção de corpos. E estes diversos “fazeres”
guardam correspondências profundas. Há uma relação metonímica entre a produção de
alguns artefatos plumários e ecléticos e o corpo não apenas de seu artesão, como
daqueles a ele identificados, como esposa e filhos, principalmente os ainda pequenos ou
em gestação.
Diversos artefatos produzidos pelos homens não poderão ser feitos, nem durante
a gestação e nem nos primeiros meses de nascimento da criança. Estes e outros fazeres
ficam interditos, como se, pela correspondência entre “coisas” e “corpos”, o fazer de um
redundasse em uma espécie de contra-efeito no fazer do outro. Os trançados de algodão
que formam a base de braçadeiras e da coifa com cobre-nuca (myhara) não poderão ser
feitos. Alegam que a criança pode ser também trançada e ficar “trancada”. Para a
confecção de peneiras pelos homens, a mulher perde a criança. O Facão também não
pode cortar, ser usado para produzir ou modificar nada. Isto faz a mulher sofrer, e tanto
ela quanto a criança podem morrer.
Talhar ou aplicar acabamentos em canoas também fica proibido. Uma mulher
contou-me que o filho quase morreu quando pequeno porque o marido teimou em
apenas colocar cera na canoa. Travou sua barriga, não saía nem xixi e nem cocô. “Por
isso ele é magro assim até hoje” (Silvia Tapyk). Mulheres também não devem proceder
à costumeira ralação de colares (-nahatsa) ou de caramujos (wazibubutsa e tutãratsa)
porque a criança pode nascer sem cabelos ou provocar sua queda após o nascimento.
Talvez a myhara, esta que é a mais elaborada peça da plumária Rikbaktsa, seja a
expressão maior desta simpatia entre coisas, corpos e seres. Uma simpatia que nem
sempre resulta em efeitos adequados à produção corporal. Tecida em algodão e
entretecida de feixes de penas de araras diversas e mutum-cavalo, é lateralmente
adornada com cabelos humanos, sendo composta ainda por um cobre-nuca e o que
chamo de “cobre-costas” (os dois compõem o que chamam i-jokpiskihiwy), ambos feitos
de penas caudais de araras vermelha e canindé, e ainda uma espécie de saia (i-pebawy)
superposta a ambos.
Utilizada por homens de status em ritos maiores, em expedições guerreiras e
durante ritos fúnebres, sua confecção exige uma série de cuidados e restrições, que
321
reafirmam a correspondência entre a produção dos artefatos, o manuseio de seus
componentes e o arriscar de corpos. Como uma série de tarefas cotidianas, deve ser
realizada em um tempo determinado e mais ou menos contínuo, não podendo demorar-
se ou ser feita muito rapidamente. Caso o contrário, tanto o artesão quanto aqueles a ele
identificados correriam riscos de doença e morte, especialmente crianças pequenas.
O cabelo utilizado deve ser preferencialmente de algum homem ou mulher
considerados próximos. Em hipótese alguma é feita a partir de cabelos de supostos
inimigos ou não-parentes. Mulheres grávidas não podem doar cabelos, ou a criança
sofreria prejuízos corporais. Acreditam que se, ao ser cortado o cabelo, inicia-se o
trançado da grinalda, o próprio cabelo do doador terá seu crescimento prejudicado.
O trançado de algodão que compõe a grinalda, no qual são utilizados algo como
1500 penugens de arara vermelha (Ara macao), arara canindé (Ara araruna) e mutum-
cavalo (Mitu tuberosa), não poderá ser realizado por homens que tenham suas mulheres
grávidas ou filhos muito pequenos. Como eu disse, neste caso, a própria criança teria
seu corpo “trançado” e ficaria doente, podendo morrer.
Peças acabadas dificilmente têm “agência” ou representam qualquer tipo de
ameaça. Cocares utilizados em ritos podem ou não ser guardados para uso em outras
ocasiões, mas é mais comum que sigam seu fluxo, sendo vendidos, trocados ou doados.
“Flautas” também serão desprezadas após os ritos e poderão ficar esquecidas na casa
dos homens ou mesmo pelo pátio da aldeia. Um novo rito provocará a busca de taquaras
para a produção de novas “flautas” segundo regras relativamente estritas.
E assim acontecerá com a produção dos corpos em geral. Um processo que não
finda e é composto de “fases da vida” em que estes corpos acham-se mais ou menos
expostos a interações. Isto compreende desde os anos anteriores à concepção, na
capacidade reprodutiva dos futuros pais, passando por sua gestação e nascimento, todos
estes, períodos de vulnerabilidade excessiva, até a velhice – quando os riscos são
expressivamente minorados - e, finalmente, a morte do corpo e com ele, de certa
maneira, o fim dos riscos corporais. Corpos serão sempre inacabados e terão estatuto
impermanente.
Pré-gestação, gestação e os primeiros meses e anos de uma criança são
momentos de vulnerabilidade extrema. A profusão de restrições alimentares que
atingem homens como mulheres impressiona sobremaneira. Algumas proibições cessam
322
com o nascimento, mas até que o umbigo (-tsitsihik
262
) da criança caia ambos não
devem comer muito, pois pode “estufar” (-pytok) a barriga do neném. Pelo mesmo
motivo não se pode fazer pão ou massa para “crescer” (com o uso de fermento), pois
tranca a urina da criança, ela estufa e falece” (Silvia Tapyk). Também devem cessar
relações quando a criança nasce e nos primeiros cinco ou seis meses de vida. Se isso
não acontece, a criança fica magra e morre.
É como se houvesse um trânsito ainda maior de propriedades e qualidades
sensíveis que atribuem a coisas e seres em geral e também a algumas de suas “partes”.
Observo que esta lógica sensível de interações está presente em todas as formas de
intervenções corporais. Seja para fazer um corpo, para destrui-lo, para curá-lo ou para
transformá-lo com um ou outro fim determinado. Há para tanto a exigência de conhecer
estas qualidades e saber manipulá-las, misturando-as adequadamente.
Abordei este atributo metonímico-terapêutico no capítulo anterior e ele vem a
associar-se com o que venho explicando aqui. Algo semelhante atinge a “trans”-
formação das gentes e animais que foram os precursores dos clãs e metades. E, de modo
semelhante, atingirá a produção de corpos/pessoas entre os Rikbaktsa.
Homens e mulheres que desejam ter filhos não devem comer rabo (-a), pés (-
pyry) e mãos (-tsyhyry) de macacos que enrolam o rabo, como o coatá (ereme), prego
(boa), bugio (diri) e mouro (eremeza). Neste caso, a mulher não consegue engravidar e,
se consegue, sofre com o nascimento. Em um contexto favorável, passam o rabo de
coatá na mão da criança para ela não cair. “Porque o coatá não cai. Já prego não. Cai
fácil” (Vicente Bitsezyk).
Os rabos de boaza (macaco paraguaçu), aфwi (quati, que consideram como
macaco), tobo pyriri (zogue-zogue) são permitidos. Pés e mãos de nenhum macaco
comem, só aqueles que não estão mais tendo filhos. Homens também não devem comer
estas partes do macaco porque as flechas só ficam enganchadas.
Principalmente mulheres não devem comer cabeça de macaco ou de qualquer
outro bicho, como arara, “porque a criança só chora”. Sem interdição para cabeça de
peixes. Apenas mulheres mais velhas ou as que não vão mais ter filhos podem comer.
Por outros motivos, homens também não devem comer cabeça de macaco e de
bichos. Quando vão caçar, o bicho não fica distraído (zi-hyrizik-tshokda-wy/trans.pass.
proc.-olho-perder-subst., literalmente, “perder o olho”), e enxerga o caçador, o que é
262
Do mesmo modo chamam as “tripas” de animais.
323
quase sempre fatal para o insucesso da caça. “Vê a gente primeiro”, diz Vicente
Bitsezyk, o que é desvantajoso não apenas nas caçadas mas em quaisquer interações
predatórias, como aquelas entre os Rikbaktsa e seres metafísicos. Algo semelhante
ocorre à ingestão da cabeça de peixes. “Eles veêm a gente de longe” (Adílio Petã). Os
que comem cabeças de bichos e peixes são geralmente homens mais velhos, que não
caçam mais.
Pai e mãe de crianças pequenas não podem comer filhotes de macaco prego (boa
tsetsibik). A criança só fica a chorar, querendo mamar a todo tempo, como faz o filhote
de prego. Durante a amamentação não se deve comer castanha-do-pará (pitsi) e nem
quando se está com feridas. Às vezes, quando a mãe da criança come asa de jacu
(hamor) faz barulho, então a criança assusta. Como o susto é algo perigoso, como
mencionei anteriormente, há remédio-do-mato de jacu hamor okyry.
De certas pererecas (myrikpuitsa) que grasnam alto principalmente nas noites
encobertas da época de chuvas, mulheres grávidas não podem comer o mingau do ovo,
pois a criança fica muda. Estas pererecas peculiarmente são seres noturnos que grasnam
ao crepúsculo, sendo por esta razão associados aos myhyrikoso. As velhas fazem
mingau do seu ovo com castanha-do-pará. Atribuem a mudez de um menino da aldeia à
ingestão deste mingau por sua mãe assim que o filho nasceu.
Myrikpuitsa são imitadas no fechamento das festas da estação chuvosa, e é
quando mulheres de metade oposta – de variadas idades e proximidade - dançam atadas
ao braço de um homem por uma braçadeira de buriti (pikzaze) e lhes fazem pedidos de
algum recurso valorizado, como caças, peixes grandes e peneiras. As solicitações, em
hipótese alguma, poderão ser negadas ou negociadas. Mais de uma mulher poderá
dançar no braço de um só homem, e ele deverá ter “cacife” para corresponder às
expectativas femininas
263
.
Esta “troca” (-akse) – de “dança” por “recursos” - supõe certa duração temporal.
O “recursos”, quando se trata de alimentos (o que é mais comum), deverão ser
“conquistados” e depois entregues ritualmente à porta das solicitantes. Serão, então,
processados por elas e depois partilhados com o homem sob a forma de repasto. É o que
os Rikbaktsa chamam de “i-tsipa my-na-kari”, “ir dançar no braço dele”. Esta prática
pode ser a origem ou intensificar alguma intenção amorosa ou matrimonial, mas muitas
263
Disseram que, primeiro, muitas mulheres queriam “dançar no braço” do padre Balduíno Loebens (que,
aliás, é tido em grande conta enquanto caçador) e pedir-lhe “panelas de alumínio”. Então resolveram
proibir o pedido de panelas.
324
vezes acontece entre homens e mulheres de metade oposta que mantém, até aquele
momento, relações de proximidade e distância sexual. Jocosamente fazem comentários
tais que salientam o aspecto ou a “liminaridade” do tom “amoroso” desta “dança”
264
.
Imitações de outros bratáquios que não o myrikpu, em contrapartida, não podem
ser vistas por moças que ainda não tiveram filhos, senão demoram a engravidar. As que
estão com filhos pequenos não dançam no braço durante estas festas. Podem ficar
olhando, porém paradas.
Homens com esposas grávidas não podem comer o dorso da coluna da anta (i-
pirik) (parte do pescoço com o osso da coluna). A mulher também sofre para ter o filho.
Na história Rikbaktsa
265
, a primeira anta criada a partir do calor das dobras cutâneas de
um mulher e uma semente de angico (urik), não era alvejada pelos homens –
característica de muitos bichos e seres da esfera dos myhyrikoso - porque suas flechas de
forma alguma penetravam em seu dorso (i-pirik). Mulher grávida não pode comer i-
pirik. “As velhas colocam medo em nós, só elas comem. Senão a criança só sobe, não
nasce logo” (Helena Zydyk). Crianças também não comem dorso de anta. Quando
caçada, esta e outras partes tabuadas da anta seguem para casas onde há homens e
mulheres velhos.
Rapazes e moças não devem comer carne do pescoço (-soik-ni) ou a gordura
(tutã) da parte inferior do pescoço do caetetu (pyrikto). Rapazes não conseguem matar o
bicho, perdendo-o ou apenas ferindo-o (mystetekte zyba). Para moças, o filho não nasce
logo. Se a mulher grávida comer veado (hozipyryk) e também paca (wotyk) a criança
nasce careca ou o cabelo cai. O ovo de jaboti (wiktsabo), como citei no capítulo III,
também não deve ser ingerido, pois a cabeça da criança criará feridas.
Gestantes não podem arrancar pena e nem comer do mingau do gavião-real. Não
podem comer do mingau de porco, macaco ou chicha, durante os ritos. Também
cotidianamente, peixes e aves são o recomendado. Caso contrário, a criança não
desce”, só sobe. Já os maridos não podem comer pescoço de caça grande. Mingau e
chicha de ritos também não podem. Se isto acontece, obstrui-se a passagem da criança.
A dificuldade do nascimento, sua demora não-regular é considerada uma ameaça
tão séria quanto difundida, presente em uma variedade de restrições alimentares e
proibições de outras ordens que não aquelas que incidem sobre a alimentação. Curioso
264
Mulheres e também homens brincavam muito comigo, curiosos para saberem no braço de quem eu
dançaria. Mulheres, ainda, recomendavam-me “pedidos”, advertindo-me que, contudo, eu os teria que
preparar e também aos seus acompanhamentos usuais, como chicha e beiju.
265
Esta história será abordada mais à frente.
325
observar que, em um socius marcado pela extrema flexibilidade, este tipo de regra,
quiçá pela unanimidade de seu conhecimento e a natureza de suas “penas”, é aquele que
generaliza-se, independentemente de segmentos sociais.
Abordei até aqui fatores que incidem sobre a produção de corpos, impedindo ou
dificultando sua concepção, gestação e crescimento. Há, pórém, outros fatores que vêm
a contribuir, desta vez, na direção e nas características da criança em formação. Um
aspecto paralelo à nominação e que parece conferir individualidade àquele novo corpo,
um grau de singularidade que não é possível alcançar através dos nomes (-naro) em si
mesmos.
Desde a Introdução desta etnografia venho destacando que os sonhos (-
tsotyspyk) são ativos entre os Rikbaktsa. Neles há encontros com seres metafísicos,
interações que podem ser violentas ou servir como premonições de que outros e mais
perigosos encontros virão. Maria Erlinda Piktsuwy me disse que se “a gente está
grávida e sonha com macaco preguiça, a criança nasce molinha ... por isso a filha de
Irene é desse jeito”. E a idéia é exatamente esta. Aquela mesma lógica sensível que
“contamina” a produção de corpos e que a impede ou a perturba, acontece através do
sonho de pais e mães e pode verter-se em características de uma pessoa.
O que chamam de sutsukwy é uma forma paralela de nominação, e também mais
que isso. O sutsukwy de alguém – e todos, sem exceção, têm sutsukwy – diz respeito a
algum ser ou coisa que participou da geração da pessoa, por intermédio dos sonhos de
sua mãe e de seu pai. Por esta razão dizia que gostaria de examinar a noção Rikbaktsa
de procriação, que não poderá ser desvinculada de tudo que tento explicar aqui. O
sutsukwy demonstra a interrelação pai, mãe e filho, ratificando que mães e também seres
e coisas, de uma forma ou de outra, participam na produção “fisiológica”, digamos
assim, de uma criança. É a contraparte produtiva da lógica metonímica que torna
necessárias restrições alimentares e de outros “fazeres” à produção de novos corpos.
Não consegui uma tradução desta palavra ou expressão e nem reparar seu uso
em nenhum outro contexto ou trabalho sobre a língua Rikbaktsa. Sei que ela não admite
flexão, nem de gênero, nem de plural e que também não é um verbo ou raiz verbal. Se
diz: “- Fulano makwara sutsukwy” (fulano (tem) sutsukwy de arara amarela).
O que pude saber é que esta “contribuição” acontece quando está próximo ou
logo após o nascimento da criança. Se dorme pesado ou mais leve, então sonha-se. “Aí o
326
bicho
266
vem pertinho da rede. Aí fala para ele dormir longe, ele diz que está vendo a
nossa criança. A-bykyhy pi-so-sutsukwy! my-wanu i-zomo-ko, vai chegando perto dele,
embaixo da nossa rede” (Tabawy). Esta dimensão interativa dos sonhos, já destacada no
que concerne a seres metafísicos, faz com que se pai ou mãe da criança se ponham a
sonhar com “algo” a criança fique também um pouco como ele.
A partir daí procedem às identificações entre o sutsukwy de alguém e a pessoa.
Veremos que poderão ser diversas as fontes de interação. E acho que vale à pena citar
alguns sutsukwy e seu modo de contribuição a seus respectivos “donos”.
Tabawy conta que seu sutsukwy é orobiktsa (flechas). Sua mãe sonhara com
flechas e ela ficou alta e flecha muito bem. Seu filho Vinicius é wyiakãra (ariranha)
sutsukwy. Adora peixe, pesca bem e vai para o rio muito cedo. Sua filha Creucina
sonhava muito com boneca comprida quando estava grávida de Suelen. Diz que pode
ser sutsukwy, mas que não sabe o que isso acarreta.
Jocosamente, as pessoas podem ser chamadas por seu sutsukwy. Foi assim que
cheguei à existência desta forma de designação tão particular. Quando lhes perguntei o
que era e me explicaram sobre estes sonhos constitutivos saíram a descrever os próprios
sutsukwy e aqueles de pessoas de outras aldeias
O pai de Helena sonhou com uma abelhinha pequenininha (tsokyritsa –
mandori) quando ela nasceu. Por isso ela ficou baixinha. A mãe de Vicente sonhou com
bahaza depois que a criança nasceu, por isso é periquito. A mãe de Cleide sonhou com
boi (pikuza sutsukwy) e por isso ela gosta muito de sal. Maria sonhou com onça e Leide
ficou onça, adora carne, parini sutsukwy. Acrescentam “come só os olhos. Gosta de
olho, miolo, cabeça” (Maria Piktsuwy). A mãe de Egídio sonhou com coró (wyinypu) e
ele comia muito coró quando era pequeno, comia tanto que ficava barrigudo. Pedro
sonhou com tsikbaktsa (arara vermelha) e Adílio é arara, adora fruta. Se vê frutas logo
sobre no pé. Pessoa que é apoheyk (jacaré) sutsukwy gosta de brincar com lama.
Animais diversos, de onça a abelhas e artefatos são os sutsukwy mais comuns.
Mas outros seres podem contribuir na geração de uma criança. Adriele é zopok-tsa
ste(vento-pl/filha “filha do vento”) sutsukwy. Neste caso, não se pode judiar da criança,
pois ela chora e então manda o vento. Também se pode sonhar com morebe, um ser
metafísico que já citei (cf. Capítulo III), flechador de araras e pássaros. Então a pessoa
fica também flechadora. “Ele pega no braço da criança e diz para ela que vai ficar
266
Lembro que “bicho” pode significar diferentes classes de seres entre os Rikbaktsa, icluindo os
myhyrikoso.
327
flechadora, não vai errar passarinho, nem perder flecha. Mata bicho” (Rosa Naudy).
Harãmy sutsukwy, a criança fica só “especulando” (tsi-harere-byrta/ harere “falar”), a
mãe tem que agüentar.
Neste ponto chegamos a um aspecto importante da construção corporal. O
assunto do harãmy e do morebe sutsukwy evoca uma história sobre uma mulher que
ficou em casa sozinha com a criança recém-nascida ao invés de acompanhar o grupo em
uma lamentação em outra aldeia
267
. Contam história semelhante dizendo que o
personagem ao invés de morebe é harãmy. Ambos são seres associados aos myhyrikoso
mas impessoalizados, o que não implica em sua desumanização. Desta forma, não são
parentes Rikbaktsa que um dia viveram, mas seres com características próprias (cf.
Capítulo III).
O morto que motivou a lamentação ficou preso no oco de um pau com barro.
Dizem que a mulher não fora à sua “lamentação” porque estava com preguiça (-dika-).
Tem-se, contudo, que mulheres com crianças pequenas não podem participar de ritos
funerários o que acarretará que permaneçam sozinha a aldeia durante estas ocasiões.
A mulher estava fazendo mingau (zaro) e chicha (tumy), algo que não se deve
fazer no pós-parto. Alguns dizem também que a criança chorou – o que
irremediavelmente atrai harãmy, morebe e myhyrikoso
268
e a mulher a empurrou.
Logo depois Morebe chegou à casa. Como o costume Rikbaktsa, deixou o arco e flecha
na entrada da porta. Dizem que seu arco tem enfeite de penas de arara na ponta,
diferentemente dos arcos Rikbaktsa, que não são decorados.
A criança ainda não tinha nome e ele começou a especular. Perguntava
insistentemente à mulher sobre o pai e o nome da criança, fomentando dúvidas e
confusões. Colocava em cheque semelhanças entre pai e filho e sobre a criança não
ter nome. Acabou ele mesmo por nomeá-la, digo eu, gerá-la também, no sentido
que venho explicando.
267
Descrevo esta história conforme os relatos de Geraldino Patamy, Vicente Bitsezyk, Maria Zabawy e
Helena Zydyk.
268
As crianças são cotidianamente alertadas sobre isto, ainda mais quando as choradeiras acontecem ao
anoitecer. Dizem às crianças que harãmy ou outro “bicho” irá pegá-las e que caso mantenham-se
chorando serão deixadas do lado de fora da casa. Depois que anoitece fica proibido, aliás, que crianças
fiquem sozinhas pela aldeia ou do lado de fora das casas. Uma outra curiosidade é a adaptação de Helana
Zydyk para a cantiga de ninar que provavelmente os jesuítas ensinaram. Entoa: “Nana neném, que o bicho
vai pegar, bicho urototok, o bicho vai pegar ...” Demorei para discernir esta palavra no meio do
português, que primeiro achava engraçada, devido às contrações silábicas tão comuns quanto agravantes
da compreensão da língua falada. “Utôtô”, se pronuncia. Urototok é a sucuri, um ser metafísico e
predador por excelência, associada também ao arco-íris (tsokmy) que surge após o mau-tempo, como
vimos, sinais de que os myhyrikoso estão acordados e se aproximando dos vivos.(cf. Capítulo III)
328
Era um menino e deu-lhe o nome de Spizoita. Balançou o braço da criança, mas
não quebrou
269
. Sussurrou seu nome próximo ao ouvido da mulher. Quando ele ficar
grande vai matar só passarinho, macaco, arara. Assim como ele. Não errava nada.
Disse que estava com sede. Tomou do mingau e da chicha ainda quentes, sem se
queimar
270
. A mulher tentava amedrontá-lo, dizendo que os homens estavam voltando.
Diziam: “ - escuta só eles chorando”. Então ele pegou o arco e fugiu. Ainda encontrou
dois homens. A mulher correu. Ele aproveitou e comeu todo o mingau e deixou só um
pouco ... os homens acabaram de comê-lo.
Há uma outra história que dizem ter se passado desta vez com harãmy. A mulher
também estava em casa sozinha com a criança pequena, enquanto seu marido foi caçar.
Harãmy também especulou e acabou por arrancar a genitália da mulher (i-tõro). A
mulher morreu e a criança ficou e tornou-se flechadora, mata muitas araras. Não são
raras histórias onde estas criaturas desejam ter relações com as mulheres Rikbaktsa,
tendo sucesso muitas vezes ... e gerando filhos.
Dizem que Morebe e harãmy não são myhyrikoso, no sentido de que não são
como “nosso espírito”. São, entretanto, seres associados à dimensão dos mortos, porque
comungam com eles alguns traços importantes. Causam tonteira e escurecem a visão
quando os encontramos e, principalmente, são estes os encontros com interesse
francamente predatório sob os corpos dos vivos. Na festa, quando imitado, morebe vem
com arco e flecha. “Seu arco leva pena, ele é guloso, vem, assusta as pessoas e coloca a
mão na panela de mingau quente e come sem queimar” (Francisco Pikze).
Para harãmy, os alvos centrais destas abordagens são crianças para serem
comidas, como os filhotes de coatá pelos quais tem predileção. Para morebe, homens
para comer e mulheres para casar e ter relações, acrescento eu, para “gerar” filhos para
si e até para deixá-los entre os Rikbaktsa:
Ele que carregou nosso parente (hazobiktsa) levou a mulher na casa e
pousou com ela e teve um filho com morebe, voltou barriguda. Teve o filho na
sua própria casa, o pai sempre vinha e trazia arara, papagaio. A criança era
269
Esta é uma distinção entre as histórias de morebe e harãmy. Morebe nomina a criança e pega no seu
braço. Com isso ele não deixa de contribuir à sua geração, assumir sua paternidade, segundo a teoria
nativa de nominação. Sua contribuição na geração da criança e o contato com seu braço a deixará
flechadora, porque ele mesmo é exímio flechador de araras e pássaros. Harãmy deseja, antes, seqüestrar e
comer a criança e arranca seu braço fora.
270
Nas festas, quando imitam morebe, ele entra na casa e serve-se de chicha e mingau quentes. Esta é
uma característica de seres metafísicos em contraste com os vivos, notadamente aqueles que estão em
processos vívidos de transformação corporal, proibidos que comer alimentos quentes.
329
parecida com “monstro”. É gente mesmo, só que ele mora no mato, sua casa é
de palha, tem palha, tem porta, ele tem mulher, porque uma vez os homens
foram caçar e encontraram ela sozinha e barriguda, grávida.” (Tabawy)
Contam também que assim que a criança nasce a mulher pode sentir tonteiras.
Fica sem ouvir nada e não se lembra de nada, ficando muito fraca. Embora não tenham
explicitado isto, estes “sintomas” são facilmente identificados à aproximação dos
myhyrikoso. Talvez signifiquem que este é um período ainda mais propício à fragilidade
dos corpos por sua interligação com o recém-nascido.
Se aqui a onomástica traduz algum tipo de oposição como entre os Jê (Melatti
1970, 1976, 2002; Lopes da Silva 1986; Viveiros de Castro 1986) - podemos pensar nas
relações entre a nominação, teorias oficiais e oficiosas de concepção e a uxorilocalidade
- ele não parece expressar-se em termos de uma oposição constitutiva entre “relações
fisiológicas” e “relações cerimoniais” (Da Matta 1976), entre “nomes” e “corpos”, ao
menos enquanto esferas fixas e definitivamente opostas.
O conceito de corpo e de sua construção entre os Rikbaktsa nos conduz a uma
situação heterodoxa. Por sua essência misturada, na contribuição de outros homens,
quem sabe de metades opostas, e até de outros seres na formação da criança, talvez
possamos chegar, caso a caso, a oposições localizadas que poderão ou não ser evocadas
em determinados momentos da vida do indivíduo, sob a perspectiva de alguém ou
algum grupo.
De qualquer forma, elas não serão unânimes e muito menos absolutas e
tradutíveis em termos de “fisiologia” X “cerimonial”, ou “fisiológico” X “social”. Estes
“domínios modelares” encontram-se completamente entrecortados entre os Rikbaktsa.
Pela teoria nativa “oficial”, nominadores e genitores serão entidades coincidentes. Mas
entre os genitores impõe-se a dúvida.
O objeto de especulação, na verdade, é a própria paternidade. Se não se sabe ao
certo quem é ou são os pais – pois há possibilidades múltiplas de geração -, então se sai
ou se deve reelaborar o suposto “sistema” desenhado para aquela criança ao seu
nascimento, seu pertencimento a grupos sociais, redes de relações e daí em diante. O
asunto que iniciou-se com o sutsukwy, passa para a história de atitudes inadequadas –
pois a mulher estava sozinha na aldeia com a criança e ainda fazendo chicha e mingau –
que geraram a aproximação de morebe, sua hesitação sobre a paternidade, culminando
na nominação da criança. E daí, significativamente, o assunto verte-se para as
330
“misturas” que compõem os indivíduos, em face da paternidade múltipla e da
hegemonia feminina na determinação ou na indeterminação quase permanente da
paternidade. Isto nos conduz diretamente ao próximo ponto.
A CAIXA DE PANDORA
Caso não haja contrato o domínio
pertence à mãe. Porque na condição de simples
natureza, onde não existem leis matrimoniais, é
impossível saber quem é o pai, a não ser que tal
seja declarado pela mãe. Portanto, o direito de
domínio sobre os filhos depende da vontade dela, e
conseqüentemente pertence-lhe.”
(Hobbes
1979:123)
Nos cantos Rikbaktsa, todos denominados mysakibarikwy, há um repertório
relativamente fixo, composto por peças que falam de animais, vegetais, artefatos e até
seres metafísicos dos quais temem o encontro, que não raro confundem-se também em
“outras gentes”. Cantam histórias das quais são personagens e que existem também,
variando em acordo com o conhecimento e a habilidade do contador em adicionar-lhes
detalhes e “ânimo”, no âmbito da narrativa.
Há o piknutsa (“peixes”, que fala da festa em que aprenderam a tocar “flautas”
com eles), taziditsa (a “paineira barriguda”, árvore que abrigava no oco um povo
relacionado aos Rikbaktsa, alguns dizem que eles mesmos), Jakarawata (“homem como
mato, do mato”, que fala sobre o wahorotsa do povo que inventou a myhara, que falava
a língua Rikbaktsa mas não usava disco auricular, flechado pelos Rikbaktsa no telhado
de uma casa, durante uma expedição da seca), pikuruk wyinypu (o “coró cabeludo”, que
tem cabelo comprido, dá no milho todo ano, na época da chuva e é “ikiahatsawa
[como vocês, diz Geraldino Patamy para a “audiência” em risos]), Harãmy ou Yambok
itsipa (“Harãmy ou o braço de Yambok”, o qual já me referi e que fala das desventuras
da criança chorona e da mulher, que estavam sós na aldeia) e ainda muitos outros
271
.
271
Hahn relata que pergunta a um Rikbaktsa porque as mulheres não cantavam, ao que foi respondido que
elas eram “canhotas de fala” (harerewazarza) (Hahn 1976:102). Isto deve ser compreendido dentro da
“agentividade” que conferem ao conceituado lado direito (-nury), que é como referem-se também a certo
aspecto “vital” e “operativo” do “corpo” ou componente da pessoa (cf. Capítulo III), em contraposição à
“não-agentividade” do lado “esquerdo”. Como apresentei (cf. idem), contudo, esta “não-agentividade”
não é exatamente um atributo “natural” ou “definitivo”, mas deverá ser construída e, enquanto tal, poderá
ser também revertida. Isto aponta também para os cantos enquanto possíveis veículos importantes da
331
Mas há certos temas variáveis particularmente interessantes. Quando alguma
questão aldeã está na ordem do dia, à noite os velhos podem “cantá-la”. É como se fosse
uma “zanga”, “advertência” ou um desabafo legitimado. Nunca presenciei esta
modalidade, mas me contaram de alguns temas que havia em uma fita antiga, cujo o
dono era Geraldino Patamy. Os cantos da fita eram três e tematizavam o seguinte: um
deles era relativo a fofocas feitas pelas mulheres (-sokpehe-/ “fofocar”), que estariam
incomodando o bem-estar aldeão; o segundo falava sobre meninas que engravidam sem
ter marido e o último contava sobre maridos que viajavam e à sua volta encontravam a
esposa grávida. Eis algumas controvérsias significativas do cotidiano Rikbaktsa.
Voltarei a elas brevemente.
Inconformada com a traição do marido, tornada pública, uma mulher alegava
que todos os seus filhos eram “só dele mesmo”. Anotei isto no diário e continuamos a
conversa. Pouco tempo depois seu próprio marido foi um dos primeiros a serem
apontados para mim como tendo diferentes “pais”. Disseram-me que ele não era
umahatsa puro, mas “misturado” com tsuãratsa, o que significa uma espécie de
desqualificativo, predominantemente empregado na ausência das pessoas.
Sabia sobre a possibilidade da paternidade múltipla, mas ignorava que, dentro
dela, havia arranjos variados entre clãs e metades, hierarquicamente classificados e com
conseqüências peculiares. Havia, assim, indivíduos “puros” e “mestiços” e, dentro dos
mestiços, indivíduos que possuíam pais entre as duas metades. Esta última possibilidade
agrega ainda o atributo de, sob alguma perspectiva, o indivíduo ser fruto de relações
endogâmicas.
Dizem “mestiço” (tohi i-popo-wy-ta/aquele 3sg-rachar-nom-masc sg/ “aquele é
rachado”) para indivíduos que são filhos de homens de clãs diferentes dentro de uma
mesma metade ou em metades diferentes. Quando as mulheres copulam com dois
irmãos, filhos de um mesmo pai – mas quem poderá, por sua vez, sabê-lo - como um
mais velho e um mais novo, a criança não é considerada mestiça. Se indivíduos não têm
pais mistos diz-se deles astsabani-zyba (iguais-só)! Só iguais!
construção corporal, uma vez que associam-se ao nury, mas não investiguei sobre isso. As mulheres
conhecem os cantos – que são histórias e também toques de “flauta” - e ouvi algumas a cantá-los
cotidianamente. Certamente há menos mulheres reconhecidas enquanto hábeis cantadoras, mas não se
pode dizer que não o sejam, visto que eu mesma promovi uma sessão de gravação de cantos em que Tebe
(uma mulher com cerca de 70 anos) foi convidada por meu anfitrião a entoar cantos em alternância e na
presença de reconhecidos cantadores (algo que só se faz quando se sabe), como Geraldino Patamy e
Mamita, para que eu os gravasse.
332
Alguém, por exemplo, que é filho de um ou mais homens do clã hazobiktsa é
extremamente valorizado no discurso de terceiros. Não desfrutará, contudo, de
prerrogativas especiais, embora possa ser mais estimado e ter uma rede maior e mais
intensa de relações sociais. Mas o oposto só é relativamente verdadeiro.
O fato de alguém ter pais por diferentes clãs de uma mesma metade e até de
metades diferentes, isoladamente, não é um atributo capaz de condená-lo à escassez de
vínculos sociais. Muito pelo contrário, dependendo de quem serão seus pais, ampliarão
seu acesso a recursos de ordem diversa e também relações. Tudo deve ser
contextualizado. E o que não era favorável em determinada situação pode passar a sê-lo
em outra.
Um aspecto fundamental da paternidade múltipla e do espectro de relações que
ela poderá oferecer relaciona-se notadamente ao que concerne sua interação com a
endogamia. Observei casos onde a opção ou a ênfase em uma ou outra possibilidade de
paternidade ocasionavam efeitos singulares. Dependendo da linha paterna que se
resolva adotar, ou melhor, enfatizar em um determinado momento, pode-se também
desfazer como acentuar o caráter endogâmico de uma união. Relativo a esta ênfase
pode-se também, de certa maneira, “corrigir” os efeitos homogeneizadores da
endogamia, e uma criança poderá, nos ritos, ter a pintura diferente daquela de sua mãe,
como ser assistido por seus parentes da outra metade, que não a de sua mãe.
Desta forma, a paternidade múltipla tem a propriedade de relacionar-se e por em
contraste diversas perspectivas da organização social Rikbaktsa, como a venho
descrevendo. Incide sobre a diferença entre clãs e metades, sobre a endogamia, mas
principalmente sobre as micro-relações aldeãs. Ao mesmo tempo em que é comentada e
até bastante comum, atua muito mais no discurso de terceiros. Jamais ouvi alguém
diretamente confessar-se filho de pais múltiplos, enquanto o assunto eclode na fala de
parentes próximos e esposas, contanto que às costas dos “seus”.
Os pais serão diferenciados: "Zo bobata é o primeiro que mexe com a mulher.
Os outros não são pai de verdade não. Só “sustentam” a criança.” (Vicente Bitsezyk) O
outro é aquele que “demorou”, que veio depois “Tohi aibanikara”. A relação de alguém
com seus –zotsa será bastante variável. Podem desconsiderá-los, fazer caso mas não
chamá-los como tal, como poderão com eles estabelecer relações estreitas.
Embora se assuma que toda a relação sexual é, neste sentido, procriativa (Hahn
1976:132), não há entre os Rikbaktsa a idéia de que são necessárias diversas relações no
curso das quais a criança será construída. Denominam o sêmen de “Maku i-kare-tsa”
333
(homem 3sg-ovo-pl), ou seja “ovos do homem”, ao escroto (-rik-kare-tsa / “ovos de
gente”) mas isto não significaria dizer que uma criança já vem “pronta” no sêmen de
seu pai ou a idéia da paternidade múltipla tanto quanto a noção de corpo Rikbaktsa
conforme venho explicando não fariam muito sentido. Contudo, após o nascimento da
criança relações sexuais com quer quem quer que seja, tanto por parte do pai quanto da
mãe da criança, ficam suspensas por cerca de seis meses.
Este é, por outro lado, um assunto difícil de ser abordado. Os Rikbaktsa são
categóricos em afirmar que o pai faz a criança – o pênis é, inclusive, denominado “–rik-
do
272
(gente-nom. “coisa associada com”) “coisa para (fazer) gente”
273
, mas não
gostam de falar abertamente sobre o fato de uma criança ter um ou mais “pais”. Não
obstante o sêmen “construa” crianças, as relações metonímicas entre os corpos em geral
- de pais, mães e filhos - acabam por destitui-lo de alguma exclusividade nesta
formação.
Aquilo que “afeta” o pai ou mãe da criança; posturas sociais, alimentação,
sentimentos poderá ser revertido para o feto, mesmo antes que seja gerado, como já
mencionei em ocasiões diversas. Também não é possível identificar linhas diferenciadas
de contribuição e tampouco associá-las a determinados órgãos ou substâncias que
compõem o corpo da criança. Nada há para além do discurso oficial de que o homem
faz seus filhos e das diversas recomendações pragmáticas que vigem desde a mais tenra
idade sobre homens e mulheres com vistas à sua capacidade reprodutiva: o “fazer
filhos” mas também o “ter filhos”, e.g. as descrições do sofrimento na hora do parto e a
demora do nascimento, que podem causar morte da mulher e/ou da criança. Se no
discurso nativo a criança é completamente assemelhada e produzida por seu pai, na
prática, pelo menos três “corpos” estarão por algum tempo completamente entrelaçados
e dificilmente estarão totalmente desconectados, mesmo após a morte.
272
Os homens Rikbaktsa usavam cotidianamente tangas de buriti (-rikpidiwy/ sendo “rik” “gente” e
diwy” “tear”) e também cinta abdominal de embira, amarrada à ponta do prepúcio. Alguns usam tangas
no fechamento dos ritos maiores. Alguns homens mais velhos usam também a cinta abdominal.
273
Para vagina têm os seguintes designativos “–rik-saki” (-gente-boca) “boca de gente” ou –tõrõ, que
significa, conforme me disseram, “murcho”. Orgãos sexuais de pessoas como de animais são
denominados da mesma forma, ou seja, antas macho e fêmea têm –rikdo e –tõrõ, respectivamente. Ouvi a
designação também para a mão
de pilão, chamada harahara (recipiente do pilão) i-rik-do. A mulher não
pode sentar em cima do pilão, fazê-lo de banco, senão os outros a encontram fazendo sexo, com o marido
ou com outro homem. Kyze batsisapy! “Depois é feio”. Não devemos esquecer da designação de
mulheres como wytyk, ou seja, “terra”, como no mais chamam também o local de enterramento de uma
pessoa. Seria apressado, contudo, analisar wytyk como uma metáfora da “mulher-terra”, como um campo
a ser semeado por homens. Não obtive dados sobre isso e desconfio um pouco da metáfora, conforme
minha análise de construção de corpos Rikbaktsa enquanto um processo que inclui múltiplas agências e
interações.
334
Não há funções diferenciadas, impedimentos institucionalizados ou qualquer
outro tipo de marca sociológica para indivíduos filhos de pais “mistos”. Há designações
oficiosas e é claro que tais comentários acarretam antipatias, reprovações. Querelas
mais ou menos abertas e afastamentos poderão ocorrer, conforme a caracterização da
organização socio-espacial das aldeias rikbaktsa e até seu movimento de fissão e
alteração de sua composição. A impressão que se tem é que estes assuntos não têm uma
resposta definitiva. Colocá-los em dúvida permanente, discuti-los, mais do que marcá-
los conclusivamente parece ser a regra.
Falando sobre terceiros, dizem que o “pai legítimo” de Olga (makwaraktsa) é
Mamitá (makwaraktsa), mas Salvador (makwaraktsa) a criou desde pequena. Ela não o
chama -zo, embora os dois sejam homens makwaraktsa. Ivan é hazobiktsa mestiço com
zerohopyryktsa. Eriberto, é puro hazobiktsa, wasani (“correto”, “certo”)! Como Pedro.
A mãe não mestiçou nada. Só puro hazobiktsa mesmo.” (Vicente Bitsezyk).
Ouvi muitas vezes que os hazobiktsa “puros” estão acabando, não há mais.
Pergunto-me sobre, se for o caso de haver algo ou alguém responsável, o que poderia
representar este “aposto” à reprodução, à construção de novos corpos de tal ou qual
características. Um controle que reflete-se na reprodução do próprio socius e da clareza
ou não de seus “segmentos” sociais e seu “conteúdo”. Esta conjectura soma-se ao fato
de que os hazobiktsa, como um todo, sempre teriam sido em número bastante inferior
aos makwaraktsa, visto que os indivíduos desta metade tipicamente, como referi
anteriormente, têm menos filhos.
Quando dizem que os hazobiktsa estão terminando, pergunto a Vicente e Rosa
sobre Adílio Petã - à princípio filho de Pedro, “puro hazobiktsa”, segundo sua própria
caracterização – e que mora na casa ao lado. Eles desconversam, evitando a resposta.
Fica estabelecida a dúvida.
Como se pode saber sobre isso? Retornamos, como prometido, às controvérsias
cotidianas femininas.
A resposta é sempre a mesma. A mãe é quem decide de quem é o filho. Na festa,
quando a mãe sabe, manda o filho “para o lado certo”. A mãe é aquela que tem a
atribuição de saber.
Afora todos os comentários cotidianos, no momento dos ritos os mais velhos ou
o “dono” da festa perguntam às mulheres quem são os pais dos seus filhos. Deve-se
saber ao certo quem é porque há tarefas diferenciadas, como o momento em que se deve
trazer o mingau e a chicha. A mentira ocasionaria o erro. Por exemplo. Não dá para
335
fazer “flauta”, porque, à princípio, apenas os hazobiktsa sabem fazê-las. Já os
makwaraktsa devem pegar o bambuzinho (i-nuwy) – que é introduzido dentro de uma
taquara maior - para os hazobiktsa afinarem as flautas pequenas (sizezebyitsa).
Desde os primeiros contatos, Tolksdorf reparou que mulheres ocupavam posição
privilegiada entre os Rikbaktsa (Tolksdorf 1996[1959]: 122). Sem que possamos nos
esquecer dos muitíssimo mais numerosos casos de violência covarde (cf. Capítulo II),
em razão dos envolvimentos entre mulheres Rikbaktsa e seringueiros um marido queria
desvencilhar-se da esposa (Pacini 2000:84). Pacini (idem:92) observara a iniciativa das
mulheres nos postos de assistência, conduzindo danças, enterros, caça de tatu e o plantio
de roça. Discordo integralmente quando o autor diz que hoje em dia iniciativas tais não
são comuns. E explico o porquê.
Quando visitei-os pela primeira vez, na noite em que me despedia, ficamos a
tomar chicha de patauá (hutsatatsa) e eles a contar histórias, à frente da casa do homem
mais velho. Homens e mulheres de diversas aldeias acabavam de voltar de uma
expedição de seca ao baixo Juruena e estavam, naquela semana, pousando na aldeia Pé-
de-Mutum. A atmosfera era incrível. Como houvesse visitantes e tivessem retornado do
baixo Juruena com recursos diversos, caças moqueadas, frutas, taquaras para flecha,
penas furadas, conchas, ovos de tracajá, era grande a movimentação e intensidade nas
relações aldeãs. Trocas, dons, visitações, confecção de plumária e flechas do lado de
fora das casas. Uma exacerbação de tudo aquilo que compõe o cotidiano.
Na língua Rikbaktsa e permeado de muitos risos, as mulheres diziam que
queriam “mexer” comigo, ir para a rede. Eu ria e dizia que “não, que só iria com meu
marido”, no meu Rikbaktsa precário: “Ô! Batuk! ka-barikta zyba!”!
Mulheres participam diretamente de todas as festas do ciclo ritual, notadamente
através da aquisição, produção e distribuição fundamental de comida e bebida, mas
também imitando bichos e seres metafísicos, servindo chicha e organizando todas estas
tarefas. São também “expectadoras” extremamente participativas, porque interagem
com estes seres, riem, conversam, exclamam, sentem medo e passam sustos.
A participação feminina é imprescindível e certa vez disseram-se que quando
um homem deseja sediar uma festa em sua aldeia, sua mulher é também consultada. É
fundamental sua adesão e disposição. Zabawy, uma mulher de uns 70 anos, disse-me
que não havia “festa grande” (como chamam em português as festas da estação
chuvosa) porque “a mulherada não ajuda”. Isto enquanto me explicava que antigamente
o taΦuatsĩ (conta de coco de tucumã) era furado com dente de peixe-cachorro (tsiΦui) e
336
as sementes com espinho de palmeira (-ni). Na época da festa grande, furavam e
trocavam tantos colares que os homens também ajudavam a furar as bacias de colares.
Completa, “canhavam (os homens) furador das mulheres”. Depois acharam prego e
cabos de guarda-chuva. Dividiam entre todo mundo, homens e mulheres. Helena Zydyk
diz que hoje em dia os homens também furam colar e trocam quando tem festa
274
.
Certamente não é tarefa simples organizar e processar tamanha quantidade de
recursos e abrigar convidados que quanto mais para o final do período que cobre ritos e
quanto mais animados (-pyby-wy-habyi/ - “ter medo-nom.”/byi neg. “sem medo”) estes
estejam, mais se acumulam nas casas da aldeia. Dançam em momentos determinados da
festa e em separado dos homens, mas se diz que se não há muitos homens disponíveis,
mulheres podem dançar junto a eles.
Jamais testemunhei este fato, mas participei de uma festa “cotidiana” só de
mulheres. Se ficam animadas e ganham adesão, estas danças que se dão ao cair da tarde
podem evoluir para festas mais elaboradas. Destas pequenas reuniões entre as mulheres
da aldeia dizem, fazendo o convite: “Pãny-ty! Aikdyk-ty! Tumy Piku-ty!” “Venha!
Rápido! Tomar chicha!”. Nestas festas há chicha, obrigatória a qualquer tipo de festa,
dança e toque de flauta
275
.
Dançam dentro da casa da “dona” (i-hitsatatsa), podendo ganhar o espaço entre
as casas e adentrar a outros domicílios, contanto que neles haja chicha para ser servida.
Deve haver um convite formal e mulheres vão de casa em casa, chamando as
interessadas. A panela com chicha tem posição central e deve haver também copos ou
cuias suficientes para aquelas que estão tocando “flautas”. A chicha não pode ser bebida
diretamente da panela. Homens podem adentrar a casa e tomar da chicha enquanto ainda
se está a afinar, arrumar as “flautas” e adaptar o espaço interno da casa para a dança.
Combinam o “espaço” da dança. Suspendem redes. Tebe (hazobiktsa), a “dona”,
vai à frente e comanda o ritmo, passos e paradas. Dispõem-se em fila indiana. Dançam
um pouco e param. Imediatamente a chicha deverá ser servida por alguma mulher
274
Embora não tenha participado de uma festa grande, jamais vi no cotidiano Rikbaktsa um homem furar
um colar ou ralá-lo. Ganham colares prontos de mulheres de suas relações, em troca de peneiras ou outro
artefato feito exclusivamente pelos homens. Certa vez observei um homem hazobiktsa que viera de uma
aldeia vizinha para aprender a fazer um colar de dentes de macaco-prego (boatsapu) com Geraldino
(makwaraktsa), a fiar algodão com fuso – tarefa, à princípio, feminina -, dentro do mykyry, para que fosse
empregado em seu colar.
275
Para as festas maiores dizem que acontecem do mesmo jeito. Começam tomando chicha, vão
crescendo, ficando mais animadas e congregando mais participantes, até que acabam “comendo”. Desta
forma, todas as festas, potencialmente, são um cresciendo, que inicia-se com danças, flautas e tomada de
chicha e termina com a “comida”, sem que a chicha seja esquecida.
337
designada à tarefa. A cada parada é mantida a ordem da fila no momento de beber a
chicha. Crianças ficam em um canto ou no colo de suas mães, em tipóias de algodão
trançado (myspi)
276
), enquanto elas dançam e tocam “flautas”. A performance pode
durar de 30 minutos a no máximo duas horas, ou já terá anoitecido. Podem dançar com
ou sem o chocalho (-pyrykaratsa / “criações do pé”), feito de uma longa fileira de
endocarpos de pequi (pyryty) sujeitos em algodão trançado, enrolado em três ou quatro
voltas em torno do tornozelo direito.
Dentro da casa fazem um círculo. Ao centro, um fogo de chão, a panela com
chicha e os recipientes para servi-la. Param - Tebe comanda - em cada “canto” da casa e
neste lugar ficam a bater o pé direito. O esquerdo mal toca o chão ou deve fazê-lo sem
produzir qualquer ruído, o que é totalmente desaconselhável e imediatamente
repreendido, como pude perceber por meus próprios erros. Giram no sentido anti-
horário, mas se tiver muita gente, pode-se alterar o percurso. A dança poderá acabar e
sobrar chicha. Um homem pode entrar à casa e bebê-la. Se a dança passa para o lado de
fora da casa, a panela com chicha ficará próxima à entrada da casa que a produziu.
Normalmente seguram as “flautas” pelo “nó central” com a mão direita
espalmada para cima, na parte detrás da “flauta”. A outra mão pode ficar livre ou
segurar mais próximo à boca, na parte da frente e com a mão espalmada para baixo. Vi
também a inversão das mãos.
Algumas mulheres podem tocar duas “flautas” ao mesmo tempo. Quando a
“flauta” de Tebe estragou, os dois conjuntos de quatro “flautas” pararam. Disseram que
ela “morreu” (-nira!) e riram muito, exatamente como se diz jocosamente com relação
ao pênis dos homens incapazes de ereção. Outra brincadeira é dizer que a “flauta” faz “-
ka-tõrõ!”, “minha vagina!”. Menções que não deixam de evocar uma possível
ambivalência destes instrumentos (cf. Fausto 2001:453), algo que parece se reafirmar
com relação a seu uso e até em relação ao papel das próprias mulheres em algumas
formas de reprodução, como veremos mais adiante
277
.
Ao entrarem em uma das casas em que havia chicha, um homem desobstrui a
entrada. A mulherada, rindo muito, parou imediatamente e disse: muzuza! (“mal
agouro”). Retomaram em seguida, entrando por fim dentro da casa.
276
Designam o myspi também pelo termo Pareci zamata.
277
Aponto, mais do que para uma análise fechada, possíveis caminhos para pesquisas futuras. Como
disse, por não presenciar “ritos” propriamente ditos não poderia fazer mais do que isto nesta
oportunidade. Há, entretanto, fazeres e discursos que são muito claros com relação aos aerofones e às
mulheres e que me parecem completamente pertinentes às discussões que trago aqui.
338
As “flautas” em questão são em dois conjuntos de quatro instrumentos, com
também quatro tamanhos que lhes dão “notas” distintas. Devem responder-se entre si,
desde a primeira até a última. Os dois conjuntos distribuem-se pelas participantes, o
primeiro em ordem descrescente e o segundo em ordem crescente. Uma das mais
compridas segue à frente, com a dona da festa. Há alguns toques mais longos que,
principalmente, devem ser respondidos. Vêm em fila e reparo a tendência de
movimentarem as “flautas” para os lados e, sugestivamente, para cima na hora do toque
mais longo, que deve ser imediatamente respondido pela “flauta” seguinte.
Tentam, como sempre, me “ensinar” na prática, indicando o momento que devo
tocar minha “flauta”, a última. Brigam tanto quanto riem de mim, principalmente
quando, por acaso, acerto a “resposta”. Dizem para mimwasani Adriana!”(“certo!”).
Como é comum na pedagogia Rikbaktsa, não recebi ensinamentos prévios. Só após
considerarem que eu havia estorvado o grupo, comentaram meu equívoco, como se eu
já devesse sabê-lo.
Em um deste dias a chicha azedou (natabuibaik), gerando comentários
posteriores. Mulheres podem sair da casa da dona com algum recurso que lhe tenha sido
oferecido ou que tenham solicitado (cf. Introdução).
O “tocar flautas” e outros aerofones, os mesmos produzidos e também tocados
pelos homens, é o locus da peculiaridade mais comentada com relação às mulheres
Rikbaktsa em contraste com a maioria das “ameríndias”. Em uma nota da introdução
disse que os Rikbaktsa chamam “flautas” em português certos instrumentos feitos em
bambu, onde incluem-se principalmente clarinetes, mas também propriamente flautas,
intrumentos que, segundo sua classificação, são berekezektsa ou, na língua falada,
begezektsa.
Apesar de minha imperícia nestes assuntos – destaco ainda que isto exigiria
pesquisa e qualificação específicas – esforço-me aqui no sentido de não provocar total
arrepio a qualquer ciência do concreto” (Menezes Bastos & Piedade 1999:1235),
mesmo sabendo que acabarei, afinal, por fazê-lo. Contrariamente ao desabafo dos
etnomusicólogos, por toda a tese chamo por “flautas” outros aerofones que
tecnicamente não o são. Uma escolha pautada, principalmente, no discurso Rikbaktsa
sobre tais instrumentos.
Julguei que, apesar de tecnicamente adequado, não faria sentido estar eu a
chamar de “clarinete” ou “aerofone” aquilo que eles chamam de “flauta”. A conduta que
adoto é a de tentar explicar um pouco do que consegui saber sobre estes instrumentos,
339
aqui tecnicamente e na concepção rikbaktsa. Isto exige uma certa digressão que procuro
reverter para o meu ponto neste item, que independe daquela caracterização técnica.
Mulheres tocam os mesmos aerofones que os homens tocam mas, como acontece aos
demais casos ameríndios em que há proibição branda ou “dramática” (idem:153) deste
tipo de performance, este não é um traço isolado e só faz sentido dentro do conjunto
maior de idéias sobre “reprodução”, “diferença” e outras dinâmicas da socialidade, e
estas abordo aqui.
Os Rikbaktsa produzem vários tipos de aerofones que possuem usos bastante
determinados. Daqueles que pude observar – sei que ainda há outros
278
- há o purawy,
uma buzina de sinalização com um orifício para o sopro, que é transverso, feita em duas
metades (purawy ou mazipedataza) talhadas em madeira
279
, amarradas com embira e
coladas com cera vegetal. O purawy pode soar em incursões guerreiras, execuções,
furações de presas de onça (cf. Capítulo V), ritos funerários e festas de derrubada (ele é
soado a cada árvore que cai ao chão[Hahn 1976:53]). Pode também anunciar a chegada
de um “convidado” ao fechamento das festas da estação chuvosa. É um instrumento
tocado por poucos durante um rito, geralmente os donos de festa e convidados mais
ilustres, utilizado também para anunciar a execução de uma nova música tocada
fundamentalmente pelos “clarinetes” (beregezektsa).
Apitos feitos eme cerâmica, cabacinhas ou ouriços de castanha (byrykkwy),
assobios (sapyutsa) e flautas pã (jokpepeheta) feitas de raques de pena de gavião-real,
flautinhas com três ou quatro orifícios feitas de ossos da tíbia e da asa do gavião-real, do
cabeça-seco ou do tuiuiu (ipazo ou kabere) são tocadas durante os ritos da estação
chuvosa ou cotidianamente pelos mais velhos. Ficam guardadas dentro da casa e são
vistas, sobretudo, como algo para “divertir” (cf. Hahn 1976:44). Apitos e assobios são
tocados por todos, mas especialmente as crianças – que não sabem tocar alguns
aerofones e não podem tocar outros - poderão tocá-los e, assim, participar dos ritos da
estação chuvosa. As flautas de bambu com quatro ou cinco orifícios (beregezektsa) são
de uso cotidiano.
As Beregezektsa são aquilo que denominam “flautas” como um todo, onde
incluem tecnicamente aquelas flautas de bambu de quatro ou cinco orifícios e clarinetes
de tamanhos variados. Sobre estes últimos repousa o cunho ritual, embora possam ser
278
Arruda (1992) cita o sezok (serok, em trabalhos do SIL), como um flautim feito de “bambu fininho
com uma pequena caixa de ressonância” (idem:322).
279
As madeiras poderão ser uma a que chamam também de purawy e da qual fazem também pilões ou
uma madeira roxeada a que chamam Maripedataza.
340
tocados, por exemplo, para que eu os pudesse gravar. Os clarinetes são compostos por
um corpo de taquara sem orifícios e um duto interno (inuwy) feito de taquara bem mais
fina, por onde o ar é assoprado. Associam estes instrumentos, como a taquara da qual
são feitos (beregezektsõtsõ) (taquara do mato), à garganta (tsõberekzek) (a parte interna
do pescoço [-soik]) ou vice-versa, uma relação que deve-se mais a serem ambos canais
por onde se faz passar o ar do que uma questão relativa à “forma”. A música produzida
pelas “flautas” como os cantos são chamados mysakibazekwy (onde saki - “boca”) e há
analogia entre eles
280
. Cantos podem ser, assim, tocados nos clarinetes e ao ouvi-los
todos saberão reconhecê-los prontamente.
Há variações de “funções” na melodia executada
281
, tonalidade e tamanho dos
clarinetes que resultam em diferentes sub-classificações. Contudo, quando se vai pegar
bambu para clarinetes de qualquer tipo se diz: kytsa beregezektsa bo ni-tururuk-naha.
Uma primeira distinção é relativa ao “tamanho” e os divide entre “curtos” e
“longos”. Os que chamam de “flautas curtas” (si-zeze-byi-tsa /3pl-comprido-neg-pl
“não-longas” ou Beregezektsa pyryktsa “flautas pequenas”) foram os utilizados nas
festas femininas que descrevi aqui e foram tocados pelos homens para que os pudesse
gravar. Estes clarinetes são associados às festas da estação chuvosa.
Os longos si-zeze-r-tsa (3pl-comprido-est-pl), que também pertencem à
categoria beregezektsa, têm especificidades que os distinguem do outro conjunto, desde
o modo de fazê-los às circunstâncias em que são tocados. Devem ser feitos em bambu
mais grosso, sem que outras pessoas olhem e sem a presença de crianças a brincar nos
arredores, pois isso acarretaria perigos. Não vi, mas alguns dizem que mulheres podem
tocá-los, outros dizem que não
282
. São associados às festas da estação seca, onde
crianças não podem, por não haver “flautas curtas”
283
, tocar “flautas”. Por serem de
280
Menezes Bastos & Piedade (op. cit.), em artigo bibliográfico sobre sopros amazônicos ancorado em
uma resenha ao estudo de Beaudet (1997) sobre os Wayãpi, apontam para o fato de que tanto entre os
Kamayurá quanto entre os Wayãpi haja correspondência entre “soprar” e ”cantar” (Menezes Bastos &
Piedade 1999:135,139), conforme já havia sido apontado por Menezes Bastos (1978 apud Menezes
Bastos & Piedade 1999:139).
281
Eu não poderia detalhar estas diferentes “funções”, que dizem respeito às melodias executadas e às
marcações rítmicas, mas devo apontá-las, porque pude percebê-las durante sua execução.
282
Apontaram-me algumas mulheres velhas que teriam tocado as “flautas compridas” e, em virtude do
caráter “perigoso” da fabricação das mesmas frente a crianças, isto definiria que mulheres em idade
reprodutiva – como acontece a outros aspectos perigosos do cotidiano e dos ritos – não pudessem tocá-
las. Erikson (2000) sugere o mesmo com relação à proibição de mulheres Matis em verem máscaras, o
que acontece pelo menos até que tenham entrado na menopausa (idem:38).
283
Contrastam um e outro rito também pelo número de flautas que cada qual comporta, sendo os da
estação chuvosa aqueles que têm o maior número de flautas.
341
produção perigosa devem ser “arrumados” a certa distância, tanto do mykyry (casa do
homens) quanto das casas da aldeia.
Após os ritos, contudo, todos estes clarinetes serão abandonados sem muito
critério. A exceção fica por conta de algumas festas que se extendem em seu
fechamento. Se uma festa chega ao final e se foi considerada muito bonita, podem
combinar e fazer um último mingau, o ipapãrawy. Para seu preparo caçam uns dez
macacos. Nem todos podem, querem ou agüentam participar desta “extensão” do rito e
não há problema algum em desistir. Ficam por um dia sem mexer nos aerofones.
Quando o mingau e a chicha estão prontos, dançam. Fazem muitas imitações (morebe,
harãmy, tsitsarobobo). Deste mingau, crianças, meninas e rapazes com 12 ou 14 anos
não podem comer. Homens e mulheres que estão tendo filhos também não. Apenas
homens mais velhos com filhos casados é que podem comê-lo
284
. Caso contrário, os
filhos ficam doentes, de qualquer doença, não saram logo. Só depois de 3 dias todos
podem comê-lo, quando já está torrado (ebyikyta).
Quando isto acontece, no final de tudo, os aerofones são todos enfeixados em
conjunto e jogados no mato. Isto pode acontecer tanto no final da festa da seca, quanto
da chuva e com os dois tipos de “clarinetes”. Quando não acontece o ipapãrawy, as
flautas ficam jogadas em qualquer lugar da aldeia” (Vicente Bitsezyk).
As sizezebyitsa (“flautas curtas”) compõem-se de um conjunto de quatro
clarinetes de tamanhos e tons diferentes
285
, que relacionam-se em pares, e também como
um todo:
1 Sirahawytsa ou izowy – é o mais comprido e também mais grave do conjunto.
Há correferência especial entre o izowy e o izowytsik, que faz parte do conjunto descrito
abaixo. Quando tocam em fila, os izowy são os últimos clarinetes do conjunto.
2 Siharakywytsa ou Hatratratsa – Diz-se do conjunto dos outras três
clarinetes, que vão ficando mais agudos quanto menores. Chamam-nos também por
“flautas de pacuzinho”. Chamam-se tsapukte, iharaikta e izowytsik. A pessoa que está
com o aerofone iharaikta é aquela que tocará a melodia, em correferência com o
tsapukte. Vi os dois homens trocando estes respectivos instrumentos, quando um sabia
melhor a melodia em questão do que o outro.
284
Isto confere a este mingau características semelhantes ao mingau feito com a carne do inimigo (cf.
Capítulo II).
285
Pode haver “flautas” curtas duplas, ou seja, duas “flautinhas” de mesmo tamanho que são atadas uma à
outra por embira que passa atrás do pescoço do executor e que deixa pender as pequenas “flautas”
enquanto não estão sendo tocadas. Esta modalidade é muito utilizada por rapazes e moças que ainda não
são considerados “bons” executores.
342
Estas são suas medidas aproximadas:
5 palmos 12 (aproximadamente 95 cm.) – izowy
5 palmos (aproximadamente 85 cm.) – tsapukte
4 palmos 12 (aproximadamente 76 cm)– iharaikta
4 palmos (aproximadamente 68 cm) – izowytsik
As sizezertsa são também em conjunto de quatro. Dizem que um homem
makwaraktsa as cortaria e que poderia acompanhá-lo, mas isto acabou não acontecendo
e não pude saber mais detalhes. Durante as gravações com as sizezebyitsa, a cada
música acabada – sinalizada por um sopro quebrado, indicado pelo solista (o homem
que está com a iharaikta) - a chicha era servida em seguida por uma mulher designada
para tal, sem demora e em recipientes separados para cada peça executada, cada qual
diferentemente nominada. Reclamam muito se ao parar da música, a chicha ainda não
houver sido servida. Se vêem a chicha antecipadamente servida, podem também parar
para bebê-la. Nos intervalos das músicas, comem o macaco, fazem novos acertos
necessários aos instrumentos, contam histórias.
Dizem que as mulheres tocam, mas não sabem fazer “flautas”. Tolksdorf cita
mulheres fazendo “flautas” (Tolksdorf 1996[1960]: 144), mas talvez estivessem apenas
afinando-as
286
e adornando-as, como as vi fazerem. Podem deixar “flautas” antigas de
molho para reidratá-las, solicitarem a algum homem que pegue as taquaras internas
(sinuwytsa) e as recondicionem para elas. Caso queiram podem afinar as “flautas”,
esticando a taquarinha interna e também adorná-las com palhas novas de buriti.
É verdade que os clarinetes e demais aerofones Rikbaktsa distinguem-se
sobremaneira do chamado “complexo de flautas sagradas”, que no caso xinguano e em
outros contextos incluem outros aerofones, como trompetes, os próprios clarinetes e
também zunidores (Piedade s.d.:1; 2005:11). Um distintivo deste complexo é que estes
aerofones são tidos como de “competência exclusivamente masculina em cerimônias
musicais interditas às mulheres” (Piedade s.d.:1), o que junta-se ao caráter perene e dito
286
Um dado curioso em Tolksdorf: (...) depois já começaram exercitar com as flautas, o que não se deu
se não com cordiais gargalhadas e críticas”. Duas posturas, no meu entender, que parecem ser
inseparáveis da socialidade Rikbaktsa. Tolksdorf fala algo semelhante dos expectadores, “(...) bem como
da conversa dos expectadores, pois novos e velhos gostam de ver este movimento, às vezes criticando o
acontecimento (Tolksdorf [1959]: 115).
343
“sagrado” destes instrumentos em todas as etnografias que o tematizam (Piedade
2005:107).
No caso xinguano, o que lhe empresta esta caracterização é a sua ligação com
mortos impessoalizados, ditos também “sagrados” e “perigosos”, os apapaatai
(idem:119), seres com os quais o estabelecimento de uma “economia política cósmica
favorável significará também a saúde dos vivos (idem:130). Os ritos kawoka atuam no
sentido de reforçar o contrato entre humanos e estes seres supremos (idem:140). Apesar
de tal contrato dever ser reafirmado de tempos em tempos, a ocorrência do rito permite
acertos equilibrados entre humanos e apapaatai por um certo período.
Ainda no célebre caso xinguano, mulheres não podem ver tais instrumentos
287
(idem:112), sendo ainda, por todas as formas, “excluídas da comunidade dos homens
(idem:109), opondo-se “casa” / “casa dos homens”-“flautas”. Segundo a mitologia
Waujá as flautas kawoka teriam pertencido às mulheres no passado (idem:111). As
flautas dos Ye’pâ-masa, do alto rio Negro, também foram roubadas pelas mulheres das
mãos dos homens, que as haviam ganho dos “deuses” (cf. Piedade s.d.:9).
Em contraste com os aerofones Rikbaktsa, há aqui pelo menos duas questões
importantes, que atingem diretamente o “significado” dos próprios aerofones, e explico
porque elas não chegam a restringir a singularidade das mulheres frente a outros grupos
amazônicos
288
. A primeira delas diz respeito ao caráter dos aerofones e porque têm tal
ou qual estatuto. Algo que, como acontece entre os Waujá, relaciona-se completamente
ao próprio teor de suas relações com mortos e outros seres, mas que vimos ter entre os
Rikbaktsa nuances bastante distintas da configuração xinguana.
A outra diz respeito às mulheres propriamente. A performance feminina, seja em
suas festas independentes, seja nos ritos regulares, demonstra-se arredia a uma
explicação “gênero-masculino-centrada”, o que reduziria as atitudes femininas à
imitação ou simulacro do comportamento masculino (se entendidas enquanto
287
Segundo Piedade (s.d.), no caso do Jurupari no alto Rio Negro, o que têm sido admitido como válido
também em outros contextos, esta proibição é “estritamente visual”, enquanto as mulheres até devem
“ouvir” tais instrumentos, sendo parte de sua audiência (idem:11,23). A participação de mulheres em
casos nos quais a proibição em ver os instrumentos é mais branda (ainda que, destaco, não sejam tocados
por elas), como no caso dos tule, clarinetes dos Wayãpi, é fundamental nas seções musicais, pois
preparam e são encarregadas de servir cerveja para os homens (Beaudet 1997 apud Menezes Bastos &
Piedade :133), algo que acontece também entre os Rikbaktsa.
288
Outro caso seriam os Matis, que neste item aproximam-se em muitos pontos dos Rikbaktsa, conforme
venho pontuando, nos quais se tem relato das mulheres tocarem os trompetes “masculinos”, na ausência
dos homens da aldeia e em sua demora em retornar, havendo também “versões femininas” destes
trompetes (cf. Erikson 2000:39). Este é um caso digno de nota mas que tem diferenças importantes com
relação ao caso Rikbaktsa.
344
“travestismo”) ou algo que acontece “frente ao” (leia-se em oposição ao)
comportamento, domínio ou espaço masculino, uma modalidade de antagonismo sexual
ritualizado
289
. Acrescenta-se a isto a relatividade de possíveis contrastes entre “casa” e
“casa dos homens”, tendo os aerofones rikbaktsa características outras que a associação
perene a algum “espaço” predeterminado.
Clarinetes não são propriedade de alguém ou de alguma metade. Seu processo de
fabricação é masculino, mas deixa claro a interdependência de segmentos. Homens
produzem-nos para si e para as mulheres, os adequam à performanace feminina,
colaborando com elas. Enquanto as mulheres organizam os preparativos, liberando e
combinando o espaço para a dança ou depois que já a iniciaram, homens podem ir até à
casa onde as mulheres estão a dançar e tocar, e beber um pouco de chicha. Não podem
esbarrar nelas – neste caso como em outros ritos, algo considerado batsisapy, dizem
também, muzuza -, mas podem observá-las e comentar sobre a dança. Em uma das
danças femininas, o sênior da aldeia juntou-se a um menino de 12 anos e passou
também a dançar e tocar clarinetes, em separado mas em paralelo às mulheres,
compondo um belo espetáculo. Aerofones, além de não serem guardados
criteriosamente, idealmente, devem ser tocados no pátio da aldeia e no interior das
casas, mais do que dentro do mykyry.
Não cabe aqui - como já se adivinha se venho conduzindo adequadamente o
leitor pela sociocosmologia rikbaktsa -, a descrição dos aerofones enquanto “sagrados”.
Este atributo não deverá, contudo, reduzir sua execução ritual por homens e mulheres a
“fazeres” sem importância. No caso específico das mulheres, “fazeres” que seriam, por
esta razão, ou seja, por seu caráter mundano e pouco significativo, permitidos,
concedidos ou tolerados pelos homens.
Se mulheres tocam os mesmos “clarinetes” que os homens tocam, servindo-se
deles, “ao menos potencialmente”, “de forma simultânea” (cf. Erikson 2000:40), se
estes instrumentos são ou não “sagrados”, estes são traços isolados que, como sugeri,
pouco significam quando descolados de uma cosmosociologia que lhes dá significado.
Em várias oportunidades venho sublinhando que não há seres supremos ou criadores na
cosmologia Rikbaktsa, entidades a se agradar ou ratificar pactos através de ritos.
289
Isto os aproxima dos Matis descritos por Erikson (2000) enquanto tendo aerofones, mas não culto de
flautas sagradas ou “culto centrado em torno de aerofones percebidos como vetores de potências
antagônicas a tudo que toca a feminilidade” (idem:38).
345
As recomendações e situações do cotidiano, tomadas indivíduo a indivíduo, a
história de suas relações conflituosas e amigáveis e sua obediência àquelas diretrizes,
deverão ser observadas para que haja um equilíbrio, sempre precário porque arriscado,
nas relações entre vivos, mortos e outros seres metafísicos. Isto, se dilui uma atmosfera
de sacralidade, de forma alguma retira o caráter perigoso destas relações, nas quais os
mortos têm supremacia relativa, pois há uma lógica de ações/setimentos que poderá
evitar interações predatórias entre estas esferas, ainda que não definitivamente.
Também comentei a ênfase do Rikbaktsa no processo de produção do que quer
que seja, onde incluem-se os clarinetes. Estes aerofones feitos de bambu verde têm
pequena duração e, depois que ritos acabam, podem ficar amontoados pelo chão, em
algum canto da casa dos homens. Algumas vezes clarinetes antigos são recondicionados
e utilizados, por exemplo, pelas próprias mulheres em alguma festa de tomar chicha.
Outras vezes, apesar de não ser comum, não é impossível vê-los nas mãos de crianças
em brincadeiras pela aldeia.
Há regras para fazê-los: makwaraktsa devem escolher e cortar as taquaras e
entregá-las aos hazobiktsa para que os façam. Depois de feitos, os makwaraktsa deverão
experimentá-los e comentar se ficaram bons. A produção das ditas “flautas longas”
(sizezertsa), como mencionei, é marcada por perigos e, mesmo após prontas, crianças
não podem tocá-las. Nem mulheres e crianças e nem artesãos podem brincar durante a
confecção. Estes são aerofones típicos dos ritos da estação seca, períodos de derrubada
para novas roças e também de expedições em busca de recursos e, antigamente,
“procura” de inimigos (cf. Capítulo I e II). Isto faz destes aerofones importantes mas
não “sagrados”, como de resto não o é nenhum ser ou relação de seu socius ou comos.
Contam os Rikbaktsa que aprenderam a tocar suas “flautas” com os peixes
(piknutsa tuk), porque antes não sabiam nem dançar e nem tocar “flauta”. Estavam
(como sempre acontece em grande parte das histórias) em uma expedição na seca,
caçando e subindo um grande rio, o piknutsa buburu (peixes/rio, “rio dos peixes”).
Geraldino Patamy disse que estavam cansados e resolveram acampar perto de um salto.
À noite os peixes fizeram clarear como dia (lembro que a noite é como o dia
para os seres metafísicos) e fizeram festa. O pacu-pintado (idikwi) dançava na frente,
com uma flauta curta (izezebyita). A traíra (pusira) vinha depois, tocando flauta
comprida (izezerta). Depois o pacu-peva (wahara) dançando e tocando “flauta” curta
(Hatratratsa)- “tere tere tere”, depois o pacu-vermelho (wahararik), tocando “flauta”
curta também. Havia mulher peixe dançando atrás de cada homem peixe, segurando na
346
ponta de um broto de buriti (pikzaze), como hoje fazem os Rikbaktsa, no fechamento da
festas da estação chuvosa
290
. Todos tinham chocalho no pé (pyrykaratsa) e colar
comprido de conta de coco (taФwuatsĩ) no pescoço.
Ficaram impressionados com a beleza da dança e do toque de “flauta”. Quando
terminou a festa todos os peixes foram embora, menos o lambari de rabo vermelho
(tsikbaktsa piknu / arara vermelha peixe – “peixe arara vermelha”). Ele ficou porque
estava “emburrado”. Esta festa tirou a força das águas bravas e tudo ficou sereno. Então
os Rikbaktsa conseguiram atravessar o rio e resolveram imitar os peixes
291
.
Esta é mais uma das histórias onde práticas Rikbaktsa são atribuídas a “outros”,
sendo “roubadas”, “aprendidas” e poucas vezes “inventadas” por eles próprios.
“Flautas” são primeiramente atributos dos peixes, imitados pelos Rikbaktsa, e não
objeto de roubo ou disputa entre “gêneros”. Peixes aparecem em diversas histórias
como “criação” da sucuri (urototok irara) e como toda a criação guarda relação
substancial com seu dono, podemos dizer que as “flautas” vieram dos seres metafísicos.
Em outra história sobre a sucuri, ela tocava duas flautinhas que eram para o homem que
olhava escondido cobras-corais (hyritãtã).
A posição das mulheres, como sugiro adiante, vai além do fato de verem,
tocarem ou não “os” ou “nos” aerofones, mas sim em desempenharem, se for seu
desejo, tarefas análogas às dos homens em momentos rituais, como por exemplo, ser
“dona de festas” exlcusivamente femininas, que acontecem em paralelo e de modo
relativamente independente das festas do ciclo regular anual. Dançam, tocam os
clarinetes (do mesmo tipo que os tocados pelos homens ou até os mesmos usados por
eles) e ornam-se nos ritos anuais regulares.
Podem usar os ornamentos de seus maridos, mas há mulheres que por meio de
trocas e recompensas por participação no processo de confecção de outros artefatos
plumários ou presentes, terão seus próprios ornamentos. De forma alguma sua
290
Noto aqui uma possível inversão das festas Rikbaktsa com relação à festa dos “peixes”, que acontecia
na estação seca ao modo do que viriam a ser as festas Rikbaktsa da estação chuvosa (à exceção talvez da
presença de “flautas” longas), com “flautas curtas” e mulheres a dançar no braço dos homens. Talvez, a
exemplo do que acontece ao “dia” e à “noite”, à “chuva dos vivos” que é o “sol” dos myhyrikoso, suas
estações e festas sejam também reversas. Por outro lado, observo outras descrições que indicam que todos
os seres do cosmos fazem “festas paralelas”, como é o caso dos jabotis, cobras e outros seres (cf. Capítulo
III), embora, de fato, tais festas não tenham sido qualificadas como “de seca” ou “de chuva” para mim.
Disseram-me apenas que coincidiam com os “marcadores” das festas rikbaktsa, como o aparecimento das
flores do angelim de saia.
291
Para os Kamayurá as flautas ancestrais eram “peixes” (Menezes Bastos 1978), como para os Ye’pa-
masa, os peixes teriam ensinado às mulheres a tocarem flautas, depois de as terem roubado dos homens
(Piedade s.d.:9).
347
participação poderá ser tida como uma questão de travestimento ritual. Para tanto
bastaria dizer que, quando é o caso, ostentam as pinturas de suas respectivas metades e
não a de seus maridos. Dançam e tocam os aerofones, se necessário, tendo seus filhos ao
colo.
Ana Maria Zabawy conta-me que sua tia (ytsitsik), já falecida, possuía tsanipe,
uma bolsa de entrecasca de árvore utilizada pelos homens para guardar penas
valorizadas e venenenos. Nela acondicionava seus próprios ornamentos. Pergunto se
também venenos e Ana Maria diz que não, porque venenos eram apenas para homens.
Isto não parece ser completamente verdadeiro, visto que comidas são o veículo
privilegiado de feitiço e que mulheres podem ser também xamãs (“donos do veneno”),
ou seja, falar com mortos regularmente e ter a ciência das plantas, que inclui aquela que
manipula os chamados “venenos” (-myrawy).
Participavam diretamente em algumas etapas dos rito de furação de orelhas, hoje
pouco praticado, convidando os rapazes a brincadeiras sexuais no mato às quais os
mesmos devem resistir
292
. Podem também segurar seus filhos dentro da casa dos
homens, quando aqueles submetem a coxa e a lateral direita do tronco à escarificação,
durante determinados ritos.
Além de organizar tarefas, fazer a comida, distribui-la, servir chicha, imitar,
tocar e dançar – o que não é pouco -, devo destacar ainda a singularidade de ser
expectador em uma festa Rikbaktsa. As interações entre aqueles que propriamente
performam danças, cantos e imitações são constantes: há risos, gritos, correrias,
perseguições, “sustos” e “medos” que podem constituir etiologia de “doenças” e mesmo
conduzir à morte.
Mulheres não participam diretamente da furação de dente de onça e outros
animais que creêm encarnar o -hyrikoso de parentes mortos vingativos (cf. Capítulo V).
Se quiserem podem ver, mas não é usual. É de se deduzir que isto traria graves
conseqüências a seus atributos reprodutivos.
Se desejarem, podem tocar o purawy, uma buzina soada por homens em
ocasiões bastante singulares e também em algumas festas femininas. Esta buzina de
sinalização de sopro transversal, como disse, soa nas incursões a inimigos, nos ritos
funerários, no rito de furação de dentes de alguns bichos, entre as diferentes músicas
executadas durante as festas e ao derrubarem árvores, nos ritos da estação seca.
292
Este “tom” da “brincadeira” ou “prova” não deixa de as associar aos myhyrikoso e suas tentativas de
“sedução” dos “vivos” (cf. Capítulo V).
348
De diversas formas participam do domínio político. São consideradas excelentes
mediadoras e quando um homem é escolhido como “capitão” - que entre os Rikbaktsa é
uma atribuição introduzida pelo contato que em muito veio a assemelhar-se ao papel
organizador de “dono” de festa – sua esposa também é considerada como uma espécie
de “dirigente”. Deve auxiliar na proposição e organização de tarefas feminas
comunitárias – como também acontece nas festas -, visitar casas, inteirar-se da vida
aldeã.
Há sempre uma profusão de críticas por parte de mulheres a outras que ocupem
esta posição. O teor das acusações é invariável: não organizariam nada, não
trabalhariam junto com as demais, ausentariam-se e não visitariam as casas. Aliás, aos
homens nesta posição quase sempre são feitas críticas bastante semelhantes.
Coletei relatos de uma mulher acompanhada pelo filho pequeno que seguiu com
os homens e seringueiros na expedição aos Cinta Larga, conhecida como o “massacre
do paralelo 11”. Mulheres velhas, tidas como inférteis, comiam a carne do inimigo
como comem as partes tabuadas de animais comestíveis. Não participaram diretamente
da última execução importante que tive notícia, mas sabiam contar-me todos os
detalhes, o que cada pessoa alegou antes de morrer, quantos filhos tinham as vítimas e
como ocorreram as mortes. Em um acontecimento recente de invasão na TI Japuíra, as
mais velhas se pintaram e ornaram, juntando-se àqueles que procederam às repreensões
aos envolvidos.
No domínio das relações de intimidade, mulheres devem cuidar de seus filhos
mas também seus pais têm com eles cuidado extremado. À morte da criança serão tão
responsabilizadas quanto os pais por falta de cuidados. A prática do enterro conjugado
de mãe e filho, à morte da mãe, faz-nos pensar em algumas possibilidades. Apesar das
disseminadas práticas de adoção, talvez o “cuidar” e o “criar” fosse diferente em tempos
de guerra. Uma mulher disse-me que às vezes não tinham –tsy próximos ou então os
parentes que havia não queriam cuidar. Talvez, ainda, houvesse impossibilidade de se
saber quem era o pai da criança ou ela não estivesse ainda nominada, o que significará
dizer, “filiada”.
A hipótese mais provável, contudo, é de que aquela criança – o ícone da extrema
vulnerabilidade – não pudesse resistir às interações com os myhyrikoso, no caso, à
aproximação inevitável da própria mãe morta. Nos ritos há imitações de myhyrikoso que
são mães com suas criancinhas, as quais a “audiência” tenta retirar-lhes, mas das quais
não querem se separar. A questão não parece ser, em nenhum dos casos, a
349
impossibilidade de que uma criança viva sem a mãe, que o seu cuidar seja algo apenas
possível por via materna.
Pesa sobre a mulher, oficialmente, a responsabilidade de desfazer o laço
conjugal. Resolvem “se” e “quando” largar os maridos ou interromper o casamento. Se
um dia um homem idealmente transferiu sua rede do mykyry para a casa de sua esposa,
é ela que deve “jogar sua rede” (i-wanu i-papyk-hik/ 3sg-rede 3sg obj-jogar-pont “jogou
a rede dele”) quando julgar que o casamento não é mais apropriado, e não o contrário.
Delas é também a atribuição de institucionalizar casamentos alheios, realizar a
transferência da rede de algum homem do mykyry para a casa daquela que a partir de
então será sua esposa. Homens podem até participar deste momento mas ele requer,
obrigatoriamente, pelo menos uma mulher. “A mulher entra no mykyry e conversa com
o noivo – de repente já está namorando, caçando, aí é que conversa com os parentes
para ver se acham bom”, diz Geraldino Patamy. Duas mulheres usaram o colar de
casamento (taΦuatsĩ tutãratsa) e falaram com ele.
Também ouvi o oposto. Ou seja, mulheres mais experientes que “auxiliam” ou
até “impelem” outras a finalizar seus casamentos. Isto acontece muitas vezes quando
um homem, em residência neolocal, começa a relacionar-se com duas mulheres mas, ou
ele não deseja casar efetivamente com as duas (as manter) ou alguma das mulheres não
deseja dividi-lo com a outra. Visto que não é possível “jogar a rede” nestes contextos, é
praxe que alguma mulher mais velha ajude a esposa descontente a retirar-se da casa do
marido.
Desde crianças mulheres têm usualmente a fertilidade de seus corpos controlada
por suas mães
293
, de modo a que demorem a menstruar (-spu) ou tenham pouco sangue
(-spu). Muito sangue é comentado como motivo de “vergonha” como dizem em
português
294
. Ka-sikpyby-r-tatsa, diz a mulher que tem “vergonha”
295
. Aplicam o
293
Alguns dizem também que os pais é que devem administrar a substância - wotyk okyry (remédio de
paca), que é uma folha “muito estreitinha” - para que ela se torne efetiva, mas recolhi muitos depoimentos
de meninas que me disseram terem sido cuidadas por suas mães. Confrontando estas versões, a
informante riu, dizendo que a pessoa estava acreditando que teria o efeito, mas não teria. As meninas não
podem tocar no recipiente em que lhes é dada a sunstância retirada da folha. Se adminstrada pelo pai ou
pela mãe, é um fato que há um “esforço” usual para que a menstruação das meninas seja adiada ao
máximo e que, quando ocorra, tenha seu fluxo controlado ao máximo. Há ainda outros okyry para
diminuir do sangue, como o taura okyry e o apoheryk okyry.
294
Também ouvi que não é bom perder sangue, porque se fica “fraco”. Para o caso específico da
menstruação há uma grande ênfase na “vergonha” mais do que qualquer outro estado derivado da perda
excessiva de sangue.
295
Os Ikpeng traduzem da mesma forma o sentido do sangue menstrual, neste caso a expulsão do sêmen
“apodrecido”, um “estado” que não é “resposta emocional” (Rodgers 2002:107). A menstruação tem
efeito tóxico e odor contaminante a alimentos e prejudicial às atividades de caça e pesca. Aumenta a
350
termo para muitos contextos inusitados, como para explicar a rejeição que as mulheres
têm em chamar quem “deveriam” de ka-pare “minha cunhada”. Uma vergonha que é
menos que um “constrangimento” emocional (Rodgers 2002:107), do que a evidencia
de que se incai voluntariamente em uma ”inadequação”. No caso da menstruação, não é
a expressão de uma natureza involuntária, mas a afirmação de uma “ação no sentido
de”
296
.
Para a menina menstruada, quando alguém percebe, dizem ter vergonha porque
parece “bicho sangrando” (Helena Zydyk). Por este “parecer” que não é “identidade”,
elas causam “vergonha” para si e para seus pais. E talvez, apesar das dintinções – como
elas jamais são aqui absolutas – este fato indique ou torne mais evidente a possibilidade
de reversão
297
, risco constante que os corpos sofrem no socius Rikbaktsa, intensificado
naquelas situações. Dizem também que a menina pode “assustar” (-pyby) fácil e ficar
doente.
vulnerabilidade da mulher e de seus possíveis amantes a visões reais que poderiam incorrer na morte, pois
a torna atrativa ao mesmo tempo em que provoca a ira de seres metafísicos. É algo contrário à produção
de filhos e denuncia o caráter “fabricado” do socius Ikpeng tal qual é. Evidencia umdesequilíbrio
cósmico e não-orgânico”, a possibilidade de que outras alianças e relações sejam feitas, retirando seu
caráter de “fato natural” e aliando a mulher “temporariamente com o exterior” (idem:108). Os Ikpeng
tentam “conter” esta possibilidade, diluir e esvaziar com bebida o “corpo” feminino e reenquadrá-lo ao
doméstico (idem:108). Os Rikbaktsa, que também não consideram o sangue como algo “natural” e
tampouco “inevitável”, não demonstram interesse em “esvaziar”, mas em “conter” o sangue, evitá-lo o
quanto possível e suspendê-lo, se adequado. De certa forma, a menstruação é também associada a seres
metafísicos, riscos corporais e à instabilidade do socius, dentro do sentido que isto tem em sua
cosmosociologia.
296
Um outro caso que ilustra o sentido de –sikpyby é o relato sobre a morte de um homem. Uma xamã
queria fazer o falecido voltar para a esposa, quando tinha uma semana de morto. A esposa não quis,
porque ninguém poderia vê-lo, senão ele não voltava nunca mais. Dizem que o morto, consultado,
também não quis voltar porque ficou com “vergonha” da esposa, porque deixou-o sozinho na casa com a
sobrinha, quando estava doente. Ele solicitou a ela que pegasse milho. Não demorou, a sobrinha foi lá.
Ele estava deitado na cama e ouvindo toca-fitas. Aí ele levantou e caiu, pegou o rosto dele na táboa.
Quando a menina chamou outro parente, escorreu sangue do olho e do nariz. Por isso ele mandou a
esposa sair de casa. O morto tomou pinga, chupou cajú, comeu manga, fez mal, deu dor de barriga. Ele
estava com cólica. Ele estava com fome de comer coisas da roça – isso acontece em outras decrições
sobre “futuros” mortos, que por solicitações semelhantes ficam sozinhos na casa - , mas a esposa não
conseguiu chegar lá. Ele estava com medo do falecido pai. Depois de morto, contou para a xamã que o
pai tinha vindo buscá-lo. O “morto” não quis voltar porque ficou com “vergonha” da esposa que o deixou
sozinho com a sobrinha (-tsy) quando estava doente, reparo, atendendo um pedido seu. A vergonha é a
denúncia de que o “morto” incorreu por sua vontade em inadequação, uma inadequação que é o estado
possível e do qual a “predação” é afeita, que significou sua morte. Isto dá a ela um caráter quase
“voluntário”, pois ele sabia que o falecido pai estava a “rondar-lhe”.
297
Comentam muito que se a pessoa fica no mato sozinha muito tempo, emagrece, cria dente, começa a
virar (-zik) onça, um ser de outra dimensão. O “parecer” e o “imitar” são imperativamente ativos e
perigosos, vis-a-vis os perigos engendrados nas imitações que acontecem nos ritos e até por brincadeiras.
Contam que o marido de Irene veio ao fechamento da festa grande na aldeia Pé-de-mutum e estava com
rodas grandes (os spioketsa ou discos auriculares) durante a imitação do velhinho (natsaikba), mas não
tinha orelha furada. Disseram para ele furar e ele não quis. Na outra festa ele já não veio, o pau caiu em
cima dele enquanto fazia uma derrubada.
351
O odor feminino e, notadamente, a menstruação (-spu) é tida como de odor forte,
“catingoso” e prejudicial (tsitoskarta) à caça. Notadamente nas caças a animais
“metafísicos” (cf. Capítulo V) da esfera dos myhyrikoso, um homem deve fazer cessar
seus contatos com as mulheres, tomar banhos de okyry indicados pelo xamã e passar
barro, para que tais seres não o percebam primeiro, o que significaria não apenas o
insucesso da caçada mas a predação. Odores tais, como o da fumaça, se não atraem
denunciam o devir, antecipam a presença dos “vivos” frente aos seres metafísicos.
A menstruação é, ou deve ser, algo diferente do sangramento do animal
alvejado, que sangra até à morte inevitável. Isto as práticas rikbaktsa relativas tanto à
menstruação quanto à capacidade reprodutiva feminina bem o demonstram. Ambas
correspondem a processos construídos e voluntariamente controlados. Digo
“voluntariamente” no que diz respeito à sua evitabilidade e à vontade de “alguém”,
mesmo que não seja a própria menina ou mulher. A menstruação e a fertilidade não são,
desta maneira, imanências corporais. Não apenas são produzidas, moduladas ou inibidas
mas, como vimos, também arriscam-se, nos comportamentos que traduzem-se na prática
da socialidade cotidiana, nos ritos, como na alimentação.
Há substâncias que podem suspender quase definitivamente a capacidade
reprodutiva. Este é o caso de uma mulher que já havia perdido quatro filhos. O que
chegou a nascer morreu de anemia profunda aos três meses. Ela só se alimentava de
leite e, sem que ela soubesse, uma mulher xamã deu-lhe remédio para que não tivesse
mais filhos. Dizem que as crianças “não vingam” porque ela casou-se com seu –zotsy,
um homem makwaraktsa irmão genealógico de seu pai. De qualquer forma, se quisesse,
poderia reverter a situação, pois para cada substância que tenha tal ou qual conseqüência
há uma capaz de gerar seu contra-efeito (cf. Capítulo III).
Se não roubaram o controle dos aerofones, mulheres merecem um lugar de
destaque na mitologia-histórica primordial Rikbaktsa, quando os homens ficavam em
casa e tratavam da comida, enquanto elas dirigiam-se ao mato para coletar e colher
produtos na roça (cf. Holanda 1994:17-35). Apenas alguns homens caçavam. Os
professores Rikbaktsa, emblematicamente, denominam este mito de história da
“segunda geração”. A primeira geração de Rikbaktsa já existia e não há história para
ela, talvez a da própria preguiça egoísta, mas lá também havia seres preexistentes. Este
mito é riquíssimo e muito longo e partes dele são constantemente evocadas no cotidiano
Rikbaktsa.
352
Contam que neste tempo não havia artefatos, como arco, flecha ou canoa; isto
nunca as mulheres fizeram. Havia somente borduna. Poucos animais já exisitiam,
apenas o caetetu (pyrykto), o macaco-prego (boa), o cuxiu (χ˜uikta)
298
, o jacamim
(nimytsik), o macucão (Φuikta) e o veado negro
299
(ioktsĩota). A caça era fácil e perto.
Só às vezes precisavam ir longe. Também ainda não havia separação dos grupos de
gentes, dos wahorotsa.
Ao meio-dia as mulheres voltavam da roça e os homens que tinham ido caçar, de
sua caçada. Os homens “domésticos” mostravama comida e todos comiam. A mulheres
pediam chicha (tumy), mingau (zaro) e beiju (atsikara). O resto da tarde as mulheres
brincavam. Os homens não reclamavam de nada. Em Holanda (id.:ib.) descreve-se este
tempo como sem doenças, sem muitos filhos, quando “tudo era bonito e sem confusão”
(idem:17).
Em um dia, quando as mulheres iam à roça viram no chão uma semente que
então não conheciam, mas era um semente de angico
300
(uri). As mulheres ficaram a
comentar sobre a semente, pensaram que dela pudesse nascer gente e escolheram uma
delas para “experimentar”.
A mulher resolveu colocá-la entre suas dobras de pele. Colocou na boca (-saki) e
depois no vão do dedo da mão (-tsyhyry-saki-zaza/ mão-boca-esquentar) e do pé (-pyry-
saki-zaza/-boca-esquentar). A semente já estava mole, grande, estufada e rachada.
Colocou no sovaco, nas dobras dos joelhos e cotovelos, nas pregas da barriga e nas
virilhas. A idéia era aquecer a semente
301
. Maria Zabawy diz que esta história aconteceu
com uma mulher da “maloca”. A criança foi gerada na batata da perna da mulher,
“estourou e nasceu”.
Era um menino e ela o enrolou em um tsanipe e colocou em uma tipóia de
algodão (myspi). O deixava escondido, em cima de um girau. Assim o menino foi
crescendo. Tudo corria como sempre, até que um dia as mulheres voltaram da roça mais
cedo porque estava calor e tinham sede. Uma delas ouviu o menino chorar e foi vê-lo.
Então começou a mexer no pênis da criança até que ele endurecesse e teve relações com
298
Dizem que é um macaco pequeno, preto e que tem o nariz vermelho. É barbudinho.
299
Holanda (op.cit.) cita esta espécie de veado(-oktsĩ- “rosto sujo”), mas jamais citaram-na para mim. Os
veados (hozipyryktsa) são o tsaririta (vermelho), que até comem, mas a carne é ruim, sparitsa, associado
aos myhyrikoso. Assombrado, leva a pessoa. Quando tempo escuro eles gostam de estar no mato. O
ibarakata, veado pequeno, de pelo “branco”, o que mais comem e o iywywyta (Cinzento), que não
comem, talvez possa ser este.
300
O angico é a primeira planta a germinar após a queimada (Pacini, comunicação pessoal).
301
Lembro que o calor é tipo como um catalisador de transformações ou acelerador das mesmas. Comidas
quentes são proibidas especialmente para aqueles que fizeram tatuagens ou furação de orelha e narizes.
353
ele. Depois enrolou novamente o menino na bolsa de entrecasca e colocou-o de volta no
jirau, como se nada houvesse acontecido. Mas o pênis do menino começou a engrossar e
crescer.
As outras mulheres desconfiaram, porque aquela mulher havia demorado. Mais
tarde, quando todas voltaram da roça, a mãe da criança ouviu um choro e foi vê-la.
Pegou de cima do jirau, tentou dar peito mas ele não quis e não aprava de chorar.
Examinou seu corpo para ver se era algum carrapato. Foi quando viu que seu pênis
estava grande, do tamanho de um braço. Logo atentou que havia sido alguma mulher
que o havia “queimado”
302
, por inveja. Pensou que se elas fossem mãe dele jamais
fariam isso.
O menino não ficou sabendo quem era o pai dele. A mãe levou-o para o mato e o
deixou lá. De vez em quando ia visitá-lo. Ele já havia crescido bastante. Então explicou
que as mulheres o haviam “queimado” quando era criança.
A mãe deixou ele embaixo de um pé de tucumã e foi pegar okyry (remédio-do-
mato). Amassou em uma panela de barro colocou água e deixou ao sol, para que
esquentasse um pouco. Então levou o filho para a beira do rio e o fez beber mistura.
Com o que sobrou deu-lhe banhos. Enquanto isso dizia: “- quero que você cresça
logo!”. Por várias vezes a mãe fez a mesma coisa. O menino já ia ficando parecido com
uma capivara
303
(wre). Mais alguns banhos e foi ficando com patas e cabeça de anta –
mas não sabiam, naquele tempo não tinha anta. Foi ficando de quatro até que virou (-
zik) uma anta de verdade.
A mãe disse que agora ela se viraria sozinha, mas que queria que ela se vingasse
das mulheres que fizeram a maldade com ela. A mãe pegou castanha-do-pará nova, que
dá em agosto, e passou nos dedos das patas da anta e depois colocou fogo neles. Os
dedos ficaram grandes. Ela disse que quando os homens lhe flechassem
304
ela não ia
morrer.
A mãe levou-a para perto do rio. Passou cascas de árvores (maze – jatobá,
mytsarik – jatobá-pequeno e zerohopyryktsa – jenipapo) na sua traseira e disse que seu
couro ia ficar muito duro. Ela só morreria se flechassem no sovaco (-pake).
Na casa os homens pediram para o coatá-macho (mybaiknytsa)- que era o
“chefe” dos Rikbaktsa e também quem cozinhava - fazer mingau para eles. Ele fez e
302
Os Rikbaktsa utilizam esta expressão em português para “relações sexuais”, exatamente a tradução de
um dos termos nativos “-okoro” (koro/ queimar).
303
Não comem capivara. Consideram “fedido” tsitoskarta!
304
Mas os homens ainda não tinham flecha.
354
experimentou primeiro
305
. Um dia o homem ralou o dedo no ralador de paxiúba,
enquato ralava mandioca. Me dizem que foi de propósito. Agora não poderia mais
cozinhar. Mesmo assim, tudo continuava do mesmo jeito. As mulheres continuavam a ir
para a roça e não fazer comida. Só que, ao voltarem da roça, nunca queriam comer.
Diziam estar suadas, e que iam tomar banho no rio.
Primeiro iam com o papagaio (arõ), em uma lagoa próxima. Ele era do tamanho
de um menino e sofria com o peso dos colares das mulheres, que os colocavam em seu
pescoço para que pudessem tomar banho. Não conseguia ver nada e não era espião dos
homens. A mãe da anta chamava a anta – “ela é que comandava as mulheres” me diz
Francisco Pikze – para que tomasse banho come elas. A anta assoviava. Ia direto na
mulher que a havia “queimado”. A anta ia tendo relações com todas as mulheres, uma a
uma.
Por um bom tempo os homens não desconfiaram de nada, mas depois
começaram a desconfiar dos banhos antes do almoço. Mandaram primeiro o
macuquinho (tsuãra) ir espiá-las, mas ele fazia muito barulho e ficou de longe.
COnseguiu ver o papagaio carregado de colares e também um vulto do que parecia ser
um bicho grande, nadando com as mulheres. O vulto cantava piku, piku,piku (anta, anta,
anta).
Quando chegou em casa contou o que conseguiu ver para os homens.
Resolveram mandar tohoza, o caxinguêle, que era também o primeiro cunhado dos
Rikbaktsa. Assim ele as aconpanhou ao banho e conseguiu ver um “monstro” (não sabia
que era anta) que pegava-as uma a uma. Contou tudo para os homens. Contou do
“monstro”. Descreveu-o. Os homens disseram: “-só pode ser uma anta!”. “É o marido
das mulheres!”, “vamos matar esta anta!”.
As mulheres oltavam alegres do banho e mybaikny pediu a elas que pegasse
muito amendoim (pitsipyryk), bata-doce (zodo) e mandioca-mansa (moko), para que ele
fizesse um mingau bem grosso. Avisou que a comida só ficaria pronta muito tarde e que
elas não precisavam ter pressa. No dia seguinte, como combinado, as mulheres foram
para a roça. Os homens apressaram-se em fazer arcos (-parakytsa), flechas (-orobiktsa)
e bordunas (-opepetsa). Esta primeira fabricação de arcos e flechas para matar, mudaria
o rumo da história Rikbaktsa. Levaram dois dias para aprontar tudo. Colocaram em
cima do esteio da casa, como fazem hoje.
305
Homens do clã mybaiknytsa devem ser os primeiros a experimentar o mingau de castanha-do-pará e
macaco durante os ritos.
355
No dia seguinte foram atrás da anta, no lago. Os homens pegaram os colares das
mulheres do pescoço do papagaio e colocaram no pescoço. Caíram na água e
começaram a chamar pela anta. Começaram a imitar a voz da mulher que “queimou” a
anta e ela logo veio. Os homens acharam a anta muito feia. Ficaram a imitar as mulheres
e esperaram a anta se aproximar. Primeiro o chefe, mybaikny ia flechar e depois os
casados
306
, para descontarem o que anta fizera com suas mulheres. As flechas que
pegavam nas suas patas (-pyrytsa) e no seu dorso (-pirik) não entravam no corpo. Mas
as demais sim. A anta correu pelo mato, crivada de flechas. Foi retirando-as mas os
homens a encontraram e acabaram de matá-la.
Começaram a cortar o pênis da anta com concha (tutãra), pedra de machado
(wywyknory) e ponta de flecha jurupará (zayta), mas estas coisas não cortavam. Afiaram
e acabaram conseguindo cortar o pênis da anta. Levaram o pênis para a aldeia, enquanto
outros homens pegavam arranha-gato (nisaha), espinhos de cansação (tsikbibi) e
marimbondos (harapatatsa).
Queriam se vingar das mulheres, então colocaram o pênis em um xire e
penduraram em cima da rede da mulher que tinha queimado o menino. Enfiaram os
espinhos nos pés. Quando as mulheres chegaram da roça carregadas de alimentos,
agiram como se nada tivesse acontecido. Elas foram banhar. Chamavam a anta, mas ela
não vinha. Resolveram ir atrás do rastro da anta, pelo caminho que ela sempre seguia.
Encontraram pontas de flechas e, finalmente, a anta morta, com as pernas abertas (sem o
pênis), embaixo da árvore.
Choraram de tristeza e tiveram a certeza de que tinham sido os homens os
responsáveis. Chegaram tristes em casa, mas não disseram nada. Não quiseram comer.
Foram direto para as redes. O sangue do pênis da anta começou a pingar na coxa da
mulher que havia “queimado” a anta, quando menino. O marido pediu que ela viesse ver
os espinhos em seu pé
307
e ela negou-se.
O homem disse que ela estava triste por conta da anta e jogou o pênis da anta no
colo da mulher. Todos os homens foram fazendo o mesmo com suas mulheres. Depois
começaram a bater nas mulheres com o arranha-gato e a cansação, nas costas e nos seus
rostos. O mito continua em uma longa história, onde, a partir deste acontecimento, as
306
No relato de uma execução, disseram que primeiro os velhos atiram flechas, depois os homens e, por
último, rapazes.
307
Esta é uma atitude carinhosa entre casais. Tirar espinhos, “estourar” mordidas de piuns são como ritos
conjugais noturnos.
356
mulheres zangaram com os homens e separaram-se deles, deixando-os apenas com os
meninos. Levaram as meninas bonitas. Levaram também o fogo com elas.
Dos filhos feios, misturados a folhas do mato, as mulheres foram fazendo
diversos pássaros. Mandavam eles procurarem os pais, para ver se eles ficavam sentidos
em vê-los e voltavam. Fizeram um tatu, passando folha do mato em outra criança feia e
colocando uma peneira grande (doa) na sua cabeça e uma cuia de barro (mypewy), que
virou seu casco. E assim por diante iam produzindo bichos a partir de crianças feias e
misturas e eles nunca voltavam (tamanduá-bandeira [zõno], jaboti [wiktsabo]). Todos os
animais que criavam a partir destas misturas eram feios. O único bonito foi a juriti-de-
barriga-branca (aimyro) e a mulher pegou-o para ficar no lugar de seu marido. Dos
meninos bonitos as mulheres fizeram seus maridos e para maridos das meninas bonitas
quando crescessem.
Em certo ponto do caminho resolveram fazer a travessia de um rio, auxiliadas
pelo jacaré. A preguiça, seu avô, viu tudo. Ele combinou com elas que não poderiam
vomitar quando ele soltasse sua “catinga” elas não podiam cuspir na água, ou ele as
derrubaria
308
. Atravessou primeiro as mulheres feias. Quando atravessava as mulheres
bonitas e seus fihos bonitos elas não agüentaram e cospiram. Foram para o fundo do rio.
Lá ficaram a bater mão-de-pilão. Neste tempo o fundo do rio era igual ao mato. Só
havia água por cima. As mulheres feias ficaram a chorar. As mulheres bonitas foram
virando peixes, como a piava-de-pinta (waraho), o acará (harok), outras pedra
(harahare), outras passarinho. Os meninos bonitos saíam do rio e visitavam as mães à
noite .
Certo dia os homens resolveram voltar e perguntaram para a preguiça (seu avô)
sobre as mulheres. Ela contou tudo. Os homens queriam avançar na preguiça mesmo,
porque estavam muito tempo sem mulheres. Tentaram pegar as mulheres do fundo do
rio com a ajuda do avô. Pegaram a piava-de-pinta (waraho), mas ela conseguiu fugir.
308
Toda vez que sentem cheiros ruins, como de carniça, de podre “tsi-horo-r-na!” ou cheiros fortes tsi-
toska-r-ta!, invariavelmente exclamam as respectivas palavras e cospem no chão. Mulheres, como disse,
são ditas pelo homens tsitoskarza, com cheiro forte, em oposição aos homens que definem-se enquanto
“perfumados” ts-okmo-r-tsa”. A catinga da mulher deixa o homem fraco e sem vontade de fazer
qualquer
coisa (cf. Lévi-strauss [1964]2004:310). Não mantém relações durante a menstruação por este
motivo, “estraga por dentro (o homem)” (Gorete Barokzuwy). Lembro também que uma das
preocupações nas histórias sobre caça de animais metafísicos, como o gavião-branco (wohorek
ibarazata), é que os homens tomem banhos com ervas e passem barro pelo corpo de modo a retirar deles
todo o cheiro de fumaça e outros odores, como o feminino. Caso contrário, o caçador será facilmente
percebido. Também durante os ritos funerários a família do morto, principalmente seus filhos, deverá
passar barro no corpo, para conseguir afastar seu –hyrikoso. Os myhyrikoso, por sua vez, são também
tsitoskartsa, fedem a coco, com os quais entopem a boca das suas vítimas, dizem, só para judiar delas.
Por este odor pode-se perceber sua aproximação ou o fato dele ter passado por algum caminho no mato.
357
Acabaram ficando com um acará (harok). Chamam o acará de “nossa mãezinha” (my-je
tsibik) e dizem que se os homens tivessem conseguido pegar a piava-de –pinta (waraho)
os Rikbaktsa atuais seriam mais bonitos. As mulheres bonitas-peixe contaram que as
mulheres feias estavam do outro lado do rio. Os homens tinham agora uma mulher, mas
não tinham fogo, que estava com as mulheres.
Treinaram o papa-vento-de-topetinho
309
(itsiktsarabobo) para roubar o fogo das
mulheres, pois ele podia atravessar o rio sem ser notado. Ele consegiu, mas as mulheres
conseguiram apagar o tição de fogo que ele carregava nas costas, à moda de se carregar
borduna (opepe). Depois o papa-vento-riscadinho (itsikmanamai) tentou e, finalmente,
conseguiu. Mas os filhos bonitos saíram do rio e apagaram o fogo dos homens.
Os homens desistiram e resolveram ir embora. Os homens iam casando com a
filha do acará-mulher, porque elas cresciam rápido naquele tempo. Foram reconstruindo
uma nova geração, só que de pessoas mais feias. Não encontraram mais as mulheres.
Mais tarde conseguiram fogo com uma árvore que era o pai fogo (izozo). Quando batia
o vento a árvore – que era quente e da qual ninguém podia chegar perto - zangava e
expelia brasa longe e para todos os lados. Comparam o este fogo à seringa, que também
estala a semente (tapõrõiriktsa)
310
.
A partir daí os homens começaram a encontrar outros wahorotsa. Voltaram no
lugar onde tinham pego taquaruçu-do-brejo (zayta) para fazer ponta de flecha jurupará e
viram que outros wahorotsa tinham cortado, mas já estava crescido. Se estabeleceram
ali e um tempo depois os biziktsa (uma espécie de wahorotsa) vieram tirar o taquaruçu e
brigaram com os Rikbaktsa. Mataram dois índios e fugiram. No caminho encontraram
os Nambikwara e eles flecharam um rikbaktsa que morreu. Um rikbaktsa descontou em
outro nambikwara, que morreu.
A história vai ficando por aí ... com o estado de coisas e gentes do mundo
significativamente transformado, a partir de gentes e substâncias que já existiam. Novos
animais e, principalmente, a criação de distinções entre o que era antes uma gente só.
Ou seja, a criação de “inimigos” e “discórdias”, a partir dos atos femininos, que
309
Este animal, um pequeno camaleão (Iguanidae) que fica grudado no pau na beira do rio é imitado nas
festas e é o “dono” da braçadeira pony-pony, ele a inventou. Comia mingau fazendo-se se passar por
irmão de uma mulher. Ele incha o papo e eriça cristas quando provocado, por isso chamam-no de
itsiktsarobobo (tsik “água” / bobo “engordar”). Ele morre fácil, então se brincar com ele ou matar, a
pessoa morre também (Holanda 1994:310).
310
Holanda (1994:310) diz que o gavião que mora no alto é o guardião do fogo. Este assemelha-se muito
ao gavião do mito da sucuri (cf. Capítulo V), porque come gente e tem predileção por mulheres bonitas.
Ninguém consegue matá-lo.
358
envolvem auto-geração e a auto-reprodução, embora haja outra história que explica a
separação dos wahorotsa para a qual não há qualquer participação feminina.
Os homens não roubam a capacidade reprodutiva das mulheres. Elas continuam
a reproduzir homens e mulheres por todas as vias, como acontece hoje em dia e o que é,
para mim, a grande chave do entendimento das mulheres Rikbaktsa atuais. Por outro
lado, embora indiretamente induzidos pelos atos femininos, homens criam ou
transformam a criação do que seriam novos Rikbaktsa – a chamada “segunda geração”
– a partir das próprias mulheres Rikbaktsa, revertidas em mulheres-peixe. Criou-se um
mundo mais difícil, onde a caça apresenta mais distinções e é mais trabalhosa, onde há
outros wahorotsa disputando recursos, agora fundamentais, alguns dos males do mundo.
A partir de então, subentende-se que os homens passaram todos a caçar e
guerrear e as mulheres tomaram para si as atividades domésticas. Mas isto não teria sido
um “castigo” masculino, senão uma contingência indireta de seus próprios atos. De suas
experiências auto-reprodutivas e de suas traições e relações sexuais com seres
desconhecidos que, aliás, tornaram-se imediatamente “familiarizados”, no sentido de
que passaram a integrar o mundo.
O responsável pelas comidas era, antes, o próprio chefe mybaikny e não um
homem indistinto. Apenas se tomássemos como a priori que as atividades domésticas
são menos importantes do que as demais – algo que não consta em nenhum momento do
mito – poderíamos interpretá-lo naquele sentido. As coisas eram de uma forma e
passaram a ser de outra, porque o estado do mundo se transformou, como tantas outras
histórias Rikbaktsa que falam de tantas outras transformações do mundo e de gentes.
A geração de novos seres, como temos visto, é algo disseminado na cosmologia
Rikbaktsa. Transformações e misturas advém de tudo o que existe e atingem
indiscriminadamente tudo o que existe, conquanto que estejam ou sejam impelidos à
relação. A estrita ética de cuidados corporais no seu sentido lato, a que crianças e
adultos Rikbaktsa submetem-se, demonstra que também eles encontram-se vulneráveis
e são “trans”-formados através destas associações de efeitos nem sempre desejados.
Aqui geração, criação, é quase sempre transformação de algo que já existe.
Quando se trata de corpos em formação ainda mais intensa, tudo pode se
misturar em maiores proporções, ocorrendo intercruzamentos gerativos não esperados.
Podem ser outros homens, para o caso da paternidade múltipla, outros artefatos e até
outros seres, como vimos para o sutsukwy.
359
Tabawy conta-me uma história bastante ilustrativa destas possíveis misturas e
perigos aos quais um ser em formação submete-se, neste mundo de trânsito exacerbado
entre corpos e substâncias. Toca no ponto de que a gestação – e outras formas de
relação e produção - carregam um potencial para gerar seres que não são “idênticos” a
seus “genitores”. Por misturas e modos diversos de “geração”, transformam-se em
coisas diferentes mas não totalmente originais. Uma história onde é difícil identificar a
“identidade”, pois é repleta de “alteridades” que relacionam-se e até “misturam-se” de
formas diversas, tanto pelo sexo e pela geração, quanto pela morte, pela vingança e pelo
“canibalismo”. Transita na tensão entre proximidades e distâncias, de gentes, de
parentes e de domínios.
Um dia uma mulher grávida foi na árvore, em um ninho, quando foi pegar
peixinho com outra mulher. Um passarinho – muputuk, antigamente comiam hoje não;
fica na beira do córrego e faz buru buru - passou na frente dela. Ela pegou o ovo porque
achou bonito e colocou em um colar de semente com caramujo (tutãra). Quando a
mulher encostou em um pau, o ovo estourou e uma cobra entrou dentro da barriga dela,
matando a criança que estava lá dentro. Ela foi crescendo dentro da barriga da mulher,
que não podia contar para o marido, porque a cobra ouvia muito bem.
Quando a mulher ia tirar castanha, a cobra saía da barriga da mulher e cortava
castanha. Antigamente, explica Tabawy, o pé de castanha era baixinho. Um dia, então, a
mulher conseguiu combinar com o marido que quando a cobra saísse de sua barriga ele
a mataria. (batsisaba!)Verdade!
O homem acabou matando a mulher e a cobra. Cortou a cobra em pedacinhos e
os colocou no jirau. Tapou com uma “casinha”, para esquentar. Depois de uma semana
ele foi ver. Estava ferventando ... depois virou criança. Quando as crianças cresceram –
eram meninos e já estavam com a orelha furada, como fazem os Rikbaktsa - resolveram
se vingar de quem tinha matado sua “mãe”. A mãe deles era o tsamydoho (tatu
canastra), que não comem, muzuza.
Depois Tabawy diz que os rapazes (mykyry-bo-ktsa/mykyry-dir-masc pl “os [que
vão] para o mykyry/solteiros”) tocavam o purawy (buzina de guerra, soada, entre outras
ocasiões, em ritos funerários) toda vez que iam visitá-la. Não especifica onde, já que a
mãe estava, à princípio, morta. Lembro também que as crianças nasceram da cobra que
cresceu na barriga da mãe, e Tabawy me diz que a criança que estava dentro da barriga
morreu com a sua presença. Aplica, contudo, os termos “mãe” para o tsamydoho e “pai”
para o homem que matou a cobra, cortou-a em pedacinhos e cozinhou-os no jirau. No
360
final os meninos não conseguiram, enfim, matar o “pai”. Tabawy diz que “mataram” a
mãe e comeram. Eram filhos da cobra, “eles comiam qualquer coisa”, finaliza Tabawy.
Neste sentido, a relação sexual é apenas mais uma forma de gerar ou formar
seres e, ainda mais, uma forma que poucas vezes atua sozinha para a criação de uma
nova criança, de um novo corpo. É de se relevar, ainda, o grau de relação de identidade
entre o novo ser que é criado e tudo o quanto ou o quê tenha contribuído em sua
formação. Os meninos que portavam-se como Rikbaktsa (tinham spioketsa e procediam
a vinganças) mas eram filhos da cobra, um ser francamente associado aos myhyrikoso. E
também, afinal, eram filhos do tsamydoho que, além de relacionado à cobra, como
veremos
311
, é associado às onças, enquanto seu alimento (o que contribui
significativamente para a sua incomestibilidade). Neste sentido, o paradoxo da história
é: quem “são eles” e o que ou quem eles deveriam “comer”, ou seja, quem são os
“outros”?
Não é de admirar que esta geração pudesse, assim, prescindir da própria relação
sexual. As diferenças são importantes para produzir bebês, mas elas não
necessariamente virão do sexo ou exclusivamente da diferença homem/mulher. Se cada
cultura tem seu próprio sexo (Moore 1999: 154), acrescento eu, terá também seu próprio
modo de geração de novos seres. Algo que pode estar, em muitas modalidades,
completamente desconectado do sexo, tal qual o entendemos. O longo mito sobre a
criação da anta introduz este tema fundamental e que não pode ser dissociado da noção
rikbaktsa de “geração” e nem do entendimento do caráter que as mulheres assumem no
socius Rikbaktsa.
Uma mulher “produz”, com o auxílio de sementes e do calor das dobras cutâneas
do próprio corpo, o que viria a ser a anta, com a qual todas as demais mulheres
passaram a trair seus maridos. Daí nasce um dos cismas – não podemos dizer que este
foi o único, pois o corpo de mitos narra uma série de transformações nem sempre
lineares e cumulativas - que daria origem aos Rikbaktsa como são hoje. A fileira de
eventos que se segue explica ainda por que eles não são tão bonitos hoje.
Na atribuição de paternidade por parte das mulheres a lógica patrilinear é
respeitada e até levada às últimas conseqüências. O fato de não ter havido relação
311
Cobras são myhyrikoso de alta periculosidade. Bebês e crianças em gestação são especialmente
vulneráveis ou “atrativos” a elas, como aliás, diz a história. Quando a pessoa é mordida de cobra, a
mulher grávida ou o pai da criança não podem pegar na vítima e nem “olhá-la”, pois a criança poderia
morrer. Tomar chicha feita por mulheres com criança pequena pode ser perigoso. Quando a pessoa
esquece e vai no mato, há uma cobra (wanupapyry) que “desconta” (tsapusarik) e agarra nas pernas.
361
sexual como ocidentalmente a entendemos ou de um homem não haver participado da
geração de uma criança certamente não afirma a patrilinearidade, mas também não
podemos dizer que a contradiz. Se a teoria de concepção rikbaktsa diz que o “homem
faz a criança”, com sua “coisa de fazer gente”, irikdo, ela não diz que “apenas” ele é
capaz de gerá-la.
Há uma série de casos e histórias, passadas antigamente mas também no tempo
presente, relativas a uma espécie de capacidade auto-reprodutiva ou homogamia,
sexualidade “autônoma” ou prescindibilidade dos homens, como também relações e
brincadeiras sexuais praticadas entre as mulheres Rikbaktsa. Algumas contam mesmo
como foram “constrangidas” à participação por outras mulheres. Mas muitas outras
laçam-se a estas “brincadeiras” por livre vontade.
Contam da mulher que engravidou sem o marido, com “folha do mato que
bateu, estufou como pão e tomou, com o leite” (Ana Maria Zabawy). Nasceu o filho
(menino). A mulher morreu, o avô criou. Mas com relação a esta idéia de auto-
reprodução a história mais significativa é a de um homem que está vivo hoje em dia, de
cerca de 55 anos
312
. Uma mulher disse às mulheres mais novas que ele é filho da
“mulherada”. Quando veio à aldeia São Vicente viu uma árvore grande e lembrou ...
disse que a mulherada ficava embaixo de uma árvore como aquela e também no seu
oco, uma “pegando” a outra. Quando vinha gente, elas ficavam quietinhas e quando
passavam, recomeçavam. Não sabem quem é o pai e nem mãe dele, dizem que é
kykyry-tse” (mulherada/filho), ou seja, filho da mulherada.
Algumas mulheres tinham e outras dizem que têm, mas não vi
313
, madeiras
talhadas em formato de pênis (bamy sarapa / bamy [nome da árvore] “galho”). Usam
quando os maridos viajam, durante suas andanças da época de seca. Uma destas
mulheres ficou conhecida por ter tido um bamy sarapa pintado de vermelho
314
.
A história, contada para mim por Vicente Bitsezyk, fala de uma mulher solteira
que, dentro de casa, conversava e namorava com seu bamy, adornava-o com artefatos
312
Preservo o nome do homem, bastante conhecido dos Rikbaktsa, e sua aldeia, embora tenha ouvido
estas histórias de diversas fontes, à exceção dele mesmo, é claro.
313
Em andanças no mato ficamos a procurar bamy sarapa, mas não achamos. Riram muito, porque eu
disse que queria levar para mim. Também preservo aqui o nome das mulheres, visto que este é um
assunto “delicado” para os homens e talvez também para algumas delas. Descobri o tema por acaso e,
como já indiquei para outros assuntos, os Rikbaktsa só passaram a me falar sobre ele depois que
demonstrei que já sabia que isto acontecia.
314
Desta dizem, inclusive, que tomava boa okyry, o “remédio de prego” (cf. Capítulo III), só ingerido por
homens que não produzem mais filhos para que tenham vigor sexual.
362
tipicamente masculinos, como tanga de buriti e adornos auriculares, enganando com
isso o restante da aldeia, com respeito ao seu celibato:
Mulher solteira, nova. Tinha vizinho pertinho da casa. Ela foi no mato e
achou bamy no chão. Ela apanhou. Só ela não tinha companheiro. O resto da
mulherada era casada. Ela não ligava com homem, (segundo a versão de
Vicente, hoje os homens dizem quando mulher “não liga” é que tem galho de
bamy), ela apanhou e guardou no pyryk (um cesto grande de palha para carregar
rede, feito de inajá novo, chamam també de xire). Toda noite conversava com
ele (com o bamy), como gente. Os vizinhos desconfiavam. Quem estava com
ela? Não faltava ninguém nas casas. Ele era gente, tinha voz de homem. Aí ela
enfeitou ele com caramujinho do mato (waroa), pena (-zi), amarrou com spizõrõ
(adornos auriculares masculinos de algodão e penas). Ficou bonito, tsapyrta!
Era seu namorado. E fazia barulho na porta, só para dizer que tinha gente, ela
mesmo fazia tsyk!
Um dia, quando a mulher saiu, a mulherada foi espiar. Aí pegaram
pimenta, caçaram e acharam no xire. Estava lisinho. Resolveram passar
pimenta no bamy e deixaram. Aí a mulher voltou, banhou, escureceu e as
vizinhas ficaram ouvindo. Aí foi usar e ficou ardido como fogo. Esquentou todo
o corpo até a cabeça. Aí jogou na parede e ficou braba. Banhou várias vezes e
nada, passou só um pouco ... nepyk!
Vicente diz que as mulheres casadas não têm galho de bamy não, “só quem não
gosta de homem”. Entretanto, todas as mulheres citadas, tanto as velhas como as novas,
eram ou haviam sido casadas. Mulheres podem desempenhar tarefas conjuntas, como
pegar mandioca, e terem relações íntimas. Ficam, como dizem em português “fazendo
besteira na sujeira” (Helena Zydyk). Sentavam uma na outra. Certa vez um homem que
estava no mato caçando quase atirou em duas delas, pensando que era bicho se
mexendo.
Uma mulher me contou que uma velha – atualmente já falecida - suspendeu sua
roupa quando foram na roça. Arrebentou a alça de sua blusa e abaixou sua calcinha.
Não falou nada. A vítima ficou parada. Depois correu para a casa e ficou doente,
segundo conta. Sobre a mulher que a assediou na roça, uma outra mulher confirma a
363
história e conta-me que ela é hermafrodita, tem irikdo e que seu marido “levava no
rabo”. Citam outra duas que também teriam irikdo
315
.
Zapemy, o antigo chefe Rikbaktsa dos tempos do Posto Barranco Vermelho, já
falecido, conversava com as mulheres, colocava-lhes medo, para não irem por aí
sozinhas. Esta ocorrência fica como mais uma justificativa de recomendação para
fazerem coisas “acompanhadas”. Reparo que após ser abordada involuntariamente por
outra mulher, a vítima adoeceu. Isto é mais um indicativo sobre a categoria de coisas em
que “relações com mulheres” poderá ser incluída.
É certo, contudo, que esta situação desagrada os homens, havendo certas
substâncias que podem ser aplicadas como “castigo” para mulheres que sabidamente
são praticantes deste tipo de relação. Assim há o Byriryk myirikdo okyry, um
“remédio/veneno” feito com o pênis de um pequeno morcego (byriryk). Homens dizem
que ele é usado nas festas, para as “mulheres que não gostam de homem” (Vicente
Bitsezyk).
Apenas velhos sabem e podem fazê-lo em segurança. o morcego deve ser morto
e ter o pênis retirado. O pênis é, então, torrado até que possa virar pó. O homem é que
faz esta preparação e ninguém pode ver ou saber que a está preparando. Pede, então,
para que a esposa faça tintura de urucum, conforme usam nas festas para as pinturas
faciais e corporais. Então o homem mistura bem os dois, ninguém pode ver. Se o
homem é resistente ele experimenta, se pinta com ele, para ver se está bom. Se estiver a
contento, então pega um contra-remédio para interromper o efeito.
O homem pega esta mistura e deixa no pau durante as festas. A mulherada acha
bonito (tsapyrna!); pegam e pintam-se com ele. Dizem que este remédio “enlouquece”
(-kedepyk), porque se quer ter relações com qualquer um. Fazem isso de maldade e
como uma forma de “vingança” (tsapusarik) ou “desconto”. Este estado do ser pode
levar as pessoas à morte e ouvi relatos contundentes sobre isso.
Mulheres solteiras aparecem nos mitos como traiçoeiras e capazes de impor
“maldades” e mesmo a “morte” ao homens
316
. A história sobre o “peido” que quase
315
Busby (1997) cita hermafroditas indianos como homens desmasculinizados que não são considerados
nem homem e nem mulher” (idem:261) (trad. minha). Mas aqui não há problema se as mulheres têm
pênis ou bamy sarapa. Todas são mulheres e nunca ouvi serem referidas enquanto pertencentes a alguma
outra outra classe. Há, todavia, o discurso masculino de que mulheres que têm bamy não têm marido ou
não gostam de homens. Os exemplos são muito claros no sentido contrário.
316
Na história que conto a seguir marcam a informação de que a mulher é solteira, mas vimos que as
“casadas” também aparecem na mitologia como “traiçoeiras” e capazes de matar seus maridos.
364
matou um homem apresenta-nos tanto a metonímica entre odores e corpos quanto a
malignidade de uma mulher solteira.
Em um wahoro, havia um rapaz novo - naqueles tempos o rapaz não casava
novo, esperava até os 20 ou 25 anos, porque não tem “experiência” -, forte, “gordo”,
animado para caçar. A casa não tinha parede, mas a mulher e o homem “dormiam” em
armadores separados.
O homem caçava muito e às vezes matava pássaro. Pedia para fazer mingau.
Comiam milho, batata e chicha no mykyry. De noite a mulher estava quebrando
castanha sozinha, fazia mingau, colocava pássaro na panela, enquanto os homens,
satisfeitos, iam dormir.
O rapaz dormia no mykyry, mas este era dentro da casa grande. Enquanto isso a
mulher ralava a castanha, o pássaro ia fervendo e ela colocava a massa de castanha, até
a noite. Todos iam dormir e ela fazia devagarzinho suas tarefas para que isso
acontecesse. Todos roncando e só ela acordada. Ia até a rede do rapaz, a lamparina de
castanha apagava. Peidava bem no rosto dele, enquanto ele dormia. Todo dia era assim.
Depois de um mês, seu olho ficava fundo, parecia que não comia.
Certo dia ele foi caçar com ka-zopo e acharam utok (manga do mato) carregado
de frutas. Sentaram para comer. Não tinha emagrecido, mas o olho estava fundo. O tio
reparou e perguntou para ele o que estava sentindo. O tio vira a mulher fazendo aquilo e
então contou para o rapaz. Ele não percebia nada. Disse que era perigoso, que ele ia
morrer.
“- Se fosse eu, ia “descontar” (tsapusarik)(disse-lhe o tio) ... Tem coragem? - Eu
tenho!”, respondeu o rapaz. O caroço de utok é grande e comprido. Levaram o caroço de
utok, acharam bonito. Mataram macaco, pássaro e a mulher foi fazer o mingau. Aí
comeram, tomaram chicha e foram deitar. O tio explicou que ele tinha que colocar o
caroço na beira do fogo para esquentar. Ele ficou quieto, fingindo que dormia. Aí, às
dez da noite, o caroço já estava para pegar fogo. A lamparina apagou e ele pensou; “ela
já vem”. Abaixou o braço para pegar o caroço e ele viu a sombra. Colocou o caroço no
ânus da mulher. Ela caiu. Pensou; “eu já matei ela”. Ele colocou ela na rede, pegou o
ralador e colocou com ela. Pegou sal (aimy ou bambu queimado e fervido) e passou na
mão dela. Colocou sua mão na boca para dizer que o sal é que tinha matado ela. O
caroço da fruta já estava no fundo dela.
Quando todos acordaram o mingau estava seco. Olharam a mulher morta e
viram que ela tinha morrido pelo sal. Arrumaram as coisas dela, enterraram. Aí ka-zopo
365
disse para o rapaz ... “- Descontou?” “- Ah! Já está pago. Depois de uns dias ele ficou
bem de novo. Ela fazia aquilo só para matar o homem. Não tinha marido, mas fazia isso
só de malvadeza, só para matá-lo. Peido mata. Deixa a pessoa doente. O nome da
mulher, não sabem. Ficam discutindo se alguém sabe. Apenas as que não têm marido
fazem assim; “as que têm não fazem não”, completa Vicente Bitsezyk
317
.
Relações “homo” femininas, então, sustentam pelo menos duas perspectivas.
Uma delas diz sobre um outro domínio e modo de relacionarem-se, que prescinde
totalmente dos homens, não apenas para gerar, mas também para “diversão”, o que, em
um caso extremo e singular, poderá ocasionar “geração”, como o homem que diziam ser
filho da mulherada”.
A outra é aquela que se firma pelo entender dos homens e daquelas mulheres
que, aparentemente, envolveram-se na situação sem volição. Para estes segmentos, estes
seriam acontecimentos batsisapy, não adequados. No caso de mulheres mais novas, é
notório que não possam “negar” o que quer que lhes seja solicitado. O sujeito
prototípico destas histórias são as “velhas” e, nestes casos, esta relação parece entrar
nesta categoria de coisas que não podem ser negadas.
Relações homo masculinas são referidas em apenas um mito Rikbaktsa que fala
sobre um homem afeminado (Holanda 1994:213). Neste mito todos os homens têm
relações com o afeminado. O primeiro a fazê-lo foi mybaikny, o coatá-macho e chefe
prototípico dos Rikbaktsa. No final, o homem foi expulso da casa pela esposa, atou a
sua rede no mykyry e ficou lá. Assim a história acaba, sem maiores comentários ou
problemas.
Coisa diferente, são as excessivas brincadeiras que envolvem o pênis dos
homens. São muito comuns entre eles e ocorrem efetivamente, mas muito mais como
ameaça jocosa, a todo tempo. No mykyry, nas conversas comunitárias, para o que deve
haver uma reunião relativamente grande de homens. Chamam este ato de tsiburiburi
(pode ser aplicado a outras “brincadeiras” sexuais) e, em português, “fazer cinco”.
317
Apenas mulheres bem velhas podem comer a parte da anta (piku) a que chamam –japok, algo
equivalente ao rabo, mas que inclui parte do couro traseiro. Ele é separado do restante das partes que
serão moqueadas e encaminhado a algum domicílio que possua mulheres bem velhas. É cozido
separadamente e assim comido. Mais novas e crianças não podem comer. Se comer, dizem, “peida feio”,
“grande”, “alto”, “estufa”. Mypiksapybyitsa (“nosso peido não é bonito”), faz assim, “phik, phik, phik,
phik ...” Se criança pequena come piku i-japok só chora (e isto não é bom, atrai myhyrkoso e outros seres
da esfera dos mortos que são, reconhecidamente, predadores de crianças, como harãmy).
366
Não obstante obviamente só tenha presenciado as “tentativas”
318
– e a tentativa e
a “vexação” jocosa à qual a vítima se expõe parece ser a essência do ato – elas ocorrem
entre homens de diferentes idades, status e também metades. Não há, entretanto, uma
prescrição que ocorram entre homens de metades diferentes, entre afins, embora possa
até ocorrer, por exemplo, entre homens que são –zopo e –zikidi. Há de haver grande
proximidade de relações entre eles e, certamente, esta diferença de status. É muito
comum, por exemplo entre homens maduros e rapazes mais novos, mesmo que sejam
casados. Dizem ainda, jocosamente, que se “errar”, “perder” tiro no gavião-real a pena é
de 20 anos de “fazer cinco”, na verdade, de “sofrer” cinco.
Estas situações distinguem-se das brincadeiras femininas porque,
obrigatoriamente, devem ser, digamos assim, “públicas” e não há intenção de que a
coisa ocorra efetivamente. Não que os atos femininos sejam completamente privados,
mas certamente não desfrutam da mesma legitimidade. Ocorrem na roça, nas andanças
no mato, como gostam de dizer, “na sujeira” (jakara ts-ereka-rna / mato 3sg-
sujar/abandonar-est-neu), que é o mato não ou mal capinado. Ou seja, ocasiões em que
também homens têm relações sexuais com suas mulheres ou com mulheres em geral.
*
Se as mulheres não praticam a poliandria, têm, alegam ter ou são apontadas por
terceiros como tendo diversos amantes no curso da vida e de uma gestação. É central o
interesse em se saber quem é o genitor, aquele ou aqueles que são escolhidos para
desempenhar papéis que não são apenas de direito ou afeto, mas de trânsito de recursos
diversos e da possibilidade de estender o acesso a eles pari passu à possibilidade de
estender relações sociais oportunas.
O caso da filha de uma certa mulher viúva (zerohopyryktsa) é notório. À
princípio, há um certo consenso de que ela seria filha de um homem bitsik mas ele, que
é casado com outra mulher, não cuida ou assume
319
. Entretanto, ouvi também “boatos”
de que mãe teria dito que a menina era filha de um homem makwaraktsa e talvez ainda
de um outro tsikbakstatsa. Perguntados por um outro homem, dizem nunca terem
“mexido” com ela. Geraldino contou que quando o pai delas morreu, a mãe lhe teria
318
Meu campo de observação foi o próprio mykyry, notando que certamente isto acontecia muito menos
quando eu estava lá e, notadamente, as reuniões aldeãs para as conversas ao entardecer e ainda as viagens.
Quando íamos a Juína, de carro, por todo caminho faziam brincadeiras e “fazer cinco”, ou seja, tentar
pegar ou expor o pênis um do outro, é uma das prediletas e das quais acham mais graça.
319
Este homem é falecido atualmente.
367
oferecido uma filha para ser sua “criança de criação”, o que poderia significar
casamento futuro.
Como se já não bastassem todas as relações metonímicas que pesam sobre os
corpos de mães e filhos, este aspecto “matri” da teoria patrilinear de produção de corpos
é notável. Se o homem Rikbaktsa “produz a criança”, é a mulher quem designa aquele
que a produziu. E isto servindo-se plenamente da patrilinearidade e da teoria de
concepção oficial. Reafirmando-as, ou seja, ratificando “certas cláusulas do contrato”,
mulheres alteram sensivelmente os “dados”, como aquele que diz que mãe e filho
pertecerão a metades diferentes. Mesmo que pudéssemos assumir que nos grupos
patrilineares a mulher não transmite nada (Mauss 1971[1947]:262), restaria contrariado
que a “promiscuidade” dentro de seu próprio grupo fica descartada (idem:265).
A incerteza da paternidade, já de saída, atinge em cheio a possibilidade de
complementaridade equilibrada entre as metades. Imprime certas disposições à
organização social, de onde casar, com quem morar e que qualidade de relações ter com
cada pessoa no socius. Tudo isso passará por uma série de avaliações e reavaliações dos
indivíduos acerca das possibilidades e opções. Talvez esta “fratura” de incerteza gere a
não correspondência completa entre proximidade, co-residência e “pacificidade”, para
além dos “antagonismos” entre as próprias metades. Talvez houvesse tais
correspondências se o pertencimento a uma ou outra metade fosse suficiente para
compreendermos a qualidade de relações que estão em jogo entre os indivíduos.
Este é o tamanho do “transtorno” que mulheres podem causar ao mundo
masculino de seus maridos, nos clãs e metades de seus maridos ou na sua própria. Uma
possibilidade da qual parecem servir-se ampla e regozijadamente. Uma força que impele
à instabilidade e que, neste sentido, é bastante análoga à plausibilidade do contato entre
os Rikbaktsa, os myhyrikoso e outros seres metafísicos. Neste sentido, myhyrikoso e
mulheres colocam o sistema social Rikbaktsa em constante desequilíbrio e acabam por
conferir-lhe a forma dinâmica transformada em sua essência, um mundo aberto ao
evento, julgamentos e possibilidades.
Neste ponto tomo como adequadas as distinções de Barnes (1961:298) aqui
traduzidas por mim. “O parentesco físico e social não são idênticos”, mas ambos
“estão necessariamente conectados”. Por último, e o que considero mais importante, “a
conexão significativa não deve envolver o parentesco genético mas existe entre duas
diferentes classes de personalidade social, entre parentesco social e físico como ele é
culturalmente percebido”.
368
Mulheres, se fazem crianças, não fazem o contrato social. Em Hobbes, do qual
utilizo a estimulante epígrafe, são pouco citadas e quando o são isto se dá
majoritariamente em razão de transposição de passagens bíblicas, ou ainda de serem
“objetos” do contrato, disputa ou proteção, juntamente com as crianças (cf. Hobbes
1974)
320
. O poder decisório das mulheres, o qual amplificam através da indecisão ou de
decisões reversíveis, não vem de uma emanação “reprodutivo-natural”, uma essência
que os tempos de contrato reverteram ou trataram de muito bem sublimar. O atributo
decisório feminino também não emana de um poder mitologicamente perdido ou
escamoteado pelos homens. Se bem observamos, o teor das atitudes femininas não
afasta-se minimamente das próprias teorias masculinas da construção de corpos. Elas
com maestria as manipulam.
Se para os iluministas os homens fazem o contrato social como as trocas para
parte significativa dos etnólogos, mulheres interceptam este circuito, alterando seu
sentido diversas vezes através da designação ou da insuflação da hesitação sobre a
paternidade de alguém. Na verdade, elas tomam a patrilinearidade a seu favor. Não a
negam. Absolutamente. Levam-na firmemente em consideração, como consideram e
certamente contam também com a crença dos homens na mesma. Não roubam mas
apropriam-se habilmente da fertilidade masculina.
Voltando aos “aerofones”, a postura feminina perante os mesmos não é mais do
que a “versão fraca” das “disputas” pela “produção” de pessoas e relações no sentido
lato, que sabem ser tácitas e ao mesmo tempo públicas. A “arena” destes “embates”
quase silenciosos inclui e é mais ampla que a dos aerofones quase mundanos. Disputas
nas quais os “vencedores” (talvez temporários ou temporariamente) – ao modo das
pretendidas “presas” que livram-se da predação iminente sem nem conformarem-se a
serem “presas” e nem a reduzir seus pretensos predadores, eles mesmos, a “presas” (cf.
Capítulo I) - não incorrem em oposição, ou em uma oposição que nega a efetividade do
outro termo
321
.
320
Para uma pequena provocação e um “sintoma” de que os ecos hobbesianos não extinguiriam-se por
completo, Weiner (1979) diz sobre Lévi-Strauss e seu “conceito a priori de autoridade masculina
completa sobre as mulheres e insignificância cultural da mulher e da reprodução” (idem:330) (trad.
minha):“Em outras palavras, mulheres e crianças representam equilíbrios e desequilíbrios na continuidade
das relações de autoridade entre homens” (id.:ib.) (trad. minha).
321
Neste sentido, o caso etnográfico Rikbaktsa dialoga e dá outra solução para o caráter da diferença
homem/mulher e, dentro desta distinção, para a subordinação feminina vista enquanto “fato pan-cultural
(Ortner 1974:67,69,70,83) (trad. minha). Entre os Rikbaktsa tampouco é possível atribuir esta diferença a
uma oposição estrutural universal entre as esferas “pública” e “doméstica”, se compostas de significados
preestabelecidos (Rosaldo 1974:41). Quando pertinente, vimos que este contraste deverá ser
redimensionado, o que nos fará chegar a uma concepção não-essencialmente opositiva daquela diferença.
369
É este tipo de controle de produção de corpos e relações até mais do que
qualquer alegado controle ou hegemonia reprodutiva strictu sensu ou “natural”, o
grande atributo feminino entre os Rikbaktsa. Isto porque a biologia ocidental é apenas
mais uma teoria da produção de corpos e pessoas e não deve ser tomada como realidade
subjacente ou dado de base
322
.
Vimos que as recomendações vigentes sobre a capacidade reprodutiva ou
integridade dos filhos, de forma alguma, são unilaterais, cabendo tanto a homens quanto
a mulheres. Por outro lado não tenho a menor intenção de analisar a patrilinearidade
como uma falsa elaboração, um artifício masculino que visa o efeito de anular a “uma
realidade verdadeira”, como uma inversão do real, ou seja, de que as mulheres são as “
verdadeiras” responsáveis pela reprodução.
Não quero cair na armadilha de argumentar através de “verdades últimas” ou,
como dizem Howell & Melhuus, “verdades aceitas” (1993:44) (trad. minha). Não é
preciso recorrer ao “apelo biológico” ou ao “ditado da natureza” (Malinowski
1973[1927]:180,183). Weiner (1979) destaca como o uso de uma noção de reprodução
fundada na biologia, segundo o entendimento ocidental, teria “reduzido a matéria do
parentesco às suas manifestações mais limitadas” (idem:328) (trad. minha). Verdon
(1980) demonstra como todas as correntes de estudos sobre o parentesco que lidaram
com a descendência – mesmo aquelas auto-designadas como abordagens “culturais”-
não discutiram o fato biológico como sendo a base do parentesco:
All three models agree on one poont, namely that descent is not reductible to
biological facts. It rather constitutes a biological fact recognises jurally (jural model), culturally
(cultural model) or politically (ideological model), for the purpose of binding individuals or
groups. All three models view descent as a mental representatios of a biological fact wich
acquires a regulative power because of its recognition by society at large.” (Verdon 1980:138)
Tanto homens quanto mulheres têm seus possíveis papéis obscurecidos pelas
ricas e variadas realidades etnográficas, quando se toma esta modalidade como “a”
Reprodução. Assim, meu interesse voltou-se às teorias Rikbaktsa de concepção, filiação
ou paternidade, produção e, destacadamente, para a contínua disputa desta produção, de
seus corpos, por pessoas, segmentos e seres metafísicos. Ou seja, ao modo pelo qual os
322
Marco o contraste entre a perspectiva que aqui adoto e aquela que dita que, por mais que as
construções culturais sejam variáveis, devem estar enraizadas na “realidade biológica”, sob a pena de
colapso” social (Fox 1993:123) (trad. minha).
370
Rikbaktsa constróem a própria identidade/alteridade e sua relação indissociável com seu
modo de organização social. Dito de outro modo, tentei analisar aqui este aspecto de sua
cosmo-sociologia ou socio-cosmologia, no sentido de que ambas implicam-se
mutuamente.
Por isso mesmo, considero a atribuição de paternidade, a auto-reprodução como
a contribuição masculina para a construção da criança como atributos igualmente
legítimos e constituintes à produção de corpos Rikbaktsa e de seu pertencimento e lugar
no socius. Abolido o “dado biológico de base” passa-se a trabalhar com perspectivas e
noções com legitimidade equivalente. A produção dos corpos/pessoas é um resultado
simultâneo de todas elas, não estando submetida à monocausalidade ou a “ideologias
enganosas”. Afinal de contas, independente de hierarquizações contextuais, o
importante é que não há como entender a produção de corpos/pessoas, ao menos entre
os Rikbaktsa, sem um intercruzamento de todas estas perspectivas e noções exposta até
aqui.
De forma análoga, sua organização social, seus termos de chamamento e
parentesco, seus grupos de lealdades e de inimizades, seu caráter discutível e contextual
são resultado da aplicação de todos estes conceitos. Funciona como uma espécie de
“metátese” eternamente reversível, que produz novos significados ao mesmo tempo em
que reverte-se a significados anteriormente acordados entre os indivíduos, com alguma
unanimidade e em algum contexto.
A ênfase da vida social Rikbaktsa certamente não recai sobre a regra e sua
obediência, mas não há domínios tão solidamente constituídos enquanto exclusivamente
informais ou íntimos (Overing 2003:295). Se nesta etnografia me voltei completamente
ao cotidiano Rikbaktsa, não quero gerar com isso um contraste entre “regra” – enquanto
lei coerciva e contrato - e “cotidiano”. Há outras forças – inclusive regras ou
recomendações - que não deixam de atuar, de certa maneira, no sentido coercitivo
(idem:295,296, Overing & Rapport 2000:225). Não há nestas forças, necessariamente,
um teor exclusivo de confiança e virtudes, embora atributos tais possam ser evocados
em outros casos etnográficos (Overing 2003:297). O que se pode ter certeza é que as
relações sociais, incluindo as cotidianas, poderão ser sempre revertidas em seu teor e
sentido.
O sentido da diferença entre homens e mulheres não poderia estar retirado de
sua sociocosmologia (Gonçalves 2001b:129). Afinal, em uma sociedade onde a
alteridade assume significados tão peculiares, porque a distinção homens e mulheres
371
haveria de ser constituída como um feudo da diferença oposicional absoluta e
equilibrada, instaurada definitivamente? Se tomamos tudo que venho apresentando até
aqui, o que significariam neste contexto, asserções do tipo: mulheres estão
universalmente mais próximas da “natureza” ou do “doméstico” do que homens (Ortner
1974:84)? Ou mesmo de que “(...) mulher é em todo lugar natureza” (Lévi-Strauss
[1964]2004:310)? Para não mencionarmos possíveis distinções que permitem cindir
internamente as “categorias” homem e mulher (Howell & Melhuus 1993:45).
Na história da preguiça, há menção a uma mulher a partir da qual e de mais
algumas misturas fez-se a fêmea do coatá. Afora isto, não há outros comentários sobre a
diferença entre os sexos. No que parece ser um momento posterior a este de origem dos
clãs e metades e como acontece para outros seres do mundo Rikbaktsa, homens e
mulheres já existiam, mas foram transformando-se e alterando-se até chegarem ao que
são os Rikbaktsa de hoje.
O primeiro conflito e separação entre homens e mulheres se dá em razão de um
novo ser criado por uma mulher. Uma semente que fora “gestada” no calor de suas
dobras cutâneas e que foi alterando-se e maturando-se pelas relações sexuais prematuras
que outra mulher lhe impingia em segredo, até vir a ser uma “anta”. Um ser até então
desconhecido e que copulava com todas as mulheres dentro do rio, enquanto os homens
permaneciam na aldeia, preparando alimentos.
Poderia dizer que existem diferenças entre homens e mulheres, mas elas não são
irredutíveis. As narrativas Rikbaktsa não ocupam-se em associar ou dividir mulheres e
homens em “domínios” ou “reinos” hierarquizados, como natureza e cultura. Vimos
também como esta separação não é pertinente em sua cosmologia. Mulheres são donas
de festas, dançam nas festas, tocam aerofones, utilizam artefatos plumários feitos por
homens. Procriam sozinhas, controlam a fertilidade dos homens, têm relações sexuais
entre si e com “substitutos” dos homens.
Não podemos dizer, contudo, que têm caráter ambígüo ou desestabilizam o
socius porque em oposição ao poder “procriativo contratual masculino” impõe seu
poder “procriativo natural”. Tudo se passa sem que a teoria patrilinear de construção de
corpos seja questionada. É principalmente por ela que as mulheres Rikbaktsa ganham
um poder de “vida e morte”, de “continuidade” e “extinção”, sobre os segmentos, as
metades e até sobre os Rikbaktsa.
Ouvi um homem me dizer, temeroso, que os Rikbaktsa acabariam no futuro
porque as mulheres cada vez mais tinham filhos com brancos. Um outro disse-me que
372
não queria mais ir a “apresentações” fora da aldeia porque as mulheres não respeitam os
brancos e nem os parentes. Saem da aldeia grávidas sem que ninguém saiba, ou
engravidam no caminho.
Mesmo sabendo que nenhuma posição de alteridade é permanentemente
categórica aqui, admitindo-se ainda a prática de adoções que podem tornar crianças
pilhadas de outros índios em “legítimos” rikbaktsa; pela teoria patrilinear, filhos de
“brancos” serão brancos, tanto quanto os filhos da mulher Rikbaktsa e do Iranxe
executado não tinham sido, em nenhum momento, mencionados enquanto Rikbaktsa.
Principalmente porque tratam-se de etnias inimigas e de indivíduos com os quais não
havia boas relações, desta forma, nem “históricas” e nem cotidianas.
As oposições, subordinações contextuais acontecem, inclusive, nos dois
sentidos, mas não cabem aqui as separações assépticas entre, por um lado, mulheres
como associadas à consangüinidade e à tranquilidade e, por outro, homens, associados à
afinidade e ao caráter jural do social (Bachofen [1861]1987). Já mencionei o bastante
que a concepção de oposição absoluta entre doméstico e público e as costumazes
associações dela derivadas não são inaplicáveis em seu sentido permanente entre os
Rikbaktsa e, muito provavelmente, alhures (Yanagisako & Collier 1987:15).
Apesar de, entre os Rikbaktsa, não haver propriamente “modos de
comportamento” femininos ou masculinos claramente constituídos, a afirmação de
Strathern (1981:178) de que as “marcas de gênero não encompassam totalmente a
pessoa
323
(trad. minha) me parece bastante adequada à situação. Uma mulher que seja
“dona” de festa, que determine a paternidade de um filho, que intervenha em contendas
comunitárias não estará “agindo como” um homem ou uma “mulher má” (Busby
1997:272). Mas misturas peculiares que formam os seres de maneira geral e a abertura
dos corpos a contínuas e novas “trans”-formações em um mundo em relação, deslocam
completamente a construção do “gênero” para o terreno mais amplo da construção de
“pessoas” e de suas diferenças e semelhanças.
Qualquer “tipo” de diferença deve ser referida a este mecanismo particular
(Howell & Melhuus 1993:52). E tratei aqui mais de entender um pouco de como
mulheres e homens Rikbaktsa vivem e, se cabível, como constroem suas eventuais
diferenças (Yanagisako & Collier 1987:15), do que de autorizar ou desautorizar
323
Para outras críticas a Strathern com as quais concordo ver Yanagisako & Collier (1987:17).
373
posições dentro de um campo intelectual particular de acirrada disputa; “gerar novos
problemas e, desse modo, fazer possível novas respostas” (idem:14)
324
(trad. minha).
Enfim, a cosmosociologia obriga à convivência entre diferenças múltiplas e
oriundas de “fontes” diversas. Homem e mulher e outras esferas e atributos por ventura
a eles associados não podem ser privilegiados, nem em sua “versão” cultural e muito
menos em sua “versão” biológica nativa, enquanto matrizes da diferença entre “seres” e
“coisas” do próprio mundo. A diferença parece vir de todos os lados e constituir todos
os espaços, a despeito das similitudes generalizadas. Os momentos em que parece haver
uma “real” separação entre homens e mulheres são aqueles relativos às divisões do
espaço – como as conversas ao lado de fora da casa ou a presença no mykyry – ou de
tarefas – como nas etapas dos ritos (cf. Capítulo IV) ou a confecção da plumária.
Por outro lado, como venho insistindo, tais “separações” não configuram-se
exatamente enquanto hierarquizações que subordinam mulheres a homens. Antes os
colocam em relação obrigatória, exatamente como nos ritos e na plumária.
Subordinações as haverá, mas serão bilaterais e não-permanentes, dadas em outros
campos e de outras formas que não aquelas que muitas análises parecem universalizar a
partir de contextos ocidentais (Sthrathern 1988).
Se pudesse caracterizá-las, diria que as mulheres Rikbaktsa estariam mais para
vilãs do aspecto normativo do socius, controlando e, dependendo da perspectiva e da
intensidade, até “sabotando”, em certo sentido, a produção de pessoas por determinadas
linhas. Manipulam o “dado biológico de base nativo”, em uma sociedade patrilinear e
com teoria marcadamente patrilinear de concepção. Esta situação etnográfica contrasta
francamente com alguns supostos princípios sociológicos, de que homens mandam
(sozinhos) e de que parentes primários (segundo a genealogia estrita) não se casam ou
procriam (cf. Fox 1986:34). Isto não quer dizer que os homens também não possam, em
algum momento, integrar e manipular este circuito. Confesso que ative-me às ênfases do
discurso de homens e mulheres Rikbaktsa, incluindo as narrativas dos próprios homens
sobre elas.
324
Para uma análise do desenvolvimento dos estudos sobre “gênero” ver Gonçalves (2000c).
Notadamente para algumas implicações do trabalho de Yanagisako & Collier, como sua crítica ao mito da
sociedade primitiva igualitária que as faz recair em um novo uniniversalismo. Sobre isto, ver também
Howell & Melhuus (1993:51).
374
DOS ELOS QUE FAZEM PESSOAS E SEGMENTOS: PERTENCER, CASAR E MORRER
As metades, não exclusivamente mas caracteristicamente Jê, entre os Rikbaktsa
têm caráter fortemente matrimonial (cf. Melatti 2002:183), ainda que não haja
prescrições ou tenham o casamento como fim exclusivo de sua existência. Em muitos
casos as gradações que compõem a noção de endogamia Rikbaktsa complexificam as
distâncias e proximidades entre clãs como entre as metades, relativizando as noções de
afinidade, parentesco e não-parentesco. Não é possível confundir ou sintetizar
absolutamente estes universos nas metades ou em algum outro tipo de segmento social.
Se na metade oposta haverá sempre exceções à “regra” de exogamia, pela
proximidade, seja ela genealógica ou não, dentro da mesma metade haverá também
exceções à esta regra, por uma alegada distância, seja ela genealógica ou não. Aliás, é
muito mais comum que alguém se case dentro da própria metade justificando-se pelo
distanciamento, do que, pela proximidade, na metade oposta, alguém renuncie à
efetivação de algum casamento.
Tratar pessoas da metade oposta como “parentes”, “não-afins”, ter com eles
relações de intimidade e distanciamento sexual é algo previsto pela terminologia.
Assim, as filhas de irmã ou da prima paralela idealmente de seção oposta (-zikido) (filha
de zawy) ou parentes mencionados como ligados à mãe de alguém (-jetsy) - digo
mencionados, porque se vimos que pode-se exatamente escolher como chamá-los em
acordo com o interesse matrimonial -, se assim referidos, deverão ser tratados com
distanciamento sexual. Mas dificilmente isto ocorrerá de fato, ou mesmo ocorrerá
dentro de alguma regulamentação genealógica estrita, pois que, irmãs e primas paralelas
são todas as mulheres de gerações próximas dentro da metade de alguém, assim como –
je-tsy (“mãe”/ “mais novos, pessoas com ela”) poderão ser também pessoas dos mais
variados clãs dentro da metade da mãe de alguém. A co-residência também não impede
a reclassificação desta “proximidade”, vertendo-a não apenas em relações sexuais, mas
efetivamente em casamentos
325
.
Um outro atributo importante destas pretensas “proibições” ou “não-
recomendações” matrimoniais no universo que seria, à princípio, o da afinidade, é que,
ainda que efetivas, na sua concepção conceitual elas parecem não arrastar-se por mais
325
Hahn (1976) comenta apropriadamente sobre a mudança das relações jetsy, para -barikta
(marido/amante) e -hokihi (esposa/amante): “Dentro deste reino de possibilidades de seção oposta, a
adequacidade das relações não é determinada, mas fabricada”. (idem:192) (trad. minha)
375
de uma geração. Então, um homem não deve casar-se ou ter relações sexuais com a
filha da irmã ou prima paralela, mas poderá fazê-lo na geração imediatamente posterior,
se estiver apto.
Há outro aspecto bastante importante e que considero fundamental à recorrência
do que se chama “violações da regra de exogamia”, embora eu não goste muito desta
expressão, pela relativização de espaços e proximidades da qual venho tratando. Neste
caso, o marido chamará seus filhos normalmente, mas nem ele e nem seus filhos
chamarão os agnatos da esposa como os chamariam, com termos característicos de
metade oposta. Ainda assim é preciso considerar a tendência dinâmica do sistema e a
possibilidade de total desvinculação entre a “afinidade” e a qualidade de membro de
seção oposta, um dos poucos pilares feitos de “certeza” das relações sociais Rikbaktsa,
segundo Hahn (1976:161)
326
.
Hahn (1976) registra que filhos de casamentos endogâmicos teriam relações
classificadas enquanto “hokza-r-na, literalmente, “estar com buracos ou perdida” ou
relações lacunosas (idem:183). Vejo que esta categoria aplica-se, entretanto, mais aos
casos de paternidade múltipla, notadamente quando estão envolvidos homens de
diferentes metades. Esta confusão poderá ser, entretanto, resolvida temporariamente ou
mesmo revertida em “benefício” ou norma pelo indivíduo.
Para os parentes maternos se manterão os termos de mesma metade. Sempre
poderão usar o universo das metades para encontrar “afins” e assim designá-los pelos
termos de metade oposta, uma vez que não há prescrição de se conhecer ou reconhecer a
genealogia estrita para o uso de qualquer categoria. Desta forma, é verdadeiro que um
indivíduo filho de casamento endogâmico prescinde de relações –jeza. Mas isto não
levaria a exatamente nenhum problema, ao menos de ordem terminológica. Por não
haver prescrição genealógica, seu universo de afins estará até mais ampliado do que
aquele de indivíduos filhos de casamentos “regulares”. Isto porque não haverá parentes
de mãe que possam ter o estabelecimento de relações sexuais “desencorajadas”, o que
definiria para eles o uso de terminologias –jeza). O descontentamento ou a
discriminação deste tipo de situação expressa-se de outras formas.
Quando mulheres casam-se endogamicamente dizem Ikza ikpyktsa, batsisapy, ou
seja, “eu (fem.) (fiquei com) o marido dela, (e isto) não é adequado”. Diz-se também
326
Não podemos esquecer do caso que relatei dos –tsere que eram de mesma metade.
376
Kasakiwata tuk iakse (para mulher) e Kasaki watatsa tuk iakse (para homem), que
significa “eu casei, troquei, paguei com ele(a), um(a)”igual”.
Wasani ta-pi-akse, ao contrário, se diz quando o casamento ocorre entre
cônjuges de diferentes metades. Wasani é uma palavra que diz respeito ao que está
certo, arrumado. Tem sentido semelhante a tsapyrna, mas não é um estado, é um fato.
Diz-se wasani de coisas bem-feitas, corretas. Quando se aprende algo, como quando eu
tocava os toques de “flauta” corretamente ou usava bem o furador para fazer discos de
tucumã empregados em colares, diziam “ - wasani Adriana!”.
O verbo utilizado para expressar casamento merece atenção singular. Já
comentei que –akse é aplicado para qualquer tipo de transação, das mais às menos
“equilibradas”, sendo também empregado para “tomadas”, certas “pilhagens”
permitidas ou “pagamentos”, como situações que ocorrem nos ritos funerários
327
.
Prefiro dizer que –akse, antes de ser “casamento” ou “troca”, significa “relação”,
relacionar-se por intermédio de algo ou alguém, o que sempre inclui alguma forma de
reciprocidade, mas não necessariamente uma troca direta de mulheres, homens ou
pessoas entre grupos cristalizados.
Assim se pode –akse, uma rede por outra (Ikza kawanu tsi-pi-akse), uma rede
por uma panela, nomes – como o caso de tias e sobrinhas (Ikza ka-puky ka-naro zi-akse)
(1sg. fem. 1sg-“sobrinha” 1sg-nome obj. 3sg-“trocar”) “eu ‘troquei’ meu nome com
minha sobrinha” ou pais e filhos (uta ka-tse ka-naro zi-akse) (1sg. masc. 1sg-“filho”
1sg.-nome obj. 3sg.-“trocar”) “eu ‘troquei’ meu nome como meu filho”, que trocam
seus nomes -, “choro” funerário por copos, panelas, pratos ou quaisquer outros bens do
morto, meninas de criação (ka-ste tsi-akse a-ypykihi, a-hokihi, “minha filha você ‘toma’
como sua criança de criação, sua ‘namorada’ ”, como disse a mulher que ofereceu a
filha ao homem como criança de criação ou namorada), flechas novas por flechas
antigas, como acontece na festa do gavião-real (makutsa orobiktsa zi-akse) “os homens
‘trocaram’ flechas”. Strathern constata algo semelhante entre os melanésios (Strathern
1984). O que há não são trocas privativamente matrimoniais, mas trocas que não têm
haver diretamente com status ou direitos de propriedade corporados (idem:44,45)
Narrativas sobre casamentos “endogâmicos” são sempre controvertidas.
Perguntei a uma mulher madura sobre as meninas grávidas que permanecem sem se
327
Para os ritos funerários dizem o seguinte “você veio de longe (para chorar o morto); então você recebe
pagamento”. Este “pagamento” podem ser bens do morto mas também outros recursos, como colares e
cocares e até bens de brancos.
377
casar, mesmo quando têm relações conhecidas. Refería-me especificamente ao caso de
uma menina makwaraktsa que engravidara de um rapaz mybaiknytsa. Em primeiro lugar
alegou, como ouvira de outras pessoas em ocasiões diversas, que sempre é possível que
a menina tenha tido relações com outros rapazes; a insistente dúvida de paternidade.
Depois disse-me que a mãe não quis que casassem, por ser a menina muito nova e não
saber fazer nada.
Citou o exemplo da própria filha, a qual não quis que casasse após engravidar de
um rapaz de mesmo clã. Adendou, contudo, razões de outra natureza. “Eram primos,
não souberam respeitar, batu s-spirik-po!(cf. Capítulo III) (Filomena Zukmy). Diante
de um novo casamento da filha, com um homem de metade oposta, a avó pegou a
criança para cuidar-lhe, pois não queria que ele “sofresse” nas mãos do marido da mãe.
À princípio, diz-se invariavelmente que não há parentes na metade oposta.
Pessoas com as quais há proximidade, contudo, passam a ser designadas por termos que
expressam isso, como –jetsy e outros que usam para definir a relação que se tem com a
pessoa, todos termos de mesma metade usados com referência à mãe de alguém. Assim,
por exemplo, uma mulher de outra metade com quem se tem ou deseja ter aproximação
poderá ser referida como –jepuky ou –ekyste ao invés de –zoposte. Isto não “apaga” o
dado “metade” mas demonstra proximidade e afeto na relação estabelecida.
O contrário é também interessante. Uma jovem disse-me que o pai (tsuãratsa)
lhe havia permitido, se fosse da vontade de ambos, que se casasse com parentes,
contanto que mais afastados geracionalmente. Especificamente o pai refería-se a filhos
de homens de sua geração e de sua metade como não recomendados. Segundo sua
narrativa e as orientações do pai, “casar com filho de -tsy de –zo é batsisapy”
(Lucineide Tezok). Se de outras gerações, mesmo que ascendentes, isto não traria
problemas.
A jovem (tsuãratsa), de mãe tsikbaktsatsa forneceu-me as seguintes
possibilidades e “proibições” matrimoniais na sua aldeia e em outras:
(A) PERMITIDOS, OU MELHOR, “NÃO-PROIBIDOS
1 Seu MBS, da metade makwaraktsa, do clã tsikbaktsatsa, próximo da mãe,
morta há mais de uma década e de quem não reconhece certas ligações genealógicas
próximas.
2 Os filhos do –zopo do pai, do clã e da metade makwaraktsa, criados
atualmente por um homem hazobiktsa.
378
3 Os filhos de –diri do pai, do clã e da metade hazobiktsa e também de
outros clãs da metade hazobiktsa
(B) “PROIBIDOS”, OU MELHOR, NÃO ACONSELHÁVEIS
1 Seu FBS, da metade hazobiktsa, do clã hazobiktsa.
2 Seu FBS, da metade hazobiktsa e do clã tsuãratsa
3 Seu FBS, da metade e do clã hazobiktsa, e de qualquer outro clã, todos os
filhos de –tsy do pai são proibidos
4 Os filhos de –zoziky do pai, do clã e da metade hazobiktsa
5 Seu FBS, da metade hazobiktsa e do clã umahapyryktsa
Admitindo a possibilidade “3” do conjunto “(A)”, Lucineide Tezok explica-me
mais sobre o casamento com os –tsy do pai, “primos de perto”, que serão da mesma
metade e da mesma geração que ela:
“A filha de Chico (makwaraktsa) casou com próprio primo
(mybaiknytsa). Depois os outros vão tendo raiva deles e dos filhos, tudo. A
criançada quando fala vovô os velhos não gostam, não fica contente não ...
porque você casou com igual, dá tristeza, se não fosse assim, eles ficariam
alegres”. (Lucineide Tekok)
Cita como exemplo Tabawy, mulher do clã makwaraktsa que casou-se com um
homem também makwaraktsa da sua geração, um filho de criação (-pykyhy) de sua mãe
(hazobiktsa). “Ninguém gosta do marido dela, dos filhos também, as pessoas têm raiva”
(Lucineide Tezok). Uma mulher responsabiliza as próprias mulheres por este “desvio”
no casamento “A mulherada não sabe pensar, porque às vezes é próprio parente”,
sendo ela mesmo casada com um homem de mesmo clã e genealogicamente muito
próximo a seu pai, mas sem filhos.
Cita também Geraldino Patamy, casado em segundas núpcias com uma mulher
Tsikbaktsatsa e atualmente homem muito respeitado. “Eles tinham raiva de Geraldino
primeiro. Seu tio (i-zopo), Moreno tinha raiva. Depois separaram as aldeias
(Lucineide Tezok). Hoje acha que ninguém mais tem raiva. Tanto “parentes” quanto
“não-parentes” usualmente. Diz ainda que quando se casa com primo é errado, “nimyi,
379
batsisapy”. A saúde estraga, fica-se “magrinho”, fica “fraco”). Não se tem vontade de
fazer nada, fica com preguiça, só fica perto do marido.
O tema da pintura é recorrente. A beleza se estabelece quando as pinturas são
diferentes (mekywatu). Quando marido e mulher têm pinturas diferentes, então
tsisapyrna. Quando ela é igual (harape-wa/ igual-como, “tudo igual”) é batsisapy,
“não orna”, diz Vicente. Refere-se aqui à distinção pinturas “largas” (-jaki-r-na) e
pinturas “estreitas” (batu jaki) entre as metades hazobiktsa e makwaraktsa,
respectivamente.
O critério da beleza e adequação, definitivamente, é o mais utilizado para
expressar as discordâncias e estranhamentos com relação a casamentos endogâmicos.
“Quando marido e mulher dançam no braço fica feio” (Vicente Bitsezyk). Como
mencionei, esta dança deve acontecer entre mulheres e um homem de metades
diferentes. Vicente, apesar de ser de outra aldeia, cita o mesmo casal que Lucineide
Tezok havia utilizado como exemplo.
Tabawy (makwaraktsa) e Aristides Tsapyk (makwaraktsa) quando dançam no
braço não é bonito. Eles dançam, mas é batsisapy. Ele tem ciúme (-hyrizikzo-) de todos.
Me dizem que os Rikbaktsa quando têm ciúme matam, mas que não são todos, alguns
são “bonzinhos”. O próprio Aristides Tsapyk queria matar Jurandir (makwaraktsa), seu
–ziky, por ciúmes
328
.
Embora as repreensões e comentários sejam ainda mais severos quando se trata
de casamentos dentro de um mesmo clã e ainda em geração próxima, qualquer
casamento intra-metade é considerado batsisapy. Neste sentido, casamentos tais nunca
serão adequados, pois marido, esposa e filhos terão pinturas semelhantes durante os
ritos.
Este ponto nos dá a oportunidade de entender melhor o universo e a valência das
metades Rikbaktsa. Restrições não são prescrições genealógicas e casamentos intra-
metades ocorrem e são justificados de modo a relativizar os limites e o sentido do que
chamamos de exogamia. Mas não estou dizendo aqui que a exogamia é um componente
exclusivamente ideal das metades.
328
Sendo Aristides casado com uma mulher makwaraktsa e tendo por ciúme dela, querido matar Jurandir,
homem também makwaraktsa, aproveito para relembrar o ponto sobre “endogamia” e o possível ciúme
que os homens sentem de mulheres de seu próprio clã, do qual este seria um caso extremo, pois tudo
acontece entre indivíduos do clã makwaraktsa e de gerações semelhantes. Em um dos ritos do gavião-
real, estes homens eram “furador de pena” e o outro “distribuidor” de mingau e chicha.
380
Proximidades, sejam genealógicas, clânicas, espaciais ou “subjetivas” não são
suficientes para impedir os casamentos intra-metades. Eles têm destaque nas narrativas
e nas estatísticas. Distâncias as pode haver, em contrapartida, dentro das próprias
metades. Mas o caso Rikbaktsa demonstra principalmente como outras formas de
institucionalização, como o conceito nativo de “beleza”, dão sentido à inclusividade e
exclusividade de grupos que alegam estarem ligados a uns ou separados de outros, mais
do que, por exemplo, ligações genealógicas dadas ao nascimento.
Melatti (2002) interroga-se sobre a validade explicativa do dualismo para as
sociedades sul-americanas, destacando que já Maybury-Lewis observava que, embora
ditos exogâmicos, a distinção afim/consangüíneos não era suficiente para definir a
organização social (idem:184,185). Este ponto é crucial para o entendimento da
organização Rikbaktsa.
Também não há, como eu julgava antes, complementaridade ou intermediação
das metades em certos processos de construção corporal. –zopo podem ou não furar
narizes e proceder escarificações. Assim Gregório (tsikbaktsatsa) furou o nariz e riscou
a coxa de Arnildo (makwaraktsa). Marapa (tsikbaktsatsa) arranhou a coxa de Silvia
(tsuãratsa), Geraldino (makwaraktsa) riscou a coxa de Neida (makwaraktsa).
Nos Rikbaktsa as metades marcam diferenças, relacionam-se ao casamento e às
noções de exogamia, mas não são determinantes desta prática ou complementam-se de
forma perfeita. Um dualismo que aproxima-se mais à descrição de Lagrou (1998) para
os Kaxinawa. Ali, a dualidade expressa-se nas metades e é extremamente ritualizada –
talvez mais do que entre os Rikbaktsa, como já apontei em outras oportunidades -, mas
as metades não guardam correspondências simétricas. A diferença é construída de modo
gradual, contextual e, portanto, não-oposicional e não- diametral.
Outra singularidade é que os Kaxinawa nem projetam toda a “diferença” para o
interior, como aventado por Viveiros de Castro (1993) para o modelo tipicamente Jê de
“dualismo diametral”
329
, e nem a expulsam totalmente para fora do socius, como o
contra-modelo amazônico (idem:171-178), onde tudo relativo ao “interior” do socius
converte-se em “indiferença interna ativa” (cf. Viveiros de Castro 1986:32).
No caso amazônico, ao menos idealmente, burla-se a terminologia de afinidade,
mantendo o socius encerrado frente a um exterior canibalístico, violento e afinizado (cf.
329
A este respeito, destaco que há outros casos etnográficos entre estes dois pólos, para além do
Kaxinawa, inclusive entre os Jê, como é o caso dos Jê do norte que conjugariam concentrismo e
diametralismo, dependendo do domínio da vida social considerado (Viveiros de Castro 1993: 175 e nota
24).
381
Lagrou 1998: 26). Lagrou demonstra como o dualismo Kaxinawa não está a serviço de
uma divisão fixa que separa o “eu” e o “outro”, o “avarento canibal” e o “cônjuge
provedor”, o “exterior” e o “interior”, mas de uma unicidade que comporta uma
duplicidade contextual e relacional de perspectivas possíveis, um princípio que abrange,
ainda, “todos os seres e coisas do mundo” (idem: 29):
() as oposições no pensamento e na ação (Kaxinawa) existem apenas
para serem dissolvidas. () Por isso, diferença não pode ser definida
simplesmente em termos de complementaridade de categorias opostas, mas em
termos de um movimento na direção à integração. O dualismo Kaxinawa é
menos uma classificação das coisas e dos seres que um problema, uma questão
a ser resolvida.” (idem: 30-1)
Em contrapartida, isto distingue bastante os Rikbaktsa, para não dizer os
próprios Kaxinawa, do sistema de metades Matis conforme descrito por Erikson (1996).
A descrição de Erikson corrobora a versão de “indiferença” interna, apresentando-a para
os Matis como resultado da soma de diferenças complementares que sublimam a
alteridade, anulando-se através de uma dinâmica que as faz passar de “englobadas” a
“englobantes” em contextos variados.
Os Rikbaktsa, por outro lado, obedecem a uma forma única de “recrutamento”
(idem:107), sendo patrilineares sempre. Como acredito ter demonstrado, mesmo as
desventuras da manipulação da paternidade múltipla por parte das mulheres longe estão
de contrariar esta regra, dela apropriando-se completamente. Não há “regra sociológica”
estrita que submeta o estabelecimento das diferenças a uma possível neutralização. São
os atributos sociocosmológicos que constróem o caráter ora dessemelhante ora próximo
das metades, dos clãs, na verdade, das “pessoas” que os compõem, “inter” e “intra”
metades. Uma flutuabilidade que impede a homologia perfeita entre grupos sociais e
“universos” como “afins” ou “consangüíneos” e até co-residentes. E isto teria efeitos
não apenas sobre o sistema de metades, como sobre a feição que o “interior” ganha
entre os Rikbaktsa, a qual tenho tentado apresentar aqui.
A respeito de possíveis preferências entre aliados e da equivalência entre
mulheres recebidas, os Rikbaktsa parecem privilegiar alianças com um mesmo grupo
familiar, ao menos em termos de cada indivíduo e seu possível grupo de afins. Não
posso afirmar, contudo, nem que estas alianças repetem-se no tempo entre grupos de
382
parceiros costumazes e nem que sejam as mesmas adotadas por outros indivíduos de
posição genealógica identificada em uma mesma geração, como por exemplo dois
irmãos. Os casos analisados por mim o demonstravam, ao contrário, que irmãos não
casavam-se com mulheres de mesmo clãs
330
.
A poliginia sororal, provavelmente mais comum no passado do que hoje, é uma
tendência ainda bastante evidente. Observei irmãs que “partilhavam” seus maridos,
morando na mesma casa ou em casas diferentes. Neste caso, uma delas pode ficar na
casa do pai ou de algum parente paterno vivo, enquanto a outra permanece com o
marido. Os homens gostam de dizer que as mulheres de hoje não aceitam mais esta
configuração, mas não é incomum terem, de modo “ilegítimo”
331
, filhos com alguma
irmã da esposa. Reparo também a preferência por um mesmo “sogro” ou grupo
“doador”, já que, em caso de morte da esposa ou de declinação frente ao casamento, um
homem geralmente lhe toma a irmã, quando ela está disponível e deseja a relação.
Embora o universo das metades diga respeito a uma possível distinção do tipo
parentes/afins, ele não se confunde com esta distinção e nem ela dá conta do
mapeamento de tensões, conflitos e cisões. Muitas destas situações inscrevem-se no
dualismo “opositivo” das metades, mas outras tantas ocorrem no interior das mesmas e
até dentro de um mesmo clã ou família “nuclear”. Gradações compõem estas noções e
impossibilitam sua cristalização absoluta em segmentos ou categorias de parentes.
Afinidade define-se de outros modos que não a oposição à consangüinidade. As
gradações de distância e proximidade não podem, desta maneira, ser traduzidas através
daquele vocabulário, como se a proximidade estabelecesse uma relação “alfa traço” com
a afinidade, ou seja, quanto + proximidade, - afinidade. Pouco há na chamada
“terminologia” que impeça ou obrigue “atitudes”; o que houver, se não for adequado,
determinará a alteração de termos e sua substituição por outros que o sejam. Há
recomendações e até regras partilhadas; mas outros níveis que não o genealógico
ampliam e constituem as relações sociais.
330
Um exemplo são os quatro filhos de Geraldino Patamy (makwaraktsa). O mais velho, filho de uma
mulher hazobiktsa casa-se com uma mulher também hazobiktsa, o que poderia indicar para ele uma
parente do tipo “-jetsy” ou “-zoposte”, conforme caracterizei. Os demais, filhos de uma mulher
tsikbaktsatsa são casados, um com uma mulher tsuãratsa e os outros dois com duas irmãs zerohopyryktsa.
331
Nestes casos, as irmãs ficam “brigadas”, não se falam e não permitem que os maridos fiquem ou criem
estes filhos, podendo mudar-se da casa ou da aldeia de seu pai, e quem sabe, criar uma nova aldeia, um
pouco mais distante. Isto contrastaria simetricamente com o caso dos Paresi, onde “irmãos”, mas nunca
“irmãs” brigam por dividirem seus cônjuges (cf. Gonçalves 2000a: 246). O fato interessante é que, apesar
da situação em certo sentido “marginal” destas crianças, elas, por outro lado, podem ser igualmente
nominadas por seus parentes paternos, como pude observar em um destes casos.
383
Demonstram orgulho e satisfação cotidianamente por seus “afins”, mesmo
quando não há efetividade matrimonial. Termos como tais não são aplicados a
“estranhos” propriamente; aliás “estrangeiro” é termo que inexiste na língua Rikbaktsa
(cf. Capítulo I). A idéia de que “cunhados” (-tsere) são mais do que uma relação de
“afinidade matrimonial” alcança aqui a depuração máxima. Marcam-se pela
cooperação, dipensam a “solidez” de casamentos e, quiçá na diacronia, dispensarão o
pertencimento a diferentes metades.
Há um paralelismo entre geradores “biológicos” e “geradores “sociais” de
pessoas (DaMatta apud Mellatti: 187). Eles poderão ser múltiplos e até coincidem, na
maior parte das vezes. Conquanto mutáveis, tais alterações vinculam-nos em um mesmo
sentido. De certa forma, todos os “geradores sociais” serão também “geradores
biológicos” em alguma medida
O casamento é tão central à análise da reprodução do socius quanto outros tipos
de “troca”, “tomada”, “pilhagem” ou “negociação” (Weiner 1979:66). Trocas
matrimoniais, como as “trocas em geral” não são regenerativas do sistema, como nada
aqui, incluindo o sistema ritual, o é. Há sempre desequilíbrio e pode-se inverter os
sentido de trocas que jamais irão existir (cf. zopo/zikidi). Algo semelhante ao ponto que
Weiner chama atenção com relação ao parentesco trobriandês. Ou seja, escolher
casamentos ou outras noções como clãs e metades como primárias, acabaria por
subordinar umas às outras, sendo todas estas perspectivas concorrentes e de equilíbrio
tênue (idem:346).
Um exemplo notório é a reelaboração da distância ou mesmo da preferência
matrimonial entre clãs reconhecidamente associados a uma mesma metade, no caso de
casamentos “endogâmicos” em sua definição protocolar. À despeito das armadilhas e
problemas genelógico-categoriais que um casamento deste tipo poderia causar, são
plenamente justificáveis no discurso daqueles que nele estão envolvidos, mas não
necessariamente no discurso de terceiros. Interessante é também a aplicação diferencial
ou não aplicação de termos de parentesco a pessoas que, à princípio, ocupariam lugar
idêntico na “genealogia formal”.
Utilizando o vocabulário, mas não o sentido tradicional conferido a estes termos,
parece-me que “metades”, “clãs” e “genealogia”, apesar de não serem tomadas
enquanto categorias fixas e naturalizadas, organizam coisas e pessoas em muitos
momentos e de forma diferente. São também “fôrmas” e idéias às quais se recorre.
384
Embora não existam de modo independente e fixo, exterior ao “fazer” social, compõem-
se de noções e práticas que também concorrem para este fazer social.
Têm conotação matrimonial na medida em que não-parentes estarão naquele
universo, embora nem todos que o integram sejam “não-parentes”, com os quais admite-
se, à princípio, o casamento. Ainda mais, nem todos aqueles com os quais estabelece-se
laços de afinidade fazem parte daquele universo.
Alguma distância entre cônjuges é necessária, mas há um amplo espectro
sociológico e também mítico no qual tais distâncias serão aceitáveis. Vai desde as
“metades” enquanto um universo de “não-parentes” casáveis ao casamento entre
pessoas de clãs de uma mesma metade, mas classificados, a partir de um casamento
concreto, mais ou menos distanciados ou mesmo “afetivamente” preferenciais.
Especialmente interessante é o caso de um homem cujo zo bobata é falecido e
zerohopyryktsa e que alegam ser também filho de um homem tsuãratsa. Ou seja, ambos
pais seriam da mestade hazobiktsa. Ele casou-se com uma mulher cujo zo bobata,
também falecido, era mybaiknytsa, mas alegam ser ela também filha do mesmo homem
tsuãratsa. Ou seja, homens das duas metades. Neste caso, os cônjuges seriam irmãos
genealógicos ou irmãos segundo o entendimento Rikbaktsa de genealogia.
Este caso por enquanto resolve-se deste modo. Todos continuam a comentar e
discutir a controvertida paternidade da mulher a partir do homem tsuãratsa e, sob esta
perspectiva, seu casamento com o “irmão”. Dizem que nos ritos não sabem muito bem
como chamar a mulher, se são ou não “parentes”. Isto a despeito de, nestes mesmo ritos,
como soube e como puder ver no caso da festa do gavião-real, ela se portar como uma
mulher da metade makwaraktsa. De fato, seu suposto pai tsuãratsa não tem com ela até
o momento ou neste momento – pois não posso dizer sobre esta relação no passado -
relações de proximidade, enquanto as tem com seu marido. Como constatei várias
vezes, ele o ajuda, por exemplo, na confecção de plumária, acabando ornamentos para o
“filho”.
É curioso, ao contrário das hipóteses que alegavam a “degeneração” do sistema
de parentesco Rikbaktsa (cf. Capítulo II), que vários deles tenham me dito em ocasiões
diversas, que antigamente não se tinha mulher “certa” para casar. Era muito menos
“criança” do que hoje. Então hoje têm mulheres certas para se casarem. Embora não o
façam sempre.
Às vezes a gente casa (refere-se a casamento dentro da “suposta” metade), mas
não é com parente de perto não, é com parente de longe” (Geraldino Patamy). Assim,
385
casamentos intra-metades obedecem a diferentes gradientes de proximidade, o que pode
relativizar bastante seu caráter endogâmico. Nem todos são considerados exatamente
como “incestuosos”, embora voltem sempre à questão de que na festa é “feio”
(batsisapy).
Para tanto, como vimos, podem contar tanto as junções, separações e
transformações de seres e coisas que originaram as gentes do clãs, quanto certas noções
de espacialidade, o que opera sobretudo no caso dos mais velhos, que viveram situações
anteriores ao contato, onde muitos grupos Rikbaktsa pouco se conheciam. Se
casamentos intra-metades serão sempre endogâmicos, quanto mais próximos forem os
cônjuges – e.g. mesmo clã – maior será seu caráter propriamente incestuoso.
Como venho insistindo, as metades não apenas carregam, ainda que não
exclusiva ou permanentemente, marcas opositivas, como não deixam de representar
uma para outra a fonte prototípica dos casamentos adequados, os casamentos belos,
tsapyrna e a boa “troca” (wasani tapiakse).
Em contrapartida, casamentos intra-metades serão sempre, na teoria e
provavelmente para alguém e de alguma perspectiva batsisapy, feios e inadequados.
Somente o “peso” social deste atributo sobre o casal e seus filhos poderá variar em
intensidade, algo que pode mudar com o tempo.
Quanto à regra de residência uxorilocal
332
, devo dizer que ela opera conquanto
apresente alto grau de labilidade. Burla-se a orientação uxorilocal principalmente
quando tratam-se de grupos de sêniors e seus filhos homens, o que contrasta com a
ortodoxia estruturante das prescrições residenciais e do sistema matrimonial encontrado
em alguns grupos Jê (Turner 1979; Crocker 1979). Quando há conflitos ou
desentendimentos entre os grupos envolvidos, a neolocalidade tem sido uma solução
corrente
333
.
332
A combinação da patrilinearidade com a uxorilocalidade é peculiar. Quando fui aos Rikbaktsa pela
primeira vez, levei o livro de Fox (1986) e reparei que, surpeendentemente, ele não considerava em sua
tipologia a combinação entre patrilinearidade/uxorilocalidade.
333
Hahn aponta para o fato da neolocalidade ser mais comum do que a uxorilocalidade (Hahn 1976:94), o
que ele atribui à fragilidade dos laços entre os indivíduos e seu domicílios, muitos deles caracterizados
por “adoção”, pelo pequeno número de homens mais velhos e de prestígio com filhas aptas para o
casamento, pela falta de comprometimento com a tradição e até pelo tamanho reduzido das casas
Rikbaktsa. Evidentemente não poderia concordar com todos estes fatores, especialmente os dois últimos,
e nem no seu peso para a não observação da uxorilocalidade. Aproveito a oportunidade para destacar o
caráter histórico dos arranjos de parentesco. Aposto na neolocalidade, como na uxorilocalidade e até a
virilocalidade, como arranjos que acontecerão em situações determinadas, ao sabor de possibilidades e do
caráter das relações sociais entre indivíduos e segmentos. Assumo, entretando, a uxorilocalidade como
tendência e regra ideal, devido ao caráter dos casamento Rikbaktsa. Assim, idealmente, um homem deve
sair do mykyry e ter sua rede atada na casa habitada pela esposa, como o ápice do processo cuidadoso de
386
Viveiros de Castro (1986) constata um fenômeno semelhante entre os Tupi. Em
seu constante contraste Jê/Tupi, verifica o que seria paradoxal para o caso Rikbaktsa: à
exceção dos Jê, onde a uxorilocalidade funcionaria como “uma regra estrutural que
funda uma dinâmica global”, nos demais grupos a regra uxorilocal abre-se “ao sabor do
evento”, sujeita a manipulações individuais e particularmente sensível às questões de
poder” (idem: 98).
Contudo, interessa-nos especialmente que, não obstante seja observada, a
uxorilocalidade não determina uma separação definitiva entre um homem e seu grupo
de origem. Ritualmente, e ainda na vigência das intensas redes de troca entre estes
grupos, que de forma alguma extinguem-se após o casamento, esta relação será sempre
invocada e experienciada. Sobretudo nas tarefas rituais e na disposição organizatória
dos ritos, a distinção entre a metade de um homem e a de seu sogro ficam evidentes.
Tendo-se que um homem em vida jamais separa-se radicalmente de seu “grupo
de nascimento”, sua morte requer, quase que em uma mesma medida, a participação
daquele grupo e dos indivíduos dos clãs que lhe sejam opostos, entre eles os de seu
“grupo de residência”. Esta co-participação funciona como uma exigência dos ritos
funerários. Assim, a notícia da morte deve ser trazida por algum membro da metade
oposta à do morto, idealmente alguém que “não é da família” e que irá solidarizar-se
parcialmente com o morto e aqueles de sua metade, lamentando-o, ou como prefiro
dizer, “reclamando por ele”.
O corpo pode ser enterrado no próprio local de residência, para onde aqueles da
metade do morto e todos que desejarem e puderem, tendo que ritos deste tipo são de
adesão generalizada, deslocam-se para os protocolos funerários. Atualmente é praxe que
o corpo siga na voadeira e faça pequenas paradas em algumas aldeias antes de chegar
àquela em que ficará definitivamente. Para-se em aldeias onde haja velhos capazes de
enxergar os mortos e que seguem com o corpo ou que tenham tido algum significado
especial na vida do morto, como aquelas onde ele morou, onde há parentes próximos
vivos (e até enterrados), como filhos e até amantes.
A partir destas paradas todos que desejarem podem seguir junto com o corpo até
o local de enterro. A estadia é mais ou menos breve, a depender de convites e da
proximidade entre as pessoas. Contaram que no passado, durante as lamentações,
consolidação de um casamento. A depender do status dos envolvidos, do pai ou de algum homem
implicado na criação da esposa estar ou não vivo, do estado das relações entre o marido e o grupo de sua
esposa, esta regra poderá ser “adaptada”, vertendo-se em virilocalidade ou neolocalidade.
387
núcleos inteiros podiam transferir-se de modo mais ou menos permanente para a aldeia
do morto. A dinâmica de distribuição das casas e os movimentos populacionais tornam-
se, à morte, sujeitos a alterações. É possível que a aldeia seja anbandonada pelos mais
próximos ao morto, algum tempo depois. Uma nova casa poderá também ser construída
ou os coabitantes do morto transferirem-se para a casa de pessoas mais próximas,
conforme seu desejo e possibilidade.
O INIMIGO MORA AO LADO
Os Rikbaktsa dizem que o bicho-preguiça é seu avô, e que este negou-se a
dividir as frutas de uma árvore com eles. A partir deste ato avarento, os homens subiram
na árvore e arrancaram seu rabo. Das mais variadas misturas entre o sangue da preguiça
e os homens, intermediados isoladamente ou ao mesmo tempo pelo sol, pela sombra,
pelo carvão, pela cinza, pelo fubá de milho, e pela tinta de jenipapo, surgiu uma gama
de aves e outros seres a elas associados. Como o rabo da preguiça não quisesse se
descolar mais das cadeiras de um homem, surgiu o macaco-coatá macho. A partir da
palha do açaí jogada no traseiro de uma mulher, penas de mutum colocadas em sua
cabeça e mais uma pintura de cinza, ela virou um coatá fêmea.
Entre as aves criadas desta mistura “processada”, como uma espécie de culinária
de “corpos”, estavam as araras vermelhas, amarelas e cabeçudas, que são clãs
fundamentais Rikbaktsa e que confundem-se em alguns planos com o próprio sistema
de metades. Animais, humanos e os diferentes clãs, até os que seriam em algum
momento diametralmente opostos, são combinações diferentes de mesmas matérias
334
.
São “contaminações” criadas, construídas a partir de materiais dados, já processados em
si mesmos. A partir destas suposições, reafirmo o pensamento de Hahn (1976: 112)
sobre a possibilidade da procriação entre os membros de ao menos algumas espécies (a
princípio) diferentes.
Esta “construção” ou “composição” é sugerida em outros mitos Rikbaktsa aqui
analisados. Neles, homens e animais e suas perspectivas podem não apenas confundir-se
a certa altura, mas partilhar relações sempre desiguais. É quando um dos termos
“domina” e “manipula” a perspectiva do outro, vertendo-a a seu favor e denunciando,
quem sabe, que uns e outros concebem seus corpos - como se tem assumido, o “sítio das
334
Condizente com esta partilha de substâncias que acaba por “des-substancializar” as oposições seria a
crença de que Sol e Lua são, ou teriam sido, Rikbaktsa, mas que ninguém sabe exatamente de que metade
seriam, se da sua própria ou da outra (Hahn 1976: 112).
388
perspectivas” (Viveiros de Castro 1996: 113) -, como uma “mistura” que pode sempre
“vir a ser outro”. Temos visto que no universo Rikbaktsa nada seria intrinsecamente
diferente ou, em contrapartida, idêntico. É como se as coisas não fossem criadas
inteiramente a partir de uma diferença absoluta de natureza. Então, a combinação entre
uma mulher, um rabo de palha, penas de mutum e cinzas, “produz” um coatá.
Em harmonia com estas idéias, os Rikbaktsa não apontam qualquer lugar de
origem, ou mito de fundação ou criação propriamente dito. Parece que as coisas têm
formas mistas e incorporam ou não atributos dados anteriormente, que nos mitos
transformam-se e mesclam-se a outros, criando uma terceira entidade. Não parece haver
exatamente uma “fusão primordial” no sentido de um estado de plenitude idílica
335
em
nenhum dos mitos de que tive conhecimento. Diferenças entre seres e também entre
perspectivas, apesar de instáveis e manipuláveis, fazem parte destes mitos.
Se há algum tipo de fusão, em algum momento ou tempo mítico, ela estaria na
partilha entre todos os seres e coisas de mesmas matérias, mas que aparece em cada ser
particularmente transformada, através de combinações as mais variadas. A “posse” de
coisas e atributos pelos seres é, desta forma, diferenciada, disposta em pares desiguais
mas não absolutamente opositivos, como “seres metafísicos”/rikbaktsa”,
“homens/mulheres”.
Artefatos fundamentais, como a myhara e a braçadeira pony-pony, signos do que
poderíamos chamar de sua composição “identitária” e guerreira, não foram feitos ou
inventados por eles ou algum ascendente strictu sensu. Foram copiados ou tomados, de
“outros índios”, wahorotsa (remeto o leitor ao Capítulo I), no caso da myhara, e de
outros seres ancestralmente aparentados, como o camaleão ou lagarto d’água (pony-
pony), para o caso da braçadeira designada pelo seu nome. Este último é uma das
entidades tematizadas no fechamento das “festas da estação chuvosa”, com toques de
“flauta”, sons e trejeitos próprios.
É constante o desequilíbrio das posições e inalcançável seu estabelecimento
definitivo. Em uma mesma situação, na qual uma onça seria, a princípio, “predadora”,
tudo pode inverter-se, não obedecendo exatamente a características pré-definidas, como
“capturar uma presa” ou estar a “comer a carne de alguém”. Isto fica claro em um dos
mitos a que já me referi aqui, onde a onça-preta captura e quer comer um homem
moqueado.
335
Para uma outra interpretação ver Arruda (1999:113).
389
O cunhado da presa, o urutau pequeno (sazo), é chamado por ela para comer e
ajudar a preparar e chamar outras onças. Quando o cunhado vê o homem no jirau,
exclama alegre: “- Carne!”. Homem e cunhado conversam, argumentam, mas vêem
diferenciado: o que para o primeiro é urina, para o outro parece gordura; as fezes de um
para o outro são gordura grossa… e assim, o urutau, “enganado”, comia estas
“substâncias”. Deste modo, por dominar a sua mas também a perspectiva do outro, o
homem apaga o fogo com estas “substâncias” e foge, enquanto que para o cunhado ele
estaria apenas assando em seu jirau e eliminando gordura.
Durante a perseguição inaugurada por esta fuga, a onça procura sua presa com
vários seres que poderiam escondê-la. Nesta busca, a onça preta, que para os homens
come carne moqueada, pode ter “medo”, pela experiência e pela ação, de uma
“caranguejeira” que joga barro em sua cara ou de um “sapo” que ameaça jogar
“veneno” em seus olhos, opondo-se altivamente às suas violentas ameaças. A
perspectiva que a princípio a favorece pode ser invertida. Parece que é a ação, no
sentido do que se pode provocar no outro, o que define a posição.
O corpo é a sede da perspectiva (Viveiros de Castro op. cit.), mas é um corpo
permeável, imerso na “experiência” e na “relação”. Ele pode ser “afetado”, inclusive
emocionalmente, por outros seres. Talvez isto deva-se ao fato de não haver entre os
mesmos uma “natureza” essencialmente diferente: todos são feitos de alguma matéria
semelhante. O que parece haver, desde o início, é um mundo de perspectivas que
diferenciam-se e confundem-se. Dominar a perspectiva do outro é o que faz com que se
consiga superar as situações predatórias descritas nos mitos. Por saber o que a onça ou o
urutau “enxergam”, o homem consegue convencê-los e enganá-los.
Este talvez seja um sentido possível para uma idéia de “fusão” dos seres em um
tempo mítico, mas que longe está de ser harmônico ou edênico. Nesta época os
Rikbaktsa “dominavam” diretamente a perspectiva dos “outros” e, com isso, era uma
questão de argumentação e manipulação livrar-se das situações predatórias deste
universo com o qual interagem diariamente. Talvez hoje não seja mais assim… Este
ponto é ainda mais importante se analisamos este mito à luz do grau de diferença
suposto entre pessoas e grupos em aliança e o “perigo” constante destas relações que, no
tempo atual, abrem-se a manipulações de ambas as partes.
É quase uma decorrência relacionar estas idéias ao investimento excessivo dos
Rikbaktsa na construção constante e arriscada de seus corpos, destacadamente em seu
390
aparato ritual, aparato com que também procedem aos ataques dos “inimigos”
336
. Nestas
ocasiões são ou demonstram ser feitos de pinturas, múltiplas coroas radiais mistas
(penas de mutum, mutuns-carijó, araras, gaviões de todos os tipos, garças, “cabeça-
seca” e até galos), braçadeiras diversas (feitas de algodão, penas de araras, mutum,
ossos de aves, uma infinidade de penas de aves menores), enfeites de nariz,
tornozeleiras, bordunas, lanças, arcos, flechas e etc.
Estaríamos diante, mais do que de um impressionante espetáculo estético, de sua
essência mista, combinada e sujeita mais intensamente a novas combinações nas festas.
Nestas ocasiões ficaria mais evidente - ao menos para quem vê - a constituição mas
também a “abertura” dos corpos, aos pós inalados, às inchações no beiju que como os
tropeços nas danças levariam à morte, aos contatos entre segmentos rivais e à
possibilidade de se “misturarem” momentaneamente, não apenas pela aliança, mas pela
intensificação dos laços sociais, às interações indesejadas com mortos e outros seres
metafísicos
337
.
As concepções de identidade, de alteridade, de inimigo, de aliado demonstram
esta mesma propriedade de “devir ser” mais do que de “ser” algo definido. A este
respeito um fato curioso aconteceu quando de minha estada entre eles. Um Rikbaktsa já
maduro, bastante “estudado”, disse-me que há pouco tempo resolveu “tirar a limpo”
com quem, enfim, eles se casavam, segundo as classificações dos brancos. Disse-me,
então, ter descoberto que casavam-se com suas “primas”, e foi assim que sua mãe, do
clã hazobiktsa, fez com que ele se casasse com uma “sobrinha” que fora “adotada” por
336
À época do contato, os seringueiros espantavam-se ao vê-los portando apenas tangas de buriti
(Dornstauder 1975: 127), o que indica toda a pompa que cercava os ataques guerreiros, quando seguiam
caracterizados inclusive por clãs e em fila indiana, como nas festas.
337
Para este caráter de “criação” de seres como “construção”, aponto uma analogia entre os Rikbaktsa e
os Pirahã, que concebem os animais como produtos de uma fabricação e de combinações constantes, à
moda da “confecção dos objetos da cultura material” (Gonçalves 2001a: 322). Há algumas diferenças
centrais, entretanto. Os Pirahã identificam diversas classes de seres e patamares, onde apenas Igagai -
uma espécie de demiurgo - e os pirahã seriam exatamente “criadores”, capazes de inaugurar novas
“formas” e misturas “ diferenciais”. Este atributo marca a diferença entre o patamar Pirahã e os demais
patamares, povoados por uma série de cópias estéreis que reproduzem identitariamente seus “criadores” e
entre as quais há apenas uma diferença absoluta. É, portanto, esta “capacidade” de criar não apenas
“seres” mas “diferenças” que podem interagir, o que possibilita o estabelecimento de “relações”,
exclusivas do patamar pirahã, abertas à “agressão” mas também à “sociabilidade” (idem: 330). Entre os
Rikbaktsa, é também esta “mistura” que abriria os seres a relações que podem resultar, igualmente, em
interações violentas ou sociáveis. Contudo, não identificam um criador ou concebem “patamares” com
separações tão definidas. Talvez por esta razão, as coisas e seres ou já estão feitos ou ocorrem quase
como contingências, na verdade, decorrências destas mesmas interações, incluindo-se aí também as
substâncias de que são formados ou que se pode extrair-lhes. Esta parece ser a relação modelar entre
todos os domínios e seres do cosmos.
391
ela. Antes disso, não teria a menor idéia deste fato. Segundo a prescrição, a esposa era
do clã do coquinho(tsawaratsa), metade hazobiktsa, e ele do clã makwaraktsa.
Em outra aldeia esta “descoberta” fora comentada por um outro homem maduro
que, com alguma estranheza, revelou-me o fato em uma conversa sobre clãs. Seu pai, o
“sênior” da aldeia e que pouco falava Português, apressou-se em me esclarecer: “a gente
casa assim com “prima”, mas é como se fosse assim, uma prima distante”.
Procurei definir os Rikbaktsa a partir de sua dinâmica e flexibilidade das
relações sociais segundo as concebem e praticam. Mas os contrastes não se extinguem
completamente em momento algum, e isto fica claro na permanência estrutural das
oposições entre as metades.
Em um nível que vai do menos ao mais inclusivo, “casas”, “famílias”, “clãs”,
“metades” e até a totalidade dos Rikbaktsa, poderiam, de acordo com o contexto
considerado, funcionar como se fossem, de certa maneira, “mônadas”, opondo-se
diametralmente a um outro conjunto. Estes processos e níveis, contudo, não chegam a
um termo, pois serão sempre reversíveis e altamente mutáveis em suas regiões
intersticiais. Tudo vai bem até surgir o conflito, que parece rondar todos os terrenos e
dimensões, mas que também produz novas configurações.
Assim, aquele “outro”, “potencial”, “hipotético”, “afim” (Lagrou 1998: 23), o
“inimigo”, pode eclodir, a qualquer momento, na cordial aldeia Rikbaktsa, dentro da
casa, na casa ao lado, no próprio clã, em outro clã de sua metade, em clãs da outra
metade, na aldeia abaixo ou acima do rio, na outra etnia; no que teríamos, a princípio,
como “afinidade” ou como “consangüinidade”.
É como se a afinidade cognática jamais se assimilasse completamente à
consangüinidade e não fosse preciso a distância para que “rasgos” de afinidade
potencial eclodissem na “consangüinidade” (Viveiros de Castro 1993: 173). Este
“outro” não parece sê-lo jamais definitivamente. É um estado latente, que não se realiza
de maneira plena - e nem poderia, sob a pena de uma cristalização que paralisaria este
sofisticado sistema de socialidade -, mas que também não o abandona. É esta tensão e
possibilidade que parece subsistir à socialidade Rikbaktsa, na vida cotidiana, nos ritos,
na morte, na preparação de comida e até nas encenações, uma sociologia pari passu à
sua cosmologia, como veremos no próximo capítulo.
A morte do próprio padre Dornstauder, em sua “encarnação” Rikbaktsa, para
além de outras implicações significativas, permite-nos a aplicação deste princípio. Não
foi morto por “seringueiro”, “Cinta Larga”, nem “onça” (que, lembramos, podem
392
incorporar parentes mortos a querer vingar-se dos seus) mas pelo “sobrinho” e por meio
de “feitiço”. Este “sobrinho” não está definido - só disponho da versão do mito em
português -, e sua posição em termos de metade e relacionamento traz diferenças
potenciais a esta situação.
Tudo indica, porém, que representasse senão o mais próximo de Muygnáni, ao
menos, alguém não mais distante do que poderiam ser todos os demais envolvidos. Da
mesma forma que subvertem-se as associações usuais entre conflito, relações e
proximidade, também não foram as formas, a princípio, institucionalizadas enquanto
“guerra” e “predação” que o tornaram vulnerável, mas o “feitiço”, que lhe foi fatal e
efetivamente disruptivo
338
.
338
Não quero, com isso, dizer que “guerra”, “predação” e “feitiço” sejam entidades diferentes e
separadas, e penso ter ficado claro que tudo parece manifestar-se de maneira conjunta.
CAPÍTULO V
“ARRISCANDO CORPOS
A amizade não se dá bem com a
distância. Ela se desenvolve facilmente com os
vizinhos próximos, que se pode convidar para as
festas, de quem se pode aceitar convites e a quem
se pode fazer visitas.”
(Clastres 1978:191)
Depois do que disse até aqui, sobre a relação contínua, inevitável e próxima
entre vivos, mortos e outros seres, sobre o caráter vulnerável e inacabado da construção
corporal e sobre a instabilidade regrada das “distâncias” e “posições” sociais, um
tríplice encontro que tem lugar e produz o socius Rikbaktsa, procuro tentar concluir
através da etnografia da festa do gavião-real (wohorek myikaha). Aqui e ali venho
pontuando algumas etapas deste rito e ele terá se constituído em uma oportunidade de
assistir à articulação clara daqueles e de outros atributos caros à cosmo-sociologia
Rikbaktsa. É preciso entendê-los e referi-los para que se possa compreender
satisfatoriamente o que se dá e como se dá, a partir da caça da ave e durante seu
manuseio, preparo e ingestão.
A festa do gavião-real foi um dos primeiros e, contra meus planejamentos (cf.
Introdução), o único rito propriamente que pude presenciar entre os Rikbaktsa. Com o
passar do trabalho de campo, o entendimento de mais e mais noções que acabaram por
resultar nesta tese permitiram-me sofisticar e reavaliar minhas percepções primárias do
rito ao mesmo tempo em que ele norteou, dentro do possível, a construção de muitas das
minhas indagações de pesquisa.
Tudo se passa porque um gavião-real não pode ser diretamente comido. Quando
caçado, desencadeia-se uma série de “etapas” com vistas à produção de penas
utilizáveis nos artefatos plumários, notadamente em flechas (orobiktsa) e cocares
(tsorek), bem como de uma série de recursos de outra ordem. Bastante marcados são os
momentos que vão desde a entrada da ave na aldeia, à retirada das penas relevantes -
que serão então “furadas” e “distribuídas” na “casa dos homens” (mykyry) -, até seu
transporte para algum domicílio, onde serão produzidas comidas essenciais ao rito de
furação daquelas penas. Estes processos serão realizados por segmentos sociais
394
específicos, havendo tarefas diferencialmente designadas a homens e mulheres de cada
um deles.
Desta forma, a festa do gavião-real está diretamente relacionada à edibilidade da
ave. Este aspecto, contudo, deve ser entendido em sua amplitude, como uma noção séria
e completamente comprometida com tudo o que envolve a cosmologia Rikbaktsa. Isto,
por si só, lhe daria a propriedade de extrapolar seu caráter pontual, estendendo causas,
prerrogativas e conseqüências para muito além dos momentos marcados e observáveis
do rito.
Outra peculiaridade que o torna tão abrangente quanto interessante é que não é
um sábio ou um xamã que operam esta edibilidade (Overing 1986b:150). É todo e cada
parte do socius, dentro da teia temporal de relações dos mais variados tipos que o
constitui, o responsável por este decurso, com os riscos e possibilidades de insucesso
que ele contém.
Isto significará que a descrição do rito deve incluir perspectivas múltiplas que
concorrem para sua realização. Diante disto, uma tal etnografia deve partir de alguns
condutores fundamentais.
O primeiro deles tem importância, digamos, logística. Para que aquilo que
descrevo a seguir “funcione”, “aconteça” efetivamente, é necessário um “saber social”
dos indivíduos envolvidos, de não importa que idade ou sexo. No rito do gavião-real
percebemos mais claramente o pertencimento dos indivíduos às diferentes metades.
Neste pertencimento incluem-se também as resoluções, por temporárias que sejam,
daqueles casos de discussão de paternidade que analisei no capítulo anterior. Como
procurei demonstrar, isto nem sempre teria sido algo imediato ou consensualmente
determinado ao nascimento de alguém.
Na festa cada qual possui tarefas determinadas e, à princípio, não
intercambiáveis, sob a pena mesmo de morte ou algum outro prejuízo menor aos
envolvidos. Em contrapartida e em consonância com a dinâmica sociológica Rikbaktsa,
veremos que esta é uma região onde os conceitos de afinidade, consangüinidade,
distância e proximidade, em si mesmos, não esgotam a complexidade e muitas vezes
pouco esclarecem acerca deste “fazer social”. Apesar de haver regras idealmente estritas
de manipulação de substâncias pelas diferentes metades, em muitos momentos algumas
delas submetem-se ao sabor da socialidade cotidiana.
O segundo condutor de minha descrição não traz exatamente uma novidade, mas
é a confirmação do quão fundamental é focalizar, com igual peso, a multiplicidade de
395
espaços envolvidos na produção do rito. Ou seja, no nosso caso, que não se concentre
unicamente no lapso temporal em que os homens reúnem-se em algum lugar do pátio da
aldeia, tocam, cantam, bebem, comem e fazem “tudo aquilo que importa”, como se tudo
isto, por assim dizer, “já nascesse pronto”.
Para tal seria já suficiente evocar o caráter tênue dos contrastes e das atribuições
dos ditos espaços “público” e “privado”, bem como a reversibilidade da hierarquia
homens/mulheres entre os Rikbaktsa. Mas não apenas em razão disto. É imperativa a
abertura da nossa compreensão a “níveis de sentido superpostos” (Cavalcanti 2001:82)
na mesma medida em que outros planos de análise do rito são contemplados.
Para a sorte da antropóloga e pelo azar da natureza, no período de dez dias dois
gaviões-reais foram mortos. Na verdade, um casal de aves. Pude, então, acompanhar e
entender este rito como acontecendo concomitantemente na “casa”(wahoro) e na “casa
dos homens”(mykyry), além de acionar outros espaços tangenciais.
Enfim, tive o privilégio de furtar-me a uma escolha difícil, mas que, tenho
certeza, ocorre sistematicamente a muitos antropólogos e, principalmente, antropólogas.
Entre, por um lado, o “domicílio (corriqueiramente associado ao privado, ao feminino
e, em uma decorrência desautorizada, a tudo o que há de menos interessante em uma
sociedade) e, por outro, a lendária “casa dos homens (maciçamente concebida como o
domínio do público, do masculino, daquilo que é propriamente político e, por esta
razão, relevante).
Tendo em vista que a festa ocorre quase simultaneamente nestes dois espaços,
isto acaba por nos conduzir a uma oportunidade de mais uma vez reconsiderar a
precedência na articulação entre os domínios tidos como “masculino” e “feminino”,
“público” e “privado”, “cerimonial” e “doméstico”. E, desta vez, no âmbito
propriamente ritual. Embora alguns destes contrastes possam operar em determinados
momentos, não dispõem-se segundo uma correspondência espacial unívoca. A “casa” e
a “casa dos homens” não opõem-se propriamente. Antes, relacionam-se, interpenetram-
se, sendo ambas fundamentais à produção do rito de furação das penas do gavião. Mais
que isso, operam igualmente com idéias, substâncias e posições sociais, como acredito,
profundamente relevantes neste e em outros ritos observados entre os Rikbaktsa.
O último condutor, finalmente, diz respeito à relação entre o que chamo rito e
cotidiano, relação esta que entre os Rikbaktsa não se pode considerar como exatamente
opositiva de dois “domínios” absolutamente diferenciados. Tudo transcorre, desde a
caça, o transporte, a preparação de penas e do próprio “corpo” do gavião-real e, por fim,
396
sua degustação, em paralelo a muitas atividades cotidianas, brincadeiras sempre
constantes e segundo diretrizes sociológicas que operam também no cotidiano.
Há perigos iminentes, há regras claras, mas quase sempre a possibilidade de
alterá-las. Em muitos planos, regularidades alinham-se à flexibilização (Cavalcanti
2001:84) sem que isto incorra em descaracterização do rito. Há pouco daquela
atmosfera ortodoxa e exótica que algumas descrições rituais muitas vezes enfatizam. Ao
mesmo tempo, tais regras e recomendações – que abrangem os comportamentos entre as
pessoas, no tratamento, distribuição e consumo da ave - em muito aproximam-se
daquelas que devem ser adotadas no cotidiano
339
. “O sagrado e o ritual permeiam a
vida diária” (Lagrou 1996:224) e, no que concerne aos riscos, não há senão uma
hipertrofia daquilo com o que os indivíduos devem lidar em seu dia-a-dia.
D
E SE COMER E SE BEBER”: A FESTA DO GAVIÃO-REAL E O CICLO RITUAL
RIKBAKTSA
Em contraste com outros ritos Rikbaktsa, há algumas especifidades nas práticas
que ocorrem obrigatoriamente a partir da morte de um gavião-real e devo justificar
porque incluo ou classifico esta série de eventos na categoria de “rito” ou “festa”. Por
razões evidentes, a festa do gavião-real não poderia integrar o ciclo ritual regular
Rikbaktsa. Neste sentido, este acontecimento não pode ser associado às festas
costumeiras realizadas idealmente pelas distintas estações do ano, a saber a “chuvosa”
(mais ou menos de novembro a maio) e a “seca” (mais ou menos de junho a agosto),
incluindo-se nesta última, o rito de “derrubada” de uma nova roça comunitária
(waratok).
Este ciclo de “festas” que, na verdade, são internamente independentes - ou seja,
cada qual tem seu próprio início e principalmente o fim é marcado -, é bastante irregular
e não obrigatório. Festas podem não acontecer por uma série de fatores ou iniciar-se e
não chegar ao fim (cf. Introdução).
Em contraste com a caracterização destes ritos sazonalmente distribuídos,
expressos por uma profusão de elementos performáticos e musicais, durante a festa do
gavião não se dança, não se tocam os diversos clarinetes, não se canta e não ocorrem as
339
Caças em geral e aves em particular recebem tratamento coletivamente normatizado, notadamente no
que diz respeito à prática de depenação.
397
ricas “imitações”, que caracterizam, sobretudo, o fechamento dos ritos da estação
chuvosa. Antes, esta festa é sobre “se comer” e “se beber”; estas condutas
compreendidas como envolvendo desde a caça da ave, seu manuseio e preparação de
mingau e chicha, à sua distribuição pelos homens e pelos domicílios.
Há ainda ritos onde “se bebe”, “toca flautas” e “dança-se”, prescindindo da
comida e de imitações. Em outros onde apenas “se bebe”, como é o caso daqueles
devotados à furação das presas de alguns animais
340
.
Não empenham-se em produzir bebidas fermentadas e não há nenhuma diretriz
de preparo neste sentido, embora a fermentação da chicha possa ser uma decorrência de
alguns ritos. Ao contrário, a qualidade “doce” (tsi-tsarak-r-na/3sg-doce-est-neu) é
apreciada e a contrastam com a chicha “não-doce” (batu i-tsarak/não 3sg-doce)
341
ou,
como chamam, “sem graça”, o que aplicam também à água (tsik)
342
. Consomem a
chicha “azeda” (bui), mas não têm preferência por este “estado” da bebida
343
. Outro
traço atribuído é a consistência da bebida, entre “grossa” (tsi-tõtõ-r-na/3sg-espessa-est-
neu) e “não-grossa” ou “rala” (na contração da fala batsitõtõ, batu tsi-tõtõ/não 3sg-
grossa ou na). Neste âmbito as preferências são individuais, embora nas situações de
visitação possa-se jocosamente comentar sobre a consistência de chichas
excessivamente ralas.
A chicha (tomy) é um elemento imprescindível, não-negociável, comum a todos
aos ritos coletivos e àqueles mais restritos, sendo capaz de caracterizá-los enquanto
“festa” (myikaha). Para convidar alguém a pequenas festas onde toca-se “flautas”,
dança-se e bebe-se chicha, pode-se dizer apenas Tomy piku-ty! “(venha) Tomar chicha!”
ou sizezebyitsa tuk tumy taku-ktsa! (“vamos tomar chicha com não-longas [flautas])!”.
“Se comer” e “se beber” referem-se ao conhecimento e/ou manipulação de
dados sociais importantes, como já destaquei em outras oportunidades. Operam um jogo
de noções que revelam uma interação íntima entre comida e bebida, cosmos,
340
Tocarei neste ponto mais à frente.
341
Jocosamente dizem que os makwaraktsa gostam de chicha batsitsarak, enquanto os hazobiktsa, de
chicha muito doce. Brincadeira semelhante fazem com as castanhas-do-pará, dizendo que as castanhas
dos hazobiktsa são muito grandes e a dos makwaraktsa miúdas, contraste que observam também no
aspecto geral dos padrões de pintura corporal de cada um destes macro-segmentos.
342
Dificilmente ingerem água pura, principalmente os mais velhos. A chicha (tomy) pode ser também
chamada “tsik”, como a saliva é “saki-tsik” ou o “rio” (buburu/pihik) pode ser chamado figurativamente
tsik”. Tomam excessivamente chicha adoçada com mel e mais comumente com açúcar, e hidromel. No
wahoro comiam mingau, chicha de batata com mel, “não bebia sem-graça não” (Ana Maria Zabawy).
Acondicionavam mel de todo tipo (manduri, jati e mandaguari) em grandes panelas de barro (morosuk)
cobertas com pacova.
343
Em um dos dias em que dançamos, os comentários gerais eram que a chicha da anfitriã já estava
“azeda” e também que tinha baratinhas (boiboitsa).
398
produção/destruição do corpo e definições de posições sociais adequadas ao manuseio e
ingestão de certas substâncias em estados determinados. Todo este saber orienta o
processo de edibilidade, para que não haja riscos de contaminações e/ou intervenções
fatais de seres de outras esferas do cosmos.
A comida (zisahawy) e a bebida (tumy), sua natureza e seu estado, como vimos,
são tidas como propagadores de substâncias ou catalisadores de transformações (Lagrou
2002:23) e, portanto, como modos de produção/destruição corporal. Conferem ao
indivíduo propriedades específicas ou vulnerabilidade, conforme a natureza das
substâncias veiculadas através delas. Tão importante quanto se estar só ou negar-se a
fazer algo para alguém mais velho é o cuidado na ingestão dos alimentos.
Especialmente “guerreiros” e “caçadores” – na verdade, lutar e caçar são prerrogativas
da própria maturidade masculina Rikbaktsa e não posições tão marcadas -
principalmente no passado, tinham suas dietas muito restritas.
Há inúmeras limitações na comestibilidade, inclusive uma classificação de
edibilidade diferencial pelas partes de um mesmo animal, de acordo com faixas etárias,
sexo e fases da vida do indivíduo. A idéia de que certas partes ou substâncias de um
animal considerado comestível podem afetar particularmente a capacidade do indivíduo
de ambos os sexos em, de um modo ou de outro, produzir adequadamente novos corpos,
demonstrou-se central neste critério de classificação, a exemplo das restrições de
rapazes e moças que afligiriam seus futuros filhos pontuadas em diversas ocasiões.
Tanto homens maduros quanto aqueles que estão em plena transformação do
corpo, além de observarem restrições alimentares propriamente ditas, não podem, em
qualquer hipótese, ingerir alimentos quentes (-zohanerna). Sua ingestão, à salvo de
qualquer perigo, é associada a seres da esfera dos mortos, como morebe e harãmy. Em
mitos e nos ritos estes seres metafísicos, caracteristicamente, comem ou bebem quente,
sem que nada lhes aconteça.
Comentei a proibição expressa deste tipo de alimento para aqueles que estão em
processo de tatuagem e escarificação (cf. Capítulo III). Este é também o caso dos
rapazes que furam os lóbulos inferior e superior da orelha, septo nasal, arranham a
lateral direita do tronco e a coxa e tíbia direita, e de moças que perfuram septo nasal,
arranham coxa direita, e, até duas décadas atrás, arranhavam também o maxilar superior
e inferior, ao redor da boca, e o canto dos olhos.
A comida é, ainda, um modo de administração importante das substâncias (-
myrawy) especialmente preparadas com o intuito de causar a morte, doenças,
399
infortúnios, estados de “consciência” e atitudes indejados a quem a ingere diretamente
ou seus possíveis futuros descendentes. É, portanto, vetor central do que podemos
chamar de “feitiçaria”, mas que entre os Rikbaktsa é uma ciência bastante concreta e, de
certa forma, difundida, de dominar o processamento e as combinações de fragmentos de
plantas, sementes e de outras substâncias que atuam sobre quem se pretenda ofender.
O feitiço é definido como “envenenamento” e o feiticeiro e o xamã, como
vimos, são designados de forma idêntica, como “aquele que possui o veneno” (tohi
myrawy-tsihitsa / “aquele veneno-dono”/“aquele que é xamã”). A ciência dos
“venenos” é, portanto, parte daquela que é “curativa” e ambas podem ser exercidas
pelos xamãs. É sempre uma espécie de decisão “pessoal” e de avaliação “contextual”
que alguém lance mão de um ou outro aspecto deste conhecimento, que usualmente
integra a complexa etiologia das mortes Rikbaktsa (cf. idem).
Velhos são envenenadores prototípicos, homens que podem matar inclusive
sucessivas mulheres e filhos. Recolhi muitas histórias atuais e antigas de velhos que
vingavam-se, através do envenenamento, de crianças inoportunas e desobedientes, de
mulheres que recusavam-se a lhes desposar ou servir-lhe como amantes
344
, como de
homens considerados egoístas (tsisorekrta). Ana Maria Zabawy afirma que os mais
velhos é que são feiticeiros e que antigamente havia muito “matador” (-
mybezebezerta). Eram acionados quando o marido reclamava da esposa, ou quando
havia muito fuxico. O matador matava a mulher com flecha. Mulheres novas, velhas e
crianças também podiam ser mortas se não respeitassem. Este homens viviam junto a
todos nos wahoro. Tinham mais de uma esposa, entre mulheres mais novas e mais
velhas.
Tanto as ocasiões cotidianas, como a simples visitação de alguém a uma casa -
mesmo quando, à princípio, esta casa é considerada como aliada -, quanto as próprias
festas e sua profusão de comidas, são adequadas para ministrar venenos a desafetos.
Nos ritos funerários, especialmente crianças devem permanecer quietas, pois há a
presença de muitos homens que têm feitiço e que não hesitariam em utilizá-lo. O
alimento envenenado (zisahawy tsarawyha) é um dos modos mais comuns de
enfeitiçamento.
344
Destaco a quase coincidência entre ser xamã (ter “veneno”) e ser “velho” entre os Rikbaktsa. Isto os
aproxima bastante dos xamãs Siono, onde a “recusa” de seu “desejo” ou de familiares por uma mulher
poderá resultar em envio de “doença” a ela (cf. Langdon 1994:127).
400
Em um mito, que envolve o próprio gavião real e que relacionam à furação de
suas penas, esta ave se vinga da serpente que teria matado o irmão de sua “mãe”, a
“dona da festa”. Antes do ataque propriamente dito, deixa cair uma pena de seu tronco
na chicha do convidado, enquanto o mesmo descansava sob uma rede, dentro da casa do
anfitrião. Observo ainda que algumas penas servem como matérias-primas de veneno.
Desta forma, nas diversas ocasiões rituais, a produção da chicha como dos
demais alimentos é submetida a regras estritas em acordo com a ocasião considerada.
Estas regras vigem desde o mauseio da caça como de produtos de roça e coleta e, em
alguns casos, da própria água utilizada para o cozimento e para a produção de chicha.
Conforme o rito em questão, tais tarefas deverão ser desempenhadas por indivíduos
pertencentes a segmentos sociais determinados e, além disso, devem ser desempenhadas
com máximo cuidado e atenção.
É comum que indivíduos designados para determinadas tarefas relativas ao
preparo de mingau e chicha em ritos, como, por exemplo, pegar lenha, não possam topar
com ninguém em seu caminho. A este fato atribuem muitas mortes, que ocorreriam um
tempo depois do término das festas, quando a pessoa “esquece” (cf. Capítulo III).
Portanto, algo só poderá ser dado como “esquecido” a partir do acontecimento de algum
infortúnio.
Os alimentos em geral e tudo que pode envolvê-los – cultivo, colheita, coleta,
divisão, preparo, consumo e etc - portam um caráter de gradiente máximo de
socialidade. Integram uma importante etiqueta cotidiana e ritual de relação, uma
obrigatoriedade no trato social. Em contrapartida ou por esta mesma razão, são
freqüentemente apontados como disseminadores preferenciais dos venenos e um modo
de expressar e potencializar conflitos e desentendimentos que ultrapassam os limites das
“metades” atingindo, muitas vezes, indivíduos de mesmos clãs e até coabitantes.
Oferecer ou não comida, ostentá-la (dar ao visitante sempre as melhores partes ou
grandes porções), escondê-la (como presenciei algumas vezes), aceitá-la, “abusar” deste
“dom” ou mesmo “provocar” o oferecimento (cf. Introdução) auxiliam de modo
importante o entendimento e a produção das lealdades e dos conflitos intra e supra
aldeias.
O fato central que aqui marca a minha concepção dos ritos Rikbaktsa, e que me
permite de modo ainda mais consistente incluir a festa do gavião-real na categoria de
rito, é justamente o fato de que todas estas idéias e atitudes referidas perpassam os ritos
como o cotidiano. Neste sentido, entre eles, rito não é algo “supra-ordinário”. O socius
401
Rikbaktsa parece produzir-se, é verdade que de modo nunca definitivo e sempre
arriscado, no dia-a-dia, como, potencializadamente, nestas ocasiões.
Fazer festa (myikaha) não é algo apenas sobre dançar ou tocar “flautas”, mas
também sobre “relações”, sobre “ajudar”, “providenciar” e “organizar” com vistas à
produção de determinados recursos. Estes elementos estão plenamente presentes na
festa do gavião-real. Para além disso, esta é também uma marca importante do
cotidiano, onde invariavelmente ao anoitecer, quando reunidos do lado de fora da casa –
homens de um lado e mulheres de outro – combinam e distribuem atribuições para o dia
seguinte, inclusive relativas à produção de “chicha” e/ou algum tipo de “alimento”, sem
os quais não desempenham qualquer tarefa comunitária
345
. Esta forma de organização
reproduz-se mesmo quando está em questão apenas capinar a aldeia. Periodicamente o
trabalho para e uma mulher designada para tal serve chicha àqueles que estavam
trabalhando.
A intersecção ordenada e arriscada de diferentes planos e a articulação do que
seriam diferentes “espaços”, também envolvidas na produção da socialidade cotidiana, é
a tônica dos ritos Rikbaktsa. Nestes, vivos, seres metafísicos, substâncias diversas a eles
metonimicamente relacionadas interagem ou estão na iminência desta interação.
Diferentes espaços interpenetram-se, interrelacionam-se. A análise da dialética entre
esferas diversas e suas possíveis diferenças contextuais, mais do que sua marcação e
separação absoluta e contrastiva, é produtiva.
Danças são performadas no pátio das aldeias, mas também no interior das casas;
homens, a todo tempo, “invadem” o dito domínio “feminino”, brincando e “assustando”
mulheres durante o preparo da chicha ou do mingau, o que parece ser uma espécie de
regra. Da mesma forma, em grandes encontros para decisões, vários seres são imitados e
durante a performance é praxe que “assustem” mulheres designadas para as tarefas de
cozinhar, promovendo risos e correrias – quem sabe, doenças (cf. Capítulo III).
Postura análoga pode ser cotidianamente observada. Durante o preparo de algum
tipo de mingau (zaro), homens usualmente adentram a casa surpreendendo-nos com
imitações do lagarto d’água (pony-pony), um ser ávido por mingau e que inventou um
determinado tipo de braçadeira produzida por eles (pony-pony pazaze ou hokpoiktsa).
345
A chicha (tomy) é parte central dos ritos como da refeição Rikbaktsa “por excelência”. Pode ser
composta de milho, tubérculos ou frutas silvestres, preferencialmente frutos de palmeiras. À falta destes
tipos de itens, pode-se adoçar a água com mel ou açúcar, sendo incomum a ingesta de água in natura,
especialmente entre os mais velhos.
402
Toda esta experiência, como a própria experiência social cotidiana, acontece
dentro de um limiar entre os seres e suas “extensões” (que podem ser outras pessoas,
substâncias, plantas ou artefatos) em interação no mundo. Os ritos não deixam de ser
uma hipérbole de tudo isto.
SOBRE GAVIÕES, CAÇAS E COMESTIBILIDADE
346
Há algumas histórias sobre gaviões que virão auxiliar-nos a compreensão do
lugar destas aves na cosmosociologia Rikbaktsa. Tendo que determinadas penas só
poderão ser usadas ou mesmo guardadas se forem “furadas” segundo protocolos
determinados, a história que se segue relacionam diretamente à motivação de adotarem
este procedimento quando a ave é abatida. Também nos introduz brevemente na
atmosfera dos ritos regulares Rikbaktsa e seu duplo ideário de socialidade e conflito,
atributo também presente na festa do gavião-real.
Certa vez, a sucuri (urototok) matou um gavião-real (wohorek), engolindo-o
347
.
A irmã maios velha do gavião (-zawy) juntou bastante ovos
348
de todos os pássaros em
sua casa e ela própria os ficou chocando. Nada nascia. Queria ver quem ficaria no lugar
do irmão, na verdade, tido como o pai daquele que viria a ser o gavião real, e proceder à
vingança.
O escolhido deveria ter êxito em algumas tarefas. Tais tarefas demonstrariam
sua força. Deveria conseguir quebrar “flauta”, um bambu comprido e grosso (yrykna),
tirar a casca de jatobá (maze) e também suportar um enorme e pesado feixe de
colares
349
. Aquele que assim o fizesse seria então o escolhido para vingar-se da sucuri.
Nenhuma das aves gavião que nascia conseguia fazê-lo
350
Muitos ovos estouraram, mas
nenhum deles tinha força.
346
No “Anexo 6” disponibilizo uma tentativa de reunir algo sobre espécies e comestibilidade entre os
Rikbaktsa, com alguns comentários que pareceram-me relevantes.
347
Esta história me foi contada no mykyry por Geraldino Patamy e Salvador Tsetsemy, com a ajuda de
Eriberto Nabita na tradução e em explicações.
348
Segundo Vicente Bitsezyk, que também me contou uma versão desta história, eram mais de 200 ovos.
349
Uma associação possível é entre a idéia de que seres metafísicos predadores não gostam de colares e
da prática registrada por Tolksdorf (1997[1960]:119) de colocarem feixes pesados de colares e embira nas
articulações das crianças logo após o nascimento. Atualmente crianças usam alguns colares de tucumã e
outros materiais, com miniaturas escultóricas, algumas zoomórficas e também miçangas. Meninas usam
muitos braceletes (-tsyhyrytazik) talhados em ouriço de castanha, rabo de tatu e tucumã.
350
Veremos que identificam estas aves aos tipos de “gavião”, classificando-os por ordem de nascimento
no mito. Independente do tamanho, geram o “comando” a partir da primogenitura.
403
No final restaram apenas dois ovos. A irmã ficou desanimada. Será que não
haveria nenhum capaz de vingar a morte do irmão? O último ovo era bem
pequenininho, um ovo de beija-flor (ikyrik). Ele rolava muito, muito alegre e quando
rachou, a ave era pequenininha mas foi saíndo com firmeza. Quebrou o bambu grosso e
aguentou o peso dos colares. A irmã ficou alegre; tinha encontrado aquele que daria
jeito na sucuri
351
.
Desde este momento começaram a programar uma festa, com intuito de
vingança. Na versão contada por Vicente Bitsezyk, o gavião vingador comia primeiro
muita cobra trazida pelos irmãos gaviões e quase morreu. Mandaram outro irmão
cuidar. Então só trazia macaco e macuco. Ele ficou forte de novo
352
.
Esperaram que a ave crescesse e então convidaram todos os peixes (não tinha
gente antigamente, só peixe). A sucuri também fora convidada. Enquanto isso foram
tirando mel, plantando milho e armazenando-o. Programavam dias para fazer a chicha e
ao mesmo tempo convidar os peixes.
O “dono” da festa era a irmã do gavião-real morto pela sucuri. Ela mandou o
“urutau” (pãritsikzo) convidar os peixes. Levava uma cabacinha com bolas de chicha
(irikboktsa) de milho com mel. Chegou na beira do rio e disse que estava acontecendo
uma grande festa e que todos estavam convidados.
A sucuri ficou desconfiada, enquanto seu filho estava alegre, querendo ir.
Pensou que tinham que ter cuidado, pois podiam estar querendo vingança. O urutau
retornou à aldeia sem resposta. Falou então com a dona da festa que estava muito difícil
de convencer à sucuri.
Mandaram então um segundo mensageiro, a “corujinha” (sazo), que também
levou chicha e disse que estava acontecendo uma grande festa. Não precisavam ter
receio, pois ninguém os agrediria. A sucuri ainda estava muito desconfiada, mas a
corujinha insistia: “- é uma festa muito alegre, sem brigas”, com muita chicha doce,
mais de 15 panelas! Mandou que os peixes provassem as bolotas de chicha, um pouco
para cada um. Os peixes ficaram felizes. Os peixinhos pequenos começaram a “puxar” a
351
Rodgers (2002) diz que os Ikpeng usualmente descrevem seres menores como os mais potentes, neste
caso, porque associados ao “xamanismo” (idem:100).
352
Este detalhe é fundamental. Reparar no gavião que, por via da alimentação, quase o matou o irmão.
Apesar dele ter nascido muito forte vulnerabilidades e riscos podem acontecer. Alterando a alimentação
para aquela que os Rikbaktsa consideram adequada (de cobras para macacos), ele tornou-se forte
novamente. As cobras são seres dos quais, do ponto de vista Rikbaktsa, se têm a certeza de serem
myhyrikoso, seres malignos e por isso uma característica de alimentação desprezada por eles eles e
utilizada na classificação e na edibilidade de animais. Veremos que este atributo alimentar diferencia a
harpia do apacanim, gavião do qual também furam as penas e fazem mingau.
404
fila. Eles eram como a criançada ... iam e voltavam da festa. A cobra pediu chicha em
uma panelinha, barriguda com boquinha, mazozo. Experimentou. Estava muito doce.
Ficou alegre.
A irmã preparou a casa, preparando bastante milho onde o Gavião estava
escondido, aguardando o momento apropriado para atacar a sucuri. A cada peixe que
voltava da festa a sucuri perguntava se havia visto alguém ou algo de que pudessem
suspeitar, algum gavião que pudesse vingar-se. Disseram que não tinham visto nada,
apenas um gaviãozinho voando ao redor do fogo. O gavião mesmo estava escondido no
jirau, em cima da cama, como cilada.
A sucuri, então, desprezou o gaviãozinho e pensou: “- se eu pisar em cima dele
ele morre!”. Depois que os peixinhos vieram e voltaram mais de duas vezes, a sucuri e
seu filho começaram a se preparar para ir a festa e também os peixes maiores. A mulher
da sucuri estava grávida já a esta altura. Não aguentava mais se sentar. Estava indo para
a festa mas não aguentou e voltou. O marido disse a ela que se o filho fosse homem, que
cuidasse bem dele, que não o maltratasse. Deixou um colar de “lembrança” para o filho,
de coco grosso (TsaΦuatsĩ), como herança. Depois que a sucuri foi, a dona da festa
reclamou, pois os peixinhos estavam acabando com a chicha. Disse a ela que viesse
rápido.
Primeiro começaram a tocar a “flauta curta” de bambu, só duas. Eram peixes
como o pacu maior (idikwi) que tocavam as “flautas”. Depois veio a “flauta curtinha”,
tocada pelo pacuzinho (hatratratsa). A “flauta comprida” era tocada pelo peixe-
agulha (zeobek), lobó (pusiza), pintado (uruhuta) e peixe-cachorro (tsiΦui). A sucuri
estava também acompanhando, tocando apito de cerâmica (byzykwy) e o filho tocava
“flautinha de bambu” (hatratratsa), junto com o pai. A buzina de guerra (purawy) era
tocada pelo jacaré (apoheryk). Ele deu o sinal de começar a festa. Só que quando isto
aconteceu a corujinha (sazo) entrou com a expressão “- tsitsihikikty!” (- tirando
tripa!)
353
, então a sucuri e o filho ficaram tristes e desconfiados. Olhavam tudo e o
gaviãozinho continuava ao redor do fogo. Ficaram pensando que seria ele a vingar-se.
A festa estava bonita, animada, com chicha. Rodearam a aldeia três vezes para
tomar chicha e aí fizeram um intervalo. Neste intervalo já havia duas redes preparadas
para os dois pela dona da festa, redes novas. Os peixes mesmo estavam sentados no
chão, conversando, porque cansam. Enquanto estavam parados a “dona da festa”
353
Podem se referir à vingança também como tsapusarik tsihikik.
405
entregou ainda uma cabaça grande para cada um. Encheu a barriga deles de chicha e,
com isso, não aguentavam mais dançar. Quando fecharam os olhos, adormeceram.
O gavião, que estava escondido, arrebentou uma pena do peito e jogou na
direção das duas cabaças de chicha. Uma acertou a cabaça do filho da sucuri. O filho
acordou e olhou na cabaça de chicha e viu a pena e assim que ele quis falar (quase não
tomou da chicha) o gavião pulou nele e na sucuri pai. Matou os dois.
Depois disso, os peixes começaram a correr, apavorados. Saíam por todos os
lugares da casa. Pela porta, pelo barrote, de qualquer maneira. A dona da festa viu que
todos estavam correndo sem rumo e falou para os convidados: “- não tenham medo,
para vocês não tem nada, esta vingança é apenas para aquele que matou meu irmão”.
Mas não adiantou. Todos saíram pelo barrote e não têm muita carne por esta razão. Os
peixes que saíram pela porta são os maiores, como o lobó (pusiza), jaú (tsintsira),
matrinchã (modika), pintado (uruhuta), os que têm mais carne.
Durante esta cena, o peixe arraia (wabok) queria se vingar da morte da sucuri e
do filho, e queria “fincar” o gavião-real, assim o fez e o gavião deu uma unhada nas
costas dele. É por isso que este peixe tem uma marca no peito, um furo. As tucuras
(aintsa) também estavam do lado da sucuri e começaram a flechar com flecha de três
pontas (como são as esporinhas de tucura e a flecha para matar pássaros). Com isso
feriu o gavião e também ele passou a unha no peito da tucura. Por isso a tucura tem
sinal no peito também
354
.
Depois disso levaram eles para fora, arrastaram para o pátio da aldeia. A irmã do
gavião morto pela sucuri, mandou o gavião-real para o alto do jatobá, levando primeiro
o filho e depois a sucuri para um ninho no alto da árvore. Este gavião antigo era maior
do que o que existe hoje. Levou também para o alto do jatobá o martim-pescador
(tsuhãra), japuíra (tsirik)e mangava (ikuntsa)
355
, para ele comer.
Quando o gavião comeu a sucuri e o filho, com seus colares e tudo, sua bosta era
só miçanga colorida
356
, como de branco (tsaΦua), e quem passava embaixo do jatobá,
354
Dizem que ela era grande, como uma menina de 12 anos.
355
Quando ela está na beira do rio tira a sorte da pessoa com peixe, ele “não dá peixe”, “canha (é egoísta)
peixe” (Helena Zydyk). É uma abelhona, um besouro enorme e barulhento. Se pousa na cabeça, dá ferida.
356
Noto que a sucuri e seu filho comportam-se e compreendem as etiquetas Rikbaktsa de convites e
festas, mas é significativo que seus colares sejam diferentes daqueles Rikbaktsa e que a miçanga tenha
sido assim incorporada neste mito. Por outro lado, quando Geraldino Patamy e Salvador Tsetsemy
contaram-me a história, disseram que o colar que a sucuri havia deixado com a esposa grávida era um
colar de coco grosso, de contas pretas de tucumã (tsaΦuatsĩ), à moda Rikbaktsa. Mas não podemos nos
esquecer que, nem a sucuri e nem o gavião-real são considerados idênticos aos Rikbaktsa. Parece que
depois de comidos, aqueles, de certa maneira, próximos, demonstram seu resíduo de alteridade, que será,
ainda, a fonte de novas predações, pois que as mulheres sentiam-se atraídas pelo colorido das miçangas.
406
qualquer índio de outro povo, via as feses e começava a juntar. Chegavam também
mulheres embaixo da árvore para pegarem miçangas e o gavião escolhia as mais bonitas
e levava para o ninho dele para comer, porque naquela época não tinha bicho para se
comer, então pegava gente ... ou gente que era peixe ... não tinha bicho, só gente, por
isso o gavião aproveitava e comia criança pequena.
Isto aconteceu várias vezes. Toda vez que iam ver o ninho do gavião apreciavam
suas feses. Depois que viram que ele só levava as mulheres bonitas para o ninho, as
mulheres passaram a dar a mão umas às outras, para que fossem levadas todas juntas.
Quando o gavião foi puxá-las, acabou largando, poque vinham todas juntas. Só levou
uma, que separou-se das demais, que conseguiram escapar. Durante muito tempo isso
acontecia. As mulheres até se pintavam de barro (cf. “ritos funerários”) para não serem
distinguidas ou percebidas por ele. Porque predava as mulheres acabaram matando o
gavião. Acham que podem ter sido outros índios, como os bororo. Depois disso, não
sabem mais contar ... se mudaram para outra aldeia, outro lugar.
Na hierarquia rikbaktsa, o gaviãozinho é “chefe” do gavião grande porque
nasceu primeiro. O gavião-real devia ser o chefe, mas ele nasceu por último. A irmã
mais velha do gavião-real prototípico criou todas as demais aves, chocando seus ovos.
Assim os rikbaktsa classificam onze diferentes tipos de gavião que distinguem a partir
do nascimento do primeiro. Hábitos alimentares – que vão de “cobras” a “almas” -
surgiram espontâneamente em sua descrição, figurando como atributo central destas
aves e dos seres em geral:
1 warĩkĩ tsibik (pequenininho/gaviãozinho). Tok! Ta, ta,ta! É como ele faz. Come boiboitsa (barata do
mato), tucura grande (aintsa), cobrinha. Dele os Rikbaktsa usam a pena, mas não comem.
2 wotsitsiktsarara (cria moscas/ wotsik - mosca) ou boatsarara (cria macacos-prego) – Carrega só
moscas, come passarinho, anda com macaco-prego e passarinho, cobrinha. Não come o macaco-prego, só
acompanha. Este não comem, é “comedor de cobra, batsisapy” (vicente Bitsezyk). Até matam um pouco
para usar a pena.
3 warĩkĩ wãwã O nome é menção ao “choro” dele, que é como de criança. Não comem. Usam a pena.
Não comem porque ele só come cobrinha.
4 Warĩkĩ wõawõaispypykyta (gaviãozinho de rabo comprido) matador de Jacu, estoura o olho de
jacu. wõa woã é como ele canta quando amanhece, é seu assobio. É difícil de comer e de matar, anda
no chão, voa. Briga com o jacu até estourar o olho dele e, senão está com fome, larga. Só para judiar.
407
5 warĩkĩ kwkwro (gaviãozinho caipira) Este é o assobio dele. Quando se está doente, só leva a nossa
rede (a nossa “sombra”), não é sparitsa, mas ele caça myhyrikoso (“nossa alma”) e leva. Aí a gente morre.
Ele leva o hyrikoso de rede (wanu), leva a gente myhyrikoso zohokta! Nossa “alma” é a “mistura” (carne)
dele. Matam e comem este gavião. Não fazem festa, nem furam a pena. Comem moqueado. Usam a pena.
Este gavião come macaco, jacu, mutum, arara, filhote de coatá. Só come coisas boas, segundo sua
classificação.
6 zikarapopo (apacanim, gavião caipira grande) Deste fazem mingau e furam pena, como o wohorek
ikhitsita. E comem após este processo. Caracterizam-no. Só come cobra venenosa, boipeva (pyryhykza).
Não come macaco, nem nada. Come harãmy pehok (raposa).
7 tsikwohorek (Gavião caipira também, mas menor, tamanho de jacu, mora na beira de rio e
córrego, só). Não furam pena. Usam para rabo de cocar. Este comem moqueado. Come cobra-cipó
(tohĩkyri), que não é venenosa, lambari, peixe grande, sapo (rikbateo). A pena do macho é diferente da
fêmea, sendo a da fêmea mais bonita.
8 ubizikwa marikpe (macho do tsikwohorek) – Este não comem, embora ele coma a mesma coisa que a
“esposa”. Dizem que a carne dele tem gosto ruim.
9 wohorek ikhitsitsa (gavião carijó, gavião-real) também chamam de mybaikny (fêmea ou macho se
chama assim) – Come de tudo: bugio, coatá, prego, paraguaçú, zogue-zogue, mouro, não come cobra
não, se comer morre. Come só caça boa, companheiro de kwkwro. Quando não acha, come arara.
Não mexe com cobra. Come ouriço-cacheiro – irizik. Os Rikbaktsa comem ouriço-cacheiro, mas não é
muito usual, o espinho “dá medo”. Há muitos relatos de pessoas que ficaram cegas com este espinho.
10 wohorek ibarazata . Este é um gavião totalmente branco e que voa muito alto. É muito difícil de
matar
357
.
11 wohorekza isara-hodykta (3sg-pena-dura/resistente) – Mora na beira do rio, come cobrinha, piava,
pacuzinho. É pescador, só come peixe. Não comem. Fedido. tsitoskarta (catinga, cheiro forte). Dizem
que é um “gavião fedido”, “pena fedida”. Não comem.
Entre outros critérios, como odor e o gosto que atribuem à carne, aquilo que a
ave come é fundamental para sua edibilidade. Quando pergunto se comem o wohorek
wotsitsiktsarara, Vicente Bitsezyk responde inequivocamente que não, (porque) “ele é
comedor de cobras!”. Comer cobras, seres que são tipicamente myhyrikoso e algo que
não fazem sob qualquer hipótese, é quase sempre proibitivo na comestibilidade do
357
Mais abaixo voltaremos a esta ave e aos procedimentos necessários para o seu abate.
408
animal. Em contrapartida, embora não determine diretamente a comestibilidade, hábitos
semelhantes aos dos Rikbaktsa encorajam-na ou suscitam sua aprovação.
O paradoxal é que, apesar de distinguirem 11 diferentes tipos de gavião, os que
consideram adequados ao rito de furação são apenas dois, definidos por características
praticamente opositivas na classificação de comestibilidade Rikbaktsa.
Um deles é o Zikarapopo, conhecido também como apacanim (Spizaetus
tyrannus). Não vi este gavião, mas tive em mãos as belas penas de sua cauda, em tom
marrom-escuro com faixas brancas transversais. Não presenciei a furação de sua pena,
mas o fato é que não distinguem entre um e outro rito.
Dizem, contudo, que esta ave alimenta-se exclusivamente de uma cobra
considerada venenosa (boipeva / pyryhykza), que não comem de forma alguma, e de um
mamífero que descrevem como “raposa”, mas é uma espécie de gambá (harãmypehok),
de rabo descrito como liso, sem pêlos. “Dá medo (o rabo), tsitoskarta (odor ruim, forte,
catinga)”, define Vicente Bitsezyk. Como as cobras, o harãmypehok escapa à
comestibilidade. Se encontram com estes bichos, que têm hábitos noturnos, pelo mato,
não é bom presságio e têm obrigação de matá-los, o que inclui estes “encontros” sobre a
classe de coisas batsisapy (feias, inadequadas) e que podem ser perigosas, indícios do
devir de infortúnios.
Ao menos segundo sua classificação
358
, além de comer cobras, o apacanim não
come macacos, o que, ao contrário, atribuem como a “marca” do wohorek ikhitsita, a
harpia propriamente dita. É esta a ave que é encenada nas festas da estação chuvosa,
como personagem de disputa com homens, em caçadas triunfais que os mesmos fazem a
macacos-coatás e seus filhotes, representados pelas mulheres e seus filhos. Se há
“gavião” em espreita, normalmente em cima de um jirau, avisam. Nesta movimentada
cena de caça, reparo que a “mãe” dos coatás – representada por uma mulher -, pode
“derrubar” o gavião em espreita. No dia seguinte, seguem para a caçada dos macacos no
mato.
Consideram que a harpia se alimenta, em contrapartida, apenas de caças de
qualidade não comendo ou “mexendo” em cobras. Na verdade, associam a alimentação
das harpias à sua própria, principalmente no que concerne ao consumo de diversos tipos
de macacos.
358
Ignoro se isto corresponde, de fato, ao comportamento alimentar destas aves. O apacanim é referido
segundo Von Ihering (2002:253) como “gavião-pega-macaco”. Embora seja uma referência para
“iniciandos”, o livro do autor traz muitas imprecisões.
409
À princípio, os Rikbaktsa poderiam ser descritos como um grupo pouco
restritivo, dada a amplitude de animais que são comestíveis, notadamente entre os
pássaros, os quais comem praticamente todos os que reconhecem. Contudo, isto não
significa muito, principalmente se consideramos a sofisticada comestibilidade
diferencial por posições e fases da vida do indivíduo, aplicada a um animal ou suas
diferentes partes, já citada anteriormente.
A comestibilidade em si mesmo define-se, em primeiro lugar, pelo hábito do
animal. Animais de hábitos noturnos serão quase sempre tabuados de diversas formas,
não sendo comestíveis e tendo seu encontro, visão e até audição – como é o caso de
algumas corujas (sazo, por exemplo) – como algo totalmente nocivo e desfavorável a si
próprio ou a alguém de suas relações
359
. O fato de estarem acordados e movimentando-
se à noite os associa diretamente aos myhyrikoso, como é o caso da lontra (izikny)
360
e
tatu-canastra (tsamydoho)
361
. Esta relação pode caracterizar-se de diferentes maneiras,
todas elas incorrendo sobre a comestibilidade, sobre medidas que deverão ser tomadas a
359
Lagrou (1998:50) descreve algo muito semelhante com relação à coruja (pupu yuxin) – não especifica
o tipo de coruja, o que é relevante aos Rikbaktsa - entre os Kaxinawa. Diz que a coruja é mais
propriamente yuxin do que “corpo” e isto é verificável para o sazo, visto que a simples audição de seu
grito agourento, além de aviso, é capaz de produzir efeitos nocivos. Enquanto “criação” dos myhyrikoso é
também ela, sem dúvida, equivalente ao myhyrikoso.
360
Uma exceção é a paca (wotyk), que é comestível apesar de noturno, não sendo, contudo, caça
preferencial. O remédio-de-paca (wotyk okyry) já foi mencionado para o efeito de diminuir o “sangue
das meninas que começam a menstruar. Há remédios que são mesmo associados a seres que são
myhyrikoso, como o tatu-canastra, para que engordem e fiquem fortes. Com relação à caça da paca, ouvi
mais de uma vez que alguns homens utilizam-na como “desculpa” para encontros amorosos com outras
mulheres; “diz que vai espiar paca” (Helena Zydyk). Se bem que não apenas noturno e sendo caçado
pelos Rikbaktsa durante o dia, nos poços e banhados, a anta poderia figurar como outra exceção, com a
ressalva de que antigamente furavam também seus dentes, faziam mingau e comiam sua cabeça,
acompanhados de “flautas compridas”.
361
Dizem que só onça come este animal. Dizem também que é “gente” e que muzuza (agoura) se
encontrar. Lembro que a cobra copulou com o tsamydoho, que era esposa de um homem que veio a matar
a cobra, em um mito que citei aqui. Dos pedacinhos da cobra no jirau nascem os “filhos”, meninos que
tinham a orelha furada e que acabam matando e comendo a “mãe” (“eles comiam qualquer coisa”, foi o
comentário ambíguo de Tabawy: não sei se refería-se ao fato de comerem a “mãe”[embora soassem o
purawy quando a visitavam e tenham nascido, afinal, dos pedaços da cobra] ou de terem comido
tsamydoho. Fiz o desenho de um colar de garras de tatu canastra que havia no Museu Salesiano da cidade
de Juína como sendo uma peça Rikbaktsa e mostrei-o a uma mulher velha e de minhas relações. Ela
disse-me que jamais vira algo semelhante, “- Batsisapy. Batu kaparawy” (“feio, eu não gosto”) (Ana
Maria Zabawy). Se o encontram, obrigatoriamente matam e jogam o “corpo”. Um homem relatou-me que
certa vez fora “achado” por um filhotinho de tatu-canastra, o que muzuza. Ele parou na sua frente e olhou
para ele. Não duvidou. O matou e jogou no córrego, conforme a atitude prescrita. Depois descobriu tratar-
se, na verdade, de um tatu galinha (piu). Seu tio (-zoziky), Salvador, o fez recapturar o bicho rio abaixo e
então o comeram. Ou seja, também não é recomendável a atitude contrária, que se jogue “caça” como se
fora myhyrikoso. Mas no mundo Rikbaktsa, como acontece aos Ikpeng (Rodgers 2002:102), a avaliação
do que se vê é sempre difícil. Um outro homem disse-me que comeu canastra nos Iranxe. Ofereceram. Ele
não pensou e engoliu tudo. Além do piu, há também o kĩu kĩu (um tatu pequenininho) e o piu pyry (como
o 15 kg, mas é cabeludinho). Ambos são comestíveis.
410
partir do momento em que se encontra tal ou qual animal ou sobre operações que se
tornarão necessárias a seu consumo.
A relação presa-predador que o animal sustenta é outro atributo importante na
sua classificação enquanto alimento. Esta equação levará em consideração não apenas o
ato isolado e pontual de comer um determinado animal mas também a ampla cadeia
trófica da qual ele faz parte. “O que” um animal come é tão importante quanto “por
quem” ele é usualmente comido.
Em alguns casos, a simples proximidade entre os seres é suficiente para sua
rejeição alimentar
362
, como o caso do Ari pĩpi, um dos poucos passarinhos que alegam
não comer. Consideram-no “i-rara” (3sg-criação) de onça, pois ele fica pousado no
rabo das onças. Faz “pru! Pru!”, soprando entre os lábios e avisa da “doença”. Sua
pintura” é “igual” à da onça.
Isto nos conduz ao fato de que também alguma semelhança física que possa
sugerir proximidade – e vimos o quanto a noção de espécie inopera enquanto fator
limitante de interações entre os seres – pode tornar algo incomestível. Um exemplo
disto é uma espécie de tracajá. Apesar de comerem um tracajá a que chamam
wiktsabohai desprezam outro a que chamam wiktsabohai-za, o “–za indica que é
“como” wiktsabohai, porém não é realmente wiktsabohai. Consideram-no como tendo
também pintura de onça, batsisapy!. Seu consumo pode ocasionar sérias feridas (cf.
Capítulo III).
A comestibilidade encontra-se em hábitos, odores e aparências. Contudo,
quase
363
todos estes qualificativos, expressamente marcados, não têm senão um sentido:
são traços e indícios ou de que estes seres são myhyrikoso, que estão muito próximos
deles ou são sparitsa. Em razão da quase imediata simpatia que há entre os seres do
universo Rikbaktsa, pela intensa comunicabilidade entre “criadores” e “criação”,
“predador” e “presa”, como venho pontuando em diversas ocasiões, seu consumo é
interdito.
É importante a ressalva de que animais tidos como sparitsa não necessariamente
têm seu consumo interdito. Não todos, mas a maior parte deles, em suas condições de
362
Uma mulher que comera uma galinha na casa de um parente próximo, disse-me que estava com medo
de sonhar com onça, pois talvez esta galinha tivesse sido morta por uma onça e depois abandonada na
beira do rio.
363
Digo quase todos porque há, apesar de serem minoria ou não-marcados, animais que não são
comestíveis, sem que haja qualquer atribuição de relação com os myhyrikoso. Outros são ditos
simplesmente como de cheiro forte ou “catingosos”, embora em algum momento este tipo de odor seja
identificado também aos myhyrikoso e aos sparitsa.
411
“normalidade”, são consumidos pelos Rikbaktsa (como os macacos coatás e mouros e
os quatis). Entretanto, quando a visão de algum animal é identificada enquanto sparitsa
– o que acontece somente em determinadas condições atípicas - dificilmente ele
provocará na pessoa o impulso de matá-lo ou mesmo poderá ser morto. Este é um
acontecimento quase fugaz, exceto pelo fato de que o “bicho” pode olhar, por segundos
que sejam, para a pessoa, o que não é bom indício. Nesta situação, aquilo que se vê usa
a “corporeidade”, mas é, simultaneamente, muito mais e muito menos do que um
“corpo”, em sua concepção tradicional.
Os boadatatsa, que parecem prego, mas não são prego, matam e comem a
pessoa e são sparitsa. Até harãmy poderá ser referido enquanto sparitsa. Termos como
sparitsa e myhyrikoso são praticamente intercambiáveis e é muito difícil perceber suas
nuances. Como apontei em outras ocasiões, o termo sparitsa aplica-se muito mais a
visões e interações com “formas” de animais. Entretanto, como vimos, tanto os
comportamentos destes “animais” serão atípicos quanto suas formas poderão
transformar-se aos olhos dos vivos, neste processo incerto de predação. Deste modo,
distinção tal é apenas relativamente operativa, já que refere-se a fenômenos que flutuam
em uma mesma classe.
É clara a evitação de todos os animais os quais dizem alimentarem-se de cobras
ou outros seres que consideram repugnantes e perigosos, seres da esfera dos
myhyrikoso. Igualmente, evitam animais que, como a irara (ozo), além de possuírem
hábitos noturnos, dizem ser o alimento predileto das onças (parinitsa). As onças, como
mencionei anteriormente, são a apresentação usual dos myhyrikoso de parentes mortos,
animal não apenas incomestível mas que exige procedimentos estritos a seu encontro no
mato, em certo sentido análogos àqueles exigidos pelo gavião-real, como veremos à
frente.
O “estado” no qual o alimento é ingerido pelo animal é outro aspecto que vem a
concorrer nesta visão holística da comestibilidade. A ingestão de carne dita em
putrefação (tsihororna) é descrita com repugnância. Tanto quanto a carne apodrecida,
odores relacionados à categoria “podre” (-horo) ou odores fortes e tidos como
desagradáveis (-toska) são completamente rejeitados. Alguns dizem que os myhyrikoso
podem também exalar podridão, como também cheiro de coco, com o qual recheiam a
boca de suas vítimas e “catinga”. Certa vez compararam o cheiro dos myhyrikoso
pessoalizados que vieram visitar uma mulher xamã a quem pediam comida ao cheiro da
capivara (wre). Este animal noturno é citado pela maioria como não-comestível, por
412
seu cheiro forte, “catingoso”, “fedido”, tsitoskarta!
O cheiro das carniças que ficam pelo mato ou pela estrada, provoca o impulso
imediato de cuspirem e em seguida dizerem - tsihororta!, “está podre (muito)!”. É a
putrefação “recebida” pelo “olfato” (cf. Lévi-Strauss [1964]2004:213) que tentam
“expulsar” pela saliva
364
.
Desta forma, o urubu é o ícone da junção destes dois aspectos da rejeição
alimentar, passando ao largo de qualquer possibilidade de classificação enquanto
“alimento”. Sua característica de anti-alimento sedimenta-se mais ainda se levamos em
consideração que ele come o corpo das onças abatidas pelos Rikbaktsa (pois a cabeça é
enterrada). Não é passível sequer de tornar-se edível por qualquer operação que lhe seja
aplicada. Aparece em duas histórias que conheço, e ambas têm relação com a morte,
uma explicando a outra.
Há um aspecto dos mortos que “sobe” e apontei vários estágios que a “alma” (-
hyrikoso, outros dizem que o próprio –nury “corpo”, mas vimos como não deixam de
ser coisas análogas) deverá passar, situações onde outros animais/seres a tentam
“seduzir”
365
– discursiva e, às vezes, sexualmente inclusive - e às quais ela deverá
“resistir” (cf. Capítulo III). Caso contrário, a “alma” não subirá, podendo ser “abatida”
ou juntar-se a estes seres, transformando-se e não chegando até os “seus” (cf Holanda
1994:325-327).
Este movimento composto de episódios diversos de tentativas de “sedução” e
“predação” é de certa forma análogo àquele por que passam os vivos para construírem e
manterem seus corpos e a própria vida, no contato indelével, mas que buscam evitar
e/ou controlar, entre eles e os myhyrikoso. Lembro que é nos encontros entre “vivos” e
myhyrikoso, estes últimos tentem “seduzi-los”, buscando convencê-los, através de
artifícios diversos, a irem com eles à sua aldeia e, no caso de sucesso, compelindo-os a
364
Christinat registra o caso de um homem que morreu por ter “respirado” o odor de um myhyrikoso
(“morococho”) (Christinat 1963:22).
365
Devo a Elsje Lagrou o uso deste conceito de “sedução da alteridade”, algo que, entre os Rikbaktsa,
poderá até conjugar-se a certo tipo de “predação” – aquele violento e que extermina - mas que nem
sempre é o intento dos seres em interação. É muito comum nos diálogos que acontecem nos mitos, como
já mencionei, que os seres se digam “se você fosse gente” agiria de tal ou qual forma e, desta maneira é
possível convencer o “outro” a atuar conforme a própria necessidade. Isto, na maior parte das vezes (em
outras não), equivale a modos de “fugir” à predação, no sentido de “morte” e, assim, todos “resolvem”
seus problemas. Pois bem, uma das “moedas” de troca desta “guarida” que um ser pode providenciar a
outro é – e aqui literalmente - o próprio “sexo”; é se deixar “pegar” (ter relações) pelo “outro”. “Pois os
enganadores nos mitos podem surpreender positivamente, ou seja, podem revelar-se “positivos” quando
se desconfiava de que fossem “negativos”; frustam expectativas tanto positivas quanto negativas.”, diz
Perrone-Moisés no prefácio da nova edição das mitológicas (Perrone-Moisés 2004:14), o que me parece
perfeitamente adequado ao hibridismo que pode se recolher sob a idéia de “sedução”, como se qualquer
“desfecho” da relação fosse possível.
413
permanecerem lá.
Ao invés de constituírem relações “absolutas” e “pontuais” isto remete a um
processo permeado pelo exercício dialógico e que poderá ser revertido, caso a
“sedução” e o “convencimento” não sejam eficazes. Desta forma, “vivos” podem ver
como mortos, estar um pouco com eles e “como” eles em diferentes graus e situações,
mas serem “devolvidos” depois, retornando à aldeia dos “vivos”. No decorrer dos mitos,
os seres também dialogam, abordam-se e “seduzem-se” tentando predar-se ou trazerem
o “outro” para próximo de si.
Dentro desta idéia de “duração” submetida a eventos que podem alterar o curso
das relações, a morte do componente “físico” do “corpo” parece não ser, entre os
Rikbaktsa, suficiente para o “abate” da “alma” ou de pelo menos um de seus aspectos.
Por outro lado isto inclui a possibilidade de ruptura em seu destino final, ou seja,
“desaparecer/morrer”, transformar-se em outros seres ao invés de “subir”. Isto que digo
aqui, veremos, é inteiramente relacionado ao rito do gavião-real.
Assim, o urubu-preto grande (urubu meme) é um destes seres que tentam
“predar” ou “enganar” a “alma” em sua ascensão e que é associado aos myhyrikoso. Ele
porta uma flecha denteada de seriva (idigba) – usada para matar pássaros - que lhe fora
alvejada por um rikbaktsa que queria roubar suas penas para que pudesse voar, e esta é a
outra história onde o urubu aparece. Se a pessoa, a “alma” não tem o nariz furado ele o
rasga com a flecha, podendo matá-la, digo eu, exterminá-la realmente, abater seu -
hyrikoso.
O homem que primordialmente flechou o urubu, sob a pele de uma carniça de
anta, resolve roubar as penas dos vários tipos de urubus (cf. Holanda 1994:101-107).
Tem êxito apenas temporário. Na história, as penas são para os urubus seus enfeites de
braço (pazazi), eles vêem os corós (wyinuputsa) das carniças enquanto amendoins
(pitsipyrytsa) e a própria carniça enquanto carne processada (zoho).
O homem chega a roubar a penas, guarda-as em segredo, usando-as
privativamente. Um dia, deixa os filhos sozinhos em casa. Eles acabam cedendo aos
apelos dos urubus para experimentarem suas penas e voltarem a voar
366
. Estes retomam
as penas e fogem. Durante a fuga o homem flecha o urubu-preto grande no pé. Foi este
o evento que originou a furação do septo nasal, do contrário, o urubu vingaría-se dos
“mortos” com a própria flecha que outrora estes lhes impigiram, rasgando seus narizes
366
Se não houvessem recuperado suas penas, diz a história, eles ficariam sendo jacamins (nimytsik)
mesmo, que não podem voar.
414
com toda força e, com isso, podendo abatê-los.
Se devotei tantas linhas aos urubus é porque eles são seres considerados
myhyrikoso do mais alto gradiente, mas também porque o conjunto de termos que os
designa me deixou surpresa, pensando se, em uma etnologia tão “jaguar-centrada”, não
deveríamos devotar mais atenção à ave
367
. Os Rikbaktsa insistem que os urubus foram
sempre chamados assim: urubu peny – um que é preto e pequeno; urubu meme – um
preto com cabeça sem pelos esbranquiçada, que voa baixo, “urubu-preto grande”; urubu
ibarazata – um que é “branco”, “urubu-rei” e urubu ezemetse ou tsatsita – que é
cinzento, a cabeça é semelhante à de filhote (-tse) de macaco coatá (ezeme). Destes,
apenas o urubu meme pode ter suas penas utilizadas na confecção de cocares, e sua pena
da asa pode até ser utilizada em flechas, mas não é usual. “Se a gente come, leva a
gente”, responde Rosa Naudy, quando lhe pergunto se comem algum destes tipos de
urubu.
Se, como indica a classificação de comestibilidade Rikbaktsa, tomamos a cadeia
trófica dos seres como indicador de distância e proximidade entre aqueles envolvidos no
rito da furação (caça e caçador), o apacanim pareceria ser o “alvo” prototípico da
furação de pena. Do contrário e de acordo com a cadeia trófica a ele atribuída (só come
cobras), jamais poderia ser comestível, embora distanciando-se dos Rikbaktsa em
termos de comportamento alimentar.
Isto torna ainda mais interessante a furação da pena da harpia. Um ser, a
367
O urubu aparece em muitas mitologias como o “dono” do fogo (notadamente Tupi) e “enganador”
(notadamente entre os Jê) (cf. Lévi-Strauss [1964]2004:58,140,169). Lévi-Strauss diz que os urubus são
para os Tupi aquilo que os jaguares são para os Jê, onde estes últimos são tipicamente “donos do fogo”.
Nos Rikbaktsa, os urubus são quase tão importantes quanto os “jaguares”. Além de comerem o corpo das
onças abatidas, o “pai” do fogo não é nem eles e nem os jaguares, mas uma árvore mitológica, semelhante
à seringueira. O fogo, que era de todos, é roubado pelas mulheres em fuga, inconformadas com a morte
de seu amante-anta (cf. Capítulo IV). Após diversas tentativas fracassadas de recuperarem o fogo, os
homens desistem, mas o conseguem mais tarde diretamente com a árvore (izozo). Por outro lado, a
história que trata do urubu assemelha-se sobremaneira aos mitos Tupi de roubo do fogo (cf. idem:169,
170). Aqui o homem – que, friso, não é um “herói” – usa a mesma técnica de camuflar-se por sob a pele
da carniça artificalmente preenchida por corós, para expropriar os urubus. Mas aqui, aquilo que se rouba é
a capacidade de voar alto e, com isso, a possibilidade de coletar e realizar outras tarefas sem esforço e
rapidamente, um tema que aparece em muitas outras histórias Rikbaktsa. Sua alusão é mais corriqueira do
que, por exemplo, a perda da “vida breve”, que não parece sensibilizar tanto o pensamento Rikbaktsa.
Mais uma vez estamos às voltas com traços Tupi, mesmo que seja admitida que a mitologia Jê e Tupi não
sejam mais do que um mesmo conjunto que teria sofrido diferenciações (idem:172). Mas com algumas
peculiaridades. Em um mundo sem heróis, feito de perdas e aquisições flutuantes, o fogo, as armas de
fogo, como a capacidade de voar estiveram, todas elas e em algum momento, nas mãos dos Rikbaktsa.
Dizem que depois as penas dos urubus foram parar nas mãos dos brancos, por isso eles fizeram o avião,
que poderia, então, bem ter sido uma invenção Rikbaktsa. Neste mundo, jaguares comem assado, a
origem do fogo é uma “árvore” mas seu guardião é – e isto nos traz de volta ao ponto – um gavião
(Lunkes 1978:27), que muito se assemelha ao gavião-real do mito que citei aqui, porque preda apenas
mulheres bonitas.
415
princípio, com cadeia trófica semelhante à dos próprios Rikbaktsa, portanto, por seus
moldes classificatórios de edibilidade, comestível, e que, contudo, deve ter seu
myhyrikoso “abatido” para que, uma vez caçada, suas penas sejam utilizáveis e sua
carne ingerida.
Se, por um lado, não ingerem alimentos que consideram típicos de seres contra
os quais desejam se diferenciar, como as “onças”, por outro, segundo sua classificação,
fica claro que quanto mais os bichos afastam-se do próprio comportamento “alimentar”
Rikbaktsa, mais têm seu consumo tido como inadequado. Isto significaria dizer que a
esfera da predação enfatiza, dentro de alguns limites, mais a “familiaridade” do que
propriamente a “familiarização” (Fausto 1999:268-269) de alguma alteridade absoluta.
Parte mais de uma semelhança (mas não identidade) cosmo-ontológica e, portanto, já
anterior, e que é condição de sua ocorrência, do que do artifício de criação de uma
semelhança, onde, a princípio, ela não existia, como condicional à possibilidade de
predação.
Em tudo que concerne aos tópicos caça e alimentação – como é o caso da festa
do gavião - há uma multiplicidade de regras e diferenciais profundamente relacionados
a domínios que ultrapassam o propriamente “alimentar”. Em mais de uma oportunidade
venho caracterizando a caça enquanto um domínio de incerteza, onde pode-se, com
grande chance, “topar” com os myhyrikoso. Aqui a distinção entre animais que “podem
ser” myhyrikoso e outros que sabidamente o “são” toma mais sentido e se complexifica.
Embora não nominadas, serão, mais propriamente, seis as classes de “seres”
possivelmente “econtrados”. Há, em primeiro lugar, os animais normalmente caçados
pelos Rikbaktsa, que são mortos e diretamente comidos. Alguns destes e também outros
(que não são comestíveis) poderão ser associados a sparitsa, formando uma segunda
classe de possibilidades. Assim, um quati – animal comestível - pode ser sparitsa ou
não, e um caçador deverá reconhecer aquilo que vê por características típicas do bicho.
Um traço muito comum de que são sparitsa é quando o animal “acha” o caçador ou uma
pessoa que esteja, por exemplo, em sua rede ou sozinha a fazer alguma tarefa, e não o
contrário.
Dentro do que classificam como veados (hozipyryktsa), por exemplo, há o
ibarakata, um veado pequeno e branco, que não é sparitsa e é comestível; há o veado
vermelho (tsaririta), que dificilmente comem, é dito sparitsa, que leva a pessoa e anda
no mato quando o tempo está ruim (hozipyryktsa) e por fim o iywywyta (veado
416
Cinzento), animal que anda no tempo ruim e que não é comestível, não associado a
sparitsa.
Há a harpia e o apacanim, seres que indubitavelmente são myhyrikoso, mas que
não geram impulso e nem recebem qualquer tipo de identificação pessoal. São mortos,
mas não poderão ser diretamente comidos ou terem suas penas utilizadas sem que
ocorra o rito requerido, o que os impedirá que continuem a vingar-se dos vivos. Há as
cobras, seres dos quais também se têm a certeza de tratarem-se de myhyrikoso,
impessoalizadas porém completamente incomestíveis e que devem, obrigatoriamente,
ser mortas quando encontradas, dispensando qualquer outro tipo de tratamento.
Uma quinta categoria de animais é aquela constituída pelas onças e demais
animais dos quais os dentes deverão ser obrigatoriamente furados. Estes são certamente
myhyrikoso dos mais perigosos ou animais intimamente associados a eles, devendo ser
obrigatoriamente mortos e ainda seguidos os procedimentos de furação das presas. Do
contrário, continuarão a “vingar-se” dos “vivos”. Qualquer impropriedade na condução
destes ritos conduzirá à doença e até à morte, além de tornar o myhyrikoso ainda mais
“selvagem” e eficaz em suas predações. Poderão ou não ser identificados a alguém ou a
algum parente morto.
Por fim, há os animais que são normalmente caçados e comidos, mas que, dados
determinados indícios, são associados a algum myhyrikoso pessoalizado. Este é o caso
dos porcos que, ao notarem seu emagrecimento (pazahare mykorotsoko/“o porco está
emagrecendo”), são abandonados pela estrada e nunca levados até a aldeia ou comidos.
Animais encontrados mortos
368
, sem ferimento, e muito próximos à estrada são,
seguramente, myhyrikoso e serão identificados, a partir do sonho de alguém ou alguma
outra ocorrência. Xamãs poderão confirmar, mas sua apreciação pode ser dispensada.
Quando matam um animal deste tipo durante a caça ou o encontram morto,
provavelmente a pessoa ou alguém relacionado a ela adoecerá e não há forma de
impedi-lo.
Enfim, a caça e a alimentação são, antes de mais nada, lugares privilegiados da
relação direta ou mediada entre os Rikbaktsa e os demais seres do cosmos, como os
próprios mortos, relação esta, como já é sabido, marcada pela predação, pela agressão e
pela vingança.
368
Dizem que isto é aplicável a qualquer animal, mas só recolhi histórias com o queixada (pazahare).
417
Em se tratando dos gaviões que terão sua pena furada, o wohorek ibarazata,
gavião-real completamente branco
369
(“sem pintura, na pontinha do rabo tem pintura
preta” Vicente Bitsezyk), envolve-se em histórias importantes sobre sua caça. São
narrativas que bem indicam a posição desta ave, como também da harpia e do apacanim,
no cosmos Rikbaktsa, uma vez que estes três “seres” devem receber cuidados e
tratamento análogos a partir de sua caça.
No tempo em que começam as chuvas, do “agelim de saia” (tsõrõrõ), um
homem achou muitas flores de angelim rebentadas pelo chão. Os unoboatsa – macacos-
prego da noite e que andam pelo chão, associados aos myhyrikoso - gostam muito destas
flores e o homem achou que isto podia ser um sinal do wohorek ibarazata
370
.
Resolveu fazer um esconderijo (-tsipyhykihi). Primeiro no chão; ficou escutando.
Ouviu muito barulho lá em cima, achou que era gavião, de todo tipo, wohorek ibarazata
e também outros. Quando voltou o homem contou para o companheiro: “- tem gavião-
real lá ... ele chupa flores!”; “-ah!, tá bom! Então eu vou lá matar. No dia seguinte o
companheiro subiu. Pediu para o homem amarrar palha e fez um esconderijo grande e
escuro, desta vez em cima da árvore.
Antes de ir ao esconderijo teve de banhar-se, tirar os “cheiros” do corpo, como
os de fumaça (zatata) e das mulheres, passar barro, porque o gavião fareja
371
. Depois de
tomar o banho, subiu ao esconderijo. Primeiro veio o gavião-carijó, a harpia (wohorek
ikhitsita). Chupou todas as flores de angelim. Não matou o carijó primeiro, senão o
branco não vem mais. Por último veio o gavião-branco. Só que então veio o carapanã
(pyktsĩtsa), mas o homem agüentou firme. O gavião chegou pertinho do esconderijo. O
homem o matou com 3 flechas. Depois vieram os gaviões-carijó (wohorek ikhitsita), ele
matou um. Só assobiando. Então avisou para o companheiro descer porque tinha
macaco-da-noite (unoboatsa). Eram muitos (uns vinte). Voltaram para casa com os dois
gaviões, tiraram a pena, acharam bonito. Fizeram a furação.
Depois da festa do gavião contaram dos macacos e um homem disse que queria
matá-los. Disseram que eram muitos, que era perigoso, mas ele quis assim mesmo.
369
Vicente Bitsezyk diz que viu este gavião uma vez, quando era criança. É ele quem conta esta história,
que na verdade é a compactação de duas histórias diferentes que tratam do wohorek ibarazata.
370
Onde há seres da esfera dos myhyrikoso há também muitos bichos myhyrikoso, como é o caso das
“casas” de sparitsa ou myhyrikoso, nos paredões de pedra.
371
Lembro o fato de se passar barro ou terra do enterro nos parentes próximos ao morto durante ritos
funerários. O morto, agora como “predador” para os vivos deve ser “desviado” ou “afastado” dos seus,
pois qualquer reconhecimento ou relação significaria sua morte. Lembro que “tirar cheiros” é algo muito
importante nos protocolos de caça, cheiro de fumaça mas também cheiro de “mulheres”, cheiros fortes,
que aguçariam a percepção da caça que se deseja abater.
418
Tinham que fazer muitas flechas. Ficaram dois dias fazendo. Arrumaram em pequenos
feixes de cinco flechas, para que pudessem pegar rapidamente. Amarraram os feixes
com embira fraca, para arrebentar logo. Eram 25 flechas em montes de 5. Um homem
foi para o esconderijo de cima e o outro ficou esperando no chão.
O de cima assobiou, o debaixo disse para ele ficar quieto ... já vinham os
macacos fazendo barulho. Eram grandes como coatá. Pegaram as flores. Chuparam. O
homem esperou chegarem mais macacos. Quando chegaram pertinho do esconderijo
começou a flechar (na lua cheia, que é quando o sol brilha para os myhyrikoso e eles
andam mais, dá para enxergar). Deu 25 flechadas neles. Ele matava, mas eles reviviam
sucessivamente. Era assombração (myhyrikoso). Tinha outros macacos no chão, mas
eram diferentes, maiores do que unoboatsa. Estes eram bem “feios” e o homem não os
flechou.
Quando acabou a flecha gritou, mas vieram ainda mais macacos ... pegaram ele,
mataram e colocaram em cima do jirau (“ah! Não era macaco não!”, diz Vicente). Aí os
outros vieram, ajuntaram. Mandaram um deles destripar o homem. Colocaram tudo em
cima do jirau: tripa (-tsitsihik), bucho (-jororik), cabeça (-harek), perna (-ek/ “coxa” -
hyrypyry), braço (-tsipa), dividiram tudo.
Enquanto isso o homem que estava embaixo ficou com medo, pensando que ia
morrer. Depois de cortarem tudo (“parece que cortaram com facão”), os que estavam
em cima gritaram para os que estavam no chão. Jogou o braço. O “dono do braço” é
bem escolhido, não é qualquer um que pega. Aí ele jogou e ele pegou. Já vai a coxa, o
“dono da coxa” fica preparado. Jogou. O “dono” pegou. Comeram. Foi o outro braço.
Com a tripa foi a mesma coisa. Também tinha o “dono da tripa”, ele pegou.
O “dono da coxa” é o makwaraktsa, dos dois lados da coxa. O “dono do braço” é
o umahatsa e também todos os hazobiktsa. A cabeça é dos makwaraktsa.
Distribuíram tudo menos a cabeça. O homem que estava embaixo já estava
sabendo que só tinha a cabeça, e ficou pensando que podia cair perto dele, no
esconderijo do chão. Na hora de jogar a cabeça, ela triscou no galho e o homem pegou,
enrolou e ficou quietinho. Os macacos debaixo caçaram a cabeça e não acharam.
Pensaram que a onça é que tinha pego a cabeça. Jogaram também queixo (-hareksape) e
língua (strõzik), também para os makwaraktsa
372
. O homem conseguiu pegar também.
372
Os unobotsa, neste sentido, “comportam-se” como os Rikbaktsa, partilhando a “carne” e dividindo-se
em segmentos sociais como seus clãs.
419
Caçaram a cabeça por um tempo. O resto acharam tudo, comeram. Já estava
amanhecendo, e estes bichos que só andam à noite, foram embora. Quando todos os
myhyrikoso foram embora o homem ficou “levinho” (como aconteceu ao homem que
ficou na loca da pedra da sucuri, quando a “cobra” dormiu). Quando há bichos ou
myhyrikoso por perto o tempo fica “pesado”, “assombrado” (tsidepykrna) e a pessoa
também fica pesada e com medo (-pybyrta).
O homem que estava no chão também tinha um esconderijo e a cabeça do
companheiro caiu próximo a ele. Se os dois estivessem lá em cima, eles matariam
também. Só não mataram o homem que estava no chão porque ficou quieto e não foi
percebido
373
. Estes macacos do chão são como porco, mas dá para entender o que eles
falam. Não sabe o nome deles. Talvez não tenham; sejam almas de mortos
impessoalizadas. Hoje em dia existe unoboatsa, mas só vem muito de noite, vem
andando no chão ou de cima. É como prego. Se assobiar como prego, ele vem.
Em Holanda (1994: 138) esta história – que aparece aí como parte da história de
hoktsoikhazata - segue-se assim. O homem esperou os macacos se afastarem e foi
levando a cabeça e fazendo a lamentação. Os outros ouviram e foram encontrá-lo. Ele
logo disse que os macacos-da-noite havia matado e comido o companheiro, por medo de
ser ele o acusado. Disse que ele tinha avisado que eram perigosos. Colocaram a cabeça
dentro de uma panela de barro, enterraram e cobriram com palha.
Esta história evoca a relação dos Rikbaktsa com os myhyrikoso. Certamente
estes “macacos” que são como “prego”, mas maiores, também como “porcos”, que
andam no “chão” como gente, que falam algo que podem entender, que deixam o tempo
“pesado” e que, enfim, predam os Rikbaktsa, estão incluídos nesta categoria. A história
tanto perpassa esta esfera de relação que por todo tempo são feitos adendos relativos a
esta matéria.
Segue-se a ela a narrativa sobre “assombrações” e “parentes”:
“O próprio parente, quando agente conhece desde pequeno, quem sabe
ele não nos asombra. Só quando se está sozinho. Quando é gente boa, não faz
nada. Quando morre parente e agente dorme, vem todo dia na casa. Agente olha
e não vê nada. Quando finado (refere-se a seu filho de criação) morreu queria
373
Esta postura é importante, tanto na pragmática da caça quanto nas “abordagens” de myhyrikoso, sendo
tambémo protocolar nos casos em que os indivíduos fazem algo julgado como errado pela coletividade,
especialmente pelos mais velhos. Muitas vezes ouvi que A ou B não foram “executados” porque ficaram
quietos, não levantaram a voz, ou quiseram explicar o que para eles é “inexplicável”.
420
sair daqui, voltar para a área velha. Paulo pensou em me trazer. Mas resolvi
ficar por aqui. Agente lembra muito, não esquece, não pode lembrar, tem que
parar de pensar, ir na casa do vizinho, divertir. Se é pessoa ruim, não, pode
“descontar” (tsapusarik). Morre e fica igualzinho.” (Vicente Bitsezyk)
okyry para o homem banhar e encontrar o gavião-real branco. Ele relaciona-
se aos ritos regulares, como obedece a recomendações e princípios bastante similares a
muitos dos que vigem sobre as interações entre vivos e myhyrikoso, os quais temos visto
no decorrer desta tese. No final da festa do mingau, pode ser da estação chuvosa ou da
derrubada, tira-se o mingau de cima e também o último do fundo da panela. Escolhem
um homem bom para matar gavião. Põem o mingau na folha. De tarde vai banhar e
passa barro no corpo para tirar o cheiro de fumaça. Tem que ser folha de “formiga
braba”. Tampa o buraquinho da formiga com pauzinho e deixa a folha com o mingau
onde a mulherada pega água. Então a mulherada começa a dançar.
Pegam a casca de paxiúba e fazem uma “canoinha”. Então vão procurar o okyry,
vão caçá-lo. Os xamãs apontam, eles pegam, esmigalham a folha (Wohorek itsyitsek
okyry) e deixam na água, dentro da “canoinha”.
Criança não pode ver. Se derramar é muito perigoso. Só adultos podem mexer.
Colocam o remédio na canoinha de molho. À meia-noite, quando todos estão dormindo,
levantam e vão banhar. Enquanto isto, cai dentro do remédio muita borboleta
branquinha
374
Se isto acontecer, então é que se vai encontrar o gavião.
O banho com o okyry misturado ao mingau tem que ser dado fora da estrada
onde todos passam costumeiramente. O xamã passa o mingau no corpo do caçador, só
que não pode sentar no meio dos outros e nem perto do fogo. Espera secar o corpo.
Quando entra no mykyry não contar aos outros que banhou com a mistura.
No dia seguinte, faz flecha nova, de forma alguma poderá ser velha, arco novo,
corda nova. Quatro de seriva (idikba) e três jurupará (zayta) ou quatro de ponta larga
(boteki). Fica um dia só preparando as armas. Antes de matar o gavião-branco, não pode
entrar no meio da mulherada e nem deitar na rede da mulher. Senão não acha a ave
pretendida. “Cheira longe”, tsitoskartatsa, o gavião não gosta. O homem é cheiroso,
374
Borboletinhas brancas (haramedetsa), que vôam à noite e batem na pessoa, dizem que são, na verdade,
mortos, myhyrikoso. Não se deve bater e nem matá-las. Deve-se ficar bem quieto e deixar que voem pelo
corpo. Depois elas sumirão, irão embora. Dizem também que elas “viram” beija-flor (ikyrik) que, aliás, é
comestível.
421
perfumado (tsokmorta). A mulher tem “catinga forte”, o homem fica fraco e sem
vontade de fazer nada.
Feito isso, no outro dia cedinho vai caçar. O caçador não pode seguir pelas
estradas usuais. Vai pelo meio, onde ninguém anda.
Em sua jornada, o caçador é subseqüentemente submetido ao contato com
animais - todos sob aparência não-usual inofensiva -, que sugerem tanto tentativas de
“engano” ou “desvio” do caçador de seu objetivo, quanto um aumento gradativo de
“alteridade” ou “periculosidade”, aos quais ele deverá resistir. Do contrário, não chegará
a encontrar o gavião-branco
375
. Estas “inadequações” – os animais mansos, alguns
sabidamente ferozes - evocam também a prerrogativa batsisapy dos acontecimentos e
visões que antecedem o encontro com os myhyrikoso.
O caçador encontra primeiro o quati (aΦwi) manso, mas não pode matar. Pensa
em matar, tem vontade, mas não mata. Desvia. Então encontra anta (piku) mansa, mas
não pode matar ou pegar. Depois encontra, ainda, onça (parini) mansa, mas não pode
matar. Desvia de novo. Então encontra o gavião caipira (zikarapopo), mas não pode
flechar. O homem fica pensando ... mas não mata. Então vem outro caipira, mas não
pode flechar. O cara fica pensando... mas não mata. Outro caipira se aproxima. Também
não pode matar.
O caçador segue em frente até chegar a um lugar limpo, claro (“parece
derrubada”). Começa a imitar, assobia como macaco-prego (“o gavião-branco come
prego”) ... faz esconderijo. Quando o esconderijo fica pronto, prepara as flechas.
Assobia de novo, várias vezes. Então o gavião-branco começa a voar. Ouve o barulho
tsak! tsak! O homem fica pensando, assobia de novo.
O gavião senta na árvore, mas o homem não pode olhar para ele. Fica apenas
prestando atenção e adivinhando seus movimentos. Assobia novamente. O gavião pensa
que é macaco-prego e senta de novo. Então o homem começa a flechar. Flecha três
vezes e ele cai. Só que não pode pegar. Espera ele morrer. Então corta palha de pacova,
cobre ele todinho para a mosca não botar ovo. Deixa lá com flecha e tudo. Como matou,
tem que voltar para casa, porque foi atrás dele, não pode ficar andando sem propósito.
No caminho vem o gavião-carijó (wohorek ikhitsita), então ele pode matar,
acerta-o. Deixa também o gavião onde o matou, enrolado na pacova. Neste ponto
375
Venho sempre marcando esta característica de “resistir”, seja a predações, seja a ser predado, em
muitos mitos e protocolos, como o da “alma” de quem morre ou os próprios processos de contrução/risco
corporal, como tatuagens e escarificações.
422
aprofundam-se ainda mais as analogias que já se anunciavam entre a festa do gavião-
real e a caça do gavião-real completamente branco.
O caçador vai embora sem nada. Chega na aldeia, o pessoal diz: “- Você voltou
cedo! Achou alguma coisa?” O homem responde: “-achei!”. “-Cadê?” “-Ficou lá!”. Diz
que matou nossa “encomenda”.
“- Mysapyky ibeze!” No caso, como matou também um gavião caipira, “-
mysapyky isiba!” “- Aba tynasi-skyryk-ty!” “-vai pegar!”
Então vão pegar os gaviões. Tiram as flechas e só então, trazem. “Na aldeia
começam a despenar. Tem que furar. Quem matou é quem manda, distribui a pena para
quem sabe fazer flecha. Rapaz novo não sabe fazer flecha”, brinca Vicente. Diz que vão
fazer flechas feias (batsisapy).
QUANDO UM CAÇADOR MATA UM GAVIÃO-REAL
À morte de um gavião-real, o caçador deve embrulhá-lo cuidadosamente em
folhas de pacova e amarrá-lo com embira, como um pacote
376
. De forma alguma a ave
pode ser arrastada ou adentrar os limites habitados da aldeia pelas mãos de seu caçador.
Se ele estiver de canoa, pode até aportá-la, mas deve deixar a ave bem na beira do porto.
O caçador vai então avisar a alguém ou pede que alguém avise a um homem ou rapaz de
metade oposta à sua que pegue o gavião. Aliás, o costume é que pessoas designadas
para as múltiplas tarefas que compõem o rito não se enderecem diretamente.
Em situações semelhantes ocorridas em outros ritos, quando o caçador entrega
“caças” a outra pessoa, diz que trouxe a encomenda ou “coisa boa” deles e demanda, no
imperativo, que naquele momento a pessoa pegue a ave embrulhada (“- mysapyky ibeze!
Aba Ikia tynasi-skyryk-ty!). A esta altura toda a aldeia já sabe que chegou o gavião.
É muito importante que, a partir da morte da ave, todo o rito ocorra o mais
rápido possível, mesmo quando o caçador chega na aldeia à noitinha, o que exigiria
ainda mais cautela na divisão de tarefas.
O caçador segue direto para a casa dos homens (mykyry) e a partir daí a ave
permanecerá fora de seu raio de visão. O gavião adentra a aldeia ainda embrulhado e é
transportado e colocado no chão, ao lado da casa dos homens. Ali, um outro homem é
376
As partes do macaco moqueado, utilizadas para fazerem mingau em outros ritos, amarradas com
embira, fervidas e depois colocadas em cima de uma folha de pacova. Frisam que não pode ser na bacia.
Depois ficam dependuradas em cima do fogo onde será preparado o mingau.
423
designado para desembrulhar a ave e inciar a retirada de penas. Nos dois ritos que
presenciei houve a inversão de metades para esta tarefa. Em um deles, um rapaz solteiro
da metade Hazobiktsa, em aprendizado, retirou as penas centrais do animal, sendo
assessorado por dois outros homens mais experientes, um de cada metade.
A depenação começa pela asa esquerda da ave, observando a seqüência de
retirada das penas e a forma de puxá-las, de modo a que saiam mais facilmente e sem
danos às mesmas. À medida em que vão sendo separadas, as penas de um mesmo tipo
são, nesta ordem, empilhadas e amarradas em feixes atados com embira. Neste
momento algumas raques de penas são separadas para fazerem pequenos assobios
(Sapytsa) e flautas de pã (jokpepeheta). Primeiro retiram as penas menores da asa e
depois as maiores. Só depois as penas do rabo são retiradas, observando-se estes
mesmos cuidados.
Estas são, especialmente, as que serão utilizadas nas flechas, mas também em
alguns cocares. No caso de haver outros homens orientando a depenação, eles podem
prosseguir com as demais penas, como as brancas e flocadas que cobrem o tronco da
ave, fundamentais para uso em um cocar particularmente valorizado, o Wohorek tsihirik
(classificam estas penas como penas do “traseiro” do gavião-real).
É importante dizer que, ao abaterem qualquer ave, a tarefa de tirar as penas
consideradas importantes – ou seja, as que poderão ser aproveitadas em cocares e outros
artefatos – é dos homens. E eles o fazem com cuidado, colocando as penas em uma
peneira (juwy), de confecção exclusivamente masculina, para que sequem. As penas são
sempre separadas por “categorias” – como coloração, tamanho, região da ave e, desta
forma, serão também armazenadas, amarradas com embira em feixes diversos.
As penas de asas e caudas de aves que valorizam são guardadas em uma bolsa
feita de líber de sorveira (tsanipe)
377
. Depois disto a ave é, então, destinada às mulheres,
que retirarão as penas restantes e procederão ao seu preparo propriamente dito.
377
O tsanipe é utilizado tabém para guardar os vários tipos de ceras vegetais e dizem que também pós e
venenos. No passado, mortos podiam ser envoltos nesta fibra ao serem enterrados. Alguns compararam-
na à placenta (mytsaisok), mas se designam diferentemente. Uma tradução possível é “embaixo da nossa
carne” tsani “nossa carne” e pe “embaixo”. Esta fibra é também aquela que é usualmente utilizada quando
vão fazer fogo por fricção, com pau de urucum (iharapoktsa) ou ponta de flecha Jurupará (zayta) com o
pau de bamy, de modo que a faísca assim produzida torne o pedaço de tsanipe em chamas. Podem usar
também fibra de algodão (mazozi). Uma dupla de mulheres é usualmente responsável pela retirada do
tsanipe. Ele é cortado com o machado-de-pedra (wywyknury). Enquanto uma mulher vai golpeando a
árvore, que deve ser pequena, a outra enrola a entrecasca em um pedaço de pau, que posteriormente será
seca ao sol. Só pode ser retirado na estação chuvosa, contanto que não esteja na lua nova, o que estragaria
a fibra. Da mesma forma, se for retirado antes do milho amadurecer, o que acontece no início da estação
424
Durante a depenação da harpia o caçador permanece dentro da casa dos homens,
contando detalhes de sua caçada. Onde e o que estava fazendo a ave quando a acertou,
se tinha filhotes ou não. Narra todas as etapas que antecederam à caça, desde a
percepção do bicho até os esconderijos que normalmente são construídos para espreitá-
lo e inteirar-se de seus movimentos.
Enquanto o homem depena a ave, há mulheres e crianças nos arredores. Muitas
crianças ficam em torno do gavião, mas nenhuma mulher participa diretamente deste
processo, do qual ficam relativamente afastadas. Em um dos ritos advertiam as crianças
com relação às tentativas de brincadeira com os feixes de penas, devido ao perigo ativo
que sofriam, pois a ave era fêmea e, ao ser abatida, estava com filhotes.
Terminada a retirada de penas consideradas importantes, os feixes são levados
para a casa dos homens. Em seguida, quem depena pede a alguma mulher que avise a
outras mulheres da metade hazobiktsa que ave está pronta para o manuseio deste
segmento, o que é uma regra.
Em ritos regulares, cada metade faz sua própria comida em lugares separados e
predeterminados, sendo proibida a ajuda ou intervenção do outro segmento, em
qualquer fase de seu processamento. Há também um ordenamento fixo no desempenho
de cada uma das etapas envolvidas neste preparo – caça, entrega de macacos, sua
fervura, retirada da panela, busca de lenha e etc – onde os hazobiktsa antecederão,
sempre, os makwaraktsa, iniciando as atividades. Dentro de cada metade haverá ainda a
divisão de tarefas adequadas aos respectivos clãs, embora os mesmos possam
intercambiá-las, no caso de não haver indivíduos aptos ou dispostos a desempenhá-las.
O acontecer destas festas é, assim, marcado pela organização e divisão de tarefas
por segmentos sociais. Só no final dos ritos as comidas serão partilhadas. Isto contrasta
com o rito do gavião, onde as metades desde o início cohabitarão e recorrerão uma à
outra para que o o rito possa completar-se, segundo algumas regras diferenciais.
A mulheres da metade hazobiktsa poderão, então, retirar as penas restantes e
queimar a ave, para que se inicie a preparação, com a qual farão uma espécie de
mingau. Neste momento ouvi brincadeiras de que estariam queimando o myhyrikoso do
gavião-real e, de fato, o destino deste myhyrykoso estará em questão neste rito. Esta
queima pode acontecer no próprio pátio da aldeia mas também dentro de uma casa
especialmente designada, onde o mingau e a chicha serão preparados.
chuvosa, entre os meses de dezembro e janeiro, o milho estraga, fica “melado”. Não há restrições à
retirada do tsanipe, e mulheres com filhos pequenos podem fazê-lo.
425
Se desejarem, mulheres makwaraktsa com alguma relação estrita
378
podem
também retirar estas penas menos importantes, ou mesmo ficar com as garras da ave
mas, em hipótese alguma, podem levá-la ao fogo
379
. Neste fogo assam também as tripas
e gorduras que envolvem o pescoço da ave.
Mulheres grávidas de qualquer metade não podem arrancar penas de nenhuma
espécie, comer do mingau ou beber da chicha, mesmo após à furação das penas. O
mesmo aplica-se a seu marido. Isto obstruiria a saída da criança durante o parto e ela
morreria.
Se foi queimada no pátio, a ave é levada para a casa onde será preparada.
Independente da metade à qual pertença a dona da casa em que o mingau será produzido
(houve alternância de metades nos dois ritos que vi), em tudo que concerne diretamente
ao mingau (zaro) como aos acompanhamentos deste prato, à exceção da chicha (tomy),
apenas mulheres do metade hazobiktsa e demais clãs a ele relacionados poderão atuar.
O importante é que haja, na casa, mulheres deste segmento hábeis a organizar e
conduzir tarefas predeterminadas. Para ajudá-las acorrem à casa e são convidadas não
apenas mulheres hazobiktsa provenientes de outros domicílios como também
pertencentes ao outro segmento social, o makwaraktsa. Este segmento tem como tarefa
exclusiva a produção da chicha (tomy-ty my-patsik-kik-naha / chicha-intenc 1pl-
fazer(chicha)-contin-1pl “nós estamos fazendo chicha”), que acontecerá na mesma casa
onde a ave será preparada.
A cabeça da ave é separada do corpo, mas será cozida juntamente com ele em
uma grande panela. Mesmo a água e a lenha para seu cozimento deverão ser trazidas
exclusivamente por mulheres e meninas da metade hazobiktsa. Mulheres hazobiktsa
deverão também contribuir com castanhas-do-pará, que serão quebradas e raladas para
que sejam, então, gradativamente acrescentadas ao caldo de fervura da ave.
Mulheres makwaraktsa podem ajudar a quebrar castanhas porém não podem, em
qualquer hipótese, ralar as mesmas, tarefa das hazobiktsa. É deste segmento a
responsabilidade sobre tudo que se relaciona ao beiju de milho ou mandioca,
378
Observei -paretsa (cunhadas), mas isto não parece ser exatamente uma regra. A aldeia em que vi os
ritos é relativamente pequena e, pela própria exogamia, é muito fácil que esta relação seja encontrada
entre mulheres das duas metades.
379
Estas penas utilizam em brincos masculinos como em outros artefatos. Também separam penas que
desprezam ou acham “feias” para negociarem com outras etnias em encontros oficiais, o que descobriram
ser uma fonte interressante de renda ou troca. Guardam notadamente as penugens brancas para
negociarem com os Xikrin, dizem.
426
providenciando ainda, se disponíveis, algumas bananas verdes que serão cozidas para
que o mingau possa ser experimentado durante o cozimento.
Durante estes preparativos que, na verdade, duram um ou até dois dias a
depender do horário em que a ave chega à aldeia, ocorrem várias visitas masculinas à
casa. Estas visitas têm tom jocoso, quando homens comem castanhas não raladas ou um
pedaço de mandioca. Comentam se todas estão ajudando, se está animado e também as
possíveis ausências.
Quando a ave está bastante cozida alguma mulher ou criança vai à porta da casa
dos homens chamá-los para que venham à casa. Em poucos minutos, homens maduros
das duas metades aproximam-se da panela, retirando a ave e colocando-a em outro
recipiente. Um deles dá os primeiros talhos na ave. Observo que nos dois ritos houve
também alternância de metades. Os outros homens ficam em torno da carne e só depois
de cortada pelo mesmo homem que lhe dá os primeiros cortes, ajudam a descarneá-la
(wohorek ta-sysyk-ky/ gavião 3sg-rasgar- contin. “rasgando o gavião”).
Os homens das duas metades, então, vão distribuindo a carne às mulheres que
estão na casa, destinando pedaços especialmente a mulheres mais próximas, como
esposas e crianças. A carne do peito da ave, da qual o mingau é predominantemente
feito, uma vez destrinchada, é devolvida à panela, onde a água e a gordura continuam a
ferver. Ao lado da bacia onde fica a carne do gavião há um recipiente com chicha, mas
não aquela que será destinada ao rito de furação. Outros gêneros, como pão e café –
caso disponíveis – poderão ser servidos. Se houver algum outro tipo de carne na casa,
como macacos ou anta, pedaços da carne serão também distribuídos ou
obrigatoriamente oferecidos neste momento. Caso contrário isto gerará repreensão em
comentários posteriores.
A esta altura, outros homens e mulheres vão chegando e também comem outras
partes do gavião, distribuídas pelos homens. Destaco, assim, que a proximidade de
laços, bem como as idades (mulheres mais velhas são servidas primeiro), parecem
determinar a primeira distribuição das carnes do gavião, visto que os homens que o
descarneiam destinam pedaços generosos, como coxas da ave, àqueles que são seus
parentes próximos, como esposas e filhas, e também a crianças.
A partir daí um destes homens, geralmente o mais velho, organizará algumas
tarefas conforme a exigência de se completar o preparo do mingau e da chicha,
escalonando as mesmas a outras atividades cotidianas necessárias, como capinar a
427
aldeia. No caso de meninas ausentes, poderá solicitar que alguém as chame para
ajudarem nas tarefas designadas à suas respectivas metades.
Uma vez destrinchada, os ossos da coxa, a carcaça da ave e cabeça irão para a
casa dos homens. A carcaça será dependurada no mykyry. Acumulam-se carcaças e
maxilares de queixadas (pazaharetsa) pendurados na paredes e na cumeeira
380
do
mykyry. Tíbia e fêmur servirão para que façam flautinhas (ipazo)
381
ou também belas
braçadeiras longas de algodão, penas e ossos de aves diversas, as chamadas pony-pony
ou hokpoiktsa.
A cabeça é regularmente presenteada a algum convidado. Nos dois ritos em que
o caçador era do clã hazobiktsa a cabeça da ave foi dada a um homem makwaraktsa que
veio de outra aldeia. Diz um mito que a cabeça de bichos ou de gente era sempre
destinada aos homens desta metade.
Mulheres de ambas as metades podem contribuir com as castanhas. E assim por
diante, com relação às demais “matérias-primas” da comida e bebida ritual. Tudo
dependerá das próprias relações de lealdade, simpatia e proximidade sustentadas por
mulheres destes segmentos, encarregadas de suas respectivas tarefas.
Todas permanecem na casa durante os preparativos. Durante a ralação da
castanhas não podem comer nem da massa ralada e nem os possíveis restinhos que
ficam entre os dedos, pois isto acarretaria defeitos ao corpo de seus futuros filhos. As
restrições para as metades se mantém durante toda preparação e só mulheres da metade
makwaraktsa cuidam da chicha, enquanto as da hazobiktsa cuidam do mingau e outros
acompanhamentos.
Um pouco mais tarde vão à casa dos homens e chamam um homem mais velho
para que prove o caldo com a gordura (tutãsawy) da ave, com banana assada passada na
castanha-do-pará moída, que pode ser também substituída por mandioca ou um pedaço
de beiju. Ele prova e novamente interage com as mulheres, fazendo elogios à ave, como
à quantidade de gordura (tsitutãrna! “está gordurosa!”) que ela concentra.
380
Na cumeeira das casas guardam uma série de recursos: muitas flechas, diversos feixes de pontas de
flecha jurupará (zayta) devidamente prensadas com cera vegetal e “moqueadas”, algumas amarradas a
ossos da coxa de gavião-real, peneiras (juwy, dua), pás de taboca (itsidik) para mexer chicha e mingau (a
que chamam de “flautas” em português), bicos de tucaninho (bitsikpyryk) articulados, que usam para
imitações, feixes de arroz a secarem. Em cima do fogo da casa podem pender também mandíbulas de
queixadas ou de peixe-cachorro (tsiΦik), pontas de flecha, ossos de gavião-real e recipientes com
castanhas-do-pará.
381
Esta flautinha reta possui aeroduto, com defletor de resina de jatobá com urucum (topyririk) e quatro
orifícios. Podem utilizar também resina de jatobinha (mytsarerik). Fazem flautinhas semelhantes com
tíbia, fêmur e ossos da asa de “cabeça-seca” (biknariza), que podem ter três ou quatro furos.
428
Mais tarde, assim que a chicha fica pronta, as mulheres makwaraktsa separam-
na em dois recipientes menores, que ficam tampados, e em outro grande. O mingau
pode ou não estar pronto. A esta altura, convidados de outras aldeia podem chegar. Nos
dois ritos que presenciei homens de uma outra aldeia, intimamente relacionada,
pertencentes a ambas as metades compareceram à festa do gavião.
Em um dos ritos, um convidado mais velho, pertencente à metade makwaraktsa,
é chamado por uma mulher da metade hazobiktsa, que era também anfitriã, a provar o
mingau. Concomitantemente com a prova do mingau na casa, as penas são furadas na
casa dos homens e alguém busca a chicha das panelas menores para os homens
envolvidos na furação.
O momento de prova do mingau exige uma espera ritualizada, e enquanto eu
mesma estava na casa reparei que todas as mulheres aguardavam algo, colocando-se
relativamente à parte, como é a regra, sentadas em bancos encostados à parede, caladas
ou cochichando e rindo de forma quase velada. Em alguns segundos, o que parecia uma
grande confusão entre cascas de castanhas e mandioca, re-estruturou-se um tanto
solenemente.
Este momento é algo também marcado outros ritos maiores, quando esta tarefa é
realizada por um clã determinado da metade Makwaraktsa. Ele provará a comida feita
por cada metade e depois disso, todos partilharão suas comidas. O experimentar do
mingau é descrito como algo diferente do experimentar de outros alimentos ou bebidas.
A palavra que utilizam é a mesma empregada para quando se vai, por exemplo,
experimentar as propriedades de uma canoa nova (-akpy), em contraste com aquela
empregada para a prova cotidiana de outras comidas (-d). Nos dois ritos de gavião que
vi, homens da metade makwaraktsa experimentaram o mingau, embora não
pertencessem ao clã específico designado para esta tarefa, o mybaiknytsa.
Neste mesmo momento algum homem vem buscar a chicha das panelinhas,
levando-as para a casa dos homens. O mingau permanece na casa. A esta altura as penas
maiores do rabo e da asa, já estarão devidamente furadas.
Para que a furação (wohorek i-sara-wowowy gavião 3sg-penas grandes-furação)
aconteça é necessário um par de homens, um de cada metade. Um deles irá furar as
penas efetivamente, com um furador (-mywowowy) específico para isto (hoje feito de
taquara fina e um pedaço afiado de metal atado com fio de algodão e cera vegetal), e
enfiá-las em um cordel base de embira, enquanto o outro o ajudará, cortando parte das
raques das penas e as segurando. Em um dos ritos, estes homens eram cunhados (-
429
tsere), mas isto não se repetiu no outro. Estes homens ficam um tanto separados dos
demais e bebem da chicha, cada qual em seu respectivo pequeno recipiente. Esta chicha
não pode sobrar, devendo ser tomada na íntegra. Isto também acontece às chichas que
são oferecidas pelos homens, devendo ser tomadas integralmente.
A presença do mingau é dispensável para a furação das penas, mas a chicha não
pode ser suprimida. Ao final da furação, a chicha das panelas pequenas deve,
obrigatoriamente, estar na casa dos homens. Neste sentido, é fundamental a articulação
e uma certa sincronia entre casa e casa dos homens, especialmente no que se refere ao
momento da furação. É a casa que ditará o seu momento e ele precisa sincronizar-se
também com a prova do mingau, que ocorre na própria casa. Só depois da furação das
penas procede-se à distribuição generalizada das comidas e bebidas aos homens, dentro
da casa dos homens, e às demais casas da aldeia.
Destaco a postura distanciada daquele que caçou a ave, até o momento da
furação. Mesmo nas caçadas ordinárias, dificilmente aquele que mata o bicho também o
corta ou o distribui para outras pessoas. Se não há companheiro de caça, que pode ser
um cunhado, genro, mas também um filho ou sobrinho paterno, sua esposa pode fazê-lo
e é ela ou seus filhos menores que distribuirão a caça ao retornarem à aldeia.
Depois de furadas e postas em feixes, as penas passam de mão em mão, na casa
dos homens. Todos apreciam e manipulam as mesmas. O caçador inicia a distribuição
de penas, para o quê serão destacadas do feixe. Nem todos os homens que estão na casa
dos homens ganham penas. O caçador divide e escolhe aqueles que participarão da
divisão, sempre homens mais velhos de suas relações e experts na fabricação de flechas.
Estes, então, ganharão pares de penas (sara ihokykkyk) e nunca número ímpar (sara
batu hokykkyk). Cada par dará origem a uma nova flecha.
Os pares devem ser construídos de modo a parecerem simétricos, tanto em
tamanho quanto em desenhos. À falta de penas semelhantes, pares poderão ser
construídos a partir de penas antigas de outro gavião-real. Com este intuito o caçador
abre sua bolsa de líber de sorveira (tsanipe)onde estão armazenados todos os tipos de
penas importantes e não hesitará em procurar pela pena adequada em eu acervo.
Enquanto isso, o furador faz uma flecha jurupará (zayta), que usam para caças
grandes. Outros homens furam e “costurampenas menores, sempre na ordem em que
foram retiradas da ave, sujeitando o cordel base de algodão ou linha industrial entre
duas flechas denteadas (idigba) fincadas ao chão da casa dos homens. Algum outro
pode estar a fazer flautinhas de osso e de raques de pena do gavião. O mingau é trazido
430
e o furador o experimenta. Inicia-se, então, a distribuição mais ampla do mingau e
chicha.
Desta forma, as penas são ganhas, mas devem cumprir um destino. Aquele que
as recebe fará novas flechas para o caçador, considerado seu dono. Estas flechas, por
sua vez, serão trocadas por flechas antigas.
Esta troca é qualificada como tsiakse, expressão da qual explorei o sentido no
Capítulo III e venho sempre marcando em suas diversas aplicações. Esta “relação”
acontece independentemente do segmento social ao qual os envolvidos pertençam.
Desta forma, a troca de flechas ocorre, sobretudo, entre homens de metades opostas e de
relações estritas as mais variadas, desde cunhados, tio e sobrinho paternos, até filhos de
criação, o que incluirá também homens de mesma metade daquela do caçador.
Mas esta troca não é senão provisória e depende de certos “resultados” e
interesses. Idealmente haverá um destino a ser cumprido. O caçador fica com a flecha
por um tempo. Se matar algum bicho, deve retirar a flecha e devolvê-la a quem a fez, o
que acarretará a devolução da flecha antiga. Neste momento são obrigatórios - ou pelo
menos esperados - comentários dizendo-se que a flecha é boa (tsapyrta). Se desejarem,
a flecha pode não ser destrocada e ficar com seu receptor para sempre.
Às vezes a flecha se perde, mas ainda assim, mesmo que se tome uma flecha de
outra pessoa – “quem vem de longe pode arranjar” (Vicente Bitsezyk) -, deverá ocorrer
destroca. As flechas produzidas a partir do rito do gavião-real, peculiarmente, não selam
laços definitivos mas equivalem a relações e trocas que geram expectativas sociais no
tempo e que poderão tornar-se ainda mais públicas e reconhecidas.
Muitas histórias e comentários serão feitos na casa dos homens durante o rito e
após o êxito de cada nova caçada. Esta relação de trocadores de flechas pode se estender
e, de acordo com o interesse, a habilidade diplomática e a desenvoltura dialógica –
qualidades essenciais para se ter boas relações entre os Rikbaktsa - e a eficácia “das
flechas”, ganhar mais estabilidade. O homem pode pedir ao outro que lhe faça uma nova
flecha e podem trocar novamente. Pode dizer: “– ‘faça de novo, que é boa’, o outro
responde que já tem outra e troca de novo” (Vicente Bitsezyk).
Em contrapartida, uma vez devolvida, uma flecha não poderá ser novamente
trocada entre aqueles homens. Isto não impedirá que ela seja trocada com algum outro,
em caráter menos solene. Há uma idéia nos mitos de que apenas flechas novas têm a
capacidade de atingir certos animais considerados raros e/ou associados à categoria dos
myhyrikoso. Este é o caso, inclusive, de uma espécie de gavião-real metafísico, que
431
dizem ser completamente branco (wohorek ibarazata) e do qual tratarei mais à frente.
Outras histórias que tratam de onças ou espécies específicas de “macacos” (boazatatsa)
praticamente repetem-se. Armas nunca disparam ou perdem-se quando se está diante
destes animais.
Flechas, em geral, são itens bastante valorizados pelos homens Rikbaktsa.
Diariamente trazem e levam seu arco (-paraky) e o feixe de flechas da “casa” à “casa
dos homens” e da “casa dos homens” à “casa”. Todos os dias em que conversavam ao
anoitecer do lado de fora da casa do sênior da aldeia, este homem colocava seu feixe de
flechas e o arco do lado de fora da casa e depois, ao dormir, os guardava. Outros dizem
que não dormem senão com seus arcos e flechas ao alcance das mãos. Têm gosto por
competições de arco e flecha, que acontecem também entre mulheres.
Voltando às etapas do rito, a distribuição dos pares de penas ocorrerá sempre em
paralelo à distribuição de chicha e mingau aos homens e aos domicílios. Esta
distribuição é também realizada por um homem especialmente designado a esta tarefa.
Apenas depois de algum tempo, quando chicha e mingau já estavam sendo distribuídos,
observei o furador bebendo chicha do pote maior. Seus movimentos são bastante
pausados e ele se mantém, por todo tempo, um pouco à parte, mesmo no momento da
distribuição de penas.
Parece que tudo da ave é aproveitado, dos ossos e tendão à gordura. O caldo
gorduroso (tutãsawy) pode ser separado e utilizado por algum homem. Se pingado nos
olhos clareia a visão, possibilitando que se enxergue como o predador, especialmente
com o objetivo de caçar mais macacos ou mesmo novos gaviões. Os tendões da coxa da
ave são também utilizados como adornos de colares. Ossos da canela são amarrados
com embrira às pontas de flecha jurupará (zayta), colocadas em série nos esteios da
casa, próximas ao fogo. Estas flechas são utilizadas na caça de animais de grande porte
e os homens lhes têm verdadeiro apreço. Sua “conquista” consiste em um dos objetivos
centrais das expedições da estação seca, já que a taquara adequada não existe senão para
baixo do rio Juruena e também no rio Arinos. São, ainda, explicitamente associadas a
“inimigos”, de quem os Rikbaktsa as pilharam, conforme contam.
A festa do gavião é também o momento oportuno para riscar desenhos nas coxas
de adolescentes de ambos os sexos ou mesmo arranhar crianças que chorem muito e
sejam desobedientes. Ela acontece no final do rito, no pátio da aldeia ou na casa dos
homens, quando meninos e meninas ficam em filas separadas aguardando sua vez.
432
Geralmente homens mais velhos serão responsáveis por isso, como um avô, tio
paterno e até mesmo alguém de outra metade estritamente relacionado. Apesar de uma
metade ter frente a outra certa importância no que concerne à condução de processos
corporais do tipo furação de orelhas e tatuagens, como vimos, este não é um atributo
obrigatório, mesmo para homens mais velhos para os quais eu perguntava por quem lhes
teria tatuado ou escarificado.
Mesmo assim, nunca soube de um pai que houvesse riscado a coxa de seu
próprio filho, recorrendo a outros homens para fazê-lo. Mais do que pertencerem a outra
metade, é importante experiência e sabedoria para conduzir adequadamente este tipo de
operação.
A arranhação pode se repetir em outra festa de gavião, conforme julguem
necessário e, no caso de desenhos que serão tingidos, com o objetivo de que os
contornos fiquem cada vez mais fortes. A tatuagem (-tsudawy) mais disseminada é a
que tem a forma do peixe “pacuzinho” (wahara), mas também desenhos que definiram
como “costelas de gente” (-pektsa) e de um peixinho muito pequeno (mydazeze).
Observei desenhos muito semelhantes para homens e mulheres. Embora reconhecíveis,
podem admitir variações nos contornos, como é o caso do desenho de pacuzinho.
Meninos e meninas ficam em fila e os meninos são os primeiros a serem
riscados, logo após terminada a distribuição do mingau e da chicha. O escarificador é o
dente de cotia (sokoro tsapu) atado a uma taquara fina.
Em um mito, a tatuagem forte de um homem é a marca dos dentes da sucuri e o
sinal de que resistira às várias intervenções predatórias deste ser metafísico, expressas
através das cócegas que lhe impunha com suas presas. A risada do homem frente às
provocações da sucuri permitiria a efetivação de suas intenções predatórias, algo
recorrente na mitologia sul-americana, onde a “vítima que ri” pode ser “devorada”
(Lévi-Strauss [1964]2004:148,150,151) por ter seu “corpo aberto” (idem:154).
As tatuagens “fracas”, ditas “não-cozidas”(-tsudawy batu juhu), e toda a série de
recomendações e reiterações do procedimento que se seguem a elas demonstram a não-
peremptoriedade daquilo que ali se opera. Vimos que substâncias, odores, temperaturas,
intervenções metafísicas, “sentimentos” e condutas são capazes de catalizar positiva ou
negativamente estes procedimentos, alterando significativamente sua direção, dirigindo-
os para rumos diversos daqueles originalmente imaginados pelos indivíduos.
Não há modo de construir, alterar e mesmo “existir” (“com um corpo”), que não
o coloque em risco. Não é diferente durante a festa do gavião. Não apenas o mingau e a
433
chicha podem matar se não forem manipulados por uma mulher da metade adequada,
como corpos podem nascer imperfeitos se as mulheres comem parte da castanha que
está sendo ralada. Esta “produção” envolve, sem dúvida, a intervenção de substâncias
mediadas por segmentos sociais adequados.
Contudo, é também um longo caminho onde cada etapa é marcada pelo risco.
Especialmente importante será a série de restrições alimentares que seguirão a este rito,
bem como atitudes e posturas sociais que deverão ser adotadas pelos jovens, se
quiserem completar este processo com êxito.
A preguiça (-dika), como negar-se a fazer alguma tarefa a alguém,
principalmente se mais velho, ou a demora em realizá-la, o egoísmo (-sorek), como
negar-se a dar algo a alguém ou até a trocar, quando demandado, e a solidão, são
ocasiões propícias para o conflito como para a intervenção dos mortos e seres
metafísicos vingativos. São, por isso mesmo, situações de vulnerabilidade nas quais o
destino dos corpos – a “doença” e a “morte” – arrisca-se.
Estas são recomendações cotidianas, mas que serão ainda mais contundentes nos
ritos coletivos e nos processos corporais marcados que neles têm lugar. São lugares
onde o corpo Rikbaktsa está especialmente em ou sujeito a transformações, sejam elas
presentes ou futuras. Nestas ocasiões, todas as recomendações cotidianas que mantém a
solidariedade do socius às custas do receio de vinganças que poderão expressar-se desde
a morte, à doença e mesmo a prejuízos a futuros descendentes, operam com força ainda
maior.
O desrespeito, por exemplo, às regras de manipulação de alimentos por metades
durante o rito do gavião, acarretaria aos alimentos o que denominam de muzuza, um
conceito bastante utilizado em outras festas como no cotidiano, em diferentes situações,
mas com uma mesma conotação. Quando algo é classificado desta forma, significa que
há um presságio ruim ou mesmo uma setença de doença que poderá levar à morte. Pode
ser traduzido como “agourar” e é aplicado sempre que alguma coisa não está em seu
lugar, principalmente no que se refere a vivos e mortos e seus mundos invertidos.
Se encontram bichos que classificam como tipicamente noturnos durante o dia
(lembramos que a noite é dia para os “mortos”) – que não comem –, então, além de ser
algo batsisapy (“inadequado”), também é definido como muzuza (mal agouro) e o
animal deve ser morto a todo custo.
No tocante à fabricação de mingau e chicha durante a festa do gavião destacam,
contudo, que o fundamental não é tanto qual segmento estará fazendo o mingau, mas
434
sim o fato de que apenas um deve realizar a tarefa, embora haja prescrições comuns,
dominadas por todos. Se esta recomendação é contrariada o mingau perde a
uniformidade e fica todo rachado (i-popowy), muzuza. Quem comer dele poderá
adoentar-se, morrer ou sofrer infortúnio futuro.
Mais importante do que a aplicação de regras inequívocas é que aconteça uma
certa alternância nas atribuições para que não fiquem concentradas nas mãos de apenas
uma metade e de mesmas pessoas. Destaco novamente que neste rito,
excepcionalmente, as duas metades dividem as tarefas rituais relacionadas à preparação
da comida. Mingau e chicha foram assim tratados nas duas vezes em que vi, e o
discurso padrão é que apenas os makwaraktsa podem mexer com a chicha, enquanto os
hazobiktsa devem fazer o mingau e outros acompanhamentos.
Para outras atribuições, entretanto, há inversões. O furador e o ajudante serão
sempre de metade diferente, mas não há prescrição para quem faz o quê, como também
há uma certa preocupação com o rodízio das metades no desempenho destas tarefas. O
mesmo pode ser notado com relação ao distribuidor da chicha e do mingau, ainda que
com certas dúvidas sobre que metade pertenceria um deles, sob o qual pairam
discussões em torno da paternidade, e portanto, de seu pertencimento a uma ou outra
metade. Este indivíduo, contudo, é tratado em muitas ocasiões como integrante da
metade oposta à do outro distribuidor. Isto atribuiria sua paternidade, na verdade, a um
“amante” de sua mãe, de metade oposta à de seu marido, com o agravante desta mulher
ser casada fora da regra de exogamia. Caso dos mais polêmicos (cf. Capítulo IV).
Uma outra possibilidade é a de que a ocorrência seguida destes dois ritos, tenha
provocado a inversão de papéis, mas aí também fica explícita a importância de não
concentrar tarefas por metade, nos ritos qur tomam sua divisão enquanto princípio. A
exceção imutável ficaria por conta do distanciamento do caçador, furador e ajudante, até
o momento em que a pena é, finalmente, furada. A não-coincidência destas atribuições
pelas metades também fica como uma regra.
Para que esta organização funcione é necessário não apenas o conhecimento da
posição, digamos, “clânica” dos indivíduos, como também algum tipo de proximidade
entre aqueles que ali estarão envolvidos. Neste momento, lealdades são identificadas,
assim como conflitos. Há sempre comentários sobre quem veio ou não à casa para
ajudar, se contribuiu ou não de modo adequado, se trouxe ou não castanha, mandioca e
banana para o mingau e seus acompanhamentos, ou milho, batata-doce e outras frutas,
para a chicha.
435
As razões para as ausências são apontadas e, através delas, pode-se chegar a um
panorama bastante adequado das micro-relações cotidianas. O comentário corrente é de
que algumas mulheres não ajudam, mas depois querem receber mingau e chicha em
suas casas. Por outro lado, vi mulheres que ajudaram no primeiro rito, dizerem que não
receberam do mingau ou que seu quinhão fora insuficiente e que, portanto, nem
chegariam na casa para ajudar no segundo rito.
*
Apesar destas diretrizes, como acontece para outros aspectos da cultura
Rikbaktsa, parece que esta micro-sociologia aldeã em muitos momentos pode sobrepor-
se aos dados, digamos, “genealógicos” em questão. A adaptabilidade do sistema é
fundamental. Quase tudo é tão regrado quanto parece admitir exceções
382
.
Regras são de domínio público, mas se não houver representante da metade
adequada ou clã, o que é comum em ritos e aldeias menores e mais isoladas, a mudança
ocorrerá, dentro de alguns limites. Sempre dizem que, se alguém que é de uma metade
sabe sobre o que a outra faz, então poderá ensinar e até desempenhar tal tarefa
383
.
Designar algum homem para perpetuar clãs com risco de extinção, à falta de
descendentes masculinos
384
parece ser uma possibilidade mas não testemunhei
exemplos mais contundentes.
Não é apenas esta espécie de “razão prática” que influi nestas ocasiões, mas
também e mais ainda, o caráter “familiar” e de “relações sociais concretas” do evento.
Ali articulam-se mais do que segmentos que idealmente se contrastam em metades. Os
ritos são a própria expressão da lógica de relações e organização social aldeã cotidiana.
Nas explicações acerca das atribuições diferenciadas, dão preferência mais às
relações em si mesmas, do que ao fato dos indivíduos pertencerem a uma ou outra
metade (embora esta distinção permaneça). É claro que, se todas as regras fossem
seguidas, informações tais seriam redundantes.
382
Mesmo com as restrições alimentares mais severas, fundamentadas em razões “cosmológicas”,
gostavam de me dizer que alguém, em algum momento, como em relações interétnicas – entre brancos ou
outros índios – havia comido tal ou qual coisa, apesar dela ser considerada não-comestível ou ruim.
383
Um caso notável, que já abordei aqui, refere-se à fabricação e ao “tocar” das “flautas”. Apenas homens
da metade hazobiktsa podem fazer “flautas” e não as experimentam, tarefa realizada pelos homens da
metade makwaraktsa que, por sua vez, não fazem “flautas”. Vimos, entretanto, o caso de um homem
hazobiktsa que não fazia “flautas”, mas as “experimentava”, considerado um homem maduro e bastante
sábio.
384
A paternidade múltipla talvez forneça a possibilidade de evocar “novos” membros para que algum clã
seja perpetuado.
436
A FESTA DO GAVIÃO-REAL E OS RITOS DE FURAÇÃO DE DENTE
Muitas evidências sugerem associações e contrastes esclarecedores entre a
furação de penas e outros tipos de rito que envolvem a furação de dentes de todos os
animais que classificam como onça (parini – distinguem seis tipos, incluindo-se felinos
menores
385
), cachorros-do-mato (tsomykmy – distinguem dois tipos
386
), irara
387
(ozo) e
ariranha (wyãkara) e que ocorrem à medida em que estes animais são mortos
388
. Tais
ritos, entretanto, não envolvem nem a produção nem a distribuição de comida.
Os cachorros-do-mato e as onças são “jogados” pelo mato – “o urubu come” -
ou, como mais recomendável, principalmente às onças, serão bem enterrados, não sendo
comidos. Da ariranha, depois da furação, disseram que antigamente alguns podiam até
chegar a comer só o rabo (i-japok), considerado gorduroso (tsitutãrna) e de paladar
saboroso, mas que agora não comem. Alguns acusam já ter, depois da furação, comido
irara, mas não é usual. Batsisapy, dizem.
Nos ritos de furação de dentes não há outro acompanhamento senão a chicha
(tomy). Com presença elementar em qualquer rito, não pode jamais estar ausente. É uma
espécie de staple, um item principal relacionado diretamente à caça abatida e sua
“alma” (myhyrikoso). A chicha regularmente antecede outros elementos das comidas
cerimoniais. Ao mesmo tempo em que é algo imprescindível em ritos e em qualquer
tarefa coletiva cotidiana, caracteriza o ambiente doméstico e a socialidade diária. Deve
haver chicha dentro das casas para o acompanhamento das refeições diárias como para
385
As “onças” são: parini zubakata ou ipydydykta - onça grande” ou “listrada, onça pintada; parini
nioktsĩzita – onça preta; Parini tsaririta - que é menor que as anteriores mas também é grande, “onça
vermelha ou parda”. É dita como onça principal, porque ela “não tem medo, não corre”; parini tsaririta
põrotsakta, onça um pouco maior que a tsaririta. Tem o lombo de cor mais escura, marrom; parini
iharatoata - Jaguatirica pintadinha e parini iharatoata bisikborotsa (“comedora de macacos bisik”)
menor que jaguatirica, como um gato (jaguarundi). Come só macaquinho bem pequenininho e fino
(bisik). Vicente Bitsezyk imita seu ruído “Si! Si! Si!”
386
São o “cachorro-do- mato cinzento” (tsomykmy) e o parini pazeze (“onça de braço comprido”), que tem
tamanho maior que o tsomykmy. Ambos não são comestíveis e têm os dentes furados.
387
A irara (ozo) é tida como o “dono do mel” (pete tsihitsa). Tem mão e rabo como de quati, mas é
escura. É definida como um animal noturno que se alimenta de mel, frutas e até de pequenos mamiferos, e
é “comida de onça”.
388
Alguns afirmam que a anta (piku) também tinha o dente ritualmente furado no passado. A chicha e a
festa, como é também preferencial no caso do gavião-real, aconteciam no mesmo dia da morte do bicho.
Participavam mulheres e crianças. Produziam também colares com seus dentes e mingau (zaro), algo que
distinguiria a furação de dentes de anta das demais furações de dente, que ocorem com animais não-
comestíveis. O pai de Salvador Tsetsemy tinha um colar como este que, à sua morte, ficou com o filho,
mas não sabe mais onde está. Disse-me que acha que o padre João levou.
437
oferecimento aos visitantes, dos mais costumeiros àqueles extraordinários, tendo ainda
que as visitações muitas vezes coincidem com as próprias refeições.
Todos os animais que citei submetem-se obrigatoriamente à furação. Estas
operações envolvem apenas chicha e não promovem sua edibilidade. Dentre estes
pequenos porém solenes ritos, os Rikbaktsa distinguem, contudo, a furação de dentes da
onça e é nela que me concentro mais especificamente, marcando apenas algumas
distinções entre este e os demais ritos.
A onça é uma espécie de gradiente máximo de periculosidade na cadeia de
cósmica de possíveis vinganças e, conseqüentemente, representante exemplar da não-
comestibilidade. Em muitos momentos onças são, dentre os seres do cosmos, aqueles
considerados os mais “distantes” dos Rikbaktsa, sob a perspectiva do domínio e da
posição dos “vivos”. São vistas sempre como a “encarnação” de mortos das mais
perigosas. Incluem-se nesta forma de “apresentação” tanto homens mais velhos e donos
de feitiço quanto indivíduos considerados pacíficos e também brancos (ainda que
tenham tido relações amigáveis com eles).
Nos relatos de visitas de “espíritos” de mortos à aldeia – que podem ser quase
diárias – a onça figura quase como uma regra, notadamente nas primeiras noites que se
seguem à “lamentação” do morto. Às vezes apenas aproximam-se da casa, podem abrir
portas e mexer em panelas.
Nestes momentos deve-se permanecer em quietude absoluta. A idéia é a de que,
se houver interação, fatalmente alguém será “levado”, ou seja, ficará doente e poderá
morrer. O mesmo acontece quando descrevem as visitas onde mortos usam a saudação
habitual que começa pelo termo de chamamento ou parentesco e o aviso de que se está
aproximando, ao que também não se pode responder.
A onça freqüentemente aparece nos mitos como um predador que é, contudo,
facilmente enganado por outros animais não carnívoros. Seu dente e os dentes, em geral,
são considerados como o sítio de sua “sombra” ou “espírito” (-hyrikoso), e de nada
adiantaria abatê-la, se seus dentes não fossem perfurados. Este “espírito” se libertaria e,
então, prosseguiria em seu destino de vinganças (tsapusarik). Algo poderia acontecer ao
caçador e às pessoas em geral.
Segundo sua classificação, apenas animais que têm dentes são capazes de comer
boas carnes de caça, mastigar seus ossos. Nos mitos, principalmente nos que envolvem
a onça, este fato é contrastado, embora este predador por excelência seja sempre
enganado e superado pela capacidade argumentativa de animais menores e até sem
438
dentes (como pássaros e o tamanduá-bandeira
389
). O tamanduá-bandeira “troca” sua
bosta, repleta de cupins, com a da onça enquanto ela dormia. Desta maneira, convence-a
de que é também um grande predador e livra-se de ser predado pela onça.
A festa de furação de dente da onça é normalmente contrastada com a de furação
de penas e demais ritos de furação de dentes, com relação a pontos como quantidade e
cuidados com a chicha, horário de realização, participação de pessoas e segmentos
socias e destino do “corpo” propriamente dito do animal abatido. Contudo, nela são
igualmente fundamentais “dados sociais” como o papel diferencial das metades
Rikbaktsa.
Com relação ao plano dos conteúdos, penso que nela operam, da mesma forma,
as relações “vivos”, “mortos”, “vingança” e “inimigos”, funcionando também como
ocasiões privilegiadas para construção e intervenções corporais. Como na festa do
gavião-real, após a furação das presas da onça, podem arranhar meninos e meninas com
dentes de cotia, para que cresçam e tenham coragem. Fazem riscos paralelos sem
desenho ou tintura. Isto acontece na casa dos homens. Se desejarem, mulheres podem
entrar na casa dos homens e segurarem seus filhos durante a escarificação.
O furador do dente deve pertencer obrigatoriamente à metade oposta àquela do
caçador da onça. Entretanto, como na festa do gavião, o furador terá um ajudante de
metade oposta à sua própria. A morte do animal propriamente dita distingue-se ou
soma-se à furação de seu dente, para que haja, de fato, sua execução completa.
A cabeça do bicho é cortada pelo caçador, cozida para que as presas sejam
retiradas e em seguida é enterrada. O restante do corpo é “arrastado”, como não se deve
fazer quando se trata de uma caça edível – incluindo-se aqui o corpo do gavião-real
assim que abatido -, jogado no mato ou também enterrado. O caçador da onça deverá
também procurar mel para que a chicha seja adoçada
390
. Vicente Bitsezyk, homem
makwaraktsa que mora em uma pequena aldeia, lamenta ter matado algumas onças e,
pela falta de outro homem adulto de metade oposta, ter de enterrá-las todas, sem que
nem a cabeça e nem os dentes fossem retirados.
389
Diz este mesmo mito Rikbaktsa que a onça e o tamanduá-bandeira (zono) ficaram, depois da superação
destas agruras, amigos (-harereziuwy) até hoje. Disseram-me que o tamaduá-mirim era também chamado
zono, mas um trabalho do SIL registra o termo waroko e também Holanda (1994:98). Há um tubérculo
comprido que não vi a que chamam waroko-irikdo (waroko-pênis), mas não me referiram a nenhum
animal. Não comem tamanduás. Dizem que até poderiam comê-los, mas consideram batsisapy.
390
Em contrapartida, durante a furação do dente da irara (ozo), conhecida também como “papa-mel”, a
chicha consumida não pode ser adoçada. É, como dizem, “sem graça” (batu itsarak – “não doce”).
439
A chicha é feita em alguma casa que será designada para tal, sem prescrição de
metade. Enquanto se faz chicha as crianças não podem chorar e nem atrapalhar. Pode
ser feita chicha de banana (tomado tomy), milho (wanatsitsa tomy) ou batata-doce (zodo
tomy). Se não houver mel, pode-se colocar açúcar.
A furação acontece com hora determinada, pouco antes do amanhecer e dela não
participam mulheres e crianças ou homens que tenham criança pequena. Não pode
haver brincadeira ou correria, “senão ele ataca a gente” (Vicente Bitsezyk). A buzina
transversal, dita de “guerra” (purawy), é soada
391
. Podem tocar flautinhas de ossos de
tuiuiu ou cabeça-seco, mas não aquelas feitas de gavião-real. Apenas o furador toma a
chicha, em uma cuia pequena e separada e que não pode estar cheia. Da cuia grande só
os mais velhos e sábios podem tomar. O caçador não bebe de nenhum dos recipientes.
Aqui, o distanciamento é completo. Se a chicha entornar ou sobrar, o “-hyrikoso” da
onça escapa e então se vingará. É por esta mesma razão que não se pode brincar ou
jogar chicha nos outros. Vicente Bitsezyk relatou a morte de um homem em razão da
panela de chicha estar muito cheia.
O perigo é eminente. Tudo é feito da forma mais cuidadosa, pois o dente não
pode rachar ou cair no chão. Isto libertaria o hyrikoso da onça para que prossiga em suas
vinganças predatórias. Rachaduras que ocorram nos dentes submetidos à furação, além
de impedirem a execução do –hyrikoso em questão, tornam o animal ou sua “alma”
ainda mais violenta. Comentários exaltados são dirigidos a onças mortas que possuam
dentes já rachados, consideradas ainda mais perigosas e ferozes do que as demais. Isto
denuncia que já tenham sido caçadas por outras vezes e tenham escapado pelo descuido
de terem seu dente rachado ou derrubado ao chão em um rito de furação:
“Se não furar o dente dele talvez aconteça algo para as pessoas, que a
onça é um “espírito” (myhyrikoso), dos falecidos, de outras pessoas falecidas,
dos parentes mesmo.” (Salvador Tsetsemy)
O caçador não pode ficar com o dente. Regularmente o presenteia a alguém da
outra metade proximamente relacionado como umzopo ou –zikidi, como também a um
homem mais velho e sábio de qualquer metade. “Se makwaraktsa mata, manda o dente
pro hazobiktsa, para o tio dele (-zopo), sobrinho mais novo (-zikidi). Não fica com o
391
Os demais ritos de furação de dentes acontecem pela manhã e não há toque de purawy.
440
caçador não.” (Vicente Bitsezyk). Uma fêmea de onça pintada (parini ipydydyktatsa) foi
morta certa vez. Fizeram a festa dela para a furação do dente. Meia-noite o marido (da
onça) estava chorando no pé de tazide.
Com as presas da onça são feitos colares que são usados pelos homens rentes ao
pescoço, com uma sucessão de dentes entramados em um cordel de embira. A
quantidade de dentes entramados varia, portanto, com o prestígio daquele que o porta,
sua habilidade em estabelecer e manter relações, o que o fará um “receptor” potencial
deste e de outros tipos de dom. Vi colares de onça feitos de três presas até alguns que
chegavam quase a cobrir todo o entorno do pescoço.
A importância da chicha fica aqui ainda mais evidente. Ela parece concentrar a
capacidade de agência do ser abatido. Se lembrarmos, também na furação de pena há
uma chicha individual para o furador, que se coloca relativamente isolado na casa dos
homens. Esta chicha é servida em uma cuia pequena, que não pode sobrar. Mesmo a
chicha comunitária, quando oferecida pelo distribuidor aos homens, deve ser tomada
por inteiro e este fato é muitas vezes usado como forma jocosa de constrangimento.
Nesta ocasião específica, arranham a lateral direita do tronco dos meninos até 12
ou 13 anos para que cresçam, “estiquem” e tenham muita coragem para não fugir de
bichos. As escarificações têm lugar no mykyry após ocorrida a furação com o êxito
esperado. Os meninos farão este tipo de intervenção uma única vez. O “-zopo arranha e
vai explicando, às vezes pode ser um “-zikidi” mais novo. O importante é que seja
corajoso e “estique” a criançada. Vicente Bitezyk explica que “esticou”, isto é,
“arranhou” o filho de seu –tsy, um rapaz, como ele, do clã makwaraktsa.
Os meninos podem gritar, arranha-se assim mesmo, se precisar a mãe pode ficar
no mykyry para segurar o filho ou a filha. Frisam muito que arranhar faz crescer, ao
mesmo tempo em que pode ser aplicado em crianças que não obedecem.
No fechamento das festas da estação chuvosa, pode ocorrer a nominação e
também a arranhação da boca das mulheres, do peito masculino e a tatuagem com
desenhos tingidos de ambos. Homens furam a orelha. Mulheres e homens furam os
narizes. Não é possível, contudo, que sejam feitas escarificações nos meninos com o
objetivo de crescimento, algo que só acontecerá nos ritos de furação, notadamente, na
furação dos dentes de onça.
Apenas as festas de furação, tanto de dentes como de penas, prestam-se a este
tipo de objetivo. Entretanto, na furação das presas de onça não é permitido que se façam
desenhos ou mesmo que as escarificações sejam tingidas, como pode acontecer no rito
441
do gavião-real. Não há porque tingir – e desenhos serão sempre tingidos e por diversas
vezes a cada novo rito do gavião – algo que será feito uma única vez e parece advir do
abate pontual daquele predador da mais alta periculosidade
392
, uma ocasião que não
deixa de caracterizar-se pela “predação da alteridade” sob uma de suas formas mais
extremas frente ao sentido de “alteridade” que venho apresentando.
De certa forma, possíveis benefícios que sejam gerados ao “matador”– que aqui
são tanto o caçador propriamente dito quanto o furador da pena ou do dente e seu
ajudante - estendem-se também à coletividade em geral e mais especificamente aos
escarificados e tatuados (Fausto 1999:267-268, 274). E, efetivamente, sem a
contribuição do “coletivo” não há rito, penas ou tampouco “abate” da ave ou de seu
myhyrikoso
393
.
Desde o primeiro momento da caçada fica claro o distanciamento do caçador na
mesma medida em que impõe-se a diversificação das pessoas que terão contato com a
harpia. Todo este balanço deverá ser sutilmente equilibrado para que os mais variados
aspectos “produtivos” do rito possam seguir o fluxo de seu cumprimento. O caçador da
harpia será o dono de suas penas, mas não poderá furá-las, usá-las diretamente sem que
antes ocorra o rito coletivo e nem com elas produzir sua própria flecha.
É necessário “afastamento” e a concorrência de vários tipos de “outro” ou
gradientes de “alteridade” (homens e mulheres da mesma e da outra metade, mais
próximos e mais distantes). Este atributo que determina a “ação” do rito e sua “duração”
é também aquele que lhe confere vulnerabilidade. Afinal, há um caminho a ser
“percorrido” por flechas, corpos e pessoas que pode ou não ser bem-sucedido.
A caça destes animais somada a seu abate sacramentado nos ritos de furação, é
capaz de maturar corpos, fazê-los crescer e criar atributos desejados ou necessários a
novas execuções, como não ter medo de bichos. Como marquei, da onça executam seu –
hyrikoso, produzem colares de presas e, através das escarificações, promessas de
caçadores fortes e destemidos. “Jogam” todo o resto do corpo e enterram a cabeça. Da
392
Tolksdorf repara que Matereocutipá vai atrás de uma onça ornado com myhara (Tolksdorf
1996[1961]:169), como ainda hoje alguns mais velhos fazem em expedições para executar inimigos.
393
Entre os Kaxinawa, a festa do gavião-real (tsidin) envolve a confecção de um traje que recobre grande
parte do corpo do líder de canto e de quem quer que se junte a ele como aprendiz, feito das penas da ave.
Para tal, todos aqueles que possuem penas de harpia guardadas devem contribuir, de modo que o caçador,
apesar de possui-las, não será seu beneficiário direto (Lagrou 2002:42). Há uma lógica mais sofisticada e
complexa e que vai de encontro à propriedade privada, habilidade pessoal ou de uma decorrente
demonstração de prestígio (idem:43,44), retirando a arte de um domínio “inerte-expressivo” e
recolocando-a no cerne do pensamento e da ontologia nativos, no caso Kaxinawa, como algo
indissociável do modo de conceber e operar com a alteridade, o que me parece bastante aproriado ao caso
Rikbaktsa.
442
ave, contudo, quase tudo é apropriado e transformado em recursos instantâneos para o
grupo, para além de propiciar também promessas de novas predações no futuro.
Estas projeções temporais dos ritos os imerge no terreno do risco. Tanto as
predações futuras quanto os corpos que se deseja construir de tal ou qual modo são não
mais que “promessas” que se querem eficazes e para tal deverão ser reiteradas e/ou
submeterem-se à disciplina relativamente continuada do indivíduo.
Geraldino Patamy afirma que levam a cabeça do gavião como “recordação ...
pra matar mais”. Explica-me que é como as mandíbulas de queixada penduradas no
mykyry. Antigamente havia muito mais ossos e muitas cabeças de macaco pendurados
no mykyry da Primeira (aldeia onde Geraldino morou e que concentrava grande parte
dos Rikbaktsa quando só havia a TI Erikpatsa). Todos eles comidos no mykyry
394
ou
ganhos em visitações. Antigamente andavam muito e encontravam Iranxe e Menky;
matavam e penduravam as cabeças no mykyry, conta Geraldino. No mykyry ouviu
muitas histórias sobre seringueiros e Iranxe, das “caçadas” aos inimigos dos quais viu as
cabeças dependuradas, mas não podia comê-las, pela pouca idade.
Se é preciso “esquecer” (-spiriktsohokda) para que os “vivos” sejam
efetivamente predados, sujeitos ao infortúnio (cf. Capítulo III), é imperativo “lembrar”
(-sapyka) – e este é um “estado” instável que exige construção constante - para que, por
sua vez, os “vivos” possam ser, senão os únicos, também “predadores”. E isto o faz não
apenas o mykyry com cabeças de caças moqueando ao centro, ossos dependurados e
histórias bem-sucedidas de caçadas, mas também a “casa”, onde sob o fogo pendem
ossos de bichos e sobre a cumeeira flechas e ossos, inclusive de gavião. Aliás, cabeças
de inimigos também podiam ser guardadas nas cumeeiras das casas. Tolksdorf relata
sobre a cabeça do seringueiro Bolívia - que há uma ano havia sido atingido por flechas,
executado com uma bordunada na nuca e depois comido -, trazida por Dornstauder ao
Posto Santa Rosa em 1960. A cabeça estava em uma cestinha trançada, dependurada em
cima da cumeeira de uma das casas (Tolksdorf 1996[1960]:148).
Não poderia deixar de mencionar ainda a característica mnemotécnica que, entre
outros atributos, confere o apreço dos Rikbaktsa à profusão de artefatos que
394
Caças menores e consideradas de pouco prestígio não têm sua cabeça cozida e comida no mykyry.
Destas, principalmente se forem o resultado único de uma caçada, demonstram até certa “vergonha” em
trazê-las à aldeia, como foi o caso de uma pequena cutia (sokoro), morta nos arredores da casa enquanto
comia mandioca, em um dia em que havia visita no mykyry. O caçador deixou o animal inteiro na casa de
seu pai e recolheu-se à sua casa, sem dirigir-se ao mykyry. Sua cabeça permaneceu na própria casa.
Destaco ser a cutia um animal “quase” noturno, que movimenta-se mais do final da tarde ao anoitecer.
Seus dentes são os “escarificadores” Rikbaktsa, associados a objetos cortantes, como a faca, denominada
sokorotsapu (“dente de cutia”).
443
cuidadosamente produzem, dedicando parte significativa de seu tempo, quase que
diariamente. Algo que relaciona-se completamente ao rito do gavião-real como a outros
ritos e acaba por encampar o cotidiano Rikbaktsa. Flechas, já ao crepúsculo são
aprumadas no mykyry. Colares de dentes de porco (parahaze) e de parte da arcada
superior de capivara (wre), o chamado parahazetsapu ou kanapiritsa, são ostentados
ao centro da touceira de colares portados por alguns homens.
É trabalhoso e demorado o fazer de flechas, da coroa radial (tsorek), da
braçadeira (-pazaze) ou da grinalda com cobre-nuca (myhara). Exige, mais do que a
conquista de seus materiais, sua “produção” (como é notadamente o caso das penas do
gavião-real), trançar algodão e fibras vegetais, separar penas em tipos, tamanhos e
cores, juntá-las, entretecê-las. Homens e também mulheres dedicam-se à produção
destes artefatos, que são o resultado de caças, coletas, trabalho manual, dons e contra-
dons que se dão na diacronia.
Mas há uma outra dimensão fundamental e indissociável de tudo isso, que
confunde-se e impulsiona o “fazer” e o “perpetuar” do próprio socius Rikbaktsa. Algo
que relaciona-se àquilo que está também em jogo nos ritos. A produção de artefatos está
profundamente interligada a seus corpos, como vimos, constituindo mais um canal que
os confronta com os mesmos riscos e perigos corporais que rondam os demais planos da
vida.
Artefatos não são apenas sustentados pelas pessoas ou peças de venda. Mais do
que isso, parecem ser constituintes operantes na construção e destruição corporal e na
posição sócio-cosmológica dos indivíduos. São também uma espécie de efeito das
heterogêneas redes de socialidade segundo a qual são construídos.
O fazer de artefatos com padrões intencionais, combinações de cores e mesmo
elementos novos equilibradamente incorporados, tudo isso inclui conhecimentos
específicos e o respeito a concepções de “beleza” e “adequação”, no sentido Rikbaktsa
(tsapyrna). Serão a “lembrança” e o “signo” de que sua produção completou-se, mas
também de que este êxito é apenas relativo.
Peças acabadas dificilmente têm “agência” ou representam qualquer tipo de
ameaça. Cocares utilizados em ritos podem ou não ser guardados para uso em outras
ocasiões, mas é mais comum que sigam seu fluxo, sendo vendidos, trocados ou doados.
“Flautas” também serão desprezadas após os ritos e poderão ficar esquecidas na casa
dos homens ou mesmo pelo pátio da aldeia. Um novo rito provocará a busca de taquaras
444
para a produção de novas flautas segundo regras relativamente estritas, como a
confecção de novos artefatos plumários.
A produção de artefatos, assim como a culinária, substâncias venenosas, a
observação de posturas corporais e atitudes sociais, tudo isto compõe um universo de
“seres” ativos. Uma conjugação de elementos e situações aos quais submetem-se
constantemente e que são capazes de operar combinações e transformações nos corpos.
Mas que nem sempre serão as desejadas.
O processo de crescimento e maturação dos corpos, a promessa de novas
predações é, a partir de ossos, penas ou artefatos, tão “lembrada” ou “evocada” quanto
os riscos rituais (como os envolvidos na furação da pena do gavião-real), a doença e a
morte, dos quais são aspectos indissociáveis. São “troféus” (Fausto 1999:271) mas de
constituição paradoxal.
CONCLUSÃO
MORRER, VINGAR E CAÇAR: O QUASE ETERNO RETORNO DOS MYHYRIKOSO
Nenhuma sociedade é perfeita. Todas comportam, por
natureza, uma impureza incompatível com as normas que proclamam e
que se traduz concretamente por uma certa dose de injustiça, de
insensibilidade, de crueldade. Como avaliar essa dose? A pesquisa
etnográfica consegue-o sempre. Pois, se é verdade que a comparação
num pequeno número de sociedades as faz surgir como muito
diferentes entre si, essas diferenças atenuam-se quando o campo de
investigação alarga-se. Descobre-se então que nenhuma sociedade é
fundamentalmente boa; nem, também, absolutamente má. Todas
oferecem certas vantagens aos seus membros, tendo em conta o resíduo
de iniqüidades cuja importância parece aproximadamente constante e
que talvez corresponda a uma inércia específica que se opõe, no plano
da vida social, aos esforços da organização.
(Lévi-Strauss 1993:
367, 368)
A morte do gavião-real pela sucuri inaugura um ciclo de vinganças. Após
contribuir na geração de um vingador eficaz, a irmã da vítima organiza uma festa para
que a sucuri compareça e seja devidamente executada. Apesar da desconfiança da
sucuri, a reprodução rigorosa de todos os protocolos rituais é utilizada como artifício de
convencimento da futura vítima e ela acaba aceitando o convite e comparecendo à festa.
A vingança tem lugar quando o infeliz convidado e seu filho descansam na rede, dentro
da casa da até então devotada e irrepreensível anfitriã.
O gavião-real é inimigo da sucuri, considerada como um ser metafísico dos mais
perigosos, mas não é exatamente identificado aos Rikbaktsa. Certo é que, em um
gradiente, ele aproxima-se mais deles do que a sucuri. Contudo, tanto gavião quanto
sucuri comportam-se dentro das normas sociais segundo os Rikbaktsa as concebem,
realizam convites para as festas e compreendem os códigos exigidos para a participação
adequada nas mesmas.
Quando terminam de contar a história, porém, o gavião aparece como uma ave
que preda apenas mulheres bonitas, atitude mítica típica de seres metafísicos ancestrais
e que habitam o mundo dos myhyrikoso. Por esta razão, outros índios (wahorotsa), que
não os Rikbaktsa, mataram o gavião da história (acham que os bororo). Por motivo
análogo – por ser um agente de vingança, como também um predador - deve-se furar a
446
pena do gavião-real, para que ele não fique por aí a vagar e, completo eu, a cometer
novas predações.
Esta tese foi uma tentativa de explicar etnograficamente a composição do mundo
e, dentro dele, do socius Rikbaktsa, a partir da inexistência de uma noção absoluta de
identidade, fosse dentro dos domínios da consangüinidade, da co-residência, do
parentesco ou da humanidade. Por outro lado, procurei também demonstrar que a
generalização das semelhanças constitui um movimento em sentido inverso e na direção
de tornar a diferença entre pessoas e todos os seres que interagem no socius e no cosmos
Rikbaktsa, apesar de existentes, algo que não se concretiza em domínios cristalizados e
completamente separados, sejam eles pessoas e coisas, vivos e mortos ou vivos e seres
metafísicos.
Entre quase tudo - incluindo-se nesta classe coisas de natureza aparentemente
diversa -, vivos, mortos, seres metafísicos, homens, animais, artefatos, plantas, humores,
comidas e outras substâncias, há ou pode haver interações, permeabilidade. Algo muito
próximo do mundo ancestral sobre o qual trata amplamente sua mitologia.
Tudo isso acontece não propriamente em planos definitivamente distintos mas
em diferentes esferas de um mesmo plano. Simbólica e efetivamente tudo se passa como
se elas se alimentassem mutuamente. De certa forma, a realidade fundamental de ambas
não deixa de ser, em última estância, comum.
A socialidade gera, inevitavelmente, conflitos e contendas. O adoecimento e a
morte ocorrem por intermédio dos “vivos” como por mortos que “não se esquecem” e
dão continuidade a vinganças ou predam como uma conseqüência perversa da saudade e
do desejo de aproximação. Novos indivíduos por esta intervenção morrem, e com seus
próprios ódios e memórias realimentam o sistema.
A caça é um terreno de alto risco e, se para vivos, mortos sempre podem ser
caças, para os mortos e outros seres metafísicos, sem dúvida, os vivos o são, que deles
se alimentam moqueados. Os princípios cosmológicos parecem então plenamente
expressos no socius, desde as máximas de aprendizado do viver adequadamente em
sociedade, às razões contundentes pelas quais os indivíduos têm comportamentos
socialmente recomendáveis.
Mais importante que isto é o fato de que estes ódios não se limitam a espaços ou
posições determinados. Para os Rikbaktsa há quase sempre uma possibilidade e, de certa
forma, uma inevitabilidade, de relação com o que poderíamos chamar de alteridade,
tanto quanto de conflito com seus próximos, sejam eles afins ou consangüíneos. A
447
ontologia da vingança, do ódio e dos impulsos canibais dos mortos é sempre colocada
ou explicada pela mesma simbólica aplicada aos vivos, e de modo relativamente
independente de definições estritamente genealógicas do parentesco.
Muitas vezes não encontram ou não citam explicações para a vingança ou a
simples agressão dos myhyrikoso. Isto pareceria ainda mais incoerente quando estas
assombrações são identificadas como “parentes” mortos, pelos quais ao menos
demonstram grande apreço. A violência e o “medo” figuram como uma espécie de regra
ou possibilidade de relação entre estas duas esferas do mundo. Afinal, por mais
“próximos”, “pacíficos” e “convidativos” que os myhyrikoso demonstrem-se nos
encontros com os “vivos”, estes últimos não deixarão de ser sua “presa”.
A complementaridade das metades é uma forte idéia na organização social e
importante atributo no campo ritual, contudo, sua atualização é quase sempre precária e
não-equilibrada. Aparece como a “socialização” de uma diferença essencial mas de
conteúdo nunca fixo ou totalmente absoluto. O pertencimento a uma ou outra metade,
isoladamente, não “garante” a operacionalidade dos ritos ou define suficientemente o
cunho das relações sociais cotidianas. Ainda mais, um par de pessoas pode, no decorrer
do tempo, alterar, ao sabor da socialidade cotidiana e de seus interesses, a qualidade dos
termos e da relação estabelecida entre elas.
Os termos de parentesco funcionam muitas vezes como um vocabulário para
expressar ou também provocar proximidade ou distanciamento. Dentro do que
poderíamos chamar de “universo” de afins, há possibilidade de escolha entre termos que
“criam” relações “consangüinizadas” ou não. O mesmo é válido para o que poderia ser
chamado de “universo” de consangüíneos, onde pode-se tão somente “não chamar” – e.
g. não atribuir qualquer termo – alguém genealogicamente muito próximo, seja esta
pessoa da mesma metade ou ainda do mesmo clã.
Uma decorrência interessante disto é que pessoas localizadas em posições
genealógicas análogas podem admitir termos de parentesco diferentes. É como se as
genealogias tradicionais fossem, no caso Rikbaktsa, bastante particulares. Mais do que
dadas ao nascimento, relações são construídas e até discutidas, ao longo da vida do
indivíduo e muitas delas submetem-se a mudanças constantes. Desta forma,
efetivamente, uma metade está longe de significar para outra o universo efetivo da
afinidade. Da mesma forma, a própria metade de alguém não significará o universo da
não-diferença e da consangüinidade
448
Há restrições onde, à princípio, não caberia. Permissões onde, à princípio, não
seria recomendável. Para além disso, há intermináveis discussões oficiosas sobre
pertencimento a um ou outro segmento que marcam indivíduos por toda vida. Esta
heterogeneidade é, muitas vezes, a fonte de ampliações nas redes de relações, mas
também de conflitos, constrangimentos e rejeições mais ou menos públicos.
Resíduos permanecem – como conflitos internos a mesmos segmentos sociais,
paternidades partilhadas, ambígüas ou discutidas – e impulsionam a vida social tanto
quanto a solidariedade o faria e faz. Em verdade, estas duas atitudes não são
necessariamente excludentes e parecem constituir aspectos “imponderáveis” de todas as
relações sociais entre os Rikbaktsa.
Para cada indivíduo haverá sempre um outro que em algum aspecto a ele se
relacione conflituadamente. Esta é também a condição que marca sua escatologia, como
se houvesse reverberações recíprocas entre a mesma e a vida social. Se à morte muda-se
de esfera ou de perspectiva, ódios e raivas permanecem. As vinganças são arrastadas
para o post-morten e é preciso recorrer aos mortos para que se entenda grande parte dos
infortúnios sofridos pelos vivos. A causalidade como a temporalidade unificam estas
duas modalidades de existência e podem atingir tanto pessoas diretamente envolvidas
nas contendas quanto àquelas que são próximas a elas.
Sob o signo destas intervenções, corpos serão construídos ou destruídos, através
da experiência da doença e da morte. E isto ocorrerá mais intensa e marcadamente nos
ritos, mas também no dia-a-dia. As interferências são evitadas a todo custo. Não se
come certas caças à noite, evita-se dormir para não sonhar ou sair de casa quando
prenúcios de infortúnio são identificados. E, como procurei demonstrar sem que tenha
contudo conseguido esgotá-los, estes prenúncios e recomendações são muitos e
constantes. Tanto quanto o conflito, esta relação é inevitável.
Semelhanças e diferenças entre vivos, mortos, homens e seres metafísicos, são
gradientes relativamente abertos ao evento e à própria perspectiva, como também à
capacidade que cada qual tem em sabê-lo e, com isso, dominar a perspectiva deste
“outro” com quem irá interagir. Neste ponto, os myhyrikoso estão, de saída, em uma
situação de vantagem com relação aos vivos. Enquanto vivos inicialmente os enxergam
como caça ou outros animais, os primeiros têm uma visão dupla e inequívoca e são
capazes de impingi-la aos vivos, por sua agência.
Enquanto isso, os “vivos” viram-se como podem. Muitas vezes caças são
abandonadas no mato porque o caçador percebe sinais – como o alegado
449
“emagrecimento” da caça - de que o que carrega é, na verdade, um ser da dimensão dos
mortos. Ruídos interpretados como choros de gente e o som emitido por determinados
bichos como o sazo, são a todo tempo identificados como sinais da proximidade destes
seres. Indicam sua presença ameaçadora, prenunciam doenças ou morte, de quem os
ouve ou de seus parentes. Advertem que será necessário intensificar a já cuidadosa ética
cotidiana. Visitas de bichos que consideram como sparitsa - destinados a “levar” vivos
ou avisar que serão “levados” -, o que só acontecerá em circuntâncias anormais, como
quando não se acompanhou a coletividade e se está só, provocam doenças ou avisam da
morte de parentes.
Todos os mitos, como nos relatos os múltiplos casos em que pessoas interagem
com seres destas esfera, são marcados pelo diálogo de convencimento por parte destes
seres que podem ver, digamos, “adequadamente” e que descortinam, afinal, quem está
diante de quem. Especialmente nos mitos, qualquer ser pode facilmente convencer o
outro de que tem com ele alguma relação ou semelhança e que, portanto, deve ser
acoitado ou poupado de predação.
Mas é nos encontros de vivos com parentes mortos pelos matos, quando os
primeiros distanciam-se do restante do grupo, que este fato fica ainda mais evidente. Os
relatos parecem padronizados. Os bichos que são vistos vão, pela agência dos mortos,
transfigurando-se em imagens humanizadas, diante da visão estonteada e escurecida dos
vivos, neste momento em um estado intermediário da existência.
Ficar tonta e escurecer são também sintomas do envenenamento, da doença e
dos encontros temporários ou definitivos com os mortos. É sinal de que os vivos estão
muito próximos desta outra esfera e prestes a sofrerem sua intervenção.
A caça poderia até ser a prova do êxito de vivos sobre os mortos, a afirmação
dos primeiros enquanto predadores, mas não deixará de poder ser seu futuro infortúnio.
É, assim, um terreno liminar onde, desde a alimentação aos sentimentos e sonhos, tudo
pode ser vitalmente decisivo. A caça é sempre uma possibilidade de relação social mal-
sucedida transfigurada aos olhos do caçador. Seja ela de afinidade, consangüinidade ou,
ultrapassando estes dois “aspectos”, tão somente de inimizade ou de inevitável
predação, como manda qualquer relação entre os vivos e os myhyrikoso.
Neste sentido, a metafísica Rikbaktsa não é jamais completamente transcendente
e parece como que teimar em não se descolar do mundo. Como vimos, dentro de uma
série de outras expressões utilizadas para referirem-se aos mortos ou “aspectos” dos
450
mesmos, como myhyrikoso e sparitsa, há uma que serve igualmente à definição de
“caça”, ou ao menos a uma espécie de caça, que é sibahatsa.
Na festa do gavião-real, nas furações de dentes e nos ritos de lamentação, o
temor da vingança, sobretudo mas não apenas de mortos sobre os vivos, tem lugar
central. No caso da furação das penas e de dentes, este temor sobrepõe-se a qualquer
exigência de uma suposta transformação da natureza mesmo do que se come ou do que
jamais irá ser comido. O problema, ali, não é tanto a materialidade do corpo, mas a
“volatilidade” escapadiça de seu -hyrikoso. O aspecto material dos corpos, aliás, é
aquele que menos interessa em qualquer situação, pois, como vimos, o “corpo” assume
aqui contornos e atributos que estão para além das formas contidas e da concretude.
O ponto comum entre furações de penas e de dentes é o que “se bebe” e isso só
se pode fazer após a operação da furação, tanto da pena quanto dos dentes. O caçador
abate o gavião-real ou a onça, mas a execução completa-se apenas pelas mãos do
“furador”. Lembro que antes que se proceda à furação, as penas ou os dentes não podem
ser utilizados. A chicha destinada ao furador da pena e seu ajudante é semelhente à
chicha servida na furação de dentes; não pode sobrar ou entornar. Ele a bebe
separadamente e fica em um canto da casa dos homens, com uma postura de isolamento
relativo. Da mesma forma, o mingau e a chicha também não podem ser distribuídos
antes que a furação ocorra.
É neste sentido que a festa do gavião é, entre outras coisas, um processo de
“produção” de penas, as penas sendo muito mais do que adornos. O abate e a
sacramentação da execução da ave na furação de suas penas são também a fonte de
novas caçadas, na medida em que, entre outros recursos, novas flechas serão produzidas
sob grande expectativa. Elas serão trocadas por flechas antigas, idealmente entre
diferentes metades, mas devem cumprir um destino. Devem abater caças importantes ou
serem devolvidas em caso de insucesso, sem direito a uma nova troca.
Se podemos entender a furação das penas do gavião-real como algo da mesma
natureza da furação dos dentes, não seria equivocado dizer-se que ali, o que se abate é
não apenas um predador do presente, como também do futuro. É o cessar, ao menos
parcial, do eterno retorno vingativo dos mortos e o prenúncio de êxito em novos abates.
As cabeças de inimigos dependuradas no mykyry não serviam a uma ou a outra metade,
mas “lembravam” o êxito.
Estão também em questão a “produção” ou “reafirmação” de laços sociais, uma
vez que ocorre uma distribuição de pares de pena da ave, realizada pelo caçador àqueles
451
que têm excelência na feitura de flechas, geralmente homens mais maduros, de seu
âmbito de relações. Trocas que abarcam mas ultrapassam o caráter efetivamente
matrimonial.
Entretanto, esta ratificação não poderia deixar de incluir a idéia do risco
temporal. De que esta troca de flechas e quiçá de relações, poderá não ser efetiva,
duradoura ou interessante a ambas a partes. O sucesso da relação que se quer inaugurar
ou mais geralmente intensificar e dar continuidade a partir da troca de flechas não
deixará de significar o sucesso efetivo ou discursivamente alegado da caçada propiciada
por elas.
A socialidade aldeã e até mesmo entre aldeias – pois alguns convidados podem
participar do rito – é a responsável pela fabricação do mingau e da chicha, que depois
serão distribuídos pelos domicílios, gerando, obrigatoriamente, solidariedade entre as
casas. Contudo, esta solidariedade parece condenada a verter-se em efeitos perversos.
Comentários sobre quem é o “distribuidor” da chicha e do mingau e a
adequacidade de seu desempenho e sobre quem contribuiu com matérias-primas ou
trabalho disseminam-se. Quem ganhou ou não daqueles alimentos – mesmo que,
idealmente, todas as casas devam ganhar -, se muita ou pouca quantidade, que partes, se
ajudou ou não na produção daqueles recursos e porque não o fez, são também
decorrências inevitáveis destas ocasiões.
O distanciamento tanto do caçador quanto do furador da pena poderia, então,
representar um modo de evitar o contato entre a caça e aquele par de homens que será
seu verdadeiro executor. As atribuições diferenciais das metades sugerem um ideal
cooperativo, inclusive nos termos de um “impulso perverso” de solidariedade. Sem
dúvida, a concentração de tarefas nas mãos de apenas um destes segmentos sociais
constituiria um novo incremento ao desequilíbrio do sistema. Um outro aspecto desta
divisão e da citada alternância que constituíram uma preocupação dos indivíduos de um
a outro rito de furação das penas do gavião-real é que ela atua no sentido de “diluir” ou
“descentrar” as possibilidades de intervenções maléficas do - hyrikoso da ave ou quiçá
dos próprios vivos envolvidos nas obrigações rituais, por parentelas e grupos sociais
diversos.
Festas, sobretudo as da estação chuvosa, mais duradouras e com maior número
de convidados, são ocasiões consideradas bastante adequadas para a administração de
venenos. Lembro que nestas festas a comida de cada metade é preparada
concomitantemente, porém separadamente. Antes do momento ritual em que as metades
452
tornam-se comensais, há um indivíduo que prova o mingau das duas seções. Só após
esta “prova” as comidas serão partilhadas.
O complexo sistema de clãs e metades Rikbaktsa, isoladamente, não consegue
explicar sua organização social. Isto se a entendemos como a própria rede de micro-
relações as quais acredito serem fundamentais para a compreensão de quem são estes
hoje provavelmente 1000 indivíduos que vivem em pelo menos 32 aldeias diferentes, de
constituição mutável, mas intimamente relacionadas.
O rito do gavião-real é marcado pela “produção”: de penas que sejam
utilizáveis, de flechas, de “flautas”, de dons, de trocas, de conflitos, de novas “presas” e
de corpos, como de chicha e mingau. Parece claro também, que a “predação” é uma
esfera fundamental, afinal de contas, grande parte do rito gira em torno da simbologia
da execução e da caça da ave, dos perigos sofridos pelos corpos, sua possibilidade de
doença e morte, como um risco obrigatório de seu processo de construção. Construção
esta que parece não chegar a um termo definitivo, mas apenas ser mais ou menos
intensa pelas fases da vida do indivíduo e por momentos cerimoniais.
A festa não deixa de produzir a neutralização de suas substâncias nocivas e
predatórias e a própria edibilidade do gavião. Como fica claro, esta ave não pode
jamais, se caçada, ser seguidamente comida, da mesma forma que suas penas não
podem, em qualquer hipótese, ser diretamente utilizadas na fabricação de cocares ou
flechas sem que tenham passado por este mesmo processo. Penas e alimentos não
“existem” em si mesmos ou são “dados naturais”.
Mas é difícil afirmarmos que a predação é aqui a condição da sociabilidade. Não
podemos sintetizar o rito de furação das penas dizendo que ele começa em predação
exterior e termina em troca. O que ocorre não é um processo marcado, com início, meio
e fim. Há um destino determinado, mas não há garantias ou controle absoluto sobre ele.
Socialidade e predação articulam-se ao infinito, e não se consegue apontar exatamente
quem precede quem ou o que será aqui “causa” e “resultado”. Não é possível saber com
segurança – e aqui retomo algo de que já havia me apropriado para caracterizar a
cosmologia Rikbaktsa (cf. Capítulo III) - “qual começo é o verdadeiro começo” (Gow
1997:43).
A caça da ave em si é um ato predatório mas a furação da pena, que só ocorre
uma vez que a socialidade é, digamos, “acionada”, é que parece sacramentá-lo. Por um
lado, para que o animal seja efetivamente predado, a socialidade parece ser pré-
condição. Por outro, a própria produção da socialidade admite a produção simultânea de
453
“resíduos”, como conflitos e mal-estares, uma espécie do mapa do estado de coisas das
relações aldeãs, sempre instável e precária e possível fonte de novos atos vingativos e
predatórios no futuro e até no post-mortem.
Uma socialidade insegura porém frutífera. Esta é a dupla condição da vida social
Rikbaktsa, dentro de um socius com extrema e não-permanente diferenciação interna,
que flutua às custas de uma ampla negociação e manipulação dos indivíduos. Uma
dinâmica que, como disse muitas vezes, confunde-se com a produção de sua
socialidade.
Se dupla, destaco contudo, que não consigo entendê-la enquanto condição dúbia
ou ambígüa. Neste “jogo” não há “empate”. Já havia dito que a vingança jamais alcança
a soma-zero. O mesmo pode-se dizer das grandes festas da estação chuvosa, quando à
princípio tudo terminaria em confraternização. Uma espécie de diálogo ritual entre
“dono” e “convidado”, deixa claro que este gostou muito, mas que depois irá
“descontar” (harape). Se o “desconto” (harape) é semanticamente diferenciado da
“vingança” (tsapusarik) na língua Rikbaktsa, festas são tidas como ótimas ocasiões para
vinganças efetivas de “donos” e “convidados”, mesmo e principalmente quando as
regras protocolares são seguidas.
O contraste entre afinidade e consangüinidade também não vem ao nosso
auxílio. Vimos que não há exatamente uma univocidade entre estes conceitos e sua
correspondência em segmentos sociais discretos ou mesmo entre os blocos “vivos” e
myhyrikoso”, que rondam e ameaçam os vivos nos matos, nos ritos, nos sonhos, como
nas atividades cotidianas Rikbaktsa.
Gostaria de concluir, finalmente, dizendo que, entre os Rikbaktsa, a lógica do
socius se identifica singularmente à lógica do cosmos. A solidariedade tanto quanto o
conflito são aspectos importantes das relações socio-cosmológicas e não ambigüidades
que confundem ou impedem o “êxito” social.
Por uma série do que se poderia chamar à princípio de “precariedades”
sociológicas, mas que na verdade produzem e reproduzem a sociedade Rikbaktsa,
podemos também chegar à sua cosmologia, em uma via de mão-dupla. Estes dois
aspectos demonstraram-se inseparáveis. Aqui toda a violência ou predação também
características de tantas cosmologias ameríndias misturam-se e reproduzem a mesma
lógica da vida social. Longe estão de pairarem em seus “exteriores” e “tangentes”,
produzindo-a apenas por sua negação.
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473
ANEXO 1
474
Anexo 1 – Terras Indígenas e situação fundiária. Localização dos Rikbaktsa frente ao
território brasileiro, oeste de Mato Grosso. Fonte: Povos Indígenas no Brasil 2000:608.
93 – TI Escondido
(homologada)
145 – TI Japuíra
(homologada)
262 – TI Erikpatsa
(homologada)
475
ANEXO 2
476
Anexo 2 – Atividades e Estações
395
.
MESES
Nov Dez Jan
Fev Mar Abr Mai
Jun Jul Ago
Set Out
Início da estação chuvosa
maior permanêcia na aldeia
coleta de castanha, inajá e
pequi
colheita de milho e outros
cultivares (dez. e jan.)
festa do milho fofo (dez. e
jan.)
pesca (veneno [ximbua
batsitsak], arco e flecha,
linhada)
caça (arco e flecha, arma de
fogo)
Alta estação chuvosa
engorda de macacos
danças ocasionais que
redundam na festa de
fechamento da estação chuvosa
coleta
flores de angelim de saia
(tsorõrõ)
pesca (veneno [ximbua
batsitsak], arco e flecha,
linhada)
caça (arco e flecha, arma de
fogo)
nominação, furação de orelha e
nariz, escarificações e tatuagens
Estação seca
pesca de peneira em poços
dos córregos esvaziados
derrubada de roças
festa de derrubada
queima de roças
expedições em busca de
pontas de flechas, penas,
conchas e animais para
criação (no passado,
inimigos)
coleta
caça (arco e flecha, arma de
fogo)
Plantações de milho fofo e
outros cultivares
só o homem planta a batata-
doce (zodo e zodospu). A
mulher colhe, mas o homem
pode ajudar se ficar com “dó”.
O mesmo para o milho-fofo
(wanatsitsa), mas a mulher
pode plantar se o homem
estiver viajando.
coleta de patuá, bacaba, buriti
piracema
caça (arco e flecha, arma de
fogo)
395
Este quadro baseia-se nos trabalhos de Hahn (1976:52), Nabita (1997) e minhas observações de campo. Observo que os Rikbaktsa fazem amplo uso de coleta
durante todo o ano, comendo uma infinidade de frutos silvestres. A caça é também atividade cotidiana.
477
ANEXO 3
478
Anexo 3 - População Rikbaktsa segundo Terra Indígena (TI), aldeia, rio e
município
396
.
TI ALDEIA RIO MUNICÍPIO habitantes
Japuíra Castanhal Arinos Juara 11
Japuíra São Vicente Arinos Juara 7
Japuíra Japuíra Juruena Juara 20
Japuíra Cerejeira Juruena Juara 51
Japuíra Pé de Mutum Juruena Juara 81
Japuíra Jatobá Juruena Juara 41
Japuíra Divisa Marcolino Sangue Juara 20
Erikpatsa Escolinha Sangue Brasnorte 24
Erikpatsa Barranco Vermelho Juruena Brasnorte 35
Erikpatsa Boa Esperança Juruena Brasnorte 25
Erikpatsa Palmeira do Norte Juruena Brasnorte 10
Erikpatsa Divisa Juruena Brasnorte 35
Erikpatsa Cabeceirinha Juruena Brasnorte 27
Erikpatsa Primavera Juruena Brasnorte 71
Erikpatsa Primavera do Oeste Juruena Brasnorte 8
Erikpatsa Pedregal Juruena Brasnorte 15
Erikpatsa União Juruena Brasnorte 10
Erikpatsa Novo Paraíso Juruena Brasnorte 7
Erikpatsa Curva Juruena Brasnorte 60
Erikpatsa Curvinha Juruena Brasnorte 18
Erikpatsa Segunda Juruena Brasnorte 60
Erikpatsa Nova Segurança Juruena Brasnorte 13
Erikpatsa Beira-rio Juruena Brasnorte 49
Erikpatsa Laranjal Juruena Brasnorte 19
Erikpatsa Santa Rita Juruena Brasnorte 36
Erikpatsa Santa Juruena Brasnorte 9
Erikpatsa Seringal II Juruena Brasnorte 13
Erikpatsa Pedra Bonita Juruena Brasnorte 26
Erikpatsa Areia Branca/Bananal Juruena Brasnorte 14
Erikpatsa Nova Juruena Brasnorte 47
Erikpatsa Velha Juruena Brasnorte 24
Escondido Babaçu Juruena Cotriguaçu 20
Fora
397
27
Total 933
396
Estes dados referem-se ao último censo geral feito por mim, em agosto de 2001.
397
Esta categoria refere-se a indivíduos dos quais podiam lembrar-se estarem morando fora das TIs.
479
ANEXO 4
480
Anexo 4 - Croqui da Aldeia Pé-de-Mutum (baizikpyryktsa) (2003).
(A legenda referente ao croqui encontra-se na próxima página).
481
Anexo 4 (continuação) – Legenda para o Croqui da Aldeia Pé-de-Mutum
(baizikpyryktsa) (2003).
1 Árvore “Pé-de-Mutum” (não identificada)
2 Choupana com cobertura de palha, aberta, sem paredes. No centro há uma árvore
cerejeira, chamada também de imburana (myspiokerãwy). Geraldino Patamy indica esta
casinha como também mykyry. Nunca vi homens reunidos ali para nenhuma tarefa. Esta
casinha pode ser usada para que os jovens façam “arrasta-pé” (festas com músicas e
dança regionais) ou para descansar do sol durante alguma tarefa, como capinar. Certa
vez houve uma reunião ampla, com pessoas de outras aldeias e ela sediou-se ali. Tive
notícia de uma sessão xamânica que acontecera ali, com a explicação de que isto não
pode acontecer em casa totalmente fechada, devendo haver algum lado da casa que
permaneça aberto (cf. Capítulo III). Não vi construção semelhante em alguma outra
aldeia, não tendo visitado, contudo, a TI Escondido e a aldeia que há lá.
3 - Casa de Filomena Zukmy (tsawaratsa)
398
habitantes
A Filomena Zukmy (ego)
B Ineida Aikna (makwaraktsa) (D)
C Jairo Wyis (makwaraktsa) (S)
D Klebersom Zobikta
399
(makwaraktsa) (DS)
3 A – “Cozinha” externa com cobertura e sem paredes
4 – Casa de Francisco Pikze (makwaraktsa)
400
habitantes
A Francisco Pikze (makwaraktsa) (ego)
B Ivone Wikaiwy (hazobiktsa) (W)
C Edevânia Taikwy (makwaraktsa) (D)
D Edesiane (bebê / não nominado) (mybaiknytsa)
401
(DD)
398
Filomena é separada de um homem makwaraktsa, que casou-se novamente e mora em uma outra
aldeia.
399
Filho da filha de Filomena e de um homem de mesmo clã e metade, criado por Filomena desde
pequeno. A mãe da criança casou-se com um homem hazobiktsa e mora na aldeia Japuríra.
400
Filho de Geraldino Patamy (casa marcada por 19 no croqui) e sua primeira esposa hazobiktsa,
falecida.
482
E Genivaldo Takamy (makwaraktsa) (S)
F Josivaldo Wakiamy (makwaraktsa) (S)
G Denivaldo Wikba (makwaraktsa) (S)
H Jevaldo Jokzimytsa (makwaraktsa) (S)
4 A – Cozinha externa fechada
5 Casa de Cleusa Naidy (makwaraktsa)
402
habitantes
A Cleusa Naidy (makwaraktsa) (ego)
B Cleusimar Naidy (makwaraktsa) (D)
C Jeferson Kokoimytsa (hazobiktsa) (S)
D Gederson Tamatsi (hazobiktsa ?) (S)
E Welison Mapedata (makwaraktsa) (S)
F Jedemilson (não nominado)
403
(S)
6 Casa de Joel Biktsumy (makwaraktsa)
404
habitantes
A Joel Biktsumy (makwaraktsa) (ego)
B Leonice Waikze (zerohopyryktsa) (W)
C Lenice Wikmy (makwaraktsa) (D)
D Clenice Wanuze (makwaraktsa) (D)
401
Esta criança é filha da filha de Francisco e de outro rapaz, da metade makwaraktsa, e do clã
mybaiknitsa, morador da mesma aldeia.Toda a gravidez a menina permaneceu na casa do pai e pouco
encontrava com o pai da criança. Ambos eram referidos enquanto solteiros até o momento em que deixei
a aldeia. Nesta ocasião, a menina estava com o pai da criança passando uma temporada em uma aldeia
distante, no rio Arinos, na casa do “irmão” de seu pai. Aos poucos esta relação vai se consolidando,
relativamente distanciada dos comentários cotidianos sobre seu caráter endogâmico.
402
Cleusa é viúva de um homem hazobiktsa, que morava na aldeia Pé-de-Mutum. Têm relacionamento
com um homem makwaraktsa casado que mora em outra aldeia e tem também filhos com ele.
403
Filho de Cleusa com um branco. Próximo à minha partida da aldeia, Cleusa disse-me que Mariana
(zerohopyryktsa) o havia nominado, mas que ela havia esquecido o nome. Perguntei-lhe se Geraldino
(makwaraktsa) não saberia o nome para me dizer. Ela respondeu-me que ele sabia mais os nomes de sua
parentada”. É um caso a ser acompanhado.
404
Filho de Geraldino Patamy (casa marcada por 19 no croqui) e sua segunda esposa tsikbaktsatsa, Ana
Maria Zabawy.
483
7 Casa de Eriberto Nabita (hazobiktsa)
405
habitantes
A Eriberto Nabita (hazobiktsa) (ego)
B Maria Luíza Adezazi (mybaiknytsa) (W)
C Valdeci Awi (makwaraktsa) (WS)
406
D Hélio Mytsiuka (makwaraktsa) (WS)
E Odélio Mydipy (makwaraktsa) (WS)
F Laércio Tsodoi (makwaraktsa) (WS)
G Luizinho Kyikmy (makwaraktsa) (WS)
H Maraíza Apima (hazobiktsa) (D)
I Marinilza Atupi (hazobiktsa) (D)
8 Escola
9 Casa de Edevaldo Itsidi
407
habitantes
A Etevaldo Itsidi (makwaraktsa) (ego)
B Clarisnete Apawy (umahatsa) (W)
C Dielton Jokzimy (makwaraktsa) (S)
D Dieli Atsuha (makwaraktsa) (D)
E Giele Zarita (makwaraktsa) (D)
10 Casa de Arnildo Jokmabaj
408
habitantes
A Arnildo Jokmabaj (makwaraktsa) (ego)
B Silvia Tapyk (tsuãratsa) (W)
C Josimar Tsaitata (makwaraktsa) (S)
D Marinho Zoizy (makwaraktsa) (S)
E Cleisiomar Tsamasyik (makwaraktsa) (D)
405
Casado com a filha de criação de Geraldino Patamy. Mudou-se recentemente para a Pé-de-Mutum,
onde é professor.
406
Maria Luíza fora casada com um homem makwaraktsa que foi assassinado no Barranco Vermelho e
tem cinco filhos deste homem.
407
Edevaldo é filho de Francisco Pikze (casa marcada por 4 no croqui) e Ivone Wikaiwy.
408
Filho de Geraldino Patamy (casa marcada por 19 no croqui) e sua segunda esposa Tsikbaktsatsa, Ana
Maria Zabawy.
484
F Cleumar Hoktsyk (makwaraktsa) (S)
G Silmara TsoΦi (makwaraktsa) (D)
11 Casa de Ismael Mutsipy (zerohopyryktsa)
habitantes
A Ismael Mutsipy (zerohopyryktsa) (ego)
B Elizabete Apitao (mybaiknytsa) (W)
C Deisiele Tobikmy (D)
D Aldiane Tsiknimy (D)
E Aldiel Aputã (S)
12 Casa de Teresa Makby (mybaiknytsa)
409
habitantes
A Teresa Makby (mybaiknytsa) (ego)
B Valério Azõmramy (mybaiknytsa) (S)
C Marlucia Kudipa (mybaiknytsa) (D)
D Cleocilina (mybaiknytsa) (D)
13 Casa de Pudai (tsikbaktsatsa)
habitantes
A Ozéias Pudai (tsikbaktsatsa) (ego)
B Mariana Hokmawy (zerohopyryktsa) (W)
C Vando Tsimytsa (tsikbaktsa) (S)
14 Casa de Gentil Sasau (buroktsa)
410
habitantes
A Gentil Sasau (buroktsa) (ego)
B Marivonete Kudi (tsikbaktsatsa)(W)
C Gersio Kawã (buroktsa) (S)
409
Teresa Makby é viúva de um homem mybaiknytsa.
410
Genro de Pudai (casa marcada por 13 no croqui).
485
15 Casa de José Mauro Paziuta (tsikbaktsatsa)
411
habitantes
A José Mauro Paziuta (tsikbaktsatsa) (ego)
B Cirlene Apute (zerohopyryktsa) (W)
C Ivani Watsõi (tsikbaktsa) (D)
16 Casa de Manuel Disty Munduruku
412
habitantes
A Manuel Disty Munduruku (ego)
B Vera Ameo(tsikbakstatsa)
413
(W)
C Reginaldo (WS)
414
17 Casa de Paulo Tsikdi (tsuãratsa)
habitantes
A Paulo Tsikdi (tsuãratsa) (ego)
B Olga Aikdapa (makwaraktsa) (W)
C Alenildo Matak (tsuãratsa) (S)
D Genilda Mazaik (tsuãratsa) (D)
E Clenilda Zabiktsawy (tsuãratsa) (D)
F Clenildo Tazurara (tsuãratsa) (S)
G Edenilda Hokmawy (tsuãratsa) (D)
H Lucineide Tezok (tsuãratsa) (D)
415
I Alenilda Manihã (tsuãratsa) (D)
416
J Alenilson Ĩtsĩ (makwaraktsa) (DS)
417
411
Filho de Pudai (casa marcada por 13 no croqui).
412
Índio Munduruku. Reparo que esta casa é mais afastada das demais, sendo sua entrada coberta de mato
relativamente alto. Pouco são vistos a andar pela aldeia. Algumas vezes vi o Munduruku jogando futebol
com os Rikbaktsa, mas não há uma participação em tarefas e ritos coletivos, ao menos nos que vi (nem
dele e nem da esposa).
413
Vera foi “criada” por Pudai (casa marcada por 13 no croqui). Comentam que o Munduruku o chama
de sogro, mas nunca presenciei.
414
Este menino, na época com cerca de 13 anos, é surdo e só se comunica por sinais. É pouco visto,
devido ao fato desta família quase não transitar pela aldeia. Não é nominado ou, pelo menos, não era até
2003. Dizem ser filho de um homem da metade hazobiktsa, casado com outra mulher e que mora em
outra aldeia. Geraldino Patamy disse-me não saber o nome dele. Em algum momento comentaram que
Mariana (zerohopyryktsa) teria escolhido para ele um nome da metade hazobiktsa (lembro que ela teria
feito o mesmo para o filho de Cleusa e de um branco).
415
Filha de Paulo com sua primeira esposa tsikbaktsa, falecida.
416
Filha de Paulo com sua primeira esposa tsikbaktsa, falecida.
417
Filho de Manihã com um homem makwaraktsa casado com sua irmã. O homem não tinha, até então,
relações com o filho, porque as irmãs eram brigadas. Entretanto, em maio de 2003 estas mulheres
voltaram a se falar. É um caso a se acompanhar.
486
18 Casa de Mamita (makwaraktsa)
habitantes
A Marinho Mamita (makwaraktsa) (ego)
B Neuza Tebe (hazobiktsa) (W)
418
C Aristides Tsapyk (makwaraktsa) (WDH)
419
D Rosália Tabawy (makwaraktsa)
420
(WD)
E José Paizazik (makwaraktsa) (WDS)
F Valdomiro Hokzitsa (makwaraktsa) (WDS)
G Cleusinete Myzaiwy (makwaraktsa) (WDD)
H Clemer Mapezata (makwaraktsa) (WDS)
19 Casa de Geraldino Patamy (makwaraktsa)
421
habitantes
A Geraldino Patamy (makwaraktsa) (ego)
B Ana Maria Zabawy (tsikbaktsatsa) (W)
C Helena Zydyk(tsikbaktsatsa) (W)
20 MYKYRY
21 “Casa da FUNAI”
Casa em madeira e alvenaria, sem móveis, sem cozinha e sem banheiro.
Funciona como depósito de merenda escolar e, eventualmente abriga funcinários da
FUNAI ou FUNASA ou outros brancos visitantes ocasionais. Nesta casa há um
compartimento onde funciona o sistema de rádio da aldeia.
418
Tebe foi casada com One (makwaraktsa), morto por um Iranxe casado com uma índia Rikbaktsa.
419
Aristides é filho da irmã de Tebe e casou-se em endogamia de alto grau com a filha de Tebe.
420
Tabawy e Aristides têm mais uma filha casada, que morava com o sogro na aldeia da Curvinha. Em
2003, Creucina Dawa (makwaraktsa, a citada filha de Tabawy), seu marido Juliano Tsabaitatse
(umahatsa) e a filhinha Suelen Hatsau mudaram-se para a Pé-de-Mutum wem 2003. Sua casa não consta
do croqui porque é por demais distanciada das demais casas da aldeia (cerca de 20 minutos de
caminhada), onde Creucina tem problemas sérios de relacionamento com duas outras mulheres
hazobiktsa.
421
A maior parte da pesquisa morei nesta casa. Em minha primeira viagem, de 40 dias, dormia na casa da
FUNAI (casa marcada pelo nº 21 no croqui) e passava o dia na casa de Filomena Zukmy, que por um
conflito, estava ocupando provisoriamente o mykyry (casa marcada pelo nº 20 no croqui). Quando retornei
para a pesquisa propriamente dita cheguei a ficar dez dias na nova casa de Filomena (casa marcada pelo
nº 23 no croqui), mas depois fui convidada a ficar na casa de Geraldino Patamy.
487
22 wytyk. Há algumas sepulturas neste lugar.
23 Campo de futebol
Praticamente cotidianamente jogam futebol, ao cair da tarde. Homens e
mulheres jogam misturados.
24 aramado com antenas e equipamentos do SIVAM (Sistema de Vigilância da
Amazônia)
488
ANEXO 5
489
ANEXO 5 - RELAÇÕES “-PEHE DE TABAWY, MULHER MAKWARAKTSA, CASADA COM
HOMEM TAMBÉM MAKWARAKTSA
(MZS), COM COMENTÁRIOS
Casa 1 (Pudai)
1 carazinho (tsikbaktsatsa)– ka-okaha
2 Mariana (zerohopyryktsa)– ka-jetsy
3 filhos – ka-tsy (filhos de ka-okaha)
4 Gentil (marido da filha)– ka-eki-tse Gentil é filho de Masi (buroktsa), uma outra
mulher tsikbaktsatsa diz que não o chama porque ele é hazobiktsa (buroktsa), mesmo
sendo marido de sua –puky.
Reparo, ainda, que Tabawy não chama a filha de Carazinho de –puky. Outra coisa
interessante é a categoria -ekitse, que “apaga” o dado de metade, mas que também não
classifica a pessoa como –jetsy.
Casa 2 (José Mauro)
1 José Mauro (tsikbaktsatsa)– katsy
2 Cirlene (zerohopyryktsa) ka-ekyste Reparo que Cirlene (zerohopyryktsa) é chamada
de ka-ekyste e Mariana, também zerohopyryktsa, é chamada por ka-yetsy, que indica
maior proximidade, apesar de serem de metades diferentes. O critério é, de fato, a
“proximidade” socio-afetiva masi do que por clãs necessariamente. Eles dizem algo,
fornecem as possibilidades, mas não determinam.
3 filhos pequenos – ka-puky tsibik
Casa 3
1 Filomena (tsawaratsa)– ka-jetsy ka-okaha i-aksi / ka-pare ou ka-paretira. Tabawy diz
que ela casou com seu “irmão mais velho”, é cunhada.
2 filhos homens (makwaraktsa)– ka-tsy
3 Neida (filha) (makwaraktsa) ka-puky
490
ANEXO 5 - RELAÇÕES “-PEHE DE TABAWY, MULHER MAKWARAKTSA, CASADA COM
HOMEM TAMBÉM MAKWARAKTSA
(MZS), COM COMENTÁRIOS (CONTINUAÇÃO)
Casa 4
1 Makby (makwaraktsa)- ka-eky
2 finado (mybaiknytsa) ka-okaha . Reparar que este casamento ocorre em violação de
exogamia, mantém-se, contudo, a terminologia de “consanguinidade”
3 filhos (mybaiknytsa) ka-tsy
4 filhas (mybaiknytsa)– ka-puky
Casa 5
1 Geraldino (makwaraktsa)– ka-zotsy
2 Zabawy (tsikbaktsatsa) ka-ytsitsik Ela a criou quando sua mãe Tebe (hazobiktsa)
tomou a mordida de cobra.
3 Helena (tsikbaktsatsa)– ka-tsy / ka-puky
Casa 6
1 Creusa (makwaraktsa) ka-puky / ka-okaha-ste
2 finado (marido de Creusa) (hazobiktsa) ka-zopo
3 finado Vindilino (pai de Creusa) (makwaraktsa) ka-okaha. A mãe de Creusa era sua
ka-jetsy.
4 Filhos (hazobiktsa) Ka-steoka
Casa 7
1 Chico (makwaraktsa) katsy
2 Ivone (hazobiktsa) - ka-eki-ste Reparo este uso, quando poderia ser kazoposte
3 – filhos dele (makwaraktsa) - ka-tsy-hyry-tsa
4 – Edevânea (filha) (makwaraktsa) - ka-puky
5 – Edesiane (filha de Edevânea, em relação de violação de exogamia) (mybaiknytsa) -
ka-pukyste
491
ANEXO 5 - RELAÇÕES “-PEHE DE TABAWY, MULHER MAKWARAKTSA, CASADA COM
HOMEM TAMBÉM MAKWARAKTSA
(MZS), COM COMENTÁRIOS (CONTINUAÇÃO)
Casa 8
1 Manoel (índio Munduruku)– a chama de “prima”
2 Vera (tsikbaktsatsa) ka-tsy / ka-okaha-ste Reparo que não é chamada de –puky.
3 Regi – ka-steoka – ka-zopotse
Casa 9
1 Arnildo (makwaraktsa)– ka-tsy
2 Silvia (tsuãratsa)– ka-eki-ste Reparo este uso, quando poderia ser ka-zikidiste, ou
ainda ka-jepuky.
Casa 10
1 Ismael (tsuãratsa/zerohopyryktsa)– ka-ekitse
2 Lisa (mybaiknytsa/tsuãratsa)– ka-puky / ka-tsy
3 filhos – ka-tsekuka /ka-steoka (para meninas) (?) Não entendi porque esta fissão na
classificação / filhos ou são de tse ou de ste / isto seria independente do sexo das
crianças consideradas)
Casa 11
1 Paulo (tsuãratsa)– ka-ytsitsik-tse Não é filho de –zopo, não conhece o pai de Paulo.
Reparar a diferença deste termo para ka-ekitse.
2 Olga (makwaraktsa) ka-zo-tsy-ste
3 filhos (tsuãratsa)– ka-tsy-hyrytsa Refere-se a Olga.
4 Shina e Ali (tsuãratsa) ka-ekyste.
Casa 12
1 Joel (makwaraktsa)– ka-tsy
2 Nice (zerohopyryktsa)– ka-ekyste
3 filhas (makwaraktsa)- ka-puky
492
ANEXO 5 - RELAÇÕES “-PEHE DE TABAWY, MULHER MAKWARAKTSA, CASADA COM
HOMEM TAMBÉM MAKWARAKTSA
(MZS), COM COMENTÁRIOS (CONTINUAÇÃO)
Casa 13
1 Etevaldo (makwaraktsa)– ka-tsy
2 filhas (makwaraktsa)– ka-puky
3 filhos (makwaraktsa)– ka-tsy
Casa 14
1 Eriberto (hazobiktsa) ka-eki-tse
2 Maria Luíza (mybaiknytsa)– ka-eky
3 filhos de Maria (mybaiknytsa) com finado Luisinho (makwaraktsa)– ka-tsy – finado é
–okaha
4 filhos de Eriberto – ka-tsekuka
Casa 15
1 Mamita (makwaraktsa) ka-zo mas seria filha adotiva. Reparo que aqui há o uso de –
zo para pai de criação. Em um outro momento, me disse que o chamava ka-okaha.
2 Tebe (hazobiktsa) -ka-je
3 Aristides (makwaraktsa) – ka-barikta
4 filhos de Tabawyka-tse
5 filhas de Tabawy – ka-ste
493
ANEXO 6
494
Anexo 6 Espécies e Comestibilidade
Mamíferos Comestibilidade
Tapiridae
anta (Tapirus terrestres) (piku) Sim. Comestibilidade diferencial por idades e partes da anta. Gordura
interdita para meninos a partir de 12 anos. Mulheres em amamentação
não devem comer ipewy (barrigueira dela), pois o leite fica “preso”.
ijapok (rabo dela) e itõrõ (vagina) só velhos comem. irikdo (seu pênis)
outros homens cortam e jogam fora. ipirik (parte do pescoço com parte
do osso da coluna) mulher grávida não pode comer, “a criança só sobe,
demora a nascer” e nem homem que esteja com mulher grávida.
Tayassuidae
queixada (Tayassu peccari)
(parahaze)
Sim. Gordura interdita para meninos a partir de 12 anos.
caetetu (Tayassu tajacu)
(pyrikto)
Sim. Restrições da gordura para rapazes e moças.
Cervidae
veado vermelho (Mazama sp.)
(hozipyryk tsaririta)
Não c/exceções. Dificilmente comem. sparitsa.
veado cinzento (Mazama sp.)
(hozipyryk iywywyta)
Não.
veado branco (Mazama sp.)
(hozippyryk ibarazata)
Sim.
Hydrochaeridae
capivara (Hydrochaeris
hydrochaeris) (wre)
Não. tsitoskarta. “fedido”.
Agoutidae
paca (Agouti paca) (wotyk) Sim. Exceção entre os animais “noturnos”.
Dasyproctidae
cotia (Dasyprocta) (sokoro) Sim.
Erethizontidae
ouriço-cacheiro (Coendu sp.)
(irizik/ “macaco ouriço”)
Sim c/ exceções. Não é usual, “dá medo”.
Muridae, Echymidae
ratão (tohorazi) Não.
rato (toho) Não.
Sciuridae
caxinguelê (Sciuridae sp.) Sim.
Cebidae
guariba/bugio (Alouatta)
(dirik/diriny)
Sim.
macaco-prego (Cebus) (boa) Sim.
macaco-coatá (Ateles) (ereme) Sim.
cuxiu (Chriropotes) (Φuita) Sim.
macaco-de-cheiro (Saimiri
Sciureus) (bisik)
Não. tsitoskarta. “fedido”
macaco paraguaçú (Pithecia
monachus) (boaza)
Sim.
macaco barrigudo (Lagothrix
lagotricha) (eremeza)
Sim.
macaco-da-noite. Descrevem 3
tipos, onde talvez incluam-se
animais que não sejam Cebidae
(akwany / unoboatsa /tsidik)
Não.
Callitrichidae
japuçá ou macaco zogue-zogue”
(tobopyry)
Sim.
Procyonidae
quati (Nasua nasua) (aΦwi) Sim. Identificado a macacos. Pode ser sparitsa.
495
Anexo 6 Espécies e Comestibilidade (continuação)
Canidae
cachorro-do-mato (Atelocynus microtis) e outro tipo
(não identificado) (tsomykmy e parini pazeze)
Não. Se encontram, matam e furam os dentes.
Mustelidae
irara (Eira barbara)(ozo) Não. Se encontram, matam e furam os dentes.
ariranha (Pteronura brasiliensis) (wyãkara) Não. Se encontram, matam e furam os dentes.
lontra (Lutra sp.) (izikny) Não.
Felidae
onça pintada (Panthera onca) (parini ipydydykta ou
zubakata)
Não. Se encontram, matam e furam os dentes.
onça preta (var. melânica) (parini nioktsĩzita) Não. Se encontram, matam e furam os dentes.
onça parda/suçuarana (Felis concolor) (parini
tsaririta) e (parini tsaririta põrotsakta/ “com lombo
preto”)
Não. Se encontram, matam e furam os dentes.
jaguatirica (Felis pardalis)(parini iharatoata) Não. Se encontram, matam e furam os dentes.
jaguarundi (parini iharatoata bisikborotsa) Não. Se encontram, matam e furam os dentes.
Myrmecophagidae
tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla)
(zono)
Não comem nenhuma espécie de tamanduá.
batsisapy “feio, inadequado”. “amigo de onça”.
tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla)
(waroko[?])
Idem.
Bradypodidae
preguiça (Bradipus sp.) (zarakuruk / diri) Não, c/exceções. Tem “espinhos”. Uma vez um
homem disse-me que comia. “avô dos Rikbaktsa”.
Dasypodidae
tatu canastra (Priodontes maximus) (tsamydoho) Não. “Batsisapy”. “feio, inadequado”. muzuza.
tatu-quinze-quilos (Dasypus kapplen) (piu babatu) Sim. Gordura interdita para meninos a partir de 12
anos.
tatu-galinha (Dasypus novemcinctus)(piu pyry) Sim.
tatu pequenininho (não identificado) (kĩu kĩu) Sim.
Didelphidae
gambá (Didelphis sp.) (Harãmy pehok) Não comem. Mijo fedido, tsitoskarta. Se
encontrar tem que matar. muzuza
gambá-de-rabo-liso/pelo duro (Didelphis sp.) (Tsapik
ou Harãmy zihydik)
Não. batsisapy “feio, inadequado”,. tsitoskarta
“fedido”.
Noctilionidae
morcego (byrizuk) Não. Fazem okyry do pênis, para pessoa ficar
louca.
morcego grande, hematófago (kokotai) Idem.
Répteis
Não comem nenhum jacaré.
Jacaré (apoheryk) muzuza “agoura”, batsisapy
“feio, inadequado”. Não se pode nem matar. Se
come o filho fica “murcho”, não engorda.
Têm desprezo alimentar por calangos e afins,
comentando sempre sobre a alimentação dos
Nambikwara.
Citam puzeze (jacaré-d’água); tsiktsarabobo
(lagarto d’água, camaleão[imitado nas festas] );
zamo (lagartixa); tsikaworyk (lagarto grande, gosta
de ovo de galinha);awyri (lagartixa pequena);
wamo (jacaré grande); kyryiryk ou apoheryk tsibik
(jacaré pequeno e “brabo”, é sparitsa, fica na lama
mole no fundo do córrego, só com a cabeça para
fora. tsitoskarta, “fedido”.
itsikmanamai (papa-
vento riscasdinho)
496
Anexo 6 Espécies e Comestibilidade (continuação)
Répteis
Não comem nenhuma cobra. myhyrikoso
(assombração), todas são batsisapy (feia,
inadequado).
Se encontram e, principalmente, se mordem a
pessoa, têm que matar. Deve-se também enterrar
bem, para que seu “osso” não machuque ninguém
(é como se ele permanecesse “ativo”). Citam um
homem que morreu por isso; o “osso” finca no pé
e atinge toda a perna.
Se tomam chicha de “criança nova” (feita pela
mãe da criança) e depois que “esquecem”, vão ao
mato, há uma cobra (wanupapyry”punho de rede”)
que “desconta” (tsapusarik), enrola na perna da
pessoa.
Citam myha (cobra relacionada, especialmente, a
aviso de morte [pretas, morte de branco,
vermelhas, de rikbaktsa], esta é o único tipo de
cobra que não se pode matar, senão a pessoa
morre), Tõhikyri (cobra cipó, comida de urubu),
Boipeva (pyryhykza), Biotsa (cobra verde); Zodik(
cobra pintadinha), Uno (cobra preta), hyritãtã
(cobra coral) e, evidentemente, urototok (sucuri),
ser myhyrikoso.
Quelônios. wiktsabo (jaboti), comem a carne.
Jovens não podem comer ovos, nem os da barriga
do bichoe nem os encontrados pelo mato, e nem
crianças podem brincar com eles (os ovos). Dá
ferida.
wiktsabohai (tracajá) comem a carne e os ovos.
Não comem o “rabo”: “peida feio”.
wiktsabohaiza (pescoço torto) não comem,
batsisapy. A carne dá ferida. Só comem os ovos.
hyta (jabotizinho do mato), não comem. Caso
comam, o pescoço dói. O mesmo acontece se
pegar ou brincar com ele. muzuza (agoura).
Cantam quando chove muito.
Anfíbios
Não comem nenhum tipo. Muitos sapos são
imitados na festa da chuva. Há relato de criança
que “assustou” e adoeceu (ficou fraco, magro)
com a imitação da worõworõktsaje (mãe do sapo)
Citam worõwõrõktsa (sapo que “canta nas
enchentes”), porõporõ (sapão, andam na chuva),
myrikpui (perereca), rikbateo (comida de gavião
[tsikwohorek]), Woresopõrõ (sapo do oco do pau,
ensinou a mulher a bater ximbua para matar
peixes; copulou com a mulher do vizinho em um
mito), hyreke (há hyreke okyry, para criança
nascer sem cabeça), waria (sapinho amarelo)
497
Anexo 6 Espécies e Comestibilidade (continuação)
Aves
Comem uma infinidade de aves, e até pequenos
pássaros, como pombas e o beija-flor
(ikyrik).Comem babari (urutau, mãe-da-lua-
gigante), arõn tõn tõn (urutau, mãe-da-lua), ãzi
(urutau). Comem todos os papagaios, tucanos,
mutuns, periquitinhos e araras (contanto que não
sejam de criação). [recolhi mais de 120 tipos de
pássaros comidos]
Não comem:
“gaivota” (tsidi; usam a penugem); alguns
“gaviões” (wohorektsa) [citados no “Capítulo V”];
urubus [idem];
sazo (urutau-pequeno /sparitsa karara [criação de
sparitsa]), toruk (corujão) [alguns comem, mas
não é usual; partsikzo (corujão, muzuza
[agoura]), harãmytsitõrõrõ (corujinha), não
comem, batsisapy “feio, inadequado”; ciganinha
(ene), é fedido, tsitoskarta, mas usam as penas);
tere tere (chapéu-velho, imitam na festa);
pabopabo (passarinho de olho comprido; criado a
partir dos olhos de um ser metafísico)
Peixes
Comem muitos tipos de peixes, de variados
tamanhos. Comem também crustáceos, como
caranguejinhos (haraky) e pequenos camarões
(patsa).
Não comem: peixe-agulha (zeobek); causa “dor
de espinhaço”;
roaisopykyta (peixe-boi[?]).
Insetos
madedetsa (içá); comem os alados, nos últimos
meses do ano.
matsiriktsa (formigas carregadoras), comem. Elas
ensinaram os Rikbaktsa a plantar sementes.
Deram-lhes as sementes, antes não sabiam.
Comiam só cogumelos e frutas
sisintsa (tocandira) comem.
ikuntsa (mangava) não comem. Dá ferida.
pasik(tucura verde); não comem, batsisapy, “feio,
inadequado”
aintsa (tucura carijó); comem.
Ibazadata (tucura branca); comem.
Hoksoik (tucura de asa roxa); comem.
pitsi wyinyputsa (coró de castanheira) comem
myripepetsa wyinyputsa (coró de caju) comem.
tapõrõtsa wyinyputsa (coró de seringa)
antigamente comiam.
irariktsa wyinyputsa (coró de coco) comem.
pikuruk wyinyputsa (coró cabeludo) não comem.
Fungos
ykyirik –(cogumelo pequeno, rosado); comem.
hokspi –. (orelha-de-pau); comem
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ANEXO 7
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ANEXO 7 – CADERNO DE FOTOS E LEGENDAS
1 Rapaz Hazobiktsa “desembrulhando” o gavião-real da pacova.
2 Rapaz Hazobiktsa retirando as penas do gavião-real, auxiliado por Eriberto Nabita
(hazobiktsa) [à esquerda, ao lado do rapaz] e Pudai (tsikbaktsatsa) [à direita da foto].
3 Mulheres no pátio, a queimar a ave. Mulheres Makwaraktsa podem retirar penas que
desejem, mas não podem queimá-la. Na foto, Ivone Wikaiwy (de costas), mulher
hazobiktsa, uma das encarregadas de queimar a ave e, ao fundo, Maria Luíza Adezazi
(makwaraktsa) a retirar algumas penas.
4 Homens no mykyry durante a festa do gavião-real. Salvador Tsetsemy (makwaraktsa),
convidado da aldeia Jatobá, costura penas menores do gavião em cordel-base estendido
entre flechas fincadas ao chão. Ao fundo, Ivan Ubupyk (hazobiktsa), convidado da
aldeia Jatobá que foi o “furador” das penas em um dos ritos, a comer beiju com o
mingau da ave no fundo do mykyry. Ao chão, no canto direito da foto, há um tsanipe,
um furador e dois ossos da ave, para que sejam feitas flautinhas. Acima, no canto
esquerdo da foto, maxilar de queixada. Reparar também na quantidade de flechas
encostadas na parede do mykyry.
5 Outro ângulo da “costura” das penas. Reparar a panelinha menor de alumínio ao chão,
na frente do furador. No chão do mykyry, ainda, beregezektsa (“flautas”) antigas, beiju e
mandioca.
6 Esta foto é de um rito diferente do retratado anteriormente. O furador está à esquerda,
Jurandir Abudo, homem makwaraktsa convidado da aldeia Jatobá. Ao fundo, com
camisa de estrelas, está o caçador da ave nos dois ritos, Paulo Tsikdi (tsuãratsa),
mexendo em algumas penas, antes da distribuição. À direita da foto está Totsimy,
homem hazobiktsa convidado da aldeia Jatobá.
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7 Ao centro está Geraldino Patamy (makwaraktsa). Ao chão, o mingau (zaro) e o beiju.
Ao fundo, no canto esquerdo da foto, o caçador, Paulo Tsikdi. Ao fundo do mykyry, um
trançado de peneira inacabado.
8 Panela com a gordura da ave, fervendo em água, onde será acrescentada a massa de
castanha-do-pará.
9 Mulheres quebrando castanhas para o mingau. À esquerda, Ivone Wikaiwy e Tebe,
ambas hazobiktsa, que passariam a ralar as castanhas. À direita, Teresa Makby e
Tabawy, mulheres makwaraktsa, ajudando a quebrar as castanhas.
10 Tebe enfeita as “flautas” para a festa das mulheres.
11 Geraldino Patamy recondicionando as “flautas” para a festa das mulheres. Assopra o
aeroduto interno (inuwy).
12 Geraldino Patamy exibe o cordel base com os tufos do meu cabelo, que cortou para
fazer uma myhara. Usa cordão rente ao pescoço com presas de onça. No teto da casa,
feixes de ponta de flecha jurupará (zayta).
13 Mulheres auxiliando-se na produção de um “colar de casamento (taΦuatĩ
tutarãtsa)”. Da esquerda para a direita estão Tabawy, Zabawy e Tebe. Detalhe da
panelinha com chicha no chão
14 Geraldino Patamy no mykyry, fazendo uma saia (ipebawy) para o cobre-nuca
(ijopiskihiwy) da myhara.
15 Geraldino Patamy, Zabawy e Makby pescando peixinhos com peneiras nos poços do
córrego.
16 Detalhe da parede da casa de Geraldino Patamy. Flautas diversas – de osso, como de
bambu - dois purawy de madeira roxeada.
17 As “flautas” beregezektsa.
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18 Dois purawy (buzina de sinalização de sopro transverso).
19 Flautinhas de osso de gavião-real (à direita) e de cabeça-seco (à esquerda).
20 Festa das mulheres. Parada para tomarem chicha.
21 Geraldino Patamy, no mykyry, “experimenta” a simetria dos dentes de queixada de
que dispõe, para um pazahare tsapu ou kanapiritsa (colar de dentes de queixada). Ao
fundo, arcos e flechas e tufos de arroz.
22 Vicente Bitsezyk, em sua casa, na aldeia São Vicente, fazendo um colar de dentes de
quati – semelhante ao pazahare tsapu - para ser usado por uma criança.
23 Kapadrasto tece a faixa frontal de uma myhara, do lado de fora da casa, em uma
visita à aldeia Pé-de-Mutum.
24 Geraldino Patamy abre seu tsanipe (bolsa de entrecasca de sorveira). Repararar a
quantidade de penas armazenadas.
25 Geraldino Patamy trançando um colar de dentes de “macaco prego” (boatsapu ou
meia-lua).
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