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ILTOMAR SIVIERO
A RECONSIDERAÇÃO DA VITA ACTIVA NA CRÍTICA AO ESQUECIMENTO DA
POLÍTICA EM HANNAH ARENDT
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da UNISINOS para
cumprimento da Conclusão do Mestrado em
Filosofia, na área de concentração: Filosofia
Social e Política.
Aprovado em 22 de março de 2006.
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª Cecília Maria Pinto Pires - UNISINOS
Orientadora
Profº Dr. Inácio Helfer – UNISINOS
Profº Dr. Cláudio Boeira Garcia - UNIJUÍ
SÃO LEOPOLDO
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2
2006
Dedico este trabalho à Márcia, pela paciência
e companheirismo, e ao Guilherme, meu filho,
a expressão da novidade em nosso meio.
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AGRADECIMENTO
À UNISINOS que nos oportunizou o espaço e
acolhida para este estudo;
À professora Cecília Pires pela orientação;
À Direção do IFIBE pelo apoio;
Ao professor Paulo Carbonari, José André da
Costa e Silvia Scandolara pela leitura e revisão
do texto;
A todos/as amigos/as que nos incentivaram
para a construção deste estudo, mas, de manei-
ra especial, o agradecimento à Márcia e ao
Guilherme que compreenderam a nossa ausên-
cia em muitos momentos e foram a nossa ale-
gria e motivo maior para o retorno ao lar.
4
“O que proponho, portanto, é muito simples:
trata-se apenas de refletir sobre o que estamos
fazendo.”
Hannah Arendt
5
RESUMO
O presente estudo trata do tema A reconsideração da Vita Activa na crítica ao esquecimento
da Política em Hannah Arendt, resgatando a preocupação central do pensamento de Hannah
Arendt: pensar sobre a política. Para aprofundar tal questão, percorre-se, de um lado, os prin-
cipais eventos que causaram a crise da política e, de outro, a possibilidade de recuperação da
sua dignidade e sentido. No primeiro aspecto, centra-se a discussão em dois núcleos funda-
mentais: um ligado à perda da dignidade da política e o ocaso da tradição política do ocidente;
e o outro que se refere ao surgimento da era moderna e a conseqüente instrumentalização da
política. Em ambos, reflete-se sobre a introdução de novos conceitos e formas de organização
da política, demonstrando-se que, em sua gênese, a essência da política foi danificada e trans-
formada numa prática violenta, instrumentalizadora, destituída da preocupação com a realiza-
ção do ser humano e com a construção do espaço público. Já no segundo aspecto, incide-se
sobre as três atividades da vita activa: labor, trabalho e ação. Demonstra-se, assim, que a pos-
sibilidade de recuperação da dignidade e do sentido da política se realizará se a ação estiver
no centro da sua efetivação, porque é a única atividade que se desenvolve entre os homens e
tem como condição a pluralidade e a garantia da liberdade, conditio per quam de toda a vida
política.
Palavras-chave: política, vita activa, totalitarismo, condição humana, Arendt, filosofia.
6
ABSTRACT
The present study discus The reconsideration of Vita Activa in the criticism to the forgetfull-
ness of Politics in Hannah Arendt, getting back the central worry of Hannah Arendt thought:
To think about politics. To deepen such question it acrosses from one side, the mean events
that caused the crises in politics and, from the other side, the possibility of recovering of its
dignity and meaning. At first, the discution focus on two fundamental cores: one is conected
to the loss dignity of politics and the case of the ocidental politics tradiction; and the other that
refers to the emerging of modern era and the consequent instrumentation of politics. On both,
its concidered about the introduction of new concepts and forms of organisation of politics,
showing that in its origen, the essence of politics was damaged and turned into a violent, in-
strumentalist, and destituted practice of worry about human been fulfilment and building of a
public space. Instead, on the second aspect, it reflects on three activities of vita activa: la-
bor,work and action.It is showed, in this way, that the possibility of dignity recovering and the
sense of politics will be accomplished if the action is in the core of its effectiveness, becouse
its the unique activity which develops itself among men and has as condition the plurality and
guarenty of liberty, conditio per quam of all politics life.
Key Words:politics,vita activa,totalitarism,human condition,Arendt,filosofy
7
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................8
2 A PERDA DA DIGNIDADE DA POLÍTICA E O OCASO DA TRADIÇÃO....................12
2.1 Platão e Aristóteles: o início da tradição política do Ocidente...........................................14
2.2 Kierkegaard, Marx e Nietzsche: o fim da tradição política do Ocidente ...........................21
2.3 O fenômeno do totalitarismo: a ruptura definitiva da tradição política no Ocidente .........31
2.3.1 O surgimento das massas: primeira condição do sistema totalitário...............................39
2.3.2 A propaganda e o mundo fictício: segunda condição do sistema totalitário ...................46
2.3.3 Poder e violência: terceira condição do sistema totalitário .............................................50
2.3.4 A ideologia e o terror: o princípio e o fim do governo totalitário ...................................60
3 A ERA MODERNA E O PROBLEMA DA INSTRUMENTALIZAÇÃO DA POLÍTICA 66
3.1 A era moderna, o avanço da ciência e suas conseqüências à política ................................67
3.2 O ascenso do Homo Faber e a conseqüente instrumentalização da política......................79
3.3 A vitória do animal laborans e o enaltecimento do consumo..........................................100
4 A RECONSIDERAÇÃO DA VITA ACTIVA E A RECUPERAÇÃO DO SENTIDO DA
POLÍTICA..............................................................................................................................108
4.1 A vita activa e sua implicação política.............................................................................109
4.2 As atividades da vita activa..............................................................................................118
4.2.1 O labor: espaço da garantia da sobrevivência humana..................................................120
4.2.2 O trabalho: espaço da fabricação de objetos .................................................................125
4.2.3 A ação: espaço da aparição dos homens........................................................................131
4.3 A recuperação do sentido da política................................................................................145
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................168
8
1 INTRODUÇÃO
A dissertação do tema A reconsideração da vita activa na crítica ao esquecimento da
política em Hannah Arendt nasceu de duas perspectivas centrais. Inicialmente, do prolonga-
mento na discussão da questão política pelo viés filosófico, inaugurado no trabalho de conclu-
são
1
do curso de graduação em filosofia. Depois, da preocupação central em discutir o tema
da política pelo viés do pensamento arendtiano, apesar de ainda pouco explorado no meio
acadêmico. Tal opção não significa desprezo pelas demais discussões no horizonte da política.
Arendt aprofundou questões fundamentais para o entendimento da constituição essencial da
política e, sobretudo, pelas pertinentes e atuais reflexões que podem ser proporcionadas acer-
ca desta questão. Justifica-se, assim, conhecê-la mais a fundo.
O pensamento de Arendt permite que se coloque diante de questões cruciais no campo
da política, entre outras: o que é política? O que é o homem como ser político? Qual a relação
entre política e homem? Que implicações exercem as esferas públicas e privadas dentro do
âmbito político? O que é público? O que é privado? O que é liberdade? Qual é a atividade
fundamental e essencial à política? É possível afirmar que a política tem sentido? Quais as
condições para a realização da política? Essas são algumas das questões que podem ser levan-
tadas à luz da reflexão política no pensamento de Arendt e que, ao longo deste estudo serão
retomadas.
No entanto, é fundamental dizer que a posição arendtiana instiga a pensar em uma no-
va forma de realização da política. Diante das várias experiências e acontecimentos no século
XX, Arendt não teme dizer que “o momento de expectativa é como a calma que sobrevém
quando não há mais esperança”
2
, restando apenas o “caos produzido pela violência das guer-
ras e revoluções e pela progressiva decadência que ainda sobrou.”
3
1
O nosso trabalho monográfico de conclusão do curso de filosofia foi sobre A proposta marxiana da superação
da alienação a partir dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 de Karl Marx. Mudamos o enfoque teóri-
co, mas a área de concentração continuou sendo a política.
2
ARENDT, Hannah Arendt. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 11. Doravante, quando nos referirmos a esta obra utilizaremos a abreviatura OT.
3
Id., Ibid.
9
O contexto vivido por Arendt
4
não é distante do atual. Ela sentiu “na carne” o processo
de perseguição dos judeus pelos nazistas e experienciou o ambiente durante e após a Segunda
Guerra Mundial. As formas de efetivação da política e as ameaças constantes no decurso da
sua construção e realização, à luz deste contexto, permitiram que Arendt constatasse que a
grande pergunta de hoje já não seja mais qual o sentido da política e, sim,tem a política ain-
da algum sentido?
5
, junto aos preconceitos, isto é, “a concepção de a política ser, em seu
âmago interior, uma teia de velhacaria de interesses mesquinhos e de ideologia mais mesqui-
nha ainda [...]”.
Com efeito, essas constatações refletem o uso corrente que se tem da política, “não ra-
ro, é a de que esse é o âmbito da competição, da falsidade, da mentira, da corrupção e do do-
mínio.”
6
Que será isso senão as práticas e formas de efetivação de uma política a que assisti-
mos diuturnamente nos meios de comunicação e leituras em nossos jornais? Esse é o diagnós-
tico que tece a configuração política na atualidade. Assim que, com o perdão da redundância,
pesquisar sobre o seu sentido faz sentido. No entanto, acerca deste estudo, a pergunta básica
que se lança é: terá a reconsideração da vita activa as condições para resolver tal dilema e
recuperar o sentido da política? A possibilidade de resposta a tal questionamento será desen-
volvida em três capítulos.
No primeiro, faz-se uma reflexão sobre a perda da dignidade da política e o ocaso da
tradição. Nele se introduz a discussão a partir do surgimento da tradição do pensamento polí-
tico, cujos representantes maiores são Platão e Aristóteles. Ao mesmo tempo em que se apre-
senta a forma de organização e concepção política em ambos, à luz do pensamento arendtia-
no, destacam-se os principais limites presentes em seu pensamento. Na seqüência, dá-se um
salto para a modernidade, resgatando, brevemente, a contribuição dos “rebeldes da tradição”:
Kierkegaard, Marx e Nietzsche, demonstrando o grande esforço deles para dar fim à tradição
4
Arendt nasceu em 1906 em Hannover, Alemanha e faleceu em 1975 nos Estados Unidos, país em que viveu
desde 1941 diante da fuga do nazismo, pois sua descendência era judaica. Nesse meio tempo, de 1933 a início de
1941 permaneceu na França, também na condição de refugiada. Para conhecimento da biografia de Arendt, cf.
WATSON, David. Hannah Arendt. Tradução de Luiz Antônio Aguiar e Marisa Sobral. RJ: DIFEL, 2001. (Cole-
ção Mestres do Pensamento). YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah
Arendt. RJ: Relume-Dumará, 1997.
5
Cf. ARENDT, Hannah. O que é política? [Editoria de Ursula Ludz]. Tradução de Reinaldo Guarany, 3ª ed. -
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 83. Doravante, ao nos referirmos a esta obra, utilizaremos a abreviatura
QP.
6
Sobre esta questão uma belíssima reflexão de: FELÍCIO, Carmelita Brito de Farias. É possível reabilitar o
sentido da política? Em torno do legado de Hannah Arendt. In: Fragmentos da Cultura, GO: UCG, v. 13, p.
167-184, out., 2003.
10
política do Ocidente. Mas, apesar de todo esforço empreendido e do reconhecimento do pen-
samento dos rebeldes, Arendt não poupa as críticas, afirmando que neles a tradição tem sua
continuidade, até porque quando levantam seus questionamentos, o faziam com base na tradi-
ção. Diferente é o caso do totalitarismo, último aspecto ponderado neste capítulo. O totalita-
rismo significou a ruptura definitiva da tradição porque sua experiência política não teve pre-
cedente. O seu método e forma de organização da política revelaram o rosto mais violento que
a história já conheceu, e a política ficou submetida aos interesses do líder totalitário que dis-
seminou a sua ideologia e o terror como coroamento da forma de realização da política.
No segundo capítulo, faz-se um balanço da modernidade e a conseqüente alienação do
mundo. A discussão é introduzida a partir do surgimento da era moderna, destacando que o
avanço da ciência, especialmente com Galileu, e, mais tarde, das ciências naturais e da ativi-
dade de fabricação, provocaram a alienação do homem em relação ao mundo e a extinção da
dicotomia entre céu e terra, por ocasião da emancipação do homem como sujeito cognoscente
e capaz de produzir com suas próprias mãos. Esse acento na capacidade humana de conhecer
e produzir acabou causando uma reviravolta entre contemplação e ação, e o lugar que antes
era ocupado pela primeira, agora passa a ser da segunda. No entanto, a centralidade da ação,
neste contexto, não significou o resgate do sentido e dignidade da política, mas na sua capaci-
dade de produção. Diante disso, emergem dois problemas. Primeiramente, o transplante da
instrumentalização, própria do homo faber, para as questões ligadas à política, transformando
as relações humanas e o espaço público em relações de meios e fins, estratégias e interesses,
eliminando a condição de pluralidade e possibilidade de liberdade dos homens. Após, as inici-
ativas do homem centradas em si mesmo, causando a perda da estabilidade do mundo, pois as
obras produzidas para serem expostas ao mundo acabaram sendo meros objetos de consumo.
Nesse ambiente, Arendt reflete sobre a perda do significado da função da atividade do homo
faber e o ascenso do privado sobre o público, causando a eliminação da condição humana da
pluralidade e liberdade – essenciais à política.
No terceiro capítulo, reflete-se sobre a possibilidade de recuperação do sentido da polí-
tica, diante de um cenário que apresentou a sua verdadeira crise pela propagação da violência,
introdução da instrumentalização e ascensão do privado sobre o público. A alternativa para
resolução deste problema, segundo Arendt, remete para a reconsideração da vita activa, vi-
sando a esclarecer as diferenças e especificidades entre as três atividades que a compõe: labor,
trabalho e ação. Mas não se trata de um mero trabalho de caracterização das atividades, pois o
11
seu objetivo é resgatar a essência da política. Acerca da atividade do labor, destaca-se que ela
corresponde ao esforço que o homem faz para produzir algo que garanta a sustentabilidade do
corpo humano, centrando todo empenho no suprimento das necessidades vitais. Nesse aspec-
to, esclarece-se que a condição humana do labor é a própria vida. Sobre a atividade do traba-
lho, procura-se mostrar que, diferentemente do labor, seu fim está em produzir objetos e arte-
fatos que visam a facilitar a vida do homem e proporcionar maior estabilidade ao mundo.
Com isso, demonstra-se que a condição humana do trabalho é a mundanidade. Sobre a ativi-
dade da ação, diferentemente das demais, frisa-se que é a única atividade que se desenvolve
entre os homens, sem a mediação de coisas e instrumentos e que a sua condição humana cor-
responde à pluralidade humana que, na avaliação de Arendt, é a condição de toda a vida polí-
tica. Portanto, na reconsideração da vita activa, Arendt convoca para que se trate da política a
partir da ação, porque diante da sua condição de pluralidade, os homens poderão manifestar
quem são, por intermédio da fala e da sua ação no mundo. A ação é sinônimo da política. Ne-
la, o princípio da liberdade é uma realidade e a resposta possível à pergunta - Tem a política
ainda algum sentido? - só poderá ser encontrada na liberdade que historicamente esteve pre-
sente na experiência política da polis grega e em algumas revoluções modernas. Nelas, a polí-
tica se transforma em exercício de liberdade e participação, possibilitando aos homens a con-
quista da cidadania, direito de voz e responsabilidade na construção do espaço público.
O itinerário que o estudo percorre tem como ponto de partida o resgate da origem, das
transformações e conseqüências presente na política. Mas não é apenas uma descrição e re-
construção da crítica arendtiana à tradição política ocidental. A intenção é apresentar a possi-
bilidade de recuperação do sentido da política à luz de algumas experiências passadas, não
como mera reposição e transplante deste ou daquele modelo. A perspectiva da reflexão é ins-
tigar para recuperar o essencial e mais extraordinário possível, aproximando a recuperação do
sentido da política com a realização humana, preocupação com a estabilidade do mundo como
espaço habitável para todos e possibilidade de construção de grandes feitos dignos de memó-
ria pelas gerações futuras.
12
2 A PERDA DA DIGNIDADE DA POLÍTICA E O OCASO DA TRADIÇÃO
As reflexões sobre o início e o fim da tradição política do ocidente sustentam-se em
três pontos essenciais: o primeiro nos ensinamentos de Platão e Aristóteles; o segundo nas
teorias dos rebeliões da tradição, especialmente Karl Marx
7
; e o terceiro, no surgimento do
totalitarismo.
Platão, através da Alegoria da Caverna
8
, fundamenta a esfera dos assuntos humanos
como lugar de trevas, confusões e ilusões, de modo que os interessados em alcançar a verdade
de todas as coisas devem ousar a transcendência deste ambiente e chegar à clareza das coisas,
presente nas idéias eternas. O espaço de convívio entre os homens recebe um acento negativo
e, em última instância, precisa ser abandonado, já que se trata de uma quimera, mundo das
sombras.
Aristóteles, apesar de ser um pouco menos incisivo que Platão pelo fato de ainda de-
fender elementos positivos na experiência política da pólis grega, também acaba por desmere-
cer a importância dos negócios humanos quando aponta que o meio para alcançar o fim pleno
da vida – a felicidade – encontra-se na contemplação.
Diferentemente de Platão e Aristóteles, a posição de Marx não dá importância à tradi-
ção para a configuração e o desenvolvimento da política. Ele acentua a importância no espaço
7
Além de Marx, Arendt também situa Kierkegaard e Nietzsche como os grandes propagadores da rebelião con-
tra a tradição. Apesar de ser notório que no tratamento desta questão Arendt tenha dado mais atenção a Marx aos
demais, mesmo assim, trataremos de Kierkegaard e Nietzsche mais adiante, porém de maneira suscinta, dando
mais atenção para Marx. Aliás, segundo Eugenia Sales, o pensamento de Marx se constitui “como o ponto de
partida de Arendt na busca da origem da tradição, origem esta que é a fonte das distorções, dos conceitos adota-
dos por esse pensador.” WAGNER, Eugenia Sales. Hannah Arendt e Karl Marx. O mundo do trabalho. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 31.
8
Consultar Platão, República: Livro VII. Apresentação e comentário de Bernard Piettre; Tradução de Elza Mo-
reira Marcelina. Brasília/São Paulo: Editora Universidade de Brasília/Ática, 1989.
13
de convívio entre os homens, invertendo o lugar mais alto da vida da contemplação para a
ação. No entanto, segundo Arendt, Marx e os demais rebeldes, no seu projeto final, acabam
repondo as bases da tradição, conforme se verá mais adiante.
De qualquer forma, o início e o fim da tradição encontram-se ligados diretamente na
relação entre Filosofia e Política, ora tendendo para uma, ora tendendo para outra. Em síntese:
A Filosofia Política implica necessariamente a atitude do filósofo para com a Políti-
ca; sua tradição iniciou-se com o abandono da Política por parte do filósofo, e o sub-
sequente retorno deste para impor seus padrões aos assuntos humanos. O fim sobre-
veio quando um filósofo repudiou a Filosofia, para poder ‘realizá-la’ na política.
Nisso consistiu a tentativa de Marx, inicialmente expressa em sua decisão (em si
mesma filosófica) de abjurar da Filosofia, e, posteriormente, em sua intenção de
‘transformar o mundo’ e, assim, as mentes filosofantes, a ‘consciência’ dos homens.
9
Em que pesem as diferentes reflexões acerca do início e do fim da tradição, Arendt
destaca a importância que ambas têm em comum, ou seja, “os problemas da Política jamais
vêm tão claramente à luz em sua urgência imediata e simples, como ao serem formulados pela
primeira vez, e ao receberem seu desafio final.”
10
No entanto, o fim definitivo da tradição não acontece com a posição dos rebeldes do
século XIX, pois eles ainda mantêm seus pensamentos apegados a algumas categorias usadas
pela tradição. O fim definitivo da tradição aparece em cena com a quebra definitiva da histó-
ria, fato consumado na experiência da dominação totalitária que projetou o alcance do poder
por meio dos seguintes passos: primeiro, criar o mundo das massas; segundo, por meio da
propaganda totalitária instaurar um mundo fictício; terceiro, aproximar o poder à violência,
aliando-se à polícia para disseminar os ideais do totalitarismo; e quarto, propagar o terror e a
ideologia como nova forma de governo e dominação.
Na sua forma de organização, o totalitarismo acaba instaurando uma forma nova e vio-
lenta de conceber a política que, diante das suas brutalidades, foi o evento mais sério e de toda
a história, a ponto de ser considerado por Arendt como sem precedentes. Pensar em uma nova
forma de organização e estruturação da política é o desafio que se põe a todos, considerando
que a história mostrou uma das faces onde os homens são capazes de serem cruéis com seus
9
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. 2ª ed. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1979, p. 44. Doravante, quando nos referirmos a esta obra, utilizaremos a abreviatura EPF.
10
Ibid., p. 44.
14
semelhantes e com o destino de uma nação e do mundo. Esse é itinerário da discussão que se
está propondo neste capítulo.
2.1 Platão e Aristóteles: o início da tradição política do Ocidente
As reflexões de Arendt acerca do pensamento de Platão partem da condenação e morte
de Sócrates, cujo episódio foi o grande motivo e justificativa da separação entre Filosofia e
Política. Esse é o ponto de partida, pois, para Arendt, “nossa tradição de pensamento começou
quando a morte de Sócrates tornou-se o motivo para Platão perder a crença na pólis e, ao
mesmo tempo, determinou os fundamentos da doutrina de Sócrates de duvidar.”
11
Disso, de-
corre a atribuição a Platão como o pai da filosofia política do ocidente. Por que Platão chega à
tamanha rejeição da pólis diante do acontecimento da condenação e morte de Sócrates? O que
está por trás deste acontecimento para merecer uma opção e decisão teórica irreparável?
Pontualizando os aspectos da posição teórica e influência de Sócrates
12
na forma de
organização da pólis, percebe-se, de imediato, o motivo da crítica de Platão à pólis e a defesa
da centralidade do pensamento político voltar-se para as idéias, a contemplação. Sócrates é
herdeiro e propagador do modelo grego de ação, inaugurado por Aquiles, conhecido como “o
autor de grandes feitos e pronunciador de grandes palavras, possuído pelo desprezo heróico da
vida, pela idéia de que o homem não pode cumprir nada mais alto do que a sua aparência, pela
paixão de se mostrar medindo-se com outrem.”
13
Em Sócrates, está a figura central da extensão da pólis como forma de organização po-
lítica que possibilita a criação do espaço de aparição dos homens pelo uso da palavra, diálogo,
presentificado nas longas discussões que ele desenvolvia em praça pública. Nele, a opinião –
a doxa – conquista o lugar central e, por meio dela, a verdade se constrói mediante o processo
de argumentação, discussão. De tal concepção política, decorrem vários elementos.
11
QP, p. 161.
12
A posição socrática era parte do projeto de Arendt acerca do escrito sobre “Introdução à Política” que deveria
ser publicado no início dos anos 60. Como a publicação não veio a lume restaram os manuscritos que foram
organizados por Ursula Ludz. Cf. QP, p. 161 e 192.
13
AMIEL, Anne. Hannah Arendt Política e Acontecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 81.
15
O primeiro é a relevância da ação sem danificar e menosprezar a contemplação, pois
quando age, fala e, além de se relacionar com os demais, Sócrates não abdica da capacidade
de pensar e emitir opiniões sobre as coisas.
O segundo está na busca para tornar o espaço da ação imortal, semelhante à experiên-
cia e ao conceito grego de natureza, considerada desde sempre e para sempre
14
. O começo
está em Heródoto, considerado por Cícero como o pai da História Ocidental
15
, pelo fato de
atribuir à História a tarefa de salvar os feitos da futilidade e esquecimento, visando a estabele-
cer a condição de imortalidade aos humanos
16
. A continuidade dessa tentativa será propagada
posteriormente pelos grandes poetas e historiadores e, sobretudo, por Sócrates, que é amante
da palavra.
O terceiro elemento a ser destacado refere-se à positividade da opinião. Sócrates põe
em relevo, mediante a defesa do diálogo, tarefa básica da vida pelo fato de possibilitar que os
homens emitam opinião frente às coisas, fatos e conceitos. Mas, para que isso aconteça, é ne-
cessário considerar a pluralidade, liberdade, espontaneidade e igualdade entre os homens. Tais
condições, segundo Arendt, são o substrato básico da política que, por intermédio da posição
socrática, se desenvolvem no espaço onde acontecem os negócios humanos. Os homens po-
dem pensar e agir, concordar e discordar, perguntar e responder; enfim, estão em uma condi-
ção que lhes permite sempre estar fundando e propagando algo novo.
Por fim, o quarto elemento, fundamental na decorrência do anterior, está na verdade
do aparecimento resultar da opinião manifestada no convívio entre os homens. Nesse sentido,
Sócrates propicia, segundo Arendt, a propagação do espaço político-público, “o espaço no
14
A este respeito é oportuno destacar a belíssima reflexão que Arendt faz sobre o conceito de História Antigo e
Moderno em sua obra EPF. Ali Arendt desenvolve a diferença entre homem (mortal) e natureza (imortal) e o
significado da tentativa do primeiro alcançar o lugar e condição da segunda. Portanto, a imortalidade passará a se
configurar como um grande tema, pois ela estende-se para o campo das ações humanas. Retornaremos a este
tema no terceiro capítulo deste nosso estudo.
15
Mesmo sem ter uma palavra específica para designar a História, Heródoto utilizava o termo ístoreín o qual
possuia um duplo significado: testemunhar e indagar. Cícero, De Legibus I, 5; De Oratore II, 55. Apud EPF, p.
69.
16
Um pouco mais tarde Aristóteles voltou a este tema destacando que o “homem enquanto ser natural e perten-
cente ao gênero humano possui imortalidade; através do ciclo repetitivo da vida, a natureza assegura, para as
coisas que nascem e morrem, o mesmo tipo de eternidade que para as coisas que são e não mudam. ‘O ser para
as criaturas vivas é a Vida’, e o ser-para-sempre (aeí-einaí) corresponde a aeiguenes procriação. Cf. EPF, p. 70 e
71. No entanto, vale ressaltar que a imortalidade em discussão não se refere à procriação, mas aos grandes feitos
pelos humanos, provenientes da ação inter-homines, isto é, entre os homens.
16
qual a política se sente em casa, o espaço do não-domínio, ou seja, da liberdade (...).”
17
Esse é
o ponto fundamental presente em Sócrates e se tornará o centro da política para Arendt, a tal
ponto de a pergunta acerca do sentido da política, em torno dos seus princípios, só poder re-
ceber a seguinte resposta: “o sentido da política é a liberdade.”
18
Uma vez apresentado o cerne da posição socrática e sua importância para o tratamento
da política, especialmente pelo fato de fazer jus à opinião como atividade básica do ser huma-
no, Arendt passa a situar a gênese da tradição política do Ocidente. Faz sua análise a partir da
recusa de Platão à opinião, porque, por seu intermédio, Sócrates não foi capaz de escapar da
condenação à morte. A incapacidade de Sócrates em conseguir convencer os juízes diante da
sua inocência e de seus méritos, por todos conhecidos, especialmente os jovens de Atenas, foi
o motivo que fez Platão duvidar da força da persuasão socrática. Daí que, para Arendt,
Platão, o pai da Filosofia Política do Ocidente, tentou de várias maneiras contrapor-
se à pólis e aquilo que ele definia por liberdade. Tentou-o por meio de uma teoria
política na qual os critérios da coisa política não são criados a partir da própria polí-
tica, mas sim da filosofia, por meio do aperfeiçoamento de uma constituição que en-
trava em pormenores, cujas leis correspondem às idéias acessíveis apenas aos filóso-
fos, e por fim por meio inclusive de uma influência sobre um soberano, do qual es-
perava que fosse transformar tal legislação em realidade - tentativa que quase lhe
custou a vida e a liberdade. Entre tais tentativas está também a fundação da acade-
mia, que se efetuou tanto contra a pólis - enquanto uma delimitação ao âmbito polí-
tico original - como também por outro lado, no sentido justamente desse espaço po-
lítico específico grego-ateniense - ou seja, contanto que o conversar-um-com-o-
outro se tornasse seu verdadeiro conteúdo. Daí, junto com o âmbito da liberdade da
coisa política, surgiu um novo espaço da liberdade muitíssimo real, com repercussão
até hoje na forma de liberdade das universidades e de liberdade de ensino acadêmi-
co. (...) O espaço da liberdade da academia devia ser um substituto válido para a
praça do mercado, a ágora, o espaço da liberdade central da pólis. Para poder existir
como tal, a minoria precisava exigir, para sua atividade, seu conversar entre si, ser
dispensada das atividades da pólis e da ágora, da mesma maneira que os cidadãos de
Atenas eram dispensados de todas as atividades que serviam ao mero ganha-pão. E-
les precisavam ser libertados da política no sentido dos gregos, para serem livres pa-
ra o espaço da liberdade acadêmica, da mesma maneira como os cidadãos precisa-
vam ser libertados das necessidades da vida para a política.
19
Dessa atitude, decorrem transformações profundas no modo de conceber a política.
Em primeiro lugar, a concepção como um meio para atingir um objetivo mais alto que está
fora dela mesma, isto é, na academia que passa a substituir o modo de organização política
presente na polis. No entanto, os próprios sucessores de Platão asseguram que a academia era
17
QP, p. 173.
18
Ibid., p. 38. A presente passagem encontra-se no interior do texto Será que a política de algum modo ainda
tem algum sentido? Também publicado em: ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Ensaios e Conferên-
cias. Tradução de Helena Martins, et. al. - 3ª ed. - Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, p. 117. Doravante,
quando nos referirmos a esta obra, utilizaremos a abreviatura DP.
19
QP, p. 62 e 63.
17
uma iniciativa sem muito êxito porque ela garantia um espaço de liberdade para uma pequena
minoria. No entanto, Arendt destaca que: “o que impôs e até hoje determina nossa concepção
de liberdade acadêmica não é a esperança de Platão de a partir da academia determinar a pó-
lis a partir da filosofia determinar a política, mas sim o afastamento da pólis, a apolitia, a
indiferença contra a política.”
20
Platão, nesse sentido, é o instaurador do conflito entre filosofia e política, assegurando
o lugar mais alto à primeira e degradando a segunda. O exemplo que melhor caracteriza tal
substituição do acento da filosofia é o Mito da Caverna, apresentado por Platão em A Repú-
blica. Platão assegura que a saída da Caverna é a grande possibilidade dos homens encontra-
rem o grande bem, a luz, a revelação da verdade, que está fora do espaço dos negócios huma-
nos e só o filósofo alcançará este acesso pela sua vivência na solidão.
Além disso, Arendt aprofunda não só o fato da saída da Caverna, mas sobretudo do re-
torno, pois é nesse processo que ela vê o nascimento da filosofia política, pautada pela separa-
ção entre pensamento e ação. É o caso do filósofo que volta à Caverna e, de posse da verdade,
procura convencer e libertar aqueles que estão nas trevas. Dessa forma, a filosofia política se
configura na atitude do filósofo que detém a clareza e a verdade e, portanto, a possibilidade de
realização da política, através da imposição de seus padrões às questões humanas. Prevalece,
na avaliação de Arendt, o fim das opiniões e o fim da liberdade. Introduz-se, a partir deste
evento platônico, o comando e a obediência nas relações entre os homens, dando ascenso à
esfera privada, “inaugurando o papel do ‘especialista’ em matéria política.”
21
Na opinião de Margaret Canovan, grande estudiosa do pensamento de Arendt, em sua
obra, Sócrates or Heidegger - Hannah Arendt´s Reflections on Philhosophy and Politics asse-
vera que a reflexão de Arendt sobre este ponto pode se constituir como o “pecado original
filosófico.”
22
Apesar da importância das diversas considerações acerca do pensamento platô-
nico, como esta de Canovan, interessa, sobremaneira, o destaque da ascensão da contempla-
ção sobre a ação. A repúdia de Platão frente à condenação e morte de Sócrates e, por seu tur-
20
Ibid., p. 65.
21
Ver AMIEL, op. cit, p. 83.
22
Ursula Ludz concorda em muitos aspectos da argumentação profunda e séria de Canovan frente ao pensamen-
to de Arendt, mas não aceita a tese do “pecado original filosófico” como forma de atribuição à reflexão de A-
rendt sobre tal questão. Sobre isso, Cf. QP, p. 224, nota 69.
18
no, o desprestígio da ação, em defesa da contemplação, inaugura uma nova forma de conceber
a política na História do Ocidente.
Prosseguindo a discussão, resgatam-se os elementos centrais de Aristóteles
23
, à luz das
reflexões arendtianas. Arendt reconhece em Aristóteles um certo prestígio pelo fato dele man-
ter elementos da forma de organização política da pólis grega. Mas, por outro lado, critica-o
por ter aplicado a definição do ser humano como zoón politikón (animal político). No enten-
der de Arendt, ao conceber o homem como zoón politikón, Aristóteles não tinha como objeti-
vo “definir o homem em geral nem indicar a mais alta capacidade do homem - que, para ele,
não era o logos, isto é, a palavra ou a razão, mas o nous, a capacidade de contemplação, cuja
principal característica é que o seu conteúdo não pode ser refugiado em palavras.”
24
O que
Aristóteles apregoa neste ponto é a definição do homem corrente na pólis, sem interesse de
envolver nela a questão do gênero humano na sua totalidade.
É significativo no estudo do pensamento de Aristóteles a apresentação dos três tipos
de ciências e/ou modos de vida
25
em suas obras Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo
26
: as teo-
réticas (theoria), as práticas (práxis) e as produtivas (poíêsis). Delas decorrem algumas dife-
renças e pontos comuns e que serão apropriados por Arendt no estudo da vita activa.
A diferença básica entre as ciências está nas teoréticas que versam sobre a contempla-
ção e tem como fim o conhecimento das coisas em si mesmas, por isso, são denominadas au-
totélicas; as práticas estão voltadas para o agir em conjunto dos indivíduos, tendo o fim em si
e no outro; as produtivas concentram-se na produção/fabricação, feita pelas mãos do trabalha-
dor e visam unicamente à perfeição da obra, logo, seu fim está fora de si, isto é, para outros.
Nas ciências teoréticas, há a atividade fundamental e contemplativa da episteme, sophia e
noûs, própria dos sábios (sophós), presentificados na filosofia e na matemática. Nas ciências
práticas, a atividade fundamental é essencialmente a ação, a fala, desenvolvida pela phrônesis,
23
A abordagem de Aristóteles nesta questão é periférica nos escritos de Arendt. Não há uma preocupação em
acentuar elementos do seu pensamento como fizera com Platão. Em várias passagens, especialmente da obra
EPF, Arendt chega a mencionar Platão e Aristóteles, mas se detém mais no primeiro. Não é o caso da aborda-
gem que Arendt fizera da vita activa, pois nesta questão recuperou muitos elementos outrora tratados por Aristó-
teles, mas, sobre isso, trataremos mais adiante.
24
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer - 10ª ed. -
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 36. Doravante, quando nos referirmos a esta obra utilizaremos a
abreviatura CH.
25
Em a CH Arendt denomina esta classificação aristotélica de modos de vida (bioi). Cf. passagem na página 20.
26
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos (i.5) e na Ética a Eudemo (1215a35 ff.) Apud CH, citação de rodapé nº 4
(p. 21).
19
a virtude da prudência, própria do agente político (phrônimos), presentificados na ética e na
política
27
. Nas ciências da produção/fabricação, a atividade é desenvolvida pela téchne, pró-
pria do artesão, realizada no saber do tipo instrumental presente na técnica ou na arte. Acerca
das questões comuns dos três modos de vida, Arendt destaca
o fato de se ocuparem do belo, isto é, de coisas que não eram necessárias nem me-
ramente úteis: a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido
tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da pólis, na qual a excelência produz
belos feitos, e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coi-
sas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do
homem nem alterada através do consumo humano.
28
Feita tal distinção das ciências e/ou modos de vida apresentados por Aristóteles, cabe
salientar – este é o ponto principal em torno do tema do surgimento da Filosofia Política do
Ocidente – a demasiada ênfase que o estagirita dá à ciência teorética, cuja atividade básica é a
contemplação. Apesar de reconhecer a importância das demais ciências, Aristóteles é enfático
em colocar a contemplação no grau mais alto dos saberes. Na ética a Nicômacos, Aristóteles
assevera:
[...] a atividade intelectual, que é contemplativa, parece superior em termos de im-
portância de seu mérito, e parece que não visa a qualquer outro objetivo além de si
mesma, e tem em si o prazer que lhe é inerente (e isso engrandece a atividade), e a
auto-suficiência, a disponibilidade de lazer e a imunidade à fadiga (tanto quanto é
possível para uma criatura humana), e todos os outros atributos das pessoas suma-
mente felizes são evidentemente os relacionados com esta atividade, então repetimos
- segue-se que ela será a felicidade completa para o homem, se lhe agrada toda a du-
ração de uma vida, pois nada que lhe seja inerente à felicidade pode ser incompleto.
[...] Portanto, a atividade dos deuses, que supera todas as outras em bem-
aventurança, deve ser contemplativa; conseqüentemente, entre as atividades huma-
nas a que tiver mais afinidades com a atividade será a que proporciona mais felici-
dade.
29
27
A crítica de Arendt à Aristóteles não aprofunda a discussão sobre a relação entre ética e política, apesar dela
ser um dos elementos fundamentais da concepção política aristotélica que é a de agir virtuosamente em vista da
construção do bem comum e da prática da justiça. Arendt trata estes temas separadamente. As questões políticas
fazem parte do espaço público e visam garantir a efetivação da liberdade dos homens; as questões éticas fazem
parte do espaço privado e, por isso, são pré-políticos e dever ser resolvidas pelos próprios homens mediante leis
que regulam quando as coisas estão em excesso ou falta. Voltaremos a discutir este tema no terceiro capítulo
deste estudo.
28
CH, p. 21.
29
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mario Gama Kury. - 4ª ed. - Brasília: Editora Universidade
Brasília, 2001, p. 203 e 205. Outras obras que podem ser consultadas sobre esta questão são: VAZ, Henrique C.
Lima. Escritos de Filosofia IV. Introdução à ética filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999, p. 109-126. CENCI,
Ângelo V. O que é ética? Elementos em torno de uma ética geral. Passo Fundo, 2000, p. 27. SILVEIRA, Denis
C. Os sentidos da justiça em Aristóteles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
20
O modo de concepção e competências atribuídas aos diferentes modos de vida, segun-
do Arendt, da mesma forma que fizera Platão, apresenta-se em Aristóteles na elevação da
contemplação ao grau mais alto das atividades humanas. Com isso,
eles haviam descoberto na atividade do próprio pensamento, uma recôndita capaci-
dade humana para libertar-se de toda a esfera dos assuntos humanos, os quais não
deveriam ser levados demasiado a sério por homens (Platão) porque patentemente
absurdo pensar que o homem fosse o supremo ser existente (Aristóteles).
30
O resultado do conflito entre filosofia e política dá à primeira a vitória pelo fato dela
agregar as condições de contemplação e, assim, fica configurada a primeira inversão
31
entre
vita activa e vita contemplativa e o início da tradição política do ocidente. Disso decorre que
mesmo considerando “todas as diferenças entre suas filosofias políticas, a política está sendo
degradada ao lugar ocupado pela fabricação no pensamento grego convencional.”
32
Platão, ao
introduzir os moldes da política sob a determinação de uma atividade isolada, em que um ho-
mem (filósofo-rei) se torna o grande senhor dos seus atos, do início ao fim, transforma radi-
calmente os elementos essenciais da política presentes na experiência da polis. Através dele,
“o poder torna-se uma techne a partir da qual a comunidade política é ‘moldada’ sob o signo
da idéia de justiça, da mesma maneira como um carpinteiro molda a madeira e a transforma
em um objeto preconcebido.”
33
E Aristóteles, mesmo tendo distinguido entre ação e fabrica-
ção,
ele pensou a estrutura política em termos de uma estrutura teleológica, o que signifi-
cava manter a ação política aprisionada a um quadro categorial cujo modelo de refe-
rência seria ainda a atividade da fabricação. [...] Foi ele quem introduziu de forma
sistemática a categoria de meios e fins na esfera da ação, apenas ao afirmar que toda
ação tende a um telos, a um fim que a justifica, mas, também, ao afirmar que a pró-
pria ação e a vida devotada a ela tem de ser julgada de acordo com o modo de vida
mais alto, em vista do qual ela é empreendida.
34
Portanto, de acordo com Arendt, a forma de concepção e organização das atividades
humanas de Platão e Aristóteles implicam diretamente uma reinterpretação da ação política à
luz da fabricação, techne e poiésis, cujo guia está no poder da contemplação. Esse é o objeto
30
EPF, p. 76.
31
A este respeito, cf. WAGNER, op. cit., p. 33.
32
ARENDT, Hannah. Karl Marx and the Tradition of Western Political Thought: the modern challenge to tradi-
tion, segunda versão, 1953, p. 18 e 19. Apud DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: política e
filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 201.
33
DUARTE, op. cit., p. 198.
34
Ibid., p. 200.
21
central do debate, não só para o caso dos filósofos antigos, pois, como se verá mais adiante, é
o grande problema da vitória do Homo Faber no contexto moderno. De qualquer forma, na
avaliação de Arendt, tal acento na fabricação (techné) sobre a práxis se constitui em
um dos aspectos mais revolucionários da filosofia política, quando visto contra o pa-
no de fundo das opiniões e prejuízos correntes na vida da cidade grega. Pois o poli-
theuestai, viver uma vida política, foi degradado nessa reinterpretação quase ao nível
da vida do artesão que, para os gregos, era uma espécie de filisteu, precisamente
porque sua ocupação o levava a pensar todas as coisas em termos meios e fins, em
termos de sua utilidade para algo outro.
35
Nessa reflexão da mudança radical na política, provocada por Platão e Aristóteles,
tendo como resultado a introdução de uma nova forma de concepção e organização da políti-
ca, passando da práxis à techné, guiada pela contemplação, Arendt demarca a centralidade da
discussão política em todo seu pensamento, visando a recuperar a seu significado original,
contra a instrumentalização das ações pela lógica dos meios e fins. Esse é o pano de fundo de
todo o debate que será traçado neste estudo, avaliando os prós e os contras, a começar pela
posição dos rebeliões da tradição.
2.2 Kierkegaard, Marx e Nietzsche: o fim da tradição política do Ocidente
Acerca do “fim da tradição” do pensamento político do Ocidente, antes de sobrevir a
ruptura definitiva
36
, Arendt remete para a abordagem do pensamento de Kierkegaard, Marx e
Nietzsche, considerados pioneiros da rebelião contra a tradição. Nesses pensadores, em que
pesem as diferenças entre eles, Arendt observa que todos visavam a pensar e propor novas
soluções aos velhos problemas sem o amparo da tradição, frisando:
35
ARENDT, Hannah. Philosophy and Polítics: The problem of action and thought after the French Revolution,
Container #76, 1954, p. 14. Apud DUARTE, op. cit., p. 199.
36
Referimo-nos ao totalitarismo que será desenvolvido mais adiante.
22
O salto de Kierkegaard da dúvida para a crença consistiu em uma inversão e distor-
ção da relação tradicional entre razão e fé. Foi a resposta à moderna falta de fé, não
apenas em Deus mas também na razão, inerente no de omnibus dubitandum est de
Descartes, com sua subjacente desconfiança de que as coisas poderiam não ser como
parecem e de que um espírito maligno poderia conscientemente e para sempre ocul-
tar a verdade das faculdades humanas. O salto de Marx da teoria para a ação, e da
contemplação para o trabalho, veio depois de Hegel haver feito da Metafísica uma
Filosofia da História e transforma o filósofo no historiador e cuja visada retrospecti-
va o significado do devir e do movimento - não do ser e da verdade - revelar-se-ia
afinal. O salto de Nietzsche do não-sensual reino transcendente e não-sensível das
idéias e da medida para a sensualidade da vida, seu “Platonismo invertido” ou
“transvaloração dos valores”, como diria ele próprio, foi a derradeira tentativa de se
libertar da tradição, e teve êxito unicamente ao pôr a tradição de cabeça para baixo.
37
Kierkegaard, Marx e Nietzsche, segundo Arendt, são os primeiros a ousar pensar des-
providos de qualquer tradição, apesar de não “descolar” definitivamente do quadro de refe-
rência de algumas categorias da tradição. Tal situação não configurou o rompimento
38
, apesar
das veementes críticas nas posições destes pensadores.
De qualquer forma, a conclusão de Arendt está colocada. Ao mesmo tempo em que
percebe a tentativa de crítica à tradição, os rebeldes remontam a ela quando organizam as ca-
tegorias filosóficas em seu pensamento. Começando com Kierkegaard, Arendt destaca que ele
se propôs refletir sobre a incompatibilidade entre o espírito da dúvida, originado na época
moderna, especialmente com Descartes, e o caráter revelado da experiência religiosa, próprio
da Idade Média. No centro do problema está, portanto, a busca por “afirmar a dignidade da fé
contra a razão e os raciocínios modernos”
39
, tendo como horizonte a afirmação do “homem
concreto e sofredor.”
40
Mas o resultado final da tentativa de Kiekegaard de salvar a fé do as-
salto da modernidade acaba por tornar moderna a religião, estabelecendo no seu interior a
dúvida e a desconfiança, cujas situações eram os grandes problemas que ela enfrentava. Daí
que “as crenças tradicionais desintegraram-se no absurdo quando Kierkegaard tentou reafir-
má-las sobre a hipótese de que o homem não pode confiar na capacidade de sua razão ou de
seus sentidos para receber a verdade.”
41
37
EPF, p. 56 e 57.
38
Para ilustrar esta questão Arendt afirma: “A rebelião contra a tradição no século XIX permaneceu estritamente
no interior de um quadro de referência tradicional; e, ao nível do mero pensamento, que dificilmente poderia se
preocupar, então, com mais que as experiências essencialmente negativas da previsão, da apreensão e do silêncio
ominoso, somente a radicalização, e não um novo início e reconsideração do passado, era possível.” EPF, p. 55.
39
Ibid., p. 58.
40
Ibid., p. 63.
41
Ibid., p. 59.
23
Quanto à Marx, em relação aos demais, foi o que recebeu mais atenção da parte de
Arendt. Em várias obras
42
, aborda questões relativas ao seu pensamento. Na verdade, Arendt
começa a estudar sistematicamente o pensamento de Marx após ter escrito a obra Origens do
Totalitarismo. Tem como projeto um estudo sobre os Elementos Totalitários do Marxismo,
visando a preencher uma lacuna da “falta de uma análise histórica e conceitual de moldura
ideológica do bolchevismo.”
43
Nesse sentido, considerando que por trás de si repousa uma
tradição respeitável da filosofia política do Ocidente, o marxismo serve para analisar a moldu-
ra conceitual do bolchevismo de acordo com os termos históricos usuais e inerentes ao pró-
prio marxismo. A suspeita é, portanto, que o marxismo possuía, no seu interior, elementos
totalitários. O estudo prevê três partes: uma centrada em analisar o conceito de compreensão
que Marx tinha do homem como um “animal trabalhador”, e as outras analisam o marxismo
europeu e o socialismo, de 1870 a 1917, abordando a transição de Lênin a Stálin na Rússia.
Na primeira parte – o homem como animal trabalhador – Arendt acaba mudando o
rumo do seu estudo, passando da perspectiva da elucidação da utilização ideológica de Marx
ao bolchevismo para as questões do homem que se aparta de sua humanidade. Esse aprofun-
damento possibilita que Arendt problematize o conceito de animal trabalhador em confronto
com a condição da pluralidade humana, em lugar do embate com o bolchevismo, como estava
previsto. Daí nasce um novo pedido à Fundação Guggenheim, órgão financiador do projeto,
visando a distinguir entre a concepção do homo faber e do animal laborans. Dessa distinção,
Arendt faz a leitura do pensamento de Marx pelo viés da dignificação do trabalho como ativi-
dade criativa – fato determinante no rompimento com a forma de concepção de labor da tradi-
ção ocidental. O auge deste estudo acaba culminando no surgimento da obra A Condição Hu-
mana, na qual Arendt se propõe a analisar as atividades básicas da vita activa: labor, trabalho
e ação.
Arendt frisa que “a atitude de Marx com respeito à tradição do pensamento político foi
uma atitude de rebelião consciente.”
44
Em sua filosofia política, Marx manteve uma coerência
muito grande em todos os seus escritos acerca da afirmação de três teses: “o trabalho criou o
homem; [...] a violência é a parteira da História; os filósofos apenas interpretaram o mundo de
42
Cf. WAGNER, op. cit., p. 29. Nesta página a autora apresenta vários fragmentos das obras de Arendt que
denotam a importância de Marx para a própria composição do seu pensamento.
43
WAGNER, op. cit., p. 15.
44
EPF, p. 47.
24
diferentes maneiras, agora é preciso transformá-lo.”
45
Importante é o fato de que nenhuma
dessas teses podem ser compreendidas se apanhadas em si mesmas. Para Arendt, “cada uma
delas adquire seu significado ao contradizer alguma verdade tradicionalmente aceita e cuja
plausibilidade estivera até o início da época moderna, fora de dúvida.”
46
Em torno da acepção “o trabalho criou o homem”, Arendt aponta quatro considerações
que precisam ser levadas em conta. A primeira, “que o trabalho, e não Deus, criou o homem”;
a segunda, “que o homem, na medida em que é humano, cria a si mesmo, que sua humanidade
é resultado da sua própria atividade”; a terceira, “que aquilo que distingue o homem do ani-
mal, sua diferentia specifica, não é animal rationale, mas sim um animal laborans”; e a quar-
ta “que não é a razão, e até então o atributo máximo do homem, mas sim o trabalho, a ativida-
de humana tradicionalmente mais desprezada, aquilo que contém a humanidade do homem”.
47
Além disso, Arendt destaca que, na tese “o trabalho criou o homem”, Marx lança três
confrontos teóricos, desafiando “o Deus tradicional, o juízo tradicional sobre o trabalho e a
tradicional glorificação da razão.
48
Acerca da segunda tese, na qual a violência é concebida como a parteira da História,
Arendt reflete dizendo que “as forças ocultas do desenvolvimento da produtividade humana,
na medida em que dependem da ação humana livre e consciente, somente vem à luz através
de guerras e revoluções.”
49
Indiferentemente do fato da violência ter sido concebida tradicio-
nalmente como a ultima ratio presente nas relações e ações privadas, inclusive sendo conside-
rada como a mais vergonhosa e no espaço público, a característica que melhor lhe sobrevém é
a tirania; mesmo quando Maquiavel e Hobbes tentam apresentar nova roupagem e justificati-
va da violência, especialmente, nas questões concernentes ao poder; com Marx e a posse dos
seus meios, passam a ser considerados como elemento que faz parte de todas as formas de
governo, em virtude do Estado ser o “instrumento de classe dominante por meio do qual ela [a
violência] oprime e explora, e toda a esfera da ação política é caracterizada pelo uso da vio-
lência.”
50
45
Ibid., p. 48.
46
Id., Ibid.
47
Ibid., p. 48 e 49.
48
Ibid., p. 49.
49
Id. Ibid.
50
Id., Ibid. Nosso grifo.
25
Outro aspecto caracterizado por Arendt, nesse sentido, refere-se a total negação da
forma de organização política da pólis grega, da dupla definição aristotélica do homem como
zôon politikón e zôon logon ekhón, do logos, do discurso. A atividade política da pólis grega
era desenvolvida mediante o diálogo, o discurso, praticado entre os homens, indistintamente,
por meio da persuasão e não da violência que foi expurgada para fora dos limites da pólis. A
violência era praticada por aqueles que não eram membros da pólis, cuja mediação se dava
pela força. Os bárbaros e os escravos, considerados aneu lógou, eram as figuras que viviam
sob esta condição tendo suas ações voltadas somente ao trabalho, sem exercitar a fala, pois a
característica básica dos seus negócios era a apolitia e a vida privada.
Acerca da terceira e última tese de Marx, Arendt procura refletir sobre qual deve ser a
tarefa básica da filosofia, destacando que
para a filosofia tradicional, teria sido uma contradição em termos ‘realizar a filoso-
fia’ ou transformar o mundo em conformidade com a filosofia - e a proposição de
Marx implica que a transformação seja precedida de interpretação, de modo que a
interpretação do mundo pelos filósofos indique o modo como ela deveria ser trans-
formada. A filosofia pode ter prescrito regras de ação, porém nenhum filósofo ja-
mais tomou isso como sua mais importante preocupação.”
51
O papel e função do filósofo em Marx são ligados diretamente às questões sociais,
visando a transformar a realidade de opressão e alienação presente na esfera organizativa do
trabalho nos moldes do capitalismo. No entanto, Marx não abdica totalmente da filosofia, pois
ela serve para auxiliar na formação de consciência da condição de exploração que os operá-
rios estavam submetidos. Na reflexão de alguns pensadores sobre esta a posição marxiana,
a pretensão de Marx em procurar realizar a filosofia mediante o processo de trans-
formação e não apenas interpretação, ou de acordo com questões ligadas às idéias
e não aos negócios humanos propriamente ditos, era exatamente possibilitar que o
domínio de idéias, próprio dos filósofos, os “eleitos”, pudesse realizar a partir do
senso comum também. No fundo, a grande tentativa de Marx era estabelecer a in-
versão do modo de conceber a relação entre filosofia e política, elevando a última
e inferiorizando a primeira, dando mais espaço para a ação e menos para a teoria.
52
Marx não pensa a filosofia sem ação, sem política. O grande problema das suas teses,
segundo Arendt, não reside no seu levantamento de novas proposições que coloquem em xe-
que a tradição em si. Até porque não o fez. O cerne da discussão está na sua forma de pensar a
51
Ibid., p. 50.
52
DUARTE, op. cit., p. 80. Sobre isso também indicamos a leitura de COURTINE-DENAMY, Sylvie. Hannah
Arendt. Lisboa/Portugal: Instituto Piaget, 1994, p. 258, passagem onde reflete esta questão.
26
organização da sociedade futura, quando ele acaba por determinar antecipadamente uma con-
tradição insolúvel em cada uma das teses. Arendt assevera que
se o trabalho é a mais humana e mais produtiva da atividades do homem, o que a-
contecerá quando depois da revolução, ‘o trabalho for abolido’ no ‘reino da liberda-
de’, quando o homem houver logrado emancipar-se dele? Que atividade produtiva e
essencialmente humana restará? Se a violência é a parteira da História e a ação vio-
lenta, portanto, a mais honrada de todas as formas de ação humana, o que acontecerá
quando, após a conclusão da luta de classes e o desaparecimento do Estado, nenhum
violência for sequer possível? Como serão os homens capazes de agir de um modo
significativo e autêntico? Finalmente, quando a filosofia tiver sido ao mesmo tempo
realizada e abolida na futura sociedade, que espécie de pensamento restará?
53
Cabe destacar que todos estes elementos considerados por Marx são relevantes, seja
pela “sacudida” na tradição quando ele propõe novos conceitos no universo filosófico, seja
para refletir sobre as contradições inerentes ao seu próprio pensamento, apesar delas serem
bem conhecidas dos estudiosos do pensamento de Marx. No entanto, Arendt pontua o fato
lamentável e denominado o grande problema de Marx na forma de projeção da sociedade sem
Estado, sem ação e sem trabalho, apesar de sua constante defesa a estas duas atividades. Ne-
nhum outro aspecto pode ter obtido maior relevância do que este para a reflexão do limite na
forma de organização política da sociedade futura.
A discussão elementar é que o projeto inicial marxiano visa a dar um grande salto da
filosofia para a política, isto é, da teoria para a ação, ou da contemplação para o trabalho. En-
tretanto, no entendimento de Arendt, acaba caindo na sobreposição da economia à política.
Quando Marx eleva o conceito de trabalho ao topo da hierarquia das atividades humanas, ca-
paz de possibilitar a criação do homem, infelizmente, ele não prioriza nem a ação e nem a
contemplação, apesar dos conceitos de ação e trabalho serem intercambiáveis.
O primeiro problema de Marx localiza-se em ter utilizado o conceito de trabalho sem
fazer a sua distinção inerente às atividades da vita activa, a saber: o labor, o trabalho e a a-
ção
54
. Mais que não ter feito esta importante diferenciação das atividades da vita activa, o
filósofo alemão reduz todas elas ao trabalho. Em sua obra Manuscritos Econômico-
Filosóficos de 1844, também conhecida como Manuscritos de Paris, Marx diz:
53
EPF, p. 51.
54
Apresentaremos a diferenciação de cada uma delas no terceiro capítulo deste estudo. Por ora, destacamos
genericamente que o labor é a atividade voltada para a sobrevivência da espécie; o trabalho é a atividade que diz
respeito à produção de obras; e a ação é a atividade que se exerce entre os homens sem a mediação de coisas e
utensílios. Cf. CH, p. 15.
27
[...] o trabalho, a actividade vital, a própria vida produtiva, (na forma do trabalho a-
lienado) aparecem ao homem como um meio para a satisfação de uma necessidade,
da necessidade da manutenção da existência física. Mas a própria vida produtiva é a
vida genérica. É a vida que gera vida. No modo de actividade vital reside todo o ca-
ráter de uma species (espécie), o seu caráter genérico, e a atividade consciente livre
é o caráter genérico do homem. A própria vida aparece apenas como meio de vida.
O animal faz imediatamente um com a sua actividade vital. Não se diferencia
dela. É ela. O homem torna a sua própria actividade vital objecto do seu querer e da
sua consciência. [...] A actividade vital consciente diferencia imediatamente o ho-
mem do animal. Precisamente por isto ele é um ser genérico. Só por isso a sua acti-
vidade é actividade é livre. [...] O gerar prático de mundo objectivo, a elaboração da
Natureza inorgância, é a prova do homem com ser genérico consciente, i. é, um ser
que se comporta para com o gênero como sua própria essência ou para consigo co-
mo ser genérico. [...] só na elaboração do mundo objectivo o homem se prova real-
mente como ser genérico. Esta produção é a vida genérica operativa. Por ela, a Na-
tureza aparece como obra sua e realidade sua. O objecto do trabalho é, portanto, a
objectivação da vida genérica do homem, na medida em que ele se duplica não só
intelectualmente, como na consciência, mas também operativamente, realmente, e
intui-se, por isso, num mundo criado por ele.
55
Nessa longa, mas importante passagem do texto de Marx, nota-se, claramente a indife-
renciação das atividades da vita activa ao modo apresentado por Arendt. Portanto, o conceito
de trabalho é diferente entre Marx e Arendt. Marx confunde trabalho com labor e com a ativi-
dade da ação
56
. Quando aplica o seu conceito como atividade que o homem realiza para suprir
as necessidades próprias de sobrevivência e para a reprodução da espécie humana, o trabalho
aproxima-se do labor. Mas quando trata da atividade operativa, na produção e fabricação de
coisas que o homem faz, tanto aqueles objetos para uso quanto de arte, além da sua durabili-
dade no mundo, também estendem a própria vida do homem, que deposita não só o esforço
das mãos, mas também a sua subjetividade.
55
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Tradução de Maria Antônia Pacheco. Lisboa:
Edições Avante, 1993, p. 67 e 68. Grifo nosso.
56
Esta consideração é, na nossa avaliação, sumamente importante, porque infelizmente Arendt não mencionou
esta questão, limitando-se à análise da relação entre trabalho e labor, excluindo a ação. Prova disso é que Arendt
deixou claro no intróito do capítulo sobre o labor que nele criticaria Marx, ao passo que, na ação, ela não faz o
mesmo. Nosso propósito é ir mais a fundo nesta questão e mostrar que, por ser a ação a atividade que possibilita
a revelação da imagem própria do agente, e pelo fato de Marx ter fundamentado no trabalho a objetivação da
subjetividade humana, entendemos que, ao tratar da ação, também se está discutindo a aplicação de conceitos
que foram apresentados por Marx no âmbito do trabalho. Em Marx, pelo trabalho, o homem deposita a sua sub-
jetividade e todo o seu empenho pessoal e quando se reconhece naquilo que fez, sente-se realizado e, quando
ocorre a desrealização é porque o trabalho é alienado. Em Arendt, o agente, na medida em que age e consegue
revelar a sua subjetividade e singularidade, sente-se feliz e prazer em agir e, sobretudo, resgata a condição essen-
cial da política. Dessa forma, entendemos oportuno aproximar o conceito de trabalho também ao conceito de
ação e, além disso, destacar que há, entre Arendt e Marx, uma diferença fundamental no lugar de realização da
política. Em Marx, a política se realiza em conjunto com a esfera do trabalho. Há outros ainda que acusam Marx
de não ter pensado na política e sim no trabalho. Em Arendt, a política é pensada no espaço público onde se
desenvolve a atividade da ação e é somente nela que a política tem sua realização. Voltaremos a isso no terceiro
capítulo. Por ora, contentamo-nos em esclarecer esta diferenciação.
28
Para Arendt, a atividade que se debruça na produção para a manutenção da espécie é
própria do labor, e o lugar para expressar a subjetividade humana, enquanto elemento único e
singular que caracteriza a condição de pluralidade dos seres humanos, localiza-se na ação. Ao
ter atribuído todos estes elementos ao trabalho, Marx enfraquece dois pontos fundamentais do
seu pensamento. De um lado, critica severamente a explicitação do trabalho alienado que pro-
duz apenas para a satisfação da necessidade e manutenção física, biológica. Mas ao propor a
forma de organização da sociedade futura, repõe o problema porque tudo o que os homens
farão não fugirá do atendimento à sobrevivência. A ocupação das pessoas em seu tempo livre,
ao invés da discussão e ações políticas, deve ser dedicada à pesca, crítica literária, isto é, na
proliferação de “hobbies” privados. Em a Ideologia Alemã, Marx afirma:
[...] a partir do instante em que o trabalho começa a ser dividido, cada um tem uma
esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual ele não po-
de fugir; ele é caçador, pescador, pastor ou crítico, e deverá permanecer assim se não
quiser perder seus meios de sobrevivência; ao passo que na sociedade comunista, em
que cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas se aperfeiçoar no ramo
que lhe agradar, a sociedade regulamenta a produção geral, o que cria para mim a
possibilidade de hoje fazer uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na par-
te da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica após às refeições, a meu bel-
prazer, sem nunca me tornar caçador ou crítico.
57
Por melhor que tenham sido suas intenções na proposição da sociedade futura, Marx
acaba instaurando o reino da liberdade sobre as bases da necessidade. Prova disso é o objeto
da esfera privada. Dessa forma, exerce o pleno domínio das atividades e, em conseqüência,
acontece a decadência do espaço público e, por seu turno, o desaparecimento da política pelo
fato dela estar centrada na mera “administração das coisas”. Esse é o grande nó que Arendt
localiza no pensamento de Marx e sua crítica é severa porque, ao mesmo tempo em que ele
critica a forma de organização e conseqüências resultantes da sociedade industrial, regida pelo
mando do capital, acaba por aceitar o pressuposto moderno da dignificação do trabalho pelo
viés da economia e não da política, gerando uma grande massa de pessoas voltadas unicamen-
te ao consumo, legando a política ao desleixo, como se verá mais adiante no significado da
vitória do animal laborans sobre o homo faber.
O segundo ponto que merece ser destacado é o fato de Marx ter refletido a expressão
da subjetividade no trabalho, tornando-o espaço da objetivação da subjetividade humana.
Nesse sentido, a singularidade e pluralidade dos seres humanos, condições básicas para o e-
57
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Tradução de Luis Claudio de Castro e Costa. São
Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 28 e 29.
29
xercício da política, passam a estar ligadas ao âmbito do trabalho. A conseqüência para a polí-
tica será profunda, pois o trabalho assume o seu papel e toda a sua forma de realização será
pensada, conforme mais adiante, na lógica instrumental da fabricação. Mais que isso, é dema-
siado estranho que Marx tenha elevado o trabalho à condição de excelência da realização da
política e, na sociedade futura, simplesmente, elimina-o. O modelo de organização da socie-
dade futura define-se por atividades que têm como elemento decisório do que-fazer a vontade
e o bel-prazer, sem exclusividade e divisão do trabalho imposto.
Quanto à Nietzsche, Arendt “entende sua filosofia como ‘platonismo invertido’ e
‘transmutação de todos os valores’.”
58
Em seu grande projeto, Nietzsche procura ultrapassar o
reino transcendente das idéias (platônicas) e colocar no centro da filosofia questões da sensua-
lidade da vida, na perspectiva de recuperar os valores essenciais ao ser humano. Percebe que
as “idéias” tradicionais, transcendentes, acerca das ações humanas e do próprio pensamento,
com o advento da forma de organização da era moderna, acabam perdendo seu estatuto fun-
damental em indicar caminhos ao ser humano e se dissolvem em questões meramente buro-
cráticas, enquadrando os valores sob a égide funcional. Daí que os valores passam de uma
concepção autônoma, isto é, de uma idéia de bem que possa estabelecer as diferenças e limites
entre o bem e o mal, para um caráter de valor que pode ser trocado na presente relativização
das relações sociais e do comércio. Nietzsche reflete tal situação e concebe, a partir disso, um
novo paradigma, intitulado a “desvalorização dos valores”. Para Arendt,
ninguém melhor que Nietzsche soube caminhar pelas trilhas tortuosas do labirinto
espiritual moderno, onde reminiscências e idéias do passado são amontoados como
se houvessem sido sempre valores que a sociedade depreciaria toda vez que necessi-
tasse de artigos melhores e mais novos. Além disso, ele era bem consciente do pro-
fundo absurdo da nova ciência ‘livre de valores’ que logo degeneraria em cientifi-
cismo e em superstições científicas gerais e que jamais, a despeito de todos os pro-
testos em contrário, teve coisa alguma em comum com a atitude sine ira et studio
dos historiadores romanos.
59
Contra a maneira de conceber os valores propagados pela modernidade, Nietzsche
insiste na vida e nos dados sensíveis e materiais. Seu mérito está no “que ele descobriu em sua
tentativa de ‘transvaloração’ que, dentro deste quadro de referência categórico, o sensível
perde sua própria raison di être quando privado de substrato no supra-sensível e no transcen-
dente.”
60
58
EPF, p. 63.
59
Ibid., p. 62.
60
Ibid., p. 58.
30
No entanto, a proposição de novos valores descobertos por Nietzsche, tendo a vida
como elemento central, em oposição às idéias transcendentes de Platão, ao invés de possibili-
tar “medir, julgar e atribuir significado ao dado terminou no que é comumente chamado nii-
lismo. E, contudo, Nietzsche não era nenhum niilista, mas, ao contrário, foi o primeiro a tentar
superar o niilismo inerente, não às noções dos pensadores, mas à realidade da vida moder-
na.”
61
Feitas tais considerações acerca dos avanços e limites dos rebeldes da tradição, é opor-
tuno perguntar se as estruturas e condições que o século XX presenciaram, especialmente na
deflagração dos valores e na perda do sentido da política, podem ser atribuídas às conseqüên-
cias das posições que eles assumiram? Para Arendt, afirmar isso “é ainda mais perigoso que
injusto. [...] A grandeza deles repousa no fato de terem percebido o seu mundo como um
mundo invadido por problemas e perplexidades novas com as quais nossa tradição de pensa-
mento era incapaz de lidar.”
62
Sem a pretensão de construir sistemas, como era a prática dos
filósofos anteriores aos seus pensamentos, Kierkegaard, Marx e Nietzsche vão realmente ao
cerne do problema, através do levantamento de questões à hierarquia das aptidões humanas
estabelecidas pela tradição, empenhados, sempre, em perguntar “qual é a qualidade especifi-
camente humana dos homens.”
63
Mas não se deve a eles o fim definitivo da tradição política
do Ocidente.
O esfacelamento e ruptura definitiva dos padrões políticos da tradição ocidental remete
para outro tema sem se deter especifica e unicamente na abordagem dos rebeldes do século
XIX. Segundo Arendt, a quebra da nossa história surge “de um caos de perplexidade de massa
no palco político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários,
através do terror e da ideologia, cristalizaram em uma nova forma de governo e dominação.”
64
A forma inédita de organização, categorias usadas para expressar a política, os crimes realiza-
dos, bem como a sua forma de julgamento e punição instaurados pelo totalitarismo, possibili-
taram afirmar que “a ruptura em nossa tradição é agora um fato acabado. Não é resultado da
escolha deliberada de ninguém, nem sujeita a decisão ulterior.”
65
61
Ibid., p. 57 e 58.
62
Ibid., p. 54.
63
Ibid., p. 67.
64
Ibid., p. 53 e 54.
65
Ibid., p. 54.
31
2.3 O fenômeno do totalitarismo: a ruptura definitiva da tradição política no Ocidente
A discussão sobre o surgimento, configuração e caracterização da forma de expressão
do totalitarismo no campo da política, a partir de Arendt, localiza-se num contexto histórico
determinado. Como ela mesma expressou no prefácio da obra Origens do Totalitarismo:
Este livro, portanto, é limitado no tempo e no espaço, tanto quanto ao assunto. Suas
análises cuidam da história judaica na Europa central e ocidental desde o tempo pós-
medieval dos judeus-da-corte até o caso Dreyfus, naquilo em que ele foi, de um la-
do, relevante para o nascimento do anti-semitismo e, do outro, influenciado por ele.
Trata dos movimentos anti-semitas que ainda se baseavam de modo bastante sólido
nas realidades factuais das relações entre judeus e gentios, isto é, no papel desempe-
nhado pelos judeus no desenvolvimento do Estado-Nação e no seu papel dentro da
sociedade não-judaica.
66
A gênese central da reflexão arendtiana frente ao fenômeno do totalitarismo começa
com suas análises, narrações e levantamento de questões da perseguição ao povo de origem
semita, expressado na figura do judeu. Aborda situações que vão desde o surgimento dos pri-
meiros partidos anti-semitas, nas décadas de 1870 e 1880, até o estabelecimento de uma solu-
ção que pudesse marcar o fim dos conflitos de interesses entre raças, classes, partidos, movi-
mentos, governos e nações. Mas o que a história permite ao mundo assistir, segundo Arendt,
foi o fracasso da superação dos conflitos, por conta da abertura de um caminho que levou a
uma “solução final” genocida, trágica, violenta, jamais vista, realizada na experiência dos
campos de concentração.
A reflexão em torno do anti-semitismo e do imperialismo, primeiro e segundo capítu-
los da obra Origens do Totalitarismo, é apenas o intróito do problema que perpassará toda a
obra, mas neles já se apresenta a preocupação de Arendt em transcender a descrição de alguns
fatos meramente históricos. Nesses dois pontos em discussão, Arendt denota uma preocupa-
ção com questões ligadas à política, especialmente com a experiência dos regimes totalitários
nazistas e stalinistas
67
porque neles desencadeia-se uma nova plataforma de conceitos e ações
no exercício da governabilidade, do poder, da autoridade, da força, da violência
68
, a ponto de
marcar uma experiência jamais vista em toda a história, isto é, sem precedentes. Esse é o pon-
to fundamental da obra Origens do Totalitarismo. Não se trata, e se faz questão de frisar no
66
OT, p. 22.
67
Os dois regimes são referenciados ao longo da obra, mas Arendt deu mais atenção ao nazista.
68
Ao longo do terceiro capítulo haveremos de retomar estes conceitos e demonstrar as reflexões que Arendt fez
sobre eles no campo da política.
32
início deste estudo, de ler o fenômeno totalitário, à luz de uma descrição histórica, seguida de
uma série de eventos, fatos e situações que marcaram época no calendário e/ou almejar cons-
truir posição teórica que se enquadre a neste ou naquele pensador acerca do totalitarismo. Não
é isso que está em questão. O elemento fundamental e conditio sine qua non para entender o
propósito arendtiano na obra Origens do Totalitarismo é lê-lo com o horizonte do seu desdo-
bramento político. Até porque Arendt não é historiadora e nem filósofa como ela mesma ex-
pressou em 1964, em entrevista concedida a Günter Gaus, no Canal 2 da TV alemã, destacan-
do que aquilo que melhor identifica o seu ofício é a teoria política.
69
O totalitarismo é o ponto de partida da reflexão política de Arendt. Nesse estudo, ela
reflete e define o problema que viria a preocupá-la em toda a sua obra posterior, isto é, com-
preender como determinadas formas de governo, especialmente no contexto moderno em di-
ante, garantem a realização da liberdade humana
70
. Segundo Nádia Souki,
a reflexão política de Arendt começa, portanto, com a sua tentativa de compreender
o fenômeno do totalitarismo. Para ela, a única forma de compreendê-lo é considerá-
lo dentro da categoria de novidade, pois ele escapa à explicação dentro das categori-
as da tradição. Essa falta de apoio na experiência da tradição se deve ao fato da e-
mergência de tal fenômeno construir algo novo que não se ajusta às nossas categori-
as de pensamento. Trata-se de um fenômeno de expressão radicalmente moderno
com marca de originalidade. A emergência do totalitarismo obrigou-nos a reavaliar a
ação humana e a história, na medida em que esta revelou novas figurações do ho-
mem, inclusive em algumas de suas formas monstruosas.
71
Esse é o elemento central que permite introduzir e avançar na discussão do fenômeno
totalitário a fim de mostrar porque ele merece tamanha importância no pensamento político de
Arendt. O que havia acontecido? Por que havia acontecido? Como pode ter acontecido?
72
São
69
É oportuno destacar aqui que Arendt não gostava que utilizassem alguns termos para sua identificação. Arendt
não era historiadora e também não gostava que a chamassem de filósofa. Seu ofício, expresso de maneira geral,
era a teoria política. O fato de ela ter estudado fatos e situações históricas e ter se ocupado de questões e pensa-
mentos filosóficos, não fizeram de Arendt uma apaixonada para tais áreas. A centralidade do seu pensamento,
como ela mesma disse para Gaus, é teoria política. Cf., DP, p.123.
70
Outras ponderações a respeito, ver WOLIN, Richard. Labirintos. Em torno a Benjamin, Habermas, Schmidt,
Arendt, Derrida, Marx, Heidegger e outros. Exploração na história crítica das idéias. Lisboa: Instituto Piaget,
1995, p. 255. Segundo Amiel, “As Origens do Totalitarismo é uma obra que tem um valor de origem e cujos
textos ulteriores são a recuperação, o prolongamento, a correção.” Cf. AMIEL, Anne. Hannah Arendt, Política e
Acontecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 13.
71
SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e o paradigma do anti-estado. In: AGUIAR, Odilio Alves. et. al. Origens do
Totalitarismo: 50 anos depois. RJ: Relume Dumará; Fortalez - CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2001, p.
104.
72
São as três perguntas que Arendt se coloca no prefácio da terceira parte da obra OT. Ver p. 339. Outra referên-
cia que merece destaque neste ponto é o texto de BIGNOTTO, Newton. O totalitarismo hoje. In: AGUIAR,
Odilio Alves. et. al. Origens do Totalitarismo: 50 anos depois. RJ: Relume Dumará; Fortalez - CE: Secretaria da
Cultura e Desporto, 2001. Bignotto afirma que o encadeamento das questões permite aproximar a maneira como
Arendt constituiu seu objeto de estudo. ( p. 38)
33
três questões basilares que Arendt levanta para melhor compreender este estudo, e nelas não
está uma preocupação pela busca das causas
73
, mas pelos componentes políticos oriundos do
totalitarismo. O objetivo da obra “é uma tentativa de compreender os fatos que, à primeira
vista, pareciam apenas ultrajantes.”
74
Portanto, versa uma perspectiva que ultrapassa a mera
lamentação, denúncia, até mesmo o intento de querer produzir predições ao modo dos “profe-
tas da catástrofe”
75
, por que o que lhe causa acicate era a árdua tarefa de refletir as bases sobre
as quais a política estava assentada.
76
O objetivo de Arendt, portanto, é compreender o que
está se passando e, para isso, destaca o significado de compreensão, dizendo:
Compreender não significa negar o ultrajante, subtrair o inaudito do que tem prece-
dentes, ou explicar fenômenos por meio de analogias e generalidades tais que se
deixa de sentir o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa antes e-
xaminar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre
nós - sem negar sua existência nem vergar humildemente a seu peso, como se tudo o
que de fato aconteceu não pudesse ter acontecido de outra forma. Compreender sig-
nifica em suma, encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a ela - qual-
quer que seja, venha a ser ou possa ter sido.
77
A tarefa de compreender não se pauta exclusivamente em um ponto de chegada deter-
minado porque seu processo é complexo e pode, às vezes, produzir resultados equivocados –
daí a necessidade de retomar as construções que se podem fazer. “Trata-se de uma atividade
interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com
nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo”.
78
Todavia, compreender, segundo Arendt, acaba sendo usado como sinônimo de perdoar, e isso
não é correto. A esse respeito, diz:
73
Em seu artigo “Compreensão e Política”, escrito em 1954, Arendt tece críticas ao conceito de causalidade em
relação à história e, diga-se de passagem, central na obra OT. A esse respeito, Francisco Xarão destaca: “Neste
artigo, ela [Arendt] sustenta que a própria idéia de novidade está comprometida quando o historiador olha o
evento a partir de certas condições antecedentes, as quais são tomadas como causas do mesmo. Sempre que se
tenta explicar um evento atual por meio de forças agindo por detrás dele, ou derivá-lo de um conjunto de causas
colhidas pelo próprio historiador, o que se consegue é tão somente inseri-lo em turbilhão de máximas e lugares-
comuns, que é, na maioria das vezes, muito consolador para o senso comum, mas que não ajuda em nada na
tarefa de compreensão do presente.” XARÃO, Franciso. Política e Liberdade em Hannah Arendt: ensaio sobre a
reconsideração da vita activa. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2000, p. 42. (Coleção ensaios - política e filosofia). Indicamos
também a fonte do texto original para eventuais consultas: ARENDT, Hannah. Compreensão e Política. In: DP,
p. 39-54.
74
OT, p. 21.
75
Nesta questão, ver o estudo de um dos grandes intérpretes e estudioso do pensamento político de Arendt:
DUARTE, op.cit.. p. 73.
76
Sobre isso André Duarte nos diz: “Das Origens do Totalitarismo Arendt já assumia que não se tratava de ar-
gumentar a favor da tese da impossibilidade de compreender e pensar a política após a ruptura, mas, sim, de
reconhecer as dificuldades e a própria necessidade de se repensar a tradição filosófica, tendo em vista renovar as
bases sobre as quais a política fora assentada, recriando ambas, política e filosofia. DUARTE, op.cit., p. 74.
77
OT, p. 21.
78
DP, p. 39.
34
Perdoar, no entanto, tem tão pouco a ver com compreender, que não é a sua condi-
ção nem a sua conseqüência. Perdoar (sem dúvida uma das grandes capacidades
humanas e, talvez, a mais ousada das ações do homem, já que tenta alcançar o apa-
rentemente impossível - desfazer o que foi feito - e tem êxito em instaurar um novo
começo onde tudo parecia ter chegado ao fim) é uma ação única que culmina em um
ato único. A compreensão é interminável e, portanto, não pode produzir resultados
finais; é a maneira especificamente de estar vivo, porque toda pessoa necessita re-
conciliar-se com um mundo em que nasceu como um estranho e no qual permanece-
rá sempre um estranho, em sua inconfundível singularidade. A compreensão começa
com o nascimento e termina com a morte.
79
O objetivo de Arendt, ao conceber a análise do totalitarismo, pelo viés da compreen-
são, foge, portanto, às perspectivas do perdão. Não se trata de desfazer o que foi feito. Pelo
contrário, quer-se é demonstrar que o que foi feito precisa ser reconsiderado, por que nele está
o gérmen da nova forma de conceber a relação do homem com o mundo que, a partir da expe-
riência dos governos totalitários, acaba sendo transformado num verdadeiro inferno, conforme
será mostrado mais adiante. Portanto, se cabe alguma reconciliação nesta história, ela não será
com o totalitarismo, mas com o próprio mundo, a fim de torná-lo novamente habitável – espa-
ço do homem e para o homem.
É verdadeiro que Arendt não tem como preocupação construir a história do totalita-
rismo pelo viés das causas, conforme se acena, mas para compreender o que havia acontecido.
Ela chama atenção para duas questões fundamentais. Uma refere-se à necessidade de ter uma
certa familiaridade com a história judaica na Europa do século XIX e, no seu interior, a con-
seqüente evolução e reflexão do anti-semitismo.
Por mais que ainda não se tenha um estudo analítico da história do anti-semitismo, e
este é um ponto que precisa ser ainda construído, justifica-se, neste caso, para Arendt, o apro-
fundamento e reflexão deste tema como necessidade de compreensão e, futuramente, talvez,
possibilitar uma certa contribuição para a construção de uma história analítica do anti-
semitismo. Mas, segundo Arendt, é lamentável o fato de seu esforço ter sido concebido me-
ramente como parte integrante da pré-história do totalitarismo. Acontece que o presente estu-
do até então fora construído por judeus mentecaptos e apologéticos, sendo concebido periferi-
camente por historiadores de reputação. Nesse sentido, urge a necessidade de ir mais longe e
mostrar a novidade recôndita no interior do fenômeno totalitário.
79
Id., Ibid.
35
A outra questão refere-se à Segunda Guerra Mundial. Por mais que os horrores e a
derradeira catástrofe da Primeira e Segunda Guerra viessem à tona após seu término, houve
uma grande tendência em confundir a origem do totalitarismo com explosões de anti-
semitismo ou racismo. Mas, neste ponto, Arendt é enfática em afirmar que
essa atitude é tão enganadora na busca da verdade histórica como é perniciosa para a
análise política. A política totalitária - longe de ser simplesmente anti-semita, ou ra-
cista, ou imperialista, ou comunista - usa e abusa de seus próprios elementos ideoló-
gicos, até que se dilua quase que completamente com a sua base, inicialmente abor-
dada partindo da realidade e dos fatos - realidade da luta de classes, por exemplo, ou
dos conflitos de interesse entre os judeus e os seus vizinhos, que fornecia aos ideó-
logos a força dos valores propagandísticos.
80
Nas primeiras páginas redigidas na obra Origens do Totalitarismo, Arendt coloca o
verdadeiro problema do que realmente aconteceu. E assevera:
Duas guerras mundiais em uma geração, separadas por uma série ininterrupta de
guerras locais e revoluções, seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e
de nenhuma trégua para os vencedores, levaram à antevisão de uma terceira guerra
mundial entre as duas grandes potências que ainda restavam. O momento de expec-
tativa é como a calma que sobrevém quando não há mais esperança. Já não ansiamos
por uma eventual restauração da antiga ordem do mundo com todas as suas tradi-
ções, nem pela reintegração das massas, arremessadas ao caos produzido pela vio-
lência das guerras e revoluções e pela progressiva decadência do que sobrou. Nas
mais diversas condições e nas circunstâncias mais diferentes, contemplamos apenas
a revolução dos fenômenos - entre eles o que resulta no problema de refugiados,
gente desprovida de lar em número sem precedentes, gente desprovida de raízes em
intensidade inaudita.
81
Diante disso, “a análise histórica e o pensamento político permitem crer, embora de
modo indefinido e genérico, que a estrutura essencial de toda a civilização atingiu o ponto de
ruptura.”
82
Esse é ponto central para a abordagem da questão do totalitarismo e inclusive da
reflexão do pensamento político de Arendt. Segundo Francisco Xarão, “o primeiro passo para
se entender o sentido do fenômeno totalitário, é admitir a ruptura ocorrida.”
83
Proceder, dessa
forma, implica mostrar, mais uma vez, que o fenômeno totalitário, analisado por Arendt, ex-
trapola os limites de um pensamento pautado restritamente em descrições de fatos históricos
80
OT, p. 21. Acerca desta questão, Arendt continua a reflexão, destacando que o que surgiu na grande luta anti-
semita do século XIX não foi o problema do nazismo, mas o levante do sionismo, cuja tarefa assumiu o aspecto
consciente contra ideologia de “resposta ao” anti-semitismo, visando a alcançar a organização dos movimentos
étnicos unificados nacionalmente. Na era imperial, esse foi um grande passo dado, pois demonstrava que a polí-
tica totalitária, anos depois implantada, poderia sofrer com a resistência dos povos, o que lamentavelmente não
veio acontecer.
81
Ibid., p. 11.
82
Id., Ibid.
83
XARÃO, op. cit. p. 32.
36
ou lamentar diante da perseguição que ela mesma sofreu por ser judia, própria do contexto em
que viveu.
84
Nesse aspecto, o fenômeno totalitário como evento de ruptura definitiva com a
tradição política no Ocidente e cuja expectativa é a extinção da esperança, permite abordar
alguns aspectos importantes e cruciais, especialmente nas questões ligadas à política e à pró-
pria vida humana.
O primeiro aspecto a ser destacado no evento de ruptura é que, nas palavras de Arendt,
“essa estrutura não autoriza antever a futura evolução do que resta no século XX, nem fornece
explicações adequadas aos seus horrores”.
85
O que melhor o caracteriza é a situação parado-
xal: “Incomensurável esperança, entremeada de indescritível temor parece corresponder me-
lhor a esses acontecimentos que o juízo equilibrado e o discernimento comedido.”
86
Contudo,
há, para Arendt, de um lado, os que acreditam na ruína final e, de outro, os que se entregam
ao otimismo temerário.
O segundo aspecto situa-se na incapacidade de conseguir compreender o que realmen-
te estava ocorrendo, considerando que as bases e concepção da política tradicional foram co-
locadas em xeque, ocasionando o seu desprendimento para fins humanos.
87
No dizer de A-
rendt,
a passividade de ceder ao processo de desintegração converteu-se em tentação irre-
sistível, não somente porque esse processo assumiu a espúria aparência de “necessi-
dade histórica”, mas também porque os valores em vias de destruição começaram a
parecer inertes, exangues, inexpressivos e irreais.
88
Essa situação acabou gerando um problema muito sério no espaço das relações huma-
nas e nas formas de efetivação do poder. Interliga-se o bom e o mau, justo e injusto, sem dis-
tinção, o amor ao poder pelo poder
89
, a expansão pela expansão, à maneira assistida no desen-
84
Insistimos nisso porque comumente ouvimos em círculos acadêmicos que o pensamento de Arendt não passa
de uma simples reflexão dos problemas de sua vida pela perseguição que sofreu dos nazistas e que o totalitaris-
mo foi um evento do passado, um evento histórico, sem consistência política. O que nos incomoda é o fato de
pesquisadores em filosofia pensar que fazer filosofia é ignorar o contexto. Será o nascimento da própria filosofia
mero acaso, reflexão que nasce das “nuvens”? Não será a reflexão frente à explicação mitológica que caracteriza
o surgimento da filosofia? E os filósofos, quando elaboram suas reflexões, por acaso estão desligados do seu
contexto? Lamentamos o fato, mas acontece.
85
OT, p. 11.
86
OT, p. 11.
87
Este é ponto do porquê Arendt procura acentuar a importância do verbo compreender, conforme mencionamos
anteriormente.
88
OT, p. 12.
89
Em seu artigo Compreensão e Política, Arendt diz: “O uso popular da palavra totalitarismo com o propósito
de denunciar algum mal político supremo não tem mais de cinco anos de idade. Até o final da Segunda Guerra
37
volvimento do imperialismo. Daí que “a tentativa totalitária da conquista global e do domínio
total constituiu a resposta destrutiva para todos os impasses. Mas a vitória totalitária pode
coincidir com a destruição da humanidade, pois, onde quer que tenha imperado, minou a es-
sência do homem
90
. Assim, de nada serve ignorar as forças destrutivas de nosso século.”
91
Por fim, cabe destacar o que resume e caracteriza centralmente o fenômeno totalitário
como evento de ruptura, isto é, como um marco “sem precedentes” que veio à luz e usurpou a
dignidade da tradição e possibilitou a expansão da natureza realmente radical do mal
92
. Para
Arendt,
o anti-semitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a con-
quista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) - um após o outro, um mais brutal-
mente que o outro - demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia,
somente encontrável em novos princípios políticos e em uma nova lei na terra, cuja
vigência desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve permanecer es-
tritamente limitado, estabelecido e controlado por entidades territoriais novamente
definidas.
93
O desafio, então, lançado por Arendt é grande. Trata-se de ler os fenômenos do totali-
tarismo à luz do ser humano e compreender que, nas condições em que ele foi posto, não há
valores que pudessem expressar a tamanha brutalidade. Mesmo que se faça um esforço ou
uma análise primária frente o surgimento do governo totalitário e ver que nele se apresenta
uma certa semelhança com os diversos modos e regimes de opressão política assistidas ao
Mundial, e mesmo depois dos primeiros anos do pós-guerra, o rótulo para o mal em política era o imperialismo.
Assim usada, a palavra costumava denotar agressividade na política externa. A identificação era tão forte que as
duas palavras eram facilmente intercambiáveis. Do mesmo modo hoje utiliza-se o totalitarismo para denotar a
ânsia ao poder, a vontade de dominar, o terror e a chamada estrutura estatal monolítica. A transformação é em si
digna de nota.” Cf. DP, p. 43.
90
Na reflexão de Anne-Marie Roviello, em sua obra Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt, publica-
da pelo Instituto Piaget, Lisboa/Portugal, em 1987, na qual trata de afirmar que o pensamento político de Arendt
é indissociável com a questão: O que é o homem. Nesse sentido, é fundamental aproximar as discussões políticas
arendtianas das considerações e aspectos antropológicos. (p. 7) Mas isso não significa dizer que a política resol-
verá todos os problemas do homem. Arendt remete para a centralidade do homem porque ele está acabando
consigo mesmo diante de atos brutos, desumanos e violentos, assisitidos no regime totalitáio.
91
OT, p. 12.
92
Arendt se propôs a pensar o mal, abordando sua origem e conseqüências. Numa correspondência à Jaspers e
em resposta G. Scholem (outra carta), Arendt apresenta a chave daquilo que para ela se constituía como o grande
enigma do mal radical: “o mal radical não é profundo, não tem raízes. É obra de indivíduos que criaram um
vazio interior, de indivíduos insensíveis ao mundo.” Cf. ROVIELLO, op. cit. 163. Para Châtelet, na sua obra
sobre o totalitarismo Arendt põe em destaque a “banalidade do mal” e a despolitização do homem. Consultar
SOUKI, op. cit.. p. 113.
93
OT, p. 13.
38
longo da história, as teses cairão por terra diante da experiência dos campos de concentração.
Quando os campos de concentração foram instalados, por mais difícil que seja acreditar
94
, eles
significaram a mais terrível novidade, a ponto dos próprios prisioneiros, após o evento, terem
de se convencer a si mesmos que aquilo que estava acontecendo era real, mais que simples
pesadelo, mas jamais o conseguiram por completo.
95
Nas palavras de Arendt
não há paralelos para comparar com algo a vida nos campos de concentração. O seu
horror não pode ser inteiramente alcançado pela imaginação justamente por situar-se
fora da vida e da morte. Jamais pode ser inteiramente narrado, justamente porque o
sobrevivente retorna ao mundo dos vivos, o que lhe torna impossível acreditar com-
pletamente em suas próprias experiências passadas. É como se o que tivesse a contar
fosse uma história de outro planeta, pois para o mundo dos vivos, onde ninguém de-
ve saber se ele está vivo ou morto é como se ele jamais tivesse existido. Assim, todo
paralelo cria confusão e desvia a atenção do que é essencial. O trabalho forçado nas
prisões e colônias penais, o banimento, a escravidão, todos parecem, por um instan-
te, oferecer possibilidade de comparação, mas, num exame mais cuidadoso, não leva
a parte alguma.
96
O fenômeno totalitário, enquanto evento de ruptura, marcado especialmente pela expe-
riência dos campos de concentração, torna-se, no pensamento político de Arendt, o cerne para
analisar a desestruturação e perda da dignidade da política. O espaço de convívio entre os
homens foi aniquilado, gerando uma sociedade do completo isolamento e mais absoluto aban-
dono, ocasionando o fim da esfera pública e privada. Mas precisa ficar claro que tal processo
não surge do acaso. Seus líderes planejaram estratégias e métodos para chegar ao domínio
total. O primeiro passo foi criar um ambiente de massas; o segundo, o desenvolvimento da
propaganda e criação de um mundo fictício; o terceiro, a instauração do poder a base da vio-
lência; e o quarto passo, decisivo, a ideologia e o terror como princípio e fim do governo tota-
litário. Doravante, tal abordagem será feita pormenorizadamente.
94
É o que relata Arendt na entrevista com Günter Gaus afirmando “que de início nós [referindo-se a ela e seu
marido Heinrich Blücher], se bem que, para dizer a verdade, meu marido e eu julgássemos esses assassinos ca-
pazes de tudo. Mas nisso, não tínhamos acreditado, em parte porque ia contra toda necessidade, não tinha qual-
quer objetivo militar. Meu marido, que havia sido historiador militar e que entende um pouco do assunto, me
disse: ‘Não preste atenção a esse falatório, eles não podem chegar a esse ponto!’ E, no entanto, tivemos que
acreditar seis meses mais tarde, quando comprovamos o que tinha ocorrido. Isto é que foi perturbador. Anterior-
mente, dizíamos: ‘Bom, nós temos inimigos. É a ordem natural das coisas. Por que um povo não teria inimigo?’
Mas foi completamente diferente. Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos
imaginado que todo o resto iria de alguma maneira se ajeitar, como sempre pode acontecer na política. Mas des-
sa vez não. Isso jamais poderia ter acontecido. (...) Auschwitz não poderia ter acontecido. Lá se produziu alguma
coisa que nunca chegamos a assimiliar”. Cf. DP, p.135. Acréscimo nosso. A este respeito também pode ser con-
sultada a obra de COURTINE-DENAMY, op. cit. p. 252.
95
Ver OT, p. 489.
96
Ibid., p. 494.
39
2.3.1 O surgimento das massas: primeira condição do sistema totalitário
O surgimento das massas no estudo do totalitarismo e, sobretudo, na perda da dignida-
de da política, gerando o ocaso do mundo comum e a conseqüente aniquilação da pluralidade
humana, é a primeira condição para compreender a possibilidade de afirmação do sistema
totalitário e as transformações ocorridas no campo da política. Os governos totalitários susten-
tam-se pelo apoio que receberam das massas. Portanto, será nelas e somente a partir delas que
as estratégias devem ser pensadas, sem interesse pelas classes, partidos, cidadãos,
97
porque,
aos governos totalitários, interessa, objetivamente, a força numérica, alcançada pelas ações
violentas e criações ideológicas, como se verá nos próximos itens deste trabalho.
Como se dá o surgimento das massas e a sua posterior implicação no sistema totalitá-
rio é o objeto deste ponto temático. Recuperar-se-á, num primeiro momento, algumas conse-
qüências do declínio do Estado-Nação e a crise dos Direitos do Homem, desenvolvidas no
segundo capítulo – Imperialismo – da obra Origens do Totalitarismo, a fim de esclarecer o
surgimento das massas e, posteriormente, abordar-se-á a importância das massas para o siste-
ma totalitário.
O declínio do Estado-Nação, diante do evento das duas grandes guerras mundiais, re-
sulta no agravamento do problema dos refugiados. Ao que se assiste em praticamente toda a
Europa é um número exorbitante de pessoas que ficam privadas do Estado, da Nação e de um
Território. Isso gera uma situação de sofrimento muito grande, pois uma multidão de pessoas
vivia perdida no e do mundo. No dizer de Hannah Arendt, “uma vez fora do país de origem,
permaneciam sem lar, quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam
os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos, eram o refugo da terra”
98
. A esperança
depositada na promulgação dos direitos do homem resulta em fracasso. A própria expressão
97
Ibid., p. 354.
98
Ibid., p. 300. Por mais que os países europeus demonstrassem um certo interesse em defender essas pessoas,
por meio de alguns acordos e Tratados de Paz entre as nações no pós-guerra, a criação de leis dos Tratados das
Minorias, outorgando a um só Estado o direito de governar e observar regulamentos especiais para grande parte
da população que estava na situação de apátrida, desnacionalizados, a situação pouco ou nada mudou. Nada
disso garantiu a segurança e efetividade dos direitos àquelas pessoas “fora do mundo”, especialmente os judeus
que sofreram muito diante do fato de terem perdido seus direitos nacionais e, a partir disso, terem de aceitar a
imposição de uma escala de valores determinada pelos governos opressores, totalitários.
40
“direitos humanos” passa a ser para todas as vítimas, opressores e espectadores, “uma prova
de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia”
99
.
Estipula-se, segundo estimativa apresentada por Arendt
100
, que o número de pessoas
que estavam sem nacionalidade, concebidas como população das minorias, era cerca de 25 a
30 milhões. É uma multidão considerável e com o advento da Segunda Guerra Mundial, a
situação dos apátridas piora mais ainda. Passam a ser consideradas como o mais recente fe-
nômeno de massas da história contemporânea. Nos diversos grupos de pessoas deste contexto,
pertencem milhões de russos e de alemães, centenas de milhares de armênios, romenos, hún-
garos e espanhóis, entre algumas categorias mais importantes. A partir disso, Arendt afirma
que
nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico como a
discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que persistiam tei-
mosamente em considerar ‘inalienáveis’ os direitos desfrutados pelos cidadãos dos
países civilizados, e a situação de seres humanos sem direito algum.
101
Antes mesmo da Segunda Guerra, os interesses totalitários de nações como a Itália fa-
cista de Mussolini e Alemanha nazista de Hitler cometem um verdadeiro descalabro em torno
da rejeição de elevado número de habitantes desnacionalizados. A prática dos nazistas para
com os judeus de nacionalidade não-alemã, por exemplo, é muita clara no sentido de privá-los
da sua cidadania antes mesmo da deportação, o que resulta numa grande dificuldade de serem
aceitos por outras nações, onde quer que fossem.
Dois graves danos causados pelos Estados-nações, segundo Arendt, permitem que o
problema dos apátridas tome tamanho volume. Primeiramente, foi a abolição do direito de
asilo, defendido anteriormente como símbolo dos direitos do homem no âmbito das relações
internacionais. Com esse direito, muitos refugiados eram protegidos. A sua abolição foi uma
perda muito grande. Depois, a impossibilidade de desfazer-se dos refugiados, sendo também
impossível transformá-los em cidadãos do país de refúgio, uma vez que somente a repatriação
ou naturalização é o único meio de resolver este problema. Mas, em virtude da não aceitação
dos países de origem e da resistência das comunidades locais, essas medidas não são possíveis
99
Ibid., p. 302.
100
Ibid., p. 305. Nesta página, Arendt apresenta uma nota com número de pessoas que aspiravam à nacionalida-
de.
101
Ibid., p. 312.
41
de realização. E, desse modo, decreta-se a falência do Estado-nação para a efetivação de polí-
ticas de proteção e garantia dos direitos humanos básicos aos apátridas.
Entretanto, diante da incapacidade do Estado-nação em criar leis que garantissem uma
certa estabilidade e proteção para os apátridas, o problema é transferido para a polícia que,
pela primeira vez, na Europa Ocidental, recebe autoridade para agir autonomamente e exercer
o governo direto sobre as pessoas. A polícia passa a assumir, nesse sentido, o papel político de
governar os apátridas. E assim, quanto mais cresce o número de apátridas, mais o Estado pas-
sa do Estado da lei para o Estado policial, violento.
À luz desse contexto, Arendt reconhece que a Declaração dos Direitos do Homem do
final do século XVIII foi um marco decisivo na história. A Declaração significa que, doravan-
te, o Homem e não Deus e nem os costumes da história, bem como o próprio Estado, demar-
cariam a centralidade da lei. Isso permite frisar a libertação do homem de toda e qualquer tu-
tela e a certeza de que, kantianamente falando, ele já havia atingido o seu estágio de maiori-
dade, porque como se reconhecia e se afirmava que os Direitos do Homem são inalienáveis,
irredutíveis e indeduzíveis de outros direitos ou leis e não carecem da invocação de uma ou
outra autoridade para estabelecê-los, isto é, o próprio Homem é sua origem e seu objetivo
último. A sua soberania representa os anseios e angústia do povo. Mas, por outro lado, tam-
bém, resulta em problema na medida em que, mesmo sendo definidos como inalienáveis, por-
que independentes de todos os governos, a partir do momento em que as pessoas deixavam de
ter um governo próprio, ficam sem nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma institui-
ção que se disponha a garantir a efetividade dos seus direitos. Isso leva os apátridas a crerem
que a perda dos direitos nacionais é muito semelhante à perda dos direitos humanos e que a
primeira perda é o caminho certo da segunda.
De antemão, dá para perceber que a reflexão de Arendt sobre a questão dos Direitos
Humanos tem, em seu interior, uma avaliação crítica. Além do problema apontado acima, a
filósofa judia destaca um outro problema ligado aos patrocinadores dos Direitos do Homem,
afirmando que
42
o pior é que as sociedades formadas para a proteção dos Direitos do Homem e as
tentativas de se chegar a uma nova definição dos direitos humanos eram patrocina-
das por figuras marginais – por alguns poucos juristas internacionais sem experiên-
cia política, ou por filantropos apoiados pelos incertos sentimentos de idealistas pro-
fissionais. Os grupos que formavam e as declarações que faziam tinham uma estra-
nha semelhança de linguagem e composição com os das sociedades protetoras dos
animais. Nenhuma estadista, nenhuma figura de certa importância podia levá-los a
sério [...].
102
O problema é que em tal cenário cresce a estimativa de pessoas sem o amparo e prote-
ção da lei em vigor na época. Os Direitos do Homem, tanto aqueles proclamados pela revolu-
ção francesa quanto americana, não constituem questão prática em política. Além disso, a
situação das pessoas do século XIX apresentava esta invocação de maneira muito intensa,
almejando se defender do Estado que os oprimia e da insegurança social e exploração no tra-
balho diante do fenômeno da Revolução Industrial. Nesse sentido, os Direitos do Homem, no
dizer de Arendt, supostamente inalienáveis, mostraram-se inexequíveis – mesmo nos países
cujas instituições se baseavam neles – sempre que surgiam pessoas que eram cidadãos de al-
gum Estado soberano. A esse fato, por si já suficientemente desconcertante, deve acrescentar-
se a confusão criada pelas numerosas tentativas de moldar o conceito de direitos humanos no
sentido de defini-lo com alguma convicção, em contraste com os direitos do cidadão, clara-
mente delineados.
A primeira perda que sofreram essas pessoas privadas de direito não foi a da prote-
ção legal, mas a perda dos seus lares, o que significava a perda de toda a textura so-
cial na qual haviam nascido e na qual haviam criado para si um lugar peculiar no
mundo. [...] A segunda perda sofrida pelas pessoas destituídas de seus direitos foi a
perda da proteção do governo, e isso não significava apenas a perda da condição le-
gal no próprio país, mas em todos os países.
103
Acerca dessa situação dramática, Arendt chama atenção não apenas para uma questão
de direito, mas da impossibilidade dos seres humanos estarem em casa no mundo e não pode-
rem pertencer a uma comunidade. A pior das calamidades para os deserdados de direitos não
consiste na privação da vida, da liberdade ou da procura da felicidade e nem da igualdade
perante a lei, mas, simplesmente, do fato de não pertencer a nenhuma comunidade, isto é, da
textura social. Na afirmação de Arendt,
102
Ibid., p. 326.
103
Ibid., p. 327.
43
a privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tu-
do, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação efi-
caz. [...] São privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do
direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem.
104
A conseqüência resultante de tal privação incide diretamente na própria condição hu-
mana. A perda da constituição da vida privada (perda do lar) e do espaço público (perda da
comunidade) equivalem a expulsar, segundo Arendt, a própria humanidade. As perdas colo-
cam em xeque a condição de Homo zóon Lógon Ekhon e zóon politikón, isto é, da fala e da
política, outrora assinalada por Aristóteles. Nesse problema, o fato lamentável é que os ho-
mens deixam de ser concebidos como cidadãos pertencentes a alguma comunidade, passando
a pertencer à raça humana, do mesmo modo que os animais pertencem a uma espécie de ani-
mais, perdendo todo o significado da sua mais íntima singularidade e da ação em comum. Daí
a conseqüente manifestação das massas e a possibilidade de afirmação dos governos totalitá-
rios.
O surgimento das massas é resultado deste ambiente e significa o primeiro fator de-
terminante para o totalitarismo alcançar o seu intento desastroso. É graças à existência de
grandes massas supérfluas, por isso a importância da força numérica, que o totalitarismo pode
sacrificar e despovoar as pessoas de suas comunidades, de acordo com o modo feito no pro-
cesso de instauração nos campos de concentração. Não há consciência política que une e in-
terliga as ações das massas. O que as caracteriza é a ausência de uma consciência pautada
pelo interesse comum, sem ações articuladas por um certo grupo ou classe organizada com
objetivos e metas traçadas previamente e com fim determinado. Segundo Arendt,
o termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido
ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem in-
tegrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organi-
zação profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem
em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indife-
rentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto.
105
A corrida ao poder pelos movimentos totalitários só acontece mediante a força obtida
pelas massas. Quando os movimentos totalitários se propõem a invadir e acabar com o Parla-
mento alemão, em 1933, eles usavam de argumentos democráticos, sustentados pela maioria
do povo que concebem os parlamentares como figuras espúrias, isto é, sem legitimidade na-
104
Ibid., p. 330.
105
Ibid., p. 361.
44
cional. A partir desse fato e da importância do papel exercido pelas massas, demonstra-se o
fim de duas ilusões. A primeira “de que o povo, em sua maioria participava ativamente do
governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro,”
106
mesmo sem participar das
decisões no estabelecimento das normas democráticas. A segunda ilusão está voltada para a
idéia da fraqueza política das massas, considerando que elas são neutras, indiferentes e silen-
ciosas. “Agora, os movimentos demonstraram que o governo democrático repousava na silen-
ciosa tolerância e aprovação dos setores indiferentes e desarticulados do povo, tanto quanto
nas instituições e organizações articuladas e visíveis do país.
107
O uso de chavões democráticos, entre outras formas e métodos, é um elemento pre-
ponderante para o sistema totalitário alcançar a adesão das massas. Isso é resultado da conse-
qüente queda dos sistemas de classes
108
oriundas da crise do Estado-Nação e dos Direitos do
Homem, que possibilitaram a ascensão do sistema totalitário a poder, especialmente o nazista.
A atmosfera de colapso da sociedade de classes é determinante para o homem-de-massa ex-
pandir-se pela Europa no século XX. O insucesso das classes em manter os antigos membros
aliados e a dificuldade de cativar o interesse dos jovens na adesão dos partidos, somados ao
levante violento das massas desorganizadas, mas incentivadas a expressar-se como força de
oposição, propiciam condições favoráveis ao totalitarismo. No entanto, isso não caracteriza
que as massas atuavam com princípios de igualdade e de extrema brutalidade. Mesmo sendo
oriundas de uma sociedade atomizada que originava embates pela competição das classes
antagônicas, a característica central do homem massa não é a ação violenta, mas “o seu isola-
mento e a falta de relações sociais normais”.
109
Na compreensão de André Duarte, “as massas constituem (para Arendt)
110
a categoria
central na sua análise dos regimes totalitários. O traço que melhor as caracteriza é a sua desar-
ticulação e desinteresse pelo mundo comum e por si mesmas, isto é, a perda do interesse co-
mum e do mundo comum [...]”
111
Este é o horizonte do sistema totalitário: formar e firmar um
106
Ibid., p. 362.
107
Ibid., p. 362.
108
Nas OT, p. 634 e 365, Arendt afirma: “o colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso
do sistema partidário, porque os partidos cuja função era representar interesses, não mais podiam representá-los,
uma vez que a sua fonte e origem eram as classes. Sua continuidade tinha ainda certa importância para os mem-
bros das classes antigas que esperavam inutilmente recuperar o status social, e mantinham-se coesos não porque
ainda tivessem interesses comuns, mas porque esperavam restaurá-los.”
109
Ibid., p. 367.
110
Acréscimo nosso.
111
DUARTE, op. cit. p. 51. Duarte também afirma que “a falta de interesse comum das massas sinaliza a sua
‘ausência de lugar próprio’ (homelessness) e o seu ‘desenraizamento’ (rootlessness), indicando-se assim que elas
45
mundo onde os seres humanos estejam desinteressados de si, do seu espaço intra-mundano,
dos seus negócios, da sua família, enfim, desligados daquilo que ocorre ao seu redor. Não é o
isolamento, solidão ao modo praticado pelo filósofo, conforme dizia Platão: “numquam minus
solus esse quam cum solus esset ‘nunca ele esteve menos só do que quando estava sozinho’,
ou antes, ‘nunca ele esteve menos solitário do que quando estava a sós’.”
112
Assim procedem
os sistemas totalitários.
No entanto, é paradoxal porque tanto Hitler quanto Stalin atuam desta maneira, apesar
de ambos serem provenientes da organização conspirativa do partido e considerados proscri-
tos e revolucionários. Mas, por outro lado, é possível medir o tamanho, astúcia e estratégia de
ambos. Tanto Hitler quanto Stalin são hábeis em possibilitar a expansão das massas desestru-
turadas, pois no processo de criação do sistema totalitário logo percebem que a sociedade a-
tomizada acaba preferindo aderir os movimentos às classes. Apoiados pelos indivíduos cultos,
provenientes da elite, formada pela intelectualidade européia no período entre-guerras, Hitler
e Stalin tornam-se verdadeiros líderes, a força motriz das massas. Começam pela eliminação
do domínio das antigas classes e partidos até chegarem no miolo burocrático, transformando-o
num novo modelo de organização, cuja máxima se expressava na execução do extermínio.
113
Conseguida essa desestruturação, o passo seguinte e condição fundamental do totalitarismo
para alcançar a uniformidade homogênea, baseia-se na extinção de autonomia e imposição da
lealdade incondicional. A esse respeito Arendt diz:
os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e
isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealda-
de total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exi-
gência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem
poder e decorre da alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização a-
brangerá, no devido tempo, toda a raça humana.
114
Dessa forma, tanto Hitler quanto Stálin, exigem a anulação individual dos membros
ligados aos movimentos totalitários, mas isso só será possível mediante um processo pensado
e construído passo a passo. Em outras palavras, o governo totalitário só alcançará sua efetivi-
são frutos do processo de ‘atomização da sociedade’. Os homens-massa não têm quaisquer relações comunitárias
e, por isso mesmo, ‘oferecem o melhor ‘material’ possível aos movimentos nos quais o povo é tão comprimido
entre si que parece ter se tornado um’. Para Arendt, ‘a perda dos interesses é idêntica à perda de ‘si’, e as massas
modernas distinguem-se (...) por sua indiferença quanto a si mesmas (selflesness), quer dizer, por sua ausência de
interesses individuais’.”
112
Esta afirmação de Platão é relatada por Cícero em De republica, I, 17. Apud OT, p. 528.
113
Para visualizar os passos de Hitler e Stalin de maneira pormenorizada na implantação do Sistema Totalitário,
cf. OT, p. 368 a 372.
114
Ibid., p. 373.
46
dade se contar com a ação preparada por um movimento totalitário que estabeleça as condi-
ções para tal e “as condições para o seu crescimento tem de ser artificialmente criadas de mo-
do a possibilitar a lealdade total que é a base psicológica do domínio total.”
115
No entanto, na
reflexão de Arendt, “não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completa-
mente isolados que, desprovidos de outros laços sociais - de família, amizade, camaradagem -
só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento, per-
tencem a um partido.”
116
Daí é que nasce a importância e a necessidade do totalitarismo preci-
sar de outros meios que não apenas os externos, mas da disseminação da ideologia totalitária
para alcançar e realizar efetivamente seu governo. É “graças a sua ideologia peculiar e ao pa-
pel dessa ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e
aterrorizar.”
117
Nesse sentido, o totalitarismo introduz meios propagandísticos e criação de fatos, in-
dependentes de serem reais ou não, mas que convencem e alcançam a adesão das massas. É
uma técnica e estratégia bem pensada, a ponto de não interessar, da parte do líder o seu topos
no poder pelo poder; inclusive, ele passa a ser simples funcionário e vir a ser substituído
118
em
qualquer momento, considerando que a propaganda dará conta de manter as massas aliadas à
sua estrutura.
2.3.2 A propaganda e o mundo fictício: segunda condição do sistema totalitário
Tendo realizado o primeiro passo, centrado na figura do homem-massa como principal
“agente” político, cuja característica central se apresenta no abandono das formas de organi-
zação social, no desinteresse pelas questões públicas e interesse pelo completo isolamento,
marcado pela extrema situação de nulidade humana, o sistema totalitário passa, então, a se
preocupar com outra tarefa básica na trajetória da instalação do seu aparato e modelo de “go-
vernabilidade”. O passo que ora se propõe dar é atrair e conquistar cada vez mais as massas
pelo ímpeto do totalitarismo, por meio da propaganda e ilusão de um mundo irreal, fictício.
115
Ibid., p. 373.
116
Id., Ibid.
117
Ibid., p. 375.
118
O líder, neste caso, assume uma posição secundária. Primeiro estão as massas, pois sem elas o líder é nada
mais que uma verdadeira nulidade. Cf. OT, p. 375.
47
Para Arendt, “nos países totalitários, a propaganda e o terror parecem ser duas faces da
mesma moeda.”
119
Mas quando o totalitarismo consegue obter o controle absoluto das massas
e de seus membros, a propaganda passa a ser substituída pela doutrinação e uso da violên-
cia
120
. No entanto, a propaganda tem como alvo não especificamente espaços e ambientes,
onde o totalitarismo já está assegurado ideologicamente. A propaganda é usada pelos movi-
mentos totalitários num mundo que ainda não é totalitário e é sempre dirigida a um público de
fora, referindo-se, neste caso, às camadas não-totalitárias da população do próprio país, bem
como aos países não-totalitários de diferentes espaços geográficos.
No centro da propaganda está a disseminação de mentiras
121
, visando a conquistar as
massas e, por seu turno, doutrinar cada vez mais os membros aliados diretamente ao sistema
totalitário. E na finitude da propaganda está a “guerra psicológica” como forma de pressão
constante e convencimento completo de que o totalitarismo é o melhor regime e modelo de
proteção que uma nação pode ter.
O melhor exemplo das mentiras sustentadas nas propagandas totalitárias podem ser
encontradas nos discursos do grande líder nazista, Adolf Hitler. Assim, afirma Arendt: “os
discursos de Hitler aos seus generais, durante a guerra, são verdadeiros modelos de propagan-
das, caracterizados principalmente pelas monstruosas mentiras com que o Führer entretinha
os seus convidados na tentativa de conquistá-los.”
122
Apesar de haver uma pequena diferença
entre doutrina ideológica para os iniciados e os não iniciados do movimento totalitário, antes
119
Ibid., p. 390.
120
Este ponto merece ser esclarecido, porque segundo o teórico nazista Eugen Hadamovsky, em seu escrito de
1933 - Propaganda und nationale Macht [Propaganda e Poder Nacional], na página 22, afirma: “A propaganda
e a violência nunca são contraditórias. O uso da violência pode ser parte da propaganda.” Nesse sentido, fica
claro que no processo propagandístico totalitário a violência já está presente, até porque o sucesso da propagan-
da não está apenas em crescer no impacto, mas no efeito psicológico e criação da estrutura de domínio total. Cf.
OT, p. 390.
121
No sistema totalitário, a verdade é um tema sem atenção e merecimento de destaque. Na posição de Arendt, a
verdade não compromete a política, mas a mentira sim. Sem o constrangimento e submissão à verdade, o espaço
comum perde a possibilidade de reconquistar a dignidade da política e construção de uma autêntica liberdade
humana. Para maior aprofundamento desta questão, indicamos a leitura do ensaio Verdade e Política, escrito por
Arendt em 1963, após a polêmica que suscitou a sua publicação de Eichmann em Jerusalém (op. cit.) com obje-
tivo de discutir dois problemas diferentes. “O primeiro diz respeito à questão de saber se é sempre legítimo dizer
a verdade (...). O segundo nasceu da espantosa quantidade de mentiras utilizadas na ‘polêmica’ - mentiras sobre
aquilo que eu escrevera, por um lado, e sobre os fatos que relatara, por outro.” (p. 7) ARENDT, Hannah. Verda-
de e Política. Tradução de Manuel Alberto. Lisboa/Portugal: Relógio D’Agua Editores, 1995. Cf. também a
reflexão de ROVIELLO, op.cit., p.147.
122
OT, p. 391 e 392.
48
da tomada de poder, mesmo assim, Hitler assume o caráter perfeito para ambos. Seus discur-
sos atingem todos a um só tempo.
A propaganda se constitui como uma “manobra tática” dos movimentos totalitários,
mas
quanto menor o movimento, mais energia despenderá em sua propaganda. Quanto
maior for a pressão exercida pelo mundo exterior sobre os regimes totalitários -
pressão que não é possível ignorar totalmente mesmo atrás da “cortina de ferro” -
mais ativa será a propaganda totalitária. O fato essencial é que as necessidades da
propaganda são sempre ditadas pelo mundo exterior; por si mesmos, os movimentos
não propagam e sim doutrinam. Por outro lado, a doutrinação, inevitavelmente alia-
da ao terror, cresce na relação direta da força dos movimentos ou do isolamento dos
governantes totalitários que os protege da interferência interna.
123
A propaganda é o braço forte do totalitarismo no seu estágio inicial, mas ela visa a in-
cidir na chamada “guerra psicológica”, levada a efeito profundo com o terror, que se caracte-
riza como a essência da forma de governo totalitário. Na tarefa de penetrar e interferir no psi-
cológico das pessoas, o papel da propaganda se isenta de realizar confrontos diretos e cometer
crimes contra os indivíduos, o que não significa isenção da violência
124
. A propaganda totali-
tária faz uso de insinuações indiretas, resultando em ameaças e, logo depois, vem a força vio-
lenta que comete o assassinato em massa, independente de ser culpado ou inocente.
No centro da propaganda, predomina o uso de um cientificismo ideológico com base
na técnica de afirmações proféticas catastróficas que, pelo fato das massas não se preocupa-
rem com a verificação da possibilidade real dos dizeres totalitários, especialmente o risco da
conspiração judaica, por mais absurdo que seja, o conteúdo alcança consistência e adesão pela
instauração do medo, sem a preocupação com a verdade de fato. Todavia cabe mencionar que
tais profecias só avançaram na conquista das massas porque elas já haviam perdido seu lugar
no mundo e o que lhes restava era acreditar na vitória, como forma de contrastar as classes e
ver nisso o sucesso, independente dele ser real ou não. Referindo-se à vitória das massas,
Arendt diz:
123
Ibid., p. 393.
124
No dizer de Arendt, “também é verdade que há um certo elemento de violência nos imaginosos exageros
publicitários; por trás da afirmação de que as mulheres não usam essa determinada marca de sabonete podem
viver toda a vida espinhentas e solteironas, há um arrojado sonho monopolista, o sonho de que algum dia, o
fabricante do ‘único sabonete que evita espinhas’ tenha o poder de privar de maridos todas as mulheres que não
o usam. Tanto no caso da publicidade comercial quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um subs-
tituto do poder. A obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações ‘científicas’ desaparecem assim
que assumem o poder.” Diga-se de passagem, esta é uma boa reflexão frente o domínio e sedução midiática da
atualidade. Cf. OT, p. 394.
49
não as unem quaisquer interesses coletivos especiais que considerem essenciais à
sua sobrevivência como um grupo e pelos quais, portanto, poderiam lutar contra a
diversidade. Mais importante que a causa que venha a ser vitoriosa ou o empreendi-
mento que tenha possibilidades de vencer, é para elas a vitória em não importa que
causa e sucesso em não importa que empreendimento.
125
Com isso, há a demarcação de uma característica central nas massas, isto é, na eficácia
da propaganda em poder anular a realidade da própria existência. Ela cria um mundo “sem pé
nem cabeça” para as massas que alimentam a descrença completa dos fatos, isolando-as, deste
modo, do mundo real. Mas, no centro da propaganda totalitária, está o alvo da conspiração
judaica. “Concentrar-se em propaganda anti-semita era expediente comum dos demagogos
desde fins do século XIX, e muito difundido na Alemanha e na Áustria na década de 1920.”
126
O porquê dessa perseguição ao judeu e do fato dele ser a encarnação do mal é atribuído às
lembranças e vestígios do contexto da Idade Média. Porém, segundo Arendt, a verdade da
perseguição é a emancipação dos judeus no contexto pós-guerra (depois de 1917/8).
Para Arendt, o ponto inquietante na perseguição aos judeus é mais pela sua grande
concentração de riquezas e financiamento ao Estado
127
que pelas lembranças do passado. A
condição dos judeus gera temor pelo tamanho da sua força e possibilidade de influenciar o
poder do Estado. Mas os nazistas, estrategicamente, espalham o temor da conspiração judaica
e acentuam o seu desmonte em questões de raça. A esse respeito, Arendt diz:
125
Ibid., p. 400.
126
Ibid., p. 403.
127
A este respeito, destacamos a entrevista feita com George Kateb em 20/05/1992, disposta em Documento
Correlati. Kateb diz: “Il problema fondamentale di Arendt era capire perché gli ebrei fossero detestati in Europa.
Il fato che lei stessa fosse ebrea rendeva tale interrogativo particolarmente acuto e pressante. Secondo la sua
analisi, appunto, molti ebrei, avendo precluse altre opportunitá, poterono sono accumulare denaro. Queste rec-
chezze, una volta messe al servizio di determinate élite politiche, generarono nella massa e nella pubblica opini-
one sentimenti di ostilità nei confronti degli ebrei, che erano in grado (o erano ritenuti tali) di influenzare la poli-
tica della società in quanto detentori di riccheza e anche di poteri segreti, insidiosi e spesso sinistri.” KATEB,
Georg. Hannah Arendt – L’origine del totalitarismo. Documenti Correlati (Entrevista realizada em 20/05/1992)
Disponível em: <http://www.emsf.rai.it/scripts.documento.asp?id=91&tabella=interviste>. Acesso em:
20/10/2004.
50
Os nazistas deram à questão judaica a posição central na sua propaganda, no sentido
de que o anti-semitismo já não era uma questão de opinião acerca de um povo dife-
rente da maioria, nem uma questão de política nacional, mas sim a preocupação ín-
tima de todo o indivíduo na sua existência pessoal, ninguém podia pertencer ao par-
tido se a sua “árvore genealógica” não estivesse em ordem, e quanto mais alto o pos-
to na hierarquia nazista, mais longe no passado se vasculhava essa “árvore genealó-
gica”. Do mesmo modo, embora sem tanta coerência, o bolchevismo alterou a dou-
trina marxista da inevitável vitória final do proletariado, organizando os seus mem-
bros como “proletários de nascença” e tornando vergonhoso e escandaloso descen-
der de qualquer outra classe.
128
Dessa forma, na preocupação do governo totalitário, Hitler, pelos nazistas, Stálin, pe-
los bolchevistas, está a figura do Estado como meio para chegar ao grande fim. O Estado visa
a garantir a possibilidade de preservação da raça, no caso de Hitler, e a ditadura do proletaria-
do, no caso de Stálin
129
. O slogan central de Hitler era “o direito é aquilo que é bom para o
povo alemão”
130
. Assim, passa-se da ilusão do possível domínio mundial judaico, presente na
questão do temor à conspiração que eles podem desencadear, como elemento que serve de
base para a ilusão do futuro domínio alemão. Mas, por trás disso tudo, não está uma luta por
igualdade pautada em direitos, mas no aspecto racial presente na idéia da conspiração judaica.
Daí a justificativa para a implantação de outros meios para alcançar o poder e selar a organi-
zação totalitária definitivamente.
2.3.3 Poder
131
e violência: terceira condição do sistema totalitário
Instaurada a segunda condição do sistema totalitário, centrada no exercício constante
da propaganda em conquistar as massas e disseminar a idéia de um mundo fictício, caracteri-
zado pelo ódio e medo de uma conspiração judaica, o totalitarismo passa para um momento
sumamente importante na trajetória de afirmação do seu poder. E o que se configurar como
novidade é a forma de organização e incidência do sistema totalitário no campo político.
128
OT, p. 405 e 406.
129
Maior aprofundamento, cf. OT, p. 407.
130
Segundo Arendt, Hitler extraiu essas palavras dos Protocolos dos Sábios de Sião, porém, alterando os termos:
“Tudo o que beneficia o povo judaico é moralmente correto e sagrado”. Ver OT, p. 408.
131
Afim de evitar confusões com o uso do conceito de poder e sua relação com a política, é oportuno chamar
atenção que o conceito de poder aplicado no totalitarismo não é o mesmo que Arendt utiliza para demonstrar a
sua importância para a política. No regime totalitário o poder significa domínio, ação violenta que se torna auto-
ritarismo, ditadura, ao passo que no resgate do significado da política, especialmente em suas obras CH e
ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Tradução de André Duarte, 3ª ed. RJ: Relume-Dumará, 2001, Arendt
destaca que poder designa uma ação em concerto, sem autoritarismo e domínio. Aprofundaremos esta questão da
importância do poder para a política no terceiro capítulo de nosso estudo.
51
Antes, com o desenvolvimento da propaganda, o totalitarismo não se caracterizava pe-
la violência armada e agressão física, inclusive na extinção das pessoas. O método da propa-
ganda centrava-se na interferência psicológica e conquista das massas pela sua força de con-
vencimento e “atração das moscas ao melado”, marxianamente falando. No entanto, a partir
do momento que o totalitarismo percebe que está garantido este passo, introduz uma nova
estratégia de ação visando a selar uma aliança inseparável entre os ideais do líder e a ação
violenta da polícia como braço forte da garantia de expansão do sistema totalitário e alcance
do domínio total. Daí a introdução da violência agregada ao poder.
O método instaurado por Hitler para garantir a eficácia e coesão do movimento totali-
tário nazista começa com uma relação de proximidade entre as organizações de vanguarda e
organização de simpatizantes. Ambos exercem um papel determinante. A primeira visa à pro-
teção dos membros do movimento totalitário frente às pressões do mundo exterior normal,
possibilitando que eles introjetem em si um espírito de normalidade diante de um mundo de
mentira e ficção que eles vivem com a realidade do mundo real. Assim deve funcionar o perí-
odo anterior à tomada de poder pelo totalitarismo. Os membros, ao mesmo tempo em que são
isolados, devem apresentar externamente uma situação de normalidade para garantir a adesão
dos simpatizantes, os quais estendem a respeitabilidade aos movimentos totalitários, através
de opiniões e destaque das reações políticas concebidas como normais. Mas, no fundo, isso se
traduz em diminuir o impacto
132
da violência presente no totalitarismo.
Dessa forma, o totalitarismo consegue neutralizar e disfarçar a monstruosa dicotomia
presente no seu interior, livrando-se da possibilidade de seus membros encararem outro mun-
do que não o totalitário. Graças ao papel determinante da ideologia
133
, os membros sentem-se
protegidos contra a realidade do mundo não-totalitário a ponto de subestimar os riscos da po-
lítica totalitária. Assim, o modelo de organização totalitária
132
Para Arendt, algumas vantagens a favor do totalitarismo decorrem dessa estrutura. Uma vantagem definida
dessa estrutura é que ela neutraliza o impacto de um dos dogmas básicos do totalitarismo, que afirma ser o mun-
do dividido em dois gigantes campos inimigos, um dos quais é o movimento, e que este pode e deve lutar contra
o resto do mundo - afirmação que abre o caminho para a indiscriminada agressividade dos regimes totalitários.
133
Tema que será desenvolvido no próximo subtítulo deste estudo.
52
pode ser repetido indefinidamente, e mantém a organização num estado de fluidez
que permite a constante inserção de novas camadas e a definição de novos graus de
militância. Toda a história do partido poder ser narrada em termos de novas forma-
ções dentro do movimento.
134
Exemplo claro para mostrar como se dá esse processo de novas formações no interior
do movimento é o caso da organização das tropas de “segurança” do sistema totalitário. A
SA
135
, criada em 1992, – com a função de ser tropa de assalto – é a primeira forma de organi-
zação nazista, assumindo um papel de militância preponderante ao próprio partido. Em 1926,
surge a SS, assumindo o papel de formação de elite da SA e proteção dos líderes nazistas.
Após três anos, a SS separa-se da SA e, sob o comando de Himmler
136
continua fragmentan-
do-se em novas tropas. Da SS surgem, primeiramente, as Tropas de Choque, designadas para
estar à disposição de Hitler; depois, as Unidades de Caveira, criadas para atuar nos campos de
concentração e, mais tarde, integrar à SS-Armada; e, ainda, o Serviço de Segurança e o Centro
para Questões de Raça e Colonização, para garantir a espionagem ideológica do Partido e
executar “a política de população negativa” e garantir a “natureza positiva” das ocupações
civis no interior da SS Geral, respectivamente. Por fim, cabe mencionar os serviços de contro-
le presente em entidades secretas como é o caso da polícia secreta e dos serviços de espiona-
gem, com objetivo de controlar os próprios controladores. Uma vez membro do movimento
totalitário, “eterno membro”. Bom funcionário
137
, sucesso na carreira. Péssimo funcionário,
fim sem pistas.
134
OT, p. 417 e 418.
135
Segundo Arendt, Hitler sempre insistiu que o próprio nome SA (Sturmabteilung) indicava que ela era apenas
“uma seção do movimento” como qualquer outra formação partidária. Ele procurou também desfazer a ilusão do
possível valor militar da SA, defendendo a formação paramilitar, e queria que o treinamento fosse realizado
segundo as necessidades do partido e não segundo os princípios de um exército. Por isso que o motivo oficial de
fundação da SA estava ligado à proteção dos comícios nazistas.
136
Heinrich Himmler era considerado um dos primeiros camaradas de Hitler. A partir de 1929 foi empossado
comandante da SS, mesmo sem conhecimento de assuntos militares e, em 1936, passa a ser considerado o ho-
mem mais poderoso da Alemanha. “Demonstrou sua suprema capacidade de organizar as massas sob o domínio
total, partindo do pressuposto de que a maioria dos homens não são boêmios, fanáticos, aventureiros, maníacos
sexuais, loucos nem fracassados, mas, acima de tudo, empregados eficazes e bons chefes de família”. Maior
aprofundamento, cf. OT, p. 388. Também é digna da nota a descrição do inglês Stephen H. Roberts, em sua obra
The house that Hitler built, na qual diz o seguinte sobre Himmler: “um homem de fina cortesia e ainda interessa-
do nas coisas simples da vida. Não tem aquela pose dos nazistas que agem como se fossem semideuses. [...]
Nenhum homem aparenta menos o cargo do que este ditador da polícia alemã, e estou convencido de que eu
tenha encontrado na Alemanha é mais normal [...]” (p. 89-90). Apud OT, p. 388.
137
Sobre esta questão indicamos a leitura da obra de Arendt: ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Um relato
sobre a banalidade do mal. Tradução de Sônia Orieta Heinrich. São Paulo: Diagrama & Texto, 1983. A partir
dos relatos do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, Arendt revela, ao longo da obra, que pela incapaci-
dade de pensar, Eichmann cometia crimes à título de atender às determinações da sua profissão de funcionário
do governo. Numa passagem da obra, Arendt diz: “Um alto funcionário que nunca pensou que aquilo em que se
aplicava pudesse ser realmente algo tão monstruoso” (p. 9).
53
Nesse sentido e o que interessa sobremaneira é o valor militar das formações de elite
totalitária, evidenciado, sobretudo, na SA e SS, que não estava endereçado para o campo da
força bélica, com o intuito de promover guerra. O significado da SA e da SS é de caráter in-
terno, voltado à proteção do partido e de seus líderes. Por isso, a característica central dessas
organizações deve ser considerada como paramilitar, o que não significa ação pacífica. Na
afirmação de Arendt, “a SA e a SS eram, sem dúvida, organizações exemplares para fins de
violência arbitrária e de assassinato.”
138
Mas o faziam com o objetivo de dar maior credibili-
dade ao mundo fictício, isto é, promoviam as condições artificiais de guerra civil para mostrar
um ambiente de instabilidade social e, através dela, inculcar um sentimento de segurança pela
violência organizada e, a partir disso, preparar os caminhos para a conquista do poder. A
quem cabia promover este ambiente? “No centro do movimento, como motor que o aciona,
senta-se o líder.”
139
Portanto, ao líder cabe esta tarefa de planejar as lutas do partido pelo po-
der. Segundo Arendt:
A suprema tarefa do líder é personificar a dupla função que caracteriza cada camada
do movimento - agir como a defesa mágica do movimento contra o mundo exterior
e, ao mesmo tempo, ser a ponte direta através da qual o movimento se liga a esse
mundo. O líder representa o movimento de um modo totalmente diferente de todos o
líderes de partidos comuns, já que proclama a sua responsabilidade pessoal por todos
os atos, proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua
qualidade oficial.
140
A figura do líder totalitário é fundamental para criar as condições de acesso ao poder.
Ao mesmo tempo em que ele assume a responsabilidade total de todos os crimes, praticados
pelas organizações de segurança, consegue “adotar a honesta e inocente respeitabilidade do
mais ingênuo simpatizante”
141
e organizar as “sociedades secretas” à luz do dia
142
, fazendo
com que as coisas se pareçam com aquilo que é apregoado pelo mundo fictício. Para tal, ado-
ta-se, em primeiro plano, a estratégia de mentiras para atrair as massas, depois, exige-se obe-
diência e fidelidade incondicional à figura do líder que propaga a idéia dos “irmãos jurados de
sangue” para os membros internos do movimento contra os inimigos jurados, objetivados,
especificamente, na figura dos judeus
143
. O princípio da organização totalitária é muito claro,
138
OT, p. 419.
139
Ibid., p. 423.
140
Ibid., p. 424.
141
Ibid., p. 425.
142
No entanto, o fato do segredo totalitário ser desenvolvido em plena luz do dia, segundo Arendt, não acarreta
em mudanças na natureza da sua experiência. Cf. OT, p. 427 onde trata desta questão.
143
Bastava ser um judeu ou, finalmente, membro de algum outro povo, para ser declarado “racialmente inapto”
à vida por alguma Comissão de Saúde (implantado por Hitler). Esta era a posição de Hitler e Himmler, coman-
dante da SS, para o qual “devemos ser honestos, decentes, leais e amigos com os membros do nosso próprio
54
frisando “que quem não está incluído está excluído, e quem não está comigo está contra mim,
o mundo perde todas as nuances, diferenciações e aspectos pluralísticos - coisas que, afinal, se
haviam tornado confusas e insuportáveis para as massas que perderam o seu lugar e a sua ori-
entação dentro dele.”
144
Além da perda da pluralidade, dimensão essencial da vida humana,
noutra passagem, Arendt menciona o poder de verdade dos chavões ideológicos, aplicados
aos membros comuns do partido. Diz: “toda a educação dos seus membros objetiva abolir a
capacidade de distinguir entre verdade e mentira, entre a realidade e a ficção.”
145
Graças a esta
eliminação da pluralidade e vitória da mentira e da ficção, o sistema totalitário prospera, na
razão proporcional da sua capacidade criadora.
Tanto os nazistas quanto os bolchevistas partem
146
da conspiração global para efetivar
a legitimidade e necessidade da polícia secreta – a Gestapo
147
– até chegar ao poder. E o fa-
zem dessa maneira prometendo construir bases sobre a estabilidade que, segundo Arendt, não
são verdadeiras porque são manobras usadas para “esconder a intenção de criar um estado de
instabilidade permanente.”
148
Tal situação possibilita a implantação do domínio total, conside-
rando que a instabilidade gera a fragmentação e a desagregação dos indivíduos na sociedade,
proporcionando a eliminação de movimentos rivais não-totalitários e, a partir disso, a conse-
qüente abertura para o totalitarismo assumir o poder. Estando no poder, o totalitarismo
usa a administração do Estado para o seu objetivo a longo prazo de conquista mun-
dial e para dirigir as subsidiárias do movimento; instala a polícia secreta na posição
de executante e guardiã da experiência doméstica de transformar constantemente a
ficção em realidade; e, finalmente, erige os campos de concentração como laborató-
rios especiais para o teste do domínio total.
149
Esses são os passos do domínio totalitário, mas acontecem mediante as ordens do líder
que assegura o absoluto monopólio do poder e tem plena certeza que todas as ordens serão
sangue, e com ninguém mais”. Cf. OT, p. 427. Acerca da absoluta hostilidade dos alemães em relação a outros
povos, Arendt segue de perto as abordagens e reflexões de Georg Simmel, em The American Journal of Socio-
logy, vol XI, nº 14, janeiro de 1906, o qual teve alguns de seus trechos traduzidos mais tarde (1950) por Kurt
Wolff, intitulados The sociology of Georg Simmel. Ver OT, p. 426.
144
OT, p. 430.
145
Ibid., p. 435.
146
O ponto de partida e o resultado final dos nazistas e bolchevistas na implantação do sistema totalitário é o
mesmo. No entanto, o processo é diferente. Os primeiros, nazistas, começavam pelas massas e chegavam às
elites, ao passo que, os bolchevistas procediam no caminho inverso, mas acabavam chegando no mesmo resulta-
do, isto é, no direito de exercer o poder supremo pela via da polícia secreta. Cf. OT, p. 430.
147
Gestapo provém de Geheime Staatspolizei = Polícia Secreta do Estado, instituída por Göring em 1933 e
chefiada por Himmler a parttir de 1934. Mais tarde, a Gestapo passou a substituir as tropas da SS.
148
OT, p. 441.
149
Ibid., p. 442.
55
obedecidas. Desse modo, além de constituir uma estrutura política amorfa, centrada na figura
do líder, o domínio totalitário visa
à abolição da liberdade e até mesmo à eliminação de toda a espontaneidade humana
e não simples restrição, por mais tirânica que seja, da liberdade. Essa ausência da au-
toridade hierárquica no sistema totalitário é demonstrada pelo fato de que, entre o
supremo poder (o Führer) e os governos totalitários, não existem mais intermediá-
rios definidos, cada uma com o seu devido quinhão de autoridade e obediência.
150
O líder totalitário independe de preocupações com estruturas de poder hierarquizadas e
não tem nenhuma consideração pelas questões referentes à liberdade e espontaneidade huma-
na. Aquele a quem é atribuído o maior poder, o chefe da polícia, demonstra total desinteresse
pelas questões referentes à governabilidade. A sua forma e organização do poder não é uma
conquista proveniente da autoridade, mas do comando, segundo princípios do poder autoritá-
rio
151
. No entanto, nenhuma tarefa executada visa ao poder como um fim em si, da mesma
forma que não se dispõe a posses, riquezas, tesouros e outros bens materiais. Por outro lado,
isso não significa que o modo de condução do poder totalitário seja pacífico. Arendt assegura
que
nos primeiros estágios do regime totalitário, porém, a polícia secreta e as formações
de elite do partido ainda desempenham um papel semelhante àquele que as caracte-
riza em outras formas de ditadura e nos antigos regimes de terror; e a excessiva cru-
eldade dos seus métodos não tem paralelos na história dos países ocidentais moder-
nos. [...] o fim do primeiro estágio advém com a liquidação da resistência aberta e
secreta sob qualquer forma organizada; isso ocorreu por volta de 1935 na Alemanha
e em aproximadamente 1930 na União Soviética.
152
Muda-se o conceito e função da polícia:
150
Ibid., p. 455.
151
A este respeito é oportuna a reflexão que Arendt fez sobre o que é autoridade, tema desenvolvido em duas de
suas obras: EPF e ARENDT, Sobre a Violênica, op. cit. Na primeira obra Arendt discute o tema através do capí-
tulo intitulado Que é Autoridade? Destaca: “Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente
confundida como alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios exter-
nos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é in-
compatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde
se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão, ergue-se
a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve, sê-lo
então, tanto em contraposição à coerção pela força como a persuasão através de argumentos. (A relação autoritá-
ria entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que
eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos
têm seu lugar estável determinado).” (p. 129) Na segunda obra, considerando os elementos destacados na anteri-
or, ao nosso ver, merece destaque a seguinte passagem: “conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou
pelo cargo. O maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro meio para inibi-la é a risada.”
(p.37)
152
OT, p. 472.
56
“o dever da polícia totalitária não é descobrir crimes, mas estar disponível quando o
governo decide aprisionar ou liquidar certa categoria da população. Sua principal
distinção política é que somente ela confidencia com a mais alta autoridade e sabe
que linha política será adotada.”
153
Portanto, isso é tudo para garantir que a polícia alcance a melhor posição e prestígio,
pois sabe os maiores segredos do Estado e usa disso para favorecimento próprio. Assim, suas
ações passam a fazer parte da administração, obtendo grande respeitabilidade, tanto interna,
pois o governo sabe que a polícia sabe, quanto externa, resultante do medo dos indivíduos em
serem considerados inimigos objetivos do sistema. Com isso, assume o verdadeiro ramo exe-
cutivo do governo e, por meio delas, todas as ordens são estendidas e cumpridas em bom ter-
mo, independente se o indivíduo é bom ou mau, criminoso ou não. Muda-se o conceito de
crime e criminoso: “o inocente e o culpado são igualmente indesejáveis.”
154
Aos crimi-
nosos cabe a punição e aos indesejáveis o desaparecimento da face da Terra, a ponto de serem
lembrados vagamente por aqueles que um dia os conheceram e os amaram. Chegando neste
estágio, está garantido o sucesso do governo e a possibilidade de efetivar o domínio total, pois
nos países totalitários, todos os locais de detenção administrados pela polícia consti-
tuem verdadeiros poços de esquecimento onde as pessoas caem por acidente, sem
deixar atrás de si vestígios tão naturais de uma existência anterior como um cadáver
ou uma sepultura. Comparado a essa novíssima invenção de se fazer desaparecer até
o rosto das pessoas, o antiquado método do homicídio, seja político ou criminoso, é
realmente eficaz. O assassino deixa atrás de si um cadáver e, embora tente apagar os
traços da sua própria identidade não pode apagar da memória dos que ficaram vivos
a identidade da vítima. A operação da polícia secreta, ao contrário, faz com que toda
vítima simplesmente jamais tenha existido.
155
O lugar onde o domínio total implanta a sua forma brutal e sem precedentes é
nos campos de concentração e de extermínio em massa. Além de resumir a forma de realiza-
ção do domínio total, os campos de extermínio “servem como laboratórios onde se demonstra
a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível.”
156
A frieza e brutalidade estão
muito próximas da normalidade
157
. O que é assustador, segundo Arendt, é que este processo
foi planejado de maneira metódica, a partir de três passos.
153
Ibid., p. 476.
154
Ibid., p. 483.
155
Ibid., p. 485
156
Ibid., p. 488.
157
Antes da implantação do domínio total, mediante a prática desastrosa dos campos de concentração, o homem
deveria ser isolado do mundo real, exterior, e estar voltado para o mundo fictício. Nos campos de concentração a
situação se complica ainda mais, pois “depende de seu fechamento ao mundo de todos os homens, ao mundo dos
vivos em geral, até mesmo ao mundo do próprio país que vive sob o domínio totalitário.” Cf. OT, p. 489.
57
“O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é matar a pessoa jurídica do
homem.
158
Destituído do direito a ter direitos, toda a população fica à margem da lei no seu
próprio território, passando, dessa forma, à condição de apátridas e refugiados. A destruição
da pessoa jurídica do homem é o passo primordial para dominá-lo posteriormente. É um pro-
cesso doloroso porque o afetado é o próprio ser humano, pois não se aplicam apenas a algu-
mas categorias especiais, a exemplo de criminosos, oponentes políticos, judeus, homossexu-
ais. Na verdade, não há oposição em questão. Trata-se da destruição do direito, sem consen-
timento e sem escolhas.
“O próximo passo decisivo do processo de cadáveres vivos é matar a pessoa moral do
homem.
159
Com isso, o regime totalitário destrói o sentido da vida e da morte. Não há histó-
rias que fiquem para serem contadas, nem dor e recordação – são todas proibidas. Os prisio-
neiros dos campos, pela condição de anonimato que lhes são impostas, geravam sempre dú-
vida para os que ficavam à sua espera e sem saber se estavam vivos ou mortos.
No dizer de Arendt: “roubavam a própria morte do indivíduo, provando que, nada –
nem a morte – lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato
de que ele jamais havia existido.”
160
O problema da ação totalitária está na sua inaceitabilida-
de da pessoa moral poder usar da sua consciência ou então dela poder optar pela fuga ao indi-
vidualismo e tomar suas decisões questionáveis. As opções e decisões, quando se apresentam,
não estão ligadas numa escolha entre bem e mal, mas unicamente entre matar e matar, con-
forme exemplos relatados por Arendt nas Origens do Totalitarismo
161
. O estatuto moral per-
de toda a sua consistência e as pessoas são forçadas a agir como assassinas.
Por fim, Arendt destaca que “morta a pessoa moral, a única coisa que ainda impede
que os homens se transformem em mortos-vivos é a diferença individual, a identidade única
do indivíduo.”
162
Continua, frisando que, “sem dúvida, essa parte da pessoa humana, precisa-
mente por depender tão essencialmente da natureza e de forças que não podem ser controladas
pela vontade alheia, é a mais difícil de destruir (e, quando destruída, é a mas fácil de restau-
158
OT, p. 498.
159
Ibid., p. 502.
160
Ibid., p. 503.
161
Ver OT, p. 503, onde Arendt relata o caso da decisão do homem diante das alternativas que se apresentam.
Em todas as alternativas, a saída é a mesma: a morte. Além disso, aborda o dilema moral do caso da mãe grega
que dos seus três filhos deveria escolher apenas um para a morte. É uma situação que desestrutura os princípios
morais pois eles acabam servindo para nada.
162
OT, p. 504.
58
rar).”
163
Imaginem-se os métodos brutais que foram implantados para alcançar tal objetivo. O
que merece questionamento é o fato, primeiro, do corpo humano ser manipulado de forma
brutal e, segundo, do desejo de destruição da pessoa e da dignidade humana. Afinal, pode ser
verdadeiramente político um sistema que tem em seu fim a destruição da própria vida, sem
querer a sua realização e mais completa dignidade? Nota-se que no sistema totalitário não há
espaço para o homem. Ele é concebido como ser descartável, supérfluo. Destruir sua indivi-
dualidade e singularidade é um passo necessário para o domínio total. Na afirmação de
Arendt,
morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes com rostos de ho-
mem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todos reagindo com
perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para morte. Esse é o verdadeiro
triunfo do sistema: ‘O triunfo da SS exige que a vítima torturada se deixa levar à
força sem protestos, que renuncie e se entregue a ponto de deixar de afirmar a sua
identidade.
164
Por mais paradoxal que pareça ser a forma de domínio totalitário pelo fato de tornar os
homens supérfluos, por outro lado, olhando mais a fundo, compreende-se que o seu poder visa
a construir uma sociedade do reflexo condicionado, sem traços de espontaneidade. Todavia, o
que realmente move todo o aparato agressivo do totalitarismo, segundo Arendt, “não advém
do desejo de poder e, se tenta expandir-se febrilmente, não é por amor à expansão e ao lucro,
mas apenas por motivos ideológicos: para tornar o mundo coerente, para provar que o seu
supersentido estava certo.”
165
E o que as ideologias totalitárias querem “não é a transformação
do mundo exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, mas a transformação da
própria natureza humana.”
166
Tenta-se, a todo custo, a unificação de comportamentos e reações, a ponto de preten-
der reduzir a identidade humana num estilo padrão. Daí que acaba por eliminar com a infinita
pluralidade, diferenças e espontaneidade dos seres humanos, “como se toda a humanidade
fosse apenas um indivíduo”
167
, ou então, “da transformação da personalidade humana numa
simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são; pois o cão de Pavlov que, como se
sabe era treinado para comer quando tocava um sino, mesmo que não tivesse fome, era animal
163
Ibid., p.504.
164
Ibid., p. 506.
165
Ibid., p. 509.
166
Ibid., p. 510.
167
Ibid., p. 488.
59
degenerado.”
168
Além disso, há o fim do bom senso
169
. De um lado aqueles que crêem no
princípio niilista de que “tudo é possível” e de outro aqueles que se recusam a aceitar o fata-
lismo.
A gravidade da experiência efetiva do domínio total diz respeito ao caráter inumano e
ao estabelecimento do fim da comunidade política. A preocupação metódica do totalitarismo
nos campos de concentração não pretende alterar o caráter do homem com o fito de deixá-lo
melhor ou pior. Além disso, pela sua prática de obediência incondicional e esforço para cons-
truir uma sociedade de massas acaba por anular as divergências políticas, seja de direita ou de
esquerda, mas, sobretudo, da possibilidade de qualquer indivíduo emitir opinião. A grande
vitória do líder totalitário consiste em não deixar vestígios e apagar todo e qualquer resquício
de existência. Portanto, não deixar falar, opinar, é o primeiro passo para o fim mais trágico da
vida: uma morte sem memória, sem existência. Dessa maneira, sela-se o verdadeiro horror
dos campos de concentração e de extermínio que
reside no fato de que os internos, mesmo que consigam manter-se vivos, estão mais
isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele
ao esquecimento. No mundo concentracionário mata-se um homem tão impessoal-
mente como se mata um mosquito. Uma pessoa pode morrer em decorrência de tor-
tura ou de fome sistemática, ou porque o campo está superpovoado e há necessidade
de liquidar o material humano supérfluo.
170
Por fim, cabe destacar que a prática dos campos de concentração introduz e dá cabo
para a manifestação do mal radical e põe fim ao desenvolvimento e transformação de valores.
É uma experiência sem precedentes, expressão de loucura e “irrealidade” aliadas ao absurdo.
Na avaliação de Arendt, os campos de concentração podem ser classificados ao modo das três
concepções de uma vida após a morte, a saber: o Limbo, o Purgatório e o Inferno. Nesse as-
pecto, ela divisa:
168
OT, p. 489.
169
Qual o significado do conceito de homicídio quando nos defrontamos com a produção de cadáveres em mas-
sa? Tentamos compreender a conduta psicológica dos presos dos campos de concentração e dos homens da SS,
quando o que é preciso compreender é que a psique humana pode ser destruída mesmo sem a destruição física do
homem; que, na verdade, a psique, o caráter e a individualidade parecem, em certas circunstâncias, manifestar-se
apenas pela rapidez ou lentidão em que se desintegram. Como resultado final surgem homens inanimados, que já
não podem ser compreendidos psicologicamente, cujo retorno ao mesmo psicologicamente humano (ou inteli-
gentemente humano) se assemelha à ressurreição de Lázaro. Diante disto, qualquer julgamento ao bom senso
serve apenas para justificar aqueles que acham ‘superficial’ ‘deter-se em horrores’. Cf. OT, p. 491.
170
OT, p. 493.
60
Ao Limbo correspondem aquelas formas relativamente benignas, que já foram popu-
lares mesmo em países não-totalitários, destinadas a afastar da sociedade todos os
tipos de elementos indesejáveis - os refugiados, os apátridas, os marginais, e os de-
sempregados -; os campos de pessoas deslocadas, por exemplo, que continuaram a
existir mesmo depois da guerra, nada mais são do que campos para os que se torna-
ram supérfluos e inoportunos. O Purgatório é representado pelos campos de trabalho
da União Soviética, onde o abandono alia-se ao trabalho forçado e desordenado. O
Inferno, no sentido mais literal, é representado por aquele tipo de campo que os na-
zistas aperfeiçoaram e onde toda a vida era organizada, completa e sistematicamen-
te, de modo a causar o maior tormento possível.
171
Esses elementos apresentados caracterizam o motivo da conseqüente inquietação a-
rendtiana pelo fato das pessoas que são tomadas como vítimas nos campos de concentração
serem colocadas numa situação de castigo sem culpa, isto é, irem diretamente para o inferno
sem passar pelo julgamento final. A prática revela que o reino da justiça ou injustiça é aplica-
do indiferentemente. Mas tudo o que é feito, é pensado de acordo uma lógica e com uma for-
ma de governo explicitada no terror. Nada do que aconteceu foi mera casualidade.
2.3.4 A ideologia e o terror: o princípio e o fim do governo totalitário
O que se passa no totalitarismo, especialmente no processo que ele desencadeia até
alcançar o poder, justifica a afirmação de que não foi apenas um evento histórico relevante,
apesar dos milhões de mortos que ficaram esquecidos nos campos de extermínio. Seu método
difere de todos os outros meios de organização política e instrumentos de violência utilizados
pela tirania, despotismo e ditaduras; e também não surge acidentalmente diante do fracasso
das tradicionais forças políticas liberais ou conservadoras, nacionais ou socialistas, republica-
nas ou anarquistas, autoritárias ou democráticas. Esse é o elemento sintético e o ponto funda-
mental que precisa ser compreendido no estudo do fenômeno totalitário. A sua forma de orga-
nização para o alcance do poder revela problemas cruciais no campo da política. Com maes-
tria, a esse respeito, Arendt diz:
Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente
novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Independente-
mente da tradição especificamente nacional ou de fonte espiritual da sua ideologia, o
governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sistema
partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, trans-
feriu o centro do poder do Exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior
que visava abertamente ao domínio mundial. Os governos totalitários do nosso tem-
po evoluíram a partir de sistemas unipartidários, sempre que estes se tornaram real-
171
Ibid., p.496.
61
mente totalitários, passavam a operar segundo um sistema de valores tão radical-
mente diferente de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias
utilitárias - legais, morais, lógicas ou de bom senso - podia mais nos ajudar a aceitar,
julgar ou prever o seu curso de ação.
172
Ao que se assiste na experiência do domínio totalitário, diante das grandes novidades
instauradas no campo da política, permite que nunca antes se tenha praticado atos como o
totalitarismo o fez e demonstra uma forma inteiramente nova no tratamento das coisas públi-
cas e privadas. De maneira “inteligente”, o governo totalitário não pode existir se a esfera
pública tem seu espaço de ação garantido. Disso decorre a necessidade do isolamento dos
homens e, com ele, o fim da suas capacidades políticas. Além disso, a conseqüente necessida-
de de destruir também a vida privada, deixa o homem sem mundo, perdido na solidão e no
abandono, tornando-se frágil, não visto, sem voz, sem relações, sem sentido
173
, sem pátria,
isto é, na mais radical e desesperada experiência que pode ter: estar no mundo sem ser do
mundo. Nisso consiste a solidão, a perda do mundo e, através dela, a realização da essência do
governo totalitário – o terror, preparado pela lógica de uma idéia – a ideologia.
A ideologia e o terror são o princípio e o fim (essência) do governo totalitário. Eles
são os dois pilares que permitem sustentar a estrutura totalitária. Mas, como diz Arendt, eles
foram pensados e têm o mérito da originalidade, porque
nunca antes se havia usado tal mistura nas várias formas de domínio político. Não
obstante, a experiência básica em que ela se fundamenta deve ser humana e escondi-
da dos homens, uma vez que esse corpo político absolutamente ‘original’ foi plane-
jado por homens e, de alguma forma, está respondendo às necessidades humanas.
174
Tudo começa com o grande projeto de criar o homem-massa, prossegue com a con-
quista das massas pela propaganda e de um mundo fictício, até alcançar o poder que se asse-
gura pela violência que, diante do seu método brutal, instaura o medo e a força ao mesmo
tempo, até chegar ao domínio total. Por trás de tudo, está a força da ideologia que possibilita
“guiar a conduta dos seus súditos [...] para que cada um se ajuste igualmente bem ao papel de
carrasco e ao papel de vítima.”
175
E no fim de todo este processo está o terror total que, se-
gundo Arendt, é:
172
Ibid., p. 512.
173
Sobre esta questão da experiência do sistema totalitário como absoluta experiência da não pertença ao mundo,
estranheza ao mundo, mundo do não-sentido, perda da medida, indicamos a brilhante reflexão que Roviello faz
ao longo de sua obra. ROVIELLO, op. cit..
174
OT, p. 526.
175
Ibid., p. 520.
62
a essência do regime totalitário, não existe a favor e nem contra os homens. Sua su-
posta função é proporcionar à formação da natureza ou da história um meio de ace-
lerar o seu movimento. [...] O terror, portanto, como servo obediente do movimento
natural ou histórico, tem de eliminar do processo não apenas a liberdade em todo
sentido específico, mas a própria fonte da liberdade que está no nascimento do ho-
mem e na sua capacidade de começar de novo.
176
O terror age estrategicamente. Diz não estar contra e nem a favor dos homens, no en-
tanto, destrói a condição de pluralidade dos homens e os coloca numa constante situação de
pressão pela qual uns acabam ficando contra os outros, eliminando os laços de relação e apro-
ximação entre eles. Interessa ao terror a instauração de um projeto verticalizado, centrado na
figura de um só homem que leva adiante o legado do movimento totalitário. Terror e movi-
mento estão juntos neste projeto, a ponto da própria lei ser concebida sobre a base do movi-
mento, sem questionar pelo certo ou errado
177
. E o que legitima esta postura totalitária é o
processo de realização de justiça na Terra, com base na lei da natureza, determinado pelo mo-
vimento, destruindo o espaço das leis positivas e dispensando o consenso legal, pois a huma-
nidade é a expressão completa da encarnação da lei (do movimento). Daí a conseqüente des-
preocupação com a discrepância entre lei e justiça.
Segundo Arendt,
na interpretação do totalitarismo, todas as leis se tornam leis do movimento. Embora
os nazistas falassem da lei da natureza e os bolchevistas falassem da lei da história,
natureza e história deixam de ser a força estabilizadora da autoridade para as ações
dos homens mortais; elas próprias tornam-se movimentos.
178
No corpo político do governo totalitário, o terror assume o lugar das leis positivas e ele
próprio é a realização da lei do movimento. O próprio terror
é a legalidade quando a lei é o movimento de alguma força sobre-humana, seja a na-
tureza ou a história. [...] O terror, como exemplo da lei do movimento cujo fim ulte-
rior não é o bem-estar dos homens nem o interesse de um homem, mas a fabricação
da humanidade, elimina os indivíduos pelo bem da espécie, sacrifica as ‘partes’ em
benefício do ‘todo’.
179
176
Ibid., p. 518.
177
Em uma de suas cartas a Jaspers, data de 17 de agosto de 1946, Arendt confidenciava a ele que os crimes
nazistas extrapolaram os limites da lei e nisso se concentrava a sua monstruosidade. Cf. DUARTE, op. cit., p. 62.
178
OT, p. 515.
179
Ibid., p. 517.
63
No entanto, por si só, o terror não consegue realizar o seu desiderato. Conta com o a-
poio de um guia para convencer cientificamente que o seu projeto realmente é consistente e
digno de adesão. Daí o papel fundamental da ideologia.
A ideologia foi pouco usada ao longo da história política, tendo um papel quase que
insignificante para questões de estratégias nos projetos. No entanto, graças a Hitler e Stálin,
descobre-se o grande potencial político que a ideologia pode oferecer. Acerca da sua defini-
ção, o que convencionalmente se atribui à ideologia é o seu caráter científico, combinado, ao
mesmo tempo, com resultados de importância filosófica. Na afirmação de Arendt,
a palavra ‘ideologia’ parece sugerir que uma idéia pode tornar-se o objeto do estudo
de uma ciência, como os animais são o objeto de estudo na zoologia, e que o sufixo -
logia da palavra ideologia, como em zoologia, indica nada menos que os logoi - os
discursos científicos que se fazem a respeito da idéia. Se isso fosse verdadeiro, a i-
deologia seria realmente numa pseudociência e uma pseudofilosofia, violando ao
mesmo tempo os limites da ciência e os da filosofia. O deísmo, por exemplo, passa-
ria a ser a ideologia que trata da idéia de Deus. [Mas]
180
(...) as ‘idéias’ dos ismos - a
raça no racismo, Deus no deísmo, etc. - nunca constituem o objeto das ideologias, e
o sufixo - logia nunca indica simplesmente um conjunto de postulados ‘científi-
cos’.
181
Nesse sentido, a fundamentação do sentido literal da palavra ideologia é um passo
importante para compreender seu papel no governo totalitário. Arendt assegura que ideologia
é exatamente aquilo que o seu nome indica: a lógica de uma idéia, e o seu objeto de estudo é a
história na qual a idéia é aplicada. Diferentemente de Platão (idéia como essência eterna) e de
Kant (idéia como princípio regulador da razão), a ideologia trata daquilo que acontece, de um
processo em constante mudança, movimento. Mas não se trata apenas de idéias advindas do
exterior, e sim da sua lógica própria inerente à idéia, de modo que a questão do racismo, por
exemplo, seja a crença da existência de um movimento próprio da idéia de raça, ou do deísmo
como sendo um movimento próprio da idéia de Deus.
O que acontece é a correlação do movimento da história com o processo lógico da no-
ção de história, a ponto de ter uma correspondência de um e ao outro, de tal sorte que aquilo
que aconteça, se dá, pela lógica de uma idéia. A tese passa a ser a primeira premissa, a partir
da qual segue o processo das deduções e sínteses, desconsiderando contradições factuais, já
que tudo é estágio de um só movimento, concebido de maneira coerente. Dessa forma, a ideo-
180
Acrescento nosso.
181
OT, p. 520 e 521.
64
logia concebe unicamente à idéia, o poder de ser a suficiente explicação de todo o existente,
pois tudo está compreendido logicamente. Cria-se, portanto, um esquema dedutivo de expli-
cações que leva os ouvintes a crerem que não se pode dizer A sem B e C
182
, e assim, sucessi-
vamente, até o fim do alfabeto, de modo que o processo parece não ter um ponto de chegada.
Tudo fica submetido à lógica e à capacidade humana de pensar e começar de novo; fica limi-
tada à tirania das premissas dadas. Sendo assim, a lógica se torna num grande problema para a
realização do ser humano, em primeiro lugar; e da política, em segundo. Nessa concepção,
Arendt diz:
A liberdade, como capacidade interior do homem, equivale à capacidade de come-
çar, do mesmo modo que a liberdade como realidade política equivale a um espaço
que permita o movimento entre os homens. Contra o começo, nenhum lógica, ne-
nhuma dedução convincente pode ter qualquer poder, porque o processo da dedução
pressupõe o começo sob forma de premissa. Tal como o terror é necessário para que
o nascimento de cada novo ser humano não dê origem a um novo começo que impo-
nha ao mundo a sua voz, também a força autocoercitiva da lógica é mobilizada para
que ninguém jamais comece a pensar - e o pensamento, como a mais livre e a mais
pura das atividades humanas, é exatamente o oposto do processo compulsório de de-
dução.
183
A conseqüência que emerge da eficácia da ideologia é o isolamento entre os homens, a
incapacidade de eles pensarem e, sobretudo, começarem algo novo. Eis aí o princípio do go-
verno totalitário: a impotência do agir e o fim da esfera pública e privada. A sua essência é o
terror, e o princípio de ação está restrito à lógica do pensamento ideológico. Segundo Arendt,
até se pode optar em relativizar muitas considerações acerca do totalitarismo, mas, em mo-
mento algum, é impossível não dizer que esta cruel experiência não deixa de originar uma
nova forma de governo e que,
como potencialidade e como risco sempre presente, tende infelizmente a ficar co-
nosco de agora em diante, como ficaram, a despeito de derrotas passageiras, outras
formas de governo surgidas em diferentes momentos históricos e baseadas em expe-
riências fundamentais – monarquias, reblicas, tiranias, ditaduras, e despotis-
mos.
184
É fato que as manifestações concretas surgidas da dominação totalitária estão muito
além do que significou o levante dos rebeldes do século XIX contra a tradição. Com a experi-
182
Na p. 525 da obra OT Arendt apresenta o exemplo do expurgo bolchevista que leva às vítimas a confessar seu
crimes a fim de mostrar como este processo acontece de fato.
183
Ibid., p. 525 e 526.
184
Ibid., p. 531.
65
ência do totalitarismo, a ruptura da tradição é um fato acabado. Recolocar as bases sobre as
quais a política deve se assentar é o desafio fundamental que Arendt se propõe a enfrentar.
66
3 A ERA MODERNA E O PROBLEMA DA INSTRUMENTALIZAÇÃO DA POLÍTI-
CA
O surgimento da era moderna é um tema que merece atenção da parte de Arendt. Nele,
reflete desde os eventos que a originaram até os desdobramentos e conseqüências que deles
resultaram à vida humana e, de maneira especial, o que foi produzido no campo da política.
Os três eventos que propiciam o surgimento da era moderna permitem compreender
que a modernidade propaga o fechamento do homem para dentro de si mesmo, ocasionando o
grave problema da alienação do mundo, decorrente do papel decisivo da mente e da atividade
de pensar e, mais tarde, verificado na expansão e consumo egoísta diante do enaltecimento do
labor frente ao homo faber.
A alienação do mundo se dá exatamente nesta atitude de fechamento do homem, cen-
trado unicamente em si. Desse problema, decorrem várias e múltiplas transformações, esten-
dendo-se para a forma de organização da sociedade, para o tratamento das coisas públicas e
privadas. No âmbito da produção, configura-se a excelência da mediação da técnica e, no âm-
bito da política, a vida passa a assumir a forma de instrumentalização presente no processo de
fabricação. Todo esse novo processo acaba por gerar o grande colapso da vida comum e ins-
taurar o isolamento entre os homens. Repetição em relação ao totalitarismo? Não! Mas uma
forma de complementação e maior aprofundamento das bases que levam a política para uma
forma de organização em que os homens não estejam no seu centro, e sim a técnica de pensar
estratégias e manobras que os conduzem para a satisfação egoísta dos interesses pessoais e
uma total submissão ao consumo. Dessa situação, decorre a pobreza do alcance humano dian-
te dos grandes feitos e descobertas, pois o homem pensou e avançou tanto que acabou por
fixar-se na mera sobrevivência.
67
Eis o grande paradoxo da modernidade! Transformar, produzir, inventar e criar são to-
das palavras que carregam o sonho de um grande avanço da civilização. Engano! Tudo a per-
der? Não! Tudo a pensar, dirá Arendt quando escreve as primeiras palavras da obra A Condi-
ção Humana. Nas suas palavras: “o que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas
de refletir sobre o que estamos fazendo.”
185
A posição do problema está colocada e o desafio que proposto a seguir é compreender
como surge a era moderna e como ela caracteriza novas formas de organização e a relação dos
homens com a produção e entre si; como a modernidade introduz o processo do trabalho, da
fabricação para o universo das questões políticas; e como a atividade do labor, do consumo,
passa a ocupar o topo da hierarquia da vita activa. Esse é o itinerário que se pretende, neste
capítulo, visando a refletir sobre a influência da modernidade na vida política.
3.1 A era moderna, o avanço da ciência e suas conseqüências à política
O surgimento da era moderna, abordado por Arendt, em sua obra A Condição Huma-
na, refere:
No limiar da era há três grandes eventos que lhe determinaram o caráter: a descober-
ta da América e a subseqüente exploração de toda a Terra; a Reforma que, expropri-
ando as propriedades eclesiásticas e monásticas, desencadeou o duplo processo de
expropriação individual e acúmulo de riqueza social; e a invenção do telescópio, en-
sejando o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra
do ponto de vista do universo.
186
No entender de Arendt, é importante saber que tais eventos estão ligados a algumas
pessoas que propiciaram o seu surgimento. Não nasceram do acaso, porque foram pensados e
os nomes dos seus propagadores são: Galileu Galilei, na invenção do telescópio; Martinho
Lutero, na questão da Reforma; e os grandes navegadores, exploradores e aventureiros, na
descoberta da América. Na visão dos contemporâneos, encontra-se a seguinte posição:
185
CH, p. 13
186
Ibid., p. 260.
68
O mais espetacular dos três eventos deve ter sido a descoberta de continentes desco-
nhecidos e de oceanos jamais sonhados; o mais inquietante deve ter sido a irremedi-
ável cisão do cristianismo ocidental através da Reforma com o inevitável desafio à
própria ortodoxia e a imediata ameaça à tranquilidade espiritual dos homens; e sem
dúvida o menos percebido de todos foi a introdução, no já sortido arsenal de utensí-
lios humanos, de um novo instrumento, inútil a não ser para olhar as estrelas, embo-
ra fosse o primeiro instrumento puramente científico a ser concebido.
187
A invenção do telescópio se torna, mais tarde, o evento que adquire maior impulso e
força. Whitehead chega afirmar em sua obra Science and the modern world
188
que, após o
nascimento de Jesus na manjedoura, nenhum outro acontecimento chegou causar tanto alarde
quanto o da descoberta do telescópio, introduzida por Galileu. Ambos marcam a presença de
algo inesperado, imprevisto. Logo depois, percebe-se que
aquelas primeiras espreitadas tímidas na direção do universo, através de um instru-
mento ao mesmo tempo ajustado aos sentidos humanos e do seu alcance, estabelece-
ram as condições de um mundo inteiramente novo e determinaram o curso de outros
eventos que, com muito maior alarde, iriam dar início a era moderna. Com a exce-
ção de um grupo de homens eruditos, numericamente pequeno e politicamente in-
consequente - astrônomos, filósofos e teólogos - ninguém sentiu alvoroço ante a in-
venção do telescópio.
189
Não se trata, no entender de Arendt, de menosprezar e/ou ridicularizar outras desco-
bertas e especulações filosóficas
190
no contexto que marca a era moderna. No entanto, esses
outros grandes feitos jamais chegam a demarcar a inauguração de grandes eventos, a ponto de
constituir novidade absoluta e objetiva. O que os caracteriza, no caso de Copérnico, por e-
xemplo, é a não necessidade de obter confirmações mediante experiências empíricas. A expe-
riência sensorial não é um elemento determinante, aliás o que em nada contrapõe no desprezo
do empírico propagado pela Igreja na Idade Medieval. Esse é ponto central que precisa ser
destacado, neste contexto, porque, por meio dessa questão, é possível compreender o porquê
187
Ibid., p. 261. Na reflexão a ser desenvolvida sobre este tema não abordaremos detalhadamente cada evento,
mas mostraremos a implicação presente naquele que abriu as portas para o desenvolvimento da ciência, isto é, a
invenção do telescópio. Para maiores esclarecimentos sobre a descoberta da América e da Reforma Protestante,
cf. CH, p. 260-269.
188
WHITEHEAD A. N. Science and the modern world. Ed. Pelican, 1926, p. 12. Apud CH, p. 270.
189
CH, p. 270
190
É claro que este ponto mereceria uma longa discussão, pois antes de Galileu houve outros filósofos que, a
bem da verdade, tiveram suas reflexões e descobertas viradas em cinzas pela prática da fogueira no final da Ida-
de Média. São os casos, por exemplo, de Nicolau de Cusa e Giordano Bruno. Mas o que Arendt está discutindo
nesta questão não os desmerece em nenhuma hipótese. E quando fala de astrônomos como Copérnico e Kepler
que haviam posto em dúvida a noção de um universo finito e geocêntrico, ela reconhece que foram os primeiros
filósofos a abolir a dicotomia entre terra e céu, porém assegurando que o sol era o grande centro do universo e
era ele que se movia em torno da Terra. Até aqui, tudo bem. No entanto, o que os diferencia de Galileu é o fato
deles não precisarem de confirmações empíricas, inclusive para dar fim ao sistema ptolomaico. Bastaria apenas a
coragem especulativa e a negação à experiência sensorial. Nada mais que manter o legado medieval intacto. Cf.
CH, p..271 e et seq.
69
do enfrentamento da Igreja a Galileu. Galileu é alguém que ousa conhecer com base em expe-
riências empíricas e estabelece o confronto com as determinações dadas pela Igreja. Nas pala-
vras de Arendt,
o que Galileu fez e que ninguém havia feito antes foi usar o telescópio de tal modo
que os segredos do universo foram revelados à cognição humana ‘com a certeza da
percepção sensorial’; isto é, colocou diante da criatura presa à terra e dos sentidos
presos ao corpo aquilo que parecia destinado a ficar para sempre fora do seu alcance
e, na melhor das hipóteses, aberto às incertezas da especulação e da imaginação.
191
A relevância e conseqüências entre o sistema copernicano e as descobertas de Galileu,
de imediato, são muito bem percebidas pela Igreja. Sendo o sol, distante, extraterrreno, nas
alturas, aquele que se move em torno da Terra – nele o princípio e o fim - em nada pode pre-
judicar as verdades e o poder da Igreja, pois mantém o desprezo ao terreno e enaltecimento de
algo que colabora com as verdades que vêm do céu, das alturas. O Cardeal Belarmine atesta
que, diante das hipóteses empregadas pelos astrônomos para fins matemáticos, há diferença
entre demonstrar que a hipótese confirma as aparências e que expressa a realidade e o movi-
mento da Terra. De qualquer forma, o confronto já está colocado e, diante da confirmação da
descoberta de Galileu que não era o sol o centro do universo e não era ele que se movia ao
redor da Terra, mas o contrário, a Igreja não tem mais como controlar esta nova situação. E o
que passa a acontecer é que,
daí por diante, fizeram-se notavelmente ausentes o entusiasmo com que Giordano
Bruno concebera um universo infinito, a exultação religiosa com que Kepler con-
templara o sol, ‘o mais sublime de todos os corpos do universo, cuja essência é nada
menos que a pura luz’ e que, portanto, lhe parecia a morada mais adequada a ‘deus e
aos anjos bem-aventurados’, e a satisfação um tanto mais sóbria, de Nicolau de Cusa
ao ver que a Terra finalmente conquistava o seu lugar no firmamento das estrelas.
Por ter ‘confirmado’ seus predecessores, Galileu estabeleceu um fato demonstrável
onde antes só havia especulações inspiradas. A imediata reação filosófica a esta rea-
lidade não foi a exultação, e sim a dúvida cartesiana que fundou a filosofia moderna
- essa ‘escola da suspeita’, como Nietzsche a chamou certa vez - e que levou à con-
vicção de que, ‘de agora em diante, a morada da alma só pode ser construída com
firmeza na sólida fundação do mais completo desespero.
192
A descoberta de Galileu estabelece, assim, uma grande celeuma entre a Igreja e os
pesquisadores, astrônomos, astrólogos, filósofos, posteriormente designado o confronto entre
Religião e Ciência. Por outro lado, o avanço e afirmação da descoberta de Galileu provocam a
abolição da antiga dicotomia entre terra e céu, possibilitando o surgimento da idéia que o uni-
verso passa a ser algo unificado. Mas isso não significa que o universo venha a ser algo aca-
191
CH, p. 272.
192
Ibid., p. 272 e 273.
70
bado e também que, de Galileu em diante, apenas tenha ocorrido uma grande mudança do
ponto central de análise. Com Galileu, a verdade absoluta da Igreja é posta em xeque e, a par-
tir do avanço da ciência e do papel da dúvida cartesiana, já não dá mais para se determinar
que existe uma única verdade diante do universo, possibilitando, nesse sentido, a abertura
para o surgimento do relativismo, levado adiante, mais tarde, por Einstein.
As descobertas realizadas por Galileu introduzem o uso de instrumentos para se chegar
às verdades e colocar o homem no centro das descobertas. O uso de instrumentos demonstra
que a capacidade humana
193
de pensar sobre o universo com os pés na Terra, empregando leis
cósmicas, é capaz de ir bem mais longe que simplesmente contemplar as verdades. A capaci-
dade humana de pensar pode, também, descobrir, emitir juízos sobre a formação e transfor-
mação do Planeta Terra e criar leis que sirvam de ação aos homens da Terra. Isso pode ser
considerado o grande feito dos homens e a demarcação do surgimento da ciência. Mas tal
avanço, segundo Arendt, é paradoxal, porque, ao mesmo tempo em que gera descoberta, de
193
Aprofundaremos esta questão mais adiante quando tratarmos da inversão entre contemplação e ação, mas, de
qualquer forma, é importante termos, desde já, a noção da diferença que está sendo colocada à ciência diante do
contexto moderno em relação ao antigo. Segundo Marilena Chauí, existe uma diferença profunda entre a ciência
antiga e moderna: “A primeira era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres naturais, sem ja-
mais imaginar intervir neles e sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado às práticas necessárias à vida e
nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela. Numa sociedade escravista que deixava tarefas, trabalhos e
serviços aos escravos, a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento. [...] A ciência moderna nasce
vinculada à idéia de intervir na Natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A
ciência não é apenas contemplação da verdade, mas é, sobretudo, o exercício de poderio humano sobre a nature-
za.” CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 6ª ed., São Paulo: Ática, 1995, p.255. Também é digno de nota a este
respeito um belíssimo texto de Henrique C. Lima Vaz, intitulado A cultura e seus fins, no qual apresenta o aban-
dono do homem à Natureza e o seu apoio à Cultura. A nós interessa destacar que ao longo do texto o autor apre-
senta a relação que os homens desenvolveram entre Natureza e Cultura ao longo da história. Acerca do contexto
antigo diz: “[...] é na tradição greco-latina que a crítica da cultura e o programa de um retorno à natureza apare-
cem como um tema constante, vindo, afinal, a tornar-se um topos literário clássico, ilustrado por Virgílio em
versos que estão na memória de todos os cultores na literatura latina.” (p.150) Acerca do contexto medieval dirá:
“Foi necessário que uma leitura radicalmente diferente das origens e uma outra concepção de Deus e do divino
fizessem sua aparição no mundo antigo e finalmente prevalecessem, para que a oposição tradicional entre natu-
reza e cultura fosse resolvida num sentido inteiramente imprevisível para o homem clássico. Com efeito, duas
das premissas fundamentais do cristianismo deslocam totalmente das suas perspectivas habituais no pensamento
antigo o problema da relação natureza-cultura ou, mais geralmente, homem-natureza. Essas duas premissas são a
criação do universo e do homem por Deus e a destinação sobrenatural do homem.” (p. 150) No contexto moder-
no, Lima Vaz nos diz: “[...] o dado histórico mostra-nos que a efetiva dissolução do sagrado ‘natural’ tem lugar
com o triunfo do modelo mecanicista no Universo no século XVII, que passa a ser a única representação da
natureza reconhecida pelo saber científico. [...] a relação do homem com a natureza submete-se à mudança radi-
cal que assinalou a passagem do mundo pré-científico e pré-técnico para o mundo científico-técnico. Neste últi-
mo, se dá em proporções jamais sonhadas pela theoria dos Antigos, a unificação e a homogeneização da nature-
za sob a égide dos modelos físicos-matemáticos que se sucedem de Newton a nossos dias. A mudança profunda
da imagem do mundo é correlativa à modificação não menos profunda do tipo de presença do homem na nature-
za, como mundo humano do nómos, da lei, tal como a compreendia o homem grego. É a cultura entendida com
razão ativa que avança sobre a natureza para transformá-la, criando assim um mundo humano em face do qual
não deverá, em princípio subsistir uma natureza independente. A aventura inaudita e hybris ou desmesura ex-
trema, diante das quais empalidecem todas as audácias do homem antigo!” (p. 153). Cf. VAZ, Henrique C. Li-
ma. A cultura e seus fins. In: Revista Síntese Nova Fase, v. 19, nº 57, 1992, p. 149-159.
71
outro lado, afasta cada vez mais os homens da Terra e do mundo, fechando-os nos jogos da
própria mente, fadada às mais diversas configurações e fórmulas matemáticas. Tudo aquilo
que diz respeito às sensações e movimentos na Terra são passíveis de apresentação simbólico-
matemática. No entanto, mais significativo ainda
foi o fato de que o novo instrumento mental, que, sob este aspecto, era ainda
novo e mais importante que todos os instrumentos científicos que ajudou a
inventar, abriu o caminho para uma forma inteiramente inédita de abordar e
enfrentar a natureza da experimentação. Nessa experimentação, o homem
realizou sua recém-conquistada liberdade dos grilhões da experiência terrena;
ao invés de observar os fenômenos naturais tal como estes se lhe apresenta-
vam, colocou a natureza sob as condições de sua própria mente, isto é, sob as
condições decorrentes de um ponto de vista universal e astrofísico, um ponto
de vista cósmico localizado fora da própria natureza.
194
É diante de tal contexto que Arendt reflete o problema da era moderna e a sua conse-
qüente alienação do mundo. O “império” da matemática acabou por estabelecê-la como a
principal ciência da era moderna, repercutindo diretamente na estrutura da mente humana que
passa a estar segura de que nada pode ser encontrado além de si mesmo, isto é, coisas existem
à medida que podem ser reduzidas às estruturas do próprio pensamento. No dizer de Arendt:
Agora era possível preservar as aparências (phainomena), mas somente na medida
em que estas podiam ser reduzidas a uma ordem matemática; e esta operação mate-
mática não se prestava a preservar a mente humana para a revelação do verdadeiro
ser, relacionando-o com as medidas ideais que transparecem nos dados apreendidos
pelos sentidos, mas, ao contrário, servia apenas para reduzir esses dados às dimen-
sões da mente humana que, dada uma distância suficiente e estando suficientemente
remota e não envolvida, pode manusear e contemplar a multiplicidade dos fatos
concretos segundo seus próprios padrões e símbolos.
195
Nessa condição, para Arendt, está confirmado o alheiamento e alienação do homem
em relação ao mundo e à própria Terra. Tudo o que existe passa a ser considerado produto da
mente humana e o conjunto de coisas, nada mais é que mera multiplicidade enquadrada ao
cálculo, além do problema de ignorar uma ordem natural e bela presente nas coisas. A própria
mente humana torna-se incapaz de ultrapassar a percepção dos sentidos e seu papel de ade-
quação como elemento fundamental para captar a verdade daquilo que existe.
A invenção do telescópio, segundo Arendt, é o divisor de águas para que uma nova
concepção e criação do mundo sejam possíveis. E esse é o ponto que merece ser esclarecido
194
CH, p. 278.
195
Ibid., p. 279.
72
porque comumente confunde-se e atribui-se peso maior para Descartes do que para Galileu no
tocante à guinada do modo de pensar e conceber as coisas da sociedade medieval para a mo-
derna. Por outro lado, não está em questão, neste aspecto, o desmerecimento de Descartes,
apesar da sua famosa expressãode omnibus dubitandum est”, isto é, o espírito da dúvida, ser
a frase célebre que melhor resume o problema da alienação do mundo, porque nela está o fe-
chamento do homem em si mesmo. Arendt apresenta várias passagens em A Condição Huma-
na mostrando a importância de Descartes para a época moderna, entre outras:
Descartes é o pai da moderna filosofia [...]. A filosofia moderna começou com o de
omnibus dubitandum est de Descartes - ou seja, com a dúvida [...]. Na filosofia e no
pensamento modernos, a dúvida ocupa a mesma posição central que, em todos os
séculos anteriores, cabia ao thaumazein dos gregos, o assombro diante de tudo o que
é como é. Descartes foi a primeiro a conceitualizar esta forma moderna de duvidar
[...]. A dúvida cartesiana em seu significado radical e universal, foi inicialmente a
reação a uma nova realidade, realidade esta não menos real pelo fato de ter restringi-
do, durante séculos, ao círculo limitado e politicamente insignificante dos doutos e
eruditos.
196
Essas passagens permitem mostrar a consideração de Arendt a Descartes. A colocação
da dúvida por Descartes, por sua vez, exerce um papel importante neste contexto. A sua prin-
cipal característica está em estabelecer o princípio da universalidade e maior rigor metódico
para se chegar à verdade
197
, no sentido de que nada que esteja no pensamento ou experiência
possa se isentar de indagações. Esse é um ponto indiscutível. No entanto, o cerne da discussão
arendtiana é a compreensão da profundidade do pensamento de Descartes que precisa ser mais
196
Ibid., p. 285 e 286.
197
Duas obras de Descartes são centrais para mostrar esta questão: Discurso do Método e Meditações Metafísi-
cas. No Discurso do Método, Descartes deixou claro que a aceitação da verdade deveria sustentar-se pela elimi-
nação de todo e qualquer resquício de dúvida, destacando quatro regras básicas de seu método, tendo como fun-
damento a matemática, elas serviriam de diretrizes para toda a pesquisa futura. São: “‘1.Não aceitar coisa algu-
ma por verdadeira que não conheça como evidentemente verdadeira.’ Trata-se do critério da evidência, graças ao
qual Descartes pensa abolir de seu espírito tudo o que não lhe parece claro e distinto. 2. ‘Dividir as dificuldades
em tantas partes quanto possível.’ Trata-se do método de análise que decompõe o todo em vários elementos. 3.
‘Conduzir por ordem seus pensamentos, indo por etapas, do simples para o composto.’ Trata-se do método sinté-
tico, que permite estabelecer uma dedução. 4. ‘Fazer enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu
tenha certeza de nada omitir.’ Trata-se da verificação das etapas da dedução que permite concluir a demonstra-
ção, assim como enumeração heurística dos elementos necessários à resolução das questão.” Em resumo, é isto.
Para maior aprofundamento ver: DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de Elza Moreira Marceli-
na. Brasília/São Paulo: UnB/Ática, 1989, p. 24. Já nas Meditações Físicas, segundo Rohden, “Descartes funda-
menta e justifica seu método em três passos e conclusões necessárias: Duvido; Penso, logo existo; Deus existe. a)
A dúvida é radical e hiperbólica. Não começa por atingir diretamente as opiniões, mas as fontes do conhecimen-
to, elevando-as dos sentidos ao entendimento (radical). Ela se opõe às opiniões que, naturalmente ou por hábito
dominam nossa crença (hiperbólica). O filósofo rejeita ‘aquilo que não é absolutamente indubitável’; b) ‘Penso,
logo existo’, esse é o primeiro conhecimento certo e seguro alcançado por quem ordenadamente conduz o pen-
samento. Reporta-se à existência do próprio sujeito pensante; c) ‘Deus existe’ que é deduzido a partir de um
sujeito racional.” ROHDEN, Luiz. Verdade contra o Método? Sobre o método filosófico em Montaigne, Descar-
tes, Gadamer. Disponível em: http://www.dialetica-brasil.org/novidades-rohden.htmAcesso em:
05/04/2005. Para maior aprofundamento, consultar: DESCARTES, René. Meditações. Col. Os Pensadores, vol.
XV. São Paulo: Abril, 1973.
73
bem esclarecido. Quando Descartes levanta a questão da dúvida, não o faz com o objetivo de
acentuar o ceticismo inerente ao próprio pensamento. Ele estabelece tal questão pelo fato de
que
[...] as então recentes descobertas das Ciências Naturais o haviam convencido de que
o homem, em sua busca da verdade e do conhecimento, não pode confiar nem na e-
vidência dada dos sentidos, nem na ‘verdade inata’ da mente, nem tampouco na ‘luz
da razão’. Essa desconfiança nas faculdades humanas tem sido desde então uma das
condições mais elementares da época moderna e do mundo moderno; contudo ela
não surgiu, como usualmente se supõe, de um súbito e misterioso definhamento da
fé em Deus, e sua causa nem sequer foi uma suspeita da razão como tal. Sua origem
foi a justificadíssima perda de confiança na capacidade reveladora da verdade dos
sentidos.
198
Isso significa dizer que o evento decisivo para a grande guinada na mudança da con-
cepção do mundo, da relação entre os homens, entre o homem e a natureza e entre a contem-
plação e a ação está ligado ao ascenso das Ciências Naturais, especialmente na contribuição
de Galileu que baseia suas descobertas não apenas nos sentidos e nem só na razão, mas na
experimentação. Galileu possibilita que Descartes busque embasar seu pensamento nas des-
cobertas ditadas pelas equações matemáticas
nas quais todas as relações reais são reduzidas a relações lógicas entre símbolos cri-
ados pelo homem. É esta substituição que permite à ciência moderna cumprir a sua
‘tarefa de produzir’ os fenômenos e objetos que deseja observar. E o pressuposto é
que nem Deus nem um mau espírito pode alterar o fato de que dois e dois são qua-
tro.
199
Portanto, é necessário considerar a “experiência fundamental subjacente
200
à dúvida
cartesiana, isto é, a descoberta de que a Terra, contrariamente a toda a experiência sensível
direta, gira em torno do sol.”
201
Não é por acaso o destaque de Arendt à invenção do telescó-
pio como o evento de maior importância no contexto da era moderna. A invenção do telescó-
pio possibilita esta abertura para a afirmação do homem como grande criador das leis cósmi-
cas, distâncias e limites presentes no universo terrestre. Esse é o ponto que configura a abertu-
198
EPF, p. 84 e 85.
199
CH, p. 297. Aqui está em destaque a famosa reductio scientiae ad mathematicam. Segundo Arendt, Descartes
“se convence da realidade e da certeza dentro de um arcabouço de fórmulas matemáticas produzidas [pela pró-
pria mente]”. Nosso acrescento com base no texto. Cf. CH, p. 297.
200
Este ponto é fundamental porque permite compreender a relação e importância das descobertas de Galileu
para a formação do pensamento de Descartes. Quando Descartes tomou conhecimento do julgamento de Galileu
e de sua retratação diante do poder papal ele estremeceu em suas bases e, segundo Arendt, citando fragmento da
Carta de Descartes a Mersenne, de novembro de 1633, ele foi momentaneamente tentado a queimar todos os seus
papéis porque, “se o movimento da Terra é falso, todos os fundamentos de minha filosofia também são falsos”,
afirmou Descartes. Cf. CH, p. 285.
201
Ver EPF, p. 88.
74
ra da época moderna. Guiado pelo uso do telescópio, o homem observa pormenorizadamente
a forma e organização do Universo, “vendo com os olhos do espírito, ouvindo com os olhos
do coração e guiado pela luz interior da razão”
202
, destituindo a constituição dos sentidos co-
mo modelo magno para a recepção à verdade e aquisição do conhecimento, pois, como bem
assevera Descartes, eles estão sujeitos a erros e ilusões. De acordo com Arendt,
não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem - o telescópio - que
realmente mudou a concepção física do mundo; o que os levou ao novo conhecimen-
to não foi a contemplação, nem a observação, nem a especulação, mas a entrada em
cena do homo faber, da atividade de fazer e fabricar. Em outras palavras, o homem
fora enganado somente enquanto acreditava que a realidade e a verdade se revelari-
am aos seus sentidos e à sua razão, bastando para tanto que ele permanecesse fiel ao
que via com os olhos do corpo e da mente.
203
A conseqüência imediata de todo esse processo está, em primeiro lugar, na certeza e
descoberta de que os sentidos, por si só, não conduzem à verdade e que, doravante, o homem
não deve confiar plenamente na sensação e contentar-se somente com a observação. Em se-
gundo lugar, decorrente da “crise dos sentidos”, conquistam espaço as Ciências Naturais, in-
terferindo no modo de aquisição do conhecimento por intermédio da experimentação
204
, atu-
ando na natureza, visando a transformá-la para alcançar o maior progresso possível.
A afirmação da filosofia moderna localiza-se, portanto, mais no curso das descobertas
científicas e na parafernália de instrumentos produzidos e utilizados pelo homo faber que em
qualquer outra filosofia. De tais descobertas, mediadas pela capacidade humana da experi-
mentação, a primeira a sofrer grandes transformações é a natureza, de tal modo que o desen-
volvimento do processo e interferência do homem nas coisas fica destituído de limites. Muda-
se, inclusive, a concepção de natureza. Ela deixa de ser aquele arquétipo planejado e constitu-
ído por Deus, e as suas transformações passam de um curso natural, próprio, originário, sem
202
Ibid., p. 85.
203
CH, p. 287.
204
É digno de nota esclarecer que a experimentação é uma introdução da ciência moderna, diferente da observa-
ção. A este respeito, voltando a Chauí, ela nos diz: “Desde Aristóteles, as Ciências da Natureza desenvolveram-
se graças ao papel conferido às observações e, mais tarde, à observação, isto é, à experimentação (o laboratório
com seus instrumentos tecnológicos de precisão e medida). A experimentação é a decisão do cientista de intervir
no curso de um fenômeno, modificando as condições de seu aparecimento e desenvolvimento, a fim de encontrar
invariantes e constantes que definem o objeto como tal. A experimentação permite ao cientista formular hipóte-
ses sobre o fenômeno. Uma hipótese é uma conjetura racional feita após um grande número de observações e
experimentos; é uma tese que precisa ser confirmada ou verificada por meio de novas observações e experimen-
tos. A intervenção científica sobre os fenômenos se torna cada vez mais acurada, graças à invenção dos objetos
tecnológicos de pesquisa (balanças, termômetros, termostatos, barômetros, aparelhos para produzir vácuo, mi-
croscópios e telescópios, cronômetros, tubos e curvetas, câmaras escuras ou iluminadas com raios especiais,
computadores, etc.).” CHAUÍ, op. cit., p. 263.
75
esforço e sem o olhar de ninguém, a partir do qual as coisas ganham caráter de imortalidade
em si mesmas, para a mão do homem que se torna capaz de gerar novos processos naturais.
Daí a conseqüente inversão entre contemplação e ação que assume para Arendt “talvez a mais
grave conseqüência espiritual das descobertas da era moderna e, ao mesmo tempo, a única
que não podia ser evitada [...], foi a inversão da ordem hierárquica entre a vita contemplativa
e a vita activa.”
205
Desde a queda da pólis, conforme demonstrado no primeiro capítulo deste estudo, a
contemplação assume superioridade nas atividades humanas. Começa com a filosofia política
de Platão, cuja marca destaca-se pela superioridade do filósofo como figura máxima da con-
dução política; estende-se com Aristóteles que, apesar de ter dado importância à vita activa na
sua defesa da pólis como experiência genuína da política, estabelece, no topo das atividades, a
contemplação, destituindo a importância da ação. É levada adiante pelo contexto medieval
que, segundo os cristãos, a melhor forma de vida era aquela livre dos assuntos mundanos, isto
é, das coisas terrenas, defendendo a contemplação como forma de vida mais correta para se
obter a salvação
206
. Essa forma de conceber a vida também perpassa os moldes de organiza-
ção e atuação das descobertas científicas. As Ciências Naturais aristotélica e medieval susten-
tam seus métodos na observação e descrição daquilo que era observado. Predomina, portanto,
um modo de comportamento contemplativo, quieto, inativo e impessoal na descoberta do mi-
lagre do ser. Essa é a atitude própria e mais adequada dos cientistas antigos e medievais. É
uma atitude de encantamento e maravilhamento que, por sua vez, deu origem à própria filoso-
fia. Com o advento da época moderna, a atitude do cientista muda, desencadeando no homem
a insuficiência de ser mero observador da natureza. O homem passa, doravante, a estabelecer
uma mudança radical diante das coisas produzidas.
205
CH, p. 302.
206
Sobre este assunto, recorremos a uma passagem de Tomás de Aquino na Summa Teológica, onde “ressalta a
quietude da alma, e recomenda a vita activa porque ela esgota e, portanto, ‘arrefece as paixões interiores’ e pre-
para o homem para a contemplação.” AQUINO, Tomás. Summa Theológica ii. 2. p. 182. 3. Cf. também CH, p.
24. Noutra passagem, Arendt destaca que: “se o cristianismo, apesar de sua insistência na sacrossantidade da
vida e no dever de se permanecer vivo, jamais desenvolveu uma filosofia positiva do trabalho, isto se deve à
indiscutível prioridade atribuída à vita contemplativa sobre todos os outros tipos de atividade humana. Vita Con-
templativa simpliciter melhor est quam vita activa (‘a vida dedicada à contemplação é simplesmente melhor que
a vida dedicada à ação’) e, quaisquer que fossem os méritos de uma vida ativa, os de uma vida dedicada à con-
templação eram ‘mais efetivos e maiores’.” Cf. CH, p. 331.
76
É curioso notar que o primeiro movimento em direção à ação e interferência dos cien-
tistas na natureza pauta-se pela busca do aperfeiçoamento do conhecimento
207
, sem o propósi-
to de tornar menos pesada a atividade que garante a sobrevivência, bem como fabricar artefa-
tos a serem usados pelos homens, No entanto, a história mostra que o projeto das Ciências
Naturais acaba sendo dominado pelo senso prático das descobertas. A Ciência alcança um
estágio tão alto de inovação que acaba sendo dominada pela tecnologia e esta pelo processo
da industrialização, como bem assevera Marx, em sua obra Manuscritos Econômico-
Filosóficos de 1844
208
, convocando para olhar o lado desumano e explorador presente na for-
ma de organização da indústria e a conseqüente alienação do operário. Na expressão dura, o
207
Para ilustrar esta questão reportamo-nos ao exemplo da criação do relógio, considerando um dos primeiros
instrumentos modernos. A finalidade da invenção do relógio não era a vida prática, mas teórica, visando utiliza-
lo para fins de experimentos com a natureza. No entanto, tão logo foi percebida a sua utilidade prática, o relógio
trouxe mudanças na forma de organização da vida humana. Mas segundo seus inventores, relatado por Arendt
em a CH, isto foi mero acidente. Cf. CH, p. 302.
208
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, no Caderno I, onde trata dos temas sobre Salário, Ganho de
Capital, Renda Fundiária, Trabalho Alienado e Propriedade Privada, Marx apresenta a dramática situação de
exploração suscitada pela introdução das máquinas. Diz: “(...) em primeiro lugar apenas uma parte das operações
uniformemente recorrente caberá às máquinas, a outra parte caberá aos homens. Segundo a natureza das coisas e
segundo experiências concordantes, tal actividade contínua e uniforme é igualmente prejudicial para o espírito
como para o corpo; e assim têm de manifestar-se, então, nesta ligação da maquinaria com a mera divisão do
trabalho entre braços humanos mais numerosos ainda todas as desvantagens desta última. As desvantagens mos-
tram-se, entre outras coisas, na maior mortalidade do operário fabril [XI]. ... Ainda não se tomou ... em conside-
ração esta grande diferença: até que ponto os homens trabalham com máquinas, ou até que ponto os homens
trabalham como máquinas. Cf. p. 23. Nosso grifo. Marx demonstra que as mulheres, crianças e adolescentes
foram os mais explorados, pelo fato de serem mão-de-obra mais barata que os homens. Diz: “Nas fiações ingle-
sas, apenas estão ocupados 158 818 homens e 196 818 mulheres. Nas fábricas de algodão de Lancaster, por cada
100 operários há 103 operárias e, na Escócia, mesmo 209. Nas fábricas de linho inglesas de Leeds contavam-se,
por cada 100 operários masculinos, 147 femininos; em Druden e na costa leste da Escócia, mesmo 280. Nas
fábricas de sede inglesas muitas operárias; nas fábricas de lã, que exigem maior força de trabalho, mais homens.
Também nas fábricas norte-americanas estavam ocupados no ano de 1833, cerca de 18.593 homens e não menos
de 38.927 mulheres. Com as transformações na organização do trabalho coube assim ao sexo feminino uma
esfera mais ampla de atividade de ganha-pão. ... as mulheres levadas a uma posição economicamente mais autô-
noma ... ambos os sexos aproximados um do outro nas suas relações sociais [...]. Nas fiações inglesas movidas a
vapor e água, trabalhavam no ano de 1835: 20.558 crianças entre 8-12 anos; 35.867 entre 12-13, e finalmente
108.208 entre 13-18 anos ... Certamente os ulteriores progressos da mecânica, dado que retiram cada vez mais
das mãos do homem todas as ocupações monótonas, actuam no sentido de uma gradua eliminação desse incon-
veniente. Contudo, no caminho destes mais rápidos progressos está a circunstância de que os capitalistas podem
apropriar as forças das classes inferiores, entrando pela idade infantil, de maneira mais fácil e mais barata para as
usar e gastar em lugar dos recursos da mecânica [...].” (p. 24) Até aqui, apenas uma exposição descritiva das
formas de organização dos trabalhos nas indústrias e que eram as mulheres e crianças que mais sofriam. Mais
adiante, Marx convoca para olharmos mais fundo. Partindo da própria forma de organização do trabalho pelo
capitalismo, Marx destaca com ênfase que “o operário decai em mercadoria e na mais miserável mercadoria, que
a miséria do operário está na relação inversa do poder e da magnitude da sua produção, que o resultado necessá-
rio da concorrência é a acumulação do capital em poucas mãos [...]. O operário torna-se cada vez mais pobre
quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção cresce em volume. [...] o objeto que o trabalho produz,
o seu produto, enfrenta-o como um ser estranho [ein fremds Wesen], como um poder independente do produtor.
O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, se coisificou, ele é a objectivação do trabalho. A
realização do trabalho é a sua objectivação. Essa realização do trabalho aparece na situação nacionaleconômica
como desrealização do operário, a objectivação como perda do objecto e servidão ao objecto, a apropriação
como alienação [Entfremdung], como desapossamento [Entäusserung].” (pp. 60 e 62) Para uma discussão por-
menorizada de Marx a este respeito ver: MARX. Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Tradução
de Maria Antônia Pacheco. Lisboa: Avante, 1993.
77
grande avanço proporcionado pelas descobertas científicas modernas não se revela um bem
isento de males diante das conseqüências sofridas pelos seres humanos. De qualquer modo, o
cerne da discussão é que o caráter puramente teórico, contemplativo, muda completamente e
cede lugar para a ação, que instaurou a noção de senso prático aos artefatos produzidos pelas
mãos do próprio homem. A esse respeito Arendt diz:
Seja como for, a experiência fundamental que existe por trás da inversão de posições
entre a contemplação e a ação foi precisamente que a sede humana de conhecimento
só pôde ser mitigada depois que o homem depositou sua fé no engenho das próprias
mãos. Não que o conhecimento e a verdade já não fossem importantes, mas só podi-
am ser atingidos através da ação, e não da contemplação. Foi um instrumento, o te-
lescópio, obra da mão do homem, que finalmente forçou a natureza ou, melhor, o
universo a revelar seus segredos.
209
Todo esse processo é oriundo das conseqüências da descoberta de Galileu e nela o a-
vanço das Ciências Naturais que acaba gerando, pela ousadia do homo faber, no contexto em
que a tecnologia se torna o braço forte da ciência – séculos XVIII e XIX –, a instauração da
ação desmedida dos homens na sede pela produção ilimitada, própria do caráter da industria-
lização. Essa nova forma de atuação da ciência e técnica, enaltecendo a ação do fazer como
centro da sua atividade, muda a forma do homem se comportar diante do mundo e põe defini-
tivamente em crise a contemplação, cuja atividade, “no sentido original (gregos) de contem-
plar a verdade [...], como ato de contemplar o eidos, a forma eterna e o modelo eterno que
antes procurava imitar, e cuja excelência e beleza sabia agora que só podia arruinar com qual-
quer tentativa de reificação.”
210
Entretanto, por outro lado, Arendt afirma que a presente inversão entre contemplação
e ação, ocasionando a perda definitiva da contemplação, não significa, paulatinamente, a
promoção da ação, de acordo com a profundidade e importância que a contemplação exerce
no passado. A promoção da ação está ligada ao desenvolvimento de obras e artefatos pelas
mãos do homo faber. Pela sua capacidade de conhecer, o próprio homem constrói seus pró-
prios feitos. Mas isso só pode acontecer pela tomada de consciência do próprio homem como
ser capaz de fazer, construir, transformar com o esforço de suas próprias mãos. E, nesse as-
pecto, há que se considerar que tal passo só foi possível graças aos avanços da concepção de
história propagado por Giam Battista Vico e não mérito dos próprios cientistas. Vico, conside-
209
CH, p. 303.
210
CH, p. 304 e 317. Acréscimo nosso.
78
rado um dos pais da moderna consciência histórica pelo fato de concebê-la como criação dos
homens, diferente da natureza que é feita por Deus, diz o seguinte:
[...] ‘Geometrica demonstramus quia facimus; si physica demonstrare possemus, fa-
ceremus’. (‘Podemos demonstrar assuntos matemáticos porque nós mesmos os fa-
zemos; para provar os assuntos físicos, teríamos de fazê-los’.) Vico voltou-se para a
esfera da história apenas por acreditar que ainda é impossível ‘fazer natureza’. Ne-
nhuma consideração ‘humanista’ inspirou seu abandono da natureza, mas unicamen-
te a crença de que a história é ‘feita’ por homens exatamente do mesmo modo como
a natureza é ‘feita’ por Deus; conseqüentemente, a verdade histórica pode ser conhe-
cida por homens, os autores da história, porém a verdade física é reservada ao Faze-
dor do Universo.
211
Os cientistas espertos entendem genuinamente que, da mesma maneira que é possível
“fazer História”, é também possível “fazer natureza”. É atitude comum ouvir dos cientistas o
seguinte:
Sabemos agora que, embora não possamos ‘fazer natureza’ no sentido da criação,
somos inteiramente capazes de iniciar novos processos naturais, e que em certo sen-
tido, portanto, ‘fazemos natureza’, na medida em que ‘fazemos História’. Podemos
fazer no domínio físico-natural aquilo que pensávamos poder fazer apenas no domí-
nio da História. Começamos a agir sobre a natureza como costumávamos agir sobre
a história. Caso se trate de uma questão meramente de processos, tornou-se claro que
o homem é tão capaz de iniciar processos naturais que não teriam sobrevindo sem a
interferência humana como de iniciar algo novo na esfera dos assuntos humanos.
212
Portanto, os maiores “beneficiados” com esta nova noção de história não são propria-
mente os historiadores e filósofos em geral, mas os cientistas que, diante das suas iniciativas
aliadas à fabricação, acabam levando ao agravamento da crise política. Aliás, Arendt é enfáti-
ca em afirmar que esse “grande impacto da noção de história sobre a consciência da época
moderna veio relativamente tarde
213
no terreno filosófico, não antes do último terço do século
XVIII, e chegou com relativa rapidez ao seu clímax na filosofia de Hegel.
O conceito central da metafísica hegeliana é a História [...].”
214
Mais que isso, a noção
de “fazer História” como elemento decisivo para instaurar a ação só veio a lume com Marx.
211
EPF, p. 88.
212
Ibid., p. 89.
213
Em sua obra EPF Arendt afirma o seguinte: “Em qualquer consideração do conceito moderno de História um
dos problemas cruciais é explicar seu súbito aparecimento durante o último terço do século XVIII e o concomi-
tante declínio de interesse no pensamento puramente político. (Deve-se dizer de Vico que foi um pioneiro cuja
influência foi sentida duas gerações após sua morte.) Onde ainda sobrevivia um genuíno interesse em teoria
política, este findou em desespero, como em Tocqueville, ou na confusão da Política com a História, como em
Marx [...] .” Cf. EPF, p. 111.
214
Ibid., p. 101.
79
Tanto Vico quanto Hegel, apesar de terem atribuído importância ao conceito de História, ja-
mais pensaram-no ligado ao princípio da ação, tal como Marx o fez. Vico e Hegel
concebiam a verdade como sendo revelada ao vislumbre contemplativo e retrospec-
tivo do historiador, o qual por ser capaz de ver o processo como um todo, estaria em
oposição de desprezar os ‘desígnios estreitos’ dos homens em ação, concentrando-se
em vez disso nos ‘desígnios superiores’ que se realizam por trás de suas costas (Vi-
co).
215
Marx, ao contrário, quando estabelece a forma de organização e alcance da sociedade
futura acaba transformando os “desígnios superiores” em fins intencionais de ação política,
concebendo, dessa forma, uma noção de história prospectiva, teleológica, rompendo com o
olhar retrospectivo dos historiadores e filósofos
216
dos primórdios da época moderna. Dessa
maneira, o próprio Marx é incapaz de se livrar do grande problema ocasionado pelo avanço
das Ciências Naturais que, amparadas pela via da experimentação e da fabricação, reduzem a
ação ao fazer e ao fabricar a partir da contemplação
217
, não de uma idéia, mas do modelo pre-
sente no processo, conforme se verá a seguir.
3.2 O ascenso do Homo Faber e a conseqüente instrumentalização da política
A ascensão do homo faber decorre, em grande parte, da inversão entre contemplação e
ação, pois a ação assume a condição do fazer, produzir e fabricar artefatos pelas próprias
mãos, enquanto que a contemplação está mais voltada para a atitude de encantamento frente
aos objetos. Essa consideração é importante porque dela resulta que, entre as atividades da
215
Ibid., p. 112. Acréscimo nosso.
216
Apesar de não se referir especificamente ao contexto dos primórdios da época moderna, na décima primeira
tese contra Feuerbach, publicada em A Idelogia Alemã, Marx resume bem a preocupação e qual é a sua posição
frente às reflexões feitas anteriormente. Apresenta o cerne do seu pensamento e qual é o horizonte que ele almeja
chegar. A tese diz: “Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de trans-
formá-lo.” MARX, op.cit., p.103.
217
Sobre este ponto é oportuno destacar que Arendt menciona o ascenso da fabricação e a introdução do conceito
de processo como fatores decisivos para o rompimento com a contemplação segundo o modo defendido pelos
gregos que a concebiam como “ato de contemplar o eidos, a forma eterna e o modelo eterno que antes procurava
imitar, e cuja excelência e beleza sabia agora que só podia arruinar com qualquer tentativa de reificação.” CH p.
317. Para Arendt, este modo de conceber a contemplação mudou quando a fabricação passou “do produto e do
modelo permanente e orientador para o processo de fabricação, afastando-se da questão de ‘o quê’ uma coisa é e
que tipo de coisa dever ser produzida para a questão de ‘como’ e através de que meios ela veio existir e pode ser
reproduzida. Porque isto implicava, ao mesmo tempo, que já não se acreditava que a contemplação pudesse pro-
duzir a verdade, e que havia perdido a sua posição na própria vita activa e, conseqüentemente, no âmbito da
experiência humana comum.” Cf. CH, p. 317.
80
vita activa, aquela que mais se promove, no contexto moderno, a ponto de ocupar o lugar que
antes é da contemplação, é a do homo faber. O início acontece exatamente pelo uso dos ins-
trumentos das ciências naturais na busca de novos conhecimentos e descobertas acerca do
universo. Mas o elemento decisivo é a descoberta de que o próprio homem é capaz de produ-
zir os próprios instrumentos para realizar as observações. Tal descoberta possibilita uma mu-
dança significativa porque, da mesma maneira que o homem é capaz de produzir e criar ins-
trumentos para fins de conhecimento, ele mesmo se dá conta de que é possível construir, fa-
bricar e produzir coisas para o seu próprio uso e estabilidade, tornando sua vida menos difícil.
Refletindo sobre tais transformações, Arendt percebe a grande mudança, talvez a mais
significativa, do “porquê” e “do que” para o “como” as coisas são e devem ser feitas. Isso
implica dizer que
[...] os verdadeiros objetos do conhecimento já não são coisas ou movimentos eter-
nos, mas processos e, portanto, o objeto da ciência já não é a natureza ou o universo,
mas a história - a história de como vieram a existir a natureza, a vida no universo.
[...] Em todos os casos, o processo de evolução, conceito-chave das ciências históri-
cas, tornou-se o conceito central também das ciências físicas. [...] Em lugar do con-
ceito do Ser, encontramos agora o conceito de Processo.
218
A mudança para o “como”, isto é, para o processo destrói as bases do modo de con-
templar as coisas à maneira dos gregos, nos quais se destaca o primado da idéia e do modelo
eterno e tudo o que se faz é, nada mais nada menos, que imitar a idéia. A excelência e a beleza
das coisas estão pautadas exatamente neste aspecto e toda tentativa de transformação que des-
considere a imitação da idéia, acaba arruinando a própria produção. Disso decorre a preocu-
pação no “o quê” e “por que” algo era feito.
Com o ascenso da fabricação, orientada pelo processo, a preocupação volta-se para o
“como” e através de que meios ela vem a existir e, inclusive, se ela pode ser reproduzida. Por-
tanto, não há mais necessidade de perguntar pelo “quê” é a constituição da coisa, pois interes-
sa, unicamente, saber “como” as coisas são e podem vir-a-ser. Não interessa à fabricação agir
sem os processos e modelos que dão forma às coisas fabricadas. O homo faber está centrado
em aproximar os meios e os fins no processo de produção. Nesse particular, a atitude do homo
faber é diferente dos primeiros cientistas da era moderna que utilizam instrumentos com um
fim que está fora de si; e caso resulte em produção de obras e artefatos para uso dos homens
218
Ibid., p. 309 e 310.
81
não passa de mero acaso, pois o centro é alcançar o conhecimento, como se observa em Gali-
leu e no uso que fez do telescópio. O homo faber deposita todo o seu esforço na produção de
coisas para o seu uso e estabilidade e disso decorre todo o interesse em realizar um processo
que estabeleça, de antemão, quais meios e fins necessários para atingir o seu propósito.
Nesse sentido, o que distingue a atitude do homo faber da ação, enquanto atividade da
vita activa, é o fato do primeiro possuir “um início definido e um fim previsível: ela chega a
um fim com seu produto final, que não só sobrevive à atividade de fabricação como daí em
diante tem uma espécie de ‘vida própria’.”
219
É a mão do homem que atua sobre a natureza,
estabelecendo novos processos naturais e voltando-os para fins humanos
220
que, pelo modo de
construção e preservação adquirem permanência no mundo, mudando significativamente o
conceito de imortalidade dos antigos, passando da memória dos grandes feitos ligados às a-
ções humanas, no campo da política, aos feitos no campo da fabricação, alcançando perenida-
de pela durabilidade inerente ao uso que se faz dos objetos.
Os homens passam a ser mortais e suas obras imortais. Além disso, a maneira de orga-
nização da fabricação, isto é, o telos e instrumentalização adquirem maior proporção do espe-
rado, infiltrando-se no espaço da política, tornando-a um mero produto de estratégias e ações
determinadas previamente. “A crença na imortalidade perdeu, por esse facto, a sua força polí-
tica e o problema ‘da política readquiriu a importância grave e decisiva para a existência dos
homens, que perdera desde a antiguidade’.”
221
É diante desse aspecto que é possível compre-
ender que o fim da contemplação e a “vitória” da vita activa não significa avanço para a polí-
219
EPF, p. 91.
220
O grande temor acenado por Arendt diante deste cenário inicial da era moderna, onde os instrumentos da
ciência passariam a dominar os homens, acaba por se confirmar nos séculos posteriores. Arendt nos diz o seguin-
te: “O que nos ocorre em primeiro lugar, naturalmente, é o tremendo aumento de poder humano de destruição, o
fato de que somos capazes de destruir toda a vida orgânica da terra e de que, algum dia, provavelmente seremos
capazes de destruir a própria Terra. No entanto, não menos terrível e não menos difícil de compreender é o novo
poder de criar, o fato de que podemos produzir novos elementos jamais encontrados na natureza, de que somos
capazes não apenas de especular quanto às relações entre massa e energia e quanto mais a secreta identidade
destas duas, mas, de fato, transformar massa em energia ou transformar radiação em matéria. [...] e esperamos
ser capazes num futuro não muito distante, de fazer aquilo que todas as eras passadas viram como o maior, o
mais profundo e o mais sagrado mistério da natureza: criar ou recriar o milagre da vida.” Ver CH p.281. A intro-
dução da clonagem em animais, presenciada no caso específico da ovelha Doly, e, posteriormente, a discussão
em torno da aplicação da clonagem em seres humanos, tem demonstrado a capacidade dos cientistas em criar,
recriar e, inclusive, destruir o milagre da vida, conforme a experiência dos campos de concentração (já mencio-
nado neste estudo) e da bomba atômica. De qualquer modo, já não podemos mais arriscar previsões acerca das
descobertas e inovações, senão que estamos todos rodeados de um mundo sem a estabilidade outrora reivindica-
da pelo homo faber. Sobre esta questão, indicamos a reflexão de XARÃO, op. cit. p. 123 et seq.
221
Cf. COURTINE-DENAMY, op. cit., p. 261. Noutra passagem a mesma autora destaca que a conseqüência da
transformação da história e da natureza em processo rejeita a noção grega de grandeza do acontecimento e a
concepção romana da história como ‘armazém de exemplos’. A noção de processo separou o particular do uni-
versal e insiste exclusivamente na sucessão temporal: ‘Pensar, com Hegel, que a verdade reside e se revela no
próprio processo temporal é característico de toda a consciência histórica moderna’.”
82
tica em si, considerando que ela se rende ao desempenho das tarefas do homo faber que passa,
a partir de então, a assumir o topo das suas atividades internas, ficando em prejuízo a ação e o
labor.
222
O grande problema assinalado por Arendt, nesse contexto, é o de que a forma de orga-
nização da atividade do homo faber, centrada na idéia de meios e fins previsíveis no decurso
do processo, acaba estendendo-se para o campo da política, introduzindo a instrumentalização
como melhor forma de realizá-la. Essa novidade confirma, mais uma vez, que a ação, enquan-
to atividade máxima da vita activa para a realização da política acaba na mais miserável situa-
ção. Diferentemente do homo faber, na ação não há meios e fins previsíveis, e seu modo de
expressão é a certeza de um começo que, diante da condição humana de seres únicos, livres e
plurais, jamais pode estabelecer a determinação do fim, senão que ele se dá num processo de
construção conjunta, integrando as diversas subjetividades em questão.
Essa perda do sentido da ação deve-se, em grande parte, a Marx que instituiu um cará-
ter violento à ação política, ou seja,
ele via o fazer da história em termos da fabricação; o homem histórico para ele era
basicamente homo faber. A fabricação de todas as coisas feitas pelo homem implica
necessariamente alguma vitória que incidirá sobre a coisa que torna a matéria básica
do que foi fabricado. Não se pode fazer uma mesa sem matar uma árvore.
223
No entanto, o problema desse “transplante” da instrumentalização do homo faber para
a política, no contexto moderno e contemporâneo, não é uma atribuição exclusiva de Marx.
Thomas Hobbes também é referido por Arendt nesta questão. De qualquer modo, tanto em
Marx, quanto em Hobbes, é oportuno perguntar: qual é o fundamento que permite conceber
que a política seja pensada de tal maneira? O horizonte político possibilita a realização de
quem? Do Estado? De um modelo de sociedade? Ou será uma preocupação que representa a
centralidade do ser humano enquanto ser que está se preparando e que para construir um es-
paço que vise ao bem de todos? Ou será o meio para conquistar a sua liberdade e para garanti-
la percebe a necessidade do Estado (Hobbes) e/ou do Comunismo (Marx)?
222
Trabalharemos as distinções entre as três atividades da vita activa no terceiro capítulo deste estudo. Por ora,
contentamo-nos em destacar que ela é formada de três atividades: labor, referindo-se a atividade de sobrevivên-
cia, trabalho, referindo-se a atividade do homo faber, e a ação, referindo-se a atividade realizada entre os homens
sem mediação de coisas materiais. Aqui está em questão o ascenso do trabalho (homo faber) enquanto atividade
produtiva. Trataremos a diferenciação entre as atividades da vita activa no terceiro capítulo deste estudo.
223
Cf. DP, p. 62.
83
Hobbes parte da constatação de uma situação de constante medo, insegurança, compe-
tição, desconfiança, ameaça de um contra o outro, própria do estado de natureza, no qual im-
pera o princípio de uma igualdade natural intrínseca a todos os homens. Em sua magna obra –
O Leviatã, diz:
A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito
que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo,
ou de espírito mais vivo do que o outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto
em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerá-
vel para qualquer um possa com base reclamar qualquer benefício a que outro tam-
bém não possa aspirar, tal como ele. Por quanto à força corporal o mais fraco tem
força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-
se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.”
224
Essa forma de organização da sociedade presente no estado de natureza
225
, segundo
Hobbes, demonstra a fragilidade a qual a vida está submetida, tornando-a embrutecida pela
ameaça constante da “guerra de todos contra todos”, asseverada na afirmação “homo homini
lupus”, isto é, “o homem lobo do homem”. Para Francisco Weffort, nesta situação,
todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante – eu não sei o que outro deseja, e
por isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais prudente,
mais razoável. Como ele também não sabe o que quero, também é forçado a supor o
que farei. Dessas suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável pa-
ra cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ata-
que possível: assim a guerra se generaliza entre os homens.
226
No estado de natureza não há nenhuma regra ou parâmetro universal e racional que
possa estabelecer quais direitos e deveres os homens devem usufruir e cumprir, de tal sorte
que cada um pode governar por sua própria razão e para garantir a preservação da sua vida
frente aos ataques dos inimigos pode lançar mão de tudo o que estiver ao seu alcance. A con-
224
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo:
Abril Cultural, 1979, cap. VI, p. 74 [Coleção Os Pensadores].
225
Aqui é oportuno o destaque da diferença que se apresenta entre Hobbes e Aristóteles. Para Hobbes, o homem
é mau por natureza e este estado revela a situação da barbárie humana. “[...] na natureza do homem encontramos
três causas principais da discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.”
HOBBES, op. cit. p.75. Já para Aristóteles, o homem é definido como zoon politikon, como animal social. Em
sua obra Política afirma: “O homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza e não mero
acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (como o sem clã,
sem leis, sem lar de que Homero fala com escárnio, pois ao mesmo tempo ele é ávido de combates), e se poderia
compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão. Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou
outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o
homem é o único entre os animais que tem o dom da fala.” ARISTÓTELES, Política. Tradução de Mario da
Gama Kury. - 3
a
.ed. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, 1253a, p.15. A este respeito, também
pode ser consultada a obra de WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. Maquiavel, Hobbes, Locke,
Montesquieu, Rousseau, o Federalista. Vol. 1. 7ªed. São Paulo: Ática, 1996 (Série Fundamentos, 62).
226
Cf. WEFFORT, op. cit. p.55.
84
seqüência diante de tal situação é que ninguém vive e, segundo Maria Aparecida de Paiva
Montenegro, “nessa potencial situação de ‘guerra de todos contra todos’, é justamente o dese-
jo – suposto num quadro primordial como desejo de conservação de si e, portanto, de medo e
aversão à morte – que vai servir de fundamento para a renúncia ao estado de natureza e passa-
gem para o estado civil.”
227
Como apresentar soluções para tal dilema? Para Hobbes, a solução está na transferên-
cia voluntária que cada indivíduo faz ao Estado, outorgando-lhe o poder supremo, absoluto.
Outras formas poderão ser paliativas, mas não resolutivas, pois é necessário que exista um
Estado forte e armado capaz de impor aos homens o respeito. Nas palavras de Hobbes, “pac-
tos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém
[...]”
228
. Mas essa acepção implica defesa do poder pleno nas mãos do Estado, que passa a ser
instituído pela vontade de uma multidão de homens que concordam e pactuam eleger apenas
um representante máximo, ao qual é dada autorização para deliberar sobre todas as decisões,
em troca da garantia de que serão protegidos e reinará a paz entre os homens. Assim está es-
crito no Leviatã:
227
MONTENEGRO. Maria A. P. Política e desejo. Freud, herdeiro e crítico de Thomas Hobbes. In:
OLIVEIRA, Manfredo et. al. Filosofia Política Contemporânea. Petrópolis, RF: Vozes, 2003, p. 91. O presente
artigo é uma reflexão importantíssima para a discussão da implicação do desejo no trato das questões políticas,
considerando ser um tema ainda pouco explorado neste universo. A autora se propôs demonstrar em que medida
o pensamento antropológico de Freud aproximar-se-ia do projeto político de Hobbes, mesmo sendo tão distante e
tão distinto. Em suas palavras, a autora diz: “Ora, é justamente pela filiação freudiana à tradição empirista, bem
como a uma concepção nominalista, também identificável em Hobbes, que tal aproximação pode ser pensada.
Mediante esse exercício conceitual, poder-se-ia também depreender, da articulação entre desejo e política em
Freud, uma contribuição da psicanálise à temática contemporânea da subjetividade. [...] Em Freud, o desejo
pode, assim como em Hobbes, ser pensado como esforço, uma vez que é o motor que funda a atividade psíquica.
Ademais, para se constituir enquanto tal, o desejo apóia-se inicialmente no atendimento do que Freud
(1895[1995]) denomina de necessidade da vida (lebensbedürfnis), quais sejam, fome, sede, sexualidade – que em
Hobbes é denominado de movimento vital. Tal como neste último, o desejo não está limitado ao plano biológico,
dado que é a mola da atividade voluntária do homem. Há, contudo, uma diferença entre ambas as concepções,
diferença essa que, a meu ver, marca a contribuição propriamente psicanalítica à temática da política relacionada
ao desejo e à noção de subjetividade. Enquanto em Hobbes não se identifica grande importância concedida ao
apetite da fome, sendo para este o poder o objeto de desejo por excelência o que coloca os homens em pé de
igualdade e rivalidade, em Freud o papel da fome é fundamental. [...] o que se mostra indispensável para o en-
tendimento da noção freudiana de desejo é a concepção de uma condição humana de desamparo inicial, a partir
da qual se torna imprescindível a intervenção de um agente auxiliar no atendimento das necessidades da vida,
mais precisamente, a fome e a sexualidade. Ou seja, o desejo humano é constituído numa situação de interação, o
que coloca necessariamente o homem na dependência do outro para tornar-se homem, isto é, ser desejante. [...]
(E no caso de Hobbes), o desejo de poder vai estar igual e necessariamente atrelado a uma relação de amor e
submissão, bem como de ódio e rivalidade, culpa e rancor em relação ao outro, sentimentos característicos do
período em que o animal humano encontra-se em processo de fazer-se homem. Instaura-se, portanto, no desejo,
uma das características mais fundamentais: a ambivalência. [Acréscimo nosso].” Cf. p. 92 a 96 da obra referen-
ciada.
228
HOBBES, op. cit., p. 103.
85
Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta
assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando
de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa
só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Levia-
, ou antes, (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual
devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.
229
Diante dessa citação extraída da obra magna de Hobbes, envereda-se para a reflexão
do ponto crucial no projeto político hobbesiano. A transferência de todo o direito individual
ao Estado, estabelecida através do pacto legal
230
entre o governante e os governados, visa a
ser indissolúvel. No entanto, a condição para tal gera o primeiro e último passo ao mesmo
instante e não resolve o problema do risco da morte entre os homens; pelo contrário, afirma-a,
porém, não a morte física, mas pessoal que constitui a subjetividade dos seres humanos.
Quando os indivíduos pactuam a submissão ao Leviatã, eles renunciam os seus direitos e li-
berdades individuais, na certeza da garantia da ordem social. Dado tal passo, os indivíduos
acabam por se anular e deixam de existir enquanto seres independentes, perdendo, inclusive, a
possibilidade de manifestação da vontade própria, pois abdicam de maneira incondicional e
absoluta de todos os seus direitos, no momento em que os transferem ao Estado, grande Levi-
atã, implementado pelas mãos do Soberano. O poder do Estado passa a ser ilimitado e a ele
cabe dizer se as suas ações estão sendo justas ou não. É o próprio Soberano que julga; seu
poder é absoluto. Note-se que, nesse caso, os homens estão desprovidos de ação e, sem a pos-
sibilidade de manifestação da sua singularidade, tornar-se-ão marionetes, ao modo descrito no
totalitarismo no primeiro capítulo deste estudo. Nesse sentido, Ernst Cassirer afirma que
229
Ibid., p.105 e 106.
230
É interessante notar neste aspecto a diferença entre a forma de organização da política moderna com a antiga.
Na modernidade, o direito fornece as bases para a organização da política. Através de um contrato os indivíduos
transferem seus direitos individuais ao Estado que será o garantidor supremo de todos os direitos, universalmen-
te. Deste modo, funda-se primeiro o direito e dele a política que, por meio do Estado, garantirá a sustentação das
bases fundamentais do direito e o exercício da liberdade aos homens. No modo de organização da política da
antiguidade, primeiro funda-se o corpo político para depois realizar o direito que acontece mediante o exercício
da liberdade e da vida virtuosa. Não há necessidade de um contrato porque na essência da pólis os indivívudos
estavam unidos em comunidade e dela se originava o Estado que era organizado a partir da própria comunidade
de homens em diálogo. Diferentemente do contexto moderno que transforma o Estado numa grande instituição,
no contexto da pólis, o indivíduo, a sociedade e o Estado estavam em constante interação e conseguiam manter
esta estrutura em pé porque a comunidade política era a expressão da comunidade ética. Não havia uma institui-
ção chamada Estado fora da comunidade política e cabia à polis viver segundo as virtudes e a justiça, porque
entre as virtudes, esta era a maior, pois era a única que se dava no nível público, na relação com os outros. A
justiça jamais podia ser pensada em isolamento, mas sempre na relação. À Luz de Aristóteles, Denis afirma que
“a justiça, então, tem a finalidade de estabelecer o meio termo entre as diversas práticas sociais, políticas e eco-
nômicas da pólis. A justiça, neste sentido, é compreendida como igualdade, que garante aos cidadãos o mesmo
tratamento e que lhes fundamenta a cidadania. [...] A justiça é a virtude política por excelência, porque se dá em
relação aos outros. A finalidade (télos) está estreitamente vinculada à polis, pois é somente na comunidade polí-
tica que o cidadão pode ter uma vida boa e feliz. O cidadão é sujeito da polis, mas não é possível concebe-lo sem
as instituições éticas, porque constituem vida real dos homens livres.” Cf. SILVEIRA, op. cit., p. 122 e 124.
86
há, pelo menos, um direito que não se pode abdicar: o direito à personalidade. Ar-
gumentando sobre este princípio, os escritores mais influentes do século XVII rejei-
taram as conclusões de Hobbes. Acusaram o grande lógico de ter cometido uma con-
tradição de termos. Se um homem podia abdicar de sua personalidade, deixaria de
ser um ser moral. Tornar-se-ia uma coisa sem vida – e como podia tal coisa obrigar-
se, como podia fazer uma promessa ou entrar num contrato social? Esse direito fun-
damental, o direito à personalidade, inclui num certo sentido todos os outros. Con-
servar e desenvolver a sua personalidade é um direito universal. Não está sujeito às
fantasias dos indivíduos particulares e não pode por isso transferir-se de um indiví-
duo para outro. O contrato ou acordo é a base legal de todo o poder civil tem, por
conseqüência, os seus limites. Não é um pactum subjctionis, não é um ato de sub-
missão por via do qual um homem possa escravizar-se. Porque tal ato de renúncia
ele cederia o próprio caráter que constitui a sua natureza e essência: perderia a sua
humanidade.
231
Essa discussão de Cassirer é ponto central para a discussão arendtiana das diversas
tentativas de formular novas filosofias políticas no século XVII que, na sua avaliação, procu-
ram introduzir a maneira de organização da fabricação na política. Toda a forma de organiza-
ção da relação entre o Estado e os homens volta-se para a tentativa de aplicação das regras
matemáticas de Galileu à política. Para Cassirer, Hobbes,
desde o início da sua filosofia, tinha a grande ambição de criar uma teoria do corpo
político igual à teoria de Galileu dos corpos físicos – igual em claridade, em método
científico e em certeza. Na introdução à sua obra De fure belli et pacis, Hogo Groti-
us exprimia a mesma convicção. De acordo com ele, não é, de maneira alguma, im-
possível encontrar uma “matemática da política”. A vida social do homem não é
uma simples massa de fatos incoerentes e desordenados. Baseia-se em juízos que
possuem a mesma validade objetiva e são capazes da mesma firme demonstração
que qualquer proposição matemática. Pois não dependem de observações empíricas
acidentais; tem o caráter de verdades universais e eternas.
232
A reflexão de Cassirer vai ao encontro daquilo que se busca aprofundar pelo viés a-
rendtiano. Na A Condição Humana, Arendt destaca que a forma de estabelecimento do Estado
hobbesiano segue as linhas da determinação prévia pela mão do Soberano que calcula e proje-
ta as ações semelhantes no processo de fabricação. No dizer de Arendt, Hobbes procura
[...] inventar meios e instrumentos para a ‘fabricação de um animal artificial ... o
Commonwealth ou o Estado’. O estabelecimento do Commonwealth - a criação hu-
mana de ‘um homem artificial’- equivale à construção de um ‘autômato (uma má-
quina) que (se) move por meio de cordas e rodas, como um relógio. Em outras pala-
vras, o processo que, como vimos, invadira as ciências naturais através da experi-
mentação, da tentativa de imitar, em condições artificiais, o processo de ‘fabricação’
mediante o qual as coisas naturais passaram a existir, serve e é ainda mais adequado
como princípio da ação na esfera dos negócios humanos. Pois aqui os processos da
vida interior, encontrados nas paixões através da introspecção, podem tornar-se cri-
térios e normas para a criação da ‘vida automática’ daquele ‘homem artificial’ que é
‘o grande Leviatã’.”
233
231
CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Códex, 2003, p. 208 e 209.
232
Ibid., p. 198 e 199.
233
CH, p. 312 e 313.
87
A tentativa de Hobbes, nesse “transplante” da atividade da fabricação para a filosofia
política, decorre do louvor à capacidade humana de criação e realização de inúmeras desco-
bertas que o homem fez na era moderna. O motivo principal está ligado à incapacidade da
razão humana de lidar com os problemas inerentes à política, apesar de terem sido apresenta-
das diversas formas
234
para solucionar o problema dos conflitos entre os homens, entre o ho-
mem e a sociedade, entre o homem e a sua sobrevivência e seus direitos, enfim, entre o ho-
mem e a política. Hobbes pretende resolver os conflitos políticos do seu tempo a partir da
introdução de “novos conceitos das atividades de fabricar e de prever na filosofia política –
ou melhor, sua tentativa de aplicar as recém-descobertas qualidades da atividade da fabricação
à esfera dos negócios humanos.”
235
Essa forma de organização proporciona o pleno controle
das ações humanas e o pleno equilíbrio entre a razão e a paixão. Os homens passam a se com-
portar como máquinas, respondendo de maneira incondicionada os comandos dados pelo
grande controlador, neste caso, o Estado – o Grande Leviatã.
Sob os olhos do Estado, os indivíduos devem agir de acordo com suas regras e meios
estabelecidos para atingir os fins previstos. A trajetória pela qual os indivíduos devem seguir
já está traçada previamente e cabe a eles cumprir regularmente tais “decisões”. Essa é a me-
lhor forma para garantir o fim dos conflitos entre os homens e possibilitar a realização dos
negócios humanos no espaço comum, civil, onde todos se relacionam. Os homens, por si só,
não conseguem alcançar este estágio de maturidade. Eles dependem do domínio do Estado
para serem livres. Portanto, é necessário que se tenha alguém para governar e dizer quais ca-
minhos seguir, e alguém que seja governado e esteja pronto para atender as determinações do
primado universal presente no Estado.
234
Referimo-nos às propostas políticas apresentadas por Hobbes (séc. XVII), Rousseau (séc. XVIII), e Locke
(final séc. XVII e início séc. XVIII). Hobbes parte do Estado de Natureza, lugar onde os homens vivem em situ-
ação de constantes conflitos e guerras, predominando a situação da guerra de todos contra todos. Na afirmação:
homo homini lupus = “o homem lobo do homem”, Hobbes apresenta a proposta do Contrato Social como alter-
nativa possível, por meio do qual funda a Soberania como meio de garantia da realização da política. O Soberano
assume o papel do Estado; Rousseau diferentemente de Hobbes, concebe o Estado de Natureza como o lugar do
“bom selvagem inocente”, onde reina a benevolência e harmonia entre os homens em si e com a natureza, mas
acaba quando alguém faz uma cerca ao redor de um terreno e instaura a posse dizendo: “é meu”. Daí em diante
as guerras e ameaças poderão ser uma constante. Para resolver este conflito, Rousseau instaura a necessidade do
Pacto Social que pela vontade geral se tornará o instrumento garantidor do fim dos conflitos e ameaças que a
sociedade está suscetível. O Pacto se concretiza como corpo no Estado; Por fim, Locke entende que os homens
precisam garantir o direito da propriedade privada para poderem garantir a realização do direito à vida, à liber-
dade e aos bens necessários à manutenção de ambas. Diferentemente de Hobbes e Rousseau que aplicavam a
garantia do direito pela instituição do Estado, Locke advoga para o direito natural da propriedade privada, ca-
bendo ao Estado, instituído mediante Contrato Social, a finalidade de garantir este direito. Para maior aprofun-
damento, indicamos CHAUI, op. cit., p. 399 et seq. e WEFFORT, op. cit.
235
CH, p. 313.
88
No caso de Marx, conforme acima referido, diferentemente de Vico e Hegel e, em
certo aspecto, do próprio Hobbes
236
, ele procura mostrar a importância da ação enquanto no-
ção do “fazer história” no processo de construção e realização da política, buscando combinar
“sua noção de História com as filosofias políticas teleológicas das primeiras etapas da época
moderna”
237
, visando a tornar os modelos presentes nos processos em fins intencionais de
ação política. Daí que, segundo Arendt,
236
Na nossa avaliação é importante destacar que há um elemento comum entre Marx e Hobbes que diz respeito
ao processo de formulação de uma filosofia política com base no processo da fabricação, onde configura a mol-
dagem da construção de uma sociedade determinada pelos meios e fins pré-estabecidos. Todavia há que ficar
claro que o ponto de partida e o fim entre um e outro é muito diferente, com exceção do processo. Marx parte da
situação de miserabilidade e alienação do operário diante do poder do capitalista que determina as regras aplica-
das ao trabalho do operário. Entende que o passo fundamental para solucionar este problema é acabar com a
propriedade privada e implantar o comunismo, entendido como “supressão positiva da propriedade privada (en-
quanto auto-alienação humana) e por isso como apropriação real da essência humana pelo e para o homem; por
isso como regresso completo, consciente e advindo dentro de toda a riqueza do desenvolvimento até agora, do
homem a si próprio como um homem social, i. é, humano. Este comunismo é, como naturalismo consumado =
humanismo, como humanismo consumado = naturalismo, ele é a verdadeira resolução do conflito do homem
com a natureza e com o homem, a verdadeira resolução da luta entre existência e essência, entre objectivação e
autoconfirmação, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e gênero. Ele é o enigma resolvido da história e
sabe-se como essa solução.” MARX, op. cit., p. 92. Marx, diferentemente de Hobbes, não estabelece uma forma
de governabilidade que limite e torne os homens sujeitos às determinações do poder absoluto do Estado. Aliás,
na sociedade futura de Marx não haveria Estado, nem trabalho e muito menos classes. No entanto, para Arendt,
os hobbies ocupariam todo o tempo dos homens socializados e a liberdade estaria vinculada ao suprimento da
necessidade e não ao exercício da cidadania, conforme já demonstramos no primeiro capítulo deste estudo.
237
EPF, p. 112. Este ponto precisa ser esclarecido, pois há elementos anteriores ao pensamento de Marx que
merecem destaque. Diante disso, duas considerações. A primeira visa demonstrar que a introdução da “boa natu-
reza oprimida, corrompida”, diante das formas de expressão e organização da sociedade que servia para desnatu-
ralizar os indivíduos, largamente discutidos por Rousseau, moldou uma nova forma de expressão da política. Na
reflexão de Virgínia Fontes: “Essa contradição inaugura possibilidades inéditas para a ação política, pois a noção
de ‘natureza oprimida’ por uma ordem social injusta conferia dignidade ao descontentamento social, enquanto
sua possibilidade permanente de aperfeiçoamento abria campo ilimitado para a ação política. Depois de Rousse-
au não haveria mais filosofia política como tal. A idéia da natureza do homem esgotara-se. Dois outros critérios
assumiram seu lugar: história e liberdade. Ulteriormente, todas as teorias políticas seriam ‘filosofias da histó-
ria’.” Continuando na esteira da reflexão estabelecida pela Virginia Fontes, duas experiências concretas essenci-
ais é que vão demonstrar a “questão social”, e nela, a história, como o grande problema a ser enfrentado pela
política. Uma é a independência dos Estados Unidos e outra da Revolução Francesa. Nesta última, diz: “eviden-
ciava, tanto entre intelectuais quanto entre os segmentos populares, a existência de características próprias à
sociedade, que não se confundiam com os destinos e as opções individuais. Essa percepção, cuja cristalização
mostrou-se longa e difícil, transparecerá também na Economia Política (sob a forma da ‘tradição’) e em algumas
variantes da filosofia.” FONTES, Virgínia. O Manifesto Comunista e o Pensamento Histórico. In: COUTINHO,
Carlos Nelson et. al. O Manifesto Comunista 150 anos depois: Karl Marx, Friedrich Engels. Daniel Aarão Reis
Filho (organizador). RJ/SP: Contraponto/Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 157 e 158. A discussão pontual
sobre isso é que após a revolução francesa o sentimento de tarefa não cumprida, realizada pelas conquistas soci-
ais, assomava-se à insatisfação de muitos segmentos sociais que reivindicavam por melhores condições diante do
cenário de exploração no terreno econômico que apostava na industrialização como meio para construir riquezas,
apostando no eixo central da produção, do trabalho e dos trabalhadores. A presente situação, fez emergir a dis-
cussão em torno da questão social, encarada por Marx como um ponto a ser refletido teoricamente e enfrentado
historicamente, como bem atestara em suas obras da juventude. A forma como a vida social se apresentava e as
reais condições de dominação da classe capitalista, na reflexão de Marx, clamava por uma nova transformação.
Desta questão, surge a grande provocação política, registrada no início do Manifesto Comunista: “Um espectro
ronda a Europa - o espectro do comunismo.” MARX, K. e ENGELS, F. O Manifesto Comunista. 9ª ed., São
Paulo: Global, 1988, p. 75. Daí que o enfrentamento entre burgueses e proletários tenderão a se acirrar e a refle-
xão histórica é o ponto que permite explicitar a dinâmica social central e todo o seu percurso.
89
o ponto essencial é que a Filosofia Política de Marx não se baseava sobre uma análi-
se de homens em ação, mas, ao contrário, na preocupação hegeliana com a História.
Foi o historiador e filósofo quem se politizou. Ao mesmo tempo, a antiga identifica-
ção da ação com o fazer e o fabricar como que complementada e aperfeiçoada atra-
vés da identificação da fixação contemplativa do historiador com a contemplação do
modelo (eidos ou “forma” do qual Platão derivou suas “idéias”) que guia o artesão e
precede todo fazer.
238
A aproximação marxiana à concepção de história apresentada por Hegel implica a
aplicação da noção de processo no desenvolvimento das ações humanas, ignorando a peculia-
ridade da atividade da ação, enquanto movimento que estipula a falência de processos com
terminologia articulada e fins previamente determinados, pois a ação envolve a constante a-
bertura para o iniciamento, novidade e imprevisibilidade, próprios da condição humana de
singularidade dos homens.
A maneira hegeliana de conceber a história permite visualizá-la como um processo
que se dá em sua totalidade, sem negar as situações imprevisíveis dos fatos e eventos, mas
transformando-os em parte da própria história. A novidade está no homem que olha para o seu
passado e consegue construir uma certa cadência automática aos fatos e eventos que, por sua
vez, acaba eliminando o caráter de imprevisibilidade. Acontece a absorção dos fatos e eventos
pelo homem que parece determinar tudo como sendo parte do processo biológico. Entretanto,
segundo Arendt,
[...] em retrospecto – isto é, em perspectiva histórica – , toda seqüência de eventos
aparece como se não pudesse ter acontecido de outra forma, mas isso é uma ilusão
de ótica, ou melhor, existencial: nada poderia jamais acontecer se a realidade não
matasse, por definição, todas as demais potencialidades inerentes a uma dada situa-
ção.
239
Destarte, a leitura que se faz diante de determinados casos de civilizações que parece-
ram findar-se em modos petrificados e/ou arruinados. O resultado desta leitura causa proble-
ma à liberdade, enquanto atividade de começar, ao modo da ação, isto é, “que anima e inspira
todas as atividades humanas e que constitui a fonte oculta de todas as coisas grandes e belas.
Mas enquanto essa fonte permanece oculta, a liberdade não é uma realidade tangível e concre-
ta; isto é, não política.”
240
238
EPF, p.112 e 113.
239
Ibid., p. 301.
240
Ibid., p. 217.
90
O presente cenário leva-nos a discutir sobre a fusão do conceito de história ao conceito
de natureza que, diante do avanço da era moderna, acaba sendo engolida pela noção de pro-
cesso, ao modo do homo faber, conforme demonstrado anteriormente. Daí que a história passa
a ser considerada como resultado contínuo de ações sem ruptura, quando uma coisa vai sendo
ligada a outra e a outra em outra e assim segue o fio da história. Sob o olhar do contexto mo-
derno isso demonstra um grande passo dado pelo homem.
Na época moderna a História emergiu como algo que jamais fora antes. Ela não mais
compôs-se dos feitos e sofrimentos dos homens, e não contou mais a estória de e-
ventos que afetaram a vida dos homens; tornou-se um processo feito pelo homem, o
único processo global cuja existência se deveu exclusivamente à raça humana.
241
Este passo dado pelo homem implica avanço da concepção de história e transforma
significativamente o modo de olhar tanto para o passado quanto para o futuro. Daí o seu limi-
te. Ao olhar para o passado, o historiador não vibra mais com os grandes feitos imortais dos
homens pelas suas ações de grandeza, no campo da ética e da política. A noção de processo
infiltra-se nas relações humanas de tal forma que para Cláudio Boeira Garcia,
a hipótese suposta pela ação coerente, por mais louca que seja, pode produzir fatos
irrefutáveis. Ou seja, o axioma do qual parte a dedução não precisa ser uma verdade
auto-evidente nem se harmonizar com os dados do mundo objetivo no momento em
que a ação começa. O processo da ação, se coerente, cria um mundo no qual as hipó-
teses se tornam automáticas e auto-evidentes. A arbitrariedade deste tipo de ação,
mais óbvia no domínio político, vale, também, para a história passada, pois o histo-
riador, ao contemplar retrospectivamente, o processo histórico, habitua-se de tal mo-
do a descobrir um significado ‘objetivo’, independente das metas dos atores, que é
propenso a menosprezar o que de fato aconteceu. O pensar em termos de processos e
a convicção de que só se conhece aquilo que se faz conduzem à noção de que feitos
e eventos registrados da história deixam de fazer sentido se desligados de um pro-
cesso universal em que supostamente se embasam.
242
Essa questão foi amplamente discutida por Arendt e, em primeiro lugar, merece desta-
que a sua posição de não aceitação do conceito de história enquanto expressão organizada e
determinada pelo primado da causalidade. Em seu artigo de 1954, Compreensão e Política,
Arendt critica a aplicação de causalidade com respeito à história, considerando que nela se
perde a noção dos eventos como introdução e começo que se desenvolvem ao longo da histó-
ria. Nesse sentido, afirma:
241
Ibid., p. 89.
242
Consultar GARCIA, Cláudio Boeira. Arendt: acontecimento, compreensão e política. In: Fragmentos da
Cultura, Goiânia: Editora da UCG, v. 13 Especial, p. 185-200, 2003.
91
A causalidade é, entretanto uma categoria totalmente estranha e falseadora no que
diz respeito às ciências históricas. Não só é verdade que o real significado de todo
evento transcende qualquer número de causas passadas que possamos atribuir a ele
(basta pensar na disparidade grotesca entre ‘causa’ e ‘efeito’ em um acontecimento
como a Primeira Grande Guerra), mas também que o próprio passado só vem a ser
com o próprio acontecimento. Somente quando algo irrevogável aconteceu é que
podemos retraçar sua história. O acontecimento ilumina o próprio passado; jamais
pode ser deduzido dele.
243
O elemento fundamental da discussão arendtiana em torno do conceito de história gira
nesta dialética de começo-fim que vai gerando novos começos e sempre que ocorre um gran-
de evento, digno de ser contado em forma de estórias, a história vai ganhando contornos e
ampliando a necessidade da capacidade da memória funcionar, pois, além de guardar os fatos
acontecidos em determinada época, é desafiada a compreender o evento que se inicia com o
fim do anterior. Nas palavras de Arendt: “tratamos esse evento como um começo”
244
. Preci-
samente aqui se insere o problema de Marx
245
. No entanto, a lógica aplicada por Marx não é
só em relação ao passado. Na obra, A Ideologia Alemã, Marx apresenta “os diversos estágios
de desenvolvimento da divisão do trabalho e outras tantas formas diferentes da propriedade,
[...] as relações dos indivíduos entre si no tocante à matéria, aos instrumentos e aos próprios
produtos”
246
, ao mesmo tempo em que reflete sobre o futuro, a partir da abordagem do pro-
cesso de realização da emancipação presente no comunismo. É sobre esta questão do futuro
que o estudo se deterá.
Duas passagens apresentadas por Marx são fundamentais para esta reflexão. Uma, na
obra, Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, e outra, no Manifesto do Partido Comu-
nista, ambas referenciadas neste estudo.
Nos Manuscritos Eonômico-Filosóficos de 1844, Marx e Engels asseveram que o co-
munismo seria o futuro da história. Nas suas palavras:
243
DP, p. 49.
244
Ibid., p. 50.
245
É claro que nem todas as posições a respeito vão na mesma direção que a visão apresentada por Arendt. Re-
corremos, unicamente, a uma passagem de Virgina Fontes em seu artigo “O manifesto comunista e o pensamen-
to histórico”, onde diz: “As contribuições de Marx e Engels não se limitam à construção de conceitos gerais e de
categorias operacionais, diretamente aplicáveis. Ao pensarem a história como processo, inauguram a possibilida-
de de um crescimento extraordinário, pois não há uma referência fechada em si mesma, que impeça a construção
de novas categorias e novos conceitos. Longe de uma visão historicista, que tudo relativiza, instauram uma dialé-
tica entre processo e verdade, presente e passado, pensar e agir.” FONTES, op. cit. p. 167 e 168.
246
Consultar MARX/ENGELS, op.cit., p.12 et. seq.
92
[...] o movimento da história, quer como seu (do comunismo) acto de geração real -
o acto do nascimento da sua existência empírica - quer também para a sua consciên-
cia pensante é o movimento sabido e concebido do seu devir. [...] O comunismo é a
posição como negação da negação, por isso o momento real, necessário para o pró-
ximo desenvolvimento histórico da emancipação e recuperação humanas. O comu-
nismo é a figura necessária e princípio enérgico do futuro próximo, mas o comunis-
mo não é, como tal, o objetivo do desenvolvimento humano - a figura da sociedade
humana.
247
Na obra Manifesto do Partido Comunista, escrita em conjunto com Engels, Marx tece
sua análise da forma de organização do sistema capitalista, antevendo a queda da burguesia e
a vitória do proletariado rumo à construção da sociedade futura. Diz o seguinte:
Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba so-
bre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se re-
conduzida a um estado de barbárie momentânea; [...] O sistema burguês tornou-se
demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. [...] As armas que a
burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burgue-
sia. A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe trarão a morte; produ-
ziu também os homens que manejarão essas armas - os operários modernos, os pro-
letários. [...] O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento. Logo que
nasce começa sua luta contra a burguesia. A princípio, a luta é assumida por operá-
rios isolados; mais tarde, por operários de uma mesma fábrica; finalmente, por ope-
rários do mesmo ramo de indústria, de uma mesma localidade, contra o burguês que
o explora diretamente. Não se limitam a atacar as relações burguesas de produção,
atacam os instrumentos de produção, destroem as mercadorias estrangeiras que lhes
fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e esforçam-se para
reconquistar a desaparecida posição do artesão da Idade Média. [...] De todas as
classes que hoje se defrontam com a burguesia, só o proletariado é uma classe ver-
dadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desen-
volvimento da grande indústria; o proletariado, ao contrário, é seu produto mais au-
têntico. [...] Antes de mais nada, a burguesia produz seus próprios coveiros. Sua
queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.
248
Em ambas passagens e obras, os autores afirmam um modelo de sociedade para o futu-
ro – o comunismo, e constatam a queda da burguesia diante do levante do proletariado. Essa
maneira comunista de conceber a história não é fruto do acaso ou mero fatalismo, ou por estar
determinado, mas por fazer de um processo histórico-dialético, de um vir-a-ser. O comunismo
não é o futuro próximo, e o proletariado não é a nova classe, porque simplesmente assim
de ser. Marx tem plena consciência de que os homens podem controlar a história e serem su-
jeitos da transformação política, econômica e social.
Para Arendt, não teria problema se Marx tivesse se contentado em afirmar que o ho-
mem é capaz de transformar as formas de organizações políticas, econômicas e sociais, pre-
247
MARX, op.cit., p. 92 e 104.
248
MARX/ENGELS, op. cit. p. 81 a 88.
93
sentes na sociedade, como decurso da própria ação dos seres humanos, isto é, como seres em
constante processo de transformação e capacidade de criar novas iniciativas e projetos, ineren-
tes à sua própria condição. Todavia, ao antever e planejar ações para a instauração da socie-
dade futura, Marx reduz a política a um único fim, tornando-a instrumental. E nisso está o seu
problema. Em outras palavras, se Marx tivesse considerado a situação de constante desumani-
zação dos operários nos trabalho como um apelo à reflexão sobre a importância da subjetivi-
dade e realização do ser humano no seu que-fazer humano e, além disso, instigado para uma
transformação política sem determinar um topos e um modelo de sua realização plena, seu
mérito estava assegurado. A questão é que Marx vai além e propõe uma alternativa política
que vise a recuperar a essência humana e realização da política nos moldes da sociedade co-
munista, instituindo, deste modo, um único fim à política.
Para alcançar a efetivação da sociedade futura, Marx estabelece uma projeção na qual
estão definidos todos os passos do percurso previamente. Considerando a situação de aliena-
ção dos operários, conforme demonstrado acima, em uma passagem da obra Manuscritos E-
conômico-Filosóficos de 1844, e que ela se efetiva pela existência da propriedade privada que
estabelece as condições da alienação, Marx projeta os passos necessários para extinguir a pro-
priedade privada e instaurar o comunismo. De que forma isso é possível? Genericamente
249
,
destaca-se que esse passo será dado mediante a tomada de consciência dos operários da sua
condição de alienação e desrealização no trabalho e pela sua organização prática enquanto
classe que luta, mesmo que violentamente
250
, para implantar o comunismo. Desse modo, tem-
se o projeto político delineado e a ação assume os moldes da fabricação, tendo um modelo
pelo qual deve guiar-se até alcançar o fim proposto, o produto final, cuja conseqüência é vista
por Arendt como fim da história.
Na reflexão de Arendt, o perigo da iniciativa marxiana não está tanto em visar a esta-
belecer na terra um paraíso que em outros contextos era parte do reino futuro e da contempla-
249
Para uma análise pormenorizada, remetemos às obras de Marx referenciadas neste estudo.
250
No Manifesto do Partido Comunista Marx diz: “A luta do proletariado contra a burguesia, embora, na sua
essência, não seja uma luta nacional, toma, contudo, essa forma nos primeiros tempos. É natural que o proletari-
ado de cada país, antes de tudo, liquidar sua própria burguesia. Esboçando em linhas gerais as fases do desenvol-
vimento proletário, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que se alastra na sociedade
atual, até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação
pela derrubada violenta da burguesia. [...] Os comunistas não se rebaixam a dissimular suas opiniões e fins. De-
claram abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social
existente. Que as classes dominantes tremam diante da idéia da revolução comunista!” MARX, op.cit., p. 87 e
109.
94
ção de tal modelo. Aliás, é impossível tirar esta dimensão de horizonte nos seres humanos.
Pensar num mundo diferente e melhor daquele em que se vive é parte da condição de ser de-
sejante e, sobretudo, da esperança que permeia o olhar das pessoas para um futuro. Faz bem
Arendt ao destacar essa idéia, pois esclarece que não se trata de não pensar em novas e melho-
res alternativas para a realização da política. Com isso, ela se isenta também da idéia de ser
concebida como mera reacionária, “romântica” e despreocupada no levantamento de soluções
às situações contextuais que causam a fragilidade e desrealização do ser humano. Mas muito
mais que olhar para o homem em si, ela nos desafia a olhar para o mundo, pois, na sua avalia-
ção, o grande problema é a alienação do mundo por conta do exagerado egocentrismo e con-
sumismo que cega os homens diante do mundo. De qualquer modo, voltando a Marx, destaca-
se que o seu problema está no seguinte:
O perigo de transformar os ‘desígnios superiores’ desconhecidos e incognoscíveis
em intenções planejadas e voluntárias estava em se transformarem o sentido e a ple-
nitude de sentido em fins, o que aconteceu quando Marx tomou o significado hegeli-
ano de toda história, o progressivo desdobramento e realização da idéia de liberdade,
como sendo um fim da ação humana, e quando, além disso, em conformidade com a
tradição, considerou esse ‘fim’ último como o produto final de um processo de fa-
bricação. Contudo, nem a liberdade nem qualquer outro significado podem ser ja-
mais o produto de uma atividade humana no sentido de que a mesa é, evidentemen-
te, o produto final da atividade do carpinteiro.
251
Na análise de Arendt, Marx acaba confundindo política e história, concebendo a pri-
meira como desdobramento da segunda, acreditando que os homens, eles mesmos, podem
assumir o controle da história através de ações planejadas, demonstrando conhecimento do
seu sentido último. No entanto, desse modo, Marx acaba se esquecendo de estabelecer uma
distinção entre sentido, meios, fins, objetivo e história. O sentido é o elemento fundamental
das ações humanas, mas ele não pode ser nunca o desígnio ou o fim da ação. O sentido acon-
tece no momento em que as coisas estão feitas, isso nelas mesmas. Ele surge das realizações
humanas, quando as ações atingem o seu fim, que significam a realização do objetivo, o qual
só aparece quando a atividade que o produziu chegou ao seu fim. Mas para desenvolver e al-
cançar o formato e realização daquilo que se quer fazer, necessita-se de metas que auxiliem a
orientação dos meios que devem ser avaliados no fim de tudo aquilo que foi feito. O que não
pode acontecer é transformar o sentido em meras intenções e meios para se chegar ao fim que
se quer, confundindo-o com metas, meios e objetivos
252
. A impressão é
251
EPF, p.113.
252
Voltaremos a estas diferenciações no terceiro capítulo deste estudo quando tratarmos do tema dos meios e
fins na política.
95
[...] como se os homens fossem cegados para distinções fundamentais tais como en-
tre sentido e fim, geral e o particular, ou, gramaticalmente falando, entre ‘por causa
de ...’ (‘for the sake of ...’) e ‘a fim de ...’ (‘in order to ...’) (como se o carpinteiro,
por exemplo, esquecesse que somente seus atos particulares ao fazer uma mesa são
realizados ‘a fim de’, mas que sua vida total como carpinteiro é governada por algo
inteiramente diverso, ou seja, uma noção abrangente ‘por causa da’ qual, antes de
mais nada, se tornou carpinteiro. E, no momento que tais distinções são esquecidas e
os sentidos são degradados em fins, segue-se que os próprios fins não mais são
compreendidos, de modo que, finalmente, todos os fins são degradados e se tornam
meios.
253
O que Arendt propõe é que na atividade de produção de determinados objetos, os ho-
mens tenham capacidade para olhar além deles e organizem suas vidas de modo a dar sentido
para cada momento em que está empenhado na tarefa de produção. Dessa maneira, o sentido
presente na sua tarefa será outro que não aquele que só olha para os fins e somente neles o
sentido e, mais, a justificação de todos os meios empreendidos no seu trabalho. Com essa re-
flexão, Arendt convoca para que nos meios também se pense no sentido, afinal é neles em que
os homens depositam grande parte de suas vidas. Cada meio, na verdade, deve ser considera-
do com um fim em si que dá sentido para construir a história sem um único fim, mas feita de
diversos fins, dignos de memória e expressão da realização naquilo que se faz.
Para Sylvie Courtine-Denamy, “Marx é, no entanto, o único pensador a ter compreen-
dido que, desde que a história seja assimilada a um processo de fabrico, deve, necessariamen-
te, ter um fim, terminar-se”.
254
No entanto, uma tal concepção da história concebida à luz dos
moldes da fabricação, para André Duarte, “traz para o domínio da ação humana a violência
que lhe é inerente, bem como a dissolução do sentido dos atos e palavras através da sua trans-
formação em simples meios para o alcance de um fim, e assim sucessivamente, deixando de
ter valor por si mesmo.”
255
E como bem assevera Cláudio Boeira Garcia,
para Arendt, a introdução da violência na esfera da política indica a eliminação do
(no) discurso e da ação no (do) campo da constituição do poder, o que implica em
transformar a política em meio para a realização de fins que estão além dos limites
desta atividade. Arendt insiste que a violência - condição da fabricação, não da ação
- sempre ocupou um lugar importante não só no pensamento da tradição, mas tam-
bém ‘nos planos políticos baseados na interpretação da ação como fabricação mes-
mo que até a era moderna a violência não fosse glorificada e precisasse de um fim
que a justificasse e limitasse.
256
253
EPF, p.114.
254
COURTINE-DENAMY, op.cit., p. 262.
255
DUARTE, op. cit. p. 118.
256
GARCIA, op.cit.. p. 194. A ênfase é resultado de acréscimo que fizemos no texto do autor que ao invés de
escrever do discurso..., havia colocado no...; e, ao invés de no campo..., havia colocado do campo... . A preposi-
96
O sentido da política implica extrapolar essa dimensão dos resultados planejados, cujo
processo representa cenas pré-concebidas, e os sujeitos passam da condição de cidadãos a
atores que encenam ações, apresentando papéis que não seus próprios. Mas o ponto inquietan-
te é que os fins, na maioria das vezes, são considerados nobres e, diante disso, o que fazer? O
próprio Marx, quando refletia a emancipação da situação da alienação e exploração do operá-
rio, caracteriza-se pelo seu lado humanista, mas, para Arendt, se enfraquece pelo fato de insis-
tir no caráter violento da ação política e na concepção do sujeito histórico aos moldes da fa-
bricação, que dá margem para justificadas ações políticas do tipo “ninguém pode fazer uma
mesa sem matar uma árvore”, ou, os fins justificam os meios. Disso decorrerá a legitimação
de muitos elementos de dominação na política e, o pior, quando os meios passam a ser ilegí-
timos, os próprios fins estarão comprometidos, sem possibilidade de memória, pois são com-
prometedores e, muitas vezes, trágicos, apesar de necessitarem de extremo sigilo.
O problema maior de toda essa forma de concepção da política aos moldes da fabrica-
ção está exatamente nesta desligitimação do passado que diante dos meios para se chegar a
determinados fins, deve cair no esquecimento. E Arendt destaca com muita propriedade o
significado disso, dizendo: “este processo, todavia, é incapaz de garantir ao homem qualquer
espécie de imortalidade, porque cancela e destitui de importância o que quer que tenha vindo
antes”
257
, enfraquecendo e tirando o sentido das ações particulares que acabam se dissolvendo
em simples “meios cujo sentido termina no momento em que o produto final é acabado: even-
tos, feitos e sofrimentos isolados não possuem mais sentido do que o martelo e pregos em
relação à mesa concluída.”
258
De qualquer modo, o transplante da fabricação para a política muda significativamente
a sua forma de realização, especialmente na condução da governabilidade e nos negócios hu-
manos que ficam determinados pelas relações instrumentais e violentas, conforme visto em
Hobbes e Marx. Essa maneira de efetivação da política rompe com a abertura para o inespera-
do e transforma o ambiente das relações humanas em pura relação de instrumentalização. “O
ção de + o = do indica que o autor está se referindo a eliminação do discurso e da ação no interior do poder, por
isso, no campo da constituição do poder. Gramaticalmente, se o autor estivesse se referindo a eliminação no
discurso, necessitaria a introdução de um termo dependente para dizer o que estaria sendo eliminado no discur-
so..., mas, ainda, neste caso, ficaria confusa a frase se deixasse da ação do campo... . Sobre as questões de ordem
gramática, cf. CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. SP: Comapanhia
Editora Nacional, 1984, p. 228-231.
257
EPF, p. 115.
258
Id., Ibid.
97
agir no sentido de fazer alguma coisa, ou raciocinar no sentido de ‘prever as consequências’,
significa ignorar o inesperado, o próprio evento, uma vez que seria irrazoável esperar o que
não passa de ‘improbabilidade infinita’.”
259
Daí decorrem conseqüências sérias à política e as
próprias relações humanas passam a ser visivelmente dominadas pela instrumentalização e
violência.
Pelo viés da instrumentalização, nota-se que, à medida que vão se organizando espa-
ços para discussões, debates e deliberações políticas e outras presentes no espaço público, de
antemão, tudo já está traçado e acordado, através de conchavos e concessões acordadas previa
e estrategicamente, visando a atender interesses pessoais e partidários. Perde-se a dimensão da
realização do ser humano enquanto dotado de novidade, de ação, e a dimensão da subjetivida-
de, liberdade, pluralidade humana passa a ser destituída de sentido. A centralidade da ação
pauta-se, neste caso, nos moldes do processo, cujos meios e fins já foram pensados e determi-
nados anteriormente. Estipulam-se todos os meios possíveis para se atingir o grande fim, sem
questionar os meios por que os fins é que “são dignos”, do mesmo modo que acontece na ati-
vidade do homo faber no empenho pela produção.
Pelo viés da violência, cujo tema é tratado longamente por Arendt, em sua obra Sobre
a Violência, já referenciada neste estudo, surgem situações brutais e as decisões políticas pas-
sam do discurso, da fala, do consenso e revelação dos agentes, para o uso de instrumentos que
postula os acordos pela autoritarismo. Segundo Arendt, “a violência é de fato a única espécie
de ação humana que por definição é muda; não é mediada por palavras nem funciona através
delas. Em todas as outras espécies de ação, políticas ou não, agimos na fala e a fala é ação.”
260
A instrumentalização pelo viés da violência implica exatamente o sentido originário da
palavra, isto é, no uso de instrumentos para alcançar o fim que se quer, a saber, o poder. Daí
que o poder passa a ser sinônimo de comando e, se esta é a sua essência, então, no dizer de
Arendt, “não há maior poder do que aquele que emerge do cano de uma arma, e seria difícil
dizer “em que medida a ordem dada por um policial é diferente daquela dada por um pistolei-
ro.”
261
Do cano de uma arma brotam as decisões políticas, condicionando o exercício do po-
der pelo uso da força, imperando o domínio do homem pelo homem. Nessa ótica, tudo passa a
259
CH, p. 313.
260
DP, p. 63.
261
ARENDT, Sobre a Violência, op. cit., p. 32.
98
ser concebido em termos de comando e obediência e o poder passa a ser sinônimo da violên-
cia. Nesse caso, tem-se o fim da política, pois, “poder e violência são opostos; onde um domi-
na o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada a seu
próprio curso, ela conduz a desaparição do poder [...] .”
262
Nesse sentido, a conclusão mais
contundente que se pode extrair é que onde a violência se manifesta, a política cessa de acon-
tecer.
As palavras de Arendt, na obra Sobre a Violência, afirmam que
a violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre depende
da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justifi-
cação por outra coisa não pode ser a essência de nada. O fim da guerra - fim tomado
em seu duplo sentido - é a paz ou a vitória; mas para a questão ‘e qual é o fim da
paz?’ não há resposta.
263
A paz, assim como o poder, não tem um fim fora de si, mas no exercício da governabi-
lidade. Arendt destaca de maneira elogiável esta questão, esclarecendo que não se trata de
negar que os governos sigam a política e usem do seu poder para alcançar objetivos e metas
traçadas, pois o poder não é meio para se atingir um fim, mas a própria condição que possibi-
lita às pessoas agirem em comum, mesmo que às vezes representem instituições particulares.
De qualquer modo, tal discussão implica necessariamente levantar questões elementares no
campo da política, tais como: O que é poder? Quando e como o poder alcança a sua realiza-
ção? Qual é a finalidade do governo? Qual a relação entre poder e governo? Como é possível
desenvolver o exercício do governo sem se deixar engolir pela instrumentalização e pela lógi-
ca dos meios-fins? Mais que isso, que significa pensar e agir politicamente? Qual é o núcleo
central e fundamentador da política? Essas são algumas questões que se mostram basilares
neste estudo e que, segundo Arendt, trazem respostas que parecem ser sempre redundantes
e/ou preconceituosas.
No caso do poder e do governo ouvem-se respostas sempre redundantes, cuja finalida-
de comumente se expressa da seguinte maneira: “possibilitar que os homens vivam em co-
mum -, ou perigosamente utópica - para promover a felicidade ou concretizar a sociedade sem
262
Ibid., p. 41.
263
Id., Ibid.
99
classes, ou qualquer outro ideal não-político, o qual, se tentado com perseverança, só pode
acabar em alguma forma de tirania.”
264
De outra forma,
em nosso tempo, ao se pretender falar sobre a política, é preciso começar por avaliar
os preconceitos que todos temos contra a política – visto não sermos políticos pro-
fissionais. [...] No entanto, esses preconceitos não são juízos definitivos. Indicam
que chegamos em uma situação na qual não sabemos pelo menos ainda - nos mover
politicamente. O perigo é a coisa política desaparecer do mundo. [...] Mas o verda-
deiro ponto principal do preconceito conta a política é a fuga à impotência, o deses-
perado desejo de ser livre na capacidade de agir, outrora preconceito e privilégio de
uma pequena camada que, como Lorde Acton, achava que o poder corrompe em ab-
soluto.”
265
A expressão dos preconceitos não é fruto do acaso. Por trás dos preconceitos há expli-
cações que vão desde o uso violento da política nos tempos de hoje, a começar pelas experi-
ências brutais dos campos de concentração, das guerras mundiais, da bomba atômica e, espe-
cialmente, em dias mais atuais, a intervenção bélica dos norte-americanos em países periféri-
cos, que se traduzem em luta política, apesar de demonstrarem suas ações como promoção da
paz, da liberdade e da democracia, conforme se assistiu na invasão ao Iraque. Ao que tudo
indica, a política parece estar engolfada nessa dimensão de pensar fins bons nos quais todos
os meios são justificáveis, presenciados de maneira mais contundente no século XX. Diante
da crise política a que se assiste, pode-se afirmar, sem nenhum receio, o seu prolongamento
no início do século XXI. Dessa forma, acaba predominando a maneira da instrumentalização,
de acordo com os moldes da fabricação. As pessoas passam de sujeitos a meros objetos, pas-
síveis de manuseio de acordo com os desejos e planos de uma só pessoa, designada para man-
dar, dominar e instaurar processos sem a mediação intersubjetiva.
Nesse sentido, é oportuno destacar que o resultado final de todo o processo do homo
faber não pode ser pior. De um lado, com o avanço da atividade de fabricação e a esperança
de que com o uso de instrumentos e artefatos, os homens criam obras que podem melhorar
suas vidas, acabou gerando dois problemas. Um, ligado à instrumentalização da política e,
outro, no ascenso do consumo diante do homo faber.
O transplante dos ideais e métodos do homo faber à política resulta em mudanças na
sua forma de organização e realização. A política passa a ser mediada pela intrumentalização,
gerando o fim do espaço público, pois tudo já está dado e determinado previamente, bem co-
264
Id., Ibid.
265
Ibid., p. 28.
100
mo a decadência da vida privada, considerando a vitória do consumo sobre todas as outras
dimensões e atividades da vida humana. As pessoas e as relações que elas estipulam estão
desprovidas de sentido, e as atividades da vita activa perdem a posição e função específica
que lhes cabe no âmbito da organização da vida humana.
De outro lado, o homo faber acaba sendo subsumido pelo consumo. A conseqüência se
reflete no interior da atividade do trabalho que, ao invés de garantir o caráter estável no mun-
do, as obras fabricadas passam a ser produtos que, no mesmo instante em que são expostas à
venda, de imediato, já ocorre a sua destruição. Daí a conseqüente vitória do consumo que cau-
sará o fim das relações entre homem e natureza, homem e mundo, contemplação e ação. Inte-
ressa ao ser humano atingir o maior grau de satisfação e felicidade possível pelo suprimento
do seu desejo. É o que Arendt designa a vitória do animal laborans.
3.3 A vitória do animal laborans e o enaltecimento do consumo
A vitória do animal laborans é algo realmente inesperado. Não é de se supor que o
enaltecimento do homo faber e as conseqüentes transformações que dele suscitam, acabariam
por promover a atividade básica do consumo e da sobrevivência, destituindo o estatuto de
durabilidade e uso dos objetos produzidos mediante a fabricação. O que aconteceu foi algo
realmente muito forte e paradigmático porque, ao analisar a fundo as características da era
moderna, do seu início até os dias de hoje, constatam-se atitudes próprias do homo faber, a
saber:
a ‘instrumentalização’ do mundo, a confiança nas ferramentas e na produtividade do
fazedor de objetos artificiais; a confiança no caráter global da categoria de meios e
fins e a convicção de que qualquer assunto pode ser resolvido e qualquer motivação
humana, reduzida ao princípio de utilidade; a soberania que vê todas as coisas dadas
como matéria-prima e toda a natureza como ‘um imenso tecido do qual podemos
cortar qualquer pedaço e tornar a coser como quisermos’, o equacionamento da inte-
ligência da engenhosidade, ou seja, o desprezo por qualquer pensamento que não
possa ser considerado como ‘primeiro passo ... para a fabricação de objetos artifici-
ais, principalmente de instrumentos para fabricar outros instrumentos e permitir a in-
finita variedade de sua fabricação’, e, finalmente, o modo natural de identificar a fa-
bricação com a ação.
266
266
CH, p. 318 e 319.
101
Apesar de todo este aparato, o homo faber não consegue se manter de maneira hege-
mônica diante das demais atividades da vita activa. Com o avanço da sociedade de massas no
contexto contemporâneo, o homem passa a se preocupar exclusivamente com a reprodução de
sua vida, resultando na ascensão do animal laborans que significa a segunda inversão no inte-
rior da própria vita activa. No entanto, foi uma inversão que “ocorreu de modo mais gradual e
menos dramático que a inversão de posições entre a contemplação e a ação em geral ou a in-
versão entre a ação e a fabricação de modo particular”
267
, concebida como a primeira no inte-
rior da vita activa. Em que pesem as diferenças entre o maior e o menor grau em relação às
outras inversões, o fato é que a segunda inversão revela a configuração de um mundo voltado
somente para a vida dos indivíduos. Diante disso, cabe perguntar por duas coisas: O que pro-
porciona tal ascensão do animal laborans e a derrota do homo faber e quais as conseqüências
e implicações que suscitam dessa inversão?
Acerca da primeira pergunta, de acordo com Arendt,
a promoção do labor foi precedida de certos desvios e variações da mentalidade tra-
dicional do homo faber, altamente características da era moderna e que, realmente,
resultaram quase automaticamente da própria natureza dos eventos que deram ori-
gem à era moderna. O que mudou a mentalidade do homo faber foi a posição central
do conceito de processo na modernidade. Para o homo faber, a moderna troca de ên-
fase do ‘o que’ para o ‘como’, da coisa para o processo de sua fabricação, não foi de
modo algum um bem isento de males.
268
A ascensão do labor deriva, centralmente, também da idéia de processo, dos padrões e
modelos fixos e permanentes, no entanto, com uma mudança significativa no fim previsto
para aquilo que é produzido. Ao estabelecer a idéia de processo como lugar outrora ocupado
pela contemplação (gregos), o homo faber institui o domínio sobre a natureza e diante de suas
capacidades pensa estar construindo um novo mundo, não voltado para o desenvolvimento de
ações humanas grandiosas e dignas de memória, mas produzindo coisas duráveis que possam
assumir este caráter de imortalidade pelo fato de serem mundanas. Esse é o grande nó e Odílio
Alves Aguiar traduz de maneira clara e objetiva tal questão, afirmando:
267
Ibid., p. 319.
268
Ibid., p. 319 e 320.
102
A demanda do progresso, da acumulação e da prosperidade empurrou, ao invés de
liberar, a sociedade como um todo para o jugo do trabalho (labor). O resultado foi a
transformação de todas a atividades em metabolismo biológico e dos seu produtos
em objetos de consumo. Não há mais obra (work, poiesis), atividade na qual o ho-
mem punha algo de si no mundo, construindo-o tornando-o mais habitável. Tudo
passa a ter uma referência subjetivista, relacionada ao homem, ao seu gozo, à sua
dominação.
269
O grande objetivo do homo faber, outrora voltado para o princípio da utilidade e dura-
bilidade, visando a permanecer no mundo, “foi declarado inadequado e substituído pelo prin-
cípio ‘da maior felicidade do maior número’.”
270
Os meios utilizados são os mesmos, isto é,
mantém-se o uso de máquinas, mas o fim é outro. As ferramentas e as máquinas são incorpo-
radas ao processo de manutenção da vida e o homo faber assume apenas a condição de faze-
dor de instrumentos, um simples mediador, pois, via de regra, só por acidente chega a produ-
zir coisas porque, segundo Arendt,
se é possível aplicar neste contexto o princípio da utilidade, deve referir-se basica-
mente não ao objeto de uso, e não ao uso, mas ao processo de produção. Agora, tu-
do o que ajuda a estimular a produtividade e alivia a dor e o esforço torna-se útil.
Em outras palavras, o critério final de avaliação não é de forma alguma a utilidade e
o uso, mas a ‘felicidade’, isto é, a quantidade de dor e prazer experimentada na pro-
dução ou no consumo das coisas.
271
A presente mudança estipula a dor e o prazer como fim último da produção, mas note-
se que nada os subordina. “A dor é inteiramente independente de qualquer objeto; só aquele
que sente dor cessa, realmente, de sentir coisa alguma a não ser a si mesmo, ao passo que o
prazer não se compraz em si mesmo, mas em algo além de si mesmo.”
272
Esse é um aspecto e
269
AGUIAR, Odilio Alves. Politica e Finitude em Hannah Arendt. In: OLIVEIRA, op. cit. p. 108.
270
Ibid., p. 320 e 321. Sobre esta questão, merece nota uma passagem, entre tantas outras importantes, da obra de
Eugência Sales, onde a autora diz: “Como resultado dessas transformações, o princípio da utilidade perdeu o seu
lugar para o princípio da felicidade: a produção de objetos úteis e duráveis, excetuando-se aqueles que são úteis à
produção - as máquinas e os instrumentos - foi substituída pela produção de coisas destinadas à alegria no con-
sumo e à amenização da dor de produzir - duas funções do labor. Os ideais do homo faber foram substituídos
pelos ideais do animal laborans, de modo que o referencial deixou de ser o homem - que encontra-se no centro
do utilitarismo - e passou a ser a vida.” Cf. WAGNER, op. cit., p. 103. A este respeito destacamos também a
posição de Marx que nos parece digna de nota, apesar de todas as críticas recebidas por Arendt, mas que não
estão nesta direção. Marshal Bermann, em sua obra Tudo o que é sólido desmancha no ar. A aventura da moder-
nidade, ao discutir sobre a Autodestruição Inovadora, diz-nos: “Não obstante, é verdade é que, como Marx o vê,
tudo o que a sociedade burguesa constrói é construido para ser posto abaixo. ‘Tudo o que é sólido’ - das roupas
sobre nossos corpos, aos teares e fábricas que as tecem, os homens e mulheres que operam as máquinas, às casas
e aos bairros onde vivem os trabalhadores, às firmas e corporações que os exploram, às vilas e cidades, regiões
inteiras e até mesmo as nações que as envolvem - tudo isso é feito para ser desfeito amanhã, despedaçado ou
esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou substituído na semana que seguinte e
todo o processo possa seguir adiante, sempre adiante, talvez para sempre, sob formas cada vez mais lucrativas.”
Cf. BERMANN, Marshal. Tudo o que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Tradução de Car-
los Felipe Moisés e Ana Maria l. Ioriatti. 7ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 97.
271
CH, p. 322.
272
Ibid., p.323.
103
que por trás de seus elementos aparece outro ponto de referência, inclusive mais poderoso que
a simples dor e o prazer, isto é, o princípio da própria vida e nela a garantia da sobrevivência
da humanidade
273
. Mas não é uma preocupação que visa a estabelecer condições de desenvol-
vimento sustentável à humanidade. A sobrevivência presente na atividade do labor é fugaz,
efêmera e só constrói condições de possibilidade de manutenção do ciclo vital e nada mais.
Em última análise, a vida é o critério supremo ao qual tudo mais se subordina; e os
interesses do indivíduo, bem como os interesses da humanidade, são sempre equa-
cionados com a vida individual ou a vida da espécie, como se fosse lógico e natural
considerar a vida como o mais alto bem.
274
Mas o acento da vida não decorre somente de certos deslizes presentes nas atividades
do homo faber. Na explicação do relevo da vida na vitória do animal laborans, Arendt alude
também para a moderna inversão de posições no interior da sociedade cristã, ocasionada pelo
processo de secularização e declínio da fé cristã no contexto moderno. Daí a explicação para o
acento na vida mortal e desprestígio àquilo que tinha em seu horizonte a imortalidade. De
acordo com Arendt,
o motivo pelo qual a vida se afirmou como ponto último da referência da era moder-
na e permaneceu como bem supremo para a sociedade foi que a moderna inversão
de posições ocorreu dentro da textura de uma sociedade cristã, cuja crença funda-
mental na sacrossantidade da vida sobrevivera à secularização e ao declínio geral da
fé cristã, que nem mesmo chegaram a abalá-la. [...] A boa nova cristã da imortalida-
de da vida humana individual invertera a antiga relação entre o homem e o mundo,
promovendo aquilo que era mais mortal, a vida humana, à posição de imortalidade
ocupada até então pelo cosmo. [...] Os resultados dessa inversão só podiam ser de-
sastrosos para a estima e a dignidade da política. A atividade política, que até então
se inspirara basicamente no desejo de imortalidade mundana, baixou agora ao nível
de atividade sujeita a vicissitudes, destinada a remediar, de um lado, as conseqüên-
cias da natureza pecaminosa do homem, e de outro, a atender às necessidades e inte-
resses legítimos da vida terrena. Daí por diante, qualquer aspiração à imortalidade só
podia ser equacionada com a vanglória; toda fama que o mundo pudesse outorgar ao
homem era ilusória, uma vez que o mundo era mais perecível que o homem, e a luta
pela imortalidade humana era inútil, visto como a própria vida era imortal. Foi preci-
samente a vida individual que passou então a ocupar a posição antes ocupada pela
‘vida’ do corpo político... .
275
273
O que de fato não ocorreu. Em CH, p. 325, Arendt destaca que nem a vida e nem a realização da política
acabaram assumindo uma condição melhor do que fora até então. O que este acento na vida possibilita mostrar é
que, “no conflito latente do século XVII entre os dois métodos possíveis a serem deduzidos da descoberta de
Galileu - o método da experimentação e da fabricação, de um lado, e o método da introspecção de outro - este
último estava fadado a alcançar uma vitória tardia. Porque o único objeto tangível produzido pela introspecção,
se é que esta deve produzir algo mais que uma autoconsciência inteiramente oca, é realmente o processo biológi-
co.” Além disso, Arendt destaca que “a cisão entre sujeito e objeto, inerente à consciência humana e irremediá-
vel na contraposição cartesiana do homem como res cogitans e um mundo circunvizinho de res extensae, desa-
parece inteiramente no caso de um organismo vivo, cuja própria sobrevivência depende da incorporação e do
consumo de substâncias externas.”
274
Ibid., p. 325.
275
Ibid, p. 327.
104
O que realmente importa, no contexto, na compreensão de Arendt, não é a imortalida-
de da vida, a memória pelos grandes feitos provenientes das ações humanas, mas o apego à
vida e sua centralidade no campo das decisões. Pesa decisivamente sobre o homem o seu me-
tabolismo com a natureza e o que se tem como certeza garantida é de que o homem fará tudo
o que for possível para assegurar a sua sobrevivência. “Em última análise, a vida é o critério
supremo ao qual tudo mais se subordina; e os interesses do indivíduo, bem como os interesses
da humanidade, são sempre equacionados com a vida individual ou a vida da espécie, como se
fosse lógico e natural considerar a vida como o mais alto bem ... .”
276
Afinal, esse é o núcleo
central da atividade do labor: manter-se ligado à vida como único ponto de referência. Portan-
to, querer assegurar a resposta à pergunta pela ascensão do animal laborans em relação ao
homo faber, a mudança na idéia de processo e alteração do conteúdo teleológico da fabricação
é um ponto a se considerar; e outro está na valorização da vida com bem supremo maior, de-
corrente do destaque cristão
277
, pois nela se encontra o sentido para alcançar a vida eterna.
O problema maior, constatado por Arendt, não se localiza tanto nos elementos que
deram origem à vitória do animal laborans sobre o homo faber, mas nas conseqüências que
dela decorrem. Daí a necessidade de retomar a questão: Quais foram as conseqüências e im-
plicações que suscitaram a vitória do animal laborans?
Pode-se começar pelo processo de secularização e a moderna perda de fé, decorrentes
da dúvida cartesiana e da falência da crença na imortalidade. Semelhante ao modo de vida da
antiguidade, a vida individual volta a ser mortal, mas sem resultar numa tomada de consciên-
cia do seu grande valor, porque, naquele contexto, isso significa a responsabilidade ética pelo
construto humano. Aqui, a vida assume uma concepção fugaz, voltada para si mesma enquan-
to expressão de atenção aos instintos da sobrevivência, despreocupada com a construção de
um mundo estável e permanente
278
, sem direção para o futuro e memória dos seus feitos. Di-
ante disso, a afirmação contundente de Arendt, esclarece que
276
Ibid.., p. 325.
277
A defesa do labor como atividade básica do cristianismo visava assegurar o princípio da vida sobre todos os
demais. O trabalho, enquanto labor, não tinha como objetivo final o próprio trabalhar, mas em manter e preservar
a vida. Por outro lado também recebeu peso na corrente cristã, a antiga convicção do trabalho como mortificação
da carne, especialmente nos monastérios, que, inclusive praticavam sacrifícios e formas de autotortura. Daí,
portanto, a defesa da vita contemplativa como o tipo de vida melhor, pois seus méritos eram mais efetivos e
maiores. Cf. CH, p. 331.
278
A este respeito é oportuna a reflexão de Francisco Xarão que nos diz o seguinte: “A tentativa do homo faber
em socorrer o animal laborans, para que se poupasse esforços na tarefa fatigante de manter a vida, acabou por
105
ao perder a certeza de um mundo futuro, o homem moderno foi arremessado para
dentro de si mesmo, e não de encontro ao mundo que o rodeava; longe de crer que
este mundo fosse potencialmente imortal, ele não estava sequer seguro de que fosse
real. (...) o homem moderno não ganhou este mundo ao perder o outro, e tampouco,
a rigor, ganhou a vida; foi atirado de volta a ela, lançando a interioridade fechada da
introspecção, na qual suas mais elevadas experiências eram os processos vazios do
cálculo da mente, o jogo da mente consigo mesma. Os únicos conteúdos que sobra-
ram foram os apetites e os desejos, os impulsos insensatos de seu corpo que ele con-
fundia com a paixão e que considerava ‘irrazoáveis’ por não poder ‘arrazoar’ com
eles, ou seja, prevê-los ou medi-los. Agora, a única coisa que podia ser potencial-
mente imortal, tão imortal quanto fora o corpo político na antiguidade ou a vida in-
dividual na Idade Média, era a própria vida, isto é, o processo vital, possivelmente
eterno, da espécie humana.
279
A situação que se apresenta diante de tal contexto é extremamente grave. Primeiro, o
fechamento do homem em si mesmo e, segundo, o resultado desse processo na atenção às
questões biológicas, centradas nos apetites e desejos do corpo. Em tal situação, ao que se as-
siste, em primeiro plano, é a crise do pensamento que passa a ser meramente uma função do
cérebro e, diante disso, o problema da incapacidade humana, pois “se descobriu que os ins-
trumentos eletrônicos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós.”
280
Em um segun-
do plano, o acento nos desejos e apetites acaba configurando um mundo organizado para a-
tender as necessidades vitais, tendo na fabricação um meio para produzir coisas voltadas para
o próprio consumo e sustento da vida. Já não há mais razão para se perguntar pelo sentido da
vida ou para que os homens vivem. A razão de o homem viver e construir o mundo é uma só:
em nome da manutenção da vida. Desse modo, as formas de organização no espaço comum
perdem todo o seu potencial, imperando, a partir de então, a sociedade de consumo que passa
a substituir a “questão do sentido pelo ideal de conforto. Trabalha-se ‘para que’ o acúmulo de
bens de consumo providencie uma vida melhor, ‘em razão de que’ se deseja acumular ainda
mais bens de uso e de consumo ‘para que’ se possa trabalhar e acumulá-los ainda mais.”
281
A busca pela satisfação do consumo e acúmulo impregna-se no ser humano e, como
uma “bola de neve”, acaba tomando uma proporção cada vez maior, diluindo a preocupação
com o espaço e a dignidade da política como possibilidade de praticar ações éticas e defender
diluir sua própria atividade de fabricar em trabalho. Arendt adverte para as nefastas conseqüências dessa dilui-
ção, pois as ferramentas e utensílios, nas mãos do homo faber, tinham o propósito de criar um mundo e protegê-
lo do desgaste de seu uso, bem como do consumo inerente ao processo vital. Com a perda dessa atividade o que
se perde é a estabilidade no mundo. Sem essa referência objetiva o que era um mundo comum é reduzido à
uniformidade das necessidades internas do corpo, a única coisa quer resta em mundo ‘no qual as estruturas inatas
do organismo humano são transplantadas cada vez mais para o meio ambiente do homem’.” Cf. XARÃO, op.cit.,
p. 126.
279
CH, p. 333 e 334.
280
Ibid., p. 335.
281
XARÃO, op. cit. p. 131.
106
princípios em defesa da humanidade e da imortalidade das ações, pela grandeza que merecem
e valor que lhes são atribuídos. Além disso, uma vida voltada unicamente para suprir as ne-
cessidades vitais estabelece um ambiente extremamente egoísta e perigoso, pois a defesa em
relação ao outro é condição para se livrar de um estorvo e ameaça à sobrevivência. Ambos
lutam para este fim que não quer acordo, diálogo, mas constante embate e vence o mais forte.
“A hegemonia do animal laborans acarretou o fim dos contatos e relações humanas. O animal
laborans não possui mundo, é auto-referido. Sua solidão congênita, seu deserto, torna-se um
campo fértil para a disseminação e propaganda das identidades fictícias, raciais, étnicas, abs-
tratas, etc.”
282
Na reflexão de Francisco Xarão, a ausência de uma referência objetiva do mundo co-
mum acaba reduzindo-o “à uniformidade das necessidades internas do corpo, a única coisa
que resta em um mundo ‘no qual as estruturas inatas do organismo humano são transplantados
cada vez mais para o meio ambiente do homem’.”
283
A situação resultante é a instauração do
caos político. Não há vida comum que se sustente e nem se almeja que seja sustentado. Impe-
ra o isolamento e a sociedade se torna cada vez menos comum, assentada sobre o legado das
massas, concebendo a vida na “passividade mais mortal e estéril que a história jamais conhe-
ceu.”
284
E, diante disso, a conclusão é:
Na situação de radical alienação do mundo, nem a história nem a natureza são em
absoluto concebíveis. Essa dupla perda do mundo – a perda da natureza e a perda da
obra humana no senso mais lato, que incluiria toda a história – deixou atrás de si
uma sociedade de homens que, sem um mundo comum que a um só tempo os rela-
cione e os separe, ou vivem em uma separação desesperadamente solitária ou são
comprimidas em uma massa. Pois uma sociedade de massas nada mais é que aquele
tipo de vida organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que
se relacionam ainda uns aos outros mas que perderam o mundo outrora comum a to-
dos eles.
285
O resultado presente na vitória do labor acaba repondo uma preocupação que Arendt
tem refletido longamente na experiência do governo totalitário que, para alcançar o domínio,
introduz passos que são pensados e planejados pela elite totalitária. Certamente, o de tornar a
sociedade civil num amontoado de pessoas sem pertencimento a nenhuma classe ou outro
órgão, destituindo das pessoas preocupações comuns e centrando-as no isolamento, cuja ca-
racterística representa uma sociedade das massas. Nesse cenário, Arendt considera a brutali-
282
AGUIAR, op. cit. p. 108.
283
Ibid., p. 126.
284
CH, p. 336.
285
EPF, p. 125 e 126.
107
dade em que as pessoas são submetidas, pois não há consciência da dor e da perda do espaço
comum e dos acontecimentos presentes no mundo. Com o ascenso do labor, tudo parece indi-
car para a expansão crescente das massas. Diga-se de passagem, que os meios-de-
comunicação do contexto atual entendem perfeitamente tal crescimento pelas questões relati-
vas à vida. Todo o esforço propagandístico visa a tornar as pessoas mais preocupadas consigo,
com sua cor de cabelo, com a performance do seu bumbum, com a etiqueta da sua roupa, en-
fim, com questões estritamente privadas e sem preocupação com outras questões e esferas.
Em termos pode-se dizer que a situação reflete o encolhimento da consciência frente ao au-
mento exagerado do corpo que se fecha em si e no atendimento dos seus desejos e apetites.
Mas a gravidade representa um desastre à própria vida e à estima e dignidade da política. Nas
palavras de Arendt, a política
ficou reduzida ao nível de atividade sujeita a vicissitudes, destinada a remediar, de
um lado, as conseqüências da natureza pecaminosa do homem, e de outro, a atender
às necessidades e interesses legítimos da vida terrena. Daí por diante, qualquer aspi-
ração à imortalidade só podia ser equacionada com a vanglória; toda a fama que o
mundo pudesse outorgar ao homem era ilusória, uma vez que o mundo era ainda
mais perecível que o homem, e a luta pela imortalidade humana era inútil, visto co-
mo a própria vida era imortal. Foi precisamente a vida individual que passou então a
ocupar a posição antes ocupada pela ‘vida’ do corpo político....
286
A situação apresentada pelo ascenso do labor é dramática e revela uma preocupação
séria em torno da constituição da subjetividade das pessoas, do seu relacionamento com o
espaço público e da presença no mundo. No entanto, é oporturno perguntar: haverá alternati-
vas para superar este problema? Que caminhos devem ser tomados para traçar novos rumos à
humanidade que não simplesmente o apego ao consumo e dedicação exclusiva para a satisfa-
ção individual e egoísta? Em que medida ainda se pode postular a reconstrução e recuperação
da dignidade da política diante de tal cenário? A resposta a todas estas questões não é algo
simples, e fazer conjeturas é ainda mais complicado. Pelo viés arendtiano, a saída está na re-
consideração da vita activa, colocando a ação no centro de todas as demais atividades huma-
nas que, por sua vez, pode proporcionar o resgate da política no âmbito mundial, desejando
que “os homens se apresentem como atuantes, conferindo aos assuntos mundanos uma durabi-
lidade que em geral lhes é característica”, cuja esperança está além do meramente utópico,
mas presente na realização de atos grandiosos dignos de serem lembrados na história futura.
286
CH, p. 327.
108
4 A RECONSIDERAÇÃO DA VITA ACTIVA E A RECUPERAÇÃO DO SENTIDO DA
POLÍTICA
A reflexão política no pensamento de Arendt não segue o caminho da mão única, com
preocupação de acentuar apenas os elementos críticos e perniciosos à política. Já se destacou
anteriormente que Arendt não se enquadra na trajetória dos profetas da catástrofe que vêem as
piores coisas e projetam um futuro desesperador. A sua crítica à perda da dignidade e sentido
da política está embasada na leitura que ela fez da tradição política do Ocidente e das experi-
ências vividas ao longo do século XX. Ela mesma experienciou muitas situações e viu inúme-
ros fatos que possibilitaram a construção de um pensamento crítico e sério. Mas todo o seu
esforço de compreensão da crise da política também instiga para que os homens possam real-
mente pensar qual é de fato o lugar de realização e que forma de organização melhor expressa
e recupera o sentido da política.
A recuperação do sentido da política em Arendt remete para a abordagem do esclare-
cimento das atividades da vita activa: o labor, o trabalho e a ação. O labor é atividade que visa
a garantir a sobrevivência da espécie humana e sua condição humana é a própria vida; o traba-
lho pretende construir obras e artefatos que permaneçam no mundo para facilitar e estabilizar
a vida humana – daí que a sua condição humana está voltada para a mundanidade, presença
no mundo; a ação é a atividade que acontece entre os homens e é única que se desenvolve na
intersubjetividade, possibilitando a expressão da pluralidade e diversidade humana, por isso, é
a atividade política por excelência porque na sua gênese oportuniza a construção e o convívio
entre os homens.
A ação é a atividade que possibilita o resgate do sentido da política porque nela a vida
foge das determinações instrumentais e estratégicas moldadas às custas dos ideais do homo
faber. Permite a recuperação do sentido da política pelo fato de estabelecer constantes come-
109
ços e iniciativas que levam os homens a falar e agir livremente, revelando quem são e o que
podem fazer para construir um mundo mais estável, desapegado da violência, da instrumenta-
lização e do consumo. Duas experiências resgatam esse sentido da ação: a pólis grega e as
revoluções modernas. Em ambas, a experiência política está unida à liberdade. Quais alcances
e limites decorrem de tal perspectiva de fundamentação da política é o que se propõe este ca-
pítulo.
4.1 A vita activa e sua implicação política
A discussão da vita activa é de extrema importância para o estudo sobre a política no
pensamento de Arendt. É através dela que Arendt preocupa-se em levantar respostas e propos-
tas para a recuperação do sentido da política, após o longo embate com a tradição política do
Ocidente. Todavia, a origem e o significado do termo vita activa não é uma atribuição exclu-
siva do pensamento de Arendt. Como ela mesma assevera em A Condição Humana
a expressão vita activa é perpassada e sobrecarregada de tradição. É tão velha quan-
to a nossa tradição de pensamento político, mas não mais velha que ela. E essa tradi-
ção, longe de abranger e conceitualizar todas as experiências políticas da humanida-
de ocidental, é produto de uma constelação histórica específica: o julgamento de Só-
crates e o conflito entre o filósofo e a lis. Depois de haver eliminado muitas das
experiências de um passado anterior que eram irrelevantes para suas finalidades po-
líticas, prosseguiu até o fim, na obra de Karl Marx, de modo altamente seletivo. A
própria expressão que, na filosofia medieval, é a tradução consagrada do bios politi-
kós de Aristóteles, já ocorre em Agostinho onde como vita negotiosa ou actuosa, re-
flete ainda o seu significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos e po-
líticos.
287
A presente passagem permite o esclarecimento da origem e do cerne implicado na vita
activa, a saber, a política. Apesar de ter sido usada pela tradição do pensamento político do
Ocidente, mas considerando a fragilidade da ação política diante do julgamento de Sócrates e
da defesa de superioridade do filósofo diante da pólis, conforme assevera Platão, a vita activa
não consegue garantir a sua efetividade original, cuja centralidade deve ser o âmbito das ques-
tões públicas, próprias da política. Essa questão não se refere somente à filosofia de Platão,
pois o contexto medieval também reduz a vita activa a uma simples ação de engajamento ati-
vo nas coisas deste mundo. Todavia, Agostinho está ciente desta transformação que está ocor-
rendo na vita activa. Ele foi o último a conhecer o significado de ser um cidadão e as implica-
287
CH, p. 20.
110
ções de sua ação na pólis. Desse modo, a ação perde o seu significado político, ao passo que a
contemplação passa a ser a expressão de maior significado para a vida dos homens, incluindo
a dimensão política, porque ela também passa a ser o único modo de vida realmente livre.
Acontece, diante disso,
a cessação de toda a atividade (skhole), de sorte que a posterior pretensão dos cris-
tãos - de serem livres de envolvimento nos assuntos mundanos, livres de todas as
coisas terrenas - foi precedida pela apolitia filosófica da última fase da antiguidade,
e dela se originou. [...] Tradicionalmente, portanto, a expressão vita activa deriva o
seu significado da vita contemplativa; sua mui limitada dignidade deve-se ao fato de
que serve às necessidades e carências da contemplação num corpo vivo. O cristia-
nismo com a sua crença num outro mundo cujas alegrias se prenunciam nos deleites
da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vita activa à sua po-
sição subalterna e secundária ... .
288
O uso da expressão vita activa, diante do primado da contemplação, camufla o seu
significado político. Nesse sentido, ao se propor a tarefa de reconsiderar a vita activa, Arendt
manifesta o seu conflito com a tradição do pensamento político do Ocidente e, ao mesmo
tempo, reflete sobre o lugar em que a vita activa é colocada e pelo obscurecimento das dife-
rentes atividades que a compõem. Portanto, de algum modo, a reconsideração da vita activa
implica estabelecimento de novas bases às atividades humanas e, por meio delas, ficam claros
o âmbito e espaço próprio no qual a política deve se assentar. Para Francisco Xarão, “essa
reconsideração deriva da admissão da ruptura com a tradição, o que abriga a uma compreen-
são dos fenômenos sem a sombra e o amparo dos conceitos tradicionais.”
289
Por outro lado, Arendt procura evidenciar que ela não visa a estabelecer um confronto
direto entre vita activa e vita contemplativa, mas assegurar de maneira precisa e fundamental
que “o enorme valor da contemplação na hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e
manifestações no âmbito da própria vita activa e que, a despeito das aparências, esta condição
não foi essencialmente alterada pelo moderno rompimento com a tradição.”
290
E, além disso,
a “expressão vita activa pressupõe que a preocupação subjacente a todas as atividades não é a
mesma preocupação central da vita contemplativa, como não lhe é inferior, nem superior.”
291
A pauta central da discussão é mostrar que a vita activa tem um significado mais elevado do
modo que lhe foi concebido ao longo da tradição e, nesse aspecto, demarcar a sua importância
política.
288
Ibid., p. 24.
289
XARÃO, op. cit., p. 16.
290
CH, p. 25.
291
Ibid., p. 26.
111
O primeiro elemento fundamental destacado por Arendt neste horizonte passa pela
diferenciação entre eternidade e imortalidade. Entre eternidade e imortalidade há um elemento
comum; ambas se referem à continuidade no tempo e, ao avançar para a explicação de como
isso é possível, percebem-se as diferenças cruciais entre elas.
A continuidade no tempo, pelo viés da eternidade, se dá no âmbito da teoria, das idéi-
as, ao modo da Parábola da Caverna apresentada por Platão. Nesse sentido, a eternidade só
pode se desenvolver fora dos negócios humanos, fora da pluralidade dos homens e não pode
ser convertida em qualquer tipo de atividade que não seja a da contemplação.
A eternidade visa a permanecer no mundo desde e para sempre. Os homens, em rela-
ção às idéias, por exemplo, não as constroem, apenas as alcançam e, quando conseguem-no,
contemplam-nas. Desse modo, a eternidade é o centro da vita contemplativa, pois nela está a
skholia, a theoria, o octium, a quietude – próprias da contemplação.
Diferentemente é a concepção de imortalidade e as implicações que dela decorrem. A
continuidade no tempo, pelo viés da imortalidade, implica lembrança, recordação da “vida
sem morte nesta terra e neste mundo, tal como foi dada, segundo o consenso grego à natureza
e aos deuses do Olimpo.”
292
No âmbito da imortalidade, está o emblema da própria existência humana, que não
significa um “desde sempre e para sempre”, pois, da mesma forma que os animais, os homens
são mortais e potencialmente imortais. A diferença básica é que, nos animais, a imortalidade é
uma derivação da procriação, ao passo que, nos homens, ela é resultado da sua ação no mun-
do, isto é, dos seus grandes feitos
293
. Nesse sentido, a imortalidade caracteriza o modo da vida
do cidadão, o bios politikos, voltado para o exercício de ações no palco dos negócios huma-
nos. Portanto, é nesse âmbito que a vita activa visa a acentuar todo o seu esforço, pois a imor-
talidade é, originalmente, a sua fonte e o seu centro.
292
Id., Ibid.
293
A este respeito é importante destacar que na língua grega não há uma distinção entre “obras” e “feitos”, cha-
mando-os apenas de erga para dizer que são duráveis e grandiosos, a ponto de serem lembrados. Mas quando os
sofistas começaram a estabelecer as distinções entre fazer e agir (poiein e prattein) os substantivos poiemata e
pragmata passaram a ser usados de maneira mais corrente. Cf. CH, p. 28.
112
O segundo elemento fundamental que precisa ser destacado nesse horizonte da recon-
sideração da vita activa localiza-se na reflexão sobre o rompimento entre as esferas pública e
privada e, sobretudo, na importância que elas possuem na diferenciação, articulação e locali-
zação das atividades da vita activa: o labor, o trabalho e ação.
Com base na experiência de organização da pólis grega, Arendt procura mostrar o lu-
gar e modo de expressão das esferas pública e privada. A esfera privada diz respeito às rela-
ções do lar, da vida familiar, dos sentimentos e necessidades, cujo processo de organização é
marcado pela determinação hierárquica, de mando e obediência, estipulados naturalmente. No
núcleo da esfera privada, as coisas e ações devem permanecer ocultas, considerando que ela
implica privação da ausência de outros, e a atividade da vita activa que melhor se adequa a
essa forma de vida é o labor, pelo fato dele estar ligado à dimensão de atendimento às neces-
sidades básicas da vida. Geralmente, atribui-se um certo desprezo a tal forma de vida e isso se
deve a dois fatores. O primeiro se refere ao fato de comumente confundir a esfera privada
com a busca desenfreada de riquezas; e o segundo diz respeito à inexistência de propriedade e
a pobreza
294
. A esfera privada não pode visar à realização só de uns e miséria e sofrimento de
muitos. Concebida dessa forma, a esfera privada deixa de ter a sua importância política e pas-
sa ao atendimento dos meios de subsistência e consumo, sem mais. Diante disso, a afirmação
e distinção elementar de Arendt, na perspectiva do enaltecimento e importância da proprieda-
de privada, diz que,
294
Em a CH Arendt esclarece esta questão, dizendo: “A profunda conexão entre o privado e o público, evidente
em seu nível mais elementar na questão da propriedade privada, corre hoje o risco de ser mal interpretada em
razão do moderno equacionamento entre a propriedade e a riqueza, de um lado, e a inexistência da propriedade e
a pobreza, de outro. Esta falha de interpretação é tão mais importuna quanto ambas, a propriedade e a riqueza,
são historicamente de maior relevância para a esfera pública que qualquer outra preocupação privada, e desem-
penharam, pelo menos formalmente, mais ou menos o mesmo papel como principal condição para a admissão do
indivíduo à esfera pública e à plena cidadania. É, portanto, fácil esquecer que a riqueza da propriedade, longe de
constituir a mesma coisa, tem caráter inteiramente diverso. O atual surgimento, em toda parte, de sociedade real
ou potencialmente muito ricas, nas quais ao mesmo tempo não existe propriedade, porque a riqueza de qualquer
um dos seus cidadãos consiste em sua participação na renda anual da sociedade como um todo, mostra claramen-
te quão pouco essas duas se relacionam entre si.” CH, p.70 e 71.
113
originalmente, a propriedade significava nada mais nada menos que o indivíduo pos-
suía seu lugar em determinada parte do mundo e portanto pertencia ao corpo políti-
co, isto é, chefiava uma das famílias que, no conjunto, constituíam a esfera pública.
Essa parte do mundo que tinha donos privados era tão completamente idêntica à fa-
mília à qual pertencia que a expulsão do cidadão podia significar não apenas o con-
fisco de sua propriedade, mas a destruição de sua própria morada. A riqueza de um
estrangeiro ou de um escravo não substituía, de modo algum, essa propriedade, ao
passo que a pobreza não fazia com que o chefe da família perdesse seu lugar no
mundo e a cidadania dele decorrente. Nos tempos antigos, quem viesse a perder o
seu lugar perdia automaticamente a cidadania, além da proteção da lei. O caráter sa-
grado dessa privatividade assemelhava-se ao caráter sagrado do oculto, ou seja, do
nascimento e da morte, o começo e o fim dos mortais que, como todas as criaturas
vivas, surgem e retornam às trevas de onde vieram.
295
A presente passagem permite compreender o alcance da propriedade. O ponto crucial é
o de que a propriedade não é um fim em si. Ela é meio e condição para se chegar ao espaço
público que não carece mais do apego às questões da necessidade, por isso significa a mais
completa liberdade, “porque garantia com razoável certeza que ele [o homem] não teria que
prover para si mesmo os meios do uso e do consumo, e estava livre para exercer a atividade
política.”
296
Quando a propriedade torna-se um fim em si, ela é subsumida pelo atendimento
às necessidades vitais, riqueza, gozo, hobbies, entre outros aspectos que caracterizam o fe-
chamento do homem em si mesmo.
Essa diferenciação
297
entre propriedade privada como um fim em si e como meio e
condição para o exercício da vida pública e desapego às necessidades vitais somente, é su-
mamente importante, pois, enquanto meio, a propriedade é condição para a política e, enquan-
to fim em si, ela é absorvida pelo fechamento em relação ao mundo e estabelece o isolamento
entre os homens, de acordo com a característica das massas. Cabe destacar ainda que, enquan-
295
Ibid., p. 72.
296
Ibid., p. 74.
297
Neste aspecto poderíamos prolongar a discussão, introduzindo questões relativas às condições para o exercí-
cio da vida pública e da própria liberdade. No entanto, há posições divergentes sobre este debate. Para a corrente
marxista, a condição para a realização da política e da liberdade está na eliminação da propriedade privada que,
no seio do sistema capitalista é sinônimo de opressão, exploração. Para os liberais, a propriedade é a condição
básica para a realização dos ser humano e todos os conflitos que impossibilitam o alcance do exercício da liber-
dade. No entanto, interessa destacar aqui que a vertente grega, que não se coaduna nem com num e nem com
outro. Na pólis grega, a propriedade significava a possibilidade para ser cidadão. Ela era, neste sentido, condição
à vida política, apesar de ser, muitas vezes, mal interpretada pela prática da escravidão que é concebida da mes-
ma forma que no contexto moderno. Compreensão errônea, pois o escravo não era a figura destituída de tudo,
pois, além de posse, ele sabia que ao garantir que seu senhor participasse da vida pública tinha plena certeza que
as suas ações seriam para o bem da cidade. Entendemos, neste sentido, que o problema não está ligado direta-
mente à posse, ate porque todos necessitamos de um meio para garantir nossa sobrevivência. O problema está
naquilo que fazemos da posse, na quantidade de posse que pretendemos e no fim que damos aos bens que temos.
Mas este é, como disse, um debate longo e que mereceria, por si só, um tema a ser discutido, considerando, in-
clusive, a sua pertinência no contexto atual.
114
to meio, a propriedade jamais deve ser e ter em si a justificativa da posse de bens, consideran-
do que a posse, por si só, desencadeia a emergência do individualismo.
A reinvindicação da propriedade em Arendt pretende destacar a sua importância para a
política e, nesse sentido, não refere que ela deve ser apenas direito de alguns, mas que os ho-
mens a tenham, primeiro, para garantir a sobrevivência mínima; segundo, para garantir a pos-
sibilidade de ser cidadão, visando a superar o simples apego às coisas como expressão da sa-
tisfação resultante do gozo e do consumo, própria do labor e da vida das massas. Em poucas
palavras, Arendt afirma que
[...] a posse da propriedade significava dominar as próprias necessidades vitais e,
portanto, ser potencialmente uma pessoa livre, livre para transcender a sua própria
existência e ingressar no mundo comum a todos. [...] Caso o dono de uma proprie-
dade preferisse ampliá-la ao invés de utilizá-la para viver uma vida política, era co-
mo se ele espontaneamente sacrificasse a sua própria liberdade e voluntariamente se
tornasse aquilo que o escravo era contra a vontade, ou seja, um servo da necessida-
de.
298
No caso da esfera pública, Arendt introduz a discussão recuperando a abrangência do
termo “público” que, a seu ver, “denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas não per-
feitamente idênticos.”
299
O público significa “tudo aquilo que pode ser visto e ouvido por to-
dos e tem maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos
outros e por nós mesmos – constitui a realidade.
300
Essa concepção do comum, apresentada
como constituição da realidade, passa também pelas questões ligadas à vida íntima, isto é, as
paixões do coração, pensamentos, sentimentos. O exemplo mais conhecido da transformação
das questões íntimas individuais em públicas ocorre na narração de histórias e experiência da
obra de arte.
No entanto, há duas condições que são as mais privadas e menos comunicáveis de to-
das. Uma é a questão da dor física, pois nela se é incapaz de dar forma adequada publicamen-
te porque somente aquele que sente sabe da profundidade da sua existência, e mesmo que
tente, não consegue exprimi-la, representá-la na sua totalidade, porque só ele sente. Outra se
refere à morte, que comumente é apresentada como tendência dos vivos na velhice, “é tão
subjetiva e alheia ao mundo das coisas e dos homens que não pode assumir qualquer tipo de
298
CH, p. 75.
299
Ibid., p. 59.
300
Id., Ibid.
115
aparência”.
301
O perigo inerente a tais situações está no apego demasiado às questões e coisas
da esfera privada provocando o declínio da esfera pública e o encantamento com “pequenas
coisas”, descritas por Arendt como preocupação voltada unicamente para
dentro do espaço de suas quatro paredes, entre o armário e a cama, entre a mesa e a
cadeira, entre o cão e o gato, o gato e o vaso das flores, dedicando a estas coisas um
cuidado e uma ternura que, num mundo em que a rápida industrialização destrói
constantemente as coisas de ontem para produzir objetos de hoje, pode até parecer o
último recanto puramente humano do mundo.
302
Em segundo lugar, Arendt destaca que o termo “público” “significa o próprio mundo,
na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que cabe dentro dele”.
303
No en-
tanto, essa concepção de mundo ou de natureza, enquanto espaço que possibilita ao homem se
movimentar e desenvolver-se organicamente “tem a ver com o artefato humano, com o produ-
to de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que nele habitam em comum”.
304
No presente espaço, como o próprio termo diz comum designando espaço de todos, não pode
haver colisão e sobreposição de um sobre o outro, pois “o lugar de um não pode coincidir com
o de outro, da mesma forma como dois objetos não podem ocupar o mesmo lugar no espa-
ço.”
305
A esfera pública, diferentemente da privada, possibilita que todos sejam vistos e ouvi-
dos. O mais importante nesse processo é criar as condições para que todos vejam e todos pos-
sam ouvir, caracterizando o espaço da existência entre iguais, enquanto humanos, e, mais que
isso, dizer, falar, assegurando o espaço entre diferentes, próprio da condição humana. Este
último aspecto é fundamental porque, desse modo, “as coisas podem ser vistas por muitas
pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à
sua volta sabem que vêem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade manifes-
tar-se de maneira real e fidedigna”.
306
Portanto, essa forma de organização comum é possível
porque considera a condição de pluralidade dos homens, pois quando visto somente sob um
único prisma e com uma única perspectiva, o mundo comum acaba, definha, torna-se tirania.
A reflexão de Francisco Ortega é de que o espaço público compreendido e defendido por
Arendt
301
Ibid., p. 61.
302
Ibid., p. 61 e 62.
303
Id., Ibid.
304
Id., Ibid.
305
Ibid., p. 67.
306
Id., Ibid.
116
se apresenta sempre sobre uma multiplicidade de aspectos [...], ou seja, o fim do
mundo compartilhado, o espaço dos assuntos humanos, aparece no momento em que
ele é visto sob um aspecto particular e não na sua multipilicidade. Sua ênfase na plu-
ralidade, no agonismo, na teatralidade e na performatividade, lhe impede de apresen-
tar a esfera pública como uma unidade.
307
Entretanto, para que tal estrutura subsista, é necessário, em primeiro lugar, considerar
que a esfera comum é formada de seres humanos com igualdade de condições. Em segundo,
oferecer condições para que os seres humanos possam estabelecer relações, considerando que
elas não acontecem naturalmente. Em terceiro, é preciso criar leis que garantam a sustentação
da igualdade entre os homens. Em quarto lugar, possibilitar que todos possam agir e falar,
pois a esfera pública é o lugar de aparência dos seres humanos. Neste espaço, eles se manifes-
tam, o ator se revela, identificando-se e realizando promessas públicas. Os homens não temem
a situação de des-nudamento e des-velamento, pois visam a dizer quem são, revelando suas
identidades próprias, singulares, demarcando uma forma inteiramente nova no âmbito públi-
co, considerando que a ação é carregada de imprevisibilidade, resultante da capacidade huma-
na de criar novos começos e pela sua condição de pluralidade que permite a realização da
ação política.
Todavia, Arendt chama atenção para o fato de que, neste mundo, o espaço público não
é simplesmente o lugar em que os seres humanos dizem quem são, o que pensam, como sim-
ples presente, constituído apenas para uma geração e para os que nele habitam. O mundo co-
mum, diz Arendt: “deve transcender a vida de homens mortais. Sem essa transcendência para
uma potencial imortalidade terrena, nenhuma política no sentido estrito do termo, nenhum
mundo comum e nenhuma esfera pública são possíveis.”
308
Esse é o ponto crucial da discus-
são política, pois longe de todo e qualquer romantismo à política, de todo e qualquer relati-
vismo na esfera pública como simples espaço dos homens dizer quem são e o que pensam.
Sem mais, Arendt volta-se à esfera pública para destacar que a ação humana visa a alcançar a
imortalidade
309
e nela todo seu compromisso político como expressão de grandes feitos, dig-
nos de merecer a permanência na história e a lembrança das futuras gerações.
307
ORTEGA, Francisco. Hannah Arendt, Foucault e a reinvenção do espaço público. In: Revista
Trans/Form/Ação, São Paulo: UNESP, nº 24, p. 225-236, 2001, p. 227. Nossa ênfase.
308
CH, p. 64. Nosso destaque.
309
A este respeito Arendt destaca o famoso trecho de Aristóteles apresentado na Ética a Nicômaco 1177b 31 que
diz: “ao considerar os negócios humanos não se deve ... considerar o homem como ele é nem considerar o que é
mortal nas coisas mortais, mas pensar neles (somente) na medida em que têm a possibilidade de se tornarem
imortais.” ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Apud CH p. 65. Arendt também recupera a centralidade pólis
117
No entanto, Arendt chama atenção para a confusão entre as esferas pública e social.
Na sua avaliação, a confusão tem origem na tradução do zoon politikon de Aristóteles como
animal socialis
310
. Essa tradução acaba gerando a substituição do âmbito da política pelo soci-
al, causando o esquecimento da primeira.
Os primeiros a aplicarem o significado político à palavra social foram os romanos que
através do uso da palavra societas visavam a indicar “certa aliança entre pessoas para um fim
específico, como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um
crime”.
311
Segundo Arendt, essa forma de ação política atribuída ao social era ainda muito
limitada e é somente uma sociedade da espécie humana que o termo social passa a ter o senti-
do de condição humana fundamental. Mas esse novo conceito ainda é insuficiente para os
gregos porque ele expressa uma forma de organização em que as relações são baseadas nas
necessidades biológicas, segundo o modo de associação natural, própria da vida privada e da
vida animal em geral. E isso não significa a dimensão última da vida política na pólis que,
além da destruição de unidades baseadas no grau de parentesco, destaca somente duas ativi-
dades consideradas políticas e, segundo Aristóteles, dignas de expressarem a constituição do
que se chamava bios polítikos: “a ação (práxis) e o discurso (léxis), dos quais surge a esfera
dos negócios humanos [...] ”.
312
Na reflexão arendtiana, a esfera social localiza-se entre o privado e o político. No seu
texto Little Rock, Arendt define a sociedade como
esse reino peculiar, híbrido entre o político e o privado, em que desde o início da
modernidade as pessoas passam a maior parte de suas vidas. Pois, sempre que aban-
donamos as quatro paredes protetoras de nosso domicílio privado e cruzamos a porta
da vida pública, não aparecemos no reino da política e da igualdade, mas na esfera
da sociedade. Vamos a essa esfera porque necessariamente temos que obter nosso
sustento ou recorremos a ela porque queremos exercer nossa profissão, ou porque
nos atrai a diversão que nos oferece a sociabilidade.
313
grega e da res publica para os romanos, destacando: “em primeiro lugar a garantia contra a futilidade da vida
individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservando a relativa permanência, senão à imortalidade,
dos mortais.” CH, p. 66.
310
Tomás de Aquino traduz da seguinte forma: “homo este naturaliter politicus, Id est, socialis (‘o homem é, por
natureza, político, isto é, social’).” Cf. AQUINO, Tomás de. Summa Teológica i. 96. 4; ii.2 109.3. Apud CH, p.
32.
311
CH, p. 32.
312
Ibid., p. 34.
313
ARENDT, Hannah. Little Rock. Apud ABREU, Maria Aparecida. Hannah Arendt e os limites do novo. Rio
de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 35.
118
Nessa passagem, Arendt recupera o problema que ela mesma havia mostrado com a
ascensão da sociedade na era moderna em a CondiçãoHumana. A ascensão da sociedade ao
plano político provoca a substituição da ação pelo comportamento e a substituição do governo
pessoal pela burocracia. No entanto, o problema maior localiza-se na indicação da sociedade
como constituição da organização pública. Tal indicação instaura a organização da política
nas bases do processo vital, pois “a nova esfera social transformou todas as comunidades mo-
dernas em sociedades de operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades
concentravam-se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida - o
labor”.
314
Concebida dessa forma, a política torna-se meio para resolver o problema da resis-
tência de muitos que atribuem importância pública às atividades que dizem respeito à sobre-
vivência. Diante disso, ocorre o descaso com a política e o banimento da ação e do discurso
para o apego às questões estão ligadas às esferas íntima e privada, próprias do labor.
A presente situação configura o rompimento das esferas pública e privada, ou, dito, de
outro modo, o engolfamento do público no privado. Diante disso, além do rebaixamento da
política, conforme destacado acima, a vita activa, que antes fora marginalizada pelo domínio
da vita contemplativa, estendida na idéia de eternidade, agora passa a ser dominada pelo aten-
dimento às necessidades e utilidades da vida privada, isto é, do labor. Para Arendt, essa situa-
ção é fundamental porque configura a perda e confusão nas atividades da vita activa. Daí a
necessidade de recuperar a centralidade de cada uma das suas atividades e esclarecer a condi-
ção humana presente em cada uma delas, visando, como objetivo maior, a demonstrar o lugar
da realização da política e nela a possibilidade de efetivação da imortalidade.
4.2 As atividades da vita activa
A explicitação das atividades da vita activa, labor, trabalho e ação pretendem ir além
de uma simples diferenciação entre elas. Nesse sentido, três aspectos podem ser destacados. O
primeiro, refere-se à preocupação central de Arendt no desenvolvimento da obra A Condição
Humana, destacado por ela como uma reflexão sobre aquilo que se está fazendo. Assim, diz:
314
CH, p. 56.
119
O que estamos fazendo é, na verdade, o tema central deste livro, que aborda somente
as manifestações mais elementares da condição humana, aquelas atividades que tra-
dicionalmente, e também segundo a opinião corrente, estão ao alcance de todo ser
humano [...] Sistematicamente, portanto, o livro limita-se a uma discussão do labor,
do trabalho e da ação.
315
Além disso, na introdução geral das três atividades, Arendt acentua que “trata-se de a-
tividades fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas me-
diante as quais a vida foi dada ao homem na Terra”.
316
A esse respeito, Arendt refere-se às
condições gerais que possibilitam o desenvolvimento da existência humana, desde o nasci-
mento até a morte. Daí a sua importância e pertinência, considerando que o labor, o trabalho e
a ação englobam a totalidade do que-fazer humano, possibilitando a sua construção e desen-
volvimento.
O segundo aspecto refere que “para evitar erros de interpretação: a condição humana
não é o mesmo que natureza humana, e a soma total das atividades e capacidades humanas
que correspondem à condição humana não constitui algo que se assemelhe à natureza huma-
na.”
317
Na avaliação de Arendt, jamais se tem o alcance da resposta à pergunta: Afinal, o que
sou eu? Essa é uma questão que implica a natureza do ser humano e a resposta para tal só po-
derá ser dada por Deus. Diferentemente é a resposta à pergunta: Quem sou? A sua resposta é
simples: um homem. A resposta à primeira pergunta é impossível porque ela é sobre-humana
e também porque nela está a exigência de uma resposta absoluta e, considerando a condição
humana contingente e plural, jamais se chegaria a um consenso.
De outra parte, a simplicidade da resposta à segunda pergunta não significa extrema
facilidade, pois como o próprio Santo Agostinho
318
já havia discutido “no ‘grande mistério’,
no grande profundum que é o homem (iv. 14), há algo do homem (aliquid hominis) que o pró-
prio espírito do homem que nele está não sabe”.
319
Além disso, em outra obra Santo Agosti-
nho retoma tal questão atribuindo ao homem a característica de um iniciador. A esse respeito
315
Ibid., p. 13.
316
Ibid., p. 15.
317
Ibid., p. 17 e 18.
318
Toda a discussão que Arendt estabelece em torno da condição humana e da natureza humana tem como base
Santo Agostinho, pois, na sua avaliação, ele é o primeiro a levantar a questão antropológica na filosofia, através
do estabelecimento da diferença entre as perguntas “Quem sou?” e “O que sou?”. Assim disse: “A minha per-
gunta consistia em contemplá-las; a sua resposta era a sua beleza. Dirige-me, então, a mim mesmo, e perguntei-
me: ‘E tu, quem és?’ ‘Um homem’ respondi. Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões.Tradução de J. Oliveira San-
tos e A. Ambrósio de Pina. 2ªed., São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 175. A esse respeito também pode ser con-
sultada a CH, p. 18.
319
CH, p. 19 - nota de rodapé, ou, nas Confissões, onde diz: “E que sou eu, ó meu Deus? Qual a minha natureza?
Uma vida variada de inúmeras formas com amplidão imensa.” Cf. AGOSTINHO, op. cit. p.183.
120
diz: “(Initium) ergo ut esset ereatus est homo, ante quem nullus fuit (‘portanto, o homem foi
criado para que houvesse um começo, e antes dele ninguém existia’)”.
320
Portanto, nessa situ-
ação, o homem é a expressão da inauguração e introdução da liberdade no mundo e por mais
que se tente prendê-lo em conceitos, mesmo assim, sempre pairará um “ar de mistério”.
O terceiro aspecto fala sobre a perspectiva central da análise de Arendt sobre as dife-
rentes atividades da vita activa. A filósofa judia afirma:
[...] não pretendo empreender uma análise exaustiva das atividades da vita activa,
cujas manifestações têm sido curiosamente negligenciadas por uma tradição que a
via basicamente do ponto de vista da vita contemplativa, mas tentar determinar, com
alguma segurança, o seu significado político.
321
O propósito de Arendt é claro. No centro da vita activa está a preocupação pelo resga-
te da sua implicação política. Mais que uma mera caracterização descritiva de cada atividade,
a reflexão sobre a vita activa deve conduzir para um olhar mais profundo, reflexivo e com um
foco definido. É evidente que em cada uma das atividades estão referidas formas diferentes de
realização da condição humana, mas é de extrema importância a compreensão da diferença
presente em cada uma, sobretudo, como bem assevera Eugênia Sales Wagner “pelo espaço
que ocupam na natureza ou no mundo, na esfera privada ou pública, pelo resultado final obti-
do através da realização das mesmas e pela maneira como os homens se expressam a partir de
cada uma delas.”
322
4.2.1 O labor: espaço da garantia da sobrevivência humana
O primeiro elemento a ser destacado no labor refere-se ao esforço arendtiano em dis-
tinguir entre labor e trabalho, tradicionalmente usados como sinônimos, mesmo pelas moder-
nas teorias do trabalho. Mesmo correndo o risco de ser ignorada, a presente distinção arendti-
ana embasa-se em uma testemunha muito eloqüente e obstinada, isto é: “a simples circunstân-
cia de que todas as línguas européias, antigas e modernas possuem duas palavras de etimolo-
gia diferente para designar o que, para nós, hoje, é a mesma atividade, e conservam ambas a
320
AGOSTINHO, Santo. De Civitate Dei xi, 20. Apud CH, p. 190.
321
Ibid., p. 88.
322
WAGNER, op. cit., p. 64.
121
despeito do fato de serem repetidamente usadas como sinônimas”.
323
Locke entende perfeita-
mente a distinção entre labor e trabalho quando afirma que o “labor do nosso corpo e o traba-
lho de nossas mãos”
324
, mas não avançou em relação à antiga distinção grega “entre o cheiro-
technes, o artífice, ao qual corresponde o Handwerker alemão, e aqueles que, como ‘escravos
e animais domésticos, atendem com o corpo às necessidades da vida’ - ou, na expressão gre-
ga, to somati ergazesthai, trabalham com o corpo ...”.
325
A característica fundamental que
diferencia labor e trabalho está no emprego do substantivo correspondente. Como substantivo,
labor não designa o produto final ou o resultado da ação de laborar. Na avaliação de Arendt,
ele permanece como substantivo verbal, mais apto para o gerúndio, ao passo que o trabalho
aplica nome ao produto feito. Contudo, entre todos esses aspectos, a diferença fundamental
está na atribuição conceitual utilizada pelas diferentes línguas clássicas. A língua grega dife-
rencia entre ponein e ergazesthai; o latim, entre laborare e facere ou fabricari, que têm a
mesma raiz etimológica; o francês, entre travailler e ouvrer; e o alemão entre arbeiten e wer-
ken. Para Arendt,
em todos estes casos, só os equivalentes de ‘labor’ têm conotação de dor e atribula-
ção. O alemão Arbeit aplicava-se originalmente ao trabalho agrícola executados por
servos, e não ao trabalho do artífice, que era chamado Werk. O Francês travailler
substituiu a outra palavra mais antiga, labourer, e vem de tripalium, que era uma es-
pécie de tortura.
326
Na avaliação de Arendt, esse é o motivo principal da distinção ter permanecido igno-
rada, pois o desprezo pelo labor deve-se ao fato dele não ter deixado vestígios ou marcas fei-
tas em monumentos e artefatos que possam ser lembrados e pela atribuição de dor a toda ação
que dele decorre. O labor sempre esteve ligado às atividades do suprimento das necessidades
da vida, cuja função foi mais deliberada historicamente aos escravos
327
. De qualquer modo,
Arendt dá um passo significativo e mostra que entre labor e trabalho há uma diferença que
precisa ser considerada, sobretudo nas implicações e resultados nas esferas públicas e priva-
das que deles provêm.
323
CH, p. 90.
324
LOCKE, John. Second Treatise of Civil Government. Seção 26. Apud CH, p. 90.
325
CH, p. 90.
326
Id., Ibid. Neste aspecto seguimos a tradução feita por Roberto Raposo, criticada por muitos como apresenta-
ção que dificulta a compreensão do significado das atividades do labor e do trabalho presentes na vita activa.
Utilizamos os termos de Roberto Raposo, mas procuramos destacar que o labor, utilizado por muitos como tra-
balho, significa o esforço empenhado para manter a sobrevivência e o trabalho, utilizado por muitos como obra,
significa a fabricação de objetos, mantendo, desta forma, o sentido original que Arendt desenvolvera em sua obra
CH. A este respeito pode ser consultado o texto de MAGALHÃES, Teresa Calvet de. A atividade do Trabalho
[Labor] em Hannan Arendt. In: Revista Ensaio (São Paulo), nº 14, 1985, p. 131-168.
327
O próprio Aristóteles “considerava como mais mesquinhas aquelas ocupações ‘nas quais o corpo se desgas-
ta’.” Cf. ARISTÓTELES. Política. 1258b35 ff, ou, CH, p. 92.
122
À luz de tal distinção, é possível perceber a característica fundamental do labor. No
intróito de sua obra, Arendt destaca essa centralidade, afirmando que
o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo
crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessi-
dades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição
humana do labor é a própria vida.
328
Dessa passagem, algumas afirmações podem ser ratificadas na caracterização geral do
labor. A primeira delas é a de que a sua atividade visa a manter a sobrevivência da espécie e
corresponde ao ciclo vital da natureza. Nessa atividade, não há começo e um fim previsível,
considerando que tudo gira em torno de um movimento cíclico, repetitivo que atende o desen-
volvimento do ciclo natural da vida. Podem ocorrer alterações na forma de obter os meios de
subsistência, mas tudo se encerra no consumo que acaba quando a própria vida é extinta. Por-
tanto, tudo gira em torno da vida e é a partir da sua subsistência que o labor se desenvolve.
A segunda afirmação que pode ser sustentada é a de que o labor, diferentemente do
trabalho, não visa a construir o mundo como morada permanente dos homens. Considerando
que tudo o que é produzido deve ser consumido, pois caso não for assim a produção em ex-
cesso acaba perecendo; a condição humana do labor é a própria vida. A mundanidade, no sen-
tido de permanência entre os homens, não é uma preocupação do labor. Tudo o que é produ-
zido deve ser aproveitado na maior intensidade e quantidade. Interessante notar que diante
dessa atitude, Eugenia Sales Wagner percebe que,
do ponto de vista da natureza, o labor realiza-se em harmonia com esta, pois os mei-
os de subsistência, arrancados da natureza, a ela retornam quer se destinem ao con-
sumo quer sejam abandonados à degradação. Os produtos do labor são, assim, os
mais necessários e os menos duráveis entre as coisas tangíveis e, por isso mesmo, os
mais naturais e os menos mundanos dos produtos.
329
Além disso, no labor, também não está em questão se todos os membros de uma famí-
lia ou grupo a que pertencem, esforçam-se para produzir meios de consumo. Interessa unica-
mente que a produção seja suficiente para manter a sobrevivência de todos, inclusive daqueles
que não têm condições de prover a sua, própria. A produtividade, nesse caso, é a própria vida
e a sua realização está associada ao consumo e garantia da reprodução da espécie. Entre es-
328
Ibid., p. 15.
329
WAGNER, op. cit., p. 65.
123
forço e dor não há diferença; tudo é diluído na alegria de poder passar um dia após o outro,
isto é, na felicidade de se estar vivo. Pobreza e miséria trazem desgraça e riquezas, que isen-
tam o esforço humano, acabam gerando tédio e atrapalhando no consumo e digestão necessá-
rias ao corpo humano. Ambas destroem a felicidade de estar vivo.
A terceira afirmação possível refere-se à atividade do labor ser desenvolvida unica-
mente na esfera privada. Na máxima, “tudo o que é produzido deve ser consumido”, nota-se o
desempenho de atividades e não de funções que visam a atender fins que estão além de si
mesmos. Não que isso signifique uma fuga do mundo, mas o próprio mundo a expele quando
toda atividade do homem torna-se uma prisão da privatividade do próprio corpo, apegada às
necessidades vitais, sem estabelecer compartilhamento e comunicação com as demais pesso-
as.
Outro elemento a ser destacado na reflexão sobre a atividade do labor refere-se à afir-
mação de Arendt no intróito do capítulo sobre o labor em que diz: “Neste capítulo criticarei
Karl Marx”
330
, enfrentando o peso e audácia diante de muitos pensadores que “ergueram-se”
às custas dos ideais marxistas.
Arendt reconhece em Marx a figura que melhor percebe o problema da emancipação
do labor na era moderna pelo fato de ter afirmado que ela não traz nova era de liberdade para
todos, mas submete todos à necessidade. Daí que, segundo a filósofa, Marx insiste que revo-
lução não pode ser apenas uma questão direcionada para a emancipação das classes trabalha-
doras. As classes trabalhadoras já haviam alcançado a sua emancipação, mas a emancipação
do homem em relação ao trabalho ainda não havia acontecido e esta deveria ser a grande luta
travada por todos os homens. Esse, na avaliação de Arendt, é o elemento utópico presente nos
ensinamentos de Marx e nele também se afirma a emancipação da necessidade que, em outros
termos, significa a emancipação em relação ao próprio consumo. Até aqui, perfeito. Marx
consegue captar o grande problema e a solução possível para ele. No entanto, dois fatores
acabam derrubando o seu intento.
O primeiro diz respeito ao aumento exagerado da industrialização que gerou a organi-
zação do trabalho nos moldes da automação. No dizer de Arendt, o perigo da automação
330
CH, p. 89.
124
não é tanto a tão deplorada mecanização e artificialização da vida natural, quanto o
fato que, a despeito de sua artificialidade, toda a produtividade humana seria sugada
por um processo vital enormemente intensificado e seguiria, sem dor e sem esforço,
o seu ciclo natural eternamente repetido. O ritmo das máquinas aumentaria e intensi-
ficaria enormemente o ritmo natural da vida, mas não mudaria - apenas tornaria mais
destruidora - a principal característica da vida em relação ao mundo, que é a de mi-
nar a durabilidade.
331
Com o advento da industrialização, a organização do trabalho e da própria vida muda
radicalmente. Além das condições desumanas resultantes da exploração no trabalho nos pri-
meiros estágios do capitalismo, as obras produzidas perdem o seu caráter de durabilidade e
são dominadas pelo espectro da sociedade de consumo, conforme já demonstrado no capítulo
anterior. Instaura-se o efêmero. A premissa da economia política clássica de que “o objetivo
final da vida ativa é a riqueza crescente, a abundância e a ‘felicidade da maioria’”
332
, acaba
não se confirmando, assim como o sonho dos necessitados e pobres na realização de sua feli-
cidade.
O segundo fator é oriundo da própria esperança marxiana de que as horas ociosas tor-
nam os homens emancipados das necessidades de consumo e o animal laborans passa a ser
um sujeito que produz. Na avaliação de Arendt, nisso reside o erro de Marx.
Cem anos depois de Marx sabemos quão falaz é este raciocinio: as horas vagas do
animal laborans jamais são gastas em outras coisas senão em consumir; e, quanto
maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites. O
fato de que não se restringe às necessidades da vida, mas ao contrário visa princi-
palmente as superfluidades da vida, não altera o caráter desta sociedade; acarreta o
grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objeto do mundo estará a
salvo do consumo e da aniquilação através do consumo.
333
O resultado presente em toda esta forma de realização da vida, mediada pelo consumo,
é o surgimento de uma cultura de massas, e o seu profundo problema é a infelicidade univer-
sal, conseqüência do desequilíbrio entre labor e consumo. Tudo o que existe no mundo passa
a ser regrado pela ordem do consumo, daí a sua conseqüente alienação, pois o mundo não
consiste em coisas unicamente regradas pelo consumo, mas em coisas que também devem
estar ao nosso serviço diante da sua utilidade e durabilidade (próprios do trabalho) e propor-
cionar espaços de integração entre os homens (próprios da ação).
331
Ibid., p. 145.
332
Id., Ibid.
333
Ibid., p. 147. Aqui é oportuno destacar que o contexto vivido por Arendt, tanto na Alemanha quanto nos Esta-
dos Unidos, favoreceu que ela defendesse este argumento de cunho pessimista, considerando o domínio liberal
presente nestas nações.
125
O terceiro e último elemento fundamental que merece ser destacado na atividade do
labor refere-se ao caráter apolítico do animal laborans. Tudo o que é desenvolvido na ativida-
de do labor não necessita da presença de outros homens e nem está unida ao mundo, conside-
rando que todo o resultado do labor deve ser diluído no consumo. Não está em questão a pre-
ocupação com a construção de espaços públicos, bem como a própria identidade, pois tudo
deve girar em torno do atendimento da necessidade de permanecer vivo, na estreiteza indivi-
dualista. Está ausente do seu processo a preocupação com a palavra e revelação dos homens
diante de suas ações, apesar de muitos operários, ao longo da história, terem lutado contra a
condição de meros trabalhadores servis, visando, também eles, a alcançar a condição de cida-
dãos pertencentes ao espaço público e com direito ao voto.
Atualmente os operários são membros pertencentes à sociedade e com direito de voto,
mas isso não significa que exerçam influência marcante no espaço público, porque como bem
refletiu Arendt no ascenso do social, a sociabilidade pode implicar, na maioria das situações,
não participação política, mas o desenvolvimento de uma atividade profissional que visa a
garantir a sobrevivência de tais pessoas. De qualquer modo, não é central no labor a preocu-
pação com questões pertinentes à política.
4.2.2 O trabalho: espaço da fabricação de objetos
Partindo da definição geral do trabalho, Arendt no início de sua obra A Condição Hu-
mana, diz que
o trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, exis-
tência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mor-
talidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo ‘artificial’
de coisas nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas frontei-
ras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a trans-
cender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanida-
de.
334
Essa é a passagem na qual Arendt apresenta de forma resumida a caracterização geral
do trabalho. Com base nas idéias que ela contém, reflete-se sobre os principais elementos e
suas implicações para o campo da política.
334
Ibid., p. 15.
126
O primeiro elemento demarca a grande diferença do trabalho em relação ao labor. No
trabalho estão relacionados todos os produtos que são moldados pelas mãos humanas, por isso
traduzem o artificialismo da existência humana. O que melhor caracteriza o trabalho é que
nele tudo é feito, nada aparece e vem pronto naturalmente como uma árvore que surge da se-
mente e brota até alcançar forma e desenvolvimento natural. Necessita-se da criatividade, das
mãos humanas e de utensílios que auxiliem no desenvolvimento das formas. Daí que a ex-
pressão mais comumente usada ao se referir ao trabalho nem sempre é este termo mesmo, mas
homo faber, ou fabricação.
Apesar de não possuir certeza do momento exato em que a expressão homo faber sur-
ge, Arendt destaca que
a palavra latina faber, que provavelmente se relaciona com facere (‘fazer alguma
coisa’, no sentido de produção), aplicava-se originariamente ao fabricante e artista
que trabalhava com materiais duros, como pedra ou madeira; era também usada co-
mo tradução do grego tekton, que tem a mesma conotação. A palavra fabri muitas
vezes seguida de tignarii designava especialmente operários de construção e carpin-
teiros.
335
A ação de fabricar algo demonstra que a dimensão inerente ao trabalho consiste reifi-
cação
336
, isto é, em transformação do trabalho a partir de matérias apanhadas pelo homem.
Aqui, diferentemente de Deus, que cria ex nihilo, o homem necessita de matéria para conse-
guir desenvolver formas e objetos que se destinam à utilidade, durabilidade e facilitação da
vida humana. Essa ação, necessariamente, implica a violência do homem em relação à nature-
za que não poderá gerar novas formas se não for destruída. Mas do fim da árvore surge a me-
sa, cadeira, entre outros objetos. Nesse aspecto, também se nota a diferença entre o animal
laborans e o homo faber, considerando que o primeiro assume uma postura de amo da nature-
za e o segundo destruidor da natureza. “Através do olhar do homo faber a natureza também se
torna objetiva - um meio a ser utilizado no processo de fabricação”.
337
335
Ibid., p. 149.
336
Segundo Mora, apesar de entendido sob vários sentidos, “encontra-se às vezes na literatura filosófica o vocá-
bulo ‘reificação’ (de res = ‘coisa’). Pode ser definido em geral como a ação ou efeito de converter algum em
coisa, ou de conceber algo por analogia com a natureza das ‘coisas’. Às vezes é empregado também o termo
‘coisificação’. Cf. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo IV. São Paulo: Loyola, 2001, p. 2493.
337
WAGNER, op. cit., p. 67.
127
O segundo elemento implica condições de possibilidade da criação e desenvolvimento
de objetos. A condição maior diz respeito à imagem, modelo que orienta o processo de produ-
ção. De nada adianta ter matéria se o homem não sabe o que fazer com ela. O modelo guia e
permite a programação e organização dos meios necessários e fins que deseja alcançar com a
matéria que está em processo de transformação, inclusive permitindo a continuidade da pro-
dução após o término de certos objetos. Tudo deve ser planejado para atingir a melhor qualifi-
cação do objeto produzido. Porém, mais que o modelo, o trabalho necessita também de ferra-
mentas e utensílios que facilitam a fabricação e possibilitam dar forma adequada à matéria.
“A conveniência e a precisão desses instrumentos são ditadas pelos fins ‘objetivos’ que ele
inventa a seu bel-prazer, e não por necessidades ou carências subjetivas.”
338
No entanto, é
difícil separar essas duas dimensões.
Aquele que faz determinado objeto, mesmo não sendo projeto seu, está seguindo o
projeto que alguém fez para ele poder orientar a produção. Além disso, com o avanço do con-
sumo e o papel decisivo da mercadoria no contexto pós-moderno, todos os objetos precisam
estar fortemente marcados pela subjetividade, especialmente daquele que está disposto a
comprar. Nesse sentido, a dimensão objetiva do trabalho, no contexto que vivemos, precisa
ser repensada, pois está-se pagando um preço bastante alto nas transformações planetárias
339
diante do exagero da “criatividade humana” nas formas de produção inerentes ao trabalho
atual.
338
CH, p. 157.
339
Este é um tema polêmico e têm ocupado muitos cientistas no debate das transformações planetárias diante das
diversas hecatombes ocorridas. Duas correntes vêm se destacando. De um lado, aqueles que defendem que as
transformações que vêm se apresentando no planeta Terra são resultados das ações dos homens que ao longo de
muitos anos preocuparam-se em destruir a natureza e lançar uma quantidade exagerada de gases-estufa na atmos-
fera. De outro lado, aqueles que defendem que as transformações são resultados da própria evolução do Planeta e
que a ação do homem não a mais determinante neste processo. Para ilustrar esta questão, dois textos são impor-
tantes neste debate. Um, intitulado Por trás do taco de hóquei, que trata de comprovações da contribuição da
humanidade para o aquecimento global. Cf. STIVAL, David. Por trás do taco de hóquei. Revista Scientific
American. Ano 3 – nº 35, abril de 2005, p. 24-25. Outro texto importante é: WILLIAM F. Ruddimann. Quando
os humanos começaram a alterar o clima? Revista Scientific American. Ano 3 – nº 35, abril de 2005, p. 58-65.
Esta segunda vertente adequa-se ao conceito de natureza utilizado por Arendt. Diz: “É característico de todos os
processos naturais o fato de existirem seu o auxílio do homem, e de que as coisas naturais não são ‘feitas’, mas
vem a ser por si mesmas o que são. (É este também o significado autêntico de nossa palavra ‘natureza’, quer a
derivemos da raiz latina nasci, nascer, ou formos buscá-la em sua origem grega, phisys, que vem de phyein,
surgir de alguma coisa, aparecer por si mesmo.)” Ver CH, p. 163. Porém, Arendt não entra nesta discussão, ade-
quando-se a uma ou outra posição. Ela discute as diversas ações humanas violentas, a exemplo da bomba atômi-
ca, como ações que visam causar a extinção dos humanos pelo próprios humanos, em nome de mais domínio e
eliminação da liberdade.
128
Outro aspecto que merece ser destacado neste horizonte diz respeito ao surgimento da
industrialização que passou a substituir os instrumentos e ferramentas pela máquina. Diante
disso, é muito apropriada a reflexão de Arendt colocando em questão se é o homem que deve
ajustar-se à máquina ou ao contrário. Nesse sentido, revela que,
ao contrário das ferramentas do artesanato, que em parte alguma do processo de tra-
balho deixam de ser servas da mão, as máquinas exigem que o operário as sirva, que
ajuste o ritmo natural do corpo ao movimento mecânico que lhes é próprio. (...) en-
quanto dura o trabalho com as máquinas, o processo mecânico substitui o ritmo do
corpo humano.
340
No entanto, a substituição definitiva acontece recentemente com o advento da automa-
ção, classificado por Arendt como o terceiro estágio do desenvolvimento da tecnologia. O
primeiro surge com o desenvolvimento da máquina a vapor e o segundo com a introdução da
eletricidade. Com a automação, a organização do trabalho muda radicalmente, e Arendt pro-
cura discutir o problema da tecnologia diante da transformação da vida e do mundo pela in-
trodução da máquina.
Quando criada, a máquina visava a tornar mais fácil a vida do homem, mas a história
mostra que ela introduziu mais no homo faber o desejo de construir um mundo que propria-
mente auxiliá-lo em seu processo vital, pois, nesse caso, ela só teria validade quando usada.
De qualquer modo, Arendt frisa de maneira muito apropriada que
a questão não é tanto se somos senhores ou escravos de nossas máquinas, mas se es-
tas ainda servem ao mundo e às coisas do mundo ou se, pelo contrário, elas e seus
processos automáticos passaram a dominar e até mesmo destruir o mundo e as coi-
sas. [...] Para a sociedade de operários, o mundo das máquinas substitui hoje o mun-
do real, embora este pseudomundo seja incapaz de realizar a mais importante tarefa
do artifício humano, que é a de oferecer aos mortais um abrigo mais permanente e
estável que eles mesmos. Em seu contínuo processo de operação, este mundo de
máquinas começa a perder até mesmo aquele caráter humano independente que os
instrumentos e utensílios e as primeiras máquinas da era moderna possuíam em tão
alto grau.
341
Ao mesmo tempo em que levanta a questão, em seguida, apresenta a resposta que sus-
cita a discussão acerca da gravidade que a introdução da máquina trouxe para o mundo
342
e,
340
CH, p. 160.
341
Ibid., p. 164 -166.
342
Nota-se em nos estudos arendtianos esta preocupação com o mundo. Quando analisa os problemas procura ir
mais longe não se detendo apenas aos problemas do homem, mas buscando compreender as questões do mundo.
Apesar de estar marcadamente voltada para uma análise negativa de todo o processo resultante das máquinas,
pois é necessário destacar que elas também possibilitaram inúmeros avanços, Arendt anteviu o problema central
129
em outras passagens, recupera a reflexão de Platão frente ao dito de Protágoras de que “o ho-
mem é medida de todas as coisas de uso (chremata), da existência das que existem e da ine-
xistência das que não existem.”
343
Apesar de várias críticas à Platão, aqui Arendt reitera um de seus méritos, a saber, o de
ter percebido “desde logo que, quando se faz do homem a medida de todas as coisas de uso,
está-se correlacionando o mundo com o homem-ususário e fazedor de instrumentos, e não
com o homem-orador, pensador, ou o homem de ação.”
344
Além disso, “Platão sabia perfei-
tamente que as possibilidades de produzir objetos de uso e de tratar de todas as coisas de todas
as coisas da natureza como objetos de uso são tão ilimitadas quanto as necessidades e talentos
do ser humano.”
345
Para Arendt, ele antevê o problema que passa a se apresentar nos séculos
posteriores na atitude do homo faber. Mas, além de Platão, Arendt também recupera Kant,
quando decide que “nenhum homem deve jamais se tornar um meio para outro fim; todo ser
humano é um fim em si mesmo”.
346
Nessa afirmação, Kant visava chamar atenção para que o
utilitarismo aplicasse as categorias de meios e fins somente para aquilo que lhe coubesse, isto
é, a fabricação e não para outros como o da política. O problema de Kant, na avaliação de
Arendt, é que sua tentativa acaba se tornando mera fórmula, diante da cegueira do homo faber
para a reflexão do “fim em si mesmo”.
O terceiro elemento a ser mencionado na atividade do trabalho é o de que a sua condi-
ção é estar presente no mundo. Os objetos fabricados devem ser expostos, seja para o mercado
de trocas, seja para a utilidade dos homens ou mesmo para serem contemplados como servir
de beleza no caso das obras de arte. Nesse sentido, o trabalho produz objetos que ganham
durabilidade que, em decorrência do uso e com o passar do tempo, acabam se desgastando,
com exceção da obra de arte
347
que, sem fins utilitários, perdura mais anos que outros objetos
que se apresenta em nosso contexto, sobretudo com o avanço da informática e o problema da instrumentalização
que passou do processo de fabricação para outras dimensões da vida humana, a exemplo da política, conforme
demonstramos no capítulo anterior.
343
Ibid., p. 171. Nesta passagem Arendt esclarece o problema de tradução atribuída ao dito de Protágoras. Mas a
palavra chremata não significa “todas as coisas”, mas sim àquelas que os homens usam, necessitam ou possuem.
Consultar CH, p. 171.
344
Id., Ibid.
345
Id., Ibid.
346
Ibid., p. 169.
347
Na CH Arendt afirma: “Dada a sua permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de
todas as coisas tangíveis; sua durabilidade permanece quase isenta ao efeito corrosivo dos processos naturais,
uma vez que não estão sujeitas ao uso por criaturas vivas - uso que, na verdade, longe de materializar sua finali-
dade inerente (como a finalidade de uma cadeira é realizada quando alguém se senta nela), só pode destruí-la.
130
de uso. Essa durabilidade dos objetos foi projetada para dar independência aos homens e esta-
bilizar a sua vida, pois eles as produziram para que tivessem alguma utilidade.
Diante dessa sua natureza mundana, os objetos produzidos pelo trabalho possibilitam
que os homens criem uma certa familiaridade e apego por alguns diante do constante contato
que estabelece com eles, inclusive diante da mesmidade e durabilidade dos objetos questio-
nar-se acerca da sua própria identidade. Numa passagem da Condição Humana, Arendt diz:
“[...] os homens, a despeito de sua contínua mutação, podem reaver sua invariabilidade, isto é,
sua identidade no contato com os objetos que não variam, com a mesma cadeira e a mesma
mesa”.
348
Com o passar dos anos, os homens observam que os objetos permanecem os mes-
mos em estrutura, sofrendo apenas algumas alterações de cor e desgaste do material resultante
do uso que deles são feitos. Sua objetividade permanece, e nisso a reflexão dos homens pode
ser levantada no sentido de perceber se a sua vida segue o mesmo ritmo dos objetos ou se ela
ganha novas dimensões.
No entanto, com o avanço da sociedade comercial, sob o mando do capitalismo, a du-
rabilidade acaba sendo interferida não somente pelo valor de uso, mas pelo valor de troca.
Nesse ponto, muitas coisas são produzidas e armazenadas para que possam servir de negócio
nas futuras trocas.
O quarto elemento a ser considerado na atividade do trabalho diz respeito à dimensão
pública que os objetos produzidos acabam ganhando. Algumas produções acontecem no pleno
isolamento, outras já colocam os operários em diálogo e necessidade de estar em grupos para
atender a conclusão da obra em fabricação. Depois de feitos, os objetos proporcionam a reu-
nião de pessoas, a exemplo das refeições e jogos em torno da mesa, possibilitando que os ho-
mens se relacionem entre si. Por fim, na mudança de valor de uso para valor de troca, os obje-
tos são produzidos para estarem dispostos em público como mercadorias destinadas às trocas.
Para Arendt, “este valor consiste unicamente na estima da esfera pública na qual as coisas
surgem como mercadorias; e o que confere esse valor a um objeto não é o labor nem o traba-
Assim, a durabilidade das obras de arte é superior aquela de que todas as coisas precisam para existir; e, através
do tempo, pode atingir a permanência.” Cf. CH, p. 181.
348
Ibid., p. 150.
131
lho, não é o capital nem o lucro nem o material, mas única e exclusivamente a esfera públi-
ca.”
349
Diferentemente do labor, nota-se que, no trabalho, a dimensão pública aparece aliada
ao seu desenvolvimento. No entanto, a forma de relacionamento na esfera pública, condicio-
nada pelo trabalho, não corresponde à dimensão exigida pela realização da política, pois “as
formas especificamente políticas de aliar-se a outras pessoas, de agir em concerto e falar com
elas, estão fora do alcance de sua produtividade”.
350
Os diálogos estabelecidos e as palavras
pronunciadas no âmbito do mercado de trocas, por exemplo, não visam a criar espaços de
aparecimento e revelação dos agentes, mas unicamente convencer o negociante no valor da
troca. A clareza disso pode ser verificada na seguinte passagem:
Contudo, no mercado de trocas os homens não entram em contato uns com os outros
fundamentalmente como pessoas, mas como fabricantes de produtos, e o que eles
exibem não são suas individualidades, nem suas aptidões e qualidades, como na
‘produção conspícua’ da Idade Média, mas seus produtos. Se o fabricante vai à praça
pública, não é por desejar contato com pessoas, mas com produtos; e o poder que
mantém coeso e existente este mercado não é a potencialidade que surge entre as
pessoas quando estas se unem na ação e no discurso; é a soma dos ‘poderes de troca’
(Adam Smith) que cada participante desenvolveu em seu isolamento.
351
Nesse sentido, o trabalho, mesmo tendo como condição humana a mundanidade, não
está nele a realização da política, apesar desta ter sido assumida e realizada de acordo com o
processo dos meios e fins, próprios da fabricação. A realização da política exige espaços pú-
blicos que tenham como preocupação única a relação dialógica entre os homens visando a
construir a si mesmos, tornando o mundo cada vez mais humano e menos dominado pela es-
tratégia da instrumentalização.
4.2.3 A ação: espaço da aparição dos homens
Da mesma maneira que nas atividades anteriores, introduz-se a discussão da atividade
da ação a partir da caracterização geral apresentada por Arendt no intróito do capítulo 1 da A
Condição Humana, que diz:
349
Ibid., p. 177.
350
Ibid., p. 175.
351
Ibid., p. 221 e 222.
132
A ação única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação
das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de
que os homens, e não o homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os as-
pectos da condição humana têm alguma relação com a política, mas esta pluralidade
é especificamente a condição - não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio
per quam - de toda vida política. [...] A pluralidade é a condição da ação humana pe-
lo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exata-
mente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha existir.
352
De posse de tais informações, investigar-se-á os elementos centrais que caracterizam a
atividade da ação, procurando destacar a sua importância política, já que é nela que a política
tem a condição de sua realização. Inicia-se pela questão da pluralidade, considerando ser esta
a condição humana da ação. Na afirmação de Arendt,
a pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto da
igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de com-
preender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever
necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano
não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não
precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender.
353
Toda a reflexão política arendtiana pretende destacar que o modo de realização da po-
lítica ao longo da tradição ocidental incorre em inúmeros problemas pelo fato de não conceber
a pluralidade humana como elemento essencial na criação de possibilidades para a realização
da política. A pluralidade é o fundamento através do qual o espaço público ganha consistência
e a privada visibilidade. A pluralidade demarca que os seres humanos são iguais, porque, além
de criar códigos próprios e comuns que os diferenciam dos demais animais presentes na Terra,
possibilitando o entendimento de uns aos outros quando falam e se expressam em palavras
questões da sua subjetividade e necessidades, têm, além disso, a capacidade de pensar e de-
monstrar preocupação com o futuro. No entanto, ao mesmo tempo em que têm muitos pontos
comuns, têm também, enquanto humanos, muitas diferenças que se apresentam claramente no
discurso e na ação. “A ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se mani-
festam uns com os outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens”.
354
Não se
demarca apenas uma diferença que se apresente na existência corpórea, isto é, grande, peque-
no, magro, gordo, bonito feio, entre outras qualidades, pois,
352
Ibid., p. 15 e 16.
353
Ibid., p. 188.
354
Ibid., p. 189.
133
ser diferente não equivale a ser outro - ou seja, não equivale a possuir essa curiosa
qualidade de ‘alteridade’, comum a tudo o que existe... . Em sua forma mais abstra-
ta, a alteridade está presente somente na mera multiplicação de objetos inorgânicos,
ao passo que toda a vida orgânica já exibe variações e diferenças, inclusive entre in-
divíduos da mesma espécie. Só o homem, porém, é capaz de exprimir essa diferença
e distinguir-se; só ele é capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar al-
guma coisa - como sede, fome, afeto, hostilidade ou medo.
355
O elemento fundamental é que a pluralidade se manifesta no homem como distinção e
aparência da sua subjetividade, tornando-se singularidade, isto é, próprio, específico e que é
somente de um, mesmo que tenha semelhanças com os demais. Essa é condição que sela o
fato de ser homem, mas ela “depende da iniciativa da qual nenhum homem pode abster-se
sem deixar de ser humano. Isto não ocorre com nenhuma outra atividade da vita activa”.
356
E
só é possível mediante o discurso e a ação. Sem essas duas dimensões pode-se até sentir e
dizer que o mundo está nos seres humanos, mas ele reclama que não nos vê, pois se está fora
dele e abandonado à condição da vida humana. Para caracterizar fundamentalmente a vida
humana, precisa-se agir, falar e estar entre os homens, mas eles optam, muitas vezes, pela
mediocridade e/ou pelo medo do conflito, negam-se, ocultam-se.
Participar ativa e intensamente no espaço público, de acordo com a condição de plura-
lidade significa que não se deve temer sobre as posições individuais e dos demais. De ante-
mão, precisa-se estar ciente e por que não dizer humilde das incertezas e de outra parte, pron-
to para enfrentar o conflito, considerando que a ação desencadeia reações e novas respostas
com outras posições e intenções, própria do convívio humano. Aliás, nessa questão das incer-
tezas e do conflito é o ponto em que Arendt localiza o elemento da fragilidade das questões
humanas porque nelas não há um porto seguro.
Segundo Sylvie Courtine-Denamy, “tal é a razão pela qual Platão desprezava essa fra-
gilidade das questões humanas, comparando as ações dos homens de Estado a gesticulações
de fantoches manobrados nos bastidores”.
357
Mas esse é ponto em que se quer chegar. Sem a
pretensão de desconsiderar as críticas de Arendt a Platão, porém refletindo à luz das práticas
das políticas atuais, especialmente no caso brasileiro, percebe-se claramente que a ação con-
flituosa no espaço público não é bem vinda. Nesse caso, Platão se faz contemporâneo. O jogo
das ações dos homens de Estado define-se nos bastidores, onde todas as estratégias são elabo-
355
Id., Ibid.
356
Id., Ibid.
357
Consultar COURTINE-DENAMY, op. cit., p. 328.
134
radas e aperfeiçoadas. Afirmar que a ação, atividade que expressa a condição humana da plu-
ralidade e nesta está a condição pela qual a vida política se realiza, é deveras um ato de ex-
trema coragem pela dificuldade que essa posição pode enfrentar à luz do contexto, ou, na per-
cepção dos estrategistas, isso é motivo de zombaria: “enquanto eles defendem a moralidade e
romantismo na vida pública, nós traçamos nossas estratégias e, depois, diremos que suas a-
firmações são importantes para ganhar o apoio deles nas deliberações”, dizem os estrate-
gos
358
.
Avançando na discussão da caracterização geral da atividade da ação, Arendt enfatiza
que é com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um
segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original do nosso aparecimen-
to físico original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilida-
de, como no trabalho.
359
Portanto, diferentemente do labor e do trabalho, a atividade da ação não é postulada
pela garantia da sobrevivência da espécie no sentido de empreender esforços para produzir
alimentos que dão sustentação à vida; nem se nutre pela relação meio-fim que orienta a fabri-
cação e usa de instrumentos que visam a construir objetos de uso. A ação pode ser estimulada
por fatores dessa ordem e outros que estão presentes no mundo, mas ela nunca deve estar
condicionada a eles por que a sua essência é ser sempre começo, assim como o nascimento.
A condição dos homens pela idéia de nascimento inaugura uma nova forma de com-
preensão do ser humano. A idéia magna que merece destaque é a novidade e a abertura. Se-
gundo Francisco Ortega, essa noção de nascimento,
só é realizável se sairmos da esfera da segurança e confrontarmos o novo, o aberto, o
contigente, se aceitarmos o encontro e o convívio com novos indivíduos, o desafio
do outro, do estranho, do desconhecido, sem medo nem desconfiança, como uma
forma de sacudir formas fixas de sociabilidade, de viver no presente e redescrever
nossa subjetividade, de recriar o amor mundi.
360
A expectativa diante do nascimento é algo extraordinário, uma experiência ímpar. Por
mais que o avanço da medicina permita que se tenha a definição do sexo e amostra da estrutu-
358
À luz das práticas políticas atuais, ousamos considerar tais elementos.
359
CH, p. 189.
360
ORTEGA, op. cit., p. 234.
135
ra corpórea da criança ainda no ventre materno através de exames de ultra-sonografia, mesmo
assim, não se sabe como ela será pós-nascimento. Por experiência própria, pensa-se em inú-
meras idéias, mas nenhuma delas alcança a sua realização, pois o ser que nasce não é uma
extensão, no sentido que se pode ver nele a imagem refletida de muitas das ações e compor-
tamentos das pessoas. As transformações que ocorrem nos primeiros dias do recém-nascido
deixam as pessoas admiradas pela forma evolutiva de como as coisas se dão e, ao mesmo
tempo, inúteis diante das primeiras dores que elas sentem. Do ponto de vista da natureza hu-
mana
361
em si, nenhuma novidade. Sabe-se que todas as crianças assim que nascem passam
por transformações e, nos primeiros meses, geralmente, sentem cólicas e outras coisas do gê-
nero. No entanto, as transformações e dores que ocorrem numa delas não se repetirá em ne-
nhuma outra, por que são próprias, singulares, assim como o modo de expressão e comporta-
mento futuro. De qualquer modo, o nascimento tem essa marca própria de marcar a existência
como abalo e enriquecimento do mundo ao mesmo tempo, pois ele sempre estará começando
algo novo. E, diante disso, a explicação arendtiana da origem da ação significa
agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica
a palavra archein, ‘começar’, ‘ser o primeiro’ e, em alguns casos ‘governar’), im-
primir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino age-
re). Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores em virtude
do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativas, (initium) ergo ut esset, crea-
tus est homo, ante quem nullus fuit (‘portanto, o homem foi criado para que houves-
se um começo, e antes dele ninguém existia’), diz Agostinho em sua filosofia políti-
ca.
362
Eis o que significa ação: começo, início, novidade. Para sustentar a sua importância,
Arendt remonta à reflexão agostiniana da Criação, visando a resgatar a essência do ser huma-
361
Neste aspecto merece destaque a reflexão de Francisco Xarão que nos diz o seguinte: “No ciclo repetitivo da
vida (zoe) não há nenhuma novidade, pois é já desde sempre esperado. Do ponto de vista da natureza e da meta-
física o novo é absurdo: ‘todas as criaturas vivas, inclusive o homem, acham-se compreendidas neste âmbito de
ser-para-sempre’ da natureza e ela ‘assegura, para as coisas que nascem e morrem, o mesmo tipo de eternidade
das coisas que são e não mudam’. O nascimento, crescimento, procriação e morte são o tipo de eternidade das
criaturas vivas. Daí que nascer, do ponto de vista da natureza não tem nenhuma novidade, pois não é o início de
nada, mas apenas a continuação no tempo através da procriação, da vida do ser vivo.” Cf. XARÃO, op. cit., p.
145.
362
Noutra passagem Arendt retoma a origem do termo agir visando mostrar como ele fora usado ao longo da
tradição. “Aos dois verbos gregos archein (‘começar’, ‘ser o primeiro’ e, finalmente, ‘governar’) e prattein (‘a-
travessar’, ‘realizar’ e ‘acabar’) correspondem os dois verbos latinos agere (‘por em movimento’, ‘guiar’) e
gerere (cujo significado original é ‘conduzir’). É como se toda a ação estivesse dividida em duas partes: o come-
ço, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos aderem para ‘conduzir’, ‘acabar’, levar a cabo o empre-
endimento. Não só as palavras se correlacionam de modo análogo, como a história do seu emprego é também
semelhante. Em ambos os casos, as palavras que originalmente designavam apenas a segunda parte da ação, ou
seja, sua realização - prattein e gerere - passaram a ser os termos aceitos para designar a ação em geral, enquanto
as palavras que designavam o começo da ação ganharam o significado especial, pelo menos na linguagem políti-
ca. Archein passou a significar, principalmente, ‘governar’ e ‘liderar’, quando empregada de maneira específica,
e agere passou a significar ‘liderar’ ao invés de ‘por em movimento’. Cf. CH, p. 202.
136
no, mostrando que não se trata da criação ou início de uma coisa, ao modo do mundo, “mas de
alguém que é, ele próprio, um iniciador”.
363
A criação do homem significa exatamente este
apelo ao preceito de início, também entendido como preceito de liberdade. Nisso se apresenta
no homem uma situação que, mais uma vez, configura a sua diferença em relação às demais
atividades da vita activa, porque nele, com o perdão da redundância, o que se pode esperar é o
inesperado, prever o imprevisível, o improvável. Na reflexão de Arendt,
isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada
nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. [...] Se a ação, como início,
corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natali-
dade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição hu-
mana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais.
364
Esse é o segundo ponto da discussão sobre a ação. A ação, enquanto tal, permite que o
homem dê início e marque a história como constante abertura para a novidade, mas a objeti-
vidade da distinção humana se apresenta mediante a palavra. Pela palavra, diz-se quem é, re-
velando a dimensão interior, a subjetividade, constrói-se a identidade
365
. Politicamente falan-
do, o discurso é mais importante que todas as demais dimensões da vida humana porque, atra-
vés dele, os homens mostram-se, revelam-se. Ele assume um grau de importância maior que
simples meio de comunicação entre as pessoas. Todavia, para cumprir seu desiderato o dis-
curso exige dos homens responsabilidade e compromisso consigo mesmo e com os demais,
pois palavras vãs, “soltas ao vento”, sem implicação pessoal podem não passar de futilidades.
Inclusive, quando os homens falam a respeito de ou sobre outros para outros e, sobretudo, no
exercício de atividades público-governamentais, diante da dimensão da revelação, hão de a-
prender sobre o cuidado e zelo com as palavras porque,
na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas iden-
tidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto
suas identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conforma-
ção singular do corpo e no som singular da voz. [...] Esta qualidade reveladora do
discurso e da ação vem à tona quando as pessoas estão com outras, isto é, no simples
gozo da convivência humana, e não ‘pró’ ou ‘contra’ as outras.
366
363
CH, p. 190.
364
Ibid., p. 191.
365
Para Francisco Ortega, o grande mérito de Arendt é de que “ a identidade humana aparece então como uma
realização no espaço público e não como nada. [...]. A subjetividade é para Arendt um fenômeno do mundo, uma
questão de estilo e caráter. [...] Hannah Arendt distancia-se de toda visão essencialista do sujeito, de toda tentati-
va de psicologização da subjetividade. Somente voltados para o mundo é que atingimos nossa identidade, no
espaço público revelamos ‘quem’ somos e não ‘o que’ somos.” Cf. ORTEGA, op. cit., p. 230 e 231.
366
Ibid., p. 192.
137
A responsabilidade implicada nesta forma de conceber a ação e discurso muda total-
mente as formas de relacionamento entre as pessoas e mesmo no exercício de algumas fun-
ções públicas que vem marcada de constantes promessas e chavões eleitoreiros. Revelar quem
são as pessoas quando falam, faz pensar seriamente naquilo que se quer dizer, mas o impor-
tante é que seja dito. Todavia isso só é possível quando se está na companhia de outras pesso-
as, visando a construir o espaço público como lugar da convivência humana, sem preocupa-
ções de ataques fulminantes para destruir as demais pessoas e/ou demarcar posição que esteja
a favor de um pelo benefício que ele poderá trazer no futuro ou contra o outro porque suas
qualidades não são bem aceitas pela maioria das pessoas.
A atividade da ação só acontece no espaço onde a convivência e relações humanas e-
xistentes se fizerem presentes. Indiferente do grupo, religião, sexo, raça... que se pertence,
jamais se deve temer a revelação que outrora foi considerada como atitude de glória e mere-
cedora de lembrança para todos os tempos, por que permite que a vida de determinada pessoa
possa entrar para a história, ser imortal. Nesse aspecto, Arendt frisa com muita propriedade a
importância da manifestação do homem na ação porque “sem a revelação do agente no ato, a
ação perde seu caráter específico e torna-se um feito como outro qualquer. Na verdade passa-
se a ser apenas um meio de atingir um fim, tal como a fabricação é um meio de produzir um
objeto”.
367
Talvez seja esse o grande empecilho que faz da ação uma atividade periférica.
“Desprovida de nome, de um ‘quem’ a ele associado, a ação perde todo sentido... .”
368
Este é
ponto central: “o que está em jogo é o caráter de revelação, sem o qual a ação e o discurso
perderiam toda relevância humana.”
369
E este é também o grande desafio da reconsideração
da vita activa para a recuperação do sentido da política, porque o espaço público pressupõe
um espaço de aparição dos homens e não de obras. Mas, segundo Arendt,
geralmente somos tentados desviar dizer não “quem” alguém é, mas “o que” esse
alguém é. Diz: “Embora plenamente visível, a manifestação da identidade impermu-
tável de quem fala e age retém certa curiosa intangibilidade que frustra toda tentativa
de expressão verbal inequívoca. No momento em que desejamos dizer quem alguém
é, nosso próprio vocabulário nos induz ao equívoco de dizer o que esse alguém é;
enleamo-nos numa descrição de qualidades que a pessoa necessariamente partilha
com outras que lhe são semelhantes; passamos a descrever um tipo ou ‘personagem’,
na antiga acepção da palavra e acabamos perdendo de vista o que ela tem de singular
e específico.
370
367
Ibid., p. 193.
368
Id., Ibid.
369
Ibid., p. 195.
370
Ibid., p. 194.
138
No entanto, Arendt procura mostrar que, diante da complexidade da esfera dos negó-
cios humanos pela teia de relações humanas que dela emerge, a iniciativa dos novos processos
e condições de possibilidade dos agentes não podem ser atribuição a uma só pessoa. São mui-
tas histórias de vida que estão em contato e que, no futuro, poderão ser registradas em docu-
mentos e monumentos. Todavia documentos e monumentos não recuperam todas as vidas
envolvidas. Nesse sentido, no centro da história, apesar dela ter sido construída por muitas
pessoas, acaba sendo destacada como produto de alguns heróis, apesar de revelar agentes.
“Em outras palavras, as histórias, resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas
esse agente não é autor nem produtor. Alguém a iniciou e dela é o sujeito, na dupla acepção
da palavra, mas ninguém é seu autor.”
371
Essa é a questão que permite aos homens refletir
sobre qual é de fato a sua tarefa principal enquanto seres humanos. Considerando que eles não
são autores da história, cabe aos homens a tarefa de construir-se a si mesmo através da ação e
do discurso e quem sabe, no futuro, os historiadores registrem-nos entre os memoráveis heróis
da humanidade.
Diante disso e da situação de constante imprevisibilidade e fragilidade como marcas
essenciais do ser e das relações humanas, cuja expressão máxima resume-se na característica
geral da condição humana da pluralidade, em que cada homem revela sua identidade através
de palavras, pergunta-se: Como fugir e não dizer que a vida humana e a própria realização da
política não estão assentadas no relativismo, considerando a ação como auto-afirmação da
existência singular e isolada dos atores políticos, centrada na revelação dos agentes e destitu-
indo a garantia da estabilidade? Afinal, qual a importância em dizer quem são as pessoas para
a realização da política? Considerando a ação como atividade por excelência da realização da
política, onde se localiza a centralidade da política? Mais que isso, diante de atos imprevisí-
veis que tem resultados irreversíveis, qual alternativa é possível?
371
Ibid., p. 197. Noutra passagem da CH Arendt esclarece esta questão. Afirma: “A invenção do ator que se
esconde nos bastidores decorre de uma perplexidade mental, mas não corresponde a qualquer experiência real.
Com esta invenção, a história resultante da ação é falsamente interpretada como história fictícia, na qual um
autor realmente puxa os cordões e dirige a peça. A história de ficção revela um autor, tal como qualquer obra de
arte indica claramente que foi feita por alguém - e isto não se deve ao caráter da história em si, mas apenas ao
modo pelo qual ela veio a existir. A diferença entre a história real e a ficção é precisamente que esta última é
‘feita’, enquanto que a primeira não o é. A história real, em que nos engajamos durante toda a vida, não tem
criador visível nem invisível porque não é criada. O único ‘alguém’ que ela revela é o seu herói; e ela é único
meio pelo qual a manifestação originalmente intangível de um ‘quem’ singularmente diferente pode tornar-se
tangível ex post facto através da ação e do discurso.” Cf. CH, p. 198 e 199.
139
A primeira observação que deve ser feita em relação a tais questões é a retomada da
diferenciação entre a atividade da fabricação e da ação e nela uma nova forma de compreen-
são do poder. Parte-se de uma passagem célebre da Condição Humana, em que Arendt diz
que
a fabricação é circundada pelo mundo e está em permanente contato com ele; a ação
e o discurso são circundados pela teia de atos e palavras de outros homens, e estão
em permanente contato com ela. O mito popular de um ‘homem forte’ que, isolado
dos outros, deve sua força ao fato de estar só, é mera superstição baseada na ilusão
de que podemos ‘fazer’ algo na esfera dos negócios humanos - ‘fazer’ instituições
ou leis, por exemplo, como fazemos mesas e cadeiras, ou fazer o homem ‘melhor’
ou ‘pior’ não, aliada à esperança utópica de que seja possível lidar com os homens
como se lida com qualquer outro ‘material’. A força de que o indivíduo necessita pa-
ra qualquer processo de produção, seja intelectual ou puramente física - torna-se in-
teiramente inútil quando se trata de agir.
372
O conteúdo presente nessa passagem é de grande importância para a compreensão da
ação como atividade central da realização da política. Fazer projetos e obras que almejam ser
apresentados ao mundo e proporcionar estabilidade à vida humana é tarefa do homo faber. Na
atividade da ação, não se fazem coisas, objetos duráveis, projetos com definição de meios e
fins ao modo da cadeira, porque nela a centralidade são as pessoas. A incapacidade de fazer
dos homens isto ou aquilo, a não ser de acordo com os passos do domínio total
373
que torna os
homens mortos-vivos, isto é, destituídos de aparato jurídico, moral e aniquilados individual-
mente. Seres humanos não são meros objetos manipuláveis. A condição humana da ação pau-
tada na pluralidade é muito séria e de uma profundidade muito grande. Nela está a centralida-
de da reconsideração da vita activa que significa exatamente isto: colocar o ser humano no
centro da política e dizer que nela não há um ponto de chegada; há um ponto de partida e a
esperança utópica que jamais será alcançada, mas sempre alimentará o sentido do porquê se
vive. Lidar com política nessas condições é tarefa difícil, desafiante e nada fácil.
Constantemente, ouve-se a expressão popular: “lidar com pessoas é a coisa mais difícil
que existe”. Verdadeira, mas não catastrófica e desesperadora. Desafiante, sim! Talvez seja
por isso que muitos governantes concebem a política nos moldes da fabricação, ou seja, diante
da incapacidade das pessoas em estabelecer condições para o convívio humano, acabam op-
tando pelo mais fácil e conveniente, sem refletir pelos seus alcances e limites. Portanto, relati-
vismo não é o termo que caracteriza a realização da política no pensamento de Arendt. Plura-
372
Ibid., p. 201.
373
Desenvolvemos esta questão pormenorizadamente no primeiro capítulo deste estudo procurando mostrar a
brutalidade do Totalitarismo para a realização da política.
140
lidade humana, abertura para o inesperado, projetos abertos para novas iniciativas, congre-
gando todas as posições possíveis é o que se espera da política. Dito de outro modo, política é
o exercício de atividade sem fim, mas constante começo, cuja marca exige o aperfeiçoamento
e esforço humano contínuo.
O mito popular de um “homem forte” que tudo pode e que somente ele está apto a in-
dicar os caminhos que os demais devem seguir pode servir para outra coisa, menos para a
política. Força física é extremamente desnecessária à política, assim como poder não se con-
quista por intermédio dela. Quando as discussões políticas são mediadas e decididas pela for-
ça, decreta-se o fim do poder e da política e a vitória da violência. Uma política que não se
organiza pela violência, como bem expressa Carmelita Felício, em sua reflexão sobre o pen-
samento político de Arendt, “é uma política de abertura e debate sem fim: uma política que
acontece em um domínio público livre de força e coerção é o lócus próprio para a expressão
da pluralidade humana e igualdade cívica.”
374
A presente discussão é mais aprofundada por Arendt em sua obra Sobre a Violên-
cia
375
. Nela, Arendt destaca, em primeiro lugar, a importância de se distinguir entre alguns
conceitos-chave da política, a saber: poder, vigor, força, autoridade e violência. Todavia, ad-
verte que
o que está em jogo aqui não é uma simples questão de linguagem imprecisa. Por de-
trás da aparente confusão subjaz a firme convicção à luz da qual todas as distinções
seriam, no melhor dos casos, de pouca importância: a convicção de que o tema polí-
tica mais crucial é, e sempre foi, a queso sobre ‘quem domina quem’. Poder, vigor,
força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em fun-
ção dos quais o homem domina o homem; são tomados como sinônimos porque têm
a mesma função. Somente quando os assuntos públicos deixam de ser reduzidos à
questão de domínio é que as informações originais no âmbito dos assuntos humanos
aparecem, ou, antes, reaparecem, em sua autêntica diversidade.
376
Nessa passagem, Arendt acentua de maneira incisiva que a forma de concepção dos
termos poder, vigor, força, autoridade e violência seguem a perspectiva do tratamento da polí-
tica como espaço para demonstrar o domínio entre os humanos. Daí a sua veemente crítica ao
uso dos termos e suas implicações, especialmente no esforço de esclarecimento pela questão
374
FELÍCIO, op. cit., p. 180. Entendemos que ao usar o termo domínio, a autora esteja se referindo ao espaço
público.
375
Já referenciada neste estudo.
376
ARENDT, op. cit., p. 36.
141
do poder porque esse é o que mais se assemelha à ação. Já na A Condição Humana, a filósofa
judia diz o seguinte
O que primeiro solapa e depois destrói as comunidades políticas é a perda do poder e
a impotência final; e o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para
casos de emergência, como os instrumentos de violência: só existe em sua efetiva-
ção. Se não é efetivado, perde-se; e a história está cheia de exemplos de quem nem a
maior das riquezas materiais pode sanar essa perda. O poder só é efetivado enquanto
ato e palavra não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são
brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções mas para reve-
lar realidades, e os atos não usados para violar e destruir, mas criar relações e novas
realidades.
377
Diferentemente da maneira como foi e ainda está sendo usado, o poder “corresponde à
capacidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propri-
edade de um indivíduo”.
378
Portanto, é no poder que está a condição de existência da esfera
pública, a possibilidade de manifestação dos homens através da ação e do discurso. “O poder
passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles
se dispersam”.
379
“Todavia, deve ser admitido que é particularmente tentador pensá-lo em
termos de comando e obediência, e assim equacionar poder e violência, em uma discussão
que, de fato, é apenas um dos casos especiais do poder – isto é, o poder de governo”.
380
O elemento fundamental em questão está na demonstração do poder como condição
básica da realização da política, considerando que a sua geração é fruto da convivência huma-
na. Mais que isso, o poder pode ser dividido, sem causar danos ou reduzi-lo, mas, ao contrá-
rio, aumentá-lo. No entanto, pode ser corrompido quando se apresenta uma luta e nela os mais
377
CH, p. 212.
378
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. op. cit., p. 36.
379
CH, p. 212. Em relação ao poder é oportuno apresentar o resgate etimológico do termo. Arendt resgatou a sua
origem e destaca o seguinte: “A própria palavra, como seu equivalente grego dynamis, e o latino potentia, com
seus derivados modernos, ou o alemão Macht (que vem de mögen e möglich, e não de machen), indica seu cará-
ter de ‘potencialidade’. O poder é sempre, como diríamos hoje, um potencial de poder, não uma entidade imutá-
vel, mensurável e confiável como a força. Cf. CH, p. 212. E sobre os outros termos, na obra Sobre a Violência,
Arendt destaca o seguinte: “O vigor inequivocamente designa algo no singular, uma entidade individual; é a
propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence a seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação
com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferente delas.” (p. 37) Sobre a força afirmou “que
frequentemente empregamos no discurso cotidiano como um sinônimo da violência, especialmente se esta serve
como um meio de coerção, deveria ser reservada, na linguagem terminológica às ‘forças da natureza’ ou à ‘força
das circunstâncias’, isto é, deveria indicar a energia liberada por movimentos físicos ou sociais.” (Id.) Sobre a
autoridade frisa que a sua centralidade é o “reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obe-
deçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias. [...] Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa
ou pelo cargo.” (Id.) Por fim, sobre a violência, Arendt destaca que ela distingue-se por seu caráter instrumental.
Diz: “Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as
outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu últi-
mo estágio de desenvolvimento possa substituí-lo.” (Id.)
380
ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. op. cit., p. 38.
142
fracos se unem para destruir o forte. Dito de outro modo, quando se apela para a força e vio-
lência é porque o poder perdeu toda sua consistência. Jamais ele pode estar aliado à força,
mas ao respeito e reconhecimento, sim. Desse modo, o poder é o elemento que não pode faltar
à esfera pública porque nele o espaço de aparência – centro da vida política – tem a sua pre-
servação e possibilidade de manifestação. O poder “como tal, é também princípio essencial ao
artifício humano, que perderia sua suprema raison d’être se deixasse de ser o palco da ação e
do discurso, da teia dos negócios e relações humanas e das histórias por ele engendradas”.
381
Tudo porque “a ação e o discurso conferiram à política uma dignidade que ainda hoje não
desapareceu.”
382
A segunda observação que deve ser feita em relação às perguntas levantadas anterior-
mente – concebidas como soluções possíveis e parciais diante da fragilidade das ações huma-
nas – está no poder de perdoar e de prometer. O maior de todos os atos humanos diante das
incertezas humanas está na capacidade deles suportarem os resultados da irreversibilidade e
imprevisibilidade, originados no interior da atividade da ação
383
. Mas, na avaliação de Arendt,
isto é impossível. Apesar dos homens saberem que aquele que age não tem certeza de tudo o
que está fazendo e que resultados terá, mesmo assim, sempre lhe foi atribuído culpa por con-
seqüências que jamais desejara ou previra. Pior ainda está na impossibilidade de desfazer o
que está feito, mesmo que o ato tenha sido desastroso e imprevisto. Diante de tal situação, as
únicas soluções possíveis para garantir que a convivência humana não se destrua são as facul-
dades humanas de perdoar e prometer.
As duas faculdades são aparentadas, pois a primeira delas - perdoar - serve para des-
fazer os atos do passado, cujos ‘pecados’, pendem como a espada de Dâmocles so-
bre cada nova geração; a segunda - obrigar-se através de promessas - serve para cri-
ar, no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, certas ilhas de segurança,
sem as quais não haveria continuidade, e mesmo ainda durabilidade de qualquer es-
pécie, nas relações entre os homens.
384
O perdão é a condição que possibilita aos homens que eles recuperem a capacidade de
agir. Sem o perdão ficam submetidos à condição de vítimas e eternos responsáveis pelas con-
381
CH, p. 216.
382
Ibid., p. 217.
383
Para Arendt “tudo isto é motivo suficiente para que o homem se afaste, desesperado, da esfera dos negócios
humanos e veja com desdém a capacidade humana de liberdade que, criando uma teia de relações entre os ho-
mens, parece enredar de tal modo o seu criador que este lembra mais uma vítima ou um paciente que o autor e o
agente do que fez.” Cf. CH, p. 245.
384
Ibid., p. 249.
143
seqüências. Além disso, o perdão também possibilita a dissipação da vingança entre os ho-
mens, tornando-os menos violentos e mais dialógicos.
Apesar de ter sido atribuído significado estritamente religioso
385
, a centralidade do
perdão apresentada por Arendt, está voltada mais para a condição humana da pluralidade,
própria da ação. “O motivo da insistência sobre o dever de perdoar é, obviamente, que ‘eles
não sabem o que fazem’, e não se aplica ao caso extremo do crime e do mal intencional...”.
386
Note-se que há uma diferença que precisa ser enfatizada para evitar confusões e contradições
no pensamento arendtiano. A ênfase é a de que o perdão não é para todos os homens. O per-
dão só é possível nos casos de pessoas que agem e não sabem o que estão fazendo e quais
conseqüências podem resultar.
No entanto, como saber que as pessoas não sabem? Ou, como dizer que se sabe que
aquilo feito por alguém foi intencional? A situação é difícil, e a resposta a essas duas questões
são possíveis na medida em que se tem conhecimento das pessoas a quem se deve perdoar
porque, embora o perdão seja eminentemente pessoal, é preciso considerar o que e por quem
foi feito. Mas, de qualquer forma, há atos que não merecem perdão porque foram planejados.
Nesse sentido, à luz das práticas e maneira de conceber a política na atualidade e conhecendo
que tudo gira em torno de estratégias planejadas, é possível dizer que, em política, ainda deve
ter perdão? A questão é complexa, mas a crise da política não é a crise e expressão de todos
os homens. Além disso, a política é mais que a expressão de partidos e governos. Tratá-la,
dessa forma, seria desmerecer todo o esforço deste estudo. A política é o espaço em que os
seres humanos podem aparecer, dialogar e expressar suas opiniões frente às coisas e temas em
discussão. Portanto, ela pode manifestar-se e realizar-se em diferentes lugares, mas um único
espaço é próprio: o público.
385
Afirmamos isso partindo daquilo que Arendt disse na CH: “O descobridor do papel do perdão na esfera dos
negócios humanos foi Jesus de Nazaré. O fato de que ele tenha feito esta descoberta num contexto religioso e a
tenha enunciado em linguagem religiosa não é motivo para levá-la menos a sério num sentido estritamente secu-
lar.” Ver CH, p. 250.
386
Ibid., p. 251. Quanto aos males intencionais, Arendt diz: “Sabemos apenas que não podemos punir nem per-
doar esse tipo de ofensas e que, portanto, elas transcendem a esfera dos negócios públicos e as potencialidades
do poder humano, às quais destroem sempre que surgem. Em tais casos, em que o próprio ato nos despoja de
todo o poder, só resta realmente repetir com Jesus: ‘Seria melhor para ele que se lhe atasse ao pescoço uma pedra
de moinho e que fosse precipitado ao mar’ (Lucas 17, 1-5).” Cf. outras passagens nas páginas 252 e 253 da CH.
144
Acerca da faculdade de prometer, Arendt considera a sua importância e legado históri-
co uma vez que os pactos e alianças são práticas que se estendem desde o tempo de Abraão
387
.
Na reflexão arendtiana, o poder de prometer visa a solucionar, senão totalmente ao menos
parcialmente, o problema da imprevisibilidade humana. A origem do ato de prometer é dupla,
ou seja,
decorre ao mesmo tempo da ‘treva do coração humano’, ou seja, da inconfiabilidade
fundamental, que jamais podem garantir hoje quem serão amanhã, e da impossibili-
dade de se prever as conseqüências de um ato numa comunidade de iguais, onde to-
dos têm a mesma capacidade de agir. [...] A função da faculdade de prometer é acla-
rar esta dupla obscuridade dos negócios humanos e, como tal, constitui a única alter-
nativa a uma supremacia baseada no domínio de si mesmo e no governo de outros;
corresponde exatamente à existência de uma liberdade que é dada sob a condição de
não soberania.
A faculdade de prometer surge exatamente para garantir que as palavras pronunciadas
em discursos e discussões humanas tenham um peso de compromisso e responsabilidade da-
quele que as pronunciou. Considerando que todos estão sujeitos às diversas fragilidades que
permeiam o tecido das relações humanas, necessita-se de um horizonte onde se possa “instalar
certas ilhas de previsibilidade e erigir certos marcos de confiabilidade”.
388
Esse é o grande
mérito de fazer promessas. No entanto, as promessas perdem essa dimensão e abusam da fa-
culdade humana de prometer, no sentido dito por Arendt de “abarcar todo o futuro e traçar
caminhos seguros em todas as direções, as promessas perdem seu caráter de obrigatoriedade e
todo o empreendimento torna-se contraproducente”.
389
O ato de prometer jamais deve surgir para centrar em uma pessoa todo o controle das
ações que devem ser desencadeadas, ao modo dos meios e fins da fabricação e do poder do
soberano como a voz por excelência. Na reflexão de Lisa Disch, é importante destacar que,
em Arendt,
não é o eu que faz a promessa, mas sim a promessa que faz o eu. [...] Contrariamen-
te à compreensão da promessa como centrada no sujeito, Arendt sugere que [...] a
força moral de uma promessa deriva não de uma continuidade interna ao que o eu a
pronuncia, mas sim da presença dos outros diante dos quais a promessa é feita; não é
a subjetividade, mas a intersubjetividade, que torna as promessas moralmente vincu-
latórias.
390
387
“[...] Abraão, homem de Ur, cuja história na versão bíblica, revela tão grande inclinação de fazer pactos que é
como se houvesse deixado sua terra exclusivamente para pôr a prova na vastidão do mundo o poder da promessa
recíproca, até que o próprio Deus finalmente consentiu em firmar com ele uma Aliança.” Ibid., p. 255.
388
Ibid., p. 256.
389
Id., Ibid.
390
DISCH, Lisa Jane. More truth than fact:storytelling as critical understanding in the writings of Hannah Ar-
endt. Apud DUARTE, op. cit., p. 236.
145
Nesse sentido, é possível entender em que medida as promessas não significam a im-
posição da vontade de alguém ou de um só grupo. As forças das promessas encontram-se no
estabelecimento de ações futuras que são consensuadas por todos os envolvidos, com o pro-
pósito de que todos, unanimemente, concordam e assumem a responsabilidade e compromisso
do seu cumprimento. Todavia, as promessas não podem resultar em produto final. Essa é a
tarefa da fabricação, e a ação pode perder o seu caráter de autêntico.
A faculdade de prometer visa a enriquecer a ação e dispor o futuro como se ele fosse o
presente, no sentido de garantir o envolvimento dos envolvidos e possibilidade de cumpri-
mento daquilo que está sendo traçado. De forma alguma, a promessa deve eliminar a ação e o
discurso porque, sem elas, não há liberdade e possibilidade de manifestação de novos nasci-
mentos, que podem estar excluídos do convívio humano. Garantir que todos possam ser livres
e iniciar novos processos é a vocação por excelência da política. Promover e defender a liber-
dade é a sua tarefa e seu sentido, e a única atividade que pode proporcionar isso é a ação.
4.3 A recuperação do sentido da política
A explicitação da recuperação do sentido da política torna clara a reconsideração da
vita activa que, no pensamento de Arendt, tem uma demarcação política. Ao apresentar as
diferenças fundamentais em cada das atividades que compõem a vita activa, Arendt não pre-
tende estabelecer apenas uma caracterização geral de cada atividade; nem promover um con-
fronto entre vita activa e vita contemplativa, considerando a supremacia da última ao longo da
tradição política do Ocidente. A centralidade da reconsideração da vita activa, como demons-
trado, é recuperar o espaço da ação porque é nela que se localiza a centralidade, resgate do
sentido e dignidade da política frente às diversas experiências políticas do século XX, das
diversas confusões e preconceitos que nela se estabeleceram.
Na apresentação das atividades da vita actica, Arendt esclarece que a ação é a ativida-
de política por excelência, porque só ela acontece entre os homens, sem a mediação de ins-
trumentos e sem a preocupação fundada na garantia da sobrevivência. A ação é a atividade
política fundamental porque nela a condição humana se constrói na pluralidade, dimensão
primeira da resposta à pergunta – o que é política? – lançada por Arendt em agosto de
146
1950
391
. “A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o homem, os homens
são um produto mundano, e produto da natureza humana”.
392
Tanto a filosofia, quanto a teo-
logia e todo pensamento científico, ao procurar refletir sobre o homem, sempre tratam do ho-
mem, sem a preocupação de aprofundar a sua condição de pluralidade. Por outro lado, se for
feita uma análise das filosofias políticas, estendendo de Platão até os contemporâneos, haverá
surpresas com a diversidade de categorias presentes nas filosofias políticas de todos os gran-
des pensadores. Todavia, na avaliação de Arendt, “a política jamais atinge a mesma profundi-
dade. A falta de profundidade de pensamento não revela outra coisa senão a própria ausência
de profundidade, na qual a política está ancorada”.
393
O segundo elemento que Arendt destaca na resposta à pergunta – o que é política? – é
o de que “a política trata da convivência entre os diferentes. Os homens se organizam politi-
camente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos abso-
luto das diferenças”.
394
Arendt refere-se, nesse caso, à organização da política a partir da fa-
mília. Mas o que esta opção revela é o medo do homem diante das diferenças, tornando a polí-
tica um refúgio para garantir um abrigo estável e com diferenças que se estendem ao máximo
pelo grau de parentesco entre os membros. Daí que “ao invés de se gerar um homem, tenta-se
criar o homem na imagem de si mesmo”.
395
E quando a situação tende para a pluralidade e
aparição das diferenças, banca-se Deus para garantir o princípio da imagem e semelhança,
contra a diversidade, causando a perversão da política e anulação da condição humana básica
do ser humano. Daí o contraste com a reflexão política de Arendt.
Segundo Silvana Winckler, a instituição de um espaço público, à luz do pensamento
de Arendt, em nada se assemelha à vida doméstica. Diz ela: “as relações humanas no âmbito
privado têm um caráter de necessidade e geralmente baseiam-se em vínculos familiares. As
relações entre os cidadãos no espaço público têm como pressuposto a liberdade e a igualdade
e estabelecem vínculos políticos entre os sujeitos”.
396
391
Cf. QP, p. 21 a 24 onde Arendt apresenta pormenorizadamente os vários desdobramentos da resposta à per-
gunta: O que é Política? Não trataremos ponto por ponto, outrossim, procuraremos analisar e discutir sobre os
principais temas em questão.
392
Ibid., p. 21.
393
Id., Ibid.
394
Id., Ibid.
395
Ibid., p. 22. Atualmente este problema apresenta-se de maneira clara nas nomeações de confiança em cargos
públicos, mas vem sendo combatido pela criação de lei que trata destas situações como nepotismo político. De
qualquer forma, o argumento central é o do conhecimento e confiança nas pessoas para assumir tais funções.
396
Cf. WINCKLER, Silvana. Contribuições de Hannah Arendt para a teoria política. In: WOLKMER, Antônio
C. Introdução à história do pensamento político. RJ-SP: RENOVAR, 2003, p. 445.
147
O terceiro elemento que deve ser mencionado na resposta à pergunta acima referida,
diz respeito à situação que “o homem, tal como a filosofia e a teologia o conhecem, existe -
ou se realiza – na política apenas no tocante aos direitos iguais que os mais diferentes garan-
tem a si próprios”.
397
Quando colocados diante de situações em que precisam reconhecer a
pluralidade dos homens, ao exemplo de reivindicações juridicamente equânimes, os homens
aceitam-na, inclusive atribuindo esta condição de existência à criação do homem. Em outras
palavras, a pluralidade e a possibilidade de realização da política, muitas vezes, segue uma
lógica interesseira, pois demarca a diversidade quando traz benefício próprio.
Nesse aspecto, pode ser introduzido o debate acerca do interesse na política. Será a
política algo sem interesse? Sem interesse e desinteressada tem o mesmo sentido? Aqui é o-
portuno destacar a importância e compreensão da crítica arendtiana à maneira de realização da
política. Quando Arendt tece críticas à questão dos interesses é na perspectiva de superar que
os critérios das relações humanas estejam pautados pela lógica meios-fins, próprios da fabri-
cação, cuja conseqüência acaba gerando instrumentalização da política. Ao discutir sobre a
dimensão dos interesses, Arendt visa a criar condições para que a política não se constitua
num espaço de realização de alguns homens e somente de alguns projetos, com exclusão da-
queles que não compartilham com os seus. É uma convocação para olhar para além de si
mesmo, abarcando e alargando o espaço à diversidade humana e aos novos projetos. Nesse
sentido, toda a política não é des-inter-essada, porque nela há um horizonte
398
de realização
que se configura na manifestação do ser humano e na sua constante capacidade de propor no-
vas alternativas e ações construtivas em conjunto com os demais. Conceber a política como
expressão de des-inter-esse, na nossa avaliação, é torná-la vazia, sem motivação e sem hori-
zonte. Todavia, o interesse, nesse aspecto, assume um papel de motivação para o agir, mas ele
não é o fim, apenas mediação.
397
Ibid., p. 23.
398
Em sua obra QP, p. 127 e 128, Arendt esclarece que na política é preciso estar atento e diferenciar alguns
elementos referentes aos aspectos de projeção e horizonte. Nas suas palavras diz: “[...] na política temos de dife-
renciar entre objetivo, meta e sentido. O sentido de uma coisa, ao contrário de seu objetivo, está sempre contido
nela mesma; o sentido de uma atividade só pode existir enquanto durar essa atividade [...]. Dá-se o contrário com
o objetivo de uma coisa; só começa a aparecer na realidade quando a atividade que o produziu chegou ao seu fim
[...]. Por fim, as metas pelas quais nos orientamos, produzem os parâmetros pelos quais deve ser julgado tudo o
que é feito; [...] A esses três elementos de todo agir político [...], agrega-se como quarto aquele que na verdade
jamais é motivo do agir, mas que põe em andamento. Vou mencionar esse quarto elemento de princípio do agir.
[...] Pode-se incluir, sem dificuldade, a glória nesses princípios, tal como a conhecemos no mundo homérico, ou
a liberdade, tal como a encontramos em Atenas do tempo clássico, ou a justiça, mas também a igualdade se en-
tendemos que entre eles a convicção da dignidade original de tudo que tem rosto humano.”
148
Por fim, quanto ao quarto elemento a ser ponderado na resposta à pergunta – o que é
política? – , Arendt afirma que “a filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas
encontrar o lugar onde surge a política”.
399
Primeiramente, refere-se ao Zoon Polítikon e de-
pois, à Criação do homem por Deus. Em relação à primeira, diz:
a) Zoon Politikon: como se no homem houvesse algo político que pertencesse à sua
essência - conceito que não procede; o homem é a-político. A política surge no en-
tre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe
nenhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabele-
ce como relação. Hobbes compreendeu isso.
b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve ter sido criado.
Daí só pode haver o homem, e os homens tornam-se repetição mais ou menos bem-
sucedida. O homem, criado à imagem da solidão de Deus, serve de base ao state of
nature as a war of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada um contra todos
os outros, odiados porque existem sem sentido - sem sentido exclusivamente para o
homem criado à imagem da solidão de Deus.
400
Nas duas situações aparece claramente que a essência do homem é do ser que vive
isolado, na solidão. O espaço entre-os-homens deve ser criado, porque originalmente o ho-
mem sempre irá tenderá a manter sua essência. A solução ocidental para tal problema foi
substituir a política pela História, aplicando o termo homem para se referir a toda a humani-
dade e a liberdade como uma necessidade da História para o alcance da emancipação dos ho-
mens. Diante disso, como a política pode alcançar a realização se a natureza do homem é ser
para o isolamento? Para Arendt, “pode ser que a tarefa da política seja construir um mundo
tão transparente para a verdade como a criação de Deus”
401
. Sendo o homem criado à imagem
e semelhança de Deus, talvez a ele também foi dada a capacidade para estabelecer as condi-
ções de organização dos homens ao modo da criação, zelando para que todos possam crescer
e multiplicar-se, possibilitando a expansão da pluralidade. De qualquer modo, parece um tanto
confusa essa formulação que Arendt propõe, apesar dela chamar atenção que a organização da
política será possível se as diversidades absolutas estiverem de acordo com uma igualdade
399
Ibid., p. 23.
400
Ibid., p. 24. Nesta passagem fica clara a posição de Arendt e o destaque do erro que fora cometido na tradu-
ção do zoón politikón de Aristóteles como animal socialis que fora encontrada em Sêneca e depois retomada por
Santo Tomás de Aquino que “foi aceita como tradução consagrada: homo este naturaliter politicus, id est, sócia-
lis (‘o homem é, por natureza, político, isto é, social’).” Cf. CH, p.32. De qualquer modo é oportuno destacar que
uma das dificuldades de encontrar a resposta à pergunta pelo sentido da política está no fato da tradição não
haver feito a distinção entre as perguntas “O que é o homem?” e “O que é política?”. O que parece é que sempre
se procurou responder a segunda a partir da primeira. Embora destacamos ao longo do nosso estudo que Arendt
demonstra preocupação muito grande em relação aos perigos que a humanidade está correndo devido às grandes
transformações e alienação no e do mundo, não se trata de centrar a política unicamente na sobrevivência e ne-
cessidades do homem. Nisso cabe frisar que o papel da política é garantir a estabilidade do mundo e possibilitar
que os homens se revelem e construam espaços para sua realização por intermédio do discurso e da ação. Para
maior aprofundamento sobre esta discussão ver QP, p. 46 e 47.
401
Id., Ibid.
149
relativa e em contrapartida às diferenças relativas, pois se tudo for absoluto, não há condições
para o desenvolvimento da política.
A política implica na explicitação das diferenças que, por sua vez, justificam a neces-
sidade de encontros para se chegar a denominadores comuns. Para o caso das diferenças abso-
lutas, há uma dificuldade na busca pela construção de consensos. Para o caso da igualdade
absoluta, acontece a deslegitimação da necessidade de fomentar discussões, pois já pode con-
figurar as decisões pela própria natureza, isto é, todos iguais, pensam da mesma forma sobre
todos os aspectos. Porém, isso, além de absurdo, é inaceitável. Só pode ser aplicado ao caso
de homens-máquina ao modo de robôs que, em sua essência, são todos iguais: acionados e
dominados pelo homem.
Considerando todos os elementos apontados até aqui, especialmente em torno da plu-
ralidade, esta é uma discussão central para compreensão do conceito, da realização e recupe-
ração do sentido da política, porque nela os homens devem criar condições para o desenvol-
vimento da ação. De acordo com Jennifer Ring, “a pluralidade é a condição per quam da ação
em Arendt, e a pluralidade ou a preservação da individualidade em uma vida comum, assegu-
ra que a liberdade não estará perdida. Quando indivíduos agem, revelam a si mesmos na con-
dição de indivíduos.
402
Ação, pluralidade e liberdade são temas centrais da política. A condição humana da
ação é a pluralidade que se manifesta graças ao exercício da liberdade que, por sua vez, signi-
fica a possibilidade de recuperação do sentido da política. Em O que é Política, Arendt escre-
ve exatamente sobre isso, tendo como título a seguinte pergunta: Tem a Política ainda algum
sentido?
403
Assim, diz:
Para a pergunta sobre o sentido da política existe uma resposta tão simples e tão
concludente em si que se poderia achar outras respostas dispensáveis por completo.
Tal resposta seria: o sentido da política é a liberdade. Sua simplicidade e concludên-
cia residem no fato de ser ela tão antiga quanto a existência da coisa política - é na
verdade, não como a pergunta, que já nasce de uma dúvida e é inspirada por uma
desconfiança. [...] A pergunta surge a partir de experiências bem reais que se teve
com a política, ela se inflama com a desgraça que a política causou em nosso século,
e na maior desgraça que ameaça resultar delas.
404
402
RING, Jennifer. The Pariah as Hero: Hannah Arendt´s Political Actor. Apud ABREU, op.cit., p. 155.
403
Esta pergunta foi formulada e desenvolvida por Arendt em três textos que versam sobre o sentido da política,
apresentados na obra QP nos fragmentos 3a, 3b e 3d. Carmelita Felício constata que se esta pergunta é atual é
porque ela surge de experiências bem reais que estamos tendo com a política. Cf. FELÍCIO, op. cit., p. 173.
404
Ibid., p. 38.
150
A simplicidade da resposta convida os leitores a refletir, pois diante das experiências
vividas ao longo do século XX, mesclam-se, na avaliação de Arendt, dois elementos. Um em
torno da experiência com as formas de governo totalitário que suprime a liberdade de todos,
menos do grande líder, e outro diante da monstruosa capacidade de destruição no desenvol-
vimento trazido pela modernidade, cujo processo esteve sob controle do Estado. A novidade
deste segundo elemento é que não apenas a liberdade foi prejudicada, mas o medo de que toda
a vida orgânica na Terra venha ser extinta. Essas duas experiências que instigam a reflexão
sobre o sentido da política são fundamentais, porque elas revelam ainda hoje as experiências a
que se assiste na forma e condução das questões pertinentes ao espaço de efetivação da políti-
ca. Em ambas, a liberdade é colocada em xeque, e a preocupação parece declinar cada vez
mais para preocupações que visam a manter a vida. No entanto, aqui se localiza o embate a-
rendtiano na forma moderna de conceber a política.
Pois a coisa política ameaça exatamente aquilo onde, no conceito dos tempos mo-
dernos, reside o próprio direito de existência, a saber a mera possibilidade de vida -
na verdade, de toda a Humanidade. Se for verdade que a política nada mais é do que
algo infelizmente necessário para a conservação da vida da Humanidade, então de
fato ela mesma começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em
falta de sentido.
405
Essa posição é desconcertante pelo seu enfrentamento com as modernas formas de
concepção de realização da política, gerando polêmicas pela centralidade na qual a política
deve se pautar. A grande questão que surge, em relação a este aspecto, diz respeito à despreo-
cupação arendtiana com questões ligadas à vida e, nesta, outras como a dimensão social e a
justiça, apesar de tê-las mencionada perifericamente no princípio do agir político
406
. Arendt
não demonstra nenhum interesse em aproximar a política com essas dimensões, porém não
nega a sua importância, mas, à luz da Revoluções modernas
407
, adverte que
é crucial, portanto, para a compreensão das Revoluções da Idade Moderna, que a i-
déia de liberdade e a experiência de um novo começo sejam coincidentes. E desde
que a noção corrente no mundo livre é de que a liberdade, e não a justiça, nem a
grandeza, o critério mais alto para o julgamento das instituições de corpos políticos,
não é apenas o nosso entendimento de revolução, mas nossa concepção de liberdade,
nitidamente revolucionária em sua origem, que pode medir até que ponto estamos
preparados para aceitar ou rejeitar essa coincidência.
408
405
ARENDT, QP, p. 40.
406
Ibid., p. 128. (Passagem referenciada neste estudo).
407
Referimo-nos à Revolução Americana de 1776, a Revolução Francesa de 1789, A Revolução Russa de 1917 e
a Revolução Húngara de 1956. Nelas Arendt pontua elementos fundamentais para a explicitação do sentido da
política porque elas interrompem um processo e desencadeiam novas formas de realização da política, garantin-
do o exercício da liberdade e das opiniões. Trataremos disso em seguida.
408
ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo/Brasília: Ática/ Editora Universidade Brasília, 1988, p. 23.
151
Essa passagem mostra claramente que os assuntos centrais da política devem passar
pelo crivo da liberdade. Diferentemente, são as questões ligadas à justiça, desigualdades soci-
ais, entre outras. As soluções para as questões suscitadas no âmbito da justiça, por exemplo,
devem ser tomadas com base em compreensões jurídicas e, sobretudo econômicas, quando
tratar de situações que tocam nas desigualdades sociais e na miséria, pela qual o povo pobre
acaba sendo vitimado. Arendt limita-se a tocar nas questões que merecem discussão sobre
distribuição de bens para atender às demandas sociais.
A única alternativa que cabe à política diante de tais situações é a solidariedade que,
em um primeiro momento, “pode parecer fria e abstrata, pois permanece mais comprometida
com ‘idéias’ - grandeza ou honra, ou dignidade - do que com qualquer ‘amor’ pelos homens.
[...] A solidariedade é o princípio que pode guiar a ação.”
409
A solidariedade é o ato que faz
dos homens seres preocupados com os demais, seja diante de situações de injustiça, seja dian-
te dos oprimidos e explorados. No entanto, nela todos os homens exercem igual importância e
peso, indiferentemente da classe, cor, raça, situação social, nação, povo..., todos são membros
que clamam por dignidade humana.
Este é um debate que poderia ser muito longo porque se está acostumado atribuir à po-
lítica a tarefa de solução de inúmeros problemas sociais. A política pode e deve contribuir
para a promoção de campanhas que atendam esta área, mas a solução precisa ser tomada no
âmbito econômico. Ao que se assiste atualmente cabe questionar a forma de fazer da situação
dos miseráveis o centro de seus discursos políticos e da instrumentalização da política, estabe-
lecendo meios e fins para atender tais demandas. Arendt propõe uma separação entre as esfe-
ras econômica e política. Na primeira, a centralidade está na distribuição de bens ligados às
questões administrativas e às necessidades da vida; na segunda, no exercício da liberdade que
gesta a manifestação dos homens.
No entanto, Arendt não está isenta de críticas diante da separação entre política e
questões sociais. Dentre alguns aspectos, é oportuno ponderar, em primeiro lugar, perguntar:
Afinal, qual é a utilidade da política? Pode-se dizer que, se entendida pelo viés distributivo,
inútil; se compreendida como espaço necessário para o convívio e diálogo entre os homens a
fim de poderem opinar sobre diversas questões, expondo sua individualidade e zelando pela
409
Ibid., p. 70 e 71.
152
possibilidade de todos os homens também o fazerem, é útil. No entanto, é óbvio que do ponto
de vista do utilitarismo contemporâneo e desprezo das questões ligadas à importância da sub-
jetividade e liberdade como elementos fundamentais de todo ser humano, a política, na forma
proposta por Arendt, pode não passar de uma “conversa muito bonita”, mas sem efeito e con-
sistência prática. “Na verdade, a vida da sociedade é dominada não pela liberdade, mas sim
pela necessidade”.
410
Diante disso, “a política não é necessária, em absoluto - seja no sentido
de uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor, seja no sentido de
uma instituição indispensável do convívio humano. Aliás, ela só começa - onde cessa o reino
das necessidades materiais e força física.”
411
A questão é saber onde cessa o reino das neces-
sidades e onde começam as questões pertinentes à política. Para André Duarte, “se Arendt
está certa ao distinguir entre ‘participação’ e ‘administração’, faltou-lhe interrogar de que ma-
neira ambas poderiam complementar-se. Seu pensamento não oferece respostas satisfatórias a
essas questões, que mostrarão seu caráter problemático [...]”.
412
André Duarte apresenta, com profundidade, uma crítica sobre a ausência no pensa-
mento de Arendt nas relações objetivas entre política e questão social. Bem se sabe que, na
atualidade, algumas decisões de ordem administrativa e econômica também passam pela or-
dem política, sobretudo quando envolvem pactos e contratos de financiamento como é caso a
que se assiste nas negociações das nações periféricas com o Fundo Monetário Internacional -
FMI. Para Richard Bernstein,
os problemas contemporâneos não aparecem na cena política portando rótulos pré-
definidos, de sorte que a questão a respeito de sua natureza política, privada ou soci-
al é, ela mesma, o próprio centro da questão política, o que equivale dizer que qual-
quer questão pode se tornar, ou ser transformada, em um tema político.
413
De qualquer forma, apesar de ser importante entender a preocupação arendtiana dos
moldes da fabricação e dos interesses puramente estratégicos infiltrando-se na política, de-
terminar a política como desprovida de questões sociais, torna-se uma questão séria e desafi-
ante, e a história prova de quão poucos foram os momentos em que ela esteve presente sob tal
forma de realização. Todavia, essas considerações não desmerecem o pensamento de Arendt.
410
QP, p. 81.
411
Ibid., p. 50.
412
DUARTE, op. cit., p. 286.
413
BERNSTEIN, Richard. Rethinking the Social and the Political. Citado a partir da obra de DUARTE, op. cit.,
p. 309. A compreensão de Bernstein reflete o caso da política do governo Lula no Brasil que visa resolver o
problema social da fome. No início do seu mandato este foi o grande mote e que, a despeito dos seus limites
diante de desvios nos rumos dos benefícios, ainda continua sendo um dos temas centrais do seu governo.
153
Por outro lado, segundo Silvana Winckler, a política, no pensamento de Arendt, não se con-
funde com a ética ou a justiça, embora tanto uma quanto outra sejam temas ‘apropriados’ para
ser discutidos na esfera dos assuntos políticos. O pertencimento a um corpo político dá aos
homens a possibilidade de participar na definição dos próprios direitos – o que é uma necessi-
dade elementar da democracia. Esta participação é a única coisa que pode assegurar a auto-
nomia do cidadão. Os temas da justiça, da ética, e da democracia relacionados com igualdade
somente se tornam assuntos políticos quando são levados ao âmbito público.
414
Ademais, Arendt instiga a rever certas formas de “voluntarismo inconseqüente e in-
competente dos atores políticos em sua tentativa de solucionar problemas econômicos por
meio de decisões estritamente políticas”.
415
Conforme Carmelita Felício, é mister compreen-
der que, ao se propor a recuperar o sentido da política, Arendt o faz procurando articular
essa proposta com a urgência de pensá-la a partir do sentido que lhe é próprio, isto é,
com a perspectiva objetiva de pensar as condições de possibilidade de recuperar a
dignidade mesma da atividade política. Ela nos dá uma pista para que se pense mais
seriamente na convivência de se substituir a política pelos meios públicos dessa for-
ça terrivelmente poderosa que, em nossos dias, ameaça não apenas a liberdade, mas
sim a vida, ou melhor, a sobrevivência da própria humanidade.
416
Além disso, nas diversas posições de Arendt em defesa dos apátridas pelo sistema to-
talitário, pelas transformações científicas que suscitam questões sobre a possibilidade de eli-
minação da própria humanidade, cabe dizer que a sua reflexão política não visa a estipular
uma máxima que se resume da seguinte maneira: “Contra a vida, em defesa da liberdade e da
política”, mas sim, o “o direito à vida, em favor da liberdade e da política”. Essa nos parece
ser a posição mais sensata e muito diferente do que se faz na modernidade quando se opta
pela vida contra a liberdade
417
.
A recuperação do sentido da política em Arendt quer resgatar a liberdade. O significa-
do do termo é buscado por Arendt na experiência da pólis grega e nas Revoluções Modernas,
além de ser confrontado
418
com as diversas concepções reinantes ao longo da história política
do Ocidente. Partindo da ordem inversa, nesse confronto, Arendt começa pontuando que, “pa-
ra as questões da política a liberdade é crucial, e nenhuma teoria política pode se dar ao luxo
de permanecer alheada ao fato de que esse problema conduziu ao ‘obscuro bosque onde a
414
WINCKLER, op. cit., p. 454.
415
Cf. DUARTE, op. cit., p. 309.
416
FELÍCIO, op. cit., p. 178.
417
A este respeito consultar importante abordagem e reflexão de FELÍCIO, op. cit., p. 181.
418
Referimo-nos ao texto O que é liberdade?, publicado na obra EPF, p. 188-220.
154
filosofia se extraviou’.”
419
O motivo dessa obscuridade está no fato da filosofia ter transfor-
mado a liberdade numa esfera do pensamento, no diálogo consigo mesmo, no domínio inter-
no, numa questão da vontade. Nesse sentido, a filosofia fez da liberdade um tema a mais
420
entre as grandes questões metafísicas tradicionais. No entanto, ela surge e começa a fazer par-
te da tradição filosófica a partir da experiência da conversão religiosa de Paulo e depois de
Agostinho. Antes disso, dos Pré-socráticos até Plotino, ela não foi tema de discussão.
A compreensão da liberdade e sua implicação para a política podem ser obtidas através
da diferenciação básica que Montesquieu fez entre liberdade política e liberdade filosófica. A
esse respeito, Arendt diz:
[...] Montesquieu, que embora indiferentemente aos problemas de natureza estrita-
mente filosófica, tinha profunda consciência do caráter inadequado do conceito de
liberdade dos cristãos e dos filósofos para fins políticos. Para desvencilhar-se dele,
distinguiu expressamente a liberdade política da filosófica, e a diferença consistia
em que a filosofia não exige da liberdade mais que o exercício da vontade (l’ exerci-
ce de la volonté), independentemente das circunstâncias e da consecução das metas
que a vontade estabeleceu. A liberdade política, ao contrário, consiste em poder fa-
zer o que se deve querer (la liberté ne peut consister qu’à pouvoir faire ce que l’on
doit vouloir - a ênfase recai sobre pouvoir).
421
No campo filosófico, a liberdade estabelece uma constante luta na consciência. Quan-
do surge uma vontade aparece de imediato o surgimento de outra. Ambas travam uma luta
pelo poder e, ao mesmo tempo em que a vontade se vê forte, poderosa, ela se vê fraca, impo-
tente. O cristianismo, especialmente no contexto medieval, fez grande uso dessas duas forças
para expressar a grandeza da alma (forte) e fraqueza e pequenez do corpo (impotente). A alma
deve ter o poder de decidir sobre o corpo que representava a esfera dos desejos e intenções
mundanas, a expressão do eu
422
. Desse modo, a liberdade passa a ser o domínio da vontade, a
expressão do eu quero.
419
EPF, p. 191. Não adentraremos detalhamente na evolução do conceito de liberdade do ponto de vista filosófi-
co. Destacaremos os elementos que a tornam central para a política. Para um estudo aprofundado sobre esta
questão consultar DUARTE, op. cit., p. 204-238.
420
Outros temas metafísicos são o ser, o nada, a alma, a natureza, o tempo, a eternidade, entre outros. Cf. EPF,
p. 191.
421
EPF, p. 208 e 209.
422
Desta situação Arendt estende o debate para a política. Afirma: “Só posso aqui aludir às fatais conseqüências,
para a teoria política, desse equacionamento da liberdade com a capacidade humana da vontade; foi ele uma da
causas pelas quais ainda hoje equacionamos quase automaticamente poder com opressão ou, no mínimo, como
governo sobre outros. Ibid., p. 210.
155
Avançando para a tradição do pensamento político moderno, especialmente com
Rousseau, a liberdade começa a ser pensada em conexão com soberania e vontade. Na avalia-
ção de André Duarte, “ao pensar a liberdade em termos da soberania e do poder como resul-
tando de uma ‘vontade geral’ una e indivisa, que prescinde da comunicação intersubjetiva,
Rousseau teria estabelecido uma concepção antipluralista da política [...].”
423
Para Arendt,
“essa identificação de liberdade com soberania é talvez a conseqüência política mais pernicio-
sa e perigosa da equação filosófica da liberdade com livre arbítrio. Pois ela conduz à negação
da liberdade humana [...].”
424
A liberdade que Arendt está buscando fundamentar aqui resgata
o espírito da pólis grega e das Revoluções Modernas. Não é liberdade de um só homem, um
só grupo, um só organismo político. À luz da condição humana presente na ação, sempre que
se referir aos viventes na terra, jamais se deve portar como diante de um único homem, mas
sim dos homens.
Por mais que pareça estranho, diante das inúmeras críticas à modernidade, seja pelo
ascenso da ciência, da fabricação, do engolfamento da política no social e da confusão em
torno do conceito de liberdade, Arendt resgata elementos positivos nas Revoluções America-
na, Francesa e, mais tarde, Russa e Húngara porque, na sua avaliação, elas não são simples-
mente transformações e mudanças sociais propagadas por determinadas eventos históricos. As
revoluções significam interrupção do curso linear e contínuo da história para a introdução e
começo de algo novo. Diz Arendt que “o conceito moderno de revolução, intextricavelmente
ligado à noção de que o decurso da história (history) inteiramente nova, uma história nunca
anteriormente conhecida ou contada está prestes a desenrolar-se [...].”
425
Portanto, nelas é
possível perceber uma preocupação de construção e realização da política muito diferente
daquelas formas presentes na modernidade. Àqueles que participam da sua luta, as revoluções
demonstram a efetivação de uma experiência nova e que a capacidade humana de começar
algo novo é possível. Segundo a filósofa,
423
DUARTE, op. cit., p. 207.
424
EPF, p. 212.
425
ARENDT, Da Revolução, op. cit., p. 28. O significado das Revoluções não é de fazer uma análise ao modo
de meros eventos históricos, mas político, visando reconstituir conceitualmente as manifestações políticas origi-
nárias, dignas de destaque porque colocam a liberdade no centro da política. Sobre esta questão cf. DUARTE,
op. cit., p. 269.
156
essas duas coisas juntas - uma nova experiência que revelava a capacidade do ho-
mem para a novidade - estão na base do enorme pathos que encontramos tanto na
Revolução Americana e Francesa, essa sempre reiterada insistência de que nada
comparável em grandeza e relevância jamais acontecera antes em toda a História
documentada da humanidade, e que, se tivéssemos de avalia-la em termos de reivin-
dicação bem-sucedida de direitos civis, pareceria inteiramente descabido. Somente
onde esse pathos da novidade se fizer presente, e onde a novidade estiver relaciona-
da com a idéia de liberdade é que temos o direito de falar de uma revolução.
426
A pergunta que pode ser formulada neste aspecto é: como as revoluções efetivavam a
liberdade e em que medida ela se tornava um elemento distintivo na política? O objetivo cen-
tral das revoluções era garantir o espaço da liberdade e, por meio dela, dar visibilidade aos
cidadãos e assegurar a sua participação nas decisões políticas. Para que isso fosse possível,
Arendt destaca nelas a introdução de conselhos que, além de garantir o espaço da liberdade,
mostram à tradição do pensamento político ocidental que é viável desenvolver a política a
partir de uma nova concepção, contra aquela utilizada muitos anos por toda nossa tradição do
pensamento político, a saber: “que a essência do governo é exercício do poder de coerção, e
que a paixão política dominante é a paixão de dirigir ou de governar.”
427
.
Apesar de não ter por objetivo refletir as questões políticas pelo âmbito prático, isto é,
de oferecer respostas às preocupações e perplexidades dos tempos de hoje, como tem asseve-
rado no Prólogo da A Condição Humana
428
, através dos conselhos, Arendt esboça um modelo
que pode ser implantado na estrutura política de governo. Opta por eles por uma razão fun-
damental, esclarecendo que
os conselhos eram, obviamente esses espaços de liberdade. Como tais, eles se recu-
saram sistematicamente a se considerarem órgãos temporários da revolução e, ao
contrário, envidaram todos os esforços para se firmarem como órgãos permanentes
do governo. Longe de pretenderem tornar a revolução permanente, seu objetivo, ex-
presso explicitamente, era ‘lançar as bases de uma república que se firmasse em toda
a sua plenitude, o único governo capaz de encerrar para sempre o ciclo das invasões
e guerras civis’; não um paraíso na terra, não uma sociedade sem classes, não o so-
nho de uma fraternidade socialista ou comunista, mas o estabelecimento da ‘verda-
deira república’ é que seria a ‘recompensa’ esperada, ao final da luta.
429
426
ARENDT, Da Revolução, op. cit., p. 27e 28.
427
Ibid., p. 220.
428
Cf. CH, p. 13.
429
ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 211. Em outra obra sua, intitulada Crises da República que, apesar de
não mencionada ao longo deste estudo, mas pela relevância que trata da questão sobre os conselhos e, sobretudo
da participação dos cidadãos no espaço público, Arendt diz o seguinte: “[...] Parece-me, no entanto, a única al-
ternativa que já ocorreu na história, e que tem reaparecido repetidas vezes. [...] Mas estes sistemas de Conselho
nunca apareceram como resultado de uma tradição ou teoria revolucionária consciente, mas de um modo total-
mente espontâneo; cada vez como se nunca tivesse havido nada semelhante antes. Assim, o sistema de conselho
parece corresponder e brotar da própria experiência da ação política.” Nossa ênfase. Cf. ARENDT, Hannah.
Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 199.
157
Os conselhos têm um diferencial de participação política que está no seu gérmen. Ne-
les se efetiva a res-pública de maneira extraordinária, porque não precisa convidá-los, e pro-
porcionar condições para sua participação no espaço público. Eles mesmos dizem: “Queremos
participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e quere-
mos ter uma possibilidade de determinar o curso político de nosso país”.
430
No entanto, entre
eles, nem todos participam das definições e deliberações finais, pois nem todos têm interesses
por assuntos públicos, mas a todos deve ser dada a oportunidade de participação. Dessa for-
ma, Arendt propõe que a formação do Estado seja exatamente nos moldes de representação
por Conselhos, denominado por ela de estado-conselho,
para o qual o princípio de soberania fosse totalmente discrepante, seria admiravel-
mente ajustado às mais diversas espécies de federações, especialmente porque nele o
poder seria construído horizontalmente e não verticalmente. Mas se você me pergun-
tar que probabilidade existe de ele ser realizado, então devo dizer: Muito pouca, se
tanto. E ainda, quem sabe, apesar de tudo - no encalço da próxima revolução.
431
Ao mesmo tempo em que percebe a importância dos conselhos e da proposição do es-
tado-conselho, Arendt demonstra não defendê-los num futuro próximo. Adianta a probabili-
dade incerta da sua efetivação. De qualquer modo, apresenta uma alternativa possível que
pode congregar a capacidade de ação e discurso, da divisão de poderes e de homens escolhi-
dos na base para exercer o papel de representação, mas as escolhas não devem significar eli-
tismo político. Elas se justificam porque o espaço público será insuficiente para abrigar a to-
dos e nem todos desejam fazer parte das discussões deliberativas. Segundo Duarte,
em um sistema de conselhos plenamente desenvolvido, Arendt conjecturou a possi-
bilidade do surgimento de uma estrutura política piramidal em que a autoridade não
viria do topo, e sim da base da pirâmide, conciliando-se assim ‘igualdade’ e ‘autori-
dade’ de um modo como nenhuma outra forma de governo moderno conseguiu até
hoje.
432
Apesar de todos esses méritos e esforços em tentar ver nos conselhos este resgate e a-
firmação de algumas dimensões elementares da política, tais como, a liberdade, a igualdade, a
autoridade, a ação e o discurso, Arendt deixou a desejar inúmeros aspectos que não foram
abordados. André Duarte reflete sobre vários, entre eles, o de Arendt não tratar de quais me-
canismos devem ser implantados para resolver as exclusões involuntárias no caráter da repre-
sentatividade política e quais instâncias estão dando apoio e proteção aos cidadãos no enfren-
430
ARENDT, Hannah. Crises da República. op. cit., p. 200.
431
Ibid., p. 201.
432
DUARTE, op. cit., p. 313.
158
tamento e confronto com o Estado constituído. Além disso, como Arendt resolve o problema
das condições para que os cidadãos tenham suas necessidades vitais garantidas no exercício
da participação política? Se tivesse enfrentado questões como estas, teria reconhecido que a
realização da liberdade é difícil, não acontece de um simples querer, e, mais que pedir idea-
lismo aos pobres, sem resolver o problema das condições para torná-los cidadãos, pode não
resolver o problema do espaço público. De qualquer modo, Arendt não pensa nos limites pre-
sentes na proposta dos conselhos, mas para André Duarte,
é preciso ter em mente que tais reflexões buscaram, acima de tudo, chamar a atenção
para uma nova possibilidade de organização da coisa pública tal como ela vem se
repetindo nos eventos revolucionários modernos, sem que a autora tivesse pretendi-
do estabelecer, de uma vez por todas, o plano institucional detalhado que permitiria
instituir essa nova forma de governo, pretensão teórica que teria julgado como peri-
gosamente utópica. [...] Se a sua reflexão sobre o sistema de conselhos permaneceu
incipiente, deve-se enxergar aí não a lacuna ou vazio onde deveria haver um pro-
grama político fechado, mas sim o aspecto mais original, inventivo e sugestivo de
suas reflexões políticas.
433
Apesar das críticas e reconhecimento das reflexões de Arendt acerca das revoluções e
conselhos, em momento algum, entende-se que essa pode ser uma questão que lhe tire o méri-
to e profundidade do seu pensamento no tratamento das questões pertinente à política. Até
porque, os conselhos e os resultados trágicos das revoluções
434
não são os eventos maiores de
todos os tempos e dignos de memória por toda a história como o é a experiência política da
pólis grega. Arendt debruça-se com muito zelo sobre essa questão, porque nela está o germen
da verdadeira política, porque nela, a experiência da liberdade é uma realidade.
433
Ibid.., p. 314 e 316.
434
André Duarte destaca que a “Revolução Americana voltou-se contra a tirania e a opressão, mas não contra a
exploração econômica e a pobreza, afirmando os direitos do povo – excluindo, entretanto, negros e índios – a
partir do seu consentimento ao novo poder constituído. No caso francês, distintamente, uma vez advinda a libe-
ração da tirania, veio a público a exigência de libertar a massa miserável dos grilhões da necessidade, o que de-
mandaria um esforço tremendamente maior: foi no curso desse esforço suplementar que a liberdade viu-se subs-
tituída pela felicidade do povo, segundo a expressão de Saint-Juste, considerada como a principal preocupação
dos revolucionários; foi também nesse processo que as virtudes políticas da revolução desviaram-se da república,
sendo absorvidas pela ‘compaixão’ diante do sofrimento dos miseráveis, a qual assumiu o perigoso estatuto de a
‘mais alta virtude política’.” DUARTE, op. cit. p. 287. Sylvie Courtine-Denamy, a este respeito, diz: “Arendt
critica-as a ambas [Revoluções Francesa e Americana] quanto ao seu ‘resultado’: essas constituições não soube-
ram cumprir a sua promessa de trazer algo de novo, de revolucionário; e, por outro, porque ambas se confronta-
ram com o mesmo problema: a insuficiência da potestas in populo, quando a noção de ‘povo’ n ao é idêntica
nuns e noutros, provocando a necessidade de uma auctoritas um senatu [...].” Consultar COURTINE-DENAMY,
op. cit., p. 23 et. seq.
159
Mas, aqui, o resgate arendtiano da liberdade na experiência política da pólis
435
grega
não visa a remontar ao passado procurando transplantar um modelo para o tempo de hoje e/ou
compreendido “como expressão de um tradicionalismo nostálgico ou romântico em relação ao
passado e à origem perdida do político”
436
. No dizer de Francisco Ortega, Arendt “não pre-
tende restabelecer conceitos e categorias antigos, ou restaurar a tradição, mas desconstruir e
vencer as reificações de uma tradição obsoleta”.
437
Ou, como bem expressa André Duarte,
tratava-se justamente de recuperar aqueles ‘tesouros’ políticos não tematizados filo-
soficamente, aqueles ‘fragmentos preciosos’ que, hoje, restariam ocultos por entre os
destroços da tradição, tarefa hermenêutica que ela determinou como uma Perlenfis-
cherei, a pesca das pérolas perdidas no fundo do oceano.”
438
Em muitas passagens de suas obras, Arendt faz menção à pólis grega como verdadeira
essência da política. Em Homens em tempos sombrios, diz que “[...] a pólis grega continuará a
existir na base de nossa existência política - isto é, no fundo do mar - enquanto usarmos a pa-
lavra política.”
439
Em EPF, Arendt destaca que
empregar o termo ‘político’ no sentido da pólis grega não é arbitrário nem descabi-
do. Não é apenas etimologicamente e nem somente para os eruditos que o próprio
termo, que em todas as línguas européia ainda deriva da organização historicamente
ímpar da cidade-estado grega, evoca as experiências da comunidade que pela pri-
meira vez descobriu a essência e a esfera do político.
440
em A Condição Humana, Arendt frisa aquilo que se constitui na centralidade da
importância da pólis grega, afirmando que,
a rigor, a pólis, não é uma cidade-estado em sua localização física; é a organização
da comunidade que resulta do agir e do falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço
situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde este-
jam. ‘Onde quer que vás, serás uma pólis’: estas famosas palavras não só vieram a
ser a senha da colonização grega, mas exprimiam a convicção de que a ação e o dis-
curso criam entre as partes um espaço capaz de situar-se adequadamente em qual-
quer tempo e lugar.
441
435
Da mesma forma que não visava transplantar um modelo da pólis grega, Arendt também não tinha grandes
preocupações em apresentar uma análise histórica detalhada do surgimento e forma de organização da pólis, mas
recuperar os elementos centrais para o resgate do sentido da política. Procuraremos no deter nesta preocupação.
436
Terminologia usada por DUARTE, op. cit. p. 151.
437
ORTEGA, op. Cit., p. 229.
438
DUARTE, op. cit., p. 143.
439
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradução de D. Bottman. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1987, p. 174.
440
EPF, p. 201.
441
CH, p. 211.
160
O significado da pólis é responsabilizar todos os homens a fazer dela a sua experiência
de vida, no sentido do constante diálogo e abertura para o convívio entre os homens. Mais que
uma reconstituição do espaço da pólis, ao modo de um modelo para transplante, Arendt alme-
ja que experiência política se transforme em atitude de abertura e exercício constante da liber-
dade em todos os momentos no espaço público.
A tarefa de recuperação da pólis grega não é programática, mas iluminadora, esclare-
cedora e fundamentadora da liberdade como constituição do sentido da política. A pólis é de
extrema importância porque ela é o espaço da liberdade, a vitória da liberdade sobre o reino
das necessidades que estava sob o jugo da esfera privada e da vida em família. Essa é a condi-
ção para ser livre, isto é, não estar sujeito às necessidades e nem preocupado com o comando
e domínio sobre outros. Mas a adesão à polis no momento, para os gregos, significou “vida
fácil”, “vida melhor”, apesar de ser-lhes atribuída a característica do ócio como forma de ex-
pressão da ocupação que cabia aos cidadãos. Nas palavras de Arendt, “quem quer que ingres-
sasse na esfera política deveria, em primeiro lugar, estar disposto a arriscar a própria vida; o
excessivo amor à vida era um obstáculo à liberdade e sinal inconfundível de servilismo. A
coragem, portanto, tornou-se a virtude política por excelência [...]”.
442
A exigência das funções inerentes à atividade na pólis é de uma responsabilidade mui-
to grande. Nela, está garantido o espaço e oportunidades para que todos possam alcançar a
imortalidade, por meio de atos e palavras que revelam identidade singular e distinta de todos
os membros presentes. Mas a questão digna de memória não é fazer do extraordinário um
jogo de espetáculo e esbaldo retórico, mas torná-lo comum e cotidiano. Atualmente, antes
mesmo de fazer grandes atos, anuncia-se para todos os lados que tais projetos serão feitos, não
importando se de fato eles serão realizados, mas que causem impacto e atenção na população.
Sob essa forma, a política governamental atual alcança popularidade e, ao menos, durante o
período de eleições, terá bons motivos para ser lembrada. Nota-se uma diferença da atualidade
para o contexto da antiguidade, inclusive no que tange aos discursos. Considerando os riscos
presentes na ação, a pólis também tinha função de “remediar a futilidade da ação e do discur-
so; pois era muito grande a possibilidade de que um ato digno de fama fosse lembrado e ‘i-
mortalizado’”.
443
442
Ibid., p. 45.
443
Ibid., p. 209.
161
O elemento que distingue a forma de organização da pólis é a liberdade. “Ser-livre e
viver-numa-pólis era, num certo sentido, a mesma e única coisa”.
444
Nisso se configura o sen-
tido do espaço público, o sentido da política. Aliás, Arendt faz um tremendo esforço para
mostrar que “Política e liberdade são idênticas e sempre onde não existe esta espécie de liber-
dade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido”.
445
A partir da política, portan-
to, tem-se o pleno exercício da liberdade, investindo contra a ditadura da violência, da instru-
mentalização e do determinismo histórico; a favor da ação, da pluralidade, da manifestação da
singularidade, da construção dos homens e do mundo, enfim, da novidade. A capacidade de
começar é a prova da existência da liberdade e a aptidão para agir a mais plena possibilidade
da manifestação do homem. Nesse sentido, está contido o milagre da liberdade, isto é, na ca-
pacidade humana de poder começar “que anima e inspira todas as atividades humanas e que
constitui a fonte de todas as coisas grandes e belas”.
446
Por fim, “se o sentido da política é a
liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de
esperar milagres.”
447
Ousemos alimentar nossa capacidade de espera, em nome da liberdade!
444
QP, p. 47.
445
Ibid., p. 60.
446
EPF, p. 218.
447
QP, p. 44.
162
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A chegada a este ponto do estudo é significativo e preocupante. Significativo, porque,
apesar de todos os percalços e das dificuldades que passamos, chegamos ao ponto final do
estudo que havíamos projetado. Mesclam-se sentimentos de satisfação pelo cumprimento do
estudo, alegria por mais uma etapa importante vencida e agradecimento pelo apoio e incentivo
de tantos/as.
Por outro lado, é preocupante porque, à medida que vamos avançando na pesquisa de
um tema, através de uma leitura atenta das obras principais de determinado pensador (no nos-
so caso pensadora) e também a partir da releitura e reflexão que outros fizeram do seu pensa-
mento, sentimos que somos pequenos e muito ainda precisamos andar, pois os aspectos a se-
rem abordados são muitos e variados, dependendo do enfoque de abordagem. A vontade é de
avançar, sem parar, e procurar refletir sobre todos os pontos, dando todas as respostas plausí-
veis às perguntas possíveis, isto é, proporcionando algo novo e além daquilo que já temos
sobre determinado pensador ou tema em questão.
O simples ato de reler aquilo que escrevemos, parece causar abertura para um novo
aspecto, uma nova idéia. Daí a conclusão de que o estudo e a pesquisa séria e comprometida
de um tema podem ser tarefa de toda a vida. Não queremos, com isso, justificar possíveis pon-
tos críticos ao longo do texto, mas destacar que nossa leitura não conclui e finaliza o tema a
que nos propomos a desenvolver, mas resulta na conclusão de um projeto que apresenta al-
gumas pistas e considerações para a reflexão do tema da política no pensamento de Arendt.
Visamos muito mais a convidar para a continuidade e aprofundamento de novos elementos
acerca do seu pensamento.
O estudo do pensamento político de Arendt, à luz de nosso contexto, é de grande im-
portância e atualidade. Por mais que já se tenham passado 30 anos de sua morte e mais de
meio século de suas primeiras obras, não tememos dizer que suas reflexões, apesar de pauta-
das nos acontecimentos de sua época, estendem-se em profundidade e permitem que paremos
para pensar sobre a forma de efetivação e realização da política. Nesse sentido, destacaremos
alguns aspectos que demarcam os alcances e limites do pensamento de Arendt no presente
estudo.
163
O primeiro aspecto diz respeito ao convite inusitado de Arendt à reflexão, por amor à
sabedoria e compromisso com as transformações do seu tempo. No prólogo de sua obra A
Condição Humana Arendt salientou que o horizonte dos seus estudos pautava-se na reflexão
dos acontecimentos e transformações da época moderna e contemporânea. Afirmou não se
propor ao oferecimento de respostas às preocupações e perplexidades de seu tempo, dizendo
que “respostas são dadas diariamente no âmbito da política prática, sujeitas ao acordo de mui-
tos.
O que propomos nas páginas que se seguem é uma reconsideração da condição huma-
na à luz de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes.”
448
Contra a atitu-
de de irreflexão, imprudência, confusão e repetição de verdades triviais e vazias, Arendt con-
voca para olhar o mundo filosoficamente: “trata-se apenas de refletir sobre o que estamos
fazendo.”
449
Apesar de estarmos acostumados a querer soluções imediatas aos problemas que
se apresentam, sem parar para pensar e refletir sobre nossa forma de atuação, e, ainda, se os
princípios que defendemos ganham consistência e vivência nas nossas práticas e processos
que desencadeamos, é oportuno convocar para que realmente pensemos sobre algumas ques-
tões: Que identidade de sujeitos revelamos quando agimos? Em nome de que agimos? Por que
agimos assim e não de outro modo? Que projetos defendemos nas nossas ações? Avaliamos
as nossas ações com base no percurso meios e fins, ou somente pelos fins? São algumas ques-
tões que merecem atenção, apesar de podermos ser tachados de moralistas quando propuser-
mos tais reflexões e discussões.
O segundo ponto que merece destaque, neste estudo, diz respeito ao grande cuidado e
preocupação que Arendt demonstrou com a questão da subjetividade humana e com o mundo.
Toda a sua reflexão política tem por base a construção de ambos. Quando explicita que a ati-
vidade política, por excelência, é a ação, a única que se desenvolve entre os homens e tem
como condição humana a pluralidade, que possibilita o exercício do discurso e da manifesta-
ção da liberdade, Arendt põe no centro da política a construção do homem e do mundo. Não
se trata da possibilidade de falar por falar, de dizer por dizer, mas de falar e dizer porque so-
mos livres para manifestar nossas opiniões e de que essas deveriam revelar sempre um novo
nascimento, novas iniciativas, próprias da nossa condição de liberdade. Sabemos, no entanto,
448
CH, p. 13.
449
Id., Ibid.
164
que essa é uma tarefa difícil, porque significa dizer que há um começo, mas não a certeza do
fim, e tal nos assusta, porque nos desestabiliza. É por isso que sempre foi mais fácil instru-
mentalizar as ações a fim de garantir e assegurar a certeza do fim. A diferença, em muitas
situações, nos assusta e a liberdade, às vezes, é também sinônima de perigo.
O terceiro aspecto refere-se à preocupação arendtiana com a defesa da política aliada à
verdade e realização de grandes feitos dignos de memória, isto é, que alcancem a imortalida-
de. Diferentemente da experiência totalitária e do modelo da fabricação implantado na política
pelos líderes totalitários e filosofias políticas da modernidade, respectivamente, Arendt pro-
põe que a efetivação e realização da política tenham bases sólidas sustentadas pela verdade,
contra a mentira, e grandes feitos, dignos de memória, contra a estratégia fria e calculista que
compromete a história.
O quarto ponto que merece ser realçado é a preocupação de Arendt com as esferas
privada e pública. A esfera privada não pode ser anulada da condição humana porque garante
a sobrevivência, é mediação para se chegar à vida pública e permite a vivência da intimidade,
entre outros pontos. A esfera pública, por sua vez, diz respeito ao comum e tudo o que é rela-
tivo à política diz respeito a este espaço. Considerando os aspectos destacados acima, a esfera
pública possibilita mais que mero espaço de disputa argumentativa. O espaço público, de a-
cordo com Arendt, deve disponibilizar a construção dos homens e do mundo, desapegada de
interesses de populistas e destituídos de grandes feitos, dignos de memória. Tendo o homem e
a estabilidade como centro, o espaço público permite a construção da liberdade e o resgate do
sentido da política, tornando-a mais humana e menos instrumentalizadora.
O quinto aspecto refere-se ao grande apelo de Arendt pela recuperação e garantia da
dignidade humana e solidariedade frente às situações de injustiça, brutalidades e fraqueza dos
direitos humanos. Quando Arendt refletiu e experienciou a condição de apátrida diante da
perseguição dos judeus, da fuga e desnacionalização de milhares de pessoas frente o assombro
de duas guerras mundiais, ela criticou a fragilidade dos direitos humanos e reivindicou a defe-
sa da dignidade humana. E mesmo diante da compreensão que não cabe à política resolver
questões pertinentes às desigualdades sociais, miséria, injustiça, Arendt não está defendendo
e/ou advogando pela indiferença frente a estas questões sérias e complexas. Destaca que a
alternativa que cabe à política é a solidariedade, princípio que pode guiar a ação e tornar os
homens preocupados e sensibilizados com as situações que ferem a dignidade humana. A sua
165
posição teórica, desde As Origens do Totalitarismo e obras seguintes, selaram o seu pensa-
mento como grito em defesa dos fracos e perseguidos pelos sistemas de dominação. Este é um
mérito que revela a grandeza do seu pensamento. Estende-lo para o nosso tempo e outras ge-
rações é o desafio que enfrentamos neste estudo.
Por outro lado, procuramos demonstrar que o pensamento político de Arendt apresenta
também alguns limites. Destacamos, primeiramente, a separação que Arendt fez entre o polí-
tico e o social, ou entre o político e o econômico, visando a destacar que a política não tem a
ver com o suprimento de necessidades e desigualdades sociais porque essa deve ser tarefa
econômica-administrativa e/ou jurídica quando for o caso, a exemplo da justiça. Esse é um
ponto que merece atenção e discussão. As definições de programas sociais passam, hoje, por
definições políticas e não teríamos como pensá-la de outra forma. Assim como é caso do tema
da desigualdade social que precisa ser enfrentado por questões e discussões políticas porque
fazem parte dos programas das políticas públicas. Mas, por outro lado, fica o apelo, de não
fazermos demasiado jogo de cena e marketing ao modo assistido atualmente, quando se trata
de lançar projetos que atendam a esfera social. Entendemos perfeitamente o “dito” quem não
é visto nem sempre é lembrado, mas lembrar demais, sem ter visto resultado nas ações concre-
tas, pode resultar falacioso e simples estratégia eleitoreira.
De qualquer modo, este é um debate sério, complexo e exige que tenhamos cautela.
Arendt alerta que tal questão não é tão simples, pois, ao mesmo tempo em que defendeu os
ideais da liberdade presente nas revoluções modernas, também notou que o fato delas não ter
resolvido os problemas no âmbito social, custou-lhes caro, e o seu preço foi abrir mão da li-
berdade pela necessidade. O problema, assim se põe: é possível a liberdade sem a garantia das
condições básicas e elementares à sobrevivência? Segundo Arendt não, porque à luz da expe-
riência política da polis grega, a primeira era possível porque estava assegurada a segunda.
Mas as necessidades não faziam parte da pauta política, porque elas estavam ligadas à esfera
privada. Hoje não podemos pensar dessa forma. As necessidades e problemas ligados à sobre-
vivência são os temas da pauta política. Quais soluções são possíveis é o grande drama que
enfrentamos.
Em segundo lugar, mencionamos a volta arendtiana à experiência da pólis grega para
recuperar os fragmentos perdidos da política. Ao mesmo tempo em que assinala que não se
trata de reposição de um modelo antigo para a atualidade e sim de recuperar aqueles elemen-
166
tos mais essenciais à política, Arendt não se isenta de ser criticada do fato da defesa da liber-
dade de alguns e exclusão de muitos. Mas esse problema decorre do não enfrentamento de
Arendt com as questões sociais e também do fato de não ter mencionado que a diferença entre
as atividades da vita activa: labor, trabalho e ação, não significam que alguns nascem para o
labor, outros para o trabalho e ainda outros para ação. Um só homem pode exercer as diferen-
tes atividades, mas necessita de clareza acerca do significado, das diferenças e da finitude que
cada uma delas têm. Em certo sentido, Arendt chega a apresentar solução para este problema
quando fala da formação dos conselhos nas revoluções modernas, considerando que algumas
pessoas não aptas à política e desinteressadas desses questionamentos decidem não participar.
O acento demasiado à polis grega permite o levantamento desta questão.
Assim, entender que essa é uma tese que deve estar resolvida é o primeiro passo, até
porque para Arendt, se as desigualdades sociais e de gênero não são naturais, mas de aptidão,
então, a política precisa de outra área ou ciência que possibilite aos homens pensar sobre isso,
considerando que o espaço público é também o da aparição e construção do próprio ser hu-
mano. Essa questão não legitima a concepção política platônica porque nele já se tinha a defi-
nição de que só os filósofos estavam aptos à política. Em Arendt, à luz da defesa dos conse-
lhos, todos podem atuar politicamente, mas alguns não estão aptos ou, por opção, decidem
não querer entrar neste âmbito que implica discussões e enfrentamentos. De qualquer modo,
isso gera uma longa discussão. Por isso, entendemos que caberá à política o desafiante papel
de possibilitar a integração de todos os participantes nela implicados.
Enfim, cabe destacar que as reflexões de Arendt, acerca da política permitem a conti-
nuidade da discussão. Além de muitos alcances, ela também possui limites, mas não tiram o
mérito de suas reflexões e, além do que, não exigimos de Arendt e outros pensadores soluções
prontas e acabadas, capazes de dar todas as respostas a todos os problemas que a política a-
presenta em nosso contexto. Como disse Duarte, com o qual concordamos, o que precisa ser
questionado é se diante dos nossos problemas “algum outro pensador político contemporâneo
conseguir[á] detectá-los e compreendê-los com maior argúcia e originalidade, deixando entre-
visto, ainda, o legado possível de um futuro político que não seja a sua simples reposição.”
450
450
DUARTE, op. cit., p. 317. Acréscimo nosso.
167
Todo o esforço e empenho intelectual arendtiano esteve ligado à sua experiência de
vida, mas não se deteve em simples lamentos ou reduzido a uma reflexão que só cabe em um
momento histórico específico. A reconsideração da vita activa nos instigou a compreender-
mos a precariedade em que a política foi submetida, mas, sobretudo, para que entendamos a
condição humana presente em cada atividade, alertando que é a ação atividade política, por
excelência, e nela, é possível a manifestação da pluralidade e liberdade humana. Pluralidade
que não reinvidica mero indiferentismo ou liberdade que almeja fim de limites e responsabili-
dades. No seu conceito de política, há um zelo pela defesa de valores e ações que preservem a
memória das gerações futuras, não para servir de repetição, transplante, mas porque nos ensi-
nam que, em política, é preciso audácia para começar algo novo, a partir de nossas próprias
opiniões e iniciativas a favor da liberdade, da realização dos homens e da construção do mun-
do.
168
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