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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO E DOUTORADO
ITATIARA TELES DE OLIVEIRA
“Cantai Com Júbilo ao Senhor”: o papel da música no crescimento
do neopentecostalismo em Goiânia (1985-2005)
Goiânia/2006
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ITATIARA TELES DE OLIVEIRA
“Cantai Com Júbilo ao Senhor”: o papel da música no crescimento
do neopentecostalismo em Goiânia (1985-2005)
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em História da
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade
Federal de Goiás, como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em História.
Área de concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades
Orientadora: Profa. Dra. Libertad Borges Bitencourt – UFG
Goiânia
2006
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ITATIARA TELES DE OLIVEIRA
“Cantai Com Júbilo ao Senhor”: o papel da música no crescimento
do neopentecostalismo em Goiânia (1985-2005)
Dissertação defendida no Curso de Mestrado em História da Faculdade de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do grau de Mestre,
aprovada em _____ de ______________ de 2006, pela Banca Examinadora constituída pelos
seguintes professores:
__________________________________________
Profª. Drª. Libertad Borges Bitencourt – UFG
Presidente da Banca
___________________________________________
Pro. Drª. Heliane Prudente Nunes – UCG
___________________________________________
Pro. Drª. Maria Alia Garcia de Alencar – UFG
________________________________________
Prof. Dr. Hélio C Serpa – UFG
4
Ao meu Deus, aos meus pais Itamar e
Vanilda Teles e à minha orientadora Libertad
Bitencourt: colunas do meu caráter e da minha
profissão.
5
AGRADECIMENTOS
Dizer obrigada a todas as pessoas ou amigos, que de alguma forma me
ajudaram nessa jornada, não seria o suficiente para expressar toda a gratidão e
reconhecimento por todas as coisas boas que fizeram por mim. Mas infelizmente
queridos, até o presente momento, não consegui descobrir uma forma mais
original ou completa de o fazê-lo. Sendo assim resta-me apenas registrar, neste
que é mbolo de minhas conquistas, os seus nomes, seguidos de algumas
palavras que de certa forma o tentativas de eternizar” minha gratidão pelas
mãos estendidas que me ajudaram a trilhar esse caminho e concluir parte de
minha jornada.
Querido Deus, mesmo que muitos duvidem de sua existência, para mim
você é mais que real e se aqui cheguei ou se encontrei tantas pessoas que me
ajudaram a aqui chegar devo tudo a você. Muito obrigada Senhor! Mamãe
faltam-me palavras para agradecer todo apoio e carinho que você tem dispensado
a mim. Saiba que mesmo que você o seja uma historiadora, foi a senhora
quem “escreveu” os fatos históricos mais importantes de minha vida. Muito
obrigada mamãe! Pai você com esse jeito durão” de amar e ensinar, que eu
acabei herdando, foi também um dos grandes responsáveis por eu ter chegado
aqui. Sem seus conselhos eu, com certeza, não teria corrido atrás de meus sonhos,
muito obrigada pai, te amo muito! Libertad, também não sei descrever a
admiração e gratidão que sinto por sua forma profissional, ética e amiga de me
orientar. Você é um exemplo profissional a ser seguido, muito obrigada por tudo.
Itanilda, Itatiana, Hélio e Zenilde, meus irmãos e amigos queridos, vocês também
deram muito de seu tempo para me ajudar...quantas horas dedicas à tradução,
digitação ou revisão em meu lugar para me verem vencer. Vocês também
ajudaram a escrever a minha história. Muito obrigada, amo vocês demais!
6
Queridos amigos Junior, Cristiane, Marcio, Wisley, Rodrigo, Sirley, Karina
Rosane, Alessandra e Walter muito obrigada pelo apoio e incentivo nos
momentos difíceis obrigada também por se alegrarem com minhas conquistas, é
gratificante ter amigos assim, amo vocês! Professora Neuzeli e Dr Azio muito
obrigada por vocês terem confiado a mim todo material sobre música que
precisei, com certeza eu não teria concluído esse trabalho sem a confiança e o
carinho que vocês me dedicaram. Muito obrigada, ambos são muito especiais
para mim! Estimados e admiráveis professores doutores Hélio, Noé, Eugênio,
Ana Tereza, Dulce e Conceição jamais vou esquecer suas orientações
principalmente a ética e peculiaridade individual de cada um de vocês ao
transmitir o conhecimento que, com certeza, com muito esforço adquiriram. Para
mim vocês são verdadeiros doutores na arte de ensinar e orientar a construção do
conhecimento histórico. Neuza querida, jamais me esquecerei de sua
prestatividade e eficiência como secretária do programa, na verdade você foi
também uma grande amiga e um exemplo de bondade e preocupação com o
próximo digno de ser imitado, muito obrigada por tudo. Finalmente agradeço
minhas queridas tias, primas e primos: Aparecida, Deusa, Vanusa, Jaqueline,
Dani, Grasi ,Cardoso e Beto obrigada pelo incentivo e pelas orações... tenho
orgulho em -los como parentes...amo vocês !
7
SUMÁRIO
RESUMO......................................................................................................... 09
ABSTRACT..................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO............................................................................................................... 11
CAPÍTULO I: A MÚSICA RELIGIOSA CRISTÃ: UM REFLEXO DA
COSMOVISÃO TRANSCENDENTE/IMANENTE DE DEUS........... 20
As transformações da religiosidade brasileira e o estabelecimento do
protestantismo em Goiás............................................................................ 20
O Deus transcendente/imanente e a produção musical da cristandade....... 28
A música religiosa cristã desde a tradição judaica ao cristianismo
medieval: um reflexo da visão transcendente de Deus............................... 37
A música religiosa cristã a partir da Reforma: um reflexo da transição
da visão transcendente para a visão imanente de Deus.............................. 61
CAPÍTULO II: A MÚSICA POPULAR CONTEMPORÂNEA
E A POPULARIZAÇÃO DA MÚSICA RELIGIOSA ..................... 72
A gênese da música popular contemporânea no Ocidente e no Brasil:
aspectos históricos e principais correntes teóricas ................................. 74
A música religiosa protestante no Brasil: da introdução à
apropriação de ritmos populares contemporâneos................................... 96
8
CAPÍTULO III: “CANTAI COM JÚBILO AO SENHOR”: A
AÇÃO MUSICAL DO NEOPENTECOSTALISMO GOIANO............ 118
O Movimento Pentecostal e seu estabelecimento no Brasil.......................... 118
O pentecostalismo em Goiás: Goiânia cus privilegiado de
crescimento do neopentecostalismo.............................................................. 124
A música evangélica em Goiás: da introdução à apropriação
de ritmos populares contemporâneos............................................................ 133
“Vinde e cantai com júbilo ao Senhor”: um convite para conversão
feito pelas igrejas goianas Luz Para os Povos e Fonte da Vida.................. 148
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 164
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................... 169
PÁGINAS NA INTERNET............................................................................ 174
9
RESUMO
A presente pesquisa discute como a prática de apropriação de ritmos
populares contemporâneos na composição de músicas religiosas tem sido utilizada
pelas igrejas neopentecostais de Goiânia como instrumente de atração e
manutenção de novos membros.
Constatou-se que a cosmovisão de um Deus imanente, predominante no
ocidente a partir da era moderna, está significativamente relacionada à
aproprião desses ritmos musicais. Além dessa cosmovisão, questões como:
busca de identidades, protestos contra a ordem vigente e consumo – características
da música popular contemporânea também estão no bojo dessa questão. Como
resultado a música religiosa, para os neopentecostais, deixou de ser apenas uma
forma de adoração tornando-se então um poderoso instrumento de atração e
manutenção de novos fiéis uma vez que perceberam que esse novo tipo de música
agrada o segmento jovem da sociedade ao mesmo tempo em que pode atuar nas
emoções dos indivíduos influenciando-os ao tomarem decisões.
As igrejas neopentecostais de Goiânia que exemplificaram essa prática nessa
pesquisa foram a Internacional da Paz Ministério Luz Para os Povos e a
Apostólica Ministério Fonte da Vida, escolhidas por terem sido fundadas em
Goiânia e por goianos, por apresentarem maior número de crescimento em sua
membresia nesta capital e por serem as que mais adotam esse novo estilo musical
e o utilizam como instrumento de atração e manutenção de novos membros.
Palavras-chaves: contemporâneo, crescimento, música, neopentecostal, popular e
ritmo.
10
ABSTRACT
The present research argues as practical of appropriation of popular rhythms
the contemporaries in the composition of religious music have been for the
neopentecostal churches of Goiânia as instrument of attraction and maintenance of
new members.
One evidenced that cosmic-vision of a God imminent, predominant in
occident from the modern age, significantly it is related to the appropriation of
these musical rhythms. Beyond this cosmic-vision, questions as: search of
identities, protests against the effective order and consumption - characteristic of
contemporary popular music - also are in the bulge of this question. As result
religious music, for the neopentecostal, it left of to be only worship becoming
then a powerful instrument of attraction and maintenance of new followers once
that had perceived that this new type of music pleases the young segment of the
society at the same time where it can act in the emotions of the individuals
influencing them taking decisions.
The neopentecostal churches of Goiânia that exemplify this practical in this
research had been the International of the Peace Ministry Light for the Peoples
and Apostolic Ministry Source of the Life, chosen for having been established in
Goiânia by goianos presenting greater number of growth in its membership in this
capital city and the most to adopt to this new musical style and they use it as
instrument of attraction and maintenance of new members.
Keywords: contemporary, growth, music, neopentecostal, popular and rhythm.
11
INTRODUÇÃO
Predominantemente católico desde o início do culo XVI, data que marca
o estabelecimento da denominação e da conseqüente colonização portuguesa, o
Brasil é hoje um dos países do sul do continente americano em que o fenômeno de
proliferação de movimentos protestantes neopentecostais ocorre de maneira mais
acentuada, pois mesmo a população católica constituindo-se ainda como a maior
população religiosa do país, cerca de 73% da população, ela não é, desde os anos
1980, a que mais cresce localmente.
Mesmo com a discreta presença de manifestações religiosas não católicas
como a dos africanos, índios, judeus e cristãos protestantes, o caráter religioso
brasileiro, predominantemente católico, em quase nada se alterou desde o período
colonial até o início dos anos 1980. A partir desse período, a religiosidade
brasileira se altera de forma significativa. Segundo dados do censo do IBGE
1
, os
católicos, que durante a década de 1970 eram 91,8 da população religiosa
brasileira, constituem 89% dessa população, perdendo aproximadamente 5,7
pontos percentuais em seu índice de crescimento. Paralelo a esse fenômeno, os
protestantes (em suas mais diversas denominações) deixaram de ser, no mesmo
período, 5,2% da população religiosa do Brasil para serem 6,6%, o que significa
um aumento de 2,4 pontos em seu índice de crescimento.
Esses meros poderiam ser considerados insignificantes não fosse o fato
de os católicos terem perdido pontos em seu percentual de crescimento em lugar
de ganhá-los, como sempre aconteceu antes desse período. Mais significativo
ainda são os números dos censos do IBGE que revelam um declínio progressivo
do índice de crescimento católico paralelo à ascensão progressiva do índice de
crescimento dos grupos protestantes, ou seja, de 89% da população brasileira na
1
Ver Censo Demográfico do IBGE 2000
12
década de 1989 os católicos declinaram para 83, 3% na década de 1990 e para
73,9% nos anos 2000, enquanto que os protestantes ascenderam de 6,6% na
população religiosa nos anos 1980 para 9% nos anos 1990 e 15,6 nos anos 2000.
Conforme enfatizado e ainda segundo o censo de 2000, dos então cento e
sessenta milhões, oitocentos e setenta mil e oitocentos e três brasileiros, cento e
vinte e cinco milhões, quinhentos e dezessete mil e duzentos e vinte e dois (cerca
de 73,9% da populão) são católicos, revelando, entretanto, um fato
extremamente significativo para os estudos culturais: os pontos percentuais do
índice de crescimento da população católica estão, progressivamente decrescendo
nos últimos 30 anos (Cerca de –15,1 pontos percentuais) enquanto os pontos
percentuais do índice de crescimento da população protestante estão
progressivamente crescendo (cerca de + 9 pontos percentuais) no mesmo período
2
.
Um outro fato extremamente significativo chama a atenção: dentro do
grupo que engloba religiões protestantes ou evangélicas, um apresenta um elevado
índice de crescimento a partir dos anos 1980, a saber: o grupo dos pentecostais.
O jornalista e escritor Vanderley Dorneles
3
, em seu livro “Cristãos em
Busca de Êxtase”, afirma que os pentecostais eram 49% dos evangélicos em 1980
e no censo divulgado em 1991 tornaram-se 76% (DORNELES, 2003, p.11). Sua
taxa de crescimento entre os anos de 1980 a 1991 foi extremamente superior ao
chamado protestantismo histórico
4
, atingindo o índice de 111,7%, enquanto este
último segmento cresceu apenas 9,1% no mesmo período, explica o autor.
2
Sobre esse assunto ver ROMERO, César.A diversificação religiosa. In Estudos Avançados/ Universidade de São
Paulo, Instituto de Estudos Avançados vol.18, n°52- São Paulo: IEA,2004
3
Vanderlei Dorneles é jornalista, mestre em teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, e mestre em
comunicação pela UNASP. Desenvolve pesquisas no campo das ciências da religião, defendendo idéias de que
existem raízes de religiões primitivas na liturgia pentecostal. Para comprovar sua teoria, Vanderlei busca na liturgia
festiva e no transe coletivo e individual elementos oriundos das antigas comunidades primitivas, as quais afirma
serem comunidades desprovidas de documentação escrita ou arquitetônica.
4
Expressão utilizada para designar as Igrejas Cristãs organizadas a partir do movimento de Reforma do século
XVI ate o século XIX quando começam a surgir as Igrejas Pentecostais
13
Confirmando as proposições de Dorneles, números apresentados pelo IBGE
referentes ao Censo de 2000, mostram que no Brasil os pentecostais eram
17.975.106 brasileiros enquanto que os protestantes históricos eram apenas
8.477.068, uma diferença de mais de 9.498.038 fiéis, aproximadamente.
A que se deve esse elevado índice de crescimento? Essa e outras indagações
somadas à proposta de investigação histórica elaborada por pesquisadores da
segunda geração da Escola dos Annales fazem com que inúmeros pesquisadores,
ao escolherem o campo religioso como objeto de suas investigões, voltem suas
atenções para os grupos pentecostais e em especial para a vertente neopentecostal
um sub grupo dentro do ramo pentecostal, responsável pela formação,
freqüentemente sem muito critério, de inúmeras novas igrejas espalhadas pelo
Brasil e que, segundo o consenso da maior parte dos pesquisadores, são
responsáveis por esse, acelerado e significativo, crescimento evangélico em
território brasileiro.
O discurso renovado e as práticas religiosas, tais como curas milagrosas,
exorcismo, transes individuais, glossolalia, teologia da prosperidade são
apontados como fatores de adesão de novos fiéis. Pouco, no entanto, se fala sobre
o papel que a música religiosa de ritmos populares, conhecida também como
música cristã contemporânea, exerce nesse processo de adesão.
A presente pesquisa pretende oferecer elementos que conduzam à melhor
compreensão do processo de alteração ou transformação estética (rítmica e
melódica) da música religiosa cris, que nas últimas cadas tem se apropriado
cada vez mais de ritmos populares contemporâneos, anteriormente rejeitados por
serem considerados por muitos cristãos como armas do diabo, a fim de melhor
esclarecer o papel desempenhado por esse estilo musical no processo de expansão
das igrejas neopentecostais em Goiânia, uma vez que, devido à amplitude e
14
complexidade do objeto, seria inviável, no momento, abordá-lo em âmbito
nacional.
O interesse em refletir sobre essa apropriação de ritmos populares
contemporâneos em composições religiosas originou-se por volta do final da
década de 1980 ainda em minha adolescência ao observar que muitos jovens
da Igreja Adventista do Sétimo Dia, a qual sou vinculada, reclamavam de sua
música ao mesmo tempo em que admiravam e até defendiam o estilo musical de
outras igrejas incluindo o estilo musical de algumas igrejas neopentecostais que
já existiam nessa época como, por exemplo, a igreja Luz Para os Povos.
Minha graduação em História, minha relativa formação
5
e experiência
musical, bem como minha vinculão a uma instituição religiosa, que assume e
defende uma postura tradicional no que se refere à composição de suas músicas,
foram relevantes na decisão da elaboração do presente trabalho, pois é inegável
que a apropriação de ritmos populares contemporâneos, feita pelos
neopentecostais ao comporem suas músicas religiosas, me causava certa
estranheza ao mesmo tempo em que despertava em mim uma certa “curiosidade”,
tão necesria para o início de uma investigação histórica.
Também foram relevantes na decisão de elaboração deste trabalho os
resultados das pesquisas do jornalista Vanderlei Dorneles sobre a liturgia
neopentecostal bem como o comportamento dos alunos da Rede Adventista de
Educação
6
em relação tanto à música religiosa considerada tradicional quanto à
música cristã contemporânea; a primeira é amplamente rejeitada enquanto a
segunda é amplamente valorizada pelos mesmos.
5
Ainda na adolescência conclui o curso básico de piano e o técnico em teoria musical. Fiz parte, como corista, do
Coral Vozes de Vitória da Igreja Adventista do Sétimo Dia, localizada no Setor Coimbra em Goiânia, entre os anos
de 1990 até 1996 quando assumi sua direção geral para a gestão 1996/97 e reassumindo-a à partir de 1999 até o
final de 2004 quando me afastei definitivamente do mesmo para assumir a direção geral das atividades musicais
dessa igreja até dezembro de 2005, ano que me desvinculei de todas as minhas atividades no setor musical para
melhor dedicar-me à conclusão dessa pesquisa.
6
Instituição educacional onde leciono história desde 1998
15
Entendi, no entanto, que discorrer sobre esse assunto sem antes analisar,
mesmo que brevemente, as transformações pelas quais passou a música religiosa
cristã, desde a era do cristianismo primitivo, herança da tradição judaica, até o
presente século, deixaria, nesta pesquisa, uma lacuna que com certeza
comprometeria o alcance de seus objetivos. Nesse sentido, na primeira parte deste
trabalho dediquei-me a esta questão, ressaltando que para tanto foi necessário
recorrer à análise da composição e utilização da música em rituais religiosos dos
judeus dos tempos bíblicos, mais precisamente as narrativas do Velho
Testamento, que o judaísmo é considerado o berço do cristianismo. Assim, a
blia, livro sagrado do cristianismo, foi também um documento relevante nesse
processo investigativo que resultou no primeiro capítulo desta pesquisa.
Ressalta-se ainda que devido ao fato de a temática da música religiosa
cristã, desde a era primitiva até a era moderna da história ocidental, ser ainda
relativamente pouco discutida no meio acadêmico goiano e até mesmo no meio
acadêmico brasileiro, recorri quando necessário à literatura religiosa de igrejas de
confissões protestantes como também católica, uma vez que tal literatura pode ser
considerada importante fonte de pesquisa histórica, pois revelam não as
concepções ou idéias como também revelam comportamentos musicais praticados
pelos cristãos em suas diversas denominações religiosas.
Foi necessário recorrer ainda à produção acadêmica norte-americana sobre
essa temática, pois foi verificado que esse tema tem sido constantemente discutido
em pesquisas de pós-graduação nos Estados Unidos como reflexo tanto da
predominância da religião protestante naquele país como do significativo mero
de universidades vinculadas ou sustentadas por denominações religiosas, como a
Andrews University, a Loma Linda University, o Southwestern Baptist Seminary
e a Catholic University of América dentre outras respectivamente pertencentes às
igrejas Adventista do Sétimo Dia, Batista e Católica, que também estão atentas às
16
mudanças ocorridas na produção musical religiosa cristã daquele país e de outras
regiões do mundo onde o fenômeno da popularização ou adoção de ritmos
populares contemporâneos na composição religiosa cristã tem ocorrido com mais
freqüência.
Constatou-se durante a realização dessa pesquisa que a adoção desses
ritmos populares, também esintimamente ligada às alterações na cosmovisão de
sacralidade da cristandade ocidental, ou seja, ao longo da história do cristianismo
a forma como os cristãos enxergavam seu Deus foi gradativamente se
transformando de uma visão predominantemente transcendental
7
para uma visão
fundamentalmente imanente.
8
Para compreender esse processo o só a bíblia como também composições
musicais gregorianas foram relativamente significantes, juntamente com as
reflexões de pesquisadores norte americanos, europeus e brasileiros vinculados ou
não à denominações religiosas quer católicas ou protestantes, os quais trilharam
ou trilham o complexo caminho de refletir tanto sobre a visão crisde divindade
como sobre a sica nos movimentos religiosos. Entre esses pesquisadores se
destacaram ao longo do primeiro capítulo: o historiador da música religiosa Erick
Werner, o cientista da religião doutor Samuel Bacchiocchi, os sicos Wolfgang
H.M. Stefani e Denise C.S. Frederico, sendo estes doutores e docentes em
universidades confessionais.
O segundo capítulo dessa pesquisa buscou refletir sobre o processo de
popularização rítmica da música criscontemporânea a fim de se compreender o
significado desse estilo musical religioso para o movimento neopentecostal que é
7
no sentido aqui aplicado significa que a cristandade enxergava seu Deus como um ser sublime, poderoso, e
inigualável em perfeição por isso inatingível ou simplesmente impossível de ser alcançado
8
no sentido aqui aplicado significa que a cristandade passou a enxergar seu Deus como um ser que, apesar da
sublime perfeição e poder, habita não simplesmente com os seus filhos mas em seus filhos através do seu Espírito,
ou seja, a partir da Reforma Deus foi lentamente se transformando em um ser que permanentemente reside com e
no ser humano a despeito de ser este um ser “imperfeito”
17
o carro chefe desse processo de adoção de ritmos populares “seculares em
composições religiosas. Para que essa análise não ficasse descontextualizada do
quadro de manifestações culturais julguei relevante refletir também, na primeira
parte desse capítulo, sobre as origens da música popular contemporânea ocidental
e brasileira, enfatizando as principais teorias que discutem esse fenômeno cultural
chamado música popular. Nesse cenário, o poderiam faltar as relevantes
reflexões de Theodor Adorno, renomado teórico da música da Escola de
Frankfurt, uma vez que suas reflexões elucidam importantes questões sobre a
música popular ocidental.
Consubstanciou também este capítulo as considerações de Richard
Middletom e David Riesman, ampliando a visão adorniana sobre a música popular
que a enxerga como fruto da indústria cultural e por isso a qualifica
exclusivamente como música de massas ou música de consumo apresentando-a
não como um produto das massas musicalmente destreinadas, conforme
enfatiza Adorno mas tamm como um dos resultados de um complexo e
contínuo processo de transformações sócio-culturais no ocidente a partir da era
contemporânea.
A segunda parte desse capítulo discute ainda o lento e também contínuo
processo de popularização da música religiosa cristã no Brasil e em Goiás e neste
cenário muito úteis foram a primeira edição do Hinário Adventista publicado em
1933 e a quinta edição do Hirio Salmos e Hinos, publicado em 1975 como
última reformulação de sua primeira edição publicada ainda no século XIX, mais
precisamente no ano de 1868, como fruto do trabalho dos missionários Robert e
Sarah Kalley neste país. Importantes também foram as reflexões historiográficas
goianas que estão desbravando a história do protestantismo e do
neopentecostalismo na região.
18
Por fim, na última parte desse capítulo busquei refletir sobre o significado
da adoção de ritmos populares contemporâneos na atual composição musical
neopentecostal. Verificou-se que tais práticas estão intimamente ligadas a três
fatores: primeiro ao fato de que esses estilos musicais contemporâneos atendem à
proposta de adoração neopentecostal, que além de ser informal, sinestésica
9
é
promotora de êxtase emocional/espiritual, segundo, ao fato de que essa
popularização tmica está inserida no processo de busca e afirmação de
identidades, ou seja, essa popularização significa identidade e senso de
pertencimento e, terceiro, a adoção de ritmos populares modernos significa a
certeza do consumo, que para um crente neopentecostal é igual à expansão de sua
fé ou de sua mensagem doutrinária.
E, finalmente, o terceiro capítulo discorre sobre como essa música,
composta a partir da adoção de ritmos populares contemponeos urbanos e rurais,
tem agido e contribuído com o processo de expansão da neopentecostal em
Goiânia. Para se alcançar esse objetivo foi necessário refletir sobre a introdução
do protestantismo e do neopentecostalismo no Brasil e em Goiás, avaliando os
fatores que contribuíram com a inserção desses movimentos religiosos em regiões
oficialmente católicas.
Constatou-se, então, que mudanças no cenário potico e econômico
nacional e regional, bem como as contradições da sociedade capitalista foram uma
das forças propulsoras na alteração da religiosidade brasileira e goianiense que
hoje segue impulsionada pela ão dessa nova música religiosa que atrai e
conserva novos fiéis no seio do neopentecostalismo conforme foi demonstrado
pelo estudo de caso desenvolvido na última parte desse capítulo, que enfocou as
Igrejas Luz Para os Povos e Fonte da Vida, duas igrejas “tipicamente” goianas
que crescem gras à ação do seu cântico jubiloso ou como afirmam do louvar
9
no sentido aqui aplicado que possibilita movimentos corporais (palmas e danças) e contato físico como abraços.
19
que agrada a Deus” e aqui, acrescenta-se, do louvor que agrada principalmente
aos crentes.
20
CAPÍTULO I
A MÚSICA RELIGIOSA CRISTÃ: UM REFLEXO DA COSMOVISÃO
TRANSCENDENTE/IMANENTE DE DEUS
As transformações da religiosidade brasileira e o estabelecimento do
protestantismo em Goiás
Analisando a historiografia brasileira que discorre sobre o período colonial
é possível notar o registro do rígido controle e monopólio religioso do catolicismo
em terras brasileiras. Sendo esta a religião do Estado português, havia uma forte
fiscalização por parte da Igreja, visando impedir a entrada de imigrantes
protestantes e de outras denominações religiosas na colônia portuguesa.
Gilberto Freire (1933) destaca que em cada embarcação que atracava em
portos brasileiros o serviço de investigação dos frades era fundamental para
verificar a dos recém chegados. Para entrar no Brasil, requisitos como a saúde
física, a idoneidade e a honestidade, eram ignorados; o que contava era a saúde da
alma. Ser portador de sífilis ou outra enfermidade epidêmica não descredenciava a
entrada de um estrangeiro no Brasil. O que o descredenciava era a simples ou a
menor possibilidade de ser portador de enfermidades heréticas como o
protestantismo e o judaísmo. Segundo o autor, o fazer o sinal da cruz ou não
saber rezar o credo ou a Salve Rainha eram sintomas de heresia e isso já era o
suficiente para o frade não autorizar a permanência ou a entrada no Brasil.
21
Diante de tanto rigor, verificou-se que a pouca presença protestante no
Brasil durante os primeiros séculos do peodo colonial foi conseqüência das
invasões estrangeiras, mais precisamente das invasões francesa e holandesa.
Os franceses chegaram primeiramente ao Brasil em 1555, nos primórdios
da colonização, quando tentaram fundar no atual Estado do Rio de Janeiro a
França Antártica. Nessa região, além do interesse mercantilista, os franceses
liderados por Villegaigon visavam organizar um refúgio onde os huguenotes
10
pudessem usufruir liberdade religiosa ou, simplesmente, praticar sua fé sem sofrer
as atrozes perseguições impostas pelos católicos franceses.
Segundo Mendonça (1984), com eles, e nesse período, foi realizada a
primeira cerimônia religiosa protestante em território brasileiro; diferente da missa
católica possuía uma liturgia que incentivava o canto congregacional. Assim, a
música religiosa, mesmo que tradicional ou sem ritmos populares adentrava o
cenário religioso brasileiro. Esse primeiro culto foi realizado graças ao
atendimento de Calvino ao pedido de Villegaigon à Igreja de Genebra, que
solicitava o envio de reforços para as práticas colonizadoras e também para
manutenção da fé dos poucos colonos, como também para evangelização dos
índios; vale destacar que entre estes últimos o canto exercia papel relevante para a
conversão.
No entanto, pouco durou essa primeira “colônia” protestante em solo
brasileiro, pois, em 1560, durante o governo de Men de Sá, os franceses foram
expulsos com ajuda de Estácio de Sá, então chefe militar e sobrinho do
governador, que não só os expulsou como também destruiu a “colônia”
protestante em solo oficialmente católico.
A segunda invasão francesa, agora no norte do Brasil, ocorrida em 1612,
apesar de não ter como principal objetivo a construção de refúgio para os
10
Expressão utilizada para designar os grupos calvinistas franceses entre os séculos XVI e XVIII.
22
huguenotes, visto que agora gozavam de relativa tolerância religiosa
proporcionada pelo Edito de Nantes, também contribuiu para ampliar a presença
protestante no Brasil durante a primeira fase do período colonial conforme
enfatiza Mendonça (1984).
Com a expulsão dos franceses do norte do Brasil, em 1615, a próxima e
também mais significativa presença protestante neste território durante os
primeiros culos da colonização foi proporcionada pela invasão holandesa no
Estado de Pernambuco em 1630.
Segundo Mendonça (1984), apesar de essa invasão ter objetivos
predominantemente mercantilistas, foi organizada pela companhia das Índias
Ocidentais, que visava o controle da produção açucareira na região, representou o
mais longo período da presença protestante em solo brasileiro durante o período
colonial, pois a religião oficial da colônia holandesa no Brasil era calvinista.
Apesar de os holandeses não visarem a expansão do protestantismo, a tolerância
religiosa durante o governo do holandês Mauricio de Nassau favoreceu a
conversão de novos fiéis, uma vez que vieram para nesse período vários
pastores, os quais não providenciaram a impressão de literatura religiosa na
língua portuguesa e na língua tupi, como também desenvolviam trabalhos
religiosos com índios, com holandeses, portugueses e luso-brasileiro
11
.
De forma similar à presença dos huguenotes franceses, a presença dos
calvinistas também teve curta duração em solo brasileiro, pois com a expulsão dos
holandeses em 1654, quase nada restou da denominada fé reformada européia em
solo brasileiro e, conforme argumenta Mendonça, durante os culos seguintes os
sinais da ação institucional do cristianismo protestante no Brasil foram estirpados
(MENDONÇA, 1984, p. 17).
11
Expressão comumente utilizada para identificar colonos diretamente descendentes de portugueses, porém,
nascidos no Brasil, durante os primeiros séculos da colonização.
23
A partir do início do culo XVIII, os católicos, através da atuação do
Tribunal do Santo Ofício, mais especificamente através da atuação dos
Visitadores, intensificaram a perseguição contra judeus e protestante no Brasil,
fato que praticamente eliminou a presença dos mesmos neste território, efetivando
de forma quase absoluta a hegemonia ou monopólio do catolicismo neste país.
A historiografia brasileira, mais precisamente a que se dedica ao século
XIX, pontua que esse período foi o início de uma nova era na história política e
econômica do Brasil. Graças à conjuntura européia desse culo, sobretudo como
resultado da política expansionista de Napoleão, a família real portuguesa viu-se
obrigada a se instalar no Brasil, decretando-se o fim de sua condição de colônia,
uma vez que o Brasil foi elevado à categoria de Reino Unido à Portugal e
Algarves, em 1808.
Em 1810, com o estabelecimento do Tratado de Aliança e Amizade e de
Comércio e Navegação com a Inglaterra, os portos brasileiros foram abertos às
nações amigas e, em especial, foram abertos à Inglaterra, nação, que desde o
século XVI, era predominantemente protestante. Esses dois fatos promoveram
mudanças significativas na estrutura política, econômica e sócio-cultural brasileira
e nesse último aspecto destaque para o fator religioso que tratado de 1810
permitia aos imigrantes ingleses liberdade para prática de sua religião o que
significou para os protestantes uma grande conquista, uma vez que entre os
séculos XVI e XVIII o catolicismo era oficialmente a única expressão religiosa
autorizada no Brasil.
As conquistas para a protestante se acentuaram mais ainda quando em
1819, graças a um acordo com o governo suíço, D. João VI permitiu a entrada e
fixação no Brasil de aproximadamente dois mil imigrantes, sendo que a maior
parte dos mesmos era protestante, fazendo com que os assuntos religiosos se
24
tornassem pauta de debates políticos que, ao seu tempo, favoreciam, mesmo que
lentamente, a abertura às práticas religiosas não católicas.
A Constituição de 1824, apesar de manter o catolicismo como religião
oficial do Estado Imperial Brasileiro, reconhecia o Brasil como um reino cristão,
permitindo suas variadas confissões, garantindo a todos, calvinistas, anglicanos,
dentre outros, direitos políticos mesmo estabelecendo restrições quanto aos
lugares de culto, construções de templos e práticas proselitistas” (MENDONÇA,
1984, p. 24).
Segundo o autor, no ano de 1824 e durante os anos seguintes, novos grupos
de imigrantes adentravam em território brasileiro e com eles suas práticas
religiosas protestantes. E mesmo que tenha sido considerado como protestantismo
de imigração, por ser a princípio restrito ao grupo de imigrantes, maior exemplo:
luteranismo, em muito contribuiu para mudar o cenário religioso brasileiro ao
longo do século XIX.
Em Goiás, de forma similar às demais regiões do Brasil, o protestantismo
oficialmente só se estabeleceu em terras goianas a partir do século XIX, pois aqui,
como no resto do país, a confissão religiosa oficial era a católica. Sabe-se, porém,
que o catolicismo goiano não atingiu força suficiente para impedir ou conter
práticas religiosas não católicas.
Essa situação consolidou-se primeiro porque Goiás foi uma região de tardia
ocupação, ou seja, os brancos só chegaram a partir da segunda década do século
XVIII, devido à descoberta do ouro. Essa ocupação tardia e motivada pelo afã da
descoberta do ouro favorecia o contato e a conexão de culturas diversas: brancos,
portugueses ou de outras nações européias, negros, índios e brasileiros, muitos dos
quais nesse período eram mistura das três raças, se estabeleciam e coexistiam
25
miscigenando seus valores
12
, o que de certa forma afetava o pleno
desenvolvimento da fé católica. Em outras palavras, graças à influência negra e
ingena, o catolicismo goiano e porque não dizer o catolicismo do interior do
Brasil, era fortemente influenciado para não dizer “contaminado pela crendice
popular”.
Um segundo fator que contribuiu para que o catolicismo não conseguisse
garantir seu monopólio religioso nessa região foram as dificuldades econômicas
geradas pela crise de exploração aurífera, que por sua vez também contribuía para
ampliar as crendices populares num ambiente de incertezas quanto ao futuro.
Some-se a isso a localização geográfica e as dificuldades de translado próprios da
época, fazendo com que a assistência religiosa por parte dos clérigos fosse uma
atividade irregular. Também a falta ou o pouco preparo teológico dos mesmos fez
com que Goiás se transformasse em lócus ideal para a penetração de práticas não
católicas.
Nesse contexto, conforme destaca Morais (2003), A religiosidade goiana
mesclava várias manifestações religiosas. Nos séculos XVIII e XIX esta
religiosidade era quase que um fruto maduro à espera da chegada do
protestantismo” (Morais, 2003, p. 81) o que de fato ocorreu nas décadas finais do
século XIX, como fruto do protestantismo de missão que no Brasil visava
primordialmente evangelizar os índios, que eram considerados pagãos.
Um dos primeiros missionários protestantes a adentrar território goiano foi
o presbiteriano Jonh Boyle, o qual atuou em diversas cidades entre elas: Goiás,
Catalão, Jaraguá e a antiga Santa Luzia, hoje, Luziânia, que foi, segundo Ribeiro
(1987), o lugar em que o protestantismo apresentou seus primeiros frutos em
Goiás.
12
Morais (2003), afirma que Goiás é uma região de fronteira de encontro e influência tua de práticas e
valores diferentes.
26
Ribeiro (1987) enfatiza ainda que a relativa receptividade apresentada pela
região de Santa Luzia ao protestantismo é resultado da obra de colportagem
13
realizada sobretudo na Bahia, a qual resultou na conversão de um comerciante que
por sua vez pregou e converteu seus familiares, os quais fixaram residência em
Santa Luzia. Esses conversos, apesar de não estarem vinculados diretamente à
Igreja Presbiteriana de Boyle (pois a mesma ainda não havia sido fundada em
Goiás) realizavam suas reuniões a partir da leitura bíblica e do entoar de hinos, e
cujas letras eram aprendidas em hinários por eles encomendados.
O autor afirma ainda que nesse primeiro momento a música desempenhou
papel relevante no estabelecimento do protestantismo em Goiás e também em
todo país, ressaltando que esses novos conversos encomendavam hinários, que
eram enviados somente com as letras das músicas; isso favorecia a composição de
um hino com letra religiosa, mas com melodia basicamente sertaneja. Percebe-se
assim que nesse período a sica religiosa, que desempenhava relevante papel
tanto na liturgia protestante como no viver diário dos seus adeptos, sofria
alterações em suas melodias com a introdução de ritmos populares, o que a
tornava mais aceita e ao mesmo tempo a transformava em uma espécie de veículo
tanto de propagação da mensagem como de atração de novos fiéis uma vez que se
aproximava mais da realidade das pessoas nas mais próximas e longínquas
regiões.
Seria temerário afirmar que nesse período a introdução de ritmos sertanejos,
por exemplo, em letras religiosas tinha um caráter conscientemente proselitista, ou
em outras palavras, que os conversos e pastores visavam com isso atrair novos
adeptos ao seu redil; é mais provável que essa atitude fosse fruto da falta de
conhecimento da melodia original e do desejo de louvarem a Deus cantando e por
isso se adaptavam conforme as possibilidades que a realidade lhes impunha.
13
Expressão usada para designar a venda ou distribuição de literatura religiosa com objetivo missionário.
27
Como estavam acostumados com os ritmos ou com melodias sertanejas, acabava
sendo natural que o ato de louvar a deus através da música fosse consubstanciado
pelo estilo musical típico compartilhado pelo grupo local.
Fato é que esses pequenos grupos de protestantes recém convertidos
prepararam com suas músicas e com suas novas práticas religiosas o caminho para
o estabelecimento do protestantismo em Santa Luzia (Luziânia) a ponto de o
missionário Boyle encontrar as portas praticamente abertas para o protestantismo
nessa região”.
A partir desse pequeno núcleo protestante, mais precisamente presbiteriano,
instalado em Santa Luzia, o protestantismo foi gradativamente se espalhando por
Goiás, vencendo obstáculos quer fossem da legislação brasileira quer fossem da
cultura ou mentalidade dos habitantes da região, predominantemente católicos.
Em alguns casos, a ação protestante em Goiás era até mesmo confundida com
ações políticas, a ponto de os missionários protestantes serem chamados de padres
republicanos
14
. No entanto, a despeito desses problemas, o protestantismo
conquistou espaço nessa região.
Diante do pioneirismo missionário dos presbiterianos, a primeira igreja
protestante oficialmente instalada em Goiás foi a desta denominação. Fundada
ainda no século XIX, era denominada Igreja Presbiteriana de Santa Luzia de
Goyaz.
No culo XX, devido às tensões e divergências teológicas internas que o
protestantismo brasileiro enfrentava (as quais resultavam em cisões e formações
de outras igrejas) essa comunidade passou a ser designada como Igreja
Presbiteriana Independente de Santa Luzia. A ação da Igreja Presbiteriana
Independente expandiu-se pelo Estado e, a despeito das dificuldades, novas
14
Sobre esse assunto ver ALCÂNTARA, Jancir, Uma porta para Luz, São Paulo:Impressa da 1992 p.33 e
FERREIRA, Julio “História da Igreja Presbiteriana no Brasil”.2.ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana
1992 p. 503
28
igrejas dessa denominação foram fundadas em Bonfim (hoje Silvânia) Santo
Antônio do Descoberto e Anápolis. Ressalte-se ainda que além da fundação de
igrejas Presbiterianas Independentes em diversas cidades, o presbiterianismo
ganha força também pela fundação de escolas e hospitais como o Colégio Couto
Magalhães e o Hospital Evangélico Goiano, ambos em Anápolis.
No culo XX, mais precisamente em 1902, os missionários Charles Glass
e Reginaldo Yong desenvolveram um forte trabalho evangestico que foi
considerado o alicerce de uma expressiva igreja protestante neste Estado: a Igreja
Cristã Evangélica, considerada a 2ª igreja protestante estabelecida em Goiás,
destacando-se também o fato de que este Estado foi a segunda região do Brasil em
que se estabeleceu. Segundo as considerações de Faustino (1985), após o trabalho
em Catalão, voltaram-se para a cidade de Santa Cruz e por fim alcançaram a
capital do Estado, a cidade de Goiás, fato que contribuiu de forma significativa
com a transformação da religiosidade goiana e conseqüentemente, décadas mais
tarde, também proporcionou a transformação da música religiosa neste Estado já
que foi entre as diversas igrejas do protestantismo que ocorreram as alterações na
produção musical da cristandade discutidas neste trabalho.
O Deus transcendente/imanente e a produção musical da cristandade
O ato de apresentar e praticar “um louvor que agrada a deus” ou de “cantar
com júbilo” ao Senhor, que em tese é o mesmo que adoção de ritmos populares
contemporâneos urbanos ou rurais em composições religiosas neopentecostais
está intimamente ligado à predominância da concepção imanente do caráter Deus,
enfatizada no ocidente a partir da era moderna ou da renascença, a qual alterou
significativamente a forma de adoração nesse segmento religioso e,
conseqüentemente foi, ao longo dos séculos, alterando também a produção
29
musical religiosa cristã que a concepção que o homem tem de si, do mundo e
da divindade, afeta de forma decisiva suas ações.
O cerne dessa nova concepção se traduz na transferência da “fé” centrada
em Deus, defendida e difundida pela igreja cristã primitiva e medieval, para uma
“fécentrada no eu (indivíduo) fruto do pensamento humanista, individualista e
materialista da modernidade e contemporaneidade ocidental.
Mesmo que o cristianismo se sustente teologicamente em um paradoxo:
Deus transcendente/imanente
15
, durante sua história no ocidente a concepção da
cristandade sobre seu deus enfatizou um desses aspectos de seu caráter e isso
influenciou o comportamento artístico, cultural e religioso dos cristãos.
Nesse contexto, é relevante observar e refletir que a composição rítmica,
melódica e textual da música religiosa cristã foi e com certeza ainda está sendo
consubstanciada pela mudança lenta e progressiva dessa visão de um Deus
inatingível (além do alcance humano) da tradição judaico-cristã e da era medieval
para uma visão, em primeira instância, de um Deus imanente difundida pelos
reformadores e, em segunda instância, para a atual visão de um Deus conosco,
presente entre os homens, como propõe principalmente o movimento
neopentecostal.
Essa abordagem é melhor esclarecida por Wolfgan Hans Martin Stefani
16
ao enfatizar que durante a Idade Média, na produção artística cristã, e aqui inclui-
15
Para a cristandade Deus é o supremo criador, o todo poderoso, o ser perfeito, aquele que habita nos mais altos
céus, por isso transcendente, ao mesmo tempo que é o Deus que se fez humano na pessoa do Cristo e passou a
habitar entre a humanidade perdida em forma humana até sua morte expiatória e após sua ressurreição em forma
espiritual através do Espírito Santo concedido no pentecostes e por isso tudo se tornou imanente, ou seja, um Deus
que também habita dentro de seus “filhos”.
16
Wolfgang H. M. Stefani é australiano radicado nos EUA; graduado em música especializou-se em educação e
completou o doutorado em Ciência Religiosa pela Universidade Andrews em Michagan em 1993. Ensinou música
eclesiástica, hinologia, filosofia da música. Stefani atuou também por 14 anos como músico, organista, pianista e
diretor de corais. Apresentou mais de 60 seminários sobre música nos Estados Unidos, México, Japão, Austrália,
França, Inglaterra, Polônia, e Escandinávia. Sua tese versa sobre “O Conceito de Divindade e os Estilos de Música
Sacra”. É autor de vários livros entre eles Música Cultura e Adoração que consubstanciou parte dessa pesquisa.
30
se a produção musical, preponderantemente influenciada pela herança judaico-
cristã, a ênfase recaia no
Deus transcendente, e a humanidade deveria ser ensinada sobre Ele e
elevada ao Seu reino. A contemplação, em lugar do envolvimento, era a
ênfase; idealismo, o realismo; instrução, não o prazer; significado
espiritual, e não o poder psico-fisiológico eram os objetivos. Estes ideais
podem ser traçados na maioria das expressões artísticas cristãs por um
período de mil anos (STEFANI, 2002, p.163)
Essa afirmação pode ser constatada a partir da análise de salmos da antiguidade
judaico-cristã e de cantos gregorianos do período medieval, conforme
demonstram os exemplos abaixo:
SALMO 147- LOUVOR AO TODO PODEROSO
1 louvai ao Senhor porque é bom e agradável cantar louvores ao nosso
Deus; fica-lhe bem o cântico de louvor.
2 O Senhor edifica Jerusalém, e congrega os dispersos de Israel;
3 Sara os de coração quebrantado, e lhes pensa as feridas.
4 Conta o número das estrelas, chamando-as todas pelo seus nomes.
5 Grande é o Senhor nosso e mui poderoso; o seu entendimento não se
pode medir.
6 O Senhor ampara os humildes, e da com os ímpios em terra.
7 Cantai ao Senhor com ações de graça; entoai louvores, ao som da
harpa, ao nosso Deus,
8 que cobre de nuvens os céus , prepara a chuva para a terra, faz brotar
nos montes a erva,
9 e da alimento aos animais e aos filhos dos corvos, quando clamam.
10 não faz caso da força do cavalo, nem se compraz nos músculos do
guerreiro.
31
11 Agrada-se o Senhor dos que o temem, e dos que esperam na sua
misericórdia.
12 Louva, Jerusalém, ao Senhor; louva, Sião, ao teu Deus.
13 Pois ele reforçou as trancas das tuas portas, e abençoou os teus filhos
14 estabeleceu a paz nas tuas fronteiras , e te farta com o melhor do
trigo.
15 Ele envia as suas ordens à terra, e sua palavra corre velozmente;
16 da a neve como lã, e espalha a geada como cinza.
17 Ele arroja o seu gelo em migalhas: quem resiste ao seu frio?
18 Manda a sua palavra, e o derrete; faz soprar o vento, e as águas
correm.
19 Mostra a sua palavra a Jacó, as suas leis e os seus preceitos a Isrrael.
20 Não fez assim a nenhuma outra nação; todas ignoram os seus
preceitos. Aleluia!
Nota-se, nos vinte versos que compõe esse salmo, a preocupação em
exaltar a Deus. O salmista justifica a sua conclamação ao louvor ao Senhor
descrevendo, tanto o seu poder e domínio sobre a humanidade como tamm o
seu poder e domínio sobre a natureza. Não há nesse, e nem na grande maioria dos
salmos, espaço para exaltação humana, o Deus transcendente, que tudo controla, é
o foco principal do salmista. Esse mesmo foco espresente no canto gregoriano
17
que se segue
17
No caso desse canto esse foco se aplica à Trindade visto que o mesmo reflete o pensamento criso medieval
32
fonte: http://www.schuyesmans.be/gregoriaans/PT/PTnu.htm
A composição gregoriana, conforme pode ser constatado pela observação e
análise desse e de outros cantos, caracteriza-se pela inexistência de marcação
rítmica, pela elaboração de uma melodia composta por pequenos intervalos (no
máximo intervalo de quarta) e sem harmonia, uma vez que o plano principal dessa
música é a letra.
Essas características do canto gregoriano e dos salmos judaicos evidenciam
que não havia, no período de suas composições, a intenção ou a preocupação em
utilizar a música de forma agradável, envolvente ou atrativa, a fim de se atrair e
33
manter novos fiéis. Por trás da composição, execução ou utilização da música em
cerimônias religiosas no templo, na sinagoga ou na Igreja, durante a antiguidade e
era medieval, estava a preocupação tanto de exaltar a grandeza, a justiça e a
piedade de Deus em detrimento da pequenez, injustiça e impiedade humana, como
havia também o desejo de adorá-lo pelas bênçãos recebidas, cultuando-o de forma
singular ou oposta às formas “pagãs” ou às práticas seculares. Enfim, prevalecia
ao longo desses períodos a crença na suprema santidade de Deus e esse deus santo
não podia ser adorado com uma música composta por ritmos que seguiam os
padrões “pagãos” ou seculares.
No entanto, a partir da Reforma, quando foi enfatizado e difundido o caráter
imanente de Deus Stefani argumenta que
o temor de um juiz severo foi substituído pela ênfase num Deus amoroso
que desejou salvar a humanidade através de seu Filho [...] o ministério
do divino gerado pela participação mínima na adoração foi dissipado
parcialmente atras do aumento do envolvimento na eucaristia e no
canto congregacional [...] Deus passou a ser visto mais como um por nós
de que como um além de nós [...] assim a sica congregacional
necessitou de um estilo apropriado para vozes destreinadas e linguagens
vernáculas [...] o desejo luterano de empregar melodias populares e até
mesmo seculares para o uso litúrgico paulatinamente evidenciou-se e
difundiu-se (STEFANI, 2002, p, 164-165)
Ressalte-se, entretanto, que a cristandade ocidental não abandonou sua
crença em um Deus transcendente a partir da Reforma; o que ocorreu foi o início
de uma mudança de foco em relação ao caráter transcendente para o caráter
imanente de Deus, a qual foi sendo lenta e progressivamente refletida na produção
artística religiosa, do homem ocidental moderno, da qual a música faz parte.
34
Também é importante observar que essa mudança de foco não alterou de
forma absoluta a produção musical de todos os cristãos, pois mesmo que Lutero
defendesse e praticasse acerto ponto essa “popularizaçãoda música religiosa
em suas composições o mesmo não ocorreu de imediato em relação aos demais
reformadores e também em relação aos católicos que tanto Calvino quanto o
clero católico romano condenavam tais práticas e defendiam uma composição
musical que se distanciasse dos padrões seculares ou mundanos (cada um dentro
da sua esfera teológica) segundo observa Frederico
18
(2001). O que se coloca em
questão é que a prática da adoção de ritmos populares contemporâneos na música
religiosa cristã, que ocorre de forma quase que fenomenal, ao mesmo tempo em
que se postula como uma prática natural, na atualidade, possui suas raízes na era
moderna e está significativamente inserida em um contexto de alteração ou de
mudança de foco da concepção paradoxal transcendente/imanente que a
cristandade desenvolveu no caráter de sua divindade.
É importante observar ainda que essa nova concepção ou ênfase no caráter
imanente de Deus tornou-se mais acentuada nos séculos posteriores à Reforma a
ponto de se pensar em um Deus não apenas “por nós” ou um Deus que atrai, mas
passou a se pensar também em um Deus “ao nosso lado e dentro de nós”, ou seja,
ocorreu uma espécie de “radicalização” ou supervalorização da concepção da
imanência divina no sentido de tornar a relação deus/homem completamente
íntima, pessoal ou individual, enfim uma relação pautada quase que
essencialmente pela emoção como ocorre tanto no protestantismo (em sua versão
18
Denise Cordeiro de Sousa Frederico é bacharel em Música Instrumento Piano, concluiu doutorado em História
da sica em 1998 pelo Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia da Escola Superior de Teologia de
São Leopoldo, onde defendeu tese que discutiu a tensão entre a tradição e a contemporaneidade na música sacra do
Ocidente. Sua tese foi publicada em 2001 com título de “Cantos para o culto cristão” pela Editora Sinodal que é
responvel pela publicação da literatura religiosa e cienfica das instituições educacionais da Igreja Evangélica da
Confissão Luterana no Brasil.
35
pentecostal e neopentecostal) como no catolicismo, em sua versão denominada de
renovação caristica.
Essa priorização do caráter imanente de deus que durante os séculos
posteriores à Reforma fez emergir uma nova” cosmovisão da divindade, voltada
para a crença em um Deus mais íntimo, mais envolvente e que conduz
pessoalmente o crente pela atuação de seu Santo Espírito, capacitando-o com dons
espirituais na guerra contra o diabo, também é um paradoxo no contexto
ideológico dos culos XVII, XVIII e XIX, pois estes foram períodos em que as
teorias racionalistas ou cientificistas, que impregnavam o culto à razão, estavam
em voga.
Esse paradoxo se explica pelo fato de que essa sociedade dessacralizada,
que nega a existência de tudo aquilo que não pode ser explicado pela lógica
científica, e isso inclui principalmente deus que até esse período estava na esfera
de criador e a partir de então foi colocado na esfera de criatura de mentes
alienadas, gerou indivíduos solitários, competitivos e sem referencial religioso”
que sua divindade caiu para o campo do mito os quais, vivendo em uma era
pautada pelo culto à razão e pelo a de conquistas materialistas, passaram a
enfrentar crises existenciais. Inseridos nessa realidade “vazia”, os homens
passaram a buscar respostas para a vida, que nem a razão e nem as conquistas
materiais podiam lhes oferecer. Essas respostas, pelo menos em suas mentes,
foram encontradas na crença em um deus presente, amigo
19
e companheiro que,
em suas concepções, estaria com eles a a consumação dos séculos conforme
relatam os evangelhos
20
.
19
No evangelho de João, Jesus identifica seus seguidores como sendo seus amigos “Ninguém tem amor maior do
que esse: de dar a própria vida em favor de seus amigos. Vós sois meus amigos se fazeis o que eu vos mando” João
15: 13 e 14.
20
Ver evangelho segundo Mateus 28:20
36
Essa conjuntura se transformou em um terreno fértil para a formação e
desenvolvimento de movimentos religiosos caracterizados pela emoção ou,
conforme destaca Stefani (2002), pela crença em um “deus dentro de nós”. E
foram justamente nesses movimentos religiosos, que emergiram no seio da
sociedade dessacralizada, que se desenvolveu uma forma de culto e adoração
sinestésica propícia à adoção mais efetiva de ritmos populares contemporâneos
em suas composições musicais, uma vez que músicas compostas com tais ritmos
permitem ao adorador expressar livremente todas as suas “verdadeiras” emoções
que isso é compatível à sua religião, pois a mesma o ensina que esse Deus
amigo, presente e companheiro, quer verdadeiros adoradores que o adorem em
espírito e em verdade
21
, enfim que “cantem com bilo ao Senhor” assim a
ênfase do pentecostalismo em uma experiência total que apela a todos
os sentidos; o envolvimento emocional e sinestésico no lugar da
contemplação com uma conseqüente minimização do filosófico e do
abstrato e a habilidade musical para atrair adoradores bem como sua
liderança no campo da sica cristã contemporânea tem exercido uma
grande influência na cristandade dos dias atuais (STEFANI, 2002, p,
179)
Conclui-se então que na história do judaísmo e do cristianismo, enquanto os
homens enfatizavam a crença em um deus inatingível, compunham-se e
cantavam-se músicas que exaltavam sua grandeza, força e poder em detrimento da
“pequenez e pecaminosidade” humana conforme pode ser percebido nos salmos e
hinos judaico-cristãos. Em contrapartida quando os homens começaram a
enfatizar o caráter imanente de Deus, começaram também a compor e cantar hinos
que prefiguravam a vitória humana em Cristo, ou seja, a figura humana começa a
21
Ver evangelho de João 4:24
37
ser introduzida na composição musical o apenas como um ser pecaminoso ou
perverso, mas também como um ser perdoado, purificado e transformado pelo
sangue e graça de Cristo, conforme é visto em hinos ou músicas religiosas na era
da Reforma. Atualmente, como se crê em um Deus conosco, dentro de nós”, que
garante a vitória na guerra contra o diabo e que está sempre no meio do seu povo,
compõe-se e canta-se a vitória do crente de forma jubilosa, festiva, alegre e
popular, introduzindo assim os ritmos e valores seculares nas composições
musicais religiosas da cristandade, porque acredita-se que esse Deus es com
seu povo aonde quer que ele esteja, por isso ele pode e deve ser livremente
adorado em espírito e em verdade pois o que importa não é mais a forma e sim o
conteúdo do adorador. E ressalte-se que esse canto ou essa nova forma de cantar
tem sido um forte veículo de atração, pregação, conversão e manutenção de novos
fiéis ao seio do neopentecostalismo, conforme será demonstrado no decorrer desse
trabalho.
A música religiosa crisdesde a tradição judaica ao cristianismo
medieval: um reflexo da visão transcendental de Deus
Refletir sobre a produção ou composição musical religiosa dos cristãos
primitivos seria inviável sem avaliar a herança judaica, uma vez que o
cristianismo é “filho” do judaísmo. É incontestável a forte influência que os
padrões, as normas estéticas e as concepções musicais judaicas exerceram sobre a
música cristã primitiva.
Os judeus, diferente dos povos que os cercavam, praticavam o monoteísmo
religioso, apesar de se assemelharem a eles no que se refere à crea na
transcendência de sua deidade. Consubstanciados por essa crença em um Deus
supremo, além da compreensão, os judeus compunham sua música religiosa com
38
o objetivo de adorar ao seu Deus exaltando-o por seus grandes feitos e maravilhas,
em outras palavras, o havia intenção de proporcionar ao adorador momentos de
êxtase espiritual ao adorar Iavé como ocorria com seus contemporâneos ou como
ocorre atualmente em relão à música cristã contemporânea ou neopentecostal.
Isso contribuiu para a composição de uma música religiosa esteticamente
simples, a harmonia ainda era desconhecida, e executada com pouca
instrumentação. Tal fato pode ser constatado a partir de uma criteriosa alise de
relatos bíblicos sobre a trajetória histórica e religiosa dos judeus, já que a narrativa
bíblica não oferece relatos exclusivos com orientações específicas sobre a
composição e utilização da música sacra ou religiosa desse povo.
O que se percebe a partir da investigação bíblica é que a sica, de
características religiosas, esteve presente em quase todos os momentos da história
do antigo povo de Israel. Como os relatos sociais, poticos e econômicos desse
povo estão entrelaçados aos eventos ou aos ensinamentos religiosos, a reflexão
sobre sua sica sacra deve partir da observação, da análise ou da comparação
dos diversos textos bíblicos onde os relatos dos eventos históricos se fundem às
narrativas religiosas. Sobre esse fato, Liliane Doukhan
22
ressalta que
a sica na antiguidade judaica ou bíblica sempre acompanha um
evento. Ela não é vista como uma ocupação a ser perseguida por si
mesma - a arte pela arte em si simplesmente para o deleite pessoal,
mas ela é sempre funcional [...] o desenvolvimento da música na bíblia
refletirá os vários estágios de “desenvolvimento” do povo de Israel
(DOUKHAN, 2002, p,18).
22
Liliane Doukhan é doutora em música e professora de História da Música na Andrews University e autora do
artigo A música na Bíblia publicado na Revista Shabbat Shalon vol. 49, nº 2, pp.18-25, Michagan: 2002.
39
A investigação corrobora essa teoria e neste contexto verificou-se que as
primeiras referências encontradas na bíblia sobre a música estão no Pentateuco
23
mais precisamente no livro de Gêneses, capítulo 4:21 onde é dito que Jubal,
descendente de Caim
24
, é pai de todos os que tocam harpa ou flautas. Em uma
versão mais atual da Bíblia esse texto é traduzido da seguinte maneira: Jabal tinha
um irmão chamado Jubal que foi o primeiro antepassado de todos os músicos que
tocam harpa ou flauta.(Gênesis 4:21-Nova Tradução da Linguagem de Hoje) A
despeito das diversas traduções bíblicas o texto transmite a crença hebraica na
primazia dos descendentes de Adão em relação à invenção de instrumentos
musicais e em especial de dois instrumentos sempre freqüentes nos salmos
25
judaicos: a harpa e a flauta. Segundo Doukhan, Jubal o é só considerado o pai
dos músicos e dos instrumentos harpa e flauta mas também é considerado o
inventor do shofar, instrumento de sopro feito com o chifre do carneiro e que
segundo a tradição judaica deu origem à trombeta, que era um dos mais
destacados dos instrumentos de Israel (DOUKHAN, 2002, p. 18).
Outro texto do livro de gêneses a mencionar a música é o verso 27 do
capítulo 31, no qual Labão repreende seu genro Jacó
26
por fugir impedindo que
ele se despedisse de suas filhas e netos com cânticos acompanhados por harpa e
tambor. Essa é a primeira referência bíblica sobre esse instrumento que também
aparece em alguns salmos
27
e em relatos de comemoração de vitórias
28
israelitas
ou de repreensão
29
aos cultos e costumes considerados pagãos.
23
Conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia cuja autoria é atribuída a Moisés.
24
Na tradição judaica Caim foi o primogênito de Adão o qual foi, segundo o relato bíblico, o primeiro ser humano.
25
Praticamente todos os Salmos de louvor ou que conclamam adoração a Iavé com instrumentos e música fazem
referência à flauta e harpa como exemplo o Salmos140.
26
Segundo o relato bíblico a nação israelita se formou a partir dos doze filhos de Jacó que teve seu nome mudado
para Israel por ter prevalecido como um príncipe na luta com o anjo.
27
Ver Salmos 81.
28
Êxodo 15:20-21 e I Samuel 18:6
29
Ver Isaias 5:12 e Amós 5:23;
40
A pesquisa bíblica revela, entretanto, que um dos mais importantes
instrumentos musicais para os israelitas era a trombeta. Seu valor entre os
israelitas se deve ao seu forte simbolismo religioso, pois era, freqüentemente,
associado às manifestações de Iavé e sempre ressoada para conclamar o povo a
uma batalha que seria dirigida e vencida pelo força de seu poder conforme ilustra
o relato da conquista de Jericó
30
. A primeira referência encontrada na bíblia sobre
a trombeta está no verso 19 do capítulo 19 de Êxodo que relata o momento em
que Moisés recebeu as orientações e o decálogo das mãos de Deus no Monte
Sinai. Comentando sobre a importância desse instrumento no contexto bíblico
Doukhan afirma que a trombeta tornar-se-ia para os profetas, assim como para a
Igreja do Novo Testamento, como símbolo do Dia do Senhor
31
(DOUKHAN,
2002, p.18).
A investigação bíblica leva tamm à conclusão de que durante o período
patriarcal, narrado no Pentateuco e em outros livros, os instrumentos musicais e
por conseqüência a música eram utilizados tanto como meio de comunicação de
algum evento importante acontecido ou a acontecer, como eram utilizados
também como instrumento didático para ensinar ao povo as leis e preceitos de
Iavé ou para fazê-los lembrar de sua proteção ou dos milagres que ele realizara
em seu favor, conforme ilustra o texto de Deuteronômio 31:19-22.
Os relatos bíblicos apresentam ainda inúmeras referências que
exemplificam a utilização da música direta ou indiretamente vinculada ao
pensamento ou às práticas religiosas dos judeus tais como o ato de profetizar
32
, a
busca e recebimento do poder
33
de Deus e curas contra perturbações mentais
34
.
30
Ver Josué 6:1-20
31
Essa expressão bíblica, Dia do Senhor, no contexto utilizado pela autora, refere-se não ao sábado (dia santo para
os judeus segundo o 4º mandamento do decálogo) mas sim ao dia do juízo divino como apontam Isaias 58:1;
Jeremias 4:5; Ezequiel 33:3-4; Joel:2:1 ; Apocalipse 8 e 9.
32
I Samuel 10:5
33
II Reis 3:15
34
Ver I Samuel 16:23
41
Mesmo que seja difícil estabelecer com precisão diferenças entre a música sacra e
a não sacra pela investigação das referências bíblicas sobre a música judaica é
possível concluir que todas as suas produções musicais, sacras ou o, foram
significativamente influenciadas por seu pensamento religioso, uma vez que esta
sociedade era eminentemente teocrática.
Refletindo sobre a música judaica, Dorneles (2001) chama a atenção
para a ocorrência de uma significativa mudança quanto à instrumentação utilizada
na execução da música sacra antes e depois da construção do Templo. Segundo o
autor percebe-se, no relato bíblico, que os judeus, ao executar essa sica antes
da construção do templo, utilizavam indistintamente todos os tipos de
instrumentos conhecidos na época e essa música era, não raras vezes,
acompanhada por palmas e danças.
No entanto, observa Dorneles (2001), quando o rei Davi
35
decidiu construir
um templo para adorar Iavé e foi, através do profeta Natã, orientado a preparar seu
filho Salomão para essa obra, ele não planejou todos os detalhes como projeto,
material e trabalhadores, como também designou e consagrou sacerdotes e levitas,
os quais deveriam servir continuamente no templo do Senhor.
Conforme enfatiza o autor, entre esses levitas, Davi separou e também
consagrou um grupo que deveria dedicar-se exclusivamente à música em um
louvor contínuo, cantando e tocando os instrumentos que separara para esse
ofício. Essa observação de Dorneles (2001) é constatada em textos bíblicos como
I Crônicas 15:16-17 ao relatar que Davi escolheu os músicos levitas e apenas três
instrumentos para serem tocados no templo, a saber: alde
36
, címbalo
37
e harpa e
35
Davi também é considerado na tradição judaica como um grande músico e compositor de vários salmos.
36
O alde assim como a harpa era um instrumento de corda que também era conhecido como instrumento de
música ou instrumento para o louvor a Deus, conforme explica Garen Wolf. Em seu livro The Music of the Bible
in Christian Perspective, o autor explica que esses instrumentos eram utilizados para acompanhar os cânticos de
louvor no templo conforme a ordem do rei Davi ao separar e designar os levitas e os instrumentos para adoração a
Iavé. O autor explica também que “os instrumentos de corda eram extensivamente usados para acompanhar o
42
I Crônicas 23:1-5 que menciona a separação de quatro mil levitas para louvarem
continuamente o nome do Senhor com instrumentos que Davi criara e consagrara
para essa obra.
Uma investigação mais detalhada das referências bíblicas sobre a música
executada no templo fez concluir que alguns instrumentos que proporcionam uma
marcação rítmica mais acentuada, como o tamborim, ou que proporcionam uma
melodia sensual típica dos cultos licenciosos dos povos considerados pagãos
como a flauta, foram excluídos, se não de toda composição e execução musical
religiosa judaica, pelo menos da composição e execução litúrgica, ou seja,
específica para o templo de Iavé
38
.
Em todos esses relatos percebe-se que o papel predominante exercido pela
música religiosa era o da exaltação à Iave, não havia, portanto, conforme indica a
análise dos relatos bíblicos, a intenção ou preocupação em utilizar a música como
instrumento de atração de novos adoradores ao culto monoteísta judaico. Em
muitos textos bíblicos, não necessariamente relacionados à música, percebe-se que
para fazer parte da adoração ao Senhor e ser por ele aceito, o estrangeiro ou novo
adorador deveria ser motivado pelo amor ao teu grande nome, por causa da tua
mão poderosa e do teu braço estendido (II Crônicas 6:32). Além do mais, esse
novo adorador deveria se adaptar aos costumes e práticas judaicas e o o
canto, uma vez que eles não encobriam a voz ou a ‘Palavra de Jeová’ que estava sendo cantada(WOLF, 1996, p.
287).
37
Bacchiocchi descreve os címbalos como um instrumento formado por dois pratos de metal que se semelha às
baterias. Quando em atrito vertical e em conjunto, eles produziam um toque, como um tinido, afirma o
autor.,Bacchiocchi explica ainda que diferente da bateria os címbalos não eram usados pelo cantor-mor na
condução do cântico, marcando o ritmo da sica, mas sim para anunciar o começo de uma estrofe ou de um
cântico. Uma vez que eles eram usados para introduzir o cântico, eram brandidos pelo der do coro em ocasiões
ordinárias (I Cnicas 16:5) ou pelos três líderes dos grupos em ocasiões extraordinárias (I Crônicas 15:19).
Semelhante às trombetas este instrumento era utilizado em conjunto a fim de definir o começo do ntico e não
sua marcação rítmica.
38
O texto de II Crônicas 29 a partir do verso 20, que relata a restauração do Templo por Ezequias, menciona nos
versos 25-27 que os instrumentos musicais que deveriam ser executados na casa do Senhor eram os instrumentos
que Davi determinara juntamente com os profetas Gade e Natã conforme a ordem do Senhor e referência
semelhante é apresentada no capítulo 12:27 e 36 do livro de Neemias durante a consagração dos Muros de
Jerusalém, que foram reconstruídos com autorização de Atarxesxes, que dominou a palestina as o cativeiro
babilônico.
43
contrário; em outras palavras, para ser aceito no seio do judaísmo o estrangeiro”
deveria abandonar todos os seus ritos paos e assimilar
39
todos os ritos judaicos e
isso com certeza incluía o tipo de música que seria utilizada nas cerimônias
religiosas.
É importante observar também que, mesmo antes da construção do templo,
os israelitas ou judeus, utilizavam em suas composições sacras instrumentos e
ritmos musicais utilizados tanto para outros eventos como por povos pagãos”,
contudo havia uma forte preocupação em (re) significá-los, ou seja, não ocorria na
música sacra hebraica a preocupação em torná-la agradável ao adorador pois a
grande preocupação, ou verdadeiro significado da música, era exaltar o poder e
grandes feitos de Iave e, ao mesmo tempo, torná-la agradável a seus soberanos
ouvidos, segundo demonstra o salmo seguinte o qual inicia-se com uma exaltação
a Deus, percorre enaltecendo seu caráter, leis e justiça e por fim é concluído
expressando o desejo de agradá-lo
40
:
Ao Mestre de canto, Salmo de Davi
1 Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras
de suas mãos.
2 Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra
noite.
3 Não há linguagem nem há palavras, deles não se ouve nenhum som:
4 No entanto, por toda terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras a
os confins do mundo. Ai pôs uma tenda para o sol,
5 O qual, como noivo que sai dos seus aposentos , se regozija como herói,
a percorrer pelo caminho.
39
Essa prática de abandonar os rituais pagãos e de assimilar os rituais judaicos, para ser aceito entre o judaísmo,
pode ser ilustrada por textos como o de Gênesis 34: 1-18 que narra a exigência da prática de circuncisão que os
filhos de Jacó (Israel) fizeram ao povo de Siquém que pretendiam unir-se a eles através de casamentos.
40
Outros exemplos de salmos que demonstram o desejo de apresentar um louvor que agrade a Deus são: Salmo
104:33-34; Salmo 96; Salmo 33:1-4; Salmo 34:1-5; Salmo 47; Salmo 98; Salmo 100
44
6 Principia numa extremidade dos céus, e aà outra vai o seu percurso;
e nada foge ao seu calor.
7 A lei do senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do senhor é
fiel e dá sabedoria aos simples
8 Os preceitos do senhor são retos e alegram o coração; e o mandamento
do senhor é puro e ilumina os olhos.
9 O temor do senhor é límpido e permanece para sempre; os juízos do
senhor são verdadeiros e todos igualmente justos.
10 São mais desejáveis do que o ouro, mais do que o ouro depurado; e
o mais doces do que o mel e o destilar dos favos.
11 alem disso por eles se admoesta o teu servo, em os guardar grande
recompensa.
12 Quem que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que
me são ocultas.
13 Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; e
ficarei livre de grande transgressão.
14 Que o louvor de meus lábios e o meditar do meu coração sejam
agradáveis a ti senhor minha rocha e meu redentor.(Salmo 19:1-14).
Outro aspecto que requer reflexão refere-se ao padrão harmônico e
melódico das composições musicais dos antigos hebreus. Analisando esse padrão
Frederico (2001) esclarece que a melodia na música dos primeiros hebreus pode
ser descrita como um tipo de recitativo declamatório (FREDERICO, 2001, p.72)
que hoje é denominado como cantinela. Essa prática consistia em uma forma de
declamar o texto, que segundo a autora, classifica-se entre o ato de falar e cantar.
Eric Werner explica que nas comunidades primitivas e antigas os seres
humanos ao reportarem-se aos seus deuses através da fala deveriam fazê-lo com
expressões, gestos e entonações vocais diferentes do padrão ou das formas
cotidianas de comunicação. O autor pontua que essa forma de expressão consistiu
45
no primeiro padrão melódico de música nas comunidades antigas, incluindo os
antigos judeus, pois é geralmente aceito que, no mundo antigo, cantar
significava dar às palavras e frases a mais apropriada inflexão fonética”
(WERNER, 1976, p. 104).
Os ensinos dos antigos rabinos, explica Werner (1976), orientavam que as
escrituras deveriam tanto ser lidas como também cantadas e Frederico (2001)
explica que esse canto das escrituras deveria seguir os modos indicativos do
canto, que podiam variar de acordo com a liturgia ou com o texto que aludiam”
(FREDERICO, 2001, p. 72) assim, explica a autora, a melodia possuía um caráter
de improviso; no entanto, o responsável por sua execução deveria conhecer
eximiamente as bases de composição melódica que se adequariam tanto a cada
texto quanto à entonação recitativa.
O fato de se exigir que o executante conhecesse essas estruturas melódicas
cabíveis ao texto sagrado indica que havia uma diferenciação, ainda que mínima,
entre a composição sacra e a não sacra e conforme os textos bíblicos indicam
evidentemente o acompanhamento medico de textos religiosos deveria diferir-se
das melodias populares e no que se refere à sua execução no templo é relevante
relembrar, conforme afirma Doukhan (2002) que “música no templo não era
deixada acontecer ao acaso. A solenidade do lugar é refletida no cuidado e
atenção que era dada à organização da música no templo de
Jerusalém”(Doukhan, 2002, p. 22) conforme é demonstrado nos textos das
Crônicas, que relatam o rigor estabelecido por Davi para a sua contínua execução.
Outra característica relevante do antigo canto judaico é a utilização de
símbolos efonéticos, também conhecidos como acentos. Frederico (2001) afirma
que nesse sistema
46
o líder que conduz a entonação, usa sinais que indicam quando levantar
e abaixar a voz durante a leitura de um texto bíblico[...] a entonação é
dada pela estrutura frasal e pelas relações sintáticas e lógicas dos
elementos da frase, contribuindo para a fluência rítmica da
mesma[...]usando também gestos com as mãos a fim de traduzir a altura
dos sons e o ritmo para a pessoa que interpretava o discurso musical
(FREDERICO, 2001, p. 73-74).
A partir do exílio babilônico um outro local de adoração é apresentado na
história judaica, a saber: a sinagoga. Inúmeras referências sobre esse local são
apresentadas no Novo Testamento. Segundo Samuele Bacchiocchi
41
, a sinagoga
tinha uma função ou utilidade diferente da do templo para os judeus pois este era
o local específico instituído para a realização dos rituais de sacrifícios a Iave
enquanto a sinagoga fora instituída com o fim de ser um lugar onde eram
oferecidas orações e as Escrituras eram lidas e ensinadas.
(BACCHIOCCHI,2002, p. 210).
O autor argumenta que pelo fato de a sinagoga ter uma função diferente da
função do templo a execução da música na mesma ocorria de forma peculiar, sem
a utilização variada de instrumento, apenas o shofar era permitido, mas não como
acompanhamento melódico para o canto, e sim como um sinalizador para o início
ou conclusão das atividades.
Sobre a ausência dos instrumentos na sinagoga, Werner (1980) argumenta
que a mesma pode ser explicada pela forte rejeição que os fariseus tinham por
associarem-nos aos costumes profanos de povos paos, podendo também ser
41
O professor e pesquisador Samuele Bacchiocchi foi o primeiro não católico a graduar-se doutor na Pontifical
Gregorian University em Roma e foi condecorado com medalha de ouro por conquistar a distinção acadêmica
summa cum laude.. Bacchiocchi é Professor de História e Ciência da Religião na Andrews University, em Berrien
Springs, Michigan EUA, onde publicou vários livros de sua autoria ou co-autoria entre os quais se destaca O
Cristão e a Música Rock Um Estudo dos Princípios blicos da Música, no qual juntamente com outros sete
pesquisadores da área da música discute a utilização de estilos musicais populares na adoração cristã e em
programas de evangelismo.
47
explicada pelo fato de os mesmos os fazerem lembrar-se do primeiro templo que
fora destrdo. Neste contexto o autor afirma que
A exclusão de instrumentos na adoração na Sinagoga judaica
permaneceu em vigor, de forma geral, por muitos séculos; somente com
a perda do poder político pelos rabinos na Emancipação no décimo
nono século, a música instrumental apareceu na sinagoga (liberal), e
essa exclusão permanece ainda hoje em vigor onde, como no Israel
antigo, rabinos ortodoxos detêm algum tipo de poder (WERNER, 1980,
p. 223).
Outro aspecto importante sobre a música na sinagoga é que nela sua
execução, diferente do que ocorria no templo, era realizada não apenas por
“profissionais” exclusivamente designados para esse mister, uma vez que ali, era
permitida a participação leiga, pois
no Templo o ministério musical estava nas mãos de músicos
profissionais. Sua música coral era um acessório ao ritual do
sacrifício. Poderíamos dizer que a música estava “centrada no
sacrifício”. A participação da congregação limitava-se às respostas
afirmativas como “Amém”, ou “Aleluia”. Ao contrário, o serviço na
sinagoga, inclusive a música, estava nas mãos de pessoas leigas e sua
música era, como Curt Sachs a chama, “logênica”, ou seja,
“centrada na Palavra”. (BACCHIOCCHI ,2002, p. 210).
Werner (1980) explica que na Sinagoga o ritual consistia basicamente
em orões e leituras da escritura que, conforme a tradição, deveria acontecer
de forma recitativa. Tal fato eliminava, até certo ponto, a necessidade de um
serviço de louvor profissional e contínuo como ocorria no templo primeiro
48
porque essa leitura recitativa, tamm chamada de cantinela, fora entre os
antigos judeus uma forma de cantar ao senhor, e segundo porque a “todos”
42
era dado o direito de ler o Torá ou escrituras e lendo-o dessa forma recitativa a
música estaria constantemente no serviço da sinagoga que acessível e
praticada pelos adoradores presentes e não só por um grupo específico
exclusivamente designado para essa função. Sobre esse fato Bacchiocchi
(2002) lembra que:
o Talmude despreza aqueles que lêem a Bíblia sem melodia e estudam
suas palavras sem cantar. O servo, baseado na leitura dos Livros
Sagrados, era todo ele musical [...] o ministério da música na sinagoga
era, em grande parte, um ministério da Palavra. Os judeus se reuniam
na sinagoga de modo bastante informal para orarem, lerem, e recitarem
as escrituras. Para eles, a música não era um fim em si mesma, mas um
meio de louvar ao Senhor recitando Sua palavra e assim aprender a Sua
vontade revelada (BACCHIOCCHI, 2002, p. 211-212).
Esse costume foi levado pelos judeus que se converteram ao cristianismo
para o seio de sua nova comunidade religiosa: a Igreja apostólica ou,
simplesmente, igreja primitiva, que as práticas da sinagoga estavam mais
próximas ou se assemelhavam mais ao ritual do culto cristão que a princípio eram
realizados informalmente em suas próprias casas.
O Novo Testamento, compêndio que narra a história da organização e
desenvolvimento do cristianismo, não apresenta livros ou capítulos específicos
que forneçam diretrizes para a produção e utilização da música religiosa nesse
movimento. Apesar de o Antigo Testamento possuir um livro que contenha
inúmeros exemplos de cantos executados nas cerinias religiosas judaicas, a
42
Exceto mulheres
49
saber o livro dos Salmos, o Novo Testamento se assemelha a ele, em relação à
música, pelo fato de as referências musicais nele encontradas estarem entrelaçadas
às inúmeras narrativas do cotidiano, nesse caso, no cotidiano de Cristo, dos
discípulos, dos apóstolos ou simplesmente dos primeiros cristãos.
Nesse contexto, através da investigação do novo testamento, foi possível
catalogar quatro exemplos de cânticos religiosos nos evangelhos o Cântico de
Maria em Lucas 1:46-56 que a exemplo da maioria dos Salmos exalta o poder de
Deus, o ntico de Zacarias (pai de João Batista) em Lucas 1:67-79, que louva a
Deus por ter lhe dado um filho que seria o profeta do Messias, o ntico dos
Anjos em Lucas 2:13-14 após anunciar aos pastores o nascimento do Messias, o
Cântico de Simeão ao encontrar o recém nascido Jesus, por considerá-lo o
Messias enviado por Deus também relatado no evangelho de Lucas 2:29-32 e
cinco (proféticos) no livro de Apocalipse o ntico dos quatro seres viventes e
dos vinte e quatro anciãos em louvor ao cordeiro por ser o único capaz de abrir o
selo do livro relatado no capítulo 5:8-14, o cântico dos anjos e dos anciãos na
visão dos glorificados relatado no capítulo 7:9-12, o cântico da sétima trombeta
no capítulo 11:15-18, o cântico de Moisés e do Cordeiro relatado no capítulo
15:2-4 e por fim o cântico de júbilo no céu relatado no capítulo 19:1-8.
Além desses cânticos foram encontrados outros
43
textos ou versículos
bíblicos que fazem alusão à música em um contexto religioso, e outras inúmeras
expressões de louvor de caráter doxológico
44
como os apresentados por Paulo na
abertura ou encerramento de suas epístolas, mas em nenhum desses casos são
feitas orientações de como deveria ser a música cristã ou, pelo menos, explicando
43
Alguns exemplos desses textos ou versículos bíblicos alusivos à música são: Mateus 26:30; Marcos 14:26, Atos
16:25 Romanos 1:7; 11:36; 16:27, Efésios 1:2-3; 3:21; 5:18-19 Felipenses 4:20, Colossenses 3:16 Gálatas 1:5, I
Timóteo 1:17; 6:16, II Timóteo 4:18, I Coríntios 1:3; 1:14; 15:57, II Coríntios 1:2-3; 2:14; 11:31; 13:13, Hebreus
13:21, Tiago 5:13, I Pedro 4:11
44
50
qual a sua importância nos cultos cristãos. Comentando sobre essa ausência de
orientações sobre a música no novo testamento Bacchiocchi (2002) afirma que
Falar sobre um ministério de música no Novo Testamento pode parecer
completamente fora de propósito. O Novo Testamento faz silêncio sobre
qualquer cargo “musical” na igreja [...] com exceção do livro do
Apocalipse, no qual a música faz parte de um rico drama escatológico
[...] nenhuma das passagens [...]-nos um retrato claro do papel que a
música desempenhava nos cultos na igreja durante o período do Novo
Testamento. Isto não surpreende, porque os crentes deste período não
viam seus grupos de adoração como sendo muito diferentes dos da
sinagoga. Ambos eram conduzidos de maneira informal, por pessoas
leigas liderando a oração, leitura, cânticos e exortação. As referências
do Novo Testamento às reuniões de adoração refletem em grande parte o
serviço de adoração da sinagoga (BACCHIOCCHI, 2002, p.212).
Dois pontos devem ainda ser observados nestes poucos textos que
mencionam a música: o primeiro é que, em todos eles, a figura do Messias ou do
Cristo é introduzida direta ou indiretamente, em outras palavras, na sinagoga o
canto era centrado na palavra [...] designado para louvar a Deus através da
recitação de Sua Palavra; na igreja [...] o canto era centrado em Cristo,
designado para exaltar as realizações redentoras de Cristo (BACCHIOCCHI,
2002, p.215).
Mesmo que o comportamento religioso e litúrgico cristão fosse herdado, em
muitos aspectos, do judaísmo essa herança foi reinterpretada, ou seja, os judeus
louvavam a Deus através da música por acreditarem em sua suprema força,
grandeza e livramento. No cristianismo essa crença foi (re) significada na pessoa
de Cristo. Todos os rituais do sacrifício expiatório que eram símbolos de uma
libertação, significando também a misericórdia e o perdão divino, foram em
51
Cristo (re) significados, pois para seus seguidores ele era não o símbolo da
promessa de libertação, mas era o cumprimento vivo, morto e ressuscitado dessa
promessa, a qual foi reinterpretada por eles como libertação contra a escravidão
do pecado e não somente da dominação estrangeira como interpretavam os judeus.
Assim, a sica judaica que refletia essa crença foi legada e praticada pelo
cristianismo com um novo significado: o da gratidão pelo livramento que o
Deus/Homem (Cristo) proporcionou sobre o pecado garantindo-lhes a vida eterna.
Essa sica não era então um instrumento de pregação ou atração de novos fiéis
como ocorre atualmente no neopentecostalismo, pois era apenas uma expressão de
louvor ao seu Deus libertador.
O segundo ponto que precisa ainda ser observado é a ausência de alusões a
instrumentos musicais. Com exceção do texto de Apocalipse 5:8-14, em nenhum
desses textos o mencionados instrumentos musicais acompanhando a execução
da música, pois os cristãos seguiam a tradição da sinagoga proibindo o uso de
instrumentos musicais nos cultos da igreja por causa de sua associação pagã [...]
e pela sensualidade da música instrumental e seus efeitos estéticos
(BACCHIOCCHI, 2002, p.216).
Werner (1980) também comenta a ausência de instrumentos na igreja cristã
afirmando que
Até o terceiro século, fontes cristãs refletem quase a mesma atitude para
a música helenística que a adotada pelo judaísmo contemporâneo.
Exatamente a mesma desconfiança do acompanhamento instrumental nas
cerimônias religiosas, o horror da flauta, do tímpano (tambores), e dos
címbalos, acessórios dos mistérios orgiásticos, está entre os cristãos, em
evidência (WERNER, 1980, p. 317).
Esses costumes musicais permaneceram por longa data na Igreja que os
primeiros séculos de sua história foram marcados tanto pela perseguição imposta
52
pelo Estado romano, que ainda o era oficialmente cristão, como também pela
lenta ordenação da forma e do conteúdo do culto cristão segundo argumenta
Frederico (2001).
Mudanças significativas passam a ser percebidas somente a partir do Século
IV quando o imperador Constantino, através do Edito de Milão, unificou Estado e
Igreja, tornando o cristianismo a religião oficial do Império romano, fato que
garantiu aos cristãos a almejada liberdade religiosa. Frederico (2001) ressalta que
a partir dessa fase, iniciaram-se os debates acerca de vários aspectos da doutrina
cristã (FREDERICO, 2001, p. 97). A autora infere também que entre esses debates os
mais relevantes foram realizados no Concilio de Nicéia e os que deles
participaram foram os primeiros que receberam o título de pais da Igreja
(FREDERICO, 2001, p. 98); entretanto, esse título foi mais tarde conferido também
àqueles que atuaram no ensino da fé, da união e da comunhão da igreja, fato que
incluía os discípulos, os apóstolos e os primeiros cristãos que relativamente se
relacionaram com eles e por isso foram chamados de pais apostólicos (Frederico,
2001).
Esse período também é conhecido como época patrística e durou até por
volta do culo VIII e o papa São Gregório Magno foi a mais expressiva figura
relativa à música sacra desse período, pois foi o responsável pela criação e difusão
do canto gregoriano que é, desde então, a forma musical oficial do cristianismo
católico.
A autora explica que no período patrístico os documentos da Igreja sobre a
música apresentavam três posturas: a primeira de defesa ao uso tradicional da
mesma, a segunda de elogios à música sacra e por fim a terceira apresentava uma
postura crítica ou de condenação quanto ao mau uso da música na Igreja.
Uma forte característica do comportamento musical dos cristãos da era
patrística foi a monofonia, influência da ideologia vigente que enfatizava a
53
comunhão da cristandade como reflexo da unidade divina; assim tudo que de
alguma forma pudesse representar dualidade era rejeitado pela mentalidade
medieval, fazendo com que a música cristã adequada e ideal para a Igreja, nesse
período, fosse a homofônica.
Como o período patrístico é também conhecido como a fase de implantação
da igreja cristã, foi nele que iniciou-se o processo de substituição de um “ritual”
improvisado por uma liturgia eclesiástica planejada ou organizada; isso no entanto
não significou o abandono de toda tradição pois práticas rotineiras continuavam a
ser usadas convencionalmente segundo o que ditava a tradição dos judeus [...] os
salmos continuavam a representar o que havia de mais tradicional no canto
cristão (FREDERICO, 2001, p. 100). Segundo a autora, os salmos ainda eram
preferidos como o canto cristão diário, primeiro porque para entoá-lo era
desnecessário tanto o acompanhamento de instrumentos como os conhecimentos
musicais, segundo porque sua temática transitava entre a grandeza de Deus e a
penitência humana e finalmente porque muitos grupos heréticos que se formaram
nesse período, reconhecendo a influência que os hinos cristocêntricos exerciam
sobre a cristandade, começaram a utilizá-los como instrumento de difusão de suas
iias após adaptar suas letras às suas novas convicções.
Percebe-se, então, conforme discute a presente pesquisa, que nos
primórdios do cristianismo alguns grupos, mesmo que considerados pelo
cristianismo oficial como hereges, já reconheciam o valor da música como meio
de difusão de suas idéias. Obviamente que ainda não se pode afirmar que esses
grupos utilizavam técnicas de popularização da música, quer em sua forma
textual ou melódica, a fim de alcançar seus objetivos “prosélitos”, como ocorre
atualmente entre os neopentecostais, o que se deve observar é que no início da
era medieval a eficácia da sica na propagação de doutrinas religiosas era
reconhecida.
54
Essa técnica, mesmo combatida pelos defensores da tradição musical –
como exemplo João Crisóstomo que, segundo Frederico (2001), via nas canções
de estilo secular um instrumento de gradual corrupção dos elevados padrões da
cristandade, foi lenta e sutilmente apropriada por alguns pais da Igreja. A forma
usual, entretanto, foi a da adoção de técnicas literárias: mais precisamente
expressões poéticas alegóricas. Nesse contexto a autora afirma que
traços de contemporaneidade foram adicionados à tradição quando os
pais da igreja começaram a reescrever os salmos e hinos usando
alegorias [...] alguns que compunham os novos hinos achavam que esse
estilo seria adequado para ser utilizado por eles. Esses novos cantos
assim compostos serviriam para guardar a cristã das ameaças
heréticas que rondavam o cristianismo como foi o caso do gnosticismo
(FREDERICO, 2001, p. 102).
Entre os considerados pais da Igreja que se destacaram na composição de
hinos para combater as heresias estão São Gregório de Nazianzo, Hilário de
Poitiers e São Ambrosio, este último, afirma Frederico (2001), foi o responsável,
no ocidente, pela popularização dos hinos cristãos, pois
antes de sua época os heréticos tinham o monopólio das melodias
agradáveis. Ele foi um dos primeiros a agir com base no princípio de que
não é boa política deixar para as forças anticristãs aquilo que o povo
mais gosta de cantar. Ele introduziu um tipo de canto congregacional
simples, doce, melodioso, mas devoto, o que imediatamente tornou seus
hinos populares (PATRICK, apud FREDERICO, 2001, p, 103).
A música composta por Ambrosio ou simplesmente canto ambrosiano foi
composto a partir de adaptação de melodias populares com textos retirados da
55
bíblia mais precisamente do livro de Salmos, em língua latina e com pouco
acompanhamento instrumental, pois Ambrósio, segundo explica Frederico (2001),
associava os instrumentos musicais aos ritos orgíacos pagãos. Para ele, explica a
autora, admitir formas mais populares em suas composições era o mesmo que
aceitar o uso indiscriminado de instrumentos musicais utilizados pelos “pagãos
em seus rituais e festas “profanas”, enfim, Ambrósio ao
preferir a música à capela e ao proibir determinados instrumentos, optava
pela tradição, por outro lado ao entender que as doutrinas cristãs
autênticas seriam mantidas através de cantos de cunho popular, que
usavam os mesmos recursos musicais da cultura ao seu redor, tendia para
um estilo mais contemporâneo (FREDERICO, 2001, p. 104).
No entanto, esse canto, mesmo com uma melodia adaptada de cantigas
populares, não fugia à regra de uma cosmovisão transcendental da divindade
que a sociedade européia do período em questão era teocêntrica. Assim, com
melodias que se aproximavam do cotidiano dos fiéis, mas com uma letra
totalmente sacra, que exaltava a divindade, o canto ambrosiano buscava firmar os
valores do cristianismo católico medieval, ao mesmo tempo em que intencionava
afastar a influência de seitas heréticas do meio cristão. Se nesse período a música
religiosa, com características melódicas que a assemelhava às cantigas seculares
ou populares, não tinha uma função proselitista, tinha ao menos a função de
contribuir com a manutenção da doutrina vigente em detrimento das novas teorias
consideradas heréticas, que também se apropriavam da música para firmar suas
doutrinas nas mentes dos fiéis. Conclui-se então que a música, também na era
56
medieval, e mais uma vez
45
na história do cristianismo, exerceu um papel
relevante no processo de manutenção dos valores cristãos no período em questão.
O canto ambrosiano mesmo sendo agradável aos fiéis foi lentamente se
arrefecendo. Os documentos sobre a música na igreja nos primeiros culos do
período patrístico apontam a existência tanto de uma tendência modernizadora”
da música sacra aqui exemplificada pela postura musical de Ambrósio que,
apesar de rejeitar instrumentos associados a festas seculares, utilizava estilo
melódico de canções populares – como também apontam uma forte e vencedora”
tendência ao conservadorismo do estilo musical herdado da sinagoga,
exemplificada pela postura musical de Crisóstomo e Eusébio que em seus escritos
defendiam que somente por meio de uma expressão musical tradicional é que a
música sacra poderia contribuir com a manutenção, com a defesa ou com a tão
importante instrução dos fiéis na doutrina cristã.
O predomínio dessa tendência conservadora, que além de defender
acirradamente a não utilização de instrumentos musicais defendia também a
permanência irrestrita dos hinos e salmos herdados do período de fundação da
igreja, fez com que, lenta e progressivamente, o canto congregacional fosse
suprimido e a música cristã medieval na igreja enfim se tornasse uma prática
exclusivamente clerical, como bem exemplifica o canto gregoriano, estilo musical
criado pelo Papa São Gregório Magno, que distintamente caracterizou a expressão
musical sacra dos cristãos não na era patrística como também durante todo o
restante do período medieval a ponto de ser, conforme foi pontuado, a música
oficial do catolicismo até o presente século.
O canto gregoriano, criado por volta do século VI, semelhante aos que o
antecederam, também era homofônico e, nesse período, era executado sem o
45
levando em consideração sua origem judaica, pois no judaísmo a sica também contribuiu com a
manutenção preceitos de Iavé como já foi constatado em sessões anteriores.
57
acompanhamento de instrumentos musicais. Em sua composição rítmica, que não
é fixa, não ocorria a marcação ou divisão de compasso em simples (binário,
ternário ou quaternário) ou em composto como ocorre nas demais composições
musicais no ocidente, pois seu ritmo se fundamenta somente na acentuação e no
fraseado, ou seja, sem medida de tempo. Em sua melodia não ocorrem grandes
intervalos musicais, pois o máximo que se permite são os intervalos de terça ao
mesmo tempo em que se proíbe a utilização de notas alteradas como sustenidos e
bemóis. Sua letra que em geral era paráfrase de salmos ou textos bíblicos é escrita
predominantemente em língua latina.
O auge do canto gregoriano ocorreu entre os culos VI e VIII, mas
segundo consta não foi preservado nenhum manuscrito dessa época que contenha
a sua notação musical; entretanto composições posteriores a esse período
permaneceram fiéis ao padrão original do canto gregoriano.
De modo geral o canto gregoriano, graficamente falando, era escrito em
duas pautas compostas por quatro linhas cada, na clave de marcada
geralmente na quarta linha ou na clave de fá, geralmente marcada na terceira
linha na qual eram escritas as notas ou as neumas
46
que poderão ser melhor
compreendidas observando o gráfico que se segue:
46
O neuma é um grupo de notas ou simplesmente uma nota (também chamada de melisma) que faz parte de uma
laba. A idéia fundamental é que um neuma é uma unidade indivisível e por isso deve ser executada de forma
indivisível
58
fonte: http://www.schuyesmans.be/gregoriaans/PT/PTnu.htm
No gráfico acima, no primeiro e no segundo compasso, são apresentadas as
notas ou neumas simples denominadas como virga e punctum
47
. No terceiro e
quarto compasso são marcados os grupos de duas notas respectivamente
denominadas como pes
48
e clives
49
e nos demais compassos o marcados os
grupos de três notas ou mais, denominados respectivamente como torculus
50
,
parrectus
51
, climacus
52
, scandicus
53
. A partitura que se segue, apesar de não usar
todos os neumas aqui apresentados, ilustra a forma de escrita do canto gregoriano
desse período:
47
são notas simples, só usadas em combinação, quer uma com a outra, ou com outras notas
48
o neuma pes que também recebe a denominação de podatus tem o objetivo de indicar uma melodia ascendente.
49
o neuma clivis ao contrário do pes indica uma melodia descendente
50
o neuma torculus é composto por três notas destacando-se a segunda por ser a mais aguda do grupo
51
o neuma porrectus apresenta-se de forma oposta ao torculus pois enquanto o efeito sonoro deste é baixo-alto-
baixo o daquele é alto-baixo-alto, ou seja, no porrectus o destaque é para segunda nota por ser a mais baixa do
grupo
52
o neuma climacus é na verdade um grupo de três ou mais notas que se apresentam em forma descendente sendo
a primeira apresentando uma grafia padrão quadrada e as demais em forma de pontos menores
53
o neuma scandicus apresenta função e grafia oposta ao climacus, ou seja, é um grupo de três ou mais notas que
dão um efeito ascendente ao canto.
59
fonte: http://www.schuyesmans.be/gregoriaans/PT/PTnu.htm
Alguns pontos importantes podem ser apreendidos a partir da observão e
análise desse canto gregoriano: primeiro seu tema principal, a exemplo das formas
musicais que o antecederam, é inspirado em um Salmo que versa sobre a grandeza
do Deus transcendente; segundo, sua escrita complexa, que na era medieval não
era transcrita, pois priorizava a prática mnemônica, conjugada tanto à falta de
formação técnica musical dos fiéis quanto ao fato de seu texto ser escrito em
latim, fez com que a congregação ficasse cada vez mais excluída do serviço
60
musical na igreja por séculos, porque o mesmo, semelhante ao que ocorreu no
templo judaico, acabou se transformando em uma atividade quase exclusiva
54
de
um grupo específico, que nesse caso, em geral, eram os monges.
E por fim, constatando as hipóteses dessa pesquisa, sua formação rítmica e
melódica se opunha às canções populares ou seculares do período, o que leva a
concluir que o objetivo primordial dessa forma musical era a adoração à Deus e
não a atração de novos fis pela excitação emocional provocada pela constância
de ritmos populares. O canto gregoriano poderia até atrair a atenção dos fiéis por
sua beleza e complexidade, no entanto sua forma textual e melódica objetivava
desenvolver no adorador o senso do sagrado em tida oposição ao profano. As
atuais composições musicais neopentecostais não fazem essa distinção porque na
teologia desse movimento tudo que é “tocado” pelo Espírito de Deus, incluindo
tanto o ser humano quanto a sua música, torna-se sagrado.
Concluindo, ressalta-se que mesmo ocorrendo outras formas de
manifestações musicais religiosas no período medieval como os “dramas
litúrgicos
55
o canto gregoriano foi predominantemente a manifestação musical
religiosa oficial da Igreja crisdurante todo o período medieval e apesar de sua
hegemonia ter sido profundamente abalada no meio cristão a partir da Reforma
Religiosa ele ainda é a forma musical oficial do catolicismo, mesmo com as
mudanças introduzidas pelas decisões do Concilio do Vaticano II no século XX. .
54
Segundo Frederico (2001) documentos referentes à sica religiosa a partir do papado de Grerio Magno
apontam que aos fiéis ainda era permitido manifestar-se musicalmente entoando o Kyrie eleison, o Gloria in
excelsis e o Sanctus.
55
O pesquisador Millar Patrick em seu livro The Story of the Church’s Song destaca que por volta do período
conhecido como Baixa Idade Média foram criados pelo clero da Igreja os Dramas Litúrgicos que em essência eram
formas de representações de histórias bíblicas geralmente entoadas como hinos litúrgicos dentro dos mosteiros.
Como essas representações continham um grande mero de participantes e necessitava de organização de um
cenário específico para cada tema, os mosteiros tornaram-se ambientes impróprios para sua apresentação e como
saíram do ambiente sagrado foi permitido aos fiéis participarem não só da representação dos mesmos como
também da execução musical desses dramas, alterando discretamente a exclusão musical que a população cris
sofria em relação à sica religiosa durante a era medieval. O autor pontua ainda que a música utilizada nos
dramas litúrgicos a partir do século XII era uma junção do canto gregoriano com outras formas como a música dos
trovadores, os motetos e as canções de cunho popular, lembrando que isso foi possível porque a execução de
tais dramas saíram do sagrado ambiente das igrejas ou mosteiros.
61
A música religiosa crisa partir da Reforma: um reflexo da transição da
visão transcendente para a visão imanente de Deus
Entre tantas transformações ocorridas no ocidente durante a modernidade,
as que foram proporcionadas pela Reforma Religiosa do século XVI são
extremamente relevantes para a compreensão da mudança do comportamento
musical da cristandade a partir desse período.
A igreja católica, que a então era a única instituição religiosa
organizada e oficial praticada na Europa começava a apresentar sinais evidentes
de que sua hegemonia sobre a dos cristãos seria quebrada se não em todo
continente pelo menos em algumas regiões do mesmo, o que de fato ocorreu na
Alemanha, na Suíça, na Inglaterra e em várias regiões de outros Estados
Nacionais europeus.
A retomada das atividades urbanas e comerciais que de certa forma
também proporcionaram tanto o contato do europeu com a cultura oriental como
também organização de uma nova ordem social: a burguesa – conjugado ao
restabelecimento do poder central estão intrinsecamente relacionados a essa
quebra de hegemonia do catolicismo sobre a cristandade européia.
O catolicismo sobrevivia em uma conjuntura em que poderes políticos e
religiosos se amalgamavam ao mesmo tempo em que disputavam o completo
controle sobre a sociedade. Nesse contexto, os líderes da Igreja preferiram ceder
aos caprichos do poder, negligenciando seus postulados pastorais, fato que foi
denunciado com veemência por Lutero (FREDERICO, 2001, p. 128).
Agravando a situação da igreja, as tendências renascentistas e humanistas
do século XV também incentivavam o questionamento da ordem religiosa vigente,
contribuindo com o abandono da fé católica e a conseqüente adesão a um
movimento religioso que, entre outras questões, ensinasse e defendesse a em
62
um Deus mais disposto a salvar, pensamento que de certa forma se opunha à fé
em um deus distante e castigador difundido pelo catolicismo medieval; em outras
palavras, a crença em um Deus imanente “leal e protetor que fortalecia a fé dos
fiéis no momento em que a mesma vacilavaconforme cantava
56
Lutero, acabou
sendo para muitos mais atraente do que a que até então vigorava na Europa.
Analisando esse momento Bacchiocchi (2002) enfatiza que
a orientação medieval transcendental do “Deus além de nós”, foi
substituída, gradualmente, no início do século XVI por uma concepção
imanente de “Deus por nós.” A Reforma Protestante teve um papel
fundamental ao encurtar a “distância” entre Deus e o crente. Acabando
com o papel de mediação dos padres e santos e enfatizando o sacerdócio
de todos os crentes, que têm acesso direto a Deus, a Reforma ajudou as
pessoas a verem Deus como um “ser por nós(BACCHIOCCHI, 2002,
p.53).
Essas mudanças atingiram a música cristã; entretanto o canto gregoriano
que refletia a concepção transcendente de Deus não foi extinto com o advento da
Reforma. Na verdade ele não foi totalmente abolido no culto protestante; o que
ocorreu em relação à música foi a aceitação de uma forma musical que se
aproximasse do cotidiano dos fiéis, possível graças à crença em um deus
reconciliador ensinada por Lutero. Com isso um novo estilo de música religiosa ia
sendo paulatinamente elaborado e difundido entre os cristãos reformados.
Nessa nova música religiosa cristã, que fôra composta semelhante aos
novos padrões de música secular que emergiam nesse período,
56
Um dos mais conhecidos e cantados hinos composto por Lutero afirma em sua primeira estrofe essa crença
fundamental da reformada de que Jeová além de ser um deus presente e protetor fortalece seus filhos no
momento de fraqueza ao invés de rejeita-lo como pecador impenitente.
63
a melodia foi posicionada na voz superior, ao invés da linha do tenor
[...] isso promoveu o uso da harmonia de acordes e uma predileção para
mudar os modos da Igreja para a tonalidade de modo maior. O uso de
ritmo mensural flexível e a duração acentuada também forneceu uma
vitalidade rítmica ausente na fluência do canto e demais músicas
contrapontuais da igreja (STEFANI, 2002, p. 174).
Esse novo estilo musical foi em certo sentido a resposta ao chamado de
Lutero para a criação de canções de adoração para a congregação com os textos
escritos em língua nacional que pudessem ser utilizadas como um instrumento de
louvor, de educação nos princípios cristãos e por fim de condução à piedade e
devoção cristã, sem as quais o evangelho não seria eficientemente propagado.
Lutero foi um grande defensor do canto congregacional em detrimento do
até então vigente canto “eclesiástico”, pois acreditava que o mesmo seria um meio
eficaz tanto para impregnar nas mentes dos fiéis as novas verdades bíblicas como
também para combater as hostes malignas a ponto de afirmar em sua carta a
Ludwig Senfl:
os demônios odeiam e o suportam música[...] depois da teologia, é a
música que consegue uma coisa que no mais a teologia proporciona:
um coração alegre. Uma prova muito clara disso é que o diabo[...] foge
do som da música quase tanto como da palavra da teologia. É por isso
que os profetas de nenhuma arte se serviram como da música. Sua
teologia eles o a expressaram pela geometria [...] mas pela música,
ligando teologia e música e dizendo a verdade em salmos e hinos
(LUTERO,1530, apud FREDERICO, 2001, p, 136).
Segundo a autora, acreditando no potencial didático da música, em especial
da música congregacional, Lutero compôs inúmeras canções onde não só expunha
suas idéias reformistas como também denunciava e condenava abertamente os
64
aspectos que julgava errados na doutrina católica conforme pode ser constatado a
partir da observação da segunda e a terceira estrofe de um hino
57
de sua autoria
como se segue:
2 – Ensinam-se doutrinas vãs,
por homens inventadas,
deturpam as palavras sãs
na bíblia bem lavradas.
Discordam entre si também,
confundem-nos com vil desdém,
brilhando na aparência.
3 – Senhor, ó vem fazer calar a tais ensinadores!
Que nos ensinam falsas aparências!
Ousados são em seu falar
e dizem qual doutores: nós temos a revelação
decretos, leis e tradição; da bíblia somos mestres
Ainda no mesmo hino na quarta e quinta estrofe Lutero transmite a idéia de que
Deus ouve o clamor de justiça bradado por seu povo e em resposta envia seu filho
–o Verbo
58
encarnado (cosmovisão imanente de Deus conosco ou por nós) para
aliviar-lhes a dor e destruir as hostes inimigas:
4 – Por isso diz o Santo Deus:
dos crentes afligidos os brados sobem já aos céus
ouvi os seus gemidos.
meu verbo mando com vigor aniquilar a sua dor
e as hostes inimigas
57
Esse hino foi publicado com o mero 241 no Hinário Luterano (1985) que é o hinário oficial da Igreja
Evangélica Luterana do Brasil.
58
No evangelho de João Jesus Cristo é apresentado metaforicamente como a palavra ou o Verbo que se fez carne e
habitou entre s(João 1;1, 2 ,3 e 14)
65
5 – Provada a prata é no calor, no fogo acrisolada.
A sã palavra do Senhor na angustia é confirmada
Provado o Verbo pela cruz, revela então poder e luz
iluminando a terra
No hino Castelo Forte é nosso Deus
59
, considerado pela cristandade como o
Hino Oficial da Reforma, Lutero apresenta Deus como o todo poderoso protetor
que defende seus filhos das artimanhas cruéis e inigualáveis do diabo, refletindo
a influência da cosmovio transcendental de Deus ainda presente na teologia
luterana, conforme pode ser percebido na primeira estrofe desse hino:
1 –Castelo forte é nosso Deus, espada e bom escudo.
Com Seu poder defende os Seus em todo transe agudo.
Com fúria pertinaz, persegue Satanás
Com ânimo cruel, astuto e mui rebel:
Igual nãona terra.
Na segunda e na terceira estrofes desse mesmo hino o autor evidencia sua
crença na incapacidade do ser humano em vencer seus inimigos espirituais como
também transmite a idéia de que a vitória final está no Filho enviado que venceu a
batalha na cruz pois ele é também o próprio Deus transmitindo aqui a sua
cosmovisão em um Deus imanente, que lutou e venceu em favor do pecador
arrependido e por ele redimido:
59
Este hino foi encontrado em vários hinários de denominações do protestantismo histórico e pentecostal entre
eles: Hinário Luterano, Hinos do Povo de Deus, Cantai ao Senhor, Salmos e Hinos, Harpa Cristã, Cantor Cristão,
Hinário Adventista. Em todos esses hinários a melodia é a mesma somente com diferenças irrelevantes nos arranjos
e com sinônimos em algumas frases ou estrofes que provavelmente ocorreram durante a tradução. A letra aqui
apresentada corresponde a uma versão espanhola de Juan Batista Cabrera (que se manteve fiel ao texto original de
1529) de 1840 traduzida por Jacob Eduardo Von Hafe em 1886 e publicada como hino número 369 na quarta
edição do Hinário Salmos e Hinos publicado em 1919 e como mero 640 na edição do mesmo publicado em
1975.
66
2 – A força do homem nada faz; sozinho está perdido.
Mas nosso deus socorro traz em Seu Filho escolhido
Sabeis quem é? Jesus o que venceu na cruz,
Senhor dos altos céus; e, sendo o próprio Deus,
Triunfa na batalha.
3 – Se nos quisessem devorar demônios não contados,
não poderiam derrotar nem ver-nos assustados.
O príncipe do mal, com seu plano infernal,
condenado está, vencido cairá
Por uma só palavra.
Na última estrofe é possível perceber um ensinamento dos reformadores
frente a expectativa do martírio imposto pelo Tribunal do Santo Ofício: a vitória
final no reino celeste mesmo que para isso fosse necessário perder tudo, inclusive
a própria vida:
4 – De Deus o verbo ficará, sabemos com certeza.
E nada nos assustará com Cristo por defesa.
Se temos de perder os filhos, bens mulher
Se tudo se acabar e a morte enfim chegar,
Com Ele reinaremos.
Essa idéia de vitória final, mesmo a despeito de perdas e morte, se contrapõe
à mensagem central apresentada na grande maioria das canções neopentecostais
que expressam a idéia de vitória e do sucesso aqui nesta vida e o só na almejada
vida eterna, conforme pode ser percebido no trecho musical da cantora gospel
Ludmila Feber:
Bendito É o Senhor
67
Praga nenhuma virá sobre nós
Nenhum mal nos sucederá
Nenhuma enfermidade nos atingirá
Porque Cristo é o senhor que nos sara
Cristo é o senhor que nos salva
Por suas chagas nós fomos curados
Levou sobre si nossas dores
Assim, pra sempre confiaremos no senhor
Sua palavra é a própria verdade
Bendito é o fruto do nosso ventre
E a cria das nossas vacas e ovelhas
O senhor determina sua bênção nos nossos celeiros
E em tudo que o que pusermos nossas mãos
Bendito é o senhor(2x)
Bendito é o meu jesus
Bendito é o senhor
Fonte: http://ludmila-ferber.letras.terra.com.br/letras/417163/
Lutero o apresentou inovações somente na parte textual da música, pois
conforme anteriormente mencionado Lutero se apropriou de formas musicais não
religiosas de sua sociedade, em especial dos novos estilos que estavam sendo
criados e que por isso eram rejeitados pela igreja oficial. Como Ambrosio, Lutero
acreditava que o povo deveria cantar a Deus com estilos melódicos que lhes
fossem familiares. Isso, entretanto não significou uma secularização da música
religiosa nos moldes atuais do neopentecostalismo porque Lutero viveu em uma
época em que a cultura era eminentemente teocêntrica e, por mais populares e
secularizados que os estilos musicais não religiosos da sua época fossem, eles não
negavam os princípios religiosos e morais defendidos pela cristandade ou pelo
menos não estavam desvinculados dessa cultura religiosa vigente.
68
Durante a realização de observações e entrevistas que respaldaram essa
pesquisa, constatou-se que a maior parte dos evangélicos neopentecostais –e até
mesmo evangélicos do protestantismo histórico que defendem a utilização de
ritmos populares contemporâneos em suas composições religiosas justificam sua
postura afirmando que o pai da Reforma (Lutero) utilizava essa prática em suas
composições a fim de atrair seguidores.
Investigando a validade de tais justificativas, observou-se que mais uma vez
ocorre um processo de (re) interpretação de um fato histórico: os neopentecostais
maiores defensores da utilização de ritmos populares contemporâneos ou da
paródia com temas religiosos de músicas existentes (re) interpretam,
acreditam e difundem a iia de que Lutero, ao utilizar formas musicais familiares
ao cotidiano secular dos cristãos de sua época estava popularizando o canto
religioso, eliminando os limites entre sagrado e profano na música da igreja a fim
de atrair mais adeptos ao protestantismo e a igreja contemporânea, que tem a
missão final de derrotar as hostes satânicas” que afastam o homem de Deus ou
que o aprisiona em um ritual formal e legalista com sicas tradicionais e
obsoletas, devem seguir o exemplo do grande reformador que destemidamente
enfrentou os “poderes das trevasrepresentado pelo catolicismo e iniciou a obra
de desmascarar o inimigo e de ensinar os cristãos cantarem um louvor que
agrada a Deus”, enfim, um cântico novo ao Senhor que brotava de um coração
iluminado e convertido, conforme acreditam.
A análise histórica, entretanto, leva a indagar se de fato ocorreu durante a
reforma o mesmo que ocorre com a música cristã contemporânea. Ao se analisar,
crítica e atentamente, a postura de Lutero referente a adoção de formas
melódicas familiares ao do cotidiano não religioso de sua época em suas
composições para Igreja é preciso observar que: primeiro, conforme
pontuado, Lutero viveu sob a égide de uma cultura extremamente religiosa na qual
69
todas as manifestações artísticas inclusive a música estavam a ela atreladas. Sobre
suas composições Bacchiocchi (2002) argumenta que:
Lutero não adotou a música sensual, erótica do seu tempo. Pelo
contrário, ele advertiu contra o uso do “extravagante etico”, como
sendo os meios que o demônio usaria para corromper a natureza
humana. Ele nunca considerou a música como uma mera ferramenta que
pudesse ser empregada sem considerar sua associação original mas teve
o cuidado para combinar texto e a melodia, de forma que cada texto
tivesse sua própria melodia, e que ambos complementassem um ao outro
(BACCHIOCCHI, 2002, p.54).
O autor argumenta ainda que apenas uma, entre as trinta e sete composições
para coral de Lutero, originou-se diretamente de uma composição folclórica
existente em sua época pois quinze se originaram de canções sacras latinas ou dos
peregrinos, outras quinze são de sua autoria pessoal sem nenhum vínculo ou
semelhança melódica a canções já existentes, quatro se originaram a partir de
melodias religiosas populares, ou seja, o gregorianas da Alemanha e por fim,
duas possuem sua origem desconhecida sendo por isso impossível afirmar que
foram inspiradas em canções populares existentes no período. Outro aspecto
relevante abordado por Bacchiocchi (2002) é que essa única composição que
entre as composições luteranas se originou literalmente a partir de uma canção
folclórica – incluída na coletânia de hinos de Lutero em 1535 foi substituída por
outra melodia no hinário de 1539. Os historiadores acreditam que Lutero a
descartou porque as pessoas associavam esta melodia com o seu texto secular
anterior”(BACCHIOCCHI, 2002, p. 55).
Segundo, o fato de as composições de Lutero possuírem um ritmo marcado
e dividido em compasso não significa que fossem passíveis de serem confundidas,
70
por quem as ouvissem, com uma música popular/secular da época como ocorre
comumente com a música neopentecostal que um ouvinte (não pentecostal)
muito atento consegue perceber, ao ouvi-la, de que a mesma o se trata de um
rock, pagode, forró, samba ou um outro estilo popular/secular qualquer.
E finalmente é preciso observar que Lutero, ao compor suas músicas para
igreja, buscava afastar os fiéis, em especial a juventude, daquilo que chamava de
prazeres da carne; por isso afirmou no prefácio do Hinário de 1524:
Os hinos foram arranjados em quatro vozes por nenhuma outra razão
senão o meu desejo de que a juventude, a qual afinal de contas deve e
precisa ser educada na música e em outras artes dignas, tenha algo com
que se livre das canções de amor e dos cantos carnais para, em lugar
destes, aprender algo sadio, de modo que o bem seja assimilado com
vontade pelos jovens, como lhes compete (LUTERO, 1524, apud
FREDERICO, 2001, p, 141-142).
Essa declaração evidencia que Lutero, mesmo se apropriando de formas
melódicas não religiosas de sua época, buscou fazer com que suas composições
contribuíssem para afastar o pensamento de sua congregação dos costumes
“mundanos”; ele se preocupava em tornar suas composições se não opostas pelo
menos diferentes das músicas ouvidas em ambientes considerados profanos. Para
Lutero a música deveria ser uma arma que contribuísse com o afastamento da
mente dos fis das tentações e prazeres pecaminosos do mundo. O que ocorre
com a música neopentecostal é que ela visa manter o pensamento dos fiéis em
Deus sem necessariamente faze-los abandonar a música mundana” porque seus
seguidores acreditam que pelo “toque” do Espírito a mesma é transformada, ou
seja, quando consagrada a Deus por uma letra que a Ele se refere, essa música
composta nos padrões formais “profanos”, deixa de ser arma do diabo que afasta o
71
crente de Deus e passa a ser a arma da igreja e do crente para atrair e manter o
pecador em Jesus.
Esse processo é então uma re-interpretação da postura musical reformista
porque seus defensores lêem tais fatos isoladamente do contexto histórico
adaptando-os, mesmo que inconscientemente, às suas crenças sobre a música
religiosa e por fim os aplicam conforme lhes é conveniente.
Concluindo, é importante ressaltar que nem todos os reformadores
concordaram com a postura musical de Lutero. Calvino, por exemplo, defendia
que os Salmos eram a autêntica música que deveria ser entoada pela cristandade
tanto nas cerimônias religiosas como em seu viver diário. Sua postura referente à
música se assemelhava à postura musical da sinagoga judaica e da igreja primitiva
ou apostólica, pois via com desconfiança o uso de acompanhamento instrumental
a ponto de rejeitar até mesmo o uso do órgão e defender acirradamente que na
igreja toda forma de expressão musical deveria ser literalmente igual, em sua
forma, aos salmos bíblicos segundo afirma Frederico (2002).
72
CAPÍTULO II
A MÚSICA POPULAR CONTEMPORÂNEA E A
POPULARIZAÇÃO DA MÚSICA RELIGIOSA
Ao se buscar compreender o papel desempenhado pela música religiosa
com ritmos populares no proselitismo e no conseqüente crescimento do
movimento neopentecostal em Goiânia, constatou-se ser imprescinvel discorrer,
mesmo que brevemente, sobre a origem e evolução histórica desse estilo musical
no ocidente e, por conseguinte, no Brasil, bem como é de significativa relevância
analisar as principais tendências teóricas e historiogficas sobre a temática da
música popular urbana contemporânea.
Ocupando posição de destaque no quadro histórico e sócio-cultural das
civilizações ocidentais desde o final do século XIX e, sobretudo, desde o início do
século XX na América Latina e Brasil, a música popular urbana contemporânea
tornou-se objeto de freqüentes estudos e debates acadêmicos a partir das últimas
décadas do culo XX. Mesmo sendo constantemente analisada é consenso entre
os pesquisadores que ainda muita coisa a ser investigada e refletida sobre essa
temática.
Durante anos, as pesquisas sobre música popular contemporânea giraram
em torno de conclusões dicotômicas ou repletas de juízos de valor que em geral a
definiam como “boa” ou “má” ou então como de “qualidade” superior ou inferior.
Muitas dessas análises, em geral, foram elaboradas de forma fragmentada, fato
que segundo o historiador da música Marcos Napolitano
60
reproduz vícios de
60
Marcos Napolitano é Doutor em Historia pela USP, concentrando suas pesquisas no campo da História da
Música. Atua como professor titular de História Cultural na Universidade Federal do Paraná e é autor de
inúmeras obras sobre História da Música Popular no Brasil e América Latina, as quais consubstanciaram parte
dessa pesquisa.
73
abordagem identificados por ele como a perigosa análise da letra separada da
música, a análise do contexto separado da obra, a análise do autor separado da
sociedade e a análise da estética separada da ideologia” (NAPOLITANO, 2002,
p. 8). Isso, segundo o autor, impede que se compreenda o lugar de mediação, de
encontro e de fusão de classes e de valores, ocupado por esse fenômeno cio-
cultural e histórico chamado música popular.
É importante destacar o fato de que análises dicotômicas ou repletas de
juízos de valor sobre a sica popular urbana podem dificultar a compreensão de
uma época, pois impedem que esse estilo musical exerça uma de suas principais
funções como objeto de investigação hisrica, a saber: revelar ou refletir os
valores e os anseios almejados ou rejeitados por um grupo social ou por uma
sociedade em uma determinada época.
Certo é que a música popular urbana contemporânea ocidental, quando de
sua origem no século XIX, era produzida e cantada por grupos marginalizados da
elite ou de setores economicamente privilegiados. Essa realidade fez com que os
primeiros estudiosos desse fenômeno cultural a identificassem como música de
massa. O alemão Theodor Adorno, um dos mais respeitados nomes em estudos
sobre a música, em suas principais obras sobre a música popular
61
, qualifica esse
estilo como música inferior que aliena os seus ouvintes, afirmando ainda que a
mesma é peça fundamental na extensa e complexa engrenagem da indústria
cultural, cujo objetivo final é o lucro (Adorno, 1996).
Não se pode negar que tais análises em muitos aspectos são verdadeiras,
pois revelam com profunda autoridade uma das funções ou papéis exercidos
atualmente pela música popular contemporânea, ou seja, sua função alienante,
função essa que é grandemente utilizada em músicas populares com versões
61
Entre os principais artigos de autoria de Adorno sobre a temática da sica estão: Sobre o jazz”(1936);
“O fetichismo da música e a regressão da audição” (1938); “Sobre música popular (1941) e “Diatica do
esclarecimento” (1947).
74
religiosas, mas também não se pode afirmar que essa seja a única função exercida
por esse estilo musical. Não se pode negar seu aspecto refletor de valores
praticados ou rejeitados por setores sociais específicos ou pela sociedade como
um todo.
Assim sendo, as reflexões de Adorno devem ser utilizadas com cautela sem
a pretensão de considerá-las como verdades absolutas sobre a música popular.
Ressalta-se ainda que reflexões teóricas posteriores a Adorno, referentes a essa
temática, também devem ser consideradas em pesquisas que se propõem a discutir
assuntos ligados à música ou aos ritmos populares.
Nessa perspectiva, esse capítulo dedica breves sessões à discussão sobre a
história da música popular contemporânea no ocidente e no Brasil, discutindo
também as principais tendências e argumentações teóricas sobre essa temática
antes de se discutir como esse estilo musical ganhou espaço no campo religioso e
como o mesmo influencia o crescimento do movimento neopentecostal em
Goiânia.
A gênese da música popular contemporânea no Ocidente e no
Brasil: aspectos históricos e principais correntes teóricas
A música popular contemporânea no Ocidente nasceu entre o fim século
XIX e início do século XX. A conjuntura sócio-histórica de sua formação
relaciona-se de forma significativa tanto ao processo de urbanização desse período
quanto à formação acentuada dos setores médios urbanos e classes populares, os
quais se interessavam ou buscavam um tipo de lazer que se aproximasse de seu
estilo de vida ou pelo menos com características urbanas.
75
As principais formas de lazer desse período estavam imbuídas ou
intimamente ligadas à expressão musical: o teatro o se fazia sem a música, as
festas e grandes reuniões creditavam parte de seu sucesso à música, as cerimônias
religiosas, quer fossem católicas ou de confissões protestantes, cada uma dentro
de sua esfera litúrgica, dependiam da música, e até mesmo nas reuniões dos
intelectuais e poetas a música estava presente, como sempre esteve em quase
todos os eventos sociais.
Nesse período de transição do século XIX para o XX, a nova sociedade
urbana, composta por diversos extratos sociais: o grande e o pequeno burguês, o
proletariado, os vagabundos” que habitavam os subúrbios, se interessavam por
um tipo de música ligada à vida cultural e ao lazer urbano” (NAPOLITANO,
2002, p.12) que se aproximasse de sua realidade ou, melhor dizendo, que fosse
acessível a uma crescente parcela da população.
Nesse contexto e se apropriando de diversos elementos musicais,
performáticos e poéticos da música erudita (como o chançon e ária de ópera) e da
música folclórica (como danças dramáticas e narrativas orais), conforme expressa
Napolitano (2002), a música popular urbana contemporânea se constitui e se
consolidou ou em sua forma instrumental ou em sua forma cantada.
Os principais elementos difusores nesse período foram ou a partitura e o
fonograma, este último, resultado do desenvolvimento técnico industrial ou as
festas e espetáculos que apelavam para as emoções humanas, e em especial as
emoções populares, como a opereta e as danças, fossem elas nos mais sofisticados
salões como nos de Viena ou fossem nas mais populares festas familiares ou de
bordéis.
O historiador da música Richard Middleton, em sua obra Studying Popular
Music, afirma que a música popular urbana contemporânea ocidental, em sua
trajetória de formação (século XIX) e consolidação (século XX), enfrentou
76
períodos de significativas mudanças, os quais acompanhavam as transformações
econômicas e sociais do período.
Middleton cataloga essas significativas transformações em três períodos
distintos: o primeiro está relacionado à “revolução burguesa” do culo XIX; esse
é o período em que, segundo o autor, a burguesia conquista não seu espaço na
ordem política européia, mas conquista também espaço na ordem cultural,
influenciando e determinando tanto o gosto como o comportamento, inclusive, o
comportamento musical.
Essa nova ordem burguesa atua como propulsora de eventos musicais, uma
vez que o seu gosto e interesse pela música acentua-se e evidencia-se
gradativamente. Assim, a burguesia passa a incentivar e até mesmo a financiar a
construção de teatros, casas de concerto e criações de editoras musicais. Com
isso, afirma Middleton (1990), por volta de 1850 o gosto burguês pela música
atingiu seu apogeu.
O segundo período de transformação da história da música popular,
arrolado por Middleton, iniciou-se por volta de 1890, quando o panorama supra
citado começou a sofrer alterações, que atingiram seu apogeu entre os anos de
1920 e 1940. Essa nova onda de transformação esrelacionada à formação da
“cultura de massa”; o Jazz, o Ragtime e as novas formas de dança e espetáculo
como o music-hall, o swing e o tango foram os frutos dessa nova conjuntura,
segundo o autor.
Nesse cenário, torna-se evidente o desenvolvimento de sistemas de editorias
musicais extremamente centralizadores como o londrino Denmark Street e o norte
americano Tin Pan Alley, o qual se transformou em sinônimo de um tipo de
canção romântica” (NAPOLITANO, 2002, p. 13). Desenvolveu-se também nesse
período a indústria de gramofone que contribuiu de forma decisiva na
disseminação dessa nova forma de música popular urbana no Ocidente.
77
Por fim, Richard Middleton afirma que o terceiro período de transformação
na história da música popular urbana ocidental ocorreu depois da Segunda Grande
Guerra, quando nasceram o rock’n roll e a cultura pop, ao mesmo tempo em que
os estilos anteriores de música popular sofriam alterações, como exemplo o Free
Jazz (nova versão do Jazz).
Esse período, segundo o autor, foi caracterizado pelo fato de a música ter se
transformado em um lugar privilegiado de busca de liberdade de comportamento,
de criação e, em alguns casos, de identidade cultural, tornando-se um elemento
preponderante nas mais variadas formas de protestos, em especial dos que eram
organizados ou que contavam com um grande contingente da ala jovem das
sociedades.
O auge desse período foram os anos de 1970. Ressalte-se que foram as
formas musicais populares nascidas a partir dessa época que gradativamente
ganharam espaço em cerimônias religiosas, principalmente nos cultos das
emergentes igrejas neopentecostais.
Analisando esse quadro histórico da música popular urbana contemporânea
ocidental de Middleton, o historiador da música popular urbana contemporânea
brasileira Marcos Napolitano chama a atenção para o fato de que o mesmo -
apesar de apresentar com precisão a origem, a consolidação e as transformações
sofridas por esse estilo musical ao longo de sua trajetória deve ser aplicado com
cautela em estudos que visam discutir esse fenômeno cultural na América Latina,
pois os valores culturais dessa região o se formaram consubstanciados apenas
em valores e costumes europeus ou de influência norte americana. Napolitano
pontua que:
“Neste continente , as transculturações e as diversas temporalidades
históricas em jogo na formação das sociedades nacionais[...] formando
complexos culturais híbridos [...] não permitem análises
78
excessivamente tomadas do modelo histórico europeu. Como
conseqüência do caráter híbrido de nossas culturas nacionais, os planos
“culto” e popular”, “hegemônico” e “vanguardista [...]
freqüentemente interagem de uma maneira diferente em relação à
história européia”(NAPOLITANO, 2002, p. 13-14).
Segundo o autor, fazendo uma análise mais complexa da música popular
urbana contemporânea ocidental, ou seja, analisando a estrutura melódica e
harmônica e até mesmo a letra das cançonetas
62
do final do século XIX e início do
século XX, conclui-se que entre ela e a música erudita haviam significativas
semelhanças como a performance vocal e o fato de a estrutura harmônico-
melódica não serem caracterizadas por forte marcação tmica, como ocorre com
as canções populares no continente americano.
Outro fator que deve ser considerado é que na Europa o gosto musical da
classe trabalhadora e dos médios extratos burgueses não era polarizado ou oposto.
Entre esses dois grupos, onde a música popular urbana ocidental floresceu, existia
uma certa concordância e harmonia no gosto musical. A composição e aceitação
das cançonetas românticas, das óperas e das operetas bem como da valsa e da
polca, reconhecidas como as principais danças populares do período, entre os dois
grupos é a constatação dessa “harmonia” de gosto musical.
Ressalte-se não se poder negar que no primeiro momento as composições
de músicas populares urbanas na América e em especial no Brasil sofreram forte
influência da forma e do estilo musical popular europeu, uma vez que a base das
manifestações culturais e artísticas desse continente era eminentemente européia.
A grande aceitação da valsa, da polca e o ritmo suave de muitas músicas
populares compostas nesse período provam esse fato.
62
Expressão designada para se referir às músicas populares urbanas cantadas por volta do século XIX
79
Também não se pode ignorar o fato de que a presença de etnias não
oriundas da Europa influenciou e contribuiu de forma decisiva na composição de
músicas populares urbanas, que refletiam os valores desses povos, ao mesmo
tempo em que refletiam a composição híbrida da cultura desse continente.
Como exemplos mais contundentes dessa forma musical “tipicamente”
americana podem ser destacados o Jazz norte-americano, o samba brasileiro e até
mesmo o tango argentino que, mesmo incorporando algumas características
técnicas da música européia, eram formas musicais vigorosas e fundamentais
para a expressão cultural das nacionalidades em processo de afirmação e
redefinição étnicas” (NAPOLITANO, 2002, p.18).
Diante dessa realidade, é possível pensar em uma música popular
contemporânea européia com características acentuadamente urbanas e que atendia
o gosto burguês, porém, muito próxima ou semelhante à música erudita, já que
possuía uma formação rítmica e harmônica mais suave. É possível pensar também
em uma música popular contemporânea urbana americana que gradativamente se
distancia de suas raízes européias, ao mesmo tempo em que vai se adequando e
assumindo novas formas ou estilos próprios”, resultantes do forte hibridismo
cultural que é característica marcante das Américas e que são claramente traduzidos
nas palavras do Marcos Napolitano ao afirmar que
O modelo da canção cujo tratamento orquestral seguia os padrões
diretamente desviados dos padrões da música erudita, foi confrontado
com outro modelo que se pautava pela acentuação de uma determinada
célula rítmica e pelo andamento mais rápido e voltado para daa [...]
reforçados por timbres de instrumentos de percussão cujo apelo ao
êxtase corporal era ainda mais forte” (NAPOLITANO, 2002, p 19 - 20).
80
Nesse contexto, a história da música popular urbana no Brasil pode ser
resumidamente apresentada em dois grandes momentos: o de formação e o de
consolidação. O primeiro transcorre no século XIX. No início desse século, o
gênero musical dominante no Brasil era a modinha (filha da Moda de Portugal)
que desde o culo XVIII significava música erudita neste país, mesmo tendo
característica rítmica mais popular.
Outra forma musical presente no Brasil no culo XIX era o lundu, que
apesar de sua origem negra, de sua marcação rítmica mais acentuada e de seu
estilo ligeiramente licencioso, foi gradativamente absorvido pelos extratos
médios da Corte brasileira, tanto em sua forma canção como em sua forma para
dançar.
Fazem parte desse cenário musical brasileiro do século XIX os estilos
musicais europeus tanto em sua forma erudita (a música barroca) como em sua
forma ligeira
63
(polca e valsa) e é justamente no entroncamento desses diversos
estilos eruditos ou populares, de origem européia ou africana, que começaram a
nascer o choro, o maxixe, o tango brasileiro e a polca lundu. Foram esses estilos
musicais populares, com características mais tipicamente brasileiras, os
formadores de um complexo musical que melhor refletiu a formação étnica do
Brasil. Dentre esses novos estilos que podem ser considerados como o alicerce da
música popular urbana brasileira do século XX destaca-se o choro que
acabou por galvanizar uma forma musical urbana brasileira [...] Nele
estavam presentes o pensamento contrapontístico do barroco, o
andamento e as frases musicais picas da polca, os timbres
instrumentais suaves e brejeiros [...] e a sincopa dando-lhe um toque
suave e jocoso” (NAPOLITANO, 2002, p. 45).
63
Adorno em sua análise denominava a música popular como ligeira
81
O momento da música popular no Brasil data das primeiras cadas do
século XX, período em foi criado o samba que revolucionou a história da música
popular urbana brasileira e que é hoje considerado por muitos como ícone
identitário do povo brasileiro. De raízes negro-africanas o samba brasileiro se
manifestou primeiramente entre os grupos negros do centro carioca, expandindo a
partir daí não por todo Estado mas também por todo o Brasil. Tinhorão (1997)
discutindo o processo de criação do samba infere que o mesmo nasceu a partir de
criações conscientes destinadas a atender fins específicos: a necessidade de
ritmos capazes de servir à cadência das lentas passeatas dos ranchos e a
procissão desvairada de blocos carnavalescos (TINHORÃO, 1997, p. 18-19).
Assim sendo o samba, segundo o autor, é fruto do carnaval.
Entre os seus primeiros compositores se destacam: Pixiguinha e Donga que
deram a ele o tom do choro e do maxixe fato que o caracterizou ao longo dos anos
de 1920 e início dos anos de 1930, conforme pontua Napolitano (2002).
Analisando também esse processo Tinhorão (1997) afirma que:
o samba nascido como gênero carnavalesco [...] passaria em pouco
tempo ao domínio dos primeiros profissionais da classe média [...]
passando a evoluir segundo toda uma série de influências estranhas à
cultura popular brasileira, ou seja, a da sica norte americana [...] ou
a do semi-eruditismo dos orquestradores dos quais Pixinguinha foi um
dos pioneiros (TINHORÃO, 1997, p.19).
Assim, ao longo do restante do século XX, o samba brasileiro foi sofrendo
intensas transformações, frutos das fusões e das novas experiências ocorridas na
cultura brasileira e, por conseguinte, no setor musical. Tais alterações chamam a
atenção para o fato de que o samba, quando do seu nascimento, não possuía uma
estrutura rítmica e melódica estruturalmente definida.
82
A partir de 1930 o samba foi perdendo sua aproximão ao choro e ao
maxixe, ao mesmo tempo em que ganhou um ritmo marcado pelos instrumentos
de percussão, passando a ser considerado a partir de então como samba
autêntico” (NAPOLITANO, 2002, p. 51). A história do samba brasileiro no início
do século XX, afirma Tinhorão (1997) é
a história da ascensão social connua de um gênero de música popular
urbana [...] fixado como gênero musical por compositores de camadas
baixas da cidade que passou ao domínio da classe média, que o vestiu
com orquestrações logo estereotipadas, e o lançou como música de
dança de salão (TINHORÃO: 1997, p.20).
Assim, a partir dos anos de 1940, com a forte difusão do rádio entre os
grupos populares, e graças às transformações políticas, econômicas, tecnológicas
e culturais geradas tanto no contexto do estabelecimento do Estado Novo como
também no contexto da 2ª Guerra Mundial, a música popular no Brasil entrou em
uma nova etapa, e a presença de gêneros musicais regionais como a moda de viola
e de gêneros internacionais como o cool jazz marcaram esse momento. Esse
processo deu a samba um ritmo
abolerado ou de andamento lento [...] as sonoridades em vigor
apostavam nas tessituras orquestrais densas à base de interpretações
vocais de grande estridência, alta potência e muitos ornamentos [...] as
letras perdiam a ironia e o humor e passavam a expressar um
sentimentalismo mais carregado” (NAPOLITANO, 2002, p. 57).
Esse novo tipo de música, ou melhor, esse novo samba, que foi amplamente
recebido entre as camadas populares, tornou-se também objeto de fortes críticas,
83
pois, além de ser considerado “popularesco”, era também, na visão desses críticos,
sem autenticidade cultural, desprovido de caracteres identitários e cheio de
artificialismo comercial, em outras palavras, totalmente oposto à “boa música
popular” brasileira produzida nas três primeiras décadas do século XX.
Napolitano (2002) comenta que mesmo a despeito das críticas e das
inúmeras tentativas de se resgatar a pureza” da música popular ou do samba
brasileiro, como a criação de revistas musicais, essa nova forma de compor o
samba ou a música, caracterizado pela sutil mistura de gêneros ou seguindo as
tendências norte-americanas como o Jazz, avançou e o resultado foi a criação da
Bossa Nova, hoje também considerada como um elemento identitário da música e
até mesmo da cultura brasileira.
Segundo o autor, para os criadores da Bossa Nova era necessário romper
com a tradição folclorista que rodeava o samba brasileiro e ao mesmo tempo era
necessário avançar para o moderno em sica popular urbana. Nas composições
da Bossa Nova, o ritmo percussivo do samba, a estridência vocal e as letras e
narrativas permeadas por uma aura “ingênua”, foram substituídas pela
interpretação sutil e pelas novas harmonias mais suaves e menos percussivas.
Outro momento importante da história da música popular urbana brasileira
no século XX ocorreu por volta da década de 1960, período ainda áureo para a
Bossa Nova, mas que também foi terreno propício, devido à conjuntura política,
para o nascimento da MPB: um novo estilo musical moderno” que ambicionava
ser o ponto de equilíbrio entre Bossa Nova e Samba. Mais que a Bossa Nova a
MPB
ia se apropriando e se confundindo com a própria memória músical
nacional popular [...] estabelecendo novas bases de seletividade,
julgamento e consumo musical sobretudo para os segmentos mais jovens
e intelectualizados da classe média [...] Ela foi pensada a partir da
84
estratégia de nacionalização da Bossa Nova (NAPOLITANO, 2002, p.
64).
Com o ritmo mais moderno do que o da Bossa Nova, no entanto bem
menos percussivo e rápido que o do samba, a MPB conquistou amplo espaço no
cenário musical brasileiro, apesar de não ter atingido significativamente as
camadas mais populares urbanas do Brasil, entre as quais o estilo mais ritmado do
samba ainda predominava.
Paralelo ao estabelecimento da MPB e como um contraponto da mesma,
nasceu a tropicália, que tinha como forte característica a aproximação e, em
alguns casos, a adesão à forma rítmica e melódica do pop anglo-americano,
utilizando inclusive e de forma mais acentuada a guitarra, fato que favorecia as
críticas emepebistas que afirmavam ser esse movimento antinacionalista ou uma
transposição do rock norte-americano na música nacional ou na música brasileira.
Esses foram os principais períodos da história da música popular urbana
contemporânea no Brasil. Períodos caracterizados pela criação/afirmação e até
mesmo pela fusão de estilos ou formas estéticas de música, leia-se aqui estrutura
rítmica, melódica e letras poéticas, os quais refletiam a complexidade da cultura
híbrida brasileira, ao mesmo tempo em que eram frutos das transformações
transcorridas no cenário político, econômico e social do país.
Ressalta-se ainda que a partir de meados da década de 1970 o gênero
emepebista começou paulatinamente a perder seu caráter de “gênero musical
específico e passa a ser visto como um complexo cultural” (NAPOLITANO, 2002,
p.69). Muito contribuíram para isso o fortalecimento do mercado fonogfico no
Brasil e a repressão imposta pela ditadura militar que, de certa forma, unia os
diversos artistas ou músicos brasileiros contra o inimigo comum, o governo
85
ditatorial. Nesse contexto e na nova “onda” de consumo musical figurava no topo
da hierarquia da música brasileira a
MPB tida como música culta, aberta a várias tendências, desde que
chanceladas pelo bom gosto dos setores intelectualizados[...] A rigor
quase tudo poderia ser considerado MPB. Todos os gêneros e estilos,
todas as tradições musicais [...] poderiam ter seu lugar no clube desde
que prestigiados pelo gosto da audiência que definia a hierarquia
musical (NAPOLITANO, 2002, p. 70 73).
Analisando esse quadro linear da história da música popular urbana
contemporânea no Brasil conclui-se que durante aproximadamente oito décadas
do século XX a música popular urbana cantada e ouvida no Brasil era a música
composta principalmente no eixo Rio/ São Paulo, quando muito a produzida nos
grandes centros urbanos da Região Sudeste, “centro” cnico industrial e, por
conseguinte, centro econômico do país.
As músicas produzidas nas “periferias culturais” do Brasil, leia-se aqui as
demais regiões do país, ou se enquadravam nos gêneros ou estilos existentes a
fim de serem aceitas, ouvidas e consumidas ou então na melhor das hipóteses
seriam relegadas à categoria de músicas folclóricas ou regionais.
A música caipira ou de estilo regional tinha seu alcance limitado ao interior
do Brasil e sua atual versão sertaneja conseguiu projeção nacional quando
aderiu tanto ao romantismo sentimental e sensual em suas letras quanto à
composição rítmica melódica semelhante ao country norte-americano, com a
utilização de instrumentação e técnicas copiadas daquele país, pois essa era a
exigência do mercado.
86
Quando os diversos gêneros de canções ou de música popular aderem às
exigências do mercado ocorre o que Adorno chama de função alienante da música
popular, a qual ele define como ligeira ou de consumo.
Essas músicas que, segundo o autor, são compostas para atender às leis do
mercado tiram dos indivíduos sua consciência e capacidade de escolha, fazendo-
os compor ou ouvir uma música que sendo de fácil assimilão torna-se conhecida
e, sendo conhecida, torna-se sucesso, que é igual ao lucro, que pode ser financeiro
ou simbólico tanto para quem a compõe, interpreta ou a lança no mercado como
para o ouvinte que es “por dentro” da moda musical que os ouvintes
aprenderam a o dar atenção ao que se ouve, mesmo no próprio ato da
audição” (ADORNO, 1991, p. 80).
Nesse mercado massificado e padronizado, sucesso torna-se sinônimo de
atividade empresarial e divulgação na dia, prescindindo, inclusive, de talento e
formação musical, pois a desenvolvida aparelhagem tecnológica e os arranjos
eletrônicos simulam facilmente esse talento ou a formação técnico-acadêmica.
Tal situação conduz, cada vez mais, à padronização musical. Normalmente
se ouve entre as canções populares urbanas contemporâneas melodias simples,
sincopadas, com ritmos acentuados e repetitivos de cil assimilação. As letras de
tais músicas divulgam temas freqüentemente jocosos e ligados à sensualidade
(principalmente a feminina), à traições, à desilusões amorosas e principalmente
fazem alusões sexuais um tanto quanto pejorativas e bem próximas ao campo da
vulgaridade, já que isso favorece o consumo.
Essa tendência que Adorno chama de decadente geralmente conduz os
ouvintes a um estado de êxtase eufórico que os impedem de racionalizar as
emoções e os momentos prazerosos que a música poderia lhes oferecer, tornando-
se cada vez mais cativos desse ritmo, pois, segundo Adorno:
87
ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais para o
emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão,
para a incapacidade de comunicação [...] preenche os vazios do silêncio
que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, e pela
docilidade de escravos sem exigências [...] essa nova consciência
musical se define pela negação do prazer no próprio prazer (ADORNO,
1991, p. 80-83).
Essa situação gera uma espécie de circulo vicioso: quanto mais esse
indivíduo consome esse tipo de música mais distante fica da realidade (ou pelo
menos tenta se esconder dela) e quanto mais distante, mais consome esse tipo de
música, o que torna mais difícil a possibilidade de agir para alterar essa ordem.
Assim os prazeres indicados pela música tornam-se reais” e esse tipo de música
passa a refletir uma sociedade composta por indivíduos que supostamente
“superam” os obstáculos com festas, danças e muita música, sejam elas profanas
ou religiosas que esse estilo musical tem sido apropriado por muitas igrejas na
pregação do evangelho.
Casamento perfeito: estilo musical que massifica e que contribui com o
afastamento da realidade, revestido por uma versão religiosa, que na letra se
diferencia do habitual profano” e que aponta para uma realidade alternativa que
supostamente é “superior”, “perfeita” e “eterna”.
Por detrás dessa situação está o lucro quase sempre alcançado pelo
mercado, o qual manipula tanto a atual produção de músicas populares urbanas no
Brasil (inclusive as de versões religiosas) como manipula também os ouvintes
que, de certa forma, são aniquilados por ele. Assim, a música popular urbana
brasileira se transforma, conforme o pensamento de Adorno, em instrumento de
alienação e controle social das massas populares e acrescenta-se: de pregação
88
religiosa que, nos últimos anos, tem alcançado também elementos pertencentes a
classes economicamente abastadas.
Contrapondo-se a essas concepções de Adorno, diversos estudos elaborados
a partir dos anos 1950, sobre a música popular, apontam uma outra função desse
estilo musical. Esses estudos não negam em sua essência que a música popular
pode ser utilizada como instrumento de alienação, mas demonstram que a mesma
pode ser também utilizada como instrumento de crítica à ordem social vigente.
Para comprovar essa tese, David Riesman, um dos primeiros teóricos da
música popular contemporânea a abordar essa vertente, destacou dois tipos de
ouvintes de música popular: o primeiro, descrito nas concepções de Adorno como
alienado, passivo e obediente à moda musical voltada para o comércio,
representaria a maioria dos ouvintes de sica popular urbana; o segundo,
opondo-se ao comportamento do primeiro é crítico, consciente, ativo e
revolucionário, disposto a transformar a ordem política, econômica e cio-
cultural (e aqui se inclui a ordem religiosa) que está em vigor. Esse novo ouvinte,
que representa a minoria, em geral faz parte dos setores jovens tanto dos extratos
médios como dos extratos populares das sociedades.
Essa concepção, segundo Napolitano (2002), foi apropriada pelos teóricos
da subcultura que super valorizavam essa minoria questionadora, a qual estava
diretamente ligada à produção e consumo do rock music ou da música pop
inglesa. Nessa vertente, a música popular urbana contemporânea torna-se
instrumento de crítica e por isso acaba sendo significativamente consumida entre
os setores jovens, que se negam a manifestarem-se politicamente de forma
convencional, utilizando a música popular urbana contemporânea para isso.
Nesse contexto, esse estilo musical não é produzido e ouvido unicamente
pela ótica do consumo; no entanto, se for consumido contribui com a proliferação
de sua nova função que é a de questionar o sistema e a partir de então transformá-
89
lo. Essa realidade, segundo Napolitano, gera “tensões” entre produtores musicais e
receptores uma vez que na verdade um tenta manipular a ação do outro.
No campo religioso, esse caráter crítico, questionador e revolucionário da
música popular urbana, discutido pelos teóricos da subcultura, pode ser
encontrado também em músicas religiosas que são compostas seguindo o padrão
dos ritmos populares (o gospel é um exemplo) uma vez que os fiéis estão em uma
constante batalha espiritual e para revolucionar (destruir as hostes do diabo e
instaurar o reino de Deus) é preciso cantar sobre a vitória de Cristo.
Conforme é percebido no discurso de muitos religiosos, em especial dos
neopentecostais, é preciso protestar contra as drogas, contra o sexo livre e sem
compromisso, contra a corrupção do pecado, contra a prisão dos vícios; enfim,
contra todas as artimanhas do diabo que aprisiona o ser humano, em especial os
jovens, em um mundo de pecado e nada melhor para atrair jovens e mantê-los na
igreja, aumentando assim não o número de fiéis como também o número de
soldados ou de “revolucionários do reino celeste”, do que uma música que incite
protesto, guerra ou revolução contra o diabo.
Analisando a abordagem da teoria das “subculturas”, Marcos Napolitano
(2002) pontua que mesmo sendo válida, ela não consegue anular completamente o
caráter de sica de consumo ou de massas dado por Adorno à música popular
urbana contemporânea. De certa forma, essa abordagem deixa transparecer que o
gosto pela música popular ainda é influenciado pelos ditames do mercado ou da
indústria cultural, fato que também pode ser percebido na esfera religiosa haja
visto que o corcio em torno de artigos religiosos, destacando-se a grande
produção e consumo de CDs evangélicos, tem sido extremamente lucrativo nos
últimos anos.
90
Ainda contrapondo-se à abordagem da teoria das subculturas”, estudos
realizados no início dos anos 1990
64
defendem que a produção e consumo de
música popular urbana contemporânea não apontam necessariamente ou
exclusivamente para uma postura de rebeldia, questionamento ou oposição.
Situações e comportamentos muito mais amplos e complexos estão em jogo uma
vez que compor, cantar e ouvir sica (em especial a música popular urbana
contemporânea), significa um “jogo” de ão e de interação entre os vários
elementos sócio-culturais e não somente uma atitude política ou comportamento
econômico como enfatizam as teorias anteriores.
Para se entender esse “jogo”, argumentam os adeptos dessa teoria, questões
como preferência musical pessoal, fatores relacionados à formação profissional
dos músicos, a diversificação social, educacional, étnica, religiosa e etária dos
ouvintes e compositores, bem como os diversos elementos de divulgação e
recepção de uma música devem ser cuidadosamente analisados, pois é a
conjugação desses fatores que determina o comportamento musical da sociedade.
Semelhante abordagem é apresentada por Richard Middleton (1997) ao
afirmar que os diversos comportamentos culturais, entre os quais se destaca a
música, não podem ser pensados exclusivamente como parte orgânica de extratos
ou classes sociais específicas, pois isso retiraria dos indivíduos que compõem os
diversos extratos sociais a prática de apropriações que inegavelmente ocorre no
interior de grupos específicos ou da sociedade como um todo.
Essas apropriações, explica Middleton, ocorrem a partir de um processo de
interação sociológica e são marcados por divergentes situações econômicas e
políticas. Para o autor, isso o significa que os diversos componentes culturais
64
A teoria das subculturas defendidas por Stuart Hall e Paddy Whannel passou a ser debatida e contraposta pelo
conceito de “cena musical” de Will Straw representando a sociologia da música da década de 1990. Keith Negus
(1999), comentando o conceito de “cena musical” afirma que “os textos culturais também constroem os grupos
sociais e não são apenas veículos neutros para identidades pré- existentes e estruturalmente determinadas”
(NAPOLITANO, 2002, p.30).
91
estejam relacionados a fatores especificamente poticos ou econômicos. Esses
componentes ou elementos culturais podem acerto ponto ser determinados por
tais fatores devido a forte articulação existente entre os mesmos, mas isso não
significa a completa redução dos elementos culturais às questões de classes ou
meramente econômicas e políticas. Assim, a questão tanto da composição como
do consumo musical deve ser pensada dentro do contexto das apropriações das
práticas e dos valores no seio das diversas sociedades, as quais são frutos da
contínua interação (conflituosa ou não) existente entre os membros que as
compõem.
Napolitano (2002) exemplifica a teoria de apropriações de Middleton
lembrando que no início da história da música popular urbana contemporânea
européia, as árias de óperas compostas conforme os padrões burgueses foram
significativamente apropriadas por camadas populares da sociedade, da mesma
forma que as elites dominantes se apropriaram de danças oriundas de estilos
populares como é o caso da valsa.
A teoria das apropriações culturais, de certa forma, também pode ser
percebida no atual comportamento musical de diversos grupos religiosos da
linhagem neopentecostal uma vez que os mesmos não se opõem ou rejeitam
ritmos musicais como rock, forró, pagode, samba, que durante muito tempo foram
por eles considerados como armas do diabo. Ocorre hoje, entre esses grupos
religiosos, a apropriação desses ritmos na composição de suas melodias de louvor,
fazendo com que os mesmos deixem de ser as “perigosas armas do inimigo” e
passem a ser importantes instrumentos tanto de evangelização como de
manutenção de seus fiéis em suas hostes conforme constata a canção Samba
Santo
65
65
Essa música corresponde à faixa 5 do CD Samba Santo do grupo Só Pra Abençoar gravado pela gravadora Fonte
da Vida Prodões que pertence à Igreja Apostólica Ministério Fonte da Vida de Goiânia e é uma composição de
92
Pra você que gosta de um bom pagode, sacode, sacode.
Pra você que gosta de um samba santo, eu canto, eu canto.
Pode vir junto com o SPA, esse é o som do Só Pra Abençoar.
Pode vir junto, vem pra cá, então segura que eu vou te ensinar.
Dê um passo pra frente e outro para trás, levante sua mão direita,
Dê um passo pra frente e outro para trás, levante sua mão esquerda,
Com as duas mãos louve ao Senhor, isso que é unção, isso que é louvor.
Vem pra cá e vem louvar com o Só Pra Abençoar,
Vem pra cá e vem louvar no Samba Santo do SPA
O Brasil é o ps do samba e do futebol, faça chuva ou faça sol.
O nosso samba é consagrado a Jesus, o caminho, a verdade e a luz.
Pra você que ta ouvindo esse samba santo abre seu coração porque Jesus te ama.
A letra desse “samba religioso” evidencia a concepção neopentecostal de
que se esses ritmos forem consagrados a deus em composições para fins religiosos
ou através de uma letra que o exalte eles poderão ser apropriados e utilizados
eficazmente pelo crente na luta contra o diabo, pois assim como Satanás age para
tornar profano” o que é “sagrado”, o crente também, pelo inspiração do Espírito
Santo, pode agir para tornar “sagrado” o que fora criado com objetivos “profanos
segundo afirmam os defensores desse comportamento musical. Neste contexto
ocorre a teoria das apropriações entre o cristianismo neopentecostal.
Em muitos aspectos, tanto a concepção adorniana sobre sica popular
como as concepções elaboradas após esse período, podem ser úteis ao se analisar
a utilização que as igrejas do movimento neopentecostal fazem de suas músicas.
Ricardo Gomes membro desta igreja. O nome do grupo denota uma forma de oposição ao grupo popular Pra
Contrariar e mesmo que em seu discurso o apostolo César Augusto, coordenador geral dessa instituição, condene
o uso indiscriminado de melodias populares conhecidas em composições religiosas por parte de outras igrejas,
esse CD contendo todas as faixas musicais compostas no ritmo de samba destacando algumas como a faixa 5
que possui frases rítmicas inteiras de canções do Grupo Pra Contrariar foi produzido por sua gravadora e é
divulgado no site de sua igreja.
93
Mesmo a despeito da suposta oposição existente entre essas abordagens, é
possível pontuar que elas se completam na análise desse objeto.
abordagem de Adorno é útil pois demonstra, com relevante autoridade, o
efeito “alienante” e “massificador que essa música religiosa com ritmos
populares contemporâneos tem exercido sobre os membros dessas comunidades,
ao mesmo tempo em que revela que os interesses do mercado ou do capital são
peças intrínsecas nessa engrenagem.
Não se pode ignorar que as abordagens das teorias das subculturas, que
defendem o caráter questionador e revolucionário desse estilo musical, também
revelam a ocorrência desse comportamento de oposição (que aplicado à ordem
espiritual vigente) tanto na composição como principalmente na apropriação que
as igrejas neopentecostais fazem de suas músicas, ao mesmo tempo em que
revelam rejeição à tradição religiosa herdada da cultura européia.
Certo é tamm que no seio desses movimentos religiosos ocorrem
apropriões de estilos musicais diversos; neste caso, conforme já foi pontuado, os
neopentecostais se apropriam de estilos musicais que, para eles foram criados pelo
“inimigo das almas” e que por isso são profanos. No entanto, tais estilos podem se
tornar sacros se forem “revestidos” por uma letra religiosa que esteja de acordo
com a palavra de Deus.
Nesse contexto de apropriações dos ritmos profanos, a música tem sido
grandemente consumida e utilizada como instrumento de evangelização pelos
grupos religiosos neopentecostais uma vez que exerce forte atração entre os
jovens, segundo demonstram em seus discursos religiosos.
Ao finalizar essa sessão, algumas observações, no entanto, ainda precisam
ser feitas a respeito dessas abordagens teóricas sobre a música popular urbana
contemporânea: Primeiro, a abordagem adorniana pode ser limitadora se utilizada
como verdade absoluta em estudos sobre a música popular urbana contemporânea,
94
inclusive a de versão religiosa, uma vez que favorece, como nenhuma outra
abordagem, a produção de conclusões dicotômicas ou polarizadas que tendem a
qualificar esse estilo musical, bem como os seus ouvintes como oriundos ou
pertencentes exclusivamente a extratos sociais economicamente desfavorecidos,
ou seja, esse estilo musical poderá ser enxergado de forma pejorativa como
música das pobres massas que são incapazes, devido à sua condição financeira e
falta de intelectualidade, de produzir música de qualidade como o fazem aqueles
que pertencem às classes economicamente abastadas.
Essa abordagem do filósofo alemão sobre a sica popular urbana que, em
alguns aspectos pode ser considerada um tanto quanto preconceituosa, pode
também se aplicada sem os devidos cuidados em estudos que visam discutir a
música religiosa reforçar a visão distorcida de que o fenômeno do
neopentecostalismo ocorre somente entre os setores de baixa renda das
sociedades; em outras palavras, que o neopentecostalismo é predominantemente
uma religião de pobres. Essa concepção negaria o caráter de fenômeno sócio-
cultural que tanto esse como outros movimentos religiosos possuem.
É claro que não se deve ignorar a grande adesão das classes populares ou de
classes menos favorecidas economicamente às religiões como as neopentecostais
que, entre outras coisas, pregam predominantemente a “libertação”, as “curas” e a
prosperidade financeira. Mas não se pode fechar os olhos para o alcance que tais
religiões tem atingido entre indivíduos oriundos da classe média, entre
intelectuais, políticos, artistas, desportistas e empresários, muitos dos quais
possuem significativa formação acadêmica, o que supostamente os tornariam
conscientes da possível manipulação e do mau uso da boa fé” de indivíduos, que
podem ocorrer em muitas instituições religiosas inclusive, entre as
neopentecostais.
95
Diante dessa realidade se faz necessário não utilizar as abordagens de
Adorno sobre a música popular urbana como verdade absoluta. Deve-se também,
sempre que possível, confrontá-las ou complementá-las com outras teorias sobre
esse mesmo tema.
A segunda observação que se deve enfocar refere-se às abordagens das
teorias das subculturas. Tais abordagens também podem ser exclusivistas no
sentido de caírem no engano de enxergar ou definir a música popular urbana
contemporânea apenas como um instrumento de rebeldia política ou um protesto
contra a ordem vigente, tanto do plano terreno como do plano espiritual, quando
referentes às sicas religiosas com ritmos populares contemporâneos.
Essa tendência pode também negar o aspecto de arte ou de entretenimento
social que a música possui, uma vez que ela é colocada quase que de forma
absoluta no plano político, ou seja, no extremo de tais concepções a música
popular urbana contemporânea seria enxergada como parte de um projeto político
de grupos rebeldes ou revolucionários e não como um comportamento artístico
cultural que também visa e promove o divertimento ou o simples louvor e
adoração, quando composta ou ouvida na esfera religiosa.
Por fim, a última observação refere-se às teorias das apropriações que,
conforme lembra Napolitano (2002) podem induzir conclusões extremamente
relativistas que denotam superficialidade no debate sobre aspectos culturais das
sociedades. Para se compreender melhor essa observação é válida a citação de
Napolitano afirmando que
Sem negar a liberdade individual, nas apropriações, temos que levar em
conta elementos estruturais mais amplos, que interferem nos hábitos
culturais subjetivos, como por exemplo, a organização da indústria
fonográfica dentro do sistema econômico como um todo
(NAPOLITANO, 2002, p.36),
96
e principalmente, na esfera de apropriações de ritmos populares em composições
religiosas, é preciso levar em conta a visão que a cristandade desenvolveu sobre
seu deus discutidas anteriormente que essas apropriações [...] tendem a se
mover dentro de um leque possível de ações, limitados por fatores estruturais
ainda que não determinados por eles (NAPOLITANO, 2002, p.36).
A música religiosa protestante no Brasil: da introdução à apropriação de
ritmos populares contemporâneos
O Brasil foi, durante os primeiros anos de sua ocupação, um lugar onde o
pensamento religioso influenciou de forma relevante a produção artística ou
cultural. Essa influência se dava principalmente no campo literário e musical.
Assim, as primeiras obras literárias desse país em geral eram escritas por
representantes da Igreja Católica e tinham um caráter eminentemente religioso.
Comportamento semelhante ocorria no campo da música, que comumente era
utilizada pelos jesuítas na catequização do indígena, fato a demonstrar que desde a
era colonial a música era útil como instrumento evangelizador. Ressalta-se que
nesse período sua forma estética ou seu ritmo seguia o estilo tradicional e erudito
europeu, nesse contexto, as missas e os motetes católicos dominavam de forma
geral (mas não exclusiva) o cenário musical brasileiro.
Com o avançar dos séculos, tanto a literatura como a música sofreram
influência do estilo profano” em sua forma estética e, segundo o que já foi
arrolado nas sessões anteriores, o estilo popular urbano conquistou significativo
espaço entre as composições musicais no país. No entanto, um outro tipo de
música começou lentamente a invadir esse cenário musical: trata-se da música
religiosa protestante que atualmente é genericamente conhecida como música
97
evangélica. Essa forma musical foi primeiramente trazida pelos holandeses
quando ocuparam o atual Estado de Pernambuco, instalando naquela região o
culto protestante que, segundo as considerações de Mendonça (1984), utilizavam
a música de forma massiva no processo de conversão.
O hino seguinte que, conforme afirma o hinário Salmo e Hinos, é
considerado o primeiro hino protestante cantado no Brasil quando da realização
do também primeiro culto protestante em terras brasileiras em 10 de março de
1557, exemplifica o padrão rítmico e melódico da hinologia protestante desse
período a qual em quase nada se alterou nos séculos subsequentes:
98
É importante ressaltar que mesmo a pesquisa histórica constatando a
chegada da música protestante no Brasil ainda no início da fase colonial o se
pode afirmar que a mesma tenha se estabelecido aqui nesse período porque com a
expulsão dos holandeses o pensamento religioso e o pensamento musical
protestante calvinista praticamente se esvaneceram no país.
99
Por volta do século XIX, com a lenta abertura religiosa, o cenário religioso
e conseqüentemente a música religiosa, começaram a sofrer lenta, no entanto, real
interferência do pensamento evangélico e com a laicização do Estado a partir da
República, todas as instâncias da sociedade sofreram grandes modificações”
(OLIVEIRA, 1997, p. 20).
Nesse contexto, religiosos de linhagens protestantes iam paulatinamente se
espalhando pelo Brasil, fundando igrejas que em sua liturgia utilizavam uma
música que diferia da música católica tanto na forma melódica, pois, diferente do
canto gregoriano, era mais harmoniosa e com andamento mais alegre, quanto em
suas letras, pois não faziam refencias à virgem Maria ou a qualquer santo
cultuado por aquela instituição. Além disso, a música nas cerimônias das igrejas
protestantes era utilizada de forma mais efetiva que entre os católicos uma vez que
a congregação de fiéis era incentivada a cantar como forma de aproximação e
adoração a Deus.
Para facilitar e efetivar essa prática litúrgica entre os protestantes era
necessário que os fiéis possuíssem o hinário. Percebendo essa necessidade o
missionário Robert Kalley e sua esposa Sara Kalley copilaram diversos hinos
protestantes que resultaram na publicação, em 1861, de uma coletânea de hinos,
considerada o núcleo formador da primeira edição de Salmos e Hinos –primeiro
hinário protestante em língua portuguesa para o Brasil –publicado em 1868.
O prefácio da quinta edição do Hinário Salmos e Hinos, publicada em
1975, afirma que a primeira edição dessa coletânea era composta por apenas
cinqüenta sicas das quais trinta e duas eram hinos e dezoito eram salmos. a
segunda edição dessa coletânea, publicada ainda em 1865, era composta por
cinqüenta e oito hinos e vinte e oito salmos. Dessas oitenta e três músicas, setenta
e seis formaram a primeira edição de Salmos e Hinos em 1868, que nesse período
foi intitulado Música Sacra arranjada para quatro vozes.
100
O hino e salmo que se seguem
66
, o primeiro adaptado metricamente por
Sarah Kalley em 1865 e o segundo adaptado textualmente por Robert Kalley entre
1842 e 1846, estiveram presentes nessa primeira edição de Salmos e Hinos.
66
Esses hinos ao serem publicados na quinta edição desse hinário em 1975, de onde foram retirados para ilustrarem
esse tópico, sofreram alterações apenas em sua tonalidade visando facilitar o canto congregacional; a letra e forma
rítmica/melódica permaneceram, nessa edição, no mesmo padrão da que fôra publicada na primeira edição desse
hinário segundo consta no prefácio de sua quinta edição:
101
Ressalte-se ainda que esse Hinário é considerado o marco inicial da música
protestante ou evangélica no país.
102
Em 1889 foi publicada a segunda edição de Salmos e Hinos, agora com um
total de duzentos e trinta hinos e dez anos mais tarde saiu sua terceira edição com
exatamente quinhentos hinos. Em 1919 uma nova edição desse hinário contendo
seiscentos e oito tulos foi entregue aos professos do protestantismo brasileiro
e finalmente, em 1975 foi lançado, sua quinta, e até então última edição, revista e
ampliada, contendo seiscentos e cinqüenta e dois títulos entre os quais vinte e oito
são salmos, seiscentos e vinte e dois são hinos, vinte e sete pequenos coros
doxológicos, todos agrupados e identificados como o título nº 651, e doze Améns,
todos também agrupados e identificados sob um único título: o nº 652 desse
hinário.
Inúmeras músicas desse hinário – hinos, salmos, doxologias e améns –
considerado como o marco inicial da música protestante ou evangélica no Brasil
são ainda hoje conhecidas e cantadas nas mais diversas igrejas de linhagem
protestante do país, comprovando sua importância na difusão da música
evangélica neste território.
Ressalte-se ainda que a partir desse hinário outros foram sendo publicados,
conforme a necessidade de se adequar a letra das músicas à doutrina das diversas
denominações protestantes que iam se organizando ou se reformulando, como as
pentecostais que como se sabe pregavam o derramamento do Espírito Santo e
um culto mais emotivo ou espiritual, fato que justificava algumas alterações tanto
nas letras como nas melodias de alguns hinos presentes no Salmos e Hinos, ao
mesmo tempo em que justificava a composição de novas músicas.
Outro elemento importante na difusão da música evangélica no Brasil foi o
canto coral, comumente praticado no meio protestante, em especial entre os
denominados protestantes históricos. Não se pode datar com exatidão a sua
introdução nas igrejas brasileiras uma vez que a primeira publicação para esse
103
estilo musical só ocorreu em 1931, com a publicação de Coros Sacros, fruto do
trabalho do batista Arthur Lakschvitz, conforme pontua Mendonça (1984).
Essa data, no entanto, não deve servir de parâmetro para se concluir que o
canto coral das igrejas protestantes tenha chegado ao Brasil nos anos de 1930
uma vez que essa prática era comum nas “matrizes” das igrejas protestantes
fundadas no Brasil e, além disso, temos o fato de que todas as edições do hinário
Salmos e Hinos continham músicas para quatro vozes como as que provavelmente
poderiam ser utilizadas na organização de corais.
Um exemplo de que muitas músicas do hinário Salmos e Hinos poderiam
ser aproveitados para o canto coral é o hino nº 73 Vinde Fiéis, presente nas três
67
últimas edições desse hinário, que ainda hoje é cantado por inúmeros corais
protestantes por ser uma canção natalina, como pode ser observado em sua letra e
composição rítmica/melódica:
67
O prefácio da quinta edição de Salmos e Hinos explica que na melodia original desse hino Robert Kalley aplicou
uma letra que inspirava gratidão dos crentes a Deus pela salvação em Cristo. Essa melodia com essa letra de
gratidão foi cantada por Kalley em sua obra missionária na Ilha das madeiras e foi também um dos primeiros hinos
cantados em português no Brasil por esse missionário e esteve presente nas primeiras edições do hinário Salmos e
Hinos, entretanto, visando evitar melodias repetidas essa letra foi aplicada em uma outra melodia na quinta edição
desse hinário já que a mesma estava presente em canções natalinas desse hinário.
104
Mendonça (1984) argumenta que outro momento importante para a música
protestante ou evangélica no Brasil foi a década de 1940, quando a missionária
105
presbiteriana Evelina Harper organizou a Caravana Evangélica Musical que
percorreu o país, realizando diversas apresentações de corais compostos por
alunos e professores do Instituto José Manuel da Conceição, onde era diretora de
música. Esses corais apresentavam um variado repertório de músicas sacras: desde
as clássicas até as consideradas mais modernas composições contidas no Hinário
Salmos e Hinos.
Observa-se aqui a utilização da música como um instrumento de
evangelização já que o objetivo dessa caravana era difundir o evangelho pelo país
através da apresentação de corais, uma vez que seria muito maiscil atrair
ouvintes para apresentações musicais do que atraí-los para a pregação da palavra,
pois a apresentação do coral poderia ser considerada a princípio como um evento
cultural e não meramente religioso.
Uma vez estando presente, o ouvinte do coral teria contato com a
mensagem protestante tanto pela letra das músicas como pela breve pregação ou
testemunho realizado pelos componentes dos corais e por seus acompanhantes que
com certeza possuíam o “espírito missionário”.
Destaca-se ainda que essa tática missionária, que visa atrair novos
conversos através de apresentações musicais, tem sido atualmente excessivamente
praticada e, acrescente-se, com sucesso significativo, por igrejas neopentecostais.
Ressalte-se, porém, que a forma e estilo musical escolhido o é mais a do
canto-coral e sim a dos shows de bandas e grupos gospel ou de grupos de música
pop cristã, o que inclui tanto ritmos populares urbanos como rurais, uma vez que
os mesmos são atrativos, pois é permitida a participação coletiva e ativa de todos
os presentes que não só podem cantar, juntamente com o grupo que está se
apresentando, como podem também gritar, bater palmas efusivamente e inclusive
dançar para Jesus como afirmam seus freqüentadores.
106
Esse comportamento acaba sendo atrativo e revela ao candidato à
conversão, que seguir Jesus e ser membro da igreja que promove esse tipo de
evento não significa mais uma vida sem prazeres e alegrias e que a música pode
oferecer um novo modo de ser cristão ao mesmo tempo sugerindo que as
mudanças a serem assumidas pelo converso não são tão radicais que no mínimo
ele pode tocar, cantar e dançar o mesmo ritmo musical de antes de sua conversão,
só que agora em louvor a Jesus.
A década de 1950, segundo Mendonça (1984), também foi relevante para a
história da música evangélica no Brasil. Inspirado pelo trabalho musical
missionário de Harper, o músico João Wilson Faustini publicou em 1958 o
volume 1 da coleção Os Céus Proclamam, uma coletânea de cinco volumes
composta por hinos de linhagem tanto tradicional como por peças mais modernas
de andamento mais alegre e ritmo um pouco mais acentuado, que em geral eram
de sua autoria, sem no entanto descartar hinos de autoria de outros músicos
protestantes. Mendonça (1984), afirma que nessa coletânea, Faustini introduziu
também alguns responsos, ofertórios, intróitos e améns que visavam dinamizar a
liturgia do culto protestante.
Destaca-se também, na história da música evanlica brasileira o papel
desempenhado pela igreja Adventista do Sétimo Dia e da Confederação
Evangélica do Brasil. A primeira publicou um hirio em língua portuguesa em
1914 contendo trezentos e vinte e um hinos em forma textual
68
, ou seja, as
letras sem a partitura denominado Cantai ao Senhor, em 1933 esse mesmo hinário
foi publicado com o nome Hinário Adventista, contendo as partituras de todas as
68
Segundo o prefácio da terceira edição desse hinário a maioria das músicas dessa primeira edição eram
conhecidas graças ao hinário Salmos e Hinos tornando desnecessário nesse momento a publicação das partituras
pois a grande preocupação era a divulgação de letras adequadas à doutrina Adventista que entre outros aspectos se
difere das demais já que semelhante ao judaismo se abstêm de atividades seculares no dia de sábado, conforme
ordena o quarto mandamento do Decálogo e por isso era necessário hinos que falassem sobre esse dia considerado
sagrado.
107
músicas, e em 1955 publicou o hinário Melodias de Vitória que deveria ser
específico para cultos da juventude cristã. A segunda publicou em 1942 o Hinário
Evangélico que continha duzentos e trinta e dois hinos, o qual foi adotado
oficialmente apenas pelas Igrejas Metodistas, apesar de ter sido utilizado
periodicamente por inúmeras outras denominações protestantes.
Atualmente, mesmo que a maior parte das músicas seja a mesma, as
diversas igrejas protestantes históricas, pentecostais ou neopentecostais
possuem cada uma o seu próprio hinário que se faz necessário modificar as
letras dos hinos conforme a doutrina de cada denominação.
Mesmo tendo sido significativamente relevante, tanto na introdução como
na difusão da música evangélica no Brasil, observa-se atualmente, conforme
Yamada
69
um declínio no uso e valorização dos hinários evangélicos, estando a
prioridade voltada para os corinhos e os conjuntos instrumentais com
ritmos populares [...] o sentido da liturgia com prioridade
antropocêntrica e hedonista, tem modificado o sentido do culto. Sua
forma e a liberdade da música é que chamam a atenção para o
comparecimento do crente e não a doutrina da Igreja (YAMADA, 1998,
p. 25-26).
Esse declínio do uso dos hinários, apontado por Yamada (1998) é fruto da
lenta e gradual apropriação de ritmos populares contemporâneos em composições
musicais religiosas. Esse novo comportamento musical é um fenômeno que atinge
não só as igrejas neopentecostais, consideradas como as idealizadoras dessa
prática musical, como atinge também, em menor escala, muitas igrejas do
protestantismo histórico.
69
Dilma Barbosa Yamada é musicista e mestre em Arte Publiciria e Produção Simbólica pela USP em convênio
com a UFG e atualmente dirige o departamento de música do Centro Cultural Gustav Hitter, em Goiânia.
108
A segunda metade do século XX, com todas as suas contradições e
alterações da ordem vigente, foi o momento histórico do início da ocorrência
dessa modificação ou transformação da música religiosa em muitas igrejas de
confissões protestantes e até mesmo em muitas comunidades católicas.
Esse período no Brasil coincidiu tanto com a fase de proliferação das
igrejas pentecostais e formação das igrejas neopentecostais como coincidiu
também, com o período de reformulação” de práticas litúrgicas e de
“relaxamento” de rigidez comportamental, ocorridos ou como fruto das
transformações sócio-culturais do período ou como adequação para se manter os
fiéis em muitas denominações tradicionais, a saber: algumas ramificações das
igrejas batistas, presbiterianas e católicas; exemplo, o movimento carismático.
Nesse contexto, o estilo musical popular urbano contemporâneo que passou
a predominar nessas igrejas foi a prinpio o rock; porém, com a efetivação e
crescimento da vertente neopentecostal, outros ritmos populares contemporâneos
urbanos e rurais conquistaram predominantemente o cenário musical religioso.
Assim, tornou-se comum ouvir atualmente “o pagode do senhor”, o axé de
Cristo”, “o forró do senhor”, o “xote santo”, o “samba santo” e tantos outros
estilos musicais populares com versões religiosas nos cultos e eventos de
inúmeras igrejas cristãs espalhadas tanto na cidade de Goiânia como no restante
do Estado e do Brasil conforme exemplifica a canção seguinte composta melódica
e ritmicamente no estilo do samba e textualmente no padrão religioso
neopentecostal:
Crente Fiel
70
O crente tem que ser fiel, pra carimbar seu passaporte pro céu
O crente tem que andar na luz pra ser a imagem de Jesus
70
Essa música corresponde à faixa 11 do CD Samba Santo do grupo Só Pra Abençoar.
109
Vou te contar do crente celular, está sempre desligado ou ta fora do ar.
Vou te cantar do crente cabrito,ta sempre pulando cerca eu te digo: esse crente não
dá!
E tem o crente coco-da-Bahia não se humilha por nada quebra na pancada, e tem o
crente que tem no bolso um escorpião na hora de ofertar nem põe a o, e o dízimo
então?
E também tem o crente dinamite explode e vive dando seus chiliques e tem aquele crente
profundo, um pé na igreja e o outro ta no mundo, e o buraco é tão fundo.
Mas graças à Deus tem o crente verdadeiro, de benção está cheio o seu celeiro. Todo
crente que à Deus é fiel vai morar, vai morar com Cristo lá no céu.
Muitos fatores podem ter contribuído para essa alteração estética da música
religiosa; contudo, para se compreender esse processo é relevante refletir sobre
três fatos: primeiro esse estilo musical atende a nova proposta de adoração
pentecostal que reflete a cosmovisão imanente de Deus e se caracteriza pela
informalidade festiva, pela emoção e pelo êxtase, que pode conduzir à alienação
do indivíduo; segundo, não se pode ignorar que no bojo dessa transformação do
comportamento religioso, que altera a composição musical das igrejas, está
também a busca das “raízes” ou das identidades culturais; e terceiro, essas
alterações estão também inseridas na lógica capitalista uma vez que as músicas
religiosas com ritmos populares atendem aos ditames do mercado musical, pois
são “fácil e rapidamente” consumidas.
Analisando o primeiro aspecto é possível observar que a informalidade e a
festividade da adoração neopentecostal é um referencial na espiritualidade do
seguidor desse movimento que “enxerga” Deus não como um ser distante,
transcendente mas sim como um Deus próximo ou imanente. Para esse fiel,
adorar espontaneamente ao Senhor, livre das formalidades e do cerimonialismo
110
presentes em igrejas tradicionais, é uma das provas contundentes da manifestação
ou atuação do Espírito na vida do crente.
Observa-se no discurso do seguidor do neopentecostalismo que louvar a
Deus com uma sica alegre, ritmada e festiva não o aproxima de Deus como
também o dignifica a receber as bênçãos divinas, ao mesmo tempo em que o
afasta dos poderes ou interfencias do diabo.
Esse tipo de louvor, conforme argumentam os seguidores desse movimento,
faz calar o demônio, enche a atmosfera do poder do Espírito além de fazer com
que o ambiente fique repleto de anjos de Deus, o que contribui com o exorcismo
tão comum em cerimônias neopentecostais, ao mesmo tempo em que promove
um descarrego espiritual preparando a alma para iniciar a mais íntima comunhão
com Deus.
A citação que se segue do escritor neopentecostal Judson Cornwall, em
seu livro Adoração como Jesus ensinou, expressa de maneira muito clara essa
postura e concepção dos neopentecostais a respeito do louvor festivo quando
afirma:
que vigor e conforto espiritual recebemos quando, em meio a adoração,
nosso espírito tem contato com o espírito de Deus! momentos em que
nosso espírito parece assumir o controle de todo o nosso ser e se acha
tão achegado ao Espírito de Deus, que temos a impressão de estar tendo
uma experiência fora do corpo [...] a adoração não libera apenas o
espírito do adorador, ela é um meio pelo qual a nossa alma também pode
extravasar-se. Na presença do Senhor liberamos as emoções reprimidas
durante longo tempo (CORNWALL, 1995, p. 101).
É possível observar ainda no discurso de um crente neopentecostal que a
música com ritmos populares contemporâneo é fortemente adotada nas igrejas
111
neopentecostais porque elas induzem ao louvor alegre jubiloso ou festivo
ordenado na Bíblia, no livro de Salmos, onde se em inúmeros versículos que o
povo de Deus deve adorá-lo com uma variedade de instrumentos, de ritmos, ao
som de harpas, saltérios, tambores, cordas, instrumentos de percussão, palmas,
danças, etc. Assim esse estilo musical agrada a Deus, e estando Deus feliz com
seu povo, obviamente irá abençoá-lo abundantemente.
Na visão de um crente neopentecostal o louvor ou canto jubiloso, festivo e
ritmado é cumprimento a uma ordenança bíblica e desrespeitá-la aponta para a
frieza espiritual, para a falta de conversão e principalmente para o não
derramamento do Espírito na vida do crente e da igreja. No outro extremo, “cantar
com bilo ao Senhor” denota riqueza espiritual e, mais ainda, é prova de que os
membros dessa comunidade receberam, estão recebendo e receberão de forma
abundante o tão almejado batismo do Espírito Santo (Deus imanente), fato que os
habilita tanto para a pregação como para a salvação eterna e celestial.
Muitos ainda atribuem ao louvor festivo a capacidade de renovação
espiritual; para eles esse estilo de louvor marca o início de uma nova vida, sendo
um momento sagrado na existência do crente.
Para os neopentecostais, as igrejas que o louvam ou cantam à Deus de
forma jubilosa ou fervorosa, que para eles é sinônimo da utilização de música com
ritmos acentuados e populares, não só está destituída do poder do Espírito, como é
também uma igreja morta; portanto, não serve como guia às mansões celestiais.
Observando o comportamento festivo do culto neopentecostal, Dorneles
(2003) afirma que para eles essa celebração corresponde ao momento de unidade
espiritual. É essa unidade, proporcionada pelo louvor festivo, alegre e espontâneo,
que os preparam para o recebimento dos “dons do Espírito Santo”. Dorneles
(2003) argumenta ainda que a música neopentecostal “impregnada de ritmo e
112
adaptada á cultura popular, amplia os espaços para o florescimento das
experiências místicas”(DORNELES, 2003, p. 108).
Segundo o autor, esse comportamento emotivo e propício ao êxtase, presente nos
cultos neopentecostais, é conseqüência da utilização da música com ritmo popular
contemporâneo em seus mais variados estilos que com uma letra espiritual”
que reflete o corpo doutrinário da denominação e que, vale a pena ressaltar, é
bastante apelativa e ilusória, pois, em geral, aponta para a vitória do crente nos
mais variados campos de sua vida, bastando crer e seguir as orientações da “sua”
Igreja.
Passando para a reflexão do segundo fator anteriormente mencionado, o fato
de as músicas religiosas com ritmos populares, estarem também inseridas na
busca das identidades e da autonomia cultural, observa-se que a inserção dos
ritmos populares nas músicas cantadas em muitas das emergentes igrejas
protestantes “reformuladas” e até entre facções católicas, ocorreu paralelo ao
movimento de contracultura da segunda metade do século XX, quando diversos
grupos sociais, entre os quais se destacava a juventude, desenvolveram um
comportamento de rejeição à tradição, aos dogmas e ao preconceito.
Essa rejeição, entendida por muitos como rebeldia, foi fortemente refletida na
produção musical popular, quando se difundiu o protesto através da música, sendo
o rock um dos seus carros-chefes, conforme já pontuado em tópicos anteriores.
No campo religioso da América Latina, ocorreu, então, uma forte negação ao
estilo tradicional de culto e adoração, herdados da cultura norte-americana ou da
cultura européia e, conforme aponta Dorneles (2003), nas últimas décadas do
século XX as diversas nacionalidades, especialmente as nacionalidades latino-
americanas, anseiam por uma prática cultual mais próxima de suas raízes
culturais” (DORNELES, 2003, p.108).
113
Essa situação está relacionada ao fato de que as religiões, conforme aponta a
sociologia dukheimeana, são fortes elos que promovem tanto a integração como a
afirmação das identidades no interior dos grupos sociais. Elas dão ao indivíduo
um senso de pertencimento que é relativamente significativo na formação das
identidades.
Para que a formação das identidades ocorra é preciso que se estabeleçam
tanto as diferenças como as semelhanças. Larrain Ibañes
71
(1996) aponta que as
identidades se firmam em momentos de crises ou de confronto. Elementos
definidores de identidades são retomados e firmados em um grupo quando
defrontados ou ameaçados por outros diferentes.
O autor também argumenta que a identidade é seletiva e excludente, sendo
capaz de definir os elementos que devem permanecer ou que devem ser excluídos.
Ela é também o confronto entre a unidade e a diferença. Nesse processo, prioriza-
se a semelhança em detrimento da diversidade; assim ocorre a homogeneização de
valores do grupo e aqueles que não os pratica ou a eles não se adaptam são
marginalizados no processo ou simplesmente excluídos do grupo.
O período histórico em que ocorreu tanto a difusão de diversas denominações
da linhagem pentecostal, predecessoras do movimento neopentecostal, quanto a
introdução de ritmos populares em composições musicais religiosas foi marcado
também pela ocorrência do movimento de contracultura que entre outras coisas
refletia a rejeição ou a exclusão de antigos padrões, ao mesmo tempo em que
refletia a busca identitária de incontáveis grupos adeptos a esse movimento.
Mesmo que algumas ramificações do movimento de contracultura, como
exemplo os hippes, rejeitassem ou exclssem de seu cotidiano muitos
ensinamentos religiosos ou cristãos, os princípios de autonomia, de autenticidade
71
Teórico chileno que discute a questão das identidades na América Latina, autor de inúmeras obras entre as
quais se destacam Modernidad, Razión e Identidad en América Latina, na qual se fundamentou essa parte do
trabalho.
114
e de liberdade nas imeras formas de expressão, que permeavam esse
movimento, acabaram influenciando o comportamento religioso de vários extratos
da sociedade norte-americana e latino-americana. Na sociedade norte-americana é
possível perceber o fortalecimento do movimento spirituals entre os grupos
religiosos negros, cuja música refletia também os estilos musicais de origem negra
como jazz, blues,etc.
No caso latino americano não ocorreu uma negação ou rejeição do
cristianismo, padrão religioso europeu, ou rejeição ao protestantismo norte-
americano que se espalhou por esse continente, apenas se “criou”, ou buscou-se
definir uma maneira própria de expressar essas diversas manifestações do
cristianismo e uma música religiosa entoada conforme os padrões tmicos ou
musicais desses povos acabou se transformando, ao longo dos anos, na forma
mais contundente dessa expressão.
Observa-se, a partir de então, uma forte reformulação do estilo musical
religioso a fim de adaptá-lo à nova realidade vivida no mundo. Sandro Baggio,
adepto e estudioso do neopentecostalismo, afirma que esses novos estilos de
música religiosa das comunidades neopentecostais e carismáticas são “apenas
uma forma de adaptar o louvor e a adoração às formas e estilos contemporâneos
[...] a música cristã contemporânea nasceu do movimento de contracultura dos
anos 60” (BAGGIO, 1997, p. 40).
Darino (1992), também adepto e estudioso do pentecostalismo, acredita que a
perda de espaço das religiões tradicionais na América Latina (leia-se aqui
católicos e protestantes históricos) é causada principalmente pela inexistência de
um aparato litúrgico que se identifique ou que pelo menos reflita os valores ou
costumes dos povos dessa região.
O autor argumenta ainda que os primeiros sinais de mudança na forma de
adoração dos cristãos neste continente começaram a ser percebidos a partir dos
115
anos de 1960 graças à manifestação de grupos dedicados à manutenção dos
valores culturais da região que entre outras coisas questionavam “porque usar o
órgão e o piano para adorar a Deus, se o que nos caracteriza é o violão, quenas,
bumbos e outros, tanto de sopro quanto de percussão? Por que seguir as práticas
cultuais de outras culturas e não a nossa?”(DARINO, 1992, p. 87).
Nesse contexto, em muitos lugares do continente sul americano difundiu-se e
ainda difunde-se o pensamento de que cada povo deveria definir sua forma
litúrgica e sua maneira de adorar a Deus conforme seus próprios padrões culturais,
pois essa seria a única forma adequada ou ideal de se prestar culto ao criador.
Diante do exposto, o se pode ignorar o fato de que essa forma festiva de
adoração pentecostal, que propiciou a alteração da forma estética da música
religiosa, introduzindo ritmos populares nos mais variados estilos, esteja inserida
no contexto de busca e de firmação de identidades culturais.
Analisando o último dos três fatos anteriormente mencionados, o lado
comercial desse estilo de música religiosa, é preciso lembrar que a música, entre
outras coisas, atua também como mecanismo que favorece a interlocução entre as
pessoas, refletindo aquilo que elas valorizam ou aquilo que elas rejeitam. É
importante também lembrar que, em geral, essa valorização ou rejeição acaba
exercendo forte influência no consumo dos indivíduos.
Nesse sentido, conforme analisa Yamada, “a música religiosa [...] passa
pelo mesmo caminho percorrido pelos bens de consumo” (YAMADA,1998, p. 33)
uma vez que os indivíduos que compõem o grupo social consomem aquilo que
para eles é valioso ou aquilo que a mídia e os diversos mecanismos que agem para
determinar o comportamento desses indivíduos ou das sociedades lhes fazem
acreditar ser de valor.
Assim, muitas denominações neopentecostais não só em Goiânia, mas
também em todo o país estão recorrendo a diversos mecanismos de mídia e
116
propaganda no afã de divulgar sua doutrina ou sua fé. Nesse cenário, um dos
elementos mais fáceis de serem projetados no mercado é o musical, pois além de
ser o mais propício à atratividade, já que a música é considerada pela sabedoria
popular como a linguagem do coração ou da alma, também age como elo de
interação entre indivíduos.
No entanto, mesmo que a música, de forma geral, possua essas características
de liberação de emoções e sentimentos ou de elo de união e interação entre os
homens, ao ser lançada no mercado precisa no mínimo estar de acordo com o
“gosto” dos indivíduos, mesmo que esse gosto seja fruto da manipulação da
mídia, ou, pelo menos, precisa questionar ou depreciar algo que é rejeitado pela
sociedade, mesmo que essa rejeição também seja fruto de uma manipulação dos
meios de comunicação ou dos meios de controle ideológico.
Assim, para divulgar suas crenças religiosas através da música, muitas
denominações neopentecostais entendem que precisam adaptar suas músicas ao
gosto vigente na sociedade. Como isso não pode ser feito na esfera da letra, pois
essa precisa ter um conteúdo que relate a mensagem evangélica, então que seja
feito na esfera rítmica, pois assim, ela será ao mesmo tempo melhor apreciada,
mais atrativa e, conseqüentemente, se melhor consumida, alcançando os
objetivos propostos que justificam a sua composição, a sua gravação e o seu
lançamento, a saber: conquistar o mercado consumidor, a fim de que tanto o
evangelho como os valores e práticas da igreja sejam amplamente divulgados para
atrair, conquistar e manter novos seguidores no “reino de Deus”.
Com isso, os ritmos populares contemporâneos urbanos ou rurais acabam
sendo os mais adotados na atual composição da música religiosa no país e em
especial em Goiânia. E esse aspecto de música de cil consumo, somado aos
demais analisados nesta pesquisa, está transformando esse segmento musical no
117
mais forte e talvez no mais importante instrumento de conversão neopentecostal
na atualidade.
Comprovando essa tese, temos a ocorrência de inúmeros “mega” eventos de
apresentação de música religiosa ocorridos tanto no restante do país como também
nesta capital e adjacências. Como exemplos desses eventos, registra-se a
apresentação do cantor gospel norte-americano W. Smith no final do mês de
agosto de 2005 em Goiânia, no Goiânia Arena, superlotado, quando o cantor teve
uma recepção digna dos grandes astros da música; e o Adora Canêdo, realizado no
início do mês de setembro do mesmo ano na cidade de Senador Canedo, que
aglutinaram cada um, não só milhares de religiosos da linhagem protestante,
histórica, pentecostal e principalmente neopentecostal e do movimento
carismático católico mas, também, reuniram inúmeras pessoas que foram atraídas
por esse estilo musical ou que foram convidadas por religiosos para ouvirem a
palavra de Deus através da música.
Além da constante ocorrência desses mega eventos musicais, essa tese pode
ser comprovada tanto pela observação das práticas litúrgicas e do discurso
religioso de inúmeras denominações neopentecostais como pode também ser
comprovada por depoimento ou testemunho de seguidores desse movimento,
entrevistados durante a realização dessa pesquisa como será demonstrado no
capítulo que se segue.
118
CAPÍTULO III
“CANTAI COM JÚBILO AO SENHOR”: A AÇÃO MUSICAL
NEOPENTECOSTAL EM GOIÂNIA
O Movimento Pentecostal e seu estabelecimento no Brasil.
É consenso entre a grande maioria dos pesquisadores das ciências humanas
que a história ocidental moderna, graças ao grande desenvolvimento técnico e
científico que se iniciou a partir da era moderna, vem assistindo lenta e
gradualmente à ascensão da razão e da “verdade científica” em detrimento da e
da supertição, que predominavam na era medieval. O apogeu dessa nova
perspectiva pautada pela razão ocorreu nos culos XVIII e XIX, quando
pensadores iluministas e cientistas das mais diversas áreas colocavam em xeque
ensinamentos até então considerados como verdades absolutas.
A partir de Darwin, o evolucionismo floresceu e o pensamento
eminentemente religioso, que ordenava e explicava todos os acontecimentos,
começou a sucumbir cada vez mais diante da experimentação científica. Esperava-
se, pelo menos no meio científico, que nascesse uma nova era na história do
ocidente, livre dos mitos e do ascetismo religioso; em outras palavras, esperava-se
uma era em que as sociedades se organizassem pelas diretrizes da razão e da
lógica científica, uma sociedade em que Deus estivesse morto
72
.
Observa-se, entretanto, que o inverso aconteceu; paradoxalmente, essa
sociedade cientificista e racional, livre de dogmas religiosos, favoreceu - graças
72
O fisofo Friedrich Nietzsche, considerado por muitos como um dos arautos da pós-modernidade, ficou
conhecido por sua celebre expressão Deus está morto. Filho e neto de pastor luterano, Nietzsche abandonou a fé
ainda jovem e suas idéias filosóficas influenciaram importantes pensadores como Foucault e Jacques Derrida
119
entre outras coisas à sua impessoalidade e competitividade - o resgate da
religiosidade humana.
Paralelo ao avanço cada vez mais acentuado da ciência, que hoje é capaz de
clonar seres vivos e de apresentar em toda sua complexidade o código genético
humano (genoma), ocorre a retomada do fervor religioso extremamente pautado
na emoção, na supertição e em alguns casos no mito.
Essa retomada do fervor religioso, que se iniciou no período de transição do
século XIX para o XX e que se acentuou nas últimas décadas do culo passado,
tem no movimento pentecostal, em especial nos grupos neopentecostais, sua
maior expressão. Inspirado no reavivamento pregado por Wesley no século XVIII
período em que a economia industrial com todas as suas contradições se
consolidava na Inglaterra o pentecostalismo ou movimento pentecostal é fruto
da incorporação de elementos da cultura popular no culto cristão o qual “enche as
igrejas, enfatiza os dons do Espírito Santo e provoca mudanças radicais na
liturgia tradicional (DORNELES, 2003, p. 73) e que são percebidas
principalmente em sua música, que é significativamente caracterizada pela adoção
de ritmos populares contemporâneos urbanos ou rurais em sua estrutura melódica
e por uma composição textual (letra) que reflete a cosmovisão imanente de Deus.
O movimento pentecostal, segundo Burgess, caracteriza-se
fundamentalmente por apresentar excessiva ênfase na experiência religiosa
baseada na subjetividade bem como pela adoração exuberante (BURGESS e
MC GEE, 1988, p.5). A grande maioria dos pesquisadores do pentecostalismo
concorda que esse movimento, apesar de ter sido instituído por volta de 1906,
portanto no início do século XX, possui suas rzes no movimento de
reavivamento do século XIX, que se originou entre os anos 1840 e 1850 nos
Estados Unidos. Esse movimento era em sua essência uma tentativa de
120
preservão e propagação das teorias de John Wesley (século XVIII), referente à
santificação total do crente e à perfeição da vida cristã.
Mesmo que o pentecostalismo em muitos aspectos se distancie dos
ensinamentos de Wesley
73
, é possível encontrar alguns pontos de contato entre
eles, como a dimensão emocional da experiência religiosa e a preocupação com a
restauração da fé apostólica.
As constantes transformações pelas quais passaram o pentecostalismo,
“mundial” e brasileiro, fizeram com que os pesquisadores desse fenômeno
religioso dividissem sua história no Brasil em períodos distintos, de acordo com
seu estabelecimento e com as transformações pelas quais passaram. Com essas
divisões, as igrejas pentecostais são enquadradas em grupos distintos. A divisão
mais utilizada atualmente no meio acadêmico é apresentada por Freston (1996)
que divide a história desse movimento em três ondas.
A primeira refere-se à fase de chegada e estabelecimento do
pentecostalismo no Brasil. Para Freston (1996), essa fase inicia-se com a própria
fundação das Igrejas Congregação Cristã e Assembléia de Deus
74
. Segundo o
autor, essas igrejas reinaram absolutas no Brasil até o final da década de 1940,
pois eram majoritárias e as únicas a se expandirem por diversos Estados da
Federação. Freston, ao enquadrar nessa onda essas duas denominações e ao
considerar que as mesmas monopolizavam a fé pentecostal no Brasil durante esse
período, não nega a exisncia de outras pequenas denominações ou igrejas
pentecostais; apenas evidencia que essas igrejas não limitaram suas práticas
proselitistas apenas ao Estado ou cidade em que primeiro se organizaram, como
73
Esse distanciamento gera diferenças significativas entre ambos ensinamentos. Enquanto Wesley priorizava os
frutos do Espírito Santo para se alcançar à santificação, os ensinamentos pentecostais priorizam os dons do espírito;
outro ponto de diferenciação e que os pentecostais priorizam é o poder curador concedido pelo espírito, enquanto
Wesley priorizava o poder santificador do espírito.
74
A Igreja Assembléia de Deus é uma das que mais se apropria de ritmos populares rurais em suas composições
musicais, essa igreja rejeita o ritmo do rock mas no entanto o estilo sertanejo, caipira e amesmo o forró estão
presentes em suas músicas de louvor.
121
ocorreu com a Igreja Batista Independente, fundada em 1912 no Rio Grande do
Sul, que por décadas esteve presente somente nesta região.
A Congregação Crise especialmente a Assembléia de Deus deslocaram-
se do eixo Rio e São Paulo e expandiram-se por quase todo o Brasil, sendo por
isso praticamente as únicas enquadradas nessa “primeira onda”. Ressalta-se ainda
que essas igrejas são também comumente designadas como igrejas do
pentecostalismo clássico.
A segunda onda refere-se às igrejas fundadas no Brasil a partir da década de
1950, como fruto da ação da Cruzada Nacional de Evangelização, que se
constituiria no braço evangelístico do Evangelho Quadrangular(MARIANO,
1999, p. 30).
Segundo Freston (1996) dezenas de igrejas foram fundadas nesse período,
porém, as principais enquadradas nessa segunda onda seriam: “a Quadrangular
(1951), Brasil para Cristo (1955) e Deus é Amor (1962)”. (FRESTON, 1996, p.
71). Para o autor, diferente das igrejas da primeira onda, as quais se organizaram e
se estabeleceram no Brasil em um contexto de imigração e significativa presença
estrangeira, as igrejas da segunda onda, com exceção da Quadrangular
75
,o todas
fundadas no país, sobretudo em São Paulo.
Apesar de manter o mesmo princípio teológico pentecostal das igrejas da
primeira onda ou do pentecostalismo clássico, as igrejas da segunda onda,
conforme ressalta Mariano (1999) trouxeram para o Brasil o evangelismo de
massa centrado na mensagem da cura divina [...] difundiram-se por meio do
rádio,do evangelismo itinerante em tendas, de concentração em praça pública,
ginásio, teatros e cinemas” (MARIANO, 1999, p. 30).
75
A igreja do Evangelho Quadrangular segundo Freston (1996) “das seis grandes igrejas petencostais brasileiras é
a única de origem realmente norte-americana” (FRESTOM, 1996, p. 110) a qual só veio a desligar-se por completo
da Igreja Americana em 1988.
122
Mariano (1999) argumenta que a divisão da história do pentecostalismo
brasileiro em duas ondas e o conseqüente enquadramento das igrejas pentecostais,
quer seja na primeira ou na segunda onda, justifica-se apenas pelo critério do corte
histórico institucional, ou seja, os 40 anos que separam o início destas duas
ondas” (MARIANO,1999, p.31)
Para o autor, mesmo que as igrejas da segunda onda desenvolvam práticas
proselitistas mais contundentes como o evangelismo através de meios de
comunicação de massa com grande utilização de rádio, elas mantém a mesma raiz
teológica
76
. O autor ressalta ainda que devido ao fato de as igrejas da segunda e da
terceira onda não terem sido nomeadas ou classificadas assim como aconteceu
com as igrejas da primeira onda que receberam classificação ou identificação de
clássica, ele as classifica como deuteropentecostalismo
77
e neopentecostalismo,
respectivamente.
A terceira onda, segundo Freston (1999), teve início no final dos anos de
1970, porém, sua projeção ocorreu na cada de 1980. A maior representante
deste grupo, conforme o consenso da maioria dos pesquisadores do fenômeno
pentecostal, é a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 no Rio de
Janeiro pelo dissidente da Igreja Nova Vida, Edir Macedo, por isso considerada
também como uma igreja 100% brasileira. Além desta, a terceira onda é composta
por outras grandes e expressivas igrejas como Internacional da Graça de Deus,
Cristo Vive, ambas dissidentes da Nova Vida, Comunidade Evangélica Sara
76
O Sociólogo Ricardo Mariano (1999) ao discutir o que os outros pesquisadores destacam sobre esses dois
períodos do pentecostalismo brasileiro cita Beatriz Muniz de Souza a qual, em 1969, décadas antes da divisão em
ondas elaborada por Freston, afirmou que o núcleo doutrinário permanece inalterado em qualquer das ramificações
pentecostais.
77
Nas leituras realizadas para elaboração desta pesquisa, observou-se que Ricardo Mariano (1999) é o único a
utilizar essa designação ao se referir às igrejas pentecostais da segunda onda. Na nota do capítulo do seu livro
Neopentecostais, o autor argumenta que criou e utiliza a expressão deuteropentecostalismo porque o radical grego
deutério significa segundo, o que torna muito apropriado para nomear a segunda onda pentecostal (MARIANO,
1999, p. 32).
123
Nossa Terra, Comunidade da Graça, Renascer em Cristo e inúmeras outras
espalhadas pelo Brasil, mesmo que tenham pouca repercussão nacional.
Para Paul Freston (1996), assim como as igrejas da primeira e segunda onda
possuem respectivamente um contexto de imigração e um contexto paulista, as
igrejas da terceira onda possuem um contexto carioca em um momento em que,
segundo o autor, dois terços da populão brasileira se concentrava em centros
urbanos, destacando-se o fato de que a economia carioca começava a apresentar
fortes sinais de decadência.
As igrejas que fazem parte da chamada terceira onda ou simplesmente do
grupo neopentecostal são em geral menos sectárias; seus membros valorizam a
vida terrena e por se julgarem efetivamente filhos de Deus não aguardam somente
o paraíso celeste como fazem os membros das igrejas predecessoras, pois
acreditam ter direito de gozarem as coisas consideradas boas da terra, como o
conforto e bem estar que as posses terrenas podem proporcionar. Consubstanciado
nesse pensamento, o discurso da Teologia da Prosperidade está presente em
praticamente todas as reuniões ou cultos das diversas igrejas neopentecostais ou
da “terceira onda”.
Outra característica das igrejas neopentecostais é o abandono dos sinais
externos de santidade; assim, o uso de jóias, maquiagem, corte de cabelo e outras
práticas recriminadas nas igrejas da primeira e segunda onda o naturalmente
aceitas entre os neopentecostais, os quais, na guerra contra o diabo, se apropriam
de práticas que seus predecessores consideram “armas de satanás” como a
televisão, música de ritmos populares como rock, samba, lambada, for e outras
mais conforme tem sido discutido neste trabalho.
É importante considerar que a divisão do movimento pentecostal
supracitada não é a única existente em pesquisas que estudam esse fenômeno,
pois, conforme assertiva da maioria dos pesquisadores desse movimento, o
124
pentecostalismo além de não ser homogêneo é extremamente complexo e definir
uma divisão ou tipologia que pudesse enquadrar as diversas igrejas a partir de seus
elementos comuns e incomuns é uma tarefa tão ou mais complexa quanto o
próprio movimento. Concluiu-se com isso que as diversas formas de se dividir a
história do movimento pentecostal no Brasil não consegue classificar, de forma
precisa, as inúmeras igrejas que fazem parte desse processo.
Ressalta-se que a presente pesquisa apresentou e ao mesmo tempo utiliza a
tipologia elaborada por Freston porque a mesma, além de ser atualmente a mais
utilizada no meio acadêmico, é também a que mais se adeqüa aos objetivos deste
trabalho, isto é, analisar a importância e o significado da música na proliferação
do movimento neopentecostal.
O pentecostalismo em Goiás: Goiânia cus privilegiado de
crescimento do neopentecostalismo
A idéia religiosa está intimamente relacionada à história da sociedade
humana, não desaparecendo à medida em que esta se estabeleceu, pelo contrário,
como aponta Rosendahl
78
(1996), os rituais religiosos não se extinguiram com a
ascensão da cidade, mas sim ampliaram sua eficácia e alcance.
Porém, conforme a vida urbana renasce ou se estabelece na era moderna
ocidental, a cidade, e mais tarde a metrópole capitalista, perde seu caráter
eminentemente religioso. Analisando por esse prisma é comum concluir que a
cidade, desde sua origem na antiguidade até o início de seu ressurgimento ou do
seu restabelecimento na modernidade, possuía um caráter sacro, o que a
78
Zeny Rosendahl é geógrafa e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura e autora do livro
Espaço e Religião: Uma Abordagem Geográfica, no qual buscou oferecer uma visão mais clara sobre Geografia e
Religião. Essa parte do trabalho que ora se apresenta em muito se apoiou em algumas idéias dessa obra.
125
transformava em lócus privilegiado para o desenvolvimento de pensamentos ou
culturas religiosas, místicas ou consubstanciadas por práticas supersticiosas como
as do catolicismo popular da Europa medieval.
Segundo Rosendahl (1996), os critérios culturais apresentam maior
relevância do que fatores climáticos e tecnológicos na construção do espaço e, em
especial, do espaço citadino. Para a grande maioria dos geógrafos culturais, o
debate sobre o conceito de cidade pode não ser extremamente preponderante, pois
para eles:
os pequenos núcleos de povoamento dotados mesmo que periodicamente
de atividades religiosas e comerciais podem ser definidos como cidade
porque as funções urbanas presentes nestes pequenos núcleos permitem
considerá-los como tipo particular de cidade (ROSENDAHL, 1996, p.
39).
Seguindo essa linha de raciocínio, a autora apresenta duas vertentes que
tentam explicar a origem das cidades: a primeira, desenvolvida por historiadores,
por sociólogos e por urbanistas, entre os quais se destacam Eliade, Weber e
Munford, concebe sua origem a partir de uma abordagem que privilegia aspectos
de influência religiosa. Assim essa vertente explica que a origem da cidade está
relacionada aos antigos santuários paleolíticos, situando o templo como forte
atributo de conexão entre o profano e o sagrado.
A segunda vertente, representada por Childe, Sjoberg, Harvey e outros,
privilegia aspectos técnicos e econômicos na formação dos primeiros núcleos
urbanos; no entanto, argumenta Rosendahl (1996), o fato de o santuário ocupar
lugar central nesses primeiros núcleos é reconhecido pelas duas vertentes supra
citadas.
126
No entanto, grande é a corrente de pesquisadores que defende a tese de que
a partir do desenvolvimento e afirmação do capitalismo, em meados dos tempos
modernos, as cidades no ocidente se transformaram paulatinamente no lócus da
razão. Dessacralizada, as cidades favoreciam um clima perfeito ou para o declínio
da religiosidade humana ou pelo menos para o declínio do cristianismo medieval,
o que, em contrapartida, propiciava o desenvolvimento do cristianismo da
Reforma que, se comparado ao cristianismo católico do medievo, era de certa
forma mais “racional” e individualizado, no sentido renascentista do termo.
O paradoxo é que justamente nessa cidade profana e dessacralizada –cidade
que produz uma cultura não religiosa, ou seja, uma cidade composta por homens e
mulheres geridos pelo ade competência profissional, que os torna competitivos,
auto-suficientes, com idéias, valores e comportamentos fundamentados na razão
proliferam, de forma significativa, os movimentos religiosos pentecostais. Estes,
em suas práticas, fogem ou distanciam-se da lógica racionalista, aproximando-se
ora das práticas católicas populares medievais como, por exemplo, a crença e
valorização de elementos “sagrados” como a utilização e comercialização do óleo
de Jerusalém, água benta, práticas comuns na Igreja Universal do Reino de Deus,
ora aproximando-se das práticas religiosas de culturas primitivas
79
como
oferendas, transes, manifestações demoníacas, ocorrências também comuns na
Igreja Universal.
Analisando essa realidade de ressurgimento religioso na cidade profana e
dessacralizada, o sociólogo Reginaldo Pandri (1996) destaca que na cidade ou
metrópole capitalista espera-se um comportamento racional, o que deveria se
refletir no esvaziamento das igrejas, pois, em tese, o desenvolvimento científico e
79
Considera-se como prática religiosa de culturas primitivas as formas culturais próprias das religiões nativas e de
culturas antigas não desenvolvidas do ponto de vista tecnológico ou também culturas destituídas de documentos
escritos ou arquitetônicos. Essa definição se aproxima da defendida por Waldomiro Piazza em Introdução à
Fenomenologia Religiosa (1976).
127
tecnológico poderia trazer respostas para as mais complexas indagações humanas.
No entanto, esse projeto não religioso e racional da metrópole capitalista é
abandonado por grande parcela de sua população, que reconstrói os velhos ídolos,
retoma as antigas rezas, crendices, encantamentos, erguendo suas vozes em
projetos de evangelização e de propagação da fé, construindo inúmeros e
suntuosos templos religiosos, bem como instituições que sincretizam valores
religiosos, artísticos e culturais, como é o caso da Rede Record, que pertence à
Igreja Universal do Reino de Deus.
Os trabalhos que visavam analisar esse fenômeno da retomada do fervor
religioso, elaborados a partir da década de 1990, apontavam que essa parte da
população que dava as costas a essa sociedade sem Deus ou sem religião era
oriunda de camadas menos privilegiadas ou marginalizadas em relação ao
progresso capitalista. Essas frações subalternizadas da população citadina, em
especial os que se julgavam esquecidos por suas religiões de origem, que tanto
poderia ser o catolicismo dessacralizado, como o protestantismo histórico ou da
Reforma, que possui um certo cunho racional, foram construir novas opções de
trabalhar o elemento sagrado, buscando outras formas de crer e tamm outros
meios de contato com o sagrado, que há tempos não fazia sentido imediato,
segundo as considerações de Pandri (1996). No entanto, é possível perceber hoje
que essa retomada religiosa não é específica das camadas menos privilegiadas
economicamente nas metrópoles capitalistas.
Observa-se que a presença do pensamento religioso neopentecostal, o que
mais reflete ou exemplifica esse retorno ou fervor religioso, ganha espaço não
entre a classe média como também se pode perceber sua entrada, lenta, pom
consistente, na chamada classe dominante e também entre os formadores de
opinião, a exemplo de professores, artistas, esportistas e principalmente no meio
político tanto municipal, estadual e federal.
128
Assim sendo, é posvel concluir que o pentecostalismo não é mais
exclusivamente religião dos pobres como durante muito tempo se pensou. A
pergunta que se faz é: ao que se deve seu crescimento e sua proliferação nos
diversos setores sociais da metrópole capitalista que supostamente é racional e
dessacralizada?
Para encontrar uma entre tantas prováveis respostas é relevante retomar o
pensamento de Simmel sobre o homem dessa metrópole. A urbe metropolitana
massifica o homem e a mulher, transformando-os em estatísticas ou em máquinas
mercantilizadas. Esses indivíduos, para sobreviverem a essa realidade que produz
pessoas violentas ou tanto perseguidoras como perseguidas, aperfeiçoam extensas
redes de controles sociais capazes de identificar cada morador das grandes
cidades, que ao mesmo tempo em que o identificados não são percebidos ou
enxergados enquanto seres humanos. Ele é alguém, ao mesmo tempo, que não é
ninguém, e como bem expressa a linguagem filosófica, ele está sozinho em meio à
multidão.
Nesse contexto, a religião pode oferecer respostas às inquietações e
indagações geradas por essa sociedade alienante e competitiva, que afeta desde o
menos até o mais abastado economicamente, com sua impessoalidade. Se nessa
sociedade o homem vale o que tem, tanto o menos favorecido quanto o mais
favorecido economicamente acabam se sentido sem o valor que talvez sentido
à vida: o valor humano; em outras palavras, o sentimento de ser aceito por aquilo
que se é e não por aquilo que essa sociedade exige que seja para ser aceito ou
então por aquilo que ele tem ou não tem: bens materiais.
Analisando essa situação, Dorneles (2002) se apóia no pensamento de
Kepel e argumenta que o alto índice de crescimento da religiosidade humana do
final do século passado, em especial da pentecostal, deve-se à falência das
utopias e sonhos da humanidade; nesse contexto as religiões passam a
129
representar certeza por se referirem a algo que está acima das dúvidas humanas”
(DORNELES, 2003, p. 10) e a música religiosa, em especial a composta com
ritmos populares contemporâneos, torna-se um relevante veículo de propagação
dessa “certeza religiosa” na medida que atua diretamente nas emoções do homem
dessa urbe dessacralizada contribuindo para que ele acredite na existência de um
Deus imanente que essempre com ele e que, enfim, o aceita exatamente como
ele é.
Consubstanciando essa tese, o escritor Rubem Alves (1984) afirma que era
de se esperar esse resgate da religiosidade humana; o que o se esperava é que
isso acontecesse justamente nos grandes centros urbanos, lugar onde a presença de
instituições educacionais e científicas é mais forte e ativa fator, que em tese,
colaboraria com o predomínio da razão.
O pentecostalismo, em especial sua vertente neopentecostal, segundo senso
comum entre os pesquisadores desse fenômeno, traz respostas a esse homem
metropolitano, no sentido de dar-lhe oportunidade de expressar sua de forma
mais íntima e pessoal sem a formalidade e ritualização das religiões mais
tradicionais. Entre os fiéis, esse indivíduo não é apenas mais um mero, ele é o
irmão. O senso de pertencimento é resgatado, fazendo-o se sentir valorizado pelo
que é e não pelo que tem.
Durante a celebração do ritual religioso, o fiel pode revelar-se como é em
sua essência, pois a liturgia do culto pentecostal/neopentecostal ocorre de forma
mais autônoma, desinibida, enfim livre da rigidez das normas e da ética
tradicional, conforme pontua Dorneles (2002); uma vez movido pelo poder do
Espírito, o adorador tem o direito e até o dever de se expressar como quer: rindo,
chorando, cantando, dançando, se expressando em línguas desconhecidas, batendo
palmas, rolando pelo chão e em transe, enfim uma infinidade de formas que
130
podem ser observadas nesses cultos religiosos, funcionando como uma catarse
coletiva.
Como afirma Eliade (2001), o homem é um ser essencialmente religioso
que esteve “preso” por séculos a filosofias racionalistas; porém como tais
filosofias não suprem mais os anseios de sua essência, ele resgata crenças e
manifestações religiosas sticas e emotivas, que permitem a ele manifestar-se de
forma “original” e para ele autêntica. Nesse processo, a sica desempenha papel
preponderante, pois tanto atinge a emoção humana como influencia sua razão e
através dela o ser humano encontra espaço para sua própria manifestação
religiosa.
A cidade de Goiânia se configura hoje como cus privilegiado de
crescimento da fé pentecostal, em especial de sua vertente neopentecostal. Dados
do censo do IBGE, entre os anos de 1980 e 2000, comprovam que os índices de
crescimento da fé protestante em Goiânia o superiores aos índices de
crescimento do protestantismo em esfera nacional, ou seja, se no Brasil o índice
de crescimento dessa população atinge a esfera de aproximadamente 6%, na
década de 1980, 9% na década de 1990 e 15% em 2000, em Goiânia os números
chegam aproximadamente, a 12%, 13%, e 21%, no mesmo período.
Pesquisas recentes apontam que esses índices de crescimento da fé
protestante se elevam a cada ano graças à ação proselitista de igrejas da vertente
neopentecostal
80
; em outras palavras, mesmo que o protestantismo tenha chegado
em Goiânia juntamente com os primeiros indivíduos que para cá vieram na época
de sua fundação, fato que ajudaria a compreender a relativa aceitação da fé
protestante nos primeiros anos de vida desta cidade, é importante ressaltar que
esses elevados índices de crescimento são frutos mais da ação evangelística dos
80
Sobre esse assunto ver Estudos Avançados 52 da USP volume 18 p 17-24.
131
pentecostais, em especial dos neopentecostais, do que da ação evangelística dos
protestantes históricos.
Vários o os fatores que proporcionam essa realidade, entre eles se destaca
a condição de grande centro urbano. Além dessa condição, questões ligadas à
fundação de Goiânia em muito contribuem com o crescimento da religiosidade
neopentecostal em seu interior. Morais (2002), afirma que sendo construída em
pleno século XX, Goiânia se transforma em lo de atração de habitantes de
outras regiões[...] um portal aberto para a entrada de novos valores culturais,
incluindo aqui, o protestantismo”( MORAIS, 2002, p. 96).
O autor argumenta que devido à falta de trabalhadores especializados,
principalmente em construção civil, uma vez que a economia goiana era
predominantemente agrícola, foram recrutados para trabalhar na construção de
Goiânia operários de outras regiões do país, em especial do Rio de Janeiro e São
Paulo. Ao chegarem tornaram evidente a situação de fronteira dessa cidade.
Segundo o autor, antes mesmo que Goiânia fosse oficialmente inaugurada, já
havia se transformado em lócus onde pessoas de diversas regiões do Brasil,
convergiam juntamente com suas diversas formas de expressões culturais, que
somadas à “perda de valores arraigados permitia[...] o surgimento de espaços
propícios à penetração do diferente(MORAIS, 2002, p. 89), mesmo que esse
diferente fosse outra forma de religiosidade.
Morais argumenta também que nas grandes metrópoles as novas religiões
florescem a despeito das diversidades culturais, pois os problemas sociais
metropolitanos contribuem para que as religiões tradicionais tornem-se incapazes
de solucionar novos problemas. Por outro lado, as possibilidades oferecidas pela
vida metropolitana podem contribuir com a liberação de velhos conflitos que
mantinham os indivíduos arraigados aos seus valores religiosos.
132
Ambas as situações deixam lacunas que favorecem novas formas de
expressar a religiosidade humana, que no caso goiano em muito beneficiou o
protestantismo, em especial o pentecostalismo. O autor afirma ainda que mesmo
que Goiânia não fosse uma grande metrópole nos anos subseqüentes à sua
fundação, “compartilhava a condição de local de encontro de culturas[...] que
passam a conviver e a disputar espaços”(MORAIS, 2003, p. 89).
A protestante foi significativamente beneficiada uma vez que essa
situação fazia com que o protestantismo fosse enxergado em patamares
semelhantes ao do catolicismo, que ambos dividiam espaços na recém fundada
capital. Neste contexto, as primeiras igrejas não católicas estabelecidas em
Goiânia foram a Igreja Cristã Evangélica, Igreja Batista e Igreja Presbiteriana.
A vertente pentecostal também se estabeleceu localmente desde a época da
fundação desta cidade. Sua primeira representante neste território foi a Igreja
Assembléia de Deus, que se instalou em 1937 nas proximidades do antigo Bairro
Popular, se transformando desde então em forte instrumento de propagação da fé
pentecostal em Goiânia, cidade que, semelhante às grandes metrópoles brasileiras,
é atualmente considerada pólo de fundação, e como afirma Morais (2003), de
exportação de denominações
81
evangélicas, pois:
a jovem cidade, aberta ao protestantismo exporta agora sacerdotes para
evangelizarem várias regiões[...] um dos principais produtos de
exportação que a cidade de Goiânia tem e que é genuinamente
goianiense são os missionários e as denominações protestantes[...] que
81
Esclarece-se aqui que a pesquisa concorda com a expressão do autor não no sentido de que a cidade exporte a fé
protestante, como um “produto” genuinamente goiano, pois sabe-se que a “raiz do protestantismo brasileiro e
conseqüentemente do protestantismo goiano é norte-americana. O que se pretende ao citar ou utilizar a expressão
do autor é transmitir a idéia de que denominações religiosas de inspiração protestante ou neopentecostal
organizadas ou “criadas” (de forma autônoma ou independente) em Goiânia, buscam difundir suas doutrinas (que
em essência não são tão diferentes das demais denominações religiosas dessa estirpe) tanto em outros Estados
como em outros pses, pois acreditam que essa é uma de suas missões que possuem a verdade a respeito da
salvação.
133
aqui surgiram e rapidamente cresceram conquistando[...] o país e o
mundo, como exemplos: a Igreja Apostólica Comunidade Cristã e a
Igreja Sara Nossa Terra ( MORAIS, 2003, p. 105).
E acrescenta-se também a esse quadro de igrejas neopentecostais de “raízes
goianas a Igreja Internacional da Paz Ministério Luz Para os Povos que foi
fundada na década de 1970 e possui hoje mais de quarenta congregações
espalhadas pela capital bem como inúmeras “filiaisem vários Estados brasileiros
e no exterior
82
.
Ressalte-se que essas igrejas possuem um forte ministério musical que além
de dirigir e promover a adoração musical dessas denominações neopentecostais
visam também manter e atrair fiéis para suas congregações através da música, e
para alcançar esse objetivo compõem músicas utilizando os mais diversos ritmos
populares contemporâneos, gravam cds, promovem eventos ou shows musicais e
atuam efetivamente em suas respectivas emissoras de dio que por sinal é um dos
maiores veículos de difusão musical.
A música evangélica em Goiás: da introdução à apropriação de
ritmos populares contemponeos.
Em Goiás, durante as primeiras décadas de ocupação, a produção musical
seguiu o estilo eminentemente religioso católico. Os fatores preponderantes para o
predomínio do estilo religioso na produção musical goiana desse período foram as
condições econômicas e sociais que desfavoreciam o estudo musical dos
habitantes da região que, em sua maioria, eram garimpeiros que para cá vieram
82
A Igreja Luz Para os Povos além de ter se espalhado pelo Brasil possui mais de quatro mil membros só em sua
sede no Setor Fama em Goiânia, sem mencionar os quase seis mil membros na unidade do Setor Serrinha estando
presente também em pses como Bolívia , Colômbia, EUA, Peru, Portugal e China.
134
em busca de ouro. Com esse objetivo fundavam arraiais e vilas, com população
predominantemente flutuante e que poderiam se extinguir com a mesma rapidez
com que eram fundados, pois bastava para isso a constatação de que por ali o ouro
se esgotara. Essa situação leva à conclusão de que a economia e a sociedade
mineradora apresentavam um caráter instável fato que, em Goiás, dificultou o
desenvolvimento significativo dos aspectos culturais da vida urbana. Ressalte-se,
entretanto, que as cidades goianas que sobreviveram à crise de exploração aurífera
dedicaram-se à economia agro-pastoril para a qual os aspectos artísticos e
culturais urbanos também não eram prioridade.
Essa situação “o significa que Goiás no século XVIII fosse uma região de
economia estagnada, incapaz de consolidar um certo modo de vida sócio-
cultural-urbano, como asseverou certa historiografia a respeito desse período”
(OLIVEIRA, 1997, p. 16). Ela apenas ajuda a elucidar o fato de que o estudo da
música, em qualquer período da história humana e em qualquer sociedade requer,
do estudante, tempo e dedicação que os goianos, devido ao isolamento e às
atividades econômicas, não podiam dispor(OLIVEIRA, 1997, p.17).
A partir do final do século XVIII, com o crescimento e organização cio-
cultural dos primeiros centros urbanos desse Estado, como Pirenópolis e a antiga
capital cidade de Goiás, os demais estilos musicais, sobretudo o profano”
(popular ou erudito) e o protestante/evangélico foram lentamente introduzidos, o
primeiro ainda no final do século XVIII, com a Modinha, e o segundo apenas a
partir do final do século XIX, período que marca a inserção da religião protestante
em Goiás, fruto do chamado protestantismo de missão, em especial fruto do
trabalho dos missionários John Boyle e Charles Glass nas cidades de Catalão,
Goiás e Santa Luzia (Luziânia), sendo esta última o principal lócus do
protestantismo no Estado naquele período.
135
Araújo
83
(2004) menciona que “a história do protestantismo nesta cidade é
de longa data” (ARAUJO, 2004, p. 38), sua formação esrelacionada ao contato
que um negociante da região teve com um colportor baiano que distribuía bíblias
pelo interior do país. O resultado desse encontro foi a conversão desse negociante
e de seus familiares, fato que, de certa forma, facilitou o início do trabalho
missionário de Jonh Boyle ao chegar em Santa Luzia.
A autora, consubstanciada nas teses de Ribeiro (1987), mostra que nesse
pequeno núcleo protestante a música desempenhava papel preponderante e
observa-se que os hinários, em especial o Hinário Salmos e Hinos, assim como
ocorria em outras regiões do país, também contribuíram de forma relevante na
disseminação desse estilo musical e conseqüentemente da mensagem protestante,
pois como afirma a autora:
este grupo encomendava hinários recebendo-os sem partitura.
Entretanto, as sicas são cantadas a partir do momento em que uma
jovem senhora da nascente igreja compõe músicas e os hinos são
cantados. Provavelmente o que ocorria era um processo de adaptação
entre letra de cunho europeu e música sertaneja visto que os hinos
ocuparam um lugar de destaque, não na liturgia protestante, como na
prática dos conversos de todo território nacional” (ARAÚJO, 2004, p.
38- 39).
Assim, juntamente com o estabelecimento do protestantismo em Goiás,
estabeleceu-se também o estilo musical evangélico que, conforme defende essa
pesquisa, com seu atual ritmo popularizado, tem sido uns dos principais meios de
83
A pesquisadora Ordália Cristina de Araújo é Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás e autora da
dissertação História do Protestantismo em Goiás (1890-1940) que consubstanciou essa parte da pesquisa.
136
propagação da mensagem protestante em sua versão neopentecostal no presente
século.
É importante ressaltar que em Goiânia, capital de Goiás, desde sua
fundação na cada de 1930, a mensagem protestante e conseqüentemente sua
música encontraram terreno relativamente fértil – destaca-se também o fato de que
foi nessa cidade que se iniciou o processo de apropriação de ritmos populares
contemporâneos neste Estado. Vários fatores contribuíram para essa relativa
adesão ao protestantismo entre as pessoas que vieram construir e povoar a nova
capital. Entre esses fatores destacam-se sua situação de fronteira, a pouca
representatividade de líderes eclesiásticos ou missionários católicos capazes de
orientar e manter seus fiéis, as dissensões potico-religiosas entre os poucos
representantes da liderança do catolicismo em Goiás e as lideranças políticas
dessa sociedade.
Sobre a situação de fronteira, Moraes (2002) argumenta que devido a
promessas de empregos, geradas pela falta de trabalhadores goianos habilitados
para construção da nova capital, bem como o sonho de uma vida melhor, fizeram
com que pessoas de diversas regiões do país se deslocassem para a nova capital.
E é justamente por causa desse fluxo migratório ocorrido em Goiânia
quando de sua construção, que Moraes (2002), apoiado nas teorias de Babha
(2001), defende a idéia de que esta cidade é uma região de fronteira, o que
segundo ele favoreceu, entre outras coisas, o desenvolvimento da protestante
tanto em sua forma histórica como em sua versão pentecostal e, mais tarde, sua
versão neopentecostal. Consubstanciado nas teses de Babha sobre fronteiras, o
autor destaca que:
a fronteira é mais que divisão entre países, estados ou cidades. Mais que
a fronteira geográfica, [...] refere-se às fronteiras de idéias.
137
Pensamentos simbólicos/abstratos que marcam os seres humanos e
permitem que suas criações possam avançar em quantidade. As
fronteiras são uma espécie de portal entre visões de mundo e que
acabam por harmonizar estes mundo. Uma espécie de escada que leva a
um outro local e que raramente pode ser totalmente bloqueada
(MORAES, 2002, p. 88).
Assim, argumenta o autor, essas fronteiras não geogficas se configuram
em lócus ideal para convergência de pessoas e de valores distintos, que passam a
exercer influência mútua um sobre o outro, possibilitando com isso a maior
aceitação do diferente, fato que, o seria possível fora dessas fronteiras, pois são
nelas que os elementos identitários são “obrigatoriamente” reformulados uma vez
que a abertura e a tolerância ao diferente ocorrem com maior freqüência.
Nesse contexto, argumenta Moraes, “o protestantismo aproveitou-se dessa
condição de local de cruzamento de idéias da cidade de Goiânia para fincar
raízes[...] pois o elevado contingente de indivíduos e de valores culturais em
cruzamento na nova capital, aliados à perda de valores já arraigados, permitia
que pudessem surgir espaços para a penetração do diferente [...] tipo de
cristianismo” (MORAES, 2002, p.89), ou seja, do cristianismo protestante tanto
histórico como pentecostal e mais tarde o neopentecostal.
Fica evidente então que em Goiânia o pentecostalismo não se deparou com
uma forte oposição ou grandes obstáculos para se estabelecer. Desde a fundação
desta capital essa vertente protestante, que aqui chegou representada
primeiramente pela Igreja Assembléia de Deus, faz parte do cenário religioso
goiano difundido suas idéias e desde de então cantando ao senhor de forma
relativamente mais festiva ou jubilosa se comparada à forma de cantar das demais
vertentes cristãs presentes nesta região.
138
É necessário esclarecer, entretanto, que nas primeiras décadas de vida”
dessa capital o havia ocorrido ainda a apropriação de ritmos populares
contemporâneos nas composições musicais pentecostais. O que ocorria com a
música pentecostal em Goiânia, em relação à sua forma jubilosa de cantar e em
relação à sua estrutura melódica, era herança tanto do estilo musical adotado por
esse movimento desde de sua fundação nos EUA como também era herança da
forma “sertaneja de entoar a melodia dos hinos herdada dos pioneiros do
protestantismo nesse Estado que estes desconheciam a melodia original desses
hinos contidos nos hinários que recebiam, conforme anteriormente comentado.
Em Goiânia esse fenômeno” de apropriação de ritmos populares
contemporâneos iniciou-se entre a juventude do protestantismo histórico, mais
precisamente entre os presbiterianos e batistas, no inicio dacada de 1970 com a
lenta e gradativa utilização da bateria e da guitarra no acompanhamento
instrumental durante a execução musical. A utilização destes instrumentos foi
lentamente abrindo espaço para introdução do estilo rock nas futuras composições
musicais dessas igrejas que tais instrumentos eram sinônimos desse estilo
musical.
Ressalte-se, entretanto que tais práticas não foram iniciadas dentro dos
templos, segundo Yamada (1998) foi no ambiente dos acampamentos
84
, onde
eram realizados retiros espirituais durante feriados prolongados ou em período de
férias, que essa nova prática começou a ser disseminada.
A autora explica que missões americanas, interessadas em propagar o
evangelho no interior do Brasil, financiavam as construções de inúmeros
84
Espécie de pousada ou hotel fazenda construído com objetivo de hospedar a juventude das igrejas em feriados
prolongados principalmente durante o carnaval a fim de oferecer-lhes uma programação espiritual e recreativa para
que sentissem prazer em estar na igreja enquanto os considerados “mundanos” se divertiam na “festa da carne”.
Com esse objetivo eram realizados nesses acampamentos imeras palestras ou debates com temas de interesse da
juventude, aplicado é claro à vida religiosa, em um clima de descontração e a música estava sempre presente
que, a exemplo das demais programações do evento, ela era ministrada sem as formalidades exigidas para a
realização dos cultos nos templos.
139
acampamentos na região centro-oeste que esta era uma região promissora à fé
protestante.
Entre esses acampamentos o que mais se destacou, devido à sua ótima
infra-estrutura, foi o Acampamento Boa Esperança, construído em Goiânia em
1964 e doado para Primeira Igreja Presbiteriana dessa cidade. Nesse
acampamento, nos retiros espirituais realizados durante a década de 1970 com a
presença da juventude presbiteriana, batista ou de outras denominações
protestantes de outros Estados brasileiros, foram introduzidas as primeiras formas
de música religiosa com ritmos populares contemporâneos em Goiânia graças à
ação de grupos ou bandas musicais vindas da região sudeste (São Paulo e Rio de
Janeiro) para animar o louvor ou dirigir toda a programação musical do evento.
Como um dos estilos musicais preferidos pela juventude paulista e carioca
do período era o rock é natural que a composição musical dessas bandas
evangélicas fosse influenciada pelo ritmo desse estilo musical ou que pelo menos
fossem executadas por instrumentos como guitarra e bateria e com um andamento
mais rápido que o usual tradicional. À medida que ia entrando em contato com as
músicas desses grupos evangélicos de outras regiões do país, durante a realização
desses retiros, a juventude goiana ia sendo, lenta e gradativamente, influenciada
pelas mesmas a ponto de não as introduzirem em suas igrejas como também de
comporem novas músicas seguindo esse padrão mesmo que isso gerasse tensão
com os grupos mais conservadores de suas congregações segundo explica
Yamada (1998).
Essas tensões em muitos casos, ou geravam cisões nas congregações
promovendo assim a organização de novas comunidades evangélicas com uma
postura menos radical em relação à música ou, em casos mais extremos, levavam
a juventude ao completo abandono da fé protestante que professavam, pois já que
não podiam adotar esse estilo moderno” ao compor e cantar nos cultos de suas
140
igrejas, então cantariam nas festas ou nos eventos seculares da sociedade goiana,
segundo atesta o relato de muitos membros dessas igrejas.
Paralelo a essa transformação estava se firmando também o fenômeno do
neopentecostalismo que diferente do protestantismo histórico passou a adotar
todos os estilos musicais existentes em suas composições musicais que
acreditavam e pregavam que os mesmos poderiam ser, eficazmente, utilizados a
favor do serviço do senhor caso fossem a ele consagrados tanto pela letra como
também pela vida do cantor/compositor. Essa postura musical dos neopentecostais
representou uma força propulsora para que a adoção de muitos
85
ritmos populares
contemporâneos continuasse ocorrendo de forma menos tensa entre muitas
86
igrejas do protestantismo histórico, ou seja, sem ser considerada anátema
87
entre
elas.
Nesse cenário, em Goiânia, a exemplo de outras partes do país, a música
religiosa protestante de características melódicas consideradas tradicionais foi
paulatinamente perdendo seu espaço para as músicas compostas com ritmos
populares contemporâneos. No início desse processo o rock era praticamente o
único estilo musical apropriado, mas graças à rápida difusão do
neopentecostalismo e a conseqüente criação de igrejas dessa vertente
“eminentemente” goianas, outros estilos como samba, forró, xote, pagode, e tantos
85
Algumas igrejas do protestantismo histórico que se adequaram a essa nova postura musical, ritmos populares
contemporâneos brasileiros como samba, pagode ou forró não são adotados. Na verdade muitas igrejas negam até
mesmo a existência, em seu meio, do rock ou pop criso afirmando que o que ocorre em relação à sua sica é a
permissão para se compor melodias menos tradicionais e com um ritmo mais alegre e acentuado que podem ser
executadas por instrumentos símbolos do rock (guitarra e bateria) sem que isso as transforme necessariamente em
um rock, tais igrejas assumem a expressão “música pop cristã” e negam a expressão “rock cristão”. Um exemplo
desse fato em Goiânia é a Igreja Batista de Goiânia localizada no setor Campinas.
86
Nem todas as igrejas do protestantismo histórico aceitaram essa introdução de ritmos populares contemporâneos
em suas músicas. Um forte exemplo dessa rejeição é a Igreja Adventista do Sétimo Dia que, apesar de permitir o
uso moderado de instrumentos como guitarra e bateria, se pronuncia oficialmente contra essa postura musical.
87
Palavra de origem grega utilizada nas epístolas do apóstolo Paulo como expressão de reprovação ou como forma
de designar algo estranho e abominável entre os cristãos. Essa palavra, com esse último significado, foi
pronunciada, inúmeras vezes, em cultos de igrejas do protestantismo histórico e neopentecostal observados durante
a realização dessa pesquisa.
141
outros passaram a ser cantados, ouvidos e compostos pelos evangélicos dessa
capital.
Como conseqüência desse processo, que em Goiânia iniciou-se partir da
década de 1970 e intensificou-se a partir de meados da cada de 1980, ocorre
hoje, especialmente entre os neopentecostais, a produção cada vez mais acentuada
desse novo estilo musical a fim de usá-lo como instrumento de atração de novos
adeptos, pois o mesmo indica que as mudanças que deverão ser assumidas pelo
novo fiel, em relação à música, serão mínimas que na estrutura
rítmica/melódica dessas canções ocorre não a apropriação dos ritmos populares
contemporâneos, mas ocorre também a utilização de frases musicais inteiras de
canções seculares consagradas como sucesso pela sociedade brasileira segundo
pode ser observado em músicas como a que se segue:
Se Correr o Bicho Pega se Orar o Bicho Corre
88
Se correr o bicho pega se orar o bicho corre, o bicho corre
pois Jesus cristo Logo te socorre (bis)
O inimigo já foi derrotado, você precisa ir se converter
que se você se afastar do pecado é só orar que o bicho vai correr
Ele é teimoso apanha e sempre volta mas já sabendo que vai apanhar
Mas é preciso ter muito cuidado, pois ele quer mesmo é te derrubar
Na audição e observação dessa canção é possível notar, em sua letra, um
chamado à conversão e em sua estrutura rítmica/melódica, nota-se o a
aproprião rítmica do xote como também é possível notar a utilização de trechos
melódicos do refrão da música Homem com H do cantor popular Ney Matogrosso.
88
Essa música corresponde à faixa 8 do cd Deus dos Milagres do grupo Xote Santo que apesar de não ser
goianiense é sucesso entre os neopentecostais dessa cidade, especialmente entre os membros da igreja
neopentecostal Sara Nossa Terra que apesar de ter sua sede radicada em Brasília originou-se na cidade de Goiânia.
142
É importante destacar, entretanto, que não são em todas as igrejas
neopentecostais que canções nesse padrão (compostas a partir da apropriação de
trechos ou frases melódicas de canções seculares) são freqüentemente cantadas
nos templos durante a realização dos cultos.
Observou-se, no decorrer da realização dessa pesquisa, que nas igrejas
Fonte da Vida e Luz para os Povos que o as maiores em mero de membros
entre as igrejas neopentecostais de origem goiana esse tipo de canção é
executada com mais freqüência somente em eventos especiais da juventude como
show gospel ou festas recreativas os quais são realizados com objetivos tanto de
atrair como de manter os membros que pertençam à faixa etária jovem.
Nos cultos diários dessas igrejas canções compostas a partir da apropriação
de melodias já existentes são utilizadas com certo cuidado, no entanto canções
para adoração compostas no estilo pop, bossa nova, MPB ou até mesmo rock
romântico são freqüentes em todos os cultos dessas congregações conforme ilustra
a canção Te escolhi da banda paulista Oficina G3
89
uma das preferidas entre os
evangélicos neopentecostais goianos:
Você já me procurou por muitas vezes tentou
Como cego na multidão que procura o seu caminho mas sozinho nada encontra
Quantas vezes eu te chamei e você não entendeu
se voparasse um pouco e ouvisse a minha voz
Te escolhi, te busquei sempre ao seu lado eu caminhei
Eu sofri por você na cruz provei o meu amor
Eu te procuro!
E você por tantos lugares buscou
89
Essa banda começou a organizar-se em 1988 no Estado de São Paulo como um ministério de louvor da Igreja
Cristo Salva e nessa época, apesar de não ser goiana, torno-se uma das preferidas da juventude evangélica dessa
cidadã sendo apreciada principalmente pela atual juventude neopentecostal especialmente entre os jovens da Igreja
Fonte da Vida e Luz Para os Povos.
143
Mas nunca entendeu que eu sempre estive perto de você
eu te escolhi, quero te conquistar te mostrar o verdadeiro amigo
Se você parar um pouco e ouvir a minha
Fonte: www.letrasdemusicas.com.br
Outro exemplo desse estilo musical freqüente nos cultos dessas
denominações é a canção Até quando também do grupo Oficina G3 a qual devido
ao seu acentuado ritmo rock, se não for ouvida com atenção é facilmente
confundida com um rock secular :
Humanos que se amam. Humanos que se matam. Humanos que ajuntam. Humanos
que espalham. Humanos que vendem. Humanos que compram.Humanos que pedem.
Humanos que roubam. Humanos que em amor gostam muito de falar mas nunca
fazem nada para demonstrar
Humanos que pedem a paz em toda a Terra e a buscam com armas e tanques de
guerra
Quando vamos viver a vontade do Deus Pai, de viver seu amor, de vivermos em paz
Humanos que só falam e fazem muito pouco. Humanos que só julgam e se enxergam
pouco
Humanos que em Deus gostam muito de falar, mas não O conhecem nem O querem
aceitar
Humanos que da vida pensam saber tudo mas esquecem de que são pó, como todo
mundo
Humanos que Deus sabe, sempre vão errar mas sempre vai estender a mão àquele
que O chamar
Quando vamos viver a vontade do Deus Pai de viver seu amor, de vivermos em paz
Fonte: http://oficina-g3.letras.terra.com.br/letras/63288/
144
Observa-se na letra dessas canções, mais precisamente em suas últimas
frases, a atual concepção de um Deus imanente, que é amigo e que aceita o
pecador quando esse se arrepende, ao mesmo que é possível notar também, um
apelo para o ser humano aceitar a Deus como amigo pessoal e por fim viver de
acordo com os desejos divinos, fatos que demonstram a utilidade evangelística da
música neopentecostal, em outras palavras, esse estilo musical atrai graças aos
ritmos familiares, pois o populares e contemporâneos ao mesmo tempo em que
atrai por sua letra que, tanto apresenta um Deus amigável, presente e
misericordioso como também apela para a conversão do “pecador”.
É preciso destacar ainda que essa relativa preocupação em controlar a
execução de canções compostas a partir de trechos rítmicos/melódicos de músicas
populares de origem secular não é unânime em todas as igrejas neopentecostais
existentes na capital goiana.
Durante a realização dessa pesquisa, constatou-se que nas igrejas
pentecostais ou neopentecostais Assembléia de Deus
90
Renascer em Cristo, Sara
Nossa Terra e tantas outra espalhadas pela capital, esse tipo de música religiosa é
cantada freqüentemente não nos eventos jovens ou evangelísticos como
também em quase todos os cultos. Entre as canções observadas nesses cultos duas,
ouvidas em cultos da Igreja Sara Nossa Terra, chamaram atenção pelo fato de suas
originais seculares apresentarem em suas letras um conteúdo considerado um
tanto quanto licencioso e pejorativo: a primeira é Bonde do Cristão composta a
partir da apropriação rítmica/melódica da música Cerol na o gravada pelo
grupo Bonde do Tigrão que possui a seguinte letra:
90
Boa parte das músicas cantadas nessa igreja durante as observações que respaldaram essa pesquisa, são
paródias” cristãs das músicas de duplas sertanejas como Bruno e Marrone, Milionário e José Rico, Xitãozinho e
Xororó as quais não foram gravadas em cds e nem divulgadas em qualquer fonte impressa ou virtual dessa
instituição consultadas durante a realização desse trabalho.
145
Quer dançar, quer dançar o tigrão vai te ensinar (bis)
Vou passar cerol não mão assim, assim
Vou cortar você na mão vou sim vou sim
Vou aparar pela rabiola assim, assim
Vou trazer você pra mim vou sim vou sim
Eu vou cortar você na mão vou mostrar que eu sou tigrão
Vou te dar muita pressão então martela, martela
Martela o martelão, levante a mãozinha
Na palma da mão é o bonde do tigrão
Então martela, martela, martela o martelão
Levante a mãozinha , na palma da mão é o bonde do tigrão
Fonte: http://bonde-do-tigrao.letras.terra.com.br/letras/168650/
Ao ser apropriada e transcrita com uma letra supostamente religiosa essa música
ficou assim:
O bonde do Cristão
Quer orar quer orar o cristão vai te ensinar
Quer orar quer orar o cristão vai te ensinar
Vou passar óleo na mão, assim, assim
Vou ungir o meu irmão, vou sim, vou sim
Vou trazer ele pra mim, vou sim vou sim
Vou cortar o pecadão, vou mostrar que sou crentão
Martela, martela, martela o capetão, levanta a biblinha na palma da mão
É o bonde do cristão então martela, martela, martela o capetão
levanta a biblinha na palma da mão é o bonde do cristao
A segunda, da qual está sendo citado apenas um trecho, tamm é uma
composição do grupo Bonde do Tigrão. Seu título e letra original são:
146
Só as cachorras
Só as cachorras! As preparadas! As popozudas! O baile todo!
Pula,sai do chão! Esse é o Bonde do Tigrão. Libere a energia E vem pro meio do
salão. O baile está tomado Eu quero ver você dançar. tudo dominado E o planeta
vai gritar assim. Só as cachorras As preparadas As popozudas O baile todo. Só as
cachorras! As preparadas! As popozudas! O baile todo! (refrão 5x)
Na versão religiosa essa musica ficou assim:
Só as pastoras
Só as pastoras! As diaconisas! As pregadoras! A igreja toda! Pula, sai do chão esse é o
Bonde do cristão. Libere a energia E vem pro meio do salão
O culto está tomado Eu quero ver você orar. Ta tudo dominado E a igreja vai gritar
assim. as pastoras! As diaconisas! As pregadoras! A igreja toda todo! (refrão 5x)
Esses e outros exemplos musicais constantemente ouvidos em muitas
igrejas do chamado neopentecostalismo goiano e brasileiro revelam que a música,
entre a maioria neopentecostal, deixou de ser apenas mais um ato litúrgico
exclusivamente voltado para a adoração ao deus transcendente como ocorria entre
os antigos judeus ou entres os cristãos da igreja primitiva, medieval ou dos
primeiros culos que sucederam a Reforma. A atual música neopentecostal é
considerada por seus seguidores como um caminho que conduz à satisfação
espiritual individual e coletiva, por isso contribui eficazmente com a conversão do
pecador.
As contradições da sociedade moderna e contemporânea contribuíram para
a formação de um novo tipo de cristianismo composto por adoradores que
enxergam seu deus como um ser amigo, presente e acima de tudo acessível.
Entretanto, esses adoradores estão inseridos e “presosem um contexto social e
147
político marcado pela busca de elementos identitários e pela contestação e luta
contra a ordem vigente. Essa situação gera inquietações e ansiedades psicológicas
e emocionais as quais reforçam ainda mais sua inserção e prisão nesse sistema
formando uma espécie de circulo vicioso do qual muitos se sentem libertos
durante os momentos de euforia e êxtase espiritual proporcionados por essa nova
forma, espontânea e emotiva, de adorar o Deus imanente elaborada pelas igrejas
neopentecostais.
Nessa perspectiva o estilo musical praticado por esse segmento religioso
significa uma porta aberta para o caminho que conduz o fiel ao encontro espiritual
e pessoal com o seu “criador”. Para o membro de uma igreja neopentecostal
cantar com júbilo ao Senhor não significa apenas mais uma forma de adorá-lo,
pois significa também uma forma de satisfazer-se espiritualmente graças ao
encontro com o divino viabilizado pelo louvor festivo e, segundo afirmam, não é
possível praticar esse tipo de louvor com uma música “morta”, descontextualizada
ou com os antigos hinos dos tradicionais hinários. É preciso inovar e
contextualizar enfim é preciso oferecer um ntico novo ao senhor consciente de
que esse novo cântico não o agrada, mas, principalmente, beneficia o ofertante
porque proporciona-lhe a “plena liberdade” que a sociedade lhe nega.
Desfrutar sozinho desse prazeroso encontro com o divino que conduz à
liberdade é egoísmo, em outras palavras, o contribuir para que seu semelhante
desfrute do mesmo prazer é uma atitude pecaminosa. Neste contexto cantar com
júbilo ao senhor significa também abrir a porta para que outros trilhem o mesmo
caminho até que também se encontrem intimamente com o criador, ou seja, esse
cantar jubiloso é também uma forma agradável de divulgar e, conseqüentemente,
de expandir a fé neopentecostal.
Motivadas por essa concepção igrejas neopentecostais goianas como a
Igreja Aposlica Ministério Fonte da Vida e a Igreja Internacional da Paz
148
Ministério Luz Para os Povos, compõem, cantam, gravam cds, organizam shows
ou eventos musicais para divulgarem sua jubilosa música e com isso atrair,
converter e manter fiéis em suas congregações demonstrando com isso que, nessa
cidade, essa sica contribui de forma relevante com o crescimento do
neopentecostalismo.
“Vinde e cantai com júbilo ao Senhor”: um convite para conversão
feito pelas igrejas goianas Luz Para os Povos e Fonte da Vida.
“Venha, participe desse grande louvor e desse encontro espiritual com o
Senhor!” Esse convite e outros tantos com o mesmo apelo são constantemente
pronunciados pelos dirigentes de louvor das igrejas Luz Para os Povos e Fonte da
Vida durante os minutos de adoração musical que em todos os cultos antecedem
o pronunciamento do sermão.
Nessas duas igrejas a música tem lugar de destaque, pois seus dirigentes
reconhecem a influência que ela exerce não só entre a juventude cristã, mas
também na sociedade de modo geral. A linguagem musical, segundo afirmam,
atinge diretamente as emoções humanas e alcança, no coração humano, o “ponto”
que o sermão pregado não consegue alcançar.
Devido ao forte poder de atratividade exercido pela música, os dirigentes
dessas igrejas organizam constantemente eventos ou congressos evangelísticos
onde a utilizam como principal instrumento de apoio durante o apelo para a
“entrega” da vida a Jesus, ou seja, para a conversão.
Nos cultos ou eventos organizados por essas igrejas após aproximadamente
quarenta minutos de apelativo louvor musical quando, dependendo do tipo de
evento e do lugar em que es sendo realizado, se canta canções religiosas
149
compostas a partir dos mais variados tipos de ritmos populares contemporâneos
o pastor assume o lpito, que mais parece um palco, e durante aproximadamente
mais quarenta ou cinqüenta minutos apresenta seu sero que também é apelativo
e em seguida um grupo, uma banda ou um cantor solista apresenta uma música
com uma letra que, em geral, faz alusão ao tema do sermão ou que convida
claramente à conversão ou a reconsagração.
Essas músicas, diferentes das músicas cantadas durante o louvor, o entre
eles conhecidas como música de adoração e seu ritmo predominante é o pop ou
rock românico. Em geral a letra e melodia dessas músicas são repetitivas como
exemplifica o trecho da canção Anda com Deus gravada pelo Ministério Fonte da
Vida de Adoração
91
:
Anda com Deus
Segura na mão de Deus
O choro de uma noite
Se acaba de manhã, Deus tem vitória,
Busca o amor, busca o perdão
Busca o poder, e muita unção
A vitória é garantida
A promessa não falha
Ele vai te abençoar
Ele vai te abençoar
Ele vai te abençoar
Destaca-se ainda que além dessas sicas possuírem letras e frases
melódicas repetitivas, suas execuções na parte final do culto são também
exaustivamente repetidas até que se termine o apelo à conversão feito pelo pastor,
91
O Ministério Fonte da Vida de Adoração é um grupo musical responsável pelo louvor ou pela música da Igreja
Fonte da Vida. Esse grupo possui vários cds gravado sendo o mais recente intitulado como Apaixonado.
150
fato que, geralmente, só ocorre quando alguém se manifesta favorável a esse
apelo. Isso leva a concluir que a conversão de muitas pessoas na doutrina dessas
igrejas é movida pela emoção proporcionada pela sica, ou seja, o é fruto de
uma decisão “racional”, pois é sabido que a constante repetição melódica e textual
de uma música, principalmente se ocorrida em altura elevada, exerce forte
influência na mente dos indivíduos durante o processo de tomada de decisões ou
de escolhas.
A história da expansão da igreja Luz Para os Povos em Goiânia é marcada
pela forte influência que o estilo musical adotado por essa igreja exerceu nesse
processo. Fundada nessa capital no início da cada de 1970 pelo pastor Sinomar
Fernandes, natural de Apolis GO, essa igreja possui atualmente vários grupos
musicais conjuntos, corais ou bandas sendo a banda Ministério Para Tua
Glória o grupo musical oficial dessa igreja em Goiânia.
Os grupos musicais da Luz Para os Povos são organizados para dirigirem o
louvor nos cultos oficiais das imeras unidades dessa denominação religiosa.
Entretanto, além de atuarem nesses cultos, esses grupos atuam também nos
congressos evangesticos e nos congressos especiais realizados para a juventude.
No início dos eventos realizados pela Luz Para os Povos, principalmente os
que são realizados fora do templo como exemplo os congressos que em geral
são realizados em ginásios esportivos músicas religiosas com ritmos populares
contemporâneos como rock, funk, axé e pop o freqüentemente apresentadas ou
cantadas pelos que estão presentes conforme exemplifica a canção Ele Vem
92
do
cantor gospel Gerson Freire que se segue:
Ele Vem
92
Essa música corresponde à faixa 2 do cd Ele Vem do cantor gospel Gerson Freire. Gerson além de ser teólogo é
graduado em sica e em História pela PUC de Minas Gerais. Gravou inúmeros cds através de seu Ministério
Geração Profética os quais possuem grande aceitação entre os evangélicos pentecostais e neopentecostais.
151
O tempo de cantar chegou! O tempo de adorar chegou!
O tempo de dançar chegou! O tempo de louvar chegou!
E Ele vem, ele vem saltando pelos montes!
Os Seus cabelos, os seus cabelos são brancos como a neve
E no Seus olhos, e no Seus olhos há fogo!!!
Incendeia Senhor o Sua noiva!
Incendeia Senhor a Sua igreja!
Incendeia Senhor a sua casa!
Vem me incendiar!
Fonte: http://www.cifras.com.br/cifra/idmusica/37129/keyb/true.htm
Outro exemplo desses estilos musicais freqüentemente cantados durante os
minutos de louvor que antecedem as palestras ou sermões nos eventos e cultos da
Luz Para os Povos é a canção Jesus é demais
93
do grupo Os Nazarenos:
Jesus é de mais muito mais
Pode salvar você eiee ou se quiser o amor ooo
É só nele crer
Jesus é vida eterna
É vida pra você
Transforma a sua vida
Basta só você querer! Querer se fortalecer
Naquele que me fortalece
Naquele que se entregou eiee, por você, vo, você, você, você...
Não adianta tentar fugir dos olhos de Deus
Ele te ama
Ele te chama venha my son você é meu
93
Essa sica corresponde à faixa 4 do cd O maior barato do grupo gospel os Nazareno. Esse álbum possui
composições no estilo hepp, funk, rock e outros que são cantadas em várias denominações neopentecostais,
inclusive na Luz Para os Povos e Fonte da Vida.
152
Essas duas músicas não só atestam a utilização de ritmos populares
contemporâneos em composições neopentecostais como também revelam em suas
letras o forte apelo à conversão, presente em quase todas as músicas religiosas
cantadas ou compostas não só pelos grupos musicais da Igreja Luz Para os Povos,
mas também pelas demais igrejas desse segmento religioso.
No final dos eventos produzidos pela Luz Para os Povos, ocorre à
apresentação das sicas de adoração cujo ritmo popular dominante é o rock
romântico e, conforme explicitado, essas músicas são apresentadas repetidas
vezes durante o apelo pastoral até que muitos simpatizantes ou curiosos decidam
“entregar a vida a Jesus.
Após tomarem a decisão de “entregarem a vida a Cristo” movidas pela
influência da música e pelo forte e emotivo apelo pastoral essas pessoas são
visitadas em suas residências por membros dessa denominação religiosa
encarregados de lhes ensinar as doutrinas e as “verdades bíblicas” defendidas e
praticadas por esse segmento as quais somadas às promessas de vitória espiritual,
emocional e financeira fazem com que tais pessoas ingressem definitivamente
para o rol de membros dessa igreja aumentando assim seu número de fiéis; fato
atestado através de inúmeros depoimentos
94
feitos por membros dessa igreja
exemplificado pelo de Jéssica Ferreira, estudante, vinte e cinco anos e membro da
Luz Para os Povos dede os 19
Eu sempre gostei de música eo entrava em minha cabeça ser crente e
não poder mais cantar, dançar, enfim tudo que eu mais gostava de
fazer... mas eu sentia vontade de ter uma religião que não fosse a
94
Durante a realização dessa pesquisa foram realizadas dezenas de entrevistas com membros da Igreja Luz para os
Povos além de aplicação de questionário com oitenta e cinco pessoas que professam a neopentecostal vinculadas
às Igrejas Luz Para os Povos e Fonte da Vida em Goiânia.
153
católica, eu queria alguma coisa diferente. Um dia decidi entrar na
igreja Luz Para os povos que ficava perto da casa da vovó ali na Fama.
Menina o é que gostei! Voltei mais duas vezes pra ver a apresentação
de dança e na última noite o grupo de louvor cantou o pastor pregou e
no apelo final quando cantaram uma música da Ludmila Ferber eu me
rendi o Senhor me ungiu e eu aceitei seu chamado...depois fui preparada
para o batismo pelo irmão Sandro e sua filha Nara que agora é minha
amiga e hoje sirvo ao Senhor ajudando no louvor da minha igreja
porque foi através dele que o Senhor alcançou meu coração.
95
Ressalte-se, entretanto que o processo de conversão desse novo membro da
Igreja Luz Para os Povos pode ocorrer também de forma inversa da acima
explicitada, ou seja, constatou-se que, em muitos casos, esses novos membros,
antes de suas conversões, receberam orientações bíblicas e doutrinárias de
membros mais antigos dessa igreja em geral parentes vizinhos ou colegas da
escola, da faculdade ou do trabalho e quando possuíam conhecimento
necessário para serem batizados sem, contudo decidirem-se para o mesmo, foram
convidados para um evento (congresso, show gospel ou culto) onde graças à
influência das músicas ali apresentadas, especialmente da música que
acompanhou o apelo pastoral, decidiram “entregar suas vidas a Cristo” batizando-
se nessa igreja e, automaticamente, aumentando assim o mero de seus fiéis. Os
depoimentos que se seguem exemplificam esse processo de conversão:
Luci de Souza, 47 anos, professora na rede blica estadual goiana e
membro da Igreja Luz Para os Povos desde 1989, conta que:
todos os dias minha vizinha falava do amor e salvação de Jesus pra mim
mas eu não me decidia. Ela pregava doutrinava, passava medo, mas eu
ainda não tava nem aí ser crente não era o que eu queria pra mim naquele
95
Entrevista realizada em 28/06/2005
154
momento. Mas um dia minina ela me convidou pra ir num culto na igreja
dela ali na fama e eu fui, não tinha nada pra fazer mesmo, tava de férias.
Mas chegando ouvi aquele povo todo cantando umas músicas alegre e
tão bunitas dançando sem nenhuma malícia pra Jesus, aquilo me tocou de
tal maneira que eu só chorava. E depois quando o pastor pregou e o grupo
musical cantou mais uma música eu me rendi, o pastor convidou a ir lá na
frente todo mundo que tava sentindo o toque do espírito santo no coração
porque ele ia orar por nós e eu fui e tomei a decisão de segui Jesus e no
final daquele mês fui batizada e glória a Jesus tô até hoje do lado dele.
96
Simone de Jesus, 36 anos, costureira e membro da Luz Para os Povos desde
1994 relatando sua conversão conta que
desde que me casei com o Carlim eu ia na Assembléia de Deus pur causa
da família dele eu até me batizei lá mas eu não gostava muito [...]
Quando a gente voltô pra Goiânia uma amiga que era da Luz Para os
Povos começou a pregar pra mim mas eu tinha medo de conhecê a igreja
dela pur causa do meu marido. Um dia teve um congresso pra mocidade
e eu fui. Que povo ungindo sô! Que louvor! A palavra do pastor tocou
meu coração mas eu ainda tava com medo parece que o diabo tava me
amarrando. Minha amiga começou a orar pra eu me libertar quando
a igreja começou a louvar todo mundo cantando Cristo me libertou e eu
atendi o apelo do Senhor purque era ele que tava me chamando. Aceitei
a Jesus e comecei a pregar pro Carlim, pra família dele e pra minha e
graças a Deus quase todo mundo aceitou a Jesus mas minha luta mesmo
é com meu pai ele ainda ta com o coração endurecido mas tamo orando
e Deus ta agindo outro dia ele até disse que gosta das músicas do
Clamor da Noiva é um grupo da minha igreja se você ouvi você vai gostá
é um grupo ungido mesmo!
97
96
Entrevista realizada em 17 de julho de 2004.
97
Entrevista realizada em 14 de Junho de 2006
1
55
Genivaldo Oliveira, contador, 29 anos membro da Luz Para o Povos desde
1998 afirmou em entrevista que
se não fosse o louvor da minha igreja e o trabalho realizado pelo
ministério de dança eu não estaria aqui, foi durante um louvor ungido no
culto de Jovens do sábado a noite na sede da igreja ali na fama que eu
me converti e eu não faço parte dos grupos de louvor porque sou
ainda desafinado mas sei que na hora que o senhor precisar ele vai me
ungir e eu vou pregar o amor dele cantando assim como fizeram comigo
porque eu sei que um louvor feito pra Deus e ungido por ele tem um
poder de quebrar a muralha de qualquer coração, foi assim comigo.
98
E ainda Micon Andersom, estudante, 16 anos e membro da Luz Para Os
Povos desde seu nascimento afirma que:
O que mais gosto na minha igreja é da música eu sou um dos bateristas
do grupo de louvor jovem e vou me formar em sica e depois
organizar um forte ministério musical pra pregar o evangelho em todo o
Brasil e se possível no mundo nossa música vai continuar sendo uma
poderosa arma pro Senhor.
99
Esses são apenas alguns exemplos entre tantos coletados em entrevistas
realizadas com membros da Igreja Luz Para os Povos – que atestam que a música
desempenha um papel decisivo no processo de conversão de muitos novos
membros à esta denominação religiosa demonstrando que ela (a música) tem
98
Entrevista realizada em 14 de abril de 2006.
99
Entrevista realizada em 07 de fevereiro de 2006.
156
contribuído de forma relevante com o crescimento do neopentecostalismo em
Goiânia.
Semelhante processo ocorre na Igreja Fonte da Vida. Fundada em Goiânia
em 1994 pelo apóstolo César Augusto, essa igreja também reconhece a influência
da música não só para alcançar novos membros, mas também para mantê-los
firmes em sua doutrina. A exemplo da Igreja Luz Para os Povos a Fonte da Vida
possui um forte ministério musical que é denominado como Ministério Fonte da
Vida de Adoração. Composto por vários músicos e pastores, esse ministério tem
como lema principal adorar a Deus e difundir a “mensagem da salvação” através
da música.
Essa igreja possui também uma gravadora de cds, conhecida no mercado
fonográfico evangélico como Fonte da Vida Produções, que além de ser a
responsável pela gravação e divulgação das músicas dessa igreja, grava e divulga
também por um preço mais acessível cds de músicos solistas, conjuntos ou
bandas musicais de outras igrejas neopentecostais já que seus dirigentes acreditam
que a música é de fundamental importância na propagação do evangelho.
Assim como ocorre na igreja Luz Para os Povos, na igreja Fonte da Vida a
música possui um lugar de destaque na liturgia estando presente em todos os
cultos, congressos e demais eventos promovidos por essa igreja. Constatou-se,
entretanto que na Fonte da Vida o investimento no setor musical é maior do que
na Luz Para os Povos, pois mesmo que esta possua um ministério musical e um
ministério de dança
100
, a Fonte da Vida possui mais grupos e bandas musicais,
mais cds gravados e significativamente conhecidos no mercado fonográfico
evangélico além de ser a maior organizadora de shows ou de eventos de música
gospel não em Goiânia, mas também em todo estado de Goiás ao mesmo
100
Além de vários grupos, conjuntos ou bandas que fazem parte do seu ministério musical essa igreja possui
também um ministério de dança que além de proporcionar aulas de dança para sua juventude organiza também
espetáculos de dança com temas bíblicos visando pregar o evangelho através dessa manifestação artística.
157
tempo em que participa da organização desses eventos em outros Estados
brasileiros. Um exemplo dessa atuação foi o lançamento, em julho de 2006, do cd
Olha Pra Mim do Ministério Toque no Altar que foi considerado um sucesso pela
liderança da Fonte da Vida. No site dessa igreja foi encontrada a seguinte
reportagem sobre esse evento:
Milhares de cristãos de várias denominações de Goiânia e interior
compareceram ao Goiânia Arena para o lançamento do novo CD do
Ministério Toque no Altar “Olha Pra Mim” - um álbum que reúne
canções de quebrantamento e plica por maior intimidade com o
Senhor. A celebração foi aberta pelo Ministério Fonte da Vida de
Adoração, grupo que marcou presença com alegria e unção, fazendo o
público tirar o do chão e saltar com vigor diante de Deus. O Pr.
Marcos Gregório, líder do Toque no Altar, também ministrou uma
palavra ungida, intitulada “o que você faz quando o u silencia”
baseada na história da mulher que adorou a Jesus, suplicando a
libertação da filha. O encorajamento para os cristãos adorarem a Deus
sob qualquer circunstância preparou os corações para a segunda parte
da ministração. Lágrimas, quebrantamento e muita adoração
completaram a noite, em que várias pessoas reconheceram a soberania
de Cristo e O confessaram como único Senhor.
Fonte: http://www.fontedavida.com.br/index.html
A apresentação musical na Igreja Fonte da Vida ocorre de forma
semelhante a da Igreja Luz Para os Povos: um louvor congregacional antes do
sermão, e uma apresentação musical (conjunto, banda, solo, etc) após o término
do mesmo. Destaca-se que essa música apresentada após o sermão é repetida
várias vezes da seguinte maneira: primeiro como fundo musical durante a oração
158
pastoral, segundo como canto congregacional e finalmente é repetida novamente
como fundo musical durante o apelo pastoral que só termina quando ocorrem
manifestações de conversão ou de reconsagração espiritual.
Em Goiás a Igreja Fonte da Vida possui aproximadamente setenta e cinco
mil membros
101
sendo que cerca de 90% desse número se concentra na capital,
fato que atesta que, na vertente neopentecostal, essa igreja esentre as que mais
crescem não só em Goiânia, mas também em todo Estado. Além disso, a Fonte da
Vida, é uma das igrejas que consegue reunir o maior número de jovens que estão
na faixa etária de dezesseis a trinta anos. Só em sua sede, localizada no setor
Bueno, são realizados, no sábado à noite, dois cultos para esse segmento etário
sendo que cada um conta com a presença aproximada de quatro ou de cinco mil
jovens, isso sem mencionar a significativa presença desse mesmo segmento etário
nos demais cultos jovens, tamm realizados no bado à noite nas demais
unidades dessa igreja em Goiânia bem como nos demais cultos realizados aos
domingos e em outros dias da semana.
As observações realizadas nas unidades da Fonte da Vida espalhadas em
Goiânia atestaram que esses jovens encontram no estilo musical dessa igreja um
motivo para permanecerem na mesma. Segundo afirmam é possível adorar a Deus
em várias igrejas, mas nosso louvor é incomparável afirma Ligia,
massoterapeuta, vinte e quatro anos e membro da Fonte da Vida desde os vinte e
dois e o jovem Wisley, professor de Física, vinte e três anos e membro da Fonte
da Vida desde os dezesseis, afirma que:
Minha esposa e eu até concordamos que alguns aspectos doutrinários da
nossa igreja não têm embasamento bíblico, eu apensei em mudar pra
Igreja Adventista, mas sabe o que ta pegando? Ah meu, a música
101
Esses dados são encontrados no endereço eletrônico http://www.fontedavida.com.br/index.html., site oficial da
Fonte da Vida.
159
adventista é morta, não da o povo canta sem emoção parado, parece que
tão tudo morto...minha esposa não aceita ela adora o louvor da Fonte da
Vida.
102
Outro depoimento que demonstra a importância da música com ritmos
populares entre os membros da igreja Fonte da Vida é o de Célia, também
professora, trinta e dois anos, membro dessa igreja desde 2001, ao afirmar que:
o louvor na nossa igreja é maravilhoso. A gente canta, bate palma,
dança pro Senhor é uma festa só! A música é muito importante na
adoração e se for num estilo jovial e alegre ela atrái a meninada pra
igreja e evita de eles irem pras festas do mundão. Ela é muito importante
no evangelismo. Na nossa igreja nos temos um louvor de
aproximadamente quarenta minutos antes da pregação da palavra e esse
louvor é vibrante e abre o coração pra unção do espírito durante o
sermão... é uma benção sô!
103
Esses jovens entrevistados evidenciam em seus discursos que reconhecem a
importância da música não em relação ao evangelismo, mas também em
relação à sua própria permanência na igreja. Esse reconhecimento não se da
entre os membros, pois o apóstolo César Augusto, fundador e coordenador geral
da Fonte da Vida organiza, orienta e apóia e participa ativamente do ministério
musical de sua igreja, pois acredita que a música é uma arma eficaz na luta contra
o diabo.
No site dessa igreja é possível constatar a forte atuação de seus líderes no
ministério musical da mesma. Constantemente o realizados musicais, eventos
para lançamento de cds ou cultos onde a música tem papel de destaque e
102
Entrevista realizada 29 de março de 2006
103
Entrevista realizada em 18 de agosto de 2005
160
conforme acreditam e afirmam, ela é responsável por curas e conversões. Segue
abaixo trechos de algumas, entre as inúmeras reportagens que demonstram a
“crença da liderança da Fonte da Vida no poder de curar e converterexercido
pela música. O primeiro relacionado faz alusão respeito de conversões ocorridas
movidas pela música Anda com Deus que faz parte do último cd gravado pelo
Ministério Fonte da Vida de Adoração
O Apóstolo César Augusto e Banda da Comunidade de Goiânia
(Ministério Fonte da Vida de Adoração), estiveram durante uma
semana em diversas igrejas e ministérios em São Paulo, entre os dias
07 e 10 de dezembro[...] durante as ministrações. Todas as igrejas
profetizaram "...A vitória é garantida, a promessa não falha. Ele vai
te abençoar..." houve um grande mover profético enquanto essa
canção era ministrada[...] Na Igreja do Nazareno quase 2.500
pessoas receberam a equipe[...] O Apóstolo começou sua ministração
dizendo que "O melhor da nossa vitória ainda espor vir". Quando
encerrou o momento de pregação da palavra, foi feito um apelo e
dezenas de pessoas foram a frente aceitando a Jesus pela primeira
vez e também e muitas se reconciliaram com Deus.
Fonte: http://www.fontedavida.com.br/index.html
O segundo trecho menciona curas físicas ocorridas durante a apresentação
musical:
Na igreja do Pr. Jabes de Alencar houve muita unção. Quando a Banda
ministrava a canção "Melhor de Deus", uma irmã foi curada, ela estava
com o pescoço imóvel, estava usando até um "colete", tinha ido ao
médico mas não tinha melhorado, a unção de cura estava presente na
igreja, ela na hora do louvor foi curada, e saiu dançando na presença do
Senhor [...] O Pr. Jabes consagrou o CD Apaixonado, orou pelas vidas
161
que as canções ungidas irão alcançar, e também agradeceu ao Apóstolo
César Augusto pelas orações e apoio que o Apóstolo ofereceu a ele,
quando seu filho Daian estava enfermo.
Fonte: http://www.fontedavida.com.br/index.html
Nesse próximo trecho é mencionado agora tanto a influência da música na
conversão como também no processo de curas físicas:
O Salão da IFV em Itaberaí foi pequeno para acomodar as mais de mil
pessoas que compareceram à Noite dos Milagres realizada pelo Ap.
César Augusto na sexta-feira, dia 11 de fevereiro[...]. O propósito da
Noite dos Milagres tem sido levar o poder do Senhor e mensagem de
cura e libertação[...] E foi isso que se viu na sexta-feira, enquanto Ap.
César dirigia a ministração da sica Jesus, em que o nome do Senhor é
declarado repetidas vezes, várias pessoas se converteram e se disseram
curadas de problemas que, havia algum tempo, estavam enfrentando.
Dona Neide viu sumir os 5 caroços nos seios que a preocupavam. Graças
a outro milagre, Danilo pode agora dispensar os óculos. A miopia de 5
graus simplesmente deixou de o afetar e ele saiu da Igreja enxergando
tudo.
Fonte: http://www.fontedavida.com.br/index.html
O último trecho de reportagem que se segue menciona não os milageres
e conversões como destaca também a aceitação que a música da Igreja Fonte da
Vida tem entre religiosos de outras denominações:
O Teatro da UERJ no Rio de Janeiro-RJ, foi tomado pela unção de Deus
no lançamento do 7º CD do Ministério Fonte da Vida de Adoração. O
Apóstolo César Augusto também participou do evento, ministrando uma
162
palavra de exortação à busca de santidade na vida cristã. Houve um
momento de grande quebrantamento, quando depois da ministração da
Palavra, a canção Apaixonado foi ministrada pela equipe. Muita gente
de outras denominações foi prestigiar o lançamento do CD no teatro da
UERJ. tima Regina de Niterói, católica, participou e gostou muito.
“Senti uma paz muito grande e a presença de Deus. Este louvor foi muito
abençoado”, disse. Danielle Maria Cunha da Igreja Nova Vida de
Alcântara tamm gostou. “Eu conheci a comunidade de Goiânia depois
daquele CD que tem a Mùsica Move as Águas(CD Seja Exaltado) e sinto
muita unção”, falou e completou: Neste CD novo senti que Deus está
agindo muito forte neste ministério”.
Fonte: http://www.fontedavida.com.br/index.html
Essas, e inúmeras outras “reportagens”, encontradas no site oficial da
Fonte da Vida em Goiânia, ajudam não só a compreender o significado e a
importância da música para esse grupo religioso como também servem para
demonstrar o uso que as igrejas neopentecostais fazem da mesma durante a
realização de eventos que tem por objetivo final a conversão de almas que na
verdade representa aumento do número de seus membros.
Ressalte-se que as atitudes e comportamentos de líderes, membros e
visitantes descritos nessas “reportagens não são exclusividades dos eventos da
igreja Fonte da Vida. Comportamentos e acontecimentos semelhantes, e em
alguns casos iguais, foram percebidos em inúmeras outras igrejas observadas
durante a realização desse trabalho, igrejas essas que pertencem o ao
movimento neopentecostal, mas também a outros movimentos religiosos cristãos,
inclusive os que são considerados como tradicionais. Mais isso é assunto para
uma outra pesquisa, pois acredita-se que aqui ficou evidente que a música
163
neopentecostal, composta a partir da apropriação de ritmos populares
contemporâneos, tem sido utilizada como um importante instrumento de atração e
manutenção de novos fiéis ao seio do neopentecostalismo e conseqüentemente
contribuído com o crescimento dessa vertente religiosa em Goiânia e quiçá no
Brasil e no mundo.
164
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A música religiosa cristã, considerada por muitos e durante muito tempo,
como mais uma forma de expressar louvor e adoração a Deus, sofreu
significativas transformações ao longo da história do cristianismo.
Como herança das práticas religiosas do antigo judaísmo a música religiosa,
durante os primeiros séculos do movimento cristão, refletia a crença em um Deus
todo poderoso, extraordinário, sublime e santo. Sua execução melódica deveria,
no nimo, despertar no adorador o senso de santidade de seu deus. Nenhuma
espécie de associação às formas musicais “profanas” ou seculares seria admitida
no solene ambiente da sinagoga (quando os cristãos ainda se reuniam nela) ou na
igreja antes e depois de sua institucionalização.
Mesmo quando os cristãos reuniam-se em suas próprias casas, onde o culto
assumia características de culto familiar sendo, portanto menos rituastico e
mais informal o canto religioso não deixou de cumprir o papel para o qual fora
instituído: adorar a Deus por sua excelsa grandeza e pelo seu sublime amor ao
pecador revelado através do sacrifício expiatório de Jesus Cristo.
Neste contexto compor, cantar ou ouvir uma música religiosa, quer fosse na
mais solene cerimônia da igreja ou na informalidade dos cultos familiares
realizados em suas casas, significava para o cristão o ato de agradar a Deus e não
a si próprio. Se a música tivesse que ser utilizada como estratégia para atrair os
não cristãos, ela deveria atraí-los então por sua diferença ou oposição aos padrões
musicais da sociedade secular. O não cristão deveria enfim ser atraído ao sagrado
através de uma música que possuísse um significado totalmente sacro e para os
165
primeiros cristãos, ser totalmente sacro era o mesmo que ser totalmente diferente e
oposto à aquilo que consideravam profano.
Mesmo durante os primeiros séculos da era medieval, quando Ambrósio
compôs hinos com formas melódicas semelhantes a das cantigas populares da
época, a música religiosa cristã não perdeu seu significado sacro ou o seu objetivo
de expressar louvor e adoração ao Deus criador e redentor. O próprio Ambrósio
preocupado em manter esse significado e objetivo da música em seus hinos era
contrário ao uso de instrumentos durante a execução dos mesmos por considerá-
los profanos, portanto oposto ao sagrado e por isso impróprios para o culto e
louvor cristão.
No início da era moderna quando se prenunciava a crença em um deus não
somente transcendente, mas também imanente havia a preocupação em adorar a
Deus de forma oposta ao usual profano do período. Mesmo que Lutero também se
apropriasse de formas melódicas semelhantes às formas seculares de sua época,
suas composições musicais conforme explicado também significavam
expressões de louvor, gratidão e adoração que agora ao Deus/Homem que
habitava entre a humanidade justificada por seu sacrifício expiatório.
Entretanto como a sociedade desde então foi gradativamente se tornando
cada vez mais racionalista e cientificista a composição musical dos cristãos
também foi sendo lentamente influenciada pelas transformações que ocorriam na
sociedade.
Durante os movimentos de reavivamento ocorridos a partir do século XVIII
que culminaram como o movimento espiritual dos séculos XIX e XX ou com o
nascimento e fortalecimento do pentecostalismo e neopentecostalismo, a música
religiosa foi assumindo novas formas e significados até que deixasse de ser
exclusivamente símbolo de adoração passando a ser vista também como uma
166
forma emotiva e coletiva de expressar a e os demais sentimentos religiosos do
ser humano.
A música religiosa passou, desde então, a incentivar a participação individual
dos membros de uma igreja, pois graças a ela (música) todos podem tomar parte
ativa no culto. Isso fez com que o membro deixasse de ser apenas meros
expectadores de um culto formalmente realizado para ser co-participantes de um
“espetáculo religioso”. Se no passado a música era uma forma de preparar os fiéis
para a adoração e para a leitura de textos sagrados ou bíblicos, hoje ela significa
para o membro envolver-se intrinsecamente nos eventos realizados por sua igreja.
Se na antiguidade e na era medieval Davi e os “pais da igreja a
profissionalizaram, hoje o crente, precisa apenas da “unção” ou do “dom” do
Espírito Santo para cantá-la ou compô-la e no que se refere à execução
instrumental ele precisa apenas de algumas lições ou aulas práticas para o fazê-lo.
Tal situação é na verdade proporcionado pela simplicidade da estrutura tmica e
melódica dessa composição religiosa e também pelo fato de sua transcrição ser
sempre em cifras que são facilmente apreendidas bem como pelo fato dos
instrumentos, que hoje fazem parte do acompanhamento instrumental de tais
músicas, serem basicamente a guitarra, o baixo e a bateria os quais dispensam um
estudo minucioso e prolongado.
Ressalta-se que a rapidez com que aprendem a tocar é interpretado pelo
crente neopentecostal como um dom ou unção do Espírito e nunca como uma
facilidade própria da escrita cifrada, da melodia simplificada e do instrumento
basicamente de percussão.
Neste contexto a atual composição musical neopentecostal assume também
um sentido de autonomia e condução do Espírito em uma espécie de relão
dialética deixando de ser controlada pela hierarquia das igrejas como se fosse um
167
dogma para ser, entre outras coisas, um bem comum entre os evangélicos ou na
pior das hipóteses, um objeto de consumo cristão.
O fato de ter se transformado nesse bem comum tem feito com que a
música religiosa seja diariamente produzida sem muito rigor técnico ou com
pouca preocupação quanto à qualidade de sua estrutura rítmica harnica e
melódica fatos que a aproximam mais ainda do estilo que lhe serviu de inspiração:
o popular contemporâneo.
Vários fatores se relacionam a esse processo de transformação da
composição musical conduzido pelo movimento neopentecostal. Entre eles estão,
primeiro, a visão imanente de um Deus que se aproxima do pecador e que aceita a
sua forma espontânea de o “adorarao invés de estabelecer a forma como que ser
adorado, conforme ensinavam os cristãos que “enxergavam” a Deus como um ser
exclusivamente transcendente. Segundo é inegável a existência da necessidade de
louvar a Deus cantando uma música que esteja de acordo com o padrão cultural de
cada povo e não somente com o padrão cultural europeu ou norte americano.
Finalmente, também o se pode negar o fato de que, entre a maioria cristã, a
música deve ser utilizada como forma de protesto contra as armadilhas do diabo, e
segundo os defensores desse argumento, não é passível protestar com a hinologia
do século XIX, é preciso se apropriar das armas do diabo, ou seja, os ritmos que
ele “criou” e transformá-las, com o texto religioso, para finalmente vence-lo nessa
batalha espiritual.
Mas resta ainda atentar para o fato de que por trás dessa situação, de nova
cosmovisão divina, de busca de identidades ou de protestos contra a ordem
espiritual das hostes do inimigo está, também a busca de novos símbolos ou
significados para a vida. Ao fazer com que a sica deixe de ser apenas mais um
instrumento de adoração para transformá-la em instrumento de atração e
manutenção de novos membros, as igrejas neopentecostais estão oferecendo aos
168
seus seguidores a oportunidade de se sentirem ungidos e separados para o senhor
o que na verdade em sua mente significa salvação.
Devido à transformação pela qual passou a música religiosa cristã, ela hoje
tem exercido forte influência quando indivíduos buscam respostas para
indagações de sua mente referentes não só à vida presente, mas também referente
à vida futura que lhe é incógnita, fato que provoca nos indivíduos certa ansiedade.
Neste contexto de busca de respostas para o desconhecido a atual
composição musical neopentecostal, festiva e jubilosa, consegue atingir e agir no
emocional humano e em muitos casos conduz o indivíduo a um êxtase espiritual,
que para muitos é extremamente agradável, pois proporciona a almejada sensação
de plena liberdade fazendo-o decidir-se então em favor do movimento religioso
que lhe oferece esse prazer espiritual, que o alimenta e que até o mantém “vivo”.
Arrisco a dizer que como em um vício esse individuo se prende emocionalmente a
essa fé engrossando as fileiras dos que cantam jubilosamente ao senhor sem,
contudo entender a razão do que estão fazendo, mas ainda assim, continuam
fazendo. Finalmente, esse indivíduo, convida e incentiva outros a fazerem o
mesmo, ou seja, “cantar com júbilo ao Senhor”, em outras palavras, ele os
convida a fazerem parte da sua igreja porque isso significa ou simboliza uão do
Espírito que para ele é sinônimo de aceitação divina e, conseqüentemente, de
salvação.
E assim, cantando jubilosamente ao Senhor, cresce continuamente o
número das igrejas e dos membros do movimento neopentecostal em Goiânia, e
porque não arriscarmos em pensar que tal fato acontece no Brasil e no mundo?
Não é assim que surgem novos objetos e, conseqüentemente, “nascem” novas
pesquisas históricas?
169
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