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Katarina Wolter
Afinidades entre a forma ensaística e a filosofia cética em Michel de
Montaigne e David Hume
Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Ciência Política.
Banca Examinadora:
Prof. Paulo Tunhas
Prof. Renato Lessa
Prof. Ricardo Benzaquen
Rio de Janeiro, Junho de 2006
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Índice
Introdução 7
Capítulo I – Uma Introdução ao Ceticismo antigo
1) As duas escolas: ceticismo acadêmico e pirrônico 10
2) A formulação teórica do ceticismo pirrônico 12
3) Os 18 Modos 14
4) O elogio da vida comum e o ceticismo como modo de vida 20
Capítulo II – Os Ensaios como pintura do “moi” de Michel de Montaigne
1) Introdução 23
2) A publicação dos Ensaios 24
3) A faceta cética de Montaigne 25
4) Retomada dos argumentos céticos no Renascimento 26
5) A Apologia de Raymond Sebond 29
6) A pintura do “eu” de Montaigne 41
7) A “arte” de Montaigne e a forma dos Ensaios 49
8) O estilo natural e vívido de Montaigne 58
9) A fortuna dos Ensaios 63
Capítulo III – David Hume e o ensaio como filosofia da “common life”
1) Introdução 66
2) O Tratado da Natureza Humana 68
3) A crítica à falsa filosofia 72
4) O ceticismo mitigado 75
5) As influências de Newton e o método experimental 79
6) A recepção do Tratado da Natureza Humana 81
2
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7) A decisão de escrever os Ensaios 83
8) A percepção da variedade e a retórica dialética 88
Considerações Finais 95
Referências Bibliográficas 98
3
Resumo
O presente trabalho se propõe a compreender a eleição de Michel de Montaigne e
David Hume pela forma ensaística como maneira mais adequada de expressar suas
reflexões filosóficas. Como será visto, tal escolha, longe de consistir numa mera
coincidência, mantém uma íntima relação com a faceta cética de ambos os autores. Ainda
que a crise pirrônica tenha provocado atitudes diferentes e conferido aos Essais
montaigneanos traços distintos daqueles presentes nos Essays de Hume, pode-se notar
uma semelhança no significado que esta forma literária adquire para ambos os autores. O
ensaio representaria, portanto, não apenas uma escrita que se situa na fronteira entre a
arte e a ciência; ele expressa, acima de tudo, o modo de vida cético, o reconhecimento da
pluralidade de mundos possíveis e o elogio da linguagem comum.
4
Agradecimentos
Ao meu orientador, professor Renato Lessa, pelo incentivo e estímulo constante.
Aos professores Paulo Tunhas e Ricardo Benzaquen, pelos preciosos comentários.
À minha mãe, pela crença inabalável em mim.
À CAPES pelo apoio financeiro.
5
É preciso contentar-nos com a luz que apraz ao Sol transmitir-nos com seus raios;
e quem erguer os olhos para receber no próprio corpo uma luz maior
1
não ache estranho se, como castigo por sua fatuidade, perder assim a visão.
O ar é rarefeito demais para se respirar quando
2
está acima dos ventos e das nuvens da atmosfera.
1
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 32, 324.
2
HUME, D. 2004a, 300.
6
Introdução
3
Há várias formas de se fazer mundos. O conhecimento, assim como a arte,
consiste em um tipo de construção de “versões-de-mundos”. Mas, já que construções e
mundo são uma e a mesma coisa, criamos não apenas versões, mas os próprios mundos.
Não há só uma versão, senão várias e, portanto, não há apenas um, mas múltiplos
mundos. O fato de tanto a ciência como a arte terem como tarefa essencial a construção
de mundos não significa que ambas sejam idênticas. Ao contrário, são bastante
diferentes, sobretudo quanto aos processos simbólicos utilizados. As versões-de-mundos
da ciência são construídas a partir de processos denotativos literais, cujos símbolos têm
geralmente referência única e precisa. Isto porque a ciência favorece os sistemas que
pressupõem a determinabilidade dos resultados experimentais e o acordo da comunidade
científica. A arte, por sua vez, privilegia a diferença das sensibilidades e opera em larga
medida através de meios não literais e não denotativos. A ambigüidade e a referência
múltipla e complexa, que seriam defeitos científicos, podem ser aqui qualidades estéticas.
Em The Theory of the Essay Robert Kauffmann discute o estatuto ontológico do
gênero literário do ensaio e se pergunta se a existência de um tipo ideal não consiste
numa ilusão ótica derivada do vício de sistematização de teorias essencialistas. Segundo
este autor, é difícil compreender os ensaios de Montaigne, Locke, Bacon e Hume a partir
de um mesmo tipo lógico e literário. Clearly, there are essays, but is there an Essay, an
ideal type to which all its empirical instances conform?
4
Os problemas de classificação
não estão restritos aos ensaios, mas se difundem por todas as tentativas de estabelecer os
limites que separam os diferentes gêneros. O tipo lógico-literário assumido no âmbito
deste trabalho define o ensaio como forma cognitiva que se coloca na fronteira entre a
arte e a ciência. Trata-se de uma escrita que se utiliza da combinação de meios literais e
não literais, cujas referências podem ser tanto precisas, como ambíguas. O ensaísta se
reconhece aqui como um contribuinte das inúmeras versões-de-mundo possíveis e não
aspira propriamente ao estabelecimento da verdade, já que esta, considerada um servo
dócil e obediente, seria um critério demasiadamente paralisante para qualquer fazedor de
3
Esta discussão se encontra sobretudo em “Palavras, obras, mundos” de Nelson Goodman. GOODMAN,
N. 1995.
4
KAUFFMANN, R. L. 1981, 5.
7
mundos. O que está (ou deve estar) em jogo na construção de mundos não é tanto a
verdade, senão a pertinência. Conhecer não pode ser exclusivamente ou mesmo
primeiramente uma questão de determinar o que é verdadeiro. A descoberta equivale
frequentemente, como quando eu coloco uma peça num puzzle, não a chegar a uma
proposição para declarar ou defender, mas encontrar uma adequação.
5
Partindo desta perspectiva sobre a escrita do ensaio, será discutido, neste trabalho
o lugar que tal “construção de mundo” ocupa na filosofia de Michel de Montaigne e na de
David Hume. Não pretendo dar conta de toda a história da escrita de ensaios (até porque
há várias possíveis) e tampouco compreender a vastidão da discussão especificamente
literária em torno deste assunto. O objetivo deste estudo se constitui tão somente pela
investigação da relação que tal escrita mantém com o ceticismo dos dois filósofos
destacados. Isto porque, como será visto mais adiante, a decisão tomada por ambos os
autores de expressar suas reflexões por meio de ensaios não consiste numa mera
coincidência. Trata-se, ao contrário, de uma escolha consciente que está intimamente
relacionada com uma visão predominantemente cética do mundo.
No primeiro capítulo será feita uma breve aproximação da filosofia cética antiga.
Tal introdução deve permitir uma familiarização com os argumentos originais e certos
conceitos que são cruciais para a compreensão da discussão cética moderna, presente nas
obras de Michel de Montaigne e de David Hume. Será levada em conta principalmente a
corrente cética pirrônica, já que foi esta a que mais diretamente influenciou tanto o
pensador gascão como o filósofo escocês.
Logo em seguida será tratada a filosofia do pai do ensaio moderno. A atividade
literária de Michel de Montaigne é praticamente toda constituída pela escrita dos Ensaios,
onde o pensamento amiúde se confunde com suas reflexões artísticas e expressivas. A
grande dificuldade emerge do fato de Montaigne apresentar suas reflexões de maneira
não sistemática e bastante eclética. O esforço em impor uma certa organização a seu
pensamento corre o inevitável risco de “assassinar” ao menos parte do espírito
montaigneano. Tal frustração talvez encontre um consolo no reconhecimento de nossa
incapacidade de abarcar todo e qualquer assunto de forma completa e definitiva. A ênfase
deste estudo em particular recai sobre a faceta cética de Montaigne, optando por deixar
5
GOODMAN, N. 1995, 60.
8
de lado outras influências como a epicurista ou a estóica. Ao contrário de Pierre Villey,
que trata o ceticismo como apenas um momento da filosofia montaigneana, pretendo
defender o pirronismo como uma parte integral de seu conceito de filosofia pessoal.
O último capítulo, por fim, é dedicado à filosofia de David Hume e, em especial,
aos Ensaios Políticos, Morais e Literários. A dificuldade surge aqui não da falta de
sistematização, mas da escassez de comentários e da pouca atenção que, em geral, é
destinada aos ensaios humeanos. O olhar costuma estar mais voltado ao Tratado e às suas
obras propriamente filosóficas, que aos escritos dedicados ao exercício filosófico público.
Mas, como diria o próprio Hume, a percepção da possibilidade de fracasso não deve
impedir-nos de seguir investigando. Deve, ao contrário, representar um estímulo
adicional. Não há que se renunciar diante da ignorância, até porque tal atitude poderia ser
considerada mais precipitada e dogmática que a mais ousada e afirmativa filosofia, que
já tenha tentado impor suas rudes doutrinas e princípios à humanidade.
6
A despeito das particularidades de cada um dos autores, o reconhecimento de
alguns pontos em comum permite o estabelecimento de uma definição mínima do
significado literário e cognitivo do ensaio. Como será visto, a compreensão da recusa por
parte de tais céticos de todo o tipo de dogmatismo, da afirmação dos precários
fundamentos do conhecimento humano e da limitação de suas investigações ao mundo
fenomênico é fundamental para o entendimento da relação que o ensaio mantém com
suas reflexões filosóficas. Este gênero não consistiria mais apenas numa escrita que se
coloca na fronteira que separa a ciência da arte, mas constituiria a forma literária por
excelência do cético, na medida em que significa uma escrita pessoal e não definitiva,
que representa a negação do pensamento dogmático e acima de tudo a continuação da
investigação.
6
HUME, D. 2004, 31.
9
Uma Introdução ao Ceticismo antigo
As duas escolas: ceticismo acadêmico e pirrônico
A filosofia cética como concepção filosófica teve sua origem no pensamento
grego antigo e pode ser dividida grosso modo em duas tradições distintas
7
: o ceticismo
acadêmico e o pirrônico. O ceticismo acadêmico desenvolveu-se por volta do terceiro
século a.C. a partir da Academia de Platão. Baseando-se em argumentos socráticos, tais
como “só sei que nada sei”, estes filósofos estabeleciam que nenhuma forma de
conhecimento seria possível. Formulados sob liderança principal de Arcesilau (315-240
a. C.) e Carneades (214-129 a. C.), tais teses nos foram transmitidas sobretudo pelas
obras de Cícero, Diógenes Laércio e Santo Agostinho, que pretendiam demonstrar que os
filósofos dogmáticos não poderiam conhecer com certeza absoluta aquilo que afirmavam
conhecer, ou seja, não poderiam afirmar qualquer tipo de verdade sobre a real natureza
das coisas. Ao contrário do pirronismo, que teve por rivais as questões remanescentes
das escolas gregas clássicas, o ceticismo acadêmico pode ser tomado como atividade
filosófica dirigida prioritariamente ao estoicismo.
8
Com a escola acadêmica, o ceticismo
torna-se parte de uma “filosofia professional” essencialmente crítica. Ao defenderem a
impossibilidade de se alcançar qualquer tipo de certeza, os céticos acadêmicos afirmavam
que qualquer conhecimento poderia ser apenas provável e, portanto, não constituiria mais
que uma opinião.
O movimento pirrônico, por sua vez, teve aparentemente seu início com Pirro de
Élis (~ 360 a.C – 270 a.C.) e seu discípulo Tímon. Assim como Sócrates, Pirro teria
exercido intensa atividade pedagógica sem deixar qualquer testemunho escrito. As
escassas informações existentes acerca deste personagem o relatam como um modelo
vivo do modo de vida cético, que se mantinha apartado das infindáveis disputas em que
se envolviam os filósofos dogmáticos. De acordo com Tímon, Pirro teria abraçado
radicalmente o ceticismo, tendo rejeitado todo o tipo de crença e desfrutado, como
conseqüência, de uma vida isenta de perturbações. Segundo Sexto Empírico, Pyrrho
appears to us to have applied himself to skepticism more thoroughly and more
7
A distinção entre estas duas tradições é freqüentemente exagerada. Mas, a despeito da pequena distância
que separa essas duas escolas, este esquema serve no sentido de ordenar um pouco a filosofa cética antiga.
8
LESSA, R. 1997, 29.
10
9
conspicuously than his predecessors. O predomínio de uma orientação prática se
evidencia nas prescrições pirronianas que, em geral, visavam mais a configuração de um
modo de vida do que a definição de um sistema filosófico.
Segundo Renato Lessa, o ceticismo pode ser compreendido como um desafio a
formas de pensar o mundo sustentadas pelo Argumento Górgias-1, cuja estrutura formal e
lógica se encontra presente em todos os sistemas dogmáticos de reflexão sobre o mundo.
A partir da afirmação do conhecimento certo e da existência de uma dimensão ontológica
objetiva, cuja compreensão pode ser comunicada de forma segura e incontroversa, tal
argumento estabelece um otimismo epistemológico posto à prova pelo ceticismo. Os
céticos se comportam de forma singular, na medida em que rejeitam qualquer tipo de
proposição assertória e renunciam o recurso a argumentos baseados em dimensões não-
evidentes.
When we say that the skeptic refrains from dogmatizing we do
not use the term ‘dogma’, as some do, in the broader sense of
‘approval of a thing’; but we say that ‘he does not dogmatize’,
using ‘dogma’ in the sense, which some give it, of ‘assent to one
of the nonevident objects of scientific inquiry’; for the
Pyrrhonean philosopher assents to nothing that is nonevident.
10
Ao contrário do ceticismo acadêmico, que chegava a conclusões negativas a partir
de suas dúvidas, o movimento pirrônico preferia optar pela rejeição de qualquer tipo de
afirmação sobre questões que não fossem aparentes. Apenas os fenômenos observáveis
eram considerados dados relevantes, enquanto que o não-evidente não sofria nenhum tipo
de juízo, seja ele positivo ou negativo. Neste sentido, como não há evidência suficiente
ou adequada para afirmar tanto a possibilidade como a impossibilidade do saber, eles
acreditavam ser necessário suspender o juízo sobre todas as questões referentes ao
conhecimento. Os pirrônicos propunham a suspensão do juízo acerca de qualquer
questão em relação à qual houvesse evidências em conflito, incluindo a questão sobre se
podemos ou não conhecer algo.
11
9
SEXTUS EMPIRICUS, 1990, 17.
10
SEXTUS EMPIRICUS, 1990, 19.
11
POPKIN, R. 2000, 15.
11
Torna-se importante ressaltar que o termo “ceticismo” deriva da palavra grega
skepsis”, que significa investigação, pesquisa. Segundo Sexto Empírico, a escola cética
pirrônica também era chamada de “zetética”, “efética”, “suspensiva” ou “aporética”.
12
Submergidos na dúvida e incapazes de aderir a qualquer tipo de dogma, os céticos
preferiam optar pela continuação da inquirição. A dúvida não implica necessariamente
uma vida inativa, mas consiste, ao contrário, num convite à ação e ao prosseguimento
investigativo. Segundo Hankinson, este contínuo comportamento indagativo por parte
dos céticos se dá não por uma ansiedade em busca de respostas definitivas, mas
simplesmente porque as questões costumam permanecer em aberto.
13
O cético é, neste
sentido, freqüentemente associado à figura do viajante, àquele sujeito incansável que
percorre caminhos sem se preocupar demasiadamente em chegar a algum lugar
específico.
O ceticismo se constitui, assim, ao mesmo tempo como atitude filosófica de
suspensão diante de embates dogmáticos quanto como convite à ação na vida ordinária e
à investigação no mundo fenomênico. Adhering, then, to appearances we live in
accordance with the normal rules of life, undogmatically, seeing that we cannot remain
wholly inactive.
14
Esta corrente filosófica serve portanto mais como estabelecimento de
um modo de conduta diante da vida, ou seja, como critério de ação no mundo, que como
uma postulação de um padrão de verdade.
A formulação teórica do ceticismo pirrônico
A formulação teórica, formal e substantiva do ceticismo pirrônico foi
desenvolvida por Enesidemo (~ 100 a.C.), que estabeleceu uma série de 18 “tropos” ou
procedimentos que levariam à suspensão do juízo (epoché) e, posteriormente, à
“ataraxia”, ou seja, à ausência de perturbação. Enquanto o primeiro conjunto desses
argumentos, os Dez Modos, enfatiza o caráter relativo de qualquer percepção a respeito
do mundo, o segundo, os Oito Modos, tem por meta a invalidação de qualquer proposição
causal de corte dogmático, ou seja, que proceda de premissas não observáveis.
12
SEXTUS EMPIRICUS, 1990, 17.
13
HANKINSON, R. J. 1998, 299.
14
SEXTUS EMPIRICUS, 1990, 23.
12
A fonte principal dos céticos pirrônicos são os sobreviventes escritos de Sexto
Empírico (Hipotiposes Pirrônicas e Adversus Mathematicus), sobre quem há pouca
informação além da que atesta que foi médico
15
e que viveu na Alexandria por volta do
segundo século d. C. A importância de tal autor deriva não exatamente de uma suposta
contribuição original às teses céticas, mas sobretudo da sobrevivência de quase toda a sua
obra e da sistematização que desenvolveu dos argumentos de seus antecessores. As
Hipotiposes Pirrônicas, consideradas a suma do ceticismo grego, contêm uma
apresentação da filosofia pirrônica e uma detalhada descrição dos principais Modos do
ceticismo.
Segundo o próprio Sexto Empírico, o ceticismo consiste na atitude mental ou na
habilidade de opor a toda e qualquer proposição uma outra de igual valor.
16
O resultado
do reconhecimento da eqüipolência dos argumentos e razões (isothenéia) nos levaria a
um estado de suspensão de juízo (epoché) e quietude ou imperturbabilidade mental
(ataraxia). A impossibilidade de se assumir qualquer proposição definitiva deriva
sobretudo da natureza indeterminada dos objetos. Em outras palavras, não é dado aos
sujeitos de conhecimento estabelecer de modo incontroverso as propriedades imanentes e
objetivas daquilo que constitui o mundo. Diante de tal natureza indeterminável, é
impossível defender qualquer tipo de juízo definitivo e verdadeiro. Proposições
dogmáticas rivais a respeito da natureza das coisas recebem dosagens justas e idênticas
de indiferença por parte dos céticos.
17
É preciso salientar que a referência pirrônica à natureza das coisas é menos um
juízo a respeito da estrutura objetiva do mundo do que o estabelecimento dos limites do
conhecimento humano. Ou seja, a indeterminação da natureza das coisas deriva mais do
estatuto dos juízos humanos, que de uma situação objetiva do mundo. Neste sentido, não
poderíamos afirmar como as coisas realmente são, senão como elas aparecem a nós.
Assim, embora o cético não possa definir a essência do mel, ele pode afirmar a sua
aparência doce. Diante destas possibilidades limitadas do conhecimento humano, os
fenômenos acabam por se constituir como a única atmosfera cognitiva segura.
15
É interessante notar o vínculo que existia entre a medicina e o ceticismo, sobretudo no período posterior
à Enesidemo. A partir da filosofia cética, a medicina passa a privilegiar em sua arte a observação e a
dimensão empírica. Ver ANNAS, J; BARNES, J. 1985, cap. 2.
16
SEXTUS EMPIRICUS, 1990, 17.
17
LESSA, R. 1997, 42.
13
Os 18 Modos
Os 18 Modos formulados por Enesidemo e retomados por Sexto Empírico
orientam-se a partir de uma questão típica da filosofia helenista, que gira em torno da
possibilidade de conhecimento. A resposta dada pelo ceticismo afirmará sobretudo a
dúvida, a falibilidade intelectual humana e a inconsistência de qualquer critério
dogmático de verdade.
A apresentação dos 18 Modos que se segue visa unicamente a uma introdução
geral à filosofia cética antiga e, portanto, não leva em conta discussões mais específicas e
tampouco as diversas críticas que cada um dos 18 Modos sofreu. A exposição dos
padrões de argumentação que constituem modos de induzir a suspensão do juízo, trazidos
a lume por Sexto Empírico nas Hipotiposes Pirrônicas, parece ser suficiente para a
compreensão geral da argumentação pirrônica, a sua afirmação do primado da
relatividade, o ataque ao dogmatismo e a singular crítica às teorias da causalidade.
O primeiro conjunto pode ser subdividido em três espécies. Os Modos 1, 2, 3 e 4
se referem ao sujeito de conhecimento, os 7 e 10 ao objeto e os Modos 5, 6, 8 e 9 a
ambos. O décimo Modo ocupa um lugar singular neste conjunto, pois se refere a questões
éticas e culturais. Os argumentos levantados estabelecem como um todo o primado da
relatividade e a situação de eqüipolência que, por sua vez, é seguida pela necessidade de
suspensão do juízo. Torna-se necessário enfatizar que a indecidibilidade diz respeito à
escolha de enunciados que associam fenômenos evidentes a esferas não-evidentes. Os
Dez Modos podem, de modo geral, ser representados da seguinte forma:
1) x aparece como F em S;
2) x aparece como F* em S*;
3) não podemos preferir S a S*, ou vice-versa (eqüipolência);
4) não podemos afirmar ou negar que x seja realmente F ou F* (suspensão do juízo)
14
Os Dez Modos
1) Variedade nos animais
A partir do primeiro Modo Sexto Empírico defende que, pelas distintas origens e
pelas diferenças existentes na constituição física dos animais, estes percebem os mesmos
objetos de maneiras distintas. Neste sentido, não poderíamos defender a superioridade
das percepções dos humanos, por exemplo, em relação aos demais animais. Isto porque
não dispomos de evidências adequadas que definam aquele que é de fato capaz de
desvendar a real natureza de um objeto.
2) Diferenças entre os seres humanos
A eqüipolência deriva aqui de nossas próprias diferenças, ou seja, pela
discrepância em relação à alma e ao corpo, ao domínio moral e à “inteligência” humana.
For man, you know, is said to be compounded of two things, soul and body, and in both
these we differ one from another. Segundo Sexto Empírico, o conflito se estabelece na
medida em que as mesmas coisas afetam os homens de forma bastante diferente. A opção
em solucionar a disputa adotando a opinião dos sábios é descartada por Sexto Empírico,
já que nem mesmo eles estão isentos da eterna controvérsia.
3) Diferentes percepções dos sentidos
Neste terceiro modo a eqüipolência se desloca para um único indivíduo, cujos
sentidos percebem os objetos de diferentes maneiras. Assim, se nossa visão percebe a
maçã de uma determinada maneira, o sentido gustativo a registra de outra forma. Como
nenhum sentido é considerado mais compreensivo que outro, a diversidade de registros
perceptuais por parte dos cinco sentidos de um indivíduo levaria, de acordo com Sexto
Empírico, naturalmente à suspensão do juízo.
4) Circunstâncias que afetam o sujeito
De acordo com este Modo, todo e qualquer sujeito é incapaz de perceber qualquer
objeto fora de determinadas circunstâncias. A variação de tais condições pode produzir
num mesmo indivíduo impressões distintas e juízos diversos. A saúde e a doença, o sono
15
e a vigília, a idade, o movimento e o repouso, o amor e o ódio, o medo e a coragem, o
pesar e a alegria são alguns dos estados mencionados por Sexto Empírico, responsáveis
por causar diferentes impressões e juízos. Como não dispomos de um critério capaz de
decidir que juízo é maior portador de verdade devemos, também aqui, suspender o juízo.
5) Posições, intervalos e lugares (ou circunstâncias do objeto)
O quinto Modo se utiliza da mesma argumentação do quarto Modo, referindo-se,
no entanto, ao objeto. Assim como o sujeito, que é constrangido por determinadas
circunstâncias, os objetos só podem ser percebidos se dispostos em posições, distâncias e
lugares específicos. As diferentes circunstâncias em que se encontra um mesmo objeto
produzem distintas impressões no sujeito de conhecimento e tal situação também exige a
suspensão do juízo.
6) Combinações
O sexto Modo enfatiza o domínio coletivo e interacional da experiência
perceptiva. Além dos objetos percebidos encontrarem-se sempre em uma situação
interacional, os mecanismos perceptuais do sujeito também alternam as condições
externas dos mesmos. Tais interações tornam impossível a apreensão pura e a afirmação
da real natureza dos objetos. Em tais condições é preciso, portanto, suspender o juízo.
7) Quantidades
Segundo o sétimo Modo, as impressões e os juízos emitidos pelo sujeito
dependem da quantidade e da composição dos objetos. Como não há quantidades ou
composições ótimas dos objetos, capazes de revelar a natureza objetiva do mundo, é
preciso também aqui suspender o juízo.
8) Relatividade
O oitavo Modo parece ser o mais importante, porque abrange e resume todos os
outros. Como o sexto Modo, este tem como finalidade estabelecer a inerradicável
relatividade da percepção humana, instituída por fatores derivados da ação dos sentidos
16
18
e da disposição própria dos objetos. Segundo Hankinson, a relatividade não constitui a
conclusão do argumento cético, mas a sua premissa. A partir da aparência relativa das
coisas, somos levados à suspensão do juízo acerca da natureza dos objetos.
19
9) Freqüência
De acordo com este Modo, os juízos emitidos pelos sujeitos de conhecimento
estão intimamente relacionados com a constância ou raridade destes mesmos objetos no
mundo fenomênico. Segundo Sexto Empírico, tendemos a valorizar ou desprezar
determinados objetos a partir da sua freqüência na vida cotidiana. Logo, se tivéssemos as
ruas cobertas de ouro, não consideraríamos tal metal tão precioso como de fato o
fazemos. Da mesma maneira, a água não é valorizada do mesmo modo num lugar à beira
do mar, abundante deste elemento, como no deserto.
10) Costumes e Persuasões
Este último Modo é o único que se refere diretamente a questões éticas, já que se
baseia em regras de conduta, leis, crenças lendárias e concepções dogmáticas. A partir de
uma exposição vasta de exemplos de natureza histórica e etnográfica, Sexto Empírico
estabelece a inesgotável variedade cultural humana. Tal percepção da relatividade dos
costumes não deve ser comparada ao relativismo moderno, que estaria mais próximo de
uma consideração dogmática deste último Modo de Sexto Empírico.
Os Oito Modos contra as teorias causais
Este conjunto de Modos consiste numa bateria erística erguida contra as
pretensões dogmáticas de sustentação de certos tipos de causalidade e, ao contrário do
conjunto anterior, não visa prioritariamente a um estado de quietude mental. Os Oito
Modos, cuja formulação também é atribuída à Enesidemo, se encontram nas Hipotiposes
Pirrônicas de Sexto Empírico. Just as we teach the traditional Modes leading to suspense
of judgment, so likewise some Sceptics propound Modes by which we express doubt about
18
LESSA, R. 1997, 65-6.
19
HANKINSON, R. J. 1995, 177-8.
17
the particular ‘aetiologies’, or theories of causation, and thus pull up the Dogmatists
because of the special pride they take in these theories.
20
1) O primeiro Modo afirma que a etiologia, ou explicação causal, ao tratar,
em geral, do domínio não-evidente, é deficiente quanto à confirmação consistente
(epimarturesis) das aparências. Como a realidade escondida é por hipótese não
observável, eles não dispõem de maneiras que os permitam testar e validar suas
inferências.
2) De acordo com este Modo, embora haja de fato uma abundância de formas
pelas quais explicar o caso sob investigação, os etiologistas dogmáticos costumam levar
em conta apenas uma delas. Atribuem freqüentemente aos objetos sob investigação uma
monocausalidade arbitrária, castrando um mundo fenomênico que se constitui, na
realidade, como um universo profundamente plural.
3) A partir deste Modo Sexto Empírico critica o caráter desordenado das
causas que os etiologistas frequentemente imputam a eventos fenomênicos de aspecto
ordenado. Segundo Renato Lessa, o alvo evidente deste argumento é a fabulação
atomista que pretendia explicar o curso ordenado dos eventos naturais pelo movimento
randômico dos átomos.
21
4) O quarto Modo denuncia a falácia analógica de etiologistas que, partindo
da dimensão aparente, crêem poder afirmar relações causais referentes à dimensão não-
aparente. Segundo Hankinson, este Modo consiste num ataque contra um tipo de
“realismo inocente” que pressupõe a identidade entre qualidades fenomênicas
observáveis das coisas e suas reais propriedades.
22
Os epicuristas, por exemplo,
costumam tratar os eventos do mundo como uma conseqüência macroscópica dos eventos
atômicos microscópicos. No entanto, embora seja possível que o não aparente se
comporte da mesma maneira que o aparente, o seu inverso é igualmente possível.
20
SEXTUS EMPIRICUS, 1990, 68.
21
LESSA, R. 1997, 80.
22
HANKINSON, R. J. 1995, 215.
18
5) De acordo com este princípio, os teóricos dogmáticos atribuem causas de
acordo com suas próprias hipóteses e não de acordo com métodos publicamente aceitos.
Segundo Renato Lessa, este Modo assinala diferentes problemas: (i) o já mencionado
caráter idiossincrático da atribuição de causas; (ii) o peso das circunstâncias que afetam
o sujeito na definição de hipóteses, e (iii) uma antecipação do Modo agripiano das
Hipóteses.
23
Tal Modo retoma, portanto, a questão do constrangimento das circunstâncias
sofrida pelo sujeito no ato de conhecimento. Enquanto os céticos reconhecem e afirmam
tais limites impostos pelas condições ordinárias, os dogmáticos, ao contrário, tendem a
recusá-los e se esforçam por ignorar o domínio compartilhado por todos os homens.
6) Segundo este princípio da seletividade, os etiologistas dogmáticos
costumam assumir apenas exemplos e fatos que corroboram suas teses, rejeitando aqueles
que as contradizem. Os dogmáticos, além de esotéricos, monocausais e
idiossincraticamente hipotéticos, têm a sua disposição a possibilidade de adotar um
comportamento seletivo na definição de evidências.
24
7) Este princípio da inconsistência parece ter sido dirigido aos dogmáticos
imperitos, por estes assumirem causas que se opõem claramente não apenas às
aparências, mas inclusive às suas próprias hipóteses.
8) Segundo este Modo, coisas que são tidas como aparentes não passam de
interpretações de fenômenos que estão previamente a favor de um determinado tipo de
explicação causal. Diante da dúvida posta pelo próprio mundo fenomênico, os
dogmáticos fazem uso de referências ao domínio não evidente e trocam, segundo os
céticos, o duvidoso pelo mais duvidoso ainda.
23
LESSA, R. 1997, 82-3.
24
LESSA, R. 1997, 85.
19
O elogio da vida comum e o ceticismo como modo de vida
Como mencionado anteriormente, diante do amplo cenário marcado pela
indecidibilidade, os céticos preferem definir o mundo fenomênico como critério
cognitivo e comportamental, aderindo às aparências e vivendo de maneira não dogmática,
de acordo com as regras da vida comum. Como nos resume Lessa, a adoção de um
padrão intelectual não-dogmático tem como contraponto a aceitação das práticas
cognitivas da vida ordinária, ditadas pelo hábito, e a defesa de uma regra doutrinária
que faz do mundo fenomênico um domínio seguro para o estabelecimento de
proposições.
25
Assim, ao invés de buscar uma realidade metafísica, que estaria
escondida por trás da superfície, os céticos se contentavam em viver de acordo com as
aparências (phainomena), as leis, instituições e costumes correntes. Neste sentido, a
apresentação dos argumentos céticos feita por Sexto Empírico vinha acompanhada por
um elogio da vida comum. For we follow a line of reasoning which, in accordance with
appearances, points us to a life comfortable with the customs of our country and its laws
and institutions, and to our own instinctive feelings.
26
Há um caráter parasitário implícito na filosofia cética antiga, na medida em que
esta agia sempre com o propósito de negar um dogma e jamais no sentido de afirmar uma
verdade. Desta maneira, a filosofia cética só poderia ser entendida a partir de outros
sistemas filosóficos, aos quais ela se opunha.
Skepticism was characterized by its opposition to dogmatism,
which meant the holding of firm beliefs (in Greek, dogmata)
about reality or the making of firm judgments about truth. It can
only be appreciated in comparison and contrast to the rival
dogmatic philosophical schools of the Hellenistic and Roman
eras, the Stoics and the Epicureans, and to the surviving dogmas
of Platonism and Aristotelianism.
27
No entanto, para além do caráter parasitário da filosofia cética, é preciso
reconhecer também o lado terapêutico da mesma, pois, ao colocar em questão a pretensão
implícita em toda afirmação de conhecimento, o ceticismo consiste num verdadeiro
25
LESSA, R. 1997, 24-5.
26
SEXTUS EMPIRICUS, 1990, 21.
27
LAURSEN, J. C. 1992, 16.
20
purgante. O dogmático, ser afligido por uma espécie de doença filosófica, só poderia ser
curado de suas perturbações filosóficas a partir do antídoto fornecido pelo ceticismo.
O veneno pirrônico, levado ao extremo, atinge o próprio ceticismo e torna-se um
purgante de si mesmo, pois, ao que parece, condena todo e qualquer tipo de crença. Se
não temos boas razões para crer em qualquer tipo de argumento (já que a qualquer
proposição pode-se opor uma de igual valor), por que deveríamos crer no ceticismo? É a
partir desta problemática que o ceticismo é muitas vezes considerado uma filosofia de
negação total da crença e paralisante quanto à vida prática. No entanto, o pirronismo aqui
tratado dirige-se sobretudo às pretensões cognitivas não-ordinárias, mantendo intactas as
formas ordinárias e compartilhadas de conhecimento e crença. A conquista da ataraxia
não implicava a adoção de um modo de vida anódino, mas tão-somente a não-
consideração de questões indecidíveis por seres ordinários.
28
Neste sentido, não se opõe necessariamente a crenças em geral e sim a um tipo
específico de crença que é sustentada pelo dogmatismo filosófico. Ou seja, a crítica se
dirige a uma questão teórica, que busca a explicação de fenômenos aparentes a partir de
referências ao domínio não-evidente. O verdadeiro cético move-se, como qualquer outro
sujeito, a partir de crenças e sentimentos quase que instintivos. For the skeptic gives
assent to the feelings which are the necessary results of sense impressions, and he would
not, for example, say when feeling hot or cold ‘I believe that I am not hot or cold’.
29
O cético comporta-se, neste sentido, no interior de uma vida cotidiana marcada
por rituais sociais compartilhados que não são por ele negados; ao contrário, ele os
assume quase involuntariamente. No entanto, ele não se compromete com um pretenso
teor verídico de suas crenças e, portanto, costuma defende-las de forma mais moderada,
dificilmente assumindo uma intensidade passional.
30
É no reconhecimento da variedade
cultural humana e da pluralidade de visões de mundo que o cético se mostra, sem dúvida,
mais tolerante e moderado que qualquer dogmático.
Embora ausente das discussões filosóficas da Idade Média, o ceticismo pirrônico
é redescoberto no século XVI, quando o veneziano Francisco Filelfo traz, de
28
LESSA, R. 1997, 33.
29
SEXTUS EMPIRICUS, 1990, 19.
30
Sobre a discussão acerca da relação entre ceticismo e crença ver HANKINSON, R. e J. 1995, cap. XVII
e XVIII e LAURSEN, J. C. 1992, cap. 3.
21
Constantinopla para a Itália, antigos pergaminhos e manuscritos gregos. Este acidente de
viagem teve como efeito a reintrodução do ceticismo no campo da filosofia ocidental,
após mais de dez séculos de hibernação.
31
Mas, segundo Popkin, o verdadeiro renascer
da discussão cética se deu principalmente com a publicação, em 1562, da edição latina
das Hipotiposes Pirrônicas feita por Henri Estienne, o grande impressor renascentista.
32
Alguns anos mais tarde, em 1569, é publicada ainda uma edição latina de toda a obra de
Sexto pelo pensador francês Gentian Hervet. Foi provavelmente a partir da leitura dessas
edições que Michel de Montaigne entrou em contato com a filosofia pirrônica, que tão
profundamente lhe influenciaria. Tal redescoberta será, porém, melhor tratada no capítulo
seguinte.
31
LESSA, R. 1997, 170.
32
Segundo Popkin, a maior parte das discussões filosóficas que faziam referência ao ceticismo citavam a
corrente acadêmica, provavelmente derivada da leitura da Academica de Cicero. Sobre as idéias pirrônicas,
com exceção de Gian Francesco Pico della Mirandola, não foi descoberto nenhum uso significativo anterior
à publicação de 1562 das Hipotiposes. POPKIN, R. 2000, Prefácio.
22
Os Ensaios como pintura do “moi” de Michel de Montaigne
Introdução
O século XVI foi na Europa ocidental e, particularmente na França, um século no
mínimo intenso, marcado por guerras religiosas fratricidas - que opunham católicos e
protestantes - e por monarquias que lutavam inutilmente contra seu próprio
desvanecimento. Michel de Montaigne nasce em 1533, numa época miserável,
politicamente marcada por tormentas e desordens.
33
Em termos culturais este é o
momento que se encontra no meio do caminho entre a Antigüidade e o florescimento da
época moderna. Já a partir do século XV o humanismo havia começado a se expandir
para além dos territórios de língua italiana, invadindo a França de forma decisiva.
34
Michel de Montaigne absorve intensamente estas influências humanistas vindas da Itália,
o interesse pelos escritos antigos, pela poesia, pela retórica, pela filosofia moral e pelos
estudos históricos. É também nesta época que a concreta unicidade das sensações,
opiniões, experiências e circunstâncias de um indivíduo singular torna-se digna de
expressão. De acordo com Kristeller, a tendência “individualista” encontra a sua mais
cabal expressão filosófica em Montaigne, o qual proclama o seu próprio “eu” como o
tema principal da sua filosofia.
35
O século de Montaigne foi também o século dos descobrimentos e das grandes
navegações, época em que os limites espaciais do mundo pareciam começar a estreitar-se.
O pensador gascão sofreu, desta maneira, influências não apenas do mundo antigo, mas
também daquele que acabava de ser descoberto. O conhecimento de novas terras, de
povos e costumes distintos incentivou nele o desenvolvimento de uma percepção
tolerante e positiva da variedade e da relatividade radical das leis e dos costumes
humanos. Segundo o próprio Montaigne, não há qualidade tão universal quanto a
diversidade e a variedade.
36
Tal constatação marca uma aproximação fundamental com a
33
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 9, 278-9.
34
Sobre a difusão do humanismo na Europa e, especificamente na França ver, respectivamente, os artigos
de Peter Burke e de Jean-Claude Margolin no livro editado por GOODMAN, A e MACKAY, A. 1993.
35
KRISTELLER, P. 1995, 27.
36
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 13, 423.
23
filosofia cética, já que se assemelha ao décimo Modo elencado por Sexto Empírico, ou
seja, ao axioma cosmopolita do ceticismo.
A publicação dos Ensaios
Após algumas décadas dedicadas à vida pública, Michel de Montaigne manda
pintar, em fevereiro de 1571, a primeira inscrição nas vigas de sua biblioteca, marcando o
início de seu retiro intelectual:
L’an du Christ 1571, âgé de treinte-huit ans, la veille des
calendes de mars, anniversaire de sa naissance, Michel de
Montaigne, las depuis longtemps déjà de l’esclavage de la vie de
cour et des charges publiques, en pleines forces encore, se retira
dans le sein des doctes vierges, où en repos et sécurité, il passera
les jours qui lui restent à vivre. Puisse le destin lui permettre de
parfaire cette habitation, ces douces retraites de ses ancêtres
qu’il a consacrées à sa liberté, à sa tranquillité, à ses loisirs.
37
Depois de nove anos de isolamento, são publicados em março de 1580 dois livros
de Les Essais de Michel Seigneur de Montaigne. Como fruto das leituras e reflexões
desenvolvidas por este nobre francês na solidão da torre de seu castelo, estes escritos
constituem a sua contribuição mais pessoal e original à filosofia e à literatura de sua
época.
É no “seio das doutas Musas” que Montaigne pretendia encontrar um refúgio do
teatro da ilusão que é o mundo. Tal recuo absoluto marca um ato inaugural de
estabelecimento de um lugar que é unicamente seu, à distância de tudo que lhe é externo.
Liberto das armadilhas do fingimento, Montaigne se sente à vontade para denunciar um
mundo onde a mentira e a dissimulação se tornaram a moeda corrente. Independente da
vã cerimônia a que a vida pública condena aqueles que lhe estão sujeitos, Montaigne faz-
se espectador da vida dos homens e de si mesmo. Não se trata aqui do desenvolvimento
de uma vida contemplativa em detrimento de uma ativa, pois a eleição do exílio não
implica uma ruptura total com o mundo. O diálogo consigo mesmo e o “estar em si”
preserva o olhar para o exterior. Esta relação ao mesmo tempo de distância e proximidade
37
A versão em francês da inscrição originalmente escrita em latim, língua materna de Michel de
Montaigne, pode ser encontrada em VILLEY, P. 1961, 27.
24
para com o mundo talvez seja um dos primeiros paradoxos resignadamente assumidos
por Montaigne.
Segundo Pierre Villey, o objetivo inicial de Montaigne, ao escrever os ensaios,
era fazer reviver a sabedoria antiga no espírito moderno. Influenciado pelo pai, absorveu
intensamente as tendências humanistas vindas da Itália e aprendeu, desde pequeno, a
dominar o latim como língua materna. Tornou-se um grande leitor dos autores antigos,
sobretudo de Sêneca, Plutarco e Sexto Empírico. No entanto, como conhecido leitor
eclético, Montaigne combinava e justapunha elementos das mais diversas correntes
filosóficas. Logo, não se trata de um autor em cuja obra possamos identificar influências
de uma única tradição filosófica. Ao contrário, a sua obra-prima contém profundas
reflexões pessoais enriquecidas com anedotas e citações extraídas das mais diversas
fontes. Como a razão, o pensamento de Montaigne também é um jarro de duas asas, que
pode ser pego tanto da esquerda como da direita.
38
Serve, assim, como exemplo para
filósofos de quase todas as áreas e cores, com exceção de qualquer tipo de dogmático.
A faceta cética de Montaigne
A evidência da simpatia montaigneana em relação à filosofia pirrônica pode ser
atestada não apenas pelas inúmeras inscrições feitas em sua biblioteca, mas também pelo
fato dele ter mandado cunhar uma medalha que é uma profissão de pirronismo e que
parece pressupor a leitura de Sexto Empírico: nela se vê a balança emblemática, cujos
pratos em equilíbrio representam a inaptidão do julgamento para inclinar-se para uma
solução em vez de outra.
Mas é sobretudo na Apologia de Raymond Sebond que Michel de Montaigne
afirma expressamente a sua inclinação para a filosofia cética antiga. Ao dividir a filosofia
em três ramos principais - dogmáticos, acadêmicos e pirrônicos -, ele afirma não haver na
imaginação humana nada que tenha tanta verossimilhança e utilidade como a terceira. A
filosofia pirrônica, ao apresentar o homem nu e vazio, faz com que ele reconheça a sua
fraqueza natural e o eterno desacordo entre as filosofias. Embora Montaigne mostre uma
preferência pela filosofia pirrônica, é preciso admitir que ele faz com a leitura dos céticos
o mesmo que faz com a leitura de toda a filosofia, ou seja, busca e seleciona aquilo que
38
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 374.
25
lhe agrada, combinando partes e formando um ceticismo pessoal, que não é a cópia exata
nem de Sexto Empírico e menos ainda de Cícero. Nas palavras de Brahami, Montaigne é
um cético eclético, pois embora se declare pirrônico, faz uso de argumentos e citações
que vão de Cícero a Santo Agostinho.
39
Assim, na sua construção da figura do homem,
Montaigne se utiliza tanto de imagens da literatura antiga, como da cristã. Através da
combinação de distintas perspectivas ele consegue, portanto, construir o seu próprio e
singular ponto de vista cético. Desta forma, ele não deve ser considerado um mero
representante do ceticismo antigo, que faz uma transposição literal desta filosofia antiga
aos tempos modernos. A partir da mediação humanista e do contexto de discussão
religiosa, o ceticismo adquire aqui uma contribuição original e um aspecto inédito.
Retomada dos argumentos céticos no Renascimento
A fim de compreender a especificidade da discussão cética montaigneana, é
preciso levar em conta o contexto intelectual em que os argumentos céticos foram
retomados no Ocidente e a profunda transformação que aquela filosofia antiga sofreu
quando da reapropriação feita pelo cristianismo. Este“scepticisme chrétienne” do início
da era moderna consiste na leitura teológica feita dos argumentos céticos antigos e
representa não a negação da crença como um todo, mas sim do dogmatismo filosófico.
Segundo Richard Popkin as tendências céticas da Antigüidade foram praticamente
ignoradas pelo Ocidente durante toda a Idade Média.
40
Quando reaparecem na cena
cultural e intelectual do fim da Renacença, elas são inevitavelmente inseridas no debate
religioso iniciado com a Reforma acerca dos critérios de fé. Esta redescoberta dos
argumentos dos antigos céticos coincidiu, de acordo com ele, com a disputa intelectual
provocada pela Reforma, que se desenrolava em torno do padrão correto do
conhecimento religioso, ou seja da “regra da fé”. Este embate apartava de um lado as
correntes protestantes e de outro representantes e defensores da antiga autoridade da
Igreja. Enquanto Lutero questionava a autoridade da Igreja católica e defendia a
consciência pessoal como novo princípio de conhecimento religioso, Erasmo afirmava a
impossibilidade de se definir um critério capaz de julgar esta disputa e assumia uma
39
BRAHAMI, F. 1997, 6.
40
POPKIN, R. 2000.
26
postura ao mesmo tempo cética e conservadora. Se de um lado Lutero insistia na certeza,
Erasmo se sentia, de outro, incapaz de distinguir o verdadeiro do falso e preferia optar
pela instituição que, durante séculos, vinha sendo responsável pela resolução desta
questão. A crise do Renascimento reavivava o clássico problema do critério de verdade
dos pirrônicos gregos e, embora tenha se iniciado como uma discussão estritamente
religiosa, foi, com o tempo, ganhando claros contornos filosóficos e epistemológicos.
Popkin denomina este cenário de “crise pyrrhonniene”, pelo papel predominante
de Sexto Empírico como fonte direta e indireta de muitos dos argumentos e teorias dos
filósofos desta época. No início do século XV chegam à Europa códices gregos das obras
que integram o corpus sextiano. O primeiro a utilizar plena e explicitamente a
argumentação e a filosofia sextianas é Gian Francesco Pico della Mirandola em seu
Examen Vanitatis Doctrinae Gentium et Veritatis Christianae Disciplinae, publicado em
1520. Segundo Romão, pode-se presenciar, no Examen uma assumida utilização cristã do
pirronismo e da sua argumentação, explorados de forma sistemática e inédita.
41
O
repúdio da filosofia como fonte de conhecimento serve aqui de guia à aceitação da
Verdade revelada e de defesa do conhecimento por via profética.
No entanto, tanto as primeiras traduções para o latim das Hipotiposes Pirrônicas
de Sexto Empírico surgidas por volta do século XIV, quanto os comentários de Pico della
Mirandola tiveram uma repercussão imediata bastante escassa, praticamente nula. De
acordo com Popkin, durante o século XV, as poucas referências ao pensamento cético
estavam ligadas a argumentos da tradição acadêmica, derivadas sobretudo de Cícero,
Diógenes Laércio e Santo Agostinho. Mais influente que a obra de della Mirandola foi,
por exemplo, a De Incertitudine et Vanitate Scientiarum Atque Artium Declamatio
Invectiva do alemão Agrippa von Nettesheim. Nela reaparecem temas e argumentos
céticos num contexto anti-intelectualista de defesa do cristianismo e da verdade da
Sagrada Escritura. Trata-se de um fundamentalismo antiintelectualista que condena todo
o tipo de saber como um pecado, um produto da soberba humana. Embora use
argumentos pirrônicos extraídos de Enesidemo, Agrippa não faz nenhuma referência
direta a Sexto Empírico.
41
ROMÃO, R. B. 2001, 44.
27
Discussões de temas céticos interessadas sobretudo na vertente acadêmica
desenvolveram-se principalmente entre os teólogos fideístas e aqueles que expunham os
limites da capacidade da razão humana, defendendo, em contrapartida, o conhecimento
obtido pela fé. Destacam-se, entre eles, Reginald Pole, Pierre Bunel e Arnould du Ferron.
Outro humanista que parece ter se sentido perturbado pelo fideísmo baseado no ceticismo
acadêmico foi Guilherme Budé. Para ele esta posição lançava dúvidas não apenas quanto
à razão humana, mas também em relação às verdades reveladas. Um interesse ainda mais
desenvolvido pelo pensamento acadêmico se encontra no círculo de Pedro Ramus que,
embora nunca tivesse manifestado uma real adesão ao ceticismo acadêmico, foi acusado
de ser um nouveau academicien. Além de Ramus, faziam parte deste grupo Omer Talon,
que publicou em 1548 uma obra intitulada Academica, que consistia numa apresentação
longa e favorável da visão de Cícero e de seu prolongamento fideísta, e Guy de Bruès,
que escreveu, em 1557, um diálogo (Les Dialogues de Guy de Bruès contre les Nouveaux
Academiciens) que se pretendia uma refutação deste ponto de vista.
Mas, embora demonstrem a relevância das idéias céticas para as discussões em
meados do século XVI, essas primeiras indicações do interesse moderno pelo ceticismo
antigo são consideradas por Popkin como filosoficamente incompetentes. Nenhum deles
parece ter descoberto a verdadeira força do ceticismo antigo, possivelmente porque, à
exceção do jovem Pico, conheceram apenas as apresentações menos filosóficas
encontradas em Cícero e Diógenes Laércio.
42
De qualquer forma, antes da publicação de Sexto Empírico não parecem ter
havido muitas considerações filosóficas sérias sobre o ceticismo. Em 1562 é publicada
por Henri Estienne uma edição latina das Hipotiposes e alguns anos mais tarde, em 1569,
Gentian Hervet, pensador francês da Contra-Reforma, publica toda a obra de Sexto
Empírico em latim. É a partir desses eventos centrais que surgem apresentações mais
consistentes do ponto de vista cético. Até então, o ceticismo ou as suspeitas em relação
ao conhecimento eram defendidas ou por razões de tipo antiintelectual, como as de
Agrippa, ou de tipo histórico, que se contentava em afirmar o eterno desacordo entre os
teóricos. Perspectivas mais filosóficas do ponto de vista cético surgem com Sanchez e
Montaigne, cerca de vinte anos após a primeira edição de Sexto.
42
POPKIN, R. 2000, 73.
28
Francisco Sanchez foi o único cético do século XVI que, além de Montaigne,
alcançou um certo reconhecimento pelo seu tratamento filosófico do ceticismo. Seu Quod
nihil scitur (Que nada se sabe) foi publicado em 1581 e contém uma crítica nominalista
radical. Ao contrário da ciência aristotélica, que opera fundamentalmente com
generalizações e abstrações, o conhecimento defendido pelo médico português deveria
basear-se na compreensão das singularidades particulares. É através da apreensão
imediata e intuitiva de todas as qualidades reais de um objeto que se desenvolveria o
conhecimento genuíno. Sanchez desenvolve seu ceticismo por meio de uma crítica
intelectual do aristotelismo (e uma análise epistemológica sobre a natureza do objeto e
do sujeito do conhecimento), muito mais do que apelando para a história da estupidez
humana ou para a variedade e contrariedade das teorias anteriores.
43
Mas, na retomada do ceticismo grego no século XVI, o pensador que mais
absorveu a nova influência de Sexto Empírico e que usou este material em relação aos
problemas intelectuais de sua época, foi Michel de Montaigne. O grande humanista
francês aparece como o personagem mais importante da retomada do ceticismo antigo no
século XVI, na medida em que mais fortemente sentiu o impacto da teoria pirrônica e a
sua relevância para os debates religiosos da época. Tratar da faceta cética de Montaigne
exige de nós o debruçar-se sobre a Apologia de Raymond Sebond, já que ela constitui o
ensaio onde Montaigne expõe de forma mais “sistemática” os argumentos céticos antigos,
não deixando, contudo, de elaborar suas formulações próprias.
A Apologia de Raymond Sebond
A Apologia de Raymond Sebond consiste no centro filosófico dos Ensaios e, do
ponto de vista formal, aparece quase como um livro dentro do livro. O mais extenso de
todos os ensaios apresenta-se colossal em relação aos outros capítulos e ocupa mais de
um quinto de toda a sua obra ensaística. Montaigne não costuma compor textos tão
longos, mas, apesar de sua extensão, a Apologia não se caracteriza pela desordem como a
maioria de seus ensaios e chega, segundo Romão, a incluir passagens de sabor
tratadista.
44
43
POPKIN, R. 2000, 81.
44
ROMÃO, R. B. 2001, 7.
29
Uma das primeiras incursões de Montaigne no mundo das letras foi a tradução
para o francês da Theologia Naturalis de Raymond Sebond a pedido de seu pai. Este
havia ganhado o livro de um amigo, Pierre Bunel, que o recomendava como sendo muito
útil e adequado para a época, em que as novidades de Lutero começavam a entrar em
voga e a abalar em muitos lugares nossa antiga crença.
45
A fim de realizar a
incumbência que lhe havia dado o melhor pai que jamais existiu
46
, Montaigne traduz a
obra do teólogo espanhol de forma não literal e cumpre a façanha de converter em obra
literária uma que não o era, recheando o discurso monótono de imagens e anedotas e
pondo em prosa plástica e artística a narrativa pesada, escolástica, e árida de Sebond.
A Theologia Naturalis é escrita por Raymond Sebond no século XVI como uma
reação ao contexto de crise espiritual, de decadência e heresia. Mas, ao invés de condenar
simplesmente o humanismo, que estava a ponto de destruir a fé medieval, Sebond adota
uma estratégia otimista e demonstra a concordância fundamental entre este e o
cristianismo. Segundo Brahami, Sebond buscava uma forma de justificar a crença diante
dos ataques dos filósofos que não admitiam a adesão a uma crença sem a prévia
compreensão racional da mesma.
47
Era preciso, portanto, demonstrar que a crença não
pressupunha necessariamente a negação do conhecimento ou da inteligência. A
Theologia Naturalis faz parte de um movimento que buscava a transposição do abismo
que separava a crença do saber e consistia na tentativa de fundar a fé católica na razão.
Seguindo esta tendência, Sebond afirmava a existência de Deus, sua veracidade e a
autoria da Revelação apenas pela razão humana. Esta deveria, por si só, levar o homem a
compreender a necessidade de adesão ao dogma. Ao contrário da apologética e da
maioria dos teólogos que pretendiam defender a fé católica, Sebond faz uso de um
método de dedução racionalista acerca da existência de Deus, que torna dispensável
possíveis referências aos escritos bíblicos.
48
Para prosseguir tal propósito, Sabunde não
lançava mão do recurso à autoridade dos Doutores da Igreja nem procedia a uma
45
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 161.
46
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 162.
47
BRAHAMI, F. 1997, 8.
48
O racionalismo é aqui tão extremado que leva praticamente a uma dissolução da importância da fé que,
segundo Sebond, não tem nada de sobrenatural.
30
exegese bíblica, o que, de facto, desde logo o distinguia da esmagadora maioria dos
exemplares dessa literatura apologética de todas as cores.
49
O ensaio de Michel de Montaigne acerca de Raymond Sebond parece não ter sido
escrito de uma só vez. Segundo Pierre Villey, partes deste ensaio foram escritas por volta
de 1576 e outras partes alguns anos depois.
50
Embora contenha uma dedicatória a uma
figura feminina da aristocracia, esta não é especificada pelo autor. Costuma-se identifica-
la ou com a rainha de Navarra, Margarida de Valois, mulher de Henrique de Navarra,
futuro Henrique IV da França ou com a irmã deste, Catarina de Bourbon. O mais
provável, no entanto, é que Montaigne tenha feito uma referência ao público feminino
como um todo. Isto significa que o autor pretendia escrever a sua Apologia para as
leitoras de Sebond em geral e não para uma dama em particular como no resto da sua
obra.
O que o termo ‘apologia’ então designava, era uma justificação de uma obra, ou
de um autor, com a qual o defensor estava reconhecidamente relacionado.
51
Neste
sentido, a Apologia deveria servir como uma espécie de defesa perante os principais
ataques sofridos por Raymond Sebond. Logo no início do ensaio Montaigne explica o
que o levou a escrever este ensaio:
Achei belas as idéias desse autor, bem composta a estrutura de
sua obra e pleno de piedade seu projeto. Porque muitas pessoas
se ocupam em lê-lo – e principalmente as mulheres, a quem
devemos mais serviço -, amiúde me tenho visto em situação de
socorrê-las, para aliviar seu livro de duas objeções principais
que lhe são feitas.
52
Ao pretender dar conta da polêmica em que se envolvia Sebond, este ensaio se
insere, ao contrário da maioria de seus escritos, neste contexto de discussão teológica do
fim do Renascimento, que abrange a relação entre razão e fé. Montaigne parte de uma
visão fideísta de defesa da religião católica e da autoridade da Igreja e rejeita a tendência
moderna de autonomia do pensamento e da razão humana. Seu pirronismo não declara
49
ROMÃO, R. B. 2001, 30.
50
VILLEY, P. 2000, II, 157.
51
ROMÃO, R. B. 2001, 34.
52
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 163.
31
guerra contra a crença em geral, mas contra o dogmatismo filosófico. A sua leitura cética
acaba por reforçar a crença religiosa tradicional, já que, ao expor a condição humana
natural ignorante, Montaigne estaria preparando o ser humano para receber do alto a fé. O
homem aparece como uma tábula rasa preparada para assumir pelo dedo de Deus as
formas que a este aprouver nela gravar.
53
Desmascara, além disso, a presunçosa ciência
humana e afirma que, se de fato temos alguma participação no conhecimento da verdade,
esta não deriva de nossas próprias forças e sim da revelação divina.
Mas, para além da discussão religiosa, este ensaio afirma, talvez mais do que
qualquer outro, a forte conexão entre Michel de Montaigne e os principais temas do
ceticismo clássico. É nele que o autor estabelece uma série de limites às pretensões de
conhecimento racional e supostamente infalível em torno ao mundo natural e moral.
Como será visto logo adiante, é possível identificar inúmeros argumentos montaigneanos
deste ensaio com vários Modos do ceticismo antigo, expostos por Sexto Empírico nas
Hipotiposes.
Em relação à primeira objeção dirigida a Sebond, sobre a fundamentação da
crença em razões humanas, Montaigne parece dar razão aos críticos de Sebond, já que ao
racionalismo extremado deste, o filósofo gascão contrapõe o irracionalismo. Deus escapa
ao conhecimento humano, pois é impossível expressar em termos mortais coisas imortais.
A fé, como coisa tão divina e elevada, ultrapassa de longe o nosso entendimento e,
portanto, não reside em razões humanas. É por intermédio de nossa ignorância, mais que
de nossa ciência, que somos sábios desse saber divino.
54
Mesmo que seja importante
acompanhar nossa fé de toda razão que existe em nós, é preciso manter a ressalva de não
pensar que seja de nós que ela depende, nem que nossos esforços e argumentos possam
atingir uma tão sobrenatural e divina ciência. Vale ressaltar que o ceticismo de Michel de
Montaigne não pretende atingir a crença de um modo geral ou a religião cristã em
particular, mas tem como alvo principal os modos de conhecimento filosófico. Segundo
Renato Lessa, a Apologia é uma obra literária característica do ceticismo insulador, ou
seja, uma variante do ceticismo que limita a ação da dúvida e da suspensão do juízo a
53
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 260.
54
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 251.
32
questões de natureza filosófica, deixando intocados os modos de conhecimento da vida
ordinária.
55
Em relação à segunda objeção, sobre a fraqueza da argumentação de Sebond,
basta dizer que, para Montaigne, embora a argumentação de Sebond seja passível de
sofrer severas críticas, os seus adversários não apresentam melhores. Se os argumentos de
Sebond são insuficientes, seus adversários nada têm de melhor para opor-lhe.
Embora o ensaio tenha sido escrito supostamente como uma apologia a Raymond
Sebond, o fato é que Montaigne não gasta mais que um punhado de páginas na defesa
dele. Os comentários iniciais sobre a obra do teólogo espanhol são logo deixados de lado
e a maior parte do ensaio é dedicada a discussões, cujas conclusões são opostas àquelas
de Sebond. Embora seu adversário direto não seja precisamente o teólogo espanhol,
Montaigne acaba atingindo-o indiretamente. Mais interessado em desvendar o profundo
labirinto que é o homem, que em tratar de questões religiosas específicas, ele desenrola a
sua discussão a partir da observação fenomênica do ser humano e da maneira em que este
se encontra na natureza.
56
Na primeira parte da Apologia é traçada a famosa comparação – presente também
em Sexto Empírico e Plutarco - entre os homens e os animais, onde ele recoloca o
primeiro em meio à natureza e o “rebaixa” ao nível, senão mais abaixo, dos últimos.
Aquela imagem de um indivíduo enaltecido e senhor da natureza e do mundo é
substituída por um ser humano inseguro, ambígüo, contraditório e frágil, que se aproxima
muito mais da animalidade que de qualquer qualidade divina. Mas, apesar dessa condição
miserável, o ser humano é dotado de uma presunção que lhe foi dada pela natureza quase
como consolo diante desta situação degradante. Embora seja a mais calamitosa de todas
as criaturas
57
, o homem é ao mesmo tempo a mais orgulhosa. É por vaidade dessa
mesma imaginação que ele se iguala a Deus, que se lhe atribui as características divinas,
que seleciona a si mesmo e se separa da multidão das outras criaturas.
58
Seguindo o esquema de Sexto Empírico, Montaigne afirma que não há
competência humana que supere a dos animais. Nas palavras do próprio autor, em todas
55
LESSA, R. 1997, 174.
56
O conceito de natureza em Montaigne não se refere a um estado eterno e imutável, mas significa
simplesmente o contrário de artifício.
57
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 181.
58
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 181.
33
59
as aptidões sua estupidez animal supera tudo o que pode nossa divina inteligência. O
problema é que tendemos a condenar tudo aquilo que ignoramos e não conhecemos.
Condenamos tudo o que nos parece estranho e o que não entendemos; assim também nos
acontece no julgamento que fazemos sobre os animais.
60
Portanto, não é por um juízo
verdadeiro e sim por louco orgulho e obstinação que nos preferimos aos outros animais
e nos apartamos de sua condição e companhia.
61
É difícil não identificar neste longo
trecho da Apologia o primeiro Tropo do ceticismo pirrônico. Tal como Sexto Empírico,
Montaigne estabelece a igualdade de valor entre as percepções animais e humanas. E
assim como as Hipotiposes, a Apologia também rejeita qualquer tipo de ordem
hierárquica da natureza. O homem não é mais que um detalhe imperceptível desta grande
ordem cósmica que abraça todas as criaturas igualmente.
62
Montaigne se dedica, em seguida, à discussão em torno da vanidade da ciência,
considerada por ele como sendo, em geral, nociva à felicidade humana. De que adianta
obter ciência, pergunta ele, se o entendimentos de tantas as coisas não nos serve de
nenhuma utilidade? Pois os ignorantes e camponeses, que se deixam guiar por seus
apetites naturais, desfrutam de uma vida muito mais feliz do que qualquer sábio ou
filósofo, que teima em ter pedras na alma antes de as ter nos rins: como se não fosse
chegar a tempo para sofrer o mal quando ele existir, antecipa-o pela imaginação e corre
ao seu encontro.
63
A partir de uma citação de Cícero, Montaigne diz então ser preferível
para a espécie humana a recusa total da atividade do pensamento e da sagacidade que
denominamos razão, pois estas são fatais para muitos e só salutar para pouquíssimos.
64
O modelo de vida e sabedoria a ser seguido seria aquele encarnado por Sócrates.
Este era sábio por não se considerar sábio e por sustentar a ciência da ignorância, em
outras palavras, a simplicidade de espírito. Por meio de tanto estudo, este filósofo pôde
constatar a condição natural da ignorância humana, renunciando assim à presunção e à
vaidade. O recorrente elogio montaigneano da filosofia socrática emana da admiração
que ele nutre pelo jogo cético da eqüipolência, ou melhor, pela ciência de opor objeções.
59
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 186.
60
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 203.
61
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 229.
62
BARAZ, M. 1968, 24.
63
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 237.
64
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 230.
34
O que Montaigne aprecia em Sócrates é o seu hábito de agitar as discussões, sem, no
entanto, esperar soluciona-las, pois, qualquer pressuposição humana e qualquer
enunciação tem tanta autoridade quanto outra.
65
O modelo de Sócrates é retomado ainda
várias vezes, sobretudo no livro III. A sabedoria consiste na maturidade da aceitação
daquilo que é costumeiro e acima de tudo, da aceitação de nossos limites intelectuais. A
sabedoria engenhosa e pomposa dá aqui lugar a uma mais harmoniosa e salutar.
Entregar-se o mais simplesmente possível à natureza é entregar-se a ela o mais
sabiamente.
66
Cabe ressaltar que o modelo de sabedoria apresentado por Sócrates e evocado por
Montaigne aproxima-se do modo de vida cético, ou seja, da aceitação da dúvida diante da
situação de isosthenéia e da percepção da ignorância humana. O reconhecimento deste
cenário também é aqui acompanhado pelo elogio da “vida comum” e entregue à
“natureza”. Ao criticar os filósofos dogmáticos, Montaigne afirma que estes não querem
fazer profissão expressa de ignorância e da fragilidade da razão humana para não
assustar as crianças; mas revelam-nas suficientemente a nós sob a aparência de uma
ciência confusa e inconsistente.
67
De todas as opiniões que a Antigüidade teve sobre o homem em
geral, as que adoto de melhor grado e à que mais me atenho são
as que mais nos menosprezam, aviltam e aniquilam. A filosofia
nunca me parece ter cartas tão favoráveis como quando combate
nossa presunção e vaidade, quando reconhece de boa-fé sua
irresolução, sua fraqueza e sua ignorância.
68
É preciso, portanto desmascarar a vanidade, destruir a tola vaidade humana e
sacudir corajosamente os fundamentos precários sobre os quais se constróem essas falsas
idéias. Neste sentido, Montaigne ridiculariza a esperança científica depositada na
imparcialidade da razão humana que, segundo ele é um instrumento de chumbo e de cera,
alongável, dobrável e adaptável a todas as perspectivas e a todas as medidas.
69
A razão
65
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 312.
66
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 13, 435.
67
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 319.
68
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 453.
69
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 349.
35
fornece motivos para ações diversas e é, portanto, incerta: um jarro com duas asas, que
se pode segurar pela direita e pela esquerda.
70
Os conteúdos racionais não passam de
“resveries” e consistem na tentativa de dar a uma determinada crença ou opinião a
aparência de verdade.
Além disso, os sentidos, fundamento de todo o conhecimento humano, também
estão sujeitos à instabilidade e à insegurança. Isto porque as alterações do corpo e do
espírito influenciam a percepção transmitida pelos sentidos e, portanto, o julgamento
humano. Vale aqui relembrar o terceiro e o quarto Modo do ceticismo pirrônico, que
enfatizavam, respectivamente, a divergência das percepções sensitivas e a oscilação dos
nossos juízos, derivada da influência dos estados da alma e do meio externo. Nestas
condições, a impressão da certeza é, um atestado certo de loucura e de extrema
incerteza.
71
Todas as coisas produzidas por nossa própria razão e capacidade, tanto as
verdadeiras como as falsas, estão sujeitas a incerteza e a debate.
72
Falando de si mesmo, Montaigne afirma a instabilidade de sua faculdade de
julgamento: Não faço mais que ir e vir: meu julgamento nem sempre caminha para a
frente; ele flutua, vagueia.
73
Neste sentido, é comum que o autor inicie um ensaio
defendendo um ponto de vista e o termine valorizando seu contrário. Montaigne se deixa
levar e se arrebata para onde seu corpo se inclina. Nesta condição vacilante e de perpétua
incerteza ele freqüentemente afirma ser difícil tomar decisões e ser, em geral, preferível
seguir os fatos em vez da razão. Trata-se aqui de um aspecto fundamental do ceticismo
antigo que, diante dos limites da razão humana e da incapacidade de resolver questões
controversas, defende a vida segundo as aparências, a aceitação das tradições, das leis e
dos costumes correntes. Mas é por este aspecto que o ceticismo passou a ser
freqüentemente associado ao conservadorismo filosófico.
Montaigne em particular, confrontado com as guerras civis religiosas que
assolavam o seu país, costumava recomendar mais a prudência nos assuntos políticos que
um comportamento filosoficamente conservador. O ensaio intitulado Do costume e de
não mudar facilmente uma lei aceita é um ótimo exemplo do conservadorismo
70
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 374.
71
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 312.
72
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 330.
73
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 350.
36
montaigneano, que enfatiza o poder imperioso dos costumes. Desgosta-me a novidade,
sob qualquer aparência que se apresente, e tenho razão, pois tenho visto efeitos muito
prejudiciais dela.
74
É no campo prático que Montaigne mostra a sua faceta conservadora,
ao preferir seguir os fatos e os costumes compartilhados, na medida em que impõem uma
certa ordem na insegurança flutuante que é o ser humano. A fidelidade em relação às
tradições se dá, no entanto, não por um conteúdo de veracidade das mesmas, mas por
hábito e utilidade. Neste sentido, a defesa conservadora da religião católica, por exemplo,
tem uma conotação muito mais sociológica que teológica.
A constatação da miseria hominis, contudo, não é acompanhada por um tom de
lamento. Ao reconhecer os limites do conhecimento humano, Montaigne não está
defendendo um ceticismo destrutivo. O que ele sustenta é que há limites que as nossas
faculdades intelectuais são incapazes de ultrapassar e que é preciso aprender a aceitar e a
conviver com esta situação. Retomando mais uma vez o quarto Modo do ceticismo
pirrônico, pode-se dizer que, para Montaigne, toda percepção ou juízo sofre as inevitáveis
influências das circunstâncias em que se encontra o sujeito. Não há como conceber um
tipo de conhecimento que não seja relativo às condições humanas. Ou seja, o homem só
pode ser o que é, e imaginar de acordo com sua medida.
75
Não há porque esperar ser
mais do que se pode. É preciso contentar-nos com a luz que apraz ao Sol transmitir-nos
com seus raios; e quem erguer os olhos para receber no próprio corpo uma luz maior
não ache estranho se, como castigo por sua fatuidade, perder assim a visão.
76
Segundo o
final da Apologia, o homem pode elevar-se de sua insignificância unicamente se ele for
ajudado pela graça divina.
O oitavo Modo das Hipotiposes, que estabelecia a inerradicável relatividade das
percepções humanas, está presente como um todo na Apologia. Não há como tratar
definitivamente da real essência das coisas, mas apenas das relativas formas em que elas
aparecem na natureza. A percepção radical da relatividade de opiniões e costumes
humanos é decisiva no respeito que Montaigne manifesta em relação à pluralidade de
mundos possíveis, pois, em tese, não há forma de vida superior à outra. Se ele, por vezes,
74
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 23, 178.
75
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 278?.
76
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 32, 324.
37
defende a conservação de determinados hábitos, isto se dá mais pela utilidade social da
tradição, que por uma superioridade inerente à mesma.
De acordo com Villey, a crise pirrônica deixará no pensamento montaigneano
marcas profundas e indeléveis. A Apologia ocupa um lugar central na sua obra, já que
marca o ponto de reorientação de sua filosofia.
77
Este ensaio lança as bases filosóficas
céticas que o tornam sensível em relação à pluralidade de opiniões e à relatividade do
mundo e dos costumes humanos. É também aqui que Michel de Montaigne defende pela
primeira vez a filosofia que incita o homem a entregar-se à natureza, a procurar os
remédios para suas perturbações não mais na meditação e sim na diversão, a tomar por
modelos, em vez dos sábios e dos filósofos, os camponeses e ignorantes.
No entanto, trata-se menos de um ponto de reorientação que de uma declaração
expressa de um temperamento cético presente já nos primeiros ensaios escritos por
Montaigne. Embora o ceticismo esteja exposto de forma mais “sistemática” (se é que faz
sentido usar um adjetivo como este em Montaigne) na Apologia de Raymond Sebond, o
fato é que ele possui um temperamento cético que perpassa toda a sua obra.
Muitos de seus ensaios criticam, por exemplo, a causalidade quando referida a
assuntos humanos. O primeiro capítulo, intitulado Por meios diversos chega-se ao mesmo
fim, nos faz lembrar da série de oito Modos contra os etiologistas, na medida em que trata
do problema de que um efeito não tem necessariamente a mesma causa e uma causa, por
sua vez, não desagüa necessariamente no mesmo efeito. Diante da indefinição e da
imprevisibilidade humana, Montaigne decide abordar temas aparentemente abstratos a
partir de exemplos concretos e históricos. Neste mesmo ensaio, Montaigne destaca a
inconstância do homem e a impossibilidade de se decidir teoricamente sobre a maneira
mais adequada de enternecer os corações daqueles que nos têm a sua mercê. A incerteza a
respeito dos resultados das ações humanas consiste, segundo Renato Lessa, num outro
modo de detecção do império da variedade. Os homens são diversos e não há
estabilidade causal a governar as suas ações. No mundo de Montaigne a estabilidade
das causas não garante a estabilidade dos efeitos.
78
77
VILLEY, P. 2000, II, 158-9.
78
LESSA, R. 1997, 183.
38
Como nada é estável, a verdade em Montaigne tampouco é rígida e imutável. Não
há uma verdade apenas, mas uma legião de princípios e sistemas que podem ser
considerados verídicos segundo o ponto de vista em que se coloca o observador. A
verdade é prismática, pentagonal, multiforme, multicolorida e não pode ser apreendida da
mesma maneira e a partir do mesmo matiz luminoso por dois olhares diferentes (ou pelo
mesmo olhar em momentos diferentes). Uma lei sempre encontra uma outra que se lhe
opõe e um sistema filosófico um outro que lhe refuta. Por mais que se esforcem, os
homens nunca estarão totalmente de acordo; ao contrário, vacilam continuamente e
vagueiam entre doutrinas equívocas e práticas antagônicas. O julgamento, por ser
demasiado inseguro, não é capaz de nos revelar o verdadeiro ou o falso. Em
conseqüência, não há porque confiar nos sentidos nem na razão e o melhor que se pode
fazer é permanecer sem opinião, impassível, sem tomar partido por isto ou aquilo. Que
doença irritante, a de se acreditar tão forte a ponto de convencer-se de que não é
possível acreditar no contrário!
79
A oscilação de suas próprias opiniões permeia os Ensaios como um todo. Que o
gosto dos bens e dos males depende em boa parte da opinião que temos deles, ensaio
composto como um mosaico de exemplos e máximas, representa tal movimento do
pensamento montaigneano, que é incapaz de se fixar definitivamente em uma única
perspectiva. Já o vigésimo quarto ensaio do primeiro livro, intitulado Diversas
decorrências da mesma atitude, além de expor a incerteza de nossos julgamentos, afirma
a prudência que tal condição nos impõe. Segundo Villey, tal dissertação corresponde a
uma certa preparação cética anterior à Apologia.
80
Em Da incerteza de nosso julgamento
Montaigne afirma exatamente o que diz o título, ou seja, a impossibilidade de tomar
partido em discussões, onde se pode falar tanto a favor como contra um mesmo assunto.
O quinto capítulo, por sua vez, Se o chefe de uma praça sitiada deve sair para
parlamentar, não oferece uma resposta teórica à questão suscitada, mas recomenda a
atenção para com a situação particular.
A crítica da capacidade intelectual e a ênfase na ignorância humana estão
presentes na obra montaigneana como um todo e constituem uma marca fundamental de
79
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 56, 477.
80
VILLEY, 2000, I, 185.
39
seu pensamento. O próprio Montaigne não se mantém isento desta consideração. Pelo
contrário, ele é ainda mais severo quando trata de si mesmo. Admiro a segurança e a
expectativa que todos têm de si, sendo que não há praticamente nada que eu saiba que
sei, nem que ouse garantir que posso fazer.
81
Neste sentido, o auto-retrato que ele pinta
sobre si mesmo é em grande medida um retrato auto-depreciativo e irônico. Mas,
voltando à minha pessoa, é muito difícil, parece-me, que algum outro se estime menos e
mesmo que algum outro me estime menos do que me estimo.
82
O espírito tinha-o lento, e
que só avançava o quanto o conduziam; a compreensão, tardia; a imaginação, frouxa; e
além de tudo uma incrível falta de memória.
83
Segundo Donald Frame in Montaigne’s skepticism it is useful to distinguish
between temper and tool: between the natural reaction of his whole mind, if not his whole
being, to multiplicity and flux, and the doctrinal, systematic theory of human uncertainty
that he sometimes uses – as in the ‘Apology’ – to convict us of ignorance and humble our
presumption.
84
Ainda segundo este comentador, a afirmação do fluxo como lei que rege o
mundo em que vivemos faria Montaigne duvidar de qualquer coisa tão constante e eterna
como o absolutismo da verdade dogmática. A visão de mundo dominante em Montaigne
é, de acordo com Hugo Friedrich, heraclitiana, ou seja, de ênfase no sentido cambiante e
móvel do mundo.
O mundo não é mais que um perene movimento. Nele todas as
coisas se movem sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as
pirâmides do Egito, e tanto com o movimento geral como com o
seu particular. A própria constância não é outra coisa senão um
movimento mais lânguido.
85
Assim como o mundo, a vida também consiste em movimento e ação. O homem
é flutuante e diverso porque ele faz parte da ordem cósmica natural que é perene e
inconstante.
86
E esse movimento do ser não segue nenhuma direção determinada. Eu
agora e eu daqui há pouco somos dois; mas, quando melhor, não sei dizer. Seria bonito
81
MONTAIGNE, M. de. II, 17, 453.
82
MONTAIGNE, M. de. II, 17, 454.
83
MONTAIGNE, M. de. I, 26, 261.
84
FRAME, D. 1969, 25.
85
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 27.
86
Segundo Baraz, Montaigne não antecipa a idéia de movimento absoluto imaginado por Bergson. Trata-se
aqui de um mundo que se move constantemente, mas que é pleno de formas e estruturas imutáveis.
BARAZ, M. 1968, 10.
40
envelhecer se só caminhássemos para o aperfeiçoamento. É um mover-se de bêbado
vacilante, entontecido, informe, ou de juncos que o vento maneja ao acaso, como quer.
87
Como o modo de ser cético está entranhado na própria personalidade
montaigneana, a indecisão decorrente da constatação da situação de eqüipolência e a
insegurança diante dos limites intelectuais humanos estariam presentes não apenas na
Apologia, mas nos Ensaios como um todo. Pois tudo o que nossa sabedoria pode não é
grande coisa: quanto mais penetrante e viva ela é, mais fraqueza encontra em si e tanto
mais desconfia de si mesma.
88
Além disso, a condição marcada pela impossibilidade de se escolher uma opção
em detrimento de outra, ou seja, essa relativa incapacidade de tomar decisões aparece nos
Ensaios de Montaigne, acompanhada da recomendação da aceitação do mundo aparente,
do elogio da vida ordinária e da defesa dos costumes correntes. A indecisão filosófica ou
a desconfiança em relação ao conteúdo pretensamente verídico de determinadas
proposições teóricas não é aqui seguida de uma inatividade no campo prático. Embora
Montaigne de fato se sinta inseguro intelectualmente, ele é capaz de manter-se ativo na
dimensão física do mundo, graças às máximas da vida ordinária.
A pintura do “eu” de Montaigne
Segundo Hugo Friedrich, importante teórico e biógrafo de Montaigne, mais
interessante e original que a crítica dirigida à capacidade intelectual e à presunção
humana, é a virada que tal cenário de miseria hominis provoca, pois é a partir daqui que
penetramos no cerne de seu pensamento e de sua sabedoria. Já que a crise pirrônica havia
determinado a dúvida em relação à própria possibilidade de conhecimento, resta saber o
que ainda poderia se constituir como objeto de estudo para Montaigne. A resposta dele
parece ter sido bastante clara: o “eu”. What is left for us as creatures of flux incapable of
true knowledge? To learn the lesson of flux, to become ‘wise at our own expense’ by
knowing ourselves.
89
Na medida em que ele restringe o objeto de conhecimento ao
homem particular – neste caso ele mesmo -, o saber volta a ser possível na observação
descritiva do ser humano. Assim, ao assumir o “moi” como tema central de suas
87
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 9, 268.
88
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 23, 191.
89
FRAME, D. 1969, 31.
41
investigações Montaigne declara definitivamente a sua originalidade e independência
intelectual. Estudo a mim mais do que a outro assunto. Essa é minha metafísica, essa é
minha física.
90
O ensaio já não é mais apenas um exercício, um “coup d’éssai”. Ele converte-
se em pintura do “eu” de Montaigne, em nada além de um registro de sua vida e suas
experiências. No prólogo Ao leitor ele afirma o objetivo principal de sua obra, ou seja, o
de pintar-se a si mesmo:
Se fosse para buscar o favor do mundo, eu me paramentaria
melhor e me apresentaria em uma postura estudada. Quero que
me vejam aqui em minha maneira simples, natural e habitual,
sem apuro e artifício: pois é a mim que pinto. Nele meus defeitos
serão lidos ao vivo, e minha maneira natural, tanto quanto o
respeito público mo permitiu.
91
No entanto, tal caráter pessoal de sua filosofia, contido na decisão de ensaiar o
seu próprio “eu”, não estava posto desde o início de sua aventura literária. Há uma certa
evolução dos ensaios montaigneanos, cujo movimento pode ser acompanhado a partir da
comparação entre os primeiros ensaios, publicados na edição de 1580, e aqueles do
terceiro livro, publicados em 1588. Floyd Gray observa de maneira bastante precisa o
desenvolvimento deste pensamento que, segundo ele, se inicia a partir de estímulos
próprio Montaigne.
92
Nos primeiros escritos as reflexões eram geradas a partir de pensamentos
alheios ou de anedotas tomadas de empréstimo de autores antigos, que eram transcritas
logo no início do capítulo. Esses ensaios são, em geral, curtos, secos e impessoais:
representam o testemunho da viagem livresca de Montaigne. Assemelham-se a uma
literatura compiladora bastante comum daquela época, composta como curtas lições
construídas a partir de máximas filosóficas e pequeno número de exemplos aos quais o
autor adiciona algumas reflexões.
No entanto, com o tempo, Montaigne amadurece o seu projeto de pintar-se a si
mesmo e assume definitivamente o seu “eu” como objeto de estudo:
90
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 13, 434.
91
MONTAIGNE, M. de. 2000, Ao leitor, 4.
92
GRAY, F. 1958.
42
O mundo sempre olha face a face; quanto a mim, recolho minha
vista para o interior, fixo-a, ocupo-a nele. Cada qual olha diante
de si; eu olho dentro de mim: só de mim me ocupo, examino-me
sem cessar, vigio-me, experimento-me. Os outros vão sempre
alhures, se pensarem bem; vão sempre adiante (ninguém tenta
descer ao interior de si mesmo - Pérsio), eu giro em mim
mesmo.
93
Jean Starobinski rejeita a idéia de uma descoberta repentina do “eu”, pois
acredita que o lugar privilegiado de sua individualidade já estaria assegurado no próprio
momento em que Montaigne decide retirar-se para escrever os Ensaios.
94
Em tal ato
inaugural o moi já se encontrava em primeiro plano. No entanto, é preciso reconhecer
que, com o passar dos anos Montaigne adquire maior consciência de seu projeto literário
e o desenvolve de forma mais clara, até chegar à idéia de peinture du moi.
Tal amadurecimento em direção a uma escrita mais pessoal pode ser
comprovado, de acordo com Floyd Gray, a partir da análise do lugar que as citações
ocupam em seu texto. Ao contrário do que ocorre no livro I, no livro III os empréstimos
tomados de pensamentos alheios se encontram ao longo do texto e raramente no início.
Serviam, neste sentido, mais para ilustrar certas reflexões pessoais do próprio autor, que
para gerá-las. Ao seguir definitivamente o seu ritmo interno, Montaigne confere às suas
observações pessoais um lugar central e realiza definitivamente o que havia recomendado
no capítulo em que discute a educação das crianças
95
, ou seja, deixa de fundamentar suas
reflexões na repetição de máximas e citações extraídas de outros autores e passa a
produzir um pensamento que é próprio dele. Como as abelhas, que se alimentam do pólen
de diversas flores e produzem o seu próprio mel, Montaigne se alimenta de fontes
sobretudo antigas sem deixar de gerar reflexões marcadamente pessoais.
A intenção de se auto-retratar faz com que o protagonista seja o próprio
Montaigne e inúmeros ensaios sejam narrados em primeira pessoa. Assim, leitor, sou eu
mesmo a matéria de meu livro.
96
O ensaio intitulado “Do exercício” parece ser um dos
93
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 488.
94
STAROBINSKI, J. 1992, 18.
95
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 26.
96
MONTAIGNE, M. de. 2000, Ao leitor, 4.
43
97
primeiros em que o “eu” entra em cena, ainda que com reservas. A discussão sobre a
morte não se dá aqui de forma abstrata, mas concreta, acompanhada pelo relato de um
acidente que o próprio Montaigne havia sofrido enquanto andava à cavalo. Mas é
sobretudo no livro III que as suas observações pessoais assumem o primeiro plano. Quase
todos os temas deste livro derivam de alguma experiência pessoal do autor. As reflexões
são suscitadas menos a partir de pensamentos alheios e antigos, que por situações
concretas em que ele, de alguma forma, esteve envolvido. Segundo Auerbach, o que era
lido já não lhe provocava tantas reflexões como aquilo que era por ele vivido.
98
A proposta montaigneana de auto-estudo pode não ter sido exatamente original, já
que consiste na retomada de uma advertência (“conhece-te-a-ti-mesmo”) desde muito
conhecida por ter sido inscrita na fachada do templo de Apolo em Delfos. Foi, contudo, a
menos normativa de todas: Não está aqui minha doutrina, e sim o estudo de mim mesmo;
e não é a lição de outrem e sim a minha própria.
99
O “eu” de Montaigne, por ser único,
não serve de lição para mais ninguém.
A observação do real se desenrolaria, portanto, sem preconceitos e isenta de
normatividade, pois a vida como ela é será sempre mais rica do que qualquer idealização
acerca de como ela deveria ser. Ao atentar mais para a vida real que para a ideal,
Montaigne mostra-se imensamente disposto a aceitar e a assumir as contradições do
mundo e da sua própria pessoa. O que lhe interessa é mais a imagem do singular que a lei
geral. Assim, não há nos Ensaios um lugar privilegiado para feitos heróicos, pois estes
representam apenas um instante. Para Montaigne, é preciso conceber o homem em sua
história, em todos os momentos de sua vida. Busca, por isso, o sujeito em sua vida
cotidiana, pois é aí que ele mostra a sua personalidade essencial e natural, sem artifício.
Na dimensão pública, ao contrário, o ser humano é inevitavelmente forçado a renunciar a
si mesmo e ao único tipo de vida capaz de assegurar um verdadeiro contentamento, pois o
engajamento passional na mesma exige do sujeito o constante exercício de um papel.
Trata-se aqui da denúncia de um mundo público constituído como um teatro, que obriga
cada um a destituir-se da possibilidade de desenvolver e de expressar o caráter único de
sua individualidade. Os sujeitos, no contexto público, não são mais que atores.
97
VILLEY, P. 1961, 49-50.
98
AUERBACH, 1976, 259.
99
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 6, 69.
44
Cada qual pode tomar parte na comédia e representar no palco
um personagem honesto; mas ser regrado interiormente e no
peito, onde tudo nos é lícito, onde tudo é secreto, esse é o ponto.
O grau vizinho é sê-lo em casa, nas ações habituais, que não
temos de explicar para ninguém; onde não há reflexão não há
artifício.
100
A fim de evitar a falsidade, o auto-retrato de Montaigne tinha que ser o mais fiel
possível, retratando não uma imagem ideal de seu “eu”, mas a real. Neste sentido, suas
palavras deviam dizer o mesmo que suas ações, ou seja, é preciso ir com a pena como
vou com os pés.
101
Montaigne decide pintar, então, antes seus pensamentos íntimos e suas
ações privadas, que aquelas realizadas na esfera pública, como prefeito de Bordeaux, por
exemplo. Isto porque nem mesmo ele estaria livre do desempenho de papéis. É neste
sentido que ele assegura que de muito bom grado teria se pintado inteiro e nu.
102
Seja como for, quero falar; e, quaisquer que sejam estas inépcias,
não deliberei escondê-las, não mais do que um retrato meu, calvo
e grisalho, em que o pintor tivesse colocado não um rosto
perfeito e sim o meu. Pois aqui estão também meus sentimentos e
minha opiniões; apresento-os como algo em que acredito e não
como algo em que se deva acreditar. Viso aqui apenas a revelar a
mim mesmo, que porventura amanhã serei outro, se uma nova
aprendizagem mudar-me. Não tenho autoridade para ser
acreditado, nem o desejo, sentindo-me demasiadamente mal
instruído para instruir os outros.
103
Tal passagem revela algumas importantes marcas do pensamento montaigneano.
Em primeiro lugar ele enfatiza a pintura de um rosto ou de um “eu” que é único e que
está longe de encontrar a perfeição. Além disso, ele volta a afirmar que a pintura de seu
“eu” consiste apenas numa apresentação de si mesmo, na revelação de sua
individualidade, que não deve servir de modelo para ninguém. Por fim, está posta aqui a
idéia da mobilidade do ser, que será tratada logo adiante.
100
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 32-3.
101
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 9, 310.
102
MONTAIGNE, M. de. 2000, Ao leitor, 4.
103
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 26, 221-22.
45
Como diria Bentinho é preciso adiar a virtude e confessar tudo o que importar à
própria história, pois há só um modo de escrever a própria essência, que é contá-la toda, o
bem e o mal. Tal pretendem fazer o filósofo gascão e o narrador-personagem
machadiano: à medida que vão lembrando, contam tudo o que convém à construção ou
reconstrução de si mesmo, seja virtude ou pecado.
104
A fim de representar fielmente o “eu” de Montaigne, os Ensaios tinham que
retratar acima de tudo o movimento de sua personalidade. Era preciso acomodar a sua
história ao momento, pois não apenas seu destino, mas também suas intenções podem
sofrer transformações. Montaigne não encontra nem no homem nem em si mesmo uma
consistência sólida. Ao contrário, se depara com uma fluidez, cujos efeitos são múltiplos
e onde a contradição existe inevitavelmente.
Não consigo fixar meu objeto. Ele vai confuso e cambaleante,
com uma embriaguez natural. Tomo-o nesse ponto, como ele é no
instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a
passagem; não a passagem de uma idade para outra ou, como diz
o povo, de sete em sete anos, mas de dia para dia, de minuto para
minuto.
105
Ao reconhecer o elemento de mudança, o autor parece achar importante não
substituir idéias antigas por mais novas. Nas revisões que faz dos Ensaios, Montaigne
freqüentemente adiciona, mas quase nunca apaga idéias. Acrescento, mas não corrijo.
106
Ao acomodar seus escritos ao movimento de seu “eu”, os Ensaios poderiam, em tese,
receber infinitas adições. O que resulta daí não é um auto-retrato acabado, mas apenas
diversos rascunhos, estudos sobre o seu próprio “eu”.
Mas o ato reflexivo acerca do movimento do self nunca é inteiramente passivo.
Pintar a passagem é ao mesmo tempo aceitá-la e transportá-la para uma obra, e é, ao
representá-la, inevitavelmente a modificar.
107
De acordo com Ermanno Bencivenga, a
busca de Montaigne consiste ao mesmo tempo na reprodução e na constituição de seu
self: It is not so much that the book tells what the self is like; it is rather that the book
104
MACHADO DE ASSIS, 2003, LXVIII.
105
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 27.
106
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 9, 267.
107
STAROBINSKI, J. 1992, 210.
46
108
tells the self what it is to be. Tal interpretação aproxima-se de uma releitura do Modo
pirrônico das combinações, que salientava o caráter interacional da esperiência
perceptiva. Nos Ensaios o sujeito e o objeto de conhecimento são uma e a mesma coisa,
ou seja, o próprio Montaigne. Neste sentido, ao manter um diálogo consigo mesmo e ao
realizar a pintura de si, ele estaria impondo modificações ao seu próprio eu.
Montaigne, contudo, nunca alcança inteiramente o seu ser, porque a escrita, além
de lhe conferir uma unidade que originalmente não possui, lhe impõe, por sua
inconsistência, uma deformação artificial. É desse paradoxo ou desse inevitável escapar
de sua “verdadeira” personalidade que resulta o caráter interminável do livro.
109
Embora
não haja de fato ninguém capaz de tratar de seu objeto com tamanha propriedade, o
controle de Montaigne sobre seu próprio “eu” nunca é total. Mas o sujeito, além de
ignorante, é também incansável e jamais termina de inquirir sobre si mesmo.
Não há base ou apoio fixo para Montaigne. Há apenas ímpeto, exprimido por
metáforas sucessivas de uma alma em constante exercício, que não se cansa de ensaiar-se
a si mesma. A obra, longe de assumir uma forma fixa, é apenas a breve parada,
constituída de instantes sucessivos em que se opera a apreensão do movente. Há deveras
um caráter interminável dos Ensaios, cujo fim não pode ser previsto. Isto porque cada
instante guarda a possibilidade de mudança. Montaigne permanece disponível a seguir
qualquer direção e diz, neste sentido, deixar-se levar pelo movimento criador e não se
importar em perder-se.
Talvez não tenhamos nada de mais importante para descobrir:
nosso verdadeiro eu não é a realidade obscura e inconsistente à
qual se dirige o esforço inacabado do conhecimento, é essa
tensão e esse inacabamento mesmos. Ele não é então alguma
coisa que nos permanecesse oculta e que só se descobrisse depois
de demorados tateios. Está aí, (quase) inteiro, (quase) aqui,
(quase) agora, não diante da mão tateante, mas no tateio e
simultaneamente no vazio que nasce em nós, vazio sem o qual
não haveria tateio, mas não sei que estabilidade opaca e
maciça.
110
108
BENCIVENGA, E. 1990, 12.
109
STAROBINSKI, J. 1992, 211.
110
STAROBINSKI, J. 1992, 218.
47
Supor que o interesse deste filósofo se restringia à análise de sua própria pessoa
é considerar a sua obra a partir de um ponto de vista limitado. Pois, como cada homem
porta em si a forma integral da condição humana
111
, Montaigne, ao discorrer sobre si
mesmo, estaria tratando também do homem em geral. No Livro III o auto-retrato é
também um retrato da humanidade e o objeto de estudo não é mais apenas ele mesmo,
mas o homem num sentido mais amplo. Surge daqui mais uma aparente contradição,
fundada na tensão entre o geral e o particular, que Montaigne não insiste em resolver.
Cabe ressaltar que o autor busca responder à abstrata pergunta sobre o que são os homens
sempre a partir do estudo acerca do que é ele em particular.
Dirigindo-se à senhora de Estissac em Da afeição dos pais pelos filhos Michel de
Montaigne admite a novidade de seu projeto:
Senhora, se a estranheza não me salvar, e a novidade, que
costumam valorizar as coisas, nunca sairei honrosamente deste
tolo empreendimento; mas ele é tão fantasioso e tem um ar tão
distante do uso comum que isso lhe poderá abrir caminho. (…) E
depois, descobrindo-me inteiramente desprovido e vazio de
qualquer outra matéria, apresentei-me a mim mesmo como tema
e como assunto. É o único livro do mundo em sua espécie, um
projeto desordenado e extravagante.
112
Mas é preciso chamar a atenção para o caráter original relativo não apenas à
matéria, mas também à forma. Isto porque seria errôneo dissociar em Michel de
Montaigne o pensamento da escrita dos Ensaios. A filosofia e o estilo são dimensões que
mantêm uma relação muito estreita e que não devem ser consideradas separadamente.
Segundo Floyd Gray, Montaigne não produz um determinado estilo. Na medida em que
descreve a sua interioridade, ele encarna a sua própria arte. Il ne fait pas un livre, il est
son livre.
113
Neste sentido, Montaigne e os Ensaios são uma e a mesma coisa. Seu estilo
não representa uma forma pre-determinada ou uma ordenação de seu pensamento, pois
em não há ordem em si mesmo. Ele é o acompanhamento do movimento e a revelação de
111
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 28.
112
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 8, 81.
113
GRAY, F. 1958, 14.
48
seu “eu” interior. Son art consiste à se conformer à sa nature, à s’exprimer dans une
forme aussi irrégulière et imprévisible qu’elle.
114
A “arte” de Montaigne e a forma dos Ensaios
De acordo com a definição do dicionário Webster, o ensaio consiste numa
composição literária de natureza analítica interpretativa, que trata de um tema a partir de
um ponto de vista pessoal e que permite uma liberdade considerável de estilo e método.
Esta definição parece, no entanto, demasiado metodológica e analítica quando comparada
à intenção do pai do ensaio moderno. Quando Michel de Montaigne publica os dois
primeiros livros dos Ensaios, ele utiliza o termo “ensaio” não com o fim de designar um
novo gênero literário, mas como um procedimento a partir do qual o seu próprio self seria
ao mesmo tempo explorado e revelado.
É preciso evitar denominar o estilo ensaístico de Montaigne de “método”, já que
este termo possui uma conotação demasiado rígida. Característico das ciências naturais, o
método previamente estabelecido mantém o objetivo de provar e comprovar certas
hipóteses a fim de estabelecer determinadas leis gerais, que excluem definitivamente o
acaso de suas considerações. O ensaio de Montaigne, ao contrário, além de privilegiar o
singular em detrimento do geral, busca a experimentação através de um procedimento
bastante solto e livre, cujo resultado é sempre imprevisto.
Convertendo-se em pintura do moi de Montaigne os Ensaios narram as
experiências deste autor e tornam-se os ensaios de sua própria vida. Enfim, toda essa
miscelânea que vou gratujando aqui não é mais que um registro dos ensaios de minha
vida.
115
A despeito das intenções do autor, o fato é que les Essais de Michel Seigneur de
Montaigne inauguraram um novo gênero, marcado por um estilo vívido, bem humorado e
envolvente, embebido da personalidade de seu autor e repleto de imagens e metáforas.
Mas, afinal, por que Montaigne decide empreender tamanha aventura literária? A
esta pergunta ele responde dizendo ter começado a escrever os Ensaios a fim de passar o
tempo, por não ter mais o que fazer. Como bem notou Hugo Friedrich, tal argumento é na
verdade um instrumento retórico irônico de crítica ao pedantismo e de rejeição de uma
114
GRAY, F. 1958, 19.
115
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 23, 444.
49
motivação mais “elevada”, “superior” ou “nobre” para a publicação dos Ensaios. O que
lhe impele é de início a vontade de dar uma certa ordem ao pensamento e de afastar as
quimeras produzidas pela ociosidade de seu espírito.
Mais adiante a escrita adquire o sentido de fixação da mobilidade de seu ser,
acompanhando e registrando as metamorfoses constantes do “eu” de Montaigne. Se
minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia.
116
Escrever
significa, para ele, a representação da singularidade do momento, a perscrutação de si
mesmo e a exposição do “moi” em constante movimento. Trata-se de um esforço na
tentativa de desvendar o profundo labirinto que é o homem em geral e ele em particular.
Os outros formam o homem; eu o descrevo, e reproduzo um homem particular muito mal
formado e o qual, se eu tivesse de moldar novamente, em verdade faria muito diferente
do que é.
117
Segundo Starobinski, a decisão tomada por Montaigne exprime um desejo de
apreensão de sua própria identidade, que se realiza a partir da imposição de uma certa
unidade e constância àquilo que é essencialmente móvel.
118
Tal vontade, no entanto,
nunca se realiza completamente. Esta relativa unidade da escrita de forma alguma impede
o movimento. A própria escolha do título “Ensaios” marca, ao mesmo tempo, a ênfase na
mobilidade e o afastamento de Montaigne em relação à literatura escolástica de seu
tempo. A palavra “ensaio” deriva do termo em latim “exagium”, que significa a
consideração de distintos pontos de vista sobre um determinado assunto. Ensaiar é a
exposição de sua apreensão tateante e a apresentação de suas opiniões e julgamentos
pessoais.
O julgamento é um instrumento para todos os assuntos e se
imiscui por toda parte. Por causa disso, nos ensaios que faço
aqui, emprego nisso toda espécie de oportunidade. Se é um
assunto de que nada entendo, por isso mesmo ensaio-o, sondando
o vau de bem longe; e depois, achando-o fundo demais para
minha estatura, mantenho-me na margem; e esse reconhecimento
de não poder passar para o outro lado é uma característica de
sua ação, e mesmo das que mais o envaidecem.
119
116
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 28.
117
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 27.
118
STAROBINSKI, J. 1992, 28.
119
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 50, 448.
50
O ensaio consiste aqui em exercícios e tentativas, que são acompanhados pelo
reconhecimento dos limites intelectuais humanos e da freqüente impossibilidade de se
passar para o outro lado. É preciso salientar que o reconhecimento destes limites não
provoca uma hesitação paralisante. Ele constitui, a contrário, um desafio e um incentivo
ao espírito indagativo.
Com o decorrer dos anos, os ensaios montaigneanos ganham uma conotação mais
ampla e tornam-se os ensaios de sua vida. A partir daí o autor identifica sua aventura
literária com a pintura de si mesmo.
120
Em Da presunção, Montaigne narra a ocasião em
que viu um auto-retrato de René, rei da Sicília, e afirma o desejo de fazer o mesmo
através da escrita. Por que não será lícito que da mesma forma cada qual se retrate com
a pena, como ele se retratava com um lápis? Assim, não quero esquecer também este
estigma, muito inadequado para apresentar em público: é a irresolução, defeito muito
incômodo para a negociação dos assuntos do mundo. Não sei tomar partido nas
iniciativas duvidosas.
121
O estigma que Montaigne deseja apresentar ao público é o
ponto de partida da tese de Philip Hallie, que considera a declaração de seu
temperamento cético e a constatação do caráter irresoluto de seu espírito como
fundamentais para o desenvolvimento do conceito montaigneano de filosofia pessoal.
122
Os objetos primeiros dos Ensaios, o “eu” e o julgamento de Montaigne, por serem
essencialmente fluidos e cambiantes, pressupõem uma descrição e um tratamento que não
sejam demasiado fixos. Como cético, Montaigne nega qualquer possibilidade de se
alcançar conclusões definitivas e se contenta com meras tentativas. O uso da palavra
“essaier” mantém uma íntima relação com a tendência de experimentação, com a
aceitação da irresolução teórica e a rejeição de um tom normativo. Os Ensaios se
constituem como um esboço, um projeto que a princípio é eternamente inacabado. Ele é o
órgão da escrita que não quer ser resultado, senão processo, como o pensamento, que se
desenvolve em direção ao florescer do “self”. A rejeição da idéia de totalidade e a idéia
montaigneana da mudança constante de perspectiva do sujeito forçam uma forma literária
120
Segundo Villey Montaigne pinta ora o seu auto-retrato, ora seus gostos e humores e ora ensinamentos
derivados da experiência. VILLEY, P. 1961. Cap. 8.
121
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 482.
122
HALLIE, P. 1966.
51
fragmentada. Não é apenas o mundo e o “ser” de Montaigne que são compostos de coisas
contrárias. A própria expressão literária de seu pensamento é ambígua e contraditória,
constituída de elementos opostos e marcada pela variedade. O conteúdo dos Ensaios, a
pintura do “eu”, não se encaixava nos padrões artísticos, retóricos e lógicos disponíveis
naquela época. Retrato principalmente meus pensamentos – assunto informe, que não
pode redundar na produção de uma obra.
123
Assim como os dois pólos, constituídos pelo observador e pelo observado, a
escrita também é perene. A escolha consciente da língua francesa reforça o caráter
efêmero dos Ensaios, reconhecido pelo próprio autor. O latim é uma língua demasiado
estática e eterna para expressar o movimento do pensamento montaigneano, que, segundo
Friedrich, só seria concebível no interior de uma linguagem fluida, como a da França
renascentista. Escrevo meu livro para poucos homens e para poucos anos. Se fosse uma
matéria para perdurar, seria preciso confiá-la a uma língua mais firme. Pela contínua
variação que a nossa tem seguido até agora, quem pode esperar que sua forma atual
esteja em uso daqui a cinqüenta anos?
124
É importante ressaltar que a probabilidade de
não ser entendido em cinqüenta anos e a constatação de sua não-perenidade não lhe
causavam desgosto. A escolha da língua coloquial francesa representava, para
Montaigne, uma oportunidade de se proteger daquilo que se pretende eterno.
Aparentemente, essa escrita pessoal, dedicada sobretudo ao auto-descobrimento,
não podia ser dirigida senão a um público bastante restrito. No prólogo Ao leitor
Montaigne afirma estar escrevendo para um círculo privado, composto por amigos e
familiares. A característica auto-depreciação montaigneana faz com que ele acredite que
a exposição de seus pensamentos não agradaria senão aqueles que por ele mantêm
simpatia. No entanto, há trechos em que ele se refere a um público maior, que porém, não
chega a ser composto por um público ao mesmo tempo tão vasto e vago como a
humanidade, a cristandade, a nação ou a posteridade. O público a quem ele se dirige seria
antes representado por uma “terceira camada”, a das almas bem ajustadas e fortes.
125
Mas tal grupo é tão escasso que não possui nem nome nem posição entre nós.
126
123
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 6, 72.
124
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 9, 296.
125
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 487.
126
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 487.
52
Pode-se dizer que os Ensaios se dirigem aos verdadeiros portadores de formação:
humanistas cultivados como ele, que, de alguma forma, poderiam tirar proveito de suas
reflexões filosóficas. Tal camada não é composta nem por ignorantes, nem por pretensos
sábios. Montaigne está talvez mais próximo dos leigos, que dos especialistas. Ele não
deseja ser considerado sábio em nenhuma matéria particular e, logo, não se apresenta
nem como jurista, nem como poeta, nem mesmo como filósofo. Apresenta-se como
indivíduo, como Michel de Montaigne: Os autores comunicam-se ao povo por alguma
marca particular e externa; eu, o primeiro, por meu ser universal, como Michel de
Montaigne, não como gramático ou jurisconsulto.
127
Ao mesmo tempo em que Montaigne se distinguia dos filósofos da sua época,
afirmando-se como não-filósofo, ele também declarava a sua distância em relação à arte
literária daquele tempo, na medida em que se opunha à tendência exagerada de
ornamentação e afetação do texto. No entanto, tais atitudes de afastamento da filosofia e
da arte literária não significam uma ausência de reflexão filosófica ou de cuidado
artístico. Pelo contrário, assim como há uma profunda filosofia no interior dos Ensaios,
há também uma reflexão bastante original acerca de sua forma e estilo. Essas duas
dimensões não podem ser dissociadas nos Ensaios, porque a forma surge paralelamente
ao pensamento e não como um mero meio de exposição de idéias. O estilo não subordina
e tampouco é subordinado ao pensamento. Segundo Friedrich, a reflexão sobre a sua
natureza humana e sobre a escrita fazem parte do mesmo ato.
128
Ao se afastar da prosa
humanística e se aproximar da forma aberta e ensaística, Montaigne tem consciência do
passo que toma e da novidade que isto implica. Ele é ao mesmo tempo o primeiro criador
e o primeiro teórico do ensaio.
A forma livre do ensaio escrito por Montaigne se assemelha a um passeio, onde a
própria caminhada é mais importante que a chegada a algum lugar. Não o empreendo
nem para voltar dele nem para completá-lo; pretendo apenas movimentar-me, enquanto
o movimento me apraz. E passeio por passear.
129
Nesta viagem Montaigne percorre
lugares esquecidos e os cantos mais recônditos possíveis. Neste sentido, as próprias
digressões fazem parte fundamental de seu estilo e não constituem um desvio. São, ao
127
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 28.
128
FRIEDRICH, H. 1993, 305.
129
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 9, 289.
53
contrário, a linha expressiva da subjetividade fluida do autor, que se recusa a seguir uma
direção linear e definida. É um mover-se de bêbado vacilante, entontecido, informe, ou de
juncos que o vento maneja ao acaso, como quer.
130
Os Ensaios aparecem, então, como
uma espécie de mosaico, uma pintura grotesca, a partir da qual seus humores se
exprimem livremente.
A liberdade da escrita se traduz em grande medida na composição associativa dos
ensaios e no horror em relação à ordem silológica da estrutura tratadística. A
espontaneidade e o acaso, rejeitados por este tipo de composição literária, são amiúde
evocados por Montaigne. Enquanto Da educação das crianças é recheado de digressões
sobre a vida pessoal do autor, o ensaio intitulado Da vanidade representa um dos
exemplos mais evidentes da composição associativa e desordenada, que freqüentemente
desnorteia o leitor. Montaigne mescla aqui reflexões sobre as motivações de suas viagens
com pensamentos acerca de sua aventura literária. Seus comentários perpassam desde
opiniões sobre a sua própria personalidade, até considerações políticas marcadamente
conservadoras.
A desordem torna-se, então, uma marca fundamental do texto montaigneano. A
própria apresentação dos capítulos evidencia tal aspecto de seu estilo, que se recusa a
obedecer qualquer tipo de ordem determinada. Eu, que só vejo nelas o que a prática me
informa a seu respeito, sem ordem, apresento as minhas globalmente e às apalpadelas.
Como nisto: expresso meu pensamento em itens desconexos, como algo que não se pode
dizer de uma só vez em bloco.
131
Não há pois princípios que regem a apresentação de
seus capítulos. Assim, assuntos dos mais ordinários e cotidianos convivem lado a lado
com reflexões filosóficas profundas. Uma rápida olhada nos índices de sua obra atesta a
liberdade com que Montaigne organiza o material de seus ensaios. No Livro I, por
exemplo, a discussão cética de Da incerteza de nosso julgamento é seguida por Dos
corcéis, que representa, por sua vez, um tipo de gênero literário comum daquela época,
ou seja, o “compilador”.
Mesmo num único ensaio é possível notar o caráter casual presente no diálogo
entre reflexão filosófica e vida cotidiana. Em Do exercício, por exemplo, Montaigne
130
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 9, 268.
131
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 23, 440.
54
narra um acidente que sofreu enquanto andava à cavalo ao mesmo tempo em que discute
problemas filosóficos em torno da morte. O próprio autor reconhece o caráter não-
sistemático de seus escritos: O que são estes (ensaios) também, na verdade, senão
grutescos e corpos monstruosos, remendados com membros diversos, sem forma
determinada, não tendo ordem, nexo nem proporção além da casualidade?
132
De acordo
com Villey, a desordem estilística montaigneana é resultante de um sentimento estético
que o penetra e que representa a sua forma pessoal de composição literária.
133
A pouca relação entre o título e o conteúdo dos ensaios também exprime esse
estilo por vezes desordenado de Montaigne. Tal liberdade com a qual ele intitula seus
capítulos faz parte da sua crítica nominalista, segundo a qual nenhum nome ou termo é
capaz de dar conta da riqueza e da diversidade da coisa a que se refere. Por maior que
seja a diversidade de verduras que há, tudo é englobado sob o nome de salada.
134
Este
desdém em relação à linguagem causa um certo distúrbio em relação à terminologia
montaigneana. Dificilmente encontra-se nos Ensaios definições, cujos significados sejam
precisos. A ambigüidade, assim como a contradição, é abertamente aceita por ele.
Montaigne não lamenta essa imprecisão de definições comum em sua época; ao
contrário, como filósofo da ambigüidade, ele faz uso da mesma.
No entanto, segundo Floyd Gray, embora haja de fato uma desordem presente na
superfície dos Ensaios, há também uma ordem interior profunda, quase imperceptível,
que se desenvolve no acompanhamento de suas transformações. Ainsi, l’ordre n’est pas
celui qui serait imposée par la main qui écrit, mais c’est un ordre plus profond, déposé
par le mouvement de la pensée, et dont les images sont les phrases.
135
Tal linha é
demasiado tênue e não significa a existência de algo definido previamente. A composição
montaigneana se desenrola através da perpétua descoberta relacionada ao seu espírito
dubitativo.
De qualquer forma, é no sentido da falta de sistematização que Michel de
Montaigne se afirmava como não filósofo.
136
Contudo, ele não estava sozinho na
132
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 28, 274.
133
VILLEY, P. 1961, 144.
134
MONTAIGNE, M. de. I, 46, 408.
135
GRAY, F. 1958, 249.
136
A tentativa de sistematizar os Ensaios, como o fez Pierre Charron por exemplo, representa, neste
sentido, um verdadeiro assassinato do espírito dos Ensaios.
55
valorização da desordem na composição literária. Segundo Hugo Friedrich a “ordo
neglectus” constituía uma marca da literatura ocidental desde o século XIV.
137
Há uma
verdadeira tendência em direção a uma prosa mais livre e aberta - que inclui inúmeros
escritores, tais como Dante, Alberti, Erasmo, Bandello, Budé e Rabelais -, que privilegia
a palavra simples em detrimento da excessiva ornamentação. Trata-se da pré-história dos
ensaios - tanto em relação ao espírito, quanto à forma -, que criava um ambiente
favorável ao desenvolvimento de uma postura literária, da qual Montaigne se tornaria um
mestre.
Partindo deste cenário literário mais amplo, muitos comentadores defendem que,
apesar do nome ter sido novo, a matéria dos Ensaios não o era. É preciso, no entanto,
reconhecer a originalidade dos escritos de Montaigne, pois há diferenças substanciais
entre estes e outros gêneros literários, que também seguiam a tendência comum da ordo
neglectus. As confissões, por exemplo, embora também se concentrem nas experiências
do autor-sujeito, contêm uma clara conotação religiosa ausente nos Ensaios. Além disso,
tanto as Confessiones de Santo Agostinho, como os solilóquios de Petrarca pretendem
servir de modelo aos demais, assumindo um tom normativo, que é recusado por
Montaigne: Não ensino; relato.
138
Os Ensaios distinguem-se dos escritos subjetivos em geral, pois não consistem
simplesmente numa escrita auto-biográfica que se presta unicamente a falar de si mesmo.
Montaigne faz, a partir da pintura de si mesmo, um verdadeiro exercício de auto-
descobrimento. O projeto de auto-revelação está intimamente ligado à sua faceta cética e
à constatação de que todo o conhecimento é, de alguma maneira, circunstancial. Sujeito e
objeto descobrem-se mutuamente e, portanto, não devem ser tratados independentemente.
É neste sentido que Montaigne afirma não poder separar o seu livro de si mesmo. Os
Ensaios são por vezes tidos como um membro de seu corpo e de sua vida. Neste sentido,
ele é ao mesmo tempo pai e filho de seus ensaios. Aqui, vamos conformes e no mesmo
passo, meu livro e eu. Alhures, pode-se elogiar e criticar o trabalho separadamente do
artesão; aqui não: quem toca um toca o outro.
139
137
Para uma exposição mais detalhada acerca da moda literária da ordo neglectus ver FRIEDRICH, H.
1993, cap. 8.
138
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 30.
139
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 2, 29.
56
Além disso, a modéstia e a simplicidade defendidas por Montaigne não fazem
parte apenas de uma moda; são, ao contrário, parte constitutiva de sua filosofia cética, em
que a condição de miseria hominis ocupa um lugar central. Montaigne faz uso da ordo
neglectus, pois ela é a conseqüência natural de sua visão de mundo e de sua
subjetividade. O mundo em suas transformações constantes, o caráter antinômico da vida
e a complexidade do ser humano impedem uma expressão escrita demasiado regrada e
determinada, que insiste em unificar a pluralidade inerente ao ser humano e ao mundo.
140
Como conhecido humanista, Montaigne fora mais influenciado por gêneros
literários antigos, que pelos miscelâneos de sua época. As cartas de Cícero, por exemplo,
constituem um início de literatura autobiográfica, que incentivaram em Montaigne a
reflexão sobre a sua própria interioridade. Assim como os Ensaios, as cartas mantêm, em
geral, uma íntima ligação com situações concretas e cotidianas, que envolvem não apenas
aquele que escreve, mas também seu interlocutor. Como pressupõe o intercâmbio de
opiniões e pensamentos pessoais no interior de um círculo, elas se desenrolam como uma
conversa privada, onde aquele que escreve se sente à vontade de expor seus humores e
sentimentos mais íntimos, fora dos constrangimentos sociais. A diferença evidente
consiste no fato de Montaigne conversar muito mais consigo mesmo do que com um
interlocutor determinado.
Embora não simpatize muito com a filosofia platônica, Montaigne admira a
composição de seus diálogos. Estes consistem numa maneira cética de expor o
pensamento, na medida em que apresentam diferentes opiniões encarnadas em distintas
personagens. Platão parece-me ter apreciado essa forma de filosofar por diálogos,
deliberadamente, para mais apropriadamente colocar em diversas bocas a diversidade e
variação de suas próprias opiniões.
141
Montaigne, entretanto, não se utiliza de vários
personagens fictícios a fim de expor a variedade de opiniões sobre um mesmo assunto.
Em Montaigne, as várias vozes e opiniões saem de sua própria boca.
Mas, a vivacidade do espírito de Montaigne não pode ser apreendida – ou melhor,
sentida – senão a partir da penetração mais profunda de sua prosa. Ela é a expressão do
individualismo moderno, une forme mienne, um estilo inconfundível. Isto porque o
140
FRIEDRICH, H. 1993, 315.
141
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 265.
57
pensamento valioso é para Montaigne aquele que está entranhado no coração e no ser
daquele que o expressa. A pessoalidade de seus ensaios supõe a subjetividade não apenas
do conhecimento, mas também da escrita.
O estilo natural e vívido de Montaigne
Michel de Montaigne privilegia a forma natural não apenas em relação à vida,
mas também no que concerne a escrita. Assim como no agir, também no dizer sigo muito
simplesmente minha forma natural; talvez seja por isso que posso mais ao falar do que
ao escrever. O movimento e a ação animam as palavras, principalmente para os que se
movem vivamente, como faço, e que se inflamam.
142
A defesa da linguagem natural se
opõe ao esforço de “enriquecimento” da língua francesa que se encontrava em pleno
processo no século XVI. Neste esforço de elevação do francês ao mesmo nível do latim,
Jean Lemaire e os poetas da Pléiade tratavam a língua não mais como um meio
comunicativo, mas como um fim em si mesmo. Deste modo, a criação literária muitas
vezes se confundia com a criação puramente verbal.
Montaigne, por sua vez, nutria um amor pela palavra viva e espontânea. A
riqueza, segundo ele, se encontra naquilo que é real e que nos é disponível. É preciso
valorizar aquilo que a língua nos oferece e evitar o estilo decorativo e o tom
declamatório, ou seja, os instrumentos demasiado artificiais da literatura barroca.
Assim como no trajar-se é pobreza de espírito querer distinguir-
se por alguma característica particular e inusitada, da mesma
forma na linguagem a busca de expressões novas e de palavras
pouco conhecidas provém de uma ambição pueril e pedantesca.
Possa eu servir-me apenas das que servem aos mercados de
Paris.
143
Montaigne estava longe de impor um modelo abstrato e ideal de ordem, no
interior do qual o pensamento deveria se desenvolver. A frase montaigneana brota do
interior de seu autor e, ao revelar os contornos vívidos do “ser”, segue um ritmo fluido,
soupple, brisés et nonchalante. Na tentativa de “naturalizar” a arte, Montaigne se opõe
142
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 459.
143
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 26, 257.
58
claramente ao pedantismo literário e ao maneirismo dos poetas de seu tempo. Suas
críticas são tão severas e diretas, que beiram o tom irônico: Desde que Ronsard e Du
Bellay deram crédito à nossa poesia francesa, não vejo aprendiz tão pequeno que não
inche palavras, que não disponha os ritmos mais ou menos como eles.
144
A eleição de um estilo “natural” e de uma linguagem ordinária implica uma
quebra de hierarquização, pois esse estilo “familiar” e “vulgar” passa a ser usado na
discussão de temas profundos. Montaigne diz seguir naturalmente um estilo familiar e
privado
145
(comique et privé), que representa um pensamento que se deixa levar pelas
forças mobilizantes da linguagem ordinária. O estilo montaigneano, localizado na posição
mais baixa da escala composta ainda pelo genius mediocre e pelo stilus comicus, indica
uma auto-depreciação acompanhada da afirmação de sua forma pessoal e concreta de se
expressar. Assim, ao mesmo tempo em que se rebaixa, Montaigne amiúde enfatiza o
caráter único de seu estilo. Este desenvolvimento de une forme mienne se dá em grande
medida pela rejeição da abstração, pela atenção dada àquilo que é concreto, singular,
próximo e cotidiano.
O falar que aprecio é um falar simples e natural, tanto no papel
como na boca; um falar suculento e musculoso, breve e denso,
não tanto delicado e bem arrumado como veemente e brusco,
antes difícil que tedioso, livre de afetação, desordenado,
descosido e ousado: cada trecho forme seu corpo próprio, não
pedantesco, não fradesco, não rabulesco mas antes
soldadesco.
146
No ensaio sobre Lucrécio e Virgílio Montaigne discute suas preferências em
relação à linguagem e defende um estilo espontâneo, isento de virtuosismo e cheio de
fantasia e força. A manutenção da rudeza natural e a renúncia da afetação garantiriam o
alimento dos espíritos impetuosos. Desta forma, o projeto de se auto-retratar de maneira
polida, segundo as regras artísticas então correntes, permanece irrealizado. Mas dessa
144
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 26, 255.
145
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 40, 376.
146
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 26, 256-7.
59
não-realização resulta a expansão feliz do cenário marginal, a forma tão particular que
consiste em tirar partido da ausência de forma.
147
Ainda em torno da questão da linguagem, Montaigne afirma em Da presunção
que de resto, minha linguagem nada tem de fácil e fluida: é rude e descuidada, com
disposições livres e desordenadas; e apraz-me assim, se não por meu julgamento, por
minha inclinação.
148
A fim de traduzir mais fielmente a sua maneira natural, Montaigne
assume nos Ensaios inúmeras expressões locais do dialeto gascão. Minha linguagem
francesa é alterada, tanto na pronúncia como alhures, pelo barbarismo de minha região
natal.
149
Tão vívida é a linguagem montaigneana, que em muitas ocasiões o leitor tem a
impressão de estar em meio a uma conversa com o autor dos Ensaios. A freqüente
ruptura com a ordem gramaticalmente lógica e correta da frase confere à escrita
montaigneana um aspecto “falado”. O efeito sonoro das palavras nos dá a sensação de
que partes dos Ensaios foram forjadas não apenas para serem lidas, mas também para
serem declamadas, escutadas e sentidas.
150
O desgosto pelas conjunções e termos de
ligação em geral reforça ainda mais o estilo informal da escrita de Montaigne. Não gosto
de texturas em que as junções e as costuras apareçam, assim como em um belo corpo
não devemos conseguir contar os ossos e as veias.
151
Pode-se notar, por trás de cada
frase, a presença de gestos, de suas mãos e de todo seu corpo. Desta forma, o leitor não
observa de fora o pensamento de Montaigne, mas é antes convidado a acompanhar de
perto o movimento e a refazer o mesmo trajeto percorrido pelo o autor.
A linguagem montaigneana está sempre remetida ao vocabulário, às experiências
e às imagens da vida cotidiana. A concretude de seu pensamento se realiza em grande
medida através da larga utilização de metáforas e imagens. Tal caráter pictórico de sua
filosofia torna-se evidente no privilégio dado aos fatos, em detrimento da pura abstração
lingüística. Quero que as coisas predominem, e que invadam de tal forma a imaginação
147
STAROBINSKI, J. 1992, 223.
148
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 458-9.
149
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 459-60.
150
Muitos comentadores chamam a atenção, por exemplo, para o som da batalha presente no nono ensaio
do livro III. Com a tradução ao português, no entanto, tal efeito se perder quase totalmente.
151
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 26, 257.
60
152
de quem escuta que ele não tenha a menor lembrança das palavras. A riqueza de
imagens presente em sua obra faz com que o autor muitas vezes se aproxime da poesia.
Enquanto Saint-Beuve o chamava de “le vrai poète”, Montesquieu o considerava um dos
quatro grandes poetas da história. O próprio filósofo gascão afirma sua simpatia para com
a linguagem poética: Aprecio o andamento poético, com saltos e cabriolas. É uma arte
leve, versátil, divina, como diz Platão.
153
Pode-se dizer, assim, que a maioria dos ensaios
não é construída à maneira de um sermão ou de um discurso, mas pouco a pouco, como
um poema. Através da poesia, o pensamento de Montaigne exprime em imagens a sua
realidade mais profunda.
Montaigne mantém a sensibilidade do poeta, para quem a palavra é um ser vivo e
não a objetividade do prosador, para quem a palavra nada mais é que um símbolo de uma
idéia. Ele busca na prosa o mesmo efeito e o mesmo prazer físico que se encontram na
poesia. Ansia por uma escrita vívida que seja capaz de revelar os contornos de seus
pensamentos e cujas palavras respirem a sua vida interior. Sua prosa poética não segue
propriamente as formalidades da poesia, mas a sua natureza imaginativa. É portanto a
força impulsiva de seu espírito, e não uma razão impassiva, que dirige o seu pensamento.
Torna-se importante notar que a imagem é raramente uma figura puramente
literária à serviço de um ornamento estilístico. Na maior parte do tempo a imagem não
ilustra o pensamento de Montaigne. Ela é o pensamento e nasce ao mesmo tempo em que
surge a idéia. Os meios retóricos dos Ensaios não são recursos puramente artísticos, mas
servem a um determinado motivo, a um certo pensamento e a um temperamento
particular. A constante utilização de imagens nos obriga a considerá-las consubstancial ao
pensamento e a dizer, conforme Sainte-Beuve, que pensée et image, chez lui, c’est tout
un.
As inúmeras imagens dinâmicas, além de ilustrarem reflexões abstratas,
provocam o pensamento, conferindo movimento à escrita montaigneana. Em quase todas
as imagens de Montaigne há movimento, fluidez e instabilidade. Umas das mais belas
imagens são aquelas referentes à água e ao vento. A primeira é em geral usada quando o
autor deseja enfatizar a inconstância humana. Não vamos, somos levados, como as coisas
152
MONTAIGNE, M. de. 2000, I, 26, 256.
153
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 9, 315.
61
que flutuam ora suavemente, ora com violência, conforme a água esteja irritada ou
calma.
154
O pensamento, comparado à água, é impossível de ser agarrado ou possuído.
Ele sempre nos escapa.
O vento, por sua vez, traduziria a idéia de movimento e de perenidade do ser e do
mundo. Mas ora essa, somos vento em tudo. E ainda o vento, mais sabiamente do que
nós, compraz-se em fazer barulho, em agitar-se, e contenta-se com suas próprias
funções, sem desejar a estabilidade, a solidez, qualidades que não são suas.
155
Segundo Starobinski,
A água se torna mais leve à medida que escoa, e Montaigne
passa facilmente da imagem da água à do vento, à sua
‘inanidade’ pura, sem massa, sem direção nem corrente
constantes. Ao termo de seu aligeirar-se, a imagem do
escoamento se torna agitação impalpável: o movimento que
desfaz o ser se desfaz ele próprio na desordem estacionária da
extrema leveza.
156
O movimento do pensamento montaigneano também é exprimido através da vasta
utilização de verbos, muitas vezes em forma reflexiva, ou duplamente reflexiva: Cada
qual olha diante de si; eu olho dentro de mim: só de mim me ocupo, examino-me sem
cessar, vigio-me, experimento-me. Os outros vão sempre alhures, se pensarem bem; vão
sempre adiante (ninguém tenta descer ao interior de si mesmo - Pérsio), eu giro em mim
157
mesmo.
De acordo com Floyd Gray, a preferência de Montaigne pelos verbos, em
detrimento dos adjetivos, por exemplo, indica um pensamento mais interessado no
movimento e na ação, que na pura descrição de uma situação.
158
A fim de acompanhar o
caráter móvel de sua própria pessoa, Montaigne faz uso do tempo verbal presente, pois
apenas ele é capaz de exprimir a ação mesma da passagem. É o presente que traduz a
continuidade da durée, o movimento ininterrupto do tempo e sobretudo o movimento de
seu “eu” interior.
154
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 1, 6.
155
MONTAIGNE, M. de. 2001, III, 13, 486.
156
STAROBINSKI, J. 1992, 220-21.
157
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 17, 488.
158
GRAY, F. 1958, ??.
62
Outra forma bastante utilizada por Montaigne, que combina muito bem com seu
espírito ondulante e dubitativo, é o subjuntivo. Talvez o tempo verbal mais ausente dos
Ensaios seja, em contrapartida, o imperativo. Quando ele o usa, o faz a partir de outros
personagens, mas nunca de si mesmo. Tal característica está intimamente relacionada à
ausência de um tom oratório marcado pelo desejo de convencimento do leitor. Este
aspecto montaigneano denota a aceitação da variedade e da instabilidade essencial do
homem e do mundo, além de uma recusa em ver as coisas sem admitir ao mesmo tempo o
seu contrário.
O temperamento cético de Montaigne encontra-se presente na própria eleição de
uma linguagem vulgar, ordinária e concreta. Contudo, o que parece expressar de maneira
ainda mais evidente a sua faceta cética é a vasta utilização de antíteses nos Ensaios. A
antítese consiste exatamente no costume cético de pesar todas as coisas e de contrapor a
um argumento ou razão o seu oposto. Ela marca a realização e a expressão da dualidade
humana e traduz um pensamento que não se contenta em aparecer apenas sob um
aspecto. O dualismo da expressão corresponde ao dualismo do pensamento e o
movimento duplo da frase antitética encontra sua expressão natural nas imagens teatrais:
o homem está todo o tempo em cena, mantendo duas faces, uma dirigida ao público e
uma para si mesmo.
A fortuna dos Ensaios
Embora os Ensaios tenham sido bem recebidos até meados do século XVII, a
partir do fim deste mesmo século começam a surgir os primeiros ataques de conteúdo
filosófico e religioso. A proposta de pintar-se a si mesmo torna-se uma prova da
excessiva vaidade do autor e o seu pirronismo aparece como uma perigosa ameaça à
religião. Uma das reações mais rudes contra o pirronismo fideísta de Montaigne
encontra-se em Malebranche, religioso racionalista que afirmava ser preciso proteger os
leitores do poder sedutor dos Ensaios de Montaigne.
159
O gosto pela regularidade vinha
se impondo naquele século e uma obra marcada por tal falta de sistematização era
inaceitável para o gosto francês da época. É apenas a partir do século XVIII que os
Ensaios de Michel de Montaigne voltam a ser valorizados em sua terra natal.
159
VILLEY, P. 1961, 168.
63
A recepção positiva na Inglaterra foi, ao contrário, mais duradoura. Os Ensaios
de Michel de Montaigne tiveram considerável fortuna do outro lado do canal da Mancha,
desde que Giovanni Florio o traduziu, em 1603, para um inglês opulento e extravagante.
Embora o pensamento e mesmo o estilo de Michel de Montaigne não tenham perdurado
em terras inglesas, a forma literária desenvolvida pelo filósofo gascão fincou ali raízes
profundas. Assim, o gênero ensaístico, rejeitado na França, é aceito e desenvolvido com
uma rapidez impressionante pelos ingleses.
Em 1597, pouco antes de Giovanni Florio concluir a primeira tradução de
Montaigne, é publicado o primeiro volume de ensaios de Francis Bacon. O modelo
original de Montaigne não é transposto de maneira absolutamente fiel, mas sofre
modificações próprias da idiossincrasia saxona. Neste sentido, com exceção do título, a
influência do estilo francês não se faz notar na primeira edição dos Ensaios de Bacon. Os
textos diferem tanto em forma como em substância. Os primitivos ensaios de Bacon não
passam de dez e são escritos de maneira concisa, fria e deselegante.
É sobretudo com a publicação de The Spectator por Joseph Adisson e Richard
Steele, que tal gênero torna-se popular na Inglaterra. De acordo com Hayes, sentado el
principio conformista de Montaigne, sobradamente explicable es la naturalización
inglesa de los Ensayos. Para el tradicionalismo británico, nuestro caballero es puntal del
orden social.
160
No entanto, como será visto mais adiante, tal “princípio conformista” é
insuficiente para explicar a decisão de David Hume de escrever ensaios.
Nos dias de hoje, Michel de Montaigne e seus Ensaios tornaram-se uma
unanimidade, lida e estudada por pensadores e especialistas das mais diversas áreas.
Tomo de empréstimo as palavras de Nietzsche para resumir o significado de Montaigne e
a sensação que a leitura dos Ensaios deixa em minha pessoa:
Que un hombre así haya escrito es cosa que ha aumentado,
realmente, el gozo de vivir en este mundo. Por mi parte, al
menos, desde que conocí este espíritu, máximamente libre y fuerte
como ningún otro, no puedo decir de él sino lo que él mismo dice
de Plutarco: “Apenas he lanzado una mirada en él, y ya me han
crecido una pierna o un ala”. Obligado a buscarme un hueco
160
HAYES, R. S. 1939, 342.
64
propicio en este mundo, con su ayuda creo que podría
conseguirlo.
161
161
NIETZSCHE, F. 2000, 37.
65
David Hume e o ensaio como filosofia da “common life”
Introdução
A feroz crítica pirrônica às pretensões humanas de conhecimento contida na
Apologia de Montaigne não evitou que o século XVIII fosse dominado pelo racionalismo
iluminista, defendido por intelectuais e filósofos que demandavam uma forma de
conhecimento sustentada na eliminação da dúvida. De acordo com essa perspectiva,
qualquer tipo de saber só obtinha o status de verdade se fundamentado em certezas.
Trata-se aqui de uma transposição da linguagem rigorosa das ciências naturais, baseada
nas premissas epistemológicas da matemática e da física, às ciências humanas. O que
importava era a ascensão a um conhecimento considerado mais elevado, profundo e
rigoroso da natureza, presidido por princípios universalmente válidos, atemporais e
autoevidentes. A partir da decomposição da vida social em seu elemento básico
constituinte, ou seja, o indivíduo, esse modelo epistemológico racionalista e dedutivo
buscava a quantificação, divisão, ordenação e, finalmente, a formulação de leis e relações
regulares e causais acerca do comportamento humano.
Essa linguagem característica das ciências naturais, transposta para as ciências
humanas teve no século XVIII como grande defensor René Descartes. Estabelecendo a
metafísica como fundamento último da ciência, este autor vai inequivocamente das idéias
às coisas. Isto porque, para ele, o mundo sensível constitui um obstáculo ao processo de
conhecimento. Torna-se, neste sentido, necessário defender o princípio da autonomia
filosófica, ou seja a independência desta atividade em relação às máximas não-reflexivas
da ordem da common life. Assim, todas as opiniões que não se adequassem aos padrões
de uniformidade do esquema racional cartesiano eram consideradas falsas, ou seja, não
recebiam o status de verdade. Isto porque a ciência moderna iluminista desconfia
sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata, considerando-as a base
do conhecimento vulgar ilusório.
Mas com a erradicação da dúvida desaparece também a rica diversidade do
mundo social. No lugar dela se estabelece uma homogeneidade estéril que, através da
insistente crença na necessidade de se instituir certezas universais e atemporais, acaba por
se constituir como um saber dogmático. A partir da observação rigorosa e
66
descomprometida com a vida ordinária, a complexidade da vida social corre o sério risco
de ser reduzida a uma máquina, cujas operações podem ser determinadas por uso de leis
físicas e matemáticas. O dinamismo cede lugar a uma visão estática de um mundo
eternamente a flutuar num espaço vazio. A atividade do filósofo é, neste, contexto
definida como uma tarefa a ser realizada no deserto, onde o pensador não sofreria outra
influência e não receberia outra inspiração que a da luz da razão.
O aparente triunfo da filosofia cartesiana pode, porém, ser relativizado, na medida
em que este cenário não se caracterizava pela ausência de um embate. A este tipo de
racionalismo dedutivo se contrapunham intelectuais que recusavam formas de
conhecimento dogmáticas e que afirmavam o caráter subjetivo e falível das mesmas.
David Hume ocupa um lugar particular neste conflito filosófico do século XVIII. As
reflexões contidas no Tratado da Natureza Humana sugerem a adesão de Hume à reação
crítica ao método dedutivo de Descartes e à falsa filosofia, ou seja, àquela que, como
atividade etérea, permanece desvinculada da dimensão ordinária da vida. Influenciado
pelo método newtoniano, Hume pretende inserir nos assuntos morais o método
experimental e analisar as forças que movem os homens a partir da observação de seu
comportamento na vida cotidiana.
Segundo James Noxon, os assombrosos êxitos dos filósofos naturais constituíam
um incentivo para os contemporâneos de David Hume, que se interessavam por temas
psicológicos, sociais e políticos.
162
A possibilidade de adaptar o método das ciências
naturais aos estudos humanos era tentadora. Acreditava-se que o estudo acerca da moral,
da sociedade e da vida política podia basear-se, em última instância, na compreensão
sólida e científica da natureza humana. No entanto, quando se passa da filosofia natural
do século XVIII à filosofia moral penetramos em uma área de incerteza em que
praticamente qualquer matiz de opinião pode ser defendido por argumentos de
aproximadamente igual plausibilidade. A persistência de controvérsias acerca das
motivações humanas, dos fundamentos do juízo e das obrigações morais, das bases da
soberania, entre outras questões, tornou patente a falência deste ideal, quando aplicado
aos assuntos humanos. Embora a magnitude do fracasso tenha se tornado evidente
sobretudo no século XX, a vanidade do esforço em introduzir o método científico em
162
NOXON, J. 1987, 15.
67
questões morais e religiosas já podia ser sentido em tempos de Hume. Não é de se
espantar, portanto, que o tema em torno da falibilidade do conhecimento humano tenha
sido tão importante este filósofo.
163
O Tratado da Natureza Humana
Em 1739 David Hume publica, aos vinte e poucos anos, os dois primeiros livros
do Tratado da Natureza Humana, obra de imensa complexidade, que constitui uma
tentativa de introduzir o método experimental de inspiração newtoniana nos assuntos
humanos. Na Introdução do Tratado Hume manifesta seu desejo de estabelecer uma
ciência empírica do homem, que pudesse servir de fundamento para todas as ciências,
sejam elas práticas ou teóricas.
Não existe nenhuma questão importante cuja decisão não esteja
compreendida na ciência do homem; e não existe nenhuma que
possa ser decidida com alguma certeza antes de conhecermos
essa ciência. Portanto, ao pretender explicar os princípios da
natureza humana, estamos de fato propondo um sistema completo
das ciências, construído sobre um fundamento quase inteiramente
novo, e o único sobre o qual elas podem se estabelecer com
alguma segurança.
164
Assim como Newton, que a partir do princípio da gravidade universal e de teorias
derivadas matematicamente de três leis simples explicava o movimento dos corpos
celestes, Hume pretendia descobrir alguns poucos princípios que seriam capazes de
abarcar as forças que movem os seres humanos. Enquanto Newton demonstrava as
transformações no mundo físico através do princípio da gravitação, Hume buscava a
compreensão dos processos de conhecimento a partir de um só princípio, o de associação
de idéias. A tarefa construtiva de desenvolvimento de um conjunto de teorias
psicológicas permitiria explicar, além dos processos mentais e intelectuais, as motivações
afetivas que subjazem às ações humanas. Os dois primeiros livros do Tratado devem ser
entendidos como parte desta tarefa de perscrutação da natureza humana e de consolidação
163
NOXON, J. 1987, 15.
164
HUME, D. 2001, 22.
68
dos fundamentos das ciências morais, onde as considerações acerca do entendimento
(lógica) e das paixões (psicologia) seriam igualmente importantes.
Mas, junto a este programa “construtivo” se desenvolve um outro, de caráter
“destrutivo”, que pretendia sacudir as bases filosóficas metafísicas. A faceta crítica da
filosofia de Hume domina a parte final do Livro I, onde ele examina um conjunto de
doutrinas metafísicas tradicionais. A introdução do Tratado já anunciava a sua militância
contrária ao método dedutivo e ao ideal cartesiano. A pura objetividade do pensamento
lógico é aqui substituída por uma crítica cética de reconhecimento dos limites intelectuais
humanos. Ao contrário de Descartes, Hume não pretende vindicar o conhecimento
científico e subministrar uma garantia metafísica de sua veracidade. Ele desejava antes
examinar os fundamentos da ciência, a fim de determinar a força e o alcance do
entendimento humano. O que ele descobre é que, além do conhecimento sofrer os limites
impostos pela condição humana, não há esperança para uma possibilidade de superação
desta determinação. Assim como Montaigne, Hume também chama a atenção para o
primado das circunstâncias, que constrange os processos intelectuais humanos. Não há
nada que possamos conhecer, ou esperar conhecer, que não derive, mesmo que
indiretamente, da dimensão experimental. Trata-se aqui, mais uma vez, da retomada,
sobretudo do quarto Modo do ceticismo pirrônico antigo.
Por tudo o que se disse, o leitor perceberá facilmente que a
filosofia contida nesse livro é muito cética, e tende a nos dar uma
noção das imperfeições e dos estreitos limites do entendimento
humano. Segundo essa filosofia, quase todo raciocínio se reduz à
experiência; e a crença que acompanha a experiência se explica
somente como um sentimento peculiar, ou seja, como uma
concepção vívida produzida pelo hábito.
165
Logo no início do primeiro livro do Tratado, ao definir as idéias, Hume diz que
elas não são mais do que cópias de nossas impressões. Na medida em que derivam de
algo já sentido ou de alguma forma vivenciado, as idéias simples mantêm-se
estreitamente ligadas à experiência. Até mesmo a geometria e a aritmética – disciplinas
165
HUME, D. 2001, 691.
69
normalmente tidas como puramente lógicas, racionais e dedutivas – são no Tratado
fundamentadas em conhecimentos empíricos.
Mas, talvez nada do que tenha escrito Hume consiga apelar com mais força e
pureza ao intelecto filosófico que a crítica cética dos conceitos e doutrinas metafísicas
contida em sua análise filosófica, sobretudo na parte IV do primeiro livro do Tratado. Na
era da Razão, Hume distinguia-se como anti-racionalista, sublinhando o fundamento
empírico dos processos intelectuais humanos. Para ele, a maior parte do entendimento é
obtida não por uma inferência mental lógica, independente das condições concretas em
que se encontra o sujeito, mas pela experiência, pelo hábito e pelo costume. Assim,
segundo David Hume, afirmamos que o sol nascerá amanhã simplesmente porque
estamos acostumados a vê-lo nascer todos os dias. Não há, para ele, nenhuma garantia
metafísica de que isto deva ocorrer. A razão, aliás, não passa de uma mera escrava das
paixões. Trata-se de uma personagem secundária que permanece restrita às relações de
idéias e que é incapaz de produzir qualquer tipo de ação ou crença. Ela é em si mesma
impassível. A experiência, ao contrário, é ao mesmo tempo o fundamento do raciocínio
moral e a fonte de toda ação humana.
É também a experiência que nos revela a natureza e os limites da relação de causa
e efeito, e nos permite inferir, a partir dos princípios de contigüidade, sucessão e
conjunção constante, a existência de um objeto a partir da existência de outro. A
transição que fazemos de uma impressão, presente à memória ou aos sentidos, para idéias
de objetos que denominamos causa e/ou efeito está fundada na experiência passada e em
nossa lembrança de sua conjunção constante. É por hábito que fazemos a transição de
uma para a outra. A idéia de causa e efeito é derivada da experiência, que nos informa
que tais objetos particulares, em todos os casos passados, estiveram em conjunção
constante um com o outro.
166
Se estamos acostumados, pela experiência, a perceber que
a chama é sempre acompanhada da sensação de calor, denominamos a primeira de causa
e a segunda de efeito. A relação de causalidade, portanto, não se encontra presente no
objeto em si mesmo e nem pode ser inferida a partir de uma razão pura. Hume recusa,
neste sentido, a existência de uma necessidade metafísica que vincule a causa e o efeito.
166
HUME, D. 2001, 118-9.
70
Na Sinopse Hume sugere que o primeiro livro do Tratado elucidava uma noção de
causa e efeito que privava o conhecimento de questões de fato da certeza absoluta. Pois o
conhecimento, fundado na experiência e isento de quaisquer garantias metafísicas, é
incerto e apenas provável. Ao comentar a situação do mundo científico e filosófico de sua
época, Hume enfatiza a nuvem de ignorância que o cobre e a fragilidade que ameaça as
hipóteses mais extravagantes e calorosamente defendidas. A introdução do Tratado é
recheada de frases dignas de um verdadeiro cético.
Mesmo a plebe lá fora é capaz de julgar, pelo barulho e vozerio
que ouve, que nem tudo vai bem aqui dentro. Não há nada que
não seja objeto de discussão e sobre o qual os estudiosos não
manifestem opiniões contrárias. A questão mais trivial não
escapa à nossa controvérsia, e não somos capazes de produzir
nenhuma certeza a respeito das mais importantes.
167
O pensamento humeano, contudo, não termina no ceticismo, mas segue adiante na
construção de um mundo empírico baseado na compreensão do funcionamento da mente
humana. Assim como Montaigne, Hume tampouco lamenta a falência da razão. O
reconhecimento de tal fraqueza não lhe provoca uma desolação paralisante. E, mesmo que
jamais possamos chegar aos princípios últimos, já é uma satisfação ir até onde nossas
faculdades nos permitem ir.
168
A constatação da fragilidade do conhecimento, derivada
do fundamento empírico do mesmo, não implica uma desilusão em torno das
possibilidades investigativas e científicas. O que lhe importa é investigar a natureza do
entendimento humano e mostrar, com base em uma análise exata de seus poderes e
capacidades, que o filósofo não está de modo algum apto a tratar de assuntos tão remotos
e abstrusos. Seguindo a premissa básica do ceticismo clássico, Hume defende que as
temáticas humanas evidentes não podem ser desvendadas a partir de teses ou proposições
metafísicas não-evidentes. O problema maior da metafísica, ou da filosofia em geral, é
que ela não aceita os limites intelectuais humanos e insiste em penetrar em assuntos
completamente inacessíveis ao entendimento. De tal ousadia não se pode esperar nada
além de recorrentes frustrações.
167
HUME, D. 2001, 684.
168
HUME, D. 2001, 684.
71
A crítica à falsa filosofia
O Tratado da Natureza Humana abriga a chamada crítica humeana à falsa
filosofia, ou seja, à filosofia que se constitui como uma atividade dirigida pelo princípio
de autonomia e que permanece desvinculada da vida ordinária. Segundo Donald
Livingston, a união da política com o cristianismo teria acostumado os homens a pensar
em temas políticos de modo metafísico, mas é apenas no mundo moderno que a aplicação
destes princípios assume um caráter consciente. Such an existence is lived not ‘in the air’
of common life but ‘in a vacuum’ and is the result of ‘the illusions’ of ‘extravagant
philosophy’ and of ‘philosophical enthusiasm’.
169
Se a alienação filosófica é apenas ridícula quando isolada em seu próprio âmbito,
ao invadir o ambiente político ela torna-se extremamente perigosa. Ao fazer uso do
princípio da autonomia, a falsa filosofia permanece desvinculada da vida comum e torna-
se capaz de propor uma completa subversão da ordem social, quando esta não se mostrar
adequada aos esquemas fornecidos pela razão. Esse princípio de autonomia acaba por
apresentar-se ‘como proposta de substituição desses arranjos tradicionais –
representados em desacordo com a razão – por arranjos imaginados por desígnios
racionais avessos ao que se define como experiência comum.
170
No Tratado da Natureza Humana Hume traça uma distinção entre o vulgo, a falsa
filosofia e a verdadeira filosofia. Enquanto a verdadeira filosofia se aproxima mais do
vulgo, a falsa filosofia se encontra numa situação lamentável, provocada por sua busca
voraz por algo que para sempre lhe escapa. É, no entanto, sobretudo na primeira
Investigação que Hume se dedica à oposição entre a filosofia simples e a abstrusa. A
primeira, ao participar mais ativamente da vida cotidiana, é considerada pelo grosso da
humanidade como sendo acessível e preferível, já que é mais agradável e útil que a outra.
As especulações abstratas e ininteligíveis, próprias das investigações em torno de
princípios cada vez mais gerais, buscam, por sua vez, a aprovação dos instruídos e dos
sábios, mantendo-se distante do senso comum. Acostumados a agir como grande parte
dos matemáticos, que exigem uma visão pura e intelectual acessível apenas às faculdades
169
LIVINGSTON, D. 1984, 312.
170
LESSA, R. 2004, 11.
72
superiores da alma, estes filósofos costumam recorrer a idéias obscuras e incertas,
encobrindo, assim, vários de seus absurdos.
A filosofia abstrusa, ao contrário, estando baseada numa
predisposição que não participa da vida dos negócios e da ação,
esvanece-se quando o filósofo deixa a sombra e sai à luz do dia; e
não é fácil que os princípios dessa filosofia retenham alguma
influência sobre nossa conduta e comportamento. Os sentimentos
de nosso coração, a agitação de nossas paixões, a veemência de
nossos afetos dissipam todas as suas conclusões e reduzem o
filósofo profundo a um mero plebeu.
171
O filósofo puro não é tão bem aceito pelo público em geral, pois, ao viver
envolvido em idéias metafísicas e apartado do contato cotidiano com os seres humanos,
pouco poderia contribuir para o proveito da sociedade. A filosofia simples, ao contrário,
por apelar sempre ao senso comum e aos sentimentos naturais do espírito, retorna sempre
ao caminho correto e corre um risco menor de sucumbir a ilusões perigosas. Já que seus
princípios são extraídos unicamente das aparências, a filosofia simples jamais alcança, em
suas conclusões, um grau total de exatidão. No entanto, em razão de sua simplicidade, ela
é incapaz de nos levar a cometer erros demasiado consideráveis.
Embora Hume dirija afiadas críticas à filosofia pura, ele não abandona as
reflexões mais precisas e exatas em favor do senso comum. A despeito de sua tendência
para cometer enganos a partir de seus raciocínios sutis, a metafísica pode, segundo Hume,
servir de auxílio à filosofia simples, na medida em que oferece um grau maior de exatidão
às opiniões e aos raciocínios vulgares. Tal espírito de exatidão, presente nesta filosofia
por vezes desagradável, consiste num importante instrumento à disposição daqueles que
se relacionam mais de perto com a vida e a ação. Até mesmo o pintor necessita das
investigações do anatomista, pois o artista precisa manter sua atenção para a estrutura
interna do corpo humano, para a posição dos músculos e o arranjo dos ossos, dos órgãos e
de cada pormenor físico do homem.
O estado ideal seria constituído, segundo Hume, a partir da combinação entre as
duas dimensões. O caráter mais perfeito estaria situado entre esses dois extremos,
representado, por um lado, pela filosofia simples e, por outro, pela filosofia abstrusa. Tal
171
HUME, D. 2004a, 21.
73
temperamento exibiria aptidão e gosto tanto pelos livros, como pela convivência social e
pelos negócios. Revelaria na conversação, o discernimento e a delicadeza que brotam da
familiaridade com as belas-letras, e, nos negócios, a integridade e exatidão que são o
resultado natural de uma correta filosofia.
172
Parece, então, que a natureza estipulou uma espécie mista de
vida como a mais adequada aos seres humanos, e secretamente
os advertiu a não permitir que nenhuma dessas inclinações se
imponha excessivamente, a ponto de incapacitá-los para outras
ocupações e entretenimentos.
173
Mais problemático que o caráter penoso e fatigante da filosofia profunda e
abstrata, é a sua obscuridade que, segundo Hume, consiste numa importante fonte de erro
e incerteza. Tal desvantagem, no entanto, deriva mais da vaidade humana, que insiste em
penetrar em assuntos completamente inacessíveis ao entendimento humano, que de uma
situação objetiva do mundo. Neste sentido, a constatação do fracasso não deve implicar
um desespero cego, que provocaria a renúncia da investigação e até mesmo da ação. Todo
gênio audaz continuará lançando-se ao árduo prêmio e considerar-se-á antes estimulado
que desencorajado pelos fracassos de seus predecessores, esperando que a glória de
alcançar sucesso em tão difícil empreitada esteja reservada apenas para si.
174
É preciso, portanto, superar a vaidade e cultivar a verdadeira metafísica,
reconhecendo os limites do entendimento e da capacidade humana em tratar de questões
tão remotas. Assim, o resultado de toda a filosofia é a constatação da cegueira e
debilidade humanas, com a qual deparamos por toda parte apesar de nossos esforços
para evitá-la ou dela nos esquivarmos.
175
Como filósofo, é preciso admitir acima de
tudo a sua condição humana.
“Satisfaz tua paixão pela ciência”, diz ela [a natureza], “mas
cuida para que essa seja uma ciência humana, com direta
relevância para a prática e a vida social. O pensamento abstruso
e as investigações recônditas são por mim proibidos e
172
HUME, D. 2004a, 22.
173
HUME, D. 2004a, 23.
174
HUME, D. 2004a, 27.
175
HUME, D. 2004a, 60.
74
severamente castigados com a pensativa tristeza que ensejam,
com a infindável incerteza em que serás envolvido e com a fria
recepção dedicada a tuas pretensas descobertas, quando
comunicadas. Sê um filósofo, mas em meio a toda tua filosofia,
176
não deixeis de ser um homem.”
Vale ressaltar aqui uma informação biográfica do autor, que nos permite
compreender melhor essa primazia dada à vida. Entre os 18 e os 23 anos David Hume
teria sofrido sintomas físicos e mentais de uma doença causada pelo excesso de estudo,
provavelmente em decorrência do esforço que lhe havia exigido a composição do
Tratado. Segundo alguns médicos consultados, tal mal poderia ser minimizado por uma
vida mais ativa e atenta à diversão. A fim de finalmente superar essa desordem
psicossomática, Hume decide aventurar-se em uma carreira prática e viaja até Bristol
para trabalhar na área comercial. Em 1734, fui a Bristol, com algumas cartas de
recomendação para comerciantes eminentes, mas em poucos meses percebi que aquele
mundo era totalmente inadequado para mim.
177
Embora não tenha permanecido longo
tempo nesta ocupação, tal episódio marca a intenção de Hume em manter uma vida mais
ativa e mais intimamente relacionada com assuntos práticos e ordinários.
O ceticismo mitigado
Quando a filosofia supera a etapa contraditória e alienada governada pelo
princípio de autonomia, ela finalmente reconhece a “common life” não apenas como um
objeto de reflexão, mas também como uma categoria interna à sua própria atividade
crítica. A verdadeira filosofia pressupõe a autoridade máxima da vida comum e o
ceticismo é interno à mesma, pois é a partir da dúvida que o filósofo reconhece sua
condição de alienação.
178
Segundo Fogelin o ceticismo de Hume deve ser entendido não como uma recusa
da crença em geral, mas como uma crítica à capacidade das faculdades intelectuais
humanas.
179
Neste sentido, sua filosofia cética se aproximaria da versão montaigneana,
176
HUME, D. 2004a, 23.
177
HUME, D. 2004b, 73.
178
Há uma relação dialética entre filosofia e a ordem da “common life”, já que o filósofo se coloca ao
mesmo tempo no interior e fora desta ordem.
179
FOGELIN, R. J. 1993.
75
já que ambos representam um tipo insulador de ceticismo, onde a dúvida é dirigida
apenas a questões filosóficas e não ao conhecimento da vida ordinária. Como a crença
não se origina de um ato de pensamento e, portanto, não pode ser destruída por idéias ou
reflexões, ela se mantém imune ao ataque cético. A perpétua dúvida decorrente do
pirronismo e o reconhecimento da falta de fundamentos racionais para as crenças comuns
não excluem a existência das mesmas.
O desengano cético não provoca em Hume nem mesmo uma paralisia intelectual.
A sana resposta ao veneno pirrônico consiste em aceitar os limites do entendimento
humano e a trabalhar com instrumentos que distam de ser perfeitos. Pois será possível
imaginar tormento maior que a busca voraz de algo que para sempre nos escapa; e sua
busca lá onde é impossível que possa vir a existir?
180
O filósofo que tiver aprendido a
viver na incerteza poderá esperar estabelecer um sistema ou conjunto de opiniões que,
mesmo que não sejam verdadeiras - talvez seja demasiado esperar tal coisa -, possam ser,
ao menos, satisfatórias para a mente humana. The true philosopher recognizes his
cognitive alienation from ultimate reality but continues to inquire, though he has nothing
but the ‘leaky weather-beaten vessel’ of common life through which to think.
181
Ao contrário de Descartes, que resolve o problema da dúvida com um golpe
brilhante, Hume arrasta o leitor por um caminho desigual, através de seu pensamento
tortuoso. Suas dúvidas não podem ser resolvidas por meios lógicos, mas apenas pela
força da natureza, pela compulsão natural de romper com a intolerável melancolia e o
delírio filosófico. Assim, embora constitua o único fundamento sólido das ciências, o
ceticismo pirrônico é inviável no sentido estrito do termo.
O espírito pirrônico preside nos ataques humeanos contra os
ontólogos que afirmam que nossas crenças naturais se baseiam
na realidade substancial do mundo externo e da mente. Mas esse
ceticismo extremo se vê mitigado pela reflexão sobre a
necessidade prática de se manter tais crenças fundamentais
indemonstráveis. Embora sejam sacudidas momentaneamente,
tais crenças não são abandonadas, pois um ceticismo de tal grau
seria auto-destrutivo. O que se abandona é o objetivo dogmático
180
HUME, D. 2001, 256.
181
LIVINGSTON, D. 1984, 3.
76
de demonstração da verdade das crenças, além de toda e
qualquer pretensão de se alcançar certezas apodíticas.
182
O ceticismo pirrônico serve para limpar o terreno dos sofismas e das ilusões da
metafísica irresponsável, especialmente do desejo ilusório de encontrar uma certeza
assentada na rocha sobre a qual assegurar logicamente uma teoria existencial. Uma vez
que o pirronismo tenha realizado sua tarefa, este é substituído por um ceticismo
mitigado
183
, que reconhece não apenas os limites do entendimento humano, mas também
a necessidade de se operar dentro deles. Estos límites definen el ámbito de las
operaciones legítimas como el reino de la experiencia sensible y prescriben el método
empírico como el único apropriado.
184
David Hume percebe uma certa influência maléfica da filosofia pirrônica, quando
esta se mantém de maneira excessiva na mente humana. Toda a vida humana seria
aniquilada se seus princípios fossem adotados de forma constante e universal. Todo
discurso e toda ação cessariam de imediato, e as pessoas mergulhariam em completa
letargia, até que as necessidades naturais insatisfeitas pusessem fim à sua miserável
existência.
185
A fatalidade consiste numa situação hipotética, pois ela sempre sucumbe
ao poder da natureza, que impõe à humanidade a necessidade de agir, raciocinar e
acreditar, mesmo sem ser capaz de convencer-se quanto às bases dessas operações, ou de
afastar as objeções que podem ser levantadas contra elas.
186
A conclusão do Livro I, Do entendimento, constitui uma bela passagem narrada
em primeira pessoa, onde o autor declara o caráter cético e não dogmático de seu espírito.
Suas intenções e motivações filosóficas podem ser mais bem compreendidas a partir da
leitura de suas confidências pessoais. Quando Hume se imagina numa condição
182
NOXON, J. 1987, 27.
183
O termo “ceticismo mitigado” é utilizado por Hume pela primeira vez nas Investigações. Ver HUME,
D. 2004a, 217. Fogelin também emprega este termo ao discutir o caráter cético da filosofia humeana. Ver
FOGELIN, R. J. 1993. Richard Popkin, por sua vez, faz uso do termo “ceticismo consistente”, mantendo,
no entanto, um significado bastante similar à versão “mitigada”. Ver POPKIN, R. 1995. Trata-se da
interpretação humeana do ceticismo pirrônico, que mantém a dúvida exclusivamente em relação a crenças
filosóficas baseadas em dimensões não-evidentes e que toma a ordem da common life como uma categoria
interna à própria atividade teórica.
184
NOXON, J. 1987, 28.
185
HUME, D. 2004a, 216.
186
HUME, D. 2004a, 217.
77
deplorável, envolvido na mais profunda escuridão, submerso na dúvida e na decepção
diante do reconhecimento da fraqueza das suas faculdades intelectuais, a natureza lhe
acode e lhe salva do pirronismo completo.
Felizmente ocorre que, sendo a razão incapaz de dissipar essas
nuvens, a própria natureza o faz, e me cura dessa melancolia e
delírio filosóficos, tornando mais branda essa inclinação da
mente, ou então fornecendo-me alguma distração e alguma
impressão sensível mais vívida, que apagam todas essas
quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso e me
alegro com meus amigos; após três ou quatro horas de diversão,
quando quero retomar essas especulações, elas me parecem tão
frias, forçadas e ridículas, que não me sinto mais disposto a levá-
las adiante.
187
Como um filósofo dotado de um temperamento bastante moderado, Hume
defende uma versão mais suave do ceticismo, que seria um meio-termo entre a aceitação
inocente e o pirronismo completo. Embora no Tratado não esteja presente a idéia
específica do ceticismo mitigado, na Investigação Hume já está plenamente familiarizado
com a sua posição estratégica, ao defender esta variante moderada do ceticismo e a
limitação de nossas investigações àqueles temas que se adequem melhor à estrita
capacidade do entendimento humano. Evitando qualquer investigação distante e elevada,
o cético moderado se limita à vida ordinária e àqueles objetos do campo da prática e das
experiências diárias, deixando os temas mais sublimes para os poetas e oradores. Os
filósofos que se submetem à dúvida pirrônica não sucumbirão à tentação de ir mais além
da vida comum, pois levam em conta a imperfeição das faculdades das quais fazem uso.
Longe de ser atraído para assuntos elevados e remotos, o cético restringe-se à vida
comum e aos objetos que se apresentam à prática e à experiência cotidianas, deixando
os tópicos mais sublimes aos floreios de poetas e oradores, ou aos artifícios de
sacerdotes e políticos.
188
Como outras correntes filosóficas, o ceticismo mitigado é o produto de um
conflito entre dúvidas teóricas e crenças instintivas. Para Hume, é o instinto, e não a
reflexão filosófica, que mantém a crença em geral. Embora o pensamento seja incerto, o
187
HUME, D. 2001, 301.
188
HUME, D. 2004, 218-9.
78
instinto, mesmo que se mova por zonas penumbrosas e insondáveis, é seguro. Não havia
outra saída para Hume, senão a aceitação das velhas crenças inseguras. Enquanto a
aceitação acrítica das opiniões pre-filosóficas preocupava Descartes, para Hume elas
representavam a única solução prometedora. O filósofo escocês considerava tais
princípios, com os quais os homens atuam habitualmente de modo irreflexivo, mais
dignos de confiança que quaisquer princípios artificiais que o metafísico pudesse
idealizar. Si tales principios entrañaban suposiciones lógicamente injustificables,
representaban con todo necesidades psicológicas para imponer orden e inteligibilidad al
mundo en el que el hombre precisaba pensar para sobrevivir.
189
As influências de Newton e o método experimental
A fim de superar a filosofia condenada à alienação, Hume empreende uma
tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Assim
como a ciência do homem é o único fundamento sólido para as outras ciências, assim
também o único fundamento sólido que podemos dar a ela deve estar na experiência e na
observação.
190
Tal objetivo principal sugere uma aproximação do método experimental
newtoniano e provoca a impressão de que o desejo fundamental de Hume, ao compor o
Tratado, era tornar-se o Newton das ciências morais.
191
Quando David Hume começa a se ocupar intelectualmente e a escrever sua obra-
prima, as teorias mecanicistas de Newton estavam em voga e eram amplamente
discutidas. Embora seja difícil precisar se ele de fato leu a obra de Newton (ou se
mantinha conhecimento de suas teorias de forma indireta, ou seja, a partir de seus
seguidores), é improvável que ele tenha permanecido alheio à discussão em torno dos
princípios newtonianos. No entanto, a afirmação de Hume como sendo o Newton das
ciências morais parece ser um tanto precipitada. Como será visto, esta herança é apenas
parcial na obra de Hume.
O método experimental, embora de inspiração newtoniana, não significa uma
busca de precisão abstrata de conhecimento através do uso de uma linguagem própria e
autônoma. O método humeano, ao contrário, está fortemente comprometido com a
189
NOXON, J. 1987.
190
HUME, D. 2001, 22.
191
Tese defendida por John Passmore. Ver PASSMORE, J. 1980.
79
conversação ordinária. Apenas o saber, que estabelece princípios fundados sobre a
autoridade da experiência, pode ser considerado uma ciência que não é inferior em
certezas e que é muito superior em utilidade.
Portanto, nessa ciência, devemos reunir nossos experimentos
mediante a observação cuidadosa da vida humana, tomando-os
tais como aparecem no curso habitual do mundo, no
comportamento dos homens em sociedade, em suas ocupações e
em seus prazeres.
192
O método experimental de David Hume se distancia radicalmente do
desenvolvido por Newton, na medida em que considerações puramente quantitativas
estão praticamente ausentes do raciocínio experimental do primeiro. O método científico
desenvolvido e defendido por Newton considerava as análises matemáticas como parte
fundamental da solução dos problemas. Entretanto, segundo James Noxon, o caráter
experimental da filosofia de Hume não inclui nem dados estatísticos e nem a matemática
como parte integral da análise. Hume não segue a experimentação no sentido moderno do
termo, como foi determinado pela “Royal Society”, até porque, segundo o próprio Hume,
a filosofia moral não pode reunir experimentos de maneira deliberada e premeditada
como a filosofia natural, sem correr o risco de interferir nos resultados da investigação.
En una época en que el trabajo experimenal contribuía a otorgar
reputación científica y en la que hasta los aficionados se
entretenían en repetir los experimentos comunicados por los
profesionales, Hume siguió siendo un pensador filosófico, un
extraño a los ‘experimentos exactos e cuidadosos’ que tanto
alababa.
193
A experimentação humeana significa não um tratamento laboratorial, mas tão
somente a observação da conduta humana no curso ordinário do mundo. É neste sentido
que Willard Quine afirma que os problemas e dilemas humeanos são os problemas e
dilemas humanos, na medida em que a sua ambição filosófica está referida à experiência
192
HUME, 2001, 24.
193
NOXON, J. 1987, 120.
80
194
comum e diária dos sujeitos. Considerar a vida humana como ela aparece no curso
habitual do mundo significa tratar da vida como ela é, em seu caráter finito e contingente.
É preciso concebe-la na sua história, no perpétuo fluxo que vincula passado, presente e
futuro.
195
Mas, para além das diferenças, é preciso admitir sim as influências newtonianas
presentes no Tratado e na sua formação filosófica como um todo. De acordo com James
Noxon, Hume herdou de Newton sobretudo as críticas que este dirigia às hipóteses
especulativas. Enquanto na introdução do Tratado as hipóteses metafísicas são
consideradas extravagantes
196 197
, quiméricas e presunçosas , na Sinopse Hume costuma
trata-las de forma pejorativa e com desprezo.
198
De acordo com Noxon, tanto o filósofo
natural como o moral se opunham, em princípio, às hipóteses arbitrárias e gratuitas e
defendiam aquelas que fossem empiricamente comprovadas e confirmadas por meio da
observação e de experimentos.
Quando Hume usa as hipóteses de maneira aceitável, o termo “hipótese” é
intercambiável por “princípio” ou “doutrina”. A conformidade destas com a experiência é
uma prova convincente da solidez da hipótese sobre a qual Hume raciocinava. A
preferência deste filósofo por este tipo de hipótese, em detrimento da chamada “ficção
filosófica”
199
, confirma a sua defesa de um conhecimento calcado na dimensão ordinária
e comum da vida.
A recepção do Tratado da Natureza Humana
A despeito de sua originalidade filosófica, a recepção imediata do Tratado da
Natureza Humana não foi nem um pouco encorajadora. A maioria dos escassos
comentários feitos, pouco tempo depois de sua publicação, foi abertamente hostil. Em sua
auto-biografia, Hume narra da seguinte forma a recepção em torno do Tratado: Jamais
uma tentativa literária foi mais infeliz do que o meu Tratado da Natureza Humana. Ele
194
Citada por Renato Lessa. Ver LESSA, R. 2004, 18.
195
Essa visão acerca da vida social se opõe às teorias contratualistas modernas, que consideravam a
celebração do contrato entre os homens como o momento originário da sociedade civil.
196
HUME, 2001, 20.
197
HUME, 2001, 23.
198
HUME, 2001, 684.
199
Expressão do século XVII que era aplicada a teorias puramente especulativas.
81
nasceu morto da gráfica, sem alcançar qualquer distinção, sem despertar sequer um
murmúrio entre os zelotes.
200
De acordo com o próprio Hume, ele teria sido culpado de uma certa indiscrição ao
precipitar-se em procurar a gráfica cedo demais. As Investigações sobre o entendimento
humano e sobre os princípios da moral consistem numa tentativa de correção de certos
erros de sua juventude e de reformulação dos princípios filosóficos contidos no Tratado.
Na “nota introdutória” das Investigações Hume reconhece as falhas do Tratado e
recomenda o esquecimento de sua primeira obra.
Os princípios e raciocínios contidos neste volume foram em sua
maior parte publicados em uma obra em três volumes intitulada
Um Tratado da Natureza Humana, que o autor projetara já antes
de concluir seus estudos universitários e que escreveu e publicou
não muito tempo depois. Não o considerando, porém, um
trabalho bem-sucedido, o autor reconheceu seu erro em ter ido
muito cedo ao prelo e rearranjou todo o material nas seções que
se seguem, nas quais espera ter corrigido algumas negligências
em seus raciocínios anteriores e, mais ainda, em sua expressão.
(…) O autor deseja, doravante, que os textos a seguir – e só eles
– possam ser considerados como contendo suas opiniões e
princípios filosóficos.
201
Mossner comenta, no entanto, que o Tratado não foi tão ignorado como afirma
seu autor, mas completamente mal interpretado. O fracasso do público erudito em
compreender o seu esforço filosófico alterou profundamente o curso da carreira de David
Hume. Na resenha escrita anonimamente pelo próprio autor, Hume avalia da seguinte
forma o fracasso de seu esforço filosófico: A obra cujo resumo apresento aqui ao leitor
foi considerada obscura e de difícil compreensão, e sou levado a pensar que isso se deve
tanto a sua extensão quanto ao caráter abstrato da argumentação.
202
De qualquer forma, o reconhecimento de ter fracassado na realização dos
objetivos propostos e as críticas que sofreu fizeram com que Hume desse um giro em sua
vida intelectual e abandonasse os seus pretensiosos anseios iniciais. Suas obras
posteriores refletem, de certa maneira, a sua decisão de abandonar sua ambição primitiva
200
HUME, D. 2004b, 74.
201
HUME, D. 2004b, 15-6.
202
HUME, D. 2001, 681.
82
em forjar um sistema unificado e omni-compreensivo, em favor de uma série de obras
relativamente independentes que tratassem, por separado, dos diversos temas anunciados
na introdução do Tratado. A decisão de escrever e publicar ensaios faz parte desta
“segunda fase” humeana, mas, como será visto mais adiante, ela não representa uma mera
reação ao fracasso do Tratado.
A decisão de escrever os Ensaios
O fracasso do Tratado da Natureza Humana não impeliu David Hume a
abandonar o mundo das letras. Tamanha é a força do temperamento natural, que esses
desapontamentos causaram pouca ou nenhuma impressão em mim.
203
Além de
pretender publicar o terceiro volume do Tratado, Hume decide trazer a público alguns
ensaios que deveriam ser mais adequados ao gosto popular. Segundo Mossner, durante os
anos de 1939 e 1940 Hume não se dedicava exclusivamente à sua primeira publicação,
mas já alimentava o desejo de alcançar uma audiência mais popular.
204
Enquanto esperava em Ninewells as reações do mundo erudito acerca do terceiro
livro do Tratado, Hume trocava “papers” com Henry Home, que eram repletos de
reflexões acerca de questões políticas e filosóficas daquele tempo.
205
Mas o que
originalmente deveria se tornar uma publicação periódica semanal, passou logo a fazer
parte de um projeto de um novo livro. Ao contrário do volume acerca da Moral, que
encontrara inúmeros obstáculos editoriais, os ensaios não tardaram a serem publicados e
bem recebidos pelo público leitor. Em 1742, publiquei em Edimburgo a primeira parte
dos meus Ensaios: a obra foi recebida favoravelmente, o que logo me fez esquecer
completamente a minha frustração anterior.
206
Incentivado por tal recepção positiva,
Hume resolve, então, continuar trabalhando com a composição de ensaios. No final da
década de quarenta ele passa dois anos com seu irmão no interior da Escócia, onde
escreve a parte política de seus Essays, que foram os mais bem sucedidos. Em 1752,
foram publicados em Edimburgo, onde eu estava vivendo, meus Discursos Políticos,
203
HUME, D. 2004b, 76.
204
MOSSNER, E. C. 139.
205
Desde os tempos de Joseph Addison e Richard Steele, o ensaio se estabelecia como a forma literária
mais popular da Inglaterra, para a infelicidade de alguns como o Dr. Isaac Watts, melancólicos pela
sistematização. Ver MOSSNER, E. C. 1980, cap. 11.
206
HUME, D. 2004b, 74.
83
minha única obra que foi bem-sucedida em sua primeira publicação. Ela foi bem
sucedida no meu país e no exterior.
207
Seu intento original de fundar a política na ciência do homem é abandonado um
ano depois de ter sido realizado, em parte, no terceiro livro do Tratado. O pensamento
político contido em Essays Moral and Political se vê modelado por reflexões em torno à
história constitucional e não tanto por investigações empíricas sobre a psicologia humana.
A argumentação de Hume no terceiro ensaio, intitulado Que a política pode reduzir-se a
uma ciência, depende unicamente da pesquisa em torno dos fenômenos políticos
registrados nos anais da história. Neste caso, os “axiomas universais” ou “verdades
gerais” da política não derivam de princípios psicológicos, senão de observações acerca
das conseqüências dos diversos tipos de organização política. Hume tinha se dado conta
de que a teoria política, que para ele engloba também a teoria econômica, se fundamenta
diretamente no estudo histórico dos sucessos políticos e dispensa qualquer tipo de
investigação psicológica intrincada. O que o filósofo social ou político precisa conhecer
da natureza humana pode, portanto, ser extraído de observações acerca da conduta dos
homens em diversas circunstâncias históricas.
Os Political Discourses foram calorosamente recebidos tanto na Grã Bretanha
como na América e na Europa continental, onde surgiram numerosas traduções para o
francês, o alemão e o italiano. Tal reconhecimento lhe trouxe não apenas fama, mas
também bem estar financeiro. O dinheiro das vendas que me foi entregue pelos livreiros
superou muito qualquer valor anteriormente conhecido na Inglaterra; eu me tornei não
apenas independente, mas também opulento.
Para James Noxon, os Ensaios de Hume concluem a parte construtiva do
programa anunciado no começo de sua carreira. Mas, segundo este mesmo comentador,
as teorias éticas, estéticas e políticas presentes nestes artigos são logicamente
independentes do sistema do qual originalmente deviam fazer parte.
208
Mas, embora
Hume tivesse de fato abandonado o seu objetivo um tanto pretensioso de criar um sistema
filosófico abrangente, suas obras posteriores não devem ser consideradas de maneira tão
independente do enorme esforço trazido a cabo no Tratado. Os Ensaios, assim como a
207
HUME, D. 2004b, 76-7.
208
NOXON, J. 1987, 37
84
História da Inglaterra e os Diálogos, representam, ao contrário, uma certa continuação
das obras anteriores e uma realização dos objetivos apresentados na introdução do
Tratado.
Segundo David Fate Norton, o compromisso humeano para com o método
experimental permanece inabalável em seus escritos posteriores. Os Ensaios,
particularmente, além de consistirem de fato na tentativa de introduzir o método
experimental nos assuntos morais, também manifestam o interesse histórico de Hume.
Tal compreensão se traduz na observação da conduta humana, de seu intelecto e de suas
instituições. Neste sentido, eles constituiriam, junto à História, a realização da
recomendação posta no Tratado, ou seja, a de reunir nossos experimentos mediante a
observação cuidadosa da vida humana, tomando-as tais como aparecem no curso
habitual do mundo, no comportamento dos homens em sociedade, em suas ocupações e
em seus prazeres.
209
Na contra-corrente da maioria das interpretações, que trata a análise filosófica e a
compreensão histórica como momentos distintos da carreira intelectual de Hume, Donald
Livingston considera tais interesses como sendo interdependentes. Além dos seus escritos
históricos terem uma importância filosófica grande, a sua compreensão histórica estaria
contida na própria filosofia pós-pirroniana de Hume. Ao conferir à ordem da common life
uma autoridade cognitiva, ao chamar a atenção para a necessidade de se fundamentar as
reflexões filosóficas na experiência e de se observar o comportamento humano no curso
habitual do mundo, Hume estaria enfatizando a importância da análise da conduta
humana no desenrolar da estrutura histórica narrativa que vincula passado, presente e
futuro. Portanto, ao decidir escrever ensaios, ele não estaria fazendo nada além de pôr em
prática o programa filosófico defendido no Tratado, ou seja, o de calcar as observações
filosóficas na experiência histórica humana ordinária.
Na primeira edição de Essays Moral and Political, David Hume aparece como
anônimo e começa a dissociar-se do fracassado Tratado. Aparentemente ele teria, assim,
decidido abandonar todo o tipo de reflexão filosófica mais profunda. No entanto, a partir
da leitura de alguns dos seus ensaios é possível perceber a retomada de muitas temáticas
filosóficas presentes em sua primeira obra. De acordo com Eugene F. Miller, os ensaios
209
HUME, D. 2001, 24.
85
são elegantes e agradáveis no estilo, mas inteiramente filosóficos na natureza e no
conteúdo. Eles elaboram aquelas ciências – moral, política e crítica – para os quais o
Tratado da Natureza Humana lançou as bases.
210
Em Da origem do contrato e Do padrão do gosto, por exemplo, Hume põe em
prática o método experimental, que era defendido como único meio capaz de dar conta
dos assuntos humanos em geral. Assim, no primeiro ensaio mencionado, Hume afirma, a
partir da observação histórica, que nenhuma sociedade é capaz de manter-se na ausência
de um magistrado. Já em Do padrão do gosto ele constata a dependência das regras de
composição do sentimento de aprovação ou desagrado gerado a partir da observação de
um determinado objeto. Seguindo o que ele já havia dito no terceiro livro do Tratado,
Hume afirma que os padrões de gosto derivam não de regras universais inferidas
racionalmente, mas de valores, provindos do sentimento de prazer ou desprazer, que são
publicamente compartilhados.
Os ensaios intitulados Da superstição e do entusiasmo, Da dignidade ou fraqueza
da natureza humana, além de O epicurista, O estóico, O platônico e O cético também
tratam de temas tradicionalmente filosóficos. Neste último são retomadas algumas idéias
defendidas sobretudo no terceiro volume do Tratado, como o primado dos afetos e do
hábito, em detrimento da suposta existência de valores em si.
Se podemos confiar inteiramente em algum princípio que
aprendemos da filosofia, este, acredito, pode ser considerado
como certo e inquestionável: Que nada existe que seja, em si,
valioso ou desprezível, desejável ou odioso, belo ou disforme;
pois esses atributos resultam da estrutura e da constituição
peculiares dos afetos e sentimentos humanos.
211
Na visão do próprio autor, o fracasso do Tratado se devia unicamente ao estilo e à
sua forma, não a seu conteúdo. I had always entertained a Notion that my want of
Success, in publishing the Treatise of human Nature, had proceeded more from the
manner than the matter; and that I had been guilty of a very usual Indiscretion, in going
210
MILLER, E. F. 2004, 54.
211
HUME, D. 2004b, 286.
86
212
to the Press too early. Portanto, o que ele buscava com os ensaios era apenas adequar a
sua discussão filosófica a um estilo mais popular. Os Ensaios, neste sentido, devem ser
vistos não como uma negação da filosofia contida no Tratado, mas como um
experimento literário que visava acomoda-la a uma linguagem mais ordinária. Tendo
falhado em agradar o público mais erudito, Hume poderia, a partir dos Ensaios, alcançar
um público mais vasto e popular. Dirigindo-se à Henry Home, ele afirma: They (the
essays) may prove like Dung with Marle, & bring forward the rest of my Philosophy,
which is of a more durable, tho of a harder & more stubborn Nature. You see, I can talk
to you in your own Style.
213
Era preciso encontrar uma forma mais adequada de se expor a discussão
filosófica presente no Tratado, a crítica à falsa filosofia e ao pensamento desvinculado da
vida comum. O que Hume buscava com os Ensaios era a superação da linguagem
pedante da falsa filosofia e o estabelecimento de um diálogo entre as discussões
filosóficas e as experiências da vida ordinária. O ensaio aparece para ele como a forma
adequada de se tratar de filosofia, já que é o gênero literário que melhor mantém a
conversação com as experiências da common life.
Ele agiu na crença de que o comércio entre os homens de letras e
os homens do mundo trabalhava em benefício dos dois. Hume
julgava que a própria filosofia saía perdendo se ficasse
confinada nas faculdades e gabinetes, separada do mundo e das
boas companhias. Os ensaios de Hume não representam um
abandono da filosofia, como alguns já afirmaram, mas antes uma
tentativa de desenvolvê-la, direcionando-a para questões da vida
comum.
214
Em Da escrita de ensaios David Hume discute a importância do diálogo entre o
saber e a experiência, lamentando o abismo existente entre o mundo dos eruditos e o dos
sociáveis. Enquanto os primeiros são aqueles que escolheram para si as Operações mais
elevadas e mais difíceis do Espírito, os últimos apresentam um gosto pelo prazer e uma
disposição para com as reflexões mais óbvias sobre os assuntos cotidianos. A separação
212
HUME, D. 1980, 612.
213
Tal carta é citada em The life of David Hume. Ver MOSSNER, E. C. 1980, 141.
214
MILLER, E. F. 2004, 54-5.
87
destes dois mundos é vista por ele como um dos maiores erros humanos já cometidos, na
medida em que exerce uma influência negativa tanto sobre a conversação como sobre os
livros. O mundo da conversação, ao abrir mão da história, da poesia e da política, torna-
se desinteressante e se vê reduzido a puro gossip. O outro, isolado do mundo da conversa
e da boa companhia, torna-se alienado. Até mesmo a Filosofia começou a se arruinar por
causa desse Método recluso de Estudo, tornando-se tão quimérica em suas conclusões
quanto ininteligível no seu Estilo e na sua Apresentação.
215
Hume salienta, em seguida, a importância do diálogo entre essas duas esferas e o
papel que os ensaios e seus escritos exerceriam nesta aproximação.
É de se esperar que essa aproximação entre o Mundo dos
eruditos e o dos sociáveis, que começou de forma tão feliz, seja
ainda mais aprimorada, para Proveito mútuo; e, para este Fim,
não conheço nada mais vantajoso que estes Ensaios, tais como eu
apresento para entreter o Público. Dessa forma, não posso
deixar de me enxergar como uma espécie de Representante ou
Embaixador dos Domínios do Saber nos Domínios da
Conversação; e considero como meu Dever permanente
promover um bom diálogo entre esses dois Estados, que
dependem tanto um do outro.
216
Ainda defendendo a conversação entre a filosofia e o mundo da experiência,
Hume afirma em Da simplicidade e do refinamento da escrita ser preferível a
simplicidade, que o excesso de refinamento. Devemos nos precaver mais do exagero do
requinte, já que este excesso é ao mesmo tempo menos belo e mais perigoso. O espírito,
ao ler com um esforço de atenção, um trabalho sobrecarregado de sabedoria, se cansa e
se aborrece com o empenho constante do autor para brilhar e surpreender.
217
A percepção da variedade e a retórica antinômica
Em Do padrão do gosto Hume chama a atenção para a variedade de gostos e de
opiniões que existe no mundo, que, segundo ele, é evidente até mesmo para o observador
215
HUME, D. 2004, 746-7.
216
HUME, D. 2004, 747.
217
HUME, D. 2004b, 325.
88
mais descuidado. O espírito relativista de Hume nos faz lembrar o ensaio Dos Canibais
de Montaigne.
Temos a propensão a chamar de bárbaro tudo o que se afasta de
nosso gosto e de nossas concepções, mas prontamente notamos
que este epíteto ou censura também pode ser aplicado a nós. E
mesmo o homem mais arrogante e convicto acaba por se sentir
abalado ao observar em toda parte uma segurança idêntica,
passando a ter escrúpulos, em meio a tal contrariedade de
sentimentos, em relação a pronunciar-se positivamente sobre si
mesmo.
218
O tema da variedade reaparece em O cético, onde ele descarta princípios gerais
fornecidos pela razão e assume a profunda pluralidade da vida humana, regida mais pelas
paixões e pelo acaso, que por um princípio oculto determinado.
Numa palavra, a vida humana é mais regida pelo acaso que pela
razão; ela deve ser encarada mais como um passatempo
enfadonho que como uma ocupação séria; e é mais influenciada
pelo temperamento de cada um do que por princípios gerais. (…)
Reduzir a vida a uma regra e a um método exato é uma ocupação
geralmente dolorosa e inútil.
219
O autor enfatiza, aqui, sobretudo o caráter plural presente na dimensão do saber.
A instabilidade de opiniões ou o conflito das filosofias é ainda mais acentuada que a
variabilidade dos padrões de gosto ou de beleza. E nada existe mais sujeito às oscilações
do acaso e da moda do que essas pretensas decisões da ciência. Já não é este o caso das
belezas da eloqüência e da poesia.
220
Assim, embora Aristóteles, Platão, Epicuro e
Descartes tenham cedido lugar uns aos outros sucessivamente, Homero, Terêncio e
Virgílio continuariam a exercer uma influência incontestável sobre os espíritos humanos.
Tal variedade, percebida amiúde pelos céticos, parece ser inerente não só ao
mundo, mas, como em Montaigne, ao indivíduo em geral. De acordo com Hume, a
identidade e a substância que atribuímos à nossa mente e à nossa alma não passam de
218
HUME, D. 2004b, 368.
219
HUME, D. 2004b, 309-10.
220
HUME, D. 2004, 388.
89
uma ficção criada pela imaginação. No final do Livro I ele afirma não encontrar em si
mesmo o suposto princípio da continuidade que denominamos nosso “eu”.
À parte alguns metafísicos dessa espécie, arrisco-me, porém, a
afirmar que os demais homens não são senão um feixe ou uma
coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras
com uma rapidez inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e
movimento. Nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem
fazer variar nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais
variável que nossa visão; e todos os outros sentidos e faculdades
contribuem para essa variação. Não há um só poder na alma que
se mantenha inalteravelmente o mesmo, talvez sequer por um
instante. A mente é uma espécie de teatro, onde diversas
percepções fazem sucessivamente sua aparição; passam,
repassam, esvaem-se, e se misturam em uma infinita variedade de
posições e situações. Nela não existe, propriamente falando, nem
simplicidade em um momento, nem identidade ao longo de
momentos diferentes, embora possamos ter uma propensão
natural a imaginar essa simplicidade e identidade.
221
Grande parte das interpretações sobre Hume ressalta a inconsistência das
definições conceituais presente sobretudo no primeiro livro do Tratado, cuja imprecisão
derivaria da escrita um tanto descuidada do filósofo escocês. Mas as peculiaridades do
estilo retórico humeano podem ser vistas como um reflexo de sua maneira particular de
filosofar, ou seja, a forma antinômica. We shall find that the peculiarities of Hume’s
rhetoric are not due to carelessness but more or less reflect the peculiarities of the way
he does philosophy.
222
Ao assumir um estilo filosófico antinômico, Hume estaria menos preocupado em
afirmar proposições positivas, que em explorar as contrariedades próprias do pensamento.
Tal estrutura narrativa está presente na sua obra como um todo e é representada pela
metáfora da viagem, cujo fim é imprevisto. No fim do Livro I o autor reflete sobre a sua
atividade filosófica, afirmando que se sente inclinado a parar por um momento em meu
221
HUME, D. 2000, 285.
222
LIVINGSTON, D. 1984, 35. Donald Livingston usa a expressão “estrutura narrativa dialética” ao tratar
do estilo humeano. O termo “dialética”, contudo, carrega consigo um significado teleológico evolutivo, que
creio ser inexistente na filosofia de David Hume.
90
223
posto presente, a fim de ponderar sobre a viagem que ora empreendo. Tão importante
como responder a uma determinada questão é explorá-la até o seu esgotamento. Em Da
curiosidade, ou o amor à verdade
224
ele diz que o exercício da inteligência e a ação da
mente provocam mais prazer que descobrir ou compreender uma suposta verdade. Se é
preciso que a verdade seja importante para que o prazer se complete, não é porque essa
importância traga uma adição considerável para nossa satisfação, mas somente porque
é, em alguma medida, necessária para fixar nossa atenção.
225
David Hume confere, neste sentido, um valor positivo ao espírito investigativo,
mesmo que este seja incapaz de alcançar uma verdade absoluta ou mesmo de realizar o
objetivo a que se havia proposto.
226
As respostas dadas no início da investigação não são
necessariamente decisivas, mas consistem em intuições vagas que vão sofrendo
modificações com o desenrolar da pesquisa. É comum encontrar no Tratado doutrinas e
enunciados que recebem novas significações com a progressão narrativa e que, portanto,
fazem mais sentido quando da leitura completa da obra.
O permanente conflito para o qual Hume chama a atenção se exprime de maneira
natural na forma antinômica, que perpassa toda a sua obra. Torna-se importante salientar
que tal estrutura narrativa não consiste numa exposição dual do mundo, mas apenas na
exploração de elementos contrários e versões de mundo distintas. Enquanto a oposição
entre liberdade e autoridade constitui o tema central da História da Inglaterra, o conflito
entre monoteísmo e politeísmo domina os Diálogos sobre a religião natural. É nesta
última obra da maturidade de Hume, que a inteligência antinômica encontra a sua forma
literária mais apropriada.
227
A partir da figura de “Pamphilus” Hume explica o porquê do
diálogo ser a estrutura mais adequada à investigação filosófica: questões sobre as quais a
razão não alcança uma determinação fixa requerem, segundo ele, o estilo dialógico,
marcado pela conversação. E já que a razão, impassiva, é incapaz de encontrar qualquer
determinação fixa - na medida em que a qualquer razão pode ser oposta uma de igual
valor -, faz-se imperioso o emprego da forma dialógica na atividade filosófica.
223
HUME, D. 2001, 296.
224
HUME, D. 2001, Livro II, parte III, Seção X.
225
HUME, D. 2001, 486.
226
LIVINGSTON, D. 1984, 37.
227
LIVINGSTON, D. 1984, 39.
91
O Tratado da Natureza Humana ocupa um lugar singular, pois exibe uma tensão
metodológica insuperável entre a apresentação sistemática e uma mais “solta”. Ao
pretender formar um amplo sistema compreensivo, que deveria servir como base para
todas as ciências humanas, Hume segue aqui um padrão teórico marcado por um método
de composição simples, direto e didático. No entanto, esta obra também apresenta meios
literários “não-sistemáticos” marcados por elementos do diálogo e da conversação. A
parte conclusiva do livro I, onde Hume reflete sobre a sua própria aventura filosófica,
representa tal maneira pouco rígida de se filosofar. Ao acompanhar os dilemas de Hume,
o leitor é amiúde assaltado pela impressão de estar em meio a uma conversa com o autor.
Neste mesmo livro, Hume diz estar mais preocupado em apresentar opiniões satisfatórias
que em estabelecer uma pretensa verdade. Ele afirma ter a esperança de estabelecer um
sistema ou conjunto de opiniões que, se não verdadeiras (pois isso talvez seja esperar
demais), sejam ao menos satisfatórias para a mente humana e resistam à prova do exame
mais crítico.
228
A compreensão humeana se dá, em geral, pela exploração dos contrários e pela
busca por algum tipo de conciliação. Cabe notar que esta conciliação não representa uma
etapa superior numa suposta cadeia filosófica evolutiva. As opiniões de Hume também se
fundamentam na experiência e, a princípio, são também incertas e apenas prováveis. Os
conflitos, pois, elencados por Hume são por ele freqüentemente chamados de
contradições. Tal termo não significa uma inconsistência formal, mas refere-se a um
estado mental. The conflicts generated by these ‘contradictions’ are between contrary
principles both of which are embraced by the mind but ‘which are unable mutually to
destroy each other’.
229
Ao tratar, por exemplo, da tese acerca da existência contínua e
independente dos corpos, Hume diz haver uma oposição direta e total entre nossa razão
e nossos sentidos.
230
Tal conflito reaparece em muitas outras passagens, onde os sentidos
e as paixões quase sempre prevalecem sobre a impotente razão.
O conflito entre razão e sentimento é ainda acompanhado por mais uma oposição,
talvez a mais importante, que é aquela que aparta a filosofia do senso comum, ou o vulgo
228
HUME, D. 2000, 305.
229
LIVINGSTON, D. 1984, 38.
230
HUME, D. 2000, 251.
92
da falsa filosofia. Refletindo sobre este tema, podemos observar uma gradação entre três
opiniões, que se sucedem à medida que aqueles que as formam adquirem novos graus de
razão e conhecimento. Essas opiniões são as do vulgo, da falsa filosofia, e da verdadeira
filosofia.
231
Esta última consiste num instrumento conciliador e representa não
exatamente a superação ou eliminação dos outros estágios, mas a conciliação de
elementos de ambos.
O modo antinômico de se filosofar não poderia estar ausente de seus ensaios.
Muitos dos argumentos defendidos nestes escritos se desenvolvem, assim, a partir da
apresentação de opiniões opostas, dos prós e contras envolvidos em determinadas
discussões. Num dos ensaios mais populares dele, Um perfil de Sir Robert Walpole,
Hume não se empenha em simplesmente defender ou acusar o ministro das relações
exteriores de então. O que ele faz é mostrar-nos os fatos e argumentos pelos quais ele
poderia ser elogiado e/ou repreendido.
Mas os ensaios que melhor representam este estilo antinômico de Hume é o
conjunto formado por O epicurista, O platonista, O estóico e O cético. Tais capítulos
constituem ensaios independentes, que, no entanto, formam um conjunto. Cada um deles
desenvolve uma perspectiva teórica diferente acerca da felicidade humana. Juntos,
entretanto, constituem uma unidade narrativa, que desemboca na opinião pessoal do
autor, apresentada em O cético. Cada capítulo é identificado com um tipo de indivíduo,
uma persona. O epicurista é também chamado de o homem da elegância e do prazer, o
estóico é comparado ao homem de ação e virtude e o platônico, por sua vez, representa o
homem de contemplação e devoção filosófica. O único que não recebe nenhuma
denominação adicional é o cético. Este poderia, no entanto, ser identificado com o
próprio Hume. Aqui, a posição filosófica cética é narrada em primeira pessoa: Durante
muito tempo, nutri uma desconfiança em relação às decisões dos filósofos sobre todos os
assuntos e encontrei em mim mesmo uma grande inclinação a contestar as suas
conclusões, mais do que a aceitá-las.
232
O leitor acompanha, assim, a exposição de diversas opiniões filosóficas, ou, para
manter a expressão de Nelson Goodman, distintas versões de mundo, até encontrar a
231
HUME, D. 2001, 255.
232
HUME, D. 2004b, 283.
93
posição do próprio Hume. A posição filosófica cética, ao apresentar a sua visão pessoal
sobre o tema da felicidade humana, atesta mais uma vez a sua adesão a esta corrente
filosófica. O cético emerge, portanto, como uma consideração mais verdadeira, ou
pertinente, na medida em que reconcilia as posições conflitantes anteriores numa nova
perspectiva, mais sensível à variedade.
94
Considerações Finais
De acordo com Laursen, dificilmente podemos considerar Michel de Montaigne e
David Hume como céticos no sentido filosófico, já que o pensamento de ambos se
constitui, em grande medida, como anti-filosófico. Mas, como foi visto nos capítulos
anteriores, uma anti-filosofia não deixa de ser uma postura filosófica. O que singulariza a
atitude intelectual de ambos estes autores é a concretude de seu pensamento e a referência
constante à vida ordinária e compartilhada. Antes de serem filósofos, ambos os autores se
definem como homem e como um indivíduo em particular. É nesta referência permanente
à dimensão física que devemos interpretar a história de Tales contada por Montaigne e a
recomendação de Hume contida na Investigação sobre o entendimento humano.
Na defesa da vida acima da filosofia, tanto Michel de Montaigne como David
Hume se aproximam do ceticismo como uma filosofia vinculada às aparências e à vida
comum, que acredita menos em doutrinas teóricas metafísicas, que naquilo que a
experiência lhe ensina. Os próprios antigos consideravam o ceticismo mais como uma
forma de vida (agoge) que propriamente como uma filosofia. Neste sentido, o fato de
muitos céticos terem exercido alguma atividade além do pensamento filosófico não
consiste numa mera coincidência. O pai da filosofia cética pirrônica, por exemplo, Pirro
de Élis, ficou mais conhecido pelo seu modo de vida, que pelos ensinamentos filosóficos.
Pyrrho had made his most important contribution by his way of life, and rather than
taking his sayings as a philosophy.
233
Tanto Michel de Montaigne como David Hume podem ser inseridos no
movimento cético moderno, na medida em que buscam os limites de suas reflexões na
vida fenomênica. Neste sentido, ambos os autores se interessavam mais em investigar os
fenômenos e a história humana a partir da maneira pela qual eles lhes apareciam, que em
buscar as causas originais do mundo e da vida. O cético é praticamente um contador de
histórias, um cronista que narra as suas próprias observações, não estruturadas, sobre o
mundo e a conduta humana.
Do mesmo modo que Sexto Empírico e Michel de Montaigne, David Hume opta
pelos padrões cognitivos da vida ordinária ao decidir tomar os fenômenos como critério
233
LAURSEN, J. C. 1992, 52.
95
de investigação. É por este motivo que os céticos costumam preferir a linguagem do
homem comum que o vocabulário preciso e estrito de determinados especialistas. Tal
escolha de uma linguagem ordinária, geralmente acessível aos mais diferentes tipos de
leitores, provoca na maior parte deles a freqüente impressão de uma tensão entre a
superfície literária fluente e as estruturas filosóficas complexas que a acompanham.
Por conseguinte, o espírito cético de ambos estes autores modernos está presente
não apenas em suas reflexões filosóficas específicas, mas também na própria decisão de
escrever ensaios. Isto porque o ensaio representa a escrita, onde o pensamento se
desenvolve de forma não-sistemática, mantendo sempre o vínculo com as temáticas e a
linguagem comum e compartilhada. Se a linguagem ordinária é a mais indicada para os
céticos, o ensaio constitui na sua forma literária por excelência. Pois este gênero
representa de maneira mais completa a concretude do pensamento e a vitória da common
life sobre o delírio filosófico. Segundo Wittgenstein, imaginar uma linguagem é imaginar
uma forma de vida.
234
A linguagem ensaística de Montaigne e Hume significariam, neste
sentido, a forma de vida cética.
O ensaio admite, ademais, a subjetividade do conhecimento e da escrita. Através
da escolha deste tipo literário, ambos os autores assumem na prática a idéia do primado
cético das circunstâncias, que estabelece os limites do conhecimento a partir das
condições em que se encontra os sujeito que observa. É preciso salientar que o
reconhecimento de tais limites intelectuais não implica uma paralisação investigativa por
parte do sujeito. Trata-se apenas da recusa de buscar uma definição real e objetiva do que
seriam as coisas nelas mesmas, para além do que os sentidos e sensibilidades ordinárias
registram. A atividade ensaística do cético está aqui reconhecidamente circunscrita por
suas condições pessoais de observação e pela rejeição de um autor/narrador impessoal,
possuidor de uma circunstância universal de observação.
Além disso, por se tratar de uma estrutura expressiva relativamente “aberta” e
“livre”, o ensaio exprime de maneira mais fiel a percepção da variabilidade e da
existência da pluralidade de mundos possíveis. Tais elementos de uma contribuição que
não se pretende definitiva, que reconhece a sua própria finitude e a sua possível morte,
estão presentes em Montaigne e em Hume. Menos parasitários que tolerantes, estes
234
WITTGENSTEIN, L. 1977, § 19, 24.
96
ensaístas proclamam sobretudo a liberdade de pensamento, de consciência, de costumes,
de gostos e inclinações, pois nenhum espírito humano possui o privilégio da verdade
absoluta. A percepção da variabilidade e da inconstância natural das idéias não implica
uma abstenção de opiniões e julgamentos, mas significa apenas um respeito quanto à
pluralidade de opiniões. O ensaio é aqui assumidamente uma versão de mundo, dentre
várias possíveis.
Mas, a despeito de suas semelhanças, há algumas diferenças fundamentais que
devem ser elencadas. A crise pirrônica provoca, no pai do Ensaio moderno a virada para
dentro. Diante da ignorância e da dúvida, não resta nada, para Montaigne, além da pintura
de si mesmo. Há um mínimo caráter público presente nos Ensaios, derivado da própria
decisão de publica-los, mas, em geral, sua filosofia é voltada inteiramente para o
desabrochar de sua própria interioridade. Embora mantenha a mirada para o mundo, a
escrita de Montaigne só se dirige ao público depois da interiorização. Neste sentido, o
filósofo gascão estaria preocupado principalmente em desenvolver reflexões a partir da
narrativa de sua história pessoal, mesmo que esta permaneça referida à outras histórias e
à vida compartilhada, em geral.
David Hume, por sua vez, parece ser menos subjetivista que Montaigne e mais
voltado para o diálogo com o mundo exterior. Em Da escrita de ensaios ele afirma
pretender ser o embaixador da vida comum e do âmbito do saber e, portanto, assume de
forma mais explícita o papel de filósofo público. Embora Hume reconheça o caráter
subjetivo do conhecimento, ele não concentrava suas reflexões filosóficas e históricas em
experiências puramente pessoais. Se interessa, ao contrário, em observar a vida comum e
os rituais sociais compartilhados.
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