Download PDF
ads:
SUZANA ARAKAKI
DOURADOS:
MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES DE 1964
DOURADOS – 2003
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
SUZANA ARAKAKI
DOURADOS:
MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES DE 1964
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul Campus de
Dourados, como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. João Carlos de Souza.
DOURADOS – 2003
ads:
SUZANA ARAKAKI
DOURADOS:
MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES DE 1964
COMISSÃO JULGADORA
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
Presidente e orientador__________________________________________
2
o
Examinador_________________________________________________
3
o
Examinador_________________________________________________
Dourados, _____ de _________________ de 2003
DADOS CURRICULARES
SUZANA ARAKAKI
NASCIMENTO: 29 de agosto de 1959 – Campo Grande (MS)
FILIAÇÃO: Hideo Arakaki e Miyoko Arakaki
1987/1992 Curso de Graduação em Direito
Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN
1982-1986 /1999-2002 Curso de Graduação em História
UFMS – Dourados
RESUMO
Neste trabalho apresentamos uma abordagem das representações e memória do
golpe de 31 de março de 1964 na região de Dourados, elaboradas a partir da análise de
entrevistas, obras memorialísticas, jornais locais, atas do legislativo douradense e outros
documentos obtidos em arquivos diversos.
A partir da concepção geopolítica que elevou o Centro Oeste a um espaço
estratégico a ser “ocupado”, analisamos a política varguista implementadas na região até a
criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados CAND. E com a CAND, Dourados
ganha destaque no cenário econômico e político nacional, tornando-se a cidade mais
populosa da região sul de Mato Grosso, agregando grande contingente de migrantes e
imigrantes, bem como concentrando forças políticas, formando os atores sociais que irão se
confrontar por ocasião de 64.
Percebemos que a idéia de consenso que permeia a memória local sobre o golpe,
baseou-se nos discursos da imprensa tanto nacional quanto local que, aliados a outros
setores da sociedade brasileira, tiveram papel decisivo na desqualificação da figura do
presidente. Todavia, tais discursos consensuais podem ser desconstruídos quando
confrontados com depoimentos de pessoas que, de alguma forma vivenciaram o período, as
lideranças petebistas e de colonos da CAND, principais atingidos pelo golpe de 64 em
Dourados.
ABSTRACT
À toda minha família, pais, irmãos, filhos e em especial a
Manoel Frost Capillé, meu companheiro, que acompanhou
esta pesquisa com paixão de estudante, lembrando a sua
turma de 64 na Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de
Janeiro, bem como do período em que trabalhou no Fundo
para Construção da Cidade Universitária da Universidade de
São Paulo, o FUNDUSP, lugares onde teve outra visão de 64;
À minha mãe Miyoko Arakaki, professora na sua terra natal,
a ilha de Okinawa. Sua alegria com meus pequenos sucessos
move meus passos.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar ao meu orientador professor João Carlos de Souza, que mais do que
simplesmente orientar, empreendeu uma verdadeira operação “ensina-me a estudar”.
Soube com maestria e isenção compreender nossas diferenças ideológicas.Com
competência, orientou com paciência e atenção uma madurescente teimosa. Não sei se
consegui atingir suas expectativas, contudo, tentei;
Aos professores da graduação segunda fase (1999-2002), a professora Benícia Couto de
Oliveira, Walteir Luiz Bettoni e aos demais a quem tive como professores também no
mestrado;
Aos professores da primeira fase da graduação em História (1982-1986), a quem dedico
uma paixão estudantil vinte anos: são eles Irene Nogueira Rasslan, Odirce Teixeira,
Ariadne Fitipaldi Gonçalves, Antonio Luiz Lachi, Wilson Valentin Biasoto e Marina
Evaristo Wenceslau. Ainda hoje acompanham meus passos. Em 2002, quando concluí a
graduação em História, estavam lá, e isso deu um sabor especial à cerimônia de colação de
grau;
Aos professores do programa do mestrado, os quais exauri com minha curiosidade, em
especial .ao professor Cláudio Vasconcelos, coordenador do Programa de Mestrado. Foram
todos elegantemente pacienciosos, dispensando atenção às minhas interpelações, nem
sempre pertinentes. São exemplos que espero seguir;
Tive o privilégio de ter duas turmas de mestrado; uma, quando fui aluna especial e a
segunda, como aluna regular. Agradeço a amizade de todos, mas principalmente a Simone,
Jocimar, Vera, Pedro, Adilson, Giovani, Eurides, Ciro e Rigotti;
À Tereza Bressan de Souza, pelas revisões competentes de meu texto e pela carinhosa
acolhida em sua casa;
Aos funcionários da Universidade, em especial ao José Carlos que me auxiliou no
Arquivo da UFMS, na busca de fontes; à Erondina, Cida e Marlene da biblioteca e à Taís,
na secretaria do mestrado;
Maria Aparecida Ferreira Carli, responsável pelo Centro de Documentação da
UFMS/Dourados, a quem agradeço pela presteza no atendimento, além da presença amiga
que muito ajudou, tentando me tirar do armário, próprio da madurescência, para voltar à
realidade da pesquisa;
SUMÁRIO
Introdução 9
Capítulo 1 10
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Conclusão
Fontes e bibliografia
INTRODUÇÃO
A renúncia do presidente Jânio Quadros, sete meses após assumir o mandato,
inaugurou no Brasil uma crise sem precedentes. Com a rejeição do vice-presidente eleito João
Goulart por setores militares, expedientes políticos foram feitos com intuito de impedir a sua
posse. A manobra do parlamentarismo não surtiu efeito duradouro, tendo Goulart conseguido
a volta do presidencialismo em janeiro de 1963, após realização de um plebiscito. Acirram-se
as investidas contra o governo de João Goulart, orquestradas por setores da direita e da Igreja,
minando as esperanças de Jango de implantar suas Reformas de Base, as quais foram
transformadas no fantasma que acabou no golpe de 31 de março de 1964, alijando o presidente
do poder e instaurando no Brasil, a ditadura militar.
Pesquisar o período relativo ao governo militar em Dourados, partiu da nossa vivência
pessoal. Morando em Dourados desde o início da década de 60, ainda criança e depois como
estudante nas escolas públicas da cidade, vivemos esse período, hoje conhecido como “anos
de chumbo”, sem muita consciência do que se passava.
cursando graduação em História na década de 80, e com a abertura política em
transição, algumas publicações a respeito começaram a circular. Livros sobre o regime militar
denunciando fatos, a respeito dos quais custamos a acreditar que estivessem ocorrendo
naquele período, aparentemente tão calmo, tão ordeiro. Particularmente o livro Dossiê Herzog
foi por nós lido, relido e recomendado a vários amigos. Nele, é relatada a prisão e a farsa da
morte de Wladimir Herzog, diretor da TV Cultura, em outubro de 1975. A morte do jornalista
provocou reação dos setores democráticos, que demonstraram coragem e promoveram um ato
ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo. Após a morte de Herzog, novamente em 1976
morre, nas mesmas condições, o operário Manoel Fiel Filho. Com o afastamento do general
Ednardo D’Avila Mello, do comando do II Exército, o presidente Ernesto Geisel deu início ao
que chamou de “abertura lenta, gradual e segura”. Em 1979, era decretada a anistia aos presos
políticos e exilados.
A partir de 1983, o movimento “Diretas-Já” tomava conta de todo país, levando
milhares de pessoas às principais capitais do país. Após o último mandato militar, em 1985,
foi eleito o presidente Tancredo Neves, pondo fim a um período truculento que a todo custo
tentou se esconder. Perseguições políticas, censuras, mortes, exílios, prisões, torturas mentais
e físicas das mais dantescas foram praticados contra pessoas que ousaram se rebelar contra a
farsa do perigo comunista. Desde os anos 80, livros e mais livros contaram e, ainda contam,
como se conseguiu ou se tentou manter em silêncio a voz oprimida de quem não concordou
com a truculência do governo militar.
Ao apresentarmos nosso projeto, num primeiro momento pensávamos abordar a
problemática da censura na imprensa local, o que se revelou inviável. Diante dessa
constatação, de debates e diálogos durante as disciplinas cursadas no programa de Mestrado,
direcionamos nossa atenção para as representações da imprensa, assim como para as
experiências de alguns atores sociais, como os colonos da CAND e lideranças partidárias.
Buscamos saber qual o papel de tais atores por ocasião do golpe de 64 na região de Dourados.
Com o tema definido e parte das fontes nas mãos, quando tudo parecia muito fácil
alguns problemas se apresentaram. Uma breve regressão de nossa vida apresentou um quadro
complicado à nossa pretensão histórica: éramos um produto perfeito do regime militar.
Nascidos numa família de imigrantes japoneses que chegou ao Brasil imediatamente após a
Segunda Guerra, procedente de um dos países do Eixo, era natural que fôssemos “vigiados”.
Os imigrantes, contudo, ao se estabelecerem no Brasil, tinham como meta o trabalho, a ordem
e a obediência plena às leis brasileiras.
Na idade escolar, durante o ensino fundamental e médio, recebemos uma educação
bancária, na verdadeira concepção de meros receptáculos de informações, nos moldes
propostos pelo regime. Na graduação, um curso de Direito sacramentou a formação positivista
que recebemos. Como desconstruir tudo isso em tão curto espaço de tempo? Como falar de
resistência, se aprendemos a nunca contestar leis? Que tratamento dar a conceitos como posse
ou invasão de terras? Como diferenciar movimentos sociais, greves e desapropriações? Tais
dificuldades, invariavelmente, ocorriam durante a escrita de nosso trabalho, o que nos valeram
horas de debates e orientação. .
10
A partir de então, direcionamos nossa pesquisa para análise das representações
disseminadas através dos jornais locais, sobre o governo do presidente João Goulart, o golpe
militar de 64, bem como as ações decorrentes após sua deflagração.
Todavia, nem todos os jornais da época foram preservados em arquivos. A única
empresa jornalística que mantém em seu acervo os exemplares desde a fundação, é a do jornal
O Progresso, ao qual tivemos acesso. Exemplares desse jornal também foram localizados no
Museu Histórico de Dourados, dos quais também nos valemos.
Em todo país, a imprensa, de certa forma, colaborou para a queda de João Goulart,
sendo uma das responsáveis pelo seu surgimento e fim. Na região de Dourados, não
detectamos a existência de algum periódico que contestasse a nova ordem vigente. Buscamos
identificar nos artigos do jornal O Progresso, em suas notas e editoriais as marcas das
representações que se faziam do governo de João Goulart, até a sua queda.
Foram de vital importância para nossa pesquisa os depoimentos colhidos pelos
projetos de História Oral: Ressonâncias do Golpe de 64 na Região de Dourados e Memória
de Pioneiros, ambos organizados pelo Professor Doutor Wilson Valentin Biasotto, contando
também com a colaboração dos acadêmicos do curso de graduação em História. Embora, aos
projetos não tenham sido totalmente concluídos, as transcrições das entrevistas me foram
cedidas. Ao todo foram feitas vinte entrevistas, gravadas e transcritas por diversos
acadêmicos. Estas foram realizadas em várias cidades que no período faziam parte da área da
CAND.
O projeto Ressonâncias, fundamentado na metodologia de história oral temática, teve
como objetivo captar vivências de pessoas que, de alguma forma, presenciaram ou
participaram dos acontecimentos relativos a 64 na região, principalmente de colonos da
CAND e de partidários petebistas locais. Tais entrevistas fornecem pistas para a desconstrução
do discurso consensual veiculado pela imprensa, caso em que, segundo Aspásia Camargo,
“[...] o jornal se revelará uma fonte altamente incoerente, com inconsistências lógicas
fantásticas nas informações veiculadas ao longo do tempo, e que a história oral se tornará o
nosso instrumento combativo”.
1
1
CAMARGO, Aspásia. História Oral e Política. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. História Oral. São Paulo:
Diadorim Editora, 1994. p. 86.
11
Já, o projeto Memória de Pioneiros, tratando-se de história oral de vida, pretendeu
captar experiências de vida dos primeiros moradores o índios da região. Mas, por
perspicácia de Analina Ferreira, hoje professora, a questão do regime militar foi incluída no
rol de questões sugeridas aos entrevistados. Não teve sucesso com todos, mas em pelo menos
duas entrevistas com esses pioneiros, fatos importantes vieram à tona.
Sem os depoimentos colhidos nos dois projetos, fatalmente o ano de 64, em Dourados
e região, seria apenas mais uma página que a ideologia verde oliva tentou escrever na história
brasileira. Quase quarenta anos depois, ainda, nos defrontamos com pessoas receosas de falar,
de pensar e de ser livre. Durante uma entrevista realizada pela professora Analina, em cuja
transcrição manteve-se fiel ao depoimento, foi possível captar a intervenção de um filho do
entrevistado que adverte o pai de que não deve falar certas coisas, que pode ser perigoso.
Corajosamente, o entrevistado contrariou o filho, falou sobre os acontecimentos locais sem
medo, talvez respaldado pela consciência de que hoje os tempos são outros, que houve
mudanças.
Além dos depoimentos que fazem parte do corpus dos projetos acima mencionados,
outras entrevistas foram feitas por nós, na tentativa de buscar informações sobre outros atores
sociais, e de suas experiências em resistência à perseguições sofridas no Centro Pedagógico de
Dourados, hoje UFMS, Campus de Dourados.
Em relação às experiências a que nos referimos, diz respeito à atuação dos professores
secundários após o golpe, os quais, pela leitura de fontes impressas, alinharam-se ao regime.
Para obter tais informações, buscamos ouvir alguns professores da época, que foram afetados
pelo regime militar. Dentre os quais evidenciamos o professor Biasotto, como um dos
protagonistas do movimento de resistência ao regime em Dourados. O episódio que envolveu
professores do Centro Pedagógico de Dourados CPD, em 1978, é um caso singular do
mandonismo que se estabeleceu nos órgãos públicos em várias partes do país. Havia casos em
que, rivalidades pessoais e políticas eram motivos suficientes para perseguições e demissões.
No Arquivo da Câmara Municipal de Dourados pudemos fazer a leitura dos
acontecimentos políticos envolvendo representantes do Partido Trabalhista Brasileiro, através
de análise das atas das sessões da Câmara, no ano anterior e logo após o golpe de 64. Tais
documentos encontram-se cuidadosamente preservados.
12
Buscamos no Arquivo Público de Mato Grosso, eventuais registros das prisões feitas
logo após o regime. Mas, nada encontramos. Além disso, nos foi informado que as fichas do
DEOPS mato-grossense desapareceram.
Outra surpresa tivemos no Arquivo Geral do Fórum de Dourados, onde não
encontramos nenhum inquérito arquivado envolvendo as pessoas presas no período
pesquisado. O Arquivo é totalmente computadorizado, com registros de processos desde 1930.
Averiguamos cada nome citado pelas fontes, mas nada foi encontrado.
Além das entrevistas e pesquisas em arquivos, fizemos uso de material fotográfico, que
serviu para respaldar nosso entendimento de que a região de Dourados surgiu, na década de
50, como um pólo de desenvolvimento adquirindo, a partir de então, destacada importância
política.
Grande parte do material fotográfico utilizado nesta pesquisa fiz parte de um livro,
intitulado Memória Fotográfica de Dourados, organizado pela Professora Regina Heloiza
Targa Moreira, da UFMS. Após a publicação do livro, todo acervo da pesquisa foi doado ao
Centro de Documentação Regional da UFMS, de onde pinçamos as imagens que, ao nosso
ver, formatam o quadro que idealizamos: uma região privilegiada pelo projeto colonizador de
Getúlio Vargas, que passou a ter significado estratégico no contexto estadual. Na busca de
imagens, valemo-nos, também, do acervo de fotografias do Museu Histórico de Dourados.
As principais fontes deste trabalho, a imprensa e as entrevistas de alguns atores sociais
podem ser pensadas no campo da memória. Recorremos à concepção benjaminiana, por sua
vez fundamentado em Proust, para diferenciá-las. O jornal pode ser definido como memória
voluntária, disponível pela reprodutividade técnica, à qual se tem maior acesso, pela
preservação dos registros. Os depoimentos, fundados na experiência, caracterizam a memória
involuntária. Esta não é fixa e nem voltada apenas para o passado, possui também
enraizamento no presente. Importante aspecto a ser considerado numa sociedade que ainda
precisa ampliar sua democratização. O perigo a ronda, lembrando mais uma vez Walter
Benjamin; nada mais estimulante do que dialogar com as reminiscências daqueles que
enfrentaram tempos ameaçadores.
2
2
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993. Ver principalmente os
textos: A imagem de Proust e A obra de arte na era da reprodutividade técnica.
13
Destacamos a importância dessas fontes no estudo da memória sobre o golpe em
Dourados, sob outro aspecto, como importante apreensão das especificidades locais.
Conforme Janaína Amado: “A historiografia nacional ressalta as semelhanças, a regional lida
com as diferenças, a multiplicidade”.
3
Assim, procuramos explorar as possibilidades
oferecidas pela história local.
Quanto à opção historiográfica, adotaremos como perspectiva de análise, a história
política, todavia, a nova história política, que no Brasil, se a partir da década de setenta.
Segundo Vavy Pacheco Borges, a partir desse período, a política passa a ser entendida como o
campo aonde as disputas sociais se decidem, tendo o Estado um outro peso:
Uma outra forma de história política nasce com a crítica da história feita “sob
a ótica das classes dominantes”, repensa-se a construção de uma história
oficial dentro da ótica da luta de classes. Nessa linha, por exemplo, procura-
se fazer uma história dos movimentos sociais [...].
4
Francisco Falcon ao falar sobre o poder e política, estabelece imediatamente uma
ligação entre os dois conceitos que, para a história tradicional, segundo análise do autor, o
poder é visto atrelado a uma visão dominante, sendo o:
[...] poder como algo inerente a certos indivíduos e instituições a começar
pelo Estado - ao conceito de poder como um tipo de relação social concebida
como de natureza plural os poderes. Tratar-se-á da historiografia
tradicional e de sua tendência multissecular de abordar apenas a política
como se fosse esta a única forma /lugar do poder.
5
Falcon também estabelece a década de setenta como marco historiográfico: Até então,
dominava na historiografia brasileira a história política tradicional: “Teoricamente porque,
antes de 1970, predomina a historiografia política e esta é constituída em quase sua totalidade
pelo modelo que denominamos de história política tradicional”. Falcon acrescenta que tal
3
AMADO, Janaina. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos A. da. República
em Migalhas: história regional e local. p. 13
4
BORGES, Vavy P. História e política: laços permanentes. Revista Brasileira de História. Vol. 12, n. 23/24. São
Paulo, Anpuh/Marco Zero, set 91-ago 92, p. 7-18.
5
FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion C. VAINFAS, Ronaldo (orgs).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 62.
14
periodização atende a uma dupla expectativa de mudança, tanto em termos de história, quanto
social.
6
Os resultados das pesquisas, busca de fontes, diálogos com a bibliografia traduzem-se
neste trabalho que se apresenta divido em quatro capítulos. No primeiro, buscamos
contextualizar geopoliticamente a região Centro-Oeste, dentro da conjuntura pós-Segunda
Guerra Mundial, quando se acirram o confronto entre sistemas capitalista e comunista,
encetado pela política norte-americana. Dentro dessa visão de proteção de fronteiras, tanto
geográfica quanto ideológica, procuramos situar a criação do Território Federal de Ponta Porã
e da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, a CAND, modelo da política de colonização do
governo de Getúlio Vargas.
No segundo capítulo, tentamos apreender o panorama político na região, procurando
visualizar as lideranças partidárias e a receptividade ao governo de João Goulart antes de sua
queda. Destacamos a vinda do presidente a esta cidade e, após o golpe, as ações de apoio à
“causa revolucionária”, tais como, a realização de comícios e marchas, além da campanha de
arrecadação de ouro, idealizada em todo país, destinada a ajudar no pagamento da dívida
brasileira. Em Dourados, verificamos a realização dessa campanha, sob coordenação do jornal
O Progresso e do Lions Clube. As fontes utilizadas neste capítulo foram depoimentos, atas da
Câmara Municipal e jornais da época.
No terceiro capítulo, captamos as ações de perseguições e prisões aos “contra-
revolucionários” de 64. O objetivo central deste capítulo pauta-se no entendimento de que o
golpe o foi aceito passivamente e que, na inexistência de ativistas comunistas ou
assemelhados, tomou o viés da contenda política, ocasião em que partidários do Partido
Trabalhista Brasileiro, o PTB, tornaram-se alvo de perseguições políticas na região.
Para consecução de nosso trabalho fizemos uso de depoimentos colhidos por nós e
também através dos projetos Ressonâncias do golpe de 64 na região de Dourados e Memória
de Pioneiros. Analisamos também as atas da Câmara Municipal, onde captamos o papel do
PTB no contexto político municipal e o papel exercido pelo prefeito petebista Napoleão
Francisco de Souza por ocasião do golpe de 64.
O quarto capítulo, procuramos demonstrar o papel desempenhado pela imprensa local
na construção de uma certa imagem desqualificadora do governo Goulart, comparando com a
6
Ibidem. p, 81.
15
grande imprensa nacional. A criação dessa imagem exerceu forte influência na deflagração do
golpe em 31de março.
Ainda neste capítulo, analisamos algumas obras memorialísticas, buscando captar a
construção do discurso mato-grossense sobre o período, que consolida a idéia de consenso em
torno do discurso “revolucionário”. No encalço das produções sobre o objeto da pesquisa,
detectamos serem poucas as obras referentes ao tema, e na grande maioria delas, a “revolução”
é enaltecida e comemorada.
A bibliografia mato-grossense sobre o tema, produzida por memorialistas regionais,
sendo em geral obras escritas por autores ligados à elite dominante, formalizam o consenso de
que não tivemos um golpe, mas sim uma revolução necessária, que veio proteger o país contra
a ameaça comunista. Tal visão, todavia, vem sofrendo revisões pela análise mais acurada, das
pesquisas acadêmicas.
16
CAPÍTULO I
INTEGRAÇÃO E SEGURANÇA NACIONAL: GEOPOLÍTICA E
A REGIÃO DE DOURADOS
A intensificação da ocupação da região de Dourados por não índios, data do último
quartel do século XIX, ao final da Guerra do Paraguai. Aos remanescentes, ex-combatentes
da guerra que permaneceram na região, juntaram-se os primeiros migrantes gaúchos,
provenientes da região sul que se deslocaram rumo ao norte, fugindo da revolução
federalista. As terras ocupadas por esses novos atores, pertenciam ao município de Ponta
Porã.
Do território originalmente indígena, foi o autóctone sistematicamente desalojado
de suas terras. Foram presas fáceis dos bandeirantes, ávidos por ouro e mão-de-obra a ser
usada nas plantações paulistas e, submetidos à catequese pelos religiosos. Transformado
em parceiros, na defesa das fronteiras brasileiras, o indígena foi aliado do Brasil na Guerra
contra o Paraguai. Ao final da guerra:
[...] os índios não conseguiram o essencial, que era a garantia de
permanecerem livres e seguros em suas terras. Pelo contrário, com o fim
do conflito intensificou-se a apropriação das áreas indígenas por
fazendeiros da região e por antigos soldados envolvidos na guerra. Esta
situação foi se agravando até o início do século XX, quando constatada e
denunciada por Cândido Mariano Rondon.
1
1
VASCONCELOS, Cláudio Alves de. A questão indígena na província de Mato Grosso. Campo Grande :
UFMS, 1999. p. 95.
Até então objeto de curiosidades nos relatos de viajantes europeus e nos estudos
religiosos e científicos, o índio passou a ser um elemento indesejado para o novo contexto
que se apresentava, qual seja, o projeto civilizador do início da República que desejava
integrar o índio à nação. Integrar, naquele momento, representava tirar o índio do estado
de natureza e barbárie em que vivia. É com este intuito que, a partir de 1910, foi criado o
Serviço de Proteção ao Índio –SPI.
O papel do índio na historiografia mato-grossense figura entre secundário e
obstáculo a ser superado. Segundo Zorzato:
No que diz respeito às narrativas das contendas com os indígenas
relativas ao início da inserção de Mato Grosso “na história”, isto é, após a
colonização, elas reforçam, sobretudo a imagem de “obstáculos” a
superar, Mas o se detém em relacionar massacres, extermínios,
escravizações e perseguições feitas pelos seus antepassados contra os
índios. Os historiadores apenas resgatam a superioridade civilizatória dos
sujeitos que adentram o sertão. Essa superioridade é, a princípio, militar,
contra a qual os indígenas têm que ceder. Transforma-se, em seguida, em
capacidade de civilizar.
2
O homem branco atribuiu-se o papel civilizador e, segundo Zorzato, é a partir
dessa concepção que se verifica um longo silêncio da presença indígena na historiografia
local. Silêncio e ausência que serviram de cortina para as sucessivas expropriações de suas
terras.
3
Os primeiros migrantes chegaram à região de Dourados no final do século XIX. A
nova aglomeração que se formava recebeu, inicialmente, o nome de São João Batista de
Dourados, topônimo conseqüente de sua proximidade com o rio Dourados. Em 1900, foi
denominada Paróquia de Dourados, através da Resolução Estadual n. 255. Com a
construção das primeiras casas e a formação de um pequeno aglomerado urbano, passou a
se chamar de Patrimônio de Dourados, para logo a seguir, em 13 de junho de 1914, ser
transformado em Distrito de Paz. Permaneceu subordinada a Ponta Porã até a sua
emancipação político-administrativa, em 20 de dezembro de 1935, pelo decreto estadual n.
30.
4
2
ZORZATO, Osvaldo. Conciliação e identidade: considerações sobre a historiografia de Mato Grosso
(1904-1983). Tese (Doutorado em História). São Paulo: USP, 1998. p. 100.
3
GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Ausência e produção do esquecimento: a história indígena em Mato
Grosso do Sul. In: Fronteiras. Revista História UFMS. jul/dez. 1998. p. 105-122.
4
IBGE. Enciclopédia dos municípios brasileiros. XXXV vol. Rio de Janeiro, 1958. p. 184.
18
Nesse período, o município de Dourados contava com cerca de quinze mil
habitantes e sua economia baseava-se no parco comércio. A região ainda vivia sob a
sombra da Companhia Matte Larangeira, empresa que monopolizava a exploração da erva
mate. Dourados era um “porto de coleta de erva-mate” que mais tarde transformou-se em
município.
5
Segundo o IBGE, “[...] o progresso foi lento. Seus primeiros passos lutavam com
dificuldade de meios de transporte e deficiência de vias de comunicações, principalmente
para Campo Grande, ponto natural do escoamento de sua produção agrícola [...]”. Situação
que mudaria ao longo da década de 1940.
Durante o governo de Getúlio Vargas (1937-1945), denominado Estado Novo, foi
lançada a campanha Marcha para o Oeste, que consistia na política de incentivo ao
povoamento da parte oeste brasileira. A campanha assentava-se nos fundamentos da
geopolítica, concepção que remonta às vésperas da primeira Guerra mundial, quando os
países envolvidos lutavam em busca de expansão territorial, denominada de “espaço vital”.
A Marcha para o Oeste, diferentemente daquela concepção, buscava a expansão interna,
isto é, dentro do território brasileiro.
Visando a integração das regiões, a Marcha, sobretudo, estava inserida no discurso
varguista, de construção: “[...] de um Estado forte para impulsionar o desenvolvimento
econômico à base da coesão nacional”.
6
Após assumir o poder, Getúlio Vargas idealizou o fortalecimento do Estado como
forma de combater as oligarquias regionais. Para tanto, nomeou interventores nos Estados
vinculados diretamente ao aparelho burocrático, neutralizando o poder das elites estaduais:
Para Marisa Bittar, o Estado Novo, caracterizado pelo poder ilimitado do presidente
Getúlio Vargas, serviu para implementar:
O mecanismo de integração e concentração de poder, por meio da
cooptação política, bem como a ação do Estado como gestor do
desenvolvimento capitalista enquadrava-se no conceito teórico definido
como via prussiana, isto é, a modernização conservadora. [...]
Aglutinando forças convergentes e controlando as antagônicas, o Estado
Novo se consolidou cada vez mais no poder, sempre ajudado pelos
mecanismos centralizadores que esvaziavam o regionalismo e favoreciam
a desarticulação do poder oligárquico.
7
5
BIANCHINI, Odaléa da Conceição Deniz. A Companhia Matte Larangeira e a ocupação da terra do sul de
Mato Grosso(1880 -1940). Campo Grande: UFMS, 2000. p. 94.
6
BITTAR, Marisa. Mato Grosso do Sul: do estado sonhado ao estado construído (1892-1997). São Paulo:
USP, 1997. Tese (Doutorado em História), p. 186.
7
Ibidem, p. 185.
19
O intervencionismo estatal na economia tinha como objetivo o desenvolvimento
industrial e consolidação do mercado interno, configurando as regiões Norte e Centro-
Oeste como novas fronteiras agrícolas e a localização da produção industrial no eixo São
Paulo-Belo Horizonte–Rios de Janeiro. É nesse contexto, de integração espacial e
econômica que se insere a campanha Marcha para o Oeste:
Postulada pelo pensamento político e geopolítico do regime no decorrer
dos anos 30 e 40. A retórica criada sobre o fato de o Brasil ter, à época,
quase a metade de seus espaços territoriais desocupados, fortaleceu-se
após 1930 e, particularmente, com o estabelecimento do Estado Novo,
quando o nacionalismo passou a ser sistematicamente incorporado à
ideologia do regime. Esboçando a intenção de ocupar esses espaços
vazios surge o slogan “Brasil, país do futuro”, sintetizando a retórica
nacionalista sobre a interiorização do país.
8
A ocupação, segundo Alcir Lenharo, simbolizava a união simbólica de todos os
brasileiros “[...] articulava a imagem indivisa de uma nação homogênea e acabada,
superadora de conflitos sociais. A conquista do oeste significava para o regime a
integração territorial como substrato simbólico da união de todos os brasileiros [...]”
9
A
Marcha, ainda segundo Lenharo , serviu para:
[...] orientar economicamente o país, neutralizar “os efeitos
dissociadores”, afastar os problemas secundários” limando o caminho
principal da integração das ilhas econômicas, através do alargamento do
mercado interno. O Estado novo viera para ampliar a diversificação da
produção, agrupar núcleos econômicos através de um sistema de
transportes, e, desta forma, assegurar um “poderoso vigamento à unidade
nacional”.
10
Os projetos visando a integração regional decorreram de estratégias geopolíticas,
estudos desenvolvidos a partir do conhecimento acurado do espaço geográfico para,
efetivamente, implantar ões de Estado. A composição semântica vem de geo terra, e
política – arte de governar. Espaço de discussão para várias teorias e doutrinas, a
8
Ibidem, p. 186.
9
LENHARO, Alcir. Colonização e trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste. São Paulo:
Unicamp, 1985. p. 18.
10
Ibidem, p. 26.
20
geopolítica, no Brasil, encontrou nos meios militares sua seara.
Para Marisa Bittar, a campanha Marcha para Oeste foi idealizada a partir dos
fundamentos teóricos da geopolítica que nortearam a Primeira Guerra Mundial. Todavia,
no Brasil, ao contrário dos países envolvidos na primeira guerra que procuravam
conquistar territórios, “o espaço vital”, o espaço a ser conquistado era o espaço interno. Os
estudos de Bittar apontam as referências que alicerçaram o projeto de Getúlio Vargas: a
ocupação das fronteiras vislumbradas na obra de Cassiano Ricardo, Marcha para Oeste e a
interiorização do país, prevista por Mario Travassos. A tese defendida por Travassos
consistia na ocupação do oeste brasileiro como fator determinante para a liderança
brasileira no âmbito da América do Sul, emergindo como potência regional: e na
determinação do próprio presidente Getúlio Vargas que, ao contrário dos pensamentos
anteriores, pretendia apenas a expansão demográfica e econômica dentro do território
nacional.
11
Bittar considera ainda que a expansão econômica está diretamente ligada a
expansão do capitalismo no Brasil e que a mesma se deu pela via autoritária, visto que,
aliado à expansão geográfica e econômica, estava dentro das pretensões de Vargas, o
controle sobre o território nacional. Era preciso, no entanto, conhecer o território a ser
ocupado, para melhor controlá-lo. Foi nesse contexto que se deu a criação do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, em 1938, cujos estudos visavam fortalecer o
Estado Nacional.
Os territórios federais, parte do projeto Marcha para Oeste, durante o governo de
Getúlio Vargas, segundo Fowerarker, destinavam-se a desenvolver as regiões de fronteira
mediante a colonização, além de resguardar fronteiras e, como os governos estaduais não
tinham condições financeiras para realização do projeto, coube ao governo federal a
tarefa
12
.
Nos anos 30 e 40, os estudos geopolíticos sobre política de fronteiras
protagonizados por Everardo Backheuser serviram, primeiramente, de inspiração para a
criação dos territórios federais, inclusive o de Ponta Porã. Segundo, a fronteira é a
epiderme do organismo estatal, captadora das influências e pressões forâneas e, como tal,
deve estar subordinada ao poder central e o às autoridades regionais que manifestam
11
BITTAR, Marisa. op. cit. p. 198.
12
FOWERARKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil de 1930 aos
dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 135
21
menor sensibilidade para esses problemas. Foram criados os territórios federais de Amapá,
Roraima, Rondônia, Fernando de Noronha, Ponta Porã e Iguaçu.
Afigura-se-nos que Backheuser, ao formular tais teorias, estivesse olhando
diretamente o estado de Mato Grosso e seu estreito relacionamento com a Companhia
Matte Larangeira, onde interesses público e privado se imiscuíam sem pudores, desde os
tempos do império. O Território de Ponta Porã durou pouco tempo.
O Território federal de Ponta Porã, criado em 21 de setembro de 1943, congregou
os municípios de Dourados, Rio Brilhante, Ponta Porã, Maracaju, Nioaque, Bela Vista e
Porto Murtinho. Sua criação ensejou nos habitantes, particularmente para os da região de
Dourados, perspectivas de desenvolvimento. Este município encontrava-se limitado
economicamente sob o jugo da Companhia Matte Larangeira, uma vez que esta havia sido
detentora de um contrato de arrendamento que abrangia extenso território de onde se
extraía a erva mate, planta nativa da região:
Desde o início da sua criação, o Território espalhou por toda área um
ambiente de esperança e de muito otimismo, tendo em vista que, naquela
ocasião, as células que compuseram o seu arcabouço estavam vivendo
momentos de angústia e de aflição, com a falta de recursos com que levar
à frente os trabalhos de desbravamento da inóspita região. As extensas
matas que cobriam o seu solo fertilíssimo, em sua quase totalidade
achavam-se em poder da Cia. Mate Laranjeira, que as arrendava ao
Estado de Mato Grosso para extração da erva-mate.
13
Para maior compreensão deste processo, recuperaremos, ainda que de forma breve,
algumas referências sobre a citada Companhia. A empresa que havia inicialmente obtido
do governo Imperial em 1882, contrato de arrendamento de terras na então Província de
Mato Grosso para extração da erva mate, teve os domínios ampliados no período
Republicano, chegando a deter três milhões de hectares. Desde então a empresa inibia a
ocupação das terras de que era concessionária.
14
A habilidade de Thomaz Larangeira, um dos donos da empresa, foi tecida ainda nos
tempos da Guerra do Paraguai, quando prestava serviços às tropas brasileiras. Terminada a
13
CAPILÉ JR, João Augusto; SOUZA, Júlio; CRUZ, Maria de Lourdes da. História, fatos e coisas
douradenses. Dourados: [s.n.], 1995. p. 33.
14
A área ocupada pela Matte Larangeira é controversa. Alguns autores como Gilberto Luiz Alves e Fernando
Tadeu de Miranda Borges, falam em 3 milhões de hectares , reduzidos para 1,8 milhões de hectares em 1916;
Alcir Lenharo, com base em Foweraker, estima em 1 milhão de hectares a área explorada pela empresa;
Odaléa C. D. Bianchini refere-se a uma vasta extensão de terras concedidas em 1882, delimitada em 1916
em 1.440.000 hectares.
22
guerra, Larangeira continuou servindo, na condição de abastecedor de víveres, à Comissão
Mista de Limites Brasil-Paraguai. Foi nessa condição que se aproximou do coronel de
engenharia Rufino Enéas Galvão, que mais tarde veio a ser o Presidente da Província de
Mato Grosso e acabou por obter a concessão do Império para explorar os ervais mato-
grossenses.
Ao final da Guerra do Paraguai, a Matte foi indiretamente beneficiada por uma
questão geopolítica envolvendo o império brasileiro e Madame Lynch. A companheira de
Solano Lopez reclamou, em nome de seu filho, com o ditador paraguaio, terras mato-
grossenses invadidas pelo paraguaio Martins Urbieta. O litígio findou em 1902, com a
decisão desfavorável à Lynch.
A decisão jurídica obedeceu a lógica de proteção da fronteira oeste brasileira, e
nesse sentido, a concessão de terras devolutas à Matte Larangeira, “[...] serviu como óbice
às pretensões de elementos estrangeiros, no sentido de ocupar as terras ao sul de Mato
Grosso.”
15
Desde a primeira concessão, em 1882 até 1943, com a criação do Território Federal
de Ponta Porã e o conseqüente cancelamento do contrato de arrendamento, a Companhia
Matte Larangeira explorou quase que com exclusividade a extração de erva mate.
16
Usando
principalmente a mão-de-obra paraguaia, através desta cooptava a mão-de-obra indígena.
O tratamento da Companhia para com os trabalhadores e a proibição de ervateiros
independentes, gerou conflitos na região. As condições desumanas impostas aos
trabalhadores os expunham a toda sorte de violências. Submetidos a um sistema de
escravização branca, perpetuada pelo sistema de barracão, os trabalhadores ainda ficavam
à mercê do capataz e da polícia existente na Companhia, que davam combate ao
contrabando da erva. Segundo Alcir Lenharo:
O império econômico e policial da Matte Larangeira era
permanentemente acossado por pequenos bandos de fronteiriços e
paraguaios os “bochinceros”- que faziam penetrar bebidas alcoólicas
nos ranchos, trocadas por mate obtido clandestinamente[...]. A armadilha
do endividamento, a produção exigida até a exaustão, a penúria material e
a falta absoluta de recursos somavam-se à exploração moral [...]
reduzidos a uma condição sub humana. [...] O capataz constituía
autoridade incontestável; fazia uso indiscriminado da violência [...],
15
BIANCHINI, Odaléa da Conceição Deniz. op. cit., p. 87.
16
Embora fosse sistematicamente combatida pela Companhia Matte Larangeira, a presença de ervateiros
independentes era constante em várias partes da área sob exploração da Matte.
23
brutalizava-os com castigos físicos, submetia-os a fusilamento (sic) e
explorava a precoce prostituição de suas filhas.
17
Lenharo observa ainda que esse quadro era de pleno conhecimento das autoridades
estaduais, que optavam por ignorá-lo, preferindo enaltecer “o papel colonizador da Matte”.
Tendo visitado a Companhia Matte Larangeira na cada de 40, Getúlio Vargas
convenceu-se da necessidade da “[...] expansão colonizadora, e da a mobilidade das
fronteiras, pois nem sempre as fronteiras políticas coincidiam com a fronteira econômica
[...]”.
18
No que tange a Mato Grosso, as intenções de Vargas esbarravam na Matte
Larangeira. Segundo Bianchini:
[...] viu-se a preocupação de Vargas em integrar o Oeste ao resto do
Brasil, política conhecida como Marcha para o Oeste, que acertaria em
cheio a Matte Larangeira. De nada adiantou a visita de Vargas às suas
instalações. A questão das concessões de terras devolutas de Mato Grosso
estava na mira do Interventor, que dava conhecimento a Vargas das
medidas tomadas.
19
O cerco ao monopólio da Matte Larangeira se fechou com a criação do Território
Federal de Ponta Porã, que se deu através do Decreto-Lei n. 5.812, de 13 de setembro de
1943.
A década de 40, portanto, abriu-se para Dourados com perspectivas promissoras.
Dois acontecimentos demarcaram a trajetória da região de Dourados no ano de 1943: a
criação do Território Federal de Ponta Porã, em setembro de 1943, e o da Colônia Agrícola
Nacional de Dourados CAND, em outubro do mesmo ano. O decreto lei n. 5.941, de 28
de outubro de 1963, que criou a CAND, estabeleceu a demarcação de 300 mil hectares no
município de Dourados (vide mapa ao final deste capítulo) que, à época, pertenciam ao
Território Federal de Ponta Porã.
A criação do Território tinha como escopo promover o desenvolvimento da região,
até então considerada como potencialmente rica, todavia, inóspita e insegura, entregue aos
bandos armados, vislumbrando um quadro de desordem e violência, denominado por
Corrêa como um império de bandidos. O Mato Grosso segundo o autor ficou conhecido
durante quase toda a primeira metade do século como terra de bandidos e, na realidade, o
17
LENHARO, Alcir. op. cit., p. 62-63.
18
BIANCHINI, Odaléa da Conceição Denis. op. cit., p. 243.
19
Ibidem, p. 242-243.
24
banditismo floresceu na região com características endêmicas, a ponto de se comparar ao
cangaço nordestino.
20
A violência existente no sul do estado foi atribuída aos bandos armados que
espalhavam terror entre as fazendas. Precisamente nesta região fronteiriça, antigos
moradores lembram que a criação do Território trouxe esperança de desenvolvimento, haja
vista que a cidade sobrevivia com poucos recursos, além da segurança pública seriamente
comprometida pela ação de:
[...] grupos de facínoras conhecidos como quatreros, que rondavam as
fazendas mais prósperas nelas promovendo terríveis chacinas, cujo
reflexo transformava-se num pavor incontido em meio à população local.
[...] não bastasse tanta agrura na vida dos mato-grossenses daquela
região, o governo do Estado, pensando em dar cobro a tanto mal reunido,
criou um grupo policial denominado Captura.
21
Os quatreros eram na maioria trabalhadores paraguaios que, inconformados com as
condições desumanas de trabalho na Companhia Matte Larangeira, reuniam-se em bandos,
passando à prática de roubo de gado nas fazendas da região.
22
A exploração dos ervais nativos, até então atividade exclusiva
23
da empresa
concessionária, passou às mãos de particulares. Em 1944, logo após o vencimento do
contrato de arrendamento com a Matte e a decisão do estado em não renová-lo, as terras
em questão voltavam ao poder do estado, possibilitando a formação, na região, de uma
associação de produtores autônomos, composta de 145 associados, entidade devidamente
registrada sob o nome de Cooperativa de Produtores de Mate Dourados.
Logo após a criação do Território Federal de Ponta Porã, em setembro de 1943, o
contrato de arrendamento de terras concedido à Matte Larangeira não foi renovado,
eliminando, de certa forma, o controle da Companhia sobre as matas nativas ricas em erva
mate. A partir de então, o vasto território dominado pela empresa ficou sob fiscalização
federal.
24
No entanto, a companhia continuou operando a extração da erva em suas próprias
terras.
20
CORRÊA, Valmir Batista. Coronéis e bandidos em Mato Grosso. Campo Grande: UFMS, 1995. p. 149.
21
CAPILÉ JR, J.A.; SOUZA, J.; CRUZ, M. L. op. cit., p. 33.
22
Sobre as condições de exploração do trabalho na Companhia Matte Larangeira, ver Selva Trágica, de
Hernani Donato. São Paulo, 1959.
23
Embora a exploração da erva-mate fosse exclusividade da Companhia, existiam na região inúmeros
exploradores independentes.
24
LENHARO, Alcir. op. cit., p. 66.
25
O Território foi extinto em 1946. O art. 8
o
das Disposições Transitórias extinguiu os
territórios de Iguaçu e Ponta Porã, decepcionando a população local. O povo interpretou o
fato como um golpe contra o Território, praticado pelo deputado federal João Ponce de
Arruda. Capilé retrata o entendimento do fato, por parte da população, como um:
golpe solerte que trouxe as piores conseqüências para os oito municípios
que compunham o Território. As administrações e o povo receberam o
fato com enorme sentimento de pesar e, Dourados, não fosse a Colônia
Agrícola Nacional, que começava a tornar-se auto-suficiente, perderia
o grande entusiasmo na luta pelo seu desenvolvimento. Ainda assim, não
foi fácil vencer o trauma causado por tão duro golpe. [...] a população
douradense chegou quase a capitular. Entretanto, a uberdade do solo e a
firme determinação do povo conseguiram, não sem dificuldades, superar
tão terríveis males.
25
O futuro sombrio esperado com a dissolução do Território de Ponta Porã, todavia,
não se concretizou, pelo menos para a região de Dourados, que, com a criação da Colônia
Agrícola Nacional, tomou rumo próprio.
A colônia Agrícola Nacional de Dourados foi criada também por decreto
presidencial, um mês após a criação do Território de Ponta Porã. Marisa Bittar observa que
a colônia deveria ter sido criada no ano anterior, ou seja, em 1942, não fosse a recusa pelo
interventor do estado, Julio Muller, em ceder terras necessárias para sua implantação.
Analisando a questão sob o prisma divisionista, esta mesma autora observa que o
interventor não teve interesse na criação de uma colônia no sul, todavia, criou a de
Poxoréu, no norte do estado, que não deu certo. Bittar considera que, não obtendo
colaboração do interventor:
[...] sob a lógica da interiorização nacional e, portanto, da consolidação
do capitalismo pela via prussiana, que Vargas criou, em 1943, a Colônia
Federal de Dourados e o Território Federal de Ponta Porã, ambos por
decreto e ambos no sul do estado.
26
A partir de 1943, com a implantação da Colônia Agrícola Nacional CAND -
decorrência da política de ocupação territorial do governo de Getúlio Vargas, denominada
25
CAPILÉ JR, J. A.; SOUZA, J.; CRUZ, M. L. op. cit., p. 35.
26
BITTAR, Marisa. op. cit., p. 189.
26
Marcha para Oeste
27
, intensificou-se o crescimento populacional na região de Dourados,
principalmente na área rural. Segundo o IBGE:
Com a criação [...] da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, e a
conseqüente melhoria dos meios de transporte com a construção ainda
que precária de estradas de rodagem, deu-se a “corrida” de imigrantes,
fenômeno que veio alterar profundamente a fisionomia daquele
aglomerado humano [...].
28
De fato, a política de Vargas de ocupação de espaços vazios, entre esses foram
identificadas as regiões Norte e Centro-Oeste, que fizeram parte do discurso colonizador
varguista. Segundo Oliveira:
[...] a política de colonização de Vargas, durante o Estado Novo, teve
como fio condutor o desenvolvimento econômico do país. Nesse sentido,
os projetos desencadeados pelo governo federal foram direcionados
visando a alcançar esse objetivo. O projeto colonizador estadonovista no
Centro-Oeste, por exemplo, vinculava-se ao projeto de desenvolvimento
do capitalismo no campo, haja vista que os elementos básicos para tal
empreendimento existiam, quais sejam, espaços geográficos despovoados
ou semi-povoados com terra fértil em abundância; e trabalhadores sem
terra que sonhavam em adquirir um pedaço de chão, contingentes de
trabalhadores desempregados nas cidades, vítimas da seca do nordeste.
29
A partir da implantação do projeto colonizador de Vargas e da criação da Colônia
Nacional, verifica-se uma corrida pela terra na região de Dourados. De 13.164 habitantes, a
população rural passa para 68.487 em apenas duas décadas, resultado da implantação da
CAND, que passou a receber migrantes e imigrantes interessados na exploração agrícola
da região. Gaúchos, nordestinos, mineiros, paulistas, catarinenses e paranaenses, além de
imigrantes japoneses somaram-se à população já existente na região. De acordo com
GRESSLER:
O elemento nordestino, geralmente de família numerosa, radicou-se nos
lotes da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, dedicando-se à
agricultura de pequeno porte.
27
Sobre o tema, ver LENHARO, Alcir. Colonização e Trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-
Oeste. São Paulo: Ed. Unicamp, 1985 e FOWERARKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da
fronteira pioneira no Brasil de 1930 aos dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
28
IBGE Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: 1958. p. 185.
29
OLIVEIRA, Benícia Couto de. A política de colonização do Estado Novo em Mato Grosso (1937-1956),
1999. Dissertação (Mestrado em História). UNESP, p. 134.
27
Os paulistas, catarinenses e paranaenses vieram para a região, atraídos
pelo incremento agrícola, dedicando-se às atividades comerciais
vinculadas, de um modo geral, à agricultura.
O imigrante gaúcho, atraído pelos preços das terras, traz uma forte
influência cultural, uma tradição agrícola de alto nível e técnicas
esmeradas no tratamento do solo, dedicando-se ao cultivo da soja, do
trigo e do arroz.
30
A presença paraguaia remonta ao período colonial que uniu guaranis e espanhóis. O
relativo isolamento de Mato Grosso em relação aos centros brasileiros, fez com que o
estado sempre estivesse ligado ao Paraguai, dele dependendo para abastecimento interno,
além de usufruir dos serviços médicos e escolares do povo guarani. José Carlos de Souza,
que pesquisou a presença paraguaia na região de Dourados, afirma que:
A aliança do povo guarani com os espanhóis fez nascer uma população
que adquiriu o hábito europeu de descobrir terras e fundar povoações. No
estado de Mato Grosso, o migrante paraguaio descobriu e explorou
ervais, cortou madeira, criou gado e, povoando regiões lindeiras,
contribuiu para o desenvolvimento dessas extensões de terra. A afluência
de paraguaios para o Brasil aumentou a partir de 1914. Não houve
períodos de declínio: os anos posteriores a 1936 trouxeram ainda mais
paraguaios para as terras brasileiras.
31
O nordestino veio, sobretudo atraído pela possibilidade de posse de um lote de terra
da CAND. Além da Colônia Nacional, outras colônias foram fundadas, promovidas por
particulares. Nesse caso, tratou-se da chamada “colonização dirigida”, assim era entendida
a política de ocupação de terras devolutas, implementadas pelo governo do estado com
intermediação de empresas colonizadoras.
32
Joana Prado Medeiros em estudo de caso sobre a formação da Colônia dos Baianos
e da Colônia Café Porã, faz um criterioso levantamento sobre esse tipo de
empreendimento. Nos dois casos, as terras foram compradas de empresas colonizadoras e
divididas em lotes, onde foram assentadas as famílias. No primeiro caso, os nordestinos, no
segundo, japoneses. Seguida à derrubada da espessa mataria, em ambas as colônias foi
plantado café. Os japoneses, de situação financeira mais sólida, conseguiram acumular
capital e manter-se na terra. Já o nordestino:
30
GRESSLER, Lori Alice. SWENSSON, Lauro Joppert. Aspectos do povoamento e da colonização do
Estado de Mato Grosso do Sul. Dourados: 1998. p. 105.
31
SOUZA, José Carlos de. A identidade do migrante paraguaio e de seus descendentes radicados em
Dourados (1989-1999). Dissertação (Mestrado em História). Dourados: UFMS, 2001. p.83.
32
VASCONCELOS, Cláudio Alves de. Colonização e especulação fundiária em Mato Grosso: a
implantação da Colônia rzea Alegre (1957-1970). Assis, 1986. Dissertação (Mestrado em História).
UNESP, p. 18.
28
[...] manteve sua vida de forma cíclica, isto é, trabalhando de forma
independente, porém não conseguindo nunca acumular capital, por
depender apenas das boas colheitas, até chegar o momento de vender sua
pequena propriedade [...].
33
Os estudos realizados por Prado e Oliveira a respeito do destino dos nordestinos da
Colônia dos Baianos são coincidentes. Por falta de estrutura e apoio dos órgãos do estado,
estes colonos, aos poucos, foram vendendo suas pequenas propriedades, favorecendo a
formação das grandes fazendas de gado ou lavouras mecanizadas.
Outro estudo sobre a colonização dirigida, especificamente referente à Colônia
Japonesa em Dourados, foi feito por Edna Mitsue Inagaki. Os japoneses, radicados em
Dourados a partir da década de 40, vieram atraídos, sobretudo pela possibilidade de
adquirir terras e prosperar. Os estudos de Inagaki abrangeram as trajetórias dos japoneses
da região de Dourados, tanto das Colônias Matsubara, Kiyoei e Curupaí, quanto a das
famílias que se estabeleceram isoladas na região. O cotidiano, a adaptação à nova realidade
e a tentativa de manter sua própria cultura permitem vislumbrar o quadro esperançoso que
pairava na mente desses e de todos os outros imigrantes e migrantes no começar de
Dourados”.
34
Com a implantação da CAND, a Colônia atraiu, além de trabalhadores rurais, um
contingente de novos serviços. A região passou a contar com serviços bancários e
empresas, além da formação de cooperativas. Configurou-se o projeto integracionalista do
governo Vargas: a Colônia Agrícola Nacional de Dourados tornou-se, de fato, a menina
dos olhos do projeto colonizador do governo estado-novista, mas, conforme Lenharo:
Dourados, em Mato Grosso, funcionou apenas simbolicamente, e
sobre ela a propaganda do Estado Novo operou sem cessar,
apresentando-a como colônia-modelo. A implantação real da
colônia atrasou-se consideravelmente. Somente em julho de 1948 é
que o governo federal demarcou a área e os limites para sua futura
instalação.
35
Marisa Bittar analisa como positiva a implantação da CAND, muito embora não
tenha se concretizado na forma concebida por Vargas. A maior parte dos lotes ocupados,
33
MEDEIROS, Joana Prado. O Eldorado de Dourados: a colônia dos baianos e a colônia café porã 1950-
1960. Dourados, 2001. Dissertação (Mestrado em História). UFMS, p. 125.
34
INAGAKI, Edna Mitsue. Dourádossu: caminhos e cotidiano dos nikkeis em Dourados (décadas de 1940,
1950 e 1960). Dourados, 2002. Dissertação (Mestrado em História). UFMS.
35
LENHARO, Alcir. op. cit., p. 56.
29
por falta de apoio estrutural, foi agrupada, dando lugar à grandes fazendas. Em sua
pesquisa, a autora acima citada dialoga com políticos regionais de diferentes visões a
respeito do sucesso da Colônia.
Paulo Coelho Machado, advogado e escritor, assevera que a CAND foi um
fracasso, atribuindo à migração gaúcha e à sua agricultura mecanizada, o desenvolvimento
da região. Demosthenes Martins aponta para o desprezo das autoridades estaduais que
procuraram retardar a implantação da CAND na região. Estando o estado sob intervenção
federal, por que motivo o interventor se opôs a cessão de terras, necessárias para
implantação do projeto formulado pelo próprio Vargas? Preferiu criar a colônia agrícola de
Poxoréu, que não deu certo. Rivalidades entre sul e norte?
A partir da criação da CAND, outras companhias de colonização privadas se
instalaram na região, inspiradas em modelos recentes de colonizações paulista e
paranaense, que compravam extensas áreas de florestas do estado ou de particulares e as
subdividiam em lotes.
36
Assim surgiram as colônias japonesas e dos baianos, acima
aludidas.
O contingente populacional aglutinou-se principalmente na zona rural. Um
crescimento considerável que fez do município de Dourados, à época, o município mais
populoso da região sul do estado de Mato Grosso, conforme se pode verificar nas tabelas 1
e 2, configuradas ao final deste capítulo.
Esse crescimento “vertiginoso” pode ser atestado pelos empreendimentos
verificados na região. O IBGE publicou, em abril de 1958, que:
[...] a partir da criação da CAND [...] e a conseqüente melhoria de
transportes com a construção ainda que precária de estradas de
rodagem, deu-se a “corrida” de imigrantes, fenômeno que veio alterar
profundamente a fisionomia daquele aglomerado humano,
transformando-o no que hoje constitui a cidade de Dourados: uma das
que mais cresce, atualmente, em Mato Grosso.
37
Paulo Roberto Cimó Queiróz, ao discutir os efeitos econômicos produzidos a partir
da construção da estrada de ferro Noroeste na região, também chama atenção para o
crescimento populacional, bem como para o aumento da produção agrícola nas cidades
servidas pela referida ferrovia. O autor analisa como positivos os resultados que:
36
GRESSLER, Lori Alice. SWENSSON, Lauro Joppert. Aspectos históricos do povoamento e da
colonização do estado de Mato Grosso do Sul: destaque para o município de Dourados.
37
IBGE. op. cit., 1958. p. 185.
30
[...] pelo menos a partir de 1950, devem ser creditados em parte à
ferrovia. Entre tais resultados, inclui-se, certamente, o notável incremento
populacional [...] particularmente da população rural itens por sua vez
relacionados com notáveis aumentos no número de pequenas
propriedades e na produção de arroz, feijão, milho, algodão e mesmo
café.
38
Ainda segundo o IBGE, na mesma publicação, além da estrada de ferro e das
rodovias, Dourados era servida por duas empresas de aviação, a Consórcio Real-Aerovias e
VASP; dez empresas de ônibus que faziam o transporte rodoviário; havia na cidade sete
hotéis e dez pensões. Contava ainda com três bancos, sendo um, genuinamente douradense,
o Banco Agrícola de Dourados
39
. Esse banco era de propriedade do migrante mineiro
Antonio Moraes dos Santos, radicado em Dourados.
O Banco Agrícola de Dourados, com a sede da matriz em Dourados, abriu alguns
anos mais tarde, uma filial na cidade de Campo Grande. A revista Brasil Oeste publicou na
edição de maio de 1961 a abertura da filial, prestigiada pelas mais altas autoridades do
estado de Mato Grosso. Ao evento compareceram o governador do estado, diretores dos
órgãos estaduais, prefeito da cidade. Nesse período, o banco mantinha agências na capital
do estado, Cuiabá, além de Amambaí, Campo Grande, Itaporã, Rio Brilhante e na Vila
Brasil, uma das pequenas aglomerações urbanas surgidas com a CAND. O banco, segundo
a revista escolhera o sul do estado “[...] mercê de seu acentuado desenvolvimento nas lides
da lavoura e da pecuária, e, também, por dispor de melhores meios de comunicações”.
40
Como ícone do sucesso da política de ocupação ordenada varguista, modelo do
projeto de colonização Marcha para Oeste iniciada por Getúlio Vargas, Dourados passou a
ter as atenções das autoridades em sintonia com o poder. Desde a implantação da CAND, a
região de Dourados desponta para o roteiro político nacional. Não dúvida quanto ao
impulso dado à região, por Vargas, com a implantação da CAND. Encontramos registros
de que ele esteve na região pelo menos duas vezes. A primeira, em 1941, quando visitou a
38
QUEIRÓZ, Paulo Roberto Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: a estrada de ferro Noroeste do Brasil na
construção histórica de Mato Grosso (1918-1956). São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História
Econômica). FFLCH/USP, p. 499.
39
O Banco mais tarde foi incorporado pelo Banco Financial, de propriedade da família Coelho, com quem
Morais dos Santos mantinha relações de parentesco. (Depoimento de Jose Roberto Techio, 2003).
40
Brasil Oeste. Ano VI, n. 59, mai. 1961. p. 61-62.
31
Companhia Matte Larangeira e, a segunda, quando foi criada a Colônia Agrícola nacional
de Dourados, em 1943. E, a partir desse período, Dourados foi visitada por vários
presidentes, entre eles Juscelino Kubistchek (1957), Jânio Quadros (1960), João Goulart
(1963), Ernesto Geisel (1976) e João Batista de Figueiredo (1982).
A memória da passagem desses presidentes está também registrada em várias
fotografias, nas quais é possível identificar as autoridades políticas da época, parte da
população e algumas paisagens da cidade. As fotografias estão dispostas ao final dos
capítulos I e II.
Com a criação da CAND verifica-se a formação de novas lideranças, até então
concentradas na área urbana. A elite local descobre na Colônia, o foco da atenção do
governo federal e, por conseqüência, um canal potencial de poder. Com a ocupação
territorial pela leva de colonos, atraídos pelo projeto de colonização, principalmente
nordestinos, e a morosidade do governo em regularizar a posse da terra, iniciam-se as
ocupações clandestinas e, conseqüentemente, os conflitos pela terra, os quais, aliados à
ideologia anticomunicante, presente na mentalidade dos moradores do município, irão
ecoar na década seguinte, a de 60, quando se inicia o regime militar após o golpe de 64. A
Colônia, antes ícone do projeto colonizador varguista, por ocasião de 64, transforma-se em
alvo, tornando-se foco das sanções políticas militares. Para Marisa Bittar, a CAND estava
diretamente associada a Vargas e a seus herdeiros políticos:
Por muito tempo, a região foi uma espécie de reduto do “trabalhismo” e
os seus moradores chamados de peteba”, ou seja, correligionários do
PTB. A Colônia é um dos fatores que explicam as raízes desse partido no
sul, ao contrário do norte do estado, onde o PTB era inexpressivo.
41
Na implantação da CAND pode-se perceber momentos distintos. A área
inicialmente prevista, para implantação da colônia, de 300.000 (trezentos mil) hectares, e a
intensa propaganda do governo federal atraíram muita gente, principalmente nordestinos.
Assim, os primeiros colonos assentados foram melhor aquinhoados, recebendo além da
terra, ferramentas de trabalho. A segunda fase, devido às intensas propagandas veiculadas
por órgãos do governo, atraiu mais gente que ia chegando e ocupando áreas não
demarcadas pelo órgão colonizador. Nem sempre os trâmites legais eram seguidos, em
41
BITTAR, Marisa. op. cit., p. 192, nota 64.
32
muitos casos ocorrendo a posse forçada. Na cada de 50, considerada por Oliveira como
período de migração mais intensa, a vinda desses migrantes e a demora na demarcação de
novas áreas
[...] de certa forma, viabilizou à força a entrada dos colonos, pois, uma
vez estando no local, as pessoas teriam de tomar certas iniciativas para
adquirirem a terra para trabalharem e tirarem seu sustento. Todavia, a
iniciativa dos colonos, em entrar na área e iniciar suas roças, colaborou
com a administração, na medida que facilitou o assentamento sem muitos
gastos, pois, ao desbravarem a área através da abertura de picadas,
estradas e demarcação dos lotes, independentes das ordens da
administração, isentaram o governo dos gastos para tal tarefa.
42
Verifica-se, com a implantação da CAND, uma série de ocupações nas áreas não
demarcadas, feitas por colonos ou por posseiros, atividade que começa a preocupar os
administradores da CAND. Nem todos os posseiros são pretendentes a um lote de terra.
Em áreas em processo de ocupação, como foi a da CAND, era comum a presença de certos
indivíduos “especializados em promover badernas”, os chamados “grileiros”. Essas
pessoas tumultuavam a vida dos verdadeiros colonos.
43
Em alguns casos usavam de
violência contra os colonos, visando sua expulsão dos lotes.
Num documento da CAND, datado de 09 de novembro de 1951, o administrador
revela preocupações com as ocupações clandestinas e a necessidade de demarcar as terras
com urgência, medida “[...] imprescindível como barreira àqueles que se mancomunaram
para o assalto às terras que constituem este patrimônio da União”.
44
Prossegue o diretor no citado documento: “Devem existir muitos intrusos na área
da Colônia e esta Administração precisa expurgar estes elementos que constituem uma
ameaça aos legítimos agricultores, que desejam terras para cultura e não para negócios”.
Vários são os pedidos para verificação da situação das concessões de posse e
possíveis invasões. Em geral o pedido de verificação era feito oficialmente, através de
memorandos internos, do administrador da colônia, para um fiscal designado, indicativo de
uma certa freqüência nas irregularidades de posse. Diz uma dessas correspondências:
42
OLIVEIRA, Benícia Couto de. op. cit., p. 124.
43
Depoimento do advogado Ayrton Barbosa Ferreira, em julho de 2003. O advogado trabalhou como
advogado dativo em inúmeros casos envolvendo esses “posseiros”, os quais foram presos e processados.
44
Oficio do administrador da Colônia ao diretor do Departamento de Terras e Colonização do Ministério da
Agricultura, mais tarde transformado no Instituto Nacional de Imigração e Colonização – INIC.
33
De ordem do chefe de Colonização percorri a zona de Lagoa Bonita,
Capão Ralo e Porto Vilma, situados na Segunda zona deste núcleo,
verifiquei que na zona Lagôa Bonita , muita irregularidade que se
diz venda de marcações, invasões e exploração nos hervaes. Informou-me
o sr. Mucio, dono da fazenda que estão invadindo a mesma. Ouviu alguns
desses invasores que disseram ser de ordem de Adelino [...].Em Porto,
Vilma não há nada de anormal.
45
As tensões ao serem divulgadas pela imprensa, começam a movimentar os
proprietários rurais e a preocupar as autoridades locais. Os problemas fundiários motivam
também as discussões políticas, conforme pode constatar-se nos discursos proferidos pelos
vereadores, nas sessões ordinárias da Câmara de Vereadores, trazendo o tema das
ocupações de terras para âmbito urbano, e transformando-o em questão a ser discutida e
resolvida pela edilidade. Também pelos jornais puderam verificar as preocupações em
torno do problema. Artigos, notas policiais, convocações oficiais envolvendo colonos
passam a ganhar espaço nos jornais da cidade. Data do ano de 1953 a união de
proprietários rurais contra ocupantes de terras na região de Dourados. Notícia de O
Progresso, ao mesmo tempo em que denuncia as invasões de terra, concita os proprietários
à união, para lutarem contra
O criminoso desrespeito ao direito de propriedade, sem que tal fato tenha
merecido dos poderes constituídos a atenção e as providências enérgicas
e inadiáveis que merece [...] os proprietários rurais do município em
defeza (sic) de seus interesses e seus direitos, estão agora programando
[...] uma reunião, visando a união da classe, e ao mesmo tempo para fazer
sentir ao Governo do Estado a premente necessidade de pôr um paradeiro
a essa situação calamitosa que ameaça não só a desmoralização das terras
de Dourados, como também o próprio prestígio do Governo. Os
organizadores dessa reunião fazem um apelo caloroso, a todos os
proprietários rurais, para que compareçam a ela, tornando possível a
vitória da classe, na defeza (sic) de seus interesses.
46
As questões fundiárias chegam à cidade. Uma comunidade de proprietários que se
formou sob os auspícios do progresso e do desenvolvimento não aceitaria pacificamente a
situação. Os conflitos pela posse da terra eram vistos como invasão, atividades
subversivas, coisa de comunista. Um passado recente reavivou lembranças sobre o perigo
comunizante que significava, sobretudo após a revolução russa de 1917, a perda da
45
Resposta de Cyro Azambuja, fiscal da Colônia. Cyro Azambuja foi um dos entrevistados no projeto
Ressonâncias do golpe de 64 na região de Dourados, coordenado pelo profº Dr. Wilson Valentin Biasotto,
UFMS, 1996- 1997.
46
O Progresso, Dourados, 18 jan. 53, p. 6.
34
liberdade individual e da propriedade privada, principalmente da terra. Tais lembranças
passam pelo uso cotidiano da palavra revolução, banalizada pelos grupos rivais mato-
grossenses que se revezavam no poder, mas também pela passagem da Coluna Prestes na
região, em 1924. Outra lembrança mais próxima era a notícia de uma revolução comunista
envolvendo a Cia Matte Larangeira, arrendatária de grande parte do território sul-mato-
grossense e o estrangeiro João Ortt. Uma pendenga fundiária que durou de 1904 a 1931
envolvendo a Matte e duas gerações dos Ortt. Na verdade, na impossibilidade de tomar as
terras para si, de posse de Ortt, administradores da Matte:
[...] de parceria com as autoridades policiais e com o objetivo de não
deixar aparecer o real motivo do levante, passou a telegrafar aos quatro
ventos que nos ervaes havia surgido uma revolução [...] COMUNISTA!
Pobre João Ortt [...] elevado à dignidade de chefe comunista, sem saber
mesmo até hoje o que venha a ser comunismo.
47
Tratava-se de uma simples questão fundiária em que as partes discordavam. João
Ortt, na verdade, herdara o problema de seu pai, João Christiansen, que, em 1904, ocupara
uma área de terras devolutas em Taquapiry, a dezoito léguas de Ponta Porã. A Matte
Larangeira negociou sua saída, trocando a área por outra, denominada invernada
Maracahy, localizada às margens do rio Paraná. Com a morte de João Christiansen, a
propriedade passou às mãos do filho João Ortt, de quem a Matte, quase trinta anos depois,
em 1931, procurou retomá-la. Desesperado pela pendenga que não se resolvia e descrente
na justiça, João Ortt:
[...] entendeu-se com amigos de confiança, alistou gente, conseguiu
armas, conspirou, mediu conseqüências, e julgando-se forte pelas muitas
adesões que recebia diariamente, partiu de Maracahy, em 05 de março de
1932, com um grupo de homens, disposto a enfrentar a tradicional
inimiga. De vários pontos deveriam estar a postos outros grupos armados
que iriam se incorporando ao que comandava pessoalmente. Caso fosse
bem sucedido no arriscado empreendimento, tomaria Campanário, sede
da empresa e imporia condições de modo a deixá-lo tranqüilo na “posse”
em Marcahy.
48
Ortt não teve a ajuda prometida. Muitos dos arregimentados não aderiram
realmente e sabedor da milícia que o aguardava, desolado exilou-se no Paraguai onde
47
PUIGARI, Umberto. Nas fronteiras de Matto Grosso. São Paulo: Casa Mayença, 1933. p. 114.
48
Ibidem, p. 114.
35
recebia notícias sobre as mortes trágicas de seus antigos colaboradores, torturados para
confessarem onde se achavam os outros comunistas.
Para combater Ortt, a Companhia Matte Larangeira requisitou e obteve ajuda do
exército brasileiro. Coube ao major Bertoldo Klinger, sediado em Campo Grande, a tarefa
de combater os comunistas da fronteira.
Marisa Bittar, em seus estudos sobre a divisão do estado de Mato Grosso, aponta
para a formação de uma elite militar no sul do estado, a partir de 1921, quando o Comando
Militar foi transferido de Corumbá para Campo Grande, fazendo desta cidade, a capital
militar do estado.
49
Na verdade, a presença militar na fronteira oeste do Brasil, remonta ao período
colonial e aos diversos tratados de divisão, firmados entre os impérios de Portugal e
Espanha, que tinham como escopo estabelecer os limites fronteiriços entre as duas
colônias. O governo português, com esta finalidade, procurou instalar bases militares em
pontos estratégicos na região oeste do território, então sob sua ocupação, cuja posse
buscava legitimar.
Todavia, foi ao final da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) que a presença
militar ostensiva passou a se fazer mais presente na fronteira, decorrência natural do
episódio bélico. Valmir Batista Corrêa
50
, ao discutir o papel da violência no processo de
ocupação regional, afirma que [...] a invasão paraguaia em território mato-grossense foi
um divisor de águas no processo de ocupação de toda fronteira oeste.
51
De fato, foi a partir
da guerra que a atenção do poder central voltou-se para a efetiva ocupação das fronteiras,
notadamente a oeste, tendo com isso o estado de Mato Grosso passado a merecer atenção
especial, face à sua localização privilegiada na Bacia do Prata. O transporte fluvial, via Rio
Paraguai, constituía-se no meio mais eficiente de acesso ao estado e, quando por ocasião da
guerra esse acesso foi barrado pelas tropas paraguaias, o exército brasileiro viu-se em
dificuldades para socorrer a fronteira invadida. Sem outro meio de movimentar-se, o
exército brasileiro demorou um ano para alcançar o estado de Mato Grosso após a notícia
da invasão paraguaia ao território brasileiro, por via terrestre.
A Guerra do Paraguai, por sua vez, foi também responsável pela emergência do
Exército Brasileiro como força organizada, capaz de ações de contenção aos movimentos
49
BITTAR, Marisa. op. cit., p. 144.
50
CORREA, Valmir Batista. op. cit., p. 43
51
Ibidem, p. 43.
36
internos, promovidos pelas oligarquias nos estados da federação e cuja repressão, outrora
fora papel principal da Guarda Nacional.
52
As condições de precariedade que marcaram a
presença do Exército Brasileiro durante a guerra na bacia platina desapareceram durante o
curso desta. Boris Fausto considera que:
O Exército brasileiro foi se consolidando no correr da Guerra do
Paraguai. Até então, o Império contara com um reduzido corpo
profissional de oficiais e encontrara muitas dificuldades para ampliar
efetivos. Não havia serviço militar obrigatório, e sim um sorteio muito
restrito, para servir no Exército. Os componentes da Guarda Nacional,
que eram a grande maioria da população branca, estavam isentos desse
serviço. Até a Guerra do Paraguai, a milícia gaúcha dera conta das
campanhas militares do Brasil no Prata, mas ela se revelou incapaz de
enfrentar um exército moderno como o paraguaio
53
.
Após a Guerra do Paraguai, o exército surge como uma instituição organizada,
guindada ao papel de guardião da nação brasileira. E, nessa condição, passa a ocupar
espaços também na esfera política, sendo a Proclamação da República conseqüência da
hegemonia militar no cenário político. Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, militares
ex-combatentes, se tornariam figuras centrais na queda do Império.
Organizado, o Exército passou também a protagonizar os movimentos sociais
representativos na história política brasileira, eivados de influências externas, como a
Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. É inegável que tais acontecimentos
externos influenciaram o movimento tenentista e outros mais, e também fizeram renascer
um forte sentimento de nacionalismo e soberania nacional, o que determinará futuras ações
armadas.
O Tenentismo, rebelião de um grupo de oficiais intermediários do Exército, que se
iniciou com a revolta do Forte de Copacabana em 1922, deu início a uma série de
manifestações dentro da instituição, contra as oligarquias regionais, mas também contra as
estruturas internas do Exército e que marcaram o posicionamento político desse grupo, na
década de 20, evidenciando as diferenças internas do próprio Exército.
Além do Tenentismo, outros movimentos militares marcaram a participação das
forças armadas no cenário político nacional, os quais, analisados em conjunto, estão
diretamente ligados ao golpe de 64. Os movimentos militares que sucederam o de 1922,
52
SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 230.
53
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1999. p. 214.
37
também tiveram origem nas camadas mais baixas da hierarquia militar, fato que alertou os
militares de alta patente, pois até então, os movimentos militares restringiam-se nessa
esfera. Por ocasião de 64, as divisões dentro das forças armadas e a propensão de João
Goulart em não respaldar a estratégia dos altos dirigentes militares, contribuíram para o
desencadeamento do golpe. Respaldados pela sociedade civil, os militares, em alerta desde
1922, finalmente tomaram o poder.
54
Sobre tal pensamento, escreveria o governador de Mato Grosso, Fernando Correa
da Costa, ao prestar contas de seu governo:
Estamos firmemente convencidos de que o movimento de 31 de março
encerrou, na nossa Pátria, um ciclo histórico que se iniciou em 1922 e
prosseguiu em 1924, 1936, 1932, 1937 e 1945.
Até então não se seguiam às soluções militares as providências que lhes
completariam o significado, através da transformação da ordem
econômica e legal, consolidando as conquistas das nossas gloriosas
armas.
55
A fronteira oeste que sempre mereceu atenção do Exército, a partir da Segunda
Guerra Mundial, passou a ser “olhada” de outra forma. Nesse período, deu-se a
implantação da Escola Superior de Guerra ESG, instituto no qual setores militares
dedicaram-se aos estudos de integração nacional e ocupação efetiva das fronteiras Oeste e
Norte. A então, os problemas fronteiriços eram resolvidos através da diplomacia, tendo
sido seu maior expoente José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco, que, nessa
condição, enfrentou o caso das Missões, contra a Argentina; o caso das Guianas, contra a
França.
Datam também do final da guerra da Tríplice Aliança os primeiros estudos visando
a interiorização do território brasileiro e o estabelecimento de ligações do estado de Mato
Grosso com outros centros brasileiros, conexões que o livrassem da dependência da
navegação fluvial na bacia platina. A construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil,
que atingiria Cuiabá
56
foi a solução encontrada para estabelecer vias de comunicação entre
a fronteira oeste ao restante do país.
54
STEPAN, Alfred. Os militares na política. Trad. Italo Tronca. Rio de Janeiro: Artenova, 1971. p. 74.
55
GOVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO. Relatório de atividades do ano de 1964. Cuiabá, 1964.
56
Sobre a construção da ferrovia, consultar QUEIRÓZ, Paulo Roberto Cimó. As curvas do trem e os
meandros do poder: o nascimento da estrada de ferro noroeste do Brasil. Campo Grande: UFMS, 1997. Bem
como a publicação de BRITO, Cláudia. Escola de Japoneses: a construção da etnicidade em Mato Grosso do
Sul. Campo Grande: Ed. Uniderp, 2000.
38
Desde os tempos coloniais, o Estado prescindiu de conhecimentos geopolíticos.
Assim foi que, após a Guerra do Paraguai, segundo Meira Mattos, verificou-se:
[...] absoluta carência de comunicação para o interior da massa
continental. A expedição que saiu de São Paulo para socorrer o território
de Mato Grosso invadido pelas tropas de Solano Lopes levou mais de um
ano para atingir Nioaque; metade de seu efetivo pereceu nas marchas
pelo sertão ínvio e inóspito. A gloriosa Retirada da Laguna [...] ficou
como o estigma de uma imprevidência que não poderia perdurar se
quiséssemos, no futuro, preservar a integridade de nosso território. O
insucesso dessa expedição militar, veio provar aos dirigentes da política
brasileira a nossa incapacidade de defender nossa imensa extensão do
território banhado pelos formadores do Prata e cuja única via de acesso
estava na passagem por Buenos Aires e Assunção.
57
Mesmo com a neutralização do Paraguai, Mato Grosso continuou refém da
navegação, dado que, após a guerra, “[...] quase nada se fez de efetivo no sentido de
neutralizar a condicionante geopolítica que colocava essas vastas áreas do sertão de Mato
Grosso e Goiás sobre a influência vial de Buenos Aires”. Ainda segundo Mattos, de 1869 a
1903, vários foram os planos de integração formulados para estabelecer comunicação com
a região oeste. Venceu o plano do engenheiro Emílio Schnoor, que após a constituição da
Companhia de Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, em 1904, lançou 1269 km de trilhos
sobre campinas, serras e pântanos em região desconhecida e inóspita, ligando Bauru a
Porto Esperança:
Com a chegada dos trilhos em Porto Esperança, na barranca do Rio
Paraguai, estava criado novo pólo de atração geopolítica para as regiões
brasileiras das bacias do Paraná e Paraguai; passaria o binômio Santos-
São Paulo a projetar a sua influência neutralizadora sobre o centripetismo
do Prata; abria-se uma opção vial para o leste matogrossense, opção esta
que mais tarde se estenderia ao Paraguai e à Bolívia.
58
Nos anos 20 do século XX, as propostas geopolíticas partiram de Mario Travassos,
capitão do exército, que propunha vertebrar o território brasileiro, ainda invertebrado. São
de sua lavra a política de transportes que ligasse praticamente todo continente sul-
americano. Segundo Meira Mattos, as soluções propostas por Travassos:
Situam-se numa política de transportes que neutralize a nosso favor os
desequilíbrios potenciais oferecidos por essas forças geográficas
57
MEIRA MATTOS, Carlos de. Brasil: geopolítica e destino. Rio de Janeiro: Bibliex, 1975. p. 47.
58
Ibidem p. 49.
39
antagônicas. Propõe, em essência, que se complete a rede ferroviária
carreadora para os portos do Atlântico Santos, Paranaguá, São
Francisco, Porto Alegre e Rio Grande das influências platinas sobre as
bacias do Uruguai, Paraná e Paraguai. Propõe a chegada de nossos trilhos
a Santa Cruz de La Sierra e daí a Arica, no Pacífico. Sugere ramais da
Estrada de Ferro Noroeste para a República do Paraguai. Em termos de
vertebração de nossa massa continental sugere ampla conjugação dos
sistemas ferroviário, fluvial e aéreo, além de propor um sistema aéreo
interamericano, capaz de superar, temporariamente, as dificuldades de
trânsito oferecidas pelos obstáculos geográficos.
59
Na década de 50 sobressai-se o pensamento geopolítico da Escola Superior de
Guerra – ESG, tendo como um de seus principais ideólogos, Golbery do Couto e Silva,
cuja vertente então, norteava-se pelo contexto da Guerra Fria, baseado no binômio
segurança e desenvolvimento. A polarização do mundo pós-Segunda Guerra em dois
blocos, capitalista e socialista, segundo Golbery, ameaçava o mundo ocidental. Nessa
perspectiva, entendia que no Brasil, estavam em perigo valores arraigados na nossa cultura,
tais como o cristianismo e a democracia.
60
A ocupação do território brasileiro, principalmente da região Centro-Oeste,
significava, naquele momento, segundo as concepções dos teóricos da ESG, barrar as
pretensões comunistas sobre o mundo capitalista. Para o estrategista, a ocupação dos
“espaços vazios e despovoados” era necessária, para consolidação do capitalismo. Integrar
economicamente a região oeste a outros centros de produção, e povoar a grande extensão
de terras a oeste do país, consistiam as metas para barrar possíveis investidas comunistas.
O controle sobre o território era de fundamental importância “[...] tanto para atender
objetivos de ordem interna quanto externa, uma vez que ambos se conjugavam em prol da
“vitória capitalista”sobre o “mundo comunista”.
61
A interiorização do capitalismo em todos
os rincões brasileiros, serviria a dois propósitos: a ocupação dos “espaços vazios” e a
proteção do capitalismo no Brasil.
O Centro-Oeste, ainda segundo Golbery, era de vital importância, considerando a
vulnerabilidade frente aos países lindeiros. A estratégia consistia em barrar possíveis
pretensões, integrando a região Centro-Oeste aos centros por ele considerados como
“núcleo central ecumênico”, representado pelos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e
Belo Horizonte. De acordo com Marisa Bittar:
59
Ibidem, p. 52.
60
COUTO E SILVA, Golbery . Geopolítica do Brasil. Rio De Janeiro: Livraria José Olímpio Editora, 1967.
p, 226
61
BITTAR, Marisa. op. cit., p. 205.
40
A ocupação do Centro-Oeste, pois enquadrava-se na estratégia da
geopolítica que visava, de um lado, a segurança, e, de outro, a integração
do território. Das fases previstas para a consecução desses dois objetivos
incluía-se a constituição de potenciais regionais tanto maiores fossem as
ameaças que se prevêem. O grau de importância dessas ameaças era
classificado como de máximo face ao Prata, médio no Nordeste e mínimo
na periferia amazônica.
62
Sobre o pensamento geopolítico de Golbery, escreveria mais tarde Meira Mattos:
[...] Golbery pensa na vertebração do território e integração dos espaços vazios, partindo
de um núcleo progressista agrandado pela integração do Planalto Central; daí para adiante,
a dinamização do processo integrada se auto-alimentará.”
63
Nesse contexto, o sul de Mato Grosso ganhou a atenção do Governo Federal como
área a ser integrada ao sistema capitalista, enquanto fonte de expansão agrícola nos anos
40, e posteriormente também como área de segurança nacional, ambas devedoras da
concepção de geopolítica.
O sucesso da CAND fez despontar a cidade, tanto econômica quanto politicamente.
Da densa e heterogênea população surgiram forças representativas, agregadas em partidos
políticos os quais, durante a década de 60, terão papéis decisivos na história local. Entre
eles, o Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, que por ocasião do golpe de 64 foi duramente
combatido pela União Democrática Nacional, a UDN.
A intensificação de conflitos fundiários e de projetos políticos em disputa durante o
governo João Goulart, vão adquirir, em Dourados, formas próprias no período pré-golpe
64, as quais serão discutidas no próximo capítulo.
62
Ibidem, p. 207.
63
MATTOS, M.C. op. cit., p. 58.
41
Juscelino Kubitschek Dourados em 1957. Foi recepcionado no Clube Social de Dourados. Na foto
aparecem ainda Poncio de Arruda e Filinto Muller, além do fotógrafo Maurício de Oliveira.
Fonte: MOREIRA, Regina H.T. Memórias Fotográficas de Dourados . Campo Grande: UFMS, 1990.
42
Getúlio Vargas e Armando Campos
Belo, PTB. 1951
Fonte: MOREIRA, Regina H.T. Memórias
Fotográficas de Dourados . Campo Grande: UFMS,
1990.
Getúlio Vargas e Weimar Gonçalves Torres, 1943.
Fonte Acervo Museu Histórico de Dourados.
Jânio Quadros, João Ponce Arruda e Juarez Távora, durante a campanha presidencial de 1960. No comício
realizado no aeroporto de Dourados.
Fonte: Centro de Documentação Regional - UFMS
43
“Vossa Excelência, Senhor Presidente Ernesto Geisel, repete hoje a epopéia
da criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados”
João Cândido Da Câmara – 1976
Fonte: Revista Atualidades Forenses e Interioranas. Três Lagoas MT. Ano VI, N. XXVIII, 1976.
44
"Dizem que o povo vive na miséria, triste,
privado de liberdade, oprimido e sob arbítrio da
violência. Não creio. A acolhida que me fazem,
as fisionomias que vejo aqui, como em outras
regiões brasileiras, não concordam. Creio que o
povo está mais do meu lado, do lado do Governo
e do lado da Revolução."
Ernesto Geisel - 1976
O Presidente do INCRA, Paulo Yokota: títulos definitivos de terra aos colonos.
Presidente Figueiredo: Dourados ganhou casas econômicas.
O Presidente Figueiredo veio conhecer de perto o potencial agrícola de Dourados.
Fonte: Folheto Dourados Hoje. Prefeitura Municipal de Dourados. Abril 1982
45
CAPÍTULO II
UM GOLPE ANUNCIADO
A CRIAÇÃO DO CONSENSO
[...] embora tenha desaparecido gradualmente, em
ordem e paz, a ditadura militar foi e tem sido
objeto de escárnio, desprezo ou indiferença,
atitudes que tendem a estabelecer uma ruptura
drástica entre o passado e o presente, quando não
induzem ao silêncio e ao esquecimento de um
processo, contudo, o recente e tão importante de
nossa história.
Daniel Aarão
Reis
Com a implantação da Colônia Agrícola de Dourados - CAND representou
impulso econômico e crescimento populacional notável para o município. Em apenas uma
década, Dourados tornou-se a cidade mais populosa da região sul do estado de Mato
Grosso. Os dados censitários apontam para um crescimento acentuado, localizado
principalmente na zona rural, motivado pela doação de lotes de terras, como parte da
política do governo varguista e de seu do projeto Marcha para Oeste.
1
No entanto, esses não foram os únicos dividendos colhidos, houve os de natureza
estritamente políticos. O projeto colonizador implementado com relativo sucesso por
Getúlio Vargas, criador do Partido Trabalhista Brasileiro, fez crescer politicamente o PTB
em Dourados. Na década de 60, o partido viveu seu apogeu político com a eleição de
Vivaldi de Oliveira para a prefeitura local em 1959. Nas eleições seguintes, em 1963,
Oliveira fez seu sucessor, outro petebista, Napoleão Francisco de Souza, um ex-pracinha
1
Sobre o desenvolvimento da região de Dourados a partir da implantação da CAND, ver capítulo I.
mineiro radicado em Dourados. Vivaldi de Oliveira, no mesmo período elegeu-se deputado
estadual.
O PTB se fortalecia na região, ainda que por um breve período, o partido tinha um
presidente da república e um prefeito, ambos do mesmo partido, anelados por uma aliança
com outro partido de igual importância, o PSD. Por ocasião das eleições presidenciais de
1960, PSD e PTB coligaram-se, apoiando Henrique Teixeira Lott para a presidência e João
Goulart para vice. Vale lembrar que, naquele período, a votação para ambos os cargos era
independente, não sendo, como nos dias atuais, uma candidatura vinculada à outra.
Seguindo o mesmo ritual de Vargas, Jango esteve em Dourados para entregar
títulos de propriedade de lotes aos colonos da CAND e recebeu deferências mais explícitas.
Nessa ocasião, foi agraciado com o título de “Cidadão Douradense”, concedido pela
Câmara de Vereadores. A proposição de concessão do título foi feita pelo vereador Janary
Carneiro Santiago, do PTB. A solenidade de entrega do título deu-se numa reunião
extraordinária da Câmara de vereadores, no dia 16 de setembro de 1963. Na ocasião, o
presidente da Câmara, vereador Jofre Damasceno, após as formalidades de praxe, saudou o
presidente da República e reiterou votos de confiança no presidente “afirmando que
confiava em seu governo e em especial as (sic) atenções que seriam dispensadas às nossas
reivindicações”.
2
O presidente, ao agradecer o título recebido, declarou-se compromissado com os
douradenses a quem “de ora em diante, como filho de Dourados, atenderia às justas e
precisas reivindicações desta terra que é minha”.
3
A visita foi cuidadosamente programada, tanto por vereadores quanto pelo prefeito,
em cuja casa, Jango foi recepcionado. Foi recebido por políticos de todos os matizes com
grande festa e participou de desfile pelas ruas da cidade e comício em praça pública. A
passagem de Goulart foi registrada em várias imagens, conforme disposto ao final deste
capítulo.
Simbolismo ou não, a presença de Jango se fazia representativa aos munícipes,
tanto que, no dia seguinte à sua visita, um grupo de estudantes do Curso Científico se fez
presente na sessão da Câmara de Vereadores, para protestar contra o tratamento a eles
dispensado pelo Inspetor Federal de Ensino, quando de sua estada em Campo Grande. O
desejo de regularizar o ensino em Dourados levou os alunos, àquela cidade, para
reivindicar ao inspetor a regularização do Curso Científico em Dourados, ocasião em que
2
Ata da 6
a
sessão extraordinária da Câmara de Vereadores, livro VII, p. 100-101.
3
Ibidem.
50
foram, segundos os alunos, por ele destratados. O vereador Ivo Cerzósimo, acolhendo o
pleito dos estudantes, demonstrou-lhes total apoio, todavia, deixava de “repudiar o referido
inspetor, uma vêz (sic) que o problema estava solucionado, pois com a visita do Senhor
Presidente da República nesta cidade, o mesmo determinou a oficialização do mesmo (sic)
curso”.
4
Embora pareça um caso de simples reivindicação estudantil, o pedido dos
estudantes tomou rumo inusitado. Na luta para regularização do curso científico na cidade,
um grupo de estudantes foi até à cidade de Campo Grande, para falar com o Inspetor
Seccional do ensino Secundário do Sul do Estado de Mato Grosso, visando apressar a
implantação do curso, que demorava a acontecer. Na oportunidade, o inspetor teria
destratado os alunos, dizendo que a cidade “[...] não está apta para ter em funcionamento
um Curso Científico, porque disse que não professores, não sala [...]” chegando ao
cúmulo de dizer: O CURSO NÃO FUNCIONA PORQUE EU NÃO QUERO. ESTOU
TOTALMENTE CONTRA.
5
Ainda, segundo o jornal, o inspetor teria se referido à cidade de Dourados como
uma “bandalheira”, mesmo sem sequer conhecer a cidade e as pessoas que aqui residem.
No dia seguinte, durante a visita de João Goulart, um grupo de mães de alunos
entregou, ao presidente, o pedido de regularização do curso científico e junto, um exemplar
de O Progresso onde foram publicadas as opiniões do inspetor sobre a cidade e sua
determinação de não dar seguimento à regularização do curso. O presidente, após ler o
jornal, determinou a implantação do curso, e ainda acrescentou: Este homem merece ser
demitido”.
6
A visita do presidente foi anunciada pelo jornal no dia anterior à sua realização,
colocando, em primeira página, duas manchetes: “Presidente da República chegará amanhã
pela manhã no Aeroporto de Dourados" e, “O JORNAL O PROGRESSO: Pensamento e
Ação por uma vida melhor”, saúda o Exmo Sr. Dr. João Belchior Goulart, mui digno
Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil”.
7
Na edição seguinte, foram
comentados os discursos proferidos pelo presidente e pelo governador, em notícia de
primeira página, com fotos do presidente, do governador do estado e do prefeito local.
4
Ata da 28
a
assembléia da Câmara de Vereadores, livro VII, p. 101-104.
5
O Progresso, Dourados, 15 de set. 1963.
6
Ibidem, 22 set. 1963.
7
Ibidem, 15 set. 1963.
51
O presidente foi recepcionado por uma pequena multidão no aeroporto municipal e
seguiu em passeata pela cidade, num cortejo de mais de mil carros. Foi à Prefeitura, onde
recebeu o título de Cidadão Douradense. Logo a seguir, foi à Vila Brasil para a entrega de
dois mil títulos da CAND. Durante o discurso, pediu aos colonos que quando se criasse o
município naquele distrito, ele fosse chamado de Getúlio Vargas [...] em memória de
quem soube morrer pela felicidade do trabalhador brasileiro”. Discursaram, além do
presidente, o governador, o prefeito e o líder do PTB local, Harrison de Figueiredo.
8
Embora, o jornal tenha dado destaque à visita presidencial, chama atenção o
diálogo entre um Colono e Pinga, um pequeno quadro de humor representado por
personagem caipira e um bêbado se equilibrando no poste, sem largar a garrafa de bebida.
O diálogo, que ambos travaram sobre a visita presidencial, foi lacônico:
Colono - O Jango vai dar as terras dos latifundiários pro povo.
ZÉ PINGA: - E ... será que êle vai começar com as dêle?
9
O diálogo entre os personagens reflete o real posicionamento político do jornal em
relação à reforma agrária, objeto de críticas vorazes quando foram propostas as Reformas
de Base.
Na cidade de Dourados, embora considerada um reduto petebista, não havia
sentimentos coesos em relação aos projetos defendidos pelo presidente, uma vez que outras
forças políticas também nela atuavam. Um deles, as Reformas de Base, colocava em
agitação os meios rurais e urbanos. Destacava-se, na oposição, a União Democrática
Nacional - UDN, cujos partidários representavam, em sua maioria, a classe produtora rural.
Convém ressaltar que em Dourados, dentre as entidades civis patronais organizadas, a dos
produtores rurais destacava como uma das mais atuantes.
Os produtores rurais uniram-se numa Associação em 1953, exatamente para lutar
contra “[...] sucessivas invasões de terras particulares [...] com criminoso desrespeito ao
direito de propriedade [...]”.
10
Tais fatos estavam relacionados com o grande contingente de
migrantes que acorreram para a região de Dourados, e nem sempre conseguiam obter a
terra pretendida. Assim, estabeleciam-se pela CAND, causando apreensão aos
proprietários.
8
Ibidem, 22 set. 1963. Vila Brasil foi transformada em município, contudo passou a chamar-se Fátima do
Sul.
9
O Progresso, 22 set. 1963. O quadro de humor continua sendo publicado pelo jornal.
10
Ibidem, 18 jan 1953.
52
É relevante lembrar das restrições sofridas por Jango logo após a renúncia de Jânio
Quadros. Iniciou seu governo em 1961, com poderes restringidos por um sistema
parlamentarista, votado às pressas no Congresso Nacional. Contudo, em 1963, Jango foi
bem sucedido na sua campanha pela volta ao presidencialismo. Após a realização do
plebiscito que acabou com o sistema parlamentarista, o presidente saiu fortalecido pela
votação expressiva que obtivera no seu pleito. Em janeiro de 1963, cerca de 9,5 milhões de
um total de 12,3 milhões de votantes responderam “não” ao parlamentarismo. Retornava
assim o sistema presidencialista, com João Goulart na chefia do governo.
11
De posse de plenos poderes para governar, Jango, que encontrara o país em difícil
situação política, social e financeira, retoma seu projeto Reformas de Base, lançado no ano
de 1962 e cujas propostas:
[...] abrangiam um amplo leque de medidas, entre as quais a reforma
agrária, com o objetivo de eliminar conflitos pela posse da terra e garantir
o acesso à propriedade de milhões de trabalhadores do campo. Para isso
propunha-se a mudança de um dispositivo da Constituição, prevendo a
desapropriação da propriedade por necessidade ou utilidade pública, ou
por interesse social, mas somente mediante indenização em dinheiro.
Como o Estado não tinha recursos para indenizar proprietários a serem
desapropriados, o que inviabilizava a reforma agrária, defendia-se a
mudança da Constituição. Isso permitiria que os proprietários fossem
pagos ao longo dos anos, após a desapropriação, com títulos da dívida
pública.
12
Sendo Dourados uma região nascida sob a “signo da terra”, baseada na premissa da
propriedade, é natural que a possibilidade de perder a posse da terra atemorizasse parte da
população. Em Dourados, como de resto em todo país, uma longa campanha contra as
Reformas de Base de Jango foi deflagrada. O passado populista de Vargas tornou-se o
fantasma que circundou a figura de Jango desde sua posse. Além da reforma agrária, outro
assunto assustava a elite brasileira: a reforma urbana. O projeto Reformas de Base também
defendia a reforma urbana, pelo qual os inquilinos poderiam se tornar donos das casas que
alugavam. A população douradense, que no início do povoamento, havia recebido
gratuitamente lotes rurais e urbanos, pois durante o período de formação da cidade, áreas
rurais e urbanas eram cedidas por aforamento, puseram-se em alerta contra as medidas
pretendidas pelo governo.
11
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Ed. USP, 1999. p. 455.
12
Ibidem, p. 447.
53
Tomar propriedade era coisa de governo comunista, como se difundira
ideologicamente entre os habitantes locais. No imaginário destes, o comunismo era o mais
nefasto dos sistemas de governo, visto que, além da expropriação da propriedade privada,
também proibia o culto religioso católico. Tais realidades tinham acontecido à Rússia e à
Cuba.
O ano de 64 inicia-se com expectativas negativas na região de Dourados. A
imprensa escrita, que há muito vinha combatendo as Reformas de Base de Jango, desta vez
tinha motivos para protestar mais veementemente.
Em setembro de 1962, Jango criara o Conselho Nacional de Reforma Agrária e
logo em seguida, em outubro do mesmo ano, criou o SUPRA Superintendência de
Reforma Agrária, um órgão sem poderes executivos, mas que causou impacto:
A criação do Supra, embora fosse uma medida de cunho parcial e
administrativo, pois o organismo não tinha poderes para decretar ou
mesmo executar a reforma agrária, era uma medida que tinha certo
impacto político. A oposição à Supra foi grande, na medida em que
muitos setores viam nela uma ameaça no sentido da execução da reforma
agrária. Na verdade, a Supra, sem uma Lei de Reforma Agrária efetiva,
pouco poderia fazer – e esta lei dependia de ação do Legislativo.
13
O projeto de reforma agrária pretendido por Jango foi combatido no Congresso,
tendo sido obstruído, inclusive, pelo próprio partido do presidente, o PTB, então aliado ao
PSD. Divergindo na maneira como proceder à reforma, criou-se uma crise entre o
Legislativo e o Executivo, este último pretendia que a reforma agrária fosse aprovada
através de uma Emenda Constitucional, que até o final de 1963, o fora apreciada. A
aliança PTB/PSD foi desfeita, ficando o PSD com a maioria no Congresso, o que acabava
com as esperanças do presidente em ver aprovado seu projeto. A união dos dois partidos
desde 1955, foi abalada pela administração de João Goulart, que:
[...] não conseguindo firmar sua própria liderança no PTB desorganizado,
permitiu que Brizola e a extrema esquerda ganhassem terreno em seu
próprio partido. Isto, por sua vez, levou o PSD se voltar para a UDN
militantemente antijanguista, solapando assim a aliança PSD-PTB, que
era a única esperança de Jango de um apoio legislativo para as reformas.
14
13
SILVA, Hélio. 1964: golpe ou contragolpe? Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1975. p. 178.
14
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 317.
54
Sem apoio legislativo para implementar seus projetos, a solução encontrada por
Jango para realização da reforma agrária veio através do decreto n. 53.700 de 13 de março
de 1964:
Buscando uma medida que pudesse, por seu impacto, conjugar os
esforços em favor de uma reforma agrária, mobilizando a opinião pública
e parlamentar, Jango pede a João Pinheiro que realize um estudo,
juntamente com os órgãos técnicos do SUPRA, no sentido de elaborar um
decreto que propiciasse a desapropriação de terras nas margens das
rodovias, estradas de ferro, ou beneficiadas por obras da União.
15
O decreto, composto de dezessete artigos, previa a desapropriação de áreas rurais
que não atendessem à função social da propriedade, ou seja, terras improdutivas que não
estivessem sendo devidamente exploradas por seus donos. Tais terras, que
preferencialmente deveriam estar localizadas próximas às rodovias e ferrovias federais, e
após a desapropriação seriam divididas em lotes de até cem hectares e vendidas ou locadas.
As famílias mais numerosas de camponeses que estivessem de alguma forma
estabelecidos na região, teriam a preferência na concessão dos lotes.
A repercussão desse decreto em Dourados foi imediata. O deputado federal pelo
PSD, Weimar Torres, na oposição após a aliança desfeita com o PTB, acusou Jango de
espalhar pânico no meio rural e incentivar o comunismo. Proprietário do jornal O
Progresso, em artigo apocalíptico, o deputado desabafou. Dentre várias pregações
contrárias aos projetos de João Goulart, a revolta maior pairou sobre a reforma agrária
pretendida pelo presidente e duramente combatida pela nova frente de oposição PSD/UDN.
Sobre o decreto presidencial, escreveria o deputado Weimar Torres e proprietário do
jornal:
De todas as janguices do Senhor Presidente da República, essa última de
desapropriar as terras situadas ao longo de dez quilômetros das rodovias
federais nos parece mais grave.
Sim, porque quando o Genio do Planalto afiançou que todos os males da
República decorriam do regime parlamentarista, todos concordamos. [...].
Reintegrado o presidencialismo a coisa piorou. O custo de vida disparou.
A inflação atingiu as raias do incrível. As greves se sucederam. As crises
políticas, idem.
Uma nova desculpa era necessária. A Reforma Agrária surgiu. Reforma
Agrária num país onde a maior parte das terras ainda pertence ao
Governo. [...] O governo tem elementos de sobra para distribuir terras
sem reforma constitucional. Não faz porque não quer. O INIC dispõe de
milhões de terras para colonizar. Não coloniza porque o dinheiro é gasto
15
Ibidem, p. 179.
55
com o pagamento de malandros do asfalto que nada entendem de
colonização.
[...] O Congresso resistiu. O PSD, depois de muita conivência tomou
atitude. Tomou brio. Reforma Constitucional para assaltar as
propriedades – não!
Agora, por vingança, por capricho, surge a última janguice. Decreto
desapropriando todas as terras marginais das rodovias. Sejam quais
forem. Seja de quem for. Estupidez elevada à última potência. O Governo
não pode pagá-las. Mas, a desapropriação levará pânico aos proprietários.
A desvalorização das terras atingirá a economia rural. A produção cairá.
A fome aumentará. A miséria se multiplicará. Então o comunismo terá
mais força para sublevar as populações famintas e lançar o país na
ditadura vermelha...
É isso que Jango quer?
Ou o seu famoso decreto de desapropriação é apenas uma cortina de
fumaça para encobrir seu próprio fracasso administrativo?
Deus tenha pena do Brasil!
16
.
As palavras do deputado não foram apregoadas inocentemente. Não resta dúvida
que se trata de um discurso político de oposição ao governo de João Goulart. Trata-se, num
primeiro momento, de dissimular a participação conivente de seu partido político, o PSD,
nas ações do presidente, para, após o rompimento da aliança política, legitimá-lo como
precursor das condições de governabilidade de que o país reclamava, ao não concordar
com as reformas pretendidas por Jango.
No discurso do deputado, as marcas da desqualificação começam pela utilização de
um novo elemento lingüístico, derivado do próprio nome do presidente: janguice. Segue-se
com uma ironia ao chamar o presidente de gênio, conceito contrário ao pensamento do
autor. A figura do mandatário é atacada, pois não importa o regime, se é parlamentarista ou
presidencialista, vez que a situação piora, com o clima de instabilidade econômica e
política, ao que se somavam as greves. Para o deputado, contudo, o elemento desagregador
principal consistia na possibilidade de desapropriação de propriedades, o que significava a
ditadura vermelha.
Suas palavras estão carregadas da ideologia do setor político dominante ao qual
pertencia e o seu grupo social, a elite burguesa. Dois segmentos fundamentais na
construção do golpe de 64, afinados no discurso desqualificador de Jango. Segundo Fiorin:
O discurso não é, portanto, o lugar da liberdade e da criação, mas é o
lugar de reprodução dos discursos das classes e das frações de classe. O
indivíduo não fala o que quer, mas o que as formações discursivas
querem que ele fale. Ele não fala, mas é falado por um discurso. Quando
se diz, porém, que cada classe tem seu discurso, não se pode esquecer
16
O Progresso, 05 jan. 64.
56
que, assim como a ideologia dominante é a da classe dominante, o
discurso dominante é o da classe dominante. Não se exclui,
evidentemente, a possibilidade de o homem forjar discursos críticos,
diferentes, portanto dos discursos dominantes. que o discurso crítico
não surge do nada, mas está previsto numa formação social.
17
É importante ressaltar que os discursos são acompanhados por atividades
estratégicas, criação de instituições, para fazer prevalecer um determinado projeto. É nessa
perspectiva que se pode entender a criação, por exemplo, do Instituto Brasileiro de Ação
Democrática IBAD, que surgiu com o propósito de “defender a democracia”,
supostamente em perigo, assim considerado pelas elites dominantes. O órgão, segundo
instruções contidas em Fundamentos doutrinários da Escola Superior de Guerra, pode ser
classificado como Grupos de Pressão, ou seja aqueles que agem, juntamente com os
poderes constituídos do estado, no sentido de:
[...] influenciá-lo e sempre num sentido fragmentário de atendimento a
um interesse ou reivindicação setorial ou específica.[...] correspondem a
organizações que, tendo papel preponderante em outras Expressões do
Poder Nacional, atuam junto aos órgãos da Expressão Política, buscando
influenciá-los.
Podem-se citar, a título de exemplificação, alguns desses grupos, que, não
raro, apresentam-se subdivididos em subgrupos em intensa competição.
Assim, abstraindo a questão da desejabilidade de suas atuações políticas,
podem-se exemplificar, as atuações, à maneira de grupos políticos, de
atores coletivos como Empresariado, o Sindicalismo, a Mídia, a Igreja, a
Universidade, e, mesmo as Forças Armadas. Essas atuações, cuja
relevância varia de conjuntura para conjuntura, podem chegar à
caracterização de verdadeiros centros de poder político interno, atuando
em interação com órgãos tipicamente políticos, mas com vontade e meios
próprios.
18
A ligação do IBAD com o Congresso nacional deu-se através da criação da Ação
Democrática Parlamentar ADP e partir daí organizou-se por todo país, arregimentando
políticos ou a sociedade civil. Em Mato Grosso, o movimento Ação Democrática Mato-
grossense ADEMAT, sediado em Campo Grande, teve como precursores a família
Coelho, latifundiários udenistas, uma das famílias detentora de grandes extensões de terra
17
FIORIN, Jose Luiz. O Regime de 1964: discurso e ideologia. São Paulo: Atual, 1988. p.16.
18
BRASIL Fundamentos Doutrinários da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: A Escola, 1998. p. 79.
57
no estado. Essa associação surgiu no estado, segundo Demosthenes Martins:
À proporção que a ão solerte dos comunistas avançava no trabalho de
desintegração da democracia, as forças civis e militares se apresentavam
também, para defendê-la. Em Campo Grande a ADEMAT Ação
Democrática Mato-Grossense ganhava prosélitos em todos os escalões
de sua população, preparando-se para a luta, sem distinção de classe e
legendas partidárias.
19
E logo após o golpe, a ADEMAT tornou-se o algoz dos adversários políticos de
udenistas em Campo Grande. Uma de suas vítimas, o ex-deputado Pedro Paulo de Souza
denunciou as ações do grupo em Campo Grande, em versos:
A ADEMAT tornou-se
Um órgão coordenador
Agarrava os comunistas
com muito ódio e rancor
tudo era esmagado
pelo rôlo compressor.
Comandou a ADEMAT
A grande devastação
Agarrando os comunistas
E levou-os prá prisão,
Fazendo muitas proesas
Parecia um furacão.
20
Ainda sobre a ADEMAT, escreveria Demósthenes Martins, anos mais tarde,
quando se referiu às eleições de 1965, em Campo Grande:
[...] na região sul, surgia a candidatura do empresário e destacado
pecuarista Lúdio Martins Coelho, focalizada, especialmente pela
ADEMAT (Ação Democrática Mato-Grossense), organização surgida
para combater a ação comunizante do Presidente João Goulart, inclusive
no campo da luta armada.
21
Em Dourados, o braço da ADEMAT foi constituído em maio de 1963. Emborao
tenhamos encontrado nenhum documento formativo da própria associação, o jornal
anunciou a criação da referida agremiação com a seguinte chamada: “Aclamada Diretoria
Provisória tendo na presidência o Prof. Celso Amaral Vivem os brasileiros um momento
de irrecusável definição: ou defendem suas liberdades e seus direitos ou se agregam à
Legião dos escravos de Moscou”. Segundo a reportagem, a formação da Ademat
19
MARTINS, Demosthenes. A Poeira da Jornada. Rio de Janeiro: Ed. Resenha Tributária, 1980. p. 239.
20
SOUZA, Pedro Luiz de. Verde a Liberdade. Campo Grande: Gráfica Ruy Barbosa, 1965. p. 37.
21
MARTINS, Demosthenes. op. cit., p. 250.
58
douradense se deu a partir da entidade campo-grandense, cujos representantes estiveram
em Dourados, convidando “[...] as figuras mais destacadas da sociedade douradense,
elementos de todos os partidos dispostos a enfrentar a luta contra os maus brasileiros que
não trepidam em ver instalado aqui o mesmo regime sanguinário de Cuba e de Fidel
Castro”.
22
A Ademat douradense foi constituída por Celso Amaral, presidente; Jorge Antonio
Siufi, vice-presidente; Paulo Bucker, 2
o
vice-presidente; Milton Milan, 1
o
secretário; João
da Câmara, 2
o
secretário; José Cerveira, 1
o
tesoureiro; Regina Milan, 2
a
tesoureira. De fato,
membros de vários partidos políticos compuseram a diretoria da entidade, entre eles João
da Câmara, do PTB.
A esta entidade foi criada para combater a infiltração comunista na região. E, de
fato, foi atuante. Segundo as palavras de seu presidente:[...] a Secção de Dourados da Ação
Democrática Matogrossense es em vigorosa atividade, tendo realizado na Quinta feira uma
concentração em Itaporã e sucessivamente fará outra em Vila Brasil”.
23
A entidade foi prontamente aceita nos seguimentos políticos, tanto que consta no
livro de ata VII do legislativo douradense, pedido de votos de congratulações ao senhor
Celso Muller do Amaral, pela fundação da secção de Dourados da Ação Democrática
Douradense.
24
A proposição foi sugerida pelo vereador Ivo Anunciato Cerzósimo e foi
acatada pelos demais.
A comprovação da atuação da organização viria logo a seguir ao golpe, com a
realização de um grande comício em apoio ao golpe e depois, um ano mais tarde, por
ocasião da comemoração do primeiro “aniversário da Revolução”. Em artigo de página
inteira, Celso Muller do Amaral escreveu o “Manifesto da Ação Democrática de
Dourados”, exaltando os feitos do novo governante e dos perigos por que o país passara.
25
Como em Campo Grande, coube à ADEMAT douradense perseguir “comunistas”
locais. Depoimentos colhidos pelo projeto Ressonâncias do Golpe de 64 na Região de
Dourados, apontam o professor Celso Muller do Amaral como um dos participantes mais
ativos do Comando de Caça aos Comunistas CCC, em Dourados. O professor era uma
pessoa muito bem conceituada na cidade. Como diretor do Colégio Estadual Presidente
Vargas, era conhecido pela sua atuação no campo da educação.
22
O Progresso, 05 mai. 1963.
23
Ibidem.
24
Ata da 13
a
sessão da ordinária do ano de 1963, da Câmara Municipal de Dourados, livro VII, p. 60.
25
O Progresso, 31 mar. 1965. p. 239.
59
o ex-deputado Pedro Luiz de Souza aponta outro responsável pelas perseguições
na cidade de Dourados. Para o ex- deputado poeta:
A perseguição aos trabalhadores
Num movimento voraz
As notícias que chegavam
Trazidas pelos jornais,
Tudo era comandado
Pelo ex-prefeito Morais.
26
O poeta refere-se ao ex-prefeito udenista Antonio Morais dos Santos, que governou
o município no período 1955-1959. Desde esse ano, a UDN vinha perdendo as eleições
para o PTB. Em 1959 Vivaldi de Oliveira, do PTB, disputou as eleições com o udenista
João Augusto Capilé Jr. Na eleição seguinte, em 1963, venceu outro petebista, Napoleão
Francisco de Souza, que derrotou o próprio Antonio Morais dos Santos. Nesse pleito
eleitoral, Napoleão buscou ajuda do Exército para garantir as eleições em Dourados,
ocasião em que blindados cercaram o Clube Social de Dourados, garantindo a apuração
dos votos.
27
Por ocasião do golpe de 64, os dois partidos se confrontaram novamente, agora
em condições totalmente desiguais.
Como nas demais cidades do Estado, logo após o golpe, os udenistas passaram a
agir, prendendo e delatando pessoas, principalmente adversários políticos. A repressão
consistia na busca e prisão dos suspeitos de atividades subversivas e,
principalmente, de ativistas comunistas, assim entendidos os partidários do PTB e por
conseqüência, dos Grupos de Onze. Mas segundo os entrevistados do projeto
Ressonâncias do Golpe de 64 na Região de Dourados, não havia comunistas na região.
Algumas pessoas eram identificadas como tal, mas na verdade, tratavam-se apenas de
simpatizantes.
Os comunistas, segundo depoimentos de moradores antigos da cidade, existiam
apenas na imaginação das pessoas. Personagens folclóricos, como por exemplo, o negro
Benedetti, um homem altivo que conquistara respeito da comunidade local, não sem antes
sofrer preconceitos pela cor de sua pele negra e também por ter se casado com uma
mulher branca, filha de uma das antigas famílias residentes na cidade
28
.
26
SOUZA. Pedro Luiz. op. cit. , p. 19.
27
Depoimento de Jamil de Campos Aum , jul. 2003.
28
CAPILÉ JR. História, fatos e coisas douradenses. Dourados: [s/d.], 1995. p. 336.
60
As desconfianças sobre Benedetti fundamentavam-se no fato de o mesmo ter sido
ex-combatente na Coluna Prestes. Chegara a Dourados com a Coluna, quando da passagem
pela região. Homem destemido, era conhecido por Tenente Benedetti, encantara-se por
Olíva Brum, moça alva, branca. Vencendo a contrariedade da família, os dois se casaram e
foram embora. Anos mais tarde, Benedetti voltou à cidade de Dourados, agora na condição
de Delegado especial:
Benedetti (Feliciano Vieira Benedetti), [...] chegou a Dourados como
Delegado especial, com a fama de durão. Todos o respeitavam pela
inteligência e, principalmente, pelo porte atlético, com elevada estatura.
Não se pode negar que quase todos tinham uma certa dose de
preconceito, pois Benedetti era negro, um baita de um negrão, de cerca de
dois metros de altura. Usava uma espécie de uniforme, um jaleco de
tecido grosso, idêntico aos safáris do Jânio e os dolmãs do Stalin, com
grandes bolsos laterais.
29
Por ocasião do golpe, Benedetti não era mais delegado. Mas em razão de seu
passado na Coluna Prestes, todos o tinham como comunista. Os depoimentos colhidos pelo
projeto Memórias de Pioneiros e Ressonâncias do Golpe de 64 na Região de Dourados,
apontam para a existência de pessoas simpáticas ao sistema comunista de governo.
Todavia, uma certa confusão entre os sistemas político e econômico permeiam o
imaginário dessas pessoas.
Da análise da maioria das entrevistas feitas, seja no projeto Ressonâncias... ou
Memória de Pioneiros, quando os entrevistados confirmam a existência de comunistas na
região, complementam seus depoimentos dizendo que tais comunistas reuniam-se
secretamente no grupos de onze. É provável que tivessem absorvido o discurso de
oposição ao PTB. Dona Matilda da Conceição, ex-funcionária da CAND, refere-se a
existência dessas pessoas, como por exemplo de Benedetti, em cuja casa aconteciam
reuniões secretas. Conhecida da família Benedetti, dona Matilda conta que nem mesmo a
mulher de Benedetti sabia do que tratavam nessas reuniões. Segundo ela, muitas pessoas
participavam das reuniões secretas: “[...] Olha, é muita gente que naquela época fazia
reunião na casa do Benedetti, eu falei com a dona Oliva, ela falou: não vai até na sala
que tem gente naquela reunião [...]”.
30
29
Ibidem, p. 335/336.
30
Depoimento concedido a Analina Ferreira, projeto Ressonâncias, 1998.
61
Parentes afirmam que realmente Benedetti era conhecido como simpatizante do
comunismo. Todavia, na década de 50, quando Benedetti retornou a Dourados na condição
de Delegado especial, não seria coerente de sua parte demonstrar essa simpatia.
31
Ademais,
após deixar o cargo, Benedetti requereu terras na região e era então um próspero
fazendeiro. Seu compadre, João Augusto Capilé Jr conta que Benedetti somente deixou de
simpatizar com o comunismo quando ganhou as terras requeridas do governo, o que não
lhe foi difícil dado o cargo que ocupava e as relações de amizade que mantinha na capital
do estado, Cuiabá.
32
Depoimentos de parente e amigo coincidem: Benedetti não era comunista. Podia ser
um simpatizante, mas nunca um ativista, caso contrário não sobreviveria. O controle
ideológico era coisa levada muito a sério na região, desde a Segunda Guerra Mundial. Era
rotina o preenchimento de questionários por parte do Delegado da cidade, para que os
analisasse e respondesse, dando conta das atividades de estrangeiros existentes e de suas
atividades laborais e ideológicas.
Embora não tenhamos localizado nenhum desses questionários relativos à cidade de
Dourados, vários deles encontram-se resguardados no Arquivo Público de Mato Grosso,
em Cuiabá. Tais questionários, compostos de setenta e nove perguntas, eram remetidos
pelo Ministério da Justiça e endereçados aos delegados de polícia das cidades, para
resposta.
Conquanto o controle maior pairasse sobre estrangeiros, disseminava-se entre a
população o temor por certas causas consideradas subversivas. Data de 1943 o questionário
no qual nos baseamos, procedente da Delegacia de Polícia de Maracajú, neste estado. As
perguntas, em geral, versavam sobre possíveis atividades subversivas de estrangeiros
simpáticos aos países do Eixo durante a guerra e, cujas atividades suspeitas pudessem
colocar em risco a segurança nacional. Todavia, algumas perguntas indicam a
preocupação com o controle ideológico interno. Por exemplo, as perguntas de números 42
e 51: “Há, no município, brasileiros manifestantes contrários ao atual regime político
nacional?”; e 51: “Há, no município, elementos suspeitos de professarem idéias
comunistas?”
Sabendo do patrulhamento ideológico existente e tendo sido um delegado de
polícia, não era provável que Benedetti exercesse qualquer atividade considerada
31
Depoimento de Zazi Brum, jun. de 2003.
32
Depoimento de João Augusto Capilé Jr, jun. 2003.
62
subversiva. Contudo, isso não elimina a possibilidade de que fosse simpatizante de causas
sociais.
Outro comunista assumido foi indicado por dona Ercília Pompeu. Segundo ela,
Áureo Garcia Ribeiro, um médico falecido, sempre se declarou comunista. Sem receio
algum declarava: “[...] eu fui comunista, eu sou comunista”. Dona Ercília, uma mulher de
memória prestimosa, não condena o golpe de 64. Comerciante desde os anos trinta, para
ela o regime militar foi bom. Comparando os tempos atuais com os tempos da ditadura,
conclui:
[...] daí veio com o governo militar, reclamava e achava ruim, mas eu não
posso falar, porque eu fazia um pedido para a Pinguim, eu precisava de
tantos quilos de lã, 5 dias depois o caminhão estava descarregando na
minha porta, chegava a mercadoria, a fatura, a duplicata chegava junto e
eu tinha um prazo para pagar e aquilo foi. Terminou o regime militar,
veio o Presidente Collor foi tanta mudança com tanta coisa, mas a gente,
foi a inflação engolindo...
[...] no governo militar a gente vivia sob essa coisa de falta de liberdade,
mas a inflação engolia o que você fazia mas a gente trabalhava,
comprava, vendia e pagava, hoje se você compra o paga porque não
tem como porque o dinheiro vai e não volta e não tem inflação, se que
não?
33
Outros depoimentos afirmam a existência de comunistas na região, todavia o
sabem precisar seus nomes, a não ser aqueles mais folclóricos que assim se denominavam.
Como por exemplo, o Assis Perna de Pau, citado por Sultan Rasslan em sua entrevista.
Antonio Stockler de Assis era baiano e, na descida rumo ao “sul maravilha”, radicou-se
inicialmente na cidade do Rio de Janeiro, em 1918, onde foi ferroviário. Um acidente nos
trilhos tirou-lhe a perna. Sem amparo de leis trabalhistas, perdeu o emprego e veio para
Rio Brilhante, depois para Ponta Porã e finalmente chegou a Dourados. Capilé assim o
descreve:
Seu nome cheirava a europeu, mas ele era baiano, com a cor da pele
puxando aos descendentes da África. Sua voz grave, semelhante à de
Mario Covas, tinha um timbre bastante agradável, que lhe permitia usá-la
nas serenatas, tão comuns na Dourados daquela época.
34
É provável que devido ao fato de Assis ter sido ferroviário e mantido contato com
os trabalhadores das cidades cosmopolistas da época, realmente compartilhasse das
33
Entrevista de Ercilia Pompeu de Oliveira, concedida a Sirlei Regina Beloto, Projeto Ressonâncias, 1996.
34
CAPILÉ Jr. op. cit., p. 269.
63
reivindicações dos sindicatos em favor dos operários, então identificados com a ideologia
comunista, especialmente pelas elites. Assis morreu em janeiro de 1964.
Todos se referem à reuniões secretas, realizadas na calada da noite. Afirmam
também a existência dos Grupos de Onze, células de resistência ao regime, organizadas
pelo petebista Leonel Brizola. Tanto na zona urbana, quanto na rural, buscavam-se tais
grupos. E como esses grupos foram formados no seio do PTB, acreditava-se que todo
petebista era comunista. E sobre eles se lançaram o Comando de Caça aos Comunistas o
CCC douradense. Na cidade, buscaram-se os dirigentes do PTB e, no campo, colonos que
haviam recebido lotes na CAND.
Na verdade, naquele momento, qualquer motivo serviria ao propósito dos inimigos
políticos dos petebistas. A UDN encampou o discurso de defesa da democracia, proposto
pelos “revolucionários” e saiu à cata de subversivos.
Para essa busca, aglutinaram-se outras forças políticas contrárias ao PTB, partido
de Jango e Vargas. O PSD, aliado de outrora, agora inimigo na luta contra a subversão,
contra o “comunismo”; a UDN por sua vez, lutou ferozmente contra os petebistas.
Foi para o dia 21 de abril que tais forças conclamaram o povo douradense a
demonstrar seus sentimentos em relação à “revolução”. Uma data significativamente
simbólica, quando também se comemorava a morte de Tiradentes, herói nacional que lutou
para libertar o país do jugo colonialista. Comemorava-se agora a libertação contra o jugo
comunista, personificado pelo governo de Jango.
Ao tratar do evento, o jornal O Progresso estampou na primeira gina, em letras
garrafais, a manchete: Comício pela liberdade
35
. Organizada pela entidade civil a Ação
Democrática Douradense, movimento de apoio ao golpe, congregou políticos de todos os
partidos, inclusive do PTB. Autoridades militares locais e regionais, representantes das
igrejas católicas e evangélicas, além da presença maciça, segundo o jornal, da população
douradense.
Ocupando o coreto da Praça Antonio João, as autoridades locais transformaram o
ato num grande comício comemorativo, todavia, advertiu Ruy Gomes, representante do
Lions Club:
Que não devemos nós políticos nos valer-se (sic) da vitoriosa revolução,
para tirar proveito em benefício de facções políticas, pois pode isto
desvirtuar o verdadeiro sentido da revolução [...].Cabe aos políticos se
35
O Progresso, 26 abr. 64.
64
unirem e conjugarem esforços em torno do atual governo, para
restabelecer o clima de ordem, paz e trabalho da Pátria Brasileira
36
.
Outros políticos fizeram uso da palavra, homenageando as forças armadas
concitando os douradenses a ficarem vigilantes para a preservação do novo regime.
Todavia, significativo foi o discurso proferido por Napoleão Francisco de Souza, prefeito
da cidade e do partidário do PTB. Ao discursar, elogiou a iniciativa da entidade promotora
do evento e, segundo O Progresso:
[...] o prefeito de Dourados enalteceu, em palavras enérgicas e entusiastas
a Ação democrática douradense, representada pela pessoa do prof. Celso
Amaral, e principalmente a ação Democrática de Campo Grande.
Enalteceu também os relevantes serviços prestados a Dourados pelo sr.
Delegado de Polícia, Capitão Estácio de Azambuja e enalteceu também
todas as autoridades militares e civis que têm demonstrado a sua mais
ampla cobertura democrática.
37
Coube a uma mulher finalizar o comício. A Sra. Maria José, uma senhora humilde,
nervosamente conclamou a “família brasileira a meditar na magnitude dos princípios
democráticos e cristãos.”
A figura da mulher representando a família, e nesse ato, a família douradense, não
foi uma escolha isolada e ao acaso. A figura da dona-de-casa no combate ao perigo
comunista foi uma criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES e do Instituto
Brasileiro de Ação Democrática - IBAD. Segundo Dreifuss:
A escolha da dona-de-casa da classe média como potencial ponta de
lança para o ataque a João Goulart foi de especial importância. Ao fazer
tal escolha o IPES visava diretamente às esposas, irmãs e mães dos
militares, profissionais, comerciários e tecnoburocratas. Era voz corrente
que o IPES teria importado antropólogos e sociólogos, que o orientavam
sobre a grande influência exercida pelas mães e avós na sociedade
brasileira. Parece que os empresários levaram um ano para aprender
como usar técnicas de mobilização das classes médias, mas uma vez
aprendidas, elas se tornaram “um rolo compressor que não parava”.
38
Esse discurso foi facilmente assimilado no estado e na cidade, seguindo o caminho
traçado pelo IPES/IBAD. Demósthenes Martins, ao se referir ao golpe de 64, associa a
vitória da democracia brasileira, cuja origem deve ser creditada às [...] preces cristãs da
36
Ibidem.
37
Ibidem.
38
DREIFUSS, Armand René. op. cit.
65
mulher brasileira, nas ruas e praças públicas [...]”.
39
Em Dourados, a presença da mulher
teve o mesmo significado.
Ao comício seguiu-se uma passeata pelas ruas da cidade. Um movimento
magnífico, marcado pela presença maciça do povo de Dourados, como também pelas
autoridades militares de outras cidades, como o Coronel Câmara Sena, procedente de
Campo Grande, que representou as forças militares, “vindo especialmente para o magno
comício”.
Uma pequena nota associava o comício de Dourados ao grande comício realizado
na cidade do Rio de Janeiro logo após o golpe, em apoio à revolução e em resposta àquele
realizado por Jango, no mês anterior. Noticiou o jornal sob título A MARCHA DA VITÓRIA:
Com o Marechal Gaspar Dutra a frente de um milhão de pessoas, a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade partiu da concentração, em
frente à Igreja da Candelária, no Rio de janeiro, às 16 horas do dia 2
seguindo pelas avenidas [...].Era a resposta do povo carioca, décuplo, ao
comício das reformas, realizado, vinte dias antes, na Central do Brasil.
Hinos nacionais eram cantados pela compacta população ao mesmo
tempo que bandeiras brasileira e faixas alusivas a vitória democrática
tremulavam acima das massas. 19 dias depois Dourados também dava a
sua demonstração de fé democrática promovendo uma gigantesca
concentração cívica, também com uma espetacular passeata pela Av.
Marcelino Pires. Assim como foi em São Paulo, Minas e em todo
Território brasileiro.
40
Embora a cena do comício-passeata tenha sido entusiasticamente narrada pelo
repórter do jornal, alguns entrevistados não confirmam sua realização. A afirmação de que
não houve tal passeata foi feita por Sultan Rasslan, que à época, era radialista numa
emissora de rádio local. Durante o ano de 64, foi detido catorze vezes pela polícia local.
Segundo Rasslan:
Em vários lugares aconteceu esta passeata. Em Dourados não. O que
aconteceu em Dourados ficou no dia primeiro de abril, foi que estas
pessoas saíram correndo de suas casas, em suas camionetes correndo
atrás de comunistas, invadindo residências, prendendo pessoas, eles
tinham poder [...].
41
As lembranças do entrevistado nos encaminham para a discussão teórica que
balizam os conceitos de história e memória. Os acontecimentos comentados por Sultan
ocorreram quase quarenta anos, trata-se de um período nefasto na sua visão, mas que
39
MARTINS, Demosthenes, op. cit., p. 15.
40
O Progresso, 26 abr. 64.
41
Entrevista de Sultan Rasslan, concedida ao prof. Wilson Valentin Biasotto, Projeto Ressonâncias, 1996.
66
ainda lhe causa revolta. Some-se a isso as catorze detenções sofridas. Percebe-se, pelo seu
depoimento, um desejo imperioso de desautorizar os “revolucionários” de 64, e neutralizar
suas ações. Não que queira esconder os fatos como se passaram, mas inconscientemente
“seleciona” as imagens do passado que deseja perpetuar no presente. Le Goff, ao discutir a
capacidade mnemônica, considera a memória humana como um resultado de sistemas de
organização de informações.
Os fenômenos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos como nos
psicológicos, mais não são do que resultados de sistemas dinâmicos de
organização e que apenas existem “na medida em que a organização os
mantém ou os reconstitui”.
42
As perturbações da memória, prossegue Le Goff, não significam simplesmente
problemas de personalidade do indivíduo, “mas também a falta ou a perda, voluntária ou
involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações que pode determinar
perturbações graves da identidade coletiva.
43
A memória propriamente dita é algo inalcançável, afirma Tania Maria Fernandes,
pois
[...] configura-se como a construção de uma determinada vivência a partir
da memória. Durante o processo de rememoração o depoente estabelece
relações entre suas próprias experiências que o permite reconstruir seu
passado segundo uma determinada estrutura, consciente ou não. É o tecer
de uma teia na qual suas vivências vão sendo reorganizadas,
proporcionando a cada ato de rememorar uma nova construção através de
um determinado encadeamento de idéias, estruturado pela valorização
simbólica de sua própria personalidade [...] não se constituindo, no
entanto, seu conteúdo puro.
44
Outra forma de manifestação favorável ao golpe em Dourados foi a campanha
“OURO PARA O BEM DO BRASIL”. Tratou-se de uma campanha desencadeada a partir
da cidade de São Paulo, uma iniciativa das mulheres paulistanas, as mesmas que, aliadas à
Igreja Católica, fizeram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Uma campanha de
iniciativa dos Diários Associados
45
que deu início a arrecadação de ouro para servir de
lastro à nossa moeda, fortalecendo-a no combate à inflação.
46
A campanha teve no
42
LE GOFF, Jaques. História e memória. São Paulo: Editora UNICAMP, 1996. p.424.
43
LE GOFF, Jaques. op. cit., p. 425.
44
FERNANDES, Tania Maria. Edição de entrevistas: da linguagem falada à escrita. In: MONTENEGRO,
Antonio Torres. FERNANDES, Tania Maria. História Oral: um espaço plural. Recife: Universitária/UFPE,
2001. p. 92.
45
Empresas de comunicação de Assis Chateubriand.
46
O Progresso, 17 mai. 64.
67
presidente Castelo Branco seu principal ícone. O Progresso, ao iniciar a campanha em
Dourados, publicou:
O presidente Castelo Branco visitou São Paulo dia 21 p. passado onde
entregou uma medalha de ouro em colaboração com a campanha do ouro
iniciada em São Paulo, no ato recebeu a aliança simbólica com os
seguintes dizeres: “Dei ouro para o bem do Brasil 1964”. Estas alianças
estão sendo distribuídas pelos Diários Associados para todos os
contribuintes de ouro e dinheiro, na capital.Segundo informações uma
organização perfeita promovida pelos Diários Associados. Várias
senhoras da sociedade paulista colaboram com essa iniciativa, bem como
os próprios funcionários do governo. Os contribuintes têm ampla
cobertura por televisão, rádio e jornal, comprovando todas as
contribuições.
47
Logo a seguir, instituiu-se a campanha na região de Dourados. Na edição de 07 de
junho de 1964, O Progresso conclamava a população de Dourados e região a colaborar
com a campanha “Ouro para o bem do Brasil”, de iniciativa da entidade civil Lions Club
de Dourados, com a colaboração de Wlademiro Amaral que intermediou a adesão de
Dourados junto aos Diários Associados. Concitando todos os patriotas a doar ouro e
dinheiro. Segundo os organizadores, o ouro seria depositado na agência do Banco do
Brasil, em nome do Tesouro Nacional.
48
A campanha era incentivada com publicações em jornais sobre as novas adesões,
como por exemplo, a iniciativa dos componentes do 16
o
Batalhão de Caçadores, sediado
em Cuiabá que se dispuseram a doar um dia de salário para a campanha OURO PARA O
BEM DO BRASIL, com indicações de que outras entidades estavam aderindo a
campanha.
49
A atitude dos militares foi imediatamente assimilada por douradenses. Funcionários
de uma farmácia da cidade também se prontificaram a doar um dia de salário para a
campanha. Uma atitude louvável a ser imitada por todos, segundo o jornal.
50
Várias foram as publicações sobre a campanha. Além das notícias sobre a
arrecadação que era feita pelo país, o jornal também nominava os contribuintes da cidade e
região de Dourados, incentivando e, ao mesmo tempo, induzindo novas adesões à
campanha. Diariamente, o jornal publicava uma relação nominal de doadores, indicando a
quantia em dinheiro ou o peso em ouro. Professores, comerciantes, fazendeiros,
47
O Progresso, 31 mai. 64.
48
O Progresso, 07 jun. 64.
49
Ibidem.
50
O Progresso, 21 jun. 64.
68
trabalhadores de todas as categorias tinham seu nome publicado, com a indicação de suas
profissões e importâncias doadas.
Os estudantes douradenses prestaram amplo apoio ao golpe de 64. A única
agremiação de estudantes existente em Dourados, a Associação Douradense de Estudantes
ADES- congregava filhos das famílias mais influentes da cidade. A manifestação
estudantil ocorreu no dia 19 de abril de 1964, realizando um comício e uma passeata pela
cidade. Segundo o jornal:
Os estudantes de todas as escolas reuniram-se e ofereceram um
espetáculo quase inédito, realizando um comício em prol da democracia.
O presidente da ADES (Associação Douradense dos Estudantes
Secundários) José Paulo Teixeira [...] com auxílio dos estudantes
Aldomir Carvalho, Jacy Alves de Lima, Emar Rodrigues, Luiz Carlos
Deirane e outros, conseguiram também a “fanfarra”do Ginásio
Estadual para promover a passeata.
51
Nos discursos dos estudantes, o amor ao país, a defesa da democracia e da liberdade
foi atributo de patriotas que lutaram “[...] por um porvir vitorioso do Brasil. Muitos
entregaram suas vidas, como o heróico e exemplar Tiradentes que morreu na esperança de
que mais cedo ou mais tarde o Brasil fosse uma terra livre.”
52
A figura de Tiradentes, nos discursos, foi associada ao novo herói, a do presidente
Castelo Branco, que livrou o país do perigo comunista. Mas, Tiradentes teve um traidor,
acrescenta o estudante, e era preciso que, naquele momento do golpe, “[...] Cada um de nós
cuide para não ser um Silvério dos Reis dos nossos dias que não seja um traidor que
entregue a Pátria nas mãos de tantos outros traidores, falsos pregadores da liberdade.”
53
Um ano depois, também por ocasião da comemoração do primeiro aniversário do
golpe, o presidente da entidade fez publicar, no jornal O Progresso, o manifesto da ADES
posicionando-se francamente favorável ao novo regime. Segundo ele, “os estudantes não
podem ficar indiferentes aos que procuraram vender-nos aos países comunistas....o novo
presidente sintetiza todas as esperanças do povo brasileiro.”
54
Algumas lembranças de Sultan Rasslan novamente nos indicam o caminho para
acompanhar as ações estudantis na cidade. Na sua luta contra o funcionamento de um
51
O Progresso, 19 abr. 1964.
52
Ibidem.
53
Ibidem.
54
Ibidem.
69
cassino ilegal na cidade, na década de 60, o obtendo colaboração junto às autoridades
locais para o seu fechamento, Rasslan procurou ajuda na ADES, mas não obteve. Segundo
70
ele, o presidente da entidade, José Paulo Teixeira era amigo do delegado, o mesmo a quem
ele recorrera, razão talvez porque tenha se negado a tomar qualquer posicionamento a
respeito ao fechamento do cassino: “O presidente da ADES tinha comprometimento com
autoridades policiais. Ele era muito amigo do delegado de polícia na época”.
A ADES, criada desde a implantação da escola técnica Oswaldo Cruz, na década de
50, era um movimento estudantil isolado. No início da década de 60, discutia-se sua
inserção junto a UNE, a União Nacional de Estudantes, fato que nunca ocorreu.
Se, de um lado não houve resistência ao golpe por parte dos estudantes, o mesmo se
pode dizer dos professores, pelo menos nesse primeiro momento. Em junho de 64 os
professores se reuniram e o teor da reunião foi resumido pelo O Progresso dessa forma:
Teve a mais alta repercussão nos meios políticos e sociais a reunião dos
professores de Dourados, convocada pelo prof. João Ramão Araújo, no
Sábado, dia 30 de maio passado. Altas autoridades estiveram presentes,
além de um bom número de professores. O Revmo sr. Bispo Diocesano
de Dourados, D. Carlos Schmit, o DD. Dep. Antonio Alves Duarte, o
prof. Celso Amaral, os diretores do Colégio Comercial Santos Dumont,
representante da diretora da Escola Normal, vários diretores de outras
escolas. A reunião foi promovida com o sentido patriótico de promover
uma orientação a todos os professores de Dourados, tendo ficado
programada uma reunião mensalmente, onde conferências serão
apresentadas, visando sempre a orientação cristã, democrática e técnica
dos professores. Como primeiro conferente foi escolhido o prof. José
Pereira Lins.
55
Na mesma página do jornal, a conversa divertida entre Colono e Zé Pinga, pequeno
quadro de humor do jornal, existente até os dias atuais. Nela, Colono confirma sua
presença na reunião dos professores, ao que acrescenta Pinga: E não se esqueça
também de colaborá com ouro para o bem do Brasil!
Enquanto parte da população se envolvia nas campanhas “pró-revolução”, uma
outra parte passava a ser alvo de investigações, vigilância e prisões, pois era vista como
suspeita de atividades subversivas. É do que tratamos no capítulo seguinte.
55
O Progresso, 07 jun. 64.
71
Flagrantes da visita do Presidente João Goulart a Dourados, 1963.
Fonte: MOREIRA, Regina Heloiza Targa. Memórias Fotográficas de Dourados .Campo Grande:
UFMS,1990
Acervo do Centro Documentações Regional, - UFMS
O presidente foi recepcionado por autoridades no aeroporto da cidade, que o acompanharam em passeata pela
Avenida Marcelino Pires.
72
73
Comício na Praça Antônio João, João Goulart se
dirige à população Douradense.
O prefeito de Dourados, Napoleão Francisco de
Souza e João Goulart.
Recepção ao presidente na casa de Napoleão. Napoleão Francisco de Souza, João Goulart e o
governador do MT, Fernando Correa da Costa.
Diploma conferido durante campanha OURO PARA O BEM DO BRASIL, na cidade de Osvaldo Cruz SP .
O comprovante acima pertence ao empresário paulista Jairo de Osti, radicado em Dourados desde a década
de 70. À época o empresário tinha apenas dez anos de idade, era de família humilde mas queria ajudar a
revolução. Pediu dinheiro ao pai e entrou na fila de doações. Conta que, aos que doavam ouro era conferido
um anel simbólico, como sua doação foi o dinheiro, recebeu apenas o diploma. O diploma é assinado pelo
Juiz de Direito e pelo Presidente do Rotary Club.
74
CAPÍTULO III
PATRULHAMENTO SOBRE OS SUSPEITOS E A RESISTÊNCIA
POSSÍVEL
“Sofri, fui preso, foi seis policia me peem casa,
me prendero e falaram que ia me matá, me jogá no
rio...me mandá prá Cuba...minha família tudo foi
perseguida e vigiado demais...nunca fui preso ...
minha vida é trabalhá em lavoura...onde se
colhia 200 e 300 saco de feijão, então uns home
desse for comunista, então comunista é bom...”
Noel Bernardo da Silva, ex-colono da CAND
A elaboração do campo de apoio ao golpe militar de 64, que muito vinha sendo
construída, além dos setores dominantes, envolveu grande parte da sociedade. Por outro
lado, significou a identificação dos adversários ao serem combatidos, assim recaiu a
punição sobre os que, direta ou indiretamente haviam apoiado o projeto político do
Governo Goulart. Paralelamente à mobilização de manifestação de apoio, efetivou-se a
caça aos suspeitos.
Esse momento de perseguição política aos adversários não foi objeto de notícia,
produção de artigos ou reportagem na imprensa local. O silenciamento é relevante,
possível estratégia para não causar maior insegurança, legitimar e ampliar o apoio ao novo
governo. Somente, quase três meses após o golpe, na edição de 24 de junho de 1964, é que
começaram a ser publicadas as notícias de prisão de inúmeras pessoas. Todavia, não se
tratavam de matérias jornalísticas, mas de notas oficiais, intituladas “Declaração”,
assinadas pelo Cel. Alfredo Aristarcho Leygrand Marquesi, do 11
o
R.C. Consta nas
mesmas que a detenção dos suspeitos ocorreu para que fossem “submetidos à averiguação
sobre suas atitudes e participação, tendo sido postos em liberdade por não ter sido apurado
até agora que estivessem participando de forma comprometedora de tal tipo de atividades
[...]”.
1
Entre os detidos constou o nome do ex-vereador Gumercindo Bianchi, cujo mandato
legislativo fora cassado na noite de 19 de abril de 1964.
Entretanto, encontramos narrativas de prisões e perseguições, de natureza variada,
que ocorreram imediatamente após o golpe, registradas em entrevistas concedidas ao
Projeto Ressonância do Golpe de 64 e Memória de Pioneiros. Estas são depoimentos
daqueles que as sofreram e as carregam bem vivas na memória. Conforme Sultan Rasslan,
um dos entrevistados, no dia seguinte ao golpe, pessoas da comunidade saíram em seus
carros à caça de comunistas.
Várias entrevistas analisadas dão conta de inúmeras prisões, principalmente de
pessoas ligadas ao PTB e também de colonos residentes na CAND ou ainda na cidade de
Itaporã, então distrito de Dourados. Entre outros aspectos, comentaram a existência dos
Grupos de Onze.
Na verdade, os Grupos de Onze tratavam-se de uma estratégia de resistência
coordenada por Leonel Brizola que, desde a renúncia de Jânio Quadros, organizara uma
extensa rede de apoio a João Goulart. Para garantir a posse de João Goulart e com o apoio
do III Exército, sediado no Rio Grande do Sul, Leonel Brizola declarou-se disposto a pegar
em armas para garantir respeito à Constituição e passou a exigir seu cumprimento, diga-se,
a posse do vice-presidente eleito. Organizou uma rede de emissoras de rádio, denominada
de Cadeia da Legalidade, ganhando apoio da opinião pública.
Enquanto Jango tardava a implantação das Reformas de Base, Brizola organizou
seus partidários com a missão de pressionar o presidente pelas Reformas. Exigindo a
imediata implantação dessas reformas, Brizola percorria o país organizando seus
seguidores, partidários do PTB, em Grupos de Onze, facções semelhantes às células
comunistas. Passou a exigir, com urgência, a implantação das Reformas de Base: “na lei ou
na força”. Esses grupos eram armados e estruturados em seus locais de moradia e trabalho
para as atividades políticas radicais, emanadas por Brizola através das emissoras de rádio.
2
A melhor descrição da resistência brizolista está contida no IPM contra Leonel
Brizola, instaurado em 1964 e concluído em 1968. O inquérito foi descrito em Revolução
1
O Progresso, 24 mai. 64.
2
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1999, p. 64.
74
de 1964: a versão e o fato, livro escrito pelo general Adolpho João de Paula Couto.
Segundo o autor, Brizola formou e comandou esses grupos dentro do seu partido, o PTB:
Em outubro de 1963, Brizola achava que o Brasil estava vivendo
momentos decisivos e que, rapidamente, se aproximava o desfecho
almejado. Sucessivamente, em 19 e 25 de outubro, fez pronunciamentos à
Nação, através dos microfones de uma cadeia de estações de rádio,
liderada Mayrink Veiga [...].
Nesses pronunciamentos, eivados [...] de metáforas e redundâncias,
Brizola conclamou o povo a organizar-se em grupos que, unidos, iriam
formar o ‘Exército Popular de Libertação’. Comparou esses grupos com
equipes de futebol, e os 11 ‘jogadores’seriam os ‘tijolos’para ‘construir o
nosso edifício’. Estavam lançados os Grupos dos Onze (G-11) que, em
sua cabeça megalomaníaca, seriam o seu exército particular. Os
documentos encontrados posteriormente nos arquivos pessoais de
Brizola, revelaram os planos para a formação dos G-11 e do Exército
Popular de Libertação. Como todo o discurso ‘brizolista’, esses
documentos possuíam uma linguagem incisiva, mas primária, dramática,
mas demagógica. O documento mais hilariante, se não fosse trágico, era o
das ‘Instruções Secretas’, assinadas por um ‘Comando Supremo de
Libertação Nacional’. Inicia-se por um ‘preâmbulo ultrasecreto’, onde
consigna que a morte pesaria sobre aqueles que revelassem os segredos
dos ‘Grupos dos Onze’. ‘O compromisso de resguardo deve ser um
tanto solene, para impressionar o companheiro, devendo, antes, verificar
as idéias desse soldado dos G-11, a fim de que sejam selecionados ao
máximo, os autênticos e verdadeiros revolucionários, os destemerosos da
própria morte [...]’ (das Instruções Secretas). Os G-11 seriam a
‘vanguarda avançada do Movimento Revolucionário”, a exemplo da
‘Guarda Vermelha da Revolução Socialista de 1917 na União Soviética’.
Defendendo a tese de que ‘os fins justificam os meios’, faz veladas
ameaças sobre os futuros atos dos G-11: ‘em conseqüência, não nos
poderemos deter na procura de justificativas acadêmicas para atos que
possam vir a ser considerados, pela reação e pelos companheiros,
sentimentalistas, agressivos demais ou, até mesmo, injustificados’.”
[...] Sobre a tática a adotar pelos G-11, culminado as ões iniciais,
continuam as Instruções: “desses pontos e à sombra da massa humana,
deverão convergir os G-11 especializados em destruição e assaltos,
comandando os companheiros e com outros se juntando pelas ruas e
avenidas, para o centro da cidade, vila ou distrito, de acordo com a
importância da localidade, depredando os estabelecimentos comerciais e
industriais, saqueando e incendiando os molotovs e outros materiais
inflamáveis, os edifícios públicos e os de empresas particulares.”
3
A partir desse entendimento preliminar, é possível concluir que as prisões ocorridas
após o golpe de 64, deram-se em face da resistência que esses grupos poderiam oferecer ao
novo regime. De fato, o que se pode constatar nas entrevistas concedidas para o projeto
3
COUTO, Adolpho João de Paula. A Revolução de 1964: a versão e o fato. Porto Alegre: Gente do Livre,
1999, p. 91,92.
75
Ressonâncias do Golpe de 64, é que as prisões, na maioria, envolviam partidários do PTB
e que teriam ligações com os Grupos de Onze.
Especificamente sobre as ações dos Grupos de Onze, é interessante observarmos
que parte da imprensa nacional teria considerado como fantasiosas o caráter de guerrilha
atribuído às mesmas. No livro O golpe de 64: a imprensa disse não, sobre a apreensão de
documentos de instrução do grupo em Nova Iguaçu, assinados por um certo “Comandante
Supremo”, com claras intenções de incriminar Leonel Brizola, Thereza Alvin reproduziu
nota do irreverente jornalista Rubem Braga, publicada no Jornal do Brasil em 17 de julho
de 1964. Diz a nota:
[...] O documento é impressionante [...] pela tolice de quem o redigiu. Ali
se diz que a burguesia nacional será aliada do movimento, e “nós a
apoiaremos após a vitória”, mas também se ordena que sejam
incendiados, além dos edifícios públicos, os estabelecimentos comerciais
e industriais. Isso sem falar em plantações, celeiros, depósitos de cereais
e armazéns gerais. Fogo em tudo! E viva a burguesia!
Ministro Costa e Silva: o Sr. Deve mandar prender quem descobriu esse
documento. Ou encarregar alguém mais inteligente de forjar um outro. O
Sr. Brizola era um espiroqueta vermelho, mas nunca um débil mental.
Marechal Castelo Branco: baixe uma ordem para parar esse fabrico de
planos cohens chineses ou nacionais, que comprometem não apenas a
honra como a inteligência das Forças Armadas [...].
4
Segundo Gorender, por ocasião do golpe de 64, os Grupos de Onze chegavam a 24
mil militantes em todo país, todavia, nada se sabia de sua estratégia de ação. Quanto à
atitude de Brizola que, em 31 de março, tomara a capital do estado do Rio Grande do Sul,
sob proteção do III Comando do Exército, afirma que cometeu um erro estratégico: “[...]
não fez o que podia consolidar a frente antigolpista: a instalação de um governo provisório
alternativo na capital do Estado”.
5
Na região de Dourados, as prisões que se seguiram ao golpe, buscavam exatamente
detectar a presença de adeptos de Brizola e de seus supostos grupos de guerrilha.
Depoimentos dos entrevistados, presos por ocasião do golpe em Dourados, evidenciam
essa preocupação. Atílio Torraca Filho, membro do diretório do PTB, conta que, logo após
o golpe, ao saber que seria preso, ausentou-se da cidade e quinze dias depois retornou,
4
ALVIM, Thereza Cezário. O golpe de 64: a imprensa disse não. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979, p. 200.
5
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1999, p. 134.
76
apresentando-se à polícia. A seguir foi intimado a depor no quartel do Exército, na cidade
de Nioaque. Foi com seu próprio carro e chegando ficou à disposição do Coronel
Nicanor de Sá:
[...] faço questão de frizar (sic) o nome, chegando para depor, ele
convidou a ser seu hóspede e recolheu meu carro, era uma Kombi velha
[...] fiquei nove dias sem saber se estava preso ou se era realmente um
hóspede do senhor coronel e depois de nove dias ele sempre alegando
que seu escrivão titular que se encontrava estado de inteligência (sic)
depois de nove dias ele voltou e mandou o escrivão por (sic) um papel na
máquina [...] me fez duas perguntas, uma delas me perguntou se eu
era comunista. Depois de duas perguntas, ele me dispensou.
6
As duas outras perguntas, embora não constem em sua entrevista, foram: É
petebista? É do Grupos de Onze? Torraca costuma dizer que respondeu apenas um sim:
era petebista.
7
A mágoa de Torraca contra o regime militar fundamenta-se na perseguição imposta
contra petebistas, pessoas que, segundo ele, apenas trabalhavam em prol da implantação
das Reformas defendidas por Brizola. Junto aos demais membros do diretório municipal,
mantinham subdiretórios do partido nos distritos e na antiga CAND onde:
[...] traçávamos planos para administrar dentro do móveis (sic)
democrático, dentro daquilo que era permitido por lei, no entanto, veio o
golpe de 64 e taxou-nos de subversivos, de comunistas, de porção de
coisa qual realmente não era.
8
Nas reuniões discutiam-se abertamente as condições de trabalho, a participação do
empregado nos lucros das empresas, planos para implantar a reforma agrária, assuntos que
naquela época eram considerados subversivos, bem ao contrário de hoje, afirma Torraca.
Ainda segundo o entrevistado, o modelo de reforma agrária foi a CAND, implantada por
Getúlio Vargas: “[...] a nossa Colônia Agrícola Nacional de Dourados, implantada em
1943, por Getúlio Vargas que foi uma demonstração verdadeira de reforma agrária.”
O golpe de 64 atingiu principalmente o PTB, porque este partido:
6
Entrevista de Atilio Torraca, concedida a Analina Ferreira, Projeto Ressonâncias do golpe de 64 na região
de Dourados, 1996.
7
Durante o período de verificação das fontes para esta pesquisa, estivemos na unidade do exército da cidade
de Nioaque, para confirmar a prisão de Torraca, todavia, nada nos foi confirmado. Não havia nenhum
documento do período arquivado e o nos informaram aonde poderíamos localizar. Tampouco souberam
informar onde poderia estar. Tivemos confirmação apenas do comandante da unidade no ano de 64, coronel
Nicanor de Sá, que confere com as informações do entrevistado.
8
Entrevista de Atílio Torraca op. cit.
77
[...] foi um partido que cresceu, nasceu da massa, cresceu e em 64 se
destacava com maior número de parlamentares[...] seguido pelo PSD e
UDN, que eram realmente nossos adversários então em função do
trabalhismo empregava um socialismo democrático, pregava naquela
época o socialismo democrático [...] então em função disso o PTB foi o
alvo da revolução de 64 feita por militares, mas que gera um respaldo
dos civis pertencente quase todos da antiga UDN e também do PSD.
9
Torraca refere-se ao Comando de Caça aos Comunistas, o CCC douradense, como
composto por elementos civis, tais como Celso Muller do Amaral e Dalmário Vicente de
Almeida, ambos citados por diversos entrevistados. Na cidade de Itaporã, o CCC foi
coordenado por Dalmário. Seu modo peculiar de forçar cooperação ao seu intento era o de
ameaçar as pessoas do lugar a caçar e prender “comunistas” sob pena de serem
considerados como tais, caso se recusassem a fazê-lo. Os colonos eram presos e trazidos
para a delegacia de polícia de Dourados. Um dos entrevistados, Aurenô Cordeiro, vereador
em Itaporã à época do golpe, conta que Dalmário:
[...] chegou em Itaporã e disse: quem for a autoridade que não prender
os comunistas, vai ser preso, citou um exemplo, que em Dourados
tinha sido preso um promotor, tinha sido preso mais alguém, que eu não
lembro e foi aquele comentário muito grande, então nesse dia um dia
após que estourou a revolução, nós começamos ir atrás daquelas
pessoas, que naquela época realmente houve um movimento em Itaporã
chamado “grupo dos Onze”. Nesse grupo de onze teve algumas pessoas
que tomou parte desse grupo e disse que esse pessoal estava se
organizando para tomar conta do Brasil [...]. Então nós fomos atrás
dessas pessoas.
10
Conforme se verifica no depoimento do ex-vereador, todos os petebistas eram
denominados de comunistas, ligados aos Grupos de Onze liderados por Leonel Brizola.
Segundo ele, incitados por Dalmário, vários civis saíram à procura dos partidários de
Brizola. Foram presos os petebistas Ricardo Francisco da Silva, Alberto Carneiro,
Francisco Moreira, Batista Targino além de outros dos quais não se lembra. Todos faziam
parte dos Grupos de Onze, alguns eram seus chefes. Eram pessoas conhecidas na cidade,
pois defendiam abertamente a implantação da reforma agrária, assunto de comunista.
A fama de comunista acompanhou as pessoas até a morte. Apesar de compadre de
Batista Targino, Aurenô Cordeiro conta que, após o golpe, o amigo e compadre mudou-se
para o norte do país, onde foi assassinado por ter invadido terras. A família contesta e
9
Entrevista de Atílio Torraca, op. cit.
10
Entrevista de Aurenô Cordeiro, concedida a Marilene Aguero Rivarola. Projeto Ressonâncias, 1996.
78
afirma que Batista Targino realmente mudou-se para o norte, precisamente para o
Amazonas, onde comprou terras e morreu de malária.
Ainda na cidade de Itaporã, antiga Colônia Municipal de Dourados, também os
colonos foram perseguidos e presos. Pessoas simples, todavia simpatizantes de Brizola,
como o leiteiro José Veríssimo de Oliveira, casado, e pai de três filhos pequenos. A viúva,
dona Valdeci, conta que o marido foi preso logo após o golpe porque admirava o partido
trabalhista, mas não fazia parte de nenhum movimento subversivo. O marido foi preso no
dia seis de abril quando colhia arroz na roça da família, na Colônia Santa Terezinha,
distrito da cidade.
Segundo a viúva, a família tinha um aparelho de rádio e o marido não perdia um
programa da rádio Mairink Veiga. O marido gostava de ouvir o programa de Brizola e acha
que foi um vizinho que o denunciou: Sei que morava vizinho com a gente e ajudou a
incriminar ele, dizer que ele era comunista, porque não perdia um programa daquele e
então, por isso, ele foi preso. Ficou trinta e seis dias preso.
11
A polícia prendeu o marido na roça e invadiu a casa na cidade, em busca de armas
que, segundo a polícia, o marido mantinha em casa, primeiro para matar a própria mãe e
depois as crianças da casa. E também uma metralhadora e um cheque de duzentos mil
cruzeiros que o Leonel Brizola tinha enviado. Na busca, reviraram toda casa, jogando os
pobres pertences no chão e pisando em tudo.
Truculentos, acusavam também a viúva de comunista e perguntavam por livros
comunistas. Acharam apenas uma folhinha de final de ano, uma paisagem campestre, com
cavalos e crianças, guardada no fundo de uma mala, para quando a casinha que construíam
ficasse pronta. O policial confiscou a folhinha, alegando ser um material comunista. Além
da folhinha, a viúva lembra de um jornal que o marido assinava, e que falava de reforma
agrária.
Durante o período em que José Veríssimo esteve preso em Dourados, dona Valdeci
visitou-o diariamente. Vinha trazer comida de marmita. Segundo ela, muitas pessoas
estavam presas:
[...] tinha políticos, tinha advogado, tinha muita gente de posição
preso junto com ele também, inclusive de Fátima do Sul [...].Mas sei que
tinha muita gente de posição, preso junto com meu marido, as
esposas deles também iam lá visitar eles. Depois que chegava lá tudo era
bem recebido, só teve um dia que a gente tava na sala de espera e
11
Entrevista de Valdeci Duarte de Oliveira, concedida a Valter Acásio de Melo. Projeto Ressonâncias, 1996.
79
chegou um policial lá e falou assim: eu não sei que tanta mulher bonita,
não sei que elas acharam naqueles[...], em casar com aqueles queixadas,
esse rebanho de queixada.
12
O policial foi repreendido por um outro, talvez de patente superior: ele estava ali
para manter a ordem, não para fazer desordem. Ao ser repreendido, entregou o fuzil e saiu
da sala quietinho.
Sobre a vida, após a volta da prisão, dona Valdeci lamenta o prejuízo: o marido
perdeu a roça de arroz já plantada. Não achava ninguém para ajudá-lo na colheita: ninguém
queria trabalhar para um comunista. A família toda foi discriminada, acusada de
comunista, não tinham apoio de ninguém, pois as pessoas não queriam se envolver com
comunistas. Todos se afastaram, temendo serem associados aos suspeitos da região.
Esse clima de identificação com subversivos alastrou-se como uma psicose na
região, motivado pela fala do udenista Dalmário Vicente de Almeida, para o qual, quem
não denunciasse comunista seria considerado como tal. Era preciso caçá-los em toda
parte.
13
em Dourados, na região da CAND, vários colonos também foram presos. Todos
petebistas acusados de comunistas e de participação nos Grupos de Onze.
Noel Bernardo da Silva, dono de lote da colônia, conta que seu pai e irmãos foram todos
presos, denunciados por conhecidos e vizinhos acusados de pertencer aos Grupos de
Onze, porque eram partidários do PTB. Ao se lembrar do período, Sr. Noel desabafou:
Sofri, fui preso, foi seis polícia me pegá em casa, me prendero e
falaram que ia me matá, ia me jogá no rio, outra vez ia levá e
mandá prá Cuba e assim meus irmãos, minha família tudo foi
perseguida e vigiado demais. Companheiros apanharam, vi
apanhá na minha frente. [...] ele alegava que nós era comunista,
né, [...], eu ainda falei prá ele: se for comunista, comunista é bom.
Nunca fui preso, é a primeira vez. A minha vida é trabalhar em
lavoura muito grande e onde se colhia 200 e 300 saco de feijão,
então se uns home desse for comunista, então comunista é bom.
14
O colono, como toda sua família, era petebista por simpatia a Getúlio Vargas. Na
opinião deles, Vargas pensou nos pobres ao implantar a Colônia Federal, que tinha sido
muito bom para os pobres a quem tinha distribuído terra.
12
Ibidem.
13
Entrevista de Aureno Cordeiro, concedida a Marilene Aguero Rivarola. Projeto Ressonância, 1996.
14
Entrevista de Noel Bernardino da Silva, concedida a Leila Gonçalves Campo. Projeto Ressonâncias, 1997.
80
A perseguição política praticada contra os petebistas vinha, sobretudo, de
partidários da UDN. Perciliano Bueno Cavalheiro, cartorário em Dourados desde 1959,
conta que foi preso por dar “vivas ao Brizola”. Afirma que foi:
[...] surpreendido na estrada por uma equipe da polícia, e fui
preso
[ ...] como um criminoso qualquer, sujeito a tanta humilhação, me
puseram sentado no jipe atrás, sem poder me sentar [...] e fui
conduzido à delegacia e num cubículo infecto onde no máximo
cabiam 15 detentos, estávamos em 45 pessoas, tudo como se
fôssemos criminosos, tratados com a maior humilhação, cujo
delegado um tal de capitão Azambuja, pobre boneco, manobrado
pela cúpula da UDN local, nada falava, nada dizia, dizia que
estava no país um outro regime[ ...]. No dia seguinte, mandou me
chamar e disse que eu estava preso, porque estava dando vivas a
Brizola, com dois revólveres na cinta, gritando “viva Brizola! viva
Brizola!”, tudo mentira, tudo invencionice[...].
15
O drama dos presos, ainda segundo Perciliano, travava-se numa cela de nove
metros quadrados, sob um calor infernal. Situação que se amenizava com a ajuda de
pessoas como o prefeito da cidade, Napoleão Francisco de Souza, que providenciava água
e sanduíches. Durante sua permanência na delegacia, viu chegarem carros e carros
trazendo presos de diversas localidades, como de Bocajá, Carumbé e Itaporã que [...] eram
adentrados nos cubículos, nas celas, com aqueles soldados mal-humorados, xingando de
comunistas. Perciliano foi solto com a ajuda do compadre, Nilo Peçanha de Oliveira,
partidário da UDN. Em 1966, Perciliano elegeu-se vereador.
A existência dos Grupos de Onze na região de Dourados é confirmada pelo ex-
petebista Harrison de Figueiredo, preso duas vezes durante o regime militar. A primeira
prisão ocorreu logo após o golpe. Era petebista atuante e afirma que a atuação dos Grupos
de Onze na região de Dourados, nada tinha a ver com as formas descritas pelos militares.
Não havia células de resistências, armamentos ou planos subversivos. A atuação do partido
consistia na conscientização dos partidários, junto aos colonos, muitos deles também
petebistas. Faziam reuniões nas áreas rurais, onde discutiam os assuntos ligados às
Reformas de Base. Ou seja, discutiam questões sociais, as quais seriam de alguma forma
resolvidas com a implantação das reformas propostas por Jango.
16
15
Entrevista de Perciliano Bueno Cavalheiro, concedida a Maria Jose Bueno Cavalheiro. Projeto
Ressonância, 1996.
16
Entrevista de Harrison de Figueiredo, concedida a Prof. Wilson Valentin Biasotto. Projeto Ressonâncias,
1997.
81
A prisão de Harrison de Figueiredo foi narrada por Umbelina mara Galvão, na
época, cunhada de Harrison. A família de dona Umbelina foi fortemente atingida. Foram
presos: seu marido, o irmão, o cunhado e ela própria. Segundo dona Umbelina, Harrison
foi denunciado por um vizinho. A polícia foi até sua casa, reviraram tudo, até mesmo os
livros escolares das crianças. Não tendo encontrado nada e, na ausência de Harrison, a
polícia deteve a esposa de Harrison, Madalena, para que ela indicasse o paradeiro do
marido. Com a detenção da esposa, Harrison decidiu se entregar à polícia. Mas, quem o
deteve foi um civil, Dalmário Vicente de Almeida. Permaneceu dias preso até a chegada do
exército.
17
Dona Umbelina narra ainda a prisão do marido, Wilson Soares Galvão, proprietário
de uma serraria na CAND. Galvão foi detido, numa madrugada, por um antigo conhecido e
funcionário da delegacia de polícia, Autino Ferreira. Foi detido várias vezes, tanto que,
previdente, deixava uma maletinha com escova de dentes, pasta e sabonete pronta para
quando viessem buscá-lo.
Sobre a prisão do irmão, João da Câmara, o Totó, dona Umbelina recorda-se da
aflição que a família passou, visto que depois de preso, ninguém sabia dar notícias do
irmão. Após ser preso, Totó foi colocado num caminhão do Exército e levado para Ponta
Porã, no 11
o
Regimento de Cavalaria Mecanizado Regimento Marechal Dutra
18
.
chegando, foi colocado numa cela reservada onde permaneceu até a chegada do
comandante da unidade. Nesse lapso de tempo, Totó refletiu sua vida, tentando encontrar
motivos para sua prisão. Achou mesmo que se tratava de um engano, afinal havia tantos
Totós, só podia ser engano.
Não era engano. No dia seguinte ao da chegada, escoltado por um oficial do
Exército, Totó foi embarcado num avião. O avião tomou o rumo de Dourados e sobrevoou
a cidade. Segundo dona Umbelina, o comandante perguntou ao seu irmão se ele gostaria de
saber quem o tinha denunciado. Totó respondeu que não, mas o comandante apontou o
denunciante assim mesmo: foi Celso do Amaral. Acrescentou ainda que, segundo o
denunciante, a família fazia reuniões secretas na fazenda. Anos mais tarde, em 1976, João
da Câmara foi prefeito pela Arena e recepcionou o presidente Ernesto Geisel. As imagens
do encontro estão dispostas ao final do capítulo I.
17
Entrevista de Umbelina Câmara Galvão, concedida a Analina Ferreira. Projeto Memória de Pioneiros,
1997.
18
O nome da unidade é uma homenagem ao Marechal Eurico Gaspar Dutra, que a comandou no posto de
Tenente Coronel, no período de julho à dezembro de 1932. É denominada de “Onze”. Dados obtidos no site
www.exercito.gov.br/
82
Sobre as perseguições que sofreu e também seus companheiros de partido,
Figueiredo atribui-as aos fazendeiros da região, que logo após o golpe se reuniram na casa
de Ruy Gomes, ex-prefeito pelo PSD, e traçaram planos de ação para dominar política e
administrativamente a cidade.
19
Não foi maltratado na delegacia. Ao contrário, foi colocado numa cela em separado
dos demais presos, onde recebia até mesmo lençóis limpos.
20
Dona Umbelina também faz
referência ao fato de que a família não sofreu maus tratos físicos: [...] os nossos não foram
maltratados [...] eles ficavam até em divisão separada [...].
21
Quanto à dona Umbelina, ela própria teve a vida transtornada. Era funcionária
concursada da coletoria federal e conta que se sentiu pressionada tanto interna quanto
externamente. Era constantemente ameaçada de ser removida para outras cidades e foi
aconselhada a buscar apoio político para se manter no cargo. Ora, era uma funcionária
efetiva e o dependia de influência política. Conseguiu se manter, mas não deixou de ser
pressionada por certas pessoas da cidade que a maltratavam.
Ao atender um conhecido morador da cidade, que tinha ido comprar selos,
utilizados para marcar mercadorias a serem vendidas por comerciantes, pediu paciência,
pois não tinha selos contados naquele momento. Entregaria os selos ao comerciante mais
tarde, por que não estava com cabeça” para tal tarefa naquele momento, que estava
muito tensa com a prisão do marido. Conta que o comerciante, exaltado, começou a gritar
“eu não tenho culpa de seu marido estar na cadeia”. Mas, não teve tempo de continuar com
a grosseria, pois nesse momento, passou na frente da coletoria um soldado que o
comerciante viu e saiu correndo. Dona Umbelina conta que a situação até então trágica,
tornou-se cômica. Riu muito da reação covarde daquela pessoa: [...] olhei o soldado e eu
ri, que até passou meu nervoso de tanto que eu ri, mas que covarde, gritou comigo que sou
mulher e quando viu o soldadinho ali [...].
22
Na região da CAND, logo após o golpe, muitos colonos foram presos, mas foram
liberados, pois não havia provas de qualquer fato que os incriminasse. Alguns ficaram
vários dias ou semanas detidos, sofrendo pressões psicológicas. O todo de intimidação
19
Entrevista de Harrison de Figueiredo, concedida ao prof. Wilson Valentim Biasotto. Projeto Ressonâncias,
1997.
20
Ibidem.
21
Entrevista de Umbelina Câmara Galvão, concedida a Analina Ferreira. Projeto Memória de Pioneiros,
1997.
22
Entrevista de Umbelina Câmara Galvão, concedida a Analina Ferreira. Projeto Memória de Pioneiros,
1997. O conhecido a que se refere era o empresário Etalívio Penzo, dono da Torrefadora Café Brasil.
83
mais utilizado pelos policiais consistia na remoção de presos na calada da noite, sendo que,
logo após a retirada do preso da cela, tiros eram ouvidos lá fora.
Após serem liberados, os colonos passaram a ser discriminados em seus locais de
origem. Eram apontados como comunistas por pessoas de outros partidos políticos. Uma
espécie de temor atingiu toda colônia, confundindo petebismo com comunismo. Eram
pessoas simples, sem cultura letrada. Exatamente como o lavrador Anselmo Capilé,
entrevistado pela professora Elisangela P. Fagundes. Perguntado sobre a presença de
comunistas na região, Anselmo confirma a existência do partido Comunista, acrescentando
que as reuniões eram feitas na calada da noite, ocasião em que as pessoas assinavam
documentos sem saber do que se tratava. O equívoco se revela quando o entrevistado diz
que o partido não era legalizado e formavam um “grupo de onze pessoas”, demonstrando a
confusão ou a associação entre comunismo e Grupos de Onze.
Anselmo lembra de rias cassações de mandatos no estado. Entre elas, a de
Wilson Barbosa Martins. Mas não cita os casos ocorridos em Dourados, dos vereadores
Janary Carneiro Santiago e Gumercindo Bianchi. Sobre as prisões, lembra as de João da
Câmara e Moacir Djalma Barros, mas acrescenta: “[...] eram mais profetas do partido
PTB”. Quanto às perseguições na CAND, recaíram, sobretudo nos colonos e que, por
causa da existência de supostos Grupos de Onze na colônia, muitas verbas federais foram
cortadas.
23
A perseguição aos colonos era conhecida. O ex-deputado poeta contou o
padecimento em versos:
Em sua colônia agrícola
De grande população,
O PTB sempre teve
Uma grande votação,
Por isso os colonos sofreram
A maior perseguição.
Os elementos udenistas
Sempre foram apaixonados
Nas urnas, sempre colheram
Os piores resultados,
Em todas eleições
Foram eles derrotados
Os moradores da colônia
Sentiram a grande vingança,
Por esta Revolução
Que gravaram na lembrança,
23
Entrevista de Anselmo Capilé, concedida a Elisangela P. Fagundes. Projeto Ressonâncias, 1996.
84
Mas no futuro da Pátria,
Mostram sua confiança
24
De acordo com as entrevistas, de fato houve muita perseguição aos colonos. Atílio
Torraca, por exemplo, lembra da prisão de colonos do Bocajá, distrito de Itaporã, presos
pela “polícia local”. Foram amarrados e agredidos, jogados em cima de um caminhão,
foram recambiados para a delegacia de Dourados. Os soldados subiram no caminhão, e
empurraram os colonos amarrados carroceria abaixo, [...] como se faz com animal, que
nem animal merece um tratamento desse.
25
As perseguições não se restringiram somente aos colonos identificados com o PTB,
voltando-se também contra o poder legislativo, atingindo os representantes do PTB na
Câmara de Vereadores. No campo partidário, as perseguições iniciaram-se na própria noite
do dia 31 de março de 1964. A 49
o
sessão da Câmara de Vereadores desse dia, contou com
a presença do Prefeito Municipal Napoleão Francisco de Souza e de uma comissão de
senhoras, as mesmas foram convidadas a assistirem aos trabalhos.
26
Em sessão ordinária, ao início dos trabalhos do legislativo municipal às 19:30
horas, ainda não se tinha conhecimento da saída de Jango da presidência. Nesta data, o
vereador Ivo Cerzósimo apresentou um requerimento, solicitando que fossem oficiadas “as
duas casas do Congresso Nacional no sentido de se combater com todas as forças que
mister se faça necessário contra a legalidade do Partido Comunista em nossa pátria”.
Ao requerimento seguiram-se calorosos debates entre os edis. O vereador José
Severino declarou-se apenas contra o comunismo; Ismain Audi manifestou-se apenas
contra a legalização do Partido Comunista. Contra a íntegra do requerimento apresentado,
votaram os vereadores Janary Carneiro Santiago, João de Deus Mello e Gumercindo
24
SOUZA, Pedro Luiz. Verde a liberdade. Campo Grande: Gráfica Ruy Barbosa, 1965, p. 16.
25
Entrevista de Atílio Torraca, concedido a Analina Ferreira. Projeto Ressonâncias, 1996.
26
Ata da Câmara de Vereadores de Dourados, 31 mar. 1964, p. 166.
85
Bianki (sic). É significativo também o requerimento apresentado pelo vereador José
Pereira da Silva, no sentido de que fossem oficializadas ao presidente da República e
Leonel de Moura Brizola, congratulações pelo empenho dos dois políticos, na implantação
das reformas de base
27
. O requerimento sofreu emenda de Ivo Cerzósimo, “[...] no sentido
que a mesma não toque na Constituição.”
Após o encerramento da ata, um fato curioso e ainda confuso se fez registrar:
Em tempo: o vereador José Severino de Oliveira requer da mesa no
sentido de que seje (sic) constado em ata as palavras do vereador Janary
C. Santiago com referência ao requerimento apresentado pelo vereador
Ivo Cerzósimo que contesta contra a legalização do partido Comunista no
Brasil. O vereador Janary Carneiro Santiago disse as seguintes palavras:
para firmar minha posição lerei uma carta que acabo de receber do meu
companheiro, Leonel Brizola. Prosseguindo, declarou que era
perfeitamente favorável às idéias reformistas, afirmando que o autor do
requerimento não tinha autoridade para combater o comunismo por nunca
ter estado em um país sob êsse (sic) regime, declarando ainda que
deveríamos experimentar para depois combater, afirmando ainda tais
movimentos serem orientados pelo desrespeitador de família Ademar de
Barros, que confundia religião com política, afirmando ainda que Cristo
era comunista. Tendo o vereador Gumercindo Bianki (sic) apontado por
diversas vezes o vereador Ivo Cerzósimo autor do requerimento, afirmou
era necessário a legalização do partido comunista, pois em regime
democrático não se poderia empedir (sic) a legalização do partido
comunista que também tinha direito de difundir suas idéias.
28
Ao aparecimento do assunto comunismo, denota-se que os ânimos se acirraram. A
esse, seguem-se inúmeros apartes de outros vereadores, interessados em fazer constar seu
posicionamento pró ou contra a legalização do partido comunista. Nessa sessão
conturbada, delineia-se o futuro político dos vereadores Janary e Gumercindo. Janary
principalmente. Em várias sessões do legislativo douradense, o vereador apresentara
denúncias contra o Delegado local, acusando-o de brutalidade contra posseiros que
ocupavam lotes da CAND, à espera de regularização de suas situações fundiárias.
Inúmeras prisões foram feitas, e nessas ocasiões, Janary intercedia em favor dos posseiros,
fazendo pedidos diversos como compra de colchões para a Delegacia e ajuda financeira
para as famílias dos presos. Ajudava “invasores” de terra, era petebista, podia ser
também comunista, pelo menos na lógica da ideologia dominante.
A sessão de 31 de março também foi narrada por Osvaldo Wolf, vereador à época:
27
Ibidem p. 166-167.
28
Ibidem
86
[...] no dia 31 de março de 1964, numa terça-feira, era noite de reunião
na Câmara Municipal de Dourados. Na rua uma marcha de mulheres
com destino a Câmara Municipal para pedirem apoio a favor das
famílias que temiam coisas desastrosas no país. E no recinto da Câmara
já não cabia mais ninguém, nós os vereadores discutíamos um
requerimento polêmico. A minha cadeira ficava em frente a uma janela,
quando a Câmara Municipal funcionava junto ao prédio da Prefeitura, e
eu estava falando contra os movimentos esquerdistas do país, quando
de fora da sala, e pela janela, alguém me disse: fala vereador Wolf,
porque a revolução já começou.
29
O clima tenso que se formou face os últimos acontecimentos ocorridos na capital,
Rio de Janeiro e São Paulo também se fazia notar em Dourados, tanto que no próprio dia
31 de março, quando ainda se ultimavam os acontecimentos envolvendo o presidente e as
Forças Armadas, se falava em “revolução”. A emissora de rádio local e os rádios
particulares sintonizados com emissoras de outras cidades divulgavam os
acontecimentos de diversas localidades. O diálogo entre o presidente e as forças militares
exauriu-se e:
[...] na tarde de 31 de março, Kruel finalmente deu ordens para que seus
tanques se deslocassem rumo ao Rio. Essa manobra era essencial para a
revolta, devido à importância estratégica do Vale do Paraíba em caso de
uma guerra civil.
30
E na mesma tarde, em Mato Grosso, o coronel Meira Mattos, do 16
o
BC, sediado
em Cuiabá, transmitia à lideranças udenistas, notícia do deslocamento de tropas paulistas
para a cidade do Rio de Janeiro, e ele, por sua vez, preparava-se para marchar com sua
tropa para Brasília.
31
Deflagrado o movimento golpista, prisões e perseguições ganham
corpo.
No legislativo douradense, na primeira sessão seguinte após o dia do golpe, a
cassação do mandato de Janary Carneiro Santiago foi requerida pelo vereador Cider
Cerzósimo de Souza, em razão de o referido vereador ter se declarado e se manifestado a
favor do Partido Comunista. Por sua vez, a cassação do mandato de Gumercindo Bianchi
foi requerida pelo vereador Ataulfo de Mattos, pelo mesmo motivo: simpatizava-se com o
comunismo.
32
29
Entrevista de Oswaldo Wolf, concedido a Rosmari T. M. Pereira. Projeto Ressonâncias, 1996.
30
SKIDIMORE Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 363.
31
MARTINS, Demósthenes. A poesia da Jornada. Rio de Janeiro: Ed. Resenha Tributária, 1980, p. 244.
32
Ata da 50
a
Assembléia da Câmara de Vereadores, de 7 abr. 1964.
87
Com base na legislação vigente, o presidente da Câmara, vereador Jofre
Damasceno nomeou uma comissão destinada a tratar da cassação do mandato dos dois
vereadores. A comissão foi formada pelos vereadores Décio Rosa Bastos, Ismain Audi e
Ataulfo de Mattos.
Os vereadores Janary e Gumercindo não estavam presentes nessa sessão e o
requerimento para cassação de seus mandatos foi feito oralmente, pelos vereadores
requerentes. Nenhuma anotação quanto à troca de governo se fez na Ata, apenas uma
manifestação de apoio, representada pelo requerimento do vereador Ismain Audi, e
oficializar aos “Ministros das três armas e governadores, que democraticamente souberam
impedirem (sic) a infiltração do comunismo no Brasil”.
No dia 10 de abril de 1964, às 2 (sic) horas, foi realizada uma sessão extraordinária
para designar dia e hora para o início do processo de cassação dos mandatos dos dois
vereadores acusados de “simpáticos” ao comunismo. O processo deveria começar no
mesmo dia 10, às 16:00 horas. Com a presença de apenas um vereador envolvido,
Gumercindo Bianchi, foi aberta a 21
a
sessão extraordinária e teve início um rito sumário de
cassação dos mandatos.
Fizeram parte da peça inicial do processo de cassação:
- Certidão fornecida pela Câmara de Vereadores, contendo a transcrição da
sessão do dia 31 de março de 1964;
- Certidão da Delegacia de Polícia onde constam declarações do vereador Janary
Carneiro Santiago ao delegado de polícia;
- Certidão de inexistência, nos arquivos da Câmara, da CI que o vereador lera na
sessão do dia 31.
Abertos os trabalhos, o vereador Jofre Damasceno pediu adiamento da sessão,
alegando a necessidade de se respeitar o prazo de 48 horas para que os acusados
apresentassem suas defesas.
Nos registros da ata, não verificamos a aceitação do prazo requerido para defesa.
Todavia, como o vereador Gumercindo Bianchi estava presente, ele próprio fez sua defesa.
Contrariando seu posicionamento anterior, o vereador alegou que nunca difundiu idéias
comunistas “[...] e sim, apenas queria que o partido comunista desligasse dos demais
existentes nêste (sic) país, para o melhor acatamento das autoridades competentes”.
33
33
Ata da 21
a
Sessão Extraordinária da Câmara Municipal de Dourados, 10 abr. 1964.
88
Janary Carneiro Santiago, o outro vereador em julgamento pelos seus pares, não
estava presente. Estava preso, juntamente com seu companheiro de partido, Harrison de
Figueiredo.
34
Afigura-se, pelos registros dos apartes, ter havido um caloroso debate, ocasião em
que o vereador Gumercindo mostra-se completamente órfão, alijado de qualquer apoio de
seus pares. Em meio às acusações e delações, o vereador Ataulfo de Mattos pediu para que
constasse em ata que, segundo o vereador Luiz Francisco de Lima, o vereador Gumercindo
era portador de uma circular endereçada ao Presidente do Sub-Diretório do Partido
Trabalhista Brasileiro em Panamby.
Esta circular parece ser a mesma, atribuída a Leonel Brizola, que fora apresentada
pelo outro vereador processado, Janary Carneiro Santiago, na sessão do dia 31 de março. É
provável, caso realmente tenha existido tal circular, que se tratasse de instruções do
partido quanto ao procedimento a ser adotado em determinadas situações. Ocorre que tais
documentos não foram localizados, levando os demais vereadores à hipótese de serem as
instruções dos Grupos de Onze. E como o sigilo de tais ações era recomendado, tais
correspondências nunca apareceram. Nem a de Gumercindo e nem a de Janary, ou mesmo
de qualquer outro documento do partido.
A situação local parece estar ligada aos acontecimentos nacionais. No ano anterior,
a ala radical do PTB, considerada como a esquerda do partido, representada por Leonel
Brizola vinha se desgostando da atuação de Jango. Segundo Boris Fausto:
Brizola foi organizando sua própria base de ação. Assumiu o controle da
Rádio Mayrink Veiga ainda em 1963, lançou o semanário O Panfleto e
começou a organizar os “grupos de onze”. Esses grupos deveriam se
articular em todo país para resistir às tentativas golpistas e ajudar a
implantar medidas, como a convocação de uma Assembléia Constituinte
e a moratória da dívida externa.
35
As suspeitas das atividades subversivas na região de Dourados recaíram sobre os
tais Grupos de Onze, atingindo políticos, membros do Diretório do PTB, colonos da
CAND e também de cidades vizinhas, como Itaporã. Todos acusados de pertencer às
células idealizadas por Brizola. As autoridades constituídas temiam que os partidários
petebistas colocassem em prática as ações supostamente recomendadas por Leonel Brizola.
Como existiam petebistas no campo e na cidade, foi grande o número de detidos
preventivamente. Na falta de cadeia para todos, alguns depoimentos indicam o uso do
34
Entrevista concedida por Harrison de Figueiredo ao prof. Wilson Biasotto. Projeto Ressonâncias, 1996.
35
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Ed. USP, 1999, p. 458.
89
Parque de Exposições da cidade, para onde foram confinados os petebistas douradenses e
outras pessoas da cidade, para interrogatório e averiguações. Do parque, alguns
permaneceram presos na cadeia local, outros foram encaminhados à cidade vizinha de
Ponta Porã.
36
Além da formação do CCC, outra providência das autoridades policiais locais, logo
após o golpe, consistiu na convocação de todos os portadores de rádio de qualquer tipo,
para que cadastrassem seus equipamentos na Delegacia de Polícia. Medida tomada visando
inibir a comunicação de Brizola com seus comandados, frustrando assim, suas possíveis
ações. A convocação partiu da 9
a
Região Militar, que também determinou a apresentação
dos donos de estações de rádio em qualquer parte do território mato-grossense. A medida,
segundo os militares, visava “[...] a atualização do estudo sobre os recursos de
comunicações no âmbito da 9
a
RM, sendo, portanto, assunto considerado de suma
importância para a segurança nacional [...]”.
37
Esperava-se que o PTB fosse alijado do poder local. De fato, alguns filiados foram
presos, no entanto, o representante mais importante do partido na região, o prefeito
Napoleão Francisco de Souza, manteve-se no cargo. Segundo alguns entrevistados, a
permanência do prefeito petebista no cargo pode se atribuir ao fato do mesmo ser ex-
expedicionário. Participara da Segunda Guerra Mundial, na Itália. Era considerado um
herói e teve total apoio do Exército por ocasião do golpe de 64.
38
Logo após o golpe, partidários udenistas estiveram na prefeitura, no período da
manhã, reivindicando a entrega do cargo pelo prefeito. Napoleão acenou que iria entregar o
cargo no período da tarde. Pediu que o grupo voltasse logo mais à tarde, quando entregaria
o cargo. Tão logo o grupo deixou a sede da prefeitura, o prefeito rumou apressadamente a
Campo Grande, distante de Dourados cerca de 220 quilômetros. Em Campo Grande,
dirigiu-se ao Comando do Exército e contou o episódio ao general comandante.
Acrescentou que entregaria a prefeitura de Dourados, mas ao Exército. O prefeito voltou
para Dourados escoltado por um destacamento do Exército composto por cerca de 25
militares. Nenhum civil retornou para reivindicar a prefeitura. Napoleão manteve-se no
cargo.
39
36
Depoimento do jornalista Theodorico Luis Viegas, concedido à autora, em mai. 2003.
37
O Progresso, 19 abr. 1964.
38
Entrevistas de Ciro Azambuja, Olímpio Azambuja, concedido a Analina Ferreira. Projeto Ressonâncias,
1996.
39
Ibidem.
90
As ações de caça aos comunistas, segundo as entrevistas, transformaram-se em
perseguições políticas ou por desavenças pessoais. Qualquer contenda particular era
suficiente para acusar alguém de comunista e mandar prender. Ordens partiam de civis,
pessoas influentes na região. Fazendeiros ou chefes políticos locais. O delegado
simplesmente acatava tais imposições. Essa situação perdurou até a vinda de um militar,
destacado para atender Dourados. Os militares não apoiavam as ações dos civis locais.
40
Atílio Torraca Filho indica como os principais mandantes das prisões, os
fazendeiros da região, principalmente militantes da velha UDN “[...] que não conseguindo
subir ao poder por meio do voto popular, o fizeram por meio do golpe de 64”:
[...] aqui em Dourados quem comandava era os coronéis da época e
tinham, é lógico, o respaldo dos militares até certo ponto [...] porque os
coronéis da época chegavam e diziam aos militares prendam fulano
porque ele é comunista, iam e prendiam. Prendam sicrano porque ele
é comunista, iam e prendiam, chegou outro cidadão, o capital por
sinal decente, que veio comandar as operações em Dourados. Capitão
Aroldo, que determinou o seguinte: quem não provar vai ser
responsável, foi quando começaram acalmar aquelas perseguições
violentas. Mas quem comandava eram os coronéis [...] os homens de
chapéu branco de abas largas e botas vermelhas, os coronéis da época.
41
Com o Exército assumindo as investigações, o que se deu logo após o golpe, os
detidos eram encaminhados para a unidade do Exército em Ponta Porã. Em Dourados
nenhum Inquérito Policial Militar foi instaurado, o havia provas contra ninguém. João
Totó Câmara foi encaminhado para Ponta Porã, ficou por onze dias preso. Não deu nem
depoimento e foi liberado.
42
Anos mais tarde, por ocasião da visita do general Ernesto
Geisel a Dourados, João da Câmara foi prefeito pela Arena e acompanhou o presidente
durante sua visita. Ainda durante seu mandato, recepcionou também João Baptista de
Figueiredo, o último presidente do regime militar.
Como Totó, outras pessoas foram detidas e enviadas para o “Onze” em Ponta Porã,
mas todas foram liberadas.
43
Figuram entre essas pessoas, os advogados Altair da Costa
40
Ibidem.
41
Entrevista de Atílio Torraca Filho concedida a Analina Ferreira. Projeto Ressonâncias, 1996.
42
Ibidem.
43
“Onze” é a denominação dada ao 11
o
RM de Ponta Porã.
91
Dantas e João Beltran, denunciados por pessoas da cidade. Como tinham curso superior,
foram “presos” no Parque de Exposições. Posteriormente, foram transferidos para Ponta
Porã, de onde foram liberados.
44
A vigilância das autoridades não recaiu apenas sobre os colonos da CAND,
partidários do PTB e simpatizantes do comunismo, conforme temos analisado. Os
trabalhadores da educação também foram alvo de controle rigoroso.
Os professores sofreram intenso patrulhamento ideológico por ocasião do golpe em
Dourados. As duas principais escolas da cidade eram dirigidas por pessoas oriundas do
setor dominante da cidade, e declaradamente favoráveis ao golpe de 64. Não havia nas
escolas, liberdade de ação. Os professores eram monitorados, tanto por diretores como
por alunos, os quais se reportavam aos dirigentes das escolas ou até mesmo aos seus pais
sobre a conduta dos mestres. O controle ideológico era feito claramente, sem subterfúgios,
conforme se pode verificar em notícia do jornal:
COMISSÃO DE INVESTIGAÇÃO ESCOLAR
No dia 28/7/64 realizou-se na vizinha cidade de Ponta Porã, inquérito por
uma comissão especial com elementos de Belo Horizonte, Bauru e
Campinas, onde prestaram depoimentos todos os diretores de escolas de
ensino médio da região sul de Mato Grosso, inclusive os diretores das
escolas de Dourados, no sentido de que venham a ser afastados do
magistério todos os professores portadores de idéias marxistas e
subversivas. Esta comissão foi de iniciativa e oficializada pelo Ministério
de Educação e Cultura. Assim esta comissão está percorrendo o Brasil
inteiro no sentido de prestar o seu trabalho a uma democracia sadia, pois
milhões de alunos têm passado sob as orientações de professores
comunistas, que conseguem incutir na memória de seus pupilos as mais
desastrosas idéias.
45
Um certo clima de vigilância e atemorização se instalou nas escolas. A professora
Marina Evaristo Wenceslau, à época professora na escola Presidente Vargas, dirigida por
Celso Muller do Amaral, conta que tinha o bito de comprar determinada revista da
editora Abril Cultural. Certo dia, ao deixar a escola no término das aulas, foi abordada por
um homem, que se apresentou como policial e a intimou a acompanhá-lo à delegacia.
chegando, o delegado solicitou que contasse em detalhes o que fizera durante o dia,
inclusive o conteúdo da aula dada. Foi obrigada, pelo delegado, a lembrar todo trajeto que
fizera de sua casa à escola.
44
Entrevista de Altair da Costa Dantas, concedida à autora, em jul. 2003.
45
O Progresso, 2 ago 64.
92
Na pressa de que tudo acabasse logo, pois tinha de retornar à escola para o segundo
período de aula, a professora esqueceu de contar que estivera na banca de revistas para
pegar seu exemplar da revista encomendada. Mas, o fato foi lembrado pelo próprio
delegado que lhe perguntou se não havia passado em algum lugar antes de ir à escola. Foi
que a professora lembrou da revista. Sim, havia passado na banca de revistas. O
delegado quis ver a revista e saber qual seu conteúdo, mas a professora havia deixado na
escola. Ora, se a revista era editada por uma editora brasileira, de circulação nacional, por
quê o controle? Assim como ela, vários professores foram chamados pelo delegado.
46
Nesse período, todos eram vigiados nas escolas. Os professores eram
freqüentemente “aconselhados” a não discutirem assuntos ligados a sistemas de governo,
política ou qualquer outro que insinuasse subversão, aos olhos da direção da escola.
Associação de professores, então, nem pensar. Segundo Biasotto e Tetila, a falta de
organização sindical se justifica nem tanto pela possível repressão aos possíveis
movimentos no magistério, mas, sobretudo pelo grande número de professores leigos e
profissionais liberais que atuavam nos quadros do magistério local “alheios à profissão,
que integravam a categoria”.
47
O regime militar, sem dúvida, conseguiu que seu ideário fosse
interiorizado no magistério e que parcela não desprezível do professorado
exercesse o chamado patrulhamento ideológico. Relacionando-se
diretamente com a política vigente este patrulhamento, sem dúvida,
atingiu limites abusivos no sistema educacional do Estado. Ressalte-se
que a conexão político-partidária com fins eleitoreiros entre delegados de
ensino, presidentes de diretórios do partido governista e secretário de
educação, simplesmente não foi superada em relação ao que houve nos
governos anteriores.
48
Os autores referem-se aos esquemas de apadrinhamento e a política de benesses, os
quais favoreciam a indicação de pessoas estranhas à educação: “[...] esses elementos,
apoiados pelos bajuladores do regime, na verdade, formavam verdadeiros quistos no
recinto escolar, também conhecidos por “panelas” ou “igrejinhas”. Não dúvida de que
estes grupos constituíam fator de intimidação ao professorado.”
49
Tetila confirma que, de fato, existia um espírito muito mais favorável ao regime, do
que o contrário. Levados pelo medo, os próprios professores faziam o policiamento dentro
46
Entrevista de Marina Evaristo Wenceslau, concedida à autora, em jul. de 2003.
47
BIASOTTO, Wilson Valentim. TETILA, Jose Laerte Cecílio. O movimento reivindicatório do magistério
público estadual de Mato Grosso do Sul: 1978 – 1988. Campo Grande: UFMS, 1991, p. 21.
48
Ibidem. p. 22.
49
Ibidem. p. 22.
93
das escolas “[...] havia uma alienação muito grande pelo medo ou, às vezes, pela repressão
que existia, a polícia federal estava presente praticamente em todas as manifestações,
inclusive dentro das salas de aula”.
50
Esse patrulhamento, ainda segundo Tetila, estava por toda parte, inclusive nos
bares. Era comum as pessoas se reunirem num certo bar localizado nas imediações da Rua
Hayel Bon Faker, com objetivo de se inteirar dos acontecimentos, geralmente obtendo
informações através dos caixeiros viajantes que vinham de centros maiores, como São
Paulo.
Na avenida Marcelino Pires, o proprietário de um outro bar teria, logo após o golpe,
colocado uma faixa com os seguintes dizeres: O Brasil está de luto porque os gorilas estão
no poder. Foi preso e depois de liberado deixou a cidade.
51
Tal fato é confirmado por
Oswaldo Wolf ao relatar que:
Em Dourados na avenida Marcelino Pires um pequeno comerciante
colocou na frente da sua sala de comercio uma faixa de pano, com dizeres
favoráveis ao comunismo. A polícia foi e mais algumas pessoas foram
lá retirar a faixa e por ordem no lugar.
52
Há, portanto, a ação de intimidação, o que certamente retrai as manifestações
contrárias ao regime. No caso do magistério, a situação viria a mudar anos mais tarde, com
a vinda de professores de outros estados, quando o governo de Mato Grosso substituiu os
professores leigos da rede estadual de ensino. Assim, houve inserção de novas pessoas e
novas idéias. Nesse processo, teve importância a criação, em 1971, do Centro Pedagógico
de Dourados CPD, unidade da Universidade Estadual de Mato Grosso, instalado na
cidade de Dourados exatamente para formar professores destinados a atuarem nas redes
municipais e estadual de ensino. Alguns professores vindos de outros estados, que
estavam trabalhando na rede estadual, passaram também a ministrar aulas no Centro.
O Centro Pedagógico não escapou à conjuntura política do regime e também sofreu
pressões. Era dirigido pelo advogado Milton José de Paula, ex-delegado de ensino na
região de Dourados. Aí se apresenta o caso flagrante de apadrinhamento político na
indicação para ocupação de cargos na educação. Durante sua gestão, precisamente em
janeiro de 1978, três professores universitários foram demitidos do Centro Pedagógico de
50
Entrevista de José Laerte Cecílio Tetila, concedido a Rolivaldo da Costa Queiróz. Projeto Ressonâncias.
1996.
51
Entrevista de Zoroastro Stockler de Assis, concedida à autora, em jun. de 2003.
52
Entrevista de Oswaldo Wolf concedida a Rosmari T. M. Pereira, Projeto Ressonâncias, 1996.
94
Dourados: Antonio Luiz Lachi, Kioshi Rachi e Wilson Valentim Biasotto. Anteriormente
haviam sido demitidos pelo menos dois professores: José Luis Sanfelice e Ivan
Aparecido Manoel.
53
Assim como nas escolas de primeiro e segundo graus, o patrulhamento ideológico
também existia na universidade. A lei do bom senso recomendava que não se criticasse o
sistema de governo, o próprio governo e também a universidade. Protegido pelo
apadrinhamento político que lhe garantia segurança no cargo, o diretor dirigia a
universidade autocraticamente, impondo ao corpo docente condições penosas de trabalho.
Os professores eram contratados por vinte horas semanais, pelo regime celetista de
trabalho. No caso dos professores demitidos, todos faziam pós-graduação em outros
estados e eram obrigados a uma carga estafante de trabalho.
As lutas por melhores condições de ensino também figuravam no rol dos conflitos
entre direção da universidade e corpo docente. Eram, na maioria, professores que vinham
de outros estados, com outra mentalidade e desejosos de implantar uma universidade
dinâmica, livre da ingerência político-partidária. Segundo Biasotto e Tetila, a criação dos
Centros Pedagógicos:
[...] apesar o rigoroso controle exercido pelas forças regressivas
até 1978 ainda se assistia a episódios de demissão de professores
da Universidade Estadual dentro dos limites possíveis, alguns de
seus professores, sobretudo a partir de 1975, contribuíram na
resistência ao provincianismo que ainda se expressava através do
mandarinato dos diretórios partidários. Não como negar que a
criação desses antigos Centros Pedagógicos ajudou a criar grupos
de pressão úteis para a difusão de massa crítica pelo interior do
Estado.
54
Embora não mencionem nomes, Tetila e Biasotto reportam-se às demissões dos
professores José Luiz Sanfelice, Ivan Aparecido Manoel, Antonio Luis Lachi, Kyoshi
Rachi e do próprio Wilson Valentin Biasotto. O professor Ivan foi demitido no ano
anterior, porque ousou criticar o diretor do CPD. Desconhecia que a irmã do diretor era sua
aluna e estava presente na sala de aula. Não foi propriamente demitido, mas ao findar o
período de experiência, não teve seu contrato renovado.
55
Tanto Ivan quanto Sanfelice,
dado à qualificação que tinham, foram imediatamente contratados por outras
universidades, no estado de São Paulo. Sanfelice pela PUC, encontrando-se hoje na
53
Entrevista de Wilson Valentin Biasotto, concedida à autora, em jul. de 2003.
54
BIASOTTO, Wilson Valentim. TETILA, Jose Laerte Cecílio. O movimento reivindicatório do magistério
público estadual de Mato Grosso do Sul: 1978 – 1988. Campo Grande: UFMS, 1991, p. 41.
55
Entrevista de Wilson Valentim Biasotto, concedida à autora, em jul. de 2003.
95
UNICAMP, e Ivan, pela Unesp, atualmente, na condição de livre-docente. O interesse
dessas instituições é revelador da capacidade intelectual desses profissionais, conforme
atestam seus antigos colegas de trabalho.
os professores Antonio Luiz Lachi, Kiyoshi Rachi e Wilson Valentim Biasotto
foram demitidos após rumoroso processo administrativo envolvendo o diretor Milton José
de Paula que tentou, através desse processo, demonstrar que os professores estavam sendo
demitidos por incompetência e não por motivos pessoais. As reivindicações levadas a cabo
pelos professores enervaram o diretor que tentou, de várias maneiras, incriminar os
docentes. Até mesmo uma fotografia dos professores jogando bola na quadra do Centro,
foi tirada e usada pelo diretor para atestar que os “acusados” eram relapsos para com suas
obrigações. Ora, os professores eram contratados por vinte horas semanais e trabalhavam
cerca de dez horas por dia.
56
Por sua vez os professores procuravam denunciar, no curso do
processo administrativo, os desmandos e descaso do diretor no CPD.
As demissões claramente injustas foram contestadas pelos demais professores do
Centro, que fizeram uso de todas as instâncias possíveis na universidade, para reivindicar a
readmissão dos professores. Logo após a demissão dos professores, a situação do diretor
tornou-se insustentável, face o clima de revolta e descontentamento gerado na universidade
e nos segmentos da sociedade. Milton José de Paula se viu forçado pelo Reitor da
Universidade a pedir exoneração do cargo que ocupava. Em 17/02/78, vinte e um dias após
a demissão dos professores, Milton José de Paula pediu exoneração. Junto ao pedido de
exoneração, solicitava sua permanência como docente do quadro do CPD. Seu pedido foi
indeferido pelo próprio reitor João Pereira da Rosa.
57
Os alunos mobilizaram a comunidade local e uma campanha foi realizada pela
readmissão dos professores. Na imprensa local, artigos do jornalista Cícero Faria, ex-
aluno do CPD, criticavam a postura da direção da universidade em relação aos demitidos.
Vários foram os artigos, denunciando a demissão injusta imposta aos professores.
58
Durante o regime militar, em Dourados, como nos demais centros do país “a
revolução de 64, alterando radicalmente a constelação política da sociedade, repercutiu
imediatamente sobre a estrutura de poder dentro da Universidade”.
Quando o livro,
produzido pela Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo estava sendo
56
Entrevistas das professoras Marina Evaristo Wenceslau e Generosa Cortez de Lucena, concedidas à autora,
em jul. de 2003.
57
Ofício n. 132/78 que encaminha o requerimento de Milton José de Paula.
58
Entrevista de Wilson Valentim Biasotto, concedida à autora, em jul. 2003.
96
publicado, denunciando arbitrariedades pela direção, cometidas no âmbito da USP, em
Dourados verificava-se a repetição dos mesmos comportamentos, ou seja, a
ingerência política e demissão de professores, fruto de desmandos ou desavenças
pessoais.
Ao contrário da USP, onde a violência física policial adentrou no campus
universitário, prendendo professores e alunos com a conivência da direção, no CPD não se
verificaram tais acontecimentos. Todavia, ficava bem claro o cerceamento, a intimidação
aos profissionais de ensino. Não raro, estranhos se faziam presentes na sala, para assistir
às aulas dos professores locais. Em geral eram pessoas ligadas à reitoria. Ou às vezes, os
próprios alunos advertiam os professores de que certos assuntos não deviam ser
mencionados em sala. Assim, os conteúdos das aulas acabavam conhecidos pela direção ou
autoridades policiais, que, não raras vezes, se matriculavam como alunos.
59
Conteúdos são
explicitados nos planos de ensino, mas as exemplificações e os comentários são de cunho
muito pessoal do professor e pessoas presentes à aula poderiam tomar conhecimento e
divulgá-los.
Biasotto conta que, certo dia, o reitor da universidade, João Pereira da Rosa, entrou
em sua sala e sentou-se e assistiu às suas quatro aulas. Ao final, Biasotto convidou o reitor
para assistir aos ensaios do teatro universitário. O reitor agradeceu o convite, mas não
aceitou. O professor lembra que, durante a aula, o diretor Milton José de Paula chamou o
reitor para irem embora, mas ele preferiu ficar e assistindo as aulas.
Quanto ao teatro, o Teatro Universitário de Dourados, o TUD, foi criado e dirigido
por professores do CPD que, no bojo das aspirações de transformar a educação local em
todas as dimensões, reuniram-se e fundaram o grupo de teatro da Universidade. Nesse
período, todas as peças a serem exibidas tinham antes de passar pela censura. A rotina
consistia no envio do roteiro da peça à Polícia Federal, que a liberava após análise.
Contudo, mesmo depois de liberada, a universidade deveria comunicar a data de ensaios e
exibição para que um funcionário da Polícia Federal fosse assisti-la. Compulsando
documentos da época, localizamos uma dessas correspondências. Nela, o diretor do CPD
comunica o ensaio geral da peça Morte e Vida Severina, devidamente censurada. O
ensaio estava marcado para 22h45m.
60
Horário um tanto quanto inusitado. Seria uma forma
de rebeldia contra o patrulhamento?
59
Entrevistas de Antonio Luiz Lachi, Wilson Valentin Biasotto e Marina Evaristo Wenceslau, concedidas à
autora, em jul. 2003.
60
Ofício n. 181, de 25 out. 1978.
97
Sobre a demissão dos professores, uma intensa luta foi travada nas instâncias da
Universidade. A readmissão era constantemente cobrada pelos colegas, que discutiam o
assunto nas reuniões dos órgãos colegiados.
61
Durante o ano de 1978, foram infrutíferas as tentativas de readmissão dos
professores. A inação inclusive, atingiu outras esferas. Não logrando êxito no âmbito da
própria Universidade, os professores demitidos tentaram a readmissão via judicial. Outro
problema se apresentou: o primeiro advogado procurado não aceitou a causa. Após alguns
telefonemas, não se sabe para quem, alegando ser um caso sem solução, o advogado disse
que era inútil tentar. O segundo profissional procurado encenou aceitar o caso, mas nunca
protocolizou a ação de reintegração pretendida pelos seus clientes. Durante todo tempo,
enquanto os professores achavam que a ação tramitava na justiça, na verdade, suas
pretensões jaziam na gaveta do advogado.
62
A readmissão propriamente dita ocorreu em função do reconhecimento da
capacidade profissional dos professores demitidos, pelo sucessor do reitor João Pereira da
Rosa, Edgard Zardo, que tão logo assumiu a reitoria, envidou esforços para readmitir os
docentes Antonio Luiz Lachi, Kiyoshi Rachi e Wilson Valentin Biasotto. No início de
1979, se tinha como certa a readmissão dos professores nas reuniões do Conselho de
Departamento.
63
A readmissão se daria assim que os professores renunciassem à ação
judicial. Foi nesse momento que se descobriu que tal ação nunca existira.
Os professores, que ao serem demitidos, impetraram ação de reintegração e
consideravam que esta tramitava na justiça, não fizeram a rescisão de contrato de trabalho,
ainda que devidamente notificados pela Universidade para que marcassem a data de
homologação da rescisão do contrato de trabalho.
64
Fato esse que facilitou o retorno dos
professores Lachi e Biasotto ao quadro do CPD. O professor José Luis Sanfelice, que já se
encontrava trabalhando na PUC/SP, não pretendeu a readmissão, mas entrou com uma
ação trabalhista contra a Universidade.
65
Com a falta de rescisão do contrato de trabalho, nenhuma providência
administrativa havia sido tomada pela Universidade, o que causou um certo imbróglio, pois
61
Ata da 86
a
reunião, solicitando a readmissão de Kiyoshi Rachi pela conselheira Generoza Cortez de Lucena
/ 88
a
reunião solicitação de Antonio Luiz Lachi e Wilson Valentim Biasotto pela conselheira Irene Nogueira
Rasslan, ambas as atas do Conselho de Departamento do CPD do ano de 78.
62
Segundo Wilson Valentin Biasotto, os advogados foram: o primeiro, Lauro Machado de Souza e o
segundo, Josephino Ujacow, ambos de Dourados.
63
Ata da 91
a
reunião do Conselho de Departamento do CPD, de 09 jun. 1979.
64
Ofícios de n. 98/78 endereçado a Antonio Luiz Lachi; 99/78 a José Luis Sanfelice e 100/78 a Wilson
Valentin Biasotto.
65
Entrevista de Antonio Luiz Lachi, concedida à autora, em jul. 2003.
98
não se sabia ao certo como proceder à readmissão dos professores que, legalmente, não
haviam sido demitidos.
66
O desfecho foi inusitado. A orientação foi no sentido de que os professores Lachi e
Biasotto requeressem, junto ao diretor do CPD, a sua readmissão, todavia, renunciando a
qualquer direito inerente ao período de 28 de janeiro de 1978 até 05 de junho de 1979, ou
seja, desde a “demissão” até a “readmissão”. Isso feito, os docentes voltaram a compor o
quadro de professores do CPD, sem nenhum pagamento pelo período em que estiveram
injustamente afastados. O período de afastamento deveria ser computado como licença sem
vencimentos.
67
66
Ofícios: 38/79,72/79,85/79,81/79 e Resolução 07/79.
67
Ofício 232/79.
99
CAPÍTULO IV
IMPRENSA E MEMORIALISTAS:
AS REPRESENTAÇÕES DO GOLPE.
A Revolução de 1964 foi entusiasticamente
festejada pela maior parte da mídia brasileira.
Jornais importantes como o Jornal do Brasil,
Correio da Manhã, O Globo, Folha de São Paulo e
o Estado de São Paulo pugnavam abertamente pela
deposição de João Goulart.
Thomas
Skidmore
Nos anos 60, o fantasma do comunismo era visto em toda parte. Uma palavra, um
pensamento diferente era o suficiente para alguém ser considerado como suspeito de
comunista. Assim, não era apenas entre os trabalhadores rurais ou urbanos, mas em quase
todos os setores da sociedade identificava-se a existência de pessoas supostamente
alinhadas com a chamada ideologia vermelha. Viviam-se os tempos da Guerra Fria.
Na constituição do imaginário de temor, os meios de comunicação tiveram papel
significativo. A imprensa de modo geral contribuiu para a disseminação da idéia do perigo
comunista no país. Havia uma campanha anticomunista e antijanguista naquele momento.
Parte do ministério e muitos políticos ligados ao presidente João Goulart eram tidos
como comunistas, principalmente seu cunhado, Leonel Brizola. Se o presidente cercava-se
dessas pessoas, a conclusão que se tinha era a de que o presidente também conspirava
contra a democracia vigente no país. Entre os opositores de Jango, era voz corrente que a
falta de pulso do governo para com os movimentos grevistas e a insubordinação dentro das
Forças Armadas, desgastava a imagem do presidente. Os jornais interpretavam estes
mesmos fatos como conivência, fomentando ainda mais o clima de insegurança no país:
O fracasso da fase positiva de Jango também pôs em evidência a
importância dos motivos pessoais do presidente. João Goulart tinha a
reputação de ser um homem fraco. Parecera perfeitamente identificado no
papel de vice-presidente, mostrando-se irresoluto na crise agôsto-
setembro de 1961, quando foi pressionado por Brizola e o General
Machado Lopes, comandante do Terceiro Exército no Rio Grande do Sul.
A evidente fraqueza de Jango tornou difícil aos seus inimigos, que
conspiravam na área militar, aliciando colegas céticos bem como a
opinião centrista, procurando convencer a uns e outros que o presidente
era um antidemocrata a provocar o caos para justificar sua pretensão a
poderes autoritários.
1
Foi entre os setores médios urbanos que a campanha antijanguista e anticomunista
encontrou total apoio. As manifestações públicas contra o governo Goulart serviram para
justificar a intervenção dos militares no governo.
Nesse período, a questão ideológica constituiu-se centro de convergência de todos
os conflitos. Ficava patente o choque entre capitalistas de um lado e comunistas de outro.
Os capitalistas acusavam os comunistas de tentar, através da revolução comunista, um
regime totalitário, sem liberdade individual. Por sua vez, os comunistas acusavam o
capitalismo de ser o grande responsável pela miséria e opressão no mundo. Ambos
consideravam-se os guardiões e defensores da liberdade e da igualdade. Foi em torno da
oposição entre o "comunismo” e a “democracia”, no contexto da Guerra Fria, que se
articulou a propaganda ideológica dos anos 50 e 60. Para Fiorin, o:
[...] discurso “revolucionário, o movimento de 64 visa a salvar a
democracia, a salvaguardar a unidade nacional, a defender a pátria do
comunismo e a desenvolver o país pela elevação do nível material, moral,
educacional e político de seu povo, dentro da estabilidade e da ordem
[...].
2
Com base nesse entendimento, a sociedade em geral posicionou-se favorável ao
golpe militar de 64. Os meios de comunicação foram fundamentais no processo de
manipular certos valores e idéias a um público amplo, com intenção de influenciar a
opinião pública a serviço de certas elites.
No início dos anos 60, desenvolveu-se nas cidades brasileiras mais industrializadas,
uma cultura consumista, difundida principalmente entre as classes médias e altas da
sociedade. Elas identificavam a possibilidade de consumo com liberdade e poder
1
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 311.
2
FIORIN, José Luiz. O regime de 64: discurso e ideologia. São Paulo: Atual, 1988. p. 68.
101
individual. Dessa forma, o termo democracia, associado à liberdade de consumo, saía da
esfera política e pública para a vida privada individual.
O termo democracia evocava nos jornais sempre imagens carregadas de progresso
individual, de desenvolvimento das cidades, de harmonia entre os povos, de liberdade de
poder possuir tudo. Por outro lado, a palavra comunismo aparecia associada sempre a
imagens negativas, de violência contra o indivíduo, de filas, racionamento, de modo a
provocar medo e pavor. Significava a negação da democracia, da liberdade de consumo.
Foi nas organizações e nas mobilizações dos setores dios urbanos que o golpe
encontrou maior apoio e se legitimou. Os discursos presentes nos jornais mostraram-se
eficientes na conquista de adeptos à causa anticomunista e golpista de 64. A população
brasileira quase toda aderiu ao golpe e foram poucos os que resistiram.
Marilena Chaexplica a generalização e aceitação do discurso ideológico entre as
diversas camadas sociais, a partir da imposição de uma determinada classe: a dominante.
Porque saídas das camadas dominantes é que ganharam força e se transformaram em idéias
dominantes:
[...] porque as idéias dominantes de uma época são as idéias da classe
dominante da época, o ponto final da ideologia está necessariamente
inscrito no movimento que a constitui, isto é, o dominante se reveste de
generalidade e de universalidade que anulam e ocultam a realidade das
classes.
3
Com poucas exceções, os meios de comunicação, identificavam o governo João
Goulart com os ideais comunistas. Realizavam intensa propaganda de oposição. A
imprensa nacional, rádios, televisões e jornais estavam contra o presidente Goulart, com
algumas exceções, entre as quais, o jornal Última Hora
4
. Com discursos moralistas,
condenavam as reformas propostas pelo governo e a maioria de seus atos políticos. A
campanha anticomunista e a propaganda difamatória contra a pessoa de Goulart foram
significativas para conseguir com que as classes médias saíssem às ruas e provocassem a
renúncia de João Goulart da presidência.
O presente capítulo tem como objetivo analisar as interpretações dos jornais locais
sobre o governo de João Goulart até a deposição em 31 de março de 1964.
3
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. 2
a
ed. São Paulo: Moderna, 1981. p. 27.
4
AQUINO, Maria Aparecida. Censura, imprensa, Estado autoritário: 1968-78: o exercício cotidiano da
dominação e resistência: o estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1979.
102
Contextualizando e identificando as posições políticas e ideológicas de seus proprietários,
das publicações referentes às ações de governo, constatamos que, também em Dourados e
região, houve a construção de uma imagem negativa de João Goulart através da imprensa,
que culminou com o apoio ao golpe de 64.
Sobre o período, René Armando Dreifuss assegura que o golpe de 31 de março de
1964 foi resultante de uma campanha ideológica da burguesia, orquestrada por vários
organismos, inclusive internacionais:
O período de ação de classe organizada [...] estendeu-se de 1962 a 1964.
Politicamente, significou uma mobilização conjuntural sobre o golpe,
quando estratégia se converteu em política e atividades político-
partidárias finalmente se transformaram em ação militar. Esse foi o
estágio de “esforço positivo” em que vários escritórios de consultoria e
anéis burocrático-empresariais, associações de classe e grupos de ação
formaram um centro político estratégico, o complexo IPES/IBAD. Uma
vez unificadas as várias oposições sob uma liderança sincronizada
comum, formulando um plano geral, a elite orgânica lançava a campanha
político-militar que mobilizaria o conjunto da burguesia, convenceria os
segmentos relevantes das Forças Armadas da justiça de sua causa,
neutralizaria a dissensão e obteria apoio dos tradicionais setores
empresariais, bem como a adesão ou passividade das camadas sociais
subalternas.
5
As ações ideológica e social praticadas pela denominada elite orgânica, segundo
Dreifuss, agiam, de modo geral, de forma indireta, porém ostensiva. No caso da mídia,
visava-se de um lado “[...] infundir ou fortalecer atitudes e pontos de vista tradicionais [...]
atacava o comunismo, o socialismo, a oligarquia rural e a corrupção do populismo” e, por
outro, reafirmar que a prosperidade estaria ligada ao sucesso individual, à iniciativa
privada, sem interferência do Estado na economia.
6
Analisando a imprensa local,
identificamos as diretrizes acima.
As empresas jornalísticas geralmente pertencem à pessoas ou grupos privados e
suas publicações, nos trabalhos jornalísticos traduzem os interesses aos quais o jornal está
vinculado. No caso da imprensa local, principalmente no período estudado, é provável que
o principal objetivo de seus proprietários não fosse o retorno financeiro, apesar de
inúmeros anúncios publicitários. Uma de suas razões de ser resume-se, ao nosso ver, numa
forma de carrear dividendos eleitorais ao político proprietário do jornal.
5
DREIFUSS, René Armand. 1964 a conquista do Estado: ação, política, poder e golpe de classes. Petrópolis:
Vozes, 1986. p. 230.
6
Ibidem, p. 231/232.
103
Apesar de considerarmos os jornais locais como sendo de pequeno porte, isto não
diminui sua importância para os estudos históricos. Capelato considera que:
[...] os pequenos jornais que expressam reivindicações específicas de
determinados grupos sócio-políticos são muito importantes para os
estudos históricos. [...] Os títulos dos periódicos exprimiam o grupo do
qual eram porta-voz ou os seus propósitos de luta.[...] A pequena
imprensa de conteúdo sócio-político, literário ou de entretenimento em
geral [...] representa um manancial de pesquisa dos mais significativos.
7
Não pretendemos fazer uma história da imprensa local, mas sim, situá-la como
entidade participante da vida política da cidade, na medida em que, essa imprensa serviu de
instrumento para conquistar corações e mentes. Compreender a ideologia presente na
imprensa local leva-nos a refletir sobre as relações de poder que tecem o cotidiano,
desvendando as representações simbólicas de suas mensagens.
Ao tomar a imprensa como fonte histórica, segundo Capelato, deve o pesquisador
inquirir sobre o pensamento político de seus proprietários e quais objetivos procura atingir,
pois:
Todos os jornais procuram atrair o público e conquistar seus corações e
mentes. A meta é sempre conseguir adeptos para uma causa, seja ela
empresarial e política, e os artifícios utilizados para esse fim são
múltiplos.
8
Como aliada ou opositora, o poder de manipulação da imprensa elevou sua
importância política, razão porque, em alguns períodos da história brasileira foi temida e
censurada por governantes. Em geral, as empresas jornalísticas pertencem à pessoas ou
grupos econômicos que usam o jornal como instrumento de poder e “que usam uma
linguagem voluntariamente crítica, pois sua verdadeira função não é dar notícias aos
cidadãos, mas enviar mensagens cifradas a um outro grupo de poder passando por cima da
cabeça dos leitores.”
9
Ante as advertências expostas, faz-se importante caracterizar os jornais que ora
tomamos como fonte, cuja leitura nos possibilitará melhor compreender as interpretações e
o rumo tomado, na região de Dourados, pelos acontecimentos no período que culminou
7
CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. p 33.
8
CAPELATO, Maria Helena R. op. cit., p. 15.
9
ECO, Umberco. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 58.
104
com a queda de João Goulart em 1964. Leitura que, necessariamente, passará pelos
silêncios do não foi escrito, ou pelas mensagens cifradas. Um discurso que, sendo
ideológico, segundo Marilena Chauí, é feito de:
[...] espaços em branco, como uma frase na qual houvesse lacunas. A
coerência desse discurso (o fato de que se mantenha uma lógica coerente
e que exerça um poder sobre os sujeitos sociais e políticos) o é uma
coerência nem um poder obtido malgrado as lacunas, malgrado os
espaços em branco, malgrado o que fica oculto: ao contrário, é graças
aos brancos, graças às lacunas entre as suas partes, que esse discurso se
apresenta como coerente. Em suma, é porque não diz tudo e não pode
dizer tudo que o discurso ideológico é coerente e poderoso.
[...] O discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer
até o fim aquilo que se pretende dizer.
10
Na obra História do Jornalismo em Mato Grosso, de Rubens de Mendonça, que faz
referência aos jornais mato-grossenses desde os tempos do império até 1960, curiosamente
não se vislumbra qualquer referência aos jornais de Dourados
11
. Todavia, data de 1926
notícias da existência de periódicos na cidade. Para melhor compreensão, esboçamos um
breve histórico da existência de jornais em Dourados até a década de 60.
12
O primeiro jornal em Dourados surgiu em 1926 e pertenceu a Arnulfo Fioravanti,
migrante gaúcho, que chegou na região na década de 20. Denominado Jandaia, era
impresso em Campo Grande e teve curta duração. Sua edição foi suspensa porque uma
pessoa da cidade não gostou de um artigo. A seguir, em 1948, Armando da Silva Carmelo
editou O Douradense. Circulou até meados de 1950.
Em 1951 o jornal O Progresso começou a circular em Dourados. De propriedade de
Weimar Gonçalves Torres. O jornal foi impresso na tipografia de Naurestides Brandão, na
cidade de Dourados. A tipografia foi instalada na cidade com uma providencial subvenção
da Prefeitura local. Até meados do ano de 1964, o jornal era semanário, a partir dessa data,
passou a ser editado diariamente.
A Cidade, de propriedade de Demosthenes Palieraqui, foi impresso durante o ano
de 1953, na tipografia da família Palieraqui. Teve curta duração.
10
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia. 2
a
ed. São Paulo: Moderna, 1981. p. 21-22.
11
MENDONÇA, Rubens. História do jornalismo em Mato Grosso. [s/d.] 1963.
12
MOREIRA, Regina Heloiza Targa. Memória fotográfica de Dourados. Campo Grande: UFMS, 1990. p.
116-119. As referências que fazemos sobre os jornais publicados em Dourados, realizadas na seqüência,
foram extraídos da mesma obra.
105
Outro semanário surgiu em 1955, de propriedade de D’Almeida Vitor e João
Augusto Capilé Junior, denominado Jornal de Dourados, não chegou a terceira edição. Era
impresso em Campo Grande.
A Voz do Sul foi o jornal do partido União Democrática Nacional, a UDN. Impresso
na cidade, na Tipografia Brasil, circulou durante os anos de 1955 e 1956. Outro jornal de
partido político foi o A Luta, de propriedade do deputado Wilson Dias Pinho. Circulou
apenas durante a campanha eleitoral para o governo do Estado.
Outro periódico, O jornal de Dourados, pertenceu ao empresário Antonio Tonani,
que se fixou na cidade de Dourados na década de 50. À época, Antonio Tonani trabalhou
com o comendador Jeremias Lunardeli, este, um rico imigrante italiano que adquiriu uma
grande extensão de terras na região de Dourados, para o plantio de café, conhecido como
“o rei do café”. A chegada de Lunardeli foi alardeada pela imprensa local, como indício de
progresso e desenvolvimento. Após a partida de Lunardeli, Antonio Tonani estabeleceu-se
definitivamente em Dourados.
13
Em seu primeiro número, de 05 de janeiro de 1958, o Jornal de Dourados
afirmava, em editorial, a posição política apartidária de seus proprietários, todavia,
demarcou suas posições ideológicas. Logo na segunda gina, deparamo-nos com o
seguinte artigo Agitadores comunistas perturbam a boa ordem dos colonos
14
. O artigo
denuncia a existência de possíveis agitadores nos lotes da CAND, dizendo tratarem-se de
comunistas, infiltrados para provocar desordens. Logo a seguir, na semana seguinte,
publicava uma carta aberta aos colonos, concitando todos a se manter em ordem e
trabalhando para o bom desenvolvimento da cidade
15
.
O discurso de neutralidade, comum entre os periódicos, não se sustentou nem
mesmo no primeiro número, no qual pode-se identificar demarcação de posições
ideológicas.
Ao final do mesmo ano, o jornal parece tomar outros rumos, com a candidatura do
sócio de Tonani, José Floriano de Freitas, ao legislativo municipal, pelo PRP local. Além
do apoio político a Floriano, também apoiava abertamente o candidato Vivaldi de Oliveira
do PTB para o cargo de prefeito, que concorria contra um candidato, considerado no
município como “imbatível”, João Augusto Capilé Junior, da UDN. Capilé Jr já fora
13
Além de agropecuarista, atua também na imprensa. É proprietário da emissora de rádio Grande FM.
14
O Jornal de Dourados, Dourados, 05 jan. 1958. p. 2.
15
Ibidem, 12 jan. 58, p. 1
106
prefeito no período 1945/1947. A “imbatividade” foi derrubada pelo prestígio que o PTB
ostentava em Dourados. Capillé Jr ganhou na cidade, mas a eleição foi decidida nas urnas
da CAND, reduto petebista e local de maior concentração populacional do município.
O Jornal de Dourados circulou até 1964, com algumas interrupções. Os exemplares
de 1958 a 1962 encontram-se arquivados no Museu Histórico Municipal. Não encontramos
nenhum exemplar após 1962. O arquivo pessoal do Sr. Tonani foi perdido durante incêndio
em sua casa.
Outro jornal impresso em Dourados foi O Rolo, de propriedade do médico Joaquim
Lourenço Filho que, juntamente com Nicanor de Souza e Noele Gomes de Oliveira, editou
o jornal curiosamente em formato de rolo. A primeira edição data de 1959, com edições
irregulares.
16
Embora, a existência de jornais na cidade date de 1926, não obtivemos sucesso na
procura de seus exemplares. Fragmentos de algumas poucas ginas não nos permitiram
análise. A escolha de O Progresso obedeceu a uma lógica simples: é único preservado
desde a fundação até os dias atuais, em arquivos particulares ou públicos.
A história do jornal O Progresso começa na cidade vizinha de Ponta Porã, cujo
proprietário original foi o advogado e jornalista Rangel Torres. Segundo Blanche Torres,
sua neta, o jornal começou a circular em 1920 e por motivos de perseguição política,
deixou de ser editado naquela cidade. Voltou a circular em 1951, por iniciativa do filho de
Rangel, também advogado e jornalista Weimar Gonçalves Torres, desta vez já na cidade de
Dourados.
17
Em Ponta Porã, Weimar Torres, além da advocacia, também foi vereador pelo
PSD. na cidade de Dourados, elegeu-se deputado estadual e federal, também pelo PSD.
Morreu em 1969, em desastre aéreo, numa de suas viagens a Brasília. Sua popularidade
política era tanta que sua morte provocou comoção em toda cidade. Uma de nossas
lembranças do episódio foi da multidão que acorreu à casa do parlamentar, dentre ela,
alunos das escolas municipais e estaduais atravessaram a cidade
18
, em fila, acompanhados
de professores, para seu velório.
Após a morte de Weimar Torres, assumiu a direção do jornal seu sogro Wlademiro
Muller do Amaral, pessoa muito conhecida na cidade. A família Amaral chegou a
Dourados em 1932. Agrimensor, Amaral fazia medições de terra. Além de medições de
16
MOREIRA, Regina H.T. op. cit., p. 119.
17
O Progresso, Dourados, 20/21 abr. 2000.
18
A casa dos Torres localizava-se num bairro Vila Amaral, afastado do centro da cidade.
107
fazendas, trabalhou na demarcação de lotes da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, a
CAND, e também na demarcação da Colônia Municipal, atual cidade de Itaporã. Uns dos
pioneiros da cidade e militante político atuante, Wlademiro Muller do Amaral, também
filiado ao PSD, deu continuidade à linha editorial do jornal. Após a morte de Wlademiro,
assumiu a direção do jornal a viúva de Weimar Torres, Adiles do Amaral Torres, que
permanece na direção até os dias atuais.
19
O Progresso é uma empresa familiar. O nome do jornal, O PROGRESSO,
pensamento e ação por uma vida melhor, expressa a crença e a ideologia de seus
proprietários. Desde a primeira edição, o jornal revelou-se um incentivador do
desenvolvimento da região, especialmente de Dourados.
Na tentativa de entender a participação do jornal O Progresso na história local, faz-
se necessário entender o pensamento político de seus proprietários, quais os seus objetivos,
quais os recursos utilizados na batalha pela conquista dos corações e mentes.
Considerando-se que os donos do periódico analisado eram políticos atuantes,
torna-se mais fácil compreender os rumos editoriais adotados pelo mesmo jornal, durante o
regime militar, bem como no período anterior ao golpe de 64.
Sobre as empresas jornalísticas analisadas, importa frisar, que seus proprietários são
pessoas ligados a partidos políticos. Ainda que de partidos diferentes, esses proprietários
nutriam simpatia e urbanidade para com o outro. Não obstante, em várias ocasiões, os
jornais foram usados para desabafos pessoais. Tanto os Torrres quanto Tonani eram
atuantes partidários políticos e, às vezes, alguma contrariedade era motivo para desabafos
públicos.
Um incidente notório através dos dois jornais, envolvendo doação de terras do
Estado a pessoas da região foi suficiente para exaltar ânimos. O Jornal de Dourados
publicou, em setembro de 1959, uma nota sobre doação de terras a algumas pessoas, entre
elas, à família Matos. Ato contínuo, Onofre Pereira de Matos fez publicar no jornal O
Progresso seu repúdio ao que considerou uma afronta de Tonani e Floriano. Em tom de
ameaça mandou sua resposta que tinha como título: Todo mundo lembra do que
aconteceu ao Dr. Ari Coelho”. Além de protestar contra os jornalistas proprietários, Onofre
Pereira de Matos reclama contra a atitude de tais pessoasrecebidas de braços abertos” na
cidade de Dourados, e obtém como resposta outro artigo no Jornal de Dourados,
intitulado: “Antiguidade não é posto”.
20
19
O Progresso, 20/21 abr. 2000.
20
O Jornal de Dourados, 09 ago. 1958.
108
Na história do jornalismo em Mato Grosso, a morte de Ari Coelho, prefeito da
cidade de Campo Grande e dono do jornal O Matogrossense é famosa. Em 1952, Ari
Coelho criticou, através de seu jornal, a concessão de terras à Fundação Brasil Central,
dirigida por Arquimedes Pereira Lima. A resposta às críticas de Ari Coelho veio através de
artigos escritos por Alcy Pereira Lima, irmão de Arquimedes, no jornal O Combate, de
Cuiabá. A polêmica jornalística resultou na morte de Ari Coelho.
21
A denúncia de especulação de terras devolutas ganhara corpo na década de 50.
Alcir Lenharo ressalta que jornais paulistas faziam constantes denúncias sobre as vendas
de terras pelo estado, favorecendo empresas colonizadoras particulares que as revendiam a
preços exorbitantes. As terras de Dourados e São Lourenço, segundo Lenharo, eram as
mais visadas; ‘[...] Os especuladores compravam as terras por 5 e 10 cruzeiros e as
revendiam por 100 e 150 cruzeiros. Em Dourados, a revenda chegava a 300 cruzeiros.”
22
Como a questão da terra implicava em disputa por poder a ganhos financeiros
através da especulação, tais notícias adquiriam repercussão negativa na imprensa. Portanto,
não é de se estranhar a atitude de Matos, ao ver publicado favorecimento de sua família na
concessão de terras pelo governo do estado.
Através dos periódicos é possível resgatar as disputas entre políticos e famílias pela
hegemonia local. Ao pesquisar as transformações urbanas na cidade de Corumbá, por
exemplo, João Carlos de Souza observou que a imprensa corumbaense também se
mostrava essencialmente opinativa, extrapolando os limites da função informativa dos
jornais, passando por vezes aos ataques pessoais, buscando atingir a moral e honra dos
adversários.
23
Em Dourados o uso da imprensa não foi diferente, com a agravante do uso
dos jornais para ataques pessoais, réplicas e tréplicas para, publicamente, ameaçar de morte
tais adversários.
O arsenal de palavras e de representações, produzidas pela imprensa, não ficou
restrito ao âmbito de disputa entre famílias pela hegemonia local. Em períodos de
transformações ou identificados como de crise para o país, são acionados contra ou a favor
do mandatário do momento. Abordaremos, nessa perspectiva o tratamento dispensado ao
governo João Goulart, caso em que a imprensa agiu para desestabilizá-lo.
21
MENDONÇA, Rubens. op. cit., p. 113.
22
LENHARO, Alcir. op. cit., p. 53.
23
SOUZA, João Carlos de. Sertão Cosmopolita: a modernidade de Corumbá (1872-1918). São Paulo:
FFLCH/USP Tese (Doutorado em História Social). p. 55
109
João Goulart assumiu a presidência com restrições das Forças Armadas. Os
ministros Sylvio Heck, Odylio Denis e Gabriel Grun Moss posicionaram-se contrários à
posse de João Goulart, alegando questões de segurança nacional. Goulart não poderia ser
empossado presidente porque era tido como um agitador e simpático ao comunismo.
Contra a posse, uniram-se os militares, empresários, lideranças políticas principalmente
ligadas à UDN, a Igreja e a grande imprensa, além de outros segmentos da sociedade. Aos
poucos foram construindo um discurso desfavorável a Goulart através da identificação de
suas ações políticas com o projeto comunista. Nisso a imprensa teve participação
significativa. Conforme Capelato:
Na década de 60, conflitos sociais e políticos vêm à tona. São
identificados como “desordem” provocada pelos comunistas. O velho
fantasma volta a rondar o país e os “guardiães da boa sociedade”
empenham-sena articulação de um golpe para salvá-la. Nessa época,
populismo (varguismo, janguismo) e bolchevismo são sinônimos.
24
A construção simbólica que a imprensa fez do presidente Goulart em relação às
reformas de base e a outros projetos políticos foi ideológica e teve o objetivo de
estabelecer relações de poder. Serviu para legitimar a ruptura política e estabelecer o
regime militar autoritário.
Sedimentados no pressuposto de que a grande imprensa em vel nacional
arquitetou imagens negativas, destrutivas de Goulart e legitimou a tomada do poder dos
militares, iremos analisar os jornais de Dourados nos anos de 63 e 64, procurando verificar
como a imprensa douradense contribuiu para a construção do discurso de apoio ao golpe de
64.
Analisamos os jornais considerando a articulação entre texto produzido e o
contexto de sua produção, o que é fundamental para compreendermos o sentido das
mensagens e seu caráter ideológico. Tentar interpretar o sentido das imagens dos jornais,
naquele momento histórico, é contribuir para verificar o poder da imprensa e o papel da
ideologia nas sociedades modernas.
Se a imprensa jornalística circula formas simbólicas e essas formas podem ser
ideológicas, mantendo relações de poder em contextos específicos, então ao estudar jornais
entendemos como o sentido das mensagens pode estar a serviço do poder.
24
CAPELATO, Maria Helena R. op. cit., p. 53.
110
Para compreendermos as posições, as interpretações, as ideologias dos jornais
locais com relação a Goulart e ao golpe, selecionamos matérias diversas, editoriais, artigos
e notas em colunas que, direta ou indiretamente, fizeram referência à nossa problemática.
Procuramos nas mensagens produzidas, o seu sentido ideológico, aquele que busca
influenciar as opiniões, estabelecer, sustentar e manter relações de poder.
O Progresso inicia 1964 com matéria de primeira página, prenunciando o ano como
sombrio e catastrófico. Reclamando de preço de produtos como cigarro, bebidas e
passagens rodoviárias intermunicipais, insinua que Dourados, governada por um prefeito
do PTB, tornava-se uma “cidade de ninguém”, exposta a abusos, o que o jornal considera
um absurdo, só praticado em face da inoperância das autoridades.
25
Em notas freqüentes o jornal anunciava um pessimismo que se generalizava no país
e, por conseqüência, na cidade. Assuntos como inflação e “invasões” de terras de outros
estados também figuravam no rol de prenúncios catastróficos do governo ‘janguista”. No
mesmo jornal, uma seção denominada “Meu Cantinho”, assinada por um indeterminado
“eu”, veiculava a idéia de que o descontentamento era generalizado. Em nota, comenta a
crônica de um radialista local, Jorge Antonio Salomão, que durante seu programa diário:
[...] na hora da Ave-Maria, crônica tão escutada pelas ondas da excelente
Rádio Clube de Dourados, o locutor Jorge Antonio Salomão fêz uma
prece, concitando todos a rezarem pelo Brasil, pois que a situação era
insustentável, que nossos irmãos estavam brigando em Cascavel, no
Paraná, por pedaços de terras. Que estavam se matando. Que era o final
dos tempos ou que era falta de governo. [...]. que sou mais pela falta
de govêrno. Num país como o Brasil (dizem que Deus é brasileiro), onde
se desencadeiam greves diárias, senão vejamos: greves dos
confeccionadores de roupas feitas dos carris de gaz dos ferroviários
dos aeroviários dos radialistas, não é possível que seja o final dos
tempos, mas sim a exclusiva falta de governo.
26
Nesse quadro, ganharam destaque as questões de terra. Os movimentos agrários
eram tratados como perigo eminente de caos no campo. Em meio a notícias diversas,
sempre se encontravam pequenas notas sobre acontecimentos envolvendo posseiros e
proprietários em outros estados do Brasil. Tais notícias eram transcritas de outras fontes,
devidamente identificadas ao final da coluna:
25
O Progresso, 05 jan. 1964.
26
EU. Final dos tempos. O Progresso, 19 abr. 1964.
111
CASCAVEL Estado do Paraná Cerca de 1.500 posseiros de Cascavel
no Paraná, ameaçam rebelar-se contra detentores de títulos de terras. O
levante em perspectiva trás inquietação devido às graves conseqüências
que poderão advir. Os títulos de terras em disputa, foram conseguidos, no
governo do Sr. Moisés Lupion.
27
Notícias de conflitos entre posseiros e proprietários em outros estados era
recorrente. Segundo O Progresso, as invasões e atos de vandalismos nas propriedades,
estariam sendo incentivados pela Superintendência da Reforma Agrária - SUPRA e pelo
Comando Geral dos Trabalhadores - CGT, órgãos criados pelo governo de Jango. Todavia,
esses ataques seriam repelidos pelo governo e pelas classes proprietárias.
Em letras garrafais, o jornal destaca um incidente em Minas Gerais, estado onde
setores populares estariam se mobilizando contra a atuação dos órgãos subversivos. A
Frente de Mobilização Popular FMP, opôs-se ao comício realizado pela SUPRA, nas
dependências de um órgão público estadual na cidade de Belo Horizonte. Destacando a
humilhação que o movimento teria imposto a um membro do CGT quando este discursava,
a reportagem faz alusão ao combate a essas forças que estariam promovendo desordens ao
disseminar suas idéias subversivas.
28
Na mesma página, uma pequena nota indicava outra “invasão”, agora em Recife, na
região nordeste, onde: “Mais de 200 camponeses invadiram a fazenda Fragoso, pertencente
à Companhia Industria Reunidas Olinda. iniciaram a derrubada de capoeiras preparando
as terras para o plantio.”
29
O Progresso criticava as entidades camponesas e a SUPRA. Alertava que estava
em andamento no Brasil o caos social, com invasões de propriedades particulares. Caos no
campo e na cidade, caso as Reformas de Base de Jango fossem implantadas. Em artigo
publicado dias antes do golpe, o jornal demonstra o seu temor ao publicar a manchete
“INVASORES DE TERRAS : Reforma agrária está provocando movimento subversivo
em diversos Estados”. No artigo, o jornal informa sobre protestos de proprietários rurais
contra invasão de terras nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e São
Paulo, associando tais invasões como incitamento da SUPRA e da CGT. Segundo o jornal,
os proprietários estariam dispostos a defender suas terras de todas as formas possíveis, até
mesmo com a própria vida.
30
27
O Progresso, 19 jan. 64. Noticiado também em 26 de jan. 64.
28
Violência em Minas Gerais. O Progresso, 1 mar. 1964.
29
Trampolim de notícias. O Progresso, 01 mar. 1964.
30
O Progresso, 23 fev 1964.
112
Em relação ao problema agrário naquele período, nas palavras do O Progresso, a
solução não consistia simplesmente em desapropriar terras, este era um dos pontos
demagógicos do Decreto da SUPRA. O jornal combatia a reforma agrária proposta pelo
Governo, possuía uma outra visão de como deveria ser realizada. Segundo Weimar Torres,
o governo deveria distribuir primeiro as terras do próprio governo, que eram muitas, antes
de desapropriar terras produtivas, espalhando pânico entre os proprietários, causando
prejuízos na economia do país.
No afã de desqualificar o governo, a imprensa em geral não deu o devido
enquadramento ao decreto de desapropriação editado por Goulart. Os primeiros artigos do
decreto presidencial deixam claro quanto ao objeto de desapropriação: as terras
improdutivas que não estivessem cumprindo sua função social, ou seja, que não estivessem
produzindo. O artigo 2
o
do referido decreto afasta qualquer possibilidade de injustiça ou
dano irreparável à propriedade; sete itens protegem as áreas devidamente exploradas, entre
elas o item “d”:
Art. 2
o
Ficam excluídas das disposições desde decreto as propriedades
imóveis que se enquadrem em uma das seguintes hipóteses:
[...]
d) as que venham sendo social e adequadamente aproveitadas, com
índices de produção não inferior à dia da respectiva região, atendidas
as condições naturais de seu solo, os benefícios introduzidos pelos
investimentos da União em obras de irrigação e drenagem e sua situação
em relação aos mercados:”
31
As abordagens relativas às greves figuravam rotineiramente no jornal, ora em
pequenas notas, entremeio às noticias nacionais e também internacionais. A esta estratégia
do periódico é possível identificar a tentativa de associar as greves nacionais com agitações
que ocorriam em outros países, associando-as com atividades subversivas e tentativas de
infiltrações comunistas.
Atrelado à questão da terra, também eram freqüentes nos jornais, matérias sobre a
infiltração comunista em diversos estados brasileiros, principalmente no nordeste: “O
deputado, padre Medeiros Netto, classificou de realmente gravíssima a situação do
nordeste brasileiro. Denunciou que comunistas estariam pregando a revolução e criando
focos de agitação subversiva.
32
31
Decreto n. 53.700 – de 13 de mar. de 1964.
32
Trampolim de notícias. O Progresso, 26 jan 1964.
113
As acusações feitas pelo jornal contra Goulart eram baseadas sempre nas mesmas
temáticas: comunismo e desordem econômica. Quando os jornais se referiam à
antidemocracia, era a doutrina comunista que estava em discussão. O
jornal divulgava, constantemente, que o governo era subversivo e que expunha a nação ao
perigo comunista.
Encontramos no O Progresso que o comunismo estava em todos os lugares,
envolvendo o país dia após dia. Era necessário que o povo acordasse para essa realidade
antes que fosse tarde. A pregação anticomunista estava em pauta quase que diariamente. A
iminência do perigo comunista foi amplamente alardeada nos jornais brasileiros.
A afirmativa mais freqüente, encontrada nos jornais nacionais, era a de que o
governo atentava contra a democracia. O presidente João Goulart era apontado como o
causador da instabilidade social e pelo clima se subversão no país. Não haveria paz se
Jango permanecesse no governo.
33
Do mesmo modo, a propaganda anticomunista no Brasil também foi muito intensa.
João Goulart era constantemente desqualificado pela imprensa, que não poupava adjetivos
jocosos para ridicularizá-lo, ou demonstrar sua incapacidade de governar. Capelato ao
analisar o jornal O Estado de São Paulo, lembra que o mesmo posicionou-se contrário a
João Goulart desde a posse. O jornal, segundo a autora, chamou de “covarde” a renúncia
de Janio Quadros, o responsável
[...] pela queda do poder nas mãos do discípulo dileto do ditador morto
(Vargas). A posse de Goulart estabeleceu uma batalha, a ser travada entre
duas forças: “Desde então o conflito tornou-se inevitável e nele um dos
contendores teria de sair liquidado. [...] A batalha travou-se entre duas
forças: “De um lado as hostes revolucionárias, comandadas, doutrinadas
e organizadas pelos adeptos do credo de Moscou; de outro os elementos
ao serviço da democracia, cada vez mais conscientes do seu papel.
34
Goulart foi também acusado pela imprensa de não resolver os problemas
econômicos do Brasil, de ser um incapaz de se definir politicamente. A idéia de que Jango
era um indeciso, atribuía-se à sua política conciliatória, que procurava sempre manter o
equilíbrio entre forças sindicais, militares e partidárias, optando por não tomar decisões
que opusessem tais setores.
Embora não escrevessem claramente que o presidente pretendia implantar um
regime comunista no Brasil, o perigo que isto pudesse vir a ocorrer era diariamente
33
CAPELATO, Maria H. R. op. cit., p. 37.
34
Ibidem p. 54.
114
associado àdesordem” vista no Brasil, no caso das greves, das manifestações populares,”
e que tais movimentos eram respaldados pelo presidente, que queria mostrar-se como
salvador dos trabalhadores.
A imprensa sempre responsabilizava Goulart pelos problemas nacionais, chamando
atenção para sua falta de ação contra uma situação caótica que se agravava cada vez mais.
Os ataques eram sucessivos e visavam mostrar o presidente como um político fraco, sem
condições de presidir o país. Havia, portanto, uma constante componente desqualificadora
em relação ao presidente.
No auge da crise em 64, O Progresso, de tendência católica, insinuava que os
cristãos não se conformassem com os acontecimentos, não deviam apoiar a baderna, a
revolução, o caos, a injustiça. Assim, como oposição ao governo, o jornal tratou as greves
como desordem interna, provocadas pelo desgoverno de Jango, não como um direito
trabalhista e um ato de cidadania. O jornal destaca, na edição do dia 8 de março, uma
referência à fala do arcebispo de Brasília, Dom José Newton, sobre a realização de um
congresso sindical na capital federal. Com o título “Não basta um anticomunismo passivo”,
além de condenar a mera resistência ao comunismo, o bispo conclama todos a:
uma ação positiva, que encare de frente e com sinceridade, sem interesses
mesquinhos, nem apego a situações de privilégio econômico e social, a
resolução de nossos problemas de ordem social. Enquanto os comunistas
querem resolver esses problemas erroneamente, resolvamo-los nós
cristãmente à luz das maravilhosas encíclicas sociais de nosso tempo.
35
O jornal compartilhava da idéia de que o cristianismo era a única doutrina capaz de
resolver os problemas sociais do Brasil, porque tirava do homem o egoísmo. Assim,
veiculava opiniões de autoridades eclesiásticas, da hierarquia católica, os quais apontavam
que a solução para as dificuldades estava nos ensinamentos das encíclicas sociais da Igreja.
Nesse período havia terminado o concílio Vaticano II.
Combateu politicamente o governo Goulart e foi a favor do golpe de 1964. Segundo
o jornal, a preocupação maior daqueles que tramaram o golpe de 64 foi, sem dúvida
alguma, a de resguardar o regime democrático vigente no país, e esse objetivo foi
alcançado.
O Progresso que representava a elite agrária e urbana local, era um jornal que se
voltava muito para os problemas econômicos do estado e também do país. Sua posição
35
O Progresso, 08 mar. 1964.
115
política frente a Goulart e ao golpe não diferia dos demais jornais nacionais, construiu
imagens desqualificadoras do governo Jango e aceitou o golpe de 64 como legítimo.
A campanha lançada contra Goulart por parte de seus opositores políticos e pela
imprensa, foi acentuada, principalmente a partir de outubro de 1963, quando João Goulart
enviou mensagem ao Congresso pedindo a decretação de Estado de Sítio. O Progresso
acentuou a gravidade da situação no Brasil, mencionando o pedido de Goulart ao
Congresso e, ao mesmo tempo, indicando a ocorrência de greves no Brasil: “Greves em
São Paulo: dos ferroviários; do departamento de Águas; dos carris; dos bancários; do
departamento de estradas de rodagens; No Rio: greve dos carris e dos estaleiros”.
36
Um leitor mais atento, facilmente notaria a insinuação de completo descontrole da
situação, sentida pelo próprio presidente ao solicitar tal autorização ao Congresso.
Nos últimos meses de 63, o clima de acusações era constante e cada vez mais
colérico, como a manchete contra Leonel Brizola, que atacara o jornalista David Nasser.
Com o tulo PALHAÇADA!!!, o jornal relata o episódio em que o deputado Leonel
Brizola agrediu o jornalista no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Segundo o jornal,
Brizola, que estava acompanhado de vários capangas, agrediu o jornalista pelas costas.
Dupla covardia vez que, além de estar protegido por capangas, ainda agrediu pelas costas o
jornalista, que assim se pronunciou: “[...] O episódio de poucos instantes no Galeão
serve para mostrar que espécie de gente está governando o Brasil”.
Juntando-se a outros órgãos da imprensa nacional, O Progresso também hipotecou
solidariedade ao jornalista: “O Progresso envia sua solidariedade ao jornalista David
Nasser, pois a ação e o destemor de homens como ele serão capazes de nos tirar do mar
de lama em que vivemos, por exclusiva culpa de nossos governantes”.
37
Com relação ao comício das reformas realizado no dia 13 de março, nenhuma
notícia consta nos números seguintes do jornal. É bem verdade que àquela época o jornal
ainda era semanal. Nas edições entre 08 de março e 15 de março de 64 encontramos
algumas notícias sobre a ameaça comunista no país, mas nenhuma nota sobre o comício
realizado.
Na tentativa de angariar simpatia popular pelo projeto das Reformas de Base, os
conselheiros do governo decidiram que era preciso mobilizar a população, visando
“congregar as forças populares, a maioria dos brasileiros, contra a elite egoísta que tinha
36
O Progresso, 06 out. 1963.
37
O Progresso, 29 dez. 1963.
116
tanta prática em manobrar a política democrática”.
38
O comício foi cuidadosamente
planejado:
[...] um comício-monstro a ser realizado naquele dia na Praça da
República. Os preparativos indicavam que aquela não seria uma
concentração política como as outras. O palácio presidencial anunciou
que os oradores falariam do mesmo palanque de madeira que havia sido
construído para os mais famosos aparecimentos de Getúlio Vargas em
público [...]. Semanas antes o governo mobilizou os que deviam tomar
parte na concentração. Os trabalhadores da Petrobrás, das refinarias do
Estado do Rio de janeiro, e os elementos de vanguarda dos sindicatos
operários, seriam transportados à custa do governo.
39
Não por ocaso também foi a escolha do lugar de realização do comício: o estado do
Rio de Janeiro, governado pelo “mais extremado antigetulista do Brasil, Carlos Lacerda”,
que decretou feriado para o dia da realização do comício, na tentativa de esvaziar o
evento.
40
Cerca de 150 mil pessoas compareceram ao evento, acenando faixas e cartazes
pedindo a implantação das Reformas de Base e a legalização do Partido comunista, sob a
“proteção” de metralhadoras portadas pelos pelotões da polícia do Exército, ali colocados
para garantir a ordem.
A “[...] cena, levada aos lares da classe média em todo país, pela televisão”, que
assistiu além do discurso inflamado de Leonel Brizola pedindo por uma Assembléia
Nacional Constituinte, a assinatura de dois decretos presidenciais: o primeiro nacionalizava
todas as refinarias de petróleo particulares e o segundo, o decreto da SUPRA,
desapropriando propriedades com mais de 100 hectares localizadas ao largo de rodovias.
41
Logo após o comício de 13 de março, nenhum ataque se fez ao comício e sim,
sinais de alerta contra o perigo comunista. Numa mesma página, quatro pequenas notas
apontam para a seleção de notícias com esse teor. Uma delas é de um estudante,
38
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, op. cit., p. 346.
39
Ibidem, p. 346.
40
Ibidem, p. 347.
41
Ibidem, p. 348-349.
117
enaltecendo a família, os valores morais e cristãos. As outras três são mais explícitas:
“Levante feminino conta o P.C. noticia que o movimento feminino, Liga feminina
democrática, de Minas Gerais, protestou contra a realização do congresso da CUTAL; “28
atletas desertam do paraíso vermelho”, comenta a deserção de atletas húngaros, tchecos e
poloneses aproveitando a realização de jogos de inverno. Os atletas teriam pedido asilo
político na embaixada austríaca; “Comunistas os responsáveis pelas desordens em Minas”,
denuncia a infiltração de comunistas em sindicatos fundados pela SUPRA, os quais
estariam promovendo agitações em Minas Gerais.
42
O Progresso interpretou o golpe de 64 como resultante da política demagógica de
Jango, preocupada apenas em desestabilizar o país, transformando-o numa república
sindicalista. O golpe resultou, também, da escolha de métodos equivocados de governo, da
infiltração comunista no governo e da liberdade extrema dada a agitadores. Foi resultante
da falta de pulso firme de Jango. Afirmou que deveria haver mudanças, mas sempre
respeitando as tradições, a lei, o respeito à propriedade, às liberdades individuais e
públicas. Acabou justificando o golpe, principalmente porque era contra qualquer
manifestação comunista que estava presente nas ações da esquerda. Absorveu o discurso
da ordem e do anticomunismo que foi a ideologia do golpe de 64.
Como a maioria da imprensa do estado e no restante do país, criou uma imagem
muito negativa de Goulart, sempre o demonstrando como um comunista e baderneiro, na
medida em que não coibia insubordinações internas. O Progresso justificou o golpe de 64
como um ato legítimo em defesa da democracia. Mesmo se declarando aberto às opiniões,
era um jornal que defendia os interesses do PSD na região e estava sempre disposto a
atacar João Goulart e defender os princípios ideológicos pessedistas e não trabalhistas.
A manchete do dia 05 de abril de 1964, a primeira edição semanal após o golpe, em
letras graúdas e em negrito, anunciou:
JANGO RENUNCIA
O Sr. João Goulart, não resistindo a situação criada por ele mesmo,
assinou no dia 1
o
de abril, na Guanabara, a sua renúncia à presidência da
República, enseguida (sic) requisitando um avião da Varig e tomando
rumo ignorado.
43
42
O Progresso, 15 mar. 1964.
43
Ibidem, 05 de abr. 1964.
118
Na mesma página, uma outra nota noticiava a tomada do palácio do governo no Rio
Grande do Sul por Leonel Brizola e o III Exército e sua posterior rendição frente ao II
Exército de São Paulo, que acorreu ao sul para debelar a rebeldia sulina. E logo abaixo, a
notícia sobre a prisão de dois oficiais gaúchos que portavam a importância de um bilhão de
cruzeiros.
Nessa edição, ainda se destacam algumas notícias, as quais indicam uma certa
consciência sobre o que poderia realmente estar por trás dos acontecimentos. Logo a seguir
às notas sobre Brizola, noticiam-se ocorrências de prisões e perseguições que estariam
acontecendo por todo país. Indicando inclusive os autores de tais atos arbitrários: “Basta
um indivíduo ser do PTB para correr risco. E os acusadores são fontes udenistas. O PSD se
mantém calmo e ponderado”.
44
A UDN, de fato, tomou para si a tarefa de “limpar” o estado de forças petebistas, as
quais julgavam nefastas. Demosthenes Martins, chefe político da UDN, que nunca
escondeu sua desconfiança em relação às intenções de Jango, durante a gestação do golpe,
em Mato Grosso, assegurou ao coronel Meira Mattos que a UDN respaldaria as ações do
Exército. E que não haveria perigo de um posicionamento contrário entre sul e norte, como
acontecera em 1932, por ocasião da revolução constitucionalista. Martins assegurou a
Meira Mattos:
[...] que a unidade de ação estava assegurada pelo respaldo da UDN, ora
detentora do Governo Estadual, das Prefeituras Municipais e do domínio
político que a repulsa popular aos extremismos aglutinava. O próprio
PTB, o partido de Goulart, em Mato Grosso se embasava no meio rural
cujas tendências eram desfavoráveis ao extremismo de esquerda. Por isso
não iriam os trabalhistas se enforcarem nas próprias tripas. O Exemplo
dos kolkozes russos estava à mostra [...].”
45
As palavras de Martins são esclarecedoras, no sentido de que, na realidade, os
próprios udenistas reconheciam a inexistência de comunistas na região. Se o exemplo russo
não era simpático entre os colonos, por quê razão os udenistas se voltaram tão
violentamente contra os petebistas? A tomada de poder político justifica as ações
udenistas. Em todo estado, os petebistas foram caçados. Desde o simples simpatizante ao
ativista mais atuante, estes sim foram as grandes vítimas das garras udenistas.
44
O Progresso, 04 abr. 1964.
45
MARTINS, Demosthenes. A poeira da jornada, op. cit., p, 239.
119
Sobre a reforma agrária, a posição do jornal era categoricamente contrária.
Mencionava que os objetivos de Goulart eram demagógicos e a intenção de Goulart, do
governo, era tomar as propriedades privadas e as redistribuir injustamente. O princípio da
propriedade privada era defendido com veemência pelo O Progresso e não se admitia a
idéia de se tocar nessa tradição.
O Progresso exigia de Goulart autoridade, um governo forte e decidido que
precisava organizar sua casa, colocando homens certos nos cargos certos. O governo
necessitava, segundo a posição do jornal, mostrar trabalho e se afastar da política de seu
partido o PTB que iria destruí-lo. No artigo escrito por Weimar Torres, intitulado: “Mais
uma janguice” é possível captar a revolta contra a política de Jango.
O Progresso elaborou um discurso de legitimação ao golpe, expondo que os
acontecimentos ocorridos depois de 31 de março de 1964 foram motivos de alegria, de
otimismo e de orgulho para o povo brasileiro. Mencionou que as Forças Armadas, junto
com a imprensa, com civis e com empresários reagiram à subversão dos princípios
democráticos e dos valores espirituais. O golpe teria sido em nome da Constituição, da
hierarquia e da paz social, portanto era legítimo. Doze dias após a renúncia de Jango, o
jornal publicava sua primeira grande matéria sobre o fato. A chamada para a matéria
completa anunciava, na primeira página:
PEQUENA HISTÓRIA DE UMA GRANDE REVOLUÇÃO
No dia da mentira começou uma Revolução de Verdade
Está terminada a Revolução que alijou do Poder o Sr. João Goulart. O
Exército mais uma vez saiu dos quartéis para mudar o destino da Nação.
Queira Deus que seus propósitos não sejam desvirtuados pela ambição
dos políticos que se julgam vencedores e pela vingança contra os
vencidos.
46
As ideologias do anticomunismo e da defesa da ordem, para se evitar uma
suposta revolução que vinha das esquerdas e do governo Goulart foram as bandeiras para
legitimar o golpe militar de 64. Transformaram Goulart num monstro vermelho,
desgastando sua imagem pública que serviu para justificar a intervenção dos militares na
tomada do poder em 64.
46
O Progresso, 12 abr. 1964.
120
O presidente João Goulart foi um governante que hesitou, que não soube conduzir o
processo de aprovação de suas reformas, não teve competência para administrar as crises
daquele período, seu discurso era demagógico, porém, não era comunista.
De fato, o que Goulart queria era aprovar as reformas de base e não mudar o regime
democrático e transformar o Brasil num país comunista. Contudo, seus opositores políticos
junto com a imprensa, articularam um discurso anticomunista que coadunando com a crise
financeira, política e social, derrubou-o e foi fundamental para justificar o golpe militar.
Ao visitarmos a produção de alguns memorialistas mato-grossenses sobre o
período, analisamos a recorrência ou não dos discursos veiculados pela imprensa. Os
episódios relativos ao golpe são narrados pelos escritores regionais, logo após 64 como
uma revolução justa e necessária, levada a efeito para salvar o país contra o perigo
comunista. Justificando o golpe, os autores, mais uma vez, irão sedimentar a imagem
heróica de personagens regionais, enaltecendo seus feitos e suas lutas pelo progresso do
Estado.
São essas histórias, escritas por segmentos da elite mato-grossense que ajudaram a
sedimentar a ideologia do desenvolvimentismo e do progresso e do combate a tudo o que
significasse perigo ao alcance desses objetivos. No Mato Grosso do Sul, as produções dos
memorialistas derivam, na maioria, de autores filiados ao Instituto Histórico e Geográfico
de Mato Grosso IHGMT e Academias de Letras de Campo Grande e Cuiabá. Esses
autores, também estiveram ligados a órgãos públicos, na condição de funcionários. Suas
obras tratam-se, pois, de uma história política “oficial” na medida em que foram
produzidas por pessoas com livre trânsito nas diversas esferas do poder. Essa memória
oficial, ora tomada como fonte, possibilita um certo entendimento sobre o golpe militar de
1964, ou seja, a partir da visão dominante. Considerando que a produção analisada, tem
como autores, pessoas ligadas aos seguimentos citados, é possível dizer que tal leitura que
fizeram revela o interesse na manutenção de uma memória favorável ao poder hegemônico
e conciliador das elites mato-grossenses.
A primeira consideração a fazer é esclarecer o entendimento explicitado pelos
memorialistas a respeito de Revolução, o movimento político de 1964, quando militares
ligados às Forças Armadas removeram do poder central, um presidente eleito
democraticamente.
47
47
Em 1960 João Goulart , do PTB, foi eleito Vice-Presidente e Jânio Quadros, do PTN, para Presidente da
República do Brasil. Com a renúncia de Jânio Quadros, em 08/61 João Goulart tornou-se sucessor legítimo
ao cargo vago.
121
A obra História de Mato Grosso, escrita pelo memorialista Demostenes Martins,
procurou demonstrar através da biografia dos governadores do estado do Mato Grosso, as
contribuições valorosas de cada um nos campos políticos, sociais e econômicos.
Os acontecimentos relativos ao golpe de 64 são narrados no capítulo dedicado ao
governo de Fernando Correa da Costa (1961-1966). Nota-se a preocupação do autor para
com o estado democrático, seriamente colocado em perigo por Jango, mas que, segundo
Martins, prevalecera no Estado em função da eleição de Fernando Correa da Costa. Eleito
pela UDN, um partido da oposição vigente, Correa da Costa concorreu com Wilson Fadul
(PTB) e Fillinto Müller (PSD). A eleição de Correa da Costa foi atrelada à vitória do mato-
grossense Jânio Quadros para presidência da República, no mesmo ano, pelo mesmo
partido político, a UDN.
Segundo Martins, a eleição de Jânio Quadros ensejou novos rumos para o Mato
Grosso, estado que “sempre vivera à mingua de favores federais [...] desde os tempos do
Império”. As expectativas positivas levaram os governadores da região Centro-Oeste a
estabelecerem um plano de desenvolvimento que abrangia todos os setores.
48
Entretanto,
ao se iniciar a implantação dos planos, as expectativas foram frustradas com a renúncia de
Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Com a posse do vice-presidente João Goulart,
como no restante do país, pairava também sob o Mato Grosso os fantasmas criados em
torno do governo de Jango, cujas idéias, para Martins “[...] se chocavam, frontalmente,
com o regime democrático”. Coube à UDN reagir, insurgindo-se contra o projeto do
presidente que, se levado à cabo, conduziria o país ao caos.
O Brasil, como os demais países alinhados aos Estados Unidos, compunha com este
último um dos pólos centralizadores da Guerra Fria, assim entendido, nos anos 60, o
conflito ideológico entre capitalismo e socialismo. Liderados pelos norte-americanos, os
países da América Latina posicionavam-se contra o perigo do avanço comunista, latente no
imaginário dos países capitalistas, após a ainda recente vitória da revolução cubana em
1959, vencida com apoio da União Soviética, o outro pólo centralizador representando a
hegemonia comunista.
Esta mesma preocupação com a preservação da propriedade privada manifestava-se
também no estado do Mato Grosso. Nesta região, os movimentos sociais foram
48
Refiro-me à Reunião de Governadores da região Centro-Oeste, ocorrida em 29 de abril de 1961, presidida
por Jânio Quadros, seu ministério e órgãos de fomento, na qual foram traçados planos de desenvolvimento
para os estados envolvidos.
122
interpretados como atentados à democracia. Assinalou Martins sobre a ação do governador
na desarticulação de uma concentração de lavradores, na parte norte do estado:
E, quando, a 13 de março, em conotação com as agitações que se
desaçaimavam sob inspiração comunista, pretenderam realizar um grande
comício em Rondonópolis, centro agrícola que se formava com a chegada
de levas de lavradores nordestinos _ comício cujo propósito era a
ocupação de fazendas da região _ a sua ação não se fez omissa ou
esquiva. Impediu-o, através da Secretaria da Justiça, seguro de que esse
comício seria a sementeira da subversão da zona rural, [...]. Esses
cidadãos, que não eram poucos, esqueciam-se do preceito constitucional
que proíbe processos violentos para subversão da ordem político-social.
49
Por ocasião do golpe, temiam-se posicionamentos divergentes entre o norte e o sul
do estado. Tal receio derivava-se da revolução constitucionalista de 1932, ocasião em que
o norte alinhou-se ao governo de Getúlio Vargas, o sul o combatia. Mas segundo
Demosthenes Martins, isso não aconteceu porque um “espírito patriótico” uniu o povo de
Mato Grosso. Em 1964, em detrimento de
[...] graves, agitações políticas, econômicas e sociais, que culminaram
com a Revolução de 31 de março de 1964, movimento patriótico com o
qual esteve solidário, desde a fase conspiratória, conseguiu Fernando
Corrêa ver a unidade da opinião pública do Estado sufragar sem
discrepância o veredictum nacional de condenação do governo João
Goulart”.
50
Foram os governos pós-64, revolucionários, que alavancaram o Estado do Mato
Grosso, inserindo-o no plano de integração nacional. O apoio federal lançou o Estado a
conhecer uma nova era de progresso.
A poeira da jornada é outra obra de cunho autobiográfico de Demosthenes
49
MARTINS, Demosthenes. História de Mato Grosso. Rio de Janeiro : Ed. Resenha Tributária : 1970. p.
131.
50
Ibidem, p. 132.
123
Martins. Nela, o autor narra sua trajetória de vida no estado, aonde chegou por volta de
1915, fixando-se em Aquidauana. Ocupou vários cargos públicos, um deles, no ano de
1964, o de Presidente da Comissão Estadual de Investigação. Esta Comissão destinava-se a
apurar irregularidades e atividades subversivas por parte de funcionários públicos estaduais
e municipais.
Claramente favorável à revolução de 64, logo na introdução do livro, Martins
posiciona-se firmemente pelo movimento que depôs João Goulart:
Na conjuntura ameaçadora, conseqüente da desordem que se espraiava
com as greves injustificadas abalando a estrutura econômica e a
indisciplina – minado a ordem nas instituições militares...
A Revolução de 31 de Março foi, portanto, a conclamação vitoriosa às
forças vivas de nossa formação democrática, despertadas pelas preces
cristãs da mulher brasileira nas ruas e praças públicas, para o combate à
preparação, que se desenlapava, da comunicação nacional.
51
A poeira da jornada é, ao nosso ver, o testemunho mais contundente das ações da
UDN no estado, sendo o autor um de seus mais ferrenhos partidários. Narrando sua
trajetória política, Martins expõe a trajetória de seu próprio partido político, as ações
desenvolvidas pelo seu partido, a UDN, sua luta pelo poder regional e seu apego à
propriedade da terra.
Outra obra, História das revoluções em Mato Grosso, de Rubens de Mendonça, o
autor discorre sobre a violência generalizada no Estado desde os tempos do Império,
denominando esses movimentos de “Revoluções”. Quaisquer que fossem os motivos que
levassem à condução ou deposição dos grupos alojados no poder eram chamados de
revolução
52
. Mendonça faz menção especial ao movimento de 31 de março de 1964,
delegando a um militar graduado, o general Carlos de Meira Mattos, a honra de escrever
sobre tão importante acontecimento. Mereceu algumas desconfianças a autoria deste
capítulo, na obra de Mendonça, pelo total envolvimento e livre trânsito do autor entre o
governo, bem como no exército. Segundo Zorzato, é provável que o próprio Mendonça
tenha escrito sobre o episódio.
Sob o título Participação de Cuiabá na Revolução de 31 de março de 1964”, o
general Mattos, retrocede ao início dos anos 60, quando ainda era coronel, para narrar sua
preocupação com o perigo subversivo que se avizinhava:
51
MARTINS, Demonsthenes. A poeira da jornada. São Paulo: Ed. Resenha Tributária, 1980. p. 15.
52
Sobre o conceito de “revolução”, ver ZORZATO, 1998, p. 135: “[...] o tema “revoluções, é ressuscitado,
numa evidente instrumentalização da memória histórica para justificar opções políticas”.
124
Assim é que desde sua chegada a Cuiabá, para assumir o Comando do 16
o
BC, em princípio de outubro de 1963, o então CORONEL CARLOS DE
MEIRA MATOS, preocupou-se em fazer a pregação, entre os seus
oficiais e amigos civis, sobre a necessidade de se estar preparado para
apoiar-se num movimento de salvação de nossa democracia e de
restauração dos costumes políticos, movimento este em gestação nas
principais capitais do país.
53
Com apoio irrestrito do governador Correa da Costa, o então coronel Mattos
contatou outras lideranças locais, dentre elas, do fazendeiro Mário Spinelli e do padre
Wanir, que também dirigia uma emissora de rádio na cidade de Cuiabá. Vários encontros
se passaram, oportunidades em que se discutiam estratégias para conter a avalanche de
desmandos que avassalavam o país. Seguiram-se palestras para oficiais e sargentos, além
de conversas informais com os vários segmentos da sociedade de Cuiabá. Pretendia-se,
nessas oportunidades, armar o espírito do cuiabano contra o situacionismo, assim
entendido qualquer movimento de apoio ao governo João Goulart. A participação de
Cuiabá foi, segundo o general Mattos, decisiva para resguardar os interesses da revolução.
Convocou tropas do exército de rios Estados a marchar para Brasília, em defesa da
revolução. A estratégia por ele arquitetada não deu condições de qualquer reação contrária
à tomada de poder, muito embora, em sua narrativa, apenas uma unidade do exército, a de
Goiás permanecesse fiel ao situacionismo. Visando domínio completo da situação, o
general Mattos rumou para Goiânia, em avião particular, a fim de dominar a situação
incerta ali manifestada.
Seguiu, logo após, para Brasília para juntar-se às demais tropas. Após a fuga de
João Goulart e seu séqüito, segundo o general Mattos, a situação em Brasília, no dia 2, era
de completa tranqüilidade, ou perplexidade:
Ninguém imaginara, que aquele governo que tanto ameaçara com seus
famosos esquemas sindicais e dispositivos militares, caísse tão
facilmente, fugisse tão depressa, não encontrasse ninguém que quisesse
defendê-lo.
54
Logo após a posse do presidente Castelo Branco, o general Mattos foi convocado
para compor a equipe do novo governo. Passou a exercer as funções de Subchefe do
Gabinete Militar do Presidente da República. A tropa, agora sob o comando do Major
53
MENDONÇA, Rubens. Revoluções em Mato Grosso. Cuiabá: [s/d], 1970. p. 197.
54
MENDONÇA, História das Revoluções em Mato Grosso. Cuiabá: [s/d], 1970, p. 201.
125
Otiles, trouxe a gloriosa unidade de volta a Cuiabá, onde foi recebida carinhosa e
entusiasticamente pela população.
A polícia de Mato Grosso: história evolução (1835-1985), obra escrita por um
membro do oficialato da polícia militar, narra a trajetória desse segmento no Mato Grosso.
Trata-se de um compêndio dos acontecimentos e atos oficiais, relatados ano a ano, da
polícia militar. Como uma obra produzida dentro dos meios oficiais, também as alusões
sobre 64 fazem menção a uma revolução para salvaguardar o Brasil, que andava à beira da
anarquia. Precisamente sobre o general Mattos assinala, no tópico de 1963:
No dia 8 de outubro deste ano o Coronel E.B. Carlos de Meira Matos
assumia o Cmdo. Do 16
o
B.C. e cinco meses depois marchava com o
Batalhão para Brasília, a fim de consolidar a deposição do Presidente
Jango Goulart, quando o Brasil andava a beira da anarquia.
55
No tópico de 1964, Ribeiro afirma ter sido este o ano da Revolução, todavia, nas
anotações de rotina do quartel, não se teve notícia de nenhuma alteração. Apesar disso o
quartel postou-se de prontidão geral, em obediência à ordem superior, assim permanecendo
até a confirmação da vitória da Revolução, “sem derramamento de sangue, uma vez que o
Dr. Jango Goulart não resistiu, evadindo-se para o território uruguaio”.
Ainda neste tópico chama atenção a seguinte anotação: Face ao novo regime
imposto pela Revolução, o governo de Mato Grosso criou a Comissão de Investigações e
estabeleceu normas para execução do Art. 7
o
do Ato Institucional, conforme Boletim
do C.G. de 14.05.1964. Essas foram os únicos apontamentos sobre o golpe de 1964.
56
Dentre as obras analisadas, a única que relata as conseqüências para os opositores
ao golpe, trata-se de um livreto de poesias, intitulado Verde a Liberdade, de autoria do ex-
deputado estadual Pedro Luiz de Souza. Trata-se de um poema de 412 estrofes, escritas
logo após o golpe de 64, ocasião em que o autor foi preso. O ex- deputado faz um histórico
dos acontecimentos decorrentes do golpe de 64 no estado de Mato Grosso. Quando de sua
prisão, o autor não exercia cargo eletivo, todavia era partidário do PTB e ocupava cargo
público de chefe da Agência do IPASE, órgão federal carcomido pela corrupção e saneado
durante a gestão do autor, que para isso se valera de medidas legais para afastar do
Instituto funcionários que chegavam ao cúmulo de explorar seguradas da Agência.
57
55
MONTEIRO, Ubaldo. A polícia de Mato-Grosso: história-evolução (1835-1985). Cuiabá: [s/d], 1985, p.
85.
56
Ibidem, p. 85.
57
SOUZA, Pedro Luiz de. Verde a Liberdade. Campo Grande: Gráfica Ruy Barbosa, 1965.
126
Estava em Cuiabá quando veio o golpe. Como afirma em suas rimas, prontamente
pôs seu cargo à disposição e ficou à espera de substituição. No lugar da substituição veio a
prisão. Ficou 44 dias preso, sem saber qual a razão, todavia sabia, era simples
perseguição.
Seus versos denunciam a perseguição de funcionários públicos e de partidários do
PTB, como ele próprio. O corajoso relato, em pleno ano de 1965, em que pesa a revolta
por conta de sua prisão, não o exime de concordar com o golpe. À sua maneira, manifesta
seu pensamento concorde e finaliza o poema:
Vou aqui finalizar
Minha humilde narração,
Só desejamos progresso
A esta Revolução,
E que ela possa promover
A grandeza da Nação.
[...]
Possa livrar nossa Pátria
Dêstes preceitos tiranos,
Aqui uns brigam por russos
Outros, por americanos,
Enquanto isso o país
Vai entrando pelos canos.
Desejamos que o Brasil,
Saia já desse processo,
E que o nosso governo
Promova o maior progresso
Transformando seu trabalho
Num retumbante sucesso.
58
Das obras até então mencionadas, teceremos algumas críticas produzidas por
trabalhos acadêmicos, resultados de pesquisas, os quais auxiliam na desconstrução desses
discursos.
É ponto pacífico que, as obras de cunho memorialístico já mencionadas, ao tratarem
do movimento que depôs João Goulart da presidência, interpretam-no como Revolução. A
tradição das revoluções no Mato Grosso, deriva dos tempos da formação histórica do
Estado. Buscando legitimar ações violentas em busca de poder, grupos políticos rivais
impunham-se uns aos outros, reivindicando aceitação de seus confrontos autodenominados
revolucionários. Segundo Osvaldo Zorzato, que discutiu a identidade regional forjada
pelos escritores do IHGMT: “o [...] regime instaurado no Brasil em 64, [...] pode ser
58
Ibidem, p. 86.
127
tomado no campo das invenções das tradições revolucionárias produzidas pelos discursos
históricos regionais”.
59
Na esteira dos temores elitistas, vamos encontrar o estado de Mato Grosso, por
ocasião do golpe de 64, numa fase de crescimento vertiginoso, proporcionado por
programas de desenvolvimento
60
patrocinados pelo governo central, e que teve como
conseqüência um aumento significativo da população do estado. Elites, as quais de acordo
com Zorzato ao estudar a construção identitária de Mato Grosso, acostumadas às tradições
revolucionárias e tentavam se impor aos novos integrantes da população, a sua posição de
elite condutora, a quem os chegantes deveriam se adaptar.
A tradição revolucionária dos mato-grossenses justificava a identificação natural
com o golpe de 64 e o discurso democrático dos militares. Segundo Zorzato:
Seguindo esta pista democratizante da historiografia, talvez seja oportuno
acrescentar que o regime instaurado no Brasil em 64 funde-se também
com os campos simbólicos produzidos regionalmente. Um exemplo pode
ser tomado no campo das invenções regionais. Com ele o discurso do
poder estabelece uma simbiose em que as memórias se confundem, se
plasmam e se refazem, e com as quais os que sustentam o regime
inclusive as elites regionalizadas legitimam o seu exercício de
dominação.
61
Eudes Fernando Leite, em seus estudos sobre o golpe de 64, na cidade sul-mato-
grossense de Aquidauana, partilha do mesmo entendimento. Para ele, o conceito de
Revolução foi apropriado pelo discurso militar que visava, entre outras razões, apoiar o
golpe que derrubou um governo legitimamente eleito:
Assim, o “departamento” mental da cúpula militar procurou justificar,
enfatizando a necessidade e a utilidade da “Revolução Democrática” de
31 de março para a sociedade. Iniciava-se aqui a apropriação de um
conceito com sinal invertido. A “Revolução” tornou-se um conceito
universal e inespecífico. Conscientemente ou não, os estrategistas
ideólogos ligados aos militares perceberam a possibilidade de usar um
termo bastante comum no período, tornando-o útil ao regime recém-
inaugurado.
62
59
ZORZATO, Osvaldo. Conciliação e identidade: considerações sobre a historiografia em Mato Grosso
(1904-1983). São Paulo. Tese (Doutorado em História). USP, 1998, p. 128.
60
Plano de desenvolvimento da Amazônia Legal, criada pela Lei 1806/53, região definida não pelo
estado do Amazonas, mas também por outros estados da região norte e centro-oeste, dentre os quais o
Mato Grosso.
61
ZORZATO, Osvaldo. op. cit., p.128.
62
LEITE, Eudes Fernando. Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia: nos entremeios de uma pretensa
revolução. Dissertação (Mestrado em História). Assis, UNESP, 1994, p. 105.
128
Na opinião de Daniel Aarão Reis, a revolução foi uma forma de apresentar à nação
uma justificativa que diferenciasse dos demais golpes de estado latino-americanos. Para
esse autor:
Os homens do Comando Supremo falavam em nome de uma revolução,
querendo explicitar a perspectiva de que não tinham promovido uma
intervenção de caráter passageiro, mas algo mais profundo. O que,
exatamente, poucos, talvez nem eles mesmos saberiam dizer naquele
momento.
63
O engodo visou encobrir que a revolução, na verdade, tratava de defender os
valores cristãos e democráticos. O discurso revolucionário serviria para desconstruir o
antigo regime representado por João Goulart, e desta forma, legitimar o novo governo.
64
Todavia, assevera Aarão Reis, a eleição indireta de Castelo Branco não foi consenso no
Congresso Nacional, devidamente depurado por inúmeras cassações de mandatos.
Muitos parlamentares conheciam os planos das Forças Armadas para o país. Não eram
segredos os estudos e projetos desenvolvidos pela ESG, disseminados pelas veias militares
que atingiam a sociedade civil, através de cursos ministrados nas Associações dos
Diplomados na Escola Superior de Guerra, as ADESGs. Em geral, era freqüentadora destes
cursos, uma elite previamente selecionada nos setores mais destacados da sociedade, o que
conferia ao participante um certo status.
Curiosamente, a cartilha da ESG, no seu esquadrinhamento da sociedade brasileira,
enquadra as Forças Armadas como grupos de pressão:
que correspondem a organizações que, tendo papel preponderante em
outras Expressões de Poder Nacional, atuam junto aos órgãos de
Expressão Política, buscando influenciá-los. [...] podem-se exemplificar,
as atuações, à maneira dos grupos políticos, de atores coletivos como o
Empresariado, o Sindicalismo, a Mídia, a Igreja, a Universidade e,
mesmo, as Forças Armadas. Essas atuações, cuja relevância varia de
conjuntura para conjuntura, podem chegar à caracterização de
verdadeiros centros de poder [...].
65
A atuação desses grupos, que se alteram de acordo com a conjuntura do momento,
de certa forma coaduna com o comportamento das Forças Armadas por ocasião do golpe
63
REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro : Zahar, 2000. p. 36.
64
REIS, Daniel Aarão. op. cit., p. 36
65
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Fundamentos doutrinários. Rio de Janeiro: A Escola, 1998. p.79.
129
de 64. No entendimento dos setores dominantes, o caos que se instalou no país nos últimos
anos de governo e o perigo eminente da implantação das reformas de base pretendidas pelo
presidente João Goulart, sem dúvida ensejavam ação das Forças Armadas.
Outro componente largamente usado para legitimar o discurso revolucionário foi o
conceito de democracia. Aqui usado para justificar a defesa contra as pretensões
comunistas do governo de João Goulart. O mito do perigo comunista foi largamente usado
no período pré-golpe de 64. Em verdade, a defesa da democracia no país foi objeto da
criação de várias associações sob a orientação do Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IBAD, órgão criado no governo de Juscelino Kubtschek e que atuou decisivamente na
deposição de João Goulart. Composto por elementos da proa dos setores dominantes
brasileiros:
O IBAD influenciou e penetrou no legislativo e governos estaduais,
interveio nos assuntos eleitorais nacionais e regionais e apoiou alguns
sindicatos em particular. Ele ajudou a promover ainda alguns líderes
camponeses e sindicais, movimentos estudantis e organizações de pressão
dentro das classes médias. O IBAD sincronizou suas atividades às de
organizações páramilitares como o MAC Movimento Anticomunista, o
Movimento Democrático Brasileiro [...] não agia isoladamente, mas sim
como uma frente da qual participavam a ADP Ação Democrática
Parlamentar [...] e o IDB – Instituto Democrático Brasileiro.
66
No Mato Grosso, uma das veias do IBAD constitui-se na Ação Democrática Mato-
Grossense –ADEMAT, organizada especialmente para combater “a ação comunizante do
presidente João Goulart, inclusive no campo da luta armada”.
67
Está presente na maioria das obras memorialísticas analisadas o discurso da defesa
do estado democrático no país, contra o perigo comunizante. O livro de Demonsthenes
Martins facilmente declina para esse fantasma, ao descrever o período que confirmou o
regime presidencialista no Brasil. Mas, o próprio autor não acreditava realmente no perigo
comunizante, seguia apenas a tendência de ataque ao governo de Goulart. Sabia que as
forças políticas nacionais e estaduais se mobilizavam. No estado, os militares temiam
apenas que, deflagrado o movimento, as partes norte e sul viessem a se dividir como em
1932. Martins assegura a unidade, baseando-se no respaldo da UDN que dominava o
estado e várias prefeituras.
66
DREIFUSS, René Armand. op. cit., p. 102-103.
67
MARTINS, Demosthenes. op. cit., p. 250.
130
O mito da “revolução de 64”, a exemplo nacional, foi um movimento forjado pelas
elites dominantes, calcadas nos valores também nacionalmente disseminados, mas que, na
região de Dourados, ganhou características claramente político-partidárias, conforme se
pode apreender nas memórias e representações impressas.
131
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base na bibliografia analisada e nas fontes pesquisadas, podemos afirmar que,
em 1964 as condições eram amplamente favoráveis à uma aliança ligando interesses
nacionais e internacionais que permitiram o golpe militar. Os conflitos se deram em torno
dos impasses econômicos, políticos, sociais e, principalmente, ideológicos. O confronto
entre as forças favoráveis e contrárias às Reformas de Base de Goulart acabou derrubando
um governo legalmente instituído.
Ao findar nosso trabalho, conforme discutido no capítulo primeiro, pensamos não
haver dúvida quanto à importância da região Centro-Oeste no contexto geopolítico-
nacional, especialmente a partir da década de 40. Os projetos de Getúlio Vargas para esta
região de fronteira, romperam com o antigo Mato Grosso oligárquico, livrando o estado da
força bélica dos antigos coronéis. Além disso, ao criar o Território Federal de Ponta Porã,
minou o domínio da Companhia Mate Laranjeira sobre grande parte das terras ao sul do
estado, viabilizando a implantação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, a CAND.
O projeto de Getúlio Vargas visava a inserção da região no contexto capitalista de
produção, interligando-a aos centros hegemônicos do país. A geopolítica de ocupação dos
“espaços vazios” tinha duplo sentido: a proteção da fronteira seca e da fronteira ideológica.
Ao sedimentar o desenvolvimento capitalista estaria, ao mesmo tempo, protegendo a
região contra possíveis investidas comunistas.
É neste contexto que se insere a região de Dourados, guindada a um ponto
estratégico da política tanto nacional quanto estadual. A intensa propaganda varguista
atraiu para a CAND grande leva de migrantes, assim o município tornou-se o mais
populoso da região sul do estado. Largamente propagandeada, a CAND era apresentada
como “menina dos olhos” do projeto colonizador varguista e constituiu-se roteiro de
candidatos e presidentes que para acorreram, em vários momentos de campanhas
eleitorais e lançamento de projetos.
Tratamos, no segundo capítulo, do contexto municipal e constatamos a importância
política adquirida pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, com o relativo sucesso
alcançado pela CAND. Relativo, como discutido por pesquisadores regionais, dado que
sua principal função social não foi alcançada plenamente a fixação do pequeno agricultor
ao campo. Duas décadas após a implantação, a maior parte das terras estava concentrada
nas mãos de poucos proprietários, formando novos latifúndios que se pretendia acabar.
Mas, a CAND serviu para alavancar o PTB na região, que rompeu, ao final da
década de 50, com a hegemonia do Partido Social Democrático, o PSD e da União
Democrática Nacional, a UDN, contra a qual venceu duas eleições municipais
consecutivas.
Logo após o golpe, as ações de apoio em Dourados tomaram o mesma rumo das
implementadas em nível nacional: campanhas de arrecadação de ouro e dinheiro para
ajudar o país a sair das dificuldades financeiras, marchas, passeatas e comícios com a
participação de rios setores da sociedade. Em Dourados, os movimentos de apoio
envolveram grande parte da comunidade, desde estudantes, mulheres e políticos de todos
os partidos, inclusive do PTB, partido do prefeito Napoleão Francisco de Souza que, sendo
ex-combatente, conseguiu manter-se no poder com o apoio do Exército. A permanência do
prefeito petebista no cargo, constituiu-se, ao nosso ver, na grande derrota udenista na
região, naquele momento.
Em Dourados, os políticos favoráveis ao golpe obtiveram apenas a cassação de dois
vereadores. Tentaram, mas não conseguiram “tomar” a prefeitura. Apesar de alguns
depoimentos apontarem o prefeito como um petebista covarde que aderiu ao golpe, outros
atribuem ao seu passado de ex-herói de guerra, o alicerce que o manteve no cargo.
A Ação Democrática Douradense, criada no ano anterior ao golpe, teve papel
importante na condução dos movimentos que mobilizaram apoio à “causa revolucionária”.
Mas é importante ressaltar que também suas ações estavam em consonância com as
diretrizes de seu partido, a UDN. Demósthenes Martins, líder udenista, afirma
categoricamente em suas Memórias que o partido assumiu as ões em defesa da
democracia e de repressão ao comunismo no estado.
A UDN, no sul do estado, era formada por proprietários rurais, os grandes
fazendeiros. Especialmente em Dourados, o partido ocupava os principais cargos políticos,
sendo a prefeitura, um reduto udenista de muito tempo. Todavia, com o fortalecimento
133
do PTB de Getúlio Vargas, o quadro político municipal sofreu uma guinada, privilegiando
os herdeiros políticos de Vargas na região.
Ao mesmo tempo em que mobilizavam ações de apoio ao golpe, os udenistas
formaram o Comando de Caça aos Comunistas e buscaram incriminar os petebistas,
acusando-os de subversivos e de comunistas, usando como desculpa um suposto plano de
ataque às instituições democráticas, que seriam implementadas pelos Grupos de Onze.
Esses grupos, pelo menos no formato alardeado pelos “revolucionários”, nunca existiram,
garante o líder petebista local Harrison Figueiredo.
As perseguições atingiram principalmente os petebistas, tanto na zona urbana
quanto rural. As prisões se iniciaram logo após a noite de 31 de março. Petebistas foram
caçados pelos coronéis udenistas e levados presos à Delegacia de Polícia da cidade. Muitas
pessoas foram presas, mas contra eles não havia provas e ficaram na prisão até a chegada
dos militares do Exército. Dizem os entrevistados que os militares não compactuavam com
o comportamento das autoridades locais e de fato, dias após o golpe, as pessoas presas
eram encaminhadas ao 11
o
RC de Ponta Porã, mas todas eram liberadas em seguidas, após
alguns dias de detenção.
Nesse ponto, pensamos ser correto dividir os presos em dois grupos, um ligado ao
segmento urbano, sendo estes os líderes petebistas e, outro grupo, o dos colonos radicados
na CAND. Com relação aos primeiros, vários entrevistados afirmam que não sofreram
maus tratos. Já os colonos, trabalhadores rurais simples, pagaram mais caro pela admiração
que nutriam por Getúlio Vargas. De toda parte da CAND vieram presos para a Delegacia
de Polícia, sob acusação de pertencerem aos Grupos de Onze, coisa que sequer sabiam do
se tratava. Estes foram maltratados pela soldadesca de menor patente. Procurados como
criminosos, os colonos admiradores do PTB de Vargas viviam sob tensão e vigilância de
conhecidos e vizinhos, por quem, não raramente, eram delatados. Sofreram mais quando
eram capturados em seus locais de trabalho, a roça, e colocados nas carrocerias dos
caminhões. Transportados como gado até Dourados, onde eram destratados pelos soldados
que não respeitavam até mesmo suas famílias.
Outro foco das perseguições atingiu o setor educacional, com o patrulhamento
ideológico nas escolas. Professores eram vigiados por alunos e colegas de trabalho.
Qualquer deslize era motivo para serem “convidados” a dar explicações na delegacia. Anos
mais tarde, em 1978, foi a vez de professores universitários pagarem pelo mandonismo e
134
autoritarismo que se instalou nos setores burocráticos da Universidade, por pessoas
devidamente afinadas com o regime.
A busca pelos indícios da “revolução” em Dourados termina, pensávamos, no
Arquivo Geral do Fórum da Comarca de Dourados, final de todo e qualquer inquérito ou
processo que porventura tenha sido instaurado contra as pessoas presas. Mas, não
encontramos nenhum documento que confirmasse suas prisões. Não encontramos porque
não foram instaurados processos contra “supostos comunistas”, em Dourados, ao contrário
de várias cidades mato-grossenses, onde IPMs foram instaurados e prefeitos, cassados.
Atribuímos a inocorrência de tais fatos na região de Dourados ao prestígio do
prefeito petebista Napoleão Francisco de Souza junto ao exército, conforme
mencionamos. Sobre as prisões e perseguições sofridas por pessoas da sociedade
douradense o jornal O Progresso silenciou. No entanto, em alguns momentos publicou que
tais arbitrariedades estavam ocorrendo no país.
A imprensa jornalística, como meio de comunicação de massa que produz e
transmite à sociedade formas simbólicas com força ideológica, sustentando e recriando
relações de poder, foi uma das instituições responsáveis pela campanha de construção de
um ambiente favorável, que envolveu grande parte da população no Brasil nos anos 60 à
legitimação do golpe militar de 1964.
Os boatos e acusações, tanto na esfera política como na imprensa, foram peças
fundamentais na guerra ideológica que estabelecia estreitas ligações entre João Goulart e
um suposto comunismo que ele pretendia implantar no país. Acusar o governo de atentar
contra a Constituição, a propriedade, a família, a religião e a democracia, foi uma forma
eficaz encontrada pela imprensa para endemonizar a figura do presidente e de legitimar a
intervenção dos militares no processo político.
O Progresso, assim como a maioria da imprensa no Brasil, aos poucos construiu
uma imagem negativa do presidente João Goulart junto aos leitores douradenses, ao
associar suas Reformas de Base à formação de uma República sindicalista e comunista.
O combate ao comunismo nos jornais de Dourados era constante, como se o risco
de sua implantação fosse se concretizar a qualquer momento. Viviam-se os tempos da
Guerra Fria. O terror psicológico que se fez em torno do governo, insinuando que as
atitudes de Jango encaminhavam para uma revolução comunista no Brasil, serviu para
desmoralizá-lo e, de certa, deu suporte para o golpe.
135
Esse mesmo discurso foi também sedimentado por obras de memorialistas que
trataram do período referido. Escritos pela elite dominante regional, essas obras nada mais
fizeram do que aceitar e legitimar as ações implementadas, amalgamando mais um
discurso revolucionário, entre tantos que, segundo eles, aconteceram no estado.
A historiografia regional de 64, todavia, começou a mudar a partir das produções
acadêmicas, sendo uma referência, o trabalho de Eudes Fernando Leite e sua pesquisa
sobre a utopia comunista na cidade sul-mato-grossense de Aquidauana. Outro exemplo é o
desenvolvimento do projeto de História Oral com os colonos da CAND, sob
responsabilidade do Prof. Dr. Wilson Valentin Biasotto, do qual nos fizemos beneficiários
para fins deste trabalho.
Recobrimos nesta pesquisa o período pré-golpe e imediatamente posterior. As
novas conformações políticas que ocorreram ao longo do regime militar, como também o
surgimento de vários movimentos sociais, entre tantas outras abordagens, constituem-se
um campo aberto à pesquisa, quer a partir da imprensa, como também de outras fontes, a
serem definidas por diferentes problemáticas.
136
FONTES
Jornais
O Progresso – Arquivo particular da empresa. edições março/1963 a julho/1964.
Documentos
ATAS das Sessões da Câmara de Vereadores Arquivo Histórico da Câmara de
Vereadores. Agosto de 1962 a dezembro de 1964.
Entrevistas
Projeto Ressonâncias do golpe militar na região de Dourados. Dourados : UFMS, 1996-
1997. (Org. BIASOTTO, Wilson Valentin)
Entrevistados:
Projeto Memória de pioneiros. Dourados : UFMS, 1996-1997. (Org. BIASOTTO, Wilson
Valentin)
Entrevistados:
Entrevistas realizadas pela autora:
Obras
MARTINS, Demóstenes. História de Mato Grosso: os fatos, os governos, a economia. S/d.
________. A Poeira da jornada: memórias. São Paulo : Editora Resenha Tributária, s/d.
MENDONÇA, Rubens. História das revoluções de Mato Grosso. Goiânia : Editora Rio
Bonito, 1970.
MONTEIRO, Ubaldo. A polícia de Mato Grosso: história evolução (1835-1985).
Cuiabá: 1985.
BIBLIOGRAFIA
ALVIM, Thereza Cezário (Org). O Golpe de 64: a imprensa disse o. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1979.
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, Estado Autoritário, 1968-78: o
exercício cotidiano da dominação e da resistência: o Estado de São Paulo e Movimento.
São Paulo : EDUSC, 1979.
BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart : as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio
de Janeiro : Civilização Brasileira, 1978.
138
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo :
Brasiliense, 1985.
BETONI, Walter Luiz. Dourados: entre a memória e a história. Dourados. Dissertação
(Mestrado em História). UFMS, 2002.
BIANCHINI, Odaléa da Conceição Deniz. A Companhia Matte Larangeira e a ocupação
da terra ao sul de Mato Grosso (1880-1940). Campo Grande : Ed. UFMS, 1994.
BIASOTTO, Wilson Valentim. TETILA, José Laerte Cecílio. O movimento
reivindicatório do magistério público estadual de Mato Grosso do Sul: 1978-1988. Campo
Grande : UFMS, 1991.
BITTAR, Marisa. As elites políticas de Mato Grosso e a Criação de Mato Grosso do Sul.
São Paulo. Tese (Doutorado em História), USP, 1997.
_______. Geopolítica e separatismo. Campo Grande : Ed. UFMS, 1999.
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. De Fernando Tomaz. Lisboa : Difel, Rio de
Janeiro, 1989.
BORGES, Fernando Tadeu de Miranda Borges. Do extrativismo à pecuária: algumas
observações sobre a história econômica de Mato Grosso (1870 a 1930). São Paulo :
Scortecci, 2001.
BORGES, Vavy Pacheco. História e Política : laços permanentes. In: Revista Brasileira de
História, vol. 12, n. 23/24. São Paulo, Anpuh/Marco Zero, setembro 91/agosto 92, p. 7-18.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo : t. ª Queiróz/
Edusp, 1987.
BOTOSSO, Marcelo. A guerrilha rural no Brasil pós-1964. In: Estudos de História.
Revista do Curso de Pós-Graduação em História, FHDSS Franca SP. V. 8, n. 1, 2001, p.
31-40.
BRASIL. Fundamentos doutrinários da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro : A
Escola, 1998.
BRESCIANI, Maria Stella M. Da Perplexidade Política à Certeza Científica: Uma
História em Quatro Atos. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, Sp. V. 12, n. 23/24,
setembro 91/agosto 92, p. 31-53.
BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Trad. de Magda Lopes.
São Paulo : Editora Unesp, 1992.
CAMARGO, Aspásia. História oral e política. In: MORAES, Marieta de. História Oral e
multidisciplinaridade. Rio de Janeiro, 1994.
139
CAPELATO, Maria Helena Rolim. O Controle da Opinião e os Limites da Liberdade :
Imprensa Paulista (1920-1945). In: Revista Brasileira de História. São Paulo:
Anpuh/Marco Zero. V. 12, n. 23/24, setembro 91/agosto 92, p. 55-75.
_______ Maria Helena R. Imprensa e história do Brasil. São Paulo : Contexto/EDUSP,
1988.
CAPILÉ Jr. João Augusto. Capilé Júlio. CRUZ, Maria de Lourdes Souza. História fatos e
coisas douradenses. S/d., 1995.
CARDOSO, Ciro Flamarion., VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Domínios da história: ensaios
de teoria e metodologia. Rio de Janeiro : Campus, 1997.
_______.Uma Introdução à História. São Paulo : Brasiliense, 1981.
CARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. Revista Brasileira
de História. São Paulo Sp. Vol 14, n. 27, 1994. P. 179-196.
CASTELO BRANCO, Carlos. Introdução à revolução de 1964: agonia do poder civil. Rio
de Janeiro. Ed. Artenova, 1975.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Trad. De Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro : Forense/Universitária, 1982.
_______. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa/ Rio de janeiro:
Difel/Bertrand Brasil, 1990.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo
: Ed. Moderna, 1982.
CHAUVEAU, A. TÉTARD, Ph. (Org). Questões para a história do presente. Trad. Ilka
Stern Cohen. Bauru, SP : EDUSC, 1999.
COMBIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina.
Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1980.
CORRÊA, Valmir Batista. Coronéis e bandidos em Mato Grosso: 1889-1943. Campo
Grande: Editora UFMS, 1995.
COSTA, Carlos Frederico Corrêa da. Direi...ta, volver! Esquer...da, volver! História de
experiências de vida de militares. São Paulo. Tese (Doutorado em História). USP, 1995.
COUTO, Adolpho João de Paula. Revolução de 1964: a versão e o fato. Porto Alegre :
Gente do Livro, 1999.
COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro : Livraria José Olympio
Editora, 1967.
140
D’ALÉSSIO, Marcia Mansour. Reflexões sobre o saber histórico. Entrevistas com Villar
Vovelle – Reberioux. UNESP, 1998.
DE DECCA, Edgard S. O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1984.
DREIFUSS, René Armand. 1964 A conquista do estado: ação, política, poder e golpe de
classes. Trad. Laboratório de tradução da UFMG. Rio de Janeiro, 1986
ECO, Umberto. Sobre a imprensa. In: Cinco escritos morais. Trad. Eliana Aguiar. 3
a
ed..
Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 55-66
FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO,C.F., VAINFAS, R. Domínios da
História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo : Edusp, 1999.
FERNANDES, Tania Maria. Edição de entrevistas: da linguagem falada à escrita. In:
MONTENEGRO, A. T. FERNANDES, T.M. (orgs). História oral: um espaço plural.
Recife : Universitária; UFPE, 2001, p. 91-99.
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
FICO, C. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social do Brasil.
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1997.
FIORIN, Jose Luiz. O regime de 1964: discurso e ideologia. São Paulo: Atual, 1988.
________. Elementos de análise do discurso. São Paulo : Contexto, 1996.
FOUCALT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1979.
FOWERARKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil
de 1930 aos dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à
luta armada. 8
a
ed. São Paulo ; Ática, 1998.
GRESSLER, Lori Alice. SWENSSON, Lauro Joppert. Aspectos do povoamento e da
colonização do Estado de Mato Grosso do Sul. Dourados, 1998.
GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e História científica. In: Revista
Brasileira de História : Anpuh/Marco Zero, n. 28, 1994, p. 181-193.
HABERT, Nadine. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo
: Ática, 1992.
HOBSBAWM, Eric. A questão do nacionalismo. Nações e nacionalismos desde 1780.
Lisboa : Terramar, 1998.
141
IBGE Enciclopédia dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro : Gráfica IBGE, 1958.
INAGAKI, Edna Mitsue. Dourádossu: caminhos e cotidiano dos nikkeis em Dourados
(décadas de 1940, 1950 e 1960). Dissertação (Mestrado em História). Dourados : UFMS,
2002.
INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e outras vozes. Campinas, SP : Editora Unicamp,
1985.
LAMOUNIER, Bolívar. A ciência política no Brasil : roteiro para um balanço crítico. In:
LAMOUNIER, Bolívar (Org). A ciência política nos anos 80. Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 1982.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas SP : Ed. UNICAMP, 1996.
LEITE, Eudes Fernando. Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia, nos entremeios de uma
pretensa revolução. Assis, 1994. Dissertação (Mestrado em História). Unesp.
LENHARO, Alcyr. A terra para quem nela não trabalha (A especulação com a terra no
oeste brasileiro nos anos 50). Revista Brasileira: Terra e Poder, n. 12. Campinas.
_______. Colonização e Trabalho no Brasil: Amazônia e Centro-Oeste. São Paulo :
Editora Unicamp, 1985.
LÖWY, Michael. Ideologias e ciência Social: elementos para uma análise marxista. São
Paulo : Cortez, 1988.
MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira 1961-1978. São Paulo :
Global, 1980.
MARTINS, Jose de Souza. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no
campo e seu lugar no processo político. Petrópolis, RJ : Vozes, 1986.
MEDEIROS, Joana Prado. O eldorado de Dourados: a colônia dos Baianos e a colônia
Café Porã (1950
a 1960). Dissertação (Mestrado em História). Dourados : UFMS, 2001.
MEIRA MATTOS, Carlos de. Brasil: geopolítica e destino. Rio de Janeiro : Bibliex, 1975.
MELO, José Marques de. Sociologia da imprensa brasileira: a implantação. Petrópolis :
Vozes, 1973.
MOREIRA, Regina Heloiza Targa. Memória Fotográfica de Dourados. Campo Grande,
MS : UFMS, Centro Universitário de Dourados, 1990.
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: 1933-1974 pontos de partida
para uma revisão histórica. São Paulo. Ática, 1980.
142
NUNES, Antonio Carlos Felix. Fora de pauta: Histórias e História do Jornalismo no
Brasil. São Paulo : Proposta Editorial, 1981.
OLIVEIRA, Benícia Couto de. A política de colonização do Estado Novo em Mato Grosso
(1937-1956). São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado em História). UNESP.
PAES, Maria Helena Simões Paes. A DÉCADA DE 60 : rebeldia, contestação e repressão
política. São Paulo : Ática, 1982. 320.981 pl26d
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo : Martins Fontes. Trad.
Francisco Silva, 1986.
PRADO JUNIOR, Caio. A revolução brasileira. São Paulo : Brasiliense, 1987.
PUIGARI, Umberto. Nas fronteiras de Matto Grosso. São Paulo : Casa Mayença, 1933.
QUEIROZ, Paulo Roberto Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: a estrada de ferro
Noroeste do Brasil na construção histórica de Mato Grosso (1918-1956). São Paulo, 1999.
Tese (Doutorado em História Econômica). FFLCH/USP.
RAPOSO, Eduardo (Org). 1964 - 30 anos depois. Rio de janeiro : Agir, 1994.
RÈMOND, R. (Org). Por uma história política. Rio de Janeiro : Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996.
ROSANVALLON, Pierre. Por uma História Conceitual do Político. In: Revista Brasileira
de História. Vol. 15, n. 30. São Paulo : Anpuh/Contexto, 1995.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo : Cortez,
2000.
SCHAPOCHNIK, Nelson. Como se escreve a história?. In: Revista Brasileira de História.
São Paulo. v. 13, n. 25/26, set 92/ago 93, p. 67-80.
SILVA, Ivo Campos da. O PCB em Dourados. Dourados. Monografia (Especialização em
História). UFMS, 2000.
SILVA, Marcos. A república em migalhas: História regional e história local. São Paulo :
Marco Zero/CNP, 1990.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo Branco (1930-1964). Trad. Mario
Salviano Silva. Rio de Janeiro : Saga, 1969.
_______. Brasil: de Castelo a Tancredo. 1964-1985. Trad. Mario Salviano Silva. Rio de
janeiro : Paz e Terra, 1988.
SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira, 1979.
_______. História da imprensa no Brasil. São Paulo : Martins Fontes, 1983.
143
_______. A Fúria de Calibã: memórias do golpe de 64. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil,
1994.
SOUZA, Cláudio Freire de. Terra e poder em Mato Grosso do Sul – as alianças políticas e
os projetos de educação. Piracicaba, 1997. Tese (Doutorado em Educação). UNIMEP.
SOUZA, João Carlos de. Sertão cosmopolita: a modernidade em Corumbá (1872-1918),
2001. Tese (Doutorado em História Social), São Paulo, FFLCH/USP.
SOUZA, José Carlos de. A identidade do migrante paraguaio e de seus descendentes
radicados em Dourados (1989-1999). Dissertação (Mestrado em História). Dourados :
UFMS, 2001.
SPINDEL, Arnaldo. O que são ditaduras. São Paulo : Brasiliense, 1981.
STEPAN, Alfred. Os militares na política : as mudanças de padrões na vida brasileira. Rio
de Janeiro : Artenova, 1975.
VASCONCELOS, Cláudio Alves de. A questão indígena na província de Mato Grosso:
conflito trama e continuidade. Campo Grande : Ed. UFMS, 1999.
VENTURA, Zuenir. 1968 o ano que não terminou. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1988.
VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memória
histórica. São Paulo : HUCITEC, 1997.
ZORZATO, Osvaldo. Conciliação e Identidade : Considerações sobre a Historiografia em
Mato Grosso (1904-1983). São Paulo. Tese (Doutorado em História). USP, 1998.
144
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo