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D. Benedita, de Machado de Assis
Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
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D. Benedita
Um retrato
I
A coisa mais árdua do mundo, depois do ofício de governar, seria dizer a idade exata de D.
Benedita. Uns davam-lhe quarenta anos, outros quarenta e cinco, alguns trinta e seis. Um
corretor de fundos descia aos vinte e nove; mas esta opinião, eivada de intenções ocultas,
carecia daquele cunho de sinceridade que todos gostamos de achar nos conceitos humanos.
Nem eu a cito, senão para dizer, desde logo, que D. Benedita foi sempre um padrão de bons
costumes. A astúcia do corretor não fez mais do que indigná-la, embora momentaneamente;
digo momentaneamente. Quanto às outras conjeturas, oscilando entre os trinta e seis e os
quarenta e cinco, não desdiziam das feições de D. Benedita, que eram maduramente graves
e juvenilmente graciosas. Mas, se alguma coisa admira é que houvesse suposições neste
negócio, quando bastava interrogá-la para saber a verdade verdadeira.
D. Benedita fez quarenta e dois anos no domingo, dezenove de setembro de 1869. São seis
horas da tarde; a mesa da família está ladeada de parentes e amigos, em número de vinte ou
vinte e cinco pessoas. Muitas dessas estiveram no jantar de 1868, no de 1867 e no de 1866,
e ouviram sempre aludir francamente à idade da dona da casa. Além disso, vêem-se ali, à
mesa, uma moça e um rapaz, seus filhos; este é, decerto, no tamanho e nas maneiras, um
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tanto menino; mas a moça, Eulália, contando dezoito anos, parece ter vinte e um, tal é a
severidade dos modos e das feições.
A alegria dos convivas, a excelência do jantar, certas negociações matrimoniais incumbidas
ao cônego Roxo, aqui presente, e das quais se falará mais abaixo, as boas qualidades da
dona da casa, tudo isso dá à festa um caráter íntimo e feliz. O cônego levanta-se para
trinchar o peru. D. Benedita acatava esse uso nacional das casas modestas de confiar o peru
a um dos convivas, em vez de o fazer retalhar fora da mesa por mãos servis, e o cônego era
o pianista daquelas ocasiões solenes. Ninguém conhecia melhor a anatomia do animal, nem
sabia operar com mais presteza. Talvez, - e este fenômeno fica para os entendidos, - talvez
a circunstância do canonicato aumentasse ao trinchante, no espírito dos convivas, uma certa
soma de prestígio, que ele não teria, por exemplo, se fosse um simples estudante de
matemáticas, ou um amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um estudante ou um
amanuense, sem a lição do longo uso, poderia dispor da arte consumada do cônego? É outra
questão importante.
Venhamos, porém, aos demais convivas, que estão parados, conversando; reina o
burburinho próprio dos estômagos meio regalados, o riso da natureza que caminha para a
repleção; é um instante de repouso.
D. Benedita fala, como as suas visitas, mas não fala para todas, senão para uma, que está
sentada ao pé dela. Essa é uma senhora gorda, simpática, muito risonha, mãe de um
bacharel de vinte e dois anos, o Leandrinho, que está sentado defronte delas. D. Benedita
não se contenta de falar à senhora gorda, tem uma das mãos desta entre as suas; e não se
contenta de lhe ter presa a mão, fita-lhe uns olhos namorados, vivamente namorados. Não
os fita, note-se bem, de um modo persistente e longo, mas inquieto, miúdo, repetido,
instantâneo. Em todo caso, há muita ternura naquele gesto; e, dado que não a houvesse, não
se perderia nada, porque D. Benedita repete com a boca a D. Maria dos Anjos tudo o que
com os olhos lhe tem dito: - que está encantada, que considera uma fortuna conhecê-la, que
é muito simpática, muito digna, que traz o coração nos olhos, etc., etc., etc. Uma de suas
amigas diz-lhe, rindo, que está com ciúmes.
- Que arrebente! responde ela, rindo também.
E voltando-se para a outra:
- Não acha? ninguém deve meter-se com a nossa vida.
E aí tornavam as finezas, os encarecimentos, os risos, as ofertas, mais isto, mais aquilo, -
um projeto de passeio, outro de teatro, e promessas de muitas visitas, tudo com tamanha
expansão e calor, que a outra palpitava de alegria e reconhecimento.
O peru está comido. D. Maria dos Anjos faz um sinal ao filho; este levanta-se e pede que o
acompanhem em um brinde:
- Meus senhores, é preciso desmentir esta máxima dos franceses: - les absents ont tort.
Bebamos a alguém que está longe, muito longe, no espaço, mas perto, muito perto, no
coração de sua digna esposa: - bebamos ao ilustre desembargador Proença.
A assembléia não correspondeu vivamente ao brinde; e para compreendê-lo basta ver o
rosto triste da dona da casa. Os parentes e os mais íntimos disseram baixinho entre si que o
Leandrinho fora estouvado; enfim, bebeu-se, mas sem estrépito; ao que parece, para não
avivar a dor de D. Benedita. Vã precaução! D. Benedita, não podendo conter-se, deixou
rebentarem-lhe as lágrimas, levantou-se da mesa, retirou-se da sala. D. Maria dos Anjos
acompanhou-a. Sucedeu um silêncio mortal entre os convivas. Eulália pediu a todos que
continuassem, que a mãe voltava já.
- Mamãe é muito sensível, disse ela, e a idéia de que papai está longe de nós...
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O Leandrinho, consternado, pediu desculpa a Eulália. Um sujeito, ao lado dele, explicou-
lhe que D. Benedita não podia ouvir falar do marido sem receber um golpe no coração - e
chorar logo; ao que o Leandrinho acudiu dizendo que sabia da tristeza dela, mas estava
longe de supor que o seu brinde tivesse tão mau efeito.
- Pois era a coisa mais natural, explicou o sujeito, porque ela morre pelo marido.
- O cônego, acudiu Leandrinho, disse-me que ele foi para o Pará há uns dois anos...
- Dois anos e meio; foi nomeado desembargador pelo ministério Zacarias. Ele queria a
relação de São Paulo, ou da Bahia; mas não pôde ser e aceitou a do Pará.
- Não voltou mais?
- Não voltou.
- D. Benedita naturalmente tem medo de embarcar...
- Creio que não. Já foi uma vez à Europa. Se bem me lembro, ela ficou para arranjar alguns
negócios de família; mas foi ficando, ficando, e agora...
- Mas era muito melhor ter ido em vez de padecer assim... Conhece o marido?
- Conheço; um homem muito distinto, e ainda moço, forte; não terá mais de quarenta e
cinco anos. Alto, barbado, bonito. Aqui há tempos disse-se que ele não teimava com a
mulher, porque estava lá de amores com uma viúva.
- Ah!
- E houve até quem viesse contá-lo a ela mesma. Imagine como a pobre senhora ficou!
Chorou uma noite inteira, no dia seguinte não quis almoçar, e deu todas as ordens para
seguir no primeiro vapor.
- Mas não foi?
- Não foi; desfez a viagem daí a três dias.
D. Benedita voltou nesse momento, pelo braço de D. Maria dos Anjos. Trazia um sorriso
envergonhado; pediu desculpa da interrupção, e sentou-se com a recente amiga ao lado,
agradecendo os cuidados que lhe deu, pegando-lhe outra vez na mão:
- Vejo que me quer bem, disse ela.
- A senhora merece, disse D. Maria dos Anjos.
- Mereço? inquiriu ela entre desvanecida e modesta.
E declarou que não, que a outra é que era boa, um anjo, um verdadeiro anjo; palavra que ela
sublinhou com o mesmo olhar namorado, não persistente e longo, mas inquieto e repetido.
O cônego, pela sua parte, com o fim de apagar a lembrança do incidente, procurou
generalizar a conversa, dando-lhe por assunto a eleição do melhor doce. Os pareceres
divergiram muito. Uns acharam que era o de coco, outros o de caju, alguns o de laranja, etc.
Um dos convivas, o Leandrinho, autor do brinde, dizia com os olhos, - não com a boca, - e
dizia-o de um modo astucioso, que o melhor doce eram as faces de Eulália, um doce
moreno, corado; dito que a mãe dele interiormente aprovava, e que a mãe dela não podia
ver, tão entregue estava à contemplação da recente amiga. Um anjo, um verdadeiro anjo!
II
D. Benedita levantou-se, no dia seguinte, com a idéia de escrever uma carta ao marido, uma
longa carta em que lhe narrasse a festa da véspera, nomeasse os convivas e os pratos,
descrevesse a recepção noturna, e, principalmente, desse notícia das novas relações com D.
Maria dos Anjos. A mala fechava-se às duas horas da tarde, D. Benedita acordara às nove,
e, não morando longe (morava no Campo da Aclamação), um escravo levaria a carta ao
correio muito a tempo. Demais, chovia; D. Benedita arredou a cortina da janela, deu com os
vidros molhados; era uma chuvinha teimosa, o céu estava todo brochado de uma cor pardo-
escura, malhada de grossas nuvens negras. Ao longe, viu flutuar e voar o pano que cobria o
balaio que uma preta levava à cabeça: concluiu que ventava. Magnífico dia para não sair, e,
portanto, escrever uma carta, duas cartas, todas as cartas de uma esposa ao marido ausente.
Ninguém viria tentá-la.
Enquanto ela compõe os babadinhos e rendas do roupão branco, um roupão de cambraia
que o desembargador lhe dera em 1862, no mesmo dia aniversário, 19 de setembro,
convido a leitora a observar-lhe as feições. Vê que não lhe dou Vênus; também não lhe dou
Medusa. Ao contrário de Medusa, nota-se-lhe o alisado simples do cabelo, preso sobre a
nuca. Os olhos são vulgares, mas têm uma expressão bonachã. A boca é daquelas que,
ainda não sorrindo, são risonhas, e tem esta outra particularidade, que é uma boca sem
remorsos nem saudades: podia dizer sem desejos, mas eu só digo o que quero, e só quero
falar das saudades e dos remorsos. Toda essa cabeça, que não entusiasma, nem repele,
assenta sobre um corpo antes alto do que baixo, e não magro nem gordo, mas fornido na
proporção da estatura. Para que falar-lhe das mãos? Há de admirá-las logo, ao travar da
pena e do papel, com os dedos afilados e vadios, dois deles ornados de cinco ou seis anéis.
Creio que é bastante ver o modo por que ela compõe as rendas e os babadinhos do roupão
para compreender que é uma senhora pichosa, amiga do arranjo das coisas e de si mesma.
Noto que rasgou agora o babadinho do punho esquerdo, mas é porque, sendo também
impaciente, não podia mais "com a vida deste diabo". Essa foi a sua expressão,
acompanhada logo de um "Deus me perdoe!" que inteiramente lhe extraiu o veneno. Não
digo que ela bateu com o pé, mas adivinha-se, por ser um gesto natural de algumas
senhoras irritadas. Em todo caso, a cólera durou pouco mais de meio minuto. D. Benedita
foi à caixinha de costura para dar um ponto no rasgão, e contentou-se com um alfinete. O
alfinete caiu no chão, ela abaixou-se a apanhá-lo. Tinha outros, é verdade, muitos outros,
mas não achava prudente deixar alfinetes no chão. Abaixando-se, aconteceu-lhe ver a ponta
da chinela, na qual pareceu-lhe descobrir um sinal branco; sentou-se na cadeira que tinha
perto, tirou a chinela, e viu o que era: era um roidinho de barata. Outra raiva de D.
Benedita, porque a chinela era muito galante, e fora-lhe dada por uma amiga do ano
passado. Um anjo, um verdadeiro anjo! D. Benedita fitou os olhos irritados no sinal branco;
felizmente a expressão bonachã deles não era tão bonachã que se deixasse eliminar de todo
por outras expressões menos passivas, e retomou o seu lugar. D. Benedita entrou a virar e
revirar a chinela, e a passá-la de uma para outra mão, a princípio com amor, logo depois
maquinalmente, até que as mãos pararam de todo, a chinela caiu no regaço, e D. Benedita
ficou a olhar para o ar, parada, fixa. Nisto o relógio da sala de jantar começou a bater horas.
D. Benedita, logo às primeiras duas, estremeceu:
- Jesus! Dez horas!
E, rápida, calçou a chinela, concertou depressa o punho do roupão, e dirigiu-se à
escrivaninha, para começar a carta. Escreveu, com efeito, a data, e um: - "Meu ingrato
marido"; enfim, mal traçara estas linhas: - "Você lembrou-se ontem de mim? Eu...", quando
Eulália lhe bateu à porta, bradando:
- Mamãe, mamãe, são horas de almoçar.
D. Benedita abriu a porta, Eulália beijou-lhe a mão, depois levantou as suas ao céu:
- Meu Deus! que dorminhoca!
- O almoço está pronto?
- Há que séculos!
- Mas eu tinha dito que hoje o almoço era mais tarde... Estava escrevendo a teu pai.
Olhou alguns instantes para a filha, como desejosa de lhe dizer alguma coisa grave, ao
menos difícil, tal era a expressão indecisa e séria dos olhos. Mas não chegou a dizer nada; a
filha repetiu que o almoço estava na mesa, pegou-lhe do braço e levou-a.
Deixemo-las almoçar à vontade; descansemos nessa outra sala, a de visitas, sem aliás
inventariar os móveis dela, como o não fizemos em nenhuma outra sala ou quarto. Não é
que eles não prestem, ou sejam de mau gosto; ao contrário, são bons. Mas a impressão geral
que se recebe é esquisita, como se ao trastejar daquela casa houvesse presidido um plano
truncado, ou uma sucessão de planos truncados. Mãe, filha e filho almoçaram. Deixemos o
filho, que nos não importa, um pirralho de doze anos, que parece ter oito, tão mofino é ele.
Eulália interessa-nos, não só pelo que vimos de relance no capítulo passado, como porque,
ouvindo a mãe falar em D. Maria dos Anjos e no Leandrinho, ficou muito séria e, talvez,
um pouco amuada. D. Benedita percebeu que o assunto não era aprazível à filha, e recuou
da conversa, como alguém que desanda uma rua para evitar um importuno; recuou e
ergueu-se; a filha veio com ela para a sala de visitas.
Eram onze horas menos um quarto. D. Benedita conversou com a filha até depois do meio-
dia, para ter tempo de descansar o almoço e escrever a carta. Sabem que a mala fecha às
duas horas. De fato, alguns minutos, poucos, depois do meio-dia, D. Benedita disse à filha
que fosse estudar piano, porque ela ia acabar a carta. Saiu da sala; Eulália foi à janela,
relanceou a vista pelo Campo, e, se lhes disser que com uma pontazinha de tristeza nos
olhos, podem crer que é a pura verdade. Não era, todavia, a tristeza dos débeis ou dos
indecisos; era a tristeza dos resolutos, a quem dói de antemão um ato pela mortificação que
há de trazer a outros, e que, não obstante, juram a si mesmos praticá-lo, e praticam.
Convenho que nem todas essas particularidades podiam estar nos olhos de Eulália, mas por
isso mesmo é que as histórias são contadas por alguém, que se incumbe de preencher as
lacunas e divulgar o escondido. Que era uma tristeza máscula, era; - e que daí a pouco os
olhos sorriam de um sinal de esperança, também não é mentira.
- Isto acaba, murmurou ela, vindo para dentro.
Justamente nessa ocasião parava um carro à porta, apeava-se uma senhora, ouvia-se a
campainha da escada, descia um moleque a abrir a cancela, e subia as escadas D. Maria dos
Anjos. D. Benedita, quando lhe disseram quem era, largou a pena, alvoroçada; vestiu-se à
pressa, calçou-se, e foi à sala.
- Com este tempo! exclamou. Ah! isto é que é querer bem à gente!
- Vim sem esperar pela sua visita, só para mostrar que não gosto de cerimônias, e que entre
nós deve haver a maior liberdade.
Vieram os cumprimentos de estilo, as palavrinhas doces, os afagos da véspera. D. Benedita
não se fartava de dizer que a visita naquele dia era uma grande fineza, uma prova de
verdadeira amizade; mas queria outra, acrescentou daí a um instante, que D. Maria dos
Anjos ficasse para jantar. Esta desculpou-se alegando que tinha de ir a outras partes;
demais, essa era a prova que lhe pedia, - a de ir jantar à casa dela primeiro. D. Benedita não
hesitou, prometeu que sim, naquela mesma semana.
- Estava agora mesmo escrevendo o seu nome, continuou.
- Sim?
- Estou escrevendo a meu marido, e falo da senhora. Não lhe repito o que escrevi, mas
imagine que falei muito mal da senhora, que era antipática, insuportável, maçante,
aborrecida... Imagine!
- Imagino, imagino. Pode acrescentar que, apesar de ser tudo isso, e mais alguma coisa,
apresento-lhe os meus respeitos.
- Como ela tem graça para dizer as coisas! Comentou D. Benedita olhando para a filha.
Eulália sorriu sem convicção. Sentada na cadeira fronteira à mãe, ao pé da outra ponta do
sofá em que estava D. Maria dos Anjos, Eulália dava à conversação das duas a soma de
atenção que a cortesia lhe impunha, e nada mais. Chegava a parecer aborrecida; cada
sorriso que lhe abria a boca era de um amarelo pálido, um sorriso de favor. Uma das
tranças, - era de manhã, trazia o cabelo em duas tranças caídas pelas costas abaixo, - uma
delas servia-lhe de pretexto a alheiar-se de quando em quando, porque puxava-a para a
frente e contava-lhe os fios do cabelo, - ou parecia contá-los. Assim o creu D. Maria dos
Anjos, quando lhe lançou uma ou duas vezes os olhos, curiosa, desconfiada. D. Benedita é
que não via nada; via a amiga, a feiticeira, como lhe chamou duas ou três vezes, - "feiticeira
como ela só".
- Já?
D. Maria dos Anjos explicou que tinha de ir a outras visitas; mas foi obrigada a ficar ainda
alguns minutos, a pedido da amiga. Como trouxesse um mantelete de renda preta, muito
elegante, D. Benedita disse que tinha um igual e mandou buscá-lo. Tudo demoras. Mas a
mãe do Leandrinho estava tão contente! D. Benedita enchia-lhe o coração; achava nela
todas as qualidades que melhor se ajustavam à sua alma e aos seus costumes, ternura,
confiança, entusiasmo, simplicidade, uma familiaridade cordial e pronta. Veio o mantelete;
vieram oferecimentos de alguma coisa, um doce, um licor, um refresco; D. Maria dos Anjos
não aceitou nada mais do que um beijo e a promessa de que iriam jantar com ela naquela
semana.
- Quinta-feira, disse D. Benedita.
- Palavra?
- Palavra.
- Que quer que lhe faça se não for? Há de ser um castigo bem forte.
- Bem forte? Não me fale mais.
D. Maria dos Anjos beijou com muita ternura a amiga; depois abraçou e beijou também a
Eulália, mas a efusão era muito menor de parte a parte. Uma e outra mediam-se,
estudavam-se, começavam a compreender-se. D. Benedita levou a amiga até o patamar da
escada, depois foi à janela para vê-la entrar no carro; a amiga, depois de entrar no carro, pôs
a cabeça de fora, olhou para cima, e disse-lhe adeus, com a mão.
- Não falte, ouviu?
- Quinta-feira.
Eulália já não estava na sala; D. Benedita correu a acabar a carta. Era tarde: não relatara o
jantar da véspera, nem já agora podia fazê-lo. Resumiu tudo; encareceu muito as novas
relações; enfim, escreveu estas palavras:
"O cônego Roxo falou-me em casar Eulália com o filho de D. Maria dos Anjos; é um moço
formado em direito este ano; é conservador, e espera uma promotoria, agora, se o Itaboraí
não deixar o ministério. Eu acho que o casamento é o melhor possível. O Dr. Leandrinho (é
o nome dele) é muito bem educado; fez um brinde a você, cheio de palavras tão bonitas,
que eu chorei. Eu não sei se Eulália quererá ou não; desconfio de outro sujeito que outro dia
esteve conosco nas Laranjeiras. Mas você que pensa? Devo limitar-me a aconselhá-la, ou
impor-lhe a nossa vontade? Eu acho que devo usar um pouco da minha autoridade; mas não
quero fazer nada sem que você me diga. O melhor seria se você viesse cá."
Acabou e fechou a carta; Eulália entrou nessa ocasião, ela deu-lha para mandar, sem
demora, ao correio; e a filha saiu com a carta sem saber que tratava dela e do seu futuro. D.
Benedita deixou-se cair no sofá, cansada, exausta. A carta era muito comprida apesar de
não dizer tudo; e era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas!
III
Era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas! Esta palavra, fecho do capítulo passado,
explica a longa prostração de D. Benedita. Meia hora depois de cair no sofá, ergueu-se um
pouco, e percorreu o gabinete com os olhos, como procurando alguma coisa. Essa coisa era
um livro. Achou o livro, e podia dizer achou os livros, pois nada menos de três estavam ali,
dois abertos, um marcado em certa página, todos em cadeiras. Eram três romances que D.
Benedita lia ao mesmo tempo. Um deles, note-se, custou-lhe não pouco trabalho. Deram-
lhe notícia na rua, perto de casa, com muitos elogios; chegara da Europa na véspera. D.
Benedita ficou tão entusiasmada, que, apesar de ser longe e tarde, arrepiou caminho e foi
ela mesmo comprá-lo, correndo nada menos de três livrarias. Voltou ansiosa, namorada do
livro, tão namorada que abriu as folhas, jantando, e leu os cinco primeiros capítulos naquela
mesma noite. Sendo preciso dormir, dormiu; no dia seguinte não pôde continuar, depois
esqueceu-o. Agora, porém, passados oito dias, querendo ler alguma coisa, aconteceu-lhe
justamente achá-lo à mão.
- Ah!
E ei-la que torna ao sofá, que abre o livro com amor, que mergulha o espírito, os olhos e o
coração na leitura tão desastradamente interrompida. D. Benedita ama os romances, é
natural; e adora os romances bonitos, é naturalíssimo. Não admira que esqueça tudo para ler
este; tudo, até a lição de piano da filha, cujo professor chegou e saiu, sem que ela fosse à
sala. Eulália despediu-se do professor; depois foi ao gabinete, abriu a porta, caminhou pé
ante pé até o sofá, e acordou a mãe com um beijo.
- Dorminhoca!
- Ainda chove?
- Não, senhora; agora parou.
- A carta foi?
- Foi; mandei o José a toda a pressa. Aposto que mamãe esqueceu-se de dar lembranças a
papai? Pois olhe, eu não me esqueço nunca.
D. Benedita bocejou. Já não pensava na carta; pensava no colete que encomendara à
Charavel, um colete de barbatanas mais moles do que o último. Não gostava de barbatanas
duras; tinha o corpo mui sensível. Eulália falou ainda algum tempo do pai, mas calou-se
logo, e vendo no chão o livro aberto, o famoso romance, apanhou-o, fechou-o, pô-lo em
cima da mesa. Nesse momento vieram trazer uma carta a D. Benedita; era do cônego Roxo,
que mandava perguntar se estavam em casa naquele dia, porque iria ao enterro dos ossos.
- Pois não! bradou D. Benedita; estamos em casa, venha, pode vir.
Eulália escreveu o bilhetinho de resposta. Daí a três quartos de hora fazia o cônego a sua
entrada na sala de D. Benedita. Era um bom homem o cônego, velho amigo daquela casa,
na qual, além de trinchar o peru nos dias solenes, como vimos, exercia o papel de
conselheiro, e exercia-o com lealdade e amor. Eulália, principalmente, merecia-lhe muito;
vira-a pequena, galante, travessa, amiga dele, e criou-lhe uma afeição paternal, tão paternal
que tomara a peito casá-la bem, e nenhum noivo melhor do que o Leandrinho, pensava o
cônego. Naquele dia, a idéia de ir jantar com elas era antes um pretexto; o cônego queria
tratar o negócio diretamente com a filha do desembargador. Eulália, ou porque adivinhasse
isso mesmo, ou porque a pessoa do cônego lhe lembrasse o Leandrinho, ficou logo
preocupada, aborrecida.
Mas, preocupada ou aborrecida, não quer dizer triste ou desconsolada. Era resoluta, tinha
têmpera, podia resistir, e resistiu, declarando ao cônego, quando ele naquela noite lhe falou
do Leandrinho, que absolutamente não queria casar.
- Palavra de moça bonita?
- Palavra de moça feia.
- Mas, por quê?
- Porque não quero.
- E se mamãe quiser?
- Não quero eu.
- Mau! isso não é bonito, Eulália.
Eulália deixou-se estar. O cônego ainda tornou ao assunto, louvou as qualidades do
candidato, as esperanças da família, as vantagens do casamento; ela ouvia tudo, sem
contestar nada. Mas quando o cônego formulava de um modo direto a questão, a resposta
invariável era esta:
- Já disse tudo.
- Não quer?
- Não.
O desconsolo do bom cônego era profundo e sincero. Queria casá-la bem, e não achava
melhor noivo. Chegou a interrogá-la discretamente, sobre se tinha alguma preferência em
outra parte. Mas Eulália, não menos discretamente, respondia que não, que não tinha nada;
não queria nada; não queria casar. Ele creu que era assim, mas receou também que não
fosse assim; faltava-lhe o trato suficiente das mulheres para ler através de uma negativa.
Quando referiu tudo a D. Benedita, esta ficou assombrada com os termos da recusa; mas
tornou logo a si, e declarou ao padre que a filha não tinha vontade, faria o que ela quisesse,
e ela queria o casamento.
- Já agora nem espero resposta do pai, concluiu; declaro-lhe que ela há de casar. Quinta-
feira vou jantar com D. Maria dos Anjos, e combinaremos as coisas.
- Devo dizer-lhe, ponderou o cônego, que D. Maria dos Anjos não deseja que se faça nada à
força.
- Qual força! Não é preciso força.
O cônego refletiu um instante:
- Em todo caso, não violentaremos qualquer outra afeição que ela possa ter, disse ele.
D. Benedita não respondeu nada; mas consigo, no mais fundo de si mesma, jurou que,
houvesse o que houvesse, acontecesse o que acontecesse, a filha seria nora de D. Maria dos
Anjos. E ainda consigo, depois de sair o cônego: - Tinha que ver! um tico de gente, com
fumaças de governar a casa!
A quinta-feira raiou. Eulália, - o tico de gente, levantou-se fresca, lépida, loquaz, com todas
as janelas da alma abertas ao sopro azul da manhã. A mãe acordou ouvindo um trecho
italiano, cheio de melodia; era ela que cantava, alegre, sem afetação, com a indiferença das
aves que cantam para si ou para os seus, e não para o poeta, que as ouve e traduz na língua
imortal dos homens. D. Benedita afagara muito a idéia de a ver abatida, carrancuda, e
gastara uma certa soma de imaginação em compor os seus modos, delinear os seus atos,
ostentar energia e força. E nada! Em vez de uma filha rebelde, uma criatura gárrula e
submissa. Era começar mal o dia; era sair aparelhada para destruir uma fortaleza, e dar com
uma cidade aberta, pacífica, hospedeira, que lhe pedia o favor de entrar e partir o pão da
alegria e da concórdia. Era começar o dia muito mal.
A segunda causa do tédio de D. Benedita foi um ameaço de enxaqueca, às três horas da
tarde; um ameaço, ou uma suspeita de possibilidade de ameaço. Chegou a transferir a
visita, mas a filha ponderou que talvez a visita lhe fizesse bem, e em todo caso, era tarde
para deixar de ir. D. Benedita não teve remédio, aceitou o reparo. Ao espelho, penteando-
se, esteve quase a dizer que definitivamente ficava; chegou a insinuá-lo à filha.
- Mamãe veja que D. Maria dos Anjos conta com a senhora, disse-lhe Eulália.
- Pois sim, redargüiu a mãe, mas não prometi ir doente.
Enfim, vestiu-se, calçou as luvas, deu as últimas ordens; e devia doer-lhe muito a cabeça,
porque os modos eram arrebitados, uns modos de pessoa constrangida ao que não quer. A
filha animava-a muito, lembrava-lhe o vidrinho dos sais, instava que saíssem, descrevia a
ansiedade de D. Maria dos Anjos, consultava de dois em dois minutos o pequenino relógio,
que trazia na cintura, etc. Uma amofinação, realmente.
- O que tu estás é me amofinando, disse-lhe a mãe.
E saiu, saiu exasperada, com uma grande vontade de esganar a filha, dizendo consigo que a
pior coisa do mundo era ter filhas. Os filhos ainda vá: criam-se, fazem carreira por si; mas
as filhas!
Felizmente, o jantar de D. Maria dos Anjos aquietou-a; e não digo que a enchesse de grande
satisfação, porque não foi assim. Os modos de D. Benedita não eram os do costume; eram
frios, secos, ou quase secos; ela, porém, explicou de si mesma a diferença, noticiando o
ameaço da enxaqueca, notícia mais triste do que alegre, e que, aliás, alegrou a alma de D.
Maria dos Anjos, por esta razão fina e profunda: antes a frieza da amiga fosse originada na
doença do que na quebra do afeto. Demais, a doença não era grave. E que fosse grave! Não
houve naquele dia mãos presas, olhos nos olhos, manjares comidos entre carícias mútuas;
não houve nada do jantar de domingo. Um jantar apenas conversado; não alegre,
conversado; foi o mais que alcançou o cônego. Amável cônego! As disposições de Eulália,
naquele dia, cumularam-no de esperanças; o riso que brincava nela, a maneira expansiva da
conversa, a docilidade com que se prestava a tudo, a tocar, a cantar, e o rosto afável, meigo,
com que ouvia e falava ao Leandrinho, tudo isso foi para a alma do cônego uma renovação
de esperanças. Logo hoje é que D. Benedita estava doente! Realmente, era caiporismo.
D. Benedita reanimou-se um pouco, à noite, depois do jantar. Conversou mais, discutiu um
projeto de passeio ao Jardim Botânico, chegou mesmo a propor que fosse logo no dia
seguinte; mas Eulália advertiu que era prudente esperar um ou dois dias até que os efeitos
da enxaqueca desaparecessem de todo; e o olhar que mereceu à mãe, em troca do conselho,
tinha a ponta aguda de um punhal. Mas a filha não tinha medo dos olhos matemos. De
noite, ao despentear-se, recapitulando o dia, Eulália repetiu consigo a palavra que lhe
ouvimos, dias antes, à janela:
- Isto acaba.
E, satisfeita de si, antes de dormir, puxou uma certa gaveta, tirou uma caixinha, abriu-a,
aventou um cartão de alguns centímetros de altura, - um retrato. Não era retrato de mulher,
não só por ter bigodes, como por estar fardado; era, quando muito, um oficial de marinha.
Se bonito ou feio, é matéria de opinião. Eulália achava-o bonito; a prova é que o beijou, não
digo uma vez, mas três. Depois mirou-o, com saudade, tornou a fechá-lo e guardá-lo.
Que fazias tu, mãe cautelosa e ríspida, que não vinhas arrancar às mãos e à boca da filha
um veneno tão sutil e mortal? D. Benedita, à janela, olhava a noite, entre as estrelas e os
lampiões de gás, com a imaginação vagabunda, inquieta, roída de saudades e desejos. O dia
tinha-lhe saído mal, desde manhã. D. Benedita confessava, naquela doce intimidade da
alma consigo mesma, que o jantar de D. Maria dos Anjos não prestara para nada, e que a
própria amiga não estava provavelmente nos seus dias de costume. Tinha saudades, não
sabia bem de quê, e desejos, que ignorava. De quando em quando, bocejava ao modo
preguiçoso e arrastado dos que caem de sono; mas se alguma coisa tinha era fastio, - fastio,
impaciência, curiosidade. D. Benedita cogitou seriamente em ir ter com o marido; e tão
depressa a idéia do mando lhe penetrou no cérebro, como se lhe apertou o coração de
saudades e remorsos, e o sangue pulou-lhe num tal ímpeto de ir ver o desembargador que,
se o paquete do Norte estivesse na esquina da rua e as malas prontas, ela embarcaria logo e
logo. Não importa; o paquete devia estar prestes a sair, oito ou dez dias; era o tempo de
arranjar as malas. Iria por três meses somente, não era preciso levar muita coisa. Ei-la que
se consola da grande cidade fluminense, da similitude dos dias, da escassez das coisas, da
persistência das caras, da mesma fixidez das modas, que era um dos seus árduos problemas:
- por que é que as modas hão de durar mais de quinze dias?
- Vou, não há que ver, vou ao Pará, disse ela a meia voz.
Com efeito, no dia seguinte, logo de manhã, comunicou a resolução à filha, que a recebeu
sem abalo. Mandou ver as malas que tinha, achou que era preciso mais uma, calculou o
tamanho, e determinou comprá-la. Eulália, por uma inspiração súbita:
- Mas, mamãe, nós não vamos por três meses?
- Três... ou dois.
- Pois, então, não vale a pena. As duas malas chegam.
- Não chegam.
- Bem; se não chegarem, pode-se comprar na véspera. E mamãe mesmo escolhe; é melhor
do que mandar esta gente que não sabe nada.
D. Benedita achou a reflexão judiciosa, e guardou o dinheiro. A filha sorriu para dentro.
Talvez repetisse consigo a famosa palavra da janela: - Isto acaba. A mãe foi cuidar dos
arranjos, escolha de roupas, lista das coisas que precisava comprar, um presente para o
marido, etc. Ah! que alegria que ele ia ter! Depois do meio-dia saíram para fazer
encomendas, visitas, comprar as passagens, quatro passagens; levavam uma escrava
consigo. Eulália ainda tentou arredá-la da idéia, propondo a transferência da viagem; mas
D. Benedita declarou peremptoriamente que não. No escritório da Companhia de Paquetes
disseram-lhe que o do Norte saía na sexta-feira da outra semana. Ela pediu as quatro
passagens; abriu a carteirinha, tirou uma nota, depois duas, refletiu um instante.
- Basta vir na véspera, não?
- Basta, mas pode não achar mais.
- Bem; o senhor guarde os bilhetes: eu mando buscar.
- O seu nome?
- O nome? O melhor é não tomar o nome; nós viremos três dias antes de sair o vapor.
Naturalmente ainda haverá bilhetes.
- Pode ser.
- Há de haver.
Na rua, Eulália observou que era melhor ter comprado logo os bilhetes; e, sabendo-se que
ela não desejava ir para o Norte nem para o Sul, salvo na fragata em que embarcasse o
original do retrato da véspera, há de supor-se que a reflexão da moça era profundamente
maquiavélica. Não digo que não. D. Benedita, entretanto, noticiou a viagem aos amigos e
conhecidos, nenhum dos quais a ouviu espantado. Um chegou a perguntar-lhe se, enfim,
daquela vez era certo. D. Maria dos Anjos, que sabia da viagem pelo cônego, se alguma
coisa a assombrou, quando a amiga se despediu dela, foram as atitudes geladas, o olhar fixo
no chão, o silêncio, a indiferença. Uma visita de dez minutos apenas, durante os quais D.
Benedita disse quatro palavras no princípio: - Vamos para o Norte. E duas no fim: - Passe
bem. E os beijos? Dois tristes beijos de pessoa morta.
IV
A viagem não se fez por um motivo supersticioso. D. Benedita, no domingo à noite,
advertiu que o paquete seguia na sexta-feira, e achou que o dia era mau. Iriam no outro
paquete. Não foram no outro; mas desta vez os motivos escapam inteiramente ao alcance
do olhar humano, e o melhor alvitre em tais casos é não teimar com o impenetrável. A
verdade é que D. Benedita não foi, mas iria no terceiro paquete, a não ser um incidente que
lhe trocou os planos.
Tinha a filha inventado uma festa e uma amizade nova. A nova amizade era uma família do
Andaraí; a festa não se sabe a que propósito foi, mas deve ter sido esplêndida, porque D.
Benedita ainda falava dela três dias depois. Três dias! Realmente, era demais. Quanto à
família, era impossível ser mais amável; ao menos, a impressão que deixou na alma de D.
Benedita foi intensíssima. Uso este superlativo, porque ela mesma o empregou: é um
documento humano.
- Aquela gente? Oh! deixou-me uma impressão intensíssima.
E toca a andar para Andaraí, namorada de D. Petronilha, esposa do conselheiro Beltrão, e
de uma irmã dela, D. Maricota, que ia casar com um oficial de marinha, irmão de outro
oficial de marinha, cujos bigodes, olhos, cara, porte, cabelos, são os mesmos do retrato que
o leitor entreviu há tempos na gavetinha de Eulália. A irmã casada tinha trinta e dois anos, e
uma seriedade, umas maneiras tão bonitas, que deixaram encantada a esposa do
desembargador. Quanto à irmã solteira era uma flor, uma flor de cera, outra expressão de
D. Benedita, que não altero com receio de entibiar a verdade.
Um dos pontos mais obscuros desta curiosa história é a pressa com que as relações se
travaram, e os acontecimentos se sucederam. Por exemplo, uma das pessoas que estiveram
em Andaraí, com D. Benedita, foi o oficial de marinha retratado no cartão particular de
Eulália, 1º tenente Mascarenhas, que o conselheiro Beltrão proclamou futuro almirante.
Vede, porém, a perfídia do oficial: vinha fardado; e D. Benedita, que amava os espetáculos
novos, achou-o tão distinto, tão bonito, entre os outros moços à paisana, que o preferiu a
todos, e lho disse. O oficial agradeceu comovido. Ela ofereceu-lhe a casa; ele pediu-lhe
licença para fazer uma visita.
- Uma visita? Vá jantar conosco.
Mascarenhas fez uma cortesia de aquiescência.
- Olhe, disse D. Benedita, vá amanhã.
Mascarenhas foi, e foi mais cedo. D. Benedita falou-lhe da vida do mar; ele pediu-lhe a
filha em casamento. D. Benedita ficou sem voz, pasmada. Lembrou-se, é verdade, que
desconfiara dele, um dia, nas Laranjeiras; mas a suspeita acabara. Agora não os vira
conversar nem olhar uma só vez. Em casamento! Mas seria mesmo em casamento? Não
podia ser outra coisa; a atitude séria, respeitosa, implorativa do rapaz dizia bem que se
tratava de um casamento. Que sonho! Convidar um amigo, e abrir a porta a um genro: era o
cúmulo do inesperado. Mas o sonho era bonito; o oficial de marinha era um galhardo rapaz,
forte, elegante, simpático, metia toda a gente no coração, e principalmente parecia adorá-la,
a ela, D. Benedita. Que magnífico sonho! D. Benedita voltou do pasmo, e respondeu que
sim, que Eulália era sua. Mascarenhas pegou-lhe na mão e beijou-a filialmente.
- Mas o desembargador? disse ele.
- O desembargador concordará comigo.
Tudo andou assim depressa. Certidões passadas, banhos corridos, marcou-se o dia do
casamento; seria vinte e quatro horas depois de recebida a resposta do desembargador. Que
alegria a da boa mãe! que atividade no preparo do enxoval, no plano e nas encomendas da
festa, na escolha dos convidados, etc.! Ela ia de um lado para outro, ora a pé, ora de carro,
fizesse chuva ou sol. Não se detinha no mesmo objeto muito tempo; a semana do enxoval
não era a do preparo da festa, nem a das visitas; alternava as coisas, voltava atrás, com certa
confusão, é verdade. Mas aí estava a filha para suprir as faltas, corrigir os defeitos, cercear
as demasias, tudo com a sua habilidade natural. Ao contrário de todos os noivos, este não as
importunava; não jantava todos os dias com elas, segundo lhe pedia a dona da casa; jantava
aos domingos, e visitava-as uma vez por semana. Matava as saudades por meio de cartas,
que eram contínuas, longas e secretas, como no tempo do namoro. D. Benedita não podia
explicar uma tal esquivança, quando ela morria por ele; e então vingava-se da esquisitice,
morrendo ainda mais, e dizendo dele por toda a parte as mais belas coisas do mundo.
- Uma pérola! uma pérola!
- E um bonito rapaz, acrescentavam.
- Não é? De truz.
A mesma coisa repetia ao marido nas cartas que lhe mandava, antes e depois de receber a
resposta da primeira. A resposta veio; o desembargador deu o seu consentimento,
acrescentando que lhe doía muito não poder vir assistir às bodas, por achar-se um tanto
adoentado; mas abençoava de longe os filhos, e pedia o retrato do genro.
Cumpriu-se o acordo à risca. Vinte e quatro horas depois de recebida a resposta do Pará
efetuou-se o casamento, que foi uma festa admirável, esplêndida, no dizer de D. Benedita,
quando a contou a algumas amigas. Oficiou o cônego Roxo, e claro é que D. Maria dos
Anjos não esteve presente, e menos ainda o filho. Ela esperou, note-se, até à última hora um
bilhete de participação, um convite, uma visita, embora se abstivesse de comparecer; mas
não recebeu nada. Estava atônita, revolvia a memória a ver se descobria alguma
inadvertência sua que pudesse explicar a frieza das relações; não achando nada, supôs
alguma intriga. E supôs mal, pois foi um simples esquecimento. D. Benedita, no dia do
consórcio, de manhã, teve idéia de que D. Maria dos Anjos não recebera participação.
- Eulália, parece que não mandamos participação a D Maria dos Anjos, disse ela à filha,
almoçando.
- Não sei; mamãe é quem se incumbiu dos convites.
- Parece que não, confirmou D. Benedita. João, dá cá mais açúcar.
O copeiro deu-lhe o açúcar; ela, mexendo o chá, lembrou-se do carro que iria buscar o
cônego e reiterou uma ordem da véspera.
Mas a fortuna é caprichosa. Quinze dias depois do casamento, chegou a notícia do óbito do
desembargador. Não descrevo a dor de D. Benedita; foi dilacerante e sincera. Os noivos,
que devaneavam na Tijuca, vieram ter com ela; D. Benedita chorou todas as lágrimas de
uma esposa austera e fidelíssima. Depois da missa do sétimo dia, consultou a filha e o
genro acerca da idéia de ir ao Pará, erigir um túmulo ao marido, e beijar a terra em que ele
repousava. Mascarenhas trocou um olhar com a mulher; depois disse à sogra que era
melhor irem juntos, porque ele devia seguir para o Norte daí a três meses em comissão do
governo. D. Benedita recalcitrou um pouco, mas aceitou o prazo, dando desde logo todas as
ordens necessárias à construção do túmulo. O túmulo fez-se; mas a comissão não veio, e D.
Benedita não pôde ir.
Cinco meses depois, deu-se um pequeno incidente na família. D. Benedita mandara
construir uma casa no caminho da Tijuca, e o genro, com o pretexto de uma interrupção na
obra, propôs acabá-la. D. Benedita consentiu, e o ato era tanto mais honroso para ela,
quanto que o genro começava a parecer-lhe insuportável com a sua excessiva disciplina,
com as suas teimas, impertinências, etc. Verdadeiramente, não havia teimas; nesse
particular, o genro de D. Benedita contava tanto com a sinceridade da sogra que nunca
teimava; deixava que ela própria se desmentisse dias depois. Mas pode ser que isto mesmo
a mortificasse. Felizmente, o governo lembrou-se de o mandar ao Sul; Eulália, grávida,
ficou com a mãe.
Foi por esse tempo que um negociante, viúvo, teve idéia de cortejar D. Benedita. O
primeiro ano da viuvez estava passado. D. Benedita acolheu a idéia com muita simpatia,
embora sem alvoroço. Defendia-se consigo; alegava a idade e os estudos do filho, que em
breve estaria a caminho de São Paulo, deixando-a só, sozinha no mundo. O casamento seria
uma consolação, uma companhia. E consigo, na rua ou em casa, nas horas disponíveis,
aprimorava o plano com todos os floreios da imaginação vivaz e súbita; era uma vida nova,
pois desde muito, antes mesmo da morte do marido, pode-se dizer que era viúva. O
negociante gozava do melhor conceito: a escolha era excelente.
Não casou. O genro tornou do Sul, a filha deu à luz um menino robusto e lindo, que foi a
paixão da avó durante os primeiros meses. Depois, o genro, a filha e o neto foram para o
Norte. D. Benedita achou-se só e triste; o filho não bastava aos seus afetos. A idéia de
viajar tornou a rutilar-lhe na mente, mas como um fósforo, que se apaga logo. Viajar
sozinha era cansar e aborrecer-se ao mesmo tempo; achou melhor ficar. Uma companhia
lírica, adventícia, sacudiu-lhe o torpor, e restituiu-a à sociedade. A sociedade incutiu-lhe
outra vez a idéia do casamento, e apontou-lhe logo um pretendente, desta vez um
advogado, também viúvo.
- Casarei? não casarei?
Uma noite, volvendo D. Benedita este problema, à janela da casa de Botafogo, para onde se
mudara desde alguns meses, viu um singular espetáculo. Primeiramente uma claridade
opaca, espécie de luz coada por um vidro fosco, vestia o espaço da enseada, fronteira à
janela. Nesse quadro apareceu-lhe uma figura vaga e transparente, trajada de nevoas,
toucada de reflexos, sem contornos definidos, porque morriam todos no ar. A figura veio
até ao peitoril da janela de D. Benedita; e de um gesto sonolento, com uma voz de criança,
disse-lhe estas palavras sem sentido:
- Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas... casando ...
D. Benedita ficou aterrada, sem poder, mexer-se; mas ainda teve a força de perguntar à
figura quem era. A figura achou um princípio de riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu
que era a fada que presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu nome é Veleidade,
concluiu; e, como um suspiro, dispersou-se na noite e no silêncio.
FIM
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