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Advertência
Mário de Alencar
Contém este volume todas as obras de teatro originais de Machado de Assis, com
exceção de duas pequenas peças - Desencantos e As bodas de Joaninha - das quais não se
achou exemplar.
Também não foi possível descobrir das traduções que ele fez senão O suplício de uma
mulher, em cópia manuscrita doada com outros papeis à Academia Brasileira. As traduções
teriam lugar nesta coleção, como trabalhos que deviam ser compostos com o esmero literário
peculiar a toda obra escrita por Machado de Assis. Não coligi todavia O suplício de uma
mulher, atendendo à circunstância de estar riscado na cópia referida o nome do tradutor, o
que pareceu indicar a sua intenção de não dar a obra à publicidade em livro, ou talvez a sua
opinião de não a ter literariamente acabado.
É pena que se tivessem perdido as outras traduções, particularmente Os descontentes,
de Racine, que era em verso e da qual falava com muito louvor Artur Azevedo. Ouvira-a ele
em grande parte quando lida pelo próprio Machado de Assis a uma companhia portuguesa,
com o intuito de a fazer representar. Posto fizessem parte da companhia alguns atores
estimáveis e capazes de estimar um trabalho de Machado de Assis, não acolheram como era
justo a peça, talvez por demasiado fina para o gosto e o costume do público; e uma
observação ou gracejo de um dos atores, Silva Pereira, aborreceu o tradutor, a ponto que
suspendeu a leitura e recusou apresentar a peça. Talvez a rasgasse depois disso: o certo é
que não houve mais noticia dela, nem ficou vestígio seu entre os papeis do escritor.
As outras traduções, Queda que as mulheres têm para os tolos (*), Pipelet, O anjo da
meia-noite, O barbeiro de Sevilha, A família Benoiton e Montjoye, vêm citadas no dicionário
bibliográfico, de Sacramento Blake.o lhes descobri o paradeiro e, salvo a primeira, parece
que não chegaram a ser publicadas. Escreveu-as Machado de Assis entre os anos de 1860 a
1870, época do seu início na imprensa e da mais fervorosa e duradoura fase de literatura
dramática que houve no Brasil. A influência dos escritores franceses dominava como
sempre em primeira mão a literatura brasileira e o êxito da nova escola de teatro em França
estimulava os ensaios dramáticos entre nós. Quase que não houve escritor brasileiro que não
experimentasse a sua vocação para o gênero. O entusiasmo era sincero. Quem não podia
compor obra original contentava-se com traduzir as recentes produções chegadas da Europa.
Em todos era o mesmo empenho e gosto de criar um teatro nacional.
Machado de Assis, nos seus últimos anos, quando ouvia falar na regeneração ou ainda
criação desse teatro, costumava lembrar aquele outro período da sua mocidade, e contava
que alguns rapazes entusiastas, Sizenando Nabuco e outros, estudantes em São Paulo,
vinham ao Rio de Janeiro para assistir às representações de peças novas. Iam a Santos
tomar o vapor, que ainda não havia a estrada de ferro, e dois ou três dias depois regressavam
para a tarefa de acadêmicos. Machado de Assis não fazia confronto entre as épocas e as
gentes de uma e de outra, nem tirava conclusões. Olhava com simpatia a iniciativa e o
esforço de Artur Azevedo, e desejava que fossem eficazes: mas estou que não confiava no
resultado deles. Não bastava que houvesse escritores de talento e resolvidos a escrever para
o teatro; não bastava, ainda que houvesse um publico inteligente disposto a freqüentar o
teatro. O essencial, o imprescindível é que surgissem autores dramáticos com o verdadeiro
talento dramático. Estes criariam o teatro, fariam o público. Mas não havia auxílio oficial
capaz de dar talento dramático a quem não o tivesse, nem os aplausos públicos poderiam
suprir a vocação, sem a qual todos os esforços serão inúteis, ou, se aparentemente
proveitosos, efêmeros. Assim fora entre 1860 e 1870. Nesse tempo houve realmente uma
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produção dramática notável pelo número e não raro pela qualidade das obras, e sobretudo
pelo valor dos escritores. Nenhum destes, porém, apesar do talento e da vontade deliberada
ou impulsiva de escrever para teatro, chegou a revelar o verdadeiro engenho dramático, e
sem esse dom, que se não adquire pelo estudo, era fatal que cansasse a perseverança do
esforço individual, e em pouco tempo a produção dramática no Rio de Janeiro, em que se
resumia então todo o Brasil, estivesse reduzida a uma ou outra tentativa no gênero, espaçada
e malograda. Foi o que sucedeu. E o caso particular de Machado de Assis é típico. Ninguém
mais do que ele possuía as qualidades ou condições capazes de suprir algum dom de que
carecesse: tinha o engenho forte, a pertinácia do esforço, a leitura dos mestres, a constância
do estudo, a vontade de produzir, o gosto apurado, o conhecimento da língua, a habilidade de
observar e generalizar. Pois com todos esses elementos ele não pôde adquirir o talento
dramático. Ele próprio o sentiu e reconheceu; mas nos primeiros anos de moço parecia
confiar na ação da sua vontade e na continuidade do trabalho. E a sua ambição nesse tempo
era a obra do teatro. É o que inculca a publicação das suas primeiras comedias O caminho da
porta, O protocolo, em 1863, e declaradamente a carta com que as prefaciou, dirigida a
Quintino Bocaiúva, seu amigo e emulo literário.
"Tenho o teatro, diz ele ali, por coisa muito séria e as minhas forças por coisa muito
insuficiente; penso que as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e
apuram-se com o tempo e o trabalho; cuido que é melhor tatear para achar; é o que procurei e
procuro fazer. Caminhar destes simples grupos de cenas à comédia de maior alcance, onde
o estudo dos caracteres seja consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se
case ao conhecimento prático das condições do gênero, eis uma ambição própria de ânimo
juvenil, e que eu tenho a imodéstia de confessar. E tão certo estou da magnitude da
conquista, que me não dissimulo o longo estádio que a percorrer para alcançá-la. E mais.
Tão difícil me parece este gênero literário que, sob as dificuldades aparentes, se me afigura
que outras haverá, menos superáveis, e tão sutis que ainda as não posso ver.
Até onde vai a ilusão dos meus desejos? Confio demasiado na minha perseverança?
Eis o que espero saber de ti".
Quintino Bocaiúva respondeu-lhe acertadamente, como bom amigo que era dele, e
sagaz e criterioso.
"As tuas comédias, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam nada
mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a profusa riqueza do teu estilo. Não
inspiram nada mais do que simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas
as formas da concepção. Como lhes falta a idéia, falta-lhes a base. São belas, porque são
bem escritas. o valiosas, como artefatos literários, mas, a onde a minha vaidosa
presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como
todo o sujeito sem alma. Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação
direta que me diriges, devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre
a rampa da cena do que em oferecê-las à leitura calma e refletida. O que no teatro podia
servir de obstáculo à apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comédias são
para serem lidas e não representadas".
Este conceito é rigorosamente justo e aplicável a todo o teatro de Machado de Assis.
Entendeu-o e aceitou-o desde logo o escritor, cujo discernimento crítico era dos mais
completos queconheci, e abrindo mão das suas ambições dramáticas, usou do seu grande
talento para a obra a que o dispunha uma vocação absoluta e que havia de fazer a sua glória,
o conto, a poesia, o romance e a crítica. É verdade que ainda escreveu algumas comédias e
cenas dramáticas; mas não as destinava ao teatro, senão a saraus literários, ou à
representação de salão. Ali é que elas devem ser ouvidas e apreciadas; não fica
despercebido o encanto do estilo nem a graça do entrecho, nem o primor do diálogo. Dão a
impressão de se estar ouvindo aquele conversador arguto e fino, que foi Machado de Assis,
personificando-se em cada figura das peças. Mas não saraus nem salões literários
como nos bons tempos que se foram; e era preciso não deixar esquecidas todas estas obras,
que se não tivessem outro merecimento, tinham o de ser obras de Machado de Assis. Foi o
que induziu o editor H. Garnier a dá-las nesta coleção reunindo-as às já publicadas em outros
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volumes. É mais um título de gratidão dos admiradores de Machado de Assis ao benemérito
editor a quem tanto devem as letras brasileiras.
Rio, dezembro de 1909.
Mário de Alencar
Carta a Quintino Bocaiúva
Machado de Assis
Meu amigo,
Vou publicar as minhas duas comédias de estréia; e não quero fazê-lo sem o conselho
da tua competência.
uma crítica benévola e carinhosa, em que tomaste parte, consagrou a estas duas
composições palavras de louvor e animação.
Sou imensamente reconhecido, por tal, aos meus colegas da imprensa.
Mas o que recebeu na cena o batismo do aplauso pode, sem inconveniente, ser
trasladado para o papel? A diferença entre os dois meios de publicação não modifica o juízo,
não altera o valor da obra?
É para a solução destas dúvidas que recorro à tua autoridade literária.
O juízo da imprensa via nestas duas comédias - simples tentativas de autor tímido e
receoso. Se a minha afirmação não envolve suspeitas de vaidade disfarçada e mal cabida,
declaro que nenhuma outra ambição levo nesses trabalhos. Tenho o teatro por coisa muito
séria e as minhas forças por coisa muito insuficiente; penso que as qualidades necessárias
ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com o tempo e o trabalho; cuido que é
melhor tatear para achar; é o que procurei e procuro fazer.
Caminhar destes simples grupos de cenas - à comedia de maior alcance, onde o
estudo dos caracteres seja consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se
case ao conhecimento prático das condições do gênero, - eis uma ambição própria de ânimo
juvenil e que eu tenho a imodéstia de confessar.
E tão certo estou da magnitude da conquista, que me não dissimulo o longo estádio que
de percorrer para alcançá-la. E mais. Tão difícil me parece este gênero literário que, sob
as dificuldades aparentes, se me afigura que outras haverá, menos superáveis e tão sutis,
que ainda as não posso ver.
Até onde vai a ilusão dos meus desejos? Confio demasiado na minha perseverança.
Eis o que espero saber de ti.
E dirijo-me a ti, entre outras razões, por mais duas, que me parecem excelentes: razão
de estima literária e razão de estima pessoal. Em respeito à tua modéstia, calo o que te devo
de admiração e reconhecimento.
O que nos honra, a mim e a ti, é que a tua imparcialidade e a minha submissão ficam
salvas da mínima suspeita. Serás justo e eu dócil; terás ainda por isso o meu
reconhecimento; e eu escapo a esta terrível sentença de um escritor: "Les amitiés qui ne
résistent pas à la franchise, valent-elles un regret?"
Teu amigo e colega,
MACHADO DE ASSIS
Quintino Bocaiúva
Carta ao autor
MACHADO DE ASSIS,
Respondo à tua carta. Pouco preciso dizer-te. Fazes bem em dar ao prelo os teus
primeiros ensaios dramáticos. Fazes bem, porque essa publicação envolve uma promessa e
acarreta sobre ti uma responsabilidade para com o público. E o público tem o direito de ser
exigente contigo. És moço e foste dotado pela Providência de um belo talento. Ora, o talento
é uma arma divina que Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor
serviço dos seus semelhantes. A idéia é uma força. Inoculá-la no seio das massas é inocular-
lhe o sangue puro da regeneração moral. O homem que se civiliza, cristianiza-se. Quem se
ilustra, edifica-se. Porque a luz que nos esclarece a razão é a que nos alumia a consciência.
Quem aspira a ser grande, não pode deixar de aspirar a ser bom. A virtude é a primeira
grandeza deste mundo. O grande homem é o homem de bem. Repito, pois: nessa obra de
cultivo literário há uma obra de edificação moral.
Das muitas e variadas formas literárias que existem e que se prestam ao
conseguimento desse fim, escolheste a forma dramática. Acertaste. O drama é a forma mais
popular, a que mais se nivela com a alma do povo, a que mais recursos possui para atuar
sobre o seu espírito, a que mais facilmente o comove e exalta; em resumo, a que tem meios
mais poderosos para influir sobre o seu coração.
Quando assim me exprimo, é claro que me refiro às tuas comédias, aceitando-as como
elas devem ser aceitas por mim e por todos, isto é, como um ensaio, como uma experiência,
e, se podes admitir a frase, como uma ginástica de estilo.
A minha franqueza e a lealdade que devo à estima que me confessas obrigam-me a
dizer-te em blico o que te disse em particular. As tuas duas comédias, modeladas ao
gosto dos provérbios franceses, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu
espírito, a profusa riqueza do teu estilo. Não inspiram nada mais do que simpatia e
consideração por um talento que se amaneira a todas as formas da concepção.
Como lhes falta a idéia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São
valiosas, como artefatos literários, mas até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser
tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma.
Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me diriges,
devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre a rampa da cena do
que em oferecê-las à leitura calma e refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo à
apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comédias são para serem lidas e não
representadas. Como elas são um brinco de espírito podem distrair o espírito. Como não têm
coração não podem pretender sensibilizar a ninguém. Tu mesmo assim as consideras, e
reconhecer isso, é dar prova de bom critério consigo mesmo, qualidade rara de encontrar-se
entre os autores.
O que desejo, o que te peço, é que apresentes nesse mesmo gênero algum trabalho
mais sério, mais novo, mais original e mais completo. fizeste esboços, atira-te à grande
pintura.
Posso garantir-te que conquistarás aplausos mais convencidos e mais duradouros.
Em todo o caso, repito-te que fazes bem. Sujeita-te à critica de todos, para que possas
corrigir-te a ti mesmo. Como te mostras despretensioso, colherás o fruto são da tua modéstia
não fingida. Pela minha parte estou sempre disposto a acompanhar-te, retribuindo-te em
simpatia toda a consideração que me impõe a tua jovem e vigorosa inteligência.
Teu
Q. Bocaiúva
DESENCANTOS
Machado de Assis
Fantasia Dramática
A
Quintino Bocaiúva
INTERLOCUTORES
Clara de Souza
Luiz de Melo
Pedro Alves
PRIMEIRA PARTE
EM PETRÓPOLIS
Um jardim, terraço no fundo
CENA I
Clara, Luiz de Melo
CLARA - Custa a crer o que me diz. Pois deveras saiu aborrecido do baile?
LUIZ - É verdade.
CLARA - Dizem entretanto que esteve animado...
LUIZ - Esplêndido!
CLARA - Esplêndido, sim!
LUIZ - Maravilhoso.
CLARA - Essa é, pelo menos, a opinião geral. Se eu fosse, estou certa de que seria a
minha.
LUIZ - Pois eu lá fui e não é essa a minha opinião.
CLARA - É difícil de contentar nesse caso.
LUIZ - Oh! não.
CLARA - Então as suas palavras são um verdadeiro enigma.
LUIZ - Enigma de fácil decifração.
CLARA - Nem tanto.
LUIZ - Quando se preferência a uma flor, à violeta, por exemplo, todo o jardim onde ela
não apareça, embora esplendido, é sempre incompleto.
CLARA - Faltava então uma violeta nesse jardim.
LUIZ - Faltava. Compreende agora?
CLARA - Um pouco.
LUIZ - Ainda bem!
CLARA - Venha sentar-se neste banco de relva, à sombra desta árvore copada. Nada lhe
falta para compor um idílio, que é dado a esse gênero de poesia. Tinha então muito
interesse em ver lá essa flor?
LUIZ - Tinha. Com a mão na consciência, falo-lhe a verdade; essa flor não e uma predileção
do espírito, é uma escolha do coração.
CLARA - Vejo que se trata de uma paixão. Agora compreendo a razão por que não lhe
agradou o baile, e o que era enigma, para a ser a coisa mais natural do mundo. Está
absolvido do seu delito.
LUIZ - Bem vê que tenho circunstâncias atenuantes a meu favor.
CLARA - Então o senhor ama?
LUIZ - Loucamente, e como se pode amar aos vinte e dois anos, com todo o ardor de um
coração cheio de vida. Na minha idade o amor é uma preocupação exclusiva que se apodera
do coração e da cabeça. Experimentar outro sentimento, que não seja esse, pensar em outra
coisa, que não seja o objeto escolhido pelo coração, é impossível. Desculpe se lhe falo
assim...
CLARA - Pode continuar. Fala com um entusiasmo tal, que me faz parecer estar ouvindo
algumas das estrofes do nosso apaixonado Gonzaga.
LUIZ - O entusiasmo do amor é por ventura o mais vivo e ardente.
CLARA - E por isso o menos duradouro. E como a palha que se inflama com intensidade,
mas que se apaga logo depois.
LUIZ - Não aceito a comparação. Pois Deus havia de inspirar ao homem esse sentimento, tão
suscetível de morrer assim? Demais, a prática mostra o contrário.
CLARA - sei. Vem falar-me de Heloisa e Abeillard, Pyramo e Tysbe, e quanto exemplo a
história e a fábula nos dão. Esses não provam. Mesmo porque são exemplos raros, é que a
história os aponta. Fogo de palha, fogo de palha e nada mais.
LUIZ - Pesa-me que de seus lábios saiam essas palavras.
CLARA - Por que?
LUIZ - Porque eu não posso admitir a mulher sem os grandes entusiasmos do coração.
Chamou-me pouco de poeta; com efeito eu assemelho-me por esse lado aos filhos
queridos das musas. Esses imaginam a mulher um ente intermediário que separa os homens
dos anjos e querem-na participante das boas qualidades de uns e de outros. Dir-meque se
eu fosse agiota não pensaria assim; eu responderei que não são os agiotas os que têm razão
neste mundo.
CLARA - Isso é que é ver as coisas através de um vidro de cor. Diga-me: sente deveras o que
diz a respeito do amor, ou está fazendo uma profissão de fé de homem político?
LUIZ - Penso e sinto assim.
CLARA - Dentro de pouco tempo verá que tenho razão.
LUIZ - Razão de que?
CLARA - Razão de chamar fogo de palha ao fogo que lhe devora o coração.
LUIZ - Espero em Deus que não.
CLARA - Creio que sim.
LUIZ - Falou-me pouco em fazer um idílio, e eu estou com desejos de compor uma ode
sáfica.
CLARA - A que respeito?
LUIZ - Respeito à crueldade das violetas.
CLARA - E depois ia atirar-se à torrente do Itamarati? Ah! como anda atrasado do seu século!
LUIZ - Ou adiantado...
CLARA - Adiantado, não creio. Voltaremos nós à simplicidade antiga?
LUIZ - Oh! tinha razão aquela pobre poetiza de Lesbos em atirar-se às ondas. Encontrou na
morte o esquecimento das suas dores íntimas. De que lhe servia viver amando sem
esperança?
CLARA - Dou-lhe de conselho que perca esse entusiasmo pela antiguidade. A poetiza de
Lesbos quis figurar na história com uma face melancólica; atirou-se de Leucate. Foi cálculo e
não virtude.
LUIZ - Está pecando, minha senhora.
CLARA - Por blasfemar do seu ídolo?
LUIZ - Por blasfemar de si. Uma mulher nas condições da décima musa nunca obra por
cálculo. E V. Excia., por mais que queira, deve estar nas mesmas condições de sensibilidade,
que a poetiza antiga, bem como esta nas de beleza.
CENA II
Luis de Mello, Clara, Pedro Alves
PEDRO ALVES - Boa tarde, minha interessante vizinha. Sr. Luiz de Mello!
CLARA - Faltava o primeiro folgazão de Petrópolis, a flor da emigração!
PEDRO ALVES - Nem tanto assim.
CLARA - Estou encantada por ver assim a meu lado os meus dois vizinhos, o da direita e o da
esquerda.
PEDRO ALVES - Estavam conversando? Era segredo?
CLARA - Oh! não. O Sr. Luiz de Mello fazia-me um curso de história depois de ter feito outro
de botânica. Mostrava-me a sua estima pela violeta e pela Safo.
PEDRO ALVES - E que dizia a respeito de uma e de outra?
CLARA - Erguia-as às nuvens. Dizia que não considerava jardim sem violeta, e quanto ao
salto de Leucate, batia palmas com verdadeiro entusiasmo.
PEDRO ALVES - E ocupava V. Excia. com essas coisas? Duas questões banais. Uma não
tem valor moral, outra não tem valor atual.
LUIZ - Perdão, o Sr. chegava quando eu ia concluir o meu curso botânico e histórico. Ia dizer
que também detesto as parasitas de todo o gênero, e que tenho asco aos histriões de Atenas.
Terão estas duas questões valor moral e atual?
PEDRO ALVES (enfado) - Confesso que não compreendo.
CLARA - Diga-me, Sr. Pedro Alves: foi à partida de ontem à noite?
PEDRO ALVES - Fui, minha senhora.
CLARA - Divertiu~se?
PEDRO ALVES - Muito. Dancei e joguei a fartar, e quanto a doces, não enfardei mal o
estômago. Foi uma deslumbrante função. Ah! notei que não estava lá.
CLARA - Uma maldita enxaqueca reteve-me em casa.
PEDRO ALVES - Maldita enxaqueca!
CLARA - Consola-me a idéia de que não fiz falta.
PEDRO ALVES - Como? não fez falta?
CLARA - Cuido que todos seguiram o seu exemplo e que dançaram e jogaram a fartar, não
enfardando mal o estômago, quanto a doces.
PEDRO ALVES - Deu um sentido demasiado literal às minhas palavras.
CLARA - Pois não foi isso que me disse?
PEDRO ALVES - Mas eu queria dizer outra coisa.
CLARA - Ah! isso é outro caso. Entretanto acho que é dado a qualquer divertir-se ou não num
baile, e por conseqüência dizê-lo.
PEDRO ALVES - A qualquer, D. Clara!
CLARA - Aqui está o nosso vizinho que acaba de me dizer que se aborreceu no baile...
PEDRO ALVES (consigo) - Ah! (alto) De fato, eu o vi entrar e sair pouco depois com ar
assustadiço e penalizado.
LUIZ - Tinha de ir tomar chá em casa de um amigo e não podia faltar.
PEDRO ALVES - Ah! foi tomar chá. Entretanto correram certos boatos depois que o senhor
saiu.
LUIZ - Boatos?
PEDRO ALVES - É verdade. Houve quem se lembrasse de dizer que o senhor saíra logo por
não ter encontrado da parte de uma dama que lá estava o acolhimento que esperava.
CLARA (olhando para Luiz) - Ah!
LUIZ - Oh! isso é completamente falso. Os maldizentes estão por toda parte, mesmo nos
bailes; e desta vez não houve tino na escolha dos convidados.
PEDRO ALVES - Também é verdade. (Baixo à Clara). Recebeu o meu bilhete?
CLARA (depois de um olhar). - Como é bonito o pôr do sol! Vejam que magnífico espetáculo!
LUIZ - É realmente encantador.
PEDRO ALVES - Não é feio; tem mesmo alguma coisa de grandioso. (Vão ao terraço).
LUIZ - Que colorido e que luz!
CLARA - Acho que os poetas têm razão celebrarem esta hora final do dia!
LUIZ - Minha senhora, os poetas têm sempre razão. E quem não se extasiará diante deste
quadro?
CLARA - Ah!
LUIZ e PEDRO ALVES - O que é?
CLARA - É o meu leque que caiu! Vou mandar apanhá-lo.
PEDRO ALVES - Como apanhar? Vou eu mesmo.
CLARA - Ora, tinha que ver! Vamos para a sala e eu mandarei buscá-lo.
PEDRO ALVES - Menos isso. Deixe-me a glória de trazer-lhe o leque.
LUIZ - Se consente, eu faço concorrência ao desejo do Sr. Pedro Alves...
CLARA - Mas então apostaram-se?
LUIZ - Mas se isso é um desejo de nós ambos. Decida.
PEDRO ALVES - Então o senhor quer ir?
LUIZ (a Pedro Alves) - Não vê que espero a decisão?
PEDRO ALVES - Mas a idéia é minha. Entretanto, Deus me livre de dar-lhe motivo de queixa,
pode ir.
LUIZ - Não espero mais nada.
CENA III
Pedro Alves, Clara
PEDRO ALVES - Este nosso vizinho tem uns ares de superior que me desagradam. Pensa
que não compreendi a alusão da parasita e dos histriões? O que não me fazia conta era
desrespeitar a presença de V. Excia., mas não faltam ocasiões para castigar um insolente.
CLARA - Não lhe acho razão para falar assim. O Sr. Luiz de Melo é um moço de maneiras
delicadas e está longe de ofender a quem quer que seja, muito menos a uma pessoa que eu
considero...
PEDRO ALVES - Acha?
CLARA - Acho sim.
PEDRO ALVES - Pois eu não. São modos de ver. Tal seja o ponto de vista em que V. Excia.
se coloca... Cá o meu olhar apanha-o em cheio e diz-me que ele merece bem uma lição.
CLARA - Que espírito belicoso é esse?
PEDRO ALVES - Este espírito belicoso o ciúme. Eu sinto ter por concorrente a este vizinho
que se antecipa a visitá-la, e a quem V. Excia. dá tanta atenção.
CLARA - Ciúme!
PEDRO ALVES - Ciúme, sim. O que me respondeu V. Excia. à pergunta que lhe fiz sobre o
meu bilhete? Nada, absolutamente nada. Talvez nem o lesse; entretanto eu pintava-lhe nele o
estado do meu coração, mostrava-lhe os sentimentos que me agitam, fazia-lhe uma autópsia,
era uma autópsia, que eu lhe fazia de meu coração. Pobre coração! Tão mal pago dos seus
extremos, e entretanto tão pertinaz em amar!
CLARA - Parece-me bem apaixonado. Devo considerar-me feliz por ter perturbado a
quietação do seu espírito. Mas a sinceridade nem sempre é companheira da paixão.
PEDRO ALVES - Raro se aluam, é verdade, mas desta vez não é assim. A paixão que eu
sinto é sincera, e pesa-me que meus avós não tivessem uma espada para eu sobre ela jurar...
CLARA - Isso é mais uma arma de galantaria que um testemunho de verdade. Deixe antes
que o tempo ponha em relevo os seus sentimentos.
PEDRO ALVES - O tempo! tanto que me diz isso! Entretanto continua o vulcão em meu
peito e só pode ser apagado pelo orvalho do seu amor.
CLARA - Estamos em pleno outeiro. às suas palavras parecem um mote glosado em prosa.
Ah! a sinceridade não está nessas frases gastas e ocas.
PEDRO ALVES - O meu bilhete, entretanto, é concebido em frases bem tocantes e simples.
CLARA - Com franqueza, eu não li o seu bilhete.
PEDRO ALVES - Deveras?
CLARA - Deveras.
PEDRO ALVES (tomando o chapéu) - Com licença.
CLARA - Onde vai? Não compreende que quando digo que não li o seu bilhete é porque
quero ouvir da sua própria boca as palavras que nele se continham?
PEDRO ALVES - Como? Será por isso?
CLARA - Não acredita?
PEDRO ALVES - É capricho de moça bonita e nada mais. Capricho sem exemplo.
CLARA - Dizia-me então?...
PEDRO ALVES - Dizia-lhe que, com o espírito vacilante como baixei prestes a soçobrar, eu
lhe escrevia à luz do relâmpago que me fuzila n'alma aclarando as trevas que uma
desgraçada paixão ai me deixa. Pedia-lhe a luz dos seus olhos sedutores para servir de guia
na vida e poder encontrar sem perigo o porto de salvamento. Tal é no seu espírito a segunda
edição de minha carta. As cores que nela empreguei são a fiel tradução do que senti e sinto.
Está pensativa?
CLARA - Penso em que, se me fala verdade, a sua paixão é rara e nova para estes tempos.
PEDRO ALVES - Rara e muito rara; pensa que eu sou lá desses que procuram vencer pelas
palavras melífluas e falsas. Sou rude, mas sincero.
CLARA - Apelemos para o tempo.
PEDRO ALVES - É um juiz tardio. Quando a sua sentença chegar, eu estarei no túmulo e
será tarde.
CLARA - Vem agora com idéias fúnebres!
PEDRO ALVES - Eu não apelo para o tempo. O meu juiz está em face de mim, e eu quero
beijar antecipadamente a mão que de lavrar a minha sentença de absolvição. (Quer
beijar-lhe a mão. Clara sai). Ouça! Ouça!
CENA IV
Luiz de Mello, Pedro Alves
PEDRO ALVES (só) - Fugiu! Não tarda ceder. Ah! o meu adversário!
LUIZ - D. Clara?
PEDRO ALVES - Foi para a outra parte do jardim.
LUIZ - Bom (vai sair).
PEDRO ALVES - Disse-me que o fizesse esperar; eu estimo bem estarmos a sós porque
tenho de lhe dizer algumas palavras.
LUIZ - Às suas ordens. Posso ser-lhe útil?
PEDRO ALVES - Útil a mim e a si. Eu gosto das situações claras e definidas. Quero poder
dirigir a salvo e seguro o meu ataque. Se lhe falo deste modo é porque, simpatizando com
as suas maneiras, desejo não trair a uma pessoa a quem me ligo por um vínculo secreto.
Vamos ao caso: é preciso que me diga quais as suas intenções, qual o seu plano de guerra;
assim, cada um pode atacar por seu lado a praça, e o triunfo será do que melhor tiver
empregado os seus tiros.
LUIZ - A que vem essa belicosa parábola?
PEDRO ALVES - Não compreende ?
LUIZ - Tenha a bondade de ser mais claro.
PEDRO ALVES - Mais claro ainda? Pois serei claríssimo: a viúva do coronel é uma praça
sitiada.
LUIZ - Por quem?
PEDRO ALVES - Por mim, confesso. E afirmo que por nós ambos.
LUIZ - Informaram-no mal. Eu não faço a corte à viúva do coronel.
PEDRO ALVES - Creio em tudo quanto quiser, menos nisso.
LUIZ - A sua simpatia por mim vai até desmentir as minhas asserções?
PEDRO ALVES - Isso não é discutir. Deveras, não faz a corte à nossa interessante vizinha?
LUIZ - Não, as minhas atenções para com ela não passam de uma retribuição a que, como
homem delicado, não me poderia furtar.
PEDRO ALVES - Pois eu faço.
LUIZ - Seja-lhe para bem! Mas a que vem isso?
PEDRO ALVES - A coisa alguma. Desde que me afiança não ter a menor intenção oculta nas
suas atenções, a explicação está dada. Quanto a mim, faço-lhe a corte e digo-o bem alto.
Apresento-me candidato ao seu coração e para isso mostro títulos valiosos. Dirão que sou
presumido; podem dizer o que quiser.
LUIZ - Desculpe a curiosidade: quais são esses títulos?
PEDRO ALVES - A posição que a fortuna me dá, umsico que pode-se chamar belo, uma
coragem capaz de afrontar todos os muros e grades possíveis e imagináveis, e para coroar
a obra uma discrição de pedreiro-livre.
LUIZ - Só?
PEDRO ALVES - Acha pouco?
LUIZ - Acho.
PEDRO ALVES - Não compreendo que haja precisão de mais títulos além destes.
LUIZ - Pois há. Essa posição, esse físico, essa coragem e essa discrição, são certo
apreciáveis, mas duvido que tenha valor diante de uma mulher de espírito.
PEDRO ALVES - Se a mulher de espírito for da sua opinião.
LUIZ - Sem dúvida alguma que há de ser.
PEDRO ALVES - Mas continue, quero ouvir o fim de seu discurso.
LUIZ - Onde fica no seu plano de guerra, que aprecia este gênero de figura, onde fica, digo
eu, o amor verdadeiro, a dedicação sincera, o respeito, filho de ambos, e que essa D. Clara
sitiada deve inspirar?'
PEDRO ALVES - A corda em que acaba de tocar está desafinada muito tempo e não
som. O amor, o respeito, e a dedicação! Se o não conhecesse, diria que o senhor acaba de
chegar do outro mundo.
LUIZ - Com efeito, pertenço a um mundo que não é absolutamente o seu. Não que tenho
um ar de quem não está em terra própria e fala com uma variedade da espécie?
PEDRO ALVES - sei; pertence à esfera dos sonhadores e dos visionários. Conheço boa
soma de seus semelhantes que me tem dado bem boas horas de riso e de satisfação. É uma
tribo que se não acaba, pelo que vejo?
LUIZ - Ao que parece, não?
PEDRO ALVES - Mas é evidente que perecerá.
LUIZ - Não sei. Se eu quisesse concorrer ao bloqueio da praça em questão, era azada
ocasião para julgar do esforço recíproco e vermos até que ponto a ascendência do elemento
positivo exclui a influência do elemento ideal.
PEDRO ALVES - Pois experimente.
LUIZ - Não; disse-lhe que respeito muito a viúva do coronel e estou longe de sentir por ela
a paixão do amor.
PEDRO ALVES - Tanto melhor. Sempre é bom não ter pretendentes para combater. Ficamos
amigos, não?
LUIZ - De certo.
PEDRO ALVES - Se eu vencer, o que dirá?
LUIZ - Direi que certos casos em que com toda a satisfação se pode ser padrasto e direi
que esse é o seu caso.
PEDRO ALVES - Oh! se a Clarinha não tiver outro padrasto se não eu...
CENA V
Pedro Alves, Luiz, D. Clara
CLARA - Estimo bem vê-los juntos.
PEDRO ALVES - Discutíamos.
LUIZ - Aqui tem o seu leque; está intacto.
CLARA - Meu Deus, que trabalho que foi tomar. Agradeço-lhe do íntimo. É uma prenda que
tenho em grande conta; foi-me dado por minha irmã Matilde, em dia de anos meus. Mas
tenha cuidado; não aumente tanto a lista das minhas obrigações; a dívida pode engrossar e
eu não terei por fim com que solvê-la.
LUIZ - De que dívida me fala? A dívida aqui é minha, dívida perene, que eu mal amortizo por
uma gratidão sem limite. Posso eu pagá-la nunca?
CLARA - Pagar o quê?
LUIZ - Pagar estas horas de felicidade calma que a sua graciosa urbanidade me e que
constituem os meus fios de ouro no tecido da vida.
PEDRO ALVES - Reclamo a minha parte nessa ventura.
CLARA - Meu Deus, declaram-se em justa? Não vejo senão quebrarem lanças em meu favor.
Cavalheiros, ânimo, a liça está aberta, e a castelã espera o reclamo do vencedor.
LUIZ - Oh! a castelã pode quebrar o encanto do vencedor desamparando a galeria e
deixando-o só com as feridas abertas no combate.
CLARA - Tão pouca fé o anima?
LUIZ - Não é a das pessoas que me falta, mas a da fortuna. Fui sempre tão mal
aventurado que nem tento acreditar por momento na boa sorte.
CLARA - Isso não é natural num cavalheiro cristão.
LUIZ - O cavalheiro cristão está prestes a mourar.
CLARA - Oh!
LUIZ - O sol do oriente aquece os corações, ao passo que o de Petrópolis esfria-os.
CLARA - Estude antes o fenômeno e não sacrificar a sua consciência. Mas, na realidade,
tem sempre encontrado a derrota nas suas pelejas?
LUIZ - A derrota foi sempre a sorte das minhas armas. Será que elas sejam mal temperadas?
será que eu não as maneje bem? Não sei.
PEDRO ALVES - É talvez uma e outra coisa.
LUIZ - Também pode ser.
CLARA - Duvido.
PEDRO ALVES - Duvida?
CLARA - E sabe quais são as vantagens seus vencedores?
LUIZ - Demais até.
CLARA - Procure alcançá-las.
LUIZ - Menos isso. Quando dois adversários se medem, as mais das vezes o vencedor é
sempre aquele, que à elevada qualidade de tolo reúne uma sofrível dose de presunção. A
esse as palmas da vitória, a esse a boa fortuna da guerra: quer que o imite?
CLARA - Disse - as mais das vezes -confessa, pois, que há exceções.
LUIZ - Fora absurdo negá-las, mas declaro que nunca as encontrei.
CLARA - Não deve desesperar, porque a fortuna aparece quando menos se conta com ela.
LUIZ - Mas aparece às vezes tarde. Chega quando a porta está cerrada e tudo que nos cerca
é silencioso e triste; Então a peregrina demorada entra como uma amiga consoladora, mas
sem os entusiasmos ao coração.
CLARA - Sabe o que o perde! É a fantasia.
LUIZ - A fantasia?
CLARA - Não lhe disse a pouco que o senhor via as coisas através de um vidro de cor! É o
óculo da fantasia, óculo brilhante, mas mentiroso, que transtorna o aspecto do panorama
social, e que faz vê-lo pior do que é, para dar-lhe um remédio melhor do que pode ser.
PEDRO ALVES - Bravo! Deixe-me V. Excia. beijar-lhe a mão.
CLARA - Por que!
PEDRO ALVES - Pela lição que acaba de dar ao Sr. Luiz de Mello.
CLARA - Ah! por que o acusei de visionário! O nosso vizinho carece de quem lhe fale assim.
Perder-se-á se continuar a viver no mundo abstrato das suas teorias platônicas.
PEDRO ALVES - Ou por outra, e mais positivamente, V. Excia. mostrou-lhe que acabou o
reinado das baladas e da pasmaceira, para dar lugar ao império dos homens de juízo e dos
espíritos sólidos.
LUIZ - V. Excia. toma então o partido que me é adverso!
CLARA - Eu não tomo partido nenhum.
LUIZ - Entretanto, abriu brecha aos assaltos do Sr. Pedro Alves, que se compraz em mostrar-
se espírito sólido e homem de juízo.
PEDRO ALVES - E de muito juízo. Pensa que eu adoto o seu sistema de fantasia, e por
assim dizer, de choradeira? Nada. o meu sistema é absolutamente oposto; emprego os meios
bruscos por serem os que estão de acordo com o verdadeiro sentimento. Os da minha
têmpera são assim.
LUIZ - E o caso é que são felizes.
PEDRO ALVES - Muito felizes. Temos boas armas e manejamo-las bem. Chame a isso
toleima e presunção, pouco nos importa; é preciso que os vencidos tenham um desafogo.
CLARA (a Luiz de Melo) - O que diz a isto?
LUIZ - Digo que estou muito fora do meu culo. O que fazer contra adversários que se
contam em grande número, número infinito, a admitir a versão dos livros santos?
CLARA - Mas, realmente, não vejo que pudesse responder com vantagem.
LUIZ - E V. Excia. sanciona a teoria contrária?
CLARA - A castelã não sanciona, anima os lidadores.
LUIZ - Animação negativa para mim. V. Excia. dá-me licença?
CLARA - Onde vai?
LUIZ - Tenho uma pessoa que me espera em casa. V. Excia. janta às seis, o meu relógio
marca cinco. Dá-me este primeiro quarto de hora?
CLARA - Com pesar, mas não quero tolhê-lo. Não falte.
LUIZ - Volto já.
CENA VI
Clara, Pedro Alves
PEDRO ALVES - Estou contentíssimo.
CLARA - Por que?
PEDRO ALVES - Porque lhe demos uma lição.
CLARA - Ora, não seja mau!
PEDRO ALVES - Mau! Eu sou bom até demais. Não como ele me provoca a cada
instante?
CLARA - Mas, quer que lhe diga uma coisa? É preciso acabar com essas provocações
contínuas.
PEDRO ALVES - Pela minha parte, nada há; sabe que sou sempre procurado na minha gruta.
Ora, não se toca impunemente no leão...
CLARA - Pois seja leão até à última, seja magnânimo.
PEDRO ALVES - Leão apaixonado e magnânimo? Se fosse por mim só, não duvidaria
perdoar. Mas diante de V. Excia., por quem tenho presa a alma, é virtude superior às minhas
forças. E, entretanto, V. Excia. obstina-se em achar-lhe razão.
CLARA - Nem sempre.
PEDRO ALVES - Mas vejamos, não é exigência minha, mas eu desejo, imploro uma decisão
definitiva da minha sorte. Quando se ama como eu amo, todo o paliativo é uma tortura que se
não pode sofrer!
CLARA - Com que fogo se exprime! Que ardor, que entusiasmo!
PEDRO ALVES - É sempre assim. Zombeteira!
CLARA - Mas o que quer então?
PEDRO ALVES - Franqueza.
CLARA - Mesmo contra os seus interesses?
PEDRO ALVES - Mesmo... contra tudo.
CLARA - Reflita: prefere à dubiedade da situação, uma declaração franca que lhe destruir
as suas mais queridas ilusões?
PEDRO ALVES - Prefiro isso a não saber se sou amado ou não.
CLARA - Admiro a sua força d'alma.
PEDRO ALVES - Eu sou o primeiro a admirar-me.
CLARA - Desesperou alguma vez da sorte?
PEDRO ALVES - Nunca.
CLARA - Pois continue a confiar nela.
PEDRO ALVES - Até quando?
CLARA - Até um dia.
PEDRO ALVES - Que nunca há de chegar.
CLARA - Que está... muito breve.
PEDRO ALVES - Oh! meu Deus!
CLARA - Admirou-se?
PEDRO ALVES - Assusto-me com a idéia da felicidade. Deixe-me beijar a sua mão?
CLARA - A minha mão vale bem dois meses de espera e receio; não vale?
PEDRO ALVES (enfiando) - Vale.
CLARA (sem reparar) - Pode beijá-la! É o penhor dos esponsais.
PEDRO ALVES (consigo) - Fui longe demais! (Alto, beijando a mão de Clara). Este é o mais
belo dia de minha vida!
CENA VII
Clara, Pedro Alves, Luiz
LUIZ (entrando) - Ah!...
PEDRO ALVES - Chegou a propósito.
CLARA - Dou-lhe parte do meu casamento com o Sr. Pedro Alves.
PEDRO ALVES - O mais breve possível.
LUIZ - Os meus parabéns a ambos.
CLARA - A resolução foi um pouco súbita, mas nem por isso deixa de ser refletida.
LUIZ - Súbita, de certo, porque eu não contava com uma semelhante declaração neste
momento. Quando são os desposórios?
CLARA - Pelos fins do verão, não, meu amigo?
PEDRO ALVES (com importância) - Sim, pelos fins do verão.
CLARA - Faz-nos a honra de ser uma das testemunhas?
PEDRO ALVES - Oh! isso é demais.
LUIZ - Desculpe-me, mas eu não posso. Vou fazer uma viagem.
CLARA - Até onde?
LUIZ - Pretendo abjurar em qualquer cidade mourisca e fazer depois a peregrinação da Meca.
Preenchido este dever de um bom maometano, irei entre as tribos do deserto procurar a
exceção que não encontrei ainda no nosso clima cristão.
CLARA - Tão longe, meu Deus! Parece-me que trabalhará debalde.
LUIZ - Vou tentar.
PEDRO ALVES - Mas tenta um sacrifício.
LUIZ - Não faz mal.
PEDRO ALVES (a Clara, baixo) - Está doido!
CLARA - Mas virá despedir-se de nós?
LUIZ - Sem dúvida. (Baixo a Pedro Alves) Curvo-me ao vencedor, mas consola-me a idéia de
que, contra as suas previsões, paga as despesas da guerra. (Alto) V. Excia. dá-me licença.
CLARA - Onde vai?
LUIZ - Retiro-me para casa.
CLARA - Não fica para jantar?
LUIZ - Vou aprontar a minha bagagem.
CLARA - Leva a lembrança dos amigos no fundo das malas, não?
LUIZ - Sim, minha senhora, ao lado de alguns volumes de Alfonse Karr.
SEGUNDA PARTE
NA CORTE
Uma sala em casa de Pedro Alves
CENA I
Clara, Pedro Alves
PEDRO ALVES - Ora, não convém por modo algum que a mulher de um deputado
ministerialista à partida de um membro da oposição. Em rigor, nada de admirar nisso.
Mas o que não dirá a imprensa governista! O que não dirão os meus colegas da maioria! Está
lendo?
CLARA - Estou folheando este álbum.
PEDRO ALVES - Nesse caso, repito-lhe que não convém...
CLARA - Não precisa, ouvi tudo.
PEDRO ALVES (levantando-se) - Pois aí está; fique com a minha opinião.
CLARA - Prefiro a minha.
PEDRO ALVES - Prefere...
CLARA - Prefiro ir à partida do membro da oposição.
PEDRO ALVES - Isso não é possível. Oponho-me com todas as forças.
CLARA - Ora, veja o que é o hábito do parlamento! Opõe-se a mim, como se eu fosse um
adversário político. Veja que não está na câmara, e que eu sou mulher.
PEDRO ALVES - Mesmo por isso. Deve compreender os meus interesses e não querer que
seja alvo dos tiros dos maldizentes. Já não lhe falo nos direitos que me estão confiados como
marido...
CLARA - Se é tão aborrecido na câmara como é em casa, tenho pena do ministério e da
maioria.
PEDRO ALVES - Clara!
CLARA - De que direitos me fala? Concedo-lhe todos quantos queira, menos o de me
aborrecer; e privar-me de ir a esta partida, é aborrecer-me.
PEDRO ALVES - Falemos como amigos. Dizendo que desistas do teu intento, tenho dois
motivos: um político e outro conjugal. Já te falei do primeiro.
CLARA - Vamos ao segundo.
PEDRO ALVES - O segundo é este. As nossas primeiras vinte e quatro horas de casamento,
passaram para mim rápidas como um relâmpago. Sabes por que? Por que a nossa lua de
mel não durou mais do que esse espaço. Supus que, unindo-te a mim, deixasses um pouco a
vida dos passeios, dos teatros, dos bailes. Enganei-me; nada em teus hábitos; eu posso dizer
não me casei para mim. Fui forçado a acompanhar-te por toda a parte, ainda que isso me
custasse grande aborrecimento.
CLARA - E depois?
PEDRO ALVES - Depois, é que esperando ver-te cansada dessa vida, reparo com pesar que
continuas na mesma e muito longe ainda de a deixar.
CLARA - Conclusão: devo romper com a sociedade e voltar a alongar as suas vinte quatro
horas de lua de mel, vivendo beatificamente ao lado um do outro, debaixo do teto conjugal...
PEDRO ALVES - Como dois pombos.
CLARA - Como dois pombos ridículos! Gosto de ouvi-lo com essas recriminações. Quem o
atender, supõe que se casou comigo pelos impulsos do coração. A verdade é que me
esposou por vaidade, e que quer continuar essa lua de mel, não por amor, mas pelo susto
natural de um proprietário que receia perder um cabedal precioso.
PEDRO ALVES - Oh!
CLARA - Não serei um cabedal precioso?
PEDRO ALVES - Não digo isso. Protesto, sim, contra as tuas conclusões.
CLARA - O protesto é outro hábito do parlamento! Exemplo às mulheres futuras do quanto,
no mesmo homem, fica o marido suplantado pelo deputado.
PEDRO ALVES - Está bom, Clara, concedo-te tudo.
CLARA (levantando-se) - Ah! vou fazer cantar o triunfo!
PEDRO ALVES - Continua a divertir-te como for de teu gosto.
CLARA - Obrigada!
PEDRO ALVES - Não se dirá que te contrariei nunca.
CLARA - A história há de fazer-te justiça.
PEDRO ALVES - Acabemos com isto. Estas pequenas rixas azedam-me o espírito, e não
lucramos nada com elas.
CLARA - Acho que sim. Deixe de ser ridículo, que eu continuarei nas mais benévolas
disposições. Para começar, não vou à partida da minha amiga Carlota. Está satisfeito?
PEDRO ALVES - Estou.
CLARA - Bem. Não se esqueça de ir buscar minha filha. É tempo de apresentá-la à
sociedade. A pobre Clarinha deve estar bem desconsolada. Es moça e ainda no colégio.
Tem sido um descuido nosso.
PEDRO ALVES - Irei buscá-la amanhã.
CLARA - Pois bem. (Sai).
CENA II
Pedro Alves e um criado
PEDRO ALVES - Safa! que maçada!
O CRIADO - Está aí uma pessoa que
quer lhe falar.
PEDRO ALVES - Faze-a entrar.
CENA III
Pedro Alves, Luiz de Mello
PEDRO ALVES - Que vejo!
LUIZ - Luiz de Mello, lembra-se?
PEDRO ALVES - Muito. Venha um abraço! Então como está? Quando chegou?
LUIZ - Pelo último paquete.
PEDRO ALVES - Ah! não li nos jornais.
LUIZ - O meu nome é tão vulgar que facilmente se confunde com os outros.
PEDRO ALVES - Confesso que só agora sei que está no Rio de Janeiro. Sentemo-nos. Então
andou muito pela Europa?
LUIZ - Pela Europa quase nada; a maior parte do tempo gastei em atravessar o Oriente.
PEDRO ALVES - Sempre realizou a sua idéia?
LUIZ - É verdade, vi tudo o que a minha fortuna podia oferecer aos meus instintos artísticos.
PEDRO ALVES - Que de impressões havia de ter! muito turco, muito árabe, muita mulher
bonita, não? Diga-me uma coisa, há também ciúmes por lá?
LUIZ - Há.
PEDRO ALVES - Contar-me-á a sua viagem por extenso.
LUIZ - Sim, com mais descanso. Está de saúde a Sra. D. Clara Alves?
PEDRO ALVES - De perfeita saúde. Tenho muito que lhe dizer respeito ao que se passou
depois que se foi embora.
LUIZ - Ah!
PEDRO ALVES - Passei estes cinco anos no meio da mais completa felicidade. Ninguém
melhor saboreou as delícias do casamento. A nossa vida conjugal pode-se dizer que é um
céu sem nuvens. Ambos somos felizes, e ambos nos desvelamos por agradar um ao outro.
LUIZ - É uma lua-de-mel sem ocaso.
PEDRO ALVES - E lua cheia.
LUIZ - Tanto melhor! Folgo de vê-los felizes. A felicidade na família é uma cópia, ainda que
pálida, da bem-aventurança celeste. Pelo contrário, os tormentos domésticos representam na
terra o purgatório.
PEDRO ALVES - Apoiado!
LUIZ - Por isso estimo que acertasse com a primeira.
PEDRO ALVES - Acertei. Ora, do que eu me admiro não é do acerto, mas do modo por que
de pronto me habituei à vida conjugal. Parece-me incrível. Quando me lembro da minha vida
de solteiro, vida de borboleta, ágil e incapaz de pousar definitivamente sobre uma flor...
LUIZ - A coisa explica-se. Tal seria o modo por que o enredaram e pregaram com o
competente alfinete no fundo desse quadro chamado lar doméstico!
PEDRO ALVES - Sim, creio que é isso.
LUIZ - De maneira que hoje é pelo casamento?
PEDRO ALVES - De todo o coração.
LUIZ - Está feito, perdeu-se um folgazão, mas ganhou-se um homem de bem.
PEDRO ALVES - Ande lá. Aposto que também tem vontade de romper a cadeia do passado?
LUIZ - Não será difícil.
PEDRO ALVES - Pois é o que deve fazer.
LUIZ - Veja o que é o egoísmo humano. Como renegou da vida de solteiro, quer que todos
professem a religião do matrimônio.
PEDRO ALVES - Escusa moralizar.
LUIZ - É verdade que é uma religião tão doce!
PEDRO ALVES - Ah!... Sabe que estou deputado!
LUIZ - Sei e dou-lhe os meus parabéns.
PEDRO ALVES - Alcancei um diploma na última eleição. Na minha idade ainda é tempo de
começar a vida política, e nas circunstâncias eu não tinha outra a seguir mais apropriada.
Fugindo às antigas parcialidades políticas, defendo os interesses do distrito que represento, e
como o governo mostra zelar esses interesses, sou pelo governo.
LUIZ - É lógico.
PEDRO ALVES - Graças a esta posição independente, constituí-me um dos chefes da
maioria da câmara.
LUIZ - Ah! ah!
PEDRO ALVES - Acha que vou depressa! Os meus talentos políticos dão razão da celeridade
da minha carreira. Se eu fosse a nulidade, nem alcançaria um diploma. Não acha!
LUIZ - Tem razão...
PEDRO ALVES - Por que não tenta a política!
LUIZ - Porque a política é uma vocação, e quando não é vocação é uma especulação.
Acontece muitas vezes que, depois de ensaiar diversos caminhos para chegar ao futuro,
depara-se finalmente com o da política para o qual convergem as aspirações íntimas. Comigo
não se isso. Quando mesmo o encontrasse juncado de flores, passaria por ele para tomar
outro mais modesto. Do contrário, seria fazer política de especulação.
PEDRO ALVES - Pensa bem.
LUIZ - Prefiro a obscuridade ao remorso que me ficaria de representar um papel ridículo.
PEDRO ALVES - Gosto de ouvir falar assim. Pelo menos é franco e vai logo dando o nome às
coisas. Ora, depois de uma ausência de cinco anos parece que vontade de passar
algumas horas juntos, não? Fique para jantar conosco.
LUIZ - Fico, mas vou antes deixar um cartão de visita à casa do seu vizinho comendador.
volto.
CENA IV
Clara, Pedro Alves, Luiz
PEDRO ALVES - Clara, aqui está um velho amigo que não vemos há cinco anos.
CLARA - Ah! o Sr. Luiz de Mello!
LUIZ - Em pessoa, minha senhora.
CLARA - Seja muito bem vindo! Causa-me uma surpresa agradável.
LUIZ - V. Excia. honra-me.
CLARA - Venha sentar-se. O que nos conta?
LUIZ (conduzindo-a para uma cadeira) - Para contar tudo fora preciso um tempo interminável.
CLARA - Cinco anos de viagem!
LUIZ - Vi tudo quanto se pode ver nesse prazo. Diante de V. Excia. está um homem que
acampou ao pé das pirâmides.
CLARA - Oh!
PEDRO ALVES - Veja isto!
CLARA - Contemplado pelos quarenta séculos!
PEDRO ALVES - E nós que o fazíamos a passear pelas capitães da Europa.
CLARA - É verdade, não suponhamos outra coisa.
LUIZ - Fui comer o pão da vida errante dos meus camaradas árabes. Boa gente! Podem crer
que deixei saudades de mim.
CLARA - Admira que entrasse no Rio de Janeiro com esse lúgubre vestuário da nossa
prosaica civilização. Devia trazer calça larga, alfange e burnou. Nem ao menos burnou!
Aposto que foi Kadi?
LUIZ - Não, minha senhora; só os filhos de Islã têm direito a esse cargo.
CLARA - Está feito. Vejo que sacrificou cinco anos, mas salvou a sua consciência religiosa.
PEDRO ALVES - Teve saudades de cá?
LUIZ - À noite, na hora de repouso, lembrava-me dos amigos que deixara, e desta terra onde
vi a luz. Lembrava-me do Club, do Teatro Lírico, de Petrópolis e de todas as nossas
distrações. Mas vinha o dia, voltava-me eu à vida ativa, e tudo desvanecia-se como um sonho
amaro.
PEDRO ALVES - Bem lhe disse eu que não fosse.
LUIZ - Por que? Foi a idéia mais feliz da minha vida.
CLARA - Faz-me lembrar o justo de que fala o poeta de Algiato, que entre rodas de navalhas
diz estar em um leito de rosas.
LUIZ - São versos lindíssimos, mas sem aplicação ao caso atual. A minha viagem foi uma
viagem de artista e não de peralvilho; observei com os olhos do espírito e da inteligência.
Tanto basta para que fosse uma excursão de rosas.
CLARA - Vale então a pena perder cinco anos?
LUIZ - Vale.
PEDRO ALVES - Se não fosse o meu distrito sempre quisera ir ver essas coisas de perto.
CLARA - Mas que sacrifício! Como é possível trocar os conchegos do repouso e da quietação
pelas aventuras de tão penosa viagem?
LUIZ - Se as coisas boas não se alcançassem à custa de um sacrifício, onde estaria o valor
delas? O fruto maduro ao alcance da mão do bem-aventurado a quem as huris embalam,
existe no paraíso de Maomé.
CLARA - Vê-se que chega de tratar com árabes?
LUIZ - Pela comparação? Dou-lhe outra mais ortodoxa: o fruto provado por Eva custou-lhe o
sacrifício do paraíso terrestre.
CLARA - Enfim, ajunte exemplo sobre exemplo, citação sobre citação, e ainda assim não me
fará sair dos meus cômodos.
LUIZ - O primeiro passo é difícil. Dado ele, apodera-se da gente um furor de viajar, que eu
chamarei febre de locomoção.
CLARA - Que se apaga pela saciedade?
LUIZ - Pelo cansaço. E foi o que me aconteceu: parei de cansado. Volto a repousar com as
recordações colhidas no espaço de cinco anos.
CLARA - Tanto melhor para nós.
LUIZ - V. Excia. honra-me.
CLARA - Já não há medo de que o pássaro abra de novo as asas.
PEDRO ALVES - Quem sabe?
LUIZ - Tem razão; dou por findo o meu capítulo de viagem.
PEDRO ALVES - O pior é não querer abrir agora o da política. A propósito: são horas de ir
para a câmara; há hoje uma votação a que não posso faltar.
LUIZ - Eu vou fazer uma visita na vizinhança.
PEDRO ALVES - À casa do comendador, não é? Clara, o Sr. Luiz de Mello faz-nos a honra
de jantar conosco.
CLARA - Ah! quer ser completamente amável.
LUIZ - V. Excia. honra-me sobre maneira... (a Clara) Minha senhora! (a Pedro Alves) Até
logo, meu amigo!
CENA V
Clara, Pedro Alves
PEDRO ALVES - Ouviu como está contente? Reconheço que não nada para curar uma
paixão do que seja uma viagem.
CLARA - Ainda se lembra disso?
PEDRO ALVES - Se me lembro!
CLARA - E teria ele paixão?
PEDRO ALVES - Teve. Posso afiançar que a participação do nosso casamento causou-lhe a
maior dor deste mundo.
CLARA - Acha?
PEDRO ALVES - É que o gracejo era pesado demais.
CLARA - Se assim é, mostrou-se generoso, porque mal chegou, já nos vem visitar.
PEDRO ALVES - Também é verdade. Fico conhecendo que as viagens são um excelente
remédio para curar paixões.
CLARA - Tenha cuidado.
PEDRO ALVES - Em quê?
CLARA - Em não soltar alguma palavra a esse respeito.
PEDRO ALVES - Descanse, porque eu, além de compreender as conveniências, simpatizo
com este moço e agradam-me as suas maneiras. Creio que não crime nisto, pelo que se
passou há cinco anos.
CLARA - Ora, crime!
PEDRO ALVES - Demais, ele mostrou-se hoje tão contente com o nosso casamento, que
parece completamente estranho a ele.
CLARA - Pois não que é um cavalheiro perfeito? Obrar de outro modo seria cobrir-se de
ridículo.
PEDRO ALVES - Bem, são onze horas, vou para a câmara.
CLARA (da porta) - Volta cedo?
PEDRO ALVES - Mal acabar a sessão. O meu chapéu? Ah! (vai buscá-lo a uma mesa. Clara
sai). Vamos lá com esta famosa votação.
CENA VI
Luiz, Pedro Alves
PEDRO ALVES - Oh!
LUIZ - O comendador não estava em casa, lá deixei o meu cartão de visita. Aonde vai?
PEDRO ALVES - À câmara.
LUIZ - Ah!
PEDRO ALVES - Venha comigo.
LUIZ - Não se pode demorar alguns minutos?
PEDRO ALVES - Posso.
LUIZ - Pois conversemos.
PEDRO ALVES - Dou-lhe meia hora.
LUIZ - Demais o seu boleeiro dorme tão a sono solto que é uma pena acordá-lo.
PEDRO ALVES - O tratante não faz outra coisa.
LUIZ - O que lhe vou comunicar é grave e importante.
PEDRO ALVES - Não me assuste.
LUIZ - Não de quê. Ouça, porém. Chegado três dias, tive eu tempo de ir ontem mesmo
a um baile. Estava com sede de voltar à vida ativa em que me eduquei, e não perdi a
oportunidade.
PEDRO ALVES - Compreendo a sofreguidão.
LUIZ - O baile foi na casa do colégio da sua enteada.
PEDRO ALVES - Minha mulher não foi por causa de um leve incômodo. Dizem que esteve
uma bonita função.
LUIZ - É verdade.
PEDRO ALVES - Não achou a Clarinha uma bonita moça?
LUIZ - Se a achei bonita? Tanto que venho pedi-la em casamento.
PEDRO ALVES - Oh!
LUIZ - De que se admira? Acha extraordinário?
PEDRO ALVES - Não, pelo contrário, acho natural.
LUIZ - Faço-lhe o pedido com franqueza; peço-lhe que responda com igual franqueza.
PEDRO ALVES - Oh! da minha parte a resposta é toda afirmativa.
LUIZ - Posso contar com igual resposta da outra parte?
PEDRO ALVES - Se houver dúvida, aqui estou eu para pleitear a sua causa.
LUIZ - Tanto melhor.
PEDRO ALVES - Tencionávamos trazê-la amanhã para casa.
LUIZ - Graças a Deus! Cheguei a tempo.
PEDRO ALVES - Com franqueza, causa-me com isso um grande prazer.
LUIZ - Sim?
PEDRO ALVES - Confirmaremos pelos laços de parentesco os vínculos da simpatia.
LUIZ - Obrigado. O casamento é contagioso, e a felicidade alheia é um estímulo. Quando
ontem saí do baile trouxe o coração aceso, mas nada tinha ainda assentado de definitivo.
Porém tanto lhe ouvi falar de sua felicidade que não pude deixar de pedir-lhe me auxilie no
intento de ser também feliz.
PEDRO ALVES - Bem lhe dizia eu há pouco que havia de me acompanhar os passos.
LUIZ - Achei essa moça, que apenas sai da infância, tão simples e tão cândida, que não pude
deixar de olhá-la com o gênio benfazejo da minha sorte futura. Não sei se ao meu pedido
corresponderá a vontade dela, mas resigno-me às conseqüências.
PEDRO ALVES - Tudo será feito a seu favor.
LUIZ - Eu mesmo irei pedi-la à Sra. Clara. Se por ventura encontrar oposição, peço-lhe então
que interceda por mim.
PEDRO ALVES - Fica entendido.
LUIZ - Hoje, que volto ao repouso, creio que me fará bem a vida pacífica, no meio dos afagos
de uma esposa terna e bonita. Para que o pássaro não torne a abrir as asas, é preciso dar-lhe
gaiola e uma linda gaiola.
PEDRO ALVES - Bem; eu vou para a câmara, e volto apenas acabada a votação. Fique aqui
e exponha a sua causa à minha mulher que o ouvirá com benevolência.
LUIZ - Dá-me esperanças?
PEDRO ALVES - Todas. Seja firme e instante.
CENA VII
Clara, Luiz
LUIZ - Parece-me que vou entrar em uma batalha.
CLARA - Ah! não esperava encontrá-lo.
LUIZ - Estive com o Sr. Pedro Alves. Neste momento foi ele para a câmara. Ouça: partiu o
carro.
CLARA - Conversaram muito?
LUIZ - Alguma coisa, minha senhora.
CLARA - Como bons amigos?
LUIZ - Como excelentes amigos.
CLARA - Contou-lhe a sua viagem?
LUIZ - Já tive a honra de dizer a Vossa Excia. que a minha viagem pede muito tempo para ser
narrada.
CLARA - Escreva-a então. Há muito episódio?
LUIZ - Episódios de viagem, tão somente, mas que trazem sempre a sua novidade.
CLARA - O seu escrito brilhará pela imaginação, pelos belos achados da sua fantasia.
LUIZ - É o meu pecado original.
CLARA - Pecado?
LUIZ - A imaginação.
CLARA - Não vejo pecado nisso.
LUIZ - A fantasia é um vidro de cor, um óculo brilhante, porém, mentiroso...
CLARA - Não me lembra de lhe ter dito isso.
LUIZ - Também eu não digo que Vossa Excia. mo tenha dito.
CLARA - Faz mal em vir do deserto, para recordar algumas palavras que me escaparam
há cinco anos.
LUIZ - Repeti-as como de autoridade. Não eram a sua opinião?
CLARA - Se quer que lhe minta, respondo afirmativamente.
LUIZ - Então deveras vale alguma coisa elevar-se acima dos espíritos vulgares, e ver a
realidade das coisas pela porta da imaginação?
CLARA - Se vale! A vida fora bem prosaica se lhe não emprestássemos cores nossas e não a
vestíssemos à nossa maneira.
LUIZ - Perdão, mas...
CLARA - Pode averbar-me de suspeita, está no seu direito. Nós outras, as mulheres, somos
as filhas da fantasia; é preciso levar em conta que eu falo em defesa da mãe comum.
LUIZ - Está-me fazendo crer em milagres.
CLARA - Onde vê o milagre?
LUIZ - Na conversão de V. Excia.
CLARA - Não crê que eu esteja falando a verdade?
LUIZ - Creio que é tão verdadeira hoje, como foi cinco anos, e é nisso que está o milagre
da conversão.
CLARA - Pois será conversão. Não tem mais que bater palmas pela ovelha rebelde que volta
ao aprisco. Os homens tomaram tudo e mal deixaram às mulheres as regiões do ideal. As
mulheres ganharam. Para a maior parte o ideal da felicidade é a vida plácida, no meio das
flores, ao de um coração que palpita. Elas sonham com o perfume das flores, com as
escumas do mar, com os raios da lua e todo o material da poesia moderna. São almas
delicadas, mal compreendidas e muito caluniadas.
LUIZ - Não defenda com tanto ardor o seu sexo, minha senhora. É de uma alma generosa,
mas não de um gênio observador.
CLARA - Anda assim mal com ele?
LUIZ - Mal por que?
CLARA - Eu sei!
LUIZ - Aprendi a respeitá-lo, e quando assim não fosse, sei perdoar.
CLARA - Perdoar, como os reis, as ofensas por outrem recebidas.
LUIZ - Não, perdoar as próprias.
CLARA - Ah! foi vítima! Tinha vontade de conhecer o seu algoz. Como se chama?
LUIZ - Não costumo a conservar tais nomes.
CLARA - Reparo uma coisa.
LUIZ - O que é?
CLARA - É que em vez de voltar mouro, voltou profundamente cristão.
LUIZ - Voltei como fui: fui homem e voltei homem.
CLARA - Chama ser homem o ser cruel?
LUIZ - Cruel em quê?
CLARA - Cruel, cruel como todos são! A generosidade humana não para no perdão das
culpas, vai até o conforto do culpado. Nesta parte não vejo os homens de acordo com o
evangelho.
LUIZ - É que os homens, que inventaram a expiação legal, consagram também uma expiação
moral. Quando esta não se dá, o perdão não é um dever, porém, uma esmola que se faz à
consciência culpada, e tanto basta para o desempenho da caridade cristã.
CLARA - O que é essa expiação moral?
LUIZ - É o remorso.
CLARA - Conhece tabeliães que passam certificados de remorso? É uma expiação que pode
não ser acreditada e existir entretanto.
LUIZ - É verdade. Mas para os casos morais há provas morais.
CLARA - Adquiriu essa rigidez no trato com os árabes?
LUIZ - Valia a pena ir tão longe para adquiri-la, não acha?
CLARA - Valia.
LUIZ - Posso elevar-me assim até ser um espírito sólido.
CLARA - Espírito sólido? Não há dessa gente por onde andou?
LUIZ - No Oriente tudo é poeta, e os poetas dispensam bem a glória de espíritos sólidos.
CLARA - Predomina lá a imaginação, não é?
LUIZ - Com toda a força do verbo.
CLARA - Faz-me crer que encontrou a suspirada exceção que... lembra-se?
LUIZ - Encontrei, mas deixei-a passar.
CLARA - Oh!
LUIZ - Escrúpulo religioso, orgulho nacional, que sei eu?
CLARA - Cinco anos perdidos!
LUIZ - Cinco anos ganhos. Gastei-os a passear, enquanto a minha violeta se educava cá num
jardim.
CLARA - Ah!... viva então o nosso clima!
LUIZ - Depois de longos dias de solidão, necessidade de quem nos venha fazer
companhia, compartir as nossas alegrias e mágoas, e arrancar o primeiro cabelo que nos
alvejar.
CLARA - Há.
LUIZ - Não acha?
CLARA - Mas quando, pensando encontrar a companhia desejada, encontra-se o
aborrecimento e a insipidez encarnadas no objeto da nossa escolha?
LUIZ - Nem sempre é assim.
CLARA - As mais das vezes é. Tenha cuidado.
LUIZ - Oh! por esse lado, estou livre de errar.
CLARA - Mas onde está essa flor?
LUIZ - Quer saber?
CLARA - Quero, e também o seu nome.
LUIZ - O seu nome é lindíssimo. Chama-se Clara.
CLARA - Obrigada! E eu conheço-a?
LUIZ - Tanto como a si própria.
CLARA - Sou sua amiga?
LUIZ - Tanto como o é de si.
CLARA - Não sei quem seja.
LUIZ - Deixemos os terrenos das alusões vagas; é melhor falar francamente. Venho pedir-lhe
a mão de sua filha.
CLARA - De Clara!
LUIZ - Sim, minha senhora. Vi-a dois dias; está bela como a adolescência em que entrou.
Revela uma expressão de candura tão angélica que não pode deixar de agradar a um
homem de imaginação, como eu. Tem além disso uma vantagem: não entrou ainda no
mundo, está pura de todo contato social; para ela os homens estão na mesma plana e o seu
espírito ainda não pode fazer distinção entre o espírito sólido e o homem do ideal. É-lhe fácil
aceitar um ou outro.
CLARA - Com efeito, é uma surpresa com que eu menos contava.
LUIZ - Posso considerar-me feliz?
CLARA - Eu sei! Por mim decido, mas eu não sou a cabeça do casal.
LUIZ - Pedro Alves já me deu seu consentimento.
CLARA - Ah!
LUIZ - Versou sobre isso a nossa conversa.
CLARA - Nunca pensei que chegássemos a esta situação.
LUIZ - Falo como um parente. Se V. Excia. não teve bastante espírito para ser minha esposa,
deve tê-lo, pelo menos, para ser minha sogra.
CLARA - Ah!
LUIZ - Que quer? todos temos um dia de desencantos. O meu foi cinco anos, hoje o
desencantado não sou eu.
CENA VIII
Luiz, Pedro Alves, Clara
PEDRO ALVES - Não houve sessão; a minoria fez gazeta. (A Luiz) Então?
LUIZ - Tenho o consentimento de ambos.
PEDRO ALVES - Clara não podia deixar de atender ao seu pedido.
CLARA - Peço-lhe que faça a felicidade dela.
LUIZ - Consagrarei nisso minha vida.
PEDRO ALVES - Por mim, hei de sempre ver se posso resolvê-lo a aceitar um distrito nas
próximas eleições.
LUIZ - Não será melhor ver primeiro se o distrito me aceitará?
Machado de Assis
O CAMINHO DA PORTA
Comédia em um ato
Representada pela primeira
vez no Ateneu Dramático
em setembro de 1862. -
PERSONAGENS
Dr. Cornélio - Sr. Cardoso
Valentim - Sr. Pimentel
Inocêncio - Sr. Martins
Carlota - Sra. D. Maria Fernanda
EM CASA DE CARLOTA
Sala elegante. - Duas portas no fundo, portas laterais, consolos, piano, divã, poltronas,
cadeiras, mesa, tapete, espelhos, quadros; figuras sobre os consolos; álbum, alguns livros,
lápis, etc., sobre a mesa.
CENA I
Valentim, assentado à E., o Doutor, entrando
VALENTIM - Ah! és tu?
DOUTOR - Oh! Hoje é o dia das surpresas. Acordo, leio os jornais e vejo anunciado para hoje
o Trovador. Primeira surpresa. Lembro-me de passar por aqui para saber se D. Carlota queria
ir ouvir a ópera de Verdi, e vinha pensando na triste figura que devia fazer em casa de uma
moça do tom, às 10 horas da manhã, quando te encontro firme como uma sentinela no posto.
Duas surpresas.
VALENTIM - A triste figura sou eu?
DOUTOR - Acertaste. Lúcido como uma sibila. Fazes uma triste figura, não to devo ocultar.
VALENTIM (irônico) - Ah!
DOUTOR - Tens ar de não dar credito ao que digo! Pois olha, tens diante de ti a verdade em
pessoa, com a diferença de não sair de um poço, mas da cama e de vir em traje menos
primitivo. Quanto ao espelho, se o não trago comigo, nesta sala um que nos serve com a
mesma sinceridade. Mira-te ali. Estás ou não uma triste figura?
VALENTIM - Não me aborreças.
DOUTOR - Confessas então?
VALENTIM - És divertido como os teus protestos de virtuoso! Aposto que me queres fazer
crer no desinteresse das tuas visitas a D. Carlota?
DOUTOR - Não.
VALENTIM - Ah!
DOUTOR - Sou hoje mais assíduo do que era um mês, e a razão é que um mês que
começaste a fazer-lhe a corte.
VALENTIM - Já sei: não me queres. perder de vista.
DOUTOR - Presumido! Eu sou inspetor dessas coisas? Ou antes, sou: mas o sentimento
que me leva a estar presente a essa batalha pausada e paciente está muito longe do que
pensas; estudo o amor.
VALENTIM - Somos então os teus compêndios?
DOUTOR - É verdade.
VALENTIM - E o que tens aprendido?
DOUTOR - Descobri que o amor é uma pescaria...
VALENTIM - Queres saber de uma coisa? Estás prosaico como os teus libelos.
DOUTOR - Descobri que o amor é uma
pescaria...
VALENTIM - Vai-te com os diabos!
DOUTOR - Descobri que o amor é uma pescaria. O pescador senta-se sobre um penedo, à
beira do mar. Tem ao lado uma cesta com iscas; vai pondo uma por uma no anzol e atira às
águas a pérfida linha. Assim gasta horas e dias até que o descuidado filho das águas agarra
no anzol, ou não agarra e...
VALENTIM - És um tolo.
DOUTOR - Não contesto; pelo interesse
que tomo por ti. Realmente doe-me ver-te tantos dias exposto ao sol, sobre o penedo, com o
caniço na mão, a gastar as tuas iscas e a tua saúde, quero dizer a tua honra.
VALENTIM - A minha honra?
DOUTOR - A tua honra, sim. Pois para homem de senso e um tanto sério o ridículo não é
uma desonra? Tu estás ridículo. Não dia em que o venhas gastar três, quatro, cinco
horas a cercar esta viúva de galanteios e atenções, acreditando talvez ter adiantado muito,
mas estando ainda hoje como quando começastes. Olha, Penélopes da virtude e
Penélopes do galanteio. Umas fazem e desmancham teias por terem muito juízo; outras as
fazem e desmancham por não terem nenhum.
VALENTIM - Não deixas de ter uma tal ou qual razão.
DOUTOR - Ora, graças a Deus!
VALENTIM - Devo, porém, prevenir-te de uma coisa: é que ponho nesta conquista a minha
honra. Jurei aos meus deuses casar-me com ela e hei de manter o meu juramento.
DOUTOR - Virtuoso Romano!
VALENTIM - Faço o papel de Síssifo. Rolo a minha pedra pela montanha; quase a chegar
com ela ao cimo, uma mão invisível fá-la despenhar de novo, e ali volto a repetir o mesmo
trabalho. Se isto é um fortúnio, não deixa de ser uma virtude.
DOUTOR - A virtude da paciência. Empregavas melhor essa virtude em fazer palitos do que
em fazer a roda a esta namoradeira. Sabes o que aconteceu aos companheiros de Ulisses
passando pela ilha de Circe? Ficaram transformados em porcos. Melhor sorte teve Ateon que,
por espreitar Diana no banho, passou de homem a veado. Prova evidente de que é melhor
pilhá-las no banho do que andar-lhes à roda nos tapetes da sala.
VALENTIM - Passas de prosaico a cínico.
DOUTOR - É uma modificação. Tu estás sempre o mesmo: ridículo.
CENA II
Os mesmos, Inocêncio trazido por um
criado
INOCÊNCIO - Oh!
DOUTOR (baixo a Valentim) - Chega o teu competidor.
VALENTIM (baixo) - Não
me vexes.
INOCÊNCIO - Meus senhores! Já por cá? Madrugaram hoje!
DOUTOR - É verdade. E V. S.?
INOCÊNCIO - Como está vendo. Levanto-me sempre com o sol.
DOUTOR - Se V. S. é outro.
INOCÊNCIO (não compreendendo) -Outro que? Ah outro sol! Este doutor tem umas
expressões tão... fora do vulgar! Ora veja, a mim ainda ninguém se lembrou de dizer isto. Sr.
Doutor, V. S. de tratar de um negócio que trago pendente no foro. Quem fala assim é
capaz de seduzir a própria lei!
DOUTOR - Obrigado!
INOCÊNCIO - Onde está a encantadora D. Carlota? Trago-lhe este ramalhete que eu próprio
colhi e arranjei. Olhem como estas flores estão bem combinadas: rosas, paixão; açucenas,
candura. Que tal?
DOUTOR - Engenhoso!
INOCÊNCIO (dando-lhe o braço) - Agora ouça, Sr. Doutor. Decorei umas quatro palavras
para dizer ao entregar-lhe estas flores. Veja se condizem com o assunto.
DOUTOR - Sou todo ouvidos.
INOCÊNCIO - "Estas flores são um presente que a primavera faz à sua irmã por intermédio
do mais ardente admirador de ambas". Que tal?
DOUTOR - Sublime! (Inocêncio ri-se à socapa). Não é da mesma opinião?
INOCÊNCIO - Pudera não ser sublime; se eu próprio copiei isto de um Secretário dos
Amantes!
DOUTOR - Ah!
VALENTIM (baixo ao Doutor) - Gabo-te a paciência!
DOUTOR (dando-lhe o braço) - Pois que tem! É miraculosamente tolo. Não é da mesma
espécie que tu...
VALENTIM - Cornélio!
DOUTOR - Descansa; é de outra muito pior.
CENA III
Os mesmos, Carlota
CARLOTA - Perdão, meus senhores, de os haver feito esperar... (Distribui apertos de mão).
VALENTIM - Nós é que lhe pedimos desculpa de havermos madrugado deste modo...
DOUTOR - A mim, traz-me um motivo justificável.
CARLOTA (rindo) - Ver-me? (Vai sentar-se).
DOUTOR - Não.
CARLOTA - Não é um motivo justificável, esse?
DOUTOR - Sem duvida; incomodá-a é que o não é. Ah! minha senhora, eu aprecio mais do
que nenhum outro o despeito que deve causar a uma moça uma interrupção no serviço da
toilette. Creio que é coisa tão séria como uma quebra de relações diplomáticas.
CARLOTA - O Sr. Doutor graceja e exagera. Mas qual é esse motivo que justifica a sua
entrada em minha casa a esta hora?
DOUTOR - Venho receber as suas ordens acerca da representação desta noite.
CARLOTA - Que representação?
DOUTOR - Canta-se o Trovador.
INOCÊNCIO - Bonita peça!
DOUTOR - Não pensa que deve ir?
CARLOTA - Sim, e agradeço-lhe a sua amável lembrança. sei que vem oferecer-me o seu
camarote. Olhe, há de desculpar-me este descuido, mas prometo que vou quanto antes tomar
uma assinatura.
INOCÊNCIO (a Valentim) - Ando desconfiado do Doutor!
VALENTIM - Por que?
INOCÊNCIO - Veja como ela o trata! Mas eu vou desbancá-lo com a minha frase do
Secretário dos Amantes... (Indo a Carlota) Minha senhora, estas flores são um presente que
a primavera faz a sua irmã...
DOUTOR (completando a frase) - Por intermédio do mais ardente admirador de ambas.
INOCÊNCIO - Sr. Doutor!
CARLOTA - O que é?
INOCÊNCIO (baixo) - Isto não se faz! (A Carlota) Aqui tem, minha senhora...
CARLOTA - Agradecida. Por que se retirou ontem tão cedo? Não lho quis perguntar... de
boca; mas creio que o interroguei com o olhar.
INOCÊNCIO (no cúmulo da satisfação) - De boca?... Com o olhar?... Ah! queira perdoar,
minha senhora... mas um motivo imperioso...
DOUTOR - Imperioso... não é delicado.
CARLOTA - Não exijo saber o motivo; supus que se houvesse passado alguma coisa que o
desgostasse...
INOCÊNCIO - Qual, minha senhora; o que se poderia passar? Não estava eu diante de V.
Excia. para consolar-me com seus olhares de algum desgosto que houvesse? E não houve
nenhum.
CARLOTA (ergue-se e bate-lhe com o leque no ombro) Lisonjeiro!
DOUTOR (descendo entre ambos) - V. Excia. há de desculpar-me se interrompo uma espécie
de idílio com uma coisa prosaica, ou antes com outro idílio, de outro gênero, um idílio do
estômago: o almoço...
CARLOTA - Almoça conosco?
DOUTOR - Oh! minha senhora, não seria capaz de interrompê-la; peço simplesmente licença
para ir almoçar com um desembargador da relação a quem tenho de prestar umas
informações.
CARLOTA - Sinto que na minha perda ganhe um desembargador; não sabe como odeio a
toda essa gente do foro; faço apenas uma exceção.
DOUTOR - Sou eu.
CARLOTA (sorrindo) - É verdade. Donde concluiu?
DOUTOR - Estou presente!
CARLOTA - Maldoso!
DOUTOR - Fica, não, Sr. Inocêncio?
INOCÊNCIO - Vou. (Baixo ao Doutor) Estalo de felicidade!
DOUTOR - Até logo!
INOCÊNCIO - Minha senhora!
CENA IV
Carlota, Valentim
CARLOTA - Ficou?
VALENTIM (indo buscar o chapéu) - Se a incomodo...
CARLOTA - Não. Dá-me prazer até. Ora, por que há de ser tão suscetível a respeito de tudo o
que lhe digo?
VALENTIM - É muita bondade. Como não quer que seja suscetível? depois de estarmos a
sós é que V. Excia. se lembra de mim. Para um velho gaiteiro acha V. Excia. palavras cheias
de bondade e sorrisos cheios de doçura.
CARLOTA - Deu-lhe agora essa doença? (Vai sentar-se junto à mesa).
VALENTIM (senta-se junto à mesa defronte de Carlota) - Oh! não zombe, minha senhora!
Estou certo de que os mártires romanos prefeririam a morte rápida à luta com as feras do
circo. O seu sarcasmo é uma fera indomável; V. Excia. tem certeza disso e não deixa de
lançá-lo em cima de mim.
CARLOTA - Então sou temível? Confesso que ainda agora o sei. (Uma pausa). Em que
cisma?
VALENTIM - Eu?... em nada!
CARLOTA - Interessante colóquio!
VALENTIM - Devo crer que não faço uma figura nobre e séria. Mas não me importa isso! A
seu lado eu afronto todos os sarcasmos do mundo. Olhe, eu nem sei o que penso, nem sei o
que digo. Ridículo que pareça, sinto-me tão elevado o espírito que chego a supor em mim
algum daqueles toques divinos com que a mão dos deuses elevava os mortais e lhes
inspirava forças e virtudes fora do comum.
CARLOTA - Sou eu a deusa.
VALENTIM - Deusa, como ninguém sonhara nunca; com a graça denus e a majestade de
Juno. Sei eu mesmo defini-la? Posso eu dizer em língua humana o que é esta reunião de
atrativos únicos feitos pela mão da natureza como uma prova suprema do seu poder? Dou-
me por fraco, certo de que nem pincel nem lira poderão fazer mais do que eu.
CARLOTA - Oh! é de mais! Deus me livre de o tomar por espelho. Os meus são melhores.
Dizem coisas menos agradáveis, porém, mais verdadeiras...
VALENTIM - Os espelhos são obras humanas; imperfeitos, como todas as obras humanas.
Que melhor espelho quer Vossa Excia. que uma alma ingênua e cândida?
CARLOTA - Em que corpo encontrarei... esse espelho?
VALENTIM - No meu.
CARLOTA - Supõe-se cândido e ingênuo!
VALENTIM - Não me suponho, sou.
CARLOTA - É por isso que traz perfumes e palavras que embriagam? Se candura é em
querer fazer-me crer...
VALENTIM - Oh! não queira V. Excia. trocar os papéis. Bem sabe que os seus perfumes e as
suas palavras é que embriagam. Se eu falo um tanto diversamente do comum é porque falam
em mim o entusiasmo e a admiração. Quanto a V. Excia. basta abrir os lábios para deixar cair
dele aromas e filtros cujo segredo só a natureza conhece.
CARLOTA - Estimo antes vê-lo assim. (Começa a desenhar distraidamente em um papel).
VALENTIM - Assim... como?
CARLOTA - Menos... melancólico.
VALENTIM - É esse o caminho do seu coração?
CARLOTA - Queria que eu própria lho indicasse? Seria trair-me, e tirava-lhe a graça e a glória
de o encontrar por seus próprios esforços.
VALENTIM - Onde encontrarei um roteiro?
CARLOTA - Isso não tinha graça! A glória está em achar o desconhecido depois da luta e do
trabalho... Amar e fazer-se amar por um roteiro... oh! que coisa de mau gosto!
VALENTIM - Prefiro esta franqueza. Mas V. Excia. deixa-me no meio de uma encruzilhada
com quatro ou cinco caminhos diante de mim, sem saber qual hei de tomar. Acha que isto é
de coração compassivo?
CARLOTA - Ora! siga por um deles, à direita ou à esquerda.
VALENTIM - Sim, para chegar ao fim e encontrar um muro; voltar, tomar depois por outro...
CARLOTA - E encontrar outro muro? É possível. Mas a esperança acompanha os homens e
com a esperança, neste caso, a curiosidade. Enxugue o suor, descanse um pouco, e volte a
procurar o terceiro, o quarto, o quinto caminho, até encontrar o verdadeiro. Suponho que todo
o trabalho se compensará com o achado final.
VALENTIM - Sim. Mas, se depois de tanto esforço, for encontrar-me no verdadeiro caminho
com algum outro viandante de mais tino e fortuna?
CARLOTA - Outro?... que outro? Mas... isto é uma simples conversa... O Sr. faz-me dizer
coisas que não devo... (Cai o lápis ao chão. Valentim apressa-se em apanhá-lo e ajoelha
nesse ato).
CARLOTA - Obrigada. (Vendo que ele continua ajoelhado). Mas levante-se!
VALENTIM - Não seja cruel!
CARLOTA (levantando-se) - Faça o favor de levantar-se!
VALENTIM (levantando-se) - É preciso pôr um termo a isto!
CARLOTA (fingindo-se distraída) - A isto o que?
VALENTIM - V. Excia. é de um sangue frio de matar!
CARLOTA - Queria que me fervesse o sangue? Tinha razão para isso. A que propósito fez
esta cena de comédia?
VALENTIM - V. Excia. chama a isto comédia?
CARLOTA - Alta comédia, está entendido. Mas que é isto? Está com lágrimas nos olhos?
VALENTIM - Eu... ora... ora... que lembrança!
CARLOTA - Quer que lhe diga? Está ficando ridículo.
VALENTIM - Minha senhora!
CARLOTA - Oh! ridículo! ridículo!
VALENTIM - Tem razão. Não devo parecer outra coisa a seus olhos! O que sou eu para V.
Excia.? Um ente vulgar, uma fácil conquista que V. Excia. entretêm, ora animando, ora
repelindo, sem deixar nunca conceber esperanças fundadas e duradouras. O meu coração
virgem deixou-se arrastar. Hoje, se quisesse arrancar de mim este amor, era preciso arrancar
com ele a vida. Oh! não ria, que é assim!
VALENTIM - Por que motivo havia de me ouvir com interesse?
CARLOTA - Não é por ter a alma seca; é por não acreditar nisso.
VALENTIM - Não acredita?
CARLOTA - Não.
VALENTIM (esperançoso) - E se acreditasse?
CARLOTA (com indiferença) - Se acreditasse, acreditava!
VALENTIM - Oh! é cruel!
CARLOTA (depois de um silêncio) - Que é isso? Seja forte! Se não por si, ao menos pela
posição esquerda em que me coloca.
VALENTIM (sombrio) - Serei forte? Fraco no parecer de alguns... forte no meu... Minha
senhora!
CARLOTA (assustada) - Onde vai?
VALENTIM - Até... minha casa! Adeus! (Sai arrebatadamente. Carlota para estacada; depois
vai ao fundo, volta ao meio da cena, vai à direita; entra o Doutor).
CARLOTA - Sinto que não possa ouvi-lo com interesse.
CENA V
Carlota, o Doutor
DOUTOR - Não me dirá, minha senhora, o que tem Valentim que passou por mim como um
raio, agora, na escada?
CARLOTA - Eu sei! Ia mandar em procura dele. Disse-me aqui umas palavras ambíguas,
estava exaltado, creio que...
DOUTOR - Que se vai matar?... (Correndo para a porta). Faltava mais esta!...
CARLOTA - Ah! por que?
DOUTOR - Porque mora longe. No caminho de refletir e mudar de parecer. Os olhos das
damas perderam o condão de levar um pobre diabo à sepultura: raros casos provam uma
diminuta exceção.
CARLOTA - De que olhos e de que condão me fala?
DOUTOR - Do condão de seus olhos, minha senhora! Mas que influência é essa que V.
Excia. exerce sobre o espírito de quantos se deixam apaixonar por seus encantos? A um
inspira a idéia de matar-se; a outro exalta-o de tal modo com algumas palavras e um toque de
seu leque, que quase chega a ser causa de um ataque apoplético!
CARLOTA - Está-me falando grego!
DOUTOR - Quer português, minha senhora? Vou traduzir o meu pensamento. Valentim é
meu amigo. É um rapaz, não direi virgem de coração, mas com tendências às paixões de sua
idade. V. Excia. por sua graça e beleza inspirou-lhe, ao que parece, um desses amores
profundos de que os romances dão exemplo. Com vinte e cinco anos, inteligente, benquisto,
podia fazer um melhor papel que o de namorado sem ventura. Graças a V. Excia., todas as
suas qualidades estão anuladas: o rapazo pensa, não vê, não conhece, não compreende
ninguém mais que não seja Vossa Excia.
CARLOTA - Para aí a fantasia?
DOUTOR - Não, senhora. Ao seu carro atrelou-se com o meu amigo, um velho, um velho,
minha senhora, que, com o fim de lhe parecer melhor, pinta a coroa venerável de seus
cabelos brancos. De sério que era, -lo V. Excia. uma figurinha de papelão, sem vontade
nem ação própria. Destes sei eu; ignoro se mais algum dos que freqüentam esta casa andam
atordoados como estes dois. Creio, minha senhora, que lhe falei no português mais vulgar e
próprio para me fazer entender.
CARLOTA - Não sei até que ponto é verdadeira toda essa história, mas consinta que lhe
observe quanto andou errado em bater à minha porta. Que lhe posso eu fazer? Sou culpada
de alguma coisa? A ser verdade isso que contou, a culpa é da natureza que os fez fáceis de
amar, e a mim, me fez... bonita?
DOUTOR - Pode dizer mesmo encantadora.
CARLOTA - Obrigada!
DOUTOR - Em troca do adjetivo deixe acrescentar outro não menos merecido: namoradeira.
CARLOTA - Hein?
DOUTOR - Na-mo-ra-dei-ra.
CARLOTA - Está dizendo coisas que não têm senso comum.
DOUTOR - O senso comum é comum a dois modos de entender. É mesmo a mais de dois. É
uma desgraça que nos achemos em divergência.
CARLOTA - Mesmo que fosse verdade não era delicado dizer...
DOUTOR - Esperava por essa. Mas V. Excia. esquece que eu, lúcido como estou hoje, já tive
os meus momentos de alucinação. fiei como Hércules a seus pés. Lembra-se? Foi três
anos. Incorrigível a respeito de amores, tinha razões para estar curado, quando vim cair em
suas mãos. Alguns alopatas costumam mandar chamar os homeopatas nos últimos
momentos de um enfermo, e casos de salvação para o moribundo. V. Excia. serviu-me de
homeopatia, desculpe a comparação; deu-me uma dose de veneno tremenda, mas eficaz;
desde esse tempo fiquei curado.
CARLOTA - Admiro a sua facúndia! Em que tempo padeceu dessa febre de que tive a
ventura de o curar?
DOUTOR - Já tive a honra de dizer que foi há três anos.
CARLOTA - Não me recordo. Mas considero-me feliz por ter conservado ao foro um dos
advogados mais distintos da capital.
DOUTOR - Pode acrescentar: e à humanidade um dos homens mais úteis. Não se ria, sou
um homem útil.
CARLOTA - Não me rio. Conjeturo em que se empregará a sua utilidade.
DOUTOR - Vou auxiliar a sua penetração. Sou útil pelos serviços que presto aos viajantes
novéis relativamente ao conhecimento das costas e dos perigos do curso marítimo; indico os
meios de chegar sem maior risco à ilha desejada de Cítera.
CARLOTA - Ah!
DOUTOR - Essa exclamação é vaga e não me indica se V. Excia. está satisfeita ou não com
a minha explicação. Talvez não acredite que eu possa servir aos viajantes?
CARLOTA - Acredito. Acostumei-me a olhá-lo como a verdade nua e crua.
DOUTOR - É o que dizia há bocado àquele doido Valentim.
CARLOTA - A que propósito dizia?...
DOUTOR - A que propósito? Queria que fosse a propósito da guerra dos Estados-Unidos? da
questão do algodão? do poder temporal? da revolução da Grécia? Foi a respeito da única
coisa que nos pode interessar, a ele, como marinheiro novel, e a mim, como capitão
experimentado.
CARLOTA - Ah! foi...
DOUTOR - Mostrei-lhe os pontos negros do meu roteiro.
CARLOTA - Creio que ele não ficou convencido...
DOUTOR - Tanto não, que se ia deitando ao mar.
CARLOTA - Ora, venha cá. Falemos um momento sem paixão nem rancor. Admito que o seu
amigo ande apaixonado por mim. Quero admitir também que eu seja uma namoradeira...
DOUTOR - Perdão: uma encantadora namoradeira...
CARLOTA - Dentada de morcego; aceito.
DOUTOR - Não: atenuante e agravante; sou advogado!
CARLOTA - Admito isso tudo. Não me dirá donde tira o direito de intrometer-se nos atos
alheios e de impor as suas lições a uma pessoa que o admira e estima, mas que não é nem
sua irmã nem sua pupila?
DOUTOR - Donde? Da doutrina cristã: ensino os que erram.
CARLOTA - A sua delicadeza não me há de incluir entre os que erram.
DOUTOR - Pelo contrário; dou-lhe um lugar de honra: é a primeira.
CARLOTA - Sr. Doutor!
DOUTOR - Não se zangue, minha senhora. Todos erramos; mas V. Excia. erra muito. Não
me dirá de que serve, o que aproveita usar uma mulher bonita de seus encantos para
espreitar um coração de vinte e cinco anos e atraí-lo com as suas cantilenas, sem outro fim
mais do que contar adoradores e dar um público testemunho do que pode a sua beleza?
Acha que é bonito? Isto não revolta? (Movimento de Carlota).
CARLOTA - Por minha vez pergunto: donde lhe vem o direito de pregar-me sermões de
moral?
DOUTOR - Não há direito escrito para isto, é verdade. Mas, eu que já tentei trincar o cacho de
uvas pendente, não faço como a raposa da fábula, fico ao da parreira para dizer ao outro
animal que vier: "Não sejas tolo! não as alcançarás com o teu focinho!" E à parreira
impassível: "Seca as tuas uvas ou deixa-as cair; é melhor do que tê-las a fazer cobiça às
raposas avulsas!" É o direito da desforra!
CARLOTA - Ia-me zangando. Fiz mal. Com o Sr. Doutor é inútil discutir: fala-se pela razão,
responde pela parábola.
DOUTOR - A parábola é a razão do evangelho, e o evangelho é o livro que mais tem
convencido.
CARLOTA - Por tais disposições vejo que não deixa o posto de sentinela dos corações
alheios?
DOUTOR - Avisador de incautos; é verdade.
CARLOTA - Pois declaro que dou ás suas palavras o valor que merecem.
DOUTOR - Nenhum?
CARLOTA - Absolutamente nenhum. Continuarei a receber com a mesma afabilidade o seu
amigo Valentim.
DOUTOR - Sim, minha senhora!
CARLOTA - E ao Doutor também.
DOUTOR - É magnanimidade.
CARLOTA - E ouvirei com paciência evangélica as suas prédicas não encomendadas.
DOUTOR - E eu pronto a proferi-las. Ah! minha senhora, se as mulheres soubessem quanto
ganhariam se não fossem vaidosas! É negócio de cinqüenta por cento.
CARLOTA - Estou resignada: crucifique-me!
DOUTOR - Em outra ocasião.
CARLOTA - Para ganhar forças, quer almoçar segunda vez?
DOUTOR - Há de consentir que recuse.
CARLOTA - Por motivo de rancor
DOUTOR (pondo a mão no estômago) -Por motivo de incapacidade. (Cumprimenta e dirige-
se à porta. Carlota sai pelo fundo. Entra Valentim).
CENA VI
O Doutor, Valentim
DOUTOR - Oh! A que horas é o enterro?
VALENTIM - Que enterro? De que enterro me falas tu?
DOUTOR - Do teu. Não ias procurar o descanso, meu Werther?
VALENTIM - Ah! não me fales! Esta mulher... Onde está ela?
DOUTOR - Almoça.
VALENTIM - Sabes que a amo. Ela é invencível. Às minhas palavras
amorosas respondeu com a frieza do sarcasmo. Exaltei-me e cheguei a
proferir algumas palavras que poderiam indicar da minha parte: uma intenção
trágica. O ar da rua fez-me bem; acalmei-me...
DOUTOR - Tanto melhor!...
VALENTIM - Mas eu sou teimoso.
DOUTOR - Pois ainda crês?...
VALENTIM - Ouve: sinceramente aflito e apaixonado, apresentei-me a D. Carlota como era.
Não houve meio de torná-la compassiva. Sei que não me ama; mas creio que não está longe
disso; acha-se em um estado que basta uma faísca para acender-se-lhe no coração a chama
do amor. Se não se comoveu à franca manifestação do meu afeto, de comover-se a outro
modo de revelação. Talvez não se incline ao homem poético e apaixonado; de inclinar-se
ao heróico ou até cético... ou a outra espécie. Vou tentar um por um.
DOUTOR - Muito bem. Vejo que raciocinas; é porque o amor e a razão dominam em ti com
força igual. Graças a Deus, mais algum tempo e o predomínio da razão será certo.
VALENTIM - Achas que faço bem?
DOUTOR - Não acho, não, senhor!
VALENTIM - Por que?
DOUTOR - Amas muito esta mulher? É próprio da tua idade e da força das coisas. Não
caso que desminta esta verdade reconhecida e provada: que a pólvora e o fogo, uma vez
próximos, fazem explosão.
VALENTIM - É uma doce fatalidade esta!
DOUTOR - Ouve-me calado. A que queres chegar com este amor? Ao casamento; é honesto
e digno de ti. Basta que ela se inspire da mesma paixão, e a mão do himeneu virá converter
em uma só as duas existências. Bem. Mas não te ocorre uma coisa: é que esta mulher, sendo
uma namoradeira, não pode tornar-se vestal muito cuidadosa da ara matrimonial.
VALENTIM - Oh!
DOUTOR - Protestas contra isto? É natural. Não serias o que és se aceitasses à primeira
vista a minha opinião. É por isso que te peço reflexão e calma. Meu caro, o marinheiro
conhece as tempestades e os navios; eu conheço os amores e as mulheres; mas avalio no
sentido inverso do homem do mar; as escunas veleiras são preferidas pelo homem do mar,
eu voto contra as mulheres veleiras.
VALENTIM - Chamas a isto uma razão?
DOUTOR - Chamo a isto uma opinião. Não é a tua!de sê-lo com o tempo. Não me faltará
ocasião de chamar-te ao bom caminho. A tempo o ferro é mezinha, disse de Miranda.
Empregarei o ferro.
VALENTIM - O ferro?
DOUTOR - O ferro. as grandes coragens é que se salvam. Devi a isso salvar-me das
unhas deste gavião disfarçado de quem queres fazer tua mulher.
VALENTIM - O que estás dizendo?
DOUTOR - Cuidei que sabias. Também eu trepei pela escada de seda para cantar a
cantiga de Romeu à janela de Julieta.
VALENTIM - Ah!
DOUTOR - Mas não passei da janela. Fiquei ao relento, do que me resultou uma constipação.
VALENTIM - É natural. Pois como havia ela de amar a um homem que quer levar tudo pela
razão fria dos seus libelos e embargos de terceiro?
DOUTOR - Foi isso que me salvou; os amores como os desta mulher precisam um tanto ou
quanto de chicana. Passo pelo advogado mais chicaneiro do foro; imagina se a tua viúva
podia haver-se comigo! Vem o meu dever com embargos de terceiros e eu ganhei a
demanda. Se, em vez de comer tranqüilamente a fortuna de teu pai, tivesses cursado a
academia de S. Paulo ou Olinda, estavas, como eu, armado de broquel e cota de malhas.
VALENTIM -. É o que te parece. Podem acaso as ordenações e o código penal contra os
impulsos do coração? É querer reduzir a obra de Deus à condição da obra dos homens. Mas
bem vejo que és o advogado mais chicaneiro do foro.
DOUTOR - E, portanto, o melhor.
VALENTIM - Não, o pior, porque não me convenceste.
DOUTOR - Ainda não?
VALENTIM - Nem me convencerás nunca.
DOUTOR - Pois é pena!
VALENTIM - Vou tentar os meios que tenho em vista; se nada alcançar talvez me resigne à
sorte.
DOUTOR - Não tentes nada. Anda jantar comigo e vamos à noite ao teatro.
VALENTIM - Com ela? Vou.
DOUTOR - Nem me lembrava que a tinha convidado.
DOUTOR - Com que contas? Com a tua estrela? Boa fiança!
VALENTIM Conto comigo.
DOUTOR - Ah! melhor ainda!
CENA VII
Doutor, Valentim, Inocêncio
INOCÊNCIO - O corredor está deserto.
DOUTOR - Os criados servem à mesa. D. Carlota está almoçando. Está melhor?
INOCÊNCIO - Um tanto.
VALENTIM - Esteve doente, Sr. Inocêncio?
INOCÊNCIO - Sim, tive uma ligeira vertigem. Passou. Efeitos do amor... quero dizer... do
calor.
VALENTIM - Ah!
INOCÊNCIO - Pois olhe, já sofri calor de estalar passarinho. Não sei como isto foi. Enfim, são
coisas que dependem das circunstâncias.
VALENTIM - Espero que hei de vencer.
VALENTIM - Houve circunstâncias?
INOCÊNCIO - Houve... (sorrindo) Mas não as digo... não!
VALENTIM - É segredo?
INOCÊNCIO - Se é!
VALENTIM - Sou discreto como uma sepultura; fale!
INOCÊNCIO - Oh! não! É um segredo meu e de mais ninguém... ou a bem dizer, meu e de
outra pessoa... ou não, meu só!
DOUTOR - Respeitamos os segredos, seus ou de outros!
INOCÊNCIO - V. S. é, um portento! Nunca me hei de esquecer que me comparou ao sol! A
certos respeitos andou avisado: eu sou uma espécie de sol, com uma diferença, é que o
nasço para todos, nasço para todas!
DOUTOR - Oh! Oh!
VALENTIM - Mas V. S. está mais na idade de morrer que de nascer.
INOCÊNCIO - Apre, lá! com trinta e oito anos, a idade viril! V. S. é que é uma criança!
VALENTIM - Enganaram-me então. Ouvi dizer que V. S. fora aos últimos a beijar a mão de D.
João VI, quando daqui se foi, e que nesse tempo era já taludo.
INOCÊNCIO - quem se divirta em caluniar a minha idade. Que gente invejosa! Onde vai,
Doutor?
DOUTOR - Vou sair.
VALENTIM - Sem falar a D. Carlota?
DOUTOR - me havia despedido quando chegaste. Hei de voltar. Até logo. Adeus, Sr.
Inocêncio!
INOCÊNCIO - Felizes tardes, Sr. Doutor!
CENA VIII
Valentim, Inocêncio
INOCÊNCIO - É uma pérola este doutor! Delicado e bem falante! Quando abre a boca parece
um deputado na assembléia ou um cômico na casa da ópera!
VALENTIM - Com trinta e oito anos e ainda fala na casa da ópera?
INOCÊNCIO - Parece que V. S. ficou engasgado com os meus trinta e oito anos! Supõe
talvez que eu seja um Matusalém? Está enganado. Como me vê, faço andar à roda muita
cabecinha de moça. À propósito, não acha esta viúva uma bonita senhora?
VALENTIM - Acho.
INOCÊNCIO - Pois é da minha opinião! Delicada, graciosa, elegante, faceira, como ela só...
Ah!
VALENTIM - Gosta dela?
INOCÊNCIO (com indiferença) - Eu? gosto. E V. S.?
VALENTIM - (com indiferença) - Eu? gosto.
INOCÊNCIO (com indiferença) - Assim, assim?
VALENTIM (com indiferença) - Assim, assim.
INOCÊNCIO (contentíssimo, apertando-lhe a mão) - Ah! meu amigo!
CENA IX
Valentim, Inocêncio, Carlota
VALENTIM - Aguardávamos a sua chegada com a sem cerimônia de pessoas íntimas.
CARLOTA - Oh! fizeram muito bem! (Senta-se).
INOCÊNCIO - Não ocultarei que estava ansioso pela presença de V. Excia.
CARLOTA - Ah! obrigada... Aqui estou! (Um silêncio). Que novidades há, Sr. Inocêncio?
INOCÊNCIO - Chegou o paquete.
CARLOTA - Ah! (Outro silêncio). Ah! chegou o paquete? (Levanta-se).
INOCÊNCIO - Já tive a honra de...
CARLOTA - Provavelmente traz notícias de Pernambuco?... do cólera?...
INOCÊNCIO - Costuma trazer...
CARLOTA - Vou mandar ver cartas... tenho um parente no Recife... Tenham a bondade de
esperar...
INOCÊNCIO - Por quem é... não se incomode. Vou eu mesmo.
CARLOTA - Ora! tinha que ver...
INOCÊNCIO - Se mandar um escravo ficará na mesma... demais, eu tenho relações com a
administração do correio... O que talvez ninguém possa alcançar e já, eu me encarrego de
obter.
CARLOTA - A sua dedicação corta-me a vontade de impedi-lo. Se me faz o favor...
INOCÊNCIO - Pois não, até já! (Beija-lhe a mão e sai).
CENA X
Carlota, Valentim
CARLOTA - Ah! ah! ah!
VALENTIM - V. Excia. ri-se?
CARLOTA - Acredita que foi para despedi-lo que o mandei ver cartas ao correio?
VALENTIM - Não ouso pensar...
CARLOTA - Ouse, porque foi isso mesmo.
VALENTIM - Haverá indiscrição em perguntar com que fim?
CARLOTA - Com o fim de poder interrogá-lo acerca do sentido de suas palavras quando
daqui saiu.
VALENTIM - Palavras sem sentido...
CARLOTA - Oh!
VALENTIM - Disse algumas coisas... tolas!
CARLOTA - Está tão calmo para poder avaliar desse modo as suas palavras?
VALENTIM - Estou.
CARLOTA - Demais, o fim trágico que queria dar a uma coisa que começou por idílio... devia
assustá-lo.
VALENTIM - Assustar-me? Não conheço o termo.
CARLOTA - É intrépido?
VALENTIM - Um tanto. Quem se expôs à morte não deve temê-la em caso nenhum.
CARLOTA - Oh! Oh! poeta, e intrépido de mais a mais.
VALENTIM - Como lord Byron.
CARLOTA - Era capaz de uma segunda prova do caso de Leandro?
VALENTIM - Era. Mas eu já tenho feito coisas equivalentes.
CARLOTA - Matou algum elefante, algum hipopótamo?
VALENTIM - Matei uma onça.
CARLOTA - Uma onça?
VALENTIM - Pele malhada das cores mais vivas e esplêndidas; garras largas e possantes;
olhar fulvo, peito largo e duas ordens de dentes afiados como espadas.
CARLOTA - Jesus! Esteve diante desse animal!
VALENTIM - Mais do que isso; lutei com ele e matei-o.
CARLOTA - Onde foi isso?
VALENTIM - Em Goiás.
CARLOTA - Conte essa história, novo Gaspar Corrêa.
VALENTIM - Tinha eu vinte anos. Andávamos à caça eu e mais alguns. Internamo-nos mais
do que devíamos pelo mato. Eu levava comigo uma espingarda, uma pistola e uma faca de
caça. Os meus companheiros afastaram-se de mim. Tratava de procurá-los quando senti
passos. Voltei-me...
CARLOTA - Era a onça?
VALENTIM - Era a onça. Com o olhar fito sobre mim, parecia disposta a dar-me o bote.
Encarei-a, tirei cautelosamente a pistola e atirei sobre ela. O tiro não lhe fez mal. Protegido
pelo fumo da pólvora, acastelei-me atrás de um tronco de árvore. A onça foi-me no encalço, e
durante algum tempo andamos, eu e ela, a dançar à roda do tronco. Repentinamente
levantou as patas e tentou esmagar-me abraçando a árvore; mais rápido que o raio, agarrei-
lhe as os e apertei-a contra o tronco. Procurando escapar-me, a fera quis morder-me em
uma das mãos; com a mesma rapidez tirei a faca de caça e cravei-lha no pescoço; agarrei-lhe
de novo a pata e continuei a apertá-la até que os meus companheiros, orientados pelo tiro,
chegaram ao lugar do combate.
CARLOTA - E mataram?...
VALENTIM - Não foi preciso. Quando larguei as mãos da fera, um cadáver pesado e tépido
caiu no chão.
CARLOTA - Ora, mas isto é a história de um quadro da Academia!
VALENTIM - Só há um exemplar de cada feito heróico?
CARLOTA - Pois, deveras, matou uma onça?
VALENTIM - Conservo-lhe a pele como uma relíquia preciosa.
CARLOTA - É valente; mas pensando bem não sei de que vale ser valente.
VALENTIM - Oh!
CARLOTA - Palavra que não sei. Essa valentia fora do comum não é dos nossos dias. Às
proezas tiveram seu tempo; não me entusiasma essa luta do homem com a fera, que nos
aproxima dos tempos bárbaros da humanidade. Compreendo agora a razão por que usa dos
perfumes mais ativos; é para disfarçar o cheiro dos filhos do mato, que naturalmente há de ter
encontrado mais de uma vez. Faz bem.
VALENTIM - Fera verdadeira é a que V. Excia. me atira com esse riso sarcástico. O que
pensa então que possa excitar o entusiasmo?
CARLOTA - Ora, muita coisa! Não o entusiasmo dos heróis de Homero; um entusiasmo mais
condigno nos nossos tempos. Não precisa ultrapassar as portas da cidade para ganhar títulos
à admiração dos homens.
VALENTIM - V. Excia. acredita que seja uma verdade o aperfeiçoamento moral dos homens
na vida das cidades?
CARLOTA - Acredito.
VALENTIM - Pois acredita mal. A vida das cidades estraga os sentimentos. Aquele que eu
pude ganhar e entreter na assistência das florestas, perdi-os depois que entrei na vida
tumultuaria das cidades. V. Excia. ainda não conhece as mais verdadeiras opiniões.
CARLOTA - Dar-se-á caso que venha pregar contra o amor?...
VALENTIM - O amor! V. Excia. pronuncia essa palavra com uma veneração que parece estar
falando de coisas sagradas! Ignora que o amor é uma invenção humana?
CARLOTA - Oh!
VALENTIM - Os homens, que inventaram tanta coisa, inventaram também este sentimento.
Para dar justificação moral à união dos sexos inventou-se o amor, como se inventou o
casamento para dar-lhe justificação legal. Esses pretextos, com o andar do tempo, tornaram-
se motivos. Eis o que é o amor!
CARLOTA - É mesmo o senhor quem me fala assim?
VALENTIM - Eu mesmo.
CARLOTA - Não parece. Como pensa a respeito das mulheres?
VALENTIM - é mais difícil. Penso muita coisa e não penso nada. Não sei como avaliar
essa outra parte da humanidade extraída das costelas de Adão. Quem pode pôr leis ao mar!
É o mesmo com as mulheres. O melhor é navegar descuidadamente, a pano largo.
CARLOTA - Isso é leviandade.
VALENTIM - Oh! minha senhora!
CARLOTA - Chamo leviandade para não chamar despeito.
VALENTIM - Então muito tempo que sou leviano ou ando despeitado, porque esta é a
minha opinião de longos anos. Pois ainda acredita na afeição íntima entre a descrença
masculina e... dá licença? a leviandade feminina?
CARLOTA - É um homem perdido, Sr. Valentim. Ainda santas afeições, crenças nos
homens, e juízo nas mulheres. Não queira tirar a prova real pelas exceções. Some a regra
geral e há de ver. Ah! mas agora percebo!
VALENTIM - O que?
CARLOTA (rindo) - Ah! ah! ah! Ouça muito baixinho, para que nem as paredes possam ouvir:
este não é ainda o caminho do meu coração, nem a valentia, tão pouco.
VALENTIM - Ah! tanto melhor! Volto ao ponto de partida e desisto da gloria.
CARLOTA - Desanima? (Entra o Doutor).
VALENTIM - Dou-me por satisfeito. Mas se vê, como cavalheiro, sem rancor nem
hostilidade. (Entra Inocêncio);
CARLOTA - É arriscar-se a novas tentativas.
VALENTIM - Não!
CARLOTA - Não seja vaidoso. Está certo?
VALENTIM - Estou. E a razão é esta: quando não se pode atinar com o caminho do coração
toma-se - o caminho da porta. (Cumprimenta e dirige-se para a porta).
CARLOTA - Ah! - Pois que vá! Estava aí, Sr. Doutor? Tome cadeira.
DOUTOR (baixo) - Com uma advertência: há muito tempo que me fui pelo caminho da porta.
CARLOTA (séria) - Prepararam ambos esta comédia?
DOUTOR - Comédia, com efeito, cuja moralidade Valentim incumbiu-se de resumir: - Quando
não se pode atinar com o caminho do coração, deve-se tomar sem demora o caminho da
porta. (Saem o doutor e Valentim).
CARLOTA (vendo Inocêncio) - Pode sentar-se. (Indica-lhe uma cadeira. Risonha). Como
passou?
INOCÊNCIO (senta-se meio desconfiado, mas levanta-se logo) - Perdão: eu também vou pelo
caminho da porta! (Sai. Carlota atravessa arrebatadamente a cena. Cai o pano)
.
O PROTOCOLO
Machdo de Assis
Comédia em um ato
Representada pela primeira vez no Ateneu Dramático em novembro de 1862 -
PERSONAGENS
Pinheiro - Sr. Cardoso
Venâncio Alves - Sr. Pimentel
Elisa - Sra. D. Maria Fernanda
Lulu - Sra. D. Jesuína Montani
Atualidade
EM CASA DE PINHEIRO
Sala de visitas
CENA I
Elisa, Venâncio Alves
ELISA - Está meditando?
VENÂNCIO (como que acordando) - Ah! perdão!
ELISA - Estou afeita à alegria constante de Lulu, e não posso ver ninguém triste.
VENÂNCIO - Exceto a senhora mesma.
ELISA - Eu!
VENÂNCIO - A senhora!
ELISA - Triste, por que, meu Deus?
VENÂNCIO - Eu sei! Se a rosa dos campos me fizesse a mesma pergunta, eu responderia
que era falta de orvalho e de sol. Quer que lhe diga que é falta de... de amor?
ELISA (rindo-se) - Não diga isso!
VENÂNCIO - Com certeza, é.
ELISA - Donde conclui?
VENÂNCIO - A senhora tem um sol oficial e um orvalho legal que não sabem animá-la.
nuvens...
ELISA - É suspeita sem fundamento.
VENÂNCIO - É realidade.
ELISA - Que franqueza a sua!
VENÂNCIO - Ah! é que o meu coração é virginal, e portanto sincero.
ELISA - Virginal a todos os respeitos?
VENÂNCIO - Menos a um.
ELISA - Não serei indiscreta: é feliz.
VENÂNCIO - Esse é o engano. Basta essa exceção para trazer-me um temporal. Tive até
certo tempo o sossego e a paz do homem que está fechado no gabinete sem se lhe dar da
chuva que açoita as vidraças.
ELISA - Por que não se deixou ficar no gabinete?
VENÂNCIO - Podia acaso fazê-lo? Passou fora a melodia do amor; o coração é curioso e
bateu-me que saísse; levantei-me, deixei o livro que estava lendo; era Paulo e Virgínia! Abri a
porta e nesse momento a fada passava. (Reparando nela). Era de olhos negros e cabelos
castanhos.
ELISA - Que fez?
VENÂNCIO - Deixei o gabinete, o livro, tudo, para seguir a fada do amor!
ELISA - Não reparou se ela ia só?
VENÂNCIO (suspirando) - Não ia só!
ELISA (em tom de censura) - Fez mal.
VENÂNCIO - Talvez. Curioso animal que é o homem! Em criança deixa a casa paterna para
acompanhar os batalhões que vão à parada; na mocidade deixa os conchegos e a paz para
seguir a fada do amor; na idade madura deixa-se levar pelo deus Momo da política ou por
qualquer outra fábula do tempo. na velhice deixa passar tudo sem mover-se, mas... é
porque já não tem pernas!
ELISA - Mas que tencionava fazer se ela não ia só?
VENÂNCIO - Nem sei.
ELISA - Foi loucura. Apanhou chuva!
VENÂNCIO - Ainda estou apanhando.
ELISA - Então é um extravagante.
VENÂNCIO - Sim. Mas um extravagante por amor... Ó poesia!
ELISA - Mau gosto!
VENÂNCIO - A Sra. é a menos competente para dizer isso.
ELISA - É sua opinião?
VENÂNCIO - É opinião deste espelho.
ELISA - Ora!
VENÂNCIO - E dos meus olhos também.
ELISA - Também dos seus olhos?
VENÂNCIO - Olhe para eles.
ELISA - Estou olhando.
VENÂNCIO - O que vê dentro?
ELISA - Vejo... (Com enfado) Não vejo nada!
VENÂNCIO - Ah! está convencida!
ELISA - Presumido!
VENÂNCIO - Eu! Essa agora não é má!
ELISA - Para que seguia quem passava quieta pela rua? Supunha abrandá-la com as suas
mágoas?
VENÂNCIO - Acompanhei-a, não para abrandá-la, mas para servi-la; viver do rasto de seus
pés, das migalhas dos seus olhares; apontar-lhe os regos a saltar, apanhar-lhe o leque
quando caísse... (Cai o leque a Elisa. Venâncio Alves apressa-se a apanha-o e entrega-lho).
Finalmente...
ELISA - Finalmente... fazer profissão de presumido!
VENÂNCIO - Acredita deveras que o seja?
ELISA - Parece.
VENÂNCIO - Pareço, mas não sou. Presumido seria se eu exigisse a atenção exclusiva da
fada da noite. Não quero! Basta-me ter coração para amá-la, é a minha maior ventura!
ELISA - A que pode levá-lo esse amor? Mais vale sufocar no coração a chama nascente do
que condená-la a arder em vão.
VENÂNCIO - Não; é uma fatalidade! Arder e renascer, como a fênix, suplício eterno, mas
amor eterno também.
ELISA - Eia! Ouça uma... amiga. Não a esse sentimento tanta importância. Não é a
fatalidade da fênix, é a fatalidade... do relógio. Olhe para aquele. anda correndo e
regulando; mas se amanhã não lhe derem corda, ele parará. Não corda à paixão, que ela
parará por si.
VENÂNCIO - Isso não!
ELISA - Faça isso... por mim!
VENÂNCIO - Pela senhora! Sim... não...
ELISA - Tenha ânimo!
CENA II
Venâncio Alves, Elisa, Pinheiro
PINHEIRO (a Venâncio) - Como está?
VENÂNCIO - Bom. Conversávamos sobre coisas da moda. Viu os últimos figurinos? São de
apurado gosto.
PINHEIRO - Não vi.
VENÂNCIO - Está com um ar triste...
PINHEIRO - Triste, não; aborrecido... É a minha moléstia do domingo.
VENÂNCIO - Ah!
PINHEIRO - Ando a abrir e fechar a boca; é um círculo vicioso.
ELISA - Com licença.
VENÂNCIO - Oh! minha senhora!
ELISA - Eu faço anos hoje; venha jantar conosco.
VENÂNCIO - Venho. Até logo.
CENA III
Pinheiro, Venâncio Alves
VENÂNCIO - Anda então em um círculo vicioso?
PINHEIRO - É verdade. Tentei dormir, não pude; tentei ler, não pude. Que tédio, meu amigo!
VENÂNCIO - Admira!
PINHEIRO - Por que?
VENÂNCIO - Porque não sendo viúvo nem solteiro...
PINHEIRO - Sou casado...
VENÂNCIO - É verdade.
PINHEIRO - Que adianta?
VENÂNCIO - É boa! adianta ser casado. Compreende nada melhor que o casamento?
PINHEIRO - O que pensa da China, Sr. Venâncio?
VENÂNCIO - Eu? Penso...
PINHEIRO - sei, vai repetir-me o que tem lido nos livros e visto nas gravuras; o sabe
mais nada.
VENÂNCIO - Mas as narrações verídicas...
PINHEIRO - São minguadas ou exageradas. Vá à China, e verá como as coisas mudam tanto
ou quanto de figura.
VENÂNCIO - Para adquirir essa certeza não vou lá.
PINHEIRO - É o que lhe aconselho; não se case!
VENÂNCIO - Que não me case?
PINHEIRO - Ou não à China, como queira. De fora, conjecturas, sonhos, castelos no ar,
esperanças, comoções... Vem o padre, a mão aos noivos, leva-os, chegam às muralhas...
Upa! estão na China! Com a altura da queda fica-se atordoado, e os sonhos de fora
continuam dentro: é a lua de mel; mas, à proporção que o espírito se restabelece, vai vendo o
país como ele é; então poucos lhe chamam Celeste Império, alguns infernal império, muitos
purgatorial império!
VENÂNCIO - Ora, que banalidade! E que sofisma!
PINHEIRO - Quantos anos tem, Sr. Venâncio?
VENÂNCIO - Vinte e quatro.
PINHEIRO - Está com a mania que eu tinha na sua idade.
VENÂNCIO - Qual mania?
PINHEIRO - A de querer acomodar todas as coisas à lógica, e a lógica a todas coisas. Viva,
experimente e convencer-se-á de que nem sempre se pode alcançar isso.
VENÂNCIO - Quer-me parecer que há nuvens no céu conjugal?
PINHEIRO - Há. Nuvens pesadas.
VENÂNCIO - Já eu as tinha visto com o meu telescópio.
PINHEIRO - Ah! se eu não estivesse preso...
VENÂNCIO - É exageração de sua parte. Capitule, Sr. Pinheiro, capitule. Com mulheres
bonitas é um consolo capitular. Há de ser o meu preceito de marido.
PINHEIRO - Capitular é vergonha.
VENÂNCIO - Com uma moça encantadora?...
PINHEIRO - Não é uma razão.
VENÂNCIO - Alto lá! Beleza obriga.
PINHEIRO - Pode ser verdade, mas eu peço respeitosamente licença para declarar-lhe que
estou com o novo princípio de não-intervenção nos Estados. Nada de intervenções.
VENÂNCIO - A minha intenção é toda conciliatória.
PINHEIRO - Não duvido, nem duvidava. o veja no que disse injúria pessoal. Folgo de
recebê-lo e de contá-lo entre os afeiçoados de minha família.
VENÂNCIO - Muito obrigado. Dá-me licença?
PINHEIRO - Vai rancoroso?
VENÂNCIO - Ora, qual! Até à hora do jantar.
PINHEIRO - Há de desculpar-me, não janto em casa. Mas considere-se com a
mesma liberdade. (Sai Venâncio. Entra Lulu).
CENA IV
Pinheiro, Lulu
LULU - Viva, primo!
PINHEIRO - Como estás, Lulu?
LULU - Meu Deus, que cara feia!
PINHEIRO - Pois é a que trago sempre.
LULU - Não é, não, senhor; a sua cara de costume é uma cara amável; essa é de afugentar a
gente. Deu agora para andar arrufado com sua mulher!
PINHEIRO - Mau!
LULU - Escusa de zangar-se também comigo. O primo é um bom marido; a prima é uma
excelente esposa; ambos formam um excelente casal. É bonito andarem amuados, sem se
olharem nem se falarem? Até parece namoro!
PINHEIRO - Ah! tu namoras assim?
LULU - Eu não namoro.
PINHEIRO - Com essa idade?
LULU - Pois então! Mas escute: estes arrufos vão continuar?
PINHEIRO - Eu sei lá.
LULU - Sabe, sim. Veja se isto é bonito na lua de mel; ainda não cinco meses que se
casaram.
PINHEIRO - Não há, não. Mas a data não vem ao caso. A lua de mel ofuscou-se; é alguma
nuvem que passa; deixa-la passar. Queres que eu faça como aquele doido que, ao enublar-
se o luar, pedia a Júpiter que espevitasse o candeeiro? Júpiter é independente, e me
apagaria de todo o luar, como fez com o doido. Aguardemos antes que algum vento sopre do
norte, ou do sul, e venha dissipar a passageira sombra.
LULU - Pois sim! Ela é norte, o primo é o sul; faça com que o vento sopre do sul.
PINHEIRO - Não, senhora, há de soprar do norte.
LULU - Capricho sem graça!
PINHEIRO - Queres saber de uma coisa, Lulu? Estou pensando que és uma brisazinha do
norte encarregada de fazer clarear o céu.
LULU - Oh! nem por graça!
PINHEIRO - Confessa, Lulu!
LULU - Posso ser uma brisa do sul, isso sim!
PINHEIRO - Não terás essa glória.
LULU - Então o primo é caprichoso assim?
PINHEIRO - Caprichos? Ousas tu, posteridade de Eva, falar de caprichos a mim, posteridade
de Adão!
LULU - Oh!...
PINHEIRO - Tua prima é uma caprichosa. De seus caprichos nasceram estas diferenças
entre nós. Mas para caprichosa, caprichoso: contrafiz-me, estudei no código feminino meios
de pôr os pés à parede, e tornei-me de antes quebrar que torcer. Se dia não der um passo,
também eu não dou.
LULU - Pois eu estendo a mão direita a um e a esquerda a outro, e os aproximarei.
PINHEIRO - Queres ser o anjo da reconciliação?
LULU - Tal qual.
PINHEIRO - Contanto que eu não passe pelas forcas caudinas.
LULU - Hei de fazer as coisas airosamente.
PINHEIRO - Insistes nisso? Eu podia dizer que era ainda um capricho de mulher. Mas não
digo, não, chamo antes afeição e dedicação.
CENA V
Pinheiro, Lulu, Elisa
LULU (baixo) - Olhe, aí está ela!
PINHEIRO (baixo) - Deixa-a.
ELISA - Andava à tua procura, Lulu.
LULU - Para que, prima?
ELISA - Para me dares uma pouca de lã.
LULU - Não tenho aqui; vou buscar.
PINHEIRO - Lulu!
LULU - O que é?
PINHEIRO (baixo) - Dize à tua prima que eu janto fora.
LULU (indo à Elisa, baixo) - O primo janta fora.
ELISA (baixo) - Se é por ter o que fazer, podemos esperar.
LULU (a Pinheiro, baixo) - Se é por ter o que fazer, podemos esperar.
PINHEIRO (baixo) - É um convite.
LULU (alto) - É um convite.
ELISA (alto) - Ah! se é um convite pode ir; jantaremos sós.
PINHEIRO (levantando-se) - Consentirá, minha senhora, que lhe faça uma
observação: mesmo sem a sua licença, eu podia ir!
ELISA - Ah! é claro! Direito de marido... Quem lho contesta?
PINHEIRO - Havia de ser engraçada a contestação!
ELISA - Mesmo muito engraçada!
PINHEIRO - Tanto quanto foi ridícula a licença.
LULU - Primo!
PINHEIRO (a Lulu) - Cuida das tuas novelas! Vai encher a cabeça de romantismo, é moda;
colhe as idéias absurdas que encontrares nos livros, e depois faz da casa de teu marido a
cena do que houveres aprendido com as leituras: é também moda. (Sai arrebatadamente).
CENA VI
Lulu, Elisa
LULU - Como está o primo!
ELISA - Mau humor, há de passar!
LULU - Sabe como passava depressa? Pondo fim a estes amuos.
ELISA - Sim, mas cedendo ele.
LULU - Ora, isso é teima!
ELISA - É dignidade!
LULU - Passam dias sem se falarem, e, quando se falam, é assim.
ELISA - Ah! isto é o que menos cuidado me dá. Ao principio fiquei amofinada, e devo dizê-lo,
chorei.o coisas estas que se confessam entre mulheres. Mas hoje vou fazer o que as
outras fazem: curar pouco das torturas domesticas. Coração à larga, minha filha, ganha-se o
céu, e não se perde a terra.
LULU - Isso é zanga!
ELISA - Não é zanga, é filosofia. de chegar o teu dia, deixa estar. Saberás então quanto
vale a ciência do casamento.
LULU - Pois explica, mestra.
ELISA - Não; saberás por ti mesma. Quero, entretanto, instruir-te de uma coisa. Não lhe
ouviste falar no direito? É engraçada a história do direito! Todos os poetas concordam em dar
às mulheres o nome de anjos. Os outros homens não se atrevem a negar, mas dizem
consigo: "Também nós somos anjos!" Nisto sempre um espelho ao lado, que lhes faz ver
que, para anjos faltam-lhes... asas! Asas! asas! a todo o custo. E arranjam-nas; legítimas ou
não, pouco importa. Essas asas os levam a jantar fora, a dormir fora, muitas vezes a amar
fora. A essas asas chamam enfaticamente: o nosso direito!
LULU - Mas, prima, as nossas asas?
ELISA - As nossas? Bem se vê que és inexperiente. Estuda, estuda, e hás de achá-las.
LULU - Prefiro não usar delas.
ELISA - Hás de dizer o contrário quando for ocasião. Meu marido bateu as suas; o direito
de jantar fora! Caprichou em não levar-me à casa de minha madrinha; é ainda o direito. Daqui
nasceram os nossos arrufos, arrufos sérios. Uma santa zangar-se-ia como eu. Para
caprichoso, caprichosa!
LULU - Pois sim! mas estas coisas vão dando na vista; as pessoas que
freqüentam nossa casa têm reparado; o Venâncio Alves não me deixa sossegar
com as suas perguntas.
ELISA - Ah! sim?
LULU - Que rapaz aborrecido, prima!
ELISA - Não acho!
LULU - Pois eu acho: aborrecido com as suas afetações!
ELISA - Como aprecias mal! Ele fala com graça e chama-o afetado?...
LULU - Que olhos os seus, prima!
ELISA (indo ao espelho) - São bonitos?
LULU - São maus.
ELISA - Em que, minha filósofa?
LULU - Em verem o anverso de Venâncio Alves e o reverso do primo.
ELISA - És uma tola.
LULU - Só?
ELISA - E uma descomedida.
LULU - É porque os amo a ambos. E depois...
ELISA - Depois, o que?
LULU - Vejo no Venâncio Alves um arzinho de pretendente.
ELISA - À tua mão direita?
LULU - À tua mão esquerda.
ELISA - Oh!
LULU - É coisa que se adivinha... (Ouve-se um carro). Aí está o homem.
ELISA - Vai recebê-lo. (Lulu vai até à porta. Elisa chega-se a um espelho e compõe o
toucado).
CENA VII
Elisa, Lulu, Venâncio
LULU - O Sr. Venâncio Alves chega a propósito; falávamos na sua pessoa.
VENÂNCIO - Em que ocupava eu a atenção de tão gentis senhoras?
LULU - Fazíamos o inventário das suas qualidades.
VENÂNCIO - Exageravam-me o cabedal, já sei.
LULU - A prima dizia: "Que moço amável é o Sr. Venâncio Alves!"
VENÂNCIO - Ah! e a senhora?
LULU - Eu dizia: "Que moço amabilíssimo é o Sr. Venâncio Alves!"
VENÂNCIO - Dava-me o superlativo. Não me cai no chão esta atenção gramatical.
LULU - Eu sou assim: estimo ou aborreço no superlativo. Não é, prima?
ELISA (contrariada) - Eu sei lá!
VENÂNCIO - Como deve ser triste cair-lhe no desagrado!
LULU - Vou avisando, é o superlativo.
VENÂNCIO - Dou-me por feliz. Creio que lhe cai em graça...
LULU - Caiu! Caiu! Caiu!
ELISA - Lulu, vai buscar a lã.
LULU - Vou prima, vou. (Sai correndo).
CENA VIII
Venâncio, Elisa
VENÂNCIO - Voa qual uma andorinha esta moça!
ELISA - É próprio da idade.
VENÂNCIO - Vou sangrar-me...
ELISA - Hein!
VENÂNCIO - Sangrar-me em saúde contra uma suspeita sua.
ELISA - Suspeita?
VENÂNCIO - Suspeita de haver-me adiantado o meu relógio.
ELISA (rindo) - Posso crê-lo.
VENÂNCIO - Estará em erro. Olhe, são duas horas; confronte com o seu: duas horas.
ELISA - Pensa que acreditei seriamente?
VENÂNCIO - Vim mais cedo e de passagem. Quis antecipar-me aos outros no cumprimento
de um dever. Os antigos, em prova de respeito, depunham aos pés dos deuses grinaldas e
festões; o nosso tempo, infinitamente prosaico, nos permite oferendas prosaicas; neste
álbum ponho eu o testemunho do meu júbilo pelo dia de hoje.
ELISA - Obrigada. Creio no sentimento que o inspira e admiro o gosto da escolha.
VENÂNCIO - Não é a mim que deve tecer o elogio.
ELISA - Foi gosto de quem o vendeu?
VENÂNCIO - Não, minha senhora, eu próprio o escolhi; mas a escolha foi das mais
involuntárias; tinha a sua imagem na cabeça e não podia deixar de acertar.
ELISA - É uma fineza de quebra. (Folheia o álbum).
VENÂNCIO - É por isso que me vibra um golpe?
ELISA - Um golpe?
VENÂNCIO - É tão casta que não há de calcular comigo; mas as suas palavras são proferidas
com uma indiferença que eu direi instintiva.
ELISA - Não creia...
VENÂNCIO - Que não creia na indiferença?
ELISA - Não... Não creia no cálculo...
VENÂNCIO - Já disse que não. Em que que devo crer seriamente?
ELISA - Não sei...
VENÂNCIO - Em nada, não lhe parece?
ELISA - Não reza a história de que os antigos, ao depositarem as suas oferendas,
apostrofassem os deuses.
VENÂNCIO - É verdade: este uso é do nosso tempo.
ELISA - Do nosso prosaico tempo.
VENÂNCIO - A senhora ri? Riamos todos! Também eu rio e da melhor vontade.
ELISA - Pode rir sem temor. Acha que sou deusa? Mas os deuses se foram. Estátua, isto
sim.
VENÂNCIO - Será estátua. Não me inculpe, nesse caso, a admiração.
ELISA - Não inculpo, aconselho.
VENÂNCIO (repoltreando-se) - Foi excelente esta idéia do divã. É um consolo para quem
está cansado, e quando à comodidade junta o bom gosto, como este, então é ouro sobre
azul. Não acha engenhoso, D. Elisa?
ELISA - Acho.
VENÂNCIO - Devia ser inscrito entre os beneméritos da humanidade o autor disto. Com
trastes assim, e dentro de uma casinha de campo, prometo ser o mais sincero anacoreta que
jamais fugiu às tentações do mundo. Onde comprou este?
ELISA - Em casa do Costrejean.
VENÂNCIO - Comprou uma preciosidade.
ELISA - Com outra que está agora por cima, e que eu não comprei, fazem duas, duas
preciosidades.
VENÂNCIO - Disse muito bem! É tal o conchego que até se podem esquecer as horas... É
verdade, que horas são? Duas e meia. A senhora dá-me licença?
ELISA - Já se vaI?
VENÂNCIO - Até à hora do jantar.
ELISA - Olhe, não me queira mal.
VENÂNCIO - Eu, mal! E por que?
ELISA - Não me obrigue a explicações inúteis.
VENÂNCIO - Não obrigo, não. compreendo de sobejo a sua intenção. Mas, francamente, se a
flor está alta para ser colhida, é crime aspirar-lhe de longe o aroma e adorá-la?
ELISA - Crime não é.
VENÂNCIO - São duas e meia. Até à hora do jantar.
CENA IX
Venâncio, Elisa, Lulu
LULU - Sai com a minha chegada?
VENÂNCIO - Ia sair.
LULU - Até quando?
VENÂNCIO - Até à hora do jantar.
LULU - Ah! janta conosco?
ELISA - Sabes que faço anos, e esse dia é o dos amigos.
LULU - É justo, é justo
VENÂNCIO - Até logo.
CENA X
Lulu, Elisa
LULU - Oh! teve presente!
ELISA - Não achas de gosto?
LULU - Não tanto.
ELISA - É prevenção. Suspeitas que é do Venâncio Alves?
LULU - Atinei logo.
ELISA - Que tens contra esse moço?
LULU - Já to disse.
ELISA - É mau deixar-se ir pelas antipatias.
LULU - Antipatias não tenho.
ELISA - Alguém sobe.
LULU - Há de ser o primo.
ELISA - Ele! (Sai).
CENA XI
Pinheiro, Lulu
LULU - Viva! está mais calmo?
PINHEIRO - Calmo sempre, menos nas ocasiões em que és... indiscreta.
LULU - Indiscreta!
PINHEIRO - Indiscreta, sim, senhora! Para que veio aquela exclamação quando eu falava
com Elisa?
LULU - Foi porque o primo falou de um modo...
PINHEIRO - De um modo, que é o meu modo, que é modo de todos os maridos contrariados.
LULU - De um modo que não é o seu, primo. Para que fazer-se mau quando é
bom? Pensa que não se percebe quanto lhe custa contrafazer-se?
PINHEIRO - Vais dizer que sou um anjo!
LULU - O primo é um excelente homem, isso sim. Olhe, sou importuna, e hei de sê-lo até vê-
los desamuados.
PINHEIRO - Ora, prima, para ir de caridade, és muito criança. Dispenso os teus conselhos
e os teus serviços.
LULU - É um ingrato.
PINHEIRO - Serei.
LULU - Homem sem coração.
PINHEIRO - Quanto a isso, é questão de fato; põe aqui a tua mão, não sentes bater? É o
coração.
LULU - Eu sinto um charuto.
PINHEIRO - Um charuto? Pois é isso mesmo. Coração e charuto são símbolos um do outro;
ambos se queimam e se desfazem em cinzas. Olha, este charuto, sei eu que o tenho para
fumar; mas o coração, esse creio que já está todo no cinzeiro.
LULU - Sempre a brincar!
PINHEIRO - Achas que devo chorar?
LULU - Não, mas...
PINHEIRO - Mas o que?
LULU - Não digo, é uma coisa muito feia.
PINHEIRO - Coisas feias na tua boca, Lulu!
LULU - Muito feia.
PINHEIRO - Não há de ser, dize.
LULU - Demais, posso parecer indiscreta.
PINHEIRO - Ora, qual; alguma coisa de meu interesse?
LULU - Se é!
PINHEIRO - Pois, então, não és indiscreta!
LULU - Então, quantas caras tem a indiscrição?
PINHEIRO - Duas.
LULU - Boa moral!
PINHEIRO - Moral à parte. Fala: o que é?
LULU - Que curioso! É uma simples observação; não lhe parece que é mau desamparar a
ovelha, havendo tantos lobos, primo?
PINHEIRO - Onde aprendeste isso?
LULU - Nos livros que me dão para ler.
PINHEIRO - Estás adiantada! E que sabes tanto, falarei. como se falasse a um livro.
Primeiramente, eu não desamparo; depois, não vejo lobos.
LULU - Desampara, Sim!
PINHEIRO - Não estou em casa?
LULU - Desampara o coração.
PINHEIRO - Mas, os lobos?...
LULU - Os lobos vestem-se de cordeiros e apertam a mão ao pastor, conversam com ele,
sem que deixem de olhar furtivamente para a ovelha mal guardada.
PINHEIRO - Não há nenhum.
LULU - São assíduos; visitas sobre visitas; muita zumbaia, muita atenção, mas por dentro a
ruminarem coisas más.
PINHEIRO - Ora, Lulu, deixa-te de tolices.
LULU - Não digo mais nada. Onde foi Venâncio Alves?
PINHEIRO - Não sei. Ali está um que não há de ser acusado de lobo.
LULU - Os lobos vestem-se de cordeiros.
PINHEIRO - O que é que dizes?
LULU - Eu não digo nada. Vou tocar piano. Quer ouvir um noturno ou prefere uma polca?
PINHEIRO - Lulu, ordeno-lhe que fale!
LULU - Para que? para ser indiscreta?
PINHEIRO - Venâncio Alves?...
LULU - É um tolo, nada mais. (Sai. Pinheiro fica pensativo. Vai à mesa e vê o álbum)
CENA XII
Pinheiro, Elisa
PINHEIRO - de desculpar-me, mas creio não ser indiscreto, desejando saber com que
sentimento recebeu este álbum.
ELISA - Com o sentimento com que se recebem álbuns.
PINHEIRO - A resposta em nada me esclarece.
ELISA - então sentimentos para receber álbuns, e um com que eu deveria receber
este?
PINHEIRO - Devia saber que há.
ELISA - Pois... recebi com esse.
PINHEIRO - A minha pergunta poderá parecer indiscreta, mas...
ELISA - Oh! indiscreta, não!
PINHEIRO - Deixe, minha senhora, esse tom sarcástico, e veja bem que eu falo sério.
ELISA - Vejo isso. Quanto à pergunta, está exercendo um direito.
PINHEIRO - Não lhe parece que seja um direito este de investigar as intenções dos pássaros
que penetram em minha seara, para saber se são daninhos?
ELISA - Sem dúvida. Ao lado desse direito, está o nosso dever, dever das searas, de prestar-
se a todas as suspeitas.
PINHEIRO - É inútil a argumentação por esse lado: os pássaros cantam e as cantigas
deleitam.
ELISA - Está falando sério?
PINHEIRO - Muito sério.
ELISA - Então consinta que faça contraste: eu rio-me.
PINHEIRO - Não me tome por um mau sonhador de perfídias; perguntei, porque estou seguro
de que não são muito santas as intenções que trazem à minha casa Venâncio Alves.
ELISA - Pois eu nem suspeito...
PINHEIRO - Vê o céu nublado e as águas turvas: pensa que é azada ocasião para pescar.
ELISA - Está feito, é de pescador atilado!
PINHEIRO - Pode ser um mérito a seus olhos, minha senhora; aos meus é um vício de que o
pretendo curar, arrancando-lhe as orelhas.
ELISA - Jesus! está com intenções trágicas!
PINHEIRO - Zombe ou não, há de ser assim.
ELISA - Mutilado ele, que pretende fazer da mesquinha Desdêmona?
PINHEIRO - Conduzi-la de novo ao lar paterno.
ELISA - Mas, afinal de contas, meu marido, obriga-me a falar também seriamente.
PINHEIRO - Que tem a dizer?
ELISA - Fui tirada meses da casa de meu pai para ser sua mulher; agora, por um pretexto
frívolo, leva-me de novo ao lar paterno. Parece-lhe que eu seja uma casaca que se pode tirar
por estar fora de moda?
PINHEIRO - Não estou para rir, mas digo-lhe que antes fosse uma casaca.
ELISA - Muito obrigada!
PINHEIRO - Qual foi a casaca que me deu cuidados? Por ventura quando saio com a
minha casaca não vou descansado a respeito dela? Não sei eu perfeitamente que ela não
olha complacente para as costas alheias e fica descansada nas minhas?
ELISA - Pois tome-me por uma casaca. Vê em mim alguns salpicos?
PINHEIRO - Não, não vejo. Mas vejo a rua cheia de lama e um carro que vai passando; e
nestes casos, como não gosto de andar mal asseado, entro em um corredor, com a minha
casaca, à espera de que a rua fique desimpedida.
ELISA - Bem. Vejo que quer a nossa separação temporária... até que passe o
carro. Durante esse tempo como pretende andar? Em mangas de camisa?
PINHEIRO - Durante esse tempo não andarei, ficarei em casa.
ELISA -
Oh! suspeita por suspeita! Eu não creio nessa reclusão voluntária.
PINHEIRO - Não crê? E por que?
ELISA - Não creio, por mil razões.
PINHEIRO - Dê-me uma, e fique com as novecentas e noventa e nove.
ELISA - Posso dar-lhe mais de uma e até todas. A primeira é a simples dificuldade de conter-
se entre as quatro paredes desta casa.
PINHEIRO - Verá se posso.
ELISA - A segunda é que não deixará de aproveitar o isolamento para ir ao alfaiate provar
outras casacas.
PINHEIRO - Oh!
ELISA - Para ir ao alfaiate é preciso sair; quero crer que não fará vir o alfaiate à casa.
PINHEIRO - Conjecturas suas. Reflita, que não está dizendo coisas assizadas. Conhece o
amor que lhe tive e lhe tenho, e sabe de que sou capaz. Mas, voltemos ao ponto de partida.
Este livro pode nada significar e significar muito. (Folheia). Que responde?
ELISA - Nada.
PINHEIRO - Oh! que é isto? É a letra dele.
ELISA - Não tinha visto.
PINHEIRO - É talvez uma confidência. Posso ler?
ELISA - Por que não?
PINHEIRO (lendo) - "Se me privas dos teus aromas, ó rosa que foste abrir sobre um rochedo,
não podes fazer com que eu te não ame, contemple e abençoe!" Como acha isto?
ELISA - Não sei.
PINHEIRO - Não tinha lido?
ELISA (sentando-se) - Não.
PINHEIRO - Sabe quem é esta rosa?
ELISA - Cuida que serei eu?
PINHEIRO - Parece. O rochedo sou eu. Onde vai ele desencavar estas figuras.
ELISA - Foi talvez escrito sem intenção...
PINHEIRO - Ai! foi... Ora, diga, é bonito isto? Escreveria ele se não houvesse esperanças?
ELISA - Basta. Tenho ouvido. Não quero continuar a ser alvo de suspeitas. Esta frase é
intencional; ele viu as águas turvas... De quem a culpa? Dele ou sua? Se as não houvesse
agitado, elas estariam plácidas e transparentes como dantes.
PINHEIRO - A culpa é minha?
ELISA - Dirá que não é. Paciência. Juro-lhe que não sou cúmplice nas intenções deste
presente.
PINHEIRO - Jura?
ELISA - Juro.
PINHEIRO - Acredito. Dente por dente, Elisa, como na pena de Talião. Aqui tens a minha
mão em prova de que esqueço tudo.
ELISA - Também eu tenho a esquecer e esqueço.
CENA XIII
Elisa, Pinheiro, Lulu
LULU - Bravo! voltou o bom tempo?
PINHEIRO - Voltou.
LULU - Graças a Deus! De que lado soprou o vento?
PINHEIRO - De ambos os lados.
LULU - Ora bem!
ELISA - Pára um carro.
LULU (vai à janela) - Vou ver.
PINHEIRO - Há de ser ele.
LULU (vai à porta) - Entre, entre.
CENA XIV
Lulu, Venâncio, Pinheiro, Elisa
PINHEIRO (baixo à Elisa) - Poupo-lhe as orelhas, mas hei de tirar desforra...
VENÂNCIO - Não faltei... Oh! não foi jantar fora?
PINHEIRO - Não. A Elisa pediu-me que ficasse...
VENÂNCIO (com uma careta) - Muito estimo.
PINHEIRO - Estima? Pois não é verdade?
VENÂNCIO - Verdade o que?
PINHEIRO - Que tentasse perpetuar as hostilidades entre a potência marido e a potência
mulher?
VENÂNCIO - Não percebo...
PINHEIRO - Ouvi falar de uma conferência e de umas notas... uma intervenção da sua parte
na dissidência de dois estados unidos pela natureza e pela lei; gabaram-me os seus meios
diplomáticos, e as suas conferências repetidas, e até veio parar às minhas mãos este
protocolo, tornado agora inútil, e que eu tenho a honra de depositar em suas mãos.
VENÂNCIO - Isto não é um protocolo... é um álbum... não tive intenção...
PINHEIRO - Tivesse ou não, arquive o volume depois de escrever nele - que a potência
Venâncio Alves não entra na santa-aliança.
VENÂNCIO - Não entra?... mas creia... A senhora... me fará justiça.
ELISA - Eu? Eu entrego-lhe as credenciais.
LULU - Aceite, olhe que deve aceitar.
VENÂNCIO - Minhas senhoras, Sr. Pinheiro. (Sai).
TODOS - Ah! Ah! Ah!
LULU - O jantar está na mesa. Vamos celebrar o tratado de paz.
Machado de Assis
QUASE MINISTRO
Comédia em 1 ato
NOTA PRELIMINAR
Esta comédia foi expressamente escrita para ser representada em um sarau literário e
artístico dado a 22 de novembro do ano passado (1862), em casa de alguns amigos na rua da
Quitanda.
Os cavalheiros que se encarregaram dos diversos papéis foram os Srs. Moraes
Tavares, Manoel de Mello, Ernesto Cybrão, Bento Marques, Insley Pacheco, Arthur Napoleão,
Muniz Barreto e Carlos Schramm. O desempenho, como podem atestar os que estiveram,
foi muito acima do que se podia esperar de amadores.
Pela representação da comédia se abriu o sarau, continuando com a leitura de escritos
poéticos e a execução de composições musicais.
Leram composições poéticas os Srs.: conselheiro José Feliciano de Castilho,
fragmentos de uma excelente tradução do Fausto; Bruno Seabra, fragmentos do seu poema
D. Fuas, do gênero humorístico, em que a sua musa se distingue sempre; Ernesto Cybrião,
uma graciosa e delicada poesia - O Campo Santo; Dr. Pedro Luiz - Os voluntários da morte,
ode eloqüente sobre a Polônia; Faustino de Novaes, uns sentidos versos de despedida a
Arthur Napoleão; finalmente, o próprio autor da comédia.
Executaram excelentes pedaços de sica os senhores: Arthur Napoleão, A. Arnaud,
Schramm e Wagner, pianistas; Muniz Barreto e Bernardelli, violinistas; Tronconi, harpista;
Reichert, flautista; BoIgiani, Tootal, Wilmoth, Orlandini e Ferrand, cantores.
A este grupo de artistas é de rigor acrescentar o nome do Sr. Leopoldo Heck, cujos
trabalhos de pintura são bem conhecidos, e que se encarregou de ilustrar o programa do
sarau afixado na sala.
O sarau era o sexto ou sétimo dado pelos mesmos amigos, reinando neste, como em
todos, a franca alegria e convivência cordial a que davam lugar o bom gosto da direção e a
urbanidade dos diretores.
1863.
PERSONAGENS
LUCIANO MARTINS, deputado
Dr. SILVEIRA
JOSÉ PACHECO
CARLOS BASTOS
MATEUS
LUIZ PEREIRA
MÜLLER
AGAPITO
Ação - Rio de Janeiro
EM CASA DE MARTINS
Sala elegante
CENA I
MARTINS, SILVEIRA
SILVEIRA (entrando) - Primo Martins, abraça este ressuscitado!
MARTINS - Como assim!
SILVEIRA - Não imaginas. Senta-te, senta-te. Como vai a prima!
MARTINS - Está boa. Mas que foi!
SILVEIRA - Foi um milagre. Conheces aquele meu alazão!
MARTINS - Ah! basta; história de cavalos... que mania!
SILVEIRA - É um vÍcio, confesso. Para mim não outros: nem fumo, nem mulheres, nem
jogo, nem vinho; tudo isso que muitas vezes se encontra em um homem, reuni-o eu na
paixão dos cavalos; mas é que não nada acima de um cavalo soberbo, elegante, fogoso.
Olha, eu compreendo Calígula.
MARTINS - Mas, enfim...
SILVEIRA - A história! É simples. Conheces o meu Intrépido! É um lindo alazão! Pois ia eu a
pouco, comodamente montado, costeando a praia de Botafogo; ia distraído, não sei em que
pensava. De repente, um tílburi, que vinha em frente, esbarra e tomba. O Intrépido espanta-
se; ergue as patas dianteiras, diante da massa que ficara defronte, donde saíam gritos e
lamentos. Procurei contê-lo, mas qual! Quando dei por mim rolava muito prosaicamente na
poeira. Levantei-me a custo; todo o corpo me doía; mas enfim pude tomar um carro e ir mudar
de roupa. Quanto ao alazão, ninguém deu por ele; deitou a correr até agora.
MARTINS - Que maluco!
SILVEIRA - Ah! mas as comoções... E as folhas aman contando o fato: "DESASTRE. -
Ontem, o jovem e estimado Dr. Silveira Borges, primo do talentoso deputado Luciano Alberto
Martins, escapou de morrer... etc." Só isto!
MARTINS - Acabaste a história do teu desastre!
SILVEIRA - Acabei.
MARTINS - Ouve agora o meu.
SILVEIRA - Estás ministro, aposto!
MARTINS - Quase.
SILVEIRA - Conta-me isto. Eu já tinha ouvido falar na queda do ministério.
MARTINS - Faleceu hoje de manhã.
SILVEIRA - Deus lhe fale n'alma!
MARTINS - Pois creio que vou ser convidado para uma das pastas.
SILVEIRA - Ainda não foste!
MARTINS - Ainda não; mas a coisa já
é tão sabida na cidade, ouvi isto em tantas partes, que julguei dever voltar para casa à espera
do que vier.
SILVEIRA - Muito bem! um abraço! Não é um favor que te fazem; mereces, mereces...
Ó primo, eu também posso servir em alguma pasta!
MARTINS - Quando houver uma pasta dos alazões... (Batem palmas). Quem será!
SILVEIRA - Será a pasta!
MARTINS - Vê quem é.
(Silveira vai à porta. Entra Pacheco).
CENA II
Os mesmos, José Pacheco
PACHECO - V. Excia. dá-me licença!
MARTINS - Pode entrar.
PACHECO - Não me conhece!
MARTINS - Não tenho a honra.
PACHECO - José Pacheco.
MARTINS - José...
PACHECO - Estivemos há dois dias juntos em casa do Bernardo. Fui-lhe apresentado por um
colega da Câmara.
MARTINS - Ah! (A Silveira, baixo). Que me quererá!
SILVEIRA (baixo) - Já cheiras a ministro.
PACHECO (sentando-se) - Dá licença!
MARTINS - Pois não (Senta-se).
PACHECO - Então que me diz à situação! Eu previa isto. Não sei se teve a bondade de ler
uns artigos meus assinados - Armand Carrel. Tudo o que acontece hoje está anunciado.
Leia-os e verá. Não sei se os leu!
MARTINS - Tenho uma idéia vaga.
PACHECO - Ah! pois então de lembrar-se de um deles, creio que é o IV, não, é o V. Pois
nesse artigo está previsto o que acontece hoje, tim tim por tim tim.
SILVEIRA - Então V. S. é profeta!
PACHECO - Em política, ser lógico é ser profeta. Apliquem-se certos princípios a certos fatos,
a conseqüência é sempre a mesma. Mas é mister que haja os fatos e os princípios...
SILVEIRA - V. S. aplicou-os!...
PACHECO - Apliquei, sim, senhor, e adivinhei. Leia o meu V artigo e verá com que certeza
matemática pintei a situação atual. Ah! ia-me esquecendo (a Martins), receba V. Excia. os
meus sinceros parabéns.
MARTINS - Por que!
PACHECO - Não foi chamado para o ministério!
MARTINS - Não estou decidido.
PACHECO - Na cidade não se fala em outra coisa. É uma alegria geral. Mas, por que não
está decidido!o quer aceitar!
MARTINS - Não sei ainda.
PACHECO - Aceite, aceite! É digno; e digo mais, na atual situação, o seu concurso pode
servir de muito.
MARTINS - Obrigado.
PACHECO - É o que lhe digo. Depois dos meus artigos; principalmente o V, não é lícito a
ninguém recusar uma pasta, se absolutamente não quiser servir o país. Mas nos meus
artigos está tudo, é uma espécie de compêndio. De mais, a situação é nossa; nossa, repito,
porque eu sou do partido de V. Excia.
MARTINS - É muita honra.
PACHECO - Uma vez que se compenetre da situação, está tudo feito. Ora, diga-me, que
política pretende seguir!
MARTINS - A do nosso partido.
PACHECO - É muito vago isso. O que eu pergunto é se pretende governar com energia ou
com moderação. Tudo depende do modo. A situação exige um, mas o outro também pode
servir...
MARTINS - Ah!
SILVEIRAparte) - Que maçante!
PACHECO - Sim, a energia é... é isso, a moderação, entretanto... (Mudando o tom). Ora, sinto
deveras que não tivesse lido os meus artigos, lá vem tudo isso.
MARTINS - Vou lê-los... Creio que os li, mas lerei segunda vez. Estas coisas devem ser
lidas muitas vezes.
PACHECO - Não tem duvida, como os catecismos. Tenho escrito outros muitos; ha doze
anos que não faço outra coisa; presto religiosa atenção aos negócios do Estado e emprego-
me em prever as situações. O que nunca me aconteceu foi atacar ninguém; não vejo as
pessoas, vejo sempre as idéias. Sou capaz de impugnar hoje os atos de um ministro e ir
amanhã almoçar com ele.
SILVEIRA - Vê-se logo.
PACHECO - Está claro!
MARTINS (baixo a Silveira) - Será tolo ou velhaco?
SILVEIRA (baixo) - Uma e outra coisa. (Alto) Ora, não me dirá, com tais disposições, por que
não segue a carreira política? Por que se não propõe a uma cadeira no parlamento?
PACHECO - Tenho meu amor próprio, espero que ma ofereçam.
SILVEIRA - Talvez receiem ofendê-lo.
PACHECO - Ofender-me?
SILVEIRA - Sim, a sua modéstia...
PACHECO - Ah! modesto sou; mas não ficarei zangado.
SILVEIRA - Se lhe oferecerem uma cadeira... está bom. Eu também não; nem ninguém. Mas
eu acho que se devia propor; fazer um manifesto, juntar os seus artigos, sem faltar o V...
PACHECO - Esse principalmente. Cito boa soma de autores. Eu, de ordinário, cito muitos
autores.
SILVEIRA - Pois é isso, escreva o manifesto e apresente-se.
PACHECO - Tenho medo da derrota.
SILVEIRA - Ora, com as suas habilitações...
PACHECO - É verdade, mas o mérito é quase sempre desconhecido, e enquanto eu vegeto
nos - a pedidos dos jornais, vejo muita gente chegar á cumeeira da fama. (A Martins). Ora,
diga-me, o que pensará V. Excia. quando eu lhe disser que redigi um folheto e que vou
imprimi-lo?
MARTINS - Pensarei que...
PACHECO (metendo a mão no bolso) -Aqui lho trago (tira um rolo de papel). Tem muito que
fazer?
MARTINS - Alguma coisa.
SILVEIRA - Muito, muito.
PACHECO - Então não pode ouvir o meu folheto?
MARTINS - Se me dispensasse agora...
PACHECO - Pois sim, em outra ocasião. Mas, em resumo, é isto: trato dos meios de obter
uma renda três vezes maior do que a que temos sem lançar mão de empréstimos, e mais
ainda, diminuindo os impostos.
SILVEIRA - Oh!
PACHECO (guardando o rolo) - Custou-me muitos dias de trabalho, mas espero fazer
barulho.
SILVEIRA (À parte) - Ora espera... (Alto) Mas então, primo...
PACHECO - Ah! é primo de V. Excia.?
SILVEIRA - Sim, senhor.
PACHECO - Logo vi, há traços de família; vê-se que é um moço inteligente. A inteligência é o
principal traço da família de Vs. Excias. Mas dizia...
SILVEIRA - Dizia ao primo que vou decididamente comprar uns cavalos do Cabo magníficos.
Não sei se os viu já. Estão na cocheira do major...
PACHECO - Não vi, não, senhor.
SILVEIRA - Pois, senhor, são magníficos! É a melhor estampa que tenho visto, todos do mais
puro castanho, elegantes, delgados, vivos. O major encomendou trinta; chegaram seis; fico
com todos. Vamos nós vê-los?
PACHECO (aborrecido) - Eu não entendo de cavalos. (Levanta-se). Hão de dar-me licença.
(A Martins) V. Excia. janta às cinco?
MARTINS - Sim, senhor, quando quiser...
PACHECO - Ah! hoje mesmo, hoje mesmo. Quero saber se aceitará ou não. Mas se quer um
conselho de amigo, aceite, aceite. A situação está talhada para um homem como V. Excia.
Não a deixe passar. Recomendações a toda á sua família. Meus senhores. (Da porta). Se
quer, trago-lhe uma coleção dos meus artigos?
MARTINS - Obrigado, cá os tenho.
PACHECO - Bem, sem mais cerimônia.
CENA III
Martins, Silveira
MARTINS - Que me dizes a isto?
SILVEIRA - É um parasita, está claro.
MARTINS - E virá jantar?
SILVEIRA - Com toda a certeza.
MARTINS - Ora esta!
SILVEIRA - É apenas o começo; não passas ainda de um quase-ministro. Que acontecerá
quando o fores de todo?
MARTINS - Tal preço não vale o trono.
SILVEIRA - Ora, aprecia a minha filosofia. me ocupo dos meus alazões, mas quem se
lembra de me vir oferecer artigos para ler e estômagos para alimentar? Ninguém. Feliz
obscuridade!
MARTINS - Mas a sem-cerimônia.
SILVEIRA - Ah! querias que fossem acanhados? São lestos, desembaraçados, como em
suas próprias casas. Sabem tocar a corda.
MARTINS - Mas, enfim, não muitos como este. Deus nos livre! Seria uma praga! Que
maçante! Se não lhe falas em cavalos ainda aqui estava! (Batem palmas). Será outro?
SILVEIRA - Será o mesmo?
CENA IV
Os mesmos, Carlos Bastos
BASTOS - Meus senhores...
MARTINS - Queira sentar-se. (Sentam-se). Que deseja?
BASTOS - Sou filho das musas.
SILVEIRA - Bem, com licença.
MARTINS - Onde vais?
SILVEIRA - Vou lá dentro falar à prima.
MARTINS (baixo) - Presta-me o auxílio dos teus cavalos.
SILVEIRA (baixo) - Não é possível, este conhece o Pégaso. Com licença.
CENA V
Martins, Bastos
BASTOS - Dizia eu que sou filho das musas... Com efeito, desde que me conheci, achei-me
logo entre elas. Elas me influÍram a inspiração e o gosto da poesia, de modo que, desde os
mais tenros anos, fui poeta.
MARTINS - Sim, senhor, mas...
BASTOS - Mal comecei a ter entendimento, achei-me logo entre a poesia e a prosa, como
Cristo entre o bom e o mau ladrão. Ou devia ser poeta, conforme me pedia o gênio, ou
lavrador, conforme meu pai queria. Segui os impulsos do gênio; aumentei a lista dos poetas e
diminui a dos lavradores.
MARTINS - Porém...
BASTOS - E podia ser o contrário? alguém que fuja á sua sina? V. Excia. não é um
exemplo? Não se acaba de dar às suas brilhantes qualidades políticas a mais honrosa
sanção? Corre ao menos por toda a cidade.
MARTINS - Ainda não é completamente exato.
BASTOS - Mas de ser, deve ser. (Depois de uma pausa). A poesia e a política acham-se
ligadas por um laço estreitíssimo. O que é a política? Eu a comparo a Minerva. Ora, Minerva é
filha de Júpiter, como Apolo. Ficam sendo, portanto, irmãos. Deste estreito parentesco nasce
que a minha musa, apenas soube do triunfo político de V. Excia., não pude deixar de dar
alguma cópia de si. Introduziu-me na cabeça a faísca divina, emprestou-me as suas asas e
arrojou-me até onde se arrojava Pindaro. de me desculpar, mas agora mesmo parece-me
que ainda por lá ando.
MARTINSparte) - Ora dá-se.
BASTOS - Longo tempo vacilei; não sabia se devia fazer uma ode ou um poema. Era melhor
o poema, por oferecer um quadro mais largo, e poder assim conter mais comodamente todas
as ações grandes da vida de V. Excia.; mas, um poema deve pegar do herói quando ele
morre; e Vossa Excia., por fortuna nossa, ainda se acha entre os vivos. A ode prestava-se
mais, era mais curta e mais própria. Desta opinião foi a musa que me inspirou a melhor
composição que até hoje tenho feito. V. Excia. vai ouvi-la. (Mete a mão no bolso).
MARTINS - Perdão, mas agora não me é possível.
BASTOS - Mas...
MARTINS - cá; lerei mais tarde. Entretanto, cumpre-me dizer que ainda não é cabida,
porque ainda não sou ministro.
BASTOS - Mas ha de ser, deve ser. Olhe, ocorre-me uma coisa. Naturalmente hoje á tarde
isso está decidido. Seus amigos e parentes virão provavelmente jantar com V. Excia.; então
no melhor da festa, entre a pêra e o queijo, levanto-me eu, como Horácio à mesa de Augusto,
e desafio a minha ode! Que acha? É muito melhor, é muito melhor.
MARTINS - Será melhor não a ler; pareceria encomenda.
BASTOS - Oh! modéstia! Como assenta bem em um ministro!
MARTINS - Não é modéstia.
BASTOS - Mas quem poderá supor que seja encomenda? O seu caráter de homem público
repele isso, tanto quanto repele o meu caráter de poeta. de se pensar o que realmente é:
homenagem de um filho das musas a um aluno de Minerva. Descanse, conte com a
sobremesa poética.
MARTINS - Enfim...
BASTOS - Agora, diga-me, quais são as dúvidas para aceitar esse cargo?
MARTINS - São secretas.
BASTOS - Deixe-se d'isso; aceite, que é o verdadeiro. V. Excia. deve servir o país. É o que eu
sempre digo a todos... Ah! não sei se sabe: de cinco anos a esta parte, tenho sido cantor
de todos os ministérios. É que, na verdade, quando um ministério sobe ao poder, há razões
para acreditar que fará a felicidade da nação. Mas nenhum a fez; este de ser exceção: V.
Excia. está nele e de obrar de modo que mereça as bênçãos do futuro. Ah! os poetas são
um tanto profetas.
MARTINS (levantando-se) - Muito obrigado. Mas de me desculpar. (Vê o relógio). Devo
sair.
BASTOS (levantando-se) - Eu também saio e terei muita honra de ir à ilharga de V. Excia.
MARTINS - Sim... mas, devo sair daqui a pouco.
BASTOS (sentando-se) - Bem, eu espero.
MARTINS - Mas é que eu tenho de ir para o interior de minha casa escrever umas cartas.
BASTOS - Sem cerimônia. Sairemos depois e voltaremos... V. Excia. janta ás cinco?
MARTINS - Ah! quer esperar?
BASTOS - Quero ser dos primeiros que
o abracem, quando vier a confirmação da notícia; quero, antes de todos, estreitar nos braços
o ministro que vai salvar a nação.
MARTINS (meio zangado) - Pois fique, fique.
CENA VI
Os mesmos, Mateus
MATEUS - É um crIado de V. Excia.
MARTINS - Pode entrar.
BASTOSparte) - Será algum colega? chega tarde!
MATEUS - Não tenho a honra de ser conhecido por V. Excia., mas, em poucas palavras, direi
quem sou...
MARTINS - Tenha a bondade de sentar-se.
MATEUS (vendo Bastos) - Perdão; está com gente; voltarei em outra ocasião.
MARTINS - Não, diga o que quer, este senhor vai já.
BASTOS - Pois não! parte) Que remédio! (Alto) Às ordens de V. Excia.; até logo... não me
demoro muito.
CENA VII
MARTINS, MATEUS
MARTINS - Estou ás suas ordens.
MATEUS - Primeiramente deixe-me dar-lhe os parabéns; sei que vai ter a honra de sentar-se
nas poltronas do Executivo e eu acho que é do meu dever congratular-me com a nação.
MARTINS - Muito obrigado. (À parte) É sempre a mesma cantilena.
MATHEU5 - O país tem acompanhado os passos brilhantes da carreira política de V. Excia.
Todos contam que, subindo ao ministério, V. Excia. vai dar à sociedade um novo tom. Eu
penso do mesmo modo. Nenhum dos gabinetes anteriores compreendeu as verdadeiras
necessidades da pátria. Uma delas é a idéia que eu tive a honra de apresentar há cinco anos,
e para cuja realização ando pedindo um privilégio. Se V. Excia. não tem agora muito que
fazer, vou explicar-lhe a minha idéia.
MARTINS - Perdão; mas como eu posso não ser ministro, desejava o entrar por ora no
conhecimento de uma coisa que só ao ministro deve ser comunicada.
MATEUS - Não ser ministro ! Vossa Excia. não sabe o que está dizendo... Não ser ministro é,
por outros termos, deixar o país à beira do abismo com as molas do maquinismo social
emperradas... Não ser ministro! Pois é possível que um homem, com os talentos e os
instintos de V. Excia., diga semelhante barbaridade? É uma barbaridade. Eu não estou em
mim... Não ser ministro!
MARTINS - Basta, não se aflija desse modo.
MATEUS - Pois não me hei de afligir?
MARTINS - Mas então a sua idéia?
MATHEUS (depois de limpar a testa com
o lenço) - A minha idéia é simples como água. Inventei uma peça de artilharia; coisa
inteiramente nova; deixa atrás de si tudo o que até hoje tem sido descoberto. É um
invento que põe na mão do país que o possuir a soberania do mundo.
MARTINS - Ah! Vejamos.
MATHEUS - Não posso explicar o meu segredo porque seria perdê-lo. Não é que eu duvide
da discrição de V. Excia.; longe de mim semelhante idéia; mas é que Vossa Excia. sabe que
estas coisas têm mais virtude quando são inteiramente secretas.
MARTINS - É justo; mas, diga-me lá, quais são as propriedades da sua peça?
MATHEUS - São espantosas. Primeiramente, eu pretendo denominá-la: O raio de Júpiter,
para honrar com um nome majestoso a majestade do meu invento. A peça é montada sobre
uma carreta, a que chamarei locomotiva, porque não é outra coisa. Quanto ao modo de
operar, é que está o segredo. A peça tem sempre um deposito de pólvora e bala para
carregar, e vapor para mover a máquina. Coloca-se no meio do campo e deixa-se... o lhe
bulam. Em começando o fogo, entra a peça a mover-se em todos os sentidos, descarregando
bala sobre bala, aproximando-se ou recuando, segundo a necessidade. Basta uma para
destroçar um exército; calcule o que não serão umas doze, como esta. É ou não a soberania
do mundo?
MARTINS - Realmente, é espantoso. São peças com juízo.
MATHEUS - Exatamente.
MARTINS - Deseja então um privilégio?
MATEUS - Por ora... É natural que a posteridade me faça alguma coisa... Mas tudo isso
pertence ao futuro.
MARTINS - Merece, merece.
MATEUS - Contento-me com o privilégio... Devo acrescentar que alguns ingleses, alemães e
americanos que, não sei como, souberam deste invento, me propuseram, ou a venda dele
ou uma carta de naturalização nos respectivos países; mas eu amo à minha pátria e os meus
ministros.
MARTINS - Faz bem.
MATHEUS - Está V. Excia. informado das virtudes da minha peça. Naturalmente daqui a
pouco é ministro. Posso contar com a sua proteção?
MARTINS - Pode; mas eu não respondo pelos colegas.
MATEUS - Queira V. Excia. e os colegas cederão. Quando um homem tem as qualidades e a
inteligência superior de V. Excia., não consulta, domina. Olhe, eu fico descansado a este
respeito.
CENA VIII
Os mesmos, Silveira
MARTINS - Fizeste bem em vir. Fica um momento conversando com este senhor. É um
inventor e pede um privilégio. Eu vou sair; vou saber novidades. parte) Com efeito, a coisa
tarda. (Alto) Até logo. Aqui estarei sempre às suas ordens. Adeus, Silveira.
SILVEIRA (baixo a Martins) - Então, deixas-me só?
MARTINS (baixo) - Agüenta-se. (Alto) Até sempre!
MATEUS - Às ordens de V. Excia.
CENA IX
Mateus, Silveira
MATEUS - Eu também me vou embora. É parente do nosso ministro?
SILVEIRA - Sou primo.
MATEUS - Ah!
SILVEIRA - Então V. S. inventou alguma coisa? Não foi a pólvora?
MATEUS - Não foi, mas cheira a isso... Inventei uma peça.
SILVEIRA - Ah!
MATEUS - Um verdadeiro milagre... Mas não é o primeiro; tenho inventado outras coisas.
Houve um tempo em que me zanguei; ninguém fazia caso de mim; recolhi-me ao silêncio,
disposto a não inventar mais nada. Finalmente, a vocação sempre vence; comecei de novo a
inventar, mas nada fiz ainda que chegasse á minha peça. Hei de dar nome ao século XIX.
CENA X
Os mesmos, Luiz Pereira
PEREIRA - S. Excia. está em casa?
SILVEIRA - Não, senhor. Que desejava?
PEREIRA - Vinha dar-lhe os parabéns.
SILVEIRA - Pode sentar-se.
PEREIRA - Saiu?
SILVEIRA - Há pouco.
PEREIRA - Mas volta?
SILVEIRA - Há de voltar.
PEREIRA - Vinha dar-lhe os parabéns. e convidá-lo.
SILVEIRA - Para que, se não é curiosidade?
PEREIRA - Para um jantar.
SILVEIRA - Ah! (À parte) Está feito. Este oferece jantares.
PEREIRA - Está encomendado. se encontrarão varias notabilidades do país. Quero
fazer ao digno ministro, sob cujo teto tenho a honra de falar neste momento, aquelas honras
que o talento e a virtude merecem.
SILVEIRA - Agradeço em nome dele esta prova...
PEREIRA - V. S. pode até fazer parte da nossa festa.
SILVEIRA - É muita honra.
PEREIRA - É meu costume, quando sobe um ministério, escolher o ministro mais simpático e
oferecer-lhe um jantar. E uma coisa singular: conto os meus filhos por ministérios. Casei-
me em 50; daí para cá, tantos ministérios, tantos filhos. Ora, acontece que de cada pequeno
meu é padrinho um ministro e fico eu assim espiritualmente aparentado com todos os
gabinetes. No ministério que caiu, tinha eu dois compadres. Graças a Deus, posso fazê-lo
sem diminuir as minhas rendas.
SILVEIRAparte) - O que lhe come o jantar é quem batiza o filho.
PEREIRA - Mas o nosso ministro, demorar-se-á muito?
SILVEIRA - Não sei... ficou de voltar.
MATEUS - Eu peço licença para me retirar. parte, a Silveira) Não posso ouvir isto.
SILVEIRA - Já se vai?
MATEUS - Tenho voltas que dar; mas logo estou. Não lhe ofereço para jantar, porque vejo
que S. Excia. janta fora.
PEREIRA - Perdão, se me quer dar a honra.
MATHEUS - Honra... sou eu que a recebo... aceito, aceito com muito gosto.
PEREIRA - É no Hotel Inglês, às cinco horas.
CENA XI
Os mesmos, Agapito, Müller
SILVEIRA - Oh! entra, Agapito!
AGAPITO - Como estás?
SILVEIRA - Traze parabéns?
AGAPITO - E pedidos.
SILVEIRA - O que é?
AGAPITO - Apresento-te o Sr. Müller, cidadão hanoveriano.
SILVEIRA (a Müller) - Queira sentar-se.
AGAPITO - O Sr. Müller chegou há quatro meses da Europa e deseja contratar o teatro lírico.
SILVEIRA - Ah!
MÜLLER - Tenho debalde perseguido os ministros, nenhum me tem atendido. Entretanto, o
que eu proponho é um verdadeiro negócio da China.
AGAPITO (a Müller) - Olhe que não é ao ministro que está falando, é ao primo dele.
MÜLLER - Não faz mal. Veja se não é negócio da China. Proponho fazer cantar os melhores
artistas da época. Os senhores vão ouvir coisas nunca ouvidas. Verão o que é um teatro
lírico.
SILVEIRA - Bem, não duvido.
AGAPITO - Somente, o Sr. Müller pede uma subvenção.
SILVEIRA - É justo. Quanto?
MÜLLER - Vinte e cinco contos por mês.
MATEUS - Não é má; e os talentos do país? Os que tiverem à custa do seu trabalho
produzido inventos altamente maravilhosos? O que tiver posto na o da pátria a soberania
do mundo?
AGAPITO - Ora, senhor! A soberania do mundo é a música, que vence a ferocidade. Não
sabe a história de Orfeu?
MÜLLER - Muito bem!
SILVEIRA - Eu acho a subvenção muito avultada.
MÜLLER - E se eu lhe provar que não é?
SILVEIRA - É possível, em relação ao esplendor dos espetáculos; mas, nas circunstâncias do
país...
AGAPITO - Não circunstâncias que procedam contra a música... Deve ser aceita a
proposta do Sr. Müller.
MÜLLER - Sem dúvida.
AGAPITO - Eu acho que sim. uma porção de razões para demonstrar a necessidade de
um teatro lírico. Se o país é feliz, é bom que ouça cantar, porque a música confirma as
comoções da felicidade. Se o país é infeliz, é também bom que ouça cantar, porque a música
adoça as dores. Se o país é dócil, é bom que ouça música, para nunca se lembrar de ser
rebelde. Se o país é rebelde, é bom que ouça música, porque a música adormece os furores
e produz a brandura. Em todos os casos a música é útil. Deve ser até um meio do governo.
SILVEIRA - Não contesto nenhuma dessas razões; mas meu primo, se for efetivamente
ministro, não aceitará semelhante proposta.
AGAPITO - Deve aceitar; mais ainda, se és meu amigo, deves interceder pelo Sr. Müller.
SILVEIRA - Por que?
AGAPITO (baixo, a Silveira) - Filho, eu namoro a prima-dona! (Alto) Se me perguntarem
quem é a prima-dona, não saberei responder; é um anjo e um diabo; é a mulher que resume
as duas naturezas, mas a mulher perfeita, completa, única. Que olhos! que porte! que
donaire! que pé! que voz!
SILVEIRA - Também a voz?
AGAPITO - Nela não primeiros ou últimos merecimentos. Tudo é igual; tem tanta
formosura, quanta graça, quanto talento! Se a visses! Se a ouvisses!
MÜLLER - E as outras? Tenho uma andaluza... (levando os dedos á boca e beijando-os)
divina! É a flor das andaluzas!
AGAPITO - Tu não conheces as andaluzas.
SILVEIRA - Tenho uma que me mandaram de presente.
MÜLLER - Pois, senhor, eu acho que o governo deve aceitar com ambas as mãos a minha
proposta.
AGAPITO (baixo, a Silveira) - E depois, eu acho que tenho direito a este obséquio; votei com
vocês nas eleições.
SILVEIRA - Mas...
AGAPITO - Não mates o meu amor ainda nascente.
SILVEIRA - Enfim, o primo resolverá.
CENA XII
Os mesmos, Pacheco, Bastos
PACHECO - Dá licença?
SILVEIRA (á parte) - Oh! aí está toda a procissão.
BASTOS - S. Excia.?
SILVEIRA - Saiu. Queiram sentar-se.
PACHECO - Foi naturalmente ter com os companheiros para assentar na política do
gabinete. Eu acho que deve ser a política moderada. É a mais segura.
SILVEIRA - É a opinião de nós todos.
PACHECO - É a verdadeira opinião. Tudo o que não for isto é sofismar a situação.
BASTOS - Eu não sei se isso é o que a situação pede; o que sei é que S. Excia. deve colocar-
se na altura que lhe compete, a altura de um Hércules. O deficit é o leão de Neméia; é preciso
mata-lo. Agora, se para aniquilar esse monstro é preciso energia ou moderação, isso não sei;
o que sei é que é preciso talento e muito talento, e nesse ponto ninguém pode ombrear com
Sua Excia.
PACHECO - Nesta última parte concordamos todos.
BASTOS - Mas que moderação é essa? Pois faz-se jus aos cantos do poeta e ao cinzel do
estatuário com um sistema de moderação? Recorramos aos heróis... Aquiles foi moderado?
Heitor foi moderado? Eu falo pela poesia, irmã carnal da política, porque ambas são filhas de
Júpiter.
PACHECO - Sinto não ter agora os meus artigos. Não posso ser mais claro do que fui
naquelas páginas, realmente as melhores que tenho escrito.
BASTOS - Ah! V. S. também escreve?
PACHECO - Tenho escrito vários artigos de apreciação política.
BASTOS - Eu escrevo em verso; mas nem por isso deixo de sentir prazer, travando
conhecimento com V. S..
PACHECO - Oh! senhor.
BASTOS - Mas pense e há de concordar comigo.
PACHECO - Talvez... Eu disse que sou da política de S. Excia.; e contudo ainda não sei
(para falar sempre em Júpiter...), ainda não sei se ele é filho de Júpiter Libertador ou Júpiter
Stator; mas sou da política de S. Excia.; e isto porque sei que, filho de um ou de outro,
de sempre governar na forma indicada pela situação, que é a mesma prevista nos meus
artigos, principalmente o V...
CENA XIII
Os mesmos, Martins
BASTOS - Aí chega S. Excia.
MARTINS - Meus senhores...
SILVEIRA (apresentando Pereira) - Aqui o senhor vem convidar-te para jantar com ele.
MARTINS - Ah!
PEREIRA - É verdade; soube da sua nomeação e vim, conforme o coração me pediu,
oferecer-lhe uma prova pequena da minha simpatia.
MARTINS - Agradeço a simpatia; mas o boato que correu hoje, desde manhã, é falso... O
ministério está completo, sem min.
TODOS - Ah!
MATEUS - Mas quem são os novos?
MARTINS - Não sei.
PEREIRA (à parte) - Nada, eu não posso perder um jantar e um compadre.
BASTOSparte) - E a minha ode? (A Matheus) Fica?
MATEUS - Nada, eu vou. (Aos outros) Vou saber quem é o novo ministro para oferecer-lhe o
meu invento...
BASTOS - Sem incômodo, sem incômodo.
SILVEIRA (a Bastos e Mateus) - Esperem um pouco.
PACHECO - E não sabe qual será a política do novo ministério? É preciso saber. Se não for a
moderação, está perdido. Vou averiguar isso.
MARTINS - Não janta conosco?
PACHECO - Um destes dias... obrigado... até depois...
SILVEIRA - Mas esperem: onde vão? Ouçam ao menos uma história. É pequena mas
conceituosa. Um dia anunciou-se um suplício. Toda gente correu a ver o espetáculo feroz.
Ninguém ficou em casa: velhos, moços, homens, mulheres, crianças, tudo invadiu a praça
destinada à execução. Mas, porque viesse o perdão à última hora, o espetáculo não se deu e
a forca ficou vazia. Mais ainda: o enforcado, isto é, o condenado, foi em pessoa à praça
pública dizer que estava salvo e confundir com o povo as lágrimas de satisfação. Houve um
rumor geral., depois um grito, mais dez, mais cem, mais mil, romperam de todos os ângulos
da praça, e uma chuva de pedras deu ao condenado a morte de que o salvara a real
clemência. - Por favor, misericórdia para este (apontando para Martins). Não tem culpa nem
da condenação, nem da absolvição.
PEREIRA - A que vem isto?
PACHECO - Eu não lhe acho graça alguma!
BASTOS - Histórias da carochinha!
MATEUS - Ora adeus! Boa tarde.
Os OUTROS - Boa tarde.
CENA XIV
Martins e Silveira
MARTINS - Que me dizes a isto?
SILVEIRA - Que hei de dizer! Estavas a surgir... dobraram o joelho: repararam que era uma
aurora boreal, voltaram as costas e lá se vão em busca do sol... São especuladores!
MARTINS - Deus te livre destes e de outros...
SILVEIRA - Ah! livra... livra. Afora os incidentes como o de Botafogo... ainda não me
arrependi das minhas loucuras, como tu lhes chamas. Um alazão não leva ao poder, mas
também não leva á desilusão.
MARTINS - Vamos jantar.
MACHADO DE ASSIS
TU, SÓ TU, PURO AMOR
COMÉDIA
Tu só, tu, puro amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga...
Camões, Lusíadas, 3, CXIX.
O desfecho dos amores palacianos de Camões e de D. Catarina de Ataíde é o
objeto da comédia, desfecho que deu lugar à subseqüente aventura de África, e mais tarde à
partida para a Índia, donde o poeta devia regressar um dia com a imortalidade nas mãos. Não
pretendi fazer uma quadro da corte de D. João II, nem sei se o permitiam as proporções
mínimas do escrito e a urgência da ocasião. Busquei sim haver-me de maneira que o poeta
fosse contemporâneo de seus amores, não lhe dando feições épicas, e, por assim dizer,
póstumas.
Na primeira impressão escrevi uma nota, que reproduzi na segunda, acrescentando-
lhe alguma coisa explicativa. Como na cena primeira se trata da anedota que motivou o
epigrama de Camões ao duque de Aveiro, disse eu ali que, posto se lhe não possa fixar data,
usaria dela por me parecer um curioso rasgo de costumes. E aduzi: “Engana-se, creio eu, o
Sr. Teófilo Braga, quando afirma que ela podia ter ocorrido depois do regresso de Camões
a Lisboa, alegando, para fundamentar essa opinião, que o título de duque de Aveiro foi criado
em 1557. Digo que se engana o distinto escritor, porque eu encontro o duque de Aveiro, cinco
anos antes, 1552, indo receber, na qualidade de embaixador, a princesa d. Joana, noiva do
príncipe d. João (Veja Mem. e Doc. Anexos aos Anéis de d. João III, págs. 440 e 441); e, se
Camões em 1553 partiu para a Índia, não é impossível que o epigrama e o caso que lhe
deu origem fossem anteriores.”
Temos ambos razão, o Sr. Teófilo Braga e eu. Com efeito, o ducado de Aveiro foi
criado formalmente em 1557, mas o agraciado usava o título desde muito antes, por mercê de
D. João III: é o que confirma a própria carta régia de 30 de agosto daquele ano, textualmente
inserta na Hist. Geneal... de d. Antônio Caetano de Souza, que cita em abono da assersão o
testemunho de Andrade, na Crônica d’el-rei d, João III. Naquela mesmas obra se (liv. IV,
cap. V) que em 1551, na transladação dos ossos d’el-rei D, Manuel estivera presente o duque
de Aveiro. Não é pois impossível que a anedota ocorresse antes da primeira ausência de
Camões.
MACHADO DE ASSIS.
PERSONAGENS
CAMÕES
ANTÔNIO DE LIMA
CAMINHA
D. MANUEL DE PORTUGAL
D. CATARINA DE ATAÍDE
D. FRANCISCA DE ARAGÃO
Sala no paço
CENA I
CAMINHA, D. MANUEL DE PORTUGAL
(Caminha vem do fundo, da esquerda; vai a entrar pela porta da direita, quando lhe sai
Manoel de Portugal, a rir).
CAMINHA - Alegre vindes, senhor D. Manuel de Portugal. Disse-vos El-rei alguma coisa
graciosa, de certo...
D. MANUEL - Não; não foi El-rei. Adivinhai o que seria, se é que o não sabeis já.
CAMINHA - Que foi?
D. MANUEL - Sabeis o caso da galinha do duque de Aveiro?
CAMINHA - Não.
D. MANUEL - Não sabeis ? - Pois é isto: uns versos mui galantes do nosso Camões.
(Caminha estremece e faz um gesto de vontade.) Uns versos como ele os sabe fazer.
parte.) Doe-lhe a noticia. (Alto.) Mas, deveras não sabeis do encontro de Camões com o
duque de Aveiro?
CAMINHA - Não.
D. MANUEL - Foi o próprio duque que mo contou agora mesmo, ao vir de estar com El-rei...
CAMINHA - Que houve então?
D. MANUEL - Eu vo-lo digo; achavam-se ontem, na igreja do Amparo, o duque e o poeta...
CAMINHA, com enfado. - O poeta! O poeta! Não é mais que engenhar uns poucos versos,
para ser logo poeta! Desperdiçais o vosso entusiasmo, senhor D. Manuel. Poeta é o nosso
Sá, o meu grande Sá! Mas, esse arruador, esse brigão de horas mortas...
D. MANUEL - Parece-vos então...?
CAMINHA - Que esse moço tem algum engenho, muito menos do que lhe diz a presunção
dele e a cegueira dos amigos; algum engenho não lhe nego eu. Faz sonetos sofríveis. E
canções... Digo-vos que li uma ou duas, não de todo mal alinhavadas. Pois então? Com boa
vontade, mais esforço, menos soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de
Lisboa, mas a meditar os poetas italianos, digo-vos que pode vir a ser...
D. MANUEL - Acabe.
CAMINHA - Está acabado: um poeta sofrível.
D. MANUEL - Deveras? Lembra-me que já isso mesmo lhe negastes.
CAMINHA, sorrindo. - No meu epigrama,o? E nego-lho ainda agora, se não fizer o que vos
digo. Pareceu-vos gracioso o epigrama? Fi-lo por desenfado, não por ódio... Dizei, que tal vos
pareceu ele?
D. MANUEL - Injusto, mas gracioso.
CAMINHA - Sim? Tenho em mui boa conta o vosso parecer. Algum tempo supus que me
desdenháveis. Não era impossível que assim fosse. Intrigas da corte dão azo a muita
injustiça; mas principalmente acreditei que fossem artes desse rixoso... Juro-vos que ele me
tem ódio.
D. MANUEL - O Camões?
CAMINHA - Tem, tem...
D. MANUEL - Por quê?
CAMINHA - Não sei, mas tem. Adeus.
D. MANUEL - Ides-vos?
CAMINHA - Vou a El-rei, e depois ao meu senhor infante. (Corteja-o e dirige-se para a porta
da direita. D. Manuel dirige-se para o fundo.)
D. Manuel, andando.
Eu já vi a taverneiro
vender vaca por carneiro...
CAMINHA, volta-se. - Recitais versos?... São vossos?... Não me negueis o gosto de os ouvir.
D. MANUEL - Meus não; são de Camões... (Repete, descendo a cena.)
Eu já vi a taverneiro
Vender vaca por carneiro...
CAMINHA, sarcástico. - De Camões?... Galantes são. Nem Virgílio os daria melhores. Ora,
fazei o favor de repetir comigo:
Eu já vi a taverneiro
Vender vaca por carneiro...
- E depois vá, dizei-me o resto, que não quero perder iguaria de tão fino sabor.
D. MANUEL - O duque de Aveiro e o poeta encontraram-se ontem na igreja do Amparo. O
duque prometeu ao poeta mandar-lhe uma galinha de sua mesa, mas lhe mandou um
assado. Camões retorquiu-lhe com estes versos, que o próprio duque me mostrou agora, a rir:
Eu já vi a taverneiro,
Vender vaca por carneiro.
Mas não vi, por vida minha,
vender vaca por galinha,
senão ao duque de Aveiro.
- Confessai, confessai senhor CAMINHA, vós que sois poeta, confessai que certo pico,
e uma simpleza de dizer... Não vale tanto de certo como os sonetos dele, alguns dos quais
são sublimes, aquele por exemplo:
De amor escrevo, de amor trato e vivo...
ou este
Tanto de meu estado me acho incerto...
- Sabeis a continuação?
CAMINHA - Até lhe sei o fim:
Se me pergunta alguém porque assim ando
respondo que não sei, porém suspeito
que só porque vos vi, minha senhora.
- (Fitando-lhe muito os olhos.) Esta senhora... Sabeis vós, de certo, quem é esta senhora do
poeta, como eu o sei, como o sabem todos... Naturalmente amam-se ainda muito?
D. Manuel, à parte. - Que quererá ele?
CAMINHA - Amam-se por força.
D. MANUEL - Cuido que não.
CAMINHA - Que não?
D. MANUEL - Acabou, como tudo acaba.
CAMINHA, sorrindo. - Anda lá; não sei se me dizeis tudo. Amigos sois, e não é impossível
que também vós... Onde está a nossa gentil senhora D. Francisca de Aragão?
D. MANUEL - Que tem?
CAMINHA - Vede: um simples nome vos faz estremecer. Mas sossegai, que não sou vosso
inimigo; mui ao contrário, amo-vos, e a ela também... e respeito-a muito. Um para o outro
nascestes. Mas, adeus, faz-se tarde, vou ter com El-rei. (Sai pela direita.)
CENA II
DOM MANUEL DE PORTUGAL
- Este homem!... Este homem!... Como se os versos dele, duros e insossos... (Vai à porta por
onde Caminha saiu e levanta o reposteiro.) vai ele; vai cabisbaixo; rumina talvez alguma
coisa. Que não sejam versos! (Ao fundo aparecem D. Antônio de Lima e D. Catarina de
Ataíde.)
CENA III
D. MANUEL DE PORTUGAL, D. CATARINA DE ATAÍDE, D. ANTÔNIO DE LIMA
D. ANTÔNIO DE LIMA - Que espreitais aí, senhor D. Manuel.
D. MANUEL - Estava a ver o porte elegante do nosso Caminha. Não vades supor que era
alguma dama. (Levanta o reposteiro.) Olhai, lá vai ele a desaparecer. Vai a El-rei.
D. ANTÔNIO - Também eu. Tu, não, minha boa Catarina. A rainha espera-te. (D. Catarina faz
uma reverência e caminha para a porta da esquerda.) Vai, vai, minha gentil flor... (A D.
Manuel.) Gentil, não a achais?
D. MANUEL - Gentilíssima.
D. ANTÔNIO - Agradece, Catarina.
D. Catarina - Agradeço; mas o certo é que o senhor D. Manuel é rico de louvores...
D. MANUEL - Eu podia dizer que a natureza é que foi conosco pródiga de graças; mas, não
digo; seria repetir mal aquilo que poetas podem dizer bem. (D. Antônio fecha o rosto.)
Dizem que também sou poeta, é verdade; não sei; faço versos. Adeus, senhor D. Antônio...
(Corteja-os e sai. D. Catarina vai a entrar, à esquerda. D. Antônio detém-na.)
CENA IV
D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE
D. ANTÔNIO - Ouviste aquilo?
D. Catarina, parando. - Aquilo?
D. ANTÔNIO - “Que poetas podem dizer bem foram as palavras dele. (D. Catarina
aproxima-se.) Vês tu, filha? tão divulgadas andam essas coisas, que até se dizem nas
barbas de teu pai!
D. CATARINA - Senhor, um gracejo...
D. ANTÔNIO, enfadando-se. - Um gracejo injurioso, que eu não consinto, que não quero, que
me doe... Que poetas podem dizer bem E que é poeta! Pergunta ao nosso Caminha o que
é esse atrevido, o que vale a sua poesia... Mas, que seja outra e melhor, não a quero para
mim, nem para ti. Não te criei para entregar-te às mãos do primeiro que passa, e lhe na
cabeça haver-te.
D. CATARINA, procurando moderá-lo. - Meu pai...
D. ANTÔNIO - Teu pai e teu senhor!
D. CATARINA - Meu senhor e pai... juro-vos que... Juro-vos que vos quero e muito... Por
quem sois, não vos irriteis contra mim!
D. ANTÔNIO - Jura que me obedecerás.
D. CATARINA - Não é essa a minha obrigação?
D. ANTÔNIO - Obrigação é, e a mais grave de todas. Olha-me bem, filha; eu amo-te como pai
que sou. Agora, anda, vai.
CENA V
D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO
D. ANTÔNIO - Mas não, não vás sem falar à senhora D. Francisca de Aragão, que nos
aparece, fresca como a rosa que desabotoou agora mesmo, ou, como dizia a farsa do nosso
Gil Vicente, que eu ouvi tantos anos, por tempo do nosso sereníssimo senhor D. Manuel...
Velho estou, minha formosa dama...
D. FRANCISCA - E que dizia a farsa?
D. ANTÔNIO - A farsa dizia:
É bonita como estrela,
Uma rosinha de Abril,
Uma frescura de maio,
Tão manhosa.
Tão sutil!
- Vede que a farsa adivinhava a nossa D. Francisca de Aragão, uma frescura de maio, tão
manhosa, tão sutil...
D. FRANCISCA - Manhosa, eu?
D. ANTÔNIO - E sutil. Não vos esqueça a rima, que é de lei. (Vai a sair pela porta da direita;
aparece Camões.)
CENA VI
OS MESMOS, CAMÕES
D. CATARINA, à parte. - Ele!
D. FRANCISCA, baixo a D. Catarina. - Sossegai!
D. ANTÔNIO - Vinde cá, senhor poeta das galinhas. Já me chegou aos ouvidos o vosso lindo
epigrama. Lindo, sim; e estou que não vos custaria mais tempo a fazê-lo do que eu a dizer-
vos que me divertiu muito... E o duque? O duque, ainda não emendou a mão? de
emendar, que não é nenhum mesquinho.
CAMÕES, alegremente. - Pois El-rei deseja o contrário...
D. ANTÔNIO - Ah! Sua Alteza falou-vos disso?... Contar-mo-eis em tempo. (A D. Catarina,
com intenção). Minha filha e senhora, não ides ter com a rainha? Eu vou falar a El-rei. (D.
Catarina corteja-os e dirige-se para a esquerda; D. Antônio sai pela direita.)
CENA VII
OS MESMOS, menos D. ANTÔNIO DE LIMA
(D. Catarina quer sair, D. Francisca de Aragão detém-na.)
D. FRANCISCA - Ficai, ficai...
D. CATARINA - Deixe-me ir!
CAMÕES - Fugis de mim?
D. CATARINA - Fujo... Assim o querem todos.
CAMÕES - Todos quem?
D. FRANCISCA, indo a Camões. - Sossegai. Tendes, na verdade, um gênio, uns espíritos...
Que de ser? Corre a mais e mais a notícia dos vossos amores... e o senhor D. Antônio,
que é pai, e pai severo...
CAMÕES, vivamente a D. Catarina. - Ameaça-vos?
D. CATARINA - Não; dá-me conselhos... bons conselhos, meu Luís. Não vos quer mal, não
quer... Vamos lá; eu é que sou desatinada. Mas passou. Dizei-nos esses versos de que
faláveis há pouco. Um epigrama, não é? Há de ser tão bonito como os outros... menos um.
CAMÕES - Um?
D. CATARINA - Sim, o que fizestes a D. Guiomar de Blasfé.
CAMÕES, com desdém. - Que monta? Bem frouxos versos.
D. FRANCISCA - Não tanto; mas eram feitos a D. Guiomar, e os piores versos deste mundo
são os que se fazem a outras damas. (A D. Catarina.) Acertei? (A Camões.) Ora, andai, vou
deixar-vos; dizei o caso do vosso epigrama, não a mim, que o sei de cor, porém a ela que
ainda não sabe nada... E que foi que vos disse El-rei?
CAMÕES - El-rei viu-me, e dignou-se chamar-me; fitou-me um pouco a sua real vista, e disse
com brandura: - «Tomara eu, senhor poeta, que todos os duques vos faltem com galinhas,
por que assim nos alegrareis com versos tão chistosos.
D. FRANCISCA - Disse-vos isto? é um grande espírito El-rei!
D. CATARINA, a D. Francisca. - Não é? (A Camões.) E vós que lhe dissestes?
CAMÕES - Eu? nada... ou quase nada. Era tão inopinado louvor que me tomou a fala. E,
contudo, se eu pudesse responder agora... agora que recobrei os espíritos... dir-lhe-ia que
aqui (leva a mão à fronte) alguma coisa mais do que simples versos de desenfado... dir-lhe-ia
que... (Fica absorto um instante, depois olha alternadamente para as duas damas, entre as
quais se acha.) Um sonho... às vezes cuido conter dentro mais do que a minha vida e o
meu século... Sonhos... sonhos! A realidade é que vós sois as duas mais lindas damas da
cristandade, e que o amor é a alma do universo!
D. FRANCISCA - O amor e a espada, senhor brigão!
CAMÕES, alegremente. - Por que me não dais logo as alcunhas que me hão de ter posto os
poltrões do Rocio? Vingam-se com isso, que é a desforra da poltroneria... Não sabeis?
Naturalmente não; vós gastais as horas nos lavores e recreios do paço; mora aqui a doce paz
do espírito.
D. CATARINA, com intenção. - Nem sempre.
D. FRANCISCA - Isto é convosco; e eu, que posso ser indiscreta, não me detenho a ouvir
mais nada. (Dá alguns passos para o fundo.)
D. CATARINA - Vinde cá...
D. FRANCISCA - Vou-me... vou a consolar o nosso Caminha, que de estar um pouco
enfadado... Ouviu ele o que El-rei vos disse?
CAMÕES - Ouviu; que tem?
D. FRANCISCA - Não ouviria de boa sombra.
CAMÕES - Pode ser que não... dizem-me que não. (A D. Catarina.) Pareceis inquieta...
D. CATARINA, a D. Francisca. - Não, não vades; ficai um instante.
CAMÕES, a D. Francisca. - Irei eu.
D. FRANCISCA - Não, senhor; irei eu só. (Sai pelo fundo.)
CENA VIII
CAMÕES, D. CATARINA DE ATAÍDE
CAMÕES, com uma reverência. - Irei eu. Adeus, minha senhora D. Catarina de Ataíde! (D.
Catarina dá um passo para ele.) Mantenha-vos Deus na sua santa guarda.
D. CATARINA - Não... vinde cá... (Camões detém-se.) Enfadei-vos? Vinde um pouco mais
perto. (Camões aproxima-se.) Que vos fiz eu? Duvidais de mim?
CAMÕES - Cuido que me quereis ausente.
D. CATARINA - Luís! (Inquieta.) Vede esta sala, estas paredes... falarmos a sós... Duvidais de
mim?
CAMÕES - Não duvido de vós; não duvido da vossa ternura: da vossa firmeza é que eu
duvido.
D. CATARINA - Receiais que fraqueie algum dia?
CAMÕES - Receio; chorareis muitas lágrimas, muitas e amargas... mas, cuido que
fraqueareis.
D. CATARINA - Luís! juro-vos...
CAMÕES - Perdoai, se vos ofende esta palavra. Ela é sincera: subiu-me do coração à boca.
Não posso guardar a verdade; perder-me-ei algum dia por dizê-la sem rebuço. Assim me fez
a natureza; assim irei à sepultura.
D. CATARINA - Não, não fraquearei, juro-vos. Amo-vos muito, bem o sabeis. Posso chegar a
afrontar tudo, até a cólera de meu pai. Vede lá, estamos a sós; se nos vira alguém... (Camões
um passo para sair.) Não, vinde cá. Mas, se nos vira alguém, defronte um do outro, no
meio de uma sala deserta, que pensaria? Não sei que pensaria; tinha medo pouco, não
tenho medo... amor sim... O que eu tenho é amor, meu Luís.
CAMÕES - Minha boa Catarina.
D. CATARINA - Não me chameis boa, que eu não sei se o sou... Nem boa, nem má.
CAMÕES - Divina sois
D. CATARINA - Não me deis nomes que são sacrilégios.
CAMÕES - Que outro vos cabe?
D. CATARINA - Nenhum.
CAMÕES - Nenhum? - Simplesmente a minha doce e formosa senhora D. Catarina de
Ataíde, uma ninfa do paço, que se lembrou de amar um triste escudeiro, sem se lembrar que
seu pai a guarda para algum solar opulento, algum grande cargo de camareira-mor. Tudo isso
havereis, enquanto que o coitado de Camões irá morrer em África ou Ásia...
D. CATARINA - Teimoso sois! Sempre essas idéias de África...
CAMÕES - Ou Ásia. Que tem isso? Digo-vos que, às vezes, a dormir, imagino estar, longe
dos galanteios da corte, armado em guerra, diante do gentio. Imaginai agora...
D. CATARINA - o imagino nada; vós sois meu, tão meu, tão-somente meu. Que me
importa o gentio, ou o Turco, ou que quer que é, que não sei, nem quero? Tinha que ver, se
me deixáveis, para ir às vossas Áfricas... E os meus sonetos? Quem mos havia de fazer, meu
rico poeta?
CAMÕES - Não faltará quem vo-los faça, e da maior perfeição.
D. CATARINA - Pode ser; mas eu quero-os ruins, como os vossos... como aquele da Circe, o
meu retrato, dissestes vós.
CAMÕES, recitando.
Um mover de olhos, brando e piedoso.
Sem ver de que; um riso brando e honesto,
Quase forçado um doce e humilde gesto
De qualquer alegria duvidoso...
D. CATARINA - Não acabeis, que me obrigareis a fugir de vexada.
CAMÕES - De vexada! Quando é que a rosa se vexou, por que o sol a beijou de longe?
D. CATARINA - Bem respondido, meu claro sol.
CAMÕES - Deixai-me repetir que sois divina. Natércia minha, pode a sorte separar-nos, ou a
morte de um ou de outro; mas o amor subsiste, longe ou perto, na morte ou na vida, no mais
baixo estado, ou no cimo das grandezas humanas, não é assim? Deixai-me crê-lo, ao menos;
deixai-me crer que um vínculo secreto e forte, que nem os homens, nem a própria
natureza poderia já destruir. Deixai-me crer... Não me ouvis?
D. CATARINA - Ouço, ouço.
CAMÕES - Crer que a última palavra de vossos bios será o meu nome. Será? Tenha eu
esta fé, e não se me dará da adversidade; sentir-me-ei afortunado e grande. Grande, ouvis
bem? Maior que todos os demais homens.
D. CATARINA - Acabai!
CAMÕES - Que mais?
D. CATARINA - Não sei; mas é tão doce ouvir-vos! Acabai, acabai, meu poeta! Ou antes,
não, não acabeis; falai sempre, deixai-me ficar perpetuamente a escutar-vos.
CAMÕES - Ai de nós! A perpetuidade é um simples instante, um instante em que nos deixam
sós nesta sala! (D. Catarina afasta-se rapidamente.) Olhai; a idéia do perigo vos arredou
de mim.
D. CATARINA - Na verdade, se nos vissem... Se alguém aí, por esses reposteiros... Adeus...
CAMÕES - Medrosa, eterna medrosa!
D. CATARINA - Pode ser que sim; mas não está isso mesmo no meu retrato?
Um encolhido ousar, uma brandura,
Um medo sem ter culpa; um ar sereno,
Um longo e obediente sofrimento...
CAMÕES -
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.
D. CATARINA, indo a ele. - Pois então? A vossa Circe manda-vos que não duvideis dela, que
lhe perdoeis os medos, tão próprios do lugar e da condição; manda-vos crer e amar. Se ela
às vezes foge, é porque a espreitam; se vos não responde, é porque outros ouvidos poderiam
escutá-la. Entendeis? É o que vos manda dizer a vossa Circe, meu poeta... e agora...
(Estende-lhe a mão.) Adeus!
CAMÕES - Ides-vos?
D. CATARINA - A rainha espera-me. Audazes fomos, Luís. Não desafiemos o paço... que
esses reposteiros...
CAMÕES - Deixa-me ir ver!
D. CATARINA, detendo-o. - Não, não. Separemo-nos.
CAMÕES - Adeus! (D. Catarina dirige-se para a porta da esquerda; Camões olha para a porta
da direita.)
D. CATARINA - Andai, andai!
CAMÕES - Um instante ainda!
D. CATARINA - Imprudente! Por quem sois, ide-vos meu Luís!
CAMÕES - A rainha espera-vos?
D. CATARINA - Espera.
CAMÕES - Tão raro é ver-vos!
D. CATARINA - Não afrontemos o céu... podem dar conosco...
CAMÕES - Que venham! Tomara eu que nos vissem! Bradaria a todos o meu amor, e a que o
faria respeitar!
D. CATARINA, aflita pegando-lhe na mão. - Reparai, meu Luís, reparai onde estais, quem eu
sou, o que são estas paredes... domai esse gênio arrebatado, peço-vo-lo eu. Ide-vos em boa
paz, sim?
CAMÕES - Viva a minha corça gentil, a minha tímida corça! Ora vos juro que me vou, e de
corrida. Adeus!
D. CATARINA - Adeus!
CAMÕES, com a mão dela presa. - Adeus
D. CATARINA - Ide... deixai-me ir!
CAMÕES - Hoje luar; se virdes um embuçado diante das vossas janelas, quedado a olhar
para cima, desconfiai que sou eu; e então, já não é o sol a beijar de longe uma rosa, é o goivo
que pede calor a uma estrela.
D. CATARINA - Cautela, não vos reconheçam.
CAMÕES - Cautela haverei; mas, que me reconheçam, que tem isso? embargarei a palavra
ao importuno.
D. CATARINA - Sossegai. Adeus!
CAMÕES - Adeus!
(D. Catarina dirige-se para a porta da esquerda, e pára diante dela, à espera que Camões
saia. Camões corteja-a com um gesto gracioso, e dirige-se para o fundo. - Levanta-se o
reposteiro da porta da direita, e aparece Caminha. - D. Catarina um pequeno grito, e sai
precipitadamente. - Camões detém-se. Os dois homens olham-se por um instante.)
CENA IX
CAMÕES, CAMINHA
CAMINHA, entrando. - Discreteáveis com alguém, ao que parece...
CAMÕES - É verdade.
CAMINHA - Ouvi de longe a vossa fala, e reconheci-a. Vi logo que era o nosso poeta, de
quem tratava há pouco com alguns fidalgos. Sois o bem-amado, entre os últimos de Coimbra.
- Com que, discreteáveis... Com alguma dama?
CAMÕES - Com uma dama.
CAMINHA - Certamente formosa, que não as de outra casta nestes reais paços. Sua
Alteza cuido que continuará, e ainda em bem, algumas boas tradições de El-rei seu pai.
Damas formosas, e, quanto possível, letradas.o estes, dizem, os bons costumes italianos.
É vós, senhor Camões, por que não ides à Itália?
CAMÕES - Irei à Itália, mas passando por África.
CAMINHA - Ah! Ah! para deixar primeiro um braço, uma perna, ou um olho... o, poupai
os olhos, que são o feitiço dessas damas da corte; poupai também a mão, com que nos
haveis de escrever tão lindos versos; isto vos digo que poupai...
CAMÕES - Uma palavra, senhor Pero de Andrade. Uma só palavra, mas sincera.
CAMINHA - Dizei.
CAMÕES - Dissimulais algum outro pensamento. Revelai-mo... intimo-vos que mo reveleis.
CAMINHA - Ide à Itália, senhor Camões, ide à Itália.
CAMÕES - Não resistireis muito tempo ao que vos mando.
CAMINHA - Ou à África, se o quereis... ou à Babilônia... À Babilônia melhor; levai a harpa do
desterro, mas em vez de a pendurar de um salgueiro, como na Escritura, cantar-nos-eis a
linda copla da galinha, ou comporeis umas outras voltas ao mote, que já vos serviu tão bem:
Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.
Ide à Babilônia, senhor Perdigão!
CAMÕES, pegando-lhe no pulso. - Por vida minha, calai-vos!
CAMINHA - Vede o lugar em que estais.
CAMÕES, solta-o. - Vejo; vejo também quem sois; só não vejo o que odiais em mim.
CAMINHA - Nada.
CAMÕES - Nada?
CAMINHA - Coisa nenhuma.
CAMÕES - Mentis pela gorja, senhor camareiro.
CAMINHA - Minto? Vede lá; ia-me deixando arrebatar, ia conspurcando com alguma vilania
esta sala de El-rei. Retraí-me a tempo. Menti, dizeis vós? - Pode ser que sim, porque eu creio
que efetivamente vos odeio, mas só há um instante, depois que me pagastes com uma injúria
o aviso que vos dei.
CAMÕES - Um aviso?
CAMINHA - Nada menos. Queria eu dizer-vos que as paredes do paço nem são mudas, nem
sempre são caladas.
CAMÕES - Não serão; mas eu as farei caladas.
CAMINHA - Pode ser. Essa dama era...?
CAMÕES - Não reparei bem.
CAMINHA - Fizestes mal; é prudência reparar nas damas; prudência e cortesia. Com que,
ides à África? estão os nossos em Mazagão, cometendo façanhas contra essa canalha de
Mafamede; imitai-os. Vede, não deixeis esse braço, com que nos haveis de calar as
paredes os reposteiros. É conselho de amigo.
CAMÕES - Por que sereis meu amigo?
CAMINHA - Não digo que o seja; o conselho é que o é.
CAMÕES - Credes, então...?
CAMINHA - Que poupareis uma grande dor e um maior escândalo.
CAMÕES - Percebo-vos. Imaginais que amo alguma dama? Suponhamos que sim. Qual é o
meu delito? Em que ordenação, em que rescrito, em que bula, em que escritura, divina ou
humana, foi já dado
como delito amarem-se duas criaturas?
CAMINHA - Deixai a corte.
CAMÕES - Digo-vos que não.
CAMINHA - Oxalá que não!
CAMÕES, à parte. - Este homem... que há neste homem? Lealdade ou perfídia? (Alto.)
Adeus, senhor Caminha. (Pára no meio da cena). Por que não tratamos de versos?... Fora
muito melhor...
CAMINHA. - Adeus, senhor Camões. (Camões sai.)
CENA X
CAMINHA, logo D. CATARINA DE ATAÍDE
CAMINHA - Ide ide, magro poeta de camarins... (Desce ao proscênio.) Era ela, de certo, era
ela que aí estava com ele, no meio do paço, esquecidos de El-rei e de todos... Oh temeridade
do amor! Do amor? ele... ele... Mas seria ela deveras?... Que outra podia ser?
D. CATARINA, espreita e entra. - Senhor... senhor...
CAMINHA - Ela!
D. CATARINA - Ouvi tudo... tudo o que lhe dissestes... e peço-vos que não nos façais mal.
Sois amigo de meu pai, ele é vosso amigo; não lhe digais nada. Fui imprudente, fui, mas que
quereis? (Vendo que Caminha não diz nada.) Então? falai... poderei contar convosco?
CAMINHA - Comigo? (D. Catarina inquieta, aflita, pega-lhe na mão; ele retira-lha com
aspereza.) Contar comigo! para que, minha senhora D. Catarina? Amais um mancebo digno,
por que vós o amais... muito, não?
D. CATARINA - Muito.
CAMINHA - Muito, dizeis... E éreis vós que estáveis aqui, com ele, nesta sala solitária, juntos
um do outro, a falarem naturalmente do céu e da terra... ou do céu, que é a terra dos
namorados. Que dizeis?...
D. CATARINA, baixando os olhos. - Senhor...
CAMINHA - Galanteios, galanteios, de que sede falar fora... (Gesto de D. Catarina.) Ah!
cuidais que estes amores nascem e morrem no paço? - Não; passam além; descem à rua,
são o mantimento dos ociosos e ainda dos que trabalham, porque, ao serão, principalmente
nas noites de inverno, em que se de ocupar a gente, depois de fazer as suas orações?
Com que, éreis vós? Pois digo-vos que o não sabia; suspeitava, porque não podia talvez ser
outra... E confessais que lhe quereis muito. Muito?
D. CATARINA - Pode ser fraqueza; mas crime...onde está o crime?
CAMINHA - O crime está em desonrar as cãs de um nobre homem, arrastando-lhe o nome
por vielas e praças; o crime está em escandalizar a corte, com essas ternuras, impróprias do
alto cargo que exerceis, do vosso sexo e estado... esse é o crime. E parece-vos pequeno?
D. CATARINA - Bem; desculpai-me, não direis nada...
CAMINHA - Não sei.
D. CATARINA - Peço-vos... de joelhos até... (Faz um gesto para ajoelhar-se, ele impede-lho.)
CAMINHA - Perderieis o tempo; eu sou amigo de vosso pai.
D. CATARINA - Contar-lhe-eis tudo?
CAMINHA - Talvez.
D. CATARINA - Bem mo diziam sempre; sois inimigo de Camões.
CAMINHA - E sou.
D. CATARINA - Que vos fez ele?
CAMINHA - Que me fez? (Pausa.) D. Catarina de Ataíde, quereis saber o que me fez o vosso
Camões? Não é só a sua soberba que me afronta; fosse isso, e que me importava um
frouxo cerzidor de palavras, sem arte nem conceito?
D. CATARINA - Acabai.
CAMINHA - Também não é porque ele vos ama, que eu o odeio; mas vós, senhora D.
Catarina de Ataíde, vós o amais... eis o crime de Camões. Entendeis?
D. Catarina, depois de um instante de assombro. - Não quero entender.
CAMINHA - Sim, que também eu vos quero, ouvis? - E quero-vos muito... mais do que ele, e
melhor do que ele; porque o meu amor tem o impulso do ódio, nutre-se do silêncio, o desdém
o avigora, e não faço alarde nem escândalo; é um amor...
D. CATARINA - Calai-vos! Pela Virgem, calai-vos!
CAMINHA - Que me cale? Obedecerei. (Faz uma reverência.) Mandais alguma outra coisa?
D. CATARINA - Não, ficai, ficai. Jurai-me que não direis nada...
CAMINHA - Depois da confissão que vos fiz, esse pedido chega a ser mofa. Que não diga
nada? Direi tudo, revelarei tudo a vosso pai. Não sei se a ação é ou boa; sei que vos amo,
e que detesto esse rufião, a quem vadios deram foros de letrado.
D. CATARINA - Senhor! É demais!
CAMINHA - Defendei-o, não é assim?
D. CATARINA - Odiai-o, se vos apraz; insulta-o, é que não é de cavaleiro...
CAMINHA - Que tem? O amor desprezado sangra e fere.
D. CATARINA - Deixai que lhe chame um amor vilão.
CAMINHA - Sois vós agora que me injuriais. Adeus, senhora D. Catarina de Ataíde! (Dirige-se
para o fundo.)
D. CATARINA, tomando-lhe o passo. - Não! Agora não vos peço... intimo-vos que vos caleis.
CAMINHA - Que recompensa me dais?
D. CATARINA - A vossa consciência.
CAMINHA - Deixai em paz os que dormem. Quereis que vos prometa alguma coisa? Uma
coisa prometo; não contar a vosso pai o que se passou. Mas, se por denúncia ou
desconfiança, for interrogado por ele, então lhe direi tudo. E duas vezes farei bem: - não
faltarei à verdade, que é dever de cavaleiro; e depois... chorareis lágrimas de sangue; e eu
prefiro ver-vos chorar a ver-vos sorrir. A vossa angústia será a minha consolação. Onde
falecerdes de pura saudade, ai me glorificarei eu. Chamai-me agora perverso, se o quereis;
eu respondo que vos amo, e que o tenho outra virtude. (Vai a sair, encontra-se com D.
Francisca de Aragão; corteja-a e sai.)
CENA XI
D. CATARINA DE ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO
D. FRANCISCA - Vai afrontado o nosso poeta. Que terá ele? (Reparando em D. Catarina.)
Que tendes vós? Que foi?
D. CATARINA - Tudo sabe.
D. FRANCISCA - Quem?
D. CATARINA - Esse homem. Achou-nos nesta sala; eu tive medo; disse-lhe tudo.
D. FRANCISCA - Imprudente!
D. CATARINA - Duas vezes imprudente; deixei-me estar ao lado do meu Luís, a ouvir-lhe as
palavras tão nobres, tão apaixonadas... e o tempo corria... e podiam espreitar-nos... Credes
que o Caminha diga alguma coisa a meu pai?
D. FRANCISCA - Talvez não.
D. CATARINA - Quem sabe? Ele ama-me.
D. FRANCISCA - O Caminha?
D. CATARINA - Disse-mo agora. Que admira? Acha-me formosa, como os outros. Triste dom
é esse. Sou formosa para não ser feliz, para ser amada às ocultas, odiada às escancaras, e,
talvez... Se meu pai vier a saber... que fará ele, amiga minha?
D. FRANCISCA - O senhor D. Antônio é tão severo!
D. CATARINA - Irá ter com El-rei, pedir-lhe-á que o castigue, que o encarcere, não? E por
minha causa... Não; primeiro irei eu... (Dirige-se para a porta da direita.)
D. FRANCISCA - Onde ides?
D. CATARINA - Vou falar a El-rei... Ou, não... (Encaminha-se para a porta da esquerda.) Vou
ter com a rainha; contar-lhe-ei tudo; ela me amparará. Credes que não?
D. FRANCISCA - Creio que sim.
D. CATARINA - Irei, ajoelhar-me-ei a seus pés. Ela é rainha, mas é também mulher... e ama-
me. (Sai pela esquerda.)
CENA XII
D. FRANCISCA DE ARAGÃO, D. ANTÔNIO DE LIMA, depois, D. MANUEL DE PORTUGAL
D. FRANCISCA, depois de um momento de reflexão. - Talvez chegue cedo demais. (Dá um
passo para a porta da esquerda.) Não; melhor é que lhe fale... mas, se se aventa a notícia?
Meu Deus, não sei... não sei... Ouço passos... Entra D. Antônio de Lima. Ah!
D. ANTÔNIO - Que foi?
D. FRANCISCA - Nada, nada... não sabia quem era. Sois vós... (Risonha.) Chegaram galeões
da Ásia; boas notícias, dizem...
D. ANTÔNIO - Eu não ouvi dizer nada. (Querendo retirar-se.) Permitis?...
D. FRANCISCA - Jesus! Que tendes? Que ar é esse? (Vendo entrar D. Manuel de Portugal.)
Vinde cá, senhor D. Manuel de Portugal, vinde saber o que tem este meu bom e velho amigo,
que me não quer... (Segurando na mão de D. Antônio ). Então, eu não sou a vossa frescura
de maio?
D. ANTÔNIO, sorrindo a custo. - Sois, sois. Manhosamente sutil, ou sutilmente manhosa, à
escolha; eu é que sou uma triste secura de dezembro, que me vou e vos deixo. Permitis, não?
(Corteja-a e dirige-se para a porta.)
D. MANUEL, interpondo-se. - Deixai que vos levante o reposteiro. (Levanta o reposteiro.) Ides
ter com Sua Alteza, suponho?
D. ANTÔNIO - Vou.
D. MANUEL - Ides levar-lhe notícias da Índia?
D. ANTÔNIO - Sabeis que não é o meu cargo...
D. MANUEL - Sei, sei; mas dizem que... Senhor D. Antônio, acho-vos o rosto anuviado,
alguma coisa vos penaliza ou turva. Sabeis que sou vosso amigo; perdoai se vos interrogo.
Que foi? Que há?
D. ANTÔNIO, gravemente. - Senhor D. Manuel, tendes vinte e sete anos, eu conto sessenta;
deixai-me passar. (D. Manuel inclina-se, levantando o reposteiro. D. Antônio desaparece.)
CENA XIII
D. MANUEL DE PORTUGAL, D. FRANCISCA DE ARAGÃO
D. MANUEL - Vai dizer tudo a El-rei.
D. FRANCISCA - Credes?
D. MANUEL - Camões contou-me o encontro que tivera com o Caminha aqui; eu ia falar ao
senhor D. Antônio; achei-o agora mesmo, ao de uma janela, com o dissimulado Caminha,
que lhe dizia: "Não vos nego, senhor D. Antônio, que os achei naquela sala, a sós e que
vossa filha fugiu desde que eu lá entrei."
D. FRANCISCA - Ouvistes isso?
D. MANUEL - D. Antônio ficou severo e triste. “Querem escândalo?...” foram as suas palavras.
E não disse outras; apertou a mão ao Caminha, e seguiu para cá... Penso que foi pedir
alguma coisa a El-rei. Talvez o desterro.
D. FRANCISCA - O desterro?
D. MANUEL - Talvez. Camões de voltar agora aqui; disse-me que viria falar ao senhor D.
Antônio. Para quê? Que outros lhe falem, sim; mas o meu Luís que não sabe conter-se... D.
Catarina?
D. FRANCISCA - Foi lançar-se aos pés da rainha, a pedir-lhe proteção.
D. MANUEL - Outra imprudência. Foi há muito?
D. FRANCISCA - Pouco há.
D. MANUEL - Ide ter com ela, se é tempo, dizei-lhe que não, que não convém falar nada. (D.
Francisca vai a sair, e pára ) Recusais?
D. FRANCISCA - Vou, vou. Pensava comigo uma coisa. (D. Manuel vai a ela.) Pensava que é
preciso querer muito aqueles dois para nos esquecermos assim de nós.
D. MANUEL - É verdade. E não mais nobre motivo da nossa mútua indiferença.
Indiferença, não; não o é, nem o podia ser nunca. No meio de toda essa angústia que nos
cerca, poderia eu esquecer a minha doce Aragão? Poderieis vós esquecer-me. Ide agora, nós
que somos felizes, temos o dever de consolar os desgraçados. (D. Francisca sai pela
esquerda.)
CENA XIV
D. MANUEL DE PORTUGAL, logo D. ANTÔNIO DE LIMA
D. MANUEL - Se perco o confidente dos meus amores, da minha mocidade, o meu
companheiro de longas horas... Não é impossível. - El-rei concederá o que lhe pedir D.
Antônio. A culpa, - força é confessá-lo, - a culpa é dele, do meu Camões, do meu impetuoso
poeta; um coração sem freio... (Abre-se o reposteiro, aparece D. Antônio.) D. Antônio!
D. ANTÔNIO, da porta, jubiloso. - Interrogastes-me pouco; agora hei tempo de vos
responder.
D. MANUEL - Talvez não seja preciso.
D. ANTÔNIO, adianta-se - Adivinhais então?
D. MANUEL - Pode ser que sim.
D. ANTÔNIO - Creio que adivinhais.
D. MANUEL - Sua Alteza concedeu-vos o desterro de Camões.
D. ANTÔNIO - Esse é o nome da pena: a realidade é que Sua Alteza restituiu a honra a um
vassalo, e a paz a um ancião.
D. MANUEL - Senhor D. Antônio...
D. ANTÔNIO - Nem mais uma palavra, senhor D. Manuel de Portugal, nem mais uma palavra.
- Mancebo sois; é natural que vos ponhais do lado do amor; eu sou velho, e a velhice ama o
respeito. Até à vista, senhor D. Manuel, e não turveis o meu contentamento. (Dá um passo
para sair.)
D. MANUEL - Se matais vossa filha?
D. ANTÔNIO - Não a matarei. Amores fáceis de curar são esses que brotam no meio de
galanteios e versos. Versos curam tudo. não curam a honra os versos; mas para a honra
Deus um rei austero, em pai inflexível... Até à vista, senhor D. Manuel. (Sai pela
esquerda.)
CENA XV
D. MANUEL DE PORTUGAL, logo CAMÕES
D. MANUEL - Perdido... está tudo perdido.(Camões entra pelo fundo.) Meu pobre Luís! Se
soubesses...
CAMÕES - Que há?
D. MANUEL - El-rei... El-rei atendeu às súplicas do senhor D. Antônio. Está tudo perdido.
CAMÕES - E que pena me cabe?
D. MANUEL - Desterra-vos da corte.
CAMÕES - Desterrado! Mas eu vou ter com Sua Alteza, eu direi...
D. MANUEL, aquietando-o. - Não direis nada; não tendes mais que cumprir a real ordem;
deixai que os vossos amigos façam alguma coisa; talvez logrem abrandar o rigor da pena.
Vós não fareis mais do que agravá-la.
CAMÕES - Desterrado! E para onde?
D. MANUEL - Não sei. Desterrado da corte é o que é certo. Vede... não mais demorar no
paço. Saiamos.
CAMÕES - Aí me vou eu, pois, caminho do desterro, e não sei se da miséria! Venceu então o
Caminha? Talvez os versos dele fiquem assim melhores. Se nos vai dar uma nova Eneida, o
Caminha? Pode ser, tudo pode ser... Desterrado da corte! me ficam os melhores dias, e
as mais fundas saudades. Crede, senhor D. Manuel, podeis crer que as mais fundas
saudades cá me ficam.
D. MANUEL - Tornareis, tornareis...
CAMÕES - E ela? Já o saberá ela?
D. MANUEL - Cuido que o senhor D. Antônio foi dizer-lho em pessoa. Deus! Aí vem eles.
CENA XVI
OS MESMOS, D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE
D. Antônio aparece à porta da esquerda, trazendo D. Catarina pela mão. - D. Catarina vem
profundamente abatida.
D. CATARINA, à parte, vendo Camões. - Ele! Dai-me força, meu Deus! (D. Antônio corteja os
dois, e segue na direção do fundo. Camões um passo para falar-lhe, mas D. Manuel
contém-no. D. Catarina, prestes a sair, volve a cabeça para trás.)
CENA XVII
D. MANUEL DE PORTUGAL, CAMÕES
CAMÕES - Ela aí vai... talvez para sempre... Credes que para sempre?
D. MANUEL - Não. Saiamos!
CAMÕES - Vamos lá; deixemos estas salas que tão funestas me foram. (Indo ao fundo e
olhando para dentro.) Ela vai, a minha estrela, aí vai a resvalar no abismo, de onde não sei
se a levantarei mais... Nem eu... (Voltando-se para D. Manuel.) Nem vós, meu amigo, nem
vós que me quereis tanto, ninguém.
D. MANUEL - Desanimais depressa, Luís. Por que ninguém?
CAMÕES - Não saberia dizer-vos; mas sinto-o aqui no coração. Essa clara luz, essa doce
madrugada da minha vida, apagou-se agora mesmo, e de uma vez.
D. MANUEL - Confiai em mim, nos meus amigos, nos vossos amigos. Irei ter com eles;
induzi-los-ei a....
CAMÕES - A quê? A mortificarem um camareiro-mor, a fim de servir um triste escudeiro que
já estará a caminho de África?
D. MANUEL - Ides à África?
CAMÕES - Pode ser; sinto umas tonteiras africanas. Pois que me fecham a porta dos
amores, abrirei eu mesmo as da guerra. Irei pelejar, ou não sei se morrer... África, disse
eu? Pode ser que Ásia também, ou Ásia só; o que me der na imaginação.
D. MANUEL - Saiamos.
CAMÕES - E agora, adeus, infiéis paredes; sede ao menos com passivas; guardai-ma,
guardai-ma bem, a minha formosa D. Catarina! (A D. Manuel.) Credes que tenho vontade de
chorar?
D. MANUEL - Saiamos, Luís!
CAMÕES - Eu não choro, não; não choro... não quero... (Forcejando por ser alegre.) Vedes?
até rio! Vou-me para bem longe. Considerando bem, Ásia é melhor; rematou a audácia
lusitana o seu edifício, irei escutar o rumor dos passos do nosso Vasco. E este sonho, esta
quimera, esta coisa que me flameja dentro, quem sabe se... Um grande sonho, senhor D.
Manuel... Vede lá, ao longe, na imensidade desses mares, nunca dantes navegados, uma
figura rútila, que se debruça dos balcões da aurora, coroada de palmas indianas? É a nossa
glória, é a nossa glória que alonga os olhos, como a pedir o seu esposo ocidental. E nenhum
lhe vai dar o ósculo que a fecunde; nenhum filho desta terra, nenhum que empunhe a tuba da
imortalidade, para dizê-la aos quatro ventos do céu... Nenhum... (Vai amortecendo a voz.)
Nenhum... (Pausa, fita D. Manuel, como se acordasse, e de ombros.) Uma grande
quimera, senhor D. Manuel. Vamos ao nosso desterro.
Machado de Assis
SUPLÍCIO DE UMA MULHER
Drama em três atos
por
Emile de Gerardin
e
Alexandre Dumas Filho
Traduzido por
Machado de Assis
(1865)
PERSONAGENS
HENRIQUE DUMONT - banqueiro
JOÃO ALVAREZ - sócio de Dumont
MATILDE - mulher de Dumont
JOANA - filha de Matilde
A SRA. LARCEY
UM CRIADO
Paris - 1855
ATO PRIMEIRO
Uma sala
CENA I
DUMONT, UM CRIADO
DUMONT (entrando, ao criado) - Diga à minha senhora que eu voltei.
Onde está minha filha?
CRIADO - A menina está brincando na galeria.
DUMONT - Diga-lhe que venha aqui.
CRIADO - Ei-la aí. (Sai).
CENA II
DUMONT, ALVAREZ
JOANA - Que trazes aqui, meu paizinho?
DUMONT - Que dia é hoje?
JOANA - Hoje é sábado.
DUMONT - E amanhã!
JOANA - Domingo.
DUMONT - Mas de quem é o dia amanhã!
JOANA - É o do meu santo.
DUMONT - É o de todas as meninas que se chamam Joana, e todos os que se chamam
João.
JOANA - Como meu padrinho.
DUMONT - Pois bem! Teu pai, a quem não esquecem datas, na sua qualidade de banqueiro,
lembrou-se do dia 27 de dezembro, e foi comprar umas tetéias para a sua filha, a quem faz
respeitosamente os seus cumprimentos.
JOANA - Hoje!
DUMONT - Hoje.
JOANA - De véspera!
DUMONT - Tal qual.
JOANA - Mas por que de véspera e não no dia!
DUMONT - Porque é uso.
JOANA - E por que é uso!
DUMONT - Oh! perguntas muito! Onde iriam parar os homens se tivessem metade da lógica
das crianças!
JOANA - Não sabes por que é!
DUMONT - Minha filha, tu hás de achar no mundo uma porção de usos deste gênero, cuja
explicação não deves pedir, porque ninguém ta poderá dar. Eu de mim creio que este uso foi
inventado por algum pai que tinha ânsia de presentear a filha, e a quem os outros pais
imitaram.
JOANA - É uma boneca que me trazes?
DUMONT - Sim.
JOANA - Oh! como é bonita, papai, como é bonita! Parece-se com a senhora Larcey. E mais
bonita do que ela.
DUMONT - Pudera! Esta não fala!
JOANA - Deixa dar-te um beijo!
DUMONT - Estás contente!
JOANA - Estou, meu paizinho.
DUMONT - Eu sou o primeiro, não!
JOANA - Primeiro que!
DUMONT - Que te faz hoje um mimo.
JOANA - É sim.
DUMONT - Alvarez, teu padrinho, ainda não veio!
JOANA - Não. Que foi que deste aos meus pobres!
DUMONT - Toma, dá-lhes tu mesma.
JOANA - Uma, duas, três... cinco moedas de ouro. Então, já não terão fome.
DUMONT - Hoje.
JOANA - Mas amanhã?
DUMONT - Que se há de fazer? A mesma coisa.
JOANA - Dás-me dinheiro todos os dias para eles?
DUMONT - Nos dias em que não fores travessa.
JOANA - Pois não serei travessa... Vou dar de comer à minha boneca.
CENA III
OS mesmos, MATILDE
DUMONT (a Matilde) - Vem gozar da alegria da pequena!
JOANA - (mostrando a boneca) - Olha mamãe, como ela é bonita!
MATILDE (um pouco fria e distraída) - Sim, é muito bonita! A tua
governanta está à tua espera.
JOANA - Eu quero antes ficar aqui.
MATILDE - Bem sabes que Miss Brown não gosta disso.
JOANA - Porém, mamãe, o dia de meu santo é amanhã, isto é, hoje.
DUMONT - Ela tem razão, hoje a casa é dela. Vai brincar! (A Matilde). Que tens tu? Sempre
preocupada!
MATILDE - Não tenho nada, meu amigo!
DUMONT - Faze então como Joana: abraça-me. A filha teve o seu presente, a mãe
também terá um.
MATILDE - Ainda!
DUMONT - Por que dizes isso?
MATILDE - Porque me dás presentes todos os dias... Lindas pérolas! Lindos brilhantes!...
Queres, Henrique, esvaziar por minha causa todos os joalheiros de Paris? Sabes o que se diz
por aí? Não se diz que és generoso, diz-se que és pródigo.
DUMONT - Quem diz isso?
MATILDE - As minhas melhores amigas.
DUMONT - Deixa falar as invejosas! Pois quantas pérolas encerra o mar, e quantos
diamantes cria a terra, valerão nunca a felicidade que tu me dás? apenas uma nuvem na
minha felicidade: é a tua tristeza, que vai aumentando. Faço o que posso para dissipá-la, e
nada obtenho. Dize-me, o que tens Matilde? Que te falta?
MATILDE - Nada, meu amigo, nada!
DUMONT - Tens alguma queixa de mim?
MATILDE - Nenhuma! Fazes tudo para que eu seja feliz. .. e se...
DUMONT - E se?...
MATILDE - E se eu ouvisse somente o meu coração...
DUMONT - Que farias?
MATILDE - Não teria um só minuto de tristeza, nem ainda de aborrecimento.
DUMONT - Então por que andas triste?
MATILDE - Não ando triste; ando doente, ando nervosa; tenho vontade de chorar sem motivo
real.
DUMONT - Far-te-á bem uma viagem? partamos.
MATILDE - Partir?
DUMONT - Queres passar o inverno na Itália?
MATILDE - E os teus negócios?
DUMONT - Não precisam de mim... Verei... Arranjarei as coisas de modo que eles não sofram
com a minha ausência... E demais, os meus negócios não podem competir com o teu prazer
ou a tua saúde. Já te vejo sorrir; o devedor sou eu.
MATILDE - Como não hei de sorrir vendo tanta bondade em ti!
DUMONT - Tanto amor, é o que deves dizer! Nunca te amei mais do que hoje. Tu e Joana
são os dois anjos da minha vida.
MATILDE - Pois bem, vamos, quero ir.
DUMONT - Quando quiseres.
MATILDE - Só contigo.
DUMONT - E Joana?
MATILDE - Por que havemos de levar Joana?
DUMONT - E por que havemos de deixá-la? é o complemento da família.
MATILDE - Tão criança, ainda!
DUMONT - E aborrece-te algumas vezes.
MATILDE - A mim? Pois acaso?...
DUMONT - És um tanto severa com ela.
MATILDE - Passam-lhe tanto a mão por cima... que é preciso alguém que a trate com menos
brandura.
DUMONT - Talvez tenhas razão. Eu só a vejo nas horas em que não trabalho, e
então acho delicioso tudo quanto ela faz. Quando a gente gasta um dia
inteiro em negócios, é um raio de sol o sorriso de uma criança; mas tu vives
sempre com ela, e eu compreendo, que te amofine às vezes; todavia, és tão
boa esposa que não podes deixar de ser boa mãe. Dar-se-á caso que lhe
queiras mal, a pesar teu, pelo que ela te faz sofrer? A coitadinha, quando
nasceu pôs em risco a tua vida. É fácil os pais amar os filhos que lhes dão
alegrias ao passo que fazem derramar tantas grimas às mães... Mas é
preciso perdoar (sorrindo), sobretudo aos inocentes. Por que choras?
MATILDE - Porque tu vales mais do que eu... porque teus razão. Sou às vezes injusta com
Joana. Prometo que nunca mais o serei. Ela irá conosco. E partiremos sem o dizer a
ninguém! a ninguém!
DUMONT - Como quiseres. Mas por que este mistério?
MATILDE - Para que a viagem tenha mais atrativo, e não sobrevenham obstáculos...
Passaremos dois ou três meses em um canto do mundo, onde ninguém nos conhecerá, e
então verás como me hei de fazer prazenteira, como me tornarei a tua Matilde de outrora!
DUMONT - Está decidido; dá-me arras. Sorri ainda; dize que me amas.
MATILDE (abandonando-se) - Poderei eu nunca amar-te bastante?
(No momento em que Matilde vai abraçar Dumont, Alvarez entra, traz uma
caixa, de que se desembaraça logo).
CENA IV
Os mesmos, ALVAREZ
DUMONT - Ah! és tu, Alvarez; estavas aí?
ALVAREZ - Vinha entrando... procuro Joana. (A Matilde, que faz movimento de sair). Sai com
a minha chegada?
MATILDE - Não, senhor!... não!... saía porque tenho de dar uma ordem urgente.
DUMONT - Para o baile de Joana?
MATILDE - Sim. O baile deve ser às duas horas e é quase meio-dia.
CENA V
Os mesmos, menos MATILDE
ALVAREZ - Miss Brown disse-me que Joana estava aqui. Onde está?
DUMONT - No jardim d'inverno... Anda tão ocupada com a boneca nova que não te viu
entrar... Como estás tu?
ALVAREZ - Bem! e tu?
DUMONT - Melhor do que nunca.
ALVAREZ - E a senhora Dumont?... Está boa de saúde?
DUMONT - Excelente... Não
preciso perguntar o que trazes dentro dessa grande caixa...
Aposto que é uma boneca?...
ALVAREZ - Não
aposto, porque perco. A tua boneca fala?
DUMONT - Não!
ALVAREZ - Pois a minha fala.
DUMONT - Oh! profundo corruptor!... Assistes à festa das crianças?
ALVAREZ - Sim.
DUMONT - Jantas conosco?
ALVAREZ - Decerto.
DUMONT - Bom, fica com Joana. Eu vou ver o que há pela praça... sabes de alguma coisa?
ALVAREZ - Se nunca me ocupo com isso... És tu que fazes tudo, e não te sais mal... Por
que me havia de intrometer?
DUMONT - Talvez tenhas de fazê-lo agora.
ALVAREZ - Por que?
DUMONT - Sabê-lo-ás depois. (Sai).
CENA VI
ALVAREZ, JOANA
ALVAREZ (chamando) - Joana! Joana!
JOANA - Ah! és tu, meu padrinho?
ALVAREZ - Adivinha o que está aqui dentro.
JOANA - Mais uma boneca.
(Dumont entra, sem dizer palavra, no quarto de sua mulher).
ALVAREZ - Sim, com todas as mudas de roupa.
JOANA - Ah! como o meu padrinho é bonito! A tua boneca é maior que a do papai.
ALVAREZ - Então preferes a minha à dele?
JOANA - Oh! não. Gosto tanto como da de papai.
ALVAREZ - Por que?
JOANA - Porque foi papa e que ma deu.
ALVAREZ - Então tu amas muito ao teu papai?
JOANA - Oh! sim!
ALVAREZ - Mais do que a mim?
JOANA - Pois então!
ALVAREZ - Por que razão?
JOANA - Pela razão de que ele é meu papai.
ALVAREZ - Mas que quer dizer papai?
JOANA - o sei. Mas quando eu digo papai, parece que eu não posso dizer mais nada, e
que é preciso abraçá-lo logo.
ALVAREZ - E a mim, não me abraças tu?
JOANA - Sim, eu gosto muito de ti, acredita; mas é depois dele, e de mamãe! (Dirigindo-se à
boneca) A menina tem juízo? Há de chamar-se Fanchete.
ALVAREZ - Que fez tua mãe ontem à noite?
JOANA - Ficou aqui com papai!
ALVAREZ - Não houve visitas?
JOANA - Houve, a Sra. de Talveira.
ALVAREZ - A que horas se foi ela embora?
JOANA - Não sei, porque me deitaram às nove horas.
ALVAREZ - Olha, aqui tens mais uma tetéia!
JOANA - Oh! o que é?
ALVAREZ - Um leque para o baile.
JOANA - Baile?
ALVAREZ - Sim, um baile que eu pedi à tua mãe que arranjasse para ti e tuas amiguinhas; é
uma surpresa.
JOANA - Um baile como o das filhas da Sra. Talveira? Oh! que belo! Então é preciso vestir-
me e enfeitar-me.
ALVAREZ - Está claro!
JOANA - Vou ter com Miss Brown.
ALVAREZ - Vai, filha, vai... Joana!
JOANA - O que é?
ALVAREZ - Dá-me outro beijo... Hás de achar confeitos na outra sala.
JOANA - Vou ver. O que é que deste aos pobres?
ALVAREZ - Nada!
JOANA - Pois papai deu alguma coisa.
ALVAREZ - Eu também darei. (Enquanto Alvarez tem Joana nos braços a Sra. Larcey entra).
CENA VII
ALVAREZ, a Sra. LARCEY
A SRA. LARCEY - Bom dia, meu caro Sr. Dumont. Ah! é o Sr. Alvarez! pois olhe, tomei-o pelo
dono da casa!
ALVAREZ - Sem me ver?
A SRA. LARCEY - Oh! à força de viver juntos a gente acaba por se parecer uns com os
outros!... É como esta menina, que se parece tanto com o senhor como com o pai. Delicadeza
de afilhada. (Dá-lhe um beijo). Onde está tua mãe?
JOANA - Está com papai... Vou chamá-los.
A SRA. LARCEY - Não os incomodes. Estou aqui como em minha casa; é a casa de uma
velha amiga... velha, entenda-se, como amizade, porque Matilde é uma criança, como idade e
também como caráter. Vou esperar aqui, com o senhor, a que venha aquele ,jovem casal.
Duas rolas, não é verdade? Que belo exemplo!... e quão pouco imitado! Demais, não será a
primeira vez que o senhor faça as honras da casa. Mas que é feito? ninguém mais o vê?
ALVAREZ - A senhora vivia retirada.
A SRA. LARCEY - Estava de luto, e isso era o menos; mas o meu luto acabou hoje, graças a
Deus!... Se não fora isso, não teria eu o prazer de inaugurar com o senhor o meu primeiro
vestido de cor. Entra no baile das crianças?
ALVAREZ - Como espectador.
A SRA. LARCEY - Naturalmente. Também eu, como espectadora; é mesmo hoje o baile? O
convite apanhou-nos tão de sopetão que eu vinha perguntá-lo a Matilde.
ALVAREZ - É hoje.
A SRA. LARCEY - Às duas horas?... Como se tratam hoje as crianças!... Umas pequenas de
7 anos a darem bailes... Não acha isso ridículo?
ALVAREZ - O culpado sou eu.
A SRA. LARCEY - Então a minha pergunta é mal cabida, retiro-a; afinal de contas, o senhor
tem razão, é preciso que as crianças se divirtam. As mágoas chegam cedo. Desde que se
falou em baile, Adriana perdeu a cabeça... não dorme. Ela gosta tanto de se divertir! É como o
pai. Aquela não sae a mim. As meninas saem sempre aos pais. Joana, saiu ao pai? conheço-
a muito pouco.
ALVAREZ - Ela é como todas as crianças daquela idade... Não tem caráter determinado, mas
tem boa alma, afetuosa e meiga.
A SRA. LARCEY - Sae à mãe, o senhor gosta muito dela? De Joana, entende-se.
ALVAREZ - Adoro as crianças.
A SRA LARCEY - Ela gosta do senhor?
ALVAREZ - Como as crianças gostam de quem lhes faz as vontades.
A SRA. LARCEY - Seria muito ingrata se não gostasse do senhor.
ALVAREZ - Por que, minha senhora?
A SRA. LARCEY - Primeiramente, porque o senhor lhe faz as vontades, depois...
ALVAREZ - Depois?
A SRA. LARCEY - Depois, porque o senhor enche a casa de felicidade. Nunca ela de
saber quanto lhe deve.
ALVAREZ - Não
compreendo.
À SuA. LARCEY - Pois é simplíssimo. oito anos, Dumont estava apertado em seus
negócios. Não é verdade? O senhor emprestou-lhe 1.000.000 de francos... Não negue, foi ele
quem mo disse, transportado de admiração e com efusões de reconhecimento, que são o
elogio dele e o seu. Salvou-o o senhor. Continuaram os negócios, e nada lhe faltava para ser
feliz, a não ser um filho que ele pedia ao céu desde três anos de casado, e que o céu teimava
em negar-lhe. veio um dia em que nasceu Joana, tanto é certo que as grandes venturas
não chegam sós. Dumont merecia aquela felicidade!... É tão bom marido, não? Confiante!
fiel à sua mulher! fiel á sua mulher! fiel à sua mulher! Coisas são estas que se devem dizer
três vezes para que se acredite, e ainda custa a crer! Laborioso! hábil! meigo como uma
criança! e corajoso. Bem o provou ele nos dias de junho, em que ficou ferido na cabeça, à
frente da companhia que comandava... Ah! se eu tivesse um marido como aquele!
ALVAREZ (a Dumont que entra) - Chega aqui, meu caro Dumont; falávamos mal de ti.
CENA VIII
Os mesmos, DUMONT
DUMONT - De mim?
A SRA. LARCEY - Sim, dizíamos que o senhor é a pérola dos maridos. E depois
deste cumprimento, retiro-me.
DUMONT - À minha chegada?
A SRA. LARCEY - Tinha apenas dez minutos para gastar aqui; tomou-nos o Sr. Alvarez, ele
que lhos restitua. Aqui vai em duas palavras. Tenho camarote para hoje no Vaudeville,
primeira ordem... Vai comigo? Matilde decidirá daqui a pouco quando eu voltar com Adriana.
O Sr. Alvarez está convidado; demorei-me demais, vou-me embora; até já. Não precisa
acompanhar-me. (Sai).
CENA IX
ALVAREZ, DUMONT
DUMONT - Está doida varrida.
ALVAREZ - Se fosse só isso, mas é má...
DUMONT - Enganas-te. É maldizente apenas.
ALVAREZ - Dizer mal ou fazê-lo é quase a mesma coisa. Acredita, a Sra. Dumont faz mal em
conservar semelhante amiga.
DUMONT - Para uma mulher moça, uma amiga tão maldizente como a Sra. Larcey vale
por dez amigas e das melhores: é um alvará de honestidade.
ALVAREZ - A Sra. Dumont não precisa disso.
DUMONT - Sem dúvida. Disse pouco que precisava falar-te. É um segredo, promete
que o não contarás a ninguém, nem serás como eu, que estou faltando a um juramento.
Mas tu és da família; e demais, não pode ser de outro modo, porque és meu sócio.
ALVAREZ - De que se trata?
DUMONT - Vou fazer uma viagem.
ALVAREZ (com um movimento de alegria que reprime logo) - Vais fazer
uma viagem?
DUMONT - A modo que te alegras com isso?
ALVAREZ - Sim... Suponho que tens algum bom negócio em vista.
DUMONT - Não.
ALVAREZ - Como! não se trata de negócios?
DUMONT - Admiras-te?
ALVAREZ - De certo, os negócios são a tua vida. Vais só?
DUMONT - Não vou só.
ALVAREZ - Com quem vais?
DUMONT - Com Matilde.
ALVAREZ - E Joana?
DUMONT - Naturalmente. E como é preciso que alguém trate dos negócios, na minha
ausência, ficas tu incumbido disso.
ALVAREZ - Decerto! Decerto!
DUMONT - Quando eu dizia que ias ter alguma ocupação!
ALVAREZ - A viagem é longa?
DUMONT - Depende de Matilde!
ALVAREZ - A causa da viagem?
DUMONT - Matilde anda doente.
ALVAREZ - Desde quando?
DUMONT - Há muito tempo.
ALVAREZ - Há pouco me dizias que ela estava perfeitamente boa.
DUMONT - É um modo de falar.
ALVAREZ - Foi o médico que aconselhou?
DUMONT - Fui eu o da lembrança.
ALVAREZ - Ela aceitou?
DUMONT - Com alegria.
ALVAREZ - Quando partem?
DUMONT - Dentro de dois ou três dias.
ALVAREZ - Onde vão?
DUMONT - Pelo caminho que houvermos diante, mas do lado do sol, como as andorinhas.
ALVAREZ - E os namorados.
DUMONT (apertando-lhe as mãos com efusão). - Como os namorados, sim, não podias dizer
melhor. Não tens inveja? Rico como és, mais de quatro milhões... moço, que o és ainda...
trinta e cinco anos... boa idade para casar? Casa-te!
ALVAREZ - No dia do meu nome.
DUMONT - Sim! no dia do teu nome... e para felicidade da tua vida! (Entra Matilde).
CENA X
ALVAREZ, DUMONT, MATILDE
DUMONT (continuando) - Entra... Dizia eu a João que devia casar-se; afim de ser tão feliz
como nós... Havemos de achar-lhe uma mulher como tu!... o é fácil, bem sei. Mas se
pode contentar
com um quase. Vamos lá, prova-lhe que deve casar-se. Eu não tenho tempo para convencê-
lo, porque daqui até o dia da partida, não posso perder um minuto... lhe falei da nossa
viagem... Não podia haver segredo para ele. Adeus!
CENA XI
ALVAREZ, MATILDE
ALVAREZ - Então, vai viajar?
MATILDE - Vou.
ALVAREZ - Foi a senhora quem teve a idéia?
MATILDE - Não, é desejo de Henrique.
ALVAREZ - Não lhe pedi que não pronunciasse esse nome de Henrique diante de mim?
MATILDE - É desejo de meu marido.
ALVAREZ - Meu marido?
MATILDE - Na verdade, já não sei como lhe hei de chamar!
ALVAREZ - Chame-o como quiser. Proíbo-lhe que vá com ele.
MATILDE - Proíbe-me? Com que direito?
ALVAREZ - Bem sabe com que direito.
MATILDE - Estou enferma, João; afirmo-lhe que estou e preciso mudar de ares... Tenha
piedade de mim.
ALVAREZ - Hoje, como sempre, a senhora tem uma idéia: escapar-me, fechar-me a porta.
(Trava de uma cadeira e faz um gesto violento).
MATILDE - Que é isso? Se meu marido ouvisse!
ALVAREZ - Ouviria! tanto melhor! Seria esse o desenlace de uma situação que não pode
prolongar-se... E demais, ele não tinha de que se queixar. Ficaria sabendo que a senhora
suporta-me por medo, e para conjurar um rompimento que iria perturbá-lo... Saberia que a
senhora quer partir porque já não me ama. Se é que alguma vez me amou.
MATILDE - De quem é a culpa, se eu já não o amo?
ALVAREZ - A culpa é de Henrique, que a senhora ama!
MATILDE - Se fosse assim?
ALVAREZ (com cólera) - Senhora!
MATILDE - Senhor! Posso eu impedir que ele seja bom, tanto quanto o senhor é cruel, tão
nobre quanto o senhor é injusto, tão delicado quanto o senhor é ingrato? Posso eu impedir-
me de os comparar ambos e arrepender-me? achá-lo em tudo superior ao senhor, e
principalmente a mim?
ALVAREZ - É tarde. Devia ter feito essas comparações há sete anos.
MATILDE - Ai, que se eu as tivesse feito!
ALVAREZ - Hoje amo-a; é minha; disse que me amava. Mentira ou verdade, firmo-me nessa
declaração. não posso viver sem a senhora, não quero perdê-la, e não me de escapar,
previno-a.
MATILDE - Que fará então?
ALVAREZ - Ah! cuida que, se eu pus toda a minha vida em um só amor; se durante sete anos
sofri todas as torturas e humilhações do ciúme; se ouvi minha filha, - sim, minha filha, - dar a
outro o nome de pai; se suportei tudo isso por amor da senhora e de Joana, é para que um
belo dia a senhora venha dizer-me: vou viajar; e cuida que eu a deixarei partir? Engana-se.
Se não achar um meio de ficar, achá-lo-ei eu.
MATILDE - Que meio será?
ALVAREZ - Saio daqui com Joana.
MATILDE - Está louco.
ALVAREZ -o. A lei não será por mim, mas eu terei por mim o escândalo e a sua desonra.
Dumont não as quererá em casa, e então serão minhas, porque só eu lhes restarei.
MATILDE - Mas nãoódio que não seja preferível a um amor semelhante! Dois adversários
prestes a vir às mãos não falariam de outro modo.
ALVAREZ - Ah! eu não sou genebrês... como Henrique. Não aprendi a vida no Emílio e no
Vigario saboyardo; não amassei minha alma com a neve das geleiras; nasci em plena
Espanha, sob um céu de fogo, e é o sol com todos os seus raios que me faz arder o sangue
das veias. Amo com todo o meu ser, dou-me inteiro, exijo tudo. Que me importa a mim seu
marido? Tenho-lhe ódio!
MATILDE - O homem a quem chama seu amigo?
ALVAREZ - Tanto pior para ele se é cego!
MATILDE - Apertou-lhe a mão, socorreu-o, salvou-lhe a fortuna e a vida!
ALVAREZ - Era por causa da senhora, a quem eu amava, e de quem me queria fazer amado.
MATILDE - É melhor dizer que eu me vendi!
ALVAREZ - Amava-a, adorava-a. Não sei por que meio pude convencê-la. Todos os meios
são bons a quem ama. Se até hoje tenho suportado esta vida dupla, é porque pensei que era
amado, e que a senhora suportava, como eu, uma escravidão social. Mas dês que a senhora
ama aquele homem, ele é meu inimigo, é meu rival, e matá-lo-ei se for preciso.
MATILDE - O crime após a vergonha, faltava isso. Ouça... Se o senhor cometer
semelhante infâmia, considerar-me-ei tão superior, por mais desonrada que seja, que não
deixarei de pertencer-lhe, senão que o senhor não me verá mais. Respeite, proteja até os
dias de meu marido, porque, viúva por sua causa, e até a pesar seu, entrarei para um
convento com minha filha, e ninguém ma poderá tirar. Será unicamente minha, e eu a
defenderei contra os seus furores. Aquela inocente criança, que o senhor converteu em
espião, a quem interroga a cada instante, e que lhe dá, sem sabê-lo, coitadinha, pretextos
para torturar sua e, essa criança a tal ponto ficou aos meus olhos que eu sou obrigada a
corar diante dela, a temê-la, a fugir-lhe, porque me lembra quanto sou culpada. Fala-me das
suas torturas!... acaso comparam-se às minhas? Que vida me o senhor?... E quantas
vezes tenho eu pensado em morrer para escapar-lhe? De há sete anos para cá, não se passa
um dia, sem que haja uma cena como esta. O senhor desonra-me em meu marido, em
minha filha, nas minhas recordações, no meu sono! Dele por dever, - sua por medo, - nada de
mim me pertence, e o amor, amor de esposa, amor de amante, amor de mãe, é tudo
sacrilégio, mentira, ignomínia; e o senhor quer que eu o ame!
ALVAREZ - Ah!
MATILDE - Faça o que quiser; desonre, mate... Deus louvado, resta-me a morte, que o
senhor não me pode tirar.
ALVAREZ (em lágrimas e suplicante) - Matilde! Matilde! perdoa-me, amo-te acima de tudo...
Tu não sabes até onde chegam os transportes de um amor aguilhoado pela humilhação de
saber que não é correspondido!... Dize-me uma vez que me amas, que me amaste, que
me amarás sempre. Dá-me uma prova de ternura. Não partas ainda amanhã!... mais tarde...
daqui a um mês, daqui a oito dias... não mo podes recusar!
MATILDE - Levante-se!
ALVAREZ - Promete-me que não partirás.
MATILDE - Pois sim.
ALVAREZ - Que farás?
MATILDE - Não sei... verei... acharei algum meio. Mas, em nome do céu, levante-se, vá-
se embora!
ALVAREZ - Dize que me amas!
MATILDE - Pois, sim, sim, amo-o!
ALVAREZ - Oh! Matilde, como sou feliz! (Sai).
CENA XII
MATILDE (só) - Ah! meu Deus! que suplicio!
ATO SEGUNDO
A mesma decoração
CENA I
A SRA. LARCEY, MATILDE
A SRA. LARCEY - Bom dia, querida; como está? É a segunda vez que venho hoje aqui. Com
que então, improvisou um baile de crianças?
MATILDE - É verdade. Arranjou-se no outro dia... uma idéia...
A SRA. LARCEY - Uma idéia do Sr. Alvarez... foi ele quem me disse... Dar-se-á caso que
fosse indiscreto?
MATILDE - De modo algum... Onde está Adriana?
A SRA. LARCEY - ficou conversando com Joana. Sua filha agarra em todas as meninas
que entram e faz-lhes uma distribuição real de tetéias. Deu à minha filha um gato tocando
bandolim. Os vendedores destas coisas já não sabem que inventar.
MATILDE - Chegaram já muitas pequenas para o baile?
A SRA. LARCEY - Chegam todas juntas. Então sou eu quem lhe dou conta do que se passa
em sua casa!
MATILDE - Demorei-me... mas aqui estou pronta para desempenhar os meus deveres de
dona de casa.
A SRA. LARCEY - Espere! O Sr. Dumont está fazendo as suas vezes. Deixe-me algum tempo
para dizer que está formosa. Quem é a sua costureira? É a mesma Sra. Valentina?
MATILDE - É.
A SRA. LARCEY - Tem gosto aquela mulher, creio que volto a ela. Quem me veste a mim é
Stokley... Veste bem... mas é um homem, o que torna a gente acanhada. Contudo, tem muito
gosto, e as rodas dos vestidos são enormes. se podem comparar às contas, isto é, aos
preços; porque as contas são, ao contrário, de extrema simplicidade: um vestido cor de rosa:
1.200 francos, um vestido branco, 1.500 francos... Faz-me lembrar os estalajadeiros
espanhóis que nunca fazem a conta pelo miúdo, mas que, quando a gente sai, apresentam
um pedacinho de papel, com esta única frase: soma tanto. Ah! Stokley mostrou-me pouco
um vestido cinzento, que é uma maravilha. Cuidava que eu ainda estava de luto. Perguntei-
lhe porque não me mostrara aquele vestido um mês; respondeu-me que um mês o
vestido ainda não tinha aparecido; chegou agora de Lion.
MATILDE - Pode servir no seu próximo luto.
A SRA. LARCEY - Deus a ouça! Tenho uma tia por quem hei de deitar luto de boa vontade:
oitocentos mil francos de herança! Não digo isto por mim. Uma viúva não precisa de luxo. É
para minha filha, a quem devo procurar estado daqui a dez anos!
MATILDE - Já pensa nisso?
A SRA. LARCEY - É preciso... Ah! como a senhora é feliz em ter marido! é coisa que faz rir,
mas ninguém sabe que falta faz um marido. Enquanto a gente tem o seu, parece-lhe que
pode passar sem ele, e quando o perde não sabe como haver-se. E depois, que bandeira,
minha amiga! como os outros navios nos o salvas! que respeito!... e como se pode entrar
francamente nos portos estrangeiros!... Ah mas o seu é uma pérola engastada em milhões...
Dá-lhe o que a senhora quer, ama-a, deixa-a livre e senhora de todas as suas ações; importa-
lhe tanto a opinião do mundo como se ela não existisse...
MATILDE - E por que lhe havia de importar a opinião do mundo? Ele nada tem a temer.
A SRA. LARCEY - Pessoalmente, nada!
MATILDE - Acabe.
A SRA. LARCEY - Oh! meu Deus, pois o mundo não murmura de todas as mulheres, as que
são elegantes, e as que o não são? as que são moças, e as que deixaram de sê-lo? as
feias estimariam que se falasse delas, mas ninguém lhes faz essa caridade.
MATILDE - Isso quer dizer que se fala de mim. E que diz o mundo?
A SRA. LARCEY - De positivo, nada.
MATILDE - Entretanto...
A SRA. LARCEY - Vejamos, Matilde. alguém que nunca a deixa, como a sua sombra,
não? Vai com a senhora a toda a parte, à Ópera ou aos Italianos. Se a senhora está em um
pequeno teatro, no fundo de um camarote, quem é que aparece por traz do seu ombro? É o
Sr. Alvarez.
MATILDE - O Sr. Alvarez...
A SRA. LARCEY - Ah! minha amiga, se se perturba, paro.
MATILDE - Não me perturbo.
A SRA. LARCEY - Não... mas desconfie desses movimentos que podem parecer comoção.
MATILDE - Não estou comovida, estou espantada.
A SRA. LARCEY - Ora, pois! Francamente, que comecei, acabo; o Sr. Alvarez anda muito
com a senhora.
MATILDE - Mas se ele é sócio de meu marido.
A SRA. LARCEY - Isso mesmo.
MATILDE - Leonia!
A SRA. LARCEY - Não sou eu quem fala: repito, nada mais. Pois é isso, o Sr. Alvarez, não é
culpa sua, mas imprime nesta casa uma mancha preta que salta aos olhos. Serei franca, o Sr.
Alvarez é comprometedor. Anda muito com a senhora. Creia-me, Matilde, afaste-o daqui...
Bem vê, pelo tom em que me exprimo, que eu não creio nas balelas do mundo.
MATILDE - E faz bem.
A SRA. LARCEY - Uma idéia! Faça com que ele se case! Há tantas raparigas prontas a se
apaixonarem por uns olhos brilhantes!
MATILDE - Não tenho direito algum ao Sr. Alvarez, e não posso fazer com que ele se case,
nem deixe de casar-se.
A SRA. LARCEY - Tanto pior... porque era o meio de dar uma resposta a tudo, e é tempo
de responder.
MATILDE - Explique-se claramente, faz favor.
A SRA. LARCEY - Pois bem, minha amiga, a senhora tinha uma criada grave, Zoé... uma
pestezinha que está pedindo o lazareto... Foi boa de mais com ela! Viu-se, entretanto,
obrigada a despedi-la.
MATILDE - Era atrevida.
A SRA. LARCEY - Não nego... mas fez mal. Era melhor fazer ouvidos de mercador aos
atrevimentos dela...
MATILDE - Por que?
A SRA. LARCEY - Porque ela deu à língua.
MATILDE - Não compreendo.
A SRA. LARCEY - Eis o caso: Zoé foi apresentar-se em casa da Sra. de Berteux, inimiga
íntima da senhora, e cujo marido é tão tagarela e maldizente como a mulher. Sabe da alcunha
que puseram ao Berteux? Portaria de Convento. A Sra. Berteux tomou Z ao seu serviço, e
logo no dia seguinte entrou a fazer-lhe perguntas, e ela falou.
MATILDE - Mas Zoé não tem nada que dizer.
A SRA. LARCEY - Mas falou... inventou, estou certa disso. Infelizmente, inventou pormenores
tão precisos, que têm ares de verdade, para quem gosta do escândalo.
MATILDE - E a Sra. Berteux acreditou em semelhante rapariga?
A SRA. LARCEY - Qual! despediu Zoé, dizendo-lhe que era uma infame criatura, que
caluniava odiosamente a sua antiga ama, e que nunca tomaria ao seu serviço uma tal víbora.
Zoé, debulhada em lágrimas, jurou que de tudo quanto disse podia dar provas.
MATILDE - Provas!
A SRA. LARCEY - Não as tem. Foi o que eu disse. "Saia de minha casa!", exclamou a Sra.
Berteux, com aquele ar teatral que lhe conhecemos, e entretanto anda ela simulando a
indignação por toda a parte! Berteux vai também espalhando a história de club em club...
Pobre amiga! como está pálida! Não lhe peço confidencias, dou-lhe um conselho. Afronte o
escândalo, ou preparando seu marido, para que ele não sinta o choque, ou afastando o Sr.
Alvarez. Se ele recusar casar-se, ponha-se em boas contas com o mundo, é quanto se lhe
pede... é tudo o que querem os seus amigos... e demais não há um homem que valha a pena
de nos comprometermos por ele... e será muito fino aquele que me comprometer a mim.
MATILDE - Aceitarei a luta com o mundo, provarei...
A SRA. LARCEY - Não lute, minha amiga... Ceda, viva em paz com a maledicência, é menos
perigoso do que viver em guerra com a calúnia... não pensávamos no baile, e ei-lo que
vem à nossa procura.
CENA II
As mesmas - (um bando de crianças, com Joana à frente, entra dançando o
galope, e sai por outra porta)
JOANA (vem beijar a mãe e diz-lhe baixo) - Mamãe, é uma carta para ti.
MATILDE - De quem?
JOANA - De meu padrinho, que entrou no salão, para me entregá-la e dizer-me: "Vai dar
isto já a tua mamãe, é uma surpresa".
MATILDE - Obrigada, minha filha, vai dançar. (Joana vai ter com as companheiras).
CENA III
MATILDE, A SRA. LARCEY
A SRA. LARCEY (a Matilde que se dispõe a esconder a carta, pensando
não ser vista) - Leia a sua carta, minha amiga, leia a sua carta!
MATILDE - Dá licença?
A SRA. LARCEY - Pois não! (Matilde abre a carta e parece perturbada). Que
aconteceu?
MATILDE - Nada!
A SRA. LARCEY - Parece comovida.
MATILDE - Uma contrariedade.
A SRA. LARCEY - Se lhe posso ser útil, disponha de mim.
MATILDE - Não, obrigada. Eu preciso escrever algumas palavras.
A SRA. LARCEY - Escreva, escreva. Vou ver as crianças dançar. Até já, não?
MATILDE - Sim, até já...
A SRA. LARCEY - Até já.
CENA IV
MATILDE (só, está meia desmaiada em uma cadeira) - Que será de mim? (Lê) "A sua
miserável Zoé cumpriu o que disse. À esta hora o nosso segredo corre de boca em boca;
esta noite não será segredo para seu marido. Matilde, não se pode perder um minuto, é
preciso fugir! A fatalidade, que eu abençôo, vem obrigá-la a ser ainda mais minha do que eu
esperava que fosse. Esteja às 8 horas no caminho de ferro do Norte com Joana. Não se
preocupe de coisa alguma, eu previ tudo. Ah! Matilde! viver juntos os três! que felicidade!"
(Depois de uma pausa). Que vergonha! Desta vez, como sempre, ele pensa em si! Amor!
egoísmo do coração, ser maldito! Que fazer? se fosse um laço para obrigar-me a
acompanhá-lo? Mas não! Esta mulher que daqui saiu não deixou dúvida alguma, estou
perdida. Com que arte ela me torturava! Amizade, tu és então uma palavra como o amor?
A quem hei de pedir conselhos? À minha mãe, santa mulher que conheceu o bem em sua
vida? Onde achará ela os recursos do mal? A meu pai? Ele morrerá de vergonha ante esta
confissão. Mentir então, mentir ainda; sempre mentir! Ah! morrerei! é mais simples e mais
leal! Morrer como? A minha morte, como a minha vida, não me pertence. Posso fazer crer
num desastre para salvar a minha honra, para ser chorada pelos que me amam. Essas
lágrimas serão o meu último roubo. Sim, posso montar a cavalo, e esmigalhar a cabeça
contra a calçada da rua. Que morte! Sou covarde! não serei capaz disso! Meu Deus, que será
de mim? Quando me lembro da minha infância tão calma e alegre... Ah! meus sonhos! onde
estais? Como me perdi eu? Olha a que ponto chegaste, desgraçada! Que lodo à roda de ti!
Que procuras? Vai até o fim do teu destino; o teu amante tem razão. Dir-se-á que não
pudeste resistir ao teu amor... Invejar-te-ão outras mulheres; cantar-te-á um poeta! Falarão
de ti na grande cidade, ficarás celebre... Os lacaios contarão a tua história entre gargalhadas
nas ante-câmaras dos teus amigos; dirão que o sabiam, e talvez saibam... E tu,
envelhecerás na Itália, heroína de romance, à borda de algum lago, eternamente entregue
à tua culpa. Pois sim! partamos! (Pára) Nunca!
CENA V
DUMONT, MATILDE
(Ouve-se música fora)
DUMONT (entrando) - É assim que presides à dança dos pequenos? Felizmente Joana
desempenha-se às mil maravilhas. Toma a coisa a sério; faz morrer de riso. Adriana também
é engraçada, mas que diferença de Joana! Aqui para nós, não menina que chegue aos
pés da nossa. Que tens tu? É verdade, a Sra. Larcey disse-me que receberas uma carta que
te contrariou muito... Que te aconteceu?
MATILDE (olhando Dumont com olhos espantados, e como não podendo resistir à idéia que
lhe vem) - Henrique!
DUMONT - Assustas-me! Por que me olhas assim? Morreu tua mãe? Onde está a carta?
(Matilde dá-lhe a carta. Depois de ler). A letra é de Alvarez! que significa isto? É a ti que esta
carta é dirigida?
MATILDE - É.
DUMONT - Mas não compreendo... Alvarez... esta carta diz a verdade?
MATILDE (exausta e vacilante) - Diz.
DUMONT (com explosão, erguendo o braço) - Miserável!... (Pára, querendo abatê-la; afasta-
se e passando a mão pela fronte como para reter o seu pensamento): - Sinto que vou ficar
doido... perdão... Adeus!
MATILDE (suplicante) - Henrique!
DUMONT - Fez bem em confessar... nestes casos é melhor dizer a verdade, mas podia
esperar ainda um pouco, por compaixão... Eu não lhe fiz nada... Deixa-se a ilusão àqueles
que não têm outra coisa mais... Mas a senhora não podia perder tempo, urgia sair, ele
esperava e espera... Mas que me quer? por que está aqui? É livre, saia! Devia sair sem me
dizer nada, era muito mais simples. E eu que nada percebi, nem suspeitei! Mas, por que me
fez esta confissão?
MATILDE (sufocada) - Porque esperava que o senhor me matasse, não tendo eu coragem de
matar-me, a mim própria.
DUMONT - Por que motivo quer morrer?
MATILDE - Porque sou a mulher mais infeliz deste mundo.
DUMONT - Infeliz! Em que? Ama e é amada, deve viver.
MATILDE - Não o amo!
DUMONT - Não
o ama! Então que mulher é a senhora?
MATILDE - Se eu lhe disser que no fundo d'alma tenho amado o senhor, não de
acreditar. E entretanto não tenho outra coisa para lhe dizer, e não repito para que o acredite,
mas porque é a verdade mais verdadeira. Eis porque lhe fiz a confissão. Ordene o que quiser,
sujeito-me de antemão, contanto que eu não sofra mais este martírio, este castigo, mais
tremendo que todos quantos o senhor pudesse inventar. Quer que eu morra para deixá-lo
livre, para que possa amar outra, e dar-lhe o seu nome que não respeitei! Eu lhe fornecerei as
provas todas. Julgue-me, mate-me, faça de mim o que quiser, eu o abençoarei qualquer que
seja a minha sorte.
DUMONT - E desde quando caiu tão baixo!
MATILDE - Desde o dia em que eu acreditei que ele o salvaria da ruína.
DUMONT - sete anos!... Então, Joana! (Matilde abaixa a cabeça, e a esconde nas mãos
sem responder). Erga-se, senhora! Nada mais tem a dizer!
MATILDE - Que me ordena!
DUMONT - Faça o que quiser, senhora; tome sua filha, leve-a; eu não a conheço.
MATILDE - Adeus! (Levanta-se e dá um passo).
DUMONT - Onde vai! Proíbo-lhe que se mate!
MATILDE - Por que!
DUMONT - Porque bastantes crimes no passado, e a sua filha precisa da senhora.o
sou eu quem a educarei, e o pai pode falhar de um instante para outro.
MATILDE - Vai bater-se, Henrique!
DUMONT - Que lhe importa!
MATILDE - Em nome do céu, não exponha os seus dias!
DUMONT - Assim, durante sete anos, mentiu-me a senhora todos os dias, a todas as horas, a
todos os minutos, e eu nada vi! E simulava ternura para mim! E não a sufoquei naqueles
abraços que eu tomava por amor?... Miserável! E via-a corar se o acaso a punha em contato
no teatro ou no passeio com alguma mulher comprometida! E cuidava que era ela quem
produzia o seu vexame! O vexame era por si própria! A fome, a miséria são as desculpas
dessas perdidas; quais são as suas?
MATILDE - Não as tenho.
DUMONT - Veja ao menos se encontra alguma!
MATILDE - Não quero ter nenhuma. Eu não lhe mentia, amava-o, amo-o.
DUMONT - Basta, senhora! Levante-se! É inútil a comédia. Entre para os seus aposentos, e
espere as minhas ordens.
MATILDE - Que vai fazer de mim?
DUMONT - Não sei; vá, senhora! Enxugue os olhos, que a não vejam os lacaios.
JOANA (entrando) - Ah! mamãe... tenho-me divertido muito.
MATILDE - Vai-te, Joana, vai-te!
JOANA - Mamãe manda-me sempre embora, mas eu hoje tenho juízo, não é papai?
DUMONT - Leve esta criança!
JOANA - Que tem, papai? Por que me não dá um beijo?
DUMONT - Leve esta criança!
JOANA - Papai! papai! meu papaizinho.
DUMONT (tomando Joana pelo braço e empurrando-a para sua mãe) - Leve esta criança,
lho disse!
JOANA - Papai machucou-me no dia de hoje, e quando eu ia beijá-lo.
DUMONT - Fica, Joana! Entre, senhora! (Matilde sai vacilante).
CENA VI
DUMONT, JOANA
DUMONT (com uma comoção crescida) - Vem cá, Joana... Peço-te
perdão!
JOANA (querendo beijá-lo) - Eu te perdôo!
DUMONT (de joelhos diante dela, que está no canapé) - E se te fiz algum mal a hoje,
perdoa-me ainda, porque eu não tinha direito.
JOANA - Nunca me fizeste mal, papai!
DUMONT - Não me chames teu pai!
JOANA - Como te hei de chamar então?
DUMONT - Chama-me teu amigo! (Não podendo conter-se e caindo com a cabeça nos
joelhos de Joana, debulhado em lágrimas). Ah! minha pobre menina, como eu sou
desgraçado!
JOANA (com medo) - Mas que é? (Toma o lenço e enxuga os olhos de Dumont). Não chore,
papa e, os homens não choram: isso é bom para as meninas!
DUMONT - Tens razão. (Toca a campainha). Vai brincar! (Ao criado) à casa do Sr.
Alvarez e diga-lhe que estou à espera dele.
ATO TERCEIRO
A mesma decoração.
CENA I
A SRA. LARCEY, UM CRIADO
A SRA. LARCEY (consigo) - Ninguém! Nem ela... nem ele... nem ele... nem ela. Ninguém a
viu no baile... De quem se despede a gente nesta casa quando sai? Que se terá passado?
(Toca a campainha). É talvez aquela carta... Preciso saber o que havia naquela carta...
cheira-me a mistério. (Ao criado que entra) Onde está Matilde?
CRIADO - A senhora achou-se repentinamente indisposta. Retirou-se para o seu quarto e deu
ordem de não receber pessoa alguma.
A SRA. LARCEY - E o Sr. Dumont?
CRIADO - Esteve aqui pouco com a menina. Não saiu, porque mandou chamar o Sr.
Alvarez. Ei-lo.
CENA II
DUMONT, a SRA. LARCEY
A SRA. LARCEY - Procurava o senhor ou Matilde para despedir-me.
DUMONT - Peço que desculpe a senhora Dumont, um fato imprevisto obrigou-a a retirar-se
para o quarto.
A SRA. LARCEY - Aquela carta, sem dúvida.
DUMONT - Sim... aquela carta.
A SRA LARCEY - Alguma noticia má?
DUMONT (afirmativamente) - Uma má notícia, com efeito.
A SRA. LARCEY - Que só lhe interessa, a ela?
DUMONT - Que me interessa a mim, e também à senhora...
A SRA. LARCEY - A mim?
DUMONT - À senhora! Foi mesmo por isso que eu me conservei no gabinete até agora. Tinha
de lhe dar alguns papéis, antes que a senhora fosse, e era preciso pô-los em ordem.
A SRA. LARCEY - Que papéis?
DUMONT - A senhora é nossa amiga, não?
A SRA. LARCEY - Creio que está bem convencido disso.
DUMONT - Também nós somos seus amigos, e não queremos arrastá-la no infortúnio que
nos fere.
A SRA. LARCEY - Explique-se.
DUMONT - Devo-lhe com efeito uma explicação; é o banqueiro quem lha vai dar, e que
reclama de sua parte a maior discrição, ao menos por alguns dias.
A SRA. LARCEY - Eternamente, se for preciso.
DUMONT - Não lhe peço tanto. A senhora sabe que serviço me prestou em outro tempo... o
meu amigo... Alvarez?
A SRA. LARCEY - Sei.
DUMONT - Foi por ele que eu pude restabelecer os meus negócios.
A SRA. LARCEY - Sei.
DUMONT - Desde essa época... estou eu à testa de uma das primeiras casas bancárias de
Paris, depositário e administrador de algumas grandes fortunas, entre as quais conto a sua.
A SRA. LARCEY (já inquieta) - Ou ao menos uma parte da minha... Depois ?
DUMONT - Pois bem, a nossa sociedade dissolveu-se e a casa vai liquidar.
A SRA. LARCEY - Liquidar! Oh! meu Deus!
DUMONT - Os negócios iam bem. Mas o Sr. Alvarez precisou repentinamente dos seus
fundos.
A SRA. LARCEY - Que sobem a...?
DUMONT - A quatro ou cinco milhões hoje.
A SRA. LARCEY - Então?
DUMONT - Entrego-lhos; mas para isso é preciso fazer grandes sacrifícios... Vou vender as
minhas propriedades do Berrey, os meus quadros, a minha casa.... Estou falido, em uma
palavra, porque eu não contava com esta reclamação.
A SRA. LARCEY - Não havia contrato de sociedade, ou não estará ele em regra?
DUMONT - O contrato estava em regra, porque o caso foi previsto. Cada qual ficava com a
sua liberdade. Éramos mais amigos do que sócios.
A SRA. LARCEY (mais inquieta) - E os seus credores?
DUMONT - Descanse, não perdem um ceitil. A sua conta foi a primeira que eu tirei... Aqui
está um saque sobre o banco, com o qual, pode receber a quantia que lhe cabe.
A SRA. LARCEY (respirando) - Recebo tudo? Ah! o senhor é um homem honrado!
DUMONT - Nunca duvidei disso, mas nem por isso deixa de alegrar-me a sua confirmação.
A SRA. LARCEY - E a que atribui a repentina necessidade de dinheiro que tem o Sr. Alvarez?
DUMONT - A uma necessidade de dinheiro.
A SRA. LARCEY - Mas ele podia fazer a reclamação por outros termos.
DUMONT - Não os empregou para obsequiar-me. É um homem de primeiros movimentos. É
preciso aceitá-lo como ele é.
A SRA. LARCEY - E o senhor não lhe fica querendo mal?
DUMONT - Eu não quero mal a ninguém.
A SRA. LARCEY - Mas ele sabe que o arruína?
DUMONT - Deve supô-lo.
A SRA. LARCEY - E que diz Matilde?
DUMONT - Resigna-se... Foi a ela que Alvarez encarregou desta comunicação inesperada.
Esse era o conteúdo daquela carta que a perturbou tanto.
A SRA. LARCEY - Senhor Dumont!
DUMONT - Minha senhora!
A SRA. LARCEY - Sua mulher é um anjo! Perdoe-me o senhor, e ela também...
DUMONT - O que?
A SRA LARCEY - Quase a caluniei.
DUMONT - A senhora!
A SRA. LARCEY - No meu pensamento...
DUMONT - Como?
A SRA. LARCEY - O senhor sabe... a gente nem sempre resiste aos maus pensamentos... e é
mau isso, mas a minha franqueza lhe provará como deploro os que eu tive, e tudo quanto eu
faria para combatê-los, se outrem os tivesse.
DUMONT - Peço-lhe que se explique.
A SRA. LARCEY - Matilde podia impedir a sua ruína. É verdade que seria à custa de sua
honra: o Sr. Alvarez ama-a.
DUMONT - Acredita?
A SRA. LARCEY - Estou certa, e foi para vingar-se da resistência dela que ele fez o que fez.
Vingança de lacaio.
DUMONT - Oh! não... seria demasiado horrível e indigno de um cavalheiro!
A SRA. LARCEY - Era visível esse amor. Falava-se, e até se começava a acusar Matilde...
Vim hoje adverti-la disso... mas agora é preciso calar. Há gente que eu conheço, sem faltar no
casal Berteux, que vai ficar desesperada, mas estou contente por causa de Matilde.
DUMONT - Obrigado, minha senhora, pelas suas boas palavras... Com efeito, Matilde é a
minha consolação neste desastre que a fere também, e que ela quer compartir até o fim... Há
de lhe custar, a ela, que está afeita desde a infância ao luxo e a todos os gozos da vida; mas,
no caso mesmo em que lhe faltasse a coragem e ela voltasse para a casa dos pais, como
lhe lembrei, nem assim lhe ficarei querendo mal. A lembrança da felicidade que lhe devo no
passado basta-me no futuro.
A SRA. LARCEY - Posso abraçá-la antes de sair?
DUMONT (sorrindo) - Pois não! (Ao criado) Diga à senhora que venha aqui.
A SRA. LARCEY - Aquele Alvarez é um miserável; deixarei de cumprimentá-lo a primeira vez
que o vir, e proibirei aos meus amigos que lhe falem...
DUMONT - Ele está no seu direito.
A SRA. LARCEY - Conte com a minha eterna amizade... Coragem, Sr. Dumont, coragem!
DUMONT - Tê-la-ei.
A SRA. LARCEY (olhando para o papel que Dumont lhe deu) - Então, é um saque à vista?
DUMONT - À vista...
A SRA. LARCEY - Eu própria posso ir cobrar o dinheiro?
DUMONT - Agora mesmo...
A SRA. LARCEY - Vou passar pelo banco antes de entrar em casa...
DUMONT - É isso...
A SRA. LARCEY - Está aberto até às 4 horas?
DUMONT - Está... (Entra Matilde).
A SRA. LARCEY (indo a ela) - Pobre amiguinha... (Abraça-a). Queria abraçá-la ainda uma
vez... Perdoe-me tudo o que lhe disse, a senhora não tem melhor amiga do que eu... - de
ter a prova, porque havemos de nos encontrar muitas vezes... Eu não sou daquelas que
fogem ao infortúnio... Coragem! e até breve!
CRIADO (anunciando) - Está aí o Sr. Alvarez.
A SRA. LARCEY - Adeus!... Não quero vê-lo. (Consigo) Três horas e meia... mas há tempo de
sobra... (Sai por outra porta).
DUMONT - Pode entrar, o Sr. Alvarez.
CENA III
DUMONT, ALVAREZ, MATILDE
MATILDE (a Dumont) - Que devo fazer?
DUMONT - Fique...
ALVAREZ - Estou às tuas ordens, Henrique, que queres de mim?
DUMONT - Dois homens na situação em que nos achamos em face um do outro podem
impedir que essa situação caia no ridículo ou na ignomínia, falando com franqueza.
ALVAREZ - Que situação?
DUMONT - Faltei alguma vez aos deveres de amizade?
ALVAREZ - Nunca.
DUMONT - E contudo tu traíste essa amizade... e pelo crime mais odioso... pelo mais
covarde...
ALVAREZ - Henrique!
DUMONT - Há sete anos que o senhor é amante de minha mulher!
ALVAREZ - Senhor!!
DUMONT - Eis a sua carta.
ALVAREZ - O senhor interceptou-a!
DUMONT - Foi a minha senhora que ma entregou.
ALVAREZ - Ela!
DUMONT - Ela, e de mão própria.
ALVAREZ Teve semelhante audácia?
DUMONT - Confiança, deve dizer.
ALVAREZ - Por que confiança?
DUMONT - Porque não o ama; porque nunca o amou... e prefere a minha justiça, a minha
cólera mesmo... ao seu amor... É verdade, senhora?
MATILDE - É verdade.
ALVAREZ - É tudo quanto tem para dizer-me?
DUMONT - Não. sete anos!... Compreende que, sem que eu saiba, dou ao mundo o
indigno espetáculo de um marido ridículo pelo excesso de sua confiança, talvez mesmo o de
um marido infame pela aparência de sua cumplicidade... e sobretudo depois do serviço que o
senhor me fez, porque eu fui obsequiado pelo senhor.
ALVAREZ - Mas.
DUMONT - E quero ficá-lo sendo.
ALVAREZ - A que quer chegar?
DUMONT - Quero pedir-lhe um conselho.
ALVAREZ - Um conselho, a mim? Não está falando seriamente?
DUMONT - Como não falaria a sério, numa situação tão séria? Pensa que no espaço de duas
horas não tive tempo de refletir? E a reflexão vai depressa em certos momentos. Sei o que
faço, porque, graças a Deus, o meu espírito é são, e a minha alma forte... É uma boa coisa
aprender a vida na escola de pais honestos... Interrogo-o, pois - é esse o menor dos meus
direitos! - e pergunto-lhe: se eu lhe tivesse prestado outrora um favor assinalado; se, depois
de tê-lo prestado, tornasse-me seu sócio e amigo íntimo, se depois lhe roubasse a mulher, e
se tivesse dela uma filha, que, sendo minha, passasse por sua, que faria o senhor?
Responda!
MATILDE (de joelhos) - Meu Deus! Meu Deus!
ALVAREZ - situações em que só se tomam conselhos de si próprio, e da própria
dignidade.
DUMONT - Responda, senhor!
ALVAREZ - Não me compete a mim dizer-lhe o que deve fazer.
DUMONT - Então posso interpretar o seu silêncio?
ALVAREZ - Interprete-o.
DUMONT - No meu lugar, tratar-me-ia de miserável, de infame, talvez mesmo me
esbofeteasse... afim de tornar inevitável o duelo que ordinariamente deve resultar de uma
situação como esta, entre dois homens como nós.
ALVAREZ - Talvez! (Matilde ouve com terror).
DUMONT - Eu não admitirei quatro testemunhas na confidência de um fato que deve ser
conhecido dos culpados e do juiz.... E demais, se eu não o matasse onde estaria a
reparação?... Se o senhor me matasse onde estaria a justiça?
ALVAREZ - Então?
DUMONT - Interroguei a lei, e pedi-lhe alguns meios que ela me oferecia... Posso matá-los, a
ela e ao senhor... Posso fazer prender minha mulher, e infamá-la publicamente. Posso
separar-me dela... amigavelmente, como se diz... Mas seja o que for, desonra para ela,
ridículo para mim, vergonha para a criança que não pode ser solidária do crime de vós
ambos... A lei é cruel... podia prever melhor... Resta-me o direito de perdoar. Ai! bem o
quisera, mas eu sou apenas um homem, e não tenho forças para isso, apesar do desejo que
teria de mostrar-me superior a ambos. Por mais cega que fosse essa paixão, é impossível
que não corassem nem sofressem com o mal que fizeram... mal incalculável, irreparável, -
porque rouba-me o passado, o presente e o futuro... rouba-me o amor da mulher, as
esperanças da filha, e até a amizade do senhor... Todo o meu coração se resumia nos três!
ALVAREZ (comovido) - Senhor!... (Matilde chora em silêncio e ajoelhada).
DUMONT - E depois, há o mundo a quem eu tinha de dar uma explicação...
A Sra. Larcey, que o representa aos meus olhos com todas as suas frivolidades, injustiças,
motejos... e direitos, sabe o que deve dizer, e o mundo dirá o que ela disser, porque eis
aqui o que eu exijo de ambos. O Sr. Alvarez me reclamará bruscamente esta tarde, por via
legal, os capitais que tem em minha casa... de maneira que me arruíne, para que lhos
entregue no prazo que marcar.
ALVAREZ - Pede-me uma infâmia.
DUMONT - Está no caso de recusar alguma?
ALVAREZ - Mas...
DUMONT - E acredita o senhor que eu possa guardar agora um ceitil da fortuna que adquiri
com o seu dinheiro? Exijo que se submeta a esta condição... Quero ficar arruinado, e
arruinado pelo senhor.
ALVAREZ - E se eu recusar?
DUMONT - Sabe que nunca faltei à minha palavra... e se recusarem fazer aquilo que eu
tenho o direito de impor-lhes, dou-lhes a minha palavra de honra que ao sair daqui... dou um
tiro na cabeça, e deixarei uma carta junto ao meu testamento, por onde se verá a verdadeira
razão da minha morte...
ALVAREZ - Desonra-me por outro modo, eis tudo...
DUMONT (dispondo-se) - Escolha.
ALVAREZ - Obedeço.
DUMONT - Está bem. As suas contas estão feitas, dentro de uma hora o meu caixa se
entenderá com o senhor. Quanto à senhora... (Pára um momento).
MATILDE - Meu Deus, que vai ele fazer?
DUMONT - Quanto à senhora, irá viver com seus pais... depois de me reclamar o seu dote,
escrevendo-me uma carta em que me de dizer que não tem coragem de suportar a
miséria...
MATILDE - Mas é impossível... seria esse o meu perdão...
DUMONT - Não quero perdoar... e entre os castigos que eu podia impor-lhes, escolhi o mais
infamante. Condeno-os à ingratidão.
MATILDE (timidamente) - E minha filha?
DUMONT (sorrindo) - Sua filha? (Ao criado que entra) Mande a menina. (Sai o criado).
Como de nós três, sou eu o único que pode fazer dela uma mulher honesta, guardo-a comigo,
e, como não tenho mais nada, trabalharei para educá-la agora, e para casá-la mais tarde. Na
prosperidade o trabalho é ainda um dever... na desgraça, é um refúgio!
JOANA - Aqui estou.
DUMONT - Vem cá, Joana! Tua mãe é rica, teu padrinho é rico, eu estou pobre. Sabes o que
é ser pobre?
JOANA - Oh! sei, papai!
DUMONT - Com qual de nós queres tu viver?
JOANA - Com papai.
DUMONT - Tua mãe é obrigada a partir, queres ficar comigo ou ir com ela?
JOANA - Quero ficar contigo!
DUMONT - Vai abraçar tua mãe (Joana vai à sua mãe, depois de abraçá-la e beijá-la, faz um
movimento para ir a Alvarez.- Matilde a retém e com o braço impele-a para Dumont. Alvarez
sai desesperado). E agora, senhora, pode ir para casa de sua mãe! (Matilde sai abatida - A
Joana, tomando-a nos braços). Gostas então de mim?
JOANA - Oh! sim, papai... mas eu tornarei a ver mamãe?
DUMONT (olhando para a porta por onde saiu Matilde) - Talvez!
F I M
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