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Ensaios sobre a
Herança Cultural Japonesa
Incorporada à Sociedade Brasileira
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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim
Secretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo
INSTITUTO RIO BRANCO (IRBR)
Diretor-Geral Embaixador Fernando Guimarães Reis
A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério
das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade
internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização
da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa
brasileira.
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo, Sala 1
70170-900 Brasília, DF
Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847
Fax: (61) 3411 9125
Site: www.funag.gov.br
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Ensaios sobre a
Herança Cultural Japonesa
Incorporada à Sociedade Brasileira
Brasília, 2008
Copyright ©, Fundação Alexandre de Gusmão
Capa:
Wakabaihashi, gravura XII/XXX, 1998.
Equipe técnica:
Eliane Miranda Paiva
Maria Marta Cezar Lopes
Cíntia Rejane Sousa Araújo Gonçalves
Projeto gráfico e diagramação:
Cláudia Capella e Paulo Pedersolli
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
70170-900 Brasília – DF
Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028
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Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994, de 14/12/2004.
Ensaios sobre a herança cultural japonesa incorporada à sociedade
brasileira / Fundação Alexandre de Gusmão. - Brasília: FUNAG,
2008.
260 p.
ISBN: 978-85-7631-139-3
1. Cultura - Japão. 2. Cultura - Japão - Brasil. I. Título.
CDU: 008 (520)
CDU: 08 (520:81)
Impresso no Brasil 2008
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................................7
Embaixador Fernando Guimarães Reis
I. A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À
SOCIEDADE BRASILEIRA ....................................................................15
Ana Paula de Almeida Kobe
II. UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA ................43
Candice Sakamoto Souza Vianna
III. ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA
À
SOCIEDADE BRASILEIRA .................................................................85
Cecília Kiku Ishitani
IV. CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO ...................109
Denis Ishikawa dos Santos
V. YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO
CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE) .............................. 137
Henrique Luiz Jenné
VI. O JAPÃO DE MEUS OLHOS ............................................................... 165
Marcos Mauricio Toba
VII. O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES
E
A IMIGRAÇÃO JAPONESA ................................................................203
Viviane Ferreira Lopes
VIII.REFLEXÕES ................................................................................... 233
Yukie Watanabe
APRESENTAÇÃO
9
Há exatamente um século, os imigrantes japoneses
trouxeram consigo uma herança. Talvez não soubessem que eram
portadores dessa herança, que a princípio ficou até isolada, em um
natural instinto de defesa cultural. Mas, com o passar dos anos, a
herança se difundiu pela sociedade brasileira. Foi uma repartição
generosa. Ao se universalizar, a doação se tornou mais importante
do que o doador.
É o momento de refletir sobre isso: em 2008 celebramos o
Centenário da Imigração Japonesa para o Brasil. Há rasgos heróicos
nessa história, todos sabemos: foi uma verdadeira saga. Por outro
lado, quantas voltas não foram dadas nesses 100 anos! Quantas vezes
o destino não riu dos homens, que crêem poder antecipar o amanhã!
Mas a História tem a força da água: passa por todas as brechas e vai
moldando a vertente que lhe convém, alheia a queixas e a preconceitos.
Ao fim do trajeto, todas as águas se juntam.
A reflexão que me ocorre, em meio a uma trajetória secular, é
que as heranças não são gratuitas – têm que ser assumidas, de geração
para geração. É, aliás, o que faz o mundo caminhar. E a principal herança,
nem sempre percebida, é a própria identidade. É claro que a identidade
nunca é dada, mas há os que a recebem como um modelo quase pronto.
Pode parecer um presente ou um empréstimo, mas – mais tarde – sempre
se acaba pagando um preço pela aparente facilidade. Identidade não se
imita.
Do ponto de vista étnico, quando há mais de uma herança, o
que é uma dádiva pode se transformar numa dúvida: os beneficiários são
colocados diante de situações às vezes inesperadas, dada a aparente
APRESENTAÇÃO
Fernando G. Reis
10
FERNANDO G. REIS
diferença. Queiram ou não, são obrigados a fazer opções: têm que se
afirmar. São então induzidos a achar sua própria identidade.
Digo achar, porque obviamente a identidade já está lá, esperando
para se manifestar. O problema é que nessa busca não há propriamente
roteiro – é mais a eventualidade de um encontro consigo mesmo. Um dia
ele acontece, ainda que a custo de desencontros. O processo não é apenas
acidentado – é sofrido. Mas o sofrimento, ainda que indesejável, é muitas
vezes redentor: gera prodígios e abre a percepção. Faz compreender que
a realidade gosta de inventar caminhos próprios, às vezes com ironia,
outras vezes aos solavancos.
Neste particular, a História não tem muito método. A rigor
também não tem pressa: o fato é que um século pode ser medido em
apenas quatro gerações. Ora, os autores reunidos neste volume se
declaram – em sua maioria – pertencentes à quarta geração dos
imigrantes que chegaram em 1908. Assim, a visão dos yonsei contribui
para decifrar o delicado enredo de uma herança que veio de fora, sim,
mas aqui deitou raízes e deu frutos genuinamente brasileiros. São oito
os ensaios agora publicados, ao cabo de um Concurso aberto e
democrático. A meu ver, cada um dos textos tem seu valor intrínseco
e propõe uma perspectiva original. Além de reveladores e instrutivos,
são escritos saborosos. Não hesito em dizer que certas passagens são
antológicas, seja pelo lado anedótico, seja pela profunda veracidade.
Já se conclui que os colegas-autores não merecem simples
parabéns. São credores de respeito e admiração, pois – em maior ou
menor medida – aceitaram o desafio de falar de sua própria experiência.
Foram corajosos e, sob diferentes ângulos, todos trataram de um tema
de grande interesse para a sociedade brasileira e, em conseqüência,
para a diplomacia brasileira.
Por mais que o exercício fosse louvável e oportuno, havia
que enfrentar uma tripla dificuldade: pessoal, intelectual e funcional.
Sejamos francos, é sempre difícil falar de si mesmo – digo, falar com
autenticidade. A palavra Eu é certamente das mais freqüentes em todos
11
APRESENTAÇÃO
os discursos, mas – em geral – o indefectível ego é apenas uma fachada.
Quando se trata de ir além da superfície, as pessoas hesitam, resistem
ou até se rebelam. De resto, sabemos que os diplomatas não costumam
ser diretos nem transparentes. Não foi o que aconteceu neste Concurso,
franqueado – sem distinções – aos membros da carreira até o nível de
Conselheiro.
Seria natural que o tema do Concurso mobilizasse de forma
mais direta aos que têm vínculos pessoais com o Japão. A propósito, o
Serviço Exterior Brasileiro conta atualmente com 22 nipo-descendentes.
Pode parecer pouco, mas é um número expressivo em termos relativos,
considerando-se o percentual de origem japonesa no total da população
brasileira. O pioneiro, que ingressou na carreira em 1975, já é hoje
Embaixador. Seu exemplo foi seguido, a princípio de forma tímida, mas
dentro de uma linha agora constante e ascendente. De qualquer forma, a
amostragem foi ampla, pois o Concurso recebeu também contribuições
importantes de diplomatas sem ascendência nipônica, o que ilustra e
comprova a forte influência da cultura japonesa no nosso meio.
Ao se escolher o tema do certame não se excluiu a
possibilidade de uma resposta acadêmica, que seria válida. Mas o que
se esperava era algo mais: que o tratamento da questão tivesse a marca
de um testemunho pessoal. É verdade que o desafio foi formulado na
linguagem neutra de um Edital oficial, como corresponde a um certame
público, patrocinado conjuntamente pelo IRBr e pela FUNAG. Nem
por isso, os concorrentes deixaram de compreender que se tratava de
um convite para dar um depoimento de primeira mão. Em outras
palavras, havia plena liberdade para a sensibilidade de cada um. Graças
a isso, foram recuperadas lembranças que de outra forma talvez
ficassem perdidas ou – quem sabe – permanecessem secretamente
encerradas nos arcanos de vagas memórias da infância e da adolescência.
Acontece que tais lembranças são indispensáveis para compreendermos
a verdadeira História do Brasil, que é antes de mais nada a história das
pessoas em seu cotidiano. Essa riqueza é inesgotável.
12
FERNANDO G. REIS
Através das vivências é mais fácil entender os fatos. No caso,
tratava-se de pensar a nossa herança japonesa – nossa, de todos os
brasileiros, e não apenas dos que de uma forma ou de outra estão mais
ligados ao Japão. Nas respostas ao inusitado convite, não faltou
objetividade e não faltou sinceridade, até o limite de um discreto
intimismo. O resultado, em seu conjunto, é muito bonito – diria
mesmo que é tocante, porque em última análise o que encontramos
nesses ensaios são relatos existenciais. O enfoque pode guardar um
certo recuo analítico, mas a matéria é a própria vida, que não se deixa
aprisionar em fórmulas definitivas. Sob apelo emocional, a memória
é muito mais do que um depósito de informações.
A coragem, que salientei, está justamente em ir ao encontro
da verdade – a verdade de cada um, que é o que importa. Mas, em
geral, o processo do auto-descobrimento é caprichoso: a revelação,
por natureza, é uma surpresa. Nas páginas que se seguem há momentos
assim, alguns mais dramáticos, outros tratados com o disfarce do
humor, o que comprova o distanciamento inerente à reflexão madura.
Em suma, são inesperadas lições de humanidade, contadas com
simplicidade e sem qualquer pretensão de generalizações apressadas.
Na boa ciência, sobretudo nas humanas, a teoria não pode ser surda
aos sussurros da experiência. Vale o exemplo.
Dito isso, cabe notar que por acréscimo, o exercício tem um
inegável interesse acadêmico. Os participantes do Concurso fazem parte
de um universo perfeitamente identificável: eles pertencem às gerações
mais jovens do Itamaraty, o que já por si confere valor documental a
essa amostra. Sob outro prisma, a espontaneidade dos textos não
prejudica sua importância como material de estudo. Muito pelo
contrário: a colheita foi farta e diversificada. Por outro meio, teria
sido bastante difícil obtê-la.
O que se vai ler mostra claramente que estamos diante de uma
temática atual, que desperta reações fortes e suscita problemas. Além disso,
é uma questão que interessa a todos, seja por seu apelo antropológico, seja
13
APRESENTAÇÃO
porque permite uma reflexão em profundidade sobre a própria sociedade
brasileira. Aliás, o livro vem preencher uma lacuna: são muitos os
depoimentos da primeira e da segunda gerações dos imigrantes, em tempos
sabidamente árduos, mas são ainda escassos os escritos da terceira e quarta
gerações, notavelmente exitosas e já perfeitamente integradas ao meio
brasileiro. Em confronto com a literatura anterior sobre a matéria, os
depoimentos dos mais jovens exibem uma perspectiva diferente, como
era de se esperar. O que talvez fosse menos previsível é o grau de isenção
e de maturidade: a sensibilidade fica bem à mostra, mas não há o páthos
do ressentimento. A evolução é nítida.
Ao articular esta apresentação, que só pretende ser um convite,
resisto ao desejo de comentar os ensaios um por um – a tentação é
grande mas seria uma deslealdade para com o leitor. Nas páginas que
se seguem há matéria para contos e mesmo romances. Assim que não
quero retardar o prazer dos que já estão com o livro na mão.
Não vou, contudo, me furtar a dar também o meu
depoimento, talvez subjetivo. Ao fim e ao cabo, a impressão maior
que me ficou destes ensaios é a de uma benigna nostalgia – benigna
e curiosa. Ela se manifesta por exemplo no apreço por uma ética
inabalável, que antes comportava gestos heróicos, mas hoje – de
forma talvez não menos corajosa – tem que se provar na banalidade
do dia-a-dia. Creio que essa comparação permeia a maioria dos
textos. Da mesma forma, subsiste a fantasia da terra dos antepassados,
quase um mito de transmissão oral. Na verdade, o Japão dos avós
ou bisavós pioneiros é um país único, que só tem realidade na
memória. Assim, é muito legítimo o anseio de querer preservar um
passado prestes a se desvanecer e que sobrevive nos instantâneos de
lembranças fugidias.
Para completar o desenho, é preciso juntar os pedaços com
carinho e esforço. Assim, os vazios se vão preenchendo aos poucos,
seja por adivinhação, seja através de sons associados a entes queridos,
seja graças ao inesperado retorno de cheiros e de sabores remanescentes
de reuniões da “família ampliada”, bem à moda nipônica. São dias distantes
mas ainda presentes. O reflexo desse mundo combina mal com a
atualidade. Assim, a tradição cede lugar a um outro tipo de apelo: não há
desencanto com o presente, mas há o desejo de imobilizar o tempo –
uma tempo que já pertence tanto à crônica como à ficção.
Se há nostalgia, há igualmente serenidade, pois nada se perdeu.
Os jovens sabem, por intuição, que o passado não está extinto – ao
contrário, ele se tornou mais tangível e mais protegido: foi incorporado a
algo maior, com a perspectiva que só o passar do tempo permite, através
da vivência das gerações que se sucedem. A dúvida – ao se explicitar –
voltou a ser dádiva. A identidade herdada foi assumida. As águas se juntam.
Talvez o mérito do Concurso
1
tenha sido o de haver tornado mais clara
essa percepção, para os autores e agora para os leitores.
14
FERNANDO G. REIS
1
Cabe um especial reconhecimento ao Embaixador Frederico Cezar de Araújo, ao Embai-
xador Valdemar Carneiro Leão Neto e à Embaixadora Vitória Alice Cleaver, que se dispu-
seram a integrar a Banca Julgadora, que avaliou todos os ensaios. Foram contemplados
com viagem de estudos ao Japão, prêmio adicional previsto no Edital do Concurso, o
Secretário Marcos Maurício Toba e a Secretária Candice Sakamoto Souza Vianna.
I.
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA
INCORPORADA
À SOCIEDADE
BRASILEIRA
1. PRÓLOGO: PERCEPÇÕES DA INFÂNCIA
Ser descendente de japoneses no norte do Paraná não era
motivo para sentir-me “brasileira diferenciada”. Ao lado de negros,
italianos, ucranianos, alemães, espanhóis e tantos outros que chegaram
ao País em busca de melhores condições de vida, os japoneses eram
parte do mosaico de raças que tornavam o Paraná, em particular, e o
Brasil, em geral, terra de todos. Diferenças entre os grupos emigrados
havia, mas a percepção, na década de 1980, quando nasci, era de sintonia
e convivência harmônica.
Na escola, as crianças não faziam dos olhos puxados pretexto
para brincadeiras que pudessem depreciar determinados traços físicos.
Parte da explicação para o convívio pacífico baseava-se na ausência de
fenótipo reconhecido como superior. Não havia rosto que
determinasse com exatidão quem era ou deixava de ser brasileiro. Mais
do que traços físicos, a língua portuguesa sobressaía como elemento
de identidade, que registrava, pelas construções lexicais e morfológicas,
o grau de adaptação à cultura brasileira.
Antes de identificar, pelo aprendizado, modelos de
construção da identidade, as crianças percebem como naturais as
situações que as circundam. Crescer com pessoas de diferentes etnias e
de hábitos nem sempre coincidentes as tornam mais flexíveis para o
convívio multicultural. No meu caso, por ter estado, desde muito
jovem, em meio a pessoas e a ambientes diversificados, que não se
confundiam com guetos ou círculos restritos de tal ou qual
nacionalidade, causou-me espécie, por volta dos 5 anos de idade,
Ana Paula de Almeida Kobe
17
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA
À
SOCIEDADE BRASILEIRA
18
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
quando olharam-me, no interior do Nordeste, com sincera curiosidade,
como se não acreditassem que uma menina tão diferente pudesse ser
também brasileira. Dei-me conta da alteridade e do reconhecimento
que um homem faz do outro não pelo que leva na alma, mas pelo
traço que marca a pele e pela forma como se relaciona com os
semelhantes.
Na infância, não é possível avaliar com acuidade o que seja
uma herança. Apenas com o passar dos anos o homem adquire
instrumentais que possibilitam apreciar a complexidade do que lhe
foi legado. Leva-se tempo para distinguir o que nos foi entregue como
produto de uma cultura e o que nos é inerente, o que nos diferencia
na personalidade. Minhas percepções de criança são como imagens
vistas através de uma fechadura, que me permitem compreender o
quanto de uma herança cultural já me acompanhava, desde muito
cedo.
1.1 A LÍNGUA
Nas família que buscaram manter as raízes das tradições
nipônicas, o costume era usar a própria língua japonesa nas conversas
de casa. Era como se coexistisse mundo paralelo à realidade das ruas,
do trabalho e da escola, na tentativa de se conservar o núcleo da
identidade emigrada: a língua. Na casa em que passei parte da infância,
as conversas em japonês só existiam quando meus avós paternos
vinham nos visitar. De maneira improvisada e intuitiva, dirigiam-se a
minha mãe, brasileira da gema, a mim e a minha irmã em português
recheado de “né” e de palavras nas quais o “l”correspondia a “r”: planta
virava pranta; problema, probrema.
O diálogo de meus avós com meu pai era sempre em japonês.
Quando começavam essas conversas, minha irmã e eu inclinávamos a
cabeça, como se estivéssemos buscando a posição mais adequada para
o ouvido, para que pudesse compreender algo que se aproximava a
19
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
uma linguagem cifrada. Desde os sete anos de idade, íamos
regularmente, duas vezes por semana à escola de japonês - o
“nihongaco”. Ali encontrávamos extensão natural das casas onde
predominavam não só a cultura japonesa, mas também o uso de
produtos, enviados por parentes do Japão, preciosos na época em que
barreiras à importação eram parte de políticas de Estado.
Em casa, não falávamos japonês e não fazíamos culinária
japonesa, salvo em ocasiões especiais. A cultura e os costumes brasileiros
impunham-se. O casamento de meu pai com uma nordestina já havia
surpreendido a família. Foi só após o nascimento das netas mestiças
que os familiares japoneses passaram a aceitar com certa
condescendência a escolha por brasileira sem traços ou heranças
nipônicas. A dificuldade de compreensão mútua contribuía para a
tensão explícita. A eleição do nome foi amostra dos desafios que se
apresentariam. Enquanto a família paterna fazia lista com sugestão de
nomes, entre os quais eram fortes candidatos “Kioko”, “Keiko” e
“Mitiko”, a família materna torcia o nariz para a sonoridade
estrangeira. O conflito para a escolha do nome chegou a tal nível que,
certa noite, minha mãe sonhou que as filhas eram batizadas com nomes
cujo significado era compreensível, mas não apropriado para designar
pessoas. Sonhara que recebíamos o nome “Municípia”. Na manhã que
se seguiu, arrebatada pelo absurdo do subconsciente, decidiu que
buscaria nome simples, que pudesse ser comum às duas filhas e que
neutralizasse disputas culturais. Dessa forma, chegou-se a um simples
palíndromo, que poderia ser pronunciado sem dificuldade tanto em
Roraima quanto em Hokaido. Afinal, concluía minha mãe, o Brasil
era o país onde cresceríamos e onde construiríamos nossa identidade.
A compensação para o nome brasileiro foi a matrícula, aos
quatro anos de idade, na escola de língua japonesa. Para os colegas do
“nihongaco”, éramos as mestiças. Nem brasileiras nem japonesas. Por
conta disso, talvez, lá se foram os anos em que o estudo da língua
japonesa pouco progrediu. Eu não me sentia japonesa; minha irmã,
20
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
tampouco. Os elementos que compunham o universo nipônico
despertavam curiosidade profunda, mas em misto de temor e
estranheza. Era inegável a imagem refletida no espelho: dois olhinhos
puxados, pela clara, cabelo escuro e escorrido. Mas a língua, reduto
primordial da identidade, parecia firmar-se como território de
segurança e de adequação ao mundo. O velho “sensei”, taciturno e
rígido, assustava-nos. Não me lembro como chegávamos a entendê-
lo, pois não falava, ou fazia questão de não falar, português. Creio
que nos fixávamos na linguagem corporal ou simplesmente imitávamos
as demais crianças. A comunicação sempre encontra as próprias
estratégias para realizar-se, mas, no nosso caso, acredito que se operava
verdadeiro milagre, porque íamos acompanhando, sem muita vocação
ou vontade, o ritmo da classe. E ainda obedecíamos, sem pestanejar,
às austeras instruções do professor.
Em uma das tantas visitas de meus avós paternos à nossa
casa, lá estávamos eu e minha irmã ouvindo atentamente a animada
conversa dos adultos, em língua japonesa. Tão compenetradas
estávamos, com a cabecinha inclinada, quase lançando uma orelha para
o teto, que minha mãe não resistiu e ficou a nos observar. Antes de
nos deitarmos, perguntou, em tom professoral, embargado por dose
de curiosidade, o que havíamos entendido de toda a conversa.
Surpresas, minha irmã e eu nos olhamos com toda a cumplicidade
que duas crianças são capazes de compartilhar e, sem hesitação,
respondemos quase em uníssono:
– A risada.
1.2 FORA E DENTRO DE CASA: AMIGOS E FAMÍLIA
A disciplina e a dedicação são atributos reconhecidos dos
japoneses. A criança aprende, muito cedo, o sentido do dever cumprido
e a importância de se honrar os pais, por meio de êxito escolar e
profissional. Há, portanto, expectativas compreensíveis em relação
21
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
aos nipo-brasileiros, como destacar-se no colégio, nos exames
vestibulares e no campo profissional. Quando ainda criança, notava a
tranqüilidade das mães de minhas coleguinhas, descendentes de
imigrantes ocidentais, quando estávamos juntas. Parecia que os olhos
puxados funcionavam como atestado de confiança e de credibilidade,
de dedicação aos estudos e de disciplina. Certo é que não apenas isso
determinava a qualidade e a satisfação da amizade, mas a ascendência
japonesa, de alguma forma, inspirava confiança, respeito e indicava
bons exemplos a serem seguidos.
A comunidade nipônica, por sua vez, reagia de forma inversa
em relação aos brasileiros: filhos de pai e mãe japoneses eram
estimulados a relacionarem-se com filhos de pais e mães japoneses.
Como mestiça, sentia o peso e os obstáculos a serem vencidos para
qualquer aproximação que ultrapassasse a mera cordialidade. Lembro-
me com nítida indignação o dia em que, depois de mais uma aula no
“nihongaco”, fui convidada por uma colega a visitar sua casa, situada
ao lado da escola. Ao entrar na sala, deparamo-nos com sua mãe, que
arregalou os olhos e preparou a careta mais feia para demonstrar
incômodo e reprovação. Nem todas as famílias eram assim. Havia as
mais flexíveis e as mais intolerantes. A mim, tocou-me experiência
desagradável, compensada por tantas outras em que fui recebida com
os braços abertos - sem serem escancarados - pela família de outros
colegas de mãe e pai japoneses. Era natural que, diante da possibilidade
de não ser aceita pelas famílias mais recalcitrantes, porque desconfiadas
e, em certa medida, ainda não integradas à cultura brasileira, eu me
aproximasse dos amigos que tinham mãe ou pai brasileiros. E com
esses, aperfeiçoava mais o português do que o japonês.
Já a questão do gênero, superada de forma paulatina mediante
conquistas das mulheres e da contagiante febre do “politicamente
correto”, nas famílias orientais continua a ter peso. É certo que
costumes e valores mudam ao longo do tempo, mas, ao recordar a
década de 1980, era expressiva a importância conferida ao nascimento
22
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
de um filho homem, perpetuador do nome e das tradições. Minha
família paterna, por exemplo, esperava com ansiedade o nascimento
de um homem. Não foi sem certa dose de decepção que descobriram
que nasceria uma mulher, ou talvez duas ao mesmo tempo. Ainda
que na sociedade brasileira o papel feminino seja tão importante quanto
o masculino, na cultura japonesa o homem é o arquétipo da força e
das virtudes. As gerações mais jovens tratam a questão do gênero com
mais naturalidade. As gerações antigas, no entanto, são herdeiras da
mulher submissa, compenetrada em afazeres domésticos, dedicada à
criação dos filhos e ao bem-estar do marido.
Nascida mulher, na véspera, ou quase, do novo milênio, pude
entrever a expectativa cambiante da família paterna: seria eu uma jovem
instruída, capaz de alcançar os próprios objetivos de vida, ou tornar-
me-ia esposa e mãe dedicada, talvez disposta a retornar ao Japão,
percorrendo o caminho inverso dos antepassados? Em casa, não havia
espaço para muita negociação: prevalecia, quase sempre, a situação
mais próxima à sociedade brasileira. Em meio a decisões que
confrontavam duas culturas, eu afastava-me do que pudesse ser herança
nipônica. Desde o início, fui experimento da miscigenação aculturada.
Impossibilitada de ter mais filhos, minha mãe viu-se na
premência de tornar a filha mulher aceita e estimulada perante a família
do marido. Nessa tarefa, nem sempre fácil, esmerou-se em demonstrar
a força e as virtudes femininas, dentro e fora de casa. E reconheço a
complexidade do feito, já que, quando saía com minha mãe, não eram
poucas as pessoas que lhe perguntavam se era a “babá da japonesinha”.
Com o passar dos anos, foram firmando-se traços semelhantes aos
dela, mas, quando ainda criança, o que se percebia, de pronto, eram
os olhinhos esticados, que nada lembravam os da mãe. Se, por um
lado, isso era motivo de alegria para a família paterna, prova inconteste
de pertencimento, por outro, à minha mãe, faltava-lhe o olhar da
identificação: ver-se na própria filha, como costuma acontecer diante
da trama genética. O que fazia para compensá-la, de forma mais
23
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
inconsciente de que consciente, era imitar-lhe, ainda que de modo
sutil, a maneira de ser. Assim, cada qual garantia seu quinhão: o físico
era a herança paterna; o comportamento, a materna. Mas a divisão
não se revelou precisa. Assim como no físico ficaram impressas
características nipônicas e brasileiras, também na personalidade e no
caráter juntaram-se as duas influências.
1.3 RITOS RELIGIOSOS
Se há uma palavra que pode indicar a atmosfera que reinava
em casa ela é, sem dúvida, sincretismo. Ao nascer, fui batizada na Igreja
Católica e, ao mesmo tempo em que era alfabetizada, anos depois,
seguia as aulas de catequese, que exigiam presença assídua nas missas
de domingo. A avó materna era católica fervorosa, das que rezam por
toda a família sem descanso ou possibilidade de esmorecer. Minha
mãe era leitora dos filósofos gregos e, mais tarde, dos franceses. Meu
pai integrava o movimento Seicho-no-Ie, filosofia a transcender
sectarismo religioso, por acreditar que todas as religiões são luzes de
salvação que emanam de Deus. Em diversos finais de semana, antes
das famosas missas de domingo, acompanhava meu pai à sede da Seicho-
No-Ie, onde havia programação paralela para as crianças, organizada
de acordo com os valores e as práticas dessa filosofia-religião.
Em casa, tínhamos, no final de um dos corredores, um
templo-armário, onde estavam a estátua de Buda, algumas inscrições
em japonês e diferentes oferendas de fruta e incenso. Vez ou outra,
vinha alguém de fora, japonês, para dizer algumas palavras perante
esse pequeno templo. Como eu nada entendia, contemplava essas cenas
calada e um tanto assustada pelo inusitado e pelas frases desconhecidas.
Observando tudo isso, estava nossa fiel empregada, que ensinava
simpatias e contava coisas sobre macumba e terreiros.
E as influências seguiam: o “nihongaco” estava ligado a um
centro budista. Embora as aulas de língua japonesa não tivessem relação
24
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
direta com o templo ou com os monges, os alunos estávamos sempre a
passear por ali, espiando os ritos ou tentando adivinhar o significado oculto
do que não entendíamos. Na escola onde seguia o primeiro grau, cujo
nome era São José, havia aulas de religião. Uma vez por ano, o melhor
aluno era levado pelo padre responsável pela parte pedagógica do colégio
aos jornais da cidade e à prefeitura, para encontro com o Sr. Prefeito. Em
um ano, tive o prazer de ser a companhia do padre, que falava com voz
mansa, quase em sussurros, e tinha olhar límpido, que parecia ler o que
tínhamos na cabeça.
Do lado materno, havia um tia psicóloga, conhecedora dos
mistérios do tarô e de um mundo enigmático. Em viagem ao exterior em
que me levara, para pleno inverno europeu, desembarcou no estrangeiro
e desabou a chorar. Estava vendo fantasmas. Depois da revelação, era eu
quem tinha vontade de chorar, até porque nunca tivera um amiguinho
fantasma. Tentamos mudar as passagens para retornar ao Brasil o mais
rápido possível, sem muito sucesso. Minha avó, ao saber da confusão dos
fantasmas, desatava a rezar o terço e a pedir que minha tia deixasse de
bobagens. E enquanto esperávamos o regresso, convivíamos com os
fantasmas e eu ouvia atenta as histórias de bruxas, feitiços e mapa astral
contadas pela tia sempre a embaralhar as cartas do tarô.
Do lado paterno, não havia tio algum com poderes
mediúnicos. Costumava encontrar os seis irmãos de meu pai por
ocasião de algum enterro. Como todos moravam em distintas regiões
do Brasil, era o momento em que se reuniam para prestar solidariedade
familiar. Chamava-me a atenção o fato de sempre haver muita agitação
e comidas nesses episódios. Mais do que tristeza, celebrava-se o fato
do parente ter morrido, já que se entendia que, depois de uma vida
valorosa e dedicada à família, o falecido teria sua recompensa. A saudade
era atenuada pela certeza de que o ente querido estaria em dimensão
muito melhor. Entoavam-se, então, cantos japoneses e eu assistia, muito
interessada, a um vai-e-vem de envelopes, dentro dos quais havia
contribuição financeira para os gastos do funeral.
25
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
A mestiçagem de culturas revelou práticas e crenças
surpreendentes. Ao conviver em meio a tantas percepções distintas,
afeiçoei-me à idéia de multiplicidade, sem apegar-me a esta ou àquela
verdade. Admirava as práticas japonesas e deixava-me contagiar pelo
realismo mágico construído pela família de minha mãe. Nem os
parentes japoneses nem os brasileiros tentaram impor tal ou qual
religião ou rito. Deixaram-me livre para fazer a escolha.
1.4 BAIÃO DE DOIS: TEMPEROS NIPO-NORDESTINOS
Comecei a aproximar-me da culinária japonesa a partir da
adolescência. O que havia prevalecido no cardápio das refeições em
família eram temperos e produtos brasileiros. A lógica era bem simples:
minha mãe, eu e minha irmã não nos sentíamos verdadeiramente
atraídas pela comida nipônica. Meu pai, porém, era fascinado pela
cozinha brasileira. Decidíamos as mulheres o que então iríamos comer,
em espécie de clã matriarcal. Havia ocasiões em que meu pai retornava
às próprias raízes e preparava “sushi”, “sashimi”, “yakisoba” e tantas
outras receitas que aprendera com os pais. Mas, na maioria das vezes,
acabava comendo sozinho o que preparava, sem antes tentar, de todas
as formas e com todos os tipos de argumento, nos convencer que o
acompanhássemos.
Se a pièce de résistance era tipicamente brasileira, não faltavam
na cozinha pequenas guloseimas japonesas, a exemplo de bolinho doce
de feijão, bolachas e biscoitos variados e balas envoltas em lindas
embalagens, repletas de inscrições ininteligíveis. Recebíamos esses doces
em clima de festa, imaginando o que mais haveria no Japão que até
nós não chegava. Além de saciar nossa curiosidade gustativa, os acepipes
japoneses serviam, na escola, como moeda de troca. Se alguma colega
tivesse um lápis encantador, trazido dos Estados Unidos por alguma
tia, o trocávamos por porção justa de balinhas ou bolachinhas
japonesas, devidamente separadas entre mim e minha irmã.
26
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
A avó paterna, antes que chegássemos à adolescência, esmerou-
se em nos ensinar a cozinhar. Não trouxe como proposta de aprendizado
ancestrais receitas japonesas, mas o prosaico da cozinha brasileira. Durante
prazeros finais de semana, metíamo-nos na cozinha, lambuzávamo-nos
de farinha e colocávamos as mãos à obra. Desses encontros, saiam
deliciosos pudins, pães fofinhos, feijão temperadinho, mas arroz nada -
nada mesmo - soltinho. Um dos filhos havia trazido do Japão uma panela
especial para cozinhar o “gohan”, que, uma vez pronto, era colocado em
formas que o moldava em pequenas porções. Para isso, o arroz precisava
ser grudento o suficiente.
Enquanto a avó paterna ensinava-nos a ser independentes e
autônomas na cozinha, a avó materna já nos esperava com todas as
comidas prontas. Não chegou a nos ensinar a fazer prato algum, afinal,
minha irmã e eu estaríamos tão ocupadas trabalhando que nem nos
sobraria tempo para cozinhar. O que era preciso era ter uma boa
ajudante de limpeza e de cozinha, capaz de apresentar soluções rápidas,
eficazes e saborosas. Só não sabia minha avó o quão difícil seria
encontrar ajudante tão prendada. A lógica por ela utilizada seguia os
padrões da Casa Grande e da Senzala: ela via-me no papel de sinhá, e
não no de mucama. Não era preciso aprender a cozinhar, pois sempre
haveria quem o fizesse. Creio que a avó japonesa tampouco pensara
em contribuir para a formação de uma mulher arrojada, desenvolta
tanto na cozinha quanto nas lides profissionais. O ensinamento
gastronômico provavelmente ocultava o desejo da avó de que a neta
optasse por casamento e filhos, em regime de dedicação exclusiva.
2. A QUESTÃO DA IDENTIDADE
Para os descendentes de japoneses (“nissei”) que conviveram
dentro da comunidade imigrada (“issei”), a alteridade revelava-se menos
dramática. O entorno lhes era semelhante, o que neutralizava possível
crise de identidade. A vida escolar, quando existente, porquanto o
27
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
assentamento em áreas rurais era a tendência, muitas vezes era baseada em
“nihongo” e em noções de português. Os casamentos eram realizados
entre os próprios membros da comunidade japonesa, situação que
perpetuava o sentido de pertencimento, embora exposto, no desenvolver
das gerações, a influxos da cultura brasileira.
A terceira e a quarta geração de descendentes nipônicos -
“sansei” e “yonsei”, respectivamente - estiveram abertas ao confronto
e à comparação. A terceira geração ousou sair dos confortáveis limites
da comunidade e aventurar-se na convivência mais íntima com os
brasileiros. Em São Paulo e no Paraná, onde estão localizados os
principais núcleos da imigração japonesa, não raro assistia-se a
casamento de “sansei” com nacionais. O nipo-brasileiro tinha menos
resistência a casar-me com a mulher brasileira. A nipo-brasileira, por
pressões familiares, tendia a escolher seu marido entre os homens que
já lhe eram familiares.
A quarta geração foi a que mais pôde distanciar-se das raízes.
Em um Brasil urbano, o ensino fundamental, médio e superior tratou
de atenuar as diferenças culturais de bisnetos de imigrantes em relação
aos brasileiros. Esses descendentes, além de terem a nacionalidade
brasileira, como as demais gerações, sentiam-se, também,
profundamente brasileiros. Nesse caso, eventual crise de identidade
podia surgia perante o seguinte paradoxo: em todos os aspectos -
cultural, religioso, axiológico, afetivo, gastronômico - tinha-se um
brasileiro. A imagem refletida no espelho, porém, reverberava traços
que pouca semelhança apresentavam em relação ao brasileiro
descendente de imigrantes ocidentais.
Nos núcleos originários da imigração japonesa - São Paulo e
Paraná -, a convivência entre brasileiros e nipo-brasileiros deu-se (e
dá-se) com grande naturalidade. Não há estranhamento aparente e
não se pensa, de pronto, que se trata de estrangeiro. É curioso notar,
no entanto, que, em regiões por onde não andaram os imigrantes
japoneses, há surpresa quando se está à frente de um fenótipo oriental.
28
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
São duas as perguntas que costumam acompanhar essa situação: “você é
do Brasil mesmo?” e, quando muito, “você é de São Paulo, não é?”.
Ainda criança, recordo-me de estada com meus pais no
nordeste do Brasil. Aliás, corrijo-me, no interior do nordeste brasileiro,
onde não havia água encanada ou asfalto que facilitasse viagem em
dias chuvosos. O sertanejo costuma ter estatura baixa, pescoço não
muito alongado, pele dourada pelo sol e resistente à caatinga. De
repente, o sertanejo deparou-se com um japonês e sua cria: uma criança
japonesa, ou quase. Quando a notícia espalhou-se pelo vilarejo e pelas
pequenas cidades no entorno imediato, não foram poucas a pessoas
que assomaram à casa em que estávamos hospedados para ver o ser
humano nada parecido aos locais. Sem muita consciência do que
acontecia, senti-me peça de museu e dei-me conta de que me diferenciava
- ou separava - dos demais, exceto de meu pai.
A inserção e a integração dos japoneses na sociedade
ocidental, em geral, e na brasileira, em particular, é descrita, em tom
didático, por Egon Schaden:
[a aculturação] dos japoneses assume [...] abertamente a situação de
conflito propriamente cultural, de vez que se trata de configurações
bem mais distanciadas entre si. Sem falar da distancia racial que
separa os colonos nipônicos da população nacional e que dificulta
a miscigenação, fazendo recrudescer, ao contrário, as valorações
etnocêntricas, o idioma, a religião, o sistema familial, as concep-
ções políticas, os hábitos de higiene, a cozinha e uma infinidade de
costumes são de tal modo díspares que a aculturação exige uma
prévia fase de desintegração cultural bem mais radical e profunda
nos japoneses e nipo-brasileiros do que em imigrantes de proveni-
ência européia
1
.
1
SCHADEN, Egon. Aculturação de Alemães e Japoneses no Brasil in SAITO, Hiroshi
e MAEYAMA, Takashi (orgs.). Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973, p. 517.
29
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
A desintegração cultural bem mais radical e profunda a que se
refere Schaden deu-se em um crescendo. Enquanto os “nisei”e os “sansei”
contavam com a zona de impacto formada pela colônia japonesa e a
intensa convivência dentro dela, os “yonsei” depararam-se com um mundo
mais propenso à eliminação de barreiras à comunicação e à circulação de
bens e pessoas. A geração de bisnetos dos imigrantes abrasileirou-se em
grau e em intensidade até então não experimentados. Afinal, além da
identidade perante à sociedade brasileira, havia a necessidade de posicionar-
se perante o mundo por meio da nacionalidade, dos costumes, da língua.
Ao sair do Brasil, o nipo-brasileiro é desafiado a mostrar e dar
prova de sua identidade. Apenas em ocasiões excepcionais o estrangeiro
dirá que um nipo-brasileiro é brasileiro pela mera análise dos traços físicos.
É nesse momento que bisnetos de imigrantes japoneses costumam revelar-
se mais apegados aos indicadores de brasilidade. A geração que começa a
retornar ao Japão, em busca de trabalho e melhores condições de vida,
em rota inversa dos antepassados, leva consigo, por exemplo, o gosto
gastronômico, musical, e o comportamento típico do Brasil. Em terras
estrangeiras, churrascaria, MPB, pagode ou funk dos morros do Rio de
Janeiro transformam-se em referenciais que os situam no mundo e os
sensibilizam.
Os “yonsei” apresentam os olhos cada vez menos puxados.
Acredita-se que 61% dessa geração tem, pelo menos, um ascendente
não japonês
2
. As feições físicas vão se distanciando das origens orientais
e vão se aproximando, ao ritmo inexorável da biologia, aos traços
brasileiros. Entre os dois mundos, esses descendentes não chegam a
ser japoneses e tampouco são totalmente brasileiros em termos físicos.
A grande maioria não fala japonês, embora entenda frases ou palavras
usadas em casa. Estão na transição, que conduzirá a uma quinta geração já
2
Um dos grandes projetos do centenário da imigração japonesa, orientadas pelo IBGE,
é o Censo Nikkei, que fará levantamento estatístico da comunidade japonesa no Brasil.
A última pesquisa foi realizada em 1980 pelo Centro de Estudos Nipo-Brasileiros.
Consulta em 27/02/08: http://www.japaobrasil.com.br/especiais/420.php.
30
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
distanciada dos costumes e das tradições japonesas. Para esses jovens do
século XXI, nem se lhes ocorrerá pestanejar quanto à identidade. Serão
brasileiros e o Japão, país distante, será referencial remoto, que estará
presente, mas em segundo plano.
2.1 A HERANÇA DAS GERAÇÕES
A bisavó paterna era pequenina. Tinha passos miúdos e pouco
falava. Entendia uma ou outra palavra em português e safava-se de
qualquer situação sempre com um sorriso tímido, mas espontâneo.
Quando nasci, ela já não ouvia, razão pela qual minha avó comunicava-
se com ela aos berros, sempre em japonês. Comia como um
passarinho: algas, “gohan”, legumes cozidos. Eu assistia fascinada à
cena em que ela levava à boca as frugais porções de alimento,
equilibradas entre dois pauzinhos compridos. Morreu de um dia para
outro, sem qualquer anúncio prévio. Segundo os médicos, a bisavó,
que já havia enterrado o marido, morrera de pura velhice.
Minha avó herdou o sorriso espontâneo, mas nem sempre
tímido. Mulher também pequenina, era dotada de disposição hercúlea.
Levantava-se cedo e deitava-se tarde, depois de todas as tarefas
cumpridas. Fez de tudo e trabalhou como pôde para criar os sete
filhos. Comunicava-se por meio de uma língua quase inventada:
misturava japonês com português e todas as frases - rigorosamente
todas - eram pontuadas por um “né”. Cozinhava grandes quantidades
de comida, que variavam entre receitas japonesas e brasileiras. Falava
alto (herança da comunicação com a mãe quase surda) e, nos finais de
semana, quando chegava, antes do sol nascer, à casa em que passei a
infância, ouvia-a de longe. Era engraçada e solícita. Observava com
atenção o que a circundava e costumava ter posições definidas sobre
os temas que lhe eram afeitos. Não impunha opinião, mas argumentava
com talento e razoável tato. Não morreu, mas está muito doente, sob o
cuidado de uma das filhas, casada com um brasileiro loiro, de olhos azuis.
31
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
O avô era a antítese da avó. Alto, muito magro e calado, estava
sempre acompanhado de uma lupa, que aumentava as letras dos jornais
em japonês. Em uma cidade no interior brasileiro, desconheço como eram
obtidos esses exemplares. Também ignoro a atualidade das notícias que
lia. Não falava português, mas assistia aos noticiários brasileiros. Pouco
enxergava e pouco ouvia. Daí também a explicação dos altos decibéis da
avó. Sorria com regularidade e tinha os olhos tão pequeninos que quase
davam a impressão de estarem fechados. Quando ingressei na Universidade,
fui até sua casa para contar-lhe. Sem poder escutar-me, escrevi, em uma
grande folha branca, duas palavras que ele parece ter entendido, já que fez
o sinal de positivo com o dedão e permitiu-se uma gargalhada: Universidade.
Direito.
Meu pai herdou características do pai e da mãe de modo quase
proporcional. “Sansei”, casou-se com uma brasileira, minha mãe, depois
de ter namorado algumas garotas da própria comunidade japonesa.
Enquanto estava na Universidade, dava aulas de japonês para crianças da
colônia e também de judô. Era faixa preta. Conheceu minha mãe, uma de
suas alunas, entre os golpes da arte marcial. Logo se encantaram e decidiram
deixar as rasteiras e os ataques de lado. Depois do casamento, tornou-se
mais calado, característica que o assemelhava ao pai. Seguia conversando
em japonês com meus avós e jamais utilizou palavras japonesas dentro de
casa. Para compensar nossa falta de familiaridade com o idioma oriental,
antes de mandar a mim e a minha irmã para o “nihongaco”, comprou
duas lindas mesinhas para criança, posicionou-as no meio de um dos
quartos da casa e explicou-nos que, daquele momento em diante, nos
daria aula de japonês. Uma prima da família materna, que então passava
as férias em casa, não teve alternativa senão juntar-se às aulas. Sem muito
talento para o japonês, a pobre prima especializou-se em arregalar os
olhos e em fazer caretas de desespero por ver-se diante de algo tão
desconhecido. Eu e minha irmã íamos aprendendo com certa facilidade.
As aulas progrediram, mas não passaram de três lições. Entre as muitas
32
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
viagens de meu pai, sobrava-lhe pouco tempo para o magistério. Por
conta disso, eu e minha irmã chegamos à escola do rigoroso “sensei”.
A relação por vezes conflituosa com os colegas do
“nihongaco”, 100% japoneses em comparação com minha metade
brasileira, e a falta de identidade com a cultura e com a língua japonesa,
restritas aos espaçados encontros com meus avós, suscitaram veementes
campanhas em casa para que meu pai tirasse a mim e a minha irmã das
aulas de língua, que testavam o limite de nossa disciplina duas vezes na
semana: acordávamos às 6h, pois, às 7h, o “sensei” entrava na sala de
aula. Dos 6 aos 9 anos de idade, a campanha não foi bem sucedida.
Aos 9, porém, minha mãe decidiu assumir nossa causa e nos tirou do
japonês. Para não decepcionar os pais, pedimos que nos matriculassem
em curso de inglês e de espanhol, idiomas mais próximos à nossa
realidade. E assim foi feito.
A cada geração, atenuou-se a carga da herança cultural. A
geração mais jovem, composta pelos bisnetos dos primeiros imigrantes,
foi, porém, revolucionária no distanciamento que imprimiu à relação
com a raiz oriental. O exemplo de minha família não foi exceção,
senão mostra do fenômeno que acontece, há mais de duas décadas, na
sociedade brasileira. Os “yonsei” incorporaram valores e costumes
ocidentais, em processo que demonstra a complexidade do diálogo
entre uma e outra geração. Por oposição ao passado ou por demanda
da personalidade e do caráter, a raiz oriental vai se revelando, nos
jovens da quarta geração, quase como um adorno, sutil, mas presente.
O que parece ser irreversível e perene é a transmissão de um
saber intuitivo do que seja o modo de ser dos japoneses. Por mais que
os “yonsei” afastem-se do Japão e do que a ele se relacione, para o
Brasil essa geração ainda representa o Japão. E dela costuma-se esperar
comportamentos que estão atrelados aos japoneses. Além disso, por
mais que a brasilidade defina e caracterize os “yonsei”, há o inefável, o
legado imaterial que se manifesta em uma postura de vida, na relação
com o outro, no diálogo com terceiras culturas. Essa herança, que
33
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
pode ser imperceptível a olhos treinados apenas para o Ocidente, não se
condiciona a gerações e apresenta-se nos atos mais simples da vida, até
mesmo quando se possa crer que o homem é fruto apenas de suas
circunstâncias.
2.2 O JAPÃO COMO OPÇÃO: CURIOSIDADE PELO MUNDO OU NECES-
SIDADE CONJUNTURAL?
As transformações e as crises econômicas da década de 1990
fizeram do Japão atrativo pólo de oportunidades laborais. Os
descendentes dos imigrantes que deixaram o longínquo oriente, no
início do século XX, diante de dificuldades financeiras e de reduzidas
expectativas em relação à prosperidade no Brasil, começaram a retornar
ao Japão. Como a história tende a repetir-se, embora em contexto e
com variáveis diferenciados, o papel desempenhado pelas diferentes
gerações impressionava pela semelhança. Assim como os antepassados
chegaram ao Brasil para servir como mão-de-obra nas lavouras cafeeiras,
também os descendentes desembarcaram no Japão em condições
parecidas, como operários em indústrias e em linhas de produção. Se
antepassados não falavam português, os descendentes tampouco sabiam
expressar-se em japonês. O intuito, inclusive, era o mesmo: trabalhar,
formar pecúlio e regressar à terra de origem. Havia as exceções, é
claro. Nem todos os descendentes retornavam ao Japão para trabalhar
em funções não especializadas. Muitos deles para lá deslocaram-se para
desempenhar cargo de relevo e destaque. E até mesmo por turismo,
para percorrer, com a herança sentimental, o passado remoto da
família.
Entre os seis irmãos de meu pai, alguns decidiram regressar ao
Japão. Partiram, estabeleceram-se em diferentes cidades japonesas, de
acordo com a oferta de trabalho e, em vez de retornar ao Brasil, acabaram
levando toda a família para o oriente, como fizeram as gerações que
chegaram ao Brasil para temporada que se previa breve e se tornava, por
34
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
fim, estada permanente. Em minha casa, nem cogitou-se a possibilidade
de transferência para o Japão. Visionária estrategista do lar, minha mãe
defendia que qualquer mudança para o exterior deveria implicar condições
melhores ou iguais às encontradas na terra pátria. Partir como forasteiro
para tentar a sorte alhures não estava nos planos dessa mãe brasileira.
Estabelecido profissionalmente, com promissoras perspectivas de futuro,
tampouco via meu pai inclinado a instalar-se no Japão.
A mim, atormentava-me a idéia de que meus pais pudessem
pensar em ir para o outro lado do mundo. A primeira preocupação
era como faria para continuar meus estudos. Só de imaginar que teria
de aprender tudo em língua japonesa, já experimentava o amargo
dissabor de ser e de sentir-me estrangeira. O meu interesse pelo extremo
oriente parecia ser apenas de natureza turística, até para não insinuar
ameaça às mais inabaláveis certezas quanto à identidade.
Ao recordar esse passado, fica clara minha resistência para
permitir que a cultura japonesa pudesse envolver-me sem pretensões
maiores do que a de me encantar e me enriquecer. Há vários motivos
que podem explicar o fenômeno. Como estas linhas não se prestam à
terapia, mas, sim, a um relato de experiência perante legado da cultura
japonesa, passo, de imediato, à fase em que, anos mais tarde, senti
necessidade de estar em contato com elementos que me conectassem
com o Japão.
Durante a faculdade, chamou-me a atenção os programas de
cooperação acadêmica promovidos pelo Governo japonês. Não raro,
encontrava grupos de estudantes vindos do Japão no campus da
universidade em que estudava. A princípio, observava-os para ter noção
de quão diferente eu era em relação a eles. Depois, passei a buscar
informação do que vinham fazer no Brasil e como era a ida de
estudantes brasileiros ao Japão, já que, ao passar pela biblioteca, vi, ao
longe, cartaz que oferecia especialização em Direito Marítimo, área
que me interessava e que era pouco estudada no Brasil. Senhores dos
mares e da pesca, os japoneses certamente teriam muito a ensinar.
35
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
Fui ao departamento encarregado de estudos orientais e
conversei, por agradáveis horas, com a senhora, nipo-brasileira “nissei”,
encarregada do programa. Relatou-me as vantagens da especialização
e os benefícios oferecidos pelo Japão durante a estada no país. Já estava
quase emitindo a passagem para que eu embarcasse o mais rápido
possível quando deteve-se, já segurando os formulários, com a seguinte
pergunta: “você fala japonês, né?”. O que primeiro me veio à memória
foi o implacável “sensei” das 7 horas da manhã. Em segundos, vi a
bolsa de estudos evaporar-se em meio à ignorância lingüística. Resisti,
porém, à idéia de perder a oportunidade e reagi com um sorriso sem
graça: “Estudei quando era criança. Seria preciso dar uma lembradinha,
né?!”. Até o “né” fiz questão de usar, para mostrar à gentil senhora
que, no fundo, minha fala era tal qual a dela ou da minha avó. Diante
de minha resposta, abriu a agenda e mostrou-me os horários disponíveis
para eu fazer o teste que avaliaria os conhecimentos de japonês. Em
tom quase fúnebre, escolhi o último dos horários, no último dos dias
indicados. Fui para casa, busquei o dicionário de japonês, perdido em
meio a tantos livros quase esquecidos, e pus-me a exercitar a memória.
Titubeei quanto a ir ou não ir ao fatídico teste. Como imaginava
que o exame até poderia ser fácil, já que não deveria interessar ao Japão
descartar estudante empenhada em especializar-se por lá, apresentei-me à
senhora na data acordada. Não nego que experimentava ponta de
nervosismo. Em uma sala repleta de aparatos tecnológicos - em universidade
pública, só mesmo com financiamento e patrocínio japonês para estar em
dia com a modernidade -, sentei-me à frente do teste. A senhora estava
por perto, mas ocupava-se de seus afazeres. Por longos minutos, fiquei a
admirar a sopa de caracteres espalhados pelo branco da folha. Tentei usar
a intuição ou invocar os talentos mediúnicos da tia psicóloga especialista
em ver fantasmas. Nada adiantou. Tive de render-me à verdade. Levantei-
me, caminhei até a mesa da senhora e confessei: “Está bem difícil esta
prova. É um nível bem avançado, né?!”. Ela ainda tentou ajudar-me: “É o
mais básico que temos. Se quiser, você pode escrever algumas frases em
36
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
japonês sobre os seus objetivos no Japão”. Decidida a fazer minha última
declaração a ela sem o adorno do “né”, despedi-me: “Eu pensava que
minha memória fosse melhor do que realmente é. Não tenho condições
de fazer a prova”. Sai cabisbaixa da sala e voltei para casa.
A senhora ainda telefonou-me pelo menos três vezes, para
perguntar se não queria tentar fazer o teste novamente. Mas não
adiantava. Eu não sabia nada. Convenci-me de que era vítima de
bloqueio mental e abandonei os planos da especialização em Direito
Marítimo. E lá fui eu em busca de bolsas de estudo na França.
Depois de ingressar na carreira diplomática, e de ouvir de
quase todas as pessoas a clássica pergunta “você fala japonês?”, decidi
matricular-me no curso para iniciantes. Fui surpreendida pela
descoberta de que não sofria de qualquer bloqueio mental, já que, aos
poucos, a língua japonesa ia sendo lembrada. Cada palavra que
conseguia relacionar aos estudos da infância tinha sabor de vitória. E
não era vitória de Pirro, porque o “sensei”, dessa vez, não era um
austero e inflexível senhor, mas um paciente e talentoso jovem, que
nascera brasileiro, segundo a certidão do cartório e os traços físicos
ocidentais, mas com delicada alma de japonês.
Ao longo do curso, fui reaproximando-me (ou aproximando-
me de verdade, pela primeira vez) do Japão e das raízes paternas. Passei
a freqüentar restaurantes nipônicos, onde equilibrava com gosto e
perícia os alimentos entre os pauzinhos compridos, tal qual minha
bisavó, e a assistir ao canal japonês na TV a cabo, embora ainda não
pudesse entender a maioria dos enunciados. Embora sempre tenha
me sentido profundamente brasileira, as pessoas com as quais convivia
tratavam de lembrar-me, a todo o momento, com comentários ou
perguntas, da minha herança japonesa. Os traços orientais passaram a
ser a característica que, aos olhos de muitos, eu podia ser identificada.
Não houve mais como negar o legado paterno. O Japão voltou a
figurar em meu atlas, não como opção de destino onde me pudesse
estabelecer em bases permanentes, mas como prioridade na lista de
37
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
viagens pelo mundo, nas quais faça uso inequívoco da herança que me
conecta ao Brasil e ao Japão ao mesmo tempo.
3. UMA DIPLOMATA YONSEI
É comum um diplomata ser questionado por que escolhera
a carreira diplomática. Explico-me melhor: não se costuma perguntar
a um médico, a um engenheiro ou a um advogado por que razão
escolhera aquela profissão. Infere-se que se assim o fez é porque era
dotado de talento ou habilidade para a profissão eleita. Já a carreira
diplomática, por ser restrita, hoje, a menos de 1.400 pessoas no Brasil,
causa curiosidade, seja por desconhecimento, seja por idealização do
que seja a vida de um diplomata. Em centros como Brasília, Rio de
Janeiro e São Paulo, a circulação de informações sobre a carreira e
sobre cursos de relações internacionais torna a figura do diplomata e
as funções por ele desempenhadas mais compreensíveis. Brasil afora,
diplomata e diplomacia seguem sendo, de maneira geral, incógnitas.
Excluída a possibilidade de migrar para o Japão, restou a
mim e a minha irmã estudar e identificar atividades que nos pudessem
estimular em termos profissionais, intelectuais, e que nos permitissem
ter, ao mesmo tempo, interessantes experiências de vida. Desde cedo,
começamos a aprender línguas estrangeiras. Terminado o capítulo com
o inesquecível “sensei”, se nos abriram as portas dos idiomas derivados
do latim e de raiz anglo-saxã. Para complementar as investidas no
desenvolvimento das línguas, minha irmã e eu, a cada recesso escolar,
instalávamo-nos em alguma parte do mundo e iniciávamos a etapa
empírica de qualquer aprendizado. A crescente convivência com o
mundo e com a pluralidade de manifestações culturais e comportamentais
nos auxiliou a identificar o que fosse dotado de grande potencial para nos
desagradar ou, simplesmente, para não nos satisfazer.
No início da adolescência, surgiu-me a oportunidade de conhecer
a Rússia. Seria viagem curta, em que me dividiria entre Moscou e São
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ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
Petersburgo. Nessa breve estada, depois de contato com alguns diplomatas
brasileiros e estrangeiros, vislumbrei estimulante futuro, em diversos países
e entre temas variados. Decidi estudar para o concurso do Instituto Rio
Branco e, para tanto, propus-me resgatar a herança nipônica imaterial:
disciplina. No momento de ir para a universidade, escolhi curso que me
auxiliasse a adquirir visão abrangente das matérias exigidas no certame de
admissão ao Itamaraty. E reforcei o estudo de língua portuguesa, minha
pátria por excelência, como já defendia Fernando Pessoa. Contava com o
apoio da família e com a alegria que costuma acompanhar sólidos projetos
de vida.
No momento em que ingressei no Ministério das Relações
Exteriores, meus pais já estavam separados. Em que pese a grande
afinidade que compartilhavam nos primeiros anos de namoro e de
casamento, as diferenças culturais recrudesceram com o passar dos
anos, a ponto de tornar a relação insustentável. Apesar de acreditar-
me absolutamente brasileira, no Itamaraty o que despertava curiosidade
era minha ascendência nipônica. Os colegas que conheciam alguma
palavra ou frase amável em japonês aproximavam-se já as
pronunciando. E eu, nessas tantas ocasiões, socorria-me com o sorriso
sem graça que usara, tempos antes, com a senhora a coordenar, na
universidade, programas acadêmicos do Governo japonês.
Em reuniões com diplomatas estrangeiros ou em conferências
internacionais, não raro me tomam por tailandesa ou chinesa, seja
pelo traço nipônico atenuado pelo componente genético brasileiro,
seja pela presença maciça de chineses no mundo. Quando explico aos
interlocutores que sou fruto da mistura das raças, já preparo-me para
as sucessivas perguntas sobre as gerações de meus antepassados japoneses.
Costumo responder as indagações sem deixar de mencionar a família de
minha mãe, que considero peculiar, porque formada por 21 irmãos.
Como diplomata “yonsei”, tenho a tarefa de neutralizar a
percepção imediata e superficial sugerida pelo físico. Acredito ser
inevitável que meus interlocutores se questionem onde começa e onde
39
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
termina a influência do Japão sobre minha percepção do Brasil. Por isso,
talvez com mais esmero que meus demais colegas, creio que me compete
incorporar e demonstrar com mais afinco minha condição de brasileira,
sem extremismo ou caricatura. Sinto que a herança japonesa tangencia
minha personalidade, meus interesses e minha relação com o mundo, mas
não os define ou os determina. Ao conversar com minha irmã sobre o
tema deste ensaio e sobre memórias que me escapavam, ouvi resposta de
sincero desprendimento: “Mas eu sou brasileira!”. Sua exclamação
demonstrou o quão sutil é a herança que carregamos, pois faz-se
imperceptível.
4. EPÍLOGO: A CAMINHO DO SEGUNDO CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO
JAPONESA NO BRASIL
O primeiro centenário da presença dos japoneses no Brasil
foi marcado por abrupta necessidade de adaptação, por árduo trabalho,
por hibridismos culturais e por arraigado sentido de família. Em cem
anos, a imigração deu mostras de completar um ciclo, já que à vinda
dos primeiros japoneses seguiu-se a volta de netos e de bisnetos para o
oriente.
Desde que aportou em Santos, em 1908, a comunidade
japonesa imprimiu sua marca no Brasil e fez-se presente, por meio de
atuação destacada nos diversos setores da vida brasileira, dando mostra
de honra e infatigável perseverança e resignação. O Brasil soube
incorporar sem atritos o legado oferecido pelos japoneses, que não
foram exceção no quesito herança, haja vista que tantas outras nacionalidades
também deslocaram-se para os trópicos em busca de melhores condições
de vida. Cada contingente com costumes, línguas, ritos religiosos e comidas
que lhe eram próprios. E o Brasil teve a generosidade de jovem nação
para dar as boas-vindas às contribuições oferecidas.
A caminho do segundo centenário da imigração japonesa, fica
em suspense o desenrolar das rotas migratórias: regressarão ao Brasil os
40
ANA PAULA DE ALMEIDA KOBE
descendentes dos nipo-brasileiros que se transladaram ao Japão a partir
dos anos 1990? Continuarão os nipo-brasileiros a caminho, em massa,
do Japão, em busca de empregos que lhes permitam sustentar a família
no Brasil ou que lhes dê condições de instalar todos os familiares no
oriente? São perguntas cujas respostas estão condicionadas aos influxos
da economia, da política e - por que não? - do coração. Sem antecipar-
me em exercício de futurologia, assisto aos movimentos de retromigração.
Se a mim tocar-me regressar ao Japão na condição de diplomata, partirei
com a sensação de orgulho e de missão cumprida: meus antepassados,
se vivos, estariam felizes e satisfeitos com a decisão que, há quase cem
anos, decidiram tomar. Eventual ida ao Japão seria prova inconteste de
quão bem souberam os japoneses adaptar-se ao Brasil, a ponto de
descendente retornar ao Japão como representante dos interesses
brasileiros.
As geração dos descendentes que permanecerão no Brasil terão
o desafio de preservar os traços cada vez mais diluídos da cultura japonesa.
O aprendizado da língua nipônica, a prática dos ritos religiosos e dos
hábitos alimentares, a reverência aos antepassados, a dedicação ao trabalho
e ao núcleo familiar, todos esses serão fatores a desafiar a comunidade de
nipo-brasileiros inserida em um mundo de fronteiras relativas, de
informações e comunicações instantâneas e de uniformização crescente
de comportamentos. Será com boa dose de curiosidade e de legítimo
interesse que serei parte e espectadora desse processo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FAUSTO, Boris (org.). Fazer a América. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1999.
LEÃO, Valdemar Carneiro. A crise da imigração japonesa no Brasil
(1930-1934): contornos diplomáticos. Brasília: Fundação Alexandre
de Gusmão, 1989.
41
A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
NOGUEIRA, Arlinda Rocha. Imigração Japonesa na História Contemporânea
do Brasil. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1984.
SAITO, Hiroshi (org.). A presença japonesa no Brasil. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1980.
SCHADEN, Egon. Aculturação de Alemães e Japoneses no Brasil in
SAITO, Hiroshi e MAEYAMA, Takashi (orgs.). Assimilação e
integração dos japoneses no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1973.
Sítio da Internet
Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, acesso em 27/02/08
http://www.japaobrasil.com.br/especiais/420.php
II.
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS
DE
100 ANOS DE HISTÓRIA
4545
REFLEXÕES ACERCA DO PROCESSO DE INTEGRAÇÃO SOCIAL E DA
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL DOS NIPO-DESCENDENTES
samazama no
koto omoidasu
sakura ka na
(Matsuo Bashô)
quantas memórias
me trazem à mente
cerejeiras em flor
O processo migratório, entendido além do simples fluxo
transnacional de pessoas, enseja diversas e complexas transformações
na sociedade receptora. No caso da imigração japonesa para o Brasil,
tais mudanças, ainda em curso, revelam-se mais fascinantes, devido à
distância cultural entre os dois povos. Se, por um lado, pode-se
descrever objetivamente a contribuição dos imigrantes e seus
descendentes, por exemplo, na agricultura, na arquitetura – com a
formação de bairros étnicos - e nos esportes, por outro, suas
conseqüências na construção de uma identidade cultural são de difícil
apreensão.
A preocupação com a integração dos imigrantes japoneses à
sociedade brasileira data de período anterior ao início do próprio
processo migratório. Múltiplos e acalorados foram os debates a
respeito da possibilidade de assimilação social desses potenciais
Candice Sakamoto Souza Vianna
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
46
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
imigrantes. E mesmo após a chegada dos primeiros navios, esse tema
continuou a ser amplamente discutido, principalmente por políticos
e intelectuais envolvidos na questão da formação nacional brasileira.
A antropologia cultural e a sociologia das décadas de 1940 e
1950 tratavam dessa problemática com base nos conceitos de assimilação
e aculturação. Tal enfoque pressupõe uma dicotomia contida nas idéias
de nacionalidade e de homogeneidade cultural (Ennes, 2001). Isto é,
aponta-se para a perspectiva de os grupos étnicos minoritários serem
completamente incorporados à sociedade dominante, de forma a
perderem, gradualmente, suas características diferenciadoras. Assim,
as especificidades culturais dos imigrantes e seus descendentes estariam
fadadas ao desaparecimento, à medida que esses indivíduos passassem
a compor a sociedade nacional. A questão principal em torno da
imigração desejada para o Brasil, portanto, residia no grau de assimilação
de tal ou qual etnia, para que se pudesse atingir o ideal de uma sociedade
culturalmente homogênea.
As noções de “etnicidade” e pluralismo cultural,
desenvolvidas nas décadas subseqüentes, vêm a tornar a temática mais
complexa (Fausto, 1991). A partir desse arcabouço teórico, possibilita-
se a compreensão da co-existência, no mesmo espaço nacional, de
distintos grupos étnicos, cuja convivência produz transformações de
via dupla, porém, assimétricas, que contribuem para a construção de
novas identidades culturais. A interação social entre os imigrantes de
diferentes origens e entre estes e os nacionais não promove
necessariamente a prevalência intacta da cultura dominante, senão inclui
novos elementos na sociedade e gera progressivas mudanças em todos
os grupos envolvidos, com maior ou menor intensidade.
Nesse sentido, Marcelo Ennes, em seu estudo a respeito das
relações sociais entre nipo-brasileiros e não-nipo-brasileiros, utiliza-se
do conceito de “identidade inacabada”, entendido como “o processo
dinâmico e ininterrupto de construção e desconstrução de identidades
étnico-culturais” (Ennes, 2001:16). Essa abordagem é interessante, pois
47
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
nos permite compreender a integração à sociedade brasileira dos
japoneses e seus descendentes como uma rede de trocas culturais,
mediante a qual eles incorporam práticas e representações sociais que
lhes são inicialmente estranhas, ao mesmo tempo em que transmitem
novas disposições aos não-nipo-descendentes.
Por conseguinte, a formação da identidade cultural é processo
contínuo, sujeito a constantes mutações. Segundo a definição de Stuart
Hall, identidade cultural são as referências culturais comuns a um
grupo, o qual compartilha da mesma origem e história. Sendo, portanto,
fator histórico, sofre transformações com o próprio desenrolar dos
acontecimentos. A identidade cultural ressalta as semelhanças entre
determinados indivíduos, definindo grupos de pertencimento e,
conseqüentemente, estabelecendo a alteridade perante os demais.
Atualmente, existe vasta bibliografia sobre o processo de
incorporação dos japoneses à sociedade brasileira e da formação da
identidade cultural de seus descendentes. O elevado interesse talvez seja
motivado pela já citada distância cultural entre o Brasil e o Japão,
conjugada ao fato de se tratar de imigração recente na história do País.
Esses estudos são de suma importância para que se possibilite o
desenvolvimento de análises profundas e fundamentadas a respeito desse
processo, superando os estereótipos comuns atribuídos aos imigrantes
japoneses e seus descendentes. Isso não significa que os estereótipos devem
ser ignorados, afinal eles possuem lastro na realidade observada e refletem
a visão do outro a respeito de características do grupo que lhe são mais
distintas. Curioso é notar, por meio de artigos sobre nikkeis
1
de outros
países – Peru, Argentina, Estados Unidos -, que os estereótipos se
repetem. Tanto nessas nações como no Brasil, os nipo-descendentes são
primordialmente vistos como pessoas trabalhadoras, honestas, diligentes,
que objetivam à ascensão financeira e priorizam os estudos.
1
O termo nikkei é utilizado para designar os descendentes de japoneses na América.
Foi adotado oficialmente na Convenção Panamericana Nikkei de 1985, em São Paulo.
48
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
Se as questões de identidade e de integração social são
relevantes em qualquer processo migratório, é certo que elas ganham
contornos específicos e mais complexos no caso da imigração japonesa
para o Brasil. A razão para tal fato é que os nikkeis no País, apesar de
sua nacionalidade brasileira, não estão completamente inseridos no
padrão de identidade cultural dominante ou não são vistos nessas
condições. Isto é, mesmo os nipo-descendentes aqui nascidos e criados,
cujos comportamentos e referências culturais são essencialmente
brasileiros, são designados, em geral, como “japoneses” pelo restante
da sociedade e, muitas vezes, por eles próprios.
Essa situação específica dos nikkeis é de difícil compreensão
tendo em vista a imagem do Brasil como país aberto à recepção e
aceitação de culturas estrangeiras, local onde os preconceitos raciais e
as diferenças étnicas não constituem significativa barreira social ou
assumem aspectos conflituosos. Adriana de Oliveira, entretanto,
apresenta-nos, em seu estudo acerca do tema, uma explicação bastante
elucidativa. De acordo com a cientista social, a exclusão identitária
dos nikkeis relaciona-se com as particularidades da construção do
imaginário e da identidade nacionais, quais sejam, a distinção racial
baseada no fenótipo e o mito de formação do brasileiro por meio da
união das “três raças”.
No Brasil, a caracterização racial está intimamente
relacionada com o fenótipo do indivíduo, com os traços físicos
visivelmente presentes. Ao contrário de outras sociedades, nas quais o
fator de distinção é sangüíneo ou cultural, aqui são os tipos físicos
que prevalecem como determinantes da categorização racial. Os negros
não são caracterizados como tais por descenderem de africanos ou
por compartilharem referências culturais próprias aos afro-
descendentes, mas por apresentarem certo fenótipo – como cor de
pele. O mesmo pode ser dito com relação aos nipo-descendentes. Serão
eles referidos como japoneses devido a suas características físicas –
sendo os “olhos puxados” a mais marcante. Sua identificação com o
49
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
japonês independe, portanto, do local de seu nascimento, do grau
geracional ou de miscigenação: desde que tenha o fenótipo japonês,
será visto como tal pela sociedade brasileira.
Outro fator explicativo é o mito da fusão das “três raças”
como formadoras da identidade brasileira. A construção desse
imaginário, bastante enfatizado por Gilberto Freyre, encerra a idéia
de que o brasileiro formou-se com a união do negro, branco e índio.
O japonês, não pertencente a nenhuma dessas raças, é excluído dos
grupos que tradicionalmente compõem a imagem do brasileiro. Dado
que a categorização racial ocorre no Brasil por meio do fenótipo, não
há possibilidade de que nipo-descendentes se incluam nos grupos
tradicionalmente formadores, pois seus traços físicos não fazem parte
da identidade nacional. Daí entende-se como os ítalo-descendentes
foram incorporados mais rapidamente e de forma integral ao
imaginário do homem brasileiro: apesar de a imigração italiana ser
recente - contemporânea à japonesa -, os italianos e seus descendentes,
pelo seu fenótipo, foram vistos como pertencentes à raça branca,
portanto, parte da identidade brasileira. Logo, os nikkeis “estão
‘submetidos’ à situação de eternos japoneses, mesmo depois de três
ou quatro gerações, e de fazerem parte de um estilo de vida e de um
universo cultural brasileiro” (Oliveira, 1997).
Sendo insistente e cotidianamente chamados de japoneses,
os nipo-descendentes, por mais que se sintam brasileiros, mantêm a
percepção de que se diferenciam, em certo grau, da sociedade nacional.
Sentem-se também, e em alguma medida, japoneses: japoneses do Brasil.
Nesse contexto, o fenômeno decasségui
2
, característico da década de
1990, contribui para que seja repensada a condição do nikkei no Brasil.
2
No idioma japonês, a palavra decasségui refere-se ao trabalhador temporário que
deixa seu local de residência em busca de melhores condições de emprego. No Brasil,
ela passou a ser utilizada para caracterizar os nipo-descendentes que partem para o
Japão nas condições específicas de trabalhadores temporários. Esse próprio movimento
migratório é comumente designado de fenômeno decássegui.
50
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
Isso porque aqueles que emigram defrontam-se com a constatação de
que não são japoneses, como lhes fez acreditar a sociedade brasileira.
As diferenças culturais, lingüísticas, comportamentais que observam
são enormes, independentemente do grau geracional ou do grau de
integração que aqui desfrutavam. Esses emigrantes percebem e assumem
sua brasilidade justamente quando mais esperavam se identificar com
a cultura de seus antepassados. Tal fato ocorre, principalmente, porque
no Japão, ao contrário do que acontece no Brasil, as caracterizações
étnicas têm por base a origem e a cultura, e não o fenótipo. Assim,
apesar de serem fisicamente semelhantes aos japoneses, os nipo-
brasileiros são claramente vistos pela sociedade nipônica como
brasileiros.
Por esse motivo, parece-me que o fenômeno decasségui pode
ser compreendido mais como uma continuidade da formação da
identidade cultural do que uma ruptura. De fato, ele representa uma
inversão no sentido do fluxo migratório, porém, em termos culturais,
ele pode ser entendido como parte do processo contínuo de integração
dos nipo-descendentes na sociedade brasileira. Ao assumirem sua
brasilidade no Japão, os decasséguis retornam ao Brasil com novas
percepções que podem alterar a identidade cultural dos nikkeis e sua
participação na sociedade nacional. Ironicamente, é a ida à terra de
seus ancestrais e a busca por suas raízes que fazem que eles se vejam
como verdadeiramente brasileiros.
Diante dessa complexidade, pode-se dizer que os nipo-
brasileiros possuem a particularidade de serem, simultaneamente,
portadores de duas identidades, mas talvez nenhuma delas de forma
realmente integral. Transcorridos cem anos desde a chegada dos
primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, continua pertinente a
discussão acerca de quem são os nikkeis que aqui nasceram, cresceram
e formaram-se. A sociedade nikkei no Brasil tem debatido intensamente
essa questão nos últimos anos, na busca pela compreensão das
perspectivas de futuro da cultura japonesa no País.
51
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
Ao se analisar as características populacionais dos nipo-
descendentes residentes no Brasil, observam-se significativas mudanças
ao longo do século passado. Dentre elas, dois fenômenos são de maior
relevância. O primeiro refere-se ao grau geracional dessa população.
Os sanseis (terceira geração no País) são, hoje, os mais numerosos,
correspondendo a aproximadamente 41% dos nipo-brasileiros.
Encontram-se, inclusive, descendentes de quinta geração (os gosseis),
embora em pequeno número. Eles representam apenas 0,3% dessa
população.
O segundo aspecto que merece menção é o índice de
miscigenação, pois à medida que se avançam nas gerações, eleva-se o
número de casamentos inter-étnicos e de descendentes miscigenados.
São eles atualmente 27% do total da população de origem japonesa,
dentre os quais a maioria apresenta “grau de japonidade” de 50%. Isto
é, um de seus pais tem origem japonesa “pura”, enquanto o outro é
não-nipo-descendente.
Esses dados revelam as transformações progressivas na
sociedade nikkei e levantam questões a respeito da transmissão e
perpetuação da cultura japonesa no Brasil. A sucessão de gerações de
nipo-brasileiros e a crescente miscigenação apontam, inevitavelmente,
para o contínuo distanciamento entre as referências culturais dos novos
nikkeis e de seus ascendentes. Se os nipo-descendentes passam a integrar
cada vez mais a sociedade local, compartilhando comportamentos,
valores e referências comuns aos brasileiros, indaga-se de que maneira
a herança cultural japonesa poderá ser repassada para essa população,
que já não se identifica, em muitas medidas, com a colônia nipônica.
Logo, apesar do número crescente de nipo-descendentes –
que somam hoje em torno de 1.300.000 –, o que se observa na colônia
nikkei é um arrefecimento da participação de seus membros. Aqui,
entende-se o termo colônia como referência à comunidade criada pelos
isseis (geração dos imigrantes) que inclui aqueles descendentes que se
identificam e possuem a consciência de serem nikkeis. Ela distingue-se
52
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
da sociedade nikkei, a qual se refere ao universo dos nipo-descendentes,
mas que não implica a existência de uma organização de caráter social.
As colônias nikkeis foram construídas pelos imigrantes
japoneses com vistas à superação das dificuldades culturais, sociais e
econômicas que enfrentaram nas primeiras décadas de imigração. Para
conseguirem sobreviver e prosperar em país completamente estranho
e em condições adversas, os isseis constituíram escolas de língua
japonesa, cooperativas agrícolas de produção, associações de províncias
(kenjinkai), associações culturais (bunkyo), hospitais, sociedades de
assistência social e até, de auxílio financeiro, como o Banco América
do Sul. Era uma maneira de congregar esforços para auxílio mútuo,
ao mesmo tempo em que se mantinha viva a cultura japonesa. Além
da necessidade de sobrevivência, contribuiu para a formação dessa
colônia o próprio espírito japonês da coletividade, isto é, as tradições
associativas presentes na cultura japonesa, segundo a qual é mais fácil
prosperar coletivamente do que individualmente. Embora o valor do
individualismo ocidental tenha influenciado sobremaneira a sociedade
japonesa, o coletivismo e solidariedade social permaneceram como
forças orientadoras do comportamento dos imigrantes no País.
Entretanto, o processo que se nota é um afastamento dos
nipo-descendentes com relação às colônias. Aquelas que permanecem
mais fortemente organizadas são compostas por pessoas que se dedicam
às atividades agrícolas e de comércio autônomo. Os descendentes que
migraram para os centros urbanos e que adquiriram alto nível de
escolaridade e elevada posição sócio-econômica perdem
progressivamente a identificação com a colônia. Esse fato, aliado ao
distanciamento das gerações e ao aumento da miscigenação, levanta
preocupações dentro das colônias, e principalmente dentre os isseis,
que anseiam pela continuidade das instituições que lhes são histórica e
afetivamente importantes.
Diante dessas perspectivas, Susumu Miayo, ex-diretor
executivo do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, propõe um novo
53
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
enfoque para a questão do legado da cultura japonesa para os nipo-
descendentes e para a sociedade brasileira em geral. De acordo com
o autor, as instituições nipo-brasileiras têm maior chance de
prosperidade ao se abrirem para toda sociedade, ao invés de
restringirem-se aos nikkeis. As contribuições culturais japonesas
seriam compartilhadas com o brasileiro, independentemente de sua
origem, integrando-se, como os próprios nikkeis, à sociedade local.
Miayo aponta exemplos bem-sucedidos de empreendimentos que se
iniciaram em colônias de imigrantes e se integraram à sociedade
brasileira, incorporando a população em geral, como a criação dos
hospitais Beneficência Portuguesa, Osvaldo Cruz, Albert Einstein,
e dos colégios Dante Alighieri, Porto Seguro e Brasil-Coréia. No
caso dos colégios, as influências da cultura dos imigrantes são
particularmente sensíveis, pois todos os alunos admitidos, sejam
descendentes dos imigrantes ou não, aprendem o idioma desses
imigrantes e apreendem parte de sua cultura, valores e
comportamentos. A abertura para o público brasileiro em geral,
que já vem ocorrendo entre as organizações nikkeis, apresenta-se
como possibilidade de difusão e reconstrução da identidade e da
cultura japonesa no Brasil. Trata-se de um processo de integração,
não apenas dos nipo-descendentes, mas das instituições construídas
pelos imigrantes no País.
Outra preocupação dos isseis reside na transmissão, não
apenas da cultura em geral, mas do “espírito japonês” para as gerações
sucessoras. Esse “espírito japonês” compreende algo mais abrangente
do que o aprendizado do idioma e o conhecimento histórico sobre o
Japão. Ele diz respeito ao modo de pensar e agir, aos valores que estão
presentes de forma marcante em todos os aspectos da vida social.
Dentre os principais, e mais apreciados pelos imigrantes, podemos
mencionar diligência, integridade, perseverança e a honestidade. Apesar
de não serem exclusivos do japonês – pois a própria moral protestante
ressalta tais valores –, eles representam pilares da cultura nipônica e
54
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
consistem em fortes características de auto-representação dos nikkeis.
Essa é a razão pela qual os nipo-descendentes são desejosos de
transmitirem essa herança às gerações vindouras. Esse legado, no
entanto, propaga-se por meio da educação familiar, e não por via
das organizações nikkeis exploradas anteriormente. É a convivência
diária no núcleo familiar o veículo por excelência de transmissão
dos valores que nutrem o “espírito japonês”.
Com isso, enfatiza-se como a construção dessa “identidade
inacabada” ocorre por meio de canais institucionalizados e, ao
mesmo tempo, pela convivência cotidiana e pela educação familiar.
São formas de promover a integração social, procurando conservar
ou até ressignificar aspectos da cultura dos imigrantes que são
valorizadas na sociedade nikkei e na brasileira em geral. Os nikkeis
podem-se sentir brasileiros, mesmo que não sejam integralmente
incluídos no padrão tradicional de identidade nacional,
resguardando aquilo que lhe é particularmente precioso.
O processo de integração social, que, como já dito, é fluido
e permanente, ganhou características próprias de acordo com cada
geração. A construção da auto-imagem e auto-definição dos nikkeis
varia bastante à medida que sociedade nipo-brasileira se desenvolve,
abrigando gerações mais distantes dos isseis e de maior grau de
miscigenação. Em geral, a geração dos imigrantes japoneses conserva
sua identificação com a cultura e sociedade de origem, mantendo
sua auto-representação como japoneses. Já seus descendentes diretos,
os nisseis, vivem um processo mais conflituoso, pois são brasileiros
natos, mas estão fortemente vinculados às tradições de seus pais.
Trata-se de uma identidade construída com mais complexidade e,
na maior parte dos casos, não ocorre sem crises. A literatura a
respeito dos nisseis ressalta como esses descendentes abrigam
identidades duais e muitas vezes conflitantes. Se a convivência diária
com brasileiros e sua condição própria de brasileiro os incita a se
identificar com essa cultura, seus pais e a colônia nipônica tendem
55
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
a reforçar suas diferenças e sua identidade japonesa. Logo, há um
conflito entre o mundo social – no qual afirmam sua brasilidade –
e o mundo doméstico – o qual lhe cobra e lhe incute a identidade
japonesa.
No que se refere aos sanseis, a maior parte da literatura
concorda que tal processo ocorre de forma mais amena, menos
conflituosa. Estudando os nipo-descendentes nos Estados Unidos,
Kunisuke Hirano afirma que a terceira geração teve a oportunidade
de construir seus sentimentos com relação ao Japão mais espontânea
e seletivamente. Isso significa que eles detêm maior liberdade de
escolha de identificação cultural, podendo decidir participar ou
não da comunidade japonesa, conhecer mais ou menos
profundamente a cultura de seus avós. Compreende-se, portanto,
que o processo de integração social dos sanseis é mais voluntário:
não se lhes impõe uma identificação com o Japão, já distante da
memória de seus pais. Parte-se da vontade própria do sansei a busca
por suas raízes culturais.
Naturalmente, trata-se de generalizações que não visam à
compreensão de cada caso particular. A história de cada imigrante
e seus descendentes apresenta vicissitudes que alteram, em certa
medida, a percepção desse processo. Cada um vivencia essa
experiência a sua maneira, influenciado pela trajetória de seus
ascendentes, pela recepção da sociedade local, pela curiosidade
pessoal.
No meu caso particular, como nipo-brasileira, o tema da
integração social e da identidade cultural japonesa no Brasil assume
grande relevo. Não apenas ele desperta meu interesse acadêmico
como oferece subsídios para a própria compreensão de minha
experiência individual. Mais do que o auto-conhecimento, o estudo
sobre a imigração japonesa e as gerações subseqüentes estimula a
curiosidade naqueles que, de alguma forma, se relacionam com esse
encontro cultural.
56
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
Contrariamente ao que, em geral, ocorreu com os nisseis
no Brasil, não foi o mundo doméstico, mas o ambiente externo
que me revelou minha condição de nipo-descendente. Na arena
familiar, não houve pressões para que eu me auto-definisse como
nikkei, mas o mundo social, certamente, via-me mais como
japonesa do que eu estava disposta a admitir. Assim, acredito
que as reflexões teóricas acima expostas são de grande auxílio para
aqueles nikkeis que, estando certos de sua brasilidade, nunca
compreenderam por que continuavam a ser designados de
japoneses por seus próprios conterrâneos. Essa literatura nos
auxilia a entender e aceitar o processo de construção de identidades
no Brasil e a nossa posição, como nipo-brasileiros, nesse curso
contínuo de integração social.
Ao mesmo tempo em que cresce minha curiosidade com
relação ao Japão – no que se refere ao idioma, costumes, vestuário,
valores, culinária, etc –, torna-se claro que muito desconheço dessa
cultura milenar, devido ao distanciamento geracional e geográfico.
Talvez seja um pouco frustrante o fato de a curiosidade e a constatação
de desconhecimento emergirem concomitantemente. Porém, como
sansei e mestiça, reconheço a dificuldade em lidar com diferentes
referências culturais, principalmente dentro de uma sociedade
multiétnica como geralmente é caracterizada a brasileira.
Nos capítulos seguintes, buscarei retomar como a história
da imigração japonesa no Brasil foi objetivada no caso particular de
minha família. Da chegada de meu avós, isseis, ao presente momento,
procuro analisar como a trajetória de integração social foi experienciada
e apreendida pelas três gerações e como se deu a construção da
identidade cultural em cada uma. Apesar da escassa literatura sobre o
tema, abordarei algumas aproximações sobre como a cultura japonesa
é hoje vista e vivida no Brasil, e sobre como o nikkei do século XXI se
insere nessas novas interpretações e manifestações da herança nipônica
no País.
57
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
A CHEGADA DOS IMIGRANTES: UMA HISTÓRIA DE CONTRASTES E
INTEGRAÇÃO
tabi ni yande
yume wa kareno wo
kakemeguru
(Matsuo Bashô)
finda viagem
meus sonhos rodopiam
pelo seco descampado
Se os sonhos iniciais dos imigrantes japoneses no Brasil se
tivessem concretizado, talvez houvesse pouco a se comemorar hoje,
transcorrido 100 anos desde a chegada do Kasato Maru – o navio que
trouxe a essas terras os primeiros imigrantes do Japão. Esses viajantes,
guiados pela esperança de retorno, enfrentaram as enormes
dificuldades de imigrarem para um país que, em quase todos os aspectos,
se diferenciava visivelmente de sua terra natal. Em torno de 3 a 5 anos
era a expectativa de permanecer no Brasil como trabalhador
temporário, para voltar a sua pátria com uma economia de 10 mil
ienes.
A história, entretanto, tratou de alterar essas perspectivas e
de frustrar, em certa medida, esse sonho. Logo nos primeiros meses,
os imigrantes japoneses se defrontaram com a triste realidade de que
seria difícil, senão impossível, o enriquecimento fácil e rápido. Outros
acontecimentos, como a II Guerra Mundial e a derrota japonesa,
contribuíram para que os isseis alterassem suas perspectivas de retorno,
enterrando o velho sonho que os motivava a lutar cotidianamente.
Foi-lhes um duro golpe, é certo, mas que lhes permitiu vislumbrar
um futuro no Brasil. Já na década de 1950, os imigrantes japoneses
não estavam mais empenhados em acumular riquezas para voltar à
58
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
Terra do Sol Nascente; buscavam proporcionar educação a seus filhos
e ampliar as possibilidades para que eles pudessem prosperar aqui, em
solo brasileiro.
Dos 190.000 imigrantes do pré-guerra, apenas 10% realizaram
o sonho inicial de retorno à pátria. Os demais fixaram sua residência
no Brasil, talvez com menos entusiasmo do que resignação. Porém,
fato é que os isseis, no simples curso de suas vidas, ensejaram
importantes transformações na sociedade nacional. São amplamente
conhecidas suas contribuições na agricultura, nas artes, na culinária,
nos esportes, isto é, nos mais diversos aspectos da vida social brasileira.
Mais do que isso, os imigrantes japoneses transformaram a “cara” do
País, ao introduzir um novo fenótipo na sociedade e novas referências
culturais.
A história pode não se ter sucedido exatamente como os
primeiros imigrantes haviam-na planejado. Mas esses percalços
deixaram-nos um legado inestimável, um verdadeiro motivo de grandes
celebrações neste centenário da imigração japonesa no Brasil.
As curiosas trajetórias de vida dos isseis foram narradas por
diversos autores, na tentativa de compreender, por meio das
experiências pessoais, o processo de integração social desses imigrantes.
As organizações da colônia têm desempenhado papel de relevo no
incentivo a essas publicações, que, além de seu valor propriamente
literário, constituem-se como importantes documentos históricos. Não
obstante os isseis representarem, atualmente, 12% da população de
origem japonesa residente no País, eles continuam sendo os
protagonistas dessa história. Assim, não me parece possível relatar
minhas experiências pessoais acerca do tema, sem antes resgatar a
trajetória da primeira geração de imigrantes da minha família: meus
avós.
No entanto, essa tarefa, que inicialmente pode parecer
simples, apresenta-se como um enorme desafio. As principais
complicações advêm da falta de informações precisas e da dificuldade
59
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
de comunicação com meu avô, uma vez que seu português é de difícil
compreensão. Quanto à trajetória de minha avó, tenho por base relatos
esparsos, cuja objetividade é duplamente prejudicada: pelos
subterfúgios da memória de um passado distante e por ser recontada
por seus descendentes. Ainda assim, tentarei reconstruir suas
experiências como imigrante e sua progressiva integração à sociedade
brasileira.
Meus avós vieram para o Brasil em momentos de vida
diferentes, porém com o objetivo comum de buscar melhores
condições materiais e sociais. Diante das dificuldades que enfrentavam
no Japão, foram atraídos pelas informações, cada vez mais difundidas,
de que o Brasil do início do século XX era um país com muitas terras
disponíveis e de boas oportunidades para se prosperar.
Na época, as companhias de emigração, criadas pelo governo
japonês com vistas a incentivá-la, organizavam todo o processo
migratório. Além de promoverem a imagem do Brasil, dispunham de
navios para o transporte e de instalações no porto de Kobe. Também
ofereciam cursos preparatórios e subsídios para a viagem. No Brasil,
os imigrantes desembarcavam no Porto de Santos e seguiam para a
Hospedaria do Imigrante em São Paulo, para posteriormente se
dirigirem às fazendas, em geral, no interior do estado.
Minha avó, Satiko Hirano, nasceu no dia 16 de janeiro de
1926, na cidade de Osaka. Porém, os registros oficiais, emitidos pelo
Consulado Geral do Japão em São Paulo, contradizem seu relato:
neles, consta nascimento em 01 de dezembro de 1925, natural de
Okoyama. Até seu nome foi registrado de maneira diferente no Brasil,
como Yukiko Hirano, fato bastante comum entre imigrantes
japoneses, devido às barreiras do idioma e às diversas fonéticas que
podem ser atribuídas ao kanji.
Com apenas dois meses de vida, veio ao Brasil acompanhada
de sua irmã, seus três irmãos e seus pais, e por aqui desembarcou no
dia 24 de junho de 1926.
60
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
Já meu avô, Tadashi, deixou sua cidade natal, Tóquio, em
1936. Aos dezenove anos, Tadashi chegou à nova terra junto com
dois casais: sua irmã e respectivo marido, e a irmã desse cunhado,
acompanhada do esposo e dos quatro filhos.
A decisão de emigrar, deixando para trás, não só a família,
mas as origens e as tradições milenares, não foi trivial. Porém, as
condições adversas no Japão do período fizeram da emigração, senão
a única saída, pelo menos uma opção bastante atrativa para aqueles
desejosos de uma vida melhor.
As décadas de 1920 e 1930 foram momentos de grande crise
econômica no Japão, acompanhada de instabilidade social e política. O
período que se seguiu após a I Guerra Mundial caracterizou-se pela
crescente inflação e pelos elevados impostos, que recaíam sobre a população
japonesa. No campo, agravava-se a desigualdade econômica e social,
enquanto, na cidade, as condições de trabalho nas fábricas japonesas
permaneciam precárias: as remunerações eram baixas, o tratamento dado
aos trabalhadores, degradante, as oportunidades, escassas.
Paralelamente, assistia-se à ascensão da corrente política
ultranacionalista, encabeçada por setores militares. Retomando
agressivamente o projeto expansionista de fins do século anterior, os
ultranacionalistas justificavam suas ações com a crença de que o Japão
tinha uma “missão histórica e fraterna” com seu entorno. Cabia-lhe
estabelecer e liderar a União Asiática, isto é, transformar a região em
um bloco de poder para se contrapor ao poderio e expansionismo
ocidentais.
O militarismo japonês atemorizava os demais países e seus
próprios nacionais, pois muitos japoneses não estavam dispostos a
arriscar suas vidas em batalhas promovidas pelo ultranacionalismo.
A emigração despontava também como oportunidade para evitar
a participação nessas guerras. Foi o caminho escolhido por meu
avô. Seus irmãos, que lá permaneceram, tiveram que lutar na guerra
com a China e na II Guerra Mundial.
61
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
Diante desse cenário político, em 1923, os Estados Unidos
proibiram a entrada de imigrantes japoneses em seu território –
imigração esta que se iniciara em 1907. Temia-se que a expansão do
Japão pudesse ocorrer em solo americano por meio da imigração.
Soma-se a essa conjuntura de crises econômicas, sociais e
políticas o terremoto de 1923 em Tóquio. Parte da cidade foi devastada,
exigindo-se pesados investimentos para a reconstrução. Meu avô
recorda-se com assombro desse acontecimento: ele almoçava com a
família, quando foram todos subitamente lançados da sala de almoço
ao quintal. Por mais que tentassem, não conseguiam levantar-se do
chão. Com a casa destruída, a família não encontrou outra solução
senão se abrigar, durante vários dias, em barracas na plantação de
batata-doce das cercanias.
Por essas razões, o período que se estende de 1925 a 1942 foi
aquele no qual desembarcou em Santos o maior número de imigrantes
japoneses, representando dois terços do total que para cá vieram. A
história de Satiko e Tadashi, portanto, não foge à estatística e traduz
as dificuldades pelas quais passava seu país natal.
O caminho que ambos seguiram foi semelhante e bastante
representativo da história da imigração japonesa no Brasil: iniciou-se
com o trabalho pesado na lavoura e seguiu-se com a mudança para a
cidade de São Paulo, onde suas trajetórias de cruzam.
Satiko nunca falou muito das terríveis dificuldades com as
quais se deparou a maioria dos imigrantes, talvez por ter vindo tão
pequena – recém-nascida – de modo a não sofrer os impactos e decepções
iniciais. Ela conta, entretanto, que sua família instalou-se primeiramente
em Paraguaçu Paulista, no interior de São Paulo, onde trabalharam
nas plantações de algodão. Trabalhava-se muito e ganhava-se pouco:
as perspectivas de acumulação de riqueza e de melhoria de condições
de vida mostravam-se cada vez mais distantes. As grandes cidades
apresentavam-se como a única oportunidade para realmente
prosperarem e para poderem oferecer educação a seus descendentes.
62
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
Segundo os relatos de Satiko, sua família pôde logo se
emancipar e saldar suas dívidas de viagem, para se dirigir à cidade de
São Paulo, graças à qualificação de seu pai, Toyo Hirano. Este
trabalhara na indústria naval japonesa e, portanto, era bom marceneiro.
Por ter uma profissão no Japão, Toyo e sua família sentiram-se
profundamente “enganados” ao aqui chegarem: a vida na lavoura era
ainda mais dura, mais bruta e com menos perspectivas do que em sua
terra natal. Tal sensação foi tão comum entre os imigrantes que havia
uma canção popular que lhe dava voz: “Foi uma mentira quando
disseram que o Brasil era bom: a companhia de emigração mentiu”
(Handa, 1987:164). Mesmo assim, foi devido à habilidade de fazer
móveis de madeira que a família de Satiko foi capaz de deixar o trabalho
pesado nas fazendas para tentar uma nova vida na cidade de São Paulo.
Na capital paulista, Toyo abriu uma tinturaria. A profissão
de tintureiro era bastante comum entre japoneses, uma vez que exigia
baixo investimento inicial e pouco conhecimento da língua portuguesa.
Embora possuísse a tinturaria, Toyo empregava outros para trabalhar
no estabelecimento, pois preferia dedicar-se à confecção de móveis.
A grande dificuldade enfrentada foi, inegavelmente, o idioma.
Toyo nunca falou fluentemente o português. Minha mãe conta que
se lembra de brincar muito com seu avô, mas não se recorda de nenhum
diálogo, nenhuma conversa. Já Satiko, minha avó, aprendeu
rapidamente o idioma da nova pátria, pois recebeu toda sua educação
no Brasil. O fato de passar a infância em pequenas cidades do interior
paulista dificultou o acesso à educação. Esse era, aliás, um problema
recorrente entre os imigrantes japoneses. Apesar do enorme valor
que atribuíam à educação, muitos não tiveram acesso a ela, pois as
escolas situavam-se nos grandes centros urbanos. A criação de escolas
japonesas visava preencher tal lacuna, ao mesmo tempo em que se
transmitia aos descendentes a cultura e o idioma japoneses. Satiko,
pela distância geográfica, não freqüentou essas escolas, mas pôde
terminar o curso primário em escola brasileira e, portanto, assimilar
63
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
muito da cultura local. Embora falasse japonês, dado que era o idioma
utilizado em casa, não aprendeu a ler e escrever em sua língua materna.
Ao contrário, meu avô Tadashi sofreu bastante com o novo
idioma, pois concluiu seus estudos no Japão e não teve educação formal
no Brasil. Até os dias de hoje, não fala corretamente o português.
Além do idioma, teve que se adaptar aos novos hábitos alimentares e
ao clima, que considerava demasiado quente.
Lembro-me de encontrar com meu avô, em razão da
comemoração de seu nonagésimo aniversário, e de ouvir seu relato a
respeito de suas impressões iniciais ao aqui chegar. Proveniente de
Tóquio, cidade que na época abrigava em torno de 7,3 milhões de
habitantes, sofreu grande impacto com a ausência de infra-estrutura
no novo país. Seu desespero foi imenso quando embarcou no trem
que o levaria para seu destino nas fazendas do interior paulista. A
cada parada do trem, observava ao redor e não via nada: nenhuma
cidade, nenhum habitante, nenhum sinal que se assemelhasse à grande
Tóquio que abandonara. Embora pudesse ter pensado a respeito,
nunca mencionou um possível arrependimento por ter emigrado,
talvez pelo orgulho japonês que lhe impôs uma segura determinação
de “vencer na vida”.
A antropóloga Célia Sakurai identifica, na trajetória dos
imigrantes japoneses no Brasil, a forte presença de valores como o
gambarê. Com origem na filosofia confucionista, o gambarê significa
a perseverança e o esforço para seguir adiante, não obstante as
dificuldades que se apresentam. Trata-se de certa resignação diante
das adversidades da realidade social, associada a uma força para superá-
las. No Brasil, a idéia de gambarê fez parte do espírito de luta dos
imigrantes japoneses, impulsionando-os para o trabalho intenso e para
sacrifícios diários, tendo como objetivo uma vida melhor. “É ela que
alicerça a decisão de ficar e vencer” (Sakurai, 1993:59).
No entanto, o choque inicial para Tadashi foi significativo.
Acabara de terminar seus estudos no Japão e logo teve que se deparar
64
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
com a dura realidade do trabalho nas lavouras de café. Em sua terra
natal, Tadashi levava uma vida de estudante, o que era bastante
respeitado pela sociedade japonesa. Sempre que possível, ele e seus
amigos viajavam e eram comumente acolhidos em casas de famílias,
pela simples fato de serem estudantes. No Brasil, as condições eram
completamente diferentes, principalmente nas fazendas. Mas, por ser
jovem e sem família para sustentar, foi-lhe possível economizar o
suficiente para partir, sozinho, para a cidade de São Paulo, onde poderia
desenvolver outras atividades, menos pesadas e mais rentáveis.
No centro urbano, Tadashi trabalhou em uma pensão e
depois em tinturarias. Aprendido o oficio, abriu uma tinturaria no
centro da cidade, trazendo a família de sua irmã para auxiliá-lo no
trabalho. Com o início da II Guerra Mundial, foram obrigados a
deixar o centro da capital paulista, pois não era mais permitido a
japoneses residirem nessa região. Mudaram-se para o bairro de Belém
em 1942, quando Tadashi começou a trabalhar na tinturaria de Toyo,
pai de Satiko. Em fevereiro do ano seguinte, Tadashi e Satiko casaram-
se. Receberam de Toyo a tinturaria, onde trabalhariam juntos por
muitos anos. Um casamento bastante conveniente para Toyo, pois,
assim, haveria alguém para cuidar da tinturaria e o marido de sua filha
teria seu próprio negócio.
O casamento na cultura japonesa possui um significado distinto
daquele da sociedade ocidental. Segundo Célia Sakurai, a motivação
primordial do matrimônio não é a afeição ou o amor romântico do
Ocidente, mas a conveniência de viver uma vida conjunta, o que traz
vantagens tanto ao homem quanto à mulher. A hierarquia familiar, o
casamento por intermediação (miai), a autoridade do marido, o papel
diferenciado do primogênito e o ideal de mulher como “boa esposa e
mãe sábia” são práticas e valores que orientaram a sociedade japonesa
até o pós-guerra. E, apesar das mudanças radicais implementadas nesse
período, tal como o Código Civil de 1947, esses costumes ainda
permanecem vivos no imaginário japonês.
65
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
No período, o casamento inter-étnico era pouco aceito entre
os japoneses. Havia preconceitos de ambos os lados. Os brasileiros
viam esses imigrantes, devido a seus hábitos, fenótipos e modo de
vida, com estranhamento. Os japoneses primavam pela perpetuação
de sua auto-imagem como um povo único e uma “raça pura”. É o que
muitos autores se referem como o imaginário de uniqueness do povo
nipônico, que tem lastro no mito antigo de criação do Japão e de
formação do japonês. Datam do ano de 712 os relatos sobre esse mito,
documentados nos famosos Registros de Assuntos Antigos. A história
de milhares de anos de isolamento do povo japonês veio a reforçar
essa imagem de povo único e homogêneo, fartamente explorado
posteriormente, com a emergência do ultranacionalismo já
mencionado. Dados estatísticos da década de 1940 revelam que os
casamentos inter-étnicos eram raros: 8% entre os homens e 1% entre
as mulheres.
Em 1943, nasceu a primeira filha dos meus avós, Shizue. O
segundo filho chega em 1946, recebendo, oportunamente, o nome de
Kazumi, que significa paz. Três anos mais tarde, nasce minha mãe,
Midory.
Dessa época, recordo os relatos de meu avô a respeito das
dificuldades impostas aos japoneses em decorrência da Segunda Guerra
Mundial. Proibiram-se os jornais escritos em língua japonesa, a
utilização desse idioma em público, as reuniões de nikkeis e sua livre-
circulação sem salvo-conduto. A entrada do Brasil no conflito em
1942 provocou um endurecimento das medidas restritivas dirigidas
aos súditos do Eixo e elevou a desconfiança com relação a eles.
Entretanto, meus avós não sofreram discriminação por sua origem.
Relacionavam-se muito bem com a vizinhança, imigrantes de diversas
nacionalidades.
No bairro de Belém, onde moravam, havia muitos italianos
e portugueses, mas poucos japoneses. Desse modo, a convivência foi
mais intensa com imigrantes de outras origens, embora se relacionassem
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CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
também com japoneses da mesma profissão. Às vezes, participavam
de festas tradicionais e de pic-nics com seus conterrâneos. Entretanto,
a convivência com eles não era diária, mas eventual. Minha avó já
tinha costumes um pouco diferentes na época e talvez esse fato tenha
contribuído para seu progressivo distanciamento da colônia nipônica.
Relacionava-se muito bem com os demais imigrantes e com os
descendentes dos mesmos, pois falava o idioma local com perfeição.
Aos olhos deles, o casal era sempre visto como muito trabalhador,
honesto e de pouca conversa.
A despeito de compartilharem origem e valores comuns, as
diferenças entre Satiko e Tadashi eram perceptíveis em diversos aspectos.
O fator que provavelmente mais contribuiu para tanto foi a educação
distinta que cada qual recebeu: ela no Brasil e ele no Japão. Satiko
sempre falou que se sentia brasileira. Nascera lá, mas cresceu, formou-
se, criou raízes por aqui. Falava o português fluentemente – talvez
melhor do que o Japonês – e gostava de se relacionar com todos.
Estava totalmente integrada à sociedade brasileira.
Já Tadashi manteve sua identidade nacional, embora tivesse,
há muito, abandonado o velho sonho de retorno à terra natal.
Gostaria sim de visitá-la – e, de fato, o fez em 1986. Mas dizia que
sua família estava aqui, não tinha mais ninguém no Japão e estava
satisfeito com a vida que construiu nos trópicos. Ainda hoje, ele fala
que se sente profundamente realizado ao ver todos seus filhos e netos
“bem encaminhados na vida” e por ter contribuído para tal
desenvolvimento.
Minha mãe recorda-se das queixas – aliás, freqüentes – de
seu pai a respeito da “brasilidade” de Satiko. Criticava-a por não ser
reservada, conversar demasiado com outros sobre assuntos familiares,
não dar apoio total ao marido e querer certa independência. De fato,
as origens poderiam ser as mesmas, mas a formação e a identidade
nacional mostravam-se bastante distintas, o que certamente influenciava
a visão de mundo e a maneira de ser de cada um.
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UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
Assim, com a separação do casal na década de 1980, essas
diferenças tornaram-se ainda mais evidentes. Cada qual seguiu seu
rumo, que refletia o respectivo grau de integração cultural.
Tadashi foi morar com minha tia Shizue em Cornélio
Procópio – interior do Paraná –, onde há, ainda hoje, forte presença
da sociedade japonesa. Já aposentado, começou a levar uma vida
mais tranqüila, junto a seus dois netos, filhos de Shizue e seu marido
Yoshio e a seus novos amigos da sociedade japonesa local.
Adotou a religião budista e, após um período de fanatismo
religioso, passou a buscar o equilíbrio e a harmonia (wa) na
tranqüilidade de sua vida. Por conta de sua identificação com o
budismo, voltou a ler muita literatura japonesa. Também lê, até os
dias de hoje, diversos livros de política, sempre no idioma materno.
Voltou a conviver majoritariamente com japoneses em Cornélio
Procópio, adquiriu novos hábitos e conquistou muitas amizades.
Atualmente, seus principais passa-tempos são assistir à televisão – apenas
canais japoneses -, ler – literatura japonesa – e jogar gateball – o qual
pratica com seus colegas conterrâneos, participando, inclusive, de
torneios.
Dessa forma, Tadashi passou a praticar cada vez mais o
idioma de origem e foi, aos poucos, esquecendo-se do Português.
Minha mãe conta que, quando ele era mais jovem, falava bem o
idioma local: dialogava com brasileiros, discutia política, lia o
jornal e comentava as notícias. Ela recorda que, aos domingos,
na hora do café-da-manhã, ficavam todos à mesa, cada membro
da família lendo uma parte do jornal. Hoje, é muito difícil
compreender o que ele diz quando fala Português. Quase não
conjuga verbos e tem dificuldade para formular uma frase inteira.
Ainda assim, é bastante alegre e adora fazer piadas – com gestos e
palavras esparsas! É uma pessoa muito bem-humorada e “zen” –
segundo minha mãe, ele adquiriu essa ultima característica ao
adotar a religião.
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CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
Em 1986, meu avô teve a oportunidade de visitar o Japão,
passados 50 anos desde sua chegada ao Brasil. O Governo Japonês e a
Aliança Cultural Brasil-Japão promoveram um programa de viagem
à terra natal para japoneses de mais de 70 anos, que ainda tivessem
parentes lá residentes e que nunca houvessem retornado. É o chamado
satogaeri (viagem de visita à pátria), que se tornou mais freqüente a
partir de 1973. Ele gostou muito de voltar temporariamente ao Japão,
mas constatou que tudo estava já bastante diferente. Assim, não teve
vontade de permanecer lá: percebeu que sua vida estava construída no
Brasil, onde sua família se formara e crescera.
Quanto à minha avó, por ter vivido toda sua vida aqui, sempre
dizia que não tinha vontade de conhecer seu país natal – embora minha
mãe desconfie de isso não ser totalmente verdade, já que Satiko não
era uma pessoa que gostava muito de revelar seus sonhos.
Em 1981, mudou-se para Campinas, onde viviam minha mãe,
meu pai e minha irmã, recém-nascida. Lembro-me de que ela adorava
ler o jornal, assistir a filmes – seus preferidos eram os clássicos da
década de 1950 e 1960 – e a programas televisivos sobre a vida animal.
Gostava também de pintar, costurar, fazer tricô, ler romances, cantar
e cuidar do pomar que havia no jardim de casa. Mais do que tudo
isso, amava passear no centro da cidade e no mercado central, onde
comprava frutas e verdura. Ela conversava bastante com as pessoas e
suas amigas eram todas brasileiras – da vizinhança e das aulas de pintura.
Sempre que recebíamos visitas em casa, ela logo começava a conversar,
a contar as histórias de como eram as coisas no “seu tempo”.
Creio que a intensa convivência que tive com minha avó
tenha sido essencial para a herança cultural japonesa que recebi. Ela
representou, para mim, uma “segunda mãe”, pois desde pequena eu
vivia seguindo seus passos. Lembro-me de que minha avó sempre me
carregava em suas costas, “de cavalinho”, como chamávamos. Apenas
recentemente descobri que carregar as crianças amarradas nas costas
era um costume muito difundido entre as mulheres japonesas.
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UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
Com Satiko, aprendi a apreciar a comida japonesa, não
somente aqueles pratos mais comuns presentes no cardápio de
inúmeros restaurantes japoneses, cada vez mais presentes no Brasil.
Ela cozinhava muito bem e conhecia uma variedade enorme de
receitas. Quase todos os dias, havia um prato japonês em casa.
Quando ainda morava em São Paulo, fazia e vendia comida japonesa
sob encomenda. Nos períodos de festas, como Natal e Ano Novo,
chegava a preparar centenas de sushis.
Ela também nos ensinava algumas palavras japonesas do
cotidiano. Aprendi o nome de alguns objetos primeiro em japonês,
para depois conhecer sua denominação no meu idioma.
Da minha infância, recordo-me de fazer origamis, vestir
kimonos à noite e usar os futons para dormir. Ela mesma os
confeccionava e são, até hoje, meus acolchoados preferidos.
Foram diversos os hábitos que incorporei na infância e
que, apenas anos depois, percebi que não faziam parte da vida das
demais pessoas: provinham de minhas raízes nipônicas. Acordo-
me da minha indignação quando ia dormir na casa de minhas
amiguinhas da primeira série e elas não sabiam o que significava
makura – travesseiro.
Atualmente, reconheço a importância da convivência com
minha avó, não apenas por ser ela uma companhia maravilhosa,
mas também por essa herança, que imperceptivelmente nos passava.
Sempre a vi como uma pessoa muito batalhadora, trabalhadora,
constantemente disposta a ajudar os outros e a agradar-lhes.
Hoje, 100 anos após o início da imigração japonesa no
Brasil, diz-se que os yonseis – quarta geração de nikkeis – pouco
guardam da cultura milenar de seus ascendentes, principalmente
devido à ausência de convívio com seus bisavós, os imigrantes
japoneses.
Eu e minha irmã, felizmente, tivemos essa enriquecedora
oportunidade. Embora Satiko se considerasse brasileira, suas raízes
70
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
nipônicas mostravam-se presentes no cotidiano: na culinária, nos
passa-tempos, nos valores, na maneira de ser. Seu falecimento em
dezembro de 2005 foi, para nós, uma enorme perda. E certamente
o momento mais difícil da minha vida.
NISSEIS: OS BRASILEIROS DEOLHOS PUXADOS
atrás desta porta
outra geração celebrará
o Festival das Meninas
(Matsuo Bashô)
A história dos nisseis da minha família começa já nos centros
urbanos. Eles viveram uma realidade bastante distinta daquela de seus
pais. Todos foram criados junto a brasileiros e tiveram possibilidade
de estudar nas melhores universidades. Seu leque de escolhas ampliou-
se, tanto no campo profissional quanto pessoal. O idioma não se
configurava mais como uma barreira: todos aprenderam o português
como a primeira língua. Ao contrário de seus pais, a segunda geração
considerava que já não tinha o direito de falar erradamente o idioma
local. Como conseqüência, a língua japonesa começou a ser esquecida,
para, aos poucos, tornar-se estrangeira.
O contexto no qual cresceram era também outro. Os nisseis
assistiram, de longe, à reconstrução do Japão e a sua ascensão como
potência econômica e política. Tal fato certamente exerceu alguma
influência sobre a imagem que por aqui se construía a respeito dos
japoneses. Os estereótipos alteravam-se. Eles passaram a ser visto, no
Ocidente, como um povo pacífico, disciplinado e trabalhador, capaz
de reerguer seu país das cinzas.
O “Milagre Japonês” do pós-guerra impressionava o mundo.
Os Jogos Olímpicos de 1964, com sede em Tóquio, mostrou aos
demais países um Japão moderno, por meio de transmissões de imagens
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UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
ao vivo. O trem-bala e os bens de consumo cada vez mais baratos,
práticos e miniaturizados eram frutos da acelerada inovação industrial,
impulsionada pelo avanço tecnológico. Era o Japão como ícone do
pacifismo e da modernidade, imagem bem distinta daquela do início
do século.
Além disso, a retomada do fluxo de imigrantes japoneses em
1952, associado ao nascimento de novos descendentes, elevou o número
de nikkeis no País. Na década de 1960, eles somavam cerca de 600 mil
pessoas: já se consolidavam como a maior população de origem
nipônica fora do Japão. Tornaram-se mais numerosos, mais presentes
nas cidades e, aos poucos, foram conquistando novos espaços na
sociedade brasileira.
Os nisseis, em sua maioria, não sofreram choques culturais.
Nasceram já no seio da sociedade brasileira e apenas ao longo de suas
vidas tomaram consciência de suas origens estrangeiras. Afinal, eram
brasileiros. Brasileiros com olhos puxados, evidentemente, e com,
talvez, alguns costumes singulares. Mas essas diferenciações foram-se
gradualmente diluindo. Eram mais japoneses aos olhos arredondados
dos outros do que a seus próprios. Eles freqüentaram ambientes
comuns a brasileiros de diferentes origens e já não precisavam se
refugiar em colônias japonesas para se sentirem em casa.
Talvez a história de minha mãe nesse aspecto tenha sido
bastante distinta daquela da maioria dos nisseis, seja pelo fato de minha
avó ter-se, tão logo, integrado à cultura local, seja por sua própria
personalidade. De qualquer forma, ela nunca se identificou com a
colônia japonesa, muito embora se orgulhasse muito de suas origens.
A vontade de se relacionar com os demais e de se integrar, o medo de
isolamento social e cultural e sua criação na grande cidade de São
Paulo, cada vez mais multiétnica, motivaram-na a evitar a convivência
em círculos fechados de nikkeis e a buscar, fora deles, sua verdadeira
personalidade e identidade. A colônia japonesa, já presente na capital
na metade do século anterior, parecia-lhe demasiado fechada. Se tal
72
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
característica dificultava a integração com outros brasileiros e a
assimilação dos costumes locais, deve-se reconhecer que foi de grande
importância para manter vivas as tradições e os princípios da cultura
milenar japonesa.
Trata-se do dilema que coloca em extremos a preservação
total da cultura de seus ascendentes e a assimilação completa do modo
de vida local. Cada nissei resolveu esse dilema a sua maneira,
resguardando os valores e práticas que lhe eram importantes, sem
deixar de agregar novos elementos culturais da sociedade da qual eram
já parte indissociável. Obviamente, tal processo não é racional ou linear.
É extremamente difícil reconhecer em si as qualidades que provêm de
uma ou outra cultura. Seja como for, os nisseis que aqui nasceram,
cresceram e construíram suas vidas distanciaram-se culturalmente de
seus familiares que permaneceram na Terra do Sol Nascente. Aliás, as
transformações ocorridas no Japão do pós-guerra foram imensas, de
modo que dificilmente minha mãe se identificaria muito, apesar das
raízes comuns, com os japoneses que hoje vivem em seu país.
A cidade de São Paulo, na década de 1940, era uma metrópole
próspera e cheia de oportunidades. O acelerado crescimento econômico
atraía imigrantes, seus descendentes e migrantes de outros centros
urbanos e das zonas rurais. Todos se dirigiam à capital paulista em
busca de melhores condições de vida e perspectivas de ascensão social,
motor precípuo dos movimentos migratórios. O crescimento
demográfico de São Paulo expressa esse movimento populacional: de
1,3 milhões de habitantes em 1940, a cidade passa a abrigar 2,2 milhões
após 10 anos. Os novos habitantes alteraram significativamente a vida
na grande cidade, forjando-se um ambiente propício para a convivência
de diferentes culturas, que se manifestavam livremente, se reafirmavam
e, gradualmente, se integravam. Estima-se que, dentre os 5,5 milhões
de imigrantes que chegaram ao Brasil a partir de 1880, 2,5 milhões
dirigiram-se a São Paulo. É nesse cenário multi-étnico que nasce minha
mãe, Midory, em 15 de setembro de 1949.
73
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
Midory passou os primeiros anos da infância no bairro de
Belém, onde seus pais trabalhavam. As famílias da vizinhança, todas
brasileiras, eram muito próximas, de modo que as crianças logo se
tornaram amigas entre si. Tinham, todas, idades semelhantes e
brincavam na rua cotidianamente. Segundo minha mãe, não havia
qualquer discriminação por razão de suas origens japonesas. Seu melhor
amiguinho não entendia muito bem as diferenças e, quando nasceu
sua irmã, queria que ela tivesse os olhos puxados, como minha mãe.
Perguntava a seus pais por que não poderia assim ser.
Midory sentia-se brasileira, exatamente igual a seus amigos
da vizinhança. Quando ia para São Bernardo – onde viviam os parentes
que vieram com Tadashi ao Brasil e seus descendentes – convivia com
a colônia japonesa, mas sentia-se “fora do contexto”. Não falava japonês,
vestia-se de forma diferentes e já tinha hábitos mais brasileiros.
Tampouco estava tão acostumada com a comida e as tradições japonesas
e desconhecia a maioria das canções. Ainda assim, relacionava-se muito
bem com seus tios e primos de São Bernardo e deles recebia atenções
especiais por ser a “caçulinha” da família.
As primeiras percepções de sua alteridade e as dificuldades
inicias que enfrentou tiveram lugar quando sua família se mudou para
o bairro da Móoca. Os vizinhos eram outros e, aos oito anos, Midory
teve que conquistar novas amizades. Porém, sempre que havia brigas,
chamavam-na de japonesa, como se fosse um xingamento. Não teve
ajuda ou apoio de sua família para compreender e superar essa situação,
pois era difícil falar para seus pais que seus traços físicos eram motivo
de xingamento. Foi a primeira vez que sentiu o preconceito.
Outro momento no qual percebeu certa discriminação em
função de suas origens foi quando fazia cursinho pré-vestibular. Nas
salas de aula, alguns professores chegavam a dizer: “já eliminou seu
japonês hoje?”. Nesse ambiente competitivo, entendia-se que cada
nikkei no cursinho representava uma vaga a menos na universidade.
Os nipo-descendentes já eram vistos como estudiosos, esforçados,
74
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
inteligentes. As estatísticas explicam a construção desse estereótipo:
apesar de representarem somente 2% da população do Estado de São
Paulo, os nikkeis correspondiam, na década de 1970, a
aproximadamente 12% dos estudantes aprovados das grandes
universidades paulistanas.
A educação, para a família de minha mãe, ocupava lugar
central. Seus pais investiram muito na formação dos filhos, para que
eles pudessem ter acesso ao ensino superior e, portanto, a melhores
oportunidades no mercado de trabalho. Shizue preferiu cursar escola
técnica e começou a trabalhar desde cedo. Kazumi graduou-se no
Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e Midory, na Escola de
Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em 1971, Midory ingressou na Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo (USP). Foi uma enorme conquista, porém
insuficiente: seu grande sonho era tornar-se médica. Obteve, então, o
apoio de Kazumi, que, por já se ter formado, poderia auxiliar
financeiramente a família. Havia certa expectativa, embora velada, de
que Kazumi deveria ajudar sua irmã mais nova e sua mãe, uma vez que
era o irmão mais velho. Na cultura japonesa, o irmão mais velho tem
um papel diferenciado na estrutura familiar. Se, por um lado, recebe
alguns privilégios, por outro, deve arcar com mais responsabilidades.
Com o incentivo do irmão, Midory decidiu abandonar os estudos de
Engenharia e prestar vestibular para Medicina. No ano seguinte,
ingressou na Unicamp e passou a morar em Campinas.
Dos setenta estudantes de sua turma, apenas quatro eram
nipo-descendentes. Não era possível “passar despercebida”, mas
tampouco havia preconceito racial. O fato de ser nikkei já era motivo
de respeito. A colônia japonesa no Brasil prosperava, enquanto, no
outro lado do mundo, o Japão consolidava sua posição entre as nações
mais rica do globo. O acelerado crescimento econômico japonês fez
do país a segunda maior economia mundial em 1967. Os nipo-
descendentes passaram a ter orgulho de suas raízes e auto-estima.
75
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
Minha mãe conheceu meu pai, Bruno, na USP, em 1971.
Logo começaram a namorar e, em março de 1975, casaram-se. Embora
não fosse muito comum na época, o casamento com “gaijin
(estrangeiro) foi bem aceito na família de Midory, assim como ela não
sofreu discriminações entre os parentes de meu pai, descendente de
portugueses. Não houve pressões para que ela se casasse com nikkei.
Os nipo-descendentes no Brasil superavam o mito da “uniqueness” do
povo japonês. Integravam-se definitivamente à cultura e identificavam-
se com a população local. A sociedade brasileira seguia seu curso
contínuo de miscigenação.
De fato, a trajetória de Midory não poderia ter sido diferente.
Sempre conviveu mais com brasileiros de distintas origens do que
com nikkeis. Desde a infância até a vida adulta, seus amigos e suas
principais referências não faziam parte da colônia nipônica, de forma
que ela criou uma identificação maior com os demais brasileiros.
Quando lhe perguntei se ela se sentia brasileira, respondeu
que sim. Disse que tinha preferência pelas coisas brasileiras, tinha
vontade de ver o Brasil crescer mais, com menos desigualdades sociais.
Ver o povo tornar-se mais culto, menos pobre, com uma vida melhor.
“Penso no Brasil, não penso no Japão”, disse-me.
Ainda assim, ela reconhece em si características herdadas da
cultura de seus ascendentes: timidez, paciência, detalhismo,
intransigência e forte apego aos princípios. Talvez o gosto por
decoração e por ikebanas (arranjos florais) sejam também influencia
de suas raízes nipônicas.
Naturalmente, Midory nutre uma admiração especial pela
cultura japonesa. Impressionam-na capacidade de se modernizar tão
rapidamente e a busca pela harmonia, seja nos arranjos dos pratos, nas
estampas dos tecidos, seja no modo de vida. Sua maior curiosidade é
entender como os japoneses conseguem viver em espaços tão pequenos
sem acumular coisas! Ela também tem muita vontade de conhecer o
Japão, passar alguns meses lá para realmente poder viver o dia-a-dia
76
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
das pessoas. Ironicamente, a única pessoa do meu núcleo familiar que
já esteve na Terra do Sol Nascente é meu pai, o gaijin.
Para a geração de minha mãe, ser nikkei era ainda ser bastante
diferente dos descendentes dos demais imigrantes. Era ser japonês,
mas em “lugar errado”. Já havia possibilidade de entrosamento com
outros brasileiros, mas ainda era difícil vencer a timidez e o olhar dos
outros, que insistiam em considerá-la diferente. Adicionalmente, ela
sentia que deveria corresponder às enormes expectativas de seus pais,
que tanto batalharam para investir no futuro dos filhos. Para estes,
não existiam fracassos, desistência, mas tampouco havia escolas
particulares, privilégios. Ser nikkei era viver em constante ambigüidade:
sentir-se brasileira e ser vista como japonesa; buscar integrar-se
completamente e, ao mesmo tempo, manter suas raízes; ter orgulho
da cultura de seus pais, mas desconhecer muito de seus costumes,
tradições e mentalidade. Uma ambigüidade que, quiçá, seria resolvida
na geração posterior.
SANSEIS: APRENDENDO A SER JAPONÊS
verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida
(Paulo Leminski)
Há pouca literatura sobre a trajetória de vida e o modo de
ser dos sanseis. O motivo talvez seja a constatação de que a terceira
geração de japoneses no Brasil já se sente perfeitamente integrada à
sociedade nacional. Filhos de pais que se percebem como brasileiros,
os sanseis, em geral, não sofreram crises identitárias. São, e querem
ser, genuinamente brasileiros.
Essa geração nasce em um momento histórico no qual o papel
dos imigrantes japoneses e de seus descendentes no desenvolvimento
77
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
do País é amplamente reconhecido. As prestigiadas comemorações de
50, 70, 80 e, hoje, dos 100 anos da imigração japonesa refletem essa
percepção. Nas décadas de 1970 e 1980, os nikkeis não estavam apenas
incorporados à sociedade brasileira: eram parte, em sua maioria, das
classes média e alta. Além disso, representavam o grupo de maior
escolaridade no País. O japonês já era considerado, por muitos
intelectuais, uma etnia que “deu certo no Brasil” (Sakurai, 1993:17).
Além disso, diversos nipo-descendentes passam a ocupar lugar
de destaque nos mais variados ramos da vida nacional: nas artes, nas
empresas, nos esportes. Progressivamente, o brasileiro de “olhos
puxados” torna-se uma figura mais presente no cotidiano do País. Os
sanseis já não são vistos com “estranhamento” por seus conterrâneos,
pois, apesar do fenótipo diferente, comportam-se exatamente como
os não-nipo-descendentes e compartilham as mesmas referências
culturais. É a diluição da alteridade.
A ausência de estranhamento não significa, porém, completa
normalidade. Embora numerosos, os nipo-brasileiros representam um
grupo minoritário, facilmente identificado pelos traços físicos. Trata-
se de um processo intrinsecamente contraditório: aceita-se a brasilidade
dos nikkeis, ao mesmo tempo em que eles preservam certa marca
distintiva. O que se observa no Brasil atual é uma curiosidade e interesse
pelas origens desses brasileiros.
No meu caso, a consciência a respeito de minhas raízes
ocorreu tardiamente, de forma bastante similar à história de minha
mãe. A infância se caracterizou por um período em que as distinções
étnicas, na minha percepção de criança, não existiam. Não notava a
diferença entre minha família materna, de origem japonesa, e paterna,
descendente de portugueses. Nunca consegui identificar nas feições
de minha mãe e de minha avó os traços tipicamente japoneses.
Nesse aspecto, meu mundo doméstico diferiu pouco daquele
experienciado por brasileiros de outras origens. Como já mencionado,
a convivência próxima com minha avó foi a principal responsável pela
78
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
introdução de alguns elementos particulares do modo de ser japonês,
como determinados hábitos, valores e expressões. Mas, em geral,
considero que o contato que tive com a cultura japonesa na infância
não foi intenso. O fato de os irmãos de minha mãe morarem em
outra cidade contribuiu para esse distanciamento. Quando visitava
meus primos na cidade de São Paulo, notava que eles tinham os
costumes nipônicos mais fortemente presentes, por se relacionarem
diariamente com a família da esposa de meu tio, também nikkei.
A convivência com nipo-descendentes foi escassa não apenas
no círculo familiar, como nas demais esferas sociais. Nas escolas que
freqüentei, meus colegas eram sempre brasileiros das mais variadas
origens. Havia, decerto, nikkeis, alguns dos quais são, até hoje, grandes
amigos meus. Porém, minha aproximação a eles não se deu por razão
de uma identificação étnica. Sempre os vi como brasileiros e creio que
era vista da mesma forma. Nunca senti qualquer tipo de preconceito
ou discriminação.
Foi na adolescência que tomei consciência de que minhas
raízes diferenciavam-me do brasileiro padrão. Justamente na fase da
vida em que o que se quer é ser igual aos demais. Nessa idade, não
conseguia compreender por que me chamavam freqüentemente de
japonesa e não se referiam a meus colegas como italianos, portugueses,
espanhóis.
Ao entrar na idade adulta, tais diferenciações deixaram de
me incomodar. Ao contrário, comecei a valorizar as características
que, de certa maneira, tornavam-me peculiar, fora do padrão estético
tradicional do brasileiro. Concomitantemente, constatei que as pessoas,
em sua maioria, nutriam especial interesse e curiosidade com relação a
minhas origens e a meus traços mestiços. É muito freqüente me
perguntarem a respeito da nacionalidade de meus ascendentes.
Aos poucos, reconheci, aceitei e valorizei minhas raízes. Mais
do que isso: elas começaram a despertar, em mim, intensa curiosidade
acerca do Japão e de sua cultura milenar. Pode-se dizer, que se tratou
79
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
de um processo gradual, em larga medida motivado pela própria
sociedade brasileira. Apesar de não questionarem minha brasilidade,
são numerosos os não-nipo-descendentes que esperam de mim certo
comportamento ou conhecimento sobre as tradições japonesas, devido
a minha fisionomia. Muitos deles perguntam-me se eu falo o idioma
japonês e querem saber mais sobre essa cultura. Eu, no entanto, pareço
desapontá-los, por desconhecer grande parte das tradições de meus
avós.
Essa situação começou a me causar uma sensação de
desconforto. Percebi que a história de integração social de minha
família implicara o afastamento da terceira geração com relação a uma
cultura que fascina tantos brasileiros. Tal fato despertou-me a vontade
de conhecer mais a respeito do país de meus avós e do Japão dos dias
de hoje.
Lembro-me de um acontecimento que me foi particularmente
relevante nesse aspecto. Participando como diplomata de ligação em
um evento no Palácio do Itamaraty, conheci uma coreana que falava
português com notável fluência. Em uma conversa casual, contei-lhe
sobre meu desejo de aprender um idioma oriental – fosse ele o chinês,
o japonês ou o coreano. Apesar da crescente importância da língua
chinesa, ela logo me dissuadiu de estudá-la. Afirmou, sem hesitação,
que o estudo do japonês seria, para mim, uma inestimável fonte de
auto-conhecimento, por meio da qual eu teria maior contato com
minhas própria raízes. Não compreendi de pronto a importância
daquilo que ela me dizia, mas, ainda assim, resolvi acatar sua sugestão.
Em 2007, comecei a estudar japonês. De fato, senti que foi
um encontro com minhas raízes. Em alguma medida, tive a sensação
de resgatar um pouco de minha “japonicidade”. Além do fascínio
inerente a um idioma que se constrói sobre uma lógica completamente
distinta da ocidental, o estudo do japonês me estimulou ainda mais a
curiosidade com relação a minhas origens. Interessante foi notar que,
apesar de a maioria das palavras serem totalmente diferentes do
80
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
português, alguns sons me eram familiares: eram vocábulos que,
embora eu não tivesse consciência, faziam parte de minha memória.
Outro hábito que adquiri recentemente foi comprar
produtos japoneses – como sembei (bolacha de gergelim), hashi, chá
verde, sakê, artigos de decoração. De alguma forma misteriosa, a
presença do Japão materializada nesses objetos traz-me a sensação de
proximidade com minhas raízes.
Com relação a acesso a produtos de origem japonesa, a
sociedade nikkei no Brasil pode ser considerada privilegiada. Susumo
Miyao aponta as dificuldades que enfrentam os nipo-descendentes no
Uruguai nesse aspecto. Livros e revistas em japonês quase não são
encontrados no país vizinho e não há publicação de jornais nesse
idioma. Alguns assinam jornais em língua japonesa produzidos no
Brasil. No que se refere aos alimentos tipicamente japoneses, a escassez
é ainda mais contrastante. Produtos raros no Uruguai, como mochi,
shoga, kamaboko, moyashi, miso, shoyu, dentre outros, são aqui de
fácil obtenção.
Esse contraste ocorre não apenas em razão de o número de
nikkeis no Brasil ser infinitamente maior do que no país vizinho. Mas
também porque esses produtos foram de tal forma incorporados aos
hábitos do brasileiro que seu mercado consumidor não se restringe à
comunidade nikkei. Criou-se um mercado tão amplo que muitos desses
artigos originalmente japoneses são hoje produzidos em território
nacional.
A presença japonesa no Brasil não foi somente marcante,
mas gradualmente passou a fazer parte do País. Os hábitos e produtos
japoneses foram aceitos e incorporados ao próprio modo de ser do
brasileiro, em processo semelhante ao que ocorreu com seus
descendentes. Isto é, da mesma forma que acontece com os nipo-
brasileiros, a cultura japonesa torna-se também parte da cultura
brasileira, resguardando, em certa medida, a característica de ser
tipicamente japonês.
81
UM JAPÃO NO BRASIL: HERANÇAS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA
Mais do que a simples transmissão de uma herança cultural,
o processo de integração social fez que, no Brasil, as tradições japonesas
fossem reinventadas. Assim, adquiriram, no seio da sociedade nacional,
novos significados. Conforme nos indica o pesquisador Sachio Negawa,
alguns eventos tidos como tradicionalmente japoneses foram
inventados pela comunidade nipônica no Brasil a partir da década de
1960, como é o caso da festa Tôyô-Matsuri, que celebra anualmente a
cultura oriental no mês de dezembro.
A influência japonesa no País não se restringe à herança
deixada pelos imigrantes. Eles estabeleceram um canal de difusão
cultural que permanece ativo. Logo, continuamos a receber
elementos culturais do Japão, mesmo depois de finda a imigração.
É o que se observa no sucesso, entre os nacionais, dos mangás
(histórias em quadrinho), animes (animação), jrock (o rock japonês)
e karaokê.
Verifica-se, por conseguinte, como a cultura japonesa está
presente no Brasil e no brasileiro. Basta caminhar pelas ruas do bairro
oriental da Liberdade, na cidade de São Paulo, para se constatar que
os não-nipo-descendentes são grandes apreciadores dos costumes e
produtos japoneses.
Nas últimas décadas, o apreço e a curiosidade da sociedade
brasileira pela cultura nipônica são visivelmente crescentes. Na área
acadêmica, esse elevado interesse traduz-se em numerosos estudos e
publicações acerca do tema e reflete-se em acontecimentos como a
construção do edifício dedicado ao Centro de Estudos Japoneses da
Universidade de São Paulo, em 1976, e a criação do Centro de Estudos
da Língua Japonesa, na década seguinte.
Nas novas gerações, a valorização da cultura nipônica tem
efeitos no cotidiano e na construção do imaginário. Alguns
adolescentes de hoje chegam até a confessar que gostariam de ter
origens japonesas. Teria o nikkei do século XXI se tornado, em certa
medida, um “outro desejado”?
82
CANDICE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
Essas reflexões fazem-me admitir que a maior parte da herança
japonesa no Brasil não está em nós, nipo-descendentes. Com os esforços
dos isseis e dos nisseis para se integrarem completamente na sociedade
nacional, muito da cultura japonesa não foi transferida de pai para
filho. Não obstante, ela encontra-se largamente difundida na sociedade
brasileira em geral.
As instituições nikkeis, os bairros étnicos, os numerosos
restaurantes japoneses, a prática de judô e de caratê, os festivais tradicionais,
muito da cultura nipônica já está de tal forma enraizada na vida do brasileiro
que independe dos nikkeis para se perpetuar. Ela se transmite fora do
núcleo familiar, alimentada pela curiosidade do não-nipo-brasileiro com
relação ao Japão e ao modo de ser japonês. Foi essa mesma curiosidade
que despertou meu interesse particular sobre minhas origens.
Os imigrantes japoneses deixaram exclusivamente a nós, nipo-
descendentes, a inconfundível herança genética. Mas deixaram a todo
brasileiro um legado talvez mais importante: a possibilidade de ser, um
pouco, japonês.
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SAKURAI, Célia. Romanceiro da Imigração Japonesa. São Paulo:
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_______. Os Japoneses. São Paulo: Editora Contexto, 2007.
III.
ENSAIO SOBRE A HERANÇA
CULTURAL JAPONESA INCORPORADA
À
SOCIEDADE BRASILEIRA
87
Poucas culturas são tão singulares e marcantes como a cultura
japonesa: por sua herança milenar, por seu culto e respeito às tradições,
por sua rápida inserção rumo à modernidade, e pelos desafios que
nascem de uma sociedade que busca harmonizar valores e realidades
aparentemente contraditórios, cuja conciliação requer pragmatismo.
Faço parte do 1,5 milhões de nikkeis
1
(japoneses e seus
descendentes) que vivem no Brasil, e que constituem a maior população
japonesa fora do Japão. Invariavelmente penso na sorte que tive por
meus avós terem escolhido o Brasil como país de adoção e a gratidão
que sinto pelo País que abriu as portas para a imigração japonesa em
um momento de dificuldades por que passava o Japão, quando a maior
parte das nações, pelos mais diversos motivos, limitava ou simplesmente
proibia a entrada de naus japonesas em seus portos.
Ser descendente de imigrantes em um país composto
majoritariamente por imigrantes como o Brasil, verdadeiro “caldeirão”
étnico e cultural, não nos torna únicos. O que nos distingue dos
descendentes de outras origens são os evidentes traços físicos, uma
educação rígida, uma forte herança cultural, a tendência a manter-nos
dentro de nosso grupo, consoante o sentido de coletividade, e uma
mentalidade conservadora e tradicionalista em comparação aos padrões
locais.
Neste breve ensaio tenho a intenção de: i) abordar
sucintamente a questão imigratória; ii) relatar um pouco da experiência
de minha família; iii) discorrer sobre minha experiência pessoal, o elo
Cecília Kiku Ishitani
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À
SOCIEDADE BRASILEIRA
1
Dados estimados pela Embaixada do Japão no Brasil.
88
CECÍLIA KIKU ISHITANI
de ligação artística e a condição de diplomata; iv) considerar a evolução
da comunidade nipo-brasileira e o estreitamento dos laços político-
econômico-culturais dos dois países; e v) por fim, analisar as perspectivas
da relação bilateral e ponderar como o pragmatismo que pautou a
aculturação dos descendentes de japoneses no Brasil pode constituir
referência para a atuação externa do País, sem perder de vista valores
essenciais, tendo por objetivo a ocupação de nichos e espaços nas mais
diversas instâncias.
I) A QUESTÃO IMIGRATÓRIA
O Japão teve um processo emigratório relativamente tardio
em comparação às nações européias. Os primeiros fluxos migratórios
iniciaram-se apenas no final do século XIX. Referido isolamento
prevaleceu durante o Xogunato, e apenas ao longo da Restauração
Meiji (1868) ocorreu a abertura dos portos. Premido pela pressão
demográfica e pela escassez de alimentos, o Governo japonês viu-se na
necessidade de adotar, por fim, uma política de emigração.
Levas se direcionaram ao Havaí (1868), Califórnia (1888),
México, Peru e Bolívia (1899) e aportaram no Brasil, pela primeira
vez, no ano de 1908. Para tanto, foi assinado em novembro de 1895,
em Paris, pelos Ministros Plenipotenciários do Brasil e do Japão, o
Tratado de Amizade, Comércio e Navegação.
Os primeiros emigrantes que partiram do Japão eram
instruídos pelas autoridades de seu país a serem “embaixadores civis”
de sua nação e a portar trajes ocidentais na viagem, para não causar
estranheza em seus países de destino
2
. Eram, ademais, alfabetizados,
pois a Restauração Meiji tinha instituído a obrigatoriedade do ensino
(1871), e haviam sido criados com a mentalidade de que a instrução
2
Ninomiya, Masato. “O Centenário da Imigração Japonesa para o Brasil e as Perspectivas
para o Futuro”, texto revisto e ampliado de palestra proferida, em 05.12.06, na
Universidade de Nanzan, cidade de Nagóia, Japão.
89
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
era necessária e primordial. As fotos de chegada do navio “Kasato
Maru”, no Porto de Santos, em 1908, mostram imigrantes
ocidentalizados, pelo menos em sua aparência.
A assimilação local das primeiras levas de imigrantes japoneses
não foi fácil: a barreira da língua, a diferença dos costumes, a comida,
doenças, entre outros fatores, dificultaram a familiarização com o
novo país. Esses imigrantes tinham, ademais, a ilusão do
enriquecimento rápido e o desejo de regressar ao país de origem em
poucos anos.
O fluxo migratório nipônico para o Brasil, até a Segunda
Guerra Mundial, segundo alguns estudiosos, pode ser dividido em
dois períodos: de 1908 a 1925, de caráter experimental, e de 1926 a
1941, quando a imigração foi promovida e subsidiada pelo governo
japonês. O primeiro período é marcado pelas variações no fluxo, tendo
em vista as dificuldades de adaptação dos colonos, as oscilações da
política imigratória brasileira e a emigração para os Estados Unidos.
O segundo período, por sua vez, é marcado por um fluxo mais
expressivo, crescente e regular, com uma maior dispersão geográfica e
introdução da figura do imigrante proprietário
3
.
Como destaca o Professor Masato Ninomiya
4
, podem ser
considerados os anos dourados da imigração o período de 1924 a 1934,
com a proibição da imigração japonesa para os Estados Unidos (“Quota
Immigration Act”, de 1924 ) e o financiamento, a fundo perdido,
oferecido pelo Governo japonês para a compra das passagens pelos
imigrantes.
Os imigrantes japoneses no Brasil tendiam a constituir
colônias, pela própria dificuldade de comunicação, e o seu isolamento,
3
Carneiro Leão, Valdemar. “A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930-34).
Contornos Diplomáticos”, Fundação Alexandre de Gusmão/ Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais, Brasília, 1990.
4
Ninomiya, Masato. “O Centenário da Imigração Japonesa para o Brasil e as Perspectivas
para o Futuro”, texto revisto e ampliado de palestra proferida, em 05.12.06, na
Universidade de Nanzan, cidade de Nagóia, Japão.
90
CECÍLIA KIKU ISHITANI
entre outras razões, passou a ensejar a desconfiança por parte de
algumas autoridades locais. Nas discussões da Assembléia Nacional
Constituinte, que se iniciaram em novembro de 1933, lançou-se a
controvérsia. Entre as principais objeções destacavam-se a questão da
eugenia, a ameaça à segurança pátria (com o argumento do imperialismo
e expansionismo japonês) e o problema da assimilação. Uma obra de
Oliveira Vianna (“Raça e Assimilação”), lançada à época, radicalizava
afirmando, em célebre frase, que “o japonês é como enxofre: insolúvel”,
e postulava sua total incapacidade de se deixar absorver
5
. Essa corrente
contrária à imigração acabou por vingar na Constituinte de 1934,
quando se instituiu a cláusula de redução de novos imigrantes por
nacionalidade para 2% do total ingressado nos últimos 50 anos. Tratava-
se de medida claramente discriminatória, uma vez que afetava apenas
a imigração japonesa.
Com o rompimento das relações diplomáticas, a imigração
foi interrompida em 1942 e só retomada quase dez anos depois, a
partir do início da década de 50. Nesse período de hostilidades que se
seguiram ao rompimento das relações entre os dois países, uma série
de restrições foram impostas aos descendentes japoneses, como o
congelamento de bens, a proibição de falar em público em seu idioma,
a limitação de deslocamento para além dos limites de seu domicílio,
entre outras dificuldades.
Com a rápida recuperação econômica do Japão após a guerra,
o número de imigrantes passou a diminuir consideravelmente,
sobretudo a partir da década de 60. O último navio de imigrantes a
aportar no Brasil foi o “Nippon Maru”, que chegou em Santos, em
março de 1973. Iniciou-se então um adensamento das relações
econômico-comerciais entre os dois países.
5
Carneiro Leão, Valdemar. “A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930-34).
Contornos Diplomáticos”, Fundação Alexandre de Gusmão/ Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais, Brasília, 1990.
91
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
Na década de 80, com a crise econômica no Brasil, teve início
um movimento de emigração dos descendentes de japoneses do Brasil
para o Japão, em busca de melhores condições de trabalho. O
fenômeno dos “dekaseguis” (em sua acepção literal, que “ganham
dinheiro fora de sua terra”) tomou corpo e hoje constituem uma
comunidade de quase 300.000 descendentes retornados ao Japão.
II) A EXPERIÊNCIA FAMILIAR NA ADAPTAÇÃO A UM NOVOLOCUS
Meus quatro avós imigraram ao Brasil nas décadas de 20 e
30, período auge da imigração, seduzidos pelas oportunidades de
trabalho e pelos incentivos oferecidos pelo governo japonês. Meus
avós paternos, já falecidos, após mais de 60 anos vivendo no Brasil,
mal aprenderam a falar português. Viviam dentro de sua comunidade,
inicialmente no interior de São Paulo e depois no norte do Paraná,
mantendo hábitos e tradições como se permanecessem em parte de
seu país de origem. Por viverem tão confortavelmente dentro de
seu “locus” não sentiram a necessidade de aprender o idioma do
País.
Paradoxalmente, pelo pragmatismo que caracteriza a cultura
nipônica, compreenderam a necessidade de integrar os filhos à nova
realidade. Concluído o estudo básico, mandaram-nos estudar em
escolas brasileiras, em grandes centros urbanos. Batizaram-nos, ademais,
segundo a fé católica, ainda que, por origem, fossem budistas e
xintoístas.
Embora mantivessem suas tradições dentro do círculo
familiar, tinham orgulho de seus filhos que, pela educação e pelo
trabalho, integravam-se ao novo meio.
Lembro, com graça, que meus avós nunca aprenderam a
pronunciar os nomes dos netos, pois continham consoantes comuns
que não existiam no alfabeto japonês, como o ‘f’, o ‘v’ e o ‘l’, entre
outros.
92
CECÍLIA KIKU ISHITANI
Imagino que, por essa e outras razões, a adaptação não tenha
sido fácil. O Brasil, apesar de seu caráter multicultural, é um país em
que a latinidade e a espontaneidade são traços marcantes. Os brasileiros,
por costume, abraçam, discutem, choram, celebram e externalizam
muito as emoções. Os japoneses, em contrapartida, aprendem desde
cedo a reprimir seus sentimentos, cuja manifestação demonstra fraqueza
e mesmo descortesia. Por educação, e para não constranger o
interlocutor, evitam o contato visual e mantêm sempre uma certa
distância física. Abraços e comemorações efusivas, nem mesmo entre
familiares.
Na culinária, lembro que em casa se mesclavam elementos
da culinária brasileira e japonesa sem nos dar conta. Comíamos costela
e bisteca de porco, temperadas com gengibre e molho de soja
(“shoyu”). O arroz com feijão era com arroz japonês (branco, quase
pastoso, sem sal nem óleo) e feijão brasileiro.
Ainda criança, tínhamos uma professora japonesa que vinha
em casa nos ensinar o idioma de meus avós, canções e histórias infantis
japonesas, e a fazer “origamis” (dobraduras). Na parte artística,
também tinha uma professora com a qual empenhei-me em aprender
a arte da caligrafia japonesa, os “kanjis”.
Freqüentei uma escola de freiras japonesas para seguir os
estudos de japonês. Muito rigorosas, pretendiam nos ensinar disciplina
e humildade e às vezes até impunham pequenos castigos físicos como
forma de corrigir a postura ou reprimir comportamentos considerados
inadequados. Minha irmã mais nova, por exemplo, canhota de nascença,
tinha a mão esquerda invariavelmente amarrada com elástico para
aprender a escrever com a direita. Como não sabia se a proibição
tinha razões religiosas ou culturais, ela tampouco se queixava. Até
meus pais se inteirarem.
No aspecto religioso, lembro de minha mãe, católica
fervorosa, que freqüenta a novena toda semana e está sempre na Igreja
e que, paradoxalmente, mantém em casa um pequeno altar xintoísta,
93
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
contendo incenso e um pouco de comida em reverência aos ancestrais.
Puro sincretismo religioso, no mais autêntico espírito brasileiro.
As missas em memórias dos mortos, eventos aos quais
acompanhava minha avó materna, recordo-os como momentos alegres
e de confraternização. Organizavam-se, após a cerimônia, grandes
almoços com a família e amigos.
Como toda família de origem japonesa, a minha manteve
igualmente resquícios patriarcais. Lembro de minha avó paterna, que
por muitos anos repreendeu minha mãe por ter tido apenas um filho
homem e “tantas” filhas mulheres. Com o passar dos anos, entretanto,
conformou-se e até se orgulhava da situação.
Apesar disso, nas festas de fim-de-ano, que eram celebradas
com toda a família, meu irmão desfrutava de todas as regalias. Um
costume muito japonês é presentear seus entes próximos com um
envelope contendo dinheiro. Meu irmão, pelo simples fato de ser
homem, era invariavelmente presenteado por minha avó e tios com
um envelope polpudo, ao passo que as meninas recebiam um envelope
mais parcimonioso.
A educação e a disciplina em casa sempre foram muito rígidas.
A prioridade de meus pais era o estudo, acima de qualquer outra
consideração. Meu pai costumava nos dizer que tínhamos a obrigação
de ser as primeiras de turma, pois “não tínhamos nenhuma outra
preocupação”. Essa rigidez nipônica, entretanto, era matizada por
um pragmatismo que muitas vezes confrontava seu conservadorismo.
Desde cedo nos incutiu o desejo de viajar e conhecer novos países e
culturas, aprender idiomas e integrar-nos ao mundo. Praticamente
em todas as férias escolares nos mandava viajar a um novo país para
fazer um curso de línguas ou estudar o que quer que fosse.
Creio que essa disciplina paterna e seu “conservadorismo
pragmático” foram, em grande medida, os responsáveis pelo fato de
minhas duas irmãs e eu termos optado por seguir a carreira
diplomática.
94
CECÍLIA KIKU ISHITANI
III) A EXPERIÊNCIA PESSOAL, O ELO DE LIGAÇÃO ARTÍSTICO E A CON-
DIÇÃO DE DIPLOMATA
Como neta de japoneses, ou “sansei” (terceira geração),
correspondo a 41,33% da colônia japonesa que vive no Brasil
6
. Essa
geração, já majoritária
7
, encontra-se bem assimilada à cultura brasileira.
O fato de ter traços físicos orientais, sendo brasileira, muitas
vezes pode induzir ao erro, criando situações por vezes anedóticas.
Por alguma razão, os japoneses sempre tiveram uma
tendência a inclinar-se para as ciências exatas e biológicas. Creio que,
por isso, durante muito tempo, e por morar fora de São Paulo, centro
de concentração da comunidade, sentia-me singular em muitas
situações: em minha classe da Faculdade de Direito, no curso de francês
ou de inglês, era a única representante nipo-brasileira. Embora nunca
tenha tido problemas quanto ao meu sentido de brasilidade,
invariavelmente me identificavam na escola como a “japonesa”, ou
“oriental”. E os traços físicos não davam margem à dúvida.
No início da faculdade, fui selecionada para cumprir um
programa de intercâmbio em uma universidade no Japão, a
Universidade de Okayama. Na terra de meus ancestrais, embora
conseguisse comunicar-me com um japonês básico, meus interlocutores
olhavam-me com certa perplexidade: creio que analisando se afinal
era ou não japonesa. Embora os traços físicos fossem de uma oriental,
o comportamento era, em quase todos os seus aspectos, de uma
ocidental.
Essa foi a primeira vez que estive no Japão e não podia deixar
de sentir-me impactada pelas diferenças culturais, embora, desde
pequena, estivesse acostumada a conviver com muitas das tradições de
6
Dados da Unicamp.
7
em comparação aos 12,51% de isseis, 30,85% de nisseis e 12,95% de yonseis, dados da
Unicamp.
95
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
meus avós. Imaginava o choque para um brasileiro ou qualquer outro
estrangeiro que nunca teve essa familiaridade. Meus colegas de
intercâmbio, brasileiros e americanos, estavam invariavelmente
atônitos. O Japão atual, que busca conciliar suas tradições milenares
com a modernidade, ainda é um universo singular.
Como o intercâmbio era em uma cidade de médio porte,
como Okayama, não se sentia toda a ocidentalização por que passaram
grandes centros como Tóquio. Pude constatar “in loco” a formalidade,
a hierarquia, a disciplina e a ordem dessa sociedade: pessoas que se
reverenciavam e se desculpavam a toda hora, comidas esmeradas como
verdadeiras obras de arte, ruas e jardins limpos e ordenados, motoristas
de táxi que conduziam de luvas brancas, pessoas sempre educadas e
corteses. O intercâmbio previa também a estada de uma semana com
uma família japonesa padrão do interior. Senti como as tradições ainda
se mantêm bastante presentes: o papel subserviente da mulher, mas,
ao mesmo tempo, responsável pela administração das finanças da casa,
a rigidez da educação e dos padrões escolares, o hábito dos homens de
trabalhar muitas horas-extras e socializar com chefe e colegas em bares
de sakê (bebida alcoólica japonesa feita à base de arroz) após o trabalho
como modo de conformar-se ao grupo. Isso porque, pela lógica
nipônica, ser diferente ou destoar da coletividade não é visto com
bons olhos.
Pude entender melhor meus avós e a forma segundo a qual
fomos educados pelos nossos pais.
Herdeira de todos esses elementos, inspirei-me a desenvolver
um trabalho artístico, como pintora, que representasse a simbiose de
minha herança nipônica e minha realidade brasileira.
Na pintura, busco explorar preceitos da arte japonesa, como
a serenidade (“sabi”) e a simplicidade (“wabi”). Há referências também
à caligrafia dos “kanjis” e à harmonia dos “origamis” (dobraduras).
Como na estética nipônica, procuro que a sugestão prevaleça sobre a
explicitação e que a leveza do gesto insinue contornos. Os espaços
96
CECÍLIA KIKU ISHITANI
vazios devem inspirar equilíbrio e reflexão, com o culto à natureza
do budismo e do xintoísmo. As referências brasileiras são as mais
diversas, seja pela escolha dos materiais, seja pelo objeto de observação
e pelo tema da pintura.
Artistas nipo-brasileiros, como Tomie Ohtake, Tikashi
Fukushima e Manabu Mabe, que no final da década de 50 lançaram o
que se convencionou chamar abstracionismo orgânico, lírico ou
expressionista, inspiram meu trabalho e meu desejo de conciliar as
duas influências. Creio que a arte constitui uma das pontes mais
imediatas para comunicar e relacionar universos distintos. Gera-se uma
empatia imediata e espontânea, que prescinde de palavras ou
explicações.
Creio que a arte enriquece igualmente meu trabalho como
diplomata, ao criar novos canais de interlocução.
Por trabalhar nestes últimos anos à frente do setor cultural
e de divulgação de duas representações diplomáticas, pude constatar
como a cultura pode constituir motor catalisador de oportunidades
econômico-comerciais e facilitador de vínculos para todas as demais
esferas, políticas e sociais.
As implicações da descendência nipônica também se estendem
à área profissional. Há muitos valores da tradição japonesa que são
pertinentes no exercício diplomático: a observação, a paciência, a
ponderação e a discrição.
O número de diplomatas descendentes de japoneses,
entretanto, ainda é reduzido. São menos de uma dezena. Se incluirmos
os mestiços, o percentual torna-se um pouco mais elevado. Essa
representatividade é importante para que o Itamaraty reflita a
composição étnico-cultural da nação brasileira.
O primeiro descendente a ingressar na carreira foi o
Embaixador Edmundo
Sussumu Fujita, por concurso direto, no ano de 1975. A
segunda foi Fátima Keiko Ishitani, a primeira descendente mulher,
97
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
no ano de 1990, quase dezesseis anos depois. Desde então, a carreira
passou a despertar um maior interesse da comunidade, com o ingresso
de outros representantes nos anos subseqüentes.
Creio que a carreira diplomática por muito tempo foi vista
como elitista. Imagino que por essa razão muitos sequer contemplavam
a possibilidade de ingressar nesse seleto grupo. O precedente aberto
pelo Embaixador Fujita e, posteriormente, pela Conselheira Fátima
Ishitani ajudou a desmistificar essa percepção.
É curioso comentar que meu pai, diante do interesse
demonstrado por minha irmã mais velha em ingressar no Itamaraty,
buscou, inicialmente, dissuadi-la da idéia. Como era muito estudiosa
e obstinada, temia que se frustrasse, por acreditar que era um concurso
restrito a determinado grupo. Pensou, caso seus prognósticos se
confirmassem, em convencê-la a optar por outra carreira: magistratura,
procuradoria ou outra carreira afim. Ainda muito nova, com vinte
anos, foi uma das diplomatas mais jovens a passar no concurso do Rio
Branco.
A realidade é que o concurso de admissão à carreira
diplomática é um dos mais democráticos da administração pública e
que tem nessa transparência o reconhecimento de seu mérito e
excelência.
O fato de ser uma diplomata brasileira com origem japonesa
pode eventualmente gerar curiosidade diante de um eventual
comissionamento no Japão. Não ignoro que essa situação possa vir a
causar certa desconfiança inicial por parte de meus interlocutores.
Passado o primeiro impacto, antevejo que não teria maiores
dificuldades, pelo próprio pragmatismo que orienta a cultura nipônica.
Sinto admiração por diversos valores da tradição japonesa,
muitos dos quais fazem parte da educação que recebi e por isso sou
grata aos meus antepassados. Mas, a minha vivência e a minha realidade
referem-se unicamente ao país do qual faço parte e que corresponde à
minha circunstância.
98
CECÍLIA KIKU ISHITANI
Sinto orgulho de, como diplomata brasileira de origem
japonesa, representar, ainda que infimamente, parte do microcosmo
nacional.
IV) A EVOLUÇÃO DA COMUNIDADE NIPO-BRASILEIRA E O ESTREITAMENTO
DOS
LAÇOS POLÍTICO- ECONÔMICO-CULTURAIS DE BRASIL E JAPÃO
- A EVOLUÇÃO DA COMUNIDADE
Os casamentos inter-raciais, muito comuns na sociedade
brasileira, no caso dos nipo-brasileiros ocorreram de forma mais tardia.
Na primeira geração (isseis) essa miscigenação foi praticamente nula.
Na segunda geração, foi de 6%. Na terceira geração (sansei) esse índice
aumentou consideravelmente para 42% e, na quarta (yonsei), atingiu
cerca de 61%
8
.
Para o Professor Kiyoshi Harada, em seu livro “O Nikkei
no Brasil”
9
, a trajetória da comunidade japonesa no Brasil teve quatro
etapas. Integram a primeira etapa os imigrantes que chegaram desde
1908 até a Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, esse grupo tinha
por objetivo arrecadar riquezas e possivelmente retornar ao Japão. A
segunda etapa inicia-se na década de 50, com a retomada do fluxo
migratório e dura até 1962. Há em comum a busca por uma nova
pátria. Esse novo imigrante não representava apenas força de trabalho,
e vinha munido de algum patrimônio e equipamentos. Na terceira
fase, que vai de 1963 a 1980, os imigrantes passaram a gozar de conforto
no Brasil. Na quarta fase, que se iniciou em 1981 e que ainda não
terminou, há a total integração com a sociedade brasileira e a
transmissão da cultura milenar. Ou seja, a preservação cultural, atávica,
mantém presente importantes valores e tradições, sem prejuízo da
assimilação plena à nova pátria.
8
Dados da Unicamp.
9
Harada, Kiyoshi. “O Nikkei no Brasil”, Editora Atlas, 2008.
99
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
A verdade é que, se por um lado os nikkeis se aculturaram
perfeitamente, por outro, deixaram influências que muitas vezes passam
desapercebidas, pois já foram incorporadas aos costumes brasileiros.
Por exemplo, a inclusão de “sushis” em churrascarias e restaurantes
por quilo; práticas medicinais alternativas, como o “do-in”, shiatsu,
acupuntura e meditação; a prática de esportes como o judô, o beisebol
e o karatê; a diversão com o “karaokê”, a popularização da “saikirinha”
(caipirinha feita com sakê); entre outros.
Notadamente a partir da década 60, verifica-se um grande
êxodo rural da comunidade nipo-brasileira. Os descendentes de
japoneses saíram do campo e dirigiram-se às cidades a fim de concluir
seus estudos. A década de 60 representa, desse modo, um marco
importante de integração da comunidade, sobretudo pelo aumento
de nikkeis que ingressaram nas Universidades, e que passaram a exercer
os mais diversos ofícios nos grandes centros urbanos, fato que culmina
hoje na expressiva participação deles na vida cultural, social e política
do País.
Com essa diversificação, os descendentes marcaram sua
presença praticamente em todos os setores de atividades: oficiais das
Forças Armadas, como o Comandante da Aeronáutica, Brigadeiro
Juniti Saito; agentes do Ministério Público e magistrados, como
Massami Uyeda, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, e Fernando
Ono, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho; Ministros de
Estado, como Shigeaki Ueki, Ministro de Minas e Energia do Governo
Geisel; atletas e deportistas, como o mesa-tenista Hugo Hoyama,
brasileiro que mais medalhas recebeu nos jogos Pan-Americanos;
artistas plásticos, como Mabe e Tomie Ohtake; cineastas como Tizuka
Yamazaki; empresários hoteleiros, como Chieko Aoki; políticos e
diplomatas, entre outros.
Paralelamente, com a crise econômica do Brasil na década de
80 e o crescimento econômico do Japão, a partir de meados dessa
década, verifica-se o surgimento do fenômeno dos “dekaseguis” (aquele
100
CECÍLIA KIKU ISHITANI
que viaja para trabalhar). Descendentes nipo-brasileiros viram-se
seduzidos pela oferta de trabalho e expectativa de enriquecimento
rápido no Japão, revivendo as expectativas de seus ancestrais que
emigraram ao Brasil desde o início do século passado. Hoje são mais
de 300.000 descendentes emigrados que remetem divisas significativas
para seus familiares no Brasil, em cifras superiores a US$ 2 bilhões de
dólares anuais, e que ajudam a revitalizar a economia de suas cidades
de origem.
No Japão, simbolicamente, ocorre a mudança da era Showa,
ou “era da Paz Iluminada”, para a era Heisei, ou “era da Paz e
Concórdia”. A era Showa, que durou 62 anos, encerra-se com a morte
do Imperador Hiroito, em janeiro de 1989. A investidura no trono
do crisântemo do Imperador Akihito, 125
o
. monarca da dinastia,
ocorre em novembro de 1990, no segundo ano da era Heisei.
A tradição milenar mantém-se presente no Japão convivendo
com os avanços da modernidade, que se percebem a olhos vistos, e
identificam a nação nipônica com os recursos tecnológicos mais
modernos e sofisticados.
- O ESTREITAMENTO DOS LAÇOS BILATERAIS
A partir da segunda metade da década de 50 observa-se a
instalação de “trading companies” japonesas no Brasil, que se dedicaram
ao comércio exterior. Essas tradings visaram sobretudo a prover o mercado
japonês de insumos básicos, grãos e produtos agrícolas em geral.
Nas décadas de 60 e 70, no contexto do dinamismo econômico
e avanço tecnológico do Japão, o Brasil foi um dos países mais
beneficiados com a recepção de investimentos e transferência de
tecnologia japonesa. Pela complementaridade econômica e de interesses,
o Japão constituiu-se em um dos maiores importadores de
“commodities” brasileiras e parceiro em projetos estratégicos de
interesse do governo militar brasileiro.
101
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
Instalaram-se desde então as mais diversas indústrias no País,
como na área naval, têxtil, automobilística, alimentícia e siderúrgica.
Referidas indústrias estavam representadas pelas multinacionais
Ishikawajima Estaleiros do Brasil (naval), Kanebo (têxtil), Toyota
(automobilística), Yukijirushi, Yakult e Ajinomoto (alimentos), e
Kawasaki e Usiminas (siderurgia), entre outras.
Como destacou o Professor Masato Ninomiya, em recente
texto revisto
10
, a década de 70 pode ser considerada os “anos dourados”
da cooperação Brasil-Japão.
Quando por ocasião da primeira visita de um Chefe de
Estado brasileiro ao Japão, no ano de 1976 (Presidente Ernesto
Geisel), foram assinados uma série de projetos de cooperação bilateral
de porte. Entre os principais projetos de investimento e transferência
de “know-how” mencionam-se: Projeto de Desenvolvimento do
Cerrado (PRODECER), Alumínio Nipo-Brasileiro (ALBRAS),
Alunorte, Minas de Ferro Carajás e Companhia Siderúrgica de
Tubarão (CST).
Para um país com uma importante atividade agrícola como
o Brasil, uma das mais relevantes contribuições dos japoneses foi a
recuperação e aproveitamento do solo do cerrado (que ocupa um
quarto do território nacional), nas décadas de 70 e 80. Essa parceria
estratégica, o PRODECER, que contou com financiamento japonês,
permitiu a expansão da fronteira agrícola no Brasil com a produção
recorde de grãos. Seu “know how” de sistema cooperativista para o
abastecimento dos centros urbanos também foi notável. Facilitavam
aos pequenos produtores insumos em geral (sementes, adubo,
equipamentos, etc), ensinavam técnicas agrícolas e disponibilizavam
canais de distribuição, criando um novo mapa de oportunidades para
os hortifruticultores.
10
Ninomiya, Masato. “O Centenário da Imigração Japonesa para o Brasil e as
Perspectivas para o Futuro”, texto revisto e ampliado de palestra proferida, em 05.12.06,
na Universidade de Nanzan, cidade de Nagóia, Japão.
102
CECÍLIA KIKU ISHITANI
O apoio da Agência de Cooperação Internacional do Japão
(JICA), com financiamento, capacitação ou suporte tecnológico, é
digno de nota. Menciona-se, entre outros, o projeto de irrigação da
Bacia do São Francisco, entre tantas outras iniciativas que viabilizaram
e permitiram a modernização agrícola brasileira. O Governo brasileiro
também foi beneficiado com recursos da Ajuda Oficial de
Desenvolvimento do Japão (ODA), e financiamentos do Japan Bank
for Internacional Cooperation (JBIC).
A década de 80 foi um período muito próspero da economia
japonesa, em que investimentos vultosos foram feitos no exterior. O
Brasil infelizmente não se beneficiou dessa abundância pois, com a
crise da dívida externa, o fluxo de investimentos estrangeiros para o
País praticamente se estagnou.
A década de 90, por sua vez, foi um período de ajuste para a
economia japonesa (explosão da “bolha econômica”), razão de o
relacionamento econômico-comercial entre os dois países não ter sido
tão dinâmico nessas duas décadas.
Na esfera política, a visita do ex-Primeiro Ministro Koizumi
ao Brasil, em 2004, seguida de visita do Presidente Lula ao Japão,
demonstrou o desejo de conferir renovada força ao relacionamento
bilateral.
Com a recuperação da estabilidade econômica nos dois países
criam-se as condições para retomar e aprofundar projetos de comércio,
investimentos e cooperação tecnológica.
Na área da TV digital, em que o Brasil adotou o padrão
japonês, abrem-se novas possibilidades de cooperação, nas áreas de
ciência e tecnologia e também no campo da produção. Há a expectativa
do Governo brasileiro de que uma fábrica de microprocessadores e
de semicondutores possa vir a ser instalada no Brasil.
Na parte da energia limpa e biocombustíveis também abrem-
se prospectos de profícua cooperação. Quanto à produção brasileira de
etanol, há interesse do Governo japonês em promover a sua importação.
103
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
Ambos os países compartilham preocupações ambientais e de segurança
energética. Nesse sentido, já haveria um acordo em andamento entre a
Mitsui e a Petrobras. Além disso, o Brasil encontra-se em vias de finalizar
um financiamento de porte do Japan Bank for International
Cooperation (JBIC) com vistas à pesquisa e ampliação da produção de
energia limpa a partir de fontes renováveis de base agrícola.
V) PERSPECTIVAS DA RELAÇÃO BILATERAL, PRAGMATISMO E POLÍTICA
EXTERNA
Pretende-se, por fim, analisar as perspectivas da relação
bilateral e avaliar como o pragmatismo que permitiu a aculturação
dos descendentes de japoneses no Brasil pode constituir referência
para a atuação externa do Brasil, sem perder de vista valores essenciais,
e visando à ocupação de nichos e espaços possíveis nas mais diversas
esferas.
A dimensão humana constitui, indubitavelmente, um dos
principais patrimônios de nossas relações bilaterais. Atualmente, vivem
no Brasil 1, 5 milhões de descendentes de japoneses, a maior
comunidade nipônica fora do Japão, e no Japão, mais de 300.000
brasileiros nikeis, a terceira maior comunidade de brasileiros no
exterior. Trata-se de vetor de estímulo essencial para todas as demais
instâncias de cooperação.
Com a superação das dificuldades econômicas que assolaram
os dois países, em distintos períodos, pode-se dizer que hoje se
reúnem as condições necessárias para um novo “ciclo virtuoso” de nossas
relações econômicas, comerciais e tecnológicas.
A globalização e as novas condicionantes internacionais, bem
como o pleno vigor de sólidos regimes democráticos nos dois países
ensejam a oportunidade de alcançar um novo patamar nas relações
Brasil-Japão, com uma maturidade superior ao período do governo
militar brasileiro.
104
CECÍLIA KIKU ISHITANI
Para além da segurança alimentar buscada pelo Governo japonês
e que resultou, no passado, em projetos de financiamento e cooperação
na área agrícola, há, adicionalmente, o envolvimento e preocupação com
questões globais, como a preservação ambiental e a segurança internacionais.
Passou-se, portanto, de um contexto eminentemente bilateral para uma
perspectiva multilateral.
Atualmente o Brasil é beneficiário de recursos e tecnologia
para gestão ambiental, projetos de apoio a comunidades carentes,
redução de desigualdades regionais, ganhos de competitividade e
projetos de infra-estrutura.
Uma visão mais ampla torna-se, pois, necessária, inclusive
para alcançar benefícios que, de outra forma, sem concessões e inclusão
de demais interessados, tornam-se inatingíveis.
Como destacou o Senhor Ministro de Estado, Embaixador
Celso Amorim, na cerimônia oficial de abertura do Ano do
Intercâmbio Brasil-Japão, “a comunidade internacional tem a genuína
expectativa de que o Brasil e o Japão assumam, no plano global,
responsabilidades compatíveis com a solidez de suas instituições, o
peso de suas economias e a consistência de suas ações diplomáticas.”
De fato, Brasil e Japão possuem posições comuns nos diversos
temas que sobressaem na agenda internacional, como desarmamento,
controle ambiental e mudanças climáticas, cooperação para o
desenvolvimento e reforma das Nações Unidas.
Partilham, ademais, o interesse pela promoção de uma
política inclusiva dos países em desenvolvimento, participação
moderada na solução de conflitos e pela paz internacional.
Há, desse modo, o interesse compartilhado dos dois
Governos no reforço do sistema multilateral, em todos os seus aspectos,
uma vez que há a convicção comum de que o multilateralismo é o
novo nome da paz.
Quanto ao processo de assimilação dos descendentes de
japoneses no Brasil, é importante destacar que o êxito da integração
105
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
não esteve relacionado ao tempo de convivência, como destaca Kiyoshi
Harada em “O Nikkei no Brasil”
11
. Conforme comenta: “No México,
eles comemoraram o centenário de imigração em 98, mas não há
participação da comunidade nikkei na vida nacional. No Havaí a
imigração ocorreu no século 19, mas a integração também não é total.
Em 2005, na Convenção de Nikkeis, soube que lá nos Estados Unidos
houve um único senador nikkei. Não há mais nenhum nome
expressivo do parlamento. Não há magistrados, ministros, cientistas”.
Em contrapartida, no Brasil, como enfatiza Harada, o
primeiro vereador nikkei, Yukishigue Tamura, elegeu-se em São Paulo
no ano de 1947, além de estarem presentes nos mais diversos setores
da vida nacional: nas artes, na política, na diplomacia, com uma
contribuição muito positiva. As oportunidades foram aproveitadas,
de forma empreendedora e pragmática. Houve a compreensão, por
parte dos descendentes de japoneses, de que, sem representatividade e
ocupação de novos espaços ficariam à margem da sociedade e dos
benefícios do progresso, sem nenhum poder de influência.
Pode-se afirmar, ademais, que os nikkeis no Brasil tendem a
ser mais flexíveis e adaptáveis que os próprios japoneses no Japão,
ainda “conformados” dentro de preceitos de formalidade e hierarquia.
O próprio processo de hiperinflação por que passou o Brasil,
com a desvalorização diária da moeda, entre outros choques
econômicos que afetaram a rotina e as perspectivas do cidadão comum,
possivelmente contribuíram em tornar os nikkeis brasileiros muito
mais “criativos” e “adaptáveis”.
Na esfera internacional, a política externa brasileira tem, de
fato, pautado-se pelo pragmatismo e criatividade. Busca-se, com ênfase
e intensidadade diferenciadas, mas nunca excludentes, ampliar o leque
de interlocutores e os foros de atuação, com a ocupação de espaço
crescente.
11
Harada, Kiyoshi. “O Nikkei no Brasil”, Editora Atlas, 2008.
106
CECÍLIA KIKU ISHITANI
A “multipolaridade” se consolida como marca precípua da
política externa do País: busca-se estreitar laços com a África, a Ásia e
o Oriente Médio, aprofundar as relações com os países da região, e
manter o bom relacionamento com parceiros tradicionais como a
Europa e os Estados Unidos. Não por outra razão, a economia e o
comércio dão mostras de grande dinamismo e a participação em foros
multilaterais amplia-se e ganha novos contornos. Iniciativas como a
do G-20, que possibilitou conquistar a simpatia de demais países em
desenvolvimento, ou a do Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do
Sul (IBAS) estabelecem importante precedente e geram confiança e
respeito em nível global.
De minha experiência pessoal, lembro-me de uma
exposição de pintura que realizei, no Brasil, há quase 7 anos, e que
intitulei “YUGEN”, termo utilizado para descrever a estética
japonesa. Inspirei-me nesse tema após uma visita ao ateliê da mestre
Tomie Ohtake, cujo trabalho muito admiro: simplicidade e
serenidade imperavam na casa, em sua atitude e em sua arte. O
termo “Yugen” significa: “a beleza que não é aparente, não é
evidente, não é efêmera”.
Penso que, na diplomacia, do mesmo modo, muitas vezes os
resultados não se vêem de imediato, mas apenas se sentem no longo
prazo, de forma permanente.
Tendo como referência minha infância, recordo, ainda, de
minha avó paterna que, ao despedir-se, sempre fazia a mesma
recomendação: “gambatte kudasai”. Era quase um mantra que escutei
toda a infância e adolescência. Eram palavras de estímulo para que me
esforçasse e perseverasse no que quer que fosse. Lembro, com graça,
que jamais me desejou “boa sorte” ou algo similar.
O elemento fortuito ou da casualidade não existiam em sua
concepção. Mas, ao fim, parece-me sábia a idéia de acreditarmos que
somos responsáveis em tomar ações e perseverar em nossos objetivos.
Seja no exercício profissional, seja em qualquer outro aspecto da vida.
107
ENSAIO SOBRE A HERANÇA CULTURAL JAPONESA INCORPORADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
E esse é um ensinamento que gostaria, no futuro, de transmitir aos meus
filhos.
Em conclusão, a contribuição dos descendentes japoneses no
Brasil acaba se confundindo com a história do próprio Brasil no século
XX, pois se encontram plenamente assimilados. Com discrição, ajudam
a construir a história de uma nação jovem, multicultural e multiétnica
que abriu suas portas e criou oportunidades a todos os imigrantes
que hoje compõem sua identidade. E, por essa razão, sinto-me grata e
afortunada de integrar esse microcosmo de uma sociedade que tem,
em sua pluralidade e diversidade, credenciais únicas para atuar e influir
na nova aldeia global.
IV.
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO
BRASIL NIPO-BRASILEIRO
111
Denis Ishikawa dos Santos
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
Quando os pioneiros japoneses desembarcaram em Santos,
em 1908, dificilmente poderiam antever o significado de sua chegada
ao Brasil. Ao emigrarem do Japão, no período histórico de
modernização mais brutal daquela nação, tinham em mente obter
alimento, trabalho e terra, muitas vezes com a finalidade de voltar
“por cima” – expectativas a que o Brasil pré-moderno apenas em
parte poderia corresponder. Nos cem anos que passaram, os
imigrantes nipônicos abandonaram a busca do eldorado temporário
e legaram a seus descendentes uma inserção extraordinária na
sociedade brasileira, apesar do acentuado hiato cultural. Os atuais
indicadores socioeconômicos mostram que os descendentes daqueles
imigrantes que fugiram da fome têm um dos melhores padrões de
vida do País.
Hoje, o que mais chama a atenção na colônia nipônica no
Brasil é o respeito e a admiração de que goza entre todos os estratos
da sociedade brasileira. Disciplina, organização e inteligência são
qualidades geralmente associadas ao descendente de japoneses. Em uma
analogia à bela caligrafia de um “kanji”, ele personifica o traço
delicadamente firme e preciso, harmônico e sem excessos.
Em qualquer cursinho pré-vestibular, o japonês de óculos
encarna os estereótipos do gênio da matemática e do ladrão de vagas
nas melhores universidades. O que esse fato indica em um país cujos
alunos apresentam um dos desempenhos mais fracos naquela disciplina,
segundo pesquisa da OCDE? Que precisamos de mais estudantes
descendentes de japoneses em nossas escolas? De modo algum. Que
japoneses têm facilidade com números? Talvez. Que precisamos olhar
112
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
com mais atenção para o que diferencia esses alunos dos demais além
de seus olhos puxados? Certamente.
Em sua trajetória de êxito, os japoneses, no Brasil,
incorporaram o paradigma do trabalho, da educação e da
transformação, sem negar as raízes culturais que lhes davam identidade
própria, não conflitante com a brasileira. Ao criarem novos laços de
pertencimento com a sociedade que os acolheu, lograram preservar
um pouco dos antigos valores e costumes, trazidos de uma terra tão
distante e diversa. A sociedade brasileira, por sua vez, não passou
indiferente a essa presença.
Nas linhas que seguem, não pretendo identificar causalidades
históricas do processo de imigração dos japoneses no Brasil ou explicar
em termos econômicos a contribuição nipônica ao desenvolvimento
da agricultura e da indústria nacionais, nem mesmo glorificar as
influências de artistas japoneses e de seus descendentes nos rumos da
arte brasileira.
Tampouco é minha intenção fazer a sociologia ou a
antropologia da integração de seus descendentes à Nação, seja da
perspectiva da sociedade receptora, seja daquela do grupo recebido.
Sobre esses temas, estudos já existentes e ainda por serem realizados,
com o necessário rigor acadêmico, certamente têm mais a dizer do
que estas palavras.
Meu objetivo, nem por isso, é pouco ambicioso: demonstrar
que, mesmo após um século de integração à sociedade brasileira, os
descendentes de japoneses ainda não devem considerar terminada sua
contribuição à construção nacional. Ainda têm muito por fazer, por
fazerem-se ouvir e conhecer, inclusive por meio da diplomacia.
Os primeiros cem anos de presença japonesa no Brasil foram,
aparentemente, coroados de êxito, mas não nos esqueçamos do grande
número de brasileiros, descendentes de japoneses, que emigraram para
o Japão nas últimas décadas, em grande parte por deficiências estruturais
do Estado-nação brasileiro. Nem deixemos de recordar as inúmeras
113
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
dificuldades que esses emigrantes enfrentam para adaptarem-se à fechada
estrutura social nipônica.
O século que se inicia será particularmente desafiador para a
integridade sociocultural da comunidade nipo-brasileira, já que ela
tende, no Japão, a enraizar-se e, no Brasil, a diluir-se e a acomodar-se.
Como dar continuidade às transformações desencadeadas pelos
japoneses no Brasil? A essa pergunta, dificilmente oferecerei resposta
satisfatória, mas espero que desperte a consciência dos nipo-brasileiros
sobre seu papel nada coadjuvante na determinação do destino do País.
Antes de entrar no tema propriamente dito, no entanto, farei
uma digressão sobre minha experiência pessoal com a comunidade
nipo-brasileira, da qual derivam as impressões que fundamentam os
comentários que seguirão.
EM SÃO PAULO
Tendo nascido e crescido em São Paulo – ao que consta, a
maior concentração de imigrantes japoneses e de seus descendentes no
mundo –, ter olhos puxados nunca foi fato que atraiu particular
atenção. Carregar um sobrenome estrangeiro, tampouco, em uma
cidade que recebeu, e ainda recebe, contingentes imigratórios de várias
partes do planeta.
O fato é que nunca fui um típico descendente de japoneses.
Jamais morei em um bairro dominado pela colônia enquanto vivi na
capital paulista. Meu círculo de amigos nunca foi carregado de
sobrenomes nipônicos. Não freqüentei “gakkou” na infância, por
decisão de meus pais, e só fui alfabetizado em língua japonesa quando
adulto, por iniciativa própria, após ter estudado algumas línguas
européias. Minha educação não poderia ter sido mais brasileira, exceto
por ter realizado o Ensino Médio em colégio com presença maciça de
descendentes de orientais – não apenas de japoneses, mas também de
chineses e coreanos.
114
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
Apesar de não ter pertencido à colônia plenamente, nunca
escapei dos rótulos que se aplicam aos descendentes de japoneses. Meu
prenome – aquela palavra que me confere individualidade desde o
nascimento – sempre suscitou a fatídica sufixação (o famoso “-san”),
não só por familiares, mas também por amigos. Os apelidos, aliás,
eram sempre relacionados ao Japão.
Em festas de família, os agora popularizados sushi, sashimi e
tempurá não podiam faltar à mesa, convivendo com os pratos mais
comuns do paladar nacional, como o churrasco e a feijoada. Até hoje
sinto a necessidade de comer o “mochi” no primeiro dia de cada ano,
seguindo a tradição passada por minha avó, que chamava de “batchan”,
como é comum nas famílias nipo-brasileiras.
Com exceção dessas curiosidades, no entanto, minha vida,
desde a infância, foi a de um brasileiro. Fui ensinado a amar meu país
e a tomá-lo como meu ponto de referência. O Japão, tão distante de
minha vida pessoal quanto geograficamente, era apenas objeto de
pequenas histórias de minha avó, que de lá veio na década de 1930, e
de meus tios, que para lá emigraram na década de 1990, em busca de
melhores oportunidades.
Muitas vezes senti vontade de aprender mais sobre minhas
origens nipônicas, mas a falta de registros familiares muito dificultou
essa pesquisa. Tenho orgulho de dizer, contudo, que meus
antepassados, em momento tão triste da história japonesa, resolveram
embarcar em um navio e passar meses dentro dele, com destino a um
país longínquo que, de todo, desconheciam. Ao chegarem a Santos,
encaminharam-se ao interior paulista, onde, inicialmente, prestaram
sua mão-de-obra ao cultivo de café. Depois de muito esforço, lograram
mudar-se para uma das cidades mais próximas e abrir o próprio pequeno
negócio.
Foi nessa época que minha mãe nasceu, antes de a família
dirigir-se à capital paulista. As dificuldades que encontraram ao
longo dessa trajetória não foram poucas, mas o espírito de
115
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
determinação jamais deixou que desistissem de suas aspirações a
melhorar de vida.
O mundo mal havia superado o trauma da Segunda Guerra
Mundial. Os imigrantes japoneses ainda se defrontavam com
insuportável rejeição nacionalista e seus costumes eram publicamente
oprimidos, sendo-lhes imposto o dilema de abandonarem o País ou
abraçarem a Nação brasileira, ainda que não juridicamente. Meu avô,
que já nascera no Brasil, foi obrigado a alistar-se nas Forças Armadas
para lutar uma guerra contra a nação de seus próprios pais. Nesse
contexto, minha mãe não pôde ter o nome japonês registrado em sua
certidão de nascimento, ao contrário de seus irmãos mais novos.
Já na cidade de São Paulo, a família instalou-se no bairro da
Saúde, ao qual o título deste ensaio presta homenagem. Meu avô faleceu
prematuramente em acidente de trabalho, legando a minha avó a árdua
tarefa de criar sozinha cinco filhos, contando somente com a renda de
sua atividade de costureira e, eventualmente, de empregos dos filhos
mais velhos. Nenhum dos filhos foi, entretanto, deixado fora da escola,
tendo todos completado os estudos universitários.
Os resultados são vistos hoje: cada um dos filhos constituiu
família e deu seguimento à ascensão social e econômica. A família
chegou à terceira e à quarta gerações no Brasil, às quais já é lícito
perseguir sonhos pessoais e metas profissionais mais audaciosas.
Essa é a verdadeira história da contribuição japonesa para a
formação nacional brasileira. Como a minha família, estou certo de
que há inúmeras outras que passaram por comoventes episódios de
provação e de superação pessoal e coletiva.
Lanternas japonesas na iluminação pública do bairro da
Liberdade são obviedades dos guias turísticos de São Paulo. “Temakis”,
mangás e “animes” são apenas o lado “pop” de uma cultura muito
mais complexa e bela, cujos valores são passados a cada geração. Quando
falo sobre a cultura japonesa incorporada à sociedade brasileira, refiro-
me ao todo, não apenas à ponta do “iceberg”.
116
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
Ao tomar um trem da Linha Azul do Metrô paulistano, que
corta os principais bairros de população nipo-descendente, é possível
pintar um quadro dessa história de êxito.
Vemos pequenas “obassans” que, apesar da idade avançada,
caminham sozinhas ou em pequenos grupos em direção a suas
associações culturais e esportivas de bairro, onde praticam diariamente
“karaoke”, “ikebana” e “taiso”, entre tantas outras atividades. Passa
um executivo engravatado de feições orientais, apressado para chegar
a alguma importante reunião na Avenida Paulista, na qual representará
o grupo multinacional em que trabalha. No canto do vagão, escutando
música e estudando ao mesmo tempo, um jovem “nikkei” dirige-se à
faculdade pública. Outros ainda mais jovens encaminham-se às escolas,
colégios e cursinhos, sempre em grupos caracterizados pelos olhos
puxados.
Na massa de usuários do Metrô de São Paulo, todos esses
personagens passam despercebidos. Eles fazem parte do cotidiano da
cidade, que aprendeu a respeitá-los pela inestimável contribuição que
prestaram, e ainda prestam, à pujança da maior metrópole brasileira.
EM BRASÍLIA
Ao tomar posse no Itamaraty e conhecer meus novos colegas
de profissão, meu estado de origem pareceu a todos um palpite meio
óbvio, especialmente para aqueles que se tinham acostumado a ver
meu sobrenome em listas do concurso do Instituto Rio Branco. É
claro, há descendentes de japoneses espalhados por muitos estados
brasileiros – aventaria mesmo dizer que os nipo-brasileiros estão
presentes em todas as unidades da Federação –, mas sua concentração
em terras paulistas é de tal notoriedade que fui delatado antes pelo
sobrenome que pelo sotaque.
Se minha origem paulistana não foi algo surpreendente para
ninguém em Brasília, minha ascendência nipônica é que pareceu ser
117
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
um fato curioso para muitos, especialmente aqueles que nunca tinham
vivido em São Paulo ou no Paraná.
Ser descendente de japoneses em terras paulistanas nunca
motivou especial interesse das pessoas à minha volta. No Distrito
Federal, perdi as contas de quantas vezes fui questionado, fora do
Itamaraty, sobre minha nacionalidade, em vista de meu sobrenome,
ao que sempre respondi, para estupefação do interlocutor, que sou
brasileiro.
Chocou-me a descoberta de minha estranheza a esse Brasil
não-paulista. Antes de mudar-me para o Planalto Central, a pluralidade
étnica do povo brasileiro sempre me pareceu um dado perfeitamente
assimilado por toda a população. Qual não foi minha surpresa ao
notar que, na Capital Federal, não sou sempre reconhecido
imediatamente como um brasileiro, tanto por pessoas de origem mais
modesta quanto por pessoas que tiveram pleno acesso à educação. Até
porque mesmo quem nunca estudou História do Brasil já teve a
oportunidade de assistir a telenovelas cujos enredos passavam-se na
cidade de São Paulo e incluíam personagens nipo-brasileiros.
O fato desperta ainda mais interesse porque vive, no Distrito
Federal, uma comunidade não tão pequena de “nikkeis”. É certo que
se trata de uma comunidade muito menos visível que a paulistana, já
que muitos desses descendentes de japoneses habitam chácaras e núcleos
agrícolas, fora das principais cidades do DF.
Ganham visibilidade, no entanto, pela presença, em Brasília,
do Templo Budista, na Asa Sul, que organiza disputadas quermesses
no mês de agosto; do Clube Nipo-Brasileiro, no Setor de Clubes
Esportivos Sul, que oferece atividades esportivas e culturais típicas do
Japão; da Escola Modelo de Língua Japonesa, na Asa Norte, que é
uma instituição de referência nos estudos de língua japonesa; e do
Departamento de Japonês da Universidade de Brasília, que abriga,
inesperadamente, um dos maiores números de estudantes de graduação
de Licenciatura em Japonês do Brasil. Sem contar, obviamente, os
118
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
vários restaurantes de culinária japonesa, já introduzida no cenário
gatronômico brasiliense.
Já em minha atuação no Itamaraty, a ascendência nipônica
não parece causar tanta curiosidade, até porque são vários os diplomatas
nipo-brasileiros, cuja proporção sobre o total dos diplomatas é
certamente superior à porcentagem de nipo-brasileiros na população
nacional. O espanto com o sobrenome japonês, na atividade
diplomática, ocorre, em geral, entre os diplomatas estrangeiros. São
muitos os que desconhecem a história da imigração japonesa no Brasil,
o que deve mudar com as comemorações do centenário da chegada do
Kasato Maru, incluídas em nossa agenda política externa, em 2008, e
bem divulgadas pela mídia nacional.
A ignorância somente cede espaço no caso da Embaixada do
Japão, que procura manter contato com os diplomatas nipo-brasileiros.
Desde o ingresso no Instituto Rio Branco e independentemente da
área de atuação dentro do Ministério, somos convidados para algumas
das recepções naquela Embaixada. Trata-se de um gesto de cortesia e
de reconhecimento das conquistas dos imigrantes, que constituíram o
elemento diferencial das relações entre Brasil e Japão.
A COLÔNIA EM FORMAÇÃO
Minha história pessoal é, provavelmente, de pouco interesse
em si, mas ela confirma muitos dos comentários comuns sobre a
contribuição dos imigrantes japoneses à construção nacional
brasileira.
Após mais de quatro séculos da chegada dos portugueses ao
continente americano e exatamente um século depois da vinda da
Família Real ao Rio de Janeiro, o Brasil que os primeiros imigrantes
japoneses encontraram era um país pré-moderno, de estrutura social
oligárquica, com uma população pequena, predominantemente rural
e ainda muito concentrada na estreita faixa litorânea.
119
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
Os imigrantes japoneses, a exemplo de meus antepassados,
desempenharam papel central na mudança daquele Brasil. Não
apenas serviram de mão-de-obra para a lavoura do café, peça essencial
do processo de industrialização paulista, que se desenrolaria ao
longo do século XX, mas também trouxeram consigo valores de
disciplina de trabalho e de estrutura familiar que fundamentariam
sua ascensão em uma sociedade cada vez mais capitalista, urbana e
moderna.
Cooperando dentro dos grupos familiares, sob a regência
dos chefes de família, contaram com a colaboração laboral de todos
os membros e subsistiram com baixíssimos níveis de consumo pessoal.
Em seguida, libertaram-se da situação inicial de colonos, alcançaram a
independência econômica, desafiaram o monopólio oligárquico da
propriedade da terra no Brasil, diversificaram a produção agrícola e
revolucionaram as técnicas de plantio de várias culturas, ao ponto de
responderem, atualmente, por imensa parte da produção de alimentos
básicos no País.
Migraram para as cidades e dinamizaram suas economias,
fazendo do pequeno comércio sua principal atividade. Mais tarde,
durante as décadas de milagre econômico brasileiro, a presença da
comunidade nipo-brasileira foi fator-chave para a atração de
portentosos investimentos industriais nipônicos, que determinaram
um salto qualitativo da economia do País.
A principal marca dos nipo-brasileiros talvez tenha sido,
entretanto, o valor inestimável depositado sobre a educação dos
descendentes. A estrutura familiar que trouxeram do Japão baseava-
se na cooperação econômica de todos os membros da família, sob o
comando inquestionável de seu chefe. Nos primeiros anos, sob o
regime de colonato, só escapavam do trabalho no campo os filhos
menores, que eram enviados à escola para estudar e, no futuro, terem
melhor sorte. Nem sequer o trabalho doméstico liberava da lavoura
as donas de casa.
120
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
Foi a educação dos filhos que, afinal, determinou a ida das
famílias japonesas às cidades, principalmente à capital paulista. O espaço
urbano oferecia maior facilidade de freqüência à escola pelos filhos
mais novos, ao passo que os demais membros da família lá encontravam
diversas oportunidades de trabalho, para que pudessem garantir o
sustento e a poupança para todos. O objetivo era de que os filhos
tivessem acesso a empregos mais qualificados, buscando-se, a cada
geração, níveis educacionais mais altos e maior conforto para o grupo.
Tanto na cidade, quanto, em menor medida, no campo, os
japoneses apresentam, há décadas, níveis excepcionais de educação,
não apenas em comparação com a sociedade nacional, mas também
diante de descendentes de imigrantes de outras etnias. Os japoneses,
muitas vezes, empenhavam-se em uma dupla escolarização, japonesa –
voltada para a produção dentro da colônia – e brasileira – que incluía
o aprendizado da língua portuguesa, em nada parecida com aquela
que falavam, destinada à comercialização dos produtos da terra por
meio de distribuidores brasileiros e aos contatos com a burocracia
administrativa.
Se, de um lado, a cidade favoreceu a educação dos japoneses,
de outro, ela desfavoreceu o funcionamento de mecanismos solidários
da colônia. No campo, após superarem a fase de sujeição econômica
aos grandes fazendeiros, marcada pelo isolamento em relação às demais
famílias de imigrantes, os japoneses passaram a organizar-se em
cooperativas agrícolas, nas quais os mais antigos facilitavam a compra
de terras contíguas às suas pelos recém-saídos da lavoura de café. Nascia
a colônia.
Já na cidade, os mecanismos de solidariedade anteriores não
funcionavam para os ofícios e negócios urbanos. Os japoneses
mantiveram, no entanto, a identidade de bases étnico-culturais, como
uma reação à sociedade brasileira, que, supunham, os via como
diferentes. A colônia perdeu parte de seu sentido. Além disso, os
primeiros descendentes que completavam os estudos universitários
121
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
quebravam a cadeia familiar fechada para formar unidades econômicas
independentes. Resultou dessa quebra um novo tipo de isolamento,
desta vez com bem-estar social e inserção no mercado de trabalho
qualificado.
O DILEMA DE UMA COLÔNIA SOCIALMENTE INTEGRADA
Quando frisei, no início, que os nipo-brasileiros não
abandonaram totalmente as raízes culturais importadas pelos
imigrantes, não afirmava que os descendentes de japoneses no Brasil
ainda se comportam como seus antepassados. A verdade é que
passaram por um processo de aculturação, tanto mais intenso quanto
maior a integração à sociedade do país receptor.
Antes mesmo dessa fase de inserção social, em particular
sob o jugo do colonato, as condições de isolamento e pobreza,
somadas à incompatibilidade dos espaços dos novos lares ao
seguimento das tradições, já haviam imposto o abandono e a
conseqüente perda de muitos aspectos da vida anterior à partida do
Japão.
Atualmente, a grande maioria dos jovens de traços nipônicos
nem sequer sabe comunicar-se em língua japonesa, exceto por algumas
poucas palavras a que foram apresentados na infância, pela influência
dos avós e bisavós em sua educação. Desconsiderando, contudo, esse
vocabulário mínimo e, geralmente, infantil, o modo de viver, trabalhar,
pensar, alimentar-se e divertir-se das gerações passadas cedeu lugar às
práticas comuns dos brasileiros, com exceções pontuais.
É interessante notar, no entanto, que esse processo de
aculturação não excluiu um certo sentimento de alteridade entre os
descendentes de japoneses em relação à sociedade que os cerca. Dentro
da colônia, é comum referir-se a seus membros como “nikkeijin” e às
pessoas de fora como “gaijin”, palavra que, em japonês, significa
estrangeiro.
122
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
Não haveria uma contradição no fato de que os descendentes
de japoneses – após passarem por um processo de aculturação e de
integração a uma sociedade modernizada, graças, em parte, à
contribuição material e simbólica de seus antepassados – ainda assim
chamarem os demais brasileiros de estrangeiros? Parece-me que não.
E isso, por enquanto, nada tem a ver com discriminação de bases
étnicas, como poderia parecer ao “brasileiro”, que observa a colônia
de fora.
Arriscaria dizer que o comportamento de colônia está
relacionado à busca do prestígio que o grupo passou a ter na sociedade
maior, em razão de seu crescimento autônomo. De todo descendente
de japoneses, esperam-se a dedicação pessoal e a busca da qualidade
que marcaram a conduta de seus pais e avós. Ter olhos puxados e
sobrenome japonês tornou-se uma vantagem na sociedade competitiva
brasileira. Ao diferenciar-se do restante da população, o descendente
de japonês faz a propaganda de si mesmo, como trabalhador confiável,
bom pai de família e cidadão honesto.
O problema advém quando o alarde das mencionadas
qualidades ameaça substituir o paradigma meritocrático por mero
preconceito racial. O próprio êxito de grande parte da comunidade
nipo-brasileira, fundado na capacidade de seus pioneiros de
subverterem a ordem oligárquica que prevalecia ao tempo de sua
chegada ao Brasil, acaba sendo a raiz de uma concepção bastante
conservadora das novas gerações: a de que a falta de êxito é sinal de
falta das virtudes necessárias à adaptação a um modelo social
competitivo.
Poderia seguir-se à substituição do paradigma certa
arrogância, que prejudicaria o próprio prestígio da colônia. Os
japoneses que vieram ao Brasil merecem ser respeitados, sim, por suas
árduas realizações, mas a tendência de muitos de seus descendentes de
acomodar-se e achar que os problemas vividos pela sociedade brasileira
são exclusivos dos “brasileiros” é, para dizer o menos, ingênua.
123
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
É muito fácil para os jovens nipo-brasileiros ignorarem a
dura realidade, isolando-se em bairros de classe média, distantes o
bastante das violentas periferias, enquanto freqüentam colégios,
universidades, “shopping centers” e círculos sociais informal e
inegavelmente dominados pelos “nikkeijin”.
Obviamente, não chego ao ponto de dizer que as gerações
anteriores de nipo-brasileiros tenham sido particularmente
participativas, politicamente engajadas ou abertas às demais etnias.
Buscaram sempre resolver as dificuldades que entravavam seus
caminhos familiares e individuais, sem almejar mudanças maiores da
ordem social. Ao menos tinham sérios obstáculos a superar. Hoje, os
jovens nipo-brasileiros já não os encontram, desfrutando de um padrão
de vida invejável.
A maior preocupação dos novos nipo-brasileiros parece ser
ingressar em uma boa universidade (preferencialmente, pública), para
que possam obter empregos decentes em instituições, companhias e
corporações “de bom nome”. Acompanharam e até mesmo superaram
a evolução da classe média procedente de outros grupos étnicos de
imigrantes. Desejam poder de consumo, com ou sem justiça social. E
acham isso tudo muito natural, já que seu atual conforto foi
conquistado com muito suor por seus antepassados.
Perdem-se agentes transformadores da realidade do País, para
apenas adicionar mais agentes de manutenção do quadro de extrema
desigualdade que aflige a população brasileira. Seria de esperar-se mais
de uma comunidade tão bem representada nos meios políticos, mas
que se reconhece tão pouco na realidade social brasileira. Agem como
se fossem meros espectadores desinteressados no teatro da
sobrevivência alheia. Os vínculos de solidariedade que proliferaram
dentro da colônia parecem não encontrar uma interface com a
sociedade nacional.
A comunidade nipo-brasileira, no Brasil, encontra-se diante
de um dilema no ano do centenário da chegada dos primeiros
124
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
imigrantes japoneses: tornar-se mais atenta aos problemas que a cercam
e, portanto, abandonar seu comportamento de colônia, arriscando
diluir-se em forças presentes na sociedade maior; ou fechar-se em seu
cotidiano bairrista e alienar-se à Nação que se auto-afirma.
Em outras palavras, aos nipo-brasileiros impõe-se a
necessidade da escolha entre assumirem-se brasileiros, sem restrições,
ou sujeitarem-se à condição, no museu de nossas raízes culturais, de
peça exótica, cuja única chance de extrapolar as fronteiras da
comunidade será a de entrar na moda, efêmera por essência.
O DILEMA DOS NOVOS EXPATRIADOS
Do outro lado do planeta, vivem mais de trezentos mil
brasileiros descendentes de japoneses. Suas histórias são o outro lado
da moeda. No relato da ascensão da comunidade “nikkei” no Brasil, é
comum apenas louvar os triunfos daqueles que conseguiram alçar-se a
um nível de notoriedade em seus vários campos de atuação no País. A
história da imigração japonesa no Brasil não estará completa, entretanto,
se silenciarmos sobre o drama daqueles que não tiveram as mesmas
oportunidades, ou não conseguiram aproveitá-las, e buscaram a solução
no retorno ao Japão.
Ao chegarem àquele país, os nipo-brasileiros defrontam-se
com uma verdade incontestável: são brasileiros e, como tal, são tratados
pela sociedade nipônica. Não obstante seus traços físicos de japoneses
e o pertencimento à colônia no Brasil, sua formação educacional e
suas referências culturais são aquelas de um brasileiro comum. Poucos
desses emigrantes já dominam a língua japonesa antes de partirem, o
que dificulta ainda mais sua adaptação àquela sociedade.
Nessa situação, é comum que os brasileiros expatriados
busquem aproximar-se, de forma a tornar suportável o desterro. Viver
em um país tão diferente do Brasil, como é o caso do Japão, pode ser
penoso. Ter com quem compartilhar a saudade – esse sentimento tão
125
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
caro ao brasileiro – das coisas de nossa terra é o remédio que esses
emigrantes encontram.
Da mesma forma que os japoneses que vieram para o Brasil,
os brasileiros que emigram para o Japão lá chegam com a intenção de
formar poupança que lhes permita retornar após um período breve.
As expectativas são logo desmentidas, seja pela incapacidade de poupar
tudo o que desejam, seja pelas dificuldades de um mercado de trabalho
extremamente fechado e rigoroso. Mesmo quando conseguem
estabilizar seu padrão de vida, após alguns anos, o retorno é difícil,
pois implica a necessidade de reinserção em um mercado de menor
remuneração, como é o brasileiro.
A tendência é, portanto, de que lá permaneçam por período
indefinido, criando novas raízes e constituindo família. Os filhos
nascidos e criados no Japão dificilmente compreendem o que é ser
brasileiro, já que sempre viveram na sociedade japonesa, aprendendo
a língua daquele país, e não a portuguesa. Podem até mesmo conversar
em português no âmbito familiar, mas, quase certamente, não foram
alfabetizados em nossa língua nacional.
O Brasil torna-se algo muito distante para esses novos
brasileiros, um país de que apenas ouvem histórias de seus pais, à
semelhança do que é o Japão para os jovens descendentes de imigrantes
japoneses no Brasil, cada vez mais inseridos na sociedade brasileira.
Se, no Brasil, os japoneses deram origem aos nipo-brasileiros, no Japão,
o movimento tem o sentido inverso.
Os vínculos humanos entre os dois países tendem a
enfraquecer-se, com o passar dos anos, exceto se for resgatado nesses
brasileiros, estrangeiros ao Brasil, o liame sentimental com a Nação
distante.
Eis o dilema dos expatriados: assumir, de uma vez por todas,
que sua vida, de agora em diante, está centrada no Japão, já que lá
conseguiram melhorar as condições de existência, apesar da
discriminação que encontram; ou alimentar os vínculos com sua pátria
126
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
de nascença, país onde vivem suas famílias, evitando que seus filhos
tomem o Brasil como nação alienígena.
NAÇÃO E NACIONALIDADE
Juridicamente, é fácil dizer quem é brasileiro e quem não é.
Basta um simples exercício de exegese do texto constitucional de 1988,
para conhecer os critérios empregados para distinguir o titular do
direito à nacionalidade. O Brasil, como país historicamente
caracterizado como receptor de ondas migratórias – apesar do intenso
movimento, observado atualmente, de brasileiros rumo ao exterior –
, adota como princípio básico de atribuição de nacionalidade a regra
do “jus soli”, com alguns casos especiais em que o constituinte manda
aplicar a razão do “jus sanguinis”.
Em princípio, brasileiro nato é todo aquele que nasce no
território nacional, além dos nascidos no exterior que têm pai ou mãe
brasileiros e que optam pela nacionalidade ao fixarem residência no
País. Sem contar os casos em que, nascendo no exterior, adquirem
automaticamente a nacionalidade por estarem os pais a serviço do
Estado brasileiro.
Não é necessário ser historiador, sociólogo ou lingüista,
contudo, para saber que nação e nacionalidade são palavras que, apesar
de derivarem de um mesmo radical, inserem-se em campos semânticos
distintos. Nacionalidade é instituto jurídico. Nação é conceito político.
Não é dizer que Direito e Política sejam estranhos um ao
outro, mas reconhecer que enfocam momentos distintos de uma
mesma realidade. O Direito consolida uma ordem, a Política a coloca
em questão, podendo fortalecer ou desmantelar suas fundações. As
normas programáticas são exemplo notável dessa assertiva: de baixa
eficácia jurídica e alto teor político, só subsistem como preceitos
vinculantes enquanto o Político as sustenta. Mas o Político, por si só,
não torna obrigatória uma ordem.
127
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
Nação sem nacionalidade é inexistente. Nacionalidade sem
nação é ineficaz.
Na maioria dos casos, o sentimento nacional recai sobre a
mesma coletividade que atribui o direito de nacionalidade. É comum
e previsível que um indivíduo se sinta pertencente, de uma forma
especial, a seu local de nascimento e de criação. Foi sob a influência
das pessoas daquele lugar que ele começou a perceber o mundo e a
compreendê-lo de acordo com seus conceitos e preconceitos. Foram a
paisagem e os problemas vividos no local de origem que inspiraram-
lhe as categorias de pensamento, inerentemente ligadas ao idioma com
que começou a expressar-se pela convivência com aqueles que o
cercavam.
Os movimentos migratórios subvertem essa lógica. De um
lado, a naturalidade de um indivíduo não necessariamente coincide
com o lugar onde cresceu, o qual, por sua vez, nem sempre é o lugar
que lhe permitiu realizar-se pessoal e profissionalmente. É o caso dos
imigrantes que abraçam a nação receptora. De outro lado, o local de
nascimento pode não corresponder às categorias cognitivas adquiridas
por meio da educação. É o que ocorre com os descendentes de
imigrantes fortemente segregados do restante da sociedade.
A BRASILIDADE DOSNIKKEISE A NIPO-BRASILIDADE DO BRASIL
Sobre a nacionalidade dos “nikkeis” não há dúvida: são
brasileiros. Alguns podem até mesmo ter dupla nacionalidade, mas
nasceram no Brasil e a eles é aplicável o preceito constitucional.
As atenções voltam-se para a nação a que eles julgam
pertencer. Seria a colônia uma forma de nacionalismo nipônico fora
do Japão? Não parece ser este o caso. Os nipo-brasileiros podem até
chamar as pessoas de fora da colônia de estrangeiros, mas já assimilaram
em tal grau os hábitos e valores dos brasileiros que estão fadados a
também o serem. Mesmo porque não resiste aquilo que poderiam
128
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
idealizar ser uma grande nação japonesa, nem no Japão, nem em
qualquer outra parte.
Um eventual nacionalismo nipo-brasileiro dependeria da
existência, ainda que imaginária, de uma terra japonesa de
prosperidade incessante, uma verdadeira panacéia para os problemas
que proliferam na realidade brasileira. É inegável que aquele país
apresenta um dos mais altos índices de desenvolvimento humano do
mundo. Saltam aos olhos, porém, as dificuldades de um Japão
economicamente apático e demograficamente decadente, com uma
enorme quantidade de jovens que não têm qualquer perspectiva
realista de inserção no mercado de trabalho.
É certo que muitos nipo-brasileiros continuam a partir em
busca de enriquecimento rápido no Japão. A realidade que os
confronta, na chegada ao arquipélago nipônico, é suficiente para
desmentir qualquer expectativa nesse sentido. As dificuldades da vida
dos expatriados brasileiros no Japão revelam a identidade nacional
brasileira que lhes é inescapável. Agrupam-se em comunidades que,
apesar da ascendência japonesa, distinguem-se claramente da sociedade
local pelos hábitos do país de que emigraram.
O Brasil deve, contudo, muito daquilo de que pode
orgulhar-se à presença de imigrantes, dentre eles os japoneses.
Na sociedade brasileira, o contato com o elemento
estrangeiro facilitou a formação de um sentido de nação, porém não
por um mecanismo clássico de contraste entre o local e o estrangeiro.
No processo contrastivo de formação nacional, um grupo é
comparado com o outro, com a tendência de que as diferenças entre
eles ofusquem aquelas existentes entre os membros da mesma
coletividade e realcem as semelhanças que sustentam a construção de
uma identidade.
Não foi uma oposição desse tipo que ocorreu com a chegada
de imigrantes ao Brasil, mas algo mais aproximado ao processo
dialético.
129
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
No início do século XX, nasceu no País, com os
modernistas, a percepção de que nossa formação cultural dava-se
por um processo antropofágico. O elemento estrangeiro, a que os
habitantes destas terras estão largamente expostos desde as primeiras
manifestações de sentimento nativista, é internalizado e transformado
em algo diferente, próprio da Nação brasileira.
Em outras palavras, no Brasil, a grande capacidade de
absorção de padrões culturais estrangeiros permitiu a composição
de algo inteiramente original, que não se resume a um mosaico de
cópias de práticas alheias.
A brasilidade há de carregar, portanto, um quê daquilo
que os nipo-brasileiros receberam de seus ancestrais que provieram
da antípoda. Os japoneses transformaram nossos campos, cidades e
indústrias. Modificaram nossos padrões estéticos e hábitos
alimentares. Possibilitaram uma verdadeira revolução agrícola, que
alçou o País à condição de novo celeiro do mundo, ameaçando até
mesmo a liderança mundial da agricultura norte-americana.
O Brasil seria, certamente, irreconhecível sem a
contribuição dos imigrantes japoneses. Nos últimos cem anos, a
Nação brasileira tornou-se uma realidade massificada, extrapolando
os limitados círculos de pessoas que a pensavam inicialmente. Nesse
processo de ampliação democrática do projeto nacional, os nipo-
brasileiros fizeram-se presentes. A brasilidade, multicultural em
sua essência, aproximou-se do continente asiático, podendo aspirar
ao ecumenismo que caracteriza historicamente as grandes
civilizações.
Forja-se, por derivação do conceito de nipo-brasileiro, o
conceito de diplomacia nipo-brasileira. Não se trata necessariamente
da diplomacia feita por diplomatas de ascendência japonesa. Trata-
se, sim, da possibilidade e do dever de fazer refletir na execução da
política externa essa vocação universalista de nossa formação nacional,
respeitosa da diferença.
130
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
A DIPLOMACIA NIPO-BRASILEIRA
A diplomacia nipo-brasileira poderia parecer, à primeira vista,
um paradoxo. Ao diplomata cabe conhecer, formular e defender o
interesse nacional, não o interesse de um extrato da nação, seja ele
definido em termos étnicos, culturais, sociais, econômicos, políticos
ou geográficos.
Ora, a comunidade nipo-brasileira está longe de ser uma
parcela representativa da Nação brasileira. Os descendentes de
japoneses constituem menos de 1% da população brasileira;
concentram-se nas classes sociais de melhor renda; e vivem,
majoritariamente, nos Estados de São Paulo e do Paraná. Como
ignorar que seus interesses e suas percepções da Nação são claramente
marcados por essas circunstâncias?
Defender uma diplomacia nipo-brasileira não pode ser um
exercício de captura da política externa brasileira por esse grupo. A
qualificação não deve referir-se aos fins da atuação do diplomata nipo-
brasileiro. Até porque diplomacia e política externa não se confundem.
Diplomacia é meio, não fim; é arte, não mero instrumento.
O caráter nacional é da essência da atividade diplomática, mas não
tolhe a liberdade do profissional de buscar formas mais adequadas,
sensíveis e eficazes de traduzi-lo na prática cotidiana de seu ofício.
Assim como valorizar as diversas manifestações da
criatividade nipo-brasileira nos variados ramos da vida social (artes,
administração, política, vida comunitária, entre outros) não afronta o
nacional, também na diplomacia o aproveitamento do saber acumulado
pela comunidade “nikkei” em sua evolução no País não nega a
brasilidade que lhe é inerente.
Se o Brasil não prescindiu dos nipo-brasileiros para deixar
de ser um mero plano de elites oligárquicas e tornar-se uma nação
democrática, a projeção externa dessa construção não pode deixar de
contemplar aquele segmento de nossa sociedade. A diplomacia
131
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
brasileira não pode mais ser o retrato de um Brasil ultrapassado, que
se concebe europeu e ignora a geografia social e cultural de suas terras,
em um esquema de aplicação de idéias fora do lugar.
É nessa linha de pensamento que a democratização do acesso
à carreira diplomática deve ser compreendida e perseguida. O objetivo
não é, propriamente, facilitar o acesso ao Itamaraty, mas trazer para a
diplomacia a diversidade de influências culturais que fundamentam a
grandeza da Nação brasileira. É exigir que os representantes do Estado
brasileiro diante de outros Estados sejam, antes de tudo,
representativos de seu povo.
Falar da diplomacia nipo-brasileira não implica, portanto,
afirmar que ela é melhor que as diplomacias que refletem outras
influências culturais na formação nacional brasileira. Contrariamente
a quaisquer aspirações hegemônicas, a nipo-brasilidade assume seu
caráter acessório, embora indescartável. Não se pretende superior,
mas necessária.
Os descendentes de japoneses no Brasil podem não ter uma
presença muito significativa sobre o total da população. Sua
contribuição para a formação nacional excede, contudo, sua
importância do ponto de vista meramente demográfico. Os nipo-
brasileiros foram ativos exploradores de oportunidades que alçaram
o País ao seleto grupo das principais economias do mundo. Além
disso, respondem por grandes avanços científicos e tecnológicos que
habilitam-nos a almejar uma inserção menos dependente (embora já
atrasada) na economia do conhecimento.
A diplomacia nipo-brasileira não depende tanto da existência
de diplomatas de etnia japonesa, embora estes já sejam numerosos nos
quadros do Ministério das Relações Exteriores. Em uma analogia com
a teoria da agência, sua característica fundamental não está no agente,
mas no principal. Em outras palavras, não está no diplomata nipo-
brasileiro, mas na comunidade nipo-brasileira, que tem demandas
canalizadas por formas próprias de representação.
132
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
A diplomacia nipo-brasileira tem como desafio
relacionar-se com a colônia, identificar seus problemas e
reconhecer suas potencialidades. Fazê-lo não é mero trabalho
técnico. A tarefa é, por essência, política e requer enorme
conhecimento da história, das tradições e das lideranças dos nipo-
brasileiros, além da necessária sensibilidade para as linguagens
próprias dessa comunidade.
Poder-se-ia indagar se a diplomacia nipo-brasileira, ao tratar
das demandas dos descendentes de japoneses, não seria, em verdade,
uma agenda de política externa. A resposta é não. Ela trata do fazer,
não do que é feito. Endereçar as demandas da comunidade nipo-
brasileira não é suficiente para mudar sua essência. Toda diplomacia é
realizada com algum propósito político, mas nem por isso deixa de
ser meio.
O diplomata descendente de japoneses pode ter maior
facilidade, embora não necessariamente, para a diplomacia nipo-
brasileira. Muitos outros diplomatas sem qualquer traço étnico japonês
mostram-se, porém, aptos à tarefa.
Na outra ponta, a diplomacia nipo-brasileira tem como
interlocutor o diplomata japonês. Não é o caso de afirmar que toda
política externa de interesse da comunidade japonesa no Brasil esteja
direcionada para o Japão, mas sua agenda é inegavelmente dominada
por esse país. Embora a razão mais concreta dessa dominância seja o
critério étnico de seleção dos brasileiros que para lá emigram, também
há de se recordar a participação dos nipo-brasileiros como agentes
humanos da intensa cooperação entre os dois países.
Assim como na diplomacia com a comunidade, na atuação
com a Chancelaria japonesa, os diplomatas “nikkeis” não devem ser
considerados interlocutores privilegiados. O importante passado das
relações bilaterais não foi resultado, majoritariamente, da atuação de
diplomatas nipo-brasileiros, da mesma forma que os esforços atuais
nesse campo.
133
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
O diálogo é, todavia, certamente facilitado para os diplomatas
nipo-brasileiros, por haver grande entendimento mútuo com os
japoneses, algo que somente com muito esforço pode ser alcançado
pelos demais brasileiros – embora sejam vários os que lograram fazê-lo.
Sobre essa relação com a Chancelaria japonesa, convém
esclarecer que simplesmente não existe o risco, eventualmente apontado
pelos mais alarmistas, de cooptação dos diplomatas nipo-brasileiros pelos
interesses nipônicos. Japoneses ou não, os diplomatas descendentes de
imigrantes nipônicos são brasileiros, tanto em termos de nacionalidade
jurídica quanto de identidade nacional. Como todos os demais
diplomatas brasileiros, têm um compromisso com a efetivação do
projeto nacional esboçado, democraticamente, pelos representantes do
povo.
Além disso, os descendentes de japoneses passam pela mesma
seleção exigente dos demais diplomatas para admissão ao Itamaraty e
demonstram elevada capacidade de crítica, que os protege de serem
iludidos por pequenos gestos ou por algo tão tolo como um traço facial.
Suspeitar da estreita relação dos diplomatas nipo-brasileiros
com os japoneses não é apenas um voto de desconfiança naqueles que
carregam o sobrenome oriental. É também imputar aos japoneses uma
atitude de má-fé totalmente infundada no histórico de estreita
cooperação entre os dois países, tão importante para o desenvolvimento
do Brasil.
As relações com o Japão voltaram, em 2008, a constar na
agenda prioritária da política externa brasileira, por um entendimento
de que seus frutos concorrem para a concretização de um País
economicamente robusto, socialmente justo e politicamente relevante,
que possa atuar na construção de um quadro internacional pacífico,
democrático, estável e próspero.
O Brasil faz-se presente, cada vez mais, no plano internacional,
rejeitando o papel de mero espectador do jogo das principais potências.
A Ásia é uma das últimas fronteiras da diplomacia brasileira e o Japão,
134
DENIS ISHIKAWA DOS SANTOS
tradicional parceiro do Brasil naquele continente, é uma das portas de
entrada mais óbvias.
Brasil e Japão já estiveram em guerra, assim como já tiveram
momentos de intenso intercâmbio econômico-comercial. A diplomacia
nipo-brasileira deve garantir os meios para que a relação bilateral torne-
se, novamente, uma das mais dinâmicas relações do Brasil. Ambos os
países têm a ganhar com a revitalização desse relacionamento.
ERGAMOS AS TAÇAS
Em 2008, comemoramos o Ano do Intercâmbio Brasil-Japão,
em um gesto dos Governos do Brasil e do Japão de reconhecimento
do simbolismo do centenário da imigração japonesa no Brasil. Neste
ano, os dois países declaram-se abertamente empenhados em revitalizar
as relações bilaterais, para que possam retomar e superar o dinamismo
que tiveram outrora.
A homenagem não poderia ser mais justa, nem o propósito
político, mais acertado. As relações Brasil-Japão produziram, no
passado, crescimento econômico e desenvolvimento social para os dois
países. Devemos garantir as condições necessárias para que possam
fazê-lo novamente.
O elo humano representado pelos nipo-brasileiros é um ativo
com poucos paralelos em outros relacionamentos bilaterais. Nosso
Brasil com olhos puxados já rendeu muitos frutos à Nação como um
todo, mas pode frutificar ainda mais. Os brasileiros que migraram
para o Japão e continuam a luta iniciada por seus ancestrais, por sua
vez, merecem receber tratamento condigno com a nobreza de seu
sonho.
O mais importante é que esta data sirva não apenas a uma
comemoração efêmera, mas à edificação de algo novo. Mais do que
pequenos projetos locais e pontuais de difusão da cultura japonesa,
mais do que belos espetáculos de “hanabi” (fogos de artifício),
135
CAMPAI, SAÚDE! UM BRINDE AO BRASIL NIPO-BRASILEIRO
necessitamos mobilizar a comunidade nipo-brasileira em torno de um
projeto nacional, que possa dar resposta satisfatória às aflições da
porção do País e da comunidade nipo-brasileira que não tiveram o
mesmo êxito de muitos dos descendentes dos imigrantes japoneses.
Por ora, o Ano do Intercâmbio é apenas uma rubrica política.
Façamos dele uma realidade, para que possamos comemorar
novamente, e com mais motivos, o bicentenário da imigração japonesa
no Brasil. A diplomacia nipo-brasileira pode desempenhar um papel
crucial nessa realização.
Que todos ergam suas taças, no dia 18 de junho, para um
brinde ao Brasil, ao Japão e aos nipo-brasileiros.
V.
YOSHIKO BABY
(OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS
DO
CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E
IMIGRANTE)
139
Henrique Luiz Jenné
YOSHIKO BABY
(OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY,
BALEEIRO E IMIGRANTE)
BREVE INTRÓITO
French girls are bad, too, the worst of all,
except for the Japanese. There’s a place next
door that’s full of Japanese women, but I wouldn’t
live in the same house with one of them.”
(in “Jungle” – Upton Sinclair)
Dentre meus seis tios-avós maternos, somente um insistiu,
solerte, em escapar às inclinações bairristas e conservadoras da seleta claque
européia, que chegara ao Brasil no início do século XX, nimiamente
enamorando-se de uma nacional nipônica e, dessarte, deixando-se absorver,
de corpo e alma, pela exótica e diligente comunidade japonesa da região
de Conquista, às margens do Rio Grande, no lado mineiro.
Ezekiel Hardy aportou no Rio de Janeiro em 1903, aos 14 anos
de idade, acompanhado da mãe inglesa e do pai nova-iorquino. A família
residira, outrora, no estado norte-americano de Massachusetts. Baleeiro e
nômade desde os 19 anos, Tio Ezekiel decidiu, de chofre, em 1921, estancar,
na medida do possível, seu apetite por périplos, perambulagens e peripécias,
permanecendo em terra mineira por longo período idílico. Ah, l’amour!
Arrisco-me a revelar, nas páginas adiante, alguns trechos
selecionados do principal diário e da correspondência do Capitão Hardy,
cujas laudas indisciplinadas tive o prazer de traduzir, ordenar, corrigir,
comprimir, expandir e anotar, visando debuxar um tributo, ainda que
modesto, a esse nauta ímpar e a sua issei Dinamene, que tão asinha
esta vida desprezou….
140
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
1. EZEKIEL ENAMORA-SE
15 de junho de 1921
Muito calor em Cingapura. Mas, depois do frio em
Gritviken
1
, o aquecimento da natureza é bem-vindo! Ontem à noite,
conversei com Herbert Fleet e outros no Clube de Críquete
2
. Ao
mencionar que vivia, quando em terra firma, no Rio de Janeiro, cujo
clima, relevo e cujas praias tanto assemelham-se àqueles da Península
Malaia, surpreendeu-me Fleet ao comentar que conhecia bem aquela
capital brasileira, onde um seu tio servira como funcionário na Legação
Britânica. Caminhando de volta ao Karrakatta
3
pela noite mormacenta,
a lembrança de meus pais, que não vejo desde outubro, veio-me à
mente. Mas, como disse Langbehn, die Sehnsucht ist dem Menschen oft
lieber als die Erfüllung
4
!
17 de junho de 1921
Despertei alvoroçado esta madrugada, não só em virtude
do temporal que sacudia o Karrakatta com violência inusitada,
mas … aquele mesmo sonho, extraordinário – Y pues sé / que
toda esta vida es sueño, / idos, sombras
5
. Segismundo acertou,
mas é doloroso e inescapável! Conheço o principal culpado desses
1
Em Grytviken (ou Gritviken), na Geórgia meridional, Atlântico Sul (c. 3 mil
quilômetros de Buenos Aires) foi implantada, em 1904, uma estação baleeira, onde
cetáceos capturados eram processados. A pequena igreja do vilarejo, construída em
1913, ainda existe.
2
O Singapore Cricket Club foi fundado em 1854, e é hoje considerado um marco
fundamental na história da cidade. Sua fachada é um dos cartões de visita daquela
cidade-Estado.
3
O Karrakatta era uma nau baleeira, comandada por Ezekiel, com deslocamento de
aproximadamente 200 toneladas. Dispunha de um canhão para arpão na proa.
4
Julius Langbehn (1851-1907), escritor e crítico alemão. “A saudade é-nos, amiúde,
mais atraente do que sua ausência”.
5
Momento significativo na “Jornada III”, da obra máxima de Calderón de la Barca, La
Vida Es Sueño (estreada em 1635). Os apaixonados, Segismundo e Rosaura, são seus
protagonistas.
141
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
absurdos pesadelos reiterados: o tolo festival de Gangaur, no
Rajastan, em março. Eu deveria ter evitado o esforço, a tensão, a
asfixia inexorável! Sou marujo e, longe desse mar que se funde ao
firmamento, nada sou! Recordo-me, fatigado, da multidão de
mulheres olorosas, envoltas em seus ghagra-choli rubros ou
rosados, a batida cadenciada do duff, a enorme fogueira (para
mim, uma letal pira viking…) e aquelas tolices sobre Gauri e Issar
6
.
Tentarei dormir esta noite, se a chuva e o vento permitirem.
Passarei o dia no porão, lendo e escrevendo, ainda que os ratos
de bordo estejam famintos….
18 de junho de 1921
Doubt thou the Starres are fire,
Doubt, that the Sunne doth move:
Doubt Truth to be a Lier;
But never doubt I love.
7
Bem cedo, dirigi-me à Capitania dos Portos, a fim de recolher
nossos documentos e registrar nossa partida amanhã. Entre os oficiais
presentes, reconheci meu velho parceiro de carteado, um marítimo
filipino chamado Madriaga. Explicou-me que estava a caminho do
Brasil, como segundo imediato do Tacoma Maru
8
, transportando mais
6
O Gangaur é o festival que acontece 18 dias após o feriado de Holi, na área do
Rajastan, no noroeste indiano. Crê-se que a perfeição da união simbólica de
Parvati (Gauri) e Shiva (Issar) profetiza uniões sublimes. Ghagra-choli são
blusas coloridas e bordadas, abertas nas costas. Duff é um pequeno, mas ruidoso,
tambor.
7
Carta de Hamlet para Ofélia (Hamlet, II, ii). “Duvide que as estrelas sejam
fogo; / Duvide que o sol se move; / Suspeite até que a verdade é mentira, / Mas
jamais duvide que eu amo”.
8
O Tacoma Maru era um navio a vapor, que deslocava 3 mil toneladas,
pertencente à empresa Osaka Sosen Kaisha OSK), e que, em 1944, seria
torpedeado pelo submarino norte-americano Hake, nas proximidades das Ilhas
Molucas.
142
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
de cem imigrantes japoneses, e cujo destino final seria o porto de
Santos, no Estado de São Paulo. Apertou-me a saudade da família.
Combinamos encontrar-nos junto ao Cais 6. Eu subiria a bordo,
partilharia do rancho e jogaríamos umas partidas de whist alemão
9
.
Le destin conduit celui qui consent et tire celui qui résiste
10
! O Tacoma
Maru pareceu-me bem cuidado, possuindo a configuração típica, com
paus-de-carga na proa, seguidos do mastro, da chaminé e do 2o. mastro.
O cuca, um velho japonês, compôs verdadeiras obras de arte culinária
(como sobakiri e um delicioso kitsune udon
11
). Jogamos e relembramos
os velhos tempos até as nove horas, quando despedimo-nos e desejei-
lhe bon voyage. No convés, alguns passageiros aproveitavam o frescor
da noite e conversavam. Sentia-me eufórico – talvez por causa do saquê
– e, curioso, aproximei-me de um grupo de risonhas e taramelas jovens
nipônicas, para desejar-lhes boa-noite. Mas emoção súbita embargou
minha voz: a única das moças que não se trajava à moda ocidental,
mas vestia um singelo yukata
12
, afigurou-se-me, à primeira vista, um
anjo! Está na Bíblia: Eis que envio um anjo diante de ti, para guardar-
te pelo caminho, e conduzir-te ao lugar que te tenho preparado
13
.
19 de junho de 1921
Sob o efeito da bebida, e intoxicado pelo mais estranho
momento de minha vida, adormeci sobre este diário. Desperto com o
sol no zênite e a enteléquia
14
nas nuvens…. E prossigo a narração de
9
Há inúmeras variações do whist, algo similar ao bridge. Na modalidade aqui referida,
só há dois únicos jogadores, e não são feitas apostas.
10
“O destino conduz aquele que consente e arrasta aquele que lhe resiste”. Frase
atribuída a Cleantes (320-232 a.C.), conhecido pugilista grego, que se tornou filósofo
estóico. O “Hino a Zeus” é um dos fragmentos mais conhecidos de sua obra.
11
O sobakiri é o macarrão escuro, feito com trigo mouro, e o kitsune udon, prato
oriundo de Osaka, é uma sopa contendo macarrão grosso de trigo, acompanhado de
aburaage (pedaços de tofu adocicado).
12
O yukata é um quimono leve, sem forro, em algodão, geralmente usado no verão.
13
Êxodo 23:20.
14
Entelekheia, no original. Lembra-nos do élan vital de Bergson.
143
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
minha extática aventura da noite passada: à minha proximidade, as
moças calaram-se pudicamente. Percebi que me observavam. Meus
olhos, contudo, centravam-se no anjo levantino. Tímido, arranquei
meu gorro, e desejei-lhes boa-noite, a voz vacilante. Todas elas, salvo
o anjo, riram-se de meu desaire. Retirei-me acanhadíssimo – desde
meu tempo de foguista, em minha recente juventude, não me sentira
tão afogueado – e, ao mesmo tempo, tremendamente enlevado! Quando
cheguei ao Karrakatta, já tinha decidido alterar meus planos de viagem
e de vida.
Baleias e eu,
Dormindo sob a mesma estrela,
O mar tão sereno.
15
20 de julho de 1921
Chegamos ontem à tarde na Cidade do Cabo. A vista da
Table Mountain, ao fundo das docas, sempre impressionou-me, mas
não hoje…. Sigo absorto, distraído. Embriagado, não vejo a hora de
rever minha Perséfone – pois essa ninfa-deusa baila ao sopro de meus
sonhos, desperto ou adormecido! Ainda que ciente das palavras de
Chamfort (La pensée console de tout et remédie à tout
16
), receio que a
mente humana, mesmo em pleno funcionamento, nem sempre é
incólume à tristeza! O Kinfauns Castle
17
, famoso navio, está atracado
aqui perto. Entre seus passageiros, chegados de Southampton, há um
15
Uma tentativa de haiku ao estilo de Bashô (1644-1694). O original, em inglês, soa
correto e harmonioso: All whales and I / Asleep under the same star / Such a peaceful
sea. Respeita, normalmente, a métrica tradicional (5, 7, 5 onji). A pausa (kireji) fica no
final do segundo verso.
16
“O pensamento tudo consola e remedia”. O Marquês de Chamfort (1741-1794),
autor de Maximes et pensées, caractères et anedoctes, é conhecido por várias máximas,
como: “Viver é uma enfermidade, de que o sono, que nos alivia a cada dezesseis horas,
é mero paliativo; a morte é seu remédio”.
17
Navio de passageiros e correio da empresa britânica Union Castle, o Kinfauns Castle
(tonelagem bruta: 9664), construído em 1899, participara de bloqueio contra a belonave
Koenigsberg e navios alemães de suprimentos em Zanzibar, em 1915.
144
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
casal de missionários a caminho da ilha de Tristão da Cunha, portadores
de uma carta de George V, de incentivo aos ilhéus, aislados do resto
do mundo
18
. E – coincidência surpreendente – o Governo Imperial
japonês graciosamente autorizou ao Tacoma Maru desviar de sua
rota, transportando-os, primeiramente, até aquela ilha!
21 de julho de 1921
Hoje cedo, deixei o Karrakatta nas mãos da turma de Elgin
Brown
19
, para a reconstrução da passarela no convés, a substituição
do púlpito do canhão
20
, bem como a limpeza e repintura do casco.
Despedi-me de nossa leal tripulação, todos satisfeitos com a uberdade
da temporada (particularmente graças às baleias azuis e aos vários
cachalotes), programando reencontrar-nos em março próximo, para
a expedição ao Ártico.
Mas, quando fito-te, meiga, doce, e suave,
Céus! Quão desesperadamente adoro
Tua graça cativante; ser teu paladino
Desejo ardentemente – ser um Calidoro –
Um vero Cavaleiro da Rubra Cruz – um robusto Leandro –
Que eu seja amado por ti como aqueles de outrora.
21
18
Com efeito, Tristão da Cunha dista 2816 km da África do Sul e quase 3400 km da
costa sul-americana. Sua população (menos de 300 habitantes em 2005) descende, em
sua maior parte, de náufragos de várias nacionalidades. Batatas e peixes são a base de
sua alimentação.
19
Trata-se do estaleiro Elgin Brown & Hamer, fundado em 1878, e que possui filiais na
Cidade do Cabo, em Durban, East London (África do Sul) e Walvis Bay (Namíbia).
20
Os canhões de arpões explosivos de grande calibre, que passaram a ser usados nas
baleeiras a vapor no último quarto do século XIX, requeriam constante ajuste e reparo.
21
But when I see the meek, and kind, and tender, / Heavens! How desperately do I adore
/ Thy winning graces; — to be thy defender / I hotly burn – to be a Calidore — / A very
Red Cross Knight – a stout Leander — / Might I be loved by thee like these of yore.
Trecho do poema de Keats (1795-1821), “Imitação de Spenser”. Calidoro é o paragão
da Cortesia e, na obra alegórica de Edmund Spenser (c. 1552-1599), rivaliza com
Coridon pelo amor de Pastorella. O Cavaleiro da Rubra Cruz simboliza o Cristianismo,
em combate contra o Paganismo. Leandro é o legendário amante de Hero, sacerdotisa
de Afrodite.
145
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
25 de julho de 1921
Ultimo in barca, pezo remo no manca
22
. Mal apontava o alvor
quando abordei o Tacoma Maru. Logo avistei o bom Madriaga, que
se supreendeu, alegremente. Expliquei-lhe que decidira visitar meus
pais no Rio de Janeiro, ao invés de valer-me da temporada de caça no
hemisfério sul
23
. Ma dov’è la mia fanciulla
24
? Seguimos com o grumete
pelo convés e, após dois lances de escada, chegamos a meu pequeno
camarote, bem próximo à cabina do comandante. Ordenei meus
minguados pertences e fui apresentar meus cumprimentos ao Capitão
Kamaiashi, gentil e sociável. Convidou-me para um típico sado, com
chakaiseki
25
, na tarde de amanhã, que aceitei, empolgado.
26 de julho de 1921
Tendo despertado hoje ao som de gemidos das sirenes e gruas
do porto, lembrei-me da improdutividade de ontem, quando passei
todo o dia – e parte da noite – deambulando pelo navio, esperando
encontrá-La, em vão. Vivi tantos anos despreocupado, indene, e
procuro compreender tão intensa compulsão…. Um jovem poeta,
desaparecido há poucos anos, ampara-me:
Pois o que nunca me foi dito,
E o que eu nunca soube;
Foi que, todo tempo, meu amor,
Tu serias o amor.
26
22
“Ao último no lenho caberá o pior lugar”. Provérbio istro, grafado no diário de
Hardy em dialeto ou idioma vêneto.
23
Com efeito, a temporada de caça a baleias ao largo da costa sul-africana dava-se,
geralmente, entre agosto e novembro.
24
“Mas onde está minha garota?” (referência dúbia)
25
Sado (ou chado) é a tradicional cerimônia japonesa de chá. Chakaiseki é uma refeição
que, às vezes, serve-se na ocasião, regada a duas rodadas de chá (koicha e usucha).
26
For what they’d never told me of, / And what I never knew; / It was that all the time,
my love, / Love would be merely you. Últimos versos do poema “Song”, de Rupert
Brooke (1887-1915).
146
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
O tempo arrastou-se com vagar mas, enfim, a hora do chá
era chegada. Numa saleta forrada com tatames e decorada com duas
estampas de Hokusai e uma de Hiroshige
27
, estavam o casal de
missionários (cujo destino é Tristão da Cunha), o Capitão Kamaiashi
e, fazendo as vezes de temae
28
, o rústico lapuz paralisado, olhos
apalermados e boca aberta, que denotavam surpresa
29
recatadamente em
seiza
30
, trajando quimono branco e dourado, os cabelos negros atados
em coque discreto, ritualmente preparando e servindo o chá verde,
estava o Anjo! Ao entrar, curvara-me em Sua direção, como exige a
etiqueta. Exultante, sentei-me quase a Sua frente. Quisera poder enlaçá-
La de súbito, etereamente mergulhando no vagalhão de Hokusai! O
chá (chanoyu). Bambo, recebi de Suas alvas mãos a delicada taça
dourada, com o lado decorado (um pequeno tigre) para minha
apreciação. SORRIU-ME! Seus olhos sorriram em meus olhos!
Prosseguiu Seus movimentos, graciosamente coreografados, sublimes.
Paciente diário, estou exausto! Continuarei amanhã….
27 de julho de 1921
Seu grito agudo e triste fere
Corações suspensos em mares de amor,
Gaivota ruidosa no alto
31
27
São dois grandes mestres na arte do ukiyo-e (literalmente, “imagens do mundo
flutuante”, técnica de impressão xilográfica japonesa). Katsushika Hokusai (1760-
1849), é conhecido no Ocidente por suas “Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji”. Utagawa
Hiroshige (1797-1858), além de artista, era samurai do corpo de bombeiros na área de
Yaesu, em Edo (a futura Tóquio).
28
Anfitrião ou anfitrioa.
29
The fool of nature stood with stupid eyes / And gaping mouth, that testified surprise.
Trecho do poema “Cymon e Iphigenia”, de John Dryden (1631-1700), que se refere
à lenda do grosseiro aristocrata Cymon, que é banido do nobre lar paterno, e de seu
amor pela sofisticada Iphigenia. A pintura de Millais sobre o tema, na Galeria Lady
Lever, em Liverpool, é curiosa e quase provocante.
30
De joelhos, cobrindo as pernas e os pés.
31
Outro haicu ao modo de Bashô (v. nota 15, acima). No original: Your sad shrill
scream jars / Hearts floating in seas of love, / Noisy seagull high.
147
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
Enquanto a Ninfa encenava novo balé com as mãos, regalando
aos presentes primorosos pratinhos com wagashi
32
(que serve para
contrabalançar o amargor do chanoyu), discretamente pude obter do
Capitão o nome de nossa perfeita anfitrioa: Yoshiko! Disse-me,
igualmente, que Ela seguia para o Brasil com Sua avó, uma das primeiras
viajantes japonesas a arribar no porto de Santos, São Paulo, antes da
Primeira Grande Guerra. Confidenciou-me a idade de Yoshiko: 19
anos. Apontou, a um canto, um sóbrio e sutil arranjo floral, resultante
de Sua perícia na arte do kado
33
. Pedi a Kamaiashi que Lhe apresentasse
meus cumprimentos por Seu virtuosismo, a que ele sorriu, sugerindo-
me que Lhe falasse em português, idioma que Lhe ensinara a avó nos
últimos dois anos. Inibido, disse-Lhe em linguagem formal: Senhorita,
permiti-me que cumprimente vossa destridade como ‘temae’: o próprio
Furuta Oribe
34
aplaudiria calorosamente vosso desempenho! Sua reação
foi instantânea. Ligeiramente ruborizada, replicou: Muito agradeço
pero erogio imerecido….
35
Olvido logo tais atrativos – mesmo antes de cear,
Ou antes de regar três vezes meu palato: mas, quando
observo
Tais encantos fulgir com tênue argúcia,
Meu ouvido abre-se como tubarão cobiçoso,
A fim de captar os matizes da voz divina.
36
32
Wagashi é um bolinho de arroz aglutinado, algo doce, que contém pasta de feijão-
azuqui e mizuame (tipo de xarope açucarado) ou suikazura (essência de madressilva
silvestre).
33
O kado (“caminho das flores”) é uma forma de iquebana (que significa “flores
vivas”), e, juntamente com a arte do sado (“caminho do chá”) e do shado (caligrafia
japonesa) compõem as principais disciplinas do(a) especialista na cerimônia do chá.
34
Furuta Oribe (1544-1615), senhor feudal do Castelo de Fushimi, em Kyoto, é
considerado um dos grandes mestres e inovadores na história do sado.
35
As duas frases em itálico estão em português, no diário. Os rotacismos, claro, são
compreensíveis.
36
Da “Imitação de Spenser” (v. Nota 21, acima). These lures I straight forget – e’en ere I
dine, / Or thrice my palate moisten: but when I mark / Such charms with mild intelligences
shine, / My ear is open like a greedy shark, / To catch the tunings of a voice divine.
148
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
Encantado, afastei-me, relutante, do Paraíso, duas horas
depois. Voltei para cá, amigo Diário. O canto da Sereia Yoshiko
embalará meus sonhos. E amanhã….
6 de agosto de 1921
A caminho de Tristão da Cunha. Os dias e as noites sucedem-
se como páginas visíveis e vigorosas no livro de minha vida. As Parcas
que me perdoem
37
…. Anteontem, avistamos o baleeiro Isabella,
perseguindo uma sei
38
de porte considerável. Normalmente, a visão
teria causado certa nostalgia, mas, como aleguei ao amigo Madriaga, a
proximidade de Yoshiko, a simpatia de sua obaasan
39
e das famílias
nipônicas, bem como a quase iminência do regresso ao solo brasileiro
e ao lar paterno, certamente aplacam meu ímpeto aventuresco! O que
não significa, preciso reconhecer, que meu desejo por solidão tenha
sido extirpado. Afinal, os dizeres de Pascal: Rien n’est si insupportable
à l’homme que d’être dans un plein repos, sans passions, sans affaires,
sans divertissement, sans application. Il sent alors son néant, son
insuffisance, sa dépendance, son impuissance, son vide. Incontinent il
sortira du fond de son âme l’ennui, la noirceur, la tristesse, le chagrin,
le dépit, le désespoir
40
, ficaram-me na memória desde a juventude. Sinto
que meu profundo sentimento por Yoshiko afigura-se complemento
37
No Diário, Moirae, que é o nome grego das Parcas (Átropos, Cloto e Láquesis), que
controlam o destino humano. Átropos, “a Implacável”, corta o fio da vida.
38
Trata-se do rorqual (Balaenoptera borealis), cujo comprimento chega a 20 metros,
e cujo peso ultrapassa, freqüentemente, 50 toneladas. É, hoje, espécie protegida
internacionalmente.
39
Avó
40
“Nada é tão insuportável ao homem quanto estar em pleno repouso, sem paixão, sem
atividade, sem divertimento, sem ação. Ele sente, então, sua nulidade, sua inânia, sua
dependência, sua impotência, seu vazio. Logo deixará brotar, do fundo de sua alma, o
tédio, a escuridão, a tristeza, a aflição, o despeito, a amargura, o desespero”. Cita de um
dos Pensées, de Blaise Pascal (1623-1662), cientista, matemático e filósofo francês. O
surrado exemplar, adquirido pelo Capitão Hardy em bouquin na cidade de Honfleur,
e edições compactas das obras de Keats, Brooke e Longfellow, além da Bíblia, sempre
acompanharam-no por toda parte, e, objeto de leituras, releituras e inúmeras e peculiares
glosas, revelam aspectos interessantes de sua personalidade e de sua vida.
149
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
sui generis e tonificante, destinado à satisfação de meus dias! Chove
muito.
18 de agosto de 1921
A breve passagem por Tristão da Cunha foi temerária, pois
um temporal de proporções consideráveis varria a costa da pequena
ilha. O Tacoma Maru viu-se obrigado a aguardar dois dias, até que os
ventos e a chuva amainassem. Os missionários, além da grande
quantidade de fardos contendo provisões e equipamento, foram
conduzidos por escaler até Edimburgo dos Sete Mares, a minúscula
capital. Em minhas anotações de 6 de agosto último, comentava sobre
a solidão, e hoje fomos informados por Kamaiashi que pouco mais de
100 pessoas vivem naquela quase erma ilhota….
8 de setembro de 1921
Em três dias estaremos aportando em Santos. Yoshiko
suspirou ariviada ao ser informada desse fato: afinal, foram mais de
dois meses de viagem, com parcíssimo tempo passado em terra. Mas
confessou-me que, bem no fundo, ela sentiria falta da vastidão e sirêncio
dos mares! Nunca imaginei que pudesse deixar-me envolver tão
irrestritamente por alguém: e Yoshiko é prova disso. Absorvo cada
frase sua, cada pensamento, como se eu fora um gigantesco tonel, à
espera de doce conteúdo…. Tanto ela como obaasan percebem meu
profundo interesse, e sorriem, sorriem, sorriem.
Meu coração passou todo inverno tão impassível,
A terra tão morta e congelada,
Que nunca pensei que a primavera viesse
Ou que meu coração voltasse a acordar.
41
41
Trecho de “Canto”, de R. Brooke (v. Nota 26, acima). My heart all winter lay so
numb, / The earth so dead and frore, / That I never thought the Spring would come, /
Or my heart wake any more.
150
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
14 de setembro de 1921
Solo e ares brasileiros, enfim! Ancoramos dia 11, domingo,
como previsto, despedi-me de Madriaga e do simpático Kamaiashi, e
acompanhei obaasan e Yoshiko em sua jornada por trem até a Colônia
Katsura (Katsura shokominti) ou, mais precisamente, a pequena cidade
de Registro
42
. O destino final de nossa “família”: as fazendas onde é
cultivado arroz em grande escala.
43
Quem diria, um marujo,
voluntariamente internado a 500 milhas máuticas da água salgada mais
próxima! A fim de permitir que Yoshiko organize sua rotina, aproveito
estes primeiros dias para conhecer a vizinhança: esta manhã visitei um
local, famoso na região por sua gruta
44
, que penetrei por alguns minutos
e, temeroso de acabar enterrado vivo, como quase fez o leal escudeiro
de D. Quixote
45
, abandonei-a rapidamente.
8 de outubro de 1921
Cheguei hoje ao Rio de Janeiro, em visita a meus queridos
pais. Ao rever o mar tão majestoso, a perder de vista, forte nostalgia
apoderou-se de meu espírito. Diante da imensidão líquida, emocionado,
recordei-me da passagem que envolve Pip, atirado longe durante uma
42
A colônia Katsura fora fundada em 1913, tendo sido um dos primeiros centros
organizados de colonização japonesa no Brasil. Situava-se na região de Jipovura, na
margem esquerda do Rio Ribeira de Iguape. Daí ter sido conhecida, mais tarde, como
Colônia Iguape (Katsura, Registro, Sete Barras, Quilombo e Juquiá). Seu nome visava
homenagear, na época, o então premier japonês, Taro Katsura, conhecido incentivador
da imigração nipônica.
43
Em 1920, na região da Mogiana, do lado mineiro, aproximadamente 400 famílias
japonesas dedicavam-se ao cultivo do arroz, cujo sucesso foi considerável. Em 1919,
esses rizicultores já haviam formado uma espécie de cooperativa de produtores que,
mais tarde, passaria a ser denominada “Sindicato Agrícola Nipo-Brasileiro”, com sede
na cidade de “Uberaba, que integrava o chamado Triângulo Mineiro, de Conquista até
a estação Delta, sempre beirando o Rio Grande” (Fonte: “Nippo-Brasil”).
44
Hardy refere-se, certamente, à conhecida Gruta dos Palhares, na região de
Sacramento, considerada a maior gruta de arenito das Américas, com profundidade
explorada de 450 metros!
45
A hilariante passagem está no grande romance de Cervantes, quando o pobre
Sancho Panza e sua modesta cavalgadura caem, acidentalmente, numa gruna.
151
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
caça a baleia: “O mar zombeteiramente manteve seu corpo finito à
superfície, mas submergiu o infinito de sua alma. Não o afogou de
todo, porém. Mas levou-o consciente a profundidades tremendas,
onde estranhas formas do rigoroso mundo primal deslizavam para
cá e para lá diante de seus olhos passivos….”
46
Soberbo. Meus pais
ouviram meu sucinto relato a respeito de minha “última aventura”
(nas palavras de minha mãe, talvez desconhecedora de meu potencial
de enlevo pelo sexo oposto). Expliquei-lhes que Yoshiko e eu
trabalhávamos, diariamente, nos arrozais (esclareci que, em algumas
áreas do Japão, como na região de Tohoku, o pretendente ou noivo
vivia e labutava, por algum tempo, com a família da noiva, aspirando
ao casamento). À noite, sentávamos com obaasan na pequena casa
que lhes cabia na colônia, e, atentamente, ouvíamos contos e
narrativas do Japão antigo, traduzidas em peculiar português pela
avó, lidos de seu único e volumoso livro, uma puída cópia do Tono
Monogatari.
47
Narrei-lhes um dos contos mais belos que já ouvira da
boa senhora:
OBAASAN NARRA A LENDA DO RAPAZ QUE CONQUISTOU A DEUSA-URSA
Era uma vez um cidadinha onde tinha muito peixe e muita
carne. Um rugar com muita comida. Mas, um dia, começô a fartar
comida. Não tinha peixe nem tinha carne, não tinha nada pra comê.
Todos pessoas iam morrendo.
Ora, o chefe da cidadinha tinha dois filhos, um menino e uma
menina. Depois da fome, só tinha esses dois vivos. A menina disse pro
46
Pip é um dos personagens em “Moby Dick”, obra do norte-americano Melville
(1819-1891). The sea had jeeringly kept his finite body up, but drowned the infinite of
his soul. Not drowned entirely, though. Rather carried down alive to wondrous depths,
where strange shapes of the unwarped primal world glided to and fro before his passive
eyes;…
47
Coletânea de contos folclóricos japoneses, compilados por Yanagita Kunio (1875-
1962), publicada em 1912.
152
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
menino: ‘Não tem probrema que eu morro, porque sô só uma menina,
mas você é menino e fica com a herança do papai. Reva essas coisas,
vende eras e compra comida pra você e vive. Era deu pro menino um
saco de pano com cousas lá dentro.
O menino foi embora pera praia, e depois de andar muito na
areia, ele viu uma casinha rá ronge. Perto da casinha tinha um esquereto
de bareia. O menino chegou e entrou na casinha. Rá dentro tinha um
homem como deus, com roupa de pintinha, e a mulher dere parecia deusa
tamém, com roupa preta. O homem diz pro menino: ‘Sê bem-vindo’. Depois
cozinharam muita carne de bareia, o menino comeu. A mulher nunca
olha pro menino. Aí o menino saiu e pegô seu saco de pano que a menina
deu, e disse pro homem que os tesoros aí dentro era para pagar a comida. O
deus, olhando nos tesoros, diz: ‘Esses tesoros são muito rindos, mas você não
precisa pagar pera comida. Mas vô revar esses tesoros pra minha otra casa,
e vô trazer meus tesoros em troca para você. Mas você pode comer toda
carne de bareia que quer, sem pagar’. Ere saiu com os tesoros do menino.
Quando o menino e a mulher estavam sozinho, era disse pro
menino: ‘Menino, escuita bem o que vô farar. Eu sô a deusa-ursa. Meu
marido é um deus-dragão. Ere tem muito muito muito ciúme de mim.
Porisso não olhei pra você nenhum momento. Eu sei que ere fica ciumento
se olho você. Os tesoros de você são rindos como nenhum deus tem. Porisso
ere revô os tesoros, e aí vai trazer tesoros de mentira pra trocar. Mas quando
ere trazer os tesoros dere, você diz pra ere: ‘Não quero trocar tesoros, só
quero a mulher’. Ere vai ficar muito zangado e vai embora, e aí nós dois
casamo’.
O menino faz isso quando o deus-dragão vorta, e repete o que a
deusa tinha farado: ‘Eu tamém quero os tesoros, mas eu quero mais a
mulher do que os tesoros: assim, por favô, dá-me a mulher invés dos tesoros’.
Todo mundo ouve trovão muito forte – era a zanga do deus – e
tudo sumiu, até a casa e o esquereto da bareia. Só ficô o menino, a deusa e
os tesoros dere mesmo. Era disse: ‘Viu? Eu disse que ere ia zangar muito e
sumir’. Aí o menino e a deusa casaram e viveram muito juntos muito
153
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
tempo, isso exprica porque o urso é um bicho meio parecido com a gente
humana.”
18 de outubro de 1921
Ontem ocorreu o yui-no
48
, reunindo obaasan, Yoshiko,
minha família e eu, no pequeno “restaurante” da Colônia. Meus pais
presentearam minha doce Baby com um delicado suehiro
49
. Obaasan
surpreendeu-nos com uma dádiva inesperada: um yanagi-daru, feito
com madeira de salgueiro
50
, que pertencera a seu adorado marido!
Meu conhecimento do idioma japonês melhora rapidamente.
2. EZEKIEL NAVEGA
Oceano Atlântico, 2 de fevereiro de 1922.
Querida Baby,
Não te vejo diante de meus olhos, nem sinto teu calor
acolhedor há somente cinco dias, mas sonho com tua presença, como
se fora, bem próxima, dia e noite! Como prometi, esta será minha
última viagem, pois é-me doloroso estar tão distante de ti, de obaasan
e de nossa (ou nosso?) bebê. Inacreditável, mas é o crepúsculo de meus
dias como baleeiro e nômade. Dentro de, talvez, vinte e cinco dias,
aporto em Capetown, reúno a tripulação, e partimos. O sol está
brilhante, o mar parece verdadeiro espelho esverdeado. Mas só vejo
minha Yoshiko!
Sempre com amor,
Teu
Hardy
48
Ocasião ritual em que se encontram as famílias da noiva e do noivo, quando são
trocados presentes simbólicos.
49
Leque decorado, que representa a felicidade e um longo futuro melhor.
50
Trata-se de um pequeno barril para saquê, normalmente feito em pinho. O salgueiro
significa carinho e respeito na vida conjugal.
154
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
Registro, 10 de fevereiro de 1922.
Marido amado,
Espero que Você consiga estar entre nós no princípio de
agosto, pois ocorre, próximo daqui, em Conquista (que tão bem
conhecemos…), a “Festa do Senhor Bom Jesus”, celebração religiosa,
quando o povo sai às ruas para homenagear aquele Santo. E será nessa
mesma época que deverá nascer a Criança, que cresce vigorosa,
considerando como fico mais pesada e desjeitosa. Obaasan está certa
de que é uma linda menina, e que virá ao mundo ao nascer do sol: que
nome poderemos dar-lhe? Obaasan sugere ASAMI, que significa
“beleza da manhã”. O que pensa? Recordo-me que, nos tempos em
Gensuikin
51
, uma vizinha, minha doce amiga, chamava-se assim.
Quando partimos para o Brasil, regalou-nos com aquele belíssimo
noren
52
que temos na janelinha da sala. A garça estampada ali, segundo
obaasan, garante-nos lealdade e honra. Sua eterna
Yoshiko
Cabo, 12 de março de 1922.
Amada Baby,
Lá fora chove forte. Preparamo-nos para sair à caça. Ontem,
um armador norueguês, meu velho conhecido, ofereceu-me valor
excelente pelo Karrakatta. Afinal, nossa baleeira está quase que
integralmente reconstruída, e ainda sente a tinta fresca! Prometi-lhe
que a barca passaria a ser sua propriedade até meados do ano, após
essa última expedição ao hemisfério norte. Bebemos para brindar ao
51
Gensuikin é a cidade de Nagasaki, onde, em 9 de agosto de 1945, trinta e nove mil
pessoas morreriam, em virtude da explosão de bomba atômica (contendo oito quilos de
plutônio-239) lançada pelos Aliados.
52
Cortina ou tapeçaria fixa, geralmente em juta ou algodão, com desenhos coloridos,
usada como divisória, como decoração ou como cortinado sobre janelas.
155
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
negócio. Recordei-me, Yoshiko, calorosamente, de teu chanoyu
saboroso, o balé perfeito executado por tuas mãos, nosso primeiro
encontro no Tacoma Maru. É como se tudo tivesse ocorrido ontem,
tão clara é-me a memória dos meses que passaram…. Só resta-me rezar
aos deuses que nos mantenham com saúde e alegria, por longo tempo!
Desconheço quando poderei enviar-te a próxima carta – se houvesse
mais tempo, escreveria diariamente mas, como sabes, há perigos que
corremos e que necessitam ser evitados a todo custo. O mais importante
é meu pensamento, que flutua entre esta nau e um distante arrozal nas
Minas Gerais….
Sempre teu
Hardy
Registro, 25 de março de 1922.
Meu Hardy,
Ontem à noite visitamos o pequeno teatro da Colônia.
Apresentaram-nos uma peça do gênero que chamamos asura no
53
, que
Você conheceu no passado, quando viveu perto de Kyoto. Anotei
alguns trechos para que pudesse apreciar a beleza dos versos. Estão no
papel de arroz, junto com esta carta. Meu conhecimento do português,
como sabe, não é especialmente pleno! Perdoe-me pelos erros….
Muito saudosa
Yoshiko
53
O Nô (também chamado Nogaku) é uma das quatro formas tradicionais do teatro
japonês (as demais são: Kyogen, Bunraku e Kabuki), e pode ser definido como um
drama musical com máscaras e danças. Seu tema, quase sempre, envolve o encontro do
shite (um espírito ou demônio), com o waki (que pode ser, por exemplo, um observador
ou sacerdote, acompanhado de seu wakizure), além do kyogen (que atua nos entreatos),
dos hayashi (músicos que tocam flauta e três tambores e o jiutai (coro, geralmente seis
pessoas). Wakizure e kokatas (personagens infantis) não usam máscaras. O gênero
asura no apresenta o espírito de um guerreiro no primeiro ato e, no segundo, o
guerreiro como se fora vivo, retratando sua própria morte.
156
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
TRECHOS SELECIONADOS POR YOSHIKO DA PEÇA NÔ
SHITE (no primeiro ato)
Numa fria noite de inverno é bom
estar com entes queridos,
agasalhado e tagarela.
Recorda-me um lugar,
meu lugar próximo à lareira,
o silêncio nevado lá fora,
o crepitar seco das chamas
aqui dentro.
CORO
Ele sempre estava só,
o crepitar seco não interessava,
o estar com entes queridos
não almejava.
WAKI
Posso falar-lhe, senhor? Os entes queridos permitiram que
eu dormisse aqui, junto da lareira. Busco meu sobrinho que foi visto
nesta região pela última vez, anos atrás.
SHITE
Quem é o senhor, e quem era seu sobrinho?
WAKI
Envergonho-me de meu nome. Meu sobrinho era Haruhide
Heitai
54
. O senhor conhece-o?
54
Estranha coincidência, pois Heitai, além de significar soldado, significa marinheiro.
157
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
SHITE
Sim, conheço-o. Suas plavras ecoam, ainda, em minha mente.
SHITE (no final do primeiro ato)
O céu está cinzento,
a chuva e minhas lágrimas chovem.
É quase impossível
morrer feliz.
CORO
As lágrimas e as chuvas respingam
nas ondas salgadas,
gotas de água na
salgada imensidão!
SHITE (no final do segundo ato)
Sejamos ternos, sejamos leais,
felizes seremos,
pois tudo, mesmo o sol, tem uma sombra.
CORO
Ele iniciou sua jornada ao sol,
Flutuando na direção de oozora
55
.
Karrakatta, 25 de julho de 1922.
Meu doce amor,
Impossível! Nossa bebê Asami, prestes a nascer, e eu ainda
navegando! Estamos próximos de Kagoshima
56
, onde comprei lanternas
para nosso próximo festival. Para obaasan, levarei um lindíssimo
55
“Firmamento” seria uma tradução possível.
56
Na ilha de Kyushu, no Japão meridional. Seu vulcão, Sakurajima, domina a paisagem.
158
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
chukei
57
(como aqueles usados nas peças nô).Uma última destra baleia,
escapando-nos eternamente! Minha derradeira baleia. Depois disso,
em linha reta (com uma parada final no Cabo) para minha Baby e sua
bebê!!
Terna e saudosamente teu,
Hardy
Registro, 25 de julho de 1922
58
.
Amado marido e pai,
Bem sei que logo estaremos juntos. Asami nasceu anteontem
(criança afortunada, pois foi o dia exato em que nasceu obaasan, há
quase 70 anos!), muito forte, e adorada por toda a Colônia. Para
celebrar e aproveitar a boa sorte, obaasan iniciará o pequeno restaurante
que sempre desejou possuir, aqui mesmo, em Registro. As colheitas
dos últimos anos foram excelentes, e conseguiu economizar
suficientemente. Auxiliarei na cozinha e no serviço das cinco mesas à
noite, pois na manhã seguirei trabalhando no arrozal, lembrando-me
de nossas longas e agradáveis jornadas! Quando puder chegar, Hardy,
estaremos todas aguardando-o saudosas…. Em genpishi
59
, mando-lhe a
ementa do restaurante.
[Segue o texto do cardápio, sem preços no original]
RESTAURANTE
ACEPIPES DA OBAASAN
(COZINHA DE NAGASAKI)
57
Trata-se de um leque em sanfona que, no teatro nô, pode representar uma adaga, ou
uma colher, etc..
58
Carta nunca lida pelo Capitão Hardy. Encontrei-a dentro do volume contendo as
poesias de Rupert Brooke, possivelmente preservada por algum dos tripulantes do
Karrakatta.
59
Papel de arroz.
159
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
- CHANPON (macarão japonês com peixe e legumes
cozidos no pote)
- DESHIMA KOROKKE
60
(bolinho de batata)
- KAMABOKO (peixe moído, salgado e temperado, em
barras, para comer com chanpon)
- KAKU NI (carne de porco desossada, cozida em molho
de soja)
- ORLANDA KATSU (costeleta de porco e queijo)
- TONKATSU (costeleta de porco frita com
acompanhamento de repolho cru picado, com molho de
kara-kuchi
61
)
- CASTELLA (famoso pão-de-ló)
62
3. EZEKIEL DESAPARECE
[Obituário do periódico Barnstable Patriot, de 20 de agosto de
1922]
New Bedford – Ezekiel Hardy faleceu a 3 de agosto de 1922,
em razão de ataque por baleia na costa do Japão. Em 1903, ele e seus
pais emigraram para a cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Trabalhou, a
partir de 1908, na West Australia Whaling Company (Chr. Nielsen
and Co.), inicialmente como marujo, a bordo do navio “Karrakatta”,
e, mais tarde, como foguista. Em 1916, foi nomeado seu comandante.
Yoshiko Murakami, e Asami Hardy sobrevivem ao marido e pai. O
enterro deu-se no Cemitério Rural de New Bedford.
60
Deshima era o bairro, na velha Nagasaki, em que residiam e trabalhavam os
estrangeiros.
61
Mistura de vinagre com mostarda.
62
Trata-se do “pão de Castela”, trazido para Nagasaki pelos portugueses, no século
XVI.
160
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
63
Transcrição de algumas das lembranças, opiniões e impressões da “jovem” Asami
Hardy, em nossas longas conversas (três horas diárias, por seis dias), em 1996.
64
Zeami Motokyio (1363-1443), dramaturgo, esteta e ator que, com seu pai (Kan’ami),
também ator, deu grande impulso ao teatro nô no Japão.
[Dizeres da lápide abolorecida que demarca e protege o vão
pó do Tio Ezekiel, fincada em prístino cemitério de New Bedford,
Massachusetts, nos Estados Unidos]
CONSAGRADO
À MEMÓRIA
DO FALECIDO
CAPITÃO EZEKIEL HARDY,
QUE, NA PROA DE SEU ESQUIFE, FOI MORTO
POR UMA BALEIA NA COSTA JAPONESA,
EM 3 DE AGOSTO DE 1922.
ESTA PEDRA
É DEDICADA POR SUA MULHER
6. MEMÓRIAS DE ASAMI
63
Teatro – “Estudei no Brasil e no Japão (em Kyushu, muitos anos
depois da Guerra), e formei-me na área de teatro. Aprendi a tocar noh fue,
que é a flauta usada no drama nô, e escrevi pequenas peças. Algumas delas
foram produzidas no Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. Hoje entendo,
após muitos anos de meditação sobre o tema, como o Zen Budismo realmente
revolucionou o teatro nô, durante cuja apresentação uma atmosfera espiritual
pervaga o auditório, tão logo os músicos e o coro entram em cena. Toda a
estrutura da peça é, nitidamente, uma deliberada negação do realismo:
salientam-se os movimentos, a música, os gestos, a emoção, e o enredo passa
a ser secundário. Sempre busquei captar o ápex da Hana (flor) do mestre
Zeami
64
, que, apesar de ser um mero momento fugidio, é exatamente para a
161
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
65
Trata-se do livrinho The Unquiet Grave, do crítico e autor britânico Cyril Connolly
(1903-1974).
66
É considerado o estilo clássico, geométrico, da escrita kanji, em que cada pincelada é
singela, única. Os outros dois estilos são gyosho (semi-cursivo) e sosho (cursivo).
consecução daquele momento que o drama é, de fato, criado, os artistas
treinados, e é por aquele momento que o auditório espera!”
Religião – “Li em um autor inglês – estou certa de que Papai
Hardy teria apreciado meu eterno interesse por seus ancestrais… —, e
tendo a concordar, que, em geral, o escopo da religião ocidental é a ação,
ao passo que o objetivo da religião oriental é a contemplação. Daí a
necessidade que têm o Ocidente pelo Budismo, e o Oriente pelo
Comunismo (um cristianismo “muscular)
65
”.
Obaasan – “Ensinou-me vários segredos da arte culinária,
tão eclética, da região de Nagasaki, onde nascera. Ela e Mamãe também
ensinaram-me coisas que hoje poucos aprendem ou praticam, como
a caligrafia japonesa (insistiam na perfeição do estilo kaisho
66
), a artes
de bonsai e de arranjo floral (ikebana, que hoje está tão na moda) e
mesmo origami (claro, a garça sempre foi nossa favorita…). Até hoje,
apesar de algo enrijecida em corpo e mente, ainda consigo “brincar
de artista”. Obaasan contava-me antigas estórias folclóricas nipônicas
das páginas amareladas de seu velho volume, que ainda possuo, e
que sempre utilizei em minhas aulas. Minha lenda predileta era a
respeito de Sentaro, o homem que não queria morrer, e que aprendeu
uma lição de vida ( e morte) no alto do Monte Fuji. Um dia, contá-
la-ei a você, se for bem comportado…. Alguns dias antes de falecer –
eu teria uns quinze anos –, obaasan presenteou-me o leque com que
Papai Hardy pretendera obsequiá-la.
Papai Hardy – “Um ser legendário, realmente. Obaasan
acreditava que eu nascera para substituí-lo neste universo! Mamãe
162
HENRIQUE LUIZ JENNÉ
sempre comentava que eu caminhava e pensava como ele. Visitamos
seu sepulcro em New Bedford, tanto em 1932 como em 1942, já
durante a 2a. Guerra Mundial. Replantamos as margaridas e violetas
à volta. Em 1952, Mamãe sentia-se muito cansada: dizia-se ‘cansada de
esperar’. Eu, também, já ando cansada, querido Hakluyt”.
Seleta de haiku deixados por Yoshiko – [caprichosamente
escritos em japonês, traduzidos livremente por Asami]
(1922)
Desconsolada e febril
Vislumbro as margaridinhas do campo
Ainda orvalhadas.
(1922)
Sem o calor do coração,
Como aproveitar
O calor do sol ardente?
(1925)
Só eu caminho pelo arrozal
Observada pela triste lua
Em noite de inverno.
(1931)
Em meu sonho desperto,
Ao ouvir o arrebentar das vagas,
Nada senão a chuva no riacho.
(1945)
Noite estival, sem chuvas,
Minha filha toca a flauta
163
YOSHIKO BABY (OU: PASSAGENS CURIOSAS NOS PAPÉIS DO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, BALEEIRO E IMIGRANTE)
67
V. nota no. 41, acima.
68
Etsujin, poeta japonês (1656?-1739).
E tranqüiliza os brotos secos.
(1953)
Meu sono não chega jamais,
Apesar do canto da cigarra
E minha serena esperança.
Repouso final de Yoshiko – “Em 1953, eu trabalhava como
professora em ginásio no bairro da Liberdade, em São Paulo, quando
fui chamada às pressas a Minas Gerais. Mamãe parecia não estar bem.
Durante os últimos anos – eu visitava amiúde nosso velho restaurante
em Registro, que obaasan lhe deixara – ela aparentava estar muito
frágil, tal qual pássaro ferido. Seu trinado firme desvanecia-se. Após
duas noites de recordações e sorrisos, em 3 de agosto, Mamãe deixou-
me com as seguintes palavras: ‘Não se preocupe, Papai Hardy e eu
estaremos aguardando tua chegada…’. E partiu. Não sei se chorava ou
ria. Decidi chorar sorrindo”.
Inscrições na lápide de Yoshiko – “Pensei muito, muito, muito
mesmo, até decidir, e escolhi um trecho citado no diário de Papai
Hardy:
Meu coração passou todo inverno tão impassível,
A terra tão morta e congelada,
Que nunca pensei que a primavera viesse
Ou que meu coração voltasse a acordar.
67
e um haiku de Etsujin
68
Recoberto de flores,
Anelo expirar súbito
Nesse teu sonho!
VI.
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
167
Marcos Mauricio Toba
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
Maranhense de São Luís, nascido em 1857, Aluísio Azevedo
não foi apenas escritor, famoso pela obra naturalista à la Émile Zola e
Eça de Queirós. Foi também diplomata. Após seu ingresso na carreira,
em 1895, serviu como cônsul do Brasil na Espanha, no Japão, na Itália
e na Argentina. Em 1897, escreveu O Japão, talvez uma das primeiras
obras escritas por um brasileiro sobre o país. No Japão ele encontrava-
se quando foi eleito para ocupar um assento na Academia Brasileira
de Letras. A respeito desse ilustre diplomata e de sua relação com o
Japão, escreveu, em suas memórias, Afrânio Peixoto:
“Conheci muito tarde Aluísio Azevedo. Foi em Nápoles, no outono de
1909, que nos encontramos. Eu na minha obscuridade ordinária,
desconhecido por ele inteiramente; ele, personagem consular, de que me
servia para o intermédio da correspondência. (...) O Japão, como viemos
a vê-lo já aí se achava numa profecia fácil, pois que era a de um
observador que sabe ver e que não colabora com a sua imaginação ou o
gosto estragado de seu público, para ajeitar e amaneirar a documentação
criteriosa. O artista, porém, não seria desatendido, e o livro daria,
materialmente mesmo, do papel às gravuras, feito e impresso no Japão,
demonstração material de gosto e de cultura, comentando a narração
HISTÓRIAS DE ALGUMAS VIDAS
(Guilherme de Almeida)
Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
168
MARCOS MAURICIO TOBA
das crenças, tradições poéticas, costumes, virtudes públicas e privadas
dos japões. Mas o livro sobre o Japão não se publicara. O que ele vira,
outros viram também e, mais felizes, o disseram. O que ele
pronunciara, sem o divulgar, fora publicado pela ação, na história,
naquele conflito de uma guerra tremenda, na qual se começou a
repelir a Europa para o Ocidente. Dia-a-dia o livro ia sendo
conhecido e sabido por todo o mundo, sem que fosse impresso e lido.
Livro esgotado e inédito. Agora já pareceria feito de lugares comuns
e as deduções e profecias, coisas passadas; a novidade e a perspicácia
de observação seriam até pela malícia havidas como arranjo e
embuste, vistas pela crítica como desinteressantes e ociosas.
Desgostoso, Aluísio não quis mais escrever. Do Japão, lhe ficara essa
mágoa profunda e uma saudade que, talvez, fizesse esquecer a outra.
Vi muitas vezes no seu gabinete de trabalho, em Nápoles, fina tela
de seda com uma imagem encantadora: era Satô, formosa criatura,
quase ocidental na sua miúda face morena, mas com a graça tênue
e sutil, de recato e simplicidade, das musumés, já lendárias. Trouxera-
lhe a efígie, desenhada por hábil artista do país, pois que não o pudera
acompanhar. Os pais velhos, numerosa parentela, impediram a
esposa de seguir o seu conquistador branco, para o outro lado da
terra.”
1
O encantamento que o Japão causou em Aluísio
Azevedo levou-me à leitura de seu trabalho, O Japão, sobre a
história épica do país e a resistência dos japoneses às investidas
dos imperialistas europeus e norte-americanos.
2
Diferentemente
de outros países, subjugados pelos conquistadores, o Japão
1
Afrânio Peixoto, Lembranças de Aluísio Azevedo. In: Poeira de Estrada. Roswitha
Kempf Editores, São Paulo, 1984. (http://www.guesaerrante.com.br/2007/10/20/
Pagina944Print.htm)
2
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000027.pdf
169
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
reagiu às ameaças norte-americanas e às investidas européias e
promoveu o desenvolvimento da própria nação no final do
século XIX.
Ao refletir sobre a celebração do centenário da
imigração japonesa para o Brasil e sua herança cultural
incorporada à sociedade brasileira, é impossível olvidar a
contribuição de Aluísio Azevedo e de outros diplomatas, que
continuam a representar, a seu próprio modo, os laços de
amizade que unem Brasil e Japão. Conforme lembrou o
Embaixador Celso Amorim, em discurso durante a abertura do
Ano do Intercâmbio Brasil-Japão, em janeiro último, os dois
países têm posições afins nos mais diversos temas da agenda
internacional, como mudança do clima, desarmamento nuclear,
reforma das Nações Unidas e cooperação para o
desenvolvimento. Para ele, “o Brasil e o Japão têm-se unido em
benefício de países mais pobres, com grande êxito, em vários casos.
Eventuais diferenças não impedem o trabalho conjunto em foros
como o da Organização Mundial do Comércio, o que atesta o
fato de que os dois países têm o mesmo interesse no reforço do
sistema multilateral. Tanto na parte política quanto na parte
econômica, Japão e Brasil estão convencidos de que o
multilateralismo é o novo nome da paz.”
3
A reflexão a que ora nos propomos, muito modesta,
quer, sem grande pretensão, prestar homenagem a todos os
cidadãos brasileiros que muito fizeram para estreitar os laços
entre os dois países. Busca, ainda, expor o testemunho pessoal
de um diplomata brasileiro que passou a infância e a juventude
entre as duas culturas, apesar de nunca ter visitado o Japão.
3
http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos/
discurso_detalhe3.asp?ID_DISCURSO=3240
170
MARCOS MAURICIO TOBA
I – O JAPÃO NO BRASIL
INFÂNCIA
(Guilherme de Almeida)
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se “Agora”.
Além da contribuição dos imigrantes japoneses para o
desenvolvimento econômico do Brasil, especialmente no campo
agrícola, alguns importantes aspectos não devem ser esquecidos. Nomes
como Tizuka Yamazaki, no cinema, ou Tomie Ohtake, nas artes
plásticas, mantêm viva a história da contribuição de origem nipônica
para o Brasil.
Assim como outros grupos de imigrantes, os japoneses
integraram-se à sociedade brasileira. Ikebana, sumô, go e shogui,
baseball, bonsai, haikai, sashimi, teatro nô, kabuki, dança butô,
karaokê, tatame, origami, mangá, kimono, judô, karatê, kumon,
ofurô, shiatsu e sushi são apenas algumas das palavras que se
incorporaram ao vocabulário de muitos brasileiros, por intermédio
da influência japonesa. A cultura japonesa, portanto, tornou-se parte
do mosaico colorido e diverso que forma o Brasil. São muitos os
exemplos que ilustram a grande influência da imigração japonesa
para nosso País.
4
Estereótipos foram criados com base em alguns desses
elementos. Susumu Miyao, em obra editada com apoio do Centro
de Estudos Nipo-Brasileiros, “Nipo-Brasileiros – processo de
assimilação”, inicia um dos capítulos comentando um artigo
4
Por todos, conferir a obra Guia da Cultura Japonesa, Editora JBC (Japan Brazil
Communication), São Paulo, 2004. O livro percorre toda a historia da influência
japonesa no Brasil, oferecendo endereços de instituições e outros locais que ainda
preservam ou fazem parte do rico mosaico da herança japonesa no Brasil.
171
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
publicado por periódico brasileiro sobre os bares de karaokê, na década
de 90, em que muitos desses estereótipos podem ser identificados:
Os japoneses, inclusive seus descendentes, não só plantam verduras, como
também inventaram os pequenos rádios que usam pilhas e invadem
universidades no Brasil. (...) Como diversão, ainda, eles gostam de beisebol,
das artes marciais, da pesca e é um pessoal amigo de diversos tipos de bebida
e aficcionado do sashimi (peixe cru). Mas isso não é tudo. Os japoneses
gostam de cantar. E muito. Até agora, existia o estereótipo de que os japoneses
eram acanhados. Muito pelo contrário, eles não esbanjam essa sua habilidade
só para si, debaixo do chuveiro. Para tanto, como é bem conhecido, esse
pessoal, muito hábil nas adaptações, com o intuito de fazer valer os seus
gostos, inventou um bar que possui toda instalação técnica especializada. É
o karaokê bar.”
5
Desde minha infância, a influência japonesa esteve presente. Nos
clubes de nipo-brasileiros em minha cidade natal, nas festas que minha
família costumava freqüentar, eu convivi com parte dessas tradições. Os
banquetes de comida japonesa de Ano Novo, preparados por minha avó,
minha mãe e minhas tias, ainda me fazem recordar que sou brasileiro,
mas deito raízes no Oriente. Ainda hoje, minha avó prepara, na noite do
dia 31 de dezembro, o ozooni, uma sopa de molho de soja (shoyu) com
bolinhos de arroz (moti) para celebrar a chegada do Ano Novo.
O HAICAI DE MEUS OLHOS
No último dia 6 de outubro de 2007, no Bairro da Liberdade,
em São Paulo, aconteceu o 19º Encontro Brasileiro de Haicai. Nenhum
dos primeiros colocados era nipo-descendente. Brasileiros de todas as
5
Susumu Miyao, Japonês visto pelo brasileiro. In: ____. Nipo-brasileiros – processo de
assimilação. Tradução de Katsunori Wakisaka. Centro de Estudos Nipo-Brasileiros,
São Paulo, 2002, p. 183.
172
MARCOS MAURICIO TOBA
idades e origens vêm prestigiando e cultivando a poesia haicai. Shuhei
Uetsuka, um dos encarregados de conduzir os primeiros imigrantes
japoneses ao Brasil pelo Kasato Maru, chegado ao Porto de Santos em
18 de junho de 1908, era também um bom poeta de haicai. Seu haimei
(nome literário de poeta de haiku) era Hyôkotsu. Consta que criou
este haicai momentos antes de desembarcar em Santos:
6
A nau imigrante
Chegando: vê-se lá no alto
A cascata seca.
(Tradução de Masuda Goga)
O haicai, inicialmente divulgado entre os imigrantes
japoneses, acabou por ganhar adeptos brasileiros, como o poeta e
escritor Guilherme de Almeida. Guilherme de Almeida começou a
escrever haicais em 1936, ano de seu encontro com o cônsul japonês
no Brasil, Kozo Ichige, a quem dedicou seu artigo “Os Meus Haicais”,
em que tentou sistematizar suas idéias sobre o que seria o haicai em
português: um terceto com 5-7-5 sílabas, dotado de título, sendo que
o primeiro verso rimaria com o terceiro, além de contar com uma
rima interna no segundo verso, entre a segunda e a sétima sílabas. Seus
haicais foram publicados no livro “Poesia Vária”, de 1947. Paulista de
Campinas, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo
de São Francisco e ativo combatente contra o Governo central durante
a Revolução de 1932, o “Príncipe dos Poetas” brasileiros foi também o
autor do Hino de Brasília. Seu encantamento pelo haicai levou-o a
aproximar-se de um grupo de praticantes da poesia em São Paulo,
muitos dos quais nipo-descendentes. Defensor da amizade entre Brasil
e Japão, foi um dos fundadores e primeiro presidente da Aliança
6
H. Masuda Goga, O haicai no Brasil. Ed. Oriento - Aliança Cultural Brasil-Japão,
São Paulo, 1988, tradução de José Yamashiro, p. 33.
173
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
Cultural Brasil-Japão. Para Masuda Goga, grande haicaísta, Guilherme
de Almeida “estimulou o ‘abrasileiramento’ da mais concisa poesia de
origem japonesa”.
7
Ainda no colégio, descobri o haicai durante as aulas de
literatura. O estimado professor, ao ensinar sobre a obra de Guilherme
de Almeida, introduziu-nos ao haicai. Os poemas simples, curtos,
falando da natureza, das estações do ano, da vida, valeram excelentes
comparações com os poemas-pílulas oswaldianos. Lembro-me bem dessas
aulas, pois foi com tal professor que aprendi a valorizar a literatura.
Para mim, os haicais de Guilherme de Almeida valeram-me um retorno
às raízes. Valeram também uma visita ao Bairro da Liberdade, em São
Paulo, para conhecer os organizadores dos encontros brasileiros anuais
de haicaístas, ligados à Revista Portal. Adolescente à época, o
encantamento pelo haicai foi natural. As pressões do vestibular, as
atribulações da fase de transição características à idade e a ansiedade pela
chegada à faculdade e por outras tantas mudanças tiveram expressão na
minha pesquisa pelos haicais e por Clarice Lispector. Se com Clarice
Lispector aprendi que a vida simplesmente “se nos era”, com o haicai
aprendi a cultivar um certo equilíbrio, mesmo que temporário, em
meio aos desafios ínsitos à nossa vida adulta.
TEMPURA E TANABATA MATSURI
Dizem que o tempura foi trazido ao Japão pelos portugueses
no século XVI.
8
Ante a proibição de comer carne durante a quaresma
(ad
tempora
quadragesimae), missionários
9
e comerciantes
10
7
Paulo Franchetti, Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil. In: Jornal
de Poesia - sítio http://www.revista.agulha.nom.br/pfr01.html
8
Naomichi Ishige, The History and Culture of Japanese Food. Paul Kegan, Londres,
2001, p. 246.
9
Alan Davidson, The Oxford Companion to Food. Oxford University Press, Oxford,
1999, p. 788-9.
10
Thelma Barer-Stein Firefly, You Eat What You Are: People, Culture and Food
Traditions. Ontario, 1999, p. 275.
174
MARCOS MAURICIO TOBA
portugueses teriam contribuído para a divulgação da receita feita com
camarão, vegetais e farinha durante o período Edo. Após anos de
evolução, o tempura tornou-se um dos pratos típicos da culinária
japonesa, apreciado internacionalmente.
Praça da Liberdade, cidade de São Paulo, 8 de julho de 2007.
Na feira que ali acontece todo domingo e nos feriados, a barraca do
tempura está sempre cheia. Todo mês de julho, tradicionalmente, o
bairro enche-se de cores no primeiro ou segundo final de semana,
para celebrar uma festa folclórica japonesa, a Tanabata Matsuri.
A festa Tanabata Matsuri celebra a lenda da Princesa Orihime,
filha de um poderoso deus celestial. Seu talento com o tear deixava
seu pai muito orgulhoso. Um dia, após conhecer o jovem Kengyuu,
por quem se apaixonou, casaram-se. Enamorada, parou de tecer, e seu
pai, furioso, decidiu separá-los em dois extremos opostos da Via Láctea.
Distantes para sempre, apenas foi-lhes concedido o direito de
encontrarem-se no sétimo dia do sétimo mês de cada ano. Orihime
seria a Estrela Vega; seu amado, a Estrela Altair. Como na lenda,
encontram-se uma vez por ano. Há mais de mil anos, o Festival das
Estrelas ou Tanabata Matsuri comemora tal reencontro. Em São Paulo,
desde 1979, as ruas do Bairro da Liberdade ficam cheias de cores e de
árvores em cujos galhos todos podem amarrar os pedidos escritos.
11
A Tanabata Matsuri sempre me faz lembrar de meu avô
materno, falecido em 2000, após um casamento de quase sessenta anos.
Sua história, como a lenda de Orihime, é feita de encontros e
desencontros. Hoje, anos depois de sua morte, sempre quando devo
tomar decisões, fico a pensar como será que meu avô aconselhar-me-
ia. A Tanabata Matsuri, para mim, é oportunidade de celebrar uma
concepção de mundo com que sempre convivi desde pequeno. Meu
avô sempre foi um grande fazendeiro, agricultor e adorava criar
bonsais. Homem rústico, das coisas práticas, porém de um lirismo
11
www.culturajaponesa.com.br/htm/tanabatamatsuri.html
175
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
ímpar. Construiu suas casas, a casa de meus pais, capelas. Sempre
voluntariou para entidades assistenciais com seu trabalho. Marceneiro
de plantão, cimento, tijolos, jardinagem e colheitas sempre fizeram
sua diversão. De sol a sol, ensinou a todos o valor do trabalho, da
honra, da dedicação. Apesar do trabalho incansável, sempre encontrava
tempo para apreciar e chamar a atenção de todos para a beleza de uma
de suas muitas flores ou delicados bonsais, ou para oferecer conselhos
que servem para uma vida inteira. Numa dessas situações, nunca me
esqueci de uma de suas últimas lições. Diante de um armário meu
quebrado que resolveu consertar, ofereci para pagar pelo conserto e
pelos gastos que ele teria. Além de não aceitar nada, ele disse que eu
não me deveria preocupar com aquilo, porque eu lhe havia dado “um
grande presente”: “o melhor relógio”. Tenho o dever de precisar que o
tal relógio era um despertador de viagem comprado numa loja da
cadeia de super-mercados Duane Reade, em Nova York, por menos
de 10 dólares. Eu sabia que ele havia sido presenteado com relógios
valiosos, que teve um relógio de parede caríssimo. Por que, então,
meu presente havia sido tão valioso? Indagada a respeito quando ele
estava no hospital por conta do câncer que já lhe havia tomado, minha
avó soube a resposta: ele adorava o pequeno despertador, porque dizia
que nunca falhava e era muito resistente. Meu avô adorava acordar
bem cedo, como de costume, com o barulho do tal alarme. O melhor
relógio: um relógio muito eficiente.
Assim como a Princesa Orihime, meu avô continuou a brilhar
na nova constelação, mesmo distante da terra amada. Fazia gosto de
que seus filhos se casassem com nipo-descendentes e ainda preservassem
aspectos da cultura original – respeitou, entretanto, a decisão da maioria
dos filhos, que decidiu não seguir sua vontade; freqüentava grupos de
amigos e clubes de sua cultura natal; até seus últimos momentos,
adorava estudar a língua japonesa e ler jornais e periódicos da
comunidade, na língua materna. Fazia questão de comentar todas as
coisas boas que via ou lia sobre sua terra natal. Paradoxalmente, nunca
176
MARCOS MAURICIO TOBA
quis voltar ao Japão. Confessou certa vez a minha mãe, sua filha mais
velha, que sua negativa em regressar à terra natal devia-se ao fato de
que, ao partir, muitos amigos haviam considerado a decisão de sua
família de imigrar como uma deserção - uma “deserção de ser japonês”.
Assim, meio envergonhado, dizia preferir viajar pelo Brasil a retornar
ao Japão, mesmo se fosse como turista. Nos seus critérios muito
rígidos, dizia que apenas poderia voltar ao Japão se estivesse milionário
ou numa situação que demonstrasse aos antigos amigos e a si mesmo
que a “deserção” teria se dado por uma boa causa.
Anos depois de sua morte e de ter ouvido essa estória, ainda
penso sobre isso. Acredito que antes de “deserção”, a escolha de vir ao
Brasil foi uma decisão que teve resultados muito positivos. Com minha
avó, teve onze filhos. Pessoas honestas, trabalhadoras, que ajudaram a
construir o Brasil de nossos dias. Apesar das saudades do Japão, meu
avô aprendeu a amar a terra que o acolheu. Fincou raízes profundas,
com seu trabalho, sua família, seus amigos. Uma vida muito digna,
que foi reconhecida com um enorme e inesquecível cortejo de carros
no dia de seu funeral. Tantas foram as manifestações de pesar por sua
morte, que fiquei imaginando o peso que seria tentar ser um décimo
do que ele foi como pai, como marido, como filho, como amigo,
como patrão, como ser humano. Impossível não discordar de meu
avô sobre a questão da “deserção”, especialmente ao refletir sobre as
palavras de Fernando Pessoa, em Mar Português: “Ó mar salgado,
quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos,
quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas
noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar! / Valeu a
pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.” Meu avô nunca
desistiu de nada – ele tornou-se ponte entre duas culturas, entre dois
povos, entre dois países. Acabou por adotar o Brasil como seu novo
lar.
Muito além do tempura e de outras guloseimas japonesas,
ou da bela feijoada e de um arroz-com-feijão de dar inveja, minha avó
177
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
materna, ainda viva, também é mestra em polidez, doçura e amor
incondicional. A ela devo meus melhores momentos da infância, do
doce de arroz frito que só ela sabia fazer aos carinhos de avó quando
meus pais ou outros adultos perdiam a paciência comigo. Sua fé
católica é inabalável. Diferente de meu avô, que chegou ao Brasil em
1933, com mais idade, aos 17 anos, ela chegou ao Brasil ainda criança,
em 1920, com apenas um ano de idade. Sua família também convertera-
se ao catolicismo no Japão. Fervorosa, dizem que reza pela família
inteira. Vai à igreja com grande regularidade. Quando eu era pequeno,
meus pais trabalhavam, e passava o dia em sua companhia. Com ela
aprendi a ter paciência - a famosa paciência oriental. Aprendi a
importância de ao menos tentar ser comedido em tudo – mesmo tendo
eu um lado brasileiro bastante exagerado. Ela ensinou-me a tratar a
todos com cordialidade, com simpatia, com ternura. Dizem que ela
lembra uma bonequinha japonesa, por sua meiguice e delicadeza,
mesmo já avançada a idade.
Apresentada a meu avô por uma casamenteira da
comunidade, ficaram juntos por quase sessenta anos. Seu irmão mais
velho casou-se com a irmã de meu avô, que era também o filho mais
velho de sua família. Meu avô, de personalidade forte, contrastava
com a flexibilidade e porosidade intrínsecas à personalidade de minha
avó. Dona de casa dedicada, trabalhadora, submeteu-se a uma sogra
geniosa como o filho, sempre de forma plácida. No leito de morte,
minha bisavó disse-lhe que ela havia sido muito mais do que uma
verdadeira filha para ela. Importante precisar que meu avô era seu
filho mais velho, o modelo dos demais.
No dia em que meu avô faleceu, voltamos eu e ela do hospital,
muito tristes. Nunca a tinha visto chorar daquela forma, e chorei
junto. Antes de rezar pela alma do ex-marido, ela apenas disse uma
coisa que nunca esqueci: “Agora ele está com Deus, ele está melhor.”
É na delicadeza dessas entrelinhas que repousa minha grande admiração
por minha herança pessoal japonesa.
178
MARCOS MAURICIO TOBA
Fui apenas compreender melhor essa mistura herdada
de Brasil e Japão, que convive dentro de mim, quando fui morar
em Nova York, em 2001. Lá, os colegas estrangeiros adoravam
brincar comigo ao afirmarem que, apesar de parecer 100%
japonês, após me conhecerem melhor, notavam que eu era 100%
brasileiro – por gostar de samba, bossa nova, pelo meu jeito
extrovertido. A verdade é que há um pouco dos dois mundos
em minha vida, seja pela herança genética e cultural, seja pelo
meio em que cresci e ainda vivo. Ao enfrentar as dificuldades
de um estudante estrangeiro em outro país, passei a valorizar a
saga de meus quatro avós e de suas famílias, que atravessaram
mares para chegar ao Brasil – sem falar português, sem muito
conhecer sobre o novo destino.
A saga do tempura guarda semelhanças com a saga de
minha família. Quem imaginaria que o tempura, herança
portuguesa no Japão do século XVI, tornar-se-ia também
herança japonesa no Brasil do século XXI? No meu caso, meus
avós maternos, que são também meus padrinhos de batismo,
cidadãos japoneses que vieram para o Brasil, também me
transmitiram o valor do simples, a beleza das pequenas coisas e
a importância do trabalho árduo. Mostraram-me ainda a
importância da gratidão que devemos ter para com Deus e para
com todos aqueles que nos ajudam, com quem aprendemos e
convivemos. Minha mãe costuma dizer que meu avô teria ficado
muitíssimo feliz com meu ingresso na carreira diplomática. Neto
de cidadãos japoneses, para mim é uma honra pertencer aos
quadros a que também pertenceram tantos ilustres diplomatas
e homens de Estado. Grato sou a todos os brilhantes colegas de
carreira que até o presente momento conheci e com quem tive
o privilégio de conviver. A alegria é maior porque sei que ainda
terei o privilégio de conhecer muitos outros, com quem muito
ainda poderei aprender.
179
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
KASATO MARU
A chegada do navio Kasato Maru ao Porto de Santos, em 18
de junho de 1908, com 781 passageiros, marca o início do processo de
imigração japonesa ao Brasil. Até 1941, vieram para o Brasil cerca de
188 mil cidadãos japoneses. Entre 1932 e 1935, 30% dos imigrantes
vinham do Japão. Em 1940, 94% do total de imigrantes japoneses
concentravam-se em São Paulo e 87% deles trabalhavam com
agricultura. Desde as negociações que deram origem ao Tratado de
Amizade, Comércio e Navegação entre os dois países, firmado em 5
de novembro de 1895, o destino da grande maioria desses imigrantes
tinha sido traçado: as fazendas de café do oeste paulista.
Uma curiosa carta datada de 22 de fevereiro de 1911, dirigida
ao Diretor da Hospedaria de Imigrantes do Estado de São Paulo pelo
dono de uma fazenda de café que acabara de receber um grupo de
imigrantes japoneses, retrata alguns traços que iriam marcar a presença
japonesa nas lavouras brasileiras:
“Fazenda Boa Vista, 22 de fevereiro de 1911.
Ilmo Sr. Luiz ferraz
MD. Diretor da Hospedaria de Imigrantes do Estado de São Paulo
Em resposta à sua carta de 16 do corrente, tenho a dizer que desde o
começo de julho do ano p.p., tenho nesta minha fazenda 10 famílias de
japoneses, com 39 pessoas, não tendo-se retirado nenhum e tudo me faz
crer que pensam em ficar, pois mostram-se muito contentes, têm grandes
roças de milho, feijão e arroz e já adquiriram porcos, galinhas, etc.
Tenho esta fazenda há 18 anos e conquanto eu tenha tido sempre colonos
bons e constantes, nunca tive melhores que os atuais japoneses. São
inteligentes, asseados, trabalhadores, obedientes, muito ordeiros,
comunicativos, alegres e muito sadios. Fizeram uma grande parte da
colheita de café passada, mostrando-se muito hábeis nesse trabalho, e
180
MARCOS MAURICIO TOBA
nas capinas dos cafezais vão trabalhando a meu contento. Adaptaram-
se perfeitamente ao nosso meio. Alimentam-se mais ou menos como os
outros colonos e apreciam muito o café.
Muitos deles já nos compreendem regularmente, tanto que em outubro,
isto é, três meses depois da chegada deles aqui, dispensei o intérprete.
Todos os homens e mulheres sabem ler e escrever.
Estou muito satisfeito com esses novos colonos, que em oito meses ainda
não me deram o menor desgosto. (...)
Fabio Ramos
PS: Já nasceu aqui um japonesinho.”
12
Muito se discutiu sobre a abertura para a imigração asiática
antes de 1908. No Parlamento brasileiro, muitos temiam-na pelas mais
variadas razões de ordem étnica, cultural ou até mesmo com base em
preconceitos. O fator mais determinante para uma decisão favorável
à chegada do Kasato Maru foi a necessidade de mão-de-obra. Diante
da proibição do governo italiano, em 1902, de imigração de seus
nacionais para o Brasil, o Governo brasileiro sentiu-se pressionado a
aprovar a vinda de japoneses. A isso, acrescente-se o fato de que, no
espírito do Convênio de Taubaté, de 1906, uma das metas para
revalorizar o café era a de expandir os mercados compradores.
Acreditava-se que a vinda de japoneses poderia ajudar a abrir o mercado
japonês para o café brasileiro. A comprovar tal fato, o Governo
paulista, em 27 de junho de 1908, assinou contrato para a propaganda
do produto no Japão.
13
Comparada à história dos imigrantes portugueses, italianos,
alemães e espanhóis no Brasil, a saga dos japoneses começou muito
tardiamente: apenas a partir de 1900 que são registrados os primeiros
12
Arlinda Rocha Nogueira, Considerações gerais sobre a imigração japonesa. In:
Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. Coordenação de Hiroshi Saito e
Takashi Maeyama. Ed. Vozes e EDUSP, São Paulo, 1973, ps. 56-68.
13
Ibidem, p. 60.
181
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
números significativos. O Brasil não foi seu único destino. Estados
Unidos, Canadá e Austrália foram os principais destinos antes do
Brasil e de outros países latino-americanos. Apenas após a década de
20 o Brasil superará os demais países no número de imigrantes
japoneses recebidos, pois restrições passaram a limitar sua entrada em
países como Estados Unidos e Canadá. Os chineses, primeiros
trabalhadores asiáticos nas minas californianas durante o gold rush,
sofreram preconceito por submeterem-se a salários muito baixos e
pouco competitivos, à vida em cortiços que formavam nas cidades e à
manutenção de seu modo de vida de forma semelhante a como viviam
na China. Por pressão dos sindicatos de trabalhadores norte-
americanos, ainda no século XIX, as primeiras restrições foram-lhes
impostas. Muitas serão também estendidas aos imigrantes de outras
nacionalidades. Até mesmo no Havaí, em que os japoneses
representavam 40% da população em 1898, as restrições à entrada de
japoneses passaram a vigorar após a incorporação das ilhas aos Estados
Unidos. A campanha contrária aos imigrantes de origem asiática tem
seu marco com a proibição de sua entrada nos Estados Unidos, em
1924. É quando o Brasil torna-se o principal destino para muitos
japoneses.
14
Nos anos 30, a imigração japonesa para o Brasil também
sofreu restrições. O mesmo debate sobre os possíveis males da
imigração asiática chegou ao Brasil. Em primoroso trabalho, com
vasta pesquisa histórica e bibliográfica, o Embaixador Valdemar
Carneiro Leão analisa a crise diplomática gerada decorrente de tais
restrições.
15
14
Comissão de Elaboração da História dos 80 anos da imigração japonesa ao Brasil,
Uma epopéia moderna: 80 anos da imigração japonesa. Editora Hucitec – Sociedade
Brasileira de Cultura Japonesa, São Paulo, 1992, p. 33.
15
Valdemar Carneiro Leão, A crise da imigração japonesa no Brasil. IPRI, Brasília,
1990. A obra ainda traça excelente panorama histórico do processo da imigração
japonesa para o Brasil.
182
MARCOS MAURICIO TOBA
MALÁRIA, AMBIENTE HOSTIL E GAFANHOTOS
NOROESTE
(Guilherme de Almeida)
Dilaceramentos...
Pois tem espinhos também
A rosa-dos-ventos.
A vida dos primeiros imigrantes não foi nada fácil. Minha
avó até hoje recorda passagens tristes, como a perda de todos os bens
trazidos do Japão por sua família durante a travessia de um rio no
interior de São Paulo. Recorda também a decisão difícil de sua família
de mudar-se do Hirano Shokuminti ou Núcleo Hirano (famoso entre
os membros da colônia nipônica como o primeiro grande núcleo de
imigrantes japoneses), na região de Bauru, por medo da malária, que
matou grande número de pessoas.
Umpei Hirano, fundador do núcleo que levou seu nome,
foi um dos primeiros intérpretes da primeira leva de imigrantes que
chegou ao interior de São Paulo. Apoiado pelo primeiro Cônsul-
Geral do Japão no Brasil, Sadao Matsumura, fundou um núcleo de
colonização japonesa em que os agricultores pudessem trabalhar de
modo independente. Cerca de 200 duzentas famílias de imigrantes
apoiaram a idéia. A limpeza do terreno inóspito, às margens do Rio
Dourados, foi bastante penoso. Em dezembro de 1916, quando o
arroz começou a forrar o chão verde, alguns colonos já morriam de
malária. Relatos muito tristes testemunham o sofrimento com a falta
de caixões e o desaparecimento de famílias inteiras. Com a falta de
medicamentos, muitas famílias, como a de minha avó, decidiram
abandonar a colônia. Após a decisão de reconstruir a colônia num
local mais alto, as famílias restantes foram vítimas de uma nuvem de
gafanhotos, em 1917. Em 1918, uma longa seca castigou a região. Em
1919, Umpei Hirano morreu de malária.
183
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
Os frutos do difícil trabalho inicial, entretanto, foram
colhidos mais tarde. Na década de 20, o núcleo conseguiu formar
uma cooperativa; em 1933, anexou mais 385 alqueires, somando cerca
de 370 cooperados em 1941. Nessa época, a produção atingiu cerca de
50.000 sacas de café (uma saca continha 60 kg de café limpo), 50 arrobas
de algodão limpo (uma arroba equivale a 15 kg) e 25.000 sacas de
arroz por ano.
São muitas as lendas sobre Umpei Hirano. Sua liderança, seu
exemplo e dedicação serviram de modelo para muitas das gerações de
nipo-brasileiros. Assim referiram-se a ele durante a celebração do 25º
aniversário do núcleo: “Apesar de sua pequena estatura, trabalhava
infatigavelmente todos os dias, chovesse ou ventasse; saía a cavalo para
vistoriar – pelo menos uma vez por dia – os dois milhões de pés de café,
o que é uma tarefa difícil; normalmente, poucos conseguiriam fazê-lo,
por mais dedicados que fossem. Isso só já é o suficiente para mostrar o
quanto ele era um homem esforçado.” Dizem também que, após o
surto de malária, nunca deixou de visitar cada uma das famílias com
doentes – mesmo quando ele mesmo estava adoentado. Sua visita,
para muitos, era mais valiosa do que a visita do médico.
16
O Museu da Imigração Japonesa, em São Paulo, no Bairro
da Liberdade, possui várias recriações das primeiras habitações dos
imigrantes. Colchões humildes, feitos de palha de milho e cobertos
com tecidos de algodão,
17
instalações precárias, uma situação que se
reverteu graças ao trabalho árduo, à dedicação, à honestidade, que
marcaram esse grupo de imigrantes. Talvez tenha sido isso que tanto
tenha emocionado o Primeiro-Ministro Junichiro Koizumi, em 2005,
durante sua visita ao Museu.
16
Tomoo Handa, O imigrante japonês – história de sua vida no Brasil. TA Queiroz
Ed. – Fundação Japão, São Paulo, 1987, p. 249.
17
Tomoo Handa, Vida nas fazendas de café. In: In: Assimilação e integração dos
japoneses no Brasil. Coordenação de Hiroshi Saito e Takashi Maeyama. Ed. Vozes e
EDUSP, São Paulo, 1973, ps. 71-128.
184
MARCOS MAURICIO TOBA
PARA ALÉM DO CAFÉ, O TOMATE SANTA CRUZ
A maior contribuição dos imigrantes japoneses certamente
se deu no campo do desenvolvimento agrícola. A partir de 1940,
modernas técnicas agrícolas e o associativismo na forma de cooperativas
agrícolas foram dois exemplos disso. Hoje, quando se pensa no Brasil
como “celeiro” do mundo, não se pode olvidar a participação
importante dos nipo-brasileiros, que começaram contribuindo com a
lavoura cafeeira, ajudaram a diversificar as lavouras, primeiramente
com o cultivo do algodão, e, posteriormente, com a soja e demais
produtos hortifrutigranjeiros.
A popularização de alguns produtos agrícolas, que muito se
deve aos japoneses, levou à diversificação dos produtos cultivados e
comercializados nas feiras livres. A introdução, aclimatação e difusão
de novas plantas e a seleção e melhoramento de variedades existentes
no Brasil muito se devem a agricultores de origem nipônica. Nira
(variedade de cebolinha), ponkan (poncã), daikon (rabanete), hakusai
(acelga japonesa), azuki (feijão japonês), gobo (bardana) e chá verde são
apenas alguns exemplos disso. Em trabalho escrito na década de 70,
Hiroshi Saito apresentou estimativas baseadas em dados do CEAGESP,
em São Paulo, de que os japoneses e seus descendentes ocupariam
70% dos trabalhos ligados à produção e comercialização do setor
hortigranjeiro.
18
Tal contribuição ainda hoje é verdadeira na vida de quem
conhece a presença japonesa no Estado de São Paulo. Tenho grande
prazer de visitar as exposições anuais de produtores de flores que
ocorrem em Arujá (AFLORD), ou as feiras de flores e de morangos
em Atibaia. Ambas continuam a ser organizadas por associações que
majoritariamente contam com nipo-brasileiros. Durante os finais de
18
Hiroshi Saito, À margem da contribuição de japoneses na horticultura de São Paulo.
In: Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. Coordenação de Hiroshi Saito e
Takashi Maeyama. Ed. Vozes e EDUSP, São Paulo, 1973, ps. 189-200.
185
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
semana de setembro, tais feiras enchem-se de turistas e apreciadores
de flores. Minha avó, depois da morte de meu avô, passou a cuidar
dos bonsais, dos muitos vasos e de dois grandes jardins na casa de
meus pais. Ela ainda adora ir a lojas de flores, de plantas e de jardinagem.
É uma das boas heranças que ela certamente me deixará: o amor pelo
verde.
Os japoneses e seus descendentes também participaram do
processo de seleção e melhoramento de plantas brasileiras nativas. A
lista é tão extensa que cobre praticamente todos os itens da produção
hortifrutigranjeira.
19
O emprego de técnicas mais adequadas quanto à
irrigação, adubação e pulverização, seleção e melhoramentos genéticos
foram algumas das técnicas herdadas dos japoneses pela agricultura
brasileira. Experiências felizes e até mesmo engraçadas, em alguns casos
elas incorporaram-se ao processo comum de construção da nossa
cultura. É o caso do tomate. Até a década de 20, sua produção era
insignificante. Em 1926, o consumo diário do tomate em São Paulo
era de 100 caixas. A partir de 1925, um grupo de lavradores japoneses
começou seu cultivo em Mogi das Cruzes. As experiências de um
deles, Benjiro Togue, na década de 30, contribuíram para o crescimento
de sua produção em escala mais adequada às exigências da popularização
da comida italiana em São Paulo. Em 1930, o consumo diário estimado
passou a 365 caixas; em 1935, passou de 1000. Nesse caso, japoneses e
italianos, juntos, ajudaram a moldar um novo estilo na culinária mais
popular em toda uma região do País.
20
A variedade de tomate
desenvolvida por Togue teve grande aceitação no mercado, por
demonstrar excelente qualidade tanto para a salada quanto para o
tempero. Anos mais tarde, alguns dos lavradores do grupo deslocaram-
se para o núcleo de Santa Cruz, na Baixada Fluminense, onde
continuaram a plantar o mesmo tipo de semente, originando o nome
19
Ibidem, p. 194.
20
Ibidem, p. 196.
186
MARCOS MAURICIO TOBA
até hoje difundido dessa variedade de tomate: Santa Cruz, que se
caracteriza por seu formato oblongo.
A história do tomate Santa Cruz também me faz recordar
a história de meu avô. Antes de emigrar para o Brasil, ele havia
estudado princípios de agricultura e pecuária no sul do Japão. Por
todos os lugares por onde passou, sempre teve muito boa vontade
para ensinar a colegas de trabalho e brasileiros o que sabia. Minha
mãe sempre conta que nos anos 50 e 60, quando viviam na região de
Nazaré Paulista, meu avô recebeu prêmios pela rentabilidade de suas
colheitas. Chegou a ter mais de 40 funcionários em sua fazenda.
Muitos deles e os vizinhos pediam ajuda a ele sobre como ter êxito
no cultivo de tomate, pepino, cenoura, alcachofra e gengibre. Em
diversas regiões por onde passou – Marília, Cafelândia, Embu,
Tremembé e Nazaré Paulista – sempre teve orgulho em dividir com
outros o que sabia sobre agricultura.
“VÁ PLANTAR BATATA!” OU “AO VENCEDOR, AS BATATAS”?
Sack Miura, diretor do jornal Nippak Shimbum, de São
Paulo, visitou a Aldeia de Cotia, em setembro de 1926, e publicou,
sob o pseudônimo de Chonin Suda, um artigo intitulado “Elogio da
batata”. O êxito da comunidade nipo-brasileira da pequena vila com
o plantio da batata foi a inspiração. Foram suas palavras:
“‘Vá plantar batata!’ Como todos sabem, esta expressão é pejorativa no
Brasil. (...) No entanto, vendo a situação da cultura da batata feita pelos
japoneses nos arredores de São Paulo, nenhum brasileiro poderá usar
aquela expressão em sentido de menosprezo. Pelo contrário, tornar-se-á
grande apologista da batata. Terra cuidadosamente tratada, batatal
verde que parece um tapete novinho em folha: só a vista dessa lavoura
tira-nos o topete de dizer ‘Vá plantar batata’. Cotia, famosa pela batata,
fica a 35 ou 36 quilômetros de São Paulo, uma ou duas horas de
187
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
automóvel. Vivem ali cerca de 100 famílias de japoneses dedicados à
cultura da batata. Morros áridos foram cuidadosamente cultivados, de
maneira que ali não há nenhum pé de árvore. Resultou de mais de um
decênio de esforço dos japoneses ali radicados. Este jornalista admirou-
se dos resultados conseguidos por seus patrícios. Mas os estrangeiros se
admiram ainda mais. Terras exaustas, onde mal nascem arbustos
raquíticos e barbas-de-bode, chegam a produzir 240 a 250 sacas de milho.
Por isso se espantam dizendo que os japoneses são mágicos ou
pelotiqueiros. Não é para menos, tais os excelentes resultados conseguidos
na lavoura pelos japoneses de Cotia.”
21
Foi no final da década de 20 que um grupo desses agricultores
de Cotia resolveu criar a CAC (Cooperativa Agrícola de Cotia). A
CAC e seu modelo expandiram-se pelo setor hortifrutigranjeiro
brasileiro, como mais uma herança da imigração japonesa para o Brasil.
O associativismo e o sistema cooperativista tiveram papel crucial para
os pequenos produtores rurais, fornecendo-lhes sementes, adubos,
defensivos, ensinando-lhes técnicas de cultivo, provendo-os de
informações e canais de comercialização. Ainda hoje, em regiões do
Estado de São Paulo particularmente, é esse sistema que possibilita o
aprimoramento da produção de culturas intensivas de flores, frutas,
legumes e hortaliças, com emprego de tecnologia, conhecimento e
dedicação.
Com relação ao cultivo da batata na região de Cotia, é preciso
recordar que seu êxito também esteve vinculado ao aperfeiçoamento
técnico resultante do trabalho de imigrantes. Apesar de trabalhar o
dia inteiro na lavoura, um desses lavradores, Kumaki Nakao,
aproveitava suas horas de folga para ler revistas agrícolas japonesas da
década de 20. Foi inspirado nessas leituras que teve a idéia de usar
21
Zempati Andô, Cooperativismo nascente. In: Assimilação e integração dos japoneses
no Brasil. Coordenação de Hiroshi Saito e Takashi Maeyama. Ed. Vozes e EDUSP,
São Paulo, 1973, ps. 164-188.
188
MARCOS MAURICIO TOBA
calda bordalesa para combater as doenças das batatas. Comparado à
lavoura arcaica tradicional, a calda bordalesa somada ao arado do tipo
japonês e o uso de adubo constituiu verdadeira revolução para o cultivo
da batata.
22
Ao vencedor, as batatas!
PARA ALÉM DA AGRICULTURA
A partir de meados da década de 50, a imigração japonesa
para o Brasil não contribuirá apenas para melhorar as práticas agrícolas.
Ela também ajudará a estabelecer canais para um fluxo permanente de
comércio e de investimentos. Se o Japão vivia o “milagre japonês” à
época, o Brasil era visto como grande fonte de reservas minerais e de
matérias-primas agrícolas.
A parceria entre siderúrgicas japonesas e a Companhia Vale
do Rio Doce permitiu o aperfeiçoamento da relação entre os dois países.
Estimulou o desenvolvimento de dezenas de atividades aparentadas e,
no caso dos transportes marítimos, teve efeitos em escala mundial.
23
USIMINAS e Ishibrás são dois exemplos que ilustram tal afirmação.
Abriram as portas para muitos outros projetos de cooperação, como o
dos Corredores de Exportação, que possibilitou a concretização de
outros, como o PRODECER, de desenvolvimento do cerrado.
A cooperação nipo-brasileira firmou-se de tal modo que,
mesmo durante as crises do petróleo e a crise financeira, os japoneses
continuaram a investir no Brasil em projetos como o da CST
(Companhia Siderúrgica de Tubarão) e o Grande Carajás.
Empresários, homens públicos e cidadãos comuns partilharam
desse processo. Um deles, Eliezer Batista, cuja história pessoal confunde-
se com a da Vale do Rio Doce, em entrevista concedida na década de
90, assim avaliou a contribuição do Japão para o Brasil: “O Brasil deve
22
Ibidem, p. 172.
23
Paulo Yokota, Introdução. In: ____ et al. Fragmentos sobre as relações nipo-brasileiras
no pós-guerra. Topbooks- Bolsa de Mercadorias e Futuros, São Paulo, 1997, p. 24.
189
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
ao Japão muito mais do que aquilo que é colocado de forma comum, pois
seu apoio viabilizou a transformação da CVRD numa grande empresa
internacional. Dispondo apenas do diminuto Porto de Vitória, lutando
contra a falta de crédito e enfrentando uma difícil situação econômica
nacional, a CVRD não teria tido condições para crescer. No outro extremo
do mundo, o Japão, ao se abrir para o Brasil, acabou abrindo também o
resto do mundo para o Brasil.”
O modelo dessa cooperação na área de transportes e de
siderurgia talvez ainda possa servir como exemplo para outros projetos.
Ao admirar o êxito da Companhia Vale do Rio Doce nos dias de hoje,
é preciso recordar, com Eliezer Batista, o passado e a importância da
cooperação entre Brasil e Japão neste e em tantos outros projetos.
24
II – O BRASIL NO JAPÃO
ROMANCE
(Guilherme de Almeida)
E cruzam-se as linhas
no fino tear do destino.
Tuas mãos nas minhas.
ENTRE O PAÍS DO FUTURO E A TERRA DO SOL NASCENTE
Durante a visita ao Japão, em maio de 2005, o Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva reuniu-se com representantes dos dekasseguis
brasileiros.
25
Pela primeira vez, um Presidente do Brasil manteve
24
Paulo Yokota, A fase pioneira. (baseado em depoimento de Eliezer Batista) In: ____
et al. Fragmentos sobre as relações nipo-brasileiras no pós-guerra. Topbooks- Bolsa de
Mercadorias e Futuros, São Paulo, 1997, p. 52.
25
O termo dekassegui, mais adequado aos trabalhadores temporários que, em princípio,
voltariam ao Brasil, hoje convive com o grande grupo de emigrados, que adotou o
Japão como novo lar. Cf. João Pedro Corrêa Costa, De decasségui a emigrante. FUNAG,
Brasília, 2007.
190
MARCOS MAURICIO TOBA
encontro com representantes do grupo, na maioria descendentes de
nipo-brasileiros, que emigraram para o Japão em busca de melhores
condições de vida. O Presidente Lula conversou, em Nagoya, com
representantes dessa colônia, a terceira maior da diáspora econômica
brasileira, depois da estadunidense e da paraguaia. Dekassegui quer
dizer “trabalhar fora de casa”, mas adquiriu igualmente o sentido de
trabalhador temporário”. Também conhecidos como “burajirujin
(em japonês, “brasileiro”, palavra derivada de “Burajiru”, Brasil), os
dekasseguis começaram sua saga partindo de São Paulo e de outros
Estados em direção ao Japão em meados da década de 80 – a década
perdida. A partir dos anos 90, quando a legislação nipônica passou a
facilitar essa corrente migratória, o processo ampliou-se. No fim de
2003, de acordo com o censo demográfico do Japão, eles eram 274,7
mil. Se incluídos os imigrantes com dupla nacionalidade, esse número
fica ainda maior. Os brasileiros passaram a ser usados em serviços
industriais que exigiam baixa qualificação, mas com uma remuneração
que se mostrou inicialmente atraente mesmo para profissionais de
nível superior. Ainda hoje, um brasileiro em início de carreira, aos 18
anos, consegue ganhar, nas fábricas japonesas, mais de US$ 2 mil
mensais.
26
Essa corrente migratória já supera em número a que ocorreu
durante o século XX no sentido contrário, do Japão para o Brasil.
Desde 1908, marco inicial da imigração japonesa, vieram para cá
cerca de 250 mil pessoas. Os brasileiros formam também a terceira
maior colônia de trabalhadores estrangeiros no Japão - depois dos
coreanos (613.791) e chineses (462.396). Em Brasileiros no Japão – O
Elo Humano das Relações Exteriores, a Embaixadora Maria Edileuza
Fontenelle Reis explica a história de todo o processo. Em 1985,
apareceram em jornais da comunidade japonesa, no Brasil, os
primeiros anúncios recrutando imigrantes para trabalharem no país
26
http://www.vermelho.org.br/diario/2005/0524/0524_dekasseg.asp
191
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
natal.
27
Era uma tentativa das indústrias japonesas de solucionar o
problema da falta de mão-de-obra, ocasionado pela rápida expansão
que a economia do país registrava na época. Adotar o critério de
descendência permitiu aos japoneses afastar a pressão da imigração de
outros países asiáticos em situação de superpopulação e economias
menos dinâmicas na época, como Filipinas, Coréia ou China. Levar
para o Japão os isseis (imigrantes nascidos lá) mostrou-se insuficiente
e, em seguida, os japoneses alteraram suas leis para permitir a concessão
de vistos temporários sem restrição à ocupação profissional de nisseis
e sanseis (respectivamente, filhos e netos de imigrantes), além de seus
cônjuges. À época, com a alta do dólar, somada à recessão e à inflação
galopante que assolavam o Brasil, trabalhar como dekassegui no Japão
poderia efetivamente significar uma vida melhor.
O fluxo migratório chegou a atingir mais de 60 mil pessoas
em um único ano. Apenas mais tarde, com a estagnação da economia
japonesa e a conseqüente redução geral da demanda por mão-de-obra,
houve uma queda no fluxo. Em 2003, 10.568 brasileiros adquiriram
visto permanente.
28
Eis a prova cabal de que se trataria não apenas de
brasileiros vivendo temporariamente em outro país (dekassegui), mas
de um grande processo de emigração.
Apesar de relatos de discriminação, sobretudo nos primeiros
tempos, e de problemas de inadaptação, consumo de drogas e
criminalidade em nível sensivelmente maior que entre os que
permanecem no Brasil, o fluxo continua. Segundo os dados do censo
japonês, mais da metade do contingente (cerca de 140 mil) já são
considerados “residentes por longo período”.
Quando um de meus primos resolveu que iria para o Japão
para trabalhar em uma grande empresa de autopeças, na década de 90,
27
Maria Edileusa Fontenelle Reis, Brasileiros no Japão – O elo humano das relações
bilaterais. Ed. Kaleidus- Primus, São Paulo, 2001, edição trilingüe (japonês/português/
inglês), coordenação de Masato Ninomiya.
28
http://www.vermelho.org.br/diario/2005/0524/0524_dekasseg.asp
192
MARCOS MAURICIO TOBA
a família sentiu-se triste por sua partida. Todos, porém, apoiaram a
decisão, especialmente meu avô, ao compreenderem que o objetivo
de meu primo (e, mais tarde, de dois de meus tios) era apenas o de
buscar uma vida melhor, uma situação financeira melhor.
A saga dos dekassegui de retorno à “
terra do sol nascente
” (o
ideograma que representa o nome do país no idioma original é assim
traduzido), deixando para trás o Brasil, “país do futuro”, é apenas a
cabal comprovação de que Oscar Wilde estava certo quanto ao Japão:
não existe um Japão sincrônico.
29
Olhando para os dois movimentos
migratórios sob a perspectiva de onde primeiramente tiveram origem
– primeiro a saída para o Brasil, depois o retorno ao Japão – a conclusão
é uma, para utilizar o mesmo raciocínio do Embaixador Fernando
Guimarães Reis: a leveza da civilização da madeira.
30
O que antes teve
um sentido leste-oeste, hoje vai no sentido contrário.
Explico-me: em seu artigo Japão: notas de uma passagem por
um país em transição, o diplomata evoca tal imagem para explicar o
Japão. Para ele, o país é marcado por uma grande capacidade de recriar-
se, por uma dinamicidade ímpar, que o faz evocar a expressão de
Marshall Berman para explicar seu objeto de estudo – de que “tudo
29
Fernando Guimarães Reis, Japão: notas de uma passagem por um país em transição.
In: Política Externa, volume 10, nº 3, janeiro de 1996 a junho de 2001, p. 154. Assim
conclui o personagem Vivian, no diálogo “The decay of lying”, de Oscar Wilde: “In fact
the whole of Japan is a pure invention. There is no such country, there are no such
people. One of our most charming painters went recently to the Land of the
Chrysanthemum in the foolish hope of seeing the Japanese. All he saw, all he had the
chance of painting, were a few lanterns and some fans. He was quite unable to discover
the inhabitants, as his delightful exhibition at Messrs. Dowdeswell’s Gallery showed
only too well. He did not know that the Japanese people are, as I have said, simply a
mode of style, an exquisite fancy of art. And so, if you desire to see a Japanese effect, you
will not behave like a tourist and go to Tokio. On the contrary, you will stay at home,
and steep yourself in the work of certain Japanese artists, and then, when you have
absorbed the spirit of their style, and caught their imaginative manner of vision, you
will go some afternoon and sit in the Park or stroll down Piccadilly, and if you cannot
see an absolutely Japanese effect there, you will not see it anywhere”. O texto pode ser
encontrado na Internet: http://books.eserver.org/fiction/the-decay-of-lying.html.
30
Fernando Guimarães Reis, Japão: notas de uma passagem por uma país em transição.
In: Política Externa, volume 10, nº 3, janeiro de 1996 a junho de 2001, p. 158.
193
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
que é sólido se desmancha no ar”. Eis, então, a imagem da “civilização
da madeira”.
UM JAPÃO VISTO POR OLHOS BRASILEIROS
Uma das descobertas mais interessantes na minha ainda curta
carreira diplomática foi conhecer um bom número de diplomatas
brasileiros que serviram no Japão e gostaram muito da experiência –
tanto assim que, em alguns casos, voltaram a servir no país. Para
entender o porquê de tal encantamento e essa visão positiva sobre o
país, resolvi procurar saber com alguns dos colegas suas razões.
Para muitos, o fato de tratar-se de um país desenvolvido, de
um povo educado, respeitador, uma civilização sofisticada para os
padrões asiáticos e mundiais e uma história comum com o Brasil foram
as razões mais mencionadas. Mas isso também poderia ser comum no
caso de muitos outros países. Qual então, o diferencial, o característico?
No artigo já mencionado para a Revista de Política Externa,
o Embaixador Fernando Guimarães Reis tece diversas considerações
sobre experiências e observações durante sua passagem pelo Japão.
Ao concluir o artigo, o diplomata faz menção à expressão de Roland
Barthes de que o Japão seria o “império dos signos”. À guisa de sua
conclusão, afirma também que “o Japão nos reserva surpresas”.
31
Ora,
o Japão, para muitos que aprenderam a admirá-lo, a muito bem querer
sua gente, é ainda um enigma. A polidez, a educação, a seriedade, a
busca da perfeição, a dedicação e o valor atribuído ao trabalho são
apenas alguns dos valores que convivem com uma concepção de mundo
em movimento, com a leveza da “civilização da madeira”.
O próprio Embaixador Fernando Reis faz referência a uma
expressão cunhada por Kurt Singer, em “Mirror, sword and jewel”,
bastante sugestiva: “Os japoneses são difíceis de serem compreendidos,
31
Ibidem, p. 160.
194
MARCOS MAURICIO TOBA
não porque eles sejam complicados ou estranhos, mas porque eles são
tão simples.” Tal afirmação encontra-se num capítulo cujo título, muito
sugestivo, “The mists of concealment”, também se abre com outra
afirmação bastante interessante: “Nenhum povo poderia estar mais
qualificado a reclamar por ser mal compreendido, desconhecido ou
esquecido do que o japonês, cujo primeiro e último anseio é o de levar
uma vida longe da atenção dos demais.” E continua: “‘Todo inglês é
uma ilha’, observou o poeta e filósofo alemão Novalis, ao final do século
XVIII. De forma análoga, o japonês pode ser chamado de ‘uma ilha
murada cercada de nuvens’”.
32
Em obra de referência sobre a história recente do Itamaraty,
Uma paulista no Itamaraty”, a diplomata Marina do Rego Freitas de
Toledo, uma das primeiras mulheres a tornar-se diplomata na história
do Brasil, a quem o Embaixador Alfredo Valladão referiu-se como “o
caso Dreifuss do Itamaraty
33
, por injustiças decorrentes de preconceitos
relacionados à sua condição de mulher, narra, em um dos capítulos
34
,
sua positiva experiência no Consulado-Geral do Brasil em Kobe, no
início da década de 60. Ao demonstrar seu encanto pela polidez e
delicadeza do povo japonês, ela narra um desses momentos que a
fizeram guardar o Japão na memória, com saudades, para sempre:
“No dia seguinte ao famoso jantar, um dos senhores presentes à reunião
trouxe-me um lindo prato embrulhado em um lenço de seda. Era
realmente uma peça de rara beleza, que conservo até hoje e sempre levei
comigo em todas as viagens que fiz, desde então, para instalar-me em
algum posto. O senhor em questão pertencia a uma família que chefiara
um clã, o que significa que era nobre de alta hierarquia antes de o Japão
32
Kurt Singer, Mirror, sword and jewel: a study of Japanese characteristics. George
Braziller Ed., New York, 1973, p. 44.
33
Marina do Rego Freitas de Toledo, Uma paulista no Itamaraty. Green Forest do
Brasil Editora, São Paulo, 1999, p. 145.
34
Ibidem, p. 71. O capítulo intitula-se “O Japão e a polidez”.
195
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
perder a guerra e MacArthur acabar com os títulos e privilégios da
nobreza, exceto alguns da família imperial. Durante o jantar, havíamos
conversado sobre porcelana antiga japonesa e eu demonstrara meu
interesse pelo tema e um certo conhecimento de causa, dados os anos que
já morava no país e as oportunidades que tivera de obter esclarecimentos
sobre o assunto. Com grande gentileza, então, o meu interlocutor
ofereceu-me no dia seguinte um prato de porcelana do seu clã, com as
suas características peculiares que, no ocidente, chamaríamos quiçá de
brasonado. Explicou-me que, no final da guerra, quase toda porcelana
antiga dessa qualidade havia sido destruída, e era por isso que trazia
apenas um único prato. Até hoje comove-me e alegra o gesto daquele
simpático cavalheiro. Deixei o Japão com saudades, que grudaram em
mim até hoje.”
35
Enigma, mistério, névoa encoberta. Ao mesmo tempo,
polidez, delicadeza, dedicação a cada pequeno trabalho, a cada detalhe
na busca de reproduzir o que mais próximo fique da perfeição, cujo
ideal segue intangível. Talvez tudo isso componha parte do Japão
visto por tantos brasileiros que aprenderam a admirar o país.
De minha parte, muitos desses valores recebi ainda pequeno,
por intermédio de meus avós maternos, meus padrinhos de batismo.
Aprendi também na convivência diária com tios e tias, com primos e
primas, com meus pais. Apesar de nunca ter tido a oportunidade de
visitar o Japão, sinto que muito dele está dentro de mim. Após
ingressar na carreira diplomática, qual não foi minha alegria ao
descobrir que poderia continuar a aprender tantas coisas sobre o Japão
com colegas de carreira que, sem minha herança genética, possuem
grande conhecimento, respeito e admiração pela cultura e pelo povo
japonês.
35
Ibidem, p. 81.
196
MARCOS MAURICIO TOBA
BRASILEIROS NO JAPÃO: JAPONESES NO BRASIL UM DIA?
LEMBRANÇA
(Guilherme de Almeida)
Confete. E um havia
de se ir esconder, e eu vir
a encontrá-lo, um dia.
Hoje, 312 mil brasileiros vivem no Japão. Muitos deles
são filhos ou descendentes de imigrantes japoneses que chegaram
ao Brasil há cem anos. Um de meus primos que para lá foi pensava
em voltar ao Brasil com dinheiro. Decidiu ficar e construir uma
nova vida por lá.
Num ano de celebrações como este, é preciso também
refletir sobre o ciclo que parece se completar. As associações de
compatriotas no Japão continuam a lutar por seus direitos. Desejam
ser recebidos e integrados tão bem quanto seus antepassados o foram
no Brasil.
36
Os cidadãos japoneses que para o Brasil emigraram
incorporaram-se plenamente à sociedade local. Eu mesmo, apesar de
ter meus traços orientais, não domino o idioma de meus avós nem
compreendo a escrita japonesa. Considero-me brasileiro plenamente,
pois é o Brasil que amo e considero minha Pátria no coração.
De minha infância, lembro que meus pais e avós sempre
trabalharam voluntariamente ajudando uma entidade assistencial na
Grande São Paulo, que ainda hoje cuida de uma casa de repouso para
cidadãos japoneses e descendentes idosos que têm dificuldades de
comunicação em português. Assim como o Ikoi-no-sono (em português,
Assistência Social Dom José Gaspar), muitas outras entidades têm,
nos últimos cem anos, ajudado a tornar a vida de cidadãos japoneses
36
Embaixador André Amado, Nacionalidade e cidadania. Mensagem escrita para a
edição especial da Revista Humanidades em celebração do centenário da imigração
japonesa.
197
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
que vieram para o Brasil mais digna e feliz.
37
Meu avô, após aposentar-
se, continuou a prestar serviços voluntários ao Ikoi-no-sono e a outras
entidades congêneres, com seus conhecimentos sobre construção civil
e agricultura. Recordo com alegria as visitas que fazíamos ao local,
cheio de flores, hortas, lagos e cidadãos idosos que passavam seus
últimos anos entre iguais, com plenos direitos – mesmo que longe de
suas famílias ou do saudoso Japão.
Depoimentos de inúmeros imigrantes japoneses que muito
êxito alcançaram no Brasil demonstram a enorme gratidão que sentem
com relação ao País que tão bem os acolheu. É o caso de meus avós,
mas também de uma história que sempre me impressionou: a do Senhor
Shunji Nishimura. No Brasil desde 1932, aos 21 anos, trabalhou em
fazendas de café. Em 1939, instalou-se em Pompéia, cidade do interior
de São Paulo. Seu negócio de “conserta-se tudo”, no final da II Grande
Guerra, transformou-se na empresa Máquinas Agrícolas Jacto, que
empregou centenas de brasileiros. Formado no Colégio Industrial de
Quioto, emprestou seus conhecimentos ao Brasil. Em suas memórias,
assim escreveu: “Vim para esta terra sem qualquer posse. Tive a felicidade
de conquistar uma posição a ponto de poder empregar mais de mil
pessoas. Devo, por isso, um preito de gratidão a este Brasil. O que recebi
foi além do que poderia merecer. Tenho, pois, o dever de devolvê-lo.”
Em 1982, ano que marcou os 50 anos de sua chegada ao Brasil, resolveu
criar o Colégio Agrícola e Industrial de Pompéia. Sua fundação
patrocina bolsas de estudo para jovens carentes.
38
No ano que marca o centenário da chegada dos primeiros
imigrantes japoneses ao Brasil, é preciso também pensar em exemplos
como o do Senhor Nishimura. É preciso, também, unirmos forças
37
Guia da Cultura Japonesa, Editora JBC (Japan Brazil Communication), São Paulo,
2004, p. 63.
38
Susumu Miyao, Colégio Agrícola e Industrial de Pompéia. In: ____. Nipo-brasileiros
– processo de assimilação. Tradução de Katsunori Wakisaka. Centro de Estudos Nipo-
Brasileiros, São Paulo, 2002, p. 221.
198
MARCOS MAURICIO TOBA
para proporcionar o mesmo às gerações de brasileiros que têm decidido
estabelecer-se na “terra do sol nascente”. Nesse sentido, a ampliação da
cooperação entre os dois países-irmãos, Brasil e Japão, em prol da
melhoria da situação dos mais de 300 mil cidadãos brasileiros e de seus
descendentes que vivem no Japão, faz-se necessária. Muitos deles são
sangue do mesmo sangue japonês. É preciso preocupar-se com a situação
desse grupo, especialmente a garantia de educação e direitos sociais
básicos. Seria muito bom, daqui a cem anos, termos o privilégio de
possuirmos, na “terra do sol nascente”, talvez um filho de emigrados
do Brasil numa situação parecida com a minha em 2008: um nipo-
brasileiro, descendente de quatro avós nascidos no Japão, que hoje é
motivo de orgulho a seus ancestrais, por ter-se tornado um diplomata
pelo Brasil.
Do ponto de vista de um diplomata brasileiro que reconhece
a existência de diversas vulnerabilidades do Brasil nos campos do
desenvolvimento tecnológico, econômico, social e político, e ante a
premente necessidade de que o Brasil possa desenvolver-se num mundo
globalizado, é também importante que o Japão, que possui um belo
passado nacionalista de lutas contra os invasores europeus e norte-
americanos na Era Meiji, possa apoiar tal processo de desenvolvimento
de todas as formas possíveis: seja na ampliação do G-8, seja na busca
de uma solução negociada para a questão dos subsídios agrícolas no
âmbito da Rodada de Doha da OMC, seja na contínua ampliação da
cooperação bilateral que completa seus cem anos.
Na expectativa de que os laços entre os dois países possam
continuar a crescer, é importante garantir que a celebração do
centenário da imigração japonesa ofereça também uma oportunidade
para refletirmos sobre como continuar a fazer crescer a interação entre
os dois países nos próximos cem anos. As visitas do então Primeiro-
Ministro Junichiro Koizumi ao Brasil, em setembro de 2004, e do
Presidente Lula ao Japão, em maio de 2005, têm sido alicerçadas por
importantes parcerias e alianças que unem os dois países, como as nas
199
O JAPÃO DE MEUS OLHOS
áreas de biocombustíveis, a da televisão digital e a do G-4 (para a
reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas). A esperança
é de que isso seja apenas o recomeço de um período em que a relação
bilateral torne-se ainda mais intensa, e que tais laços continuem a crescer
e a expandir-se, em nome de um passado recortado de tantas belas
imagens desses cem anos que unem Brasil e Japão.
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MARCOS MAURICIO TOBA
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São Paulo, 1992.
VII.
O TRANSBORTAMENTO DA
INFLUÊNCIA: BRASILEIROS
NÃO-DESCENDENTES E A
IMIGRAÇÃO JAPONESA
205
Viviane Ferreira Lopes
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS
NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
INTRODUÇÃO
O interesse de brasileiros não-descendentes pela cultura
japonesa antecede o processo imigratório, haja vista a obra pioneira
de Francisco Antonio de Almeida, “Da França ao Japão” e, mais
especificamente, o estudo escrito, em 1897, pelo vice-cônsul brasileiro
em Yokohama, Aluísio de Azevedo, entitulado “O Japão”.
1
No
entanto, o convívio proporcionado pela imigração aprofundou o
conhecimento entre brasileiros e japoneses de modo que, no início do
século XXI, as relações entre ambos os países não se limitam aos vínculos
existentes entre a colônia japonesa no Brasil e seus patrícios no Japão,
tampouco às relações políticas entre os respectivos governos.
O movimento migratório iniciado em 1908, no Porto de
Kobe, não transformou somente a vida dos cerca de 230 mil imigrantes
que chegaram aos portos brasileiros. A maciça imigração japonesa
causou grande impacto na sociedade brasileira como um todo,
podendo-se inferir sua importância para os questionamentos acerca
da composição étnica brasileira consubstanciada, vinte anos depois,
no Manifesto Antropofágico.
A incorporação de elementos da cultura nipônica pode ser
percebida em situações já integradas ao cotidiano brasileiro. Conforme
afirmou o Presidente Lula, por ocasião de brinde oferecido ao ex-
Primeiro Ministro Junichiro Koizumi, “aprendemos a admirar no
1
JOKO, Alice T. Ensino da língua japonesa no Brasil. Revista Humanidades.
Editora Unb. Brasília, 2007.
206
VIVIANE FERREIRA LOPES
povo japonês e nos imigrantes que para cá vieram, a perseverança
diante da adversidade, a determinação em avançar, o espírito de
solidariedade comunitária... O Japão em muito contribuiu para a
construção do Brasil moderno. Nossa parceria ajudou a criar um dos
maiores e mais competitivos parques industriais do Hemisfério Sul.
Trouxe tecnologia para nos transformar em grande produtor de
minérios e em um dos celeiros do mundo.”
2
A comunidade japonesa no Brasil sempre se preocupou em
manter vivo o elo que a une à terra de origem. Escolas da língua
japonesa, centros de convivência e clubes desportivos congregaram, e
até hoje congregam, filhos da imigração. Ao longo do século XX, a
cultura japonesa foi divulgada por meio de jornais, revistas, boletins
informativos e até por meio da publicação de romances e poesias de
renomados autores. No primeiro momento, o sonho de voltar ao
Japão tornava imperativo o ensino da língua e da cultura materna aos
filhos nascidos no Brasil. Com a Segunda Guerra Mundial e a despeito
das proibições impostas pelo governo brasileiro, o ensino continuou
mais pela importância da afirmação de uma identidade do que
esperança do retorno. As chamadas “escolas japonesas” centravam suas
atividades na transmissão da cultura e da língua japonesa a descendentes,
com o objetivo de consolidar a identidade nipo-brasileira.
A partir da década de 1970, contudo, as comunidades
japonesas passaram por significativa transformação. O crescimento
econômico decorrente do “Milagre” incentivou a migração de
descendentes japoneses às capitais brasileiras, sobretudo à cidade de
São Paulo. Os nikkeis, termo que designa os descendentes de japoneses,
deixaram a agricultura e as cidades do interior, destino da maioria das
caravanas de imigrantes, para se dedicarem a atividades urbanas. Foi a
2
Política Externa Brasileira, volume I. Discursos, artigos e entrevistas do Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006). Ministério das Relações Exteriores. Brasília,
2007.
207
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
época do apogeu do Bairro da Liberdade, em São Paulo, com a criação
da estação do metrô e a instalação das luminárias orientais.
Na cidade, as dificuldades da manutenção do modo de viver
japonês aumentaram à medida que os elementos culturais locais eram
interiorizados pelas novas gerações. A multiplicação dos casamentos
interétnicos e o progressivo distanciamento da cultura materna
contribuíram para a crise das antigas “escolas japonesas”, as quais, diante
do esvaziamento de suas salas de aula e da percepção do movimento
de refluxo migratório (fenômeno dekassegui) optaram por uma nova
abordagem. O método de ensino do japonês como língua materna
dava lugar, assim, ao método de ensino do idioma para estrangeiros.
Atualmente, as lideranças nikkei defendem a promoção do
ensino do japonês sem distinção do público-alvo. De acordo com essa
nova estratégia, o aumento da oferta de cursos facilita o aprendizado
da língua não só por brasileiros não-descendentes como também atrai
os descendentes que não mais guardam relações estreitas com a cultura
de seus antepassados. Busca-se, na verdade, uma saída que concilie a
filosofia do ensino do japonês como instrumento de consolidação da
identidade nipo-brasileira e os modernos métodos de ensino de línguas
estrangeiras
3
. A despeito dos efeitos verificados em meio aos nikkeis,
observa-se número significativo de brasileiros não-descendentes que,
valendo-se dos novos métodos empregados, imiscuíram-se na
comunidade, demandando o ensino do japonês, do ikebana (arranjos
florais), do shodo (caligrafia japonesa), e, por fim, concorrendo à
oportunidade de residir, a trabalho ou a estudo, no Japão.
Neste trabalho pretendemos salientar essa segunda face da
imigração, ou seja, impacto causado na vida dos brasileiros que, dado
o convívio com a comunidade japonesa, tornaram-se estudiosos e
entusiastas de sua língua e cultura. O estudo da língua japonesa será
tratado com maior profundidade em razão de seu caráter instrumental.
3
JOKO, Alice T. Idem.
208
VIVIANE FERREIRA LOPES
O conhecimento da realidade e da cultura de um país depende de uma
relação de familiaridade com o idioma.
Na primeira seção serão analisados a maior abertura das
“escolas japonesas” à participação de alunos não-descendentes,
assim como informações acerca da oferta de bolsas de estudo,
pelo governo japonês, a estudantes e/ou acadêmicos brasileiros.
Em seguida, serão apresentados depoimentos e experiências de
brasileiros não-descendentes que, em razão das atividades
realizadas pela colônia japonesa e/ou pelo governo japonês
interessaram-se pelo Japão e dedicaram-se à aproximação entre
ambos os países. A segunda seção abordará a difusão do manga e
do anime na sociedade brasileira e depoimentos de jovens não-
descendentes que, em razão da influência dos quadrinhos
japoneses, optaram pelo estudo do idioma japonês. A terceira
seção apontará benefícios e desafios decorrentes da maior
participação dos não-descendentes nas relações Brasil-Japão. Por
fim, constará breve conclusão.
Os depoimentos recorrentes deste trabalho foram obtidos
mediante a distribuição de questionários em que constavam as seguintes
perguntas:
1) Qual sua cidade e Estado de origem?
2) Qual sua cidade e Estado de residência atual?
3) Como se deu seu primeiro contato com o Japão? Por
quê estudar japonês? Por quê morar no Japão?
4) Saliente dois ou três aspectos da cultura japonesa que você
considera mais marcantes.
5) Você pode perceber alguma mudança em sua vida
(comportamento, hábitos, modo de pensar) que decorreu
de seu contato com a cultura japonesa?
6) Atualmente você trabalha/estuda em alguma empresa/
instituição japonesa ou pretende trabalhar/estudar com
algum tema relacionado ao Japão no futuro?
209
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
SEÇÃO I
1.1) A PARTICIPAÇÃO DE BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES NAS
ESCOLAS JAPONESASE NOS PROGRAMAS DE BOLSA DE ESTUDO
A Professora Tae Suzuki defende que os estudos japoneses
no Brasil decorrem de duas vertentes distintas
4
. A primeira delas teria
surgido no seio da comunidade nipo-brasileira como resultado da
nostalgia dos primeiros imigrantes e, posteriormente, como forma de
manutenção de uma identidade. A segunda seria caracterizada pela
curiosidade de brasileiros não-descendentes acerca do exotismo oriental,
traduzida em relatos de viagens e crônicas escritas ainda antes da
imigração, conforme versado anteriormente. Essas vertentes teriam
trilhado caminhos paralelos ao longo da primeira metade do século
XX, mas, a partir das décadas de 1960-1970, teriam iniciado processo
de confluência, época em que os debates sobre o método de ensino do
japonês germinaram e as bolsas de estudo proliferaram. Hoje, o ensino
produzido pela comunidade nikkei é de fácil acesso aos não-
descendentes e as produções independentes desses últimos cedem
espaço ao diálogo franco com os nipo-brasileiros.
De acordo com uma pesquisa realizada conjuntamente pela
Universidade de Campinas – Unicamp, pela Universidade de São Paulo
– USP e pela Universidade Estadual Paulista – Unesp, 60,5% dos alunos
matriculados no curso de Japonês Instrumental Oral para o primeiro
semestre de 2005 não tinham ascendência japonesa.
5
No mesmo sentido,
4
SUZUKI, Tae. Do japonismo à japonologia - os estudos japoneses no Brasil. In: XI
Encontro Nacional de Professores de Língua, Literatura e Cultura Japonesa, 2000,
Brasília. Anais do XI Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua,
Literatura e Cultura Japonesa. Brasília : Universidade de Brasília, 2000.
5
MORALES, Leiko Matsubara; AKAMINE, Ayako; NEMOTO, Lucia Kiyomi;
YANO; Tereza Mieko. Conteúdo programático de uma língua estrangeira e seus
principais problemas na elaboração, na execução e no aproveitamento do feedback. In:
Anais do III Congresso Internacional de Estudos Japoneses no Brasil. Brasília:
Universidade de Brasília, 2005.
210
VIVIANE FERREIRA LOPES
de um total de 158 alunos atualmente inscritos no Curso de Letras/
Língua e Literatura Japonesa da Universidade de Brasília, apenas 32
têm sobrenome japonês, ou seja, com base nessa análise superficial,
79,7% dos alunos matriculados não são descendentes de japonês.
Fenômeno semelhante pode ser observado fora do meio
acadêmico. A Escola Modelo de Língua Japonesa de Brasília conta
com 67,48% de alunos não-descendentes, sendo importante notar que
a referida instituição enquadra-se na proposta das antigas “escolas
japonesas”, a qual se baseia na transmissão da cultura e na afirmação
da identidade nipo-brasileira. É possível notar, portanto, que as
diretrizes de ensino apresentadas a partir da década de 1970,
concretizam-se neste início de século. O quadro de alunos da Escola
de Língua Japonesa de Taguatinga exibe com clareza a transformação
por que passam as escolas de formação japonesa. Se, por um lado, as
crianças nikkeis constituem 95,4% dos alunos nessa faixa etária, os
adultos nikkeis representam 39,4%. A preocupação das famílias em
perpetuar as tradições japonesas em âmbito familiar explica a
composição das turmas infanto-juvenis. Por sua vez, o distanciamento
de parte da juventude nikkei de suas origens, aliado ao número crescente
de não-descendentes que se envolvem nas atividades promovidas pela
comunidade nipo-brasileira, são fatores que levam à minoria nikkei
nas turmas de adultos.
Os resultados da “Pesquisa sobre as escolas de língua
japonesa”
6
, realizada em 2000, causou espanto aos professores do
idioma. Na América Latina, de forma geral, o ensino do japonês é
direcionado às crianças. No Brasil, todavia, mais de 1/3 dos alunos
das escolas japonesas eram maiores de 15 anos. O perfil dos alunos
6
NAKATA, Michiko; SUZUKI, M.E. (org.) “Pesquisa sobre as escolas de língua
japonesa” , in A consciência lingüística dos Estudantes Adultos de Língua Japonesa.
História do Ensino da Língua Japonesa no Brasil, parte II. Campinas, SP: Editora
Unicamp, 2008. A referida pesquisa considerou um universo de 379 estabelecimento
de ensino, sendo 261 localizados no Estado de São Paulo e 118 em outras unidades
federativas.
211
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
maiores de 15 anos de idade também havia mudado. Desses, 40% não
tinham ascendência japonesa, fração que coincide com o número de
alunos que não tinham contato com a língua japonesa fora da sala de
aula ou que utilizavam o idioma apenas no emprego, isto é, pessoas
que não falavam o japonês com seus familiares. Nas considerações
finais do referido trabalho, o Professor Susumu Miyao, do Centro
de Estudos Nipo-Brasileiros, concluiu que, além do impressionante
número de alunos adultos nos cursos atuais, era possível verificar o
crescimento do número de estudantes não-descendentes.
Além disso, é curioso notar que a cultura japonesa aparece
como o principal motivo que levou os alunos entrevistados aos cursos
de japonês. Embora 65% dos alunos estivessem cursando uma faculdade
ou tivessem nível superior completo, apenas 16% afirmaram buscar
no idioma vantagens profissionais. A maioria dos alunos não via o
japonês como uma forma de especialização profissional, o que torna
possível afirmar que a ampliação de oportunidades de trabalho que
requerem o conhecimento do idioma atrairia muitos outros brasileiros
às salas de aula das escolas japonesas.
As bolsas oferecidas no Brasil para estudo em universidades
ou para estágio em empresas japonesa são divididas em duas categorias.
A primeira delas é voltada para a comunidade nipo-brasileira e foi
instituída com o objetivo de conferir aos jovens nikkeis melhor
capacidade de inserção no mercado de trabalho brasileiro. Observou-
se que o nível de escolaridade desses jovens havia aumentado com o
movimento de migração para as cidades, razão pela qual o governo
japonês, ou o governo das províncias japonesas, resolveu financiar a
ida desses jovens ao Japão para conclusão do mestrado ou doutorado.
Essa estratégia também se mostrou eficaz na revitalização do
relacionamento entre os nikkeis e o Japão, e entre esse país e o Brasil,
na medida em que, ao retornar, muitos desses jovens trabalharam nos
investimentos japoneses aqui realizados. São exemplos a Kempi Ryugaku
e a Kaigai Gijutsu Kenshuin.
212
VIVIANE FERREIRA LOPES
O segundo modelo de bolsas de estudo refere-se àquelas
oferecidas pelo governo japonês a estrangeiros como forma de divulgar
sua cultura ao redor do mundo e a estimular a formação de especialistas
nos estudos japoneses. Destacam-se os programas do Ministério da
Educação do Japão – Monbukagakusho, os da Agência Japonesa de
Cooperação – JICA, e os da Fundação Japão. As bolsas do
Monbukagakusho datam de 1956; todavia, as demais inserem-se na década
de 1970, momento em que as relações entre Brasil e Japão ganhavam
destaque na agenda internacional de ambos os países.
Poucos são os dados disponíveis sobre o índice de
participação de brasileiros não-descendentes nas referidas bolsas de
estudo. Além das informações referentes a programas de intercâmbio
específicos de determinadas universidades, destaca-se o resultado de
uma enquete preparada pela Associação Brasileira de Ex-bolsistas –
Asebex
7
e as listas de ex-bolsistas divulgadas pelas associações regionais,
dentre as quais analisaremos a Associação Brasiliense de Ex-bolsistas –
Abraex
8
. Surpreende, no entanto, a discrepância entre os dados
analisados.
A Asebex informa que somente 4% de seus ex-bolsistas não
são descendentes. A Abraex, por sua vez, apresenta uma lista em que
mais de 50% dos associados não são nikkeis. Embora somente dados
oficiais possam solucionar a contradição, sugere-se que a Asebex, por
guardar estreita relação com a comunidade nikkei paulista, restringiu
sua pesquisa aos membros ativos da associação
9
, de maioria nipo-
brasileira, não correspondendo, assim, ao universo de ex-bolsistas do
Brasil. As associações regionais, entretanto, informaram nome, período
do intercâmbio e instituição de cada ex-bolsista, sendo, assim, dados
de maior confiabilidade.
7
Resultado da Pesquisa da Situação Atual dos Ex-bolsistas (http://asebex.org.br)
8
Abraex – lista de ex-bolsistas (http://www.abraex.org.br/bolsistas/lista.html)
9
184 participantes de um total de 2000 membros.
213
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
Cumpre, portanto, perguntar, quem são esses brasileiros que,
a despeito da inexistência de vínculos familiares com o Japão, optaram
por estudar seu idioma e cultura e, ainda, morar nesse país. Os
depoimentos seguintes têm como objetivo personificar os dados
estatísticos acima apresentados. Não se trata de ficção. São narrativas
exemplificativas de como brasileiros não-descendentes conhecem,
gostam, aprofundam-se e passam adiante conhecimentos acerca do
Japão, estimulando, no Brasil, o amadurecimento dos estudos
japoneses e divulgando, naquele país, a cultura nacional.
1.2) DEPOIMENTOS
1.2.1. PROGRAMA DE INTERCÂMBIO A CADÊMICO CULTURAL
CONTEMPORÂNEO BRASIL-JAPÃO
O Programa de Intercâmbio Acadêmico Cultural
Contemporâneo Brasil-Japão da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ é um exemplo das inúmeras redes da relação Brasil-
Japão que foram tecidas com a participação fundamental de brasileiros
não-descendentes. Criado em 2000, o Programa atuou na seleção e no
envio de 18 alunos às cinco universidades japonesas conveniadas, a
saber, a Universidade de Estudos Estrangeiros de Tokyo, a
Universidade Waseda, a Universidade de Osaka, a Universidade de
Kobe, e a Universidade Kwansei Gakuin.
Além disso, foram realizados três simpósios de alto nível em
parceria com a Faculdade de Direito da UERJ, com a Fundação Japão
e com o Consulado do Japão no Rio de Janeiro. O I Simpósio
Internacional Brasil-Japão da UERJ teve por tema os “desafios e
estratégias para o século XXI” e contou com a participação do Diretor-
geral do Departamento de América Latina e Caribe do Ministério
dos Negócios Estrangeiros do Japão. O segundo simpósio realizado
discutiu “cidadania, segurança pública e defesa da sociedade”, ocasião
214
VIVIANE FERREIRA LOPES
em que representantes de ambos os países trocaram experiências e
opiniões sobre relevante tema interdisciplinar. Por fim, o terceiro
simpósio abordou a “reforma da Justiça”, objeto de debate tanto no
meio acadêmico brasileiro quanto no japonês.
Em decorrência dos trabalhos do Programa de Intercâmbio,
foram organizados, no ano 2000, o Curso de Extensão Universitária
em Japonês e o Curso de Introdução à Cultura Japonesa, e, quatro
anos depois, o Curso de Letras/Japonês, o qual, já no primeiro
vestibular, atraiu o interesse de muitos estudantes, havendo 8
candidatos inscritos para cada vaga oferecida. O governo japonês
apoiou a iniciativa por meio da doação do Computer Assisted Language
Learning Laboratory – CALL, um laboratório com tecnologia de
ponta desenvolvido especificamente para o ensino de línguas, o que
consolidou a excelência do curso prestado.
O trabalho paradigmático do Programa de Intercâmbio
Brasil – Japão da UERJ é resultado de uma trajetória individual de
dedicação ao aprofundamento dos laços que unem esses países. O
Professor José Marcos Domingues de Oliveira, fundador do
Programa da Universidade e atual Coordenador do Programa de
Intercâmbio Acadêmico Brasil – Japão da Faculdade de Direito da
UERJ, deve seu interesse pela cultura japonesa, por sua vez, a uma
bolsa de estudos recebida do Ministério da Educação do Japão, em
1978. Após dois anos de estudo na Universidade de Estudos
Estrangeiros de Osaka e na Universidade de Osaka, retornou ao
Brasil e logo atuou no sentido de divulgar a língua e a cultura
japonesas
10
. Retornou diversas vezes ao Japão, inclusive como
Pesquisador Visitante na Universidade Waseda e como Professor
10
Vide obras “Aspectos da influência do direito no desenvolvimento japonês”.
Embaixada do Brasil em Tokyo, Série Setores, nº 4, Janeiro 1980/Revista Forense,
Rio de Janeiro, nº 279, p. 45-76, jul./set. 1982; “Trading Companies Japonesas” -
Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Rio de Janeiro, n. 16, 1981; e artigo
publicado na Gazeta Mercantil, de 05 de maio de 1982, entitulado “Porque a
‘ocidentalização’ do Japão é apenas aparente”.
215
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
Visitante na Universidade Kwansei Gakuin. No Brasil, além das
atividades decorrentes do Programa de Intercâmbio e de suas
funções como Procurador do Estado do Rio de Janeiro e Professor
Titular de Direito Financeiro da UERJ, Professor Domingues é
Presidente de Honra da Associação Regional dos Ex-bolsistas
Monbukagakusho.
Dentre os dezoito alunos que receberam bolsa de estudos
no Japão por meio do Programa da UERJ, quinze não são
descendentes. Quando perguntados sobre o que os motivou a
conhecer o Japão, muitos informaram terem tido um amigo de
infância ou um vizinho de ascendência japonesa que transmitiram as
primeiras informações sobre o país. Somam-se a esse tipo de
experiência, a curiosidade sobre o Oriente e a existência de elementos
da cultura japonesa dispersos na sociedade brasileira com os quais a
maioria dos brasileiros já se relacionou, seja na culinária, nas artes
plásticas ou na televisão. Após a estada de um ano no Japão, os alunos
afirmam admirar o país e seu povo, principalmente sua disciplina, o
respeito à coletividade e a capacidade de conciliar o moderno e a
tradição.
O retorno ao Brasil é normalmente caracterizado pelo
entusiasmo em relação ao Japão. Os amigos são incentivados a
estudar japonês, a NHK, principal emissora de televisão japonesa,
torna-se o canal mais assistido, e a alimentação ganha novos
temperos. No entanto, os efeitos da experiência do intercâmbio
vão além. Muitos alunos passaram a trabalhar com temas que
utilizam o conhecimento adquirido, como em empresas brasileiras
que mantêm contato com empresários japoneses (ex. Vale do Rio
Doce), em escritórios de advocacia que atendem a clientes
japoneses e até em órgãos públicos que cuidam da relação entre
ambos os países. Nota-se, assim, a existência de efeito
multiplicador, responsável pela expansão da teia de
relacionamentos Brasil – Japão.
216
VIVIANE FERREIRA LOPES
1.2.2. BOLSISTAS MONBUKAGAKUSHO
As bolsas de estudos do Ministério da Educação,
Cultura, Esporte, Ciência e Tecnologia do Japão -
Monbukagakusho são o principal meio de auxílio educacional que
não requer a comprovação de ascendência japonesa, oferecido pelo
governo japonês. A seleção dos alunos é realizada, principalmente,
pelo Consulado Geral do Japão de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Gilberto Santos do Nascimento é bolsista do
Monbukagakusho na graduação da Universidade de Kyushu, onde
estuda Letras e Literatura Japonesa. Os primeiros contatos com
o Japão e sua cultura misturam-se a lembranças de infância, como
os diversos amigos nikkeis, os seriados japoneses na televisão e as
revistas em quadrinho. Na adolescência, freqüentava o Bairro da
Liberdade, principalmente nos dias de festa. Com o objetivo de
melhor entender os programas a que assistia e estimulado pelos
relatos de viagem dos parentes de seus amigos nikkeis, decidiu
estudar japonês, o que contribuiu para o aumento do interesse
que tinha pelo país. Desse modo, ao receber um telefonema de
um amigo informando sobre o processo de seleção de bolsistas,
não hesitou em participar.
Atualmente, destaca o respeito à hierarquia e à capacidade
de trabalho em grupo como características que julga fundamentais
para a compreensão do modo de pensar e de ser do japonês. A
importância dada ao comportamento individual na consecução do
bem comum fez com que ele tenha se empenhado em refletir mais
sobre as necessidades do próximo antes de defender as suas. No
Japão, é voluntário em programas de divulgação da cultura
brasileira, sobretudo daqueles relacionados à universidade em que
estuda. Quando retornar ao Brasil, Gilberto pretende trabalhar
em alguma instituição ou empresa japonesa, dando continuidade
às relações, por ele formadas, entre ambos os países.
217
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
Roberto Drebes é gaúcho, mas, desde abril de 2006,
reside em Tóquio. O Japão foi um país distante de sua realidade
até participar de um programa de estágio promovido por uma
ONG de estudantes. A experiência foi tão marcante que, ao
chegar ao Brasil, logo ingressou em um curso de língua japonesa
a fim de manter-se próximo a essa cultura e de ter acesso a
publicações referentes ao desenvolvimento tecnológico japonês.
Anos mais tarde, decidiu participar da seleção de bolsistas
realizada pelo Escritório Consular em Porto Alegre e, assim,
voltar para o Japão. Aprovado, é doutorando no Centro de
Pesquisa para Ciência e Tecnologia Avançadas da Universidade
de Tóquio.
Cabe notar que o interesse pelos estudos japoneses pode
relacionar-se a temas que vão além do interesse estritamente
cultural. Conforme o exemplo de Drebes, o aprofundamento
do intercâmbio tecnológico entre o Brasil e o Japão pode
proporcionar contribuições importantes que não se restringem
à pesquisa em si. O aprimoramento das trocas de conhecimento
poderá originar projetos de grande envergadura, haja vista a
experiência do Programa de Desenvolvimento do Cerrado –
Prodecer e a recente televisão digital de tecnologia japonesa.
A especialização na área tecnológica não impede que
Roberto esteja atento às diferenças culturais entre brasileiros e
japoneses, nem que os laços por ele formados estejam limitados às
paredes do laboratório. Ele considera especialmente intrigante a
atenção que os japoneses dão às minúcias e a dificuldade que têm
diante do improviso. Além disso, admira a capacidade da sociedade
japonesa de evitar conflitos, uma vez que todos obedecem
rigorosamente a um conjunto de regras não-escritas de convívio.
Nas horas vagas, Drebes dedica-se à leitura de romances japoneses e,
nos feriados, procura conhecer outras cidades com seus novos amigos
japoneses.
218
VIVIANE FERREIRA LOPES
1.2.3. PROFISSIONAL BRASILEIRO EM ATIVIDADE NO JAPÃO
Fernanda Torres Magalhães, mestre em História pela
Universidade de São Paulo, cresceu em São Paulo e, quando tenta
recordar seus primeiros contatos com a cultura japonesa, vêm-lhe à
mente os passeios de domingo no Bairro da Liberdade. A vida na
capital paulista nunca lhe permitiu ignorar a imigração japonesa,
mas foi somente após ter recebido um convite do Departamento de
Estudos Brasileiros da Universidade de Estudos Estrangeiros de
Osaka (atual Universidade de Osaka) que começou a buscar
informações sobre o país. A oportunidade de ensinar cultura
brasileira a japoneses intrigou a professora, que, aceitando o desafio,
mudou-se para o Japão, onde mora há cinco anos.
Doutoranda da Universidade de Osaka, a Prof. Fernanda
atua nas duas frentes da promoção do entendimento entre Brasil
e Japão. Por um lado, ensina o português a seus alunos e os
introduz na compreensão da cultura e do modo de vida
brasileiros. Por intermédio da professora, esses universitários
japoneses têm a oportunidade de entrar em contato com a música,
a literatura, e a culinária brasileiras, sendo que alguns deles
manifestaram interesse de estudar no Brasil para aprofundar seus
conhecimentos sobre o país. O aprendizado do português viabiliza
a interação individual dos alunos com o Brasil, seja por meio da
leitura ou do diálogo direto com brasileiros. Futuramente, esses
alunos poderão constituir peça-chave no desenvolvimento das
relações bilaterais.
Por outro lado, ao preparar sua tese sobre a imagem que
vem sendo construída no Japão sobre o Brasil e os brasileiros, presta
grande favor àqueles que se relacionam com os japoneses, fornecendo-
lhes elementos que os permitam mapear a inserção brasileira no
imaginário japonês. Outra importante contribuição aos estudos
japoneses foi o lançamento de 06 de Agosto de 1945 – Um clarão no
219
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
céu de Hiroshima
11
, obra integrante de coleção destinada a explicar a
jovens brasileiros as razões e conseqüências de eventos históricos
mundiais.
A disciplina japonesa e a compartimentação do tempo em
unidades estanques e precisas são características que entende serem as
mais marcantes na sociedade japonesa. Salienta que mudanças
psicológicas provavelmente ocorreram ao longo desses cinco anos,
mas, dada a suavidade desse tipo de transição, não seria capaz de
identificá-las.
1.2.4. CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS DEPOIMENTOS
As experiências apresentadas demonstram a força da
presença japonesa no Brasil. Em primeiro lugar, a comunidade
nikkei, dada sua singularidade, está, ao mesmo tempo, inserida nos
mais diferentes espaços da sociedade brasileira, e voltada à
manutenção de suas tradições. Freqüentemente, brasileiros não-
descendentes vêem-se envolvidos pela cultura japonesa e por temas
a ela relacionados em decorrência do convívio com nipo-brasileiros.
Vale ressaltar, ademais, a intensa atuação de organizações japonesas
e de seu governo no sentido de atrair intelectuais e estudiosos
brasileiros que, futuramente, possam difundir a cultura nipônica
no Brasil. Como resultado, nota-se a crescente participação de
brasileiros não-descendentes nos processos de seleção de bolsas de
estudo.
Os programas de intercâmbio são instrumentos de
grande eficácia na criação de laços humanos sólidos entre os países.
Alunos e profissionais que viveram no Japão não só comumente
se tornam estudiosos dos temas referentes a esse país, como, em
11
MAGALHÃES, Fernanda T. 06 de Agosto de 1945 – Um clarão no céu de Hiroshima.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.
220
VIVIANE FERREIRA LOPES
sua rotina de trabalho, sentir-se-ão especialmente motivados a
interagir com o Japão. Além disso, a presença de estudantes e
acadêmicos brasileiros no Japão é oportunidade de difusão da
cultura brasileira e de absorção de conhecimentos que poderão
ser futuramente aplicados ao desenvolvimento nacional.
A formação de laços com nacionais daquele país é
condição estratégica para a implantação de futuras parcerias.
Portanto, as bolsas de estudo, criadas em momento de
aprofundamento dos laços entre Brasil e Japão, devem merecer
atenção especial quando do estabelecimento de uma “Aliança para
o Século XXI”.
12
SEÇÃO II
2.1) A FORÇA DO MANGA E DO ANIME ENTRE AS NOVAS GERAÇÕES
A revolução dos quadrinhos japoneses, que originaram
as modernas obras de manga, teve início com o trabalho do
jovem desenhista Tezuka Osamu. Em 1947, Osamu publicou “A
nova ilha do tesouro” (Shintakarajima), introduzindo uma
estrutura de linguagem mais fluida mediante a incorporação de
efeitos cinematográficos. A obra foi um sucesso, com tiragem
de quase 800 mil exemplares. Ao longo de sua carreira, Osamu
foi influenciado pelos quadrinhos de Walt Disney, mas, sobretudo,
pelas atrizes do teatro de Takarazuka, o qual ficou famoso por
utilizar mulheres na interpretação de papéis femininos e
masculinos. Essas atrizes utilizavam pesada maquiagem nos olhos
a fim de aumentá-los, o que explica o tamanho desproporcional
12
OLIVEIRA, Henrique Altemani de; LESSA, Antônio Carlos. Relações Internacionais
do Brasil: temas e agendas. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2006.
221
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
dos olhos dos heróis de manga e os traços delicados dos
personagens masculinos.
O manga é comumente percebido como “uma válvula de
escape silenciosa, afeita aos japoneses que preferem reprimir e
interiorizar seus sentimentos.”
13
No Brasil, os quadrinhos cumpriram
importante papel na formação nikkei ao atrair o público infantil ao
idioma e a temas japoneses. Além disso, a leitura de mangas possibilitou
a constante atualização da língua pelos imigrantes japoneses, uma
vez que a linguagem utilizada é a de uso cotidiano no Japão. Contudo,
o sucesso internacional que alcançou nos últimos anos, indica que o
fascínio exercido pelos quadrinhos japoneses e por suas versões
cinematográficas, os animes, não afeta somente seus nacionais e
descendentes.
A criação da Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá
e Ilustrações – Abrademi, em 1984, pode ser vista como o marco
inicial da difusão dessa arte no Brasil, embora, somente uma década
depois, com a exibição dos Cavaleiros do Zodíaco pela extinta TV
Manchete, o manga e do anime tenham se tornado populares. A Bandai,
empresa detentora dos direitos autorais dos Cavaleiros do Zodíaco, valeu-
se, na época, da favorável cotação do dólar decorrente do Plano
Real e estimulou a importação de inúmeros produtos que levavam o
nome da referida série de desenhos animados.
O sucesso dos Cavaleiros do Zodíaco foi seguido da publicação
de revistas especializadas, como a Herói, a Animax e a Anime Dô.
Por meio dessas revistas, o público brasileiro infanto-juvenil teve
acesso à história dos animes, vindo a descobrir sua versão escrita, o
manga, o que tornou possível a formação de um público leitor para
os quadrinhos que seriam publicadas, a partir de 2001, já em
português. Os resultados alcançados por filmes como “A Viagem de
13
LUYTEN, S. M. B. O poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Liberdade Fundação
São Paulo, 1991.
222
VIVIANE FERREIRA LOPES
Chihiro”, de Hayao Miyazaki, consolidaram a fórmula de sucesso
dos desenhos japoneses, baseados tanto na versão escrita quanto na
cinematográfica. Atualmente, é possível afirmar que o manga e o anime
tornaram-se um forte novo elemento do universo infantil brasileiro, seja
em meio à comunidade japonesa ou entre os não-descendentes.
Observa-se, no entanto, que a linguagem utilizada pelo manga e
pelo anime é extremamente simbólica. O empenho dos tradutores em
transmitir aos leitores a intenção do autor encontra sérios obstáculos em
razão da impossibilidade de traduzir, em pequenas palavras, não só a
parte escrita da obra original, mas também a mensagem contida nas
imagens. A profundidade do cumprimento japonês, por exemplo, é
carregada do significado alusivo à hierarquia existente entre os
protagonistas. Desse modo, os jovens fãs dos quadrinhos vêm recorrendo
às escolas japonesas para aprender o idioma de seus super-heróis e o
contexto cultural em que se inserem.
2.2) DEPOIMENTOS
Rafael Vianna Valadares Araújo formou-se, em 2007, em
Engenharia Mecatrônica pela Universidade de Brasília. É aluno do
curso de japonês da Escola Modelo de Brasília, tendo passado ao nível
intermediário recentemente, após dois anos e meio de estudo. O
japonês fazia parte de sua vida desde a infância, quando começou a se
interessar por animes e mangas. Até hoje é leitor dos quadrinhos
japoneses, hábito que cultiva também como forma de agilizar o
aprendizado do idioma. Afirma que esse contato inicial com o japonês
foi essencial para sua decisão de estudar a língua.
Após iniciar o curso de Engenharia, no entanto, Rafael
deixou de ter no manga e no anime o foco de seus interesses pelo
Japão. Descobriu esse país como referência na área de controle e
automação. Assim, os estudos japoneses ganharam interesse
profissional. Pensando no futuro e na possibilidade de concorrer a
223
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
uma bolsa de especialização, Rafael começou a estudar seriamente o japonês.
Crê que o domínio do idioma pode ser um diferencial no processo seletivo
da bolsa de estudos e que será instrumento essencial para o aproveitamento
das aulas que espera assistir no Japão.
Por enquanto, Rafael aprofunda-se no japonês e acompanha
as inovações tecnológicas apresentadas pelos japoneses, as quais ele
deseja, no futuro próximo, trazer para o Brasil.
Marina Ferreira Uchôa é a única não-descendente dentre os
membros da Diretoria Social do Grupo de Jovens Mirai, um grupo
de convivência de jovens nikkeis. Participa da organização do JapanFest,
evento comemorativo do centenário da imigração japonesa no Brasil,
e faz parte de um grupo de taiko
14
. Além de estudar Ciências Sociais
na Universidade de Brasília, é criadora da raça de cachorros Akita
anu, cujos proprietários são, em maioria, japoneses (isseis). Portanto,
a fim de continuar no negócio, percebeu que era preciso estudar o
japonês, o que, dado seu interesse por manga e anime pareceu-lhe
uma ótima solução.
O manga e o anime constituem seu passatempo favorito e
instrumento de revisão e consolidação do conteúdo aprendido em
sala de aula. O gosto pelo manga aproximou-a, ainda mais, da
comunidade nikkei de Brasília, levando-a a se impressionar com a
capacidade dos nipo-brasileiros de manterem suas tradições ainda que
vivendo tão distante de sua terra natal. Afirma que o comportamento
social dos nikkeis fez com que ela valorizasse ainda mais sua família e
seus amigos, e, com base na persistência japonesa, passasse a perseguir
seus sonhos com maior veemência.
Nos primeiros encontros com a comunidade japonesa, sentiu-
se deslocada por ser a única desconhecida dentre as famílias nikkeis.
Aos poucos, contudo, conseguiu demonstrar que, apesar de não ter
as mesmas origens, era igualmente interessada pela cultura japonesa,
14
Tambores japoneses.
224
VIVIANE FERREIRA LOPES
conquistando a confiança e a amizade da comunidade. Hoje, seus melhores
amigos, inclusive seu namorado, são nikkeis, os quais costumam dizer que
Marina “é como se fosse japonesa”.
2.2.1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS DEPOIMENTOS
Rafael e Marina são jovens que, apesar da importância do
manga e do anime para sua formação em japonês, buscaram no idioma
uma forma de atingir outros objetivos. Rafael reconheceu as vantagens
profissionais que poderão decorrer do conhecimento da língua japonesa.
Marina descobriu um novo mundo em sua própria cidade. Conclui-se,
assim, que o sucesso dos quadrinhos japoneses não produz conhecimento
limitado à fantasia de suas histórias e intrigas, mas é arte de fácil acesso
para crianças e jovens que, com o passar do tempo percebem a ampla
dimensão dos estudos japoneses, dos quais o manga constitui apenas um
capítulo.
Embora, no Japão, existam quadrinhos específicos para cada
faixa etária, no Brasil e na maior parte dos países ocidentais, o manga
cativou o público infantil e adolescente. Essa constatação é muito
promissora para o futuro dos estudos japoneses. As estatísticas,
anteriormente apresentadas, acerca da maior participação de alunos
não-descendentes nas escolas japonesas excluem menores de 15 anos.
Considerando, assim, que o sucesso dos personagens japoneses era
restrito até meados da década de 1990, é possível afirmar que o
movimento atual de aproximação entre não-nikkeis e a cultura japonesa
sofreu influência limitada da popularização do manga. Portanto,
espera-se que as atuais crianças e adolescentes, no futuro próximo,
exerçam ainda maior demanda pelos cursos de japonês e cultura
japonesa. A segunda vertente de que tratou a Prof. Suzuki, move-se,
com rapidez, em direção ao saber acumulado pelos imigrantes
japoneses.
225
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
SEÇÃO III
3.1) BENEFÍCIOS E DESAFIOS DA PARTICIPAÇÃO CRESCENTE DE BRASI-
LEIROS NÃO-DESCENDENTES NAS RELAÇÕES BRASIL-JAPÃO
15
3.1.1. BENEFÍCIOS
A crescente participação de não-nikkeis em escolas japonesas
e em programas de intercâmbio acadêmico e profissional deve ser vista
com entusiasmo. Diversos são os benefícios decorrentes desse fenômeno
para um relacionamento mais profundo e duradouro entre os países
em tela. A atuação de nikkeis nas relações Brasil-Japão é estratégica,
haja vista a maior facilidade de compreensão entre os nipo-brasileiros
e os japoneses, seja pelo domínio do idioma ou pelo compartilhamento
de um conjunto simbólico distinto do brasileiro. No entanto, a atuação
de não-descendentes também apresenta características positivas,
enriquecendo, ainda mais, os recursos humanos brasileiros na interface
com o Japão.
Em primeiro lugar, o aumento do interesse de não-
descendentes pelos estudos japoneses, ao invés de diluir a participação
de nikkeis nas escolas, programas de intercâmbio e em empresas
japonesas, atua como propulsor de movimento de retorno às origens
pelos próprios descendentes. A popularização da cultura japonesa
renovou o orgulho das novas gerações que se encontravam em crise
de identidade diante do enfraquecimento de sua auto-percepção
como nipo-brasileiras. O sucesso dos personagens de manga e anime e
o interesse pela língua japonesa, por exemplo, dentre os não-
descendentes, conferiu novo valor à identidade nipo-brasileira,
demonstrando, aos próprios nikkeis, a força de sua cultura. Assim, a
15
Agradeço ao Professor José Marcos Domingues de Oliveira pelas considerações
apresentadas sobre o tópico.
226
VIVIANE FERREIRA LOPES
memória da imigração japonesa passa a ser preservada não só pela
comunidade japonesa, mas pela sociedade brasileira em sentido
amplo.
Ademais, no que tange o relacionamento bilateral, o contato
realizado entre um japonês e um brasileiro não-descendente pode
proporcionar intercâmbio cultural mais intenso. Será afastado o risco
de que a formação nikkei obscureça outras facetas da cultura brasileira
em decorrência da cumplicidade, entre os interlocutores, em torno
de uma origem comum. Desse modo, o não-descendente poderá
transmitir uma imagem mais clara da realidade brasileira, sem que as
semelhanças culturais entre os membros da comunidade japonesa
no Brasil e os japoneses inviabilizem o conhecimento mais extenso
do modo de pensar e de agir brasileiros.
No mesmo sentido, o estudo do Japão por brasileiros não-
descendentes pode resultar em obras de grande valor acadêmico,
dada a utilização de lente diversa daquela geralmente utilizada pelos
japoneses, a qual, muitas vezes, é reproduzida pela comunidade
japonesa no Brasil. Isso não se refere exclusivamente aos estudos
sobre o Japão elaborado por seus nacionais ou descendentes; antes,
é fenômeno comum em qualquer país ou sociedade na história. O
olhar exterior sobre fatos e eventos de importância nacional é
oportunidade de auto-conhecimento, sendo importante notar o apoio
dado pela academia japonesa aos estudos realizados, sobre esse país,
nas universidades e centros de pesquisa norte-americanos. Dessa feita,
a dedicação de não-descendentes brasileiros aos estudos nipônicos é
forma de ampliação da capacidade crítica dos trabalhos realizados,
no Brasil, sobre o Japão.
Por fim, a disseminação da cultura japonesa na sociedade
brasileira, em especial entre não-descendentes, tem servido como
estímulo a debates que buscam ir além de análises simplistas. A
proliferação de restaurantes japoneses, da oferta de objetos de
decoração com temas orientais, a presença de filmes japoneses nas
227
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
salas de cinema nacionais e o grande número de cursos de língua
japonesa
16
são fatores que incitam à discussão sobre o que, de fato,
corresponde aos ensinamentos e manifestações culturais daqueles
japoneses que vieram ao Brasil em busca de trabalho, ou o que é
fruto de uma construção de marketing que inclui no patrimônio cultural
japonês características próprias de outros povos orientais, como os
coreanos e os chineses. Cria-se, portanto, uma atmosfera propícia ao
aprofundamento dos estudos japoneses e ao redescobrimento das
especificidades de sua cultura.
3.1.2 DESAFIOS
O maior desafio enfrentado por um não-nikkei que deseja
aprofundar-se nos estudos japoneses é a superação do obstáculo
lingüístico. Ao contrário da língua inglesa e da espanhola, cujo
aprendizado, desde cedo, é estimulado por pais e professores, o interesse
pelo japonês surge a partir da juventude e por iniciativa própria.
Considerando que o curso formal de japonês dura cerca de dez anos
e que o não-nikkei inicia seus estudos durante a universidade, a
probabilidade de que compromissos de trabalho e conseqüente falta
de tempo o afastem do idioma são grandes. Além disso, o japonês
requer exercício constante, haja vista a existência de três alfabetos
distintos, sendo um deles composto por ideogramas. A fim de
compreender uma reportagem de revista, por exemplo, é preciso
conhecer cerca de 1500 ideogramas, saber decorrente de muito estudo
e empenho.
O custo de oportunidade envolvido na escolha pelo estudo do
japonês é, assim, bastante elevado. O cálculo normalmente feito pelos
indivíduos, ou pelos pais que desejam iniciar seus filhos em uma nova
16
Existem cerca de 330 instituições de ensino.
228
VIVIANE FERREIRA LOPES
língua, foca-se nas variantes tempo e custo do estudo em comparação
com os benefícios decorrentes do domínio do idioma. No caso do
japonês, conforme dito, o período de aprendizado é extenso. Os
gastos, por sua vez, podem ser minimizados quando a instituição de
ensino recebe subsídios; caso contrário, o preço da mensalidade é
elevado.
A utilização do idioma no meio profissional e acadêmico é
restrita. A academia ainda oferece pouco espaço para aqueles que
desejam orientar sua tese em direção a temas mais desconhecidos da
cultura japonesa, sob alegação de falta de interesse prático. Assim,
pós-graduandos brasileiros vêem-se premidos a repetirem temas ou a
se limitarem aos estudos lingüísticos. No caso de empresas japonesas,
o clima de intensa competitividade resulta das poucas vagas de emprego
ofertadas. Portanto, observa-se que os estímulos à imersão nos estudos
japoneses são reduzidos, relacionando-se, em especial, a uma
identificação pessoal com o país.
Outro obstáculo verificado é a falta de familiaridade com
as organizações que estruturam a comunidade japonesa no Brasil. Os
nikkeis brasileiros são altamente organizados e diversas são as entidades
que cuidam de seus interesses. A hierarquia que caracteriza a sociedade
japonesa é reproduzida no relacionamento entre as organizações e
entre seus membros. O desconhecimento do não-descendente acerca
das atribuições específicas de cada entidade e da maneira apropriada
de lidar com seus representantes pode dificultar seu acesso a
informações que seriam caras a seu objeto de estudo. Comumente, a
comunidade japonesa é vista como impermeável a não-descendentes,
concepção que afasta esses brasileiros dos estudos japoneses. No
entanto, essa fama não procede, uma vez que, há mais de duas décadas,
a comunidade iniciou processo de abertura aos não-descendentes,
conforme visto.
É preciso, portanto, transpor o estágio inicial de conhecimento
referente aos estudos e à ética japonesa. Nesse sentido, nota-se que a
229
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
17
NAKATA, Michiko; SUZUKI, M.E. (org.), idem.
18
Ganbaru: persistir, insistir; manter-se firme; resistir. Dicionário Prático Japonês-
Português Michaelis.
19
NINOMIYA, Sonia Regina Longui. Estudos Japoneses no Brasil: língua/literatura.
In: Anais do XI Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura
e Cultura Japonesa. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.
iniciação aos temas japoneses é fase de grande entusiasmo para os não-
descendentes. Os primeiros contatos com a língua dão significado àqueles
códigos outrora misteriosos, transformando-os em letras. As noções de
etiqueta japonesa, o conhecimento de formas distintas de manifestação
artística e o acesso a outras informações da história japonesa trazem a
sensação da descoberta de um mundo novo. Nesse momento, o
aprendizado é rápido. Com o passar do tempo, no entanto, vislumbra-
se barreira de difícil superação.
Torna-se necessário dominar o idioma para aprofundar-se nos
estudos, o que requer tempo e dedicação. A quantidade de livros em
português é muito pequena e, embora exista maior oferta em inglês, as
traduções são comprometidas não só pela especificidade da língua
japonesa, mas principalmente porque, para o japonês, importa a
sugestão da fala e não o que em si foi dito. De acordo com a Professora
Nakata, “no ensino da língua japonesa, à medida que se atingem níveis
superiores, a desistência progressiva faz com que o número de alunos
seja representado por uma pirâmide... Falando em termos exagerados,
é comum pensar que se houver 500 alunos principiantes de japonês,
haverá 50 no nível intermediário e 5 no nível avançado.”
17
O conceito
do ganbarimasu
18
torna-se palpável como nunca, sendo preciso olhar
para a determinação dos próprios japoneses a fim de continuar.
CONCLUSÃO
Conforme notou a Professora Sonia Ninomiya, “hoje, pode-se
dizer que o saber japonês já está se ‘nacionalizando’, tendo extravasado as
bordas da comunidade nikkei”.
19
O aprofundamento das relações Brasil-
230
VIVIANE FERREIRA LOPES
Japão não mais se limita às atividades das comunidades japonesas. A
densa teia de relações é composta, cada vez mais, por fios bordados
por não-descendentes que, valendo-se da estrutura propiciada pela
imigração, aprenderam a valorizar a relação entre os dois países
atuando na ampliação dessa rede. Observa-se haver ocorrido o
transbordamento da influência japonesa para além de seus
descendentes.
O centenário da imigração japonesa é, portanto, motivo de
celebração para todos os brasileiros. É evento que marca a introdução
de elementos sócio-culturais à matriz nacional, modificando-a no
sentido de conferir-lhe as características atuais. As contribuições da
imigração japonesa são imensuráveis, uma vez já terem sido
absorvidas e agregadas ao arcabouço cultural brasileiro, tornando-
se parte dele. Os imigrantes que para cá vieram desempenharam
importante papel no desenvolvimento brasileironacional, participando
do processo de industrialização e auxiliando a implantação de
produtos agrícolas. O empenho japonês foi, assim, inspiração para a
sociedade brasileira que, ciente dessa contribuição, apresenta-se
desejosa de aprender, cada vez mais, sobre seu modo de pensar e
suas artes.
O aumento da procura pela formação em japonês deve-se,
em primeiro lugar, à comunidade japonesa no Brasil, que trabalhou
no sentido de divulgar sua cultura materna. Acrescenta-se, ademais,
a exposição que os países asiáticos alcançaram na mídia nos últimos
anos e o grande sucesso dos mangas e dos animes. No Brasil, contudo,
o interesse dos não-descendentes não é resultado de mero modismo.
Antes, é conseqüência de uma longa convivência entre nikkeis e não-
nikkeis. É fruto da história de representantes de um povo que, em
busca de trabalho, encontraram um país débil com vontade de ser
grande. E é esse mesmo país, já crescido, mas ainda com algumas
dificuldades que, 100 anos depois, olha para a comunidade japonesa
aqui sediada com orgulho e gratidão, mas também olha para o futuro
231
O TRANSBORTAMENTO DA INFLUÊNCIA: BRASILEIROS NÃO-DESCENDENTES E A IMIGRAÇÃO JAPONESA
na certeza de que o amadurecimento das relações Brasil-Japão
depende da interação entre seus nacionais e da ampliação, por
descendentes e não-descendentes, do conhecimento mútuo.
VI.
REFLEXÕES
235
Yukie Watanabe
REFLEXÕES
No início da década de 40, a família Hara não pensava mais
em retornar ao Japão. Há quase trinta anos no Brasil, seria muito
difícil deixar para trás tudo o que haviam conquistado com tanto
sacrifício. Em 1917, haviam deixado as fazendas de café do interior
paulista e comprado terras no litoral do Paraná, participando da
fundação da primeira colônia japonesa independente no Estado.
Nos anos que se seguiram, os Hara criaram seus cinco filhos,
todos nascidos no Brasil, desenvolveram boas relações com a população
local e, para os padrões da época, prosperaram. Do plantio do arroz
previsto inicialmente, expandiram para o da cana-de-açúcar e para a
fabricação de aguardente, compraram um depósito em Curitiba,
abriram um armazém de secos e molhados e um engenho de beneficiar
arroz na cidade de Antonina, também no litoral paranaense. As
perspectivas eram melhores no Brasil do que poderiam esperar na
eventual volta à terra natal.
Em 1942, no entanto, quando o Brasil rompeu relações
diplomáticas e comerciais com o Japão, os acontecimentos passaram a
contrariar a lógica da permanência neste país. As medidas restritivas
às atividades de estrangeiros foram exacerbadas e o sentimento anti-
nipônico se acirrou entre a população. Os japoneses eram
freqüentemente insultados nas ruas e suas propriedades eram
vandalizadas. Com os Hara não foi diferente, o moinho de arroz e o
armazém foram saqueados e as relações com os vizinhos brasileiros
tornaram-se menos cordiais. Preocupados com as intervenções que as
empresas de alemães, italianos e japoneses vinham sofrendo, resolveram
colocar todos os negócios em nome dos filhos, que eram brasileiros.
236
YUKIE WATANABE
Consciente de que a nacionalidade brasileira havia poupado
parte dos bens da família do congelamento decretado em fevereiro de
42, o primogênito, Chuniti, apresentou-se à Junta Militar de Antonina,
como lhe haviam dito que os jovens brasileiros deveriam fazer. Ouviu
do oficial encarregado que o Exército Brasileiro não aceitava japoneses.
Isso confirmou a sensação que tinha quando andava pelas ruas: nascer
no Brasil tinha sido um acidente, ele era, na verdade, japonês, como
seus pais.
Em vista disso, não se surpreendeu quando foi obrigado,
em setembro daquele ano, a acompanhar o restante da família na
evacuação da faixa litorânea, considerada área de segurança nacional e,
portanto, vedada aos “súditos do Eixo”. Pelo mesmo motivo, dois
anos depois, quando a família procurava retomar os negócios em
Curitiba, desconsiderou a convocação para se apresentar ao Exército
e incorporar-se à Força Expedicionária Brasileira.
Meses mais tarde, foi surpreendido em casa por soldados do
Exército que o levaram para o Quartel General em Curitiba, onde
teve de explicar a demora em se apresentar. Chuniti tentou esclarecer
que fora recusado dois anos antes e perguntou: “Quando é para
expulsar minha família das nossas terras, sou japonês. Agora, querem
me mandar para a guerra, então, sou brasileiro?”. O questionamento
resultou em ordem de prisão.
A liberdade ficou condicionada ao alistamento no Exército,
com o qual Chuniti concordou quando soube que o pai havia sido
preso ao tentar obter a sua libertação. Assim, em fevereiro de 1945,
Chuniti embarcou rumo à Itália para integrar as forças do país que
parecia, até então, não o reconhecer como nacional.
Com o fim da guerra na Europa, Chuniti retornou ao Brasil.
Era um herói brasileiro da Segunda Guerra Mundial, mas, no dia-a-
dia, pouco havia mudado. A discriminação contra a comunidade
japonesa demorou a arrefecer e Chuniti voltou a ser “japonês”. O
jovem, no entanto, não tinha tempo para se preocupar com a questão
237
REFLEXÕES
da nacionalidade, queria apenas esquecer esse período sombrio e a
guerra. Queria trabalhar, ajudar a família a reorganizar os negócios e
retomar a vida normal. Como mandava a tradição, casou-se com a
noiva escolhida pelos pais, filha de antigos vizinhos da época da colônia
no litoral do Paraná. Teve cinco filhos, criados na rígida disciplina
japonesa, mas matriculados nas melhores escolas católicas de Curitiba.
Não se sabe se voltou algum dia a sentir-se brasileiro.
Descobriu, no entanto, de forma inusitada, que fazia parte de
comunidade bastante numerosa na sua cidade, a dos filhos de
imigrantes. Os brasileiros na Curitiba dos anos 50 e 60 não
correspondiam fielmente ao retrato da população brasileira formada
por índios, portugueses e negros, descrita por Gilberto Freyre; eram,
em grande número, descendentes de italianos, alemães e poloneses.
Assim, quando começou a trabalhar no Mercado Municipal de
Curitiba, Chuniti passou a ser conhecido como “seu” Schmidt, mais
fácil (e para alguns, mais brasileiro) que o exótico nome japonês. Lá,
Chuniti, mesmo que não se sentisse igual aos seus companheiros,
tinham, ao menos, algo em comum.
Quando Chuniti faleceu em 2003, foram realizados os cultos
xintoísta, budista e católico para que a família e os amigos – japoneses,
descendentes ou gaijins
1
– pudessem prestar homenagem na
denominação de sua preferência. A medida parece estar de acordo
com a vida desse homem: um brasileiro que parecia japonês, que
preferia costela assada a sushi, que foi enterrado com a bandeira da
FEB e que, mesmo assim, não conseguiu sentir-se inteiramente
brasileiro. Porque a herança cultural dos pais japoneses exercia forte
influência ou porque alguns brasileiros não o aceitavam como
compatriota, Chuniti viveu e morreu com a dualidade de ser nipo-
1
Gaijin é a palavra japonesa utilizada para designar estrangeiro. No Brasil, a
comunidade freqüentemente a utiliza para indicar pessoas que não são descendentes de
japoneses.
238
YUKIE WATANABE
brasileiro, dividido entre dois mundos, duas culturas e duas lealdades,
era “desterrado em sua própria terra”.
***
Passados mais de sessenta anos desde que Chuniti Hara foi
rejeitado como brasileiro e preso porque se considerou japonês, os
nikkeis
2
de quarta, quinta ou sexta geração não enfrentam o mesmo
dilema da nacionalidade. Consideramo-nos brasileiros porque
nascemos no Brasil e aqui fomos criados. Sabemos, porém, que as
nossas feições e o legado cultural de nossos ancestrais nos distinguem
de nossos compatriotas em alguns aspectos. Livres da carga dramática
que acompanhou os nipo-descendentes nas décadas de 30 e 40, não
precisamos escolher entre os dois países, mas ainda devemos
compreender a complexidade da nossa herança para podermos
encontrar nosso espaço na formação da identidade nacional.
O ano de 2008 marcará, possivelmente, momento de especial
reflexão sobre a participação dos imigrantes japoneses e seus
descendentes na construção do Brasil e da identidade brasileira.
Comemora-se, neste ano, o centenário da chegada das primeiras famílias
japonesas ao Brasil, trazidas pelo navio Kasato Maru. As dimensões
da celebração demonstram a importância dessa contribuição e da mútua
influência que brasileiros e japoneses exerceram uns sobre os outros.
A entusiástica adesão da comunidade nipo-brasileira à organização do
evento, por sua vez, representa o desejo de homenagear os esforços e
o legado dos pioneiros, bem como, para alguns, o resgate das raízes
familiares.
O marco do centenário, ao trazer para o centro do debate a
questão da imigração e da inserção dos japoneses na sociedade brasileira,
2
Nikkei significa “de origem japonesa”, os descendentes de japoneses espalhados pelo
mundo.
239
REFLEXÕES
deve proporcionar aos nikkeis melhores condições para entender a
própria identidade. As tradições, os valores e a aparência de um povo
que atravessou o oceano para estabelecer-se no Brasil, por muito tempo,
apartaram nossos ancestrais da sociedade brasileira. Apesar da
evolução, o desafio da integração ainda não desapareceu totalmente,
pois ainda vivemos a distinção dessa herança singular. Para
compreendermos quem somos, precisamos buscar o equilíbrio entre
a vivência da realidade brasileira e as referências da tradição nipônica.
As tensões entre o ser brasileiro e o ethos japonês
remanescente tendem a desaparecer à medida que a miscigenação dilui
o fator mais evidente da diferença, os traços físicos, e o passar do
tempo apaga as experiências de discriminação que familiares sofreram
nos primeiros tempos. Até que isso ocorra, uma parte da identidade
dos nipo-brasileiros continuará sendo construída sobre a necessidade
ou o desejo de provar que os olhos puxados não nos fazem menos
brasileiros.
A sensação de distanciamento da sociedade brasileira tem
várias origens. Antes mesmo da chegada dos primeiros imigrantes
nipônicos, grupos que defendiam a necessidade de branqueamento da
raça manifestavam-se contra a vinda de “amarelos”
3
, alegando que a
entrada de grupo racialmente inferior apenas atrasaria o ingresso do
Brasil no concerto das nações civilizadas. Os japoneses que vieram,
por sua vez, não contribuíram para maior aproximação: certos de
que voltariam à terra natal, não demonstravam interesse em misturar-
se aos vizinhos. Alguns chegaram a deixar as filhas no Japão, ou a
enviá-las de volta, por receio de que a criação no Brasil as impedisse de
conseguir um bom casamento. A tradição japonesa do miai, o
casamento arranjado pelos pais, foi também responsável pelo pequeno
índice de uniões com pessoas de outras etnias. Na tentativa de manter
3
SETO, Cláudio e UYEDA, Maria Helena. Ayumi (caminhos percorridos). Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2002. Págs. 17, 18 e 31.
240
YUKIE WATANABE
os costumes e preservar a família, escolhiam-se dentro da comunidade
os parceiros para os filhos.
A Segunda Guerra Mundial e o fato de Brasil e Japão estarem
em lados opostos, prejudicou ainda mais a integração entre japoneses
e brasileiros. Foi um período de preconceito explícito, como foi
possível observar pela atitude diferenciada em relação aos “inimigos”
europeus, alemães e italianos. Embora sofressem as mesmas restrições
oficiais, foram menos hostilizados pela população. Como não eram
denunciados pela aparência e seus costumes eram mais próximos dos
hábitos nacionais, sofreram menos constrangimentos durante o
conflito.
Mesmo com o final da guerra, os japoneses e os seus
descendentes ainda tinham dificuldade em abandonar a atitude
defensiva que tiveram de manter durante o Estado Novo. O
preconceito trocou de sinal e aqueles que tinham sido discriminados
no período anterior mantiveram postura de extrema reserva em relação
aos gaijins. Brigas familiares ou fugas ocasionadas por casamentos com
não-descendentes fazem parte da história de muitas famílias no período
pós-guerra e continuaram a ocorrer, apesar do número crescente de
casamentos interétnicos. Já no começo da década de 90, Chuniti Hara
relutou em aceitar o casamento da filha caçula com um não-descendente,
seguindo a opinião, comum entre familiares e amigos, de que gaijins
não compreendiam nem aceitavam a cultura japonesa e, portanto,
dificultariam a transmissão de valores caros à tradição nipônica.
Chuniti eventualmente rendeu-se aos fatos, aceitou o
casamento da filha e, como em muitas outras histórias, foi totalmente
vencido pelo nascimento do primeiro neto mestiço, a alegria de seus
últimos anos. Único entre os primos, o neto mais novo de Chuniti
não é raridade quando se considera o conjunto da comunidade nikkei.
Em pesquisa de 1988
4
, a historiadora Célia Oi constatou que 61% da
4
Publicada na Revista Veja de 12 de dezembro de 2007.
241
REFLEXÕES
quarta geração de descendentes têm ao menos um ascendente não-
japonês. A mesma pesquisa demonstra que foram os sanseis
5
a inverter
a estatística e casar com mais freqüência fora da comunidade, já que,
entre eles, apenas 42% eram miscigenados. Os números demonstram
claramente a diminuição da resistência à mistura, mas, ao se considerar
que se trata de país historicamente mestiço, como o Brasil, a etnia que
chega à quarta geração com quase 40% dos indivíduos sem
miscigenação pode ser considerada, relativamente, resistente a maior
integração com a sociedade nacional.
Se parte da responsabilidade pela não-integração recai sobre
a atitude de isolamento voluntário por parte dos nipo-descendentes, a
dificuldade que alguns têm de sentir-se parte do Brasil pode ser
explicada pela falta de reconhecimento ao papel dos japoneses na
construção do Brasil de hoje. Aprende-se que o povo brasileiro tem
três raízes: a indígena, a portuguesa e a africana. Em uma das principais
obras de explicação do Brasil, Gilberto Freyre discorre sobre as três
vertentes, não deixando espaço para a contribuição dos imigrantes,
posterior ao período colonial. Não poderia ser diferente, uma vez
que, à época em que Casa Grande & Senzala foi escrito, a presença
nipônica era recente e sua contribuição não estava ainda consolidada.
Em 1995, porém, no livro O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro,
com proposta de analisar as diversas influências que conformaram o
Brasil e os brasileiros, a participação japonesa, tampouco, recebe
menção. É compreensível e verdadeiro que a influência oriental seja
menor que a dos povos chegados quatro séculos antes e que
construíram o país desde os tempos coloniais e que os estudos sobre a
sua participação sejam mais raros, mas não justifica a exclusão.
O silêncio dos principais explicadores do Brasil sobre a
participação dos japoneses, aliado ao fato de que a maior parte dos
5
Issei é o próprio imigrante; nisseis são os filhos; sanseis são os netos, portanto, a
terceira geração. Yonseis e goseis são a quarta e quinta gerações, respectivamente.
242
YUKIE WATANABE
estudos sobre o assunto terem sido realizados por descendentes,
exacerba a sensação de isolamento e de que somos um grupo à parte
na formação da identidade brasileira. A aproximação do centenário
deve contribuir para que essa impressão seja atenuada, uma vez que o
evento busca divulgar a participação de japoneses e nipo-descendentes
na vida brasileira. O objetivo é desmistificar a cultura japonesa,
aproximá-la dos demais brasileiros, para que deixe de representar algo
exótico ou curioso, e torne-se parte da cultura mestiça brasileira. A
contribuição japonesa para o caldo de culturas.
Brasileiros loiros de olhos azuis são naturalmente aceitos,
assim como brasileiros negros, mulatos, ou quase qualquer combinação
étnica possível. Brasileiros orientais, no entanto, ainda são considerados
um pouco exóticos, um pouco estrangeiros. Raros são os nacionais de
outras origens que são solicitados a apresentar a identidade de
estrangeiro (RNE) ou que recebem elogios pela proficiência na língua
portuguesa. São situações curiosas pelos quais vários descendentes já
passaram e que podem ser contabilizados entre os elementos que
caracterizam o que é ser nikkei.
Os descendentes de japoneses cedo descobrem que a origem
familiar implica algumas expectativas sobre seu comportamento.
Amigos e conhecidos esperam que sejamos tímidos, disciplinados,
dedicados ao trabalho ou ao estudo e respeitosos no trato com os
outros. Aqueles que destoam dessa imagem pré-concebida ouvem o
quase inevitável comentário: “você nem parece japonês!”. O
comportamento típico dos japoneses do início do processo imigratório
cristalizou-se no imaginário popular e tornou-se o estereótipo do que
as pessoas imaginam que os descendentes são, ou deveriam ser, até
hoje. Perguntam-nos com freqüência: “você fala japonês?”; “você sabe
fazer sushi?”; “você já morou no Japão?”; “seu marido (ou esposa)
também é japonês?”. A surpresa diante da negativa revela que muitos
brasileiros ainda esperam que os nikkeis se comportem como os pais e
avós imigrantes e não como conterrâneos e contemporâneos.
243
REFLEXÕES
A visão de que os nipo-descendentes são apegados à tradição
não é destituída de fundamento. Um dos principais traços da cultura
japonesa, reforçado pelos preceitos das duas principais religiões no
Japão – o xintoísmo e o budismo –, é o culto aos antepassados. A
importância atribuída aos ancestrais estabelece a noção de gerações
que se sucedem e completam a obra iniciada pela precedente,
fortalecendo a idéia de vínculos, não de choques, entre elas. Esse
pensamento traduz-se, na vida cotidiana, no respeito aos mais velhos
e na consideração devida à experiência de vida e aos conhecimentos
que acumularam. Em razão dessa forma de pensar, tradições e valores,
em geral, não são levianamente descartados como ultrapassados.
Algumas vezes, a manutenção de determinado hábito é considerada
forma de homenagem a um ente querido.
O equívoco encontra-se em considerar que esta prudência
da transformação equivale à estagnação dos costumes e em esperar
que todos os descendentes reproduzam o mesmo comportamento sem
questioná-lo, indefinidamente. As influências do meio se fazem
presentes e vários hábitos já se perderam ao longo do tempo. Mesmo
que a aparência dos nikkeis não se tenha alterado tanto (especialmente
para a parcela não-miscigenada), não significa que as atitudes e as idéias
não tenham sido modificadas pelos cem anos de convivência.
Outra percepção relacionada à comunidade nipo-brasileira
refere-se ao intenso convívio entre os membros, em clubes e
associações, que algumas pessoas acreditam, erroneamente, serem
vedados a pessoas de outras origens. A maior parte desses grupos surgiu
no pós-guerra, com o fim da proibição de reunião de nacionais dos
países inimigos. Além do objetivo explícito de manutenção da cultura
japonesa e, em alguns casos, de prestar ajuda mútua, esses clubes
tornaram-se o espaço onde os nipo-descendentes não sofriam
discriminação e onde o que era estranho para a sociedade brasileira
tornava-se a norma entre os participantes. Nessas organizações,
poderiam falar japonês, preparar comidas típicas japonesas e praticar
244
YUKIE WATANABE
as atividades pouco conhecidas no Brasil, mas populares entre os
nipônicos. Lá, sentiam-se parte do grupo e não como estrangeiros
indesejáveis.
Essas organizações passaram a concentrar as atividades sociais,
esportivas, culturais e assistenciais dos descendentes, reforçando o
isolamento criado pela discriminação. Essa sociabilidade restrita
fortaleceu a idéia de colônia, não mais como o agrupamento físico de
trabalhadores de mesma origem, mas como a organização dos
indivíduos em associações, criando sociedade quase fechada, resistente
às influências externas.
Os clubes, as sociedades beneficentes e as associações foram
os principais responsáveis pela manutenção de atividades ligadas à
cultura japonesa. O beisebol, a cerimônia do chá, as danças típicas e o
karaokê eram algumas das atividades que só eram encontradas nessas
organizações. As instituições logo passaram a ser nipo-brasileiras, já
que a maior parte dos membros não eram mais os próprios imigrantes,
mas seus descendentes. Continuavam a ser, porém, o espaço
privilegiado da cultura japonesa, onde eram transmitidos os valores e
as tradições ancestrais. O acesso de não-descendentes não era vedado,
mas ainda eram poucos os que os freqüentavam; e os que o faziam,
acabavam aprendendo os códigos de conduta não-escritos adotados
pelos japoneses, de forma a pertencer ao grupo. Nesses microcosmos,
a relação entre o que era o padrão e o que era diferente invertia-se e os
nipo-descendentes sentiam-se confortáveis, um local onde não eram
conhecidos como “japoneses”.
A maioria dessas associações segue existindo até hoje. Muitas
passaram por fusões ou alterações de razão social, mas as funções de
preservação da cultura e de local de encontro dos nipo-descendentes
permanecem. Embora as novas gerações não apresentem mais resistência
às influências ocidentais – muitos não falam o idioma japonês, nem
têm ascendência exclusivamente nipônica –, a convivência com outros
nikkeis ainda as atrai. As atividades desenvolvidas não são apenas aquelas
245
REFLEXÕES
ligadas à herança japonesa: esportes como futebol, tênis e vôlei dividem
espaço com o beisebol e o tênis de mesa, aulas de dança de salão são
seguidas por ensaios de odori
6
e, no almoço, não é raro que seja servida
a combinação arroz com feijão, mesmo que o arroz seja preparado à
moda japonesa.
Se a maior parte das atividades em nada se diferencia daquelas
oferecidas por outros clubes ou associações, qual o fator explicativo
para a preferência pelas organizações nikkeis? A razão mais evidente é
a continuação (ou imposição) de hábito familiar, afinal muitos
descendentes freqüentam esses ambientes acompanhadas dos filhos,
que crescem em companhia de outros nipo-brasileiros, com quem
estabelecem laços de amizade desde a infância. A memória afetiva e a
vida social, em muitos desses casos, concentram-se no universo nikkei,
restando à sociedade maior apenas um papel secundário, um espaço
de estudo ou trabalho e passagem, mas não de referência. Esse processo
vem ao encontro do traço cultural japonês da valorização de tradições
e explica, em parte, o baixo índice de miscigenação, quando comparado
com o de outros grupos étnicos no Brasil.
Nem todos os nikkeis, entretanto, consideram a colônia como
referência principal. Alguns, ao contrário, preferem não participar
de nenhuma associação, nem praticar qualquer atividade ligada à
cultura japonesa. Para esses descendentes, a origem nipônica não é
elemento definidor da identidade, mas fato do passado. Mantêm
hábitos completamente ocidentalizados, seus amigos são, em geral,
gaijins, e não têm interesse em vivenciar qualquer aspecto das tradições
familiares.
As duas posições mais extremas, na realidade, revelam o
mesmo desejo de pertencimento que acompanha os descendentes há
quase cem anos. Eram brasileiros porque nasceram no Brasil, mas
6
Odori é a palavra utilizada para designar dança, em geral, mas na comunidade é
utilizada como sinônimo de dança japonesa, clássica ou folclórica.
246
YUKIE WATANABE
eram considerados japoneses pelos brasileiros, por causa da aparência
e dos costumes. Os pais imigrantes esforçaram-se para que os filhos
parecessem japoneses, mantivessem os usos da terra natal e, se e quando
voltassem ao Japão, fossem aceitos como filhos daquela terra. Como
apenas poucos voltaram, os nisseis no Brasil ficaram divididos entre as
duas nações: culturalmente isolados do seu país e geograficamente
distantes do país de referência.
Os tempos mudaram e a principal ligação dos nikkeis com o
Japão, hoje, é por meio de pais, avós e bisavós. A sensação de ser
diferente dos demais brasileiros, no entanto, não desapareceu
completamente, especialmente para aqueles não-miscigenados.
Resquícios do isolamento cultural ressurgem com freqüência porque
somos facilmente identificáveis ao olhar. Quando é necessário apontar
um descendente, raramente é descrito como a pessoa alta, gorda ou
vestindo casaco azul. Simplifica-se: “é o japonês”.
O desejo de evitar o rótulo pode ser uma das explicações
para a convivência privilegiada nos meios nipo-brasileiros. Quando o
círculo de amizades é composto principalmente por descendentes, ter
as feições orientais não é diferencial, mas norma. Também as atitudes
e o comportamento derivados da herança japonesa passam a ser vistos
como naturais. Criam-se códigos próprios e utiliza-se vocabulário
singular, com muitas palavras em nihongô
7
, sem que haja necessidade
de explicação ou justificativa, uma vez que fazem parte do cotidiano
doméstico da maioria dos nikkeis. Em outras palavras, é convívio fácil,
onde alguns hábitos ou manias que seriam considerados curiosos em
outros contextos são vistos com naturalidade. Nesses ambientes, ao
contrário, são os gaijins que devem adaptar-se aos modos do grupo e
são eles os diferentes. Engana-se, porém, quem acredita que as sociedades
de cultura japonesa representam tentativa de criar “guetos voluntários”
para preservação da tradição, nos quais os brasileiros de outra origem
7
Nihongô é a língua japonesa.
247
REFLEXÕES
não têm espaço; são, principalmente, espaços onde os nipo-
descendentes podem pôr em prática os hábitos aprendidos em família
sem se preocupar com a interpretação dada aos seus costumes e atitudes.
Os que escolhem se afastar das atividades da colônia desejam,
também, escapar ao rótulo. Ao não conviver com outros nikkeis
procuram afirmar sua independência em relação ao grupo e sua
identificação com a sociedade brasileira maior. O afastamento pode
relacionar-se ao círculo de amizades, à língua e às atividades vistas
como típicas. Configura, especialmente, a rejeição do estereótipo e
não da cultura. Acreditam que o não-envolvimento com as atividades
da colônia os torna mais brasileiros e menos japoneses aos olhos do
mundo.
Na maioria dos casos, nenhuma das duas atitudes – a de
privilegiar os relacionamentos e as atividades dentro da comunidade e
a de evitá-los – parece ser consciente ou proposital. São caminhos
distintos em uma busca que muitos nipo-descendentes ainda descobrem
necessária: a própria identidade. Como ainda são poucos os nikkeis
cuja aparência não demonstra a origem étnica, a maioria enfrenta, em
diferentes graus, a mesma questão que assombrou Chuniti há tanto
tempo: como ser brasileiro e japonês ao mesmo tempo? Por um lado,
sabemos que somos brasileiros, mas como vivenciar integralmente essa
identidade se nem todos os nossos compatriotas concordam com essa
afirmação? Por outro lado, podemos desejar ser parte homogênea do
povo brasileiro e abandonar a herança que os pioneiros nos legaram?
Essas são questões sobre as quais raramente pensamos, mas que voltam
à tona quando precisamos traduzir uma palavra em japonês para um
amigo não-descendente, quando o correspondente em português não
expressa com a mesma exatidão o nosso sentimento; ou quando
precisamos confessar, envergonhados, que não sabemos manejar muito
bem os “pauzinhos” – que nossos avós chamam de hashi.
***
248
YUKIE WATANABE
Qualquer que seja a nossa reação ante as pressões para sermos
os guardiões da cultura japonesa, alguns fatos são inescapáveis. Ainda
que aceitemos de bom grado manter alguns costumes ou algumas
atividades, eles nunca serão realizados da mesma forma que eram feitos
há cem anos, quando os imigrantes chegaram ou da maneira que os
verdadeiros japoneses os praticam, ou praticavam. Na verdade, algumas
tradições de origem japonesa mantidas no Brasil já foram, há muito,
abandonadas no Japão. Como parte considerável dos imigrantes
deixaram o Japão antes da Segunda Guerra Mundial, a cultura que
trouxeram consigo era a derivada da Revolução Meiji e da ética
samurai. Com a derrota no conflito mundial e a ocupação americana,
a influência ocidental mostrou-se avassaladora e a cultura japonesa
sofreu transformações radicais na segunda metade do século.
Os pioneiros que chegaram até a década de 30 vieram ao
Brasil com a firme intenção de voltar à terra natal, vieram como
dekasseguis
8
e acabaram, pelas circunstâncias, permanecendo neste país.
A maioria dos que chegaram no pós-guerra, ao contrário, pretendiam
estabelecer-se aqui definitivamente. Os nipônicos que emigraram após
a Guerra já tinham visão diferenciada do próprio país. Haviam vivido
a derrota, a ocupação e o fim do mito da divindade do Imperador, o
Japão, para eles, não era o império invencível que o início do século
XX pareceu prenunciar. Ao chegar ao Brasil, sofriam, então, choque
cultural duplo: não só os hábitos brasileiros lhes pareciam diferentes,
mas também os costumes dos japoneses radicados no Brasil há mais
tempo causavam estranhamento, eram mais conservadores e guardavam
visão ainda idealizada do Japão.
Os japoneses que vêm hoje ao Brasil acham curioso que a
colônia mantenha alguns costumes considerados ultrapassados ou que
se restringem a áreas rurais remotas no Japão. A sensação do inusitado,
8
Dekassegui significa trabalho temporário em local distinto do de origem. Na linguagem
corrente é empregada para designar os trabalhadores brasileiros no Japão, que fazem
o caminho inverso dos imigrantes japoneses.
249
REFLEXÕES
quase folclórico, é reforçada pela percepção de que os rituais originais,
realizados em outros tempos, do outro lado do mundo, apresentavam
características muito diferentes das observadas nas reproduções em
terras tropicais. As tradições japonesas que procuramos manter são,
na realidade, criações nipo-brasileiras que se transformam a cada
geração, pela inclusão de elementos brasileiros e pela exclusão ou pelo
esquecimento daqueles significados e segredos que apenas as avós
conheciam.
A perda de algumas dessas informações, no entanto, não põe
em risco o essencial da nossa herança, como muitos poderiam pensar.
Ainda que o número de praticantes de cerimônia do chá esteja
diminuindo, ainda que a maioria dos que ainda o fazem sejam
indivíduos da melhor idade, ainda que muitos dos que se interessem
pela arte milenar sejam não-descendentes e ainda que esse cenário se
repita na maior parte das atividades da colônia nipo-brasileira, a
principal contribuição da imigração japonesa permanece a salvo. O
fundamental do legado nipônico não se encontra no modo de preparar
o chá, nem no ensino da língua japonesa – o número de estudantes
não-descendentes cresce a cada ano –, não está nos movimentos
delicados da dança clássica, nem no soar do taiko (tipo de tambor
japonês). A riqueza da contribuição nipônica encontra-se, acima de
tudo, em valores e atitudes.
Não se pode negar a importância da manutenção das
manifestações artísticas, que devem permanecer como parte do
repertório nacional, tributo à diversidade do povo brasileiro e à
multiculturalidade. Não são, entretanto, exclusivas dos nikkeis, nem
devem ser consideradas obrigações étnicas. Embora nunca percam a
marca da cultura japonesa, podem ser praticadas por pessoas de todas
as origens que escolham aprendê-las. Assim como muitos não-
descendentes interessam-se pela língua japonesa, pelos arranjos florais
segundo preceitos do ikebana e, nos últimos tempos com muita
intensidade, pelas animações e quadrinhos (anime e mangá,
250
YUKIE WATANABE
respectivamente), grande número de nikkeis não se dedica a qualquer
atividade considerada tradicional.
O pouco interesse que alguns descendentes demonstram pelas
tradições não os liberta de sua herança. Assim como os que procuram
manter a cultura não podem evitar a inserção de elementos brasileiros
nas atividades tipicamente japonesas, os nikkeis que não se interessam
pelos temas nipônicos, dificilmente, conseguem eliminar das suas
atividades cotidianas os hábitos adquiridos no convívio familiar.
As características que não escolhemos, que nos foram
passadas subliminarmente, que não temos consciência de carregar, são
a verdadeira contribuição da imigração japonesa para a sociedade
brasileira. Os valores comuns que regem a vida de todos os
descendentes, “engajados” ou não na preservação da cultura japonesa,
tão presentes na nossa criação e intrínsecos da nossa personalidade
que os resgatamos e reproduzimos sem saber, geração após geração,
são o que de melhor temos a oferecer em nome de nossos antepassados.
Os valores de maior alcance e maior permanência podem ser
transmitidos sem rótulos e incorporar-se à identidade brasileira,
testemunhos da história de luta e perseverança de imigrantes que
ajudaram a construir o país. Raros são os descendentes que não
apresentam forte senso de família e respeito aos antepassados. A
valorização da experiência e, conseqüentemente, dos idosos, a dedicação
ao trabalho, o reconhecimento do sucesso pelo esforço são apenas
parte do legado japonês. Aprendemos em casa a importância do estudo,
a polidez no tratamento com as pessoas, a disciplina e o respeito. O
gosto pela vivência em comunidade e a dedicação ao bem-estar coletivo
também são características consideradas tipicamente japonesas. São
lições, no entanto, que podem beneficiar a todos se integradas à cultura
brasileira.
Se os nikkeis podem contribuir com algumas características
positivas, podemos beneficiar-nos da influência brasileira para amenizar
traços menos desejáveis, fazendo que “nossos japoneses sejam melhores
251
REFLEXÕES
do que os dos outros”. A alegria dos brasileiros nos torna menos
sisudos, a espontaneidade nos faz menos rígidos e a cordialidade nos
faz mais calorosos. O convívio com os brasileiros de outras
ascendências mostrou aos japoneses que expressar sentimentos não
equivale a sinal de fraqueza e melhorou muito nossa capacidade de
comunicação. E, ainda que não nos tenha curado inteiramente do
hábito de nos levarmos demasiadamente a sério, esta é lição que temos
aperfeiçoado a cada geração.
***
As afirmações feitas até aqui, provavelmente, não contarão
com a concordância de todos os nikkeis; possivelmente, nem mesmo
da maioria. São, principalmente, reflexões pessoais, baseadas na história
da família, nas experiências vividas dentro e fora da colônia e nos
sentimentos contraditórios provocados pela herança complexa,
recebida dos ancestrais.
As inquietações e questionamentos apresentados não me
foram oferecidos diretamente. À maneira tipicamente japonesa,
surgiram veladamente, durante conversas, em trocas de experiências,
pela observação e pela interpretação de ações e reações comuns em
nosso meio, para as quais não parece haver explicações únicas e
indiscutíveis. Não há qualquer fundamento acadêmico nas declarações
e a única autoridade para discorrer sobre o tema me é conferida pelos
anos de vivência cotidiana dessas questões.
Em criança, o contato com a cultura dos meus ancestrais se
dava pelo convívio com minha avó paterna – que morava conosco,
segundo a tradição que estabelece que o filho mais velho se torna
responsável pelos pais na velhice – e com a extensa família materna,
constituída de bisavó, avós, tios, e intrincada rede de primos. Apesar
das tendências conservadoras e tradicionalistas da família, meus pais
nunca nos obrigaram a participar das atividades infantis de nenhuma
252
YUKIE WATANABE
das associações nikkeis. Assim, a influência japonesa nos foi transmitida
de forma sutil, nos pequenos gestos do dia-a-dia, mas não como
identidade distinta, a ser abraçada, cultivada, defendida. A consciência
de que havia algo de diferente na minha educação só surgiu quando
comecei a freqüentar a escola e descobri que algumas das palavras que
utilizava correntemente não pertenciam ao léxico brasileiro.
Aos onze anos, experimentei, pela primeira vez, a noção de
fazer parte da comunidade nipo-brasileira organizada e de que poderia
ou deveria exercer papel na preservação das tradições ancestrais. Uma
das associações havia criado um grupo infantil de dança japonesa e
buscava meninas que se interessassem; minhas primas participariam e
a família insistia que minha irmã e eu nos juntássemos a elas. Meus
pais, cientes de que nenhum dos filhos demonstrava qualquer inclinação
pelas tradições japonesas, perceberam e aproveitaram a oportunidade
de termos algum contato com a cultura por meio de atividade que
pudéssemos apreciar. Para mim, o fator de persuasão foi a possibilidade
de dançar, não a tradição.
O que começou como experiência a contragosto tornou-se
atividade prazerosa. Continuei a dançar por cerca de dez anos, período
durante o qual realizei a jornada de descoberta das minhas raízes e da
minha identidade, especialmente a partir dos anos da adolescência.
Em meio a ensaios, apresentações e eventos, o contato com nikkeis de
diferentes gerações ampliou-se e passei a reconhecer algumas atitudes
da minha família como parte de um contexto maior, e não apenas
manias destituídas de sentido. O convívio com as senhoras do grupo
sênior, que nos ensinavam a vestir o kimono
9
e auxiliavam nas nossas
aulas, era a lição prática do respeito aos mais velhos e à sua experiência.
Descobri mais afinidades do que poderia imaginar não só com as
companheiras de odori, mas também com os participantes de outras
atividades ligadas à cultura japonesa.
9
Kimono é o traje típico japonês.
253
REFLEXÕES
A convivência era fácil e agradável, não havia necessidade de
traduzir as palavras e as expressões em japonês que utilizava em casa,
nem precisava explicar alguns hábitos, como ocorria com os amigos
não-descendentes. Neste novo círculo de amizade, todos já haviam
passado por alguma situação embaraçosa, ganhado apelidos ou sofrido
cobranças por causa das feições orientais. Passei a pertencer a este
grupo; ali, eu era igual a todo mundo, não a pessoa que se sobressaía
pela aparência diferenciada.
Para os observadores externos, éramos “os japoneses”. Em
alguns aspectos, correspondíamos a essa visão; em outros, falhávamos
miseravelmente. Poucos dentre nós falavam japonês para além de
algumas expressões domésticas. Eu, apesar de o aprendizado da língua
ter sido a única imposição paterna referente à cultura japonesa, nunca
passei dos rudimentos do idioma. Apesar de todas as nossas deficiências
em representar o país de nossos ancestrais, assumimos o elo que nos
unia e a identidade que nos impunham de fora.
Foi um período de intensa atividade, eu participava de um
seinenkai
10
, mantinha contatos com outros três, continuava no grupo
de dança e trabalhava voluntariamente nos festivais gastronômicos de
culinária japonesa que ocorriam duas vezes por ano na cidade. Sentia-
me integrada e, ouvia e falava tanto sobre cultura japonesa que, às
vezes, sentia-me mais próxima do Japão do que do meu próprio país.
Ironicamente, o engajamento nas atividades da comunidade,
especialmente naquelas ligadas à dança, possibilitou o processo que
me reaproximou da consciência de ser brasileira. O principal
compromisso do grupo de odori durante o ano era – ainda é – o Festival
Folclórico e de Etnias do Paraná, no qual se apresentam as
manifestações artísticas dos diversos países que contribuíram para a
colonização do estado. Descendentes de italianos, alemães, poloneses,
ucranianos, portugueses, japoneses, holandeses e espanhóis,
10
Seinenkai é o equivalente ao grupo de jovens, em português.
254
YUKIE WATANABE
organizados em clubes ou associações, reúnem-se anualmente para
celebrar a memória e a cultura dos imigrantes e a sua contribuição
para a construção do nosso país. Com o intuito de trocar experiências,
as alas jovens dos grupos folclóricos começaram a organizar festas
para que os participantes tivessem a oportunidade de encontrar-se em
ambientes mais relaxados e informais que nos bastidores das
apresentações, quando estávamos todos tensos e apressados.
Comparecíamos às “festas das nações” com trajes típicos e,
a cada evento, um dos grupos levava uma música ou uma dança para
ensinar aos demais. Nesse ambiente, não era raro ver alemães
dançando a tarantella ou portugueses tentando imitar o hopak
ucraniano. A designação por nacionalidade, aliás, era apenas
convenção para identificarmos quem pertencia a qual grupo, uma
vez que os participantes não tinham, necessariamente, a ascendência
étnica correspondente: lembro-me distintamente de uma nikkei em
um dos conjuntos germânicos; para todos os folcloristas, ela era
alemã. Ser chamada de japonesa por esses amigos nunca teve o mesmo
sentido de exclusão que sentia em outros ambientes. É verdade,
porém, que, sem os figurinos típicos, eu e minhas companheiras
éramos as únicas que não precisávamos declarar a qual associação
pertencíamos.
Aprendi com esses amigos que o fato de ser nikkei não me
fazia menos brasileira; tornava-me, na verdade, brasileira com algo a
mais. Observar as pessoas vestidas com trajes de diferentes países, todas
falando português, mas ensinando passos de dança e palavras das nações
que representavam para colegas de outras etnias, proporcionou-me
uma visão de um Brasil do qual eu também fazia parte: o país
construído com a colaboração de indivíduos das mais diversas origens
que se reuniram para criar o caldo de cultura que conhecemos hoje.
Conhecer e celebrar a contribuição dos meus antepassados era uma
honra. Conhecer e celebrar a contribuição dos outros povos, um
processo de aprendizado incomparável.
255
REFLEXÕES
E foi na companhia de “alemães”, “ucranianos” e “poloneses”
que, finalmente, compreendi minha identidade complexa, exatamente
em momento no qual imaginava que o meu lado japonês afloraria
com mais força. Desde o início do ano de 1997, a comunidade nipo-
brasileira estava ocupada com os preparativos para a vista do Casal
Imperial, prevista para junho, e no grupo de dança a expectativa não
era diferente. Para a passagem por Curitiba, a organização local
programou a apresentação dos grupos folclóricos das diferentes etnias,
com o objetivo de fortalecer a identidade multicultural da cidade, e
cabia a nós, “japonesas”, encerrar o espetáculo. Sentimos o peso da
responsabilidade e o nervosismo não diminuiu em saber que a princesa,
filha do Imperador Akihito, já havia estudado dança clássica japonesa,
na linha daquela que iríamos apresentar.
Alguns dias antes da chegada dos titulares do Trono do
Crisântemo à cidade, fomos comunicados que os integrantes dos
grupos folclóricos deveriam apresentar-se no aeroporto para
recepcionar o Imperador Akihito e a Imperatriz Michiko no
desembarque. Comparecemos sem muitas expectativas, certos de
que passaríamos despercebidos, uma vez que teríamos de
permanecer a grande distância, atrás de cordão de isolamento
policial. Fazia muito frio, o vôo estava atrasado e tínhamos a
importante apresentação no dia seguinte, ninguém estava muito
satisfeito com mais uma atribuição.
Tudo mudou quando o avião chegou, as autoridades
desembarcaram e a Imperatriz, quebrando o protocolo, pediu que os
jovens em trajes típicos se aproximassem. Nós, do grupo japonês,
fomos as primeiras a quem o Casal dirigiu a palavra, para depois
voltarem-se para representantes das outras etnias. Não me recordo do
que foi dito, lembro-me apenas do choque que senti ao me dar conta
de que estava falando com a Imperatriz do Japão e, mais tarde, da
confusão de repórteres querendo saber qual era a sensação de apertar
a mão do Imperador.
256
YUKIE WATANABE
Levou algum tempo até que me recuperasse e organizasse os
pensamentos tumultuados que passavam pela minha cabeça. Eu ouvia
os amigos dos outros grupos comentando sobre a gentileza e a simpatia
dos monarcas nipônicos, mas apenas nas expressões das minhas
companheiras de dança eu identificava a mesma surpresa e falta de
reação. Percebi que estava emocionada.
Foi como uma revelação: descobri que era total e
inequivocamente brasileira, sem qualquer prejuízo da herança japonesa
recebida de meus avós. O paradoxo de, no momento em que mais
tentei parecer japonesa, ter sido considerada brasileira esclareceu
qualquer dúvida que eu pudesse ter quanto à minha identidade. Com
as feições orientais, vestindo o meu melhor kimono e tentando, ao
máximo, emular o gestual nipônico, eu fiquei frente a frente com a
encarnação máxima da nação japonesa. E ele viu uma jovem brasileira;
a representação de parcela do Brasil com a qual seu país, sem dúvida,
tinha laços históricos, mas indubitavelmente brasileira. Pelo jeito de
andar, de olhar ou de sorrir, ou talvez, porque a única resposta que
consegui gaguejar tenha sido em português – mesmo tendo entendido
a pergunta feita em japonês –, não fui reconhecida como súdita do
Império do Sol Nascente.
Ao mesmo tempo, não pude ignorar minha reação ao
acontecimento. Estavam todos impressionados com a atitude do
Imperador e da Imperatriz, mas apenas nós, as nikkeis, estávamos
emocionadas, atônitas e profundamente honradas. Ninguém mais
compreendeu a reverência que aquelas pessoas nos inspiraram, a carga
simbólica daquele momento. Nós mesmas não esperávamos reagir dessa
maneira, não poderíamos imaginar que os sentimentos de um povo
do qual nunca fizemos parte poderiam estar ainda impregnados no
nosso subconsciente, como parte do legado cultural transmitido sem
palavras.
As descobertas daquela noite precisaram de algum tempo de
reflexão para amadurecer, não era possível transformar em palavras as
257
REFLEXÕES
emoções contraditórias e reveladoras que aquele encontro me
proporcionou. Naquele momento, encontrei o equilíbrio entre os
dois mundos, as duas culturas que fizeram de mim o que eu sou.
Senti-me mais brasileira porque o sentimento não me foi dado pelo
nascimento, precisei buscá-lo e compreendê-lo; mais do que isso,
descobri a brasilidade enriquecida pela possibilidade de compartilhar
das tradições de outro povo e acrescentá-las ao repertório nacional.
***
Nem todos os nikkeis fazem essa descoberta em momento
tão privilegiado. Alguns passam a vida toda sem encerrar a questão,
buscando o equilíbrio entre identidades; outros a desvendam ante o
choque de chegar ao Japão; e há aqueles que nem a percebem, tão
certos de que a herança pouco significa após cem anos de vida no
Brasil.
Desde que o fluxo migratório se inverteu com o crescimento
econômico no Oriente e a “década perdida” no Brasil, a palavra
dekassegui deixou de designar os trabalhadores nipônicos que chegaram
ao Brasil antes da Segunda Guerra Mundial para tornar-se o fenômeno
que levava seus filhos e netos ao Japão, com exatamente os mesmos
planos – trabalhar muito, economizar ao máximo e retornar ao país
de origem no menor tempo possível – na direção contrária. Os
brasileiros partiam com a vantagem, ou assim acreditavam, de não se
dirigir a um país totalmente estranho, afinal, muito da cultura japonesa
estava em seus lares. O risco de choque cultural parecia muito menor
que o sofrido pelos japoneses no Brasil. Para determinado número de
nikkeis havia a idéia de retorno à pátria, uma vez que, aqui, sentiam-se
mais japoneses que brasileiros.
A realidade, no entanto, mostrou-se muito distinta não só
porque o Japão que encontraram era muito diverso daquele que seus
ancestrais haviam deixado, mas também porque a diferença entre ser
258
YUKIE WATANABE
japonês e ser brasileiro nikkei era maior do que a semelhança de traços
deixava entrever. Não era suficiente falar japonês, saber manejar o
hashi e gostar da culinária nipônica, os brasileiros tiveram dificuldade
em habituar-se à formalidade e à disciplina oriental. Principalmente,
não esperavam encontrar tanta resistência por parte da população
japonesa. Lá, eram estrangeiros, mão-de-obra não-qualificada, e muitos
sofreram discriminação. Se, no Brasil, estavam acostumados a que as
pessoas só enxergassem sua porção japonesa, do outro lado do mundo,
os nipônicos só percebiam suas características brasileiras.
As saudades da família e da pátria levaram os brasileiros no
Japão a cultivar, cada vez mais, os hábitos menos nipônicos que as
famílias nikkeis aprenderam no Brasil. Churrasco, caipirinha e samba
foram apenas algumas das formas encontradas para recuperar identidade
à qual alguns nem sabiam estar ligados. A vida no Japão lhes mostrou
que eram muito mais brasileiros do que as aparências faziam crer.
Para esses, foi preciso atravessar o mundo e retornar ao ponto de
partida de seus avós para perceber que a distância percorrida havia
moldado indivíduos muito diferentes daqueles que nunca deixaram o
Japão.
A maioria dos dekasseguis ainda deseja voltar ao Brasil, como
seus antepassados continuaram a sonhar com o retorno, até que a
Guerra acabou com a esperança da quase todos. Algumas raízes, no
entanto, começam a fixar-se em solo japonês, o nascimento de filhos e
a aquisição de patrimônio fazem da permanência alternativa real e
suscitam perguntas que apenas começam a ser respondidas: os filhos
desses emigrantes sentir-se-ão brasileiros ou japoneses? Serão japoneses
ou brasileiros expatriados, uma vez que nem todos conseguirão a
nacionalidade japonesa? Virão, um dia, ao Brasil, na esperança de
encontrar aqui algo que seus pais não conseguiram no Japão?
Ainda que as perguntas permaneçam sem resposta por longo
tempo, não há dúvidas que o intercâmbio entre os dois países tende a
crescer. Além da migração de trabalhadores, Brasil e Japão mantêm
259
REFLEXÕES
histórico de amizade e cooperação nas mais diversas áreas: agricultura,
ciência & tecnologia, educação e cultura. A comemoração do centenário
da imigração deve aprofundar, ainda mais, os laços que unem nações
tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximas. Na contramão do
adensamento das relações, no entanto, surge o temor de que a perfeita
integração dos nikkeis à sociedade brasileira possa comprometer a
preservação da cultura japonesa em território brasileiro.
A preocupação tem por base a crescente perda dos traços
orientais, em razão da miscigenação e, com isso, a menor identificação
dos jovens com a cultura dos antepassados, acarretando o abandono
das tradições que, hoje, são mantidas, principalmente, pelas gerações
mais antigas. Embora a integração ao nosso país e ao nosso povo seja
um objetivo importante, não podemos deixar que assimilação seja
confundida com esquecimento.
A manutenção e a renovação da contribuição japonesa à
cultura brasileira não são apenas tributo aos imigrantes e ao país irmão,
são a celebração de um capítulo na formação da identidade brasileira.
Como demonstraram os jovens folcloristas de Curitiba, a herança de
outros povos não nos afasta de nossa pátria, mas enriquece a nossa
compreensão do caminho percorrido e recupera referências afetivas
que, vindas de outras terras, passaram a pertencer a todo o povo
brasileiro – independente de origem étnica ou nacional – no momento
em que os imigrantes decidiram se fixar e construir seu lar neste país.
O dever de preservação da memória não recai sobre nossos
ombros porque somos “japoneses” – qualquer que seja a nossa geração
e qualquer que seja a nossa aparência – mas porque somos brasileiros;
porque a perda de herança tão rica configuraria prejuízo ao Brasil e
aos brasileiros. Cada influência é importante e o desaparecimento de
uma delas deixa o país mais pobre, mais triste e menos interessante. A
conservação das tradições nipônicas é uma das formas pelas quais a
comunidade nikkei pode contribuir para lembrar que o País foi
construído por muitos povos e que a sua distinção está na pluralidade
e na convivência de diferentes culturas. Preservar a cultura de nossos
ancestrais pode ser a melhor maneira de provar que somos,
verdadeiramente, brasileiros. Chuniti Hara – e tantos outros que,
como ele, sofreram por não se sentirem nem brasileiros, nem japoneses
– ficaria feliz em saber que é possível conciliar as duas heranças.
BIBLIOGRAFIA
SETO, Cláudio e UYEDA, Maria Helena. Ayumi (caminhos
percorridos). Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2002.
OYAMA, Thaís. Especial dos 100 anos da imigração japonesa. Revista
Veja, Editora Abril, edição 2038 – ano 40 – nº 49, p. 78-140, 12 de
dezembro de 2007.
260
YUKIE WATANABE
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