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GENIVALDO RODRIGUES SOBRINHO
EUGÉNIO TAVARES:
RETRATOS DE
CABO VERDE EM PROSA E POESIA
SÃO PAULO
2010
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GENIVALDO RODRIGUES SOBRINHO
EUGÉNIO TAVARES:
RETRATOS DE
CABO VERDE EM PROSA E POESIA
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (Área de Estudos
comparados de Literaturas de Língua Portuguesa)
como requisito parcial à obtenção do Grau de
Doutor em Letras.
Orientadora: Professora Doutora Simone Caputo
Gomes
SÃO PAULO
2010
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Imagem de Mito Elias - OTIMarte
DEDICATÓRIA
Às minhas princesas, Neuza & Maria Eduarda,
merecedoras de todo o meu amor, dedicação e esforço e
que me concederam muito do seu precioso tempo de
convivência em troca da elaboração desta pesquisa.
Aos meus pais Francisco e Maria, meus mestres
semeadores de todos os momentos, sem os quais a este
patamar não chegaria.
Aos meus queridos irmãos Dora, Selma e Genilcio, uma
força que me impulsiona sempre a buscar mais e mais.
AGRADECIMENTOS
À professora Tania Macêdo pela amizade, pelas importantes sugestões durante
a banca de qualificação, pelas relevantes contribuições desde o Mestrado e pela
presença em momentos significativos de minha vida acadêmica.
À professora Simone Caputo Gomes, na qualidade de amiga e orientadora,
pelos muitos e inesquecíveis diálogos, pela orientação, pela confiança depositada em
nosso trabalho, pela seriedade e competência, pela presença decisiva durante nosso
percurso intelectual e pelo encontro fraterno nestes três anos de convívio. Agradeço,
sobretudo, o privilégio de ter trabalhado com alguém que realmente ama Cabo Verde,
sua cultura e seu povo.
Ao professor Mário César Lugarinho, pela leitura atenta de meu relatório de
qualificação, pelas observações pontuais e pelas sugestões visando a melhora de minha
pesquisa.
À professora Walnice Matos Vilalva, pelo companheirismo, amizade e pelo
apoio manifestado ainda na redação do pré-projeto de Mestrado.
À professora Vera Lúcia da Rocha Maquêa, que pela mão me fez adentrar o
mundo USP, pela amizade que só se fortalece e por todo o incentivo inestimável.
À Verónica Oliveira, que gentilmente, com muita competência, fez o trabalho
de tradução das mornas de Eugénio.
Ao artista plástico Mito Elias, pela cessão do seu trabalho plástico com a
imagem de Eugénio Tavares, que ilustra esta tese.
Aos professores Benjamin Abdala Júnior, Maria Aparecida Santilli, Benilde
Maria Justo Caniato (in memoriam), Rita Chaves, Vima Lia Rossi Martin, Elza Miné,
Emerson Inácio e aos demais professores do Programa de Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa que, direta ou indiretamente, contribuíram para a
realização desta pesquisa.
Aos colegas de Mestrado e Doutorado: Ana Rabecchi, Agnaldo Silva, Antonio
Mantovani, Elizabete Batista, Elizete Hunhoff, Irene Resende, Isaac Alemeida, Liliane
Barros, Marinei Almeida, Nancy Young, Leonice Pereira Suzane Castrillon e Vera
Maquêa, pela convivência ao longo desse período de qualificação. Em especial à Vera
Maquêa, à Marinei Almeida, pelos diálogos construtivos desde o início da pesquisa e,
sobretudo, ao Mantovani, pelo companheirismo, pela amizade e pela ajuda nos
momentos de incertezas, e pela sempre presente colaboração em todas as horas.
Aos meus familiares paulistanos Mantovani, Simone, Vera, Lígia, Morgana,
Érica Antunes, Flavinha Bandeca, Belelei, Carla Nardi, Dorothy Gomes, Avani, e
Giselle Ribeiro por todas as nossas aventuras, alegrias e momentos de descontração na
terra da garoa, bem como aos campineiros: seu Antonio, dona Elvira, Márcia, Gustavo,
Adriana, Marcelo e Alessandra.
Aos amigos Renato e Elisângela, Rafael e Flavinha, Luiz e Juliana, Cida
Bosco, Letícia, Avani e Humberto, Marana, Eduardo e Mara, Ricardo e Daiane, Júlio e
Gil, Edi e César, pelos momentos de alegria e descontração tanto na capital quanto no
interior de São Paulo.
Aos amigos da “República de Mato Grosso” Malheiros, Francis, Luzia Oliva,
Yasmin Nadaf, Adriana Venturoso e Aldina Cássia, pelo calor humano e pelas energias
positivas.
Aos inúmeros amigos cabo-verdianos que muito contribuíram para que este
trabalho alcançasse o sucesso almejado. Em especial ao escritor Artur Vieira, ao Daniel
Miranda e ao Joaquim Tavares, bravenses que não mediram esforços para arrumar os
textos que servem como corpus da pesquisa.
Ao Cônsul Geral de Cabo Verde, presença amiga e fundamental para o
conhecimento da morabeza crioula.
Ao José Augusto do Rosário e todo o seu pessoal da Associação Caboverdeana
do Brasil, que sempre me prestigiaram nas promoções de eventos acerca da cultura
cabo-verdiana em Santo André.
Ao Déni Mendes e a todos os integrantes da União dos Estudantes Cabo-
verdianos do Estado de São Paulo – UECESP, pela morabeza do encontro.
À UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso, pela concessão da
licença integral para a minha qualificação.
À Coordenação de Apoio à Pesquisa do Ensino Superior – CAPES, pelo
pagamento de 24 meses de bolsa.
A todos os meus colegas do Departamento de Letras do Campus Universitário
de Sinop – MT, pelo apoio e torcida.
Aos funcionários da USP e da UNEMAT, pela presteza em todos os
momentos. Às secretárias do CELP, Creusa e Mari, e aos secretários da Pós-Graduação
Lina, Dayane e Elias, pela atenção e bom atendimento ao longo desta caminhada.
A Morna
a Maria Teresa Barbosa
Canto que evoca
coisas distantes
que só existem
além
do pensamento,
e deixam vagos instantes
de nostalgia,
num impreciso tormento
dentro
das nossas almas...
Morna
desassossego,
voz
da nossa gente,
reflexo subconsciente
em nós
das vagas ao longo das praias;
das aragens
que trazem um sorriso bom
às equipagens
dos barquinhos à vela
e flexibilidades graciosas
às folhagens
do milharal,
musicando rapsódias em surdina
nos tectos das casas pobres...
Jorge Barbosa
RODRIGUES-SOBRINHO, G. Eugénio Tavares: retratos de Cabo Verde em prosa e poesia.
2010. 200 f. Tese (Doutorado) FFLCH Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
RESUMO: A leitura comparativa das produções em prosa e poesia que compõem a
obra literária de Eugénio Tavares possibilita a compreensão da importância da
participação dos escritores nativistas para a construção da nação Cabo Verde, da sua
cultura e para a formação de sua série literária. Buscaremos nas produções jornalística e
epistolar eugenianas traçar um panorama do contexto cabo-verdiano da virada do século
dezenove para o vinte, destacando-lhes o propósito de denúncia das principais questões
sociais, econômicas e políticas, assim como as aspirações libertárias que preocupavam
os intelectuais cabo-verdianos da época. Na poesia, que ora se expressa em ngua
portuguesa, ora nas mornas em língua cabo-verdiana (crioulo), daremos ênfase a
aspectos que fazem confluir a arte eugeniana para um ultrarromantismo tardio, de raiz
lusa e, ao mesmo tempo, a estratégias que rasuram este estilo a partir de dentro, por
meio de artifícios como a crítica e o humor carnavalizador. Quanto à morna, documento
de registro da consciência coletiva, recorte de um patrimônio histórico, cultural e
humanístico, submetida à mestria da pena de Eugénio Tavares, constituirá, além de uma
marca identitária crioula, um dos marcos do lirismo literário cabo-verdiano. A opção de
trabalhar com o cotejo de textos de diferentes gêneros manifesta a nossa tentativa de
captar a riqueza com que Eugénio Tavares se apresenta e representa Cabo Verde em sua
obra.
Palavras-Chave: Literatura cabo-verdiana, Eugénio Tavares, cultura crioula, morna,
prosa, poesia.
RODRIGUES-SOBRINHO, G. Eugénio Tavares: portraits of Cape Verde in prose and poetry.
200 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2010.
ABSTRACT: The comparative reading of the productions in prose and poetry that
make up Eugénio Tavares’s literary work enables the understanding of the importance
nativist writers’ participation for the building of Cape Verde nation, its culture and the
formation of its literary series. We will try to establish an outline of the Cape Verdean
context from the turn of the nineteenth century to the twentieth one by analysing
Eugénio Tavares’s journalistic and epistolary productions and emphasing the purpose of
complaint of the main social, economical and political quests as well as libertarian
aspirations which worried Cape Verdean intellectuals of that time. In poetry, which
sometimes expresses itself in Portuguese language, sometimes in the morna in Cape
Verdean language (Creole), we will hilight the aspects that make eugeniana art
converge to a late ultrarromanticism of Lusitanian root and at the same time, the
strategies that erasure this style from within, through devices such as criticism and
carnavalizador humor. Concerning the morna, the registration document of the
collective consciousness, a piece of a historical, cultural and humanistic heritage,
submitted to Eugénio Tavares’s mastery of writing, will constitute, besides being an
identitary Creole trait, one of the landmarks of Cape Verdean literary lyricism. The
option of working with the collation of texts from different genres expresses our attempt
to capture the richness with which Eugénio Tavares presents himself and represents
Cape Verde in his work.
Key-words: Cape Verdean literature, Eugénio Tavares, Creole culture, morna, prose,
poetry.
ABREVIATURAS
TPJ – Tavares
pelos jornais
TVTCP – Tavares – Viagens, tormentas, cartas e postais
TPOLP – Tavares
Poesia em língua portuguesa
TMCC – Tavares – Mornas – cantigas crioulas
SUMÁRIO
REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS Eugénio Tavares: um precursor da
cabo-verdianidade ...................................................................................................
12
Capítulo I Eugénio Tavares: o amor a Cabo Verde na prosa de intervenção
social ..........................................................................................................................
23
Capítulo II – A poética de Eugénio Tavares em língua portuguesa ...................
66
2.1 – O núcleo ultrarromântico: amor idealista e mal-do-século ..........................
70
2.2 – O núcleo do “terra-longismo” ......................................................................
82
2.3 O núcleo da problemática social cabo-verdiana e as estratégias de
abordagem .............................................................................................................
99
2.4 – Núcleo da reflexão filosófica e religiosa .....................................................
123
Capítulo III - Mornas – cantigas crioulas: poesia em língua “sabe” ...................
131
3.1 Morna, modalidade musical identitária cabo-verdiana: origens e
polêmicas críticas ................................................................................................
134
3.2 Diferenças entre a morna da Boavista e a da Brava: a contribuição de
Eugénio Tavares ...................................................................................................
143
3.3 – A obra mornística de Eugénio Tavares ........................................................
148
3.4 – A morna amorosa de Eugénio Tavares ........................................................
152
3.5 – Morna(s) da partida .....................................................................................
173
3.6 – Mornas de costumes ou de filosofia/religiosidade popular .....................................
180
REFLEXÕES CONCLUSIVAS .............................................................................
186
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................
194
REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS: EUGÉNIO TAVARES, UM
PRECURSOR DA CABOVERDIANIDADE
Português de lei! Cabo-verdiano de alma!
Eugénio Tavares
O trabalho que ora nos propomos a realizar tem por objetivo fulcral
empreender uma leitura da obra de Eugénio Tavares norteada pelo levantamento de
como interagem as múltiplas faces de seu discurso em prosa – jornalística e epistolar – e
poesia, em língua portuguesa e cabo-verdiana, fornecendo ao leitor uma visão de Cabo
Verde e sua cultura, na época em que se inscrevem as suas intervenções. E também,
para além, como a figura do intelectual e a força de sua produção literária e de sua
atuação na imprensa se transformam em símbolos de cabo-verdianidade gravados para
sempre na memória coletiva, que reverberam até nossos dias.
Para tanto, nossa proposta será recolher e examinar os grandes temas que
enlaçam a produção literária eugeniana
1
, observar como se entrelaçam com um retrato
de Cabo Verde por meio da literatura e da produção intelectual, jornalística e epistolar
de Eugénio num momento crucial da formação dos sentimentos de pertença e da série
literária crioulos.
Investigar a atuação de Eugénio Tavares no seu tempo e sua importância para a
formação de um sentimento de cabo-verdianidade acrescenta-se aos escopos acima
referidos e a análise de sua epistolografia, em confronto com as posturas emitidas nos
textos veiculados pela imprensa e por meio da poesia constitui uma etapa determinante
para traçar um perfil do homem Eugénio Tavares e do que ele significa para a discussão
de questões relativas à identidade cultural cabo-verdiana.
Parece-nos pertinente a assertiva de Manuela Ernestina Monteiro sobre a
repercussão da práxis eugeniana na então colônia portuguesa: “De entre aqueles que se
destacam como cultores distintos das letras cabo-verdianas no período que se
convencionou designar por Pré-Claridade, Eugénio Tavares projecta-se para a
posteridade, de forma indiscutível, através da obra que nos legou” (1999, p. 5).
1
Com exceção do teatro dos contos, que julgamos merecer pesquisa à parte, em etapa futura de nossa
pesquisa.
13
E a sua formação autodidata nos leva a valorizar ainda mais o seu trabalho
literário: mesmo não tendo freqüentado o Liceu de São Nicolau, nem tido a
oportunidade de estudar em qualquer outro estabelecimento de ensino fora de seu país,
Eugénio Tavares era possuidor de uma apurada bagagem cultural que viria a se refletir
em sua produção escrita. Como jornalista e prosador, Eugênio Tavares dominou o
cenário cabo-verdiano nas primeiras décadas do século XX. A este respeito,
pronunciam-se Carlota e Viriato de Barros em texto de uma conferência proferida na
cidade Lisboa, em 2005:
A formação de Eugénio Tavares fez-se no excelente ambiente em que
cresceu, entre gente de cultura e conhecimento, a cujas bibliotecas
tinha acesso constante e que constituíam para ele autênticos santuários
pessoais de estudo. [...] foi sobretudo aluno do seu povo, da sua terra,
da sua ilha, da cultura do seu povo que amou sem condições, sofrendo
as suas dores, lutando as suas lutas, sentindo como próprias as suas
revoltas, porque doutra forma não podia ser, mas vivendo também os
seus amores e as dores de quem ama com essa intensidade que se
sente nos seus poemas
2
.
Sabe-se, portanto, que Eugénio Tavares – apesar de todas as limitações e
dificuldades – superou os obstáculos em busca de seu desenvolvimento intelectual.
Destacou-se, ademais, na devoção à justiça social face ao descaso do Governo central,
bem como na militância pela causa republicana. No jornalismo, com seu talento e
mestria na linguagem, Eugénio denunciava com veemência os graves problemas
político-sociais vividos por sua gente.
A revelação do talento precoce de Eugénio Tavares foi fundamental para que o
seu caráter combativo, questionador, voltado para sua nação e sua gente se moldasse e
se fortalecesse para o prosseguimento de seus embates em favor de conquistas políticas
e sociais imprescindíveis, sem o apelo fácil ao meramente panfletário.
Isabel Lobo, na introdução ao volume Eugénio Tavares: poesia, contos, teatro
(1996), recolha organizada por Félix Monteiro, afirma que:
Eugénio Tavares é nome de referência na literatura cabo-verdiana. Os
seus textos, ao percorrerem um leque vasto de géneros, uma
linguagem muito característica da época, donde se não excluem
influências várias como o romantismo e o classicismo renascentista,
permitem hoje a compreensão mais consentânea de certos fenómenos
sociais, cívicos e literários próprios dos finais do século XIX e início
do XX cabo-verdiano (1996, p. 5, grifos nossos).
2
Disponível em: www.eugeniotavares.org. Acesso em maio de 2010.
14
Assim, nossa pesquisa se pauta por um viés comparativo que se afasta de uma
linha transnacional ou de literatura comparada em senso estrito, para inserir-se mais
numa perspectiva dos estudos culturais, confrontando gêneros diferentes de produção e
apoiando-se na intertextualidade e na interdisciplinaridade para dar conta do objeto de
comparação. Buscaremos fugir das relações binárias entre literatura nacional e literatura
estrangeira, ou texto de um autor e texto de outro, para emergir numa leitura intra-
autoral, na pluralidade de gêneros experimentados, e pluridisciplinar, estabelecendo
interlocução com outros ramos das ciências humanas.
A propósito, Helena Buescu declara que a Literatura Comparada pode ser
entendida como “domínio cognitivo de cruzamento interdiscursivo, interdisciplinar e
intersemiótico” (2001, p. 93). Nesse espaço intermediário, como declara Tania
Carvalhal, “nos limites dos gêneros, nas margens dos textos, no espaço intervalar onde
se concretiza o imaginário das zonas de contato, que facilitam o processo permanente de
interação de elementos vários” (2003, p. 159), procuraremos operar.
Trabalharemos na linha do “desvio do olhar” que Eduardo Coutinho detecta
nos estudos contemporâneos de Teoria, Historiografia e Crítica Literárias, que passam, a
partir da década de setenta, a encarar o texto não exclusivamente “como objeto fechado
na sua imanência estética, mas como artefato cultural” (1998, p. 57), que se configura
de modo híbrido (como quer Canclini), incorporando elementos da “alta cultura” e da
“cultura popular”, em estrutura dialógica. O texto literário será examinado, então, como
produto que se relaciona com outras áreas do conhecimento e ainda com textos de
outros estratos culturais.
Acrescenta Isabel Lobo, corroborando a nossa metodologia de trabalho:
Se a obra de Eugénio Tavares tão diversa temática e formalmente,
num percurso que hoje se refaz por este conjunto alargado de textos [a
recolha de Félix Monteiro], proporciona uma visão “outra” do século
passado cabo-verdiano deve-se também a uma escrita “paralela” – seja
através de textos do próprio Eugénio Tavares (sob pseudônimo de
Tambor-mor “Um casamento nos Órgãos” e “O Tango e a Morna”)
ou de estudos da Morna (“A Morna” de Baltasar Lopes e “Breves
Comentários às Mornas publicadas nesta colectânea”, de Baltasar
Lopes e José Alves dos Reis), nos quais os textos de Eugénio (as
mornas) são referência obrigatória num contexto cultural tão rico
como o cabo-verdiano, perfazendo-lhe o sentido num percurso de
construção de significações. Esta escrita “paralela”, porque
complementar (muito se tem questionado sobre a importância de
certos textos novecentistas da cultura cabo-verdiana, o que será
aferido também pelo olhar dos seus contemporâneos ou concidadãos
15
questões de recepção do texto), assim sendo, projecta uma visão
novecentista da sociedade cabo-verdiana culturalmente dinâmica e
polifacetada (1999, p. 7).
De forma alguma, Machado e Pageaux (1988) elegem o estudo do tema como o
objeto de trabalho do comparativista. Os teóricos acreditam que o investigador de obras
ou produções em comparação faces indissociáveis da investigação literária: o estudo do
funcionamento interno dum texto (dum tema num texto, a leitura para pôr em evidência,
para reconstruir um conjunto de funções) e o estudo da função social e cultural desse
mesmo texto (pp. 120-121), é obrigado a fazer duas leituras simultâneas: a primeira, no
plano da representação literária como universo próprio e coerentemente estruturado;
segunda, para fazer conexões entre os elementos estruturais e os culturais em que se
insere o texto, passando, assim, de uma análise formalista a uma análise extratextual,
sem que uma exclua a outra. Para Machado e Pageaux,
o texto literário é o lugar dialético onde se articulam estruturas
textuais e extra-textuais, participando o tema, justamente, das
duas séries. O estudo temático revela, afinal, claramente, as duas
Com esse espírito, procuramos abordar a obra de Eugénio Tavares, no sentido
de dar visibilidade às causas de sua singularidade e proeminência no panorama literário
e cívico cabo-verdiano.
O século XIX, como todo o período anterior da literatura de Cabo Verde, era
impactado, enquanto produção estética e literária, pelos modelos europeus. As bases em
que se estruturará uma nova etapa da produção literária em Cabo Verde, anunciada na
revista Claridade, eram discutidas e debatidas anteriormente por Eugénio Tavares.
Sua produção, questionadora dos rumos não da literatura, como também de Cabo
Verde como nação, deu-se no período denominado por alguns críticos e estudiosos de
“pré-claridoso”, a que outros denominam de nativista.
Em sua poética, Eugénio busca da tradição crioula a morna, representante
máxima da alma cabo-verdiana, aproximando o discurso literário da canção e da fala do
povo. Nos textos em prosa e nas crônicas veiculadas no jornalismo, o autor enfoca
questões de natureza política e social (o texto engajado já abre um debate sobre a
necessidade da independência política, social e cultural de Cabo Verde). Sua produção,
inovadora para a época, opera a confluência entre a arte culta e a arte popular. Nesse
16
encontro, o autor resgata as formas tradicionais e preserva o patrimônio imaterial
crioulo, que dialoga com os modelos consagrados na literatura lusa.
A ilha Brava é o cenário perfeito para retratar as vivências crioulas, mesmo
com todas as suas dificuldades e carências; é sempre com muito carinho e amor que
Eugénio se refere à sua terra de origem. Percebe-se, nesse movimento de descrição do
seu torrão natal, uma vontade de que o locus privilegiado na obra não seja apenas a
Brava, mas o Arquipélago como um todo. Para Manuela Ernestina Monteiro:
Eugénio recriou a sua ilha tanto nos versos como na prosa: o relevo, a
beleza da natureza, na qual as flores e os aromas ocupam lugar de
destaque, actos da vida quotidiana bravense, sem esquecer alguns bitos
e costumes, numa palavra, a atmosfera pica da ilha Brava (1999, p. 8).
Na sua concepção, a ilha Brava representa a pátria/mátria
3
,
na senda da
discussão empreendida por Manuel Ferreira (1987, p. 83).
João Nobre de Oliveira, sobre a importância da ilha Brava na época em que
viveu Eugénio Tavares, esclarece:
Com um clima mais suave, que lembrava o da metrópole [...], a Ilha
Brava tinha tudo para atrair os governadores que chegavam a residir
nela meio ano, apesar da capital ser na ilha de Santiago. Foi, também,
a este hábito que a Brava deve o facto do governo ter instalado ali, em
1847, a primeira Escola Principal de Instrução Primária de Cabo
Verde em vez de instalá-la na capital da província. E não era o
governo que tinha os olhos postos na ilha. Já em 1845, o bispo D. João
Henriques Moniz apresenta um relatório ao governo em que propunha
a criação de um seminário-liceu em Cabo Verde, que deveria ser
instalado na ilha Brava. [...] Era natural que a ilha Brava registasse um
intenso progresso a partir de então, pois, para que o governo pudesse
funcionar eficazmente, havia que criar um mínimo de condições, e
muitos serviços foram então instalados, ou tiveram o seu começo
[...] o que, naturalmente, favoreceu os bravenses. assim se pode
compreender como uma ilha tão pequena e com uma população tão
diminuta, tenha desempenhado um papel de relevo nas letras e na
política de Cabo Verde, na segunda metade do século passado. A
Brava forneceu funcionários públicos, oficiais do exército, médicos,
magistrados, professores, padres, que brilharam no governo da
província e em outras terras do Império Português (1998, p. 47).
3
Manuel Brito Semedo nos informa que “O conceito de Mátria foi primeiramente utilizado pelo Padre
António Vieira, em 1639, no “Sermão de Nossa Senhora da Conceição”, pregado na igreja de Nossa
Senhora do Desterro, na Baía, no contexto de a Terra ser desterro e o Céu a verdadeira e bem-aventurada
pátria (2006, p. 266).
17
A pequena ilha concentrou um grande número de pessoas com nível intelectual
elevado e em cargos importantes nas hierarquias de Cabo Verde e da Guiné, o que
refletiu positivamente na sua vida cultural e política. A certa altura, pela quantidade e
qualidade de eventos literários, a Brava tornou-se uma ilha de poetas, dos quais
podemos destacar Guilherme Dantas, Luís Medina, Maria Luisa de Sena Barcelos, José
Bernardo Alfama, ente outros.
Ao final do século XIX, em consequência, a Brava tornou-se uma ilha
republicana e antimonárquica (OLIVEIRA, 1998, p. 48), o que justifica no seu cenário o
surgimento de um intelectual do porte de Eugénio Tavares.
A respeito da imagem que os bravenses faziam de Eugénio Tavares,
lembramos as palavras do escritor Luís Romano, quando de sua ida à Brava, por volta
de 1980, em busca de “relíquias” sobre Eugénio:
As estórias se embrulham e fica somente a evocação de um Ente
Querido, quase mitológico, que foi e é adorado pela gente amorável da
sua ilha Brava, a quem serviu de defensor e quase sempre mentor ou
até juiz. [...] sempre alguém que se lembre de um improviso, de
uma graça, de uns versos, de uma partida ou de uma sentença de Nho
Eugénio (1986, p. 3).
Destarte a admiração que, a exemplo dos bravenses e dos compatriotas cabo-
verdianos das outras ilhas, nutrimos por Mestre Eugénio, ancoraremos nosso trabalho de
pesquisa numa base teórico-metodológica que privilegiará a interlocução entre os textos
eugenianos de variados gêneros e nas línguas cabo-verdiana e portuguesa apoiada numa
visão dos estudos culturais calcada na interdisciplinaridade com a História, a
Sociologia, a Antropologia, a Etno-Musicologia e os Estudos Literários.
Buscaremos, para isso, estabelecer, sempre que possível, a par do diálogo entre
as obras literárias (intertextual), um diálogo das produções com o contexto em que se
insere a obra de Eugénio Tavares, ou seja, o final do século XIX na transição para o
século XX, em que Cabo Verde ainda se encontrava sob o domínio do Império Colonial
Português. Nesse sentido, faz-se necessária a recorrência a apoios teórico-críticos, para
o estudo das questões sociais e identitárias, como os de António Carreira (Cabo Verde,
aspectos sociais, secas e fomes do século XX), Manuel Ferreira (A aventura crioula),
Gabriel Mariano (Cultura caboverdeana: ensaios), Luís Peixeira (Da mestiçagem à
caboverdianidade: registos de uma sociocultura), Leila Leite Hernandez (Os filhos da
terra do sol:a formação do estado-nação em Cabo Verde), bem como suportes para a
18
avaliação do papel da imprensa na formação da cabo-verdianidade nascente
(paralelamente à dominação portuguesa), como os propostos por João Nobre de Oliveira
(A imprensa cabo-verdiana 1820-1975) e Manuel Brito-Semedo (A construção da
identidade nacional – análise da imprensa entre 1877 e 1975).
Os conceitos de identidade cultural e de memória coletiva, imbricados na
discussão das questões sociais e identitárias referidas no parágrafo anterior, serão
retomados de Stuart Hall (A identidade cultural na pós-modernidade) e Maurice
Halbwachs (A memória coletiva). Neste caso, assim como no que toca a outros apoios
teórico-críticos que embasam nosso estudo, optaremos por diluir as categorias e
conceitos no corpo da tese, à medida que vão sendo necessários, ao invés de construir
um capítulo teórico em separado.
No caso específico do estudo da morna, a base teórico-crítica fundamental para
nossa investigação prende-se, sobretudo, às reflexões da área de etno-musicologia do
maestro Vasco Martins (A música tradicional cabo-verdiana I: a morna; e “Ventos
alíseos”), de Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo (A morna na literatura tradicional: fonte
para estudo histórico-literário e a sua repercussão na sociedade), de António Germano
Lima (A morna: síntese da espiritualidade do povo cabo-verdiano), José Alves dos Reis
(“Subsídios para o estudo da morna”), Gláucia Nogueira (No tempo de B. Léza:
documentos e memórias), Carlos Filipe Gonçalves (Kab Verd Band).
No que diz respeito ao recurso da literatura cabo-verdiana à tradição cultural de
cunho oral, especialmente a relação poesia culta-morna, buscaremos auxílio a linhas
mais recentes de pesquisa como a desenvolvida por Simone Caputo Gomes, que elegerá
a morna como matriz de várias gerações de textos literários.
O maestro e poeta Vasco Martins, em sua obra A música tradicional cabo-
verdiana – I (A morna), considera que:
A Morna, forma de música cabo-verdiana, é essencialmente uma
temática sensitiva e elegante, dramatização das aspirações e do
conceito do imaginário do povo cabo-verdiano, uma temática popular
e tradicional muito própria e de grande valor universal (1988, p. 9).
Eugénio Tavares, como pretendemos demonstrar, elevou a morna a um estatuto
literário, legando-lhe uma importância tal que lhe permitiu alçar-se como símbolo de
Cabo Verde ou como “bilhete de identidade” que une os cabo-verdianos em qualquer
parte do mundo.
19
Na relação da morna e de outros textos eugenianos (em língua portuguesa) com
a emigração ou o tema que denominaremos de “terra-longismo”, apoiar-nos-emos em
proposições de Manuel Ferreira (“O círculo do mar e o ‘terra-longismo’ em ‘Chiquinho’
de Baltasar Lopes”), Luís Silva (“Os exílios na literatura caboverdiana”), Gabriel
Mariano (“Amor e partida na poesia crioula de Eugénio Tavares ou inquietação
amorosa”), João Lopes Filho (Imigrantes em terra de emigrantes), Juliana Braz Dias
(“Images of emigration in Cape Verdean music”), Luís Batalha & Jorgen Carling (orgs.
Transnational archipelago: perspectives on Cape Verdean migration and diaspora).
Para a leitura da poética de língua portuguesa, os traços relativos ao mal-do-
século e à linguagem ultrarromânticos necessitarão de enfoque mais detalhado e, para
realizá-lo, recorreremos à história da literatura portuguesa e aos textos de Vítor Manuel
Aguiar e Silva (Teoria da literatura), António José Saraiva & Óscar Lopes (História da
literatura portuguesa), Teófilo Braga (Introdução e teoria da história da literatura
portuguesa e História da literatura portuguesa VI: o ultra-romantismo), Jacinto do
Prado Coelho (Dicionário de literatura), Alberto Ferreira (Perspectiva do romantismo
português: 1833-1865), José-Augusto França (O Romantismo em Portugal), Helder
Garmes (A convenção formadora: uma contribuição para o periodismo literário nas
colônias portuguesas) e Antônio Carlos Oliveira Santos (Eugénio Tavares: poesia e
convenção romântica), que abordam a especificidade do estilo.
Na sua apresentação, nosso trabalho segmenta-se na forma que a seguir
enunciaremos.
O primeiro capítulo, de título Eugénio Tavares: o amor a Cabo Verde na
prosa de intervenção social, enfocará as produções jornalística e epistolográfica
eugeniana, com o intuito de acompanhar os passos que o intelectual rumo à
construção de um Cabo Verde digno, mais cidadão e pautado pela justiça. A análise das
crônicas tavarianas publicadas nos jornais e das correspondências com seus familiares,
amigos e outros intelectuais do arquipélago e do exterior, buscará mostrar em que
medida se manifestam suas preocupações e intervenções sociais. Para que o estudo
alcance o resultado que desejamos, será preciso fazer um recorte em que procuraremos
elencar os textos mais significativos, nos quais o autor procurou representar Cabo
Verde. Corsino Fortes sustenta que, em suas cartas, e acrescentamos, em seus textos
20
publicados em jornais, Eugénio Tavares “estabelece o retrato moral, social e político da
história da época”
4
.
No segundo capítulo, intitulado A poética de Eugénio Tavares em língua
portuguesa, procedermos a uma seleção dos principais poemas em língua lusa, nos
quais possamos verificar imagens trabalhadas pelo autor em que Cabo Verde, seu
imaginário, sua “epopéia sentimental” se façam representar. Esta produção começou a
vir à tona na adolescência de Eugénio, com a publicação de um texto no Almanaque de
Lembranças Luso-Brasileiro, e se mostrou bastante profícua ao longo de sua vida.
O método a ser utilizado na análise dos poemas se constituirá da observação de
sua estrutura – formas fixas, rimas, ritmos, tempos e modos verbais, pontuação –, de sua
composição temática e da verificação de supostos entrelaçamentos sociais e/ou
históricos. A ressonância de um ultrarromantismo tardio em Cabo Verde na produção
poética em língua portuguesa de Eugénio Tavares merecerá uma focalização mais atenta
de nossa parte, que possa posteriormente dialogar com o lirismo amoroso dominante
nos poemas em línga cabo-verdiana.
No capítulo terceiro, Mornas cantigas crioulas: poesia em língua “sabe”,
buscaremos adentrar o mundo cultural crioulo, expresso na sua representante identitária,
a morna, da qual Eugénio Tavares foi o mais consagrado cultor. Para investigar esta
produção eugeniana em língua cabo-verdiana, inicialmente, contaremos com o auxílio
de uma tradutora cabo-verdiana que verterá os textos para a língua portuguesa (de modo
a auxiliar o nosso eventual leitor, que provavelmente não domina o crioulo cabo-
verdiano da Brava) e, posteriormente, iremos ao encontro de estudos históricos, críticos
e etno-musicais que iluminem a singularidade da contribuição de Eugénio Tavares (Nhô
Tatai) para a evolução da modalidade no arquipélago desde sua origem até a sua
transformação na modalidade musical identitária cabo-verdiana.
Os temas fundamentais das mornas serão expostos, de modo a podermos
cotejar as produções poéticas eugenianas em língua crioula e em língua portuguesa,
inferindo até que ponto se tocam ou se afastam.
Embora Stuart Hall afirme que o conceito de identidade “é demasiadamente
complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social
contemporânea” (HALL, 1997, p. 8), encontraremos nele apoio para examinar como a
4
Disponível em: http://www.eugeniotavares.org/docs/pt/obra/cartas.html
21
obra de Eugénio Tavares, como um todo múltiplo (e, em especial, as suas mornas
crioulas), atribui uma identidade cultural a Cabo Verde, em sua época e para além dela.
Para Stuart Hall, uma identidade cultural enfatiza aspectos relacionados à nossa
pertença a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas, regionais e/ou nacionais. Ao
analisar a questão, este autor focaliza particularmente as identidades culturais
referenciadas às culturas nacionais, concebendo a nação como um sistema de
representação cultural composto de símbolos que fundamentam a constituição de uma
dada identidade coletiva. Segundo Hall, as identidades coletivas nacionais, regionais ou
locais são formadas e transformadas no interior de uma larga rede de representações
sociais (HALL, 1997, p. 53); as culturas nacionais produzem sentidos com os quais
podemos nos identificar, contidos em estórias, memórias e imagens que servem de
referências ou nexos para a constituição de uma identidade da nação.
Também os estudos empreendidos por Maurice Halbwachs (1990) contribuirão
significativamente para a compreensão dos quadros sociais que compõem a memória.
Para o sociólogo francês, “memória coletiva é o processo social de reconstrução do
passado vivido e experimentado por um determinado grupo, comunidade ou sociedade
5.
Este conceito nos dará suporte para avaliar o estatuto simbólico tanto da personagem
Eugénio Tavares quanto de sua obra literária para a formação de uma memória coletiva
da nação cabo-verdiana e para a referenciação de uma identidade cultural (Hall).
Halbwachs postula que a memória individual interage com a sociedade, seus
grupos e instituições. É no contexto destas relações ou “comunidade afetiva” que as
lembranças individuais são construídas. Assim, à memória coletiva cabe a função de
enraizar o sentimento de pertença a um grupo de passado comum, que compartilha
memórias. Ela garante o sentimento de identidade do indivíduo, ancorado numa
memória compartilhada, sobretudo no campo do simbólico.
Consequentemente, a memória coletiva tem seu lugar na tradição e,
simultaneamente, a dinamiza. Conclui Halbwachs que a memória coletiva, desempenha
um papel fundamental nos processos históricos, preservando o passado e vitalizando os
objetos culturais. Franco Cardini, sobre o lugar dessa memória coletiva nos processos
históricos, segundo a ótica de Halbwachs, elucida:
5
La memoria colectiva es el proceso social de reconstrucción del pasado vivido y experimentado por um
determinado grupo, comunidad o sociedad. HALBWACHS, 1991, p. 2.
22
a grande protagonista da história é a memória coletiva, que tece e
retece, continuamente, aquilo que o tempo cancela e que, com a sua
incansável obra de mistificação, redefinição e reinvenção, refunda e
requalifica continuamente um passado que, de outra forma, correria o
risco de morrer definitivamente ou de permanecer irremediavelmente
desconhecido (1988, p. xii).
Fundamentando-nos nesses constructos, analisaremos a obra literária de
Eugénio Tavares, nas suas variadas modalidades, encarando-a como passado que,
inscrito de forma indelével na memória coletiva, compartilhada, revitaliza-se num
presente que a ela recorre para identificar-se em processos
6
reiterados de pertencimento
a um Cabo Verde destemido, reivindicativo, justo e livre. Não por acaso as mornas de
Eugénio Tavares têm sido referidas como expressões da “alma cabo-verdiana”, pois que
a “comunidade afetiva” as associa à manifestação singular dos sentimentos crioulos.
Afirma Manuel Brito-Semedo que
Eugénio Tavares até hoje seria o mais importante jornalista que surgiu
até então, pelas posições assumidas quando entrou no projeto d’A Voz
de Cabo Verde, como chefe de redação, num jornal, na altura, radical,
de uma posição radical [...]. Tinha posições firmes e assumia isso. A vida
dele era toda assim. Era um homem consequente, não separo a vida dele
das posições políticas da escrita, ele tinha essas posições (2009).
Eugénio Tavares é reconhecido como uma das balizas da cultura cabo-verdiana
de todos os tempos. Este reconhecimento se dá devido à produção literária, musical,
jornalística e epistolar (além de contos e teatro), marcada principalmente pela
originalidade de seus temas. Desta forma, justifica-se o desenvolvimento deste estudo,
uma vez que Eugénio Tavares representa um dos grandes patrimônios culturais de seu
país. Acreditamos, porém, que nosso empenho na pesquisa das grandes linhas desta
produção contribuirá para que a imagem de ente mitológico se esbata um pouco para
deixar reluzir as qualidades que consagram Eugénio Tavares como um marco definitivo
no rol dos grandes nomes da literatura e da cultura cabo-verdianas.
6
Conceito proposto por Boaventura de Sousa Santos: identidades como identificações em processo.
CAPÍTULO I EUGÉNIO TAVARES: O AMOR A CABO VERDE
NA PROSA DE INTERVENÇÃO SOCIAL
Escolhei a vossa pena como os heróis escolhem as suas lanças;
há penas nobres como espadas, há penas reles como escovas de sapatos.
Eugénio Tavares
Eugénio Tavares, um dos intelectuais cabo-verdianos mais atuantes, legou às
gerações posteriores não apenas a forma modelar da morna bravense, mas também
importantes subsídios para a construção de uma nação mais digna e justa. Nesse sentido,
a sua produção em prosa, espalhada nos mais diversos jornais que circularam em Cabo
Verde e Portugal entre o final do século XIX e as primeiras três décadas do século XX,
revela um Eugénio Tavares comprometido com a “verdade” e com a defesa dos
interesses do povo cabo-verdiano.
João Nobre de Oliveira, ao discorrer sobre a sua atuação como jornalista,
evidencia que
A sua pena tornou-se temida no meio político cabo-verdiano e
colaborou nos órgãos republicanos Voz Pública, Batalha e
Marselhesa; [...] em vida, Pedro Cardoso considerou-o o maior
jornalista cabo-verdiano (OLIVEIRA, 1998, p. 201).
Suas crônicas e cartas, recolhidas por Félix Monteiro sob o título de Eugénio
Tavares - viagens, tormentas, cartas e postais (1999), fornecem-nos um retrato da sua
personalidade marcante e da vasta cultura que dominava.
A leitura mais minuciosa, nesta oportunidade, de textos tavarianos publicados
em periódicos, especialmente a Revista de Cabo Verde e o jornal A Voz de Cabo Verde,
assim como de peças selecionadas de sua produção cronística e epistolar, busca
demonstrar como o autor desenvolveu suas reflexões contra as injustiças sociais,
desmandos de autoridades, abandono do arquipélago por parte da metrópole num
discurso de teor interventivo, que tinha por objetivo a construção de um Cabo Verde
mais humano.
Antes, porém, julgamos necessário fazer um breve histórico da chegada da
imprensa ao arquipélago de Cabo Verde, com o intuito de conhecer as circunstâncias
24
que motivaram a criação da imprensa não-oficial naquela então colônia portuguesa da
costa ocidental africana.
A instalação da primeira tipografia nas colônias portuguesas na África
aconteceu em 1842, quase quatro séculos após a chegada dos portugueses às ilhas de
Cabo Verde e 402 anos depois que Gutenberg inventou a imprensa. Sob a égide da
Imprensa Nacional de Cabo Verde e Guiné, a 24 de Agosto de 1842, na vila de Sal-Rei,
ilha da Boa Vista, dava-se à estampa o primeiro número do Boletim Oficial do Governo
Geral de Cabo Verde. Com este feito, o arquipélago acabaria por se transformar em
pioneiro da imprensa na África portuguesa.
Apesar do seu pequeno número de ginas, este boletim dividia-se em duas
secções: a “Interior” e a “Exterior”. A primeira secção subdividia-se, por sua vez, em
duas partes: a “Parte Oficial”, onde se publicavam textos do Governo, e a “Parte não
Oficial”, que se destinava à publicação de outros textos que pudessem ser úteis aos
leitores do Boletim Oficial. Publicado até o número 32, antes de se fixar definitivamente
na cidade da Praia, na Ilha de Santiago, em 1855, o Boletim também foi editado na
Brava, por ocasião da transferência da Imprensa Nacional para a Ilha das Flores, em
virtude da epidemia que então assolava a ilha da Boa Vista, obrigando o deslocamento
dos funcionários mais influentes, assim como do próprio Governador.
Tornou-se o veículo de informação oficial de Cabo Verde e do Distrito da
Guiné Portuguesa até o ano de 1879, quando houve o desmembramento desta província
do governo cabo-verdiano. A partir de então, o Boletim permaneceu exclusivamente a
serviço do arquipélago, como Boletim Oficial do Governo da Província de Cabo Verde.
Ainda no que diz respeito à instalação da imprensa em solo cabo-verdiano,
João Nobre de Oliveira esclarece que:
apesar da sua primazia na instalação do prelo em terras de África,
Cabo Verde foi das últimas colónias portuguesas a ter um jornal. Foi
em Angola, na cidade de Luanda, em 1855, que nasceu o primeiro
jornal da África portuguesa: o Aurora. Era uma revista literária mas a
sua fundação representa de facto a aurora do jornalismo africano de
língua portuguesa. A Angola, seguiram-se Moçambique com o
Progresso, editado na cidade de Moçambique em 1868; S. Tomé e
Príncipe, com o Equador em 1870; Cabo Verde com o Independente,
na cidade da Praia, em 1877 e, por último, Guiné-Bissau com o Ecos
da Guiné, saído em Bolama, em 1920. Quanto a essa última ex-
colónia a registar que em 1883 foi editada uma folha intitulada
Fraternidade na cidade de Bolama, folha essa número único cuja
25
venda se destinava a angariar fundos para apoiar Cabo Verde, então a
braços com uma crise
(OLIVEIRA, 1998, p. 18).
A história da edição de jornais com temáticas que procuravam dar ênfase aos
problemas gerados nas colônias iniciou-se por volta do ano de 1836. Eram periódicos
voltados para o ultramar e tinham a preferência dos habitantes das províncias para o
caso de denunciar problemas que os afetavam, atacar governantes pouco interessados
em dinamizar a administração e, consequentemente, melhorar a vida das províncias,
discutir ideias políticas etc.
A vantagem da publicação de textos em jornais metropolitanos resumia-se ao
fato de os produtores destes textos não arriscarem a perder a liberdade, uma vez que
muitos deles estavam nas fileiras do emprego público. Nas colônias, a liberdade de
imprensa não era um princípio observado e as autoridades costumavam proibir matérias
que não considerassem convenientes. Todavia, essas mesmas autoridades não tinham o
poder de proibir a publicação na metrópole, bem como de impedi-la de circular nas
colônias, o que inviabilizava represálias contra seus autores.
Em Cabo Verde, tendo ficado sob sua a incumbência a manutenção da
circulação de um único periódico, o governo deu-se por satisfeito com esse órgão
solitário de imprensa durante praticamente todo o século XIX. Esta situação se alteraria
somente no século XX, quando, ainda por iniciativa do governo ou de outros
organismos dele dependentes, novos títulos foram criados. Complementa ainda João
Nobre de Oliveira:
A evolução da Imprensa em Cabo Verde, no entanto, pode ser vista de
um outro ângulo. Assim, partindo em 1842 de uma publicação
mantida pelo Estado, passa em 1877 para dois jornais independentes,
que conseguem sobreviver algum tempo sem o apoio estatal. Segue-se
um novo período em que o Boletim Oficial consegue sair
regularmente, mas marcado, aqui e além, pelo aparecimento de
publicações de pouca duração (1998, p. 26).
Apesar de todas as dificuldades, os cabo-verdianos encontraram na publicação
de opúsculos, cujo tamanho girava em torno de cinqüenta (50) páginas, a saída para
trazer à tona suas memórias, cartas, notas, nas quais buscavam se defender de acusações
e mesmo atacar uma situação ou personalidade. Aqueles, principalmente políticos, que
tinham uma condição econômica mais avantajada, escreviam e mandavam publicar seus
26
textos primeiramente em Portugal, no Brasil e às vezes na Índia, e eles depois eram
distribuídos para o público do arquipélago.
Este dispositivo foi utilizado por Eugénio Tavares após ser acusado de
apropriação indébita de dinheiro público, quando exercia cargo como funcionário da
Fazenda na Ilha Brava.
Consciente das estratégias necessárias para denunciar os problemas de sua terra
natal e para defender-se como cidadão, Eugénio personificava o perfil jornalístico
adequado ao seu tempo, na ótica de João Nobre de Oliveira:
Era preciso que, para além de leitores mais esclarecidos, houvesse
também pessoas que compreendessem a terra, que a interpretassem de
um ponto de vista mais intelectual, quer através da análise política,
quer através da literatura, que o se cingissem apenas as descrições
folclóricas que isso qualquer estrangeiro de passagem também fazia e,
muitas vezes, até melhor que os naturais. Ou sejam, eram precisos
escribas que, conhecendo profundamente a terra, melhor pudessem
expressar o seus anseios. Isto seria possível com o aumento da
instrução (1998, p. 69).
O estudioso aponta o papel da instrução do leitor como condição para o
aparecimento de uma imprensa autônoma em Cabo Verde:
É inegável que, mesmo tendo um certo poder de compra, uma
população analfabeta ou com um baixo nível cultural, não pode
constituir um suporte para a existência de jornais autónomos, uma vez
que não se interessará pela leitura daqueles. Ora, o aparecimento de
um imprensa própria em Cabo Verde trinta e cinco anos depois da
introdução do prelo, para além dos factores económicos, é o reflexo
do atraso da terra neste aspecto e da inexistência até então de uma
população mais esclarecida e mais exigente em termos informativos, o
que só seria possível com o aumento qualitativo da instrução (Ibidem).
O sucesso da luta pela implantação da instrução em Cabo Verde não se
restringiria apenas às ações postas em prática pelo governo. Houve mobilização por
parte de toda a sociedade, com a criação de associações culturais e grêmios com o fito
de levar educação aos que não dispunham deste capital simbólico. É de se destacar
também a iniciativa de cidadãos esclarecidos que dedicaram, de corpo e alma, parte de
seu tempo a ensinar.
Segundo Manuel Brito-Semedo, após o surgimento do Boletim Oficial,
“estavam criadas as condições para a implantação da imprensa não-oficial em Cabo
27
Verde”, uma vez que: i) havia a tipografia, ii) um público leitor com certa instrução e
iii) uma elite letrada e culta, capaz de escrever para jornais e revistas (2006, p. 164).
Em resumo, o nascimento da imprensa em Cabo Verde “foi o resultado de uma
combinação de factores técnicos. [...] no próprio solo cabo-verdiano formaram-se os
leitores e os jornalistas que fizeram da imprensa cabo-verdiana um caso particular da
África portuguesa” (OLIVEIRA, 1998, p. 115).
Como já ressaltado, o primeiro periódico não-oficial surgiu na Cidade da Praia,
com o nome de Independente. Era tido como “jornal político litterário e commercial,
dedicado aos interesses da província de Cabo Verde
7
”. Atribui-se sua fundação a
Guilherme da Cunha Dantas e Joaquim Maria Augusto Barreto, ambos da ilha Brava,
tendo a sua circulação durado aproximadamente doze anos, de 1877 até 1889.
A respeito da imprensa escrita cabo-verdiana, Leila Hernandez acrescenta que:
No seu extremo provincianismo, ainda que sedimentando
particularismos e regionalismos, a imprensa escrita unifica interesses
comuns. São sete os periódicos que passam a circular a partir de 1877
até 1886, e começam paulatinamente a sugerir algumas reivindicações
políticas, embora de forma tímida e, por vezes, ambígua. De todo o
modo, a língua impressa acaba criando “campos unificados de
intercâmbio e comunicação, [...] embrião da comunidade
nacionalmente imaginada” (2002, p. 103).
Brito-Semedo expõe os anseios da elite culta e letrada cabo-verdiana nos
momentos que precederam a chegada da imprensa ao arquipélago:
Mesmo antes de haver a instituição da imprensa em Cabo Verde, a
preocupação da elite intelectual, de Hypolito da Costa Andrade a
Eugénio Tavares e José Lopes, centrava-se na identificação do tipo
ideal de jornalismo que conviria às ilhas. As posições defendidas por
esses intelectuais eram coincidentes e, por vezes, complementares: um
jornalismo independente dos poderosos e alheio à baixa política, que
não fosse um repositório de lisonjas nem uma folha de “curcutição”
(maledicência) e que concorresse para o levantamento espiritual do
seu povo (2006, p. 165).
Hypólito da Costa Andrade, no texto intitulado “Instituição da Imprensa N’esta
Província”, defendia que:
7
Esta citação foi retirada do estudo feito pelo professor Manuel Brito-Semedo, que não informa a
referência. Provavelmente o pesquisador a extraiu do número inicial d’O Independente.
28
O jornalismo [que] sabe fugir ao domínio do espírito parcial das
facções políticas, e não troca a sua magestosa independência pela
degradante posição de instrumento de deshonestas ambições, de
vinganças miseráveis, de desordem e desgraça dos povos, eleva-se nas
abençoadas azas da felicidade de’elles à altura em que todas as classes
generosas da sociedade o contemplam, filho da razão, amante da
verdade, respeitador do direito, centro de luz, anjo de paz.
A imprensa que não queima à porta dos grandes das nações o incenso,
cujo perfume suave se perde no thuribulo da adolação, sustentado em
mãos de indignos (Boletim Oficial nº. 46, 1871).
No que diz respeito aos jornais publicados em Cabo Verde logo após a
proclamação da República, Eugénio Tavares, em uma de suas cartas (sob o pseudônimo
Djôn de Mamai), explicitava seu conceito de “qualidade”:
Um bom jornal não deve ser uma homilia, nem deve ser um cacete
brandido por um possesso, nem repositório de lisonjas, nem folha de
‘curcutição
8
’. O jornal que se paga ao mister louvaminheiro de lamber
tudo e todos, é uma coisa indecente; e um jornal que desanda à
bordoada em tudo e em todos sem escolher onde nem em quem dá,
também, é um estupor insuportável. Nem lamber nada nem morder
muito (TVTCP, p. 173. “Cartas para a América”, A Voz de Cabo
Verde, n.º 74, Praia, jan. 1913).
O posicionamento firme, de luta pela verdade e pela justiça, assumido por
Eugénio Tavares ao longo de sua carreira jornalística, já se pode sentir com a
publicação da Revista de Cabo Verde. Examinemos alguns excertos publicados no nº. 2
desta revista, em março de 1899:
Pugnar pelos interesses da província, sendo, porventura, o mais
simpático ponto de mira da REVISTA DE CABO VERDE, devia ser
aquele que maior apoio lhe grangearia do blico, se não fosse o que
maiores tropeços lhe levantará, mal apareça à luz.
Porque, para que o público aplauda aquele que, serenamente,
desassombradamente, vem apontar erros e propor emendas, é
mister que esse público não pertença nem ao número dos que erram,
nem ao dos que com o erro lucram. E, infelizmente, em Cabo Verde,
os que não fazem parte duma ou doutra coisa podem, como diz o
povo, contar-se pelos dedos (TPJ, p. 17, grifos nossos).
Sobre o modo como a imprensa deveria atuar, explicita Eugénio:
8
Curcutição ou Curcutiçan é um gênero de arte popular praticado pelos camponeses da ilha do Fogo, em
que os contendores se injuriam jocosamente, à desgarrada. Teixeira de Sousa, “Curcutiçan” (Recolhas
Folclóricas), Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação, n.º 63, Praia, dez. de 1954, p. 18.
29
não é necessário que o jornal envergue ares doutorais ou pedantescos:
basta que, para realizar o fim que se propôs, tenha de abordar
questões defesas, descobrir factos irritantes e expor verdades que,
mais ou menos, firam susceptibilidades dos elevados às iminências
da governança ou do dinheiro.
Não desanime, porém, o fundador da REVISTA; a atmosfera dos
combates é o verdadeiro elemento do homem forte. Não pode
haver triunfos sem que haja sacrifícios. E, a adversidade, é o
rebolo onde os lidadores afiam o seu ânimo e temperam o aço da
sua intransigência (Ibidem, grifos nossos).
Com base nessas concepções de jornalismo, os intelectuais cabo-verdianos
assumiriam o dever cívico de produzir artigos para os periódicos da época, expressando
seu ponto de vista acerca dos mais variados temas que os envolviam.
Nesse contexto, a importância de Eugénio Tavares (ou Nhô Génio Tavares, ou
Nhô Tatai, como também era conhecido) pode ser avaliada pelos inúmeros epítetos que
lhe foram atribuídos pela imprensa do arquipélago, ao longo do tempo, dos quais
elencamos alguns deles: retratista incomparável da sociedade do seu tempo; polemista
vigoroso; jornalista criterioso; príncipe dos jornalistas cabo-verdianos; pioneiro na
defesa do homem cabo-verdiano livre e independente; publicista rigoroso; humanista
combativo e mordaz; o primeiro a proclamar a autonomia para Cabo Verde; precursor
do nativismo cabo-verdiano
9
.
De acordo com Tomé Varela da Silva, a produção esparsa de Eugénio Tavares,
publicada em vários periódicos durante aproximadamente quatro décadas, permite
reconstituir do autor a personalidade lúcida e forte de que foi
possuidor, vastamente testemunhados pela sua pena jornalística. A
obra de Eugénio Tavares revela-nos uma personalidade robusta,
munida de um temperamento apaixonado e prático, para quem
raramente o velho ditado, “querer é poder”, teria ficado sem conteúdo,
no que dele dependesse. A riqueza de seu carácter inquebrantável e
bem formado casa-se perfeitamente com a sua personalidade e
temperamento, constituindo-o num homem-modelo que soube
aproveitar e tirar partido de todas as oportunidades que a vida lhe
oferecera (SILVA, 1998, p. 57).
A imprensa, para ele, era uma forma de expor, cobrar, questionar, chamar a
população mesmo que apenas a parcela possuidora de alguma formação letrada a
refletir sobre todas as dificuldades que levavam Cabo Verde a se manter em inércia,
9
Disponível no site da Fundação Eugénio Tavares www.eugeniotavares.com. Acesso em maio de 2010.
30
face ao desinteresse das autoridades responsáveis diretamente pela administração das
ilhas. A este respeito, criticamente, assim se manifestava:
Em qualquer recanto do mundo civilizado, é, o jornal, um drástico
depurador: regula as funções do organismo oficial; purga-o de
humores tóxicos; lava-o de impurezas; corrige-lhe os aleijões; lanceta-
lhe os bubões; [...] entre nós, porém, a Imprensa mais não tem podido
ser que uma firma desacreditada, uma infeliz às bolandas entre a fome
quotidiana e a polícia correcional (TPJ, p. 148).
Alguns fragmentos dos textos jornalísticos tavarianos reforçam o que Tomé
Varela da Silva ressalta na personalidade de Nhô Eugénio:
a atmosfera dos combates é o verdadeiro elemento do homem forte.
Não pode haver triunfos sem que haja sacrifícios (TPJ, p. 17).
Eu exijo para o povo aquilo que, de direito, sei ser do povo (Ibidem, p. 25).
Quando não se tem sentimento moral, é claro, não se tem concepção
do bem; quando não concepção do bem, é fora de dúvida que não
há iniciativa própria (Ibidem, p. 37).
Verdade, sempre verdade. Verdade a todo o transe. Verdade à custa da
paz do meu lar, à custa do bem dos que amo, à custa da minha própria
felicidade. [...] Verdade mesmo acima de Deus, se Deus não fosse
para a Verdade o que o sol é para a luz (Ibidem, p. 58).
Todo aquele que, para conseguir um fim justo, lança mão de meios
injustos, prejudica a realização da sua obra. [...] Nunca se chega ao
bem trilhando a vereda do mal (Ibidem, p. 149).
Combate, moral, verdade e justiça, a serviço do “povo”, constituem as linhas
mestras do jornalismo tavariano.
Com efeito, no que toca à cidadania de Eugénio Tavares traduzida na sua
produção jornalística, Tomé Varela acrescenta que:
foi um cidadão decidido e assumido em todas as circunstâncias e que
elegeu o jornalismo (lúcido, porque lúcido, incómodo) como a sua
arma predilecta de combate, dando voz a si mesmo, à sua ilha, a Cabo
Verde, intervindo e denunciando, muitas vezes com evidente
temeridade, todos os desleixos, atropelias, abusos e injustiças que
espezinhavam os direitos, amarfanhavam os compatriotas, demoliam o
patriotismo e impediam o desenvolvimento (SILVA, 1998, p. 57).
Quanto aos temas primordiais de seu macrotexto jornalístico, passamos a
destacar alguns.
31
Soluções práticas e eficientes para os problemas crônicos de Cabo Verde, como
as crises de seca e fome, davam uma amostra do espírito combativo e empreendedor de
Nhô Eugénio, quando ele endereçava artigos e missivas a “A vários cavalheiros
respeitáveis que não lêem estas cartas”:
Em 1903 se viu encherem-se valas de cadáveres, e [...] ainda se viu
estertorarem-se na miséria Santo Antão e Boa Vista. [...] Não acham
V. Exas. que é tempo de se acabar com semelhantes vergonhas?
Que deve ter soado a hora de os governos darem melhor remédio à
hedionda lepra das traficâncias que a monarquia legou à República?
[...]
Não entraram inda V. Exas. Na convicção de que a calamidade
pública da fome deve ser atacada nas suas causas?
Não desconfiam V. Exas. de que possa ser tempo de pensar em
exploração de nascentes? E regularizar sistemas de irrigação? Na
utilizão de todos os terrenos aráveis? No estudo de adaptação de novas
culturas? No dever de tornar obrigatória a arborização? (TVTCP, p. 275).
Em virtude do abandono dispensado pelo governo colonial à sua terra-mãe,
Eugénio Tavares apontou outra solução para o desenvolvimento de Cabo Verde:
defendeu abertamente a emigração, principalmente para os Estados Unidos da América,
país que era considerado por ele como o Eldorado onde se poderia alcançar a liberdade
econômica e enriquecer culturalmente. Para Eugénio, a emigração cabo-verdiana
constituía um elemento de riqueza e civilização (TPJ, p. 129).
A respeito da saída dos cabo-verdianos da terra natal, Leila Hernandez
esclarece o contexto que a caracteriza, em certo sentido, como inevitável:
A precariedade da vida econômica e a extrema pobreza, a fome e a
alta taxa de mortalidade, acentuadas nas épocas de secas, pragas e
epidemias, expulsam amplos setores da sociedade para fora do
arquipélago. [...] A aspiração básica do emigrante é lutar por sua
sobrevivência e a de sua família para, num segundo momento, poder
criar melhores condições de vida. Nesse sentido, o emigrante
equaciona possibilidades de trabalho, levando em conta suas
aspirações referentes à estabilidade do emprego, ao nível e à
regularidade de remuneração e as possibilidades de ascensão
profissional (2002, p. 104).
Ainda sobre a partida para a América, Eugénio Tavares, no artigo intitulado “A
Emigração para a América”, afirma que:
A emigração cabo-verdiana para os Estados Unidos da América
colocou, de bastantes anos, a ilha Brava fora das contingências
desoladoras da miséria com negra base nas irregularidades pluviosas
32
características, peculiares à zona geográfica em que surgiu o
arquipélago; e lhe ilustrou, e lhe puliu o seu povo; e a cobriu de
habitações risonhas e confortáveis, recendendo ao aroma sadio e
fresco do asseio holandês; e fez brilhar a consciência no cérebro do
seu povo; e fez brotar a compreensão de uma moral que dignifica a
atmosfera dos lares mais pobres; e cultivou o sentimento de amor ao
lar, à família, sem o qual o amor à pátria, e os mais elevados
sentimentos de civismo são utopias; e implantou o amor ao trabalho, à
independência; a coragem moral que vence todas as dificuldades, o
desprezo da morte que facilita todas as empresas (TPJ, pp. 163-164).
Lembremos que o tratamento da temática da emigração por parte de Eugénio
Tavares não se restringiu ao campo do jornalismo, mas teve destaque também na sua
epistolografia e na sua poesia. E o intelectual ateve-se ainda a outras formas de
emigração, nem sempre concebidas como tão positivas, que estabeleciam um
contraponto com a partida para a América. Observemos a mestria com que trata o
assunto sob a forma erudita culta do soneto:
A Emigração
(A propósito da emigração para S. Tomé e Príncipe)
Como é triste e é desolador,
Ver partir, aos magotes, esta gente,
Entregue ao seu destino, indiferente
A tanto sofrimento, tanta dor!
Se a sorte ainda a traz à terra amiga,
Macilenta, tristonha, depaup’rada,
Com a doença do sono, já minada,
Ao cemitério um só coval mendiga!
Mas porque ides, assim arrebanhada,
A essa maldita terra de desterro?
É a fome que vos leva acorrentada?
Aproveitai melhor a mocidade
E ide mais distante, ide à América
A terra do trabalho e liberdade!
(TPOLP, p. 38, grifos nossos)
Os dois tercetos corroboram o que Eugénio Tavares denunciava no número
dois da Revista de Cabo Verde: “Realizam-se emigrações em massa; e, mercê do
desprezo da metrópole, está-se operando uma radical desnacionalização do povo cabo-
verdiano, principalmente dos naturais da ilha Brava” (TPJ, 1997, p. 18). A emigração
para São Tomé é encarada como “desterro” e como não-trabalho, semelhante à
33
escravatura. Somente em liberdade o ser humano pode realizar trabalho digno, é a
máxima proposta por Nhô (Mestre) Eugénio e este tipo de emigração não traria
rendimentos aos emigrados, muito pelo contrário, embrutecia-os e empobrecia-os.
José António Nobre Marques Guimarães, em O Nativismo em Eugénio Tavares
(2005) lembra que um dos fios condutores da ação política e jornalística do poeta, desde
cedo, ergue-se contra a contratação de serviçais para São Tomé. Este trabalho, pesado e
muito mal remunerado, era destinado aos cabo-verdianos que a ele se submetiam em
virtude do estado miserável em que viviam, uma vez que não tinham outra alternativa
diante das sucessivas secas que assolavam o país e que causavam grande caos social.
Havia, ademais, interesse por parte da administração colonial em se aproveitar desse
cenário de calamidades, já que desta forma o governo português conseguia mão-de-obra
quase gratuita para o trabalho nas plantações de cacau em São Tomé.
Desmontando alguns argumentos do Sr. Leote do Rego a favor da mão-de-obra
cabo-verdiana para São Tomé, expressos em entrevista intitulada “Pela Imprensa do
País”, concedida ao jornal O Século, de Lisboa, Eugénio vai refutar enfaticamente esta
forma de emigração usando o texto jornalístico como arma. Confrontemos as idéias do
Sr. Leote, citado em artigo-réplica tavariano:
para que o desenvolvimento da agricultura em S. Tomé não sofra
entraves, não lute com dificuldades por causa da falta de braços, é isto
que se deve procurar manter; não por leis violentas mas por meios
suaves de captação. Angola tem-nos faltado ultimamente com
homens, em virtude dos ingleses; Cabo Verde, apesar de gritar com
fome, faz outro tanto e necessitamos estudar a sério um problema
grave como é este. Ora, poder-se-á resolver favoravelmente os nossos
interesses em S. Tomé, conseguindo-se esta espécie de andamento
rotativa: o preto depois de ver a sua terra voltar para as roças por sua
livre vontade” (REGO citado por TPJ, pp. 90-91, grifos nossos).
Eugénio Tavares reagiu prontamente, destacando os pontos a seguir.
“Não por leis violentas”:
Perfeitamente ociosa a sugestão. Isso, hoje, não se faz: João Franco
não governa; leis a República; e a República não tolera violências
de ordem a se admitir suposição de escravatura; e os homens que a
dirigem jamais se prestarão a barrar os alicerces da Liberdade com
sangue e lágrimas de outros homens, sejam eles pretos de Angola ou
mestiços de Cabo Verde. De resto, mesmo admitindo que a agricultura
de S. Tomé só pudesse florescer pelo sistema da violência, isto é, pela
escravatura, um interesse que fala mais alto que as prosperidades
34
materiais de um país: a intangibilidade dos direitos sociais do
indivíduo. E o preto, por ser preto, não é possível negar-lhe direitos.
(Ibidem, p. 91).
“Por meios suaves de captação”:
Também isso não se deve fazer.
Captação é o emprego de meios capciosos; é a astúcia para induzir ao
erro; é a promessa dolosa, falsa, fraudulenta, cavilosa. É estender
redes besuntadas com o visco de promessas que nunca se cumprem. É
um crime. À democracia repugnam tais meios.
Existe, porém, um meio de evitar que o desenvolvimento da
agricultura em S. Tomé sofra entraves: é atrair trabalhadores não
arrebanhar escravos! – dando-lhes salários, instrução, direitos. Do
contrário é contar que, Cabo Verde, não irá para S. Tomé um único
homem que não leve o desprezo do povo cabo-verdiano (Ibidem).
“Cabo Verde, apesar de gritar com fome...”
Em Cabo Verde, é facto, tem-se morrido à fome. Sob o governo do sr.
Cid Hoje, também, republicano! vinte mil miseráveis foram
atirados à vala. A cada passo se encontram, em Cabo Verde, homens
que morrem sem uma queixa; mas é difícil encontrar um preto ou um
mestiço que suportem a chicotada de um comitre sem responder com
essa criminosa energia, à qual, raro sobrevivem os que vibram o
chicote e o ultraje.
Já se tem experimentado.
O cabo-verdiano tem esse grande defeito de se não prestar a um certo
número de trabalhos (Ibidem).
Diferentemente da emigração forçada para São Tomé, outros destinos, como a
América, podiam educar e enriquecer, trazer progresso moral, material e intelectual.
N’A Voz de Cabo Verde, Ano III, n.º 101, de 21/07/1913, no artigo intitulado
“Questões Económicas: A emigração cabo-verdiana é um elemento de riqueza e de
civilização”, o jornalista bravense destaca que o homem cabo-verdiano, em tipos de
emigração como as da ilha do Fogo e da Brava para a América, vai
quase sempre sem instrução, com apenas aquela educação que bebeu
na pobre e honesta atmosfera em que nasceu. Quando volta porém,
ele, que tinha ido um pária, chega um cidadão. Traz dinheiro, traz uma
definida concepção moral, vem fazendo uma ideia aproximada do
direito, do dever, da justiça; de modo que a sua casa progride, a sua
prole educa-se, a sua existência dignifica-se. E os seus descendentes,
ele mesmo, jamais poderão ser os servos que engraxam as botas e
lisonjeiam as vaidades dos senhores. Os resultados da emigração
cabo-verdiana podem-se ver no Fogo e na Brava, onde ela tem
frutificado. Em nenhuma das outras ilhas há, ainda, uma emigração
35
regulada, estabelecida e com resultados evidentes, incontestáveis, que
se ofereçam como provas contra o oco farelório dos coloniais (Ibidem,
p. 130).
Por exemplo, o artigo “Emigração para a América”, A Voz de Cabo Verde, n.º
35, 15/Abr/1912, ressalta o progresso alcançado pelos emigrantes da Ilha do Fogo que
se estabeleceram nos Estados Unidos da América e estendem à sua terra natal o
desenvolvimento trazido da diáspora:
Os grandes morgadios serra-mar, ainda na sua maior parte
negligentemente, primitivamente cultivados, quase que abandonados
a um pousio esterilizador, começam, hoje, de ser subdivididos em
herdades pequenas, em talhões de pobres que os cultivam com esmero
e com amor; confiados, por longos anos, aos cuidados mercenários
dos rendeiros ou meeiros sem ciência agrícola, passam agora a ser
lavrados por aqueles que não só pensam na maneira de fazer a
colheita anual, senão na possibilidade de seus filhos e netos virem
a colher no futuro (Ibidem, p. 164, grifos nossos).
Uma nova sociedade passa a ser implantada com o regresso daqueles que
partiram. Desta forma, o progresso da Ilha Brava é assim relatado em 1912:
A Brava, a mais pequena da ilhas de Cabo Verde, apresenta-nos o
exemplo do trabalho, da perseverança, da dignidade moral que se
assimila na América. As suas montanhas elevadas, os seus vales
deliciosos, os seus planaltos oxigenados, povoaram-se de habitações
confortáveis e risonhas, onde a felicidade e a abastança nem sempre
dependem das circunstâncias pluviosas. O seu povo é civilizado. A
organização da família é regular. Nos anos de crise alimentícia, de
irregularidades pluviosas, sete por cento da população carece de
socorros públicos. O resto tem a sua vida garantida pelo seu trabalho
fora (Ibidem, p. 130).
Em correspondência especial do jornal português A Marselhesa, em 1897,
Eugénio Tavares antes denunciava ao Secretário da Fazenda o abandono da sua ilha
natal e, por extensão, da colônia, assim como a responsabilidade do Estado colonial:
Suba o Sr. Secretário aos formosos platôs da ilha Brava e pergunte ao
baleeiro esquálido, amofinado pela fome, entristecido pela
contemplação dos seus campos varridos pela lestada, embrutecido [...]
_ que é da beleza das suas montanhas e da abundância dos seus vales;
que vento de morte lhe levou os filhos e a alegria doméstica; quem lhe
esvaziou as tulhas e lhe levou os granéis; quem o amarra à miséria
em terra e lhe fecha o caminho da abundância no mar [...].
Foi a preguiça?
A invalidez?
As doenças?
36
Não. Foi o Estado (Ibidem, p. 14-15, grifos nossos).
No artigo intitulado “Questões Económicas”, publicado em A Voz de Cabo
Verde, Eugénio declara que o cabo-verdiano “não lança raízes às terras para onde vai
trabalhar, mas “vai procurar seiva para aprofundar e fortalecer as raízes que deixou
nas suas ilhas”. E sintetiza:
Não se percam, pois, de vista, estas verdades: a emigração, em Cabo
Verde, é um bem. Contrariar a emigração cabo-verdiana para os
Estados Unidos da América é favorecer a decadência da província, é
abrir um futuro de miséria e sofrimentos aos cabo-verdianos (Ibidem, p. 131).
Com efeito, para a professora Leila Hernandez, a emigração constitui um
processo psicossocial que ajuda o emigrante a se desvencilhar de normas internalizadas
ao longo de séculos de dominação:
com o impacto da vida urbana e da educação moderna às quais são
expostos, os emigrantes transformam-se em grupos de pressão,
reivindicando transformações e almejando ampliação da participação
política, desenvolvendo o espírito crítico acerca da estrutura vigente e
da falta de liberdade em que vivem no arquipélago. Seus horizontes
ampliam-se assim cada vez mais. (2002, p. 107).
N’A Voz de Cabo Verde, Eugénio Tavares continua a defesa da emigração dos
cabo-verdianos para os Estados Unidos como uma das soluções para os problemas da
colônia. Em carta escrita em junho de 1918, dirigida a D. Alexandre D’Almeida,
intitulada Noli me tangere”, o autor pontua e analisa o tema e suas conseqüências. Ao
refletir sobre o processo emigratório, Eugénio Tavares consolida veementemente o
discurso crítico, aponta os motivos que levam os cabo-verdianos a deixar a terra natal e
ainda destaca os pontos positivos para aqueles que rumavam à América:
1º. – O caboverdeano não vai à América apenas à cata de alimento; 2º.
O caboverdeano, quando regressa, (pois que sempre regressa quem
como ele ama a família e a terra em que nasceu) traz, não só dollars,
senão luzes; e apresenta, não um exterior de civilizado, mas uma
noção social por vezes mais justa que aquela que de outra parte lhe
seria impossível trazer; 3º. Que o caboverdeano, na América,
modifica o seu modo de ser moral, erguendo-se de um absoluto
anonimato social e consciente elemento de progresso; 4º. Que,
açacalado no contacto do grande povo americano, o caboverdeano
aprende a encarar a vida por um prisma elevado; cria necessidades que
lhe educam a vontade em lutas mais nobres; integra-se na civilização,
se não adaptando dentro da estreita exigência da cubata e da
cachupa; já dificilmente suportando as exigências tirânicas de um
trabalho humilhante e mal remunerado, facto que por mais de uma vez
37
o contra-indicou para as encomendas de forças fiscais periodicamente
facturadas para São Tomé e Príncipe; 5º. Que, finalmente, o
caboverdeano pertence, como todos nós sabemos, a esse número de
homens cujas aspirações não se limitam à actividade mandibular.
(TVTCP, pp. 229-230).
Em suma, não se resumem às necessidades de sobrevivência os motivos para a
emigração. O fenômeno é mais complexo. Corsino Fortes (2002, p. 3), desdobrando o
tema, observa que:
Entre a insularidade e as estiagens, a emigração é outro fenómeno
característico da vivência do homem do arquipélago. Eugénio Tavares
referencia nos seus trabalhos dois tipos de emigração: a emigração
desejada e a expontânea (sic.), com o início no final do sec. XIX,
nomeadamente das ilhas do Fogo e Brava para os Estados Unidos da
América, e a emigração compulsiva, no início do sec. XX, para
Angola e S. Tomé e Príncipe. Esta emigração é diferente da
expontânea porque se baseia no desespero de uma população que,
flagelada pelas secas, desemprego, miséria e fome, é incitada pelas
pressões administrativas a ir trabalhar mediante contratos de miséria
que geralmente não são cumpridos (FORTES, 2002, p. 3).
No entanto, há quem discuta, como Leila Hernandez, que a saída do cabo-
verdiano por iniciativa própria, sem constrangimentos institucionais, seja considerada
espontânea, uma vez que “é causada por alto grau de dificuldade econômica. É assim,
desde o primeiro grupo do qual se tem registro, que nos últimos dez anos do século XIX
parte da ilha Brava, em navios baleeiros, como destino aos Estados Unidos”
(
HERNANDEZ
, 2002, p. 104).
Fátima Monteiro contemporiza, aliando-se às propostas de Eugénio e Corsino:
O impacto da emigração para a América é sentido, deve salientar-se,
não de um ponto de vista social e económico. Ele faz-se sentir
igualmente ao nível da cultura e dos valores, já que aquele que partia
regressava mais letrado e cosmopolita do que saíra, e trazia consigo, além do
mais, os paradigmas culturais e políticos de um país rico e desenvolvido
10
.
Resume Eugénio Tavares na carta “Noli me tangere”: “A emigração é um bem;
é um factor de progresso cabo-verdiano; é um campo insubstituível aberto à nossa
actividade [...], não que evitá-la, senão fomentá-la [...], devemos defendê-la, não
atacá-la” (
TVTCP,
p. 232).
10
Disponível em: http://www.ieei.pt/files/Cabo_Verde_encruzilhada_atlantica_Fatima_Monteiro.pdf. p
.
4, s/d. Acesso em maio de 2010.
38
Paralelamente ao capital cultural acrescentado ao patrimônio cabo-verdiano
pela emigração, Eugénio defendia a melhoria do nível de instrução na colônia .Era
necessário o acesso indiscriminado à instrução formal, a formação de um público leitor
e a fragilidade do sistema escolar cabo-verdiano travava esse desenvolvimento. Ao
escrever artigos jornalísticos acerca da necessidade de difusão da educação, o intelectual
exigia das autoridades portuguesas escolas para o povo, em tom de quase ameaça:
Eu não peço aquilo que, posto que me tenha sido negado, por direito,
meu, exijo. [...]
Eu exijo para o povo aquilo que, de direito sei ser do povo [...].
Quereis saber quem sou eu para exigir? Sou uma vontade e, por
conseguinte, uma força.
Negam a luz ao povo, porque a instrução na alma do povo é como um
feixe de raios em mãos de arcanjos.
É tempo de se convencerem todos, de que dar escolas e estradas ao
povo não é um favor que se lhe faz; é uma dívida que se lhe paga.
Por isso exijo; não peço.
Não hei-de pedir pedindo, disse o padre António Vieira, senão
protestando e argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem
quem não pede favor senão justiça (TPJ, pp. 24-25).
No artigo “Versando o Ensino Público”, entusiasmado com a publicação no
Boletim Oficial n.º 41 da circular n.º 27 da Secretaria Geral, que convocava uma reunião
de presidentes e delegados de corporações municipais para discutir a remodelação e
desenvolvimento do ensino primário na província, Eugénio Tavares cumprimentava a
iniciativa do governador e se animava com o futuro do ensino nas ilhas. Considerando a
iniciativa como digna de louvor, acrescentava: “Nós, de nós, nos não pouparemos ao
dever de cumprir, nesta campanha, nossa missão de jornalista, colaborando, na medida
das nossas forças, nessa obra” (Ibidem, p. 198).
Eugénio relembra, nesse texto, a sua luta em prol do direito cabo-verdiano a
instrução de qualidade:
muitos anos que nos batemos pelo aperfeiçoamento do ensino na
província.
em colunas de jornais, em opúsculos, arrostamos, em prol da
instrução, com os então perigosos escolhos da discussão pública, num
meio onde discutir era sempre ferir...
Em toda essa longa campanha, porém, mais não conseguimos colher
que ferimentos mais ou menos fundos, dos quais ainda hoje
enfermamos gravemente. Nem vimos o êxito coroar a causa que
defendíamos, nem tão pouco enxergamos a glória lisongeando o
sacrifício que fazíamos entrando nessa cova de leões da discussão
39
pública, num meio onde a prosápia, de sobrecenho carregado,
exagerava a sensibilidade até estatelar-se no ridículo.
Porque, afinal, naqueles tempos (1900 a 1910) a honra só se abraçava
ao êxito, e o êxito premiava trabalhos de sapa nos quais a lisonja
tivessem lubrificado as vontades soberanas, propiciando ânimos e
desvirtuando as linhas do interesse público (Ibidem, p. 198).
Ressaltando a importância que países como Japão, Suíça, Estados Unidos
dispensam aos sistemas educacionais, Eugénio Tavares apela ao governador para que:
Atenda V. Exa. às somas relativamente enormes que, com tanta coisa
inútil, são, aqui, anualmente, dispendidas; e pense, a que grau de
elevação moral e intelectual estaria erguida a província, se parte desse
dinheiro fosse gasto com a instituição, em todas as ilhas, de escolas
primárias e secundárias regidas por professores competentes, e
dotadas de casas e mobiliário higiénicos, decentes.
Gasta-se loucamente com todos os ramos do serviço público; e para a
instrução apenas vão umas tristes migalhas, mal escorrem aguadas
gotas de sangue ao contribuinte! (Ibidem, p. 200).
E chama a atenção para a pouca eficácia do ensino sob responsabilidade
municipal, ao afirmar:
Bem pouca gente pode ignorar que, no ensino municipal (com
excepções), se é certo que as coisas se não passam, rigorosamente, da
mesma maneira que nas piores escolas do governo, é incontestável
que também não correm pela melhor forma. Antes, notório é que o
desleixo de uns, correndo parelhas com a tolerância de outros, tudo
tem feito para que as escolas cabo-verdianas tanto se pareçam com
asilos de professores (Ibidem, p. 200).
Nesse contexto, era previsível que os cidadãos cabo-verdianos tivessem pouca
atuação política, que não lhes era facultado o direito máximo de conscientização pela
via da instrução.
Nos Estados Unidos da América, em 1900, Eugénio Tavares (“Português de
lei! Cabo-verdiano de alma!” (
TVTCP,
p. 175) cria o jornal A Alvorada e, em agosto do
mesmo ano, demonstrando espírito polêmico e precursor, publica o artigo intitulado
“Autonomia”, manifestando-se contrário à ameaça de venda das colônias e
conclamando a necessidade dos cabo-verdianos e demais colônias não se curvarem
“servilmente aos escuros destinos de Portugal”, a “mais negra escravidão”,
organizando-se em partidos:
40
Em todos os países onde a liberdade tem culto; onde, ainda o
miserável que fadeja pelas últimas camadas sociais, alimenta, no mais
íntimo do peito, o sagrado sonho da independência; onde os filhos
pensam na maioridade e promovem à constituição do seu home; em
toda a parte onde homens que, sem envergonhar a humanidade,
podem usar o nome de homens; dedica-se um bocado de tempo,
consagra-se uma parcela de talento ao culto da independência (TPJ, pp. 68-69).
O jornalista Eugénio Tavares não se conforma com a falta de iniciativa dos
povos das colônias portuguesas na África, por não tomarem uma atitude mais incisiva
na busca por autonomia de um regime que considera “de sujeição” (Ibidem, p. 174). E
reprova essa atitude com a mordacidade da ironia, dando ressalto à intervenção política
como condição para o desenvolvimento:
Nas colónias portuguesas, porém, quase se não pensa ainda nessas
bagatelas. É verdade que, Madeira e Açores, tiveram pelos beiços esse
mel de ilhas adjacentes, um osso para enganar a fome de
independência. Cabo Verde, Angola e Moçambique porém, é que
ainda não pensaram nessas futilidades.
Dá tanto trabalho!
E depois as responsabilidades! É tão bom a gente o as ter! Felizes
os que têm quem lhes governe a casa. Comem um bocado em
descanso; dormem um sono sossegado (Ibidem, p. 69).
A ironia é a estratégia escolhida contra o que considera “comodismo” dos
irmãos africanos. E a permanência desse status quo pelos filhos dos colonos é
veementemente criticada:
O português dessas duas riquíssimas províncias não cai na asneira de
ser angolense nem moçambicano: é simplesmente português.
Trata de ir a África ganhar dinheiro; não se rala com cuidados de dar
uma pátria a seus filhos nascidos na África. Está ainda longe de
sonhar um Washington. [...]
Ganha dinheiro e vai gastá-lo a Portugal. Em vez de fazer um palácio
em solo onde os seus filhos brincaram, onde ele semeou e colheu, vai
fazer um chalet nas aristocráticas praias de Portugal onde o seu
dinheiro vai ser o engodo de falsas considerações e a sua ignorância o
pábulo da proverbial risota portuguesa.
Os cuidados de uma pátria perturbam a digestão dos Santo Antoninhos
da fortuna nas Áfricas portuguesas. [...] Assim é que, em quase todo o
ultramarino português, muito raramente se pensa em criar um partido
autonômico (Ibidem).
41
A incapacidade do governo português na administração das colônias e a
ameaça das grandes potências sobre sua autonomia serão evidenciadas na pena do
jornalista cabo-verdiano no exílio:
Portugal vende, cede, na sua dadivosa miséria, os terrenos do
Ultramar. As nações sedentas de expansão comercial, absorvem-lhe
tudo. Parvo, deixa-se sempre enganar; fraco, deixa-se sempre
intimidar.
Portugal não deve fazer isso. Não basta, porém, que o não deva; é
mister que nós, os filhos das Colónias, levantemos um obstáculo
intransmontável à prodigalidade desse velho dissipador. Esse dique é a
nossa emancipação. Essa parte da herança pertence-nos. A África
portuguesa não quer que Portugal a dê de presente a estrangeiros
(Ibidem, p. 70).
Como se percebe do fragmento, Eugénio sentia, naquele momento (1900), o
imperativo de criação de um partido autônomo: “Portugueses-irmãos, sim: Portugueses-
escravos, nunca. Havemos de ter o nosso Monroe: A África para os africanos” (Ibidem).
O jornalista, glosando frase célebre do revolucionário americano, conclama a
necessidade da liberdade de Cabo Verde ao mesmo tempo em que estende esse debate a
todas as colônias: “[...] clamando a África para os africanos, este é o seu primeiro apelo
à independência de Cabo Verde”, enfatiza Corsino Fortes (2002, p. 02).
Segundo João Nobre de Oliveira, com o lançamento do jornal A Alvorada, nos
Estados Unidos, Eugénio Tavares:
terá iniciado assim um tipo de jornais que, ainda que com uma
circulação limitada, incomodavam o poder político instalado. A
diáspora cabo-verdiana, principalmente quando radicada em países
com regimes democráticos, continuará a suportar jornais que, longe,
tanto do poder dos governadores como do próprio governo português,
livres da censura portanto denunciarão os problemas e atacarão os
políticos locais
(1998, p. 213)
.
Na altura em que vem à baila a discussão sobre a venda das colônias
portuguesas na África, em função do Ultimatum Inglês, Eugénio Tavares publica textos
expressando a sua opinião e apontando as consequências que tal iniciativa poderia gerar
para Cabo Verde. O artigo “Pregar no Deserto”, publicado no n.º 3 da Revista de Cabo
Verde, é peça destacada da sua recusa à transferência de domínio das colônias:
42
não hesito afirmar que é grande erro esperar que, sob a dominação de
qualquer das grandes potências civilizadoras, que sobre nós estendem
vistas cobiçosas, mais claros horizontes se nos abrirão.
[...] As libras inglesas poderão reflorir as nossas devezas e engrinaldar
as nossas escalvadas montanhas de luxos primaveris; porém, ai de
nós, o nosso sorriso puro de pobres livres crestar-no-lo-á o
aspérrimo desprezo dos novos senhores; e, esses amáveis ingleses da
portuguesa ilha de S. Vicente, esses simpáticos rapazes que, hoje, de
sorriso em riste, em toda a ruidosa bizarria que os caracteriza, nos
distribuem os seus efusivos shake-hands, passarão, amanhã,
dominadores, na inglesa ilha de S. Vicente, a envolver-nos, do alto
do seu orgulho saxão, no mais frio e acabrunhador desdém.
E esse desdém, digamo-lo bem alto para que nos ouçam aqueles que
mais alto estiverem, porque não falamos ao povo analfabeto,
irresponsável, sem noções de patriotismo que há-de, de braços abertos,
receber quem lhe traz luz e pão, e não há-de estranhar o chicote,
habituado como está à espora (TPJ, pp. 20-21).
O assunto voltará a render um outro texto, no n.º 4 da Revista, desta vez com
título explícito, “A Venda das Colónias”, e demonstra um Eugénio Tavares indignado
com as autoridades portuguesas que cogitavam tal afronta aos cabo-verdianos:
A venda efectuava-se mas em circunstâncias que tiravam de sobre os
ombros de quem a realizava, todo o peso desse crime de vender
irmãos. Os homens do governo tinham passado a ser estrangeiros; de
modo que ao tempo de negociar a venda das colónias, não eram
portugueses; assim deixava de lhes tocar o labéu de vender a própria
pátria (Ibidem, p. 27).
Eugénio Tavares encerra o seu artigo praticamente conclamando angolanos,
moçambicanos e cabo-verdianos a ficarem atentos aos acontecimentos vindouros e a
não aceitarem ser vistos como meros artigos que se compra e vende sem a menor
consideração. “Aguardemos os acontecimentos e vejamos se os portugueses de Angola,
Moçambique e Cabo Verde estarão dispostos a aceitar essa classificação de artigos de
factura” (Ibidem, p. 29).
Mostrando-se atento ao desenrolar da questão da venda das colônias, um novo
artigo é publicado no n.º 6 da Revista de Cabo Verde, em maio de 1899, cujos pontos
mais importantes reproduzimos:
O imenso império descoberto e conquistado por aqueles
extraordinários portugueses que assombraram o mundo com a
homérica audácia dos seus cometimentos, vai ser retalhado pela
desmedida ambição das nações do Norte.
43
O leopardo inglês e a águia negra da Prússia tramam, nas labirínticas
sombras da política, o roubo e o saque dum povo pequeno e sem
forças para se defender.
É ignóbil, mas é verdade. [...]
A política passou para os domínios de uma aperfeiçoada arte de furtar!
A força é que é verdadeiro direito. O direito não passa de uma bonita
utopia, sonho de poetas, preocupação asnática de visionários! [...]
Fabricam-se documentos falsos com que provar prioridade de
descobrimentos e ocupações; inventam-se pretextos fúteis que levem
directamente, incisivamente, à posse violenta de propriedade alheias.
[...] o plano concertado entre a Alemanha e a Inglaterra não visa a
partilha da África portuguesa; é uma guerra à raça latina: contra a
península hispânica que consubstancia toda a sublimidade artística dos
tempos idos; e contra a França, o foco da Civilização e alma de todo o
Ideal pelo homem (Ibidem, pp. 32-34).
Eugénio atacava um provável desmembramento das colônias portuguesas na
África, posicionando-se contrariamente a posturas dos Estados Unidos, da Inglaterra e
da Alemanha, uma vez que, no seu entendimento, esses países haviam declarado guerra
aos países de origem latina (Portugal, Espanha, Itália e França). A ambição das grandes
potências européias em relação às colônias foi motivo constante de preocupação
expresso nos textos tavarianos, como “Política Colonial”, publicado no n.º 27, de A Voz
de Cabo Verde, em 1912:
Fora de dúvida que o povo colonial português jamais seria consultado
sobre se aceitaria, ou não, qualquer dominação estrangeira; [...] e o
povo do ultramar, devendo ter, como teria, sob o domínio de qualquer
potência estrangeira, direitos ao par de deveres, força política
constituída, poderia, até certo ponto, agir, senão de modo a evitar o
esbulho violento, pelo menos de jeito a perturbar a posse, a não
sancionar o crime com a ausência de protestos insurreccionais.
Não é o interesse da civilização que está arremessando os povos
poderosos a essa desenfreada pirataria de mutuamente se
roubarem, se despojarem de terras ultramarinas; senão que,
evidentemente, o sórdido egoísmo, a fome dos lucros comerciais e
industriais, a irrefreada ambição das hegemonias políticas. Não é
para civilizar, mas sim para servilizar que a Alemanha se está atirando
à voragem das aventuras africanas. [...]
Do pele-vermelha, na América, pouco mais se vê, hoje, que
fragmentos erráticos de tribos dizimadas, dispersas pelas largas
planuras do oeste, saudosos depositários das tradições de heroísmo
dos seus grandes e temíveis chefes. [...] Semelhantemente, ao preto
africano se se não instrui, se se não impõe pelos seus direitos, o
mesmo destino o espera: tem os seus séculos contados (Ibidem, p.
95, grifos nossos).
Eugénio Tavares enfatizava o desdém com que vinha sendo tratado o homem
das colônias:
44
O indígena das colónias, até aqui, tem sido uma grande foa nacional
relegada ao mais estúpido desprezo; facto que é não um crime à face
das leis sociais, mas também um procedimento potico irreflectido,
incongruente, da parte dos governos da nação (Ibidem, pp. 96-97).
Por outro lado, na Revista de Cabo Verde, Eugénio trazia ainda à estampa um
artigo no qual discorria sobre o que considerava a índole “pacífica” dos cabo-verdianos
e sobre o excesso de “prudência” que a norteava, como causas, em parte, da
permissividade das situações anteriormente descritas:
É, pois, a prudência cabo-verdiana, mais um irreflectido receio de
afrontar males que podem, mais ou menos facilmente, ser vencidos,
que uma serena experiência de evitar um golpe sem deixar alvo a
maior golpe; mais um instinto de conservação pessoal, que leva cada
qual a cuidar de si, que juízo esclarecido, que avisada previdência de
evitar combate e prevenir, com maior firmeza, a defesa colectiva; mais
egoísmo, em suma, que prudência. (Ibidem, pp. 22-24).
Para o autor, o excessivo apego à prudência levava ao não-comprometimento
coletivo e à abdicação de direitos garantidos. No artigo “Asilos”, por exemplo, Eugénio
Tavares denunciava a prática da mendicância (tema retomado por contos de outros
escritores cabo-verdianos, como “Esmola de Merca”, de Orlanda Amarílis, e “Sábado
Nossa Senhora”, de Ivone Aída), durante uma das várias crises que afetaram a cidade da
Praia; denunciava ainda o imobilismo dos governantes face àquela prática:
É aos bados que o pungente espectáculo da sua exibição se alastra,
numa enxurrada, pelas ruas da cidade. Os seus andrajos, as suas
deformidades, compungem e amarelecem a alegria de viver. De mãos
estendidas, gemebundas, súplices, apinham-se pelos portais,
amontoam-se pelas ruas, escoam pelas vielas, envolvendo a todos na
atmosfera da sua dor, oferecendo ao forasteiro um espectáculo que
não mais se apaga do seu espírito. Oh, aos sábados, a enchente de
mendicidade que inunda as ruas da Praia lembra as páginas
horripilantes do Triunfo da Morte, de Gabriel d’Annunzzio:
entristecem, golpeiam, torturam, e dão a medida do desleixo dos
governos do ultramar, e dão uma prova de quanto são singulares,
extravagantes, incompletos, não só as noções da bondade que formam,
imperfeitamente, o fundo no nosso carácter, senão que o sentimento
da dignidade humana, e, mais ainda, o sentimento da nossa própria
dignidade nacional (Ibidem, p. 120, grifos nossos).
A indignação com o descaso português em relação às suas colônias na África
era tamanha, a ponto de Eugénio compará-la com o modelo de colonização praticado
pela Inglaterra:
45
acreditamos na superioridade do povo inglês no campo da grande
ciência colonizadora. Como a Inglaterra, com iguais justiça, critério,
extensão de vistas e resultados práticos, nenhum país ainda colonizou.
(Ibidem, p. 159).
Diferentemente do modelo português, que apenas explorava as riquezas dos
territórios sob seu domínio, a forma de colonização inglesa, segundo o jornalista,
transformava os habitantes dos territórios colonizados em cidadãos tão ingleses quanto
eram os naturais:
A Inglaterra, sempre que tomava posse de terras descobertas ou
conquistadas, muitas descobertas por outros que nos feitos
marítimos tiveram a glória de ser os primeiros, plantava-lhes, nos
solos virgens e opulentos, a liberdade e o bom senso da sua
maravilhosa política. Assim progrediram a Austrália, a Nova
Zelândia, o Cabo, o Canadá, os Estados Unidos. [...] A Inglaterra é
uma família de homens independentes e livres, vivam os seus
nacionais no país em que viverem, tenham a cor que tiverem. Os
povos ingleses semelham filhos que casam, fazem casa e constituem
família. [...]
Colonizar é isto: ter filhos, não escravos... [...]
São ingleses os louros filhos da Europa, os escuros africanos e os
bronzeados dos índios. Todos com direitos, todos com deveres. Todos
livres, todos olhando o futuro com plena confiança no seu destino.
(Ibidem, pp. 159-160).
Eugénio concluía o artigo com um pedido que, infelizmente, parece não ter
sido ouvido pelos colonizadores portugueses: “[...] praza a Deus que o grande exemplo
da Inglaterra frutifique...” (Ibidem, p. 161).
Retomando a temática sobre o “caráter ou personalidade” do homem cabo-
verdiano, como concebido por Eugénio Tavares, vale ressaltar o texto “Os indígenas de
Cabo Verde são desleixados, indolentes e bêbados?”, no qual (apesar de em outro artigo
ter-lhes uma “índole pacífica” e um “excesso de prudência”) fazia a defesa dos seus
compatriotas face aos juízos de valor feitos pelos europeus, especialmente aqueles que
ocupavam cargos administrativos.
Chega a causar a facilidade, a insensatez e o desplante com que se
atribui ao desleixo ou indolência indígena todos os males que provêm
do indiferentismo e imprevidências governativas.
Esse pouco escrúpulo e, quiçá, essa com que se costuma
desvalorizar a actividade dos filhos de Cabo Verde, têm servido
para desnortear os legisladores que não conhecem o indígena de Cabo
Verde (Ibidem, p. 106).
46
Tavares argumentava, em defesa dos naturais do arquipélago, que:
Se estes fossem desleixados e indolentes, não emigravam à procura de
trabalho fora da sua terra, nem seriam recebidos nos E. U. da América
do Norte; antes, seriam recambiados à terra que os exportou.
Isto está a par desse outro estribilho de que muito têm usado e
abusado alguns doutores, em seus maçudos relatórios: o preto não
pode passar sem aguardente; ou o preto sustenta-se de aguardente.
Ora, se ele não pode passar sem aguardente, como é que se explica a
sua emigração para os E. U. da América, onde é proibida a venda de
aguardente ou de outra qualquer bebida alcoólica.
E, entretanto, diz-se que os indígenas de Cabo Verde são bêbados e
indolentes; e isto repete-se na imprensa, em relatórios, em trabalhos
de fomento, e até em livros, e muitas vezes por brancos que, na
ocasião, estão debaixo de uma tervel inflncia alcoólica!... (Ibidem).
Mestre Eugénio via na educação, na criação de escolas uma saída para que essa
concepção equivocada pudesse ser, de uma vez por todas, erradicada:
Procurai, senhores doutores, pôr termo ao abuso do álcool, educando e
instruindo todas as camadas da população portuguesa, sem olhar à cor
de cada um, nem investigar de onde são indígenas.
Porque é que haveis de atribuir ao preto, e ao preto, um vício
que está generalizado em todo o mundo e em todas as camadas
sociais?
Não conheceis, como nós, terras, de brancos, onde a
assiduidade nas casas de bebidas e a conseqüente embriaguez são
o chic?
Ora é com exemplos e com o ensino que o preto aprende a não ser
desleixado e bêbado, mas não com o exemplo dos brancos da tal terra
que conhecemos, nem com falta de escolas; pelo contrário: é criando
estas e confiando a sua regência a professores brancos ou pretos (a cor
não importa) com competência profissional e moral, e tornando
obrigatória a sua freqüência (Ibidem, grifos nossos).
O artigo era assim arrematado, em favor da população cabo-verdiana:
O indígena de Cabo Verde é activo e trabalhador. Que o digam todos
esses terrenos agricultados na província, que eles trabalham conforme
lhes têm ensinado as escolas que conhecem.
Que o digam as fábricas americanas, onde eles vão mostrar actividade
que aqui não podemos mostrar. Que o diga tamm essa imensa
sepultura líquida que se estende em volta desta bola que habitamos
(Ibidem, p. 107).
47
A temática explorada no artigo de jornal, acrescida da sensibilidade do poeta,
será reiterada num soneto (publicado com pseudônimo), do qual extraímos trechos
11
:
À mesa, um dia, estavam dois doutores
sobre matérias graves discorrendo:
[...]
Tratava, um, de provar que os bebedores
crioulos, (brancos nunca!) iam perdendo
a mioleira, em virtude dos calores
que a pinga neles vai desenvolvendo...
[...] se toda essa manada de crioulos
desprovida estivesse de miolos
quem nos fabricaria, hoje, essa cana
que divina parece mais que humana?
Dic (TPOLP, p. 43)
O argumento defendido pelo interlocutor do poema, na última estrofe, encontra
eco no texto jornalístico, que interroga:
Porque é que haveis de atribuir ao preto, e ao preto, um vício que
está generalizado em todo o mundo e em todas as camadas sociais?”
Não conheceis, como nós, terras, de brancos, onde a assiduidade
nas casas de bebidas e a conseqüente embriaguez o o chic? (TPJ, p. 106).
Um dos intelectuais mais destacados de sua época, Eugénio Tavares, cedo,
mostra-se um nativista apaixonado. Por meio da imprensa, publicará textos
significativos sobre o tema, rebatendo os adversários que viam no movimento uma
ameaça ao patriotismo e, consequentemente, um desafio à soberania portuguesa.
No artigo “O Nativismo Através da Alma de Mistral”, publicado em 1914, no
n.º 176 d’A Voz de Cabo Verde, Eugénio Tavares define o que é ser nativista:
um direito de amar, entre todas as Pátrias, Portugal, nossa pátria; de
bem querer entre todas as terras portuguesas, Cabo Verde, nossa terra;
de adorar, entre todas as ilhas cabo-verdianas, a ilha em que
nascemos, em que amamos, em que fomos felizes. E se isto é crime,
crimes são, de certeza, todos os mais levantados e nobres sentimentos
humanos.
Crime, o nativismo? Crime amarmos mais o que é nosso que o que é
alheio? Será crime esse dulcíssimo sentimento de amor à terra em que
nascemos? (Ibidem, pp. 156-157)
11
O soneto será analisado adiante, no capítulo relativo à poesia de língua portuguesa.
48
Malgrado todos os obstáculos, para Eugénio a opção será sempre Cabo Verde:
E tanto que antes queremos ser portugueses aqui, com frio e fome,
nesta terra de estiagens, que estrangeiros nas terras mais opulentas e
felizes. Será isto um erro? Desde quando é erro a dignidade humana?
E tanto que preferimos para viver e para morrer, a aridez e a miséria
de Cabo Verde, ao bucolismo do Minho, por exemplo, ou às riquezas
das nossas Áfricas. Isto será um crime? Desde quando o crimes a
dedicação e o regionalismo, bases do patriotismo? [...]
Porque, nesses países, seríamos estrangeiros, e no nosso, filhos. Honra
é amarmos mais a estas ilhas esquecidas de Deus e dos homens que a
outras mais ricas e fecundas terras sobre as quais tremula a bandeira
da nossa nação. Porque nós seríamos forasteiros e aqui estamos em
nossas casas (Ibidem, p. 157).
O intelectual entendia que, para haver patriotismo, antes era preciso sedimentar
uma estrutura que levasse a tal sentimento pelas vias do nativismo:
Cada povo pugna pela sua região dentro da Pátria; cada cidadão
trabalha para sua família, dentro da região. Isto é a base do
patriotismo; e da estrutura social. Sem lares não nações; como sem
amor não família. Forma-se uma nação como se forma uma
floresta: cada árvore raíza-se na terra em que nasceu. Depois, unidos,
é que todos os carvalhos costumam oferecer uma resistência
invencível aos próprios ciclones. [...]
É, sim; quanto mais amamos as nossas regiões, mais poderemos
adorar a nossa Pátria.
Não se chega, inclusivamente, a esta adoração, sem passar por aquele
amor. E, se nativismo é amor à terra, é um factor do patriotismo; e não
vemos maneira de crer na sinceridade de um patriota que não é
nativista. Admitamos pois que o nativismo seja a origem enternecida e
santa do patriotismo, e não erraremos (Ibidem, p. 158).
A partir da publicação de artigos dessa natureza, José António Nobre Marques
Guimarães ressalta que:
Agudizava-se a consciência política daquele que viria a ocupar um
lugar de relevo no combate nativista após a implantação da República,
nas páginas d' A Voz de Cabo Verde . A partir de 1911, no contexto da
defesa intransigente do ideário libertador republicano que viria a
mobilizar a elite intelectual nativista de Cabo Verde, Eugénio Tavares
empenhar-se-ia na defesa dos direitos do seu povo, dando
continuidade à luta iniciada n' A Revista de Cabo Verde e n' A
Alvorada , denunciando, sistematicamente, as contradições cada vez
mais gritantes entre os princípios daquele ideário e a prática política
das administrações republicanas da colónia após a demissão e o
regresso a Portugal, sob prisão, do seu primeiro governador
49
republicano, Marinha de Campos, cuja política em defesa dos
caboverdianos lhe granjeara a acusação de nativismo
12
.
No n.º 205 de A Voz de Cabo Verde, Eugénio Tavares, discorrendo sobre as
eleições para deputado, conclama o povo cabo-verdiano para que vote em candidatos
comprometidos com o desenvolvimento do arquipélago:
Somos portugueses nascidos e criados em Cabo Verde. Amamos
muito a nossa Pátria, e não menos a nossa província. Temos a honra
de ser nativistas no justo e próprio significado da palavra. Nativismo,
aqui, é duas coisas: 1.ª – Legítimo e nobre sentimento de amor ao lar,
que constitui o mais forte e o mais levantado plinto do patriotismo. 2.ª
– Um vocábulo ao qual a má fé corrosiva tem, debalde, tentado
ajustar significados extravagantes (TPJ, p. 195).
Vale lembrar que, aos olhos das autoridades políticas portuguesas, o
movimento nativista era suspeito de ser antiportuguês. Eugénio Tavares, com a
publicação desses textos, buscava justamente esclarecer e fazer compreender justamente
o contrário: o nativismo constituiria a base para a construção de uma nação portuguesa
forte em todos os aspectos.
A este respeito, Fátima Monteiro informa que:
A continuação, ao longo do período liberal e da I República, de
práticas discriminatórias pelo governo de Lisboa, como por exemplo a
preferência dada a metropolitanos no preenchimento de quadros
administrativos na colónia, acabou por promover e radicalizar o
nativismo cabo-verdiano. Em determinada altura chegou mesmo a
defender-se, abertamente, a independência
13
.
Em 1915, Eugénio levantava-se contra o projeto da Carta Orgânica que
pretendia, entre outras coisas, implantar o estatuto do indigenato em Cabo Verde.
Publicou, na ocasião, um longo artigo, por partes, nos números 187, 188, 189, 190, 192
de A Voz de Cabo Verde, no qual procurava alertar as autoridades e o povo sobre as
incongruências daquele documento.
Definindo o termo “indígena” como impróprio, esclarecia Eugénio:
Indígena, é: gerado ali, nascido no país. Não se entende, porém,
assim, o termo, no uso que dele a lei tenta fazer. [...] E tomando-se
12
http://www.eugeniotavares.org/docs/pt/noticias/nativismo_eugenio_tavares.html. Acesso em maio de
2010.
13
http://www.ieei.pt/files/Cabo_Verde_encruzilhada_atlantica_Fatima_Monteiro.pdf. p. 5, s/d. Acesso
em maio de 2010.
50
estas palavras indígena nessa acepção, nós teríamos de admitir a
hipótese de, amanhã, poder, um filho de Sua Ex.ª o sr. Governador,
nascido em Cabo Verde e, logo, indígena, ser condenado, pelo sr.
Administrador do Concelho, por ter vindo mais alegre de uma festa, a
trinta dias de trabalhos públicos, segundo a letra do art.º 148.º, n.º 1.º,
alínea a) da Carta Orgânica!
Em Cabo Verde não há semelhante diferença de nível nos direitos que
a lei reconhece aos cidadãos. Não há. Não deve haver. [...]
Se a intenção foi referir-se a impostos de trabalho, etc., ainda o termo
indígena nos parece impróprio, pois que tais impostos recaem sobre
todos os habitantes sem distinção de classes nem de localidades de
nascimento (TPJ, p. 170).
Acrescentava à discussão do termo o argumento que qualificava a
“personalidade” cabo-verdiana fundada na dignidade:
No dia em que uma lei estabelecesse tal diferença entre os
contribuintes cabo-verdianos; no dia em que se decretassem impostos
que recaíssem exclusivamente sobre os naturais da província,
estabelecendo uma selecção, entre os seus habitantes, por localidades
de nascimento; no dia em que, os cabo-verdianos fossem
considerados indígenas; e, por oposição, e com propriedade, os
metropolitanos se reduzissem a exóticos; nesse dia os cabo-verdianos
com dignidade abandonariam de vez as suas ilhas, indo fixar-se em
qualquer país onde nada lhes lembrasse a desgraça e a vergonha de
terem sido párias na sua própria terra (Ibidem).
Mais adiante, Eugénio Tavares fazia um apelo para que o projeto de Carta
Orgânica elaborado por autoridades metropolitanas não fosse aceito em Cabo Verde,
uma vez que considerava que
esse diploma, dizíamos, não satisfaz ao desenvolvimento de Cabo
Verde. Porque Cabo Verde o é Timor. Porque em Cabo Verde não
tribos selvagens. Porque o cabo-verdiano é um elemento civilizado
da nacionalidade portuguesa (Ibidem, p. 175).
Na defesa intransigente das qualidades do homem de Cabo Verde, voltava a
afirmar que
50 anos se pensava na conveniência de considerar estas ilhas
como adjacentes, nelas implantando o regime de assimilação que
vigora nos arquipélagos madeirenses e açoriano.
O povo de Cabo Verde nega aquela classificação desacertada (que a
intenção e as circunstâncias tornam provocadora, humilhante e
insultuosa) que se lhe quer dar num diploma legal.
O povo de Cabo Verde unir-se-á para, sob a lei, repelir afrontas à sua
dignidade vica de cidadãos livres da República Portuguesa.
(Ibidem, p. 185).
51
Segundo nos esclarece José António Nobre Marques Guimarães:
Apesar do endurecimento crescente da política colonial republicana,
Cabo Verde acabaria por não ser abrangido por aquele regime, ao
contrário do que viria a acontecer em Angola, em Moçambique e na
Guiné, onde a sua implantação fez com que a esmagadora maioria dos
seus habitantes africanos viesse a ser privada da cidadania e reduzida
à condição indígena desprovida de direitos
14
.
Eugénio Tavares usou o poder de sua escrita jornalística, também, para rejeitar
o racismo que imperava na época. Para ele, Cabo Verde alcançaria o
desenvolvimento se houvesse igualdade entre brancos e negros. A distinção de raças
significava atraso, miséria, exploração do homem pelo homem.
Um bom exemplo de sua recusa a esse preconceito pode ser extraído do texto
“Brava Trechos de uma Monografia”, publicado no Boletim da Agência Geral das
Colónias, Ano V, n.º 45, março de 1929, no qual Tavares disserta sobre a formação do
homem da Brava:
A gente bravense é branca ou mista, produto admirável de
cruzamentos dos primeiros colonos oriundos de Portugal, com
mestiços vindos principalmente da vizinha ilha do Fogo.
[...] Eis a razão por que em 1680, a gente livre do Fogo, que pudera
fugir às assolações da estiagem, encontraria a ilha habitada. [...]
alguns casais do Fogo se refugiaram na Brava, indubitável é que
encontraram a ilha habitada por famílias brancas.
Todo este arrazoado para trazer à história a confluência de um veio de
verdade; e não porque essa sonhada origem guineana nos importe
depressão, pois que a dignidade humana não está na cor da epiderme.
Antes, honra insigne seria descender de escravos e ter subido a
senhores... que ninguém ignora que, na ilha Brava, cada homem é
um senhor independente e livre em toda a acção social (TPJ, pp.
224-227, grifos nossos).
Ao longo de sua carreira, Nhô Eugénio colaborou em vários jornais
metropolitanos cujos programas estavam voltados para a defesa da causa africana em
terras portuguesas, como: O Negro, A Mocidade Africana, África, Correio de África, O
Protesto Indígena, Tribuna de África, A Voz de África.
O posicionamento corajoso do jornalista bravense fica evidenciado em
inúmeros dos seus textos em prosa, que constituem retratos da sociedade cabo-verdiana
dos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX, expostos com um realismo
14
http://www.eugeniotavares.org/docs/pt/noticias/nativismo_eugenio_tavares.html. Acesso em maio de
2010.
52
interventivo que impressiona o leitor, pela preocupação demonstrada em denunciar os
desmandos do colonizador e bradar para que medidas eficazes fossem tomadas para
solucionar ou, pelo menos, minorar os problemas sociais presentes em todas as ilhas.
Outro ato de coragem evidenciado nos textos jornalísticos foi a defesa da
língua crioula (na época de Eugénio denominada dialeto e atualmente, língua cabo-
verdiana), na senda de Pedro Cardoso. Eugénio Tavares foi um grande cultor do falar
dos naturais de Cabo Verde, basta-nos lembrar as suas Mornas cantigas crioulas,
conjunto de vinte e cinco (25) peças líricas produzidas em crioulo bravense. O seu amor
pela forma de expressão de todos os cabo-verdianos o levou a publicar, em janeiro de
1924, no n.º 11 do jornal O Manduco, do qual ele era editor, um texto (editorial)
revelador de seu pensamento a respeito de como o sistema colonial tratava a questão
linguística. O título “Língua de Pretos”, por si já é bastante revelador. Neste artigo,
Eugénio definia o crioulo como expressão híbrida, ressaltando sua originalidade e
defendendo a necessidade de seu estudo linguístico:
O dialecto cabo-verdiano constitui documento glotológico de uma das
mais interessantes transformões da língua portuguesa.
Mestiçada pelo contacto de duas raças diferentes, num consórcio de
séculos; ressentindo-se da influência exercida, em longas gerações de
colonos, por multidões de escravos; em breve a língua dos senhores
tomou os vícios prosódicos dos escravos, conservando, ao lado de
arcaísmos lusitanos pitorescamente, fonalidades bárbaras de muitos
vocábulos sonoros, e de poucas expressões interjectivas.
[...] estou em crer que todo o facto que signifique actividade
trasnformadora, tem sempre, para o estudioso, algum valor.
As raças mistas, expressões novas, oferecem campos de estudo: à
antropologia, na novidade do seu ser físico; à glotologia, na
originalidade do seu modo de exprimir. Desde que não seja possível
negar que o cabo-verdiano pensa; e que dispõe de palavras para dizer
o seu pensamento; e que usa de regras para a arrumação dessas
palavras; e que, finalmente, tais palavras e regras constituem o
resultado de uma colaboração de elementos associados na
colonização, fica admitida a utilidade do estudo dessas palavras e
regras, como elementos para o estudo da colonização. E, se me não
ilude minha incompetência, esse estudo é que constitui a gramática
(TPJ, pp. 218-219).
E prosseguia, contra o argumento de que o crioulo constitua “língua de pretos”,
como era pejorativamente denominado por teorias colonialistas:
Os dialectos coloniais, derivados da língua pátria, documentam a
história da nossa colonização, e provam que os antigos portugueses
deram às colónias longínquas não o seu sangue o que pegou as
53
terras e o que nos corre nas veias, não sua cultura e seu modo de
ser social e moral, como sua própria língua. [...]
Língua, quem a ouve, não a julgará entroncada nos Lusíadas...
Entretanto, acredita-se que o é a língua de pretos dos despresativos
dizeres de gentes não menos desapercebidos de escrúpulos, que
desfavorecidas de inteligência [...]
E a chamá-lo ngua de pretos, melhor seria dizê-lo língua de brancos
mal ensinada a pretos, – a pretos que criaram os filhos desses brancos,
que os trouxeram ao colo, e que lhes acalentaram os sonos da infância
com as tristíssimas melopéias da saudade dos lares distantes e do
sofrimento da escravidão (Ibidem).
Ao concluir o editorial, Eugénio afirmava que: [...] o dialecto cabo-verdiano
pode falar-se e grafar-se. Por muitos motivos, e, principalmente, porque constitui a
documentação de uma transformação, digo, de uma das transformações felizes da língua
portuguesa entre os povos coloniais” (TPJ, pp. 218-219).
Em se tratando de uma época em que o sistema colonial português tudo fazia
para anular quaisquer manifestações identitárias nas colônias, o texto de Eugénio
Tavares é altamente transgressor e demonstra toda a coragem e isenção do autor, que
não se deixava intimidar nem dobrar pela força dominante.
No prefácio à recolha Eugénio Tavares: viagens, tormentas, cartas e postais,
Manuela Ernestina Monteiro afirma:
Ao nosso código lingüístico Eugénio conferiu beleza e dignidade
literária, numa época em que “espíritos letrados verberavam essa
língua espúria e sem gramática”. [...] o purismo que o caracterizou não
impediu que palavras híbridas deslizassem a meio de construções em
português vernáculo e que adoptasse, frequentemente, um
pseudônimo, que exala o perfume do crioulo da ilha Brava, “Djôn de
Mamai” (Prefácio a TVTCP, p. 9).
Defender a identidade e a língua cabo-verdianas foram princípios que
demonstraram o profundo apreço que o bravense alimentava pelo seu povo, sua terra,
sua cultura, enfim, por tudo que fosse, na sua concepção, cabo-verdiano.
Em entrevista concedida a Michel Laban, Gabriel Mariano, ao enfatizar a
opção de alguns poetas pelo uso da língua cabo-verdiana, apontava que:
Escrevendo em crioulo dão-se duas coisas. Primeiro aspecto: uma
identificação através da língua crioula, uma identificação com o seu
próprio ambiente a própria ilha, com a própria região, etc. a língua
materna reconduz-nos à mãe e então esse fenómeno em crioulo –
uma identificação do poeta com a sua própria terra. O outro aspecto é
que os poetas que escreveram em crioulo foram grandes poetas,
54
originais, criativos, em crioulo
(MARIANO, entrevista a LABAN,
1992, pp. 325-326).
quem afirme que a qualidade de sua produção poética em língua cabo-
verdiana acabou por relegar a um plano de subalternidade sua produção em prosa.
Todavia, Arnaldo França contrapõe: “não creio que no período em referência se
encontre, entre nós, prosador que possa ombrear com Eugénio Tavares” (1993).
Manuela Ernestina Monteiro afirma que:
Dirigindo-se, simultaneamente, a um destinatário determinado e ao
público mais vasto, as cartas de Eugénio Tavares traçam o retrato
moral, social e político de Cabo Verde. Ricas pelo conteúdo,
importantes para a história da época, abarcam todos os assuntos que
apaixonaram esse incansável lutador (MONTEIRO, prefácio a
TVTCP, p. 11).
Corsino Fortes reforça as palavras de Manuela Monteiro, acrescentando que é
nas cartas “onde se ergue o carácter e a personalidade inquebrantável do lutador que
Eugénio foi, consciente da grande arma que é a escrita”
15
. Fortes prossegue, afirmando
que: “tanto a epístola como o panfleto, ambos se organizam com a elegância bíblica de
um sermão e têm a força inabalável de funda de David quando se impõe a defesa dos
superiores interesses dos desamparados e dos perseguidos pelo abuso dos poderosos ou
pela incúria dos governantes” (Ibidem).
Com efeito, é possível observar em suas cartas um Eugénio Tavares na
dimensão de pensador e de formador de opinião. Em sua epistolografia, as suas
preocupações de cunho eminentemente político, anteriormente expressas nos textos
jornalísticos, serão expostas com maior ênfase. Percebe-se que, em suas cartas, Eugénio,
com certa freqüência, empregou um estilo panfletário.
Manuela Ernestina Monteiro destaca:
As reflexões e posições por ele assumidas revelam um homem
profundamente preocupado com a sua terra e com os seus
concidadãos, um crítico mordaz e impiedoso da administração da
colónia, inconformado com a miséria dos seus semelhantes e com a
insensibilidade do poder político (TVTCP, p. 13).
O excerto a seguir, retirado de “Cartas para a América” e endereçado ao
“amigo Inocêncio Cândido Simplício”, corrobora a constatação da pesquisadora:
15
Disponível em: http://www.eugeniotavares.org/docs/pt/obra/cartas.html. Acesso em maio de 2010.
55
Nos anos de fome, a ilha, na décima parte da sua população exposta à
miséria, sofria cruelmente. De uma vez em que o povo pediu socorros,
da Secretaria veio uma resposta que estalou como uma bofetada nas
faces da ilha: o governo nada podia fazer; que se apegassem às juntas
de paróquia (TVTCP, p. 162).
Desgostoso com a insensibilidade das autoridades responsáveis por minorar tal
situação e num ato de revolta, Eugénio Tavares cria uma comissão municipal
republicana (sendo ele mesmo o seu Presidente) que
resolveu constituir bandos precatórios, pedir esmolas, para socorrer o
povo. E um belo dia, reunida a comissão distribuidora de esmolas na
casa de residência do tesoureiro Valentim Campos, enquanto que os
marinheiros da canhoneira que viera trazer o governador de visita à
ilha, despejavam as algibeiras no cofre das esmolas; e enquanto o
governador e sua comitiva se banqueteavam em casa do administrador
do concelho, os membros da comissão republicana da ilha Brava, de
fita verde e encarnada na botoeira, distribuíam, em nome do ideal
republicano, à luz dos princípios que deviam, anos depois, sacudir a
Nação Portuguesa e acordá-la da sua letargia de séculos, distribuíam
esmolas aos famintos num gesto de desafio, não desmentido não
controvertido, a esse governo que tinha negado socorros a um povo
faminto (Ibidem, “Cartas da América”, p. 162).
Eugénio sempre foi muito perspicaz no direcionamento de suas críticas.
Selecionava cuidadosamente os adjetivos de conotação negativa e vocábulos de
inclinação satírica para acertar o alvo com eficiência e mordacidade. Nada lhe passava
incólume. O uso da ironia foi uma arma poderosa para denunciar aquilo que não lhe
parecia justo como, por exemplo, a condução da educação dos cabo-verdianos por parte
de pais, educadores e autoridades responsáveis, como podemos observar neste relato
(crônica) intitulado “Em viagem”, Capítulo I:
Há, no nosso meio que é o extremo da miséria e da ignoncia
pessoas, als muito respeitáveis, que, tendo a rara felicidade de ser pais
de filhos aplicados, [...] submetem-nos a um regime escolar dosimétrico
[...]. Alguns desses pais, muito a dentro do seu papel de educadores
práticos, costumam, entre dois arrotos, regougar: Nada de muita
doutorice. Actualmente as sabedorias estão dando em droga que é uma
consolação. Basta que os rapazes saibam escrever duas regras para dar
parte da saúde. estou eu, por exemplo, que mal risco o meu nome; e
que, graças a Deus, é o que se vê e o que se sabe (TVTCP, p. 34).
Eugénio compara o desenvolvimento lento no campo da instrução formal com
o travamento do progresso de S. Vicente e, por extensão, das outras ilhas:
56
Citei isso para poder dizer que, entre tais filhos do bambúrrio e o
nosso atiladíssimo governo provincial [...] encontro certos pontos de
semelhança: afigura-se-me e, evidentemente que não devo nem
posso afirmar que não esteja em erro – que o governo paternal e
conscienciosamente orientado da nossa província [...] vai sofreando S.
Vicente, ministrando-lhe elementos primários de desenvolvimento em
uma dosagem infinitesimal, inventando pretextos para iludir o
cumprimento de certos e indeclináveis deveres, forjando regulamentos
que restrinjam a navegação, que enfreiam o comércio e mantenham a
indústria no seu próspero estado de hipótese; indo, cautelosamente,
pelo seguro (como se exprime piscando o olho esperto) de mão no
travão para ir devagar... que é como se vai ao longe (Ibidem).
A incapacidade do governo, neste mesmo texto, leva Eugénio a fazer referência
a uma única obra construída pela iniciativa estatal num período de vinte anos, nível de
realização inaceitável para uma ilha que, nesta época, gozava de excelentes perspectivas
de desenvolvimento em razão das ótimas localização e condições do Porto Grande:
Deixei S. Vicente em 1887; volto a S. Vicente em 1907 estava S.
Vicente numa latitude de abordar pronto e seguro progresso material,
devido devo dizê-lo, pouco menos que exclusivamente aos esforços da
iniciativa particular, a qual, em verdade, no nosso meio, labora sempre
a despeito da iniciativa oficial.
Vinte anos transcorridos, que progresso noto em S. Vicente?
Ponho de parte aqueles que são devidos, ainda e sempre, não aos
elásticos capítulos orçamentais, e dou, por atacado, o que o governo
tem feito: o edifício do Correio. E, ainda assim incompleto pois lhe
falta a competente redoma de vidro, uma espécie de estufa que possa
permitir aos empregados respirar uma atmosfera menos mal cheirosa
que os aromas de uma próxima ponte de despejos, e menos asfixiante
que a nuvem negra de pó que se levanta dos próximos quintalões
carvoeiros (Ibidem, pp. 33-34).
Problemas de infraestrutura em Cabo Verde, à época da escrita de sua obra,
também foram tratados por Eugénio Tavares em forma de poesia. A precariedade da
iluminação pública e do saneamento, por exemplo, levaram-no a produzir sonetos com o
pseudônimo Orion, e aqui destacamos um excerto
16
:
Luz e Flores
A nova comissão municipal,
promete-nos mais luz e uns jardins,
com um quiosque envolto por jardins,
na praça da cidade, a principal.
16
Mais tarde voltaremos a este tópico, quando examinarmos a produção poética eugeniana em ngua
portuguesa.
57
Mas para que tal melhoramento,
os benefícios possam resultar,
é preciso fazer encanamento,
de matérias um tanto mal cheirosas
[...]
Orion (TPOLP, p. 39).
Mesmo apontando uma série de abandonos, desleixos e dificuldades em todo o
arquipélago, Nhô Eugénio segue descrevendo a ilha Brava, seu torrão natal, do qual se
apartou por longo tempo, como cenário perfeito e, em extensão, Cabo Verde como a
terra amada. Examinemos um fragmento da carta a Inocêncio Cândido Simplício:
Logo de manhã [...] a nossa querida ilha, ainda mal desperta, como
que estremunhada do repouso nocturno, [...] com o seu turbante de
névoas macias, erguia-se como uma adorável cabeça de crioula
toucada com o alvíssimo lenço de noite.
Ó pequenina estância estremecida e nunca olvidada! Ó minha terra!
Árvores! montes! rochas e muros revestidos de líquen! velhas roseiras
debruçadas sobre as azinhagas! e tu, antigo cemitério, terra sagrada,
onde as raízes se sustentam de sangue, e sobre cujas ervas não têm
caído mais orvalhos do céu que lágrimas de olhos viúvos de afeições!
e tu terra santa, onde o surdo sublime, Guilherme Dantas, quando
chegou homem, tendo partido criança, veio colocar os seus lábios e
chamar por sua mãe morta! e tu, em cujo seio dormem as nossas
mães! eu vos saúdo! O meu espírito beija-vos! Quanto vos adoro! E
quanto me fere, longe de vós, a saudade! (TVTCP, “Cartas para a
América”, p. 179).
Acossado pela saudade também referida no texto de estilo híbrido, lírico-
epistolar, intitulado “Crónicas Tristes” e dedicado à sua mãe adotiva (“De vez em
quando, sobre essa terra gelada desabrocham saudades que dão ilusões de vida à minha
agonia”, Ibidem, p. 87) –, Mestre Eugénio, instalado na América, exalta as roseiras
antigas de sua ilha de origem, os vultos da literatura bravense, como Guilherme Dantas,
e a perspectiva de volta ao lar:
Como é doce o regresso à terra natal!
O ar fresco, fino, perfumado: as roseiras e as madressilvas, em Maio
desentranham-se em cachos; e as amoreiras, numa languidez, deixam
pender as largas folhas como feltros verdes (Ibidem, p. 179).
O texto “Tormentas”, endereçado ao Sr. Dr. Mário Ferro, pode ser tomado
como metáfora do estado de espírito do nativista obrigado a deixar Cabo Verde, quando
de sua fuga para os Estados Unidos da América, em decorrência da acusação de
58
apropriação de dinheiro público. Os problemas pessoais enfrentados pelo autor se
assemelham a uma tempestade em alto mar, expressa por imagens hiperbólicas que
impressionam o leitor:
Oh! o navio em plena tormenta!
O mar cospe-lhe insultos sangui-escumosos; arrebata-lhe do convés as
embarcações peiadas; quebra-lhe as asas com que voa; arromba-lhe as
tábuas com que se aguenta; rouba-lhe o leme com que se arruma;
desmastreia-o; destronca-o; desarvora-o! E, finalmente, ou o mete no
fundo com toda a tripulação, com toda a carga, com todas as
esperanças e todos os sonhos; ou, remanseado pouco a pouco, o
abandona agonizante, reduzido a um frangalho, a uma prancha
vogando, à conta da corrente, sobre o adormecido cansado do mar.
O espectáculo do homem perseguido pelo ódio, não é menos
grandioso que esse do navio que os turbilhões do ciclone arrebatam.
Basta que o piloto seja atrevido, e tente atravessar em plena invernia a
“Storm region”, para que o assaltem as fúrias da borrasca! Basta que o
homem seja intransigente, e force para se manter, em crise de
decomposição social, na recta de um ideal elevado, para que o
rodeiem as gorgonas que a inveja envenena e solta! (Ibidem, p. 83).
Diante do sofrimento resultante da necessidade de afastar-se por tanto tempo
de sua terra de origem, Eugénio, em prosa eivada de poesia, coloca em destaque a sua
Ilha das Flores (principalmente os “cardeais”), ressaltando para conhecimento do amigo
Simplício as belezas naturais, os aromas, as cores, a tranquilidade da vida cotidiana:
Em Abril, quando pelo côncavo deleitoso se toucam as laranjeiras
com grinaldas de noivas; e pelos caminhos bordados de rubros
cardeais, de baunilhas odoríferas [...]; pelo mistério das espessuras soa
a surdina suave dos prelúdios amorosos das toutinegras; [...] a
natureza como que acorda espreguiçando-se e sorrindo castamente
pelas bocas perfumadas das flores (Ibidem, p. 193).
Nas palavras de Manuela Monteiro, Eugénio Tavares, em sua prosa,
transforma-se em artista plástico, uma vez que:
A sua pena, qual pincel em hábeis dedos, surpreende a beleza da
natureza e fixa-a em ginas que se aproximam a verdadeiras telas. O
estilo que adopta para descrever a paisagem bravense resvala para a
prosa poética, tal é a beleza das construções, a musicalidade
alcançada, a poesia que se desprende de cada vocábulo.
Tudo a traduzir o sentimento que o liga à ilha de nascimento. O elogio
superlativo da paisagem da ilha, muito freqüente na pena de Eugénio,
contém uma nota de nacionalismo, um dos traços mais marcantes da
estética romântica (MONTEIRO, prefácio a TVTCP, pp. 8-9).
59
A descrição hiperbólica da ilha que fora obrigado a abandonar alça a prosa
cabo-verdiana a momentos de raro lirismo:
Tanta beleza! tantas flores!tanta exuberância! [...]
Da última vez tinha eu deixado o meu vale toucado de flores, a chuva
fina perlando as folhagens novas, as rosas inclinadas ao peso das gotas
brilhantes, os rochedos fronteiros húmidos e glaucos escorrendo água
pelas barbas das urzes e das criptogâmicas, semelhantes a deuses
marinhos levantados das águas mitológicas do Arquipélago. Estava a
ilha vestida de verde como quando a primavera se noiva, nos últimos
dias, para a festa panteísta do fruto, quando as últimas pétalas voam ao
vento. Desnastravam-se as rosas e as madressilvas sobre os muros
vetustos semelhando grinaldas toucando bustos de faunos (TVTCP, pp. 69-73).
O apego à ilha de nascimento pode ser uma explicação para que Eugénio tenha
usado o termo “pátria” ora em referência a Portugal, ora em referência a Cabo Verde:
“sigo aos pátrios montes, a aspirar o perfume das rosas, a beber o orvalho das manhãs
douradas, e a ver se os gorjeios das toutinegras e se os rumores familiares do meu vale,
acordam a poesia anestesiada e semimorta no fundo do meu cérebro” (Ibidem, p. 77).
Em entrevista a Michel Laban, Manuel Ferreira esclarece:
Às vezes, a pátria é onde tiveram a sua vivência da infância, ou da
meninência, ou coisa parecida... Outras vezes, a pátria é Portugal “a
pátria”, “os nossos avós”, os nossos pais”, “os nossos irmãos”, a nossa
terra”... [...] Como é que se explica, ou como é que se pode explicar,
ou é possível explicar esta ambiguidade de duas pátrias e ditas com
a mesma veemência?
Para mim, tenho esta explicação boa ou má: primeiro, são homens
que estão sob o peso de uma ideologia trazida pelo colonizador
através de literatura, da arte, da crítica, etc., etc., e que aprenderam nas
escolas; e, depois, é o discurso oficial; depois, são também homens
que são o produto de uma longa mestiçagem, de uma profunda
aculturação. Por consequência, do ponto de vista cultural, estavam
muito próximos da cultura portuguesa. [...] Por outro lado, eles são
autenticamente cabo-verdianos: são bilíngues, são homens que comem
cachupa, comem cuscuz, amam a morna, naquele tempo também a
mazurca, que ainda havia, etc., etc., são homens que amam a sua terra,
a geografia, a corografia, a paisagem, o mar, o crioulo – então eles são
cabo-verdianos e, assim, a sua pátria é também Cabo Verde. A Pátria
cabo-verdiana é a máter, é a mãe para eles, é a origem, a maternidade,
é onde eles nasceram, onde eles beberam, é o leite – estão a ser
amamentados permanentemente pela mátria. A outra pátria é o pai, a
pátria portuguesa é o pai. E então eles são presos de uma apetência
dúplice. Mas é natural que o complexo, edipiano, com o tempo
funcionando (FERREIRA in LABAN, 1992, pp. 111-112).
60
Nesse sentido, o apego, a fidelidade, o empenho devotado na defesa das ilhas e
a coerência dos seus ideais com a sua vivência, credenciam Eugénio Tavares como um
dos precursores da cabo-verdianidade.
O poeta José Lopes, em homenagem póstuma (1931,) assim definiu a relação
que Eugénio Tavares tinha com a ilha Brava e com a sua “téra sabe”, Cabo Verde:
Há nomes que são uns símbolos.
Tal o de Eugénio Tavares. [...]
Sintetiza e define a sua terra. [...]
O grande Poeta vive hoje no seu splendid isolement” da risonha
Brava, onde nasceu, a Brava que o idolatra e que Ele tanto ama;
porque Ele é a Brava e a Brava é Ele; e a Brava, porque é Ele, porque
o encerra no relicário das suas formosas filhas e das suas flores,
incomparáveis de matiz e fragrância, resume em si Cabo Verde
(LOPES, 1999, pp. 294-296, grifos nossos).
Além da bandeira da cabo-verdianidade, Eugénio Tavares, desde muito cedo,
defendeu os valores republicanos e democráticos, a liberdade de expressão e os direitos
da imprensa. Grande polemista, possuía dotes de escrita dignos de serem temidos por
seus mais fortes adversários. Suas convicções políticas o levaram a ser perseguido como
alvo das mais rasteiras estratégias. No entanto, jamais se deixou subjugar. Os ataques
que sofria se tornavam alimento e o deixavam mais forte para reagir com sua poderosa
pena. Sobre os reveses por que passava, considerava-os como
os únicos gostos da minha vida pública; porque me deixavam eles a
gratíssima impressão de que a independência do meu carácter e a
verdade das minhas convicções nada iam perdendo da sua pureza,
nada sofriam, dentro da corrupção que é a atmosfera das regiões
burocráticas (TVTCP, p. 101)
.
E prosseguia, detalhando-os:
Fui censurado por não querer abdicar da minha dignidade de homem;
fui suspenso por me não ter deixado enxovalhar como funcionário, fui
exonerado porque quis conservar a liberdade dos meus direitos civis,
votando numas eleições contra o deputado proposto pelo governo
(Ibidem, p. 101).
Para um dos seus interlocutores em Lisboa, o Dr. Henrique de Vilhena, político
português cujo primeiro contato se dera durante uma viagem de navio, Eugénio vai
61
descrever em minúcias a perseguição a que vinha sendo submetido. Em carta do dia 08
de novembro de 1913, relata:
Segue, neste paquete, meu concunhado Medina, pai do José. Ele
procurará o sr. doutor Vilhena. Se o sr. doutor dispuser de tempo, ele
lhe contará a perseguição tenaz e vergonhosa que se me está
movendo.
Eu tive agora ocasião de ver uma pequena esperança de justiça na
noite tenebrosa do meu futuro. Depois, de repente, o sr. governador
exigiu de mim um passo desonroso e eu preferi tudo a prostituir-
me. Imagine: um funcionário judicial, integro probo, inteligente, foi
transferido para São Tomé, por não ter querido saltar por sobre a lei
para se prestar a favorecer as vinganças do sr. governador contra mim!
(Ibidem, p. 206, grifos nossos).
Numa missiva datada de 28 de julho de 1914, sentindo que os “amigos” de
política em Lisboa lhe haviam virado as costas, lamenta-se ao Dr. Vilhena, uma das
únicas exceções a lhe dispensar atenção:
Na Brava, onde passei alguns dias, recebi uma carta de V.ª Ex.ª E
muito me alegrou ver que ainda se lembrava de mim.
[...] Imagine que antes da República contei amigos entre os caudilhos
da Revolução. Hoje não sabem o meu nome! Porque eles subiram ao
ácume e eu fiquei, não só na obscuridade, como no lodo para onde me
tinha arrastado o próprio facto de eu ter sido republicano activo como
eles! Publiquei artigos na Voz Pública e no Norte, do Porto; na
Batalha e na Marselhesa, de Lisboa.
A paixão dos meus escritos fez-me notado. Esmagaram-me sob o peso
de uma acusação monstruosa. Processaram-me. Roubaram os
documentos do meu crédito. Quanto rompeu a República, eu olhei
para os meus antigos correligionários e lhes disse, agonizante:
Agora tirem isto de cima de mim. O nome de meu pai, que uso, é
puro, quero conservá-lo puro.
Não me ouviram. [...]
Espírito sereno e justo, que é a verdadeira sabedoria, encontro-o na
bondade [com que] V.ª Ex.ª me trata e me ouve (Ibidem, pp. 206-207).
Na carta de 09 de setembro de 1915, dispensa ao amigo lisboeta mais detalhes
acerca da acusação que lhe imputaram e dos desgostos dela advindos:
Essa como que insolubilidade da questão que há mais de quinze anos
me atém numa situação difícil, crucificado num processo
evidentemente inquisitorial, de novo me obriga a dar algum trabalho
ao meu amigo.
Como sabe, fui dado por alcançado em 18.000 escudos, na
recebedoria da Brava, em 1899. A recebedoria da Brava tinha de
rendimento menos de 1.500 escudos, anualmente; regulando, a
despesa, pela mesana importância. Para exercer o cargo tinham-me
62
exigido uma fiança de 1.500 escudos. Quantos anos seriam precisos
para haver no cofre da Brava um saldo de 18.000 escudos? E durante
esses anos, que fora de dúvida não transcorreram, como é que se não
deu por tão grande alcance? E como é que, poucos meses antes de a
ratoeira desse alcance me ter fechado o pescoço, um balanço rigoroso
dado na recebedoria a meu cargo, com a assistência do próprio
inspector de Fazenda, Dias de Oliveira, do escriturário Guilherme de
Meneses e das autoridades locais, eu fui reconhecido como quite com
a Fazenda Nacional? Que pensará um homem justo acerca de um
alcance dado em semelhantes circunstâncias, e, principalmente, logo a
seguir a umas eleições renhidas, nas quais, na ilha Brava, eu fizera
com que o governo sofresse uma derrota? (Ibidem, pp. 207-208).
A causa maior para a acusação é desvendada:
O meu único crime foi ser republicano com todo o fervor de uma
mocidade incendida no culto dos ideais mais avançados; e foi, mais,
ter sido, então, correspondente de dois jornais republicanos de Lisboa
e de outros dois do Porto.
Também concorreu, e muito, para esse meu alcance, a pública
manifestação que eu fazia do meu republicanismo, acontecendo, até,
num jantar oficial a que assistiam Leote do Rego, o dr. Goulart de
Medeiros e mais oficiais, o escândalo de eu fazer a apologia da
república, envolvendo a minha ardente profissão de fé republicana.
Foram estas e outras manifestações que me prepararam o alcance que
ainda hoje esmaga a minha iniciativa de trabalho e a tranquilidade da
minha família (Ibidem, p. 208).
O agente da perseguição também é desmascarado por Eugénio:
Quando o sr. Biker veio governar a província, procurou recrutar-me.
Havia então grave cisão entre os elementos preponderantes nestas
ilhas. Considerei que me seria preferível sofrer, a tornar-me criado de
Biker. Desaceitei as propostas dele, e me senti imediatamente atacado
pela matilha dele.
O meu amigo sabe quanto tenho sofrido. Ultimamente contei que ia
ser julgado; o dr. Delegado, porém, promoveu fossem examinados uns
livros que deviam estar no Conselho Superior da Administração
Financeira do Estado. Neste sentido segue agora uma deprecada. Esse
livro (ou livros) tinha desaparecido porque constitui prova da ratoeira
em que caí. É o livro-caixa, então modelo 11. Estava cheio de
emendas, de rasuras, de irregularidades. Os modelos 11 são
escriturados pelos escrivães de Fazenda.
Um velho juiz do Supremo Tribunal, dr. Pinto Osório, amigo de
minha família e que me conheceu em criança, informara, em carta, a
meu tio dr. Vera Cruz, que o meu processo constituía um tal acervo de
irregularidades que nunca poderia ser julgado. Raiou a República, e,
era vez de romper para mim urna manhã de justiça, vi anoitecerem
todas as minhas esperanças! E entretanto o meu único crime era ter
sido republicano (Ibidem, p. 209).
63
Os motivos de seu desligamento do jornal A Voz de Cabo Verde ficam
evidentes ao lermos a carta envida em 20 de fevereiro de 1916 (ou 1917?):
Ultimamente, como deve ter lido, eu e meu cunhado Medina
desligámo-nos da redacção d'A Voz por discordância sobre a
orientação do jornal.
Como sabe é A Voz de Cabo Verde propriedade do sr. Abílio Macedo,
negociante desta cidade. O Governador Fontoura da Costa,
compreendendo o mal que estava causando o açambarcamento do
milho produzido na ilha, que alguns negociantes adquiriam por um
preço mínimo e depositavam nos seus armazéns, ficando o mercado
sem milho e o povo a braços com a fome, deu providências acertadas,
contra as quais, feridos, se ergueram os açambarcadores. A Voz, então,
nas mãos do seu proprietário, sr. Macedo, e estando eu e meu cunhado
na Brava, arvorou-se em defensora do açambarcamento, atacando as
medidas do governador Fontoura. Vim imediatamente à Praia; e
quando vi que me era impossível enveredar, de novo, o jornal, no seu
antigo trilho, desliguei-me de sua redacção, e, como eu, o sr.
Carvalho, ad.or, e meu cunhado general Medina.
Senti desgosto vendo um jornal que até ali tinha defendido ideais
levantados e generosos, descer, de repente, no mais raso
mercantilismo, fazendo-se órgão do mais triste papel que o comércio
ainda se distribuiu: o açambarcamento; a redução do povo à miséria.
[...]
Estou desgostoso com o rumo que isto tem tomado. [...] Cabo Verde é
uma terra infeliz.
Ainda um dia hei-de contar ao meu amigo o segredo das crises de
fome em Cabo Verde. Ter eu começado a levantar uma ponta desse
véu, ajudou a preparar essa situação em que ainda hoje me debato. [...]
Eu ganhava quarenta escudos mensais n’A Voz: preferi ficar em
péssimas circunstâncias, pobre e sem colocação, a ter de prestar o
concurso da minha actividade à imoralidade dos açambarcamentos.
Para viver lancei-me a fazer versos e a vendê-los. É-me preferível
vender maus versos, a estragar belos ideais com os prostituir
comerciando-os. (Ibidem, pp. 212-213).
Mesmo perseguido e aviltado, Eugénio Tavares nunca desistiu de seus
propósitos: falar aos cérebros, tocar o coração dos cabo-verdianos e despertar a
consciência popular, como podemos depreender da missiva dirigida “Ao Povo Cabo-
verdiano”, na qual vigorosamente assim se pronunciava:
Falo-te, porém, não sei se me ouves; invoco quanto deve haver de
levantado na tua alma, e a incerteza do teu olhar apenas me a
impressão fria da caligem que envolve a tua inteligência, da
miséria em que se empocilga a tua triste existência moral.
Fisicamente, eu sei, existes: bem te vejo sob a de um labutar
esmagador, investindo com quanto de tempestuoso na adversidade,
para que não falte o pão na boca dos teus filhos. Moralmente, porém,
64
não ouço a tua voz no concerto das vontades orientadas na disciplina e
fortalecidas na união.
Vítima da dissolução do meio em que fadejas; pessoa civil sem valor
real; força política sem consciência de direitos; dizer-te vivo para o
dever, é caluniar a tua incapacidade cívica e intelectual (Ibidem, p. 220).
Questionando os cabo-verdianos sobre o desempenho dos detentores do poder,
acrescentava:
O que têm feito, por ti, esses que, com proficuidade, podem exercer
benéfica acção moral e política? Quando é que, para elevar o teu nível
moral ou económico, sacrificaram, eles, a mínima parcela do seu
tempo ou do seu dinheiro? Quando é que deixaram de baldrocar com a
tua confiança? Quando se cansaram de abusar da tua ignorância?
Absorvidos pelos interesses da própria ceva quando foi que eles
olharam para cima, para a constelação dos mais altos ideais humanos?
Quando foi que eles viram, na política, não um meio de fazer frutificar
habilidades em proveito próprio, mas uma força de fazer progredir
povos? (Ibidem, p. 221).
O apelo endereçado ao povo, em estilo vibrante, sugere que este (“que dorme o
sono cataléptico” porque falta a compreensão dos seus direitos”) lute por direitos
políticos, educação, mobilize-se em causas coletivas e tenha senso de disciplina. Diante
da miséria, do abandono, da injustiça e do desleixo por parte do governo colonial,
interroga seus compatriotas: “Tu tens escolas para os teus filhos? Escolas em que eles
possam aprender a ler, a escrever, a contar, a raciocinar, a amar a pátria?” E sublinha:
Deixares-te, porém, ficar onde estás, e como estás, é que não pode
ser.
Essa indiferença, essa sovinice, dão contigo num vilíssimo suicídio
moral. E tem por certo que, se te o precatas, se não abres os olhos,
se te não deslodas, liquidas, mais tarde ou mais cedo, num contrato
para S. Tomé, a três mil reis mensais por cabeça... (Ibidem, pp. 224-225).
A prodão epistolar de Eunio, como é possível observar, trata com energia os
temas expostos no jornalismo, aponta saídas para as situões descritas e conclama o
compatriota cabo-verdiano:Escuta-me: exerce os teus direitos poticos; edifica escolas; tes
duas portas abertas para as luminosas reges da perfeita existência moral” (Ibidem, p. 225).
Em suma, como bem o observa Manuela Monteiro, Eugénio Tavares esgrimiu
“o verbo com mestria, [...] deixou-nos trechos de intervenção memoráveis, cuja
clarividência e lucidez ainda hoje nos surpreendem. A sua actividade como homem e
65
cidadão, a sua actuação como escritor, explicam o respeito, a admiração e o carinho que
continua a merecer” (
TVTCP
, p. 15).
E, acima de tudo, o seu amor por Cabo Verde credencia a sua produção em
prosa e, conforme buscaremos comprovar adiante, a sua produção em verso, como
marcos identitários de alto valor estético:
Amo tanto Cabo Verde que através de uma existência de lutas, de
sofrimentos, com a minha carne lacerada e o espírito batido de
decepções, ainda me esqueço de pensar em mim para pensar nele
(TVTCP, p. 176).
CAPÍTULO II A POÉTICA DE EUGÉNIO TAVARES EM
LÍNGUA PORTUGUESA
A falta de poesia significa, simplesmente, demasia de animalidade.
Eugénio Tavares
Eugénio de Paula Tavares fez o seu debut literário em 1882, publicando, aos
quinze anos de idade, seu primeiro poema no Almanaque de Lembranças Luso-
Brasileiro. A estréia foi saudada com entusiasmo pelo também poeta bravense Luís
Medina de Vasconcelos, cuja crítica reconhecia as qualidades do jovem aspirante a
poeta, que muito prometia no cenário das letras cabo-verdianas.
Intitulado “A Badinha”, o poema é uma singela homenagem à sua mãe adotiva,
considerando que Eugénio perdeu sua mãe biológica de complicações durante o parto,
sendo logo adotado pelos irmãos José Martins da Vera Cruz e Eugénia Martins da Vera
Cruz Medina e Vasconcelos. Coube aos dois dar as condições necessárias para que ele
se tornasse um dos intelectuais mais destacados de Cabo Verde em todos os tempos.
Dona Eugénia era carinhosamente tratada por Badinha por Eugénio Tavares.
Como reconhecimento pela dedicação, pela educação e por todo o carinho empenhados
na sua criação, o futuro ilustre poeta da ilha das flores compôs o poema abaixo:
A Badinha
Um dia caíra em teu níveo seio
desmaiado botão,
que d’uma linda roseira arrancara
violento tufão.
As tuas carícias deram-lhe a vida,
e o anelito teu
foi o bálsamo que deu força, alento
ao débil peito seu!
E a carmínia bonina transformou-se
rapidamente em flor,
que se esforça por derramar a jorros
reconhecido odor!
O imaculado anjo da caridade,
que do Olimpo desceu,
És tu! E a flor, que, meiga e carinhosa,
embalaste, sou eu!
1882 (TPOLP, p. 69)
Produzida entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a
obra poética de Eugénio Tavares era marcada ainda pelo peso de uma forte presença
67
cultural portuguesa em Cabo Verde. A produção lusitana foi, neste momento, a
principal referência literária dos escritores do arquipélago, uma vez que foram as
estruturas coloniais que deram forma às suas instituições de ensino, à imprensa, às
bibliotecas, enfim, a todo o seu edifício letrado, sendo os modelos providos pela
metrópole os sustentáculos da base intelectual cabo-verdiana.
Como esclarece Antônio Carlos Oliveira Santos:
A poesia produzida nesse período nas conias portuguesas da África
caracteriza-se por um forte apelo sentimental e confessional de cunho ultra-
romântico. Apesar do anacronismo, essa produção reflete o convencionalismo
estético dominante no imaginário coletivo da época (2007, p. 70).
Assim, a presença literária portuguesa foi decisiva para a formação de
escritores e de um público letrado nas colônias.
Observaremos que os textos de Eugénio Tavares em língua portuguesa,
produção que “só passa a ser conhecida e estudada a partir do excelente trabalho que
Félix Monteiro fez da recolha em três livros da sua publicação dispersa”
17
(BRITO-
SEMEDO, 2009, entrevista), cultivam a norma culta, sendo elaborados com critério e
muito esmero com a língua de Camões. o uso deliberado de um vocabulário
rebuscado, típico do estilo ultrarromântico, que torna mais opaca uma primeira leitura, à
diferença dos textos em língua cabo-verdiana, que são visivelmente populares, por
constituírem letras de mornas. Neste caso, a apreensão pelo leitor comum se torna muito
mais acessível, que os textos são expressos numa linguagem mais ingênua, simples,
de forte apelo ao público em geral.
João de Deus, Camões, são mestres que Eugénio cultuará, inclusive com
dedicatórias (“ao altíssimo espírito de João de Deus”) e versões de poemas para a língua
cabo-verdiana, como “Engeitadinha” e “Bárbara, bonita escrava”, respectivamente.
Na poética em língua portuguesa, podemos afirmar, como Helder Garmes
constatou na literatura das colônias, que o quadro de referências da cartilha romântica
(ou das convenções ultra-românticas) do colonizador foi absorvido, especialmente nas
suas vertentes sentimental e cristã (GARMES, 1999, p. 345).
17
Refere ainda Brito-Semedo, em entrevista a nós concedida na cidade da Praia, Cabo Verde, dezembro
de 2009: “O que as pessoas conheciam de Eugénio Tavares até relativamente pouco tempo (somente a
partir de 2000 ele é reconhecido poeticamente, os livros são publicados e interesse, e agora Eugénio é
estudado ao nível das cátedras, das universidades), o que era conhecido de Eugénio Tavares era em
termos da poesia, da morna, faceta bem popular (o popular, somente o popular). Portanto, o popular,
mas o erudito não era conhecido.
68
A segunda geração romântica portuguesa (que despontou entre 1838 e 1865,
data da “Questão Coimbrã”, que elegerá o realismo como estilo), alçada a paradigma
pelos literatos das colônias, exacerbava os traços expressos pela primeira geração,
recebendo a tônica de sua produção a denominação de “ultra-romantismo”, que ainda
perdurará na terceira geração em Portugal. Dentre os escritores lusos cultores desse
estilo, enumeramos: Maria Browne, Alexandre Braga, José da Silva Mendes Leal, seu
irmão António Joaquim Teodorico Mendes Leal, Camilo Castelo Branco, Soares de
Passos, João de Lemos, Luís Augusto Palmeirim, Gomes de Amorim, Bulhão Pato,
Tomás Ribeiro, A. X. Rodrigues Cordeiro, Joaquim Pinto Ribeiro, Francisco Palha,
Augusto Luso da Silva, J. S. da Silva Ferraz, Ernesto Pinto de Almeida, João de Deus.
António José Saraiva e Óscar Lopes referem que, na década de quarenta e sob
a égide do padrinho António Feliciano de Castilho, surge uma leva de poetas, sobretudo
entre os estudantes universitários de Coimbra, que escolhe como mestre Lamartine,
praticando um
lirismo melancólico, desalentado, pessimista [...] numa glorificação
sentimentalona [...] das velhas convenções domésticas, pátrias e
religiosas [...]; a sintaxe exclamativa, repetitiva, com apóstrofes [...]
cujo foco veio a ser a revista coimbrã O Trovador (1970, p. 762).
Por volta de 1848, a Revista Universal Lisbonense d’Aldeia, em que
pontificava Castilho, apontava a revista O Trovador como paradigma a ser seguido, que
“fixou, a passos largos, certos gostos em poesia que se identificam com certos estratos
da burguesia portuguesa do século XIX” (Ibidem, p. 766).
Mais tarde, Soares de Passos encabeçará um grupo de poetas coimbrãos do
grupo denominado O Novo Trovador (1851-1956), revista à volta da qual circularam
ainda Alexandre Braga e António Aires de Gouveia.
No Porto e seguindo trilhas propostas n’O Trovador (de Coimbra), entre 1849
e 1855, as revistas A Lira da Mocidade, O Bardo, A Grinalda e Miscelânea Poética
publicaram também textos com temas “ultra-românticos negros e lacrimosos”
(FRANÇA, 1974, p. 726).
O quadro de referências impregnado pelo “mal-do-século” byroniano que esses
poetas (que publicaram de 1838 até 1865) legaram aos literatos das colônias, inclusive a
Eugénio Tavares, assim se caracterizava: escapismo, exílio, saudosismo; “pessimismo,
insatisfação, melancolia, ânsia de absoluto, religiosidade cristã, pendor confessional,
69
idealismo amoroso, elevada temperatura dos afectos, sentimentalismo burguês [...];
alguns cantam a Pátria e a Liberdade, denunciando aspirações sociais” (COELHO,
1979, p. 1125); para Vitor Manuel de Aguiar e Silva, o mal-do-século, ao qual
acrescentava a volúpia do sofrimento e a busca da solidão, exprimiria o “cansaço e a
frustração resultantes da impossibilidade de realizar o absoluto” (AGUIAR E SILVA,
1979, p. 481) aspirado pelo homem romântico.
Ao conjunto, no que toca à linguagem, podemos acrescentar: ênfase retórica
(BRAGA, 1896, p. 359), oratória melodramática, teatralidade extrema, vocabulário
requintado, muitas vezes terrífico e obscuro (“noir”), ligado ao campo semântico do
“mal-do-século”, personificado por Lord Byron, cuja poesia revelava um caráter
marcadamente autobiográfico de homem exilado, pessimista, que desejava a morte
como solução para um turbilhão de angustiados sentimentos e vivências.
Cabe ressaltar, nessa pausa esclarecedora das convenções ultra-românticas que
nos facilitará a leitura dos poemas eugenianos em língua portuguesa, que
os próprios românticos (Castilho, Garrett, Camilo) censuraram ou
consideraram ridículos os excessos do Romantismo, a sua degradação
pelo emprego de receitas ao gosto do público menos exigente [...]
Castilho, em 1832, numa carta a J. V. Cardoso da Fonseca, usava
pejorativamente o adjetivo ultra-romântico (tê-lo-á formado?) a
respeito dum estilo declamatório que supunha não duraria muito
tempo. [...] Camilo, em 1848, num artigo do Nacional, usa o adjectivo
gongórico, no sentido de maneirista, a respeito da poesia do tempo:
“Queria fazer-te uma poesia gongórica, como essas que por s que
não passam do rubim, carmesim, marfim rosal, cristal, angelical...”
(COELHO, Op. cit., p. 1126).
Sublinhamos, porém, que de uma produção ultra-romântica com altos e baixos,
destacam-se bons poetas como João de Deus (já pertencente à terceira geração
romântica lusa e poeta-modelo de Eugénio Tavares), João Lemos e Soares de Passos,
encarnação portuguesa do funéreo “mal-do-século”. Os dois últimos, pertencentes
respectivamente ao grupo d’O Trovador e dO Novo Trovador, tiveram textos
popularizados e declamados tanto nas ruas quanto nos salões burgueses, como os
antológicos “A lua de Londres” (poema de exílio e saudade da terra natal) e “O noivado
do sepulcro” (que marca o apogeu da produção soturna ultra-romântica, publicado na
revista O Bardo, 1852).
70
Explicitadas essas observações básicas para a leitura dos poemas de Eugénio
Tavares em língua portuguesa, agruparemos a sua produção por temas relacionados ao
núcleo ultrarromântico referido.
Adiantamos ainda que, neste capítulo, ao lado da temática lírico-amorosa que
dominará tanto a produção poética eugeniana em língua portuguesa quanto (e
sobretudo) em língua cabo-verdiana, e paralelamente à sua poesia em língua portuguesa
de linhas ultra-românticas, buscaremos também delimitar outras linhas que possibilitem
uma leitura comparatista da obra poética no seu conjunto, como: o terra-longismo cabo-
verdiano, os dramas do arquipélago, o humor.
2.1 – O núcleo ultrarromântico: amor idealista e mal-do-século
Pode-se dizer que Eugénio talvez fosse um poeta do amor idealizado,
no fundo do amor nunca encontrado, no amor romântico e inconcebível.
Vasco Martins
No contexto do quadro de ressonâncias ultra-romântica aludido acima, o
idealismo amoroso é, sem dúvida, um dos núcleos privilegiados na produção de
Eugénio Tavares, associando-se a ele os temas do desengano, da tristeza, da dor, da
melancolia, da saudade, da solidão, da noite, do sonho, da morte, entre outros.
O poema “Chico e Berta”, por exemplo, apresenta o colóquio amoroso de
início em cena que evoca a ilha natal de Nhô Eugénio, a Brava. Vejamos:
Quando nasceu o sol do vosso imenso Amor
Estava o céu azul, sereno, aveludado,
Era na primavera, e o vale atapetado
De flores, era o ninho ideal do vosso Amor.
Gorgeou a Toutinegra; entreabriu-se a Flor!
O Som e a Cor, bem como o par enamorado,
Em loucuras pagãs, rolavam pelo prado
Cantando o vosso Amor – a Toutinegra e a Flor...
Depois, um triste dia, ergue-se a Sombra negra:
O vento desfolhou a Flor; e a Toutinegra
Emudeceu de horror nos verdes laranjais...
Volta a sorrir o Sol? Rescendeu o rosmaninho?
De novo a Toutinegra entoa madrigais?
71
Sede felizes! Deus festeja o vosso ninho!
Brava, 14/6/908 (TPOLP, p. 17, grifos nossos)
no capítulo anterior, quando comentávamos as “Cartas para a América”,
endereçadas ao amigo Inocêncio Simplício, ressaltávamos “a surdina suave dos
prelúdios amorosos das toutinegras” e “a natureza [...] espreguiçando-se e sorrindo
castamente pelas bocas perfumadas das flores” (TVTCP, p. 193) que o poeta Eugénio
Tavares inscrevia no paraíso da Ilha Brava, chamada em Cabo Verde de “ilha das
flores”. Para outro poeta, Jorge Barbosa, o
seu amor à ilha natal chegava a ser idolatria, um sentimento exaltado e
profundo. Toda ela viveu nos versos de Eugénio: a Natureza
acidentada e fértil, as flores que nascem espontâneas pelos caminhos e
pelas encostas, e as que mãos cuidadosas cultivam nos jardins, o
aroma que a deslocação do ar volatiliza, o clima bendito, as cumeadas
dos montes aneladas de névoa, e o fundo pedregoso dos vales, o
conflito psicológico dos passionais, o drama sentimental dos
emigrantes que em terra distante contam os dias para o regresso à ilha-
beo... (BARBOSA, Nocias de Cabo Verde, 31/05/1931, TPJ, p. 302).
Assim, a paisagem de fundo do poema, solar e serena de início (como as
descrições eugenianas da ilha Brava), transforma-se num cenário “triste”, de “horror”,
toldado pela “Sombra negra” do clima ultrarromântico da terceira estrofe, sob o signo
da doença, da morte ou do envelhecimento, isto é, da passagem do tempo. Os verbos
marcados pela negatividade, como “desfolhou” e “emudeceu”, sugerem um romance
que sofreu percalços. No entanto, a quarta estrofe do soneto deixa em aberto, com as
interpelações do sujeito poético, o destino dos enamorados Chico e Berta, aos quais
deseja, com o auxílio da religiosidade católica, o restabelecimento da felicidade no seu
ninho de amor.
O texto, embora apresente circularidade centrada no vocábulo “ninho”
(primeira e última estrofes), sugere um amadurecimento da relação amorosa.
Quanto à sintaxe, o estilo exclamativo (“Deus festeja o vosso ninho!”) e
interrogativo (“Volta a sorrir o Sol? Rescendeu o rosmaninho?”), enxertado ainda pelo
apostrófico (“Sede felizes!”) e pelo hiperbólico (“imenso”, “horror”) é caro aos padrões
ultrarromânticos lusos.
Outro soneto vai debruçar-se sobre o tema do júbilo do amor e da conseqüente
perda da felicidade, recorrendo a vocabulário semelhante:
72
Sempre Adorada
Desce comigo ao fundo deste horror
De ver, talvez, bem longe ainda o dia,
O dia de acordar para a alegria
Meu coração turbado pela dor:
Desce comigo a este inferno, Amor;
À geleira da minha nostalgia;
Desce comigo, santa, e avalia
O que resta de tanto sonho em flor!
Entre os escombros da felicidade
Que, na ilusão gentil de curtos anos,
Juntos erguemos numa esperança infinda
Tu verás, no regaço da saudade,
Mal ferido do mal dos desenganos
Minha alma, doida, a te adorar ainda!
(TPOLP, p. 19, grifos nossos)
Na primeira quadra, a atmosfera de “horror” perdura e sua causa é clara: a
“dor” do eu lírico, que apela à amada que a compartilhe com ele (“desce comigo”).
Na segunda estrofe, em verso paralelístico, o horror se intensifica em “inferno”
e a “nostalgia” explica a causa do sentimento conturbado (“coração turbado”, “alma
doida”) do eu poemático: a frustração de sonhos que possivelmente não foram
realizados (“O que resta de tanto sonho em flor!”). Adensando o sentido do texto, o
primeiro terceto torna mais intensa a carga trágica dos “restos” de esperanças também
partilhadas (“juntos”) em “escombros da felicidade” e, finalmente, o último terceto
revela o “mal” maior ou o “desengano” máximo: a “saudade” da mulher adorada.
Os substantivos hiperbólicos (“horror”, “inferno”, “escombros”), conjugados a
advérbios de intensidade (“bem”, “tanto”) caracterizam também o exagero nos
sentimentos e situações que o eu lírico exprime.
Como no soneto anteriormente examinado, a passagem do tempo aponta para
um índice de negatividade (“ilusão de curtos anos”, mas de “esperança infinda”) que se
materializa no afastamento dos amantes, suposto no sentimento de saudade. Contudo, a
paixão platônica do eu lírico (“santa”, “adorada”) persiste, como o comprova a chave de
ouro do soneto, em tom exclamativo: “Minha alma, doida, a te adorar ainda!”
A saudade do primeiro amor retoma mais um núcleo romântico, o regresso ao
passado, aliado ao sonho. A passagem do tempo é recorrente na poética eugeniana:
73
A Valsa
Aos meus amigos João Henriques de Almeida e Rogério Vasco
Rompeu a valsa nos bordões tão graves
Da guitarra. Sonhando vagamente,
Revoa o meu espírito doente
Num ângelus de lágrimas suaves.
Crescendo no horizonte, como naves
Que regressam, num pálido poente,
Os dias que morreram, tristemente,
Voltam em bandos, como bandos de aves.
Plúmbeas recordações duma outra idade
Chegam nas asas roxas da saudade,
E acordam a minha alma para a dor...
Eu vou sonhando: o meu primeiro amor
Abeira-se de mim. Falo-lhe: Flor!
É isto sonho, ou é realidade?
(TPOLP, p. 19)
As metáforas aéreas, que representam a capacidade de regressar no tempo,
como os dias que “voltam em bandos, como bandos de aves” e as recordações que
“chegam nas asas roxas da saudade” associam-se ao campo do sonho, tão caro à retórica
romântica. A hipérbole ou o exagero, aqui, intensifica a carga daquelas recordações
(“crescendo no horizonte, como naves”) que povoam a memória, no momento presente
(“pálido poente”) melancólico do eu poemático.
A tristeza (“lágrimas”) do “espírito doente” pelos “dias que morreram” e a
“saudade” são amenizadas, como podemos observar, pela música da guitarra portuguesa
(semelhante à que Eugénio usava para compor as suas mornas), que impulsiona as
recordações (do latim re + cor, cordis, ou trazer de novo ao coração) do primeiro amor
e de tempos mais felizes (“outra idade”). Cabe observar as cores que se misturam com
os sons da valsa: cinza (“plúmbeas recordações”) e roxo (“asas roxas da saudade”),
tendendo para um clima noir, soturno, próprio do ultra-romantismo.
Essa atmosfera soturna e noturna se adensará nos poemas seguintes, “Os
tristes” e “Noite infinda”:
Os Tristes
Quando os tristes sofriam, torturados,
Eu deles me acercava, despertando
A coragem, o bem, suave e brando,
Na alma ferida dos abandonados.
74
Depois, quando os punhais envenenados
Me foram pouco a pouco trespassando,
Então os tristes, pálidos, em bando,
Me cercaram em lágrimas banhados.
Lançaram nos meus ombros suas mantas;
Os braços seus me foram travesseiras;
E quando as aves de rapina, arteiras,
Voltearam sobre mim, as almas santas
Dos tristes, como Mães me defendiam,
Sobre o meu lar as asas estendiam...
(TPOLP, p. 21)
O pathos pessimista (“tristes sofriam”, “torturados”, “abandonados”), associado ao
mal-do-século, expressa-se numa rerica melodramática (“punhais envenenados
trespassando”) e terrífica (“aves de rapina”), típica da oratória ultrarromântica.
O poema “Noite Infinda”, associando-se a essas trilhas, continuará a trabalhar
o campo semântico dos sentimentos, da melancolia saturnina típica do ideário
ultrarromântico referido.
A aurora virginal, todos os dias,
Da noite lá nas horas derradeiras,
Vem lavar as montanhas e as ribeiras
Da caligem das sombras fugidias:
Raro, porém, à voz das cotovias,
Como um bando augural de mensageiras,
Da irremediável Dor sobre as geleiras
Sorriem, de regresso, as alegrias!
Não há noite, por mais aterradora,
Por mais cheia de sombras e visões,
Que não finde por uma madrugada:
Mas, neste mundo, quantos corações
Se mergulham em treva tão pesada
Que nunca mais uma alvorada as doura!
Janeiro de 1900 (TPOLP, p. 21, grifos nossos)
A noite “aterradora” e a “treva tão pesadasimbolizam as emoções humanas
sob o signo do astro baço, Saturno. A atmosfera fantasmagórica de “sombras e visões
ou de “sombras fugidias” e de Dor (com maiúscula alegorizante) parece, até a terceira
estrofe, obstáculo a ser vencido pela luz solar da madrugada: “A aurora virginal, todos
os dias,/ Vem lavar as montanhas e as ribeiras/ Da caligem das sombras fugidias [...]”.
75
Com “a voz das cotovias”, eco do texto shakespeariano Romeu e Julieta,
modelar do discurso amoroso ocidental, “sorriem, de regresso, as alegrias”, o que
redundaria na conclusão: “Não noite, por mais aterradora,/ Que não finde por uma
madrugada”. As cotovias seriam, como no texto do mestre inglês, “os arautos da
manhã” (as “mensageiras”, no poema de Eugénio Tavares).
Embora este fosse um raciocínio lógico para a leitura menos atenta do poema,
um adjetivo “raro” –, associado às cotovias (canto que separava os amantes ao
anunciar, na tragédia de Shakespeare, o raiar do dia), faz soar um alarme: o regresso das
alegrias é “raro” e a “Dor” persiste. Como no texto de Shakespeare, em que o amor
acaba por não se realizar plenamente no mundo do real e o verdadeiro (des?)encontro
dos amantes se dá na morte.
Portanto, a conjunção adversativa (“Mas”), que inicia o último terceto, leva-
nos a entender que, na verdade, o que se afirma é o oposto do aforismo “Não noite,
por mais aterradora,/ Que não finde por uma madrugada”: a proposta do poema é que
“Neste mundo, quantos corações/ Se mergulham em treva tão pesada/ Que nunca mais
uma alvorada as doura! A expressão em grifo parece a fala do corvo, de Edgar Allan
Poe, em seu poema considerado de “romantismo negro”: Nevermore, nevermore (Nunca
mais, nunca mais!)
O poema “Réstea de luz”, conjugando-se ao núcleo dos desencontros de amor,
propõe a fugacidade da presença feminina ao lado do amante: ela desperta os seus
sentimentos e logo se vai.
Fizeste mal em me acordar. Agora
Entrou-me na alma o teu olhar; e logo
Ergueu-se a ti todo o meu ser, em fogo
Como um vulcão dourado pela aurora.
Eu quisera dormir até à hora
Da morte – o mar de sombras em que afogo
Meus males todos... Flor, ouve o meu rogo:
Não me despertes, foge; vai-te embora.
Ainda ficasses a meu lado,
E nunca mais de mim tu te afastasses...
Mas, como sonhos tímidos, fugaces,
Chegas sorrindo, partes a chorar,
Deixando-me a curtir, abandonado
Na dor de te perder sem te beijar...
(TPOLP, p. 23)
76
O olhar da amada provoca no eu poemático um turbilhão de sensações (“fogo”,
“vulcão”, “afogo”) que não poderá ser vivido em plenitude, porque um afastamento é
anunciado (foge”,perder sem te beijar”), culminando no estado de solio: “abandonado”.
O amor, como no texto de Camões, é um estado hiperbólico, “é fogo” (“que
arde sem se ver”), “vulcão dourado pela aurora”, mas que, contraditoriamente, se
converte em “males” e “dor” (em Camões “dor que desatina sem doer”).
A amada, quando surge, o faz sempre num contexto luminoso, de aparição
platônica, como podemos observar no poema a seguir.
Em mim já é, toda a felicidade,
Efeito de uma causa conhecida:
Feliz me sinto sempre na medida
Que em ti o bem rebrilhe, sobrenade.
Dos teus sorrisos vem a claridade
Que veste e que ilumina minha vida;
Assim, do sol, a lua dolorida,
Toma esse ideal reflexo de saudade...
Inspiram-se nos teus os meus desejos.
Só amo o que tu amas. Teus juízos
São meus faróis da Dúvida nos brejos.
Contigo são-me, infernos, paraísos,
E na glória suprema dos teus beijos,
Reflexos são dos teus, os meus sorrisos.
Dezembro de 1914 (TPOLP, p. 24, grifos nossos)
Produto mais de contemplação do que de uma convivência real ou realização
carnal, o amor, efeito de uma causa”, depende das reações da mulher amada e se torna
reflexo de sua presença, desejos, atos: “inspiram-me nos teus os meus desejos”,
“reflexos são dos teus , os meus sorrisos”.
O eco camoniano na poética dos nativistas cabo-verdianos, já ressaltado por
Gabriel Mariano em entrevista concedida a Michel Laban (LABAN, 1992, v. 1, p. 326),
parece evocar o célebre poema “Transforma-se o amador na cousa amada”. E
transforma-se por virtude do “muito imaginar”.
Portanto, o núcleo neoplatônico da poética camoniana é conservado na poética
de língua portuguesa de Eugénio Tavares.
Eugénio retoma a definição do amor como fenômeno contraditório, resumida
no soneto camoniano “Amor é fogo que arde sem se ver”:
77
O Mal de Amor
(Coroa de espinhos)
Prelúdio
O amor é semelhante a uma planta
Com flores de oiro e espinhos peçonhentos,
Que a uns a existência eleva e encanta,
E a outros só confere sofrimentos.
Há esse amor que aclara e que enobrece,
E ess’outro que prostitui e mata:
Amor astro e amor raio; santa prece,
Ou vergonha que a morte só resgata.
O amor letal não menos nos seduz
Que o doce amor vital do nosso lar:
Iguais na sua força, iguais na luz,
O próprio Deus se ilude em os coroar...
Quanto uma sorte escura nos arrasta
Ao doce mal do amor; os nossos olhos
Fecham-se à luz; e nada nos afasta
De um destino de lágrimas e abrolhos.
Coroas tece o amor, de brancos lírios
E de espinhos em garras de condor...
A uns, flores; e a quantos mais martírios!...
Eis a eternal religião do amor!
Está nas mãos de Deus e de quem ama,
Beijar, sem sangue, os lírios lactescentes...
Que culpa tem a inofensiva chama
Que a busquem, cegas, asas inocentes?
É porventura a luz que corre após
A borboleta no seu voo incerto?...
O amor é Deus, e é um mal atroz?
Infinito de luz, e abismo aberto?
O sol dá cor às pétalas das rosas,
E põe rosas nas faces das crianças:
Mas são, seus raios, setas venenosas:
Fulminam vidas, matam esperanças.
Assim o amor, essa razão suprema
Da vida: eleva, salva, diviniza:
De par, porém, arrasta à mais extrema
Miséria, e a honra, às vezes, desraíza,
O Amor e o Sol! Eis as bases da vida!
Toquemo-los apenas com os lábios:
78
Queimam a borboleta enlouquecida,
Mas dão felicidade e luz aos sábios...
Atende, filha, e vê: nunca houve abismo
Para as aves do céu? Minha Alegria!
Desdobra as asas desse idealismo
Sentimental e forte que te guia!
Já me não treme o coração receoso
De ver o mal do amor, a tempestade,
Toldar de sombras teu perfil radioso,
Velar-te a ilusão Felicidade.
(TPOLP, pp. 44-45, grifos nossos)
As metáforas que definem o amor (mais especificamente, o “mal de amor”) são
sempre expressas antiteticamente, como no texto camoniano. Frequentemente associado
ao Sol e à claridade, o Amor, sempre sob o signo de um “idealismo sentimental”, pode
ser “santa prece” ou “vergonha”, “vital” ou “letal”, “luz” que traz “felicidade” ou que
“queima”, força que “eleva, salva, diviniza/ De par, porém, arrasta à mais extrema/
Miséria”, “sol” que “dá cor às pétalas das rosas”, mas cujos “raios, setas venenosas [...]/
Fulminam vidas, matam esperanças.
Mas esse fenômeno constitui-se mais complexamente, porque os estados
contraditórios acabam por ser inclusivos, expressando-se em oximoros, nos quais
Camões é um mestre, que unem os opostos: “flores de oiro e espinhos peçonhentos”,
“esse amor que aclara e que enobrece,/ E ess’outro que prostitui e mata”, Infinito de
luz, e abismo aberto”.
O prelúdio do mal de amor descreve o início, quando o amor começa com
força total e igual luz, daí, além do uso das antíteses e oximoros, Eugénio Tavares
emprega um vocabulário enfático e hiperbólico para sugerir ao leitor como se sentiria o
eu lírico em estado de paixão: “eleva”, “encanta”, “enobrece”, “prostitui”, “mata”,
“felicidade”, “sorte escura” (destino), “extrema miséria”, “enlouquecida”, “abismo”.
Este “amor astro e amor raio”, que dispara setas a esmo qual Cupido cego,
poderá tecer “coroas” “de brancos lírios” e/ou “de espinhos”, “flores” ou “martírios”.
No entanto, no subtítulo do texto, o eu poemático opta pelo pólo pessimista da equação:
a coroa é “de espinhos”, no melhor estilo ultrarromântico religioso cristão.
O mal do amor pode ainda originar-se do afastamento da amada ou da
ausência, como no poema “Epílogo”:
79
Ó meu amor! Ó minha companheira,
Que de tão longe ao meu suplício assistes!
Esta me seja a hora derradeira,
Que outras não poderei viver mais tristes!
Ó meu primeiro, e meu único amor!
Ó coração ausente de meu peito!
Requer à sorte abrande seu rigor
Antes que abata o meu sonho desfeito!
Ó minha honra! Ó minha santa cruz,
Da qual me vem o golpe e a resistência!
Tu és a força imensa que reduz
Todo o meu mal a esta dor da ausência!
Ó luz vital dos meus olhos ausente!
Ó mão piedosa que me ampara e guia!
Milagre que me sara e deixa doente
Vivo p’ra a dor, e morto p’ra a alegria!
Estás longe de mim e é maravilha
Que eu possa inda viver nesta orfandade
Do teu amor, em noite onde não brilha
A esperança, consolo da saudade!
Estou longe de ti, e o céu destila
Nos lábios meus o travo da cicuta!
Mas da tua alma plácida, tranqüila,
Me vem toda a coragem para a luta.
Terei na minha frente o horror da queda?
Que importa? Amparam-me teus braços santos!
Envolve-me do ódio a labareda?
Salvar-me-á o orvalho dos teus prantos!
Quando a Traição me estende sua mão
De dedos que laceram como puas,
Nenhum golpe me atinge o coração
Neste refúgio das virtudes tuas.
É este amor que eleva e fortalece!
É este o amor que aclara e dignifica!
Diante de sua força augusta, cesse
Quanto de nobre a fama testifica!
E semelhante às rochas duras, frias,
Que esbofeteia em vão o mar rugindo,
Em vão do mal as raivas mais sombrias
Tentam ferir-me, na alma te ferindo!
Não há poder que vença o grande amor
Na honra renascido e coroado!
A nós, Deus no-lo deu assim. E a dor
Aumenta, apenas, seu fervor sagrado.
80
Meus lábios lançariam maldições
Se o Beijo os não tivesse redimido!
Meu peito sonharia más acções
Se o teu amor mo não tivesse ungido!
Beijo de amor! Hóstia santificada!
Tu és a cruz de sangue que redime!...
Se em toda a terra foras tu hasteada,
De toda a terra fugiria o crime!
Março, 1916 (TPOLP, pp. 63-65, grifos nossos)
Podemos observar na quarta quadra do poema o uso dos oximoros para
expressar que o eu poemático sofre com a ausência da amada (talvez por morte?), mas
nela também se fortalece o idealismo amoroso, na medida em que o amante tem o
“consolo da saudade”.
Este amor, santificado por um vocabulário religioso cristão (“hóstia”, “santa
cruz”, “braços santos”, “fervor sagrado”, “ungido”, “cruz de sangue que redime”),
“eleva e fortalece [...] aclara e dignifica”, transformando aquele que ama em virtude da
nobreza do objeto amado.
Por fim, o tema culminante desse núcleo teatralizado que constitui o espírito de
época ultrarromântico é a morte que, como no texto Romeu e Julieta de Wiliam
Shakespeare, acaba por consagrar os amantes:
Para a Vida e para a Morte!
Como Laura a Petrarca, se encontraram
Um dia; e seus olhares, confundidos
Num raio férvido de amor, cantaram,
De luz epitalámios comovidos.
Uma linda manhã, o sol rompeu
E lhes doirou as frontes inclinadas
Diante de Deus; e, remontando o céu,
Partiram suas almas enlaçadas.
E foram caminhando alegremente
Pelas áleas da vida, entretecendo
As plumas do seu ninho, numa ardente
Intuição do bem o mal vencendo.
Em certo passo alçou-se a tempestade
Nas sombras do destino encastelada:
Fechou-se torvamente a escuridade
Numa tremenda ameaça concentrada:
Uma volta de mar os separou:
A Ele a vaga ergueu-o revoltada:
81
Ela, muda de espanto se abraçou
Aos pés gelados de uma cruz de estrada.
Qual maior dor? Qual mais funda agonia
Qual peito mais ferido e resignado?
Ela abraçada à sua cruz sombria?
Ou Ele, nessa cruz crucificado?
O mar e o vento, como salteadores
Que atacam pela estrada os viandantes,
Seus peitos separaram, seus amores,
Mas não seus corações fiéis, constantes.
Se declinava a fúria da tormenta
De novo os dois santelmos ressurgiam
Na noite negra, numa viagem lenta,
Buscando-se nas trevas que se abriam.
Debalde o mar voltava a rebramir!
O vento, em vão soltava roucas pragas!
Conta o poder do Amor, vinha ruir
Toda a força dos ventos e das vagas.
Depois? Depois, ainda, é o futuro,
O futuro nem sempre impenetrável...
(O Mal, mesmo que o vejas torvo e escuro,
Não é, tu podes crer, interminável)...
Supõe, lá mais adiante, uma bonança
Sem refregas, traições; sem laços reles...
Não vês dois vultos, pela tarde mansa,
Unidos, graves, plácidos? São eles...
Qual foi a força que lhes deu vitória
Nessa batalha horrível contra o mal?
O amor que salva! A soberana glória
Do coração a víscera imortal!
Unidos na alma, a vida percorreram.
E embora os separasse dura sorte,
Unidos combateram e venceram,
Unidos para a vida e para a morte...
(TPOLP, pp. 60-61)
O poema, dialogando com o Cancioneiro de Petrarca e elegendo como tema
um dos amores mais idealizados da história da literatura, na sétima quadra refere ainda
o contexto religioso-cristão para dignificar a força daquele amor, impossível na vida
terrena “seus peitos separaram”, pois Laura era casada contudo, que transcende a
morte (“Mas não seus corações fiéis, constantes”, “unidos para a vida e para a morte”
por “epitalâmios” ou cantos nupciais).
82
O poema “O sonho” compensa a distância amorosa e propõe a realização do
amor na “outra vida”, para além da morte:
Quando um dia eu voltar desta viagem,
Hei-de trazer-te o Sonho cuja ausência
Te tem posto pesares na existência,
Na tua vida branda como aragem.
Se eu lá ficar, porém, nessa miragem
Que acolhe os tristes cheia de clemência
Há-de voltar a ti a vaga essência
De eterno amor, em pálida romagem.
Minha alma há-de voltar a contemplar-te
E hás-de ouvi-la, num choro doloroso
Rogar a Deus de ti jamais a aparte.
E quando soar-te a hora da partida,
Como um par, de andorinhas, amoroso,
Iremos, juntos, desta à outra vida.
(TPOLP, p. 13)
Vasco Martins, a respeito da poética de Eugénio Tavares, tanto em língua
portuguesa quanto em crioulo, ressalta “o extremo romantismo” cujos traços mais
relevantes buscamos demonstrar.
Para o investigador e maestro,
A noção de Amor em Eugénio Tavares justifica, é claro, uma época
romântica, uma estrutura poética condizente com os estados
espirituais também do próprio poeta, que diz possuir pela mulher uma
paixão sensível (MARTINS, 1989, p. 87).
Examinemos ainda os tópicos do exílio, do escapismo e do saudosismo,
também constituintes do ultrarromantismo, que se conjugarão com o núcleo contextual
da série literária cabo-verdiana que Manuel Ferreira denomina de “terra-longismo”.
2.2 – O núcleo do “terra-longismo”
toda a partida É potência na morte
E todo o regresso É infância que soletra
Corsino Fortes
83
O crítico português-cabo-verdiano Manuel Ferreira, em O ciclo do mar e o
“terra-longismo” em “Chiquinho” de Baltasar Lopes, estabelece a distinção entre
emigração e evasão, ao comentar sobre os “construtores da verdadeira literatura cabo-
verdiana”, nos seguintes termos:
As razões agora da hora di bai definem-se em novos parâmetros. No
primeiro caso os homens são acossados, empurrados. Resistem, mas a
alternativa seria a de muitos outros: morrer de fome. Daí que se possa
para este caso encontrar a emblemática designação: Querer-ficar-e-ter-
de-partir. No segundo caso são os próprios entes torturados pela ânsia
de correr mundo, ver as “cidades / terras distantes / que apenas sei
existirem / por aquilo que se diz...” (Jorge Barbosa). O Mar, porém,
está ali a limitar-lhes os passos. O Mar ali funciona como as grades de
uma prisão. Então diríamos: querer-partir-e-ter-de-ficar. Eis como o
terra-longismo, em literatura, se bipolariza: um de raiz económica,
outro de raiz intelectual. O de raiz económica detecta-se
principalmente na ficção e também na poesia. O de raiz intelectual, se
a memória não nos falha, apenas na poesia. O primeiro porventura o
mais autentico, o profundamente real e vivido. O segundo depende:
uma certa autenticidade deixa tal-às vezes contaminar-se de literatura.
O primeiro uma constante sócio-económica cabo-verdiana. O último,
explosivo do período que decorre na década 30-40, com tendência
para ser contido mercê de uma visão ganha na consciência da
necessidade de se fincarem os pés e a vida ali no chão da terra
madrasta, mas apetecida. Ao primeiro chamaríamos de emigração. Ao
segundo de evasionismo (FERREIRA, 1972, p. 68).
A emigração, frequentemente, associada à dor na poética de Eugénio Tavares
em língua portuguesa, negativiza o “partir” com o sentimento de saudade (um dos
microtemas do núcleo ultrarromântico). O campo da emigração é de pranto, de
amargura, de mágoa que se opõe à alegria do regresso. Esse é o grande dilema dos
poemas pertencentes a esse núcleo.
Partindo
Triste, por te deixar, de manhãzinha
Desci ao porto. E logo, asas ao vento,
Fomos singrando, sob um céu cinzento,
Como, num ar de chuva, uma andorinha.
Olhos na Ilha eu vi, amiga minha,
A pouco e pouco, num decrescimento,
Fugir o Lar, perder-se num momento
A montanha em que o nosso amor se aninha.
Nada pergunto; nem quero saber
Aonde vou: se voltarei sequer;
Quanto, em ventura ou lágrimas, me espera.
84
Apenas sei, ó minha Primavera,
Que tu me ficas lagrimosa e triste,
E que sem ti a luz já não existe.
(TPOLP, p. 11)
No poema “Partindo”, logo de início, o sujeito poético expressa o sentimento
que dominará a famosa morna “Despedida”, em língua cabo-verdiana, texto no qual nos
deteremos no capítulo seguinte:
Despedida
(Marinheiros que partem)
Es mágua de nha partida
El sâ tâ matam nha bida!
Se’n bai, ramede que tem,
É’n bai, ’n tornâ bem.
Mas es tristeza de’n bai,
De’n bai pa’n largâ nha Mai,
El ca triste comâ dor
De’n bai pa’n largâ nha Amor.
No cantâ co água na ôjo;
No bajâ co alma de nôjo:
Hora triste de partida
É hora de perdê bida.
Quem que ficâ, ca ta bai:
Quem que ca bai, ca ta bem:
Força que pincha’n pa’n bai,
É bo, esperança de bem!
Ó bai, ó bai, ja bo triste!
Ouro de mar, ja bo caro!
Ó bem, ó bem, ja bo doce!
Dia de bem, ja bo claro!
(TMCC, p. 47)
18
Embora a forma do poema “Partindo” seja o soneto, uma “casa poética” ou
forma fechada, como propõe Maria Alzira Seixo (1977, p. 283), Eugénio retrata uma
cena dinâmica de mar em aberto, de emigração, como o comprovam os versos do
segundo quarteto: “Olhos na Ilha eu vi, amiga minha,/ A pouco e pouco, num
18
Tradução da morna: Despedida (Marinheiros que partem) - Essa mágoa da minha partida/ Está
matando a minha vida /Se eu for, remédio não tem, /Eu fui e voltei. /Mas essa tristeza de partir /De partir
e deixar minha mãe, /Isso não é triste como a dor /De partir e deixar meu Amor. /Cantamos com água nos
olhos; /Dançamos com a alma de luto: /Hora triste de partida hora de perder a vida. /Quem fica, não
parte:/ Quem não parte, não volta: /A força que me empurrou para ir /És tu, esperança de voltar!/Ó
partida, ó partida, tu és triste! /Ouro do mar, tu és caro! /Ó volta, ó volta, tu és doce! /Dia do retorno, tu és
claro!
85
decrescimento,/ Fugir o Lar, perder-se num momento”. As expressões grifadas
produzem no receptor do poema uma sensação visual de movimento quase
cinematográfico, posto que dão a perceber o afastamento do navio que deixa a ilha,
cujas dimensões vão diminuindo gradativamente com a distância.
O sentimento que preside o texto é de tristeza, mágoa do eu lírico na hora da
partida, no momento em que o navio deixa o porto e o lar se transforma numa imagem
fugidia, juntamente com a imagem de mulher amada:
O uso de iniciais alegorizantes (Ilha, Lar, Primavera) demonstra a relação de
pertencimento à ilha natal, a Brava, conhecida em Cabo Verde como “a ilha das flores”.
Ao mesmo tempo em que, em sua produção jornalística e epistolar, Eugénio
Tavares caracteriza-se como um cidadão luso, paralelamente, na poética, opta por situar
o seu Lar na sua Ilha e, por extensão, no arquipélago de Cabo Verde. Esse dilema, na
época colonial, vai expressar-se com freqüência nos textos dos poetas denominados
nativistas, que, mesmo considerando a sua cidadania lusa, propugnam que os olhares
se voltem para as ilhas de Cabo Verde, antecipando um sentimento de pertença que
conduzirá mais tarde ás lutas de libertação.
Voltando à análise do poema “Partindo”, a comparação estabelecida no verso:
“Como, num ar de chuva, uma andorinha” pode conduzir a leitura ao tema da migração
cabo-verdiana, pois que a andorinha é uma ave de migração, característica marcante da
cultura das ilhas crioulas. O cabo-verdiano não migra apenas para outros países, mas
entre as ilhas, uma vez que a condição climática do arquipélago muitas vezes força o
ilhéu a buscar em outros espaços uma melhor qualidade de vida ou mesmo a
possibilidade de sobrevivência.
Ainda que o eu lírico não revele neste poema, muitos são os motivos que levam
o cabo-verdiano a deixar o arquipélago. João Lopes Filho afirma que
A pequenez da ilha, confrontada com a vastidão imensa do oceano,
sedimenta e gera sonhos, porque um espaço insular como é o de Cabo
Verde, condensa problemas de ordem natural e de ordem social (a
seca, o isolamento, a fome, a pobreza, a doença...), que aumentam,
constantemente, o desejo de procurar uma possível melhoria das
condições de vida noutras paragens (LOPES FILHO, 2007, p. 27).
Em “Partindo”, melancólico, o eu lírico, além de não revelar o motivo da
partida, prefere não saber aonde vai e se voltará um dia. Por isto a saudade está sempre
embutida no sentimento de quem parte.
86
Partir, para os cabo-verdianos, embora constitua por vezes uma necessidade, é
sempre um ato doloroso por deixar a terra amada e aqueles que amam. Por isso, muitos
preferem evitar a “Despedida”:
Dirás à minha pobre mãe, coitada!
Que me perdoe não ir, na despedida,
Beijar-lhe a grave fronte tão querida,
Beber-lhe o santo olhar, benção sagrada;
Porque me traz esta alma tão quebrada
A dor inconsolável da partida,
Que, triste como os que se vão da vida,
Nem quero ver-lhe a fronte magoada.
Dirás que levo uma saudade funda
Dentro do coração angustiado!
Que a dor é tanta, em suma, e tão profunda,
Que me parece, até, ter comado
A morrer, neste lúgubre momento
Em que o navio esfralda asas ao vento.
(TPOLP, p. 11)
Se na morna Despedida”, mais acima registrada, Eugénio se expressa na
forma popular da quadra e em língua cabo-verdiana, neste poema “Despedida”, em
língua portuguesa, o poeta desenvolve no soneto, forma fixa erudita, a mesma temática
tão presente no cotidiano do ilhéu.
Ressalte-se neste poema o trabalho do poeta com a sonoridade dos versos, que
ressalta a dureza da “dor” da despedida (aliteração do fonema “d”). A angústia do eu
lírico também se manifesta por meio da gradação: “Que a dor é tanta, em suma, e tão
profunda,/ Que me parece, até, ter começado/ A morrer neste lúgubre momento/ Em que
o navio esfralda asas ao vento”.
O momento da despedida, muitas vezes era sentido como um momento de luto
para o cabo-verdiano, uma vez que quem partia, na época colonial, poderia nunca mais
voltar pelos riscos traiçoeiros do mar, por viajar em embarcações rudimentares, para
trabalhos insalubres, entre outros motivos.
A mãe a que se refere o poema pode ser associada à terra cabo-verdiana,
“querida” e “sagrada”, considerando-se o grande apego que Eugénio Tavares devotava
ao arquipélago e as circunstâncias em que precisou afastar-se dele.
87
A vontade de ficar, manifesta pelo eu lírico, é superada pela partida de um
navio “insensível” que “esfralda asas ao vento” ou velas impulsionadas pelos fortes
ventos cabo-verdianos que apressam o afastamento indesejado de quem parte querendo
permanecer na ilhas.
Segundo Luís Silva, em seu artigo “Os exílios na literatura caboverdiana”
(2006, p. 23), “Cabo Verde nasce do cruzamento de exílios, resultantes de deportações e
da escravatura”. O pesquisador enfatiza ainda que o primeiro texto da literatura cabo-
verdiana sobre o exílio é de autoria de Eugénio Tavares, de 12 de Junho de 1900,
intitulado “Rumo ao exílio”, incluso nas “Cartas para a América” endereçadas ao amigo
Inocêncio Cândido Simplício. Nele, Eugénio descreve uma viagem de vinte e nove dias,
entre tempestades e calmarias, os serviços de emigração na América, a solidariedade
dos patrícios, a leitura das cartas e as informações recebidas das famílias e amigos sobre
a situação social e econômica de Cabo Verde etc.
Eugénio Tavares viaja para o exílio com vários objetivos: fugir à ameaça de
prisão pelo governo colonial, trabalhar e estudar os vários aspectos da emigração.
Portanto, além de um tema do núcleo ultrarromântico do qual lança mão, o poeta tem
motivos contextuais e biográficos que respaldam a exploração mais profunda da questão
do afastamento da terra-natal:
Exilado
Pensa no que há de mais sombrio e triste;
Terás, destes meus dias vaga imagem:
Soturnos céus – como tu nunca viste –
Nunca os deixou o halo duma miragem.
O sol – um sol que só de nome existe
Envolto na algidez e na brumagem
Dum frio – como tu nunca sentiste –
Do nosso sol parece a morta imagem.
Imerge o retranzido pensamento
Nas noites mais escuras, mais glaciais,
Prenhes de raios e de vendavais:
Verás que anos de dor, esse momento
Passado, na saudade e no penar,
Longe do sol vital do teu olhar.
Fairhaven, 1900 (TPOLP, p. 12, grifos nossos)
88
Neste poema, Eugénio conjuga habilmente os ecos dos episódios aubiográficos
com o tema da distância amorosa e com a atmosfera soturna que reveste os dias de
exílio da ilha de origem. O campo semântico do exílio assim se define: “sombrio e
triste”, “soturnos céus”, “nosso sol parece a morta imagem”, “noites mais escuras, mais
glaciais,/ Prenhes de raios e de vendavais”, “anos de dor”, “saudade e penar”.
A data da escrita do soneto, 1900, leva-nos a uma triste recordação, por se
tratar do ano em que Eugénio Tavares, motivado por perseguições políticas portuguesas,
teve que deixar Cabo Verde às escondidas, para morar nos Estados Unidos.
O poema, carregado de nostalgia, incita o leitor a refletir sobre a triste
realidade dos que vivem longe de sua terra em dias sombrios marcados pela melancolia,
pela saudade e pela solidão em solo estrangeiro, cujo ambiente “soturno” contrasta com
os espaços cheios de luz da terra-mãe.
Verifica-se, no soneto, uma correlação entre o estado psíquico do exilado e o
ambiente externo da terra de acolhimento.
Também em “Nostalgias, distante da terra natal, o eu lírico aguarda, saudoso, a
chegada do “navio da Brava” como se este trouxesse a própria terra, tal a força das
notícias e das vivas lembranças nunca esquecidas de quem partiu:
Nostalgias
Lá vem navio da Brava!
Ai, lá vem
Roçando as velas de neve,
Brancas de neve ao luar,
Ao de leve
Nas ondas mansas do mar!
Ai! lá vêm novas da Brava
E bênçãos de minha mãe
Que com lágrimas me escreve!
Minha mãe! Vejo-a chorosa,
Triste n’alma,
À soleira, ao fim do dia,
Rezando a sua oração,
Pedindo à Virgem Maria,
Pedindo à Virgem Dolorosa
Lhe traga o filho na palma
Na palma da sua mão!
Vejo-a contando às vizinhas
(Velhinhas tão adoradas
Que são, quase, pelo amor,
Outras tantas mães, Senhor!)
O que as minhas cartas rezam;
89
As saudades que padeço;
Os desgostos que em mim pesam
A data do meu regresso!
Vejo-as todas, coitadinhas,
Tão amigas, tão magoadas,
Limpando os olhos leais
Nas pontas dos aventais!
Ai! vejo os entes queridos,
(Longe dos quais não há riso
Que dure nos lábios meus)
Ouvir ler, reunidos,
As cartas que lhes escrevo!
E neste plácido enlevo,
Neste sonho, até diviso
Uma visita chorosa
Que se abeira cautelosa
E murmura, de momento:
– Deus o traga a salvamento!
Ao fundo, enxergo outra Dor:
Manso o gesto e triste o olhar,
Muda a boca dolorosa,
Porque tem a alma do amor,
Vejo a companheira amada
Tão modesta, tão bondosa,
Tão simples, tão adorada
Deixando o pranto cair
No cálice perfumado
De um sorriso amargurado!
Vejo a pérola a fulgir!
No níveo seio da flor!
Grandes lágrimas etéreas
Contai-me as mágoas sidéreas
Dos olhos de onde caístes
Prantos doces, prantos tristes...
Disse-me esta noite a lua
O nenúfar que flutua
No imenso rio dos céus,
Que te viu... que lhe contaste
Tua mágoa...
E que os negros olhos teus
Rasos d’água,
Se baixaram
E choraram
Como flor pendida da haste
Orvalhando a terra nua!
Lua branca! lua triste!
Quando, na volta, passares
Pelo meu saudoso vale,
Lua amiga! se a topares
Dize-lhe que em mim existe
Inda, o mesmo escuro mal
90
Terrível como os olhares
Das trevas que se cerram...
Profundos como esses mares
Profundos que nos separam.
Ignotus, Tarrafal de S. Tiago
(TPOLP, pp. 98-100, grifos nossos)
Marcado pela melancolia, o poema, grafado pelo pseudônimo Ignotus, trata-se
de um poema ultrarromântico tardio em que avultam características deste momento
literário. Dentre elas, destacamos a presença do saudosismo, da natureza, da noite (lua)
e a exaltação da terra natal.
A linguagem teatral (visualizamos cenas da Brava), plena de exclamativas
enfáticas, diminutivos (“coitadinhas”), repetições, de escolha vocabular requintada
(“plácido enlevo”, “níveo”, “etérea”, “sidérea”, “nenúfar”) alia-se à tristeza e à
religiosidade, culminando no ambiente terrífico da última estrofe para traçar a
ambientação soturna do emigrante que anseia por regressar ao aconchego do lar, dos
braços da mãe e dos entes queridos.
Se a partida traz a dor da despedida e a nostalgia do ninho amado, o retorno,
por sua vez, traz de volta a alegria adormecida:
Vasco Martins, a propósito do tema, esclarece:
Cabo Verde, país de emigração maciça, país de ilhas e de Oceano,
possui na sua alma a mitologia da partida que tem sempre um regresso
ou pelo menos a idéia do regresso. A saudade é um sentimento que
acompanha a partida, uma saudade romanceada, por vezes profunda e
pondo em causa a Terra longe, onde se vai buscar um melhor modo de
vida ou, simplesmente, a necessidade de ver o mundo, sair das ilhas
para um encontro com outras culturas, outros modos de vida, outras
mentalidades (MARTINS, 1989, p. 89).
A díade partida/regresso funciona como mote do soneto
Regresso
Tanto magoa a triste despedida
Se do lar nos afasta a mão da sorte,
Quanto nos recontenta o gozo forte
De um regresso à Pátria estremecida;
Se, toda, nos deslumbra a luz da vida,
Suave, nos consola o olhar da morte;
Eu, tanto adoro uma imutável morte
Quanto odeio a miragem fementida.
91
Na placidez dos justos, ao morrer,
Eu vejo uma alegria de regresso,
Sinto um repouso de repatriados.
Mas na vozinha triste, amargurada,
Das crianças que choram ao nascer,
Sinto a dor dos que aportam degredados.
(TPOLP, p. 22, grifos nossos)
O poema “Regresso”, exemplo acabado do “terra-longismo” como proposto
por Manuel Ferreira (1972), já em sua primeira estrofe, em estrutura oximorística, supõe
na partida a possibilidade do regresso: “Tanto magoa a triste despedida”/ [...] Quanto
nos recontenta o gozo forte/ De um regresso”.
O texto apresenta a marca da estrutura do soneto camoniano, ao trabalhar com
a fusão dos opostos: “morte e vida”, “odeio e adoro” e “gozo forte e sorte”, que a
tristeza da partida não exclui a alegria e o repouso do regresso.
No entanto, o último terceto do poema parece sugerir que o destino – “Se do lar
nos afasta a mão da sorteterá continuidade nas próximas gerações: “crianças que
choram ao nascer”, por já carregarem consigo a dor dos que aportam degredados” em
estado de exílio, fora do lar “pátrio”. Vasco Martins, a esse respeito, acrescenta:
o regresso à terra reveste-se de um certo sofrimento que se
disse habitual na alma cabo-verdiana. Sem a saudade ou o
sofrimento [...] o regresso seria normal, pouco romântico,
pouco sentido. Por vezes, a alma cabo-verdiana esconde-se
numa jovialidade e alegria de viver que esconde, no entanto,
essa intensa melancolia provinda de 500 anos de história da
agressividade da terra, do mito da partida para terras
longínquas (MARTINS, 1989, p. 95).
No poema “Triste Regresso”, o eu lírico comove-se ao voltar à sua ilha em
meio a uma grande estiagem:
Triste Regresso
A José Bernardo Alfama
Dentro da claridade plúmbea da manhã
A Ilha, sobre o mar, lembra uma catedral.
As nuvens em silêncio imergem devagar
Qual um fumear de incenso
Num ascetismo intenso,
Num perfume subtil de velha fé cristã,
Pelas naves glaciais da brônzea catedral,
A ilha, sobre o mar.
92
E sobem vagamente em lágrimas banhando
A dura fronte augusta e grave dos rochedos.
Bebe em fundo silêncio a terra fulva, adusta,
A lágrima que cai;
E a nuvem passa, vai,
Numa insondável mágoa imensa rorejando,
Em gélido suor, dos túrbidos rochedos
A dura fronte augusta.
Mas, já da opa cinzenta a Ilha se desnuda,
Beija-a com fúria o sol, dentes de fogo a comem
O vento reduziu-lhe a trapos o lençol.
Emerge, se acentua,
Do mar, imóvel, nua,
Transida de tristeza, em uma angústia muda...
E enquanto ao longe as nuvens álgidas se somem
Beija-a com fúria o sol.
Da c’roa do platô à fímbria da leveza
As árvores sem vida estorcem-se de sede
E o sol – bem como um rei fanático, homicida, –
Fustiga-as a matar.
E ri-se ao incendiar
Os ramos – como mãos erguidas de quem reza –
E as folhas – como mãos abertas de quem pede –
Das árvores sem vida.
Enfim, o meu Navio, aos poucos, se aproxima.
Nos tristes olhos meus em lágrimas, rebrilha
A dita de ancorar após mil escarcéus.
E, pois que as nuvens vão
Fugindo na amplidão
Sem que uma gota de água enviem lá de cima,
Darei à tua sede o pranto – ó minha Ilha! –
Dos tristes olhos meus.
Brava, 1900 (TPOLP, p. 75)
Envolto por uma atmosfera de adoração religiosa, o poema descreve o
aparecimento da ilha natal àquele que dela estava afastado, num movimento contrário e
complementar ao poema “Partindo”, que encenava o abandono do Lar:
Triste, por te deixar, de manhãzinha
Desci ao porto. E logo, asas ao vento,
Fomos singrando, sob um céu cinzento,
Como, num ar de chuva, uma andorinha.
Olhos na Ilha eu vi, amiga minha,
A pouco e pouco, num decrescimento,
Fugir o Lar, perder-se num momento
A montanha em que o nosso amor se aninha.
(TPOLP, p. 11, grifos nossos)
93
No poema em tela, ao contrário,
o meu Navio, aos poucos, se aproxima.
Nos tristes olhos meus em lágrimas, rebrilha
A dita de ancorar após mil escarcéus.
(TPOLP, p. 75, grifos nossos)
“Bai é maguado”, lembramos a morna mais emblemática de Nhô Eugénio
(Hora di bai), triste vai o eu poemático no navio que singra em “Partindo”. Dor de amor
e dor de saudade. Mas voltar e constatar o sofrimento por que passam os irmãos, no
poema “Triste regresso”, outro significado às lágrimas. Estas serão comparadas à
chuva que vai molhar a terra seca:
E, pois que as nuvens vão
Fugindo na amplidão
Sem que uma gota de água enviem lá de cima,
Darei à tua sede o pranto – ó minha Ilha! –
Dos tristes olhos meus.
(Ibidem)
O primeiro verso revela um oximoro, “Dentro da claridade plúmbea da
manhã”, sugerindo que o regresso não é totalmente livre de obstáculos.
A ilha surge ao sujeito do poema como uma aparição da deusa Vênus,
emergindo do mar, vestida pelas nuvens, beijada pelo Sol. O poema é marcado pelo
aspecto visual e pelo movimento. Do ponto de vista da geologia, as ilhas de Cabo Verde
emergem de uma erupção vulcânica na plataforma submarina e o eu lírico de “Triste
regresso” compara o surgimento da ilha Brava, de relevo extremamente escarpado, a
uma catedral: “A Ilha, sobre o mar, lembra uma catedral”, envolta em nuvens qual
“perfume” do “fumear de incenso”.
No terceiro verso do poema, “As nuvens em silêncio imergem devagar”,
verificamos um movimento oposto à gravidade: as nuvens baixam enquanto a ilha sobe,
tornando-se ainda mais alta, soberana. Qual Vênus no seu nascimento, “a Ilha se
desnuda,/ Emerge, se acentua,/ Do mar, imóvel, nua”.
Para quem conhece o contexto das ilhas e considerando que o poema retrata
uma cena das estiagens frequentes no arquipélago, a nudez pode ser associada à aridez
da paisagem cabo-verdiana, batida pelo sol e pelo vento inclemente: “Beija-a com fúria
o sol, dentes de fogo a comem/ O vento reduziu-lhe a trapos o lençol”.
94
Desta forma, o mito de Vênus, é contextualizado de modo a expressar o amor e
a beleza que o poeta devora à sua pátria-ilha.
Verifica-se todo um movimento gradativo no poema, em que esta ilha-mulher é
revelada primeiramente pela tristeza e angústia do semblante (o seu sofrimento pela
seca) e, mais adiante, na nudez de corpo inteiro:
Mas, já da opa cinzenta a Ilha se desnuda,
Beija-a com fúria o sol, dentes de fogo a comem
O vento reduziu-lhe a trapos o lençol.
Emerge, se acentua,
Do mar, imóvel, nua,
Transida de tristeza, em uma angústia muda...
(Ibidem)
Ao mesmo tempo, suas lágrimas de tristeza funcionam como estratégia de
sedução, como n’Os Lusíadas, de Camões, na cena em que Vênus chora, nua, diante de
Júpiter (Canto II, estâncias 36 a 42), para convencê-lo a favorecer a viagem dos
portugueses. Como resultado, “enquanto ao longe as nuvens álgidas se somem / Beija-a
com fúria o sol”.
Em consequência desta erotização da aparição da ilha, nos versos seguintes:
“As árvores sem vida estorcem-se de sede/ E o sol – bem como um rei fanático,
homicida, –/ Fustiga-as a matar”/ “E ri-se a incendiar”, em extremo gozo.
Na última estrofe, sem a mínima possibilidade de chuva “E, pois que as
nuvens vão/ Fugindo na amplidão/ Sem que uma gota de água enviem de cima” –, o
regresso gradativo (“o meu Navio, aos poucos, se aproxima”) do eu lírico,
provavelmente distante da Ilha por longo tempo e/ou com grandes dificuldades para
regressar à terra natal (hipóteses sugeridas pelo advérbio “enfim”) reveste-se de tristeza.
“Ancorar” ou “fincar os pés na terra”, lema dos claridosos, significava resistir e
ficar na ilha, nem que à custa de regá-la com as lágrimas: “Darei à tua sede o pranto – ó
minha ilha! –/ Dos tristes olhos meus”.
A fusão alegórica do eu lírico com a ilha expressa-se como um conluio
amoroso, de um amor extremo à terra natal, comparável ao que o intelectual Eugénio
Tavares dedicava a Cabo Verde
19
.
19
Esta leitura do poema “Triste regresso” está ancorada em hipóteses levantadas pela pesquisa da Profa.
Doutora Simone Caputo Gomes, “Metamorfoses de Vênus: formação e desenvolvimento da série literária
caboverdiana”, Universidade de S. Paulo.
95
Os poemas “Quando, depois da viagem tormentosa” e “Minha casa”
complementam este micronúcleo do regresso ao lar, unindo lirismo amoroso, telurismo
e sonho numa proposta de evocação da “casa” cabo-verdiana:
Quando, depois da viagem tormentosa
Cheguei, enfim, a porto e salvamento,
Quando, cansado, adormeceu o vento
E serenou a fúria procelosa;
Quando rompeu essa manhã radiosa
Do meu regresso ao lar, e que um momento
Senti amortecer-se o sofrimento
Numa tranqüila trégua deliciosa;
Quando, de manhãzinha, despertando,
Te vi junto de mim, num repousar
De anjo, pensei: – Estarei eu sonhando?
Mas quando abriste os olhos, devagar,
Então roguei-te, manso, soluçando:
– Não me despertes! Deixa-me sonhar!
(TPOLP, p. 22, grifos nossos)
Os braços da amada são porto e casa onde se refugia o eu poemático. Tornam a
“manhã radiosa” e transformam o “sofrimento” em “trégua deliciosa”.
Minha Casa
A Duarte Silva
Ó minha pobre casa! estância honesta!
Minha felicidade inigualada!
Quem me dera passar, nesta jornada,
À tua sombra, a vida que me resta!
Tudo me fere, tudo me molesta
Longe de ti, ó minha pobre amada!
O sol mais claro não me alegra; nada
Me aquece e me ilumina a fronte mesta!
O meu destino, túrbido, mesquinho,
Na saudade dos olhos siderais
Da companheira que ficou no ninho,
Arrasta-me a visões de dor, mortais:
E penso que talvez neste caminho
Não paro à tua sombra nunca mais!
(TPOLP, p. 12, grifos nossos)
96
Longe do “ninho amado (e da mulher amada), “tudo fere, tudo molesta”, o
trajeto é definido como “viagem tormentosa” sob “fúria procelosa” e o “destino”,
“túrbido, mesquinho”.
A soturnidade e o pessimismo ultrarromântico expressam-se enfaticamente por
meio de dois sentimentos: saudade e dor.
Saudade
O muito amor por teus olhos quebrados
De sofrer; esta cruel adoração
Por ti, que me trespassa o coração
Nas puas da saudade e dos cuidados;
Estes males da ausência inconsolados,
Deram-me a crença da superstição:
E sigo a incerta fé do povo vão,
Interpretando sonhos enublados...
E lhes pergunto, às vezes, se és feliz...
Se ainda te animam esperanças calmas...
E me sorrio sempre que sorris.
Porque amarrados ambos numa cruz,
Embora separados, nossas almas
Formam uma só vida, uma só luz.
(TPOLP, p. 14)
Em síntese, esse núcleo que tematiza o “terra-longismo” cabo-verdiano e, ao
mesmo tempo, o exílio de raiz ultrarromântica, expressará os sentimentos gerados pelas
vivências de afastamento, tanto do arquipélago quanto da mulher como representante da
terra-mãe ou do aconchego amado.
Para Luís Silva,
Não é possível fazer uma leitura de Cabo Verde sem passar pela
literatura, marcada por muitos exílios, dentro das ilhas, no espaço
colonial e nos países da emigração. Falar do exílio na literatura
caboverdiana obriga-nos a repensar o isolamento e as condições
geográficas que limitam os passos de cada indivíduo (2006, p. 24).
Para encerrar este item, cabe ainda ressaltar o tema da emigração forçada para
S. Tomé e Príncipe, retratada em poema do pseudônimo Orion.
Sobre as formas de emigração, António Carreira (1984) destaca a espontânea e
a forçada, a que o poema de Eugénio Tavares aqui enfatiza:
97
Forçada, ou seja, segundo nossa opinião, toda a que se processa em
conseqüência da ruptura do equilíbrio produção/população, ruptura
essa provocada por secas, fomes, mortandades ou pressão demográfica
e de que os governos se aproveitaram para incentivar e encaminhar,
por meio de medidas legislativas ou processos administrativos, a saída
da população com o objetivo deliberado de proporcionar mão-de-obra
abundante e a baixo salário às organizações agrícolas e industriais de
tipo capitalista da região tropical ou equatorial. É o caso concreto de
S. Tomé e Príncipe (CARREIRA, 1984, p. 162).
Acompanhemos o poema:
A Emigração
(A propósito da emigração para S. Tomé e Príncipe)
Como é triste e é desolador,
Ver partir, aos magotes, esta gente,
Entregue ao seu destino, indiferente
A tanto sofrimento, tanta dor!
Se a sorte ainda a traz à terra amiga,
Macilenta, tristonha, depaup’rada,
Com a doença do sono, já minada,
Ao cemitério um só coval mendiga!
Mas porque ides, assim arrebanhada,
A essa maldita terra de desterro?
É a fome que vos leva acorrentada?
Aproveitai melhor a mocidade
E ide mais distante, ide à América
A terra do trabalho e liberdade!
Orion (TPOLP, p. 38, grifos nossos)
O soneto acima parece duplicar no subtítulo explicativo a marca do sofrimento
de quem parte para as ilhas “de desterro”: “A propósito da emigração para S. Tomé e
Príncipe”. Neste sentido, o eu lírico quer chamar a atenção para o malogro que era partir
para aquela colônia portuguesa, sede do trabalho “contratado”, do qual a maioria dos
cabo-verdianos, iludidos por promessas de sobrevivência e melhoria da qualidade de
vida, para fugir às secas frequentes e suas consequências, muitas vezes não retornavam
por morte ou retornavam para tratamento de saúde.
O primeiro quarteto revela que partir para São Tomé e Príncipe não é algo
alentador. O eu poemático enfatiza “Como é triste e é desolador/ Ver partir aos
magotes, esta gente” –, revelando um estado precário tanto em Cabo Verde quanto no
distante arquipélago produtor de café e cacau.
98
Novamente vemos neste poema o trabalho de Eugénio Tavares com o binômio
partida/regresso. No entanto, no soneto “Emigração”, o retorno pode significar a morte:
Se a sorte ainda a traz à terra amiga,
Macilenta, tristonha, depaup’rada,
Com a doença do sono, já minada,
Ao cemitério um só coval mendiga!
Na época do contrato, geralmente, quem conseguia voltar para Cabo Verde,
retornava em estado de penúria pior de que a da partida ou com doenças como a malária
ou a tuberculose. Desta forma, o retorno de São Tomé e Príncipe não condizia com o de
outros emigrantes que voltavam, principalmente, dos Estados Unidos da América,
trazendo consigo recursos financeiros significativos para o arquipélago. Por isso, o
poeta sugere ao receptor-modelo do texto, provavelmente cabo-verdiano, que, em caso
de necessidade, emigre para os Estados Unidos, onde poderá viver melhores dias na
“terra do trabalho e liberdade”.
Nos dois tercetos, enfatiza-se que os emigrantes partem para São Tomé e
Príncipe “aos magotes”, “arrebanhados” em consequência de uma política colonial que
não se interessava pelo bem-estar da população crioula, mas por sua força de trabalho
nas ilhas “da sujeição”.
Sobre esta estratégia do governo colonial e como ela é percebida pelos cabo-
verdianos, ressalta ainda António Carreira:
A ida do cabo-verdeano para as roças de S. Tomé e Príncipe foi
sempre considerada no arquipélago como uma deportação ou mais
propriamente uma condenação a degredo sem se ter cometido crime
algum. Tanto assim que o se dizia que alguém embarcou para S.
Tomé, mas que embarcou para o Sul”, alusão ao envio de
condenados de delitos comuns pelos Tribunais ordinários para
Angola, onde iam cumprir penas como era então corrente. Por outro
lado no consenso geral o “dar o nome” ao agente recrutador para a
efectivação do contrato de trabalho para S. Tomé, correspondia a uma
auto-condenação. Todos os indivíduos que se contratavam para o Sul
faziam-no atemorizados e pressionados pelas conseqüências das
estiagens ou quando se declarava o “estado de crise”. O contrato para
o Sul era o último recurso a lançar mão, uma vez reconhecida a
impossibilidade de emigrar para qualquer outro país. Não era apenas o
horror ao clima ou à dureza do trabalho nas roças. Era a certeza de não
se amealhar um pecúlio que justificasse o esforço despendido. O
salário era extremamente baixo, a alimentação nada condizente com
os hábitos do cabo-verdeano, e o tratamento mau (1984, p. 175).
99
Diante das calamidades vividas no arquipélago em períodos de longas
estiagens, causadoras de miséria, fome e migrações, muitos não encontravam outra
saída a não ser aceitar o “regime de contrato” para trabalhar nas roças de São Tomé e
Príncipe em troca de um salário de fome, contraindo dívidas que nunca conseguiriam
saldar. A menção do termo “arrebanhada”, no nono verso do soneto, pode ser
considerada ousada para a época e um enfrentamento de Eugénio Tavares ao governo
português. Por este motivo, o poeta muitas vezes fazia uso de pseudônimos, como
Orion, P. Direito, Ignotus, Tambor-mor, Jon di Mamai, Sysipho, entre outros.
João Lopes Filho, no que toca ao dilema entre emigrar e partir, esclarece:
Atormentado, principalmente pelas secas, impeditivas da prática
agrícola (o seu meio de subsistência fundamental), o cabo-verdiano
“embarca” na aventura da emigração, passando esta a significar (mais
do que a realização de um sonho) uma forma de sobrevivência. Apesar
de tudo, o cabo-verdiano prefere continuar no contexto sociocultural a que está
habituado, em vez de enfrentar o desconhecido da terra-longe (2007, p. 28).
No caso específico de Eugénio Tavares, o terra-longismo pode ser definido
conforme a proposição de Gabriel Mariano:
Em Eugénio Tavares, a contradição entre o querer ficar e o ter de
partir é superada pela idéia de que o essencial é adquirir a experiência
do regresso (isto é: da ressurreição), sendo que, para ganhar a
experiência do regresso, a partida (isto é: a morte) é o meio e a
condição indispensáveis. Aceita-se e atenua-se o sofrimento da partida
(isto é: da morte), porque sem ela não se atinge o fim almejado: a
ressurreição (isto é: o regresso).
Em Eugénio, a partida busca o tempo futuro; o tempo posterior à
morte, o tempo da ressurreição (1991, p. 138).
2.3 – O núcleo da problemática social cabo-verdiana e as estratégias de abordagem
esperamos
a solução urgente
dos nossos problemas
dos nossos dilemas
Jorge Barbosa
Não poderíamos deixar de mencionar que, na produção em língua portuguesa,
Eugénio Tavares desenvolve a sua veia político-social, como na produção em prosa,
especialmente no jornalismo. Além disso, vem à tona, em uma série de poemas, um
100
Eugénio Tavares satírico, que vai usar da poesia para criticar a sociedade da época,
expor as mazelas vividas pelo povo cabo-verdiano sob o jugo colonial e reivindicar
melhorias junto às autoridades governamentais. Para a realização desse tipo de poesia,
em que a crítica social aparece mais deliberadamente, por meio de estratégias como a
denúncia e o humor, o poeta adota o uso de pseudônimos.
No poema “A tarde”, o espaço geográfico cabo-verdiano começa a apresentar o
cenário das exposições críticas de Nhô Eugénio:
A tarde, melancólica, nevoenta,
Duma tristeza mansa, resignada,
Volta a banhar a terra amarelada,
Volta a azular a serra lenta e lenta.
A névoa infiltra-se, húmida, cinzenta,
No peito dos que sofrem, como espada
Que o vento – o espírito de mão gelada –
Desfere pela tarde pardacenta.
E o vento passa lamentosamente,
Passa ferindo o ar, cortando rente
As ilusões das almas sem ventura.
E as névoas semelhantes a mortalhas
Envolvem a minha alma em suas malhas,
Dentro da tarde feita sepultura.
(TPOLP, p. 25, grifos nossos)
A aridez (“terra amarelada”, “tarde pardacenta”) e o “vento [...] ferindo o ar”
evocam a paisagem semidesértica das ilhas, à qual o ultrarromantismo adiciona a
melancolia, a tristeza, o sofrimento anônimo, a desventura, com uma carga de
dramaticida degradativa que desemboca na “mortalha” e na “sepultura”.
O contexto colonial cabo-verdiano das grandes e frequentes secas
(documentadas por António Carreira desde o achamento das ilhas), agravado pela
incúria do governo luso, constitui o subtexto que opera a interlocução do poema.
António Carreira (1984), ao referir as crises de 1903-4, 1916-18, 1921-22,
1923-24, 1941-43, 1947-48, argumenta:
A pobreza natural das ilhas, todas elas dependentes de uma economia
agrícola com fraco suporte na criação de gado, agravada pela
persistente irregularidade das chuvas quando não por prolongadas
estiagens (umas com a duração de cinco anos, outras com a de dez e
101
mais), sujeita o cabo-verdeano a condições de vida extremamente
duras e difíceis (p. 159).
A poética de Eugénio Tavares, antecipando a saga dos Flagelados do Vento
Leste, tão fértil em textos literários em Cabo Verde, assim qualifica o povo crioulo:
Os Miseráveis
A Adriano de Faria
Trazei, ó pobres Mães esfarrapadas,
Ó Mães de emagrecidos, murchos seios,
Trazei à minha dor, aos meus anseios,
As vossas falas pálidas, veladas.
Ponde na minha fronte as mãos geladas,
Nos olhos meus, os vossos olhos cheios
De tristeza! voarão aos vãos receios
Como bando de corujas assustadas.
Os infelizes devem caminhar
De mãos unidas; pela noite em fora,
Uns aos outros se devem amparar:
O mal que nos esmaga e nos dessora,
Se a um só despedaça sem demora,
A muitos é mais leve de arrastar.
(TPOLP, p. 34).
As Mães, maiúsculas representantes da terra cabo-verdiana, apresentam-se
“esfarrapadas”, com “murchos seios” que não alimentam os filhos “emagrecidos”,
semimortas (“mãos geladas”), habitando um cenário lúgubre e noturno de “tristeza”,
“dor” e “corujas assustadas”, no melhor do estilo ultrarromântico.
O apelo católico à Nossa Senhora das Dores (também Mãe), denominada
Nossa Senhora d’Outubro porque este é o mês das chuvas em Cabo Verde, caberia com
justeza num contexto de estiagem e fome na “terra nua e fulva” do “vento leste”:
Nossa Senhora d’Outubro
(Ao meu amigo o ex
mo
. e rev
mo
. Cónego André Firmino)
Ó Nossa Senhora do bom mês d’Outubro!
Eu me ajoelho ao pé do vosso altar de Dores
Bem como ante esse outro, que cobris de flores,
Na montanha azul, eu me curvo e descubro.
102
Hoje faz um ano, que na vossa festa
Andavam bem tristes tantos corações!
Quem te visse, ó terra, nua, fulva e mesta,
Qual sentisse mágoas n’alma e aflições.
A fome assentava-se nos lares frios;
Ceifava Esperanças pelo prado a peste;
Incendiando a seara o ígneo vento leste
No futuro, abria boqueirões sombrios.
Mas faz hoje um ano, ó celestial Senhora,
Não faltaram flores, nem fiéis, nem cantos;
Então, quantos tristes ocultavam prantos!
Quanta noite negra feita rósea aurora!
Mas havia fome, mas havia estiagem,
Requeimando o leito verde das ribeiras;
Estava frio, morto, o fogo das lareiras;
A pedir mais graça: mais pia a romagem.
Este ano que há flores, tantas pelos prados,
Eu não vejo lírios no altar da Senhora!
Foi-se a noite feia, vem rompendo a aurora;
Por sobre campos por Deus abençoados.
Vão-se os sonhos negros, vão-se escorraçados;
Mas hoje na vossa igreja não descubro
Alegrias, flores, fiéis ajoelhados,
Rendendo-vos graças, Senhora d’Outubro!
(TPOLP, pp. 77-78, grifos nossos)
Contudo, neste poema, o eu lírico adverte os compatriotas, pois que, neste ano
de chuvas ou azáguas (“Este ano que flores, tantas pelos prados”), o cabo-verdiano
esqueceu de homenagear a santa. o faz, como um ano atrás, quando a chuva não
vem: “Mas hoje na vossa igreja não descubro/ Alegrias, flores, fiéis ajoelhados,/
Rendendo-vos graças, Senhora d’Outubro!”
Além da problemática econômica e social relacionada à seca, Eugénio Tavares
denuncia o descaso das autoridades coloniais com elementos indispensáveis da infra-
estrutura do cotidiano das populações, que afetam a sua qualidade de vida. Reportermo-
nos ao capítulo 1, em que, em textos de intervenção (em prosa), Eugénio trata com
veemência o assunto e interpela as autoridades, propondo a exploração de nascentes,
sistemas de irrigação e arborização: “Não entraram inda V. Exas. Na convicção de que a
calamidade pública da fome deve ser atacada nas suas causas? (TVTCP, p. 275).
O fornecimento de energia e de saneamento básico são também temas
frequentes dos poemas eugenianos em língua portuguesa, como se estes constituíssem
103
peças de denúncia endereçadas diretamente aos administradores, que entendiam
plenamente a língua lusa, não dominada pela maioria da população crioula.
Luz e Flores
O aroma das flores, sua fragrância
e a luz a realçar-lhe as belas cores,
casam-se como o idílio d’amores; –
alegram os adultos e a infância.
A nova comissão municipal,
promete-nos mais luz e uns jardins,
com um quiosque envolto por jardins,
na praça da cidade, a principal.
Mas para que tal melhoramento,
os benefícios possam resultar,
é preciso fazer encanamento,
de matérias um tanto mal cheirosas
qu’espalhadas de noite pelo ar,
não se ligam à fragrância das rosas.
Orion (TPOLP, p. 39, grifos nossos)
A linguagem poética e romântica da primeira estrofe, em contraste com o
discurso referencial-informativo das duas seguintes, evidencia a proposta irônica do
poeta, que cobra das autoridades as providências necessárias prometidas. O último
terceto do soneto, desmentindo a proposta da primeira quadra, evidencia o desleixo do
colonizador com relação à situação do arquipélago.
No poema seguinte, o tema se aprofunda:
O mistifório ou, por outra, a mistura
de líquidos – gases heterogêneos,
é igual à junção de dois maus génios,
e por isso, em geral, se não atura.
Os mui dignos senhores vereadores,
acabado o contrato com a lua,
experimentam iluminar a rua,
com lamparinas, mas de duas cores.
O petróleo de cor amarelada,
com o azul que dá o carboreto,
não se casam nem juntam mesmo nada.
Ou bem que fique só o petroline,
ou haja somente o acetilene,
mas coisa que se veja, ilumine!
Orion (TPOLP, p. 40, grifos nossos)
104
A iluminação e o sistema de esgoto continuam na pauta da pena virulenta de
Nhô Tatai (Eugénio), e o humor é a estratégia escolhida para a crítica: os “gases
heterogêneos” rimam com “maus gênios” e os vereadores se dignam a experimentar, ao
invés de resolver os problemas. No último terceto, enfático e exclamativo, podemos
resgatar a indignação do intelectual frente à situação apresentada.
O poema a seguir descreve o auge do descaso e a ausência de amparo que a
população pode esperar dos governantes:
Já não temos mais para onde apelar,
agora completou-se a escuridão!
Não há vestígio d’iluminação,
a não ser um ténue raio de luar.
Eu estoiro numa forte gargalhada!
Acabou-se até mesmo o carboreto!
Já para nada serve um bom soneto,
temos de lançar mão duma espingarda;
ou então visto a lua andar mais clara,
parece-me seria mais sumário,
atirar-lhe quatro ganchos à cara,
quando ela vai a encher no outro mês,
suprimir-se-lhe um quarto ao calendário
e ficar assim cheia duma vez!
Orion (TPOLP, p. 41, grifos nossos)
A lua, um signo romântico, e o soneto, forma poética consagrada, funcionam
aqui como base para a sátira de Eugénio à problemática da iluminação pública, não
resolvida. A resistência se configura no verso “temos de lançar mão duma
espingarda”. Ridendo castigat mores, ridendo dicere severum
20
. Por meio do humor,
Eugénio Tavares demonstra sua insatisfação com o governo colonial e cobra soluções.
Na linha deste poema, Eugénio ainda presenteia o leitor com outro soneto em
que a retórica poética romântica dará suporte a uma abordagem humorística de temas do
cotidiano das ilhas:
Há tempos onde se venera a luz,
povos que o sol, o astro-rei, namoram;
avezinhas o claro dia adoram,
se o céu espalha claridade a flux!
20
Com o riso castigam-se os costumes, com o riso diz-se coisas sérias.
105
A abelha zumbe quando nasce o sol;
a mariposa gira com amor,
em espiral por sobre o caule da flor,
mal aparece além o arrebol.
Se pois a luz a tudo alegra e encanta,
desde o homem até ao animal,
desde pequeno insecto até à planta,
porque é – perguntaremos nós então –
que a nossa comissão municipal
nos dá aqui tão negra escuridão?
Orion (TPOLP, p. 42, grifos nossos)
O diminutivo (“avezinhas”), os chavões lírico-amorosos (“a mariposa gira com
amor”,/ em espiral por sobre o caule da flor”, “a abelha zumbe quando nasce o sol”), o
vocabulário erudito (“flux”, “arrebol”), são elementos ultrarrromânticos aqui
manipulados, nas três primeiras estrofes, para provocar o choque do leitor com o último
terceto, de denúncia da incúria da comissão municipal. O artifício, extremamente
moderno, é utilizado, por exemplo, por Manuel Bandeira no poema “Satélite”, em que
descontextualiza (ou “desconsteliza”
21
, como designação de Haroldo de Campos) o
astro romântico e joga-o para o campo do cotidiano referencial.
Seguindo a mesma estratégia de ironizar os tópicos românticos, o poeta retoma
o último terceto do poema anterior e, num metapoema, promete disparar uma série de
sonetos sobre o tema em pauta (a iluminação pública), em tom de ameaça:
Com vista à comissão municipal
se a lua, bela luz já não espalha,
por não ter combustível na fornalha,
e não poder remediar o mal; –
Se o novo acetilene envelheceu
e nos dá fraca luz com estampidos,
de rebentar o sangue dos ouvidos;
se tudo pois assim ensandeceu; –
manda-se, desde já, à fava a lua;
acabe-se de vez o carboreto,
e seja também mandado à tábua;
21
BANDEIRA, Manuel (1963), p. 6. Poema “Satélite”: Fim de tarde./ No céu plúmbeo/ A Lua
baça/Paira/Muito cosmograficamente/ Satélite.// Desmetaforizada,/ Desmitificada,/ Despojada do velho
segredo de melancolia,/ Não é agora o golfão de cismas,/ O astro dos loucos e dos enamorados./ Mas tão-
somente/Satélite.// Ah Lua deste fim de tarde,/ Demissionária de atribuições românticas,/ Sem show para
as disponibilidades sentimentais!// Fatigado de mais-valia,/ Gosto de ti assim:/ Coisa em si,/ - Satélite.
Conferir ainda CAMPOS, Haroldo. “Bandeira, o desconstelizador”. In:
Metalinguagem
, 1967, p. 102.
106
venha o petróleo em lampiões d’espeto
para sem uma luz ficar a rua,
senão ainda prometo outro soneto.
Orion (TPOLP, p. 41, grifos nossos)
A lua, astro protetor dos amantes, é mandada à fava”, juntamente com os
novos materiais usados para iluminação o acetileno, que “envelheceu”, e o “carboreto
[...] mandado à tábua”; de acordo com a lógica “ensandecida” constatada no espaço da
colônia pelo eu lírico, a solução é inverter o tempo e voltar ao antigo método: os
lampiões de petróleo.
Por fim, cansado de exigir soluções para os mesmos problemas, o poeta resolve
conceder-se uma pausa para aproveitar a luz natural da lua e também o período de
carnaval. Na verdade, Eugénio Tavares opera uma carnavalização, lembrando Bakhtin,
de um tema social e infraestrutural sério, assim como insere o astro tão caro aos
ambientes românticos num espaço dionisíaco (Baco).
Um compasso de espera não faz mal!
Não falemos em luz esta semana,
Que tempo sobrará para a pavana!
Queremos também descanso semanal!
E depois estes dias a lua
tem dado bela luz e tão brilhante,
que nos faz esquecer, por um instante
as trevas em que anda sempre a rua.
Fazemos por aqui ponto final,
e para assunto algo intrigado,
visto estar a entrar o carnaval,
pedimos um cantinho reservado,
no próximo número do jornal,
para soneto mais ponderado.
Orion (TPOLP, p. 42, grifos nossos)
O último terceto, metapoético, mas irônico, permite-nos constatar a
modernidade das estratégias empregadas, no início do século XX, por Eugénio Tavares,
como já o assinalávamos a respeito da semelhança com o artifício bandeiriano da
desconstelização.
O poema “Pelo Carnaval” parece complementar o anterior, tanto no tema, o
Carnaval, quanto na linguagem humorística e dionisíaca (“vassouras, um bidé
107
escangalhado [...] gases d’algum vaso reservado” e intenção metapoética (“Aí tendes,
em verso pé-quebrado,/ soneto feito todo aos trambolhões!”:
Ressalte-se que o Carnaval de Cabo Verde, sobretudo o da ilha de S. Vicente,
dialoga com o carnaval brasileiro, que toma por modelo.
Pelo Carnaval
Pó de arroz, dominós e serpentinas,
Cocotes, rebuçados e besouros,
Estalos, estalinhos e estouros,
Chapéus e capacetes, barretinas;
repolhos com bugalhos e nabiças,
leques, lenços, abanos, abanicos;
craveiros, malmequeres e manjericos,
escravelhos e cordas com adriças;
vassouras, um bidé escangalhado,
baldes, com frigideiras, caldeirões,
gases d’algum vaso reservado;
pevides, melancias e melões!
Aí tendes, em verso pé-quebrado,
soneto feito todo aos trambolhões!
Orion (TPOLP, p. 40)
Ainda na linha da crítica aos problemas urbanos, como iluminação e
saneamento, Eugénio chega a satirizar até o funcionamento do relógio municipal:
O Relógio Oficial
Foi atacado de dispepsia
o velho relógio municipal.
A doença, porém, não é mortal,
mas vai recolher à enfermaria.
Não funcionava bem o mecanismo
por ter já alguns dentes estragados,
para salvar de todo o mecanismo.
O mal não há-de ser de muita dura,
e visto termos cá tanto dentista
algum lhe mudará a dentadura.
E depois o relógio, já curado,
passa a dar-nos a hora, bem prevista,
luzidio, limpinho, envernizado!
Orion (TPOLP, p. 38)
108
O soneto, forma fixa geralmente utilizada para abordar assuntos graves ou do
campo filosófico, na obra poética de Eugénio Tavares serve a propósitos outros, sob o
signo de uma carnavalização que pretende demonstrar todo o desleixo das autoridades
em relação a problemas do cotidiano em Cabo Verde. De forma bem humorada, o poeta
trabalha com o termo “dentes estragados” em diversos sentidos, aludindo ainda a
questões de saúde pública: os dentes do relógio, por estarem estragados, atrapalham o
funcionamento da máquina “oficial”, que aqui pode representar o governo português/a
administração da colônia.
Observa-se também que os “dentes estragados” causam dispepsia, ou seja,
difículdade de digerir o “desgoverno” luso, queo resolve os problemas (“dentes
estragados”) do arquipélago, que poderiam ser solucionados pelos próprios cabo-
verdianos (“visto termos cá tanto dentista”).
Por ser um instrumento complexo de precisão, em que cada parte deve
funcionar em sintonia, o sistema está “doente(“Não funcionava bem o mecanismo”),
porque, em virtude da distância do governo metropolitano e do descaso, aquela não
acontece em teros de infraestrutura do arquipélago. Neste sentido, o poeta, de forma
sarcástica, pinça uma situação que parece insignificante para satirizar, em conjunto co
outras ocorrências, a inépcia dos responsáveis, a nível macro, pelas possíveis soluções
para a viabilidade da qualidade de vida nas ilhas.
Tomando o mote da “doença” em outro soneto, Eugénio criticará, por meio da
inversão de argumentos, uma tese bastante discutida em Cabo Verde, na época de sua
escritura, sobre a indolência do homem crioulo, dado aos exageros do grogue:
À mesa, um dia, estavam dois doutores
(desses que curam doenças, as piores,
Co’a vida o sofrimento arrefecendo)
sobre matérias graves discorrendo:
Tratava, um, de provar que os bebedores
crioulos, (brancos nunca!) iam perdendo
a mioleira, em virtude dos calores
que a pinga neles vai desenvolvendo...
– Homem, não digas isso! – replicava
o outro doutor ardendo em fúria brava,
se toda essa manada de crioulos
desprovida estivesse de miolos
quem nos fabricaria, hoje, essa cana
que divina parece mais que humana?
Dic (TPOLP, p. 43)
109
O soneto, que indica na sua primeira quadra tratar de assunto “grave”, na
verdade, retoma o tema da embriaguês, frequente, sobretudo na ilha de Santo Antão,
sede da fabricação do grogue ou “pinga” cabo-verdiana. Eugénio Tavares, não
concordando com a pecha de indolência e
bebedeira
imputada ao homem cabo-verdiano
– posicionamento explícito no texto jornalístico “Os indígenas de Cabo Verde são
desleixados, indolentes e bêbados?” (TPJ, p. 106), no qual fazia a defesa dos seus
compatriotas face aos juízos de valor feitos pelos europeus coloca teatralmente dois
doutores, provavelmente brancos e colonialistas, discutindo o assunto.
O preconceito fica patente, tanto na afirmação enfática de que somente os
crioulos bebem e “perdem a mioleira” (“brancos nunca!”) e pelo (des)qualificativo
“manada”, atribuído aos cabo-verdianos, desta forma animalizados.
O último terceto, no entanto, acaba por valorizar a produção humana do
cidadão crioulo que fabrica o grogue, adjetivando o resultado de seu trabalho como
“cana que divina parece mais que humana”. Assim, está provado que os crioulos
conservam os seus “miolos”, em oposição ao exposto na segunda quadra, e a situação
exposta provavelmente evoca a importância da produção do grogue no cenário do
arquipélago, como um dos elementos da cultura e da economia.
A distribuição da população cabo-verdiana por gênero é também ironizada por
Nhô Tatai. No período colonial, o aumento do número de mulheres com relação ao dos
homens agravou-se devido à emigração masculina em busca de sobrevivência das
famílias. Observemos como Eugénio Tavares trata o assunto na ilha Brava:
Há nove mil robustos habitantes
Na nossa Ilha. Desses tantos seres
Se vê que mais de seis mil são mulheres,
Sendo varões só os três mil restantes.
Desses três mil só dois são celebrantes;
Dando-se que, para cumprir deveres
Do bíblico crescei, e mais misteres,
Não há, de modo algum, homens bastantes!
Uma sala de baile, a Brava! À roda,
Se sentam mais de cinco mil madamas
Que a dança atrai, os corações em chamas.
Se cada dama não ceder seu par
(Como se sabe que é de lei, e é moda)
Três mil mulheres ficam sem dançar!
(TPOLP, p. 43, grifos nossos)
110
Segundo os argumentos de Nhô Eugénio, a monogamia não pode ser
dominante em Cabo Verde, para que a “dança” do “crescei e multiplicai-vos” possa ser
executada. O poeta desloca a palavra bíblica deslocada para um contexto pagão,
profano, que foge totalmente aos princípios católicos. O baile cabo-verdiano e a música
constituirão as metáforas responsáveis pela erotização da cena e da ilha (“Uma sala de
baile, a Brava!”).
Por outro lado, alguns poemas deixam entrever uma visão androcêntrica das
condutas femininas, marcando-as com a possibilidade de traição, a “perdição” e, por
vezes, com a punição moralizante do adultério por meio da morte.
O longo poema “O Pescador”, de estrutura narrativa, acompanha a trajetória
daquela personagem do paraíso ao inferno, em correlação à trajetória da esposa, do lar
honrado à lama e ao “lodo”, que também será referido no poema “Perdida”.
O Pescador
Ao primeiro clarim dos galos, ia
Lançar ao mar a barca que pousava
Na praia. E sobre as águas da baía,
Silencioso e forte, deslizava.
Dobrava a ponta, ao longe, que, estendida
Pelo mar dentro, em sombras, negra e enorme,
Lembrava uma cabeça enegrecida
De crocodilo, monstruosa, informe
E pairando, depois, na bruma, ao largo,
Lançava as linhas na água acinzetada,
Diante da ilha, imóvel, no letargo
Plutónico da terra resfriada.
Pescava imenso tempo à fraca luz
Das estrelas trementes sobre as águas:
Lá em baixo o farol furava, a flux,
A noite, erecto e firme, sobre as fráguas.
Clareava pouco a pouco o céu em frente.
No mar chapeava, em cauda de cometa,
O primeiro sorriso alvinitente
Da aurora a escorrer oiro e violeta.
Então, de sobre o mar, a barca arfando,
E o pescador à popa debruçado,
Eram uma só mancha negrejando
No frio amanhecer acinzentado.
111
Ao repontar o sol, puxava a barca.
Mandava o peixe, em cestas, a vender,
E, mais feliz que um bispo, ou que um monarca,
Repousava, cumprido o seu dever.
Mantinha assim a prole e a companheira
Num trilho de honra, o mais nobre dos trilhos,
Passando a vida, numa verdadeira
Noção do bem, entre a mulher e os filhos.
Nos dias de descanso repousava
De sobre a praia, à sombra da cidade,
Rodeado da família; e então lhe dava
Novo vigor e sã felicidade.
Mas uma madrugada, de repente,
Seu sorriso se cava em contracção
De sofrimento amargo. E docemente,
Curvou a fronte escura para o chão.
Sonhou, ou viu, qualquer coisa tremenda
Que lhe abismou o espírito na dor.
E entrou, de então, na sua pobre tenda,
A suspeita, com todo o seu horror.
Viu a mulher sorrir não sei a quem...
Depois, ouviu-a, em sonhos, num gemido,
Lançar à lama a auréola de mãe,
Cobrir de lodo a honra do marido.
Então o pescador suspende a luta.
Contempla, triste, a ruína da sua alma,
E numa dor serena e resoluta,
Desce à morte moral em fria calma.
Fugir, na sua barca, e nunca mais
Voltar à riba em que fizera o ninho?...
Ou regressar aos páramos glaciais
Do túrbido Não-Ser?... Torcer caminho,
Pôr fogo a esse seu ninho desfeito
Fazendo do ódio e da paixão rastilhos,
Era tirar o incêndio do seu peito,
E lançá-lo na vida de seus filhos.
E foi assim que o triste condenou-se
À formidável dor, à dor pungente
De uma existência cruciante e doce,
Morrendo pouco a pouco, estoicamente,
Mártir do amor, coroado de espinhos,
Sofrendo qual jamais sofreu alguém,
Só para não deixar os seus filhinhos
Sem o amor de sua triste mãe.
112
Repara, minha filha: um paraíso
Era a choça do pobre pescador;
Para a tornar inferno, um só sorriso
Bastou, numa ilusão falaz de amor!
(TPOLP, pp. 47-49, grifos nossos)
Este poema, composto em quadras e por enjambements que articulam os versos
com leveza imprimindo-lhes um ritmo prosaico, mistura, contudo, ressonâncias da
poesia ultrarromântica a situações trágicas.
O título é o leitmotiv a partir do qual se desenvolve a história, a princípio em
ambiência serena, própria da felicidade dos simples, tão decantada na poesia romântica.
Assim, se a descrição da natureza e das ações do pescador evoca a vida simples
de um homem que se lança ao mar para buscar o sustento de sua família, ela serve para
construir paralelamente um cenário paradisíaco que será pouco a pouco desconstruído.
A imagem do crocodilo, a “cabeça enegrecida”, “monstruosa, informe”, na segunda
estrofe, indicia o conflito que se desenrolará e o desfecho trágico da história.
Podemos observar o contraste entre a paz anterior (“mais feliz que um bispo,
ou que um monarca,/ Repousava, cumprido o seu dever”; “Rodeado da família; e então
lhe dava/ Novo vigor e felicidade”, exposta ao longo das nove quadras iniciais, e a
ruptura desse estado (“Mas) na décima quadra. Dividido em duas partes, a tese e a
antítese, o poema descreve a queda ao inferno, nas nove últimas quadras, do pescador
abatido pela suspeita (“Sonhou, ou viu”, “ouviu”) a respeito da fidelidade da esposa.
A tragédia do pescador reside no dilema entre “fugir na sua barca”, morrer
(“regressar aos páramos glaciais/ Do túrbido Não-Ser”, matar a esposa e os filhos (“Pôr
fogo a esse seu ninho desfeito”) ou permanecer em estado de “morte moral”, “morrendo
pouco a pouco, estoicamente”, como “mártir do amor, coroado de espinhos/ Só para não
deixar os seus filhinhos/ Sem o amor de sua triste mãe”.
Enquanto o homem deseja vingança, o pai é obrigado, pelos próprios princípios
morais e pela própria consciência, a abandonar seus possíveis projetos de reparação para
conceder uma vida correta e normal aos filhos que continuarão amando a mãe.
O “contador de estórias”, que se revela na última estrofe, parece se um pai que
transmite uma lição à sua filha: a de como deve se conduzir uma mulher honrada.
Repara, minha filha: um paraíso
Era a choça do pobre pescador;
Para a tornar inferno, um só sorriso
Bastou, numa ilusão falaz de amor!
113
O poema encena uma situação de oralidade, mas sua linguagem de constrastes,
de exageros, desembocando num clima soturno e numa moral burguesa maniqueísta
remete o leitor a ecos do estilo ultrarromântico luso de, por exemplo, amores de
perdição e salvação.
O poema “Perdida”, com estrutura semelhante, parte de uma circunstância de
alegria para a decadência dos bordéis: a personagem feminina transita de “anjo” a
“cabra”, “perdida” nos bordéis”, “de taberna em taberna”:
Perdida!
Recordas-te daquela rapariga
Tão doida, mas tão linda, que bebia,
Dando-lhe o vinho alegre p’ra a cantiga,
Trinando pelas ruas todo o dia?
Talvez nem já te lembres! Muitas vezes
O exemplo te mostrei dessa infeliz;
E escutavas as minhas catequeses
De moral, sacudida em frenesis!
E quando me dizias: – Ali vai
A inditosa feliz! Não tem cuidados!
Não tem carrasco! Não tem mãe, nem pai!
Nem traz prantos nos olhos deslumbrados! –
Eu quase sempre, então, te respondia
Com palavras serenas mas amargas,
Mostrando-te o abismo que rugia,
Sob os passos da triste, ameaças largas:
– Vendo-a passar a rir e a gargantear,
Braços erguidos, a dançar na rua,
Não podes, de certeza, adivinhar
O sofrimento que em sua alma estua!
O mal do amor é um medonho abismo,
Que atrai as almas, que as empolga e arrasta.
A morte, às vezes, vence o fatalismo
Do amor, e dele as vítimas afasta.
Criou-se essa pequena no regaço
De uma família honesta. Um sedutor
Levou-a, um dia, a escorregar um passo,
E deu nisto que tu estás vendo, flor!
Ante-manhã levanta-se e mergulha
O corpo pálido nas águas vivas
Do mar. Depois parece uma faúlha
Incendiando alegrias explosivas
114
De gargalhadas francas, retinentes,
Pelo mercado, e pelas ruas claras,
Junto de outras perdidas, inconscientes
Que Amor também imola em suas aras.
Adora a viola, o vinho e a laranja...
Os marinheiros acham-na adorável...
De taberna em taberna é que ela arranha
A comoção que a faz insaciável...
Uma vez um polícia insulta-a: – Cabra! –
Ergueu altiva a fina perna nua,
Vibrou-lhe um estalo sobre a face glabra:
– Vês-me na testa o que trazes na tua? –
Depois, foi um horror! Chegaram mais
Soldados furiosos. Foi levada,
Para a prisão, de rastos, desde o cais,
Ensangüentando as pedras da calçada!
Hora depois, abriam-lhe a gaiola,
E voava, de novo, em liberdade,
Cantando alegremente ao som da viola,
Pelas ruas e praças da cidade.
Pois filha, essa infeliz já não existe.
Ontem seguiu, no esquife do Hospital,
Imóvel, lívida, despojo triste,
A apodrecer no seu ninho final!
Não mais canta a garganta cristalina!
Não mais comove a dor dos seus olhares!
Tornou-se lodo! Aí tens tu a sina
Dos lírios ideais dos lupanares!
Não é melhor um lar honesto e pobre?
Um carrasco brutal? Filhos? Canseiras?
O frio, a fome e a dor? Não é mais nobre
Leite nos seios? Palidez? Olheiras?
Os vestidos de seda são tão caros,
Oh! pobres vítimas vindas do nada!...
E os homens, os mais deles, tão avaros,
Duma perversidade insaciada!...
Milagres tem às vezes feito o amor
Desatolando os anjos dos bordeis...
Mas isso é muito raro... Minha flor,
O egoísmo humano não conhece leis...
(TPOLP, pp. 49-51, grifos nossos)
Na primeira estrofe, a linda rapariga, que “criou-se [...] no regaço/ De uma
família honesta”, é apresentada num espaço dionisíaco (“bebia”, “vinho”, “cantiga”),
115
como um exemplo” reprovado (“doida”), na segunda e na terceira estrofes, por um eu
lírico moralizante que dialoga com um receptor feminino (“e escutavas as minhas
catequeses/ De moral”, “E deu nisto que tu estás vendo, flor!”) e antecipa o final
desfavorável da protagonista (“infeliz”, “sacudida em frenesis”, “inditosa”, “Não tem
cuidados!/ [...] Não tem mãe, nem pai!”. Se lembrarmos do poema anterior, o pescador
não mata a esposa para que seus filhos tenham pais e, provavelmente, não precisem
trilhar os mesmo caminhos da “perdida”.
Neste poema, “Perdida”, o leitmotiv é a rapariga linda e aventureira e a moral
androcêntrica se repete, num trágico desfecho: “Um sedutor/ Levou-a, um dia, a
escorregar um passo [...]”. A sensualidade, metaforizada na dança, como no poema
anteriormente examinado, significa a “perdição” para a mulher (“Braços erguidos, a
dançar na rua”). Gradativamente, seu comportamento a leva à morte:
Foi levada,
Para a prisão, de rastos, desde o cais,
Ensangüentando as pedras da calçada!
[...]
Pois filha, essa infeliz já não existe.
Ontem seguiu, no esquife do Hospital,
Imóvel, lívida, despojo triste,
A apodrecer no seu ninho final!
Não mais canta a garganta cristalina!
Não mais comove a dor dos seus olhares!
Tornou-se lodo! Aí tens tu a sina
Dos lírios ideais dos lupanares!
[...]
Oh! pobres vítimas vindas do nada!...”
A opção para “desatolar estes anjos dos bordéis” será proposta na décima sexta
estrofe: a vida familiar, mesmo que sob o jugo de um marido violento:
Não é melhor um lar honesto e pobre?
Um carrasco brutal? Filhos? Canseiras?
O frio, a fome e a dor? Não é mais nobre
Leite nos seios? Palidez? Olheiras?
Ao ingressar no espaços abertos das ruas, lugar público por excelência, e do
cais, tomado pela presença de marinheiros, viajantes e aventureiros, a mulher “perdida”
se opõe àquela que transita no espaço privado, a mulher e assexuada (“leite nos
116
seios”, “filhos”), habitante de um espaço “honesto” e “nobre”, mesmo que à força de
sacrifícios (“pobre”, “canseiras”, “frio”, “fome”, “dor”, “palidez”, “olheiras”).
Antilírico, esse poema, bem como o anterior, adota um estilo narrativo, em
“voz alta”, que faz o leitor saber, ao final, que é com uma filha ou uma mulher mais
nova, que necessita de exemplaridade, que se fala.
Naturalmente, o fim da perdida não tem nenhum ingrediente de alegria ou de
felicidade. No fechamento da história, na última estrofe, a sentença final não deixa
opção: é possível que uma moça “perdida”, vivendo num bordel, encontre o amor, um
“milagre” que a salve, “mas isso é muito raro”, afirma o poeta-narrador.
O poema “Noite de S. João”, também com um fio narrativo (“
Contava-se na
aldeia o triste caso”)
, evoca uma festa tradicional de Cabo Verde (“uma ardente noite de
S. João”) em que se dança sensualmente o Colá, e toma como exemplo outra “infeliz”,
antes “uma rapariga alegre e linda,/risonha e sã”, como no poema “Perdida”, que
“casara nova” (um “sonho infantil”
22
) e depois, em virtude da emigração masculina,
torna-se uma adúltera cheia de culpas:
Noite de S. João
Contava-se na aldeia o triste caso
Dessa infeliz que, repentinamente,
Morrera de alegria, num ocaso
De outono, à volta do marido ausente.
Era uma rapariga alegre e linda,
Risonha e sã como um bom sol de abril.
Casara nova, muito nova ainda,
Mal desperta do seu sonho infantil.
O marido embarcara muito cedo
A procurar fortuna sobre o mar,
Sem ver o mal que lhe espreitava, tredo,
Os sonhos de oiro e rosa do seu lar.
E dando ao gelo de uma longa ausência
O seu lugar no tálamo nupcial,
Sacrificava, na cruel demência
Da luta, a alma da esposa angelical.
Passou um ano intérmino e fremente,
Numa existência plúmbea de viúva;
Pranteavam mágoas mudas, vagamente,
Seus olhos doces como bagos de uva.
22
Considere-se que os casamentos precoces eram uma realidade no arquipélago até bem pouco tempo.
117
Mas ia à fonte, e vinha; trabalhava
Na lavra, pelos campos, como um homem;
E as esperanças de sua alma escrava,
Eram nuvens que passam e se somem.
Por uma ardente noite de S. João
As flechas de um olhar de amor, traiçoeiras
A trespassaram: foi-lhe o coração
Ardendo enquanto ardiam as fogueiras...
Depois sobrevieram dias quentes
Errando chamas de oiro pelo céu;
Penas das suas asas resplendentes:
Nuvens como retalhos de algum véu...
Em seguida, novembro: os céus toldados
Cerrando-se sombrios sobre a vida;
Raios de sol morrendo desmaiados,
Em amarguras de hora de partida...
As acácias perdendo toda a graça
Das rendilhadas franças verde-negras...
Soprando, o vento atroz que, quando passa,
Sem um abrigo deixa as toutinegras...
Iates regressando, no fim do ano,
Como bandadas claras de albatrozes,
Depois de atravessar o largo oceano,
Fechando as asas cândidas, velozes...
Um desses barcos lhe trouxera o ausente.
Quando ela soube, a nova fulminante
Apunhalou-lhe o coração doente,
Seu doce coração de esposa e amante...
Empalidece a fronte angustiada:
Gotejam pranto os olhos seus tristonhos;
Cobre-lhe a carne fria e torturada
O suor suplicante dos maus sonhos...
Quando chegou a hora de deitar,
Reconta, o recém-vindo, o seu naufrágio
Na noite de S. João: iroso o mar
Bramia em volta; e como um mau presságio,
Os dois faróis de bordo, de repente
O mar os arrancara! E pôs-se a crer,
Então, que nessa noite, certamente,
A vida, ou mais, talvez, ia perder...
– Eu estava ao leme. O barco sufocava
Nas vagas alterosas, espumantes.
Em volta, noite horrível se cerrava,
Soltos, na noite, os ventos ululantes.
118
Vi, num momento, um negro abismo aberto.
Ergui os olhos para os céus furiosos.
Pensei em ti. Ia morrer, decerto,
Sem ver a luz dos teus olhos formosos.
Depois, milagre! Vi-te lentamente,
Subindo ao céu, levada na bonança
Das tuas asas brancas, docemente,
Como a visão serena da esperança!
Pouco a pouco se foi no mar quebrando
A raiva dos tufões. No céu rasgou-se
O toldo frio e plúmbeo. Serenando,
Caíra o vento num soluço doce...
Mas, ai! novas suspeitas me assaltaram:
Vira-te em sonhos a subir ao céu...
Morta, talvez? Pesares me toldaram
Minhas saudades com um negro véu!
Mulher! Naquela noite de S. João,
Nas convulsões dos ares revoltados,
Foi teu amor, talvez, a salvação
Dos meus dias de morte ameaçados! –
*
Assim falou o infortunado esposo
Beijando a triste. Mas, nesse momento,
De miseranda o espírito lutuoso
Voou ao céu, num derradeiro alento!
Ai! dos que morrem! É mortalha fria,
O esquecimento, dos que a morte gela...
E a triste que morrera de alegria,
Nem o viúvo já se lembra dela!...
(TPOLP, p. 51-53, grifos nossos)
Em virtude da “longa ausência” do marido, na noite de S. João, “as flechas de
um olhar de amor, traiçoeiras/ A trespassaram: foi-lhe o coração/ Ardendo enquanto
ardiam as fogueiras”. Ao mesmo tempo, em superposição cinematográfica, a
“demência” da paixão consome a mulher e o marido naufraga em “iroso mar”.
Ironicamente, é a imagem da esposa amorosa que o anima a salvar-se:
Mulher! Naquela noite de S. João,
Nas convulsões dos ares revoltados,
Foi teu amor, talvez, a salvação
Dos meus dias de morte ameaçados!
119
O ambiente terrífico descrito no poema (“os céus toldados/ Cerrando-se
sombrios sobre a vida;/ Raios de sol morrendo desmaiados”, “o vento atroz”, “mau
presságio”, “Em volta, noite horrível se cerrava,/ Soltos, na noite, os ventos ululantes”)
alia-se à culminância, também ultrarromântica: no leito de morte da esposa o marido
desfia esta longa narrativa. No entanto, o esquecimento será a maior “punição” do
poeta-narrador à personagem esposa infiel: “Nem o viúvo já se lembra dela!”
Nestes três longos poemas de caráter exemplar, pode-se observar que a mulher
é considerada tima fatal do amor romântico, deixando-se embalar pelas ilusões e
colocando em desgraça a si mesma e aos seus. O risco de desmantelamento da família
que o seu comportamento pode provocar tem na moralidade dos poemas a mais cruel
das condenações; inscrita nos códigos sociais, que decreta a tristeza e o final sinistro
para as personagens femininas transgressoras.
A par das personagens femininas mal-sucedidas, Eugénio Tavares tematiza
ainda o amor que redime, na figura da “mulher feliz”, “honesta e mansa”. O lar, como
no poema “Perdida”, é de pobre e, como no poema “O pescador”, é “ninho”.
Ressureição
Entremos neste santo lar de pobre,
Em sombras rumorosas escondido:
(Sob este colmo idílico que o cobre,
Parece um ninho num rosal florido!)
Que vêem os ingênuos olhos teus?
Claridade de paz e de bondade;
O asseio, a ordem, e esse olhar de Deus
Doce e amorável da felicidade.
Crianças lindas como madrugadas;
Mulher feliz, mulher honesta e mansa,
Dona do olhar de deusas ou de fadas
Que na alma as tempestades abonança.
Mulheres de falas doces, olorosas,
(A flor das almas plácidas e justas!)
E cujas mãos divinas, milagrosas,
Fazem florir as landes mais adustas.
E de enxada na mão, cavando a terra
Para fazer brotar o pão e a flor
Nas veigas férteis do sopé da serra,
Rijo e fecundo, o bom trabalhador.
120
A filharada corre, brinca, salta!
Ágeis e lépidos, como cabritos
Sobem à crista mais audaz, mais alta,
Onde as águias se aninham nos granitos.
Aí tens tu a sã felicidade:
Colher o pão com o suor do rosto;
Viver e amar em paz, em liberdade
Desde que raia a aurora até sol posto.
Queres tu, porém, os dolorosos
Primeiros passos deste amor coroado?
Volve os teus olhos tristes e formosos
Para os escuros dias do passado:
*
Domingo. Meio dia. Esmorecida
Dormita a aldeia. O céu, em luz, esplende.
As plantas enlanguescem. Toda a vida
Amodorrada e frouxa se suspende.
Os milharais inclinam as bandeiras
Amortecidas das bafagens quentes
Que sopram deslocando, passageiras,
Os ares tórridos, incandescentes.
Entretanto a taberna regorgita;
São lavradores que, depois de missa,
Vêm espantar suspeitas de desdita
Na alegria do vinho esquecediça.
Uns bebem pouco; (e são, esses, tão poucos!)
Dos mais, a maioria não resiste
Bebendo o pão dos filhos como loucos,
Guardando nuvens num futuro triste.
Ao canto do balcão, um cavador,
Imberbe ainda, jaz uma agonia
De engulhos. Ai, tão novo, e já no horror
Do vício... A noite alonga-se, sombria...
Arrasta-se, sozinho, estrada fora,
Emurchecido como um cão vadio...
Órfão, jamais sorriu-lhe na alma a aurora...
Seu lar é um sepulcro negro e frio...
Escorrega; despenha-se; lá vai
Parar ao fundo escuro do valado...
A noite desce e gela... A chuva cai...
Ao longe o mar soluça, amargurado...
*
121
Raia a manhã. As lavadeiras passam
Descem a levantá-lo do lameiro.
Parecem avezinhas que esvoaçam
Em bando alegre, fervido, palreiro...
Uma, que entretanto o erguera, condoída
Falou às companheiras: – Faz-me dó
Pensar na triste e amargurada vida,
Sem mãe e sem irmãs, de um homem só!
Que faz um pobre que não tem alguém
Numa existência solitária, espessa?
Abraça o mal, e lança fora o bem...
Talvez até para morrer depressa. –
Encheram-se de lágrimas os olhos
Do triste cavador. Do seu viver
Os golfos abismais, cheios de escolhos
Sondou, então, numvido sofrer.
E suplicou: – Mulher, a tua mão!
Uma réstea de luz do sol sagrado
Do teu olhar angélico!... Ou senão,
Deixa-me aqui morrer abandonado...
*
Casaram, minha filha. E nesse dia,
No algar social brilhou mais um farol..,
Por cada lar feliz que o amor cria,
Acende Deus, no caos, mais um bom sol.
(TPOLP, pp. 56-58)
As estrofes segunda a quinta revelam os atributos desta mulher: paz, bondade,
asseio, ordem, olhar de Deus, de deusas ou de fadas, doce, amorável, mãos divinas,
milagrosas. Mas mãos que cavam a terra, mãos de trabalho.
A partir da nona estrofe, o poema faz um flashback e apresenta o seu futuro
marido, um jovem “imberbe”, salvo por ela de um “lameiro” onde o atirara o vício da
bebida:
Arrasta-se, sozinho, estrada fora,
Emurchecido como um cão vadio...
[...]
Escorrega; despenha-se; lá vai
Parar ao fundo escuro do valado...
[...]
Raia a manhã. As lavadeiras passam
Descem a levantá-lo do lameiro.
[...]
122
Falou às companheiras: – Faz-me dó
Pensar na triste e amargurada vida,
Sem mãe e sem irmãs, de um homem só!
Essa “angélica” mulher, de certa forma, constitui um exempla que redime as
“perdidas” enfocadas nos poemas anteriormente examinados. A última estrofe, na fala
de um narrador, estrutura que demonstramos funcionar como uma finda nos poemas
eugenianos de cunho moralizante, dirige-se a uma receptora que adentra, juntamente
com o poeta, aquele lar santificado, palco dos acontecimentos relatados:
Casaram, minha filha. E nesse dia,
No algar social brilhou mais um farol..,
Por cada lar feliz que o amor cria,
Acende Deus, no caos, mais um bom sol.
Para finalizar, queremos ressaltar um poema-homenagem ao escritor cabo-
verdiano Pedro Cardoso, contemporâneo de Eugénio no período nativista, que enfatiza,
em estilo ultrarromântico, os valores pátrios, a necessidade do combate e da revolução:
Hinos
I
A Pedro Cardoso
Revolução ou morte! eis o nosso dever.
A paz é, já, um crime; e morte infame, a vida.
E se havemos de, irmãos, um dia apodrecer
No ventre desta terra infausta, tão querida;
Se a Pátria santa ao mal temos que ver rendida,
Se a aurora do combate um dia há-de romper,
Se a lágrima, e o suor, e o sangue hão-de correr,
Avermelhando o mar e a terra envilecida;
E se hão-de um futuro incerto, derramá-los
Filhos do vosso amor, às mãos dos mercenários,
Pátria e filhos – irmãos! – tentemos nós salvá-los!
Morte ou Revolução: que não há cobardia
Que iguale a de legar a filhos os calvários
De nomes com brazões de lodo e vilania!
(TPOLP, p. 31)
Esta temática será mais desenvolvida na obra em prosa, especialmente a
jornalística, como já foi ressaltado no capítulo anterior, do que na obra poética.
123
2.4 – Núcleo da reflexão filosófica e religiosa
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Luís de Camões
Na trilha de um dos temas maneiristas da lírica camoniana que atingem uma
dimensão filosófica, o desconcerto do mundo”, Eugénio Tavares elabora um de seus
mais belos sonetos:
Ergueu-se o Mal sombrio contra mim:
Decorrem noites longas e sombrias;
Arrastam-se sem luz pesados dias;
Parece este suplício não ter fim!
Os maus passam a vida num jardim
Reflorescido em gozos e harmonias;
Enquanto as mais terríveis agonias
Os bons as sofrem, sem que um dia, enfim,
Vejam raiar na linha do horizonte
Alvor de paz, em jubileus augustos,
Que a inocência lhes lave e desafronte!
Certo é que Deus não quer outro laurel
Na fronte melancólica dos justos
Senão esse de espinhos e de fé!...
Praia, Dezembro de 1914 (TPOLP, p. 27, grifos nossos)
De mistura com uma linguagem ultrarromântica (povoada de melancolia,
noites sombrias), o pathos agônico maneirista do desengano e do desconcerto opõe os
gozos dos maus ao sofrimento dos bons, como no texto de Camões:
O DESCONCERTO DO MUNDO
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
124
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.
CAMÕES, 1994, p. 102
No poema eugeniano, no primeiro verso da segunda estrofe, o eu rico
manifesta sua indignação ao constatar que os maus “passam a vida num jardim”,
impunes, enquanto os bons colhem “as mais terríveis agonias”, sem que “na linha do
horizonte” (terceira estrofe) surja um sinal de paz que possa amenizar a sua angústia.
Se na primeira estrofe, o eu poemático ressalta a presença do “Mal”, das noites
longas e sombrias, a escuridão ou tristeza na ausência de “luz”; na terceira, evidencia o
desejo de ver “raiar” um “alvor de paz” em que possa celebrar a vitória da inocência
sobre a maldade, desafrontando-a.
O eu poético conclui o soneto afirmando que o “Certo é que Deus prefere uma
coroa de “espinhos e de fé” “na fronte melancólica dos justos”, ao invés de uma “coroa”
de glórias, sugerindo, desta forma, que os justos, de acordo com a tradição cristã,
precisam abandonar tudo o que é material, transitório, mundano, e passar por provações
para, enfim, merecer o “manjar de lutadores, galardão de vencedores esforçados”
23
como nos versos de Anchieta.
O poema que se segue continua a tematizar, por antítese, o desconcerto (e a
injustiça) do mundo, atribuindo ao eu poemático novamente a coroa de espinhos, signo
da paixão do Cristo crucificado, e a exibição de sua agonia em contraste com a alegria
dos “malvados”. Assim, o Bem e o Mal estão mal distribuídos no mundo pelo “destino”
(a moira grega, para a qual não há saída), como já propunha Luís de Camões.
Para os maneiristas, o mundo, como a vida, é encarado sob o prisma de um
exacerbado negativismo: é cruel, enganador; um lugar onde imperam a maldade, a
desgraça, o caos, os conflitos, a mentira, e onde o homem caminhará, sempre como
vítima de um inclemente calvário.
As queixas e críticas dos poetas maneiristas, mercê da reflexão sobre a
condição do homem em meio à inversão de valores em sociedades cujo mal era,
sobretudo, moral, a denúncia da desordem, da injustiça e da corrupção nas sociedades
23
Verso extraído do poema “Do Santíssimo Sacramento”, de José de Anchieta. Cf. MOISÉS, 1983, p.
18b.
125
do seu tempo, que Camões tão bem representou, serão aqui também encampadas pelo
poeta cabo-verdiano:
Alevantou-se a Sombra contra mim.
Como um sonho de morte, as noites frias
Envolvem e sufocam os meus dias
Em agonias álgidas, sem fim.
Foi um destino mau que o quis assim.
Aos malvados não faltam alegrias,
Enquanto as mais pungentes agonias
Os bons esmagam. Sem que um dia, enfim,
Vejam raiar na linha do horizonte
Alvor de paz em jubileus augustos
Que os lave da calúnia e os desafronte.
E que Deus recompensa assim os justos,
Nos ombros pondo-lhes pesada cruz,
E na cabeça a c’roa de Jesus.
(TPOLP, p. 27, grifos nossos)
O termo “calúnia”, é bom lembrar, certamente alude à situação biográfica pela
qual passou Eugénio Tavares, acusado de se apoderar de dinheiro público, um dos
motivos para o seu exílio e uma das estratégias usadas pelo governo colonial para retirar
da cena cabo-verdiana um feroz adversário.
No soneto abaixo, o eu lírico, também crucificado, mas agora pelo Amor, apela
a este Deus severo que “amenize a dura sorte” do amante e interceda, suavizando o
coração da mulher amada:
Oração
Ó Senhor Deus, que a todos nos lançaste
Neste mundo de dúvidas e dor!
Tu que fazes sorrir, pelo frescor
Da madrugada, os lírios sobre a haste;
Tu que recamas o cerúleo engaste
De fogos trémulos de eterno ardor;
Ouve-me tu, meu doce Criador,
Que em dura sorte me crucificaste:
Entre no coração da minha amada,
E mostra-lhe a tristeza que me mata,
Às mãos de uma saudade inconsolada!
126
Fala-lhe na alma! Dize a essa ingrata
Que a falta dos seus beijos já me traz
Sem um momento de repouso e paz!
(TPOLP, p. 28, grifos nossos)
Marcado pelo ultrarromantismo, o poema expressa um sofrimento exacerbado
e a desilusão por um amor não correspondido por parte da “ingrata” amada.
Avultam características de um romantismo tardio em Cabo Verde, como a
religiosidade (“Senhor Deus”), a natureza como cenário (“da madrugada, os lírios”), o
sentimentalismo e o sofrimento (“dor”, “tristeza”, “sem repouso e paz”), a “saudade”.
A distribuição do Bem, da Verdade e do Amor leva o eu lírico a,
finalmente, recusar a existência de um Deus cristão que demonstre indiferença ao
sofrimento dos justos e inocentes:
Deus
Dormes, Sombra enigmática? Repousas,
Anojado de ver o fero Mal
Cravar, impunemente, o seu punhal
No coração do homem? e não ousas
Desviar os teus olhos para as cousas
Que fermentam no fundo desse urzal
Da alma humana? Será, Deus eternal,
Esse teu sono o último, de lousas?
Sentes jorrar o sangue da inocência,
E vês correr as lágrimas dos tristes?
Não ouves o estertor da consciência
Estrangulada? Indiferente assistes
À acção feroz do crime? Omnipotência!
E teu sono é morte! Não existes!
(TPOLP, p. 17)
O soneto é composto por sete perguntas que vão do primeiro ao décimo
terceiro versos, em que a Sombra Onipotente é interpelada em estilo ultrarromântico; as
três exclamações, entre o décimo terceiro e o último versos do poema, acabam por
constatar, com indignação, a passividade de um Ente Supremo que deveria zelar pela
Justiça mundana e para Quem, consequentemente, a sentença deve ser a “morte”.
Pólos antitéticos, como a Verdade e a Mentira, compõem o mundo criado por
este Deus que parece não ouvir o clamor da dor humana:
127
A Mentira
(Suave é ao homem o pão
da mentira, mas depois
a sua boca se encherá
de pedrinhas de areia.)
– Prov. XX, 17
O golpe de ar mortal que sopra o Inferno!
Oh Mentira, venéfica serpente
Caminhando de rojo, eternamente,
Da corrupção no fermentar eterno!
Oh bandada de abutres sem governo!
Oh lodaçal rolando, já torrente,
Rio de pus, em cuja vasa ardente
Supura da Alma o Velho mal interno!
Vai arrastando sempre para a treva
O destino do homem sobre a terra!
Destrói o bem; apaga o sol; e leva
À sã virtude o pus da tua chaga!
Que todo o mal que o teu rancor encerra
A lágrima de Amor o lava e apaga!
(TPOLP, p. 29)
A Mentira nada tem a oferecer a não ser o mal. No poema, ela é comparada à
serpente, animal que, entre outros significados, no Antigo Testamento (conferir
epígrafe) é considerado impuro, ao ser vinculado à imagem original do pecado e de
Satanás, que se interpôs entre Adão e Eva, o primeiro casal humano no paraíso.
O substantivo “corrupção”, no terceiro verso, bem como “bandada de abutres
sem governo!” no quarto, “lodaçal rolando”, no quinto e “Rio de pus” no verso
seguinte, parecem sugerir o mal causado ao intelectual cabo-verdiano pelo sistema
colonial (“governo”), pois este arrasta à treva “o destino do homem” (décimo verso),
“destrói o bem” e “apaga o sol” (décimo primeiro verso).
Este símbolo de luz, de princípio vital e de cada recomeço, apresentado na
penúltima estrofe, pode, no entanto, ressurgir, segundo o fecho do poema: uma “lágrima
de Amor” é capaz de apagar, com sua pureza, a vilania da mentira.
Contrapondo-se à sordidez da mentira, sentimento que atormenta o homem
pela falsidade (e que atormentou a vida do poeta Eugénio Tavares), a Verdade é o mote
do poema seguinte:
128
A Verdade
Desce do céu a estrela radiosa
Da Verdade. Dir-se-ia uma Rainha
Que sai do seu palácio e se encaminha
A iluminar a Via Dolorosa.
Do verme ao homem, e da urze à rosa;
Da sorte mais feliz à mais mesquinha.
O seu olhar abraça e acarinha,
Como um olhar da Virgem Piedosa.
Nas alvas mãos, mais cândidas que o lírio,
Fulge o sinal dos cravos do martírio.
No peito, em que a Justiça Eterna vela,
Por cada golpe rompe uma alvorada.
Porque a Verdade torna-se mais bela
De cada vez que é crucificada.
Brava, 20 de Setembro de 1919 (TPOLP, p. 29)
Sempre associada à luz, a Verdade chega ao homem como uma “estrela
radiosa” que “desce do céu”, uma Rainha que “sai do seu palácio” para “iluminar a Via
Dolorosa” ou a “Virgem Piedosa” que “abraça e acarinha” o homem em seu “martírio”
sobre a terra.
A Verdade, consoladora, pode de início, associar-se ao sofrimento ou aos
“cravos do martírio”; todavia, irmã da Justiça, sempre prevalecerá e, por este motivo,
“torna-se mais bela/ De cada vez que é crucificada”.
O cravo, símbolo da Paixão de Cristo, aparece frequentemente nas
representações da Virgem Maria com o Menino Jesus. Imagem da redenção e da
ressurreição, alia-se no poema à alvura do lírio, que evoca a pureza da Verdade.
Retomando o exposto no capítulo 1, lembramos que Eugénio Tavares, na sua
produção jornalística, sempre posicionou-se a favor da verdade e da justiça: Verdade,
sempre verdade. Verdade a todo o transe. Verdade à custa da paz do meu lar, à custa do
bem dos que amo, à custa da minha própria felicidade. [...] Verdade mesmo acima de
Deus” (TPJ, p. 58).
Concluindo a abordagem da linha filosófica da produção eugeniana em língua
portuguesa, gostaríamos de ressaltar a leitura que o mestre cabo-verdiano realiza de um
célebre poema do português Antero de Quental:
129
A Morte
“Morte libertadora e inviolável”
Antero
A morte é uma grande benfeitora
Quem tem, de Deus, essa missão sagrada
De dar repouso à vida atribulada,
De dar a liberdade redentora:
Em seu regaço gélido, onde mora
A paz do não sofrer tão almejada,
Repousa a vaga essência desmaiada
Da dor da humanidade sofredora:
Sua mão regelada e piedosa,
Não é a inexorável mão escura
Que empunha a negra foice tenebrosa;
É nívea mão de amor e de ternura
Que ampara e guarda – eterna mãe bondosa –
Perpetuamente, as almas sem ventura.
Brava, 1890 (TPOLP, p. 16)
Tomando como epígrafe o último verso do poema de Antero, Eugénio insere o
tema da morte num contexto de religiosidade católica e no ambiente terrífico do mal-do-
século ultrarromântico (“regaço gélido”, “mão escura”, “negra foice tenebrosa”).
Contudo, o soneto caminha em sintonia com os epítetos anterianos de elogio da
morte (série de seis sonetos), encarada pelo poeta metafísico luso com uma filosofia
idealista, segundo esclarecimento de António Sérgio
24
: a morte é “liberatrix” (soneto
Mors liberatrix), “consoladora” (Beatrice), irmã do Amor e da Verdade (“Mors Amor”).
Observemos como se constrói o poema de Antero com o qual Eugénio dialoga
intertextualmente:
Que nome te darei, austera imagem,
Que aviso já num ângulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cansaço e do tédio da viagem?
Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recua apavorada...
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem...
Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos...
24
In. QUENTAL, Sonetos completos, p. 155. Nota de António Sérgio.
130
Dormirei no teu seio inalterável,
Na comunhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolável!
(QUENTAL, pp. 150-151, grifos nossos)
Em suma, na sua poética multifacetada em língua portuguesa, Eugénio Tavares
transita entre os temas e a retórica ultrarromânticos do idealismo amoroso e do mal-do-
século e, em simultâneo, ultrapassa esse estilo tardio em Cabo Verde herdado do
colonizador luso –, pelo humor e pela crítica; aprofunda-se ainda na problemática social
e política do arquipélago, denunciando o abandono a que administração colonial
reduzira as ilhas. Por fim, eleva suas reflexões aos assuntos filosófico-religiosos,
completando o traçado do painel do ideário cabo-verdiano de seu tempo.
CAPÍTULO III MORNAS CANTIGAS CRIOULAS: POESIA EM
LÍNGUA “SABE
25
[...] devemos sempre e sem receio escrever tudo quanto pensamos e sentimos da Morna.
F. Xavier da Cruz (B. Léza)
Pouco tempo antes de sua morte, incentivado pelo amigo e poeta português
José Osório de Oliveira, Eugénio Tavares (18/10/1867-01/06/1930) selecionou aquelas
que eram consideradas as suas mais belas composições em língua cabo-verdiana,
confiando ao amigo a edição e publicação da obra em Lisboa.
Com o intuito de dar maior relevo à ngua crioula, a seleção do autor deixou
de lado as composições escritas em português. Desta forma, em fevereiro de 1932, dois
anos após a morte de Eugénio, vem à tona a primeira edição de Mornas cantigas
crioulas, com tiragem de apenas vinte exemplares. Percebe-se, por este dado, o cenário
pouco favorável para o conhecimento e a difusão da literatura cabo-verdiana naquela
época. É de se observar também a dificuldade de publicação, daí talvez resulte a
justificativa de Eugénio para o pouco interesse em deixar a sua produção mornística
registrada em livro, sendo necessário o incentivo de um amigo para que tal acontecesse.
Esta primeira edição é composta por vinte e cinco (25) mornas e traz um
prefácio, em tom explicativo-profético, em que o autor busca mostrar o seu
entendimento sobre o fenômeno da morna. Num esforço de valorização da língua cabo-
verdiana, Eugénio insere, juntamente com a dedicatória ao poeta romântico português
João de Deus, a tradução para o crioulo do poema “A enjeitadinha”. É, ainda, digna de
nota a inserção de “Bárbara Escrava”, famoso poema de Luís de Camões, por quem o
bravense nutria grande admiração, traduzido para a língua crioula como “Barbara,
Bonita Scraba”.
Acreditamos que não seja demais a transcrição da dedicatória apresentada por
Eugénio Tavares, intitulada “Ao altíssimo espírito de João de Deus”:
Pois que o plectro de João de Deus, luzeiro do ibero lirismo, é a asa
das nossas inspirações, e é o fogo sagrado de nossos altares; dos que
cantam e dos que sofrem; dos que amam e dos que ardem no culto da
Raça glorificada na serena magestade do Génio; penso que, de mal,
poucos me alvejarão porque ouso abrir este pequeno florilégio de
25
Gostosa, deliciosa.
132
cantigas crioulas com a chave de oiro duma versão, no dialecto que se
fala nesta ilha Brava, da “Engetadinha” do grande lírico.
De joelhos sobre o moimento de João de Deus (menos para ser visto
que para me sentir no dever do meu culto), deponho este pobre rosário
de canções, que, em verdade, à secura do papel, pouco trazem do
aroma e da cor com que desabrocham, como um sangue vivo de
cravos e de rosas, nas bocas das raparigas da minha terra, que com
tanto amor – única honra minha – as decoram e cantam (TMCC, p, 25).
Julgamos necessário cotejar o poema original do romântico português à versão
crioula de Eugénio Tavares, para posteriores reflexões acerca de seu processo poético.
Engetadinha
(de João de Deus)
– Cusa é bo tem, nha fijinho?
– ‘N tem fome, a má’n tem friu.
– Mas, bô sô na es caminho,
Mâ passo sem sarrâ pena,
Que jâ escapâ de sê ninho!...
Nha fijo, bo ca tem Mai?
– Na nha bida’n ca conchel...
Desde que’n necê’n perdel...
Parecê’n ma’n ca temba Mai...
– Bô é mas feliz que mi,
Que temba de meu, e el morré...
(TMCC, p. 29).
A enjeitadinha
- Por que choras tu, anjinho?
“Tenho fome e tenho frio!”
- E só por esse caminho
Como a ave que caiu
Ainda implume do ninho!...
A tua mãe já não vive?
“Nunca a vi em minha vida;
Andei sempre assim perdida,
E mãe por certo não tive!”
- És mais feliz do que eu,
Que tive mãe e... morreu!
(João de Deus).
Consoante com o processo de formação da série literária cabo-verdiana, o texto
de Eugénio, ainda marcado pelo cânone literário do colonizador, transfere a
substância poética para o contexto crioulo, tomando como mote o tema da enjeitadinha
para dar voz à tradição oral (“canções”) preservada e propagada pelas raparigas
anônimas (e quem sabe enjeitadinhas) de Cabo Verde.
O poema romântico de João de Deus é construído em forma de diálogo, pode-
se dizer, entre duas tristezas, a do eu lírico e a da rapariga enjeitada, uma vez que ambas
lamentam a falta da mãe: uma, por tê-la perdido antes mesmo de conhecê-la e a outra,
após ter sentido o calor do amor materno, perde-a para a morte, julgando a sua dor
maior. Esta temática nos uma idéia de que a leitura de João de Deus por parte de
Eugénio Tavares possa ter contribuído para despertar no seu espírito de poeta uma
preocupação com o sofrimento alheio, o que ficará mais explícito na leitura de sua
produção jornalística e epistolar.
Mornas cantigas crioulas traz, ainda, um posfácio escrito por José Osório de
Oliveira, enfatizando a importância da obra de Eugénio Tavares no resgate da tradição
133
oral, patrimônio imaterial cabo-verdiano expresso em língua crioula. Nele encontramos
uma definição esclarecedora sobre a modalidade musical identitária de Cabo Verde:
Morna é o nome que designa, ao mesmo tempo, a dança e as canções
típicas de Cabo Verde. Ritmo do baile, palavras e música das canções,
são coisas inseparáveis. Não se trata, com efeito, duma dança
acompanhada de palavras como qualquer outra. O facto do povo de
Cabo Verde dançar a morna cantando (repare-se que não se trata duma
dança de roda), indica claramente, que, para ele, gestos, letra e
melodia são formas indistintas do mesmo ritmo interior. Nunca, com
efeito, a alma dum povo encontrou, tão perfeitamente, a sua
expressão, numa única manifestação de arte
26
. Cabo Verde não
tem, de facto, mesmo em estado rudimentar, artes plásticas ou
decorativas que caracterizem a sua gente. Quanto à literatura e à
música, todas as suas manifestações peculiares tomam a mesma
forma. Pode afirmar-se, portanto, que a morna resume em si todos os
sentimentos e condensa todas as aspirações artísticas dos
caboverdeanos (OLIVEIRA in: TMCC, p. 77, grifos nossos).
Com o objetivo de comemorar o 102º aniversário de nascimento de Eugénio
Tavares, em 1969, a Liga dos Amigos de Cabo Verde em Luanda publica a edição de
Mornas cantigas crioulas. Esta nova edição, além das vinte e cinco (25) mornas
iniciais, apresentou mais duas. Nela inseriu-se, ainda, uma adenda, na qual podemos
encontrar algumas composições em ngua portuguesa como: “Canção ao mar” (Mar
eterno), “Camponesa formosa”, “Meu bem” (Cai no mar), “Canções aladas”. Destaca-se
na edição um dos poemas mais representativos de Eugénio Tavares: “Triste regresso”,
em cópia do original com a caligrafia do autor e a sua assinatura. A intenção dos
editores, então era angariar recursos para que fosse possível encomendar e pagar um
busto do poeta para ser colocado no jardim que leva seu nome na cidade de Vila Nova
Sintra, na ilha Brava, fato que veio a se concretizar anos mais tarde, com o empenho
de outros admiradores.
É importante esclarecer que o presente trabalho teve a preocupação de
disponibilizar ao leitor que não domina a língua crioula uma tradução inédita da maioria
das composições de Eugénio publicadas em Mornas cantigas crioulas. Para tanto, e
visando melhor compreensão do conteúdo nelas expresso, contamos para a tarefa de
tradução livre com o apoio de Verónica Oliveira Ramos, cabo-verdiana da ilha de São
Vicente e jornalista formada pela Escola de Comunicação e Artes ECA, da
26
Apesar de grifarmos, lembramos que a nossa leitura da afirmação de José Osório de Oliveira é
acompanhada de certa reserva, visto que a cultura cabo-verdiana, riquíssima, não pode ser reduzida à
morna como única manifestação artística.
134
Universidade de São Paulo. Na busca pelo aperfeiçoamento do trabalho realizado pela
falante nativa, foi feita uma revisão, acompanhada pela Professora Doutora Simone
Caputo Gomes, no intuito de dar à tradução um cunho mais literário.
Destacamos que nas mornas “Hora de Bai” e “No Cantero de Nha Peto”
mantivemos a tradução produzida por Manuel Ferreira e Gabriel Mariano,
respectivamente.
Conforme nos apontam Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo, dois renomados
pesquisadores da morna, a antológica obra de Eugénio Tavares, Mornas cantigas
crioulas, chegou até nós graças a José Osório de Oliveira, “que muito se interessou,
com a sua sensibilidade de homem culto, por esses aspectos literários da morna e pela
literatura em geral que se fazia em Cabo Verde” (1996, p. 64). Acrescentam os autores
que as mornas inseridas nesta obra: “Reflectem a vida edênica que se vivia na ilha
Brava da época e que a maior parte dos cabo-verdianos chegou a conhecer e a cantar
nos nossos dias” (Op. cit., p. 65).
Façamos, aqui, uma pausa para adentrar o “mundo da morna e,
posteriormente, tratar da produção poético-mornística de Eugénio Tavares, considerado
por Pedro Cardoso “o Catulo-Cearense Caboverdeano” (1983, p. 26) e de sua
significação para a trajetória do gênero musical e da literatura de Cabo Verde.
3.1
Morna, modalidade musical identitária cabo-verdiana: origens e polêmicas
críticas
Todo o Cabo Verde se interroga sobre o aparecimento da morna e somos nós que, desde que
chegámos, plantados sob o sol oficial do meio-dia, temos de remoer um enigma que atormenta
os musicólogos desde há muito.
Jean-Yves Loude
Julgamos de extrema importância para os Estudos Cabo-verdianos estabelecer
uma reflexão sobre o papel da morna (modalidade musical) na expressão da cultura e da
identidade do povo crioulo.
Acerca da relação que o homem de Cabo Verde nutre com a morna, vale a
pena lembrar o que Manuel Ferreira enfatiza:
135
O Cabo-Verdiano imprime à morna o expoente máximo da sua
sensibilidade. Através dela exprime a saudade do que deixou, do que
não viveu, do que desejaria ter vivido e ainda de tudo o mais quanto
nos estratos profundos do seu subconsciente se agita e desencadeia,
em torrente lírica: o amor, a nostalgia, o sofrimento (1975, p. 174).
E acrescenta:
[...] Tão ligada anda ela na dolência, na nostalgia, na vivacidade
amorosa, na ternura, na sua amorabilidade, a tudo o que a rodeia no
Arquipélago: gentes, sentimentos, virtudes, drama, solidão, que ela se
transfigura em factor da própria geografia sentimental crioula, e nos
surge como “produto de uma raça, de uma terra, de um clima e das
condições de vida de um povo”. Cabo Verde sem a morna ficaria
descaracterizado (Ibidem, p. 178).
Faz-se necessário, por isto, determo-nos um pouco mais nos fundamentos
estabelecidos por estudiosos, críticos e conhecedores da cultura de Cabo Verde sobre
este importante elo de identificação cultural crioula. Desta forma, tentaremos
compreender a morna a partir de seu surgimento, remontando à sua origem, para mais
adiante partir para uma análise literária de suas linhas temáticas mais comuns.
Na verdade, as origens da morna não constituem ponto pacífico entre os
pesquisadores: a maior dificuldade para o estabelecimento de uma história da morna,
mais precisa e embasada, consiste na quase ausência de informações acompanhadas de
uma sistemática falta de documentos comprobatórios. Vasco Martins afirma que “[...] as
fontes de informação são essencialmente orais, muita coisa se perdeu, a memória
humana é imprevivel, e separar o trigo do joio é uma tarefa insegura e flutuante” (1988, p. 9).
É de se ressaltar que, ao longo da história, muito foi dito e escrito acerca da
origem da morna, complexa e controversa, como também observa Russel Hamilton:
a cultura musical popular figurava, juntamente com a língua crioula,
como um emblema e uma manifestação da originalidade
caboverdiana
27
. Deste modo, a morna é tão identificável com Cabo
Verde como o samba com o Brasil. E a origem da morna, como canto,
música instrumental e dança, tem provocado debates e controvérsias à
sua procedência (1984, p. 109).
Hamilton, enfatizando que, em português, o adjetivo morno significa “tépido,
agradável”, acrescenta que Jean-Paul Sarrautte, por exemplo, considera que “a morna é
27
As grafias “caboverdiano” / “caboverdiana”, “caboverdeano”, “caboverdianidade” ocorrem em citações
e títulos neste texto. Daí a oscilação gráfica.
136
exclusivamente portuguesa nas suas origens musicais” (Ibidem), hipótese refutada por
vários estudiosos, principalmente, cabo-verdianos. Manuel Ferreira, por exemplo,
ressalta o caráter simplista deste argumento, esclarecendo que a morna (que data de
1765, mais ou menos) é mais antiga que o fado e que este originou-se no Brasil e daí foi
levado para Portugal pela corte de D. João VI no primeiro quartel do século XIX,
transformando-se em fado-canção em meados daquele século (FERREIRA, 1985, p.
185). José Alves dos Reis complementa que “não é fácil encontrar no folclore português
ou outro estrangeiro qualquer das características das formas musicais das mornas”; e
corrobora B. Léza (1936-1957): “há uma terra que conhece a Morna e um povo
que conhece-lhe os versos – é Cabo verde e o Cabo-verdeano [...] porque ele
compreende... porque só a ele é dado conhecer, sentir, interpretar, a alma de sua terra”
28
.
Voltando à hipótese fundamentada no adjetivo morno, o musicólogo e
compositor do final do século XIX José Bernardo Alfama vislumbra nele a origem da
palavra “morna”, conforme esclarecem Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo, cabo-
verdianos que trouxeram grande contribuição para a compreensão daquela modalidade
poético-musical com a obra A morna na literatura tradicional: fonte para estudo
histórico-literário e a sua repercussão na sociedade, publicada em Cabo Verde no ano
de 1996. Rodrigues e Lobo afirmam que:
Quase um século se completou desde que pela primeira vez se
ventilou a questão das origens e características da morna. Cabo Verde
vivia então um período em que proliferaram os primeiros artigos de
homens saídos de uma formação acurada, de um ambiente cultural
dinâmico de euforia e afirmação política dos ideais republicanos. É
em 1910 que José Bernardo Alfama salienta o morno sabor da morna.
Desde essa data para cá o assunto não tem saído de cena (1996, p. 11).
Ainda no bojo dessa polêmica sobre a origem da morna, Manuel Ferreira
coloca sob suspeita a hipótese de Gilberto Freyre e de Archibald Lyall sobre a origem
antilhana (1985, p. 176) e emenda declarando que Archibald fez essa suposição por
pensar ser a palavra introduzida por marinheiros franceses, “dada a possível semelhança
entre ‘as pequenas canções nostálgicas a que os mestiços da Martinica chamariam
mornes e ‘as canções da Boavista de Cabo Verde” (Ibidem).
Outra linha de pesquisa encontra analogias com o termo francês morne que,
como adjetivo, significa “sombrio”, “taciturno”, “lúgubre”, e, como substantivo,
28
Reis e B. Léza apud LIMA, 2001, 244.
137
designa um monte, sentido que costuma ser empregado nas Antilhas e que, vindo para
Cabo Verde, poderia por extensão designar a música dos escravos refugiados nas
colinas; mas o fato de não ter perdurado para a morna contemporânea nenhum
significado geográfico inviabiliza também esta hipótese.
Para Luís Romano, a morna derivaria da chanson morne canção triste
cantada por escravos nas Antilhas francesas e levada para o arquipélago cabo-verdiano
por marinheiros da África. Romano “fixa o fim do século XIX como o período em que a
morna se originou e sublinha os seus elementos não africanos, como as suas qualidades
melódicas e o uso de instrumentos de corda europeus (ROMANO, 1984, p. 109).
Benilde Caniato, em seu texto Morna expressão do lirismo cabo-verdiano,
acrescenta a seguinte informação sobre o surgimento da morna:
Sabe-se que no século XIX a morna já era cantada e dançada no
Arquipélago. E por seu caráter dolente e nostálgico, é possível que
tenha recebido alguma influência dos lamentos árabes marroquinos.
Ou, então, segundo Luís Romano, teria sido “gerada pela melancolia
que humanamente prevaleceu nos núcleos dos primeiros elementos,
que chegaram do Reino (2005, p. 73).
Outros especialistas, que reintegram a modalidade musical na história cruzada
dos Estados Unidos e de Cabo Verde, ou da Inglaterra e de Cabo Verde, opinam que
“morna” deriva do termo inglês mourning: “lamentar-se, queixar-se”.
Acalorando o debate sobre a polêmica origem da morna em virtude de uma
falta de documentação e fundamentação históricas, houve quem buscasse dar-lhe uma
gênese mítica, como o poeta Pedro Cardoso. Observemos o seu poema “A Morna
29
”.
Flor de duas raças tristes
Vindas da Selva e do Mar
Que a sós se acharam um dia
Na mesma praia ao luar!
A Morna, verbo ou cantiga,
A quem saiba sentir,
Trava ao gosto dôce-amargo
De delícias punir...
A morna quem a inventou
Foi um poeta de Aquém Mar,
Numa tarde rôxa e amena
29
Poema de Pedro Cardoso transcrito de O Eco de Cabo Verde, 22, Praia, junho de 1934, por Semedo,
2006, p. 91. Grifos nossos.
138
Ouvindo a onda murmurar.
Na sua morna cadência
Canta a mágoa e a alegria.
Dos éstos da Alma Crioula
E a rubra sinfonia...
A Morna é a flôr mais linda
Do canteiro Hesperitano!
Pelo amor das Jardineiras
Fez-se a Rosa de todo o ano.
Pelo ritmo em ameno encanto
E o primor das cantigas;
Desponta e floresce em beijos
Na bôca das raparigas.
Voa da Volúpia exalando-se
Em requebros aliciantes
Como a da Sirena outrora
Tentando os nossos mareantes!
A Morna nasceu de um beijo
De cálidas vibrações
Numa só fundindo as almas
De uma Bárbara e um Camões!
Cardoso funda a origem da morna no mito hesperitano, que considerava as
ilhas cabo-verdianas como representação das Hésperides, imagem colhida na Biblioteca
Clássica do Liceu de São Nicolau.
Manuel Lopes, no conto “Um galo que cantou na baía”, 1936, fornece-nos, por
sua vez, uma versão alegórica do nascimento da morna (com apoio de outra imagem
clássica, a da deusa Vênus) na ilha da Boavista: a melodia teria sido gerada dos sons
que o remar dos pescadores produzia a cadência do remo na forqueta. Assim, segundo
argumento que Manuel Lopes, pela boca do Guarda-Tói, diz ter colhido do relato dos
mais velhos, teria a morna suas sementes na toada dos pescadores boavistenses, com
função lúdica intimamente ligada à atividade laboral, à semelhança das cantigas de
trabalho. Esta é uma hipótese levantada, com base na leitura lítero-alegórica do conto de
Manuel Lopes, por António Germano Lima (2001, p. 242).
Para o maestro Alves dos Reis, a morna
nasceu do povo que a criou, banhando-a com as lágrimas das suas
mortificações, resignações e sofrimentos, e [...] essas melodias não são
outra coisa senão a exaltação ou o queixume eterno da alma
caboverdiana, no que ela tem de mais comovente, de mais
extravagante e de mais tumultuoso (REIS, 1984, p. 9).
139
António Germano Lima, a esta interpretação da morna como tradução de
sentimentos relacionados à temática da dor, ainda acrescenta:
A morna é, portanto, um dos patrimônios espirituais que simbolizam a
resistência passiva do povo cabo-verdiano, desde a resistência dos
seus antepassados para a conquista e afirmação da sua identidade até à
luta contra as condições de uma vida agreste de um passado recente.
Em síntese, é o canto saído da luta do povo das Ilhas para a sua
própria sobrevivência.
Assim, originado desta força anímica, o canto-dança morna é uma
forma de expressão tão forte que através dela todo o povo das ilhas, lá
onde estiver, mais rapidamente se identifica (LIMA, 2001, p. 241).
Na tentativa de traçar uma história da origem da morna, o musicólogo Vasco
Martins aponta a maior dificuldade encontrada pelos pesquisadores:
teve uma origem e influências sem dúvida. Para a compreendermos
melhor, será necessário dobrar os tempos, mesmo sendo os
documentos históricos, pode-se dizer, inexistentes ou muito raros. Se
os há, talvez estejam numa cave poeirenta, para sempre misturados
com velhos papéis, o que dificultou bastante este traçar da história da
Morna (1989, p. 17).
Mesmo com todas as limitações, esta busca tem sido empreendida. Vasco
Martins nos os detalhes de como ela tem se processado de forma assistemática no
seio da sociedade cabo-verdiana, afirmando:
Foi essencialmente feito[a] com entrevistas com homens antigos, que
ainda seguem a tradição oral das coisas existentes, com certos
parágrafos escritos sem grandes provas estruturais evidentes, com
imaginação, com longas conversas entre os homens mais cultos das
ilhas, com a análise de artigos de jornais, com a fantasia delirante de
certos interlocutores, enfim, com pequenas coisas que afugentariam o
mais modesto musicólogo (Ibidem).
Seja qual for a origem, para Russel Hamilton, “todas as palavras sugerem a
lentidão, a tibieza e a dolência da morna no ritmo e melodia, no sentimentalismo
nostálgico da letra das canções tradicionais e no modo dos pares dançarem
agarradinhos, movendo-se em cadências dolentes” (1984, p. 110).
As discordâncias evidentes entre os estudiosos quanto à origem do termo
“morna”, e com relação às origens do fado (que recebeu influências mouras ao passar
por um antigo bairro árabe de Lisboa, a Mouraria), do samba e da morna reacendem
questões teóricas e políticas.
140
Pesquisadores cabo-verdianos especializados no estudo da morna como Vasco
Martins, Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo atribuem o seu nascimento, como forma
máxima da expressão musical de Cabo Verde, a um complexo processo. Segundo eles, a
morna, base da nacionalidade cabo-verdiana, que reflete a sensibilidade do povo e o
sentimento coletivo do arquipélago, é uma música viajante, gerada de um tronco comum
que compartilha com o fado português e o samba brasileiro. A raiz destas três formas de
expressão musical é o lundum africano, originário de Angola, do qual ainda persiste
uma derivação, o lundu, na ilha da Boavista. O lundum africano se assemelhava, por sua
vez, com o batuque, que sempre esteve presente na ilha de Santiago.
O lundum
30
foi introduzido na Ilha da Boavista em finais do século XVII, e
logo continuaria a sua viagem, seguindo as rotas da escravidão, até o Brasil. Naquela
ilha cabo-verdiana, segundo a hipótese de Vasco Martins, de maneira simultânea
ainda que independente –, sofreu o impacto do samba e do fado, numa lenta
metamorfose até se converter na morna.
O maestro Martins acrescenta ainda que:
A Morna, forma de música cabo-verdiana, é essencialmente uma
temática sensitiva e elegante, dramatização das aspirações e do
conceito do imaginário do povo cabo-verdiano, uma temática popular
e tradicional muito própria e de grande valor universal (1989, p. 10).
De acordo com um estudo antropológico das raízes das manifestações culturais
cabo-verdianas, levado a cabo por Gabriel Mariano em seu Cultura caboverdeana:
ensaios (1991), o maestro, compositor e poeta Vasco Martins (1993, pp. 34-38)
busca
na mestiçagem a origem da morna. Ressalta ele que do cruzamento das culturas
africana, européia e sul-americana se originará uma música popular rica em Cabo
Verde, destacando-se “a morna nostálgica da Boavista, com seus acordes sincréticos
(originários da modinha brasileira cruzada com lundum, fado, samba, fox-trot e
mambo)”, como principal modalidade identitária cabo-verdiana reconhecida hoje no
panorama mundial.
Para o poeta Eugénio Tavares, contudo, deve ressaltar-se deste compósito, na
morna autóctone da ilha da Boavista enquanto “criação étnica, saída fundamentalmente
30
Alguns acreditam também que o lundum foi levado a Lisboa pelos africanos, que eram muito
numerosos na capital portuguesa no final do século XVII, antes de partir para o Brasil e Cabo Verde,
constituindo, portanto, o provável filão musical originário do fado.
141
do substrato cultural de origem afro-negra presente na Ilha da Boavista” (Apud LIMA,
2001, p. 246), a sua componente africana; ou seja, oriunda dos cantos e danças dos
grupos étnicos afro-negros. Eugénio Tavares, pois, com base na sua vivência e em
pesquisas da tradição oral na ilha de Santiago, corrobora o argumento de que, se
Santiago é o berço da nacionalidade, suas manifestações culturais constituem a base
para a criação cultural das demais ilhas.
Com efeito, se atentarmos para a ordem de ocupação geomorfológica do
espaço do Arquipélago de Cabo Verde – numa primeira fase, ilha de Santiago a partir de
1461-1462 (em 1533 a Ribeira Grande, hoje Cidade Velha, era a capital do ultramar
português), logo em seguida ilha do Fogo e a partir do final do século XVI ilhas da
Boavista, S. Nicolau e Santo Antão (cerca de 140 anos depois da ilha de Santiago)
poderemos compreender melhor a migração das formas afro-negras de Santiago para a
Boavista, acompanhando o caminho percorrido das antigas finason do batuque
santiaguense até as formas boavistenses da morna
31
.
Cabe esclarecer que uma intensa ligação marítima entre as ilhas, no passado,
favoreceu a interpenetração cultural que permitiu aquela migração de formas.
António Germano Lima destaca a ligação étnico-histórico-cultural que “une
umbilicalmente o boavistense ao santiaguense no primeiro século da ocupação dos
espaços da Boavista” (LIMA, 2001, p. 248). Segundo o pesquisador, “terá existido uma
fase da morna primordial na ilha da Boavista de forte influência afro-negra, à base de
queixumes e lamentações provocados pela dor escrava” (ibidem, p. 249), com função
sublimadora ou de autodefesa psicossocial contra condições infra-humanas a que eram
submetidos (LIMA, 2001, p. 256) os negros escravizados. Para o colono, este canto-
dança era genericamente denominado “batuque” (ou “infernal barulheira”), enquanto
que, para o negro, ele era diferenciado em modalidades como “cateco”, gondon” e
“pembera”
32
. Na maioria das vezes, certos conteúdos que subjaziam as queixas,
lamentações e queixumes derivados da condição escrava eram imperceptíveis ao
colonizador. Os cantos dos colonos, marcados pelo sistema político-religioso que
caracterizou os séculos XVI e XVII, carregavam-se de gravidade, tristeza e melancolia e
não eram permitidos aos escravos.
31
A ilha Brava foi povoada graças à erupção do vulcão da ilha do Fogo em 1675 e finalmente as ilhas do
Sal e de S. Vicente foram povoadas, respectivamente, em 1834 e 1840 (LIMA, 2001, pp. 247-248).
32
Conferir CÂMARA CASCUDO, 1972, p. 150.
142
Este contraste de visões das manifestações afro-negras – muitas vezes para fins
espirituais e sagrados na perspectiva dos escravos, ao passo que profanas e luxuriosas
na perspectiva do colono acabava por gerar uma discriminação das formas de
expressão escrava no jogo colonizador/colonizado.
A relação entre canto, poética e ritmo de origem africana provindos do batuque
santiaguense terá propiciado, mais tarde, em contato com o ambiente geomorfológico da
ilha da Boavista, uma nova forma melódica ou protótipo da morna (cf. GONÇALVES,
2006, p. 88), que, progressivamente, transformou-se na expressão máxima da alma
cabo-verdiana que hoje conhecemos.
Poderíamos questionar, então: por que a morna não nasceu na ilha de
Santiago? Esclarece Lima que, em primeiro lugar, a geomorfologia plana da ilha da
Boavista (ao contrário da geomorfologia acidentada da ilha de Santiago, que opunha
obstáculos ao intercâmbio entre os seus núcleos populacionais) facilitou a síntese
necessária à eclosão das lamentações e queixumes dos expatriados submetidos ao
regime escravocrata. Por outro lado, as repressões do colono às expressões negras na
ilha de Santiago eram mais duras, o que travava sensivelmente o aspecto sincrético que,
segundo Vasco Martins, subsidiaria a constituição estrutural mestiça da morna, como
produto misto do cruzamento das culturas africana, européia e sul-americana.
Nos dias de hoje, as lamentações e queixumes da morna persistem e vale a
pena, em outro momento ou em estudo mais verticalizado, tentar estabelecer suas
relações com os cantos de trapiches da ilha de Santo Antão e as bombenas da ilha
Brava, considerados por Augusto Casimiro
33
como saudade da selva longínqua, da
África natal, dor de exílio, mágoa de nostalgia, amargura, desterro, saudade. No caso da
produção dos emigrados, a morna-saudade terá tido a função de suavizar a dor da
saudade (LIMA, 2001, p. 256), sentimento básico de ligação do ser humano à terra-mãe.
Cabe ressalvar ainda que, embora alguns pesquisadores defendam que a morna
originária, criação da Boavista, seria fundamentalmente satírica e caricatural, não
devemos esquecer que a morna lírica (morna-amor, morna-saudade, morna-gratidão)
também era produzida naquela ilha, viveiro de uma multiplicidade de estilos que
permitiu o amadurecimento de linhas, funções e estruturas que culminaram na morna
contemporânea, marca indiscutível da identidade cultural cabo-verdiana.
33
Citado por Oswaldo Osório, Cantigas de trabalho, 1980, pp. 33-34.
143
3.2 – Diferenças entre a morna da Boavista e a da Brava: a contribuição de
Eugénio Tavares
Um estudo comparativo seria utilíssimo para a diferença sistemática dos diversos contornos
melódicos das mornas das Ilhas.
João Lopes Filho
Em se tratando de uma forma de expressão que caracteriza o modo de estar
cabo-verdiano, pode-se equivocadamente encarar a morna apenas como uma
manifestação popular. Todavia, Manuel Ferreira nos informa que:
[...] a morna, embora uma expressão artística criada numa sociedade
dividida em classes, não será apenas (ou somente?) uma criação
tipicamente popular, porquanto todas as classes ou estratos sociais do
Arquipélago se lhe entregam, a amam, com ela se enternecem, vibram,
choram e sonham e eis o nódulo da questão: os seus criadores se
recrutam em qualquer delas; as mornas oriundas da burguesia são tão
cabo-verdianas como as mornas oriundas do povo; [...] não é, no
sentido puro da expressão, uma arte popular porque dela, na criação e
no desfrute lúdico, participa por igual, o povo inteiro (1985, p. 189).
Coube a Eugénio Tavares, nas primeiras décadas do século XX, dar ao ritmo
musical e ao texto poético da morna um status culto, estendendo-a de manifestação das
classes populares às classes média e alta da sociedade cabo-verdiana: a morna torna-se
patrimônio de todas as ilhas e de todos os cabo-verdianos. Eugénio, desta forma,
transforma-se num dos responsáveis direto pelo casamento entre a música e a poesia
oriundas da tradição popular e a série literária cabo-verdiana que começava a canonizar-
se. Instituída como forma musical inextrincavelmente identificada com uma nostalgia
cabo-verdiana impregnada do peso do colonialismo, na época em que produziu sua
obra, a morna de Eugénio atingiu todas as classes sociais e, como discurso literário,
representou a expressão de uma elite cultural mestiça que ansiava por representar a alma
cabo-verdiana, como destacava Pedro Cardoso: “Traduzindo a alegria e a dor da nossa
raça / Em ritmo polariza a Alma caboverdiana” (CARDOSO, 1933, p. 64).
Com a publicação de Mornas cantigas crioulas, em 1932, Eugénio Tavares
daria uma preciosa contribuição para o estudo das origens da morna, bem como da sua
adaptação à paisagem humana das diferentes ilhas. No prefácio à edição, Eugénio
afirma que a morna nasceu na ilha da Boavista e acrescenta:
144
Na Boa Vista, não se elevou na linha sentimental; antes, planou baixo,
rebuscando os ridículos de cada drama de amor; cantando o perfil
caricatural de cada episódio grotesco; ironizando fracassos amorosos;
sublinhando a comédia gentílica das moias (naufrágios de navios tão
freqüentes nas costas da ilha), tudo no estilo leve e arrebicado que a
afeiçoa a vida despreocupada do povo boavistense, o mais alegre e o
mais amorável de entre as gentes do Arquipélago; música elegante,
psicatada de sorrisos finos e de harmonias ligeiras (TMCC, 1969, p. 17).
Esclarece Jean-Yves Loude, em seu estilo coloquial à moda de um contador de
estórias, a relação da morna com a ilha em que nasceu:
– Nós viemos aqui buscar uma história. Aqui está o começo.
[...]. O padre observa o cargueiro encalhado, o guitarrista anónimo e a
moldura de violinos.
– Não tenho dificuldade em traduzir esta imagem – anuncia ele. – Boa
Vista é, simultaneamente, um reputado cemitério de barcos e a terra
natal da morna, a música que se tornou célebre em todo o mundo
graças a artistas como Titina, Bana, Celina Pereira e a diva Cesária
Évora. Encontrarão facilmente o navio naufragado, pois o Cabo Santa
Maria não pára de agonizar numa praia deserta ao norte da ilha.
Quanto à morna, ainda ninguém conseguiu descobrir a sua origem.
[...] Com efeito, a morna terá tido um inventor ou será o produto da
efervescência de uma dada época? Seria preciso esquadrilhar a
memória da ilha, sondar as fachadas de Sal Rei que testemunham uma
sociedade abastada e, ao mesmo tempo, raspar a crosta da salina até
recordar o labor dos apanhadores de sal. Se quiserem aproximar-se do
espírito da morna, deverão atravessar as pastagens vazias do interior,
aceder às aldeias afastadas do Norte, encontrar os vestígios dos portos
desaparecidos. Mas saibam que não foi por acaso que nasceu em Boa
Vista. Estavam reunidas todas as condições...
A frase em suspenso subentende uma parte escondida que nos cabe a
nós deslindar.
É uma investigação muito vasta para uma semana previne o padre
–, pois aquilo que procuram é a alma do país. A morna comprometeu-
se de tal forma com o povo do arquipélago que a procura das suas
origens parece estar inscrita em todos os cabo-verdianos (1999, pp. 20-21).
Loude complementa as modalidades que Eugénio Tavares destacava na ilha da
Boavista, ressaltando ainda como temática da morna primordial canções que choram
partida, que deploram o imobilismo ou buscam o ridículo das dores de amor, aliando
um lado nostálgico ou pleno de desgosto a um caráter caricato ou grotesco.
145
Sobre o desenvolvimento da morna na ilha Brava, Loude destaca-lhe o caráter
romântico. Na ilha de São Vicente, a morna transforma-se em modalidade sentimental,
geralmente destinada à execução por pares enlaçados
34
.
Assim resume o estudioso a metamorfose da morna de ilha para ilha:
Quando a morna passou de Boa Vista para Brava, foi tomada de
languidez. Talvez tenham sido o nosso clima, as brumas, as nossas
flores, que acalmaram o nosso sangue? Depois, ao chegar a São
Vicente, reduziu-se a um balancear, a uma dança quase imóvel,
propicia aos beijos e aos murmúrios sensuais (Ibidem, pp. 133-134).
Na Boavista, a morna era, a princípio, mais festiva, divertida, rápida e caricata,
(provavelmente cumprindo um papel como o da finason do batuque, de reguladora de
comportamentos sociais frente aos costumes tradicionalmente praticados pela
comunidade), embora mornas-queixume-lamentação também tenham sido produzidas
como “melopéia com que a raça cativa amenizava as agruras do exílio forçado”
(CARDOSO, Folclore caboverdiano, 1982, p. 19). Partindo destes “protótipos”
boavistenses, logo a morna se fez mais melancólica e lenta na Brava, sob o impacto, por
exemplo, da música da ilha da Madeira. A morna se transformou ao som dos
travessados, os ritmos de baile dos Estados Unidos, e também adquiriu seu sentido
crítico em São Vicente, o lar da coladeira, sua parente mais agitada e satírica. José
Alves dos Reis e Baltasar Lopes concluem que, mesmo metamorfoseando-se de ilha
para ilha de acordo com aspectos psicossociais, muitas das mornas de compositores
bravenses e sãovicentinos possuem raízes em antigas mornas da Boavista, ou seja, a
técnica boavistense permanece ainda operante nas canções das outras ilhas, ora nos
ritmos ligeiros, ora pela contribuição das cantadeiras vindas da Boavista (como, por
exemplo, Joana Maninha, compositora residente em S. Vicente)
35
.
António Germano Lima acredita que a morna-saudade é uma recriação
bravense da morna da Boavista trazida pela marinheiragem boavistense
36
, que
dominava a navegação interilhas. Com o incremento da emigração de habitantes da
Brava para os Estados Unidos da América, um elemento acentua-se nas mornas: a
34
Não esqueçamos, contudo, que a morna boavistense levou também para S. Vicente o estilo satírico da
morna, juntamente com as cantadeiras-compositoras Salibânia e Joana Maninha, que vieram da Boavista
para S. Vicente entre 1880 e 1890.
35
Apud LIMA, 2001, p. 245.
36
Ressalte-se que, dentre a marinheiragem boavistense, havia grande quantidade de escravos por volta de
1750. A pesca da baleia em mares cabo-verdianos, nos navios americanos, acabou por levar grande
quantidade de islenos a emigrar.
146
saudade, transformando estruturalmente a morna da Boavista em morna-saudade e
morna-amor da Brava (por volta de 1855), sendo seu maior cultor Eugénio Tavares.
No que toca à interpretação, inicialmente, era cantada e composta por
mulheres: era a chamada pré-morna; em seguida, por homens, em bares ou nos bordéis,
carinhosamente chamados lugares de pássa sabe (de “vida alegre”).
Segundo Moacyr Rodrigues, as mornas, inicialmente, eram interpretadas por
mulheres do povo, consideradas de “má vida”. Na verdade, estas primeiras cantigas
remontam às finason (herança africana) ou cantos improvisados produzidos pelas
finadeiras no batuque, provavelmente levados da ilha de Santiago para Boavista: “A
morna desenvolveu-se em meios femininos” (RODRIGUES, 1986).
Para Carlos Filipe Gonçalves, há referências históricas a “um batuque chamado
morna”, o que poderá indicar que num determinado momento, batuque e morna se
confundiam (2006, p. 82) e ainda reforçar uma linha escravocrata da gênese da morna
(Ibidem, p. 89).
Do terreiro (origem popular) de batuque ao salão (aspectos aristicratizantes),
novos instrumentos foram sendo adicionados à execução das mornas, como o piano, os
violões e o acordeão.
Sobre a relação morna/violão, faz-se necessário, mais uma vez, citarmos Vasco
Martins, visto que:
é muito provável que a morna, tal como se conhece, tivesse nascido
com a radicação do violão em Cabo Verde, fenómeno mais ou menos
espontâneo e objectivo.
Mesmo que as origens sejam, em princípio, e por falta de provas
científicas, nubladas, foi com certeza com o violão ou a guitarra
portuguesa ou com um instrumento polifónico que a morna se
produziu a si mesma, isto é, conquistando as suas particularidades
sobretudo harmónicas (1988, p. 20).
Em “Echoes of Cape Verdean Identity: Literature and Music in the
Archipelago
37
”, Simone Caputo Gomes esclarece que: “To trace the history of the
morna is a complex task, one that has occupied musicians, intellectuals and all Cape
Verdeans alike
38
”(2003, p. 270). Neste mesmo artigo, a pesquisadora brasileira procura
37
Ecos da Identidade Cabo-Verdiana: Literatura e Música no Arquipélago.
38
.“Traçar a história da morna é tarefa complexa, que tem envolvido músicos, intelectuais e o
caboverdiano mais humilde”. A versão do texto em português, ainda inédita, foi-nos cedida gentilmente
pela autora.
147
mostrar também como a morna é representada sob a ótica e as vivências femininas,
relacionando a “pré-mornaproduzida pelas kantaderas-compositoras à visão da morna
moderna, transposta para a literatura. Em suas palavras, a morna:
[...] goes beyond the ecstasy of creation and contemplation. It is
deeply rooted, as Dina Salústio’s narrative tells us, in the
“esconderijos privados” [“private hiding-places”] of Creole society; it
exposes hypocrisy and extreme situations, it brings into the open those
feelings fed by the waves of the sea and the screams of the night, it
helps to create a space for a social conscience, education and
struggle
39
(Ibidem, p. 280).
Percebe-se, deste modo, que Gomes aponta, pioneiramente, a necessidade de se
levar em consideração esta nova perspectiva, uma vez que até a publicação de seu artigo
não havia estudos que evidenciassem este ponto de vista. Refere, ainda, a pesquisadora
que a “morna preliminar”, como a denomina Vasco Martins, era executada por uma
solista mulher (primeira voz) acompanhada por um coro de mulheres (segunda voz ou
grupo de baxon), o que reforça a relação da morna com a expressão feminina e com a
estrutura do batuque (finadeira e grupo de percussão/segunda voz).
A evolução da morna, portanto, iniciou-se no canto de mulheres, conheceu o
virtuosismo instrumental e abriu asas nas danças de salão.
No que diz respeito às mudanças técnicas produzidas nesta modalidade
musical, por volta de 1800, juntamente com o aparecimento dos instrumentos de corda
em Cabo Verde, ressaltam-se significativas marcas da presença da música brasileira. B.
Léza introduziu na morna de S. Vicente o meio-tom, rompendo com o andamento
tradicional da morna boavistense e bravense, entrecortando-o com pausas e suspensão,
técnica da música brasileira da época (samba e modinha). Todavia, foi preciso aguardar
até o século XIX para que a morna despontasse como autêntica forma musical.
Alguns autores referem que, nas formas originárias da ilha da Boavista, a
morna não chega a apresentar o conteúdo dramático que se faz conhecer popularmente
por meio da difusão feita por compositores e intérpretes da qualidade de Eugénio
Tavares – na Ilha Brava – ou de Francisco Xavier da Cruz, popularmente conhecido por
B. Léza. Com efeito, músicos e poetas dessas ilhas começam a imprimir-lhe um ritmo
39
“[...] ultrapassa o êxtase criativo e contemplativo. Mergulha, qual a narrativa de Dina Salústio, nos
“esconderijos privados” da sociedade crioula, denunciando hipocrisias e situações-limite, expondo
sentimentos alimentados pelas ondas e pelos gritos das noites, ajudando a construir um espaço de
conscientização, pedagogia e luta”.
148
mais lento que o originário, dotando-a de uma cadência em quatro tempos, de caráter
nostálgico, sentimental e melancólico.
Para Jean-Yves Loude (1999, pp. 125-126), Eugénio Tavares foi o grande
poeta romântico cabo-verdiano, um homem galante que cantava as mornas que
compunha para realizar suas conquistas e comprazia-se em ser o centro das atenções de
uma platéia feminina que apreciava uma composição que acabava de nascer. Segundo o
pesquisador, Nhô Eugénio imprimiu à morna da Boavista languidez e melancolia, além
de extrair toda a potencialidade poética da língua crioula.
Sobre a temática da morna na ilha dos hibiscos, sua ilha natal, Eugénio
complementa:
na ilha Brava, a terra em que os homens casam com o mar [...] a
dulcíssima estância da saudade, mercê da vida aventureira e trágica do
seu povo, a morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu
essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as
caões bravenses. Elevou-se de riso a pronto, e afinou, amorosamente,
pelo portuguessimo diapasão da saudade (TMCC, p. 18).
Envolto por esta atmosfera ora repleta de momentos felizes ora pontuada por
carências das mais diversas ordens o poeta da ilha das flores compôs mornas que se
eternizaram com a ajuda e a força das gerações que o sucederam.
3.3 – A obra mornística de Eugénio Tavares
O estilo musical e poético da Morna de Eugénio Tavares saiu da Brava e teve influência em
todo o arquipélago.
Carlos Filipe Gonçalves
O ano de 1932 pode ser considerado decisivo no que concerne à evolução da
morna no cenário cultural e, especialmente, literário cabo-verdiano. Mornas cantigas
crioulas, de Eugénio Tavares e Uma partícula da lira caboverdeana, de Francisco
Xavier da Cruz (B. Léza) vêm à estampa, mudando temas, processos e formas de
expressão mornísticas.
Para Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo, a obra de Eugénio representa
149
um apreciável contributo ao estudo das origens da morna e sua
adaptação às feições psíquicas de cada povo das ilhas. Pela primeira
vez se afirma a origem cabo-verdiana da morna e se tenta esboçar o
percurso desta pelas várias ilhas no que diz respeito às mudanças que
vai sofrendo na sua migração entre ilhas. É ainda desta publicação o
Post-fácio de José Osório de Oliveira que a caracteriza tendo como
fundo os elementos vários extra-literários e literários, por vezes,
(temática e forma) considerando-a uma poesia ignorada (1996, p. 11).
Luís Manuel de Sousa Peixeira, na obra Da mestiçagem à caboverdianidade:
registos de uma sociocultura (2003), observa:
Em 1933, Eugénio Tavares, em “Mornas [e] Cantigas Crioulas”, traria
um contributo precioso para o estudo das origens da morna e da sua
adaptação às feições psíquicas do povo das diferentes ilhas; assim se
afirmava a origem caboverdiana da morna e se tentava traçar o seu
percurso pelo Arquipélago (2003, p. 171).
E acrescenta:
A Morna decorre dos traços culturais do homem caboverdiano”,
que, como expressão musical do povo, nela se verifica a simbiose dos
elementos mais díspares que caracterizam a alma crioula. Francisco
Xavier da Cruz, vulgarizado e eternizado como B. Lèza, relaciona as
características líricas e satíricas da morna com o contexto
caboverdiano, no que toca à sua criação; relacionando assim a ligação
música, dança e poesia como contributo das três ilhas que a terão
formado: Boavista, Brava, São Vicente (Ibidem).
Assim, a mensagem-poesia (texto escrito a partir da oralidade) da morna é
indissociável da música, expressa em canto e dança. António Germano Lima encara a
morna como:
um subsistema cultural de representações simbólicas do modo de vida
do povo que a criou, representações essas que se realizam através da
musica, poesia, gesto e coreografia [...] canto-dança em compasso
quaternário e em tom de queixumes e lamentações plangentes,
soluçantes, vagarosos, dolentes, melancólicos, enternecedores... (2001, p. 240).
Sobre a obra de B. Léza, acima citada, Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo
complementam que é a partir desta que:
se adianta uma definição da morna em termos do foro literário, tais
como as suas características líricas e satíricas e a íntima ligação ao
contexto cabo-verdiano no que toca à sua criação, realçando a ligação
música, poesia e dança como contributos das três ilhas que a
150
formaram: Boavista, Brava e S. Vicente. Esta definição, clara e
precisa quanto ao que respeita à morna como texto, sofre aqui e ali
por motivos da escrita escolhida, escrita essa da época, meio
romantizada – de um excessivo nacionalismo (1996, p. 12).
Quanto ao aspecto textual da morna, Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo
esclarecem:
Morna é um texto (composição de dança, música, poesia) com funções
narrativas, líricas, descritivas e satíricas, em que se combinam formas
de expressão como o diálogo, o monólogo, a reflexão e o comentário,
em manifestações directas e indirectas (1996, p. 31).
É de se levar em conta também o que Luís Peixeira nos informa acerca do
caráter narrativo que cedo se imprime à morna.
A Morna conta histórias, descreve paisagens e estados de alma,
satiriza condutas. Daí que a narrativa, predominantemente
melancólica e nostálgica, se volte para o amor, para a separação da
mãe e para a crecheu. A estes temas poderá estar associada a partida, a
solidão, a tristeza, bem como o reencontro e a alegria (2003, pp. 171-172).
Quanto à sua tipologia, Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo identificam dois
grandes grupos de mornas: narrativo descritivo com fins líricos ou dramáticos e
narrativo-descritivo com fins satíricos. Ressaltam ainda que “ambos os grupos buscam
objectivos comuns, mais gerais, como sejam os ideológico-políticos e os pedagógico-
didácticos” (1996, pp. 21-22).
Por sua vez, quanto à natureza, os pesquisadores advertem que a morna é um
texto em que, a par de suas funções narrativas, descritivas, líricas, dramáticas ou
satíricas, combinam-se formas de expressão como o diálogo, o monólogo, a reflexão e o
comentário (Ibidem, p. 31).
No que diz respeito à dança, faceta performática da morna que não se deve
deixar de levar em consideração, Luís Peixeira acrescenta: [...] “a Morna é partilhada
por todos os grupos sociais, independentemente das respectivas origens ou condições
econômicas, dançada tanto no funco
40
como no sobrado” (Ibidem, p. 173).
O autor afirma, ainda, que devido à morna acompanhar o cabo-verdiano ao
longo de toda a sua existência, ela “torna-se complementar dos ritos de passagem: do
nascimento; do casamento; da morte, tocada ao violino numa última despedida,
40
Casa humilde, outrora circular e coberta de palha. Palhota.
151
enquanto o corpo baixa à sepultura” (Ibidem). Exemplo emblemático deste ritual é a
morna “Hora de bai”, composta por Eugénio Tavares.
A morna alcança sua grandeza durante os anos de 1930: os brasileiros que
faziam escala em São Vicente desembarcaram na ilha também as entonações do samba-
canção com estruturas mais refinadas e elaboradas. Cabo Verde contava então com um
compositor excepcional, atento às tendências musicais contemporâneas: Francisco
Xavier da Cruz (1905-1958), o B. Léza, que imprimiu à morna um caráter mais
moderno. B. Léza foi aluno de Luís Rendall (1898-1958), um faroleiro e virtuose do
violão, que havia aprendido a tocá-lo com um brasileiro. Rendall foi o tutor de B. Léza
e deixou numerosas composições musicais, sendo rias impactadas pelo choro
brasileiro, um gênero semi-erudito no qual as notas, muito adornadas, navegam pelas
linhas de um baixo contínuo.
No tempo de B. Léza
41
, Mindelo vivia um período de plena modernidade. A
Sociedade Tipográfica e Publicidade edita ali um jornal mensal, Notícias de Cabo
Verde, regionalista e independente, e publica as mornas e os opúsculos de Francisco
Xavier da Cruz.
Nesta época de grande efervescência econômica e cultural, a elite de Mindelo
freqüentava o cinema Éden Park para apreciar os recitais de piano, nos quais não
faltavam as obras de Chopin, Puccini ou Wagner. Os intelectuais e artistas da Claridade
dão uma visão literária à revolta dos pobres, às greves na companhia de carvão, etc., e
as mornas e as coladeiras se transformam em pequenos sketchs da vida cotidiana.
Durante os anos 20 e 30, São Vicente não padece nem de fome nem de seca. Conta,
além disso, com a proteção do governador de Cabo Verde, Amadeu Gomes de
Figueiredo, patrono e grande amante da arte e da música, a quem B. Léza dedica uma de
suas mais belas mornas, Noite de Mindelo, em 1938.
Com relação aos temas, tanto B. Léza quanto Eugénio, além de outros
compositores de mornas, geralmente aludem tanto a situações da vida cotidiana de seus
protagonistas como a acontecimentos relacionados à política, nunca se esquecendo da
emigração forçada de milhares de trabalhadores cabo-verdianos para as Ilhas de São
Tomé e Príncipe, para Angola e Moçambique. Assim, o mornista vai trazer às suas
41
Sobre este tópico consultar a obra da jornalista Gláucia Nogueira, O tempo de B. Léza: documentos e
memórias (2005).
152
composições sucessos e costumes urbanos, ressaltando as alterações e os dramas
experimentados na vida real.
Com efeito, é possível verificar que a morna acompanha a história de Cabo
Verde a partir dos círculos populares, enquanto que os mais bem posicionados
economicamente inclinavam, de início, sua preferência para modalidades mais
elaboradas como a música erudita vinda da metrópole. Foram, paulatinamente, porém,
totalmente conquistados pela morna.
Retomando o escritor e crítico literário português Manuel Ferreira, vemos que
é “na morna, que não ‘possui equivalente em português’, considerada nos seus três
elementos (poesia, música e dança), que o Cabo-Verdiano encontra o pólo por
excelência do seu génio artístico. Nela encontra todas as possibilidades de escape
emocional e todos os caminhos do sonho e da fantasia” (FERREIRA, 1985, p. 90). Uma
morna, bem composta, virá sempre impregnada de elementos como “morabeza
42
e
“cretcheu
43
”, levando o cabo-verdiano a criar, a um tempo, sugestões emocionantes,
seja dançando-a nos populares “bailes nacionais”, seja nos bailes em que prevalecem as
camadas mais privilegiadas financeiramente. Em momentos assim, o homem crioulo faz
com que sua alma se realize na sua mais alta completitude.
3.4 – A Morna Amorosa de Eugénio Tavares
Terra di morna, di lua cheia,
Terra di Eugénio e serenata,
Qui mar tá cantá junto d’areia.
Ess qu’ê nha terra, Nhor Deus qui dá’m
Ca tem más sabe na mundo inteiro
Di sol más quente, di luar más brando
Gabriel Mariano
A partir do momento em que foram publicadas em livro, as mornas de Eugénio
Tavares passaram a constituir uma fonte para a compreensão da história do povo cabo-
42
Palavra crioula que significa hospitalidade, afabilidade, amorabilidade, solidariedade, receber bem as
pessoas.
43
Amor, pessoa amada.
153
verdiano. Os elementos das mornas nascem da vontade do poeta de expressar as marcas
identitárias que unem os habitantes do arquipélago e os cabo-verdianos na diáspora.
O poema popular, a coreografia e a melodia são os três elementos
fundamentais da morna, como mencionamos anteriormente. A poesia e a
musicalidade dos versos trazem à tona os sentimentos do fundo da alma do povo, e às
vezes, denúncias de momentos dramáticos da vida social. Neste sentido, a morna
configura-se como uma das formas de tradução da alma do povo cabo-verdiano: é a
manifestação da voz da sua alegria, da sua dor, da sua incerteza ou da sua esperança.
Produto da simbiose de elementos díspares que caracterizam a alma crioula (o lírico e o
satírico, por exemplo), a morna é, ao mesmo tempo conservadora, porque permite a
continuidade da tradição, e maleável, porque se adapta plasticamente às circunstâncias
de sua produção.
Para Luís Manuel de Sousa Peixeira:
A Morna é, com efeito, a manifestação mais abrangente da identidade
caboverdiana, sobretudo quando utiliza o crioulo. Assume “aspectos
coletivos” ao ilustrar a saga do caboverdiano, desde a origem,
consubstanciada no seu encontro com o europeu, em circunstâncias
históricas únicas. Assume “aspectos particulares” de acordo com as
feições de determinadas ilhas. Nestas, adquire aspectos individuais em
razão do sofrimento de cada ser, frente a vivências únicas e pessoais,
quanto ao amor, à separação, a carências de ordem material, à luta
pela sobrevivência (2003, p. 172).
Neste tópico, trataremos particularmente da temática do amor nas composições
de Eugénio Tavares, originariamente compostas em língua crioula. Cada morna-poema
será acompanhada de sua tradução para a língua portuguesa, no sentido de permitir ao
leitor a maior compreensão e fruição da estética de Eugénio, revolucionária porque, em
pleno colonialismo, concede ao crioulo um estatuto de língua literária.
Eugénio Tavares é o poeta do amor e da emigração bravense: o lirismo
amoroso e o “terra-longismo” (das viagens para a América, da pesca da baleia) são
linhas de força de sua obra poética.
O amor “cretcheu” pode ser cantado nos seus aspectos serenos e nos ambientes
serenos da ilha ou nos aspectos de inquietação, fonte das mais belas mornas de todos os
tempos com as quais a alma cabo-verdiana se identifica. O amor, na obra de Eugénio, é
buscado de forma exaltada, em plenitude, permitindo a comunhão entre amador e amada
e, ao mesmo tempo, trilhar um caminho para o divino (Deus).
154
Desta forma, o amor para Eugénio Tavares apresenta-se em plano abstrato. O
poeta identifica o amor com um sentimento sacralizado e o “cretcheucom a manifestação
concreta de um amor total, sensualmente vivido (conferir Peixeira, 2003, p. 183).
O primeiro texto da coletânea Mornas cantigas crioulas nos aponta
caminhos para a abordagem do fenômeno amoroso na poética de Eugénio Tavares:
Morna de Aguada
Se é pam vivé na es mal
De ca tem
Quem que q’rem,
Ma’n q’re morré sem luz
Na nha cruz,
Na es dor
De dâ nha bida
Na martirio de amor!
Amá, s é pam morré,
Pam dixâ,
Ai, quem que’n q’re,
(Pa oto gente bem q’ré!)
Ma’n q’ré vivé na es martirio!
Se é pa es tristeza de q’ré
Sem esperança,
Sem fé,
Ma’n q’ré destino de bai,
De morré,
De esquicê
Num momento de amor,
Uma bida intero de dor! (TMCC, p. 33).
Morna de Aguada
Se é para viver com esse mal
De não ter
Alguém que me queira
Quero morrer sem luz
Na minha cruz,
Com essa dor
De dar a minha vida
Ao martírio do amor!
Amar, se é para morrer,
Para deixar,
Ai, a pessoa que quero,
(para outra pessoa querer)
Quero é viver nesse martírio!
Ao invés dessa tristeza de querer
Sem esperança,
Sem fé,
Quero o destino de ir,
De morrer,
De esquecer
Num momento de amor,
Uma vida inteira de dor!
Na “Morna de aguada”, o eu lírico canta e lamenta o amor, mas não o amor por
alguém em especial: o amor pelo amor é o tema do poema. Eugénio Travares procura
retratar a dor do ser humano que, porque ama, sofre. O campo semântico relacionado é
o da solidão, da morte, da tristeza, um outro núcleo de base das mornas o da
“amorabilidade” ou a “morabeza” – como aponta Manuel Ferreira em A aventura
crioula (1985, p. 188)
A primeira parte desta morna apresenta um ser em conflito, imerso no pavor
de que sua capacidade de amar não seja correspondida: “Se é para viver com esse mal/
De não ter/ Alguém que me queira,/ Quero morrer sem luz”. Em linguagem simples,
própria de uma estética que se quer contígua à oralidade, o texto deixa entrever um
espírito inquieto, em fuga lírica da realidade e, sobretudo, em busca incessante pela
155
pessoa que o amará. Como última saída, e se o eu lírico puder escolher, ficará com a
morte, fim de uma vida vazia e inútil se nela não existir o amor.
O sujeito poético, em contradição (“morrer” / “viver”) é arrebatado pelo
devaneio de amar, única razão para a vida. Embora amar sem correspondência seja
sinônimo de morte, é preferível viver em martírio a perder a pessoa amada para outro
querer. Com a expressão desse dilema, o poeta retoma uma linha temática universal da
angústia de amar, já tão fecunda também na literatura de língua portuguesa.
A postura romântica observada nesta morna leva o poeta a retomar um tópico
recorrente na lírica amorosa: a díade amor/dor, que imprimindo-lhe uma
ambigüidade rentável para o aspecto filosófico associado ao sentimento amoroso.
Examinemos o poema por partes.
Na primeira estrofe, a dor pode corresponder ao martírio de não ser amado:
Se é para viver com esse mal
De não ter
Alguém que me queira
Quero morrer sem luz
Na minha cruz,
Com essa dor
De dar a minha vida
Ao martírio do amor!
Na segunda estrofe, morrer de amor (a dor de amor) apresenta-se como solução
para o caso de abandono:
Amar, se é para morrer,
Para deixar,
Ai, a pessoa que quero,
(para outra pessoa querer)
Quero é viver nesse martírio!
Na última estrofe, um instante de amor redime uma vida inteira de dor:
Ao invés dessa tristeza de querer
Sem esperança,
Sem fé,
Quero o destino de ir,
De morrer,
De esquecer
Num momento de amor,
Uma vida inteira de dor!
156
O tempo verbal utilizado no poema, sempre presente, sugere uma linha de
continuidade entre essas variáveis do sentimento amoroso, ou seja, Eugénio parece
propor, assim como Camões num dos seus mais famosos sonetos
44
, as metamorfoses
provocadas pelas contradições do amor naquele que ama.
Eugénio Tavares se dizia grande admirador de Luís de Camões e o pesquisador
António Germano Lima esclarece que, na ilha Brava, “a morna receberá, com Eugénio
Tavares, forte influência, não das tonalidades e melodias do fado, mas também da
poética rica do romantismo camoniano” (2001, p. 244). Na morna “Amor é carga?
Amor é culpa?”, que mais adiante examinaremos, ecos de Camões nas suas proposições
paradoxais de definição do amor poderão ser escutadas. Mas Eugénio não trabalha por
antíteses. O que é uma compreensão do amor, de suas qualidades tensas e
complementares. O amor é carga grande, mas não é pecado; traz preocupações, mas
ilumina a vida... Todavia, sem amor correspondido, a vida converte-se em dor:
Vida sem bo luz...
Vida sem bo amor,
É dor!
Dixam morré mi só,
Morré de amor pa bó,
Morré pa bó de amor,
Oh Flor!
Pa que’n q’re vivé só
Sem bó?
Ai, pertam na bo peto,
Amor,
Na sombra de bo ojo preto.
Pa’n cré ’ma Deus estâ na Ceu,
Na ceu,
Na tempo, amá na bonança,
Bo al xa’n nes nha esperança
De inda do ser de meu,
Ante’n morré de dor,
Amor! (TMCC, p. 55).
A Vida sem tua luz…
A vida sem o teu amor,
É dor!
Deixa-me morrer sozinho,
Morrer de amor por ti,
Morrer por ti de amor,
Ó flor!
Para que vou querer viver só
Sem ti?
Ai, aperta-me no teu peito,
Amor,
Na sombra dos teus olhos pretos.
Para que eu acredite que Deus está no céu,
No céu,
No tempo, na bonança,
Deixa-me com minha esperança
De ainda seres minha,
Até que eu morra de dor,
Amor!
44
Amor é um fogo que arde sem se ver,/ é ferida que dói, e não se sente;/ é um contentamento
descontente,/e dor que desatina sem doer.// É um não querer mais que bem querer;/ é um andar solitário
entre a gente;/é um nunca contentar-se de contente;/ é um cuidar que ganha em se perder.// É querer estar
preso por vontade;/ é servir a quem vence, o vencedor;/ é ter com quem nos mata, lealdade.// Mas como
causar pode seu favor/ nos corações humanos amizade,/ se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(CAMÕES, Luís de. Poesia lírica. Seleção e introdução por Isabel Pascoal. Queluz: Biblioteca Ulisseia
de Autores Portugueses, 1984, p. 82).
157
Por outro lado, amor e dor, céu e inferno, podem conjugar-se num único
momento, “Se tão contrário a si é o mesmo Amor”. A morna “Contam nha crecheu”
levará à Graça da comunhão com o ser amado, mesmo que esta lhe proporcione dores
futuras (prazer ou dor, grifos nossos):
Contam nha crecheu
Contam, nha crecheu,
Pâ que banda é Ceu;
Amá pamode el ta abri,
Quando’n spiabo do arri.
Ai, Ceu é Paz,
Ceu é graça, Garça de amor!
Ou co prazer, ou co dor,
Ceu morâ na bo ragáz...
Ceu estâ na bo peto,
Na go ojo preto...
Quando no estâ nos dos só,
No estâ na ceu mi co bó... (TMCC, p. 40).
Conta-me, meu amor
Conta-me, meu amor,
Para que lado é o céu;
Ama para ele abrir,
Quando te olho, tu sorris.
Ai, Céu é Paz,
Céu é graça, Graça de amor!
Com prazer, ou com dor,
O céu mora no teu colo...
O céu está perto de ti,
Nos teus olhos pretos...
Quando estamos juntos, sozinhos
Estamos no céu, eu e tu...
Ampliando o âmbito da experiência de aproximação do poema anterior, a
morna “Cantiga que Deus ensinam”, continua apregoando a aproximação da mulher
amada, associando ao núcleo prazer/dor ou céu/inferno, o núcleo festa/morte.
Cantiga que Deus ensinam
Encosta cabeça
Na nha peto, Amor:
Pâ que tanto pressa
De corrê pá dor?
Xa’n bejado testa
Pa’n clariâ nha sorte:
Ai, se um bejo é festa,
Bejo cheu é morte...
Ó bejo de amor,
Bejo de crecheu!
Seja comâ for,
Es bo inferno é ceu...
Ó Sol da’n bo asa,
Pa’n largâ es degredo!
Nha destino é feto
De tristeza e dôr.
Cantiga que Deus ensina
Encosta a cabeça
No meu peito, Amor:
Para que tanta pressa
De correr para a dor?
Deixa-me beijar a tua testa
Para clarear a minha sorte:
Ai, se um beijo significa festa,
Muitos beijos significam morte…
Ó beijo de amor,
Beijo de bem-querer!
Seja como for,
O teu inferno é o céu…
Ó sol me dê a sua asa,
Para que eu deixe esse degredo!
Meu destino é feito
De tristeza e dor.
158
Lei de Deus já flâ:
“Santo é quem que cré”.
Tudo graça estâ
Na esperâ co fé.
Trigueirinha santa,
Dormi na ragáz:
Nha dos braço é manta,
Es nha sombra é paz.
Encostâ, crecheu,
Cabeça na es peto:
Deus ja dam es geto
De morâ na ceu...
Bem obi es clamor
Que Deus ensinam
Pam ta lebia dor
De otos coraçam.
No bencê es distancia,
No embarcâ na bento;
No largâ nos ânsia
Co nos sofrimento... (TMCC, p. 57).
Lei de Deus já disse:
“Santo é quem quer”.
Toda a graça está
Na esperança com fé.
Trigueirinha santa,
Dorme no colo:
Meus braços são o cobertor,
E minha sombra é a paz.
Encosta, bem-querer,
A cabeça nesse peito:
Deus já deu um jeitinho
De eu morar no céu…
Vem escutar esse pedido
Que Deus me ensinou
Para aliviar a dor
De outros corações.
Vamos vencer essa distância,
Vamos viajar ao vento;
Vamos deixar essa ânsia
Com o nosso sofrimento…
Ao céu do colo da amada, quando juntos, cenário do primeiro poema,
acrescenta-se neste o beijo na testa, muitos beijos, a cabeça encostada no peito, o dormir
no colo, em tempo verbal imperativo encosta, deixa-me beijar, dorme, encosta, vem
escutar. Na última quadra, o eu lírico incita a amada a vencer a distância e viajar ao
vento, ou seja, “morar no céu” significa estar em comunhão concreta com o ser amado.
Adiante desenvolveremos este aspecto da concepção amorosa das mornas de Eugénio
Tavares, analisando-o segundo a perspectiva de Gabriel Mariano (1991).
Segundo Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo, tanto a morna de Eugénio quanto a
de B. Léza:
revelam a afectividade, o carinho e o apreço que se tem pela mulher,
nessa fase, na sociedade cabo-verdiana. Revelam uma certa
sensibilidade quase feminina da própria poesia. [...] a poesia de
Eugénio é mais filosófica, interrogando-se sobre os problemas do
amor, superdivinizando-o, mas não deixando, contudo, de ser um
amor objectivo. [...] (1996, p. 69).
Para Gabriel Mariano, o Amor é a principal linha de força da poesia de
Eugénio Tavares. O poeta é “sem dúvida um grande místico do amor, exalta, enaltece e
chega a divinizar o amor com uma intensidade visível à primeira leitura” (1991, p. 126).
159
O convívio amoroso transmuta-se num caminho de salvação, concepção
algumas vezes imbuída de religiosidade. Examinemos uma das mais conhecidas mornas
de Eugénio Tavares:
Força de Crecheu
45
Ca tem nada na es bida
Más grande que amor.
Se Deus ca tem medida,
Amor inda é maior...
Amor inda é maior,
Maior que mar, que ceu:
Mas, entre otos crecheu,
De meu inda é maior.
Crecheu más sabe,
É quel que é de meu.
El é que é sabe
Que abrim nha ceu...
Crecheu mas sabe
É quel
Que q’rem...
Se ja’n perdel,
Morte ja bem...
Ó força de crecheu,
Abri’n nha asa em flor!
Deixa’n alcança ceu
Pa’n bá oja Nós Senhor,
Pa’n bá pedil semente
De amor coma es de meu,
Pa’n bem da todo gente,
Pa todo conché ceu! (TMCC, p. 34).
Força do Amor
Não há nada nessa vida
Maior que o amor
Se Deus não tem medida,
Amor ainda é maior...
Amor ainda é maior,
Maior que o mar, que o céu:
Mas entre outros amores,
O meu ainda é maior
Bem-querer mais gostoso,
É aquele que me pertence
Ele é que é a chave
Que abriu o meu céu...
Bem-querer mais gostoso
É aquele
Que me quer...
Se eu o perder,
A morte chega...
Ó força do amor
Abre as minhas asas em flor!
E deixa-me alcançar o céu
Para ir ver o Nosso Senhor,
Para que eu lhe peça semente
De amor como o meu,
Para que possa dar a todos,
Para que todos possam conhecer o céu!
Não esquecendo de valorizar toda a arquitetura estética do poema em crioulo
como esta morna bem o demonstra, com seus paralelismos, rimas externas e internas,
aliterações, assonâncias podemos observar a vocação sacralizante do amor, ora como
veículo, ora como condição para se aproximar da divindade:
Ó força do amor
Abre as minhas asas em flor!
E deixa-me alcançar o céu
Para ir ver o Nosso Senhor,
45
Informa o editor do portal da Fundação Eugénio Tavares que esta morna foi inspirada na história de
amor de Hermano de Pina e Ana de Barros: “Hermano de Pina regressava à Brava, sua terra natal, após a
licenciatura em Medicina. Um dia cruzou-se com uma senhora, bravense de rara beleza, que o deixou
fascinado. Do fascínio a uma grande paixão foi um sonho muito bonito. Da paixão ao grande amor da sua
vida, foi outro sonho bonito”. Disponível em: http://www.eugeniotavares.org/docs/pt/obra/mornas.html
Acesso em maio de 2010.
160
Em “Força de Crecheu”, podemos considerar o ‘amor’ como força universal
que une irmãos, ou tudo o que se ama sobrepujando o amor carnal de macho e fêmea e
alcançando uma outra dimensão mais ampla.
Na morna-poema acima, pode-se observar o tópico que Manuel Ferreira
denomina de “amorabilidade” ou o conceito de morna-amor”. Nesse caso, o amor não
se apresenta somente como tema, mas também como forma de expressão. “Força de
cretcheu”, não trataria apenas de aspectos individuais, mas da própria condição humana.
O paralelismo que estrutura o poema, de forma lógica atribui ao amor força
maior que a energia divina: “Se Deus não tem medida/ Amor ainda é maior...”/ “Maior
que o mar, que o céu”. O amor expresso pelo sujeito poético busca um processo de
ampliação, para estender-se a tudo e a todos.
Vasco Martins complementa que:
Eugénio Tavares deve ter sido um dos primeiros mornistas a tratar o
amor de forma quase sistematizada. Gabriel Mariano, na separata das
comunicações do I Encontro de Poesia de Vila Viçosa, estudou
brilhantemente o platônico amor de Eugénio e, como diz, é com
Eugénio que “os amantes o se dissolvem no seio da divindade.
Viajam para o céu, enxergam a face de Deus, mas nenhum deixa de
ser um, os dois não deixam de ser dois, para o Amor e no Amor”. [...]
De facto, o extremo romantismo de Eugénio e o talento na escritura do
crioulo em poesia pura juntaram-se na Morna para formar uma
poderosa mensagem da canção que o foi igualada no seu conjunto.
A noção de Amor em Eugénio Tavares justifica, é claro, uma época
romântica, uma estrutura poética condizente com os estados
espirituais também do próprio poeta, que se diz possuir pela mulher
uma paixão sensível (1988, p. 87).
Este imaginar o Amor como transcendência, eterniza o valor dado ao querer, ao
gostar, ao desejar, ao ato de amar, veiculando a idéia de que o Amor é libertador e torna
o amante-amado um ser superior.
Cabe ressaltar que o desenvolvimento do poema continua enfatizando aquele
núcleo citado do sentimento amoroso como paradoxal. Vejamos: se o Amor é maior
que Deus, o fato de o sujeito poético pedir ao Divino Ser sementes de amor para
distribuir a todos, para que possam também conhecer o céu, constitui uma contradição.
Bastava solicitá-lo à força do amor, assim como pediu que abrisse suas asas em flor. Se
o Amor é maior que Deus, Este conseqüentemente não poderia proporcionar algo maior
que Ele mesmo. Como sintetiza poeticamente Gabriel Mariano, “Magnífica heresia;
161
viril confrontação. O Amor absorve a própria divindade. Claridade solar. Meio-dia em
Cabo Verde” (1991, p. 134).
Em analogia, entendemos que o céu é a representação de todo o bem existente
no Universo, e com essa distribuição do amor, a Vida e Graça estariam ao alcance de
todos. Os apelos do poeta enternecem os que se vêem representados em “Força de
cretcheu”, elevando-se o valor humano. O desejo de atingir a dimensão de amar e ser
amado, não acontece somente para o eu lírico, mas para todos, num diálogo de anseio
do bem, numa intimidade que se projeta sobre o outro, seja amante ou amigo.
Todavia, na morna “Amor é carga? Amor é culpa”, uma idéia insistente (a de
que Deus fez o amor), que dialoga em contraponto com a expressa em “Força de
cretcheu”, acrescenta-se a uma busca de definição do amor.
Amor é carga? Amor é Culpa?
Amor é carga?
É carga grande, má el câ pesado!
É culpa fundo, má el câ pecado!...
Deus que fazel, el câ condenal!
É Deus, nós Pai, el é que tempral...
É Deus, é Deus que fazé Amor,
El ca fazel pa botâ cachor...
Amor é culpa?
Má el câ pecado, el câ perdição,
Pamode é escada de salbação...
Ami, de meu, jâ erguem nha bida...
Ami, de meu, jâ limpam nha Céu...
Se el é nha culpa, el ca nha pecado;
Se el dam cudado, el lumiam nha bida...
(TMCC, p. 37).
Amor é carga? Amor é culpa?
Amor é carga?
É carga grande, mas não é pesado!
É culpa grande, mas não é pecado!...
Deus é que o fez, e ele não o condenou!
Foi Deus o nosso pai, foi ele que o temperou...
Foi Deus, foi Deus quem fez o Amor,
Ele não o fez para ser comida de cães...
Amor é culpa?
Mas ele não é pecado, nem perdição,
Porque ele é a escada da salvação...
A mim, o meu já ergueu a minha vida...
A mim, o meu já limpou o meu céu...
Se ele é a minha culpa, não é o meu pecado;
Se ele traz preocupações, ilumina a minha vida...
A reiteração dos verbos “fez”, “foi” e a repetição da palavra “Deus” concedem
ao ser supremo a responsabilidade da criação do mais profundo sentimento humano.
No ensaio “Amor e partida na poesia crioula de Eugénio Tavares ou
inquietação amorosa”, o escritor e ensaísta cabo-verdiano Gabriel Mariano tratará dos
dois temas mais glosados pela obra poética eugeniana. No que toca à lírica amorosa,
Mariano enfatiza na poética de Eugénio Tavares a questão da realização ou da
manifestação do amor, estabelecendo analogias com o platonismo amoroso. Para
Gabriel Mariano, em Força de cretcheu” duas palavras se contrapõem: “amor” e
162
“cretcheu”: “o vocábulo cretcheu significa aquela mulher a quem amamos e que nos
ama a nós, o que implica, portanto, dois aspectos: a existência actual da mulher e a
reciprocidade no amor” (1991, p. 129).
O andamento do poema, que insiste até o sexto verso na palavra amor, passa de
um plano impessoal para uma via concreta de manifestação do amor quando introduz a
“cretcheu”. Interroga o ensaísta: “não haverá aqui algo de parecido com o platonismo
amoroso?” (ibidem).
O próprio Gabriel Mariano responde à questão proposta:
Curiosamente, não em Eugénio a divinização ou a espiritualização
da mulher, como acontece em grandes místicos do amor, como
Camões, Dante ou Petrarca. [...] Não se espiritualiza o Amor, mas a
mulher. E, se a acaso o Amor surge espiritualizado, é em virtude de a
mulher amada ser “Raio da Divina Formosura” como diz Camões.
Com Eugénio passa-se o inverso: nele o que é espiritualizado é o
amor. Melhor dito: o diálogo amoroso. [...] O que ele exalta é o amar e
ser amado.
Segundo António Sérgio, na lírica de Camões o amor é anterior ao
objecto amado e independente do objecto amado.
Em Eugénio, o amor não é anterior à mulher amada, é contemporâneo.
E, ao contrário de Camões, Eugénio não concebe o amor como algo
independente da mulher amada. Em Eugénio, o amor manifesta-se
com e na mulher que ele ama e que o ama a ele (1991, pp. 132-133).
Continuando a acompanhar a linha de tentativa de definição do amor pela via
interrogativa, a morna “Que importa’n lâ?” recolhe fios disseminados pelos poemas
anteriormente examinados como a Graça, o Céu, Deus, a relação amor/dor como
caminho de salvação, acrescentando-lhes outras problemáticas:
Que importa’n lâ?
Se é pa’n perde es luz de amor,
Es graça, es ar de quem que’n q’ré,
Ma’n q’re curtí ses otos dor:
Perde nha luz, perde nhá fé.
’N ca perdi: Nhor des que dâ:
Quem que al negâ graça de ceu?
Se Deus da’n el, el é de meu;
Se el é de meu, nha xa’n cantâ!
Se é pa’n ganhâ reno de ceu
Que ta salba’n alma de mal,
Na’n q’re vivê co nha crecheu,
Pa el ca engana’n, pa’n ca enganal...
Que me importa?
Se for para eu perder essa luz do amor,
Essa graça, esse ar de quem me quer,
Quero curtir as suas dores:
Perder a minha luz, perder a minha fé.
Eu não pedi: Senhor Deus é que deu:
A quem ele negou uma graça do céu?
Se Deus me deu essa graça, ela é minha;
Se ela é minha, me deixem cantar!
Se é para eu ganhar o reino do céu
Que vai salvar a minha alma do mal,
Quero viver com a minha amada
Para que ela não me engane e eu também não minta para ela...
163
Que importa’n lâ que mundo flâ,
Se el ja el q’re’n, se mi ja’n q’rel?
Se’n perdê Deus, ’n ca perdel
Que importa’n lâ? Que importa’n lâ?
Sê pa da’n oro, ou pa da’n prata,
Se é pa da’n luz, se é pa da’n paz,
Ma’n q’re casâ co nha Ingrata,
Ma’n q’re dormi na sê ragaz...
(TMCC, p. 36).
De nada me importa o que o mundo fala
Se eu a quero e ela também me quer?
Se eu perder Deus, eu não a perco;
Que me importa? Que me importa?
Se for para me ofereceres ouro ou prata,
Se for para me ofereceres luz ou paz,
Eu prefiro casar com a minha ingrata,
Eu quero dormir no seu colo...
Relembrando a estrutura temática paradoxal apresentada em Força de
cretcheu”, esta morna, construída com base na inquietude interrogativa e pautada pela
anáfora da conjunção condicional (“Se”) vai reapresentar o núcleo Amor/Deus da
seguinte forma: a luz do amor é uma graça dada por Deus, escada para o reino dos céus;
porém, uma vez alcançada, pode-se perder Deus, a fé, mas não o amor. Não bem
maior do que dormir no colo da amada, mesmo que, ingrata, engane o amante.
Esclarecem Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo que:
Para Eugénio é preferível viver na graça do amor, mesmo se tiver que
perder a salvação. Para um certo tipo de conceito religioso,
preconceito (?), esta atitude seria uma blasfémia. Mas não se toca num
poeta que é o orgulho de um povo. Além disso, mal se saíra da Monarquia e
se estava apenas no início da implantação da República, com toda a sua
irreverência anti-clerical, sem se cair na irreligiosidade (1996, p. 70).
Seguindo trilhas já traçadas por Gabriel Mariano no seu ensaio sobre o amor na
obra de Eugénio, constatamos que a mesma mulher que, no convívio amoroso conduz
ao céu, porque não é divinizada como nas líricas de Camões e Petrarca, pode apresentar,
em contexto cabo-verdiano, características negativas que a aproximam mais de uma
mulher real.
O núcleo de mornas que apresentaremos a seguir explicita essa leitura.
Enganosa
Pa que nha ta espiam,
Se quel que ojo de nha ta prometem
Nha ca ta podé dam?
Co um mom nha mostram céu,
Co que oto nha abrim porta de inferno:
Ma mi, si mé’n crecheu.
Ja ’n purda nha es maldade,
Té ja’n pedi nhor Des pa purda ’n el
Enganosa
Porque me olhas,
Se aquilo que os teus olhos me prometem
Não vais conseguir me oferecer?
Com uma mão tu me mostraste o céu,
Com a outra tu me abriste a porta do inferno:
Se eu for bem-querido
Já perdurei nesta maldade,
Até já pedi ao Nosso Deus que ma perdure
164
Na mundo de Berdade.
Mas, se nha ca ta da ’n
Todo que ojo de nha estâ prometem,
Pa que nha ta espiam? (TMCC, p. 52).
No mundo da verdade.
Mas se tu não me deres
Tudo o que teus olhos me prometem,
Porque que me olhas?
A mulher “enganosa” é interrogada pelo sujeito poético na medida em que o
seu comportamento promete e nega, abre as portas ora do céu, ora do inferno, poder
contraditório atribuído ao amor nos poemas em que Eugénio Tavares busca defini-lo.
Aqui, o “Mal de amor” é personificado na mulher que engana ou, mais adiante
n’“Aquela pessoa...” que devolve o eu lírico do céu à terra, em queda livre:
Quel pessoa...
Note tem treba,
Ca mas sucuro que sê ojo.
Junho tem neba,
El ca mas albo que sê corpo.
Maior zimola,
Ca chegâ graça de sê boca;
Se Deus da’n el
Me’n dal nha bida, ami’n ganha na troca...
Quando el arri,
Nhor Des ta abri
Porta de Ceu; sol ta escobri,
Mar ta cantâ,
Flor ta esdrobâ.
Mas se el bachâ,
Bachâ sê ojo
Razoado de ago, Nhor Des ta mandâ
Tristeza, nojo,
Tromenta, guerra,
De ceus a terra (TMCC, p. 56).
Aquela pessoa…
A noite tem trevas,
Não é mais escura que os teus olhos.
Junho tem névoa,
Ele não é mais alvo que o teu corpo.
A maior esmola
Não chega à graça de tua boca;
Se Deus ma der
Eu lhe dou minha vida, eu ganho na troca…
Quando ela ri,
Senhor Deus abre
A porta do céu; o sol fica descoberto,
O mar canta,
As flores desabrocham.
Mas se ela baixar,
Baixar seu olhar
Coisas ruins, Deus mandará;
Tristeza, luto,
Tormenta, guerra,
Dos céus para a terra.
Esta mulher de olhos negros ou escuros (uma constante na sua poética),
acompanhada sempre de uma condição fundamental para o sujeito poético, explicitada
na morna “Enganosa” “Se eu for bem-querido” –, domina o poema “Quel pessoa...” e
assim é descrita: olhos, boca, sorriso, olhar, enfim, corpo. De suas ações resultarão o
canto do mar, o desabrochar das flores ou a tristeza, o luto, a tormenta, a guerra. A
analogia com o soneto de Camões “Tanto de meu estado me acho incerto” não
constituirá aqui uma heresia poética, mas faz jus ao apelido de “Camões cabo-verdiano”
atribuído a Eugénio Tavares.
Do veneno dos olhos pretos da mulher bonita não escapa o eu lírico.
165
Mujer bonita
Mujer bonita, pa el dabo gosto
Pa el dabo co bo amor,
É só depôs de bo dal bo rosto,
De bo dal rosto pâ cuspidor.
Pa cada bejo el ta dabo um dor!
Pa cada estrela de um ilusam,
Pa sonhos morto na coraçam,
Anos sem conta de amargor...
Ca no fiâ na ses ojo preto
Que tem beneno ne ses espiar...
Ses feticeras, co ses mal feto,
Es tenê mundo juiso no ar...
Ca no fiâ na ses fala sabe:
Nha fijo, obi, bo tomâ sentido:
Mujer é letra que ca entendido;
Ses alma é porta que ca tem chabe...
(TMCC, p. 59).
Mulher bonita
Mulher bonita, para te agradar
Para te agradar com o seu amor,
É só depois de te dar o rosto,
De te dar o rosto para cuspir.
A cada beijo ela te dá uma dor!
Para cada estrela, uma ilusão,
Para sonhos mortos no coração,
Anos sem contar com amargura…
Não confiemos nos seus olhos pretos
Que têm veneno no seu olhar…
Feiticeiras com os seus mal feitos,
Elas têm o mundo com a cabeça no ar
Não confiemos nas suas conversas gostosas
Meu filho, escuta, toma cuidado:
Mulher é letra que não se entende;
As suas almas são portas sem chave…
A estrutura antitética da linguagem camoniana é aqui retomada, com a mestria
de quem conhece e sabe extrair as virtualidades expressivas da ngua crioula: a cada
beijo, corresponde uma dor, para cada estrela, uma ilusão. Em resumo, a mulher aqui
representada encontra semelhanças com a “Enganosa” anteriormente citada, que se
caracteriza como: feiticeira, não confiável, perigosa. Afinal, universaliza o poeta:
“Mujer é letra que ca entendido;/ Ses alma é porta que ca tem chabe... (“Mulher é letra
que não se entende;/ As suas almas são portas sem chave...).
Como na morna “Cantiga que Deus ensinam”, Flor de rosera” apresenta uma
mulher que, apesar da beleza, pode ferir com seus espinhos. A distância da amada,
percebida pelo sujeito poético, conjuga-se com o temor de sua aspereza.
Flor de rosera
Flor de rosera,
Co es tanto abrojo
Que, dês mansera,
Sâ ta gardabo,
Dixam contabo
Es nha desgosto
De espiâ co ojo,
Enguli co rosto...
Ó rosa, em braza,
Ja bo estâ alto
E mi tam falto
De pena na asa!
Flor de roseira
Flor de roseira
Mostra-me tanta beleza
Que desse jeito,
Vou te guardar,
Deixa-me contar
Esse meu desgosto
De ver com olhos
E engolir com o rosto…
Ó rosa, em brasa,
Estás distante
Fazendo-me falta
Com penas nas asas
166
Que biram tinha
Sorte de amor;
Bô, nha Rainha,
Mi, bo Senhor!
Ó q’ré sem q’redo!
Ja’n tene medo
De pô nha peto
Na bo aspréza!
Es nha tristeza,
’N ca oja geto
De pol na bento
De esquecimento! (TMCC, p. 48).
Quem me dera ter
Sorte no amor;
Tu, minha rainha,
Eu, o teu senhor!
Ó, querer sem ser querido!
Tenho medo
De por o meu peito
Na tua aspereza!
Essa minha tristeza,
Eu não vejo maneira
De jogá-la ao vento
Do esquecimento!
Na segunda estrofe do poema, o eu rico sugere que a mulher, objeto de seu
desejo, oferece-se voluptuosa (“Mostra-me tanta beleza”/ rosa, em brasa”), mas, ao
mesmo tempo negaceia a correspondência (“Ó querer sem ser querido”). Ao amante
resta a “tristeza”, que a suprema “sorte no amor” amar e ser amado, “Tu, minha
rainha,/ Eu, o teu senhor!” – não lhe parece permitida.
Na morna “Mal de amor”, como nos poemas líricos de inspiração romântica, a
natureza assume nuances semelhantes e até amplifica o estado psicológico do eu lírico:
a noite e a solidão que compõem o cenário fundem-se à desgraça, à dor e à morte
equivalentes à falta de reciprocidade amorosa:
Mal de amor
Note ficha, mi só na caminho,
Mi só co Deus, ma co nhá desgraça.
Lua na ceu ja negam graça;
Ja’n perdê fé de alcança nha ninho!
Oh mal da amor,
Ja bo matam!
Oh mal de amor,
Ja bo dixam.
Mi só nes dor,
Dor de ca tem
Alguem que q’rem,
Ai!
Oh mal de amor!
Oh bom de Deus que chigâ na mi,
Pega’n na mon bo leba ’n co geto...
Leba’n co geto pa’n ca caí,
Ca maguam ferida de nha peto…
Ca bo raza’n, c abo da’n dotor,
É ca botica que ta cura’n:
Mal de amor
A noite caiu, e eu sozinho na estrada,
Sozinho com Deus, mas com a minha desgraça.
A lua no céu já me negou a sua graça;
Já perdi a fé de alcançar meu ninho!
Oh mal de amor,
Tu me mataste!
Oh mal de amor,
Tu me deixaste.
Sozinho com essa dor,
Dor de não ter
Alguém que me queira
Ai!
Oh mal de amor!
Oh coisa de Deus que chegou até mim,
Segura a minha mão e leva-me com jeito…
Leva-me com jeito para eu não cair,
Não magoes a ferida do meu peito…
Não me faças rezas, não me leves ao médico,
Não é remédio que vai me curar:
167
Es mal de amor que sa ta mata’n,
Sê cura é morte, ou igual amor...
(TMCC, p. 53).
Esse mal de amor que está me matando,
A sua cura é a morte, ou igual amor…
Ser amado (“Alguém que me queira”) e “alcançar o ninho” são sinônimos da
cura possível para o “Mal de amor”. A aproximação da mulher amada (“coisa de Deus
que chegou até mim,/ Segura a minha mão e leva-me com jeito...”) é o “remédio” ideal
buscado pelo sujeito poético. Mas, o encaminhamento proposto pela segunda estrofe do
poema, culminando com as curas possíveis sugeridas no último verso, parece reservar
um desfecho trágico seja para o amante, seja para o mal de amor: a morte.
Para Ls Peixeira, “Mal de amor canta o amor jovem, exaltado, o amor-
paixão. É o amor frágil, quanto impetuoso. O amor que, fenecendo, adoece e mata, a
menos que um igual amor se anuncie (2003, p. 184). Se estabelecermos um diálogo com
o poema eugeniano homônimo em língua portuguesa, O Mal de Amor (Coroa de
espinhos), a contradição dos aspectos vital e letal do amor também lá se configuram.
Para o ensaísta Luís Peixeira, a morna “Mal de amor” se completa com a
“Morna de bejiça”, que trata da transformação do sentimento amoroso com o passar dos
anos e as circunstâncias:
Morna de Bejiça
Bejiça é um amostra certo
Pâ no conta co morte perto:
Mas, sol de entardecer de idade,
Sol brando é el, sol de sodade.
Sol brando ca ta quemâ
Pele de rosto de nha crecheu.
Sol brando, el é sol de gosto
Pa ta lumiano porta de ceu.
Amor é quel que ama co gosto:
Na boca mel, lebe na peto...
Amor é mar quando el esta manso:
Guemê co gosto, ama na descanço.
Mar manso é quel mar de nadâ,
Mar brado é quel mar de matâ:
Amor, ai! quando el é mar brado,
Se el ca matâ, el ta derrubado...
Amor, depos de um certo idade,
Quando el sintâ co companhero,
Ninguem câ tâ ergue promero,
Sem que to dós mata sodade...
Morna da Velhice
Velhice é uma amostra certa
Para podermos contar com a morte próxima
Mas, sol de entardecer da idade,
É um sol brando, um sol de saudade.
Sol brando não queima
A pele do rosto do meu bem-querer.
O Sol brando é um sol de gosto
Para nos iluminar a porta do céu.
Amor é aquele que ama com vontade:
Na boca mel, leve no peito...
Amor é mar, quando ele está manso:
Geme com vontade, ama no descanso.
Mar manso é aquele que dá para nadar,
Mar agitado é aquele que mata:
Amor, ai! Quando ele é mar agitado,
Se ele não te matar, ele te derruba...
Amor, depois de uma certa idade,
Quando encontra um companheiro
Ninguém quer deixá-lo primeiro
Sem que os dois matem a saudade...
168
Sintâ junto, labantâ junto,
Es é que é sabe, es é que é dreto...
Sintâ co amor, gosâ co assunto,
Coraçam lebe, graça na rosto...
Crecheu é na debagarinho,
Na paz, na graça, na getinho:
Amor, pâ bo sentil sê gosto,
É na sombrinha de sol posto...
Mas, quando el é de barbotón,
É sem valor, sem tom nem som...
Nha fijo obi, obi um consejo:
Amor más doce, é amor de bejo...
(TMCC, pp. 38-39).
Sentar juntos, levantar juntos,
Isso é que é gostoso, isso é que é bom...
Sentar com amor, gozar com os assuntos,
Coração leve, alegria no rosto...
Bem-querer é devagarzinho,
Na paz, com graça, com jeitinho:
Amor, para sentir seu gosto,
É na sombra do sol posto...
Mas, quando ele é de barbas grandes,
É sem valor, sem tom, nem som...
Meu filho escuta, escuta um conselho:
Amor mais doce, é amor de velho...
A “Morna da Velhice” contrapõe ao “Mar agitado”, (que mata) da morna “Mal
de amor”, o mar sereno do “entardecer da idade”.
Luís Peixeira, sobre esta morna, esclarece:
Neste poema louva-se o amor de Velhos, feito de serenidade e ternura.
Neste amor dá-se a inversão dos conteúdos conceptuais. Por
comparação implícita com “Mal de Amor”, este é um amor com a
suavidade do pôr-do-sol que o queima o rosto da amada. É como
um sol brando da saudade, sugerindo a proximidade da morte... Amor
de velho não é um mar bravo, é um mar manso... É o amor “de se
sentar junto, levantar junto”. Cretcheu... é mansinho... para sentir-lhe
o gosto, é na sombrinha do sol posto. Amor de velho é um amor que
escapou às contingências da degradação física, ao fatalismo dos
receios de previsíveis rupturas... amor depois de uma certa idade,
quando ele se sentar com o companheiro, ninguém se levanta primeiro
sem que todos os dois matem saudades (2003, p. 185).
A suavidade expressa no campo semântico (“lebe”, “paz”, “doce”) e nos
diminutivos (“debagarinho”, “sombrinha”) mimetiza a mansidão do amor serôdio.
Tendo em conta a morna “Mal de amor”, Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo
ressaltam que, Eugénio Tavares, na “Morna de bejiça”, opera a ruptura-reformulação do
conceito de amor da seguinte forma:
a) A inversão dos conteúdos conceptuais: o conceito de amor de
velho não passa pelas figuras da degeneração e de morte (destruição),
cabendo estas ao amor jovem (paixão), alterando-se os conceitos
tradicionais;
b) A inversão dos conteúdos conceptuais: o valor relativo da
adversativa (v. 3) e a crescente importância da estrutura implícita, por antítese
da estrutura explícita (Sol brando ca ta quemâ/ Pele de rosto de nha cretcheu
vv. 5-6) de modo a desencadear uma outra figura, a ênfase, geradora de
significação. (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 115).
169
No mesmo âmbito da “Morna de Bejiça”, outro poema aborda o tema do bem-
querer (cretcheu) que se afastou enquanto o amante envelhece, deixando-lhe a solidão e
a saudade. O “mal de amor”, contudo, não consegue destruir totalmente as esperanças
do sujeito poemático: ele nunca ficará sozinho, poderá colocar outro alguém na posição
de amado(a):
Morna de Nha Santa Ana
Ja’n q’ré ojâ quem que cá tem,
Quem que cá tem crecheu na es bida!
Pa más tanguido que corpo é,
Nos alma é libre, no tem que q’ré!
A mi, de meu, pa nha pesar,
Pa mal de todo nha pecado,
El prometem nabiu na mar,
El manda dam lancha enajado.
El tiram luz que Nhor Dês dam,
El dixam sombra de triaçam;
El lebam sol dês mocidade,
El xam co dor de nha sodade.
Se bo sentil ta bem pa traz,
Ó mar, bizam; bizam ó mar,
Pa’n ca sintal na nha ragaz;
Pa’n po alguem na sê lugar.
(TMCC, p. 50).
Morna de Nhá Santa Ana
Eu quero ver quem não tem,
Quem não tem um bem-querer na sua vida!
Por mais forte que o corpo seja,
A nossa alma é livre, temos que querer!
O meu, para o meu pesar,
Para o mal de todo o meu pecado,
Ele me prometeu navio no mar,
Ele me ofereceu lancha traçada.
Ele tirou a luz que o Senhor Deus me deu,
Ele me deixou a sombra;
Ele levou o sol da minha mocidade,
Ele me deixou com a dor de minha saudade.
Se o sentires chegando por trás,
Ó mar, avisa-me; avisa-me, ó mar,
Para que eu não o sinta no meu colo;
Para que eu ponha alguém no seu lugar.
Outra forma de manifestação do amor nas mornas de Eugénio Tavares (e que
amplia a tendência expressa no poema anterior) manifesta-se no texto a seguir – a
poligamia lírica
46
.
Na cantero de nha peto
Na cantero de nha peto
’N tem um pé de rosera:
Nha roserinha
É que é rainha!
’N q’rel co todo rospeto;
Amá, de qualquer manera,
’N al pranta só rosera
Na cantero de nha peto?
Rador de nha rosa santa,
’N tem que tem otos pranta:
No canteiro do meu peito
No canteiro do meu peito
Eu tenho um pé de roseira:
Minha roseirinha
É a rainha!
Amo-a com todo o respeito;
Mas de qualquer maneira,
Hei-de plantar só roseiras
No canteiro do meu peito?
Ao redor da minha rosa santa,
Eu tenho de ter outras plantas:
46
MARIANO, 1991, p. 130.
170
Carinhas preta
Coma violeta;
Chinelinhas cor de prata;
Uns branquinha, otos mulata...
’N tem que tem otos pranta
Rador de nha rosa santa... (TMCC, p. 43).
Carinhas pretas
Como violetas;
Chinelinhas cor de prata;
Umas branquinhas, outras mulatas...
Tenho que ter outras plantas
Ao redor de minha rosa santa...
A capacidade de amar várias mulheres, no mesmo espaço e tempo, configura-
se por meio de um subterfúgio, o “donjuanismo lírico”, referido por Gabriel Mariano,
que se justifica na imagem central da composição: um canteiro (o peito do eu lírico) em
que domina uma rainha (nha roseirinha), mas que opta por cultivar outras plantas (otos
pranta/ Rador de nha rosa santa). Para Mariano: “Trata-se de um poema cheio de
sugestões metafóricas [...]. Eugénio é o canteiro, claro está. [...]. Não podemos negar
delicadezas nem lirismo a esta inquietação poligâmica de Eugénio Tavares
47
”.
A conquista amorosa também se apresenta como um tema forte das mornas de
Nhô Eugénio. O poema que se segue teoriza as estratégias para a abordagem da mulher
amada, demonstrando, possivelmente, grande experiência de seu criador neste campo.
É assim que el ta fazedo...
Se bo encontra co quem que gostabo,
Cantal um verso, ca bo tem medo:
Se el ca obido, el ca ta sotado...
É assim que el ta fazedo...
Bo é sê sombra, ou bem, ou mal!
Se el subí ceu, ou se el ba degredo,
Bo é sê traz, ai, bo largal:
É assim que el ta fazedo...
Se el dabo um gosto, gosal calado,
Ficha bo boca, gardal segredo:
Quem que cala, ca ganha pecado...
É assim que el ta fazedo... (TMCC, p. 49).
É assim que se faz…
Se encontrares com quem te ama,
Canta-lhe um verso, não tenhas medo:
Se ele não o escutar, não vai te bater…
É assim que se faz...
Tu és a tua sombra, por bem ou por mal!
Se ele subir ao céu, ou se for ao inferno,
Tu és a retaguarda dele, ai, não o largues:
É assim que se faz
Se ele te der um prazer, goza-o em silêncio,
Cala tua boca, e guarda segredo:
Quem se cala, não é pecador…
É assim que se faz
O refrão “É assim que se faz” traz amador e amada para o mundo real,
repelindo o amor-contemplação e celebrando a possibilidade do amor correspondido.
Não hipótese de um amor platônico para o sujeito poético, mesmo um
horror da unilateralidade, como podemos constatar na morna a seguir:
47
Idem, p. 131.
171
Carta quem escrebê nha Lina
Amor que’n q’ré:
Nha Luz, nha fé:
Da’n bo atenção:
Na estâ nos dos?
Obi’n es voz
De coraçam:
’N estâ escrebedo
Pa’n flabo’n q’rebo
Co paz, co calma:
Desde promero
Té derradero
Folgo de nha alma.
Medo que’n tem:
Bo bá de li,
É que tenem
Ca ta sorri.
Pamó, pa mi,
Se é pa’n negado,
Ma’n q’ré es pecado
De ca sorri...
Pamó, pa mi,
Ai, se é pa da’n,
Tornâ toma’n,
Ma’n q’ré dixa’n
Nha “mom si-si”,
Na es tristeza
De ca tem dreto;
Na nha pobreza
De ca ojâ geto
De quenta es peto...
Crecheu que’n q’ré
Co tudo fé:
Medo que’n tem
De “mom si-si”,
Ca ta pedi... (TMCC, pp. 60-61).
Carta para nha Lina
Amor que eu quero:
Minha luz, minha fé
Dá-me a tua atenção:
Estamos só nós dois?
Escuta-me essa voz
Do coração:
Estou te escrevendo
Para te dizer que te quero
Com paz, com calma:
Desde o primeiro
Até o último
Fôlego da minha alma.
O medo que eu tenho:
É tu ires embora,
É o que me faz
Não sorrir.
Porque, para mim,
Se for para eu não ser aceito
Eu quero esse pecado
De não sorrir…
Porque, para mim,
Ai, se é para me dares
Toma de novo,
Mas quero ficar
Com as minhas mãos atadas,
Com essa tristeza
De não ter direito;
A minha pobreza
De não ver jeito
De esquentar esse peito…
Bem-querer que eu quero
Com toda a fé:
O medo que tenho
De ficar com as mãos atadas,
Não o peço…
À diferença da arte lírico-amorosa de Camões e de Petrarca, a poesia de
Eugénio em língua crioula coloca a mulher no mesmo plano do amante e supõe sempre
sua correspondência ao sentimento deste. Observemos a morna “Corda de Sacramento”:
Corda de Sacramento
Pom corda na pé co geto,
Pa el ca maguam na nha frida:
Corda de Sacramento
Coloca-me a corda no pé com jeito,
Para ela não machucar a minha ferida:
172
Dor de frida, ó dor de bida,
Pa el doé mas fundo é na peto...
Pô corda debagarinho,
Pa nha carne câ sangrâ;
Mi, se’n saí de caminho,
’N al sabé torna entra...
Tomâ, jam dabo nha pé,
Morram el co trinta nó:
Junto co bó, é mi só;
Junto co mi, quem que’n q’ré.
Nos home é comâ candia
Co destino de lumiâ:
Lumiâ de note, de dia,
Enquanto no câ pagâ...
Ó corpo, ó corpo nha escrabo,
Detâ quitinho, calado:
Ó alma, xam consejabo:
Buâ libre, sem cudado!
Es corda de sacramento,
El bem, el ta ba na bento:
Ma, que corda santa de amor,
Só Deus sabé sê valor! (TMCC, pp. 62-63).
Dor de ferida, ó dor de vida,
Para ela doer mais no fundo do peito…
Coloca a corda devagarzinho,
Para a minha carne não sangrar;
Se eu sair do caminho
Saberei entrar de novo…
Toma, já te dei o meu pé,
Amarra-me, com trinta nós:
Junto contigo, somos só nós dois;
Junto a mim, a pessoa que eu quero.
Nossos homens são como candeeiro
Com destino de iluminar:
Iluminar de noite, de dia,
Enquanto não apagarmos…
Ó corpo, ó corpo meu escravo,
Deita quietinho, silencioso:
Ó alma, deixa-me te aconselhar:
Voa livre, sem preocupações!
Essa corda de sacramento,
Ela veio, ela vai com o vento:
Mas, aquela corda santa de amor,
Só Deus sabe o seu valor!
Não obstante à mobilidade amorosa do sujeito rico expressa na segunda
estrofe (“Se eu sair do caminho/ Saberei entrar de novo…”), este incita a mulher
escolhida a prendê-lo com “aquela corda santa de amor”, certamente mais poderosa do
que os “nós” referidos na terceira estrofe do poema:
Toma, já te dei o meu pé,
Amarra-me, com trinta nós:
Junto contigo, somos só nós dois;
Junto a mim, a pessoa que eu quero.
O amor correspondido, na obra de Eugénio, exige uma ação por parte da
mulher (“Coloca-me a corda no com jeito,/ amarra-me”), à diferença da postura
estática das musas camonianas e petrarquianas.
Em síntese, concordamos com Gabriel Mariano quando ressalta que “a
principal linha de força da poesia de Eugénio Tavares é o Amor. Mas, que Amor? [...]
Um veículo, uma escada de salvação, um meio através do qual se alcança um
173
determinado objectivo” (1991, p. 126). Nas mornas de Eugénio, o Amor é um
sentimento compartilhado que permite a comunhão entre a amada e o amador.
A lira de Eugénio Tavares “tem muitas cantigas que choram por dentro”, de
saudade ou de “cretcheu” (amor). O metapoema “Nha cantar” aponta os motivos para as
mornas do velho e do novo esperança e saudade e define a sua própria poesia como
“cantiga”, “rima/ da minha saudade” (Nha cantiga é rima/ De nha sodade”), “fel”
adoçado pela “graça de amor”.
Nha cantar
Ó graça de amor
Endoçam es fel
De sofri nha dor
Sem mundo sabel!
Es cantar de meu
Stâ tiram alento:
Tem cantiga cheu
Que é chorâ pá dento...
Nobo tem esperança
Pâ ensinal cantâ:
Bejo tem sodade
Pâ fazel chorâ.
Nha cantiga é rima
De nha sodade:
Ai, ja’n tem bontade
De mordê nha Lima!
Rapariga noba
Que ca tem crecheu,
Se el morré, é na coba;
El ca ta bá ceu... (TMCC, p. 64).
Meu cantar
Ó graça de amor
Adoça esse fel
Que faz sofrer a minha dor
Sem que o mundo saiba!
Esse meu cantar
Me tira o alento:
Tem muitas cantigas
Que choram por dentro…
O novo tem esperança
Para ensiná-lo a cantar:
O velho tem saudades
Para fazê-lo chorar.
A minha cantiga é rima
Da minha saudade:
Ai, já tenho vontade
De morder a minha Lima!
Menina nova
Que não tem bem-querer,
Se ela morrer, vai para a cova;
Ela não vai para o céu…
3.5 – Morna(s) da partida
Corpo, qu’ê nêgo, sa ta bai;
Coraçom, qu’ê forro, sa ta fica
48
...
Esta passagem extraída de um “batuque” tradicional da ilha de Santiago, que
Eugénio Tavares incorpora no seu mais famoso texto, refere a base escravocrata sobre a
48
Tradução - “O corpo, que é escravo, vai; / O coração, que é livre, fica...”
174
qual se formou a sociedade crioula e indicia importantes aspectos do imaginário do
cabo-verdiano que, devido a variáveis geográficas e econômicas, é forçado a deixar a
terra-mãe, desértica e pobre em recursos naturais, rumo à terra-longe.
A relação com o mar, numa pátria-arquipélago, constitui-se como um dilema
cujos pólos são: a insularidade, gerada pela sensação de isolamento (sobretudo no
período colonial, em que o mar traz a “caravela da opressão secular”, segundo Ovídio
Martins); por outro lado, o mar propicia a sobrevivência e ligação com a “terra-longe” e
com o mundo. Ele tem o poder de isolar cada uma das ilhas, bem como o arquipélago
como um todo. Entretanto, ele também tem o poder de servir como elo entre Cabo
Verde e os demais países para onde seus filhos costumam emigrar. Fomenta os sonhos
daqueles que aspiram partir em busca de uma vida mais tranqüila. O mar, portanto, é o
caminho que leva o cabo-verdiano para outras paragens e que permite à sociedade de
Cabo Verde sustentar um olhar direto ao mundo exterior.
Neste sentido, o mar funciona como um mediador, que não apenas provoca a
separação, permitindo aos cabo-verdianos a vivência de outros mundos, mas atua como
traço de união entre os que partem e aqueles que por razões várias permanecem na terra
natal. O mar é, em muitas composições, personificado como um deus mítico,
mensageiro, que dialoga diretamente com o poeta.
De acordo com o antropólogo cabo-verdiano João Lopes Filho (2007, p. 25):
O mar é responsável pela insularidade, mas também pela viagem, o
que implica emigração e evasão, tendo em conta que, até poucas
décadas, era através dele que se podia sair da terra, voltar ou
permanecer no estrangeiro (permanência e errância).
Vasco Martins acrescenta outro argumento a essa discussão:
O Mar, elemento mais constante e misterioso da ilha, e que dá a
possibilidade de partir ou de pura evasão, é também uma fonte de
inspiração para a poesia mornista. [...] O mar evoca quase sempre uma
coisa desconhecida, misteriosa e dramática, e que produz evocações
da morte (1988, p. 91).
E enfatiza:
O mar é nostalgia
O mar abismo profundo, indiferente à alma humana, é a sepultura da
amada em Eugénio Tavares.
175
Aliás, é de notar que a saudade é um facto sentimental imprescindível
e que para o mornista tem que existir para o aprofundamento das
emoções.
O mar, fazendo parte do imaginário cabo-verdiano, encontra na Morna
uma possibilidade poética deveras sugestiva. O mar mensageiro é a
temática mais interessante (1988, p. 92).
Desta forma, um núcleo rentável para o estudo das mornas eugenianas é o do
terra-longismo, que abriga subtemáticas como: a partida, o exílio, a saudade, o mar.
A partida e toda a dor decorrente da experiência daqueles que emigram
servirão de tema para diversas composições. A “Morna de despedida” torna-se, assim,
um clássico da lavra de Eugénio Tavares:
Morna de Despedida
Hora de bai,
Hora de dor,
Ja’n q’ré
Pa el ca manchê!
De cada bez
Que ’n ta lembrâ,
Ma’n q’ré
Ficâ ’n morrê!
Hora de bai,
Hora de dor!
Amor,
Dixa’n chorâ!
Corpo catibo,
Bá bo que é escrabo!
Ó alma bibo,
Quem que al lebado?
Se bem é doce,
Bai é maguado;
Mas, se ca bado,
Ca ta birado!
Se no morrê
Na despedida,
Nhor Des na volta
Ta dano bida.
Dicham chorâ
Destino de home:
Es dor
Que ca tem nome:
Dor de crecheu,
Dor de sodade
De alguem
Que’n q’ré, que q’rem...
Morna de Despedida
Hora da partida,
Hora de dor,
É meu desejo
Que não amanheça! (não chegue a hora)
De cada vez
Que a lembro,
Prefiro
Ficar e morrer!
Hora de partida,
Hora de dor!
Amor,
Deixa-me chorar!
Corpo cativo,
Vai tu que és escravo!
Ó alma viva,
Quem te há de levar?
Se a chegada é doce,
A partida é amarga;
Mas se não se partir (mas quem não parte)
Não se regressa! (não regressa)
Se morrermos
Na despedida,
Deus no regresso
Dar-nos-á vida.
Deixa-me chorar
Destino de homem:
Oh dor
Que nem nome tem:
Dor de amor
Dor de saudade
De alguém
Que eu quero, que me quer...
176
Dicham chorâ
Destino de home,
Oh Dor
Que ca tem nome!
Sofrí na vista
Se tem certeza,
Morrê na ausencia,
Na bo tristeza! (TMCC, pp. 41-42).
Deixa-me chorar
O destino do homem,
Oh Dor
Que não tem nome!
Sofrer junto de ti
Sem ter uma certeza,
Morrer na ausência,
Com a tua tristeza!
Segundo interpretação de Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo, o tema da “partida
para a América, em fuga ao flagelo da fome, retomado mais tarde por B. Lèza, motivou-
o a produzir os seus mais belos versos:
Apesar da ‘situação de partida’ ser secular e ter sido normal durante o
período escravocrata, Cabo Verde, após o desenvolvimento da ‘nação
cabo-verdiana’, passou a reagir como uma família, um todo, e não
como uma sociedade despersonalizada, constituída por gente
arrumada como gado’, daí o acto de partir ser pungente e não algo
que se desejava e estava na psiqué cabo-verdiana. Sempre foi algo
sofrido na carne com a separação, forçada não pelo destino, como
pelos senhores da terra (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 70).
Não esqueçamos de que a época em que Eugénio Tavares viveu é a da
emigração para a América, de fomes seguidas e luta política de monárquicos contra
republicanos, de perseguições constantes de idéias defendidas. Partir, portanto, não
pressupõe negar a terra, esquecê-la, porque supõe sempre um regresso ou o desejo dele.
“Morna de Despedida” pode ser considerada uma das mais completas criações
de Eugénio Tavares, uma vez que nela podemos encontrar os temas mais relevantes das
mornas cabo-verdianas. O sujeito poético se agarra à dor daqueles que, “escravos” da
situação pouco animadora vivida pelas ilhas cabo-verdianas na época, necessitam partir
para fugir aos problemas, numa eterna busca por melhores condições de vida para si
próprios e para os entes queridos que ficam. No poema, o leitor pode perceber toda a
tristeza do eu lírico pelo fato de ter de deixar a terra natal.
Na primeira estrofe, registramos esse momento como sendo o instante da dor,
como podemos observar nos dois primeiros versos: “Hora da partida,/ hora da dor”.
Para prolongar os momentos que lhe restam, ao poeta cabe somente desejar que não
amanheça, não chegue essa hora tão indesejada. Todavia, como consolo, o sujeito lírico
observa que aquele que partiu (versos 18 e 19) pode voltar (momento de felicidade):
“Mas se não se partir/ Não se regressa!”
177
É no poema que o eu lírico se encontra identitariamente e pode falar da terra-
longe, da distância, da saudade, numa nostalgia que um dia certamente terminará, ao
retornar à Terra e ao Amor.
Observa-se que Amor vem grafado em maiúscula, podendo representar ‘tudo’
o que se ama. Com efeito, podemos deduzir que aqui se unem todos os tipos de ‘Amor’,
que marcavam fundo o coração do sujeito poemático, com relevo para o Amor à Terra-
Mãe (“Se morrermos/ Na despedida,/ Deus no regresso/ Dar-nos-á vida”).
Sem sombra de dúvida, foi Eugénio Tavares quem melhor expressou e cantou,
em suas composições, o registro da dor, da saudade, da partida e também do regresso
daqueles que por um motivo ou outro tiveram que deixar o seu país. E ainda que o
mundo literatura venha a ser aquele das ‘coisas inventadas’, não podemos fazer vista
grossa aos conceitos do ‘real’, existentes nas cantigas produzidas pelo poeta bravense.
Este artista popular cabo-verdiano com seu espírito observador e repleto de
determinação soube como ninguém mais buscar nas tradições sócio-culturais de seu
pequeno país e da época por ele vivida, os motivos para a composição de seus versos e
textos. E, ainda, teve a inspiração para recriá-los e recheá-los de poesia, mantendo um
estilo próprio e encontrando novas maneiras de cantar a morna, diferentemente das
mornas antigas da Boavista, ilha tida como berço desta modalidade musical.
É com propriedade que Vasco Martins afirma que:
A saudade e a partida também fazem parte do universo literário da
Morna. Depois da temática do amor, é a inspiração mais freqüente.
Cabo Verde, país de emigração maciça, país de ilhas e de Oceano,
possui na sua alma a mitologia da partida que tem sempre um regresso
ou pelo menos a idéia do regresso. A saudade é um sentimento que
acompanha a partida, uma saudade romanceada, por vezes profunda e
pondo em causa a Terra longe, onde se vai buscar um melhor modo de
vida ou, simplesmente, a necessidade de ver o mundo, sair das ilhas
para um encontro com outras culturas, outros modos de vida, outras
mentalidades. No confronto dessas culturas, a Morna resta uma
temática sentida profundamente, é um elo de união e de recordações, é
a canção onde se transmite a saudade da ilha, de um antigo amor, da
mãe, figura que liga o homem cabo-verdiano à terra, através de
lembranças de infância, tentativa de retorno à simplicidade e ao
aconchego materno. [...] A mãe é a continuação para o mornista e o
cabo-verdiano da simplicidade e do amor e dos ambientes
psicológicos da infância e adolescência que acompanham a alma
cabo-verdiana toda a vida (1988, pp. 89-90).
178
“Hora de Bai”, de Eugénio Tavares traduz o drama do homem cabo-verdiano
na tomada de decisão entre o partir e o ficar. Este mote da cultura de Cabo Verde,
grandemente explorado pelos escritores do movimento literário claridoso, acabou por
tornar-se um leitmotiv da literatura deste pequeno país da costa atlântica africana.
Anteriormente ao surgimento da Revista Claridade, Eugénio lidava com
certa mestria com o conflito de sentimentos descrito: a dor de ter de partir e a vontade
de não abandonar o torrão natal, a necessidade de o deixar para num futuro não muito
distante regressar, o sonho de poder vivenciar a experiência da emigração, igualando-se
a tantos conterrâneos que já o fizeram. Se fato de deixar a sua ilha natal é algo
extremamente sentido, a sua antípoda recompensa é o regresso deste a Cabo Verde.
Emigrar proporciona a quem o faz distinção e prestígio, que só consegue
desfrutar em plenitude quando do regresso. Conforme elucida Juliana Braz Dias,
mornas play a fundamental role by helping construct the concepto of
return as a value. As noted above, it encourages Cape Verdeans to
leave, turning the painful departure into precisely the other side of the
coin for those who want to harvest the fruits of the much valued
return. Departure and return, death and life: one does not exist without
the other
49
(2008, p. 181).
Inserida ainda no núcleo do terra-longismo, a morna “Despedida” associa
emigração e mar, reiterando a díade partir-voltar e carregando a partida de mágoa,
tristeza, morte e luto. Regressar permanece no “doce” e “claro” campo da esperança.
Despedida
(Marinheiros que partem)
Es mágua de nha partida
El sâ tâ matam nha bida!
Se’n bai, ramede que tem,
É’n bai, ’n tornâ bem.
Mas es tristeza de’n bai,
De’n bai pa’n largâ nha Mai,
El ca triste comâ dor
De’n bai pa’n largâ nha Amor.
Despedida
(Marinheiros que partem)
Essa mágoa da minha partida
Está matando a minha vida
Se eu for, remédio não tem,
Eu fui e voltei.
Mas essa tristeza de partir
De partir e deixar minha mãe,
Isso não é triste como a dor
De partir e deixar meu Amor.
49
“[...] a morna tem aqui um papel fundamental na construção do regresso como um valor. Mais uma vez,
ela ajuda a incentivar os cabo-verdianos a partir, fazendo da dolorosa partida apenas o outro lado da
moeda para quem quer colher os frutos do valorizado retorno. Partida e regresso, morte e vida: não
como pensar um sem o outro”.
179
No cantâ co água na ôjo;
No bajâ co alma de nôjo:
Hora triste de partida
É hora de perdê bida.
Quem que ficâ, ca ta bai:
Quem que ca bai, ca ta bem:
Força que pincha’n pa’n bai,
É bo, esperança de bem!
Ó bai, ó bai, ja bo triste!
Ouro de mar, ja bo caro!
Ó bem, ó bem, ja bo doce!
Dia de bem, ja bo claro! (TMCC, p. 47).
Cantamos com água nos olhos;
Dançamos com a alma de luto:
Hora triste de partida
É hora de perder a vida.
Quem fica, não parte:
Quem não parte, não volta:
A força que me empurrou para ir
És tu, esperança de voltar!
Ó partida, ó partida, tu és triste!
Ouro do mar, tu és caro!
Ó volta, ó volta, tu és doce!
Dia do retorno, tu és claro!
Em correlação ao mote da partida, o poeta desenvolve a temática da saudade,
com base na imagem das andorinhas que voltam. O mar (“aberto”, “caminho”), o vento
e as asas possibilitariam o regresso à terra, ninho amado.
Andorinhas de bolta
Andorinhas de mar largo,
Que bento de lialdade
Botanhôs nes passo amargo,
Na es nos terra de Sodade?
Pamô danhôs na bontade
De torna bem nes caminho?
Ai, de bem mata sodade
De nos terra, de nos ninho?
A mi, ja’n tem nha cudado,
Ja’n tem nha cabelo branco:
Mi é bejo, mi é manco,
Mi é um candía pagado...
Quem que é nobo, tem esperança,
Tem sê graça, tem sê fé...
Mocidade é mar na bonança;
É luz que Nos Senhor cendê...
Andorinhas de mar alto,
Nhos bem de bolta pa casa?
Triste é mi que ja esta falto
De penas bibo na asa... (TMCC, p. 51).
Andorinhas de volta
Andorinhas do mar aberto,
Que vento de lealdade
Coloca-nos nesse passo amargo,
Nessa nossa terra de saudades?
Por que nos deu vontade
De voltar nesse caminho?
Ai, de voltar para matar as saudades!
Da nossa terra, do nosso ninho?
Eu tenho uma preocupação,
Já estou com os cabelos brancos:
Sou velho e aleijado,
Sou um candeeiro apagado…
Quem é novo, tem esperanças,
Tem sua graça, tem sua fé…
Mocidade é o mar em bonança;
É luz que o Nosso Senhor acendeu…
Andorinhas de mar aberto,
Regressam para casa?
Triste sou eu, com falta
De penas vivas nas asas
A terceira estrofe evoca a velhice, encarada como impossibilidade de volta do
emigrado à terra-mãe: a “falta de penas vivas nas asas” e o “candeeiro apagado” são as
imagens utilizadas pelo poeta para negativizar a esperança de regresso. Nesta “morna-
180
estado-de-alma”, o sentimento que torna mais aguda a saudade é o de nostalgia (do
grego nostós, regresso+ álgos, dor, abatimento profundo) de quem sabe que nunca mais
voltará à sua pátria.
A saudade do ser amado também alimenta a esperança de voltar, na mornística
de Eugénio Tavares. O refrão do poema enfatiza o seu motivo:
Sodade de quem que’n q’re!
De todo mágua des mundo,
Quel que é mas doce, mas fundo,
É quel que é dor a má fé:
É quel que tenem em pé:
É quel que ta doé más fundo:
Sodade de quem que’n q’ré!
Es corage de largâ
Nos luz, nos amor, nos fé,
É esperança de voltâ...
Cose és? Quem que dam el?
Es amargo todo? Es mel?
Sodade de quem que’n q’ré! (TMCC, p. 46).
Saudade de quem eu amo!
De toda a mágoa desse mundo,
Aquela que é mais doce, mais funda,
É aquela que é dor a má fé:
É aquela que nos mantém de pé:
É aquela que dói mais fundo:
Saudade da pessoa que eu quero!
Essa coragem de abrir mão
De nossa luz, nosso amor, nossa fé,
É a esperança de voltar…
Que coisa é essa? Quem me deu isso?
Esse amargo todo? Esse mel?
Saudade da pessoa que eu quero!
A dor da ausência ou saudade (do latim solitate, lembrança de coisas ou
pessoas distantes ou extintas acompanhada do desejo de as tornar a ver ou possuir) do
ente querido que ficou na terra-mãe está bem caracterizada neste poema, que supõe
partida (terra-longismo, na denominação de Manuel Ferreira) e regresso.
António Germano Lima refere a nostalgia e a saudade como “dois dos
sentimentos que mais ligam a alma humana à sua terra-mãe e, por isso, estão
intimamente ligados à separação do homem do local onde foi enterrado o seu umbigo”
(2001, p. 259).
A morna lírica, do estado-de-alma, é a vertente da modalidade bravense para a
qual mais contribuiu Nhô Eugénio, ladeado, mais tarde por B. Léza
50
.
3.6 – Mornas de costumes ou de filosofia/religiosidade popular
Quem que tem medo
Ta morrê cedo
51
.
Eugénio Tavares
50
Conferir a morna “Eclipse”.
51
Quem tem medo/morre cedo.
181
Para completar nossa leitura da poética mornística de Eugénio Tavares é
necessário examinar modalidades que provavelmente têm sua origem na estrutura da
finason crioula, isto é, nos conselhos ou comentários tecidos musicalmente pelas
cantadeiras de batuque, plenos de provérbios, sentenças, análises de costumes
populares. Afirma Moacyr Rodrigues, como referido, que as mornas, inicialmente,
eram interpretadas por mulheres do povo, remontando as primeiras cantigas
provavelmente aos finason (herança africana) ou cantos improvisados produzidos pelas
finadeiras no batuque e possivelmente levados da ilha de Santiago para a ilha da
Boavista (RODRIGUES, 1986).
Assim, a morna é uma forma que tematiza as coisas simples do cotidiano, o
correr da própria vida e os princípios da sabedoria popular que a regem. Ela nasceu no
terreiro e daí partiu para os salões, havendo na sua evolução um processo de trocas
contínuas (terreiro/salão, aspectos populares e aspectos aristocratizantes) que resultará
na modalidade que hoje conhecemos (GONÇALVES, 2006, p. 87).
A morna Lua noba”, por exemplo, superpõe as imagens da lua e de Nossa
Senhora na bênção àquele que sofre e na Luz, de natureza diversa, que ambas irradiam,
expressando a religiosidade sincrética cabo-verdiana, fundada na mestiçagem.
Lua noba
Ó nha Madrinha Lua,
Nha Madrinha de Ceu,
Nha botam quel bençom;
Nha Madrinha de meu!
Ó nha Madrinha branca,
Ca nha esquicê de mi!
Nhá dixam ta chorâ,
Ai, pa nha acham ta arri!
Ó nha Madrinha Santa,
Nhá pegam na nha mom,
Nha lumiam na nha passo,
Ai, nha botam bençom!
Nha espiam la de Ceu,
Nha judam co nha cruz!
Nha Madrinha, nha Mai,
Nha Madrinha, nha Luz! (TMCC, p. 54).
Lua nova
Ó Lua, minha Madrinha,
Minha Madrinha do Céu,
Abençoa-me;
Minha Madrinha!
Ó minha Madrinha branca,
Não esqueças de mim!
Tu me deixaste chorando
Ai, para me encontrares sorrindo!
Ó minha Madrinha Santa,
Segura a minha mão,
Ilumina os meus passos,
Ai, me abençoa!
Olha-me lá do Céu,
Ajuda-me com a minha cruz!
Minha Madrinha, minha Mãe,
Minha Madrinha, minha Luz!
Para Gabriel Mariano, o sincretismo religioso deriva do fato de a cultura cabo-
verdiana ter se formado com a apropriação pelo funco das manifestações do sobrado, ou
182
seja, a africanização da cultura européia realizou-se de forma vertical, com a primazia
do mulato na produção de formas culturais. Com o contínuo aumento da mestiçagem e a
ascensão econômica e social do mulato, expressões de cultura mestiça, provavelmente
formadas no funco, alastraram-se pelo arquipélago. Este é o caso da morna, patrimônio
do folclore poético e musical, como foi o caso da língua crioula, da culinária, das
adivinhas, dos provérbios, dos festejos populares, das superstições, dos esquemas
comportamentais (MARIANO, 1991, p. 54).
Na morna “Que alma ja bem papiâ...” sobressai o veio católico da religiosidade
crioula, mas com pitadas dos ditos populares utilizados nos finason: “Nha boca é porta
fechado,/ Co chabe lâ pâ alboredo...”
Que alma ja bem papiâ...
Quel alma ja bem papiâ,
Ja el bem limpâ sê cabeça.
Mas, el bem co todo pressa,
Pa mentira ca pegâ.
Mi jam flal mâ nos é tres,
Nos é tres na nos segredo:
Dos pecador, co Nhor Des,
Ai, co Nhor Des nos é tres...
Se Deus tomano de um bes,
Mi jam flal pâ el ca tem medo,
Pamode, na es nos pecado,
Nha boca é porta fechado,
Co chabe lâ pâ alboredo...
Se é pâ morré ferido,
É mejor vivé enganado:
Perde quel que era perdido,
Ca parcem grande pecado...
Só bó, Berdade de Dor,
Só bó bo ca ta ba fundo!
Só Deus que conchê sê mundo,
El só el sabé sê valor... (TMCC, p. 44).
Aquela alma já veio falar...
Aquela alma já veio falar,
Ela veio limpar a sua cabeça
Mas, ela veio bem apressada,
Para não ser pega em mentira.
Já lhe disse que somos três,
Somos três com o nosso segredo:
Dois pecadores e o Nosso Senhor,
Ai, com o Nosso Senhor somos três...
Se Deus nos levar de uma vez,
Eu já lhe disse para não temer
Porque, no nosso pecado,
Minha boca é porta fechada,
E a chave está jogada no meio do arvoredo...
Se for para morrermos feridos,
É melhor vivermos enganados:
Perder aquilo que era perdido,
Não me parece grande pecado...
Só tu, Verdade de Dor,
Sozinho tu não vais longe!
Só Deus conhece o teu mundo,
Só ele sabe o teu valor...
Em “Cosas dês mundo”, a estrutura mornística é construída com base na adição
de provérbios que expressam a sabedoria do cotidiano num processo paralelístico de
questionamento (confira-se a repetição da forma interrogativa) filosófico-popular ou de
filosofia de reflexões sapienciais ao qual se adiciona uma apostrófica (“ó Deus”;
“Devagarzinho, Deus”) conversa com o Criador:
183
Cusas des mundo...
Se quem que arri tem poço sentimento,
Quem que chorâ é mujer...
Quem papiâ tené juizo na bento,
Quem que calâ é manhento...
Quem que morâ na campo ca’q’re trato
Trato co gente dreto...
Quem que pô mom na preto
Pa el fla Nhor Des matal, é bentecato...
Cusas des mundo! No estâ vivê nel
Amá, té quando, ó Deus, no al entendel?
Se no sotâ mujer, no ca tem crerto,
Ja no perdê nos nome...
Se nos mujer sotano, é mas que certo
No bem morrê de fome...
Na fim de jogo, no al pode co peso
Na nos triste cabeça?
No al pode co despreso?
Debagarinho, Deus, na ca tem pressa...
Cusas des mundo! No estâ vivê nel
Amá, té quando no al entendel?
(TMCC, p. 45).
Coisas desse mundo...
Se quem ri tem pouco sentimento,
Quem chora é mulher...
Quem fala tem cabeça no ar,
Quem não se cala é oportunista…
Quem mora no campo não quer convívio
Convívio com gente correta…
Quem coloca a mão no peito
Para pedir a Senhor Deus que o mate, é abençoado
São coisas desse mundo! E nós vivemos nele
Mas, até quando ó Deus, havemos de entendê-lo?
Se batermos em mulheres, não teremos crédito,
Perderemos logo o nosso nome…
Se nossas mulheres nos baterem, é mais que correto
Vamos morrer de fome
No fim do jogo, vamos estar com muito peso
Na nossa triste cabeça?
Seremos vistos com desprezo?
Devagarzinho, Deus, não temos pressa…
São coisas desse mundo! E nós vivemos nele
Mas, até quando havemos de entendê-lo?
Nesta morna percebe-se nitidamente o princípio brincalhão e satírico originário
de mornas da ilha da Boavista (algumas delas reescritas por Eugénio Tavares),
mornas-comentário” (LIMA, 2001, p. 263)
52
que exploravam o caráter lúdico
provavelmente colhido nos finason da ilha de Santiago, em que as finadeiras criticavam
ou ironizavam comportamentos sociais com funções normativa e morigeradora.
No texto que apresentaremos a seguir, unido aos anteriores pelo fio do apelo à
religiosidade católica, a mãe (ou a ama de leite) embala o bebê para dormir e, ao mesmo
tempo, trata da grande questão do ser humano que é apartado de seu ninho-“colo
materno” e jogado no mundo aberto da vida e, posteriormente, no sono da morte (como
o homenageado comandante Adelino de Oliveira). Aqui, a função da cantiga de ninar,
em consonância com os costumes cabo-verdianos, é expulsar o mal do sono e da vida
do menino: Não, ó menino não,/ Sombra ruim sai daqui!/ Não, ó menino não,/ Deixa
meu filho dormir...
52 Nomenclatura usada por Lima e extraída de texto de António Aurélio Gonçalves.
184
Ná, ó menino ná...
À alma do malogrado comandante Adelino de
Oliveira
Ó rosto doce de ojo maguado,
Es bo cudado
Botal pa traz!
Nhor Des ta dano um bida de paz,
Ó nha Pecado
De ojo maguado!
Ná, ó menino ná,
Sombra rum fugi de li!
Ná, ó menino ná,
Dixa nha fijo dormi...
Sono de bida, sonho de amor,
Ou graça, ou dor,
Es é nós sorte...
Se Deus, más logo, mandano morte,
Quem que tem medo
Ta morrê cedo.
Toma nha ombro, encosta cabeça,
Ja’n dabo peto,
Amá ragaz!
Ó esprito doce, ca bo tem pressa:
Deta co geto,
Dormi na paz... (TMCC, p. 35).
Não, ó menino não...
À alma do malogrado comandante Adelino de
Oliveira
Ó rosto doce de olho magoado
Essa tua preocupação
Joga-a para trás!
Senhor Deus nos dará uma vida de paz,
Ó meu pecado
De olho magoado!
Não, ó menino não,
Sombra ruim sai daqui!
Ná, ó menino ná,
Deixa meu filho dormir...
Sono da vida, sono do amor,
Ou graça, ou dor,
Essa é a nossa sorte...
Se logo mais, Deus me mandar a morte,
Quem tem medo
Morre cedo
Toma o meu ombro, encosta a cabeça,
Já te dei de mamar,
Ama o colo!
Ó espírito doce, não tenhas pressa:
Deita bem,
Dorme em paz...
A respeito das cantigas de ninar, esclarece Nuno Miranda que “a literatura oral
compete enquadrar as canções de embalo que ficaram pairando das vozes não
esquecidas da escrava ama”
53
, já que as relações afetivas entre as amas e os filhos dos
patrões terão sido “um dos fatores determinantes na criação e modelação da morna
(LIMA, 2001, p. 261). Essas amas, muitas delas cantadeiras (kantaderas), foram
compositoras das mornas dos tempos remotos.
Em síntese, Eugénio Tavares, em sua obra poética, descortina uma
representação da cultura cabo-verdiana e imagens de Cabo Verde de riqueza tal que
fornecem até os dias de hoje material para aqueles que querem refletir sobre a formação
e a evolução das formas literárias e musicais em língua portuguesa e, especialmente,
crioula. Os temas que aborda, o percurso da morna que traça, as partituras que compõe
(como não iniciado, mas pleno de conhecimento prático da música) ajudam a compor o
retrato de uma época e de um povo.
53
Apud LIMA, 2001, pp. 261-262.
185
Como grande defensor da utilização da língua de berço, Eugénio Tavares foi
um dos primeiros escritores a registrar para a posteridade as tradições cabo-verdianas,
transferindo para o papel o patrimônio imaterial de sua gente, que não poderiam ser
melhor expresso senão na língua “sabe” de todos os cabo-verdianos: o crioulo.
Segundo a lenda, quando Tatai (apelido carinhoso dado pelo povo a Eugénio
Tavares) morreu, a ilha Brava chorou e uma jovem da fonte de Vinagre exclamou: “Si
Nhô Eugénio dja morrê, Dja Brava dja caba!”
REFLEXÕES CONCLUSIVAS
O exemplo da vida de Eugénio Tavares impressiona, sobretudo,pela coerência da sua
fidelidade a Cabo Verde, afirmando-se como um dos precursores da caboverdianidade.
Manuela Ernestina Monteiro
Em recente entrevista realizada em Cabo Verde, cidade da Praia, com o
investigador e Pró-Reitor de Pesquisa da Universidade de Santiago, Professor Doutor
Manuel Brito-Semedo (dezembro 2009)
54
, sobre a obra e a personalidade de Eugénio
Tavares, indagávamos a opinião de Semedo a respeito da inexistência de uma leitura
mais atenta da obra tavariana, em especial da sua poesia em língua portuguesa, assim
como sobre alguns pré-conceitos que postulam ser esta produção menos significativa do
que a poética em língua crioula. Brito-Semedo assim se pronuncia:
Quando se fala da poesia de Eugénio Tavares, fala-se, sobretudo, da
poesia crioula. Eugénio Tavares, para fazer tudo o que fez, em termos
de plasticidade da ngua cabo-verdiana, teria que conhecer
muitíssimo bem a ngua portuguesa. Ele traduz o clássico de Camões
a endecha “aquele bonitu escraba que tem n’catibu”, dedica o livro de
poesia Mornas cantigas crioulas a João de Deus e faz versões de
poemas para o crioulo. Portanto, ele teria de conhecer muitíssimo bem
o idioma luso. Mas isto é para dizer que Eugénio Tavares, de fato,
passa a ser conhecido e estudado a partir do excelente trabalho que
Félix Monteiro fez de recolha em três livros da sua publicação
dispersa. O que as pessoas conheciam de Eugénio Tavares até
relativamente pouco tempo era somente produto da oralidade, da
memória coletiva. Somente a partir de 2000, propriamente, ele é
reconhecido politicamente, os livros são publicados [...]. O que era
conhecido de Eugénio Tavares era, em termos da poesia, a morna, e
esta faceta bem popular (o popular, somente o popular). Portanto, o
popular, o erudito não era conhecido. E somente agora as pessoas
passam a conhecer os textos relativos a essa vertente jornalística,
polemista etc (2009).
A marca de nossa pesquisa e desta tese reside, portanto, na leitura vertical da
produção eugeniana pouco conhecida, tanto do público quanto da academia. Como
complementa Brito-Semedo, nesse século XXI, a partir da publicação das recolhas de
Félix Monteiro, “há interesse [...], Eugénio é estudado ao nível das cátedras, das
universidades”.
54
Por Genivaldo Rodrigues Sobrinho e Grupo de Estudos Cabo-verdianos de Literatura e Cultura CNPq,
USP, líder Simone Caputo Gomes, em processo de trasncrição para futura publicação.
187
O desconhecimento, até então, da obra literária de Eugénio Tavares, justifica
certos juízos de valor precipitadamente que lhe têm sido atribuídos. Esclarece Semedo:
Penso que é preciso relativizar; às vezes, fazem-se certas afirmações,
porque não se conhece tudo o que ele produziu. A poesia em língua
portuguesa não era muito conhecida e fazem uma afirmação dessas,
quando não se conhece completamente essa outra vertente; cosidera-se
que Eugénio Tavares é um excelente poeta, sobretudo, em crioulo,
porque conhecemos mais, em termos da quantidade, esta produção.
Mas de qualquer forma, é um excelente poeta em ngua portuguesa
também. Essa é a minha opinião. Portanto, é preciso estudar essa
produção de Eugénio Tavares em língua portuguesa (Ibidem).
Procuramos, em nossa pesquisa, demonstrar como, desde a prosa de
intervenção social, exposta na produção em periódicos e na produção epistolar até a
poesia, veiculada nas nguas portuguesa e cabo-verdiana, o amor a Cabo Verde, em
todas as suas formas, é a tônica da obra de Eugénio Tavares.
Se é certo que Eugénio Tavares elegeu o amor como tema principal da
sua produção poética, o amor é, igualmente, o sentimento que enforma
a parcela mais significativa da presente compilação [da obra em
prosa]. O amor intenso e devotado à terra-mãe, muito particularmente
à ilha de nascimento, e ao cabo-verdiano humilde, que procurou
defender com a única arma de que dispunha: a sua pena de homem
letrado, culto e dotado de grande sensibilidade (MONTEIRO, 1999, p. 5).
Mestre Eugénio teve como escopo defender a identidade e a língua cabo-
verdianas, para a formação e sedimentação das quais contribuiu, dignificando tanto a
“personalidade” do homem crioulo quanto conferindo beleza e estatuto literário à sua
máxima expressão, a língua.
Em consonância com a proposta de Stuart Hall (1997) para conceituar
identidade, a figura simbólica de Eugénio Tavares, a força de sua combatividade
jornalística e, sobretudo, de sua poesia, especialmente a que se comunicava com o
homem comum pela via da morna, ajudou a forjar uma “identidade cultural” ancorada
em aspectos coletivos relacionados à pertença crioula – emocional, linguística, religiosa,
regional e/ou nacional. Tavares começa a delinear a noção de nação como sistema de
representação cultural, produzindo na totalidade de sua obra sentidos (estórias,
memórias, sentimentos, imagens) com os quais os cabo-verdianos de todas as classes se
identificavam, à sua época, e se identificam ainda hoje, guardadas as proporções entre
um Cabo Verde colônia e a nação atual, de desenvolvimento médio.
188
Embora defendendo os seus ideais político-sociais e a melhoria da qualidade de
vida do povo cabo-verdiano prioritariamente em língua portuguesa, para melhor atingir
os objetos de suas denúncias (os governantes), assim como alcançando altos níveis de
lirismo amoroso e de crítica social na poesia em língua lusa (das quais nunca esqueceu
os grandes mestres como Camões, João de Deus e Antero), Eugénio postulava que “o
dialeto cabo-verdiano” podia ser grafado, além de falado (TPJ, pp. 218-219).
Desta opção por retratar Cabo Verde e sua cultura também na língua de seu
povo, surgem as mais belas mornas e novas modalidades da morna concebidas pelo
espírito amorável da ilha das flores, a Brava. Eugénio acrescentou à morna originária da
Boavista, de teor mais satírico, o tempero do amor, tanto de raiz romântica lusa
(sentimento compartilhado pelos poemas de idealismo amoroso em língua portuguesa)
quanto de teor realista crioulo, tematizando a possibilidade de reciprocidade por parte
da “cretcheu”, trazendo os dilemas e contrastes amorosos para o terreno da realidade
popular. O amor correspondido, na obra de Eugénio, que supõe ação por parte da amada
(“amarra-me”), é uma possibilidade de retirar a mulher cabo-verdiana de um estado
de passividade que seria evocado pela postura estática das musas camonianas e
petrarquianas que inspiraram a poesia eugeniana de língua portuguesa. Nas mornas, a
comunhão entre a amada e o amador é um traço de modernidade.
O desencanto, o desconcerto do mundo também foram assuntos abordados,
tanto na prosa quanto na poesia, com destaque para a leitura do desconcerto pelo viés da
obra camoniana, evidenciada na poesia de língua portuguesa. A presença de Camões é
tão forte na arte eugeniana que ele chega a verter poemas do mestre luso para o crioulo.
No que toca aos textos publicados em jornais e à epistolografia, o desconcerto
do mundo coincidirá, em grande parte, com a crítica ao “desgoverno” colonialista em
Cabo Verde. A incapacidade e o desinteresse dos administradores pelos problemas de
infraestrutura em Cabo Verde, à época da escrita de sua obra, as questões relativas à
emigração espontânea ou forçada, o preconceito dos europeus brancos contra os cabo-
verdianos, a possibilidade de venda das colônias, entre outros temas sociais, levam Nhô
Eugénio a atacar com veemência, em prosa e poesia em língua portuguesa,
especialmente, os mandatários coloniais e a propor soluções eficientes para problemas
crônicos como as crises de seca e fome.
A emigração espontânea, mormente para os Estados Unidos da América, já era
apresentada pelo jornalista Eugénio como solução para o desenvolvimento de Cabo
189
Verde (consideremos que, hoje, a diáspora é a décima primeira ilha, rendendo divisas
necessárias à nação), tendo a temática destaque também na sua epistolografia e na sua
poesia. No artigo “Questões Económicas”, publicado em A Voz de Cabo Verde, o
intelectual declara que o cabo-verdiano, nas terras para onde vai trabalhar ,“vai procurar
seiva para aprofundar e fortalecer as raízes que deixou nas suas ilhas”. Na carta “Noli
me tangere”, Eugénio define a emigração como “factor de progresso” que deve ser
fomentado e defendido (
TVTCP,
p. 232).
A emigração para S. Tomé, porém, é rejeitada por Eugénio Tavares, tanto na
produção em prosa quanto nas mornas, pelo argumento contrário: não favorece o
desenvolvimento e dizima famílias, com a doença ou a morte dos trabalhadores nas
roças, impossibilitando o seu regresso à terra de origem.
No combate, por meio da palavra, em prol da qualidade de vida para a
população cabo-verdiana, Eugénio advogou o direito à instrução de qualidade, para que
os cidadãos crioulos pudessem conscientizar-se e exercer atuação política. O jornalista
Eugénio Tavares não se conformava, também, com a pouca iniciativa dos povos das
colônias portuguesas na África, por não lutarem pela autonomia face a um regime que
reputava “de sujeição” (
TPJ,
p. 174). “A África para os africanos” (TPJ, p. 70, artigo
“Autonomia”), na virada do século XIX para o século XX, era uma proposta bastante
ousada, lançada a partir do exílio.
Quanto à discussão sobre o “caráter ou personalidade” do homem cabo-
verdiano, Eugénio Tavares, no texto “Os indígenas de Cabo Verde são desleixados,
indolentes e bêbados?”, recusa as opiniões preconceituosas dos “brancos” detentores de
cargos administrativos e acaba por generalizar o tópico da bebida: “Porque é que haveis
de atribuir ao preto, e ao preto, um vício que está generalizado em todo o mundo e
em todas as camadas sociais? (TPJ, p. 106). O argumento encontra eco também no
discurso poético em língua portuguesa, como o demonstramos no segundo capítulo,
comprovando que as preocupações eugenianas com os direitos, a moral, a justiça em
Cabo Verde se desdobravam em todo o mosaico de sua produção literária.
Além da defesa dos fracos, dos marginalizados e da bandeira da cabo-
verdianidade, Eugénio Tavares, desde muito cedo, pugnou pelos valores republicanos e
democráticos, pela liberdade de expressão e direitos da imprensa. Por esses motivos, por
seu espírito polêmico, suas convicções políticas e pelo alcance de sua escrita, foi temido
e atacado por ferozes adversários, sendo, em conseqüência, alvo de perseguições.
190
Por outro lado, o homem preocupado com questões sociais, políticas e
filosóficas encontra no amor o seu grande tema, que o consagra na memória cabo-
verdiana das mornas (complexo de poesia, música, dança) em língua crioula, mas não
deixa de pontificar também na poesia de língua portuguesa. Nesta, o poeta apresenta,
com ecos camonianos, as constantes contradições amorosas, retomando uma linha
temática universal da angústia de amar, produtora de textos antológicos de grandes
escritores como Petrarca, Góngora, Luís de Camões, aos quais se irmana.
A postura romântica manifesta-se tanto na poética em língua portuguesa quanto
nas mornas crioulas, tendendo para o ultrarromantismo tardio na primeira, como
buscamos demonstrar no segundo capítulo. No que toca à morna, como enfatiza
António Germano Lima, nela também repercutirão tonalidades e melodias do fado,
assim como da lírica camoniana (2001, p. 244), mas Eugénio aos poemas em língua
cabo-verdiana temperos tipicamente crioulos que, segundo Manuela Ernestina
Monteiro, desenham a “epopéia sentimental” da nação (1999, p. 5).
Para o poeta Luís Romano, “quando as mornas de Nhô Eugénio são
anunciadas, como que uma homenagem sentida àquele que soube ler no coração das
pessoas” (1986, p. 7) e, mais que tudo, no coração cabo-verdiano.
Em síntese, o lirismo amoroso constitui a linha forte da poética eugeniana,
como ressalta Gabriel Mariano (1991, p. 126) e, reiteradamente no bloco de língua
portuguesa, pode revestir-se de uma carga de idealismo, de religiosidade cristã ou
mesmo de redenção sacralizante dos males do mundo. O “Mal de amor”, cantado nas
línguas portuguesa e cabo-verdiana, reveste-se de semelhante inspiração romântica, em
que o cenário natural intensifica o estado psicológico do eu, que, num ambiente de
soturnidade, vive a sua solidão, o seu desencanto pelo abandono.
Quanto à forma dos poemas, as mornas são expressas em quadras populares,
com alguma frequência, mas podem apresentar variações nesse sentido; os poemas em
língua portuguesa também variam, embora o soneto seja a estrutura predominante,
sobretudo quando o assunto do texto é filosófico ou amoroso.
Uma linha de abordagem que pode acarretar confluências entre as poéticas de
língua portuguesa e crioula a par dos núcleos temáticos semelhantes, que recortamos
em ambas centraliza-se nas funções que Eugénio Tavares empresta às mornas, assim
como aos poemas em língua lusa. Já afirmamos, com apoio de Luís Peixeira, que a
morna “conta histórias, descreve paisagens e estados de alma, satiriza condutas” (2003,
191
pp. 171). Esta asserção vale também para poemas expressos no idioma luso, com um fio
narrativo, como “Perdida”, “O pescador”, “Noite de S. João”, “Ressurreição”, entre
outros; que descrevem paisagens e estados de alma, como “Chico e Berta”, “Triste
regresso”, “Os tristes”, “O exilado”; e satirizam condutas, como os sonetos do que
podemos denominar “ciclo social da iluminação pública e do saneamento”.
Para Isabel Lobo, na poesia de Eugénio, dominam as seguintes linhas de força:
o descritivo, como louvor da terra; o descritivo como expressão do ‘eu
face à Natureza abstractizada; o amor e demais sentimentos como
expressão do ‘eu’ face ao sublime; a crítica e a sátira, ligadas ao descritivo
ou ao factual, como expressão doeuface ao real” (1996, p. 6).
Embora a morna lírica, do estado-de-alma (correlata, nos poemas de língua
portuguesa, aos textos de idealismo amoroso), seja a vertente da modalidade bravense
(e, mais tarde, nacional) para a qual mais contribuiu Eugénio Tavares, outro núcleo
rentável para o estudo das mornas eugenianas e dos poemas em língua portuguesa é o
do terra-longismo, que engloba subtemáticas como: a partida, o exílio, a saudade, o
mar. A Hora di bai eugeniana poderia constituir uma divisa da bandeira cabo-verdiana:
ao chegar ao aeroporto da Praia e adentrar o território crioulo das ilhas, acolhem-nos,
num monumento, os versos de Eugénio Tavares: “Se kabadu, ka ta biradu(“Quem não
parte, não regressa”), endereçados, sobretudo, aos cabo-verdianos que se afastavam, por
algum motivo, da terra-mãe.
A emigração, encarada como consequência dos dramas da seca e da fome pelos
claridosos fundadores, se reveste de uma visada moderna e atual nos escritos em
prosa e verso do pré-claridoso Eugénio, demonstrando o espírito visionário do
intelectual nativista.
Para concluir, também os aspectos filosóficos e religiosos da sociedade crioula
não escaparam à minúcia do escritor que, na poética de língua portuguesa, privilegia ora
os contornos filosóficos do Amor, da Justiça e da Verdade, ora a religiosidade católico-
cristã: e, na poética crioula das mornas, enfatiza a filosofia popular.
O princípio brincalhão e satírico, originário do espírito coletivo e das mornas
da ilha da Boavista, ladeia o sentimentalismo amoroso do espírito da Brava,
proporcionando ao leitor momentos da mais aguda crítica e de refinado humor: a prosa
jornalística e epistolar, os poemas em língua portuguesa e as mornas trabalham temas
do cotidiano cabo-verdiano usando a palavra como arma para acutilar a incúria
192
administrativa. A produção em língua portuguesa, nesse particular, torna mais
veementes as denúncias, porque, segundo Brito-Semedo, “o homem cabo-verdiano,
quando quer falar dos sentimentos, usa a língua materna; quando quer assumir outras
posições, usa a língua portuguesa” (2009), como no caso dos posicionamentos políticos
e sociais, em discursos diretamente endereçados aos mandatários coloniais.
Estendendo a toda a obra eugeniana (ao incorporar a lição de Brito-Semedo, na
entrevista de 2009, de que “não é possível separar o Eugénio Tavares poeta do Eugénio
Tavares jornalista”) o que detecta Tomé Varela da Silva, a partir da produção
jornalística, podemos:
realçar traços importantes da sua personalidade e carácter, patentear
detalhes da sua visão, ressaltar a consciência que ele tinha da sua
inserção no meio, apontar a crueza do seu realismo e focar, de alguma
forma, o vigor do seu pensamento e a luminosidade da sua mensagem.
[...] Aspectos educacionais, pedagógicos, antropológicos,
administrativos, económicos, políticos, jurídicos lingüísticos,
religiosos, humanitários e humorísticos, encontram-se retratados e
poderão certamente prestar-se a reflexões diversas e deleites mil, para
além de espalhar uma vasta e sólida bagagem informativa e cultural
do seu ilustríssimo autor (1998, p. 59).
Desta forma, procuramos, em nossa pesquisa, abarcar as multifacetadas
nuances temáticas e formais da produção em prosa e poesia de Eugénio Tavares, tendo a
absoluta certeza de que não conseguimos, nem de perto, alcançar a magnitude de sua
significação para a Pátria que tão bem soube enaltecer. Resta-nos o consolo de que o
esforço foi grande e a missão continuará em etapas vindouras.
Fica-nos na memória, que se alinha à memória coletiva do povo ao qual Nhô
Eugénio devotou a sua vida e a sua obra, a sua imagem:
Outrossim, a temática tão ligada ao imaginário colectivo de um
Eugénio Tavares belo, perseguido, fugindo da Brava vestido de
mulher, emigrando para a América, constantemente apaixonado,
mornista exímio, fazem com que a sua imagem mantenha uma ‘aura’
quase mítica, até aos dias de hoje (LOBO, 1996, p. 8).
Todos os epítetos
55
que lhe são atribuídos, em suma, devem-se ao merecimento
que Cabo Verde reconhece e que Manuel Brito-Semedo assim resume, alçando-o ao
estatus de ícone crioulo:
55
O Camões de Cabo Verde; tradutor do sentimento da Raça; precursor do nativismo cabo-verdiano;
grande vulto da cabo-verdianidade; o primeiro filólogo do crioulo; o primeiro poeta genuinamente cabo-
193
durante um período de mais de 30 anos, mais ou menos de 1890 até
1930, quando de sua morte, Eugénio marcou profundamente a cultura
cabovediana, em termos de sua produção, porque ele produziu até o
fim da vida. Em termos de jornalismo, em termos do social, da
política. Eugénio é marcante. Para mim, é o máximo! Depois dele só
viriam outros que, para mim, são marcos de outras gerações como
Baltasar Lopes e Amílcar Cabral. Mas como Eugénio, só Eugénio! (2009)
Nossa pesquisa tentou fazer jus a esse símbolo crioulo, embora com a intenção
de trazer o mito para o campo da realidade de sua escrita literária, ainda pouco estudada
e pouco divulgada.
verdiano; retratista incomparável da sociedade de seu tempo; príncipe dos jornalistas cabo-verdianos.
Recebeu postumamente a Ordem do Dragoeiro da Presidência da República de Cabo Verde.
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_________________. Eugénio. Eugénio Tavares: pelos jornais... MONTEIRO, Félix
(Recolha, organização e prefácio). Praia, Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco,
1997.
_________________. Eugénio Tavares viagens,tormentas, cartas e postais. Recolha,
organização e notas biográficas de Félix Monteiro. Prefácio de Manuela Ernestina
Monteiro. Praia: Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1999.
_________________. Eugénio Tavares – poesias, contos, teatro. Recolha de Félix
Monteiro. Organização e introdução de Isabel Lobo. Praia: Instituto Caboverdiano do
Livro e do Disco, 1996.
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