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CENTRO DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE
IDENTIDADE NEGRA E MODERNIDADE NA OBRA DE
LIMA BARRETO
Jackson Diniz
Campina Grande/PB
2010
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Jackson Diniz
IDENTIDADE NEGRA E MODERNIDADE NA OBRA DE
LIMA BARRETO
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de Mestre em
Literatura e Interculturalidade, Curso de Pós-
Graduação em Letras, Departamento de
Letras e Artes, Universidade Estadual da
Paraíba.
Orientadora: Profª Drª Rosilda Alves Bezerra
Campina Grande/PB
2010
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TERMO DE APROVAÇÃO
Jackson Diniz
IDENTIDADE NEGRA E MODERNIDADE NA OBRA DE
LIMA BARRETO
_______________________________________________________________
Profª Drª Rosilda Alves Bezerra (Orientadora)
Mestrado em Literatura e Interculturalidade – UEPB
_______________________________________________________________
Profª Drª Lílian de Oliveira Rodrigues (Examinadora externa)
Programa de Pós-Graduação em Linguagem - UERN
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Luciano Barbosa Justino
Mestrado em Literatura e Interculturalidade – UEPB
Campina Grande, 26 de março de 2010.
A meus pais, João Vieira de Sousa e Francisca Natividade Diniz Vieira, aos
quais devo a razão de minha existência. Dedico.
AGRADECIMENTOS
À minha Orientadora, Rosilda Alves Bezerra, pela paciência, brilhantismo e
carinho com que conduziu a orientação desse trabalho.
Aos professores Zuleide Duarte, Luciano Barbosa Justino, e Lilian de Oliveira
Rodrigues, por aceitarem participar das bancas de qualificação e de defesa
deste trabalho, bem como pelo auxílio nas atividades acadêmicas e
empréstimo de material.
Aos professores e funcionários do mestrado em Literatura e Interculturalidade,
pelos belos ensinamentos e pela presteza com que nos trataram.
A meu Deus, criador de todas as coisas, que me deu sabedoria e forças para
enfrentar as agruras e dissabores nos momentos difíceis, bem como por ter
preenchido o meu coração, dantes, com sonhos, agora com alegria para
desfrutar os louros da vitória.
A meus pais pela forma humilde, porém carinhosa com que me educaram e me
incentivaram na realização deste trabalho, fazendo-me crer que os sonhos
podem ser realidades.
A meus irmãos (Roselina, Maria José, Ruama, Jarison, Jadierison e Jeziel)
pelo apoio e compreensão.
À amada de minh’alma, Aflânia Dantas Diniz, pelo carinho, ternura, afeto e
companheirismo;
Aos amados colegas do mestrado, em especial Ananília Meire, Marilia Maia,
Stefanya e Luciano Nunes, pelos bons momentos em que compartilhamos
sonhos e conhecimentos.
A todos os amigos que contribuíram direta ou indiretamente, com gestos de
carinho, palavras de apoio e incentivo para que a concretização deste sonho
fosse possível. A todos, muito obrigado.
Porque... o que é verdade na raça branca, não é
extensivo ao resto; eu, mulato ou negro, como queiram,
estou condenado a ser sempre tomado por contínuo.
Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia
desse desgosto e ele farme-á grande. (Lima Barreto)
RESUMO
A problemática da identidade tem se tornado um tema relevante na
modernidade, que se apresenta como um momento de transformação do
pensamento e, consequentemente, das estruturas sociais, como também se
caracteriza por um momento de intensos debates e de teorizações sobre
etnias. Este é um período em que as teorias racistas ganham espaço em todo
o mundo, apregoando a diferença natural e biológica entre os vários grupos
humanos, utilizando a ciência como força de legitimação da inferioridade de
grupos étnicos. Nesta perspectiva, a identidade de grupo, ou do sujeito
pertencente a grupos socialmente marcados, no nosso caso o negro, ocupa
amplo espaço dentro dos estudos culturais e sociais. Neste espaço, a literatura
de Lima Barreto se apresenta como uma fonte viável para se observar de que
forma este escritor se frente à sociedade burguesa e cosmopolita de início
do culo XX e como constrói seus personagens na teia das relações sociais.
Assim, lançamos mão do instrumento da pesquisa bibliográfica, analisando
algumas obras do escritor, lançando um olhar mais aprofundado em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Diário Íntimo, através das quais foi
possível perceber que uma relação muito próxima do pensamento do
escritor carioca e o de pensadores contemporâneos sobre a temática da
identidade, especialmente identidade negra. Lima Barreto se apresenta e
apresenta seus personagens como negros, provocando um processo de
afirmação da identidade negra. Através dos escritos deste autor, pode-se
perceber que ele tinha uma visão profunda da conjuntura social brasileira,
elucidando o conflito social que se estabelece nas relações sociais, procurando
sempre transcender do individual para o coletivo, do local para o universal.
Com uma boa percepção crítica da realidade e com fortes doses de sarcasmo
e ironia, Lima Barreto mostra que a identidade que se criou do negro, bem
como a forma como este se enxerga frente a outros grupos sociais é uma
construção cultural que atende aos interesses de uma elite branca detentora do
poder de formação de opinião, como também aparelhada de instrumentos
capazes de criar estereótipos humanos.
Palavras-chave: identidade, modernidade, sujeito, racismo, Lima Barreto
ABSTRACT
The problem of identity has been becoming an important theme in the modernity, that we
present as a transformation moment of thought and, consequentely, of the social structures, as
well as we characterize for an intense debates and theoretical moment about races. This is a
period in which the theories racists take space all over the world, divulging the natural and
biological difference among several human groups, using the science as inferiority legitimation
force of ethnic groups. In this perspective, the identity of group or of the belonging subject for
socially marked groups, in our case the negro, occupies wide space inside the cultural and
social studies. In this space, the literature of Lima Barreto, presents as a viable strong to
observe what form this writer front to the bourgeois society cosmopolitan at the beginning of 20
th
century is seen and as it builds his characters in the web of the social relations. We thus seize
upon the instrument of the bibliographical research, analyzing some writer's works, launching
one look deepened most in The Sad End of Policarpo Quaresma. Clerk memories Isaías
Caminha and Intimate Diary, through which ones went possible to realize that there is a very
next relation of the carioca thought writer with the one of contemporary thinkers about the
thematic of the identity, especially of the black identity. Lima Barreto presents himself and
presents his characters as black, provoking an affirmation process of the black identity. Through
the written this author, it can realize that he had a profound vision of the Brazilian social
conjuncture, elucidating the social conflict that establishins the social relations, always
searching transcend of the individual for the collective, of the location for the universal. With a
good critical perception of the reality and with sarcasm and irony strong doses, Lima Barreto
exhibition that the quality that was created the negro, as well as the form as this exaggerates
front to other social groups is a cultural construction that attends to the interests of a formation
power white elite detainer of opinion, as well as equiped of able instruments of create human
stereotypes.
Keywords: identity, modernity, subject, racism, Lima Barreto
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................09
CAPÍTULO 1- CULTURA E IDENTIDADE NA MODERNIDADE.....................13
1.1 Considerações sobre a identidade na modernidade...................................13
1.2 Cultura e identidade brasileira: concepções teóricas..................................21
1.3 Lima Barreto: Um estranho no Brasil da Belle Epoque...............................33
CAPÍTULO 2 - LIMA BARRETO: O ESCRITOR NEGRO E A CRÍTICA
LITERÁRIA........................................................................................................47
2.1 O escritor e sua época: o cientificismo e o fascínio da ideologia racial no
Brasil..................................................................................................................47
2.2 Lima Barreto na contramão da crítica: entre a literatura e a
sociedade...........................................................................................................57
2.3 Vida e posicionamento: a escolha pela margem.........................................72
CAPÍTULO 3 - AUTO-IDENTIDADE E IDENTIDADE ATRIBUÍDA: O NEGRO
E O OUTRO EM DIÁRIO ÍNTIMO E RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS
CAMINHA..........................................................................................................78
3.1 Auto-identidade: imagens de si em Diário íntimo........................................78
3.2 Identidade atribuída: o negro e o outro........................................................86
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................110
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA...............................................................114
INTRODUÇÃO
Os estudos sobre a temática da identidade têm se mostrado cada vez
mais frequentes na atualidade, graças à sua importância e pertinência nos
debates realizados, principalmente, nas áreas das ciências sociais. Os estudos
culturais promovem uma singular contribuição para uma maior amplitude dessa
discussão, procurando entender como é construída a identidade do sujeito
moderno, que passa por um processo de fragmentação, e vive um momento de
indefinição, cujas identidades fluidas são formadas a partir das negociações e
embates travados no campo das relações sociais. No entanto, quem
questione o caráter fragmentário da identidade, mediante a percepção de
atitudes do sujeito moderno que se caracterizam como forma de reafirmação
de sua identidade.
A partir dessa perspectiva, realizamos um estudo voltado para a análise
da identidade do negro, tomando como base parte da literatura do escritor
carioca Lima Barreto, que viveu e produziu sua obra no período denominado
pela historiografia literária didática como Pré-modernismo. Lançamos o nosso
olhar em duas perspectivas temáticas: o estudo da identidade, a partir dos
estudos culturais e das relações sociais; e a compreensão das relações de
raças, os conflitos político-ideológicos travados nesse campo, especialmente
no século XIX no Brasil.
Na tentativa de elucidação de alguns conceitos, tais como racismo e
discriminação, atinentes a esse campo de estudo, nosso objetivo concentrou-
se em investigar de que forma o escritor Lima Barreto se posiciona em seus
textos, um eu-narrador que identifica-se como negro e como as personagens
de seus escritos posicionam-se de acordo com seus discursos e atitudes, no
que diz respeito à construção de identidade
A literatura é um instrumento viável para se vislumbrar em tais
temáticas, uma vez que, ao escrever, o autor traz para o seu texto ecos de seu
tempo, sendo possível se perceber, através do texto literário, o pensamento de
uma
determinada época, bem como a forma de concepção das relações que se
anunciam nas tramas da produção literária.
Os princípios introjetados sobre a representação do negro na sociedade
distorcem os pressupostos básicos da identidade e refletem o retrato
desfocado de rostos há muito aviltados por supostas diferenças epidérmicas.
No que diz respeito ao contexto histórico, pomos um divisor de águas
em nossa análise, o período republicano tendo como marco histórico inicial a
Proclamação da República e como marco final a Semana de Arte Moderna.
Neste sentido, evidenciamos o pensamento de intelectuais desse período
sobre essa temática, tomando como base os aspectos culturais e sociais
plasmados na literatura produzida no período, utilizando a título de referências
alguns fatos históricos que são marcantes e decisivos na história moderna do
Brasil.
O final do século XIX é um momento significativo para a história do
Brasil, dadas as mudanças ocorridas na base política e social do país, que
passa por profundas transformações econômicas, sociais, culturais etc. Na
literatura brasileira, surgem escritores que se engajam em pensar a causa do
negro. Cite-se como exemplo Cruz e Sousa, que era filho de escrava liberta e
dedicou a sua literatura, em alguns breves momentos, a denunciar o racismo,
no exemplo de “Emparedado”, embora não tivesse um plano de redenção e
inclusão do negro na sociedade moderna.
No início do século XX, entra em cena, na literatura brasileira, Lima
Barreto. Sua literatura não é apenas de denúncia da discriminação e do
racismo, mas também de identificação com o negro, e das variadas
características modernas nas obras estudadas.
Segundo Machado (2002, p.55), em Lima Barreto, ficção e realidade se
confundem, “caminham juntas a retratar os dramas pessoais e a vida da
época”. A literatura de Lima Barreto nos leva a pensar o negro como elemento
da brasilidade, ou seja, como elemento de formação da identidade nacional.
Como observa Proença Filho (2004, p.76), Lima Barreto tem uma atitude de
comprometimento com o negro, o seu olhar sobre o negro é um olhar de dentro
para fora, ou seja, é olhar o negro do ponto de vista do negro, como o próprio
Lima se dizia ser.
O escritor carioca conseguiu perceber uma sociedade plural formada
pelas várias etnias e pelos vários povos que compõem a nossa gente,
revelando esta sociedade, convivendo juntamente, não em harmonia, com seus
problemas e seus males: a exploração do homem pelo homem, a luta das
classes menos favorecidas e o drama dos favelados, que vivem em condições
subumanas na periferia das grandes cidades e tantos outros males da vida
moderna.
Como suporte teórico, utilizamos autores modernos e contemporâneos,
a título de exemplos Homi Bhabha (1998), Stuart Hall (2001), entre outros que
tratam da questão da identidade do sujeito na modernidade tardia, e que
trazem para o campo de debates questões cruciais, principalmente como
compreender processo de construção identitária do sujeito.
A obra literária se apresenta como o meio pelo qual o sujeito expressa,
no plano literário, sua identidade. Portanto, a teoria é convocada para o texto
como forma de corroborar a perspectiva construída no texto literário. A
produção limeriana, graças à sua insistência em abordar temáticas sociais e
existenciais, evidencia uma marca da modernidade.
A temática das raças, amplamente discutida no período da Belle
Époque, evidencia o interesse de intelectuais brasileiros de final do século XIX
em pensar os conceitos de raça e entender as relações raciais no Brasil. Foi
feito um percurso histórico das ideias raciológicas, mostrando que na
contemporaneidade esta temática tem ganhado novos enfoques, mostrando-se
esgotada e inadequada aos paradigmas do pensamento moderno, pelo fato de
seus conceitos conterem uma carga semântica político-ideológica. No entanto,
procurou-se entender como o discurso racial da época influencia a produção
literária. O escritor Lima Barreto, nascido em 1881 e falecido em 1922, cresce
num momento de expansão dos conceitos ideológicos sobre raças. Contudo,
pode-se perceber em sua produção literária uma tendência em romper com os
discursos cristalizados, que atendem aos interesses de uma elite branca e
europeizada.
O entendimento da temática da identidade do negro na modernidade foi
investigado em duas obras de Barreto, que são fundamentais para a ampliação
de horizontes a respeito deste assunto. A primeira obra em análise è
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o primeiro romance de Lima
Barreto, escrito em 1909, mostra a luta de um mulato contra a discriminação e
as dificuldades pelas quais passou no desejo de ser doutor, numa tentativa de
alcançar ascensão social dentro de um regime excludente. Os caminhos pelos
quais Isaías Caminha passou, a configuração do personagem, os atos de fala,
a forma como é tratado pela sociedade, evidenciam o preconceito e a
discriminação praticados pela sociedade da época, bem como serão
importantes no entendimento de como o negro era visto e como se via num
espaço cosmopolita e branco, pelo menos na forma de conceber a realidade.
A segunda obra analisada foi Diário Intimo na qual identificamos a
posição paratópica do autor, graças às peculiaridades da construção literária,
em que o autor se confunde com o narrador. Como observa Maingueneau
(2006), o autor ocupa um não-lugar. Mesmo assim, na perspectiva das vozes
do autor-narrador, trabalhamos com o conceito do olhar de si, procurando
refletir sobre qual a imagem que o negro tem de si mesmo. Portanto, esta
análise abrange duas dimensões da identidade: autoidentidade e identidade
atribuída.
O primeiro capítulo faz uma abordagem teórica sobre a identidade do
sujeito, tratando também de aspectos relevantes no âmbito da cultura e da
literatura na modernidade, procurando entender os principais pontos de
discussão sobre estas temáticas e situando o escritor Lima Barreto dentro
deste contexto.
No segundo capítulo, fizemos uma reflexão sobre a interrelação
existente entre as teorias étnicas e a literatura, situando a produção literária de
Lima Barreto no contexto literário de finais do século XIX.
O Terceiro Capítulo contem a análise das obras literárias escoilhidas
para este estudo, procurando refletir sobre a expressão da identidade do
sujeito nos personagens, apresentando a identidade do negro em duas
perspectivas: a auto-identidade e a identidade atribuída.
Capítulo 1 CULTURA E IDENTIDADE NA MODERNIDADE
Mas... e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha
gente e a parte da raça a que pertenço. Tentarei e seguirei
avante “Alea jacta est”
(Diário Íntimo)
1.1- Considerações sobre a identidade na modernidade
No vasto campo das ciências sociais, os debates mais atuais têm-se
acentuado em torno de temas voltados para a problemática da concepção do
sujeito moderno. Nesse espaço, o tema da identidade ganha relevância. Na
contemporaneidade, tem-se pregado sobre as identidades fluidas como
Bauman (2005) assim as denomina, uma tendência acentuada nos dias atuais
de se perceber a identidade num processo fragmentário. A complexidade
desse tema garante o interesse e atualidade do debate. “Atualmente, no
entanto, a identidade é o ‘papo do momento’, um assunto de extrema
importância e em evidência. Esse súbito fascínio pela identidade, e não ela
mesma, é que atrairia a atenção dos clássicos da sociologia, caso tivessem
vivido o suficiente para confrontá-lo.” (BAUMAN, 2005, p. 23). Com uma
característica de contra discurso, podemos perceber que a afirmação da
identidade tem obedecido a um processo de fixidez, através da afirmação das
identidades dos grupos minoritários. Nesta perspectiva, preferimos vislumbrar
novos horizontes nos quais a identidade pode ser entendida não apenas na
perspectiva da fluidez que tanto se prega nos tempos hodiernos.
É inegável o nculo que se estabelece entre os estudos literários e a
construção de identidade, especialmente a contribuição que tais estudos têm
dado para a redefinição do conceito de identidade, tomando como esteira
nesse debate a literatura que se vincula aos grupos minoritários. Zilá Bernd
(2003) reflete sobre a ligação entre Literatura e identidade, e afirma:
O conceito de identidade torna-se recorrente no domínio dos
estudos literários a partir do momento em que as literaturas
minorizadas no interior dos campos literários hegemônicos
recusam a classificação de literaturas periféricas, conexas e
marginais e reivindicam um estatuto autônomo no interior do
campo instituído. (p.15)
Nessa ótica, a afirmação da identidade é uma forma de reclamar direitos
e espaços negados pela hegemonia, daí entendermos que ela está numa
relação de fixidez em que precisa se fortalecer. No entanto, é de salutar
importância que destaquemos que diferenças metodológicas e conceituais
quando tratamos do conceito de identidade e da afirmação da identidade.
Procuraremos mostrar que o conceito de identidade, ou a compreensão dela,
se apresenta numa relação fragmentária. A afirmação da identidade, por sua
vez, requer meios de fixação, de solidificação. Surge desse dilema a crise de
identidade do sujeito moderno e o crescente interesse pelo estudo da
identidade se deve ao fato de vivermos essa crise, gerando a necessidade de
afirmação da identidade, individual ou grupal, pela idéia de pertencimento.
Nos últimos anos, a classe não mais tem sido vista como suficiente para
afirmar o pertencimento. Portanto, tem- se procurado essa inclusão através da
afirmação da identidade étnica, pertencimento a um grupo geopolítico etc.
Como a classe não mais oferecia um porto seguro para
reivindicações discrepantes e difusas, o descontentamento
social dissolveu-se num número indefinido de ressentimentos
de grupos ou categorias, cada qual procurando a sua âncora
social. Gênero, raça e heranças coloniais comuns parecem ser
os mais seguros e promissores (BHABHA, 1998, p. 20).
Mesmo tendo vivido quase cem anos antes de Bhabha, Lima Barreto
sinaliza na sua produção literária um entendimento da identidade nessa
perspectiva pós-moderna, quando preferia a identificação a partir do
pertencimento a um grupo étnico, e não somente isto, mas a partir do
compartilhamento da cultura do grupo ou das várias culturas que compõem o
arcabouço cultural do povo brasileiro. O romancista não estava preso a um
grupo especificamente, a uma individualidade, antes preferia se filiar a uma
instância maior, num movimento que vai do individual para o coletivo, do
pessoal para o universal, apontando para uma tendência atual.
O afastamento das singularidades de classe ou gênero como
categorias conceituais e organizacionais básicas resultou em
uma consciência das posições do sujeito de raça, gênero,
geração, local institucional, localidade geopolítica, orientação
sexual que habitam qualquer pretensão à identidade no
mundo moderno. (BHABHA, 1998, p. 20)
Encontramos aqui um ponto de intersecção entre a teoria proposta pelos
estudos culturais e a literatura. Na verdade, os estudos culturais elucidam de
forma teórica o que as narrativas literárias se propõem a fazer: construir
identidades. “Portanto, a construção da identidade é indissociável da narrativa
e, consequentemente, da literatura.” (BERND, 2003, p. 19). Daí destacar-se a
importância da análise de narrativas literárias para a compreensão da
identidade.
O conceito de Identidade, porém, é relativo e de complexa definição.
Para alguns autores, não existe uma identidade pronta, acabada, e sim uma
identidade a ser construída. Na definição de Hall, (2001, p. 38) por exemplo,
ela é socialmente construída: “[...] a identidade é realmente algo formado, ao
longo do tempo, através de processos inconscientes, e não inato, existente na
consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo de ‘imaginário’,
fantasiado em sua unidade”. Nesta perspectiva, a identidade é concebida como
algo não-inatista, mas formada nos entrechoques das relações sociais.
Para uma compreensão da identidade é necessária uma compreensão
do sujeito que, na modernidade tardia ou pós modernidade, como preferem
alguns, vive um processo de fragmentação, gerando uma identidade
fragmentada. “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma
única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não
resolvidas” (HALL, 2001, p.12).
Na perspectiva de Hall (2001, p. 13), notificamos que a identidade é
definida historicamente, e não biologicamente. “O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um ‘eu’ coerente.” um ponto polêmico em relação ao sujeito,
uma vez que a identidade pode mudar ao longo do tempo, mas o mesmo
sujeito não ocupa épocas diferentes, ele assume posicionamentos diferentes
em espaços e momentos distintos. Neste sentido, um mesmo sujeito pode
apresentar formas diferenciadas de identidade, conforme a posição que ele
ocupa.
Hall (2001) destaca o conceito de diferença, criado por Jacques Derrida.
Segundo esse conceito, a identidade é formada a partir das diferenças.
Comunga com essa idéia Woodward (2008, p.08) quando afirma: “a identidade
é, assim, marcada pela diferença”. Dessa forma, a afirmação de uma
determinada identidade está contida na afirmação da diferença. Assim,
percebemos que essas mesmas definições e conceituações nos leva de volta a
retomar a teoria de Bhabha (1998):
A representação da diferença não deve ser lida
apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos
preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A
articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é
uma negociação complexa, em andamento, que procura
conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em
momentos de transformação histórica (BHABHA, 1998, p. 20).
O autor supracitado desenvolve o conceito do “entre-lugar”, onde a
identidade do sujeito é formada a partir das negociações, rejeitando a idéia das
polaridades, dos binarismos branco/negro, exterior/interior. Na visão deste
autor, vivemos um momento de “desorientação”, de fragmentação. Assim, a
identidade está num processo constante de negociação que, como vimos, é
conflituoso. O entre-lugar é o espaço dos conflitos e das negociações entre o
eu e o outro.
Discorrendo sobre esse conflito e apoiada em Lévi-Straus (1977) para
quem a identidade é uma entidade abstrata, não possui referente empírico,
Bernd (2003, p. 16-17) aborda dois tipos de identidades: a de primeiro e a de
segundo graus. A primeira é a identidade construída com base em dados
empíricos como a cor da pele ou a pertença biológica ao sexo feminino; a
segunda, também chamada de identidade reflexiva, é aquela que “não se
concretiza em função de um único referente empírico, mas de vários”. A
identidade de segundo grau leva em consideração o principio da alteridade, a
presença do outro. Uma identidade que nega a presença do outro, que o exclui,
leva a uma visão especular e redutora.
Na obra de Lima Barreto, em Recordações do Escrivão Isaías Caminha
percebe-se este conflito na afirmação da identidade de um sujeito que se e
sente-se visto como um ser diferente dos demais.
Percebi que o espantava muito o dizer-lhe que tivera mãe, que
nascera num ambiente familiar e que me educara. Isso, para
ele, era extraordinário. O que me parecia extraordinário nas
minhas aventuras, ele achava natural; mas ter eu mãe que me
ensinasse a comer com o garfo, isso era excepcional. atinei
com esse íntimo pensamento mais tarde. (2006, p.166)
A fala do personagem narrador, Isaías Caminha, é reveladora da forma
como a identidade do sujeito (neste caso o negro) é construída sempre em
relação a um outro imaginário ou real. É a percepção que o outro faz dele que
lhe traz a consciência, a posteriori, do que ele é e como se percebe.
Nesse sentido, Ortiz (1986) discorre sobre a exterioridade da identidade,
cuja formação se por algo que é exterior ao sujeito. “Toda identidade se
define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença” (p. 07). Não
obstante, a identidade pode se afirmar como uma resistência ao outro. Por
isso, a afirmação da identidade, se constitui uma defesa, individual ou grupal,
contra o que é alheio. “A identidade é uma realidade sempre presente em todas
as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema
axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para
definir-se em contraposição ao alheio.” (MUNANGA, 1995, p.66)
Isso se evidencia pelo fato de que a relação com o outro nunca foi nem
é passiva. No que diz respeito a identidade do negro, se considerados os
aspectos históricos, tem sido formada no embate das lutas pela liberdade e
pelo reconhecimento, sendo que isso tem se tornado um fator cada vez mais
freqüente na contemporaneidade. “A sociedade contemporânea assiste à
emergência dessas afirmações de identidade com o desencadeamento de
manifestações abertas de racismo contra os antigos opressores” (BHABHA,
1998, p.15).
Ainda sobre a identidade do negro, Regina Paim Pinto (1995) comunga
com a ideia de que não uma identidade negra que seja fixa, unificada. “De
fato, não se pode falar genericamente de uma identidade negra. Ela adquire
contornos diferentes conforme o momento histórico, o espaço geográfico,
social e cultural de que participa o negro.” (p.116).
Entra aqui o debate das identidades étnicas, amplamente discutidas em
períodos pós-coloniais, uma vez que no sistema colonial os grupos minoritários
ou inferiorizados não eram vistos como elementos constitutivos da formação
étnica das colônias, como também essas identidades são pensadas em outros
contextos como nos movimentos nacionalistas e de imigração. Esse debate
não se encerra, porém, nessas instâncias, antes as transcende. “Identidades
étnicas não emergem exclusivamente em contextos tais como, situação
colonial, nacionalismo e imigração, mas expandem-se para tornarem-se
ferramentas táticas, estratégias de negociação em todas as direções.” (LEITE,
1995, p. 85). No espaço de luta pelo poder onde se travam os embates pela
pertença, as identidades vão sendo negociadas no entre-lugar.
A esse processo de lutas e de negociações, Munanga (1995) chama de
contato, através do qual, segundo ele, se institui o racismo como forma de
garantir a ocupação dos espaços. “Toda a problemática do contato entre
identidades diferentes está na questão da partilha do espaço. Nessa partilha, o
racismo visa principalmente não à intolerância daquele que é diferente, mas
sim o medo e o horror da semelhança escondida na diferença.” ( p.71). O
racismo se evidencia pelo medo do outro. No mundo moderno o outro é um
estranho que precisa ser extirpado. Nesse espaço, se faz todo um processo
para construir a imagem pavorosa, subvertida e ameaçadora do outro. Esse
procedimento se torna possível por meio do sistema simbólico.
A identidade também é construída através de processos simbólicos, por
meio dos quais o criadas as noções de valores. Nesse sentido, cada grupo
cria seus mbolos de representação, são símbolos que representam um povo,
uma nação ou um grupo que partilha um patrimônio cultural: a língua, os
costumes, a religião etc. Nesse contexto, uma das formas de se produzir e
reforçar a identidade é a linguagem, que exerce um papel central nessa
construção. “identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos
sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas” (WOODWARD, 2008,
p.08)
A linguagem atua de forma a corroborar a identidade. Nesta perspectiva,
pode-se afirmar que a identidade é performativa. “Os termos do embate
cultural, seja através de antagonismo ou afiliação, o produzidos
performaticamente”. (BHABHA, 1998, p. 20). A literatura cumpre papel
relevante nesse processo, podendo sacralizar os conceitos. Segundo Bernd
(2003, p. 33)
A literatura atual em determinados momentos históricos no
sentido da união da comunidade em torno de seus mitos
fundadores, de seu imaginário ou de sua ideologia, tendendo a
uma homogeinização discursiva, à fabricação de uma palavra
exclusiva, ou seja, aquela que pratica uma ocultação
sistemática do outro, ou uma representação inventada do
outro. No caso da Literatura Brasileira este outro é o negro cuja
representação é frequentemente ocultada, ou o índio cuja
representação é, via de regra, inventada.
Os sistemas simbólicos criam e reforçam identidades, sendo que podem
funcionar como uma mão dupla: ao mesmo tempo em que constroem
identidades, reforçam o preconceito e o estigma. “Os sistemas simbólicos
fornecem novas formas de se dar sentido à experiência das divisões e
desigualdades sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são excluídos e
estigmatizados. As identidades são contestadas.” (SILVA 2008, p.19). Nesta
perspectiva, pode-se compreender as causas da discriminação e do estigma
contra o negro no Brasil. A identidade da raça negra foi construída ao longo
dos séculos sob a égide de um sistema simbólico que confere ao branco um
status de superioridade em relação ao negro.
A construção de imagens (arquétipos do negro, do branco etc) se torna
ainda mais problemática quando, no contato, se procura fazer um processo de
assimilação e unificação, em que as identidades são imbricadas, não
respeitando a diferença e a singularidade de cada uma das partes constitutivas
dessa formação.
A questão da identidade se torna mais problemática quando as
imagens se assimilam, se misturam e se unificam. Na famosa
mistura de sangue tanto recusada como procurada, o que está
em jogo é o contato entre duas identidades, sendo o contato
sexual a forma mais aguda e sagrada desse contato
(MUNANGA, 1995, p. 71).
Esse autor trata da ideia de identidade a partir da perspectiva da luta em
que os grupos minoritários têm tomado atitudes que se constituem como
políticas de afirmação de sua cultura frente à cultura dos grupos privilegiados.
Neste sentido, a identidade é afirmada a partir das relações de força, da luta
pelo espaço.
A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros
(identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da
unidade do grupo, a proteção do território contra os inimigos
externos, as manipulações ideológicas por interesses
econômicos, políticos, psicológicos etc.” (p.66).
Essa luta por afirmação de uma identidade não existe num sentido
primordial, ou naturalista. Ela é essencialmente discursiva. As lutas de classe,
das etnias, de gênero, sejam quais forem, escolhem seus referentes, que são
construídos nos discursos.
Eles (referentes) fazem sentido quando vêm a ser
construídos nos discursos do feminismo, do marxismo, do
terceiro cinema, ou do quer que seja, cujos objetos de
prioridade classes, sexualidades ou a “nova etnicidade
estão sempre em tensão histórica e filosófica ou em referência
cruzada com outros objetivos. (BHABHA, 1998, p. 52)
Na perspectiva do multiculturalismo, a identidade é formada por
aspectos e características culturais, rejeitando a idéia de uma identidade
formada a priori por aspectos físicos, a partir de traços biológicos. Portanto,
pelo exposto, pode-se inferir que há uma forte relação entre a cultura de um
povo e a identidade nacional que pode ser construída na teia das relações dos
grupos sociais.
1.2
Cultura e identidade brasileira: concepções teóricas
Antes de localizarmos o espaço da cultura brasileira é necessário que
pensemos sobre a cultura num âmbito geral, refletir sobre os seus conceitos e
formas de expressão no mundo.
O termo Cultura é de complexa conceituação e compreensão. Segundo
Terry Eagleton (2005) a palavra cultura figura entre as duas ou três das mais
complexas de nossa língua e o termo que é comumente associado ao oposto
dela, natureza, é a palavra mais complexa de todas. Daí a dificuldade de
trabalhar os conceitos. Mas de uma forma bem geral e abrangente, a palavra
cultura tem sido associada, ao longo dos tempos, às idéias de “lavoura” ou
“cultivo agrícola”, bem como a “culto”, no sentido religioso. Na primeira
concepção de cultura a palavra está associada à sua etimologia, no latim,
cultura é colere, que abrange três campos: cultivar, habitar e adorar ou
proteger.
Em Dialética da Colonização, Alfredo Bosi (1992, p.11) trata da idéia de
cultura, partindo da raiz latina de colo (verbo colere no presente), que significou
na língua romana “eu moro, eu ocupo a terra e, por extensão, eu trabalho, eu
cultivo o campo”. O sentido original de “colo” abrangeria dois campos
semânticos o “habitus”, morar, habitar e o cultivo. No entanto, Bosi mostra que
das formas nominais do verbo, derivaram “cultus” e “cultura”. A primeira palavra
num sentido diacrônico, cumulativo, traz um significado histórico, evocando
para o passado, para a memória daquilo que se viveu ou se cultivou ao longo
dos tempos. De cultus, us, vem a idéia, não só de cultivo da terra, mas também
de culto religioso, originalmente “culto aos mortos”. Enquanto “cultus” está
associado ao passado, descentrando do aqui-e-agora para a memória coletiva
adquirida, cultura está associada ao futuro “supõe uma consciência grupal
operosa e operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro.”
(p. 16) Assim, a palavra cultura, em Bosi, ganha três dimensões: habitar,
cultivar e cultuar. Bosi resume essas concepções na idéia de colonização que
abrange todo um processo que vai desde a ocupação de uma terra, explorando
seus recursos naturais, ao sistema de práticas simbólicas que sustenta a
ideologia de um povo.
O processo de colonização reinstaura as três ordens: do cultivo, do culto
e da cultura. A colonização começa pela ocupação de novas terras, através da
imigração, depois procede ao trabalho de exploração dos bens materiais
naturais e, por fim, impõe o sistema simbólico de dominação, contendo no seu
bojo os costumes, as crenças, língua, as formas de trabalho etc.
No processo de colonização, Bosi trata da dialética da cultura enquanto
sistema e enquanto condição. O sistema está ligado às formas de produção
econômica, enquanto a condição atinge experiências mais difusas, mais
complexas e subjetivas.
Condição traz em si as múltiplas formas concretas da
existência interpessoal e subjetiva, a memória e o sonho, as
marcas do cotidiano no coração e na mente, o modo de nascer,
de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar, de rezar,
de cantar, de morrer e ser sepultado (BOSI, 1992, p.27)
.
Entendida como cultivo, como habitação ou como culto, a cultura se
apóia num conjunto de práticas simbólicas. Neste sentido, “cultura é o conjunto
de práticas das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem transmitir
às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexistência.”
(Idem, p.16)
O entendimento de que “cultura” está ligada às noções que foram
apresentadas acima não é suficiente para compreendermos todo o seu
significado, bem como seus usos no mundo moderno. Como diz Eagleton
(2005, p.11) “Se a palavra ‘cultura’ guarda em si os resquícios de uma
transição histórica de grande importância, ela também codifica várias questões
filosóficas fundamentais”. É preciso entender tais questões filosóficas.
Uma primeira dialética que se estabelece nesse âmbito é entre cultura
de um ponto de vista apriorista, inatista ou próprio da natureza e cultura na
ótica de construção social, uma dialética entre o natural e o artificial. Uma
questão levantada é se a cultura existe em nós, ou na natureza, ou se ela é
construída ao longo dos tempos. Muitos, a exemplo de T. S. Eliot, chegam a
crer em cultura como herança genética.
Natureza e cultura são dois pólos que, embora muitas vezes colocados
como opostos, se interrelacionam, posto que as linhas divisórias são muito
tênues, havendo sempre a interpenetração de um no outro. “natureza e cultura
pode ter funcionado como pólos nitidamente exclusivos nos modelos do
pensamento moderno em seus inícios, mas tal como as implicações orgânicas
da palavra ‘cultura’ revelam, os limites entre elas têm sido porosos” (GILROY,
2007, p.55)
Para Rosenfeld (2000), a cultura é um produto da camada espiritual do
mundo, dividindo-se este em camadas, das quais a espiritual é a mais
elevada, sendo sustentada pela camada psíquica, que, por sua vez tem como
suporte a camada orgânica dos seres vivos. Por um processo de simbologia o
homem, e somente ele tem a capacidade de simbolizar, cria um sistema de
símbolos que sentido à cultura. Então, temos que a cultura é uma
construção simbólica, mas na base dessa construção está a camada orgânica,
a natureza.
Homem e natureza estão em constantes trocas, um agindo sobre o
outro. O homem, produto da natureza e agente transformador dela, constrói a
cultura através da capacidade de simbolizar:
É, portanto, mercê dessa capacidade que o homem desenvolve
a cultura - termo que designa a soma total de fenômenos que
resultam do esforço do homem de ajustar-se ao mundo-
ambiente e melhorar as suas condições de vida. Neste sentido,
a cultura é a totalidade complexa que inclui conhecimentos,
crenças, artes, moral, lei, costumes e quaisquer capacidades e
hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade; inclui, naturalmente, também as criações materiais,
como instrumentos, vestuários, receptáculos, armas, moradias
etc. (ROSENFELD, 2000, p.237-38).
Eagleton (2005, p. 12) concilia essas duas visões na máxima: “a
natureza produz cultura que transforma a natureza” Nesta perspectiva, a
natureza já tem algo a priori que pode ser caracterizado como cultura e esta vai
sendo moldada pela ação humana. Cultivo pode assim assumir a conotação
tanto daquilo que fazemos, como daquilo que é feito em nós. O ser humano,
neste contexto, não é nem apenas sujeito nem apenas objeto da cultura. Ele
age transformando a natureza e a cultura e é transformado por elas.
Outra dialética que tem sido levantada no âmbito dos estudos culturais é
quanto à relação entre cultura e política. Quem tem preponderância sobre
quem, a cultura determina a política ou o contrário é verdadeiro? Na visão de
Eagleton (2005), “são os interesses políticos que, geralmente, governam os
culturais, e ao fazer isso definem uma versão particular de humanidade” (p.18)
No âmbito do político, o pode ser desprezada a influência da
ideologia. Todo sistema político e de hierarquização social é sustentado por um
sistema ideológico que é construído através dos valores e práticas simbólicos.
Neste sentido, a cultura é uma das ferramentas utilizadas pelos aparelhos
ideológicos para sustentar e legitimar suas práticas. Assim, “a cultura é mais o
produto da política do que a política a serva obediente da cultura”. (idem, p.91)
Na luta pelo poder, a cultura tem sido usada pelos grupos sociais como
um meio de afirmar suas identidades através de uma tomada de consciência
do sujeito. “A cultura define, portanto, um espaço privilegiado onde se processa
a tomada de consciência dos indivíduos e se trava a luta política.” (ORTIZ,
1986, p. 56). É perceptível que a cultura está a serviço da política, sendo usada
como um meio de afirmação de identidade e como forma de pertença a um
grupo, seja ele privilegiado ou não.
Vista por esse prisma, a cultura adquire valor dentro de uma
determinada sociedade, passando a ser um capital simbólico (BOURDIEU,
1998) coletivo, um patrimônio nacional, um bem legítimo que foi construído
historicamente e se configura como uma herança para as presentes e futuras
gerações. Neste sentido, a cultura “torna-se semelhante a uma forma de
propriedade ligada à história e às tradições de um grupo específico [...] A
ênfase na cultura como uma forma de propriedade a ser possuída em vez de
vivida caracteriza as ansiedades do momento” (GILROY, 2007, p.44).
Entendida como um bem coletivo, como um patrimônio nacional, a
cultura tem servido de suporte no debate sobre identidades nacionais. Segundo
Hall (2001), cada povo, através dos seus mitos fundadores, constrói
historicamente símbolos, que funcionam como marcas identitárias da nação.
Daí termos as noções, por exemplo, de que o britânico é extremamente
metódico e pontual, de que o brasileiro é preguiçoso e malandro etc. Esses
símbolos atuam como metáforas, como representações de uma nação. No
entanto, cabe observar que tudo isso passa pelo sistema de representação
simbólica, em que o símbolo ganha significado não apenas no espaço e
momento de sua produção, mas transcende as instâncias de lugar e de tempo.
Na visão de Rosenfeld (2000, p.236)
O mbolo é um sinal peculiar; é um sinal que, em vez de
assinalar apenas determinada situação concreta, momentânea,
vital, individual, ultrapassa essa situação singular e única para
designar a essência de todas as situações semelhantes, fora
do contexto momentâneo e vital.
Dito de outra forma, o símbolo pode ser utilizado, fora do seu tempo,
para cumprir outros fins diferentes dos do momento de sua criação. Assim, o
sistema de representação simbólica é um produto da história e da ideologia de
um povo, uma vez que vai sendo criado, “fabricado” nas relações sociais, como
também sendo moldado e adaptado às necessidades e crenças do momento
de sua utilização. Neste espaço em que se travam as lutas dos grupos sociais,
embora na maioria das vezes de forma sutil e subjetiva, entra a ideologia de
estado, que se empenha em criar uma identidade nacional. É nesta
perspectiva, que esses símbolos são chamados de “elementos culturais da
nação”.
No que se refere à cultura brasileira, especialmente no âmbito do debate
político sobre identidade nacional, pode-se perceber uma forte vinculação entre
cultura e poder. Segundo Ortiz (1986, p. 08), “falar em cultura brasileira é falar
em relações de poder”.
Na visão de Bosi (1992), uma teoria da cultura brasileira teria que partir
do cotidiano, tendo como matéria prima o simbólico e o imaginário dos homens
que vivem no Brasil. A cultura brasileira, nesta perspectiva, estaria muito mais
ligada ao popular do que à academia. No entanto, segundo o autor, é possível
se registrar, em síntese, quatro tipos de cultura brasileira: “cultura universitária,
cultura criadora extra-universitária, indústria cultural e cultura popular” (BOSI,
1992, p. 309)
A cultura universitária é o conhecimento acadêmico produzido nas
universidades, muito valorizada, embora uma pequena cifra da população
brasileira tenha acesso a esse tipo de conhecimento. A cultura criadora é
aquela produzida por artistas, intelectuais ou não, que estão fora do espaço
acadêmico. A indústria cultural é a cultura voltada para o mercado, também
conhecida como cultura de massa, um fenômeno que vem crescendo cada vez
mais nos últimos tempos, está sempre dependente dos meios de comunicação
de massa. E a cultura popular ligada ao folclore, diferente da cultura de massa.
Para compreendermos, de uma forma mais ampla, a cultura brasileira, é
necessário que façamos uma retomada histórica, abordando os aspectos mais
pertinentes nesta questão, entendendo a literatura como um espaço de
profunda ressonância cultural. No entanto, podemos estabelecer um divisor de
águas que, a nosso ver, se mostra adequado especialmente para esta análise.
Esse recorte seria o período republicano, após 1889, sem, entretanto, deixar de
pontuar nos períodos anteriores fatos importantes para a formação de uma
cultura nacional. A motivação para se estabelecer essa linha divisória, em
termos culturais, na história do Brasil, se dá por alguns fatores relevantes
desse momento: a transição de sistema governamental, a efervescência do
pensamento de se construir uma identidade nacional, a influência de idéias
estrangeiras, o cientificismo do final do século XIX, entre outros.
Antonio Candido (2008) defende a ideia de que, antes do movimento do
Modernismo brasileiro, não tínhamos uma cultura genuinamente brasileira. É
possível se comungar com tal ideia, sem, porém, esquecer de retomar alguns
momentos importantes da nossa história que servem de base para a formação
de uma identidade cultural brasileira.
O período colonial é marcado pelas relações de exploração tanto na
política externa quanto na interna. Na política externa, a exploração da colônia
pela metrópole e na interna, as relações de escravismo entre os senhores de
engenho e os negros escravos. O olhar da metrópole sobre a colônia, bem
como do senhor sobre o servo, do explorador sobre o explorado, é na
perspectiva de ver os últimos apenas como bem a ser apropriado e consumido,
desprezando a cultura dos autóctones e dos negros transportados de África.
Ao retomarmos à ideia de T.S. Eliot, que discute as relações entre a
Europa e suas colônias de exploração, percebemos que houve dois tipos
especiais de cultura: “cultura-simpatia e cultura-conflito”, a primeira quando
aceitação e assimilação e a segunda quando se passa por um processo de
rejeição ou de conflitos e consequente recriação. Enquanto isso no Brasil, Bosi
(1992) destaca a “cultura-reflexo e cultura-criação”, e mostra que no Brasil
Colônia, embora tenha havido as tentativas de rompimento com a cultura
européia, o que predominou foi a cultura-reflexo em que o colonizado era
submetido a se adaptar, assimilar passivamente, à cultura do colonizador. A
cultura do negro não foi respeitada. Para que ele conseguisse visibilidade na
cultura e na literatura brasileira precisou passar por um processo de
“embranquecimento”, conforme afirma Bezerra (2008, p.315 ), se referindo a
escritores brasileiros negros ou mulatos: “Dentro do contexto histórico
brasileiro, são representados por negros e mulatos, que sempre necessitaram
modificar para serem aceitos pela sociedade brasileira, ou seja os escritores
obrigados a criar mecanismos de defesa.”
Sobre o processo de aculturação, ressalvadas as contribuições do índio
e do negro na cultura brasileira naquele período, bem como reconhecendo os
casos pontuais da cultura-criação, pode-se concordar que “o ximo que se
poderia afirmar é que o colonizador tirou para si bom proveito da sua relação
com o índio e o negro” (BOSI, 1992, p.28).
No período imperial, o romantismo Brasileiro é o movimento de maior
ressonância cultural, tanto nas artes plásticas como na literatura. É nesse
período em que se começa a pensar uma identidade nacional.
Na visão de Candido (2008), o Romantismo e o Modernismo têm muitas
características similares, entre elas, a preocupação em se criar uma literatura
nacional. Segundo esse autor é no Romantismo que vamos ter no Brasil
escritores formados aqui, porém, ainda muito ligados a Portugal.
Os homens que escrevem aqui durante todo o período colonial
são, ou formados em Portugal, ou formados à portuguesa,
iniciando-se no uso de instrumentos expressivos conforme os
moldes da mãe-pátria. A sua atividade intelectual ou se destina
a um público português, quando desinteressada, ou é ditada
por necessidades práticas (administrativas, religiosas etc). É
preciso chegar ao século XIX para encontrar os primeiros
escritores formados aqui e destinando a sua obra ao magro
público local. (p.100)
O Romantismo instaura a dialética do local e do cosmopolita, que vai ser
tratada mais amplamente pelo Modernismo, sendo que para Candido os dois
movimentos literários são momentos decisivos na nossa literatura e cultura.
Na literatura brasileira há dois momentos decisivos que mudam
os rumos e vitalizam toda a inteligência: o Romantismo, no
século XIX (1836-1870), e o ainda chamado Modernismo, no
presente século (1922-1945). Ambos representam fases
culminantes de particularismo literário na dialética do local e do
cosmopolita; ambos se inspiram, não obstante, no exemplo
europeu. (p. 119)
O debate da cultura local, a preocupação em se dar forma a nossa
literatura e de se criar uma identidade nacional está marcada no período do
Romantismo. No entanto, os escritores românticos fazem isso com muito
apego às tradições clássicas e acabam criando uma imagem idealizada do
brasileiro, uma visão disfórica da realidade social brasileira. O índio, pintado,
por exemplo, em Gonçalves Dias e José de Alencar é um ser dócil e submisso
ao branco, um elemento que se afirma na relação com o europeu. Embora
se queira valorizar a cultura indígena, o Romantismo acaba por enaltecer a
cultura e a supremacia do branco.
Neste período uma valorização do primitivo. É criada a imagem do
índio como o bom selvagem, um ser exótico.
Em relação aos povos primitivos, a oscilação de atitude é
igualmente acentuada. Nos quatro ou cinco séculos que
decorreram da sua entrada mais ou menos direta para o
convívio dos povos civilizados, eles têm sido considerados
pendularmente como brutos e como seres privilegiados,
através de concepções que assumem diversos matizes.
(CANDIDO, p. 51-52)
Quanto ao negro, não é diferente. Quando não esquecido ou
negligenciado na poesia e na prosa romântica, o negro é mostrado como um
ser submisso, uma espécie de subumano, carente da defesa e dos cuidados do
branco. Embora o movimento abolicionista tenha ganhado muita expressão
nesse período, é curioso observar que seus mais ardilosos defensores eram
brancos, e não raro das elites, uma espécie de anjos protetores dos pobres
infelizes e indefesos. É o que se pode perceber da leitura de O Navio
Negreiro(s/d), de Castro Alves. Embora toda uma boa intenção do autor em
denunciar os maus tratos e as condições desumanas a que os negros eram
submetidos no transporte de África para o Brasil, o texto não consegue ir além
disso, não apresenta meios de saída e redenção para o negro.
O interesse pelo primitivismo ou o nativismo como poderíamos chamar
se torna bandeira arvorada por poetas e romancistas românticos, entretanto
esse projeto de criar uma imagem do índio e do negro ganha contornos
ideológicos nem sempre perceptíveis pela crítica literária. Segundo Kothe
(2004), “o nativismo pregado pelo cânone brasileiro nunca foi uma defesa do
índio, mas sempre uma legitimação da invasão portuguesa (camuflada sob o
termo “descobrimento”) (p. 87)
É importante observar que a temática do nativismo é anterior ao
Romantismo, outros estilos de época haviam se preocupado em inserir o
índio (ainda que de forma caricatural) na literatura. Na literatura de informação,
ou Quinhentismo, se percebe uma preocupação em descrever a terra, tendo
como um de seus elementos, o índio. Em 1769 é escrito por Basílio da Gama o
poema Uraguai, que, ressalvadas as críticas aos jesuítas, espetaculariza o
combate entre índios, jesuítas e europeus, e eufemiza a morte, ao se fazer
passar por suicídio o que foi um genocídio. Convém distinguir também neste
poeta o nativismo como interesse exterior pelo exótico, havendo mesmo
predomínio deste, pois o indianismo não foi para ele uma vivência, foi antes um
tema arcádico transposto em linguagem pitoresca. Em 1781, frei Santa Rita
Durão escreve o poema épico Caramuru, o qual apresenta o índio como um ser
ingênuo, dócil e preguiçoso.
É no Romantismo, porém, que o tema do nativismo vai ganhar
relevância, sendo a primeira fase indianista e a terceira voltada para o negro.
Na fase indianista, este movimento cria a figura do índio como um ser
dependente do europeu. Como mostra Kothe (2004, p. 87):
Na vertente Romântica, reafirma-se a entrega do território
pelos índios de Mão e boca beijada com o casamento” de
Iracema com Martim, absurdo que um Alencar duplicou ao
“casar” um índio com uma fidalga portuguesa (em O Guarani),
como se o “selvagem” tivesse tido qualquer chance de casar
com fidalgas de pura cepa lusitana.
Assim como fez com o índio, também foi com o negro, tanto a cultura
indígena, como a africana foram em grande parte aniquiladas. Assim, o
Romantismo, ainda que tenha tentado romper com as tradições em termos
estilísticos, valorizando a liberdade de criação, não tem autenticidade cultural
em termos de conteúdos. Aborda a temática dos problemas nacionais com uma
visão utópica da realidade, lança as bases para uma identidade nacional, mas
não consegue desenvolver esse pensamento de forma desapegada da
ideologia da metrópole. A visão romântica do mundo, apresentando o índio e o
negro como seres idealizados, nos moldes do “bom selvagem,” não garante
liberdade para tratar a temática de forma crítica.
Na tentativa de construir um perfil do brasileiro, da identidade nacional, a
literatura do período colonial exerceu uma função sacralizadora, inserindo o
índio apenas para justificar sua ancestralidade na formação étnica da nação e
negligenciando o negro, o grande ausente da história, quando não de todo
ausente, que aparece na condição de objeto, sem voz. Os autores da época
(Basílio da gama, Santa Rita Durão, Alencar), pretendiam, como coloca Bernd
(2003, p.126) “uma totalização mítica do presente, do passado e do futuro.”
Criaram assim uma imagem idealizada do índio e do negro, imagem que vai
ser diluída, através do processo de miscigenação, no ideal branco.
O pensamento iniciado no Romantismo será desenvolvido com mais
autonomia pelo Modernismo, sendo que este atuará de forma a dessacralizar
esses conceitos, na medida em que, utilizando-se dos vários recursos de
linguagem como o sarcasmo e a ironia, se contrapõe aos discursos
cristalizados sobre o ser nacional. Conforme afirma Candido (2008), no
Modernismo, “O mulato e o negro são definitivamente incorporados como
temas de estudo, inspiração, exemplo. O primitivismo é agora fonte de beleza e
não mais empecilho à elaboração da cultura. Isso, na literatura, na pintura, na
música, nas ciências do homem.” (p.127)
O final do século XIX é marcado por um momento de intenso debate
sobre a cultura local. No entanto, uma crítica que se faz aos pensadores deste
período é quanto à cópia das idéias estrangeiras, especialmente as européias.
Roberto Schwarz (2000), em seu estudo sobre Machado de Assis, Ao vencedor
as batatas no capítulo intitulado “as idéias fora do lugar”, mostra que havia uma
inadequação da importação da cultura européia para o Brasil e acusa os
intelectuais brasileiros da época de praticarem a cópia das idéias européias,
que não se adequariam ao contexto brasileiro por vivermos um momento
diferente. O autor mostra que os intelectuais brasileiros adotavam o
pensamento europeu e aplicavam à realidade brasileira, sem, no entanto, haver
um processo de contextualização à realidade tropical. “no campo dos
argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente
os que a burguesia européia tinha elaborado contra arbítrio e escravidão.”
(p.17)
O discurso da ideologia da escravidão, que ainda se sustentava em uma
grande ambivalência do Estado “moderno” brasileiro liberal no sistema
comercial e conservador na política governamental discutido por Schwarz
(2000,
p.19
) apresenta argumentos que são lançados contra a “cópia” de idéias
e da cultura européia, sendo tanto elas como o discurso inadequados à nossa
condição de país em momento de transição de um sistema agrário para um
sistema proletário.
Portanto, para bem lhe reter o timbre ideológico é preciso
considerar que o nosso discurso impróprio era oco também
quando usado propriamente. Note-se, de passagem, que esse
padrão iria repetir-se no século XX, quando por várias vezes
juramos, crentes de nossa modernidade, segundo as
ideologias mais rotas da cena mundial.
Ortiz (1986) prefere, no entanto, perceber essa importação da cultura do
velho mundo como momentos diferentes da vivência da mesma, tratando da
dialética da produção e do consumo cultural. Enquanto o Brasil vivia um
momento histórico, a Europa havia superado esse momento. O autor mostra
que o pensamento francês, por exemplo, que havia entrado em declínio na
França, alcança seu momento de auge aqui no Brasil no final do século. As
ideias raciológicas tão em voga no Brasil, não eram mais tão interessantes
no velho continente. Concebem-se, portanto, dois momentos distintos: o de
produção cultural, na Europa e o de consumo dessa cultura no Brasil. Para
Ortiz
(1996, p. 30)
No momento em que as teorias raciológicas entram em declínio
na Europa, elas se apresentam como hegemônicas no Brasil.
Torna-se, assim, difícil sustentar a tese da imitação, da cópia
da última moda; existe na realidade uma defasagem entre o
momento de produção cultural e o momento de consumo.
De qualquer forma, como imitação ou como consumo, a cultura brasileira até o
final do século não é autêntica nem contempla todos os elementos constitutivos da
brasilidade. Pauta-se sempre pela cultura eurocêntrica branca.
1.3 Lima Barreto: Um estranho no Brasil da Belle Epoque
O período do final do século XIX e início do século XX foi chamado de
Belle Époque. Essa denominação francesa atende a um interesse eurocêntrico
e elitista de se configurar um período de auge das belas letras e expansão da
arte como um todo, arte produzida por e voltada para uma burguesia
ascendente. No Brasil, esse período é marcado por significativas mudanças em
vários campos. O pensamento brasileiro da época, ancorado nos princípios do
cientificismo e do liberalismo, era no sentido de “construir a nação e remodelar
o estado” (SEVCENKO, 2003, p. 103).
Com o estado brasileiro enfraquecido e com uma consciência de nação
ainda em formação, nossos intelectuais se dedicam a construir um ideário da
nação brasileira. É comum o debate sobre a identidade e a cultura nacionais,
discutido aqui. A literatura da época vai se voltar para pintar uma imagem do
brasileiro e principalmente tentar vender essa imagem para o resto do mundo,
especialmente para a Europa. Ainda que se quisesse romper de vez com os
modelos europeus, continuávamos com uma mentalidade europeizada.
No entanto, a Belle Époque caracteriza-se muito mais como um estilo de
vida, principalmente de uma burguesia ascendente, ainda que se registre
nesse período o crescimento do proletariado, do que como um movimento
artístico cultural ou, em termos literários, como uma escola literária, ou estilo de
época.
Na historiografia da literatura brasileira, este período de
aproximadamente 30 anos é chamado de pré-modernismo. Na Visão de Flávio
Kothe (2004), não deveria existir essa nomenclatura, pois o houve um
movimento pré-moderno, uma vez que não é possível identificar uma ruptura,
um momento de passagem para o Moderno. Na visão desse autor, a produção
literária do período denominado pré-modernismo é, em qualidade, melhor ou
igual a do modernismo.
Como pode ser “pré” uma literatura que foi tão “avançada”
quanto aquela que a sucedeu? O pressuposto do pré é o que
vem depois dele. Então ele é posterior ao posterior, e não
anterior a ele: é um antes que vem depois. Ele serve para fazer
de conta que o que vem depois é superior, mais evoluído, e
para fazer de conta que o anterior tem validade em função
do que lhe é posterior (2004, p. 110).
O que leva esse autor a tomar tal posição é que na concepção dele não
houve um modernismo, não se pode falar de s-modernidade se o houve a
modernidade, como também, não se pode falar em pré-modernidade. Para ele,
a Semana de arte moderna, marco simbólico do início do Modernismo foi um
“golpe de estado” para os paulistas dominarem o cenário literário do Brasil.
Comungamos com a idéia de que o pré-modernismo é um período de
excelente produção literária e que não deveria ser considerado apenas como
um momento de transição para o Modernismo, como se neste último
estivessem toda a expectativa e qualidade literárias e aquele fosse apenas a
preparação do terreno para ele. O pré-modernismo, porém, tem escritores de
uma fina qualidade literária. Embora tecendo duras críticas a Lima Barreto, o
crítico Flávio Kothe chega a classificá-lo como um escritor melhor do que Mário
de Andrade, uma das maiores figuras do Modernismo.
Intelectuais desse período se preocupam excessivamente em construir
uma imagem do brasileiro, a partir de um tipo étnico desejado. “Nesse contexto
é que se inserem os esforços renitentes despendidos na tentativa de
determinar um tipo étnico específico representativo da nacionalidade ou pelo
menos simbólico dela, que se prestasse a operar como um eixo sólido que
centrasse, dirigisse e organizasse as reflexões desnorteadas sobre a realidade
nacional.” (SEVCENKO, 2003, p. 106).
Alguns autores, no entanto, vão se insurgir contra os discursos
cristalizados que predominaram na última década do século XIX e início do
século XX. Tais discursos tinham a pretensão de unificar o pensamento
coletivo em torno do ser nacional.
é preciso lembrar que estes períodos não foram estanques, isto
é, ao mesmo tempo em que atuavam predominantemente as
forças sacralizantes, autores como Lima Barreto, Manoel
Bonfim e Araripe Júnior, por exemplo, tentaram, cada qual à
sua maneira, criar zonas de tensão, distanciando-se e
fragmentando os rituais discursivos dominantes da época.
(BERND, 2003, p.127).
Lima Barreto se apresenta como um crítico contundente à cultura e ao
cientificismo dessa época que procurava legitimar as desigualdades no Brasil
através da ciência. Produzindo uma literatura socialmente engajada, o autor de
O Triste Fim de Policarpo Quaresma mergulha profundamente na realidade do
país com o fim de conhecer as causas profundas dos males brasileiros, a fim
de encontrar um veredicto seguro capaz de apontar para uma mudança de
perspectivas em meio ao caos e à desordem.
Por ter uma visão crítica da realidade do Brasil da Belle Époque e não
aceitar os padrões sociais do seu tempo, é que preferimos denominar Lima
Barreto de estranho, uma figura que não se adequava às estruturas
moralizantes de seu tempo. Se posicionando contra o modelo europeu como
padrão absoluto, Lima Barreto faz da sua literatura um instrumento de denúncia
dos desajustes sociais e sabia que isto poderia custar caro para ele. “Ah! A
Literatura ou me mata ou me o que eu peço dela.” (Cemitério dos Vivos,
2004, p. 08)
O fato de a elite pós-colonialista adotar o estilo de vida europeu
implicava aceitar o pensamento cientificista sobre as raças, que ganhava tanta
ênfase por parte dos intelectuais, ao que Lima Barreto reagirá sempre com
veemência. Segundo a observação de Sevcenko (2003, p. 147), “esse era um
dado que Lima Barreto, mulato, vivendo em um meio de mulatos e negros e
identificando com esse lado da herança, não poderia admitir”.
Enquanto a Belle Époque, como uma invenção da burguesia, se voltava
para a elite, para a cultura européia com uma tendência a cristalizar os
costumes e o estilo de vida desta elite, Lima Barreto prioriza os menos
favorecidos. “eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil,
especialmente pelos de cor” (Diário Intimo, 1956, p. 76) Assim, Lima Barreto
vai ser sempre um estranho no seu tempo, um visionário.
Lima Barreto utilizou uma linguagem simples, a que muitos chamaram
de “desleixada”, o autor de Cemitério dos Vivos, procura aproximar a
linguagem literária à do cotidiano, uma atitude não convencional para os
projetos de construção literária numa época em que os escritores, salvos
alguns, não se preocupavam em questionar a realidade social. O pré-
modernismo sofre também desse problema de linguagem, certo distanciamento
entre a linguagem literária e a linguagem do povo. Em um
estudo intitulado
“Linguagem e Realidade do Modernismo de 22”, João Alexandre Barbosa
mostra essa hifenização entre a linguagem e a realidade social.
O momento cultural anterior ao Modernismo de 22 foi
caracterizado, em grande parte, pela impossibilidade de contar
com uma linguagem adequada para a objetivação das
experiências e que não apenas servisse aos desígnios de uma
“permanência” com relação ao conjunto da sociedade, como
viesse a problematizar a própria estrutura dentro da qual
existia. (BARBOSA, 1974, p. 82).
Na visão de Candido (2008), o período de 1880 a 1922 pode ser
chamado de “pós-romântico.” Isto se deve ao fato de o Modernismo trazer
muitas características do Romantismo, como mostramos aqui. Uma
característica marcante nos dois períodos é que ambos o movimentos de
ruptura. “Outro traço, que reforça a semelhança geral do Romantismo com o
Modernismo, é a atitude de negação, que foi satanismo e aqui troça, piada”.
(p.172)
O Modernismo brasileiro, embora inspirado nos movimentos de
vanguardas européias, como por exemplo, o cubismo e o futurismo, o que lhe
confere o status de movimento renovador e autônomo é o fato de ele refletir
sobre a realidade “tropical”, imprimindo as cores locais, dando atenção às
singularidades da cultura brasileira. As características mais marcantes do
Modernismo são: a liberdade de estilo e a fluidez ou flexibilidade na linguagem,
aproximando a língua escrita, a linguagem literária, da língua falada. Nesse
período, os intelectuais passam a defender uma cultura genuinamente
brasileira.
José Aderaldo Castelo (2004) mostra que o Modernismo, embora se
caracterizando como um movimento de rupturas, guarda resquícios dos estilos
de épocas anteriores, principalmente do Romantismo. Esse autor destaca que
o Modernismo se assemelha ao Romantismo porque, além da temática da
identidade nacional, os dois estilos são marcados por mudanças políticas
importantes para a nação, bem como por um período anterior de interregnos. O
período de interregno anterior ao Romantismo inicia em 1808, com a chegada
da família real ao Brasil, até 1822, ano da Independência e um segundo
momento de 1822 a 1836, quando se atribui o início do Romantismo. O período
de interregno anterior ao Modernismo tem início em 1889, com a Proclamação
da República, até 1902, e deste a 1922, Semana de Arte Moderna, marco
simbólico de início do Modernismo. Nesta perspectiva, o Modernismo “constitui
um movimento de revisão e renovação que responde, sobretudo, às
solicitações internas sob perspectiva histórica. Período amplo e complexo,
assemelha-se com o nosso Romantismo” (CASTELLO, 2004, p. 16)
Vistos os contrapontos e as contradições em torno do que se tem
chamado pré-modernismo, como também ao modernismo, cabe observar que a
crítica literária e o none têm suas razoes para estabelecer tais momentos e
dar a eles essa nomenclatura. Um dos motivos de fixação e valorização do
modernismo é o fato de ele ter eclodido principalmente em São Paulo,
fortalecendo a política do café com leite e consolidando a produção literária no
eixo Rio - o Paulo, ainda que num momento inicial tenha havido uma ruptura
com o Rio de Janeiro, mas depois se consolidando a aliança e se ramificando
para outras regiões do país. De acordo com Candido e Castello (2005), o
Modernismo pode ser entendido como um movimento, como uma renovação
estética ou como período (1922 a 1945).
Como movimento, provocou uma revolução no campo das artes e da
literatura, que se vincula a determinadas transformações da sociedade, como o
crescimento da população urbana, a passagem de um país agrário para a
industrialização, possibilitando novas formas de vida e do fazer literário
ampliando principalmente o mercado editorial. Como renovação estética, o
princípio básico do Modernismo era romper com as velhas estruturas. Essa
teoria estética nem sempre se apresentou como bem delineada, os
modernistas não sabiam ao certo o que queriam, mas sabiam nitidamente o
que não queriam. Essa renovação estética vai provocar também uma
subversão nos gêneros literários.
O Modernismo levou muito mais longe do que o Romantismo a
subversão dos gêneros literários. Antes de mais nada, houve
uma espécie de permuta: a poesia aproximou-se do ritmo, do
vocabulário, dos temas da prosa; a prosa de ficção adotou
resolutamente processos de elaboração da poesia, como é
notório na fase dinâmica de 1922-1930. (CANDIDO E
CASTELLO, 2005, p. 21).
À ruptura estética não correspondia, porém, abandono de tudo que era
antigo, as temáticas plasmadas em outros estilos de época voltavam à tona.
Como observa Kothe (2004, p. 123) “O Modernismo foi uma renovação na
forma para manter os conteúdos antigos. Deu novas fachadas às mais
tradicionais posições.” Ainda que os temas sejam antigos, algo de novo
neles: o exacerbado interesse pela realidade local.
O Modernismo revela, no seu ritmo histórico, uma adesão
profunda aos problema da nossa terra e da nossa história
contemporânea. De fato, nenhum outro momento da literatura
brasileira é tão vivo sob este aspecto; nenhum outro reflete
com tamanha fidelidade, e ao mesmo tempo com tanta
liberdade criadora, os movimentos da alma nacional (2004,
p.11).
Assim como o Romantismo tem um momento inicial de transição, o
Modernismo também o tem, sendo que este ficou conhecido como pré-
modernismo ou Belle Époque. No entanto, preferimos chamar de modernos
aos escritores, cronologicamente situados nesse período, por entender que
eles, e principalmente Lima Barreto, apresentam características que os
identificam como tais.
Em literatura brasileira, os nomes mais citados deste período são os de
Monteiro Lobato, Graça Aranha, Augusto dos anjos, Euclides da Cunha e Lima
Barreto. Não é possível se estabelecer, nesse espaço de tempo, características
comuns aos autores, sendo, em termos estilísticos, a singularidade e a
ambivalência os pilares da época, uma vez que os autores transitam entre um
estilo parnasiano mais formal e um estilo modernista, pregando a quebra com
os aspectos formais anteriores. Em termos de linguagem, alguns autores,
principalmente Lima Barreto, sinalizam para uma ruptura com a linguagem
formal, imprimindo uma flexibilidade, procurando aproximar os seus escritos da
linguagem cotidiana, a linguagem simples do povo brasileiro, marca que será
preponderante na produção modernista.
Do ponto de vista dos conteúdos, o que marcará a época é a
preocupação com uma identidade nacional, procurando pensar o Brasil do
ponto de vista da cultura brasileira, como já foi assinalado. Há aqui uma
retomada do Romantismo, uma vez que muitos autores se preocupam em criar
uma marca identitária para o brasileiro, ressignificando, porém aquele
Movimento.
Esta atitude no fundo é um desejo de retificação, de
desmascaramento e de pesquisa do essencial; a ela se prende
o nacionalismo pitorersco, que os modernistas alimentam de
etnografia e folclore, rompendo o nacionalismo enfeitado dos
predecessores. No índio, no mestiço, viram a força criadora do
primitivo; no primitivo, a capacidade de inspirar a
transformação da nossa sensibilidade, desvirtuada em,
literatura pela obsessão da moda européia. (CANDIDO E
CASTELLO, 2005, 13)
O primitivismo, que ocupou tantas páginas na poesia e prosa
românticas, é retomado agora no caboclismo.
O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado.
Crismou-se de “caboclismo”. O cocar de penas de arara
passou a chapéu de palha rebatido à testa; o ocara virou
rancho de sapé: o tacape afiliou, criou gatilho, deitou ouvido e é
hoje espingarda troxada; o boré descaiu lamentavelmente para
pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito.
(LOBATO, 2004, p. 166)
Uma das obras centrais desta época e que vai refletir o pensamento
vigente no momento é Os Sertões de Euclides da Cunha, lançado em 1902,
dedica-se a fazer uma análise exaustiva do meio, das condições de vida do
homem sertanejo, apontando o sertão como um ambiente hostil e inóspito, um
lócus apropriado para a formação do homem forte, rústico e o contaminado
pelas influências do estrangeiro. Neste sentido, Euclides da Cunha levanta o
debate da ideologia racial tão em voga na época, evocando a imagem do
sertanejo, que, por outros vieses, já tinha sido posta no Romantismo.
A publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, em 1902,
assim como a divulgação dos estudos de etnografia e folclore,
contribuiu certamente para esse movimento. Ele falhou na
medida em que não soube corresponder ao interesse então
multiplicado pelas coisas e os homens do interior do Brasil, que
se isolavam no retardamento das culturas rústicas. Caberia ao
modernismo orientá-lo no rumo certo, ao redescobrir a visão de
Euclides, que não comporta o pitoresco exótico da literatura
sertaneja. (CANDIDO, 2008, p. 121).
A grande diferença entre o Sertanejo de Euclides e o primitivo mostrado
no Romantismo é que este é visto de um ponto de vista naturista, a visão do
“bom selvagem”(ROUSSEAU, 1989), segundo a qual o homem convive em
harmonia com a natureza, sendo corrompido pelo contato com a civilização.
Nesta perspectiva, entre nós, o primitivo é visto apenas como um elemento da
natureza brasileira. Havia uma preocupação em se mostrar e valorizar o índio,
mas desvinculado da sua realidade social. Enquanto Euclides da Cunha
escolhe o ângulo sociológico para sua análise, embora seu discurso seja
fortemente influenciado pelas ideologias racistas do final do século, em sua
obra enfatiza os contrastes regionais.
Livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, Os
Sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo
literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos
mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as
contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões
litorâneas e o interior). (CANDIDO, 2008, p.140-141).
Assim, Euclides da Cunha constrói o arquétipo do sertanejo como um
homem forte, guerreiro, lutador, que é transformado pela natureza inóspita dos
sertões nordestinos. A aridez da terra é a aridez da alma do sertanejo, que
ainda não havia sido influenciado, “contaminado” pelo “raquitismo
neurastênico” de outros povos. Embora se queira valorizar a imagem do
sertanejo, ele é um ser em desarmonia com o mundo moderno que vive
profundas transformações culturais, tecnológicas e sociais. Visto por outro
prisma, isto é uma outra forma de dizer que o sertanejo não está preparado
para ser inserido no Brasil moderno, como era o do Centro Sul, a Canaã
brasileira, a terra que mana leite e café.
O caboclo apresentado por Monteiro Lobato através do personagem
Jeca Tatu, lançado ao público em 1914, em artigo intitulado “Velha praga”,
publicado no jornal O Estado de São Paulo, é uma figura caricatural do homem
rural brasileiro. Vivendo no vale do Paraíba, o ser apresentado por Lobato
mantém uma relação de simbiose com a natureza, retomando a idéia do bom
selvagem, é ingênuo, frágil, não habituado aos costumes da vida urbana,
místico por natureza e quase desprovido de consciência crítica frente à
realidade do mundo moderno que o cerca.
O Jeca é um tipo acomodado, aceitando as condições precárias de
sobrevivência às quais era submetido; não tem forças para lutar contra um
sistema de forças que o mantém aprisionado. Sabe que sua casa pode não
durar muito tempo, porém, tem consciência de que a terra não lhe pertence por
direito, motivo pelo qual não se preocupa em cuidar de sua habitação. Assim,
essa figura é vista sempre como um ser preguiçoso, inapto para viver num
mundo que exige atitudes. Jeca é um ser passivo diante do mundo.
A configuração do personagem mostra como o escritor o trabalhador
rural brasileiro, como símbolo do arcaísmo. Enquanto as fazendas de café de
outras partes de São Paulo se abriam para a modernização, incorporando mão-
de-obra estrangeira qualificada, utilizando tecnologias agrícolas para ampliar a
produção especificamente para a exportação, o Jeca vive num ambiente quase
pré-histórico, em condições primárias de existência.
As lentes do então fazendeiro do interior paulista identificavam em Jeca
Tatu uma síntese das mazelas nacionais. Ademais, o arquétipo do personagem
esclarece em boa medida as razões da triunfal recepção de Monteiro Lobato
pelos círculos intelectuais, conquistada com o artigo a que fizemos referência.
Mobilizando os cânones científicos prevalecentes, a teoria da desigualdade
inata das raças, e o seu corolário da degeneração racial promovida pela
miscigenação, o personagem lobatiano um caboclo, mestiço, de barba rala
caía nas graças do público letrado precisamente por proporcionar a
identificação da maioria que compunha a população brasileira, integrada por
trabalhadores rurais, com o atraso e a inferioridade do país em relação às
nações hegemônicas, “civilizadas”. Com efeito, a versão originária do Jeca
traduzia, significativamente, a percepção das elites sobre o povo brasileiro.
Outra figura emblemática desse período é o Major Quaresma,
personagem principal do romance O Triste fim de Policarpo Quaresma, de
Lima Barreto, publicado em livro pela primeira vez em 1915. Policarpo
Quaresma, funcionário da secretaria de Guerra, visionário, idealista,
revolucionário no plano das ideias, profundo conhecedor da realidade
brasileira, é uma tentativa de construção da identidade nacional, se
apresentando como um nacionalista que conhece e ama a sua pátria. Sobre
tudo o que é brasileiro, o major Quaresma conhece: todos os rios, todas as
espécies de plantas, os tipos de solo, a música, o folclore, enfim, tudo o que é
brasileiro é pintado com cores vivas.
Policarpo Quaresma era um idealista utópico, acreditava na
possibilidade de construir uma pátria mais justa, onde todos pudessem ter
acesso aos bens, pensava ser possível promover uma verdadeira revolução
social, elevando o Brasil a status de nação próspera e desenvolvida. Neste
aspecto, o personagem ganha um caráter quixotesco. Comentando sobre a
aceitação deste livro, Moisés (2004) afirma: “um Dom Quixote nacional’,
adianta um dos primeiros comentadores do romance, dando uma síntese do
Policarpo Quaresma como herói e da narrativa como espelho dum estado de
coisas em mudança.” ( p. 401)
Com todo seu afã ideológico e revolucionário, Quaresma não consegue
ser compreendido pelos seus contemporâneos, principalmente por aqueles que
estavam no poder. Na ótica destes, Q-uaresma era um louco por defender tais
ideias. A crítica literária sempre vinculou a imagem de Lima Barreto à do Major
Quaresma, corroborando o caráter de estranheza entre o escritor carioca e sua
época. O pensamento limeriano não se adéqua às concepções elitistas da
Belle Époque.
O percurso do personagem é interessante para percebermos as
mudanças ocorridas na vida deste revolucionário. Quaresma faz uma espécie
de migração às avessas. O lócus inicial ocupado por ele é o espaço suburbano,
depois de decepcionado com as relações que trava no ambiente de trabalho e
principalmente pela não aceitação de suas ideias, sendo considerado louco e
recolhido ao hospício, quando sai de lá, tem a utopia de promover a reforma
agrária, indo se recolher ao sitio Sossego, para estudar melhor os aspectos
da vida agrária e comprovar a sua tese de nessa terra “em se plantando, tudo
dar”. Após o fracasso com o empreendimento agrário, provocado pelas saúvas,
o nosso herói com um gesto guerreiro vai defender as tropas de Floriano contra
os rebeldes amotinados na baía de Guanabara, defendendo assim a ordem
republicana. Fracassa mais uma vez no seu propósito, depois é isolado na ilha
das cobras e fuzilado injustamente.
Lima Barreto faz com Policarpo Quaresma o percurso inverso ao de
Isaías Caminha, personagem principal do romance Recordações do Escrivão
Isaías Caminha, uma vez que Isaías sai da zona rural e vai para a corte
acreditando que alcançaria no titulo de doutor a redenção para a sua
condição humilde de nascimento. Ambos os personagens terminam
fracassados, têm fim trágico, este não tanto quanto aquele, mas não
conseguem realizar seus anseios, seja no plano coletivo ou individual.
Com isto, o romancista consegue ultrapassar as barreiras da caricatura
dos personagens, mostrando que um sistema ideológico que atua no
sentido de extirpar os sonhos do brasileiro, principalmente do cidadão comum
que tem o ideário de luta por dias melhores para si ou para a pátria.
Policarpo Quaresma assume assim a postura do cidadão brasileiro
consciente, estudioso, conhecedor das origens dos problemas do Brasil e
acredita que com esse conhecimento poderá produzir as mudanças de que o
Brasil tanto precisa para se afirmar como uma nação livre e progressista, no
entanto seus planos submergem no mar da indiferença, da hipocrisia e
intolerância dos mandatários, que detêm o poder.
O Triste Fim de Policarpo Quaresma é praticamente o único livro de
Lima Barreto a ser citado nos livros didáticos, como se a obra do escritor se
restringisse a esta produção. Comungamos com a visão de Kothe (2004) de
que essa aceitação de O Triste de Policarpo Quaresma se deve ao fato de nele
haver alguns elementos ideológicos dos quais a direita brasileira, a elite do
poder, pode se apoderar para tentar enganar a mente dos leitores menos
atentos. O primeiro desses elementos ideológicos é igualar o personagem
principal deste livro, o major Policarpo Quaresma ao escritor Lima Barreto, uma
vez que a obra do escritor tem muitos traços autobiográficos. Daí o leitor
concluir que Lima Barreto é tão louco quanto Policarpo Quaresma. Isto é uma
forma de os opositores à obra de Lima Barreto dizerem não dêem crédito ao
que Lima Barreto diz porque ele é maluco, sua literatura não tem credibilidade
nem fundamento. (grifo nosso).
Na verdade, Lima Barreto nunca foi louco, o que ele tinha
esporadicamente eram perturbações em virtude do consumo de álcool. Se
observarmos atentamente o que ele escreve sobre o tempo em que esteve
no hospício, veremos que ele era cido. O efeito do álcool fazia o seu corpo
cambalear, mas o seu espírito continuava firme.
Outro elemento ideológico que favorece os poderosos do Brasil é que a
partir de uma leitura superficial de O Triste Fim de Policarpo Quaresma,
pode-se afirmar “estudar muito não faz bem para a cabeça, quem se dedica
aos livros pode acabar louco”.(grifo nosso). É uma forma de aqueles que
mantêm o poder arremessarem para mais longe os filhos dos pobres, da
gente humilde que no estudo uma forma de seus filhos fugirem da miséria
e do estigma que os afligem. E outro elemento ideológico que pode passar
pela cabeça do leitor pouco atento é que o país é certo, a conjuntura política
do governo brasileiro é a mais correta. Policarpo Quaresma, assim como
Lima Barreto, terminou de forma trágica porque eram loucos, porque não
soube escolher o caminho correto, o caminho da bajulação e submissão ao
poder.
No período da Belle Époque, também uma abertura para se tratar de
temáticas sociais, pensar as relações sociais no início da República, a
condição do negro “recém-liberto”, porém marginalizado na sociedade
capitalista emergente, o surgimento das favelas, o processo de urbanização,
principalmente da corte, as relações políticas no novo sistema de
representação, e outras temáticas que vão ganhar corpo neste período.
É interessante observar, porém, que muitos dos autores deste período
estavam presos às ideologias raciológicas ainda em voga, principalmente nos
primeiros anos dessa fase de transição, estando também ligados à ideologia de
estado, tentando legitimar um discurso que se apresentava completamente
desgastado. Outros escritores, por sua vez, escolheram a contramão do poder,
como é o caso de Lima Barreto, procurando, de forma crítica e contundente,
denunciar as mazelas sociais da época.
Em suma, pode-se afirmar que o pré-modernismo é um período
ambíguo, até pelo seu caráter transitório, mas de uma produção literária
expressiva, não no aspecto quantitativo, mas no qualitativo. Quanto a Lima
Barreto, ainda que cronologicamente esteja compreendido neste período,
preferimos percebê-lo como um modernista pelo seu caráter visionário e a
forma de dar aos seus escritos uma marca universalizante do homem
brasileiro, embora seus textos fossem tecidos com as teias colhidas do dia-a-
dia das gentes pertencentes aos rincões mais simples de nossa sociedade.
Lima Barreto não cabia no Brasil da Belle Époque porque se apresenta como
um nacionalista crítico, como observa Bezerra (2008), ele “enfatiza a denúncia
e o protesto contra o racismo e contra os padrões europeus absorvidos pelo
Brasil, além da corrupção e do descaso com a classe proletária. Estes
aspectos faziam de Lima Barreto um feroz crítico e nacionalista” (p. 320)
No contexto de final do século XIX e início do século XX, embora se
apregoe que era um momento de mudanças culturais, Lima Barreto não se
harmoniza com o pensamento daquela época por ser um escritor visionário,
com uma produção moderna, se posicionando contra a cultura da época,
especialmente a cultura letrada, privilegiada, que concede aos intelectuais, na
sua maioria brancos, “doutores”, bacharéis, o direito quase exclusivista de
produzir literatura e formar o pensamento nacional. Em termos acadêmicos, o
ambiente não era propício para o desenvolvimento da intelectualidade na sua
forma ampla. Como mostra Kothe (2004), “na época de Lima Barreto, havia
falta de espaços alternativos para a sobrevivência dos intelectuais: nem a
universidade havia sido criada no Brasil.” (p. 67)
No entanto, Lima Barreto não estava preocupado com o academicismo.
Ele era um intelectual orgânico e teceu duras críticas à hipocrisia e ao
esnobismo intelectual dos bacharéis e doutores, figuras representativas da
aristocracia. Em várias obras de Lima Barreto encontramos críticas a essa
gente. Em Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, Lemos:
“Gonzaga de Sá dizia-me
- a mais estúpida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa,
é a da aristocracia. Abre um jornaleco, desses de bonecos,
logo dás com uns clichês negros... Olha que ninguém quer ser
negro no Brasil!... Dás com uns clichês muito negros
encimados pelos títulos: ‘Enlace Sousa e Fernandes’, ou
‘enlace Costa e Alves’. Julgas que se trata de grandes famílias
nobres? Nada disso. São doutores arrivistas, que se casam
muito naturalmente com filhas de portugueses enriquecidos.”
(BARRETO, 1997, p. 32)
Ainda que a historiografia literária coloque Lima Barreto como um pré-
modernista, pode-se identificar nele características anunciadoras do
Modernismo, que é um movimento artístico de renovação e de grande
influência no campo das artes, procurando mostrar o Brasil com as cores
próprias de nossa nação.
CAPÍTULO 2- LIMA BARRETO: O ESCRITOR NEGRO E A CRÍTICA
LITERÁRIA
Ah! Se eu alcanço realizar essa idéia, que glória também!
Enorme, extraordinária e quem sabem? uma fama
européia. Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo, e
a proximidade simplesmente aparente das coisas turbará todos
os espíritos em meu desfavor; e eu, pobre, sem fortes auxílios,
com fracas amizades, como poderei viver perseguido,
amargurado, debicado? (Diário Íntimo)
2.1 O escritor e sua época: o cientificismo e o fascínio da ideologia racial
no Brasil.
É que senti que a ciência não é assim um cochicho de Deus
aos homens da Europa sobre a misteriosa organização do
mundo (Diário Íntimo)
É nosso objetivo refletir aqui sobre as impressões do pensamento racial
exercido sobre escritores, tanto na Europa como no Brasil em um período que
se inicia na segunda metade do século XIX e prolonga-se às primeiras décadas
do século XX. Período no qual é lançando um olhar crítico sobre o caráter
cientificista e ideológico que sustenta os estudos nessa área. Não é nossa
intenção fazer um estudo histórico sobre esta temática, nem mergulhar nas
causas profundas da ideologia racista, mas refletir criticamente sobre esse fator
social, procurando entender de que forma esse pensamento influenciou toda
uma geração de escritores. No entanto, é necessário que compreendamos,
ainda que de forma pontual, como uma determinada forma de pensar e
articular teorias influenciará a produção literária de escritores que viveram tal
momento histórico.
Preferimos partir do conceito de etnia uma vez que a palavra raça
apresenta problemas conceituais como também traz em si uma carga
ideológica, influenciada por razões históricas, sendo sempre apresentada sob
um viés discursivo que tenta legitimar a superioridade de um grupo em relação
a outro. Ademais, adiante-se que a ideia que temos sobre raça é uma
construção de cunho ideológico-cientificista do século XIX, se apresentando
como um discurso esgotado como mostram as palavras de Young (2005, p. 33)
“Quando olhamos para os textos de teoria racial, vemos que eles na verdade
são contraditórios, disruptivos e já desconstruídos.”
A ideia de etnia tem ganhado melhor aceitação por parte de teóricos da
contemporaneidade pelo fato de se distanciar dos aspectos biológicos e se
aproximar dos culturais. No século XIX, o darwinismo social ou “teoria das
raças”, que cindiu a sociedade com ideia de purismo racial, se preocupava em
explicar a evolução social com base em aspectos fisiológicos do individuo. A
antropologia cultural, por sua vez, relevância ao grupo racio-cultural, ou
étnico, procurando entender um indivíduo não apenas pelos caracteres físicos
e morais, mas a partir de elementos culturais que são compartilhados por todos
os membros do grupo.
Em termos discursivos, a raça tem sido pensada de pelo menos três
formas: um pensamento antigo que a determina a partir de traços biológicos,
fenotípicos, características físicas ou físico-psicológicas. Essa forma de pensar
foi preponderante no século XIX e encontra apoio principalmente nas teorias do
conde Gobineau, autor de Ensaio Sobre a desigualdade das raças, no qual
desenvolve ideias que justificam cientificamente a desigualdade de raça e de
sexo. Esse pensamento vai ser defendido por vários outros cientistas que,
inspirados nas teses evolucionistas de Darwin, se encarregam de criar um
arcabouço teórico que explique e legitime a desigualdade natural entre os
povos. Como exemplos de pesquisadores que propuseram teses raciais,
podemos citar, entre outros, Renan, Gustave de LE Bom, H.Taine, Francis
Galton, com a teoria da eugenia.
Um segundo entendimento do conceito racial surge com o crescente
interesse pelo entendimento dos fenômenos sociais, que conceitua a raça de
um ponto de vista sociológico e, por último, outro pensamento mais recente
que a vê do ponto de vista do diferencialismo cultural, que ganha fôlego graças
a impossibilidade de uma conceituação biológica precisa sobre raça, seja de
qual for o ângulo que se prefira ver. Assim, nas últimas décadas, tem-se
preferido pautar os estudos raciais do ponto de vista cultural, se opondo ao
antigo pensamento cientificista, tentando desconstruir o seu caráter
cristalizador. “de fato, no pós-guerra, a luta anti-racista foi muito clara e precisa
em seus objetivos: demonstrar o caráter não-científico e mitológico da noção
de ‘raça’ e denunciar as conseqüências inumanas e bárbaras do racismo”.
(GUIMARÃES, 1995, p.28)
No século XIX, há uma verdadeira febre dos intelectuais de várias partes
do mundo em se pensar os fenômenos sociais a partir do biológico e usar o
meio físico como parâmetro para explicar toda a realidade social, como por
exemplo, a desigualdade entre os grupos. Muito da antropologia, nos seus
inícios, como nos mostra Young (2005), estará presa a essa forma de ver e
explicar o mundo. Esse pensamento, que vai ser fortemente influenciado pelas
teorias da evolução das espécies, começa na Europa e depois se ramifica para
o Brasil, como mostra Azevedo (1990, p.25)
Durante as décadas de 1850 a 1870 as idéias de raça e
racismo se consolidaram na Europa. A partir dessa época,
generalizou-se a crença de que certos povos, por questão de
raça, não tinham a capacidade para progredir como tantos
outros, e os europeus passaram a reconhecer grandes
diferenças entre os brancos e as outras raças
Tendo alcançado sucesso na Europa oitocentista, tais teorias chegam ao
Brasil no culo XIX e são recebidas com entusiasmo pelos nossos
pesquisadores. “As teorias raciais chegam tardiamente ao Brasil, recebendo,
no entanto, uma entusiasta acolhida, em especial nos diversos
estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa, que na época se
constituíam enquanto centros de congregação da reduzida elite pensante
nacional.” (SCHWARCZ, 1993, p. 13). O Brasil como um país tropical, uma
jovem nação, com uma característica de ter recebido influência de vários povos
na sua colonização, se transformará no “paraíso dos naturalistas”. Dada a sua
característica de país excessivamente miscigenado, o Brasil passa a ser uma
espécie de laboratório racial. Isso é o que se pode comprovar nas palavras do
pesquisador suíço Louis Agassiz, que acreditava na degeneração da espécie
em decorrência da miscigenação. Após fazer várias observações em solo
brasileiro, ele conclui.
Que qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e
inclua por mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as
barreiras que a separam, venha para o Brasil. Não poderá
negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais
geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai
apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do
negro e do índio deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente
em energia física e mental. (AGASSIZ, 1868:71, apud
SCHWARCZ, 1993:13)
A época é propícia para o estudo da miscigenação e do hibridismo. A
própria noção de civilização está associada ao hibridismo cultural, uma vez que
para muitos antropólogos anteriores a 1871, civilização era sinônimo de cultura
(YOUNG, 2005, p. 55). Assim, o grau de civilização de uma sociedade era
medido pelos níveis de cultura.
A miscigenação ganha um caráter negativo na visão dos cientistas
naturalistas como Agassiz e Gobineau, que a veem como uma forma de
degeneração do ser humano. As teorias da miscigenação chegavam pregar a
esterilidade em virtude do cruzamento de raças diferentes, cujo resultado do
cruzamento seria infértil, uma associação direta do miscigenado, mulato, com a
mula. A cultura vai operar nesse campo como um fio urdidor desse tecido de
ideologias cientificistas. A discussão sobre hibridismo cultural se pauta pela
dialética da igualdade e diferença. “O hibridismo transforma, assim, a diferença
em igualdade, e a igualdade em diferença, mas de forma tal que a igualdade
não seja mais a mesma, e o diferente não mais simplesmente diferente”.
(YOUNG, 2005, p. 32). De qualquer, forma os discursos eram sempre
utilizados para corroborar a diferença dos inferiorizados.
Entre s, a “ciência” vai utilizar as teorias raciais em favor do poder,
com o intuito de legitimar práticas perversas de dominação do poder
econômico. “O que aqui se consome são modelos evolucionistas e social-
darwinistas originalmente popularizados enquanto justificativas teóricas de
práticas imperialistas de dominação.” (SCHWARCZ, 1993, p. 30).
Na linha dessa perspectiva, percebemos na escritura de Lima Barreto o
conhecimento a respeito das teorias raciais que ganhavam corpo em todo o
mundo e a denúncia do caráter discriminatório das mesmas, que se
apropriaram das verdades cientificas para haurirem seus estatutos intocáveis e
inquestionáveis. “vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que umas
raças superiores e umas outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de
ser transitória, é eterna e intrínseca à própria estrutura da raça. Tudo isso se
diz em nome da ciência...” (BARRETO, 1956, p.110)
Convém observar que, embora seja somente no século XIX que esse
tipo de discurso científico apareça, com status de ciência, do ponto de vista
teórico, serve apenas para legitimar cientificamente uma prática social perversa
em vigor muitos séculos: a escravidão daquelas pessoas tidas como
inferiores por causa da cor da pele, e no Brasil, já eram decorridos mais de três
séculos de escravismo, período longo o suficiente para criar uma imagem
estereotipada do negro na sociedade brasileira. Da mesma forma, o termo
racismo que aparece dicionarizada na década de 30 do século XX,
Wieviorka (2007), porém sua prática data de muito na história da
humanidade, embora com contornos diferentes.
Como podemos perceber, dois tipos de discursos nesse campo: o
discurso teórico e o prático, sendo que se processa uma inversão: primeiro se
tem a prática, depois o campo teórico se encarrega de formular uma tese que
justifique tal prática. Assim como para legitimar a inferioridade do negro houve
esses dois discursos, para desmitificá-la, discursos semelhantes. Falando
sobre a luta do negro pelo reconhecimento na sociedade brasileira, Leite
(1995) mostra esses dois tipos de discursos.
um discurso teórico, formal e um prático, constituído de
modo relacional e fragmentário. O teórico procura desmistificar
a cor como elemento de conformação da diferença, no que
tange à suposta determinação biológica, fenotípica (entre eles,
a cor da pele) vista de modo hierarquizado e instituído como
um dos sinais /suportes diacríticos imputados ao
indivíduo.”(p.56-57)
Não só a ciência é inflamada por esse tipo de pensamento. A arte,
especialmente a literatura desse período, também será influenciada. A cultura
como cúmplice nesse processo, estabelece os elos entre literatura e racismo.
Como diz Young (2005, p. 111) “Há uma evidente conexão entre teorias raciais
da superioridade branca e a justificação para essa expansão, que levanta
questões acerca da cumplicidade da ciência, bem como da cultura: o racismo
não conhece divisão alguma entre as ciências e as artes.”
Refletindo sobre o papel da literatura brasileira como forma de
expressão do pensamento nacional e como instrumento criador de modelos, de
tipos nacionais, Lima Barreto mostra que a literatura estava a serviço das
classes mais favorecidas, contribuindo para perpetuar o status quo dos
inferiorizados. Utilizando uma linguagem pomposa, não compreensível pela
maioria dos leitores, a literatura nacional provoca um distanciamento entre as
pessoas iletradas e os produtores do conhecimento. “Quanto mais
incompreensível é ela(a linguagem literária), mais admirado é o escritor que a
escreve, por todos que não lhe entendem o escrito” (BARRETO, 2001, p.17)
Portanto, a literatura está a serviço da ciência, que, por sua vez, atende aos
interesses dos letrados e mais favorecidos.
Nesse contexto se trava o embate entre ciência e literatura. A literatura
brasileira do final do século vai refletir esse, digamos, espírito da época.
Podemos perceber nos romances naturalistas uma tendência em descrever
mais do que analisar os fatos sociais. Os personagens, os enredos e os lócus
das narrativas são apresentados segundo os moldes do naturalismo. Como
defende Schwarcz (1993, p. 32) “a moda cientificista entra no país por meio da
literatura e não da ciência mais diretamente”. A ciência servirá apenas de rótulo
ao literário.
A maioria dos romancistas da época tem sua produção literária
construída numa perspectiva de arte que Candido (2008, p.32) denomina “arte
de agregação”, que segundo o autor,
se inspira principalmente na experiência coletiva e visa a meios
comunicativos acessíveis. Procura, neste sentido, incorporar-se
a um sistema simbólico vigente, utilizando o que está
estabelecido como forma de expressão de determinada
sociedade.
Neste sentido, esses escritores estão presos ao sistema ideológico de
seu tempo. Na mesma linha Sevcenko (2003) mostra que a tríade ciência, raça
e civilização compunham um sistema de crenças e valores, criado para
sustentar a dominação européia sobre o mundo até a Primeira Guerra Mundial.
Dentro desse sistema indefectível, que se manifestava por forma típica de
economia, sociedade e organização política, cabia ao indivíduo, e quando é o
caso, ao intelectual, “somente adequar-se a eles o mais perfeitamente
possível” (p.147). Lima Barreto não se enquadra nessa forma. Nascido e
formado no seio deste pensamento, o autor produzirá sua literatura na
perspectiva da “arte de segregação”, que ao contrário da arte de agregação,
procura romper com os paradigmas estabelecidos. Na fala do personagem
Gonzaga de Sá, pode-se verificar uma crítica que desconstrói toda a ideia que
no Brasil se tem sobre Europa como civilização avançada cultural e
cientificamente:
Ora, a Europa, as universidades que por má-fé ou por
desconhecimento primitivo, não direi do real, mas do fato bruto
colhido pelos sentidos, deram agora para fazer teorias sobre
raça, sobre espécies humanas, etc; etc. a coisa se estende, os
interessados não são ouvidos, pois não têm cultura seguida,
porque se a tivessem , poderiam ter chegado a resultados
opostos. Que acontece? A coisa pega como certa, cava
dissensões, e os sábios diplomatas, para fazer bonito, adotam
e escrevem artigos nos jornais e peroram burrices repetidas”
(BARRETO, 1997, p.73)
Para Sevcenko (2003, p. 33), a arte de segregação “se preocupa em
renovar o sistema simbólico, criar novos recursos expressivos e, para isto,
dirige-se a um número ao menos inicialmente reduzido de receptores, que se
destacam, enquanto tais, da sociedade.” Como crítico de sua época, Lima
Barreto não está preocupado em agradar, tampouco colaborar com os
discursos racistas. Antes, notamos a sua reação de forma contundente contra
este modelo de ciência.
Ainda estou a contradizer tão malignas e infames opiniões, seja
em que terreno for, com obras sentidas e pensadas, que
imagino ter forças para realizá-las, não pelo talento, que julgo
não ser muito grande em mim, mas pela sinceridade da minha
revolta que vem bem do amor e não do ódio, como podem
supor. (BARRETO, 2006, p.166)
Em Diário Íntimo, num esboço de um suposto curso de filosofia, o
romancista discorre sobre suas impressões sobre a ciência, procurando
desmitificar o endeusamento que se prestava a ela, mostrando seu caráter
ideológico. “A ciência vem a ser, portanto, um ponto de vista sobre as coisas”
(BARRETO, 1956, p.37) Lima Barreto relativiza a ciência. Ela é um ponto de
vista, não a verdade, como se pensava na época.
Sobre a miscigenação, contrariamente à visão da ciência, que atribuía
os males e o atraso do Brasil ao fato de ser um país miscigenado, Lima Barreto
é simpático à ideia de sermos um povo formado por várias matizes. “Eu sou
Sá, sou o Rio de Janeiro, com seus tamios, seus negros, seus mulatos, seus
cafusos e seus ‘galegos’ também” (BARRETO, 1997, p.34)
Conforme Sevcenko (2003, p. 210)
Lima concebia a sociedade brasileira como o fruto da
combinação de diferentes etnias e que, em virtude mesmo
dessa mestiçagem, havia atingido um grau elevado de
intimidade e adaptação à natureza tropical e virente do país.
Abominava por isso a preocupação obsessiva das elites locais
em transmitir a imagem de uma nação branca e ‘civilizada’ para
os representantes, visitantes e mesmo para o público europeu,
assim como a perspectiva pela qual este encarava o país,
através da lente do exótico e do pitoresco, perspectiva essa
que, como se não bastasse, era incorporada pela sociedade
seleta da capital da República.
Como podemos perceber e como veremos de forma mais ampla no
capitulo III desta análise, Lima Barreto não assimila o pensamento racial de sua
época, mas procura por outros vieses desconstruir esses conceitos
petrificados e apresentar uma proposta de identidade e inclusão do negro na
sociedade brasileira.
O conceito de raça, portanto, bem como o debate sobre teorias raciais
não encontram mais espaço nem grau de pertinência nos dias atuais, salvo na
condição de elucidação de um momento histórico, como fizemos aqui. O
estudo sobre etnia, por sua vez, por ser mais abrangente, compreendendo
além da ideia de raça, a de nação, tem se tornado um debate presente entre os
autores modernos. “Entre os teóricos modernos, ‘etnia’ ou ‘étnico’ abrangem,
assim, de uma vez, sentidos diversos e se encontram articulados de
maneira diferente com as noções de raça e de nação” (POUTINAT e STREIFF-
FENART, 1998, p.40)
Não podemos, no entanto, confundir grupo étnico, que se define pela
crença subjetiva de pertença a uma comunidade de origem, com comunidade
étnica, que é uma forma alternativa de organização social e de classes. O
grupo étnico fundamenta sua crença em traços externos de aparências ou dos
costumes, ou dos dois conjuntamente, enquanto que a comunidade étnica não
apresenta necessariamente características externas que identifiquem os seus
membros uma vez que o que os unem são crenças e ideologias. Assim, a etnia
se desprende do biológico e do meramente superficial e externo,
transcendendo para instâncias mais subjetivas como o sentimento de
pertencimento geopolítico ou à herança cultural de uma determinada
ancestralidade.
Outra forma de identificação dos grupos étnicos é pela memória da
colonização. Esses grupos alimentam o sentimento de pertença a uma história
comum e em torno dessas crenças se agrupam, unidos pelo sentimento de
honra social compartilhado pelos que comungam de tal crença.
As relações sociais que são travadas por esses grupos, num processo
de exclusão/ inclusão, a partir da diferença, tende a gerar uma identidade
étnica.
A identidade étnica (a crença na vida em comum étnica)
constrói-se a partir da diferença. A atração entre aqueles que
se sentem como de uma mesma espécie é indissociável da
repulsa diante daqueles que são percebidos como
estrangeiros. Esta idéia implica que não é o isolamento que
cria a consciência de pertença, mas, ao contrário, a
comunidade das diferenças das quais os indivíduos se
apropriam para estabelecer fronteiras étnicas.” (
POUTINAT e
STREIFF-FENART
, 1998, p.40).
Assim, a identidade étnica não se pauta mais somente pela pertença à
raça, mas está ligada à idéia de nação. Os autores modernos preferem ver que
o termo etnia abrange sentidos diversos, nos quais estão articulados das mais
diversas maneiras às noções de raça e de nação. A etnicidade é um fenômeno
universalmente presente na época moderna, precisamente por tratar-se de um
produto do desenvolvimento econômico, da expansão industrial capitalista e da
formação e do desenvolvimento dos Estados-nações.
Uma compreensão desses conceitos ou o mau uso deles, ou pra ser
eufêmico, o uso não adequado, pois nem sempre os conceitos são usados de
forma inconsciente, mas sim de forma ideológica, leva a legitimação da
desigualdade, da discriminação e do racismo. Segundo Christian
Delacampagne “o racismo é a redução do cultural ao biológico, a tentativa de
fazer o primeiro depender do segundo. O racismo existe sempre que se
pretende explicar um dado status social por uma característica natural”.
(DELACAMPAGNE, 1990, p.86 apud GUIMARÃES, 1995, p.31).
É nesse sentido que compreendemos o fato de provocação do racismo,
na sua forma primária, como Coloca Zilá Bernd (1994) seria o medo do outro,
do estrangeiro.
O outro (o desconhecido) é visto como inimigo. Existe no
racismo primário uma desconfiança generalizada a qualquer
estrangeiro. Trata-se de uma espécie de comportamento quase
instintivo, de reação “primitiva” de medo ao estrangeiro, que é
visto como invasor, como ameaça ao equilíbrio do grupo.
(1994, p. 42)
O estado moderno conservou na sua estrutura meios de segregação,
praticou uma atitude de jardinagem, através da qual as pessoas que não
interessavam à ordem eram classificadas como ervas daninhas e deveriam ser
extintas. Estabelece-se a eugenia que “com status de disciplina científica,
objetivou implantar um todo de seleção humana baseada em premissas
biológicas. E isso através da ciência, que sempre se pretendeu neutra e
analítica”. (DIWAN, 2007, p. 10).
O Estado brasileiro institucionalizou o racismo e a discriminação ao
propagar o discurso da superioridade do branco, promovendo a segregação
entre as etnias e, consequentemente, entre classes sociais.
O pensamento das etnias do ponto de vista cultural é o debate mais
atual das últimas décadas. No âmbito dos estudos culturais, esse debate tem
sido visto como uma forma de suscitar identidades. Segundo Gilroy (2007),
estamos vivendo transformações profundas na forma de ver as diferenças
raciais. “Subjacente a isso, outro problema, possivelmente mais profundo,
que surge da mudança nos mecanismos que governam como as diferenças
raciais o vistas, como elas aparecem para nós e incitam identidades
específicas”. (2007, p.29).
Lima Barreto, enquanto visionário, trata de temas da modernidade e traz
para os textos exemplos que plasmam esta perspectiva da identidade étnica,
como veremos com mais propriedade no capítulo seguinte.
2.2 Lima Barreto na contramão da crítica: entre a literatura e a sociedade.
Iniciemos pela apresentação, ainda que de relance, da vida do escritor
carioca Lima Barreto, entendendo seu universo literário e o contexto histórico e
social em que ele viveu e produziu sua obra. Esta compreensão é necessária
para a identificação do lugar de onde se fala, a posição do escritor dentro do
contexto literário. Segundo Machado (2002, p. 55), “A origem social de
qualquer intelectual é extremamente relevante para sua compreensão, por nos
fornecer informações preciosas sobre os impulsos grupais que deixam
transparecer em suas Obras”.
A partir desse contexto, o reconhecimento de um autor não depende
apenas da qualidade de seu texto. Existem fatores sociais e posicionamentos
ideológicos que influenciam de forma direta na sua aceitabilidade. Ser incluído
no cânone literário não significa ter produzido obra de excelente qualidade,
como também o contrário é verdadeiro, principalmente porque a idéia de
Cânone Literário é uma construção ideológica.
A ideia de Cânone relaciona-se a modelo e a padrões.
Historicamente, temos um cânone construído ao longo da
história da civilização por dirigentes pertencentes a elites, em
maior ou menor grau determinadas formas eram excluídas
porque não se encaixavam nos modelos estabelecidos.
(BEZERRA, 2008, p.315)
Kothe (2004) faz severas críticas ao Cânone literário brasileiro, quando
destaca alguns fatores que concorreram para que ele sempre fosse excludente,
deixando à margem alguns escritores de excelente qualidade.
Fingir que o cânone é grande serve para manter a
mediocridade no poder. O predomínio do absolutismo católico,
o uso da literatura para fins de propaganda, o caráter
conservador das elites, o baixo nível do público e a influência
do jornalismo são fatores que determinam a mediocridade da
literatura brasileira (2004, p. 67).
No entanto, é importante observar que o cânone é uma entidade que
atua de forma a posterior, e Lima Barreto, embora de forma tardia, pôde ser
incluído nele. A discussão aqui é sobre como a literatura do escritor carioca foi
recebida pela sua geração e quais as influências que exerceu na sociedade da
época. Precisamos entender os aspectos do momento de produção, o contexto
social, que influencia o fazer literário do escritor, não na forma como nos
conteúdos por ele abordados.
A esses fatores, que não estão ligados diretamente à estrutura da obra,
mas ao plano social, Candido (2008) chama de fatores externos e justifica sua
pertinência no estudo de sociologia da literatura.
Aqui, é preciso estabelecer uma distinção de disciplinas,
lembrando que o tratamento externo dos fatores externos pode
ser legítimo quando se trata de sociologia da literatura, pois
esta não propõe a questão do valor da obra, e pode interessar-
se, juntamente, por tudo que é condicionamento. Cabe-lhe, por
exemplo, pesquisar a voga de um livro, a preferência estatística
por um gênero, o gosto das classes, a origem social dos
autores, a relação entre as obras e as idéias, a influência da
organização social, econômica e política etc” ( p. 14).
No caso de Lima Barreto, sua condição social e a posição que assume
não são favoráveis para uma simpatia por parte dos poderosos. De origem
humilde, filho de mestiços pobres, nasceu no Rio de Janeiro, a 13 de Maio de
1881. Ironicamente, o 13
de Maio ficaria conhecido na história do Brasil como o
dia da libertação dos negros, não o 13 de Maio de 1881, mas o de 1888.
Cresce no seio de uma família sem nenhum status social. João Henriques, seu
pai, era negro, e com surtos de loucura, dona Amália, sua mãe também era
descendente de negros escravos, contudo, tinha um pouco de formação,
chegando a trabalhar como professora para ajudar no sustento da casa,
inclusive, Lima Barreto faz as primeiras letras com ela, que falece quando ele
ainda é muito criança, deixando um grande vazio na alma do escritor, como ele
próprio confessa em Diário Intimo (1956) “logo depois da morte de minha e,
quando fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar” (p. 20)
O próprio ambiente familiar do autor do Diário Íntimo o era propício.
Ele mesmo mostra uma profunda insatisfação com a sua casa, com os seus
familiares. O pai mergulhado na insânia, o irmão vivia roubando objetos de
pouco valor e a irmã correndo os riscos a que as mulatas estavam expostas. “A
minha casa ainda é aquela geena pra minh’alma. É um mosaico tétrico de dor e
de tolice” (BARRETO, 1956, p. 41). A realidade social em que estava inserido
fazia com que ele reagisse de forma antagônica a aqueles que estavam à sua
volta, até mesmo com os seus familiares. Percebemos isso quando fala a
respeito de sua madrasta, a quem ele se julga superior. “A Prisciliana e filhos,
aquilo de sempre. Sem a distinção da cultura nossa, sem o refinamento que já
conhecíamos, veio em parte talvez prender o desenvolvimento superior dos
meus. Só eu escapo! (BARRETO, 1956, p. 41)
Ele mesmo se apresenta com o ideário de escrever sobre a história da
raça negra no Brasil, ou o seu “germinal negro”. “Eu sou Afonso Henriques de
Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de
Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. [...]“No futuro, escreverei a
História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa
nacionalidade.” (BARRETO, 1956, p.31).
Nesse caso, ao assumir tal postura de escrever sobre algo que
incomodava o estado brasileiro naquela época, a lembrança da escravidão, a
maior vergonha da história, a ponto de Rui Barbosa ordenar a incineração de
documentos sobre ela, numa tentativa de apagar da memória esta página
funesta da nossa história, não seria interessante para um escritor que quisesse
conquistar a elite. Retomar esta temática seria “desenterrar defuntos” que o
estado queria manter sepultados.
A vida e o posicionamento do autor são fatores determinantes da forma
como é percebido pelo público. Lima Barreto, além da condição social
desfavorável que citamos aqui, tem agravos em decorrência da vida
desregrada que levava. Segundo definição de Kothe (2004, p. 41), Lima
Barreto “nasceu com três azares frente ao paradigma senhorial branco: pobre,
mulato e filho de maluco. A esses ele acrescentou outros três: alcoolismo,
crítica ao poder(governo e mídia) e neurose grave”. De todos esses agravantes
na vida do escritor, parte da discriminação sofrida impressa em seus diários e
na obra literária está no fato de ele ter sido mulato e fazer críticas ao poder,
demonstrando uma atitude de rebeldia frente às ideologias impostas.
Sevcenko (2003) destaca os escritores contemporâneos Euclides da
Cunha e Lima Barreto e mostra que eles assumiram posturas diferentes de
outros autores do mesmo período, no sentido de realizarem a transformação
cultural da qual os próprios foram catalisadores, não receberam o devido
reconhecimento. Para Sevcenko (2003, p. 115), “Em vez de entrarem para um
universo fundado nos valores da razão e do conhecimento, que premiasse a
inteligência e a competência com o prestígio e as posições de comando, viram
tudo reduzido ao mais volúvel dos valores: o valor econômico.”
Esses dois escritores têm como eixo de sua produção o campo social ao
romperem com o lirismo imperante na literatura brasileira até então. Dessa
forma, tanto Cunha quanto Barreto, buscam a realidade social e estão
envolvidos num projeto de pensar o ser nacional, abominando o
cosmopolitismo burguês de inspiração européia e procurando criar uma
identidade própria através da qual o país pudesse encontrar o caminho para o
desenvolvimento, não apenas econômico, mas humanitário dentro da nova
ordem mundial.
Para eles, somente a descoberta e o desenvolvimento de uma
originalidade nacional daria condições ao país de compartilhar,
em igualdade de condições, de um regime de equiparação
universal das sociedades, envolvendo influências e
assimilações recíprocas. (SEVCENKO, 2004, p. 144)
Embora tenham históricos de vida diferenciados e falem de posições
sociais díspares, Lima Barreto e Euclides da Cunha podem ser considerados
autores socialmente engajados. Ainda que o engajamento seja uma prática
inerentemente ao fazer literário, Como nos mostra Sartre (1989), uma vez que,
ao falar, ao dar voz aos personagens, ao escolher tratar de uma determinada
temática, o autor já se posiciona. Privilegiando o ângulo da prosa, Sartre
mostra que a palavra não é neutra, é uma atitude de mudança. “O escritor
‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não
se pode desvendar senão tencionando mudar.” (1989, p.20). No entanto, o
escritor pode fazer recortes ideológicos, escolhendo sobre o que falar e como
falar. Lima Barreto preferiu dar voz aos menos favorecidos da sociedade
burguesa: pequenos funcionários, pobres, favelados e outros que não
encontravam espaço numa sociedade elitista e excludente.
A visão de mundo do autor vai influenciar na estética da obra, bem como
na seleção das temáticas abordadas, uma vez que a obra passa por um
constante processo de avaliação pela crítica literária. De uma forma ou de
outra, o autor se vê obrigado a assumir uma postura frente à crítica e à
sociedade, numa atitude de assimilação ou de enfrentamento dos valores
estabelecidos. Assim, como nos mostra Candido (2008), os fatores externos
tornam-se internos na medida em que as questões sociais são trazidas para
dentro da obra, se apresentado de forma estética, como por exemplo, a
escolha de um autor pela linguagem coloquial, como também tratando de
assuntos do dia-a-dia, com o intuito de alcançar o público que tem o domínio
daquele tipo de linguagem, é uma posição social que reflete na estética da
obra.
Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou
da historia sociologicamente orientada, para chegar a uma
interpretação estética que assimilou a dimensão social como
fator de arte. Quando isto se , ocorre o paradoxo assinalado
inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa de ser
sociológica, para ser apenas crítica (CANDIDO, 2008, p. 17).
Lima Barreto parece não ter escolhido o caminho mais fácil para
ser considerado pela crítica um escritor de renome. Sua história de vida
também não contribui para isso. Na condição de negro, passou por vários
revezes, sentiu na pele o drama da discriminação, enfrentou grandes
dificuldades, passou por muitas privações, até mesmo por necessidades
básicas e foram-lhe negados direitos essenciais. “Acordei-me da enxerga em
que durmo e difícil foi recordar-me que três dias não comia carne. Li jornais
e fui para a sala dar as aulas, cujo pagamento tem sido para mim sempre
uma hipótese” (BARRETO, 1956, p. 33) Ele se via como negro e sabia que
esta condição era a causa da discriminação que sofria, como defende o
fragmento seguinte:
Na realidade, a condição negra atordoou-o muito desde os
primeiros momentos em que passou a sentir-se menosprezado
por causa dela. Não era só uma certa mania de perseguição
que o feria, mas também um estado denominado, em seu
tempo, como “Bovarismo”, tendência realista ainda hoje
corrente que caracteriza o indivíduo que se considera em
melhor conta com relação ao meio social e aflige-se por não
ser reconhecido da forma “justa” (SILVA, 2006, p. 02)
No entanto, a vida do escritor carioca não foi somente de infortúnios.
Teve uma boa instrução, estudou em boas escolas, sendo sempre um aluno
exemplar, mas, com a doença do pai, se vê obrigado a abandonar os estudos e
tem de trabalhar para ajudar no sustento da casa, daí se desencadeia uma
série de problemas, como mostra Moisés (2001, p. 399):
faz estudos regulares até 1897, quando ingressa na escola
Politécnica. Seu pai enlouquece. Interrompe o curso de
engenharia. Faz concurso para a diretoria do expediente da
secretaria da guerra. Inicia-se no jornalismo e na ficção.
Entrega-se ao álcool e à vida boêmia. A demência assedia-o:
por duas vezes, é recolhido ao hospício( 1914 e 1919). Falece
a 1º de Novembro de 1922.
Comunga com essa visão de Massaud Moisés, Arnoni Prado, que
fazendo uma análise da vida de Lima Barreto, mostra que um dos motivos
pelos quais ele não conseguiu ser reconhecido no seu tempo foi o preconceito
racial que enfrentou.
Inteligente e esforçado, Lima Barreto tinha tudo para ser um
excelente aluno, não fosse o preconceito racial que imperava
na escola. Isolado, retraído, excluído da companhia dos
colegas, seu único consolo eram as longas tardes de leitura na
Biblioteca Nacional e as visitas à capelinha do Apostolado
Positivista. (PRADO, 1980, p.04)
Observando a definição de Prado (1980), podemos perceber como a vida
do romancista foi marcada pela segregação de raça. H. Pereira da Silva, um
dos maiores biógrafos de Lima Barreto, mostra o quanto ele foi injustiçado em
vida e mesmo depois de morto, sua obra completa só foi publicada muitos anos
depois de sua morte. Sobre o livro biográfico que escreveu a respeito de Lima
Barreto, Silva (1981, p. 25) declara: Lima Barreto escritor maldito tem outro
objetivo. Visa ressaltar, às vezes em termos satíricos, a desgraça do homem
de letras, escorraçado, espezinhado, chutado nas canelas e da cintura pra
cima, à vista de um juiz indiferente: a sociedade intelectualizada do seu tempo.”
O caráter de Lima Barreto, bem como o seu estado de alma, refletirá no
tipo de literatura que ele produziu, uma literatura de denúncia, voltada para
combater os donos do poder no país que cometem atos absurdos. As
discriminações sofridas por ele fazem com que seu estado de alma seja
agressivo. Quando o lemos atentamente, percebemos seu sentimento de
tristezas, em virtude das injustiças sofridas.
Em Diário Intimo (1956, p. 46), por exemplo, notificamos as seguintes
declarações do narrador:
Hoje (6 de novembro) fui à ilha , pagar dívidas de papai (490);
paguei-as uma a uma; entretanto, na volta, estava triste; na
estação de São Francisco (vim pela Penha), ao embarcar, me
invadiu tão grande melancolia, que resolvi descer à cidade.
Que seria? Foi o vinho? Sim, porque tenho observado que o
vinho em pequenas doses causa-me melancolia; mas não era
o sentimento; era outro, um vazio n'alma, um travo amargo na
boca, um escárnio interior. Que seria? Entretanto, eu o quero
atribuir ao seguinte: Na estação, passeava como que me
desafiando o C. J. (puto, ladrão e burro) com a esposa ao lado.
O idiota tocou-me na tecla sensível, não negá-lo. Ele dizia
com certeza: Vê, "seu" negro, você me pode vencer nos
concursos, mas nas mulheres, não. Poderás arranjar uma,
mesmo branca como a minha, mas não desse talhe
aristocrático”.
Na citação acima, é possível perceber que Lima Barreto sempre
enfrentou a indiferença por parte dos brancos e, por vezes, foi insultado até
mesmo em relação a relacionamentos amorosos e relações afetivas. Nesse
contexto, Barbosa (1988) mostra que Lima Barreto, desde a infância, viveu
sempre sério e taciturno, não gostava de muita conversa, não envolvia-se em
brincadeiras e conservou no seu caráter sempre, como disse o próprio Lima,
uma certa misantropia, ou seja, ele era meio antagônico aos homens de seu
tempo, principalmente aos brancos e poderosos. Esse comportamento do
escritor carioca, sempre avesso ao poder e à sociabilidade, sempre agressivo e
crítico, deve-se em parte às discriminações que ele sofrera em toda a sua vida.
Em matéria de estudo, como mostramos, Lima Barreto foi sempre
dedicado aos livros. Conforme assinala Barbosa (1988, p. 41): “foi aluno
aplicado, levava as lições a sério”. Queria ser doutor, assim como Isaias
Caminha, para “resgatar o pecado original do seu nascimento e amaciar o
suplício premente e cruciante de sua cor”. (BARRETO 2006, p. 21)
Cresce no Rio de Janeiro, tem uma vida meio perturbada. Primeiro, com
a morte da mãe, em 1887, depois com as dificuldades que teve nos estudos.
Em 1895, conclui a instrução primária, entra para o Ginásio nacional, depois
para a escola cnica, mas não consegue concluir os estudos, tem que
trabalhar para sustentar a família, em virtude da loucura do pai. Dedicou-se ao
jornalismo e começou a colaborar nos jornais acadêmicos em 1902 e, em
1905, passa a trabalhar como jornalista profissional no Jornal Correio da
Manhã.
No universo jornalístico, ganha relativa expressão, escrevendo em vários
jornais de circulação da época, garantido-lhe o acesso a espaços antes não
frequentado.
O ingresso no jornalismo profissional viria em 1905 com uma
série de reportagens no Correio da Manhã, atividade que divide
com a militância política: a participação, pouco depois, no
comitê do Partido Operário Independente de Pausílio da
Fonseca (PRADO, 1980, p.04).
A maior parte de sua vida, Lima Barreto dedicou ao jornalismo
escrevendo crônicas e artigos nos jornais da época. Segundo Moisés (2001),
“Lima Barreto é antes de tudo um repórter ou jornalista: sua obra, inclusive a
madura ou mais refletida, nasce do cotidiano, dele se nutre e com ele corre o
risco de perecer.” (PRADO, 1980, p.399). No entanto, é inegável que o autor
tenha recebido expressividade dentro do jornalismo utilizando-se deste meio
para publicar algumas de suas obras, como por exemplo, Clara dos Anjos, em
folhetins, não conseguindo a mesma popularidade como escritor. Como
observa Prado (1980, p. 05), “Muito sucesso junto ao público, mas pouca sorte
para o escritor”. Ampliaremos essa relação do romancista com o jornalismo no
capítulo III, no qual trataremos do romance Recordações do escrivão Isaías
Caminha.
O fato de ter nascido no Rio de Janeiro e convivido no espaço dos
jornais, além de servir de inspiração para escrever algumas de suas obras, lhe
permitirá certo contato com o mundo editorial. “Lima Barreto conseguiu, em
1905, entrar para a redação do jornal Correio da Manhã. Teve a sorte de
nascer no Rio de Janeiro, capital do país e centro editorial; caso contrário
dificilmente veria sua obra publicada”. (KOTHE, 2004, p. 45)
O jornal possibilita também o contato com o público que é fundamental
para o escritor. Na visão de Candido (2008, p. 48), uma relação estreita na
tríade: autor, público e obra.
O público sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não
se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua
imagem enquanto criador. Os artistas incompreendidos, ou
desconhecidos em seu tempo, passam realmente a viver
quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste modo, o
público é fator de ligação entre o autor e sua própria obra.
No caso de Lima Barreto, essa relação com o público não foi satisfatória,
uma vez que o público da época era orientado por questões raciais marcantes
naquele momento da história do Brasil, como acentuamos neste estudo.
Dificilmente, um escritor negro, com uma vida desregrada, teria sucesso junto a
um público branco, numa sociedade conservadora. A relação da obra com o
meio social seleciona seu público alvo, visto que a obra de arte traz para dentro
de si, para a estética, elementos do meio em foi criada, como também procura
reconfigurar o meio. “Algumas das tendências mais vivas da estética moderna
estão empenhadas em estudar como a obra de arte plasma o meio, cria o seu
público e as suas vias de penetração, agindo em sentido inverso ao das
influências externas.” (CANDIDO, 2008, p. 28)
Quando adota uma postura de crítica aos valores burgueses, à elite
social, o autor de Os Bruzundangas, ao satirizar os costumes e as práticas
sociais, além de introduzir em seu texto e dar voz a personagens
representativos da margem, da periferia, passa a ter uma recepção
diferenciada por parte do leitor, ainda que seja amplo numericamente, é
composto por uma pequena fração dos que têm acesso aos bens culturais.
Assim, os formadores da opinião pública, a quem a literatura de Lima Barreto
não interessava, se encarregaram de criar uma imagem negativa da produção
literária do escritor carioca, reservando-lhe o lugar de escritor menor.
Enquanto profissional, Lima Barreto foi aquilo que mais detestava:
funcionário público, amanuense da secretaria de guerra. Tendo sido
considerado como inválido, por causa da suposta loucura, pelo que foi
recolhido ao hospício por duas vezes, em 1914 e 1918, foi aposentado da
Secretaria de Guerra, passando a levar uma vida boêmia. O escritor João
Antonio, que conviveu com Lima Barreto, mostra de forma detalhada, no livro,
Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1977), o seu
cotidiano. “Lima Barreto passava rapidamente pela livraria, demorando-se de
cinco a dez minutos. Dirigia-se ao bar, onde, conforme os presentes, passava
até às cinco horas da tarde, entretido na conversação com os companheiros
(eram poucos)” (ANTÔNIO, 1977, p.55).
No entanto não é só a boemia que marcará a vida de Lima Barreto, ele é
um escritor de ideias vanguardistas, embora não seja possível, no que se
refere aos ideais políticos, encaixá-lo dentro de um pensamento ideológico ou
corrente política. Ele era sui generes nestas questões, ainda que trate de uma
variação temática vasta.
O temário de sua obra inclui: movimentos históricos, relações
sociais e raciais, transformações sociais, políticas, econômicas
e culturais; ideais sociais, políticos e econômicos; crítica social,
moral e cultural; discussões filosóficas e científicas, referências
ao presente imediato, recente e ao futuro próximo; ao cotidiano
urbano e suburbano, à política nacional e internacional, à
burocracia, dados biográficos, realidade do sertão, descrições
geológicas e geográficos (fragmentos) e análises históricas.
Praticamente tudo o que de mais relevante oferecia a realidade
de sua época, como se pode perceber. (SEVCENKO, 2003, p.
191)
Lima Barreto se apresenta como um crítico incisivo da República. Está
sempre desferindo golpes contra o sistema de corrupção que imperava no novo
regime, que estava cheio de práticas de desmandos envolvendo concussão,
peculato, e toda forma de prevaricação no conluio de coronéis e políticos.
Quando se refere à proclamação da República, e isto o fez por poucas vezes,
trata do assunto com indiferença e sem empolgação: “da tal história da
proclamação, me lembro que as patrulhas andavam, nas ruas, armadas de
carabina e meu pai foi, alguns dias depois, demitido do lugar que tinha”
(BARRETO, 1956, p.50).
Por causa desse posicionamento, alguns críticos de Lima Barreto o
acusaram de reacionário. Não se tratava de reacionarismo, antes de não
aceitar um estado corrupto e conivente com práticas vergonhosas como as que
elencamos aqui. Ademais: Lima Barreto é um dos poucos escritores do início
da República com uma proposta de mudança para a nova Republica,
principalmente para a inclusão do negro e do mulato na sociedade.
Lima Barreto, apesar do seu pouco tempo de vida e de produção,
conseguiu deixar uma porção vasta e diversificada de literatura, escrevendo
contos, romances e crônicas, inclusive crítica literária com o livro “impressões
de leitura”. No entanto, sua produção obteve pouco reconhecimento em sua
época pelo fato de ele ter vivido sempre sendo discriminado pelos brancos,
perseguido pela imprensa e rejeitado pelos literários. “a inserção marginal de
Lima Barreto, condicionada pela origem negra e pobre, é alimentada pelo fato
de não ter podido concluir seus estudos de engenharia” (MACHADO, 2002,
p.59)
Toda a obra de Lima Barreto está arraigada à questão da crítica social,
da denúncia do racismo, da discriminação contra raças e classes sociais,
graças a sua personalidade, sua formação, sua condição social de mulato,
alcoólatra, discriminado pelas elites e isso vai refletir no tipo de literatura que
ele produziu. Sevcenko (2003) defende que Lima Barreto produz sua obra com
um conteúdo utilitário e humanitário, é defensor da solidariedade universal, e
assume uma perspectiva social com o intuito de modificar a opinião dos seus
concidadãos. “Dessa visão integrada da realidade transmitida pela sua obra,
acrescentada das informações biográficas de que estão forradas as suas
páginas, podemos inferir sem grandes dificuldades a perspectiva social
assumida por Lima Barreto.” (2003, p. 132).
Alguns autores defendem que Lima Barreto reflete-se nas suas
personagens e transfere para elas traços de sua personalidade. segundo
Machado, (2002, p. 55): “nesse literato excepcional, vida e obra compõem uma
unidade singular e comovente. Ficção e realidade caminham juntas”.
Não podemos, no entanto, cair no erro de achar que a obra se constitui
uma extensão do autor. Embora ele fale de si, deixe transparecer para a sua
obra traços inerentes do seu ser, a obra plasma o pensamento do autor sobre
determinado assunto, parte da realidade e do cotidiano, mas reelabora as
ideias no plano do simbólico no campo da ficção.
A literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em
termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um
sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências, sentimentos,
representados ficcionalmente conforme um princípio de
organização adequado à situação literária dada, que mantém a
estrutura da obra. (CANDIDO, 2008, p.187)
Nessa perspectiva, pode-se dizer que Lima Barreto não escreve apenas
sobre a discriminação que enfrentou como também a resistência por parte da
crítica de sua época, acusando-o de ser simplório. Sua obra fala sobre
temáticas variadas, abrangendo o universo do ser humano. No entanto, a
crítica se volta contra ele por ter escolhido escrever sobre os pobres e os
negros, os menos favorecidos da sociedade de seus dias.
Posicionando-se assim, o escritor estaria se mostrando contra o sistema
de dominação política, contra os ricos, e a literatura brasileira sempre foi
produzida pelos ricos e para os ricos. “Em uma sociedade de classes, os mais
ricos conseguem maior representação e sufocam quem se contrapõe aos seus
interesses.” (KOTHE, 2004, p. 50).
Estaria assim assinando sua sentença, pois como afirma Kothe (2004, p.
50): “Não há uma distribuição igualitária do poder decisório: a democracia
burguesa é, de fato, uma plutocracia. Interessa aos ricos, no entanto, chamá-la
de democracia, ao invés de lhe dar o nome correto.”
Por isso mesmo, a literatura de Lima Barreto encontrou resistência da
crítica literária, houve escritores que o criticaram argumentando que a sua
produção literária era pobre e que ele era pedante, altivo. É o que podemos
observar nas palavras de José Veríssimo, contemporâneo de Lima Barreto: “Há
nele um defeito grave, julgo-o ao menos, e para o qual chamo a sua atenção, o
seu excessivo personalismo. É pessoalíssimo e o que é pior, sente-se demais
que o é.” (VERISSIMO apud BOSI 2001 p 358). Nota-se pelo comentário uma
ofensa por Lima Barreto mostrar-se, em alguns momentos, de modo altivo.
Kothe (2004, p. 75), analisou essas palavras de José Veríssimo, e contra
argumentou: “Veríssimo é tão dogmático quanto prepotente: o que ele não quer
é que se desmascare a aura das classes altas. Não é original nisso. Acha que
apenas é aquilo que ele próprio acha que sabe e o que ele não sabe também
não é”.
Lima Barreto tem sua obra publicada tardiamente, justamente porque o
momento da produção o era interessante para as elites permitirem a
circulação de tais ideias, por isso que a crítica e intelectuais do seu tempo
ofereceram resistência à sua literatura. Alguns fatores concorreram para essa
resignação por parte da crítica, mas, como pontuamos aqui, a cor da pele
teve uma influência muito forte nessa questão, por mais que se queira afirmar
que não preconceito de cor, é inegável que, na época, um escritor, ou
qualquer outra pessoa, era visto sob a égide dos discursos racistas.
Segundo Machado (2002, p. 56), Lima Barreto “atribuía as dificuldades
de sua vida na imprensa, na escola politécnica nos meios literários, na
repartição pública ao fato de ser mulato.” Numa sociedade tradicionalista e
purista como era a nossa de finais do século, era inadmissível que um homem
negro, que vivia bêbado, andando sujo e mal vestido pudesse produzir
literatura, ser um escritor, um produtor de conhecimento, pudesse dividir com a
oligarquia brasileira o espaço da formação de opiniões. Fazer literatura era
tarefa para os nobres, os fidalgos, que falavam francês e cursavam as
melhores universidades da Europa.
Silva (1981, p. 88) argumenta que a credibilidade do autor estava na cor
de sua pele e na sua condição social:
Se o Visconde de Taunay, capaz de escrever Inocência-
tivesse tido existência desregrada que diriam os graves
senhores da moralidade Pública? Ousariam afrontá-lo,
chegariam ao extremo de após identificado, tomá-lo por
contínuo? Se assim fosse, em outra situação, todo tipo
lombrosiano que andasse na rua, seria alem de suspeito,
preso... A respeitabilidade está, neste caso, na razão direta da
cor do romancista e a do outro de Inocência no fato de ser
Visconde.
Candido (2008, p. 22) pondera essas afirmações mostrando que existe
uma estrutura condicionante, e que todos os fatores (sociais, psicológicos etc)
precisam ser considerados. Os fatores sociais não são, em primeira instância,
os próprios determinantes, mas criam as estruturas que fazem este papel.
Se tomarmos o cuidado de considerar os fatores sociais no seu
papel de formadores de estrutura, veremos que tanto eles
quanto os psíquicos são decisivos para a análise literária, e
que pretender definir sem uns e outros a integridade estética
da obra é querer, como o barão de Munchhausen
conseguiu, arrancar-se de um atoleiro puxando para cima os
próprios cabelos.
Como podemos ver, Lima Barreto foi por todos discriminados e em tudo
preterido sendo sempre considerado um escritor menor, de pouca
importância, por dois motivos: ser negro e não se dobrar aos modelos
literários da época.
2.3 Vida e posicionamento: a escolha pela margem.
Lima Barreto como um escritor marcado pela diferença e pela
indiferença e sordidez da crítica e dos pensadores da época, faz de sua vida
uma resistência ao sistema de imposição cultural. Enquanto a moda da época
era se inserir nos meios da alta sociedade, principalmente nos salões, para
alcançar prestígio intelectual, o escritor carioca vai se inserir nos subúrbios e
seus personagens prediletos são a gente humilde do Rio de Janeiro.
Lima Barreto é um escritor de resistência. Embora o termo literatura de
resistência, enquanto teoria, apareça no período pós 1930, podemos
perceber que o escritor carioca produz sua literatura, na perspectiva de
resistência colocada por Bosi (2002, p.120) a) a resistência se dá como tema;
b) a resistência se como processo inerente à escrita. Enquanto tema, a
obra limeriana se reveste, como observamos, de um temário variado, mas
retratando principalmente o drama dos excluídos e resistindo á cultura
eurocêntrica, branca, elitista e dominante.
Enquanto processo de criação literária, Lima Barreto, procura
propositadamente, produzir uma literatura que esteja ao alcance de todos os
leitores, cultos ou incultos. Fala de coisas do cotidiano, não de “assuntos de
gaveta”, como dizia Gonzaga de Sá. “Nós, os modernos, nos vamos
esquecendo que essas histórias de classe, de povos, de raças, são tipos de
gabinete, fabricados para as necessidades de certos edifícios lógicos, mas que
fora deles desaparecem completamente.” (BARRETO, 1997, p.44). O escritor
tinha uma concepção de arte coerente com o tipo de literatura que ele
produzia. Ele quebra com a visão aristotélica da arte como o belo, como o
transcendental e entende que a arte deve partir do real. Apropriando-se do
discurso do personagem Floc, de Recordações do Escrivão Isaías Caminha
(2006), diz: “para mim a verdadeira arte é aquela que consorcia o ideal com o
real; é aquela que, não desprezando os elementos representativos da
realidade, sabe pelo ideal, arrebatar as almas aos paramos do incognoscível”
(p. 142).
Nesta perspectiva, Lima Barreto aproxima sua literatura ao cotidiano,
fazendo com que participem da trama personagens tipos que ainda não haviam
conquistado espaço nas obras literárias, bem como propiciando uma
identificação do público simples dos subúrbios com a obra. “Admirava-me que
essa gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra a moléstia e contra a
civilização; que tivesse energia para viver cercada de tantos males, de tantas
privações e dificuldades.” (BARRETO, 2006, p.132)
Enquanto homem das letras, o autor de Clara dos Anjos preocupou-se
em retratar o drama dos negros, recém libertos, sem emprego e sem
perspectivas de vida, mostrou a luta das mulheres mulatas que se digladiam a
cada instante para fugir das garras dos brancos exploradores. Como disse
Silva (1981, p. 99):
A gente humilde, pobre, mulatos, negros e brancos
escravizados são a argila e as costelas das personagens que
receberam o sopro da criação. Elas sobrevivem à degradação
social, econômica e psicológica do embriagado Deus que os
expulsou do inferno íntimo para o paraíso literário.
A configuração das personagens é reveladora da concepção que o
escritor tem da engrenagem social. As personagens barretianas, além de
excluídas socialmente, são geralmente marcadas pela angústia e dor
universais. Imersos num contexto de coerção, discriminação e marginalização
social, “os personagens de Lima Barreto, sem exceção, ou representam as
vítimas dessa estrutura plástica e constrigente, ou as formas de consciência e
conduta de que ela se nutre.” (SEVCENKO, 2003, p. 217).
Lima Barreto além de trazer as personagens que estão à margem,
imprime-lhe a voz. Uma característica presente nas narrativas deste literato é
a presença do narrador personagem. Portanto, mais do que retratar a margem,
ele passa a palavra a quem não era permitido. Fazendo isso, o escritor toca na
ferida dos governantes, escancara as portas para mostrar aquilo que deveria
ser ocultado, revela toda a miséria dos subúrbios, os descasos com que são
tratados os pobres, joga em rosto a hipocrisia do governo republicano que
tencionava vender uma imagem de um país democrático e desenvolvido. Esse
exercício é praticado por meio da linguagem, que segundo Freire (2005, p. 15)
tinha como intenção possibilitar voz aos desprovidos dela.
Assim, ao mesmo tempo em que confere audição, possibilita
voz amplificada aos “desprovidos”, por intermédio de um
exercício lingüístico completamente coerente e concernente ao
fim a que se destina: pousa-a em solo de ruas e vielas dos
subúrbios cariocas, dando ao conhecimento do Brasil, um
Brasil abafado pelo jugo do interesse e do poder.
A linguagem acessível utilizada por Lima Barreto não significa falta de
domínio da norma culta, mas demonstra uma atitude de resistência. Ele era
extremamente crítico ao esnobismo lingüístico. Referindo-se “ao Rui”, uma
alusão a Rui Barbosa, chama-o de “o letrado beneditino das coisas de
gramática”. Na visão de Lima Barreto a grandiloquência de nossos intelectuais
é um meio de enganar, com artifícios de linguagem, a gente mais simples. “Rui,
o letrado beneditino das coisas de gramática, artificiosamente artista e estilista,
aconselha pelos jornais condutas ao governo. há dias, ele, no auge da retórica,
perpetrou uma extraordinária mentira.”(BARRETO, 1956, p.51) A mentira a
que ele se refere aqui diz respeito a um comentário de Rui Barbosa sobre a
manhã do dia 15 de novembro de 1889, Proclamação da República,
apresentando-a como tinha acontecido numa manhã “fresca, azulada e
radiante”, quando na verdade a manhã foi “chuvosa, ventosa e hedionda.”
Portanto, Lima Barreto não se identifica com a linguagem rebuscada da elite.
Adotando essa postura, passa a ser considerado pela crítica um escritor
menor, periférico, pois não retrata a história do centro e como bem observou
Kothe (2004, p.83):
A periferia não tem história própria (pois apenas o centro faz
história à medida que atua), ela faz de conta que tem história
refletindo o centro, também os artistas e pensadores
periféricos não precisam se preocupar com a sua vida post
mortem, já que estão todos mortos em vida.(...) Que Lima
Barreto tenha tido de esperar quatro décadas para ter a sua
obra publicada integralmente, como se fosse ela a negação do
sistema, é apenas um sintoma, como também são o gesto de
classificá-lo como “pré-modernista” ou dizer que não foi um
grande romancista por ter copiado a realidade.
É comum encontramos nas personagens de Lima Barreto uma atitude
de confinamento e misantropia. No confronto social, o sujeito ou se insurge
contra o sistema através da luta, ou se isola. O próprio Lima se comportava
dessa forma, praticando o insulamento como forma de resistência e isso tem
influência na sua produção literária, pois a participação no meio social
determina a relação com o público. Ou nas palavras de Maingueneau (2006, p.
93-4) “Por sua maneira de ‘inserção’ no espaço literário da sociedade, o autor
cria, na verdade, as condições de sua própria criação.”
Mas a visão minguada da obra de Lima Barreto tem mudado um pouco.
Segundo Silva (1981, p. 21):
Lima Barreto está começando a ser visto pela nova geração- e
o será nas futuras-como o mais brasileiro dos escritores que
possuímos... Faço uma análise dos complexos,causa e efeito
do seu comportamento dentro de uma sociedade de sapato de
verniz e colarinho engomado. Vejo o homem, a grande alma
amaldiçoada pelo estigma da cor e do álcool, além da desgraça
de cuidar do pai insano até a morte.”
Pode-se inferir, a partir de uma leitura mais atenta da obra de Lima
Barreto, que ele tinha uma visão muito crítica do mundo que o cercava. Estava
sempre incomodado com as injustiças que eram cometidas contra os mais
frágeis, especialmente contra o negro e a mulher. Por ter esta visão de mundo,
produziu uma literatura preocupada em pensar a realidade da gente mais
humilde e sofredora de nosso país.
É através de seus textos que entramos em contato com um Rio
de Janeiro dos pobres, da pequeno-burguesia, dos proletários,
dos discriminados e dos fracassados. Mulato e alcoólatra,
ocupando ele próprio como indivíduo o espaço da margem,
produziu seguramente a obra mais corrosiva de seu tempo.
(BERND, 2003, p.129)
A escolha pela margem, no entanto, não fica presa à caricatura.
Lima Barreto sabe falar sobre a gente mais humilde com quem ele compartilha
a angústia universal, sem cair nos reducionismos. Através do fio existencial que
ultrapassa todos os extratos de classe, raça ou qualquer outra classificação
social, esse escritor consegue expressar a dor dos mais humildes sem
condená-los por causa de sua condição. Cria o tipo, mas transcende os
estereótipos, como mostra Bosi (2002, p. 206) “O realismo de Lima Barreto,
que sabe construir o tipo, sabe também atravessá-lo.”
CAPÍTULO 3- AUTO-IDENTIDADE E IDENTIDADE ATRIBUÍDA: O NEGRO E
O OUTRO EM DIÁRIO ÍNTIMO E RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS
CAMINHA
E assim fui sentindo com orgulho que as condições de meu
nascimento e o movimento de minha vida se harmonizavam
umas supunham o outro que se continha nelas; e também foi
com orgulho que verifiquei nada ter perdido das aquisições de
meus avós, desde que se desprenderam de Portugal e da
África. Era o esboço do que havia de ser, de hoje a anos, o
homem criação deste lugar. (Vida e Morte de M. J. Gonzaga de
Sá, p.22)
O que Munanga (1995) define como auto-identidade e identidade
atribuída, diz respeito, na primeira expressão, ao conceito que o sujeito tem de
si, voltando-se principalmente para os aspectos interiores do ser. A identidade
atribuída refere-se à identidade em relação ao outro, a imagem exterior que se
faz do sujeito. Uma trata de como o sujeito se frente à realidade do mundo,
a outra, de como ele é visto. São formas diferentes, ou posições diferenciadas
de olhar o mesmo ser: olhar de dentro e olhar de fora. A partir dessa
perspectiva, Fanon (2008, p. 33) argumenta que “O negro tem duas
dimensões. Uma com seu semelhante e outra com o branco. Um negro
comporta-se diferentemente com o branco e com outro negro.” Portanto,
abordaremos neste capítulo essas duas dimensões, sob o ponto de vista que
Fanon (2008) desenvolve em Peles negras, máscaras brancas.
Para tanto faremos uma análise de duas obras de Lima Barreto: Diário
Íntimo e Recordações do escrivão Isaías Caminha, nas quais buscaremos
entender como são construídas as imagens do negro, tanto do autor, Lima
Barreto, como do personagem, Isaías Caminha, como eles se vêem e como
são vistos frente à realidade social de sua época.
Ambas as obras refletem as duas perspectivas. No entanto, com o fim
de clareza didática, abordaremos primeiro Diário Íntimo, em seguida,
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, sem, contudo, deixar de provocar o
diálogo entre ambas.
3.1 Auto-identidade: imagens de si em Diário íntimo
Em termos identitários, é difícil estabelecer limites entre o que é próprio
do sujeito e o que lhe é atribuído pela comunidade, uma vez que a identidade,
como pontuamos nesse estudo, é socialmente construída, é uma
negociação, ou seja, não é inata, ela se na relação com o outro real ou
imaginário. Ou seja, não haveria auto-identidade, no sentido de identidade
própria, posto que a imagem que o sujeito tem de si também é influenciada
pela relação com o outro.
No que diz respeito à identidade do negro, como observa Fanon (2008),
o próprio conceito de negro enquanto membro de grupo étnico é uma
construção cultural elaborada pelo branco. “Isto significa, por exemplo, que os
negros são construídos como negros” (2008, p. 15). Na linguagem
psicanalítica, Fanon (2008) coloca que a imagem preconceituosa que o negro
tem do próprio negro, este racismo dentro do próprio grupo, é uma espécie de
narcisismo, em que o negro vê, no espelho, o reflexo do branco. Assim, é um
preconceito contra o branco, fruto de um processo de sujeição e que agora se
manifesta como um ódio, uma insatisfação contra os antigos opressores. Na
escrita de Lima Barreto o traço autoral confessa que muito da sua obra nasce
desse ódio, desse desgosto. “Desgosto! Desgosto que me fará grande”.
(BARRETO, 1956, p. 88)
Então, em que consiste a auto-identidade? O que estamos propondo
aqui como auto-identidade o é como ela é construída ou elaborada pelo
sujeito, mas sim uma questão de olhares, uma forma de percepção, como ele
se enxerga frente ao mundo.
Em Diário Íntimo, livro que traz, pelo próprio caráter de diário, um tom
confidencial e como sugere o tema, de confissões íntimas, feitas, como o
próprio autor coloca, com a intenção de não serem lidas, podemos encontrar as
impressões do próprio escritor Lima Barreto, algo que não está presente em
outras obras: o autor falando sobre si, bem como de sua intimidade, a vida
privada, a casa, os sentimentos. O Diário Íntimo constitui uma coleção de
anotações e observações feitas por Lima Barreto, que foram coletadas e
editadas, após a morte do escritor, sob a organização do crítico literário
Francisco de Assis Barbosa.
A fragmentaridade da escrita diarística, com anotações sem nexo,
tratando de vários assuntos ao mesmo tempo e de nenhum especificamente,
um tom de desorganização dos conteúdos e sugere a falta de intenções do
autor, uma vez que não pressupõe um público a quem se dirija. Neste ponto,
espera-se mais autonomia e liberdade por parte do autor das notas, que ele
se propõe a compartilhar seus sentimentos apenas com o papel. No entanto,
podemos observar que, mesmo não se destinando a um público, o texto
pressupõe um leitor virtual. Do contrário, não haveria razão de escrever. Se
escreve, é porque espera ser lido, embora se disfarce. “Temo muito r em
papel impresso a minha literatura. [...] Se eu conseguir ler esta nota, daqui a
vinte anos, satisfeito, terei orgulho de viver! Deus me ajude!” (BARRETO, 1956,
p. 84) Daí conclui-se que o autor quer comunicar, deseja um leitor ainda que
seja ele mesmo.
Diário Íntimo transita entre ficção e realidade. Ao mesmo tempo em que
o autor fala de sua vida, contando fatos do seu dia-a-dia, do trabalho, das
relações familiares e sociais de uma forma geral, traz para o texto fatos
históricos, com personagens reais, que estão registrados na historiografia
oficial do país, trata também de literatura com esboço de seus romances,
contos, crônica, criação dos personagens etc. O registro das experiências
vivenciadas pelo escritor, inclusive com a marcação temporal (janeiro de 1903
a dezembro de 1921) confere à obra um caráter auto-biográfico, já que o diário
como uma escrita pessoal é o gênero literário que mais se coaduna com o
desejo de um autor se desvelar em considerações sobre si próprio. Surge
então uma dificuldade para o tratamento literário dado à obra.
Sobre a posição ambígua que ocupa o escritor para falar de si,
partiremos do conceito de “paratopia”, que segundo Maingueneau (2006) é
uma fenda entre o lugar e o não-lugar. O escritor ocupa este espaço vazio, não
podendo atribuir a si um verdadeiro lugar. “O escritor é alguém que não tem um
lugar/ uma razão de ser (nos dois sentidos da locução) e que deve construir o
território por meio dessa mesma falha.” (grifo do autor) (2006, p.108)
Devemos considerar o escritor no plano do discurso literário, no qual ele
enfrenta a realidade paradoxal da localidade paratópica “que não é a ausência
de lugar, mas uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar, uma
localização parasitória, que retira vida da própria impossibilidade de estabilizar-
se.” (2006, p. 68) A paratopia é o que, em outras palavras, Bhabha (1998)
chama de entre-lugar, um espaço de negociações. Assim, o escritor, membro
de uma comunidade, pertencente a um tempo histórico, inserido numa
realidade social, mesmo assim, no plano literário, tem que ser deslocado desta
condição.
A paratopia, no entanto, não pressupõe a anulação do escritor e sua
temporalidade. Procura, como uma negociação, quebrar com as oposições
redutoras entre o eu criador e o eu social, o sujeito do texto e o sujeito
biográfico. Pressupõe os entrechoques e os contatos entre essas duas
instâncias.
implica dar conta dos entrelaçamentos de níveis, das
retroações, dos ajustes instáveis, das identidades que não se
podem fechar. A obra não é uma representação, uma
organização de “conteúdos” que permita “exprimir” de maneira
mais ou menos oblíqua, dores e júbilos, ideologias ou
mentalidades, em suma, qualquer instância já existente, da
mesma maneira que o é um universo paralelo ao autônomo.
(MAINGUENEAU, 2006, p. 119)
No gênero diário, o escritor traz informações mais ou menos confiáveis
de sua vida, ideologias e sentimentos. Pode escrever a partir de fatos e
situações e personagens reais ou fictícios. No caso de Lima Barreto, parte de
sua vida se propõe a registrar o que se passa com ele, os personagens fictícios
entram como criação literária dele.
O autor do Diário Íntimo demonstra através dos textos, de relato de
situações e opiniões sobre a realidade social, uma identificação com o negro.
Vivendo no meio do cientificismo, entende que a imagem que se criou do negro
brasileiro é uma invenção da ciência. Faz críticas ao pensamento cientificista
do seu tempo. “A ciência é um preconceito grego; é ideologia; não passa de
uma forma acumulada de instinto de uma raça, de um povo e mesmo de um
homem.” (BARRETO, 1956, p. 62) Ele tem consciência de que a superioridade
do branco é um mito científico. Referindo-se ao fato de que ele, na qualidade
de amanuense da secretaria de guerra, sempre que andava pelos corredores
do ministério, os soldados o inquiriam se era contínuo (um cargo de pouca
importância) e refletindo sobre a razão de tal tratamento, o autor conclui. “Por
que essa gente continua a me querer contínuo, por que? Porque... o que é
verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu, mulato ou negro, como
queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo” (BARRETO,
1956, p. 52).
Mesmo recebendo tratamento desigual e tendo consciência de sua
condição de negro, quando comparado ao elemento branco, Lima Barreto não
se inferior. Pelo contrário, se acha grande. “Entretanto, não me agasto,
minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-me-á grande. [...]
Quando me julgo nada valho; quando me comparo, sou grande.”
(BARRETO, 1956, p. 52).
A atitude de querer ser diferente é uma resistência ao poder imperante
que tenta reduzir o negro a uma imagem estereotipada, é não aceitar o status a
que foi submetido pelo branco. Esse tipo de discurso faz parte da política de
hegemonia do branco para manter-se no poder, reprimindo o negro, como
mostra Bernd (1994, p. 40), “os negros devem aprender o ‘seu lugar’, que é
evidentemente inferior ao dos brancos. O racismo se exerce ferozmente
quando negros e mulatos decidem “mudar de lugar” e subir na escala social.”
Podemos perceber atitude semelhante na personagem Isaías Caminha.
Mesmo sentindo-se entediado no meio de uma atmosfera de discriminação, ele
não se diminuído na sua personalidade, sente-se forte e destemido, porque
sabe que as causas de seu fracasso o exteriores. “Afastei-me sem entrar na
significação de suas (do pai) palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e
o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!...” (BARRETO, 2006,
p.15).
Os discursos totalizantes operam, no que Fanon (2008) denomina
“colonialismo epistemológico”, no sentido de construir por meio da linguagem
formas de expressão da superioridade do grupo dominante, gerando,
consequentemente, a consciência de inferioridade e de alienação no dominado.
A alienação passa primeiro pelo campo econômico, depois por um processo de
internalização da inferioridade. “Só há complexo de inferioridade após um duplo
processo: - inicialmente econômico; - em seguida pela interiorização, ou
melhor, pela epidermização dessa inferioridade.” (2008, p.28).
Lima Barreto não se rende à pressão para que assimile os valores da
elite branca. Antes, ridiculariza essa elite dominante. “É notório que aos
governos da república do Brasil faltam duas qualidades essenciais a governos:
majestade e dignidade” (BARRETO, 1956, p.48). Nem o exército escapa às
suas críticas “Os oficiais do exército do Brasil dividem com Deus a
omnisciência e com o Papa a infalibilidade” (BARRETO, 1956, p. 51).
Rejeitando os valores do branco, Lima Barreto afirma seu pertencimento
ao negro, valorizando a cultura deste. “Os negros fizeram a unidade do Brasil.
O negro é recente na terra. Os negros, quando ninguém se preocupava em
arte no Brasil, eram os únicos” (BARRETO, 1956, p. 61). Ao abordar sobre os
produtos intelectuais, o autor quebra com a visão elitista de que o branco é
detentor da cultura e do conhecimento e que o negro não tem capacidade
cultural. “Os produtos intelectuais negros e mulatos, e brancos o são
extraordinários, mas se equivalem, quer os brancos venham de portugueses,
quer de outros países.” (BARRETO, 1956, p. 61). Dessa forma, se não
sobrepõe elementos da cultura negra a do branco, pelo menos as iguala, o que
é uma ofensa para o branco.
Na visão de Lima Barreto, a miscigenação não é um problema, como
supunham pesquisadores de sua época. Ele valorizava a mistura de raças.
Elogiava a beleza das mulheres mulatas. “Ontem, ao sair da secretaria, passei
pela Rua do Ouvidor e não vi a Palhares. Acho-a curiosa por causa do
mestiçamento que nela há”. (BARRETO, 1956, p.91). Barreto via o mestiço
como inteligente, como podemos perceber em Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, quando cita o personagem Adelermo, apresenta-o como inteligente,
de mente brilhante, de ótima imaginação e atribui isso ao fato de ter sangue
negro nas veias.
Adelermo era a imaginação do jornal. Nascera no Maranhão e
escrevia regularmente. Apesar de nunca se ter feito notar por
uma associação mais original de idéias, no jornal era
imaginoso porque nascera no Norte e tinha uma boa dose de
sangue negro nas veias. As generalizações dos jornais são
infalíveis. (
BARRETO, 2006,
p. 124)
Assim, Lima Barreto cria uma identidade do negro na sua obra,
especialmente em Diário Íntimo, quando se apresenta, por um processo de
filiação cultural, como negro, ou mulato, para ele não importa; quando traz para
o primeiro plano as personagens dos mulatos ou negros e quando rompe com
as ideologias da elite branca dominante.
3.2 Identidade atribuída: o negro e o outro
Recordações do Escrivão Isaias Caminha, lançado em 1909, é o
primeiro livro publicado por Lima Barreto. Neste romance, o autor traz para as
páginas da ficção alguns traços biográficos, refletindo principalmente a fase em
que trabalhou na imprensa. O personagem principal, Isaías Caminha, é mulato
e de condição social inferior, assim como o autor. Vindo do interior, de um
lugarejo não identificado, para a corte, na ânsia de realizar seu sonho mais
desejado se tornar doutor passa por muitos reveses achegar a trabalhar
em um Jornal. Narrando as experiências que vivenciou na redação de O Globo,
o personagem desvela todo o preconceito que contra o negro e o mulato
dentro deste ambiente. Na visão de Moisés (2004) esta obra pode ser
entendida como uma catarse do próprio autor.
Reconstitui o universo dum jornal. Catarse, purgação, antes de
tudo, a sua escrita é conscientemente militante, primeiro, da
causa individual a luta contra o preconceito social - segundo,
da causa mais ampla - o seu desdobramento político, na
esteira do socialismo ou anarquismo, ou como ele dizia,
maximalismo (2004, p.399).
São muitas as evidências das semelhanças entre Lima Barreto e seu
personagem Isaías Caminha. Além de compartilharem, ambos o mesmo
espaço de trabalho, o jornal, são mulatos, se propõem a um projeto literário de
resistência, não aceitando a mediocridade dos modelos impostos.
momentos na obra em que a fala do personagem se confunde com a do autor.
“Cinco capítulos da minha Clara estão na gaveta; o livro de sair”.
(BARRETO, 2006, p.166). Esta expressão é do próprio autor, embora no
contexto apareça como sendo do narrador-personagem, que argumenta sobre
seus ideais de contradizer as ideias maléficas que circulam no universo literário
e jornalístico.
Porém, em nenhum outro momento na obra pode-se perceber Isaías
declarando que está escrevendo outra obra além de suas memórias e, ao que
conste, “Clara” é uma referência a Clara dos Anjos, obra do autor, não do
personagem. Como defende Bernd (2003, p. 130), “Em Recordações do
Escrivão Isaías Caminha (1909), Lima Barreto se identifica ao seu
personagem, o jornalista humilhado Isaías Caminha”.
No plano da construção literária, a obra transita do gênero romance ao
menos exigente dos gêneros literários, a crônica. No entanto, seguindo a
classificação de Reuter (1995), a obra contém características básicas da
narrativa romanesca que permitem classificá-la como um romance. Por seu
caráter de memória, se aproxima do gênero diário, sem, porém, a preocupação
com a marcação do tempo. A atitude de rememorar as experiências
vivenciadas por um narrador-personagem em primeira pessoa possibilita que o
conheçamos mais intimamente, uma vez que ele traz à luz seus mais
profundos sentimentos, nesse caso, ressentimentos, angústias, dores, traumas
experenciados nas relações sociais. É o próprio narrador quem se apresenta,
quem se faz conhecer, revela sua identidade através dos seus relatos
memorialistas.
Nesta perspectiva, focaliza-se o personagem-narrador, para que se
possa extrair dele a visão que ele tem do mundo. No caso desta análise,
procuraremos perceber como o narrador se vê. É singular também a sua
impressão sobre o juízo que os outros fazem a respeito dele. É a isso que
chamamos de identidade atribuída. Isaías Caminha em todo o tempo se
percebe como um estranho, o outro, como alguém que não está plenamente
integrado à realidade social que o cerca. “quantas dores, quantas angústias!
Vivo aqui só, isto é, sem relações intelectuais de qualquer ordem.” (BARRETO,
2006, p.64).
O cenário principal da narrativa é um jornal, embora Caminha tenha
percorrido um longo caminho para se estabilizar na redação do jornal. O olhar
do personagem sobre a imprensa é o de quem conhece por dentro todos os
detalhes daquilo que se passa na redação dos jornais, a exclusão que os
formadores do pensamento público, os redatores, os literatos, fazem com quem
lhes apraz. Lima Barreto falou com propriedade sobre esse assunto, pois ele
mesmo sofreu a ação excludente da imprensa. Segundo Machado (2002, p.56),
“seu personagem Isaías Caminha simboliza as humilhações e dificuldades que
enfrentou na adolescência.”
Neste romance, o escritor carioca vai além da crítica ao preconceito
racial, mas se preocupa em mostrar como são tecidos os discursos que
procuram legitimar a superioridade branca, como são construídas as imagens
esteriotipadas daqueles a quem os formadores de opinião querem rebaixar.
Percebe-se também a prática do silenciamento, o ato de privar do direito de
fala os negros ou mulatos, uma vez que a eles cabiam apenas funções de
pouca importância, como a de contínuo. Desta forma, a obra desvela um lado
ainda pouco conhecido do preconceito: o poder que a imprensa exerce na
formação de modelos sociais, como privilegia e como desqualifica a quem lhe
interessa.
Para Moisés (2004, p.399):
Isaías Caminha representa a luta não somente contra o
preconceito de cor, mas contra a mediocridade, contra uma
falsa concepção de imprensa e literatura, acompanhada de
amarga experiência da vitória à custa de transigências de toda
ordem e do sacrifício da própria dignidade humana.
Isaías Caminha retoma a figura do migrante, que sai do interior para
tentar a sorte na capital do país. O migrante não é bem visto pela elite
dominante, como nos mostra Kothe (2004, p. 50-1): “Isaías pertence à
linhagem dos romances que, como Casa de pensão ou A hora da estrela,
tratam de migrantes e imigrantes no Rio de Janeiro, da gente do interior que vai
para a capital. A postura canônica não é de efetiva simpatia por essa gente.”
Isaías Caminha manifesta sua identidade com o mulato quando, logo no
início da narrativa, procura traçar um perfil de suas origens, apresentando a
mãe como mulata, de pele parda. “Eu devaneava e ia-lhe vendo o perfil
esquálido, o corpo magro, premido de trabalhos, as faces cavadas com os
malares salientes, tendo pela pele parda manchas escuras, como se fossem de
fumaça entranhada” (BARRETO, 2006, p.22). Isaías era um mestiço, como ele
próprio se dizia, mulato, filho de uma parda com um padre branco. um
desnível intelectual no seu meio familiar, o pai era muito inteligente, segundo
ele, e a mãe ignorante, humilde e triste, mas esse meio desfavorável produzirá
nele um anseio de inteligência. “A tristeza, a compreensão e a desigualdade de
nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso:
deram-me anseios de inteligência” (BARRETO, 2006, p.15).
O autor rompe com um pensamento vigente de que a miscigenação
produz seres degradados moral e intelectualmente. Lima Barreto mostra que o
mulato é inteligente. Assim como Isaías, foi aluno exemplar, a estrutura familiar
e social é que não oferece meios para o desenvolvimento intelectual do sujeito.
O romance situa o leitor em relação à situação familiar do negro ou de seus
descendentes. São pessoas que não tiveram acesso aos meios de
conhecimento e que são obrigadas a disputar espaço na sociedade com
brancos letrados. Daí a necessidade que Isaías sente de ser doutor.
Esse doutorismo tão desejado, que sempre foi valorizado no Brasil como
uma forma de um pobre conquistar espaço na sociedade letrada, sofre dura
crítica de Lima Barreto. Segundo Machado (2002, p.102), a crítica ao doutor
“decorre não somente de uma consciência marginalizada que se preterida
em todos os níveis, mas também de um sentimento de frustração e
ressentimento diante de sonhos abortados pelas violências sofridas da vida”.
A crítica ao doutorismo decorre principalmente porque o título de doutor
é usado como símbolo de distinção da sociedade burguesa, com
características de esnobismo, com traços exteriores de identificação do nível
intelectual, um verdadeiro culto às aparências, com o objetivo de qualificar o
indivíduo, constituindo-se, assim, uma forma de exclusão social dos que não o
têm.
Como salienta Sevcenko (2003, p 57), “Os doutores, bacharéis,
geralmente altos funcionários públicos, utilizavam de sua posição para espoliar
o estado, numa prática conhecida como cavação”. Ainda segundo Sevcenko,
Aliás a aparência elegante, smart, torna-se um requisito
imprescindível se acompanhada do título de doutor ou
honoríficos correlatos, tanto melhor para uma forma de
parasitismo espúrio grandemente disseminado, verdadeiro
peculato, às expensas do orçamento público: a cavação” (grifo
do autor)
Na sua imaturidade ingênua, Isaías enxergava no título de doutor a
saída para solucionar o problema dos marginalizados, dos estigmatizados por
causa da cor. Sendo doutor, seria respeitado, não mais discriminado, as
pessoas não o veriam mais como um inferior, mas como um grande homem:
Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu
nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e
onímodo de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta,
traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do
respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais
firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria,
livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se
estorciam no meu cérebro. (BARRETO, 2006, p.21)
O tom sarcástico com que o narrador descreve as prerrogativas de um
doutor, denuncia a crítica contida nessas palavras. A rejeição ao título de
doutor era uma forma de protestar contra o elemento branco, contra a cultura
européia, que valoriza o academicismo. Tendo em vista o contexto de início do
século XX, se constitui também numa negação ao cientificismo, principalmente
às teorias racistas. Lima Barreto reage firmemente a tais teorias.
Além de não aderir à moda que assimila cegamente o modelo
europeu da teria das raças, Lima Barreto o condena e o rejeita.
Foi, sem dúvida, o primeiro a compreender que as razões pelas
quais eram acusados negros e mulatos não se deviam às suas
características individuais, mas essencialmente às condições
sociais desfavoráveis em que viviam em sua maioria os
membro das comunidades negras” (BERND, 1994, p.39).
Isaías Caminha não consegue o título tão desejado, não porque lhe
faltasse inteligência suficiente, antes porque existem estruturas sociais que
condicionam o negro e o mulato para que não alcancem seus objetivos.
Quando Isaías reflete sobre o seu estado de pobreza e sua posição como
mulato, conclui que não ia ser cil conseguir realizar seus sonhos de
estudante:
Então, durante horas, através das minhas ocupações
quotidianas, punha-me a medir as dificuldades, a considerar
que o Rio era uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada
de egoísmo, onde eu não tinha conhecimentos, relações,
protetores que me pudessem valer... Que faria lá, só, a contar
com as minhas próprias forças? Nada... Havia de ser como
uma palha no redemoinho da vida - levado daqui, tocado para
ali, afinal engolido no sorvedouro... Ladrão...bêbado... Tísico e
quem sabe mais? Hesitava. (
BARRETO, 2006
, p.17)
Na declaração acima, é possível perceber que o personagem em tenra
idade imaginava o seu sofrimento futuro, vislumbra as agruras, as
humilhações e a discriminação a que está exposto o mulato pobre. O que o
jovem Isaías ainda não sabe é como se faz para tentar furar a barreira, como
conseguir uma indicação, um apoio de alguém influente, que se formar era
privilégio para poucos, filhos de ricos ou apadrinhados por políticos ou homens
de influência na sociedade. O tio de Isaías, Valentim, sabia o caminho porque
era um conhecedor da vida como disse a tia do rapaz: “– Mas olha Isaías! Você
é muito criança [...] Não tem prática [...] o Valentim conhece mais a vida do que
você.” (BARRETO, 2006, p.18).
Isaías e o tio vão falar com o coronel da região que o recomenda ao
deputado Castro para lhe arranjar um emprego no Rio de Janeiro, com o qual
iria custear seus estudos. Recebida a promessa de apadrinhamento, Isaías
parte para o Rio de Janeiro, na expectativa de estudar, se formar e depois
retornar para o meio dos seus, de onde saíra. Voltaria com um distintivo: seria
doutor. Estimado e prestigiado por muitos. Como se observa na passagem
abaixo:
Quantas prerrogativas, quantos privilégios, esse título dava!
Podia dois e mais empregos apesar da constituição; teria
direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o
diploma. Pus-me a considerar que isso devia ser antigo...
Newton, César, Platão e Miguel Ângelo deviam ter sido
doutores (
BARRETO, 2006
, p.22).
Lima Barreto teceu duras críticas aos doutores e aos literatos. Sempre
os considerou pedantes e ignorantes. Confessou que nunca quis ser literato
porque eles o aborreciam. Na verdade, o que o aborrecia era a falta de
qualidade da produção literária da época, que primava por modelos estilizados
e por uma linguagem bem acabada, difícil. Um autor era considerado bom não
pelo seu talento, mas por sua influência e por seus contatos e pela linguagem
que empregava nos seus textos. O romancista não os perdoa:
Eu não sou literato, detesto com toda a paixão essa espécie de
animal. O que observei neles, no tempo em que estive na
redação do O Globo, foi o bastante para não os amar, os imitar.
São em geral de uma lastimável limitação de idéias, cheios de
formulas, de receitas,(...) se me esforço por fazê-lo literário é
para ser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meus
sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse, com a
linguagem acessível a ele (
BARRETO, 2006
, p.64).
Desta forma, Lima Barreto está criticando a linguagem utilizada pelos
intelectuais. A linguagem difícil, da construção frasal bem acabada, uma
linguagem carregada de adjetivos e superlativos que os literatos da época
usavam não era apenas uma questão de estilo. Passava a ser uma forma de
exclusão social, posto ser o Brasil um país predominantemente analfabeto.
Com isso, os literatos estavam privando o acesso à comunicação escrita, à
formação de opinião, para uma gama de pobres, de favelados, da gente dos
subúrbios, dos negros e seus descendentes, toda essa gente não tinha tido
acesso à leitura.
Lima Barreto produziu sua literatura pensando nessa gente, e mais
especificamente o livro que aqui estamos analisando, sendo por isso taxado de
um escritor menor porque sua linguagem era direcionada para alcançar todos
os públicos. “se me esforço por fazê-lo literário é para ser lido” (BARRETO,
2006, p. 64). Não significa, contudo, que ele não tenha domínio da norma
padrão, aliás, ele valoriza a norma padrão, a questão é o estilo esnobe dos
escritores. É valorizar a linguagem do povo em detrimento de uma linguagem
européia, caduca, porém, endeusada pela elite branca.
A crítica ao gramaticismo se revela no personagem Lobo, revisor
gramatical do jornal, que de tão fanático pela língua culta, se recolhe ao
hospício, tendo como sintoma de loucura não falar, quando na verdade não
falava, diz ele, para o errar e não suportava ouvir alguém falar fora dos
padrões da norma culta.
A Gramática do velho professor era de miopia exagerada. Não
admitia equivalências, variantes; era um código tirânico, uma
espécie de colete de força em que vestira as suas pobres
idéias e queria vestir as dos outros. três ou cinco
gramáticas portuguesas, porque três ou cinco opiniões
sobre a mesma matéria. Lobo organizara uma série delas
sobre as inúmeras dúvidas nas regras do nosso escrever e do
nosso falar e ai de quem discrepasse no jornal! Era emendado
da primeira vez, da segunda repreendido e da terceira podia
ser até despedido, se ele estivesse de mau humor.
(
BARRETO, 2006
, p. 136).
A crítica se estende a outros jornalistas e de forma especial aos
diretores do jornal, que tinham uma profunda admiração por Lobo, pela sua
forma incorrigível de falar e pelos conhecimentos que o redator tinha em outras
línguas. “Loberant não escondia o seu respeito. Para ele, a mais alta expressão
da cultura era falar inglês e Lobo sabia pedir água na língua do grande
império.” (BARRETO, 2006, p. 136). Sendo Lobo português, passa ser a
personificação do conservadorismo da língua europeia que, com o seu
tradicionalismo e formas fixas, muito tinha se distanciado da linguagem
dos brasileiros, que usam no dia-a-dia uma língua muito mais frouxa, flexível.
Ficar preso ao modelo de linguagem português, europeu, significa rejeitar o
hibridismo lingüístico, próprio de um país miscigenado. É uma tentativa de
anulação da cultura e das contribuições linguísticas que outros povos, e
especialmente os afro-descentes trouxeram para o nosso país.
Zélia Nolasco Freire (2005) analisa a questão da linguagem em Lima
Barreto, mostrando que faz parte da estética de Barreto o rompimento com “os
arabescos lingüísticos da Belle Époque”. Numa época em que dominava o
império da efervescência gramatical, com um purismo em que não se admitia
variantes, o escritor carioca mais uma vez protesta contra os modelos
europeus, primando por uma língua brasileira ou abrasileirada, uma língua que
traz na sua composição traços das várias nações que compõem o nosso povo
e por isso foi criticado.
Lima Barreto, fora severamente criticado pelo uso “inadequado
do verbo, segundo os preceitos puristas e “magníficos” do
pensamento e do estilo parnasianos. Assim, praticar um tipo de
literatura que privilegie a utilização da linguagem de modo a
mais direta e abertamente ser captada/compreendida pelo
leitor comum, ao invés de motivo de destaque, o fora de pecha
(FREIRE, 2005, p.14).
Lima Barreto como miscigenado e como um escritor moderno não
aceitaria uma linguagem antiquada, que não contempla todo o arcabouço
linguístico de um país com um grande hibridismo lingüístico. O pensamento
moderno não aceita mais o preconceito nem o exclusivismo lingüísticos. Lima
Barreto fez em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, em 1909, o que os
tão badalados escritores da geração de 1922 iriam propor como grande
mudança: a quebra dos paradigmas na linguagem literária. Daí reafirmarmos a
modernidade na obra desse escritor.
Isaías, no entanto, se vê numa dialética: ao mesmo tempo em que
satiriza a cultura do branco, deseja-a, precisa dela para sobreviver.
Encontramos aqui uma necessidade que o dominado tem de assimilar a cultura
do dominador. Tratando a respeito da colonização, Fanon (2008) mostra que
esse desejo se manifesta no colonizado pela necessidade que tem de
incorporar a linguagem e a cultura do colonizador. Assim, o negro tem
inconscientemente essa carência pela cultura do branco. “Quanto mais assimila
os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva.
Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será” (2008,
p.34).
Mesmo adotando uma postura de crítica aos valores do branco, Lima
Barreto não fica isento de desejar algo do branco, como por exemplo, o amor
de uma branca. Ainda que o tenha sido dado ao romantismo, podemos
perceber em Diário Íntimo algumas confissões amorosas e paixões, como um
quase romance com uma rapariga portuguesa, Cecília. A descrição que faz da
prostituta é a mais pejorativa possível. “é pequena, dá-me pelo peito; pálida,
com aquela palidez mate das prostitutas um tanto diminuída; simples de
inteligência, não tem quatro ideias sobre o mundo, aceita o seu estado, acha-o
natural.” (BARRETO, 1956, p.127). No entanto, há algo nela que desperta a
paixão no romancista: os cabelos castanhos e olhos azuis.
Essa rapariga, que viu bordéis, estelionatários, rufiões e
jogadores; que se meteu em orgias; que certamente se atirou a
desvios da sexualidade, aparece-me cândida, ingênua e até
piedosa. Estou a ver aqui os seus cabelos castanhos, os seus
olhos de um azul desmaiado, e não sei porque me lembram
Maria Madalena. não sei que separação entre seu passado
e presente e a sua alma verdadeira, que tenho um delicioso
bem-estar em vê-la. É como se ela me trouxesse ‘uma redoma
de alabastro cheia de bálsamo’. (
BARRETO,
1956, p. 127).
Isaias Caminha também simpatizava com os olhos azuis e cabelos
castanhos de dona Ester, sua primeira professora, chegando a ter ciúmes.
“Correspondi-lhe à afeição com tanta força d’alma, que tive ciúmes dela, dos
olhos azuis e cabelos castanhos, quando se casou”. (BARRETO, 2006, p.16).
Ao comentar sobre os outros professores que tivera, Caminha chega a
aborrecer-se deles porque “Eram banais! Nenhum deles tinha os olhos azuis de
Dona Ester, tão meigos e transcendentes que pareciam ler o meu destino,
beijando as páginas em que estava escrito!..”
Fanon (2008) explica essa paixão do homem de cor pela branca, um
“desejo repentino de ser branco”. E quem melhor poderia realizá-lo senão uma
branca? Fanon mostra que quando o homem de cor esposa a branca, esposa
também “a cultura branca, a beleza branca, a brancura branca” (p. 69). No
contexto do colonialismo, a construção cultural da beleza branca inspira uma
relação de atração, levando o negro a querer se apropriar do elemento branco,
e as relações sexuais e econômicas sempre estiveram na base dessas
convenções, como mostra Young (2005, p. 194), “A construção cultural da raça
sempre foi incentivada pela conjunção corrupta de tais discursos sexuais e
econômicos híbridos”. Portanto, o negro deseja a mulher branca porque a
imagem dela foi construída como um símbolo de beleza, candura e ternura.
Na perspectiva do autor, neste romance, o negro sempre foi visto como
o “outro”, como a exceção “percebi que me viam como exceção” (BARRETO,
2006, p. 166) Sendo o “outro”, o negro passa a se sentir diferente e a ter uma
necessidade de também ter direitos e privilégios iguais aos dos brancos. Como
Augusto dos Anjos (1912), contemporâneo de Lima Barreto, já disse: “o homem
que nesta terra miserável convive entre feras, sente a inevitável vontade de
também ser fera”. Parodiando, diríamos: “o negro que nesta terra miserável
convive entre brancos, sente a inevitável vontade de ter o que o branco tem”
(grifo nosso). É o que podemos observar nas palavras de Isaías Caminha:
“Veio-me a pose a necessidade de ser diferente.” (BARRETO, 2006, p.16).
Percebemos que toda essa estrutura atua na vida de Isaías Caminha,
que passa por um processo de mudança na sua identidade. Podemos destacar
três momentos na personalidade dele: uma fase inicial, rural, na casa dos pais,
a segunda no confronto com o mundo “civilizado”, na cidade grande e a terceira
é um retorno ao ambiente de onde saíra, não mais a mesma localidade, mas o
mesmo espaço rural.
Na primeira fase da vida de Isaías ele se vê identificado em torno de si e
das poucas pessoas que o circulam, o seu meio familiar, a professora e
principalmente com seu pai. A sua identidade é formada a partir das
impressões que aquelas pessoas passam para ele. Seu pai dizia sempre que
ele seria “Um grande homem” porque “você sabe que nasceu quando
Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem
era Napoleão? Um grande homem, um grande general...” (BARRETO, 2006,
p.15) aquilo que Isaías ouvia do seu pai ia influenciando na formação de sua
identidade. Mesmo o ambiente familiar sendo triste, provocou nele anseios de
inteligência. Daí ele se acredita grande, inteligente, um gênio. “A professora
admirou-me e começou a simpatizar comigo. De si para (suspeito eu hoje), ela
imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio” (p.16)
A identificação com o pai, branco, inteligente, estudado, uma espécie de
luz na vida do menino “Meu pai que era fortemente inteligente e ilustrado...”
(BARRETO, 2006, p.15), revela uma identidade inicial do negro, que num
primeiro momento de formação cria uma empatia pelos elementos simbólicos
do branco, tendo um desejo de se apropriar da brancura do branco (FANON,
2008). O primeiro valor de referência que o menino encontra para formulação
de sua identidade é o pai, assim como o primeiro valor de referência do negro é
o branco.
Em Isaías Caminha, a imagem luminosa do pai é contraposta à imagem
sombria da mãe que “parecia triste e humilde pensava eu naquele tempo
era porque não sabia, como meu pai, dizer os nomes das estrelas do céu e
explicar a natureza da chuva”. No processo de civilização, a imagem do pai
está associada à raça branca, superior, que sempre esteve associada ao
masculino, o princípio útil, enquanto a imagem do feminino está associada à
raça negra, princípio do sonho, como mostra Young (2005). Essa era uma
concepção corrente nos dias de Lima Barreto, que demonstra conhecimento a
respeito do assunto: “Princípio-macho na civilização útil; princípio-fêmea
sonho.” (BARRETO, 1956, p.104) A glória futura que Isaías vislumbra nos seus
sonhos pueris, “Um grande homem”!, seria doutor, “quantas prerrogativas”,
quantos distintivos!, é um desdobramento da imagem paterna, que como
mostra Bosi (2002, 188) era “Um signo de vitórias futuras, que marcava o
despontar de um eu mergulhado em sonhos de uma grandeza posta muito
acima da sua condição de raça e classe”. Era um presságio promissor.
A formação desse eu inicial se a partir de imagens que personificam
o poder do branco: o pai fortemente inteligente e distinto, as grandezas das
civilizações brancas, os olhos azuis e os cabelos castanhos da professora. No
entanto, o pai de Isaías sai de cena muito cedo, quase nada fica registrado a
respeito deste padre da freguesia que mantém uma relação enigmática, quase
como de vassalagem com a e do futuro escrivão. É uma filiação quase
negada por Isaías, as imagens que vão estar presentes nas suas memórias
serão as da mãe, não as do pai. Esse eu ideal do início vai sendo desfeito ao
passo que o sujeito entra em contato com outras realidades, à medida que se
descobre negro ou mulato, se desfaz dessa brancura ideal.
O momento de transição do mundo ideal para o real se dá quando Isaías
resolve deixar a casa paterna, onde vivia cultivando ilusões de grandeza “para
mim era como se o mundo me estivesse esperando para evoluir...” (BARRETO,
2006, p.16), para enfrentar a realidade do mundo de relações de poder, um
mundo que lhe causaria choque e espanto. No momento em que ele resolve
tentar “subir na vida”, sair da condição em que estava enclausurado por causa
da sua cor e origem de nascimento percebe que existem forças que atuam no
sentido de reprimi-lo. “Eu descobria uma espécie de sítio posto à minha vida.”
(BARRETO, 2006, p.69). As imagens que se antecipam ao momento da
decisão e da partida de Isaías apelam para um aspecto lúgubre. “Fazia mau
tempo. uma chuva intermitente caia desde dois dias. Ssem destino, a esmo,
melancolicamente aproveitando a estiada[...] Pardas nuvens cinzentas”. Era
uma espécie de mau agouro, prenunciando as angústias futuras de Isaías.
Agora a imagem da mãe se desdobra em cores escuras, (dia nublado, lama,
uma nuvem de patos pretos) maus pressentimentos de sonhos que serão
frustrados. Simbolicamente, o preto, a escuridão, está voltada para a parte
mais recôndita do ser, a inconsciência, a essência. Assim, o jovem Isaías vai
se descobrindo negro.
Isaías entra na segunda fase de sua vida, quando trava relações com
um mundo completamente desconhecido, um mundo hostil. Causa-lhe impacto
o julgamento que os outros fazem dele. Num caso que citaremos mais adiante,
quando Isaías, na viagem para o Rio de Janeiro, é atendido em um café e
aguarda o troco, reclamando da demora do funcionário, é publicamente
injuriado, enquanto percebe que outro rapaz aloirado reclama o dele e é
prazenteiramente atendido. Isaías diz que aquilo o marcou profundamente
agravado pelo fato de que os outros lançassem olhares de censura, olhares
condenatórios. “O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me
lançaram, mais cresceu a minha indignação” (BARRETO, 2006, p.25). Isaías
procura no seu corpo as causas que possam justificar a injustiça, não encontra,
o rosto oval, os ombros largos, corpo esbelto e bem cuidado, a roupa bem
cuidada, nada que possa justificar o tratamento recebido. As causas estão no
olhar do outro.
A identidade de Caminha agora será construída em relação a um outro
desconhecido. No início dessa fase o sujeito se defronta com a própria
realidade de ser mulato, passando inicialmente a resistir a essa condição. “é
digna de nota esta fase de construção da própria identidade, que resiste
pateticamente à evidência da sua condição de mulato e elabora uma figura
compensatória capaz de atrair a simpatia do outro.” (BOSI, 2002, 192).
No entanto, ao passo que se descobre, aprende a resistir, a não
assimilar aquele tipo de discurso. Lima Barreto, diferentemente de outros de
sua época, não se deixa cooptar pelo pensamento vigente. Assim, o
personagem se reveste de uma força que o leva a não se dobrar diante do
mundo que se apresentava aos seus olhos, mundo dantes tão idealizado,
agora real, vil e cruel.
A chegada de Isaías ao Rio de Janeiro, capital da Nova República,
causa um estranhamento no narrador. A cidade que passa diante dos seus
olhos não é, nem de longe, aquela idealizada pelo interiorano que se vê diante
de uma realidade jamais imaginada. Se a viagem lhe causara fortes
impressões pela forma fria com que fora tratado, a primeira imagem que capta
da cidade também não é das melhores. Aquele ambiente se apresenta como
inóspito. Mais uma vez, as imagens sombrias o convocadas para o plano da
narrativa, como prelúdio do mundo de trevas ao qual transpunha os limiares
das portas de entrada, o mundo das relações sociais.
O torpor tomou-me mais fortemente e por fim dormi, dormi não
sei quantas horas, não sei quantos minutos, pois que, ao
despertar, era boca da noite, e o crepúsculo cobria as coisas
com uma capa de melancolia por assim dizer tangível[...] O
espetáculo chocou-me. Repentinamente senti-me outro.
(
BARRETO, 2006,
p.25)
Isaías passa a se sentir outro e quem lhe causou esta sensação foi o
mundo externo, um mundo ainda não desvendado pelo jovem interiorano. Na
sua relação com o branco, com os companheiros com quem travou algum tipo
de relação, o Lajes da Silva, por exemplo, o primeiro a tentar contatos com
Caminha, pode perceber a esperteza, a frieza nas relações, um mundo de
hipocrisias, de falsas amizades, de superficialidades, uma vida de aparências,
valores de uma burguesia branca e aristocrática a quem vai se opor
tenazmente.
Naquela cidade grande, sem boas relações, sem proteção de ninguém,
sentindo a miséria que se pré-anunciava, Isaías começa a bater nas portas,
que pareciam fechadas “por mãos mais forte que as dos homens.” Tudo dava
errado para Isaías. O deputado Castro não lhe arranja o emprego prometido
pelo coronel, o padeiro a quem vai pedir emprego não o aceita, é acusado
injustamente de roubo no hotel onde está hospedado, é preso. O tratamento
que recebe na delegacia contribui para a formação de sua consciência de
mulato marginalizado.
Enquanto esperava ser chamado para depor, ouve a conversa do
capitão Viveiros com o funcionário da delegacia se referindo a ele como “o
mulatinho”. Aquelas palavras ferem-no profundamente.
Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado
assim, as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio,
vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de
respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto,
estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se
ajuntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me
dar não sei que exaltada representação de mim mesmo,
espécie de homem diferente do que era na realidade, ente
superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como
bofetada. (
BARRETO, 2006,
p.58)
A palavra “mulatinho” provoca a epifania do sujeito mulato. A então,
Isaías havia sofrido outras humilhações e desprezo, porém, não tinha ainda
percebido que a forma vil do tratamento recebido era devido à sua condição de
cor. A identidade de Isaías é formada a partir da palavra do outro, palavra essa
carregada de uma carga semântica que, na época tinha um significado social
relevante. “Entretanto, isso tudo é uma questão de semântica: amanhã, dentro
de um século, não terá mais significação injuriosa” (BARRETO, 2006, p. 58).
A identidade do sujeito é formada performaticamente. Segundo Fanon
(2008, p. 33), a linguagem tem papel fundamental nessa construção.
“Atribuímos uma importância fundamental ao fenômeno da linguagem. [...]
Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a
morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura,
suportar o peso de uma civilização.”
Outro fator que interfere simbolicamente na construção da identidade é
quanto aos elementos de representação de uma civilização. Assistindo à
multidão que povoa as ruas do Rio de Janeiro, Isaías percebe certa diferença
entre ele e aquelas pessoas pelo fato de elas se apropriarem de produtos que
marcam a posição de uma pessoa na sociedade, na época eram elementos
representativos de uma elite branca
Parava diante de uma e de outra, fascinado por aquelas coisas
frágeis e caras. As botinas, os chapéus petulantes, o linho das
roupas brancas, as gravatas ligeiras, pareciam dizer-me: veste-
me, ó idiota! Nós somos a civilização, a honestidade, a
consideração, a beleza e o saber. Sem nós não nada disso;
nós somos, além de tudo, a majestade e o domínio!
(
BARRETO, 2006
, p.40)
Não demorou muito para que Isaías percebesse que aquele novo mundo
que ele estava descobrindo não era “mar de rosas”. O mundo se apresentaria
diante dele como um sistema de opressão. Caminha tem um grande choque
quando se depara diante daquela nova realidade, passa a se como um
estranho. “Relembrava-me da minha vida anterior; sentia muito abertos os
ferimentos que aquele choque com o mundo me causara” (p.101). Defrontava-
se agora com a discriminação, com a preterição por causa da cor. voltando ao
episódio do troco, Isaías procura encontrar razão para o tratamento que
recebera.
Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: “Oh! Fez
o caixeiro indignado e em tom desabrido. Que pressa tem
você?! Aqui não se rouba, fique sabendo?Ao mesmo tempo
ao meu lado, um rapazola alourado, reclamava o dele, que lhe
foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os
olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha
indignação. Curti durante segundos, uma raiva muda, e por
pouco ela não rebentou em pranto. Trôpego e tonto, embarquei
e tentei decifrar a razão da diferença dos dois tratamentos. Não
atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a minha
pessoa... Os meus dezenove anos eram sadios e poupados, e
o meu corpo regularmente talhado. (BARRETO, 2006, p.24-5).
A razão do tratamento desigual que Isaías, na sua inocência, ainda não
entendia, estava na cor da pele, na diferença. Com esse exemplo, Lima Barreto
mostrou que a discriminação e o preconceito se concretizam nas pequenas
ações, nos atos do dia-a-dia. Muitos chegam a pensar que o preconceito se
evidenciaria em concorrências públicas, na escolha de uma pessoa para os
bons empregos do alto escalão do governo, na política e em coisas
semelhantes. Mas aqui, Lima Barreto explicitou um preconceito que já faz parte
da vivência do brasileiro, está impregnado nos costumes, nas ações mais
simplórias do nosso cotidiano. Esse preconceito age para criar a imagem do
diferente, do outro, com a finalidade de que ele passe a não se como parte
constituinte dessa sociedade.
A crítica que é levantada no romance visa mostrar como a nova
sociedade, a República, tratava os negros. Havia um pensamento que após a
Abolição da escravidão, a situação do negro seria bem melhor: ganharia sua
liberdade, teria os mesmos direitos dos brancos, teria oportunidade de competir
no mercado de trabalho igualmente com os brancos. Mas, a condição do negro
após a abolição ficou pior do que antes dela. Os escritores do período pós-
abolicionista não se preocupam em pensar a realidade do negro, mais do que
isso, apresentar um plano de valorização e de afirmação da identidade do
negro. O primeiro a fazer isso foi Lima Barreto, conforme Machado (2002 p.
95),
de acordo com Alfredo Bosi (1992), Lima Barreto foi o primeiro
escritor mulato no Brasil que se formou depois da Abolição da
Escravatura. (...) homens que precederam Lima Barreto, como
Luís Gama, André Rebouças e José do Patrocínio, lutaram
pela libertação de sua raça, mas não construíram propostas
consistentes para seu futuro.
Isaías Caminha, após ser vítima do preconceito e se defrontar com uma
sociedade superficial e excludente em que os políticos estão sempre a serviço
das classes privilegiadas, quando dirigiu-se ao deputado Castro para receber
dele a indicação para o emprego, defrontou-se com a falta de pudor público, a
falta de ética que impera no meio político, percebeu com que desmandos e
indiferença tratam os mais frágeis, Isaías desabafa, demonstrando sua
angústia de mulato:
Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-
me uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei
amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos
contrapesos da sociedade; senti-os por toda a parte,
graduando os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os
insuperáveis e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao
mínimo, a achatar-me completamente...( BARRETO, 2006,
p.53).
Na luta pela sobrevivência no Rio de Janeiro, Isaías enfrentou os mais
diversos problemas. Bateu em muitas portas em busca de emprego, de uma
colocação para poder custear os seus estudos, apelou para amigos e
conhecidos com quem tinha travado conhecimento, recorreu a políticos, mas
tudo lhe parecia contrário, as portas estavam fechadas, ninguém o queria para
trabalhar, ninguém o aceitava no seio do seu convívio e as coisas pareciam
convergir conjuntamente contra aquele pobre rapaz. Mas, qual a razão para
tanto? O próprio Isaías explica:
O caminho na vida parecia-me fechado completamente por
mãos mais forte que a dos homens. Não eram eles que não me
queriam deixar passar, era o meu sangue covarde, [...] O que
me fazia combalido, o que me desanimava eram as malhas de
desdém, de escárnio, de condenação em que me sentia preso.
(Isaías Caminha, p.67).
duas observações pertinentes a serem feitas da citação acima. A
primeira diz respeito à origem de Isaías “meu sangue covarde”. A impressão
que se pode ter é que Lima Barreto acreditava no determinismo, corrente
filosófica de seu tempo que pregava que o desenvolvimento social do sujeito
está condicionado a fatores naturais. No entanto, podemos perceber o tom
irônico que Lima Barreto se utiliza para falar da camuflagem da ideologia dos
dominantes, querendo fazer crer que essas barreiras são impostas por mãos
inumanas.
A segunda observação é no sentido de perceber o quanto o sujeito se
sente incomodado com a visão preconceituosa que os outros têm a seu
respeito. Assim, a identidade é formada pelo olhar do outro.
Depois de muitos reveses na vida, de muito bater em portas, de sofrer
até mesmo fome, depois de experimentar dos mais diversos tipos de
tratamentos desumanos e passar por muitas humilhações, Isaías Caminha
consegue um cargo de Contínuo na redação do jornal O Globo. Trabalhando
naquele ambiente, Isaías vai se deparar com o mundo da imprensa e conhecer
os desmandos que existem na formação da opinião nacional, não deixando de
fazer observações contundentes.
Naquela hora, presenciando tudo aquilo, eu senti que tinha
travado conhecimento com um engenhoso aparelho de
apreciações e eclipses, espécie complicada de tablado de
mágica e espelho de prestidigitador, provocando ilusões,
fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com
pedacinhos de chumbo, uma máquina Maccioni e a estupidez
das multidões. Era a imprensa, a onipotente imprensa, o quarto
poder fora da constituição!(BARRETO, 2006, p.99).
Lima Barreto utilizou o instrumento da literatura para denunciar que a
imprensa cria estereótipos, seleciona como inteligente, como superior, aqueles
que ela quer fazer grandes e rebaixa aqueles a quem quer como inferior e
submisso. O Jornalismo está sempre voltado para atender aos interesses das
classes favorecidas. “O jornalismo tem ressonância pública imediata, o que
leva a não se escrever o que possa desagradar os donos do poder, sendo a
coluna social a mais clara expressão do princípio bajulatório.” (KOTHE, 2004,
p. 69). Isaías Caminha passa a ter uma visão antagônica a respeito das letras,
da ciência e da política. Implicitamente, está condenando tudo o que o branco
valoriza e tem como seus maiores bens.
...fiquei tendo um grande nojo, por tudo quanto tocava às
letras, à política, e à ciência, acreditando que todas as nossas
admirações e respeitos não são mais que sugestões, embustes
e ilusões, fabricados por meia dúzia de incompetentes que se
apóiam e se impuseram à credulidade pública e à insondável
burrice da natureza humana. (
BARRETO, 2006
, p.158)
Os exemplos apresentados até aqui o suficientes para mostrar que
Isaías tem sua identidade formada a partir do confronto com um mundo e que
desse confronto, ele vai sair extremamente marcado. Vai criar uma espécie de
ódio à inferioridade que o branco havia incutido nele. “Dessa vez tinha-o
compreendido, cheio de ódio, cheio de um santo ódio que nunca mais vi chegar
em mim. Era mais uma variante daquelas tolas humilhações que eu sofrera;
era o sentimento geral da minha inferioridade, decretada a priori, que eu
adivinhei na sua pergunta.” (p.62)
Isaías Caminha passa a viver numa dialética de apropriação e repulsa
aos valores e costumes daquela sociedade. “Incrustado no seu canto como
ostra na concha (metáfora cara ao narrador), ele passa por um processo
bivalente de modelagem pelo meio e resistência ao meio, do qual emerge o
ponto de vista complexo das Recordações.” (BOSI, 2002, p. 200).
Embora esteja mergulhado neste mundo em que se sente perdido,
Isaías não se agasta, encontra forças para resistir ao sistema de imposição a
que tinha sido submetido. Primeiro, ele nega os valores dessa elite, depois foge
dela. É na fuga, que chegamos à terceira fase da vida de Isaías. Após ter
passado por problemas os mais diversos e ter construído sua identidade de
negro no entrechoque das relações sociais do universo da impressa, onde
conseguiu, graças à vida desregrada dos diretores do jornal, assumir o posto
de jornalista, resolve se voltar para o seu estado inicial. Pede que seja
nomeado escrivão numa secretaria num lugar distante no interior do Espírito
Santo, onde passa a viver praticamente isolado do mundo “civilizado da cidade
grande.”
Atitude de fuga é uma forma de protesto, através do insulamento, é uma
forma de dizer não à sociedade burguesa e elitista. Além do mais, pelo pouco
que nos é apresentado nas memórias desse último estágio, a vida de Isaías
parece mais tranqüila. Vivendo praticamente sem manter relações, pelo menos
intelectuais com ninguém. Casado, vive na calmaria do interior.
Lima adota nos personagens, como Isaías Caminha e Policarpo
Quaresma, essa postura de, num determinado momento se isolar da
civilização, como também na sua vida, ele não era dado a multidões. Essa
atitude é uma tentativa de se encontrar consigo, de se fechar para deixar de
presenciar as injustiças sociais, cometidas principalmente contra os fracos.
Isaías Caminha personifica e expressa a angústia de todos os
humilhados, do negro, que por muitos séculos foi tratado de forma totalmente
desumana. Assim como aquela mulher negra que, quando estava na delegacia,
brigando por causa de um ovo de galinha, chorava, protestando a sua dor e a
dos seus ascendentes.
As palavras saiam-lhe animadas, cheias de uma grande dor,
bem distante da pueril querela que as provocara. Vinham das
profundezas do seu ser, das longínquas partes que guardam
uma inconsciente memória do passado, para manifestarem o
desespero daquela vida, os sofrimentos milenares que a
natureza lhe fazia sofrer e os homens conseguiram aumentar.
(
BARRETO, 2006,
p. 60)
A obra de Lima Barreto nasce dessa dor universal, “desgosto que me
fará grande,” como forma de purgação não somente de sua dor, mas da de
todo o negro, com quem ele tem uma relação de identidade. Isaías mantém
uma identidade com a dor alheia, como observa Bosi (2002:207) “No momento
da empatia com a dor alheia o eu se descobre no outro sem perder a
consciência de si mesmo. O que aproxima o eu do outro e lhe permite
experimentar o sentimento da comunhão é o passado comum de sofrimentos
milenares.” A essa forma de purgação da dor alheia Fanon (2008, p.130)
chama de Catharsis coletiva, mostrando que “Em toda sociedade, em toda
coletividade, existe, deve existir um canal, uma porta de saída, através do qual
as energias acumuladas, sob forma de agressividade, possam ser liberadas.”
Assim, Isaías Caminha carrega em si o que poderíamos chamar de angústia
cristalisada. A obra se constitui numa transposição da dor real e coletiva para
um sujeito no plano literário.
A catharsis coletiva de Fanon se aproxima do inconsciente coletivo de
Jung. No entanto, Fanon prefere analisar essa dor coletiva pelo viés do
colonialismo, em que atua a imposição cultural ao que ele chama de
“imposição cultural irrefletida” não na perspectiva de herança cerebral. “Sem
falar em catarse coletiva, seria fácil demonstrar que o preto, irrefletidamente,
aceita ser portador do pecado original. [...] O negro antilhano é escravo desta
imposição cultural.” (FANON, 2008, p.162). Assim, a angústia de Lima Barreto
é a angústia do negro, acumulada ao longo de todo o período de sujeição ao
branco. “Façam como eu: sofram durante quatro séculos, em vidas separadas,
o clima e o eito”. (BARRETO, 1997, p.23)
Nesta perspectiva, Lima Barreto mostrou que existe uma estrutura
política e social que “fabrica” e difunde a imagem do negro, numa tentativa de
gerar nele uma consciência de frustração e de inferioridade, fazendo com que
se sinta o “outro”, marginalizado e com sentimentos de revolta. Pode-se
perceber que estes mecanismos continuam atuantes na sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A busca de uma identidade que se apóie na pertença a um grupo geo-
político ou cultural é uma tendência na modernidade. O período que
compreendemos como modernidade ocidental, no qual se processam
mudanças essenciais na sociedade, é um momento marcado pela
efervescência cultural e científica. Os períodos que vêm posteriormente aos
séculos das luzes são caracterizados por uma busca incessante de se explicar
os fenômenos sociais à luz das ciências.
De forma exacerbada, as teorias racistas, que surgem na Europa e se
propagaram pelo mundo especialmente a partir do século XIX, amparadas em
doutrinas e teorias naturalistas e de inspiração evolucionista, criaram um
sistema axiológico a respeito das relações entre os grupos étnicos e foi capaz
de legitimar o racismo, o preconceito e a discriminação. Uma análise mais
profunda dessa questão mostra que o pensamento de que existem raças
inferiores e superiores atende aos interesses dos grupos dominantes que se
utilizam de discursos totalizantes para manter o estigma imposto às classes
inferiorizadas.
Na modernidade, a identidade tem sido pensada e concebida numa
perspectiva fragmentária em que o sujeito moderno passa por um processo de
mudanças profundas na sua forma de ver de se enxergar frente ao mundo,
sendo que dependendo da posição que o sujeito ocupe, ele pode assumir
identidades variadas. No entanto, essa fragmentação não deve ser vista no
sentido negativo de divisão ou negação do ser, mas como uma forma de
ajustamento do sujeito ao meio nas suas mais variadas formas.
No tocante à afirmação da identidade de grupos minoritários, que se
sempre através da afirmação do pertencimento, percebe-se uma tendência à
fixação da identidade, uma vez que essa afirmação se através dos embates
que são travados no espaço das relações de poder. Como observa Munanga
(1995, p.71) “Toda a problemática do contato entre identidades diferentes está
na questão da partilha do espaço. Nessa partilha, o racismo visa
principalmente não à intolerância daquele que é diferente, mas sim o medo e o
horror da semelhança escondida na diferença.” Assim, ao afirmar sua
identidade por meio da pertença, o sujeito está em luta ou em contato
reclamando direitos que, por muitas vezes, lhe foram negados.
Nesta perspectiva, pensa-se a identidade do ponto de vista da
imposição cultural (identidade imposta) do sistema de dominação, através da
qual o sujeito está obrigado a assimilar a cultura do outro. No processo de
colonização, tem-se muito claramente a sobreposição da cultura do
colonizador. No entanto, a história moderna registra momentos de ruptura de
alguns grupos inferiorizados com o sistema de dominação, quebrando com os
discursos cristalizados.
Pensar a identidade do negro no Brasil implica levar em consideração
todos esses aspectos das relações de poder e dominação que imperam em
nosso país. A história da colonização do Brasil está pautada pela exploração
dos grupos inferiorizados que foram ao longo dos tempos marcados pelos
casos de discriminação e preconceito, embora tenhamos entre nós o mito de
que vivemos numa democracia racial, num país em que todos os grupos
convivem harmonicamente, sem a incidência de conflitos. No entanto, os fatos
apontam para uma história de injustiças e de negação da cidadania às
“minorias”.
A literatura de Lima Barreto traz uma riqueza de textos literários, desde
os romances, contos, à literatura jornalística, que plasmam essas relações.
Lima Barreto, embora tenha vivido em uma época de explosão das teorias
racistas e surgimento do racismo científico, não se deixa enveredar por tais
discursos. Sua produção literária é socialmente engajada, visando romper com
toda forma de imposição e perpetuação dos estereótipos de inferioridade.
Ainda que esteja intimamente ligado à questão da discriminação, por ter
experimentado-a na sua própria vida, ele consegue falar sobre o negro,
apresentar seus males, sem ficar preso ao tipo inferiorizado. Ele apresenta
uma forma de resistência à cultura branca eurocêntrica.
Com base na análise das obras escolhidas como corpus deste estudo,
pode-se inferir que a identidade do negro, se constrói, num primeiro momento,
a partir da relação com o branco (o outro idealizado), por meio dos sistemas de
simbolização da cultura branca, mas que, num segundo momento, se reverbera
numa atitude de negação.
Assim, Lima Barreto quebra com todo e qualquer forma de imposição
cultural, procurando identificar-se e identificar suas personagens como o
homem universal. Nessa perspectiva, toda categorização é digna de ser
rejeitada. Nesse contexto, pode-se afirmar que Lima Barreto é um escritor
moderno ou pelo menos apresenta sua produção literária numa perspectiva
moderna.
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